Skip to main content

Full text of "Curso de historia do Brasil"

See other formats


■CD 


CO   W  ff 


y 


k%> 


/    i 


/ 


•3 


iii 


lljllll 


Í!i(!SííUÍMSt!l!uíu!i!iiM!llíl!SéifiiuuuS!SiiSui!Suiíl 


íi.m: 


PURCHASED  FOR-THE 

Unwersiiy  o f  Toronto  Ubrary 

BY 


ffi 


^rascan 


FOR  THE  SUPPORT  OF 

BrnziUaji  Studies 


:;i:i 


|!:!:i:!!!!i:í: 


ilIlltlllIlUI!! 
II)IIIII]<ÍkI 


''''Mi 


!|>!í|)JH!Ílj||| 


liíliíiilRÍtltl 

iriijji^ianiiir' 

bfi  vníiSiíii' 

^lli!!il!KÍIII! 


iiiiiíi;;i! 


;:■?!:::!::: 


-.UiítU. 

■llirlii. 

lllíiiii 


!!!i;;!:!!i:::!f!;:í!!)- 

;;|í!|!|!!||||S!ii|t!SIÍ|iiilíl|!!!l!l;i 

;;:;!:".ii(;Ei!ir 

i:;f'ni.j:(!;!i:.,. 


iíií 


:;!ti!!!!!:::;;i 


;':l::l!!!!l!S!!ll:!!!!!;!(:i!l!!!!!!!ll!!!!!^ 


;:::;::;i:r:(::::í:!:!:!::;:;t:i::!;:;::::!::!:; 

...  ■..';":"r!!!;:;!:!;:;;::;;:;f;:i;;i:!!:::;:;!!:!::::;:;;:::;::;;-::-;::;;;;;;':::::i::;:;!:;r::;!!:;;;í;;;;',;í;:;;í;:u:::; 


■IJ! 

iiti 


1ÍlÍ!p:iip!:H!Íi;;!:iiÍÍÍÍÍ!íiil!ilH 
iiiiiiiiiiiiiilíiiiliiiilllililiiiil^  ■ 


iiiiiiiliiijiillliilliiiljjiiijjíijjiiillijjp! 


Bibliothecâ  da  ''Livraria  do  Povo 


jj 


CURSO 


DE 


BliSTORiA  DO  Brasil 

H  POR 

4i|i|ikl  ||ascarcn|as 

Rotlactor-clicfe  d'«  O  Nacional »,  jornal  de  combale,  luililicado  na  Capital  Federal, 

durante  os  annos  de  1894-1807, 

o  autor  das   «Lições  de   Historia  Geral». 


^(2^=^#fe©-5 


'--^^-^^e^p^-^ 


<M 


RIO     DE    JANEIRO 

SiYEAiR3A  D©  ^OT©*- QUARESMA  &  C.-Livreiros-Editores 

-  -ê* — 

65  E  67,  RUA  DE  S.  JOSÉ,  65  e  67 
1  ^^  et 


íi 


i— — ayi— — — — aaMi 


li  I!  BTiM  11 IHI 


M 


««•««vwwwwvvwwvvwvwwwwwwwpwvwwvwvwvvvwqM 


91^ARES1I4  O:  C.  —  Livi-ciros-odiloros 

O  RAS  DO  MESMO  AUTOR 

LIÇÕES  DE  HISTORÍA  GERAL 

OKGAISISADAS    DE    ACOEDO   COM  O  ACTUAL  PEOGEAMMA 

APPEOVADO  PELA   INSPECTOBIA  GEEAL  DE 

INSTEUCÇÃO   PUBLICA   PAEA  OS  EXAMES  GEEAES 

POR 

ANNIBAL  MASCARENHAS 

Um  bello  volume  encadernado SãOOO 

Este  trabalho,  que  ainda  em  manuscripto  recebeu  a  approva- 
ção  de  numerosos  e  habilitadíssimos  professores  aos  quaes  foi 
apresentado,  é  o  único  que  pôde  servir  aos  examinandos  de  histo- 
ria, pois  nelle  encontrarão  claras  dissertações  sobre  todos  os 
pontos  do  programma  para  os  exames,  dissertaçõ^-s  estas  escn- 
ptas  de  accordo  com  o  espirito  que  dictou  aquelle  programma,  e 
que  tende  a  dar  nova  orientação  aos  estudos  históricos. 

Os  pontos  mais  difficeis  du  programma,  taes  como  os  que  se 
referem  a  prelilstoria,  aos  primeiros  typos  sueiaes,  á 
seiencia  da  historia,  da  quat  se  deduzem  os  dados  cos- 
iMol  ^icos,  physicos  e  psychologlcus,  foram  tratad  is 
com  toda  a  proficiência  e  orientação  didáctica  pelo  sr.  ANNIB\L 
MASCARENHAS,  que,  sem  refolhos,  explanou  esses  variados 
assumptos  de  modo  a  facilitar  a  sua  compreensão  a  todas  as 
intelligencias. 

Descrevendo  as  antl^^as  eiFillsaçòes,  o  autor,  para  ?e 
conformar  com  o  programma  e  poder  offerecer  um  livro  de 
utilidade  real  aos  estudantes  de  historia,  poz  em  evidencia  a 
influencia  do  habitat  e  a  razão  do  apparecimento  dos  diversos 
factos  históricos. 

Podemos  assegurar  que  sobre  o  assum.pto  não  foi  ate  hoje 
entre  nós  publicado  trabalho  de  tanta  importância,  quer  pelo 
methodo  de  exposição  quer  pela  clareza  da  linguagem. 


HISTORIA  DA  AMERICA 

Destinada  aos  collegios  de  segundo  grau 
Um  grosso  volume  de  500  pags  ,  (no  prelo) 

!íí®  conselheiro  J.  M.  PKUEIKA  DA  SSL. VA 

A  Historia  e  a  Legenda.  4  grussos  vois 135000 

A  mesma  obra  encadernada  25^1000 

Os  Uictadores  da  America,  1  grosso  vol 4SO0O 


LTVEAEIA  DO    POVO  —  Eua  de  S.  José  65  e  67 


BIBLIOTHECA  DA  LIVRARIA  DO  POVO 


CURSO 


DE 


HISTORIA  DO  BRASIL 


POR 


innibal  lascaronhas 

AIaJOR    HDNORARIO     do       EXERCtTO     BRASILEIE^O 


RIO  DE  JANEIRO 

LtVR\RI4    DO  POVO --QI  ARESMA  Jt  C,    Livreiros-editores 

05  E  67       RUA  DE  S.  JOSÉ       65  E  67 


INTRODUCÇÀO 


Este  livro  é  apenas  um  modesto  trabalho  de  vul- 
garisação;  traduz  um  estorço  applicado  em  beneficio 
dos  que  precisam  ou  desejam  adquirir  uma  noção 
exacta  do  que  temos  leito  como  povo,  e. . .  mais  nada. 

Sem  possuir,  no  entanto,  maior  pretenção  que 
a  de  servir  com  vantagem  ao  ensino,  ou  talvez  por 
isso  mesmo,  não  podiamos  deixar  de  affeiçoal-o  á 
moderna  comprehensão  dos  estudos  históricos^  pro- 
curando observar  n'elle,  tanto  quanto  nos  fosse  pos- 
sível, os  preceitos  impostos  pela  sciencia  contempo- 
rânea. 

Assim,  não  daremos  começo  á  tarefa  que  nos 
impuzemos  de  escrever  a  historia  do  Brasil,  abor- 
dando desde  já  e  de  modo  abrupto  os  succcssos  que 
derivam  da  conquista  européa,  pois  os  preceitos  a 
que  alludimos  impõem  a  obrigação  de  nos  occupar- 
mos  antes  de  tudo  com  uns  tantos  prolegomenos  ade- 
quados á  formação  de  uma  base  que  sirva  á  critica 
de  ponto  de  partida  para  a  explicação  racional  dos 
factos  históricos  e  elucidação  das  causas  que  os  pro- 
moveram . 

Embora  desornados  dos  episódios  mais  ou  me- 
nos romanescos  que  enfloram  a  historia  propria- 
mente dita,  esses  preliminares  são  no  entanto  indis- 
pensáveis, e  desprezal-os,  seria  proceder  com  a  im- 
previdência do  artista  que,  trabalhando  por  erguer  um 
monumento,  não  se  preoccupasse  com  a  natureza  do 
terreno  a  construir.  As  consequências  seriam  lamen- 
táveis: a  inconsistência  do  solo  e  o  inevitável  alui- 
mento  deste,  depois  de  começado  o  trabalho,  de- 
terminariam dentro  em  breve  a  inutilisação  do  es- 
forço artistico;  o  monumento  levantado  com  o  al- 
tivo empenho  de  exteriorisar  em  linhas   irreprehen- 


HISTOEIA  DO  BRASIL 


siveis  e  harmónicas  ura  ideal  superior  de  belleza, 
antes  mesmo  de  lhe  arabescarem  a  flecha  final  ou 
lhe  sobreporem  a  cúpula,  desconsolaria  por  sua  cha- 
tez  e  inexpressão.  Ás  columnas  desaprumadas,  o 
pavimento  desigualado,  os  fustes  esbugalhados,  as 
cornijas  torcidas  e  tudo  pendendo,  acachapando-sc, 
enviezando-se  n'um  strabismo  doloroso,  transfor- 
mariam a  magestosa  obra  d"arte  n'uma  balbúrdia  de 
materiaes  de  construcção,  que  nada  exprimiria, 
nada  communicaria  c  da  qual  o  viandante  desviaria 
os  olhos  por  um  movimento  automático  de  repulsão, 
temendo  que  se  lhe  assentasse  por  muito  tempo  no 
espirito  aquella  impressão  atordoante  do  chãos. 

O  mesmo  acontece  com  a  historia.  Para  que  o 
drama  da  vida  de  um  povo  seja  perfeitamente  com- 
prehensivel,  quer  nas  suas  linhas  geraes,  quer  na 
miudeza  dos  seus  detalhes,  precisamos  ouvil-o  desde 
o  prologo,  mesmo  quando  esse  prologo,  como  acon- 
tece nas  velhas  peças  do  repertório  antigo,  é  reci- 
tado antes  de  subir  o  panno  e  por  ura  personagem 
que  nos  ademanes,  trajes  e  linguagem  parece  destoar 
do  espirito  das  scenas  que  em  seguimento  irão  de- 
senrolar-se. 

Por  conseguinte,  não  nos  é  perraittido  consi- 
derar o  nosso  theraa  só  do  momento  em  que  a  his- 
toria se  torna  realmente  visivel  e  transportar  já  para 
esta  primeira  pagina  o  imponente  espectáculo  das 
naus  européas  a  se  abeirarem  da  virgem  terra  brazi- 
leira,  afim  de  consorcial-a  pelo  sacramento  da  civi- 
lisação  cora  o  velho  e  polido  continente  transatlân- 
tico ;  para  nos  apoderarmos  dos  necessários  elemen- 
tos de  critica,  que  no  desenvolvimento  do  assumpto 
histórico  faremos  projectar  sobre  os  acontecimentos 
afira  de  illurainal-os  e  comprehendel-os  no  banho 
d^essa  claridade,  temos  necessidade  de  começar  de 
mais  longe  a  nossa  tarefa. 

Cumpre,  em  primeiro  logar,  possuirmos  uma 
noção  exacta  da  estruclura  do  solo  em  que  pisamos 
e  sobre  o  qual  vão  desdobrar-se  os  acontecimentos 
históricos,  muitas  vezes  por  elle  imj>rcssionados. 
Para  isto  temos  necessidade  de  nos    transportar   a 


IXTRODUCÇAO 


essas  remotas  eras  sem  historia,  nas  quaes  só  é  dado 
ao  geólogo  penetrar  e,  partindo  do  periodo  em  que  se 
constituiram  as  primitivas  rochas  da  crosta,  virmos 
subindo  pela  escada  millenar  dos  gneiss  e  sedimen- 
tos stratiíicados  até  á  epocha  da  formação  dos  de-» 
positos  quaternários  e  phenomenos  mais  recentes 
ainda;  depois  teremos  que  considerar  nas  suas  linhas 
geraes  e  contornos  mais  incisivos  o  aspecto  geogra- 
phico  e  bem  assim  as  condições  topographicas,  cli- 
matéricas e  biológicas  do  paiz,  as  quaes  determinam 
um  conjuncto  de  circumstancias  que  deve  ser  ponde- 
rado como  factor  legitimo  na  solução  do  problema 
histórico;  em  seguida  impõe-se  a  obrigação  de  inda- 
garmos a  obscura  e  indecisa  prehistoria  da  região  e, 
tanto  quanto  for  possivel,  procurar  conhecermos  os 
esforços  despendidos  com  o  intuito  de  fazer  desappa- 
recer  o  hiatus  que  a  separa  da  historia, bem  como  os 
resultados  que  dos  mesmos  já  é  permiltido  tirar;  fi- 
nalmente, temos  a  considerar  os  differentes  factores 
ethnicos  que,  isolados,  combinados  ou  fundidos 
irão  concorrer  para  o  enredo  dos  factos  e  determi- 
nar as  feições  typicas  da  historia. 

Eis  do  que  se  occupará  esta  introducção,  c  como 
nosso  livro,  segundo  já  dissemos,  destina-se  especial- 
mente ao  ensino,  entendemos  que  não  seria  inútil 
consagrar  algumas  paginas  á  exposição  dos  princípios 
geraes  de  certas  sciencias  que  nos  serão  de  auxilio 
directo  no  estudo  da  historia.  São  estas  sciencias— a 
geologia,  a  antropologia,  a  pale(jethnogia  e  as  leis 
geraes  da  evolução  da  civilisação  humana,  cujas 
noções  os  leitores  encontrarão  a  seguir  e  em  typo 
menor. 


Noções  de  geologia 


Como  todos  os  astros  que  constituem  o  nosso  systema  pla- 
nelario.  a  terra  acliava-se  primitivanioníe  incorporada  ao  sol, 
com  o  qual  constituía  uma  só  massa  em  estado  gazoso  e  sob  a 
forma  de  nebulosa. 

A  temperatura  d'este  ajíre^^^ado  de  fluidos  aeriformes,  no  pri- 
meiro momento  de  sua  separação  da  massa  solar,  era  excessiva, 
porém  pouco  a  pouco  foi  c;edendo  aos  espaços  interplanetarios 
uma  parte  do  seu  calor  e,  em  consequência  deste  resfriamento 
continuo,  no  flm  de  um  certo  tempo  que  não  se  pôde  precisar,  a 
terra  do  estado  gazoso  em  que  se  achava  passou  ao  ^estado 
liquido. 

O  resfriamento  foi  no  entanto  parcial:  nem  todas  as  matérias 
gazosas  passaram  no  mesmo  momento  ao  estado  liquido ;  uma 
parte  das  mesmas  pf^rsistio  sob  a  forma  de  vapor  envolvendo  a 
terra  de  uma  athmosiphera,  na  qual  se  encontrava  em  estado  ga- 
zoso a  massa  enorme  dos  mares  actuaes  e  bem  assim  diversas 
substancias  metallicas  ou  de  outra  natureza,  as  quaes,  pela  conti- 
nuação do  phenomeno  do  resfriamento  foram  depositando-se  em 
camadas  de  substancia  concreta  que  primeiro  fluctuaram  iso- 
ladamente sobre  a  superfície  liquida  e  depois  soldaram-se,  dando 
origem  a  uma  crosta  solida. 

Persistindo  o  phenomeno  das  precipitações  athmosphericas 
e  tendo  logar  cintinuamente  ejecções  de  matérias  interiores  que 
rompendo  aqui  ou  alli  a  crosta  derramavam-se  pela  superfície  e 
passavam  immediatamente  ao  estado  solido  por  effeito  da  mu- 
dança de  temperatura,  a  crosta  terrestre  foi  augmentando  gra- 
dualmente, até  adquirir  :i  espessura  que  hoje  tem  e  que  não  é 
a  definitiva  visto  persistirem  as  mesmas  causas,  embora  atte- 
nuadas,  que  presidiram  á  sua  formação. 

A  iSCieniCIA  D.\  G(<:OLOGI<V  —  Exposta  como  acima 
ficou  a  hypothese  mais  provável  sobre  a  origem  da  terra  e  de  sua 
crosta,  passemos  á  demonstração  dos  princípios  geraes  da  geolo- 
gia, sciencia  que  estuda  a  estructura  dessa  mesma  crosta  e  nos 
explica  as  diversas  transformações  que  tem  ella  soffrido  ou  ainda 
soffre. 

Sendo  de  seiscentos  e  tf^ntos  kilometros  o  raio  da  terra^  e 
tendo  os  instrumentos  de  sondagem  só  alcançado  até  hoje  1700 
metros  de  profundidade,  pode-se  dizer  que  o  homem  apenas  tem 
conseguido  arranhar  a  superfície  da  volumosa  massa  do  pla- 
neta, e  contentado  a  sua  curiosidade  somente  com  o  rasgão  de 
uma  delgada  pellicula  ;  por  conseguinte,  a  geologia,  no  estado  ejn 
que  actualmente  se  acha  esta  sciencia,  não  pôde  ter  a  pri:tenção 
de  conhecer  a  constituição  interna  do  globo,  devendo  somente 
restringir-se  á  analyse  d'essa  parte  da  crosta  em  que  a  observação 
humana  tem  podido  exer-cer-se  e  só  por  inducções  muito  cau- 
telosas tentar  arregaçar  um  pouco  o  vau  que  encobre  o  mysterio 
central. 


HISTORIA   DO   BRASIL 


A  CROHTA  TERREJ^TRE.  —  A  crosta  terrestre  é  for- 
mada por  camadas  superpostas  de  massas  mineraes,  em  as  quaes 
ás  vezes  se  encontram  detrictos  vegetaes  e  animaes.  Estas  cama- 
das assentam  sobre  rochas  de  origem  ignea,  devidas  ao  resfria- 
mento de  matérias  que  outr'ora  faziam  parte  da  massa  incan- 
descente que  constituia  o  nosso  planeta  na  sua  origem. 

A  essas  roclias  de  origem  ignea,  quer  situadas  profunda- 
mente, quer  na  superfície,  chamam-se  phdonicas. 

Quando,  pelo  contrario,  as  camadas  estructuraes  da  crosta 
foram  depostas  pelas  aguas,  por  via  de  sedimento,  diz-se  que  têm 
origem  neptunina. 

A's  diversas  camadas  deu-se  o  nome  de  terrenos. 

Nem  Sempre  esses  terrenos  acham-se  dispostos  de  modo  re- 
gular, isto  é,  não  são  os  de  formação  mais  antiga  os  que  se  en- 
contram geralmente  nuiis  aífa-stados  da  superfície  :  múltiplos  e 
variados  jihenomenos  de  dvnamica  que  em  lodos  os  tempos  tém-se 
manifestado  no  interior  ou  na  superfície  da  terra  e  ainda  produ- 
zem-se  prolongando  indefinidamente  o  trabaltio  geológico,  per- 
turbam muitas  vezes  a  superposição  regular  das  camadas. 

Assiiii,  para  podermos  comprehender  as  singularidades  da 
crosta  terrestre,  convém,  em  primeiro  logar,  estudarmos  os  plie- 
nomenos  actuaes,  os  quaes  podem  ser  divididos  em  phenomenos 
de  (hjnamica  externa,  cujo  principio  essencial  reside  no  calor 
solar  e  phenomenos  de  dijnamíca  terrestre  interna.,  produzidos  pelo 
calor  central  do  planeta. 

PHE\'0]}IEi\0!S  DE  D\.\AM1CA  TERRRSTRE 
EX.TERc\A.—  Como  taes  devemos  comprehender  as  consequên- 
cias geológicas  produzidas  pela  intervenção  da  atmosphera,  do 
mar,  das  aguas  correntes,  do  gelo  e  bem  assim  as  que  se  mani- 
festam por  acções  dos  seres  vivos. 

As  mais  importantes  acções  atmosphericas  no  trabalho  geo- 
lógico são  as  dunas  ou  rabedellos ;  as  do  mar  são  as  erosões  das 
praias  e  os  depósitos  detricticos ;  as  das  aguas  correntes  são  as 
erosões  torreneiaes,  os  deltas,  os  cniions;  às  dó  gelo  são  as  ava^ 
lanches,  ns  ff  ele  iras  e  âs  fendas;  as  das  acções  "chimicas  são  as 
que  a  agua  do  mar  e  as  aguas  meteóricas  produzem  ;  as  dos  seres 
vivos  são  as  turfeiras  e  os  recifes  de  coral. 

Dunas  —  Em  consequência  das  alternativas  de  seccura  e 
humidade,  ou  por  outra,  sob  a  influencia  ae  variações  da  tem- 
peratura as  rochas  desaggregam-se. 

Os  detrictos  das  rochas,  principalmente  os  quartzos,  redu- 
zidos a  pequenos  fragmentos,  são  levantados  e  sacudidos  pelas 
correntes  atmosphericas  e  afinal  amontoados  em  valles  ou  de- 
pressões planas  do  solo  :  sendo  o  clima  bastante  secco,  de  modo 
anão  permittir  que  esses  fragmentos  sejam  carregados  pelas 
aguas  pluviaes,  forma-se  no  logar  do  deposito  uma  multidão  de 
montículos  instáveis  e  medões  de  areia  a  que  se  dá  o  nome  de 
dunas  ou  cabedellos 

O  velho  Forte  do  Caòedello,  na  Parahyba  do  Norte,  recebeu 
dos  antigos  portuguezes  este  nome  pelas  dunas  que  existiam  no 
local. 

As  dunas,  que  muitas  vezes  attingem  duzentos  metros  e  mais 
de  altura,  tanto  se  formam  no  interior  dos  continentes,  como 
nas   praias. 

Estas  ultimas,  quando  sua  altura  é  tal  que  o  vento  não  pode 
mais  fazer  com  que  os  grãos  de  areia  galguem-lhe  a  crista,  tor- 


INTRODUCglo 


nam-se  quasi  estáveis  e  podem  ser  definitivamente  fixadas]  pela 
vegetação. 

O  vento  pôde  levar  as  areias  muito  longe. 

((  A  areia  que  cahiu  a  7  de  Fevereiro  de  1863  sobre  aparte 
oriental  das  Ilhas  Canárias,  veio  do  Saliara,  isto  é,  de  uma  dis- 
tancia de  320  kiiometros,  pelo  menos.  Mais  recentemente  viram- 
se  cmzas  do  incêndio  de  Chicago  (Estados  Unidos)  chegar  ás  Ca- 
nárias quatro  dias  dep  )is  do  começo  desta  catastrophe.»  (1) 

\  erosão  marinha.— A.  acção  constante  das  vagas  nas 
rochas  e  argillas  das  praias,  já  preparadas  para  a  desaggregação 
pela  infiltração  das  aguas  pluviaes  e  pelas  alternativas  da  tem- 
peratura, fazem,  por  effeito  da  erosão,  recuar  pouco  a  pouco  as 
costas. 

Os  detrictos  mais  duros,  provenientes  da  erosão,  perma- 
necem na  praia  e  ahi,  sacudiíios  continuamente  pela  maré,  ar''e- 
d  )ndam-se,  transformando-se  em  seixos  :  outros  menos  coheren- 
tes,  reduzem-st;  a  iragmentos  miúdos  e  transportados  pela  vaga 
de  retorno  accumulam  se  diante  dos  seixos,  formando  primeiro 
uma   praia.de  rasca/hos  e  depois  de  areia  fina. 

A'  força  de  degradar-se,  a  costa  acaba  por  ad  luirir  um  perfil 
que  a  torna  pouco  accessivel  ás  vagas,  entre  as  quaes  vão  se  in- 
terpondo os  medões  das  dunas,  os  quaes,  se  conseguem  ser  fixados 
pela  vegetação,  deixam  atraz  enseadas  ou  la/funas,  como  vemos 
um  exemplo  no  littoral  do  Rio  Grande  do  Sul. 

Finalmente,  o  valor  da  erosão  marinha  é  muito  variável. 
((  Póde-se  julgal-o  quando  se  compara  a  estabilidade  quai=i  abso- 
luta das  costas  da  Bretanha  com  a  erosão  das  penedias  de  la  Héve 
progredindo  á  razão  de  25  ou  30  centímetros  por  anno,  e  mais 
ainda  com  o  ataque  de  certas  costas  da  Inglaterra  ou  do  mar  do 
Norte,  onde  a  ablação  annual  não  é  inferior  a  um  metro».  (2) 

Depósitos  sedínientares.  — Os  mais  finos  productos  da 
erosão  marinha,  isto  é,  aquelles  que  durante  mais  tempo  podem 
ser  conservados  em  suspensão  nas  aguas,  tal  como  a  lama  pro- 
veniente da  trituração  das  argilas,  vão  depo_sitar-se  mais  longe, 
nos  logares  em  que  é  menos  violenta  a  acção  das  ondas.  Ahi, 
esses  detrictos,  subtrahidos  ás  agitações  da  superfície,  descem 
por  uma  espécie  de  filtração  ás  aguas  inferiores  e  afinal  assentam 
no  fundo. 

Assim  originam-se  depósitos  de /orZo  ou  vasa,  onde  sempre 
seencDntra  detrictos  de  natureza  arenosa,  aos  quaes  se  .dá  o 
nome  de  depósitos  sedimentares,  o  que  quer  dizer,  depósitos  for- 
mados pela  queda  de  matérias  solidas  no  seio  das  aguas. 

As  leis  da  gravidade  determinando  a  disposição  irregular 
desses  detrictos,  a  maior  ou  menor  violência  das  marés  tornando 
variável  a  espessara  dos  deposito-,  verifica-se  na  mas-^a  sedimen- 
taria um  certo  numero  de  camad.is  ou  stractos  distinctos,  pelo 
que  dá-se  ao  conjuncto  dos  sedimentos  o  nome  de  depósitos  stra- 
tifirados.  O  phenomeno  da  stratificação  só  não  tem  logar  quando 
os  detrictos  são  finíssimos  e  cahem  em  agua  tranquilla. 

Nestes  depósitos  stractificados  encontram-se  sempre  de- 
trictos animaes,  contemporâneos  de  sua  formação. 


(1)    Paul  Gerv ais. —Geologie. 
2)    Albert  L.-xppARENT.— A67'e^(?  de  geologie. 


HISTORIA  DO   BRASIL 


A  estructura  dos  depósitos  estratificados  varia  conforme  a 
actividade  da  erosão  marinha  e  segundo  a  nature7a  das  rochas 
que  lhe  soffrem  a  acção,  dando  isto  em  resultado  apresentar 
uma  mesma  epocha  depósitos  muito  diíferentes,  não  só  quantp 
á  sua  natureza  e  espessura,  como  também  quanto  á  fauna  fóssil 
nelles  encontrada,  a  qual  pode  ser  littoral  ou  j^elasjica  fisto  é, 
de  alto  marj. 

Finalmente,  as  vasas  detricticas  só  em  casos  excepcionaes 
estendem-se  além  de  300  kilometros  das  costas,  havendo  por 
conseguinte  na  immensidão  dos  oceanos,  amplos  espaços  que 
não  são  revestidos  dessas  camadas  de  sediment'>s 

A's  vezes,  também,  encontram-se  nas  visinhanças  das  costas 
paragens  que  não  são  cobertas  de  sedimentos.  Dã-se  este  caso 
quando  por  ellas  passam  correntes  sufficientemente  poderosas 
para  varrer  o  fundo  do  oceano. 

Erosões  torrenciaes.— As  chuvas  e  os  diversos  cursos 
dagua  praticam  erosões  em  tudo  semelhantes  ás  do  mar.  As 
torrentes,  precipitando-se  das  montanhas,  abrem  sulcos  nos 
terrenos  e  rom  a  cont-nuação  fazem  desmoronar  as  bordas  dos 
mesmos  sulcos,  modificando  por  conseguinte  o  terreno. 

Uma  parte  das  aguas  da  chuva  evapora-se;  a  outra,  porém 
infiltra-se  no  solo  se  o  terreno  é  permeável  ou  escorre  se  elle  é 
impermeável  ou  em  declive  muito  forte.  Ora,  essas  aguas 
conlorme  a  sua  massa  e  rapidez  corroem  o  terreno  por  onde 
passam,  transportam  os  materiaes  moveis  e  aluem  as  rochas  ou 
as  desagregam. 

Devido  á  acção  constante  das  chuvas  encontra-se  em  muitos 
paizes  terrenos  que  pelo  effeilo  da  erosão  tomam  o  aspecto  de 
pilares  isolados,  arcadas  naturaes.  piramydes  de  terra,  etc,  etc. 

Os  deltas.  -  As  torrentes  fluviaes  e  pluviaes  arrastam 
diversos  detrictos  arrancados  violentamente  ou  por  erosão  e 
esses  detrictos  são  dejectados  no  ponto  em  que  a  torrente  es- 
praia-se  e  perde  a  violência,  dando  logar  ã  formação  dos  deltas, 
depósitos  sedimentares  de  forma  mais  ou  menos  triangular. 

Os  eaíions.— Quando  a  torrente  deslisa  sobre  um  terreno 
impermeável,  ou  quando  é  muito  f  )rte  o  declive,  o  trabalho  de 
erosão  eífectua-se  unicamente  no  alveo  do  curso  d'agua,  não  des- 
moronando as  bordas.  Então  tem  logar  as  formações  dos  canons, 
dos  quaes  os  mais  notáveis  são  os  do  Colorado,  medonhos  abj-smos 
de  paredes  algumas  vezes  verticaes  sobre  um  milhar  de  metros 
de  altura. 

AUuviòes.— Muitas  vezes  as  torrentes,  pela  impetuosidade 
com  que  deslisam,  exorbitam  do  próprio  canal  e  divagam  pelo 
terreno  por  novos  escoadouros,  atacando  as  partes  concavas  das 
margens  e  fazendo-as  desmoronar  por  porções ;  nas  margens 
convexas,  porém,  e  nos  remansos,  a  rapidez  dessas  torrentes 
amort'jce  e  os  productos  dos  desmoronamentos  depõem -se  for- 
mando alluviões. 

Outros  phenomenos  além  dos  que  mencionamos  são  determi- 
nados pelas  aguas  correntes,  e  basta  enumeral-os  para  se  com- 
prehendpl-os.  São  estes  phenomenos  mechanicos  os  desmorona- 
mentos, as  rachas  dos  terrenos,  as  f/rotas,  etc. 

Avalanches.— A  neve,  quando  cahida  em  regiões  de 
pouca  altitude,  derrete-se  pela  acção  dos  raios  solares  e  escorre, 
produzindo  sobre  a  crosta  terrestre  os  mesmos  efieitos  dyna- 
micos  das  aguas  das  chuvas ;  quando,  porém,  cahe  sobre  altas 


INTRODUCCAO 


montanhas,  onde  a  rarefacção  da  atmosphera  é  tal  que  o  calor 
da  estação  quente  torna-se  insuííiciente  para  derreter  a  totalidade 
das  neves  caludas  na  estação  fria,  os  phenomenos  geológicos 
por  ella  produzidos  são  outros  e  entre  os  mais  importantes 
acham-se  as  nrolanche-';,  grandes  massas  de  gelo  que  se  des- 
penham sobre  os  valies,  transportando  na  sua  queda  tudo  quanto 
encontram . 

Geleiras.  -As  geleiras  são  bacias  de  recepção  das  neves 
descidas  com  as  avalanches,  quando  a  natureza  do  terreno  sobre 
o  qual  ellay  escorrem  permitte  a  concentração  das  mesmas. 

Ora,  estMs  geleiras  quando  a  neve  é  excessiva,  transbordam 
e  produzem  no  (erreno  alterações  bastante  sensíveis. 

Acção  da  a;;^ua  do  mar.  —  Pela  evaporarão  natural 
da  agua  do  mar  íorma-se  um  deposito  de  sulfato  de  cal  ou 
gypso,  algumas  vezes  precedido  por  uma  precipitação  de  car- 
bonato de  cal,  substancia  ainda  menos  solúvel.  Accentuando-se 
mais  a  concentração  depõe-se  o  sal  marinho.  Quando  os  mares 
são  muitos  quenttís,  a  evaporação  sobro  as  praias  ó  sutíi- 
ciente  [lara  formar  sobre  os  grãos  de  areia  da  mesma  uma 
concrecçãfj  lie  carbonato,  de  cal,  o  qual  também  pôde  ag- 
glomerar  os  seixos  da  praia  em  poudingaoj^.  A's  vezes,  é 
uma  agua  fiirruginosa  que  se  infiltra  nas  areias,  como  acon- 
tece na  base  das  dunas,  a  qual  detendo-se  em  certa  profundidade 
dá  origem  ã  substancia  conhecida  pelo  nome  de  ali.os;  final- 
mente demonstram  as  dragagens  do  fundo  dos  oceanos  que 
existe  ahi  uma  argila  amarellada  formada  pela  decompo- 
sição na  agua  do  mar  dos  elementos  vulcânicos  do  fundo,  e, 
quando  sobre  esta  argilla  cahem  corpos  estranhos,  como 
ossadas  de  baleias,  tubarões  e  outros  peixes,  cobrem-se  estes 
restos  de  uma  substancia  paria  constituída  por  oxydos  de  ferro 
e  de  manganoz,  acabando  por  dar  erigem  a  nódulos  man- 
ga iiesi  feros. 

Estes    nódulos    abundam    no  Pacifico. 

Acção    das   a^uas    meteóricas.  —    Em    precedente ' 
paragrapho  vimos    como    as  aguas  da   chuva  mechanicamente 
intervém  nas  alterações  da  crosta;  resta-nos  agora  consideral-as 
como  agentes  de  combinações  chimicas. 

Como  é  sabido  as  aguas  meteóricas  contém  acido  car- 
bónico e  es*;e  attaca  os  calcareos.  D'ahi,  por  corrosão  das 
paredes,  alargam-se  as  fendas  naturaes  dos  terrenos  calcareos 
e  quando  estas  aguas  jioem-se  outra  vez  em  contacto  com  o  ar 
evaporam  se  e  o  calcareo  incrusta-se  aos  vegetaes  e  conchas, 
dando   origem  aos  tufos. 

Outras  vezes,  quando  o  escorrimento  tem  logar  nas  pa- 
redes das  grutas  ou  quaesquer  outras  cavidades  cobertas  por 
camadas  de  calcareo,  [)elas  quaes  torna-se  lenta  a  evaporação, 
constitue-se  um  deposito  concreccionado  de  carbonato  de  cal,  que 
crescendo  por  camadas  concêntricas,  produz  as  incrustações  que 
se  conhecem  pelos  nomes  de  stalactites  e  stahii/mites,  as  quaes 
tomam  a  formam  do  pendentes  e  columnas.  Pela  dilatação  da 
base  destas  columnas  forma-se  o  soalho  stalagniilico. 

Não  é  somente  ao  calcareo  que  as  agua;?  meteóricas  attacam, 
as  rochas  graníticas  também  lhe  soffrem  a  acção,  não  obstante 
sua  dureza  e  pouca  solubidade  de  seus  mineraes. 

Com  a  continuação  os  silicatos  alcalinos  são  arrastados  e 
deixam    um    resíduo    argilosOj  análogo    os  kaolin  o\x    barro  de 


10  HISTORIA  DO  BRASIL 


porcelana.    Assim    a    rocha  vae    perdendo  a    sua    cohesão    e 
trasforma-se  n'uma  areia    grossa. 

Tarfeiras  e  baacos  corallinos.—  Os  mais  impor- 
tantes phenomenos  geológicos  produzidi  s  pela  acção  dos  seres 
vivos  são  as  turfeiras,  que  é  o  producto  da  decomposição  de- 
baixo d'agua  de  certos  vegetaes,  entre  os  quaes  dominam  as 
cyperaceas  do  género  Carex,  alguns  musgos  e  as  sphaignes  ; 
e'^  os  bancos  de  coral,  constituídos  por  certos  animalculos, 
principalmente  pelos  que  em  zoologia  se  conhecem  pelo 
nome   de  pohjpeiros  constructores   ou  corallinos, 

TantJ  as  turfeiras  como  os  bancos  corallinos,  constituem  ver- 
dadeiros terrenos  e  são  de  grande  importância  para  o  es- 
tudo da  geologia. 

PHEI%OMEIVOS  DE  DYIVAMirA  TERRESTRE 
II\ÍTER>IA.  —  Pode-se  dividir  esies  phenomenos  em  três  ca- 
thegori-ds.:  phenomenos  vulcânicos,  phenomenos  thermaes,  e  phe- 
nomenos de  movimentos  da  crosta. 

Os  mais  importantes  phenomenos  vulcânicos  são  os  vul- 
cões terrestes  ou  maritimos  ;  dos  tiíermaes  são  os  soljataros, 
os  geysers,  propriamente  ditos,  os  geysers  calcareos,  os  íra- 
vertinos,  as  fontes  thermo-mineraes,  os  vulcões  de  lama,  e 
as  mofetas;  linalmente,  como  phenomeno  de  movimentos  da 
crosta  temos  a  estudar  os  tremorec  de  terra  ou   terremotos . 

Os  vulcões.  —  Embora  de  formas  variadas,  o  vulcão  é 
sempre  um  apparellio  pelo  qual  as  matérias  fluidas  situadas 
debaixo  da  crosta  são  postas  em  communicaçáo  com  a  su- 
perfície da  terra.  Observa-se  nos  vulcões  um  cone  de  elevação, 
que  é  a  massa  proeminente  do  terreno  no  interior  do  qual 
encontra- se  o  tubo  de  dejecção;  as  crateras  sao  orifícios  situados 
no  ápice  d'esse  cone. 

Já  o  monteou  montículo  do  vulcão  é  o  resultado  de  uma  ele- 
vação parcial  do  solo  e  por  conseguinte  constitue  um  facto  geoo- 
logico. 

As  dejeccções  dos  vulcões  ou  são  constituídas  pela  imz- 
zolana,  poeira  abundante  e  abrazadora  que  cahe  sobre  o  solo, 
ou  por  bombas  consideráveis  de  gazes  de  acido  chlor3^drico, 
acido  sulfuroso,  acido  carbónico,  e  também  h3'drogeneo  car- 
bornado  e  hydrogeneo  sulfurado,  ou  finalmente  por  matérias  li- 
quidas que  se  escoam  pela  cratera  ou  por  pequenos  orifícios 
abertos  nos  flancos  do  cone  vulcânico;  estas  matérias  formam 
regatos  incandescentes  e  constituem,  apoz  o  resfriamento,  as 
lavas,  quando  são  compactas,  :u  as  escorias  se  sua  substancia 
foi  dilatada  por  gazes.  As  lavas  quando  se  transformam  em  ro- 
chas 'opacas  tomam  o  nome  de  lavas  lilhoides,  quando  correm 
e  formam   uma  rocha  vítrea  denominam-se  obsidianas . 

Alem  do  phenomeno  geológico  do  cone  vulcânico,  as  ma- 
térias dejectada**  alteram,  a  estructura  do  solo  ás  vezes  até 
grandes  distancias  do  vulcão  produzindo  nas  povoações  cir- 
cumvisinhas  soterramentos,  como  succedeu  nas  antigas  cidades 
de  Herculanum  e  Pompeia  que  desappareceram  da  surperficie 
do  globo  em   consequência   de  uma  erupção  do  Vesúvio. 

!!!»olfataros. '  Consistem  estes  phenomemos  thermaes 
em  desprendimentos  violentos  de  vapor  de  agua  acompanhadas 
de  gaz  de  odor  suffocante  e  fortemente  carregado  de  enxofre. 

Os  gazes  sulfurosos,  transformando*se  em  acido  sulfúrico 
devido  á  acção  do  ar  e  das  aguas,  atacam  as  rochas,  decompõem 


INTRODUCylO  11 


OS  salicatoa  ou  dão  origem  á  alunite  ou  pedra  de  'alúmen  e  bem 
assim  a  efflorescencias  de  sulfatos  diversos.  A  decomposição  do 
hydrogenio  sulfurado  dá  logar  também  a  depósitos  de  enxofre 
nativo. 

Geysers.  -Os  gepers,  que  se  originam  de  infiltrações  e  do 
facto  de  serem  as  aguas  provenientes  dessas  infiltrações  atra- 
vessadas por  emanações  muito  quentes,  vindas  de  um  foco  vulcâ- 
nico subjacente,  são  desprendimentos  intermittentes  de  agua 
quente  projectada  com  violência.  A'svezeso  jacto  sobe  a  t30  metros 
e  mais.  Estas  aguas  escaldantes  cahindo,  formam  depósitos 
concreccionados  de  sílice  hi/dratar/a,  também  chamada  opala  com- 
mum  ou  qeyserite. 

Os  gci/sers  calcaveos  tem  a  mesma  origem  que  os  preceden- 
tes, sóníente  as  aguas  de  infiltração  atravessam  rochas  calcareas, 
razão  pela  qual  ã  agua  esguichada  é  carregada  de  carbonato  de 
de  cal. 

Tiaverliiiosi.— A  certas  emissões  de  agua  quente,  que  ao 
contacto  com  o  ar  depõem,  principalmente  nas  cascatas,  o  cal- 
careo  de  que  estavam  carregadas  dando  origem  a  depósitos  con- 
creccionados de  lufo,  dá-se  o  nome  de  ^raper/mo.s.  Segundo  Lap- 
parent  os  írarcrii?ios  são  o  ultimo  echo  de  uma  actividade  vulcâ- 
nica ha  muito  dcsaiiparecida. 

Fontes  theriiio-dynamicas.— As  fontes  thermo-dyna- 
micas  são  também  emissões  de  agua  quente  porém  menos  enérgicas 
que  os  travertinos.  Com  tudo  espontam  ás  vezes  com  uma  pressão 
notável  e  em  temperatura  bastante  elevada,  arrastando  em  dissolu- 
ção certos  principies  activos,  taes  como  os  chloruros  e  os  sulfatos. 

Volcões  de  lauia.  — Dá-se  este  nome  a  projecções  vio- 
lentas de  lama  salgada,  atravessada  por  bolhas  de  gaz  hydro 
carbonado,  que  partem  de  pequenas  eminências  crateriformes. 
Esta  lama  é  antes  fria  do  que  quente.  Alguns  volcões  desta  na- 
tureza, como  os  de  Bakou',  no  mar  Caspio.  dão  logar  a  uma 
abundante  collu-ila  de  jn^troleo  e  outros  lançam  jactos  de  gaz  su- 
sceptíveis de  iiillammarem-se  em  contacto  com  o  ar,  formando 
o  que  se  chama  terrenos  ardentes.  Presumem  alguns  que  o  mar 
Morto  tenha  sido  um  antigo  volcão  de  lama,  do  qual  os  despren- 
dimentos de  hydrocarburos  ainda  apresentam-se  no  estado  de 
betume. 

Hlofetas.— As  mofetas  são  emissões  frias,  caracteristicas 
das  regiões  em  que  a  actividade  vulcânica  extinguio-se  ha  muito. 
Constam  de  exhalações  de  acido  carbónico  ;  quando  o  gaz  se 
desprende  na  agua  res-ultam  fontes  de  aguas  gazosas,  semelhantes 
as  de  Selters. 

Tremores  de  terra.— As  sacudidellas  interiores  que  se 
produzem  no  seio  da  terra  determinam  nos  pontos  da  crosta,  rela- 
tivos áquelles  em  que  a  massa  ignea  central  se  comprimio,  trepida- 
ções ou  abalos  que  agitam  o  solo  e  occasionam  ás  vezes  grandes  al- 
terações. São  os  tremores  fie  terra  ou  terremotos.  Tornou-se  celebre 
o  tremor  de  terra  que  em  parte  destruio  a  cidade  de  Lisboa  a 
r  de  Novembro  de  175.5.  Além  da  origem  que  acima  demos  os 
terremotos  podem  ser  produzidos  por  levantamentos  ou  descai- 
mentos  de  alguns  pontos  da  crosta  terrestre,  occasionados  pela 
retracção  do  planeta,  á  medida  que  sua  massa  resfria-se. 

Dos  tremores  de  terra  resultam  ás  vezes  grandes  elevações 
ou  descaimentos  de  certas  partes  do  solo,  porém  em  outros  casos 
as  mudanças  de  nivel  realisam-se  muito  lentamente  e  sem  causa 


12  HISTORIA  DO  BRASIL 


apparente.  Sobre  certos  pontos  as  praias  vão  se  elevando  pouco 
a  pouco  e  os  bancos  de  conchas  formados  nos  mares  modernos 
sao  muitas  vezes  levados  a  grandes  altitudes. 

PHEAOME^OS  GEOLÓGICOS  AUTIGOS.  -  Todos 
os  phenomenos  que  descrevemos  nos  paragraphos  anteriores  pro- 
duziam-se  com  muito  mais  frequência  e  intensidade  nas  primei- 
ras idades  do  nosso  planeta. 

<  Foi  no  primeiro  periodo  de  ressecamento  que  o  globo,  ainda 
pouco  consistente  e  semelhante  a  uma  massa  lodosa,  tomou,  era 
virtude  da  rapidez  de  sua  rotação  sobre  seu  eixo  a  forma  actual. 
Dilatou-se  no  seu  equador  e,  como  consequência,  achatou-se  nos 
pólos.  A  difíerença  ô  muito  sensível,  pois  medindo-se  o  diâmetro 
terrestre,  a  um  lado  do  equador  e  passando*se  pelos  pólos  do 
outro,  achou-se  um  desvio  de  quarenta  e  duis  millímetros  em 
favor  do  diâmetro  equatorial. 

(iUma  lei  constante  de  qualquer  resfriamento  é  a  contracção 
da  matéria  resfriada;  estas  contracções,  produzidas  nas  di- 
versas camadas  ã  medida  que  iam  solidiíicando-se,  determi- 
nararam  rugas  e  corcovas  que,  segundo  Elias  de  Beauniunt,  crea- 
ram  o  systema  das  montanhas  actuaes,  as  quaes  nã)  são  outra 
cousa  senão  levantamentos  da  crosta  terrestre. 

((Um  outro  grande  facto  devia  ter  influencia  enorme 
sobre  estas  differenças  de  nivel  :  por  evaporação,  por  ejecções 
constantes  de  matérias  aíravez  das  frestas,  a  crosta  solida  foi 
sempre  augiientando  á  custa  do  nuclei  central  em  fusão,  e  che- 
gou um  momento  em  que,  muito  desenvolvida  pela  massa 
interior  retrahida  e  ainda  por  diminuições  graduaes  de  calórico, 
aluiu-se  repentinamente  produzindo  neste  cataclysma  geológico, 
por  esmagamento,  differenças  de  nivel  muito  maiores  ainda.»  (l) 

Concluindo  precisamos  notar,  que  muitos  phenomenos  geo- 
lógicos modernos  e  que,  como  taes,  foram  descriptos  na  secção 
competente,  têm  causas  remotas.  Na  marioria  dos  casos,  as 
causas  actuaes  não  differem  das  que  agiram  durante  os  períodos 
anteriores,  podendo  por  conseguinte,  os  phenomenos  antigos 
serem  explicados  pelos  modernos. 

ERAS  GEOLÓGICAS.—  Proporcionando  os  phenomenos 
actuaes  noções  exactas  sobre  a  formação  da  crosta  terrestre  e 
podendo-se  obter  esclarecimentos  chronologicos  sobre  a  formação 
das  camadas  pelo  estudo  dos  animaes  e  plantas  fosseis  que 
são  postos  a  descoberto  pelos  desmoronamentos  accidentaes  e  bem 
assim  pelas  excavações  que  o  homem  pratica  com  fins  agrícolas 
ou  industriaes,  taes  como  sejam  minas  para  a  extracção  do  carvão 
de  pedra,  poços  artezianos,  tunaeis,  etc.  dividíramos  geoloa')s  a 
historia  da  crosta  terrestre  em  quatro  grandes  eras,  precedidas 
de  um  periodo  inicial  de  formação  em  o  qual  se  costituiram  as 
rochas  mais  antigas. 

As  eras  ou  epochas  dividem-se  em  terrenos  e  alguns  destes 
subdividem- se  ãs  vezes  em  si/stemas. 

Pelo  quadro  que  damos  em  seguida  comprehender-se  ha  a 
ordem  de  successão  das  eras  geológicas  : 


(1)  Jacolliot.  —La  génese  de  la  teme  et  de  Vhomme. 


INTRODUCÇAO 


13 


ERAS    GEOLÓGICAS 


EPOCHAS 


Azoica  ou  primitiva  .  .  . 
Paleozóica  ou  primaria  . 

Mezozoica  ou  secundaria. 


Neozoica  ou  terciária. 
Quaternária 


TERRENOS 


Cambriauo,    Siluriano,    Devo- 

niano  e  Carbonifero. 
Permiauo,  Triassico,  Jurássico 

e  Cretáceo. 
Eocene,  Miocene  e  Pliocene. 


Época  azoica  ou  primitiva.  —  Os  terrenos  da  epocha 
azoica  ou  primitivos  representam  o  arcabouço  da  terra  e  são 
constituidos  pelas  rochas  graníticas  que  se  solidificaram  em  pri- 
meiro logar,  originando  a  primeira  camada  da  crosta  terrestre. 

O  granito  é  uma  reunião  de  silicatos  com  base  de  alumina, 
potassa  e  soda  :  ou  por  outra,  o  granito  é  uma  composição  de 
quartzo,  feldspatlio  e  mica. 

O  quartzo  é  silice  mais  ou  menos  pura  e  muitas  vezes  crys- 
tallisada  ;  o  feldspatho  é  uma  matéria  crystallina  e  branca,  com- 
posta de  silicato  de  alumina  e  silicato  de  potassa  e  soda ;  a  mica 
(de  micare,  brilharj,  é  um  silicato  de  potassa  contendo  magnesia 
e  oxydo  de  ferro. 

Quando  a  mica  predomina  na  composição  dá-se  á  rocha  o 
nome  de  gneiss  (palavra  tirada  da  lingua  saxónica). 

As  argilas  provenientes  da  decomposição  das  rochas  feldspa- 
thicas  e  micaceas  formadas  pelas  chuvas  abrazadoras  da  epocha 
azoica  soflreram  primeiramente  um  começo  de  fusão  e  depois, 
quando  resfriaram,  tomaram  por  uma  espécie  de  semi-crystalli- 
sação  uma  estructura  folliculada  a  que  se  dá  o  nome  de  estru- 
et  ura  ffchifitosa. 

Sobre  o  granito  propriamente  dito  observam-se  nos  terrenos 
primitivos  três  camadas  distinctas:  1»  os  micaschistos,  2'  os 
ffneiss,  :s"  os  ncliistos  chloritosos. 

Carregada  continuamente  a  athmosphora  por  pesados  va- 
pores, os  raios  do  sol  não  chegam  n'esse  período  á  terra,  que  jaz 
nas  trevas  de  uma  noite  immensa  e,  como  não  ha  luz,  não  ha 
vida:  nem  plantas,  nem  animaes. 

Epocha  paleozóica  (1)  ou  primaria.  — Esta  epocha 
divíde-se  nos  seguintes  terrenos  a  começar  pelos  de  formação 
mais  remota:  cambriano, siluriano,  deconiano  e  carhorrifero. 

Seus  caracteres  são  os  seguintes  :  o  cambriano  é  constituído 
por  schistos  de  côr  carregada,  negra,  esverdeada  ou  azul  e  ás 
vezes  de  um  calcareo  avermelhado  passando  ao  calschisto,  como 


(1;  Do  grego  palaios,  antigo  e  soon,  animal. 


14  HISTORIA  DO   BRASIL 


se  vê  nos  montes  Cantabros ;  o  siluriano  caracterisa-se  por  cal- 
careos  argilosos,  pardacentos,  schistos,  ardósias  e  alguns 
grés  ;  o  devoniano  é  formado  de  grés  schistosos  vermelhos,  mis- 
turados com  detrictos  silurianos  partidos  e  transportados  pelas 
aguas  e  depois  por  grés  ordinários  e  bancos  calcareos  entre 
os  quaes  se  encontram  grandes  porções  de  terra  vegetal  (1);  o 
terreno  carbonifero  recebeu  este  nome  em  consequência  das 
grandes  agglomerações  de  hulha  que  contém,  a  qual  se  apresenta 
por  stratiHcações  alternadas  com  schistos  e  calcareos. 

A  fauna  e  flora  da  epocha  paleozóica  são  ainda  muito  rudi- 
mentares e  pobres. 

Xo  terreno  cambriano  encontram-se  em  estado  fóssil  zoophi- 
tos  {polt/peiros),  molluscos  e  crustáceos  {trilobitas  principal- 
mente). No  terreno  cambriano  do  Canadá  encontram-se  rhizo- 
podos  que  receberam  de  Dawson  o  nome  de  Eozon  canadense  e 
representam  os  typos  mais  antigos  dos  seres  organisados.  A 
flora  consta  de  algumas  fucoides. 

No  terreno  siluriano  já  se  encontram  alguns  vertebrados  , 
constam  elles  de  peixes  que  não  se  tem  ainda  podido  determinar 
com  exactidão,  porém  tanto  neste  terreno  como  no  anterior 
ainda  não  apparecem  animaes  voadores,  o  que  prova  que  a  vida 
só  existia  nas  aguas. 

No  terreno  devoniano  pullulam  os  peixes,  quasi  todos  perten- 
centes á  familia  dos  ganoídes,  e  surge  o  primeiro  reptil,  inter- 
mediário entre  o  sapo  e  o  cameleão  ;  os  vegetaes  sao  represen- 
tados por  gigantescos  fetos,  calamites  e  lepidodendros  reunidos 
em  florestas  enormes,  ao  depois  transformadas  em  mJnas  de 
anthraciia . 

No  terreno  carbonifero  tendem  a  desapparecer  os  trilobitas 
que  predominaram  nos  terrenos  anteriores,  em  compensação 
íiugmentam  os  reptis,  guardando  a  hulha  os  restos  desses  arche- 
gosauros,  apateon  e  dendvopeton  de  formas  phantasticas.  A  ílora 
vae  tornando-se  mais  importante,  sendo  seus  principaes  repre- 
sentantes os  fetos  colossaes.  as  lycopodiaceas,  as  equlsetaceas, 
as  sigillariaceas,  todas  gigantescas. 

Épocha  mesozóica  2)  ou  secundaria.— Os  terrenos 
constantes  desta  era  geológica,  seguindo  sempre  na  sua  enume- 
ração a  mesma  ordem  de  antecedência  de  formação,  são  os  se- 
guintes: terreno  permiano,  terreno  triassico,  terreno  jurássico 
e  terreno  cretáceo.  3) 

Os  terrenos  da  epocha  mesozóica  são  constituídos  pelos  se- 
guintes materiaes : 

Os  terrenos  permianos  são  formados  por  camadas  stratifi- 
cadas  e  irregulares,  dispostas  sobre  os  terrenos  carboníferos;  as 
primeiras  stratificações  constam  de  um  grés  avi^rmelhado,  se- 
guindo-se  schistos  betuminosos  misturados  em  alguns  togares 
com  grandes  quantidades  de  minereos  de  cobre,  íepois  appa- 
recem massas  compactas  de  calcareos  e  por  cima  bancos  de  grés 
vermelho. 


(1)  Esta  terra  vegetal  é  actualmente  a  anthracita,  espécie  de  hulha  ou 
carvão  de  pedra  perfeitamente  combustível. 

(2)  Do  grego,  inesos,  médio  e  ;?oon,  animal. 

(3)  Alguns  geólogos  consideram  o  terreno  permiano  r.omo  fazendo 
partd  da  epocha  paleozóica,  e,  rennindo-o  ao  terreno  hulhifero,  dão-lhe  • 
nome  de  permo-carbonifero. 


INTRODUCÇlO  15 


O  terreno  triassico  caracterisa-se  por  três  camadas  distinctas, 
razão  pela  qual  tomou  esse  nome:  a  primeira  é  composta  de  um 
grés  chamalotado,  a  segunda  de  calcareo  conchylio  e  a  terceira 
de  marga  irisada. 

O  terreno  jurássico  compõese  de  umas  tantas  camadas  que 
se  dividiram  em  dois  sj^stemas:  ás  mais  inferiores  deu-se  o  nome 
de  systema  liassico  e  ás  de  cima  o  nome  de  sijstema  oolithico. 
O  systema  liassico  é  formado  de  três  camadas  :  a  primeira 
consta  de  grés  pouco  compactos,  contendo  oxydos  de  chromo  e 
de  manganez  6  depósitos  de  natureza  metallica;  a  segunda  com- 
põe-se  de  calcareos  e  a  terceira  consta  de  margas  schistosas  ou 
argilosas;  o  systema  oolithico  consta  de  quatro  camadas:  a  pri- 
meira formada  de  areias  amarellas  micaceas,  alternando  com 
argilas  e  bancos  calcareos  pouco  colierentes,  formados  de  pe- 
quenos grãos  chamados  oolitàos,  a  segunda  distingue-se  por  uma 
grande  camada  de  argilla  azulada,  a  terceira  por  uui  grande  nu- 
mero de  polypeiros  fosseis  e  finalmente  a  quarta  compõe-se  da 
argilla  chamada  de  Honfleur  e  desse  calcareo  tão  abundante  em 
Portland,  do  qual  se  faz  o  cimento. 

Divide-se  o  terreno  cretáceo  em  inferior  e  superior.  O  cre- 
táceo inferior  é  constituído  por  diver=:as  camadas  que  tomaram 
os  nomes  de  systemas  ivealdiano^  neoco^niano,  gaultiano,  greda 
chloritada  tí  ffreda  tufo.  No  wealdiano  encontram-se  areias,  grés 
calciferos,  argillas  e  schistos  e  nos  outros  systemas  areias,  mar- 
gas, calcareos  amarellados  e  argillas  pardas  contendo  grandes 
quantidades  de  minereos  de  ferro. 

O  cretáceo  superior  consta  de  dois  depósitos :  o  inferior  é 
formado  por  um  calcareo  terroso,  contendo  quantidades  innu- 
meraveis  de  foraminifero^,  espécie  de  conchas  microscópicas 
misturadas  a  camadas  de  argilla,  o  superior  consta  de  uma  ca- 
mada de  greda  mistura  com  silex. 

No  terreno  permiano  encontram-se  pela  primeira  vez  vestí- 
gios de  espécies  animaes  ainda  existentes  :  são  saurios  e  diversos 
peixes  [acrolepis,  pygoteros).  Continuam  a  abundar  os  peixes 
ganoides  e  placoides  e,  bem  assim,  os  molluscos.  A  flora  é  repre- 
sentada [jor  mais  de  sessenta  espécies,  predominando  as  plantas 
das  faniilias  dos  fetos,  equisetaceas,  lycopodiaceas  e  coníferas. 

No  t'^>rreno  triassico  a  fauna  e  a  íiora  adquirem  grande 
desenvolvin^ento.  ^o  microletes  s^rge  o  primeiro  maramifero  e 
as  argillas  triassicas  guardam  as  pegadas  de  um  monstruoso 
batraccio— o  c/ieirotheriuin  ou  labyrinthodon  ;  as  margas  irisadas 
conservam  os  restos  de  novos  vegetaes  —  calamitas,  coníferas, 
cycadaceas  e  abietinaceas. 

O  terreno  jurássico  caracterisa-se  paleontologicamente  pelos 
seus  grandes  saurios  —  o  ichthyosaurus,  o  plesiosaurus,  o  ptero- 
dactylo.  Nelle  também  se  encontram  marsupios  e  didelphos.  A 
flora  é  representada  pelas  mesmas  plantas  do  terreno  anterior, 
destacando-se  as  elegantes  zamitas  (cycadaceas),  que  annunciam 
as  palmeiras. 

O  systema  deWeald  do  terreno  cretáceo,  d  stingue-se  por  um 
animal  que  lhe  é  peculiar— o  iyuanodonte,  gigantesco  reptil  visi- 
nho  dos  iguanos  e  que  jiodia  medir  uns  vinte  metros  de  compri- 
mento. À  fauna  no  periodo  cretáceo  sobe  extraordinariamente 
em  importância  :  surgem  as  palmeiras,  os  pandanus,  o  carvalho, 
a  figueira,  predominando  no  entanto  as  plantas  da  família  das 
proteaeeas  das  quaes  muitas  espécies  se  extinguiram.   dEm  Aix- 


16  HISTORIA  DO  BRASIL 


la-Chapelle  a  epiderme  das  folhas  da  maior  parte  das  plantas  do 
terreno  cretáceo,  especialmente  das  proteaceas,  está  tão  bem  con- 
servada em  um  envoltório  de  arçfilla,  que  se  pode  perceber  ao 
microscópio  os  estomatas  ou  cellulas  polygonaes  com  sua  dispo- 
sição particular,  idêntica  áquella  que  se  sabe  caracterisar  certas 
proteaceas  vivas,  a  (//va-i/Zea,  por  exemplo.  A's  vezes  uma  mis- 
tura de  fucoides  e  de  zoosteras,  bem  como  conchas,  attestam  a 
presença  de  agua  salgada».  1) 

Epoclia^neozoica  (2)  ou  terciária.  —  Esta  epocha  foi 
dividida  nos  seguintes  terrenos:  eocéne  (inferior),  miocéne  (médio) 
e  pliocéne  (superior;. 

Em  virtude  de  acharem-se  localisados  em  bacias  e  serem  em 
alguns  logares  imperfeitamente  cobertos  pelos  alluviões  da  epo- 
cha quaternária,  os  terrenos  neozoicos  podem  ser  estudados  com 
mais  facilidade. 

O  terreno  eocéne,  na  sua  parte  inferior,  caracterisa-se  por 
•mmensos  depósitos  de  areias  brancas  misturadas  a  barros  de 
-ouça,  no  qual  muitas  vezes  se  encontram  detrictos  de  conchas 
acustres  e  fluviaes  ;  sobre  esta  camada  repousam  silex  redon- 
dos. A  parte  média  consta  de  um  deposito  silicoso  e,  por  cima 
deste,  apparecem  grandes  porções  de  gj'pso  ou  pedra  plástica. 

O  terreno  miocéne  consta  de  depósitos  de  margas  e  areias 
marinhas. 

Finalmente,  o  pliocéne  consta  de  diversos  depósitos  lacustres 
ou  marinhos  estabelecidos  em  straficações  discordantes.  Estes 
depósitos  sedimentares  são  formados  de  seixos  miúdos,  areias 
e  argillas  grosseiras. 

«  Uma  nova  creação  orgânica  vae  mostrar-se  na  epocha  ter- 
ciária; quasi  todos  os  animaes  vão  mudar.  O  que  ha  de  mais  no- 
tável n'esta  geração  renovada,  é  a  apparição  da  grande  classe  dos 
mammiferos. 

<<  Durante  a  epocha  de  transicção  os  crustáceos  e  os  peixes 
dominavam  no  reino  animal ;  durante  a  epocha  secundaria,  a 
terra  pertencia  aos  reptis;  durante  a  epocha  terciária,  os  reis  do 
globo  serão  os  mammiferos.  Estes  animaes  não  surgem  em  pe- 
queno numero,  nem  com  grandes  intervallos;  em  um  só  mo- 
mento vê-se  viver  sobre  a  terra  uma  grande  quantidade  d'estes 
seres  ainda  por  assim  dizer  inéditos.  ' 

«  Se  puzermos  de  parte  os  marsupios,  mammiferos  imper- 
feitos que  remontam  ao  período  jurasico,  os  primeiros  mammi- 
feros creados  foram  os  pachydermes.  Esta  orrdem  de  animaes 
conservou  durante  muito  tempo  o  primeiro  logar,  representando 
quasi  por  si  só  os  mammiferos  durante  o  prim.eiro  dos  três 
períodos  que  compõem  a  epocha  terciária.  No  segundo  e  no  ter- 
ceiro periodo  apparecem  os  mammiferos  pertencentes  a  espécies 
agora  desapparecidas  e  que  eram  tão  curiosos,  tanto  por  suas  pro- 
porções enormes  como  pela  singularidade  de  sua  estructura. 
Reptis  auvos.  e  entre  estes  seres,  salamandras  do  tamanho  de 
crocodilos  reunem-se  durante  os  três  períodos  da  epocha  terciária 
á  classe  dos  mammiferos.  Durante  a  mesma  epocha  appareceram 
pássaros,  porém  muito  menos  numerosos  que  os  mammiferos  : 


(1)  Charles  Lyell.  —  Elements  de  geologie. 
(21  De  neos,  novo  s  xoon,  animal. 


INTEODUCÇÃO  17 


estes  cantores,  aquelles  rapaces,  outros  domésticos  ou  que  pa- 
recem esperar  o  jugo  c  a  dominação  do  hospede  supremo  da 
terra. 

«  Os  mares  eram  povoados  por  uma  infinidade  de  seres  de 
todas  as  classes,  ijuasi  tão  variados  como  em  nossos  dias.  Não  se 
procure  poròm  nelies  esses  ammonitas,  belemnitas,  hi/ptirvtafi  que 
tinham  enchido  os  mares  da  epocha  secundaria  e  haviam-se 
multiplicado  com  uma  tão  admirável  profusão.  Dora  em  diante 
os  molluscos  assemelhar-se-lião  por  suas  formas  aos  actuaes. 

«O  que  se  deve  principalmente  observar  durante  a  epocha 
terciária  é  a  prodigiosa  extensão  que  nella  tomam  os  animaes. 
Molluscos  de  conchas  de  dimensões  microscópicas;  os  foram- 
miniferos,  os  nuinmulitas  enchem  os  mares  e  se  comprimem  em 
columnas  tão  apertadas  que  os  detrictos  de  suas  conchas  ag- 
glomeradas  formarão  um  dia  terrenos  de  centenas  de  metros  de 
espessura.  E'  a  mais  extraordinária  dilatação  da  vida  animal  que 
até  hoje  tem  apparecido  na  serie  da  creação. 

oA vegetação  durante  a  época  terciária  possue  caracteres  muito 
acceutuados.  A  flora  terciária  approxima-se  e  algumas  vezes  idcn- 
tifica-se  quasi  com  a  de  nossos  dias.  A  classe  dos  vegetaes  dyco- 
tiledoneos  mostra-se  nella  em  seu  desenvolvimento  completo  :  é 
a  época  das  flores.  A  superfície  da  terra  é  embellezada  pelas  cores 
matizadas  das  flores  e  dos  fructos  que  lhes  succedem.  As  brancas 
espigas  das  gramíneas  destacam-se  sobre  a  verdura  de  prados 
sem  limites  e  parecem  provocar  o  desenvolvimento  dos  insectos, 
que  então,  effectivamente,  multiplicam-se  de  um  modo  singular. 
Nos  bosques,  cheios  de  arvores  floridas,  e  de  cimos  arredondados, 
destacam-se  os  nossos  carvalhos  e  bétulas;  os  pássaros  augmen- 
tam  em  numero.  A  athmosphera  que  purificou-se  e  desembara- 
çou-se  do  veu  de  vapores  que  não  havia  cessado  de  cobril-a  até 
então,  permitte  a  estes  animaes  de  órgãos  pulmonares  tão  deli- 
cados viver  e  augmentar  suas  espécies. 

«  Durante  a  época  terciária  a  influencia  do  calor  central  do 
globo  cessou  de  fazer-se  sentir,  em  razão  da  espessura  sempre 
crescente  da  crosta  terrestre.  Pela  influencia  do  calor  solar,  os 
climas  puderam  definir-se  nas  diversas  latitudes.  A  temperatura 
da  terra  era  quasi  como  a  da  nossa  zona  tornda  actual,  porém 
nessa  época  o  frio  já  principia  a  fazer  se  sentir  nos  dois  pólos. 

«Chuvas  abundantes  continuavam  no  entanto  a  despejar  sobre 
o  continente  enormes  quantidades  de  aguas  que  se  reunirão  em 
rios  importantes.  Foi  então  que  depósitos  de  aguas  doces  come- 
çaram a  formar-se  em  grande  numero  e  que  os  rios,  por  seus  ater- 
ramentos  puderam  constituir  novos  terrenos.  E'  com  efíeito,  a 
partir  da  epocha  terciária  que  se  vè  succeder  camadas  alternan- 
tes  contendo  seres  orgânicos  marinhos  e  seres  próprios  ás  aguas 
doces.  Foi  no  fim  desta  epocha  que  os  continentes  e  as  aguas  to- 
maram os  togares  respectivos  e  que  a  terra  recebeu  a  sua  forma 
actual.»  (1) 

Entre  as  muitas  espécies  animaes  da  epocha  terciária  que  se 
extinguiram  conta-se  o  Paleotlierlum,  animal  semelhante  á  anta; 
o  Anoplotherium,  grande  herbívoro ;  o  Xf/phodon,  gamo  anti-dilu- 


(1)  LoLxs  FiLicinR.— La  cie  aeaní  le   deluge. 


18  HISTORIA    DO   BEASIL 


viano,  õ  Dinotherium,  curioso  elephante  e  o  maior  dos  mamini- 
feros  que  tem  existido:  o  3íastodonte,  quasi  da  estatura  e  da  forma 
do  elephante  actual ;  o  Mammouth  ou  elephante  primitivo,  o  Rhi- 
noceronte primitivo,  o  Sivatheriíwie  outros. 

Os  macacos  apparecem  na  terra  n:)  periodo  miocene.  São 
elles  o  Dri/opithecus,  o  Pithecus  antiquas,  também  conhecido  na 
sciencia  peio  nome  de  Macaco  de  Sansan  e  o  Mesopiíhecus,  desco- 
berto por  Alberto  Gaudry  nos  terrenos  de  Pikermi,  na  Grécia.  Fi- 
nalmente, segundo  querem  alguns  paleoethnologos,  como  ao 
depois  veremos,  o  homem  appareceu  pela  primeira  vez  na  epocha 
terciária. 

!Epocha  quaternária.— Esta  epocha  também  chamada 
pleistocene,  é  formada  por  terrenos  de  formação  recente;  começa 
depois  da  e[-)Ocha  terciária  e  vem  até  nossos  dias. 

Os  factos  geológicos  de  maior  importância  da  epocha  quater- 
nária, e  quen  ella  estabelecem  divisões  chronologicas,  são  :  os 
dilúvios  e  opeiHodo  glacial. 

Nos  albores  da  epocha  quaternária,  quer  por  uma  súbita  ele- 
vação parcial  da  crosta  terrestre  ou  por  outra  qualquer  causa  que 
nos  é  desconhecida,  as  aguas  lançaram-se  por  vezes  sobre  os  conti- 
nentes e  em  certos  pontos  delles  deixaram  uma  vasa  detrictica  que 
constituio  terrenos  aos  quaes  se  deo  o  nome  de  diluvium.  Al- 
guns geólogos,  pelo  estudo  desses  terrenos,  acreditam  que  houve 
três  dilúvios,  dois  na  Euroi)a  e  um  na  Ásia.  Um,  o  diluvio  scan- 
dinavo,  determinado  pelo  surgimento  das  montanhas  da  Noruega 
submergio  o  norte  da  Europa  ;  o  outro,  o  diluvio  alpino,  teve  por 
origem  o  levantamento  da  cadeia  dos  Alpes  e  fez  as  suas  devasta- 
ções pela  França,  AUemanha  e  Itália  ;  íinalmente,  o  diluvio  asiá- 
tico, que  segundo  se  presume,  foi  determinado  pela  apparição  das 
montanhas   Caucasicas,  cobrio  as  regiões  visinhas  a  esta  cadeia. 

O  segundo  grande  cataclj^sm.a  da  epocha  quaternária,    ainda 
mais  mysterioso  nas  suas  causas,  foi  o  resfriamento    súbito  que, 
descendo  do  pólo  artico,  cobrio  degelo  ohemisphereo  boreal,  de 
terminando  um  periodo  glacial. 

Tanto  os  dilúvios  como  o  periodo  glacial,  e  bem  assim  outros 
phenomenos  que  nossão  decoohecidos,  extinguiram  grande  nu- 
mero de  espécies  animaes  e  entre  estas  devemos  contar  o  mam- 
mouth (Elephas  primigenius),  o  rhinoceronte  [rhinonecfivos  ticho- 
rinus),  o  urso  das  cavernas  {Ursus  speloeus),  o  tigre  gigantesco 
(/e/ís  spel(£a),  a  hiena  {Hiena  spelcea  ,  o  boi  primitivo  (bos  priscas  e 
primigenius),  o  cervo  Cervus  megaceros),  dois  tatus  gigantescos 
[GUjptodonclavipes,  Shistopíeurum  tr/pjis)  nm  grande  desdentado 
{Megatherium),  uma  preguiça  enorme  {Mijlodon)  e  outros. 

Depósitos  quaternários.  —  Tendo-se  em  vista  a  causa  par- 
ticular qne  lhes  deu  origem,  distinguio-se .  os  depósitos  qaa- 
ternarios  em  depósitos  formados  soba  influencia  do  periodo  gla- 
cial e  são  estes  os  terrenos  erráticos  ou  diluviíun  do  norte,  os 
depósitos  resultantes  da  acção  directa  das  geleiras  propriamente 
ditas,  isto  é,  as  moraines  e  os  blocos  erráticos  e  depósitos  produ- 
zidos pelos  dilúvios  e  cursos  d'íigua,  taes  como  es  allutiòes. 

O  terreno  errático  ou  diluvio  do  norte  é  formado  por  um  lodo 
argiloso  misturado  a  seixos  angulosos  aos  quaes  se  dá  o  nome 
de  boulder-clar/. 

As  moraines  são  largas  estradas  abertas  nas  montanhas 
pelo  antigo  escorrimento  das  geleiras  :   reconhecem-se  pela  còr 


INTKODUOÇÃO  19 


pardacenta  do  terreno  e  pelos  seixus  angulosos,  raspados  e  arra- 
nhados que  neste  se  tncuntram. 

Os  blocos  ei-raiicoa  são  pedras  espalhadas  pelas  geleiras  e 
coUocadas  ás  vezes  em  grande  altitudes,  como  tem-se  um  exemplo 
no  Pierre-á-Bot.  enorme  bloco  arrancado  do  Valais,  França,  o  ati- 
rado a  uma  altura  de  10  melros  sobre  o  flanco  do  Jura. 

Os  aííuviòes  são  dej)OSitos  quaternários  constituirlos  por 
seixos,  cascalhos,  areias  e  lodos  formados  nas  regiões  em  que  a 
acção  glacial  não  se  fez  sentir  e  accumulados  peias  aguas  em 
ditferentes  alturas  sobre  os  flancos  dos  valles  actuaes.  iriua  es- 
tructura  é  a  seguinte  :  en) baixo  um  cascalho  de  fundo,  com  seixos 
grossos  que  diniinuem  de  grossura  para  cima,  depois  uma  areia 
gorda  ou  alluvião  de  nbas,  dejtosta  por  aguas  mais  tranquillas  e, 
finalmente,  uma  lama  calcarifera  amarella,de  gran  fina,  ciiamada 
loess,  que  na  superficie  ton)a  còr  carregada.  Nos  planaltos  en- 
contra-se  geralmente  uma  Ccimada  de  loess  amarello  por  baixo  do 
barro  de  tijoUo. 

Finalmente,  também  constituem  depósitos  quaternários  as 
cavernas  onde  os  dilúvios  afogaram  rebanhos  inteiros  deanimaes 
dessas  epochas  remotas  e  cujas  ossadas  acham-se  incrustadas 
nos  revestimentos  e  pavimentos  stalagmiticos.    Quando  as  aguas 

f)enetravam  nas  cavernas,  nellas  depositavam  camadas  de  casca- 
hos  que  se  vèm  muitas  vezes  alternando  com  outras  de  cinzas, 
facto  este  que  prova  a  habitação  temporária  dessas  grutas  pelo 
homem,  durante  a  epocha  que  ora  estudamos. 

Durante  o  periodo  glacial,  que  interrompeu  o  escorrimento  das 
aguas  nas  cavernas,  o  loess  de  fora  iníiltrnu-se  ás  vezes  em  es- 
tado de  dissolução,  cobrindo  neste  caso  o  chão  das  cavernas  com 
uma  camada  a  que  se  dá  o  nome  de  limo  vermelho  das  cavernas, 
o  qual  se  encontra  juntamente  com  estilhaços  angulosos  de  silex, 
e  ás  vezes  com  ossos  de  animaes.  Quando  esses  ossos  são  sufficien- 
temente  abundantes  para  entu[úr  a  caverna,  dá-se  o  que  em  geo- 
logia se  chama  brecha  ossifera,  que  também  é  um  deposito  qua- 
ternário, porém  de  natureza  animal. 

Noções  de  anthropologia 

Segundo  a  definição  de  Topinard,  ardhropologia  é  0  ramo  da- 
historia  natural  que  trata  do  homem  e  das  raças  humanas. 

Aqui  nos  occuparemos  unicamente  daquelles  pontos  que  se 
relacionam  mais  directamente  com  a  historia,  fim  principal  e 
único  deste  trabalho  e,  como  sob  o  ponto  de  vista  do  estudo  das 
raças  humanas,  a  craniologia,  isto  é,  a  parte  da  antropologia 
que  se  occupa  do  estudo  comparativo  dos  craneos  6  a  mais  im- 
portante, delia  trataremos  em  primeiro  logar.  (1) 

Craniolojçia»— Baseando-se  em  caracteres  physicos,  quer 
anatómicos,  quer  exteriores,  a  craniologia  estuda  o  craneo 
humano  sob  todos  os  seus  aspectos  e  formas,  por  dois  methodos 
geraes  que  entre  si  disputam  a  preeminência. 

Em  um  destes  methodos -a  rm/itoíco^íta,  basta  a  inspecção 
visual  ou  o  emprego  de  meios  muitos  simples  e  dos  quaes  sempre 


(i      Tomamos  por  ^niia  na  organisaçao  deãtas  norões  o  pxcellente  com- 
pedio  de  Paul  Topinau,  UAiitropologie. 


20  HISTORIA  DO  BRASIL 


se  pode  dispor  ;  no  outro— a  cmniometria,  tem-se  que  recorrer  a 
processos  mathematicos. 

Pela  cranioscopia  obtem-se  os  caracteres  que  Topinard  de- 
nominou descriptévos,  e  pela  craniometria  obtem-se  os  caracteres 
que  o  mesmo  autor  denominou  craniomeiricos. 

Caracteres  DEScraPTivos.— Além  dos  caracteres  particulares 
deduzidos  da  estructiira  e  conformação  dos  ossos,  do  estado  das 
suturas  craneanas,  da  saliência  do  inion,  da  disposição  do 
pterion,  do  logar  da  face  em  que  desemboca  o  plano  do  buraco 
occipital  prolongado  artificialmente,  do  achatamento  das  paredes 
latteraes,  da  curva  da  linha  temporal,  da  saliência  da  glabella  e 
das  arcadas  superciliares,  da  forma  da  fronte,  da  curvatura  da  abo- 
boda,  da  curvatura  posterior,  da  curvatura  da  região  sub-iniaca 
e  de  outras  circumstancias,  os  antropologistas  tiram  ainda  con- 
clusões da  forma  geral  do  craneo.  PrumT-Bey  s;"lientou  as  re- 
lações harmónicas  ou  desharmonicas  do  craneo  com  a  face.  Blu- 
menbach  estabeleceu  a  norma  verticalis  para  apreciar  a  largura 
ou  estreiteza  do  contorno  da  aboboda,  seu  comprimento,  forma 
geral,  etc  ;  para  isso  dispunha  no  chão  uma  série  de  craneos  de 
modo  que  os  ossos  malares  se  achassem  sobre  uma  mesma 
linha  horizontal,  como  tem  logar  quando  os  craneos  repousam 
Sobreda  mandíbula  superior,  e  examinava-os  successivamente 
com  o  olho  collocado  por  cima  do  vertex.  Camper  introduziu  o 
methodo  de  estudar  o  craneo  de  perfil  e  Owen,  querendo  com- 
parar os  anthropoides  com  o  homem,  applicou  o  systema  de  ob- 
servação do  craneo  por  baixo. 

Prichard  dividio  os  craneos  em  ovaes,  como  o  das  raças  euro- 
péag.  de  formas  bem  desenvolvidas,  maxillares  e  arcadas  zygo- 
matieas  dando  ao  rosto  uma  forma  quasi  oval,  fronte  e  ossos 
malares  quasi  no  mesmo  plano,  bordos  alveolares  e  dentes  inci- 
sivos verticaes  ;  em  craneos  pi/rainidaes,  como  o  dos  mongoes  e 
o  dos  esquimós,  no  qual  a  projecção  fora  das  arcadas  zj-goma- 
ticas  é  o  traço  principal,  e  em  craneos  prorjnatas  que  correspon- 
dem ao  typo  negro  e  nos  quaes  os  lados  muito  comprimidos  e 
músculos  temporaes  inseridos  muito  era  cima,  determinam  ao 
mesmo  tempo  o  alongamento  e  o  achatamento  latteral  do  craneo. 
Os  ossos  malares,  nesses  craneos,  projectam  para  fora  e  prin- 
cipalmente para  diante,  definindo  o  prognatismo. 

Caracteres  craniometricos.— Diversos  são  os  methodos  em- 
pregados pela  craniometria  para  se  conhecer  os  índices  ou  rela- 
ções de  diversas  partes  do  craneo  afim  de  se  obter  os  caracte- 
res peculiares  ás  raças  humanas. 

Us  mais  importantes  são  as  ai^qiíeações,  as  cubagens,  as  me- 
didas rectas  &  curtas,  as  projecções,  os  ângulos  e  os  sgstemas 
Kspeciaes. 

Julgamos  de  pouca  utilidade  para  o  nosso  fim  entrarmos  na 
apreciação  destes  difíerente  -  methodos  e  pL)r  isso  nos  contentare- 
mos em  mencionar  os  índices  cranionietricos. 

A  somma  da. capacidade  das  duas  orbitas  comparada  com  a 
da  caixa  cerebral  fornece  o  indice  cephal o- orbitaria. 

•  Por  mei  1  de  compass  )s  graduados  tomam-se  as  dimensões 
do  craneo,  quer  no  sentido  de  seu  cimprimento.  ou  diâmetro 
antero-posterior  maximuin,  quer  no  sentido  de  sua  largura  ou 
diâmetro  transverso  maximum  e  estas  medições  dão  em  resul- 
tado o  indice  rep/talico.  Os  índices  extremos  correspondem  aos 
craneos  compridos  ou  dolickoceplialos  e  aos  craneos  redondos  ou 


INTRODUCÇlO  21 


brachycephaLos,  nomes  impostos  pelo  antropólogo  sueco  A.  Ret- 
zius.  Os  craneos  médios  foram  denominados  incsaticephalof^  por 
Paulo  Broca,  o  qual,  para  determinar  mais  algumas  gradações 
entre  estes  typos,  augmentou  a  classificarão  com  os  craneos 
Hah-ílolicocejÀalofi  e  craneos  sub-brac/u/cephalos. 

O  Índice  vertical  ou  indice  de  altura  d;i  a  forma  do  craneo 
segundo  um  corte  antero  posterior  dividindo  o  ovóide  cra- 
neano  em  duas  metades  latteraes  ;  por  elle  se  classificam  os  cra- 
neos em  acroce-phalos,  ou  craneos  elevados  e  em  platijcephaJo.s, 
ou  ci-aneos  baixos. 

Além  destas  medidas  antropometricas  calculam-se  as  circum- 
ferencias  dos  cérebros  pela  qual  se  classificam  estes  em  macroce- 
])halos  e  microcepludoíi  (cérebros  grandes  e  pequenos)  servindo 
também  para  determinar  certos  estados  pathologicos,  taes  como 
a  hydrocephelia,  etc. 

O  indice  facial  i)óàe  ser  relativo  á  largura  ou  ao  compri- 
mento. O  diâmetro  transverso  maximum  da  face  é  tomado  nas 
arcadas  zj-gomaticas  ou  biz3^gomaticas;  o  comprimento  maxiuuun 
pôde  ser  tomado  sob  dois  aspectos,  ou  no  comprimento  total  da 
face,  do  ponto  sub-orbitario  á  extremidade  do  queixo,  ou  no  com- 
primento simples  da  face,  do  ponto  sub-orbitario  ao  ponto  alve- 
olario. 

Obtem-se  o  indice  nasal  estabelecendo-se  a  relação  entre  a  lar- 
gura máxima  do  orificioa  nterior  do  nariz  com  o  seu  comprimento, 
tomado  da  espinha  nasal  á  sutura  naso-frontal.  Por  este  indice 
classificam-se  os  narizes  em  platyrrhineos  ou  de  esqueleto  nasal 
largo,  como  se  vê  nas  raças  negras,  mesorrinneos  ou  de  esfiueleto 
nasal  médio,  como  se  vê  nas  raças  mongólicas  e  americanas,  com 
excepção  dos  Esquimós  e  leptorr/tineos,  ou  de  esqueleto  nasal 
alongado  como  se  vè  nas  raças  brancas.  Diz  Paulo  Broca  que 
o  indice  nasal  é  um  dos  melhores  para  se  distinguir  as  raças. 

Obtem-se  o  indice  orbitario  procurando-se  a  relação  do  diâ- 
metro vertical  da  base  da  orbita  com  o  seu  diâmetro  horisontal. 
Quando  o  indice  é  grande  designam-se  as  orbitas  pelo  nome  de 
megasemas,  quando  médio  mesosemas,  quando  pequeno  microse- 
jnaft. 

Pela  medição  do  maxillar  superior  vê-se  que  este  nas  dif- 
ferentes  raças  apresenta-se  debaixo  das  seguintes  formas:  ou  é 
lujberbolico,  quando  os  ramos  vão  divergindo  para  traz  ;  ou  é 
jiaraloliro,  quando  vão  divergindo  ainda,  porém  um  pouco  menos 
e  de  modo  que  se  se  prolongassem  indefinidamente  encontrar-se- 
hiam;  ou  tem  forma  de  f/psilon  quando  são  exactamente  par;ille- 
los;  ou  são  elliplicos,  quando  convergem  qualquer  que  seja  o  giác. 
As  duas  primeiras  formas  são  mais  communs  nas  raças  brancas,  a 
terceira  e  a  quarta  encontram-se  nas  outras  raças, principalmente 
nas  raças  negras. 

Pela  medida  do  maxillar  inferior  tiram  os  antropologistas 
diversas  conclusões,  quer  considerando  sua  distancia  trans- 
versa de  um  angulo  a  outro,  quer  a  distancia  obliqua  do  mesmo 
angulo  ã  extremidade  do  queixo,  quer  sua  altura  na  symphise  ou 
finalmente  sua  altura  no  nivel  da  apophyse  coronoide. 

O  prognatismo  úen*iirio  inferior  é  constituído  pelo  vertica- 
lismo  ou  óbliquidade  para  diante  dos  dentes. 

O  prognatismo,  bem  como  a  proeminência  ou'a  ausência dO 
queixo  são  caracteres  de  grande  valor  antropológico, 


HISTOEIA   DO  BRASIL 


Prinxipaes  formas  de  craneos. —Diversos  termos  têm  sido 
empregados  para  designar  as  principaes  formas  de  craneos  e 
como  alguns  delles  occorrem  nas  paginas  seguintes  julgamos  de 
conveniência  exhibil-os  cora  a  necessária  traducção.  São  os  se- 
guintes: 

Acrocephalia,  oxijcephaUa,  hypsocephalia,  pyrgocephalia, 
craneo  elevado. 

Platiicephalia,  tapiinncephalia.  a1)oboda  d  »  craneo  achatada, 
descida. 

Euryceplialia,  craneo  largo. 
S  feno  cep  halia,  craneo  estreito. 
Troc/iocephaLía,  craneo  muito  redondo 
Trif/onocephaiia,  craneo  triangular  no  vértice  anterior. 
Jfi/j).stenocephaUa,  craneo  estreito  e  elevado. 
Meíj  ai  o  cephai  ia, c,v?iX\eo  de  capacidade  exaggerada. 
Laptocephalia,  microceplialia,  craneo  pequeno. 
Plaf/iocejj/iaHa.  deformação  obliqua  ovular. 
C ijltndrocephalia,  craneo  cylindrico  alongado. 
Cjjmboceplialia,  kumbecepJtalia,  exaggeração  da  forma  prece- 
dente. 

Scaphocephalia,  sphenocephalia,  craneo  em  forma  de  canoa. 
Pach  11  cep  halia,  craneo  de  paredes  espessas  h^^pertrophiadas. 
Deformações  do  craxeo.  —As  deformações  são  posthumas 
e  plásticas,  quando  se  produzem  no  seio  do  solo  pela  pressão  das 
terras,  sendo  seu  principal  caracter  a  ausência  de  regularidade  e 
S5'metria  ;  platij básicas,  qu;mdo  a  deformação  tem  logar  no  in- 
dividuo vivo,  na  infância  ou  na  velhice,  por  falta  de  consistência 
dos  ossos  visinhos  ao  buraco  occipital;  plagiocep/ialas,  quando 
se  produzem  accidentalmente  na  creança  que  a  ama  traz  constan- 
temente sobre  o  mesmo  braço  ou  pela  pressão  que  exerce  no  de- 
cubitus  o  peso  da  cabeça  sobre  todo  o  occipital  ou  sobre  um  de 
seus  lados:  finalmente,  as  deformações  podem  ainda  ser  artifi- 
ciaes,  ora  involuntárias,  devidas  a  penteados  e  chapeos  ou  capa- 
cetes impróprios,  nt-a  voluntárias,  em  obediência  a  ritos  e  usos 
bárbaros 

Caracteres  anthropnlo^çioos  fio  esqueleto.— As 
outras  partes  do  esqueleto  proporcionam  caracteres  quanto  á 
própria  configuração  dos  ossos  e  quanto  ás  suas  proporções  res- 
pectivas. 

Relativamente  á  configuração  dos  ossos  consideram-se  a  per- 
furação do  humerus,  certas  formas  do  fémur,  do  tibia,  do  pero- 
neo  e  do  cubitus,  a  torsão  do  humerus.  e  do  fémur,  a  curvatura 
deste  ultimo,  o  angulo  que  faz  seu  corpo  com  a  diaphyse,  a  sa- 
liência 00  calcanenm,  a  largura  do  olecraneo,  etc. 

A  perfuração  da  cavidade  olecraneana  do  humerus  que  se 
nota  nos  esqueletos  dos  Hottentotes  e  dos  Guanches  foi,  nas 
raças  brancas  da  Europa,  considerada  s()mente  como  particular 
ás  (jue  são  anteriores  á  epocha  da  pedra  polida. 

O  caracter  mais  importante  que  oíferece  a  oljservação  do 
tibia  ú  o  da  plattfrneniia,em  que  este  osso  toma  a  forma  de  lamina 
de  sabre.  .\  platycnemia  tem  sido  observada  em  diversas  raças 
preliistoricas  do  peri  idi  da  pedra  lascada  e  em  alguns  povos  da 
Oceinia. 

O  peroneo  canella,  o  cubiíufi  inciirrado  para  (hante,  o  fémur 
com  forma  de  cohimna  são  os  caracteres  mais  notáveis  destes 
ossos,  e  observam-se  quasi  sempre  reunidos  á  platycdemia. 


INTRODUCÇlO  23 


Os  cíiractores  relativos  ás  ]iroporç(5es  do  esqueleto  refe- 
reni-se  ao  comprimento  dos  ossos  relativamente  á  estatura,  ou  á 
comparação  de  uns  ossos  com  os  outros.  « 

A  anthropologia  estende  o  seu  domínio  até  á  anal3'^se  das  vís- 
ceras, do  peso  do  cérebro,  etc,  porém  os  caracteres  que  se  tem 
obtido  com  essas  indao^ações  são  de  valor  insií?niíi cante. 

Caracteres  antroitoloi^icos  estudados  no  eorpo 
vivo.— Os  principaes  caracteres  que  se  obtém  pelo  estudo  do  corpo 
vivo  são  as  medidas  da  cabeça  e  dos  membros,  a  avaliação  da  esta- 
tura, a  còr  da  pelle,  dos  olhos  e  dos  cabellos.  os  caracteres  do 
S3'stema  piloso,  os  traços  da  physionomia,  a  forma  do  rosto,  do 
nariz,  da  bocca,  das  orelhas,  etc.  Taes  caracteres  proporcionam 
elementos  valiosissinrios  para  o  estudo  das  raças  humanas. 

A  estes  caracteres  puramente  descriptivos  juntam-se  outros 
de  não  menos  importância,  taes  como  sejam  as  idades,  a  mens- 
truação, a  hereditariedade  e  as  uniões  consaguineas  que  são 
verdadeiros  caracteres  pliysiologícos. 

Contentamo-nos  com'  a  simples  indicação  destes  caracteres, 
poí.s  falta-nos  espaço  para  detalhal-os. 

Bem  assim  não  podemos  entrar  em  considerações  sobre  os 
caractere^í  sohve  o  2>eso  do  corpo,  aforra  muscular,  a.  circulação 
(lo  sanque.  a  respiração,  a  circumj crencia  do  peito,  a  diçieatão,  a 
voz,  a  viuío  e  as  fancçõen  cerebraes,  os  quiies  só  cabem  ém  ol  ras 
muito  especiaes. 

Influencia  dos  meios.—  Segundo  Quatrefages,  meio  é  o 
conjuncto  de  condições  ou  de  influencias  quaesquer,  physicas, 
moraes  ou  intellectuaes  que  podem  actuar  sobre  os  seres  orga- 
nisados.  A  influencia  dos  meios  se  exerce  no  individuo  physica, 
moral  ou  socialmente  e  assim  podem-se  considerar  debaixo  deste 
nome  todas  as  causas  capazes  de  determinar  directa  on  indi- 
rectamente qualquer  modificação  sensível  nas  raças  humanas. 

As  opiniões  sobre  as  influencias  dos  meios  na  variabilidade 
das  espécies  são  muito  contracditorias.  Darwin  pretende  que  as 
variações  se  produzem  no  seio  materno,  expontaneamente  e  como 
por  aca«o:  Lamarck  e  Geoílroy  Síiinl-Hilair<í  j)ens;im  que  as  va- 
riações t(ím  logar  no  curso  da  existência,  deterniinadas  por  cir- 
cumstancias  exteriores. 

Aclfníaeào.  -  .\  aclimação  é  a  accomodação  expontânea 
e  natural  fm  condições  climatéricas  novas. 

A  faculdade  de  adaptação  a  novos  climas  não  é  igual  em 
todos  os  p  jvos  e  apresenta  singularidades  notáveis. 

Os  inglezes,  por  exemplo,  aclimatam-se  perfeitamente  nos 
Estados  Unidos  e  na  Africa  Meridional,  porém  não  resistem 
muito  ao  clima  das  Antilhas;  a  faculdade  de  adaptação  dos  fran- 
cezes  díminue  á  medida  que  elles  se  approximam  dos  trópicos; 
os  hespanhóes  e  os  portuguezes  adaptam-se  melhor  nos  trópicos 
do  que  nas  regiões  fria'' ;  os  ciganos  ada[)tam-se  a  todos  os  climas : 
tanto  vivem  na  Rússia  como  no  Brazil. 

Classificação  das  raças.— Muitas  são  as  classificíições 
ethnographicas  , 'té  hoje  apresentadas,  porém  aqui  so  menciona- 
remos as  mais  celebres  : 

Bernierad  iiittiu  quatro  raças:  os  brancos,  na  Europa,  os 
amarellos  na  Ásia,  os  negros  na  Africa  e  os  Lapões  no  norte. 

I^inneo  dividiu  as  raças  humanas  em  quatro  varieilades  :  o 
Europeo  de  olhos azues.  còf  branca  e  cabellos  louros;  o  Aziatico 
de  cabellos  negros,  olhos  pardos  e  cor  amarella,  o  Africano  de 


24  HISTORIA  DO  BRASIL 


cabellos  pretos  e  encarapinhados,  tez  preta,  nariz  chato  e  lábios 
grossos  e  o  Americano,  de  côr  acobreada,  cabellos  negros  e  cor- 
redios e  queixo  imberbe. 

Buffon  difíerençou  uma  raça  hyperborèa  e  uma  raça  malaya 
e  distingi  iu  os  hottentotes  dos  negros  africanos. 

Blumenbach  distinguiu  as  raças  humanas  em  cinco  varie- 
dades :  a  caucasica,  a  mongolica,  a  ethiopica,  a  americana  e  a 
malasica.  Esta  classificação  gozou  de  credito  durante  muito 
tempo. 

Cuvier  dividiu  as  raças  em  três  :  caucasica, que  se  subdividia 
em  indo-pelasgica  comprehendendo  os  Kalmukos,  os  Mamdchús, 
os  Chinezes,  os  Japonezes,  os  Coréos  e  os  habitantes  da  Micro- 
nezia,  e  a  raça  negra  á  qual  não  applicou  subdivisões. 

Virey  dividiu  o  género  humano  em  duas  espécies  —  a  raça 
branca  e  a  raça  negra. 

Bory  de  Saint  Vincent,  que  declarou-se  parti iario  do  poly- 
genism.o  sustentado  anteriormente  por  La  Peyrère,  dividiu  o 
género  humano  em  quinze  raças,  a  saber  :  a  japhetic;i  ou  européa. 
a  arábica,  a  hindou,  a  scytica  (Turcos)  a  sinica  (chinezes),  a  hj-- 
perborea,  a  neptunina  (Malayos,  Polynesios  e  Papuas),  a  austra- 
liana, a  colombica  ou  americana,  a  ethiopica,  a  cafre,  a  mela- 
nesica  e  a  hottentote. 

A.  Desmoulins,  admittindo  as  espécies  de  Bory  de  St.  Vin- 
cent, accrescentou-lhes  as  raças  kuriliana  e  papua. 

Morton  considerou  as  raças  humanas  em  cinco  grupos  divi- 
didos em  vinte  e  duas  familias.  Agassiz  fez  originar  a  espécie 
humana  de  cinco  centros  de  creação. 

h  Geoffroy  Saint-Hilaire,  tomando  por  base  de  sua  classi- 
ficação a  conformação  do  rosto,  dividiu  as  raças  em  orthognatas, 
typo  caucasico,  de  rosto  oval  e  mandíbulas  verticaes,  euríff natos, 
typo  mongolico  de  rosto  largo,  em  consequência  da  proeminência 
àa.s,i?ices  :  2)ror/natas,  typo  ethiopico,  mandíbulas  salientes;  eu- 
ri/f/naías-proffnatas,  faces  dilatadas  e  mandíbulas  salientes. 

Harley  tomou  por  base  os  caracteres  dos  cabellos  e  dividiu 
as  raças  humanas  em  doiS  grupos— iilotrichi,  as  de  cabellos  en- 
carapinhados e  leiosérichi,^  lis  de  cabellos  lisos.  As  leiostrichi 
foram  por  elle  subdivididas  em  quatro  grupos  —  mistraloide, 
(australianos,  negros  do  Dekan.  Egypcios,  etc):  momioloide 
(Mongoes,  Chinez-s,  PnlynHsios,  Esquimaus,  Americanos,  etc.J  ; 
xanthocroide  (Slavos,  Teutões,  Scandinavos.  Celtas  louros,  etc)  : 
r/íe/írc/íronoí£/es;Íber<'S,  Celtas  de  cabellos  pretos,  Berberes,   etcj 

Finalmente,  Quaírefages  considera  as  raças  humanas  puras, 
ou  que  se  tem  como  faes,  oriundas  de  uma  fonte  única,  que  emit- 
tiu  três  tronco.s  (o  branco,  o  amarello  e  o  preto):  estes,  por  sua 
vez.  se  subdividiram  em  ramos  e  estes  em  galhos  sobre  os  quaes 
inserem-se  as  famílias  divididas  em  grupos."  Os  ramos  do  tronco 
branco  são  fa^  aryana.  a  semítica  e  a  allophylla  (Esthonios,  Cau- 
casia.  Ainos)  ;  as  do  tronco  amarello  são  a  mongolica  ou  meri- 
dional e  a  negra  ou  boreal,  e  as  do  tronco  negro  são  a  c.pgrito,  a 
melanesica,  a  africana  e  a  saab  (Hottentotes). 

Além  destas  tem  sido  ajjresentadas  outras  classificações  e 
estamos  longe  ainda  do  momento  em  que  a  sciencia  dirá  a  ul- 
tima i)alavra  sobre  o  assumpto,  pois  nenhuma  das  que  mencio- 
namos pode  por  emquanto  ser  coiisi'lernda  |:>erfeita. 

Cansas  da  extincção  das  raças.  Obdecendo  a  di- 
versas causas  as  raças  podem-se  extinguir  e  este  facto  ou  é  ra- 


INTRODUCClo  25 


pido,  OU  lento,  ou  insensível.  A's  vezes  tem  legar  a  extincção 
pelo  embate  da  raça  com  outra  mais  nova,  mais  aguerrida,  ou 
mais  intelligente  ;  outras  vezes  a  extincção  é  determinadas  por 
causas  de  origem  mórbida  ou  physiologica.  Entre  as  causas  mór- 
bidas contam-se  as  moléstias  novas,  mais  ou  menos  contagiosas, 
taescomo  o  cholera,  a  varíola,  o  sarampo,  a  escarlatina, a  syphilis, 
e  também  o  alcoolismo  que,  propagando-se  ra])idamente,  toma  ca- 
racter epídemico. 

Entre  as  causas  phj-siologicas  contam  se  a  mudança  súbita 
de  hábitos,  a  anemia  resultante  da  nostalgia,  etc. 

Finalmente,  extinguem-se  ainda  as  raças  p-^lo  crusamento, 
pois  com  o  tempo  o  producto  da  mestiçagem  chega  á  maior  diífe- 
renoiação,  constituindo  afinal  um  t3^po  ethnico  novo,  muito 
distincto  das  raças  que  o  produziram. 

lypos  anthropologleos.— Eiitende-se  por  typo  anthro- 
pologico  a  média  dos  caracteres  que  apresenta  uma  raça  humana 
supposta  pura.  «  Nas  raças  homogéneas,  se  elle  existe^  descobre- 
se  pela  simples  inspecção  dos  indivíduos.  Na  generalidade  doa 
casos  é  pieciso  advinhal  o,  sendo  então  um  ideal  physico  do 
qual  se  approximam  mais  ou  menos  a  maior  parte  dos  indivíduos 
do  grupo,  mas  que  é  melhor  representado  por  alguns  delles.»  (1) 

Topinard  definio  os  seguintes  typos  anthropologicos  bem 
caracterísados  :  o  typo  europeu  (subdividíndo-se  em  typo  louro 
e  typo  moreno),  o  typo  hindou,  o  typo  tsigano,  o  typo  iraniano, 
o  typo  céltico,  o  typo  berber,  o  typo  semita,  o  typo  árabe,  o  typo 
finlandez,  o  typo  mongolico,  o  typo  esquimó,  o  typo  samoyéda, 
o  typo  malayo,  o  typo  iiol3'nesío,  o  typo  americano,  o  typo  pata- 
gonio,  o  typo  africano  vermelho,  o  typo  negro,  o  typo  cafre,  o 
typo  hottentote,  o  typo  papuasico,  o  typo  negrito,  o  typo  tasma- 
niano  e  o  t)'^po  australiano. 

Dos  que  interressarem  mais  directamente  á  historia  do 
Brasil,  taes  como  o  typo  europeu,  o  typo  americano  e  o  typo 
negro  apresentaremos  os  caracteres  anthropologicos  no  logar 
competente. 

Orl;;'eni  da  espécie  liumana.— Pondo  de  parte  a  pre- 
tenção  dos  orthodoxos  que  fazem  derivar  a  espécie  humana  do 
casal  paradisíaco  de  que  falia  a  Bíblia,  visto  não  merecer  mais 
esta  tradicção  outrii  valor  que  o  das  diversas  lendas  genésicas  que 
se  encontram  em  numerosos  povos,  passemos  á  exposição-  das 
íloutrinas  sfientiflcas  que  exiilicam  a  nrigern  (ias    raças. 

Monotjenrsiao  de  Quntrr/af/es  —O  celebre  antropólogo  francez 
Quatrefages,  embora  não  se  apartando  do  critério  scientifico, 
proclamou  no  emanto  a  unidade  da  espécie  humana,  admíttindo 
comtudo  a  sua  alta  antiguidade.  Para  Quatrefages,  as  espécies 
zool'^gicas  são  immutaveis  no  seu  typo  [)hysico  e  delimitadas  em 
sua  circuinsi-ripção  por  seu  caracter  de  hòmogenesia  no  seu  pró- 
prio seio  e  de  hetei-ogenesía  fora.  As  raças  humanas  não  passam 
de  variedades  devidas  á  influencia  dos  meios  e  a  crusamentos  : 
todas  se  reduzem  a  um  pequeno  numero  e  descendem  de  um  »ó 
troncto. 

Esta  tlieoria,  conhecida  pelo  nome  de  monof/enismo,  vai  dei- 
xando de   ter  curso  na  sciencia  e  apenas  a  sustenta   o  espirito  de 


Topinard.  —  L'Anthropologie, 


26  HISTORIA   DO  BRASIL 


orthodoxia  que  nella  se  ampara  para  conflrmar  a  lenda  biblicade 
AdãG  e  Eva. 

Polugeniamo  de  Af/ass/s.— A  escola opposta  ao  monogenismo 
e  á  qual  se  íili^iram  os  maiores  pensadores  modernos  é  a  do  po///- 
genismo.  Defendeu-a  scentiflcamente  pela  primeira  vez  o  celebre 
professor  Luiz  Agassis. 

Para  os  polygenistas  as  espécies  não  se  acham  rigoro  amente 
fixidas  em  seus  limites,  nem  determinadas  pela  faculdade  dos 
indivíduos  de  não  se  fecundarem  senã)  entre  si.  As  raças  huma- 
nas diílerem  tanto  como  certas  famílias,  certos  géneros,  certas  es- 
pécies. 

Nasceram  de  um  modo  independente  e  Agassiz  assignala  no 
glcbo  oito  Centros  diversos  de  creação.  O  naturalista  norte-ame- 
ricano  admittia  no  entanto  em  todas  as  phases  da  historia  da 
terra  a  intervenção  de  uma  vontade  superior,  operando  em  vir- 
tude de  um  ]:)lano  preconcebido. 

O  transforr/iifsmo  de  Lamarch.^Pava,  Lamarck  a  espécie  varia 
ao  infinito  e  considerada  no  tempo  não  existe.  Tanto  no  reino 
vegetal,  como  no  reino  animal,  as  especi.es  passam  de  uma  á  outra 
por  uma  infinidade  de  transições,  nascendo  por  via  de  transforma- 
ção ou  de  divergência.  Remontando-se  á  origem  dos  seres  chega- 
se  a  um  pequeno  numero  de  germens  primordiaes  ou  monadas, 
que  apparecem  por  geração  expontânea.  Pela  transformação 
lenta  dos  macacos  anthropoides  surgiu  o  homem. 

As  differenciações  das  espécies  são  explicadas  pela  adaptação 
dos  órgãos  ás  condições  de  existência.  Para  Lamarck  a  mudança 
nas  condiçõ-s  exteriores  força  o  animal,  posto  em  presença  de 
animaes  mais  fortes  ou  em  n  ivas  condições  de  vida,  a  contrahir 
hábitos  diííerentes  que  produzem  uma  siiperaciividade  em  certos 
órgãos  e  uma  diminuição  ou  falta  de  exercício  em  outros.  Em 
virtude  da  lei  phj^siologica,  inherente  a  todo  o  organismo,  que 
o  órgão  ou  certa  parte  do  órgão  diminue  ou  augmenta  em  propor- 
ção do  trabalho  que  fornece,  estes  órgãos  chegam  a  modificar -se 
e  a  conformar  se  com  as  condições  novas 

Selecção  natural  de  Darwin.  —A  selecção  natural,  theTia 
desenvolvida  ]ior  Charles  Darwin,  e  que  completa  e  desenvolve  o 
transformismo  de  Lamarck,  funda-se  na  lucta  pela  existência 
{struí/ffie  /nr  li/e)  e  na  variabilidade  ex,Jontanea.  O  illustre  natu- 
ralista chegou  a  este  resultado  por  pac  entes  observações  feitas 
sobre  a  creação  dos  animaes  domésticos,  pois  é  sabido  que  os 
criadores  de  animaes  e  os  horticultores  obtém  quasi  como  querem 
novas  formas,  escolhendo  primeiro  em  uma  mesma  espécie,  de- 
pois entre  os  productos  de  um  primeiro  crusamento,  os  agentes 
dos  crusamentos  seguintes,  e  assim  \)0v  diante,  possuindo  i  s  indi- 
víduos no  mais  alto  grão  o  desvio  que  se  quer  ;  por  esta  fórraa 
uma  espécie  nova  se  desenvolve  e  fixa-se  á  força  de  perseverança. 
A  differença  existente  entre  a  theoria  de  Lamarck  e  a  de 
Darwin  é  que,  para  o  primeiro,  o  ponto  de  partida  da  transforma- 
ção acha-se  no  meio  exterior  que  modifica  o  modo  de  viver  e  ena 
hábitos  n  ivos  e  necessidades  que  determinam  modificaçõe.s  na 
nutrição  e  na  estructura  dos  orerãos;  para  o  segundo,  o  ponlo  de 
ixirtiia  reside  na  superioridade  que  proporciona  ao  individuo 
uma  vantagem  qualquer  na  lucta  quotidiana.  Segundo  a  opinião 
de  Lamarck  a  variação  opera-se  gradualmente  no  curso  da  exis- 
toncia.  Darwin  pensa  que  a  variação  apparece  expontaneamente 
durante  a  vida  embryonaria. 


INTRODUCÇlO  27 


Noções  de  paleoethnologia 

Alguns  eruditos  suecos,  noruguezes  e  dinamarquezeSj  á  frente 
dos  quaes  se  achava  o  illustre  antiquário  Thomsen,  apoz  terem 
procurado  dilatar  o  acanhado  quadro  da  historia  dos  pai/,es  scan- 
dinavos  com  a  interpretação  dessas  remotas  e  confusas  l«ndas  eu 
narrações  maravilhosas,  conhecidas  pelo  nome  de  sagafi,  delibe- 
raram mergulhar  mais  no  passado  e  das  carcomidas  relíquias 
archeologicas  encontradas  debaixo  dos  alluviões  mariniios,  nos 
lagos,  nas  turfeiras,  nas  accumulações  de  detrictos  de  conchas  e 
ossos,  ou  nos  montículos  artiflciaes  de  terra,  arrancar  mais  uma 
palavra  sobre  a  antiguidade  histórica  d'aquelles  pai/es  septen- 
trionaes. 

Os  trabalhos  dos  sábios  scandinavos  foram  coroados  do  mais 
brilhante  successo  e,  em  1836,  Thomsen  j;i  publicava  o  resultado 
dos  mesmos.  ]»elo  qual  acliava-se  autorisado  a  dividir  os 
tempos  prehistoricos,  relativamente  aos  progressos  da  industria 
humana,  em  três  idades— a  da  pedra,  a  do  bronze  ea  do  ferro, 
confirmando  assim  com  dados  positivos  os  vagos  enunciados  do 
poeta  latino  Lucrécio  (1),  do  allemão  Eckhard  (2),  do  francez  Go- 
guet  (3),  do  inglez  Borlase  (4)  e  outros,  que  intuitivamente  ha- 
viaai  presentido  essas  precedências  da  historia  propriiimente  dita. 

Immediatamente  us  suissos  admittiram  a  classificação  de 
Thomsen,  e  Morlot,  professor  de  geologia  na  Academia  de  Lau- 
sanne,  emprehendeu  um  estudo  serio  sobre  antiguidades  archeo- 
logicas, publicando  em  1860  os  seus  Estudos  geologico-.it^cheo- 
lofficos  na  Dinamarca  e  na  Suissa. 

Os  trabalhos  dos  sábios  scandinavos  e  suissos.  no  entanto, 
por  mais  interessantes  íjue  fossem,  só  referiam-se  aos  ;tem])OS 
actuaes  e  podiam  entrar  no  quadro  dachronologa  clássica;  mere- 
cem ser  lembrados,  porém,  porque  foram  elles  o  ponto  de  partida 
para  observações  sobre  e|)i)chas  mais  remotas,  das  quaes  se  ori- 
ginou a  eertí*za  da  existência  do  homem  nos  tempos  anfe-di- 
luvianos. 

Já  Tournal  na  gruta  de  Bize  em  182-1,  De  Christol,  nas  ca- 
vernas de  (jard  em  1829,  Emílien  Dumas,  o  Dr.  Pitore,  Sclie- 
merling  nas  cavernas  de  Liege  e  Aymard  no  volcão  de  Denise 
haviam  observado  ossadas  humanas  depositadas  em  terrenos 
pertencentes  a  períodos  geológicos  decorridos,  porém  a  gloria  <la 
verificação  e  demonstração  posUiva  desse  grande  facto  cabe  com 
toda  a  justiça  a  Boucher  de  Perthes  que,  com  as  suas  investiga- 
ções em  Abbeville  e  com  a  publicação  das  suas  Anéif/uidades  cél- 
ticas e  aníi-diluvianas,  a  despeito  de  Cuvier  que  dogmaticamente 
havia  fixado  o  appareoimento  do  homem  apuz  a  extinção  dos 
grandes  mammiferos  do  primeiro  periodo  da  epocha  ([uaternaria, 
lançou  as  bases  solidas  da  paíeoeth/iOf/ia,  sciencia  que  se  colloca 
entre  a  geologia  e  a  historia  e  que,  segundo  a  delinição  de  M'ir- 
tillet  (5)  é  a  liistoria  do  homem  antes  dos  documentos  escriplos, 


(1)  TiUCRRcio  — Ve  natura  reruin 

(2)  EccAKDus  — De  oriffine  et  mnribus  r/erinanor-uin 

[■()  G>Gi}Er. —Orif/ine  de.^  íow,  des  arú  eí  defi  .^rienres. 
(4)  HoKLAí^i:.— //isío/'//  o/'  Corntordl. 
("»)  MoRTii.i.Er.  -Le  itrehi-iloriíiu-;. 


28  HISTORIA  DO  BRASIL 


dos  monumentos  figurados  e  mesmo  até  antes  das  tradições  e 
lendas. 

Divide-se  a  paleoethnogia  em  três  grandes  partes :  a  primeira 
occupa-se  do  apparecimento  do  homem"  na  epocha  terciária,  isto 
é,  aponta  a  origem  da  humanidade;  a  segunda  estuda  o  desen- 
volvimento do  homem  na  epocha  quaternária ;  a  terceira  pre- 
occupa-se  com  o  homem  nos  primeiros  albores  da  historia. 

Os  documentos  que  authenticam  a  paleoethnologia  são 
ossos  de  nossos  semelhantes  e  productos  pri:r  itivos  da  arte  e 
industria  humanas  encontrados  em  excavações  praticadas  em 
todos  os  continentes,  ou  descobertos  nas  brechas  ossiferas  e 
cavernas,  nas  grutas  sepulchraes,  nos  monumentos  cyclopicos, 
nos  mounds  do  Ohio,  nos  tumuli  da  Scandinavia,  nas  habitações 
lacustres  da  Suissa  e  da  Itaiia,  nos  nuraghi  da  Sardenha,  nos 
terramares  da  Emilia,  nas  lavas  dos  volcõès  extinctos  do  Auver- 
gne,  nos  kjòkenmoeddingers,  nos  ceramios,  nos  sambaquis,  etc. 

Chronolo^ia  paleoethnolo^ica.  —  Se,  relativamente 
aos  tempos  históricos,  quando  se  trata  de  épocas  muito  aífastadas 
torna-se  difficil  a  applicação  dos  processos  chronologicos  mo- 
dernos, é  de  todo  impossível  applicar-se  as  mesmas  unidades 
de  tempo  que  hoje  usamos  ao  computo  dos  períodos  prehis- 
toricos. 

«  Não  é  por  annos,  diz  Paulo  Broca  fl),  nem  por  séculos, 
nem  por  milhares  de  annos  que  se  podem  medir  estes  períodos  ; 
mas  pode-se  determinar  a  ordem  segundo  a  qual  succederam-se 
as  epochas  geológicas  e  os  períodos  de  que  cada  uma  se  compõe.  » 

E'.  por  conseguinte,  por  uma  chronologia  relativa  que  se 
medem  as  eras  prehistoricas. 

Estas  eras  ou  idades,  segundo  a  classificação  de  Thomsen 
que  prevalece,  ficaram  chamando-se,  de  accòrdo  com  a  matéria 
prima  de  que  então  eram  feitos  os  instrumentos  e  utensílios, 
idade  da  pedra,  idade  do  bron:e  e  idade  do  ferro. 

Estas  duas  ultimas  idades  porém  já  fazem  parte  dos  tempos 
históricos,  ou  quando  muito  começam  em  tempos  proto- históricos 
e  por  conseguinte  tal  classificação  abrangia  o  immenso  período 
paleoethnologico  sem  divisão  chronologica,  preoccupandose  ape- 
nas em  distinguil-o  dos  tempos  históricos  e  proto-historicos. 

Por  isso  os  sábios  francezes  dividiram  a  idade  da  pedra  ou 
archeolitica,  segundo  Lubbock,  em  dois  períodos:  o  da  pedra 
lascada  e  o  da  pedra  poU.da,  tomando  por  base  os  caracteres  dos 
instrumentos  de  pedra. 

Como,  porém,  nem  sempre  os  instrumentos  de  pedra  polida 
que  se  encontram  são  contemporâneos  dos  tempos  geológicos  que 
com  esse  nome  parecem  referir-se,  os  sábios  inglezes^deram  a 
taes  períodos  outros  nomes :  ao  periodo  da  pedra  polida,  que  é 
o  mais  recente  denominaram  neolithico  (nova  pedra  e  ao  da 
pedra  lascada  pa/eo'íY/ííco  (antiga  pedra).  A  estes  períodos  Mor- 
tillet  acrescentou  um  terceiro— eo/i7/H'co,  (origem  da  pedra)  para 
applicar-se  especialmente  á  epocha  terciária. 

Esta  classificação  é  geralmente  aceita,  mas  progredindo  a 
sciencia  e  accentuando-se  a  necessidade  de  novas  subdivisões 
chronologicas,  diversos  methodos  foram  propostos  e  entre  estes 
os  mais  notáveis  sao  os  que  damos  em  seguida: 


(l)  PAWt  Broca— ies  troglodytes  de  la  Venere, 


INTRODUCÇAO 


29 


CLASSTiCArÃo  DE  Lartet.— Eduapdo  Lartet,  tomando  por  base 
a  fauna  do  i)eriodo  quaternário,  dividio  a  idade  da  pedra  em—epo- 
c/ia  do  urso,  epocha  do  mammouth  e  epocha  da  renna. 

Classificação  de  Broca,— Broca,  tomando  por  base  ao  mesm 
tempo  a  stratigraphia,  a  paleontologia  ea  archeologia  dos  tempos 
quaternários  determinou  os  períodos  paieoethnologicos  pela  se- 
guinte forma: 


oc 

c» 

■4^ 

d       0) 

T7^             2 

J  1 

< 

o 

<o  ^  ^  O':!      kii 

j3   jg  -^    Cõ  ^ 

'o 
m 

í^     ^      ^ 

0 

n 

O 

o       o       <u 
"^      -d      1^  ' 

í3        cã       es 
^       TJ       fíS 

P 

o 

3 

i 

a 

à 

•                      -   — — ^ 

""^ 

< 

a 

9 

'« 

M 

íí  1 

i          .^ 

o 

Cl            Í2 

o;)    CÍ 

0 

H 

1       1 

11 
n3  " 

^3 

^-«— -   -^ — 

1— 1 

1— 1 

?=■ 

W 

|2 

02 
O' 

H 

CC 

; 

■4- 

1 

^ 

00  '^ 

te   o 

_o 

in 

< 

•§§■ 

O) 

a 

m 

O 

O) 

o 

i=l 

O) 

P4 

0 

GC 

>;  í>  > 

t> 

í> 

4 

] 

0 

^ 

tS 

S 

^ 

. 

HÍ 

-^ — r- 



.;l, 

^^o 

g 

0 

'^1 

'o 

(O 

rd 

o 

{C 

o  fá 

<5  ?• 

U 

c 

a 

^1 

O 

1     8 

li 

o 

Sh 

f-'r!= 
03  ^ 

« 

?4 

Ph 

Ph 

11 

Classificação  de  Mortillet.— Uma  das  classifições  mais  vul- 
garisadas,  embora  como  as  precedentes  tenha  soffrido  sérias  ob- 
jecções, é  a  de  Mortillet  que  subdivide  a  idade  archeolitica  em 
epochas  a  que  deu  os  nomes  dos  logares  onde  foram  encontrados 
os  documentos  paleosthnologicos. 

O  periodo  eolithico,  que  corresponde  aos  terrenos  terciários, 
é  representado  pelo  typo  de  Thena}'  ;  o  periodo  paleolithico  consta 
de  quatro  épocas,  as  quaes,   a  começar  pela   mais  remota  são : 


30  HISTORIA  DO   BKASIL 


Epocha  de  St.  Acheid  ou  de  Chelles,  contemporânea  do  mam- 
moutk  e  do  Elephas  antiquus.  Caracterisa-se  por  silex  cortados 
em  fóima  de  amêndoa. 

Epocha  do  Moustier,  contemporânea  do  grande  urso  das 
cavernas.  Caracterisa-se  por  pontas  de  silex  cortadas  de  um.  só 
lado  e  raspadores  também  de  sil^-x. 

Ei^ocha  de  Solutré,  contemporânea  da  renna  e  em  parte  do 
mammrutli.  As  pontas  de  silex  tem  a  f^rma  de  folha  de  louro 
e  são  cortadas  dos  doi,s  lados. 

Epocha  da  Magdalena.  contemporânea  da  renna.  Flechas  de 
osso  e  laminas  de  silex. 

Ao  período  neolithico  corrt^sponde  a  epocha  de  Rohenhausen, 
contemporânea  das  primeiras  habitações  lacustres  e  dos  dolmens. 
Machados  de  pedra  polida  e  flechas  de  silex  dentadas. 

O  lIOMt:n  TEKCIARIO  —Tendo  os  estudos  de  geologia 
e  paleontologia  demonstrado  que  as  condições  da  vida  durante  a 
epocha  terciária  eram  quasi  idênticas  ás  actuae?,  os  investiga- 
dores tiraram  desse  facto  a  conclusão  de  que  podia  muito  bem 
ter  existido  o  homem  naquelles  tempos  e  logo  puzeram-se-lhe 
na  pista. 

Em  1863  Desnover  julgou  descobrir  vestígios  humanos  nas 
areias  e  cascalhos  plíocenes  de  Saint  Prest  e  poucos  annos  depois 
apresentava-se  o  abbadrf  Bourgeois,  dizendo  ter  encontrado  na 
base  do  terreno  miocene  de  Thenay,  silex  queimados  e  lascados  ; 
ao  -nesmo  tempo  Delauna}"  garantia  a  existência  de  productosda 
industria  humana  no  terreno  miocene  de  Pouancé,  Arthur  Issel 
exhibia  ossadas  humanas  recolhidas  nas  margas  azues  dos  ter- 
renos plíocenes  de  Savona  e  William  Blake  expunr.a  diversos 
instrumentos  de  pedra  que  dizia  ter  encontrado  no  terciário  su- 
perior da  Califórnia. 

Muitas  outras  descobertas  de  igual  natureza  pareciam  demon- 
strar exhuberantemente  a  existência  do  homem  terciário,  porém, 
sendo  as  mesmas  submettidas  ã  severa  analyse,  evidenciou-se  que 
eram  de  origem  mais  recente. 

Três  dessas  relíquias,  no  entanto,  embora  muitos  não  lhes 
tenham  attríbuído  maior  importância  que  ás  outras  como  provas 
da  remota  antiguidade  do  homem  na  terra,  foram  por  Gabriel  de 
Mortillet  cons  deradas  como  verdadeiros  documentos  humanos  do 
período  terciário. 

As  descobertas  que  mereceram  ser  distinguidas  pelo  illustre 
paleoethnologo  franí*ez  foram  as  do  abbade  Bourgeois  nas  jazidas 
de  Thf.nay,  as  de  Rames  no  conglomerato  trachytico  do  Cantai  e 
as  de  Carlos  Ribeiro  em  depósitos  terciários  do  valle  do  Tejo. 

O  homem  de  'I  henay  —Ao  homem  que  devia  existir  em 
Thenay  e  que  fabricou  os  silex  encontrados  pelo  abbade  Bour- 
geois, Mortillet  deu  o  nome  de  Aiithropit/iecus  Bourgeoisii. 

A  descoberta  de  Bourgeois  constava  He  silex  trabalhados,  e 
fallando  dos  mesmos  diz  o  venerando  abbade  ; 

«  Comparei  estes  instrumentos  terciários  com  os  que  recolhi 
em  tão  grande  numero  na  superfície  do  solo  na  mesma  região,  e 
não  tardei  a  observar  a  perfeita  identidade  dos  typos  fundamen- 
taes.. .  Comquant )  o  aspecto  destes  instrumentos  denote  um  tra- 
balho grosseiro,  comtudo  observam-se  retoques  finos  e  feitos  com 
habilidade.  Para  se  apreciar  o  talento  dos  priuiitivos  operários 
que  os  fabricaram  devemos  attender  á  natureza  do  silex  que 
tinham  a  sua  disposição... 


INTRODUCÇÃO  31 


«  Muitos  destes  instrumentos  foram  deformados  pela  acção 
do  fogo;  por  conseguinte,  devia  o  homem  acbar-se  já  de  posse 
desse  elemento. . . 

«  Finalmente,  encontro  ahi  todos  os  signoes  pelos  quaes  se 
reconhece  a  acção  do  homem,  a  saber;  os  retoques,  os  entalhes 
symetricos,  os  entalhes  artificiaes  produzidos  para  corresponder 
aum  entalhe  natural,  os  vestígios  de  uso  e  principalmente  a  re- 
producção  multiplicada  de  certas  formas. 

«  A  presença  dos  silex  cortados  na  base  docalcareo  dt;  Beauce 
é  um  facto  estranho,  inaudito,  de  alta  gravidade,  i)orém  um  facto 
indubitável  para  mim...» 

O  Iioiueni  do  Cantai*  -Ao  fabricante  dos  silex  encon- 
trados por  Mr.  Rames  no  conglonierato  trach^-tico  do  Cantai, 
Mortillet  deu  o  nome  de  Antropií/icciís  Rainesii. 

As  descobertas  de  M.  Rames  constam  igualmente  de  silex 
em  os  quaes  evidencia-se  o  trabalho  do  homem,  embora  muito 
grusseiro  ainda. 

O  iioiitein  íle  Portufjal.— Ao  homem  terciário  de  Por- 
tugal, fabricante  dos  silex  encontrados  pelo  Sr.  Carlos  Ribeiro, 
Mortillet  deu  o  nome  de  Antropitheacs  Wbeiroii. 

Os  silex  e  quartzitos  do  valle  do  Tejo  revelam  o  trabalho  in- 
tencional do  homem,  não  Síunente  por  sua  forma  geral  como 
jielos  planos  do  iiancada  bastantes  claros  e  por  chonchoides  de 
de  percussão  muito  desenvolvidos,  ás  vezes  duplos,  em  relevos 
sobre  uma  face  e  côncavos  na  face  opposta. 

O  lioiueiii  terciário  americano.— Os  sábios  europeus 
ainda  não  se  deram  [)or  satisfeitos  com  as  provas  apresentadas 
pelos  investigadores  do  Novo  Mimdo  sobre  a  existência  do  homem 
terciário  na  America,  tratando-se,  porém,  do  nosso  continente, 
precisamos  dizer  de  que  natureza  são  essas  provas. 

Além  dos  silex  apresentados  por  W.  Blake,  dos  quaes  já  falía- 
mos, em  186(3  os  operários  que  trabalhavam  na  encosta  Occidental 
da  Sierra  Nevada  (Condado  de  Calaveras)  encontraram  a  50 
metros  de  profundidade,  em  camadas  de  cascalho  aurífero  e  por 
baixo  de  muitos  depositis  de  tufo  vulcânico,  um  craneo  humano, 
o  qual,  sendo  enviado  a  Whitney,  director  da  Geolof/ical  Surve/j 
da  Califórnia,  este  convenceu-se  de  que  se  achava  em  presença 
de  um  vestígio  humano  da  epocha  terciária  e  neste  sentido  fez 
uma  communicação  aos  sábios  europeus  que  não  admittiram  a 
antiguiddade  do  craneo  e  proclamaram  que  Whitney  tinha  sido 
victima  de  uma  mystíficação. 

Whitney,  á  vista  disso  e  para  dissipar  taes  duvidas,  tão  oífen- 
sivas  ;i  sua  reputação  scientifica,  procedeu  a  um  rigoroso  estudo 
geológico  e  paleontologico  da  região  em  que  o  craneo  havia  sido 
encontrado  e  em  IS"}!»  escrevia  ao  Sr.  Desor,  de  Bruxellas,  o  se- 
guinte: ((  As  evidenc-as  accumularam-se  de  tal  modo,  que  não 
hesito  em  dizer  que  possuímos  provas  as  mais  inequívocas  da 
existência  do  homem  sobre  a  costa  do  Pacifico  anteriormeiite  aos 
tempos  glaciaes,  ao  período  do  elephante  e  do  mastodonte  e 
n'uma  epocha  em  que  a  vida  animal  e  a  vida  vegetal  differiam 
inteiramente  do  que  são  hoje,  e  depois  da  qual  produzio-se  sobre 
rochas  duras  e  crystallinas  uma  erosão  vertical  de  dous  a  trea 
mil  pés.»  (1) 


i'l)  Whitney,  in  Desor. — I/hornme  pl^cène  de  la  Calijbrnie. 


32  HISTORIA  DO  BRASIL 


Esta  affirmação  tão  cathegorica  não  abalou,  no  entanto,  os 
antropologistas  du  velho  mundo,  que  continuaram  a  combater  as 
idtas  do  sábio  americano;  o  mesmo,  porém,  não  succedeu  nos 
Estados  Unidos,  onde  dous  homens  illustres  pelos  seus  conheci- 
mentos na  matéria,  March  (1  e  Dali  (2),  admittiram  a  existência 
do  homem  terciário  da  Sierra  Nevada  e  deram  peso  ás  asserções 
de  Whitney. 

Mais  tarde,  em  1883,  Walter  Hofmann,  examinando  esses 
mesmcs  depósitos  da  Sierra  Nevada  encontrou  numerosas  pega- 
da* em  jazidas  de  grés  argilloso,  a  15  e  32  pés  de  profundidade 
que  Hotmann.  bem  como  Alphonse  Pinart  e  Paul  Topinard 
attribuem  a  pés  humanos  (3i;  outros  referem-nas  a  preguiças 
gigantescas  {imjlodonte,  inrfiathcrium)  ou  a  ursos,  acreditando 
Brinton  que  o  individuo  que  as  produzio  apoiavase  sobre  o 
bordo  externo  da  planta  do  pé  e  tinha  uma  fila  de  pellos  ao  longo 
deste  mesmo  bordo,  supposição  essa  contra  a  qual  1'opinard  se 
insurge. 

Eis  em  que  estado  se  acha  a  questão  do  homem  terciário  na 
America;  no  Brasil,  por  emquanto.  nenhum  vestígio  delle  se 
encontrou,  pois  o  Propitherus  brasilirnsis,  descoberto  por  Lund, 
não  passa  de  um  macaco  do  género  dos  lemurios. 

Finalmente,  o  próprio  Mortillet  que  reconheceu  nos  silex  de 
Thenay,  do  Cantai  e  de  Monte  Redondo  signaes  inelludiveis  de 
um  trabalho  intencional,  e,  por  conseguinte,  proclamou  a  existên- 
cia de  um  ser  nos  tempos  terciários  que  por  armas  e  ferramentas 
já  não  se  servia  unicamente  das  manus\  imr/ues,  dentesque  de  Lu- 
crécio, apresenta  as  seguintes  conclusões:  «...  o  homem  não 
existia  ainda  nos  tempos  terciários.  Havia  então,  principalmente 
no  flm  destes  tempos,  seres  muito  mais  intelligentes  que  os  ma- 
cacos antropoides  actuaes,  porém,  estes  seres  não  eram  ainda, 
propriamente  fatiando,  o  homem.  Eram  precursores  do  homem, 
degráos  conduzindo  ao  homem,  mas  não  o  homem  tal  como  elle 
existe  em  nossos  dias.»  (4) 

Relativamente  ás  descobertas  de  Whitney  e  Hofmann  sobre 
o  liomem  terciário  americano,  o  nosso  illustrado  compatriota 
Dr.  Júlio  Trajano  de  Moura,  formula  o  seguinte  conceito  que 
esposamos. 

«  O  que  ficou  exposto  (analyses  e  descobertas  de  Blake,  Whit- 
ney e  Hofmann)  não  constitue  uma  base  positiva  com  qae  se 
possa  affirmar  ou  negar  a  existência  do  homem  terciário  na 
America.  Muito  provavelmente,  porém,  o  fóssil  da  Califórnia  não 
era  um  ser  correspondente  ao  Anthropithecus  de   Mortillet  »  (b) 

I>I-:RI0I>0  PALEOLITHICO.-Segundojá  vimos.  Gabriel 
de  Mortillet  dividio  o  periodo    paleolithico  em  quatro  epochas, 


1)  «  TliP  evidence  as  it  .stands  to  day  although  not  c inclusive,  seems 
t)  pinte  th»  appearanci'  of  man  ii>  this  countiy  ih  the  pli  cene  ;  and  ilie 
jje.-ít  proif  01' this  \\\<  beeii  found  ca  the    pacific   coast  »  Mvrsh. 

(2)  «  No  reasfinible  person  who  has  iniparti;íily  reviewf^d  tiie  pvi- 
donce  hr.io-i)t,  togother  by  Wliitney  and  who  saw,  as  \ve  did,  the  Cala- 
veras  skiid  in  its  orijxinfil  cnndti^n,  can  doubt  it  was  fouad  as  alleged 
by  t»ie  fiiscuverers  iii  Itíf  Huriff-rous  graveis  below  the  lava.»    Dall. 

(3)  Jlliu  Tra.ianu  Di:  Moik\. — Do  homem  americano. 

(4)  Mortillet.— Le  prehistorique. 

(õj  Jllio  Trajaxo  de  Moujra  — Obra  citada. 


INTRODUCÇlO  33 


a  saber  :    Epocha  de  Chelles   ou  de    Saint-Acheul,    Epocha  do 
Moustier,  Epocha  de  Solutrè  e  Epocha  da  Magdalena. 

Seguiremos  a  classificação  de  Mortillet,  nao  por  julgarmol-a 
a  mais  perfeita,  pois  reconhecemos  bastante  a  nossa  insufficiencia 
em  assumpto  tão  especial,  mas  por  nos  parecer  a  mais  commoda 
para  a  vulgarisaçáo  dos  factos  principaes  da    paleoethnologica. 

Epuelia  de  Chelles.-  Não  obstante  certas  circumstan- 
cias  que  accentuam  diílerenças  chronologicas,  subordinam-se  á 
epoclia  do  Chelles  diversas  relíquias  humanas  encontradas  em 
pontos  diiferentes.  Estes  restos,  muito  conhecidos  na  sciencia, 
são  :  o  craneo  e  a  ossada  de  Neanderthal,  o  craneo  de  Canstad, 
as  ossadas  de  Lnhr,  o  craneo  de  Eguisheim,  o  craneo  de  Brux,  o 
craneo  e  a  ossada  de  Denise,  a  mandibula  de  Moulin-QuigQon  e  a 
mandíbula  de  la  Naulette. 

Com  esses  restns  reconstituiram-se  raças  e  assim  é  vulgar 
nos  livros  de  prehistoria  as  referencias  ã  raça  de  Neanderthal, 
á  raça  de  Canstad,  ã  raça  de Moulin-Quignon,  etc,  quando  os  auto- 
res querem  referir-se  ao  grupo  humano  de  que  fazia  parte  o  in- 
dividuo ao  qual  pertenceram  taes  restos. 

Dos  restos  humanos  que  acima  mencionamos,  os  de  maior 
importância  scientifica  são  os  craneos  de  Neanderthal  e  Canstad 
e  as  mandíbulas  de  Moulin-Quignon  e  de  la  Naulette  ;  os  outros, 
pela  sua  fragmentação,  tornaram-se  de  pouco  valor  para  o  estudo. 
As  ossadas  de  Lahr  extraviaram-se  no  Museu  de  Paris,  antes  de 
serem  convenientemente  estudadas. 

Com  as  luzes  fornecidas  por  esses  restos  da  humanidade  pri- 
mitiva os  paleoethnologos  reconstituem  por  inducção  a  vida  dos 
povos  n'esses  tempos  remotos  e  isto  com  bastante  exactidão. 
«  Não  sabemos  seus  nomes,  diz  Broca,  nenhum  historiador  os 
mencionou,  e,  no  entanto,  elles  nos  são  mais  conhecidos  a  muitos 
respeitos,  que  certos  povos  celebres  na  historia  clássica.  Conhe- 
cemos seu  modo  de  existência,  sua  industria,  sua  arte  e  todos  os 
detalhes  de  sua  vida.»  (1) 

Tratando  do  homem  da  epocha  de  Chelles  vemos  que  a  raça 
de  Neanderthal  habitava  de  preferencia  ã  margem  dos  rios  e  re- 
gatos, porque  nos  alluviões  fluviaes  é  que  se  tem  encontrado 
signaes  de  sua  grosseira  industria  ;  também  frequentava  no  en- 
tanto os  planaltos,  onde  ás  vezes  se  deparam  vestígios  seus. 

Embora  tenha-se  encontrado  algumas  instrum.entos  chelleos 
nas  cavernas,  são  em  tão  pequeno  numero,  que  é  natural  presu- 
mir-se  que  as  mesmas  ainda  não  eram  utilisadas  como  habitações 
humanas  e  apenas  serviam  de  abrigo  às  feras. 

Como  na  epocha  de  Chelles  a  temperatura  era  muito  suave,  é 
natural  que  o  homem  andasse  nú. 

Sua  industria  revela-se  por  um  só  instrumento:  um  silex,  ou 
fragmento  de  outra  rocha,  lascado  sobre  as  duas  faces  e  tornado 
pela  martelagem  mais  ou  menos  amygdaloide. 

Embora  muito  variável  na  forma,  na  grandeza,  no  trabalho 
e  na  matéria  de  que  6  feito,  adopta-se  como  forma  typica  do  ins- 
trumento chelleo  ser  mais  ou  menos  amendoado,  alargando  a 
partir  do  terço  inferior   e  terminando    em  ponta    no   ápice  ;  os 


(1)  Broca.  —  Les  troglodytes  de  la  Vezére, 


34  HISTOEIA  DO  BRASIL 


bordos  são  angulosos  e  as  faces,  no  sentido  da  espessura,  apre- 
sentam um  certo  achatamento. 

Muito  .mais  musculoso  do  que  o  homem  actual,  o  chelleo 
tinha  no  entanto  a  mesma  estatura.  Era  doliccchephalo,  porem 
sua  capacidade  intellectual  ainda  não  foi  perfeitamente  definida. 

A  mandíbula  de  la  Naulette  é  privada  da  apophyse  geniana 
que  caracterisa  no  homem  actual  a  linguagem  articulada,  e  disto 
deprehendem  alguns  sábios  que  o  homem  chelleo  ainda  não  fal- 
lava,  communicando-se  apenas  por  gritos  inarticulados. 

Cpociía  do  Moustiep.— A  esta  epocha  subordinam-se 
diversas  descobertas,  entre  as  quaes  asprincipaes  são  o  craneo 
de  Engis,  a  mandíbula  de   Maéstricht  e  o  cranêo  de  Olmo. 

N'esta  epocha  o  hoiiem  começa  a  habitar  as  cavernas,  visto 
tornar-se  mais  intenso  o  frio.  Esse  abrigo  foi  sanguinolenta- 
mente disputado  ás  feras,  tendi)  muitas  vezes  n^essas  luctas  me- 
donhas succumbido  o  nosso  antepassado. 

Assim  como  procurou  o  abrigo  das  cavernas  contra  o  frio, 
o  homem  faz  na  epocha  do  Moustier  a  sua  primeira  toilette, 
servindo-se  naturalmente  para  isso  da  pelle  dos  animaes,  e,  como 
para  tornar  esta  mais  commoda  era  preciso  desembaraçai  a  das 
partes  graxas,  ao  pesado  instrumento  de  forma  amendoada  do 
homem  chelleo,  por  elle  já  modificado,  accrescenta  um  outro — o 
raíac/or,  também  de  silex  e  de  bordos  cortantes. 

Sua  alimentação  compbca-se  :  a  fera  morta  depois  de  por- 
fiada lucta  é  um  bom  manjar  e  por  isso  aos  fructos  de  que  se 
nutria  o  chelleo,  muito  próximo  ainda  dos  macacos  anthropoides, 
o  homem  do  Moustier  acrescenta  a  carne. 

Como  a  temperatura  é  uniforme,  embora  fna,  e  elle  já  con- 
quistou á  custa  de  grandes  esforços  uma  habitação,  conserva 
esta  e  torna-se  sedentário. 

Devia  ter  sido  nesta  epocha  que  o  homem  adquiriu  o  fogo, 
um  dos  mais  poderosos  agentes  do  progresso  humano.  (Ij 

B£poclia  de  Solutré.— Subordinam-se  a  esta  epocha  os 
ossuarios  de  Solutré  e  de  Menton. 

A  industria  do  homem  de  Solutré  caracterisa-se  pelos  instru- 
mentos de  silex  em  forma  de  folha  de  loureiro,  pelas  pontas  de 
flechas  lascadas  dos  dois  lados  e  pela  transformação  do  ralador 
mousteriano  no  raspador. 

A  matéria  empregada  na  industria  do  homem  de  Solutré 
ainda  c  somente  a  pedra,  porém  rs  objectos  fabricados  já  são 
mais  leves  e  de  formas  mais  desenvoltas. 

Com  o  desenvolvimeato  da  industria  desperta  a  imaginação 
humana,  sendo  na  epocha  de  Solutré  que  se  encontra  a  mais 
remota  manifestação  artística.  Este  progresso  é  assignalado  por 
duas  esculpturas  que  se  encontraram  e  que  representam  rennas. 

£|i04*lia  da  Magílalena.— Subordinam-se  a  esta  ultima 
epocha  do  período  paleoliíhico  a  mandíbula  de  Arcy  e  o  homem 
esmagado  de  Laugerie  Basse.  Os  restos  humanos  encontrados 
em  Aurignac,  Cro-Magnon  e  Furfoz  foram  rejeitados  por  Mor- 
tillet,  que  os  considera  como  mais  modernos. 

Caracterisa-se  esta  epocha  por  um  notável  desenvolvimento 
artístico  e  industrial,  começando-se  nella  a  trabalhar  o  marfim,  e 


^1;  JoLY  — Vhomme  atant  les  metauae. 


INTIiODUCÇÃO  3Õ 


principalmente    o    osso,  que  -^   o  material  preferido  para  os  tra- 
balhos dos  primitivos  esculptures  e  gravadores. 

A  arte  consta  de  gravuras,  baixos  relevos  e  verdadeiras  es- 
culpturas.  » 

Com  o  progresso  artístico  surge  o  luxo,  apparecendo  ador- 
nos feitos  de  dentes  de  animaes. 

A  industria  se  enriquece  com  agulhas  feitas  de  ossos,  zagaias 
e  harpões,  pois  n'essa  epoclia  o  honu;m  já  é  omnívoro  e  os  rios 
e  mares  contribuem  para  a  sua  alimentação. 

Um  outro  producto  da  industria  humana  nesta  epocha  nos 
revela  que  já  existe  uma  sociedade  organisada  e  bem  assira  os 
chefes;  esse  producto  é  uma  insígnia  —  o  bastão  do  commando. 

Finalmente,  o  homem  neste  ultimo  periodo  paleolithico. 
vendo-se  continuamente  ameaçado  nas  suas  cavernas  pelos  di 
luvios  e  descimentos  do  gelo,  inicia  as  migrações  e  torna-se 
nómada,  seguindo  n'isto  o  exem[)lo  do  seu  anim;il  predilecto— a 
renna  ;  é  neste  estado  que  o  colhem  os  grandes  cataclysmas 
geológicos  que  fechainas  indef^isas  eras  da  prehisfi)ria. 

O  HoMl!:U  PAIEOLIIHICO  AMKRIlArVO.  —  Nu- 
merosas descobertas  tòm  demonstrado  a  existência  |do  homem 
paleolithico  na  Aiuerica,  a  ellas  porém  não  se  podem  appli(;ar 
as  divisões  clironol<jgicas  estabelecidas  pela  Europa,  nem  os  es- 
tudos que  sobre  as  mesmas  se  tem  feito  permittem  ainda  uma 
classificação  rasoavel. 

Assim,  nada  mais  podemos  fazer  que  enumerar  essas  desco- 
bertas. 

Em  1877  Carlus  Abbot  encontrou  perto  da  cidade  de  Trenton, 
nos  Estados-Unidos,  em  sedimentos  depositados  pelo  gelo  sobre 
o  leito  do  Delaware,  instrumentos  de  pedra  lascada.  Objectos 
idênticos  aos  que  descobriu  Abbot,  foram  encontrados  em  New- 
Hampshire,  New  England  e  Massassuchets.  Esses  objectos  eram 
feitos  de  quartzito,  felzito  e  granito  e  apresentam-se  talhados  em 
uma  só  face,  sendo  a  outra  destinada  á  adaptação  da  mão.  Em 
Little  Falis  (Minesota),  foram  encontrados  diversos- silex  lascados 
e  soterrados  por  cinco  metros  de  alluviões  glaciaes.  Nas  margens 
do  Mississipiappareceram  diversas  ossadas  humanas  que  rej  ou- 
savam sobre  uma  camada  terciária  :  Benett  Dowler  fez  idêntica 
descoberta  em  Nova  Orleans.  Winslow  descobriu  em  18i37,  na 
Califórnia,  ossadas  humanas  ao  lado  de  (  ssadas  de  animaes;  já 
extinctos  e  bem  assim  dois  almofarizes  de  pedra.  Recordando  o 
typo  da  industria  de  Chelles  appareceram  diversos  instrumei;tos 
no  alluvião  do  rio  Juchilipa,  no  México  e  ainda  n'este  paiz.  na 
villa  de  Guanajato  dep;iraram-se  artefactos  que  tinham  a  fornia 
dos  da  epocha  de  Moustier  ;  finalmente,  o  venerando  P.ter 
Wilhelm  Laud.  que  consagrou  toda  a  sua  existência  ao  estudo 
da  fauna  e  da  flora  pre-historicas  do  Brazil,  descobriu  em  1844  em 
uma  caverna  dos  arredores  da  Lagoa  Santa,  em  I\Iinas  Geraes, 
vestígios  incontestáveis  do  homem  paleolithico. 

Desta  ultima  descoberta  nos  occuparemos  mais  detidamente 
no  loffar  competente. 

PERIOMO  1\KOI.ITH1LO.-0  periodo  neolithico  ou  da 
pedra  [tolida  é  o  primeiro  dos  tempos  actuaes  e  muitos  povos 
modernos  ainda  não  o  ultrapassaram. 

Na  Europa,  segundo  o  que  tem  podido  alcançar  a  sciencia.  ob- 
serva-se  uma  grande  lacuna  [jrehistorica  entre  o  período  paleo- 
lithico e  este,  ou  por  outra,  conforme  a  chronologia  que  temos  até 


36  HISTOEIA  DO  BRASIL 


aqui  seguido,  entre  a  epoííha  da  Magdalena  e  a  epocha  de  Robe- 
nhausen.  A  essa  lacuna  deu-se  o  nome  de  hiatus. 

No  periodo  neolithico  as  condições  da  vida  modificaram-se 
profundamente:  ao  clima  frio  e  secco  da  ultima  epocha  paleoli- 
thica  succedeu  ura  clima  temperado,  muito  mais  uniforme;  desap- 
pareceram  o  mammoutb,  a  hyena  e  os  grandes  felinos;  certos 
animaes  retiraram-se  para  o  cimo  das  montanhas  e  outros  emi- 
graram para  o  norte. 

As  raças  humanas  neolithicas  parecem  outras  e  o  progresso 
sobre  as  epochas  decorridas  é  evidente. 

Ainda  se  encontram  instrumentos  de  pedra  lascada,  porem  a 
nedra  polida  é  o  verdadeiro  característico  desta  epocha.  De  pedra 
lascada  vèm-se  laminas,  facas  e  os  percutores,  instrumentos  des- 
tinados a  destacar  as  laminas  do  núcleo  de  pedra.  De  pedra  reto- 
cada vem-se  serras,  raspadores,  furadores,  picar^^tas,  diversas 
pontas  de  flecha,  dardos,  pontas  de  lanças,  punhaes  e  outros 
objectos.  De  jiedra  polida  deparam-se  machados,  quebra-cabeças, 
machadinhas,  escopros,  tesouras,  etc. 

De  osso  faziam-se  cutellos  e facas,  furadores,  punhaes,  pontas 
de  lanças  e  flechas,  pentes  e  outros  artigos;  os  cornos  dos  cervideos 
eram  utilisados  em  diversos  misteres  e  bem  assim  os  dentes; 
com  a  madeira  fabricavam- se  cabos  de  ferramentas  e  muitos 
outros  utensílios. 

Surge  a  industria  da  louça  que  em  geral  é  fabricada  de  barro 
grosseiro  não  ob.stante  ter-se  encontrado  alguma  de  barro  fino  ; 
de  conchas,  dentes  e  pedras  fazem-se  diversos  artigos  de  orna- 
mentação. 

O  homem  das  palaííitas  e  dos  dolmens  já  domesticou  alguns 
animaes  :  foram  elles  o  cão,  o  cavallo,  a  cabra,  o  carneiro  e  o 
porco  ;  ao  mesmo  tempo  começou  a  praticar  a  agricultura,  sendo 
de  presumir  que  principiasse  pela  arboricultura  e  depois  passasse 
á  cultura  dos  cereaes  (trigo,  centeio  e  cevada  . 

Finalmente,  fabrica  bebidas  fermentadas,  do  linho  faz  teci- 
dos e  constroe  habitações  regulares. 

Desenvolve-se  no  homem  neolithico  o  sentimento  de  religio- 
sidade que  se  manifesta  pela  veneração  aos  mortos  ;  em  compen- 
sação observa-se  a  ausência  completa  de  sentimentos  artísticos,  o 
que,  tendo  se  em  vista  o  grande  desenvolvimento  da  arte  na 
epocha  da  Magdalena  «prcjvaumi  differença  de  raças  na  popu- 
lação da  Europa  Occidental  n'estas  difíerentes  epochas.  (1)»  E'  no 
homem  neolitiiico  europeu  que  vemos  apparecer  pela  primeira 
vez  urna  pratica  supersticiosa— a  trepanação. 

Mortillet  tomou  como  typo  do  periodo  paleolithico  a  pequena 
aldeia  de  Robenhausen,  na  Suissa,  junto  a  qual  se  encontra  um 
pântano  que,  pelos  trabalhos  de  dessecação  e  exploração  da  turfa, 
revelou  uma  rica  estação  da  pedra  polida.  Estudaremos  o 
homem  neolithico  europeo  nas  suas  habitações  lacustres  ou  ter- 
restres, nas  suas  oflfl-^inas,  pedreiras  de  s^ilex  que  exploravas,  nos 
kjokenmcfdings  e  nos  seus  monumentos  megalithicos  (menhir, 
dolmens,  tumulus,  etc.) 

Palallitas.  -  As  ;)aífl/7?Ya.s-  ou  habitaçõen  lacustres  foram 
encontradas  no  inverno    de   ] 853— 1854  que  por  muito  secco  fez 


(1)  Jo.NH  LuxjbocK. —  Origines  de  la  cicilisation. Traá.  de  Barbier. 


INTEODUCÇÃO  37 


abaixar  consideravelmente  as  aguas  dos  lagos  da  Suissa.  Constam 
de  pequenas  choupanas,  levantadas  á  superfície  das  aguas  sobre 
plataformas  de  madeira  e  sustentadas  por  fortes  estacas. 

«As  plataformas  de  madeira  tinham  naturalmente  que  sup- 
portar  pesos  muito  consideráveis,  pois  um  grande  numero  de 
estacas  acham-se  envergadas  ou  queoradas.  Algumas  vezes,  para 
impedir  as  estacas  de  se  enterrarem  muito  profundamente,  fa- 
ziam-n'as  passar  em  peças  de  madeira  dis[)Ostas  sobre  o  fundo  do 
lago»  (Ij  Nas  pa/a  fitas,  que  na  Suissa  são  conhecidas  pelo  nome 
de  P/a/i/hauten,  encontram-se  detrictos  de  carvão,  cacos  de  louça, 
ossadas  mais  ou  menos  fragmentadas  e  vários  instrumentos  de 
pedra  e  osso  ;  f"i  por  essas  relíquias  principalmente,  que  so  re- 
constituiu a  industria  da  epocha  neolilithica. 

Crannoges  —  O  homem  da  epocha  neolithica  tinlia  dois 
S3'stemas  de  construcção  lacustre:  um  era  a  palaflita,  ou    pfaul 
baiUeu^  o  outro  era  o   craniioge  ou  jiackverkbauien,  cujos  resto^ 
se  encontram  na  Irlanda- 

Nas  palaííitas  as  plataformas  eram  simplesmente  sustentadas 
por  estacas,  o  crannoge,  alem  do  arrimo  das  estacas, apoiava-se  em 
massas  solidas  de  barro,  pedras,  etc,  com  camadas  horisontaes 
e  perpendiculares  de  estacas  que  serviam  mais  para  fazer  uma 
massa  compacta,  do  que  para  sustental-o.  O  crannoge,  segundo 
a  opinião  do  sábio Lubbock,  era  muito  mais  simples  e grosseiro  do 
que  a  palaffita,  em  a  qual  era  preciso  muita  habilidade  para 
tornar  firmes  as  pranchas  perpendiculares  e  horizontaes. 

Habitações  terrestres.— O  homem  neolithico  não  vivia 
somente  em  habitações  lacustres ;  sobre  a  terra  firme  também 
construía  as  suas  vivendas  e  as  ruinas  destas  ainda  se  encon- 
tram em  diversos  pontos  da  Europa  Occidental. 

Concecio  Rosa  dá  a  seguinte  descripção  de  uma  que  encon- 
trou sobre  a  collina  de  Belvedere,  em  Controguerra,  (Itália):  Em 
meio  de  um  terreno  branquicento  deparou-se  uma  camada  escura 
composta  de  carvão,  cinzas  e  detrictos  orgânicos  que  cobriam  um 
espaço  circular  de  8  metros  de  diâmetro,  com  uma  espessura  que 
partindo  de  20  a  30  centimetrus  para  os  bordos,  attingia  lml5 
no  centro.  Foi  ahi  que  se  encontrou  o  fogão,  composto  de  blocos 
de  grés  avermelhados  pelo  fogo.  Desta  camada  foram  re<'-olliiilos; 
três  machados  de  pedra  polida,  uma  infinidade  dn  laminas  e 
lascas  de  sil^x,  percutores,  oito  ferramentas  de  osso,  uma  concha 
marinha  furada,  algumas;  centenas  dt^  fragmentos  de  louças,  e 
muitos  ossos  de  boi,  cavallo,  porco,  carneiro,  cabra  e  aves.  » 

Oliiciuas.  —  Além  das  habitações  terrestres,  o  homem 
da  pedra  polida  possuía  as  suas  officinas  para  o  fabrico  dos  instru- 
mentos, e  estas  eram  naturalmente  construídas  junto  ás  pedreiras 
de  onde  se  extrahia  a  matéria  prima. 

Observa  Mortillet  que  o  facto  da  especialisação  do  trabalho 
já  existia  na  epocha  de  Robenhausen,  pois  encontram-se  oflicinas 
que  eram  destinadas  ao  lascamento  dos  machados,  outras  em  que 
se  trabalhava  especialmente  no  polimento  dos  instrumentos  e 
outras  ainda  nas  quaes  o  homem  se  applicava  de  preferencia  ao 
fabrico  de  raspadores,  pontas  de  flechas  e  outros  objectos. 


iX)  JoNH  Lubbock.—  Vhomme  prehittorique .  ^  Trad.de  Barbief, 


38  HISTORIA  DO   BRASIL 


Exploração  do  sllex.  —  Os  silex,  grés,  obsidianas  e 
outros  materiaes  destinados  ás  industrias  neolithicas  eram  em 
geral  extrahidos  de  rochas  existentes  no  soio  da  terra  e  por 
esse  motivo  se  encontram  ás  vezes  1  jngas  galerias,  abertas  com 
o  fim  de  ir  ter  ás  mesmas  rociías.  Ess-as-  galerias  encerram 
quasi  sempre  vestígios  certos  án  industria  humana  d'estes 
tempos  primitivos. 

Igualmente  deparam-se  relíquias  da  epocha  neolithica  nas 
fontes,  nas  ribanceiras  dos  rioseiias  praias,  logares  que  o  homem, 
«  u  pela  visinhança  da  agua,  ou  pela  facilidade  de  obtenção  do 
peixe,  molluscos  e  crustáceos  escolhia  para  habitações. 

KjoekkeiiniOBdtíiii^s.  —  Este  nome  de  pronuncia  tão 
barbara,  é  aquelle  pelo  qual  os  dinamarquezes  designam  certas 
jazidas  que  t^e  encontram  junto  ás  praias  e  que.  pelos  estudos 
nellas  feitos,  demonstram  ser  accumulações  de  detrictos  de  cozi- 
nha do  homem  nenlithico. 

No  Brazil,  onde  os  kjoekkenmoeddíngs  são  vulgares,  como  ao 
depois  veremos,  têm  elles  o  nome  de  sambaquis. 

Os  kjoekkenmcedding  assignaiam  estações  de  povos  que 
dos  molluscos  faziam  a  base  principal  de  su  i  alimentação. 

Geralmente  tèm  a  forma  de  montículos  e  acham-se  dispostos 
ao  longo  das  praias.  No  centro  dj  kjoekkenmoeddmg  encontram- 
se  fogões  com  cinzas,  carvão,  ossos  e  todos  os  productos  da  in- 
dustria neolithica. 

monumentos  me^s^alithlcos.  —  Dá  se  o  nome  de  mo- 
numentos meo-alithicos  {  j^t^dras  grandes  )  aos  que  o  homem  do 
período  neolithiço  levantava  em  homenagem  aos  seus  mortos 
ou  com  intenções  que  nos  são  desconhecidas  actualmente.  Estes 
monumentos  são  Je  diversas  espécies;  os  mais  simples  são  os 
m^n/iirs,  seguem-se  os  cvomlechs  e  depois  os  dobnens. 

A.  estes  monumentos  dava-se  antigamente  o  nome  de  monu- 
rnentos  célticos  ou  driddicos,  verjficou-SH  poriam  mais  tarde, 
que  pertenciam  a  uma  epocha  mais  remota,  isto  é,  que  eram 
pj-oductos  du  homem  neolithiço. 

Menhlf.s.  —  Os  men/iirs  são  enormes  pedras  erguidas  no 
sentido  da  sua  maior  dimensão  e  mantidas  em  posição  vertical. 
.K  grandeza  e  a  forma  dos  menhírs  .são  muitos  variáveis.  O  mais 
alto,  que  é  c  de  Locmariaquer,  no  Morbihan  (França);  (em  2' 
metros  de  comprimento  e  4  de  espf^ssura,  sendo  avaliado  o  seu 
peso  em  SõO.Ono  kilogrammas. 

Presurae-se  que  os  men/iirs  sejam  simples  monumentos  com- 
memoratívos. 

Quando  os  menhírs  são  encontrados  em  grandes  reuniões  e 
dispostos  em  linha,  tem  logar  o  que  em  paleoethnoloíria  se  chama 
un  alinhamento.  O  mais  celebre  éo  de  Carnac,  em  França,  que 
consta  de  il2u  monumentos  dessa  natureza,  í)0  dos  quaes  já  fo- 
ram destruidos  e  740_acham-se  por  terra. 

Tendo  as  excavaçoes  demonstrado  que  esses  grupos  não  eram 
cemitérios,  crê-seqUe  os  menhírs  f  issem  archivos,  recordando 
cada  pedra  nm  facto,  uma  pessoa  oú  uma  da'ta. 

Cromiechs.  —  Os  cromlec/is  são  grupos  de  pedras  fixadas 
n)  chão  e  dispostas  em  forma  circular,  oval,  rectangular,  etc 
Km  muitos  cromiechs  as  pedras  são  de  extraordinária  gran- 
deza e,  por  conseguinte,  constituem  verdadeiros  grupos  de  me- 
nhírs. ' 


INTRODUCÇlO  39 


Tanto  como  acontece  com  os  menhirs,  não  se  sabe  verdadei- 
ramente qual  era  a  funcgão  dos  cromlechs. 

Dolniens.— O  dolmen  é  um  monumento  composto  de  lages 
de  pedra  fixadas  verticalmente  no  chão  e  supportando  outras 
lages  horiscntaes  que  servem  de  aboboda  ou  teclo.  As  laf:ri9B  ver- 
ticaes  ou  obliquas  formam  diversas  camarás  que  habitualmente 
são  precedidas  de  um  vestíbulo- 

Tanto  como  os  menhirs  os  dolmens  têm  formas  variadas  e 
differem  conforme  os  paizes  em  que  ?e  encontram. 

Dá-se  o  nome  de  meio-dolmen,  aos  monumentos  dessa  natu- 
reza ji  degradados  i)elo  tempo,  mas  cuja  meza  ainda  repousa 
sobre  um  ou  mais  pilares. 

Os  dolmens  eram  túmulos  ou  catacumbas  do  homem  neoli- 
thico. 

Encontram  se  tanto  na  Kuropa  como  em  outros  continentes 
e  ainda  hoje  os  Hovas  de  Madfig-ascar  elevam-n'os  ])ara  servi- 
rem de  túmulos. 

Túmulos.  —  Os  túmulos  são  montes  de  pedra  e  terra  for- 
mando cômoros  e  quasi  sempre  cobrindo  dolmens. 

Estes  monumentos  scpulchraes  são  vulgares  nos  paizes  se- 
plentrionaes  lia  Europa  e  bem  assim  na  America  do  Norte  onde 
lhes  dão  o  nome  de  mounds. 

iNos  túmulos  encontram-se  sempre  restos  humanos  junta- 
mente «om  armas,  ornamentos  e  animaes  que  pertenciam  ao 
morto  alli  inhumado. 

Além  dos  túmulos  o  homem  neolithico  sepultava  os  seus 
mortos  em  grutas  artificiaes  ou  naturaes. 

Pínraghi.  -  Os  nuruf/hi  são  edifícios  de  pedra,  da  forma  de 
um  cone  truncado  e,  muito  mais  artísticos  que  os  precedentes. 
Naturalmente  assignalam  um  período  de  transicção  entre  a  idade 
da  pedra  e  a  idade  do  bronze;  tendo-se  em  vista,  porem,  a  matoria 
que  os  constitue  póde-se  consideral-os  como  a  ultima  ]ialavra  da 
architectura  paleolithica 

Estes  monumentos  são  encontrados  na  Sardenha. 

O  nOMEil  MESOIJ  I  H1€0  AMKRICAI\O.-0  Dr.  Julio 
Trajano  de  Moura,  considerando  imjirojiriaa  ex])ressão  neoiUIdca 
para  distinguir  os  povos  americanos  que  succedoram  aos  da 
pedra  lascada  e  que  correspondem  ao  homem  europ»m  de  Robe- 
nhausen,  emprega  o  termo  mesolithico,  que,  por  adequado, 
adoptamos. 

Eífectivamente,  se  na  America  quizermos  estudar  todas  as 
populações  caracterisadas  industrialmente  pelo  emprego  da  ))edra 
polida,  exorbitaremos  do  quadro  da  paleoethnologia  e  invadiremos 
o  terreno  da  historia. 

Assim,  é  i)referivel  o  termo  mesolithico  para  distinguir  o 
homem  quaternário  dos  mounds  e  sambaquis,  reservando-se  o 
termo  72eoííí/<íco  para  definir  a  proto-historia  do  continente. 

«  Ao  homem  terciário  ;ittribuio  MortíUet  a  era  eolithica.  isto 
é,  aquella  em  que  as  primeiras  tentativas  do  uso  da  pedra  começa- 
ram ase  iniciar;  o  quaternário  caracterisou-se  pelos  instrumentos 
paleolithicos  (pedra  antiga)  ou  í)elo  emprego  mais  geral  e  mais 
regular  dessa  substancia  ;  e  finalmente,  o  neolithico  ou  da  pedra 
nova,  aperfeiçoada  e  largamente  usada  pelos  povos  cultos  da 
proto-historia  e  por  innumeros  selvagens  actuaes.  A  expressão 
me.solithica,    que  ali.-is    muitos    jtaleontologistas  já  tôm    empre- 


40  HISTORIA  DO  BRASIL 


gado,  significaria,  pois,  um  estado  intermediário  entre  o  paleo  e 
o  neolithico.  »  (1) 

As  reliauias  relativas  a  esta  epocha  são  os  kjoekkenmoeddings 
e  os  mounas  da  America  do  Norte,  os  chulpas  do  Peru  e  os 
sambaquis  do  Brasil. 

Destes  últimos  não  trataremos  aqui,  pois  temos  para  elles  re- 
servado um  logar  especial. 

Os  kjokkenmreddings,  isto  é,  as  accumulações  de  detrictos  da 
cozinha  primitiva,  são  conhecidos  nos  Estados  Unidos  pelo  nome 
de  shell-moimds. 

Encontram-se  os  kjokkenmceddlngs  em  quasi  todo  o  conti- 
nente americano  :  nas  costas  dos  Estados  Unidos,  do  México, 
da  Guyana  HoUandeza,  do  Brasil,  no  Oceano  Atlântico;  e  nas 
ilhas  de  Vancouver  e  costa  da  Califórnia,  no  Pacifico 

A  primitiva  formados  kjokkenmreddings  era  cónica  e  muitos 
ainda  conservam  esta  disposição,  como  porém  o  kjokkenma^ding 
não  passa  deum  cisqueiro,  logo  que  este  attingia  uma  certa  altura, 
os  que  o  formavam  iam  muito  naturalmente  depositando  as  var- 
reduras a  um  lado  do  montículo  e  assim  constituia-se  com  o 
tempo  umaespecie  de  trincheira  que  muitas  vezes  alcançava  gran- 
des dimensões  como  a  da  embocadura  do  Rio  Manatee.  que  mede 
564  pés  ao  longo  da  costa  e  15  a  20  pés  de  altura  nos  pontos  mais 
elevados. 

Os  kjokkenmoeddings  são  constituídos  principalmente  por 
detrictos  de  conchas  marinhas  ou  fluviaes,  e,  segundo  a  opinião 
geral  dospalecethnologos.assignalam  grandes  e  prolongados  acam- 
pamentos dos  povos  antigos  nas  paragens  em  que  são  encon- 
trados. A  abundância  de  moUuscos  próprios  á  alimentação  deter- 
minaria esses  primitivos    e  dilatados  acampamentos. 

Juntamente  com  os  detrictos  de  conchas  marinhas,  cujas 
espécies  variam  conforme  as  localidades,  encontram-se  nos  kjok- 
kenmceddings  americanos  restos  de  crustáceos,  ossos  de  mammi- 
feros  e  outros  animaes  terrestres  e  bem  assim  carvão,  cinza,  del- 
gadas camadas  de  terra,  objectos  de  pedra,  de  osso  ou  de  conchas, 
cacos  de  louça  e  ás  vezes,  como  nos  que  Walker  estudou  na  Flo- 
rida, ossos  humanos  que  podem  revelar  ou  o  uso  da  anthropo- 
phagia  n'essa  epocha  ou  a  utilisação  posterior  dos  kjokkenmced- 
dings  como  cemitérios. 

Os  sábios  norte-americanos,  principalmente,  têm  procurado 
pelo  esturio  da  estructura  dos  kjoekkennKDeddings  calcular  a  idade 
appraximada  dos  mesmos,  taes  avaliações,  porém,  são  por  em- 
quantode  pouco  valor,  em  consequência  das  múltiplas  circums- 
tancias  que  irregularisam  a  formação  desses  grosseiros  monu 
mentes. 

Simons,  pelo  estudo  que  fez  dos  shell-mounds  é  de  p;^recer 
que  elles  f  )ram  levantados  sobre  cômoros  de  areia,  com  o  intuito 
de  impedir  a  invasão  das  ondas  nos  primitivos  acampamentos  (2): 
e  Mac-Lean,  depois  de  estudar  minuciosamente  todos  os  materiaes 
encontrados  nos  mesmos,  tira  a  conclusão  de  que  o  povo  que    os 


(1)  JuLio  Trajaxo  de  ;\IorRA. — T)o  homem  americano . 

(2)  Si.MONs  — S/íeZZ  heap%  of  Charlotte  Harbpr,  io  Thajano'de  Moura, 
Po  bomera  americano. 


INTRODUCÇSO  41 


formou  pertencia  á   mesma  rara    dos  actuaes   indios    america- 
nos. (1) 

Os  mounds,  muito  vulgares  nos  Estados  Unidos  onde  têm  sido 
rigorosamente  examinados  são  monticulos  ou  outeiros  artificiaes. 

Aos  povos  que  os  construíram  dã-se  o  nome  de  mound-buii- 
ders. 

Os  mounds  são  encontrados  em  quasi  todo  o  território  dos 
Estados  Unidos,  porém  os  valles  do  Missisijji,  do  Ohio,  do  Mis- 
souri  e  de  seus  principaes  tributários  parecem  ter  constituído  os 
mais  importantes  centros  do  povo  ou  povos  que  levantaram  esses 
monumentos,  pois  Os  mounds  foran^.  construídos  por  successivas, 
gerações,  quiçá  por  populações  differentes. 

Á  classificação  dos  mounds  apresentada  por  Squier  e  Davis  e 
geralmente  aceita  é  a  seguinte  : 

1."  Aterres  em  forma  de  muros  e  valias  muitas  vezes  for- 
mando circuitos,  destinados,  segundo  a  sua  situação,  a  fortifica- 
ções ou  a  recintos  que  se  suppõe  ligados  a  ritos  religiosos  :  2." 
mounds  ou  montes  deposição,  forma,  grandeza,  materiaes  e  con- 
teúdos variáveis  e  divididos,  conforme  a  predominância  de  um 
ou  outro  desses  característicos,  em  :  a)  mounds  templos  ;  h) 
mounds  animaes  ou  os  que  apresentam  no  seu  plano  geral  a 
forma  de  animaes,  inclusive  a  do  homem  ;  c)  mounds  altares 
ou  para  sacrifícios ;  d)  mounds  tumulares  ;  e  finalmente  e)  mounds 
anómalos,  de  caracter  indeterminado.  (2) 

Do  estudo  desses  antiquíssimos  monumentos  têm  os  archeo- 
logos  norte-americanos  colhido  algumas  informações  exactas 
sobre  a  vida  de  seus  constructores. 

O  homem  dos  mounds  era  eminentemente  religioso  e  achava- 
se  além  disso  já  fazendo  parte  de  aggremiações  dirigidas  por  um 
regimen  social  bem  organisado,  pois  de  outra  forma  não  seria 
capaz  de  realisar  essas  grandes  obras,  documentos  vivos  do  es- 
forço collectivo. 

Sua  industria  era  muito  desenvolvida;  além  de  todos  os 
artigos  que  se  encontram  nas  palafittas  europeas,  depara-se  no 
interior  dos  raoun  Is  com  um  objecto  novo— o  cachimbo. 

A  arte  é  representada  por  ornatos  geométricos  •.  nos  Estados 
Unidos  prevalecem  as  formas  curvas,  no  México  e  no  Peru  os 
meandros  rectangulares.  A  cerâmica  é  muito  m;iis  adiantadn,  que 
a  do  homem  das  palafittas  ;  não  só  é  mais  fína  e  bem  trabalhada, 
como  também,  torna-se  mais  interessante  pelo  facto  de  repro- 
duzir ás  vezes  a  forma  de  diversos  animaes. 

Quanto  aos  seus  construetores,  declaram  '  s  .'infhropologistas 
que  ate  hoje  ainda  não  se  poude  encontrar  diffi-renças  sensíveis, 
quer  physicas,  quer  sociaes  entre  o  povo  dos  mounds  e  os  indios 
modernos. 

Correspondendo  aos  dolmens,  cromiec/is.e  iu/rni//iis  europeus 
encontramos  os  c/ni/pas  do  Peru  e  da  Bolívia,  que  são  cryptas  íu- 
nerai-ias  formadas  de  enormes  pedras  colh  cadas  verticalmente  e 
supportando  lages  horis  )ntaes.  Algumas  vezes  os  chulpas  são  cer- 


'1)  Mac-LEAN.  —  Reinains  on  Blennerhaíisefs  hland,  Ohio  Ricer,    in 
Trai.vno  pií  Mourv— Do  Iioninm    iunoricano. 

ci)  Squier  AND  TiA.vis.~Ancient  monumentn  of  the  Mississipi   csdley, 
in  Moura— Do  homem  amencano. 


42  HISTORIA  DO  BRASIL 


cados  de  um  muro  quadrado  ou  circular,  cuja  altura  varia  de  10 
a  30  metros. 

Finalmente,  parece-nos  que  devemos  igualmente  considerar 
como  subordinados  ao  período  mesolithico  os  paraderos  ou  os- 
suarios  de  gerações  extinotas  que  se  encontram  nas  planícies 
da  Patagonia  e  da  Republica  Argentina. 

CIVILISACÕES  AHIEKICANAS  KXTIVCT AS— Ter- 
minando estas ''breves  considerações  de  paleoetlm  jlogia,  que, 
juntamente  aos  prolegomenos  de  outras  sciencias,  inserimos  no 
começo  de  nosso  livro,  com  o  fim  de  fornecer  ao  esiudiososo  co- 
nhecimentos que  nas  paginas  seguintes  applicaremos  ao  Brasil, 
cumpre-nos  dizer  alguma  cousa  sobre  as  velhas  civilisaçoes 
extinctas  da  America. 

Como  taes  devemos  comprehender  a  dos  pueblos  ou  chfj 
d/vellers  nos  Estados  Unidos,  a  dos  manas,  toltecos  e  aztecos  no 
México  e  America  Central,  a  dos  incas  no  Peru  e  a  dos  chibc/iás 
no  território  que  constitue  hoje  a  Republica  da  Columbia. 

Os  Pueblo»  ou  ellir-ílwellers»  -A  mais  antiga  das  civi- 
lisaçoes é  a  dos  povos  que  os  hespanhoes  por  occasião  da  con- 
(juis^tado  Novo  Mundo  deram  o  nome  de  Pueblos  e  os  archeologos 
norte  americanos  appellidaram  clrjf-dwellers,  por  habitarem  de 
preferencia  os  rochedos. 

Da  architectura  original  dos  Pueblos  existem  ruinas  impor- 
tantes nos  territórios  de  Utah,  Colorado.  Arizona  e  New  México, 
as  quaes  ainda  são  habitadas  pelos  sobreviventes  dessa  raça 
relativamente  adiantada. 

As  habitações  dos  Pueblos  eram  situadas  nos  valles  e  nas 
proximidades  doá  rios,  ou  então    sobre    terraços    naturaes  ou 
no  flanco  ie  rochedos  alcantilados  e  de  assenção  quasi  impra- 
ticável-   «   Cala  pueblo  compõe-se  de  três  ou  quatro  edificações 
quadradas  ou  ellipticas,  com  300  a  400  pés  de  comprimento  sobre 
1.50  de  largura,  e  constituídas  por  andares    em  num^-ro  variável 
rde  2  a  1),  construídos  sobre  superfícies  afíastadas  uma  das  outras 
como  os  degráos  de  uma  escadaria,  de  grandeza  successivamente 
menor,     formando      terraços     successivos.      Essas     habitações 
communs  são    dispostas    em   rectângulo,    separadas  umas    das 
outras,  mas  communicando-se  por  meio  de  pontes  pense  s.  Os  ter- 
raços são  cercados  de  um  parapeito  que  serve  de  barreira  no  caso 
de  um  assalto,   e  do  modo  porque  estão  situados  formam  o  chão 
do  andar  superior  e  o  tecto  do  que  está  em  baixo.  As  portas  e 
janellas  abrem-se  somente  do  lado  dos  pateos   e  na  altura  em 
que  foram  feitas,  só  podem   ser  escaladas  por  meio  de  escadas 
quer  pelo  lado  de  fora.  quer  pelo  lado  de  dentro;  removidas  estas 
garantem  uma  certa  segurança  aos  moradores  contra   invasões 
inimigas.»  (1) 

Ò  que  ha  de  mais  curioso,  porém,  nesses  burgos  indígenas  são 
as  estufas  ou  camarás  sudatorias  (sweat  houses).  Encontram-se 
era  numero  de  uma  a  seis  em  cada  burgo  e  constam  de  comparti- 
mentos escavados  no  solo  e  com  o  tecto  ao  nivel  ou  um  pouco 
acima  delle.  sustentados  por  esteios  de  madeira  ou  por  jiihires 
de  cantaria.  Em  baixo  e  sobre  grandes  lages  constituindo  o  as- 
soalho encontra-se  uma  caixa  quadrada  de  pedra  para  a  collo- 


(1)  .TuMO  DE  Moura.— 7)o  homem  americaúo. 


INTRODUCÇiO  43 


cação  do  fogo  onde  queimam  constantemente  plantas  aromáticas, 
cuja  fumaça  evola-se  por  um  orificio  do  tecto  que  tamtem  serve 
para  dar  passagem  aos  visitantes.  Segundo  De  Laet,  era  nessas 
ebtufas  que  se  realisavam  os  conselhos  secretos,  as  festas  nacio- 
naes  e  as  dansas  fúnebres;  ao  culto,  porém,  6  que  ellas  eram 
especialmente  destinadas. 

Na  constriK-ção  dos  seus  ediílcios  os  Pueblos  empregavam  a 
pedra  que  sabiam  lavrar  com  esmero,  os  tij  dlos  cri'is,  uma  arga- 
massa feita  de  argilla  e  carbonatos  calcareos,  a  madeira,  etc. 
Em  diversos  edifícios  encontram-se  pictographias  e  gravuras 
hyerogliphicas. 

Os  sobreviventes  desta  raça  antiga  de  constructores  são 
agricultores,  mas  também  entregam-se  á  caça  e  á  pesca.  Sabem 
empregar  nas  plantações  a  irrigação  por  meio  de  vallos  e  cis- 
tiTiias  e  algumas  tribus  são  pastoras. 

Como  armas  usam  arcos,  settas.  lanças,  clavas,  fundas  e 
uma  haste  de  madeira  que  6  manejada  comi)  o  hoorneratif/  dos 
australianos ;  algumas  tribus  são  em  extremo  cruéis  para  com 
prisioneiros  de  guerra. 

A.  cerâmica  dos  Pueblos  é  considerada  como  uma  das  mais 
delicadas  da  America;  cada  burgo  tem  suas  leis  jir^prias  e 
rege-se  pelo  systema  democrático,  sendo  cada  anno  eleito  um 
conselho  de  anciãos;  em  todas  as  questões  prevalece  o  voto  das 
maiorias.  A  moral  é  em  extremo  escrupulosa,  e  leis  previdentes 
foram  organisadas  com  o  fim  de  impedir  os  crimes  e  as  manifes- 
tações dos  apetites  grosseiros. 

((  A  religião  dos  Pueblos,  diz  o  Dr.  Trajann  de  Moura,  bem 
que  traga  o  cunho  evidente  do  primitivo  naturismo  diílnso  de 
que  se  originou,  possue,  entretanto,  certos  elementos  que  indicam 
um  progresso  líO  caminho  da  sj^steraatisação  em  que  se  manti- 
nham as  grandes  mythol"£xias  americanas.» 

Civiiisaçòesdo  Hlexico  e  da  America  Central. - 
Os  europeus  ao  checarem  á  America  pela  jirimeira  vez  encon- 
traram nas  regiões  que  hoje  constituem  o  território  do  México 
e  das  Republicas  da  America  Central,  uma  civilização  original,  já 
decadente  é  verdadR,  porém  ainda  assim  bastante  notável,  relati- 
vamente ao  gnio  inferior  de  cultura  em  que  se  achavam  nessa 
epocha  a  mnioria  dos  p  ivos  do  continente. 

Esta  sorpreliendente  civil isação  havia-se  desenvolvido  suc- 
cessivameníe  pelo  esforço  prolongado  de  povos  que  alguns  es- 
criptores  crèm  originários  de  uma  fonte  commum,  emb-^ra  consti- 
tuindo, duas  populações  diversas  -os  Na/mas  e  os  Mai/as.  Aos  pri- 
meiros subordinavam-se  as  nações  dos  Toltecos,  Cldchimecos  e 
Asteco!^ ;  aos  segundos  pertenciam  os  Mni/as  propriamente  ditos, 
es  Tzendales,  os  Quichés  e  os  Cahchiqiielés. 

Na  architectura,  na  esculptura,  na  pintura,  na  cerâmica,  na 
musica,  na  dança  e  bem  assim  em  delicadíssimas  industrias 
estes  povos  haviam  alcançado  um  extraordinário  adiantamento. 

Trabalhavam  o  nur ),  a  i)rata  e  as  pedras  preciosas  com 
muito  esmero;  conheciam  a  escripta  e  a  leitura  e  usavam  calen- 
dários. 

O  povo  nchava-se  dividido  em  castas,  como  na  Índia:  a  pri- 
meira era  a  casta  sacerdotal,  de  onde  sahiaorei;  seguia-se  a 
cias^^e  aristocrática,  composta  das  famílias  dos  possuidores  do 
solo  e  governadores  das  provin(;ias  e  cidades';  á  terceira  casta 
pertencia  o   gros.s)    do  povo'  dividido    em    grupos  de  fatnllias 


44  HISTOEIA  DO   BRASIL 


apparentadas,  constituindo  o  que  chamavam  calpulli,  sob  a  di 
recção  de  um  sacerdote  idoso  eleito  pelo  povo.  Um  certo  numero 
destes  grupos  constituía  a  tribu,  independente  do  governo  central, 
ão  qual  apenas  devia  o  pagamento  de  certos  tributos  periódicos. 
A  ultima  casta  era  a  dos  escravos,  homens  sujeitos  a  esta  con- 
dição pelas  eventualidades  da  guerra  ou  em  punição  a  diversos 
crimes. 

As  leis  eram  muito  severas,  porém  assim  memos  não  tinham 
força  para  impedir  a  propagação  de  vicios  ignóbeis  que  haviam 
se  desenvolvido  entre  o  povo  e  mesmo  entres  castas  superiores. 

Sobre  o  exercito  pesava  uma  disciplina  férrea  e  como  nos 
paizes  cultos  achava-se  dividido  de  accordo  com  a  espécie  da 
arma  que  usava. 

Quanto  á  religião,  prevalecia  nas  classes  nobres  e  sacerdo- 
taes  o  pol3'theismo,  ora  dualista,  oraevhemerista,  começando  no 
entanto  certos  espíritos  superiores  a  elevarem-se  ao  mono- 
theismo ;   entre  o  povo  reinava  um  naturismo  diffuso. 

Civilisaçòes    extinctas    do    Peru    e    da    Bolívia. 

—  Parallelame'nte  á  grande  civilisação  dos  Maj^a-Nahua  no 
México  e  America  Central,  desenvolveu-se  nos  territórios  do  Peru 
e  da  Bolivia  uma  outra  civilisação  indígena. 

Esses  paizes,  por  occasião  da  conquista  européa  eram  habi' 
tados  por  diversos  grupos  de  povos  entre  os  quaes  os  princi- 
paes  eram  os  Aj^maras  e  os  Quechuas. 

Em  uma  epocha  que  não  se  pôde  precisar  com  exactidão,  mas 
que  alguns  escriptores  fixam  em  500  annos  antes  da  chegada 
dos  hespanhóes,  o  governo  destes  povos  foi  empolgado  por  uma 
familia  poderosa  -a  dcs  Incas,  que  fundou  o  império  e  esta- 
beleceu o  regimen  monarchico-theocratico,  fazendo  de  Cuzco  a 
capital. 

Como  no  México,  todas  as  artes  tinham-se  desenvolvido  de 
modo  pasmoso  no  império  dos  Incas  :  os  palácios,  os  templos 
sumptuosos,  os  altares  eram  encontrados  por  toda  parte  ;  abun- 
davam as  estatuas,  embora  a  esculptura  fosse  mais  grosseira 
que  na  America  Central:  a  cerâmica,  a  pintura,  a  musica  e  a 
dansa  eram  praticadas  com  elevação  artística. 

Magnificas  estradas  macadamisadas  convergiam  em  Cuzco  e 
achava-se  organizado  um  serviço  de  correio  para  uso  especial 
do  imperador. 

Uma  parte  das  terras  do  império  pertencia  ao  Sol,  ou  mais 
propriamente,  á  classe  sacerdotal,  uma  outra  ao  Inca  reinante  e 
á  nobreza  e  a  terceira,  era  dividida  annualmente  em  lotes  e  estes 
distribuídos  pelas  famílias  do  povo  proporcionalmente  ao  numero 
de  membros  de  que  cada  uma  se  compunha. 

O  Inca  exercia  a  suprema  autoridade  civil  e  religi<isa  e  delle 
dimanava  tudo.  Abaixo  do  Inca  vinham  os  Curacos,  caciques  de 
sangue  real  e  que  governavam  as  províncias.  O  povo  era  divi- 
dido em  grupos  de  dez  e  seus  múltiplos  até  100.000  e  o  director 
de  cada  grupo  só  podia  entender- se  com  o  immediato,  S3^stema 
que  foi  em  parte  imitado  pelos  carbonários  italianos. 

O  trabalho  era  obrigatório,  por  ser  considerado  a  base  da 
manutenção  da  sociedade-  O  Inca  desvela va-se  pelo  progresso  di^ 


INTRODUCÇlO  45 


agricultura  e  o  povo  chegou  a  realizar  admiráveis  trabalhos  de 
hydraulica. 

Comquanto  polj-theistas,  o  culto  d)  sol  havia  obtido  uma  no- 
tável preeminência  na  religião  dos  peruanos.  A  mythologia  era 
complexa  e  variada,  pois  os  Incas  nunca  destruiam  os  deuses 
dos  vencidos,  mas  subordinavam-n'os  ao  Sol  de  que  se  diziam 
descendentes,  e,  tolerantes  como  os  romanos,  admittiam-n'os  em 
seus  templos. 

Em  um  s<)  templo  de  Cuzco  adoravam-se  7S  divindades.  O 
povo,  como  na  religião  dos  povos  Maya-Nahua  praticava  um  natu- 
rismo diífuso. 

CiTllisaeào  dos  Cliihcliás  ou  niuyscas.  —  Xo  pla- 
nalto da  Cundinamarca,  nos  Estados  Unidos  da  Columbia,  desen- 
volveu-se  outr'ora  uma  civilisaçáo  notável,  embora  inferior  as 
da  America  do  Norte,  e  ás  do  Peru  e  Bolivia;  a  mesma  pode  ser 
considerada  como  pertencente  a  uma  phase  de  transicção  entre 
a  idade  da  pedra  e  a  dos  metaes,  que  os  chibchás  já  conheciam. 

Esta  civilisaçáo,  ainda  existente  no  tempo  da  conquista  eu- 
ropéa  era  a  dos  Chibchás  ou  Mwjscas,  povos  agricultores  que  já 
possuíam   notáveis  conhecimentos  de  archictetura  e  esculptura. 

Os  Chibchás  achavam-se  subníettidos  a  um  governo  theocra- 
tico,  ora  sob  a  direcção  de  um  chefe,  ora  dividido  entre  muitos 
soberanos. 

Usavam  hyerogliphos  e  pictographias  e  possuíam  boas  es- 
tradas. 

Como  em  todas  as  outras  civilisações  americanas,  as  leis 
eram  muito  severa-í,  sendo  a  i)ena  ultima  a  mais  applicada  no 
castigo  dos  crimes. 

«A  religião  dos  Chibchás  é  uma  prova  irrefragavel,  quando 
mesmo  muitas  outras  não  existissem,  de  que  os  differentes 
centros  de  civilisaçáo  da  America  não  eram  oásis  isolados  no 
meio  da  selvageria  ambiente,  porém  sim  diversas  camadas  evo- 
lutivas do  espirito  humano  que  se  desenvolveram  gradulmente  e 
mais  ou  menos  se  aproximaram  em  todo  mundo  sempre  que  se 
faziam  sentir  as  mesmas  necessidades.  E'  evidente  a  phase  poly- 
theista  da  religião  muj^sca,  mas  a  sua  philosophia  encerra  mais 
do  que  nenhuma  outra  os  vestígios  do  animismo  inferior,  mani- 
festando-se  cada  vez  mais  preponderante  nos  selvagens  aflastados 
do  centro  de  Bogotá  e  pouco  influenciados  pela  cultura  ahi  do- 
minante (1).» 

Como  os  povos  que  passamos  em  revista  nos  paragraphos 
anteriores  eram  opulentíssimos  e  nos  seus  palácios  e  templos  re- 
catavam melaes  e  pedras  preciosas  em  quantidades  incalculáveis, 
o  cupido  europeu  conquistador  desencadeiou  sobre  elles  toda  a 
sua  ferocidade  e  expoliando-os  dos  seus  preciosos  thesouros  fez 
sossobrar  todas  essas  magnificas  e  promettedoras  civilisações 
indígenas,  das  quaes  d'ahi  ha  poucos  annos  só  existiam  desoladas 
ruinas,  ainda  assim  bastante  imponentes  para  demonstrarem  o 
esplendor  de  outr'ora. 


(1)  Thajano  de  Mouka — Do  hutnein  americano. 


46  HISTORIA  DO   BRASIL 


Noções  sobre  a  evolução  da  civilisação 
humana 

Soccorrendo-nos  de  um  enunciado  de  Edward  Tylor,  a  civi- 
lisação, tomada  no  seu  sentido  ethnographico  mais  lato,  designa 
este  todo  complexo  que  comprehende  ao  mesmo  tempo  as  scien- 
cias,  as  crenças,  as  artes,  a  moral,  os  costumes  e  as  outras  facul- 
dades adquiridas  pelo  homem  no  estado  social. 

Se,  recorrendo  á  historia  e  á  ethnographia.  procurarmos 
conhecer  o  progresso  dos  difíerentes  povos  antigos  e  modernos, 
veremos  que  o  desenvolvimento  da  civijisação  eiii  toda  a  parte  é 
caracterisadu  por  uma  uniformidade  quasi  constante  que  pôde  ser 
considerada  como  o  effeito  unií\  rme  de  causas  uniformes. 

Comquanto  variados  os  aspectos,  aqui  ou  alli,  hontem  ou  hoje, 
as  civilisações  humanas  evoluem  de  accòrdo  com  certas  leis:  ge- 
raes  e  é  pelo  estudo  da  traducção  destas  mesmas  leis  em  factos  e 
acções  que  se  poderá  comprehender  as  razões  do  progresso  das 
sociedades  humanas. 

O  methodo  a  seguir  n'essa  indagação  é  o  analytico  compa- 
rativo e  a  base  scientifica  em  que  a  mesma  pôde  assentar— a  geo- 
graphia,  a  ethnographia  e  a  historia. 

Por  sua  complexidade,  torna-se  diffici]  estudar  a  evolução  da 
civilisação  em  globo;  será  mesmo  mais  proveitoso  consideral-a  em 
espheras  particulares,  e,  por  isso,  esforçar-nos-hemos  por  com- 
prehendel-asuccessivamente  na  vida  nutritiva,  na  vida  sensitiva 
na  vidaafíectiva,    na  vida  social  e  na  vida  intellectual.  (Ij 

EVOI.UÇÀO  DA  VIDA  IVUTRITIVA 

Os  factos  que  se  offerecem  á  observação  no  estudo  da  evolu- 
ção da  civilisação  na  esphera  da  vida  nutritiva  são  :  os  alimen- 
tos, a  cosinka,  as  substancias  embriag antes  q  as  substancias  ener- 
vantes ou   excitantes. 

Os  alimentos.— Tendo-se  em  vista  a  conformação  dos  den- 
tes e  a  do  tubo  digestivo  do  homem,  este,  logo  ao  despojar-se  da 
animalidade,  devja  ser  frugívoro  como  os  macacos  anthropoides, 
seus  mais  próximos  antepassados.  Physicamente  débil  e  intellec- 
tualmeníe  grosseiro,  não  possuia  forças,  nem  armas,  nem  arti- 
ficio para  obter  com  a  caça  e  com  a  pesca  subsidies  de  carne 
para  o  seu  estômago,  vendo-se  por  isso  obrigado  a  alimentar-se 
exclusivamente  com  os  fructos  que  o  acaso  lhe  fazia  deparar. 
Quando,  porém,  aprendeu  a  lascar  o  silex,  com  o  qual  fabricou 
machados  e  lanças,  poude  então  dar  combate  aos  animaes  e  tor- 
nou-se  omnívoro  ;  aos  fructos  que  constituíam  outr'ora  toda  a  sua 
alimentação  acrescentou  a  carne  dos  animaes  e  dos  peixes,  os 
moUuscos,  os  ovos.  etc 

A  descoberta  do  fogo  veio  auxiliar  a  passagem  para  o  novo 
regimen  alimentício  pelo  qual  o  homem  se  tornou  essencial- 
mente caçador  e  pescador. 


(1)  Organisamos  estas  noções  servindo-nos  principalmente  da  Socio- 
logia, de  Letournehu,  da  Linguistica  de  Hovelacque,  das  Origens  da  cioi- 
lisação,  de  Lubbock  e  da  Cicilisaçâo  primitica,  de  Tylor. 


INTEODUCÇlO  47 


Mais  tarde,  achando-se  sua  intelligencia  já  bastante  desenvol- 
vida, o  hcmem  ctunprehende  que  [lóde  forçar  a  natureza  a  pro- 
porcionar-lhe  os  alimentos,  libertando-o  da  necessidade  de  recor- 
rer quotidianamente  á  caça  ouá  pesca  ;  entãu  faz-se  agricultor  ou 
pastor  e  pouco  a  poucu  iroca  o  estado  nómade  pela  vida  seden- 
tária   Chegado  a  esse  ponto  o  progresso  é  rápido. 

A.  etiinograpliia  ainda  não  revelou  a  existência  de  um  povo 
moderno  que  viva  exclusivamente  de  fructos.  isto  é,  que  se  aclie 
na  primeira  phase  da  evolução  alimentieia;  o  fogo,  [jorém,  6  uma 
descoberta  recente  para  certos  povos,  como  os  Ausiralianos  que 
têm  grande  difficuldade  em  obtel-o  e  isto  nos  faz  comprehender 
que  taes  povos  não  se  separaram  ha  muito  tempo  do  regimen  fru- 
gívoro. 

Muitos  selvagens  modernos  tiram  toda  a  sua  alimentação 
da  caça  e  da  pesca  ;  em  outros  já  existe  a  agricultura,  porém 
em  estado  rudimentar,  e  servindo  apenas  de  accessoria  á  caça  c 
a  pesca. 

Observa-se  que,  se  o  homem  antes  de  entregar-se  á  agricul- 
tura, passa  pelo  estado  pastoral,  persiste  mais  tempo  na  barbaria. 

A  eosinha.— Derivando  da  descoberta  do  fogo  surge  o  ha- 
bito de  coser  os  alimentos,  quer  para  tornal-os  mais  assimiláveis 
pelo  estômago,  quer  para  preserval-os  de  rápida  destruição.  Os 
Tasmanianòs,  apezar  (ie  jáse  acharem  de  posse  do  fogo,  ainda  não 
conhecem  a  eosinha  propriamente  dita,  consistindo  os  seus  vasos 
em  folhas  largas  arrepanhadas  por  espinhos  nas  extremidades; 
como,  porém,  ás  vezes  assam  o  peixe  deitando-o  sobre  pedras 
quentes,  podemos  \'er  n'este   processo  a  génese  ilo  fogão. 

Quando  o  homem  inicLa-se  nos  princípios  fundamentaes  da 
eosinha,  isto  é,  quando  aprende  a  ferver  e  a  assar,  surge  a  ne- 
cessidade dos  vasos  e  esta  dá  origem  á  arte  cerâmica  que  appa- 
rece  geralmente  depois  de  serem  utilisados  como  louça  as  pedras 
concavas,  as  nozes  de  coco,  os  thalos  de  bau,bú,  etc. 

Depois  de  descobrir  a  arte  cerâmica  a  civilisação  continua  a 
evoluir  na  esphera  da  vida  nutritiva,  sempre  assignalando  pro- 
gressos humanos.  Os  povos  caçadores  e  pescadores  inventam  o 
meio  de  conservar  as  carnes  submettendo-as  á  torrefacção,  e 
depois  reduzindo-as  a  pó  ;  os  povos  pastores  encontram  logo  o 
segreilo  do  fabrico  da  manteiga;  os  povos  agricultores  descobrem 
a  panificação,  o  preparo  das  farinhas,  etc. 

As  bebidas  eiubriaíçantes.— Embora  pareça contradicta- 
rio,  o  conhecimento  das  bebidas  embriagantes  denota  um  notá- 
vel progresso  nas  raças  humanas.  O  Australianoe  o  Tasmaniano 
que  occu[)am  os  últimos  degraus  da  escada  social,  antt-s  de  terem 
trato  com  os  europeus  não  as  conheciam;  todos  os  povos,  i)Orém, 
ao  apreciarem  nas  pela  primeira  vez,  adquirem  immediatamen- 
te  o  gosto  da  embriaguez  que,  segundo  Letourneau,  é  a  poesia  da 
alimentação. 

Somente  o  Neo-calendonio  conservou-se  até  hoje  inaccessi- 
vel  á  bebedice,  singularidade  que  só  pode  ser  explicada  pela  sua 
semi  bestialidade. 

Se  nos  elevarmos,  porém,  alguma  cousa  acima  desta  huma- 
nidade ainda  p  )uc.a  desjirendida  do  irracional,  veremos  que  as 
bebidas  embriagantes  são  uyadas  por  todos  os  povos  e  desde  o 
homem  das  palafíitas  o  preparo  das  mesmas  é  conhecido. 

Em  um  estado  ideial  de  perfectibilidade  humana  as  bebidas 
alcoólicas  desapparecerão,  pois  nada  justifica  o  seu   uso,    nem 


48  HISTORIA   DO   BRASIL 


mesmo  os  rigores  do  clima;  o  esquimó  que  vive  no  gelo  não_  as 
utilisa,  ao  passo  que  as  hordas  selvagens  tropicaese  equatoriaes 
entregam-se    a  todos  os  excessos  da  embriaguez. 

As  substancias  eoervantes  ou  excitantes  —  Se  o 

conhecimento  de  bebidas  embriagantes  denota  um  progresso 
da  humanidade,  o  das  substanoias  enervantes  ou  excitantes, 
taes  como  o  fumo,  o  ópio,  o  hachis,  o  betei,  a  kava,  etc.  ac- 
centua  esse  progresso;  já  não  basta  ao  homem  a  embriaguez, 
tpm  necessidade  de  verdadeiros  delírios  durante  os  quaes  se 
despoja  completamente  de  todos  as  necessidades    animaes. 

Surgindo  em  um  grão  elevado  de  cultura  o  uso  das  subs- 
tancias enervantes  ou  excitantes,  seu  predomínio  é  no  entanto 
breve  e  só  nascivilisações  estacionarias,  como  a  chineza.  elle  ar- 
raiga se;  nos  povos  verdadeiramente  civilisados,  como  os  da  Eu- 
ropa e  seus  derivados  na  America,'  apenas  se  adoptam  as  subs- 
tancias de  effeito  muito  moderado  e  até  certo  ponto  necessário 
taes  como  o  fumo,  o  café,  o  chá,  etc. 

EVOIiUÇÀO  DA  VIDA   SEI\S1T1VA 

Subordinados  ao  titulo  supra  passaremos  em  revista  o  amor, 
a  delicadeza  dos  sentidos,  os  adornos  e  as  artes. 

O  amor.— Depois  da  fomeé  o  amor,  ou  por  outra,  a  satis- 
fação das  necessidades  genésicas  o  movei  mais  poderoso  das 
acções  do  homem  primitivo,  que  começou  praticando-o  bestial  e 
instinctivamente,  sem  a  minima  reserva  e  de  todo  alheio  ao  que 
chamamos  pudor,  o  qual,  assim  como  a  castidade,  sendo  senti- 
mento artificial,  só  em  um  gráo  muito  adiantado  de  cultura  ap- 
parece . 

Pouco  a  pouco,  no  entanto,  o  homem  foi  depurando  o  amor  da 
sua  grosseria  bestial  e  tendo  afinal  chegado  a  subordinar  ao  exer- 
cício da  funcção  genésica  circumstancias  affectivas  e  estheticas, 
facto  que  se  verificou  principalmente  nos  paizes  em  que  se  fez 
sentir  a  influencia  do  cbristianismo^  transformou-se  esta  neces- 
sidade em  um  sentimento  dedicado  e  puro. 

Os  desvios  genésicos,  ou  por  outra,  o  amor  contra  a  natu- 
reza, nã  )  obstante  o  que  af firmam  os  detractores  do  progresso 
que  dizem  ser  este  inseparável  da  depravação,  é  tanto  mais  fre- 
quente quanto  mais  descemos  a  escada  da  civilisação  humana. 
Assim  linha  razão  Saint  Simon  quando  dizia: 

((A  idade  de  ouro  do  género  humano  não  acha-se  atraz  de 
nós,  acha-se  adeante  e  será  encontrada  na  perfeição  da  ordem 
social:  nossos  pais  não  a  viram,  nossos  filhos  a  ella  chegarão  um 
dia;  cumpre-nos  desimpedir-lhes  a  estrada» 

Delicafleza  (los  sentidos. -- A.  evolução  dos  sentidos 
na  liumanidade  realiza-se  de  um  modo  curioso  e  o  Dr.  Charles 
Letourneau   define-a  perfeitamente  n'este  trecho: 

«  O  homem  de  intelligencia  pouco  desenvolvida  ainda,  tem 
sentidos  delicados  no  que  diz  respeito  ás  exigências  da  vida 
selvagem,  porém  nelle  a  porção  mental  da  sensibilidade  é  rudi- 
mentar. Sente  vivamente  e  gosta  das  impressões  fortes,  porém  é 
desageitado  para  notar,  comparar,  classificar  as  sensações,  per- 
ceber as  gradações  delicadas.» 

Assim,  um  Fuegiano  que  descobre  ao  largo  um  navio  que  o 
mariuheiro  de  vista  melhor  não  vislumbra,  é  incapaz  de  reco- 


INTRODUCÇlo  49 


nhecer  o  seu  retrato  n'uma  photographia;  os  japonezes  que  men- 
cionam nas  suas  cartas  celestes  até  as  estrellas  de  septima  gran- 
deza conanettem  nos  seus  quadros  erros  grosseiros  de  per- 
spectiva- 

Os  adornos.—  O  gosto  pelos  adornos  physicos  nasce  no 
homem  muito  antes  das  artes  graphicas  e  plásticas,  podendo  por 
isto  ser  considerado  como  a  génese  do  sentimento  esthetico.  Os 
Fuegianos,  que  ainda  não  possuem  arte  de  espécie  alguma,  já  se 
adornam . 

Afim  de  tornar-se  bonito  perante  os  seus  semelhantes  o 
homem  pinla-se,  tatua-se,  defòrma-se,  mutila-se  e  afinal  ^enteia- 
se,  cobre-se  de  jóias,  enfeites  e  vestuários. 

Primeiramente  a  preoccupaçâo  da  elegância  manifesta-se  por 
vernizes  coloridos  com  os  quaes  o  selvagem  besunta  o  corpo; 
a  côr  predilecta  é  a  vermelha.  Depois  apparecem  as  mutilações  as  ' 
deformações  e  o  emprego  das  jóias;  pouco  a  pouco  as  mutilações 
vão  desapparecendo,  as  jóias  tornam-se  mais  delicadas  e  os 
adornos  vão  concentrando-se  no  vestuário,  que  apparece  tanto 
mais  cedo  quanto  mais  frio  é  o  clima  da  região. 

Nas  phases  primitivas  do  desenvolvimento  humano  o  gosto 
pelos  adornos  é  commum  aos  dous  sexos. 

As  artes.—  «  No  homem  e  mesmo  em  qualquer  animal 
consciente  uma  impressão  forte  terá  sempre  a  tendência  de  irra- 
diar-se  sobre  todo  o  systema  nervoso.  Se  a  impressão  é  recebida 
pur  um  homem  muito  intelligente,  no  qual  o  campo  da  v.da 
consciente  seja  vastíssimo,  o  abalo  nervoso  transforma-se 
primeiro  em  sentimento,  em  idéas  e  depois, se  a  força  não  se  acha 
esgotada,  em  acção  reflexa.  No  animal,  na  creança.  no  homem 
primitivo,  na  mulher,  a  impressão  forte  traduzir-se-ha  na 
maioria  dos  casos  em  movimentos  variados,  conforme  estes  ou 
aquelles  órgãos  sejam  a  sede. 

Ordinariamente,  no  ser  pouco  desenvolvido,  o  choque  do 
abalo  nervoso  transforma-se  principalmente  em  contracções 
musculares,  em  movimentos  dos  membros,  em  gestos  e^em 
gritos,  que  são  os  gestos  da  larynge,  porém  a  serie,  dos  pheno- 
menos  poderá  de  certa  forma  ser  invertida.  Se  uma  impressão 
dada  provoca  ordinariamente  este  ou  aquelle  grito,  bastará 
muitas  vezes  executar  ou  ver  executar  o  gesto,  dar  ou  ouvir  o 
grito  para  se  experimentar  mais  ou  menos  a  impressão  que  a  elles 
correspondem.  O  homem  poderá  pois  reproduzir,  excitar  a  von- 
tade, em  suas  cellulas  conscientes  ou  nas  de  outrem  um  certo 
numero  de  impressões  ou  sentimentos. 

Este  é  todo  o  fundo  da  esthetica. 

Do  grito  nascerão  o  canto  e  a  musica. 

Finalmente,  como  toda  a  impressão  não  caminha  sem  um 
cortejo  de  imagens,  de  visões  mentaes,  o  homem  reproduzindo, 
ou  procurando  reproduzir  estas  imagens,  inventará  o  desenho,  a 
pintura,  a  esculptura,  afinal,  as  artes  graphicas  e  plásticas.»    (1) 

A  dança.— A  dança  é  a  mais  primitiva  de  todas  as  artes  e 
já  nos  animaes  observam-se  os  seus  rudimentos. 

Com  excepção  do  povo  chinez,  a  dança  é  encontrada  em  todos 
os  paizes  bárbaros  ou  cultos  e  apresenta-se  geralmente  sob  três 
formas— a  dança  de  caça,  a  dança  guerreira  e  a  dança  amorosa. 


(1)  Charles  Letourneau— Soctoíoí/ie, 


50  HISTORIA  DO  BRASIL 


Na  primeira,  que  é  a  mais  grosseira  de  todas,  o  homem  pri- 
mitivo procura  ingenuamente  imitar  os  movimentos  dos  ani- 
maes.  a  segunda  é  uma  variação  da  primeira,  ?endo  a  caça  sub- 
stituida  pelo  homem  inimigo.  Esta  dança,  acompanhada  de  cantos 
guerreiros,  preludia  em  certos  povos  os  actos  de  ant('opO]diagia. 
Finalmente,  a  terceira,  caracterisada  pela  presença  da  mulher, 
prende-se  quasi  sempre  ás  relações  sexuaes  e  ás  vezes  torna-se 
lúbrica. 

A  musica  vocal.— Se  a  dansa  é  commum  ao  homem  e  a 
certos  animaes,  o  mesmo  acontece  com  a  musica  vocal,  encon- 
traudo-se  povos  que,  como  os  pássaros,  só  sabem  emittir  algumas 
notas. 

Nos  povos  primitivos  a  musica  vocal  não  passa  de  um  reci- 
tativo monótono  em  tom  menor;  a  melopéa  antiga  dos  gregos, 
com  que  os  rhapsodos  acompanhavam  a  recitação  dos  versos  de 
Homero  ainda  resentia-se  muito  da  forma  primitiva. 

O  canto  primitivo  é  destinado  a  acompanhar  ou  a  ornar  uma 
narração  guerreira,  um  caso  de  amor  ou  uma  lenda  mytholo- 
gica,  e  sendo  a  musica  vocal  a  mais  antiga  na  humanidade  é  no 
entanto  ainda  a  que  mais  delicia  o  homem  culto  «pois  elia  brota 
naturalmente  das  impressões,  das  emoções,  das  paixões  humanas 
e  nos  revolve  um  velho  fundo  latente  e  herdado.» 

à  musica  instrumental.— A  musica  instrumental  já 
existe  em  gérmen  no  chimpanzé  que  faz  os  seus  concertos  batendo 
em  ramos  côncavos  e  deliciando-se  com  o  barulho  produzido; 
o  tambor  è  o  mais  antigo  dos  instrumentos  e  encontra-se  sob 
diversas  formas  em  todas  as  raças  selvagens,  barbaras  ou  civi- 
lisadas. 

Ora  o  tambor  é  uma  simples  pelle  de  kangurú  que  mulheres 
australianas  distendem  sobre  as  coxas  e  rufam,  ora  a  pelle  é 
applicada  em  uma  das  extremidades  de  um  cylindro  de  madeira, 
como  o  caxambú  dos  negros  que  foram  trazidos  para  o  Brazil 
como  escravos,  ora  um  cylindro  com  dois  diaphragmas.  Do 
tambor  derivam  os  instrumentos  de  percussão  como  os  sinos, 
as  placas  metallicas  dos  Aztecas  e  outros. 

Depois  do  tambor  vêm  as  trompas,  os  assobios,  as  flautas, 
primeiro  muito  rudimentares,  emittindo  uma  só  nota  e  depois 
três,  quatro  e  mais. 

Em  segundo  logar  vêm  os  instrumentos  de  corda  que,  apezar 
de  serem  a  ultima  palavra  sobre  a  musica  instrumental,  já  são  no 
entanto  encontrados  em  algumas  tribus  selvagens,  principalmente 
entre  as  da  Africa 

Artes  gfrapbicas  e  plásticas.  —  Segundo  a  aptidão  das 
diversas  raças  o  apparecimento  das  differentes  artes  na  huma- 
nidade foi  ora  successivo,  ora  simultâneo,  tendo  o  homem  logo 
que  sahiu  da  animalidade  recorrido  indifferentemente  ás  formas, 
aos  sons,  ás  Unhas  e  as  cores  para  satisfazer  o  desejo  de 
exteriorisar  certas  idéas  mentaes. 

O  desenho  e  a  esculptura  já  se  encontram  no  troglodyta  da 
epocha  da  Magdalena,  porém  a  aptidão  para  essas  duas  artes  não 
é  ignal  em  todas  as  raças  e  hoje  mesmo  ainda  se  encontram 
povos,  como  o  Tasmaniano,  que  a  esse  respeito  são  inferiores  ao 
homem  europeo  das  cavernas. 

Os  esquimós  são  excellentes  desenhistas,  os  Polynesios, 
porém,  que  a  muitos  respeitos  lhes  são  superiores,  não  sabem  no 
entanto  desenhar  plantas  ou  animaes. 


INTRODUCÇÃO  51 


Na  sua  orifíem  a  arte  da  esculptura  apenas  produz  informes 
e  grosseiros  esboços,  copiando  o  homem  somente  o  que  vè  em 
torno  de  si ;  dejiois,  intervindo  a  imaginação,  apparece  a  escul- 
ptura mythologica  e  os  baixos  relevos,  representando  sceiías  de 
caça,  de  guerra  e  de  tudo  aquillo  que  imjiressiona  mais  viva- 
mente o  artista;  finalmente,  em  um  gráo  superior  de  cultura,  as 
raças  adquirem  methodos  scientificos  exactos  e  chegam  a  desta- 
car da  pedra  ou  do  mármore  os  mais  delicados  contornos  e  as 
mais  interessantes  particularidades. 

A  pintara.— O  desenho  primitivo  é  todo  gravura,  e,  como 
tal  já  é  encontrado  nos  tempos  prehistoricos  ;  a  pintura  devia  ter 
começado  pela  coloração  dos  objectos  de  uso  domestico  e  da 
própria  pelle.  Os  néo-caledonios  pintam  de  vermelho  tudo  que 
j)odem.  Depois  de  colorir  as  armas  e  os  utensílios,  o  homenr 
passou  a  colorir  as  estatuas  o  baixo  relevos  e  em  seguida,  os 
desenhos  gravados,  elevando-se  depois  ã  coloração  do  desenho 
pintado  ou  verdadeira  pintura,. 

Na  pintura  primitiva  não  se  conhecem  as  leis  das  sombras  e 
da  perspectiva,  todavia  em  um  perfil  de  urso  gravado,  pertencente 
ás  idades  ])rehistoricas,  já  se  encontram  vínculos  que  figuram 
sombras;  geralmente,  porém  este  progresso  só  muito  tarde  é 
introduzido  na  pintura,  pois  na  arte  egypcia,  peruana,  mexicana 
ainda  as  figuras  são  todasdispostas  em  linha.  Igualmente  o  artista 
primitivo  tendo  facilidade  em  escolher  e  grupar  as  cores,  tem  no 
entanto  difHculdade  em  representar  as  sombras,  as  degradações 
das  tintas  e  os  longes. 

Sô  muito  lentamente  o  homem  conseguiu  adquirir  estes  se- 
gredos podendo  então  reproduz'r  a  paj^sagem  que  foi  o  ultimo 
esforço  da  pintura. 

EVOLUÇ^jAO  da  AIDA  AFFECTIVA 

l'assando  a  estudar  os  phenomenos  da  vida  affectivana  suas 
evoluções,  temos  a  considerar  os  seguintes:  f/  dcsaffeição  pela 
prole  o  ahovío,  o  iiifanticidio  a  ajjeição  pela  prole,  o  amor  Jilial, 
a  assistertcia  aos  velhos  e  doentes,  os  ínstincios  ferozes,  os  sen- 
timeníos  beiteficos,  a  condição  das  mulheres,  os  costumes  giier- 
reií^os,  a  anthropophajjia,  os  ritos  funerários,  a  religião, .  os 
deuses,  o  culto  o  o  sacerdócio. 

A  desaireiçào  pela  prole.  — Sob  o  ponto  de  vista  da 
affeição  pela  ])role,  o  homem  na  sua  origem  não  ditíerença-se  dos 
outros  mammiferos,  revelando-se  ás  vezes  até  muito  mais  gros- 
seiro que  os  seus  bestiaes  antepassados.  «E'que  nas  raçashumanas 
retardadas,  o  instincto  puramente  animal  é  já  contrabalançado 
por  uma  intelligencia  relativamente  mais  desenvolvida. 

A  vista  do  homem,  mesmo  o  mais  grosseiro,  penetra  mais 
no  futuro  do  que  a  da  maior  parte  dos  animaes.  Prevê  de 
longe  os  enfados,  os  embaraços,  os  cuidados  da  família,  e  como 
sua  moralidade  acha-se  mal  desenvolvida  ainda,  sacrifica  muitas 
vezes  a  descendência  ao  cuidado  de.  seu  bem  estar  actual.»    1) 

O  alíorlo.— Partindo  desta  originaria  desafíeição  á  prole  e 
do  estado  rudimentar  em  que  se  acha  a  moral  nos  povos  primitivos, 


(l)  Letourneau— Oòra  miada. 


52  HISTORIA  DO  BRASIL 


O  aborto  é  largamente  praticado  nas  primeiras  phases  da  civilisa- 
ção,  sendo  considerado  perfeitamente  licito. 

"  Segundo  o  Padre  Bonwick  a  Tasmaniana  pratica  o  aborto  por- 
que só  deseja  ter  filhos  no  fim  de  tantos  annos  de  casada,  facto 
que  Ihepermitte  prolongara  sua  bellezae frescura.  Na  ilha  For- 
mosa, na  Nova  Caledónia  e  em  diversas  tribus  americanas  existe 
ainda  a  pratica  de  fazer  as  mulheres  abortar,  uso  bárbaro  que, 
pelos  phenomenos  de  sobrevivência  de  que  falia  Tj^Ior,  embora 
severamente  punido  pelas  leis,  subsiste  ainda  nas  sociedades 
cultas. 

O  infanticiílio.— Assim  como  o  bárbaro  entende  que  lhe  é 
permittido  o  aborto,  julga-se  também  com  direito  ao  infanticí- 
dio, o  qual,  sendo  de  pratica  menos  perigosa,  é  ainda  de  uso 
mais  geral  nos  povos  primitivos. 

Esta  crueldade,  que  também  se  encontra  em  certos  animaes, 
é  determinada   principalmente  pela  escassez  de  alimentos. 

A  aireição  pela  prole.— Se  o  aborto  e  o  infanticídio 
são  frequentemente  encontrados  como  praticas  licitas  entre  os 
povos  primitivos,  não  segue-se  d'ahi  que  o  desamor  pela  prole 
seja  uma  lei  geral;  multo  pelo  contrario,  os  primeiros  é  que  de- 
vem ser  considerado.s  como  excepções,  determinadas  por  um  certo 
numero  de  circumstancias  originadas  do  primo     xivere. 

A  afíeição  pelos  filhos  já  se  encontra  nos  povos  mais  gros- 
seiros, taes  com  os  Fuegianos. 

Comtudo  o  amor  dos  selvagens  pelos  filhos  assemelha-se 
muito  ao  dos  animaes.  pois  não  vae  alem  da  puerícia.  Só  mais 
tarde,  quando  os  sentimentos  já  se  acham  muito  desenvolvidos 
é  que  o  amor  dos  pães  pelos  filhos  ultrapassa  esse  período  e  sub- 
siste durante  toda  a  vida. 

Amor  filial  —O  amor  dos  filhos  pelos  pães  é  mais  raro  no 
estado  de  natureza,  isto  por  ser  menos  necessário  que  o  amor 
paterno,  sem  o  qual  a  prole  seria  indubitavelmente  sacrificada. 
O  mesmo  facto  se  observa  entre  os  animaes  e  também  nas  socie- 
dades cultas,  nas  quaes  o  amor  filial  é  quasi  sempre  menos  in- 
tenso que  o  amor  paternal  e  principalmente  que  o  amor  ma- 
ternal- 

Comtudo  o  amor  filial  existe  já  nos  povos  selvagens  e  como 
todos  os  outros  sentimentos  evoluciona  lentamente. 

Assistência  aos  velhos  e  doentes.— Alguns  animaes, 
extremamente  sociáveis  como  as  abelhas  e  as  formigas,  reco- 
nhecem a  solidariedade  e  mutuamente  se  auxiliam  nos  casos  de 
infortúnio,  o  homem  primitivo  porém,  sempre  dominado  pelo 
primo  vicere,  adopta  geralmente  o  costume  de  supprimir  as 
bocas  inúteis  Assim  os  velhos  e  enfermos  w  s  povos  bárbaros 
são  quasi  sempre  assassinados  ou  lançados  ao  abandono.  Em 
um  grão  mais  elevado  de  cultura  dá-se  o  phenomeno  inverso, 
sendo  os  anciãos  religiosamente  venerados  e  em  geral  escolhidos 
para  chefes. 

Instinctos  ferozes.— Os  instinctos  ferozes  acompanham  o 
homem  em  diversos  estágios  de  sua  civilisação  e  só  uma  cul- 
tura muito  desenvolvida  pode  determinar  sentimentos  altruístas. 
Em  geral  os  povos-natureza  são  vingativos  ea  vida  ou  os  solíri- 
mentos  de  seus  semelhantes  é  i^ara  elles  cousa  de  nonada. 

Não  só  matam  sem  commoção  alguma,  como  têm  prazer  em 
ver  a  victima  sollrer  os  mais  atrozes  tormentos. 


INTRODUCÇÃO  53 


Originariamente  o  homicídio  e  as  variadas  torturas  que  soem 
applicar,  obedecem  apenas  ao  capricho  eá  força,  evoluindo  porém 
a  moral  social  esses  instinctos  ferozes  procuram  muitas  ve/.es  a 
válvula  da  lei  ou  a  da  religião  para  se  manifestarem.  O  código 
criminal  dos  chins  com  os  seus  indiscriptiveis  horrores  penaes 
e  as  torturas  de  mil  géneros  applieadas  outrora  pelos  jesuítas 
em  nome  de  Christo,  mostram  a  persistência  dos  instinctos  fe- 
rozes na   humanidade. 

Os  sentimentos  altruístas.  —  Os  sentimentos  de  ami- 
gado, de  compaixão,  etc.,que  segundo  alguns  naturalistas  jà  se  ob- 
servam em  certos  animaes  como  os  papagaios  e  os  saguis,  são 
muito  débeis  ou  quasi  não  existem  nas  raças  humanas  mais 
inferiores.  Os  Fuegianos,  Tasmanianos  e  Australianos  são  no- 
táveis por  sua  perfeita  insensibilidade  moral  e  os  neo-calcdonios 
são  quasi  inca|)azes  de  reconhecimento,  porém  em  pnvos  um 
pouco  superiores  a  estes,  os  sentimentos  altruístas,  embora  muito 
rudimentares,  já  se  fazem  sentir ;  temos  um  exemplo  nas 
negras  do  Gabon,  que  sendo  tratadas  como  bestas  de  carga  pelos 
homens,  são  no  entanto  ternas  e  compassivas.  Os  Eskimós  são 
generosos,  outros  povos  são  brandos  e  cruéis  ao  mesmo  tempo- 

Durante  a  antiguidade  greco-romana  a  piedade  ainda  era 
muito  pouco  sensível  ;  ao  christianísmo  cab»  ter  levado  na  Eu- 
ropa os  sentimentos  humanitários  ao  seu  apogêo,  se  bem  que  na 
China  já  a  piedade  possuísse  um  templo  muito  antes  de  Christo. 

A  eondlção  da  niollier.— Para  o  homem  na  phase  mais 
rudimentar  da'cíviIísação  a  mulher  representa  apenas  o  papel  de 
um  animal  domestico,  servindo  ao  prazer  genésico,  ã  repro- 
ducção,  ao  trabalho  e  mesmo,  em  momentos  de  extrema  penúria 
á  alimentação,  pois  o  homem  então  não  tem  a  menor  noção  do  que 
seja  direito,  justiça  ou  respeito  pelos  fracos. 

A'  medida,  porém,  que  o  homem  se  civilísa,  a  mulher 
vae  tornando-se  senhora  de  certas  prerogativas,  e,  por  conse- 
guinte, melhorando  a  sua  triste  condição  ;  só  porém,  em  um  es- 
tado muito  adíantndo  da  cultura  humana  é  que  ella  deixa  decidi- 
damente de  ser  cousa  para  tornar-se  uma  companheira  digna 
de  attenções  e  respeito. 

Até  então  ou  é  considerada  como  um  ser  desprezível  que  o 
homem  sobrecarrega  de  maus  tratos  e  trabalhos  ou  é  simples- 
mente considerada  uma  entidade  agradável,  própria  ao  deleite 
genésico,  é  verdade,  porém  sem  outro  merecimento. 

Hoje  mesmo,  nas  sociedades  cultas,  a  mulher  é  ainda  in- 
ferior em  direitos  ao  homem,  todavia  a  sua  elevação  ao  logar  que 
com  justiça  lhe  compete  já  se  fez  de  ha  muito,  quer  pela  energia 
do  sentimento  esthetico  da  civilisação  greco-romana,  quer  pela 
suavidade  religiosa  do  christianísmo.  Uma  consagrou  a  sua  su- 
perioridade sob  o  ponto  de  vista  da  belleza  plástica,  o  outro  fez 
d'ella  o  symbolo  da  pureza  angélica. 

Costumes  sr«e""relPos.— Vem  dos  animaes  a  predilecção 
especial  que  todos  os  pov  js,  principalmente  os  mais  retardados 
na  estrada  do  jirogresso,  manifestam,  pela  guerra  que  ;i.s  vezes  é 
simplesmente  uma  mauifestação  do  instincto  de  conservação  e 
outras  vtv.es  uma  explosão  dos  instinctos  de  ferocid:ide  que  o 
homem  recebeu  por  herança  dos  seus  antepassados,  os  mammi- 
feros  irracionaes. 

Quanto  mais  grosseiro  é  o  povo  mais  o  seu  modo  de  guer- 
rear é  cobarde,  feroz  e  traiçoeiro;  como,  porém,  a  exhibição  da 


54  HISTOEIA  DO  BRASIL 


coragem  e  da  insensibilidaie  aos  soffrimentos,  revela  supe- 
rioridade pliA-sica  e  o  orerulho  è  um  dos  sentimentos  que  muito 
cedo  o  cérebro  liumano  encrendra,  mesmo  nas  raras  mais  Ínfimas 
já  se  encontra  o  srermen  da  lealdade  cavalJieiresca  Segundo  o  via- 
jante Sturt,  os  Tasmanianos  e  Australianos,  que  estão  no  ultimo 
degrau  da  escada  social,  antes  de  attacarem  os  europeus  desar- 
mados muitas  vezes  forneeiam-lhes  armas. 

A  deshumanidade  pelo  vencido  é  geral  em  todos  os  povos 
primitivos  e  mesmo  n'ac]uelles  que  já  possuem  uma  certa  cul- 
tura. Muitas  vezes,  cimo  já  vimos,  a  anthropophagia  è  uma  con- 
sequência da  guerra ;  a  escravidão  representa  uma  íórma 
attenuada  da  primitiva  deshumanidade  pelo  vencido. 

Ao  principio  o  selvagem  peleja  sem  ordem  e  sem  valer-se  de 
nenhum  recurso  táctico,  lançando-se  cegamente  sobre  o  inimigo 
como  fera  furiosa  ;  desénvolvendo-se  porém  sua  intelligencia, 
elle  comprehende  afinal  que  não  deve  contar  exclusivamente  com 
a  sua  força  muscular  e  com  o  seu  ardor  bellico  para  a  obtenção  do 
successo.  D'ahi  o  tornar-se  cauteloso  e  aprender  a  táctica  de 
guerra. 

Os  Índios  da  America,  que  muitas  vezes  esperavam  annos 
inteiros  aguardando  o  momento  propicio  para  cahir  sobre  os  con- 
quistadores, feriram  muitas  batalhas  em  que  demonstraram  um 
perfeito  conhecimento  da  estratégia  militar. 

Finalmente,  quer  entre  os  selvagens,  quer  entre  os  povos 
civilisados,  a  guerra,  considerada  em  si  mesma,  é  sempre  um 
acto  bárbaro  e  por  conseguinte  pela  evolução  do  progresso 
humano  tende  a  desapparecer. 

O  Canibalismo.—  Actualmente  a  anthropophagia  acha-se 
limitada  a  um  pequeno  numero  de  povos  que  vivem  empare- 
dados na  mais  abjecta  grosseria,  porém  todas  as  raças  humanas 
que  habitam  actualmente  o  globo  e  bem  assim  aquellas  que  por 
diversas  causas  desappareceram  da  superfície  da  terra,  foram 
todas  nas  suas  origens  mais  ou  menos  anthropophagas. 

As  principaes  formas  de  canibalismo  são  —  o  canibalismo 
pela  fome,  o  canibalismo  por  gula,  o  canibalismo  por  furor 
guerreiro,  o  canibalismo  por  vingança,  o  canibalismo  reli- 
gioso, o  canibalismo  por  piedade'  filial  e  o  canibalismo  ju- 
rídico. 

Quando  o  canibalismo  alcança  estas  ultimas  formas  com- 
pletou o  cyclo  de  sua  evolução  e  tende  a  desapparecer,  pois  a 
sua  pratica  j;í  começa  a  repugnar. 

.^ttenções  para  com  o<«  niortos.  —  Algumas  hordas 
barbaras_  nenhum  cuidado  têm  pelos  seus  mortos,  estas 
porém  sao  extremamente  raras  e  em  geral  o  homem,  mesmo  o 
mais  selvagem  possue  praticas  fúnebres,  as  quaes  mais  ou 
menos  relacíonam-se  com  a  idòa  que  esses  mesmos  povos  fazem 
da  vida  futura. 

Conforme  o  paiz  e  o  povo  o  cadáver  ou  é  comido,  ou  enter- 
rado no  chão  e  coberto  de  terra  ou  de  pe-^ras,  ou  collocado  em 
grutas  naturaes  ou  t^m  cisternas  cujas  entradas  se  muram,  ou 
depositados  em  urnas  e  talhas  de  diversos  formatos,  ou  deitado 
sobre  giráos  altos  ou  sobre  os  ramos  das  arvores,  ou  lançado  ás 
feras,  ás  aves  de  rapina  e  mesmo  a  cães  que  se  educa  especial- 
mente para  esse  fim,  ou  secco  e  mumificado,  ou  queimado. 

Todas  estas  praticas  são  mais  ou  menos  dictadas  por  um 
sentimento  piedoso,  o  cuidado  do  futuro  do  morto  na  outra  vida, 


INTRODUOÇXO  55 


poiso  homem  selvagem  ou  bárbaro  não  pôde  admittir  que  no 
tumulo  se  aniquile  de  lodo  a  personalidade  humana,  tendo  as 
diversas  í)rati(*as  fúnebres  por  fim  satisfazer  certos  requisitos 
indispensáveis  ao  bem  estar  do  finado  no  outro  mundo.  Assim 
muitos  povos  c?llocam  juntu  ao  morto  suas  armas  e  utensílios  e 
outros  lhe  immolam  mulheres  e  escravos  para  que  nada  lhe  falte 
na  vida  de  alem-tumulo. 

A.  RELlGlAO.  —  Os  factos  typicos  da  evolução  do  senti- 
mento religioso  na  humanidade  podem  ser  grupados  sob  três 
titulos  principaes:  1"  a  vida  futura,  2°  os  deuses,  3"  o  culto  e  o 
sacerdócio. 

A  vida  futura.— Ordinariamente  o  homem  primitivo  não 
pôde  admittir  que  a  morte  seja  o  aniqualamento  completo  do  ser; 
d'ahi  a  crença  na  vila  futura,  a  qual  é  invariavelmente  calcada 
sobre  a  vida  terrestre. 

No  primeiro  grão  da  evolução  desta  crença  o  espirito  humano 
crê  que,  quando  a  morte  sobrevem,  ha  uma  simples  dissociação  de 
dois  princípios,  separando-se  do  corpo  visível  uma  sombra  ou 
corpo  impalpável  que  vae  habitar  os  rochedos,  as  florestas,  as 
montanhas,  as  estrellas  sem  que  por  isso  deixe  o  finado  de  expe- 
rimentar os  mesmos  desejos,  paixões  e  necessidades  que  sentia 
na  sua  primeira  vida. 

No  segundo  gráo  as  sombras  errantes  reúnem- se  em  uma 
morada  invisível,  a  tjual.  embora  calcada  sobre  a  vida  real,  possue 
attractivos  que  n'esta  não  se  encontra. 

Finalmente,  em  um  terceiro  gráo  da  evolução  da  crença, 
apparecem  duas  habitações  além  da  morte  :  uma,  que  éum  logar 
de  delicias,  destinada  aos  eleitos  ;  a  outra,  onde  se  soffre  penas 
cruéis,  destinada  aos  réprobos. 

O  cyclo  da  evolução  d'esta  crença  termina  ahí,  em  seguida 
vem  a  scípncia  que  prova  não  haver  nada  além  do  tumulo  ou  que, 
se  existe,  não  cabe  ao  homem  devassar  tal  mj^sterio. 

Os  deuses.—»  .\  gradação  mythologica,  geralmente  admit- 
lida,  e  partindo  do  fetichismo  para  chegarão  monntheismo,  pas- 
sando pelo  polytheismo.  ê  commoda  para  a  exposição  dos  factos,  e 
corresponde  ])erfeitamente  ás  primeiras  phases  da  evolução  reli- 
giosa. No  entanto  não  devemos  conceder-lhe  um  valor  absoluto, 
principalmente  nfio  se  deve  crer  que  entre  as  diversas  gradações 
do  erro  haja  divisões  accentuadas.  Finalmente,  todos  estes 
gnlos  se  fundem  em  uma  mesma  illusão  que  Tylor  chamoii  o 
animismo.  (1) 

Na  primeira  phase  da  evolução  religiosa  o  espirito  humano  se 
exteriorisa  continuamente  a  si  mesmo  e  julga  ver  qualidades 
conscientes  iguaes  ãs  suas  em  todos  os  objectos  exteriores,  isto 
ó,  antropomorphisa  arvores,  montanhas,  animaes,  rios,  etc.  E' o 
período  do  fetichismo  ou  naturismo,  o  qual  comprehende  o  feti- 
chismo propriamente  dito  ou  adoração  do.s  objectos  terrestres 
inanimailos,  a  zoolotria  nu  adoraçã  )  dos  animaes  e  a  astrolatria 
ou  adoração  dos  corpos  celestes. 

Na  segunda  phase  o  espirito  humano  anthropomorphisa  os 
grandes  piíenomenos  da  natureza,  taes  como  o  trovHo,  orai»,  o 
furacão,  a  tempestade.    Os  deuses    primitivos  do  fetichismo  vão 


(1)  Letoukneau— .S'ycioZof/íVr. 


56  HISTORIA  DO  BRASIL 


desacreditando-se  ;  diminuem  as  divindades,  porém  as  que  sub- 
sistem crescem  em  importância  ;  finalmente,  organisam-se  as 
lendas  mythologicas  —  é  o  período  do  polytheismo,  isto  é,  da 
crença  em  muitos  deuses  superiores  ou  aristocracia  divina. 

Na  terceira  phase  da  evolução  religiosa  o  espirito  humano 
condensa  todos  os  deuses  em  um  só  e  assim  chega  ao  mono- 
theismo  ou  ao  pantheismo. 

O  christianismo,que  é  uma  religião  monotheista,  conserva  no 
entanto  signaes  indeléveis  das  duas  primeiras  phases  da  evolu- 
ção religiosa.  A  veneração  aos  logares  sagrados,  ás  relíquias,  as 
imagens  são  manifestações  fetichistas,  os  numerosos  santos  e 
santas  traduzem  o  polj^theismo  como  toda  a  fidelidade. 

Percorrida  estas  phases  da  evolução  está  terminado  o  cjxlo 
religioso,  apresenta-se  asciencia  e  lança  jior  terra  o  ultimo  deus 
dos  monotheistas  ou  pelo  menos  faz  comprehender  que  não  de- 
vemos nos  preoccupar  com  questões  que  por  sua  própria  natu- 
reza são  insolúveis. 

O  culto  e  o  sacerdócio.— Nas  raças  humanas  mais  in- 
feriores não  se  encontram  templos,  nem  padres,  nem  ritos. 
N'este  caso  se  acham  os  Fuegianos,  os  Tasmanianos,  os  Australia- 
nos, etc,  porém  logo  que  a  intelligencia  humana  se  desehibaraça 
dos  apertados  laços  que  a  jungem  á  animalidade,  o  homem  crê 
poder  por  meio  de  presentes,  genuflexões,  etc,  influir  nas  deci» 
soes  dos  deuses  e  esta  é  a  primeira  origem  do  culto.  O  templo  é 
o  próprio  lar  e  o  sacerdote  o  chefe  da  familia. 

Na  segunda  phase  apparece  o  padre  e  levanta-se  o  templo 
que  primeiro  é  uma  casa  ou  choupana  como  as  outras  onde  o  deus 
reside  e  depois  vae  gradualmente  differençando-se  e  adquirindo 
formas  determinadas. 

•  >  padre  é  apenas  um  membro  da  tribu  que  pretende  possuir 
o  segredo  de  commumcar  com  os  espirites,  servir  de  medianeiro 
entre  elles  o  os  homens  e  curar  as  moléstias.  O  culto  consiste 
em  offerendas  de  alimentos,  pois  o  deus  tem  necessidade  de  nu- 
trir-se  como  os  outros  homens.  Estes  alimentos  são  naturalmente 
devorados  pelo  padre,  o  qual,  tendo  por  esse  meio  a  sua  subsis- 
tência garantida  passa  a  residir  no  templo  e  transforma-se  em 
guardião  do  idolo. 

Em  uma  terceira  phase  os  padres  congregam-se  em  castas, 
que  em  muitis  ]iovos  tornam-se  hereditárias  ;  constituídas  estas 
tendem  eljas  invari.ivelmente  a  governara  sociedade  civil  o  que 
em  geral  conseguem.  N'este  ponto  da  evolução  do  .sacerdócio  é 
que  surgem  os  templos  monumentaes  ;  o  culto  complica-se  e 
apparecem  os  sacriíicios  humanos.  Se.  o  paiz  acha-seao  abrigo  de 
invasões  £:uerreiras  o  g.)verno  theocratico  domina  só,  no  caso 
contrario  é  partilhado  pela  classe  guerreira  e  ou  esta  destróe 
a  casta  sacerdotal  ou  as  duas  classes  auxiliam-se  mutuamente, 
ficando  uma  com  o  poder  espiritual  e  a  outra  com  o  poder  tem- 
poral . 

x\flnal,  em  uma  phase  de  decadência,  o  ritual  vae  pouco  a 
pouco  depurand'1-se  de  praticas  grosseiras,  o  padre  vae  paralle- 
iamente  perdendo  a  importância  e  tanto  um  como  o  outro  tendem 
a  desapparecer. 

Para  o  liomem  moderno  que  fortificou  o  espirita)  com  salu- 
tares noções  scientiíieas  o  culto  e  o  sacerdócio  são  instituições 
archaicas  que  se  apresentam  nas  sociedades  modernas  como  phe- 
nomenos  de  sobrevivência. 


INTRODUCÇlO  57 


EVOLL'ÇÀO  DA    \'1DA    SOCIAI< 

Vejamos  acrora  como  se  operou  a  evolução  da  vida  social,  con- 
siderando como  de  sua  dependência  o  casamento,  afainilia,  a.  pro- 
priedade, a  moralidade  e  a  constituição  das  sociedades . 

O  casamento.— O  casamento  já  existente  entre  os  ani- 
maes  passa  por  diversas  phases  no  género  humano,  porém  estas 
nem  sempre  se  succedem  na    mesma  ordem. 

Em  muitas  sociedades  humanas  primitivas  verifica-se  nas 
relações  sexuaes  um  estado  bestial  de  promiscuidade;  indepen- 
dente porém  d'esta  phase  as  formas  matrimoniaes  mais  encon- 
tradas são  a  polygamia,  a  polyandria,  os  matriniõnios  parciaes 
não  obrigando  os  cônjuges  senão  a  uns  tantos  dias  da  semana  ou 
do  me/,  e  permittindo  simultaneamente  reuniões  múltiplas,  a 
monogamia,  o  casamento  exogamico  e  o  casamento  endogamico. 

Nos  povos  mais  atrazados  domina  ainda  a  promiscuidade  e 
portanto  não  existe  casamento;  mas,  fazendo-se  logo  sentir  racio- 
nalmente a  lei  do  mais  forte,  os  que  o  são  apoderam-se  de  uma  ou 
mais  mulheres  que  guardam  para  si  e  sobre  as  quaesjulgam-se 
com  todos  os  direitos  :  matar,  espancar,  dar,  vender,  alugar, 
emprestar. 

A's  vezes  esta  captura  é  compensada  por  algum  donativo  feito 
aos  pães  da  mulher  rapiada,  pois  ella  é  uma  propriedade  e  o 
rapto  constitue  um  esbulho. 

Evoluindo  os  sentimentos  moraes  e  o  casamento,  que  era  pre- 
cedido de  um  aeto  de  violência,  transforma-se  em  contracto  es- 
tabelecido mediante  prévio  ajuste. 

A  polyandria  é  o  casamento  de  uma  mulher  com  muitos  ho- 
mens ao  mesmo  tempo;  a  polygmia  é  o  systema  inverso,  isto  é, 
o  casamento  de  um  homem  com  muitas  mulheres;  a  monogamia 
é  o  casamento  de  um  homem  com  uma  só  mulher.  Diz-se  (jue  o 
casamento  é  endogamico  quando  marido  e  mulher  pertencem  á 
mesma  tribu,  e  exogamico  quando  a  mulher  pertence  a  uma  tribu 
differente. 

A  Faiiiilla.  —  O  estudo  da  evolução  da  familia  é  dos  mais 
importantes,  pois,  delia  depende  especialmente  o  progresso  das 
sociedades  humanas. 

Como  se  observa  entre  os  grandes  macacos  anthropoides  e 
como  Se  vê  ainda  enti-e  os  Weddahs  de  Ceylão,  o  homem  pri- 
mitivo vagueia  tmi  [)i'q  ueuos  bandos  constituídos  somente  pelo 
pae,  pela  mullier  ou  mulheres  e  jxdds  filhos  menores. 

Mais  tarde,  desenvolvendo-se  o  instinctu  dn  sociabilidade, 
esses  bandos  associam-se  em  hordas  e,  como  a  lei  nas  relações 
sexuaes  desta  aggregação  accidental,  é.  pela  ausência  absoluta 
de  sentimentos  mbraes,  a  da  promiscuidade,  os  filhos  não  conhe- 
cem os  pães  e  apenas  admittein  a  filiação  materna,  estabele- 
cend(í-«e  por  essa  forma  o  regimen  do  mutriarchado.  N'este 
estado  os  bens  da  mulher  i)assam  por  herança  aos  filhos  e  os 
bens  do  homem  transmittem-se  aos  sobrinlios.  Por  c  tnseguinte, 
a  familia  que  já  se  achava,  embora  inconscientemente,  mais  ou 
menos  constituída  no  bando  vagabundo,  torna  a  desapparecer  na 
liorda,   devido   ;l   jiromiscuidade. 

Mais  cedo  ou  niai3  tarde,  porém,  dá-S(!  na  horda  o  facto  de 
cohabitar  um  homem  mais  com  uma  mulher  do  que  com  as  outras 
6  dahi  uma  certa  predilecção  pelos  filhos  da   mulher   preferida. 


58  HISTORIA  DO  BRASIL 


podendo  já  esta,  embora  seja  ainda  muito  ampla  a  liber- 
dade nas  relações  sexuaes,  designar  o  pae  de  seus  filhos.  Evo- 
luindo sempre  em  civilisação  o  grupo  ethnico  chega  afinal  um 
momento  em  que  se  define-se  de  todo  a  filiagão  masculinit. 

Este  facto,  porém,  só  tem  logar  quando  o  casamento,  qual- 
quer que  seja  a  sua  forma,  exceptuando-se  a  polyandría,  tor- 
nou-se  realmente  uma  instituição. 

Ao  mesmo  tempo  que  se  aftirma  a  filiação  paterna,  verda- 
deira base  da  organisação  da  familia,  o  homem  começa  a  preoc- 
cupar  se  em  deíinir  os  parentescos  e  os  grãos  de  consanguini- 
dade aos  quaes  applica  nomes  especiaes.  Estas  noções  deter- 
minam mais  tarde  o  isolamento  do  grupo  apparentado  que  afi- 
nal separa-se  da  horda  e  vae  constituir  o  clan  dirigido  pelo  mais 
velho  ou  avô.  Achamo-nos  então  no  regimen  do ^flí/'iarc//arfo 

Sendo,  porém,  continua  a  evolução  social,  os  clans  isolados 
tendem  pouco  a  pouco  a  approximar-se  e  fusionam-se,  dando 
origem  á  tribu  que  desta  vez  se  constitue  com  verdadeiras  fa- 
mílias. 

A  Propriedade.  —  O  sentimento  da  propriedade  é 
geral  e  devia  ter  nascido  com  o  primeiro  instrumento  de  silex 
que  o  homem  fabricou,  o  qual,  representando  um  esforço  de  sua 
intelligencia  e  actividade,  constituía  ao  mesmo  tempo  um  valor 
duradouro. 

Depois,  quando  o  homem  attinge  a  forma  familiar  do  clan, 
tcrna-se  mais  industrioso  augmentando  os  seus  haveres  com 
armas,  cabanas,  pyrogas,  etc.  Então  a  propriedade  define-se  com- 
pletamente e  d'ahi  começa  a  sua  verdadeira  evolução  até  ás 
sociedades  modernas,  em  que  é  concebida  de  um  modo  que  está 
ainda  longe  da  perfectibilidade. 

Nas  hordas  anarchicas  não  existe  ainda  a  verdadeira  pro- 
nriedade;  nos  clans  e  nas  tribus  republicanas,  o  regimen  é  com- 
munista  e  por  conseguinte  a  propriedade  é  mais  ou  menos  col- 
lectiva,  todavia  o  individuo  já  se  julga  com  direito  de  posse  exclu- 
siva sobre  alguns  bens  e  princi|ialmente  sobre  a  mulher  e  filhas, 
mas  as  habitações  e  as  substancias  alimentícias  pertencem  a 
tidos  em  comnium. 

Em  um  grão  immed latamente  superior  da  evolução  social, 
isto  é,  nas  tribus  selvagens  monarchicas,  ajjparece  a  escravidão 
e  a  propriedade  dilata  se,  definindo-se  j)erfeitamente  a  que  é  indi- 
vidual e  a  que  é  collectiva.  Os  chefes  adquirem  prerogativas  e 
em  algumas  tribus  a  mulher  começa  também  a  participar  do 
direito  de  propriedade. 

A  propriedade  do  solo  ou  quiritaria  só  apparece  no  regimen 
verdadeiramente  agrícola,  pois  no  estado  pastoral  os  campos  são 
ainda  indivisos. 

Com  a  domesticação  dos  animaes  surge  a  distincção  entre 
bt!ns  moveis  e  bens  de  raiz. 

Finalmente,  progredindo  em  civilisação  o  grupo  humano, 
desapparece  de  todo  a  primitiva  propritídade  collectiva  e  entram 
em  lucta  as  múltiplas  ambições  particulares  que  dão  a  formula 
moderna  do  direito  de  [propriedade. 

A  moralidade.  —«Como  tudo  mais,  diz  Letourneau,  a 
moralidade  evoluio  lentamente  e  salta  aos  olhos  que  está  muito 
longe  de  ter  alcançado  o  apogeu  de  seu  desenvolvimento.  As 
mais  avançadas  das  sociedades  humanas  debattem-se  ainda  n'um 
furioso  conflicto  de  egoísmo,   de  cupidez,  de  crueldade.  Não  se 


INTBODUCÇiO  69 


])()de  crer  que  os  primitivos  instinctos  do  animal  eslejam 
extinctos  ;'m  todos  os  corações,  pois  o  nivcl  moral  6  tão  baixo, 
qiuí  mesmo  nos  i)Ovos  que  se  di/.em  eivilisados,  a  nnbre/a  de 
caracter  é  muitas  ve/es  uma  causa  de  insuccesso  na  liicta  peia 
vida.  )) 

A  concepção  da  moralidade  na  sua  origem  é  muito  diíferente 
da  que  hoje  possuimos. 

Entre  os  australianos,  povos  que  occupam  um  dos  mais  Ínfi- 
mos degraus  da  escala  social,  um  dos  maiores  attentados  á  mo 
ral  é  comer  um  mancebo  a  carne  do  emú,  espécie  de  casoar  que 
se  reserva  [lara  os  velhos;  no  entanto  o  homicídio,  como  vcndctta, 
não  os  ollende  e  constitue  mesmo  uma  acção  mentoria.  Em  so- 
ciedades mais  adiantadas  vemos  ainda  que  a  moral  tem  diversas 
intei-[»ietagões.  O  caso  celebre  de  Phrinéa  despida  no  Areópago 
mostra-nos  que  o  povo  grego  não  conhecia  o  pudor,  como  nós  o 
entendemos.  Para  o  Kamtchadale,  violar  uma  mulher  longe  de 
sua  cabana  nada  tem  de  reprehensivel.  porém  este  mesmo  bár- 
baro não  poderia  sobreviver  á  vergonha  de  ter  lançado  ao  mar 
o  producto  de  sua  pescaria,  afim  de  aliviar  a  canoa  e  salvar-se 
durante  uma  tempestade. 

Toda  moral  primitiva  é  grosseira,  funda-se  no  direito  do  mais 
forte  e  nem  mesmo  nas  sociedades  mais  cultas,  apezar  de  todas 
as  leis,  essa  brutalidade  originaria  desapparece. 

A  coiiatituição  das  sociedades.— Tratando  da  consti- 
tuição da  familia,  vimos  a  sociedade  humana  nas  phases  primi- 
tivas da  sua  evolução  ;  primeiro  constituindo  um  gru])0  seme- 
lhante ao  dos  macacos  anthropoides,  formado  do  pae,  das  mu- 
lheres e  dos  filhos  menores;  depois  reunidos  estes  grupos 
promiscuamente,  dando  origem  ao  nriatriarchado;  em  seguida  o 
clan  e  depois  atribu  democrática  ou  aggregado  de  clans. 

N'essas  diversas  aggremiaçõr-s  o  homem  não  constitue  ainda 
verdadeiras  sociedades,  o  grupo  humano  acha-se  apenas  em 
estado  (/rer/ario. 

Com  a  tribu  porém,  surge  a  idéa  de  um  chefe  e  este  se  impõe 
naturalmente  por  ser  o  mais  f  )rte  ou  o  mais  hábil.  Pouco  a 
pouco  a  obediência  a  (!Ste  chefe  ou  chefes  vae  cimentando  a 
cohe.são  das  unidades  ethnicas  e  tem  logar  então  a  constituirão 
de  uma  verdadeira  soc.ieiade. 

Reconhecida  a  distincção  de  um  chefe,  os  guerreiros  mais 
valentes  vão  ]iouco  a  pouco  destacando -se  da  massa  e  aggru- 
pandL-se  em  torno  do  principal,  originando  assim  a  aristocracia. 
Com  esta  surgem  as  pi  eoccupações  genealógicas  i)roclcma-se  a 
herança  dos  titulos,  dignidades  e  attributos  de  nobreza. 

I^sta  organisação  primitiva  é  ainda  muito  frágil,  uorém  se 
a  triba  fixa-se  ao  terreno  pela  agriímltura  torna  se  menos  instá- 
vel, porque  as  propriedades  vão  accumiilando-se  nas  mãos  das 
classes  altas  e  dão  a  estas  uma  ascendência  assignalada  sobre 
a  massa  que  augmenta  com  os  escravos.  N(!Stas  sociedades  o 
govtTiio  ó  ou  mònarchii;o  ou  oíygarchico. 

Ao  entrar  o  grupo  humano  na  phase  religiosa  do  ]iolytlirismo 
surge  a  casta  sacerdotal,  a  qual, se  ajtossa  ou  iiillue  na  adminislia- 
ção,  dá  origem  ao  governo  francamente  theocralico  ou  impi-t;- 
gnado  de  theoci'acia. 

N'este  mom.ento  definem-se  claramente  as  castas :  a  dos 
aristocratas  ou  guerreiros,  a  dos  sacerdotes,  a  dos  trabalhadores 
livres  e  a  doa  trabalha iores  escravos, 


60  HISTORIA  DO   BEASIL 


O  regimen  social  das  castas  conduz  sempre  á  monarchia 
absoluta  que  centralisa  o  despotismo.  O  feudalismo  é  uma  forma 
particular  do  regimen  das  castas. 

Este  regimen  do  despostismo  é  porém  transitório  ;  em  um 
espaço  de  tempo  mais  ou  menos  breve,  cuja  duração  depen.ie 
do  grão  de  intelligencia  do  povo,  as  classes  inferiores  reagem 
contra  a  oppressão,  quebram  os  sceptros  despótico--,  fazem  de- 
sapparecer  os  privilégios  e  proclamam  o  regimen  representativo 
ou  democrático  systema,  que  se  organisa  sobre  a  base  da  igual- 
dade de  direitos  políticos. 

A'  medida  que  os  governos  vão  se  modificando,  as  leis  paral- 
lelamente  vão  adaptando-se  a  novas  concepções  do  d'reito  e 
á  evolução  da  moral;  assim  perdem  pouco  a  pouco  a  grosseria 
primitiva  e   suavisam-se  cada  vez  mais. 

EVOLUÇÃO  DA  VIDA  II\TEI.LECTUAL 

Passando  a  estudar  os  phenomenos  evolutivos  da  vida  in- 
tellectual  temos  a  considerar  os  (jráos  da  vida  2^sr/chica,  a  in- 
dustria, as  linguas,  as  a]}tidões  mathematicas  e  a  supputação  do 
tempo. 

Os  gráos  da  \'ida  psychioa.  —  Os  mesmos  grãos  ps}'- 
chioos  que  se  observam  no  homem  desde  o  nascimento  até  a  pu- 
berdade são  os  que  caracterisam  a  humanidade  na  sua  evolução. 

Nos  degráos  mais  inferiores  o  ser  humano  só  tem  appetites 
que  se  manifestam  violentamente;  sua  intelligencia  não  pôde 
elevar-se  acima  da  satisfação  grosseira  desses  apetites  e  das  im- 
pressões rudes  que  recebe  das  circumstancias  exteriores.  Os 
povos  n'esse  tnste  estado  são  caracterisados  pela  maior  imprevi- 
dência, mobilidade  e  falta  de  attenção. 

Mas  pouco  a  pouco  a  intelligencia  humana  vae  se  desenvol- 
vendo e  tornando-se  capaz  de  uma  tensão  cada  vez  mais  prolon- 
gada. O  individuo  faze-se  cauteloso  e  attento  progresso  este  que 
continua  atè  o  seu  cérebro  tornar-se  susceptível  de  formular  ra- 
ciocínios complexos  e  abstrações  as  mais  geraes. 

A  industria.  —  A  primeira  consequência  do  desenvolvi- 
mento da  intelligencia  no  homem  éa  industria  e  as  mais  priíui- 
mitivassão  :  a  das  armas,  a  da  invenção  do  jogo,  a  da  cerâmica, 
a  da  metallurgia  e  a  da  agricultura. 

As  armas  mais  rudimentares  são  as  de  pedra,  primeiro 
lascada  e  depois  polidas:  em  seguida  ou  simultaneamente  appa- 
recem  os  dardos  e  espetos  de  pão  endurecidos  ao  fogo,  os  quaes 
tornam-se  ãs  vezes  roais  penetrantes  por  meio  de  pontas  de  pe- 
dra fixas  na  extremidade.  O  boemefang ,  que  é  uma  das  armas 
mais  primitivas  consiste  n'um  pedaço  de  páo  curvo  e  trabalh;ido 
de  modo  que  ao  ser  lançado  caracole  e,  descrevendo  uma  curva 
sensivelmente  circular,  volte  ao  ponto  de  partida.  A  massa,  o 
dardo  e  a  lança  são  as  armas  mais  antigas.  O  arco,  a  flecha  e 
o  escudo  vêm  depois,  já  n'um  periodo  de  certo  adiantamento  e 
bem  assim  a  couraça.  Com  a  utilisação  do  ferro  o  arsenal  pri- 
mitivo aperfeiçoa-se  e  é  augmentado  com  as  espadas,  porém  são 
estas  mesmas  armas,  mais  ou  menos  modificadas,  que  o  homem 
em   toda  parte  usa  até  a  descoberta  ou  utilisação  da  pólvora. 

A  descoberta  do  fogo  vem  em  um  periodo  em  que  o  homem  já 
possue  armas,  pois  os  povos  mais  primitivos  que  existem  actual- 
mente, embora  já  o  utilisem,  não  são  ainda  muito  práticos  em 


INTRODUCÇlO  61 


obtel-0.  Foi  tão  importante  a  descoberta  do  fogo  e  o  homem  pri- 
mitivo sentiu-o  tão  vivamente  que  esse  elemento  é  diuisado  em 
numerosas  religiões  pyrolatricas.  Os  processos  primitivos  para 
a  acquisigào  do  fogo  sáo  a  g^a-ação,  o  attricto  e  a  percussão.  O 
primeiro  consiste  em  fazer  girar  com  muita  rapidez  a  ponta  de 
um  pão  bem  stjcco  n'um  buraco  aberto  em  outro  pão;  o  segundo 
pratica-se  íViccionando  por  um  rai)ido  movimento  de  vae-vem, 
a  ponta  de  um  pão  na  ranhura  de  outro;  o  terceiro  consiste  em 
obter  faiscas,  quer  pelo  choque  de  duas  pedras  ou  dois  pe- 
daços de  minereos,  quer  pelo  choque  de  um  pedaço  de  minereo 
em  um  pedaço  de  metal. 

Se  exceptuarmos  alguns  povos  muito  grosseiros  ainda,  como 
os  Tasmanios,  os  Australianos  e  os  Polynesios,  quasi  todas  as 
tribus  selvagens  são  mais  ou  menos  oíeiras,  podendo-se  consi- 
derar o  fabrico  da  louça  como  uma  das  industrias  mais  primi- 
tivas, embora  a  roda  de  oleiro  seja  descoberta  relativamente 
recente.  No  primeiro  gráo  de  sua  evolução  a  louça  ó  das  mais 
grosseiras  e  nunca  tem  azas;  estas  sobrevem  n'um  segundo  gráo 
que  jirecede  aquelle  em  que  a  louça  é  pintada,  ornada  e  en- 
vernizada. A  arte  cerâmica  quasi  em  todos  os  povos  selvagens  ou 
bárbaros  é  praticada  unicamente  ptlas  mulheres. 

Se  ó  indubitável  que  a  olaria  concorreu  muito  para  o  pro- 
gresso da  humanidade,  de  mais  utilidade  ainda  foi  a  industria 
metallurgica  que  lhe  forneceu  armas  para  domar  completamente 
a  natureza  e  impor-lhe  o  seu  desejo,  pois  o  metal  decuplou-lhe 
as  forças.  Embora  tenham  estabelecido  uma  ordem  de  successão 
nas  industrias  metallurgicas  e  colloquem  o  uso  do  bronze  antes 
do  ferro,  está  provado  hoje  que  nem  sempre  se  verificou  esta  or- 
dem e  indiííerentemente  ou  conforme  as  localidades  forjou-se  o 
ferro,  o  bronze  ou  o  cobre. 

A  agricultura  ás  vezes  precede  a  utilisação  dos  metaes  e  ás 
vezes  apparece  depois.  «  Todas  as  grandes  civilisações,  todas 
as  que  souberam  agrupar  e  produzir  grandes  agglomerações 
de  homens,  todas  as  que  se  tornaram  verdadeiros  focos  aos  quaes 
o  homem  se  aqueceu  e  illuminou,  todas  foram  baseadas  sobre  a 
agricultura ;  porém  ha  e  houve  ensaios  agrícolas  em  plena 
selvageria.  » 

Na  primeira  phase  da  agricultura  são  desconhecidas  a  es- 
trumação  e  os  afolhamentos;  apoz  cada  colheita  o  terreno  é 
abandonado;  os  instrumentos  de  lavoura  resumem-se  n'uma  es- 
taca pontuda.  Muito  lenta  é  a  evolução  da  agricultura  até  chegar 
ao  gráo  de  desenvolvimento  em  que  hoje  se  acha  nos  paizes 
modernos  cultos  ou  mesmo  como  existia  no  velho  f]gy])to. 

As  lin^iias.  —  Os  gritos  inarticulados  que  constituem 
toda  a  bagagem  linguistica  do  chimpanzé,  do  gorilla  e  do  gibbon, 
vão  no  homem  pouco  a  pouco  se  inflexionando  e  tornando-se 
susceptíveis  de  variadas  modulaç(3es.  A  linguagem  articulada  é 
um  característico  da  espécie  humana;  Mortillet  no  entanto,  é  de 
parecer  que  o  homem  da  epocha  de  Chelles  ou  Saint  Acheul  ainda 
não  fallava  pois  em  uma  das  mandíbulas  fosseis  encontradas,  ob- 
serva-se  a  ausência  da  apophise  geniana. 

Seja  como  fôr  a  linguagem  articulada,  quer  tenha  apparecido 
com  os  primeiros  homens,  quer  em  seus  descendentes,  é  a  que 
accentua  de  modo  mais  decisivo  a  sua  separação  dos  animaes. 

A  diílereuciação  mais  completa  do  cérebro,  diz  Hovelacque, 
seu  aperfeiçoamento  e  o  de  suas  mais  nobres  funcçOes,  isto  é, 


62  HISTORIA  DO   BRASIL 


das  faculdades  intellectuaes,  caminharam  parallelamente  influ- 
enciando-se    reciprocamente,  com  sua  manifestação  fallada. 

A  mais  elementar  das  formas  que  as  línguas  ou  as  famílias 
de  linguas  podem  apresentar  é  a  forma  monossjdlabica,  na  qual 
as  palavras  são  simples  raizes  que  não  despertam  senão  uma  idéa 
essencalmente  geral.  Esc-as  línguas  não  possuem  indicação  algu- 
ma de  pessoa,  género,  tempo  e  modo,  nem  elementos  de  relação, 
conjunções  ou  preposições. 

A  forma  única  da  palavra  é  a  raiz  tal  qual  ella  é.  Não 
existem  suffixos,  nem  prefixos.  «  N'este  primeira  grão,  diz  Abel 
Hovelacque,  a  phrase  é  organísada  de  accôrdo  com  esta  formula: 
raiz  T-  vaiz  -r  raiz,  etc,  etc,  e  estas  raizes  successivas  são 
invariáveis.  » 

As  principaes  línguas  monossyllabicas  ou  isolantes  que 
ainda  oxistem  são:  o  chinez,  o  annamila,  o  siamez,  o  birmanio,  o 
thibetano,  o  pegu  e  o  kàssia. 

Na  segunda  phase  de  sua  evolução  a  linguagem  toma  a 
forma  agglutinativa,  isto  é,  os  diversos  elementos  que  entram  na 
confecção  da  palavra,  não  possuem  todos  um  valor  próprio.  Só 
um  representa  a  idéa  principal,  os  outros  perdem  completamente 
seu  valor  independente  e  adquirem  um  valor  meramente  relativo 
que  representa  o  papel  de  suffixos  e  prefixos.  Entre  outras  per- 
tencem a  esta  classe  de  línguas  as  dos  índios  do  Brazil  e  as  dos 
negros  africanos  que  outr'ora  se  importavam  como  escravos. 

Na  terceira  phase,  que  é  a  das  grandes  nações  da  Europa  e  de 
suas  derivadas  na  America,  as  línguas  adquirem  a  flexão,  pela 
qual  as  raizes  não  são  simplesmente  agglutínadas,  porém  sim 
modificadas,  dando  ã  linguagem  uma  grande  desenvoltura.  São 
línguas  de  flexão  as  de  todos  os  povos  semitas  e  indo-européos. 

O  facto  de  ter  um  povo  chegado  á  segunda  ou  terceira  phase 
da  evolução  da  linguagem,  nem  sempre  quer  dizer  que  esse 
povo  possua  uma  civílisação  superior  a  daquelles  cujas  línguas 
estacionaram  no  monossjUabismo.  As  tribus  indígenas  do  Brazil, 
por  exemplo,  faliam  línguas  agglutinantes,  no  entanto,  acham-se 
em  um  gráo  de  cultura  muito  inferior  ao  dos  chinezés,  cuja 
linguagem  é  monossjllabica. 

Não  podemos  dizer  que  a  flexão  seja  a  derradeira  phase  da 
linguagem,  tudo,  pelo  contrario,  nos  faz  crer  que  o  trabalho  evo- 
lutivo contínua,  n  )tando-se  já  nas  linguas  indo  europeasuma  pro- 
nunciada tendência  para  a  elaboração  de  linguagens  synthetica. 

Aptidões  luatlieniaticas.  —  O  homem  mais  primitivo, 
como  por  exemplo  o  Weddah  de  Ce3-lão  não  tem  ainda  idéa 
alguma  de  numero,  pois  é  incapaz  de  qualquer  abstracção. 

A'  medida,  porém,  que  o  ser  humano  vae  elevando-se  sobre 
esse  estado  semi-aiiimal,  seu  espirito  vae  creando  uma  numera- 
ção, primeiramente  muito  rudimentar  e  na  qual  se  serve  dos 
dedos  como  de  fichas  muemotechnicas. 

Pouco  a  pouco  esta  numeração  digital  é  abandonada  por  ou- 
tros systemas  menemoteclinicos  taes  como  os  rosários  de  contas, 
conchas,  etc,  até  que  chega  á  combinação  de  quantidades 
abstractas,  para  as  quaes  so^  recorre  a  signaes  graphicos,  que 
são  a  extrema  idealisação  dos  dedos,  seixos,  pedaços  de  pão,  etc, 
empregados  pelos  povos  bárbaros. 

A  Hiipputa^ào  do  tempo.  —  A  contagem  do  tempo  é  mna 
abstracção  que  devia  ter  sido  ainda  mais  penosa  para  o  homem 
primitivo  do  que  a  idéa  de  numero. 


INTRODUCÇlO  63 


Só  em  um  grão  de  desenvolvimento  intellectual  relativamente 
adiantado  é  que  elle  começa  a  observar  a  regularidade  das  esta- 
ções e  a  dos  mais  importantes  phenomenos  athmosphericos,  con- 
seguindo afinal  crear  um  anno,  primeiro  lunar  e  depois  solar 
que  vae  se  tornando  cada  vez  mais  exacto  á  medida  que  os  seus 
conhecimentos  astronómicos  e  mathematicos  vão  se  aperfei- 
çoando. 

Fixado  com  rigor  o  pcriodo  annual  apparecem  depois  as  uni- 
dades de  tempo  para  a  contagem  de  longos  cyclos. 


CAPITULO   I 

ESTRUCTURA  GEOLÓGICA 

As  condições  da  estructiira  geológica  de  um  paiz 
exercem  inlluencia  directa  no  desdobramento  dos  factos 
históricos  e  muitas  vezes  o  nellas  somente  que  se  vae 
encontrar  a  causa  primordial  e  exclusiva  dos  aconteci- 
mentos. 

Na  historia  do  Brasil,  por  exemplo,  vemos  o  as- 
pecto geológico  da  região  determinar  por  vezes  pro- 
fundas moáiticacões  no  fácies  geral  da  mesma,  quer 
suggerindo  acontecimentos  de  importância  capital,  quer 
determinando  aqui  ou  alli  focos  de  civilisarão  mais  ou 
menos  intensos,  quer  predominando  nas  deslocações  da 
população,  em  sua  condensação  ou  disseminação,  quer 
finalmente,  cooperando  para  o  apparecimento  de  novos 
usos,  novos  costumes,  novas  idéas,  que  por  sua  vez 
produzirão  leis,  artes  e  íitteratura  sullicientemente  diffe- 
renciadas  das  primitivas. 

Embora  menos  incisivas  que  as  condições  geogra- 
phicas,  as  condições  geológicas  impõem-se  no  entanto 
com  bastante  energia  no  phenomenalismo  histórico  do 
Brasil  e  isto  desde  a  epocha  da  sua  primitiva  colonisação. 

A  observação  do  phenomeno  das  rochas  metamor- 
phicas  e  outros  indicies  mineralógicos,  levam  o  eu- 
ropeo  a  sonhar  na  existência  de  riquezas  metallicas, 
em  busca  das  quaes  elle  explorará  a  região  littoral, 
devassará  as  mattas  da  zona  marítima,  relacionar-se-ha 
com  novas  tribus  indígenas  e  tornar-se-ha  senhor  das 
condições  de  navegabilidade  dos  grandes  rios,  factos  que 
constituem  interessantes  capitules  da  nossa  historia  no 
século  XVI . 

Até  ahi,  porém,  a  estructura  geológica  só  por 
meios  indirectos  exerce  influencia  na  expansão  da  ac- 
tividade colonial;  logo,  porém,  que  o  homem  branco 
consegue  transpor  as  montanhas  que  orlam  o  grande 
planalto  e  este  lhe  revela  os  seus  maravilhosos  the- 
souros  auríferos,  producto  do  trabalho  geothermico  de 
milhares  de  séculos;  quando  os  bandeirantes  ousados, 
nos  valles  profundamente  denudados  pela  acção  das 
aguas,  descobrem  os  cascalhos  de  preço  e  as  gemmas 
de  valor  inestimável,  veremos  então  a  estructura  geo- 

5 


66  HISTORIA    DO   BRASIL 

lógica  actuar  com  soberania  no  determinismo  histórico 
e  impòr-se  como  fundamental  no  surgimento  dos 
factos,  por  mais  importantes  que  estes  sejam  e  por  mais 
que  pareçam  independentes  de  taes  condições. 

E  não  é  só  pela  indicação  de  metaes  preciosos  que  a 
estrucíura  geológica  do  Brasil  impressiona  a  historia 
pátria;  como  se  sabe,  ella  define  as  zonas  de  vegetação, 
dividindo  estas  em  mattas,  campos  e  mangues.  Ora, 
taes  circumstancias  appropriam  diversamente  as  terras 
a  variadas  explorações  e  por  estas  fixa-se  de  modo  dif- 
ferente  o  regimen  alimenticio  dos  povos  e  bem  assim 
industrias  e  commercio  próprios  que  determinam  acon- 
tecimentos especiaes. 

Finalmente,  foram  os  phenomenos  geológicos  que 
prepararam  o  meio  geographico;  por  elles  tomaram  as 
costas  a  configuração  que  hoje  apresentam,  accen- 
tuou-se  o  relevo  do  solo,  estabeleceram-se  as  bacias  flu- 
viaes,  definiu-se  o  clima,  etc,  por  conseguinte  o  estudo 
da  geologia  facilitará  a  comprehen são  do  meio  physico. 

Assim,  não  podíamos  deixar  de  considerar,  embora 
de  um  modo  geral,  a  estructura  geológica  do  Brasil,  da 
qual,  pelos  trabalhos  de  Eschwege,  Sellow,  Martins, 
Pissis,  d^Orbigny,  Van  Lede,  Gardner,  Lund,  Liais, 
Carlos  Hartt,  Rathbun,  Orville  Derby  e  outros  inves- 
tigadores il lustres,  já  se  pôde  ter  uma  noção  bem  de- 
finida, embora  os  mesmos  não  permitiam  ainda  a  des- 
criminação perfeita  de  todos  os  detalhes,  (l) 

Pheuoiuenos  geológicos  receutes. — Opheno- 

meno  geológico  que  se  íaz  sentir  com  mais  intensidade 
no  Brasil  é  o  da  decomposição  das  rochas  metamorphicas 
ea  transformação  destas  em  argilla,  devido  não  só  á  fre- 
quência de  chuvas  torrenciaes,  como  á  fácil  desag- 
gregação  das  referidas  rochas.  Este  phenomeno  é  um 
modificador  constante  do  aspecto  do  solo,  dando  elle 
aos  picos  graníticos  formas  extravagantes  e  pittorescas. 
A  formação  de  dunas  no  Brasil  é  muito  notável  no 
littoral  do  Rio  Grande  do  Sul  e  em  alguns  trechos  do 
littoral  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro,  pontos  estes  em 


(I)  Foram  estas  as  principaes  funtes  ás  quaes  recorremos  para  a 
elaboração  deste  capitulo:  "V\^vppeus,  Georjraphia  Physica  do  Brasil  ; 
LiAis,  Ciimats,  geologie,  faiine  et  geoíjraphie  botanique  du  Brésil ;  Cii. 
Fr.  Hartt.  Geoloc/y  and  phj/sical  f/eofiraphy  nf  Bra:;il  ;  Pissis,  La 
position  geologique  ães  terrains  de  lá  partie  australe  du  Brésil:  Orville 
Derby,  diversas  memorias  publicadas  nos  Arch.  do  Museu. 


INTRODUCÇlO  ()7 


OS  quaes  ellas  conseguiram  fixar-se  pela  vegetação  e 
constituíram  lagoas,  algumas  de  dimensões  consitle- 
raveis  como  a  lagoa  dos  Patos,  a  lagoa  Mirim  e  a  lagoa 
Mangueira. 

As  aguas  meteóricas,  além  de  degradar  as  rochas 
conforme  já  dissemos,  exerceram  e  ainda  exercem  po- 
derosa influencia  na  denudação  dos  valles  do  planalto 
central . 

O  Brasil  não  possue  vulcões  nem  geleiras,  somente 
na  região  montanhosa  de  Minas  Geraes  e  em  alguns 
outros  pontos  observain-se  phenomenos  thermaes  que 
denotam  uma  actividade  vulcânica  de  ha  muito  extincta. 
Como  phenomenos  produzidos  pela  acção  dos  seres  vi- 
vos, apenas  registra-se  o  extenso  banco  coralino  que 
íbrmou-se  parallelamente  ao  littoral  do  norte  e  a  con- 
stituição de  turfeiras  em  certos  pontos  baixos  da  costa. 

Terreuos  primitivos. — Os  terrenos  primitivos 
ou  relativos  áepocha  azoic;i,  isto  é,  contemporâneos  da 
formação  da  primeira  camada  da  crosta  terrestre,  formam 
a  base  de  quasi  toda  a  área  do  Brasil,  em  a  qual  se 
apresentam  cobertos  por  algumas  camadas  de  terra 
vegetal  ou  exhibindo-se  em  diversas  rochas  do  planalto 
central  e  nos  picos  graníticos  da  quasi  totalidade  das 
montanhas  ;  bem  assim  são  encontrados  em  todos  os 
pontos  em  que  as.  planícies  foram  profundamente  denu- 
dadas. 

Não  obstante,  porém,  essa  grande  distribuição  dos 
terrenos  primitivos  no  Brasil,  são  elles  mais  constantes 
no  littoral,  nas  duas  divisões  parallelas  da  cadeia  orien- 
tal ou  marítima,  isto  é,  na  Serra  do  Mar  e  na  Serrada 
Mantiqueira,  e  linalmente  nas  colinas  granitoides  do 
valle  formado  por  essas  mesmas  cadeias.  Dedse  núcleo 
vão  elles  gradativamente  diminuindo  para  o  norte  até  ao 
Maranhão  e  para  o  sul  até  Santa  Catharina. 

Os  terrenos  primitivos  do  Brasil  constam  de  gneiss 
stratificados,  dispostos  geralmente  em  duas  camadas 
distinctas,  e  de  rochas  metamorphicas  (1)  repousando 
súbre  estas  camadas.  Nos  primeiros,  a  camada  inferior 
compõe-se  de  gneiss  não  metalliferos  e  a  camada  supe- 
rior de  gneiss  metalliferos. 


{])  Dá-se  o  nome  de  metamorpliicaft  aqucUas  rochas  quo  apoz  a  s(,'j)a- 
ração  das  aguas,  na  origem  <la  formação  da  crosta  terrestre,  adquiriram 
sob  a  influencia  do  calor  o  de  outras  causas  ama  textura  eminentemente 
crystallina. 


(38  HISTORIA  DO  BRASIL 

Os  gneiss  não  metalliferos  exhibem-se  principal- 
mente nos  picos  da  Serra  do  Mar  e  nas  collinas  grani- 
toides  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro,  de  S.  Paulo,  do  Pa- 
raná e  do  Espirito  Santo. 

Nem  sempre  os  gneiss  inferiores  são  por  sua  com- 
posição sensivelmente  distinctos  dos  gneiss  metalliferos, 
comtudo  podem  ser  caractcrisados  pela  maior  crystalini- 
dade  que  apresentam. 

Esses  gneiss  compõem-se  de  uma  serie  de  stractos 
de  estructura  e  composição  variáveis  entre  os  quaes  se 
distinguem  gneiss  porphyroides,  (1)  leptinitos  (2)  e 
gneiss  granitoides  passando  á  syenite  (3)  ou  á  pegmatite 
(4).  Os  gneiss  ora  repousam  sobre  as  leptinites,  ora  as  lep- 
tinites  repousam  sobre  os  gneiss,  ora  qualquer  dessas 
rochas  acha-se  situada  por  cima  ou  por  baixo  de  outras 
variedades  pranitoides.  Muitas  de  taes  rochas  são  mais 
ou  menos  ricas  em  formações  granatiferas  de  gran  finís- 
sima, as  quaes,  distribuídas  em  gneiss  igualmente  finos 
dão  á  rocha  uma  estructura  schistoide  notável. 

Os  gneiss  metalliferos, 'compostos  de  gneiss  de  gran 
fina  e  schistoide,  caracterisam-se  principalmente  pela 
apparicão  de  camadas  de  quartzitos  (5)  miúdos  interca- 
lados e  subordinados  ao  gneiss  e  bem  assim  por  diversas 
substancias  metallicas,  principalmente  o  ouro,  pyritos  e 
oxydos  de  manganez  em  diversas  veias  que  os  atraves- 
sam. Apresentam-se  também  nesta  formação  camadas 
de  calcshistos  (6)  compactos  e  principalmente  micas- 
chitos.  (7)  Os  gneiss  formam  a  base  do  planalto  central  e 
determinam  a  vegetação  característica  dos  Campos  Ge- 
raes.  Os  gneiss  metalliferos  decompõem-se  com  muita 
facilidade  sob  a  influencia  dos  agentes  athmosphericos  e 
transformam-se  em  argillas  de  cór  vermelha  carregada. 


(l;  o  porphyri)  é  um  eurite  (leldspatho  alcalino  misturado  a  diversas 
rnat-Tias  estranhas)  misturado  a  crystaes  de  orihose  (feldspatho  propria- 
mente dito  ,   contendo  igualmente   fragmentos  de  quartzo  e  de  mica. 

(2)  Leptiniie  é  lun  feldspatho  alcalino. 

(3)  A  sj/enite  é  uma  rocha  composta  de  feldspatho  e  horubleade  (suba- 
tancia  mineralógica  do  grupo  dos  amphibolo,  assim  denominaaa  pela  sua 
semelliança  com  o  chifre  envernizado. 

(4)  A  pegmatite  é  um  composto  do  quartzo  e  feldspatho. 

fõ)  O  quartsito  é  uma  rocha  com  base  de  quartzo  e  de  cores  que  va- 
riam conforme  as  substancias  com  as  quaes  clle  se  acha  associado.  E'  a 
rocha  quartzosa  que  contem  mais  minereos. 

(tí)  O  calsckiste  è  uma  mistura  de  calcareo  e  de  schisto  que  facilmente 
se  divide  em  palhetas. 

{7;  O  micaschisto,  m"ãto  abundante  na  natureza  c  formado  de  mica  e 
quartzo. 


INTRODUCÇiO  f39 


As  rochas  metamorphicas  que  repousam  sobre  as 
camadas  de  gneiss  metalliferos  ou  não  metalliferos  são 
constituídas  por  fortes  camadas  de  talcitos,  quartzitos 
talciferos  scbistoides  ou  itncolumites,  quartzitos  arenoi- 
des  e  carregados  de  ferro  oligistho  ou  iiabirito,  calcareos, 
phylladios  (1)  e  anagenitas.  (2) 

Carlos  Hartt  subordinou  os  mais  antigos  dos  terre- 
nos primitivos  ao  periodo  laurenciano  e  Wappcus  attri- 
bue  os  mais  recentes  ao  periodo  huroniano.  (3) 

O  primeiro  é  pobre  em  mineraes  de  valor  econó- 
mico, porém  assim  mesmo  possue  extensos  depósitos 
de  minereos  de  ferro  e  algum  ouro  nas  suas  camadas 
superiores.  Na  parte  oriental  do  Estado  de  Minas  Geraes 
encontram-se  nelle  depósitos  de  grapbilo  (4)  e  muitas 
pedras  preciosas,  taes  como  :  crysolita,  agua  marinba, 
turmalina  verde  e  vermelha,  amethysta,  andalusita  e 
tryphana  transparentes. 

O  segundo  é  riquíssimo  em  ferro,  ouro,  topázios  e 
diamantes. 

Terrenos  priniaríoist.  —  Os  terrenos  relativos 
á  epocha  paleozóica  já  tem  sido  perfeitamente  distin- 
guidos, quer  os  que  se  referem  ao  periodo  siluriano, 
caracterisados  pela  predominância  dos  moUuscos  trilobi- 
tas,  quer  os  que  se  subordinam  aos  períodos  devoniano  e 
carbonífero. 

Encontram-se  os  terrenos  primários  no  valle  do 
Amazonas,  em  Minas  Geraes,  em  Santa  Catharina,  no 
Rio  Grande  do  Sul  eem  Matto  Grosso,  nas  visinhanças 
de  Cuyabá. 

Os  terrenos  silurianos  do  Brasil  compoem-se  de 
schistos  argilosos,  mais  ou  menos  associados  a  quartzi- 
tos ;  foram  taes  porém  as  metamorphoses  porque  passa- 
ram esses  terrenos  que  desappareceram  n'elles  quaes- 
quer  vestígios  de  fosseis. 

O  mesmo  acontece  com  os  terrenos  devonianos  que 
cobrem  uma  grande  parte  do  valle  do  Paraná;  todavia 
nas  formações  devonianas  do  Pará  e  Amazonas,  Carlos 


(1)  o  philladio  é  uma  rocha  schistosa  composta  de  silico,  de  alumina, 
dft  oxydo  de  ferro,  de  potassa  o  de  magnesia. 

(2)  A  anaçjenita  6  uma  roclia  cuja  massa  schislosa  nu  petro-silicosa 
contrin  fragmentos  de  rochns  Ígneas,  iaes  como  granito,  porphvro,  etc. 

(o)  Esta  divisTiii  do  roelias  primitivas  ou  da  eiioclia  azoiea  em  períodos 
laurenciano  e  huroniano  foi  introduzida  pelos  geólogos  norte-americanos, 

(4)  O  firaphito  é  uma  variedade  de  carvão,  misturada  de  uma  certa 
quantidade  d©  oxydo  de  ferro.  E'  do  grapbito  que  se  fazem  os  lápis. 


70  HISTORIA  DO  BRASIL 

Hartt  e  seus  companheiros  puderam  ainda  encontrar 
diversos  molluscos  fosseis, principalmente  brachiopodos 
e  lamellibrancliios. 

Terrenos  seciiudarios. — Os  terrenos  secundá- 
rios segundo  o  esboço  da  carta  geológica  do  Prof.  Or- 
ville  Derby,  occupam  no  Brasil  uma  área  immensa  nos 
sertOes  dos  estados  do  Norte  e  no  valle  do  Paraná. 

Carlos  Hartt  subordinou  ao  triassicouma  serie  de  ro- 
chas vermelhas  de  areia  compacta  que  se  vê  em  grande 
parte  do  Estado  de  Sergipe  e  que  apresentam  mais  ou 
menos  um  aspecto  característico;  no  littoral  ainda  não  se 
tem  encontrado  terrenos  pertencentes  ao  periodo  jurás- 
sico, facto  que  levou  Carlos  Hartt  a  suppôr  que  durante 
esse  periodo  a  costa  era  mais  elevada  do  que  actual- 
mente ;  os  terrenos  cretáceos  começam  algumas  milhas 
ao  sul  da  capital  da  Bahia,  e  estendem-se  com  inter- 
vallos  até  ao  Piauhy. 

X"esta  formação  tem-se  encontrado  diversos  mollus- 
cos fosseis  pertencentes  aos  géneros  Ammonita,  Cera- 
tites.  Nade  a,  etc. 

Agassiz  affirmou  que  os  terrenos  cretáceos  formam 
a  base  do  valle  do  Amazonas. 

Gardner  encontrou  em  depósitos  desta  natureza, 
existentes  no  Estado  do  Ceará,  sete  espécies  de  peixes 
das  quaes  duas  pertencentes  á  divisão  dos  ganoides. 
Chandler  encontrou  os  restos  de  um  reptil,  o  mosa^attrws, 
nas  margens  do  Rio  Aquiry,  affluentedo  Punis. 

Bacias  carboníferas. — A  zona  essencialmente  hu- 
Ihifera  do  Brasil  é  encontrada  nos  Estados  do  Paraná, 
Santa  Catharina  e  Rio  Grande  do  Sul,  entre  o  oceano  e  a 
aresta  formada  pelos  gneiss  erguidos  que  constituem  a 
beirado  grande  terraço  continental. 

As  mais  completas  informações  que  possuimos  sob^e 
essa  formação  geológica  devemol-as  a  Nathaniel  Plant 
que  fez  consciencio.so  estudo  sobre  a  jazida  hulhifera  do 
valled3  Jaguarão,  ao  sul  do  Estadodo  Rio  Grande  do 
Sul. 

No  logar  denominado  Serra  Partida,  Pl.int  diffe- 
rençou  na  iormação  carbonífera  nove  camadas  de  mate- 
riaes  distinctos  e  n'estis  encontrou  diversos  dctrictos 
fosseis. 

Três  desses  detrictos  foram  classificados  por  Carru- 
thers  debaixo  dos  nomos  de  Flemingites  Pcdroaaus^ 
Odontopteris  Plantiana  e  Noggerathio  obovoia,  A  pri^ 


INTEODUCÇÃO  71 


meira  é  uma  variedade  de  lepidodendron,  a  segunda 
um  feto,  a  terceira  uma  palmeii:a.  Além  destas  espécies 
novas,  Plant  encontrou  diversas  Calainiíes,Sphenopteris 
e  Glossopteris. 

Diz  o  Dr.  Emm.  Liais  que  o  Brasil  figurará  no 
futuro  entre  os  paizes  mais  ricos  em  hulha, 

Efflorescencias  salinas. — Em  diversos  pontos  do 
Brasil,  principalmente  nos  estados  do  norte,  em  que  a 
denudação  descobrio  grandes  camadas  calcareas  perten- 
centes ao  periodo  geológico  em  que  nos  achamos,  veri- 
ficam-se  efflorescencias  salinas,  consistindo  principal- 
mente em  carbonato  neutro  do  soda,  que  os  habitantes 
lavam,  fazendo  depois  evaporar  ao  sol  eao  fogo  a  agua 
de  lavagem  para  obter  o  sal  marinho  por  crystalli- 
sação . 

Terreno*  terciários. — Encontram-se  os  terrenos 
de  formação  terciária  nos  valles  do  alto  Parahyba  e  do 
alto  Tietê  no  planalto  central  e  nas  chapadas  dos  estados 
de  Sergipe,  Alagoas,  Pernambuco  e  Parahyba. 

Em  geral  os  terrenos  de  formação  terciária  no 
Brasil  mostrarr.-se  isolados,  dispostos  em  pequenas  ba- 
cias collocadas  a  uma  grande  distancia  uma  das  outras  e 
repousando  sobre  os  gneiss  ou  sobre  os  terrenos  se- 
cundários ou  de  transicção. 

A  mais  importante  dessas  bacias,  por  sua  extensão, 
é  a  que  se  encontra  no  Estado  da  Bahia. 

Nos  estados  do  norte  a  formação  terciária  estende-se 
horizontalmente  e  forma  chapadas  que  se  elevam  á  al- 
tura de  cerca  de  cem  metros.  «As  margens  destas  cha- 
padas, diz  Wappojus,  apresentam  para  o  mar  longas 
linhas  de  escarpas  de  areia  e  argilla  brilhante  muito  co- 
loridas, que  constituem  uma  feição  muito  característica 
da  costa  septentrional  do  paiz.» 

Os  geólogos  distinguem  na  formação  terciária  duas 
origens  ;  uma  marítima  que  é  a  dos  deposites  do  littoral 
e  outra  lacustre,  a  dos  depósitos  centraes. 

Os  depósitos  terciários  do  planalto  central,  que 
muitas  vezes  atli ngí^n  a  espessura  de  500  metros,  apre- 
sentam-se  em  stratilicação  discordante  com  os  depó- 
sitos do  poriodo  cretáceo  que  lhe  são  inferiores.  Estas 
bacias  terciárias  são  pobres  de  fosseis  e  o  Dr.  Emm. 
Liais,  lendo  pi'ocedido  a  exames  em  diversos  pontos, 
apenas  encontrou  alguns  detrictos  do  vegetaes  dycotile- 
donios. 


72  HISTORIA  DO  BEASIL 

A  rocha  dominante  em  taes  depósitos  é  o  grés,  porem 
encontram-se  também  algumas  camadas  de  argila  e 
phyllados.  O  grés  apresenta  uma  grande  variação  na  sua 
composição  a  qual,  é  inteiramente  silicosa  ou,  forte- 
mente argilosa,  micacea  ou  então  carregada  deperoxydo 
de  ferro  terroso.  Sua  estructuraé  em  certos  bancos  schis- 
toide  e  em  outros  massiça. 

A's  vezes  o  grés  é  atravessado  por  veias  de  quartzo 
compacto,  jaspe  avermelhado  ou  escuro,  dykes  e  veios 
de  diorite  ou  trapps  negros,  escuros  ou  esverdeados, 
itacolumites,  etc. 

As  bacias  terciárias  de  origem  marítima  encon- 
tram-se principalmente  entre  o  mar  e  o  planalto  conti- 
nental, desde  a  Parahyba  do  Norte  até  o  Rio  de  Janeiro, 
e  também  ao  occidentè  da  Serra  dos  Aymorós  e  no  valles 
do  Rio  Doce,  do  Alucury  e  do  Jequitinhonha.  Estes  de- 
pósitos compõem-se  de  grandes  camadas  arenosas  ou 
argilosas,  vermelhas,  amarellas  ou  matizadas  por  di- 
versas cores  e  camadas  de  grés  quartzosos  ou  argillosos, 
muitas  vezes  cimentados  peio  oxydo  de  ferro. 

Tem-nos  c|iiatei*uai*io;§.  —  Os  terrenos  qua- 
ternários enchem  os  valles  e  bacias  de  denudação  do 
planalto  central  do  Brasil  e  seus  limites,  e  bem  assim 
diversas  regiões  comprehendidas  entre  o  mar  e  o  pla- 
nalto continental,  mas  somente  nas  partes  baixas.  Estes 
depósitos  são  em  geral  constituídos  por  duas  camadas:  a 
inferior  consta  de  argilas,  areias,  margas  e  ás  vezes  cas- 
calhos e  seixos  rolados,  em  os  quaes  se  encontra  o  dia- 
mante ;  a  superior  é  constituída  por  argilas  calcariferas 
margosas,  que,  dispostas  em  slraliíicaçOes,  ás  vezes  at- 
tingem  quatrn  a  cinco  metros  de  espessura. 

Pissis  afliriiia  que  os  terrenos  de  diluvium  mos- 
tram-se  ao  norte  e  ao  sul  do  grande  massiço  formado 
pelas  rochas  primordiaes.  Na  Bahia  elle  compõe-se  de 
uma  areia  quartzoza  avermelhada  e  algumas  vezes  de 
massas  de  oxydo  de  ferro,  alternando  com  camadas  de 
cascalhos. 

Quanto  á  existência  de  depósitos  glaciaes  no  Brasil 
ainda  não  está  suliicientemente  provada,  embora  alguns 
sábios  vejam  nos  accidentes  de  certa*;  formações  super- 
ficiaes  a  acção  de  geleiras. 

Não  possuímos  specimens  abundantes  da  ílora 
quaternária  do  Brasil;  delia  têm-se  descoberto  apenas 
vestígios  quasi  indetermináveis^  todavia  essas  relíquias 


INTRODUCÇÃO  73 


foram  sufíi cientes  para  autorisar  os  geólogos  a  esta- 
belecer a  sua  analogia    com  a  flora  actual. 

Quanto  á  fauna  brasileira  quaternária,  graças 
aos  pacientes  e  eruditos  trabalhos  do  venerando  Dr. 
Lund,  é  hoje  uma  das  mais  conhecidas  nasciencia. 

Os  mais  ricos  depósitos  da  fauna  quaternária  do 
Brasil,  são  as  numerosas  cavernas  do  planalto  central  o 
entre  as  ossadas  que  n'ellas  se  encontram  predominam 
os  mamíferos,  principalmente  os  didelphos,  os  desden- 
tados, os  ruminantes,  os  pachidermes,  os  carnívoros  o 
os  roedores. 

As  espécies  de  didelphos  ou  marsupios,  que  até  hoje 
foram  encontradas  pertencem  todas  ao  grupo  dos  sa- 
riguG.s (gambás  e  outros)  e  tom  ainda  representantes  nas 
espécies  vi^^as  ou  destas  se  approximam  muito. 

Entre  os  desdentados  ou  monodelphos  (tatus,  ta- 
manduás), existia  no  Brasil  na  epocha  quaternária, 
além  de  muitas  espécies  actuaes,  o  Ccclodoa  Maqui- 
nensis,  diversos  Myrniecophacjos  e  Dasypus,  o  Eyrio- 
don  e  o  Heterodon,  o  Clamydotheriun  Humboldtii,  o 
Chlainydot/ierium  gigas,  o  Glyptodon,  o  gigantesco  Pa~ 
chyterium,  que  devia  ter  o  tamanho  de  um  boi,  o  Sctly- 
dotherium,  o  Megatherium,  o  Platyonix,  o  Mylodonte, 
preguiça  colossal,  etc. 

Entre  os  mamíferos  ungulados,  os  mais  notáveis 
eram  os  Tapirus,  os  Mastodontes,  o  cavallo,  as  Auche- 
iiias  (espécie  de  Uamas),  o  Leptotherium  (ruminante) 
uma  Antilope,  diversos  Cervas,  etc. 

Entre  os  carnívoros  destacam-sc  diversas  onças 
gigantescas,  a  hyena,  o  câo,  o  urso  e  muitos  outros. 

Dos  mammiferos  ungiiiculados  pertencentes  á 
classe  dos  roedores  existiam  entre  outros  diversos 
ratos  (Mus),  ouriços,  preás,  (Cavia).  cutias  (Dasiproc(a), 
pacas,  (Cffi)ogenis),  capivaras  (Hydrocherus)  lebres 
(lepus)  ele;  a  ordem  dos  Cheiroptcros  é  representada 
nas  cavernas  por  diversos  vampiros  (Phylostoma)  um 
Stenoderrna,  um  A^octUio,  um  Mollossus  e  um  Vesp^r- 
tilio;  a  ordem  dos  primatas  ou  quadrumanos  figura  por 
macacos  dos  géneros  Jacchus,  Cebus  e  Callithrix  e  um 
género  novo  ao  qual  o  sábio  Lund  applicou  o  nome  de 
l^rníopitheciis  braziliensi^,  grande  macaco  de  r".30  de 
altura  pouco  mais  ou  monos. 

Xa  epocha  quaternária  havia  no  Ihasil  uma  ave 
muito  maior  do  que  iodas  as  espécies  existentes.  Essa 
ave,  do  typo  do  inhambú  actual,  pertencia  corpo  este  ao 


74  HISTOEIA   DO   BRASIL 

género  Rliea\  saiirios,  ophidios,  chelonios  e  batracios 
também  se  encontram  em  estado  fóssil  nos  depósitos 
quaternários  do  Brasil. 

Historia  geológica  do  Brasil.  —  Os  estudos 
sobre  as  particularidades  estructuraes  da  crosta  e  bem 
assim  os  dados  colhidos  com  a  observação  dos  pheno- 
menos  de  dynamica  terrestre  interna  ou  externi  que 
ainda  modiíica  a  mesma  crosta  ou  alteram  a  configu- 
ração do  paiz  e  seu  relevo  não  são  por  emquanto  suífi- 
cientes  para  que  por  elles  se  possa  formular  a  historia 
geológica  da  região  que  habitamos  ;  quando  muito 
póde-se  fixar  com  um  certo  gráo  de  certeza  a  epocha  do 
surgimento  das  principaes  massas  de  terras,  o  que  já 
não  é  pouco,  attendendo  á  vastidão  da  área  que  occu- 
pamos  e  á  indifferença  com  i^ue  entre  nós  se  tem 
olhado  para  taes  cousas. 

Lund  affírmou  que  a  part3  central  do  Brasil  já 
existia  como  um  continente  extenso,  quando  as  outras 
partes  do  mundo  estavam  ainda  submergidas  no  seio 
do  oceano  universal  ou  surgiam  apenas  como  umas 
ilhas  insignificantes,  tocando  assim  ao  Brasil  o  titulo  de 
s>er  o  mais  antigo  continente  do  nosso  planeta. 

Pissis  presume  que  antes  do  periodo  siluriano  o 
Brasil  formava  uma  enorme  ilha,  cuja f(')rma  era  a  de 
uma  cllipso  allongada,  tendo  seu  grande  eixo  dirigido 
doN.  E  ao  b\  O.  Em  toda  a  sua  largura  era  atraves- 
sada por  cadeias  de  montanhas  parallelas  ao  grande 
eixoe  offerecendo  um  relevo  análogo  ao  que  apresenta 
hoje  o  inter\allo  comprehendido  entre  o  mar  e  a  Serra 
da  Mantiqueira. 

Segue-se  o  levantamento  de  uma  outra  ilha  ao  norte, 
tendo  por  centro  as  cadeias  da  Guyana.  A  America 
Septentrional  achava-se  então  quasi  toda  submersa  e 
apenas  espontavam  como  ilhas  alguns  pontos  da  sua 
costa  Occidental. 

Durante  a  epocha  paleozóica  íoram  apparecendo 
diversas  regiões  do  Brasil  e  entre  outras  o  valle  do  Ama- 
zonas, preso  á  ilha  da  Guyana,  o  qual  pertence  espe- 
cialmente ao  periodo  devoniano  ;  o  valle  do  Paraná, 
que  é  um  prolongamento  do  planalto  central,  desco- 
bre-se  durante  o  periodo  hulhifero. 

Na  epocha  de  transicção  ou  secundaria  espontam  as 
formações  cretáceas  que  hoje  se  observam  no  littoral  e 
em  bacias  isoladas,  do  Estado  da  Bahia  para  o  Norte. 

No  pçriodo  eocene,  isto  é,  no  primeiro  da  epocb^ 


INTEODUCÇlO  75 


(crciarin ,  tendo  já,  a  parle  oriental  da  America  do  Norte 
ísido  dcscobertae  formando  a  líolivia,  a  Patagonia  e  a 
Terra  do  Fogo  uma  longa  península,  «obre  a  qual  co- 
meçavam a  depositar-se  os  primeiros  sedmientos  pam- 
peanos,  as  duas  grandes  ilhas  brasileiras,  a  do  Norte  ou 
da  Guyana  que  se  estendia  até  ás  Antilhas  e  a  do  Sul  ou 
do  planalto  central  que  prolongava-se  até  o  Rio  Grande 
do  Sul,  ciminham  uma  para  a  outra,  porém  ainda  se- 
paradas dos  Andes  pelo  mar.  Só  no  fim  dos  tempos  ter- 
ciários, segundo  as  mais  prováveis  conjecturas  é  que  o 
Brasil  tomou  pouco  mais  ou  menos  a  configuração  que 
hoje  tem,  encarregando-se  depois  os  alluviões  quater- 
nários de  dilatar-lhe  as  regiões  do  littoral. 

As  modificações  da  estructura  geológica  do  paiz  e 
bem  assim  as  alterações  de  sua  configuração  fazem-se 
no  Brasil  com  uma  extraordinária  energia,  phenomeno 
que  Emm.  Liais  attribuio  á  fácil  desagregação  das 
rochas  e  á  grande  diíTerença  de  resistência  dos  diversos 
stractos,  conforme  já  falíamos  em  outro  logar.  O  aspecto 
pittoresco  de  nossas  montanhas  terminadas  em  agu- 
lhas, zimbórios,  torres  verticaes,  etc,  obedece  ás  causas 
acima  apontadas,  segundo  pensa  o  illustre  geólogo. 


CAPITULO   II 

o   IIEIO   i*HY^u;o 

Apoz  termos  considerado  na  sua  eslructura  intima 
e  na  successão  das  eras  geológicas  a  natureza  do  solo 
brasileiro,  o  qual,  por  suas  particularidades  caracte- 
risa  diversas  epochas  da  historia  de  nossa  pátria  e 
define  feições  especiaes  da  vida  nacional,  cunipre-nos 
fazer  uma  idéa  do  aspecto  physico  e  das  condições  topo- 
graphicas,  climatéricas  e  biológicas  do  paiz,  agentes 
esses  que,  de  modo  mais  incisivo  ainda  que  a  situação 
das  rochas  e  disposição  dos  stractos  sedimentares  con- 
stitutivos da  crosta  terrestre,  influem  no  determinismo 
histórico. 

O  conjuncto  d'essas  circumstancias  definem  o  meio 
physico,  cuja  acção  é  importantíssima  na  determinação 
dos  phenomenos  históricos,  embora  não  exclusiva 
como  pretende  Bukle. 

Sem  entrar  em  generalisações  que  só  podem  ser 
formuladas  no  decorrer  do  livro  e  ao  verificarem-se  os 
acontecimentos  que  as  possam  justificar  e  admittir,  são 
estes  os  factos  que  no  presente  capitulo  consideraremos: 

A  configuração  das  costas. 

O  relevo  do  solo. 

Os  rios. 

O  clima. 

A  fauna  e  a  flora. 

Osmineraes. 

A  configuração  das  cosias,  pelas  suas  reentrâncias: 
enseadas,  portos,  bahias,  golfos,  etc,  determina  a 
formação  de  núcleos  de  população  e  estimula  o  pro- 
gresso humano,  mais  ou  menos  activamente;  pela 
sua  monotonia,  natureza  abrupta  c  escassez  de  anco- 
radouros concorre  para  o  despovoamento  da  região  e. 
dilliculta  nella  o  accesso  da  civilisação.  No  Brasil 
este  accidente  geographico  tem  influído  energicanrente 
no  determinismo  histórico  :  os  pontos  da  costa  mais  re- 
cortados são  aquelles  nos  quaes  o  europeu  assenta 
os  seus  primeiros  arraiaes ;  os  portos  melhores  como 
Pernambuco,  Bahia  c  Rio  de  Janeiro  constituem-se 
nos  mais  intensos  focos  de  civilisação;  a  mediocridade 


HISTORIA  DO   BRASIL 


dos  abrigos  do  trecho  da  costa,  comprehendido  entre  a 
Bahia  e  o  Espirito  Santo,  determina  a  rui  na  das  capi- 
tanias dos  Ilheos  e  Porto  Seguro;  a  monotonia  da  costa 
do  Albardão,  no  Rio  Grande  do  Sul,  explica  o  seu 
despovoamento;  Santos,  pela  excellencia  de  seu  porto 
determina  a  expansão  da  actividade  de  Braz  Cubas  e 
de  seus  contemporâneos,  fazendo  ainda  espontar  nos 
campos  de  Piratininga  um  novo  centro  de  actividade  — 
S.  Paulo.  A  ambição  de  apoderar-se  dos  bons  portos 
provoca  os  grandes  conflictos  entre  o  portiiguez  e 
outros  povos  europeus  nos  dois  primeiros  séculos  de 
nossa  historia,  pois  as  luctas  com  os  francezes  no  Ma- 
ranhão, os  hollandezes  em  Pernambuco,  e  na  Bahia, 
os  francezes  no  Rio  de  Janeiro, os  Inglezes  em  Santos,  e 
os  Hespanhóes  na  Colónia. só  localisam-seem  taes  pontos 
pelo  íiccidente  da  configuração  da  costa.  Aqui,  como 
em  toda  a  parte,  uma  bahia  ou  um  poj'to  bem  abri- 
gado e  ofíerecendo  bom  ancoradouro  ó  sempre,  mais 
cedo  ou  mais  tarde,  um  ponto  de  convergência  de 
actividades  e  por  conseguinte  um  collaborador  enér- 
gico da  historia. 

As  montanhas,  erguendo-se  como  barreiras  natu- 
raes,  mais  ou  menos  difficeis  de  transpor,  embaraçam 
a  expansão  da  civilisação,  quer  confinando-a  em  valles 
e  planaltos,  quer  impedindo  nestes  o  ingresso  da  mesma. 
A  Serra  do  Mar  e  a  Mantiqueira  por  exemplo,  apertam 
o  europeu  durante  todo  o  século  XVI  e  parte  do  se- 
guinte na  estreita  zona  littoral ;  a  Ibiapaba  interrompe 
a  dilatação  da  catechese  jesuítica  no  Geará. 

Os  rios,  á  margem  dos  quaes  assentam-se  os  pri- 
meiros arraiaes  humanos,  ahi  armadcs  pelo  interesse 
da  pesca,  n'um  periodo  mais  adiantado  de  cultura  offe- 
recem  á  navegação  vias  próprias  á  penetração  dos  alie- 
nígenas no  interior  das  terras.  O  gigantesco  curso  d'agua 
do  Amazonas  por  exemplo,  permitte  a  memorável  explo- 
ração de  Orellana  nos  albores  do  século  XVI,  quando 
no  resto  do  paiz  não  se  tinha  ainda  podido  transpor 
a  Serra  do  Mar  e  cedo  facilita  a  introducção  dos  por- 
tuguezes  nas  densas  mattas  do  nosso  far-west.  O  S. 
B^rancisco,  o  Parahyba,  o  Tietê  indicam  os  primeiros 
roteiros  para  as  regiões  do  planalto. 

O  clima,  actua  moditicando  os  typos  ethnicos  exó- 
ticos, individualisando  as  raças  formadas  no  paiz.  faci- 
litando ou  difíicultando  a  adaptação  das  mesmas  ao 
novo  meio  e  definindo  a  salubridade,  cujas  boas  ou  más 


INTRODUCÇlO  70 


condições  estimularão  ou  atrophiarão  o  desenvolvimento 
histórico.  Ao  clima  devemos  no  Brasil  a  differenciação 
physica  do  typo  brasileiro,  o  qual,  depois  de  três  gera- 
ções, embora  seja  branco  puro  ou  preto  extreme  de  cru- 
zamento, não  pode  mais  ser  confundido  com  o  europeu 
ou  com  o  africano  do  qual  originou  se.  E'  ainda  o 
clima  que  propulsiona  o  desenvolvimento  de  certos  lo- 
garcs,  como  temos  um  exemplo  moderno  em  Juiz  de 
Fora,  Barbíicena  e  outros  pontos,  ou  transforma  em 
ruinas  povoações  que  outro'ora  floresciam  como  Macacú 
e  tantas  outras,  sem  contarmos  a  differenciação  agrícola 
que  também  lhe  obedece,  mas  que  subordinamos  ao 
facto  seguinte. 

A  fauna  e  a  flora  determinam  variadas  condições 
biológicas,  fixam  a  alimentação,  fomentam  industrias 
e  por  todos  estes  motivos  impressionam  a  historia  de 
modo  diverso.  Conforme  o  seu  caracter  farão  do  flu- 
minense um  agricultor  e  do  rio-grandense  um  criador, 
especialisando  por  essa  forma  as  industrias.  As  mes- 
mas forção  o  habitante  de  certas  regiões  a  fazer 
predominar  em  sua  alimentação  as  féculas,  as  hor- 
taliças que,  segundo  os  biologistas,  predispõem  os 
povos  á  debilidade  physica,  ou  determinarão  os  habi- 
tantes de  outras  a  procurar  na  carne  a  base  de  sua  ali- 
mentação, pelo  que  se  tornarão  mais  robustos. 

Os  mineraes  constituem  fontes  permanentes  ou  pro- 
visórias de  actividade  industrial  e  commercial  da  qual 
derivarão  factos  importantes,  como  temos  exemplo  fácil 
nos  notabilissimos  successos  que  tiveram  por  theatro  a 
região  aurífera  de  Minas  Geraes,  no  século  XVII,  todos 
mais  ou  menos  subordinados  á  mineração  do  ouro. 

Posiçiio  o  líniitesi. — O  Brasil  acha-se  situado 
entre  5"  10' N  e33"  4õ'  S,  abstrahindo  das  ilhas  de  Fer- 
nando de  Noronha  e  Trindade,  entre  3°  19'  26"  E  e  30° 
58'  26"  O  do  Rio  de  Janeiro. 

Limita  a  SE.,  e  NE.  com  o  Oceano  Atlântico,  ao  N. 
com  as  Guyanas  Franceza,  Hollandeza  e  Ingleza  e  Ve- 
nezuela ;  ao  NO.  O  o  SO.  com  a  Colômbia,  Peru, 
Bolivia,  Paraguay  e  Republica  Argentina ;  ao  sul  com 
a  Republica  do  Úruguay  actualmente  e  com  o  estuário 
platino  outr'ora. 

A  coMta. — A  configuração  geral  do  Brasil  é  a  de 
um  triangulo  e  dois  terços  de  suas  fronteiras  são  for- 
madas por  costas  marítimas,   as  quaes,  embora   pouco 


80  HISTORIA  DO  BRASIL 

recortadas,  apparecem  ainda  assim  com  grande  numero 
de  excelleníes  portos. 

Do  Cabo  de  Orange  na  foz  do  Oyapok  até  á  embo- 
cadura do  Amazonas,  a  praia  baixa  e  coberta  de  man- 
gues é  pobre  de  portos,  não  sendo  os  melhores  acces- 
siveis  ás  grandes  embarcações. 

A  foz  do  Amazonas  com  as  ilhas  que  nellas  se 
acham  formadas  pelos  sedimentos  transportados  polo 
rio  estende  se  por  180  milhas. 

Da  ponta  Tijoca  na  margem  meridional  do  Ama- 
zonas até  ao  cabo  Gurupy,  a  praia  é  baixa,  coberta  de 
dunas  o  geralmente  sem  recortes,  possuindo  apenas  as 
pequenas  bahias  de  Pria  Unga  e  de  Caité. 

Do  cabo  Gurupy  até  o  morro  de  Itacolumy,  a  costa 
descreve  uma  curva  para  S.E.  e  apresenta-se  rendada, 
com  alguns  morros  pouco  elevados,  em  parte  cobertos 
de  arvores.  N"este  trecho  encontram-se  a  enseada  de  Tu- 
ryassú,  a  bahia  de  Cabellos  da  Velha  e  a  de  Cumá.  Ilhas 
baixas  e  pouco  accessiveis  por  causa  dos  bancos. 

A  E.  do  morro  Itacolomy  apparece  uma  grande 
bahia,  a  de  S.  Marcos,  que  banha  a  ilha  do  Maranhão 
onde  desemboca  a,  Itapicurú,  sendo  fechada  pela  parte 
de  leste  pela  ilha  de  Sant'Anna.  S.  Luiz,  na  ilha  do  Ma- 
ranhão é  um  bom  porto. 

Da  ilha  do  Maranhão  á  barra  do  Tutoya,  a  mais 
Occidental  das  bocas  do  Parnahyba,  a  praia  é  baixa  e  es- 
téril, pelo  qae  lhe  deram  o  nome  de  Lençóes. 

Da  barra  do  Tutoya  à  barra  de  Iguarassú,  que  é  a 
mais  oriental  das  seis  bocas  do  Parnahyba,  a  praia  é 
baixa  e  innunda-se  no  tempo  das  chuvas. 

A  barra  do  Tutoya  offerece  bom  porto  porém  seu 
accesso  é  diíHcii  por  causa  das  forte>  correntes  de  E., 
das  altas  marés  e  das  neblinas  constantes. 

Da  barra  do  Iguarassú  á  ponta  do  Touro  que  é  a 
ponta  mais  norte  oriental  do  Bn^sil,  a  praia  descreve 
leves  curvas  e  é  geralmente  baixa  e  arenosa  com  al- 
gumas dunas  já  fixadas  por  vegetação  rasteira. 

Da  Ponta  do  Touro  ao  cabo  de  S.  Roque  a  costa  di- 
rige-se  para  S.E.  e  é  árida  e  monótona,  porém  do 
cabo  de  S.  Roque  até  Olinda  já  apresenta-se  mais  va- 
riada. Este  trecho  possue  dois  portos  notáveis,  o  do 
Natal  e  o  da  Parahyba.  E'  ahi  que  começa  o  estreito 
banco  de  coral  que  se  estende  com  intervallos  até  a 
Bahia,  ás  vezes  encostado  ao  littoral  e  ás  vezes  distante 


INTRODUCÇlO  81 


300  oa  400  metros.  Vé-seahi  uma  ilha  importante,  a  de 
Itamaracá, 

De  Olinda  para  o  sul  apparece  o  magnifico  porto 
do  Recife,  um  dos  melhores  do  Brasil. 

De  Pernambuco  à  Bahia  a  costa  apresenta-se  mais 
variada  do  que  para  o  norte  porém  em  geral  é  baixa, 
sendo  o  cnbo  de  Santo  Agostinho  a  saliência  mais  im- 
portante. O  melhor  porto  deste  trecho  é  o  do  Maceió. 

Na  Bahia  abre-se  a  bahia  de  Todos  os  Santos,  a  qual 
se  aprofunda  50  milhas  para  o  norte,  com  20  milhas 
de  largura  em  alguns  pontos. 

Entre  a  Bahia  de  Todos  os  Santos  e  o  grupo  de  re- 
cifes e  bancos  de  coral,  conhecidos  pelo  nome  de  Itaco- 
lumis,  a  costa  toma  primeiramente  a  direcção  N.-S.  eo 
seu  contorno  é  pouco  variado,  embora  desaguem  nella 
diversos  rios.  As  reentrâncias  mais  notáveis  são  a  ponta 
do  morro  de  S.  Paulo,  a  embocadura  do  Rio  das  Contas, 
a  bahia  dos  llhéos,  Olivença,  Cannavieiras,  Belmonte, 
Santa  Cruz,  Porto  Seguro  e  a  barra  do  Cramimuan.  As 
saliências  mais  importantes  são  o  cabo  loacema  e  o 
Monte  Pascoal. 

Dos  Itacolomis  ao  Espirito  Santo  a  costa  corre  pri- 
meiramente na  direcção  de  N.-S  e  depois  pende  para 
S.  O,  tomando  em  seguida  a  direcção  S.S.O.  Primeira- 
mente é  baixa,  excepto  entre  o  Prado  e  Camaxatiba,  onde 
surge  uma  vertente  escarpada  ;  neste  ponto  o  fundo  do 
mar  cleva-se  e  dá  origem  aos  perigosos  Abrolhos  ;  do 
Rio  Doce  para  o  sul  a  costa  torna-se  mais  accidentada. 
Os  pontos  mais  notáveis  são  a  barra  do  Prado,  a  ponta  da 
Baleia,  Caravellas,  Porto  Alegre,  S.  Matheus,  Santa 
Cruz,  barra  do  Almeida  e  finalmente,  o  porto  do  Espirito 
Santo,  o  melhor  que  se  encontra  entre  a  Bahia  e  o  Rio 
de  Janeiro 

Db  Espirito  Santo  ao  Rio  de  .Janeiro,  a  costa  apre- 
senta uma  série  de  altas  montanhas,  diminuindo  o 
fundo  do  mar  á  medida  que  se  approxima  da  costa. 

Próximo  ao  cabo  de  S.  Thomé  existe  um  banco  de 
areia  perigosc.  A  costa  até  S.  Thomé  descreve  uma 
curva  concava  pouco  pronunciada.  De  Cabo  Frio  até  a 
Ponta  Negra  a  cesta  é  uma  praia  arenosa  e  estéril  que 
separa  o  Oceano  das  lagunas  do  interior;  da  Ponta 
Negra  por  diante,  apresenta  despenhadeiros  rochosos. 

Os  pontos  principaes  d'este  trecho  são  o  golpho  de 
Guarapary,  Benevente,  Piuma,  a  ilha  dos  Francezes,   a 

6 


82  HISTORIA   DO   BRASIL 

barra  do  Itabapoana,  S.  João  da  Barra,  o  cabo  de  São 
Thomé,  a  barra  de  S.  João,  o  cabo  dos  Búzios,  Araru- 
ama,  Cabo  Frio,  a  Ponta  Negra,  as  ilhas  de  Maricá, 
Itaipú  e,  finalmente,  a  importantissima  bahia  do  Rio  de 
Janeiro,  á  entrada  da  qual  se  vèm  diversas  ilhas  rocheas. 

Do  Rio  de  Janeiro  à  ponta  de  Guaratiba  a  praia  é 
primeiramente  montanhosa  e  escarpada  e  depois  arenqsa 
até  Sepetiba  ;  da  bahia  de  Sepetiba  por  diante,  a  praia 
acompanha  os  contornos  da  Ilha  Grande  e  é  alta  e  co- 
berta de  mattas  até  o  porto  de  Santos,  descrevendo  uma 
curva  que  só  termina  na  ilha  de  Santa  Catharina.  Este 
treclio  da  costa  doBrasil  éomais  accidentado.  Os  pontos 
notáveis  são  a  ponta  da  Guaratiba,  a  ilha  da  Marambaia, 
a  bahia  de  Sepetiba,  a  Ilha  Grande,  a  ilha  de  S.  Sebastião, 
o  porto  de  Santos,  a  praia  de  Iguape,  a  bahia  de  Para- 
naguá, a  ilha  do  Mel,  o  cabo  João  Dias,  a  ilha  de  Santa 
Catharina  e  o  cabo  de  Santa  Martha. 

Do  cabo  de  Santa  Martha  até  á  barra  do  Rio  Grande 
a  praia  é  uniíorme  e  a  única  reentrância  notável  é  o 
porto  das  Torres;  depois  toma  a  fórmade  um  isthmo 
estreito  formado  de  dunas  que  separam  o  oceano  da 
Lagoa  dos  Patos. 

Da  embocadura  do  Rio  Grande  até  o  rio  Chuy,  a 
costa  que  teui  ahi  o  nome  de  Albardão  é  monótona  e  de 
approximação  perigosa  por  causa  dos  bancos   de  areia. 

Relevo  do  solo. — O  Brasil  em  sua  maior  parte  é 
constituido  por  um  extenso  planalto  central  de  300  a  1000 
metros  de  altura.  Esse  planalto  é  limitado  ao  norte  e 
oeste  pelas  depressões  continentaes  do  Amazonas  e  Pa- 
raguay,  que  quasi  se  ligam  pelo  valle  do  Madeira  e  de 
seu  tributário  o  Guaporé. 

Além  do  planalto  central  constitue  tambcmo  Brasil 
uma  parte  do  planalto  da  Guyana,  a  maior  parte  da 
depressão  do  Amazonas  e  a  parte  superior  da  depressão 
do  Paraguny.  Finalmente,  possue  uma  região  marítima 
apertada  entre  o  oceano  e  a  beira  oriental  do  grande 
planalto  central. 

O  planalto  central  consta  principalmente  de  cha^ 
padões  profundamente  excavados  pelos  valles  de  nume- 
rosos rios.  Pelo  lado  de  leste  cerca-oa  cadeia  Oriental  ou 
Marítima  desde  as  proximidadi'S  do  cabo  de  S.  Roque 
até  quasi  os  limites  meridionaes  do  paiz  ;  ao  centro  do 
mesmo  planalto  estende-se  a  cadeia  Central  ou  Goyana, 
que  partindo  do  centro  de  Goyaz,  junta-se  á    cadeia 


INTRODUCÇlO  83 


central   por  uma  lombada   transversal  que  se  estende 
para  oeste,  atravez  do  sul  de  Minas. 

A  cadeia  oriental  ou  marilima  nos  estados  meri- 
dionaes  forma  duas  divisões  parallelas,  occuppando  uma 
zona  longa  e  de  cercado  20  léguas  na  sua  maior  largura; 
estas  divisões  são  a  Serra  da  Mantiqueira  e  a  Serra  do 
Mar,  representando  a  primeira  que  é  a  mais  oriental,  a 
linha  culminante  da  cadeia;  ao  norte  do  Rio  de  Janeiro 
a  Mantiqueira  passa  para  um  ramal  que  toma  o  nome  de 
Serra  do  Espinhaço  e  prolonga-se  até  á  margem  oriental 
da  bacia  du  s.  Francisco,  tendo  por  pontos  culminantes  o 
Itacolomi,o  Caraça,,  o  Pit  dade  e  o  Itambé.  A'  medida  que 
esta  cadeia  vai  avançando  para  o  norte,  as  montanhas 
váo  se  tornando  mais  baixas  e  quando  chega  ao  São 
Francisco  são  apenas  representadas  por  pequenas  serras 
e  cabeços  isolados. 

A  cadeia  central  também  apresenta  duas  divisões 
distinctas:  a  da  Serra  da  Canastrão  a  da  Matta  da  Corda, 
que  se  prolonga  na  direcção  septentrional,  desde  as  ca- 
beceiras do  S.  Frfmcisco  até  à  margem  meridional  do 
Paracatú,  e  a  das  montanhas  do  sul  de  Goyaz  que  se 
estendem  na  direcção  N.  E,  entre  as  cabeceiras  doTocan- 
tins-Araguya  e  do  Paraná.  O  ponto  culminante  da 
primeira  divisão  é  a  serra  da  Canastra,  onde  nasce  o 
S.  Francisco  e  o  da  segunda,  os  montes  Pyrinêos,  junto 
a  Goyaz. 

.  O  planalto  central  formado  por  essas  montanhas  é 
constituído  por  quatro  grandes  chapadões:  os  das  bacias 
do  Paraná,  An;azonas,  S.  Francisco  e  Parnahyba. 
Todos  acham-se  profundamente  cortados  pelos  vallesdos 
rios  e  por  isso  apresentam  aspecto  bastante  accideníado 
ostentando  muitos  cabeços  degradados  e  escarpas  pro- 
duzidos pela  denudação. 

A  parte  brasileira  do  planalto  goyano  é  ainda  pouco 
conhecida.  Nella  encontram-se  montanhas  de  mais  de 
2000  metros  de  altura,  derivando  das  mesmas  diversos 
rios  que  vão  desaguar  no  Amazonas . 

A  depressão  do  Amazonas  tem  100  a  200  milhas  de 
largura  na  parte  inferior  do  rio  e  vai  gradualmente 
alargando  na  parte  superior,  sendo  o  rio   margeado  por 

f)lanicies  alluviaes,  sujeitas  a  inundação  e  cobertas  de 
agos  rasos  e  canaes  latteraes.  As  terras  mais  elevadas 
não  chegam  a 300  metros  do  altura. 

A  parte  brasileira  da  depressão  do  Paraguay  é  con- 
stituida  por  immensas   planícies  situadas  a   algumas 


84  HISTOEIA  DO  BRASIL 

centenas  de  metros  abaixo  do  nivel  geral  das  terras  do 
planalto,  e  pelos  cabeços  e  contrafortes  que  as  rodeiam. 
Em  certos  pontos  essas  planicies  inundam-se  na 
estação  chuvosa. 

A  região  marítima  consta  de  uma  facha  de  terras 
baixas,  situadas  entre  o  oceano  e  a  beira  do  planalto. 
Essa  facha  é  em  geral  estreita.  Ao  sul  do  Rio  de 
Janeiro  é  constituída  por  planicies  arenosas  onde  se  en- 
contram lagunas  c  também  contrafortes  e  cabeços  degra- 
dados do  planalto;  ao  norte  do  Rio,  além  dos  »;ontrafortes 
vèm-se  morros  e  chapadas  de  formação  particular. 

Rios  c  vertentes .  -  O  systema  orographico  do 
paiz  e  a  estructura  geral  da  America  do  Sul  dão  as  fei- 
ções hydrographicas  do  Brasil. 

Além  dos  planaltos  brasileiro  e  goyano  uma  outra 
massa  de  terras  altas  influe  na  formação  das  bacias  flu- 
viaes,  esta  massa  é  a  do  planalto  andino,  quasi  nas 
costas  do  Pacifico. 

A  mais  importante  das  bacias  hydrographicas  do 
Brasil,  a  do  Amasonas,  recebe  aguas  dos  três  planaltos  ; 
a  bacia  do  Prata  que  é  a  segunda  em  importância  re- 
cebe aguas  do  planalto  central  e  do  planalto  andino,  a 
bacia  do  Orenoco  recebe  aguas  do  planalto  goyano  e  do 
planalto  andino. 

Além  d'estas  bacias  que  podem  ser  chamadas  con- 
tinentaes,  pois  interessam  a  mais  de  um  dos  planaltos 
que  compõem  o  continente,  existem  as  bacias  orientaes 
formadas  pelos  rios  que  recebem  agua  de  um  só  planal- 
to e  vão  directamente  desaguar  no  Atlântico. 

As  feições  crographicas  que  já  mencionamos  ao 
tratar  das  montanhas  determinam  a  divisão  das  aguas. 
A  bacia  do  Amazonas  é  formada  por  este  gigante 
iluvial  e  pelos  seus  numerosos  tributários;  a  do  Prata  é 
formada  pela  descarga  do  aguas  da  bacia  do  Uruguay, 
do  Paraná  e  do  Paraguay ;  as  bacias  orientaes  são  con- 
stituidas  por  diversos  rios  entre  os  quaes  os  principaes 
são  o  Gurupy,  o  Parnahyba,  o  S.  Francisco  que  é  o 
maior  de  todos,  o  Itapicurú,  o  Paraguassú,  o  rio  das 
Contas,  o  Rio  Pardo,  o  Jequitinhonha,  o  Mucury,  o  rio 
Doce,  o  Parahyba,  o  Itajahy,  o  Tubarão,  o  Guahyba,  o 
Jacuhy,  o  Cahy,  o  Gravatah}^  o  Camaquan,  o  S.  Lou- 
renço, o  S.  Gonçalo,  o  Piratinin  e  o  Jaguarão. 

Clima,  veutus,  estações  o  saliibridaile. — 
O  clima  do  Brasil  na  região  littoral  é  geralmente  quente, 
e  à  medida  que  se  sobe  do  Rio  de  Janeiro  para  o  norte 


INTRODUCÇÃO  í^n 


vae  augmentando  o  calor  e  a  humidade,  porém  em  grão 
muito  pequeno;  do  Rio  de  Janeiro  para  o  sul  tor- 
na-se  mais  frio  e  socco. 

Ao  norte  e  no  interior,  o  clima  é  quente  e  a  tempe- 
ratura igual  e  húmida;  ao  sul,  no  interior,  o  clima  é 
frio  e  os  contrastes  das  estações  accentuam-se  mais. 
N'esta  ultima  região,  principalmente  de  Minas  Geraes 
parao  sul.caheàs  vezes  neve,  porém,  nem  o  phenomeiío 
é  muito  prolongado,  nem  modifica  sensivelmente  a  ve- 
getação. 

bo  Pará  até  Alagoas  os  ventos  dominantes  de  Se- 
tembro a  Março  sopram  do  S.  e  S.  E.;  de  Alagoas  até 
Cabo  Frio,  quando  o  sol  está  no  hemispherio  Norte, 
dominam  no  mar  os N.  N.  E.  e  L.  e  ao  longo  da  terra  os 
ventos  do  Norte  ;  quando  o  sol  está  no  hemispherio  Sul 
apparece  no  mar  oL.  e  oS  Eeem  terra  o  S.;  de  Cabo 
Frio  para  o  sul  apparecem  na  costa  ventos  de  S.  E.  para 
S.  O.,  semelhantes  aos  pampeiros  do  Prata,  e  também 
oN.  Ò.,  que  ainda  é  mais  terrível,  porém  de  pouca 
duração . 

O  norte  da  costa  é  ás  vezes  açoutado  pelas  rajadas 
locaes,  rebojos  e  sudoestes  o  em  certos  mezes  sopram  ahi 
ventos  intensos  e  elevados. 

Na  zona  littoral  distinguem-se  apenas  duas  esta- 
ções :  o  inverno  ou  estação  secca  que  vae  de  Abiil  a 
Setembro  eo  verão  ou  estacão  chuvosa  que  com  prebende 
os  outros  mezes.  As  chuvas  são  frequentes,  ás  vezes 
mesmo  na  estação  chamada  secca;  na  zona  interior  do 
norte  não  ha  differença  notável  entre  as  estações,  que 
apenas  se  distinguem  pftla  frequência  e  intensidade  das 
chuvas,  porém  na  zona  meridional  interior  o  contraste 
accentua-se  com  mais  ou  menos  vivacidade,  conforme  a 
configuração  local  dos  terrenos. 

Em  certos  pontos  do  interior  a  estação  secca  pro- 
longa-se  muito,  transformando-se  por  isso  em  verda- 
deira calamidade  para  os  povos,  principalmente  no 
nordeste  do  Brasil.  Na  Bahia  e  em  xMinas  as  estações 
são  muito  regulares,  reinando  a  chuva  sem  interrupção 
de  Novembro  a  Maio. 

As  condições  de  salubridade  variam  muito,  porém, 
em  geral  o  Brasil  é  saudável,  principalmente  na  zona 
interior. 

Não  possue  nenhuma  moléstia  que  lhe  seja  exclu- 
siva, porém,  púde-se  observar  n'ello  todas  as  manifes- 
tações nosologicas,  em   consequência  da  sua  grande 


86  niSTOBIA  DO  BRASn. 

extensão  e  diversidade  do  seu  solo  sob  o  ponto  de  vista 
geológico,  orographico,  hydrographico,  metereologico  e 
climatérico,  bem  como  pela  heterogeneidade  ethnica  de 
seus  habitantes. 

Das  moléstias  endémicas  as  que  se  propagaram 
mais  foram  as  de  natureza  paludosa,  sendo  ellas  que 
concorrem  para  a  insalubridade  e  despovoamento  de 
certos  logares. 

A  flora. — A  nossa  flora  é  riquíssima,  e  variando 
dt;  accôrdo  com  o  clima  e  com  as  condições  topogra- 
phicas  e  geológicas  de  cada  região. 

A  zona  littoral  e  a  depressão  do  Amazonas  são  os 
pontos  em  que  ella  se  ostenta  com  mais  viço ;  a  região 
do  planalto  central  é  a  da  sua  maior  pobreza. 

Distinguem  os  botânicos  três  grandes  zonas  de 
vegetação:  a  zona  equatorial,  a  zona  littoral  e  a  zona  do 
sertão. 

A  zona  equatorial,  isto  é,  a  do  valle  do  grande  rio 
Amazonas,  caracterisa-se  por  suas  densas  florestas  de 
arvores  colossaes  e  pela  exhuberancia  da  vegetação, 
produzida  pelo  excessivo  ca^or  e  grande  humidade  da 
região.  N'es?a  flora  esplendida  predominam  as  pal- 
meirasj  as  bombaceas,  as  hypocrataceas,  as  avicennias, 
as  bignoniaceas,  as  myrtaceas,  o  cacauseiro,  a  salsa- 
parrilha, as  leguminosas,  as  rubiaceas,  as  lourineas, 
etc. 

As  arvores  são  enredadas  de  cipós  e  trepadeiras 
variadíssimas  que  dão  ás  mattas  feição  muito  pittoresca, 
porém  não  se  observam  ahi  os  cactos,  os  fetos,  as  mal- 
vaceas.  as  borragineas,  ,is  cruciferas,  as  umbelliferas  e 
as  Jabiadas.  Nas  terras  mais  elevadas  a  vegetação  perde 
o  caracter  gigantesco  que  tem  nos  logares  baixos.  No 
Maranhão  já  apparecem,  cercadas  p^las  mattas,  exten- 
sas campinas,  e  nas  visinhanças  do  mar.  Desse  Estado 
por  diante  até  Alagoas,  estendem-se  longas  planícies 
de  areia  ou  dilatados  paúes  cobertos  de  mangues  sempre 
verdes. 

A  zona  de  vegetação  littoral,  propriamente  dita, 
comera  na  barra  do  S.  Francisco  e  estende-se  até  Santa 
Catharina,  apertada  entre  o  oceano  e  as  montanhas  que 
beiram  o  planalto  central.  Os  mais  bellos  trechos  de 
vegetação  encontram-se  nos  E-tados  do  Espirito  Santo. 
Rio  de  Janeiro  e  S.  Paulo,  onde  as  florestas,  embora 
não  apresentem  arvores  tão  gigantescas  como  as  da 
flora  amazonica,  possuem  no  emtanto  mais  variedades 


INTRODUOÇÂO  87 


de  espécies  botânicas.  Não  obstante  terem  as  arvores 
porte  mais  reduzido  ainda  assim  vêm-se  n'esti  zona 
alguns  jacarandás,  sapucaias,  perobas,  óleos,  jequi- 
tibás,  sucupiras  e  outras  arvores  de  dimensões  verda- 
deiramente colossaes.  Os  cactaces  e  as  outras  familias 
vegetaes  que  não  se  encontram  no  valle  do  Amazonas, 
vêm-se  largamente  representada  na  zona  littoral. 

A  zona  do  sertão,  peculiar  ás  terras  altâs  do  inte- 
rior do  paiz,  é  caracterisada  botanicamente  pela  vege- 
tação rasteira  que  dá  a  forma  aos  campos  geraes,  os 
quaes  occupam  uma  extensa  área  do  planalto.  Nos 
valias  dos  rios  e  nos  baixos  húmidos  a  vegetação  apre- 
senta-se  sob  aspecto  llorestal,  porém  as  mattas  são 
pouco  densas  e  as  arvores  têm  pequeno  crescimento. 
No  declive  occidental  do  planalto,  islo  é,  nos  valles  do 
Paraguay  e  Guaporé,  reapparecem  as  grandes  llorestas, 
embora  não  sejam  tão  magestosas  como  as  do  Ama- 
zonas. 

Nos  sertões  propriamente  ditos  predominam  as 
gramineas;  as  arvores  e  arbustos  apparecem  na  encosta 
dos  morros  e  lambem  formando  capões,  ilhados  no 
macegal,  ou  estendendo-se  em  catingas,  mais  ou  menos 
longos.  Segundo  a  conformação  do  terreno  dâ-se  as 
terras  do  planalto  os  nomes  de  campos  geraes,  taboleiros 
e  echapaci  IS,  distingui ndo-se  por  caracteres  próprios  a 
a  vegetação  que  se  desenvolve  em  cada  uma  dessas 
modificações  topographicas. 

A  fauna.  —  A  fauna  do  Brasil  é  de  uma  riqueza 
assombrosa  e  poucas  sã  i  as  espécies  animaes  do  globo 
que  não  tenham  aqui  os  seus  representantes.  Assim 
como  a  flora,  a  fauna  do  Brasil  pôde  ser  considerada  em 
três  zonas  diversas:  a  da  bacia  do  Amazonas,  a  da  re- 
gião das  florestas  do  littoral  c  a  da  zona  do  sertão,  ca- 
racterisando-se  cada  uma  por  espécies  que  lhe  são  pró- 
prias. 

O  Brasil  não  possue  os  grandes  mammiferos  dos 
outros  continentes,  sendo  os  maiores  a  onça  e  a  anta  ; 
igualmente  íaltam-lhcos  mammiferos  insectivoros  (tou- 
peiras, musaranhas.  etc. )  c  da  ordem  dos  ruminantes  só 
possue  o  veado;  todas  as  outras  espécies,  porém,  são 
largamente  representadas  e  muitas  lhe  são  exclu- 
sivas. 

Relativamente  ás  aves  é  o  mais  rico  paiz  do  mundo, 
tanto  na  variedade  das  formas  como  na  diversidadt»  das 
plumagens.  Em  todas  as  outras  dependências  do  reino 


88  HISTORIA  DO  BRASIL 

animal  disputa  com  qualquer   outra  região  a  preemi- 
nência. 

Os  mineraes.  — O  Brasil,  pelas  condições  da  sua 
estructura  geológica,  estadêa  a  mais  notável  das  rique- 
zas mineralógicas,  a  qual  muito  contribuio  para  o  seu 
rápido  povoamento  e  progresso  ao  contrario  do  que 
aconteceu  com  as  outras  colónias  portuguezas  na 
Africa  e  na  Ásia;  as  quaes,  não  estimulando  o  européopor 
grandes  thesouros  mineraes  foram  por  elle  pouco  cui- 
dadas e  hoje  se  acham  em  completa  decadência. 

Entre  as  pedras  preciosas  encontram-se  diamantes, 
no  districto  do  Serro,  em  Minas,  em  Sincorá,  na  Bahia 
e  bem  assim  em  Goj^az,  em  Matto  Grosso  e  nas  rochas 
itacolumiticas  do  Paraná.  Ainda  em  Minas  Geraes  e  em 
alguns  outros  Estados  encontt'am-se  esmeraldas,  ru- 
bis, saphiras,  topázios,  aguas  marinhas.  As  granadas  e 
as  amethystas  são  communs  em  todo  o  Brasil. 

Dos  minereos  metalliferos  que  possuímos  os  mais 
importantes  são: 

O  ouro  que  se  encontra  em  quasi  todo  o  paiz  e 
principalmente  em  Minas  Geraes,  Govaz,  Matto  Grosso, 
Rio  Grande  do  Sul  (di>tricto  de  Lavras),  Paraná,  São 
Paulo,  Ceará  (vertentes  da  Ibiapaba,  Serra  da  Manga- 
beira,  etc.)  Maranhão  (districto  de  Turyissú)  e  nas  for- 
mações quartzosas  do  Rio  Grande  do  Nort '.  e  da  Para- 
hyba;  em  Minas  o  ouro  é  as  vezes  encontrado  junta- 
mente com  a  p, atina  e  com  o  iridium  nos  alluyiões  e 
também  combinado  con  otelluro  e  com  o  palladium  em 
certos  veios. 

O  bismutho  existe  em  S.  Vicente  e  os  pyritos  arse- 
nicaesnos  arredores  de  Marianna  (Minas  Geraes). 

A  prata  existe  em  Minas  (Abaete),  S  Paulo  (Soro- 
caba e  outros  pontos),  Bahia  (margens  do  S.  Francisco) 
e  talvez  no  Ceará. 

Encontra-se  o  cobre  em  Matto  Grosso,  Rio  Grande 
do  Sul,  Minas,  Bahi.i,  Ceará,  Maranha');  o  estanho  ap- 
parece  em  Minas  (mii-gens  d.)  Paraopeba),  Rio  de  Ja- 
neiro o  segundo  se  presume  no  Ceará  e  em  Santa 
Catharina;  o  chumbo  abunda  em  S.  Paulo,  Minas, 
Bahia,  Parahyba,  Ceará  e  Santa  Catharina;  o  antimonio 
eai  Minas  e  no  Paraaá;  a  blenda  (sulfuro  de  zinco)  no 
Ceará;  o  arsénico  em  Minas,  acompanhando  a  pyrite 
nas  minas  de  ouro,  e  constituindo  a  scorodite  por  sua 
combinação  com  o  ferro. 


^ 


INTRODUCÇÃO  89 


O  ferro  ó  abundantissimo  no  Brasil  e  segundo  o 
Conde  de  la  Hure  (1)  por  si  só  poderia  prover  ás  neces- 
sidades dessa  substancia  em  todo  o  globo;  a  montanha 
de  Itabira,  em  Minas,  ó  formada  de  ferro  magnético, 
outras  montanhas  no  mesmo  Estalo  são  constituídas  de 
ferro  ohgistho  e  ferro  micaceo.  Existem  também  jazidas 
de  ferroem  S.  Paulo,  Paraná,  Matto  Grosso  e  em  alguns 
Estados  do  Norte. 

As  rochas  mais  notáveis  são  os  granitos,  os  quar- 
tzitos, os  porphyros,  o  mármore  utilisado  nas  con- 
strucçães,  e  bem  assim  diversas, espécies  de  calcareos. 
Tanto  as  rochas  graníticas  como  as  calcareas  encon- 
tr.im-se  em  quasi  todos  os  Estados. 

E'  também  abundante  o  nosso  paiz  em  nrgillas 
coloridas  e  brancas  e  em  argillas  refractárias.  O  kaolin 
ou  barro  de  porcellana  também  é  encontrado. 

O  carvão  de  pedra  existe  no  Rio  Grande  do  Sul 
(Rio  dos  Ratos  e  Jaguarão),  Santa  Calhavina  (proxi- 
midades do  rio  Tubarão),  S.  Paulo  (Bôa  Vista)  e  em 
alguns  Estados  do  norte;  a  lignite  é  encontrada  em 
S.  Paulo  6  a  turfa,  mais  ou  menos  pura,  por  toda  a 
parte. 

No  Ceará  encontra-se  graphito,  no  Rio  Grande  do 
Norte  enxofre;  saes  e  salitre  se  vêm  em  Minas,  iMatto 
Grosso;  Bahia,  Ceará  o  Piauhy;  o  alúmen,  o  sulfato  de 
magnesia  e  a  soda  apparecem  em  Minas,  Paraná  e 
Ceará;  o  sal  gemma  é  encontrado  em  Matto  (rrosso, 
Pará,  Minas  e  principalmente  em  Goyaz  e  Piauhy. 

Nos  Estados  de  Minas  e  Pernambuco,  encontram-se 
fontes  de  aguas  acidula  las  gasosas;  em  Goyaz,  aguas 
alcalinas  thermaes;  no  Rio  de  Janeiro,  Minas,  Mara- 
nhão, Piauhy  e  Espirito  Santo,  aguas  ferruginosas; 
na  Bahia  aguas  salinas;  em  Santa  Catharina,  Minas, 
Rio  Grande  do  Norte  e  Matto  Grosso  aguas  thermaes; 
em  Minas.  Rio  Grande  do  Norte  e  Goyaz  aguas  sulfu- 
rosas theimaes  e  frias 


.1)  CoMTEDELA  HvRE.—Vempire  du  BrésL 


CAPITULO    III 

PREHC^ITORIA   BR4ZIL.E:iR1 

«  As  exigências  da  orientação  seienti fica  laoderna, 
diz  o  Dr.  Felisbello  Freire,  difficultam  consideravel- 
mente o  encargo  de  escrever  a  historia  de  um  povo. 

«  Por  mais  longiquos  que  estejam  os  seus  antece- 
dentes; por  mais  obscuros  que  sejíim  o  intellecto,  o 
grão  de  civilisação  e  a  natureza  de  sentimentos  dos 
seus  progenitores,  —  o  historiador  tem  necessidade  de 
olhar  para  esse  pissado  prehistorico,  cujas  afflrmações 
são  baseadas  em  uma  multiplicidade  de  thcorias,  aHm 
de  prendel-o  aos  tempos  históricos,  sem  o  que  ficará 
um  hiatus  que  contribuirá  para  desvirtuar  as  leis  da 
civilisação  humana. 

«  O  conhecimento  completo  do  elemento  autoch- 
tone  de  qualquer  povo,  não  deverá  ser  esquecido  pelo 
historiador,  que  nelle  ha  de  ver  um  factor  de  coUabo- 
ração,  tanto  mais  importante,  quanto  a  horança  tende 
a  perpetuar  seus  caracteres,  não  obstante  a  força  anta- 
gónica da  adaptação.  (1) » 

As  afflrmações  do  illustrado  escriptor  sergipano  são 
verdadeiras  e  a  sciencia  nacional  deve  trabilhar  inces- 
santemente para  fazer  desapparecer  esse  hiatus;  no 
estado,  porém,  em  que  si^  acham  os  nossos  conheci- 
mentos sobre  a  paleoethnologia  brnsileir.i,  as  ligações 
dn  historia  com  a  prehistoria  não  se  podem  ainda  fazer 
de  modo  lirme  e  só  p''la  hy|iolhese  podemos  reatar 
os  elos;  dessa  cadeia  partida  pelo  tempo. 

Toda  a  existência  do  vener.indo  Lund,  consagrada 
ao  revolvimento  das  cavernas,  as  pacientes  investi- 
gações de  Carlos  Hartt,  do  Ferreira  Penna,  de  Rodrigues 
Peixoto,  de  Carlos  Wiener  e  tantos  outros,  não  foram 
ainda  suíTicientes  para  dissipar  a  treva  que  se  interpõe 
entre  o  homem  da  Lagoa  Santa  e  o  selvagem   moderno. 

Conitudo  óde  alta  conveniência  conhec^r-se  o  que 
já  se  lem  conseguido  n'csse  sentido,  pois  se  o  roteiro 
ainda  não  está  balisado  em  todo  o  seu  percurso,  já 
existem  aqui  oualli  algumas  estacas,  que  embora  muito 


(1)  Dr.  Felísbello  Vre\rv:.— Historia  de  Sergipe. 


í^2  HISTORIA  DO  BRASIL 


I 

I 

^1 


distanciadas,  deixam  no  entanto  perceber  a  possibili- 
dade de  poder-se  com  mais  alguns  esforços  levantar  o 
traçado  provável  da  prehistoria   de  nosso  paiz, 

Logo  ao  enfrentarmos  o  estudo  da  prehistoria  bra- 
sileira surge  uma  questão  de  capital  importância  eth- 
nographica  e  que  tem  sido  muito  debatida  pelos  erudi- 
tas nacionaes  ou  estrangeiros. 

Trata-se  da  origem  do  homem  americano  e  embora 
a  theoria  do  autochotonisnio  seja  aquclla  que  á  vista  dos 
documentos  apresentados,  nos  pareça  n  única  que  está 
de  accordo  com  a  verdade,  cumpre-nos  dizer  em  que 
consiste  a  theoria  opposta  ou  do  asiatismo. 

ThcorS  :i  da  proecilencia  asiiati(*a  do 
lioiiiein  eiifopco. — Dividem -se  os  adeptos  d'esta 
theoria,  em  dous  partidos;  querem  uns  que  o  homem 
americano  proceda  de  povos  semitas  da  Ásia  e  outros 
que  elle  se  originasse  do  tronco  turano,  a  que  pertencem 
actualmente  as  raças  mongólicas  e  alguns  povos 
hyperboreos. 

A  primeira  hypothese  foi  admittida  por  quasi  to- 
dos os  escriptores  antigos  filiados  â  escola  monogenis- 
ta;  a  segunda  foi  desenvolvida  principalmente  pelo  es- 
criptor  portuguez  Theophilo  Braga. 

Para  os  sectários  do  «isiatismo  a  transmigração 
ter-se-hia  realisado  pela  famosa  ponte  aleutica  que 
dizem  t"r  existido  outr'ora  ligando  a  America  á  Ásia, 
ou  pela  arribada  ás  costas  do  Atlântico  de  povos  me- 
diterrâneos antiquíssimos. 

Entre  outras  provas  apresentadas  com  o  fim  de 
justificar  esta  opinião,  lembram  os  que  a  sustentam 
a  celebre  lenda  da  Atlântida  que  Platão  nos  transmií- 
tio;  os  adversários  da  theoria,  porem,  contcfilam  a  im- 
portância d'essa  lenda  que  consideram  forjada  pela 
fértil  imaginação  dos  gregos,  como  tantas  outras  e 
provam  com  a  geologia  que  a  celebre  ponte  aletica  só 
existiu  na  imaginação  daquelles  que,  para  conformar 
a  sciencia  com  os  textos  bíblicos,  procuram  por  todos  os 
meios  subordinar  todas  as  raças  humanas  a  um  tronco 
primitivo. 

Pretenderam  alem  disso  os  partidários  do  asiatis- 
mo demonstrar  a  filiação  do  homem  americano  a  povos 
asiáticos  pelas  analogias  que  apresentam  os  mythos 
religiosos  dos  dois  continentes  e  por  certas  semelhan- 
ças de  linguagem;  no  estado  porem  em  que  já  se  acham 
actualmente  os  estudos  sob^i^e  a  evolução  d^  civilisação 


INTRODUCÇÃO  93 


humana,  tacs  argumentos  não  podem  prevalecer,  pois 
esses  phenomenos  de  analogia  não  provam  identidade 
de  origem  e  apenas  significam  que  em  toda  a  parlo  í?ão 
as  mesmas  as  phases  evolutivas  da  linguagem  e  do  sen- 
timento religioso. 

Carlos  Frederico  Ilartt,  que  na  abalisada  opinião  do 
Dr.  Sylvio  Kofnero,  foi  a  mais  Fecunda  organisação 
scientilica  que  já  uma  vez  o  Brasil  teve  ao  seu  serviço, 
fazendo  sobresahir  a  analogia  que  existe  entre  o  mytho 
amazonico  do  Curupira  e  o  mytho  norueguez  do  TroU, 
exprime-se  no  entnnto  por  essa  forma:  «  A  correspon- 
dência entre  as  lendas  do  TroU  e  do  Curupira  não  é 
devida  a  uma  origem  commum,  mas  sim  ao  facto  de  que 
as  idéas  da  natureza  são  as  mesmas  em  todo  o  mundo, 
entre  selvagens  do  mesmo  estado  de  cultura,  e  que  o 
mytho  em  toda  a  parte  se  desenvolve  segundo  a  mesma 
lei  geral.»  (1) 

O  venerando  sábio  dinamarquez  Peter  Wilhclm 
Lund,  do  qual  nos  occuparemos  d'aqui  ha  pouco  detida- 
mente e  cujas  opiniões  sobre  a  prehistoria  brasileira, 
não  tém  sido  até  hoje  destruídas,  ferio  mortalmente  a 
Iheoria  do  asiatismo  ao  escrever  este  periodo: 

«A  America  já  era  habitada  em  tempos  em  que  os 
primeiros  raios  da  historia  não  tinham  ainda  apontado 
no  horizonte  do  velho  mundo,  e  os  povos  que  n'essa  re- 
motíssima época  habitavam  n'ella  eram  da  mesma 
raça  que  os  que  no  tempo  do  descobrimento  ahi  habita- 
vam. 

«  Estes  dois  resultados  na  verdade  pouco  se  harnio- 
nisam  com  as  idéas  geralmente  adoptadas  sobre  a  ori- 
gem dos  habitantes  desta  parte  do  mundo,  pois  que, 
quanto  mais  se  vae  affastando  a  época  do  seu  primeiro 
povoamento,  conservando  ao  mesmo  tempo  os  seus 
antigos  habitantes  os  seus  caracteres  nacionaes,  tanto 
mais  vae-se  desvanecendo  a  idéa  do  uma  origem  se 
cundaria  ou  derivada? 

O  aiitochtonisiiiic». — Um  dos  argumentos  que   os  m^ 

sectários  do  asiatismo  faziam  mais  a  miúdo   prevalecer  M 

com  o  intuito  de  provar  a  origem   asiática   do   homem  l^i 

americano  era  não  se  haver  encontrado  na  America  mi- 
n;is  de   nephrite  e/adeiíe,  quando   no    entanto   os    ob- 


(1)  A.  B.  Meijer  Die  Nephrifírages—  keine  ethnologisches  Pro- 
blem,  in  Sylvio  romeno,  Ethyioçjragia,  brasileira. 


i 


94  HISTORIA   DO   BRASIL 


jectos  feitos  destes  mineraes  são  vulgaris^imos  entre  as 
tribus   americanas. 

D'ahi  o  tirarem  a  conclusão  de  que  ns  pedras  Der- 
des, nome  vulgar  das  jadeitcs  e  nephrites,  íorain  im- 
portadas do  velho  mundo  em  tempos  protohistoricos. 

Foi  propulsor  desta  hypothese,  logo  admittida  e 
proclamada  pelos  sectários  do  asiatismo,  o  Prof.  Hen- 
rique Fischer,  de  Friburg. 

Recentemente,  porém,  o  il lustre  mineralogista  A.  B. 
Meyer,  professor  em  Dresde,  demonstrou  que  as  minas 
de  jadeite  e  nephrite,  existe  ou  existiram  em  todos  os 
continentes,  embora  actualmente  sejam  só  observadas 
na  Ásia  e  na  Oceania,  e  que  o  trabalho  dos  instrumentos 
feitos  dessas  pedras  que  se  tem  encontrado  na  America, 
principalmente  entre  os  Aztecas,  revela  um  caracter 
puramente  local  e  indígena.  A  circumstancia  de  pa- 
gar-se  o  tributo  em  muitas  provincias^do  império  azteca 
com  pedras  de  jadeite  prova  igualmente  que  ( xistiam 
alli  minas  dessa  substancio.  (1) 

Ficando  por  essa  forma  destruído  um  dos  princi- 
paes  argumentos  em  favor  do  asiatismo,  a  theoria  do 
autochtonismo,  isto  é,  aquella  que  diz  ser  o  indio  ame- 
ricano um  producto  do  próprio  solo  americano, 
aliás  já  firmada  solidamente  no  facto  observado  do 
desconhecimento  do  ferro  e  da  falta  de  animaes  domés- 
ticos entre  os  povos  ameiicanos,  prestigiou-se  ainda 
mais. 

São  estas  as  conclusões  da  escola  autochtonista  fir- 
madas por  Nott  e  Gliddon  no  seu  livro  Types  of  Man- 
kind,  e  traduzidas  pelo  Ur.  Sylvio  Romero  nos  seus 
estudos  críticos  sobre  a  ethnographia  do  Brasil. 

1\  O  continente  americano  foi  desconhecido  pelos 
antigos  egypcios,  pelos  chinezes,  pelos  gregos,  hebreus 
e  romanos; 

2\  Por  occasíão  do  descobrimento  este  continente 
era  povoado  por  milhões  de  homens  que  se  pareciam 
e  mostravam  traços  caracteristicos,  moraes  e  physicos, 
inteiramente  especiaes,  e  em  perfeito  constraste  com  os 
habitantes  do  velho  mundo  ; 

3'.  Taes  raças  estavam  cercadas  de  animaes  espe- 


(1)  Nott  and  Gltddon,  Tf/pes  of  Mankind,  in  S\lvio  Romero, 
Ethnographia  brasileira. 


INTRODUCÇAO 


95 


cificadainentG  distinctos  dos  do  velho   mundo,  e  origi- 
nados indubitavelmente  na  America  ; 

4*.  Estas  raças  lallavam  muitas  centenas  de  linguíxs, 
que,  approximando-sô  na  estructura  grammatical,  dis- 
tanciavam-se  nos  vocabulários,  e  eram  radicalmente 
distinctas  dos  idiomas  do  velho  mundo. 

5\  Seus  monumentos,  como  se  vó  pela  archilectura, 
esculptura,  cerâmica,  bancos  de  conchas,  testemunham 
uma  avançadissima  antiguidade  por  sua  extensão, disse- 
minação e  numero  incalculável ; 

6'.  O  estado  de  decomposição  dos  esqueletos  dos 
tamuli,  e  determinadamente,  a  estructura  anatómica 
particular  do  pequeno  numero  de  craneos  restantes, 
provam  que  os  constructores  destas  obras  eram  não  só 
antiquíssimas,  como  autochlones:  porque  os  craneos 
americanos  antigos  e  modernos  não  se  parecem  com  os 
de  qualquer  outra  raça  antiga  ou  moderna; 

T.  Os  indígenas  americanos  não  possuíam  nem 
alphabeto,  nem  verdadeiro  systema  de  escripta  phone- 
tica;  não  possuíam  nenhum  dos  animaes  domésticos, 
nem  a  mór  parte  das  artes  do  hemispherio  oriental;  suas 
plantas  agriculas  eram  indígenas; 

8^  Seu  systema  arithmetico  era  único  em  seu  género ; 
i;eus  conhecimentos  astronómicos  eram,  sem  a  menor 
sombra  de  duvida,  de  origem  cisatlantica,  e  seu  calen- 
dário não  se  parecia  com  nenhum  dos  pertencentes  aos 
povos  antigos  ou  modernos  do  outro  hemispherio.  (1) 

Entre  outros  sustentam  a  theoria  do  autochtonismo 
no  estrangeiro  os  notáveis  scientistas  Alorton,  Nott, 
Gliddon,  Haven,  Brautz  Mayer,  etc.  Proclamou-a  no 
Brasil  e  tornou-se  o  seu  mais  ardente  defensor  o  illustre  . 

ethnographo  e  critico  litterario  Dr.  Sylvio  Romero,  que  J 

com  muita  felicidade  e  brilhantismo  tem  destruído  os 
argumentos  da  theoria  opposta.  (1)  ' 

O  Dr.  Júlio  Trajano  de  Moura,  também  filiado  á  ^ 

escola  autochtonista,  concluo  por  esta  forma  sua  these: 
«  Os  povos  americanos,  pelo  conjuncto  de  caracteres 
physicos,  podem  ser  considerados^  ao  tempo  da  desco- 
berta, como  variedades  múltiplas,  constituídas  no  espaço 
e  no  tempo,  de  uma  mesma  espécie  indígena— i/owo 
americanus.^)  (2) 


(1)  Sylvio  Romero.— Ethnographia  brasileira. 

(2)  J    T.  DE  MovRA—Do  homem  americano. 


96  HISTORIA  DO  BRASIL 

Dr.  Petor  1%llheliti  Liiind  (1)  —  Sendo  nosso 
intento  fazer  o  estudo  dos  documentos  paleoethnologicos 
que  authenticam  a  remota  antiguidade  do  homem  na 
terra  brasileira,  se  nos  afigura  acto  de  inteira  justiça 
preceder  o  mesmo  de  algumas  notas  biographicas  sobre 
o  sábio  Dr.  Peter  Wilheim  Lund,  venerando  patriarcha 
da  prehistoria  deste  paiz. 

Lund  nasceu  em  Copenhague,  na  Dinamarca,  a  14 
de  Junho  de  1801,  sendo  seu  pae  um  abastado  nego- 
ciante de  fazendas  de  lã,  nessa  cidade. 

Bacharellou-se  em  humanidades  aos  17  annos  de 
idade  e  em  seguida  matriculou-se  na  Academia  de  Medi- 
cina; logo,  porém,  abandonou  o  curso  regular  da  escola 
para  entregar-se  exclusivamente  ao  estudo  da  zoologia 
e  da  botânica. 

Em  1824  foi  premiado  por  dous  trabalhos  que 
escreveu  sobre  questões  de  phvsiologia  e  zoologia, postas 
em  concurso  pela  Universidade.  Úm  destes  trabalhos 
versava  sobre  os  resultados  que  tem  tirado  a  physic- 
logia  das  vivisecções  e  o  outro  sobre  a  circulação  do 
sangue  dos  crustáceos  decapodos,  merecendo  o  primeiro 
ser  traduzido  na  Allemanha  e  na  Itália  e  adoptado 
como  livro  clássico  nas  Universidades  de  Copenhague  e 
Vienna. 

Tanta  pujança  intellectualachava-se,  no  entanto,  em 
um  corpo  débil  e  ameaçado  por  uma  terrível  enfermi- 
dade, a  tisica,  que  já  lhe  havia  roubado  dous  irmãos. 
Esta  circumstancia  delerminou-o  a  fugir  dos  rigorosos 
invernos  de  sua  pátria  e  buscar  os  climas  tropicaes 
mais  próprios  á  sua  existência;  o  paiz  preferido  foi  o 
Brasil  que  ao  mesmo  tempo  lhe  proporcionava  campo 
vasto  aos  seus  estudos  predilectos. 

«  Hoje,  diz  Gorceix,  é  a  Africa  o  centro  de  attracção 
rara  o  qual  se  dirigem  os  exploradores,  naturalistas, 
geographos  ou  simples  viajantes.  No  começo  do  século 
era  para  os  l:idos  da  America  do  Sul  que  quasi  todos 
volviam  suas  vistas.  Humboldt  descortinava  do  alto  dos 
Andes  as  riquezas  naturaes  do  maior  estado  destas 
vastas  regiões;  Bompland,  Spix,  Martins,  Saint-Hilaire 


(1)  Dr.  Theodoro  Laxgga.vrd.— O  naturalista  Dr.  Lund  {Peter 
TT7//íe///i).— Nos  Annaes  da  Escola  de  Minas  de  Ouro  Preto, 
H.  Gorceix,  Lund  e  suas  obras  no  Brasil  (segundo  o  professor 
Reinhardt. 


INTEODUCÇlO  97 


estudavam  os  pormenores  do  magnifico  painel  por  elle 
traçado  com  a  mão  animada  por  um  génio,  cujo  caracter 
grandioso  está  em  perfeita  harmonia  com  as  magnifi- 
cências (|ue  o  inspiravajii.  Lund  conhecia  estes  traba- 
lhos, sabia  qual  a  colheita  que  o  esperava  e  não  hesitou 
por  muito  tempo  entre  o  Brasil  e  a  ilha  de  França,  que 
parece  ter  attrahido  sua  attenção.» 

Assim,  embarcou  para  o  Rio  do  Janeiro  aos  28  de 
Setembro  de  1825  e  a  8  de  Dezembro  do  mesmo  anno 
pisava  nossas  plagas ;  Lund  recebera  da  Academia 
de  Sciencias  de  Copenhague  a  incumbência  de  fazer 
observações  metereologicas  e,  pouco  tempo  depois,  o  rei 
Frederico  VI  concedeo-lhe  a  pedido  de  Reinhardt,  um 
subsidio  de  400  rigsdalers  com  a  condicção  de  enviar 
coUecções  para  o  museu  de  historia  natural  da  capital 
da  Dinamarca. 

Primeiramente  applicou-se  a  estudar  a  flora  e  a 
fauna  dos  arredores  do  Rio  de  Janeiro,  depois  fez  uma 
excursão  scientifica  a  Nova  Friburgo  e  outra  a  Campos, 
reembarcando  afinal  para  a  Europa,  onde  chegou  a  9  de 
Abril  de  1826.  Os  fructos  desta  primeira  viagem  foram 
três  obras  de  grande  valor  scientifico: — Estudo  do  gé- 
nero Eanope  (aves  destituídas  de  papo);  Descripção  dos 
costumes  das  formirjas  brasileiras  e  Memoria  sobre  o 
envolucro  dos  ovos  dos  molluscos  gasteropodos,  servindo- 
Ihe  o  primeiro  destes  trabalhos  de  these  inaugura!  para 
a  obtenção  do  titulo  de  doutor  em  philosophia  na  Uni- 
versidade de  Kiehl. 

Lund  visitou  então  a  Prússia,  a  Áustria  e  a  Itália, 
estudando  nesses  paizes  as  respectivas  collecções  de 
historia  natural ;  travou  relações  com  diversos  sábios 
europeos  e  a  19  cíe  Janeiro  de  1833  achava-se  pela  se- 
gunda vez  no  Brasil,  de  onde  nunca  maissahio. 

Em  companhia  de  Riedel,  naturalista  russo,  per- 
correu parle  da  província  de  Minas  Geraes,  viagem 
que  lhe  permittio  mandar  á  Sociedade  de  Copenhague 
memorias  sobre  os  Campos  Geraes, em  as  quaes  estudou 
a  vegetação  dos  planaltos  do  Brasil  e  procurou  fíxar-lhes 
a  natureza  na  epocha  geológica  que  precedeu  á  nossa. 
Afinal  estabeleceu-se  definitivamente  no  arraial  da 
Lagoa  Santa. 

Os  seus  mais  importantes  trabalhos  datam  d'ahi. 
Foi  da  Lagoa  Santa  que  elle  procedeu  ao  exame  minu- 
cioso das  cavernas  e  determinou  com  exactidão  a  anti- 


98  HISTORIA  DO  BRASIL 

guidade  do  continente  americano,  sua  fauna  e  flora  nos 
períodos  geológicos  decorridos  e  afinal  a  existência  do 
homem  antediluviano  no  Brasil,  questões  todas  sobre  as 
quaes  escreveu  um  grande  numero  de  memorias. 

Estas  memorias,  traduzidas  por  uma  infinidade  de 
jornaes  estrangeiros,  tornaram  dentro  em  breve  o  nome 
de  Lund  conhecido  vantajosamente  no  mundo  scientifico 
e  não  só  pela  sua  pátria,  como  por  outros  paizes,  honro- 
sas distincções  lhe  foram  conferidas. 

As  collecções  organisadas  pelo  sábio  dinamarquez 
figuram  hoje  no  Museo  de  Copenhague. 

Lund  falleceu  aos  26  de  Maio  de  1880  na  Lagoa 
Santa,  em  Minas,  e  alli  mesmo  foi  sepultado,  segundo  o 
seu  desejo. 

«  Lund,  diz  o  Dr.  Th.  Langgaard,  era  dotado  de 
um  espirito  claro  e  cultivado,  animado  de  um  profundo 
amor  e  interesse  pelas  sciencias,  sentimentos  que  con- 
servou inalteráveis,  mesmo  depois  de  ter  abandonado 
os  seus  trabalhos  scientificos,  em  sentido  restricto;  e 
alegrava-se  quando  junto  delle  se  occupavam  ou  trata- 
vam de  assumptos  scientificos.  Conservou  até  aos 
últimos  dias  grande  interesse  pelo  progresso  da  sciencia, 
e  sentia  um  grande  prazer  quando  na  sua  solidão  era 
informado  a  este  respeito.  Era  de  um  caracter  nobre, 
benévolo  e  caritativo.  Amou  sinceramente  este  bello 
paiz  onde  passou  a  inaior  parte  da  sua  vida;  não  se  na- 
turalisou  cidadão  brasileiro,  e  considerou-se  até  a  morte 
súbdito  dinamarquez.  Não  exerceu  por  isso  influencia 
directa  sobre  a  vida  publica  na  região  onde  por  longos 
annos  tinha  vivido,  influencia  de'' que  também  nunca 
desejou  ou  procurou  cercar-se;  mas  era  por  todos  que  o 
í5onneciam  de  perto  muito  considerado  e  respeitado  pelo 
seu  caracter,  lionradez  e  seu  modo  independente  de 
pensar;  e  ó  indubitável  que  a  sua  palavra  e  opinião 
sempre  tiveram  grande  peso  no  animo  dos  homens  de 
influencia  da  localidade,  quando  raras  vezes  se  lhe  offe- 
recia  occasião  de  manifestar  seus  juizes  a  qualquer 
respeito . » 

O     antropHhecusí     brasiliensiss.  (1)  —1  Pelos 
variados  phenomenos  geológicos  que  patenteia  ao  obser- 


(1)  Lund. -Cartas  publicadas  na.  Rev.  do  Instituto  histórico 
e  geographico  do  Brasil. 


INTEODUCÇlo  99 


vador  ó  muito  curiosa  a  região  dos  districtos  de  Cur- 
vello,  Sete  Lagoas  e  Lagoa  Santa,  em  Minas  Geraes. 

O  solo  dessa  parte  do  nosso  paiz  apresenta  interes- 
santes phenomenos  caracteristicos  dos  terrenos  calca- 
reos,  taes  como  sejam  lagoas,  sumidouros  onde  des- 
apparecem  os  rios  alim  de  surgirem  mais  adiante  e 
principalmente  cavernas, revestidas  das  mais  caprichosas 
stalactites  e  stalagnútes. 

Estas  cavernas  que  desde  o  século  passado  tém  sido 
exploradas  para  a  extracção  do  salitre,  hoje  são  os  ar- 
chivos  que  documentam  a  existência  do  homem  quater- 
nário no  Brasil,  sendo  nellas  que  o  venerando  Lund  leu 
a  mais  vetusta  pagina  da  nossa  prehistoria. 

Nas  mesmas  cavernas,  abaixo  de  uma  camada  de 
ossos  de  corujas,  morcegos,  ratos  e  outros  animres  que 
ainda  hoje  habitam  esses  sombrios  retiros,  por  baixo 
ainda  de  uma  outra  camada  de  stalagmites,  muitas  vezes 
deparam-se  esqueletos  inteiros  pertencentes  a  espécies 
animaes  existentes  ou  desapparecidas  de  ha  muito 
da  superfície  da  terra. 

Lund  examinou  cerca  de  duzentas  cavernas  dessa 
natureza ;  as  mais  importantes,  porém,  pelos  restos 
fosseis  que  conservavam,  foram  as  da  Lapa  Nova  do 
Maquine,  Lapa  do  Sacco  Comprido,  Lapa  do  Mosquito, 
Lapa  da  Cerca  Grande  e  principalmente  a  caverna  do 
Sumidouro,  onde  foi  encontrado  o  esqueleto  do  homem 
quaternário. 

Nessas  cavernas  Lund  achou  restos  fosseis  per- 
tencentes a  56  géneros,  comprehendendo  114  espécies ; 
dos  géneros  15  eram  inteiramente  novos  e  alguns^  taes 
como  o  Sinilodon  populator  (o  devastador);  anim.al  que 
mostra  a  transicção  do  género  Félix  para  as  hyenas, 
é  caracteristicu  da  fauna  antiga  dos  planaltos  de  Minas 
Geraes. 

Em  1844,  examinando  a  caverna  do  Sumidouro, 
situada  entre  o  Rio  das  Velhas  e  o  Paraopeba,  Lund  en- 
controu ossadas  hn manas  associadas  a  restos  fosseis 
de  mammiferos  que  todos  os  paleoethulogos  consi- 
deram como  caracteristicos  do  periodo  quaternário  e 
outros  de  espécies  que  ainda  existem.  Eram  estes 
mammiferos  o  Félix  proio-panther,  felino  gigantesco 
dobradamente  maior  que  a  onça  actual;  o  Hydrochcerus 
sulcidens,  roedor  do  tamanho  da  anta  moderna;  uma 
espécie  de  llama,  [Caelogenis  Laíiceps)  que  como  se 
sabe  actualmente  só  existe  na  região  andina  e  finalmente 


100  HISTORIA   DO   BRASIL 

O  cavallo,  que  no  tempo  da  conquista  européa  não  existia 
mais  na  America.  Das  espécies  que  sobrevivem  desta- 
cavam-se  ossos  da  onça  maculada  {Félix  concolor),  do 
guará  (Canis Jubatas), Yeâàos  {Cervas  riifas^  Cervas  sim- 
plicicornius),  tatus  (Dasypus),  etc. 

Os  ossos  liumanos  achavam-se  engastados  na  parte 
superior  da  camada  ossiíera  e  denunciavam  elevado 
gráo  de  decomposição.  «  Postos  em  cima  de  brazas  não 
exalavam  cheiro  nenhum  empyreumatico,  adheriam 
fortemente  a  iingua,  e  mettidos  n'uma  solução  de  acido 
nítrico  dissolviam-se  completa  e  rapidamente  com  uma 
eííervescencia  violenta.  Eram  pois  inteiramente  calci- 
nados, e  sendo  além  disso  parcialmente  petrificados, 
offereciam  assim  todos  os  caracteres  de  ossos  verdadei- 
ramente fosseis.»  (1) 

Os  ossos  da  caverna  do  Sumidouro,  segundo  os 
cálculos  do  mesmo  Lund,  pertenciam  pelo  menos  a 
30  indivíduos  de  diíTerentes  idades  e  achavam-se  quasi 
todos  quebrados,  indicando  no  entanto  o  aspecto  da 
superfície  partida  que  a  fragmentação  tivera  logar  depois 
que  os  ossos,  pelo  adiantado  progresso  da  decomposição, 
se  haviam  tornado  frágeis  e  quebradiços. 

«De  ordinário,  diz  Lund,  foram  achados  promis- 
cuamente  sem  a  menor  espécie  de  ordem;  alguns, 
todavia,  fizeram  excepção  a  isso,  parecendo  indicar  que 
haviam  sido  depositados  na  caverna,cercados  das  partes 
molles.  Porém  os  grandes  acervos  de  ossos  homogé- 
neos, encontrados  em  alguns  legares,  provavam  que 
tinham  sido  mais  tarde  tirados  do  seu  leito  primitivo  e 
levados  pela  agua  para  os  pontes  em  que  vieram  a  ser 
achados.  A  maior  parte  dos  craneos  estava  amontoada 
separadamente,  emquanto  que  um  outro  monte  era  for- 
mado de  pequenos  ossos,  taes  como  phalanges  dos  dedos 
e  artelhos,  ossos  pertencentes  ao  corpo  e  ao  torso.  O 
numero  dos  velhos  era  proporcionalmente  muito  consi- 
derável. Ha  diversas  mandíbulas  inferiores,  não  só  des- 
providas de  todos  os  dentes,  como  também  de  tal  modo 
gastas,  que  se  assemelham  a  uma  placa  óssea  com 
algumas  linhas  de  espessura.  Provavelmente  esses  es- 
queletos pertenceram  a  individues  decrépitos,  mortos 
de  velhice  e  lançados  depois  nesta  caverna,  que  assim 
parece  ter  servido  de  sepultura.    Idêntica  explicação  é 


(l)  Lund.— Obra  citada. 


INTRODUCÇÃO  101 


applicavel  ás  creanças.  Uma  parte  dos  esqueletos  dos 
adultos  poderia  provir  de  pessoas  mortas  de  doença, 
como  parece  indicar  o  estado  dos  dentes;  outros,  porém, 
annunciavam  ao  contrario  um  desenvolvimento  vi- 
goroso, sem  signal  algum  de  moléstia. 

«  Percebi  também  n'uma  das  fontes  de  vários  cra- 
neos  um  orifício  de  forma  oblonga  e  regular,  cujo  eixo 
longitudinal  era  paralleio  ;io  mesmo  eixo  da  cabeça. 
Este  orifício  apresentava  em  todos  os  craneos  a  mesma 
íórma  e  a  mesma  grandeza  e  correspondia  inteira- 
mente á  extremidade  pontuda  d'esses  objectos  de  pedra 
tantas  vezes  encontrados  nas  excavações  de  antigui- 
dades, o  que  leva  a  crer  que  foi  produzido  por  um  tal 
instrumento...  Todos  os  craneos  mostram  os  traços 
característicos  da  raça  americana;  possuem  a  forma 
pyramidal  notavelmente,  o  que  constituo  o  traço  que  a 
raça  mongolica  e  a  raça  americana  têm  decommum. 
Possuem  tambens  a  fronte  muito  baixa  e  estreita,  que  é 
o  traço  mais  constante  pelo  qual  a  raça  americana  se 
distingue  da  mongolica. 

«  A  insignificante  elevação  docraneo  diminuo  em  al- 
guns individuo»  de  um  modo  notável,  sem  que  a  forma 
permitta  de  attribuir  a  causaa  um  achatamento  artificial. 
Os  craneos  fosseis  differem  de  todas  as  raças  humanas 
ainda  vivas  por  um  único  traço,  que  é  a  forma  dos 
dentes.  Os  incisivos  de  todos  os  individues  velhos  e 
moços,  em  vez  de  se  terminarem  por  um  bordo  agudo  e 
cortante,  formam  uma  superfície  oval,  cujo  eixo  de  com- 
primento é  paralleio  ao  comprimento  do  propric  eixo  da 
cavidade  buccal    » 

A  deformação  dentaria  que  Lund  declarou  não 
poder  explicar  pela  attrição,  é  para  Quatrefages  uma 
particularidade  que  se  observa  em  todas  as  raças  fosseis 
da  Europa  e  que,  na  sua  opinião,  estabelece  um  laço 

inesperado  entre  os  povos  do  velho  e  do  novo  mundo. 

Este  facto  também  foi  notado  pelo  Dr.  Lacerda  em 
craneos  de  procedência  relativamente  recente,  sendo 
também  o  mesmo  Dr.  Lacerda  de  opinião  que  a  metal- 
lisação  observada  por  Lund  nos  ossos  da  caverna  do 
Sumidouro  não  é  um  caracter  de  antiguidade,  pois  veri- 
ficou o  mesmo  phenomeno  em  ossos  que  não  eram 
fosseis. 

Quanto  á  epocha  em  que  viveu  o  homem  da  Lagoa 
Santa,  Quatrefages  e  Alberto  Gaudry  fazem-no  corres- 
ponder ao  quatsrnario  moderno  da  Europa,  outros ,  pelo 


102  HISTORIA  DO  BKABIL 

contrario,  fazem-no  remontar  ás  mais  antigas  formações 
do  quaternário  europêo. 

Os  saaubaqiiis  (1). — Pelo  que  ficou  dito  em  pre- 
cedentes paragraphos  já  sabemos  que  os  sambaquis, 
esses  mais  antigos  padrões  da  humanidade  no  Brasil, 
são  os  mesmos  shell-inounds  dos  Estados  Unidos  e 
kjokk^nmceddings  da  Dinamarca. 

No  Brasil,  onde  elles  são  numerosos  e  fornecem  em 
muitos  pontos  matéria  prima  para  o  fabrico  da  cal, 
dão-lhes  diversos  nomes,  taes  como  sejam:  sernambys, 
caleiras,  ostreiras,  berbig'' eiras,  etc,  porém  o  termo 
sambaqui  foi  o  preferido  pelos  antropólogos  brasi- 
leiros. 

Tendo  estudado  na  lingua  tupy  a  etymologia  deste 
vocábulo  o  erudito  Baptista  Caetano  escreveu  o  se- 
guinte: 

« Sambaqui,  significa  litteralmente  montão  de  os- 
tras ;  tambd  concha,  e  ky  coUinas  cónicas  como  peitos  de 
mulher.  Nos  substantivos  guaranys  a  mudança  do  t  em 
h  aspirado  ou  gu  forma  a  passagem  do  valor  absoluto 
ao  relativo:  como  os  portuguezes  na  sua  lingua  não 
têm  aspiração,  davam-n'a  por  ç  ous.  Além  disso,  em 
palavras  compostas,  o  genitivo  occupa  o  primeiro  logar, 
e  d'ahi  resulta  hambaky,  collina  de  conchas.  Pôde 
também  ser  estropiamento  de  hambakiab,  refugo  ou 
varredura  de  conchas.  » 

Os  sambaquis  despertaram  algumas  vezes  a  at- 
tenção  de  viajantes  illustres,  taes  como  Saint-Hilaire 
(2),  Agassiz  (3),  Burton  (4)  e  Bates  (5)  que  os  assigna- 
laram  era  suas  obras,  porém  somente  ficaram  perfeita- 
mente conhecidos  apoz  os  interessantes  estudos  nelles 
praticados  por  Carlos  Wiener,  Ferreira  Penna,  Carlos 


(Ij  Consulte-se  :  —  Nos  Archivos  do  Museu  Nacional:— 
Caklos  Wiener,  Estudos  sobre  os  sambaquis  do  sul  cio  Brasil  ; 
Ferreira  Penna,  Breve  noticia  sobre  os  sambaquis  do  Pará  ; 
Carlos  Frederico  Hartt,  Contribuições  para  a  etimologia  do 
valle  do  Amazonas ;  Y)k.  J.  B  Lacerda,  O  homem  dos  samba- 
quis ;  Carlos  Rath,  Algumas  palavras  etimológicas  e  paleontiio- 
logicas  a  respeito  daprocincia  de  S.  PavAo  ;  na  revista  Ensaios 
de  Sciencia  —  Guilherme  Schuch  Capanema,  Os  Sambaquis 

i2)  A.UGUST0  de  Saint-Kilaire  —  Voyage  dans  les  provinces 
de  Rio  de  Janeiro  e  Minas  Geraes. 

(3)  \GASSiz  —  Scientific  resu/ts  of  ajourneij  in  Brazil. 

(4)  RiCHARn  Burton— rAe^iy/tía/i(/s  of  tl\e  Brazil. 

(5)  Bates— Naturalist  on  the  Amazon. 


INTRODUOÇlO  103 

Rath,  Carlos  Frederico  Hartt  e  outros  aos  quaes  recor- 
reremos n'esta  breve  exposição. 

Começando  pela  situação  topographica  dos  sam- 
baquis encontra  tnol-os  ou  á  beira-mar,  ou  á  margem 
dos  rios  ou  mesmo  em  pontos  relativamente  aífastados 
de  aguas,  devendo-se  neste  caso  attribuir  o  afiftsta- 
mento  á  elevação  gradual  das  praias  que  ha  séculos  se 
verifica  na  parte  oriental  do  continente  sul-americano. 
Temos  por  conseguinte  sambxqtiis  marinhos  ou  costeiros, 
sambaquis  ãuuiaes  e  sambaquis  centraes. 

Os  sambaquis  costeiros  são  principalmente  consti- 
tuídos por  conchas  de  moUuscos  dos  géneros  Vénus, 
(berbigões)  de  mistura  com  espécies  de  Cardiíim,  Arca, 
Corbula,  e  outras:  os  íluviaes  por  conchas  do  género 
Castalia,  Hyria,  Unio,  e  os  centraes  pelas  mesmas  dos 
costeiros  pois  ha  identidade  de  origem. 

Juntamente  com  os  detrictos  de  conchas,  encon- 
tram-se  ás  vezes  nos  sambaquis  fragmentos  de  louça, 
carvão,  camadas  de  terra,  cinzas,  ossos  de  peixes 
e  de  animaes  carnivoros,  artefactos  de  pedra  lascada  ou 
polida,  pontas  de  flecha  de  silex,  adornos  e  ás  vezes 
esqueletos  inteiros. 

Muitas  vezes  as  conchas  decompondo-se  e  agglu- 
tinando-se  com  camadas  terrosas,  adherem  fortemente 
e  formam  blocos  compactos  como  os  que  se  vera  no 
littoral  de  S.  Paulo,  em  outros  casos  o  material 
nunca  chega  a  amalgamar-se  e  desmorona-se  com 
facilidade.  São  desta  natureza  os  sambaquis  que 
Carlos  Wiener  examinou  no  Rio  Bahú  (Santa  Ca- 
tharina). 

Os  esqueletos  humanos  que  se  encontram  nos 
sambaquis  guardam  sempre  a  posição  horizontal,  em 
geral  a  do  decubico  lateral  com  as  coxas  inflectidas 
sobre  o  tronco.  Embora  alguns  ossos  apresentem  a 
còr  branca,  geralmente  tem  a  côr  amareila  de  cera 
tenra.  Em  volta  do  pescoço  não  é  raro  en..ontrar-se 
coUares  de  dentes  de  jaguar,  de  tubarão  ou  feitos  de 
conchinhas  e  ao  lado  do  morto  diversos  instrumentos 
taes  como  machados  de  pedra  polida,  almofarizes, 
massetes  e  outros  utensílios. 

Nos  esqueletos  estudados  por  Carlos  Wiener,  em 
Santa  Catharina,  era  notável  a  espessura  dos  ossos 
do  craneo.  . .{] 

O  Dr.   J.  B.    de  Lacerda  tirou  as  seguintes  con- 


104  HISTORIA  DO   BEASIL 

dusões   do  estudo  que  fez  em   todos   os  craneos  en- 
contrados nos   sambaquis    do  Brasil. 

1°  Que  não  existe  horaogeneide  de  caracteres  em 
todos  os  seus  elementos  componentes. 

2°  Que  a  divergência  de  caracteres  é  devida  á 
influencia  de  alguns  factores,  entre  os  quaes  deve 
incluir  a  serualidade. 

3°  Que  ao  lado  de  caracteres  divergentes  a  mor- 
phologia  das  series  estudadas  apresenta  certos  ca- 
racteres fixos,  que  fazem  destacar  o  typo  no  meio 
das  suas   variantes. 

4°  Que  as  formas  dos  craneos  encontrados  nos 
sambaquis  estabelecem  notáveis  analogias  entre  aquel- 
les  craneos  dos  e  os  craneos  Botocudos. 

O  Sr.  Carlos  Wiener  divide  por  esta  forma  os 
sambaquis. 

1°  Sambaquis   naturaes. 

2"  Sambaquis,  productos  da  indolência  humana 
que  não  removia  para  longe  os  restos  das  refeições 
ou  sambaquis  de  origem  simultaneamente  artificial 
e  fortuita. 

3°  Sambaquis,  obra  da  paciência  do  homem,  que 
durante  um  longe  espaço  de  tempo,  tinha  em  vista 
um  fim  definido,  isto  é,  sambaquis  artiflciaes,  ver- 
dadeiros monumentos   archeologicos. 

Contra  terceira  origem,  esta  também  admittida  pa- 
ra os  shdls  mound,  da  Florida  por  U.  H.  Simons, 
insurge-se  o  Sr.  J.  B.  Lacerda  que  a  combate  n'estes 
termos  : 

A  diversidade  e  a  irregularidade  de  formas  que 
apresentam  os  sambaquis  tem  sido  notadas  tanto  no 
norte  como  no  sul  do  Brasil.  Prova  isto  que  nenhum 
pensamento  presidio  a  taes  formações,  que  ellas  são  o 
resultado  de  condições  meramente  fortuitas,  estranhas  á 
vontade  e  á  previsão  humana,  não  se  tendo  manifestado 
a  intervenção  do  homem  na  feitura  dessa  obra  indirecta 
e  inconsciente.  Nos  documentos  levantados,  ainda 
pelos  povos  menos  civilisados,  existe  sempre  consub- 
stanciado um  pensamento,  o  qual  se  traduz  por  modelos 
ou  formas  mais  ou  menos  correctas,  que  são  idênticas 
ousinjilares  para  o  mesmo  povo.  Os  antigos  americanos 
deixaram  insculpidas  nos  seus  monumentos  formas 
particulares,  que  são  hoje  muito  conhecidas  e  admi- 
radas. O  mesmo  se  deu  com  as  mais  antigas -...raças  do 
Peru.   Se  os  mhabeis  constructorçs  4os  sambaquis, 


INTRODUCÇlO  105 


dessas  obras  grosseiras,  sem  formas  regulares  e  pre- 
fixas, houvessem  querido  com  ellas  perpetuar  algum 
importante  acontecimento  ou  materialisar  um  pensa- 
mento qualquer,  tal  pensamento  ter-se-hia  certamente 
fundido  em  outros  moldes  talhados  com  uniformidade  e 
um  certo  cunho  artistico.» 

Relativamente  aos  sambaquis  ainda  dois  ponto  são 
controversos,  não  tendo  os  materiaes,  até  hoje  reco- 
lhidos, sido  sufficientes  para  resolver  de  modo  satis- 
factorio  a  questão.  Trata-se  do  uso  da  antropophagia 
nos  constructores  inconscientes  ou  não,  d'esses  mo- 
numentos e  da  contemporaneidade  dos  mesmos  com 
os  esqueletos  que   encerram. 

Baseados  nadispersão  dos  ossos  encontrados  querem 
alguns  que  o  cannibalismo  fosse  praticado  pelo  homem 
dos  sambaquis,  outros,  porém,  contrariam  esta  opinião, 
já  affirmando  que  a  dispersão  não  é  um  facto  constante, 
já  provando  que  o  deslocamento  das  camadas  soto  ou 
sobrepostas  ao  esqueleto  era  sufficiente  para  desconjun- 
tar as  suas  peças. 

A  questão  da  contemporaneidade  dos  esqueletos 
com  a  formação  dos  sambaquis,  subordina-se  á  utilisa- 
ção  destes  depósitos  conchyliferos  como  monumentos 
tumulares  ou  pelo  menos  como  logar  propicio  ás  inhu- 
mações.  As  opiniões  são  contradictorias  :  propendem 
alguns  para  a  contemporaneidade  do  tumulo  com  o 
resto  humano  encontrado,  alli  depositado  accidental- 
mente,  ou  como  ainda  praticam  os  Mundurucús  do  rio 
Tapajoz  para  ficarem  próximos  de  casa;  outros,  pelo 
contrario,  acreditam  que  os  corpos  encontrados  nos  sam- 
baquis pertencem  a  gerações  muito  mais  recentes. 

Com  os  progressos  que  indubitavelmente  se  reali- 
sarão  em  nosso  paiz  sobre  antropologia  e  paleoethnolo- 
gia  brasileiras,  acreditamos  que  estes  e  outros  pontos 
obscuros  da  prehistoria  poderão  ainda  ser  melhor  com- 
prehendidos. 

Os  ecramios  (1)  —  O  infatigável  archeologo  bra- 
sileiro Ferreira  Penna  applicou   o   nome  de  ceramto  ás 


(1)  Nos  Arc/iivos  do  Museu  Nacional :  — Carlos  Frederico 
Harti-,  Contribuições  para  a  etimologia  do  Valle  do  Amazonas, 
Ladislau  Netto,  Investigações  sobre  a  avcheologia  brasileira; 
Domingos  Ferreira  Penna,  Apontamentos,  .sobre  os  ceramios  do 
Pará.  Na  B,e\'\stsi  Ensaios  de  Sciençia:-' Babbosa  HoumcvuF, 
Antiguidades  do  Amazonas. 


106  HISTORIA  DO  BEASIL 

grandes  accumulações  de  urnas  funerárias  contendo  ou 
não  ossadas  humanas  e  outros  vasilhames  e  utensílios 
da  primitiva  industria  que  se  tem  encontrado  e  explo- 
rado nas  ilhas  da  foz  do  Amazonas  e  em  outros  pontos 
do  Estado  do  Pará,  já  soterradas,  já  constituindo  emi- 
nências e  collinas  artificiaes. 

Antes  da  applicação  deste  nome,  os  nossos  cera- 
mios,  que  de  certa  forma  correspondera  aos  mounds  dos 
Estados  Unidos  e  tumulis  dos  paizes  scandinavos,  eram 
conhecidos  pelos  nomes  de  Aterros  e  Aterros  sepul- 
chraes.  Na  lingua  indígena  elles  tem  o  nome  de  Mira- 
can-uéra,  que  quer  dizer  ossada  de  gente   antiga . 

O  ceramio  mais  importante,  até  hoje  estudado,  é  o 
dePacoval;  seguem-se-lhe  em  valor  archeologico  os  de 
Santa  Izabel,  Camutins,  Maracá  e  outros. 

O  ceramio  de  Pãcovalacha-sena  ilha  do  mesmo  nome, 
situada  no  lago  Arary,  existente  na  grande  ilha  de  Ma- 
rajó, e  forma  uma  coUina  baixa  e  artificial,  constituída 
por  séries  de  urnas  e  outros  vasos,  separados  irregular- 
mente em  seus  interstícios  por  camadas  de  terra.  Na 
maior  parte  acha-se  coberto  de  plantas  de  mediana  gran- 
deza, entre  as  quaes  pacoveiras  (bananeiras),  de  on- 
de lhe  veio  o  nome. 

O  ceramio  de  Santa  Izabel  acha-se  também  na  ilha 
de  Marajó,  ao  noroeste  do  lago  Arary  e  em  borade  menor 
importância  que  o  de  Pacoval,  rivalisa  com  este  na  per- 
feição dos  desenhos,  relevos  e  pinturas  dos  vasos  que 
encerra.  Ainda  em  Marajó  se  encontra  o  ceramio  de 
Camutins. 

O  ceramio  de  Maracá  acha-se  em  terrenos  mon- 
tuosos,  banhados  pelas  agucs  de  um  braço  do  rio  Ma- 
racá na  Guyana  Brasileira;  quatorze  léguas  acima  da 
cidade  de  Serpa  existe  um  outro  ceramio  —  o  Miracan- 
uéra,  e  também  um  na  foz  do  rio  Trombetas,  no  districto 
de  Óbidos,  o  do  Pará. 

N'estes  diversos  ceramios  encontra-se  grande  nu- 
mero de  urnas  funerárias  de  diversos  tamanhos  e  va- 
riados ornatos,  tinteiros  de  barro,  que  eram  objectos  de 
uso  dos  pintores  indígenas  o  que  segundo  o  Dr.  Ladislau 
Netto  assemelham-se  a  certas  candeias  que  se  tem  des- 
coberto nas  ruínas  de  Pompeia,  tangas  de  barro,  vasos 
p  ira  diversos  íins,  machadinhos  de  dior.ito,  alisadores 
de  vasos,  immersores  de  redes  de  pesca,  instrumentos 
de  trabalho,  symbolos  de  distincção  de  classes,  Ídolos, 
etc.,'etc.  '  ,-^^^ 


INTRODUOÇlO  107 


Em  Pacoval  os  vasos  acham-se  dispostos  em  três 
camadas,  distinctas  entre  si  por  seus  ornatos;  essas 
camadas,  segundo  pensa  o  Sr.  Ferreira  Penna,  represen- 
tam outras  tantas  phases  de  uma  cÍDÍUsação  decrescente, 
pois  a  camada  inferior  é  a  qwi  contem  vasilhame  de 
lavor  mais  delicado. 

A  louça  de  Pacoval  e  de  outros  ceramios  do  Pará, 
embora  não  se  conheça  o  processo  empregado  pelos 
seus  fabricantes,  segundo  afiirmam  Carlos  Hartt  e  Fer- 
reira Penna  é  composta  de  duas  partes:  a  armação, 
corpo  ou  peça  principal,  e  a  cobertura  com  os  ornatos. 
A  armação  é  de  argilla  entrefinacom  pouco  ou  nenhuma 
areia  e  depois  de  formada  era  naturalmente  exposta  ao  ar 
ou  uiesmo  ao  sol  para  enxugar  e  em  seguidareceber  cer- 
tas partes  accessorias,  taes  como  as  alças  e  as  orelhas  e 
depois  a  cobertura  e  os  ornatos. 

A  argilla  para  estes  ornatos  era  finíssima  ;  hume- 
deciam-n'a  talvez  com  algum  sueco  vegetal  e  depois  es- 
palhavam-n'a  para  cobrir  a  massa  do  vaso,  de  modo 
a  formar  uma  camada,  «tão  fina  e  igual,  diz  Fer- 
reira Penna,  quo  a  sua  espessura  pouco  excedia  ás 
vezes  a  de  uma  folha  do  papel  empregado  para  estam- 
pas de  livros.»  Era  sobre  esta  camada  de  barro  que  o 
artist  i  applicava  as  tintas  e  punha  em  relevo  diversos 
ornatos.  Ao  barro  juntavam  como  desengordurantes, 
quer  a  sílica  pura,  quer  cinzas  de  arvores. 

Não  conheciam  a  roda  de  oleiro  e  os  vasos,  con- 
forme demonstrou  o  Prof.  Carlos  Hartt,  eram  formados 
por  cylindros  alongados  de  barro  dispostos  em  espiral  e 
depois  alis.idos  afinj  de  que  desaparecessem  o  signal 
das  espiraes.  «  E/  tão  bem  feito  o  trabalho  de  juncção 
dos  anneis  que,  a  uma  simples  inspecção  do  objecto,  é 
inipossivel  determinar  como  foi  fabricado.  Nunca  eu 
teria  suspeitado  que  a  louça  de  Pacoval  havia  sido  feita 
pela  addição  de  espiras,  se  não  as  tivesse  encontrado 
ainda  não  unidas  nas  superfícies  interior  das  cabeças  de 
Ídolos,  que  tinham  sido  formados  de  baixo  para  cima,  e 
fechados  na  parto  superior.  As  espiras  ainda  conservam 
os  delicados  vestígios  dos  dedos  do  artist  i.  » 
Em  seguida  o  vaso  era  levado  ao  fogo.  " 

O  Prof.  Carlos  Hartt  no  notabilissimo  trabalho  que 
publicou  no  vol.  Vidos  Archioos  do  Museu  Nacional 
afíirma  que,  como  ainda  acontece  con)  algumas  tribus 
indígenas,  a  louça  de  Marajó  foi  fabricada  e  ornamen- 
tada por  mulheres. 


108  HISTORIA   DO   BEASIL 

Muitas  vezes  os  vasos  tem  a  fórma  de  animaes  ou 
de  creaturas  humanas  e  n'este  caso  dá-se  aos  mesmos  o 
nome  de  antroponiorp hos .  Os  ornatos  consistem  em 
gregas,  sygmoides,  volutas,  etc,  desde  as  mais  simples 
até  ás  mais  complicadas;  nota-se  porem  no  entanto 
na  arte  ceramios  a  ausência  absoluta  da  figuração  de 
folhas  e  flores. 

As  tintas  eram  finissimas  e  ainda  hoje  conservam 
toda  a  viveza  de  coloração. 

Os  ossos  são  raros  no  ceramio  de  Pncoval. 

Finalmente,  resta-nos  fallar  do  destino  dos  cera- 
mios que  nos  parece  ter  sido  advinhado  pelo  nosso  iiius- 
tre  compatriota  Ferreira  Penna. 

Eil-o  : 

«  No  meio  de  uma  planicie  immensa  que  se  innunda 
quasi  totalmente  durante  o  inverno,  a  creação  de  uma  ou 
mais  coUinas  que  servisse  de  abrigo,  ao  menos,  ás  fa- 
milias  principaes  e  chefes,  era  obra  aconselhada  pela 
necessidade  ;  esta  necessidade,  reunida  á  veneração  que 
os  indígenas  tributavam  aos  mortos,  deu  sem  duv  ida 
origem  ás  collinas  artificiaes  de  Pacoval,  dos  Camutys  e 
outras  menores  que  apparecem  nas  campinas  da  ilha. 

«  A  grande  quantidade  de  vasos,  de  uso  domestico, 
como  paiiellas,  alguidares,  amphoras,  pratos,  tigellas, 
etc,  e  até  uma  espécie  de  bandeja,  todos  mais  ou  menos 
reduzidos  a  cacos,  deixa  bem  vêr  que  o  logar  em  que  se 
acham,  fora  uma  aldeia  ou  maloca  dos  antigôd  halji- 
tantes. 

«  O  ceramio  de  Santa  Izabel  e  alguns  outros  onde 
não  ha  o  menor  vestígio  de  elevação  do  solo  ou  de  col- 
lina  artificial,  podem  ser  considerados  como  aldeias  em 
começo,  que  deixar<im  de  progredir  ou  foram  abando- 
nadas, por  causa  das  continuas  guerras  que  aos  habi- 
tantes desses  legares  faziam  as  tribus  selvagens  que 
existiam  nas  mattas  visinhas  da  ilha  ou  que,  immigradas 
de  outras  regiões,  tentaram  invadil-a. 

« Assim  o  destino  dos  ceramios  era,  ao  mesmo 
tempo,  servir  de  residência  aos  vivos  e  de  jazigo  aos 
mortos,  não  para  toda  a  tribu  ou  nação,  mas  unicamente 
para  os  chefes  e  para  as  pessoas  de  sua  familia  ou  que 
com  elles  se  achavam  relacionados  por  parentescos; 
pois  tudo  indica  que  na  republica  a  classe  superior  não 
se  confundia  jamais  com  a  inferior,  nem  mesmo  depois 
da  morte,  ou  no  silencio  dos  sepulchros- » 


INTRODUCÇlO  109 


Pelo  que  se  leu  nos  paragraphos  constantes  deste 
capitulo,  as  únicas  fontes  pura  o  estudo  da  prehistoria 
brasileira  são  apenas  as  descobertas  de  Lund  nas  ca- 
vernas do  planfilto  central  do  paiz,  os  sambaquis  encon- 
trados no  littoral  e  a  louçaria  quebrada  dos  ceramios  do 
Pará. 

Embora  importanisstimas  as  informações  que  se  tem 
colhido  do  estudo  desses  legados  inconscientes  feitos  á 
sciencia  pelas  raças  de  povos  que  outr'ora  habitavam 
esta  região,  infelizmente  são  eilas  ainda  insuílicientes 
para  aclarar  a  trovado  nosso  passado  prehistorico  e  bem 
pouco  se  pôde  aííirmar  por  emquanto  sobre  essa  primeira 
lauda  da  historia  do  homem  brasileiro,  tão  apagados  se 
acham  os  caracteres  em  que  se  podia  lel-a. 

O  Dr.  J.  Rodrigues  Peixoto  pelo  estudo  que  fez 
em  todos  os  craneos  existentes  no  Museu  Nacional 
destacou  quatro  typos  bem  caracterisados:  o  do  homem 
da  Lagoa  Santa,  o  do  botocudc,  o  do  homem  dos  sam- 
baqui do  Sul  e  o  do  tupy, 

O  craneo  do  homem  fóssil  da  Lagoa  Santa  é  fran- 
camente dolychocephalo  e  hypsistenocephalo,  caracteres 
que  encontraremos  mais  ou  menos  attenuados  no  bo- 
tocudo.  N'este  o  diâmetro  vertical  do  craneo  tende  a 
abaixar  e  o  transverso  a  ampliar-se. 

O  estudo  de  um  grupo  de  craneos  dos  botocudos 
levou  o  Dr.  Rodrigues  Peixoto  a  formular  a  hypothese 
de  ser  o  botocudo  um  producto  do  cruzamento  entre  o 
homem  da  Lagoa  Santa  euma  outra  raça,  naturalmente 
o  homem  dos  sambaquis  do  sul. 

Os  caracteres  craneologicos  d'essas  duas  raças  re- 
produzem-se  atavicamente  em  alguns  craneos  botu- 
cudos.  Ora  é  o  typo  do  homem  da  Lagoa  Santa,  mais 
ou  menos  dissimulado;  ora  um  craneo  maior,  de  pa- 
redes muito  espessas,  de  aspecto  muito  mais  grosseiro  e 
caracterisado  por  um  prognatismo  ainda  mais  conside- 
rável que  o  dos  negros  da  Africa  Occidental. 

O  terceiro  lypo^  isto  é,  o  do  homem  dos  sambaquis 
dos  estados  meridionaes,  que  segundo  já  dissemos  pa- 
rece ter  sido  um  dos  antepassados  do  botucudo,  é  um 
craneo  sub-dolicocephalo  que,  oscillando  até  a  brachy- 
cephalia,  demonstra  não  pertencer  também  a  uma  raça 
pura.  O  seu  Índice  nasal,  extremamente  uniforme, 
apresenta-o  como  exemplo  de  um  typo  humano  dos 
mais  leptorrhinios. 

O  quarto  typo  ê  o  craneo  dos  tupys  que  se  encontra 


110  HISTORIA    DO  BEASIL 

até  nos  sambaquis.  E'  constituído  por  um  craneo  pe- 
queno, curto,  baixo,  muito  menos  prognatae  eurygnata, 
de  contornos  mais  brandos  e  linhas  mais  suaves;  me- 
saticephalo,  com  tendência  a  brachycephalia,  de  orbitas 
megasemas  e  nariz  platyrrineo. 

Estes  dados  sobre  a  craneologia  indigena  não  nos 
habilitam  ainda  a  tirar  conclusões  sobre  a  prehistoria 
do  Brasil  ;  quando  muito  póde-se  vêr  no  Lagoa  Santa  o 
typo  de  uma  raça  primitiva,  e  no  tupy  uma  raça  mes- 
tiça, para  a  qual  não  concorreu  o  Lagoa  Santa;  o 
homem  dos  sam.baquis  do  Sul,  segundo  já  vimos,  ó 
também  um  producto  de  mestiçagem,  como  porém  dif- 
ferença-se  de  modo  fundamental  do  typo  de  Lund,  é 
por  emquanto  temerária  qualquer  tentativa  para  explicar 
a  sua  origem.  Unicamente  o  botucudo  parece  detinir-se 
mais  cathegoricamente,  visto  poder-se  até  certo  ponto 
destacar-se  os  seus  antepassados  mais  próximos. 

Se  o  estudo  dos  craneos  ainda  não  nos  forneceu 
elementos  para  definir  o  nosso  remoto  passado  sob  o 
ponto  de  vista  ethnographico,  a  analyse  dos  sambaquis 
também  não  aclara  a  nossa  prehistoria.  Não  se  possue 
base  alguma  para  se  calcular  a  antiguidade  desses  mo- 
numentos, nem  podemos  garantir  se  foram  levantados 
por  um  povo  primitivo  que  sempre  habitou  as  regiões 
em  que  elles  são  encontrados  ou  se  taes  accumulações 
de  detrictos  de  cosinha  foram  produzidas  por  uma  raça 
invasora  que  desceu  do  norte  talando  o  littoral. 

O  Dr.  Rodrigues  Peixoto  apresenta  a  seguinte  hy- 
pothese  para  explicar  a  formação  dos  sambaquis: 

«  Em  epochas  determinadas,    que   deverão  talvez 
coincidir  com  a  estação  hibernal  nos  altos  platòs,  esta- 
beleceram-se  correntes  de  migração  para  pontos  diffe- 
rentes  da  costa.  Esses  grandes  ajuntamentos  no  littoral 
tinham   necessidade,   em   falta  de  caça,   de  buscar  os 
meios  de  subsistência  na  pesca.  Os    resíduos   de  ali- 
mentação   fornecidos  pelos  moUuscos    e  peixes  eram 
atirados  em  certos  pontos  do  littoral  formando  a  pouco  e 
pouco  montículos  de  conchas,   espinhas,   etc.   Nas  es- 
tações seguintes  novos    materiaes    iam  ajuntar-se  ao 
primitivo  deposito,  ao  mesmo  tempo  que  as  terras  tran- 
sportadas pelas  aguas  vinham  allitauibem  depositar-se. 
Ia  assim  crescendo  cada  anuo  o  núcleo  d'es&a  íorniação 
inicial,  até  que   decorrido  um  longo  lapso  oe  tempo, 
poderam  ellas  atlingir  as  proporções  que  hoje  conhe- 
cemos. 


INTEODUCÇlO  111 


«  Como  era  natural  acontecer,  em  cada  estação,  um 
011  mais  membros  da  tribu  emmigrada  succumbia  de 
alguma  doença  adquirida  sob  a  influencia  da  mudança 
de  meio,  e  os  seus  despojos  mortaes  eram  sepultados  no 
montão  de  conchas.  Que  as  cousas  deveram  se  ter  pas- 
sado assim,  parece-nos  muito  provável  e  nenhuma  ex- 
plicação se  nos  affigura  estar  mais  de  accòrdo  com  os 
hábitos  e  costumes  dos  nossos  indígenas  e  com  as  con- 
dições climatologicns  e  topographicas  das  regiões  que 
elles  habitaram,  como  a  que  acabamos  de  dar.  » 

Nos  diversos  cera  mios  podemos  ver  um  effeito  da 
civilisação  maya-azteca  que  dilata-se  ao  Peru,  aos  Chib- 
chás  da  Colômbia,  talvez  aos  Omaguas  do  Alto  Ama- 
zonas e  vem  afinal  vibrar  em  Marajó,  embora  quasi  já 
sem  energia,  podendo  ser  explicado  o  phenomeno,  ou 
por  affinidades  ethnicas  entre  esses  diversos  povos  ou 
simplesmente  pelo  facto  da  visinhança. 


CAPITULO  IV 

FACTOREii     ETUMlCOSi 

Para  a  constituição  do  povo  brasileiro  concorre- 
ram três  principaes  factores  ethnicos  —  o  portuguez,  o 
Índio  e  o  negro  africano  e  nossa  historia,  desde  o  mo- 
mento da  conquista  ato  tiojo,  caracterisa-se  ou  pelos  ef- 
feitos  da  iníluencia  exclusiva  de  um  desses  factores,  ou 
por  circumstancias  derivadas  da  approximação  dos  três, 
ou  pela  .feição  especial  que  lhe  imprime  um  terceiro 
typo— o  brazileiro,  producto  de  cruzamentos,  ou  simples- 
mente producto  da  differenciação  operada  pela  acção 
enérgica  do  meio. 

A  intervenção  exclusiva  de  um  só  dos  factores 
ethnicos,  a  combinação  ou  aggregação  dos  mesmos,  ou 
finalmente,  a  fusão  mais  ou  menos  perfeita  desses  diffe- 
rentes  elementos,  determinam  feições  typicas  ás  di- 
versas phases  de  nossa  historia. 

Em  todo  o  século  XVI  e  parte  do  seguinte  o  por- 
tuguez, com  exclusão  dos  outros  coUaboradores  ethnicos 
de  nossa  nacionalidade,  é  o  único  a  predominar  no  de- 
terminismo histórico.  O  Índio,  em  lucta  aberta  com  o 
invasor,  apenas  relampaguôa  em  curtos  episódios  de 
guerra  nos  quaes  assignala  o  instincto  de  combatividade 
que  domina  o  seu  caracter.  O  negro  mantem-se  ná  sua 
condição  passiva  de  escravo  e  na  incomprehensão  da 
que  se  passa  em  torno  de  si. 

N'este  periodo  que  podemos  chamar  do  isolamento 
ethnico,  a  historia  do  Brasil  é  simplesmente  a  da  ex- 
pansão da  civilisação  portugueza  n'este  trecho  da  Ame- 
rica, quer  no  seu  desdobramento  tranquillo,  quer  nos 
seus  embates  coma  barbaria  indígena.  O  portuguez  é  o 
actor  principal  de  todos  os  actos  de  realce  histórico;  o 
Índio,  acardumado  nas  selvas  e  não  conhecendo  outra 
cohesão  social  que  a  da  cabilda,  circumstancia  que  Iheim- 
pede  os  grandes  movimentos  collectivos,  não  representa 
ainda  nenhum  papel  histórico  digno  d'esse  nome  :  re- 
pellido  por  toda  a  parte  e  esmagado  como  um  estorvo  à 
ganância  e  á  implantação  do  droit  de  seigneur,  quando 
muito  corta  a  scena  no  momento  breve  e  tumultuoso  dos 
combates  ;  o  negro,  reduzido  pelo  captiveiro  á  condição 


114  HISTORIA  DO  BRASIL 

do  animal  domestico  despallia  automaticamente  os  can- 
naviaes  e  chora  em  silencio,  confundindo  os  seus  tristes 
gemidos  que  nem  o  branco  nem  a  historia  ouvem,  com 
os  mil  rumores  indistinctcs  da  natureza  livre  em  que 
se  vê  escravo . 

E,  se  porventura,  tanto  o  aborígene  como  o  africano 
escravisado,  n'uma  ordem  regia  que  lhes  legalisa  a 
perseguição  e  a  miséria,  na  communicação  de  um  vocá- 
bulo ou  de  uma  pratica  á  linguagem  ou  aos  costumes 
do  conquistador  impressionam  a  historia,  fazem-n'o  por 
forma  tão  leve  que  não   modificam  o  fácies  da  epocha. 

N't'ssa  phase  inicial  de  sua  historia  o  Brasil  é 
apenas  o  meiogeographico  em  que  se  realisa  o  encontro 
de  três  raças  diffV rentes  e  em  estágios  diversos  da  evo- 
lução social. 

A  mais  culta  dessas  raças  é  dominada  pela  ambição 
de  lucros,  pela  paixão  ás  aventuras  de  caracter  roma- 
nesco, pelo  fanatismo  catholico  e  pelo  espirito  de  domi- 
nação, tudo  subordinando-se  a  dois  princípios  supremos 
— a  dedicação  ao  rei  e  o  respeito  á  religião  e  revelando-se 
sobre  um  fundo  moral  de  poesia  cavalheiresca  ou  lyrica, 
formado  cora  as  gestas,  os  cantares,  os  romances  da  Ta- 
vola  Redonda,  as  lendas  chnstãs,  as  tradições  épicas 
ou  maritimas  ;  o  indio  consonie-se  no  ódio  ao  homem 
de  alem  mar  que  o  enxota  das  praias  onde  a  pesca  lhe 
garantia  fácil  subsistência  e  debate-se  pela  conservação 
de  sua  independência  selvagem;  o  negro,  não  pensa 
nem  delibera,  as  dores  e  as  humilhações  do  captiveiro 
embrutecem-n'o— soffre  e  mais  nada. 

Esse  estado  de  isolamento  das  raças  não  podia  no 
entanto  ser  duradouro  :  pelo  trabalho  prolongado  e  con- 
stante da  catechese  a  que  os  jesuítas  se  entregam  o  indio 
vai  pouco  a  pouco  sentindo  diminuir  a  repulsão  pelo 
europêo  ;  a  vida  debaixo  do  mesmo  tecto  e  as  naturaes 
e  inevitáveis  effusões  da  intimidade  estimulam  os  senti- 
mentos affectivos  do  negro, fazendo- o  afinal  interessar-se 
pelo  senhor;  assim,  quando  se  organisa  a  resistência  aos 
batavos,  já  as  três  raças,  perdidas  as  repugnancias  reci- 
procas, aproxinjam-se  e  combiuam-se  para  levar  a  cabo 
a  grande  empreza,  dando-se  entãu  o  facto  de  ser  o  phe- 
nomalismo  his-orico  impressionado  por  três  energias 
distinctas  que  se  accentuam  de  accordo  com  a  intensi- 
dade peculiar  a  cada  uma. 

O  portuguez  domina  ainda  no  primeiro  plano,  porem 
o  indio  e  o  negro  já  não  são  entidades  que  lhe  seja  pre- 


INTRODUCÇlO  115 


ciso  a  todo  o  transe  supprimii-  ou  escravisar;  são,  pelo 
contrario,  seus  auxiliares  e  mui  valiosos  na  obra  da  inte- 
gração do  território  conquistado. 

Não  queremos  dizer  com  isso  que  do  então  por 
diante  o  índio  deixe  de  ser  caçado  como  lera  e  o  negro 
nunca  mais  seja  utilisado  como  cousii,  pois  ó  sabido 
que  as  perseguições  ao  primeiro  só  terminam  na  adminis- 
tração do  Pombal,  e  o  se;^undo  só  em  nossos  dias  con- 
segue quebrar  de  todo  os  grilhões  do  captiveiro,  porém 
a  intuição  geral  da  epocha  durante  a  guerra  hollandeza 
é  a  de  uma  approximação  das  raças,  e  por  isso  julgamos 
não  errar  applicando  lhe  o  nomo  de  phase  da  aggre- 
gação  ethnica. 

N'essa  hora,  ao  sahirem  os  terços  á  peleja,  tendo  á 
frente  Vieira  o  portuguez,  Camarão  o  indio,  e  Dias  o 
negro,  não  existem  mais  senhores,  escravos  e  perse- 
guidos, ha  unicamente  inimigos  de  flamengos  e  a  distin- 
cção  está  somente  no  maior  ou  menorvalor  guerreiro  dos 
combatentes,  na  aptidão  militar  de  cada  um,  na  boa  ou 
má  estrella  dos  campeões. 

Assim,  para  nós,  Tibyriçá,  o  cacique  guayanaz, 
mostrando-se  amigo  dos  portuguezes  naphase  histórica 
do  isolamento  ethnico, quando  vivíssima  era  a  antipathia 
entre  os  da  sua  raça  e  os  conquistadores,  é  um  facto 
anormal  ;  Cala  bar,  iuiniigo  dos  mesmos  portuguezes, 
no  periodo  das  cíTusões  entre  as  três  raças,  também  fur- 
ta-se  á  lei  geral,  podendo  ambos  serem  considerados 
como  productos  prematuros  da  evolução  histórica.  Se 
Tebyriçá  vivesse  no  tempo  de  Camarão,  seu  nome  não 
figuraria  em  nossa  historia,  a  não  ser  que  se  distin- 
guisse por  altos  feitos  de  guerra  ;  a  deserção  de  Calabar, 
se  se  effectuasse  alguns  annos  depois,  ao  tempo  das 
guerras  dos  Mascates  e  Emboabas  não  causaria  espanto 
a  ninguém,  entraria  no  quadro  dos  factos  normaes. 

Aggregadas  as  raças,  como  vimos,  por  um  trabalho 
secula r  de  approximação  e  pelas  affirmaçOes  de  sympa- 
thias  nas  effusões  dos  acampamentos,  nas  alegrias 
communs  das  victorias,  nas  magnas  collectivas  dos 
momentos  de  Into,  opera-se  logo  a  fusão  e  surge  um 
typo  novo— o  brazileiro,  que  é,  ou  o  producto  physiolo- 
gico  do  cruzamento  ou  um  productu  não  cruzado,  mas 
profundamente  differenciado  pelo  meio. 

Não  temos  a  prelenção  de  legislar  em   taes  assum 


116  HISTORIA  DO   BEASIL 


ptos,  parece  nos  no  entanto,  que  as  primeiras  manifes- 
tações reaes  do  caracter  brasileiro  na  historia  pátria, 
aquellas  que  imprimem  aos  factos  uma  feição  verdadeira- 
mente distincta  das  precedentes,  têm  logar  nesso  mo- 
mento, e  que  o  eminente  professor  Capistrano  de  Abreu 
caracterisa  como  o  da  opposiçào  do  b;indeirismo  ao  trans- 
oceanismo,  isto  é,  quando  o  Anhanguera  arranca-se 
dos  campos  de  Piratininga  e  vae  arranchar-se  junto  á 
mina  dos  Martyrios,  quando  outros  paulistas  e  tauba- 
teanos  devassam  Matto  Grosso  e  os  Campos  da  Vac- 
caria  e  do  Viamáo  ;  quando  o  Mafrense  penetra  nos 
'sertões  de  Piauhv,  Paschoal  da  Silva  explora  o  To- 
cantins, o  velho  'Paes  Leme  chega  ás  minas  de  es- 
meralda e  outros  pesquizam  os  igarapés  do  Amazonas 
cursando  este  até  Manáos  e  mais  longe  ainda.  A  pre- 
tenção  de  lançar  uma  coroa  de  rei  sobre  a  guedelha 
sertaneja  de  Amador  Bueno  é  o  facto  que  assignala  o 
inicio  da  novaphase. 

Então  começam  a  apparecer  na  população  colonial 
as  velleidades  de  independência  porque  o  Brasil  já  é 
uma  Pátria  e  tem  filhos  próprios  nos  quaes  accentua-se 
um  espirito  novo,  europeu  pelas  tendências  progres- 
sistas, Índio  pela  impetuosidade  das  paixões,  negro  pela 
intensidade  dos  sentimentos  affectivos  e  i  riginal  por 
qualidades  próprias  e  pelo  poderoso  sentimento  da  nacio- 
n  ilidade  que  gera  todas  as  virtudes  e  todos  os  talentos. 

O  trabalho  de  differenciação  não  tem  sido  uniforme 
em  toda  a  vasta  área  de  nossa  Pátria;  em  certos  pontos  ó 
mais  rápido,  em  outros  a  subordinação  a  qualquer  dos 
factores  ethnicos  originaes  tem-se  tornado  mais  dura- 
doura, todavia  o  trabalho  é  latente  e  necessariamente 
produzirá  os  seus  effeitos;  os  cruzamentos  successivos  e 
o  poder  de  absorpção  da  raça  branca  têm  quasi  eliminado 
o  Índio  e  o  negro  que  vão  sendo  substituídos  por  mes- 
tiços, cada  vez  mais  approximados  do  branco;  o  por- 
tugucz,  por  seu  lado,  vai  sendo  neutralisado  e  já  não 
embaraça  muito  pronunciada  mente  a  marcha  de  nossa 
civilisação,  no  entanto  todo  o  trabalho  pohtico,  litterario 
ou  artístico,  digno  do  nome  de  patriótico,  deve  ainda 
tender  necessariamente  para  completar  essa  emanci- 
pação e  representar  um  esforço  no  sentido  de  diííerenciar 
mais  o  sempre  mais  o  caracter  brasileiro  das  nocivas 
iniluencias  de  origem  ethnica,  pois,  como  pensa  com 
muito  acerto  o  i Ilustre  critico  brasileiro   Dr.  Svlvío  Ro- 


INTEODUCÇÃO  117 


mero  «  a  nação  brasileira,  si  tem  um  papei  liistorico  a 
representar,  só  o  poderá  fazer  quanto  mais  sepai'ar-se 
do  negro  africano,  do  selvagem  íupy  e  do  aoentureiro 
poriuguez.  (1) 


Passemos  agora  a  estudar  as  particularidades  rela- 
tivas a  cada  um  dos  factores  ethnicos  que  contribuiram 
para  a  constituição  do  povo  brasileiro  e  formação  de 
nossa  nacionalidade. 

O  PORTUGUEZ 

Typo  aMtropolog-ico. —  (2)  O  portuguez  faz  part'^ 
da  serie  de  typos  antropológicos  que  Paulo  Topinard 
classificou  debaixo  do  nome  de  typos  europeus  morenos  q 
cujos  caracteres  especiaes  são:  olhos  negros  ou  pardos, 
cabellos  pretos  e  pelle  branca,  amorenando  com  facili- 
dade sob  a  acção  dos  raios  solares. 

Os  demais  caracteres  que  lhe  são  communs  com  o 
typo  europeu  louro,  são :  tez  sempre  branca  nas  creanças, 
barba  abundante,  cabellos  finos,  lisos  ou  ondeados,  craneo 
apresentando  um  oval  de  contorno  regular,  arcadas  zygo- 
maticas  occultas,  fronte  larga  na  base,  sem  ser  fugidia, 
nem  bombeada  no  vértice,  bossas  frontaes  sobresahindo 
distinctamente,  porém,  sem  excesso,  rosto  antes  oval 
do  que  alongado,  mas  sem  exaggero  dos  ossos  malares, 
nariz  de  ponta  firme  e  paredes  latteraes  reunindo-se  em 
angulo  agudo,  narinas  ellipticas,  quasi  parallelas,  es- 
queleto do  nariz  leptorrhineo  ou  mesorrhineo,  maxillas 
e  dentes  dispostos  em  uma  linha  quasi  recta,  bocca 
pequena,  dentes  rectos,  comprimidos,  branco-azulados 
ou  branco  amarellados,  sujeitos  à  carie;  queixo  saliento, 
orelha  de  forma  oval  alongada,  estatura  mediana,  peito 
amplo,  espáduas  largas,  curvatura  dos  rins  bom  pro- 
nunciada, músculos  firmes. 

Estes  são  os  principaes  caracteres  do  typo  europeu 
moreno;  no  portuguez,  porém,  que  é  o  resultado  de  nu- 
merosos crusamentos  todos  esses  caracteres  são  muito 
variáveis. 


1)  Sylvio  Romero.— Historia  da  litieraiura  brasileira. 
(2    Paul  TopwxKH.—UAnthropologie. 


118  HISTORIA  DO  BRASIL 

Origem  do  povo  portiiguez. — A  r'e*coberta  de 
uns  restos  humanos  em  terrenos  de  formação  terciária 
do  valle  do  Tejo,  feita  pelo  pale^ethnologo  portuguez 
Carlos  Ribeiro,  faz  crer  que  o  homem  habitasse  a  parte 
Occidental  da  península  ibérica  desde  o  período  que  os 
geólogos  denominam  eocene  e  que  é  o  mais  antigo  da 
epocha  neozoica.  Gabriel  de  Mortillet  procLniiou  como 
verdade  essa  hypothese,  dando  ao  homem  terciário  de 
Portugal  o  nome  de  Aníhropithecus  Ribeiroii,em  home- 
nagem ao  seu  descobi'idor.  (1) 

Com  mais  razão,  por  conseguinte,  podemos  admittir 
a  existência  do  homem  em  Portugal  nos  tempos  quater- 
nários e  naquelles  em  que  se  inaugurou  o  uso  dos 
metaes. 

Essa  prehistoria  portugueza  é  porém  totalmente 
desconhecida,  e  o  pouco  adiantamento  dos  estudos  paleo- 
ethnologicos  naquelle  paiz  não  permittem  por  eraquanto 
penetrar-Ihe  o  mysterio. 

Não  se  possue  igualmente  dados  exactos  sobre  os 
primeiros  povos  que  vindos  de  fora  amalgamaram-se 
com  os  autochtones  ou  sobrepuzeram-sea  estes, comtudo 
os  eruditos  julgam  poder  affirmar  que  a  primeira  mi- 
gração fez-se  com  povos  da  raça  uralo-altaica,  perten- 
cente ao  tronco  turano,  cujos  vestígios  se  encontram  no 
dialecto  euskara  que  se  conservou  inalterável  entre  os 
camponezes  das  Províncias  Vascongadas,  na  Hespanha. 
Esses  povos  eram  os  Iberos  ou  Iberês. 

Em  seguida  diversas  migrações,  quer  de  origem 
semit'ca,  quer  de  origem  aryana  irromperam  na  penin- 
sul-i.  Seguindo  a  ordem  chronologicR  e  comecindo  pelas 
mais  antigas,  os  povos  que  vieram  á  Península,  foram: 
os  celtas,  que  ainda  se  fazem  lembrar  pelos  dohnens 
e  por  algumas  superstições  que  já  se  encontravam  entre 
os  druidas,  os  phenicios  que  na  Ibéria  procuraram  uma 
expansão  ao  trou  commercio  marítimo,  os  gregos,  pela 
dilatação  do  seu  espirito  colonisador,  os  carthagineses 
(elemento  lybico  phenicio),  os  romanos,  os  suevos,  os 
godos  e  finalmente  os  árabes. 

Como  se  vé  muitos  foram  os  factores  ethnícos  que 
contribuíram  para  a  constituição  do  povo  portuguez,  o 
qual,  na  sua  historia,  na  lingua,  no  direito,  nas  tendên- 
cias religiosas  e  politicas,   nos  usos,   nos  costumes  e 


(Ij  Gabriel  Mortillkt.— Le  pre/us(ori'jue. 


INTEODUOÇlO  119 


finalmeute  em  todas  as  suas  inani lestacues  sociaes  revela 
a  influencia  comploxa  desses  nunicrosos  collaboradores 
ethnicos. 

Factos  histórico»).  -  A  independência  de  Portu- 
gal data  do  principio  do  século  XII.  D.  Henrique,  prin^ 
cipe  capetingio  da  casa  de  Borgonha  c  descendente  de 
íiugo  Capeto,  tendo-se  casado  com  D  Thereza,  filha  de 
Aífonso  VI.  rei  de  Castella  e  Leão,  obteve  em  dote  o 
condado  de  Portugal  (Porto  Cale)  e  bem  assim  todo  o 
território  que  pudesse  conquistar  aos  Mouros .   (1) 

Morrendo  D.  Henrique,  succedou-lhe  seu  filho  D. 
Affonso  Henrique,  sob  a  tutella  de  D.  Thereza,  sua 
mãe,  e,  tendo  o  jovem  senhor  se  escandalisado  pelo 
facto  de  manter  a  condessa-mão  relações  amorosas  com 
um  vassalo,  tomou  armas  contra  ella  e  banio-a,  sacu- 
dindo violentamente  a  tutella. 

Em  seguida  D.  Affonso  Henriques  dirigiu-se  con- 
tra os  mouros  que  occupavam  o  sul  da  península  e  em 
1 128  venceu-os  na  memorável  batalha  do  campo  de 
Ourique. 

Mais  tarde  (1140),  fazendo-se  representante  das 
idéas  separatistas  que  dominavam  entre  os  seus  com- 
patriotas, dirigiu  as  armas  lusitanas  contra  seu  avô 
Affonso  e  conseguindo  vencel-o  na  batalha  de  Valdevez, 
proclamou  a  independência  de  Portugal  e  foi  accla- 
mado  rei,  sendo  logo  reconhecido  pelo  papa. 

Foi,  por  conseguinte,  Affonso  Henriques  o  funda- 
ior  da  monarchia  portugueza,  e  bem  assim  o  tronco  da 
'vmnastia  dos  Borgonhas,  cujos  monarchas  reinaram 
;m  Portugal  até  1393.  Esses  monarchas  furam  D.  Affon- 
so Henriques  (1140-1185),  D.  Sancho  I  (1185-1211),  D. 
Affonso  II  (1212-1233).  D.  Sancho  II  (1233-1248),  D. 
Affonso  III  (1248-1279.  D.  Diniz  (1279-13J5),  D.  Affonso 
IV  (1325-13571,  D.  Pedro  I  (1357-1367;;  D.  Fernando 
(1367-1383). 

Cabe  a  esta  dymnastia  a  gloria  de  realisar  a  inte- 
gração do  território  portuguez  conquistado  palmo  a 
palmo  aos  árabes,  o  povo  gloriosa  porfia,  em  a  qual 
adquirio  a  paixão  pelas  aventuras  guerreiras  senti- 
mento esse  que  dá  á  primitiva  historia  portugueza  uma 
feição  épica. 


(1)  Alexandre  Herculano. —Historia  de  Portugal 


120  HISTORIA  DO  BRASIL 

Durante  esse  período,  em  Portugal,  observou-se 
a  mesma  lucta  politica  que  agitava  as  outras 
nações  da  Europa,  isto  é,  veritica-se  o  conflicto  entre  o 
poder  real,  a  nobreza,  o  clero  e  a  burguezia  como  repre- 
sentante do  povo, o  qual, interessado  na  conservação  das 
suas  regalias,  ora  presta  concurso  ao  rei,  ora  auxilia  a 
fidalguia  ou  os  padres. 

Como  porem  aconteceu  na  França,  em  Portugal 
o  poder  real  foi  pouco  a  pouco  supplantando  e  impondo- 
se  vigorosamente  aos  outros  estados.  Clero,  nobreza  e 
povo,  após  longos  períodos  de  intrigas  que  por  vezes 
convulsionaram  eensanguentarrim  o  paiz,  sem  que  no 
entanto  vissem  realisadas  as  suas  pretenções,  submette- 
ram-se  afinal  ao  despotismo  real;  quando,  por  morte  de 
D.  Fernando, sobe  ao  throno  D.  Joãol  que  se  constitue  o 
tronco  da  dymnastia  de  Aviz,  já  o  poder  real  nada 
mais  tem  a  temer;  a  soberania  exclusiva  do  rei  tornou-se 
um  facto  indiscutível. 

Até  D.  Manuel,  em  cujo  reinado  se  descobre  o  Bra- 
sil foram  estes  os  príncipes  da  casa  de  Aviz  que  assen- 
taram-se  no  throno  portuguez:  D  João  I.  (1385-1433), 
D.  Duarte  (1433-1438),  D.  Affonso  (1438-1481),  D.  João 
II  (1481-1495),  D.  Manuel  (1495-1521). 

Este  período  é  o  mais  notável  e  brilhante  da  his- 
toria portugueza,  verificando-se  nelle  os  três  aconteci- 
mentos capitães  do  drama  d'aquella nacionalidade:  a  des- 
coberta do  roteiro  da  índia  pelo  sul  da  Africa,  o  asenho- 
reamento  do  Brasil  e  a  producção  dos  Lusíadas,  a  bella 
epopéa  que  resume  toda  a  alma  da  Pátria  e  assignala  a 
sua  hora  suprema  de  glorias.  Camões  e  o  infante  D. 
Henrique  bastaram  para  preparar  essa  apotheose. 

O  direito.  (1)— O  direito  portuguez  procede  prin- 
cipalmente de  três  fontes  originarias;  o  direito  romano, 
o  direito  germânico  e  o  direito  canónico,  os  quaes,  con- 
binando-se  formaram  o  direito  dos  reinos  di  Península 
Ibérica,  bem  como  o  de  todas  as  nações  modernas. 

Feita  a  independência  do  condado  portucalense  e 
realisada  a  sua  elevação  à  cathegoria  de  reino,  Portu- 
gal durante  algum  tempo  regeu-se  ainda  pelo  Fuero 
Ju3go,  velho  monumento  da  jurisprudência  hespanhola, 


(!)  Martins  Júnior.— ^ís^ona  do  Direito  Nacional.— ÍULio 
DE  Vilhena.— /Is  raças  históricas  da  península  ibérica  e  sua  in- 
fluencia no  direito  portuguez. 


INTRODUCÇlo  121 


no  qual  o  direito  romano  e  o  direito  bárbaro  já  se 
achavam  fusionados,  mas,  pouco  a  pouco  foram  se 
admitindo  os  foraes,  que  eram  leis  particulares  e  va- 
riadas para  reger  os  pequenos  districtos  ou  conselhos 
de  reino  c  afinal  passou-se  á  organisação  de  leis  geraes. 
O  direito  foraleiro  predomina  mais  ou  menos  no 
periodo  do  conflicto  entre  o  rei,  a  nobreza  e  o  povo;  o 
direito  das  leis  geraes  vae  se  afíirmando  á  medida  que 
o  poder  real  consegue  ir  se  consolidando. 

A  primeira  promulgação  de  leis  geraes  teve  lo- 
gar  no  reinado  de  AfTonso  II  que  para  isso  convocou 
as  cortes,  reunindo-as  em  Coimbra.  Procurando  sobre- 
pòr-se  á  legislação  particularista,  fragmentada  e  con- 
tradictoria  dos  foraes,  as  leis  de  Afionso  II  assentam 
o  principio  jurídico  di  igualdade  perante  a  lei,  insti- 
tuem nas  diversas  localidades  juizes  de  eleição  popular 
para  a  distribuição  da  justiça,  limitam  as  faculdades 
adquisitivas  do  clero,  cohibem  os  excessos  da  vindicta 
privada  e  ordenam  que  a  pena  de  morte  seja  executada 
unicamente  vinte  dias  depois  de  promulgada  a  senten- 
ça/)0í5,  a  justiça,  pode  ser  feita  em  qualqner  tempo,  po- 
rém a  injustiça  uma  vez  commeítida,  é  irreparável. 

Affonso  III  promulgou  também  diversas  leis  ge- 
raes de  natureza  penal ;  modificou  as  de  Affonso  II  re- 
lativas aos  juizes  eleitos  pelo  povo  e  creou  magistrados 
especiaes  encarregados  de  fazer  inquisições  annuaes  so- 
bre o  procedimento  d'aquelles juizes. 

No  reinado  de  Affonso  V  foram  colligidas  todas  as 
leis  geraes  promulgadas  desde  Affonso  II  e  publicadas 
sob  o  titulo  de  Ordenações  Affonsinas . 

Essa  legislação,  qne  para  a  epocha  era  bastante  li- 
beral, vigorou  até  D.  Manuel,  em  cujo  reinado  foi  pu- 
blicada uma  nova  compilação  de  leis  geraes  que  tomou 
o  titulo  de   Ordenações   Manuelinos. 

Neste  código  são  reeditadas  as  leis  das  Ordenações 
A/fonnnas,  ás  vezes  somente  em  resumo,  e  publicadas 
as  providencias  e  alterações  que  se  lizeram  no  intcr- 
vallo  entre  uma  e  outra  compilíicão. 

Na  promulgação  e  codificação  das  leis  geraes  obser- 
va-se  que  o  direito  romano  tem  pouco  a  pouco  invadido 
a  justiça  em  detrimento  do  direito  bárbaro  e  do  direito 
canónico  cujo  espirito  era  contrario  ao  alicc  rcamenlo 
do  poder  real,  fim  principal  que  os  monarchas  tiveram 
sempre  em  mente. 


122  HISTORIA  DO  BBA8IL 

As  Ordenações  Manoelinas,  na  parte  relativa  ao 
direito  civil,  acompanham  de  muito  perto  o  dir^àto  roma- 
no, admittindo  no  entanto  modificações  resultantes  da 
intervenção  do  direito  wisigothico,  taes  como  os  feudos, 
os  morgados,  os  dotes,  arrhas  lIc  matrimonio,  etc  Na 
parte  relativa  ao  direito  penal  era  de  uma  severidade 
extrema,  tornando-se  celebre  a  phrase  sinistra  morra 
per  ello,  que  resumia  a  sentença  applicada  á  maioria  dos 
crimes. 

A'  antiga  legislação  romana  e  ás  glossas  de  Accursio 
e  de  Bartholo,  não  reprovadas  pelos  doutores,  eram  va- 
lidas nos  casos  não  previstos  por  lei;  os  cânones,  eram 
subsidiários  nos  casos  que  envolviam  peccado. 

A  distribuição  da  justiça  nas  aldeias  e  em  pri- 
meira instancia  era  feita  por  juizes  ordinários,  eleitos 
por  um  anno  dentre  os  homens  bons,  ou  pessoas  mais 
conceituadis,  e  nas  cidades  e  villas  por  âois juizes  da 
vara  vermelha,  nome  que  lhes  vinh'i  do  distinctivo  que 
usavam . 

Acima  dos  Juizes  ordinários  e  juizes  da  vara 
vermelha  achavam-se  os  juizes  de  fora  ou  juizes  da 
vira  branca,  que  eram  letrados  de  nomeação  directa 
do  rei.  Onde  estes  se  achavam  cessava  a  jurisdicção 
dos  juizes  ordinários  c  o  mesmo  acontecia  apresen- 
tando se  juizes  especiaes  de  órfãos  de  defunto  e  ausente'^, 
do  crime,  etc. 

Nas  causas  julgadas  em  primeira  instancia  appella- 
va-se  para  a  Casa  do  Civil,  e  desia  para  a  Casa  da 
S  ipplieaçãò  ou  para  o  D^.s°mbar(jo  do  Paço. 

O  governo  municipal  era  exercido  pela  Camará 
ou  Senado  constituído  pelos  juizes  ordinários,  um  a 
dois  vereadores,  e  um  procurador  do  conselho.  Além 
disso  havia  em  cada  conselho  um  escrivão  e  um  almo- 
tacé  ao  qual  cumpria  fazer  executaras  posturas  e  de- 
mais serviços  de  fiscalisacão. 

A  policia  do  conselho  achava-se  a  cargo  de  um  al- 
caide. 

A  linj;iiit  poi'tug;iieza.  —  A  lingua  portu- 
gueza  pertence  ao  grupo  das  linguas  novo  — latinas  ou 
românicas.  Constituio-se  sobre  um  fundo  de  latim 
bárbaro  e  com  elementos  subtrahidos  ás  linguas  dos 
diversos  povos  que  peregrinaram  pola  Península  Ibé- 
rica ou  desta  região  fizeram  a  ultima  estação  do  seu 
movimento  migratório. 


I 


INTBODUCÇlO  123 


Existe  parentesco  muito  próximo  entre  a  lingua 
poí-tngncza  o  a  limgua  hesjjanhola,  porém  mais  intimo 
ainda  com  o  dialecto  gaileziano  que  nunca  chegou  a 
constituir-se  em  lingua  por  falta r-lhe  a  sancçno  da  na- 
cionalidade. 

í  Até  a  proclamação  da  independência  do  condado 
portucalense  o  portuguez  é  apenas  um  dialecto  local, 
logo  porém  que  effectua-se  a  separação,  elle  reveste-se 
do  caracter  de  Imgua  nacional  e  começa  a  ser  escripto, 
destacando-se  afinal  completamente  do  dialecto  gaile- 
ziano com  o  q;iai  primeiramente  se  confundia. 

A  fiUtoratura  portugiieza  (1). — Para  melhor 
comprehender-se  o  caracter  da  litteratura  portugueza 
no  momento  em  que  se  procede  ao  primitivo  povoa- 
mento do  Brasil,  faremos  um  resumo  de  sua  historia, 
tomando  por  guia  de  nossa  breve  exposição  a  Hiatoria 
da  litteratura portagaeza  áQT\\QO^\\\\o'QTd.^Qi^  o  erudito 
e  operoso  critico  luzitano. 

Desde  a  proclamação  da  independência  do  condado 
portucalense  até  passar  Portugal  ao  dominio  d(3  Cas- 
tella,  a  historiada  litteratura  portugueza  pôde  ser  di- 
vidida em  três  epochas:  a  dos  trovadores  (séculos  XIÍ, 
XIII  e  XIV),  a  dos  poetas  palacianos  (século  XY)  o  a 
dos  quinhentistas  (século  XVI). 

ÍS^a  primeira  epocha  predomina  na  litteratura  por- 
tugueza o  lyrismo  provençal  dos  trovadores  e  a  imitação 
das  formas  gallezianas;  o  primeiro  revela-se  em  quasi 
todas  as  producções  poéticas  que  acham-se  nos  can- 
cioneiros desses  tempos,  a  segunda  apparsce  nas  serra- 
nilhas  e  nos  cantos  de  ledino.  Outrosim  penetram  em 
Portugal,  por  efTeito  da  estadia  de  D.  Affonso,  irmão  de 
Sancho  II,  e  alguns  nobres  portuguezes  na  corte  de 
S.  Luiz,  as  cnnções  de  gesta  do  norte  da  França,  as 
quaes  fazem  apparecer  Reginuldos,  Don  Gar/eiros, 
Dona  Alda  o  outrascomposições  de  idêntica  natureza, ao 
mesmo  tempo  que  as  tradições  ep-cas  são  condensndas 
litterariamente  no  poema  da  Batalha  do  Salado.  Final- 
mente, faz-se  também  sentir  nos  três  jirimeiros  séculos 
da  litteratura  portugueza  a  iníluencin  da  poesia  arnio- 
ricana  que  se  communica  pelo  lyrismo  dos  loys,  tra- 
duzido nas  canções,  ou  pelo  elemento  novellesco  das 
lendas  do  Rei  Lear,  Arthiir,  Merlin,    Tristão,   Branca 


(1)  TiiiiDriiiLO  Vawok  — Historia  da  Litteratura  Poriuyuesa. 


124  HISTOEIA  DO  BRASIL 

Flor  e  outras,  que  concorrem  para  a  formação  áoAmadis 
de  Gania.  Taes  são  as  fontes  da  litteratura  popular  que 
busca  as  saas  inspirações  no  fundo  de  tradicções  dos 
povos  neo-]atinos,  porém,  ao  lado  desta,  vae  desenvol- 
vendo-se  uma  outra  litteratura,  latino-ecclesiâstica  e 
humanista,  que  o  poder  real  consagra  fundando  a  Uni- 
versidade de  Coimbra  e  que  assignala-se  explorando  as 
tradições  greco-latinas  ou  produzindo  poemas  sacros, 
nobiliários  e  estorias  em  prosa. 

Na  segunda  epocha  da  litteratura  portugueza,  isto 
é,  durante  o  século  XV,  predominam  os  poetas  pala- 
cianos. A  influencia  da  poesia  provençal  já  não  se  faz 
mais  sentir  e  bem  assim  a  da  poesia  galleziana,  não 
obstante  os  esforços  de  D.  Diniz  para  restaural-a.  Os 
vates  de  pabicio,  que  abundam  nesse  tempo,  entre- 
gam-se  exclusivamente  á  imitação  da  poesia  castelhana, 
sendo  esta  lingua  a  preferida  para  as  composições  poé- 
ticas das  quaes  as  mais  notáveis  acham-se  no  celebre 
Ca/iCíone/ro de  Garcia  de  Rezende.  Esta  litteratura  alTe- 
ctadae  palaciana,  não  consegue  no  emtanto  supprimir  a 
litteratura  popular  que  se  expande  nos  autos,  nos 
momos,  nos  entremezes  e  nos  romanceiros.  As  lettras 
latinas  e  gregas,  cultivadas  pelos  homens  da  igreja  e 
por  algumas  pessoas  da  nobreza,  vão  se  divulgando 
cada  vez  mais  e  procuram  impor-se  como  negação  á 
intuição  lilteraria  da  Edade-Media. 

As  estorias  transformam-se  em  chronicas  e  estas 
se  animam  pelo  talento  de  Fernão  Lopes,  o  Froissart 
portuguez.  Gomes  Eatmes  de  Azurara,  Ruy  de  Pina  e 
outros.  Finalmente,  é  no  século  XV  que  se  introduz  a 
imprensa  em  Portugal. 

Na  terceira  epocha  (ia  litteratura  portugueza,  isto 
é,  na  epocha  dos  quinhentistas  (1500-1581),  opera-se  a 
renascença  do  espirito  clássico  que  vinha  preparando-se 
nos  conventos  e  na  Universidade  de  Coimbra  desde  a 
independência  do  paiz.  x-V  lucta  entre  a  litteratura  clás- 
sica e  a  litteratura  popular  ou  medievica  trava-se  com 
ardor,  vencendo  afinal  a  primeira.  Como  continuadores 
da  tradição  medievica  surgem  os  últimos  cantores,  \íoq- 
tas  da  medida  velha,  como  então  se  chamavam.  Entre 
outros  esses  p  )etas  são  Bernardim  Ribeiro,  versejador 
inspirado  e  autor  da  primorosa  novella  Menina  e  Moça, 
Christovão  Falcão  e  Gil  Vicente,  génio  creador  de 
primeira  ordem  e  fundador  do  theatro  portuguez.  Sá  de 
Miranda  impõe  se  como  chefe  da  escola  clássica,  filiados 


INTRODUCÇiO  125 


á  qual  poetam  Caminha,  Ferreira,   Falcão  do  Rezende, 
D.  Manoel  de  Portugal  e  outros. 

Finalmente,  é  no  século  XVI  que  apparece  Camões 
a  mais  grandiosa  figum  da  litteratura  portugueza. 

Camões  nos  seus  Lusíadas,  poema  que  passou  á  pos- 
teridade como  o  mais  alevantado  padrão  do  génio  da 
raça  portugueza,  procura  conciliar  os  dois  espíritos — 
o  medievico,  que  existia  latente  no  povo,e  o  clássico,  que 
dominava  os  lettrados. 

Com  essa  intuição  Camões  ergueu  o  seu  monu- 
mental Lusíadas,  obra  cathedralesca  que  condensa  no 
verso  todas  as  tendências  de  um  povo  e  recolhe  nas  suas 
paginas  de  belleza  inegualavei  a  grandeza  immensa  de 
uma  epocha. 

A  historia  tem  no  século  XVI  eminentes  cultores 
nas  pessoas  de  Damião  de  Góes,  Fernão  Lopes  de  Cas- 
tanheda, António  Galvão,  Jwão  de  Barros,  Diogo  do 
Couto  e  outros,  cujas  obras  são  os  mais  bellos  padrões 
da  velha  lingua  portugueza;  o  despotismo  real  e  o  des- 
potismo religioso  não  toleram  no  entanto  a  indepen- 
dência critica  e  por  isso  os  trabalhos  desses  grandes 
espíritos  não  podem  elevar-se  á  verdadeira  historia  e 
acanham-se  em  chronicas  e  annaes  puramente  nar- 
rativos. 

O  theatro  morre  com  Gil  Vicente;  o  elemento  tra- 
diccional  desapparece  da  scena  para  dar  logar  as  imi- 
tações do  theatro  greco-latino,  introduzidas  pelo  clero. 

No  meiado  do  século  XVI  já  os  jesuítas  dominam 
em  Portugal;  a  sinistra  inquisição  ergue-se  pavorosa 
contra  a  liberdade  de  pensamento  e  contra  os  caprichos 
da  imaginação.  Portugal  vae  morrer;  o  século  da  sua 
maior  grandeza,  será  igualmente  oda  suaruina:  lettras, 
artes,  energias  de  raça,  povo,  nacionalidade,  tudo  des- 
apparecerà . 

As  artes  (1).— As  jurandas  e  confrarias  maçó- 
nicas que  divagavam  pela  Europa  durante  a  Edade 
Média,  semeando  cathedraes  e  igrejas  em  todos  os 
paizes  onde  um  príncipe  ou  um  alto  dignitário  da 
Egreja  tomava  sobre  si  a  responsabilidade  de  concorrer 
para  as  despezas,  também  entram  em  Portugal  e  nelle 


(1)  Theuphilo  Braga.—  Questões  de  arte  e  litteratura  portugeza. 
—  A-lmeidaGarret.  — Fta^enj  na  minha  terra. 


126  HISTOEIA  DO  BRASIL 

deixam  uma    recordação   immorredoura   da   sua  pas- 
sagem —  Q, Igreja  da  Batalha. 

Esse  monumento  consagra  em  Portugal  o  estylo 
gothico,  já  annunciado  confusamente  no  mosteiro  de 
Leça  do  Balio  e  supplanta  de  todo,  os  estylos  romano  e 
árabe. 

A  Batalha  com  todo  o  seu  luxo  de  filagranas  de 
D.dra,  rendas  graniticas,  filetes,  flechas,  ogivas,  ara- 
bescos, mosaicos,  estatuária  grave,  angélica  e  grotesca 
vidracaria  multicor,  etc,  rivalisa  com  os  mais  bellos 
specimens  da  architectura  gothica  disseminados  pela 
Inglaterra,  Franca  e  Allemanha.  Acha-se  na  mesma 
linha  das  cathedraes  de  Strasburgo,  Colónia,  Notre 
Dame  e  York.  A  Batalha  é  porém  um  monumento  que 
se  destaca  em  Portugal  e  isto  confirma  a  sua  origem 
peregrina. 

Em  tempo  de  D.  João  II  já  o  gosto  clássico  vae 
invadindo  a  arte  de  construir  e  o  gothico  florido  é  pros- 
cripto;  a  Batadia  não  faz  escola,  não  obstante  uma  ten- 
tativa de  renovação  da  forma  ilorida  feita  com  a  intro- 
ducção  do  estylo  chamado  manoelino.  A  autoridade 
jesuitica  impõe-se  á  architectura  e  d'ahi  por  diante, 
como  diz  Almeida  Garret,  «não  ha  mais  alma,  não  ha 
génio,  não  ha  espirito  n'aquellas  massas  de  pedra,  sem 
elegância,  nem  simplicidade.» 

Ao  descobrir-stí  o  Brasil,  jà  havia  illustrado  Por- 
tugal um  pintor  de  génio  —  o  Grão  Vasco,  que  vivera 
na  ullima  metade  do  século  XV  e  pintara  principal- 
mente para  a  Sé  de  Viseu  e  igrejas  circumvisinhas;  o 
gosto  pela  illuminura  ainda  sente-se  no  século  XVI  com 
muita  intensidade. 

A  musica  é  ainda  na  epocha  dos  quinhentistas 
muito  primitiva:  as  duas  principaes  formas  são  a  me- 
lopéa  dos  cantos  populares  e  o  cantochão  conventual,  ou 
é  mystica  ou  ingénua. 

RcligiMlo.— O  povo  portuguez  no  século  em  que 
conquistou  e  colonisou  o  Brasil. achava-se  sob  odominio 
de  uma  fé  viva  e  ardente  na  religião  christã.  A  doutrina 
do  Nazareno  avassalava  todos  os  espíritos  e  não  só  pre- 
sidia ás  deliberações  de  caracter  politico  como  influia  em 
quaesquer  manifestações  individuaes.  As  conquistas  de 
terras  longiquas  não  so  faziam  unicamente  com  o  de- 
sígnio de  dilatar  o  território  pátrio  e  airecadar  riquezas; 


INTRODUCÇlO  127 


tinham  também  por  objectivo  principal  augmentar  o 
rebanho  de  Christo:  alçar  o  supremo  symbolo  christão 
no  seio  do  gentilismo  era  um  dos  mais  poderosos  incen- 
tivos d'essa  epocha, 

O  poeta  e  o  artista  inspiravam-se  nas  scenas  do 
Evangelho  ou  nas  piedosas  lendas  da  Edade  Média;  o 
nauta  e  o  soldado  não  commottiam  cmpreza  sem  for- 
mular de  antemão  um  voto  com  o  qual  procuravam 
avigorar  o  espirito ;  em  todas  as  classes  sociaes  era 
profunda  a  devoção  por  Jesus,  pela  Virgem  e  peles 
Santos,  exterioriando-se  esses  subjectivismo  religioso 
em  complicado  culto  e  variadas  praticas  inysticas. 

E  juntamente  com  a  fé  na  religião  consagrada  e  oíTi- 
cial  era  gerai  a  crença  em  uma  infinidade  de  supersti- 
ções ;  os  feiticeiros,  as  bruxas,  os  lobishomens,  as 
Hiulas  sem  cabeça,  as  sereias,  as  almas  do  outro  mundo, 
povoavam  a  imaginação  do  povo  e  toda  essa  familia 
estranha  foi  transport;.da  para  o  Brasil,  onde  veio 
crusar  com  os  sacys,  os  curupiras,  as  oyáras  da  grey 
cabocla. 


Do  que  fica  dito  nos  paragraphos  precedentes  vê-se 
que  o  portuguez  no  momento  da  descoberta  do  Brasil, 
era  um  povo  dotado  de  superiores  energias  ;  pelo  de- 
nodo militar  havia  conquistado  à  Mourama  o  solo  da 
Pátria,  pelo  desassombro  de  seus  marinheiros,  chamara 
sobre  si  a  gloria  de  haver  violado  o  profundo  mysterio 
dos  mares.  Povo  romanesco  e  ousado,  profundamente 
impregnado  do  sentimento  medievico  que  soube  tra- 
duzir no  verso  e  na  obra  d'arte,  no  feito  d'armas  e  na 
epopéa  niaritima  cantada  pelos  Dias  e  pelos  Gamas  na 
immensidão  dos  oceanos,  eslava  no  entanto  condemnado 
a  uma  morte  prematura  e  inglória.  O  fanatismo  e  o 
cezarismo  empolgaram-n'o  e  dentro  em  poucos  annos 
todas  as  virtudes  e  todos  os  talentos  desappareciam  para 
dar  logar  a  abjecções  :  a  torpeza  do  servilismo  no  povo 
era  elevada  á  cathegoria  de  mérito,  a  cupidez  e  a  barba- 
ridade nos  nobres  abria  a  porta  para  todas  as  grandezas 
individuaes. 

Com  D.  Manoel  fecha-se  o  cyclo  dos  heroísmos  e 
glorias  portuguezas. 


128  HISTORIA  DO  BRASIL 


OS  índios 

Quando  os  portuguezes  tran&puzeram  o  Atlântico 
pela  primeira  vez  e  descobriram  o  vasto  território  que 
constitue  o  Brasil,  encontraram-n^o  em  toda  a  sua  ex- 
tensão habitado  por  numerosas  tribus  de  povos,  muito 
atrazados  em  cultura, o  não  só  na  còr  e  nas  feições,  como 
na  linguagem,  nos  usos  e  costumes  differentes  dos  do 
velho  continente. 

Levados  pelo  erro  em  que  se  achavam  de  que  a 
America  era  um  prolongamento  da  Ásia  e,  por  conse- 
guinte, as  terras  descobertas  regiões  orientaes  dessa 
cubicada  índia  que  com  tanto  affan  procuravam,  deram 
os  europeus  a  esses  estranhos  povos  o  nome  de  índios. 

Clasnificação  dois  imdios. — Os  primeiros  por- 
tuguezes que  habitaram  o  Brasil  julgaram  vêr  nos  indi- 
genas  que  nelle  encontraram  duas  grandes  raças — a  dos 
tapys,  que  assenhoreava  a  costa  e  a  dos  tapuyas,  que 
occupava  o  centro  dopaiz.  Os  tapuyas  eram  inimigos 
encarniçados  dos  tupys  e  acreditava-se  que  estes  per- 
tenciam a  uma  raça  invasora  descida  outr'ora  das  An- 
tilhas ou  do  Amazonas,  a  qual,  pela  superioridade 
guerreira  e  poder  da  sua  marinha  de  canoas  conseguiu 
expulsar  do  littoral  as  tribus  tapuyas.  Esta  foi  a  primitiva 
classificação  dos  indios  brasileiros. 

No  principio  do  século  XIX,  o  viajante  francez  Al- 
cides d'Orbigny  que  acabava  de  percorrer  o  Novo 
Mundo  e  estudar  sob  o  ponto  de  vista  ethnographico  os 
seus  aborígenes,  coraprehendeu  todos  os  indios  sul- 
americanos  em  três  grandes  divisões:  ando-peruvianos, 
pamneanos  e  brastleo-guaranys;  os  nossos  selvagens 
ficavam  pertencendo,  sem  distincção  alguma,  a  este  ul- 
timo ramo. 

Pouco  depois  o  notável  sábio  allemão  Philippe  von 
Martins,  estudando  mais  detidamente  os  nossos  selva- 
gens, observou  nas  diversas  tribus  importantes  diífe- 
rença  anlhropologicas  e  dialectaes  entre  umas  e  outras 
e  por  ellas  subordinou  as  numerosas  cabildas  aos  se- 
guintes grupos  ethnicos:  Tupys,  Gês  ou  Krans,  Guerens 
ou  Crens,  Guck  ou  Cocos  Parecis,  ou  Parexis,  Goytacás, 
Aruack  e  Gaaycurús. 

Esta  classificação  foi  admittida  por  todos  osindiano- 
logos  notáveis,  taes  como  Hartt,  Barbosa  Rodrigues, 
Couto  de  Magalhães,  Ferreira  Penna  e  outros,  porém  as 


INTRODUCÇlO  129 


recentes  explorações  do  Dr.  Von  deu  Steinen  ao  alto 
Xingu  e  seus  estudos  sobre  os  índios  vieram  niodifi- 
cal-a,  pondo  em  evidencia  alguns  equívocos  de  Martins. 

Pelos  trabalhos  de  Von  den  Steinen  ficou  demon- 
strado que  os  Carahybas  não  podem  ser  identificados 
com  os  TupySjComo  pretendia  Martius  ;  que  o  seu  grupo 
Gu-k  ou  Côei  é  insustentável  sob  o  ponto  de  vista  phiio- 
logico  e  fiuilniínte  qae,  no  estido  actual  dos  conheci- 
mentos ethnographícos,  os  índios  do  Brasil  podem  ser 
fixados  nos  seguintes  grupos:  Tupis,  Gts,  Goytacà 
(Wsiitaikòi),  Carahyh'1.^,  Xu-Arnak  ou.  Maypure,  Pano, 
Míranlia  e  Guai/cirú.  Esta  classificação  que  foi  sane- 
cionada  pelos  mais  eminentes  cultores  da  ethnographia 
e  historia  do  Brasil,  baseia-se  principalmente  em  cara- 
cteres linguisticos. 

Os  tiipj^s. —  Ao  tempo  da  descoberta  este  primeiro 
grupo  de  índios  habitava  todo  o  littoral  brasileiro  desde 
o  Pará  ao  Rio  Grande  do  Sul,  meti.endo-se  além  disso 
pelo  Amazonas  acima  até  á  confluência  do  liio  Negro. 
Suas  iribus  mais  importantes  eram  as  dos  Tamoyos,  dos 
Tapiniquins,  dos  Tupinambás,  dos  Tupinaes,  dos  (jr/ia- 
ranis  e  outras,  e  seus  representantes  actu  les  são  os  Pa- 
cajás,  os  Jacundás,  os  Antas  ou  Tapirauá,  na  margem 
do  Tocantins,  os  AnambJs  no  b.iixo  Tocantins,  os  Tecit- 
nafua  no  baixo  Xingu,  os  Mauhés,  no  baixo  Tapajoz, 
os  Oiampis,  nos  limites  com  a  Guyana  Franceza,  os  Ta- 
piacás,  no  alto  Tapajoz,  os  Camayurás,  nas  cabeceiras 
do  Xingu,  os  TapírapJs,  na  bacia  do  Araguaya,os  Cain- 
guas  e  CaioDas,Qxi\  Matto  Grosso,  os  Chíriyuanos,Sirionos 
e  Guarajos  na  região   do  Beni-Slamoré. 

Estas  tribus  guardai-am  até  hoje  sufficientemente 
pura  a  linguagem  tupy  ou  geral,  pelo  que  Von  den 
Steinen  considerou-as  debaixo  do  nome  de  tupys  puros, 
em  opposição  á  umas  tantas  tribus  que  denominou  dos 
tupys  impuros,  pelas  grandes  alterações  que  apresentam 
os  seus  dialectos.  Os  rep'-esentantes  actuaes  desses 
tupys  impuros  são:  os  Mun.iurucús,  no  baixo  e  médio 
Tapajoz  ;  os  Jurunas,  no  baixo  e  médio  Xingu  ;  os  Ma- 
nitsaud,  no  noroeste  da  confluência  das  cabeceiras  do 
Xingu,  os  Auetês,  no  biixo  Culiseu. 

Pelas  descobertas  do  Dr.  Von  den  Steinen,  parece 
evidenciar-se  que  os  tupys  tiveram  o  seu  núcleo  inicial 
no  Paraguay  e  na  região  oriental  da  Bolívia,  de  onde 
irradiaram  por  três  linhas  de  distribiíção  :  u  na  atra- 


130  HISTORIA  DO  BEASIL 

vessou  o  sul  do  Brasil  e  ao  chegar  á  costa  seguiu  por 
esta  até  o  Pará,  onde  um  galho  estendeu-se  pelo  Amazo- 
nas e  o  outro  dirigiu-se  à  Guyana  para  constituir  os  Oi- 
ampis:  a  segunda  linha  seguio  do  centro  com  direcção  de 
N.  O.e  foi  bifurcar-se  com  os  tupys  da  costa  deixando  em 
caminho  os  Apia-^ás,  os  Caniayura^,  os  Tapirapss  e  os 
Guajajaras',  finalmente,  a  terceira  linha  parte  também  do 
centro  e  segue  para  o  norte  peloMadeira  ou  pelo Ucayale. 
Quanto  aos  tupys  impuros  torna-se  mais  embaraçosa  a 
determinação  do  itinerário  das  suas  migrações.  «Somente 
por  um  estudo  grammatical  inais  exacto  destes  notáveis 
idiomas  tupys  impuros  poderá  se  conseguir  clareza. 
Em  primeiro  logar  teria  de  se  determinar  se  devemus 
consideral-os  como  formas  derivadas  do  tupy,  ou  se 
representam  línguas  irmãs,  desenvolvidas  independen- 
temente, e  se  finalmente  inclinam-se  mais  aos  dialectos 
orientaes  ou  occidentaes.»  (1) 

Os  Gcs. — O  grupo  Gé  comprehende  os  Íncolas  que 
os  primitivos  colonisadores  classificara m  como  tapuyas 
ou  Índios  bravos  e  que  occupavam  a  cordilheiramariíima 
6  parte  do  planalto  central.  Das  tribus  deste  grupo  as  que 
occorrem  mais  na  historia  do  Brasil  são  a  dos  Aymorés, 
a  dos  Cumacans,  os  /iurun'/s  ou  Botucudos,  Api.ua'/es, 
Cara'iúfi,  Ti>.biras,  Xarautes,  Xerentes.  Seus  lepresen- 
tantjsactuaes  i^ão  os  Cai/após,  do  alioAraguaya.us  Suiás 
e  Carajás  do  valle  do  Xingu,  o<  Apmagés,  Carahos,  Apo- 
jiegicrans'  e  Acroá-mirini  do  e:s.tre\iiO  nofVi  de  Goyaz  e 
occidente  do  Maranhão,  os  Xavantes,  da  parto  central 
de  Goyaz,  os  Xerentes  do  Piauhy,  Maranhão,  e  Goyaz, 
os  Cídcricibas  do  Rio  de  S.  Francisco,  os  Geicós,  do 
território  entre  os  rios  Canindé  e  Gurgêa  e  finalmente  os 
Botucidos  que  vagam  ms  mattas  serranas  de  Minas 
Oriental,  Espirito  Santo  e  Bahia. 

A  denominação  G^,  imposta  p  r  von  Manias  e  ac- 
ceita  por  von  Steinen,  sendo  escolhida  por  terminar  em 
gé  grande  numero  de  vocábulos  deste  grupo. 

Ehrenreich  é  de  opinião  que  a  pátria  originaria  do 
grupo  gé  tenha  sido  os  togares  em  que  os  membros  desta 
raça  ainda  hoje  são  encontrados,  isto  é,as  mattas  da  cor- 
dilheira marítima  até  o  rio  de  S.  Francisco.  O  mesino 
autor  diz  que  a  cultura  desta  raça,  que  ó  de  todas  as  que 


(D  Paulo  Euriínheích. — Dirisão  dns  tribus  do  Brasil  se<iundo  o  ts- 
tado  actual  de  nossos  conhecimentos. 


INTEODUCÇlO  loi 


O  Brasil  possue  a    mais  atrazada  em  civilisação,   mo- 
ve-se  de  Oeste  para  Este  em  marcha  ascendente. 

Os  Goytacá».  —  As  tribus  constitutivas  deste 
grupo,  que  parece  ter  tido  a  mesma  origem  que  o  grupo 
gé,  acham-se  hoje  quasi  todas  extinctas ;  essas  tribus 
eram  mais  ou  menos  apparentadas  com  o  povo  goytacás 
que  habitava  os  campos  do  mesmo  nome. 

Pelas  chronicas  dos  antigos  escriptores  sabemos 
que  esses  povos  eram  os  Go/yíacás  propriamente  ditos, 
os  Goyands  ou  Bagres,  dispersos  por  8.  Paulo,  Paraná 
e  Rio  Grande  do  Sul,  os  Coropos,  á  margem  dos  rios 
Pomba,  Jequitinhonha  e  Mucury,  os  Paraliijbas,  no  rio 
do  mesmo  nome,  os  Canarins,  no  rio  Caravelas,  os  Ma- 
jacans,  no  rio  Mucury,  os  Capoxòs,  entre  Minas  Geraes 
e  Bahia,  os  Cumanochòs  e  Patachos,  entre  os  rios  Pardo 
e  das  Contas,  os  Panhames,  Maeuais  e  Monoxós,  na 
Serra  das  Esmeraldas, 

Os  Carali.ybas. — -Um  dos  mais  importantes  re- 
sultados etlmographicos  das  duas  expedições  realizadas 
pelo  Dl*.  Von  den  Steinen  ao  Xingu,  foi  a  solução  defi- 
nitiva da  questão  dos  Carahybas  que  alguns  escnptores, 
entre  os  quaes  Martins  e  d'Orbigny,  pretendiam  que  fos- 
se moriginarios  das  Antilhas  e  troncos  dos  nossos  tupys. 

Severiano  da  Fonseca,  Crevaux,  e  Lucien  Adam  já 
haviam  feito  descobertas  que  em  paite  invalidavam  esta 
hypothese,  porém  a.  prova  mais  cathegorica  da  nullidade 
da  mesma  foi  fornecida  por  Vonden  Steinen, descobrindo 
nas  cabeceiras  do  Paranatinga  e  no  Xirií^ú  o  povo  dos 
Baça hy ris,  o  qual  é  legitimo  Cai-ahyba  e  possue 
uma  lingna  de  caracter  mais  puro  que  o  das  tribus  da 
Guyana.  E^ta  circumstancia  alhada  a  outras  permittiu 
quo  se  desse  como  ponto  de  partida  do  grupo  Carahyba 
o  terricoriocomprehendido  entre  o  Tapajoz  e  as  cabe- 
ceiras   o  Xingu. 

As  tribus  pertencentes  a  este  grupo,  que  ainda 
exist  au  no  Brasil,  são, além  dos  l^jac  ihirys  a  que  já  nos 
referimos:  os  Apiacás,  no  Baixo  Tocantins,  os  Araras 
e  Jifnas  que  vagueiam  do  baixo  Xingu  até  o  Madeira 
os  Wa J/arai,  os  Apalai  e  Racmjennes  ao  sul  da  cadeia 
de  Tnmucumaque,  os  Trio  e  Ga/ibí  ao  norte  da  mesma 
cadeia,  os  Mocisis,  os  Areknnns,  os  Paravilhanas,  es 
I/iorncotós,  os  Ma/itrita^é  no  alto  Hio  Branco,  e  na  parte 
liaiitrophe  da  Venezuela  meridional  e  da  Guyana  In- 
gleza,   ctc,   presumindo-se  que  outrora    existisse    na 


132  HISTORIA  DO  BRASIL 

pnrte   central   um   grande   povo   do    mesmo    grupo   os 
Kahuquds. 

As  Hijgrações  carahybas  realisaram-se  do  centro 
para  o  norte. 

0«  iliís-Araiaks. — Este  grupo  que  recebeu  de  Gilii 
e  Lucien  Adam  o  nume  de  Maipuré  é  o  d'aquelles 
povos  «  que  mais  se  espalharam  pelo  espaço,  diz  Paul 
Ehrenreich,  e  ao  mesmo  tempo  o  daquelles  cuja  distri- 
buição é  a  mais  continua.  Da  costa  do  mar  das  Anti- 
lhas alongam  em  larga  stria  para  sudoeste  até  os 
Andes  peruanos  8  bolivianos,  para  d'ahi  despedir  um 
galho  para  o  Sul  no  alto  Paraguay  e  outro  para  Este  até 
o  centro  do  Brasil.» 

Por  occasião  da  conquista  r uropéa,  tribus  Aruaks 
povo-ivam  o  valle  do  Amazonas  desde  a  embocadura 
deste  no  até  a  Columbia  e  viam-se  em  luta  constante 
com  os  Carahybas  que  emigravam  para  o  norte. 

Pouco  a  pouco  foram  essas  mesmas  tribus  senJo 
repellidas  das  regiões  visinhas  da  foz,  e  hoje  os  únicos 
membros  de-<se  grnpo  que  se  encontram  no  t  Tritorio 
brasileiro  são  os  restos  dos  Manaus,  no  médio  Rio 
Negro,  os  Ariiakis,  no  baixo  Rio  Negro,  os  CanixoAias, 
Passes,  Jumanas  e  Uainumas  entre  o  baixo  Içá  e  o 
Japurá;  os  Marauá,  Catukina,  Paumary,  Yamamadi, 
Catanisi,  Pamana  e  Ipurina  entre  os  rios  Purús,  Joary 
e  Juruá,  os  Moxos  e  Baurés,  entre  o  médio  Mamoré  e  o 
Guaporé,  os  Parecis  nas  cabeceiras  do  Tapajoz,  os 
Mehíjiaeús,  os  Cusitenaús,  Vattrás  e  Yaulapiti  á  leste 
dos  ailluentes  do  Xingu  e  os  Purús. 

c<  A  questão  da  pátria  originaria  e  dos  caminhos  de 
distribuição  dos  Nu-Aruaks  não  se  póJe  por  ora  decidir 
com  segurança.  Von  den  Steinen,  em  seu  livro  Durch 
Zentral  Brazilien,  acceitou  como  ponto  de  partida  os 
planaltos  bolivianos.  Todavia  os  resultados  da  segunda 
expedição,  especialmente  o  estudo  dos  Parecis,  faliam 
mais  a  favor  da  emigração  vinda  do  norte.  Esta 
ultima  hypothese  affinaria  também  melhor  com  a  expe- 
dição dos  Carahybas.»  (1) 

Os  Panos. — Este  grupo  tem  sò  um  representante 
no  Brasil,  o  povo  dos  Cartpunas  que  habita  o  médio 


(1)  Paul  Ehrenreich.— Z)tPtsão  e  distribuição  das  tribus   do 
Brasil  segundo  o  estado  actual  dos-  nossos  conhecimentos. 


INTRODUCÇÃO  13.') 


Madeira  e  foi  por  von  Martius  incluido   erradamente 
entre  os  tupys. 

O  grupo  Pano  veio  da  Bolivia  Central  onde  elle  é 
largamente  representado. 

<ls  Gitiayciii*ú«!í.  —  F^or  occasião  do  descobri- 
mento da  America  existiam  as  seguintes  tribus  do 
grupo  Guaycurú;  Abipones  e  G?ía/ycM/'w«?,  propriamente 
ditos,  que  se  subdividiam  em  Lcnguás  e  Mbaia.  Actu- 
almente no  Brasil  encontram-se  os  Guaycurús  em 
Corumbá,  Miranda  e  outros  pontos  de  Alatto  Grosso. 

O»  lliriíiili^tsí. — Este  grupo  conta  no  Brasil  como 
representantes  os  próprios  Miranhas  que  habitam 
entre  o  Içá  e  o  baixo  Japurá,  os  Coerunas,  os  Curetús 
e  os  Yupuas,  na  margem  esquerda  do  Japurá. 

Tríbii.9  Mílí»  classííicatld&ii. —  Por  emquanto 
ainda  não  podem  ser  classificadas  :  a  tribu  extincta  dos 
Kirirís  Sabujas  que  vivia  outr'ora  no  baixo  S.  Fran- 
cisco, os  Muras  nómades  da  bacia  do  Amazonas,  os 
Jurais,  no  baixo  Japurá,  os  Tícunas,  na  fronteira  pe- 
ruana, os  Uaupés,  no  rio  do  mesmo  nome  aílluente  do 
Negro,  os  Trumahys^  nas  cabeceiras  do  Xingu,  os  Ca- 
ra/às, na  margem  direita  do  médio  Araguaya  e  Xingu, 
os  Bororós  entre  o  alto  Paraguay  e  os  íbntanaes  do 
Araguaya  e  finalmente  os  Gualtòs  no  alto  Paraguay. 

Pertencendo  a  tantos  grupos  dilVerentes  a  população 
indioena  do  Brasil  e  achando-se  tanto  hoje  como  no 
tempo  da  descoberta  da  America,  as  numerosas  tribus 
de  um  só  grupo  em  estágios  diversos  da  civilisação, 
claro  está  que  um  estudo  em  globo,  o  único  que  se 
pôde  fazer  da  cultura  de  nossos  aborígenes,  só  revelará 
os  factos  mais  ty picos  e  os  phenouienos  mais  geraes; 
com  tudo  as  differenças  de  grupo  para  grupo  não  são 
fundamentaes,  e  por  conseguinte  poderão  assim  mesmo 
definir  com  justeza  approximada  o  Jades  geral  da  grey 
cabocla. 

Typ«  aiitliropologico.  —  Alcides  d'Oibigny 
julgou  poder  definir  o  typo  da  raça  guarany  com  a  se- 
gui me  cspecialisação  de  caracteres:  côr  amarelladaligei- 
ranieiite  misturada  de  vermelho  pallido;  estatura  regular 
(1"',620);  face  cheia,  circular;  fronte  não  inclinala; 
nariz  curto,  estreito;  bocca  pouco  saliente,  lábios  del- 
gados; olhos  muitas  vezes  oblíquos  e  sempre  repucha- 
dos  para  o  angulo  exterior;  arcadas  zygomaticas  pouco 
manifestas;   cabellos  negros,   corredios,    consistentes; 


134  HISTORIA   DO   BRASIL 

barba  tardia,  não  frisada,  escassa;  dentes  sadios,  regu- 
larmente implantados  e  difficilmente  cariáveis.» 

Estes  caracteres  são  effecti vãmente  os  mais  com- 
muns  e  geraes,  principalmente  nos  tupys  da  costa, 
porém  os  continues  cruzamentos  que  as  tribus  deviam 
ter  soffrido  nas  suas  migrações,  tornaram  os  mesmos 
muito  variáveis,  como  ficou  demonstrado  pelos  estudos 
craniologicos  do  Dr.  Rodrigues  Peixoto. 

Segundo  este  mesmo  investigador,  no  entanto,  os 
craneos  tup3'S  revelam  quasi  sempre  cabeça  cnrta, 
achatada,  mesaticephala,  da  nariz  platirrhineo  e  orbitas 
megasemas. 

Aliitic»taçíÍo. —  O  Índio  tirava  a  sua  principal 
alimentação  da  cnça  e  da  pesca  e  bem  assim  da  farinha  de 
mandioca,  nas  tribus  que  se  entregavam  á  cultura  desta 
utilíssima  euphorbiacea;  porém  também  aproveitavam 
os  fructos,  os  inhames,  o  nullo,  os  carás  e  diversas 
hervas  succulentas  como  as  ora-pro-nobis,  os  caru- 
rus, etc. 

Com  o  aipim,  o  milho,  o  genipapo,  o  caju,  a  banana, 
fabricavam  bebidas  fermentadas.  Estas  bebidas  tinham 
o  nome  geral  de  cajui  .^ue  os  antigos  portuguezes  alte- 
raram em  ciLiim. 

As  carnes  eram  em  geral  moqueadas  e  muitas  vezes 
reduzidas  a  pó.  Algunias  tribus  conheciam  o  uso  do 
sal  que  apuravam  fervendo  a  agua  salgada,  porém  o 
tempero  mais  geral  eia  uma  massa  feita  de  pimenta 
— jakiray. 

Connam  em  siloicio  e  só  bebiam  agua  no  fim  das 
refeições.  O  cauim  era  reservado  para  as  grandes 
feolemnidades  durante  as  quaes  embriagavam-se  litte- 
ralmente. 

Os  chefes  eram  sustentados  pelos  vassallos  e  faziam 
suas  reteições  quasi  sempre  á  parte  e  recostados.  Os 
súbditos  comiam  juntos  em  gamellas  ou  alguidares  e 
accocorados  no  chão. 

Ornamentos. —  O  indio  brasileiro,  como  acontece 

com  quasi  todos  os  povos  nos  primeiros  degráos  da  civi- 

lisação,    dava  um  apreço   extraordinário  aos  enfeites  e 

^^  ornatos,  prevalecendo-se  os  antigos  pi.rtuguezes  dessa 

"  paixão  infantil  para  captarem  com   bugigangas  orna- 

mentaes  os  seus  serviços  e  sympathias. 

Quasi  todas  as  hordas  "pintavam-se  e  tatuavam-se 
com  as  tintas  do  urucú  e  do  genipapo;  os  desenhos  que 


INTEODUCÇÃO  135 


faziam  sobre  o  corpo  eram  idênticos  em  uma  mesma 
tribu  ou  familia  e  tinham  o  valor  de  signaes  nacionaes 
pelos  quaes  podiam  annunciar-so  ao  longe  como  amigos 
ou  inimigos.  O  estj^lo  dos  desenhos  varia  conforme  as 
tribus.  Segundo  Carlos  Hartt,  os  Aíundurucús  enchem  o 
corpo  de  tatuagens  burlescas,  linhas  rectas  ou  curvas, 
gregas  e  figuras  variadas  que  traçam  com  o  espinho  do 
murúmurú  {Astrocaryum  murumurú^  friccionando  de- 
pois os  sulcos  com  a  fuligem  obtida  pela  combustão 
da  resina  jatahy.  O  Apiacá  quando  mata  um  prisioneiro 
pratica  no  peito  uma  longa  incisão  para  perpetuar  a 
façanha. 

Algumas  tribus  deformavam  se  na  presumpção  de 
se  aíormoscarem:  os  Omaguas  achatavam  o  cfaneo  dos 
recemnascidos,  dando-lhe  a  forma  de  mitra  {d''forma- 
ção  cuneiforme  deitada,  de  Gosse;;  os  Botucudos  e  outras 
tribus  do  grupo  gé  achatavam  os  ossos  do  nariz,  porém 
os  enfeites  mais  extravagantes  eiam  os  buracos  que  estes 
mesmos  Botucudos  faziam  nos  lábios  e  nasorell)as,col- 
locando  nelles  grandes  pedaços  de  madeira,  pedra,  etc. 
Algumas  tribus  espetavam  pennas  no  nariz  e  no  rosto. 
Diz  o  naturalista  Guilherme  Shwake  que  os  batoques 
usados  pelos  Bugres  do  Paraná  nos  hibios  são  prepa- 
rados com  resina  do  jatahy,  a  qual  é  levada  a  um  tal 
estado  de  pureza  que   chega  a  imitar  o  âmbar  eui-opóo. 

De  conchas,  pedras,  ossos,  dentes  e  contas  faziam 
collares  (auiucará);  com  pennas  vistosas  arranjavam 
ianrjas,  di;idemas  ou  cocardes  e  aqan- gatares  que  lhes 
cobria  o  craneo  até  as  orelhas,  preservando-os  do  sol. 
Também  usavam  mantas  de  pennas  grudadas  com  icica, 
ás  quaes  davam  o  nome  de  açarjaba  o  nas  regiões 
frias,  como  em  certos  pontos  do  planalto  central  e  da 
parte  sul  do  paiz  utilisavam-se  das  pelles  dos  grandes 
mammiíeros.  Nos  pés  amarravam  rosários  de  certos 
íructos  que  ao  baterem  uns  nos  outros  produziam  o 
som  de  cascavéis.  As  donzellas  aperta\am  as  pernas 
com  uma  liga  de  algodão  vermelho  a  que  chamavam 
tapacurá.  As  tangas  dos  homens  e  mulheres  eram 
muitas  vezes  de  barro  cosido  e  de  proporções  tão  dimi- 
nutas que  pouco  satisfaziam  os  fins  a  que  se  desti- 
navam. 

Muitas  tribus  usavam  os  cabellos  compridos,  outras 
cortavam-n'o  em  circulo  ao  nivel  das  orelhas  e  outras 
ainda  abriam  coroas. 

Arte*». —  Os  principaes  instrumentos  musicaes  dos 


136  HISTORIA  DO   BEASIL 

tupys  eram  o  maracá,  cabaça  cheia  de  pedrinhas  e  pri- 
morosamente ornada,  o  bore,  feito  de  um  pau  ôco,  a 
janubia  ou  inubia,  trompa  guerreira  cujo  som  chegava  a 
grandes  distancias,  o  napy,  tambor  de-tinado  aos  rebates 
e  ás  convocações  das  assembléas,  o  nimby,  flauta  feita 
de  algum  fémur  ou  tibia,  o  toro,  flauta  doble  ou  triple 
feita  de  taquara  e  o  uatapú,  que  era  um   grande   búzio. 

Havia  diversas  espécies  de  danças  das  quaes  as 
principaes  eram  o  poraeé,  dança  sagrada  e  o  yeoroqui, 
ou  dança  acompanhada  de  cantos  destinados  a  com- 
memorar  as  façanhas  dos  antepassados;  esta  dança 
tupiea  correspondia  ao  areyto^^  das  tribus  Carahybas. 
No  yeoroqui  os  velhos  e  as  creanças  só  tomavam  parte 
rufando  o  tambor.  Dispunham-se  todos  em  circulo 
tendo  cada  um  a  mão  sobre  o  hombro  do  companheiro 
e  começavam  a  andar  a  roda  batendo  compassadamente 
com  os  pés  no  chão  e  soltando  um  grito  monótono. 

Diz  Alcides  d'Orbigny  Cl)  que  todos  os  indí- 
genas da  America  Meridional  são  músicos  natos  e 
cantam  facilmente  melodias  ás  vezes  teraas  e  tristes; 
das  suas  poesias  fallaremos  em  outro  logar. 

No  desenho  dos  Índios  do  Brasil  predomina  o  gosto 
peloí  ornatos,  linhas  simples  ou  combinadas,  gredas, 
volutas,  etc,  que  ás  vezes  se  encontram  em  combina- 
ções graciosas;  também  desenhavam  animaes  e  homens 
muito  grosseiramente,  porém  nunca  reproduziam  flores, 
fructos,  folhas  ou  quaesquer  outras  partes  dosvegetaes. 
Possuíam  tintas  muito  vivas  e  finas,  porém  ignoravam 
o  segredo  da  degradação  das  mesmas  bem  como  os 
effeitos  de  perspectiva,  o  que  não  ó  para  admirar,  pois 
povos  muito  mais  cultos  acham-se  ainda  no  mesmo 
gráo  de  atrazo.  A  esculptura  indígena  é  informe. 

A  condição  das  lutillieres. —  Se  bem  que  a 
mulher  entre  a*s  tribus  indígenas  do  Brasil  não  gosasse 
ainda  de  muita  consideração,  contudo  não  era  um 
objecto  de  desprezo  como  acontece  entre  certos  povos  da 
Oceania. 

Cumpria-lhe  no  entanto  aífazeres  muito  rudes: 
eram  ellas  que  tratavam  da  agricultura,  da  cosinha,  do 
preparo  da  louça,  de  todos  os  serviços  domésticos  e  nas 
migrações  transportavam  o  farnel,  os  utensílios  e  os 
filhos,  pois  o  marido,   encarregado  da  defeza  familial  e 


(1)  Alcides  d'Orbigny.— L'/iomme  americain. 


INTRODUCÇÃO  1.37 


de  prover  á  subsistência  da  mesma  precisava  estar 
desembaraçado  para  manejar  as  armas. 

O  cauim  era  preparado  pelas  velhas  que  tinham 
também  funcções  especiaes  por  occasião  das  solemnida- 
des  religiosas  ou  gueri  eiras. 

O  Índio  brazileiro  era  em  geral  polygamo,  porém  a 
primeira  mulher,  embora  velha  e  desprezada  gozava  de 
um  certo  ascendente  na  familia;  as  mulheres  que  eram 
aprisionadas  passavam  á  condição  de  escra\as  e  concu- 
binas, excepto  quando  eram  apnnhadns  combatendo, 
porque  então  sofíriairi  a  sorte  dos  homens. 

Costdinies)  guerreiros) — Quasi  todas  as  tribus 
indígenas  do  Brasil,  tupys  ou  pertencentes  aos  demais 
grupos  eihnographicos  eram  rrais  ou  menos  belh'cosas, 
destacando-se  como  excepções  raríssimas  aquelias  que 
se  caracterisavam  por  indole  apathica  ou  paciiica. 

As  tribus  indígenas  viviam  em  constante  guerra 
umas  contra  as  outras,  sendo  geral  a  deshumanidade 
pelo  vencido. 

O  systema  de  guerra  preferido  era  o  das  embos- 
cadas: a  cabilda,  lendo  resolvido  em  assembléa  de 
gut^Teiros  (rifiemongaba)  atacar  os  habitantes  de  uma 
aldeia  qualquer,  assediava  esta  alta  noite  e  se  podia 
romper  as  cahiçaras  ou  cercas  e  transpor  os  fossos, 
incendiava  as  cabanas  e  matava  todos  os  habitantes 
que  resistiam,  trazendo  para  sua  taba  (aldeia)  aquelles 
que  podia  aprisionar. 

Estes  eram  immolados  em  festins  ántropographos. 

Para  o  selvagem  brasileiro  a  primeira  virtude  ou 
talvez  a  única  era  a  coragem  e  por  isso  o  prisioneiro, 
mesmo  atado  com  a  mussurana  (corda  dos  sacrifícios) 
e  em  presença  do  sacrificador,  armado  da  tangapema 
(clava  de  madeira)  que  ia  esmigalhar-lhe  o  craneo, 
devia  mostrar-se  impassível,  injuriar  os  seus  inimigos 
e  acender-lhes  mais  a  cólera  relatando  as  mortes  que  os 
seus  amigos  e  parentes  haviam  feito  em  indivíduos 
d'aquella  tribu  que  o  ia  matar. 

Antes  do  dia  do  sacrifício  o  prisioneiro  era  bem  tra- 
tado: davam-lhe  comida  em  abundância  e  entregavam- 
Ihe  raparigas  para  concubinas.  Os  dentes  do  sacrificado 
constituíam  um  tropheo  que  o  seuaprisionador  ostentava 
orgulhoso  em  collares. 

Clóvis  Bevilacqua  diz  que  as  tribus  tapuyas,  ou 
mais  propriamente  as  do  grupo  gé  fazia  suas  investidas 
sem  regra  e  sempre  á  traição,  porém   que  as  do  grupo 


138  HISTOEIA   DO   BRASIL 

tiipy  «tinham  adoptado  um  certo  formalismo,  não  des- 
pido de  nobreza,  para  as  suas  declarações  de  guerra  e 
tratados  de  paz.» 

Comprovando  o  que  affirma,  cita  Clóvis  Bevilacqua 
o  arremesso  ao  canipo  ou  taba  inimiga  de  um  arco  rete- 
sado e  uma  fleclia,  na  qual  muitas  vezes  se  achavim 
marcados,  por  entalhas,  os  dias  que  pretendiam  com- 
bater, e  bem  assim  o  quebramento  da  flecha  da  paz  a 
que  refere  poeticamente  José  de  Alencar  na  Iracema. 

A  guerra  era  quasi  sempre  emprenendida  nas  pro- 
ximidades da  madureza  do  milho,  dos  aipins  ou  dos 
cajus,  para  que  se  pudesse  festejar  com  o  vinho  dessas 
substancias  o  sacrifício  dos  prisioneiros. 

A  munição  de  boca  nas  caujpanhas  consistia  em  fa- 
rinha e  todos  concorriam  para  o  seu  apercebimento. 

Ritos  fúnebres  —  Ao  morrer  o  individuo  era 
carpido  pelas  mulheres,  mas  por  estas  somente,  pois  ao 
homem  não  se  permittia  chorar.  Ao  parente  m;iis  ci.e- 
gado  cumpria  abrir  a  cova  que  muitas  vezes  se  fazia 
mesmo  dentro  do  rancho.  O  defunto  era  mettido  dentro 
da  própria  rede  e  se  exercia  o  logar  de  chufe,  depu- 
nham junto  delle  os  seus  attributos  de  commando.  Pró- 
ximo á  cova  deposi'avam-«e  as  armas  do  finado  e  bem 
assim  comidas,  bebidas  e  fumo,  que  se  renovavam  todos 
os  dias.  A  rede  ficava  suspensa  na  cova  eesta  era  co- 
berta de  paus,  ramagens  e  depois  de  terra. 

Nas  tribus  do  grupo  gé  que  não  faziam  uso  de  re- 
des, o  defunto  era  mettido  de  cocaras  dentro  de  uma  talba 
de  barro.  A  essas  talhas  davam  o  nome  de  cainbuc lãs  on 
camucins  e  também  if/açciha'^.  Outras  vezes  mettiam  o 
cadáver  em  caixões  de  barro  que  pintavam,  enverni- 
savarn  e  arabescavam.  Ao  cadáver  davam  os  tupys  o 
nome  de  tihrj  e  aos  cemitérios  tibi/cuera. 

Creíiçiis  religiosas. — Os  Índios  do  Brasil,  por 
occasião  da  conquista  européa,  achavam-se  religiosa- 
mente no  segundo  periodo  do  fetichismo,  isto  é,  na  as- 
trolatria. 

cOs  selvagens  do  nosso  paiz,  diz  o  illustre  ethnologo 
brasileiro  Dr.  S3'Ivio  Roméro,  estavam  no  grão  de  atrazo 
do  homem  geológico,  o  homem  da  idade  da  pedra.  Não 
podiam  ter  uma  rehgião  que  reconhecesse  o  Ser  Su- 
premo. O  contrario  é  desdenhar  ou  desconhecer  os 
achados  da  critica  moderna,  que  assignala  os  diffe- 
rentes  períodos  das  formações  das  mythologias,  das 
religiões  e  da  poesia.    Umas  tribus   desgarradas  pelo 


I 


INTEODUCÇÃO  131) 


deserto  e  matías,  e  outras  reunidas  em  paupérrimas 
palhoças  sem  industria  assignalavel,  usando  da  pedra 
para  utensilios,  como  o  homem  das  c.ivernas,  sem  tra- 
dições, sem  heróes,  sem  historia,  não  podiam  possuir 
a  noção  do  Ser  Supremo,  como  não  podiam  ter  uma  ver- 
dadeira poesia.  Estavam  pouco  além  da  epocha  de  puro 
naturalismo,  em  que  o  terror  faz  crer  que  as  nuvens,  os 
trovões  (tiipan).  as  tempestades  são  seres  ferozes  que 
se  devem  respeitar,  A  grey  cabocla,  encarada  por  todas 
as  faces  porque  pôde  sel-o  pela  sciencia,  á  luz  de  idéas 
sãs  e  longe  do  influxo  de  caducos  prejuízos,  achava-se 
em  um  dos  mais  remotos  degraus  da  escala  da  civili- 
sação.  Caçador,  ainda  hcje  no  seu  descendente,  nem 
siquer  o  indio  estava  além  daquella  segunda  phase  do 
período  fetichieo,  a  idade  da  astrolairia,  de  que  falia 
Augusto  Comte. 

«Prova-o  o  seu  culto  do  sol  cda  lim, guaracij  ojacy, 
ainda  um  pouco  indeciso,  é  verdade. 

«  E'  licito  dizer  que  já  havia  passado  a  epocha  do 
mais  flucíuante  naturalismo.  Demonstra-o  o  comp  exo 
de  sua  intuição  do  mundo,  accorde  com  a  dos  povos 
ainda  no  mesmo  estado,  um  dos  mais  recônditos  da 
pre-historia,  onde  é  dado  penetrar.» 

O  sábio  investigador  Carlos  Frederico  Hartt  estu- 
dando os  mythos  amazonicos,  em  muitos  dos  quaes 
apparece  o  jabuti,  julgou  ver  n'esse  facto  constante  a 
represontação  do  sol  que  se  figurava  por  aquelle  animal 
sempre  vencedor  da  anta,  da  oi.ça,  cia  cobra  ou  da  ra- 
posa que  então  symbolisariam  a  lua. 

xVlguns  autores  julgaram  ver  na  religião  indígena 
uma  espécie  de  dualismo:  Tapan,  seria  deus  ou  o  es- 
pirito do  bem,  e  Anhangá,  o  diabo  ou  o  espirito  do  mal, 
inas,  já  o  Padre  Manoel  da  Nóbrega  dizia  que  Tupan 
não  significava  o  Ser  Supremo  e  sim  unicamente  o 
trovão,  sendo  elles  jesuítas  que  applicaram  esta  pa- 
lavra, em  falta  de  melhor,  para  incutir  o  monotheismo 
nos  bárbaros  ;  outros,  como  o  Dr.  Couto  de  Magalhães, 
consideram  o  indio  com  a  polytheísta  e  o  seu  sysíema 
religioso  organisado  em  uma  mythologia  dominada  por 
Tupan  e  composta  de  Anhangá,  Curupira,  Jeropary, 
Kaopara,  Sacy-sererê,  Boi-tatá,  Urutau,  Rudá,  Uiru- 
parú,  Boiacú,  etc. 

Estudos  mais  conscienciosos  tem  demoristrado,  no 
entanto,  que  esses  diversos  personagens  mythicos  não 
tem  relação  alguma  uns  com  os  outros  e,  por  conse- 


140  HISTORIA   DO    BRASIL 

^uinte.  não  passam  de  creacões  antropomorphicas,  isto 
é,  são  produzidos  por  esse  estado  religioso  em  que  se 
afigura  ao  espirito  humai)0  poderem  os  deuses  tomar 
completamente  a  natureza  dos  homens,  conservando-se 
no  entanto  muito  mais  poderosos. 

Passemos  em  revista  das  principaescreições  antro- 
pomorphicas dos  Índios  do  Brasil. 

O  Curupira. — Na  opinião  de  Carlos  Hartt  a  mais 
importante  é  a  do  Curupira,  espirito ma\fâzey>  do  matto. 
Existem  Curupiras  de  ambos  os  sexos,  os  quaes  ha- 
bitam nos  buracos  dos  paus  podres  eapparecem  de  re- 
pente ao  caçador  ou  viajante,  confundem-n'o  <■  pro- 
cunim  transvial-o  afim  de  que  elle  morra.  Téni  a 
forma  detapuyas,  sendo  a  fêmea  mais  gorda  e  tendo  os 
cabellos  mais  compridos  ;  seus  dentes  são  verdes.  A's 
vezes  o  curupira  tem  mulher  e  filhos.  Segundo  Baena  o 
curupira  é  um  tapuyo  pequeno,  com  os  pés  às  avessas, 
que  persegue  o  caçador,  o  qual,  para  afugental-o  tece 
cruzes  e  rodinhas  de  cipó  e  as  deixa  no  caminho  ;  o 
curupira  entretem-se  a  destrancar  estas  rodinhas  ou 
cruzes  e  emquanto  isto  dura  o  caçador  ganha  terreno. 
O  curupira  não  é  propriamente  um  espirito  ;  tem  carne 
e  osso  e  pode  ser  morto  por  um  homem.  O  curupira  é 
especialmente  um  maléfico,  e  ao  mesmo  tempo 
zombeteiro. 

Carlos  Hartt  achou  uma  certa  analogia  entre  o 
mytho  do  curupira  e  o  do  Troll,  espirito  das  serras  da 
Noruega,  e  Barbosa  Rodrigues  salientou  a  semelhança 
do  mesmo  com  o  Rudenzhal,  espirito  dos  montes  Su- 
detos,  na  Allemanha. 

Os  mythos  do  curupira  são  numerosos  e  muito  va- 
riados. Aqui  daremos  um  que  Carlos  Hartt  recolheu  no 
Pará  : 

«  Um  Índio  estava  caçando  no  matto,  quando,  des- 
viado por  um  curupira,  perdeu  o  caminho  e,  ao  cahir 
da  noite,  deitou-seao  pé  de  um  pau  e  dormiu. 

«  O  curupira  chegou  ao  pé  delle  e  bateu  no  sapopema 
(raiz  chata)  do  pau  ;  o  homem  accordou. 

« —  O  que  estás  fazendo  aqui,  meu  irmão? 

« —  Perdi-me  e  aqui  fiquei-me,  respondeu  o  ho- 
mem. 

« —  Então,  disse  o  curupira,  dá-me  um  pedaço  do 
teu  fígado  para  comer. 

«  —  Felizmente  o  homem  tinha  matado  um  macaco. 
Puchou  da  faca,  abrio-o  e  cortando  um  pedaço  do  fígado 


INTRODUCÇÃO  141^ 


deu  ao  curupira  que  o  coirieu   gostosamente,  pensando 
ser  o  do  homem. 

«E'  muito  doce  !  disse  o  curupira.  Dê-me  tudo. 

«O  homem  deu  o  resto  do  fígado  do  macaco  e  re- 
plic  'U  : 

« —  Agora  has  de  dar-me  também  um  pedaço 
do  teu. 

«O  curupira  julgando,  que  se  o  homem  podia  tirar  o 
coração,  elle  também  poderia  fazer  o  mesmo,  pediu  a 
faca  do  caçador,  abrio-se  e  cahio  morto.  O  homem  hvre 
do  seu  inimigo  fugiu. 

«Depois  de  um  anno  o  caçador  lombrou-se  que  os 
curupiras  tèm  os  dentes  verdes  e  foi  buscar  os  daqueile 
que  tinha  matado  para  fazer  um  fio  de  contas.  Achou  o 
esqueleto  ao  pé  do  pau.  Tomou  a  caveira  na  mão  e  com 
o  seu  machadinho  bateu  n'um  dente  ;  mas  qual  não  foi 
o  seu  espanto  ao  ver  o  curupií-a  apparecer  instantanea- 
mente vivo  e  sorrindo  deante  delle  ! 

«—  Obrigado,  meu  irmãj,  por  me  teres  despertndo  ! 
disse  a  apparição.  E  logo  apiz  deu  ao  homem  uma 
flecha  encantada,  dizendo  que  com  esta  podia  cum  cer- 
teza matar  caça,  mas  aconselhuu-lhe  que  a  ninguém 
contasse  de  quem  a  recebera. 

«  Esse  mesmo  Índio,  dantes  panenio  (sem  geito), 
depois  disto  matava  todos  os  dias  muita  caça  ;  mas  sua 
mulher,  tendo  reparado,  perguntou  com  insistência 
como  de  repente  se  tinha  elle  tornado  tão  hábil  caçador. 

O  mando  contou  afinal  tudo  á  mulher,  e  logo  cahiu 
morto.» 

O  mytho  do  curupira  divulgava-se  outr'ora  por 
todas  as  tribus  brasileiras,  tupis  ou  não  tupis  e  ainda 
hoje  é  encontrado  nas  superstições  dos  sertanejos  dos 
Estados  do  norte. 

O  Yiiriipary.— Diz  o  Dr.  Couto  de  Magalhães  que 
o  yarupanj  equivale  a  isso  que  nossas  amas  de  leite  nos 
descrevem  como  pí?ía<ieío .  E' um  demónio  que  á  noite 
comprime  a  garganta  das  crianças  e  até  dos  homens, 
para  trazer-lhes  aíllições  e  mãos  sonhos.  Segundo 
Carlos  Hartt  o  yurupary  é  um  espirito  antropophago, 
«um  ente  maligno,  ordinariamente  um  verdadeiro  de- 
mónio ou  espécie  de  lobishomem,  que  apparece  ás  vezes 
sob  a  forma  humana,  mas  que  pode  transformar-se  em 
algum  bicho  feroz  do  matto  que  gosta  de  carne  de 
gente.» 

O  Dr.  Barbosa  Rodrigues  entre  outras  lendas  do 


láU. 


142  niSTORIA   DO   BRASIL 

Yiirupary  recolheu  dos  indios  Mundurucás  a  seguinte 
que  não  deixa  de  ser  curiosa  :  (1) 

«  Contam  que  um  veliio  que  tinha  três  filhas,  com- 
binara com  o  tio  delias  para  leval-as  a  apanhar  mi- 
ritY(2).  Conforme  tinham  ajustado  apparecea  de  manhã 
cedo  o  Yurupary  sob  a  figura  do  tio  que  elie  tinha  morto 
em  caminho.  Sahiram  as  moças  com  o  supposto  tio. 
Depois  de  muito  caminharem,  perguntou  uma  delias  se 
ainda  estava  longe  o  miritisal.  O  Yurupary  respondeu 
que  não.  A'  medida  que  caminhavam, de  vez  em  quando 
uma  delias  perguntava  se  ainda  estava  longe  o  miritisal 
e  respondia  que  não. 

Ao  aivurecer,  já  quando  estavam  perto  da  gruta  em 
que  moraA^ao  Yurupary,  uma  delhis  olhando  para  os  pés 
(l'este,  exclamou: — Kuaá  Yurapary!  Este  é  o  Yurupary! 

Chegando  á  casa  disse-lhes  o  Yurupary  que  alli  era 
o  miritisal.  Sahiu  depois  deixando  um  papagaio  de  sen- 
tinella  ás  moças  para  que  não  fugissem. 

Chegando  a  noite  convidou  a  mais  velha  para  le- 
var-lhe  fogo  á  rede.  Ahi  começou  como  morcego 
a  chupal-a.  De  madrugada  tornou  a  sahir  para  o  matto. 

Logo  que  sahiu  foram  as  duas  irmãs  ver  a  que  dor- 
mira com  o  Yurupary  e  encontraram  somente  a  sua 
ossada.  A'  noite  chegou  o  Yurupary  e  mandou  a  segunda 
levar-lho  fogo  á  rede  e  quando  esta  se  approximou  Mgar- 
rou-ae  chupou-a  como  á  primeira.  Pela  madrugada  foi 
novamente  para  o  matto. 

Quando  este  sahiu  a  mais  nova  foi  á  rede  e  viu  a 
outra  ossada.  Chorando  deitou-se  na  rede  junto  dos 
ossos  de  suas  irmãs.  Logo  depois  viu  passar  voando 
sobre  a  gruta  o  Karão  (pássaro)  e  gritou: 

—  Ah  !  Karão !  Karão !  Se  tu  fosses  genta  me  le- 
varias á  minha  mãe  I 

—  D'ahi  a  pouco,  apparecendo-lhe  o  Karão  sob  a 
forma  de  um  nioço,  lhe  disso  que  tomasse  os  ossos,  um 
pouco  de  sal  e  dd  cinza  e  fosse  furtar  a  f/iUon^/a  (3)  do 
Yurupary. 


(l)  Dr.  Barbosa  Rodrigues.— Paradinha  Amazonenfte. 

(i)  E'  a  palmeira  Mauritia  Flexitosa,  de  Martius,  Do  mezo- 
cari)0  de  Seuá  fructos  fazem  os  indios  uma  beberagem  e  os  comem 
cozidos. 

(8)  Termo  africano  introduzido  na  lingua  dos  indios  e  que 
significa  remédio,  feitiço,  talismã. 


IXTRODUCÇlO  143 


Logo  que  ella  arranjou  tudo  partiram. 
Apenas  sahiram  começou  o  papagaio  a  gritar: 

—  E  ijara  Karaa  o  raçò  ana  ne  yapuruehielola  (Meu 
senhor,  lá  vai  o  Karão  levando  o  teu  caramujo). 

Ouvindo  isso  correu  atraz  delles  o  Yurtipary  o-n. 
tando: 

—  Urure  ce  muyrakitan  (Karão,  traz  o  meu  ta- 
lismã). 

Ao  approximar-se  o  Yurupary,  o  Karão  disse  á 
moça  que  tomasse  um  dos  ossos  das  irmãs.  ImmedÍMta- 
meiíte  levantou-se  uma  grande  fumaceira,  que  impediu 
o  Yurupaty  approximar-se.  Aproveitaram-se  d^isto  e  ca- 
minharam. Jà  tinham  andado  muito  quando  ouviram 
novamente  o  grito: 

—  U  rure  Karan  cfí  maijrakitan  I 

O  Karão  mandou  então  queimar  sal  e  cinza,  o  oue 
fez  com  que  se  levantasse  um  grande  espinhal. 

Emquanto  o  Yurupary  se  desembaraçava  dos  es- 
pinhos e!les  avançaram.  Já  perto  da  casa  da  mãe  ou- 
viram ainda: 

—  U  rure  Karan  ce  mui/rakitan  I 

Mandou  então  o  Karão  que  queimasse  juntos  os 
ossos,  o  sal  e  as  cinzas,  o  quo  fez  com  que  apparecesse 
um  grande  rio  que  o  Yurupary  não  poude  atravessar  e 
assim  poderam  chegar  á  casa  da  mãe,  que  ficou  contente 
por  ver  as  fichas,  quando  as  julgava  todas   perdidas.   (1) 

®  Bt.aáj>»ra.— O  kaapora  é  um  gigante  tristonho 
e  taciturno;  tem  o  cjrp  )  palludo  e  anda  montado  em 
um  porco  do  matto,  dnndo  do  vez  em  quando  um  grito 
para  impellir  a  vara.  Ninguém  o  pôde  ver  sem  chamar 
sobre  si  a  infelicidade  para  todo  o  resto  da  vida;  no 
entanto  o  k^iápora  |irolege  a  caça  do  matto  e  só  é  visto 
quando  os  indios  dão  cerjo  a  uma  grande  manada  de 
aniniaL-s  que  [)retend^'m  matar. 

AOyurií. — A  oyar.i  ou  mãe  d'aguaé  um  demrnio 
femmino  dos  rios.  Segundo  Gonçalves  Dias  a  ovara  se 
apresenta  sob  a  forma  de  uma  formosa  muíher  de 
bastos  cabellos  de  ouro,  cuja  irresistível  voz  e  olhar 
fascinam  a  quem  a  vê,  induzindo  a  pessoa  a  lancar-se 
n'a2:ua. 


1./  o  Yurijpaiy  guardava  dentro  de  um   caramujo  o    muira- 
kitá,  seu  talismã.  O  caramujo  é  a  comida  do  Cariío. 


144  HISTORIA   DO   BRASIL 

Os  Índios  do  Amazonas  crêm  quo  a  mãe  d'agua  ou 
oyara  é  um  tapuyo  ou  tapuya  de  rara  belleza,  morador 
no  fundo  dos  rios  ou  lagos  e  que  fascina  aquelle  que 
cahe  em  seu  poder. 

Segundo  Gomes  de  Amorim,  o  individuo  fascinado 
pelas  ovaras  se  não  chega  a  afogar-se,  ao  serretirado  da 
agua  declara  ter  visto  palácios  no  fundo  do  rio,  sendo 
acompanhado  nesse  passeio  por  uma  bella  mulher  se  ó 
homem,  e  por  dois  bellos  tapuyos,  se  é  mulher.  Ao 
voltar  á  terra  as  ovaras  o  deixam,  e  de  novo  vão  para 
o  rio,  mas  ficam  em  seu  iognr  pequenos  tapuyos  para 
guardar  o  enfenuo  ou  enferma,  pois  a  fascinação  da 
oyara  é  uma  verdadeira  moléstia.  Os  pequenos  lapuyos 
devem  impedir  quo  outros  ospiritoá  d'agua,  seus  iai- 
migos,  se  apoderem  da  victima. 

A  crença  em  espíritos  aquáticos  ou  sereias  ainda 
se  enconti-a  em  diversos  povos  da  Europa.  São  da  na- 
tureza àâs  orjaras,  os  R-isalkase  Vodyanay  da.  Rússia  e 
os  hafji/'jr,  marmenil  e  nikes  da  Islândia. 

Além  da  oyara  os  Índios  do  Amazonas  crêm  na 
bóia  d'agua,  que  taaibem  é  uma  sereia  e  apreseuta-se 
debaixo  da  forma  de  uma  serpente. 

O  Sacy  Serèrè. —  O  sac^^-serèré  é  vulgarmente 
representado  por  um  pequeno  tapuyo,  toucado  com  um 
barrete  vermelho  ;  o  sacy  é  manco  de  um  pé  e  tem  uma 
ferida  em  cada  joelho. 

Esta  superstição  passou  aos  nossos  matutos  prin- 
cipalmente aos  dos  Estados  de  Minas,  S.  Paulo  e  Rio 
de  Janeiro,  os  quaes  dizem  frequentar  o  sacy  as  es- 
tradas, principalmente  nas  encruzilhadas. 

O  Mb «itatá.  — O  mòoíYató  ou  cobra  de  fogo  pro- 
tege os  campos  contra  aquelies  que  os  incendeiam. 
Quasi  sempre  reside  na  agua  e  ás  vezes  transforma-se 
em  um  grosso  madeiro  quo  faz  morrer  por  combustão 
os  incendiadores. 

O  IJrutáu  — Nada  mais  sabemos  áj  urutau  a  não 
ser,  como  a  própria  palavra  indica,  que  é  uma  ave 
phantasma. 

TradicçâkO  do  diluvio. — Os  índios  conservavam 
em  uma  lenda  a  tradicção  do  diluvio.  Nol-a  refere  o 
Padre  Manoel  da  Nóbrega,  nestes  termos:  oOs  índios 
têm  memoria  do  diluvio,  porém  falsamente,  porque 
dizem  que,  cobrindo-se  de  agua  a  terra,  uma  mulher 
com  seu  marido  subiram  em  um  pinheiro,  e,  depois  de 


1 


INTRODUCrÃO  145 


minguadas  as  aguas,  se  descera  n,  e  d'estes  procederam 
todos  os  homens  e  mulheres.  » 

A  lenda  do  Sumé. —Acreditavam  os  Índios  que 
um  personagem  eh  imado  Sumé  visitara  o  Brasil  em 
outros  tempos  e  ensinara  aos  homens  diversas  cousas 
úteis,  entre  as  quaes  a  cultura  da  mandioca.  Tendo 
porém  sido  mal  tratado,  retirou-se  descontent.3  e  suas 
pegadas  ficaram  impressas  em  uma  pedra  da  costa  nas 
proximidades  de  S.  Vicento  e  n'outros  logares. 

Os  escriptores  antigocs  identificaram  este  Sumé  com 
o  apostolo  S.  Thomé. 

Segundo  o  Padre  Simão  de  Vasconcellos  as  impres- 
sões de  pés  humanos  attribuidas  a  Sumé  eram  muito 
veneradas  pelos  Índios,  os  quaes  acreditavam  que,  collo- 
cando  sobre  ellas  o  pé,  saravam  de  qualquer  enfermidade. 

^•«cerdocio  ©  caaltu.  —  O  representante  do  sa- 
cerdócio entre  os  Índios  era  o  j>ag:i  ou  piaga,  o  qual 
exercia  sobre  as  tribus  a  mais  decisiva  influencia. 

Os  quo  se  propunham  alcançar  a  dignidade  de  page 
eram  obrigados  a  passar  por  um  duro  noviciado,  que 
por  demasiado  rigoroso  muitos  não  podianri  supportar, 
morrendo  antes  de  completar-se  a  iniciação. 

Cumpria  ao  neophyto  habitar  durante  longos  annos 
em  logares  ermos,  viver  completamente  nú,  não  tomar 
banhos,  não  pentear-se  e  alimentar-se  quasi  exclusiva- 
mente de  milho  assado  e  pimenta. 

O  page  iii cuíca va-se  como  podendo  conhecer  o  fu- 
turo, dominar  os  elementos  e  os  anímaes  feroz  ^s,  saber 
as  causas  das  moléstias  e  os  meios  de  cural-as  e  praticar 
com  os  espíritos,  servindo  de  intermediário  entre  elles 
8  os  homens. 

A  morada  habitual  dos  pagés  era  em  ranchos  iso- 
lados (tuivpares)  ou  em  tabas  abandonadas  (taperas)  e 
quando  alguém  os  visitava,  perfumavam  os  seus  tugú- 
rios queimando  a  resina  ybira-pagé. 

Cada  page  dominava  um  grande  distrícto  e  a  visita 
de  qualquer  um  delias  a  uma  aldeia  era  muito  festejada  ; 
limpavam  os  caminhos  por  onde  o  bonzo  devia  passar  e 
faziam-lhe  grandes  presentes.  Essas  oíTerendas,  de  ca- 
racter sagrado,  tinham  o  nome  à.Q potaba. 

Quando  o  page  morria,  seus  ossos  eram  tidos  em 
grande  veneração. 

10 


146  HISTORIA  DO   BRASIL 

Pela  autoridade  de  que  os  pagés  dispunham,  vê-se 
que  as  tribus  brasileiras  marchavam  aceleradamente 
para  a  systematisaçào  das  castas  e  consequente  im- 
plantação do  dominio  theocratico. 

ídolos .  — A  adoração  aos  Ídolos  era  geral  nas  tribus 
que  habitavam  o  Brasil  por  occasião  da  chegada  dos 
europeus,  e  mesmo  n'aquelles  povos  exti netos  que  ha- 
viam em  tempos  remotos  construído  os  ceraiuios. 

Frei  Ivo  d'iivreux  teve  occasião  de  observal-a  entre 
os  tupinambás  que  occupavani  o  Maranhão  no  sé- 
culo XVI  e,  segundo  o  que  nos  transmilte  o  capuchinho 
francez,  os  Ídolos  eram  guardados  em  ranchinhos  aos 
quaes  o  page  se  dirigia  em  dias  determinados  afim  de 
offertar-lhes  fogo,  agua,  carne,  peixe,  farinha,  milho, 
legumes,  pennas  de  còr,  flores  e  inceusal-oscom  o  fumo 
de  resinas  aromáticas. 

Os  Ídolos  encontrados  no  ceramio  de  Pacoval  lem 
quasí  todos  a  figura  humana,  a  qual  se  apresenta  as- 
sentada,com  os  joelhos  separados  e  com  as  mãos  ora 
nas  ilhargas,  ora  collocadas  sobre  os  joelhos. 

O  mais  importante  dos  ídolos  ou  objectos  symbo- 
licos  era  no  entanto  o  maracá,  espécie  de  chocalho  feito 
de  uma  cabaça  ou  do  fructo  da  coloquintida,  no  qual 
figuravam  o  rosto  humano  por  meio  de  grosseiras  in- 
cisões. Dentro  d'essa  cabaça  introduziam  seixos  que 
pela  agitação,  produziam  um  ruído  surdo.  A  mesma 
cabaça  era  espetada  em  um    punho  ornado  de  pennas. 

Toda  a  choupana  indígena  possuía  o  seu  maracá,  que 
por  essa  razão  se  transformava  n'uma  espécie  de  deus 
lar 

«O  maracá  da  tribu  Caethé,  que,  evadindo-se  ás 
atrocidades  dos  conquistadores,  teve  por  ultimo  asylo  a 
extensa  cordilheira  da  Ibíapaba,  era  o  ídolo  que  como 
emblema  do  poder  lhe  suggeria  acatamento,  se  a  atti- 
tude  que  tomava  nas  mãos  do  page  que  o  conduzia  era 
o  característico  da  benignidade,  ou  profunda  conster- 
nação e  temores,  se  as  mãos  do  impostor  lhe  imprimiam 
rapidez  nos  movimentos  o  oscillações,  que  lhe  faziam 
dar  a  seu  aibitrio,  quasí  sempre  com  intenções  ma- 
lignas. Apparecia  em  todos  os  jogos  e  festins,  onde, 
elevado  ao  ponto  visível  do  logar  tornava-se  o  objecto 
do  canto  e  dansa  e  ia  sobranceiro,  como  a  insígnia  de 
honra  da  nação,  entre  as  phalanges  armadas  que  sô 


INTRODUOÇÃO  147 


destinavam  á  guerra,  invocando-se  os  seus  bons  aus- 
pícios para  que  ellas   triumphassem  nos  combates.  (1)» 

C)s  cscon juros,  a  imposição  das  mãos,  o  chocalhar 
do  maracá,  as  dansas  e  outras  praticas  constituíam  o 
ritual  do  culto  indigona,  que  era  observado  respei- 
tando-se  uma  infinidade  de  agoures  bons  ou  máos. 

Crença  ua  vitla  futura.  —  O  facto  de  enter- 
rarem os  Índios  os  seus  mortos,  juntamente  com  as 
suas  armas  e  instrumentos,  põe  em  eviJencia  que  elles 
acredit  ivam  n'uma  vida  além  da  morte,  em  a  qual  esses 
instrumentos  seriam  necessários  •  o  finado. 

Os  tupys  da  costa  diziam  que  a  alma  dos  bons  iria 
depois  da  morte  habitar  além  das  montanhas  azues, 
isto  é,  além  d;i  Serra  do  Mir,  segundo  Alcides  d'Or- 
bigny.  Ahi,  nesse  paraizo,  vedado  aos  traidores  e  co- 
bardes, desfructariam  banquetes  opíparos  e  bellas  mu- 
Iherer . 

Os  passes  do  Rio  Negro  acreditavam  em  penas  e 
recompensas  depois  da  morto.  Pai'a  merecer  os  pré- 
mios era  de  necessidade  quj  em  vida  o  índio  fosse  con- 
stantemente animoso  e  obdiente  aos  pagés. 

Outras  tribus  pensavam  que  depois  da  morte  pas- 
sariam a  uma  outra  vida  em  a  qual  S3  occuparíam 
unicamente  de  caçadas;  por  isso,  a  morte,  em  algumas 
cabildas,  era  festejada  com  cânticos  alegres. 

Os  caniacuans  acreditavam  na  metempsychose; 
qu  indo  os  espíritos  deixávamos  antigos  corpos  pas- 
savam a  habitar  corpos  de  animaes,  análogos  á  índole 
e  hábitos  da  primitiva  encarnação. 

Os  xumanas,  que  acreJitavam  residir  a  alma  na 
meduUa  dos  ossos,  misturavam  essa  medula  com  os 
seus  vi  lhos,  e  bebiam  estes  religiosaniente,  para  que  a 
mesma  alma  fosse  habitar  nos  seus  corpos. 

Finalmente,  era  geral  a  crença  na  ímmortalídade  da 
alma  e a  veneração  pelos  mortos,  profunda  em  todos  os 
Índios,   derivava  da  consciência  d'esse  dogma. 

Muitas  tfibus  illumínava  u  as  sepulturas,  outras 
enchiam-n'as  de  flores,  outras  consagravam  aos  seus 
defuntos  os  mais  delicados  productos  da  arte  cerâmica 
e  todas,  emfim,  patenteavam  respeito  ou  carinho  pelos 
despojos  de  seus  camaradas. 


(1)  Machado  DE  Oliveira.— Memoria  lida  perante  o  Instituto 
Histórico  e  Geographico  do  BrasU  em  1844. 


14«  HISTORIA  DO   BRASIL 

O  casamento  e  a  família  —Os  índios  do  Brasil 
eram  em  geral  polygamos ;  havia  no  entanto  diversas 
tribus  monogamas,  afifirmando  o  Dr.  Couto  de  Maga- 
lhães (1)  que  na  grande  familia  indígena  encontram-se 
sob  o  ponto  de  vista  das  relações  sexuaes,  desde  as 
instituições  rígidas  e  da  unia  sevi  ridade  de  costumes 
que  excede  tudo  quanto  a  historia  nos  refere,  até  a  com- 
munhão  das  mulheres. 

Seguudoo  me>moautoros  Cayapós  são  communist  is 
sob  o  p«jnío  de  vista  matrimonial:  a  mulher,  desde  que 
chega  á  puberdade  podo  entrar  em  relações  com  o  homem 
que  quízer,  sendo  durante  a  gestação  e  amamentação 
sustentada  por  aquelle  que  a  fecundou;  logo,  porém, 
que  a  amamentação  terminou  pôde  procurar  um  outro 
nomem. 

«Este  modo  de  entender  as  relações  do  homem  com 
a  mulher,  isto  é,  fazel-as  exclusivamente  depender  da 
vontade  de  dous,  concluo  o  autor  citado,  pôde  ter  e  eíTe- 
ctivamente  deve  ter  grandes  inconvenientes.  Quaesquer, 
porém,  que  elles  sejam,  não  é  o  da  prostituição  ;  é  um 
modo  de  ser  da  familia,  que  elles  iulgaram  melhor,  se- 
gundo suas  idéas  e  meios  de  vida.  » 

Effectívamente  tal  regimen  do  communismo  está 
muito  longe  de  ser  uma  forma  da  prostituição,  bem  como 
já  se  acha  muito  distanciado  da  promiscuidade  primi- 
tiva. 

As  tribus  polygamas  eram  mais  numerosas;  n'estas 
o  homem  tomava  tantas  mulheres  quantas  podia  susten- 
tar, porém  a  mais  antiga  tinha  os  direitos  exclusivos 
de  esposa  e  predominava  sobre  todas  as  outras. 

Outras  tribus,  finalmente,  eram  monogamas,  como 
por  exemplo  a  dos  guaycurús. 

Segundo  as  tribus,  o  casamento  fazia-se  por  meio 
do  rapto,  ou  por  contracto  entre  o  pretendente  e  o  paeda 
noiva,  ou  finalmente  esta  era  concedida  como  premio 
de  acções  guerreiras. 

Em  algumas  tribus  a  donzella  usava  dístinctivos; 
em  outras,  ao  entrar  na  puberdade,  eram  suspensas 
em  um  cesto  á  cumieira  da  cnsa,  submettidas  á  dieta  e 
depois  sangradas  ;  os  indígenas  que  habitavam  a  Serra 
da  Ibiapaba,  logo  que  suas   filhas   chegavam   á   idade 


(1)    Couto  de  Magalhães.  —  O  selcagem. 


INTEODUCÇlO  149 


núbil,  traçavam-lhes  por  baixo  dos  olhos  uma  risca  ver- 
melha. 

O  divorcio  era  frequente  nas  hordas  brasileiras  e 
dava-s0  por  diversos  motivos,  sendo  o  principal  a  este- 
rilidade. Entre  os  Chambiocas  eGualtós,  que  já  presa- 
vam  a  fidelidade  conjugal,  tinha  logar  o  divorcio  quando 
a  mulher  era  encontrada  commettendo  o  adultério.  Em 
quasi  todas  as  tribus,  quando  o  marido  praticava  um 
acto  de  cobardia,  a  mulher  tinha  o  direito  de  repudial-o. 

Geralmente  impedia-se  a  união  dos  dois  sexos  antes 
que  a  mulher  e  o  homem  attingissem  á  puberdade  com- 
pleta; o  homem,  principaln. ente.  só  podia  de  ordinário 
contrahir  matrimonio  depois  dos  25  annos. 

As  mulheres  guaycnrús,  muito  extremosas  para 
com  os  maridos,  praiicavam  o  infanticídio  com  o  fim 
de  não  comprometterem  a  sua  frescura  com^  os  traba- 
lhos da  amamentação  e  criação  dos  filhos  ;  só  dos  trinta 
annos  por  diante  ó  que  cuidavam  da  prole. 

Qualquer,  porém,  que  fosso  a  forma  do  casamento, 
a  familia  achava-se  perfeitamente  constituída  entre  os 
selvicolas  do  Brasil  e  os  diversos  grãos  de  parentesco 
eram  definidos  com  meticuloso  escrúpulo.  «  A  segunda 
geração,  diz  Varnhagen,  se  regulava  pela  do  pao,  em 
opposição  COMI  o  que  se  noia  em  alguns  povos  bárbaros 
da  Africa.  A  mãe  só  era  considerada,  á  maneira  dos 
egypcios,  como  guarda  ou  depositaria  do  feto  até  o  dar 
á  luz,  e  nenhuns  deveres  contrahia  com  ella  o  filho  que 
amamentava  O  pae  denominava  ao  filho  taira  ou  «o 
procedente  do  seu  sangue»  e  a  mãe  chamava-lhe  mem- 
bira,  «  o  seu  parido,  o  procedente  do  seu  seio.  » 

A  tríbii.  —  A  sociedade  indígena  no  moniento  da 
conquista  européa  achava-se  organisada  em  tribus  de- 
mocráticas constituídas  por  um  certo  numero  de  famílias, 
ligadas  por  estreita  solidariedade. 

O  cliefo  ou  morubichaba  era  escolhido  por  eleição 
exigindo  se  n'elle  um  certo  numero  de  qualidades,  entre 
as  quaes  sobresahia  a  coragem.  Esse  chefe  represen- 
tava a  communidade,  mas  não  a  governava  senão  com  a 
assistência  da  assembléa  dos  guerreiros  ou  nheemon- 
gaba.  Também  não  distribuía  a  justiça,  pois  a  cada  um 
cumpria  desaggravar-se  por  si  mesmo  das  offensas  re- 
cebidas 0  se  o  não  fizesse  tinham-n'o  por  degradado. 

O  indígena  brazileiro  era  essencialmente  caçador  e 
pescador  e  se  praticava  algumas  vezes  a  agricultura, 


150  HISTOEIA  DO  BRASIL 

esta  ainda  não  subsidiava  a  sua  alimentação  de  modo  a 
merecer  grande  importância.  Assim  a  tribu,  depois  de 
esgotar  pela  caça  e  pela  pesca  as  maltas,  rios  e  praias 
de  uma  localidade,  traiisportava-se  para  outra  onde 
levantava  nova  aldeia  ou  taba.  Aquella  que  abandona- 
vam tomava  o  nome  de  tapera. 

Desse  estado  de  caçador  cm  que  se  achavam  os  sel- 
vagens brasileiros  derivam  algumas  leis  relativas  á 
regulamentação  das  caçad;is,  as  quaes  se  encontram  em 
quasi  todas  as  cabildas.  Entre  outras  pode-se  citar  a 
prohibição  de  matar  os  animaes  durante  a  prenhez  e 
amamentação  dos  íilhos  e  o  impedimento  de  colher  os 
ov.  s  das  aves, 

A  propriedade  era  muito  limitada  entre  os  indios, 
que  se  achavam  ainda  no  regimen  communista.  Nenhum 
membro  da  tribu  comia  ou  bebia  sem  que  os  demais 
participassem  dos  mesmos  alimentos  O  roubo  era  quasi 
desconhecido  entre  elles ;  commercio  não  existia, 
excepto  em  algumas  tribus  do  Alto  Amazonas,  que  já 
tinham  inaugurado  um  systema  de  permutas  quando  os 
europeus  aportaram  ao  Brazil  pela  primeira  vez. 

A  hospitalidade  era  seriíimentd  praticada  enlic  os 
selvagens  brazileiros,  não  só  para  com  os  forasteiros, 
como  mesmo  para  com  os  inimigos.  O  talião  e  a  vindicta 
privada  eram  de  uso  geral. 

Vivendo  em  continuas  guerras,  a  moralidade  entre 
os  indígenas  restringia-seá  pratica  do  valor  gueireiro, 
vindo  a  deshoura  somente  com  a  cobardia  ;  todavia  em 
certas  tribus  o  adultério  era  uma  macula  e  em  todas  o 
deixar  de  praticar  a  hospitalidade  infamava. 

ludiistria.  Os  indígenas  obtinham  o  fogo  pelo 
systema  de  altricçâo  e  quanto  á  industria  achavam-su  na 
phase  da  pedra  polida  da  qual  faziam  os  machados  e 
outras  ferramentas,  comtudo,  com  esses  toscos  instru- 
mentos já  haviam  conseguido  um  notável  desenvolvi- 
mento no  fabrico  de  vários  utensílios. 

A  aldeia  ou  taba  era  geralmente  constituída  por 
grandes  casarões  ou  abarraca mentos  de  fóni.a  convexa 
{ocas},  feitos  de  paus  e  algum  barro  e  cobertos  de  folha 
de  pindoba.  As  ocas  tinham  pouco  mais  ou  menos  150 
pés  de  comprimento,  quatorze  de  largura  e  doze  de  al- 
tura e  junto  ao  tecto  achavam-se  gyráos  que  serviam 
para  guardar  os  mantimentos  e  utensílios. 

O  numero  de  ocas  de  cada  taba  variava  e  ás  vezes 


INTEODUCÇiO  151 


SÓ  havia  uma  na  aldeia.  No  interior  não  existia  divisão 
alguma  e  somente  os  esteios  para  as  redes. 

As  ocas  eram  cercadas  por  uma  cerca  ou  cahiçara, 
feita  do  gissara  ou  de  t  tboca,  e  qu  mdo  a  aldeia  acha- 
va-se  próxima  de  inimigos  cercavam-n'a  de  uma  tran- 
queira de  palancas,  de  íorma  quasi  pentagonal.  A's 
vezes  a  taba  era  cii'cumvalada  por  fossos  ou  fojos  guar- 
necidos de  estrepes. 

Consistiam  suas  armas  na  tamarana,  pesada  ciava 
de  madeira, de  quatro  faces, ornamentada  e  mais  delgada 
e  arredondada  no  cabo  ;  quando  essa  clava  tinha  a  for- 
ma de  remos  ou  pás  com  gumes,  davam-lhe  o  nome  de 
tangapemas  e  cuidarás',  a  uirapora  era  um  grande  arco, 
feito  de  pau  d'arco,  forrado  de  cipó-enibe  e  facet-  do  do 
lado  interior  onde  se  collocava  um  cordel  tecido  de 
tucum  ou  pita,  seguro  nas  pontis  por  umas  entalhas. 
As  frechas  eram  de  ubá,  taboca,  taquara,  etc,  e  sempre 
muito  bem  trabalhadas.  Havia  frechas  para  a  caça  e 
frechas  para  a  guerra;  estas  ultimas  eram  mais  fortes  e 
envenenadas  na  ponta,  sondo  nas  expedições  transpor- 
tadas dentro  de  aljavas. 

Os  cnrabls  eram  zagaias  de  arremesso,  feitas  de 
pau-ferro,  e  geralinente  hervadas;  os  m.urucús  eram 
lanças  de  pau-ferro,  muito  com^triáDs;  a  esgaravata- 
na,  que  algumas  tribus  do  Amazonas  usavam,  era  um 
tubo  ôco  com  bocal  e  mira,  forrado  de  cipó-imbé,  com 
o  qual  por  meio  do  sopro,  disparavam  settas  muito  finas 
ou  puas  hervadas;  em  outros  logares  empregavam-se 
palhetas  com  as  quaes  se  arremeçavam  dardos.  Tam- 
bém usavam  pavezes  feitos  de  cour  j  de  anta,  de  pelle  de 
peixe-boi,  ou  simplesmente  de  taquara  tranç  ida. 

A  navegação  faziam-n'a  por  meio  de  canoas,  igaras, 
ordinariamente  ue  um  tronco  que  carcomiam  com  o 
fogo;  muitas  dessas  canoas  eram  de  taes  dimensões  que 
podiam  ser  remadas  por  cincoenta  ou  sessenta  homens. 
Quando  as  mesmas  eram  feitas  de  cascas  de  arvores, 
com  [jonlíj lotes  no  meio  e  apartados  por  cipós,  tomavam 
o  nome  de  abas.  O  remo  chamava-se  apecuità  e  a  pâ  do 
remo  yacunã. 

Os  mais  vulgares  utensilios  domésticos  eram  o  pa- 
tvjuá  ou panacíí,  canastra;  as  iguaçabas,  talhas  para 
agua  ou  bebidas;  as  cumãs,  panellas  de  barro;  as 
cui/ambucas,  combuca  para  guardar  farinha  a  kyçaba, 
rede  para  doimir  feita  de  algodão  ou  de  varias  fibras 
textis.  A's  cordas  davam  o  nome  de  mussuranas. 


152  HISTOEIA  DO   BEASIL 

Um  dos  caracter! sticos  das  tribus  do  grupo  gé  é  não 
usarem  as  mesmas  redes  para  dormir;  algumas  tribus 
tupys,  no  entanto,  lambem  não  as  possuem,  subslituin- 
do-as  por  esteiras,  geralmente  feitas  de  tábua. 

Os  Índios  já  liaviam  chegado  a  uma  grande  perfeição 
no  fabrico  da  louça,  trabalho  que  comi)etia  às  mulheres; 
ás  velhas  reservava-se  o  preparo  dos  vinhos,  farinhas, 
venenos,  etc.  A  ii.assa  da  mandioca  era  expremida  em 
um  sacco  de  junco  oblongo,  muito  elástico,  tendo  na  ex- 
tremidade inferior  um  peso  qu  o  fazia  distendcr-se  e 
apertar  a  massa. 

A  caça  e  a  peiscie.  —  Os  Índios  faziam  as  suas 
caçadas,  não  só  com  as  armas  que  já  mencionamos  como 
por  meio  de  fojos,  mondéos  e  muitas  outras  armadilhas. 
Na  pesca  grossa  também  empregavam  ás  vezes  a  flecha 
e  anzóes  que  denominavam  pindà .  Usavam  igualmente 
envenenar  as  fontes  com  o  ír>?í/?«"  ou  o  íithbó.  A  umas 
redes  pequenas,  feitas  de  fio  de  tucum,  davam  o  nome 
puçás  e  o  de  giqvis  a  uns  covos  afunilados. 

A  agricssltisra.  —  A  agricultura  entre  os  Índios 
era  ainda  muito  rudimentar;  em  geral  só  cultivavam  o 
mesmo  terreno  durante  um  ou  dois  annos.  Os  homens 
roçavam  o  matto,  quein.avam-n'o,  encoivaram  e  dt-pois 
as  mulheres  plantavam  o  aipim,  a  mandioca,  o  milho,  o 
mendubí,  etc.  Pensavam  elles  que  a  mulher,  sendo  o 
sexo  fecundo,  compatia-lhe  fazer  a  sementeira  para  que 
esta  fosse  mais  fructifera. 

Conlieciauentos)  >§icieuliíleo'>í . — E'  qua  i  des- 
necessário dizer  que  os  Índios  ainda  não  possuíam  sci- 
encias  propriamente  ditas,  pois  tal  nome  não  merecem 
os  seus  conhecimentos,  todos  baseados  n'um  empyrismo 
grosseiro;  no  entanto  não  se  pode  negar  que  de  muitas 
sciencias  já  possuíam  noções  praticas. 

A  medicina,  ou  antes,  a  arte  de  curar  praticada 
pelos  pagés,  avulta  entre  esses  conhecimentos.  Os  ín- 
dios conheciam  as  virtudes  therapeuticas  dos  vegetaes, 
sabiam  do  emprego  dos  antídotos  e  tudo  nos  faz  crer  que 
conhecessem  o  processo  para  tornar  imniune  o  ^irus 
ophídico,  conhecimento  que  transmittiram  aos  colonos 
europeos,  sendo  ainda  vulgar  no  interioi-  de  nossos 
Estados  encontrar-se  indivíduos  que  se  dizem  curados 
contra  o  veneno  das  serpentes.  Xa  maioria  das  molés- 
tias tratavam-se  antiphlogibticamenle:  uzavani  de  rigo- 
rosa dieta  esangravam-se  com  um  dente  de  cotia  ou  com 
uma  lamina  de  crystal  de  rocha.  Para  que  as  feridas  ci- 


INTRODUCÇlo  153 


catrisassem  mais  rapidamente,  aqueciam-n'as  ao  fogo, 
atim  do  provoc  re -i  iaflamniação  ou  insensibilidade 
local;  depois  applicavam  às  mesmas  óleo  de  copahyba. 
Para  su  irem  expunham-se  á  fumaça . 

O  Índio,  como  t  jdos  os  matteiros,  era  um  grande 
conhecedor  dos  vegetaes  e  muitas  de  nossas  plantas 
ainda  conservam  os  nomes  que  elles  lhes  puzeram, 
nomes  que  até  certo  ponto  acham-se  de  accordo  com 
uma  classificação  que  já  se  basea  na  observação  dos 
caracteres  morphologicos  da  planta. 

Em  astronomia  diíTerençavam  as  constellações  maii 
notáveis,  ás  quaes  subordinavam  mythos  religiosos. 

A.  líiigiiA^eni.  —  Os  vários  dialectos  fallados  pela 
grey  cabocla,  foram  pelos  antigos  escriptorjs  consile- 
radus  como  nuditicações  de  Uína  lingua  geral,  o  abae- 
nenga  ou  lingua  tupy  propriamente  dita  e  hoje  mesmo 
aindi  não  está  provado  se  a  lingua  dos  demais  grupos 
ethnicos  indígenas  são  degradações  mais  ou  menos  pro- 
fundas d'aquella  fonte,  ou  se,  pelas  suas  formas  gram- 
maticaes  e  syntaxicas  dilferenciam-se  por  maneira  tal 
que  desappareça  o  parentesco  linguistico. 

Assim  tratai-omos  unicame.ite  do  ahaenenga,  que 
era  a  lingua  fallada  pelos  tupys  da  costa  e  com  a  qual 
a  lingua  dos  guaranys,  ou  tupys  do  sul  tinha  tanf.os 
atíinidades  como  ohespanholcom  o  portuguez. 

A.  lingua  dos  selvagens  do  Brasil  pertencia  á  classe 
daslinguis  agglatiiiantes,  ist)  é,  daquellas  linguasque, 
segando  Hovel  icqu.^  um  i  parte  d  i  palavra  é  formada 
de  uma  raiz  priícipal,  indicando  a  signiticação  funda- 
mental desta  palavra  e  a  outra  é  formada  de  uma  ou  mais 
raizes  accessorias,  indi^jando  as  relações  e  os  modos  de 
ser  diversos  da  raiz  capital. 

Pertence  por  conseguinte  ao  grande  grupo  de  lín- 
guas faladas  pelos  australianos  di  Oceania,  pelos 
negros  da  Africa,  pelos  povos  altaicos  da  Ásia,  pelos 
bascos  da  Europa  e  pelos  outros  pov^os  d;i  America  ijue 
os  conquistadores  encontraram  habitando  este  conti- 
nente ao  chegar  a  elle  pela  primeira  vjz,  exceptumdo 
unicamente  os  povos  de  Sonora,  do  Texas,  do  México, 
do  Guatemala,  das  Antilhas  e  dos  Andes  que  íallavam 
idiomas  monossylabicos. 

No  alphabeto  da  lingua  tupy  não  existem  as  letras 


154  HISTOEIA   DO  BEASIL 

j,  /,  /,  ver  forte  (1);  esta  pobreza  de  consoantes,  porem, 
ó  compensada  por  uma  notável  riqueza  de  sons  vogaes. 
Os  substantivos  declinam- se  como  em  portuguezpor 
meio  de  preposições  ou  antes  de  posposições,  pois  estas 
vão  sempre  depois  do  nome,  exemplo:  Tupãna  Deus; 
Tupã  cui,  de  Deus;  Tiipã  supé,  para  Deus,  etc. 

Os  adjectivos  qualificativos  vem  sempre  depois  dos 
nomes:  abà  cat'i,  homem  bom  ou  o  homem  é  bom;  cunã 
porã,  mulher  bonita;  che  rací,  eu  doente  ou  estou  do- 
ente; nde  reçãí,  tu  estás  são.  A's  vezes  os  adjectivos  são 
simplesmente  a  primeira  ou  a  terceira  pessoa  dos  verbos; 
exemplo: /jaò  findar,  o/;aò,  findou,  opá,  todo,  toda. 

Os  adjectivos  numeraes  chegam  quando  muito  a 
vinte  com  os  lerivados  e  compostos,  e  propriamente  a 
numeração  só  alcança  a  quatro  :  tepê,  um ;  mokoim, 
dois  \  inoçapira,  três;  erundi,  quatro.  Para  designar  o 
numero  cinco  empregam  a  ptirase  apo,  minha  mão; 
pai  a  designar  o  numero  dez  eke-po,  minhas  mãos,  e  para 
designar  vinte  ehepo-chepi,  minhas  mãos,  meus  pés. 

Espressa-se  o  plural  dos  nomes  por  meio  de  adje- 
ctivos affixos  aos  substantivos,  sendo  etá  e  retà  os  mais 
u:>uaes;  oca,  casa;  ocatá  ou  ocaetá  casas. 

Os  géneros  são  designados  por  m  no  de  affixos  ou 
com  o  aaxiHo  de  qualificativos,  como  meu  e  cuymbae, 
macho,  cunã,  fêmea. 

O  comparativo,  forma-se  com  a  posposiçào  de  pire 
Pedro  cata  pire  João  çui,  Pedro  é  melhor  do  que  João 
ou,  traduzindo  litter.ílmente  Pedro  é  bom  mais  João  de. 
O  superlativo  forma-se  pospondo  tí7í/,  que  toma  r  quando 
é  antecedido  de  vogal :  pora/iga,  bonito,  poranga  reté 
muito  bonito.  O  augmentativo  é  designado  pelos  adje- 
ctiv  s  turussú,  uassú,  assú.  grande  ;  o  ditninutuivo  por 
mirim,  pequeno,  ou  simplesmente  i  no  fim  dos  vocá- 
bulos. 

Os  pronomes  pessoaes  dividem-se  em  pronomes, 
agentes  ou  do  nominativo;  os  primeiros  são:  a,  eu;  re, 
tu;  o  OMogu,  ou  ogue  elle,  ella,  elles,  ellas;  yaon  na,  nós 
todos;  ro  ou  rogu,  ou  rogue,  nós  outros,/)*^,  vós.  Pre- 
põem-se  aos  verbos  da  seguinte  íorma  :  a-u,  eu  como; 
rj-u,  tu  comes;  o-u,  (-dle  come,  ya-u  ou  ro-u,  nós  come- 


Dr.    Baptista  Ca.etano    de   Almeida    Nogueira.  —  Esboço 
rjrammaUcal  de  abanenga.  Couto  de  Magalhães— O  Selvagem. 


INTEODUCÇÃO  155 


mos\  pe-u,  vós  comeis,  o-íí,  elles  comem.  Os  pronomes 
da  segunda  classe  prepõem-se  sempre  aos  verbos  nos 
modos  pcssoaes  e  também  nos  modos  infinitos  e  nos 
paiticipios  quando  se  trata  de  personificar  o  sujeito  ; 
são  ellts  :  che,  me,  mim  ;  nde,  te,  ti;  y  ou  yy  yn  ou  yn  ou 
h,  elle,  ella,  o,  a,  Jhe;  o,  ou  yu,  se,  si;  yandj  ou  nande, 
nos  (inclusivu);  oré,  nos  (exclusivo);  peé  ou  pô  ou  pende 
vos,  e  na  terceira  pe-soa  do  plural  os  mesmos  que  ser- 
em nado  singular 

Os  pronomes  pessoaes  sujeitos  variam  da  seguinte 
forma : 

Em  vez  de  «,  a  primeira  pessoa  do  gerúndio  éyui,  e 
a  primeira  pessoa  do  plural  no  imperativo  é  quasi  sem 
pre  cha  ;  a  segunda  pessoa  no  imperativo  e  no  gerúndio 
é  e  QVí  vez  de  re  ;  quando  o  paciente  do  verbo  é  da  pri- 
meira pessoa  e  agente  a  segunda,  esta  é  epe  no  singular, 
epeyepe  no  plural,  sendo  n'este  caso  único  o  pronome 
agento  posposto  ao  verbo. 

O  Dr.  Baptista  Caetano,  cujo  livro  nos  sérvio  para 
esta  resumida  exposição  da  grdmmatica  da  lingua  tupy, 
diz  que  os  verbos  tem  um  tempo  que  se  pôde  chamar 
gerai  do  modo  indicativo,  porque  exprimem  ao  mesmo 
tempo  o  passado  e  o  presente  e  também  o  imperfeito. 
Faz-se  a  conjugação  propondo  ao  verbo  intran^itivo  os 
pi'onomes  agentes  e  ao  verbo  transitivo  os  pronomes 
agentes  seguidos  de  um  pronome  paciente  :  a  cê,  eu 
saio  ou  sahi  ;  a  iy  apo,  eu  o  faço  ou  fiz, 

Forma-se  o  futuro  ajuntando- se  a  partícula  ne  suf- 
fixa  :  a  ce  ne,  eu  sahirei  ;  re  iy  apo  ne,  tu  o  faiás. 

Obtem-se  o  condi scional  empregando-se  mo  em  logar 
de  ne\  a  cê  mo,  eu  í>ahiria.  Forma-se  a  conjuncçâo  nega- 
tiva com  o  prefixo  nd  =  //  =  d,  seguido  de  uma  vogal 
euphonica  quando  antecde  a  consoante,  e  coiu  o  pre- 
fixo i  :  nda  eem-i  ou  nda  cê-i,  não  sa  o. 

A  conjugação  negativa  do  futuro,  do  condiccional 
e  do  optativo  faz-se  antepondo  ao  respectivo  sufiixo  as 
partículas ícAe,  ice  ou  ichoé  :  nda  ce  iclie  ne,  não  sahirei. 

Além  do  indicativo  existe  na  lingua  tupy  um  modo 
que  os  philologos  chamam  permissivo  e  que  differc  do 
primeiro:  1°  em  ter  um  preffixo  t  seguido  de  uma  vogal 
euphonica  quando  precede  consoante  ;  2°  em  ter  no  con- 
jugação negativa  um  sufíixo  ynie,  exemplo  :  tacê,  saia 
eu,  ta  iy-apò  faça  eu . 

O  imperativo  é  uma  modificação  do  indicativo  e  do 
permissivo  :  ecê,  sae  ;  eha  cê,  saiamos. 


156  HISTORIA  DO  BRASIL 

O  imparativo,  que  também  serve  de  substantivo,  ás 
vezes  ó  o  radical  do  verbo  se  é  pri  iiitivo,  ou  o  tliema  so 
é  derivado,  porém  na  maioria  dos  casos  apreserita-se 
comum  afinal.  Exemplo  :  cé/n,  cêma,  sahir  ;  pab^paba 
acabar. 

Os  verb  )s  no  aban  3eaga  são  primitivos  e  neste  caso 
monossyllabicos,  coqio  :  u,  comer,  e  dizer,  Mr,  vir,  etc, 
ou  derivados  e  compostos  e  então  possuam  um  thema 
ao  qual  se  jantam  os  prefixos  de  tempo  e  modo  :  aang, 
medir,  aihãb,  amar,  mbos,  ensinar.  As  letras  iniciaes 
dos  verbos  i  nplica  u-se  mais  ou  menos  com  os  prono- 
mes, com  os  d.imonstrativos  e  com  vários  prefixos  que 
mudam  a  significação  dos  mesmos  verbos.  Em  tnr,  ha  t 
o  demonstrativo  e  uro  radical ;  em  wòce.  ha  mòo,  prefixo 
formador  dos  verbos  transitivos  q  é,  o  radical. 

For.na-seo  gerúndio  acrescentando  bo  ao  radical  ou 
thema,  principalmente  quando  estes  terminam  em  vogal: 
apo,  fazer  ;  apobo,  fazendo  ;  potar,  querer,  potarabo, 
querendo. 

Os  verbos  terminados  em  b  formam  o  gerúndio  em 
ba,  exemplo:  ca6, ferir, — íaòa ferindo  ;  os  terminados  em 
g,  formam-n^o  em  ca  :  beg,  nadar,  bsm,  nadando;  os  ter- 
minados em  7*,  perdem  este  e  seguem  a  regra  geral,  ker, 
dormir,  kebo,  dormindo;  os  terminados  em  som  nasal 
formam  o  gerúndio  com  o  acrescentamento  de  mo:  ty, 
enterrar,  rymo,  enterrando  ;ncé,  fallar,  ;ieéma,  fatiando  ; 
os  terminados  e:n  m,  acrescentam  um  o  ou  um  a  :  bem, 
trançar,  benio,  trancando  ;  tam,  enterrar,  tuma,  enter- 
rado :  os  verbos  terminadas  em  n/,  ou  n  tomam  um  a 
no  gerúndio,  não  dillerindo  assim  do  infinitivo  :  meerif/, 
dar,  meenga,  dando;  o  mesmo  acontece  com  os  termina- 
dosemdyphtongos  nas:aes.  Osterminadosemdyphtongos 
não  nasaes,  fazem  o  gerúndio  em  ta,  exemplo  :  cai,  quei- 
mar-se,  eaita,  queimando-se. 

Os  participios  formam-se  mediante  as  partículas 
bae,  hab,  har,  bir  pospostas  ao  verbo  e  pela  prepositiva 
temi;  os  participios  nominaes  forma ra-se  com  a  prepo- 
sição de  har  e  hab  derivados  dos  gerúndios  çar  e  çab  ; 
pab,  findar,  paba,  findando, /)a6aò,  o  legarem  que  finda. 

Os  participios  passivos  formam-se  com  o  suífixo 
bir  e  com  o  prefixo  temi. 

As  preposições  simpl3s  que  substituem  as  preposi- 
ções nas  linguas  aryanas  são  :  regendo  o  locativo  e 
outros  pe  e  /,   em  ;  ri  ou  re  e  bo,  por  ;   regendo  o  cau- 


INTRODUCÇÃO  157 


salivo  e  o  accusativo  e^  conforme,  segundo,  depois,  de, 
por;  regendo  o  ablativo  í/ííí,  de,  em,  fora,  além  de.  etc.  A 
preposição  he  transíbrma-se  ás  vezes  em  me:  nu-me 
no  campo. 

Todas  as  preposições  modificam-so  e  dão  origem  a 
preposições  compostas.  Entre  as  preposições  composlas 
temos  nbedi  ou  para  (dativo),  para  os  nomes,  e  lO'  ou  bo 
para  os  pronomes  ;  pipe,  com  (instrumental,  de  compa- 
nhia) ;  rubi,  o  logar  por  onde  (ablativo  ou  accusativo): 
ca  a  rubi,  pelos  mattos. 

Os  advérbios  de  afilrmação  são  pa,  ta,  ne,  hee,  sim; 
nia,  nanga,  nug/ia,  anei,  de  certo,  assim,  deveras  ;  de  ne- 
gação :  aav,  ani,  aani,  não  ;  he,  não  sei,  e  outros  ;  os 
advérbios  de  logar,  de  tempo  e  modo  em  nada  diíTeren- 
çarn-se  dos  pronomes  demonstrativos  :  co,  a,  ang,  au, 
este,  esta,  isto,  aquillo,  cá,  agora  ;  ke,  ki,  Ide,  gui  esse, 
essa,  isso,  ahi,  então  (em  certo  tempo) ;  ew,  cui,  gui,  pe, 
aquelle,  aquella,  aquillo,  alli,  lá,  emão  ;  rno,po,  mi,  bi, 
alguém,  algo,  algures,  n'alguma  occasião,  ás  vezes ; 
ma,  rã,  nã,  ga,  c/?a,  assim,  deste  modo  o  tamíinho,  como 
esta,  desta;  e,  ae,  liae,  outro,  outra,  etc,  ai,  ae,  o  mesmo, 
o  tal. 

Combinando-so  uns  com  os  outros  ou  com  prepo- 
sições, como  suffixos  de  participios  ede  tempo,  dão 
origem  a  outros  advérbios  e  demonstrativos. 

A  conjuncção  principal  é  te,  quer  proposta,  quer 
proposta,  a  qual  significa  :  pois,  assim,  pois;  que,  para 
que,  etc. 

A  maior  parte  das  interjecções  são  radicaes  de  de- 
monstrativos. 

Como  não  ha  género,  nem  numero  no  abaenenga, 
não  existe  conordancia  do  adjectivo  com  o  substantivo 
e  do  verbo  com  o  sujeito. 

Quando  dois  nomes  ou  dois  verbos,  ou  um  nome  e 
um  verbo  ou  participio  são  consecutivos,  o  segundo  qua- 
lifica, rege  ou  em  geral  determina  o  primeiro,  precedido 
ou  não  do  respectivo  pronome,  determinando  asprepo- 
sitivas  e  atíixos  a  subordinação  das  phrases,  exemplo  ; 
aba-catú,  o  homem  bom,  aba  catuab,  a  bondade  dj 
homem,  aba  g  catu-bae,  o  homem  (jue  c  bom.  Esta  regra 
é  primordial. 

Quando  na  oração  concorrem  dois  verbos  ou  um 
substantivo  e  um  verbo,  em  geral  estes  se  compõem  ou 
então  o  segundo  verbo  modifica  ou  rege  o  primeiro, 
accentuando-se  o  caracter  de  agglutinação  ;  exemplo  : 


158  HISTORIA  DO   AEASIL 

ai  u-hey,  ou  a-a-cêi,  eu  comer  ou  beber  desejo,  eu  tenho 
fome  ou  sede  ;  a-i-ú-hei,  eu  agua  beber  desejo,  tenho 
sede  ;  a-ca-ru-hei  eu  comer  desejo.  Este  processo  de 
agglutinação  é  o  modo  mais  geral  de  formação  dos  vo- 
cábulos. 

Nas  orações  simples  de  verbo  intransitivo  a  cons- 
trucção  é  quasi  a  mesma  que  em  poríuguez  :  cunà  k''*iri 
o-u  mbegw^,  a  mulher  triste  (ella)  vem  de  maiíso  ;  nas 
de  verbo  transitivo  interpõ3-se  o  paciento  entre  o  agente 
e  o  verbo  :  a  yo-hu,  eu  o  acho. 

Nas  orações  em  qu3  occorrem  que,  isto  é,  nas  ora- 
ções incidentes,  exprime-se  a  relação  por  meio  dos  di- 
versos participios  e  ás  vezes  somente  pelo  intiniiivo: 
mbóia  clieÇLUi  bae-ranguJ  ajncí,  matei  a  cobra  que  me 
ia  mordendo . 

As  orações  subordinadas,  que  não  são  de  relativo 
que,  têm  o  verbo  no  subjunctivoou  no  infinitivo,  seguido 
das  conjuncções  pospositivas  ramo,  rê,  cé,  ha,  bae,  etc. 

Nota-se  no  tupy  particularidades  muito  interressan- 
tes,  entre  as  qnaes  citaremos  a  seguinte  :  o  suffixo  éra 
tem  o  poder  de  exprimir  o  passado  :  akanga,  cabeça, 
acanguera,  caveira. 

Mais  interessante  ainda  é  o  facto  que  se  observou  em 
algumas  tribus  do  Brasil  nas  quaes  os  objectos  eram 
appellidados  por  uma  forma  pelo  sexo  masculino  e  por 
outra  pelo  sexo  feminino. 

Cjuto^i  imligenis. — Investigações  recentes  rea- 
lizadas por  diversos  scientistas  nas  tribus  indígenas 
que  até  hoje  tem  sido  preservadas  de  cont  icto  intimo 
com  os  europeus,  revidaram  qu.eofolk-hre  (1)   caboclo 


(l)  De  Volk,  povo,  e  lehre,  doutrina,  lição,  dogma,  etc.  Ado- 
ptou-se  este  neologismo  para  applicar-seàs  phantasiasanonymas 
do  povo,  as  quaes  se  manifestam  em  tradições,  lendas,  contos 
da  carochinha,  cantigas,  canções,  canções  do  Ijorço,  jogos  in- 
fantis, adviahações,  rifões,  esconjuros.  cliacaras.  quadi-inhas, 
orações,  etc.  O  estudo  do  Folk-lore  foi  iniciado  na  Allemanha 
pelos  irmãos  Grimm,  e  d'ahi  passou  á  França,  onde  o  acolheram 
H.  Gaidoz,  Paul  Sebillot  e  outros.  Foi  explorado  na  Inglaterra, 
principalmente  por  Tylor,  e  em  Portugal  por  Theophilo  Braga, 
Adolpho  Coelha,  Leite  de  Vasconcellos,  Consiglieri  Pedroso  e 
outros.  No  Brazil  03  estudos  folkloficos  começaram  em_  1850  por 
um  anonymo  que  escrevia  no  Correio  Paulistano  e  depois  foram 
continuados  com  mais  ou    menos  intuição  critica    por  José    de 


INTRODUCÇlO  159 


é  de  uma  riqueza  notável,  nfio  só  na  parte  relativa  ás 
superstições,  apologos,  fabulas  o  contos,  como  na  que  se 
refere  ás  cantigas. 

Os  contos  ou  apologos  indígenas  são  quasi  todos 
baseados  em  themas  mythologicos,  zoológicos,  astro- 
nómicos ou  botânicos. 

Dos  primeiros  já  apresentamos  alguns  exemplos 
no  artigo  —  religião  — ;  vejamos  os  outros. 

Carlos  Hartt,  Couto  de  Magalhães  e  outros  ethno- 
logos,  observaram  nas  tribus  indígenas  do  Amazonas 
uma  grande  variediide  de  contos  zoológicos,  em  os  quaes 
o  jaboli  (kagado)  representava  o  principal  papel.  A  este 
cyclo  do  jaboti  o  Dr.  Sylvio  Romero  attribuio  origem 
puramente  indiana,  opinião  contra  a  qunl  se  insurgio  o 
Dr.  Barbosa  Rodrigues  que,  pelas  analogias  que  muitos 
d'elles  apresentam  com  os  contos  da  carochinha  da 
Europa,  considera-os  já  como  um  resultado  do  contacto 
com  as  populações  do  velho  mundo.  Além  do  cyclo 
novellesco  do  jaboti,  observa-se  o  cyclo  da  raposa  e 
contos  em  que  figuram  muitos  outros  anímac  s. 

Dentre  estes  uliimos  vejamos  o  que  explica  o  mo- 
tivo porque  a  anta  quando  anda  de  noite  não  faz  bulha, 
emquanto  que  de  dia  faz,  ao  contrario  do  que  acontece 
com  a  onça  que  de  noite  faz  bulha  e  de  dia  não: 

o  —  Oh!  cunhada  anta! 

«  —  O  que  é  cunhada  onça? 

«  —  Quando  eu  ando  de  noite  os  espinhos  espetam 
meus  pés,  empresta-me  teus  cm-scos  para  eu  andar  í 

«  —  Aqui  estão,  leva,  mas  quando  estiver  para 
amanhecer,  traze-m'os  outra  vez,  porque  o  calor  do  sol 
queima  os  meus  pós. 

«  —  Por  isso  dizem  que  quando  a  onça  anda  de 
noite  faz  bulha  ea  anta  não;  porque  está  descalça.» 

O  selvagem  brazileiro  já  possuía  certos  conheci- 
mentos astronómicos  e  como  para  elles  cada  uma  es- 
treita significava  um  facto  ou  representava  uma  idéa 
relativa  ao  que  se  vê  na  terra,  d'ahi  um  cyclo  de  contos 
astronómicos. 


Alencar,  Appolinario  Porto  Alegre,  Paranhos  da  Silva,  Macedo 
Soares,  Beaurepaire  Rohan,  José  Veríssimo.  Herbert  Smith, 
Mello  Moraes  Filho,  Couto  do  Moo-alhães,  Carlos  Hartt.  Araripe 
Júnior,  Valle  Cabral,  Barboza  Rodrigues,  Celso  de  Magalhães 
e  Sylvio  Romero. 


160  HISTORIA  DO   BRASIL 


O  Dr.  Birboza  Rodrigues  recolheu  no  Amazonas  os 
seguintes  contos  astronómicos:  A  origem  do  SoiimÕes, 
no  rio  Solimões;  o  Dvuoio,  entro  os  indiosdo  rio  Purús; 
O  Mar  do  Mundo,  QniTQ  o^\\\á.\os  do  Rio  Padauiry;  O 
Eclypse,  lenda  dos  Katauichys,  Índios  do  Rio  Purús; 
As  Sete  Estreitas  (Plêiades)  lenda  tapuya  dos  Índios  do 
Rio  Negro;  As  Plêiade'^,  Epepini  (Orion  ou  os  tros  ma- 
gos), Pechioço  (Canopus)  entre  os  Makucliys,  Índios  do 
Rio  Bríínco;  A  cobra  (/rande  (Serpentário),  nas  tribus  do 
Ii^olimões;  Pauichi  Camaiúa,  lenda  makuchy  sobre  a 
constellação  do  Cruzeiro;  i^o^a  wapzí(SerpeiUarioj  versão 
do  Rio  Negro;  O  principio  do  mundo,  lenda  mundurucú 
Tiri  e  Karu,  lenda  dos  Yurukarés;  A  origem  das 
Plêiades,  iendade  Villa  Bella. 

Vejamos  o  conto  Epepim,  isto  é,  aquelle  que  se 
refere  á  origem  da  constellação  de  Orion: 

«  Contam  que  havia  três  homens  irmãos,  duis  sol- 
teiros e  um  casado,  que  tinha  mulher;  os  dous  moravam 
longe  do  casado.  D'aquelh  s  dous,  um  era  feio,  e  dizem 
que  o  irmão  bonito  deitava-lhe  os  olhos;  pur  isso  pro- 
curava meios  de  matal-o.  Um  dia  tomou  um  pão, 
aguçou- o  bfrm,  e  depois  d  sse  ao  irmão: 

«  —  Meu  mano,  vamos  apanhar  urucú  para  pintar 
nosso  corpo f 

c(  —  Vamos. 

«  Então,  contam,  chegaram  elles  ao  pé  do  urucú  e 
elle  disse  logo  ao  irmão : 

«  Meu  mano,  sobe  tu  para  apanhar  para  nós. 

«  Dizem  que,  então,  o  irmão  feio  subio  e  em  cirna 
abrio  as  pernas  n'utn  galho;  então  o  irmão  de  baixo  o 
espetou.  Morreu  logo  e  cahio  no  chão. 

«  O  irmão  cortou  as  pernas,  deixou  o  cadáver,  vi- 
rou-se  e  foi -se  embora.  Dizem  qu<i  logo  depois  veio  a 
cunhada,  de  passei  j,  ter  com  elles 

«  —  Como  está  meu  cunhado? 

«  —  Como  hei  de  estar?  bem. 

c(  —  Como  está  o  outro  meu  cunhado? 

c(  —  Está  fora  passeiando . 

«  —  Ah !  pôde  ser. 

«  —  Contam  que  a  cunhada  sahio  paia  passeiar  no 
matto  e,  d  mdo  volta  por  detraz  da  casa,  achou  o  c  jrpo 
de  seu  cunhado,  comas  pernas  cortadas  e  separadas. 
Depois  a  s^:;u  turno  chegou  também  o  cunhado. 

«  —  Para  que  me  servem  as  per. ias  cortadas?  Para 
nada.  Agora  só  estão  boas  para  os  peixes  comer. 


I 


INTRODUCÇ.''[o  IGl 


«  Então,  dizem,  que  o  irmão  pegou  nas  pernas  e  as 
poz  no  rio,  virando-se  logo  ellas  em  surubins.  O  corpo 
ficou  ahi  por  terra,  mas  a  ai  na  íoi-se  embora  para  o 
céo.  Chegando  no  céo  virou-se  em  estrollas.  O  corpo 
ficou  no  centro  e  as  pernas  dos  lados,  uma  de  cada  lado. 
Tornou-se  logo  o  Mpepim. 

«  O  irmão  assassino  transformou-se  na  Caiuanon 
(Vénus),  e  o  irmão  casado  n'outra  estrella  a  Itenhá  (Si- 
rius).  Ficaram  os  dous  fronteiros  ao  irmão  que  mataram, 
para  perpetua  mente  (por  castigo)  olharem  paraelle.»  (1) 

Como  exemplo  de  contos  botânicos  passamos  a 
transcrever  o  que  se  intitula  A  origem  da  plantação 
(Moytyma  Uipurungaua). 

«  O  Yacurutú  é  cousa  má.  Antigamente  foi  um 
gigante  assim  como  sua  irmã.  Estavam  outrora  os 
chefes  Muras  com  os  feiticeiros  para  faziM-em  perder-se 
o  Yacurutú,  porque,  dizem,  ello  comia-lhes  os  filhos. 
Os  feiticeiros  fizeram  sahir  o  avô  da  tartaruga  para  a 
praia.  Depois  então  o  Yacurutú  pisou  o  avô  da  tartaruga. 
Ficou  com  o  pé  preso.  Fez  força  e  pisou-o  com  o  outro 
pé.  Contam  então  que  a  tartaruga  andou  para  o  rio. 
Chamou  a  irmã. 

«  —  Traze  aquelle  páo  para  eu  forcejar  nelle. 

«  A  irmã  pegou  no  páo  e  ficou  também  p-esa. 

«  Depois  o  avô  da  tartaruga  os  levou  para  o  rio. 
Indo  morrer,  dizem,  fallou: 

«  —  Meus  netos,  vocês  me  vingarão.  Aqui  estão 
meus  braços.  D'elles  sahirão  as  plantas  para  vocês  me 
vingarem.  D'elles  apparecerão  o  páo  vermelho  fará  os 
arcos  ;  da  minha  gordura  acastanha  para  alizar  o  gomo 
da  flecha  do  arco;  de  meus  cabellos,  o  curaná  para 
cordas  das  flechas  e  de  meu?  ossos  as  tabocas  para 
pontas  d'estas. 

(c  Quando  acabou  de    aconselhar,   desappareceu  » 

Pooí>»ia  iuiliAiaii. — Se  exceptuarmos  as  cantigas 
do  (oré,  do  iambnriíiho,  da  manyva  e  do  incikurú  que  o 
Dr.  Barboza  Hodrigues  conseguiu  recolher  completas 
no  Amazonas,  apjnas  se  conhecem  fragmentos  da  poesia 
indiorena. 


(1)  T^tdos  e^tes  cDntos  são  extralúdos  da  Porandaba  Ama- 
zonense do  dl'.  BirbDza  Rodrigues.  Conservamos  a  traducção 
litteral  adoptada  pelo  autor. 

IL 


162  HISTOEIA  DO   BEASIL 

Relativamente  ás  que  puderam  ser  colligidas,  diz  o 
Dr.  Barboza  Rodrigues: 

«  A  natureza  viva  do  valle  do  Amazonas,  serve  de 
motivo  a  esses  cantares,  nos  quaes,  n'um  estribilho  em 
coro,  todos  repetem  o  nome  do  vivente  escolliido,  n'uma 
toada  que  se  prolonga  n'um  sinor:;ando  de  notas  tristes. 
Eram  esses  os  cânticos  de  alegria,  dos  bailaricos  fami- 
liares, porque  havia  também  os  das  suas  tristezas, 
yeorokys  que  recorda vnm  a  dòr  curtida,  as  saudades  do 
lar  e  os  dias  da  liberdade  perdida. » 

As  cantigas  de  Makurú,  são  o  que  chamamos  can- 
tares de  berço,  melopéas  muito  singelas  com  as  quaes 
as  mães  e  as  amas  fazem  adormecer  as  creanças,  em- 
balando-as. 

Exemplos  de  cantares  de  bei^ço  dos  Índios: 

Aé  coé,  coé ! 
Cha  manu  ramé  curi 
Ce  nu  mbure  caá  piterpe, 
Aé  coé.  coé  tatii  assú 
Ce  utemaçara  araina 
Aé  coé  coé  urubutinga 
Ce  pahy  ci/jarno  (1)  arama 
Aé  coé,  coé  yapacani 
Ce  anga  racuçara. 

Traducção. —  Quando  eu  morrer  ponham-me  no 
me'0  do  matto,  pois  atii  está  o  talú  grande  que  será  o 
meu  coveiro;  o  urubu  bra-.co  será  o  padre  e  ó  yapa- 
cani (2)  o  guia  de  minha  alma. 

Outra  cantiga  de  Makurú : 

Antianti  piracaçara, 
Yeréua  yacumá  êna 
Arirambá  (3)  tin-iu  monhangara 
Sorimáo  rerneôua  rupi. 

Traducção. —  A  gaivota  é  a  pescadora,  o  gereua  (4) 
é  o  piloto,  a  arirambá  é  a  cosinheira  das  margens  do 
Solimões. 


(1)  Este  vocábulo  indica  que  elaboração  desta  cantiga  é  pos- 
erior  á  chegada  dos  portuguezes  ao  Brasil. 

(2)  Gavião  do  Amazonas  (Hallactns  raelanoleus) . 

(3)  Gavião  preto  das  margens  dos  rios. 

(4)  Alcedo  vi7'idis  das  margens  do  Amazonas. 


INTKODUCÇlo  i(j3 


r.r.^L^^-T-u'^^  ^-^  (''}^^^9^s  de  toré  que  se  caracterisam 
por  estribilhos  simples  e  muito  repetidos  : 

Maá  pTá  taá  indé? 

Pirá  uauáo. 
Yn dó,  cera  Surubi? 

Pirá  uauáo. 
Yá  mui  i  taparé 

Pirá  uauáo. 
Coema  ronondé. 

Pirá  uauáo 
Ce  tamura  jeoropaiy 

Pirá  uauáo 
Xe  renõeçara  pochi 

Pirá  uauáo. 
Tradiic^  ão : 

Que  peixe  és  f 

Espadarte. 
Tu  serás  surubim 

Espadarte. 
A  tap^ngem  delle  rasgamos 

Espadarte. 
Antes   de  amanhecer 

Espadarte. 
O  demónio  é  meu  tambor. 

Espadaríe. 
Tua  tromba  é  leia 

Espadarte. 

Exemplo  das  cantigas  do  tamburirJi'^  que  como  as 
precedentes  também  se  caracterisam  por  um  estribilha 
breve  e  geralmente  bisado. 

Cha  munhnn  imiracc 

Uacará 
Cha  rico  co  patrão 

Uacará. 
Chereraçõ  arama 

Uacará 


Tradacção 


Eu  faço  dança, 

Uacará 
Tenho  meu  pat;ão 

Udcará 
Para  me  levar, 

Uacará. 


164  HISTORIA    DO   BRASIL 

Finalmente,  a  e?tas  pode  n-se  addiizir  ainda  as  do 
Çairé,  assim  vlenominalas  pelo  instrumento  ao  som  do 
qual  as  taze.n  acompanli  ir.  Estas  cantigas  tem  sempre 
um  fundo  christão  e  servem  para  íestejar  os  dias  SMnt  js 
e  solem uidades  roligiosas  nas  tribus  que  se  chrisliani- 
saram,  sendo  provável  que  as  primeiras  fossem  orga- 
nisadas  pelos  jesuitas. 


Aqui  ficamos,  pois  o  que  referimos  nos  parece  suffi- 
ciente  para  se  poder  avaliar  o  gráj  geral  de  cultura  dos 
povos  indígenas  do  Brif^il,  entre  os  quaes  <s  tupys  erain 
indubitavelmente  os  mais  adiantados  em  civilisação  e  os 
gés  os  que  se  sentavam  nos  degràos  mais  Ínfimos  da 
mesma. 

Relativamente  aos  caracteres  e  usos  particulares  de 
cada  t'ibu,  deixamos  p^ra  tratar  á  medida  que  as 
mesmas  fjrem  surgindo  na  historia. 

OS    INEGROS 

o  terceiro  factor  ethnico  do  povo  brasileiro  è  repre- 
ssntsdo  pelo  negro  africano,  introduzido  no  Brasil  na 
qualidade  de  escravo  e  como  tul  conservado  até  13  de 
Maio  de  1888. 

Os  elhnologos  brasileiros,  bem  como  os  sábios  es- 
trangeiros que  no  passado  se  occupaiMin  do  Brasil  sob 
o  ponto  de  vista  d  is  raças  que  concorreram  para  a  for- 
mação do  n  sso  povo,  puzeram  quasi  se  npre  de  parte 
esse  importante  factor,  perdendo-sa  por  conseguinte  a 
occasião  em  que  o  mesmo  podi  i  sjr  estudado  conveni- 
entemente. 

Hoje,  essa  indagação,  que  podia  ser  proveitosa  para 
a  resolução  de  diversos  problemas  da  historia  pátria, 
tornou-se  muito  mais  difficil,  não  só  p  )rque  os  usos, 
costumes  e  instituições  do  africano  obliteraram-se  com- 
pletamente pelo  prolongado  contacto  com  uma  civili- 
sação mais  adiantada,  junto  a  qual  elle  conservou-se 
durante  séculos  na  condição  passiva  de  escravo,  como 
mesmo  porque  a  raça  vae  desapparecendo  rapidamente, 
absorvida  em  frequentes  cruzamentos  com  as  outras 
raças  O  único  grupo  africano  que  no  Brasil  ainda  re- 
vela alguma  cousa  dos  usos  e  instituições  originarias  e 
guarda  de  certa  forma  as  tradicções  de  além-mar  em  sua 


INTRODUCÇÃO  165 


pureza  primitiva,  ó  o  dos  n^^gros  mina^',  estes,  poré>n, 
são  em  numero  muito  rediuido. 

Tal  abandono,  n  >  entanto,  é  indisculpivel,  pois  o 
negro  acompanha  i  nossa  historia  desde  o  momento  da 
conquista  europóa;  a  frota  de  Cabral  já  o  trazia  a  bordo 
e  até  nossos  dias  vemol-o  intervir  na  marcha  de  nossa 
civilisação,  quer  como  agente  da  riqueza  iudividual  e 
publica,  quer  co  iio  coUaborador  histórico  e  elemento 
formador  da  nacionalidade  brasileira. 

Pr  icuremos,  por  c  )nsegaiate,  f  )rmar  uma  idéa 
geral  dos  caracteres  physicos  e  s">cia3S  dessa  pobre 
raça  qu  3  até  pela  sci-ncia  t  mu  sid  j  desprezada,  e  iibora 
pela  esc issez  de  dados  nio  nos  seja  possível  dar  a  esta 
part  ■  do  nossj  trabalho  o  desenvolvimento  das  prece- 
dente?. 

Typa  rtiiíliav»!»  >logii5i».  —  Os  principaos  cara- 
cter 'S  anthropologicos  dos  povos  negros  que  foram  in- 
troduzidos com  >  escravos  nj  Brasil,  são:  rosto  oval, 
fronte  figi  lia,  o-isos  duros,  angulosos  e  cobertos  por 
fortes  músculos;  nariz  geralmente  achatado;  pellc 
negra,  osci liando  djsde  o  preto  mais  carregado  até  o 
preto  avermelhado;  cabellos  espessos,  duros,  encarapi- 
nhados ;  lábios  grossos  ;  estatura  elovada  ;  esqueleto 
solido  ;  dorso  muitas  vezes  hercúleo  ;  peito  amplo 

As  formas  do  corpo  e  do  rosto  no  negro  são  em  geral 
regulares  e  a  physionumia  tem  expressão  intelligente  e 
aftavel.  Esta  circurnstmcia  fez  com  que  liartmann  dis- 
sesse «que  não  ha  necessidade  de  ser  a  nador  de  ro- 
mances idyllicos  ou  abolicionista  fanático,  para  se  sentir 
uma  certa  attracção  peia  physiononiia  dos  negros.  (1)  » 

O  africano  transportado  para  o  Brasil  sotfre  pro- 
fundas luodificações  physicas  no  fim  de  algumas  ge- 
rações ;  a  pelle  vai  se  fazendo  mais  clara,  os  lábios 
diminuem  na  grossura,  o  nariz  lorna-S)  menos  chato  e 
o  cabello,  perde,  pouco  apouco,  a  asperesa. 

Cl-tssiíicaçã»  €li»s  aiegras;.— Todos  os  negros 
que  foram  trazidos  como  escravos  para  o  Brasil  eram 
originários  da  facha  littoral  do  continente  africano,  com- 
prehendida  entre  Guiné,  na  costa  occident  il,  até  Mo- 
çimbiqud,  na  costa  oriental.  Taes  negros  eram  os  Ber- 
beres, os  Jalofos,  o^  Mandingas,  os  Felupos  (de  Guiné), 
os  Gongos,  CS  Angolas,  os  Benguelas  (das  possessões  por- 


(I)  R.  IIartmaNN— Les  peajaZtíS  de  l'AJrique. 


166  niSTOEIA    DO   BRASIL 

tugLiezas  que  ainda  hoje  conservam  esses  nomes),  os 
Moçambiques  (da  costa  oriental).  Alem  d'estes  foram 
importados  povos  da  Costa  de  Mina,  que  pelos  seus  ca- 
racteres aiithropologicos  e  linguisticos  parecem  diffe- 
renciar-se  dos  precedentes,  os  quaes,  segundo  os  ethno- 
logos,  são  todos  nigficios   puros  ou  cafres. 

A  liiigtBii. — As  linguas  faliadas  pelos  povos  afri- 
canos que  contribuíram  para  o  povoamento  do  Brasil 
pertenceu  quasi  todas  ao  grup )  que  Abel  Hovelacque 
distinguiu  pelo  nome  Baiit'i,  vocábulo  que  indica  o 
plural  de  homi^ns.  Estas  linguas  são  o  kimbunda,  o  yo- 
ruba,  o  co.igo,  o  loango,  o  benguela,  o  mandinga,  o 
camba,  o  niolua,  o  wol  .'ff,  que  se  desdobram  em 
variados  dialectos. 

Taes  linguas  pertencem  á  grande  família  dos  agglu- 
tinantes.  Têm  plionologia  poderosa;  as  palavras  acabam 
sempre  por  vogaes,  principalmente  a  e  o,  e  apresentam 
alterações  regulares  de  vogaes  e  consoantes,  pelo  que  se 
lhes  deu  o  nome  de  linguas  alliteraes. 

Os  radicaes  são  quasi  sempre  monossylabicos  e  as 
palavras  formam-se  pela  addicção  a  esses  radicaes  de 
partículas  modificativas,  sempre  prefixas.  Depois  desta 
juncção  os  radicaes  se  transformam  em  verdadeiras 
raizes  que  originam  outras  palavras.  Os  verbos  são 
tanibem  modificados  na  sua  accepção  por  meio  da  ad- 
dição  de  partículas. 

As  linguas  africanas  do  grupo  bantu  são  em  geral 
suaves  e  harmoniosas. 

l'sos  e  casíujues  das  líegroai. — Os  povos  ne- 
gros dos  quaes  vieram  indivíduos  para  o  Brasil  acham- 
vam-se  em  um  gráo  de  civilisação  inferior  aos  dos 
nossos  Índios. 

Sob  o  ponto  de  vista  da  religião  eram  fetichistas 
grosseiros  ;  adoravam  aniniaes,  pedras,  rios,  arvores, 
etc,  e  principalmente  os  fetiches,  Ídolos  toscamente  es- 
culpidos, ou  simplesmente  um  osso,  uma  penna,  um 
animal  immundo,  etc.  Querem  no  entanto  alguns  autores 
que  elles  já  tivessem  noção  de  uma  divindade  superior  : 
o  zumbi  ou  ^ambi.  O  sacerdócio  já  estava  estabelecido 
entre  elles,  gosando  o  pidre  de  dilatada  influencia. 

Os  negros  acreditavam  alem  disso  em  diversos  es- 
píritos maus  e  no  poder  de  formulas  magicas. 

Pelo  contacto  com  os  brancos  os  africanos  esque- 
ceram a  maior  parte  dos  seus  grosseiros  ritos  ou,  pelo 
menos,  confundio-os  com  as  praticas  do  christianismo; 


INTEODUCÇlO  1G7 


no  entanto  algumas  das  suas  usanças  religiosas  resisti- 
ram á  acção  do  tempo,  do  capliveiro  e  do  contacto  com 
a  raça  européa,  podendo-se  citar  entre  outras  o  uso 
d  \s  figas  Q  o  cangeré  ,  assembléa  que  realisavam  com  o 
fim  de  praticar  bruxarias  e  na  qual  muitas  vezes  con- 
certavam planos  criminosos  contra  os  senhores. 

Sob  o  ponto  de  vista  artistico  os  africanos  acha- 
vam-se  ainda  muito  atrazados  :  a  pintura  entre  elles 
não  passava  de  caiação,  a  esculptura  era  informe,  infe- 
rior mesmo  a  do  liomem  europeu  da  epoclia  da  Magda- 
lena,  comtudo,  entre  nós  revelaram  aptidão  especial 
para  a  musica.  Nas  fazendas  do  Brasil  conservou-se 
entre  elles  diversas  danças  do  paiz  natal,  das  quaes 
a  mais  constante  é  o  Jongo,  dança  em  circulo  executada 
ao  som  do  caxambú,  tambor  alongado  de  um  só  dia- 
phragma,  do   urucungo,  e  de  diversos  chocalhoy. 

Í)avam  grande  apreço  aos  enfeites  e  adornos  do 
corpo,  prevalecendo-se  desta  paixão  os  portuguezes, 
que  permeio  de  bugigangas,  guisos,  chocalhos,  vidri- 
Ihos,  etc.  faziam  com  que  elles  próprios  lhes  trouxes- 
sem os  companheiros  aos  portos  africanos,  afim  de  per- 
mutal-os  por  taes  artigos. 

A  industriados  negros  era  extremamente  grosseira: 
armas,  ferramentas  e  utensilius  são  geralmente  pesados 
e  desgraciosos,  no  entanto  mostraram  no  Brasil  uam 
certa  habilidade  pelos  trançados  de  taquara,  juncos,  etc. 

A  agricultura  era  nas  tribus  africanas  pouco  cui- 
dada, sendo  a  caça  e  a  pesca  as  occupações  prin- 
cipaes  das  mesmas. 

A  mulher,  embora  muito  inferior  em  direitos  ao 
homem,  já  gosava  em  certas  hordas  de  umas  tantas  re- 
galias e  se  bem  que  a  forma  geral  do  casamento  fosse 
por  compra,  observava m-se  também  casos  em  que  elle 
se  fazia  por  inclinação  reciproca.  Quasi  todas  as  tribus 
haviam  adoptado  a  polygamia. 

Algumas  das  nações  negras  de  que  nos  estamos 
occupando  achavam-se  organisadas  em  tribus  republi- 
canas, outras  porém  já  haviam  adoptado  a  forma  mo- 
narchica  e  n'estas  existia  uma  nobreza,  dividida  em 
duas  classes:  uma  hereditária  e  dymnastica,  composta 
unicamente  da  familia  reinante  e  outra  vitalícia,  formada 
pelos  chefes  e  da  qual  sabiam  os  conselheiros  effectivos 
do  rei.  «Acontece  algumas  vezes,  diz  Livingstone,  que  o 
chefe  é  déspota  até  o  assassinio,  até  á  loucura  sangui- 


16S  HISTORIA  DO   BRASIL 

naria  ;  o  povo  todavia  submette-se  e  obedece-lhe,  tanto 
é  o  seu  respeito  por  quem  governa;  mas  em  geral  a 
autoridade  é  doce.» 

Em  todas  as  tribus  existia  a  escravidão,  instituição 
que  representava  uma  attenuação  da  primitiva  deshuma- 
nidade  paio  vencido. 


Julgamos  que  estas  poucas  linhas  são  sufficientes 
para  dar  uma  idéa  tio  coajuacto  de  circumstancias  que 
define  o  gráo  de  civilização  dos  africanos  trazidos  para 
o  Brasil  como  escravos. 

AléíTi  de  que  são  escassas  as  fontes  em  as  quaes 
pudéssemos  haurir  copiosas  informações  sobre  as  par- 
ticularidades do  viver  africano,  tornavam-se  as  mesmas 
de  pouca  utilidade  para  o  nosso  fim,  pois  não  é  por  suas 
primitivas  instituições  que  o  negro  infiuiu  na  historia  de 
nossa  pátria  e  na  formação  do  caracter  brasileiro  ;  sua 
intervenção  n'essas  duas  obras  é  importantíssima,  não 
pelos  vocábulos  novos  que  enxertou  á  lingua  do  conquis- 
tador ou  pelas  confusas  lendas  com  que  contribuiu  para 
opulentai-  o  foík-lore  brasileiro,  porém  sim,  pelo  seu 
trabalho  material  com  o  qual  se  abriram  as  primeiras 
fontes  da  riqueza  colonial,  pela  exhubarancia  dos  seus 
sentimentos  affeativjs  que  inclinaram  o  caracter  nacio- 
nal muito  sensivelmente  para  a  cordura,  ou  para  uma 
tolerância  que  muitas  vezes  rasteja  pelo  servilismo,  e 
finalmente,  por  acções  physiologicas,  conseguindo  em 
cruzamentos  continues,  profundas  modificações  dos 
tvpos  ethnicos  primitivos. 


FIM  DA  IXTRODUCÇÃO 


PRIMEIRA  EPOCHÂ 

A  conquista  e  o  primitivo  povoamento 
1500-1581 


PRIMEIRA    EFOCHA 

A  <.*03i(|uista  e  o  primitivo  povoamento 

Quer  devido  ao  aíTaslamento  d -terminado  pelo 
tornpo,  quer  pela  iiidiflereiíça  ao  Brasil  de  então,  domi- 
nante nos  leltrados  da  metrópole,  que  no  século  XVI 
tinham  a  attenção  mais  applicada  ás  cousas  da  (ndia, 
esta  primeira  epocha  da  historia  pátria  é  muito  natural- 
mente a  mais  obscuravC  a  que  apresenta  maiores  diffi- 
culdades  a  quem  se  propõe  rememoral-a  conscienciosa- 
mente. 

Escasseam  documentos  capazes  de  explical-a,  per- 
deram-se  livros  que  cumulariam  lacunas  sensíveis  (1) ; 
em  outros  a  negligencia  dos  autores  corre  parelhas  com 
a  sua  ignorância,  e,  ás  vezus,  do  cotejo  desses  mesmos 
escriptos  surgem  cuntradicçõjs  sobre  factos  de  capital 
importância  ou  affirma-se  a  inverosimilhança  que  des- 
alenta o  estudioso. 

As  c;assicas  laudas  dos  velhos  chronistas  nem  sem- 
pre foram  redigidas  coiii  independoncia  :  n'ellas  o  auli- 
cismo  e  o  fanatismo  empanam  muitas  vezes  a  verdade  e 
tal  sacode  o  thuribulo  para  adensar  o  fumo  sobre  a  falha 
que  aííeiaria  o  Mecenas  poderoso,  lai  se  emmudecepara 
não  evidenciar  um  mérito  que  poderia  toinar-se  impor- 
tuna. 

Em  Portugal  e  no  século  XVI,  escrever  a  historia  é 
um  cargo  de  corte  dependente  de  nomeação  feita  pelo 
rei  que  o  remunera,  pagando-o  pela  mesma  folha  pela 
qual  recebem  os  moços  da  cavalhariça  real  e  os  mar- 
milões  da  cosinha  do  palácio. 

Se  Ruy  de  Pina.  o  chronista,  é  encarregado  de  ne- 
gociar um  tratado  internacional,  se  João  de  Barros,  o 
historiador,  é  aquinhoado  com  um  feudo  territorial  no 
Brasil,  nem  por  isso  independem;  o  traslado  encommen- 
dado  tem  que  sahir  ao  sabor  do  amo  e  de  modo  a  não 
desagradar  também   aquella   sombria  potencia   que   se 


(1)  Entro  os  quaes  podemos  citar  a  America  Portuguesa  de  .João  de 
Faria,  a  Terra  de  Santa  Cruz  de  João  dõ  Barr«s  e  vários  Diários  ou  Ro- 
teiros de  viagens  dos  primeiros  exploradores. 


172  niSTOKIA   DO   BliASIL 

chamaA-a  Sinto  Officio,  a  qual,  applicando  a  todas  as 
prodiicções  liltcrarias  as  minúcias  da  censura  svstema- 
tica  forçava  o  ingénuo  autora  meditar  que  nem  todas 
as  verdades  podem  ser  ditas. 

O  século  XYII  ainda  é  alcançado  por  este  affron- 
toso  vexame  á  liberdade  de  pensamento. 

Em  1627,  Frei  Vicente  do  Salvador,  um  brasileiro 
illusire  e  amigo  sincero  das  cousas  de  seu  paiz,  escreve 
a  sua  Historia  do  Brasil. 

Este  trabalho,  quer  pela  contemporaneidade  do 
autor  com  os  factc  s  qve  descrevia,  quer  ptlo  conheci- 
mento pratico  das  terras  e  cousas  que  se  propoz  tornar 
conhecidas,  era,  incontestavelmente,  a  mais  c  piosa  fonte 
de  informações  históricas  sobre  o  Brasil  no  século  XVÍ. 

Pois  bem,  o  livro  do  frade  bahiano  não  mereceu  as 
honras  da  impressão  e  só  por  esforços  dos  eruditos 
modernos  conseguio  vir  a  lume  em  nossos  dias.  (1) 

Além  disso,  o  Brasil  desses  oitenta  annos  não  des- 
perta ainda  grande  interesse  ao  homem  de  aícm  maré 
nada  estimula  a  preoccupar-se  com  a  sua  historia  aquel- 
les  que  o  poderiam  fazer. 

O  ouro,  precioso  metal  que  esfusiava  continuamente 
na  imaginação  do  europeu  e  que  elle  buscava  com  des- 
esparado  aíían,  embora  revelado  por  João  Coelho  de 
Souza  que  o  descobre  no  sertão  bahiano  em  1575,  ainda 
lião  provoca  a  internação  das  bandeiras  ;  os  obstáculos 
são  quasi  insuperáveis  para  se  chegar  a  elle  e  os  poucos 
aventureiros  que  se  atrevem  a  devassar  o  sertão,  quando 
por  acaso  rogrrssam  ao  littoral,  aniollecem  os  animios 
mais  viris  cjui  a  narrativa  dos  perigos  que  affrontaram. 

Os  regatcs  continuam  a  rolar  tranquillamente  o 
seu  valioso  cascalho  auriíero;nas  gopiaras  a  natureza 
persiste  elaborando  os  preciosos  diamantes,  porém  essas 
incalculáveis  riquezas   cuja  existência  apenas  se  pre- 


(1)  o  illusfrado  professor  Capistrano  de  Abieu,  referindo-se  ao  tra- 
balho'_de  Frei  Vicente,  diz  o  seguinte  : 

«  Foi  \\m  grande  golpe  ás  letras  pátrias  não  haver  sido  publicada  a 
Historia  do  Brasil  ao  tempo  em  que  foi  cscripta.  Seria  uma  semente 
cujos  fructos  jà  hoje  estariamos  saboreando.  A  capitania  de  S.  Vicente 
que  n'estas  paginas  brilha  pela  ausência,  começaria  desde  logo  a  enfeixar 
as  fuíjanhas  dos  bandeirantes.  Espirito  Santo,  Porto  Seguro,  Ilhéus  da- 
riam logo  chronistas.  Uma  historia  mais  completa  iria  aos  poucos  sendo 
organisada,e  nSo  estaríamos  na  posição  cruciante  de  ter  de  esperar  pelo 
menos  um  século  antes  de,  publicados  dorumentos,  chronicas  e  monogra- 
phias,  possuirmos  um  litro  que  satisfaça  ás  exigências  contemporâneas 
do  saber.  » 


PRIMEIRA  EPOCHA  173 


sume,  acham-se  ainda  recatadas  pela  distancia  a  tran- 
spor e  pelas  diíliculdades  a  vencer.  (1) 

Por  conseguinte,  como  não  ha  onro  nem  diamantes 
a  levantar  do  alveo  dos  rios  com  pouco  l.ibor  e  mui(o 
lucro,  como  os  proventos  que  a  grande  terra  descoberta 
pode  dar  são  unicamente  os  que  se  obtém  com  a  explo- 
ração agrícola  ou  com  a  especulação  dos  productos  vege- 
taes  nativos,  o  Brasil  desses  oitenta  annos  è  quasi  um 
degredo,  um  logar  de  expiação  onde  Portugal  derrama 
as  suas  fezes  sócias  s—  o  assassino,  o  ladrão,  o  moedeiro 
falso,  a  mulher  errada,  (2)  spgnndo  a  pitoresca  expres- 
são do  jesuita  Nóbrega,  finalmente  o  avantajado  accu- 
mulo   dos  delinquentes  e  viciosos   poriuguezes. 

Para  nós  hoje,  porém,  merece  especial  atíenção  o 
pericdo  que  vamos  estudar  porque  nelle  se  complela  a 
descoberta  do  toda  a  costa  marítima  d  )  Brasil  desde  o 
Rio  Oyapock  ou  de  Vicente  Pinzon  no  extremo  norte,  até 
o  Rio  da  Prata  nosso  limite  oulr'ora  pelo  sul,  antes  de 
perdermos  a  Província  Cisnlatina. 

Na  f  ^z  do  Oyapock  foi  plantado  nm  marco  assigna- 
lando  o  termino  das  possessões  portuguezas  no  septen- 
trião  ;  na  embocadura  do  arroyo  Chuy,  que  hoje  nos 
limita  ao  sul,  naufragou  em  1502  o  navio  almirante  da 
esquadrilha  de  Martim  Affonso  de  Souza. 

João  da  Nova  descobre  a  Trindade,  Fernão  de  No- 
ronha a  ilha  do  seu  nome 

Integralisa-so  pela  descoberta  e  posse  todo  o  territó- 
rio da  Pátria  actual,  o  qual,  apezar  das  repetidas  tenta- 
tivas dos  aventureiros  francezes  e  de  outras  naciona- 
lidades fica  pertencendo  aos  lusos,  porque,  se  Portu- 
gal mostrara-so  inhabil  despresando  Colombo  quando 
ele  grande  homem,  animado  pelos  emprehendimentos 
do  infante  D.  Henrique,  foi  revelar  aos  enfatuados  ma- 
thematicos  de  Sagres  a  portentosa  idôx  que  crepitava 
no  seu  crebro,  outro  tanto  não  o  foi  depois  de  praticado 
o  alto  feito  da  descoberta,  conseguindo  arrancar  da 
chancellaria  papal,  então  arbitra  suprema  das  ques'õ3s 


(1)  Anieiic:»  Vespucio,  em  carta  qno  oscrovcu  ao  gonfaloneiro  de 
Florença,  Pedro  Soderini  (15U2},  assegiu-ou-lho  que  no  Brasil  nflo  havia  me- 
taos  alguns,  nem  mercadorias  de  aproveilar-se,  mais  que  cannalístula  e  o 
lenho  do  tinturaria. 

(2)  O  Padre  Manoel  da  Nobregi,  em  carta  que  escreveu  para  Portu- 
gal, ptHlia  que  Uie  rcmottessem  par.i  o  Bra^íil  mulheres,  ainda  que  fossem 
erradas,  que  promptamente  teriam  extracção. 


174:  HISTORIA   DO   BRASIL 


na  christandade,  o  trdçado  de  uma  famosa  divisória  ima- 
ginaria que  lhe  permittia  asseniiorear-se  legalmente  de 
tão  vasta,  quão  opulenta  região. 

E  não  é  so  o  facto  da  conquista,  obtida  pelo  arrojo 
das  nautas  portuguezas  e  mais  ainda  pelo  bom  êxito 
das  supplicas  á  Santa  Sé,  que  tornam  esta  epocba 
curiosa;  interessa-nos  igualmente  por  ser  a  do  primi- 
tivo povoamento  e  sua  diííusão,  realisado  primeira- 
mente pelas  feitorias  regias  e  clandestinas  situadas  á 
l3eira-mar  ou  pelos  degradados  lançados  á  plaga 
inhospita,  depois  pela  divisão  da  terra  em.  capitanias 
hereditárias,  doadas  a  quem  pudesse  povoal-as,  e,  final- 
mente, pelo  estabelecimento  de  um  governo  central, 
destinado  a  fornecer  impulso  mais  vigoroso  á  obra  e 
estabelecer  na  incipiente  colónia  a  necessária  cohesão 
administrativa. 

A  conquista,  em  primeiro  logar,  como  suclsso  fun- 
damental 6  dominante  dos  demais  acontecimentos  da 
epocha,  o  povoamento,  em  seguida,  como  complemento 
daquella  e  sua  consagração  positiva,  são  pois  os  acon- 
tecimentos culminantes  e  definidores  da  feição  histórica 
do  periodo  que  vamos  estudar. 

Se  não  de  facto,  pois  a  grande  terra  brazileira  só  se 
submette  verdadeiramente  ao  dominio  de  Portugal,  apoz 
longos  annos  de  luctas  com  os  Índios  e  de  tentativc.s 
para  devassar  o  sertão,  pelo  menos  em  face  do  direito 
europeu  a  conquista  faz-se  logo  que  as  caravellas  de 
Colombo  regressam  á  Hespanha,  tendo  sido  sulficiento 
para  isso  a  disposição  de  uma  bulia  pontifícia. 

O  povoamento,  porém,  efíectuou-se  muito  lenta- 
mente, não  só  pela  distancia  e  riscos  marítimos  que 
ss  interpunham  entre  nosso  paiz  o  a  Europa,  como  pela 
difticuldade  em  adaptar-se  o  colono  ás  condições  do 
novo  meio  physico  e  bem  assim  pelo  frouxo  interesse 
que  as  remotas  e  agrestes  terras  descobertas  por  em- 
quanto  acordavam  nos  povos  e  governos  de  Portugal. 
Só  trinta  annos  depois  da  viagem  de  Cabral  é  que  se 
funda  a  primeira  colónia  regular,  tal  é  no  entanto  a  ener- 
gia da  raça  colonisadora,  que  meio  século  depois  do 
estabelecimen'.o  de  S.  Vicente,  já  o  portuguez  enxamêa 
todo  o  littoral,  desde  Itamaracá  a  Cananéa. 

Não  é  muito  farto  de  episódios  dramáticos  o  trecho 
histórico  que  vamos  percorrer  :  os  factos,  surgindo 
quasi  sempre  pela  impulsão  do  esforço  collectivo,  poucas 
ve/es   põem  em  evidencia  os  seus  autores  ;  nas  scenas- 


PRIMEIRA  EPOCHA  175 


apenas  figuram  massas  confusas,  os  feitos  de  realce  his- 
tórico, são  geralmente  anonymos  e  os  personagens  mais 
salientes,  ou  rastejam  pela  trivialidade  ou  apparecem  des- 
figurados por  lendas  infantis  ;  ainda  assim  no  entanto, 
nosso  interesse  despertar-se-ha  em  diversos  pontos  da 
jornada  que  vamos  fazer  atravéz  desses  primeiros  oiten- 
ta e  um  annos  da  historia  pátria.  O  espectáculo  gran- 
dioso de  uma  civilisação  nova  e  adiantada  invadindo 
repentinamente  um  paiz  em  que  o  homem  se  achava 
ainda  no  atrazo  do  periodo  da  pedra  polida  ;  os  conflic- 
tos  dos  portadores  dessa  civilisação  com  o  aborígene, 
que  apoz  uma  lucta  desigual  abandona  ao  invasor  a 
mais  bella  e  proveitosa  porção  dos  seus  domínios  e 
affunda-se  no  âmago  do  paiz  ;  o  estabelecimento  das 
primeiras  industrias,  que  pelo  trabalho  do  negro  saccu- 
dido  a  chicote,  constituem-se  em  copiosas  fontes  da 
riqueza  colonial ;  o  prélio  travado  nas  aguas  da  Guana- 
bara com  os  francezes  que  nas  plagas  do  novo  mundo 
procuram  urna  Pátria  e  o  remanso  em  que  fluctuem 
tranquilamente  suas  crenças  chicoteadas  na  Europa 
pelo  rebojo  do  fanatismo  intolerante  ;  a  penetração  das 
florestas  pelo  jesuita  macilento  e  abnegado  que  se  di- 
rige á  brenha  para  levar  ao  gentio  o  verbo  da  moral 
christã  e  mais  alguns  outros  factos  parecem-nos  suffi- 
ciente  para  quebrar  a  monotonia  deste  primeiro  per- 
curso que  começa  ao  divisar  Pinzon  as  terras  proemi- 
nentes do  cabo  de  la  Consolacion  e  termina  ao  ser 
empolgada  esta  região  porPhilippe  II  de  Castel!a,o  som- 
brio demónio  do  Meio  Dia,  execrando  carrasco  das  liber- 


dades flamengas. 


CAPITULO  I 

PRELIMINARES 

Antes  de  encetarmos  propriamente  o  estudo  da 
historia  do  Brasil  é  mister  nos  prepararmos  com  alguns 
conhecimentos  relativos  ás  grandes  navegações  realisa- 
das  nos  derradeiros  annos  do  século  XV,  as  quaes,  re- 
matando na  descoberta  do  Novo  Mundo,  levantaram 
nossa  Pati-ia  e  todas  as  nações  americanas  do  myslerio 
desse  Maré  Tenehrosum,  onde  a  insciencia  e  a  phantasia 
dos  povos  antigos  situavam  um  Averno  hórrido,  po- 
voado de  monstros  e  demónios. 

Os  IVortfliiiieu.  —  Pelo  estudo  das  antiguidades 
americanas,  devemos  crer  que  a  America,  lá  pelo  século 
X  da  era  christã,  tenha  sido  visitada  por  intrépidos  na- 
vegantes dos  paizes  septentrionaes  da  Europa,  os  north- 
men  (homens  do  norte) ,  os  quaes,  ao  continente  desco- 
berto  impuzeram  o  nome  de  Vinland. 

A  esse  respeito  a  Sociedade  dos  Antiquários  do 
Norte,  com  sede  em  Copenhague,  c^ipital  da  Dinamarca, 
publicou  uma  importante  o  volumosa  obra  intitulada 
A?i'iquitaies  americance  sice  scriptores  septenij<onales 
reram  ante-eohimhianarum  in  America  e  por  este  livro 
em  o  qual  se  reproduzem  vetustas  chronicas  ou  snrjas 
scandinavas,  cabemos  do  diversas  viagens  ás  plagas 
americanas  pouco  antes  e  1  -^o  depois  do  anno  mil. 

Biíirne  Heriulfson,  segundo  o  que  se  lé  no  mencio- 
nado livro,  visitou  a  America  em  98G  ;  segue-se-lhe 
Lcif  Erikson  que  cm  994  aporta  ás  praias  septentrionaes 
do  nosso  continente,  ao  qual  dá  o  nome  de  VinJand, 
pela  grande  abundância  de  parreiras  sylvestres  que  ahi 
encontrou;  no  anno  1002,  Thorwald  EVikso  í,  irmão  do 
preceJente,  parte  da  Groenlândia  e  explora  regiões  mais 
meridionaes,  s3ndo  morto  pe'osnaturaes  do  paize,  pouco 
dupois,  também  morre  na  Vinlandia  Thorstein  Erikson 
quo  a  esta  região  tinha  vindo  com  o  piedoso  fim  de  con- 
duzir para  a  Islândia  o  corpo  de  seu  irmão  Thorwald.  Em 
1008,  Thorfinn,   acompanhado   de  numerosa  co  nitiva  se 

12 


178  HISTORIA   DO   BEASIL 

estabelece  em  Vinland,  e,  finalmente,  relatam  ainda  as 
sagas  mais  authonticas  uma  viagem  à  America  empre- 
hendida  por  Freydisa,  Helge  e  Finnboge. 

E^tas  descobertas,  porém,  comquanto  attestadas  em 
documentos  dignos  de  credito  e  comprovadas  até  por 
algumas  denominações  de  logares  que  ainda  se  conser- 
vam, taescomo  Foundland  (TerraNova),  não  produziram 
impressão  alguma  na  Europa  cfessa  epocha;  as  arrojadas 
viagens  dos  Northmen  ao  paiz  de  Vinland  permanece- 
ram durante  a  successão  das  eras  no  mais  profundo 
olvido,  até  que  a  erudição  moderna  fosse  encontrar  ves- 
tígios das  mesmas  na  poeira  dos  alf  irrabios. 

fuceutivos  tis  g;raude.'§»  u^iveg^açoesi  do  ise- 
ciil»  1L\. — O  zelo  religioso,  impaciente  por  applicar-se 
em  obras  que  grangeasse  renome  apostólico,  o  amor  ás 
aventuras  guerreiras,  não  sopitado  com  o  grande  movi- 
mento das  crusadas  e  sim  conservado  em  estado  latente 
pelas continuisluctas  feridas  com  aMouramaque  ainda 
occupava  o  septentrião  africano  e  a  sede  de  lucros  fáceis 
em  rendoso  commercio,  taes  foram  os  incentivos  ás 
grandes  navegações  d-"^  século  XV,  as  causas  que,  esti- 
mulando as  actividadv,  ■  da  população  ibérica,  forçaram 
os  mares  a  lhes  revelar  o  arcano  miiienar  dos  seus 
segredes. 

A  índia  era  para  a  Europa  de  então  o  paiz  mara- 
vilhoso das  riquezas;  de  lá  vinham,  por  intermédio  das 
caravanas  árabes,  as  caras  o  preciosas  tapeçarias  ;  de 
lá  vinham  os  finíssimos  tecidos  de  lã  e  seda,  os  dia- 
mantes de  Golconda,  as  pérolas  de  Ceylão,  o  ouro  e  as 
gemmas  de  valor;  de  lá  vinham  o  ébano  e  o  marfim,  o 
sandalc,  o  incenso,  a  in^Trha  e  resinas  preciosas. 

Génova  e  Veneza  possuíam  o  monop(>lio  do  trafico 
no  Mediterrâneo  e  as  caravanas  continuamente  despe- 
invam  nos  seus  empórios  co  nmerciaos  do  Levon'e  as 
sedas  d.t  China,  as  especiarias,  as  madeiras  do  tintu- 
raria, o  algodão,  as  pedras  preciosas  da  índia,  os  per- 
fumes da  Arábia,  os  tecidos  de  damasco,  os  pannos  de 
Tarso,  oassucir,  o. cobre,  as  tapeçarias,  o  ouro,  as 
pennas  da  Africa  interior,  as  pelles,  o  cânhamo,  o  al- 
catrão, permutando  se  esses  artigos  por  azeite,  vinhos, 
frucias  seccas,  armas  de  luxo,  coraes  fabricados  em 
Génova,  pannos  deChampagne,  lã,  chumbo,  estanho  de 
Ingl^i  terra. 

Supplantar  o  poderio  commercial  das  republicas 
itahanas  no  Mediterrâneo  era  empreza  insensata  ;  tentar 


PRIMEIRA  P:P0CHA  170 


alcançar  a  índia  por  vii  terrestre  era  impossível,  pois 
não  o  permittia  o  fanatismo  e  a  intolerância  religiosa 
dos  mussiilmanos  que  occupavam  as  regiões  a  transpor. 

Preciso  era  por  conseguinte  descobrir  a  nova  estrada 
afim  de  ir  ter  a  essa  lendária  Catliay,  a  terra  das  precio- 
sidades, onde,  segundo  a  tradição,  existia  um  poderoso 
rei  christão,  o  Preste  João  que  saberia  largamente  re- 
compensar os  trabalhos  e  fadigas  de  seus  irmãos  em 
Christo  do  occidente. 

E  como  essa  estrada  só  podia  ser  encontrada  nns 
aguas,  cotneçaram  as  tentativas  para  dobrar  o  conti- 
nente africano,  empreza  illustre  que  preoccupava  todos 
os  espirites,  pois  ambiciosos  de  bens  de  fortuna  e  ambi- 
ciosos de  dilatação  da  fé  catholica  ou  de  glorias  marciaes 
todos  tinham  o  desejo  n'essa  terra  longiqua  da  Índia, 
havia  riquezas  incalculáveis  a  adquirir,  infleis  a  con- 
verter á  lei  do  Evangelho  e  pelejas  continuas   a   renhir. 

A  descoberta  da  America  teve  origem  nesses  es- 
forços, cumpre-nos  pois  registra'-os. 

^  O  infante  í>.  llcii3*ic|iio.  —  A  iniciativa  dos 
grandes  descobrimentos  de  terras  realisados  no  século 
XV  cabe  inquestionavelmenttj  ao  infante  D.  Henrique, 
filho  de  D.João  I,  soberano  dcPonugal  e  de  D.  Philippa 
de  Lencastre,   irmã  de  Henrique  IV,  rei  de  Inglaterra. 

Não  podendo  D.  Henrique  aspirar  ao  throno  por- 
guez,  por  ser  o  quinto  filho  do  rei,  procurou  no  estudo  e 
em  commeltimentos  scienlificos  grangear  para  o  seu 
nome  as  attenções  da  histori;i. 

Assim  a[)[dicou-se  ás  mathcm-.ticas  o  seus  diversos 
ramos,  recolhendo-su  a  Sagres,  no  Algarve,  onde  um 
grupo  de  estudiosos  poi-tnguezes  e  sábios  estrangeiros  o 
cercou,  permittindo-lhe  fumlac  n'esso  letiro  um  observa- 
tório astronómico  e  uma  esc  da  naval. 

Com  essas  duas  instituições  scionlinc  is  D.  Henrique 
despendia  a  maior  parte  dos  seus  avultados  i-endimen- 
los  do  Grão-Mestrc3  d;i  Ordem  de  Christo,  nunca  porém 
o  dinheiro  íh  rançado  ao  povo  pcda  religião  foi  tão  bem 
applicado,  pois  n'ossas  casas  de  ensino  se  illustraram  os 
naulas  impávidos,  (jue.  dando  expansão  ás  tendências 
dominantes  cm  toda  a  Peninsula  Ibérica,  devassaram  o 
myslerio  do  pego  Icnebioso  c  por  terras  longiqnas  assig- 
lialar.im  o  génio  da  nação  ponugufza. 

.%.•>»  |irinicirai§  «le^iMíberías. —  Os  icsultados 
immcdiatos  do  extremado  zelo  do  infante  D.  Henrique 
pelas  cousas  da  navegação  foram  os  seguintes  : 


ISO  HISTORIA   DO   BBASIL 

O  Cabo  Não,  situado  no  reino  de  Marrocos  em 
Africa,  ena  extrema  occiJental  do  Atlas,  que  até  então 
era  considerado  como  o  limite  máximo  da  navegação  e 
a  respeito  do  qual  até  se  dizia —  Quem  passar  o  cabo  Não 
voltará  ou  não  -foi  dobrado  em  1412 ;  as  ilhas  Canárias, 
que  os  Hespanhoes  haviam  descoberto  em  1402,  foram 
perfeitamente  exploradas  pelos  marinheiros  do  Infante 
em  1415  ;  em  1420  João  Gonçalves  Zarco  e  Tristão  Vaz 
Teixeira  descobrem  a  ilha  da  jNIadeira  ;  em  1433  ou  1434 
Gil  Eannes  do  Lago  dobra  o  famoso  cabo  Bojador;  Antão 
Gonçalves  e  Nuno  Tristão  chegam  em  1 141  ao  Cabo 
Branco,  Costa  do  Ouro  e  Senegal  e  algum  tempo  depois 
são  descobertos  os  aT'chipelagos  dos  Açores  e  Cabo  Verde, 
tendo  o  Infante  conseguido  do  Papa  Martinho  V  uma 
bulia  que  concedia  a  Portugal,  por  investidura,  a  posso 
de  todas  as  terras  descobertas  e  por  descobrir  desde  o 
Cabo  Bojador  até  as  índias  Occidentaes. 

O  notável  príncipe,  a  quem  Portugal  tanto  deve, 
falleceu  em  13  de  Novembro  de  1460 ;  os  lusos,  porém, 
já  se  achavam  lançados  na  via  das  descobertas  maríti- 
mas e  assim,  até  1471,  foiam  descobrindo  as  costas  de 
Guiné  e  da  Senegambia,  as  ilhas  de  Fernando  Pó,  Anno 
Bom,  S.  Thomé,  Príncipe  e  todas  as  terras  africanas  até 
os  limites  septentrionaes  do  Congo,  tomando  Affonso  V 
por  esse  motivo  o  titulo  de —  Rei  de  P-^rturjal  e  dos  Al- 
garves,  draguem  e  dctlein  mar  em  Africa. 

Em  1481  Jorge  de  Azambuja  constróe  o  forte  de  S. 
Jorge  de  Mina  e  Diogo  Cão  no  mesmo  anno  chega  até 
o  rio  Zaire,  acrescentando  então  D.  João  II.  soberano  de 
Portugal,  aos  spus  titulos  o  de  Senhor  de  Guiné. 

N'essa  epocha  D.  Joã3  II  tentou  uma  expedição  ter- 
restre, contrariando  assim  o  plano  traçado  pelo  infante 
D.  Henrique.  Como  era  de  esperar  foi  mal  succedida  essa 
expedição;  Affonso  de  Paiva,  um  de  seuscommandantes, 
morreu  no  Cairo  e  Pedro  da  Covilhã,  outro  comman- 
dante,  do  centro  da  Ethiopia  em  que  se  achava,  mandou 
dizer  ao  rei  que  persistisse  nas  tentativas  afim  de  dobrar 
o  continente  negro,  pois,  conseguido  este  intento,  pode- 
riam as  naus  velejar  com  segurança  para  a  índia. 

ISartliolaiueii  Dias. —  Pouco  antes  de  haver  par- 
tido a  expedição  terrestre  de  Affunso  de  Paiva  e  Pedro 
da  Covilhã,  D .  João  II  mandou  preparar  dois  navios  de 
50  toneladas  apenas  e  uma  embarcação  ainda  menor 
para  transporte  de  provisões,  dando  o  commando  da 
esquadrilha  a  Bartholomeu  Dias.  Como  auxiliares  deste 


PRIxAIEIRA  EPOCHA  ISl 


iam  seu  irmão  Pedro  Di  iS,  commandando  o  navio  de 
mantimentos,  e  Juão  Infante,  comuiandando  o  outro 
navio. 

A  esquadrilha  fez-se  ao  lai'go  em  2  do  Agosto  de 
1496,  e,  apoz  muitos  mezes  de  difficil  viagem  cm  que  do- 
brou o  famoso  cabo  sem  o  perceber,  Barlholomeu  Dias, 
coagido  pela  tripolação  da  qual  apossou-se  o  terror,  vol- 
tou para  Portugal,  avistando  então  o  referido  cabo  a  que 
deu  o  nome  das  Tormentas,  em  lembrança  das  medo- 
nhas tempestades  que  junto  a  elle  soíírera. 

Bartholomeu  Dias  chegou  a  Lisboa  em  Dezembro  de 
J487  e  D.  João  II,  animado  pela  noticia  que  o  seu  piloto 
lhe  trouxera,  mudou  o  nomo  do  cabo  para  ode  Bòa  Es- 
perança, «nome,  diz  Frei  Francisco  de  S.  Luiz,  que  será 
em  todas  as  edades,  pnra  o  monarcha  portuguez  e  para 
toda  a  nação,  um  titulo  incontestável  de  gloria,  superior 
ao  despeito,  ao  baixo  ciúme  e  à  inveja  dos  estrangei- 
ros .  w 

Christavii»  Culí»3íabo. —  Na  chronologi  \  dos 
annaes  marítimos,  apoz  o  nome  do  grande  Bartholomeu 
Dias,  su]'ge  o  de  Colombo,  a  figura  mais  proeminente  da 
historia  da  navegação. 

A  Itália,  onde  nascera  Christovão  Colombo,  era 
o  paiz  que  até  então  mais  se  avantajara  em  emprehen- 
dimentos  marítimos.  Desde  a  mais  remota  Edale  Media 
Atnalfi,  Pis:í,  Génova  e  Veneza  communicavam  com  os 
bárbaros  do  Levante  e  de  seus  portos  zarpavam  navios 
em  direcção  â  Ásia  Menor  e  ao  Mar  Negro,  de  onde  se- 
guiam por  terra  expedições  que  penetravam  nos  con- 
fins da  Ásia.  No  século  XIV  navios  ligurios  transpuze- 
ram  as  famosas  columnas  de  Hercules  e  tocaram  nas 
Canárias,  na  Madeira  e  nos  Açores  ;  desde  esse  tempo 
também  tornou-.'- e  deTes  conhecido  o  roteiro  para  a  Gran- 
Bretanha  e  Mar  do  Norte.  Ao  tempo  de  D.  Dinz,  era  um 
italiano,  Emmanuel  Pcssagno,  o  almirante  da  frota  por- 
tugueza;  Perestrello,  o  primitivo  povoador  da  Madeira 
era  natural  de  Génova,  e  bem  assim  Usodimare  e  Antó- 
nio da  Noli,  que  juntamente  ao  veneziano  Alviso  Cada- 
mosto,  exploraram  a  Senegambia  e  as  ilhas  de  Cabo 
Verde,  no  meado  do  século  XV. 

Já  se  vê  pois  que  Colombo  não  é  na  historia  da  na- 
vegação um  phenomeno  de  granJeza  excepcional  ;  pelo 
contrario,  avantajando-se  aos  seus  compatriotas  na  im- 
portância dos  descobrimentos  marítimos  que  realisou, 
elle  não  fez  mais  que  accentuar  um  progresso  já  suffi- 


182  HISTORIA   DO   BRASIL 

cientemente  fiiimdo,  sem  que  por  isso  deixasse  de  per- 
tencer á  sua  epocha,  da  qual  padecia  os  preconceitos 
religiosos  e  estimava  exageradamente  as  distincções 
nobiliarchicas. 

Ciiristovão  Colombo  nasceu  em  Génova  em  144  i  ou 
1447  e  seu  pae  era  um  humilde  tecelão  de  lãs  ;  bem  mo- 
desta estirpe  para  quem  mais  tarde  devia  ser  almi- 
rante de  Casteila  e  vice- rei  das  índias  ! 

Estudou,  não  se  sabe  bem  aonde,  o  latim,  a  geome- 
tria, a  cosmographia,  a  astronomia  e  o  desenho  ;  exer- 
ceu durante  algum  tempo  a  profissão  paterna,  viajou 
depois  pelo  Mediterrâneo,  ou  como  marinheiro,  ou  como 
mercador,  e  em  seguida  dirigiu-se  a  Portugal,  onde  se 
casou  com  D.  Philippa  Muniz,  tilha  de  Barlholomeu  Pe- 
restrello,  primeiro  senhor  e  cipilão  hereditário  da  ilha 
de  Porto  Santo. 

Em  Portugal  deparou-se-lhe  ensejo  de  cursar  o 
Atlântico  para  o  sul  até  Guiné  e  para  o  norte  até  as  Ilhas 
Britânicas  e  apoz  essas  viagens  começou  a  formar  o 
plano  de  chegar  á  índia  pela  rota  do  poente,  ao  con- 
tririo  do  que  até  então  haviam  feito  os  capitães  portu- 
guezes,  que  buscavam  a  mesma  região  agarrando-se 
ás  costas  do  continente  africano. 

Seus  estudos  cosmographicos  tinham-lhe  demons- 
trado a  espheiicidade  do  planeta,  theuria  que  o  celebre 
Toscanelli,  juedico  e  physico  de  Florença,  já  havia  sus- 
tentado em  uma  carta  datada  de  24  de  Juího  de  1474  e 
dirigida  a  Fernão  Martins,  confessor  do  rei  de  Portugal, 
carta  da  qual  Colombo  recebera  uma  copia  enviada  pelo 
próprio  Toscanelli,  e  bem  assim  um  mappa  pelo  mesmo 
traçado. 

Durante  algum  tempo  ruminou  o  seu  projecto  pro- 
curando argumentos  e  provas  que  o  convencessem  da 
exiquibilidade  do  mesmo  e  em  seguida  dirigio-se  ao  rei 
de  Portugal,  propondo-se  a  commetter  a  portentosa  em- 
preza. 

O  rei  mandou  examinar  o  plano  por  seus  sábios, 
por  Diog  )  Ortiz,  seu  confessor  e  bispo  de  Ceuta  e  pelos 
dois  médicos  reaes  Rodrigo  e  Ftírnando.  Todos  foram 
accordes  em  reprovar  o  referido  plano  e  em  taxar  de 
phantasiosas  as  supposições  de  Colonjbo,  que,  abatido  e 
pobre,  ferido  nas  suas  affeicões  domesticas  pela  morte 
da  esposa  e  contrariado  nas  suas  nobres  ambições  pelo 
desprezo  com  que  o  acolhiam  assummidades  scien-tificas 
do  paiz,  abandonou  Portugal,  e  em  companhia  de  um 


PRIMEIRA  EPOCHA  183 


filho  de  menor  idade,  acolheu-se  à  Hespanha,  aconteci- 
mento que  os  seus  biographos  fixam  em  fins  de  1484,  ou 
principios  de  1485.  (1) 

Foi  primeiramente  residir  no  porto  de  Santa  Maria 
onde  se  relacionou  com  o  duque  de  Medina  Co-li,  o  qual 
propoz-se  a  advogar  o  seu  projecto  junto  á  rainha  Izabel, 
soberana  de  Hespanha. 

Animado  por  esta  protecção,  Colombo  transportou- 
se  a  Madrid  e,  como  pretendente  ao  favor  real,  vemol-o 
curtir  resignado  dezoito  longos  annos  de  provações  e 
anciedades,  nos  quaes  hífrontou,  sem  quebrantar  a  fé  na 
sua  grande  idéa,  a  pobreza,  o  ridículo,  as  intrigas  pala- 
cianas, a  insolência  dos  grandes  e  o  motejo  dos  igno- 
rantes, até  que  afinal,  quando  desanimado  de  obter  o 
que  pretendia,  se  preparava  a  levar  a  sua  petição  a  uma 
nova  corte —  a  de  França,  os  reis  de  Hespanha  consen- 
tiram em  proporcionar-lhe  os  navios  tão  insistentemente 
pedidos. 

Apromptou-se  logo  a  esquadrilha,  que  ficou  com- 
posta de  três  pequenas  caravellas  :  a  Sania  Maria,  da 
qual  Colombo  tomou  o  commando  ;  a  Pinía,  cumman- 
dada  por  Martin  Alonso  Pinzon  o  a  Nina,  command;ida 
por  Vicente  Yanez  Pinzon  e  a  3  de  Agosto  de  1492  a 
mesma  levantou  ferro  do  porto  de  Paios,  buscando  a 
índia  pelo  ignoto  roteiro  do  poente. 

A  travessia  foi  penosa  para  Colombo,  principalmente 
pelo  desanimo  da  tripolação,  a  qual  elle  procurava  illu- 
dir  escripturando  dois  diários  :  um,  secreto,  no  qual  ins- 
crevia exactamente  a  distancia  percorrida,  segundo  a 
sua  estimativa  e  outro,  publico,  no  qual  diminuia  dez  ou 
doze  léguas  por  dia.  Todos  os  seus  enfados,  porém,  dis- 
siparam-se  e  sua  alma  nadou  no  mais  ineííavel  dos  jú- 
bilos, sufficientemente  compei;sativo  das  suas  longas 
anciedades,  quando  na  madrugada  de  12  de  Outubro 
seus  olhos  pousaram  n'uma  terra  que  surgia  no  hori- 
sonte. 

Essa  terra,  segundo  os  cálculos  mais  prováveis  era 
a  ilha  de  Guanahany  ou  de  S.  Salvador,  uma  das  Ba- 
hamas. Estava  descoberta  a  America  ;  pelo  génio,  pela 
ousadia  e  pela  constância   do  obscuro  filho  do  tecelão  de 


(1  Querem  alguns  autores  que  Colombo  não  tenha  perdido 
a  esposa  e  sim  abandonado  a  família  e  Portugal  por  precisar  fu- 
gir ás  justiças  da  terra,  com  as  quaes  se  comprometlera. 


184  niBTOBIA  DO  BRASIL 

Génova,  consumara-se  o  facto  mais  notável  e  de  maior 
alcance  dos  tempos  modernos. 

Colombo  foi  na  Hespanha  cumulado  de  honras,  po- 
rém annos  depois  a  perfídia  e  a  ingratidão  tramaram 
contra  o  seu  bem  estnr  e  conseguiram  despojal-o  dos 
titules  e  proventos  que  tão  digna  e  gloriosamente  alcan- 
çara. 

Morreu  pobre  e  consumido  de  desgostos  aos  20 
de  Maio  de  1506,  na  cidade  de  Valladolid  e  só  então  é 
que  o  soberano  de  Hespanha,  naturalmente  mordido 
pelo  remorso,  procurou  remir  as  suas  faltas  para 
com  o  grande  homem,  mandando  erigir  em  sua  honia 
um  monumento  com  a  divisa  :  —  A  Casíylla  y  a  Leon 
nuevo  mundo  diò  Cólon. 

Vasc»  da  Gniiaa. —  Ainda  um  grande  navegante 
illiístra  os  annaes  maritimos  antes  de  inscrever  se  n'elle 
a  descobej-ta  do  Brazil.  Esse  nauta  celebre  é  Vasco  da 
Gama. 

Tendo  D.  Manoel  subido  ao  throno  de  Portugal 
em  1495,  mandou  Vasco  da  Gama  com  4  navios  e  160 
homens  em  1497  dobrar  o  Cabo  de  Bôa  Esperança  que 
Bartholomeu  Dias  havia  descoberto. 

Os  navios  de  Vasco  da  Gama  eram  :  o  5.  Gabriel, 
sob  o  seu  immediato  commando,  o  São  Rafael,  com- 
mandado  por  Paulo  da  Gama,  o  Berrio,  commandado  por 
Nicolau  Coelho  e  o  São  Miguel,  navio  de  mantimentos 
sob  o  commando  de  Gonçalo  Coelho.  Este  ultimo  navio, 
segundo  as  instrucções  que  Vasco  da  Gama  levava, 
devia  ser  queimado  na  angra  de  S.  Thomaz,  depois  de 
dobrado  o  Cabo  da  Bôa  Esperanç  i,  sendo  os  mantimentos 
repartidos  pelas  outras  embarcações. 

Tendo  Vasco  da  Gama  chegado  á  Ilha  da  Cruz, 
ultima  terra  assignalada  por  Bartholomeu  Dias,  fez-se 
de  rumo  para  Sofala  e  aportou  em  Moçambique  em 
Março  de  1498  ;  em  seguida  dirigio-se  pnra  Quiloa  e 
d'ahi  as  correntes  marítimas  o  levaram  a  Mombaça. 
Continuando  a  sua  jornada  tocou  em  Melinde  e  Calicut, 
nas  costas  do  Malabar,  de  onde  foi  forçado  a  retroceder 
em  consequência  de  ciladas  que  lhe  armou  o   Samorim. 

Vasco  da  Gama  chegou  a  Lisboa  em  29  de  Agosto, 
de  volta  da  sua  grande  e  memorável  viagem,  uma  das 
mais  notáveis  que  a  historia  das  navegações  registra  e 
com  a  qual  ao  soberano  portuguez  foi  permittido  adduzir 
aos  seus  já  numerosos  titules  os  de  Senhor  da  Navega- 


PRIMEIRA    EPOCHA  185 


ç«o,  da  Conquista  e  do  Commercio  da  Ethiopia,  da  Ará- 
bia, da  Pérsia  e  das  índias . 

Dos  160  homens  da  expedição  apenas  voltaram  67. 

D.Manoel  recompensou  o  seu  illustre  capitão  fa- 
zendo-o  Conde  da  Vidigueira,  dando-lhe  o  tratamento 
de  Dom,  o  habito  de  Christo,  a  patente  de  Almirante  das 
índias  Occidentaes  e  uma  pensão  de  300$000  annuaes. 

Mais  afortunado  que  Colombo,  Vasco  da  Gama  go- 
sou  tranquilamente  o  premio  de  seus  serviços  até  á 
morte,  sem  que  afortuna  lhe  soprasse  adversa. 


Assim  fechava-se  o  século  XV,  revelando  nos  seus 
derradeiros  annos  a  existência  do  grande  continente 
americano  e  o  roteiro  da  índia  pelos  mares  sul-africanos. 

Transponhamos  agora  os  humbraes  do  século  XVI, 
que  n'elles  começa  a  historia  de  nossa  Pátria. 


CAPITULO  II 

SUPPOSTOS  E  VERDADEIROS  PRECURSORES  DE 

CABRAL 

Não  estão  de  accòrdo  os  autores  quanto  ao  primeiro 
descobridor  do  Brazil,  fazendo  o  orgulho  nacional  dos 
povos  com  que  a  França,  a  Hespanha  e  Portugal  dispu- 
tem entre  si  essa  gloria  para  seus  filhos. 

Mencionando  todas  as  pretenções  justas  ou  desca- 
bidas que  até  hoje  tém  surgido,  daremos  em  seguida  o 
valioso  juizo  do  erudito  professor  Capistrano  de  Abreu 
que,  com  grande  cópia  de  i)rova-5  e  lo-íica  argumentação, 
proclamou  a  verdade  sobre  esse  primeiro  o  obscuro  facto 
de  nossa  historia . 

Jeau  Cousiti.  —  Querem  alguns  írancezes  que  o 
Brasil  tenha  sido  descoberto  em  1488  pelo  seu  compa- 
triota Jean  Cousin,  natural  de  Dieppe.  (1) 

Efcta  pretenção,  que  se  tosse  justificada  iria  fanar 
os  lauréis  do  próprio  Colombo,  por  falta  de  argumentos 
sólidos  e  provas  reaes  nem  mesmo  em  França  con- 
seguio  ter  grande  aceitação. 

Alouso  cl*IIoJeila.  —  Pretendem  alguns  escri- 
ptores,  e  Varnhagen  é  contado  n'esse  nunicro,  que 
Alonso  d'Hojeda,  navegante  hespanhol,  foi  o  primeiro 
descobridor  do  Brazil . 

Segundo  a  opinião  desses  autores,  Alonso  d'Hojeda, 
acompanhado  de  Américo  Vespuccio  e  do  piloto  bisca- 
inho Juan  de  la  Cosa,  encontrou  uma  terra  alagada  aos 
cinco  gràos  da  linha  equinocial  em  fins  de  Junho 
de  1499,  terra  essa  que  Varnhagen  presume  ser  a  foz  do 
Rio  Assú,  no  Estado  do  Rio  Grande  do  Norte. 

Ainda  segundo  Varnhagen,  Alonso  d'Hojeda  quiz 
proseguir    na   sua  viagem  com  rumo   de  lesnordeste, 


(1)  Desmarquets.  Memoires  chronologiques  ponr  servir  á 
Vhistoire  cie  Dieppe.  —  Gaffarel.  Jean  Cousin  en  la  decouverte 
de  VAmerique  axant  Christophe  Colombe.  Gaffarel.— //íS^otre  du 
Bresil  [rançais. 


188  HISTORIA  DO  BRASIL 

não  lh'o  permittindo  no  entanto  as  correntes  marítimas 
que  o  levaram  a  Cayenni,  hoje  capital  da  Guyana  Fran- 
ceza.  (1) 

Ebta  versão  não  é  aceita  por  todos  e  depois  do  tra- 
balho do  eminente  professor  Capistrano  de  Abreu,  a  que 
já  nos  referimos  (2j,  ainda  mais  difficil  se  torna  o  seu 
curso. 

•Idiio  Raiiialli».  —  Um  outro  pretendente  à  des- 
coberta do  Brasil  surge  na  pessoa  de  João  Ramalho,  o 
celebre  genro  do  cacique  Tebyriçá  que  Martim  AlTonso 
de  Souza  encontrou  em  1532,  eníre  os  Goyanazes. 

Frei  Gaspar  da  Madre  de  Deus  (3)  pretende  ter  visto 
em  S.  Paulo  uma  cópia  do  testamento  original  de  João 
Ramalho,  em  o  qual  este  por  duas  vezes  asseverou  que 
vivia  no  Brasil  ha  alguns  noventa  annos. 

Ora,  tendo  este  testamento  a  data  de  1580,  João  Ra- 
malho devia  ler  aportado  ao  Brasil  em  1490,  e,  por  cori- 
seguinte,  antecederia  Colombo  na  descoberta  da  Ame- 
rica. 

Dado,  porém,  que  se  preste  todo  credito  á  noticia  de 
Frei  Gaspar,  outro  tanto  não  se  pôde  conceder  ao  theor 
do  testamento,  ditado  por  um  macrobio,  em  cujas  funcções 
intellectuaes  podia  já  haver  graves  desiquilibrios. 

Além  disso  é  muito  natural  que  João  Ramalho,  sem 
o  recurso  dos  calendários  e  vivendo  tantos  annos  entre 
selvagens,  se  equivocasse  em  dez  ou  mais  annos  na 
contagem  do  tempo. 

Viconíe  \auez  Piaz»ii.  — Ss  quanto  á  chegada 
de  Pinzon  estão  de  accòrdo  todos  os  chronistas  e  histo- 
riadores, não  pôde  hoje  subsistir  mais  duvida  alguma 
de  que  foi  elle  o  primeiro  descobridor  do  Bralil. 

Vicente  Yanez  Pinzon  era  natural  de  Paios,  na 
Hespanha  e  da  familia  dos  Pinzones,  excellentes  mari- 
nheiros. 

Pinzon  acompanhara  Colombo  na  sua  celebre  via- 
gem, como  cornmandante  da  Xina,  uma  das  três  cara- 
vellas  que  partiram  de  Hespanha  á  descoberta  da  índia 
pela  rota  do  poente. 


(1)  Varnhagex.  —  Historia  geral  do  Brasil. 

{2)  Capistraxo  de  Abreu.  —  Descobrimento  do  Brasil  e  seu 
desenvolvimento  no  século  XVI. 

(3  Frei  Gaspar  da  Madre  de  Dev.^.— Noticia  dos  annos  em 
que  se  descobrio  o  Brazil  e  das  reliqiões  e  suas  funcções,  publi- 
cadas no  T.  X  da  Revista  do  Instituto  Histórico. 


PRIMEIRA   EPOCITA  189 


Assim  obteve  Pinzon  conhecimento  da  grande  terra 
americana,  das  condições  de  navegabilidade  de  seus 
mares  e  principalmente  das  correntes  maritimas  do 
Atlântico. 

Sete  aiinos  mais  tarde,  IMnzon  obteve,  juntamente 
com  s  'u  sobrinho  Ayres  Peres,  a  concessão  de  ir  em 
busca  de  novas  terras,  partindo  de  Paios  para  esse  fim 
em  Dezembro  de  1 199,  com  quatro  embarcações. 

Ganhando  Cabo  Verde,  governou  Pinzon  para  sudo- 
este e  a  26  de  Janeiro  de  1500  avistou  uma  terra  á  qual 
deu  o  nome  de  Cabo  de  Santa  Maria  de  la  ConsolaHon. 

Quer  a  maioria  dos  autores  que  essa  primeira  terra 
brasileira  descoberta  por  Pinzon  fosso  o  Cabo  de  Santo 
Agostinho,  Varnhagen  apresenta  no  entanto  argu- 
mentos que  fazem  crer  que  tenha  sido  a  Ponta  de  Mu- 
curipe,  no  Ceará.  (1)  Não  conseguindo  entrar  em  nego- 
ciações com  os  selvagens,  nas  mãos  dos  quaes  pereceram 
dois  homens  da  tripolação,  íizeram-se  os  hespanhoes  de 
vela  para  o  norte  e  foram  ler  á  gigantesca  foz  do  Amazo- 
nas que  tomaram  por  um  mar  de  agua  doce. 

Os  selvagens  das  numerosas  ilhas,  situadas  na  em- 
bocadura do  maior  rio  do  mundo,  acolheram  hospitalei- 
ramente os  aventureiros;  estes,  porém,  ou  em  repre- 
sália pelo  assassinato  de  dois  dos  seus  no  Rio  Grande 
do  Norte  ou  Ceará,  ou  por  ganância,  apoderaram-se  de 
trinta  dessas  inoffensivas  creaturas  afim  de  vendel-as 
como  escravas.  (2) 

Deixando  o  Amazonas,  Pinzon  seguio  costeando 
para  o  norte  e  descobrio  o  Oyapok  que  ficou  se  chamando 
Rio  de  Vicente  Pinzon,. 

Em  seguida  fez  se  de  vela  para  a  ilha  da  Trindade 
(3),  onde  soube,  que  as  terr.is  por  elle  descobertas,  per- 
tenciam a  Portugal,  em  virtude  do  disposto  pela  Cúria 
Romana. 

\  g»9roro!*a.  —  Vicente  Yanez  Pinzon  foi  o  pri- 
meiro viajante  europeu  que  observou  apoporoea,  curioso 


(1)  Ayres  do  Casal  e  Robertson  pretendem  que  seja  o  Cabo 
Norte,  no  Estado  do  Pará,  baseados  em  {)henomenos  que  o  pró- 
prio Pinzon  mencionou  como  característicos  do  ponto  por  elle 
descoberto. 

(2)  Roberto  Southey.  —  Historia  do  Brazil. 

(3)  Não  é  a  nossa  Trindade,  descoberta  por  João  da  Nova  em 
lõOl  e  sim  uma  outra  de  igual  nome,  pertencente  á  Inglatarra  e 
situada  um  pouco  ao  norte  da  foz  do  Orenoco. 


190  HISTOEIA   DO   BRASIL 

phenomeno  produzido  pela  maré  na  foz  dos  rios  Ama- 
zonas, Mearim,  Guamà  e  oulros,  contra  o  qual  luctaram 
suas  embarcações. 

Como  o  alveo  dos  rios  é  profundo  e  largo,  as  suas 
correntes  são  tão  rápidas  que  suspendem  a  enchente  da 
maré  por  largo  tempo,  resultando  desta  opposicão 
ondas  encapelladas,  chamadas  'pororocas,  que  depois  de 
vencerem  tudo  quanto  vasou  em  quasi  nove  horas,  enchem 
em  menos  de  um  quarto,  ficando  a  maré  caminhando 
para  cima  três  horas  completas  com  uma  rapidez  verti- 
ginosa. 

Ha  sitios  abrigados  da  correnteza  a  que  se  dá  o 
nome  de  esperas,  onde  as  canoas  aguardam  a  decisão  do 
combate  e  continuam  a  viagem  sem  perigo  (1). 

A  palavra  pororoca  vem  do  guarany  poropog,  es- 
trondo ou  ruido.  Xa  índia  Portugueza  dâ-se  a  este  phe- 
nomeno o  nome  de  macaréo. 

Qiiestiio  <flo  Amapá. — O  nome  do  descobridor 
do  Brasil  acha-se  ligado  á  palpitante  questão  de  limites 
entre  o  Brasil  e  a  Guyana  Franceza,  questão  secular  irri- 
tada modernamente  pelo  aggressivo  desembarque  que  a 
tripolação  do  navio  de  guerra  francez  Le  Bí^ngali  operou 
em  1895  no  território  do  Amapá,  região  comprehendida 
entre  os  rios  Araguary  e  Oyapock. 

Assim,  algo  diremos  sobrft  ella,  já  que  nos  occupa- 
mos  de  Pinzon. 

O  rio  Oyapock  ou  de  Vicente  Pinzon,  descoberto  pelo 
navegante  hespanhol,  foi  pelo  tratado  de  Tordesilhas  que 
a  Cúria  Romana  confirmou,  considemdo  o  limite  das 
possessões  hespanholas,  tendo  já  D.  Mambei,  soberano 
de  Portugal  encarregado  a  um  de  seus  pilotos  de  collo- 
car  na  sua  fúz  um  marco  divisório. 

Tendo  depois  a  região  situada  ao  norte  do  Oyapock 
passado  ao  dominio  francez  suscitaram-se  duvidas, 
sendo  atinai  restabelecitlo  o  limite  pelo  tratado  de  Uiro- 
cht  .|ue  se  tirmoj  em  1712,  apoz  longos  debates  entre  os 
representantes  dos  dois  paizes. 

Por  um  novo  accòrdo  entre  o  rei  de  Portugal  e  o  rei 
de  França  ficou  ainda  estipulado  que  o  Oyapock  ass- 
gnaliria  o  limite  das  respectivas  possessões  e  a  Guya  ia 
Franccza  estendei-se-hia  da  parle  do  occidente  até 
322  grãos,  segundo  o  meridiano  da  ilha  do  Ferro. 


(1)  Ayres  do  Casal  —CoTographia  brasílica. 


PEIMEIEA    EPOCHA  191 


Por  conseguinte,  não  só  pelo  padrão  que  D.  Ma- 
noel mandou  levantar  e  que  Carlos  V  respeitou,  como 
pelo  disposto  no  tratado  de  Utrecht  em  1712  e  ainda  mais 
pela  convenção  dos  dois  governos  em  18 16,  o  direito  das 
gentes  confere  ao  Brasil  a  posse  do  território  do  Amapá, 
situado  entre  os  rios  Araguary  e  Oyapock. 

A  França,  no  entanto,  nos  contesta  esse  direito  ba- 
seada nos  tratados  de  Madrid  e  Badajoz  celebrados  em 
1801,  em  os  quaes  o  plenipotenciário  francez  Luciano 
Bonaparte  obteve  para  a  Republica  que  a  Guyana  fran- 
ceza  se  estendesse  até  Macapá  e  o  cabo  Norte. 

AUega  também  que,  no  tratado  de  Amiensde  25  e  27 
de  Março  de  1802,  os  limites  entre  o  Brasil  e  a  França 
foram  fixados  na  embocadura  e  ao  norte  do  Araguary, 
de  onde  se  devia  tirar  para  o  occidente  uma  linha  até  o 
Rio  Branco. 

Taes  razões,  no  entanto,  em  bom  direilo  não  podem 
prevalecer  :  a  primeira  porque  existe  o  tratado  de  1816 
que  é  posterior  aos  de  Badajoz  e  Madrid  e  que  annula  o 
que  nestes  se  regulou;  a  segunda  porque  D.  Maria  I  não 
se  fez  representar  em  Amiens  e  para  que  um  tratado  seja 
valido  é  mister  que  as  partes  interessadas  concordem. 

Em  conclusão:  o  Amapá  nos  pertence  e  se  fôr  aca- 
tado o  direito  internacional  o  rio  descoberto  por  Vicente 
Pinzon  continuará  a  limitar  o  Brasil  ao  norte  (1). 

Diego  de  Lepe.  — Outro  hespanhol,  Diego  de 
Lepe,  aportou  ao  Brasil  antes  de  Cabral. 

Segundo  consta  de  documentos  fidedignos,  Lepe 
descobrio  em  Fevereiro  ou  M  irço  de  1500  o  cabo  de 
Santa  Maria  de  la  Consolacion  (ou  de  Santo  Agostinho) 
a  que  deu  o  nome  de  Cabu  de  Rostro  Hermoso  e  vele- 
jando ao  principio  para  o  sul  e  depois  para  o  noroeste 
realisou  quasi  a  mesma  derrota  de  Pinzon,  tendo  sof- 
frido  muitas  hostilidades  dos  indigenas  do  littoral  do 
Maranhão. 

Diego  de  Lepe  foi  enforcado  annos  depois  pelos 
portuguezes,  por  ter  sido  encontrado  traficando  nas  cos- 
tas da  Africa. 


fl)  o  illustrado  e  laborioso  Dr.  Teixeira  de  Mello,  actual  director  da 
Bibliotheca  Nacional  do  Rio  de  Janeiro,  soh  o  titulo  Subsídios  e.ristentes 
na  Bibliotheca  Nacional  pccra  o  estudo  da  questão  de  limites  do  Brasil 
pelo  Oyapock,  prestou  um  assignalado  serviço  ú  historia  e  :'i  diplomacia, 
reunindo  nesse  opúsculo  a  nolii-.ia  descriptiva  de  todos  os  manuscriptos  e 
impressos  que,  podendo  elucidar  a  questrio,  existem  n'aquelle  estabele- 
cimento. 


192  HISTORIA  DO   BRASIL 

Juízo  do  Pa*ofesi§or  Capistrauo.  — Antes  de 
descrevermos  a  viagem  de  Cabral,  que  pelos  seus  eífeitos 
foi  politicamente  considerada  como  a  que  descóbrio  o 
Brasil,  seja-nos  licito  apresentar  as  conclusões  formu- 
ladas peio  illustrado  Professor  Capistrano  de  Abreu, 
apoz  o  magistral  estudo  que  fez  sobre  as  diversas  preten- 
ções  á  descoberta  do  Brasil. 

«  Todos  os  esforços  até  hoje  feito  para  recuar  o  des- 
cobrimento do  Brasif  além  de  lõOO  não  té  ai  resistência  á 
critica,  diz  o  egrégio  professor. 

«A  tradicção  francoza  da  viagem  de  Cousin  que 
fixa  a  descoberta  do  Brasil  no  anno  de  H88,  não  está 
CDmprovadae  tropeça  em  difPiculdades  insuperáveis. 

c<  A  viagem  de  João  Ramalho  em  1490  ou  é  uma  in- 
venção de  Frei  Gaspar  da  Madre  de  Deus  ou  não  passa 
de  uma  mystificação  em  que  elle  cahio. 

«  A  interpretação  da  viagem  de  Hojeda  em  1499,  que 
Varnhagen  dá  baseando-se  nas  cartas  de  Vespucio,  tem 
contra  si  o  testemunho  de  Hojeda,  de  Juan  de  la  Cosa, 
dos  companheiros  de  Pinzon,  do  próprio  Pinzon  e  todos 
os  resultados  apurados  no  estudo  dos  textos  e  na  critica 
dos  factos. 

«  E'  portanto,  com  os  documentos  de  que  dispomos 
incontestável  que  o  descobrimento  do  Brasil  foi  cm 
lõOO. 

«  E  foram  os  hespanhoes  que  o  descobriram,  porque 
Cabral  vio  terra  mais  de  mead  )  de  Abril  ;  Pinzon  vio-a 
em  Fevereiro,  e  Lepe,  quando  Cabral  ainda  nem  perce- 
bera signaes  de  terra,  já  dobrara  o  Cabo  de  Santo  Agos- 
tinho para  o  sul  e  tornava  para  o  norte.  » 

A  festa  nacianal  de  3  d»  II  li». — A  Consti- 
tuição Republicana  de  24  de  Fevereiro,  pela  qual  nos  re- 
gemos, consagrou  o  dia  3  de  Maio  á  commemoração  do 
descobrimento  do  Brasil. 

O  dia  3  de  Maio,  pela  correcção  do  calendário  gre- 
goriano, corresponde  ao  dia  21  da  Abril  do  calendário 
juliano,  data  em  que  Pedro  Alvares  Cabral  chegou  ao 
Brasil. 

Ora,  estando  lodosos  autores  accordes  que  Vicente 
Yanez  Pinzon  e  Diego  de  Lepe  foram  precursores  de 
Cabral  na  descoberta  do  Brasil,  a  Constituição  de  24  de 
Fevereiro  commemora  a  3  de  Maio  o  anniversario  da 
chegada  dos  primeiros  portuguezes  ao  nosso  paiz  e  não 
a  da  real  descoberta  da  Pátria. 


PKIMEIEA   EPOCHA  193 


Pelo  calendário  gregoriano,  que  hoje  seguimos,  o 
anniversario  do  descobrimento  do  Brasil  cahe  em  7  de 
Fevereiro,  data  correspondente  ao  dia  26  de  Janeiro  de 
1500,  em  o  qual  Pinzon  encontrou  o  Cabo  de  Santa  Ma- 
ria de  la  Consolacion  ou  de  Santo  Agostinho. 


;1)  C  A.  PI  STH  K  NO  uv.  Ahkev  .—Descobrimento  do  Brasil  ;  seu  desenool' 
mento  no  século  XVI. 

13 


CAPITULO  III 

A  VIAGEM  DE  CABRAL 


A  (liTisoriM  iiuagSnstr*ia. — Loj^o  que  divulgou- 
se  na  Europa  a  noticia  do  portentoso  descobrimento  de 
Christovão  Colombo,  o  rei  de  Hespanha  obteve  da  Cúria 
Romana  uma  bulia  que  lhe  confirmava  o  direito  de  posse 
sobre  as  terras  que  acabavam   do  ser  descobertas. 

D.  João II,  rei  de  Portugal,  que  não  soube  aprovei- 
tar Colombo,  quando  este  lhe  expoz  a  theoria  da  esphe- 
ricidade  do  planeia,  encheu-se  no  entanto  de  desgostos 
pela  boa  estrellaque  surgia  para  Castelia  e  n'este  sen- 
tido representou  ao  Summo  Pontifico,  allegando  que  a 
Ciiria  Romana  não  podia  distribuir  á  Hespanha  aquellas 
terras,  pois  as  bulias  pontifícias  de  Nicoláo  V  e  Calixto 
III,  conferiam  aos  príncipes  da  dymnastia  de  Aviz  pelos 
serviços  prestados  áchristandrde,  todas  hs  terras  adqui- 
ridas e  por  adquirir,  desde  o  cabo  Bojador  atéá  índia  (l). 

Alexandre  VI,  Summo  Pontífice,  attendendo  á  re- 
clamação do  soberano  portuguez,  mas  não  querendo 
igualmente  malquistar-se  com  o  rei  de  Hespanha,  tra- 
çou sobre  um  mappa  uma  linha  divisória  passando  a 
100  léguas  dos  Açores  e  de  Cabo  Verde  :  as  terras  para 
leste  pertenceriam  a  Portugal  e  as  que  ficavam  situa- 
das a  oeste  seriam  de  Hespanha. 

D.  João  II,  porém,  não  se  conformou  coiíi  essa  par- 
tilha e  teve  idéa  de  tentar  pelas  armas  o  que  não  podia 
obter  por  meios  diplomáticos  ;  com  este  intento  man- 
dou apromptar  uma  esquadra,  cujo  commando  confiou 
ao  famoso  capitão  Francisco  de  Almeida. 

Carlos  V,  no  entanto,  que  se  achava  em  lucta  com 
quasi  toda  a  Europa,  na  ambição  de  realisar  o  seu  sonho 
de  monarchia  universal,  entendeu  que  era  inopportuno 
indispòr-se  com  o  soberano  do  visinho  reino,  e  por  isso 
convidou-o  a  entrar  em  negociações. 


(1)  Omnes  insulas  et  terras  firmas  inventas  et  inceniendas, 
dedectas  et  detegendas  versus  occidentem  et  meridiem.  —  Bulla 
pontifícia. 


196  HISTORIA  DO  BRASIL 

D .  João  II  aquiesceu  e  mandou  á  Hespanha  Paro 
Dias  e  o  chronitíta  Ruy  ce  Pina,  os  quaes,  com  Garcia 
de  Carbajal  e  Pedro  de  Ayala,  embaixadores  de  Castella, 
negociaram  a  7  de  Juniio  de  1494  o  tratado  conhecido  na 
historia  peio  nome  de  Tratado  de  Tordesilhas,  pelo 
qual  a  linha  divisória,  traçada  pelo  papa,  deveria  pas- 
sar a  360  léguas  da  ilha  de  Santo  Antão,  do  archi- 
pelago  de  Cabo  Verde,  ticando  as  terras  situadas  á  oeste 
pertencendo  á  Hespanha,  e  as  que  se  encontrassem  á 
leste  sob  o  dominio  de  Portugal. 

A'  negociação  d'esse  tratado,  que  foi  confirmado  pela 
Cúria  Romana,  assistio  D .  Manoel,  duque  de  Beja  e  de 
Vizeu  e  depois  rei  de  Portugal. 

Partida  de  Cabral.  — Querendo  D.  Manoel,  ao 
subir  ao  throno  portuguez,  assegurar  a  conquista  das 
índias,  cujo  roteiro  pelo  sul  da  Africa,  Vasco  da  Gama 
havia  descoberto,  como  vimos  no  primeiro  capitulo, 
mandou  preparar  uma  esquadra  composta  de  10  cara- 
vellas  e  3  navios  redondos,  cujo  commando  confiou  a 
Pedro  Alvares  Cabral,  goverxiadorda  província  da  Beira 
6  senhor  de  Belmonte,  sendo  os  outros  commandantes 
Sancho  de  Thoar,  immediato  de  Cabral  na  chefia  do 
commando,  Nicolau  Coelho,  que  fora  companheiro  de 
Vasco  da  Gama  na  sua  celebre  viagem  á  índia,  Simão  de 
Miranda  Azevedo,  Ayres  Gomes  da  Silva,  Simão  de 
Pina,  Nuno  Leitão,  Pedro  de  Athayde,  o  famoso  Bartho- 
lomeu  Dias  e  seu  irmão  Diogo  Dias,  Luiz  Pires  e  Gaspar 
de  Lemos  que  devia  commandar  o  navio  de  mantimen- 
tos. 

Segundo  as  instrucções,  Bartholomeu  Dias  e  Diogo 
Dias  deviam  ficar  em  Sofala,  onde  estabeleceriam  uma 
ft  iloria . 

Foi  fixada  a  partida  para  8  de  Março  de  1500  e  na 
mauhã  desse  dia  celebrou-se  missa  pontifical  na  ermida 
do  Resteilo,  na  capella  erecta  pelo  infante  D.  Henrique, 
dedicada  a  Nossa  Senhora  de  Belém  e  doada  a  alguns 
frades  do  convento  de  Thomar. 

Essa  capella  tinha  por  tini  principal  administrar  aos 
navegantes  os  sacramentos  da  igreja,  principalmente  em 
momentos  solemnes  como  este. 

A'  ceremonia  assistiram  todos  os  que  deviam  em-^ 
barcar  e  bem  assim  grande  massa  popular  e  o  rei  com 
toda  a  sua  corte. 

Pregou  D.  Diogo Ortiz,  bispo  de  Ceuta,  e  com  muita 
elevação  despertou  o  patriotismo  e  o  amor  da  gloria  nos 


PRIMEIRA   EPOCHA  197 


fieis  alli  reunidos,  pintando  com  as  suas  eloquentes 
palavras  o  quadro  das  nobres  acções  praticadas  por  Vasco 
da  Gama  e  seus  companheiros  na  Iiidia,  c  concitando  os 
que  se  preparavam  á  repetição  do  arrojado  emprehendi- 
mento,  a  se  esforçarem  ainda  mais  na  dignifição  das  qui- 
nas lusitanas. 

Finda  a  predica  o  bispo  entregou  ao  rei,  depois  de 
benzel-o,  um  estandarte  com  as  armas  de  Portugal  e  o 
soberano  por  suas  próprias  mãos  passou-o  ás  de  Ca- 
bral. (1) 

O  capitão  desfraldou  a  bandeira  e  ao  som  de  trom- 
betas, sistros,  atabaques,  ílautas,  tambores  o  pandeiros, 
seguiram  todos  com  cruzes  alçadas  ereliquias,  em  pro- 
cissão para  a  praia,  procedendo -se  ao  embarque. 

Fizeram  também  parte  da  expedição  sete  frades 
franciscanos  missionários,  sob  as  ordens  do  guardião 
Frei  Henrique  de  Coimbra,  ao  depois  bispo  de  Ceuta, 
e  mais  oitocapellães  para  a  esquadra  e  um  vigário  des- 
tinado a  Calicut. 

Checada  de  Cabral  ao  BB>asll  —  Cabral  ao 
sahir  do  Tejo  navegou  em  direcção  a  Cabo  Verde  (2) 
onde  fez  aguada  e  depois,  para  evitaras  calmarias  rei- 
nantes na  Costa  da  Africa  que  tão  penosas  haviam  sido 
a  Bartholomeu  Dias  e  a  Vasco  da  Gama,  aproou  para 
sudoeste,  na  esperança  de  poder  assim  mais  rapidamente 
dobrar  o  cabo  sul  africano. 

O  inexperiente  senhor  de  Belmonte  desconhecia  no 
entanto  a  existência  das  correntes  maritimas,  apezar  do 
terem  sido  estas  já  revelidas  por  Colombo  e  por  isso, 
fazendo-se  muito  ao  largo,  as  referidas  correntes  o  leva- 
ram mais  para  oesto  do  que  pretendia,  ficando  elle  muito 
admirado  quando  a  21  de  Abril,  dia  em  que,  segundo  os 
cálculos  de  seus  pilotos,  achava-sca660  léguas  da  ilha  de 
S .  Nicolau  (3)  vio  signa.es  de  terra  em  algumas  aves 
marinhas  e  em  hervas  que  boiavam  á  tona  da  agua. 


(\)  Esta  ilha  pertence  ao  archipelago  de  Cabo  Verde. 

(2)  Todos  os  chronistas  e  historiadores  citam  este  facto,  o 
que  prova  ser  elle  uma  cirande  e  excepcional  distinoção. 

(3)  Um  dos  navios  da  esquadra  que  nlguns  autores  presumem 
que  seja  o  de  Vasco  de  Athayde  e  outros  o  de  Luiz  Pires  ou  de 
Pêro  de  Figueiró,  desgarrou  indo  arribar  a  I,isboa.  Não  havendo 
tempo  forte  fiem  contrario,  como  diz  ingénua  e  maliciosamente 
Pêro  Vaz  Caminha,  6  d(í  presumir  que  ò  capitão  d'essa  nau  des- 
garrada tenha  julgado  mais  prudente  quedar  se  tranquillo  em 
Lisb;ia  que  commetter  as  ondas  do  mar  iroso. 


198  HISTORIA  DO  BEASrL 

Não  eram  enganosos  os  indícios,  pois  eífectivamente 
no  dia  seguinte,  22  de  Abril,  avistaram  os  nautas  portu- 
guezes  um  monte  e  um  negrume  prolongado  no  hori- 
zonte que  accusava  a  continuação  de  terra. 

Cabral  deu  ao  monte  o  nome  áe  Paschoal,  \)0v  ter 
sido  descoberto  no  oita vario  da  Paschoa,  e  á  terra  deno- 
minoií-a  de  Vera  Cruz. 

Gonçalo  Coelho  seguiopara  o  norte  em  demanda  de 
porto,  o  que  conseguio  depois  de  transpostas  cerca 
de  dez  léguas,  porto  esse  que  Cabral  appellidou  Se- 
guro, nome  que  erradamente  foi  transferido  para  outro 
logar.  quatro  léguas  ao  sul,  chamando-se  actualmente 
Cabralia,  o  porto  onde  ancorou  Cabral  (1). 

A  bordo  foram  recolhidos  dois  Índios  da  tríbu  dos 
Tupiniquins  que  tinham  sido  encontrados  em  uma  jan- 
gada, não  sendo  sua  linguagem  ccnprehendida  pelos 
interpretes  de  dialectos  africanos  e  asiáticos  que  haviam 
a  bordo . 

Tendo  os  portuguezes  tratado  benevolamente  os  dois 
selvagens  e  presenteando-os  com  espelhos,  guizos  e 
outras  bugigangas,  estabeleceram-se  boas  relações  entre 
os  europeus  e  os  selvicolas  que  até  auxiliaram  a  tri- 
polação  a  fazer  aguada  e  lenha  para  a  esquadra. 

No  dia  26  de  Abril  foi  celebrada  a  primeira  missa  no 
Brazil  e  no  dia  27  preparou-se  uma  cruz  com  madeiras 
do  paiz,  tendo  as  armas  e  a  divisa  do  rei  de  Portugal, 
sendo  a  mesma  erguida  em  1°  de  Maio,  e  proferindo  por 
essa  occisião  Frei  Henrique  um  sermão  sobre  as  vidas 
de  S.  Philippe  e  S.  Thiago,  santos  que  a  igreja  comme- 
mora  n'esse  dia. 

Finalmente,  a  2  de  Maio  partio  para  Lisboa  Gaspar 
de  Lemos  ou  André  Gonçalves  afim  de  levar  ao  rei  a  no- 
ticia do  notável  descobrimento  e  Cabral  fez-se  de  vela  em 
d'recção  ao  Cabo  de  Boa  Esperança,  com  o  intuito  de 
ganhar  a  índia  que  era  o  termo  de  sua  viagem. 

Na  terra  descoberta  ficaram  dois  degradados  e  dois 
grumetes  que  desertaram  de  bordo,  naturaln, ente  sedu- 
zidos pela  magnificência  do  paiz  e  pela  afíabilidade  do 
gentio.  Estes  foram  os  primeiros  habitantes  europeus  do 
Brasil. 

Primeira,  iiiissia  no  ^B*asiil. — A  missa  que 
Pedro  Alvares  Cabral  lu andou  celebrar  em  26  de  Abril, 


(1)  Roberto  SouTHEY.—i/íS^orm  do  Brasil. 


PRIMEIEA  EPOCHA  199 


a  primeira  que  se  disse  no  Brasil,  teve  lugar  era  um 
ilhéo  que  depois  se  chamou  da  Coroa  Vermelha. 

Foi  celebrante  o  franciscano  Frei  Henrique  de  Coim- 
bra, sendo  assistido  pelos  capellães  da  esquadra  e  pelos 
sete  frades  que  iam  em  missão  religiosa  á  índia. 

A  bandeira  que  tinha  sido  entregue  a  Cabral  pelo 
próprio  rei  esteve  desfraldada  durante  a  solemnidade  e 
Frei  Henrique  pregou  um  sermão,  tomando  por  thema 
o  notável  descobrimento. 

Os  selvagens,  trepados  ás  arvores  da  terra  firme  que 
ficava  fronteira,  pendurados  aos  cipós  ou  deitados  â 
relva  assistiam  curiosos  e  admirados  a  principal  cere- 
monia  dessa  religião  nova  para  elles,  sem  que  no  en- 
tanto deixassem  de  comprehender  que  se  tratava  da  pra- 
tica de  um  culto  e  que  todos  aquelles  padres  e  frades 
eram  outros  tantos  pagés  dessa  gente  branca. 

Por  isso  imitavam  os  portuguezes  nas  diversas  atti- 
tudes  que  tomavam  ou  gestos  que  faziam  durante  a  cele- 
bração da  missa. 

A  musica  sacra  deliciou-os,  a  arenga  do  frade, 
porém,  em  uma  lingua  que  elles  não  podiam  compre- 
hender,  enfastiou-os,  fazendo-os  pvocoinper  em  furiosa 
algazarra  que  os  europeus  naturalmente  tomaram  por 
assuada. 

Acreditamos  que  Frei  Henrique  não  deveria  ficar 
lisongeado  com  esta  manifestação  do  auditório  caboclo  á 
exhibição  de  seus  dotes  oratórios. 

Pêro  Vaz  Caminha.  -Pêro  Vaz  Caminha,  que 
fazia  parte  da  expedição  de  Cabral,  deve  ser  considerado 
o  mais  antigo  historiador  do  Brasil. 

O  navio,  que  levou  a  Portugal  a  noticia  da  desco- 
berta da  terra  de  Vera  Cruz,  conduzio  igualmente  uma 
carta  sua  para  D.  Manoel,  em  a  qual  elle  fez  minu- 
ciosa narração  do  acontecimento  e  descreveu  judiciosa- 
mente o  aspecto  do  paiz,  seus  productos  nativos  e  seus 
habitantes,  tanto  quanto  lhe  fora  possivel  saber  nos 
poucos  dias  que  aqui  esteve. 

Pêro  Vaz  Caminha  na  sua  celebre  carta,  que  hoje 
tem  alto  valor  histórico,  mostrou-se  observador  attento, 
nâo  sendo  despido  de  belleza  e  graça  o  seu  estylo. 

Os  caleudarios.  —  Conforme  vimos  no  paragra- 
pho  em  que  tratamos  da  festa  nacional  de  3  de  Maio,  as 
datas  a  que  nos  referimos  no  começo  d'esta  historia  não 


200  HISTORIA   DO  BRASIL 

correspondem  ás  mesmas  de  hoje,  em  virtude  da  altera- 
ção que  soffreu  o  calendário  então  em  vigor. 

Assim  julgamos  de  conveniência  terminar  este  ca- 
pitulo com  algumas  linhas  historiando  os  calendários, 
afim  de  que  a  questão  seja  bem   comprehendida. 

O  concilio  de  Nicéa  adoptou  em  325  o  calendário  de 
Júlio  Cezar.  Esse  calendário,  porém,  não  era  exacto  por- 
que o  anno  trópico  não  vale  365  dias  e  '/j,  porém,  sim 
unic  imente  365  dias  e  0,2422,  perfazendo  a  dilTerença  do 
3  dias  e  0,0944  du  ante  um  periodo  de  400annos. 

O  Papa  Gregório  XIII,  auxiliado  pelo  calabrez  Lilio, 
resolveu  reformar  esse  calendário  e  nesse  sentido  sup- 
primio  dez  dias  no  anno  de  1582,  decidindo  que  o  dia  5 
de  Outubro,  epocha  da  publicação  da  bulia  pontifical,  sj 
chamasse  15  de  Outubro,  e,  para  evitar  um  novo  erro 
pela  intercalação  de  3  dias  em  excesso  todos  os  400 
annos,  mandou  que  se  supprimissem  3  bissextos  nos 
annos  secu'ares,  todos  os  400  annos  ou,  por  outra,  con- 
servou como  annos  seculares  bissextos  unicamente 
aquelles  cujas  duas  primeiras  lettras  (ou  numero  de 
ordem)  fossem  divisiveis  p^r4. 

Esta  reforma  foi  adoptada  por  todo^  os  paizes  chris- 
tâos,  com  excepção  da  Rússia,  onde  vigora  ainda  o  ca- 
lendário juliano. 


CAPITULO  IV 

DESCOBERTA  TOTAL  DA  COSTA   BRASILEIRA 

N'este  capitulo  passaremos  em  revista  as  diversas 
expedições  maritinias  dirigidas  ao  Brasil  apoz  a  viagem 
do  Cabral,  pelas  quaes  se  completou  a  descoberta  de  toda 
a  costa  brasileira . 

Essas  expedições  foram  ordenadas  pelas  cortes  de 
Portugal  e  Hespanha  ou  compunham-se  de  simples 
aventureiros  que  atravessavam  o  Atlântico  com  o  fim 
exclusivo  de  traficar  com  os  productos  nativos  dns 
vastas  regiões  que  o  génio  de  Colombo  tinha  feito 
surgir  do  mysterioso  Atlântico. 

Pouca  lembrança  guarda  a  historia  de  navios  por- 
tuguezes  arribados  a  pontos  do  littoral  ao  norte  do  Cabo 
de  Santo  Agostinho;  apenas  se  presume  que  um  tal  João 
Coelho  cursou  os  mares  septentrionaes  d';  nossa  Pátria 
no  anno  seguinte  ao  da  viagem  de  Cabral,  se  portugue- 
zes  porém  não  proseguiram  n'essa  derrota,  as  viagens 
de  Pinzon,  Lepe  e  Hojeda  foram  suíTicientes  para  t')riiar 
conhecida  toda  a  costa  do  norte  que,  pelo  tratado  de  Tor- 
desilhas, pertencia  legalmente  a  Portugal.  O  que  faltiva 
realmente  descobrir  era  a  região  situada  ao  sul  de  Porto 
Seguro  e  é  dMsto  especialmente  que  se  occupa  o  pre- 
sente capitulo. 

jtrniada  exploradoB*a  do  .4 ndré  Gonçalves. 

— (1501  —  1502). — Como  vimos  no  capitulo  precedente, 
Cabral  ao  fazer- se  de  vela  para  a  índia  que  era  o  fim  de 
sua  jornada,  despachou  para  Portugal  um  navio  com  a 
noticia  do  seu  portentoso  desc  ibrimcnto  e  el-rei  D.  Ma- 
noel, logo  que  soube  do  occorrido,  resolveu  mandar 
reconhecer  mais  minuciosamente  a  terra,  fazendo  para 
isso  aprestar  uma  esquadrilha,  cujocommando  confiou 
a  André  Gonçalves  (1). 


(1)  Varnhagen  e  d'Avezac  pretendem  que  fosse  D  Nuno 
Manoel  o  commandante  dessa  esquadrilha;  o  senador  Cândido 
Mendes,  porem,  e  principalmente  o  abalisado  professor  Capis- 
trano  de  Abreu  reclamaram  tal  gloria  para  André  Gonçalves  e, 


202  HISTORIA  DO  BRASIL 

Este  André  Gonçalves  podia  ser  muito  pratico  da 
vida  do  mar,  como  porém  a  armada  por  elle  coinman- 
dada  não  se  destinava  unicamente  a  uma  travessia  e 
simafazerobservaçõesgeographicas  que  exigiam  conhe- 
cimentos particulares,  D.  Manoel  aggregou  á  expedição 
o  celebre  cosmographo  florentino  Am.-irico  Vespucio,  na- 
turalmente com  uma  certa  parcella  de  autoridade  no 
commando  da  armada. 

A  expedição  partio  de  Lisboa  no  anno  de  1501,  sendo 
opinião  geral  que  o  primeiro  ponto  do  Brasil  em  que 
surgio  foi  o  Cabo  de  S.  Roque,  aos  16  de  Agosto  desse 
mesmo  anno. 

g;^Em  seguida  André  Gonçalves  velejou  para  o  sul, 
sempre  costeando,  plantando  padrões,  fazendo  sonda- 
gens, levantando  cartas  e  roteiros  e  applicando  aos  loga- 
res  que  encontrava  os  nomes  dos  santos  dos  dias  em 
que  o  acontecimento  se  realisava. 

Assim  foram  successivamente  descobertos  e  bapti- 
sados  : 

O  cabo  de  Santo  Agostinho,  em  28  de  Agosto. 

O  rio  de  5.  Migad,  em  29  de  Setembro. 

O  rio  de  ò\  Jeronymo,  em  30  do  m(  smo. 

O  rio  de  S.  Francisco,  em  4  de  Outubro. 

O  rio  das  Virgens,  em  21  do  mesmo. 

A  bahia  de  Todos  os  Santos,  em  1"  de  Novembro. 

O  rio  de  Santa  Lu::ia,  em  13  de  Dezembro. 

O  Rio  de  Janeiro,  em  1°  de  Janeiro  de  1502. 

Angra  dos  Reis,  a  6  do  mesmo  mez. 

A  ilha  de  S.  Vicente,  a  22  do  mesmo. 

Segund..  Varnhagen  a  esquadrilha  seguio  ainda  até 
o  cabo  de  Santa  Maria,  Cândido  Mendes  e  Capistranode 
Abreu  ,fazem  no  entanto,  terminar  a  excursão  em  Ca- 
nanéa,  sendo  esta  a  versão  que  merece  mais  credito. 

A  expedição  de  André  Gonçalves  limit')u-se  unica- 
mente a  obfer  conhecimentos  sobre  a  configuração  da 
costa,  sendo  provável  que  nos  desembarques  que  rea- 
lisou  a  tripolação  pouco  se  distanciassem  das  praias  ; 
assim,  só  de  modo  muito  indeciso  podia-se  na  Europa 
fazer  idéa  das  riquezas  naturaes  da  terra,  visto  como    o 


por  meio  de  argumentos  irrespondiveis,  destruíram  a  pretençao 
dos  dois  autores  acima  mencionados.  Assim  dam.os  como  com- 
mandada  por  André  Gonçalves  a  primeira  armada  que  veio  ao 
Brazii  explorar-lhe  as  costas. 


PRIMEIRA  EPOOHA  203 


próprio  Vespucio,  nas  suns  cartas  a  diversos  persona- 
gens italianos,  revelou  não  estar  ainda  seguro  das 
mesmas,  pois  muitas  vezes  exalta  o  valor  da  nova  re- 
gião descoberta  e  outras  vezes  diz  que  as  únicas  cousas 
que  ella  possue  de  precioso  é  o  pau  brasil,  a  cannafistula 
e  a  arvore  da  myrrha. 

Antes  de  terminar  o  anno  de  1502  já  a  armada  de 
André  Gonçalves  achava-se  de  volta  a  Portugal. 

Rio  de  Janeiro.— Como  acabamos  de  ver  foi 
nessa  primeira  viagem  de  exploração  á  costa  brasileir.i, 
que  se  descobrio  a  nossa  formosa  e  ampla  bahia  do  Rio 
de  Janeiro,  uma  das  mais  notáveis  do  fílobo. 

O  memorável  acontecimento  realisou-se  no  pri- 
meiro dia  do  anno  de  1502  e  o  capitão  portuguez,  (jue 
talvez,  por  falta  de  imaginação  ou  por  devoção  exagerada, 
vinha  de  calendário  aborto  baptisando  com  o  nome  do 
santo  do  dia  os  logares  a  que  chegava,  entrando  em  1° 
de  Janeiro  na  nossa  bahia  e  não  podendo  comprehender 
que  a  natureza  houvesse  rasgado  nesta  terra  um  ponto 
de  dimensões  tão  dilatadas,  tom.ou-a  pela  íóz  de  um 
grande  rio  e  deu-lheo  impróprio  nome  de  Rio  de  Janeiro. 

Quando  o  celebre  Fernão  de  Magalhães,  costeando  o 
Brasil  afim  de  realisar  a  grande  viagem  em  redor  do 
globo  que  o  havia  de  cobrir  de  gloria,  bem  como  ao  paiz 
a  cujo  serviço  se  achava,  aportou  ao  Rio  de  Janeiro,  jul- 
gando ser  o  primeiro  que  o  p  metrava  e  nrrogou-se  o  di- 
reito de  applicar-lhe  o  nome  de  bahia  de  Santa  Luzia,  o 
qual  não  logrou  ser  admittido  pelos  pósteros,  na  ver- 
dade sem  grande  prejuizo. 

O  que  devemos  lastimar  é  que  se  perpetuasse  no 
nome  da  capital  da  grande  nação  sul  americana  o  gros- 
seiro engano  do  capitão  portuguez,  em  logar  de  se  con- 
servar nella,  como  aconteceu  em  outros  pontos  mais 
felizes,  ;i  denominação  indig  'na que  era  a  p  ilavra  Gtia- 
nibara,  de  eufonia  tão  agradável . 

Armada  expioi*sailora  de  Gonç:iBo  Ciiellii»* 
—(1503  — 1501).— Não  podendo  D.  Manoel  conttntar-se 
como  resuliado  da  expedição  de  André  Gonçalves,  que 
pelo  sul  não  se  tinha  adiantado  sulUcientemente  de 
modo  a  d-scobrir  a  ambicion  id  i  pass;igeni  para  Malacc  i 
esse  empório  e  feira  universal  do  Oriente,  no  dizer  d'? 
João  de  Barros,  nem  d;i  Terra  de  Yer.i'  Cruz  trouxera 
informações  de  valor  sobre  as  suas  riquez  isnaturaes,  as 
cjuaes,  no  entanto  deviam  existir  e  em  abundância,  man- 


2Õ4  HISTORIA   DO  BRASIL 

dou  apparelhar  uma  segunda  esquadrilha  composta  de 
seis  caravellas  para  tentar  novamente  a  empreza . 

Não  estão  igualmenti^  de  accorlo  os  autores  quinto 
ao  commandante  desta  segunda  expedição  exploradora, 
comtudo  prevalece  a  opinião  de  ser  Gonçalo  Coelho  o 
que  a  dirigia  e  como  tal  a  adoptamos.  Américo  Vespucio 
tornou  a  fazer  parte  desta  expedição. 

A  armada  sahio  de  Lisboa  em  meiados  de  1502  e  foi 
dar  á  vista  de  uma  ilha  que  se  pre^u  ne  ter  sido  a  de 
Fernão  de  Noronha,  próximo  á  qual  a  capitanea  foi  de 
encontro  a  un  rochedo  e  submergio-se,  podendo  no  en- 
tanto salvar-se  a  tripolação.  Gonçalo  Coelho  mandou 
Vespucio  adiante  afim  de  procurar  na  ilha  um  ancora- 
douro e,  como  o  florentino  se  demorasse  em  trazer-lhe  a 
resposta,  despachou  um  outro  navio  â  sua  procura  e  este 
logo  o  encontrou,  seguindo  ambas  as  embarcações  para  a 
Bahia,  sob  o  commando  geral  do  mesmo  Vespucio. 

E'  possível  que  um  desgarramento  involuntário  mo- 
tivasse a  deserção  desses  dois  navios,  n'um  momento 
em  que  o  rosto  da  esquadra  se  achava  em  posição  emba- 
raçosa, attendendo  porém  ao  mau  humor  com  que  sem- 
pre Vespucio  refere-se  ao  commandante  em  chefe  da 
expedição,  ao  qual  apoda  de  inepto  e  vaidoso,  temos  fun- 
didas  razões  para  attribuir  o  di^smembramento  d;i  es- 
quadrilha a  uma  revolta  de  V^espucio. 

O  florentino  seguio  direito  para  a  Bahia  e  ahi  conser- 
vou-se  dois  mezes.fazendo-seem  seguida  de  vela  para  o 
sul,  indo  aportar  em  Cabo  Frio  onde  estabeleceu  uma 
feitoria,  a  primeira  que  houve  no  Brasil.  Fez  depois  uma 
excursão  de  40  línguas  pela  terra  dentro,  naturalmente  na 
direcção  do  Rio  de  S.  João  ou  de  qualquer  de  seus  af- 
fluentes  e  a  18  de  Junho  de  1504  chegava  a  Lisboa, 
levando  os  seus  dois  navios  carregados  de  páo-brasil. 

Vejamos  agora  o  que  succedeu  a  Gonçalo  Coelho, 
que  Vespucio  julgava  perdido,  pela  sua  muita  soberba  e 
loucira.  O  commandante  portuguez,  embora  desajudado 
das  luzes  do  cosmographo  florentino,  deliberou  levar  a 
cabo  a  empreza  de  que  o  haviam  encarregado  e  aproou 
decidido  pari  a  Terra  de  Vera  Cruz,  vindo  ancorar  na 
bahia  do  Rio  de  Janeiro  onde  se  demorou  muito  tempo, 
fundando  ahi,  segundo  parece  provavol  uma  feitoria  ou 
arraial  que  os  indígenas  denominaram  Carioca  (casa  do 
branco). 

Como  lembrança    da    longa    estadia  de    Gonçalo 


PRIMEIKA  EPOCHA  205 


Coelho  no  Rio  de  Janeiro,  este  logar  nos  mappas  coevos 
é  denominado  Coelho  detentio. 

Dahi  Gonçalo  Coelho  mandou  explorar  toda  a  costa 
para  o  sul  e  os  seus  pilotos  velejaram,  segundo  alguns 
autores,  até  o  Cabo  das  Virgens,  junto  ao  estreito  de 
Magalhães  de  onde  voltaram  não  só  repellidos  pelo  tem- 
poral, como  por  não  poderem  julgar  que  se  achavam 
quasi  á  entrada  da  desejada  passagem  paraMalacca. 

Não  se  pôde  precisara  data  em  que  Gonçalo  Coelho 
regressou  a  Portugal. 

Armada  exploradora  de  D.   Muno   llnnoel 

(1505— 15UÔ). — A  terceira  txpedição  mandada  ao  Brasil 
teve  yor  commandante  o  íidalgo  portuguez  D.  Nuno 
Manoel,  o  qual  parece  ter  tido  por  missão  mais  desco- 
brir a  passagem  para  Malacca,  do  que  explorar  a  costa 
brasileira . 

(c  Segundo  a  relação  confusa  e  obscura  que  d'ella 
nos  resta,  combinada  com  as  conjecturas  luminosas  de 
Varnhagen,  os  navegantes  passaram  das  seiscenta  a 
setecentas  léguas  já  conhecidas  e  foram  ter  á  bahia  de 
S.  Mathias.  D'ahi  o  mau  tempo  obrigou-os  a  retroceder. 
Viej^am  descobrindo  rios,  entre  os  quaes  o  da  Prata, 
onde  tiveram  as  primeiras  noticias  das  riquezas  e  da 
civilisação  do  Peru,  presa  que  em  breve  deveria  cahir 
nas  mãos  ávidas  dos  hespanhóes.  Ha  motivo  para  crer 
que  nesta  viagem  tomaram  parte  João  de  Lisboa  e  Vasco 
Gallego,  de  quem  um  manuscripto  de  Alexandre  Coelho 
noticia  uma  viagem  ao  Rio  da  Prata  em  1506.»   (1) 

Arribadas  de  capítâeis  poriu^^iiezes  á 
Terra  de  Vera  Cruz.  —  Diversas  naus  portuguezas, 
seguindo  viagem  para  a  índia,  arribaram  á  Terra  de 
Vera  Cruz,  quer  a  ella  trazidas  pelas  tempestades  e 
impulso  das  correntes  maritimas,  quer  pela  necessidade 
de  fazer  aguada  e  lenha. 

Os  navegantes  de  mais  nomeada,  que  arribaram  ao 
Brasil  em  taes  condições,  foram :  Affonso de  Albuquerque, 
D.  Francisco  de  Almeida,  Tristão  da  Cunha,  desco- 
bridor da  ilha  que  depois  tomou  o  seu  nome,  Vasco  da 
Gama  e  João  da  Nova  que,  tendo  partido  de  Lisboa  em 
Março  de  1501,  descobrio  aos  vinte  e  meio  gráos  de  lat- 


(1)  (Japistrano  de  Abkeu.  Descobrimento  do  Brasil  e  seu  desencol^ 
mento  nx>  século  XVI, 


206  HISTORIA  DO  BEASIL 

titiide  su]  uma  ilha  a  quo  deu  o  nome  de  Assenção,  o 
qual  foi  depois  mudado  para  o  de  Trindade. 

Todas  as  arribadas  a  que  acima  nos  referimos  rea- 
lisaram-se  entre  lõOO  e  1506,  desviando-se  dessa  data 
em  diante  da  terra  de  Vera  Cruz  as  naus  da  carreira  da 
índia,  em  virtude  de  uma  modificação  introduzida  nos 
roteiros  pelo  judeu  Caçuto  e  também  pelo  facto  de  haver 
Affonso  de  Albuquerque  c  mquistado  Aíalacca. 

IVavegauíes  bespat&hoc  s;  que  cursaraiu  a 
costa  brasileira.  — Em  15U8  a  corte  de  Castella 
mandou  aos  mares  americanos  João  Dias  de  Sollis  e 
Vicente  Yanez  Pinson. 

Os  dois  navegantes  surgiraii  em  frente  ao  cabo  de 
Santo  Agostinho  e  foram  costeando  para  o  sul  até  o 
grão  quarenta,  erguendo  cruzes  em  todos  os  pontos  que 
tocavam  e  tomando  posse  das  terras;  desharmonisando- 
se,  porém,  os  dois  chefes  deliberaram  voltar  para  a  Hes- 
panha,  onde  Solis  foi  enc&rcerado  por  ficar  provada  a 
sua  culpabilidade  nas  dissenções  e  Pinson  galardoado. 

Em  lõlõ,  no  entanto,  a  corte  de  Castella  mandou  de 
novo  á  America  João  Dias  de  Solis  e  este  cursou  a  costa 
brasileira,  entrando  em  muitos  portos,  desde  o  Cabo  de 
S.  Roque  até  o  Rio  da  Prata  que  os  naturaes  chamavam 
Paranagnassú  e  que  D.  Nuno  Manoel  já  havia  visitado 
em  1506.  Solis  ao  ver  a  attitude  pacifica  dos  naturaes, 
desembarcou  com  cincoenta  companheiros,  mis  inter- 
nando-se  cahiu  n'uma  emboscada,  sendo  morto  com 
quasi  toda  a  sua  gente.  Entre  os  portos  brasileiros  que 
Solis  penetrou,  destaca-se  o  formado  pela  terra  firme  e  a 
ilha  de  Santa  Catharina  ao  qual  alie  deu  o  nome  de 
i?a/u'a  dos  P.^rcíí(ios,  designação  que,  segundo  Simão  de 
Vasconcellos  «indica  claramente  que  encontrou  lá  gente 
naufragada,  e,  portanto  predecessores  delle  no  logar,  se 
éque  esta  denominação  náo  prov<do  de  se  terem  alli  per- 
dido alguns  homens  da  sua  própria  tripolação.»  (1) 

Depois  do  inditoso  Solis,  surge  o  nome  gloriosís- 
simo de  Fernão  de  Magalhães,  o  intrépido  navegante 
que  descobrio  a  passagem  do  Atlântico  para  o  Pacifico 
e  demonstrou  praticamente  a  esphericidade  do  planeta. 
Magalhães  era  portuguez,  mas,  não  tendo  o  rei  de  Por- 
tugal querido  augmentar  lhe  a  sua  moradia  de  fidalgo 
passara-se  ao  serviço  de  Castella.  Eis  como  Frei  Luiz  de 


(1)  Simão  de  Vascoxcellos.— Chionica  da  Companhia  de  Jesus. 


PRIMEIRA  EPOOHA  207 


Sousa,  na  sua  inimitável  prosa,  narra  o  succedido: 
«Sendo  Fernão  de  Magalhães  homem  de  bom  sangue  e 
com  íoro  honrado  na  casa  real,  pretendeu  por  sei-viços 
que  tinha  feito  na  índia  e  em  Azamor,  em  Africa,  que 
el-rei  lhe  mandasse  acrescentar  sua  moradia.  E'  mora- 
dia uma  leve  quantia  de  dinheiro  e  cevada,  signalada  de 
tempos  antigos  a  todas  as  familias  nobres  do  reino  que 
acompanham  a  corte,  com  tal  regra  que  anda  de  pães  a 
filhos,  sem  crescer  nem  subir  aquella  que  uma  vez  se 
assignalou,  senão  mui  raramente.  E  estima-se  muito 
pela  dignidade  de  que  se  acompanha  mais  por  ser  degrau 
para  cousas  maiores,  que  pela  substancia  do  rendimento. 
Pedio  Magalhães  este  acrescentamento  e  contentava-se 
com  meio  cruzado  por  mez  mais  do  que  já  possuia.  Que 
mysterios  de  estreitezas  fazem  os  reis  muitas  vezes  em 
cousas  que  pouco  importam,  sendo  prodígios  de  prodi- 
galidade em  outras?  Não  houve  cousa  que  dobrasse  a 
el-rei,  ou  por  não  devassar  aquelle  assento  da  antigui- 
dade, e  abrir  porta,  porque  muitos  quizessem  entrar;  ou 
porque  também,  segundo  se^affirma,  tinha  el-rei  culpas 
delle  do  tempo  que  assistira  eia  Azamor.  Deu-se  por  ag- 
grp.vado  o  portuguez,  e,  como  da  navegação  tinha  scien- 
cia  e  experiência,  íoi-se  a  Castella,  pedio  navios  a  el-rei 
D.  Carlos,  oíTerecendo-lhe  duas  cousas,  ambas  contra 
Portugal:  primeira  descobrir  viagem  para  as  ilhas  de 
Malacca  mais  curta  que  a  nossa;  segunda  mostrar  em 
boa  razão  de  mathematica  que  cabiam  aquellas  ilhas  na 
demarcação  dos  reinos  de  Castella.»  Carlos  V  aceitou  o 
ofíerecimento  de  Magalhães,  e  este,  em  1519  commetteu 
animosamente  a  emprezade  descobrir  a  passagem  para 
Malacca. Como  jávimos  entrou  no  Riode  Janeiro,  ao  qual, 
pretendeu  impor  o  nome  de  Bahia  de  Santa  Lu  :ia,  julgan- 
do ser  o  primeiro  que  nesse  porto  lançava  ferro.  Depois 
velejou  para  o  sul,  descobrio  o  estreito  aio  qual  está  ligado 
o  seu  nome,  atravessou-o  o  encontrando  se  nas  aguas  do 
Pacifico  navegou  até  ás  Philippinas,  indo  morrer  ás 
mãos  dos  naturaes  da  Ilha  Matan.  Coube  a  Sebastião  dei 
Cano,  seu  immediato  no  commando,  completar  a  pri- 
meira viagem  em  redor  do  globo,  a  qual  alvorotou  jubi- 
losamente Castella  e  lançou  na  maior  consternação  o 
visinho  reino  de  Portugal,  cujo  rei,  entre  despeitado  e 
raivoso,  protestou  immediatamente. 

Os  aveutui*cii*os. — Tem  grande  importância  para 
a  historia  de  nossa  pátria  as  pequenas  flotilhas  queclaj-^. 
destinamente,  ou  com  licença  regia  começaram  a  vir  ^o 


208  HISTORIA  DO  BKASIL 

Brasil  afim  de  traficar  com  o  precioso  lenlio  da  tintu- 
raria. 

Não  só  foi  por  ellas  que  se  poude  avaliar  com  exa- 
ctidão a  opulência  da  vasta  região  recentemente  desco- 
beita,  como  até  deve-se  aos  aventureiros  o  nome  que 
ainda  hoje  ella  conserva. 

Dentre  as  expedições  de  aventureiros  que  se  diri- 
giram ao  Brasil,  cita-se  como  a  mais  antiga  a  da  Espoir 
d^Honfleiír,  navio  de  cento  e  cincoenta  toneladas,  com- 
mandado  pelo  francez  Binot  Palmier  de  Gonneville  que, 
partindo  para  a  índia  em  1503  arribou  ás  costas  de  no^so 
paiz  e  percorreu-as  em  grande  extensão,  traticando  com 
os  selvagens. 

Registra  mais  a  historia  a  vinda  ao  Brasil  da  náu 
Bretoa  em  1511.  Cunimindava-a  o  piloto  portuguez  João 
Lopes  Carvalho  e  fora  armada  por  Bartholomeu  Mar- 
chioni,  Benedicto  Morelli,  Francisco  Martins  e  Fernão 
de  Noronha  que  haviam  obtido  licença  para  commerciar 
em  pâu-brasil.  A  náu  Dreto  i  fez  o  seu  carregamento 
em  Cabo-Frio,  onde  existia  a  feitoria  estabelecida  por 
Américo  Yespucio,  e  voltou  para  Portugal  com  cinco 
mil  e  nove  toros  da  preciosa  madeira, trinta  e  seis  Índios 
escravisados,  vinte  etres  toiros,  dezeseis  gatos,  dezeseis 
saguis,  quinze  papagaios  e  três  macacos. 

Além  da  Espoir  d' Honfleur  e  da  nau  Breíôa,  di- 
versos aventureiros  vieram  ao  Brasil  durante  os  pri- 
meiros vinte  annos  depois  da  descoberta,  mas  a  historia 
não  conservou  os  nomes  de  todos,  citando-se  apenas 
os  dos  dieppezes  João  Ango,  pae  e  filho  e  João  Parmen- 
tier. 

Pela  enumeração  que  fizemos  dos  artigos  constantes 
da  nau  Bretòa  podemos  formar  uma  idéa  do  nosso  pri- 
mitivo commercío.  Além  dos  artigos  que  estão  con- 
signados no  manifesto  d'aquella  embarcação  sabe-se 
ainda  que  alguns  navios  transportavam  algodão,  pimenta 
e  pelles  de  onças  ou  de  outros  grandes  mammiferos. 

O  páu-brasil  era  vendido  na  Europa  a  oito  ducados 
o  quintal,  o  algodão  a  dez,  a  pimenta  a  ires,  os  papagaios 
e  macacos  a  seis  ducados  cada  um  e  as  pelles  a  três 
ducados.  Não  sabemos  o  preço  por  que  eram  vendidos 
os  Índios  escravisados,  o  que  pod^^mos  affirmar  porém 
éque  esse  commercio  infame  desenvolveu-se  muito,  p(^is 
já  em  1Õ26  o  bacharel  de  Canaaéacnnti-ncíava  com  Diego 
Garcia  o  transporte  de  800  escravos. 


PRIMEIRA   EPOCHA  209 


Os  productos  eram  obtidos  dos  Índios  pelo  escambo 
de  carapuças,  guizos,  espellios,  canivetes,  machados  e 
outros  objectos  de  pouco  valor,  sendo  naturalmente  os 
degradados  e  os  desertores  os  intermediários  d'esse  com- 
mercio  entre  as  cabildas  e  as  tripolações  dos  navios. 

Bra!§iloiros  e  brasis.  —  Sendo  o  páu-brasil  o 
principal  artigo  do  commorcio  que  trazia  ás  nossas 
plagas  as  numerosas  expedições  de  aventureiros  e 
constituindo  isso  atinai  uma  profissão,  embora  para 
alguns  clandestina,  os  que  se  occupavam  cm  tal  mister 
eram  chamados  brasileiros,  pela  mesma  razão  quo  se  dá 
o  nome  de  baleeiros  aos  que  se  occupam  na  pesca  da 
baleia  e  o  de  negreiros,  aos  que  outrora  traficavam  em 
negros  da  costa  da  Africa.  Deu  isto  logar  a  adoptar-se  o 
adjectivo  gentílico  brasileiro,  em  logar  de  nos  chamar- 
mos brasilienses  ou  brasilenses,  como  seria  mais  gram- 
matical. 

O  paiz  onde  os  aventureiros  encontravam  a  appete- 
cida  mercadoria  era  simplesmente  a  Terra  do  Brasil  e 
esta  appellidnção  vulgar  foi  pouco  a  pouco  substituindo 
a  denominarão  official  de  Terra  de  Vera  Cruz,  que  Ca- 
bral lhe  dera  e  bem  assim  a  de  Santa  Cruz  que  o  notável 
chronista  João  de  Barros  com  grande  pezar  vio  cahir 
em  desuso. 

Na  persuasão  de  que  o  paiz  descoberto  era  um  pro- 
longamento da  índia,  os  primeiros  navegantes  applíca- 
ram  aos  naturaes  o  nome  de  indios,  designação  errónea 
que  se  perpetuou,  não  obstante  o  esforço  dos  jesuitas 
que  procuraram  introduzir  o  neologismo  brasis,  na  ver- 
dade muito  mais  appropriado,  porém  ainda  assim  mal 
escolhido,  por  não  se  prestara  ser  expresso  no  singular. 

Pelo  que  ficou  escripto  no  capitulo  que  aqui  termina- 
mos, vê-se  que,  embora  por  viagens  muito  cursorias,  já 
seis  annos  depois  de  descoberto  o  Brasil,  toda  a  cosia 
tinha  sido  percorrida;  no  entanto,  diversas  circumstan- 
cias  geographicas  e  metereclogicas  determinaram  o 
phenomeno  de  não  espraiar-se  a  colonisacão  com  igual- 
dade em  toda  a  extensão  do  littoral^  conío  veremos  no 
seguimento  d'esta  obra. 

Ventos  constantes  e  ponleiros,  abundância  de  ban- 
cos de  areia  e  falta  de  bons  portos  no  liltoral  do  norte 
do  Brasil  e  bem  assim  o  terrível  pampeiro  que  vergasta 
os  mares  do  sul  e  lambem  a  deíliciencia  de  bons  surgi- 

u 


210  HISTORIA  DO  BRASIL 

doufos  n'e3say  latitudes  tornaram  as  extremas  do  paiz 
pouco  accessiveis  ao  povoamento.  Assim  veremos  a 
colonisação  centralisar-se  na  parte  do  littoral  compres 
hendi  la  entre  Ita;naracá  e  Cauanéa  e  só  quando  as  via- 
terrestres  tanto  para  o  norte  como  para  o  sul,  vão  tor- 
nando-so  conhecidas  é  que  v^el-a-hemos  espraiar-se  por 
toda  a  extensão  do  littoral,  facto  esse  pelo  qual  foi  pre- 
ciso esperar  mais  de  um  século,  tanto  influe  o  meio 
physico  no  destino  das  nações. 


I 


) 


CAPITULO  V 

PRIMITIVO  POVOAMENTO  DO  BRASIL 


Por  pi-imitivo  povoamento  do  Brasil  devemos  com- 
prchendcr  os  diversos  estabelecimentos  de  europeus  na 
grande  terra  descoberta  por  Pinzon  desde  lõOO  ate  a 
divisão  do  paiz  em  capitanias  hereditárias. 

As  foitorin^.  — Na  primeira  phase  do  colonato 
do  Brasil  apparecem  as  feitorias,  quer  estabelecidas  por 
aventureiros,  quer  fundadíis  por  disposição  governa- 
mental. 

As  feitorias  não  eram  ainda  verdadeiros  núcleos 
coloniaes,  pois  com  ellas.  nen)  governo,  nem  particulares 
propunham-se  ainda  a  povoar  a  terra.  xVpenas  represen- 
tavam simples  destacamentos  encarregados  de  pre- 
parar os  carregamentos  de  páu-brasil  que  as  embarca- 
ções deviam  transportar  para  a  Europa  e  bem  assim 
conseguir  dos  selvicolas  pelo  escambo  de  bugigangas  e 
objectos  de  pouco  preço,  os  demais  productos  do  paiz  que 
podiam  constituir  artigos  de  commercio. 

Se  os  indivíduos  que  formavam  taes  feitorias  appli- 
cavam-se  á  agricultura  era  com  a  maior  indiíTerença,  pois 
as  mesmas  em  geral  tinham  vida  muito  ephemera  e  não 
oífereciam  as  garantias  de  estabilidade  que  a  agricul- 
tura requer  para  poder  desenvolver- se. 

Indefezas  como  se  achavam,  viam-se  frequente- 
mente attacadas  pelos  selvagens,  saqueadas  por  corsá- 
rios, quando  pòrluguezas,  ou  destruídas  pelas  tripula- 
ções lusitanas,  quando  estrangeiras. 

De  poucas  feitorias  guarda  a  historia  memoria. 
Sabe-se  apenas  que  existio  uma  em  Cabo  Frio,  fundada 
por  Américo  Vespucio  em  1504,  outra  no  Rio  de  Ja- 
neiro, fundada  por  Gonçalo  Coelho  no  mesmo  anno,  que 
Diego  Garcia,  o  individuo  que  contracta  com  o  bacharel 
de  Cananéa  a  compra  de  800  escravos  Índios,  fundara 
uma  feitoria  hespanhola  em  Santa  Catharina  e  que  Chris- 
tovão  Jacques  estabelecera  as  feitorias  dos  Marcos  e  de 
Pernambuco. 


212  HISTORIA   DO  EKASIL 

Os  clc^ritcladusí  desertores  e  náufragos.  — 

Os  primeiros  europeus  que  passaram  a  habitar  o  Brasil 
foram  ou  degradados  ou  desertores  e  beai  assim  alguns 
náufragos;  alguns  tomavam  os  usos  e  costumes  dos 
indígenas  e  com  elles  se  identificavam  tanto  que  chega- 
vam até  a  perfurar  os  lábios  para  introduzir  n'elles  ba- 
toques conforme  a  usança  barbara  ou  praticarem  a  abo- 
minável antropophagia  como  se  encontra  imi  exemplo 
nas  velhas  chronicas;  outi-os  conservavam  os  seus  cos- 
tumes, mas  viviam  no  mesmo  pé  de  igualdade  que  os 
índios  e  outros  finalmente,  se  impunham  ás  cabildas 
como  régulos  absolutos. 

Todas  as  esquadras  que  zarpavam  de  Lisboa  com 
destino  ao  Novo  Mundo  traziam  a  bordo  degradados  que 
deviam  abandonar  na  remota  colónia  e  de  quasi  todas 
igualmente  desertavam  marinheiros  que  preferiam  a 
liberdade  entre  os  bárbaros  á  disciplina  e  aos  rudes  tra- 
balhos das  naus. 

Caramurú,  João  Ramalho,  o  bacharel  de  Cananéa, 
e  tantos  outros  que  foram  encontrados  vivendo  pacifica- 
mente entre  as  cabildas,  e  quo  tão  importantes  serviços 
prestaram  aos  europeus,  quer  como  intermediários  nas 
relações  commerciaes  entre  elles  e  os  Índios,  quer  favo- 
recendo o  estabelecimento  dos  mesmos  na  grande  terra 
descoberta,  eram  náufragos,  desertores  ou  infelizes  que 
pelo  crime,  pelo  vicio  ou  pelo  desrespeito  aos  precon- 
ceitos dominantes,  tinham-se  incompatibilisado  com  a 
sociedade  de  seu  paiz. 

Até  á  cpocha  em  que  nos  achamos,  as  lovas  eram 
ainda  insignificantes  e  tendo-se  em  vista  a  barbara  se- 
veridade das  Ordenaçõps  Manoeltnas,  somos  propensos 
a  acreditar  que  os  primeiros  condemnados  a  degredo  no 
Brasil  não  podiam  ser  culpados  do  grand.-s  crimes  para 
os  quSies  o  morra  per  ello  (\a,  sombria  legislação  reser- 
vava a  sinistra  forca. 

Quando  muito  deviam  ser  delinquentes  por  irreli- 
giosidades  ou  contravenções  sem  importância  hoje.  O 
famoso  João  Ramalho,  que  não  passava  de  um  degra- 
dado, era  segundo  Balthazar  Fernandes  um  irreligioso, 
pois  nada  queria  das  ajudas  nem  ministério  christão  ;  o 
titulo  de  bacharel  do  degradado  de  Cananéa,  nos  ensina 
que  elle  era  um  homem  de  alguma  instrucção. 

Foram  pois  os  degradados,  desertores  e  náufragos 
a  primeira  semente  do  povoamento  europêo  na  terra  de 


rRI.^IEIRA    EPOCIIA  21.'> 


Vera  Cruze  a  historia  desses  infelizes  nos  instruo  so- 
bre uma  parliculnridacle  da  maior  importância  relativa- 
mente ao  cai'acter  dagrey  cabloca;  vem  a  ser  que,  apezar 
das  cores  negras  com  que  os  antigos  escriptores  pinta- 
vam os  instinctos  ferozes  dos  selvagens  brasileiros,  pos- 
suíam elles  uma  virtude  sublime— a  da  hospitalidade 
que  attenuam-lhes  a  ferocidade  preservando  da  morte 
muitos  europeus. 

As  capitmílaM  |>ri»iitBVit««. — Alem  das  feitorias, 
o  governo  portuguez  estabeleceu  umis  tantas  capitanias 
ou  mais  propriamente,  núcleos  coloniaes  administrados 
por  indivíduos  aos  quaes  se  outorgava  o  titulo  de  ca- 
pitão. 

Essas  capitanias,  que  não  devem  ser  confundidas 
com  as  capitanias  hcLeditarias,  nada  contribuíram  para  o 
progresso  da  região  e  por  conseguinte  não  deixaram 
sulco  na  historia. 

Sabe-se  apenas  que  um  tal  Pêro  Ca  pico  foi  admi- 
nistrador de  uma  delias. 

As  osquatlrns  «lo  j^iinrda  costas. — Francisco  I, 
rei  de  França,  que  se  afíligia  com  a  partilh  i  que  Portu- 
gal e  Hespanha  faziam  entre  si  das  terms  americanas, 
nas  quaes  não  lhe  cabia  lote  algum,  principiou  a  favo- 
recer os  emprehendimentos  de  seus  súbditos  no  Brasil, 
chegando  até  a  distribuir  carta  de  corso  contra  os  na- 
vios portuguezes. 

Assim,  eram  frequentes  as  expedições  francezas  ao 
grande  território  descoberto  e  repetidas  as  tentativas  de 
estabelecimentos,  duradouros,  principalmente  por  parte 
dos  de  HonfleureDieppe. 

Ora,  tendo  D.  João  III,  rei  de  Portugal,  sabido  por 
intermédio  de  João  da  Silveira,  seu  embaixador  em 
França,  que  neste  paiz  se  preparava  uma  expedição  de 
10  navios,  destinada  a  traficar  em  larga  escala  com  os 
productos  do  paiz  e  aprezar  as  embarcações  portuguezas 
que  pudesse,  organizou  uma  esquadrilha  composta  de 
uma  nau  e  cinco  caravellas,  cujo  commando  deu  a 
Christovão  Jacques,  já  conhedor  do  littoral  brasileiro. 

Tinha  por  missão  essa  esquadrilha  percorrer  a  costa 
do  Brasil,  guardando-as  das  investidas  estrangeiras. 

Partiu  a  esquadrilha  de  Lisboa  em  1526  o  no  fim 
desse  mesmo  anno  deu  fundo  ne  canal  que  í^epara  a  ilha 
deltaniaraeà  do  (íontimcnte  (Peruarulmco),  Jando  princi- 


214  HISTOEIA   DO   BEASIL 

pio  á  chamada  feitoria  dos  Marcos,  a  que  já  nos  refe- 
rimos. 

Uma  outra  feitoria,  ou  esta  mesma  que  foi  mudada, 
fundou-se  no  porto  de  Pernambuco.  (1) 

Em  seguida  Christovâo  Jacques  velejou  para  o  sul  e 
sempre  costeando  chegou  ao  Rio  da  Prata  de  onde  re- 
gressou para  o  norte,  mandando  a  sua  nau  carregada  de 
pau  brasil  para  Portugal. 

Dias  depois,  percorrendo  a  costa,  encontrou  no  re- 
côncavo da  Bahia  de  Todos  os  Santos,  junto  a  ilha  que 
pela  acção  ahi  desenvolvida  tomou  o  nome  de  ilha  dos 
Francezes,  três  embarcações  de  mercadores  bretões, 
duas  delias  de  140  toneladas  cada  uma.  Apoz  um  dia 
inteiro  de  combate  conseguiu  mettel-as  a  pique  e  fazendo 
trezentos  prisioneiros  levou-os  para  Pernambuco. 

Dando  então  por  finda  a  sua  missão  recolhcu-se 
Christovâo  Jacques  a  Portugal,  levando  comsigo  os  tre- 
zenlos  prisioneiros. 

A  feitoria  de  Pernambuco,  que  por  essa  forma 
achou-sesem  protecção,  foi  algum  tempo  depois  atacada 
por  um  galeão  francez  que  a  saqueou.  Dos  habitantes 
europeus  só  conseguio  escapar  o  leitor  Diogo  Dias  o  qual 
poude  embarcar  n'uma  caravelia  que  se  destinava  a  So- 
fala. 

Afim  de  substituir  Christovâo  Jacques  na  dcfeza  do 
littoral,  fez  D.  João  III  partir  em  1528  António  Ribeiro, 
cujos  feitos  no  Brasil  a  historia  não  menciona,  facto  esse 
que  leva  a  suppor  que  pouco  tempo  durou  a  sua  com- 
missão . 

Idca  da  fiiudaçao  de  uma  graude  colouia. 

— Sendo  muito  dispendioí^as  as  esquadras  destinadas  a 
guardar  a  costa  e  não  defendendo  ellas  perfeitamente 
as  feitorias  estabelecidas  no  littoral  do  Brasil,  o  rei  de 
Portugal  e  seus  cons^-lheiros  pensaram  em  fundar  na 
grande  terra  descoberta  um  poderoso  núcleo  colonial, 
ao  qual  pudessem  recolher-se  em  caso  de  perigo  os  co- 
lonisadores  esparsos  pelo  paiz  e  nelles  se  abastecessem 
não  só  de  mantimentos,  como  de  gente,  caso  fosse  pre- 
ciso. 


(1)  Os  selvagens  chamivam-lhe  Param mbu^^o,  palavra  que, 
segundo  alguns  autores,  quer  dizer /aro  de  mar  e  na  opinião  de 
Varnhagem— mar  larffo. 


PRIMEIRA  EPOCHA  215 


Principalmente  depois  que  começaram  a  circular 
noticias  de  grandes  riquezas  existentes  no  Rio  da  Prata, 
esta  idóa  foi  se  aííirmando  no  espirito  dos  homens  de  go- 
verno de  Portugal,  até  que  atinai  foi  resolvida  a  expedição 
que  tinha  por  fim  a  fundação  da  referida  colónia,  outor- 
gando-se  ao  encarregado  da  mesma  poderes  extraordi- 
nários, tanto  para  o  mar  como  para  reger  a  colónia  que 
fundasse  e  bem  assim  autoridade  com  alçado  e  com  mero 
e  mixto  império  no  eivei  e  no  crime,  ató  morte  natural 
inclusive,  excepto  aos  fidalgos,  que,  se  delinquissem, 
deveriam  ser  enviados  para  Portugal. 

Deu-se  alem  disso  autorização  ao  chefo  da  expe- 
dição para  tomar  posse  do  todo  o  torrit  jrio  situado  até 
a  linha  meridiana  demarcadora,  e  igualmente  fazer  la- 
vrar autos  e  poros  marcos  necessários.  Podia  dar  terras 
de  sesmarias  a  quem  as  pedisse,  porém  em  uma  só  vida 
o  criar  tabeliães,  officiaes  de  justiça  e  outros  cargos. 

Kxpeiliçao  de  llai*liiu  Affoiísia   de   §loiiza. — 

Martim  Affonso  de  Souza,  fidalgo  da  casa  real,  senhor 
do  Prado  e  de  Alcântara,  alcaide-mór  de  Bragançi  e  do 
Rio  Maior,  foi  o  escolhido  para  inaugurar  a  primeira  co- 
lónia regular  no  Brasil. 

Martim  AÍTonso  ainda  não  se  havia  illustrado  por 
notáveis  feitos  de  guerra  ou  do  governo,  como  revelava 
porém  altas  qualidades  administrativas  e  era  além  disso 
parente  próximo  e  protegido  do  Conde  da  Castanheira 
que  gosava  de  muito  valimento  na  corte,  coube-lhe  tão 
subida  honra. 

A  expedição,  composta  de  duas  naus,  um  ga- 
leão e  duas  caravellas,  partio  de  Lisboa  aos  3  de  De- 
zembro de  1530.  Ao  defrontar  com  a  costa  de  Pernam- 
buco a  armada  encontrou  succossivamonte  Ires  naus 
francezas  carregadas  de  páu-brasil  que  renderam  se 
sem  muita  resistencii,  fugindo  a  tripolaçãopara  o  matto. 
Marlim  Altonso  mandou  para  Portugal  uma  das  naus 
apresadas,  sob  o  cominando  de  João  de  Souza,  queimou 
outra  por  imprestável  e  conservou  apenas  uma. 

Em  seguida  despachou  Diogo  Leite  e  com  duas  cara- 
vellas para  explorar  a  costa  do  norte  o  nella  collocar 
padrõjs  pelo  monos  até  a  foz  do  Gurupy,  actual  Jivisa 
dos  Estados  do  Maranhão  e  Pará,  vindo  d'ahi  o  ter  con- 
servado eslo  ponto  por  algum  tompo  c  com  o  nome  do 
Abra  de  Dior/o  Leite. 

Tomadas  que  foram  estas  providencias  a  esquadra 


216  HISTORIA    DO  BRASIL 

Jevantou  ferro  e  velejou  para  o  sul,  indo  dar  fundo  na 
Bahia  de  Todos  os  Santos,  onde  Martim  Aftonso  encon- 
troa vivendo  pacificamente  entre  os  selvagens  o  por- 
tuguez  Diogo  Alvares,  mais  conhecido  na  historia  pelo 
nome  de  Caramurú.  Pêro  Lopes,  irmão  do  Martim 
Aflbnso,  e  que  também  fazia  parle  da  expedição  e  foi  o 
elegante  chronista  da  viagem,  ficou  extasiado  perante  a 
formosura  das  indígenas  bahianas  que  não  achou  infe- 
riores ás  mais  bellas  de  Lisboa. Na  Bahia  deixou  Martim 
AíTonsodois  degradados  e  apoz  quatro  dias  de  descanso, 
proseguiu  a  sua  derrota  para  o  sul. 

Em  viagem  com  esse  rumo  encontrou  Martim  Af- 
fonso  a  caravella  onde  se  tinha  embarcado  Diogo  Dias, 
o  feitor  do  estabelecimento  que  os  fi  ancezes  haviam  sa- 
queado em  Pernambuco,  e,  incorporando-a  ásua  esqua- 
dra foi  dar  fundo  no  Rio  de  Janeiro  a  30  de  Abril 
seguinte.  Ahi  demorou-se  três  mezes ;  fundou  um  ar- 
raial que  Varnhagen  presume  ter  sido  na  foz  do 
Rio  Comprido  e  mandou  quatro  homens  explorar  as 
mattas  do  interior.  Esses  homens,  segundo  diz  Pêro 
Lopes  percorreram  115  léguas  e  voltaram  no  fim  de  dois 
mezes  acompanhados  de  um  poderoso  chefe  indio  que 
communicou  os  portuguezes  existir  nas  margens  do  rio 
Paraguay  muito  ouro  e  prata. 

Do  Rio  de  Janeiro  Martim  Affonso  velejou  até  Cana- 
néa,  onde  chegou  a  1°  de  Agosto,  indo  ancorar  do  lado  de 
dentro  da  Ilha  do  Abrigo.  Nas  praias  encontraram  os  da 
esquadra  diversos  castelhanos,  um  tal  Francisco  Chaves 
e  um  bacharel  portuguez  que  ahi  tinha  sido  degradado 
em  1501,  segundo  se  pensa.  Tendo  Francisco  Chaves 
promettido  a  Martim  Àííonso  tmzer  do  interior  do  paiz, 
dentro  de  dez  mezes,  quarenta  escravos  carregados 
de  ouro  e  prata,  o  commandante  portuguez  conce- 
deu-lhe  uma  bandeira  de  oittnta  homens,  dos  quaes 
quarenta  armados  de  arcabuzes  e  os  outros  quarenta  ar- 
mados de  bestas.  Estes  homens  nunca  ihais  tornaram 
a  apparecer  suppondo-so  terem  sido  trucidados  pelos 
índios  Carijós.  Em  Cananca  a  esquadra  demorou-se 
quarenta  e  quatro  dias. 

tj^  Levantando  Jerro  em  seguida  continuou  a  demandai* 
o  sul,  poiso  plano  de  Martim  Affonso  era  estabelecer  a 
sede  colonial  do  Brasil  na  foz  do  Rio  da  Prata,  o  pam- 
peiro  dos  mares  meridionaes,  porém,  combatteu  por  tal 
íorma  a  sua  frota  que  a  Gapitanea^o  um  ^er^atitin  derarfl 


PRIMEIRA   EPOCHA  217 


á  costa  na  foz  do  arroyo  Chuy,  ribeiro  esse  que  hoje  nos 
separa  da  Republica  Oriental.  No  sinistro  pereceram 
sete  pessoas. 

Reunido  o  conselho  de  officiaes,  estes,  considerando 
quão  desfalcada  se  acliava  a  esquadra  de  viveres  e  tro- 
pas, foram  de  parecer  que  não  se  devia  tentar  por  cm- 
quanío  a  colonisação  do  Rio  da  Prata  ou  Rio  de  Solis 
como  também  se  cliamava,  concordando  com  elles,  Mar- 
lim  julgou  no  entanto  de  seu  dever  mandar  fazer  n'essas 
paragens  um  reconhecimento  e  para  tal  fim  fez  partir 
seu  irmão  Pêro  Lopes,  acompanhado  de  Pêro  de  Góes, 
depois  donatário  da  Capitania  da  Parahyba,  em  um  ber- 
gantim tripolado  por  trinta  homens. 

Os  dois  ousados  nautas  afírontaram  em  tão  frágil 
embarcação  a  fúria  dos  mares  do  sul  e  penetrando  no 
estatuário  platino  assignalaram  a  sua  entrada  com  dois 
padrões  que  lá  deixaram  e  depois  voltaram  a  reunir-se 
á  esquadra  que  os  esperava  na  ilha  das  Palmas. 

«  Muito  provável,  ó,  diz  Varnhagen,  que  no  entre- 
meio de  tantos  dias,  em  que  Pêro  Lopes  demarcou  o  Rio 
da  Prata,  não  estivessem  ociosos  os  pilotos  que  haviam 
ficado  na  cosia  com  Martim  Afíonso. 

«Em  terra  tiveram  occasião  de  fazer  frequentes  ob- 
servações astronómicas  sobre  a  latitude  e  longitude,  e 
isso  lhes  daria  a  convicção  e  ao  capitão  mór,  de  que 
aquella  costa  e  com  mais  razão  o  Rio  da  Prata,  já  se 
achava  íóra,  isto  é,  mais  a  loeste  da  raia  até  onde  se  es- 
tendia, pelo  tratado  de  Tordesilhas,  o  dominio  portuguez 
n'aquellas  paragens.  Ao  conhecimento  deste  facto  em 
Portugal  devemos  attribuir  a  não  proseguirein  em  Ma- 
drid as  reclamações  acerca  desse  rio  ;  o  desistir  aquelle 
reino  de  mandar  mais  frotas  ás  suas  aguas  ;  e  até  o  não 
doar,  quando  doou  outras  terras,  as  que  ficavam  além 
das  de  SanfAnna  cu  da  Laguna,  onde  terminava  a  cou- 
rela  que  de  direito  por  ahi  lhe  tocava.  Talvez  também 
pelo  conhecimento  d'esse  facto;  mais  que  por  serem  ahi 
;  s  terras  (no  littoral)  sáfias  e  arenosas,  é  que  Martim 
Afíonso  não  se  deixou  ílcar  nas  plagas  da  actual  pro- 
vinda do  Rio  Grande,  de  onde  o  lançara  de  si  o  próprio 
mar,  e  decidio  retroceder  mais  para  o  norte,  a  buscar 
outro  local  onde  fixar-se  de  preferencia.  » 

A  primeira   colónia  regular  do   Ura^til. — 

(1532).— O  sitio  escolhi  io  per  Martim  Affonso  de  Souza 
para  estabelecer  a  primeira  éolonift  regular  no  Hraftil,  n 


218  HISTORIA  DO  BRASIL 

qual  devia  organisar-se  como  celliila  mãe  do  povoa- 
mento de  toda  a  região,  foi  o  porto  de  S.  Vicente  onde 
chegou  a  20  de  Janeiro  de  153;^,  sendo  tal  sitio  preferido, 
não  só  porque  o  ancoradouro  era  excel lento  como  por 
serem  muito  férteis  as   terras  da  visinhança. 

O  arraial  foi  assentado  em  uma  quasi  insensivel 
eminência  da  ilha  que  os  naturaes  chamivam  Orpion 
ou  Morpion,  fronteira  a  uma  outra  que  os  mesmosindios 
denominavam  Guaimbe.  A  primeira  ficou  se  chamando 
de  8,    Vicente  e  a  segunda  de  Santo  Amaro. 

O  local  em  que  Martim  AfTonso  lançou  os  funda- 
mentos da  sua  colónia  era  de  aspecto  aprazível,  muito 
abundante  em  pedras  e  madeiras  de  construcção  e  bem 
abastecido  de  agua  potável.  Junto  encontrava-se  o  porto 
que  depois  se  chamou  de  Santos  o  qual  oíTerecia  um 
surgidouro  mais  amplo  e  seguro,  como  porém  o  sitio  era 
em  demasia  quente,  baixo  e  húmido,  justifica-se  a  pre- 
ferencia dada  pelo  fidalgo  portuguez  ao  primeiro. 

Martim  AfTonso  fez  levantar  em  S.  Vicente  um  pe- 
lourinho, mandouconstruir  diversas  casas  e  uma  igreja, 
e  distribuio  sesmarias  a  varias  pessoas  da  sua  comitiva. 

Introduzio  a  canna  de  assucar,  cujas  mudas  man- 
dou vir  da  ilha  da  Madeira  e  fundou  sob  a  invocação  de 
S.  Jorge  o  primeiro  engenho  que  houve  no  Brasil.  (1) 

Preoccupava-se  Martim  Affonso  de  Souza  em  fo- 
mentar o  desenvolvimento  da  sua  futurosa  colónia, 
quando  veio  procural-o  a  S.  Vicente  um  tal  João  Rama- 
lho, portuguez,  que  ha  muitos  annos  vivia  entre  os  sel- 
vagens e  gentilicamente  tinha-se  casado  com  uma  filha 
do  cacique  Tebiryçá. 

Communicou  João  Ramalho  a  Martim  Affonso  que, 
além  da  alterosa  serra  que  de  S.  Vicente  se  avistava, 
existiam  bellas  e  vastas  campinas,  muito  ferieis  e  de 
clima  saluberrimo  em  as  quaes  com  facilidade  prospe- 
raria uma  colónia  portugueza,  pois  os  Índios  Goyanazes 
prestar-lhe-hia  concurso. 

Martim  AÍTonso  aceitou  o  convite  e  transpondo  a 
serra  fundou  nos  campos  de  Piratininga  a  villa  de  Santo 
André  da  Borda  do  Matto. 

Ordenou  ainda  Martim  Affonso  uma  entrada  pelo 


1)  Pedro  Tacques  de  Almeida.  —  Historia  r^a  capitania  de 
S.   Vicente. 


1 


PRIMEIRA   EPOCHA  219 


sertão  afim  de  tentar  O  descobrimento  de  minas,  porém 
a  expedição  nada  conseguio.  Algum  tempo  depois  des- 
pachou para  a  Europa  seu  irmão  Pêro  Lopes  a  levar  ao 
rei  a  nova  do  que  já  havia  feito,  e  este,  em  viagem,  com- 
bateu e  aprisionou  alguns  traficantes  estrangeiros. 

Dlog^o  Alvares,  o  Caraniurii. — Antes  de  dei- 
xarmos este  capitulo,  relativo  ao  primitivo  povoamento 
do  Brasil,  precisamosnos  occupar  mais  detidamente  dos 
diversos  europeus  que  Martim  AÍTonso  de  Souza  encon- 
trou vivendo  entro  os  Índios  cm  diíTerentes  pontos  d;i 
costa  br..sileira  c  que  tão  prestantes  foram  i)ara  o  esta- 
belecimento dos  portuguozes  na  Terra  de  Vera  Cruz. 

Dio^o  Alvares,  o  Caramurú,  encontrado  pela  es- 
quadra de  Martim  Affonso  na  Bahia  de  Todos  os  Santos 
era,  segundo  dizem,  a  victima  de  um  naufrágio  que  teve 
logar  em  1510  nos  baixos  de  Maragogipe.  Todos  os  seus 
companheiros  que  escaparam  do  naufrágio  foram  devo- 
rados pelos  Índios  Tupinambás  ;  Diogo  Alvares,  porém, 
que  havia  salvado  um  mosquete  e  polvord,  procurou 
valer-se  da  arma  afim  de  í^vitar  a  morte  que  o  esperava. 
Assim,  quando  os  selvagens  já  o  cercavam  para  truci- 
dal-o,  Diogo  Alvares  levou  o  mosquete  á  car.i  e  com  um 
tiro  matou  uma  ave  que  cortava  os  ares  n'esse  momento. 
Os  Índios  assombrados  gritaram  Caramurú  !  Cara- 
murú !  palavra  que,  segundo  alguns  autores,  quer  dizer 
homem  de  fogo  ou  filho  do  trovão  e,  segundo  outros,  é  o 
nome  de  uma  enguia  eléctrica.  Isto  salvou  Diogo  Alva- 
res ;  os  Índios  tributaram-lhe  respeitos  e  o  portuguez  fui 
admiltido  entre  os  principaes  da  tribu.  Pouco  depois  sa- 
lientou-se  produzindo  com  a  sua  arma  grandes  estragos 
em  uma  tribuini miga  e  este  facto,  grangeando-lhe  extensa 
nomeada,  permittio  que  elle  se  casasse  com  Paraguassú 
(Rio  Grande),  filha  de  um  chefe  tupinambá,e  então  Diogo 
Alvares  estabeleceu- se  no  logar  que  depois  denomi- 
nou-se  Villa  Velha.  Esta  é  a  lenda  de  Caramurú  ;  o  que 
cila  contém  de  verdade  ou  o  que  é  phantasia  não  nos  ó 
poriiiittido  saber. 

Dizem  mais  que  Caramurú,  aproveitando  o  ensejo 
da  vinda  de  um  navio  francez  á  Bahia,  passou-se  á 
França  com  Paraguassú  e  naquclle  pniz  a  india  foi  bap- 
tisada  solemnemente,  scrvindo-lhe  do  padrinhos  o  rei 
Henrique  II  ca  rainha  Catharina  deMedicis  da  qual  cila 
tomou  o  nome  ;  diversos  autores,  porém, contestam  com 
sólidos  argumentos  este  facto. 


220  HISTORIA  DO   BRASIL 

João  Ramalho  e  António  Rodrigues. — Estes 
dois  primeiros  europeus  que  habilaram  o  território  do 
S.  Paulo  eram  portuguezes  e  naturaes  deBarcellos,  na 
comarca  de  Vizeu,  não  se  sabendo  ao  certo  porque  even- 
tualidade foram   abandonados   no  Brasil. 

João  líamalho  residia  nos  campos  do  Piratininga  e 
havia  tomado  por  esposa  a  india  Bartyra,  filha  do  mo- 
rubichaba  Tebyriçá  ;  António  Rodrigues  residia  em  Tu- 
miarú  e  casara-se  com  uma  filha  do  chefe  indio  Pique- 
roby . 

«  A  existência  de  António  Rodrigues  e  João  Rama- 
lho em  S.  Vicente,  diz  Azevedo  Marques,  só  pôde  ser 
explicada  por  degredo  ou  naufrágio  em  algumas  das  ex- 
pedições anteriores,  como  as  de  João  Dias  de  Solis,  em 
1513,  Fernando  de  Magalhães  em  1519,  ou  qualquer  das 
outras  anteriores  a  Martim  Aflbnso  (1).   » 

Estes  dois  portuguezes  foram  poderosos  auxiliares 
de  Martim  Affunso  na  empreza  de  fundar  uma  colónia 
regular  no  Brasil,  a  qual,  pela  intervenção  delles  foi 
poupada  pelos  Índios  e  gosou  durante  muitos  annos  a 
tranquillidade  indispensável  ao  seu  desenvolvimento. 

João  Ran.alho  exerceu  na  villa  de  S.mto  André  da 
Borda  do  Matto  os  cargos  de  capitão,  alcaide-mór  e  ve- 
reador ;  António  Rodrigues  exerceu  o  cargo  de  almotacé 
em  S.  Vicente. 

O  bacharel  di?  Cananéa. — O  famoso  bacharel, 
que  Martim  AUbnso  encontrou  em  Cananéa,  foi,  segundo 
as  conjecturas  mais  prováveis,  alli  deixado  em  1501  pela 
armada  exploradora  de  André  Gonçalves. 

Não  se  sabe  ao  certo  quem  fosse. 

O  que  está  provado, porém,  é  que  esse  homem  soube 
impôr-se  aos  selvagens  e  tornou-se  um  regulo  temivel, 
pois  tanto  basta  explicar  esta  versão,  o  facto  de  haver 
vendido  de  uma  só  vez  a  Diogo  Garcia  oitocentos  es- 
cravos (2). 


(1)  Azevedo  MAUQVES.—Apontameníos  histoj^icos,  rjeogrophi' 
COS.  biorjraphicos,  estatísticos  e  noticiosos  da  provinda  de  S. 
Paulo . 

(2)  Eis  o  trecho  da  carta  de  Diogo  Garcia  relativo  ás  suas  re- 
lações com  o  bacharel  de  Cananèa  e  ã  monstruosa  compra  de  8,0 
índios: 

"  E  de  aqui  fuemos  a  tomar  refrescos  em  S.  Vicente— questa 
en  84  grados^  e  ali  \iv6  tín  BacbiDer  h  unos  Ternos  suygs  mucho 


CAPITULO  IV 

CAPITANIAS  HEREDITÁRIAS 


Como  já  vimos,  logo  ao  iniciar-se  o  primitivo  po- 
voamento (lo  Brasil  cstaboleceram-se  umas  tantas  fei- 
torias, administradas  por  indivíduos  que  recebiam  da 
corte  o  titulo  de  capitães;  d  ahi  o  designar-se  pelo 
nome  de  capitanias  a  taes  estabelecimentos. 

A  historia  guardou  o  nome  de  um  desses  capilães, 
Pcro  Capico,  sabendo-se  pelo  alvará  que  o  destituio  do 
cargo  que  existiam  outras  capitanias  além  da  que  elle 
dirigia. 

Essas  primitivas  capitanias,  porém,  foram  tão  eplie- 
meras  que  delias  não  se  guardou  nem  ao  menos  a  lem- 
brança dos  pontos  em  quo  se  achavam  e,  por  conse- 
guinte, do  que  trataremos  n'cste  capitulo  é  da  divisão 
i-ealipida  em  1532,  pela  qual  distribuiiam-se  as  terras  do 
Brasil  em  capitanias  hereditárias. 

Esta  medida,  embora  revelasse  dentro  de  poucos 
annos  os  seus  grandes  inconvenientes,  como  ao  depois 
veremos,  foi  no  enlanto  muito  efllcaz  ao  primitivo  po- 
voamento ;  seu  maior  defeito  estava  nos  dilatados  pri- 
vilégios concedidos  aos  donatários,  porém,  sem  estes 
não  seria  possível  á  corte  fazer  com  que  as  fortunas  par- 
ticulares se  empenhassem  na  obra  da  colonisação.  As 
capitanias  hereditárias  permittiram  que  no  mesmo  mo- 
mento se  inaugurasse  o  povoamento  em  quasi  todo  o 
littoral  brasileiro,  o  que  não  se  daria  se  a  corte  persis- 
tisse na  primitiva  idéa  de  um  grande  núcleo  colonial. 


tiempo  lia  que  ba  bien  30  anos,  e  ali  estuvimo  basta  lõ  de  EnerO 
dei  ano  seguiente  de  27  e  aqui  tomamos  mucho  refresco  de  carne 
e  pescado  e  de  las  vituallas  de  la  tierra  para  provision  de  nueslra 
nave  e  agua  e  lena  e  todo  lo  que  ovimos  menesler  e  compre  de 
un  yerno  deste  Bacbiller  un  bergantin  í[ue  mucho  servi/.io  noa 
hiza  e  mais  el  próprio  se  aordó  con  nosotros  de  ir  por  lengua 
ai  rio  y  este  Bacbiller  con  sus  yernos,  y  hicieron  comigo  una  carta 
de  fletamiento  para  que  las  troxese  en  Espana  con  la  nao  grande 
ochocientos  esclavos,  e  yo  la  bice  con  acuerdo  de  lodos  mis  ofTi- 
ciales  e  contadores  e  tesoreros.  »  — Cauta  de  Diogo  Garcia,  1626. 


222  HISTORIA  DO  BRASIL 

Divísdo  do  Ilrasll  ei»  eapítaiiias  hcrodita- 
rini).  —  iVinda  Martim  AíTonso  achava-se  no  Brasil  c 
n'elle  procurava  impulsionar  os  dois  núcleos  coloniaes 
de  S.  Vicente  e  Borda  do  Campo,  quando  o  rei  de  Por- 
tugal, reconhecendo  que  ascolonias  regulares  officiaes 
eram  assaz  dispendiosas  para  a  coroa  e  tornavam  muito 
moroso  o  povoamento,  não  sendo  além  disso  as  mesmas 
sutTicientcs  para  cohibir  o  trafico  clandestino  dos  aven- 
tureiros estrangeiros,  deliberou  parcellar  o  Brasil  em 
capitanias  hereditárias  que  seriauí  doadas  a  indivíduos 
que,  por  seus  haveres,  fossem  capazes  de  fomentar  o 
desenvolvimento  colonial  da  região. 

Assim  foram  creadas  as  capitanias  hereditárias, 
concedendo  D.  João  II  aos  donatários  amplas  preroga- 
tivas  de  caracter  feudal  para  que  porellas  se  animassem 
os  fidalgos  abastados  a  arriscar  suas  fortunas  n'esses 
commettimentos  cujo  êxito  se  afíigurava  tão  problemá- 
tico. 

Esse  systema  tinha  produzido  bons  resultados  na 
Madeira  o  nos  Açores  e  por  isso  parecia  o  mais  fácil,  o 
menos  dispendioso  e  aquelle  cuja  bondade  já  tinha  sido 
provada. 

«  No  entanto,  como  diz  o  judicioso  historiador  Ro- 
berto Southejs  a  differença  entre  ilhas  desertas  e  um 
continente  povoado,  não  se  mettera  em  conta.  Os  ca- 
pitães das  ilhas  podiam  facilmente  colonisar  terras, 
onde  nenhuma  opposição  encontravam,  e  sem  ditíicul- 
dade  se  soccorriam  mutuamente  quando  o  pedia  o  caso ; 
se  lhes  falhavam  os  meios,  fácil  lhes  era  contra hir  em- 
préstimos até  em  Portugal,  que  tão  perto  ficavam 
aquellas  partes,  que  quasi  se  olhavam  dentro  do  reino. 
Mas  quando  D.  João  dividio  a  costa  do  Brasil  em  grandes 
capitanias,  cada  uma  de  cincoenta  legoas  pouco  mais  ou 
menos  de  extensão  á  beira  mar,  grandes  tribus  selva- 
gens occupavam  o  paiz ;  Portugal  ficava  longe,  e  os 
estabelecimentos  tão  distantes  entre  si,  que  um  não  po- 
deria soccorrer  o  outro.  »  (1) 

Logo  que  foi  tomada  a  resolução  de  dividir-se  o 
Brasil  em  capitanias,  D.  João  III  escreveu  uma  carta  a 
Marti m  Affonso,  da  qual  será  conveniente  conhecer-se 
o  seguinte  tópico  : 


(1)  Roberto  Southey.  —  Historia  do  Brasil. 


PRIMEIRA  EPOCHA  223 


I 


«  Depois  de  vossa  partida  se  praticou-se  provei- 
toso seria  ao   meu  serviço   povoar-se  toda  esta  costa 
do  Brasil,   e  algumas  pessoas   mo  requeriam  capita- 
nias   em    terra    delia.    Eu    quizera,    antes    de    nisso 
fazer  cousa  alguma,  esperar  por    vossa    vinda,    para 
com   vossa  informação  fazer  o  que  me  bem  parecer, 
e  que   na   repartição   que  disso  se  houver    de    fazer, 
escolhaes  a   melhor  parte.     K  porém    porque    depois 
fui  informado  que  de  algumas  partes  faziam  fundamento 
de  povoar  a  terra  do  dito  Brasil,   considerando  eu  com 
quanto  trabalho  se  lançaria  fora  a  gente  que  a  povoasse, 
depois  de  estar  assentada  na  terra,  o  ter  nella  feitas  al- 
gumas forças,  determinei  de  mandar  demarcar  de  Per- 
nambuco até  o  Rio  da  Prata,  cincoenta  legoas  de  costa  a 
cada  capitania,  e  antes  de  se  dar  a  nenhuma  pessoa, 
mandei  apartar  para  vós  cem  legoas,  e  para  Pêro  Lopes, 
vosso  irmão,   cincoenta,   nos  melhores  limites   d'essa 
costa,  por  parecer  de  pilotos  o  de  outras  pessoas  de 
quem  o  Conde  (1)  por  meu  mandado  se  informou;  como 
vereis  pelas  doações  que  logo  mandei  fazer,  que  vos  en- 
viará; e  depois  de  escolhidas  estas  cento  e  cincoenta 
legoas  para  vós  e  para  vosso  irmão,  mandei  dar  a  algu- 
mas pessoas  que  requeriam  capitanias    de    cincoenta 
legoas  cada  uma  ;  e  segundo  se  requerem,  parece  que  se 
dará  a  maior  parte  da  costa ;  e  todos  fazem  obrigação  de 
levarem  gente  e  navios  á  sua  custa,   em  tempo  certo, 
como  vos  o  Conde  mais  largamente  escreverá ;   porque 
elle  tem  cuidado  de  me  requerer  vossas  cousas,  e  eu  ihe 
mandei  que  vos  escrevesse.  » 

Marti m  Affonso  logo  que  recebeu  esta  carta  partio 
para  Portugal,  deixando  como  seu  logar-tenente  na  co- 
lónia de  S .  Vicente  a  Gonçalo  Monteiro. 

Embora  a  divisão  do  Brasil  em  capitanias  hereditá- 
rias fosse  resolvida  em  1532,  soem  1534  se  fizeram  as 
doações,  sendo  provável  que  o  próprio  Martim  Affonso 
fosse  quem  indicasse  o  lote  de  cem  legoas  que  devia 
pertencer-lho. 

Forao.9.  —  As  cartas  de  doações  eram  acompa- 
nhadas de  foraes,  contractos  emphyteuticos  em  os  quaes 
o  rei,  como  suzerano  ecomo  governador  e  administrador 
da  ordem  e  cavalleria  do  mestrado  de  Christo,  estabelecia 


(1)  O  conde  da  Castanheira. 


224  HISTORIA  DO  BRASIL 

as  prerogativas  que  concedia  aos  donatários  e  reservava 
os  direitos  que  eram  devidos  á  Coroa. 

Taes  foraes  eram  considerados  validos  para  todos 
os  effeitos,  embora  em  opposição  com  a  legislação  do 
reino. 

Por  sua  vez  os  donatários  passavam  foraes  aos  co- 
lonos, no  interesse  de  vel-os  acudir  em  maior  numero 
ás  suas  terras. 

Os  casos  não  previstos  pelos  foraes  eram  resolvidos 
pelas  leis  geraes  do  reino  ou  Ordenações  Manoelinas. 

Foraes  ilos  donatárias.  —  Nos  foraes  dos  do- 
natários estabelecia  o  rei  que  o  donatário  da  terra 
poderia  perpetuamente  chamar-se  capitão  e  governador 
delia ; 

Possuir  na  mesma,  uma  zona  de  dez  e  alguns  até 
dezescis  legoas  de  extensão  de  terra  sobre  a  costa,  com 
tanto  que  fossem  em  quatro  ou  cinco  porções  separadas 
entre  si,  sem  pagarem  outro  tributo  mais  que  o  dizimo  ; 

Captivar  gentios  para  o  seu  serviço  e  o  de  seus 
navios  ; 

Mandar  delles  a  vender  a  Lisboa  até  trinta  e  nove 
(a  uns  mais  que  a  outros),  livres  da  siza  que  pagavam 
lodos  os  que  entravam  ; 

Dar  sesmarias,  segundo  as  leis  do  reino,  aos  quo 
as  pedissem,  sendo  christãos,  não  ficando  estes  obriga- 
gados  a  mais  tributos  que  o  dizimo. 

Competia  além  disso  ao  donatário  : 

O  direito  das  barcas  de  passagem  dos  rios  mais  ou 
menos  caudalosos ; 

O  dizimo  do  quinto  dos  metaes  e  pedras  preciosas  ; 

O  criar  villas,  dando-lhes  insígnias  e  liberdades,  e 
por  conseguinte  foros  especiaes,  nomear  individues  para 
governal-as  cm  seu  nome  e  no  de  seu  successor  o  bsm 
assim  os  ouvidores,  meirinhos  e  mais  oíficiaes  de 
justiça  ; 

Prover,  as  capitanias  em  seus  nomes,  de  tabelliães 
do  publico  c  judicial,  recebendo  de  cada  um,  quinhentos 
réis  de  pensão  por  anno; 

Delegar  a  alcaidaria  ou  governo  militar  das  villas 
nos  individues  que  escolhessem,  tomando-lhes  a  devida 
menagem  ou  juramento  de  fidelidade: 

Cabia-llies  além  disso  o  monopólio  das  marinhas, 
moendas  de  agua  e  quaesquer  outros  engenhos,   po- 


puniEiRA  EPOfir.v  225 


dendo  cobrar   tributos  dos  que  se  fizessem  com  sua 
licença ; 

A  meia  dizima  ou  vintena  do  todo  o  pescado  ;  (1) 

A  redizima  dos  productos  da  terra  ou  o  dizimo  de 
todos  os  dizimos  ; 

A  vintena  do  producto  do  pau-brasil,  ido  da  capi- 
tania, que  se  vendesse  em  Portugal; 

Alçada,  sem  appellação  nem  nggravo,  em  causas 
crimes,  até  morte  natural,  para  os  peõos  escravos  e  até 
gentios,  dez  annos  de  degredo  o  cem  cruzados  de  pena 
ás  pessoas  de  maior  qualidade;  e  nas  causas  eiveis, 
com  appellação  e  aggravo  só  quando  os  valores  exce- 
dessem a  cem  mil  réis; 

Conhecer  das  appellações  e  aggravos  de  qualquer 
ponto  da  capitania ; 

Influir  nas  eleições  dos  juizes  e  mais  oíTiciaes  dos 
concelhos  das  villas,  apurando  as  listas  dos  homens 
bons  que  os  deviam  eleger  e  annuir  ou  não  ás  ditas 
eleições  dos  juizes  e  mais  officiaes,  que  se  chamariam 
pelo  dito  governador,  apezar  do  que  em  contrario  dispu- 
nham as  Ordenações  do  Reino. 

Além  disso  o  soberano  promettia  que  nunca  entra- 
riam nas  capitanias  os  seus  corregedores,  com  alçada 
de  natureza  alguma,  nem  jamais  seria  o  donatário  sus- 
penso ou  sentenciado,  sem  ter  sido  primeiro  ouvido  por 
elle  próprio  soberano,  que  para  isso  o  faria  chaniar  á 
sua  presença.  Além  disso  as  capitanias  eram  declaradas 
couto  e  homisio. 

Foraes  Aos  colonos.  —  Os  foraes  dos  colonos 
estabeleciam  que  estes  podiam  possuir  sesmarias,  sem 
mais  tributos  que  o  dizimo. 

Isenção  para  sempre  de  quaesquer  direitos  de  sizas, 
impostos  sobre  o  sal  e  saboarias,  ou  outros  quaesquer 
tributos  não  constantes  da  doação  e  foral. 

Garantia  de  que  o  capitão  não  protegeria  com  mais 
terras  os  seus  parentes,  nem  illudiria  as  datas  delias 
para  augmcntar  as  suas. 

Isenção  de  direitos  dos  artigos  importados  de  Por- 
tugal, excepto  por  navios  estrangeiros  (tratadores  estra- 
nhos) em  cujo  caso  pagariam  o  dizimo  de  entrada. 


(1)  Abrio-se  uma  excepção  para  Duarte  Coelho,  ao  qual  foi 
concedida  a  outra  meia  dizima. 

15 


226  HISTORIA  DO  BRASIL 


Podiam  commerciar  livreraento,  ainda  quando  de 
diíferentes  capitanias,  e  gozariam  do  privilegio  de  ne- 
gociar com  os  gei.tios  da  terra  com  a  condição  de  não 
se  associarem  a  estrangeiros. 

Prei*og;atiTas  da  L^orôa.  —  A  coroa  reservava 
para  si  o  quinto  dos  meties  e  pedras  preciosa;^,  o  mono- 
pólio do  pau-brasil,  das  drogas  e  especiarias,  o  dizimo 
do  peixe  que  não  fosse  pescado  á  canna,  o  dizimo  de 
todos  os  productos  (visto  ser  o  rei  Grão-Mestre  da  Or- 
dem de  Cliristo)  e  os  direitos  das  alfandegas,  pelo  que 
havia  nas  capitanias  empregados  de  fazenda  encaTe- 
gados  da  cobrança  dos  mesmos. 


I 


CAPITULO  VII 

CAPITANIAS  MERIDIONAES 


Afim  de  não  tornar  muito  extenso  o  capitulo  em 
que  devemos  estudar  as  capitanias  hereditárias»  do 
Brasil,  dividimos  a  matéria  om  duas  partes,  tratando 
na  primeira  das  capitanias  do  sul  e  na  segunda  das 
capitanias  do  norte. 

Por  capitanias  meridionaes  comprehendemos  as  de 
S.  Vicente,  Santo  Amaro,  Parahyba,  Espirito  Santo  e 
Porto  Seguro. 

Capitania  do  S.  Vicoiitc.  —  A  capitania  de 
S.  Vicente,  doada  a  Martim  AÍTonso  de  Souza,  constava 
de  100  léguas  de  costa,  desde  o  rio  Macahé  até  12  le- 
goas  ao  sul  de  Cananóa,  na  barra  de  Paranaguá,  ex- 
ceptuadas as  10  léguas  contados  do  Rio  Curupacé 
(Juquiriqueré)  até  o  no  de  S.  Vicente,  que  pertenciam  a 
Pêro  Lopes  de  Souza. 

A  doação  desta  capitania  data  de  G  de  Outubro  de 
1534,  com  o  foral  assignado  em  Évora  a  20  de  Janeiro 
de  1535. 

Martim  AíTonso  de  Souza,  auxiliado  por  João  Ra- 
malho, genro  de  Tebiriçá,  fundou,  como  já  vimos,  os 
núcleos  coloniaesde  S.  Vicente  e  Borda  do  Campo  e  re- 
gressando depois  á  Europa  deixou  Gonçalo  Monteiro 
administrando  o  primeiro  e  João  Ramalho  com  o  go- 
verno do  segundo. 

Esses  núcleos  deram  origem  ás  duas  mais  im- 
portantes cidades  do  Estado  de  S  Paulo.  S.  Vicente 
é  hoje  um  arrabalde  de  Santos  e  Borda  do  Campo, 
depois  transferida  para  Piratininga  transformou-se  em 
S.  Paulo,  a  bella  capital  do  Estado  de  seu  nome. 

A  capitania  de  S.  Vicente  prosperou,  graças  á  bôa 
harmonia  que  existia  entre  os  europeus  e  os  Índios 
Guayanazes,  embora  no  começo  a  povoação  que  lhe  deu 
o  nome  soílresse  algumas  hostilidades  dos  colonos  de 
Iguape.  Nella  foram  plantadas  as  primeiras  cannas  de 
assucar,  cujas  mudas  furam  trazidas  da  Ilha  da  Madeira 
e  c  provável  que  o  arroz  também  tenha  sido  ahi  intro- 


228  HISTORIA  DO  BlíASIL 

duzido  ainda  em  tempo  de  Martim  AíTonso;  desenvol- 
veu-se  igualmente  em  S.  Vicente  a  criação  do  gado 
vaccum  e  cavallar. 

Gonçalo  Monteiro,  logar-tenente  de  Martim  Affonso 
do  Souza,  o  qual  nunca  mais  voltou  ao  Brasil,  foi  substi- 
tuído em  lõ37  por  António  de  Oliveira  ;  e  no  tempo  deste 
as  ondas  invadiram  a  povoação  de  S.  Vicente,  destruin- 
do-lhe  muitas  edificações,  entre  as  quaes  as  casas  do 
conselho  e  do  pelourinho,  conforme  nos  conta  Frei 
Gaspar  da  Madre  de  Deus. 

Então  os  habitantes  foram  pouco  a  pouco  passan- 
do-se  para  Santos  que  dentro  em  breve  so  tornou  muito 
mais  importante  que  a  sua  visinha,  devido  isto  em  parte 
aos  esforços  de  Braz  Cubas,  que  depois  foi  adminis- 
trador de  S.  Vicente,  por  parte  de  Martim  Affonso,  de 
quem  era  amigo. 

Braz  Cubas,  foi  o  introductor  do  monjolo  no  Brasil 
e,  além  de  outros  serviços,  proporcionou  a  Santos  um 
hospital  e  uma  Casa  de  Misericórdia  que,  por  alvará 
régio,  ficou  gozando  dos  privilégios  da  d 3  Lisboa. 

Foi  igualmente  em  S.  Vicente  que  se  construio  o 
primeiro  engenho  e  dezeseis  annos  depois  desse  aconte- 
cimento a  capitania  já  contava  seis  dessas  machinas. 

Finalmente,  S.  Vicente  foi  a  capitania  que  mais 
cedo  mostrou  um  bem  accentuado  progresso,  isto  por- 
que já  antes  da  divisão  do  Brasil  em  capitanias,  Martim 
Affonso  o  tinha  fomentado  á  custa  da  coroa,  no  propósito 
em  que  esta  se  achava  de  fazer  de  tal  povoação  á  sede 
dos  núcleos  coloniaes  do  Brasil. 

Da  capitania  de  S.  Vicente  tirou-se  depois  quasi 
a  metade  das  terras  para  constituir-se  a  capitania  admi- 
nistrativa do  Rio  de  Janeiro,  revertendo  ella  própria  á 
Coroa,  por  compra,  em  17  de  Novembro  de  1791. 

O  seu  primitivo  território  fiz  hoje  parte  dos  Estados 
do  Rio  de  Janeiro,  S.  Paulo,  Minas  e  Paraná. 

Os  Guayaiinze«i.  —  Os  índios  (ruayanazes  que 
durante  muitos  annos  viveram  em  bòa  harmonia  com  os 
viceníistas  e  santistas,  alliando-se  muitas  vezes  aos 
europeus  para  combater  outras  hordas,  pertenciam  ao 
grupo  tupy.  Sustentavam-se  da  caca,  da  pesca  e  de 
fructos  sylvestres,  não  praticavam  a  agricultura,  nem 
criavam  animaes  de  espécie  alguma.  Viviam  em  ca^  ernas 
e  não  conheciam  o  uso  de  rodes,  dormindo  sobre  pelles  e 
leitos  de  folhas.  Quando  morria  algum  enforcavam  um 


PKIMEIRA   EPOCHA  229 


certo  numero  de  parentes  e  amigos  do  mesmo  sexo,  os 
quaes,  ou  se  offereciam  voluntariamente,  ou  eram  com- 
pellidos  a  isso.  Se  era  um  chefe  que  morria  não  se  sa- 
crificavam os  parentes  porém  sim  os  vassallos.  Os  seus 
principaes  inimigos  eram  os  Carijós  ao  sul  e  os  Ta- 
moyos  ao  norte. 

Os  Taiiioyos. — Os  tamoyos,  ou  avós,  como  elles 
orgulhosamente  se  appellidavam,  também  pertenciam  ao 
grupo  tupy.  Essa  tribu  que  muito  affligio  a  capitania  de 
S.  Vicente  e  foi  a  principal  causa  da  ruina  da  capitania 
de  S.  Amaro,  dominava  o  littoral  desde  Cabo  Frio  até 
Ubatuba.  Ao  contrario  dos  Guayanazes,  seus  inimigos, 
que  sempre  fjram  alliados  dos  Portuguezes,  os  Ta- 
moyos foram  no  Brasil  os  melhores  amigos  dos  Fran- 
cezes,  aos  quaes  denominavam  Mairs.  Além  de  outras 
aptidões  que  possuiam,  eram  destros  canoeiros. 

Os  Carijós.  — A  tribu  dos  Carijós,  que  pratÍ3ava 
continuas  depredações  na  capitania  de  S.  Vicente  e 
hostilisava  cruamente  os  Guayanazes,  dominava  o  litto- 
ral, desde  Cananéa  até  a  Lagoa  dos  Patos.  Esta  nação 
era  indómita  e  durante  muito  tempo  constituio  sério 
embaraço  ás  tentativas  de  devassamento  do  sertão  em 
busca  de  minas  de  ouro,  até  que  no  século  XVII  foi 
exterminada  em  grande  parte. 

Capitania  de  §Íaiito  Amaro. —  Esta  capitania 
comprehendia  as  40  léguas  de  costa  situadas  entre  Pa- 
ranaguá e  o  rio  Mampituba  ou  Araranguá,  ao  sul,  e 
mais  10  léguas  encravadas  na  capitania  de  S.  Vicente, 
entre  os  rios  de  S.  Vicente  e  Curupacé;  esse  ultimo 
território  tomou  o  nome  de  Terra  de  SanfAnna. 

A  capitania  de  Santo  Amaro  foi  doada  a  Pêro  Lopes 
do  Souza,  irmão  de  Marti m  Aílbnso  de  Souza,  pela 
carta  régia  de  1°  de  Setembro  de  1834,  com  o  foral  de 
Outubro  do  mesmo  anno. 

A  sede  da  capitania  de  Santo  Amaro  foi  estabelecida 
por  Gonçalo  Affonso,  administrador  de  Pêro  Lopes,  em 
uma  ilha  situada  três  léguas  acima  do  S.  Vicente,  que 
os  naturaes  chamavam  Guaymbé  e  que  os  portuguezes 
denominaram  de  Santo  Amaro. 

MenosfelizqucavisinhacapitaniadeMartim  Affonso, 
a  aííluencia  de  colonos  para  Santo  Amaro  foi  menor  que 
paraS.  Vicente,  vendo-se  além  disso  a  povoqçã<i  muito 
hostilisada  pelos  indios  tamoyos,  ousados  canoeiros  que 
estavam    habituados   a  visitar   aquêllas   paragens,  em 


230  HISTORIA  DO  BRASIL 

certas  epochas  doanno,  afim  de  se  abastecerem  de  peixe; 
esses  Índios  habitavam  ao  norte,  até  as  illias  de  S.  Se- 
bastião e  Grande. 

O  primitivo  donatário  de  Santo  Amaro  morreu  em 
um  naufrágio  em  1539,  nas  costas  de  Aladagascar,  sendo 
nomeado  pela  viuva  Cliristovão  de  Aguiar  Altero  para 
governar  a  colónia  em  nome  de  seu  filho,  o  qual  nunca 
veio  ao  Brasil. 

A  capitania  de  Santo  Amaro  e  Terra  de  SanfAnna 
reverter.im  para  a  coroa,  por  compra,  em  9  de  Novembro 
de  1709.  Os  terrenos  que  a  constituíam  fazem  hoje  parte 
dos  Estados  de  S.  Paulo,  Paraná  e  Santa  Catharina. 

Capitania  «la  Parahybn  do  l§iil. —  (1)  Esta 
capitania  comprehendia  as  30  léguas  situadas  entre  os 
rios  Itapemerim  e  Macahó  e  foi  doada  a  Pêro  de  Góes  da 
Silveira,  por  carta  régia  de  2S  de  Janeiro  de  1536,  com  o 
foral  de  29  de  Outubro  do  mesmo  anno. 

Pêro  de  Góes  fundou  logo  um  pequeno  arraial  ás 
margens  do  Parahyba,  dando  a  elle  o  pomposo  nome  de 
Villa  da  Rainha  e  introduziu  na  sua  capitania  a  canna 
de  assucar,  por  meio  de  mudas  trazidas  de   S.  Vicente. 

Esta  preciosa  gramminea  deu-se  perfeitamente  no 
fértil  valle  do  Parahyba,  porém  faltando  a  Pêro  de  Góes 
os  recursos  necessários  para  dar  grande  expansão  ao 
seu  estabelecimento  colonial  e  agrícola,  teve  elle  que 
se  ausentar  da  nascente  colónia  ahm  de  contrahir  algum 
empréstimo  em  Portugal  e  em  seu  logar  ficou  Jorge 
Martins. 

Conseguiu  Fero  de  Góes  associar-se  em  Portugal  a 
alguns  tratadores  que  lhe  forneceram  os  necessários 
recursos,  porém,  logo  ao  chegar  ao  Brasil  observou  que 
em  sua  ausência  os  colonos  haviam  desertado,  junta- 
mente com  o  administrador,  e  as  obras  já  feitas  acha- 
vam-se  damnificadas. 

Este  revez,  no  entanto,  não  desanimou  o  ernpre- 
hendcdor  fidalgo;  insistindo  no  seu  projecto,  fez  vir  da 
visinha  capitania  do  Espiriro  Santo  novos  colonos  e  um 
homem  pratico  na  construcção  de  engenhos  e  lego 
levantou  uma  dessas  machinas  na  margem  do  Parahyba, 
a  dez  léguas  acima  da  foz,  e  duas  engenhocas  movidas 
por  cavallos,  perto  da  costa. 


(\)  o  primitivo  nome  desta  capitania    foi  S.  Thomò,  dando-lhe  de- 
pois o  rio  a  appellidação  que  conservou  no   período  colonial» 


I 


PRIMEIliA  EPOCBA  231 

Prosperava  assim  o  estabolccimenlo,  quando  per- 
versamente um  pirata  de  nome  Henrique  Luiz,  que  de- 
vastava a  costa,  se  apoderou  do  chefe  do  gentio  do 
districto  e  entregou-o  a  uma  horda  inimiga.  Furiosos 
os  Goylacazespor  esta  infâmia  assentaram  em  vingar-se 
dos  europeus  e  assim  o  fizeram  incendiando  os  c^ina- 
viaes  e destruindo  tudo. 

Baldada  foi  a  desesperada  resistência  feita  por  Pêro 
de  Góes  que  na  Jucta  perdeu  um  olho  e  vinte  e  cinco 
homens  dos  seus;  frustrou-se  o  seu  commettimento  agrí- 
cola eos  portuguezes  foram  obrigados  a  retirar-se  para 
a  capitania  do  Espirito  Santo,  deixando  em  poder  dos 
Goytacazes  já  algumas  construcções  de  pedra  e  cal. 

A  capitania  da  Parahyba  reverteu  para  a  Coroa,  por 
compra,  em  10  de  Junho  de  1753  e  as  suas  terras  fazem 
hoje  parte  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro. 

Os  Goytacazojs.  —  Estes  valorosos  Índios  que 
conseguiram,  em  represália  justa,  destruir  a  futurosa 
capitania  de  Pêro  de  Góes,  pertenciam  ao  grupo  ethno- 
graphico  que  Von  Martiuse  Von  denSteinen  entenderam 
denominar  Goytacà  ou  Wattacá. 

Os  goytacazes  dominavam  no  trecho  da  costa  com- 
prehendido  entre  o  rio  Itabapoana  e  o  Cabo  de  S.  Thomé 
e  bem  assim  no  valle  do  Parahyba,  até  S.  Fidelis.  Eram 
de  alta  estatura,  membrudos,  e  os  cabellos,  que  eram 
pretos  e  duros,  usavam-n'os  compridos.  Eram  hábeis 
atiradores  de  frechas  e  oxcellentes  corredores  e  nada- 
dores. Viviam  em  pequenas  cabildas  em  ilhas  fluviaes 
ou  marítimas  e  as  suas  cabanas  eram  feitas  de  folhas  de 
palmeiras  o  buspensas  nos  troncos  das  arvores.  Quando 
bem  tratados  mostra vam-sc  brandos  e  alegres;  á  menor 
injustiça,  porém,  exhibiam  um  ódio  c  uma  ferocidade 
terríveis. 

Capitania  tio  Espirit»  S»iito.— Comprehendia 
esta  capitania  as  terras  situadas  entro  os  rios  Itape- 
merim,  ao  sul,  e  Mucury,  ao  norte,  sendo  donda  a  Vasco 
Fernandes  Coutinho,  por  carta  régia  de  1"  do  Junho  de 
1531,  com  o  foral  de  7  do  Outubro  do  mesmo  anno. 

Vasco  l''ernandes  Coutinho,  fidalgo  aventureiro  e 
ousado,  que  na  índia  se  havia  distinguido  por  assigna- 
lados  actos  de  coragem,  logo  que  recebeu  a  doação 
reduziu  a  dinheiro  todos  os  bens  que  possuia  em  Por- 
tugal e  partiu  para  o  Brasil,  em  companhia  de  muitos 
fidalgos,  entre  os  quaes  D.  Simão  de   Castello  Branco 


HISTORIA   DO  BRASIL 


eD.  Jorge  de  Menezes,  cognominado  o  das  Molucas, 
que  vinham  degradados.  (1) 

Tendo  Vasco  Fernandes  chegado  á  sua  capitania 
no  domingo  do  Espirito  Santo  deu-Ihe  esto  nome  e 
lançou  logo  os  fundamentos  da  sua  sede  á  entrada 
da  barra,  do  lado  esquerdo,  entre  a  ponta  do  Tubarão  o  o 
monte  Moreno,  sendo-lhe  preciso  luctarcom  os  índios 
Aymorés,  que  se  mostraram  hostis  aos  Mboab  (einboa- 
bas,  pernas  calçadas  conformo  alguns,  e  homens  de  além 
ou  malfeitores,  segundo  outros),  nomo  pelo  qual  desi- 
gnavam os  portuguezes. 

Os  Aymorés  foram  derrotados  ou  apasiguados  e 
Vasco  Fernandes  poude  construir  um  engenho  e  iniciar 
a  cultura  da  canna;   os  habitantes,  por  seu  lado  deram 


desenvolvimento  á  dos  cereaes  e  legumes. 


O' 


Tão  férteis  eram  as  terras  do  Espirito  Santo  que 
Vasco  Fernandes  lhes  chamava — o  meu  Villão  Farto — 
conforme  lemos  em  Frei  Vicente  do  Salvador. 

Pouco  depois  foi  transferida  a  povoação  para  a  ilha 
chamada  do  Santo  António,  mais  ao  fundo  da  bahia,  e 
que  tinha  sido  doada  a  Duarte  de  Lemos,  um  dos  prin- 
cipaes  colonos;  á  antiga  povoação  começaram  a  dar 
nome  de  Villa  Velha,  e  a  nova  recebeu  o   de  Victoria. 

Entrou,  porém,  a  discórdia  na  futurosa  colónia,  não 
só  pelos  desregramentos  do  donatário  que  se  malquistou 
com  Duarte  de  Lemos,  homem  geralmente  estimado  e 
considerado  pelos  seus  feitos  d'arn)as  na  Atia,  como 
pelas  desordens  praticadas  pelos  dois  íidalgos  degra- 
dados. 

Chegou  a  tal  ponto  a  decadência  da  capitania  que 
os  selvagens  se  animaram  a  atacar  Victoria  e  de  então 
por  diante  nunca  niaisella  poude  medrar,  não  obstante 
possuir  todas  as  condições  exigidas  para  um  rápido 
desenvolvimento. 

Finalmente,  depois  de  gastos  muitos  mil  cruzados 
que  havia  ganho  na  índia  e  bem  assim  o  patrimcnio  que 
possuia  em  Portugal  «  acabou  Vasco  Fernandes  tão 
pobremente,  diz  Frei  Vicente  do   Salvador,  que  chegou 


(L  Refcriíulo-se  ao  degredo  desles  dois  noLres,  diz  Roberto  Soiithey: 
«Não  iioiicas  airocidades  prat  cavam  enlão  os  jiorUiguezcs  nas  ilhas  do 
especiaria»  c  paia  que  homem  abastado  c  de  boa  fnmilia  por  cilas  fosse 
degradado,  ni-ntid*^"  (levintn  «nf  n>i  r>f(o''i<lade3  qlic  eomnicttcra  n 


PRIMEIRA   EPOCHA  233 


a  lho  darom  de  comer  poi*  amor  de  Deus  e  não  sei   se 
teve   um  lençol  seu   em  que  o  amortalhassem. w 

A  capitania  do  Espirito  Santo  reverteu  â  Coroa, 
por  compra,  em  6  de  Abril  de  1718,  e  as  suas  terras  fazem 
hoje  parte  do  Estado  do  Espiíito  Santo. 

Os  Ayiu»réi<i.  —  Os  gentios  que  o  aventureiro  Cou- 
tinho e  sua  turbulenta  cou.itiva  encontraram  no  Espirito 
Santo  e  contra  os  quaes  combateram  até  submettel-os 
eram  os  Aymorés  que  residiam  nas  serras  fronteiras  ao 
mar  nos  E^t  idos  da  Bahia,  do  Espirito  Santo  e  do  Rio 
de  Janeiro.  Pertenciam  ao  grupo  que  Von  Martius  dis- 
tinguio  pelo  nome  de  Crens  ou  Guerens,  o  qual  Von 
Stoinen  recentemente  invalidou  pelo  resultado  de  suas 
pesquizas,incluindo-o  no  grupo  Ge. 

Os  Aymorés  eram  os  mais  temerosos  e  selvagens 
de  todos  os  indios  brazileiros.  Não  usavam  trajo  de  es- 
pécie alguma,  não  possuíam  habitações  e  dormiam  ao 
relento  ou  debaixo  das  arvores.  Não  tinham  chefes  e 
andavam  em  pequenos  bandos.  Não  sabiam  nadar  e 
quando  eram  aprisionados  deixavam-se  morrer  de 
fome.  Os  Botucudos  diziam-se  descendentes  dos  Ay- 
morés. 

Os  Botucudos. —  Os  Botucudos  que  ficaram  ha- 
bitando os  mesmos  legares  em  que  viviam  os  Aymorés 
e  com  e>tes  se  identificavam  ás  vezes,  «são,  diz  Saint 
Adolphe,  mais  brancos  que  a  maior  parte  dos  demais 
índios  do  Brazil,  porem  como  os  seus  ascendentes,  os 
Aymorés,  costumam  pintar  a  cara  e  mais  partes  do  corpo. 
Dividem-se  em  varias  tribus  ou  cabildas,  cada  uma  com 
o  seu  cabo,  que  tem  um  poder  absoluto  sobre  os  seus  em 
os  negócios  de  niaior  importância  como  são  a  caça,  a 
guerra  e  a  escolha  de  uma  morada;  mas  na  aldeia  li- 
mita-sc  toda  a  sua  autoridade  a  compor  as  desa- 
venças, que  são  entre  elles  mui  frequentes.  Este  le- 
gar não  é  hereditário  ;  escolhe-se  para  elle  o  mais 
bravo  e  por  vezes  o  mais  atrevido  se  proclama  chefe 
da  tribú,  sobretudo  se  o  que  os  commandava  vem  a  mor- 
rer. Os  Botucudos  têm  as  espáduas  largas,  o  pescoço 
curto,  o  nariz  chato,  as  maçãs  do  rosto  proeminentes,  os 
pés  pequenos,  as  extremidades  inferiores  delgadas,  mas 
nervosas.  Furam  as  orelhas  e  o  beiço  inferior  e  enfiam 
no  buraco  uma  rodella  de  pau.  São  vingativos  o  traido- 
res, posto  que  tenham  um  exterior  alegre  c  um  ar  de 
franqueza.   Não  t6m  espécie  alguma  de   culto  ;  çonf3Íde- 


2'U  HISTORIA   DO  BRASIL 

ram  o  sol  como  uma  divindade  a  que  chamam  Paru  e  re- 
vereiíceam  ainda  muito  a  lua,  quando  com  sua  luz  os 
protege  em  suas  excursões  nocturnas.  Amam  e  imitam 
as  ceremonias  religiosas  dos  christãos,  quanto  isto 
p  jde  compadocer-se  com  a  vida  nómada  que  fazem,  as- 
sim como  são  de  todos  os  indios  os  que  mais  custam  a 
civilisar.  (1) 

Capitania  do  Porto  Seguro.  —  Esta  capitania 
comprehendia  as  50  léguas  situadas  entre  os  rios  Mu- 
cury  e  Jequitinhomba,  e  foi  dcada  aPerodoCampo  Tou- 
rinho,  natural  de  Vianna  e  navegante  illustre. 

Tem  a  data  de  27  de  Maio  de"lõ34  a  carta  regia  desta 
doação. 

Tourinho  passou-se  para  o  Brasil  com  sua  mulher, 
fdhos,  alguns  parentes  egrande  numero  de  amigos, des- 
embarcando na  foz  do  rio  de  Porto  Seguro,  primeiro 
ponto  em  que  Cabral  tocara.  Ahi  fundou  uma  colónia 
que  conservou  a  appellidação  que  lhe  impoz  Pedro  Al- 
vares e  que  se  estendeu  a  toda  a  capitania. 

Fundou  mais  Pêro  de  Campo  as  villas  de  Santa 
Cruz  e  de  Santo  Amaro,  porém  pela  escassez  de  capitães, 
só  em  1550  poude  introduzir  na  capitania  a  cultura  da 
canna  de  assucar. 

A  creação  do  gado  vaccum  foi  tentada,  porém  não 
poude  desenvolver-se  em  consequência  de  uma  planta 
venenosa  que  abundava  nos  campos  e  isto  contribuio 
muito  para  retardar  o  progresso   agrícola  da  capitania. 

Os  colonos,  que  pela  maior  parte  eram  homens 
habituados  á  vida  do  mar,  preferiam  occupar-se  da 
pesca,  no  que  eram  favorecidos  pela  visinhança  dos 
Abrolhos,  paragem  maravilhosamente  piscosa,  e,  tal  era 
a  abundância  do  peixe  que  obtinham,  que  o  expoitivam 
para  Portugal. 

Diz   Varnhagen: 

o  Esta  vida  habituou  os  Porto-Segurenses  a  uma 
víerta  independência  e  desprendimento  de  si,  o  ao  espirito 
emprehendcdor  com  que.  depois,  sob  a  direcção  de  um 
sobrinho  do  donatário,  se  lançaram  d  aqui,  primeiro  que 
em  outra  parte  do  Brasil,  até  ao  âmago  do  sertão,  em 
busca  de  minas.  » 

Durante  a  vida  de  Pêro  do  Campo  Tourinho  os  Ay- 


(1)  Saint  Adolphe —  Diccionario  çeographico. 


PRIMEIKA   EPOCHA  2.35 


mores  hostilisaram  imiito  a  capitania,  chegando  até  a 
apoderarem-se''aA'illade  Santa  Cruz. 

Por  morte  de  Pêro  do  Campo  passou  a  capitania  de 
Porto  Seguro  a  seu  filho  Fernão  do  Campo  e  deste  pas- 
sou á  sua  irmã,  D.  Leonor  do  Campo,  viuva  de  Gregório 
da  Pesqueira,  que  a  vendeu  a  D.  João  de  Lencastre,  du- 
que de  A.veiro. 

A  capitania  de  Porto  Seguro  reverteu  á  Coroa  por 
conhsco  em  lõ5G.  As  suas  terras  fazem  parte  do  actual 
Estado  da  Bahia. 


CAPITULO  VIII 

CAPITANIAS  SEPTENTRIONAES 


Por  capitanias  septentrionaes  comprenderemos  as 
dos  Ilhéus,  Todos  os  Santo?^,  Pernambuco,  Itaujaracá, 
Ceará  e  Maranhão. 

Capitanias  dos  ?lliéii.)!i.  —  Esta  capitania  com- 
prehcndia  as  cincocnta  léguas  de  cosia  situadas  entre  os 
rios  Jequitinhonha  ao  sul  e  a  barra  da  bahia  de  Todos 
os  Santos  ao  norte  ;  foi  doada  a  Jorge  de  Figueiredo 
Corrêa,  por  carta  regia  do  1534,  segundo  affirma Macedo, 
ou  de  1'  de  Abril  de  l535,coníorme  a  opinião  de  Cândido 
Mendes. 

Jorge  Corrêa  despachou  para  o  Brasil,  como  seu  de- 
legado, o  castelhano  Francisco  Romero,  o  qual  se  esta- 
beleceu no  cimo  do  morro  de  S.  Paulo,  na  ilha  de  Ti- 
nharé,  transportando-se  depois  para  o  porto  dos  Ilhéus, 
mais  ao  sul,  logar  onde  creou  uma  povoação,  sob  a 
invocação  de  S.  Jorge,  em  attmção  ao  donatário,  que  ti- 
nha este  nome. 

Já  prosperava  a  capitania  quando  sobrevieram  de- 
sordens gravíssimas  devidas  á  prepotência  de  Romero. 
Por  esse  motivo  os  colonos  so  amotinaram  e  mandaram 
para  Portugal  o  despótico  administrador. 

Veio  aggravar  o  mal,  o  ter  Jorge  deFigueiredocom- 
mettido  o  grave  erro  de  restabelecer  Romero  na  adminis- 
tração da  colónia;  por  esse  motivo  as  desordens  recru- 
desceram e  os  selvagens  Ay mores,  aproveitando  a  des- 
união que  lavrava,  acommetteram,  arruinando  vários 
engenhos. 

Morrendo  Jorge  de  Figueiredo,  em  1501,  seusucces- 
sor  fez  desistência  da  capitania  em  favor  de  um  irmão, 
Jorge  d'Alarcão  de  Figueiredo,  o  que  lhe  foi  confirmado 
em  22  de  Novembro  de  1552. 

A  capitania  dos  Ilhéus  reverteu  á  Coroa,  por  com- 
pra, em  1761  o  actualmente  faz  parto  do  Estado  da 
Bahia. 

Capitauia  de  Todos  os  iSaiitos. —  Esta  capi- 
tania comprehendia  as  50  léguas  de  costa  situadas  entre 


238  HISTORIA  DO  BRASIL 


a  barra  da  Bahia  de  Todos  os  Santos  e  a  foz  do  Rio  de 
S.  Francisco, sendo  doada  a  Francisco  Pereira  Coutinho, 
por  carta  regia  de  õ  de  Abril  de  1534,  com  o  foral  de  26 
de  Agosto  do  mesmo  anno. 

Francisco  Pereira  Coutinho  encontrou  na  Bahia  uns 
oito  colonos  europeus  entre  os  quaes,  naturalmente, 
Diogo  Alvaros,  o  Caraniurâ,  e  seu  genro  AlTonso  Rodri- 
gues, e  na  barra  o  donatário  lançou  as  bases  de  uma 
povoação,  exactamente  no  local  em  que  Cararnurú  re- 
sidia. 

A  essa  povoação  deu  Coutinho  o  nome  de  Victoria. 

No  começo  a  colónia  prosperou,  sendo  construídos 
dois  engenhos;  rebellando-se.  porém,  mais  tarde,  os  in- 
dígenas, em  consequência  de  barbaridades  praticadas 
pela  gente  de  Coutinho,  o  qual,  por  sen  lado,  não  possuia 
energia  sufilciente  para  reprimir  os  desmandos,  o  es- 
tabelecimento decahio  extraordinariamente. 

Os  bárbaros  começaram  a  veral-o,  já  incendian- 
do edificações,  já  commettendo  toda  a  sorte  de  tropelias, 
e,  abandon mdo-o  afinal  os  próprios  colonos,  Jorge  de 
Figueiredo  foi  obrigado  a  abandonar  a  povoação,  rcfu- 
giando-s6  na  capitania  do  Porto  Seguro  com  alguns 
portuguezes  que  ainda  o  acompanhavam. 

Apaziguados  depois  os  selvagens,  Coutinho  fez-se 
de  vela  para  a  Bahia,  dando,  porém,  a  embarcação  nos 
baixios  de  Itapairca,  elle  e  seus  companheiros  foram 
trucidados  pelos  Tupinambás.  Apenas  foi  poupado  Dio- 
go  Alvares  e  sua  familia. 

Este  facto  teve  logar  em  1548. 

Por  morte  do  doatario  reverteu  a  capitania  de  Todos 
os  Santos  á  Coroa,  em  1548,  mediante  um  padrão  de 
400-$000  por  anno  pagos  pela  redizima  da  capitania  e 
vinculados  ao  filho  do  donatário  Manoel  Pereira  de  Fi- 
gueiredo. 

Hoje  o  seu  território  faz  parte  do  Estado  da  Bahia. 

0.§  Tupinambás.  —  Das  Iribus  selvagens  que 
viviam  no  littoral  da  Bahia,  quando  os  Portuguezes  ahi 
se  estabeleceram,  umas  diziam- se  Tupinambás  e  outras 
Tupiniquins . 

Os  Tupinambás  viviam  da  caça,  da  pesca,  dos  fru- 
ctos  sylvestrese  do  mel.  Os  homens  andavam  nús  e  ar- 
mados de  settas  envenenadas;  as  mulheres  cingiam-se 
com  uma  tanga  de  algodão  grosseiro  fia njado.  Querem 
alguns  que  fossem  monogamos  e  não  se  conhecesse  o 


riíIMEIRA  EPOCIIA  239 


adultério  entre  ellcs.  Eiiterravam  os  seus  mortos  oiiíai- 
xados  o  em  covas  pouco  fundas,  sendo  em  geral  as  se- 
pulturas abertas  ao  pó  das  arvores.  As  mulheres  sabiam 
fabricar  louça  de  barro  e  os  homem  faziam-n'a  de  ma- 
deira. A  belleza  das  mulheres  Tupinambás  foi,  como  já 
vimos,  festejada  por  Pêro  Lopes. 

Os  Tuiiíiiic|iiiu!§.  —  Estes  Índios  tinham  quasi  os 
mesmos  usos  e  costumes  que  os  Tupinambás.  Nos  dias 
festivos  as  mulheres  cingiam-se  com  tangas  de  pennas 
vistosas. 

Furavam  o  beiço  e  as  orelhas,  como  os  Botucudos. 
A  còr  dos  Tupiniquins  era  muito  acobreada  ;  em  geral 
esses  selvagens  eram  de  indol j  branda  e  sociável. 

Capitania  do  Pern  ;imbiico. —  Esta  capitania 
comprehendia  as  60  léguas  situadas  entre  os  rios  de  S. 
Francisco  e  Iguarassú  e  foi  doada  a  Duarte  Coelho,  por 
carta  regia  de  10  de  Agosto  de  1534,  com  o  foral  de  21  de 
Outubro  do  mesmo  anno. 

Duarte  Coelho,  acompanhado  de  sua  mulher,  filhos  e 
muitos  parentes,  transportou-se  á  sua  capitania  e  des- 
embarcou na  foz  do  rio  Iguarassú,  no  sitio  em  que  ou- 
tr'ora  existio  a  feitoria  chamada  dos  Marcos,  de  onde 
deu  ordem  para  que  se  fizesse  a  Villa  de  Iguarussú,  á 
margem  do  rio,  uma  légua  acima  da  embocadura,  villa 
que  também  era  conhecida  pelos  nomes  de  seus  pa- 
droeiros S.  Cosme  e  S.  Damião. 

De  sua  administração  ficou  encarregado  Affonso 
Gonçalves,  tomando  a  si  o  próprio  donatário  o  encargo 
de  fundar  Olinda. 

Prosperavam  as  duas  colónias,  e  era  vigorosamente 
impulsionada  em  ambas  acultura  da  canna, quando  rom- 
peu uma  guerra  entre  os  portuguezes  e  os  selvagens 
os  quaes  assediaram  Iguarassú  e  mataram  Affonso  Gon- 
çalves. 

O  cerco  foi  prolongado  e  até  as  próprias  mulheres 
dos  colonos  montavam  guarda  e  praticaram  bravuras, 
como  se  vè  deste  trecho  de  Frei  Vicente  do  Salvador: 

«Até  as  mulheres  vigiavam  o  seu  quarto  na  fortaleza, 
emquanto  os  homens  dormiam,  e  estando  ellas  de  posto 
uma  noite,  vendo  os  inimigos  tanto  silencio  que  parecia 
não  haver  gente  alli,  subiram  alguns  e  começaram  a  en- 
trar pelas  portinholas  das  peças,  mas  ellas  que  os  ha- 
viam sentido  subir,  os  estavam  guardando  com  suas 
partanzanas  nas  mãos,  e  quando  estavam  já  com   meio 


2á0  HISTORIA   DO   BRASIL 

corpo  dentro,  lh'as  metleram  pelos  peitos  e  os  passaram 
de  parte  a  parte,  e  uma, não  contente  com  isso,  tomou  um 
tição  e  poz  fogo  a  uma  peça  com  que  fez  fugir  os  outros 
e  espertar  os  nossos,  que  foi  um  feito  muito  iieroico, 
para  mulheres  terem  tanto  silencio  e  tanto  animo.» 

Em  Iguarassú  achava-se  o  artilheiro  alicmão  Hans 
Stade  que  deixou  uma  excellente  memoria  sobre  03  in- 
dígenas, e  ao  qual  teremos  ainda  occasião  de  nos  referir. 

Finalmente,  os  índios  desesperaram  de  tomar  a 
praça  de  assalto  e  levantaram  o  sitio,  podenJo  a  colónia 
continuara  prosperar,  graças  principalmente  a  uma  al- 
liança  feita  por  Duarte  Coelho  com  os  Tabajáras,  cujos 
chefes  prestaram  grandes  serviços  aos  portuguezes, prin- 
cipalmente Tabyra,  do  qual  se  conta  que  tendo  em  bata- 
lha uma  setla  lhe  vasado  um  olho  arrancou-a  com  o 
globo  do  olho  e  continuou  a  pelejar,  Itagyba  (o  Braço  de 
ferro)  que  muito  se  distinguio  combatendo  contra  os 
Caethés  e  outros  mais. 

Duarte  Coelho  mandou  organizar  um  livro  do  tombo 
das  terras  que  dava  c  outro  de  matricula  para  regis- 
trar aquelles  que  se  propunham  a  gosar  dos  foros  de 
moradores  da  sua  capitania,  e,  promoveu  tanto  quanto 
lhe  foi  possível,  o  casamento  dos  primeiros  colonos  com 
as  Índias  da  terra. 

Duarte  Coelho  falleceu  no  anno  de  1554  deixando 
a  capitania  em  prosperidade.  Substituio-o  Jerouymo  de 
Albuquerque,  irmão  da  viuva,  em  logar  do  filho  do  do- 
natário que  então  estudava  em  Portugal, 3  depois  um  outro 
Jeronymode  Albuquerque,  filho  natur^il  do  primeiro  com 
uma  Índia,  o  qual  muito  concorreu  para  a  conquista  da 
Parahyba  do  Norte  aos  francezes. 

A  capitania  de  Pernambuco  reverteu  á  Coroa  por 
abnndono  do  donatário  em  1651  e  final  desistência  em 
1716.  As  suas  terras  fazem  hoje  parte  dos  Estados  de 
Alagoas  e  Pernambuco. 

Os  Caethés  c  TabaJaras.  — Os  Índios  Caethés 
que  ião  nocivos  foram  á  Capitania  de  Pernambuco,  nos 
seus  primeiros  tempos,  pertenciam  á  grande  família  in- 
dígena dos  Tupys.  Eram  muito  bellicosos  e  faziam  lon- 
gas jornadas  com  o  fim  de  pelejar,  mas  por  isso  mesmo 
foram  em  grande  parte  destruídos  pelos  Tupinambás, 
que  contra  elles  se  collígaram  ;  os  sobreviventes  acam- 
param definitivamente  na  Parahyba  do  Norte. 


PRIMEIRA  EPOOHA  241 


Os  Tabajaras  também  pertenci;! m  ao  grupo  tupy  e 
foram  dos  primeiros  índios  que  se  alliaram  aos  Por- 
tuguezes. 

Capitania  do  Itaiuaracá.  —  Esta  capitania 
comprehendia  as  10  léguas  de  terras  situadas  entre  o 
rio  Iguarassú  e  a  bahia  da  Traição,  incluindo  também  a 
Ilha  de  Itamaracá.  Foi  doada  a  Pêro  Lopes  de  Souza, 
donatário  da  Capitania  de  Santo  Amaro  e  da  Terra  de 
Sant'Anna,  afim  de  completar  o  seu  lote,  isto  pela  carta 
regia  de  1°  de  Setembro  de  1534,  com  o  foral  de  6  de 
Outubro  do  mesmo  anno. 

Ao  tempo  da  doação  tinham  os  Francezes  na  Ilha  de 
Itamaracá  uma  fortaleza  que  Pêro  Lopes  de  Souza  con- 
seguio  fazer  ronder  e  pouco  depois  construio  o  mesmo 
Pêro  Lopes  uma  outra  na  feitoria  real  dos  Marcos  a 
qual,  com  o  tempo,  veio  fazer  parte  da  Capitania  de 
Duarte  Coelho. 

Vivendo  em  harmonia  com  os  selvagens,  consegui- 
ram os  portuguezes  engrandecer  a  colónia,  que,  ficou 
tendo  por  administrador  João  Gonçalves,  quando  Pêro 
Lopes  se  retirou  para  Portugal. 

Chegado  á  Europa,Pero  Lopes  acompanhou  Carlos  V 
na  sua  expedição  contra  o  pirata  Barbaroxa,  de  Tunis,  e 
pouco  depois,  segundo  se  crê,  pereceu  em  um  naufrágio 
quando  voltava  de  uma  viagem  á  índia.  (1659) 

O  seu  preposto  em  Itamaracá,  João  Gonçalves,  foi 
mais  tarde  nomeado  almoxarife  e  feiíor  régio.  A  elle  se 
deve  a  fundação  da  villada  Conceição,  na  mesma  ilha  de 
Itamaracá,  que  mais  tarde  se  converteu  em  valhacouto 
de  criminosos  e  contrabandistas,  fugidos  das  demais 
capitanias  e  principahnunte  da  de  Pernambuco. 

Itamaracá  reverteu  á  coroa,  por  compra,  em  1743,  e 
as  terras  que  constituíam  a  antiga  capitania  fazem  hoje 
parte  dos  Estados  da  Parahyba  do  Norte  e  Pernambuco. 

Capitania  di»  llaranliao.  —  Esta  capitania 
constava  de  três  lotes  de  terras,  sendo  o  primeiro  as  100 
léguas  de  costa  entre  a  Bahia  da  Traição  e  a  extrema  do 
actual  Estado  do  Rio  Grande  do  Norte,  o  segundo,  de  50 
leguis,  desde  a  abra  do  Diogo  Leite  (foz  do  rio  Gurupy) 
até  apontados  Mangues  Verdes,  o  qual  hojo  tem  o  nome 
de  Cabo  de  Todos  os  Santos,  o  terceiro,  comprehen- 
dendo  as  75  léguas  situadas  entre  a  Ponta  dos  Alangues 
Verdes  e  o  rio  da  Cruz  ou  Camocy . 

16 


242  HISTORIA  DO  BRASIL 


Os  dois  primeiros  lotes  foram  doados  ao  historiador 
João  de  Barros  e  o  terceiro  a  Fernão  Alvares  de  Andrade, 
por  uma  carta  regia  de  1534  e  pelo  foral  de  18  de  Junho 
de  1535. 

Não  podendo  Fernão  Alvares  e  João  de  Barros,  pelos 
grandes  interesses  e  cargos  que  possuíam  era  Portugal, 
abandonar  o  reino,  associaram-se  a  Avres  da  Cunha 
que,  com  uma  ex[jedição  composta  de  mil  colonos  e  cem 
soldados  de  cavallaria,  atravessou  o  Atlântico. 

Na  entrada  da  barra  de  S.  Luiz  naufragaram  os 
navios  de  Ayres  da  Cunha,  salvando-se  apenas  algumas 
pessoas.  Ayres  da  Canha  foi  uma  das  victimas  e  igual- 
mente dois  filhos  de  João  de  Barros,  mallogrando-se  por 
essa  forma  uma  das  mais  esperançosas  tentativas  de 
colonisação  do  Brasil,  quer  pelos  avultados  capitães  de 
que  Ayres  da  Cunha  era  portador,  quer  pelo  grande 
reforço  de  gente  que  trazia. 

Em  1560  Luiz  de  Mello  da  Silva  tentou  novamente 
colonisar  o  Maranhão,  sendo  também  victima  de  um 
naufrágio,  no  mesmo  sitio  em  que  havia  perecido  Ayres 
da  Cunha. 

A  Capitania  do  Maranhão  reverteu  a  Coroa  em  1540 
ou  1570,  e  as  suas  terras  fazem  hoje  parte  dos  Estados 
do  Maranhão  e  Pará. 

Capitania  do  Ceard.  — A  Capitania  do  Ceará 
comprehendia  as  40  léguas  de  costa  que  limitavam  ao 
sul  com  o  lote  de  cem  léguas  de  João  de  Barros  e  ao 
norte  com  o  lote  de  75  léguas  de  Fernão  Alvares.  Foi 
doada  a  António  Cardoso  de  Barros,  por  carta  regia  da- 
tada de  1534. 

Nenhuma  tentativa  fez  o  donatário  para  colonisar 
essa  capitania,  cujo  território  faz  hoje  parte  do  actual 
Estado  do  Ceará. 

A.  viagem  de  Orellana  (1540).  —  Não  podemos 

E assar  adiante  sem  assignalar  a  memorável  viagem  do 
espanhol  Orellana  pelo  Rio  Amazonas,  embora  não 
pertença  tal  assumpto  ao  quadro  do  presente  capitulo. 
Tendo  Francisco  Pizarro,  depois  de  inauditas  bar- 
baridades commettidas  sobre  os  naturaes  e  apoz  ter 
mandado  assassinar  seu  companheiro  Diogo  de  Alma- 
gro,  julgado  que  se  achava  segura  a  autoridade  de  sua 
familia,  no  Peru,  encarregou  seu  irmão  Gonçalo  de  pro- 
longar para  leste  as  conquistas,  suppondo  existir  para 
esse  rumo  o  famoso  El-Dorado,  que  tanto  preoccupava 


PRIMEIRA  EPOOHA  243 


OS  aventureiros.  Esse  facto  determinou  a  primeira  ex- 
ploração do  Rio  Amazonas  e  por  isso  cumpre-nos  men- 
cional-o. 

Gonçalo  Pizarro  marchou  até  ovalle  de  Zumaqué,  a 
trinta  léguas  de  Quito,  onde  se  lhe  reuuiu  com  trinta 
soldados  de  cavallaria  o  fidalgo  hespanhol  Francisco  de 
Orellana,que  logo  foi  pelo  primeiro  nomeado  seu  tenen- 
te-general.De  Zumaque  marcharam  os  hespanhoes,  ven- 
cendo innumera^s  difficuldades  até  a  margem  do  Rio 
Coca  de  onde  Pizarro  ordenou  a  Orellana  que  seguisse 
com  cincoenta  homens  em  um  bergantin  até  encontrar 
uma  região  de  grande  fertilidade  que  os  naturaes  diziam 
existir  nessa  direcção. 

Como  a  corrente  do  Coca  era  fortíssima,  em  três  dias 
Orellana  chegou  ao  Napo,  onde,  tendo  concebido  a  espe- 
rança de  poder  atravessar  o  continente  até  o  Atlântico, 
ponderou  aos  seus  companheiros  que,  não  lhes  sendo  pos- 
sível voltar  atraz  a  reunir-se  com  as  tropas  de  Pizarro, 
nem  aguardar  o  exerci  to  nesse  ponto,  lhes  cumpria  avan- 
çar. Frei  Gaspar  de  Carvajal  e  Horman  Sanches  de 
Vargas  oppuzeram-se  a  esse  projecto,  representando  a 
Orellana  a  miséria  a  que  elle  expunha  o  exercito  de 
Pizarro  ;  o  chefe,  porém,  que  meditava  requerer  á  corte 
a  conquista  dos  paizes  que  julgava  poder  descobrir, 
enfureceu-se  com  as  observações  dos  dois  e,  mandando 
pôr  em  terr.i  Sanches  de  Vargas,  seguiu  viagem.  Após 
longos  mezes  de  penosa  naveg  ição  pelo  Amazonas  e 
seus  aflluentes  desembocou  a  26  de  Agosto  de  1540  no 
Atlântico  ;  ahi  carregou  sobre  o  rumo  donortono  littoral 
c  depois  de  refrescar  no  golfo  de  Pariá  fez-se  de  vela 
para  a  Hespanha. 

O  monarcha  castelhano  recebeu-o  com  agrado, 
nomeou-o  governador  das  terras  descobertas,  com  ex- 
cepção das  ilhas  e  ás  mesmas  terras  conferio  o  nome  de 
Aueva  Andaluzia.  Orellana  voltou  ao  Amazonas,  porém 
não  conseguiu  fundar  o  estabelecimento  que  pretendia, 
por  tel-o  acommettido  uma  enfermidade  que  em  poucos 
dias  o  levou  ao  tumulo. 


CAPITULO  IX 

o  BRASIL  NO  REGIMEN  DAS  CAPITANIAS 


Por  esse  anachronico  regimen  das  capitanias  here- 
ditárias que  D.  João  III  estaÍDelecera  no  Brasil,  systema 
que  o  illustrado  escriptor  brasileiro  Sylvio  Romero  de- 
nomina com  muita  propriedade  o  néo-feudalismo  bra- 
sileiro, a  sociedade  colonial  dividia-se  em  três  classes 
—  fidalgos,  peões  e  gentios,  aos  quaes  podiam  equipa- 
rar-se  para  muitos  eífeitos  judiciários  a  classe  dos  es- 
cravos, (Índios  ou  africanos),  sem  privilégios  nem 
garantias  de  espécie  alguma,  antes  cousas  que  pessoas. 

Da  primeira  classe  sabiam  os  donatários  ou  capi- 
tães-móres,  senhores  quasi  absolutos  dentro  dos  limites 
de  suas  capitanias,  e  apenas  reconhecendo  o  rei  como 
suzerano ;  delia  também  sabiam  a  maior  parte  dos 
sesmeiros  e  os  parasitas  e  desvairados  aventureiros  que 
pela  sua  depravação  se  tornavam  importunos  na  metró- 
pole; os  peões  davam  os  colonos  e  os  homens  bons  ;  a 
terceira  classe  era  a  dos  africanos  e  Íncolas  que  arre- 
mettiam  continuamente  contra  o  usurpador  que  lhe  de- 
vassava as  florestas  ou  se  submettiam  medrosos  ao  por- 
tuguez,  na  inconsciência  do  seu  valor  numérico  e  da 
sua  energia  guerreira  de  americano. 

«  Não  ó  preciso  dizer  muito,  escreve  o  notável 
publicista  Dr.  Martins  Júnior  na  sua  Historia  do 
Direito  Nacional,  para  debuxar-se  a  largas  pince- 
ladas de  factos,  o  painel  da  vida  colonial  brasileira  na 
primeira  metade  do  século  16. 

«  Socialmente,  o  que  avultava  no  paiz  era  um  ex- 
tranho  péle-mêle  de  raças  a  repellirem-se  aqui  e  a 
cruzarem-se  acolá  e  de  colonos,  aventureiros,  degra- 
dados e  escravos  a  chocarem-se  e  a  explorarem-se  por 
toda  a  parte . 

«  Economicamente,  o  que  se  via  era  um  rudimen- 
tarismo  commercio  interno,  apoiado  sobre  uma  não 
menos  rudimentar  exploração  do  solo,  imposta  a  ver- 
galho  ao  negro  para  a  cultura  de  alguns  cereaes  e  espe- 


246  HISTORIA  DO  BRASIL 

cialmente  da  canna  —  matéria  prima  dos  engenhos  de 
assucar. 

«  Juridico-polilicamente,  o  inventario  dos  institutos 
coloniaes  dava  em  resumo  um  pequeno  numero  de 
senhores  absolutos  e  despóticos,  independentes  entre  si, 
vassallos  de  uma  coroa  longiaqua,  e  detentores  de  um 
formidável  poder  de  administr.ir  e  julgar,  só  limitado 
pelo  arbítrio  individual  e  próprio.  » 

Eis  a  synthese  perfeita  da  vida  colonial  no  Brasil, 
ou  antes  na  fita  branca  das  praias,  pois  a  população 
alienígena  não  se  atreve  ainda  nesse  período  a  devassar 
o  sertão,  transpondo  as  serras  elevadas  que  se  empinam 
apoucas  léguas  do  nur.  O  macegal  dos  campos  onde  a 
vista  não  encontra  pouso  ou  a  iminensidão  escura  das 
florestas  apavoram  por  emquanlo  o  homem  de  além  mar. 

S.  Paulo  e  Iguassú,  quo  são  os  núcleos  niais  inte- 
riores, distam  poucas  léguas  do  oceano. 

Mas  deixemos  que  o  provecto  escriptor  tire  por  si 
as  deduções  analyticas  da  synthese  que  tão  bem  for- 
mulou: 

«  E'  claro,  continua  Martins  Júnior,  que  uma  tal 
organisação  trazia  no  bojo  os  seus  elementos  de  morte. 
As  leis  históricas  e  especialmente  a  grande  dominadora 
de  todas  elias  —  a  da  evolução,  não  supportam  re- 
prezas  e  muito  menos  retrocessos. 

Numa  epocha  emqueaedade  moderna,  ao  estrondo 
da  queda  de  Constantinopla,  convidava  o  mundo  a  ligar 
o  presente  ao  passado  pela  Renascença,  e  ao  futuro  pela 
constituição  politica  das  grandes  nacionalidades  e  si- 
multaneamente pela  encorporação  ao  património  do 
continente  europeu  de  novos  continentes  entrevistos,  a 
superfetação  feudal,  levada  a  uma  região  virgem  onde 
as  tradições  eram  as  da  simpleza  primitiva  e  não  as  das 
pretenciosas  distinções  aristocr  ticas,  certo  que  não 
podia  vingar.  O  próprio  instituidor  do  regimen  havia  de 
reconhecer  isso,  deliberando-se  dentro  de  pouco  tempo 
areformal-o,  para  pòl-o  de  accòrdo  com  a  situação  po- 
litica da  Europa,  caracíerisada  no  mumentu  pela  reacção 
centralisadora,  unitária  e  absolutista  da  realeza  contra 
a  dispersão  federativa  do  feudalismo. 

«  Demais  a  anarchia  que  logo  começou  a  lavrar 
intensamente  nas  capitanias  era  um  syujptoma  de  grave 
moléstia  a  debellar  por  meio  de  uma  medicação  enér- 
gica. Com  excepção  dos  de  Pernambuco  e  S.  Vicente, 


PRIMEIRA  EPOOHA  247 


OS  vários  núcleos  coloniaes  fundados  no  littoral  brasi- 
leiro affundavam  numa  insondável  degenerescência 
material  e  moral.  O  trabalho  escravo,  extorquido  a  chi- 
cote, caminhava  lento  e  pouco  productivo,  ao  passo  que 
os  mares  «  estavam  peiores  do  que  nesse  tempo  os  de 
Tunis  e  Argel»  porque  em  muitas  das  povoações  «se 
armavam  navios  de  contrabandistas,  ou  para  melhor 
dizer  de  piratas,  que  iam  a  corso  pela  costa.» 

«  Os  ciúmes  e  intrigas  entre  os  donatários  ou  seus 
representantes  davam  logar  a  péssimas  praticas  admi- 
nistrativas, taes  como  os  asylos  ou  acoutamentos  con- 
cedidos a  criminosos  que  se  evadiam  de  umas  para 
outras  capitanias. 

«  Os  excessos,  os  abusos  do  poder  dos  capitães  go- 
vernadores, que  se  aproveitavam  da  sua  ampla  juris- 
dição criminal  sobre  os  colonos  para  tomarem  vinganças 
brutaes  e  praticarem  crueldades  excusadas,  —  alar- 
mavam e  revoltavam  os  habitantes. 

c<  Por  outro  lado  o  rebaixamento  do  nivel  moral  das 
capitanias  afrouxava  todos  os  laços  sociaes,  dissolvia 
os  costumes,  apagando  os  sentimentos  de  sociabilidade 
e  de  justa  subordinação  á  ordem  legal.  Os  vicios  dos 
escravos  e  dos  degradados  contaminavam  tudo,  e  nté 
entre  as  «pessoas  de  maior  qualidade»  não  eram  raros 
os  desvios  e  crimes  de  toda  a  ordem.  Varnhagen,  a 
quem  nos  reportamos  para  fazer  esta  synthese  da  si- 
tuação dos  nossos  primeiros  focos  de  população  e  cul- 
tura, informa  a  respeito:  «  Cumpre  saber  que  a  desmo- 
ralisação  e  irreligiosidade,  em  varias  das  capitanias 
nascentes,  chegou  a  tal  ponto  que  secommettiam  assas- 
sinatos, entrando  no  numero  dos  criminosos  alguns 
ecclesiasticos.  » 

Os  negros. — Os  primeiros  navios  portuguezes 
que  aportaram  ao  Brasil  já  traziam  escravos  africanos 
que  serviam  de  criados  aos  com  mandantes  e  mais  pes- 
soas gradas  que  vinham  a  bordo.  A  própria  esquadra 
de  Cabral  trazia-os,  talvez  para  que  servissem  de  inter- 
pretes. 

Taes  negros,  porém,  apenas  cursavam  as  costas 
com  seus  senhores  ou  amos ;  mas,  ao  estabelecer-se  o 
regimen  das  capitanias,  começaram  a  ser  introduzidos 
em  grande  escala  no  paiz,  pois  os  foraes  concedidos  aos 
donatários  facultava  a  estes  o  direito  de  utilisal-os 
como  escravos. 


248  HISTORIA  DO  BRASIL 

Na  introducção  deste  livro  já  vimos  que  os  ne- 
gros trazidos  para  o  Brasil  pertenciam  na  sua  maioria 
ao  grupo  que  primeiramente  o  capitão  inglez  Bleek  e  de- 
pois Hovelacque  deram  o  nome  de  baniu.  Nessa  primeira 
epocha  da  historia  do  Brasil  porém,  quasi  todos  os 
africanos  vinham  especialmente  de  Guiné,  de  onde  eram 
transportados  primeiramente  para  Cabo  Verde. 

Os  negros,  além  de  fecundar  com  o  seu  trabalho  a 
terra  virgem  do  Brasil,  da  qual  brotaram  os  extensos 
cannaviaes  e  todas  as  outras  culturas  primitivas,  fez  pelo 
seu  braço,  poucas  vezes  alliado  ao  do  indio,  geralmente 
insubmisso,  surgiras  povoações  que  em  grande  numero 
e  dentro  de  poucos  annos  estrellaramo  littoraldo  Brasil, 
e  bem  assim  os  numerosos  engenhos,  as  fortalezas,  os 
templos  e  todos  os  padrões  do  progresso  na  incipiente 
colónia  portugueza,  e  isto  tudo  recebendo  em  paga  so- 
mente injurias  e  castigos  atrozes. 

Os  negros  introduziram  no  Brasil  algumas  cul- 
turas especiaes,  taes  como  a  dos  quiabos,  dos  ma- 
xixes,_  do  capim  d'Angola  que  se  reputa  forragem  de 
primeira  ordem,  do  coqueiro  de  dendé,  cujo  óleo  ainda 
é  hoje  tão  apreciado,  dos  guandos,  da  malagueta,  e  até 
do  feijão  preto,  segundo  alguns  autores. 

Finalmente,  a  Africa  por  intermédio  de  seus  pobres 
filhos  enriqueceu  a  lingua  p  rtuguczade  muitos  vocá- 
bulos novos  que  tornaram  o  dialecto  brasileiro  muito 
mais  opulento  e  variado  na  euphonia  de  suas  expressões 
do  que  a  lingua  mãe. 

Os  Índios.— Pelos  foraes  concedidos  pelo  rei  aos 
donatários  de  capitanias  no  Brasil  os  Índios  também  po- 
diam ser  escravisados  ;  a  resistência,  porém,  que  estes 
oppunham  ao  captiveiro  e  a  facilidade  que  tinham  de 
quebrar  as  cadeias  do  mesmo  e  ganhar  a  selva  próxima, 
onde  sabiam  encontrar  asylo  seguro,  difficultavam  muito 
a  sua  servidão.  Além  disso  era  tão  profundo  nos  selva- 
gens brasileiros  o  amor  pela  mdependencia  selvagem  que 
grande  numero  delles  morriam  quando  não  podiam  evi- 
tar o  captiveiro.  Assim,  no  regimen  das  capitanias,  o 
portuguez  muitas  vezes  se  contentava  em  viver  em  boa 
harmonia  com  o  indio  da  cabil  la  visinha  e  utilisar  o  seu 
trabalho  mediante  uma  pequena  paga,  o  que  aliás  tam- 
bém não  produzia  resultado,  pois  o  indio  tinha  a  maior 
repugnância  a  qualquer  trabalho~regular. 


PEIMEIEA  EPOCHA  249 


Os  índios  commu mearam  aos  portuguezes  diversas 
culturas  taes  eomo  a  da  mandioea,  do  inhame,  da  tayoba 
dos  caras,  do  aipim,  da  bananeira,  do  milho,  etc.  e  bem 
assim  diversos  usos  como  o  do  emprego  dos  cipós  nas 
construcções,  em  substituição  aos  pregos,  o  systema  de 
derrubar  as  mattas  e  encoivarar,  certos  processos  de 
caça  e  pesca,  e  mais  tarde  o    uso  do  fumo  que  tanto  se 


CAPITULO  X 

GOVERNO  GERAL  DE  THOMÉ  DE  SOUZA 


O  systema  de  colonisação  do  Brasil  por  meio  de  ca- 
pitanias hereditárias,  posto  em  pratica  por  João  III,  não 
produzira  os  resultados  que  o  monarcha  portuguez 
esperava. 

Esse  systema,  como  vimos  em  precedentes  capitulos, 
era  um  arremedo  do  feudalismo,  organisaçâo  politica 
que  já  tinha  sido  abolida  na  Europa,  onde,  desde  Luiz  XI 
começou-se  a  reconhecer  a  necessidade  da  centralisação 
administrativa,  e  que,  por  fornia  alguma  poderia  medrar 
no  Brasil  onde  o  numeroso  gentio,  sem  tracciona- 
lismo  religioso,  nem  respeito  aos  fores  legendários  da 
nobreza,  nunca  poderia  sujeitar-se  á  triste  condição  de 
servo  da  gleba. 

Os  exaggerados  privilégios  que  desfructavam  os 
donatários  eram  a  válvula  aberta  a  todas  as  arbitrarei- 
dâdes,  e  parte  da  população  colonial,  composta  de  fi- 
dalgos aventureiros  naturalmente  insubmissos,  ou  de 
degradados,  rebeldes  por  indole  a  qualquer  arregimen- 
tação  ordeira,  de  continuo  perturbava  a  tranquillidade 
nos  núcleos  e  embaraçava  o  seu  desenvolvimento  dos 
mesmos. 

Accrescentando-se  a  isso  as  terríveis  represálias  do 
gentio,  motivadas  pelas  barbaridades  sobre  elles  com- 
mettidas,  o  immoral  direito  de  couto  e  homisio  que 
enchia  as  capitanias  de  malfeitores,  as  depredações  dos 
piratas  e  o  desprezo  dos  traficantes  estrangeiros  por 
essas  populações  reduzidas,  que  nem  lhes  podiam  resis- 
tir, nem  de  parto  alguma  recebiam  soccorro,  facilmente 
se  comprehenderà  quão  precária  era  a  situação  do  Brasil 
na  primeira  phase  do  colonato. 

Assim,  D.  João  III  procurando  introduzir  mais 
ordem  na  administração  colonial  e  proporcionar  segu- 
rança á  população,  resolveu  crear  um  governo  geral  no 
nosso  paiz,  cassando  os  extraordinários  privilégios  que 
havia  concedido  aos  capitães-móres  e  dos  quaes  estes 
tinham  abusado  ou  não  tinham  sabido  gosar.  Assim, 


252  HISTORIA  DO    BEÍ.BIL 

iniciou-se  logo  «  a  necessária  reacção  do  systema  cen- 
tralisador  sobre  o  feudal  —  reacção  que  só  dois  séculos 
depois  viria  a  ser  completa  e  definitiva  pela  encorpora- 
ção  á  coroa  de  todas  as  terras  doadas,  mas  que  con- 
vinha ser  apressada  por  innumeras  razões  de  ordem 
politica  e  económica.  »  (1) 

Em  1548,  epocha  em  que  D.  João  III  creou  o  go- 
verno geral  já  três  dos  primitivos  donatários  haviam 
morrido  e  dois  se  limitavam  a  assignar  uma  ou  outra 
providencia  que  lhes  pediam  os  seus  prepostos.  »  Resta- 
vam pois,  além  de  Duarte  Coelho,  quatro:  destes,  um 
(Pêro  de  Campos)  morreu  logo,  dois  (Pêro  Góes  e  Car- 
doso de  Barros)  nada  tinham  de  seu,  e  o  quarto  (Vasco 
Fernandes)  já  nenhuma  influencia  nos  seus  súbditos,  e 
e  se  considerava,  por  vários  titules,  de  todo  perdido.  (2) 

Para  sede  do  governo  foi  escolhida  a  Bahia  que  Ma- 
noel Coutinho  herdeiro  do  infeliz  Francisco  Pereira  Cou- 
tinho tinha  cedido  á  coroa,  mediante  um  padrão  de 
quatrocentos  mil  réis  de  juro  por  anno,  pagos  pela  redi- 
zima  da  mesma  capitania  e  vinculados  para  si  e  seus 
herdeiros  ;  para  governador  geral  foi  nomeado  Thomó  de 
Souza,  fidalgo  do  conselho  do  rei,  filho  natural  de  uma 
das  pnmeiras  casas  de  Portugal  e  distincto  por  seus 
grandes  dotes  governativos  e  pelo  valor  e  prudência  que 
provara  em  muitas  occasiões  difficeis  na  Africa  e  na 
Ásia. 

Regiiuciito  dado  a  Thoniéde  Sioiíza. — Tran- 
screvemos aqui  o  regimento  que  Thomé  de  Souza  trouxe 
para  o  Brasil  e  que  vigorou  como  lei  para  os  governado- 
res e  seus  successores,  até  1677  em  que  se  deu  ao  gover- 
nador Roque  da  Costa  Barreto  um  novo  regimento. 

Pela  sua  leitura  far-se-á  uma  idéa  mais  perfeita  do 
novo  regimen  que  era  inaugurado  no  Brasil. 

Eil-o  : 

«  Querendo  el-rei  conservar  e  ennobrecer  as  terras 
do  Brasil,  e  dar  ordem  á  sua  povoação,  tanto  para  exal- 
tação da  fé,  como  para  proveito  do  reino,  resolve  man- 
dar uma  arjiiada  com  gente,  artilheria,  munições  e  todo 
ornais  necessário  para  se  fundar  uma  fortaleza  e  povoa- 


(1)  J.  IziDORO  Martins    ív^ior.— Historia  do  Direito  Nacio- 
nal. 

(2)  V ARtiHAGEN. —Eisioria  geral. 


PRIMEIRA  EPOCHA  253 


cão  grande  na  Bahia  de  Todos  os  Santos,  donde  se  possa 
âar  favor  e  ajuda  ás  mais  povoações,  e  prover  nas  cousas 
de  justiça,  direito  das  partes  e  negócios  da  real  fazenda, 
e  ha  por  bem  nomear  a  Thomé  de  Souza,  pela  muita  con- 
fiança que  faz  da  sua  pessoa,  para  governador  geral  do 
Brasil,  e  capitão  da  fortaleza,  em  cujos  cargos  observará 
as  seguintes  disposições  : 

Irá  directamente  á  Bahia,  e  logo  que  chegue,  deve 
apossar-se  da  cerca  ou  fortificação  que  havia  feito  o  do- 
natário Francisco  Pereira  Coutinho,  e  onde  consta  que 
ainda  ha  povoadores  christãos,  empregando  para  isso  a 
força,  se  fòr  mister,  e  o  mais  a  seu  salvo  que  Ihefôr  pos- 
sível. Todavia,  como  consta  que  este  local  não  é  dos  mais 
apropriados,  o  estabelecimento  que  fizer  nelle  será  de 
natureza  provisória  —  e  deve  escolher  outro  mais  pela 
bahia  dentro,  tendo  attenção  á  capacidade  do  ancora- 
douro, á  bondade  dos  ares  e  aguas,  e  abundância  dos 
provimentos,  com  que  pelo  tempo  adiante  venha  a  po- 
voação a  ser  cabeça  de  todas  as  capitanias.  Para  isso 
leva  o  governador  pedreiros,  carpinteiros  e  varias  ache- 
gnas. 

O  principal  fim  porque  se  manda  povoar  o  Brasil  é 
a  reducção  do  gentio  á  fé  catholica.  Este  assumpto  deve 
o  governador  pratical-o  muito  com  os  demais  capitães. 
Cumpre  quo  os  gentios  sejam  bem  tratados,  e  que  no 
caso  de  se  lhes  fazer  damno  e  moléstia,  se  lhes  dê  todo  o 
reparo,  castigando  os  delinquentes. 

Entretanto  consta  que  os  gentios  da  linhagem  dos 
tupinambás,  derramados  em  numero  de  alguns  milhares, 
assim  pelas  ilhas  do  golfo,   como  por  toda  acosta  da 
Bahia,  e  da  visinha  capitania  de  Jorge  de  Figueiredo,  se 
levantaram,  molestando  e  fazendo  guerra  a  este,  expul- 
sando o  donatário  da  Bahia,  e  destruindo-lhe  as  fazen- 
das, com  cujo  exemplo  os  das  capitanias   visinhas  se 
tinham  também  animado  a  iguaes  attentados.  Delles  ha 
porém,  como  os  tupiniquins,  que  por  inimigos  dos  tupi- 
nambás e  desejosos  de  lhes  fazer  guerra,  andam  incli- 
nados á  nos  sa  alliança.  iMas  todos  emfim  estão  na  ex- 
pectativa do  que  farão  os  portuguezes,  e  só  esperam  a 
sua  resolução  para  também  a  tomarem.  Pelo  que  logo 
que  o  governador  estiver  de  assento  e  assaz  fortificado 
na  terra,  indague  bem  quaes  são  os  amigos  e  os  inimi- 
gos ;  aquelles  para  chamal-os  com  bons  termos,  ajudan- 
dando-se  delles  na  guerra,  mas  sempre  acautelado,  e 


254  HISTORIA  DO  BRASIL 

despedindo-os,  logo  que  os  possa  escusar  ;  a  estes  para 
os  reprimir  e  castigar,  consultando  esta  matéria  com  os 
homens  práticos,  e  com  os  capitães  das  povoações  visi- 
nhas  e  bem  disposto  saia  a  destruir-Uias  as  aldeias  e  po- 
voações, matando,  captivando  e  expulsando  o  numero 
que  lhe  parecer  bastante  para  castigo  e  exemplo  ;  e  de- 
pois lhe  conceda  paz  e  perdão,  se  o  pedirem,  sob  condição 
de  renderem  vassalagem  e  sujeição  e  de  dari  m  manti- 
mentos para  a  povoação.  Mas  entretanto  que  negociar  as 
pazes,  faça  por  colher  ás  mãos  alguns  dos  principaes 
que  tiverem  sido  cabeças  dos  levantamentos  e  os  mande 
enforcar  por  justiça  nas  suas  mesmas  aldeiíis. 

Não  obstante  porém  estas  determinações,  e  atten- 
dendo  á  falta  de  intelligencia  dos  gentios,  e  o  quanto 
convém  attrahil-os  á  paz  para  o  fim  da  propagação  da 
fé,  e  augmento  da  povoação  e  commercio,  o  melhor  será 
em  todo  o  caso  conceder-Ihes  perdão,  induzindo-os  a  que 
o  peçam . 

Com  isto  se  escusará  a  guerra,  tão  opposta  aos  de- 
sígnios manifestados. 

Aos  Índios  amigos,  que  as  quizerem,  concederá  ter- 
ras ;  mas  os  convertidos  por  nenhum  caso  fiquem  nas 
aldeias  com  os  gentios  ;  devem  estabelecer- se  junto  ás 
povoações  porque  com  o  trato  dos  christãos  mais  facil- 
mente se  hão  de  policiar.  Os  meninos  sobretudo  convém 
ter  apartados  dos  mais,  porque  nelles  a  doutrina  fará 
mais  fructo. 

Consta  que  algumas  pessoas,  que  tem  navios  e  ca- 
ravellas  no  Brasil,  e  navegam  de  umas  para  outras  capi- 
tanias, costumavam  saltear  e  roubar  os  gentios  de  paz 
por  diversos  modos,  attrahindo-os  enganosamente  a 
bordo,  e  indo  depois  vendel-os  a  outras  partes,  e  até  a 
próprios  inimigos,  donde  resultava  levantarem-se  o? 
mesmos  gentios,  e  fazerem  guerra  aos  christãos,  sendo 
esta  a  principal  causa  das  desordens  que  tinham  havido. 
(1)  Pelo  que  fica  de  ora  em  diante  pruhibido  saltear  e 
fazer  guerra  ao  gentio  por  mar  ou  terra,  in  la  que  es- 
tejam levantados,  sem  licença  do  governador  ou  dos  ca- 
pitães, que  só  a  darão  a   pessoas  de  confiança. . .    Aos 


(1)  Effectivamente,  como  já  vimos,  a  destruição  da  capitania 
da  Parahyba  pelos  Índios  Goytacazes,  foi  motivada  por  um  facto 
desta  natureza. 


PRIMEIRA  EPOCHA  255 


contraventores,  pena  de  morte,  e  de  perda  de  toda  sua 
fazenda. 

E  como  as  leis  do  reino  prohibem  ministrar  armas 
a  mouros  e  infiéis,  fica  também  defeso  dal-as  ao  gentio 
do  Brasil,  de  qualquer  feição  que  sejam,  offensivas  ou 
defensivas,  sob  pena  de  morte,  e  perda  de  todos  os 
bens,  e  perguntando-se  todos  os  annos  sobre  este  parti- 
cular nas  devassas  geraes.  Esta  prohibição  não  compre- 
hende  machados,  machadinhas,  fouces  de  cabo  redondo, 
facas  pequenas,  e  tesouras  de  dúzia,  as  quaes  cousas 
concorrerão  por  moeda  com  os  preços  que  se  lhes  taxa- 
rem. 

Ainda  assim  a  excepção  declarada  não  terá  logar, 
emquanto  el-rei  não  mandar  a  dispensa  que  tem  solici- 
tado do  papa. 

Um  dos  primeiros  cuidados  do  governador,  logo  que 
chegue  â  Bahia,  será  informar-se  dos  capitães,  que  cor- 
sários, e  em  que  força  correm  a  costa,  pois  a  perseguição 
e  destruição  delles  é  indispensável  á  prosperidade  do 
Brasil.  Assim  que,  logo  que  sobre  isso  estiver  bem  in- 
formado, irá  ou  mandará  tomal-os,  procedendo  contra 
elles  na  forma  da  provisão  especial  que  leva,  afim  que 
o  temor  do  castigo  os  inhiba  de  frequentar  para  o  futuro 
aquellas  paragens. 

Para  que  essa  perseguição  seja  efficaz,  cumpre  pro- 
ver á  construcção  de  navios.  O  governador  deve  pois 
mandal-os  fabricar  e  artilhar  para  serem  empregados 
neste  mister,  ou  em  qualquer  outro  do  real  serviço, 
assim  na  Bahia  como  nas  demais  capitanias,  dando  conta 
a  el-rei  do  que  mais  cumprir  para  n'isso  prover  mais 
largamente. 

Para  a  segurança  e  defesa  das  povoações  e  fortale- 
zas do  Brasil,  os  capitães  e  os  senhores  de  engenho,  nos 
quaes  haverá  sempre  torres  ou  casas  fortes,  serão  obri- 
gados a  ter,  a  saber  :  cada  capitão  em  sua  capitania, 
pelo  menos  dous  falcões,  seis  berços,  seis  meios  berços, 
vinte  arcabuzes,  a  pólvora  necessária,  vinte  bestas,  vinte 
lanças,  quarenta  espadas  e  quarenta  corpos  d'armas  de 
algodão,  dos  que  se  usam  no  Brasil  ;  e  os  senhorios 
dos  engenhos  ao  menos  quatro  berços,  dez  espingardas, 
a  pólvora  precisa,  dez  bestas,  dez  lanças,  vinte  espadas 
e  vinte  corpos  d'armas  de  algodão.  E  tod3  o  morador 
que  tiver  no  Brasil  casas,  terras,  aguas  ou  navio,  terá 
pelo  menos  besta,  espingarda,  lança  e  espada.  Serão  no- 


256  HISTORIA  DO  BRASIL 

tificados  para  se  proverem  dessas  armas  dentro  de  um 
anno,  e  findo  esse  prazo  pagarão  em  dobro  a  valia  das 
que  faltarem. 

O  provedor-mór,  quando  correr  as  capitanias,  fisca- 
íisará  a  execução  desta  disposição,  applicando  a  pena 
aos  culpados.  Na  sua  ausência  os  provedores  da  capita- 
nia farão  autos,  e  lh'os  remetterão  para  os  julgar.  Porém 
a  jurisdicção  do  provedor  nesta  parte  é  limitada  aos  ca- 
pitães, quanto  ás  demais  pessoas,  compete  aos  mesmos 
capitães. 

Havendo  destas  armas  nos  armazéns  reaes,  serão 
dadas  ás  pessoas  que  so  quizerem  prover  d'ellas,  pelos 
preços  que  lá  ficam  postas.  O  governador  proverá  â 
construcção  de  navios  de  remos,  de  quinze  bancos  ao 
menos,  e  d'ahi  para  cima. 

As  munições  e  apparelhos  necessários  para  elles 
serão  livres  de  direito  ;  e  mais  terá  o  premio  de  quarenta 
cruzados,  pagos  pela  fazenda  real  do  Brasil,  quem  as  fa- 
bricar de  dezoito  bancos  para  cima.  Entretanto  ninguém 
os  poderá  fabricar  sem  licença  do  governador,  estando 
presente,  e  na  sua  ausência  do  provedor-mór  ;  e  na  de 
ambos  dos  provedores  das  capitanias. 

O  governador  estabelecerá  feiras  nas  villas  e  povoa- 
ções, uma  ou  mais  vezes  por  semana,  em  que  os  gentios 
venham  comprar,  vender  e  escambar.  Ainda  em  dias 
que  não  forem  de  feira,  se  os  christãos  tiverem  necessi- 
dade de  alguma  cousa,  poderão  ir  compral-a  aos  gen- 
tios, onde  lhes  convier,  precedendo  licença  do  capitão 
respectivo. 

A's  aldeias  dos  índios  só  poderão  ir  os  senhorios 
e  moradores  dos  engenhos,  podendo  todavia  esta  facul- 
dade ser  limitada  a  prudente  arbitrio  do  governador. 

Com  os  capitães  e  ofíiciaes  de  fazenda  taxará  o  preço 
aos  fructos  da  terra,  e  ás  fazendas  que  forem  do  reino 
e  mais  parles  com  que  o  tenham  certo  e  razoável,  c  por 
elle  se  possam  comprar,  vender  e  escambar. 

Em  virtude  do  foral  dado  ás  capitanias  pertence  a 
el-rei  todo  o  pau  brasil  ;  e  como  as  pessoas  a  quem  se 
deu  licença  para  o  haverem,  o  resgatam  pnr  preços  ex- 
cessivos, afim  de  o  conseguirem  mais  promptamente  — 
do  que  se  seguem  muitos  inconvenientes  -o  governador 
com  o  provedor-mór,  capitães  e  mais  officiaes  proveja 
nisso,  taxando-lhe  preço  razoável,  que  se  assentará  nos 
livros  dos  camarás. 


PEIMEIEA  EPOOHA  257 


Quando  fôr  correr  as  capitanias,  acompanhar-se-ha 
do  provedor-mór,  para  com  elle  informar-se  dos  impos- 
tos e  rendas  que  houver  em  cada  uma,  o  modo  de  sua 
arrecadação  e  dispêndio,  dos  officiaes  de  fazenda  exis- 
tentes, provendo  interinamente  os  que  faltarem,  até 
el-rei  os  prover  definitivamente,  ouvindo  sempre  o  pro- 
vedor-mór, e  seguindo  em  tudo  o  seu  regimento,  onde 
mais  largamente  se  provê  nesta  matéria. 

O  termo  da  cidade  será  para  cada  lado  de  seis  lé- 
guas, ou  as  que  se  poderem  achar.  O  governador  as 
fará  demarcar  e  logo  que  estiver  de  assento,  dal-os-ha 
de  sesmaria  a  quem  as  quizer,  nunca  maior  porção  que 
aquella  que  a  cada  um  fôr  possível  aproveitar,  sob  a 
condição  de  virem  os  sesmeiros  residir  na  Bahia,  de  não 
alienarem  as  terras  durante  os  três  primeiros  annos,  ao 
-mais  disposto  no  foral,  e  na  Ord.  doL.  4° das  sesmarias. 
O  governador  guardará  todavia  as  concessões  anteriores 
comtanto  que  os  respectivos  sesmeiros,  que  serão  imme- 
diatamente  avisados  nos  legares  onde  se  acharem, 
venham  para  a  Bahia  no  primeiro  navio,  afim  de  apro- 
veital-as  nos  termos  supramencionados,  sob  pena  de  se 
darem  a  outros.  A  nenhum  outro  foro  ou  pensão  ficarão 
sujeitas  aquellas  terras,  além  do  dizimo. 

Dar-se-hão  também  de  sesmaria  as  terras  das  ri- 
beiras visinhas,  a  pessoas  que  tenham  posses  para  esta- 
belecerem engenhos  de  assucar  ou  outras  cousas  dentro 
de  um  certo  prazo  que  lhes  será  assignado,  e  sob  con- 
dição de  levantarem  nelles  torres  ou  casas  fortes  suffi- 
cientes  para  defensão  dos  mesmos  engenhos,  e  povoação 
dos  seus  respectivos  limites.  Os  engenhos  serão  assen- 
tados, quanto  fôr  possível,  na  proximidade  das  villas, 
para  sua  mais  fácil  defesa,  e  vistos  os  graves  inconve- 
nientes que  resultam  de  sua  grande  distancia  e  dissemi- 
nação. 

Mais  serão  obrigados  os  proprietários  dos  engenhos 
a  moer  a  canna  dos  lavradores  visinhos,  que  os  não 
tiverem,  ao  menos  seis  mezes  no  anno,  recebendo  por 
paga  a  porção  de  canna  que  o  governador  taxar.  Estas 
reciprocas  obrigações  serão  declaradas  nas  cartas  de 
sesmarias. 

Quanto  ás  mais  terras  além  do  limite  da  cidade  até 
o  rio  de  S.  Francisco,  que  limita  a  capitania  de  Duarte 
Coelho,  o  governador  iníormar-se-ha  de  sua  situação, 

17 


258  HISTORIA  DO  BRASIL 

extensão  e  qualidade  e  dos  pretendentes  que  houver  a 
ellas,  que  meios  tem,  e  para  que  género  de  cultura  as 
querem,  dando  comprida  informação  de  tudo  a  el-rei 
para  resolver. 

Nos  primeiros  cinco  annos  não  se  poderão  dar  ter- 
ras da  Bahia  aos  moradores  das  outras  capitanias,  aos 
quaes  nem  mesmo  será  permittido  passar  a  ella  durante 
o  mesmo  prazo.  Esta  prohibição,  porém,  não  será  appli- 
cavel  áquelles  que  já  alli  tiverem  concessões  anteriores, 
acerca  dos  quaes  já  fica  legislado. 

Tudo  quanto  se  dispõe  para  a  Bahia  em  relação  ás 
sesmarias  é  applicavel  ás  demais  capitanias . 

E'  de  muita  conveniência  descobrir  as  terras  pelo 
sertão  dentro.  A  este  intento  o  governador  mandará  al- 
guns bergantins  toldados  pelo  rio  de  S.  Francisco,  e 
outros,  com  linguas  e  práticos,  pondo-se  marcos,  to-- 
mando-se  o  que  fôr  para  notar  e  participando-se  tudo  a 
el-rei . 

Ninguém  poderá  ir  pelas  terras  a  dentro,  e  commu- 
nicar  de  umas  para  outras  capitanias  pelos  sertões,  vis- 
tos os  inconvenientes  que  d'ahi  se  seguem,  ainda  estando 
as  mesmas  terras  de  paz —  sem  licença  do  governador, 
capitães  ou  provedores, — pena  aos  contraventores,  sendo 
peão  —  de  açoutes  —  e  sendo  pessoa  de  mór  qualidade 
de  vinte  cruzados.  Taes  hcenças,  comtudo,  si  não  con- 
cederão sináo  a  pessoas  de  muito  recado,  informando-se 
primeiro  a  autoridade  si  ellas  não  são  precisas  na  re- 
spectiva capitania,  e  si  não  estão  ellas  sujeitas  a  alguma 
oorigação.  O  capitão  que  receber  algum  individuo  na 
sua  capitania  sem  que  este  lhe  apresente  licença,  pagará 
cincoenta  cruzados.  Aos  degradados  em  caso  algum  será 
permittido  sahir  das  capitanias  que  lhes  houverem  sido 
assignadas  para  cumprirem  suas  sentenças. 

O  governador  correrá  todas  as  capitanias,  acompa- 
nhado do  provedor-mór,  e  com  elle,  os  respectivos  capi- 
tães, ouvidores  e  oííiciaes  de  fazenda,  consultará  tudo 
quanto  importar  á  sua  boa  governação  e  defesa,  fazendo 
levantar  cercas  onde  as  não  houver  e  reparar  as  exis- 
tentes. 

O  governador  poderá  : 

Prover  em  oííiciaes  de  justiça  e  fazenda  os  degrada- 
dos que  prestarem  bons  serviços  nas  armadas  ou  em  terra, 
exceptuados  somente  os  condemnâdos  por  furto  ©falsi- 
dade. 


PRIMEIRA    EPOOHA  259 


FazBr  cavalleiros  ás  outras  pessoas  que  prestarem 
iguaes  serviços. 

Mandar  finalmente  adiantar,  em  recompensa  destes 
e  outros  taes  serviços  vencimentos  ou  ordenados,  e  lazer 
donativos,  uma  vez  que  estes  não  excedam  a  cem  cruza- 
dos poranno. 

Levará  traslado  da  Ord.  que  prohibe  o  uso  de  bro- 
cados e  sedas  no  reino  e  senhorios  a  quaesquer  pessoas, 
afim  de  a  fazer  publicar  e  executar  em  todas  as  capita- 
nias, registrando-se  em  cada  uma  das  camarás. 

Nos  casos  omissos  consultará  com  os  mais  officiaes 
ou  com  quaesquer  outms  pessoas  idóneas,  prevalecendo 
todavia  a  sua  opinião  si  os  votos  discordarem,  e  lavran- 
do-se  termo,  neste  caso,  para  ser  presente  a  el-rei.  » 

O  funcclonalisiuo.—  Além  do  governador  geral. 
Thomé  de  Souza,  que  percebia  de  vencimentos  400S0OO 
annuaes,  o  rei  creou  mais  os  seguintes  cargos : 

O  de  ouvidor  geral,,  com  aiçada  e  autoridade  de 
passar  provisões  em  nome  do  rei  e  ao  qual  se  concedia 
conhecer  nas  causas  crimes  por  acção  nova  e  alçada  ató 
morte  natural,  exclusive,  nos  escravos  gentios  e  peões 
christãos  livres,  dos  quaes  quando  competisse  pena  de 
morte,  poderia  esta  applicar-se  sem  appellação,  concor- 
dando nella  o  governador  geral,  e  não  concordando, 
teria  de  remetter  os  autos  ao  corregedor  da  corte,  com  o 
preso.  Nas  pessoas  de  mór  qualidade  teria  o  ouvidor 
alçada  ató  cinco  annos  de  degredo.  Para  este  cargo  foi 
nomeado  o  dezembargador  Pêro  Borges. 

O  de  provedor  môr  da  Fazenda  para  providenciar 
acerca  das  alfandegas  e  das  casas  dos  contos  (thesou- 
rarias),  ou  por  outra,  zelar  pela  arrecadação  dos  di- 
nheiros públicos.  Foi  nomeado  para  este  cargo  António 
Cardoso  de  Barros. 

O  de  capitão  mór  da  cosia  afira  de  pohciar  olittoral. 
Foi  para  elle  nomeado  Pêro  Góes. 

Estes  eram  os  chefes,  para  os  quaes  o  rei  nomeou 
os  seguintes  subalternos  : 

Francisco  Mendes  da  Costa,  escrivão  do  provedor 
da  fazenda^ 

António  dos  Reis,  escrivão  da  provedoria  da  alfan- 
dega e  defuntos. 

Pedro  Ferreira,  thesoureiro  das  rendas. 

Miguel  Muniz,  escrivão  dos  contos. 


260  HISTOEIA  DO  BRASIL 

Christovão  d' Aguiar,  almoxarife  dos  mantimentos, 
tendo  seu  escrivão. 
^^  Foram  igualmente  nomeados  : 
.g4^  Miguel  Lourenço,  para  vigário  da  igreja  matriz. 

Diogo  de  Castro,  boticário. 
'■^'*  Luiz  Dias,  mestre  das  obras  da  fortaleza. 
Miguel  Martins,  mestre  de  fazer  cal. 
Diogo  Peres,  mestre  pedreiro. 
E,  bem  assim  muitos  outros,  pois  segundo  Varnha- 
gen,  o  numero  dos  que  se  embarcaram,  recebendo  orde- 
nados, elevava-se  a  tresentos  e  vinte. 

Chegada  de  Tlionié  de  Souza.  —  Chegou 
Thomé  de  Souza  á  Bahia  em  29  de  Março  de  1549;  esta- 
beleceu-se  provisoriamente  no  logar  em  que  era  a  sede 
da  antiga  capitania  e  que  tinha  o  nome  de  Victoria, 
transportando- se  depois  mais  para  o  sul  onde  lançou  os 
lundamentos  da  actual  capital  da  Bahia,  a  qual  impoz 
o  nome  de  Cidade  do  Salvador. 

Deu  muitas  terras  de  sesmaria,  impulsionou  a  agri- 
cultura, fomentou  a  industria  pastoril,  fazendo  vir  gado 
das  ilhas  de  Cabo  Verde . 

Sendo  quatro  colonos  victimados  pelos  Índios,  fez 
fuzilar  dois  dos  priucipaes  á  bocca  de  um  canhão,  afim 
de  infundir  o  terror  nas  cabildas. 

Diogo  Alvares,  o  Caramurú,  que  recebeu  uma  carta 
de  D.  João  III  afim  de  auxiliar  o  governador,  prestou 
valiosos  serviços  aos  portuguezes,  nessa  occasião, 

O  ouvidor  e  o  provedor  visitaram  as  capitanias  e 
puzeram  em  ordem  as  cousas  do  seu  ministério. 

Finalmente,  foi  proveitosa  para  o  Brasil  a  admi- 
nistração de  Thomé  ae  Souza  que  não  poupou  esforços 
para  realisar  o  plano  régio  de  fundar-se  uma  grande  e 
forte  cidade  no  Brasil  e  impor  ás  capitanias  a  soberania 
de  um  governo  capaz  de  se  fazer  respeitar. 

Cheg;ada  d«»)§í  primeiros  jesuítas  ao  Brasil. 
—  Com  Thomé  de  Souza  chegaram  ao  Brasil  os  pri- 
meiros padres  da  Companhia  de  Jesus,  corporação  essa 
que  tão  decisiva  influencia  exerceu  sobre  os  destinos 
deste  paiz. 

Eram  em  numero  de  seis  e  vinham  debaixo  da  di- 
recção do  padre  Manoel  da  Nóbrega,  portuguez  e  de  fa- 
mília nobre.  Os  outros  jesuítas  eram  Aspilcueta  Na- 
varro, Leonardo  Nunos,  Affonso  Braz,  Diogo  Jacome  e 
Simão  Gonçalves, 


PRIMEIRA  EPOOHA  261 


Estes  seis  discípulos  de  LoyoIa,assim  que  aportaram 
ás  plagas  brasileiras,  lançaram-se  com  o  fervor  e  a  abne* 
gação  de  verdadeiros  apóstolos  á  catechese  dos  selvicolas, 
dos  quaes  se  constituiram  desde  logo  zelosos  defen- 
sores e  ao  mesmo  tempo  que  se  empregavam  em  íur  - 
tal-os  á  crueldade  dos  invasores,  esforçavam-se  por 
fazer  desapparecer  nelles  a  paixão  por  certos  usos  bár- 
baros, principalmente  a  hedionda  anthropophagia. 

Os  padres  Leonardo  Nunes  e  Diogo  Jacome  percor- 
reram as  capitanias  dos  Ilhéus  e  Porto  Seguro  e  nellas 
converteram  ao  christianismo  muitos  Índios  e africanos. 
O  mesmo  fizeram  Affonso  Braz  e  Simão  Gonçalves 
na  Capitania  do  Espirito  Santo. 

Aspilcueta  Navarro  apoderou-se  da  língua  tupy,  na 
qual  pregava  aos  indígenas  a  suave  doutrina  do  Evan- 
gelho; Nóbrega  percorreu  as  capitanias  do  sul  e  fez  con- 
correr a  musica  sacra  na  obra  da  catechese. 

Na  primeira  metade  do  século  XVI  o  trabalho  dos 
jesuítas  no  Brasil  é  um  dos  mais  nobres  que  a  historia 
da  Igreja  pôde  registrar;  não  só  elles  representam  na 
primitiva  sociedade  brazileira  o  elemento  verdadeira- 
mente intellectual  e  moralisador,  como  ainda  foram 
elles  os  únicos  homens  que  protestaram  e  resistiram 
contra  o  esterminio  systematico  de  uma  raça  que  o 
conquistador  almejava  destruir,  iá  que  não  lhe  fora  pos- 
sível submettel-a  á  ignominia  do  captiveiro. 

Alem  disso,  numa  sociedade  composta  de  raças  dif- 
ferentes,  das  quaes  uma  representava  a  congregação 
de  péssimos  elementos:  fidalgos  ignorantes,  brutaes, 
despóticos  e  depravados,  padres  dissolutos  e  cupidos, 
degradados,  desertores,  rameiras  sórdidas  ;  e  as  outras 
não  gosavam  direito  de  espécie  alguma,  sendo-lhes 
até  negada  a  condição  humana,  o  surgimento  dos 
jesuítas,  severos,  impollutos  e  serenos  foi  um  bene- 
ficio verdadeiramente  providencial.  A'  primeira  dessas 
raças  deram  elles  o  exemplo  de  altas  virtudes,  ás  outras 
suavisaram  a  sorte  e  conferiram  direitos  que  até  então 
não  se  lhes  reconheciam. 

O  primeiro  biíspo  do  Brasil.  —  Data  de  25  de 
de  Fevereiro  de  1555  a  bulia  que  creou  o  bispado  do 
Brazil,  cujas  terras  por  este  facto  se  desannexaram  da 
diocese  do  Funchal. 

O  bispado  do  Brazil  ficava  sendo  suffraganeo  do 
arcebispado  de  I^isbôa  e  nelle  foi   provido  Perq  Fçr- 


262  HI8T0HIA  DO  BSASIL 


nandes  Sardinha,  que  estudara  em  Paris,  onde  tomara 
o  gráo  de  bacharel. 

O  novo  prelado  seguio  immediatamente  para  a  sua 
diocese  em  virtude  das  repetidas  queixas  que  chegavam 
a  Portugal  sobreadesmoralísação  do  chro;  no  emtanto, 
não  se  mostrou  mui  severo  em  reprimir  os  abusos,  poís,^ 
coníorme  disse  elle  mesmo  em  carta  enviada  ao  rei 
«  nos  principing  muitas  cousas  mais  se  hão  de  dissi- 
niular  que  castigar,  maiormente  em  terra  tâo  nova.» 

Visita  de  Tiiomé  de  Sioiíza  ás  capitAiiias 
do  Sul  — ■  Em  fins  do  anno  de  1552  Thomé  de  Souza 
resolveu  visitaras  capitanias  meridionaes  e,  para  esse 
fim,  fez  aprestar  uma  esquadrilha  composta  de  uma  nau 
e  duas  caravellas  qae,  confiou  ao  commando  de  Pêro  de 
Góes. 

Nella  embarcou-se  o  governador,  levando  em  sua 
companhia  o  Padre  Manoel  da  Nóbrega  que  pela  se- 
gunda vez  visitava  o  sul. 

Nos  Ilhéus  destituio  o  capitão  que  alli  se  achava, 
substituindo-o  por  João  Gonçalves  Drummond  e  nessa 
capitania,  bem  como  na  de  Porto  Seguro,  providenciou 
a  respeito  das  povoações  e  engenhos,  mandou  levantar 
muros  e  deixou  nellas  alguma  artilharia.  Fez  igualmente 
construir  pelourinhos  e  casas  de  audiência  onde  não  as 
havia,  chegando  até  a  providenciar  sobre  o  alinhamento 
das  ruaâ. 

Extasíou-se  ao  entrar  na  bahia  do  Rio  de  Janeiro, 
mandando  a  este  respeito  uma  carta  enthusiastica  ao  rei. 

Em  S.  Vicente  mandou  construir  a  fortaleza  que 
se  chamou  da  Bertiogâ,  tendo  ensejo  de  recolher  e  aga- 
salhar fidalgamente  os  sobreviventes  da  expedição  que 
D.  Fernando  de  Sanabria  levava  ao  Prata  e  que  naufra- 
gara nas  costas  de  Santa  Catharina. 

E'um  frucío  desta  viagem  a  creação  davilla  da  Con- 
ceição de  Itanhaem,  na  qual  deu  ordem  que  se  juntas- 
sem os  moradores  esparsos,  fazendo  o  mesmo  no  alto 
da  serra  de  Cubatão,  á  Borda  do  Campo. 

Primeiras  uoticlas  do  ouro.  —  Depois  da 
viagem  de  Thomé  de  Souza  ao  sul  começaram  a  chegar- 
Ihes  a  noticia  da  existência  de  minas  de  ouro  no  ser- 
tão, umas  vindas  de  Sáo  Vicente  e  outras  de  Per- 
nambuco. 


PRIMEIRA  EPOCHA  263 


As  desta  ultima  procedência  vieram  por  índios  ar- 
ribados do  sertão  os  quaes  designavam  as  margens 
do  S  Francisco  como  a  região  em  que  se  encontrava  o 
precioso  metal,  cujas  amostras  exibiam. 

Logo  que  teve  sciencia  desta  informação  Thomé 
de  Souza  mandou  uma  galé  sob  o  commando  de  Mi- 
guel Henriques  subir  o  S.  Francisco,  porém  dessa  em- 
barcação nunca  mais  se  teve  noticia. 

Despachou  ainda  uma  outra  expedição  sob  o  com- 
mando de  Jorge  Dias,  afim  de  devassar  o  sertão  em  de- 
manda do  ouro.  O  jesuita  Navarro  acompanhou  a  ex- 
pedição, morrendo  pouco  depois  do  regresso  da  mesma, 
em  consequência  das  fadigas  que  supportou. 

Esta  expedição  partio  da  Bahia  e  seguio  por  terra 
até  as  margens  de  S.   Francisco  sem  resultado  algum. 

Uma  terceira  expedição  ao  sertão,  em  demanda  do. 
ouro,  realisou-se  no  governo  geral  de  Thomé  de  Souza, 
foi  a  de  Sebastião  Fernandes Tourinho  que  partio  do  Rio 
Doce  e  caminhou  onze  dias  com  rumo  de  noroeste,  des- 
cobrindo minas  de  turmalinas. 

Terminação  do  g^overno  de  Thomé  de  Sou- 
za. —  Pouco  antes  de  deixar  o  governo  Thomé  de  Souza 
requereu  ao  rei  as  seguintes  medidas  que  ao  depois  foram 
adoptadas : 

1°  O  reforço  de  dez 'indivíduos  hábeis  e  honestos, 
em  que  pudesse  confiar,  para  os  fazer  capitães  das  terras 
e  officiaes  da  Fazenda. 

2.°  Que  se  resolvesse  que  todos  os  donatários  vies- 
sem morar  nas  suas  capitanias,  a  não  terem  motivo 
muito  justo  que  os  impedisse. 

3.°  Que  se  enviasse  para  a  Cidade  do  Salvador  um 
capitão  especial  ou  alcaide  mor,  que  pudesse  pela  mes- 
ma responder,  durante  a  ausência  do  Governador  Geral, 
em  suas  visitas  ás  outras  capitanias. 

4."  Que  se  lhe  mandassem  recursos  para  povoar  o 
Rio  de  Janeiro,  onde,  em  seu  entender,  conviria  ter 
outro  ouvidor. 

5.°  Que  se  ordenasse  que  nas  villas  de  Santos  e^S. 
Vicente  so  construissem  castellos,  por  isso  que,  por 
muito  derramadas  as  povoações,  não  era  possível  mu- 
ral-as. 

6."  A  suppressão  dos  cargos  de  provedor  mór  e 
capitão  mór  do  mar,  ficando  estas  funcções  com  o  ouvi- 


264  HISTOBIA  DO  BBABIL 

dor  mór,  afim  de  concentrar-se  maior  autoridade  nas 
suas  mãos. 

Thomé  de  Souza  deixou  o  governo  do  Brasil  em  13 
de  Julho  de  1553,  conforme  pedira  ao  rei,  pois  havia 
terminado  o  prazo  de  três  annos  da  sua  governação. 

Thomé  de  Souza  veio  a  estimar  verdadeiramente  o 
Brasil  e,  sobre  este  particular  encontra-seo  seguinte  na 
obra  d.)  bom  Frei  Vicente  do  Salvador: 

«  Era  Thomé  de  Souza  homem  muito  avisado  e  pru- 
dente, e  muito  experimentado  nas  guerras  da  Africa  e 
da  índia,  onde  estivera.  Tinha-se  mostrado  valoroso  ca- 
valleiro,  mas  estava  isto  cá  tão  em  agro,  e  enfadava-se 
de  labutar  com  degradados,  vendo  que  não  eram  como  o 
pecego,  «  pomo  que  da  Pérsia  veio  melhor  tornado  no 
terreno  alheio  »  que  pedio  com  muita  instancia  por  mui- 
tas vezes  a  El-Rei  que  lhe  desse  licença  para  se  tornar 
ao  Reino;  comtudo  é  muito  para  notar  um  dito,  que 
entre  outros  que  tinha  mui  galantes,  disse  quando  lhe 
veio  a  licença. 

« E'  costume  nesta  Bahia  ir  o  meirinho  do  mar 
quando  entam  os  navios,  e  trazer  a  nova  ao  Governador, 
como  pois  fosse  em  aquella  occasiao,  o  achasse  que 
vinha  successor  ao  Governador  tornou-se  mui  alegre  a 
pedir-lhe  alviçaras,  porque  já  erão  compridos  seua 
desejos,  e  estava  no  porto  novo  governador,  respon- 
deu-lhe  elle  depois  de  estar  um  pouco  suspenso: 
Vede  isso,  meirinho,  verdade  é  que  eu  o  desejava 
muito,  eme  crescia  a  agua  na  boca  quando  cuidava  de  ir 
para  Portugal,  mas  não  sei  que  é  que  agora  me 
secca  a  boca  de  tal  modo,  que  quero  cuspir,  e  não 
posso.  Não  deo  o  meirinho  resposta  a  isto,  nem  eu  a 
dou,  para  os  leitores  dêm  a  que  lhes  parecer.» 


CAPITULO  XI 

GOVERNO   GERAL  DE  D.    DUARTE  DA  COSTA 


Thomé  de  Souza  foi  substituído  na  governação  ge- 
ral [do  Brasil  por  D.  Duarte  da  Costa  que  passou  a 
perceber  600S000  de  vencimentos  annuaes,  isto  ó,  mais 
200S000  que  o  seu  antecessor. 

Para  a  sua  administração  ficou  vigorando,  como  já 
dissemos,  o  regimento  dado  a  Thomé  de  Souza. 

As  desordens  de  D.AlTaro — D.Duarte  da  Cos- 
ta trouxe  para  o  Brasil  um  seu  filho,  D.  Álvaro  da  Costa, 
mancebo  rixoso  e  dissoluto,  que  pela  vida  desordenada 
que  levava,  se  tornou  em  extremo  vexatório  aos  primi- 
tivos colonos  da  Bahia. 

Taes  foram  os  desregramentos  e  desacatos  á  moral 
e  ás  pessoas,  commettidos  por  D.  Álvaro,  que  o  bispo  D. 
Pedro  Sardinha,  prelado  aliás  muito  tolerante,  como  já 
tivemos  occasião  de  ver,  julgou-se  obrigado  a  intervir 
com  a  sua  autoridade  ecclesiastica,  afim  de  pôr  termo 
aos  desmandos  do  tresloucado  fidalgote. 

Aproveitou-se  para  isso  do  púlpito,  segundo  dizem, 
ed'ahi  reprehendeu  severamente  ojoven,  concitando-o 
a  comportar-se  como  decoro  compatível  com  a  sua  alta 
linhagem  e  brios  já  provados  nas  guerras  quesustentara 
contra  os  Mouros  na  Africa. 

Chocou-se  o  orgulho  de  D .  Álvaro  com  a  dura  in- 
crepação  e  D.Duarte,  seu  pai,  que  talvez  não  desgostasse 
si  o  facto  fosse  reservado,  doeu-se,  no  emtanto,  por  ser 
elle  publico,  parecendo-lhe  que  o  bispo  tinha  ultrapas- 
sado a  medida  das  conveniências  e  offendera-o  pessoal- 
mente, fazendo  da  censura  ao  filho  um  motivo  de  es- 
cândalo . 

O  caso  foi  largamente  commentado  na  cidade  de  S. 
Salvador  e  para  logo  se  formaram  dois  partidos:  um  que 
apoiava  o  procedimento  do  bispo  Sardinha,  e  outro  que 
se  pronunciou  por  D .  Álvaro  e  seu  pai,  que  em  logar 
de  se  esforçar  por  impedir  a  discórdia,  deixou-se  levar 
por  suas  susceptibilidades  e  permittio  cavar-se  a  dis- 
senção. 


266  HISTORIA  DO  BBABIL 

D3ram-se  conflictos  ;  o  sangue  correu  por  diversas 
vezes  e  as  cousas  subiriam  de  ponto,  si  o  governo  da 
metrópole,  movido  pelas  queixas  de  D.Duarte,  não  ti- 
vesse chamado  o  bispo  Sardinlia  â  corte,  afim  de  prestar 
contas  do  seu  procedimento  que  o  governador  taxava  de 
irregular. 

Morte  «lo  primeira  bispo  do  Brasil. — D.  Pe- 
dro Fernandes  Sardinha  que  sofíria  enormemente  com  a 
feição  que  as  cousas  na  Bahia  haviam  tomado  e  com  as 
intrigas  que  o  governador  e  D.  Álvaro  delle  faziam  com 
a  corte,  logo  que  recebeu  a  intimação  real  embarcou-se 
ua  nau  Nossa  Sen'wpa  da  Ajuda,  confiante  de  que  em 
Lisboa  saberiam  fazer-lhe  justiça.  Muitas  pessoas  gradas 
0  da  sua  parcialidade,  temendo  as  vinganças  de  D,  Ál- 
varo, tomaram  o  partido  de  acompanhai- o. 

A  nau  Acossa  Senhora  da  Ajuda  zarpou  da  Bahia  a 
2  de  Julho  de  1554  e  já  arrumava  para  o  alto  mar,  quando 
um  violento  temporal  lançou-a  ii-os,  baixos  existentes^ 
antre  os  rios  de  SãiO  Francisco  e  Cururipe,  e  ahi  nau- 
fragou. , 

Todos  escaparam  do  sinistro  e  dispunham-se  a  ga- 
nhar por  terra  o  Recife,  quando  foram  assaltados  pelos 
terriveis  Caethés  e  por  estes  trucidados  e.  devorados, 
sendo  o  bispo  o  primeiro  que  recebeu  a  morte. 

Apenas  um  portuguez,  por  saber  falar  a  lingua  tupy, 
conseguio  escapar.  , 

Este  lamentoso  successo  produzio  geral  consterna- 
ção na  população  colonial,  encarregando-se  o  povo  de. 
bordar  sobre  o  martyrio  do  infeliz  prelado,  uma  lenda, 
pela  qual  se  affirma  que  o  terreno  regado  com  o  sangue 
de  D.  Pedro  Sardinha  tornou-se  d'ahi  por  diante  es 
teril. 

liUotacoin  os  Eudios. — Logo  apoz  esse  infausto 
successo  e  durante  a  ausência  do  governador,  que  tinha 
ido  visitar  Pernambuco,  sublevou-se  o  gentio  da  Bahia, 
atacando  ao  mesmo  tempo  o  engenho  de  Pirajá  e  as  boia- 
das xie  Oarcia  d'Avila. 

Foi  escolhido  D.  Álvaro  da  Costa  para' castigar  os 
indígenas  e  nesta  peleja  procurou  elle,  pelo  denodo  e 
pelo  desprendimento  da  vida,  resgatar  as  suas  faltas  e 
rehabililar-se  no  conceito  da  população  da  Bahia. 

Foi  bem  succedido  D  Álvaro,  conseguindo  captu- 
rar alguns  caciq^ues,  facto  que  o  governador  permittio 
subiBotter  as  Iribus  á  obediência. 


PKIMEmA  ÉPOOHA  267 


O»  Jesiiitas. — Com  Duarte  da  Costa  veio  para  o 
Brasil  um  novo  reforço  de  jesuitas,  e  deste  faziam  parte 
o  ex-reitor  do  colle^io  de  Coimbra,  Luiz  da  Gran,  e  o 
celebre  José  de  Anchieta  que  tanto  se  celebrisou  na  ca-' 
thechese  dosselvicolas. 

Igualmente  veio  a  noticia  da  elevação  do  Brasil  â 
província  da  Companhia  de  Jesus,  sendo  o  padre  No^ 
brega  escolhido  para  regel-a. 

Assim  que  recebeu  tão  faustosa  noticia,  Nóbrega, 
que  se  achaVci  em  S.  Vicente,  passou-se  a  Piratininga' 
onde  levantou  uma  igreja  sob  a  invocação  do  apostolo 
S.  Paulo,  nome  que  com  o  correr  dos  tempos  estendeu— 
se  a  toda  apovo.nção,  substituindo  o  de  Piratininga. 

Tebiriçá  e  Cauby,  morubixabas  dos  campos  circum-^ 
visinhos,  íoram  de  grande  préstimo  para  os  jesuitas  e 
colonos. 

O  g^entioemPernaiitbiico.— Fallecendo  Duarte 
Coelho  em  1554,  passou  a  capitania  de  Pernambuco  á  sua 
viuva  D.  Brites  d'Albuquerque,  com  o  que  se  encoraja- 
ram os  índios  e  atacaram  Iguarassú,  destruindo  ahiuni 
engenho  de  assucar  e  um  outro  em   Santiago. 

Sentindo-se  incapaz  de  reprimir  o  gentio,  passou 
D.  Brites  o  governo  da  capitania  a  seu  irmão  Jeronymo 
de  Albuquerque  que,  embora  com  difficuldade,  venceu 
os  indígenas,  tendo-o  já  completamente  submeltido  em 
Agosto  de  1545. 

O   g^entío  lio   Espirito  Santo.— As  violências 
contra  os   indígenas  no   Espirito  Santo,   que  eram  em- 
grande  numero  escravisados  pelos  portuguezes,  fizeram 
com  que  elles  se  sublevassem  e  devastassem   a  capita-; 
nia,  que  no  emtanto,  era  uma  das  mais  prosperas.  , 

Destruíram  vários  engenhos  e  mataram  muitos  pro*' 
prietaríos  dos  mesmos,  entre  os  quaes  D.  Jorge  de  Me- 
nezes e  D.  Simão  de  (>a^tello  Branco,  os  dois  fidalgos 
degradados  a  que  ja  nos  referimos.  Igual  sorte  tiveram 
Bernardo  Pimentel  e  Manuel  Ramalho.  . 

Ciiniianibebe. — Vencedores  no  Espírito  Santo," 
também  predominavam  os  indígenas  desde  Cabo  Frio 
até  S.  Vicente,  não  só  pelo  auxilio  que  lhes  davam  os 
francezes,  que  frequentavam  o  Rio  de  Janeiro  e  portos 
visinhos,  como  pela  obediência  que  prestavam  os  moru- 
bixabas a  Cunhambebe,  índio  que  soube  confederaras^ 
numerosas  cabildas  da  costa  e  incutir  o  pavor  nos  por*'- 
tuguezes  pela  sua  temerosa  marinha  de  canoas»  i  i 


268  HISTORIA  DO  BRASIL 

Segundo  Varnhagem,  o  nome  de  Cunhambebe 
era  repetido  com  tanto  terror  em  S.  Vicente  e  nas  galés 
da  costa,  como  pouco  antes,  nas  aguas  e  costas  do  Me- 
diterrâneo o  do  celebre  Hariadam  Barba  Roxa. 

Cunhambebe  era  um  bravo.  Ufanava-se  de  ter  de- 
vorado carnes  de  alguns  milhares  de  iiiimigos  e  muitas 
vezes,  pela  calada  da  noite,  abord;va  as  galés  portugue- 
zas  nos  ancoradouros,  mesmo  as  artilhadas. 

Conta-se  que  obtendo  duas  d'aquellas  peças  que  se 
chamavam  falcões,  andava  sempre  amado  d'ellas  e  fa- 
zia fogo  sobre  os  inimigos  tendo-as  sobre  os  hombros 
e  aguentando-lhes  o  recuo. 

Atacou  muitas  vezes  S.  Vicente,  Santos  o  até  a  for- 
taleza da  Bertioga. 

Com  o  auxilio  deste  chefe  acreditamos  que  os  fran- 
cezes  tornar-se-hiam  senhores  do  sul  do  Brasil  si  os 
portuguezes  não  procurassem  romper  a  confederação  in- 
digena,  chamando  em  seu  soccorro  o  auxilio  de  outros 
chefes  barbares,  entre  os  quaes  se  salientou  o  famoso 
Ararigboia. 

Hans  iltaden.  —  Foi  prisioneiro  de  Cunhambebe, 
durante  longos  mezes,  o  allemão  Hans  Staden  que  já  na 
defesa  de  Iguarussú  (Pernambuco)  tinha  prestado  aos 
portuguezes  bons  serviços  como  artilheiro. 

Hans  Staden  foi  um  dos  náufragos  da  mallograda 
expedição  de  Senabria;  e,  quando  aprisionado  pelos  Tu- 
pinambás,  era  commandante  da  fortaleza  da  Bertioga 
que  Thomé  de  Souza   mandara  construir. 

A  muito  custo  poude  Hans  Staden  escapar-se  e  che- 
gando á  Allemanha  escreveu  as  suas  aventuras  nas 
quaes  se  encontram  interessantes  observações  sobre  os 
usos  e  costumes  do  selvagem  brasileiro. 

Villegaig^aou. — Nicoláo  Durand  de  Villegaignon, 
cavalheiro  de  Malta,  vice-almirante  da  Bretanha  e  cal- 
vinista exaltado,  tendo  sabido  ganhar  a  confiança  do  al- 
mirante Coligny,  um  dos  chefes  huguenottes  da  França, 
inspirou-lhe  a  idéa  de  fundar  no  Rio  de  Janeiro,  para- 
gem que  os  seus  compatriotas  muito  frequentavam, uma 
colónia  que  servisse  de  abrigo  aos  seus  sectários,  dado 
o  caso  que  a  intolerância  os  forçassem  a  expatriar-se. 

Rendendo-se  Coligny  ás  razões  por  elle  expostas, 
obteve  do  rei  de  França  Henrique  II  alguns  auxílios 
com  os  quaes  Villegaignon  fez-se  logo  de  vela  para  o 
Brasil,  entrando  na  bahia  do  Rio  de  Janeiro  em  1555, 


PRIMEIRA  EPOOHA  269 


Segundo  refere  Lery,  chronista  desta  expedição,  o 
primeiro  logar  em  que  Villegaignon  desembarcou  foi  o 
ilhéo  hoje  occupado  pela  fortaleza  da  Lage.  Como, 
porém,  era  elle  muito  lavado  pelas  ondas  durante  a 
preamar,  transportou-se  pouco  depois  para  a  ilhota  mais 
ao  fundo  chamada  pelos  naturaes  de  Serigipe  e  que  elle 
denominou  de  Coligny,  em  homenagem  ao  seu  patrono. 
E'  a  ilha  hoje  occupada  pela  fortaleza  de  Villegaignon. 

Fortificou  Villegagnon  a  ilhota  do  Serigipe,  preme- 
ditan  do  fundar  na  terra  firme  uma  cidade  a  que  poria  o 
nome  de  Henriville,  destinada  a  ser  mais  tarde  capital 
de  uma  nação,  p;  ra  a  qual  reservava  appellidação  de 
França  Antárctica. 

Em  seguida  despachou  Villegaignon  para  a  França 
um  navio,  e  por  este  mandou  pedir  ao  almirante  Coli- 
gny  que  lhe  enviasse  missionários  calvinistas,  pois  en- 
contrava no  gentio  excellentes  disposições  para  com  os 
francezes . 

Assim  devia  ser,  pois  Villegaignon,  ao  contrario  do 
que  praticavam  os  portuguezes,  tratava  os  selvagens 
benignamente  e  até  lhes  mandava  ensinar  todo  o  gé- 
nero de  officios  e  manejo  de  armas,  punindo  rigorosa- 
mente aquelles  francezes  que  lhes  causavam  algum 
damno. 

Quiz  ainda  este  homem  notável  attrahir  mais  os 
selvagens  por  meio  de  casamentos  de  francezes  com 
mulheres  do  paiz.  Este  recurso,  falhou,  porém.  Um 
normando, que  elle  pretendia  consorciar  a  uma  india,re- 
voltou-se,  movido  por  estúpidos  preconceitos,  e  urdio 
uma  conspiração  contra  a  vidado  almirante,  conspiração 
na  qual  entraram  perto  de  vinte  francezes. 

Villegaignon  mandou  enforcar  ao  cabecilha  e  poz 
dois  a  ferros,  porem  pi-rdoou  os  outros. 

Neste  Ínterim  cnega  ao  Rio  de  Janeiro  um  sobri- 
nho de  Villegaignon,  Bois  le  Comte,  com  um  reforço  de 
tresentos  homens  em  três  navios  armados  pela  coroa  e 
assim  fortificaran-se  os  francezes  que  depois  foram  at- 
tacados  pelos  portuguezes  como  veremos,  quando  nos 
occuparmos  com  o  governo  geral  de  Mem  de  Sá. 

Jean  de  liery.  —  Com  Bois  le  Comte  chegaram 
ao  Brasil  dois  missionários  calvinistas,  sendo  um  Jean 
de  Lery,  natural  ie  Ganebra,  na  Suissa,  o  qual,  no  seu 
exceliente  livro  ir  titulado  —  Histoire  d'  un  voyage  faict 
en  la  terre  du  Brésil,    autrement  dit  Amerique,  nos 


270  HISTOEIA   DO   BBASIL 

deixoii  preciosos  testemunhos  sobre  a  remota  historia 
da  lucia  entre  francezes  e  portuguezes  e  bem  assim 
sobre  a  e.thnographia  brasileira. 

llortos)  uoíaTeis. — Dois  foram  os  mortos  notá- 
veis nos  últimos  tempos  do  governo  de  D.  Duarte  da 
Costa. 

O  primeiro  foi  D .  João  III,  soberano  de  Portugal, 
fallecido  a  11  de  Julho  de  1557. 

Comquanto  pouco  previdente,  D.  João  III  esforçou-se 
pelo  progresso  do  Brasil  e  a  prova  temol-a  mesmo 
nessas  repetidas  experiências  de  colonisação  e  nos  di- 
versos systemas  que  adoptou  ;  e  comquanto  tivessem 
os  prinieiíos  efíeito  negativo,  revelaram  no  entanto  boa 
vontade  da  sua  parte. 

Quanto  ao  seu  caracter  sabemos  que  era  pouco 
escrupuloso  nos  meios  que  empregava  para  alcançar  os 
seus  fins.  Delle  escreveu  J.    F.  Lisboa  nas  suas  Obras: 

«  Não  só  armava  emboscadas  á  vida  dos  prelados 
de  quem  se  não  dava  por  bem  servido,  sinão  que  punha 
agentes  que  pelo  assassinato  o  descartassem  em  se- 
gredo de  qualquer  piloto  apenas  suspeito  de  poder  indicar 
aos  estrangeiros  o  caminho  das  conquistas,  e  cobrava 
depois  o  recibo  do  preço  e  galardão  do  sangue  tão  alei- 
vosamente derramado.» 

A  D.  João  III  succedeu  D.  Sebastião,  apenas  com 
três  annos  de  idade,  ficando  sua  avó,  D.  Catharina  da 
Áustria,  com  as  rédeas  do  governo. 

O  outro  morto  notável  foi  Diogo  Alvares,  o  Cara- 
murú,  fallecido  em  5  de  Outubro  de  1557, 

"fferuiiiiaçao  do  goveruo  de  D.  Duarte  da 
Costa. — D .  Duarte  terminou  a  sua  governação  em  4  de 
Julho  de  1558. 

Sabia  do  estabelecimento  de  Yillegaignon  no  Rio  de 
Janeiro  e  neste  sentido  representou  ao  rei,  pois  não 
se  sentia  bastante  forte  para  atacar  o  aventureiro 
francez . 

Pouco  antes  de  deixar  o  governo  praticou  um  acto 
contra  o  qual  muito  se  murmurou.  Trata-se  da  doação  de 
uma  sesmaria  de  quatro  léguas  de  terras  a  seu  filho  e 
successores,  entre  os  rios  Paraguassú  e  Jaguaripe,  ses- 
maria essa  que  em  1565  foi  reduzida  pelo  rei  a  uma 
capitania,  com  parte  das  clausulas  concedidas  aos  pri- 
meiros donatários. 


( 

PRIMEIRA  EPOCHA  271  i 


Duarte  da  Costa  foi  um  governador  activo,  embora 
desastrado  como  se  vio  na  lucta  com.  o  bispo,  e  medio- 
cremente  arrojado,  como  se  deduz  do  receio  que  tinha  de 
atacar  os  francezes. 

fV  Depois  da  discussão  com  o  bispo  Sardinha  ficou 
sempre  suspeitoso  da  população  da  Bahia,  lanto  que, 
quando  ia  visitar  um  engenho  que  tinha  em  Sergipe, 
sahia  ás  occultas,  prevenindo  aos  fâmulos  que  dissessem 
áquelles  que  o  procurassem  que  elle  se  achava  na  cidade, 
porém  occupado. 


CAPITULO  XII 

GOVERNO  GERAL  DE    MEM  DE  SA' 


A  D.  Duarte  da  Costa  succedeu  Mem  de  Sá,  fidalgo 
illustre  da  casa  e  do  conselho  do  Rei,  e  irmão  do  conhe- 
cido poeta  Sá  de  Miranda.  A  elle  Portugal  deve  o  ter 
conservado  o  dominio  do  sul  do  Brasil,  não  se  estabe- 
lecendo nessa  região  a  França  Antartica,  como  desejava 
Villegaignon. 

Data  de  23  de  Julho  de  1556  a  sua  nomeação ;  e  tanta 
confiança  merecia  que,  conforme  a  affirmação  de  alguns 
autores,  não  trouxe  prazo  fixo  para  a  sua  governação, 
ao  contrario  dos  seus  dois  antecessores,  que  apenas 
deviam  exercer  o  cargo  de  governador  geral  por  três 
annos. 

Primeiros  actos  de  lleiu  de  Slá. — Seus  pri- 
meiros actos,  ao  chegar  á  Bahia,  foram  moralisar  a 
magistratura,  influindo  para  que  não  se  prolongassem 
indefinidamente  as  demandas,  como  o  faziam  os  escri- 
vães e  procuradores,  afim  de  extorquir  dinheiro  ás 
partes  litigantes.  Reprimio  além  disso  o  jogo,  castigou 
severamente  a  usura,  que  era  praticada  em  larga  escala, 
apressou  o  acabamento  das  obras  da  Sé  e  procurou  pôr 
tudo  mais  em  ordem. 

As  luissòes.  —  Depois  destes  trabalhos  prelimi- 
nares voltou  Mem  de  Sá  sua  attenção  para  os  Índios,  no 
que  foi  efficazmente  auxiliado  pelos  jesuítas. 

Entendendo  que  era  prejudicial  conserval-os  dis- 
seminados, reunio-os  em  grandes  aldeamentos,  nos 
quaes  se  juntavam  a  população  de  quatro  ou  cinco 
tabas. 

Esses  aldeamentos  receberam  o  nome  de  missões  e 
eram  inspeccionados  por  um  meirinho  ou  principal 
d'elles  mesmos,  ao  qual  se  aggregavam  padres  da  Com- 
panhia de  Jesus. 

As  primeiras  missões  que  se  fundaram  foram  as 
de  S.  Paulo,  junto  ao  rio  Vermelho  e  a  do  Espirito 
Santo,  no  rio  Joanne. 

18 


274  HISTOKIA  DO    BKASIL 

Esta  idéa  das  missões  partiu  naturalmente  dos 
sagazes  jesuítas  que,  tendo  por  objectivo  apparente  a 
propagação  da  fé  catholica,  trabalhavam  realmente  só 
no  sentido  de  consolidar  e  dilatar  o  seu  dominio. 

Liictas  com  o  geutio  da  Bahia.  —  Tendo  os 
portugue/.es,  alliados  aos  jesuítas,  conseguido  submetter 
quasi  todo  o  gentio  dos  arredores  da  cidade  do  Sal- 
vador, apenas  o  de  Paraguassú  mostrava-se  rebelde,  e, 
quando  podia,  fazia  algum  damno. 

Mem  de  Sâ  mandou  contra  elles  um  tal  Cabral, 
portuguez  feroz  que  se  deliciava  em  fazer  horrorosas 
carniticinas  sobre  os  pobres  bárbaros. 

O  sanguinário  Cabral  venceu-os,  como  era  de  es- 
perar, attendendo  á  superioridade  das  armas  com  que 
os  combactia. 

Nestas  luctas  Mem  de  Sá  perdeu  um  filho,  Fernão 
de  Sá. 

Batalha  dos  aadadores.  —  E'  conhecida  com 
este  nome  na  historia  pátria  uma  celebre  b-italha  tra- 
vada entre  europeus  e  naturaes  sobre  as  aguas. 

Tinha-se  insubordmado  o  gentio  das  capitanias  do 
Espirito  Santo  e  Ilhéos  e  jâ  sitiavam  engenhos  e  po- 
voações. 

Mem  de  Sá  em  pessoa  partio  contra  os  selvagens,  e, 
desembarcando  a  sua  gente  durante  a  noite,  nos  Ilhéus, 
fel-a  seguir  para  o  sul  em  demanda  dos  inimigos  que, 
deixando-a  passar,  a  cercou  depois  pela  retaguarda  e 
começou  a  hostilisal-a. 

O  famigerado  Cabral,  percebendo  o  ardil  em  que 
tinham  cabido  os  portuguezes,  replicou  aos  Íncolas  por 
uma  manobra  igual:  embuscou-se  no  matto  e  quando  os 
selvagens  passavam  fronteiros  á  sua  columna,  cahio 
impetuosamente  sobre  elles. 

Viram-se,  pois,  os  selvagens  apertados  entre  a  fuzi- 
laria dos  inimigos  á  direita  e  o  Oceano  â  esquerda,  como 
porém  eram  grandes  nadadores  atiraram-se  ás  ondas. 
Os  portuguezes,  com  os  Índios  alliados,  foram  acompa- 
nhando-os  mesmo  n^'sse  terreno  liquido  e  travou-se  a 
peleja  a  nado.  O  padre  Manoel  da  Nóbrega,  que  nos 
transmittio  a  narração  desta  batalha,  diz  que  se  pelejou 
até  a  uma  légua  da  praia,  o  que  nos  parece  muito,  ou 
por  outra  inverosímil. 

Ficaram  victoriosos  os  portuguezes  e  os  índios  se 


1 


PEIMEIBA  EPOCHA  275 


atemorisaram  tanto  com   o  resultado  desta   peleja  que 
se  submetteram  completamente. 

Lucta  com  os  fraucozes  no  Rio  do  Ja- 
neiro.—Tendo  chegado  á  Bahia  em  lõõ9  o  capitão-mor 
Barthoiomeu  de  Vasconcellos  di  Cunha,  comiiiandando 
uma  armada,  afim  de  pòr-se  ás  ordens  do  governador 
para  efíectuar  a  expulsão  dos  francezes  do  Rio  de  Ja- 
neiro, Mem  de  Sá  tratou  de  commetter  a  empreza. 

Auxiliou-o  o  novo  prelado  D.  Pedro  Leitão  e  os 
jesuítas  de  Nóbrega. 

Antes  de  partir  escreveu  Mem  de  Sá  para  S.  Vi- 
cente afim  de  que  ahi  levantassem  as  forcas  que  pudes- 
sem, as  quaes  deviam  achar-se  ábarrado  Rio  de  Janeiro 
em  certo  dia  aprazado,  sendo  Nóbrega  o  emissário  en- 
carregado de  requerer  esse  reforço . 

A  esquadra  com  que  Mem  cíe  Sá  partio  do  Rio  de 
Janeiro,  compunha- se  somente  de  duas  naus  e  oito  em- 
barcações menores;  porém  á  barra  do  Rio  de  Janeiro  re- 
uniram-se-lhe  um  bergantim  e  muitas  canoas  de  guerra. 
Começou  Mem  de  Sá  por  aprisionar  uma  nau  de 
guerra  franceza,  e,  pela  tripolação  desta,  soube  que 
Villegaignon  já  não  se  achava  no  Rio  de  Janeiro  e  que 
a  fortaleza  era  então  commandada  por  um  seu  sobrinho. 
A  este  sobrinho  de  Villegaignon  mandou  Mem  de 
Sá  a  seguinte  intimação,  por  escripto  : 

«  El-Rei,  meu  Senhor,  sabendo  que  Villegaignon, 
vosso  tio,  lhe  tinha  usurpado  esta  terra,  se  mandou 
queixar  a  El-Rei  de  França,  o  qual  lhe  respondeu  que 
si  cá  estava,  que  lhe  fizesse  guerra  e  botasse  íóra, 
porque  não  viera  com  sua  commissão,  e  posto  que  já 
aqui  o  não  acho,  estais  vós  em  seu  logar,  a  quem 
admoesto  e  requeiro  da  parte  de  Deus,  e  do  vosso  Rei,  e 
do  meu,  que  logo  largueis  a  terra  alheia  a  cuja  he,  e 
vos  vades  em  paz  sem  querer  experimentar  os  dam  nos 
que  succederão  na  guerra.  »  (1) 

Não  era  verdade  o  que  Mem  de  Sá  dizia  na  sua 
intimação,  pois,  como  já  vimos,  o  próprio  rei  de  França 
tinha  armado  os  três  navios  que  trouxeram  tresentos 
homens  de  reforço  a  Villegaignon  . 

Assim  o  comprehendeu  o  mancebo, que  ao  portuguez 
respondeu  altivamente,  dizendo  que  «  pouco  Ine  impor- 


(1)  Frei  Vicente  do  Salvador  —  Historia  do  Brasil, 


276  HISTORIA  DO  BEASIL 


tava  saber  quem  era  o  dono  da  terra  e  só  lhe  cumpria 
fa/.er  u  que  o  Sr.  de  Villegaignon  lhe  havia  ordenado, 
que  era  sustentar  e  defender  aquella  sua  fortaleza  e 
assim  o  havia  de  cumprir,  ainda  que  lhe  custasse  a 
vida  e  muitas  vidas,  das  quaes  requeria  também  a  Mem 
dej  Sá  que  não  quizesse  ser  homicida,  antes  se  tornasse 
em  paz.  »  (1) 

A'  vista  desta  resposta  deliberou  Mem  de  Sá  acom- 
metter  os  francezes,  ficando  resolvido  o  ataque  para 
15  de  Março,  dia  em  que  os  portuguezes  fizeram  troar  a 
artilharia  contra  o  velho  forte  de  CoUigny. 

De  parte  a  parte  pelejou-se  com  extraordinária  bra- 
vura ;  os  francezes  já  tinham  gasto  maior  parte  da  pól- 
vora e  extenuados  se  achavam  os  setenta  e  qu.itro 
homens  da  guarnição,  sem  que  por  isso  deixassem 
de  pelejar  com  menos  furor,  quando  alguns  soldados  de 
Mem  de  Sá,  entre  os  quaes  Manoel  Coutmho,  homem 
pardo  e  Affonso  Martins  Diabo,  portuguez,  subiram 
por  uma  parte  da  fortaleza  que  parecia  inaccessivel  e 
apoderaram-se  repentinamente  do  resto  da  pólvora  do 
inimigo. 

Em  consequência  deste  revez  os  francezes  foram 
obrigados  a  capitular. 

Diz  Varnhagen  que  os  gentios  que  estavam  ao 
lado  dos  francezes  eram  em  numero  de  mil  «  tudo 
gente  escolhida  »  e  tão  bons  espingardeiros  como  os 
francezes. 

Não  tendo  força  sufficiente  para  guarnecer  a  forta- 
leza, Mem  de  Sá  mandou  arrazal  a  e  em  seguida  despa- 
chou seu  sobrinho  Estacio  de  Sá  para  Portugal  afim  de 
communicar  á  rainha  o  occorrido ;  esta,  porém,  si  por 
um  lado  se  alegrou,  censurou  no  entanto  ao  governa- 
dor o  não  ter  este  providenciado  no  sentido  de  deixar 
guarnição  na  fortaleza. 

Era  justa  esta  censura,  porquanto,  apenas  retirado 
Mem  de  Sá  do  Rio  de  Janeiro,  os  Tamoyos,  auxiliados 
por  alguns  francezes  que  haviam  ficado  entre  elles, 
tornaram  a  fortificar-se  na  nossa  bahia,  de  onde  os 
Índios  sabiam  frequentemente  para  depredar  a  costa  até 
S.   Vicente. 

liem    de    Sá  em   S.   Vicente     —  Depois  de 


ã)  Frei  Vicente  do  Salvador  —  Obra  citada. 


PBIMEntA  EPOCHA  277 


expulsar  os  francezes  do  Rio  de  Janeiro,  seguio  Mem  de 
Sá  para  S.  Vicente  onde,  por  conselho  de  Nóbrega  e 
outros  jesuítas,  fez  transferir  a  villa  de  Piratininga  para 
junto  do  collegio  de  S.  Paulo,  que  aquelles  padres 
haviam  construído. 

Combateu  os  gentios  rebeldes  da  visinhança,  ecomo 
circulassem  noticias  a  respeito  de  jazidas  auríferas  no 
sertão,  mandou  por  ellas  uma  expedição  commandada 
pelo  provedor  Braz  Cubas  e  por  um  tal  Luiz  Martins, 
mineiro  vindo  do  Reino.  Essa  expedição  percorreu  mais 
de  tresentas  léguas  sem  nada  encontrar,  quando  no 
entanto  o  ouro  existia  no  próprio  morro  de  S.  Paulo, 
como  em  1562  se  verificou. 

Meni  de  «á  no  Espirito  Santo.  (1560)  —  De 
volta  para  a  Bahia  entrou  o  governador  geral  no  porto  da 
Victoria,  onde,  por  instancias  dos  moradores,  tomou 
posse  da  capitania  para  a  Coroa,  visto  como  o  seu  dona  - 
tario,  Vasco  Fernandes,  a  tinha  renunciado.  Para  gover- 
nal-a  nomeou  Mem  de  Sá  a  Belchior  de  Azeredo. 

Guerra  contra  os  Ayiuorés.  —  si  incansáveis 
eram  os  portuguezes  em  destruir  os  indígenas,  outro 
tanto  se  pôde  dizer  destes  no  atormentar  os  descendentes 
de  Cabral ;  d'ahi  o  furor  com  que  os  governadores  os 
guerreavam  e  por  todos  os  meios  procuravam  exter- 
minal-os 

Em  1561  desceram  a  Serra  do  Mar  pela  primeira 
vez  os  terríveis  Aymorés,  povo  que,  na  opinião  do 
Varnhagen  pela  estranheza  da  linguagem,  e  sobre- 
tudo por  ser  esta  muito  guttural,  acreditava  ser  garfo 
extraviado  de  algumas  das  raças  mei-idionaes  patago- 
nicas  ou  araucanas.  Esses  Índios  ignoravam  a  natação, 
o  fabrico  e  o  uso  das  canoas  e  eram  agilissimos  na 
carreira. 

Seguio  da  Bahia  contra  os  Aymorés,  que  já  asso- 
lavam Porto  Seguro,  o  ouvidor  geral  Braz  Fragoso,  o 
qual  conseguio  atemorisal-os,  fazendo  com  que  elles  se 
internassem. 

Cuerra  contra  os  Tanioyoa  no  sui  do  Bra- 
sil. —  Em  1562  S.  Paulo  vio-se  em  grande  apuro  pelas 
investidas  dos  Tamoyos,  capitaneados  por  Jaguanharo, 
sobrinho  do  velho  moVubixaba  Tebyricá,  sogro  de  João 
Ramalho. 

Nóbrega  e  Anchieta,  que  eram'  muito  respeitados 
pelos  selvagens,  conseguiram  applacal-  os  e  obtiveram 


278  HISTORIA  DO  BEASIL 

dos  caciques  hostis  uma  trégua  que  se  conhece  na  his- 
toria pelo  nome  de  Armistício  de  Iparoyg,  por  ter  sido 
assentada  junto  ás  margens  desse  rio. 

Aiigniento  da  iiuportaçau  de  escravos. —  O 

Brasil  do  tempo  de  Alem  de  Sá  não  era  mais  aquella 
região  da  qual  Américo  Vespucio  dizia  que  apenas 
possuia  canna  fistula  o  lenho  de  tinturaria ;  era,  pelo 
contrario,  um  paiz  cuja  fertilidade  pasmosa  na  cultura 
dos  mais  rendosos  vegetaes  indígenas  ou  exóticos,  que 
reproduziam  mil  vezes  a  semente  lançada  na  terra,  aliás 
pouco  exigente  de  amanhos,  estava  praticamente  de- 
monstrada. 

Todavia  eram  necessários  braços  para  a  cultura  dos 
cannaviaes,  dos  mandiocaes,  dos'  milharaes  e  outras 
plantações,  e,  como  o  bugre  sempre  tinha  próximo  o 
sertão  amigo  que  o  livrava  de  ferrenho  captiveiro,  tratou 
a  metrópole  de  facilitar  a  entrada  no  Brasil  dos  infelizes 
africanos. 

Em  29  de  Março  de  1559  ordenou  a  rainha  ao 
capitão  da  ilha  de  S.  Thomé,  na  Africa,  que,  em  pre- 
sença da  certidão  do  governador  do  Brasil,  cada  senhor 
de  engenho  poderia  mandar  vir  até  cento  e  vinte  escravos 
do  Congo,  pagando  só  o  terço  dos  direitos,  em  vez  da 
metade,  como  era  costume. 

Essa  concessão,  como  é  natural,  redobrou  o  ardor 
dos  nefandos  negreiros,  traficantes  do  homem  africano, 
e  d'ahi  por  dianto  os  caraveliões  começaram  a  aportar 
com  mais  frequência  á  Bahia,  atulhados  desses  desgra- 
çados que  â  custa  dos  mais  rudes  trabalhos  iam  nos 
engenhos  e  nas  plantações  engrossar  a  fortuna  portu- 
gueza. 

Progreísso  das  luissôes. — As  missões,  creadas 
logo  á  chegada  de  Mem  de  Sá  ao  Brasil,  prosperaram 
rapidamente,  graças  ao  zelo  dos  jesuítas,  que,  suavisando 
a  sorte  dos  indigenas  nas  suas  "relações  com  os  portu- 
guezes,  ao  mesmo  tempo  administravam  áquelles  algu- 
ma instrucção,  e  neste  propósito  chegaram  até  a  abrir 
aulas  de  lingua  tupy. 

Fundação   da  cidade    do   Rio   de   Janeiro 

(1565J. — Continuamente  chegavamá  Bahia  noticiassobre 
o  commercio  que  os  francezes  praticaram  com  os  Índios 
no  Rio  de  Janeiro  e  Cabo  Frio,  de  onde  recolhiam  car- 
regações enormes  de  pimenta  e  outros  productos  na- 


PRIMEIBA  EPOCHA  279 


tivos  que  o  gentio  armazenava  para  elles,  em  troca  de 
canivetes,  anzoes,  espelhos,  machiados  e  outros  artigos. 

Resolveu-se  pois  Mcn  de  Sá  a  mandar  colonisar  o 
Rio  de  Janeiro,  e  nesse  sentido  representou  á  metrópole 
que  mandou  nova  armada  pôr-se  ás  suas  ordens. 

Juntando  aos  navios  chegados  miis  algumas  em- 
barcações, confiou  Mem  de  Sá  o  cojuuiando  da  frota  a 
Estacio  de  Sá,  seu  sobrinho. 

Partio  immediatamente  a  esquadra  e  nella  embar- 
cou-se  o  ouvidor  Braz  Fragoso  que  tinha  por  missão 
agenciar  reforços  no  Espirito  Santo  e  S.  Vicente. 

No  Espirito  Santo  juntaram-se  á  expedição  o  go- 
vernador Belchior  de  Azeredo  e  o  chefe  temiminó 
Martim  Affonso  Arariboia,  com  os  seus  Índios. 

Ao  transpor  a  barra  do  Rio  de  Janeiro  apoderou-se 
Estacio  de  Sá  de  uma  náu  franceza  cuja  tripolação 
tinha-se  passado  para  a  terra  ;  não  quiz,  porém,  iiiiciar 
a  peleja  e  resolveu,  á  vista  do  que  lhe  expoz  Anchieta, 
chegado  nesse  mesmo  dia  de  Santos  num  bergantim,  ir 
primeiro  a  S.  Vicente  buscar  reforço. 

«  Pela  sua  vez,  diz  Varnhagen,  a  capitania  de 
S.  Vicente  se  prestou,  talvez  mais  do  que  lhe  per- 
mittiam  suas  forças,  para  o  bem  de  todos,  para  o  Brasil 
não  ser  dilacerado.  Todas  as  canoas  em  estado  de  se 
armarem  em  guerra,  quanto  mantimento  se  poude 
juntar,  para  dois  ou  três  m  'zes  de  sustentjD  aos  homens 
da  expedição  retendo  só  o  indispensável  para  não 
morrerem  de  fome  os  que  ficavam  guardando  a  terra, 
quanta  gente,  emfim,  podia  combater,  casados  e  sol- 
teiros, anciãos,  e  adolescentes,  muitos  escravos  da 
Guiné,  e  até  os  Índios  em  quem  depositavam  maior 
confiança,  tudo  esta  capitania,  sem  excepção  da  nova 
colónia  de  Piratininga,  tão  exposta  ás  aggressões  do 
gentio  do  sertão,  tudo  sacrificou  a  boa  gente  para  o  bem 
da  nova  pátria  commum  ». 

Foi  apparelhado  com  tão  possante  esquadra,  quão 
numeroso  exercito,  que  Estacio  de  Sá  entrou  no  Rio  de 
Janeiro  a  1°  de  Março  de  1565. 

Fundeou  a  esquadra  portugueza  logo  á  entrada  da 
Bahia  e  Estacio  de  Sá  fez  desembarcar  a  tropa  no  logar 
hoje  occupado  pela  Escola  Militar,  onde  mandou  roç  .r  o 
matto  e  fazer  uma  tranqueira  que  servisse  para  guardar 
o  arraial. 


fi« 


280  HISTORIA  DO  BBABIL 

No  fundo  da  bahia  achava-se  uma  nau  franceza  e, 
tendo  Estacio  de  Sá  se  dirigido  a  ella  com  quatro  barcos, 
afim  de  obrigal-a  a  render-se,  os  indios,  capitaneados 
por  Aimbiré,  procuraram  tomar  de  assalto  o  arraial, 
cahindo  sobre  elle  com  quarenta  canoas  de  guerra; 
Estacio  de  Sá,  do  logar  em  que  está,  percebe  o  combate 
6  deixando  três  embarcações  para  a  captura  da  nâu, 
corre  em  auxilio  do  arraial  em  uma  galé  de  remos;  esse 
auxilio,  porém,  não  se  tornou  necessário,  pois  os  que 
guarneciam  a  praça,  tinham  por  si  só  impedido  que  os 
assaltantes  transpuzessení  a  tranqueira. 

Fugiram  por  conseguinte  os  indios  e  achou-se  o 
capitão-mór  senhor  do  Rio  de  Janeiro.  A  nau  franceza 
capitulou  immediata mente,  com  a  condição  de  poder 
retirar-se  para  a  França  com  a  sua  tripolação  de  cento  e 
dez  homens,  todos  christaos ;  e  Estacio  de  Sá  tratou  de 
lançar  os  fundamentos  da  futura  cidade,  que  em  home- 
nagem ao  soberano  portuguez  recebeu  o  nome  de  S.  Se- 
bastião; arbitrou  depois  para  termo  da  mesma  até  um 
raio  de  seis  léguas  para  cada  lado  e  légua  e  meia  para 
património  da  Camará  e  rocio  da  cidade,  e  deu-lhe  por 
armas  um  molho  de  settas.  (1) 

Os  indios  aquietararn-se  durante  alguns  mezes, 
e  isto  deu  tempo  aos  portuguezes  de  construirem  ran- 
chos, um  baluarte  de  taipa  e  em  redor  da  cerca  roças  de 
legumes  e  inhames. 

Os  francezes,  porém,  não  haviam  desistido  do  in- 
tento de  serem  senhores  do  Rio  de  Janeiro,  e  quando  a 
povoação  já  se  achava  no  ponto  descripto  no  periodo 
acima,  vieram  atacar  o  arraial  em  três  navios  e  trinta 
canoas  tripoladas  por  indios. 

Os  assaltantes  foram  rechassados. 
D'ahi  por  diante  repetiram-se  os  ataques  e  as  esca- 
ramuças, porém  Estacio  de   Sá,  que  tinha  por   missão 
fundar  uma  cidade,  mesmo  pelejando,  ia  dispondo  tudo 
para  a  consecução  do  seu  plano. 

Nomeou  um  juiz  ordinário  da  cidade,  um  alcaide- 
mór,  deu  terras  de  sesmaria  a  algumas  pessoas  e  pro- 


(1)0  Vereador  Haddock  Lobo,  que  estudou  detidamente  esta 
questão  no  seu  livro  Tombo  das  Terras  Municipaes  do  Rio 
de  Janeiro,  affirma  que  a  doação  de  Estacio  de  Sá  foi  de'  quatro 
leguas^^em  quadra,  sendo  a  mesma  augmentada  depois  com  mais 
duas  leoruas. 


PBIMEIEA  EPOOHA  281 


mulgou  bandos  afim  de  reprimir  certos  vicios  que 
começavam  a  desenvolver-se  no  seio  da  nascente 
povoação. 

Todavia  era  bastante  precária  a  situação  da  colónia, 
pois  faltava -lhe  a  base  essencial  para  prosperar  —  a 
tranquillidade. 

Muitas  vezes  o  colono  que  construía  o  seu  casebre 
ou  plantava  os  seus  inhames  tinha  que  deixar  a 
enxada  ou  o  machado  para  tomar  a  espingarda  ou  a 
besta  afim  de  responder  á  saraivada  de  settas  dispa- 
radas pelo  tamoyo  ou  á  arcabuzada  do  francez. 

José  de  Anchieta  testemunhou  estas  scenas  ao 
passar  pelo  Rio  de  Janeiro  e  informou-as  a  Mem  de  Sá, 
que  logo  representou  á  corte  nesse  sentido. 

Esta,  não  sondo  surda  á  reclamação,  mandou-lhe 
três  galeões  sob  o  commando  de  Christovão  de  Barros, 
aos  quaes  o  governador  juntou  dois  navios  que  anda- 
vam na  costa  e  mais  seis  caravellões,  passando-se 
em  pessoa  ao  Rio  de  Janeiro,  acompanhado  pelo  bispo 
D.  Pedro  Leitão. 

Combinou  então  Mem  de  Sá  com  os  diversos  offi- 
ciaes  que  no  dia  seguinte,  20  dé  Janeiro,  se  procurasse  o 
inimigo  nos  seus  alojamentos  de  Uniçú-mirim,  junto  á 
foz  do  Rio  Cattete,  bem  como  na  ilha  de  Paranapecú, 
afim  de  se  lhe  dar  combate. 

O  primeiro  alojamento  foi  logo  tomado  de  assalto; 
nelle  se  achavam  onze  francezes,  dos  quaes  seis  cahi- 
ram  no  momento  da  acção  e  cinco  foram  passados  á 
espada ;  da  parte  dos  portuguezes  morreu  o  capitão 
Gaspar  Barbosa. 

Os  Índios  que  puderam  fugir  recolheram  se  á  ilha 
de  Paranapecú  para  onde  se  transportou  a  luta  em 
seguida  à  tomada  de  Uruçú-mirim. 

Depois  de  porfiada  peleja,  em  que  os  portuguezes 
atacaram  com  denodo  e  os  Índios  se  defenderam  com  a 
natural  galhardia,  foram  estes  vencidos,  em  conse- 
quência da  inferioridade  das  armas  e  insufficiencia  do 
numero,  senão  tomada  a  tranqueira.  Estacio  de  Sá  foi 
ferido  na  acção  por  uma  frechada,  vindo  a  morrer  um 
mez  depois.  A  ilha  de  Paranapecú  ficou  então  se  cha- 
mando do  Governador. 

Mem  de  Sá  tratou  logo  de  transferir  a  cidade  da 
Praia  Vermelha  para  o  local  em  que  ella  veio  definitiva- 
mente assentar-se  e  que  hoje  tem  o  nome  de  Cidade 


282  HISTORIA  DO  BRASIL 

Velha,  confiando  o  governo  a  um  outro  seu  sobrinho; 
Salvador  Corrêa  de  Sá. 

Em  seguida  confirmou  as  doações  feitas  por  Estacio 
de  Sá  e  fez  novas,  entre  as  quaes  a  sesmaria  de  uma 
légua  de  terra  do  outro  lado  da  bahia  ao  indio  Arariboia 
e  um  sitio  aos  jesuítas,  para  que  nelle  construissem  um 
coUegio  de  sua  ordem  . 

Salvador  Corrêa  de  Sá  foi  substituído  no  governo 
do  Rio  de  Janeiro  por  Christovâo  de  Barros,  em  31  de 
Outubro  de  1571,  o  qual  mandou  construir  para  a  cidade 
muralhas  e  torres  de  taipa. 

A.  libertnção  dos  Índios.  — Com  grande  indi- 
gnação dos  gananciosos  e  bárbaros  senhores  de  engenho, 
que  ao  mísero  e  submisso  africano  escravisado  qu^^ríam 
ter  o  direito  de  atrelar  no  eito  o  altivo  indio  brasileiro, 
os  jesuítas  conseguiram  no  governo  de  Mem  de  Sá 
arrancar  do  soberano  de  Portugal  uma  lei  altamente 
philantropíca,  pela  qual  se  prohibia  a  escravisação  dos 
Índios,  salvo  quando  fossem  aprisionados  em  guerra 
justa.  Por  essa  mesma  lei  ficavam  livres  todos  os  índios 
que  em  tal  epocha  gemiam  no  captiveiro. 

Quer  fosse  por  caridade  evangélica,  quer  fosse  por 
cálculos  de  domínio  sobre  a  raça  aborígene,  o  que  não 
se  pódô  negar  é  que  nossa  Pátria  deve  aos  discípulos  de 
Loyola,  principalmente  no  século  XVI, os  mais  assígna- 
lados  serviços,  e  entre  estes  avulta  essa  protecção 
magnânima  que  dispensavam  aos  primitivos  habitantes 
do  Brasil  ;  assim  a  historia  imparcial  e  justiceira  não 
pôde  deixar  de  registrar  com  louvores  o  nobre  papel 
por  elles  representado,  nem  se  esquivar  de  insistir  na 
grandeza  da  funcção  que  exerciam  em  um  meio  social 
tão  corrupto  e  vil  como  era  o  colonial. 

Alei  promulgada  por  D.  Sebastião,  estatuindo  a 
liberdade  incondicional  do  indio  brasileiro,  salvo  no 
caso  de  ser  aprisionado  em  guerra  justa,  teve  no  emtanto 
duração  muito  ephemera  ;  pois  d'ahi  ha  pouco  o  selva- 
gem lornava  a  ser  accessivel  aos  anjinhos  do  captiveiro. 

Teremos  occasião  de  ver  na  continuação  desta 
historia  quão  frequentes  e  contradictorias  foram  as  leis, 
emanadas  do  governo  portuguez,  que  regulavam  a  sorte 
dos  Índios  ;  observando  essa  singularidade,  assim  se 
exprimio  o  notável  brasileiro  J.  F.  Lisboa  : 

<  Em  relação  aos  índios  a  dominação  portugueza 
foi  uma  série  nunca  interrompida  de  hesitações  e  con- 


PRIMEIRA  EPOCHA  283 


tradicções  até  o  ministério  do  naarquez  de  Pombal.  De- 
cretava-se  hoje  o  captiveiro  sem  restricções,  amanhã  a 
liberdade  absoluta,  depois  um  meio  termo  entre  os  dois 
extremos.  Promulgiva-se,  revogava-se,  transigia-se, 
ao  sabor  das  paixões  e  interesses  em  voga,  e  [quando 
emfim  se  suppunham  as  idéas  assentadas  por  uma  vez, 
recomeçava-se  com  novo  ardor  a  teia  interminável.  Foi 
aquelle  ministro  enérgico  e  poderoso  quem  rompeu  sem 
regresso  com  o  principio  funesto  da  escravidão.  |0s 
Índios,  é  certo,  ainda  depois  das  famosas  leis  de  1755, 
foram  não  poucas  vezes  victimas  da  oppressão  ;  porém, 
o  mal  nesses  casos  tinha  um  caracter  meramente  acci- 
dental  e  transitório  e  nunca  mais  adquirio  os  foros  de 
doutrina  corrente,  que  legitimando  os  seus  resultados, 
os  tornava  por  isso  mesmo  mais  intensos  e  duradouros. 
As  experiências  que  em  sentido  contrario  tentou  o"  go- 
verno do  príncipe  regente  em  1808  nem  foram  bem 
aceitas  pela  opinião  nem  vingaram  contra  o  principio 
da  liberdade  já  radicado. . .  Um  curioso  specimen  dessa 
legislação  casuística  e  vacillante  éa  Provisão  de  9  de 
Março  de  1718,  que  ella  só  resume  em  poucas  linhas 
quanto  se.  encontra  disperso  em  diffusas  paginas  du- 
rante dois  séculos.  »  (1) 

João  Boles.  — Antes  de  terminarmos  o  estudo 
do  governo  de  Mem  de  Sá,  precisamos  dizer  algumas 
palavras  sobre  a  execução  de  João  Boles,  facto  esse  mo- 
dernamente recordado  com  insistência  pelos  protestantes 
brasileiros,  e  que,  seja  qual  fòr  a  interpretação  que  lhe 
dôm,  salpica  de  sangue  a  memoria  do  seraphico  José  de 
Anchieta,  ao  qual  as  influencias  catholicas  de  S.  Paulo 
pretendem,  â  custa  do   Estado,   erigir  uma  estatua. 

Eis  como  frei  Vicente  do  Salvador,  com  a  sua  in- 
génua simplicidade,  descreve  esse  triste  facto  : 

c<  Entre  os  primeiros  francezes  que  vieram  ao  Rio 
de  Janeiro  em  companhia  de  Villegaignon,  vinha  um 
hereje  calvinista  chamado  João  Bouller,  o  qual  fugio  para 
a  capitania  de  S.  Vicente,  onde  os  portuguezes  o  rece- 
beram por  ser  cathohco,  e  como  tal  o  admittiam  em  suas 
conversações,  por  elle  ser  também  na  sua  eloquente  e 
universal  lingoa  Hespanhola,  Latina,  e  saber  alguns 
principies  da  Hebréa,  e  versado  em  alguns  logares  da 


(1)  João  Francisco  Lisboa.  —  Obras. 


284  HISTORIA  DO  BBASIL 

Sagrada  Escriptura,  com  os  quaes  entendidos  a  seu 
modo  dourava  as  pirolas,  e  encobria  o  veneno  aos  que  o 
ouviam,  e  viam  morder  algumas  vezes  na  autoridade  do 
Summo  Pontifice,  no  uso  dos  Sacramentos,  no  valor 
das  Indulgências,  e  em  a  veneração  das  Imagens.  Com- 
tudo  não  faltou  quem  o  conhecesse  (que  ao  lume  da  fé 
nada  se  esconde),  e  o  foram  denunciar  ao  Bispo,  o  qual 
o  condemnou  como  seus  erros  mereciam,  e  sua  obstina- 
ção, que  nunca  quizretractar-se;  pelo  que  o  remetteu 
ao  Governador,  o  qual  o  mandou  que,  á  vista  dos  outros, 
que  tinham  captivos  na  ultima  victoria,  morresse  ás 
mãos  de  um  algoz. 

«  Achou-se  ali  para  o  ajudar  a  bem  morrer  o  padre 
José  de  Anchieta,  que  já  então  era  Sacerdote,  e  o  tinha 
ordenado  o  mesmo  Bispo  Dom  Pedro  Leitão,  e  posto 
que  no  principio  o  achou  rebelde,  nâo  permittio  a  Divina 
Providencia  que  se  perdesse  aquella  ovelha  fora  do 
rebanho  da  Igreja,  sinão  que  o  Padre  com  suas  efhcazes 
razões,  e  principalmente  com  a  efficacia  da  graça,  o  re- 
duzisse a  ella,  ficuu  o  Padre  tão  contente  deste  ganho, 
e  por  conseguinte  tão  receioso  de  o  tornar  a  perder,  que 
vendo  ser  o  algoz  pouco  dextro  em  seu  officio,  e  que  se 
detinha  em  dar  morte  ao  réo,  e  com  isto  o  angustiava, 
reprendeu  o  algoz,  e  u  industriou  pêra  que  fizesse  com 
presteza  seo  oflicio,  escolhendo  antes  pôr-sea  si  mesmo 
em  perigo  de  incorrer  nas  penas  ecclesiasticas,  de  que 
logo  se  absolveria,  que  arriscar-se  aquella  alma  ás 
penas  eternas.  » 

Julgue  por  si  o  leitor  si  seria  effectivamente  zelo 
religioso  ou  intolerância  fanática. 

Pedro  de  Orsiaa.  —  (1560)  Coincide  com  a  go- 
vernação de  Mem  de  Sá  uma  tentativa  de  occupação  do 
Amazonas  pelos  hespaiihoes,  isto  é,  vinte  annos  depois 
que  Francisco  de  Orellana  percorreu  o  grande  rio,  desde 
as  suas  nascentes  até  afóz.  Em  1560  sahira  de  Cuzco, 
com  o  titulo  de  governador  do  Amazonas,  Pedro  de 
Orsúa,  acompanhado  de  Lopez  de  Agmrre  e  D .  Fer- 
nando de  Gusmão  e  á  frente  de  um  numeroso  exercito. 
Propunha-se  Pedro  de  Orsúa  realisar  a  occupação  das 
terras  que  Orellana  havia  descoberto. 

Conseguio  alcançar  o  Rio  Juruá  e  por  este  ganhou  o 
Amazonas,  porém  ahi  os  soldados,  açulados  por  Aguirre 
mataram-n'o  e  acclamaram  rei  a  D.  Fernando,  o  qual 
dentro  em  pouco  também  era  assassinado.    Aguirre, 


PBIMEIBA  EPOOHA  286 


vendo-se  então  sem  competidores,  constituio-se  tyramno; 
mandou  matar  muitos  dos  próprios  soldados,  saqueou 
diversas  aldeias  indigenas,  porém  afinal  foi  vencido  e 
morto  pelos  naturaes,  mallogrando-se  por  esta  forma 
mais  um  commettimento  hespanhol  no  Amazonas. 

Morte  do  padre  llauoel  da  IVobreg^a. —  Em 

1570,  e  portanto  sob  o  governo  de  Mem  de  Sá,  falleceu 
no  Rio  de  Janeiro  o  notável  jesuita  Manoel  da  Nóbrega 
que  até  de  escriptores  protestantes,  como  Roberto 
Southey,   mereceu  enthusiasticos  louvores. 

Não  se  sabe  em  que  logar  de  Portugal  nasceu  e  bem 
assim  ignora-se  a  data  do  seu  nascimento  ;  é  certo, 
porém,  que  se  bacharelou  em  1541  na  Universidade  de 
Coimbra  e  três  annos  depois  entrou  para  a  companhia 
de  Jesus. 

Em  1594  veio  com  Thomé  de  Souza  para  o  Brasil 
e  foi  o  primeiro  provmcial  dos  jesuítas  neste  paiz. 

Manoel  da  Nóbrega  fundou  os  collegios  de  sua 
ordem  em  S.  Vicente,  S.  Paulo,  Espirito-Santo  e  Rio 
de  Janeiro  e  foi  um  dos  negociadores  do  celebre  ar- 
mistício de  Iperoyg. 

Morte  de  O.  Luiz  Fernaniles —  Achando-se 
cansado  do  governo,  pedio  Mem  de  Sá  a  D.  Sebastião 
que  lhe  mandasse  substituto. 

O  soberano  attendeu-o  e  nomeou  governador  geral 
do  Brazil  a  D.  Luiz  Fernandes  de  Vasconcellos,  o  qual, 
em  viagem  foi  colhido  pelos  corsários  huguenottes 
Jacques  de  Soria  e  João  Capdeville  que  o  mataram. 

Igual  sorte  tiveram  48  padres  da  Companhia  de 
Jesus  que,  sob  a  chefia  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo  se 
dirigiam  ao  Brasil. 

Morte  de  Mem  de  Sá. —  Não  conseguio  Mem 
de  Sá  os  seus  intentos  de  vêr  a  pátria  antes  da  morte, 
pois  estão  colheu  no  Brasil  a  2  de  Março  de  1572. 

Mem  de  Sá  foi  um  governador  hábil  e  zeloso  e  por 
suas  acções  justificou  sufficientemente  a  confiança  que 
nelle  depositava  à  metrópole.  De  todos  os  que  diri- 
giram os  destinos  do  Brasil,  nesse  primeiro  periodo  do 
colonato,  foi  Mem  de  Sá  o  que  mais  se  esforçou  pelo 
augmento  e  conservação  dos  interesses  portuguezes 
na  terra  do  Cruzeiro. 

Trabalhou  pelo  progresso  da  região  e  a  linha  geral 
de  sua  conducta  para  com  os  colonos,  attendendo-se  á 
fereza  dos  tempos,  era  a  da  tolerância,  como  se  vô  deste 


286  HISTOEIA  DO  BEASIL 

período  de  uma  carta  que  dirigio  á  rainha  D.  Catharina: 
«Esta  terra  não  deve  regular-se  pelas  leis  e  estylos  do 
Reino.  Se  Vossa  Alteza  não  fôr  muito  lacil  em  perdoar, 
não  terá  gente  no  Brazil;  e  porque  o  ganhei  do  novo, 
desejo  que  elle  se  conserve.  » 

Com  os  Índios,  porém,  foi  muitas  vezes  cruel  e  mais 
o  seria  si  esta  infeliz  raça,  tão  digna  de  sympathia,  não 
estivesse  continuamente  coberta  com  o  pallio  da  pro- 
tecção jesuítica. 


CAPITULO    XIII 

GOVERNO  DUAL  E  REGRESSO  AO  SINGULAR 

Morrendo  Mem  de  Sá  e  perecendo  ás  mãos  de  corsá- 
rios francezes  o  governador  que  devia  substituil-o,  D  Se- 
bastião resolveu  dividir  o  Brasil  em  dous  governos,  de- 
liberação essa  que  não  tinha  justificação,  nem  era  exi- 
gida por  interesse  de  espécie  alguma,  pois  o  governo 
singular  do  Brazil  tinha  sido  altamente  vantajoso  á 
metrópole  e  mesmo  ao  progresso  da  região  que  se  colo- 
nisava. 

Fez-se  no  emtanto  a  divisão  e  o  soberano  procurou 
justificar  o  seu  acto  na  seguinte  carta  que,  a  10  de  De- 
zembro de  1572,  escreveu  a  Luiz  de  Brito: 

«  Faço  saber  aos  que  esta  carta  virem  que,  conside- 
rando eu  como  por  as  terras  da  costa  do  Brazil  serem 
tâo  grandes  e  tão  distantes  umas  das  outras  e  haver  já 
agora  nellas  muita  povoação  e  esperança  de  se  fazerem 
muitas  mais  pelo  tempo  em  diante,  não  podia  ser  tão  in- 
teiramente governadas  como  cumpria  por  um  só  gover- 
nador, como  até  aqui  nellas  houve,  assentei  assim  para 
o  que  convém  á  conversão  do  gentio  d'aquellas  partes,  e 
se  dilatar  nellas  nossa  Santa  Fé,  como  para  m;  is  breve- 
mente se  administrar  a  justiça  e  nellas  se  poderem 
melhor  defender,  e  por  outros  respeitos,  de  mandar  dous 
governadores  ás  ditas  partes,  um  para  residir  na  cidade 
do  Salvador  da  capitania  da  Bahia  de  Todos  os  Santos, 
e  outro  na  cidade  de  S.  Sebastião,  e  governar  cada  um 
delles  conforme  a  repartição  que  para  isso  mandei  fazer.» 

Os  dous  goveraadores. —  Para  governador  das 
capitanias,  septentrionaes  isto  é,  das  de  Ilhéos,  Todos 
os  Santos,  Pernambuco,  Itamaracá,  Ceará,  Maranhão  e 
mais  terras  que  por  ventura  fossem  colonisadas  ao 
norte,  foi  nomeado  o  conselheiro  Luiz  de  Brito  e 
Almeida. 

Para  governador  das  capitani;ís  merilionaes,  nas 
guaes  se  incluíam  as  de  Porto  Seguro,  Espirito  Santo, 
Rio  de  Janeiro  (capitania  administrativa;.  Santo  Amaro, 
S.  Vicente  e  mais  terras  do  sul,  foi  nomeado  o  Dr.  An- 


388  mSTOBIA  DO  bbasil 

tonio  Salema,que  fôra  lente  da  Universidade  de  Coimbra, 
e  que,  tendo-se  passado  em  1570  à  Casa  da  Supplicação, 
logo  fora  mandado  com  alçada  em  correição  a  Per- 
nambuco, onde  recebera  o  despacho  que  o  nomeava 
governador 

A  coufereucia  dos  g^overnadores —  Reuni- 
ram-se  na  Bahia  os  dous  governadores,  afim  de  assen- 
tarem em  medidas  a  tomar  de  commum  accòrdo,  e  á  essa 
conferencia  assistiram  o  ouvidor  geral  Fernão  da  Silva 
e  os  jesuítas,  sendo  ahi  reconsideradas  as  disposições 
da  ultima  lei  sobre  a  liberdade  dos  Índios,  em  conformi- 
dade com  as  seguintes  determinações  contidas  numa 
carta  regia  a  tal  respeito:  «  No  que  toca  ao  resgate  dos 
escravos,  se  deve  ter  tal  moderação  que  não  se  impida 
de  todo  o  dito  resgate,  pela  necessidade  que  as  fazendas 
delles  têm,  nem  se  permitiam  resgates  manifestamente 
injustos,  e  a  devassidão  que  até  agora  nisso  houve.» 

Estas  linhas  arrancadas  ao  ignorante  e  inexperiente 
D .  Sebastião,  levavam  de  novo,  pela  escapatória  do  res- 
gate, o  pobre  indio  ao  oppobrio  e  maldição  docaptiveiro, 
e  annuUava  completamente  em  seus  eífeitos  a  libérrima 
lei  que  pouco  antes  o  mesmo  rei,  a  instancias  dos 
jesuítas,  havia  promulgado  e  pela  qual  até  os  mdios 
que  já  eram  captivos  ficavam  sendo  considerados  livres. 

Os  novos  governadores  apossaram-se  sofregamente 
desta  iniqua  autorisação  e  firmaram  o  ominoso  accòrdo 
de  6  de  Janeiro  de  1574,  seguindo  depois  Salema  para  o 
Rio,  que  era  a  sede  do  seu  governo. 

<naptiveiro  do»  Índios. —  O  accòrdo  a  que  aca- 
bamos de  nos  referir  continha  dez  capitules  que  para 
aqui  trazemos,  copiando-os  de  Varnhagen: 

O  primeiro  capitulo  prohibia  os  resgates  de  gente 
entre  os  Índios  mansos  ou  de  pazes. 

Pelo  segundo  se  exceptuavam  da  prohibição  os  Ín- 
dios que  depois  de  aldeados  fossem  para  o  matto  e 
andassem  ausentes  por  mais  de  um  anno. 

Limitava  o  terceiro  a  escravidão  dos  indios  aos 
aprisionados  em  guerra  manifestamente  licita  e  aos  que, 
estando  captivos  de  outro  gentio,  e  com  mais  de  vinte  e 
um  aimos  de  idade,  preferissem  o  captiveiro  dos  nossos. 

Pelo  quarto  se  declaravam  defesos  os  resgates  feitos 
sem  licença  dos  governadores  ou  dos  capitães  ;  sendo 
incumbidos  do  exame  delles  os  provedores,  e  mais  dous 


PEIMEIKA  EPOOHA  289 


indivíduos  eleitos  em    camará  no    principio    da   cada 
anno. 

Dispôz-se  pelo  quinto  que  as  pessoas  vindas  com 
os  Índios  de  resgate,  quer  por  mar,  quer  por  terra,  se 
apresentassem  na  respectiva  alfandega,  antes  de  haver 
feito  escala  ou  communicado  com  alguém. 

Recommendou-se  pelo  sexto,  que  os  Índios  de  res- 
gate, nesta  conformidade  registrados,  que  fugissem, 
seriam  a  todo  o  tempo  entregues  aos  seus  primeiros 
senhores,  mediante  a  propina  de  ISOOO  reis,  e  a  in- 
demnisação  das  despezas. 

Pelo  sétimo,  os  Índios  resgatados,  de  que  se  não 
houvesse  registro,  declaravam-se  forros. 

Pelo  oitavo  se  fixou  que  fossem  consideradas  guer- 
ras justas  as  que  os  governadores  fizessem  conforme 
seus  regimentos,  ou  as  que  occasionalmente  se  vissem 
obrigados  a  fazer  os  capitães,  com  voto  dos  officiaes  da 
camará  e  outras  pesso.is  de  experiência,  dos  padres  da 
Companhia,  do  vigário  da  terra  e  do  provedor  da  Fa- 
zenda, de  cuja  resolução  se  devia  lavrar  auto. 

O  nono  declarou  forros  os  Índios  que  os  capitães 
tomassem  sem  esta  ultima  clausula,  e  as  penas  que 
sotfreriam,  tanto  elles,  capitães,  como  outros  quaesquer 
indivíduos  que  fossem  contra  o  que  ora  se  deliberava. 

Finalmente,  o  decimo  mandava  que  os  delinquen- 
tes, sendo  peões,  fossem  açoutados  em  publico,  com  ba- 
raço e  pregão,  e  pagassem  quarenta  cruzados  de  multa  ; 
e  sendo  do  maior  qualidade,  além  da  dita  pena,  fossem 
condemnados  a  dous  annos  de  degredo,  isto  afora  as 
outras  penas  em  que  pudessem  incorrer,  segundo  as 
ordenações,  leis  e  regimentos  do  reino. 

Governo  de  Luiz  de  Brito. — De  todos  os  feitos 
de  Luiz  de  Brito,  como  governador  das  capitanias  septen- 
trionaesdo  Brazil,  o  mais  importante  foi  a  guerra  que 
fez  ao  gentio  acampado  nas  margens  do  Rio  Real  (Es- 
tado de  Sergipe),  território  cuja  conquista  já  tinha  sido 
tentada  por  Garcia  d'Avila,  rico  proprietário  do  recôn- 
cavo da  Bahia. 

Ahi  fundou  Luiz  de  Brito  uma  villa  que,  segundo 
Varnhagen,  tomou  o  nome  de  Santa  Luzia,  e,  segundo 
Frei  Gaspar  da  Madre  de  Deus,  o  de  Villa  Real  do  Piaguy. 

Além  deste  serviço  prestado  à  colónia,  Luiz  de  Brito 
mandou    António    Dias    Adorno    ao  sertão  em  buscsi' 

1» 


290  histobUl  do  bbábil 

das  minas  de  esmeraldas  que  Sebastião  Tourinho  dis- 
sera ter  achado. 

Adorno  apenas  encontrou  turmalinas  verdosas  e 
azuladas . 

Ainda  no  seu  tempo  partio  com  o  mesmo  fim  uma 
segunda  expedição  para  o  sertão,  a  de  João  Coelho  de 
Souza  ;  segundo  Varnhagen,  esse  sertanista  descobrio 
ouro  e  pedras  preciosas  e  falleceu  nas  cabeceiras  do  Rio 
Paraguassú,  deixando  a  seu  irmão  Gabriel  Soares  um 
roteiro  com  as  indicações  precisas. 

E'  no  seu  governo  que  começam  as  tentativas  para 
a  conquistada  Parahyba  que  só  em  1586  se  realisou. 

Os  Índios  desta  região  tinham-se  mostrado  desde  o 
começo  muito  amigos  dos  portuguezes  estabelecidos  em 
Itamaracá,  chegando  até  a  trabalharam  quasi  de  graça 
para  elles  ;  no  emtanto  os  colonos  brutaes  nãs  se  mos- 
traram reconhecidos  a  taes  serviços  e  para  os  miseros 
aborígenes  só  tinham  maus  tratos  e  humilhações.  As 
cousas  chegaram  a  tal  ponto  que  elles  se  revoltaram,  e, 
buscando  o  norte,  foram  alliar-seaos  francezes  que  tra- 
ficavam no  littoral. 

Mais  tarde  tornaram  a  fazer  as  pazes  com  os  portu- 
guezes, porém  estes  «  tantas  vexações  e  perrarias  lhes 
fizerani  que,  diz  Frei  Vicente,  tornaram  a  se  rebellar  », 
dando  isso  motivo  a  que  Luiz  de  Brito  mandasse  Fernão 
da  Silva  occupar  o  rio  Parahyba  e  castigar  os  bárbaros. 

Fernão  da  Silva,  com  toda  a  infantaria  e  cavallaria 
que  poude  recrutar  em  Pernambuco  e  Itamaracá,  mar- 
chou até  a  fóz  do  Parahyba  onde  em  nome  do  rei  tomou 
posse  da  terra,  mas,  não  se  atrevendo  a  perseguir  os  sel- 
vagens nas  suas  brenhas,  regressou  para  a  Bahia,  ao 
mesmo  tempo  que  os  Índios  tornavam  a  occupar  o  terri- 
tório e  avançavam  até  Goyana  commettendo  toda  a 
sorte  de  tropelias. 

Então  Luiz  de  Brito  resolveu  ir  em  pessoa  commet- 
ter  a  empreza,  porém  não  foi  melhor  succedido. 

GoTerno  de  António  Salema  —  Começou  o 
Dr.  António  Salema  o  seu  governo  das  capitanias  me- 
ridionaes  guerreando  os  Índios  que  occupavam  Cabo 
Frio  e  que  preparavam  pai  a  os  francezes  grandes  car- 
regamentos de  pàu  biasil,   pimenta  e  outros  productos. 

Foi  bem  succedido  Salema  nessa  expedição  e  sobre 
ella  escreveu  um  livro  que  se  perdeu. 

Commandou  a  mesma  Christovão  de  Barros  e  delia 


PBIMEIBA  EPOOHA  391 


fizeram    parte    quatrocentos  portuguezes   e  setecentos 
Índios  amigos. 

Aprisionaram-se  nessa  guerra  muitos  Tamoyos  e 
os  que  se  submetteram  ao  baptismo  foram  reunidos  em 
duas  aldeias  no  recôncavo  da  bahia  do  Rio  de  Janeiro— 
as  de  S.  Barnabó  e  S.  Lourenço, 

Os  Índios  de  Cabo  Frio  compunham-se  de  Tamoyos 
e  Tupinambás.  Estes  últimos,  segundo  a  opinião  de 
alguns  autores,  conseguiram  escapar  e  effectuaram  uma 
longa  migração  para  o  norte,  sob  o  commando  do  presti- 
gioso chefe  /apyassú.  Os  Tupinambás  caminharam  até  a 
margem  meridional  do  Amazonas,  na  confluência  com  o 
Madeira,  e  se  estabeleceram  em  diversos  pontos  até  a  fóz 
do  maior  rio  do  mundo,  deixando  a  costa  meridional  em 
poder  dos  portuguezes. 

Prelazia  do  Rio  de  Janeiro. — Em   1576,  no 

dia  da  Ascenção,  chegou  á  Bahia  D.  Frei  António  Barrei- 
ros, da  ordem  de  Aviz,  terceiro  bispo  nomeado  para  o 
Brasil  e  assim  como  D.  Sebastião  havia  dividido  este 
paiz  em  dois  governos,  conseguio  do  Papa,  pela  bulia  de 
18  de  Julho  desse  mesmo  anno,  que  o  Rio  de  Janeiro  e 
as  capitanias  meridionaes  fossem  desannexadas  da  ju- 
risdicção  episcopal,  creando-se  uma.  prelazia  ordinária  e 
independente.  O  primeiro  prelado  foi  o  bacharel  Padre 
Bartholomeu  Simões  Pereira,  provido  por  carta  régia  de 
11  de  Maio  de  1577. 

Regresso  ao  governo   singular. — No  fim  de 

quatro  annos  reconheceu  a  metrópole  os  inconvenien- 
tes e  defeitos  do  governo  dual,  que  não  tinha  a  precisa 
unidade,  nem  a  força  sufficiente  para  impulsionar  o 
adiantamento  da  região,  sendo  os  próprios  governado- 
res os  primeiros  a  reconhecer  taes  desvantagens,  como 
consta  de  representações  que  mandaram  á  corte. 

Assim,  em  12  de  Abril  de  1577,  voltou  o  Brasil  ao 
governo  singular,  sendo  nomeado  governador  geral  o 
conselheiro  Luiz  da  Veiga. 

No  regimento  que  trouxe  mandava  o  rei  que  se  reu- 
nissem num  só  cargo  os  de  escrivão  da  fazenda  e  dos 
feitos  ;  os  de  thesoureiro  e  almoxarife,  com  um  só  escri- 
vão,reduzindo-se  os  vencimentos  ao  escrivão  descontos, 
provedor  e  seu  escrivão,  patrão  da  ribeira,  meirinho  da 
correição  ;  ao  mesmo  tempo  aboliam-se  os  cargos  de 
physico,  mestre  das  obras  o  um  dos  dous  carpinteiros  ♦. 


292  HISTORIA  DO  BRASIL 

Por  outro  lado  augmentavam-se  os  mantimentos 
aos  jesuítas  e  concediam-se  ao  governador,  para  sua 
guarda,  doze  homens,  vencendo  cada  um  500  réis  por 
mez. 

Durante  o  governo  de  Lourenço  da  Veiga  foram 
incendiados  nos  portos  brasileiros  onze  navios  francezes 
que  se  occupavam  no  contrabando. 

Lourenço  da  Veiga  preoccupou-se  com  a  conquista 
da  Parahyba  do  Norte  que  Luiz  de  Brito  não  conseguira 
realisar  ;  neste  sentido  chegou  a  dar  ordens,  porém 
retirou-as  visto  saber  que  por  decreto  de  2õ  de  Janeiro  de 
1579,  Fructuoso  Barbosa,  rico  proprietário  de  Pernam- 
buco, tinha  obtido  o  privilegio  de  colonisar  a  Parahyba, 
mediante  a  condição  de  ser  durante  dez  annos  capitão- 
mór  da  terra  e  cobrar  todas  as  suas  rendas.  Fructuoso 
Barbosa  dispoz-se  a  tentar  a  empreza,  e  para  esse  fim 
veio  de  Portugal  apparelhado  com  quatro  navios,  nume- 
rosas famílias,  soldados,  padres  e  frades;  porém  achava- 
se  ainda  em  Pcírnambuco,  quando  sobreveio  tal  tem- 
pestade que  o  arrojou  com  as  suas  embarções  até  ás 
índias  de  Castella,  donde  passou  de  novo  á  metrópole. 

Um  desses  navios  garrou  e  veio  ter  à  Bahia; 
presume-se  que  nelle  tenham  chegado  ao  Brasil  os  pri- 
meiros frades  benedictinos  (1580)  aos  quaes  D.Catharina 
Alvares  Paraguassú  fez  pouco  depois  doação  da  igreja 
e  terras  da  Graça. 

Lourenço  da  Veiga  falleceu  na  Bahia  em  1581. 

Philippe  11  de  Despaulia. — Em  4  de  Agosto 
de  1578  morreu  na  batalha  de  Alcacer-Kíbir  em  Marro- 
cos, o  rei  D.  Sebastião  e  bem  assim  a  íiôr  da  nobreza 
de  Portugal. 

Subio  ao  throno  o  velho  cardeal  D.  Henrique,  tio  de 
D.  Sebastião,  que  governou  Portugal  até  31  de  Janeiro 
de  1580,  data  em  que  falleceu,  passando  o  sceptro  portu- 
guez  a  Philippe  II  de  Castella,  o  qual,  embora  inferior  a 
D.  António,  prior  do  Crato,  nos  direitos  a  successão, 
fez  a  sua  pretenção  vingar  por  meio  de  25,000  homens 
que  mandou  a  Portugal  sob  o  commando  do  duque 
d'Alba. 

D.  António,  que  já  tinha  sido  aclamado  rei  em  San- 
tarém, foi  batido  pelas  tropas  hespanholas  e  obrigado  a 
refugiar-se  no  estrangeiro,  em  logar  de  recolher-se  ao 
Brasil,  oride,  com  muita  probabiUdade  de  êxito,  poderia 


PBIMEIBA    EPOCHA  293 


com  o  tempo  fundar  uma  poderosa  monarchia,  contra 
a  qual  o  soberano  de  Castella  nada  poderi  i  tentar. 

Alguns  autores  dizem  que  D.  António  cogitou 
nessa  transferencia  da  metrópole  para  o  Brasil,  o  certo 
porém  é  que  não  a  realisou. 

Philippe  II  foi  aclamado  rei  de  Portugal  pelas  cortes 
reunidas  em  Thomar  a  10  de  Abril  de  1581  e  assim  pas- 
sou o  Brasil  ao  dominio  de  Castella. 

O  castelhano,  prometteu,  sem  ter  naturalmente 
muito  escrúpulo  em  deixar  de  cumprir  a  promessa,  que 
não  crearia  impostos  novos,  não  augmentaria  os  antigos 
e  que  só  a  portuguezes  daria  os  cargos  e  empregos  em 
Portugal  e  nas  suas  respectivas  possessões;  e,  para  an- 
gariar as  sympathias  populares  e  demonstrar  as  boas 
intenções  de  que  estava  animado  deu  se  pressa  em  con- 
firmar todas  as  leis  e  privilégios  da  nação  portugueza. 


CAPITULO  XIV 

o  BRASIL  EM  1581 


Segundo  o  plano  que  traçámos,  no  capitulo  anterior 
terminámos  o  estudo  da  primeira  epocha  da  historia  do 
Brasil,  isto  é,  passamos  em  revista  os  factos  mais  proe- 
midentes  do  periodo  do  colonato  nas  suas  três  primeiras 
phases — a  das  feitorias,  a  das  capitanias  hereditárias  e 
a  do  gov  rno  geral  ;  por  conseguinte,  tomemos  fôlego 
por  um  momenio  e  relanceemos  o  olhar  por  essa  titn  de 
núcleos  agrícolas  e  coloniaes  que  se  estende  de  itriaia- 
racá  a  S.  Vicente,  embryão  da  grande  pátria  brasileira, 
e  procuremos  formar  uma  idéa  do  seu  adiantamento 
material,  que  do  progresso  moral  e  intellectual  ainda 
bem  poucas  são  as  affirmações. 


O  Brasil  desses  oitenta  annos,  que  acabamos  de 
percorrer,  não  é  ainda  a  Pátria  dos  Brasileiros,  é  si  u- 
plesmente  a  área  geographica  que  os  portuguezes  explo- 
ram lucrativamente  e  onde  elles  guerreiam  o  indio  e 
exploram  o  negro,  e,  si  a  historia  desses  tempos  algum 
interesse  desperta  assim  meS'iio,  é  exact  imente  por  essa 
luta  desigual  entre  o  conquistador  e  o  aborigen  ,  luta 
que  assume  as  suas  proporções  épicas  ao  surgir  Cu- 
nhambebe  e  epiloga-se  sombriamente  após  a  carnificina 
de  Cabo  Frio  em  1575  e  a  migração  de  Japy-assú  com 
os  seus  Tupinambás  para  as  sombrias  florestas  amazo- 
nicas. 

Si  exceptuarmos  Nóbrega  e  Anchieta,  não  encon- 
tramos um  só  hom-em  de  merecimento  real  nesse  Brasil 
de  portuguezes,  Índios,  negros  e  alguns  mestiços,  cari- 
hoeas  ou  mamelucos  e  mulatos. 

Nem  um  governantp  superior,  nem  um  soldado  de 
génio,  nem  um  homem  de  penna  illustre  ou  um  artista 
mspirado. 

Os  homens  de  governo  tacanhos,  os  de  espada  me- 
díocres ;  Mem  de  Sá  arma-se  de  uma  temerosa  esqua- 


296  HISTORIA  DO  BEASIL 

dra  para  bater  o  gentio  do  Rio  de  Janeiro ;  Estacio  de 
Sá,  para  aprezar  uma  nau  franceza  e  pelejar  com  a  ca- 
bilda  de  Aimbiré,  empobrece  S.  Vicente  e  Piratininga. 

Ainda  não  existe  uma  litteratura  A^erdadeiramente 
nacional.  Gandavo,  Cardim,  Gabriel  Soares,  Hans  Sta- 
den,  Thevet,  Lery  e  outros  que  viveram  nessa  epocha  e 
escreveram  sobi-e  o  Brasil  são  estrangeiros.  Também  o 
é  José  de  Anchieta,  o  qual  no  emtanto,  pelo  amor  que 
consagrou  a  esta  terra,  onde  viveu  desde  moço  e  na  qual 
se  celebrisou,  pode-se,  com  algum  esforço,  conferir  o 
mais  antigo  logar  na  litteratura  brasileira.  De  seus  mé- 
ritos como  homem  de  lettras  falaremos  em  outro  logar. 

A  instrucção  resumia-se  no  coUegio  de  S .  Salvador 
frequentado  por  66  alumnos,  e  nas  aulas  de  latim  dos  je- 
suitas  do  Rio  de  Janeiro  e  Olinda. 

De  sciencias  nem  vislumbres  :  Jocão  de  Barros, 
historiador  illustre  e  donatário  da  Capitania  do  Mara- 
nhão, não  se  resigna  a  deixar  o  reino  onde  os  seus  ta- 
lentos são  apreciados. 

Artes  propriamente  ditas,  ainda  não  appareceram, 
nem  mesmo  as  que  são  relativas  á  edificação  predial  ; 
quando  muito  existem  desgraciosasconstrucções,  casa- 
rões sem  commodidades  nem  esthetica,  dispostos  em 
viellas  tortas  e  escuras,  igreias  e  conventos  brutalmente 
pesados,   nos  quaes  se  substituo  o  gosto  pela  solidez. 

A  industria  estacava  na  engenhoca  de  moer  canna, 
no  monjolo  de  Braz  Cubas  e  no  tipity  de  preparar  fa- 
rinha. 

O  commercio  era  todo  interno  ou  derivava  para  Por- 
tugal exclusivamente:  os  portos  estavam  fechados  ao 
estrangeiro  e  a  verga  grande  das  caravellas  muitas  vezes 
rangia  funebremente  ao  peso  de  algum  pobre  diabo  fran- 
cez  ou  hespanhol  que  se  enforcava  pelo  arrojo  de  vir  á 
costa  buscar  pimenta  ou  pau  brazil. 


Os  índios  iam  diminuindo  por  toda  a  parte,  ao  passo 
que  os  negros  africanos  augmentavam.  A  população  já  se 
achava  um  tanto  mesclada.  Até  1550  vieram  para  o  Bra- 
sil muito  poucas  mulheres  européas  e  dessa  data  em 
diante  até  a  usurpação  do  íhrono  portuguez  por  Philipe 
II  de  Ca^^teila,  não  obstante  os  constantes  pedidos  dos 
jesuítas  que  queriam  pôr  termo  á  mancebia  entre  os 
colonos,  não  chegaram  no  emtanto  em  numero  sufíi- 


PRTMEIEA  EPOOHA  297 


ciente.  D'ahi  relações  frequentes  e  irregulares  entre  os 
portuguezes  e  as  Índias  e  negras,  dando  em  resultado 
o  apparecimento  de  numerosos  mestiços. 

Carihocas  ou  mamelucos  denominavam-se  os  pro- 
ductos  do  cruzamento  do  homem  branco  com  a  india,  e 
malaío  o  filho  do  mesmo  homem  branco  com  a  negra. 

O  clero,  até  a  chegada  dos  jesuitns,  era  em  extremo 
dissoluto,  porém,  pelo  exemplo  dos  discípulos  de  Loyola 
e  queixas  continuas  que  estes  mandavam  para  a  metró- 
pole, mostrava  certa  tendência  para  moralisar-se. 

A  religião  christã  dominava  de  um  modo  despótico; 
toda  a  sociedade  e  o  culto  externo  desenvolvia-se  na 
creação  de  numerosas  irmandades.  «Para  que  Africanos 
e  Brazis  pudessem  comprehendel-a  e  adoptal-a,  diz  o 
sr.  Capistrano  de  Abreu,  a  parte  dogmática  ficou  atro- 
phiada,  e  festas,  novenas,  confissões,  jejuns,  discipli- 
namentos  e  penitencias  cresceram  de  modo  anormal.» 


Vejamos  agora  mais  minuciosamente  o  estado  em 
que  se  achavam  as  diíferentes  capitanias,  começando 
pela  mais  septentrional  que  era  a  de  Itamaracá. 

Capitauia  de  Itaiuaracá.  —  Esta  capitania, 
que  no  momento  da  usurpação  de  Philippe,  era  o  ultimo 
pharol  aceso  pela  civilisação  europea  no  norte  do  Brazil, 
possuia  uma  villa,  a  da  Conceição,  e  três  engenhos  de 
assucar.  Seu  estado  era  animador. 

Capitauia  de  Pernambuco.  —  Pernambuco 
contava  nessa  epocha  uns  4.000  habitantes  sendo  2,000 
escravos  ;  os  indios  iam  desapparecendo.  Em  toda  a  ca- 
pitania existiam  66  fazendas  de  assucar  que  produziam 
200,000  arrobas  annualmente,  rendendo  para  a  Coroa 
49.000  cruzados. 

«  A  gente  é  honrada,  diz  o  velho  chronista  Fernão 
Cardim;  ha  homens  muito  grossos  de  quarenta,  cincoen- 
ta  e  oitenta  mil  cruzados  de  seu:  alguns  devem  muito 
pelas  grandes  perdas  que  têm  com  escravaria  de  Guiné, 
que  lhes  morrem  muitos,  e  pelas  demasias  e  gastos 
grandes  que  têm  seu  tratamento.  Vcstem-se  as  mulheres 
e  filhas  de  toda  a  sorte  de  velludos,  damascos  e  outras 
sedas;  e  nisto  têm  grandes  excessos:  as  mulheres  são 
muitos  senhoras  e  não  njuito  devotas.  Também  frequen- 
tam as  missas,  pregações,  confissões,  etc.  Os  homens 
são  tão  briosos  que  compram  ginetes  de  duzentos  e  tre- 


298  mSTOBIA  DO  BRABIL 

sentos  cruzados,  e  alguns  têm  três  e  quatro  cavallos  de 
preço . 

«  São  mui  dados  a  festas.  Casando  uma  moça  hon- 
rada com  nm  vianez,  que  são  os  principaes  da  terra,  os 
parentes  e  amigos  se  vestiram  uns  de  velludo  carmesim 
e  outros  de  verde,  e  outros  de  damasco  e  sedas  de  varias 
cores,  e  os  guiões  e  sellas  dos  cavallos  eram  das  mesmas 
sedas  em  que  iam  vestidos.  Aquelle  dia  correram  touros, 
jogaram  cannas,  pato,  argolinha  e  vieram  dar  vista  ao 
collegio  para  ver  o  padre  visitador;  e  por  esta  festa  se 
pôde  julgar  o  que  farão  nas  mais,  que  são  communs  e 
ordinárias.  São  sobretudo  dados  a  banquetes  que  de  or- 
dinário andam  comendo  um  dia  dez  ou  doze  senhores 
de  engenho  juntos  e  revezando-se  desta  maneira  gastam 
quanto  tém  ede  ordinário  bebem  cada  anno  dez  mil  cru- 
zados de  vinho  de  Portugal  ;  e  alguns  annos  beberam 
oitenta  mil  cruzados  dados  em  rol.  Emfim  em  Pernam- 
buco se  acha  mais  vaidade  que  em  Lisboa.  A  villa  (Olin- 
da) está  bem  situada  em  logar  eminente,  de  grande  vista 
para  o  mar  epara  a  terra;  tem  bôa  casaria  de  pedra  e  cal, 
tijollo  e  telha. 

Os  padres  têm  uma  licção  de  casos,  outra  de  latim, 
e  escola  de  lêr  e  escrever,  pregar,  confessar;  e  com  os 
Índios  e  negros  de  Guiné  se  faz  muito  fructo;  dos  portu- 
guezes  são  mui  amados  d  (1). 

Capitania  da  Bahia.  —  Assim  como  Pernam- 
buco, a  capitania  da  Bahia  prosperava.  Possuia  16,000 
habitantes,  dos  quaes  4.000  eram  escravos  africanos  e 
2,000  Índios  christianisados.  Apezar  de  ser  mais  popu- 
losa que  Pernambuco,  a  capitania  da  Bahia  era  inferior 
áquella  na  producção  assucareira. 

Possuia  16  freguezias,  um  collegio  de  jesuítas, 
frequentado  por  66  alumnos,  um  mosteiro  de  São 
Bento,  outro  de  frades  capuchinhos  e  para  mais  de 
quarenta  igrejas  ecapellas.  Na  cidade  do  Salvador, cuja 
população  orçava  por  um  3.000  habitantes,  o  luxo  era 
tão  desenfreado  como  em  Pernambuco,  sendo  as  mu- 
lheres muito  affeiçoadas  a  jóias  de  preço.  No  Recôncavo 
vogavam  uns  1400  barcos  grandes  e  pequenos. 

Capitania  dos  Ilhéus.  —  O  estado  desta  capi- 
tania era  decadente.  A  villa  de  S.  Jorge  possuia  apenas 


(1)  F.  CfLKDiM..  Narrativa  epistolar .  Ed- de  Varnhagen. 


PRIICEIBA  EPOCHA  299 


uns  50  habitantes  europeos  e  em  toda  a  capitania  só  ha- 
via três  enge: 
mantimentos. 


via  três  engenhos  de  assucar.  Comtudo  era  farta  de 


Capitania  de  Porto  Siegnro.  —  Assim  como  na 
precedente  não  vingara  a  colonisação  nessa  terra,  asso- 
lada pelos  Índios  que  Fernão  Cardim  denominou 
Guay mures.  Possuia  só  um  engenho,  uma  villa  —  a  de 
Santa  Cruz  e  duas  aldeias  de  Índios  mansos.  O  gado 
vaccum  ia  escasseando,  e  os  habitantes  começavam  a 
entregar-se  á  criação  de  cavallos  e  jumentos,  com  a 
qual  iam  obtendo  satisfatórios  resultados.  Exportavam 
também  agua  de  flor  de  larangeira. 

Capitania  do  Elspirito  iSanto. — Conservava-se 
estacionaria.  Possuia  6  engenhos,  e  nella  plantava-se 
muito  algodão  e  criava-se  abundante  gado  vaccum. 
Victoria,  onde  havia  um  collegio  de  jesuítas. possuia  uns 
150  colonos. 

Capitania  do   Rio  do    Janeiro.  —  O  Rio  de 

Janeiro,  embora  sendo  a  mais  nova  de  todas  as  capita- 
nias, achava-se  já  bastante  adiantada  sob  o  ponto  de 
vista  dos  progressos  materiaes. 

Possuia  três  engenhos  de  assucar  e  um  collegio  de 
jesuítas  onde  se  ensinava  latim.  Nos  arredores  da  cidade 
estabeleceram-se  uma  Casa  de  Misericórdia  e  um  hos- 
pital. Abundava  a  hortaliça  e  a  fructa  e  as  aguas  da  bahia 
eram  muito  piscosas.  A  cidade  devia  contar  uns  150  co- 
lonos. Ainda  vivia  Martim  Affonso  Arariboia,  já  feito 
commendador  da  Ordem  de  Christo. 

Capitania  de  l§(anto  Amaro.  —  Esta  capitania 
conservava-se  estacionaria.  Possuia  um  engenho  de  as- 
sucar e  duas  fortalezas  sufficientemente  artilhadas. 

Capitania  de  S.  Vicente.  —  Graças  principal- 
mente aos  esforços  do  incansável  Braz  Cubas  era  pros- 
pero o  estado  desta  capitania  que  tinha  por  sede  a  villa 
de  Santos.  S.  Vicente  achava-se  decadente  ;  S.  Paulo, 
porém,  florescia  e  nos  campos  de  Piratinínga  cultivava- 
se  a  canna,  a  uva,  o  trigo,  a  cevada,  o  marmello  e  outras 
plantas  européas. 

Entre  as  aldeias  da  visinhança  a  mais  importante 
era  Conceição  de  Pinheiros;  entre  os  núcleos  do  littoral 
destacava-se  Conceição  de  Itanhaem. 


300  HISTORIA  DO  BRASIL 

Os  habitantes  de  S.  Paulo  eram  já  nesse  tempo 
muito  amigos  de  cavalgar,  davam  grande  valor  aos  gi- 
netes e  vestiam-se  á  moda  antiga  de  burel  e  pellotes 
pardos  e  azaes,  de petrinas  compridas  e  aos  domingos 
iam  á  missa  com  roupões  ou  bernéos  de  cacheira  sem 
capa. 


FIM  DA  PRIMEIRA  EPOCHA 


SEGUNDA  EPOCHA 

A  expansão  colonial 
1581-1626 


SEaUHM  KPOOHA 


A  expansão  coloniail 
1581-1696 


O  período  que  temos  a  estudar  nesta  segunda 
épocha  da  historia  pátria  abrange  os  quarenta  e  cinco 
annos  comprehendidos  desde  a  passagem  do  Brasil  ao 
domínio  hespanhol,  em  1581,  ató  a  terminação  do  go- 
verno de  Mathias  de  Albuquerque,  em  1624. 

Esse  curto  período  que  vamos  percorrer  é  o  da 
expansão  colonial  para  o  norte,  em  cujo  rumo  se  dilata 
o  domínio  portuguez  até  o  Pará  e  o  Amazonas ;  a  Para- 
hyba,  o  Rio  Grande  do  Norte,  o  Ceará,  o  Maranhão,  o 
Pará  são  conquistados  palmo  a  palmo  ao  Íncola,  ao 
francez,  ao  hoUandez  e  ao  inglez  que  os  disputam  san- 
guino  lentamente ;  e,  na  orla  marítima  dessas  bellas 
regiões,  espontam  á  sombra  das  quinas  portuguezas  e 
guardados  pelo  leão  de  Castella  os  primeiros  núcleos 
coloniaes  :  na  Parahyba  levanta-se  o  forte  de  S.  Felíppe  e 
S.  Thiago,  no  Rio  Grande  o  dos  Três  Reis  Magos,  no 
Ceará  forma-se  á  margem  do  Jaguaribe  a  Nova  Luzi- 
tania  e  mais  adiante  ergue-se  o  forte  do  Rosário;  no 
Maranhão  vemos  apparecer  S .  Luiz  e  os  rudimentos 
de  Tapuytapera;  no  Pará  surge  Belém. 

Também  neste  período  animam-se  os  sertanistas  e 
diversas  entradas  pelo  interior  do  paiz  se  verificam.  O 
accesso  ao  sertão  vai  se  tornando  menos  difficíl,  come- 
çam a  apparecer  roteiros  exactos ;  e  como  nessa  epocha 
cresce  a  cubica  nos  aventureiros  de  todas  as  nações  do 
velho  mundo,  cubica  que  degenera  em  loucura  quando 
Ralegh  divulga  a  fabula  do  El-Dorado,  todos   os  esfo- 
meados de  ouro  vem   rondar  as  nossas  praias  que  se 
transformam  no  campo  das  ousadias  e  depredações  dos 
Fenton,    Wíthrington      Lancaster,    Cavendish,    Baker, 
Venner  e  outros,    sobrepujados  afinal   pela  Companhia 
Hollandeza    das  índias    Òccidentaes,    que    tenta    com 
êxito  feliz  o  temerário  golpe  sobre  o  domínio  dos  Fe- 
lippes  na  costa  oriental  da  America. 


304  HISTORIA  DO  BBÂSIL 

Neste  período,  nossa  Patría,  pelo  desenvolvimento 
crescente  da  producção  agrícola  e  pela  expansão  do 
povoamento,  vai  impondo  a  sua  importância  aos  ho- 
mens de  governo  de  Portugal ;  e  assim,  de  colónia  hu- 
milde passa  á  cathegoria  de  estado,  á  defesa  do  qual 
julga-se  obrigada  correr  toda  a  nobreza  do  reino  como 
se  verá  ao  restaurar-se  a  Bahia;  no  emtanto,  ainda 
não  ha  nessa  epocha  nacionalidade  brasileira  e  as 
raças  que  irão  formal-a  permanecem  isoladas  ;  a  única 
pátria  que  existe  por  emquanto  para  o  homem  branco 
é  Portugal  e  para  o  indio  a  brenha.  Não  obstante 
os  esforços  dos  jesuítas,  que  se  affadigam  em  approxi- 
mar  os  aborígenes  da  civilisação  européa,  a  repugnância 
do  bárbaro  e  o  espirito  de  ganância  do  colono,  que  só 
deseja  o  congraçamento  d'aquelle  para  escravisal-o, 
difficultamaobra. 

A  importância  do  Brasil  já  é  grande,  porém  está 
unicamente  na  sua  agricultura  e  na  exportação  dos  pro- 
ductos  vegetaes  nativos:  o  ouro,  embora  transpareça 
nesta  ou  naquella  formaçã  >  geológica,  e  seja  denun- 
ciado pelas  narrações  de  alguns  serianistas,  é  ainda  um 
mysterío;  o  cargo  de  governador  das  minas,  outorgado  a 
D.  Francisco  de  Souza  é  mais  uma  honra  por  emquanto 
do  que  outra  cousa.  Quando  muito  exprime  o  desejo  de 
que  as  mesmas  minas  appareçam.  Na  agricultura  o 
assusar  è  o  producto  mais  valioso  e  no  commercio  elle 
vai  supplantando  o  páu-brasil  que  tão  proeminente  papel 
representara  na  primeira  epocha. 

Finalmente,  a  feição  histórica  desta  epocha  é  a  de 
um  desdobramento  de  actividades  tendo  por  fim  a  di- 
latação do  dominio  territorial  e  a  accumulação  rápida 
de  riquezas  arrancadas  dos  cannaviaes  pelo  trabalho 
do  negro  e  algumas  vezes  do  indio. 

No  mais,  a  usurpação  de  Felippe  II  não  altera  as 
condições  sociaes  da  colónia  que  continua  a  ser  genui- 
namente portugueza  e  governada  por  portuguezes. 


CAPITULO    I 

GOVERNO  INTERINO  E   ARBITRARIOiDE  COSME 

RANGEL 

(1581  —  1583) 


Havendo  Loprenço  da  Veiga  fallecido  em  4  de  Junho 
de  1581 — devido  isto  em  parte  aos  desgostos  que  o  aca- 
brunharam, por  ter  seu  irmão  Tristão  Vaz  da  Veiga 
entregue,  quasi  sem  resistência,  a  Torre  de  S.  Juhão, 
sobre  o  Tejo,  aos  castelhanos  coramandados  pelo  Duque 
d' Alba, — e  não  tendo  o  mesmc  Lourenço  da  Veiga  dei- 
xado vias  de  successão,'  quanto  á  governação  do 
Brasil,  passou  esta  interinamente  ás  mãos  da  Gamara 
Municipal  da  cidade  do  Salvador,  á  qual  se  reuniram, 
para  o  mesmo  fim  e  por  convite  da  edilidade,  o  ouvidor 
geral  Cosme  Rangel  de  Macedo  e  o  bispo  D.  Frei  An- 
tónio Barreiros. 

Cosme  Rang-el.  —  Logo  depois  de  empossado  o 
governo  da  junta  a  que  acima  nos  referimos,  o  ouvidor 
Cosme  Rangel,  homem  ambicioso  e  despótico,  que  por 
ser  mais  instruído  que  o  bispo  tinha  no  começo  mere- 
cido a  preferencia  dos  vereadores,  desgostou  o  prelado, 
seu  coUega  na  administração,  e  este  retirou-se  da  cidade 
do  Salvador,  acompanhado  de  muitas  pessoas  de  mere- 
cimento, que  igualmente  possuíam  aggravos  do  dito 
ouvidor. 

A  Camará  Municipal,  que  ao  principio  se  tinha 
mostrado  levianamente  condescendente  para  com  Cosme 
Rangel  e  apoiava  todas  as  medidas  por  elle  propostas, 
reconheceu  afinal  a  desmedida  ambição  do  ouvidor  e 
tentou  retrahir-se.  Era  tarde,  no  emtanto,  pois  tendo-se 
de  proceder  a  uma  nova  eleição  para  vereadores,  Cosme 
Rangel  fez  com  que  as  designações  recahissem  em 
creaturas  suas  e  assim  apoderou-se  completamente  do 
poder,  do  qual  se  aproveitou  logo  para  autoar  alguns  dos 
que  se  lhe  oppunham,  entre  os  quaes  Manuel  de  Sá,  so- 
brinho do  benemérito  Mem  de  Sá. 

90 


306  HISTORIA  DO  BRASIL 

Eis  porque  damos  a  este  capitulo  o  titulo  de  —  Go- 
verno provisório  e  arbitrário  de  Cosme  Rangel. 

Os  mesteres.  —  Além  das  violências  praticadas 
por  Cosme  Rangel  durante  a  sua  governação,  provocou 
igualmente  acerbas  censuras  a  creação  de  uma  insti- 
tuição existente  em  Portugal  e  cuja  introducção  nunca 
fora  tentada  em  terras  do  Brasil.  Referimo-nos  á  creação 
dos  mesteres,  profissionaes  nomeados  para  concorrerem 
com  a  camará  no  dar  o  regimento  aos  officios  e  taxar 
certos  preços  de  mão  de  obra,  innovação  essa  da  qual 
se  lembrou  somente  para  favorecer  alguns  dos  seus 
amigfs. 

ITaliog^ro  da  tentativa  de  coloiiisaçâlo  da 
Para  •  "ba.  —  Foi  durante  o  governo  de  Cosmo  Rangel 
que  se  eífectuou  a  segunda  tentativa  de  Fructuoso  Bar- 
boza  para  a  conquista  e  colonisação  da  Parahyba  do 
Norte . 

Fructuoso  Barboza,  depois  de  refazer-se  das  avarias 
que  a  sua  esquadra  soffrera  na  primeira  expedição, 
regressou  a  Pernambuco. 

Os  colonos  desta  ultima  capitania  que  se  sentiam 
vexados  pela  visinhança  do  gentio  da  Parahyba,  o  qual, 
nas  suas  correrias  para  o  sul,  muitas  vezes  chegava  ás 
terras  occupadas  pelos  europeus  em  Pernambuco  e 
Itamaracá,  e  nellas  commettiam  toda  sorte  de  tropelias, 
prestaram-se  a  auxiliar  Fructuoso  Barboza,  ficando 
assentado  que,  ao  mesmo  tempo  que  o  donatário  fizesse 
a  sua  tentativa  por  mar,  o  capitão-mór  e  ouvidor  Simão 
Rodrigues  Cardoso,  cora  duzentos  homens  de  infanteria 
e  cavailaria  e  muito  gentio  seguiria  por  terra.  Como  se 
combinou,  assim  se  fez  e  tanto  a  expedição  marítima, 
como  a  terrestre  largaram  no  mesmo  dia  do  Recife. 

Na  foz  do  Parahyba  encontrou  Fructuoso  oito  naus 
írancezas  varadas  no  porto,  e  destas  conseguiu  incen- 
diar cinco  ;  as  outras  três,  porém,  ganharam  o  mar  largo 
e  evadiram-se. 

Depois  desse  ephemero  triumpho  não  cogitou  Bar- 
boza de  fortificar-se  convenientemente  ;  isto  deu  logar 
a  que  os  Índios  Potyguaras  se  reunissem  e  atacassem 
os  Portuguezes,  dos  quaes  mataram  quarenta,  incluindo 
um  filho  do  mesmo  Fructuoso.  Seria  ainda  toda  a  tropa 
victimada  neste  ataque,  si  em  tempo  não  se  recolhesse  a 
bordo  de  uma  zavra  que,  commandada  por  Gregório 
Lopes  de  Abreu,  entrara  na  véspera  e  se  achava  em  secco. 


SEGUNDA    EPOOHA  307 


Desanimado  Fructuoso  por  este  revez  preparava-se 
para  abandonar  a  empreza,  retirando-se  da  Parahyba, 
quando  chegou  Simão  Rodrigues  com  os  seus  duzentos 
homens  e  o  gentio  amigo,  tendo  jà  sido  feliz  num 
encontro  que  houvera  com  os  Potyguaras  na  várzea  da 
Parahyba. 

A'  vista  do  auxilio  que  lhes  chegava,  animaram-se 
os  da  esquadra  e  resolveram  fortificar-se  do  lado  do 
norte  do  rio,  desenganados  de  o  poderem  fazer  do  lado 
do  sul,  no  Cabedello,  logar  impróprio  e  sem  agua  po- 
tável. 

Não  lhes  foi  no  emtanto  possivel  arrancharem-se, 
mesmo  do  lado  do  norte,  pois  os  indios  pouco  depois  se 
apresentaram  e  em  numero  tão  crescido  que  os  portu- 
guezes  tiveram  que  reembarcar  ás  pressas  e  ganhar 
o  mar  largo.  Logo  em  seguida  a  .esse  acontecimento 
mandou  Fructuoso  a  Philippe  II  um  galeão  com  a  no- 
ticia do  mallogro  de  sua  tentativa. 

Com  isto  os  indios  tanto  se  exaltaram  que  des- 
truíram três  engenhos  nas  visinhanças  de  Itamaracá, 
cuja  população  ficou  então  reduzida  a  trinta  e  dous 
colonos. 

Os  iudios  da  Parahyba. —  Os  indios,  que  no 
tempo  da  conquista  da  Parahyba  habitavam  essa  região, 
pertenciam  ás  raças  tupy  e  cariry. 

A  primeira  representava-se  pelos  Tabajaras  e  Poty- 
guaras, que  occupavam  todo  o  littoral,  até  umas  vinte 
léguas  para  o  interior;  a  segunda  dominava  desde  o 
platô  da  Borborema  até  os  limites  com  o  Ceará,  Rio 
Grande  do  Norte  e  Pernambuco. 

Os  Tabajaras  eram  sedentários:  viviam  em  tabas  e 
tinham  costumes  dóceis.  O  mesmo  pôde  dizer-se  dos 
Potyguaras . 

Os  carirys,  que  se  achavam  evidentemente  em  um 
estagio  da  civilisação  humana  inferior  ao  dos  tupys, 
eram  nómadas . 

«  Os  indígenas  da  Parahyba,  estavam  na  idade  da 
pedra  polida;  os  tupys  eram  pescadores,  os  carirys 
viviam  da  caça  que  era  abundantíssima,  quer  nas  im- 
meiísas  mattas  dos  Brejos  e  dos  frescos  terrenos  das 
serras,  quer  nos  vastos  taboleiros  dos  sertões. 

«  Os  seus  machados  de  silex  (pedras  de  corisco^ 
como  chama  actualmente  o  povo),  variados  e  bem  tra- 
balhados; os  seus  productos  de  cerâmica  e  tecidos  de 


308  HISTORIA  DO  BRASIL 

caruá  são  uma  prova  de  que  os  seus  conhecimentos 
industriaes  já  tinham  sabido  dos  primeiros  rudi- 
mentos.» (1) 

Edil  irclo  Feiíton  —  Desd'^  1530  ou  1532  que  os 
Iiigleze  ^  leuLavain  tr  .ticar  no  Biazil,  pois  por  esse  teuipo, 
segundo  lemos  em  Southey,  William  Hawkins,  de 
Plimouth,  cursou  em  duas  viagens  as  costas  do  nosso 
paiz  no  Paul  o f  Plimouth,  navio  de  '250  toneladas.  Em 
1540  diversos  mercadores  de  Southampton  armaram 
navios  para  commerciarno  littoral  do  Brazil,  e  em  1542, 
segundo  contam,  veio  á  Bahia  um  talPudney.  Em  1567, 
alguns  inglezes  estabeleceram-se  na  Parahyba  do  Norte, 
de  onde  foram  desalojados  pelos  portuguezes.  Final- 
mente, relata-se  ainda  a  viagem  do  Minion,  navio  qui3,  a 
pedido  de  Jonh  Wiiithall,  inglez  casado  e  estabelecido 
eai  S.  Vicente,  esteve  em  S mtos  commerciando  e  alii  foi 
recebido  com  especial  agrado.  Essas  foram  as  tentativas 
que  os  filhos  da  nevoenta  Albion  tizeram  no  Brazil,  antes 
de  passar  este  paiz  ao  dominio  hespanhol,  e  ó  muito  pro- 
vável que  entabolassem  desde  logo  relações  commer- 
ciaes  com  os  habitantes  da  colónia,  si  a  s  'berania  de 
Castella,  nação  com  a  qual  a  Inglaterra  se  achava  nessa 
occasião  em  guerra,  não  se  impuzesse  em  1581  a 
este  paiz. 

Depois  que  o  Brasil  passou  ao  dominio  hespanhol  o 
primeiro  inglez  que  aportou  ás  nossas  plagas,  foi  Eduardo 
Fenton,  em  1582.  Commandava  uma  esijuadrilha  des- 
tinada ás  índias  Orientaese  á  China,  e  talvez  por  arri- 
bada se  possa  explicar  o  facto  de  haver  aportado  em 
S.  Vicente.  Sendo  visitado  em  caracter  amigável  nesse 
porto  por  José  Dória  e  mais  dous  principaes  do  logar, 
Fenton  animou-se  a  desembarcar  afim  de  procurar  sitio 
apropriado  para  levauter  uma  forja  e  collocar  fornos 
portáteis  destinados  a  coser  o  biscouto  para  a  tripo- 
lação,  porém  no  dia  seguinte  ao  deste  desembarque,  foi 
intimado  a  não  collocar  os  ditos  fornos,  sem  prévia 
licença  do  governador. 

Estavam  as  cousas  neste  pé,  quando  surgiram  no 
porto  três  naus  hespanholas  sob  o  commando  de  Andrés 
ígino,  e  como  as  duas  nacionalidades  achavam-se  em 
guerra,  segundo  já  dissemos,   rompeu   logo   o  fogo  de 


(1)  Irineo  JoFFiLi .  — iVo^as  sobre  a  Parahyba. 


SEGUNDA   EPOOHA  309 


parte  a  parte.  A  acção  que  começou  ao  cahir  da  tarde 
continuou  emquanto  durou  o  luar:  um  dos  navios  hes- 
panhoesfoi  a  pique  e  os  inglezes,  aproveitando  a  viração 
da  noite,  fizeram-se  ao  largo  e  desap^areceram. 

Os  navios  hespanhoes  que  deram  combate  aos  in- 
glezes pertenciauí  á  grande  esquadra  que  Diogo  Flores 
Valdez  encaminhava  para  o  estreito  de  Maga.bâes,  e 
da  qual  trataremos  no  paragrapho  seguinte. 

Antes  de  deixar  o  porto  de  Santos,  sabe-se  que 
Andrés  Igino  construio  um  forte  na  barra  de  S.  Vicente. 

llissao  de  Flores  Valdez.  —  Como  o  almirante 
hespanhol  Diogo  Flores  Valdez,  do  qual  se  fala  no 
paragrapho  anleri  •  r,  tem  ainda  de  figurar  nesta  hislor'a, 
julgamos  de  conveniência  reservar  algumas  linhas  á 
exposição  dos  motivos  que  o  trouxeram  aos  mares  ame- 
ricanos. 

Em  1569,  Francisco  Drake,  corsário  inglez,  atra- 
vessou o  estreito  de  Magalhães  e  conseguio  navegar 
pelos  mares  do  Pacifico.  D.  Francisco  de  Toledo,  vic'^- 
rei  do  Peru,  mandou  contra  elle  Pedro  Sarmiento  e  o 
piloto  Antão  Paulo  Corso,  os  quaes,  depois  de  p.-ic  «r  e- 
rem  as  costas  occidentaes  daAmeric  ■'  sem  enconir  r  o 
pirata,  atravessaram  o  estreito  e  v  lejara  n  para  a  lles- 
panha  afim  de  levar  tal  noticia  ao  soberano. 

Philippe  II  ficou  apprehensivo  com  essa  audácia 
britânica  ;  e,  r»  ceiando  perder  o  Peru,  iuformou-se  miu 
damente  de  Pedro  Sarmiento  sobre  as  condições  do  es- 
treito e  pelas  noticias  erradas  que  este  lhe  deii,  quanto 
ás  vantagens  de  fortifical-o,  determinou  commeiter  ini- 
mediatamente  essa  empreza,  certo  de  que  com  boas 
fortalezas  nesse  ponto  poderia  embargar  a  passagem  a 
qualquer  aventureiro  que  pretendesse  devastar  as  re- 
giões banhadas  pelo  Pacifico. 

Fez  por  conseguinte  apparelhar  uma  esquadra  com- 
posta de  vinte  e  trt3.s  naus  de  alto  bordo,  comi  cin^o  mil 
homens  de  mar  e  guerra,  petrechos  para  a  construcção 
de  fortes  e  alguns  povoadores  e  nomeou  para  comm  m- 
dal-a  Diogo  Flores  Valdez.  A  Antão  Paulo  Corso  deu  o 
posto  de  piloto  6  a  Pedro  Sarmiento  o  cargo  de  governa- 
dor do^fortcs  e  povoações  que  se  levantassem. 

A  armada  sahio  de  S.  Lucar,  na  Hespanha,  a  25  de 
Setembro  de  1581,  porém,  tão  malaventiii-adamente  que 
três  dias  depois  já  arribava  a  Cadiz  com  ires  navios  de 
menos,  perdidos  em  um  temporal,   e  sendo  ainda  obri- 


310  HISTORIA  DO  BEASIL 

gada  a  demorar-se  quarenta  dias  nesse  porto,  afim  de 
fazer  os  necessários  reparos. 

O  primeiro  logar  do  Brasil  em  que  tocou  foi  o  Rio 
de  Janeiro  e  ahi  invernou  a  esquadra  seis  mezes  emeio, 
occupando-se  a  tripolação  em  fazer  estacas  para  trin- 
cheiras, taipaes  e  outros  petrechos  e  em  lavrar  madeira 
para  a  construcção  de  duas  casas  que  no  estreito  deviam 
servir  para  guardar  munições ;  em  todos  esses  tra- 
balhos foi  efficazmente  auxiliada  por  Salvador  Corrêa  de 
Sá,  governador  do  Rio  de  Janeiro. 

Fez-se  afinal  de  vela  para  o  estreito  a  grande  esqua- 
dra de  Valdez,  porém,  na  altura  do  Rio  da  Prata,  taes  e 
tão  persistentes  temporaes  reinaram  que  durante  vinte  e 
dous  dias  não  puderam  armar  uma  só  vela.  Nessa  lucta 
contra  os  elementos  perdeu-se  a  nau  que  tinha  por  ca- 
pitão Palomar  e  pereceram  duzentas  e  trinta  e  seis 
pessoas. 

Depois  de  aplacado  o  vento,  procurou  Valdez  um 
porto  afim  de  reparar  as  avarias,  pois  cinco  das  naus 
faziam  agua  e  todas  as  outras  achavam-se  bastante  mal- 
tratadas. 

Velejou,  pois,  a  esquadra  cem  léguas  ao  norte  e 
arribou  â  ilha  de  Santa  Catharina,  nesse  tempo  ainda 
despovoada,  e  ahi  permaneceu  vinte  e  dois  dias,  findo 
os  quaes  t  -rnou  a  partir  para  o  sul. 

Em  Santa  Catharina  ficaram  três  naus  que  ainda 
não  podiaín  navegar  e  foram  estas  as  que  em  Santos 
atacaram  os  galeões  inglezes  de  Fenton.  Taes  naus 
tinham  ordem  de  regressar  ao  Rio  de  Janeiro. 

Deu  mais  Flores  Valdez  três  naus  a  D.  Alonso  de 
Souto  Mayor,  que  ia  por  governador  do  Chile,  afim  de 
levar  a  sua  gente  pelo  Prata  a  Buenos  Ayres  e  d'ahi 
seguir  por  terra  ao  ponto  que  demandava. 

Com  as  naus  restantes  tentou  Valdez  pela  segunda 
vez  chegar  ao  estreito  ;  porém,  quando  já  lhe  forçava  a 
entrada,  uma  medonha  tempestade  desencadeiou-se  e 
tanto  damnificou  a  esquadra  que  Valdez  assentou  em 
regressar  á  Hespanha. 

Ao  voltar  tocou  successivamente  em  S.  Vicente, 
Rio  de  Janeiro  e  Bahia,  sendo  neste  ultimo  porto  apro- 
veitados os  seus  serviços,  conforme  veremos  no  capitulo 
seguinte. 

O  Rio  de  Jaueifo  durante  o  g^overuo  de 
Cosiiue  Rangel.  —  Apezar  da  derrota  soffrida  pelos 


SEGUNDA  EPOOHA  311 


Índios  em  1575,  os  Tamoyos,  auxiliados  pelos  francezes, 
não  deixavam  de  importunar  o  Rio  de  Janeiro,  que  no 
tempo  de  Costiie  Rangel  era  governado  por  Salvador 
Corrêa  de  Sá,  e  os  vexames  chegaram  a  tal  ponto  que 
Felippe  II  mandou  informar-se  do  referido  Salvador 
Corrêa  si  não  seria  preferível  fortiíicar-se  Cabo  Frio. 
Salvador  Corrêa  mostrou-se  avisadamente  contrario  a 
essa  ideia  e  respondeu  que  a  única  cousa  a  fazer  era 
guarnecer-se  convenientemente  o  Rio  de  Janeiro,  pelo 
que  mandou  á  Corte  as  plantas  para  a  construcção  de 
duas  fortalezas,  que,  na  sua  opinião,  deviam  ser  edificadas 
em  promontórios  situados  á  barra.  Pedio  igualmente 
armas  e  munições  que  lhes  foram  enviadas,  entre  as 
quaes  se  incluíam  umas  columbrinas. 

No  periodo  em  que  nos  achamos,  os  jesuítas,  sob  o 
philantropico  pretexto  de  concederem  terras  aos  seus  Ín- 
dios, obtinham  continuamente  grandes  doações  destas, 
com  as  quaes  augmentavam  os  seus  já  avultados 
rendimentos. 


CAPITULO  II 

GOVERNO  GERAL  DE  MANUEL  TELLES  BARRETO 

(1583-1587) 


Terminou  o  governo  interino  de  Cosme  Rangel  de 
Macedo  aos  9  de  Maio  de  1583,  (1)  dia  em  que  chegou  á 
Bahia  de  Todos  os  Santos  Manoel  Telles  Barreto  no- 
meado por  Felippe  II  para  os  cargos  de  «  capitão  da  ci- 
dade do  Salvador  e  governador  da  dita  capitania  e  das 
outras  do  Brasil.» 

Vinha  Barreto  com  um  ordenado  annual  de  800S000 
e  autorisado  a  manter  uma  guarda  de  pessoa  de  vinte 
homens,  com  o  vencimento  de  15S000  cada  um. 

Primeiros  actos  de  Barreto.  —  Logo  que  Ma- 
noel Telles  Barreto  chegou  á  Bahia  escreveu  aos  gover- 
nadores das  diversas  capitanias  que  reconhecessem 
Felippe  como  verdadeiro  soberano  do  Brasil,  pois  fran- 
cezes  e  inglezes  já  se  aproveitavam  da  antipalhia  dos  co- 
lonos pelo  dominio  hespanhol,explorando-os  com  o  nome 
de  D.  António,  prior  do  Crato  e  pretendente  á  coroa 
lusitana. 

Em  seguida  procurou  Telles  Barreto  conciliar  os 
ânimos  na  cidade  do  Salvador,  cuja  população  se  achava 
ainda  irritada  pelas  arbitrariedades  commettidas  por  Cos- 
me Rangel  e,com  esteintuito,mandousustaros  processos 
dos  perseguidos  e  obteve  da  corte  que  fossem  queimados 
todos  os  autos  a  tal  respeito,  precedendo  a  concessão  de 
uma  amnistia  ampla. 

Igualmente  abolio  a  instituição  dos  mesteres. 

Procurou  além  disso  fortificar  melhor  a  cidade  e  in- 
formar-se  do  estado  das  rendas  coloniaes. 

A  este  respeito  diz  o  eminente  historiador  Var- 
nhagen: 


1)  Abreu  e  Lima  e  Accioli  dizem  que  a  posse  de  Barreto  teve  logar  a 
11  de  Junho.  Teixeira  de  Mello  apoiado  em  MiraJlcs  dá  a  posse  em  14  de 
Julho  de  1583,  e  Frei  Vicente  do  Salvador  dá  a  sua  chegada  em  1582  não 
precisando  o  dia.  Adoptamos  neste  trabalho  a  data  mencionada  por  Var- 
uhagom  por  nos  parecer  a  mais  exacta. 


314  HISTOBIA  DO  BBABIL 

«  A  receita  montava  a  30,825  cruzados,  dos  quaes 
já  então  se  remettiam  para  Portugal  10,000,  vindo  a 
ficar  para  as  despezas  20,825.  Desta  somma  7.500  cruza- 
dos, isto  é,  mais  da  terça  parte,  era  applicada  á  manu- 
tenção dos  padres  da  Companhia;  e  calculadas  as  outras 
despezas,  havia  um  deticit  de  perto  de  2,000  cruzados. 
Tinha  arrematado  esta  renda  um  Bento  Dias  de  Santiago; 
porém  não  se  incluíam  nellaas  capitanias  do  sul,  pelas 
irregularidades  que  até  alli  houvera  na  contabilidade 
e  cobrança. 

«Para  pôr  uma  e  outra  em  ordem, e  ao  mesmo  tempo 
inspeccionar  as  fortalezas  do  sul,  mandou  o  governador 
por  uma  provisão  a  Balthazar  Machado,  com  poderes  ás 
ditas  capitanias,  do  que  lhe  resultou  conhecer  que  era 
geralmente  nellas  maior  a  despeza  que  a  receita.  Pedio 
o  governador  que  ficassem  no  Brazil  os  dez  mil  cruzados 
que  se  enviavam  para  o  reino;  e  provavelmente  isso  lhe 
foi  deferido,  em  consequência  de  se  dar  a  casualidade  de 
haver  gasto  nesse  anno  e  no  anterior  quasi  igual  somma, 
com  os  aprestos  que  se  fizeram  nos  navios  de  Diogo  de 
la  Ribera  e  de  Pedro  Sarmiento,  da  esquadra  de  Diogo 
Flores  Valdez,  que  aportaram  ao  Rio  de  Janeiro ;  e  depois 
com  oito  naus  que,  regressando  do  Estreito,  com  o 
próprio  Diogo  Flores,  entraram  na  Bahia  ;  sem  falar  nas 
que  mais  tarde,  com  o  mesmo  Sarmiento,  aportaram  em 
Pernambuco,  nem  com  os  aprestos  para  a  colonisação 
da  Parah yba .  » 

Terceira  tentativa  de  conquista  da  Pa- 
rahyba. — Manoel  Telles  Barreto  tentou  por  sua  vez 
essa  famosa  conquista  da  Parahyba  que  os  passados 
governadores  não  tinham  podido  realizar. 

Convidou  a  tomar  parte  na  expedição  o  almirante 
hespanhol  Diogo  Flores  Valdez  que  se  achava  no  porto 
da  Bahia  com  os  restos  da  armada  com  que  tentara 
inutilmente  a  fortificação  do  Estreito,  e  este  acquiesceu, 
esperando  compensar  por  algum  triumpho  notável  o 
insuccesso  da  sua  missão  ao  sul. 

Diogo  Flores  Valdez,  com  uma  esquadra  composta 
de  nove  naus,  sendo  sete  castelhanas  e  duas  portuguezas, 
commandadas  estas  por  Diogo  Vaz  da  Veiga,  partio  da 
Bahia  a  1°  de  Março  de  1584  e  chegou  a  Pernambuco  no 
dia  20  do  mesmo  mez. 

Juntamente  com  Diogo  Flores  ia  o  licenceado  Mar- 
tim  Leitão,  com  poderes  bastantes  para  povoar  a  Para- 


SEGUNDA  EPOCHA  315 


hyba,  e  como  provedor  da  fazenda  e  mantimentos  da  ar- 
mada seguira  Marti m  Carvaliio. 

Em  Pernambuco  ficou  assentado  que  D .  Felippe  de 
Moura,  logartenente  de  Jeronymo  de  Albuquerque  no 
governo  da  capitania,  avançaria  por  terra  com  mil  ho- 
mens afim  de  reunir-se  na  foz  do  Parahyba  ás  forças 
que  se  dirigiam  ao  mesmo  ponto  embarcadas  na  es- 
quadra. 

Flores  Valdez  ao  chegar  á  Parahyba  encontrou  três 
naus  francezas  surtas  e  varadas  em  terra  e  immediata- 
mente  incendiou-as.  Os  índios,  emboscados  na  floresta, 
mandaram  uma  saraivada  de  settas  aos  europeus  e  o 
próprio  Valdez  recebeu  no  peito  uma  frechada  que  o 
teria  atravessado,  si  elle  não  estivesse  coberto  com  uma 
bòa  couraça. 

Em  seguida  fez  Valdez  construir  um  forte  fronteiro 
ao  Cabedello  e  deu  o  commando  do  mesmo  a  Francisco 
Castejon,  capitão  da  sua  infanteria,  ficando  como  com- 
mandante  do  contingente  de  portuguezes  e  capitão  da 
povoação  que  se  fundasse  o  mesmo  Fructuoso  Barboza  a 
quem  o  cardeal  D.  Henrique,  quando  rei  de  Portugal, 
tinha  feito  doação  d'aquellas  terras  e  do  usofructo  de 
todas  as  suas  rendas  durante  dez  annos. 

O  forte  recebeu  o  nome  de  S.  Felippe  e  S.  Thiago  e 
para  garantil-o  entregou  Flores  Valdez  a  Castejon  uma 
nau  portugueza,  dois  patachos  e  110  soldados  hespa- 
nhoes. 

A  fundpçãc  do  forte  teve  logar  em  1°  de  Maio  de 
1584  e  Flores  Valdez,  tendo  dispostas  todas  as  cousas  da 
maneira  que  relatamos,  fez-se  de  vela  para  a  sua  terra 
natal. 

Felippe  de  Moura,  com  os  seus  soldados,  vendo 
que  não  tinha  mais  nada  a  fazer  no  forte,  onde  chegou 
muito  depois  de  Valdez,  dirigio-se  á  Campina  das  Ostras 
em  demanda  do  mimigo,  porém  ahicahio  em  uma  cilada 
que  os  Índios  lhe  armaram  e  da  qual  a  muito  custo  a  sua 
gente  poude  escapar-se  vindo  acolher-se  junto  ás  mura- 
lhas do  forte. 

Enfadados  por  esse  contratempo  e  por  não  ter  que- 
rido Castejon  abrir-lhes  fora  de  horas,  a  poria  do  forte, 
facto  que  os  obrigou  a  passar  a  noite  expostos  ao  vento 
e  á  chuva,  atravessaram  o  rio  no  dia  seguinte  e  torna- 
ram-se  para  Pernambuco. 

Frei  V^icente  do  Salvador  descreve  por  esta  forma  o 


316  HISTORIA  DO  BBASIL 

* ■ • _  r 

terror  que  se  apossou  dos  portuguezes  ao  serem  accom- 
mettidos  pelos  índios  na  Planície  das  Ostras: 

«  Huma  tarde  ouvindo  uma  trombeta,  e  grande  ru- 
mor, foram  dez  de  cavallo  e  alguns  quarenta  de  pé  com 
muitos  Índios  á  ordem  de  um  António  Leitão,  com  muita 
desordem  a  descobrir  campo, e  deram  em  uma  cilada, que 
os  começou  a  sacudir  athe  chegarem  á  vista  do  arraial, 
sem  haver  accordo  para  lhes  acudirem,  antes  se  poz  tudo 
em  uma  grande  confusão,  que  vinda  a  noite  se  deitaram 
a  huma  lagoa  por  onde  haviam  tornar  ao  forte,  e  pas- 
sando huns  por  cima  dos  outros,  voando  com  azas  do 
medo  que  levavam,  foram  batter  ás  portas  do  forte,  que  o 
Aicahyde,  enfadado  de  os  ver,  lhes  não  quiz  abrir,  dei- 
xando-os  estar  á  chuva  toda  a  noite,  que  foi  leve  castigo 
para  o  merecido.» 

Cedo  começaram  a  soffrer  privações  os  que  guarne- 
ciam o  forte  de  S.  Felippe  e  S.  Thiago,  e  o  mau  estado 
se  aggravava  ainda  pela  desarmonia  que  começou  a 
reinar  entre  Francisco  Castejon  e  Fructuoso  Barboza.  os 
quaes  no  emtanto  se  uniam  nos  pedidos  de  mantimentos 
e  munições  que  faziam  ao  ouvidor  geral  em  Pernambuco. 
Este,  no  emtanto,  por  desavenças  com  o  provedor  mór, 
achava -se  iui  possibilitado  de  prestar  efficaz  auxilio  aos 
que  guarneciam  aquelle  palmo  de  terra  que  tantas  vidas 
e  dinheiro   havia  custado  á  Coroa  para  conquistal-o. 

Já  o  gentio  se  animava  com  o  desfallecimento  dos 
soldados  e  si  não  fora  o  temor  da  artilharia  de  ha  muito 
teria  arrazadoo  forte,  quando  Castejon  resolveu-sea  vir 
em  pessoa  a  Pernambuco  sollicitar  os  mantimentos,  pois 
alguns  que  Martim  Leitão  lhe  mandara  por  Nicolau 
Nunes,  com  vinte  e  quatro  homens  de  reforço, tinham  já 
sido  consumido. 

Em  Pernambuco  malquistbu-se  Castejon  com  o 
provedor  Martim  Carvalho,  chegando  até  a  vias  de 
facto,  e  afinal,  após  injustas  dilações,  voltou  o  hes- 
panhol  para  a  Parahyba  muito  mal  provido,  pelo  desa- 
grado em  que  o  tinha  o  dito  provedor,  o  qual,  pelos 
seus  resentimentos  pessoaes,  lesava  a  causa  publica 
em    graves   interesses. 

Em  Novembro  do  mesmo  anno  duas  naus  fran- 
cezas  ancoraram  na  Bahia  da  Traição,  onde,  desem- 
barcando gente,  veio  esta  com  os  Índios  Potiguaras 
e  alguma  artilharia  atacar  o  forte,  pondo-o  em  grande 
perigo. 


SEGUNDA  EPOOHA  317 


Castejon  e  Barboza  mandaram  immediatamente  pre- 
venir o  ouvidor  geral  em  Pernambuco,  e  este  fez  logo 
aprestar  um  navio  de  setenta  toneladas,  á  sua  eusta 
guarnecendo-o  de  portuguezes  e  setenta  Índios,  cujo 
commando  confiou  a  Gaspar  Dias  de  Moraes.  Jun- 
tamente seguio  para  a  Parahyba  uma  galé  do  Pedro 
Lopes  Lobo,  capitão  de  Itamaracá,  guarnecida  com  cin- 
coenta  portuguezes  e  alguns  Índios,  commandada  pelo 
mesmo  Pedro  Lopes. 

Apenas  perceberam  este  reforço,  os  francezes  reco- 
Iheram-se  ás  suas  naus  e  fizeram-se  ao  largo,  porém 
ficando  Pedro  Lopes  no  commando  do  forte,  Castejon 
embarcou-se  na  sua  galé  e  guarnecendo  com  alguma 
gente  a  nau  que  Diogo  Flores  lhe  havia  deixado,  bem 
como  a  que  lho  viera  de  soccorro,  partio  sobre  os  fran- 
cezes, os  quaes,  embora  embarcados  em  duas  naus 
possantes,  foram  derrotados  na  foz  do  Mamanguape, 
e  as  suas  embarcações  incendiadas.  A  nau  do  forte, 
porém,  que  já  era  muito  velha,  foi  a  pique  quando  re- 
gressava, perdendo  Castejon  com  isso  a  maior  parte  da 
artilharia  que  havia  tomado  aos  francezes. 

Após  esta  victoria  os  de  Pernambuco  regressaram 
aos  seus  lares,  pois  o  gentio  parecia  amedrontado,  e, 
com  a  lição  dada  aos  seus  amigos  francezes,  pouco 
dispostos  a  voltarem  á  carga. 

Em  fins  de  Janeiro  de  1585,  porém,  os  Índios  se 
reuniram  de  novo  em  grande  numero,  e  por  meio  de 
circumvalaçõ?s  e  cercas  de  grossos  troncos  de  palmeiras 
foram  apertando  o  forte. 

Castejon  mandou  de  novo  pedir  soccorro  ao  ouvidor 
geral,  receioso  como  se  achava  de  succumbir  por  meio 
d'aquella  estratégia  indígena,  principalmente  depois  que 
soube  acharem-se  alliados  aos  Potyguaras  os  Taba- 
jaras,  commandados  pelo  terrível  Piragybe  (braço  ou 
espinha  de  peixe),  que  pouco  antes  nas  serras  havia 
destroçado  uma  companhia  de  cem  homens  comman- 
dada por  Gaspar  de  Athayde  e  Francisco   de  Caldas. 

O  ouvidor  deu-se  pressa  em  soccorrer  o  forte  de 
S.  Felippe  eS.  Thiago,  e,  reunindo  um  grande  exercito, 
seguio  em  pessoa  para  a  Parahyba. 

Em  caminho  encontrou-se  duas  vezes  com  os  Ín- 
dios de  Piragybe  e  bateu-os,  chegando  afinal  ao  forte, 
que  se  achava  completamente  desmantelado  e  a  guar- 


318  HISTORIA  DO   BRASIL 

nição  abatida  por  grandes  fadigas  e  pela  fome  que 
tinha  soffrido.  Os  sitiantes  no  emtanto  já  finham  fugido. 
^Encarregando  Pêro  Lopes  de  fundar  uma  povoação 
em  logar  por  elle  designado,  visto  que  Fructuoso  Bar- 
boza  desistira  completamente  de  semelhante  empreza, 
tornou-se  para  Pernambuco  o  ouvidor  ]\íartim  Leitão, 
sem  nada  ter  feito  de  importante  e  duradouro. 

D'ahi  a  algum  tempo  Francisco  Castejon  e  Pêro 
Lopes,  desesperados  pela  mingua  de  mantimentos,  pelas 
moléstias  que  começavam  a  grassar  e  pela  triste  so- 
lidão em  que  se  achavam,  queimaram  o  forte,  jogaram 
a  artilharia  ao  mar,  metteram  a  pique  um  navio  que 
ahi  ficara  para  os  proteger  e  recolheram-se  a  Itama- 
racá,  inutilisando-se  por  essa  forma  todos  os  esforços 
passados  para  a  colonisação  d'aquella  região,  pois  na 
Parahyba  não  ficou  uma  só  casa  construída  (Junho 
de   158Õ). 

Occupaçao  definitiva  da  Paraliyba  (1587). — 
Estava  reservada  no  emtanto  a  Manoel  Telles  Barreto,  a 
ventura  de  ver  ainda  no  seu  governo  realizada  a  posse 
definitiva  d'aquelles  sertões  e  praias  que  o  Potyguar 
defendia  com  tanta  tenacidade  e  que  o  francez  explo- 
rava  lucrativamente. 

Piragybe  malquistara-se  com  os  Potyguaras,  por 
terem  estes  lhe  lançado  o  labéo  de  cobarde  em  vir- 
tude das  derrotas  que  o  ouvidor  Martim  Leitão  lhe 
inflingira,  e,  rancoroso  como  são  em  geral  os  Índios, 
resolvera  vingar-se. 

Os  portuguezes  determinaram-se  a  tirar  proveito 
dessas  hostilidades  e  fizeram  pazes  com  o  terrível  chefe, 
que,  prestando-lhes  apoio,  lhes  permittio  lançar  final- 
mente as  bases  da  actual  capital  da  Parahyba,  erigida 
sob  a  invocação  de  Acossa  Senhora  das  Neaes,  ebem 
assim  construir  um  forte  de  madeira. 

Martim  Leitão,  que  realizara  esses  trabalhos,  fez 
ainda,  acompanhado  de  Piragybe,  algumas  excursões 
pelo  interior  do  paiz  e  successivamente  conseguiram  os 
dois  forçar  os  Potyguaras  a  evacuar  a  Bahia  da  Traição, 
o  Tujucupapo  e  a  Copohaba. 

Finalmente,  em  Janeiro  de  1587,  construio  Martim 
Leitão,  á  margem  do  rio  Tibiry,  e  duas  léguas  acima  da 
cidade,  o  forte  que  tomou  o  nome  de  S.  Sebastião. 

Estava,  pois,  realizada  a  occupação  definitiva  da 
Parahyba  do  Norte. 


SEGUNDA  EPOCHA  319 


Traiçfto  dos  índios  de  l§lerg;ipe.  —  Logo  após 
a  occupaçâo  da  Parahyba,  os  indios  que  habitavam 
as  margens  do  Rio  Real  (Sergipe),  mandaram  á  capital 
communicar  ao  governador  Manoel  Telles  Barreto  que 
desejavam  viver  junto  á  cidade,  afim  de  receberem  a 
moral  do  Evangelho,  e,  por  isso.  pediam-lhe  que  lhes 
enviassem  soldados   para  escoltal-os  até  a  Bahia. 

«  A  discórdia  que  so  plantou  nos  Tupinambás,  que 
habitavam  entre  os  rios  de  S.  Francisco  e  Real  e  os  da 
Bahia,  diz  o  Dr.  Felisbello  Freire  na  sua  exceliente 
Historia  de  Sergipe,  depois  que  d'alli  expelliram  os 
Tupinaes,  que,  por  sua  vez,  já  tinham  rechaçado  os 
Tapuyas,  foi  o  motivo  dos  Índios  de  Sergipe  pedirem 
ao  governador  que  garantisse  sua  passagem,  por  entre 
aldeias  inimigas.  » 

Telles  Barreto  reunio  em  conselho  diversas  pessoas 
eminentes  e  criteriosas  e  expôz-lhes  o  caso.  Christovão 
de  Barros  manifestou-se  contra  a  ideia  de  mandar 
soldados  para  acompanhar  o  gentio,  suspeitando  neste 
algum  projecto  de  traição,  porém  os  padres,  allegando 
a  importância  de  chamar-se  ao  grémio  da  igreja  catho- 
lica  todos  aquelles  pagãos,  conseguiram  determinar  o 
governador  a  expedir  a  escolta  pedida,  e  assim  par- 
tiram com  destino  ao  rio  Real  cento  e  trinta  soldados 
brancos  e   mamelucos  e  alguns  indios*  mansos. 

A  escolta  foi  hospitaleiramente  recebida  pelos  Ín- 
colas de  Sergipe  e  agasalhada  nos  seus  tujupares 
construídos  à  margem  do  rio  Real,  porém  o  sangue 
de  seus  morubixabas  Suruby,  Serigy  e  Aperipé,  der- 
ramado barbaramente  pela  gente  de  Luiz  de  Brito,  du- 
rante a  governação  deste,  ainda  não  tinha  sido  vingado, 
e  nos  povos  primitivos,  como  se  sabe,  o  ódio  é  o  senti- 
mento mais  soberano. 

Aproveitando-se  da  segurança  em  que  se  achavam 
os  da  escolta,  que  até  as  armas  davam  a  guardar  ás 
mulheres  da  tribu,  a  elles  entregues  para  concubinas, 
estas  encravaram  as  espingardas  com  pedras  e  betume 
e  substituíram  a  pólvora  dos  frascos  por  carvão  em  pó. 

Quando  os  viram  completamente  desarmados,  os 
selvagens  cahiram  sobre  elles  em  uma  madrugada, 
e  trucidaram  todos,  excepto  alguns  indios  dos  padres 
que  tinham   servido  de  emissários  nesse  negocio 

Manoel  Telles  Barreto  enfureceu-se  extraordina- 
riamente   com   essa   traição  dos  indios   de   Sergipe  e 


320  HISTORIA  DO   BRASIL 

logo  ordenou  aos  capitães  mores  de  Pernambuco  e 
Itamaracá,  D.  Felippe  de  Moura  e  Pedro  Lopes  Lobo, 
que  se  preparassem  para  uma  expedição  guerreira  ao 
Rio  Real;  esta,  porém,  não  se  eífectuou  immediatamente 
por  terem  aquelles  mesmos  capitães  mores  que  acudir 
á  Parahyba. 

liucta    com  os  Ayniorés  uos   Slhéosi. — Por 

esse  tempo  sublevou-se  também  uma  horda  indígena, 
a  dos  Aymorés,  que  começaram  devastando  a  capi- 
tania dos  llhéos. 

Contra  elles  Telles  Barreto  mandou  Diogo  Corrêa 
de  Sande  e  Fernão  Cabral  de  Athayde,  que  possuíam 
muitos  escravos  e  aldeias  de  Índios  forros,  dando-lhes 
mais  os  soldados  das  suas  guardas  com  seus  cabos, 
Diogo   de  Miranda   e  Lourenço  de  Miranda. 

Como  os  Índios  pelejassem  sempre  por  embos- 
cadas, e  embrenhados  nos  mattos,  pouco  damno  lhes 
fizeram  os  portuguezes,  sendo  igual  o  numero  de  fe- 
ridos de  parte  a  parte. 

Ordeus  religiosas.  —  Durante  o  governo  geral 
de  Manoel  Telles  Bjrreto  estabeleceram-se  no  Brasil 
três  ordens  religiosas  :  a  dos  Benedictinos,  a  dos  Fran- 
ciscanos Capuchos  de  Santo  António  e  a  dos  Carme- 
litas  Observantes. 

Os  benedictinos  se  fixaram  na  cidade  do  Salvador 
em  1584,  e  pouco  depois,  em  virtude  da  protecção  que 
Salvador  Corrèj,  de  Sá  lhes  dispensava,  fundaram  outra 
abbadia  no  Rio  de  Janeiro.  Em  1595  o  Bispo  D.  An- 
tónio Barreiros  concedeu-lhes  provisão  para  estabelecer 
ainda  uma  outra  em  Olinda,  e  dessa  data  por  diante  se 
espalharam  por  todo  o  Brazil,  onde  chegaram  a  possuir 
sete  abbadias  e  varias  presidências. 

Os  íranciscanos  foram  introduzidos  no  Brasil  por 
Jorge  de  Albuquerque,  donatário  de  Pernambuco,  em 
Abril  de  1585.  Os  primeiros  que  chegaram,  em  numero 
de  cinco,  sob  as  ordens  de  Frei  Mehhior  de  Santa  Ca- 
tharina,  excellente  orador  sacro,  tomaram  posse  da 
ermida  de  Nossa  Senhora  das  Neves  no  Recife,  sendo  a 
primeira  custodia  de  Olinda,  ainda  sujeita  a  Portugal, 
creada  por  patente  do  geral  Frei  Francisco  Gonzaga  e 
confirmada  por  bulia  de  Xisto  X,  de  3  de  Setembro  de 
1586.  Os  capuchos  do  Brasil  erigira m-se  em  província 
independente,  a  qual  mais  tarde  dividio-se  em  duas, 


SEGUNDA  EPOOHA  321 


tendo  uma  por  sede  a  Bahia  e  a  outra  o  Rio  de  Janeiro, 
onde  fixou  a  sua  casa  capitular.  Em  1584  foi  por  alvará 
régio  concedido  de  ordinário  á  custodia  de  Olinda,  uma 
quarta  de  farinha  para  hóstias,  uma  quarta  de  azeite 
para  a  lâmpada,  duas  arrobas  de  cera.  e  uma  pipa  de 
vinho.  Trinta  e  seis  annos  depois  esta  concessão  esten- 
deu-se  aos  novos  conventos  do  Rio,  Pojuca  e  Recife.  Os 
franciscanos  propagaram-se  rapidamente  em  todo  o 
Brasil. 

Os  carmelitas  observantes  chegaram  ao  Brasil  em 
1580;  os  primeiros  conventos  que  fundaram  foram  os  de 
Olinda  e  de  Santos,  chegando  com  o  tempo  a  consti- 
tuirem  duas  provindas,  uma  nas  capitanias  do  sul  e 
outra  nas  do  norte. 

lUorte  do  llanoel  Telles  Barreto.  —  O  ho- 
mem de  cujo  governo  nos  occupamos  e  que  foi  o  pri- 
meiro governador  geral  do  Brasil  nomeado  porFelippe  II 
de  Castella  e  I  de  Portugal  falleceu  em  1587.  Sua  admi- 
nistração foi  proveitosa  á  colónia  que  se  vio  dilatada  até 
a  Parahyba,  cuja  conquista  constituo  o  facto  culminante 
da  sua  governação. 

Eis  como  Varnhagen  summaria  os  seus  ser- 
viços no  alto  cargo  de  governador  geral  do  Brasil . 

«  Cassou  os  processos  iniciados  contra  alguns  mo- 
radores pelo  despótico  ouvidor    Rangel;   fomentou  as 
composições  dos  roceiros  com  os  traficantes  de  escravos, 
afim  de  serem  estes  pouco  a  pouco  embolsados,   sem 
prejuizo  da  agricultura ;  alcançou,  depois  de  vêr  com 
horror  o  mallogro  de  duas  tentativas,  que  um  Álvaro 
Rodrigues  chegasse  ás  minas  de  salitre ;  zelou  o  paga- 
mento  das  dividas  á  fazenda,  pelas  quaes  foi  preso  o 
almoxarife  de  Pernambuco  Vicente  Corrêa,  e  era  perse- 
guido no  Reino,  pelo  juiz  da  índia  e  Mina,  o  provedor 
Migue]  Gonçalves  Vieira,  que  se  escapara,  e  finalmente 
cumprio,  até  onde  lhe  foi  dado,  a  sua  principal  missão, 
que  eracuidarda  defensa  do  Brasil.  Sollicitoue  alcançou 
para  asprincipaes  cidades  artilharia e  munições  e  fez  com 
que   em  todas   se  construíssem  alguns  fortes,  pedindo 
para  isso  do  Reino  um   f ortificador  \  na  Bahia,  onde  já 
em  seu  tempo  estavam  por  terra  as  muralhas,   levantou 
duas  estancias  sobre  a  barra,  e  mandou  fazer  duas  galés 
para  servirem  de  canhoneiras.  A's  informações  e  influen- 

21 


322  HISTORIA  DO  BSABEL 

cia  de  Telles  Barreto  attribuimos  também  a  lei  repres- 
siva acerca  do  captiveiro  dos  Índios  de  22  de  Agosto  de 
1587,  bem  como  o  regimento  de  25  de  Setembro  desse 
mesmo  anno,  creando  uma  relação  neste  Estado,  o  que 
não  se  levou  desta  feita  adiante.  » 


CAPITULO  III 


GOVERNO  INTERINO  DA  JUNTA  COMPOSTA  POR 
D.  ANTÓNIO  BARREIROS  E  CHRISTOVÃO  DE 
BARROS. 

(1587  —  1491) 


Pelas  vias  de  successão  deixadas  por  Manoel  Telles 
Barreto  o  governo  do  Brasil  devia  passar  interinamente 
ás  mãos  de  uma  junta  composta  do  bispo  D.  António 
Barreiros,  do  provedor-mór  Cliristovão  de  Barros  e  do 
ouvidor  geral  António  Coelho  de  Aguiar.  Como  porém 
este  ultimo  achava-se  ausente,  ficaram  os  dois  pri- 
meiros com  o  governo  e  escolheram  para  secreíario  o 
contador-mór  da  fazenda  António  de  Faria. 

A  Bahia  atacada  peloi»  inglezes.  —  Pouco 
depois  de  António  Baareiros  e  Christovão  de  Barros 
empunharem  as  rédeas  do  governo,  duas  naus  inglezas 
e  uma  zavra  aprisionaram  fora  da  barra  um  patacho 
hespanhol  que  se  dirigia  ao  Prata  e  entraram  na  bailia 
asseuhoreaudo-se  logo  de  todos  os  navios  nella  fun- 
deados. 

Essas  embarcações  inglezas  traziam  por  com  man- 
dante Roberto  Withrington  e  uma  delias  tinha  sido 
armada  pelo  conde  de  Cumberland. 

Os  moradores  tomaram-se  de  pânico  com  os  pri- 
meiros actos  hostis  do  flibusteiro  iiiglez  e  já  começavam 
a  abandonar  a  cidade,  quando  Christovão  de  Barros, 
que  se  achava  no  Recôncavo,  correu  apressadamente  á 
capital  e  por  suas  cxhortações  e  ameaças  obrigou-os  a 
retrocederem.  Para  exemplo  amarrou  um  dos  .mais 
tibios  ao  pelourinho,  pondo-o  nú  e  cingindo-lhe  uma 
roca . 

A'  vista  das  promptas  medidas  tomadas  por  Chris- 
tovão de  Barros  para  a  resistência,  os  inglezes  não  se 
atreveram  a  desembarcar  na  cidade  è  contentaram-se  em 
devastar  o  Recôncavo,  porém  Christovão  acudio  igual- 
mente a  este  ponto  e  organisando  promptamente  uma 
esquadrilha  de  barcaças  guarnecidas  de  soldados  cora 


324  SEGÚNF:   .  SPOOHA 


pavezes,  cujo  commando  confiou  a  Sebastião  de  Faria, 
forçou  os  piratas  a  retirarem  se. 

Tentaram  ainda  os  inglezes  desembarcar  na  ilha  de 
Itaparica,  ainda  ahi,  no  emtanto,  foram  batidos  por  An- 
tónio Alves  Capara,  o  qual,  sabendo  que  elles  haviam 
passado  a  Camamú  afim  de  fazerem  aguada,  para  este 
ultimo  logar  partio  em  seguida  com  toda  a  sua  gente  e 
tornou  a  batel-os. 

Coiiiuiercio  do  Drasil  com  as  reg^iôes  do 
Prata  ©  do  Pacifico. — Foi  durante  oduumvirato  de 
D.  António  Barreiros  e  Christovão  de  Barros,  ou  talvez 
durante  a  governação  de  Manoel  Telles  Barreto,  que  se 
abriu  o  commercio  do  Brasil  com  as  colónias  hespa- 
nholas  situadas  ás  margens  do  Prata  e  do  Oceano  Pa- 
cifico, paizes  que  então  se  achavam  todos  subordinados 
ao  mesmo  sceptro. 

Segundo  Sarracoll,  havia  no  Prata  cinco  villas, 
umas  de  setenta  fogos,  outras  de  mais. 

Nestas  povoações  deparava-se  grande  abundância 
decereaôs,  gado,  vinho  e  varias  fructas,  porém  nenhum 
dinheiro  de  ouro  ou  prata.  Nellas  se  fabricava  uma 
espécie  de  panno  que  os  moradores  trocavam  por  as- 
sucar,  arroz,  marmelada,  doces  e  outros  géneros. 

Em  Santa  Fé  descarregavam  os  navios  e  as  mer- 
cadorias eram  transportadas  ao  Peru  em  cavallos  e 
carretas, 

Francisco  Giraldes.  —  Em  9  de  Março  de  1588 
nomeou  Felippe  II  para  substituir  Manoel  Telles  Bar- 
reto no  governo  geral  do  Brasil  a  Francisco  Giraldes, 
do  seu  conselho,  e  quinto  donatário  da  capitania  dos 
Ilhéos,  e  juntamente  com  a  nomeação  de  Giraldes  creou 
o  cargo  de  sargento-mór  do  Estado,  para  o  qual  foi  no- 
meado António  de  Magalhães.  Competia  ao  sargento- 
mór,  além  das  obrigações  que  tinha  no  reino,  a  inspecção 
das  ordenanças' e  tudo  quanto  respeitava  ás  fortificações 
e  á  a-rtilharia. 

Tendo  o  navio  em  que  o  governador  se  dirigia  ao 
Brasil  feito  duas  arribadas,  Giraldes  supersticiosamente 
recusou-se  a  embarcar  de  novo,  continuando  por  conse- 
guinte a  colónia  sob  o  governo  do   duumvirato. 

Occupação  defiiiiíiTa  d©  â»erg;i|>e.  • —  Vários 
foram  os  motivos  que  determinaram  a  conquista  de  Ser- 
gipe em  1590. 


SEGUNDA  EPOOHA  325 


Dentre  elles  devemos  collocar  em  primeiro  plano 
a  abertura  de  uma  via  terrestre  que  ligasse  a  sede  da 
colónia  ao  seu  mais  importante  núcleo,  Pernambuco,  pois 
por  meio  delia  se  evitaria  a  penosa  viagem  maritima  tão 
tormentosa  naquellas  alturas,  e  também  o  receio  de  que 
os  francezes,  que  em  alta  escala  commerciavam  nessas 
paragens;  pudessem,  com  o  correr  dos  tempos  e  com  o 
augmento  progressivo  de  forças,  assediar  a  Bahia,  ca- 
pital do  Estado,  e  pôr  em  grave  risco  de  perda  toda  a 
colónia. 

A  respeito  dos  francezes  em  Sergipe  nesses  tempos 
diz  oDr;  Felisbello  Freire: 

«  Julgando-se  forte  pelo  concurso  da  raça  indígena, 
cujas  riquezas  compravam  com  quinquilharias,  a  hos- 
pitalidade com  attenções,  a  amisade  com  complacência, 
para  dirigirem  o  pensamento,  dominarem  a  vontade  e* 
aguçarem  o  appetite  do  sangue  e  da  preza  nas  arris- 
cadas emprezas  em  que  se  atiravam  com  a  raça  indígena, 
ao  simples  aceno  de  silas  velleidades,  os  francezes  con- 
ceberam o  projecto  de  atacar  a  cidade  de  S.  Salvador, 
indo  elles  por  mar  eo  gentio  por  terra.  »  (1) 

Além  disso  a  morte  do  bispo  Sardinha  e  de  seus 
companheiros,  entre  os  quaes  António  Cardoso  de 
Barros,  pai  de  Christovão  de  Barros,  e  a  recente  traição 
dos  Índios  do  Rio  Real  estimulavam  á  vingança  os  por- 
tuguezes,  sentimento  ao  qual  se  alliou  o  interesse^  pois 
a  lei  promulgada  por  Felippe  II  em  Agosto  de  1537  con- 
siderava justa  a  guerra  de  Sergipe  e  por  conseguinte 
dava  aos  soldados  o  direito  de  escravisar  os  Íncolas  de* 
taes  paragens. 

Vejamos  agora  como  se  realizou  a  occupação  defi- 
nitiva de  Sergipe. 

Em  fins  de  1590,  Christovão  de  Barros"  partio  da 
Bahia  comum  numeroso  exercito  cuja  vanguarda  con- 
fiou ao  commando  de  António  Fernandes,  capitaneando 
Sebastião  de  Faria  a  retaguarda.  Por  artilharia  levava 
Christovão  de  Barros  seis  peças  de  bronze,  dois  galpões 
de  dado  e  uma  peça  de  colher. 

Os  irmãos  Álvaro  Rodrigues  e  Rodrigo  Martins 
com  cento  c  cincoehta  portuguezes  e  mamelucos  e  mil 
Índios,  além  dos  tapuyas  que  se  lhes  reuniram   em  ca- 


(1)  Felisbello  Freire  —  Historia  de  Sergipe. 


326  HISTORIA  DO  BBASIL 

minho,  iam  na  frente  devastando  as  aldeias  inimigas, 
cujos  habitantes  fugiam  e  iam  concentrar-se  em  uma 
posição  altamente  defensiva,  de  modo  que  os  dois  irmãos 
se  acharam  afinal  em  apertado  cerco. 

Sabendo  disto  Christovão  de  Barros  mandou  Ama- 
dor de  Aguiar  reconhecer  o  sitio  do  cerco,  e  este 
regressou  com  três  espias  do  inimigo  que  lhes  serviram 
de  guias  e  com  os  quaes  o  exercito  dos  conquistadores 
bateu  as  cabiçaras  inimigas,  obrigando  (os  Índios  a 
levantar  o  cerco. 

A  carnificina  nos  selvagens  foi  medonha:  seiscentos 
delles  ficaram  mortos,  ao  passo  que  do  lado  dos  por- 
tuguezes  houve  apenas  seis  baixas. 

Teve  logar  este  combate  a  23  de  Dezembro  de 
1Õ90. 

Seguiram  depois  os  portuguezes  para  a  várzea  de 
Vazabarris  onde  Mbaepeba  on  Baepeba,moru.h\xâ\:)Si  prin- 
cipal das  cabildas  sergipanas,  se  achava  fortificado  com 
três  tranqueiras  ou  cahiçaras  e  vinte  mil  frecheiros. 

Começaram  os  portuguezes  o  cerco  cortando-lhes 
as  aguas  e  intercepta ndo-lhes  o  caminho  das  fontes  e, 
após  uma  escaramuça,  na  quaf  houve  numero  igual  de 
mortos  de  um  lado  e  de  outro,  Sebastião  de  Faria  abalroou 
a  primeira  cerca,  que  os  Índios  emtanto  conseguiram 
reconstruil-a. 

Em  seguida  é  abalroada  a  segunda  cerca  perdendo 
os  Índios  trezentos  combatentes,  e  vendo  Baepeba  que 
estava  enfraquecendo  a  sua  gente  sem  vantagem,  or- 
denou nas  três  cercas  um  ataque  geral.  Para  transmittir 
suas  ordens  tiveram  três  índios  o  arrojo  de  atravessar 
o  arraial  do  inimigo  afim  de  ganharem  as  outras  duas 
cercas.  Apenas  um  destes  heróes  morreu. 

Logo  sahiram  das  duas  ultimas  cercas  todos  os 
guerreiros  índios.  Contra  elles  parte  o  próprio  Christovão 
de  Barros  com  sessenta  soldados  de  cavallaria,  não 
consentindo  que  a  infantaria  o  acompanhasse  por  temer 
pelas  costas  um  assalto  da  terceira  cerca  onde  se  achava 
Baepeba;  assim  aconteceu,  pois  o  chefe  índio  logo  que 
cahio  a  noite  resolveu  abrir  caminho  a  ferro  e  fogo  por 
entre  os  sitiantes,  e  estes  já  recuavam,  quando  Christo- 
vão, animando  os  seus  soldados,  atravessou-se  na  frente 
dos  Índios  e  a  brados  e  com  o  couto  da  lança,  fel-os 
voltar  para  a  cerca  onde  os  portuguezes  penetraram, 
matando  mil  e  seiscentos  e  captivando  quatro  mil. 


BBOUITDA  EPOOHA  327 


Esta  terrível  m.itança  deu-se  a  1*  de  Janeiro  de  1590. 
Estava  destruído  o  centro  principal  de  resistência  das 
cabildas  sergipanas  e  por  conseguinte  realisada  a  con- 
quista real  dessa  região  que  os  padres  Gaspar  Lourenço 
e  João  Salonio  tinham  procurado  levar  a  effeito  pela 
brandura  e  pela  seducção  da  moral  evangélica,  como 
se  poderia  fazer,  si  as  barbaridades  dos  sequazes  de 
Luiz  de  Brito  não  a  tornassem  possível  somente  depois 
de  se  banharem  os  conquistadores  num  tremendal  de 
sangue. 

Christovão  de  Barros  apressou-se  em  levantar  um 
forte  sobre  o  isthmo  que  forma  a  barra  do  rio  Coxim, 
junto  á  foz  do  rio  Sergipe,  hoje  Cotínguiba,  e  próximo 
delle  um  arraial  a  que  deu  o  nome  de  cidade  de  São 
Christovão,  em  honra  ao  santo  do  seu  nome. 

A  diversos  que  o  auxiliaram  na  conquista  deu  terras 
e  a  seu  filho  António  Cardoso  de  Barros  deu  de  sesmaria 
o  território  comprehendido  entre  os  rios  Cotínguiba  e 
S.  Francisco. 

Ficou  Sergipe  constituindo  uma  capitania  perten- 
cente á  Coroa  e  por  isto  tomou  o  nome  de  Sergipe  d'El- 
Rey,  pelo  qual  se  differençava  de  Sergipe  do  Conde. 

Como  governador  da  nova  capitania  Christovão  de 
Barros  deixou  Thomé  da  Rocha,  ficando  Rodrigo  Martins 
incumbido  de  perseguir  o  gentio  que  havia  emigrado 
para  o  norte. 

Os  primeiros  colonos  entregaram-se  logo  á  criação 
do  gado  vaccum  e  este  desenvolveu- se  rapidamente,  em 
virtude  da  excellencia  das  p'istagens. 

Caçada  aos  Índios.  —  Rodrigo  Martins,  dando 
cumprimento  á  ordem  que  recebera  de  perseguir  os 
Índios  derrotados  em  Sergipe,  dirigio-se  ao  rio  de  São 
Francisco  que  os  selvagens  haviam  transposto  e  ahi 
encontrou-se  com  Francisco  Barbosa  da  Silva  e  outros 
que  lhe  embargaram  a  marcha,  allegando  pertencer 
aquelle  território  á  capitania  de  Pernambuco  e  serem 
elles  os  únicos  que  possuíam  licença  do  donatário  da 
capitania  pira  caçar  índios  em  taes  paragens.  Este  facto 
é  bastante  característico  :  disputavam -se  até  as  regiões 
em  as  quaes  devia  exercer-se  a  caçada  ao  selvagem  e 
esta  era  legalisada  por  autorísações  dos  capitães-móres. 

Segundo  nos  transmitto  frei  Vicente  do  Salvadop 
esso  Fraiicisco  Barbosa  foi  pouco  depois  morto  i)elo<^ 
próprios  índios  e  Rodrigo  Martins,  poude  então  ásso^ 


328  HISTORIA  DO  BRASIL 


ciar-se  a  Christovão  da  Rocha  eproseguir  livremente  na 
sua  caçada  de  indios.  Subiram  os  dois  pelo  Rio  de  São 
Francisco  atè  além  do  Sumidouro,  onde  se  apartaram 
em  virtude  de  desavenças  que  surgiram  entre  elles. 
Martins  regressou;  e  Rocha,  associando-se  a  uni  tal  An- 
tónio Rodrigues  de  Andrade,  marchou  contra  a  cabilda 
do  Índio  Porquinho,  que  ao  saber  da  approximação  dos 
caçadores  abandonou  a  taba  e  dispersou-se  pelas' selvas. 
A'  força  de  embustes  e  promessas,  os  portuguezes  con- 
seguiram incutir  confiança  nos  selvagens  aos  quaes 
mandaram  emissários  dizer  que  suas  intenções  não 
eram  hostis;  tendo,  porém,  os  indios  regressado  á  taba 
foram  todos  aprisionados  e  levados  como  escravos 
para  Perna-í. buço  e  para  Bahia.  Todavia,  praticando 
esta  infâmia,  não  se  esqueciam  de  zelar  pela  religião. 
Porquinho  foi  baptisado  com  o  nome  de  Manoel. 

Que  idéa  poderia  fazer  essa  creatura  de  uma  crença, 
imposta  por  aquelles  que  nessa  mesma  hora  condemna- 
yam  todo  o  seu  povo,  seus  amigos,  sua  mulher  e  filhos 
ás  dores  e  ás  ignominias  do  captiveiro  f 

No  emtanto  essas  barbaridades,  contra  as  quaes  os 
jesuítas  se  levantavam  a  todo  o  momento  e  que  ainda 
hoje  nos  revoltam,  tiveram  a  sua  utilidade :  pelas  ca- 
çadas de  indios  foi  se  travando  conhecimento  mais 
amplo  com  as  regiões  do  interior  e  encaminhando-se 
a  civilisação  europeia  para  o  centro  do  paiz,  que  ao 
mesmo  tempo  ia  revelando  as  suas  extraordinárias  ri- 
quezas. Rodrigues  de  Andrade  ao  regressar  a  Bahia 
passou  pela  Serra  do  Salitre,  do  qual  levou  amostras 
em  cabaços. 

Colonização  de  Alagoas.  —  Foi  também  sob  o 
governo  do  duumvirato  que  se  começou  a  colonisação 
de  x\lagòas. 

Em  5  de  Agosto  de  1591,  Pedro  Homem  de  Castro, 
procurador  do  donatário  de  Pernambuco,  cedeu  a  Diogo 
de  Mello  unia  data  de  sete  léguas  de  tei-ra  para  o  sertão 
e  uma  a  beira-mar,  sendo  três  para  c  sul  e  duas  para  o 
norte  do  rio  de  S.  Miguel,  foz  das  Alagoas. 

Logo  começou-se  a  erigir,  em  uma  pequena  enseada, 
no  fundo  da  Alagòa  do  Norte,  a  villa  chamada  de  Santa 
Luzia,  por  devoção  do  seu  fundador  que  era  cego. 

Esta  foi  a  primitiva  colonisação  do  actual  estado 
das  Alagoas . 


SEGUNDA  EPOCHA  329 


O  tribunal  da  Relação. — Como  vimos,  em  1587 
foi  creada  para  o  Brasil  pelo  governo  da  metrópole  uma 
relação  ou  tribunal,  sendo  a  25  de  Setembro  do  mesmo 
anno  promulgado  o  seu  regimento. 

Compunha-se  a  Relação,  de  accòrdo  com  a  letra 
desse  regimento,  de  dez  ministros  :  chanceller,  desem- 
bargadores do  agsravo,  ouvidor  geral,  juiz  dos  leitos, 
provedor  dos  orpnãos  e  resíduos,  provedor  dos  feitos, 
promotor  da  justiça  e  desembargadores  extravag^intes. 

Em  23  de  Março  de  1588  foi  creado  o  cargo  do  pro- 
vedor de  defuntos. 


O  duumvirato  terminou  o  seu  governo  em  9  de 
Junho  do  anno  de  1591,  data  em  que  chegou  á  Bahia  o 
novo  governador  D.  Francisco  de  Souza. 

Assim  como  o  facto  culminante  da  administração 
passada  foi  a  occupação  definitiva  da  Parahyba  do  Norte, 
sobresahe  no  governo  de  D.  António  Barreiros  e  Chris- 
lovão  de  Barros  a  conquista  de  Sergipe. 

O  francez  e  o  inglez  não  cessam  de  hostilisar  a  co- 
lónia, porém,  o  progresso  desta  é  evidente.  Sergipe  e 
Alagoas  colonisadas  permittem  a  abertura  de  estradas 
ligando  Pernambuco  á  Bahia,  esses  dois  mais  impor- 
tantes núcleos  coloniaes  do  Brasil  e  fazem  desapparecer 
a  necessidade  da  navegação  costeira  nesse  trecho  de  mar 
tão  perigoso  e  no  qual  os  baixos  de  D.  Rodrigo  6  os  re- 
cifes da  foz  do  Vasa  Barris  assignalavam  medonhos 
naufrágios,  vidas  preciosas  aniquiladas. 


CAPITULO  IV 

GOVERNO  GERAL  DE  D.  FRANCISCO  DE  SOUZA 
(1591  —  160? 


A  9  de  Junho  de  1591  chegou  a  Bihia  D.  Francisco 
de  Souza,  nomeado  para  o  cargo  de  governador  geral 
do  Brasil  em  1"  de  Dezembro  de  1890. 

Pouco  depois  de  chegado  a  este  paiz  soube  D.  Fran- 
cisco de  Souza  ter-lhe  a  esposa  fallecido  no  Reino  e 
com  isto,  diz  Frei  Vicente  do  Salvador,  «  resolveu  em 
não  tornar  ao  Reino,  mas  ficar  cá  até  a  morte,  e  assim  o 
publicava,  nem  o  dizia  ociosamente  sinão  que  como  ora 
prudente  e  por  isso  chamado  já  de  muito  tempo  D.  Fran- 
cisco das  Manhas,  entendeu  que  era  boa  esta  para  acari- 
ciar a  vontade  dos  cidadãos  e  naturaes  da  terra  fazer-se 
cidadão  e  natural  com  elies,  e  pouco  aproveitara  dizel-o 
de  palavra,  si  não  puzera  por  obra  e  assim  foi  o  mais 
bemquisto  governador  que  houve  no  Brasil,  junto  com  o 
ser  mais  respeitado  e  venerado.  » 

Oabriel  §»oaresí  e  as  minasi  do  iiertlío. — 
Gabriel  Soares  de  Souza,  tendo  recebido  de  seu  irmão 
João  Coelho  de  Souza  o  itinerário  para  as  minas  de  ouro 
e  prata  situadas  no  sertão  da  Bahia  passou-se  a  Portu- 
gal, onde,  ao  cabo  de  seis  annos  de  solicitações  á  corte, 
conseguio  obter  as  seguintes  concessões  : 

Uma  carta  régia  ao  governador  do  Brasil  afim  de 
que  fossem  postos  á  sua  disposição  duzentos  Índios  fre- 
cheiros. 

A  nomeação  de  capitão-mór  e  governador  da  con- 
quista e  descobrimento  do  Rio  de  S.  Francisco,  tendo  o 
direito  de  nomear,  por  seu  fallecimento,  um  successor 
que  gozaria  dos  mesmos  titulos  e  poder. 

A  faculdade  de  prover  todos  os  officios  da  justiça  e 
da  fazenda  no  seu  districto. 

O  habito  de  Christo  e  50  reis,  e  no  fim  da  jornada  o 
foro  de  fidalgo  e  moradia  para  quatro  cunhados  que  com 
elle  iriam  e  mais  dois  hábitos  para  os  capitães  que  o 
acompanhassem. 


332  HISTOEIA  DO   BEASIL 


Poder  conceder  o  foro  de  cavalleiros  fidalgos  até  a 
cem  pessoas  das  do  seu  séquito. 

A  faculdade  de  tirar  das  prisões,  para  levar  com- 
sigo,  os  condemnados  a  degredo  que  escolhesse,  sendo 
de  officios  inechanicos,  mineiros,  etc,  aos  quaes  se  con- 
taria como  tempo  de  degredo  o  da  expedição. 

Finalmente,  autonsação  para  proseguir  nos  desco- 
brimentos até  além  do  Rio  S.  Francisco. 

Gabriel  Soares  partio  de  Lisboa  na  urca  flamenga 
Grifo  Dourado  a  7  de  Abril  de  1591,  conduzindo  comsi- 
go  trezentos  e  sessenta  homens,  entre  os  quaes  quatro 
religiosos  carmelitas. 

A  lõde  Julho  avistáramos  expediccionarios  acosta, 
e  não  a  conhecendo,  lançaram  ferro  exactamente  numa 
enseada  que  era  a  de  Vasa  Barris,  tão  mal  afamada.  O 
vento  fustigou-os  fortemente  nesse  péssimo  abrigo  e  de 
tal  maneira  que  duas  amarras  se  quebraram  ;  tentando 
elles,  ainda  assim,  a  entrar  no  porto,  apezar  da  re- 
saca,  isto  por  conselhos  de  um  francez  que  viera  de 
terra  em  uma  jangada  com  dois  indios,  foi  a  urca  de 
encontroa  umas  pedras e  naufragou,  salvando-se  a  custo 
os  expediccionarios,  dos  quaes,  assim  mesmo  perecera  u 
alguns. 

Prestou-lhes  soccorro  Thomé  da  Rocha,  capitão 
de  Sergipe,  o  qual  concedeu  a  Gabriel  Soares  uma  setia 
que  o  levou  a  Bahia. 

D.  Francisco  de  Souza,  que  trouxera  do  reino  re- 
commendação  muito  especial  de  fomentar  a  exploração 
das  minas,  apressou-se  em  executar  as  provisões  reaes 
que  Gabriel  Soares  trazia,  seguindo  esteimmediatamente 
para  o  seu  engenho  de  Jaguaribe  afim  de  proceder  aos 
últimos  preparativos  para  a  jornada. 

Logo  que  estes  se  concluirani  a  expedição  partio  de 
Jaguaribe  e  chegou  á  serra  de  Quarerú,  distante  cin- 
coenta  léguas,  onde,  para  cumprir  as  ordens  que  tra- 
zia e  que  lhe  determinava  fazer  uma  fortaleza  de  cin- 
coenta  em  cincoenta  léguas,  construio  uma  de  sessenta 
palmos  de  vão  com  guaritas  nos  cantos. 

Do  Quarerú  caminharam  mais  cincoenta  léguas  até 
ás  cabaceiras  do  rio  Paraguassú  onde  construíram  nova 
fortaleza.  A  má  aliment  íção  e  a  fadiga  fez  com  que  mui- 
tos dos  expediccionarios  adoecessem  e  entre  elles  o  pró- 
prio Gabriel  Soares  que  dentro  de  poucos  dias  falleceu, 
uão  lhe  perraittindo  a  sorte  realisar  o  seu  sonho  de 


SEGUNDA  EPOCHA  333 


grandeza.  Juntamente  com  Soares  falleceu  um  indio  de 
nome  Aracy  que  servia  de  guia  aos  expediccionarios. 

Julião  da  Costa  substituio  iminediatamente  Gabriel 
Soares  no  commando  da  expedição  e  escreveu  ao  go- 
vernador pedindo  ordens. 

D.  Francisco  de  Souza  mandou  regressar  a  expe- 
diçãe  e  apoderoo-se  de  todos  os  roteiros,  «premeditando 
já,  diz  Varnhagen,  vir  a  recolher  delia  os  fructos, 
como  particular,  apenas  largasse  o  governo.  E'  o  que 
devemos  concluir,  em  vista  do  que  depois  praticou, 
vindo  a  requerer  e  obter  os  mesmos  privilégios  e  con- 
cessões outorgados  a  Soares.  » 

Este  escreveu  sobre  o  Brasil  uma  obra  que  o 
mesmo  Varnhagen  considera  como  o  escripto  mais 
productivo  do  próprio  exame  observação,  pensar  e  ency- 
clopedia  da  litteratura  portugueza  nesse  tempo. 

Movas  liitiis  coniois  iadios  mi  Parahybado 
Morto. — Fructuoso  Barbosaque  não  tivera  a  necessária 
constância  para  mantor-se  na  Parahyba  ató  a  sua  occu- 
pação  definitiva  e  desistira  de  todos  os  direitos  sobre 
essas  terras,  sómento  para  isentar-se  dos  trabalhos, 
apenas  vio  a  conquista  perfeitamente  acabada  i)elos  ex- 
traordinários esforços  de  Martim  Leitão,  mandou  a  Por- 
tugal o  seu  procurador  Pedro  de  la  Cueva  que  conseguio 
do  governo  da  metrópole  o  restabelecimento  de"  todas  as 
concessões  que  outrora  lhe  fizera  o  cardeal  D  .Henrique. 

Ao  mesmo  Pedro  de  la  Cueva  nomeou  Fructuoso 
Barbosa  capitão  dos  soldados  hespanhóes  que  se  acha- 
vam na  Parahyba. 

Os  Potyguaras,  no  emtanto,  instigados  pelos  fran- 
cezesque  não  se  resignavam  á  perda  daquella  região 
na  qual  lucros  tão  opimos  colhiam  outr'ora,  investiram 
novamente  contra  a  colónia  com  o  costumado  ardor;  e  si 
não  íôra  Pêro  Lopes  Lobo  que  a  toda  pressa  partio  de  Ita- 
macará  afim  de  combatel-os  teriam  mais  uma  vez  em- 
bargado a  obra  da  civilisação  no  solo  parahybano. 

A^  vista  d'isso  resolveu  Fructuoso  transferir-se  em 
1591  para  junto  do  Inhoby,  no  que  errou,  pois  vendo  os 
selvagens  desfalcada  a  guarnição  do  Cabedello,  ataca- 
ram este  forte  e  o  arrasaram,  bem  como  todas  as  obras 
que  na  ilha  da  Restinga,  então  ilha  da  Conceição,  pos- 
suía um  Manuel  de  Azevedo  que  a  recebera  de  sesmaria. 

Esta  ilha  foi  soccorrida  no  anno  seguinte  por  Feli- 
ciano  Coelho,  nomeado  .capitão  d'ella,_  o  qual,  perce- 


334  HISTORIA  DO  BBASIL 

'bendo  que  os  jesuítas  eram  muito  benévolos  para  com 
os  Índios,  expulsou-os  e  deu  suas  aldeias  aos  francis- 
canos aos  quaes  também  enxotou  em  1596. 

Coelho  bateu  diversas  vezes  os  índios  e  em  um  dos 
recontros  foi  xondo  ficando  aleijado  (1). 

Thomaz  Caveitdish. — Com  a  passagem  do  Brasil 
para  o  domínio  hespanhol,  os  mares  de  nossa  pátria  en- 
cheram-se  .  logo  de  piratas  europeus,  originários  de 
paizes  que  se  achavam  em  guerra  aberta  com  a  Hespa- 
nha. 

Esses  piratas  recebiam  de  seus  governos  cartas  de 
corso  contra  os  navios  hespanhoes  e  portuguezes  e  as 
violências  por  elles  praticadas  eram  muitas  vezes  pre- 
miadas, poisconsideravam-se  muito  naturalmentecomo 
feitos  de  guerra,  dignos  de  louvor  e  recompensa,  visto 
contribuírem  para  abater  o  poderio  de  Philippe,  o  som- 
brio demónio  do  meio  dia. 

Gabriel  Soares  na  obra  a  que  já  nos  referimos  diz  o 
seguinte  :  c(  Vivem  os  moradores  tão  atemorisados,  que 
estão  sempre  com  o  facto  entrouxado  para  se  recolherem 
para  o  matto,  como  fazem  com  avista  de  qualquer  nau 
grande,  temendo  serem  corsários.  » 

Um  destes  piratas  foi  Thomaz  Cavendish,  fidalgo 
inglez  que,  tendo  esbanjado  o  património  de  sua  casa, 
pensara  em  refazer  pelo  corso  os  haveres  malbaratados. 
Antes  de  depredar  as  costas  do  Brasil  já  Cavendish  tinha 
feito  uma  viagem,  em  a  qual,  diz  o  seu  compatriota 
South  ey,  «taes  atrocidades  commetteu  que  por  muito  tempo 
deixaram  nodoá  no  caracter  da  nação  ingleza  ».  (2) 

Cocke,  immediato  de  Cavendich,  entrou  em  Santos 
em  um  domingo  do  anno  de  1591  e  achando  os  morado- 
res na  igreja  assistindo  á  missa, aprisionou  atodos,  ma- 
tando um  que  tentara  resistir.  Em  logar,  porém,  de  sup- 
prir-se  de  géneros,  extorquidos  como  resgate  dos  pri- 
sioneiros, tal  como  lhe  ordenara  Cavendish,  descuidou-se 
e  entregou-se  á  orgia  com  os  seus  companheiros,  dando 


(1)  Infelizmente  para  o  estudo  da  historia  pátria,  neste  ponto 
achou-se  truncado  o  manuscripto  de  Frei  Vicente  do  Salvador 
que  tão  minuciosamente  descreve  as  primeiras  luctas  dos  colonos 
com  os  Índios  no  território  parahybano  e  tem  sido  o  nosso  guia, 
bem  como  o  de  todos  os  outros  autores  na  descripção  de  taes 
guerras. 

(2)  Roberto  Sovthey, —Biitorm  do  Brasil. 


SEGUNDA  EPOCHA  335 


tempo  a  que  os  moradores  se  evadissem  e  retirassem 
da  cidade  as  provisões  e  o  mais  de  valor  que  possuiam. 
Cavendish  chegou  dez  dias  mais  tarde  e  exasperan- 
do-se  por  encontrar  a  praça  sem  habitantes  nem  manti- 
mentos, incendiou  S.  Vicente  e  fez- se  em  seguida  de 
vela  para  o  estreito  de  Magalhães. 

Mais  tarde  voltou  Cavendish  ao  Brasil  e  ao  avisi- 
nhar-se  de  S.  Vicente  mandou  vinte  e  cinco  homens  à 
terra  para  se  apoderarem  de  mantimentos,  pois  havia 
fome  a  bordo  ;  estes  homens,  porém,  foram  todos  truci- 
dados pelos  Índios,  com  excepção  de  dois  que  os  mesmos 
Índios  pouparam  a  vida,  e  aos  quaes,  juntamente  com  as 
cabeças  dos  que  elles  haviam  assassinado,  conduziram 
em  triumpho  para  Santos. 

Algum  tempQ  depois,  Cavendish,  que  andava  a 
piratear  pela  costa,  penetrou  no  porto  da  Victoria  (Espi- 
rito Santo),  guiado  por  um  pratico  portuguez  que  havia 
aprisionado  e  ao  qual  logo  após  o  serviço  prestado  deu- 
se  pressa  em  enforcar.  Em  virtude  da  resistência  que 
oppuzeram  os  colonos  não  conseguio  o  pirata  desem- 
barcar a  sua  gente,  sendo  obrigado  a  fazer- se  de  novo 
ao  largo.  Deliberou  então  regressar  á  Europa,  mas  em 
viagem  morreu. 

António  Knivet,  que  fez  parte  da  expedição  desse 
famoso  ladrão  do  mar  escreveu  uma  relação  da  viagem 
de  Cavendish,  a  qual  foi  publicada  no  começo  do 
século  XVIII. 

•laiiies  Lanças  ter.'— Dos  poucos  piratas,  cujos 
nomes  e  feitos  perversos  no  Brasil  a  historia  nos  trans- 
mittio,  um  delles  é  James  Lancaster,  fidalgo  inglez  que, 
commandando  três  navios  armados  por  mercadores  de 
sua  nação,  se  dirigio  ao  Brasil,  tendo-se  reunido  na  altura 
do  Cabo  Branco  com  Barker,  famoso  corsário  que  com  o 
seu  chaveco  já  havia  aprisionado  vinte  e  quatro  embar- 
cações a  hespanhoes  e  portuguezes. 

De  um  dos  prisioneiros  souberam  os  piratas  que  um 
galeão  com  rico  carregamento  da  índia  naufragara  na 
costa  de  Pernambuco,  achando-se  todas  as  mercadorias 
armazenadas  no  Recife;  logo  dirigiram-se  os  dois  a 
este  porto,  associando-sc  primeiro  a  Venner,  corsário 
francez  que  encontrara,  e  que  commandava  uma  es- 
quadra composta  de  dous  galeões,  um  hiate  e  uma 
preza  biscainha.  Chegando  ao  Recife  apoderaram-se  fa- 


336  HISTORIA  DO  BRASIL 

cilmente  do  carregamento  do  galeão,  pois  todos  os  habi- 
tantes, tomados  de  terror,  fugiram  para  Olinda  (1595). 

Três  dias  depois  que  Lancaster  achava-se  no  Recife 
mandaram-lhe  os  portuguezes  propor  negociações  ao 
que  elle  se  recusou  obstinadamente,  chegando  até  a 
ameaçar  com  a  forca  qualquer  que  lhe  levasse  alguma 
mensag  m  por  parte  dos  moradores.  Inquirido  sobre 
este  procedimento,  respondeu  Lancaster  que  tinha  vivido 
muitos  annos  entre  os  portuguezes  e  que  estes,  «quando 
nada  podiam  fazer,  recorriam  a  lingua  falaz,  pois  fé  e 
verdade  é  cousa  que  não  conheciam.  «  E,  accrescenlou 
elle,  que  havemos  de  parlamentar?  Com  o  favor  de  Deus 
houvemos  a  quanto  vínhamos,  e  bem  pouco  prudente 
seria  deixal-os  fazer  por  nos  tirarem  com  astúcia  o  que 
ganhamos  com  a  força.  » 

Os  portuguezes  tentaram  por  duas  vezes  incendiar  a 
esquadra  de  Lancaster, porém  não  o  conseguiram;  no  em- 
tanto  em  um  reconhecimento  que  o  inglez  mandou  fazer 
em  terra  perdeu  trinta  e  cinco  homens  entre  os  quaes  o 
vice-almirante  Barker  e  dois  capitães  francezes.  Este 
revez  apressou  a  partida  de  Lancaster,  que  nesse  mesmo 
dia  á  tarde  se  fez  ao  largo  com  onze  embarcações,  todas 
ricamente  carregadas. 

Os)  corsários  da  Rochella  ua  Cahia  e  em 
Santos.  —  Em  1597  aportaram  á  Bahia,  trazendo  em 
lastimoso  estado  de  penúria  e  moléstia  a  tripolação, 
dois  navios  huguenottes  da  Rochella,  vindos  de  Ar- 
guim,  na  costa  da  Africa,  onde  haviam  tomado  o  forte 
e  saqueado  tudo,  inclusive  a  igreja,  da  qual  roubaram  a 
imagem  de  Santo  António  e  trouxeram  para  bordo. 

Acossados  pelo  temporal,  pela  fome  e  por  uma  epi- 
demia que  se  desenvolveu  a  bordo,  foram  obrigados  a  ar- 
ribar á  Bahia,  sendo  o  facto  cm  terra  considerado  como 
um  castigo  do  santo  que  assim  conduzia  á  punição 
aquelles  que  lhe  haviam  perturbado  a  tranquillidade,  ar- 
rancando-o  da  sua  pitoresca  igreja  de  Arguim. 

Com  grande  solemnidade  e  devoção  conduziram  os 
habitantes  da  Bahia  a  imagem  de  Santo  António  para 
um  templo  da  cidade,  de  onde  depois  foi  transportada 
para  o  convento  dos  Capuchinhos  e  quanto  aos  corsários, 
attendendo  se  ao  fanatismo  e  á  intolerância  religiosa  da 
epocha,  devemos  presumir  que  soflVessem  bárbaro  cas- 
tigo. Os  huguenotes  foram  no  emtanto  vingados  por 
acaso  providencial ;  alguns  d'elles  achavani-se  ataca- 


SEGUNDA  EPOCHA  337 


\ 


dos  de  varíola  e  o  micróbio  dessa  terrível  enfermidade 
espalhou-se  pela  cidade  enlutando  muitas  casas. 

Nesse  mesmo  anno  um  navio  francez,  commandado  | 

pelo    corsário  Paín  de  Mill,    nomo  que  nas  chronicas  ; 

vem  estropiado  pelo  de  Pão  de  Milho,  foi  a  pique  no   lil- 
toral  de  Sergipe,  e  sua  tripolação,  constante  de  cento  e  ' 

dezeseis  homens,  aprisionada. 

Primeiros!  coiuinettiiueiitosi  dos  kollande- 
les  no  Brasil.  —  Desde  o  anno  de  1580  os  hoUandezes 
entretinham  relações  com  a  America  Meridional,  porém 
essas  relações  não  oíferecem  interesse  histórico,  nem  se 
referem  ao  Brasil. 

Em  1597,  porém,  Gerrit  Bicker  Pieterzoon,  de  Am- 
sterdam,  e  Jan  Cornelíszoon  van  Leijen,  d'Enkhuízen, 
suggestionados  por  Usselincx,  personagem  muito  aca- 
tado pela  sua  intuição  commercial,  embora  não  exer- 
cendo .cargo  na  republica,  organisaram  cada  um  uma 
companhia  de  commercio,  as  quaes  pouco  depois  se 
reuniram.  Dessa  data  em  diante  começaram  os  hol- 
landezes  a  frequentar  acosta  brazileira. 

Em  1598,  Olivier  van  Noord,  que  partira  da  Hol- 
landa  para  realisar  uma  viagem  em  redor  do  globo,  ef- 
fectuou  um  desembarque  no  Rio  Doce  e  outro  no  Rio  de 
Janeiro,  sendo  recebido  hostilmente  pelos  colonos. 

Na  ultima  década  do  século  XVI  os  hollandezes 
fundaram  á  margem  do  Amazonas  as  duas  colónias  de 
Orange  e  Nassau  que  mais  tarde  foram  destruídas  pelos 
portuguezes. 

Do  que  praticaram  os  hollandezes  na  Bahia  neste 
mesmo  annos  falaremos  mais  adiante. 

Em  1615  o  almirante  Joris  van  Spilbergen  esteve  na 
Ilha  Grande,  Santos  e  S.  Vicente,  e,  sendo  recebido  hos- 
tilmente pelos  portuguezes,  com  os  quaes  queria  enta- 
bolar  relações  commerciaes,  fez-se  de  veia  para  o  Pacifico 
indo  devastar  as  costas  do  Chile. 

Estes  são  os  mais  importantes  commettimentos 
dos  hollandezes  no  Brasil,  antes  do  ataque  á  Bahia  em 
1625. 

Causa  f|iio  desviou  os  iuglezes  do  Brasil. 
—  Segundo  os  mais  abalisados  historiadores  a  causa 
que  mais  contribuio  para  fazer  terminar  em  1597  as  in- 
vestidas dos  inglezes  ao  Brasil,  não  tendo  continuadores 
os  Fentons,  Withringtons,  Cavcndisho  Lancasterfoi  ter 

22 


338  HISTOBIA  DO  BEASIL 

O  seu  compatriota  Ralegh  divulgado  a  fabula  do  El-Do- 
rado,  que  todos  procuravam  com  desesperado  afan. 

Diz  Southey: 

«  Por  toda  a  costa  do  continente  hespanhol  na  Ame- 
rica do  Sul  corria  a  voz  d'um  paiz  sertanejo,  onde  abun- 
dava o  ouro.  Referiam-se  estes  boatos  indubitavelmente 
aos  reinos  de  Bogotá  e  Tunja,  hoje  Nova  Granada.*  Be- 
lalcazar,  que  partido  de  Quito,  buscava  este  paiz;  Feder- 
man,  que  vinha  de  Venezuela  e  Gonzalo  Ximenez  de 
Quesada,  a  procural-o,  seguindo  o  rio  Magdalena,  aqui 
se  encontraram.  Mas  também  nestas  partes  se  falava 
d'um  rico  paiz  remoto ,  fama  igual  corria  no  Peru  ;  e  os 
aventureiros  d'ambas  as  partes  depois  de  apanhada  a 
caça  principiavam  outra  vez  a  correr  atraz  d'ella.  Não 
tardou  a  confeccionar-se  um  reino  imaginário  que  ser- 
\isse  de  alvo  a  estas  buscas,  nem  a  respeito  delle  se  in- 
ventavam contos  com  mais  facilidade  do  que  se  acredi- 
tavam. 

«Dizia-se  que  escapo  do  extermínio  dos  Incas,  fugira 
um  irmão  mais  moço  de  Atabalipa,  levando  a  maior 
parte  dos  thezouros  e  fundara  um  império  maior  do  que 
esse  que  sua  famiiia  havia  perdido.  A's  vezes  chamava- 
se  este  phantastico  imperador  o  Grão  Paytiti,  outras  o 
Grão  Mosco,  outras  o  Evim  ou  GrãoParú.  Um  impostor 
affirmou  em  Lima  ter  estado  na  sua  capital,  a  cidade  de 
Manoa,  onde  não  havia  menos  de  três  mil  operários  em- 
pregados na  rua  dos  Ourives  ;  chegou  até  a  apresentar 
um  mappa  do  paiz,  em  que  figurava  um  monte  de  ouro, 
outro  de  prata  e  o  terceiro  de  sal.  As  columnas  dos  paços 
imperiaes  eram  de  porphyro  e  alabastro,  de  cedro  e  ébano 
as  galerias;  o  throno  de  marfim,  e  de  ouro  os  degraos 
por  onde  para  elle  se  subia. 

«  Quando  D .   Martin  dei  Barco  escrevia  a  sua  A  r- 
oe/iíma,  que  foi  pelos  tempos  da  primeira  expedição  de 
Ralegh,  corria  no  Paraguay  o  boato  de  ter  sido   desco- 
berta a  corte  do  Grão  Mosco  ;   D.  Martim  o  refere  como 
noticia  segura,   lastimando  que  Cabeça  de  Vacca  vol- 
tasse dos  Xarayes,  pois  que  si  houve  ia  sefi:uido  avante 
na  mesma  dn^ecção,  teria  sido  o  descobridor  bemaven- 
turado.  Estavão  estes  paços,  diz  elle,  numa  ilha  formada 
por  um  lago.  Eram  de  pedra  alva;   á  entrada  erguiam -se 
duas  torres  e  entre  ellas  uma  columna  de  vinte  e  cinco 
pés  de  alto;  no  seu  cimo  via-se  uma  grandiosa  lua  de 
prata  e  prezas  á  sua  base  por  cadeias  de  ouro  estavam 


SEGUNDA  EPOCHA  33d 


duas  giboias  vivas.  Quem  passasse  por  estes  dous  guar- 
das, entrava  num  quadrado  plantado  de  arvores  e  regado 
por  uma  fonte  argentina  que  esguichava  por  quatro  tubos 
de  ouro.  A  porta  do  palácio  era  de  cobre,  pequeníssima, 
e  o  seu  ferro  a  prendia  na  rocha  viva.  Dentro  estava  um 
sol  de  ouro  sobre  um  altar  de  prata,  diante  do  qual  ar- 
diam quatro  lâmpadas  de  dia  e  de  noite.  Por  mais  mani- 
festamente que  estas  ficções  fossem  extrahidas  dos  ro- 
mances de  Amadis  e  Palmeirim,  ainda  nâo  eram  assaz 
grosseiras  para  a  sedenta  avareza  d'aquelle3  para  quem 
fabricavam . 

«  O  reino  imaginário  obteve  o  nome  de  El-Dorado 
do  trajar  do  seu  imperante,  que  tinha  o  merecimento  de 
vestirá  moda  selvagem.  Todas  as  manhãs  lhe  untavam 
o  corpo  com  uma  certa  gomma  aromática  de  grande 
preço,  e  depois  com  um  tubo  lhe  sopravam  em  cima  ouro 
em  pó,  até  o  cobrirem  dos  pés  até  a  cabeça  e  á  noite  lava- 
Ya-se  tudo.  Reputava  o  bárbaro  este  trajar  mais  magni- 
fico e  esplendido  do  que  o  de  nenhum  outro  potentado 
do  mundo.  A  historia  para  a  conquista  d'este  reino  for- 
maria um  volume  não  menos  interessante  que  extraor- 
dinário. » 

Vejamos  agora  como  o  mesmo  Southey  explica  as 
causas  que  determinaram  Ralegh  a  ser  o  arauto  e  o  ca- 
pitão dessa  imaginaria  conquista: 

«  Não  é  possivel  que  Ralegh  acreditasse  na  exis- 
tência de  semelhante  paiz,  que  não  era  a  credulidade  o 
seu  defeito  dominante  ;   mas  tendo  formado  o  projecto 
de  colonisar  a  Guyana,  servio-se  d'estas  fabulas  como 
chamariz  da  avidez  do  vulgo.  Procurando,  porém,  com 
embustes  envolver  a  nação  numa  empreza  indubitavel- 
mente^de  granile  importância  nacional,  arruinou-se  a  si; 
as  suas  narrações  só  encontraram  desconfianças,   como 
crimes  lhe  imputaram  as  desgraças  e   apezar  de  seus 
grandes  e  inquestionáveis  t.ileutos   e  até  dessa  insigne 
morte,  ficou  na  sua  memoria  uma  mancha.  Mas  es  seus 
sequazes  teriam  ido  exercer  em  outra  direcção  seu  mister 
de  piratas,  se  elle  os  não  houvesse  conduzido  ao  Orenoco, 
e  o  Brasil  lhe  deve  um  longo  periodo  de  tranquillidade  ; 
primeiramente  foram  os  seus  projectos  que  attrahiram 
os  aventureiros  a  outro  campo,   e  depois  aterrou-os  o 
seu  triste  exicio.  » 

Os  fraucezes  nos  llheas  e    na  Parahyba. 

—  Si  os  inglezes  tomaram  diverso  rumo,  levando  a  outra 


340  HISTORIA  DO  BRASIL 

parte  a  sua  sede  de  usurpações  e  rapinas,  outro  tanto  não 
aconteceu  com  os  francezes  que  persistiram  nassuasten- 
tativas  de  estabelecimento  no  Brasil,  ou  pelo  menos  não 
se  resignaram  a  desistir  do  lucrativo  commercio  que 
faziam  com  osindios. 

Em  1595  dez  embarcações  francezas  entraram  no 
porto  dos  Ilhéos  e  eífectuaram  um  desembarque,  sendo 
repellidos  pelos  habitantes, a  frentedos  quaes  se  achavam 
o  mameluco  Catuçadas  e  um  tal  Christovão  Leal. 

Nesse  mesmo  anno  as  referidas  embarcações,  refor- 
çadas de  mais  três,  e  tripoladas  por  tresentos  e  sessenta 
homens  dirigiram-se  á  Parahyba  do  Norte  e  desembar- 
cando alli  toda  a  gente,  esta  immediatamente  procedeu  ao 
ataque  do  forte  de  Santa  Catharina  do  Cabedello. 

O  forte  era  apenas  defendido  por  vinte  homens  e 
cinco  pequenas  peças  de  artilharia,  porém  com  tanta  bra- 
vura resistiram  os  da  guarnição,  embora  na  acção 
morresse  o  seu  commandante,  que  os  francezes  tiveram 
que  reembarcar,  fazendo-se  de  vela  para  o  Rio  Grande 
ao  Norte. 

Conquista  do  Rio  Grande. —  Repellidos  pelas 
armas  portuguezas  e  hespanholas,  alhadas  á  flexa  do 
Índio  convertido,  os  francezes  iam  pouco  e  pouco  dei- 
xando as  paragens  meridionaes  e  acantoando-se  no 
norte  do  Brazil. 

Expulsos  do  Rio  de  Janeiro  e  Cabo-Frio,  de  Ser- 
gipe e  da  Parahyba  foram  ancorar  no  Rio  Grande  do 
do  Norte. 

Transferia-se,  portanto,  a  luta  para  alli,  pois  o  go- 
verno colonial  não  poderia  soffrel-os  aquém  do  Oyapock. 

Assim  foram  da  metrópole  transmittidas  ordens  a 
D .  Francisco  de  Souza,  governador  geral  e  a  Manoel 
Mascarenhas  Homem,  capitão-mór  de  Pernambuco,  para 
que  se  emprehendesse  a  conquista  d^aquella  região,  na 
qual  foram  applicados  o  restante  do  producto  dos  di- 
zimes, os  direitos  de  sahidados  assucares  e  da  siza  dos 
escravos  vindos  da  Africa  e  mais  doze  mil  cruzados, 
parte  do  que  se  tomara  a  uma  nau  da  índia,  que  arribara 
á  Bahia. 

Manoel  Mascarenhas  fez  logo  partir  de  Olinda  por 
terra  três  companhias  de  infantaria  e  uma  de  cavallaria, 
das  quaes  iam  por  capitães  Jeronymo  de  Albuquerque, 
J[orge  de  Albuquerque,  seu  irmão,  António  Leitão  Mirim 
e  Manoel  Mirim. 


SEGUNDA  EPOCHA  341 


O  auxilio  mandado  pelo  governador  geral  constava 
de  uma  esquadra  do  seis  navios  o  cinco  caravellões, 
tendo  por  commandante  em  chefe  Francisco  de  Barros 
Rego . 

Mascarenhas  passou-se  para  essa  esquadra  levando 
em  sua  companhia,como  engenheiros, os  jesuítas  Gaspar 
Sampère  e  Lemos  e  como  interpretes  dous  capuchos, 
Fr.  Bernardino  das  Neves  e  Fr.  João  de  S.  Miguel,, 
deliberando  antes  que  se  incorporassem  ás  forças  dos 
irmãos  Albuquerques,  Miguel  Alvares  Lobo  com  cento 
0  setenta  e  oito  homens,  além  dos  índios  alliados,  em 
numero  de  oitocentos  e  commandados  pelos  seus  chefes 
Metaraobj  (Pedra  Verde)  de  Pernambuco,  Piragybe, 
da  Parahyba,  e  Pau  Secco,  das  extremas  da  Parahyba, 
do  lado  do  norte. 

Da  expedição  terrestre  apenas  J.>ronymo  de  Albu- 
querque seguio  logo  com  a  sua  gente,  pois  a  varíola 
atacou  por  tal  forma  os  expedicionários  que  dez  e  doze 
cahiam  por  dia. 

Em  princípios  de  1598  chegou  ao  Rio  Grande  Ma- 
noel Mascarenhas  e  depois  de  fazer  sondar  e  descobrir 
o  porto  por  dous  caravellões,  entrou  nelle  e  des- 
embarcou com  alguma  gente  em  um  ilhéo,  á  foz  do 
rio  procurando  logo  entricheirar-se  ahi  com  varas  que 
fez  cortar  nos  mangues  visinhos. 

Os  índios,  acompanhados  de  mais  de  cincoenta 
francezes,  atacaram-n'o  dentro  de  poucos  dias,  numa 
madrugada,  resultando  sahir  ferido  o  capitão  Ruy  de 
Aveiro  Falcão. 

Achava-se  Manoel  Mascarenhas  em  apuros:  já  o 
inimigo  armava  tocaias  aos  seus  lonhadores  e  aos  que 
iam  ás  cacimbas  buscar  agua,  quindo  providencial- 
mente  ]h  í  chegou  o  reforço  de  uma  urca,  vinda' de  pro- 
pósito da  metrópole,  comalguma  artilharia,  munições  e 
alimentos,  e  pouco  depois  chegou  Feliciano  Coelho  com 
a  gente  (la  Parahyba,  isto  ó,  duns  companhias  de  arca- 
buzeiros, de  sessenta  homens  cada  uma,  vint.i  e  quatro 
de  cavallaria  e  trezentos  e  cincoenta  índios  frecheiros, 
com  os  seus  respectivos  chefes. 

O  forte  depois  de  terminado  recebeu  o  no  ne  de 
Três  Retê  Magos,  poi'  ser  começado  no  dia  6  de  Janeiro, 
e  ficou  sob  o  cominando  de  Jeronymo  de  x\lbuquerque, 
retirando-se  Manoel  Mascarenhas  para  a  aldeia  do  indio 
Poty,  o  mesmo  que    mais    tarde  devia  representar  ião 


342  HISTOEIA  DO  BEABIL 

saliente  papel  na  historia  pátria  com  o  nome  de  D.  An- 
tónio Felippe  Camarão.  Em  seguida  passou-se  Masca- 
renhas á  Parahyba  e  Jeronymo  de  Albuquerque  após 
algumas  escaramuças  com  os  selvagens  conseguio,  por 
intermédio  do  indio  Ilha  Grande,  fazer  as  pazes  com 
Zorobabé  e  Pau  Secco,  principaes  morubixabas  dos 
potyguaras. 

Pacificados  assim  os  bárbaros  poude  Jeronymo  de 
Albuquerque  e  sua  gente  lançar  as  bases  para  a  fundação 
de  um  arraial  que  recebeu  o  nome  de  Natal  (25  de  De- 
zembro de  1895),  entregando-se  logo  em  seguida  os  mo- 
radores á  cultura  da  canna  e  á  criação  do  gado  vaccum. 

Os  hollandezes  iia  Bahia. —  Em  Outubro  de 
1598  D .  Francisco  de  Souza  deliberou  visitar  a  capitania 
de  S.  Vicente,  attrahido  pela  noticia  que  se  divulgou  de 
existir  nella  minas  de  ouro.  Passou,  pois,  o  governo 
da  Bahia  a  Álvaro  de  Carvalho  e  partio. 

Logo  no  anno  seguinte  foi  a  capital  da  colónia  ata- 
cada por  uma  esquadra  hollandeza  composta  de  sete 
naus,  uma  das  quaes,  a  capitanea,  tinha  o  nome  de  Jar- 
dim de  Hollanda,  devido  a  um  jardim  que  trazia  a  bordo. 

Os  hollandezes  assenhorearam-se  do  porto  e  dos 
navios,  e  queimaram  e  desbarataram  os  que  lhes  resis- 
tiam. O  galeão  Baylio  de  Lessa  foi  um  dos  incendiados. 

Álvaro  de  Carvalho,  ao  mesmo  tempo  que  guarne- 
cia o  littoral  para  evitar  um  desembarque,  procurava 
parlamentar  com  o  almirante  hollandez. 

Não  chegaram  a  accôrdo  mandando  logo  o  estran- 
geiro devastar  o  Recôncavo  por  uma  caravella  que  tinha 
aprisionado  no  porto  e  alguns  patachos  e  lanchas. 

Sahio-lhes  ao  encontro  André  Fernandes  Morgalho 
com  trezentos  homens  e  obrigou-os  a reembarcar,  ficando 
muitos  mortos  no  campo. 

Dirigiram-se  depois  á  ilha  dos  Frades  afim  de  fazer 
aguada,  e  não  a  realisando  por  acharem  a  agua  saloba 
seguiram  para  a  ilha  de  Ilaparica  onde  incendiaram  o 
engenho  de  Duarte  Orquis ;  pouco  depois  no  emtanto, 
foram  batidos  por  André  Fernandes  Morgalho  e  Álvaro 
Rodrigues  que  os  atacaram  corajosamente,  matando-lhes' 
cincoenta  homens. 

Os  que  puderam  escapar  recolheram-se  às  naus  e  a 
esquadra  fez-se  ao  largo,  aprisionando  ainda  na  barra 
uma  nau  de  Francisco  de  Araújo  que  vinha  do  Rio  de 
Janeiro  carregada  de  pau  brazil. 


SEGUNDA  EPOCHA  343 


Passaram  os  hollandezes  para  as  suas  embarcações 
a  carga  e  a  tripolação  ;  puzeram  em  terra  umas  mu- 
lheres que  vinham  a  bordo  e  incendiaram  a  nau. 

O  iadio  Tavira. —  Nestas  lutas  para  occupação 
do  Rio  Grande  do  Norte,  que  Cândido  Mendes  com 
muita  razão  desejava  que  tioje  se  chamasse  Potyguara- 
nia,  por  ter  sido  outr'ora  esta  região  a  da  nação 
Potyguar,  cumpre-nos  salientar  o  nome  de  um  Íncola 
alliado  dos  portuguezes  que  praticou  bravuras  dignas 
de  memorar-se. 

Referimo-nos  a  Tavira,  ao  qual  Frei  Vicente  do 
Salvador  dedica  estas  liuhas  que  são  o  attestado  im- 
morredouro  do  seu  merecimento: 

c<  Acabado  o  forte  do  Rio  Grande,  que  se  intitula 
dos  Reys,o  entregou  Manoel  Mascarenhas  a  Hyeronirao 
de  Albuquerque,  dia  de  S.  João  Baptista,  era  de  mil  qui- 
nhentos e  noventa  e  oito,  tomando-lhe  homenagem, 
como  se  costuma,  e  deixando-lhe  muito  bem  fornecido 
de  gente,  artilharia,  munições,  mantimentos  e  tudo  o 
mais  iiesessario,  se  veio  no  mesmo  dia  com  a  sua 
gente  dormir  na  aldeia  do  Camarão,  onde  Feliciano 
Coelho  estava  com  o  seu  arraial  aposentado,  e  no  se- 
guinte repartiram  todos  pêra  a  Parahyba  com  muita  paz 
e  amisade,  que  he  o  melhor  petrecho  contra  os  os  ini- 
migos, e  assim  o  experimentaram  os  primeiros,  que 
acharam  em  uma  grande  e  forte  cerca  seis  dias  depois 
da  partiila,  a  qual  mandaram  espiar  por  um  indio  muito 
esforçado  da  nossa  Doutrina  chamado  Tavira,  que  só 
comquatorze  companheiros,  que  comsigo  levava,  matou 
mais  de  trinta  espias  dos  inimigos  sem  ficar  hum  só, 
que  levasse  recado,  e  assim  os  nossos  subitamente  deram 
na  cerca  ao  meio -dia,  e  com  tudo  pelejaram  mais  de 
duas  horas  sem  a  poderem  entrar,  excepto  o  Tavira,  que 
temerariamente  trepando  por  ella  se  lançou  dentro  com 
uma  espada  e  rodella,  e  nomeando-se  começou  a  matar 
e  íerir  os  inimigos,  até*lhe  quebrar  a  espada,  e  ficar  com 
só  a  rodella,  tomando  nella  as  frechas,  o]que  visto  pelo 
capitão  Ruy  de  Aveiro  e  Bento  daUíocha,  seu  soldado, 
tiraram 'por  uma  seteira  duasjarcabusadas,  com  que  os 
inimigos  se^afastaram  e  lhe  deram  logar  de  tornar  a 
subir  pela  cerca  e  sahir-se  delia  com  tanta  ligeireza  como 
si  fôra^um  pássaro;  e;  com  este  [e  outros  semelhantes 
feitosjaato  nome  havia  ganhado  este  índio  entre  os  ini- 


344  mSTOEIA  DO   BRASIL 

migos.  que  só  com  se  nomear,  dizendo   eu  sou  Tavira, 
acobardava e  atemorisava  a  todos.» 

liueta  com  os  ilyiuorési  na  Bahia.  —  Ainda 
no  anno  de  1599,  os  Aymorés,  que  eram  os  mais  peri- 
gosos dos  selvagens,  ejitraram  na  capitania  da  Bahia 
depois  de  haverem  assolado  as  de  Porto  Seguro  e 
Ilhéos,  e  devastaram  as  terras  á  margem  dos  rios  Ja- 
guaripe  e  Paraguassó,  não  passando  comtudo  além  este 
para  o  norte. 

Manuel  Mascarenhas,  o  conquistador  do  Rio  Grande 
do  Norte,  achando-se  accidentalmente  na  Bahia,  offe- 
receu-se  para  mandar  combatei -os  um  contingente  de 
índios  poty guarás  da  Parahyba  e  effecti vãmente  enviou 
um  grande  numero  dellos  commandados  por  Zorobabé, 
os  quaes  foram  enviados  com  o  capitão  Francisco  da 
Costa  aos  Ilhéos  para  que  de  lá  viessem  dando  caça  sos 
Índios.  Os  Aymorés  viram-se  muito  acossados,  porém 
só  se  submetteram  por  intermédio  de  uma  cabocla  que 
se  christianisou,  recebendo  na  pia  baptismal  o  nome  de 
Margarida;  então  cessaram  as  suas  depredações. 

Viagem  do  governador  ao  sul.  —  Partio 
D.  Francisco  de  Souza  da  Bahia  em  Outubro  de  1598, 
como  já  dissemos;  aportou  primeiro  ao  Espirito  Santo 
onde  despachou  gente  para  examinaras  minas  de  esme- 
raldas em  as  quaes  já  se  achava  Diogo  Martins  Cão,  por 
elle  mandado  da  Bahia  e  ordenou  que  se  explorassem  as 
as  terras  da  serra  de  Mestre  Álvaro,  pois  constava-lhe 
haver  nella  metaes  preciosos ;  encontrou-se  effectiva- 
mente  ahí  alguma  prata. 

Despachou  mais  para  S.  Vicente  o  capitão  Diogo 
Ayres  Aguirre  com  duzentos  homens  que  deviam  ser 
empregados  no  irabalho  das  minas  de  ouro  de  S.  Paulo 
e  fez  construir  no  porto  da  Victoria  um  pequeno  forte 
que  guarneceu  com  duas  peças  de  artilharia. 

No  Rio  de  Janeiro  pouco  se  demorou,  o  tempo  porém 
queahi  esteve  foi  no  emtanlo  o  necessário  para  conhecer 
que  havia  muitas  causas  eiveis  e  processos  crimes 
dependentes  de  julgamento  epor  isso  mandou  ordem  ao 
ouvidor  geral  Gaspar  de  Figueiredo  Homem,  que  então 
se  achava  em  Pernambuco,  para  que  se  transportasse 
ao  Rio  de  Janeiro . 

Em  Maio  seguinte  achava-se  D.  Francisco  de  Souza 
em  S.  Paulo  de  onde  se  passou  ao  morro  de  Araçoyaba, 
junto  à  actual  fabrica  de  ferro  de  Ipanema,  ahi  dando 


SEGUNDA  EPOCHA  345 


principio  á  povoação  de  Nossa  Senhora  de  Monserrate 
que  não  foi  por  diante. 

Voltando  depois  a  S.  Paulo  confirmou  a  nomeação 
de  Diogo  Gonçalves  para  capitão  das  minas  desco- 
bertas, visitou  as  minas  de  Jaraguá  e  Vuturuna  e  in- 
cumbiu André  Leão  de  penetrar  c  ira  uma  partida  de 
tropa  no  sertão,  em  busca  de  minas  de  prata. 

Todas  as  minas  até  então  descobertas  e  já  em  ex- 
ploração ainda  rendiam  pouco. 

Joi§é  de  Anchieta. — Em  1595  e  por  conseguinte 
durante  o  periodo  que  D.  Francisco  de  Souza  exerceu 
sua  administração  no  Brasil,  falleceu  em  Reritgbá,  hoje 
cidade  de  Anchieta,  no  estado  do  Espirito  Santo,  o  no- 
tável jesuita  José  de  Anchieta. 

Aproveitamos  o  ensejo  que  se  nos  oíTerece  para  in- 
serir a  pagina  que  sobre  tão  conspícuo  varão  escreveu 
o  notável  publicista  Silvio  Roméro,  cuja  imparcialidade 
critica  e  absoluta  isenção  de  preconceitos  religiosos  dão 
ao  seu  juizo  subido  valor,  principalmente  hoje  que  pela 
imprensa  se  apuram  apaixonadamente  os  méritos  ou 
defeitos  de  José  de  Anchieta. 

«  A  vida  de  Anchieta,  que  no  Brasil  se  distendeu 
por  44annos,  de  1533  a  1597,  pôde  bem  servir  de  espelho 
para  se  mostrar  o  estado  do  paiz  durante  o  primeiro 
século  da  conquista  e  colonisação.  Foi  em  Teneriffe,  uma 
das  ilhas  Canárias,  que,  aos  7  de  Abril  de  1534,  nasceu 
José  de  Anchieta  ;  sua  mãe,  D.  Meneia  Dias  de  Clavicko 
Llarena,  era  uma  canarina,  e  seu  pai,  D.  João  de  An- 
chieta, era  um  fidalgo  hespanhol.  Anchieta,  feitos  os 
primeiros  estudos  em  sua  terra  natal,  passou-se  ainda 
muito  joven  para  a  universidade  de  Coimbra,  onde  fez 
grandes  progressos  nos  estudos  superiores,  adquirindo 
geral  estima  e  admiração.  Em  Coimbra,  a  vida  livre  da 
Universidade,  com  os  seus  progressos  e  rixas  próprias 
do  tempo,  não  alterou  a  Índole  placidamente  religiosa, 
profundamente  crente,  do  futuro  missionário. 

Ao  contrario,  a  tendência  primitiva,  prevalecendo 
sempre,  levou  o  moço  canarim  a  entrar,  a  1"  de  Maio  de 
1551,  para  a  Companhia  de  Jesus,  fundada  havia  pouco 
e  já  então  celebre  no  mundo.  A  Companhia,  que  já  havia 
feito  duas  remessas  de  missionários  para  o  Brasil,  uma 
em  1549,  outra  em  1550,  enviou  terceira  leva  aos  8  de 
Maio  de  1553,  e  desta  vez  ve'0  José  de  Anchieta,  simples 
irmão  ainda.  Motivos  de  saúde  dictaram  esta  acercada 


316  HISTORIA  DO  BEASIL 

determinação.  0  2"  governador  do  Brasil,  D.  Duarte  da 
Costa,  veio  por  essa  occasião  para  substituir  Thomé  de 
Souza.  Chegaram  todos  à  Bahia  aos  8  de  Junho  de  1588. 
A  demora  de  Anchieta  na  capital  foi  de  poucos  mezes, 
seguindo  para  o  sul,  onde  S.  Vicente,  Rio  de  Janeiro, 
Espirito  Santo  tinham  de  ser  o  theatro  de  seus  grandes 
serviços.  Na  viagem  fez  temeroso  naufrágio,  aportando 
em  Garavelias.  Chegando  aS.  Vicente,  foi  mandado 
para  aldeia  de  Piratininga,  onde,  chegando  a  25  de 
Janeiro  de  1554,  fundou  o  afamado  collegio  (1),  que  foi 
por  muitos  aanos  o  ponto  central  da  cultura  de  S.  Paulo 
e  do  sul  do  Brasil.  Á  vida  de  Anchieta  mostra  um  lado 
exterior  e  publico  e  uma  face  mais  particular  e  intima. 
Ambas  foram  em  proveito  geral  da  sociedade  brazileira, 
que  se  começava  a  formar.  A  parte  exterior  é  a  parte 
mais  apreciada  geralmente;  porém  a  outra  face  merece 
mais  interesse  para  a  historia  social  de  nossa  pátria. 
Os  factos  geraes  e  mais  exteriores  da  vida  do  grande 
missionário  são,  — além  da  vinda  ao  Brasil  e  da  tixação 
em  S.  Vicente  e  Piratininga,  já  citados,  sua  viagem  em 
1ÕÕ6  á  Bahia  e  subsequente  volta  no  mesmo  anno,  acom- 
panhando Nóbrega;  sua  presença  ein  1865  á  tomada  e 
fundação  do  Rio;  a  viagem  á  Bahia  no  mesmo  anno  para 
ordenar-se  e  a  volta  immediata;  seu  reitorado  em 
S.  Vicente,  1569;  seu  provincialato  de  1577  a  1588  na 
Bahia ;  o  reitorado  em  1589  na  Victoria,  sua  catechese 
no  Espirito  Santo  até  1597,  data  de  sua  morte.  Esta  é  a 
vida  official,  por  assim  dizer,  em  suas  datas  principaes. 
O  que  falta  ahi  ó  leiubrar  os  duros  trabalhos  e  soffri- 
mentos,  quando,  sem  roupas  quasi  e  quasi  sem  recursos 
para  a  simples  manutenção  material  da  existência,  teve 
de  fundar  o  collegio  de  Piratininga;  é  lembrar  a  enér- 
gica defesa  dessa  povoação,  quando  foi  atacada  pelos 
selvagens  visinhos(2) ;  é  lembrar  o  heroísmo  do  padre, 

(1)  Entre  os  rios  Tamanduatehy  e  AnhaDgabahú.  E'  hoje  o 
paço  da  Presidência.  Tamanduatehy  quer  dizer  rio  do  Tamanduá 
cirande,  e  Anhanrjabahú  significa  o  homem  do  diabo  está  be- 
bendo agua,  de  Anhanff,  diabo,  abá,  homem,  e  ú,  beber  agua. 
Assim  o  denominaram  os  Goyanazes  ao  verem  um  negro  dos 
trazidos  com  os  jesuitas  desedentando-se  no  riacho,  e.  por  não 
conhecerem  individuo  algum  decòr  inteiramente  preta,  julgaram 
ser  aquelle  um  diabo,  o  deus  Anhang,  espirito  do  Mal. 

(2)  Numa  das  expedições  pelo  Tietê  para  bater  o  gentio,  An- 
chieta naufragou  n'uma  cachoeira,  que  ficou,  por  isso,  sendo 
(ienominada  Avarémandoaca^  que  quer  dizer  cachoeira  do  padre» 


SEGUNDA  EPOOHA  347 


quando  ficou  de  refém  entre  os  Índios  de  Iperohy  su- 
blevados, emquanto  Nóbrega  negociava  as  condições  de 
de  paz  com  os  colonos  de  S.  Vicente  ;é  lembrar  o  estorço 
para  a  creação  do  collegio  e  da  Misericórdia  do  Rio  de 
Janeiro;  é  lembrar  as  penosas  viagens  pelas  aldeias  de 
S.  Paulo,  Espirito  Santo  e  Bahia,  no  serviço  obscuro  da 
catechese ;  é  lembrar  o  cuidado  com  que  aprendeu  a 
lingua  dos  selvagens  para  lhes  falar  nella  e  nella  lhes 
ensinar  a  doutrina  e  a  leitura;  é  lembrar  os  hymnos  e 
comedias  que  em  portuguez,  hespanhol  e  tupy  escreveu 
para  divertimento  e  ensino  dos  colonos  e  aborígenes 
catechisados ;  é,  finalmente,  lembrar  os  estudos  que  fez 
das  cousas  de  nosso  paiz,  de  suas  riquezas  naturaes, 
dos  feitos  de  seus  primitivos  organisadnres,  para  os 
transmitiir  á  Companhia  nessas  interessantes  cartas, 
annuas  e  informações,  que  ainda  hoje  são  o  melhor  re- 
positório para  o  estudo  da  vida  brasileira  no  século  XVI. 
E  ainda  ahi  falta  recordar  o  thesouro  de  bondade,^  de 
mansuetude,  de  devotamente,  de  caridade,  que  enchia  o 
coração  do  jesuita  canarim,  virtudes  que  fizeram  delle 
quasi  um  santo  e  o  apontaram  sempre  a  nós  como  uma 
espécie  de  patriarcha  que  presidio  ao  alvorecer  de  nossa 
Pairia  e  a  quem  cobrimos  sempre  de  bênçãos  e  vene- 
ração. José  de  Anchieta,  fallecendo  em  1597,  assistio 
quasi  ao  fechar  do  século  XVI,  o  século  do  descobri- 
mento e  da  conquista  em  nossa  historia.  Durante  esse 
longo  periodo  fora  a  colónia  dirigida  pelos  sete  pri- 
meiros governadores,  com  pequenos  intervallos  da 
direcção  dn  juntas  provisórias.  Ao  findar  do  século,  Ioda 
a  costa  eslava  já  corrida ;  as  povoações  do  Maranhão, 
Ceará,  Parahyba,  Pernambuco,  Sergipe,  Bahia,  Ilhéos, 
Porto  Seguro,  Espirito  Santo,  Rio  de  Janeiro.  S.  Paulo, 
iniciadas  ou  desenvolvidas.  As  industrias  da  lavoura  da 
canna,  do  tabaco,  da  mandioca,  dos  legumes  mais 
geraes  entre  nós,  das  plantas  fructiferas  trazidas  da 
Europa  e  da  Africa,  da  criação  de  gado,  também  ini- 
ciadas ou  já  desenvolvidas.  Tinham  começado  as  ex- 
plorações de  minas  pelo  interior,  as  explorações  dos 
rios  e  o  estabelecimento  das  primeiras  estradas  para  o 
planalto  central.  Datam  também  de  então  os  primeiros 
collegios  e  institutos  litterarios:  de  muitos  d'esses  me- 
lhoramentos o  padre  havia  sido  poderoso  factor.  » 

Os  JciMuita.<!i  e   o»  iudíos.  —  Por  occasião  da 
visita  de  D.  Francisco  de  Souza  á  capitania  de  S.  Vj- 


348  HISTORIA  DO  BRASIL 

cente  a  questão  da  escravidão  dos  Índios  contra  a  qual 
os  jesuítas  de  S.  Paulo  se  erguiam,  mantinha  em  exal- 
tação os  ânimos  de  todos  os  colonos. 

A  população  branca  augmentara  consideravelmente 
e  a  agricultura  desenvolvera-se  de  tal  modo  que  os  afri- 
canos importados  não  eram  sufficíentes  ao  amanho  das 
terras  que  se  precisavam  cultivar  em  grandes  extensões 
para  poder  fornecer  os  avultados  lucros  que  todos  cubi- 
cavam.^ A'  vista  d'isso  os  colonos  pretenderam  escravi- 
sar  os  Índios,  esses  simples  Goyanazes  que  outr'ora 
haviam  acolhido  hospitaleiramente  João  Ramalho  e 
A.ntonío  Rodrigues  e  que  tão  assignalados  serviços  ha- 
viam prestado  á  colónia  na  sua  origem,  já  levando-lhe  o 
concurso  de  seus  braços  para  os  trabalhos  de  construc- 
ção,  já  desaffrontando-a  das  aggressões  dos  Tamoyos 
e  Carijós.  Contra  essa  iniquidade,  no  emtanto,  pro- 
testaram os  jesuítas  e  a  lucta  acendeu-se,  trazendo 
isso   graves  dfsorganisações  no  trabalho. 

A  pretenção  dos  colonos  era  a  mais  injusta  possível; 
quanto  aos  jesuítas,  porém,  queriam  amparar  tanto  os 
selvagens  «que,  diz  Varnhagen,  chegava  a  ser  impossível 
a  nenhum  morador,  excepto  aos  mesmos  religiosos,  o 
valer-se  do  serviço  delles,  ainda  mediante  contractos 
de  paga  de  aluguer  ou  soldada.  E  o  peior  era  que  os 
padres  tinham  também  fazendas  e  engenhos,  e  os  seus 
géneros  competiam  no  mercado  com  os  do  povo,  que 
pagava  mais  caro  os  braços  que  necessitava  para  a  sua 
industria  » . 

Esta  lucta  entre  os  padres  da  Companhia  de  Jesus 
e  os  colonos,  por  causa  da  população  aborígene,  lavrava 
com  mais  ou  menos  intensidade  em  todo  o  Brasil  dessa 
epocha. 

Os  colonos,  impulsionados  unicamente  pela  anciã 
de  enriquecerem  com  rapidez,  paixão  que  aliás  era  o 
agente  mais  poderoso  do  progresso  da  região  e  a  ga- 
rantia firme  do  seu  próximo  engrandecimento,  enca- 
rando, além  disso,  o  índio  como  um  ser  inferior,  quâsi 
animal,  ao  qual  a  natureza  tinha  negado  certas  prero- 
gatíyas  humanas,  e,  pelo  espírito  da  epocha,  grosseiros, 
cruéis,  despidos  de  preconceitos  phílantropicos,  julga- 
vam-se  com  todo  o  direito  de  obrigar  os  naturaes 
a  cooperar  na  avolumação  das  riquezas  indíviduaes 
coni  as  quaes  o  próprio  Estado  exuboraria;  os  jesuítas, 
porém,  que  tanto  na  America  como  na  Europa,  consti- 


SEGUNDA  EPOCHA  349 


tuiam  uma  sociedade  á  parte,  em  cousa  alguma  inte- 
ressada na  vida  económica  geral  dos  povos  e  proseguindo 
fins  muito  outros  dos  da  massa  e  dos  governos,  achou-se 
nesse  momento  em  antagonismo  com  a  população  co- 
lonial, relativamente  ao  comportamento  que  deviam  ter 
para  com  o  indio  brasileiro.  Dizer  que  os  jesuítas  am- 
paravam com  tanta  solicitude  o  nosso  selvagem  por 
mera  philantropia  e  espirito  de  caridade  christã  seria 
encobrir  a  verdade. 

Os  jesuítas  eram  homens  nos  quaes  uma  educação 
longa  e  systematica  fazia  desapparecer  todo  o  persona- 
lismo até  que  se  transformavam  em  instrumentos  pas- 
sivos e  cegos  da  communidade;  o  interesse  social  da 
Ordem,  geralmente  só  conhecido  dos  chefes,  o  espirito 
de  seita  e  o  profundo  respeito  à  obediência,  faziam  in- 
diííerentemente  delles  ou  apóstolos  ou  algozes.  No 
Brasil,  a  senha  recebida  foi  a  da  protecção  aos  indígenas, 
e,  como  a  causa  era  nobre,  veremos  os  que  se  encarre- 
gam de  desempenhar  tal  encargo,  apurarem  até  o  sacri- 
fício as  mais  excelsas  virtudes,  realçadas  aliás  por  ta- 
lentos laboriosamente  cultivados. 

Esse  mesmo  Anchieta,  porém,  que  se  abarraca  du- 
rante longos  mezes  em  ranchinhos  cobertos  de  folhas 
de  pindoba  e  devassa  a  mattaria  cerrada  para  levar  ao 
gentio  acardumado  na  brenha  o  verbo  santo  do  Evan- 
gelho, affirmará  d'ahi  a  pouco  o  braço  do  algoz  para 
fazer  cahir  a  cabeça  de  João  Boles.  Na  Hespanha  seria 
talvez  um  torturador  do  Santo  Ofhcio,  no  Brasil  foi  o 
Apostolo  do  Novo  Mundo.  Obedeceria  lá,  como  obede- 
ceu aqui. 

Ao  historiador,  porém,  embora  condemnando  o 
espirito  de  uma  associação  qualquer,  não  cabe  o  direito 
de  interpretar  sob  a  impressão  de  uma  antipathia  geral, 
todos  os  actos  dessa  mesma  associação,  qualquer  que 
seja  o  tempo  ou  o  logar  em  que  se  verifiquem,  e  foi  assim 
pensando  que  não  regateamos  louvores  aos  jesuítas  dos 
tempos  coloniaes  do  Brasil,  pois,  feita  a  abstracção  das 
causas  que  os  moviam,  isto  é,  pondo-se  de  "parte  a 
questão  do  saber  quem  eram  elles  e  o  que  queriam,  a 
obra  desses  homens  em  nossa  Pátria  é  digna  da  admi- 
ração dos  pósteros. 

As  bandeiras.  —  Vendo-se,  pois,  os  paulistas 
impossibilitados  de  se  abastecerem  de  trabalhadores  para 
as  suas  plantações  e  serviços  de  engenho  no  gentio  da 


350  HISTOEIA  DO  BRASIL 

visinhança,  pela  tenaz  opposição  dos  jesuítas,  determi- 
naraiu-SL!  ir  buscal-os  aos  sertões,  naquelles  pontos  em 
que  os  padres  não  podiam  exercer  jurisdicção. 

As  companhias  que  partiam  para  essa  deshumana 
caçada,  tanto  mais  barbara,  quanto  muitas  vezes  viam-se 
obrigadas  a  exterminar  cabildas  inteiras,  tomaram  o 
nome  de  bandeiras. 

Ayres  do  Casal  assi  m  definio  uma  bandeira : 
a  Dá-se  no  Brasil  este  nome  (bandeira)  a  um  nu- 
mero indeterminado  de  muitos  homens,  que  providos  de 
armas,  munições  e  mantimentos,  necessários  para  sua 
subsistência  e  defesa,  entram  nas  terras  possuídas  pelos 
indígenas  com  algum  intuito,  v.  g.  de  descobrir  minas, 
reconhecer  o  paiz,  ou  castigar  as  hostilidades  dos  bár- 
baros. »  (1) 

Já  anteriormente  ao  período  em  que  nos  achamos 
haviam-se  organísado  bandeiras  para  devassar  o  sertão, 
devendo  os  leitores  estar  lembrados  queMartim  Affonso 
fez  partir  uma  de  Cananéa  e  outra  de  S.  Vicente,  as 
quaes  nunca  mais  voltaram .  Sabe-se  ainda  que  Braz 
Cubas  capitaneou  uma  bandeira  em  1560.  Affonso  ííar- 
dínha  na  ultima  década  do  século  XVI  descobrio  as 
minas  de  Sorocaba  e  Jorge  Correia  em  1594  marchou 
para  o  sul  a  bater  os  Carijós. 

D'ahí  por  diante  tornaram-se  mais  frequentes  as 
bandeiras,  citando-se  entre  outros  os  seguintes  chefes  : 
João  de  Souza  Pereira,  Francisco  Corrêa,  Domingos 
Luiz  Grou,  Manoe'  Velloso  da  Espinha,  José  A  lorno, 
Ascenso  Ribeiro,  João  Gago,  Jeronymo  da  Veiga  e 
muitos  outros. 

A  internação  trouxe  como  consequência  o  conheci- 
mento do  sertão ;  o  curso  do  Tietê  forneceu  o  roteiro 
para  o  devassamento  de  Minas  Geraes,  Paraná,  Santa 
Catharina,  Rio  Grande  do  Sul,  G  )yaz  e  Matto  Grosso, 
assim  como  o  São  Franci  co  apontou  a  estrada  para 
uma  pirte  de  Goyaz,  Minas,  Piauhy,  Ceará,  Minas 
Geraes  e  Rio  de  Janeiro. 

«  O  Tietê,  diz  o  eminente  professor  Capistrano  de 
Abreu,  possuia  condições  naturaes  que  o  destinavam  a 
este  papel.  Uma  era  a  sua  proximidade  do  mar,  que  foi 
motivo  para  os  portuguezes  virem  logo  estabelecer-se 


(1)  A-VRES  DO  Casal.  —  Chorographia  do  Brasil. 


SEGUNDA  EPOCHA  361 


nas  suas  margens,  e  tomal-o  por  ponto  de  partida. 
Outra  a  direcção  de  sua  corrente,  pois  os  colunisadores 
não  tinham  de  subil-o,  mas  de  de^^cel-o,  o  que  era  muito 
mais  fácil.  Outro  era  o  systema  de  suas  vertentes,  que 
punha-o  em  contacto  com  o  Parahyba,  o  Magyguassú  o 
Paranapanema  e  depois  de  confluir  com  o  Paraná, 
punha-o  ainda  em  contacto  com  os  aflluentes  do  Pa- 
raguay.  »  (1) 


Achava-se  ainda  na  capitania  de  S.  Vicente  D.  Fran- 
cisco de  Souza  quando  soube  ter  chegado  á  Bahia  o  seu 
successor  e  d'ahi  mesmo  fez-se  de  vela  directamente 
para  a  Europa. 

Não  obstante  terem  os  povos  formulado  graves 
queixas  ao  governo  da  metrópole  contra  D.  Francisco  de 
Souza,  ao  qual  accusavam  de  construir  engenhos  com 
dinheiros  aa  coroa,  todavia  a  sua  administração  foi 
proveitosa  a  Portugal  e  ao  Brasil,  sendo  de  presumir  que 
a  antipathia  que  lhe  votavam  os  potentados  fosse  em 
parte  motivada  pela  consideração  que  dispensava  aos 
jesuitas. 

Entres  outros  serviços  D.  Francisco  conseguio  rea- 
lisar  a  conquista  do  Rio  Grande  do  Norte,  proporcio- 
nando assim  novo  campo  á  dilatação  da  civilisação  euro- 
f)eia  ;  acoroçou  as  explorações  de  minas  que  começaram 
ogo  a  apparecer  e  cuidou  zelosamente  da  fortificação  da 
costa,  atim  de  isentar  o  littoral  do  paiz  da  ameaça  con- 
stante dos  piratas. 

Passemos  agora  á  administração  de  Diogo  Botelho; 
antes  porém,  precisamos  assignalar  que  aos  13  de  Se- 
tembro de  1598  fallecera  Felippe  II,  soberano  de  Hespa- 
nha,  Castella  e  Portugal,  o  qual,  pelas  atrocidades  com- 
mettidas  nos  Paizes  Baixos,  cujas  liberdades  tentou 
afogar  em  sangue,  provocou  no  povo  fl;imengo  a  reacção 
que  devia  mais  tarde  manifestur-se  em  rudes  ataques  ao 
Brasil  por  parte  da  Hollanda. 

Ao  throno  de  Castella  e  Portugal  subio  por  sua 
morte  seu  filho  Felippe,  III  de  Castella  e  II  de  Portugal. 


(1)  Capistrano  de  Abreu.  —  Descobrimento  do  Brasil  e  seu 
desenvolvimento  no  século  XVI. 


J 


CAPITULO  V 

GOVERNO   GERAL  DE  DIOGO  BOTELHO 
(1602  —  1606) 

Succedeu  a  D.  Francisco  de  Souza,  Diogo  Botelho, 
ex-governador  de  Pernambuco  e  filho  de  Francisco 
Botelho,  estribeiro  mór  do  infante  D.  Fernando.  Botelho 
veio  em  direitura  a  Pernambuco  e  d'ahi  passou-se  á 
Bahia,   a  12  de  Março  de  1602. 

Com  Diogo  Botelho  vieram  dois  religiosos  graves 
de  Nossa  Senhora  da  Graça,  da  Ordem  de  Santo 
Agostinho,  na  qual  o  mesmo  Diogo  Botelho  tinha  um 
filho/ 

Pretendiam  esses  frades  fundar  um  convento  em 
Olinda,  porém  os  pernambucanos,  que  já  sustentavam 
os  Jesuítas,  os  Carmelitas,  os  Benedictinos  e  os  Fran- 
ciscanos, fizeram-lhes  sentir  que  não  podiam  mais  com 
esses  novos  sugadores  do  suor  do  povo,  e  os  dois  Agos- 
tinhos, depois  de  receberem  gorda  esmola,  retiraram-se 
para  Lisboa. 

Diogo  Botelho,  cuja  nomeação  data  de  20  de  Fe- 
vereiro de  1601,  veio  ganhando  de  ordenados  três  mil 
cruzados  annuaes. 

Tentativa  dv-  colonização  do  Ceará. — Pêro 
Coelho  Barboza,  irmão  de  Fructuoso  Barboza,  de  quem 
tanto  nos  temos  occupado,  teve  a  ideia  de  se  tornar  se- 
nhor das  terras  situadas  além  do  Rio  Grande  do  Norte, 
e  conseguio  obter  da  corte  a  patente  de  capitão-mór 
das  mesmas  terras,  bem  como  outras  concessões.  Para 
levar  avante  a  sua  ideia  associou-se  a  diversos  indi- 
vidues, que  se  abalançaram  em  tal  commettimento,  na 
esperança  de  poderem  captivar  muitos  Índios. 

Eis  como  se  exprime  o  padre  José  Moraes  a  res- 
peito dos  fins  dessa  expedição,  que  iniciou  a  conquista 
do  Ceará  e  do  Maranhão : 

«  Incerto  pela  difficuldade,  o  descobrimento  íla  ilha 
do  Maranhão  se  emprehendeu  por  terra  pelo  modo  mais 


354  HISTORIA   DO    BRASIL 

raro,    e  pelo   procedimento   mais   indigno   da   piedade 
portugueza. 

«  Foi  a  ambição  a  que  por  então  abrio  caminho  a 
tão  dificultosa  conquista  ;  e  devendo  ser  a  gloria  do  bom 
nome  o  motivo  mais  próprio  de  uma  tão  importante 
empreza,  foi  o  desejo  da  fazenda  o  que  estimulou 
com  efflcacia  a  alguns  homens  de  Pernambuco,  com 
o  pretexto  de  descobridores  da  terra  do  Maranhão,  a 
fazerem  uma  grande  captura  de  Índios  que  habitavam 
aquelles  seitões;  commercio  o  mais  indigno,  e  tanto 
mais  para  temer  quanto  mais  perigoso  pela  injustiça 
com  que  pretendiam  privar  da  liberdade  a  innocencia 
dos  miseráveis  indios,  só  porque  ficassem  mais  adian- 
tados os  seus  interesses. 

«  Ajuntaram-se  em  Pernambuco  Pedro  Coelho  de 
Souza  e  M.irtim  Soares  Moreno  com  outros  mais  de 
sua  parcialidade,  apostados  todos  a  comprarem  com  o 
sangue  alheio,  ou  a  sua  perdição,  ou  o  seu  desengano 
muito  á  custa  das  vidas,  da  honra,  e  ainda  de  seus 
próprios  cabedaes.  Penetraram  naquelles  sertões,  mais 
como  roubadoures  da  liberdade,  que  descobridores  do 
Maranhão,  emquanto  não  apparecia  alguma  tapada  ac- 
commodada  onde  pudesse  Pedro  Coelho  fazer  uma 
grande  caçada  mais  própria  do  seu  despotismo  que 
da  sua  reputação  e  christandade».  (1) 

Pedro  Coelho  mandou  Ires  barcos  com  manti- 
mentos, pólvora  e  munições  esperal-o  na  foz  do  rio 
Jaguaribe,  e  no  mez  de  Julho  di'  1603  seguio  por  terra 
com  sessenta- e  cinco  companheiros,  dos  quaes  os  prin- 
cipaes  eram  Manoel  Miranda,  Simão  Nunes,  Martim 
Soares  Moreno,  João  Cide,  João  Vaz  Tataperica,  os 
interpretes  Pedro  Congatan  e  Tuim  Mirim,  francez,  e 
duzentos  indios  frecheiros,  dos  quaes  eram  chefes 
Mandiocapuba,  Batatam,  Carágatim  (tobajaras)  e  Gara- 
guinguira  (potyguar). 

A  expedição  ao  chegar  ao  rio  Jaguaribe,  já  en- 
controu ahi  os  barcos  de  mantimentos  e  logo  enviou 
Pedro  Coelho  um  soldado  com  setenta  indios  a  reco- 
nhecer a  terra;  estes,  aprisionando  um  indio  que  en- 
contraram, o  trouxeram  a  Pedro  Coelho,    que  o   en- 


(1)  Padre  José  de  Moraes.  — Historia  da  Companhia  de  Jesus 
na  extincta  Província  do  Maranhão  e  Pará . 


SEGUNDA  EPOCHA  355 


chcu  dc  presentes  e  o  mandou  á  sua  tribu,  afim  de 
predispor  o  animo  dos  companheiros  em  favor  dos 
portuguezes. 

Com  o  Índio  seguio  um  interprete,  que  soube  ser 
tão  persuasivo,  que  os  Índios  todos  de  uma  aldeia  vieram 
reunir-oC  aos  portuguezes,  darido-se  o  mesmo  facto 
com   outra  aldeia  a  que  se  dirigio  alguns  dias  depois. 

Reforçado  com  taes  indios,  seguio  Pêro  Lopes  ao 
longo  da  costa  até  o  Camocim,  e  d'ahi  dirigio-se  á 
elevadissima  serra  da  Ibiapaba,  onde  os  Índios  o  re- 
ceberam com  armas  na  mão. 

Por  este  roteiro  justifica-se  o  que  diz  o  padre  José 
de  Moraes,  pois  si  Pedo  Lopes  desejava  fundar  hones- 
tamente uma  colónia,  começaria  estabelecendo-se  no 
Ceará  e  não  iria  tão  longo  buscar  voluntariamente 
perigos  e  trabalhos. 

Chegaram  os  portuguezes  á  serra  da  Ibiapaba  em 
19  de  Janeiro  de  1604,  e  sendo  logo  vistos  pelos  selva- 
gens, apenas  tiveram  tempo  de  formar  dois  esqua- 
drões, ficando  a  bagagem  no  meio,  e  um  outro  esquadrão 
de  vinte  homens  que  foi  collocado  ás  ordens  de  Manoel 
de  Miranda,  afim  de  agir  á  parte. 

Ao  meio  da  serra  começaram  os  Índios  a  hostili- 
sal-os  com  frechadas;  e  sete  francezes,  que  se  achavam 
com  os  naturaes,  descarregavam-lhes  continuamente 
os  seus  mosquetes. 

Houve  mortos  de  lado  a  lado,  porém  os  portuguezes 
cooseguiram  attingir  um  ponto  em  que  se  fortificaram. 

Chegada  que  foi  a  noite,  começaram  de  novo  os 
Íncolas  a  afiligil-os  com  setas  e  pedradas,  só  cessando 
o  ataque  por  desabar  copiosa  chuva. 

No  dia  seguinte  os  portuguezes  atacaram  os  índios 
e  sahiram  victoriosos,  com  a  perda  unicamente  de  dois 
.homens.  Juntamente  com  os  Índios  pelejavam  desesseis 
francezes  armados  de  mosquetes,  que  se  evadiram,  e 
bem  assim  o  principal  da  tribu  que  se  chamava  Diabo 
Grande,  o  qual,  auxiliado  por  um  outro  morubixaba,  o 
Mel  Redondo,  fortificou-se  com  o  resto  da  sua  gente 
d'ahi  a  um  quarto  de  légua. 

Foi  Diabo  Grande  novamente  batido  nessa  posição 
e  levado  de  vencida  até  á  cerca  de  Mel  Redondo,  que 
era  fortíssima. 

Pedro  Lopes  mandou  fazer  uns  pavezes,  os  quaes 
occupavam  cada  um  vinte  pessoas  para  o  levar,  c  indo 


356  HISTORIA  DO  BRASIL 


atraz  delles  a  bagagem  e  alguma  gente,  chegaram 
a  ajustar-se  com  a  cerca,  travando-sè  o  combate, 
que  durou  dois  dias,  sendo  afinal  a  cerca  tomada  de 
assalto. 

Seguiram  depois  os  portuguezes  para  as  margens 
de  um  rio  que  os  naturaes  chamavam  de  Arabé,  e 
conseguindo  elles  capturar  o  morubixaba  Ubauna,  que 
gozava  de  geral  estima  em  todas  as  tribus  da  serra 
de  Ibiapaba,  os  pobres  Índios  mandaram-lhcs  pi'opôr 
pazes,  ou  antes  prometteram  submetter-se  sob  a  con- 
dição de  que  .fosse  posto  em  liberdade  o  seu  querido 
Ubauna.  Este  offerecimento  foi  acceito  por  Pedro  Lopes 
de  Souza. 

Quiz  ainda  Pedro'  Coelho  marchar  para  o  Maranhão, 
porém  os  soldados  se  recusaram,  ameaçando  até  ma- 
tal-o ;  á  vista  disto  teve  que  regressar  para  a  Parahyba, 
onde,  tomando  mulher  e  filhos,  voltou  de  novo  ao 
Ceará.  Tendo  no  emtanto  o  governador  Pedro  Botelho 
lhe  recusado  auxilio,  por  saber  que  elle  havia  injusta- 
mente feito  grande  messe  de  captivqs  entre  os  Índios, 
tanto  inimigos  como  alliados,  não  poude  Pêro  Lopes 
levar  por  diante  a  sua  empreza,  mallogrando-sa  por 
conseguinte  esta  primeira  tentativa  de  conquista  do 
Ceará,  ou  antes  do  Jaguaribe,  nome  pelo  qual  era  então 
conhecida  aquella  região. 

Eis  como  Roberto  Southey  se  exprime  relativa- 
mente aos  últimos  esforços  de   Pêro  Coelho  : 

«  Pêro  Coelho  retirou-se  para  Jaguaribe,  então  da 
jurisdicção  de  Pernambuco.  Não  desanimado  ainda, 
para  aqui  transferio  a  sua  familia,  principiando  uma 
colónia,  que  chamou  Nova  Lusitânia,  e  uma  villa,  a 
que  deu  o  nome  de  Nova  Lisboa.  Procedeu,  porém, 
com  clamorosa  maldade  :  aos  Tapuyas,  que  havia  apri- 
sionado na  guerra,  vendeu  como  escravos,  e  juntando 
á  injustiça  a  ingratidão,  exerceu  a  mesma  tyrannia. 
sobre  os  que  lealmente  o  tinham  servido  como  al- 
liados.  Ia  este  proceder  de  encontro  as  leis  postas. 
As  leis  relativas  á  escravidão  haviam  sido  mitigadas, 
em  consequência  dos  excessos  commettidos  debaixo  da 
capa  da  sentença  geral  contra  os  Caethés,  decre- 
tando-se  que  nenhum  jndio  seria  reduzido  á  escravidão 
que  não  fosse  aprisionado  em  guerra  legitima,  e  que  os 
que  fossem  resgatados  aos  inimigos  recuperariam  a 
liberdade  no  fim  de  um  prazo  de  serviço  equivalente  ao 


SEGUNDA  EPOOHA  357 


preço  do  resgate.  Fáceis  eram  de  illudir  semelhantes 
disposições  :  a  caça  de  gente  tomava  o  nome  de  guerra 
legitima,  e  instigavam-se  hordas  a  reciprocas  hosti- 
lidades, para  fazerem  prisioneiros  que  podessem  vender, 
e  si  o  resgatado  captivo  não  morria  acabrunhado  de  tra- 
balho, antes  de  expirar  o  ternrio  de  sua  servidão,  como 
obteria  o  beneficio  da  lei,  ignorando-a  e  achando-se  á 
mercê  do  seu  senhor?  Informado  de  toclas  essas  tricas, 
revogou  Philippe  II  todas  as  leis  anteriores  sobre  tal 
matéria,  decretando  que  se  não  reduzissem  á  escravidão 
sinão  os  Índios  tomados  em  guerra  legitima,  e  que  por 
tal  si  teria  somente  a  que  fosse  ordenada  pela  coroa  com 
a  assignatura  real. 

«  Coelho  procedera  com  manifesta  infracção  dessa 
lei;  d'isso  se  deram   em  Madrid  queixas,  que  se  não 
poderam   mover  a    corte  a  punil-o,  fizeram  com   que 
esta  lhe  retirasse  todo  o  auxilio,  não  tardando  que  elle 
soffresse  as  consequências  dos  seus  crimes.  Os  amigos 
o  abandonaram  ;  aos  Tapuyas,  tinha-os  offendido,  e  tão 
desamparado  se  vio  afinal,  que  quasi  mais  vendido  do 
que  o  foram  os  que  elle  vendeu,  se  veio,  deixando  tudo, 
miseravelmente  a  pé  com  sua  mulher  e  filhos  pequenos^ 
parte  dos  qnaes  pereceram  de  fome,  fazendo   tão  las- 
timosa esta  sua  passaqem,   como  a  de  Manoel  de  Souza 
na   terra    do'^    Cafres  (1).    De    Madrid    chegaram    or- 
dens   de   pôr  em    liberdade  os   naturaes  que  elle  in- 
justamente  escravisara,    recompensando-os    pelo    que 
haviam  soffrido,   mas  ordens   destas   eram  mais   fre- 
quentemente expedidas  de  Hespanha,  do  que  cumpridas 
pelos  seus  governadores  ».  (1) 

O  iiidío  l§orobabo.' — Ao  chegar  Diogo  Botelho 
á  Bahia  despachou  para  a  Parahyba  o  indio  Sorobabe 
que,  com  os  seus  Potyguaras,  tinha  batido  os  Aymorés, 
ordenando-lhe  que  de  caminho  desse  no  mocambo  de 
negros  fugidos  que  existia  nos  palmares  de  Itapicurú. 
Assim  o  fez  Sorobabe  ;  com  a  sua  cabilda  matou  muitos 
e  aprisionou  outros  que  durante  a  viagem  vendeu,  com- 
prando com  o  dinheiro  adquirido  uma  bandeira,  tambor, 
cavallo  e  roupas,  afim  de  poder  entrar  triumphalmente 
em  sua  terra. 


(1)  Diogo  de  Campos,  p.  3.  Allude  á  historia  do  naufrágio  de 
Sepúlveda,  uma  das  tragedias  de  mais  enternecer  que  recorda 
a  historia. 


358  HISTOEIA   DO   BRASIL 


Ao  chegar  â  Parahyba,  porém,  tornou-se  muito  ar- 
rogante e  atemorisando-se  os  portuguezes  com  a  sua 
attitude  que  fazia  receiar  uma  explosão  a  qualquer  hora, 
prenderam-n'o  e  enviaraíun^o  a  Pernambuco  ;  d'ahi 
foi  transferido  para  a  Bahia  onde  esteve  enclausurado 
durante  algum  tempo,  sendo  afinal  remettido  para  Por- 
tugal. 

«  Foi  crescendo  tanto  o  medo  nos  portuguezes,  diz 
Frei  Vicente  do  Salvador  falando  de  Sorobabe,  que  o 
prenderam  e  mandaram  a  Alexandre  de  Moura,  capitão- 
mór  de  Pernambuco,  e  d'ahi  ao  governador,  os  quaes 
na  prisão  lhe  deram  por  muitas  vezes  peçonha  na  agua 
e  vinho, sem  lhe  fazer  algum  damno,  porque,  dizem  que, 
receioso  d'ella,  bebia  de  madrugada  a  sua  própria  ca- 
mará (1)  e  que  com  esta  triaga  se  preservava  e  defendia 
do  veneno;  finalmente  mandaram-n'o  para  Lisboa,  donde 
por  ser  porto  de  mar,  do  qual  cada  dia  vem  navios  para 
o  Brasil,  em  que  podia  tornar-se,  o  mandaram  aposentar 
em  Évora,  cidade,  e  ahi  acabou  a  vida,  e  com  ella  as 
suspeitas  de  sua  rebellião.  » 

Diogo  Botelho  e  as  missões. — Diogo  Botelho  > 
relativamente  á  questão  dos  Índios  pensava  de  mod*^ 
diverso  do  seu  antecessor,  e  por  isso  incorreu  logo  n^ 
desagrado  dos  jesuítas,  o  que  não  era  indifferente.  pois 
os  discípulos  de  Loyola  dominavam  Felippe  III,  de 
Castella,  por  intermédio  do  duque  de  Lerma,  primeiro 
ministro  do  monarcha  e  criatura  da  Companhia  de  Jesus. 

Diogo  Botelho,  porém,  não  attendeu  a  essa  conside- 
ração e  inaugurou  resolutamente  uma  politica  de 
reação,  oppondo-se  aos  aforamentos  in  perpetuam  que 
algumas  camarás  haviam  feito  aos  jesuítas  e  procurando 
extinguir  as  missões  de  indios  que  eile  considerava  no- 
civas á  •  segurança  da  colónia  e  contrarias  á  civilisação 
dos  próprios  indios.  Não  conseguio  levar  avante  a  sua 
ideia,  pois  os  padres  tramaram  logo  a  sua  queda. 

Diogo  Botelho  queria  que  os  indios  fossem  trazidos 
para  os  povoados,  embora  com  alguma  quebra  de  sua 
liberdade,  pois  não  só  poderiam  ser  utilii^ados  os  seus 
serviços,  como  ganhariam  convivendo  com  homens  mais 
civilisados.  Effectivamente  as  vantagens  eram  evidentes, 
tanto  para  os  aborígenes  como  para  o  desenvolvimento 


(1)  À  uriaa. 


SEGUNDA  EPOCHA  359 


do  paiz.  As  palavras  que  transcrevemos  em  itálico  dei- 
xam bem  patente,  porém,  quo  tal  systema,  si  fosse  ado- 
ptado seria  a  aífirmação  docaptiveiro  dos  Índios.  Assim, 
foi  melhor  que  os  jesuítas  vencessem . 

A  peMoa  da  baleia. — Foi  durante  o  governo  de 
Diogo  Botelho  que  se  iniciou  na  Bahia  a  lucrativa  indus- 
tria da  pesca  da  baleia. 

Inaugurou-a  o  biscainho  Pedro  de  Orecha  que  em 
1603  chegou  ao  Brasil  com  duas  n"aus  que  trouxe  de 
Hespanha.  Depois  de  ensinar  aos  portuguezes,  o  me- 
thodo  de  pesca  do  gorduroso  cetáceo,  carregou  de  azeite 
as  suas  embarcações,  obtendo  isenção  de  direitos  adua- 
neiros   para  a  inercadoria  e  voltou  para  a  Europa. 

A  pesca  da  bileia  desenvolveu-se  por  tal  forma  na 
Bahia  que  já  d'ahi  a  alguns  annos,  só  de  soldadas  com  a 
gente  que  nella  se  occupava,  durante  os  dois  mezes  da 
pescaria,  gastavam-se  oito  mil  cruzados. 

A  B*eucla  do  Bra^sH  euil60*^. — Segundo  Var- 
nhagen  a  renda  do  Brasil,  quando  Diogo  Botelho  assu- 
mio  as  rédeas  do  governo,  consistia,  além  da  do  estanco 
do  pau  brasil,  nos  dízimos,  que  ajunta  de  Portugal,  em 
Castella  dera  por  seis  at  nos  a  Gabriel  Ribeiro,  na  razão 
de  quarenta  e  dois  contos  de  réis  por  anno,  havendo 
sido  orçados  então  os  gastos  annuaes  nessa  quantia  e 
mais  3Õ1S867  ;  a  saber  :  Rio  Grande  do  Norte  3:22õSl80  ; 
Parahyba  2:255S070  ;  Itamaracá  398$660  ;  Pernimbuco 
12:528g417  ;  Sergipe  296S000  ;  Bahia  19:732S600  ;  Ilhéos 
40S000  ;  Porto  Seguro  40S000 ;  Espirito  Santo  353S120  ; 
Rio  de  Janeir  >  2:005S000  ;  S  Vicente  e  Santo  Amaro 
1:4Ô7S820. 

Quasi  todas  as  rendas  eram  arrematadas  :  a  da 
pesca  da  baleia  na  Bahia  de  Tod.  s  os  Santos  foi 
adjudicada  por  600$000  annuaes  ;  a  do  estanco  do  pau 
brasil  foi  arrr-matada  em   1602  por  21 :000S000. 

Conqaiísta  do  Coará  tentada  pelos  jesuí- 
tas.— A'  vista  do  insuccesso  da  tentativa  de  Peru  Lopes 
de  siibmetter  pela  força  o  gentio  do  Ceará,  cujo  baluarte 
mais  temeroso  era  a  alterosa  serra  de  Ibiapaba,  tenta- 
ram os  jesuitas  por  meios  oppostos,  isto  é,  pela  bran- 
dura e  pela  catechese,  tornal-os  dóceis  á  entrada  da  fó 
christá  e  da  civilisação  européa  na  região  que  habi- 
tavam. 

Valendo-se  os  jesuitas  do  que  lhes  concedia  o  alvará 
de  26  do  Julho  de  1596,  requereram  ao  governo  que  lhes 


360  HISTORIA  DO  BBASIL 

fosse  concedido  fundar  missões  na  serra  de  Ibipiaba,  no 
que  foram  attendidos  pela  metrópole  que  mandou  ordem 
ao  governo  para  collocar  á  disposição  desses  religiosos 
quarenta  Índios  e  artigos  de  resgate. 

Pelo  provincial  dos  jesuítas  foram  designados  os 
padres  Francisco. Pinto,  muito  versado  na  lingua  indí- 
gena e  Luiz  Figueira  para  se  encarregarem  da  difflcil 
empreza;  e  estes,  após  muitas  privações  soffridas  em  via- 
gem de  Jaguaribe  onde  os  deixou  um  navio  (1)  para  o 
norte,  conseguiram  alcançar  o  legar  onde  Martim  Soares 
Moreno,  um  dos  companheiros  de  Pêro  Lopes,  tinha 
outr'ora  estado. 

Ahi  recebeu-os   hospitaleiramente    os    Potyguaras. 
do  morubixaba  Amanay  que,  reunindo  os  caciques  da 
visinhança,  proporcionou  aos  padres  campo  vasto  ácate- 
chese. 

Foi  edificada  uma  grosseira  igreja,  levantadas  mui- 
tas cruzes  e  fundadas  novas  aldeias  que  não  ficavam 
distantes  do  sitio  em  que  hoje  se  acha  a  cidade  da  For- 
taleza. 

Dirigiram-se  em  seguida  os  missionários  para  a 
Ibiapaba  e  se  arrancharam  em  uma  aldeia  de  Tobajaras  ; 
estes  igualmente  abraçaram  o  christianismo  e  trataram 
carinhosamente  os  dois  jesuítas  e  seu  séquito. 

Conseguiram  mais  esses  fervorosos  apóstolos  da  fé 
a  affeição  dos  Tapuyas  que  se  reconciUaram  com  os  To- 
bajaras, porém,  tentando  ainda  abrandarem  a  feroz  tribu 
dos  Tacarijús,  foi  o  padre  FranciscoPinto  por  ella  assas- 
sinado, sendo  Luiz  Figueira  obrigado  a  fugir.  Assim 
mallogrou-se  essa  nova  tentativa  de  conquista  do  Ceará, 
inaugurada  aliás  com  tão  bons  auspícios. 

O  padre  Francisco  Pinto. — Emulo  de  Nóbrega 
e  Anchieta,  esse  martyr  da  religião  christã  ou  do  zelo 
pelo  prestigio  da  sua  ordem,  merece  por  seus  serviços 
e  por  sua  morte,    menção  especial  n'esta  historia. 

O  padre  FranciscoPinto  era  natural  da  ilha  Terceira, 
no  arcnipelago  dos  Açores,  e  filho  de  pais  nobres  com 
os  quaes  se  embarcou  para  o  Brasil,  ainda  em  tenra 
idade.  Gosou  a  sua  meninice  em  Olinda  e  d'ahi  passou 
para  a  Bahia  entrando  para  a  Companhia  de  Jesus,  cm 
1568,  isto  é,  quando  contava  dezesete  annos. 

(1)  Este  barco  ia  fazer  carregamento  de  sal  na  fóz  do  Jagua- 
ribe onde  existiam  salinas. 


SEGUNDA  EPOOHA  361 


Depois  de  ordenado  foi  primeiramente  missionário 
das  aldeias  jà  convertidas,  porém  logo  teve  desejos  de 
emprehendera  catechese  nas  hordas  selvagens  e  cnegou 
a  fazer  cinco  entradas  pelo  sertão  em  as  quaes  christia- 
nisou  muitos  índios  e  fundou  grande  numero  de  al- 
deias. 

«Sendo  humilde  por  virtude,  diz  o  padre  José  de  Mo- 
raes, que  o  biographou,  foi  prudente  por  estudo  e  aílavel  . 
e  caritativo  por  natureza,  especialmente  com  os  Índios, 
com  os  quaes  tinha  uma  tão  especial  e  admirável  graça, 
que  apezar  d.i  sua  mesma  dureza  e  barbaridade  lhes 
roubava  os  corações  e  attrahia  as  vontades,  conduzindo 
muito  para  esta  desusada  correspondência  a  grande  in- 
telligencia  da  lingua  dos  naturaes,  em  que  era  peritis- 
simo,e  nas  suas  praticas  o  mais  eloquente,  pela  destreza 
da  phrase  e  pela  naturalidade  das  semelhanças.» 

A  morte  de  Francisco  Pinto  teve  logarallde  Janeiro 
de  1608.  Foi  enterrado  pelo  seu  desolado  companheiro  na 
base  da  gigantesca  serra  da  Ipiapaba,  sendo  depois 
os  seus  ossos  tr  isladados  piedosamente  pelos  Índios  de 
Jaguaribe  para  uma  de  suas  igrejas. 

Contrastando  singularmente  pelo  emprego  de  meios 
suasórios  e  brandos  e  pela  bondade  com  a  brutalidade  ea 
crueldade  de  Pêro  Coelho  e  seus  sequazes,  a  missão  de 
Francisco  Pinto  ao  Ceará  é  um  i  das  mais  bellas  paginas 
da  historia  dos  jesuítas  no  Brasil. 

Lei  contra  estranj^eiros. — As  lutas  com  quasi 
toda  a  Europa,  nas  quaes  a  Hespanha  achava-se  en- 
volvida e  as  repetidas  investidas  de  navios  hollandezes, 
írancezes  e  inglezes  contra  as  povoações  do  littoral  bra- 
sileiro, determinaram  Felippe  III  de  Castella  a  promulgar 
ainiqualei  de  18  de  Março  do  1605,  pela  qual  qualquer 
estrangeiro  que  chegasse  ao  Brasil  deveria  ser  summa- 
riamente  coudemnado  á  morte  e  confiscados  todos  os 
seus  bens.  Os  que  já  se  achavam  residindo  no  Brasil  de- 
veriam, pela  mesma  lei,  ser  internados  a  doze  léguas  da 
costa. 

Òs  Judeus.  —  Igualmente  os  judeus  e  christãos 
novos,  nome  que  davam  aos  que  pelo  christianismo  ha- 
viam renegado  o  judaísmo,  foram  victimas  de  muitas  per- 
seguições 110  Brasil, rate  que,  reunindo-se  os  da  mesma 
condição,  na  metrópole,  em  1587,  oífereceram  para  as  ur- 
gências do  Estado  um  milhão  e  setecentos  mil  cruza- 
dos, afim  de  obter  licença  para  commerciar  livremente 


362  HISTORIA  DO   BEASIL 

na  Hespanha,  Portugal  e  colónias.  Então  cessaram  por 
algum  tempo  as  perseguições,  sendo  até  prohibido  in- 
jurial-os  com  os  nomes  de  judeus,  christão  novos,  con- 
fessos   e  marranos. 

Couselho  da  índia. —  Em  25  de  Junho  de  1604 
foi  creada  pelo  governo  da  metrópole  uma  repartição 
com  o  nome  de  Conselho  da  índia,  á  qual  devia  ser 
dirigida  toda  a  correspondência  dos  governadores,  bis- 
pos, ministros  e  mais  autoridades  do  Brasil,  competin- 
do-lhe  03  provimentos  dos  bispados,  ofificios  de  justiça, 
fazenda  e  guerra,  os  despachos  de  mercês  dos  serviços 
prestados  e  a  expedição,  em  nome  do  rei,  das  diversas 
provisões . 

Nenhum  navio  podia  partir  de  Lisboa  para  o  Brasil 
sem  man.dar  antes  ao  mesmo  conselho  buscar  os  despa- 
chos e  chegou-se  a  ordenar  que  não  se  guardasse  man- 
dado algum  que  não  viesse  por  intermédio  delle,  e  que  a 
própria  Mesa  de  Consciência  não  tivesse  nos  negócios 
do  Brasil  ingerência  alguma,  sinão  nos  artigos  de  defun- 
tos e  ausentes,  redempção  dos  captivos  e  jurisdicção  con- 
tenciosa entre  as  partes. 

O  Conselho  da  índia, que  com  taes  prerogativas  cons- 
tituia  se  em  potencia  soberana  para  a  administração  do 
Brasil,  teve  curta  duração,  pois  já  em  1614  achava-se 
abolido. 

Diogo  Botelho  terminou  o  seu  governo  a  22  de 
Agosto  de  1606.  Diz  Var.ihagen  que  esse  governa- 
dor c(  foi  um  dos  magistrados  de  mais  intelligencia  e 
energia  que  vieram  ao  Brasil». 

Effectivamente  Diogo  Botelho  procurou  moralisar  os 
costumes  e  reprimir  a  licença  reinante,  esforçou-se  por 
melhorar  a  justiça  e  a  arrecadação  das  rendas  e  poz  em 
pratica  medidas  acertadas  para  a  conveniente  fortificação 
da  costa.  Além  disso,  mostrou-se  superior  ao  seu  tempo, 
por  uma  tal  ou  qual  irreligião,  na  verdade  admira  velem 
epocha  de  tanto  fanatismo:  combateu  tenazmente  os  je- 
suítas, trabalhou  para  que  não  se  fundassem  mais  con- 
ventos de  religiosos  no  Brasil  e  disputou  ao  bispo  certas 
prerogativas. 


CAPITULO  VI 

GOVERNO  DE  D.    DIOGO  DE    MENEZES 
ED.  FRANCISCO  DE  SOUZA 


Para  substituir  Diogo  Botelho  no  governo  geral  do 
Brasil  foi  nomeado  em  22  de  Agosto  de  1606  D.  Diogo 
de  Menezes  e  Siqueira  que  só  a  31  de  Maio  do  anno  se- 
guinte partio  de  Lisboa. 

Pouco  depois  de  chegado  ao  Brasil  soube  D.  Diogo 
de  Menezes  ter  o  governo  da  Metrópole,  ou  antes  o  Con- 
selho da  Índia  deliberado  dividir  a  aolonia  em  dois  go- 
vernos como  já  em  1574,  se  tinha  praticado,  embora 
com  mau  resultado. 

Acreditamos  que  a  reversão  ao  systema  dual  de  go- 
verno no  Brasil,  não  recommendavel  pelos  exemplos  do 
passado,  ó  um  producto  exclusivo  da  manhosa  politica 
dos  jesuítas,  omnipotentes  na  corte  de  Felippe  III  de 
Castella, 

Sabiam  elles  queD .  Diogo  de  Menezes  era  um  con- 
tinuador fiel  da  politica  de  Diogo  Botelho,  seu  antecessor, 
o  qual  tão  rudemente  hostilisara  a  Companhia  no  plano 
que  ella  havia  formado  de  fortalecer-se  no  Brasil  com  o 
domínio  espiritual  e  material  dos  Índios. 

Era  preciso,  por  conseguinte,  restringir  o  poder  de 
D .  Diogo  de  Menezes  e  foi  o  que  fizeram . 

Ficou  o  mesmo  Menezes  com  o  governo  das  capita- 
nias septentrionaes  e  foi  nomeado  para  as  capitanias  do 
sul  o  ex-governador  geral  D.  Francisco  de  Souza, que  era 
tão  sjMiipathico  aos  discípulos  de  Loyolae  popuhirissimo 
no  Brasil,  apezar  dos  factos  delictuosos  que  se  lhe  impu- 
tavam; 

Priuicirosi  actos  de  D.    Diogo  de  Menezes. 

—  Antes  de  partir,  D.  Diogo  de  Menezes  recebeu  do  go- 
verno da  metrópole  ordem  de  so  dirigir  primeiramente  a 
Pernambuco. 

Os  ventos  obrigaram-n'o  a  arribar  ao  Rio  Grande  do 
Norte,  o  que  lhe  foi  de  proveito,  pois  teve  ensejo  de  ver 
o  lastimoso  estado  em  que  se  actiava  a  população  da- 
quella  capitania,  desprovida   totalmente  de  justiça,    e, 


364  HISTOEIA  DO  BRASIL 


procurando  remediar  essa  falta,  creou  um  provedor  e 
um  tabellião  e  depois  mandou  alguns  individues  capazes 
para  exercerem  os  diversos  cargos  públicos. 

Igualmente  providenciu  sobre  a  fortificação  mais 
perfeita  da  costa  e  seguio  para  Pernambuco  onde  tam- 
bém deu  ordens  para  a  defensa  dos  portos  dessa  capita- 
nia, bem  como  da  costa  da  Parahyba,  terminando-se  du- 
rante a  sua  estadia  em  Pernambuco  as  obras  do  forte  do 
Picão  ou  de  S.  Francisco,  começado  no  governo  de  D. 
Francisco  de  Souza  e  situado  na  barra  do  Recife. 

Nomeou  o  desembargador  Sebastião  de  Carvalho 
para  syndicar  dos  descaminhos  de  dinheiros  públicos, 
em  os  quaes  estavam  compromettidos  diversos  indiví- 
duos de  alta  posição  social,  inclusive  o  joven  donatário 
^  Duarte  de  Albuquerque,  e  'activou  a  cobrança  da  finta 
*  dos  christãos  novos  e  da  imposição  dos  vinhos  que  a 
camará  de  Olinda  estabelecera  em  1599. 

A   Relação.  —  Ao  chegar  á  Bahia  tratou  imme- 

diatamente  D. 'Diogo  de  Menezes  de  installar  o  Tribunal 
da  Relação,  aposentando  primeiro  o  respectivo  chancel- 
ler  e  mais  desembargadores  que  ahi  se  achavam  desde 
1609  e  empossando  os  novos. 

Para  chanceller  da  nova  Relação  veio  de  Portugal 
nomeado.  Gaspar  da  Costa,  o  qual,fallecendo  em  1610,  foi 
substituído  pelo  juiz  dos  fetiosda  coroa  e  antigo  ouvidor 
da  alfandega  de  Lisboa  Ruy  Mendes  de  Abreu. 

O  distincto  publicista  Martins  Júnior  na  sua  excel- 
lentQ  Historia  do  Direito  Nacional  assim  explica  os  mo- 
tivos que  determinaram  acreação  da  Relação  e  bem  as- 
sim as  razões  que  limitaram  á  existência  desse  tribunal: 

«  Uma  vez  creado  o  Conselho,  primeiramente  deno- 
minado da /ncíía  e  depois  Ultramarino,  descriminadas 
as  attribuições  delle  e  as  da  Mesa  de  Conciencia  e  Or- 
dens, devia  Portugal  providenciar  convenientemente 
sobre  a  organisação  judiciaria  doBrazil,approximando-a 
do  typo  existente  no  reino.  Si  na  metrópole  superpu- 
nham-se  aos  juizes  ordinários,  aos  juizes  de  fora,  aos 
corregedores  e  aos  outros  magistrados  especiaes  de  pri- 
meira instancia  tribunaes  como  o  Desembargo  do  Paço,  a 
Casa  do  Civel  (depois  Relação  do  Porto),  e  a  Casa  de  Sup- 
plicação— estabelecida  assim  uma  hierarchia  judiciaria 
três  degraus  para  o  processo  e  julgamento  das  causas;  na 
colónia  portugueza  da  America  nãj  podiam  as  cousas  da 
justiça  ficar  reduzidas  á  simples  jurisdicção  dos  ouvi- 


SEGUNDA  EPOOHA  365 


dores  e  provedores  geraes,  ladeados  pelos  governadores 
e  capitães-móres.  providos  também  do  direito  de  julgar. 
Havia  necessidade  aqui  de  um  tribunal  de  segunda  ins- 
tancia que  facilitasse  os  recursos  de  direito  a  todos 
quantos  tivessem  de  comparecer  em  juizo. 

«  Tal  necessidade  fora  reconhecida  desde  fins  do 
século  XVI,  pois  em  1587  havia  sido  creada  para  o  Brazil 
uma  Relação,  com  sede  na  Bahia, e  com  regimento  espe- 
cial datado  de  25  de  Setembro  d'aquelle  anno.  Devia  esse 
tribunal  compôr-se  de  dez  ministros,  tendo  o  titulo  e 
funcções  de  desembargadores  do  aggravo,  desembarga- 
dores extravagantes,  chanceller,  ouvidor  geral,  juiz  dos 
feitor,  provedor  dos  orphãos  e  resíduos,  provedor  dos 
feitos,  promotor  da  justiça.  Todos  estes  logares  foram 
providos,  e  dadas  foram  também  as  providencias  para 
installar-se  a  nova  Relação.  Mas  o  certo  é  que,  de  todos 
os  desembargadores  nomeados,  apenas  três  chegaram 
ao  Brasil,  e  que,  a  vista  disso,  não  vingou  a  constituição 
pratica  do  tribunal. 

«  Só  em  1609,  com  effeito,  teve  realidade  o  pensa- 
mento contido  no  decreto  de  1587.  Mediante  reclamação 
do  governador  geral  Diogo  Botelho,  em  Janeiro  de  1505, 
requisitou  o  Conselho  da  índia  do  Desembargo  do  Paço 
os  «  despachos  e  provisões  respectivas  dos  magistrados 
mandados  ao  Brazil»  por  occasião  de  crear-se  a  Re- 
lação. 

«  Verificado  então  que  novos  despachos  e  provi- 
mentos se  faziam  necessários,  deliberou-se  não  só  ex- 
pedil-os  como  também  organisar  outro  regimento  para  o 
tribunal  de  que  se  tratava.  Teve  tal  regimento  a  data  de  9 
de  Março  de  1569  e  em  Junho  do  mesmo  anno  chegavam 
á  Bahia  os  desembargadores  nomeados.  A  Diogo  de  Me- 
nezes, governador  em  exercício  a  esse  tempo  coube  a 
honra  de  installar  a  Relação,  —  que  se  compunha,  como 
a  planejada  anteriormente,  de  dez  membros,  a  saber:  um 
chanceller,  três  aggravistas,  um  ouvidor  geral,  um  juiz 
dos  feitos  da  coroa  e  fazenda,  um  procurador  da  coroa  e 
promotor  da  justiça,  um  provedor  de  defuntos  e  resí- 
duos, edois  desembargadores  extravagantes. 

«  Ao  contrario  do  que  se  devia  suppor,  o  tribunal 
superior  e  collectivo  creado  para  o  Brasil  não  ficou   ins- 
tituído definitivamente   e  nem  siquer  teve  longa  vida  . 
Por  alvará  de 5de  Abril  de  1626  foi  elle  extincto,  voltando 
aorganisação  judiciaria  colonial  ao  estado  primitivo. 


366  HISTORIA   DO   BRASIL  ' 

«  Qual  teria  sildo  a  causa  effieiens  dessa  extincção  ? 
Não  é  fácil  encontral-a.  Varnhngen  julgou  descobril-a 
nos  conflictos  de  alf/uns  desembargadores  com  o  bispo  e 
os  eclesiásticos  e  na  occiípação  da  Bahia  pelos  hollan- 
dezes.  Nós  prefarimos  atribuil-a  a  um  dos  muitos  re- 
cuos da  corte  portugueza,  quando  vinham  a  pello  medi- 
das de  autonomia  colonial,  que  ella  encampava  forçada- 
mente agora,  para  repellir  com  incoherencia  daqui  a 
pouco. 

«E'  certo  que  escriptores  como  o  autor  dos  Diálogos 
das  grandezas  do  Brasil  e  o  da.  Ra:^ão  do  Estado  do  Bra- 
sil fizeram-se  ecbo  de  queixas  das  p;)pulações  contra  a 
Relação  da  Bahia,  produzindo  varias  allegações  contra 
ella,  e,  entre  outras  cousas,  dizindo  o  ultimo  que  na 
própria  sede  do  governo  gerai  tinha  a  Relação  «  por 
cousa  pesada  e  não  muito  conveniente,  assim  pela  natu- 
reza dos  pleitos,  pelo  pouco  que.  havia  que  fazer  nel- 
les,  como  pela  quantidade  de  letras  que  se  ficaram 
anhidindo  aos  muitos  estudantes,  clérigos  e  frades,  que 
já  havia.» 

«Mas  a  essas  manifestações  de  hostilidade  se  pôde 
oppor  a  da  Camará  da  Bahia  que,  em  carta  de  27  de 
Janeiro  de  1610,  dirigida  ao  rei,  agradeceu  como  grande 
favor  o  ter  levado  avante  a  installação  do  tribunal,  alle- 
gando  que  anteriormente  o  governador,  ligado  com  o  ou- 
vidor, dava  por  assim  di^er  a  lei^  etc... 

«  A  opinião  da  Camará  tinha  peso.  Mais  peso,  porém, 
tinham  as  necessidades  da  lógica  administrativa  e  as  im- 
posições do  critério  politico.  Umas  e  outras  determina- 
ram o  restabelecimento  da  Relação  extincta,  —  restabe- 
lecimento que  tevelogar  em  12  de  Setembro  de  1652.» 

Mova.  Ouvidoria.  —  Juntamente  com  a  nova  Re- 
lação foi  creada  uma  ouvidoria  para  o  Rio  de  Janeiro  e 
Minas,  sendo  para  ella  nomeado  Sebastião  Parui  de 
Brito,  a  cujo  successor,  Amâncio  Rebello,  deu-se  a  õ  de 
Junho  de  1619  um  regimento. 

\  legiiilação.  — Em  1683  começaram  a  vigorar 
no  Brasil  as  Ordenações  Filippinas,  nesse  mesmo  anno 
publicadas  na  metrópole.  Consistiam  ellas  em  uma 
reformados  cinco  livros  á^'^  Ordenações  Manuelinas  ,íq\íq, 
pelo  chauceller  mór  Ruy  Boito,  auxiliado  por  diversos 
jurisconsultos  illustres. 

Regiiiicuto  do  capitão  da  Parahyba.  — 
Em  9  de  Maio  de  1600  deu  a  corte  a  Francisco  Coelho  de 


SEGUNDA  EPOCHA  367 


Carvalho,  nomeado  capitão  da  Parahyba  em  27  de  Se- 
tembro de  1608,  por  nove  annos,  em  attenção  ao  serviços 
prestados  por  seu  pai  Feliciano  Coelho,  um  regimento 
constante  de  dezesete  capitulos,  pelo  qual  a  capitania  de 
Itamaracá  ficava  provisoriamente  subordinada  á  da  Pa-^ 
rahyba. 

Por  esse  mesmo  regimento  recommendava  o  rei 
com  muito  empenho  a  civilisação  dos  Índios,  o  reparo 
das  fortalezas,  o  cuidado  com  as  suas  guarnições,  o  au- 
gmento  da  cultura  das  terras,  devendo  informar  acerca 
das  que  se  considerassem  devolutas.  Ao  capitão  foi  con- 
cedida alçada  no  eivei,  nos  bens  de  raiz,  até  dezeseis  mil 
réis,  e  nos  moveis  até  vinte;  e  no  crime,  nospeÕes  egen- 
tios  e  escravos  até  dois  annos  ds  degredo  e  açoutes  ;  po- 
dendo igualmente  impor  até  dez  cruzados  de  multa. 
Também  lhe  foi  concedido  o  prover  interinamente,  por 
seis  mezes,  os  officios  da  justiça  e  fazenda  que  vagas- 
sem, sendo-lhe  muito  recommendado  que  não  se  in- 
tromettesse  nas  attribuições  dos  ofíiciaes  de  fazenda, 
contentando-se  unicamente  com  o  admoestal-os  e  tam- 
bém que  respeitasse  e  mantivesse  3.  liberdade  das  elei- 
ções das  câmaras,  esforçando-se  por  harmonisar  as  par- 
cialidades. 

Queixas  do  i^overnador  contra  o  bispo  e 
contra  os  jesuítas.  -  Em  virtude  de  uma  questão  de 
etiqueta  em  uma  precisão  de  Corpus  Chrisii,  que  se  rea- 
lisou  em  Pernambuco  a  5  de  Junho  de  1608,iiidispoz-se  o 
bispo  com  D.  Diogo  de  Menezes,  sendo  isso  o  inicio  de 
desacatos  de  parte  a  parte  e  desrespeitos  reciprocos  dos 
poderes  espiritual  e  temporal. 

Os  jesuitas  que  não  viam  com  bons  olhos  o  gover- 
nador, incorporaram-se  ao  bispo  e  tal  foi  a  balbúrdia 
produzida  por  essas  rivalidades  que  o  bispo  chegou  a 
excommungar  um  desembargador,  o  qual  appellou  para 
a  Relação,  que  o  absolveu. 

Diogo  de  Menezes  escreveu  repetidas  vezes  ao  rei  e 
nas  suas  cartas  accusava  abertamente  o  bispo  como  pre- 
varicador e  homem  que  acima  de  tudo  collocava  o  di- 
nheiro, não  se  lhe  importando  bulias,  provisões,  nem  al- 
varás régios. 

Igualmente  queixou-se  amargamente  dos  jesuitas, 

Sedindo  ao  rei  que  os  reprehendessee  ponderando  acerca 
a  «  má  natureza  desses  padres  e  pouca  rasão  com  que  se 
queixavam  dos  governadores  passados,   e  quão  pouca 


368  HISTORIA  DO  BEASIL 

verdade  falavam  em  tudo,  não  tratando  mais  quede  curar 
suas  queixas  e  offuscar  a  verdade (1).» 

Colouisação  do  Ceará.  —  Coube  a  Diogo  de 
Menezes  vêr  durante  o  seu  governo  roalisada  a  colonisa- 
ção  do  Ceará,  empreza  essa  que  sem  resultados  úteis 
consumio tantos,  esforços  durante  a  administraçãode  seus 
antecessores. 

Em  12  de  Março  de  161á  indicou  á  corte  a  creação  de 
três  novas  capitanias:  a  primeira  no  Jaguaribe  do  Ceará; 
a  segunda  no  porto  de  Camucim;  e  a  terceira  no  Mara- 
nhão e  em  Novembro  desse  mesmo  anno  recebeu  D. 
Diogo  ordens  para  fomentar  a  povoação  do  Maranhão, 
emprehendimento  esse  que  foi  commettido  pelo  seu  suc- 
cessor  Gaspar  de  Souza. 

A  primeira  feitoria  do  Ceará  pertence,  no  emtanto, 
ainda  ao  governo  de  Diogo  de  Alenezes  e  Siqueira,  fun- 
dando-a  Martim  Soares,  sobrinho  do  sargento-mór. 

Martim  Soares,  que  fora  companheiro  de  Pêro  Coe- 
lho na  primeira  tentativa  de  colonisação  dessa  região, 
ganhara  a  affeição  do  indio  Jacauna,  irmão  do  Poty  (o 
famoso  Íncola  que  se  celebrisou  na  historia  de  nossa  pá- 
tria com  o  nome  de  D.  António  IFelippe  Camarão)  e  este 
deliberou  acompanhal-o  com  toda  a  sua  cabilda  e  fixar- 
se  á  margem  do  rio  Ceará. 

Estava  pois  iniciado  o  povoamento,  e  sabendo  o 
mesmo  Martim  Soores  que  se  achava  no  porto  do  Ceará 
ou  de  Mucuripe  um  navio  írancez,  sarapintou-se  e  trajou- 
se  á  moda  selvagem,  conseguindo  com  esse. estratagema 
illudir  os  francezes  e  fazer  naufragar  a  embarcação, 
aprisionando  todos  os  tripolantes. 

Nesse  mesmo  iogar  foi  levantado  un  forte  e  uma  her- 
mida,  com  a  invocação  de  Nossa  Senhora   do  Amparo. 

Terminação  do  governo  de  D.  Diogo  de  Me- 
nezes. —  D  Diogo  de  Menezes  passou  o  governo  ao 
seu  successor  Gaspar  de  Souza  em  1612  e  durante  o 
tempo  que  administrou  o  norte  do  Brasil,  além  do  po- 
voamento do  Ceará,  foram  realisados  alguns  trabalhos 
de  importância,  taes  como  sejam  a  exploração  completa 
de  toda  a  costa  da  capitania  de  Porto  Seguro,  desde  a 
ponta  de  Corumbabo  até  o  rio  das  C^iravellas,  compre- 
hendendo  os  baixos  dos  Abrolhos,  trabalho  esse  que  foi 


(1)  Carta  de  20  de  Janeiro  de  1610. 


SEGUinJA  EPOOHA  369 


executado  pelos  pilotos  António  Vicente  e  Valério  Fer- 
nandez ;  foi  rtielhorado  o  contracto  das  baleias  e  introdu- 
zidos alguns  aperfeiçoamentos  na  construcção  dos  en- 
genhos de  canna,  sendo  adoptados  os  de  três  cylindros 
verticaes,  os  quaes,  por  meio  de  entrosas,  gyravam  com 
a  rotação  do  centro;  a  construcção  do  forte  de  S.  Diogo, 
na  Bahia;  e,  segundo  presume  Varnhagen,  «as  suas 
informações  devem  ter  sido  provavelmente  devidas  â 
providencia  tomada  pela  metrópole  para  que  os  serviços 
prestados  no  Brasil  viessem  aqui  mesmo  a  ser  recompen- 
sados, o  que  contribuio  para  estabelecer  certa  unidade 
colonial,  que  depoisseaugmentou  com  a  guerra  hoUan- 
deza.» 

Foi  igualmente  por  sua  iniciativa  que  se  escreveu  o 
livro  da  Razão  do  Estado  do  Brasil,  tão  copioso  em  in- 
formações e  dados  estatisticos  sobre  o  Brasil . 

Esse  livro  que  não  traz  o  nome  do  autor,  foi,  segundo 
pensam  alguns,  elaborado  por  Bento  Teixeira. 

As  capitanias  em  161!3,  conforme  o  aRazito 
do  Estado  do  Brasil. D  —  São  do  livro  a  que  nos  re- 
ferimos no  paragrapho  anterior  a  exposição  que  em  se- 
guidn  fazemos  sobre  o  adiantamento  das  diversas  capi- 
tanias na  primeira  e  segunda  década  do  seculs  XVII. 

Rio  Grraiide  do  íVorte.  —  Possuia  apenas  80  mo- 
radores brancos,  dos  quaes  somente  25  habitavam  a  ca- 
pital. Os  seus  limites  eram  ao  norte  pelo  rio  Assú, 
então  chamado  Guarahy;  contava  dezeseis  aldeias  de 
Índios  e  uma  em  Cuuhaú,  pertencente  a  Jeronymo  de  Al- 
buquerque. Fazi?!-se  nella  alguma  criação  de  gadoe  ex- 
trahia-se  sal  de  Guamaré.  O  forte  dos  Tri  s  Reis  Magos 
possuia  nove  peças  de  bronze,  e  dezesete  de  ferro,  mal- 
tradas;  a  sua  guarnição  compunha-sede  setenta  e  cinco 
soldados,  com  os  competentes  oíTiciaes. 

Paraiiyba  do  Morte.  — A  sua  população  orçava 
por  700  moradores  brancos.  Os  franciscanos  e  benedicti- 
nos  administravam  nessa  capitania  oito  aldeias  de  indios. 
Possuiadez  engenhos,  cujaproducção  em  assucar  rendia 
ao  dizimo  cerca  de  quatro  contos.  O  forte  do  Cabedello 
tinha  onze  peças,  dois  camellos  e  quatro  falcões  de  dado 
pedreiros.  A  força  existente  na  Parayba  do  Norte  com- 
punha-se  de  trezentos  arcabuzeiros,  divididos  em  duas 
companhias,   e  trinta  soldados  decavailaria. 

Itaiuaracá. — Possuia  500  morad(^res  brancos,  al- 
guns bastantes  ricos,  e  cinco  aldeias  de  indios,  governados 

2^ 


370  HISTOEIA  DO  BEASIL 


pelos  jesuítas,  incluindo  a  do  Boi-Assú  que  contava  cinco 
mil  frecheiros.  Guarneciam-na duzentos  e  cincoento  sol- 
dados de  infantaria  e  vinte  de  cavallaria.  Possuia  dez 
engenhos,  e  a  sua  receita  orçava  por  2:400S000. 

Pernambuco.  —  Tinha  4.000  moradores  brancos. 
Possuia  seguramente  90  engenhos,  elevando-se  a  sua 
receita  total  a  17;360S000.  O  Forte  da  Barra  era  guarneci- 
do por  dezesete  peças  de  bronze  e  nove  de  ferro,  e  o  de 
Olinda  por  quatorze  destas  ultimas,  de  pequeno  calibre. 

Sergipe. — Tinha  por  limite,  ao  sul,  o  rio  Real  e 
achava-se  ainda  muito  pouco  povoada.  Alem  das  po- 
voações que  ahi  levantara  Christovão  de  Barros, tinha 
mais  duas  com  dez  soldados  de  guarnição.  A  receita 
do  gado  e  outras  era  apenas  de580$000;  o  alardo  dava 
somente  cento  e  cincoenta  homens  de  ordenanças . 

Bailia. — Tinha  por  limite,  ao  sul,  o  rio  Jaguaripe. 
Possuia  cincoenta  engenhos  e  nos  differentes  fortes, 
duas  portas  da  cidade  e  estancia  dos  Índios  encontra vam- 
se  umas  vinte  e  tantas  bocas  de  fogo,  de  todas  as  espécies 
6  calibres,  desde  um  canhão  de  bronze  de  vinte  e  quatro 
até  os  pequenos  sacres  pedreiros,  camellos  e  um  sel- 
vagem, além  de  outros  oito  canhões  armazenados.  Ao 
alardo  dava  na  cidade  tresentos  homens  de  ordenanças 
e  mais  oitocentos  no  Recôncavo,  bem  como  cincoenta  de 
cavallaria.  A  guarnição  de  linha  ou  de  presidio  compu- 
nha-se  de  duas  companhias  de  oitenta  soldados  cada 
uma  além  dos  respectivos  oíiiciaes .  A  suas  rendas  eleva- 
vam-seal8:000S000. 

llliéos.  —  Tinha  por  limite,  ao  sul,  o  Rio  Graude, 
junto  do  Patipe.  As  suas  fortificações  reduziam-seaum 
reducto  com  dois  falcões  e  uma  trincheira  com  mais 
quatro  de  bronze.  Possuia  cinco  engenhos  e  a  sua  po- 
pulação não  passava  de  cento  e  sete  moradores  brancos. 
A  receita  orçava  por  260S000. 

Porto-Sleg^uro . — Terminava,  ao  sul,  no  Cricaré 
ou  S.  Matheus.  Possuia  um  engenho  e  era  a  mais  pobre 
das  capitanias .  Tinha  um  forte  com  duas  peças  de  ferro, 
e  este  era  guarnecido  por  dez  soldados  e  um  cabo. 
A  receita  era  apenas  de  80S000  annuaes. 

D.Francisco  de  Lionza  mo  j»overno  fias  Ca- 
pitanias do  Sul. —  Em  novembro  de  lb06  foi  D. 
Francisco  de  Souza,  por  influencia  dos  jesuítas,  nomeado 


SEGUNDA  EPOCHA  371 


governador  das  capitanias  meridionaes  e  superiten- 
dente  das  minas. 

A  elle  foram  facultadas  todas  as  vantagens  que  já  ti- 
nham sido  concedidas  a  Gabriel  Soares  e  outros  mais, 
como  a  do  titulo  de— grande— com  uma  guarda  de  vinte 
homens,  efaculdade  de  poder  nomearvarios  empregados, 
com  os  competentes  ordenados,  tendo  além  disso  o  rei 
lhe  feito  a  promessa  de  que,  quando  as  minas  viessem  a 
ser  productivas,  lhe  seria  conferido  o  titulo  de  marquez 
do  primeiro  logar  que  povoasse,  e  a  renda  de  cinco  por 
cento,   com  tanto  que  esta  excedese  de  30,000  cruzados. 

A  não  ser  o  que  se  refere  ás  minas  não  menciona  a 
historia  faclo  nenhum  de  importância,  nas  capitanias  do 
sul,  durante  o  governo  de  D.  Francisco  de  Souza,  o  qual 
falleceu  em  11  de  Junho  de  1811,  deixando  por  successor 
D.  Luiz,  seu  segundo  filho. 

As  iiiiiiasí.  —  Embora  nomeado  superintendente 
geral  das  minas,  D.  Francisco  de  Souza  pouco  adiantou 
a  exploração  das  mesmas.  As  que  já  tinham  sido  des- 
cobertas davam,  então,  rendimento  muito  escasso  e  as 
grandes  minas  do  planalto  central  ainda  não  tinham 
sido  reveladas  pelos  bandeirantes  paulistas. 

Comtudo  não  declinava  a  febre  do  ouro  nos  colonos, 
e  as  expedições  ao  senão  tornavam-se  cada  vez  mais 
amiudadas,  embora  por  o  único  fructo  que  delias  se 
tirasse,  nessa  epocha,  fosse  o  conhecimento  perfeito  do 
interiro  do  paiz. 

De  D.  Francisco  de  Souza  sabe-se-  aponas  que,  a 
respeito  de  mineração,  sanccionou  um  contracto  entre 
seu  filho  primogénito  D .  António  e  o  provedor  das 
minas,  Diogo  de  Quadros,  pelo  qual  se  creava  uma 
nova  fabrica  de  ferro,  embora  trouxesse  da  Europa,  pago 
pelo  Estado,  um  mineiro  de  ouro,  como  seu  competente 
ensaiador,  dois  de  prata,  dois  de  ferro,  um  de  esmeral- 
das, outro  de  salitre  e  um  de  pérolas. 


CAPITULO  VII 

GOVERNO  GERAL  DE  GASPAR  DE  SOUZA 

Em  9  de  Abril  de  1612  foi  revogada  a  provisão  que 
havia  dividido  o  Brazil  em  dois  governos  e  nomeado 
Gaspar  de  Souza  para  o  cargo  de  governador  geral . 

Pelo  tempo  de  sua  nomeação  já  Gaspar  de  Souza 
se  achava  com  a  administração  das  capitanias  do  norte, 
em  substituição  a  Diogo  de  Menezes. 

•f acquesi  Rifaiilt  e  Charles  doM  Vaux  nn 
llaraiihAo. — Em  1594  um  aventureiro  fraucez,  Jac- 
ques  Riffault,  traficava  em  productos  do  Brasil  nas  cos- 
tas septentrionaes  do  paiz,  que  de  ha  muito  conhecia,  e 
onde  até  possuia  a  amizade  de  um  morubixaba  presti- 
gioso— O  vyrapive . 

Dos  três  navios  com  que  nesse  anno  veio  ao  Brasil, 
talvez  com  o  intento  de  fundar  uma  colónia  nas  regiões 
do  norte,  perdeu-se  o  melhor,  vendo-se  o  aventureiro 
obrigado  a  aportar  á  ilha  do  Maranhão,  onde  foi  bem  re- 
cebido pelos  naturaes,  que  eram  Índios  Tupinambás. 

Pouco  depois  Jacques  Riffault  partio  para  a  Europa, 
deixando  parte  de  sua  gente  na  ilha,  sob  o  commando  de 
Charles  des  Vaux,  e  este  em  pouco  tempo  ganhou  as 
boas  graças  de  todos  os  insulares  e  das  cabildas  mais 
próximas  na  terra  firme. 

Nunca  mais  se  soube  noticias  de  Jacques  Riffault  e 
tendo  Charles  des  Vaux  o  esperado  inutilmente,  durante 
muito  tempo,  deliberou  afinal  ir  á  França  afim  de  obter 
meios  para  um  estabelecimento  francez  definitivo  no 
Maranhão. 

Charles  des  Vaux  e  alguns  dos  seus  tomaram  parte 
nos  combates  da  serra  da  Ibiapaba,  nos  quaes  dez 
francezes  foram  capturados  pelos  portuguezes,  conforme 
já  tivemos  occasião  de  referir. 

UT^pedlçilo  do  Eiii  Ravardiére.  — Na  epocha 
em  qu'3  Charles  des  Vaux  dirigiu-se  á  França,  Henrique 
IV,  soberano  desse  paiz,  procurava  por  todos  os  meios 
hostilisar  Philippe  III,  por  ter  este  monarcha   violado  o 


374  HISTORIA  DO  BRASIL 

tratado  de  Vervins,  celebrando  pazes  com  os  hoUandezes 
e  inglezes,  inimigos  da  França 

Assim,  foi  com  muita  satisfação  que  ouviu  as  pro- 
postas de  Charles  de  Vaux  e  prepara va-se  para  auxilial-o 
quando  o  punhal  de  Ravaillac  lhe  cortou  o  fio  da  exis- 
tência. 

Maria  de  Médicis,  que  assumio  a  regência  durante 
a  minoridade  de  Luiz  XIII,  entendeu  também  que  não 
devia  perder  a  opportunidade  de  conquistar  no  Brasil 
uma  vasta  região  a  qual  seria  a  França  Equinoxial,  já 
que  não  fora  possível  crear-se  SiFrança  Avtaríica,  como 
a  sonhou  Yillegaignon.  Assim  outorgou  poderes  a  Da- 
niel de  laTouche,  senhor  de  la  Ravardière,  para  fundar 
uma  colónia  na  America,  ao  sul  do  Equador,  estabele- 
cendo que  a  mesma  occuparia  cincoenta  léguas  para 
cada  lado  do  forte  que  aquelle  fidalgo  construísse. 

A  expedição  partio  de  Cancale  em  Março  de  1612  e 
â  empreza  se  associaram  Nicolau  de  Harlai,  senhor  de 
Lancy  e  barão  de  Molle  e  Gros-Bois,  e  Francisco  de 
Resilly,  senhor  de  Aumalie,  os  quaes,  se  embarcaram 
juntamente  com  Ravardière,  vindo  também  uma  missão 
de  quatro  frades  capuchinhos  ás  ordens  de  frei  Claude 
d'Abbeville,  que  mais  tarde  escreveu  a  chronica  dessa 
expedição. 

A  esquadrilha,  (1)  que  se  compunha  de  três  navios 
—  La  Regente^  La  Char^lotle  e  La  Sainte-Anne,  fez  es- 
cala pela  ilha  de  Fernando  de  Noronha,  onde  foram  reco- 
lhidos um  portuguez  e  alguns  Índios  que  nella  encon- 
traram e  a  11  de  Junho  de  1612  chegava  ao  Brasil, assen- 
tando La  Ravardière  a  sua  colónia  em  uma  chapada  que 
fica  á  esquerda  do  porto  de  S.  Luiz,  nome  que  o  fran- 
cez  lhe  impoz  em  honra  a  Luiz  XIII,  successor  de  Hen- 
rique IV  no  throno  de  França. 

Segundo  Claude  dAbbeville  existiam  na  ilha  do 
Maranhão  vinte  e  três  hordas  ou  aldeias  de  indios, 
que  immediatamente  confraternisaram  com  os  fran- 
cezes,  tendo  contribuido  muito  para  tal  resultado  o  facto 
de  terem  elles  trazido  religiosos  de  sua  nacionalidade. 

Des  Vaux,  Rasilly  e  os  capuchinhos  andavam  de 
taba  em  taba  a  indispor  os  naturaes  contra   os  portu- 


(1)  o  pavilhão  dos  navios  trazia  o  escudo  dos  Bourbons  com  os  três 
h'rios  e  uma  vaidosa  divisa  fornecida  pela  regente  —  Tanti  duces  femina 
Jaeti.  (Tantos  generaes  formados  por  uma  mulher). 


SEGUNDA  EPOOHA  375 


guezes,  o  que  não  era  necessário,  pois,  como  diz  Sou- 
they,  «as  guerras  de  Coelho  na  serra  da  Ibiapaba,  e  o 
seu  infame  trafico  de  escravos  em  Jaguaribe,  ainda 
viviam  frescos  na  memoria .  » 

Pouco  depois  Rasilly  foi  á  Europa  cuidar  dos  negó- 
cios da  colónia  e  acompanhou-o  Claude  d'Abbeville  com 
seis  Tupinambás,  dos  quaes  três  morreram  em  viagem. 
Os  sobreviventes  foram  carinhosamente  tratados  em 
França  e  até  lhes  serviram  de  padrinhos  o  rei  e  a  rainha. 
Taes  attenções  concorrerim  muito  para  robustecer 
a  amizade  dos  selvagens  do  Maranhão  pelos  francezes, 
os  quaes  lograriam,  então,  íirmar  o  seu  dominio  no 
Brazil  se  La  Ra^ardiére  não  confiasse  tanto  na  palavra 
dos  portuguezes,  isto  em  um  tempo  em  que  a  sede  de 
conquistas  e  de  ouro  suffocava  todas  as  virtudes  tradic- 
cionaes  da  nobreza. 

Expedição  de  •ferouymo  de  Albuquerque 
coutra  os  francezes  do  llarauhao. — Logo  depois 
de  ser  empossado  no  governo  geral  do  Brazil,  recebeu 
Gaspar  de  Souza  ordem  para  emprehender  a  conquista 
das  terras  situadas  entre  o  Ceará  e  o  Amazonas  e  nellas 
fomentar  a  necessária  colonisação,  promettendo  a  corte 
favores  excepcionaes  aos  que  tomassem  parte  em  tal 
empreza. 

Outi-osim  foi  recommendadoao  mesmo  governador 
que  fixasse  residência  em  Olinda,  de  onde  melhor 
poderia  acelerar  a  partida  da  expedição  e  soccorrel-a  em 
caso  de  necessidade. 

A'  vista  disso  Gaspar  de  Souza  resolveu  como  tra- 
balho preliminar  proseguir  no  plano  do  seu  antecessor, 
colonisando  a  capitania  nominal  de  Camocim  e  tomal-a 
por  ponto  de  partida  para  subsequentes  tentativas  de  oc- 
cupação  do  norte. 

Nomeou  pois  para  capitão  de  Camocim  a  Jeronymo 
de  Albuquerque,  o  qual,  chegando  às  extremas  do  Ceará, 
ordenou  a  Martim  Soares  que  procurasse  reconhecer  o 
resto  da  cDsta,  para  sotavent ),  cmquanto  elle  fundava 
uma  povoação  iio  Camocim. 

Martim  Soares,  acompanhado  do  piloto  Sebastião 
Martins  ,fez-se  de  vela  p  ira  o  norte,  e  encontrando  em 
Agosto  os  francezes,  além  doarchipelago  de  Preá,  resol- 
veu regressar,  afim  de  trazer  a  noticia  a  Jeronymo  de  Al- 
buquerque ;   não  lh'o  permittiram  no  emtanto  os  ventos 


376  HISTOEIA  DO  BRASIL 


ponteiros  e  a  ignorância  do  piloto,  e  assim  sem  o  querer 
foi  parar  nas  Antilhas. 

Jeronymo  de  Albuquerque,  nesse  Ínterim,  reconhe- 
cendo que  as  terras  eram  péssimas  e  a  agua  muito  es- 
cassa no  Camocim,  transferio-se  para  a  bahia  das  Tar- 
tarugas que  os  naturaes  chamavam  Jericoacoara  e  ahi 
levantou  uma  povoação  e  um  forte,  ambos  sob  a  invoca- 
ção religiosa  de  Nossa  Senhora  do  Rozario;  e  vendo  depois 
que  Martim  Soares  não  regressava  da  sua  viagem  de 
exploração,  fez-se  de  vela  para  Pernambuco,  afim  de  re- 
quisitar maiores  soccorros. 

Os  quarenta  homens  que  Albuquerque  deixara  no 
íqrte  do  Rozario  soffreram  muito  com  a  escassez  de  pro- 
visões. No  emtanto  tiveram  assim  mesmo  forças  para 
repellir  um  grande  ataque  de  Índios,  forçando  os  assal- 
tantes a  implorar  a  paz.  Pouco  depois  receberam  elles 
de  Pernambuco  um  caravellão  de  reforço,  tresentos  sol- 
dados e  grande  quantidade  de  mantimentos  e  provisões, 
soccorros  esses  muito  opportunos,  pois  três  dias  depois 
era  o  forte  atacado  pur  um  navio  francez  que  se  desti- 
nava á  ilha  do  Maranhão  com  tresentos  homens  de 
armas  e  doze  capuchinhos.  Seu  commandante,  o  senhor 
De  Pratz,  foi  rechaçado  e  compellido  a  reembarcar  ás 
pressas  com  toda  a  sua  gente. 

Reforçado  com  tropas  bem  dispostas  e  farto  de  vive- 
res partiu  novamente  Jeronymo  de  Albuquerque  para  o 
Maranhão,  seguindo  por  terra,  emquanto  por  mar  se- 
guia a  reunir-se-lhe,  na  qualidade  de  seu  ajudante-ge- 
neral,  o  sargento-mór  do  estado  Diogo  de  Campos,  que 
se  fez  acompanhar  pelo  piloto  Sebastião  Martins,  já  de 
volta  da  Europa,  onde  fora  ter  o  navio  de  Martim  Soares. 

A'    vista  das  informações  prestadas  por  Seba  stião 
Martins  com  referencia  ás  grandes  forças  que  os  fran- 
cezes  tinham  no  Maranhão,  ordenou  Gaspar  de  Souza  que 
os  expedicionários  se  limitassem  a  fundar  uma  colónia 
áquemdoportodo  Preá,  nodeTutoyaoude  Paranámirim. 

Aos  23  de  Agosto  de  1614  partio  do  Recife  Diogo  de 
Campos  com  tresentos  homens  e  foi  reunir-se  a  Jero- 
nymo de  Albuquerque  que  com  grande  numero  de  Índios 
o  esperava  no  Rio  Grande  do  Norte. 

Seguiram  depois  para  o  Ceará  e  d'aqui  passaram-se 
ao  Paranámirim  e  á  bahia  das  Tartarugas,  chegando 
afinal  a  expedição,  apenas  com  500  homens,  á  foz  do  Rio 


SEGUNDA  EPOOHA  377 


Preá,  onde  desembarcaram,  dando  ao  sitio  que  occuparam 
o  nome  de  Quartel  de  S.  Thiago. 

Não  se  prestando  o  local  para  um  estabelecimento 
duradouro,  passaram-se  os  portuguezes  para  a  foz  do 
rio  Monim,  a  um  sitio  que  os  naturaes  chamavam  Gua- 
xenduva  e  ahi  levantaram  um  forte  de  forma  hexagonal, 
ao  qual  denominaram  de  Santa  Maria. 

Logo  ao  chegar  julgou  Jeronymo  de  Albuquerque 
ser-lhe  possível  conseguir  a  alliança  dos  Tupinambás, 
embora  pensasse  de  forma  diversa  o  experimentado  Diogo 
de  Campos.  Cedo,  porém,  reconheceu  ter-se  enganado, 
pois  os  Índios  que  ás  vezes  se  approximavam  do  arraial 
e  apparentavam  desejar  a  amisade  dos  portuguezes  não 
passavam  de  espiões  dos  francezes. 

A  prova  decisiva  da  antipathia  que  os  Tupinambás 
alimentavam  contra  os  portuguezes,  adquirio-a  Jero- 
nymo num  assalto  que  os  mesmos  deram  sobre  umas 
raparigas  dos  Índios  alliados  que  mariscavam  descuida- 
das na  praia  e  das  quaes  mataram  quatro.  Por  um  dos 
prisioneiros  que  Mandiocapuba  fez  nessa  occasião,  soube 
Jeronymo  com  exactidão  do  estado  das  forças  dos  fran- 
cezes, e  logo  mandou  a  Gaspar  de  Souza,  por  um 
caravellão  que  fez  partir,  todas  as  informações  colhidas, 
bem   como   pedido  de  mantimentos  e  munições. 

Dias  depois  os  francezes  apossaram-se  de  dois 
navios  portuguezes,  que  estavam  quasi  desguarnecidos, 
e  a  19  de  Novembro  atacaram  o  arraial.  Embora  su- 
periores em  forças  foram  no  emtanto  batidos  pelos  portu- 
guezes e  com  grandes  perdas  forçados  ase  recolher  ao  seu 
forte  de  S.  Luiz.  Ravardiòre,  com  o  propósito  de  ganhar 
tempo,  mandou  propor  tregoas  aos  portuguezes,  o  estas 
foram  aceitas,  ficando  estipulado  pelo  tratado  das  mesmas 
que  um  ofliciai  francez  e  outro  portuguez  fossem  á 
França  e  outro  ofíicial  francez  acompanhado  de  um 
portuguez  se  dirigissem  a  Portugal  e  procurassem  obter 
nas  cortes  desses  "paizes  uma  solução  que  evitasse  a 
effusão  de  sangue  christão. 

Foram  escolhidos  para  ir  a  Paris  o  francez  De  Pratz 
e  o  portuguez  Gregório  Fragoso,  sobrinho  de  Jeronymo 
de  Albuquerque  e  para  Madrid  o  francez  Mathieu  Mail- 
lard  c  o  sargento-mór  Diogo  de  Campos. 

Estavam  as  cousas  nesse  pé,  reinando  a  paz  no 
Maranhão,  entre  francezes,  Índios  e  portuguezes,  embora 
todos   com  as  armas  nas  mãos,  quando  em  Outubro  de 


378  HISTORIA  DO  BRASIL 

1615  chegou  a  Guaxenduva  Alexandre  de  Moura,  capitão- 
mór  de  Pernambuco.  Trazia  elle  um  reforço  de  tropas  e 
mantimentos,  e  sendo  de  patente  superior  a  Albuquerque 
assumio  o  connmando  geral  das  forças.  Immediatamente 
violou  o  tratado  feito  pelo  antigo  commandante  com  o 
francez,  e  tendo  quebrado  as  tregoas  intimou  a  La  Ravar- 
dière  a  abandonar  a  ilha,  ao  que  este  annuio,  compromet- 
tendo-se  a  retirar-se  no  prazo  de  cinco  mezes,  sendo  in- 
demnisado  do  que  ficasse  na  referida  ilha.  Como  garantia 
da  sua  palavra  fez  logo  entrega  aos  portuguezes  do  forte 
de  Itaparoty,  ou  de  S.  José, que  havia  levantado  em  local 
fronteiro  ao  de  Santa  Maria. 

Três  mezes  depois  chegaram  da  Europa  o  sargento- 
feór  Diogo  de  Campos  e  Martim  Soares  trazendo  mais 
tropa  e  ordens  terminantes  da  corte  para  forçar  os  fran- 
cezes  a  evacuarem  a  praça  e  retirarem-se  do  Brasil,  pelo 
que  Ravardière,  sentindo-se  incapaz  de  sustentar  a  lucta, 
fez  entrega  do  forte  de  S.  Luiz  que  os  portuguezes  logo 
chrismaram  com  o  nome  de  S.  Philippe,  sendo  o  mesmo 
Ravardière  em  seguida  preso  por  Alexandre  de  Moura  e 
recolhido  á  Torre  de  Belém.  Ahi  esteve  encarcerado  du- 
rante três  annos  essa  victima  da  lealdade,  edo  cavalhei- 
resca, pois  si  não  tivesse  elle  escrúpulo  em  violar  o 
tratado,  «  interceptando  aos  portuguezes,  como  diz 
Southey,  os  supprimentos,  o  que  a  sua  superioridade 
por  mar  muito  bem  lhe  permittia  fazer,  estes  teriam,  ou 
procurado  retirar-se  por  terra,  caso  em  que  muitos  ha- 
viam de  perecer,  ou  capitulado  sem  um  tiro.  » 

Ao  retirar-se  Moura  para  Pernambuco,  nomeou  Jero- 
nymo  de  Albuquerque  capitão-mór  da  conquista  do 
Maranhão. 

Batalha  de  Griíareuduva.  (19  de  novembro  de 
1614).  — Não  podemos  ultimar  a  nossa  imperfeita  resenha 
da  jornada  que  lançou  fora  do  Maranhão  os  aventureiros 
francezes,  sem  detalharmos  a  memorável  batalha  de 
Guaxenduva,  um  dos  mais  gloriosos  feitos  d'armas  dos 
portuguezes  no  Brazil  e  igualmente  um  dos  mais  no- 
táveis pelos  immediatos  resultados  obtidos,  pois,  como 
se  vio,  Ravardière,  embora  muito  superior  em  forças 
próprias,  e  tendo  além  disso  por  si  o  apoio  dosnaturaes  e 
a  vantagem  da  posição,  tão  abatido  ficou  com  o  revez 
que  immediatamente  sollicitou  um  armistício  cujas  con- 
sequências foram  três  annos  gemidos  nos  cárceres  da 
Torre  de  Belém. 


SEGUNDA  EPOCHA  379 


Na  manhã  do  dia  19  de  Novembro  de  1614  observaram 
os  soldados  portuguezes  de  guarnição  no  forte  de  Santa 
Maria  que  o  mar  estava  coalhado  de  embarcações  de 
velas  e  remos,  que  se  approximavam  da  praia  silencio- 
samente. 

Communicado  o  facto,  o  capitão-mór  Jeronymo  de 
Albuquerque,  dirigio-se  com  oitenta  homens  á  praia 
afim  de  atacal-os  no  desembarque.  Vendo,  porém,  que  o 
numero  dos  inimigos  era  tão  crescido  que  seria  louca 
temeridade  expor-se  a  uma  lucta  cuja  desigualdade  era 
patente,  retrocedeu. 

A  força  dos  francezes  era  commandada  pelo  bravo 
oíficial  De  Pizieu  e  tão  soffregos  se  achavam  os  seus 
soldados  de  se  empenharem  na  lucta  que  ao  seapproxi- 
marem  de  terra  se  lançaram  á  agua  em  direcção  á 
praia,  do  que  resultou  molharem-se  muitos  polvorinhos 
e  bandoleiras.  Os  Índios,  seus  alliados,  fizeram  outro 
tanto  e  em  poucos  minutos  a  praia  encheu-se  de  com- 
batentes que  começaram  logo  a  pelejar  com  um  troço  de 
arcabuzeiros  dirigidos  pelo  sargênto-mór  Diogo  de 
Campos.  Nesse  primeiro  embate  cahiram  dois  francezes 
e  um  portuguez.  Suspendeu-se  o  fogo  e  o  sargento-mór 
recolheu-se  ao  forte. 

Deixemos,  porém,  falar  o  velho  sargento-mór  Diogo 
de  Campos  Moreno  que  além  de  soldado  esforçado  foi 
igualmente  o  historiador  dessa  peleja  celebre  (1). 

«  Havendo  cabido  dois  francezes  e  um  soldado  dos 
portuguezes  parou  a  obra,  e  o  sargento-mór  veio  ao 
forte, a  veroquedeterminava  o  seu  coUega,  o  qual  achou 
com  um  óculo  de  longa  vista  olhando  por  uma  bom- 
bardeira o  que  os  inimigos  faziam,  ao  qual  disse : 

«  —  Senhor,  não  ha  já  que  ver  por  óculos,  que  nem 
os  trabalhos  hão  de  diminuir,  nem  hão  de  fazer  os  ini- 
migos menores. 

« —  Pois  que  havemos  de  fazer,  senhor  Capitão  f 
respondeu  o  de  Albuquerque. 

«  — Valer-nos  de  Deus  ede  nossos  punhos,  disse  o 
sargento-mòr,  que  já  aqui  não  ha  outro  remédio.  O  ini- 
migo se  fortifica  e  vio  que  nos  retirámos,  e  entende 
que   queremos  aguardar    o   sitio,   e  assim    trata    de  se 


(1)    Jornada  do  Maranhão  por  Diofjo  de  Campos  Moreno,  sargento- 
mór  rio  Estado  do  Brazil. 


380  HIBTOBIA  DO  BBÀBIL 

alojar  primeiro,  e  desembarcar  suas  coisas;  si  agora 
sem  dilação  formos  com  toda  essa  gente  por  duas  partes, 
sem  duvida  os  desbarataremos,  e  nos  dará  Deus  hoje  um 
dia  muito  formoso;  pelo  que  Vm.  com  a  metade  dessa 
gente  branca  e  índios  sem  se  deter,  vá  pela  montanha, 
e  eu  com  os  demais  irei  pela  praia ;  e  tanto  que  Vm. 
chegar  aos  inimigos  faça  signal  tocando  arma  os  tam- 
bores, que  até  ali  hão  de  ir  com  muito  silencio,  e  in- 
vestindo eu  por  esta  banda  farei  o  mesmo  e  Deus  nos 
ha  de  ajudar  a  todos. 

«  Não  replicou  palavra  o  Capitão  Mór,  antes,  mo- 
vendo-se  logo,  mandou  dar  em  pó  aos  soldados  um 
bocado  de  biscouto  e  uma  vez  de  vinho,  e  com  isto  sahi- 
ram  todos  marchando  para  fora  da  cerca  sem  tocar 
caixas,  e  sem  bandeiras. 

«  Está  diante  do  forte  de  Santa  Maria  um  outeiro 
eminente  á  distancia  de  um  tiro  de  falcão,  immediato  ao 
mar  pela  parte  do  norte,  o  qual  tem  um  rio  de  agua 
doce  pelo  pé  ;  que  pela  banda  do  sul  participa  de  agua 
que  bebem  os  portuguezes.  Neste  sitio  desembarcou  o 
inimigo  de  preamar,  como  está  dito,  lançando  em  terra  ao 
pé  do  monte  de  50  canoas  mais  de  dous  mil  indios  frechei- 
ros da  ilha,  e  de  Tapiterá  (1),  e  com  elles  200  soldados 
francezes  em  duas  tropas,  como  está  dito,  nos  quaes 
entravam  muitos  fidalgos  de  casas  conhecidas  da  França, 
e  dos  mais  bravos  soldados  delia,  com  peitos  e  rodellas 
d'aço,  morriões  e  colladas  (2) ;  e  muitos  e  bons  mosque- 
tes alguns  de  nova  invenção,  que  sendo  curtos  tiravam 
500  passos  aos  indios,  além  de  suas  costumadas  rodellas 
e  espadas,  arcos  e  frechas,  traziam  cada  qual  seu  feixe 
de  varas  atadas  a  modo  de  faxina,  com  que  os  que 
vinham  destinados  a  este  effeito,  em  um  momento ;  como 
eram  tantos,  fizeram  uma  cerca  no  alto  do  monte,  a  qual 
se  guarneceu  de  mosqueteiros  á  ordem  de  Mr.  de  la  Foz 
Benart,  com  mais  400  indios  Tupinambás,  com  o 
lingua  Turcou,  aos  quaes  deu  ordem  Mr.  de  Pisiau,  qae 
ainda  que  sentissem  tocar  arma,  e  revolver-se  tudo,  que 
não  largassem  o  posto,  antes  mais  cada  vez  o  fortifi- 
cassem, cerrando-se  nelle. 


(1)  Outros  dizem  Tapuitapera.  E' a  actual  villa  de  Alcântara. 

(2)  Guarnições  de  aço  para  defender  a  garganta  dos  guer- 
reiros. 


SEGUNDA  EPOCHA  381 


«  Logo  mais  abaixo  dessa  coroa  ou  cerca  fizeram 
outra  ajudando-se  do  silio  e  do  matto,  a  qual  como  bar- 
bacan  da  outra  lhe  dava  resguardo,  por  ser  levantada 
duas  braças  do  terreno  da  praia.  Esta  barbacan  com 
soldados  francezes  e  índios  se  deu  a  cargo  de  Mr.  de  Ca- 
nonvilha,  soldado  velho  e  de  muito  nome,  assegurando 
o  monte  nesta  forma: 

«  Atulharam  todo  o  espaço  de  terra  que  havia  entre 
a  maré  e  o  monte  com  sete  trincheiras  de  pedra  em 
sosso  (3)  altas  e  grossas,  que  faziam  rosto  ao  forte  de 
Santa  Maria  e  a  estas  se  retiraram  os  francezes,  quando 
a  escaramuça  do  Sargento-mór,  porque  estavam  guarne- 
cidas da  sua  melhor  gente  até  donde  batia  o  mar  com 
suas  sentinellas ;  e  as  canoas  todas  estavam  abicadas  ao 
pé  da  montanha,  e  cobertas  das  ditas  trincheiras,  e  todos 
os  mais  Índios  occupavam  tudo  o  que  o  mar  vasava, 
guarnecendo  a  ilharga  das  trincheiras ;  em  todos  os 
navios  daquelle  campo  seriam  mil  e  quinhentos  fre- 
cheiros, que  todos  fazendo  seus  motins  e  momos  se 
vinham  chegando  para  a  praia  do  forte  Santa  Maria  que 
era  a  parte  somente  onde  temer  se  podiam. 

«  O  capitão-geral,  Monsieur  de  la  Ravardiee  estava 
no  mar  com  outros  duzentos  soldados  francezes,  á  ordem 
do  cavalheiro  de  RaseUi,  da  Ordem  de  S.  João,  e  do  ca- 
pitão Mathieu  Malharte,  que  com  outros  100  frecheiros 
de  Comat  (4)  haviam  de  sahir  com  a  artilharia  em  se 
assegurando  o  sitio. 

«  Já  havia  marchado  o  Capitão  Mór  por  uma  vereda 
secreta  da  montanha  com  75  soldados  portuguezes,  gente 
escolhida  que  levavam  em  suas  companhias  o  capitão 
Manuel  de  Souza  d'Eça  e  Francisco  de  Frias,  aos  quaes 
tocou  ir  por  outra  parte. 

«Levava  mais  oitenta  frecheiros  portuguezes,  gente 
velha  e  dóstra  nas  occasiões  e  guerras  do  Brasil,  e  o 
Sargento-mór  do  Estado  já  estava  pegado  aos  inimigos 
com  só  António  d'Albuquerque,  filho  do  Capitão-mór, 
moço  de  20  annos,  que  aquelle  dia  quiz  seu  pai,  que 
fosse  cora  a  sua  companhia  pela  praia  com  o  Sargento- 
mór,  a  quem  o  encommendou:  com  esta  companhia  e 
com  o  resto  dos  indios,  em  que  entrava  o  Mandiocapuba 


(3)  Pedra  solta. 

(4)  Cumá,  nome  do  território  em  que  se  acha  a  villa  de  Gui- 
marães. 


382  HISTOEIA  DO  BBASIL 

com  os  Tabajaras  se  foi  melhorando  o  de  Campos  co- 
berto com  um  pouco  de  matto  por  não  mostrar  a  gente 
ao  inimigo  ;  mas  os  soldados,  que  viam  o  que  tinham 
diante  moviam-se  mui  tibiamente,  querendo  antes  estar 
ao  socairo  do  forte  Santa  Maria,  e  nisto  se  houveram  de 
modo  não  obedecendo  aos  sargentos,  que  o  do  Estado, 
virando-se  a  elles  com  uma  pistola  na  mão  disse: 

—  «  Não  me  persuado  que  tão  valentes  homens 
duvidem  de  vencer  aquelles  inimigos,  e  mais  quando 
hontem  no  Perejá  vos  amotinastes  por  chegar  a  este 
ponto,  no  qual  si  agora  houver  algum  infame  ou  co- 
varde, o  que  não  cuido,  e  como  tal  torcer  o  rosto,  cuide, 
que  me  tem  aqui  para  seu  verdugo :  fazei,  senhores  e 
irmãos,  o  que  me  virdes  fazer,  advertindo  que  a  minha 
vida  e  a  vossa  está  na  morte  de  aquelles  que  logo  hão  de 
fugir,  si  um  pouco  lhes  temos  a  barba  tesa  á  sua  pri- 
meira fúria. 

«  Dizendo  isto  virou-se  ao  capitão  Madeira,  valente 
soldado  e  capitão  dos  Índios,  e  disse-lhe: 

—  »  Mettei-vos,  senhor,  com  ioda  essa  gente  detraz 
daquellas  embarcações  nossas,  que  já  estão  em  secco,  e 
não  arremettais  sinão  depois  que  me  virdes  que  vqu 
investindo,  e  entào  cerrai  com  os  Índios  da  praia,  que 
guardam  a  ilharga  das  trincheiras,  e  fazei  como  costu- 
maste senipre. 

«  E  dando  esta  ordem,  disse  ao  alferes  Diogo  da 
Costa,  soldado  velho  e  de  honra,  natural  das  Ilhas: 

«  —  Vm.  se  vá  voando  ao  forte,  e  diga  ao  capitão 
Gregório  Fragoso,  que  com  toda  a  sua  companhia  venha 
logo  marchando  pouco  a  pouco  sem  bandeira,  e  sem 
tocar  caixa,  e  se  ponha  na  retaguarda  dos  nossos  Índios  ; 
e  tanto  que  nos  vir  arremetter,  entre  pela  praia  de  soc- 
corro  com  a  sua  arcabuzaria,  para  que  os  nossos  índios  o 
sintam  nas  espaldas,  e  o  inimigo  se  descomponha  pela 
ilharga. 

«  Ordenando  assim  o  que  convinha,  aguardando  o 
signaldos  da  montanha,  saltou  em  terra  de  uma  canoa 
um  trombeta  com  as  armas  reaes  de  França,  bem  con- 
certado, e  tocando,  e  chamando,  se  veio  até  que  um 
tambor  dos  portuguezes  com  ordem  do  sargento-mór  do 
Estado  o  foi  recolher  e  vindo  á  sua  presença  lhe  deu 
uma  carta  em  francez  do  seu  general,  ao  qual  emquanto 
se  via  lhe  mandou  o  sargento-mór  tapar  os  olhos  ao 
trombeta  e  pôr  bòa  guarda.» 


SEGUNDA  EPOOHA  383 


A  carta  de  Rivârdiere  continha  nem  mais  nem 
menos  que  uma  intimação,  porém  o  astuto  Diogo  de 
Campos  reconheceu  que  os  intuitos  do  francez  eram 
ganhar  tempo  e  informar-se  pelo  corneta  do  estado  das 
forças  portuguezas. 

'  Continua  Diogo  de  Campos  : 

«  Havia  passado  a  palavra  aocapitão-mór  da  vinda 
do  trombeta  ;  o  qual  para  mais  não  era  vindo,  que  para 
reconhecer,  e  empachar  os  portuguezes,  emquanto  os 
francezes  se  fortificavam,  e  espantar  com  aquellas  pala- 
vras aos  que  sabiam  pouco:  emfim  o  dito  capitão-mór 
fez  alto  sonido  já  ao  pé  do  monte  da  outra  banda  de 
leste  e  para  saber  a  novidade,  mandou  um  alferes  a 
informar-se  ;  mas  o  sargento-mór  do  Estado,  a  resposta 
que  deu  foi  metter  a  carta  no  ôco  do  chapéo  e  ao  alferes 
por  nome  Manuel  Vaz  de  Oliveira  disse  : 

«  —  Diga  ao  capitão-mór  que  a  carta  vem  em  fran- 
cez, e  que  sua  mercê  a  não  hade  poder  lêr;  mas  que  lhe 
aviso,  si  não  quer  ser  captivo  dos  francezes,  que  arre- 
mettalogo  como  está  assentado;  porque  aqui  estamos 
prestes  para  fazer  o  mesmo  ;  e  que  pedem  que  nos  ren- 
damos á  Sua  Mercê  dentro  de  quatro  horas,  si  não  que 
seremos  postos  ao  cutello. 

«  Foi  o  alferes  voando  com  este  recado,  o  qual  tanto 
que  o  capitão-mór  o  ouviu,  arremetteu  como  mui  es- 
forçido  c^valleiro  e  ao  signalo  sargento-mor  dando  por 
nome:  Virgem  de  Guadelupe,  e  gritando  Sant-Iago 
serrou  com  as  trincheiras  da  praia  e  apoz  elle  arremetteu 
o  Madeira  com  os  Índios  amigos,  que  não  chegavam  a 
cem  homens:  o  soccorro  com  o  capitão  Gregório  Fra- 
goso entrou  assim  como  lhe  estava  ordenado,  dando  a 
carga  pela  banda  do  mar. 

«  Já  neste  tempo  a  gente  estava  abarbada  com  a 
primeira  trincheira,  donde  os  mortos  que  cabiam  de 
uma  e  de  outra  parte  faziam  duvidoso  espectáculo:  mas 
a  virtude  do  soffrimanto  nos  portuguezes  foi  grande, 
pois  sem  torcerem  o  rosto,  sempre  levados  do  exemplo 
e  vozes  do  Sargento-mór,  apertaram  tanto,  que  ga- 
nharam a  primeira  trincheira,  e  isto  a  tempo  que  os 
Índios  do  inimigo,  que  eram  em  multidão  grande,  como 
nelles  se  não  perdia  um  tiro,  e  a  gento  portugueza  os  ia 
entrando,  viraram  as  costas  a  tempo  que  o  Capitão-mór 
já  chegava  á  praia  e  o  Sargento-mór  gritava:  Victoria, 
que  fogem ! 


384  HISTOEIA  DO  BRASIL 

«  Comtudo  os  francezes  pelejando  galhardamente' 
ainda  que  com  pouca  fortuna,  entrelinham  o  Ímpeto  de 
uma  e  de  outra  parte,  até  que  de  todo  vendo  desampa- 
rada a  ilharga  dos  seus  selvagens,  e  occupada  dos  por- 
tuguezes,  que  derramados  dextramente  lhe  faziam  o 
offlcioe  que  os  seus  Índios  occupavam  o  logar  da  reti- 
rada; tomando  a  carga  tomaram  juntos  de  tropel  de 
caminhos,  para  se  valer  dos  navios,  porém  foram  dar 
com  o  Capitão-mór,  que  como  dito  é,  vinha  sahindo  do 
matto,  e  arremettendo  quasi  só.  Porque  os  seus  ou 
porque  elle  se  adiantasse,  ou  porque  elles  marchassem 
menos,  chegaram  descompostos,  mas  mui  valerosos  e 
honrados,  e  como  taes  ainda  que  o  Capitão-mór  esteve 
em  perigo  logo  foi  soccorrido  de  uns  e  de  outros,  e  nesta 
envolta  íoi  morto  Monsieur  de  Pisiau,  logar-tenente- 
general,  fidalgo  catholico,  e  de  tantas  partes  que  sempre 
será  chorado  dos  seus. 

cEra  primo  com-irmão  da  princeza  de  Conde  o  qual, 
vendo  cahido  seu  companheiro  Mr.  Duprat,  e  tudo  em 
rota  com  mais  pressa,  do  que  a  barafunda  dava  logar, 
se  retirou,  e  escapou  a  nado  com  a  espada  na  bocca. 
Todos  os  demais  fidalgos  francezes  elegeram  antes 
morrer  pelejando  junto  do  seu  general,  e  assim  quanto 
mais  em  francezo  Sargento-mór  do  Estado  lhes  gritava, 
que  se  rendessem,  tanto  mais  se  defendiam.  Pelo  que,  em 
menos  de  uma  hora,  que  durou  a  força  da  batalha,  ficou 
todo  o  campo  coalhado  de  mortos  francezes  e  índios. 

«  Mr.  de  la  Ravardière,  vendo  do  mar  o  que  se  pas- 
sava, mandou  na  fúria  do  conflicto  aos  navios  mais 
ligeiros,  que  se  apresentassem  á  fortaleza  para  divertir 
o  damno,  que  a  d'outro  modo  remediar  não  podiam ; 
mas  o  capitão  Manoel  de  Brito  Freire,  que  com  o  alferes 
Diogo  da  Costa  com  quasi  trinta  soldados  marinheiros  e 
doentes  fizeraai  tão  bem  seu  officio  com  a  artilharia, 
que  desviaram  de  si  eçte  perigo,  dando  a  entender  dif- 
ferente  força  da  que  havia,  demodoque  no  mar  ena  terra 
e  no  monte  e  na  praia  tudo  eram  bombardas,  cutiladas, 
e  arcabusadas  com  tanto  lervor,  qual  no  Estado  do 
Brazil  jamais  foi  visto,  nem  que  tanto  se  aventurasse 
como  este  dia:  no  qual  para  mais  espantosa  tragediados 
francezes,  mandou  o  Sargento-mór  do  Estado  dar  fogo  a 
todos,  que  estavam  varados  em  terra,  que  eram  qua- 
renta e  seis  com  todo  o  seu  maçame,  remos,  em  que 
havia  algumas  de  setenta  e  cinco  palmos  de  comprido,  que 


SEGUNDA  BPOOHA  385 


vogavam  vinte  e  cinco  remos  por  banda,  o  que  se  fez  por 
tirar  o  pensamento  aos  fugidos  de  se  salvarem  nellas,  e 
por  quebrar  o  animo  dos  aliiadosdosfrancezos,  que  nisto 
perderam  sou  regalo  e  remédio  e  mostrar  aos  do  mar 
sua  armada  feita  cinzas,  e  aos  da  terra,  que  todavia  se 
fortiticavam  na  montanha,  quo  não  tinliam  que  esperar 
soccorro,  pois  as  canoas  ardiam. 

O  capitão-mór  Jeronymo  de  Albuquerque  tanto  que 
vioo  bomsuccessoda  rota,  em  que  como  está  dito, pelejou 
como  quem  era,  foi-se  ao  forte  a  descansar  do  trabalho 
passado,  deixando  que  a  seu  alvedrio  cada  qual  des- 
pojasse e  saqueasse  tudo  o  que  achasse  de  mantimentos, 
munições  e  armas  do  que  estava  o  campo  coberto;  mas  o 
Sargento-mór  do  Estado,  quo  trazia  outro  pensamento 
tinha  sempre  junta  e  firme  uma  tropa  de  sessenta  sol- 
dados o  todos  os  officiaes  comsigo,  sem  consentir,  que 
se  desviassem  um  ponto,  até  ver  o  inimigo  de  todo  roto 
o  a  montanha  desoccupada;  e  assim  cada  momento  pro- 
via com  esquadras  de  refresco,  para  que  sem  parar  lhes 
tivessem  a  escaramuça  em  tezo  aos  capitães  francezes  ; 
a  saber  o  Mr.  de  La  Fos  Benart,  que  como  está  dito 
guardava  o  monte,  e  ali  se  defendia  valorosamente  e  a 
Mr.  do  Canonville,  que  se  havia  ajuntado  com  elle, 
tanto  que  vio  a  rota,  e  era  de  temer,  que  si  o  negocio  se 
esfriava,  que  se  podia  mudar  a  fortuna,  a  mais  se  os  do 
mar  entendiam,  qu  *  a  sua  gente  estava  fortificada. 

«  Polo  quo  o  Sargento-mór  do  Estado  buscando  seu 
companheiro  o  capitão-mór,  lho  foi  dito,  como  estava 
na  cerca  em  sua  casa  e  assim  se  foi  ao  buscar,  deixando 
com  a  gente  o  Capitão  Friís  e  chegando  aonde  estava 
Jeronymo  Albuquerque  lhe  disse  : 

«  —  Meu  senhor,  não  temos  feito  nada,  si  logo  não 
nos  tornamos  a  ajuntar  e  vamos  desfázer  a  cerca  da 
montanha,  donde  os  inimigos  que  fugiram  estão  reco- 
lhidos, e  bem  sabeis,  senhor,  que  si  falta  qualquer  do 
nós  do  campo,  que  a  metade  dos  soldados  há  de  des- 
apparecer. 

o  O  Capitão-mór  com  muita  vontade  tornou  a  tomar 
as  suas  armas,  e  levando  seu  filho  CDmsigo  se  tornaram 
á  praia,  donde  repartido  sem  que  houvesse  Índios  que 
levar  de  ajuda,  porque  todos  andavam  encarniçados  em 
quebrar  cabeças  e  despir  os  mortos,  se  foi  o  Capitão- 
mór  por  uma  banda  e  o  Sargento-mór  ficou  na  da  praia 


386  HIBTOBIA  DO  BSABIL 

e  pelo  matto  cerrado  chegando-se  bem  à  terra,  houve 
uma  contenda  mui  desigual  :  porque  os  portuguezes  a 
coronha  rasa  descobertos  queriam  desfazer  tudo,  e  se 
mcttiam  nas  boccas  dos  mosquetes  inimigos,  tanto  que 
com  o  fúgo  lhes  queimavam  o  fato  e  os  derrubavam, 
como  fizeram  a  um  sobrinho  do  Sargento-mór  do  Estado 
chamado  Luiz  de  Guevara  que  de  duas  arcabuzadas 
cahio  em  terra  morto  pegado  nos  paus  de  cerca  e 
António  Grisante,  moço  nobre,  que  á  porfia  se  arre- 
messou da  banda  de  dentro,  também  ficou  morto  de  mil 
feridas  :  logo  feriram  a  António  de  Albuquiijque,  filho 
do  Capitão-mór  e  ao  seu  alferes  Christovão  Vaz  e  outros 
soldados,  e  nesta  pressa  e  bateria  mais  atrevida,  do  que 
dizer-se  pôde,  deram  uma  mosquetada  ao  Turcou, 
lingua-mór  dos  Índios,  que  estavam  na  cerca,  os  qunes, 
tanto  que  o  viram  ferido  e  alguns  delles  mortos,  nào 
havendo  quem  os  exhortasse  a  estar  firmes  e  havendo  a 
pólvora  faltado  já  aos  francezes  e  Mr.  de  la  Fos  Bernart 
tendo  uma  arcabusada  em  um  braço  começaram  os 
Índios,  ao  seu  modo,  de  bater  as  palmas  e  dando  atravez 
com  o  canto  contrario  da  cerca,  se  lançaram  fugindo 
pela  montanha  abaixo,  levando  traz  si  as  arvores,  como 
se  tora  algum  caudal  de  rio,  porque  eram  mais  de  600 
homens. 

«  Os  francezes  havendo  feito  seu  dever  como  muito 
bons  soldados  se  misturaram  com  os  Índios  de  Tatuassú, 
que  era  o  principal  daquelLi  tropa  e  com  o  Carangueijo 
Branco,  outro  principal  da  ilha  e  assim  se  salvaram  pela 
espessura  do  matto.  O  Sargento-mór  tanto  que  vio  arre- 
bentar aqueila  gente,  poz  o  joelho  no  chão  e  disse  aos 
companheiros  :  «  Demos  graças  a  Deus,  que  nos  ha 
dado  inteira  victoria.  » 

Eis  no  que  consistio  a  batalha  de  Guarenduva. 

Clauded'Abbe¥illc  e  Yves  d'Evreux.— Estes 
dois  missionários  capuchinhos  que  com  La  Ravardiére 
vieram  ao  Maranhão  escreveram  duas  obras,  hoje  con- 
sideradas de  mais  valor  histórico  para  o  estudo  da 
dominação  franceza  na  ilha  do  Maranhão,  que  a  escripta 
pelo  portuguez  Diogo  de  Campos.  Claudo  d'Abbeville  é 
autor  da  Histoire  de  la  Mission  des  Peres  Capueins  en 
Vile  de  Maraguan  etc.  que  foi  impressa  em  Paris  em 
1G14,  Yves  d'Evreux  escreveu  a  Suite  de  Vhistcire  des 
Peres  Capueins,  etc,  a  qual  vio  a  luz  da  publicidade  em 
Paris,  no  anno  de  1615. 


SEGUNDA  EPOOHA  387 


Estas  duas  obras  são  interessantíssimas  pela  fide- 
lidade com  que  pintam  as  scenas  da  vida  intima  dos 
selvagens. 

Conquista  do  Pará. — Encorajado  pela  expulsão 
dos  francezes  da  ilha  do  Maranhão  e  desejoso  de  ver  a 
colónia  dilatada  até  a  foz  do  Amazonas,  Alexandre  de 
Moura,  antes  de  retirar-se  pari  Pernambuco,  nomeou 
Francisco  Caldeira  Castello  Branco  capitão-mór  da  con- 
quista do  Grão-Pará. 

,A  2õ  de  Dezembro  partio  Caldeira  do  Maranhão 
com  cento  e  cincoenta  homens  e  navegando  somente 
de  dia,  por  precaução,  aportou  á  margem  oriental  da 
bahia  de  Guajarà,  onde  fundou  uma  povoação  sob  a 
invocação  de  Nossa  Senhora  de  Belém  e  um  forte  no 
logar  mais  saliente,  embora  esse  sitio  fosse  impróprio 
para  o  novo  estabelecimento  colonial. 

Entre  outros  habitavam  a  região  do  Grão-Pará, 
nome  meio  portuguez  e  meio  mdio,  os  Índios  Tupinam- 
bnranas,  Maués  e  os  Nheengaibas,  em  numero  de 
40  000,  que  occupavam  a  grande  ilha  de  Marajó. 

No  Pará  encontrou  Caldeira  um  francez  e  um  hol- 
landez  e  por  estes  soube  que  os  navios  flamengos,  in- 
glezes  e  hoilandezes  frequentavam  aquellas  paragens, 
que  mais  ao  norte  havia  um  estabelecimento  desta  ultima 
nacionalidade  com  duzentos  e  cincoenta  a  trezentos 
povoadores  e  que  nos  Paizes  Biixos  se  preparava  uma 
expedição  com  destino  ao  grande  rio. 

Justamente  alarmado  com  estas  e  outras  informa- 
ções, CaMeira  despachou  para  a  Europa  atim  de  pedir 
prompto  reforço  o  único  navio  que  possuia  e  aos  capitães 
António  Teixeira  e  Pedro  Teixeira  deu  a  incumbência 
de  se  dirigirem  por  terra  ao  Maranhão  afim  de  partici- 
parem a  Jeronymo  de  Albuquerque  o  que  occorria. 

Estamos,  porém,  já  dentro  do  governo  de  D.  Luiz 
de  Souza  e,  por  conseguinte,  não  cabe  aqui  a  noticia 
desta  perigosa  embaixada  e  do  que  posteriormente  De- 
correu em  terras  do  Maranhão  e  Pará. 


Gaspar  de  Souza,  cujo  governo  se  celebrisou  pelas 
assignaladas  conquistas  do  Maranhão  e  Pará,  foi  sub- 
stituído por  D.  Luiz  de  Souza,  que  havia  succedido  a 
seu  pai  D.  Francisco  de  Souza  nas  capitanias  do  sul. 


388  HISTORIA  DO  BEASIL 

Notamos  nos  diversos  autores  que  consultamos  uma 
certa  confusão  de  datas  relativamente  áquella  em  que 
D.  Luiz  é  empossado  no  governo  geral  e  como  nesse 
chãos  chronologico  não  nos  fosse  possível  encontrar  o 
fiat  luz  providencial,  preferimos  silenciar  sobre  o  caso  a 
adoptar  uma  menos  verdadeira.  ,^ 


CAPITULO  VIII 

GOVERNO  GERAL  DE  D.  LUIZ  DE  SOUZA 


Principaes    factos   occorridos     no     llara- 

nliffo.  —  Jeronymo  de  Albuquerque,  um  dos  herocs  da 
batalha  de  Guaxenduva,  logo  após  a  expulsão  dos  frnn- 
cezes  da  ilha  de  S.  Luiz,  accrescentou  ao  seu  nome  o 
appellidode  Marmhão;  e  tendo  guarnecido  conveniente- 
mente ti  idos  os  fortes  da  referida  ilha,  começou  aedi  ficar 
uma  cidade  em  torno  do  forte  do  S.  Luiz,  com  este  mes- 
mo nome  e  mesmo  padrreiro. 

Correram  as  cousas  inaravilhosamente  durante  o 
primeiro  anno,  porém  aos  Tupinambás  repugnava-lhes 
o  jugo  dos  portuguezes,  pois  não  se  lhes  riscava  da  me- 
moria as  atrocidades  e  vilezas  de  Pêro  Coelho  ou  de  So- 
romenho,  como  quer  o  sr.  Varnhagens,  commettidas 
sobre  os  do  sua  gre\^  na  Ibiapaba  e  em  Jaguaribe. 

Ora,  a  expio- ão  dos  resentimentos  mais  cedo  ou 
juais  tarde  era  inevitável  e  para  isto  bastou  a  intriga  do 
um  Índio  de  Cumá,  chamado  Amaro,  o  qual,  segundo 
nos  transmitteBorredo,  nos  seus  Annaes  do  Maranhão, 
fez  crer  aos  naturaes  que  os  portuguezes,  premeditavani 
cscravisal-os  de  novo,  tal  como  outr'ora  praticaram  no 
Ceará. 

Im mediatamente  alvoroçaram-se  (  s  indios  de  Cumá 
e  tomando  armas  atacaram  os  trinta  homens  que  gu  ir- 
neciam  este  districto  e  os  n  ataram  todos  durante  o  ?om- 
no,  despachando  em  seguida  emissários  ás  diver>ns 
hord.is  afim  de  incital-as  a  uma  insurreição  geral.  Ma- 
thias  de  Albuquerque,  porém,  filho  do  capitã  )-mói",  ro- 
pri;iiiu-lhes  o  ataque  por  um  1  ido  c  Caldeira,  que  soube 
quererem  elles  invadir  a  cidade  de  Bolem,  antecipou-se 
no  ataque. 

Jeronymo  do  Albuquerque  Maranhão,  com  a  avan- 
çada idade  dii  setenta  annos,talleceu  em  S.  Luiz  ali  do 
Fevereiro  de  1618,  succedendo-lhe  seu  filho  António  d<; 
Albuquerque  e  continuando  seu  irmão  Mathias  a  perse- 
guir os  indios  ao  norte,  afim  de  deixar  livre  a  communi- 
cação  entre  o  Maranhão  e  o  Pará. 


390  HISTORIA  DO  BBABIL 

António  de  Albuquerque  só  governou  o  Maranhão 
durante  quatorze  mezes,  pois  tendo  o  governador  geral 
lhe  dado  por  companheiro  na  administração  da  capita- 
nia Domingos  da  Costa  Machado,  capitão  do  forte  de 
S.  Philippe,  susceptibilisou-se Albuquerque  e  retirou-se 
para  Portugal,  de  onde  veio  depois  com  a  nomeação  de 
capitão-mór  da  Parahyba. 

Durante  a  administração  de  Domingos  Machado, que 
durou  mais  de  três  annos/teve  logar  no  Maranhão  a  in- 
troducção  de  grande  numero  de  colonos  açorianos, 
gente  honesta  e  laboriosa,  que  veio  com  muita  felicidade 
para  o  Brazil  contrabalançar  a  pestilenta  dr^scar^a  de 
criminosos  degradados  que  começou  a  ser  feita  no  Ma- 
ranhão e  Pará,  logo  após  a  conquista  dessas  regiões, 
sendo  também  no  tempo  de  M.ichado  que  o  governo  da 
metrópole  deliberou  crear  no  Maranhão  um  governo  in- 
dependente do  do  Brazil  cuja  organisação  dt^finiliva  só 
foi  eífectivamente  decretada  a  13  de  Junho  de  1621. 

Priíicipaesi  factos  occorridosi  no  Pará.  — 
Como  vimos  no  capitulo  precedente.  Caldeira  temendo 
invasões  de  hollandezes  einglezes  na  capitania  do  Grão 
Pará,  enviou  ao  Maranhão,  por  terra,  os  capitães  Pedro 
Teixeira  e  António  da  Costa  e  despachou  para  Portugal 
o  piloto  António  Vicente,  com  os  capitães  André  Pereira 
e  António  da  Fonseca,  afim  de  sollicitarem  de  Jeronymo 
de  Albuquerque  e  do  governo  da  metrópole  promptos 
reforços. 

A  expedição  terrestre  ao  Maranhão  partiu  do  Pará  a 
7  de  Março  de  1616  e  gastou  dois  mezes  do  penosa  via- 
gem para  chegar  ao  seu  destino,  tendo  escapado  de  cahir 
em  uma  cilada  que  lhe  armaram  os  Índios  de  C;iethé. 
porém  os  soccorros  pedidos  foram  promptamente  en- 
viados em  varias  canoas  sob  o  commando  de  Custodio 
Valente,  Consistia  esse  reforço  em  trinta  arcabuzeiros, 
muitos  Índios  frecheiros  e  o  valor  de  dois  mil  cruzados 
em  fazendas  de  resgate. 

Os  soccorros  pedidos  a  Lisboa  chegaram  somente 
em  1617.  A  esquadrilha  que  os  trouxe  era  commandada 
por  Manuel  de  Souza  d'Eça^  vindo  com  elle  quatro  mis- 
sionários capuchinhos. 

Nesse  ínterim,  sabendo  Caldeira  que  se  achava  an- 
corado na  costa  um  grande  navio  hollandez,  mandou 
contra  elle  Pedro  Teixeira  acompanhado  de  vinte  homens 
que  se  embarcaram  em  duas  canoas  e  abordaram  o  vaso 


SEGUNDA   EPOCHA  391 


estrangeiro  com  tanta  felicidade  que  o  metteram  a  piqiio 
em  pouco  fundo,  de  onde  o  mesmo  Teixeira  tiro  i  do 
mar  as  peças  que  para  Caldeira  foram  de  grande 
utilidade. 

Pouco  depois  tendo  um  sobrinho  de  Caldeira  assas- 
sinado um  oflicial,  foi  preso  e  processado,  porém  logo 
posto  em  liberdade  por  acto  arbitrário  do  capitão-mór. 
Os  amigos  do  morto  indignaram-se  e  protestaram  com 
vehemencia,  asyiando-se  n(j  c  jnvento  dos  capuchinhos. 
Irritado  Caldeira  mandou  arrancal-os  desse  asylo,  porém 
a  força  revoltou-se  e  o  depoz,  acclamando  em  seu  lugar 
o  capital)  Balihazar  Rodrigues  de  Mello,  facto  que  occor- 
reu  em  Setembro  de  1617.^ 

Os  Índios  aproveilaram-S6  das  dissenções  que  rei- 
navam na  cidade, e,  chefiados  pelo  morubixaba  Guaimia- 
ba  (1)  assediaram  Belém  eatacaram-n'a  em  7  de  Jau'  iro 
de  1618,  sendo  repellidos  e  morrendo  na  acçáo  o  referido 
Guaimiaba. 

O  governador  geral  e  Jeronyino  de  Albuquerque,  ao 
saberem  das  d»ísorclens  de  que  o  Pará  era  theatrc,  man- 
daram imtnediatamente  restabeh-cer  a  ordem  Jero- 
nymo  Fragoso  de  Albuquerque,  com  quatro  barcos  e 
Bento  Maciel  Parente,  que  do  Maranhão  se  oíTerecea  a 
passar  por  terra  ao  Pará . 

Chegou  Jeronyino  Fragoso  ao  Pará  e  fez  levantar 
um  novo  cerco  que  os  Índios  tinham  posto  a  Belém, 
onde  já  a  fome  se  fazia  sentir.  Enviou  presos  para  Vo:- 
tugal  não  feó  Caldeira  e  seu  sobrinho,  omo  Baltha- 
y.ar  Rodrigues,  capitão  mór  acclamado  e  em  seguida 
partia  em  pcrs  'gaição  dos  índios,  chegando  a  internar- 
sj  duzentas  léguas. 

Bento  Maciel  chegou  depois  e  applícou-se  exclusi- 
vamente em  captivar  índios,  missão  em  cujo  desempe- 
nho commetteu  laes  barbai-idadesque  Jeronymo  Fragoso 
se  indignou  e  o  chamou  á  ordem,  no  que  não  foi  res- 
pe  tado,  allegaiid  )  o  mesmo  Maciel  que  só  tinha  de  pres- 
tar contas  ao  capitão  d  j  mór  de  Pernambuco,  que  o  des- 
pachara. 

Estado  íudepcadi^iito  do  lliEranhao. — Como 
já  dissemos,  por  carta  regia  de  13  de  junho  de  1621  foi 


(1)  Nome  que    quer   dizer  em    linf^ua    tupy    —    Cabello    de 
velha. 


392  HISTORIA  DO   BEASIL 

organisado  definitivamente  o  novo  Estado  do  Maranhão, 
independente  do  Brazi!  e  abrangendo  as  tres  capitanias 
do  Maranhão,  Pará  e  Ceará,  sendo  seu  primeiro  gover- 
nador Francisco  d'Albuqu(  rque  Coelho,  donatário  da 
Parahyba  e  filho  de  Feliciano  Coelho,  o  qual  só  em  1626 
tomou  posse  do  cargo. 

«  A  organisação  dada  ao  novo  centro  de  vida  colo- 
nial, diz  Martins  Júnior,  niodelou-se  exactamente  pela 
do  Brasil.  Vamos  encontrar  nas  capitanias  do  Maranhão 
os  mesmos  funccionarios  e  as  mesmas  regras  adminis- 
trativas e  judiciarias  quevimos  e  examinamos  nas  terras 
sujeitas  au  governo  da  Bahia  ou  do  Rio  de  Janeiro.»   (1) 

Não  nos  chegou  o  regimento  dado  ao  governador, 
mas  pelo  que  se  forneceu  ao  ouvidor  Sebistião  Barbosa 
sabe-se  que  tinha  este  c<juri^dicção  por  acção  nova,  até 
cinco  léguas  em  derredor  do  districto  onde  estivesse,  nas 
causas  tanto  eiveis  como  crimes,  não  só  dos  moradores 
e  naturaes,  como  dos  capitães,  soldados  de  gente  de 
guerra,  f-entenciando-os  afinal,  ou  dando  appellação  ou 
aggravo,  nos  ca?os  excedentes  á  sua  alçada,  para  a  casa 
da  supplicação  de  Lisboa.  A  alçada  foi-lho  marcada  até 
dezeseÍ5  mil  réis  nos  bens  de  raiz,  vinte  nos  moveis,  po- 
dendo impor  penas  até  de  quatro  n  il  réis. 

Conheceria  das  appellações  e  aggraA'OS  interpostos 
dos  ouvidores  capitães  do  seu  districto.  Aos  escravos  e 
peões,  em  causas  crimes,  podia  mandar  açoutar  e  tanto 
a  estes  como  aos  de  mór  qualidade  mandar  degradados 
para  fora  do  seu  districto,  e  em  certos  crimes  atrozes  po- 
deria, combinando  com  o  governador,  impor  pêra  ul- 
tima, excepto  aos  de  mór  qualidade.  Poderia  passar 
cartas  de  seguro  e  alvarás  de  fiança,  e  conceder  perdões, 
com  assentimento  do  gc^vernador,  du;is  vezes  por  anno, 
pelo  Natal  e  Endoenças.  Faria  o  oíficiode  provedor  em- 
quanto  este  cargo  não  fosse  creado  e  preencher  interi- 
namente em  ausência  do  governador,  os  officios  do  jus- 
tiça vagos.  Tiraria  annualmonte  não  só  as  devassas 
designadas  nas  Ordenações,  como  outras  acerca  de  con- 
trabando de  páu  brasil,  commercio  illiciío  com  estran- 
geiros, descimentes  de  Índios  e  doshumens  casados  com 
mulheres  ausentes  no  Reino  por  mais  tempo  do  que  o 
permittido  nas  leis.   Não  poderia,   finalmente,  r^er  sus- 

(1)  Vargnagen  — i/ts2Íorfa  Geraldo  Brasil. 

(1)  Martins  Júnior  '—Historia  do  Direito  Nacional, 


SEGUNDA  EPOCHA  393 


penso  pelo  governador  ;  devendo  este,  em  caso  de  com- 
metter  o  ouvidor  algum  crime,  autoal-o  e  envial-o 
perante  o  rei.  » 

itSdeiaM  do   índios  para  defosta   da  costa. — 

Durante  o  governo  de  Luiz  de  Souza  ordenou  a  metró- 
pole que  se  estabelecesse  um  acampamento  de  duzentos 
Índios  numa  aldeia  fronteira  á  ilha  de  Sant'Anna  onde 
os  contrabandistas  do  páu  brasil  costumavam  desem- 
barcar. 

O  Índio  Manuel  de  Souza,  neto  de  Arariboia  e  mo- 
rubixaba da  aldeia  de  S.  Lou'-eiiço  do  Rio  de  Janeico  foi 
o  commandante  desse  estabelecimento.  A  um  tio  do 
mesmo  Manoel  de   Souza  coube  o  conimanda  de  outro. 

Foram  creados  estes  aldeiamentos  na  presumpção 
de  que,  embora  os  Índios  não  pudessem  tolher  o  desem- 
barque dos  contrabandistas,  podiam  por  suas  ciladas 
tornar  se  tão  nocivos  aos  entrelopos  quo  estes  não  se 
aventurassem  a  cortar  a  madeira. 

lliiias  de  salitro  em  Sier^ipe. — Foram  en- 
contradas nessa  epocha  na  capitania  de  Sergipe  minas 
de  salitre  de  que  se  podiam  tirar  por  anno  dois  mil 
quintaes  e  como  Portugal  sentia-se  da  falta  deste  artigo 
ordenou  a  metrópole  que  se  fundasse  no  Brasil  uma  fa- 
brica de  pólvora,  devendo  ir  de  Lisboa  uma  pessoa  pra- 
tica no  fabrico. 

Ordenou  mais  a  metrópole  que  si  por  acaso  appa- 
recessem  novas  minas  em  outras  capitanias  cumpria  ao 
governador  mandar  a  Portugal  amostras  da  mesma. 

Fallecendo  Jeronymo  Fragoso,  procedeu-seá  eleição 
recahindo  ella  no  capitão  Custodio  Valente,  ao  qual  se 
deu  por  conselheiro  e  adjunto  o  commissario  dos  capu- 
chos frei  António  de  Morciana. 

Disputaram  o  cargo  Bento  Maciel,  Mathias  d' Albu- 
querque e  o  capitão  Pedro  Teixeira. 

Bento  Maciel  recorreu  ao  governador  geral,  conse- 
guindo que  este  o  preferisse  para  capitão  mór,  sendo 
confiada  a  Pedro  Teixeira  a  commissão  de  abrir  ou 
fazer  mais  praticável  a  communicação  terrestre  fluvial 
até  o  Maranhão. 

O  primeiro  trabalho  d«.^  Maciel  toi  construir  para  a 
dcfciísa  de  Belém  um  forte  todo  de  taipa,  com  portadas 
de  alvenaria  e  três  baluartes  com  fosso,  ao  qual  deu  o 
nome  de  Presépio. 


394  HISTORIA  DO  BRASIL 

Pr4.Tideiicias  para  a  fortificação  da  costa. 

— Era  geral  o  receio  de  um  vigoroso  ataque  ás  povoa- 
çõ  'S  do  littoral  brasileiro  nessa  epocha  de  que  tratamos 
e  por  isso,  além  da  situação  de  aldeãs  de  indios  amigos 
em  diversos  pontos  da  costa,  fez  o  governador  restau- 
rar e  augmontar  os  fortes  das  capitanias  da  Parahyba  e 
Espirito  Santo  e  lembrou-se  até  de  fortificara  ilha  de 
Fernando  de  Noronha,  o  que  no  entanto  não  realisou. 

A  corte  d'3  Hespanha  ordenou  também  a  D.  Luiz 
do  Souza  que  mandasse  duas  caravellas  para  explora- 
rem bem  de  um  lado  e  de  outrj  o  estreito  de  Maga- 
lhães, levantar  mappas  e  averiguar  si  não  haveria 
alguma  posiçã )  que.  bem  fortificada  do  ninasse  a  passa- 
í^em,  porém  esta  idéa  foi  logo  abandonada  á  vista  das 
representações  de  D.  Luiz. 

Leis  iiiiqiiiis  contra  os  estrangeiros.  — 
Sabendo  a  metrópole  que  em  Amsterdam  preparavam-se 
dois  navios  para  piratearem  nos  mares  brazileiros,  tra- 
ficarem em  alta  escala  com  os  productos  do  paiz  e  em 
ultiiua  analyse  tentar  uma  investida  conti-a  o  Maranhão 
exasperar  im-se  os  ânimos  e  em  1617  a  corte  ordenou 
que  fosse  expulso  do  Brazil  todo  o  qualquer  estrangeiro 
que  a  |ui  se  achasse  estabelecido,  sem  resptito  a  pessoa 
alguma,  embora  tivesse  tirado  licença  para  residir. 

Esta  barbara  ordem  foi  no  emtanto  revoga  ia  d'ahi 
ha  un  mez,  encarresando-se  o  governador  de  remetter 
á  metrópole  uma  lista  de  todos  os  estranhos  que  hou- 
vesse no  Brizil,  com  informações  exactas  sobre  o  com- 
portamento de  cada  um,  o  conceito  que  gozava,  impor- 
tância da  sua  fortuna  e  modo  de  vida  que  seguia.  Se  por 
acaso  houvessem  suspeitas  serias  de  que  alguns  man  - 
tmham  relações  com  os  contrabandistas  deviam  elLes 
ser  presDS  e  remettidos  a  Lisboa  ou  internados  em  lega- 
res onde  não  podessem  fazer  mal. 

Tal  era  o  receio  que  se  apoderou  do  governo  da 
metrópole  de  ver  o  Brazil  invadido  por  estrangeiros  que 
tendo  os  Argelinos  saqueado  a  ilha  de  Santa  Maria  nos 
Açores  e  captivado  os  seus  habitantes  avisou  a  corte  a 
D.  Lu"z  de  Souza  que  se  precavesse  contra  esses  terrí- 
veis piratas. 

Desconfiança  contra  o  filho  ile  D.  plutónio. 
—  Não  era  só  dos  estrangeiros  que  Felippe  de  Castella 
arreceiava-se  pela  sua  opulenta  colónia  do  Brazil.  Igual- 
mente  temia  qualquer  tentativa  de  D.  Manoel,  filho  de 


SEGUNDA  EPOCHA  395 


D.  António,  prior  do  Crato,  a  quem  succedera  nas  pre- 
tenções  á  coroa  de  Portugal  e  que  entretinha  correspon- 
dência com  os  seus  partidários  do  Brazil,  entre  os 
quaes  um  tal  Francisco  que  tinha  o  posto  de  capitão  na 
Parahyb  i,  e  residia  perto  da  cidade  da  Bahia. 

Ordens  muito  enérgicas  foram  transmittidas  ao 
governador  afim  de  abrir  rigorosa  sindicância  a  respeito, 
procedendo  no  entanto  com  a  máxima  reserva. 

llonopolio  da  pesca  das  baleias.— Dui  ante  o 
governo  de  Gaspar  de  Souza  um  individuo  obteve  me- 
diante 50-3  annuars  o  monopólio  da  pese  i  das  baleias, 
facto  esse  que  descontentou  a  muitos,  pois  dessa  indus- 
tria tiravam  satisfatórios  rendimentos  grande  numero 
de  pessoas  da  classe  pobre.  Enectivaniente  tão  rendosa 
era  essa  pesca  que  ao  findar  o  governo  de  Luiz  de  Souza 
appareceu  uma  oíTerta  de  setecentos  mil  reis  para  o 
arrendamento  dessa  pescaria  durante  cinco  annos. 

A  proposta  foi  logo  aceita  pelo  governador  da  me- 
trópole porém  D,  Luiz  de  Souza  com  tanto  calor  com.- 
bateu  essa  resolução  e  taes  argumentos  formulou  que  a 
corte  vacillou  no  seu  emprego. 

Diz  South ey:  «  D.  Luiz,  cuja  administração  chegara 
ao  seu  termo,  representou  francamente  que  a  justiça  e 
legalidade  deste  monopólio  eram  mui  questionáveis ; 
que  como  medida  era  desnessaria  para  o  Estado,  sendo 
para  o  povo  onerosa  nos  réus  effeitos  directos  sobre  o 
commercio.  Havia  muitos  jesuitas,  dizia  elle,  que  em 
conversa  tinham  emittido  a  opinião  que  semelhante 
cousa  não  podia  ter  fundamento  legal  nem  equitativo. 
O  rei  podia  lançar  um  imposto  sobre  cada  baleia  que  se 
apanhasse,  e  sobre  o  azeite  que  delia  se  extrahisse  ;  era 
esta  sua  indubitável  prerogativa,  si  lhe  parecesse  bom 
fazel-a  jvaler,  e  todos  seriam  em  consciência  obrigados 
a  pagar  o  direito;  mas  converter  em  monopólio  uma 
pesca  que  era  livre,  era  o  que  como  soberano  catholico 
e  christão  não  podia  fazer  (1). 

«  Tão  livre  era  no  Brazil  a  linguagem  do  direito  no 
reinado  dos  Felippes.  Nem  disto  havia  necessidade, 
proseguia  o  ex-governador.  pois  que  pagas  todas  as 
obrigações  do  thesouro,  deixava  elle  no  erário,  ao  en- 
tregar a  administração,  um  saldo  de  cincoenta  mil  cru- 

(1)  SovTHEy.^ Historia  do  Brazil. 


396  HISTOEIA  DO  BRASIL 

zados,  dos  quaes  dez  mil  em  dinheiro  ;  e  o  contrario  se 
tornaria  intolerável  oppressão,  acoitando-se  os  termos 
do  proponente,  que  exigia  que  não  se  lhe  taxasse  o  preço 
ao  azeite. 

«  Poria  isto  a  mercê  do  c^ntractor  os  engenhos 
para  os  quaos  era  este  producto  de  tão  in.leclinavel  ne- 
cessidade. Talvez  se  attendesse  a  esta  parte  da  represen- 
tação de  D.  Luiz  de  Souza,  mas  não  era  provável  que 
um  governo  que  embora  prospero  no  Brazil,  se  achava 
envolvido  em  grandes  despezas  na  Europa, abandonasse 
nm  monopólio  que  lhe  haviam  posto  nas  mãos  e  toda  a 
])escaria  começou  desde  então  a  fazer-se,  já  por  con- 
tracto, já  por  conta  da  coroa.» 

A  pesca  das  perolns.  —  Durante  o  governo  de 
D.  Luiz  de  Souza  propalou-se  que  Gonçalo  da  Costa 
d'Almeida  e  João  Peres  haviam  descoberto  pérolas  nos 
mares  que  banhavam  a  capitania  do  S  Vicente;  como, 
porém,  não  havia  certeza  sobre  o  precioso  achado  deixou 
o  governo  que  os  aventureiros  se  encarregissem  de  de- 
monstral-o  por  sua  conta,  porém  a  metrópole  mandou 
instrucções  secretas  a  D.  Luiz  afim  de  que  protegesse  a 
p.3<cnria,se  f  sse  profícua, contra  corsários  e  contraban- 
distas que  de  qualquer  nação. 

Despezas  com  o  fiinceíaiinlisnif)  e  o  clero. — 
Proceieu-se  m  governo  geral  de  D.  Luiz  de  Souza  á 
fixação  das  despezas  com  o  funccionalismo  e  o  clero,  nas 
quae-í  até  então  nlo  tinha  havido  regularidade. 

Os  vencimentos  annuaes  do  governador  e  de  vinte 
empregados  public  )S  não  excediam  a  2:000.s000,  in- 
cluindo 400$000  que  todos  os  annos  deviam  ser  dis- 
tribuidos  em  remuneração  de  serviços  públicos.  O  bispo 
e  seu  cabido  percebiam  annualmeute  2:8S4S000;  os 
vigários  das  doze  parochias  da  capitania  da  Bahia  rece- 
biam de  côngrua  annualmente  setenta  e  três  mil  nove- 
centos e  vinte  reis  ;  os  capuchinhos  d  i  cidade  recebiam 
82S000  também  por  anno ;  os  benediclinos  outro  tanto 
e  os  jesuítas  120S000. 

A  despeza  total  da  capitania  da  Bahia  era  de 
6SIS840  e  todos  os  estabelecimentos  civis,  judicia  ^s, 
militares  e  ecclesiasticos  apaaas  consu  niam  quinze  mil 
libras  annualmeate.  attenden  lo-se  po-'ém  que  essas 
quantias  correspondem  a  o  itras  miiito  avultadas  hoje, 
pela  grande  depreciação  qu^  os  metaes  sofTreram  de 
então  para  cá . 


SEGUNDA  EPOCHA  397 


Franquia  áas  luinas».  —  Como  as  minas  até 
então  descobertas  e  exploradas  exclusivamente  pela 
Coroa  náo  tivessem  compensado  sufficientemente  as 
grondes  despezas  feitas  pelo  erário  publico  com  as  ex- 
pedições ao  sertão  e  com  os  trabalhos  de  mineração, 
resolveu  a  metrópole  franquear  as  minasao  povo,  es- 
perando que  a  iniciativa  particular  aplainasse  as  diffi- 
culdades  que  se  oppunham  á  chegada  do  rei  e  seus 
prepostos  aos  filões  auríferos  e  argentinos. 

Belchior  Dias  lloreya.  —  Cabe  falarmos  aqui 
do  maior  explorador  de  minas  dessa  epochi  —  Belchior 
Dias  Moreya,  o  homem  que,  segundo  se  exprime  o  Dr. 
Felisbello  Freire,  foi  o  centro  de  todo  o  movimento  de 
mineração  d'aquelles  tempos. 

Até  bem  pouco  t^mpo  as  ousadas  explorações  de 
Belchior  Dias  Moreya,  bem  como  as  suas  viagens  a  Por- 
tugal em  demanda  de  mercês  honorificas,  eram,  a 
acreditar-se  nas  affirmações  de  Rocha  Pitta,  attribuidas 
a  um  filho  natural  de  Belchior  —  Rubelio  Dias.  Hoje, 
porém,  pelos  laboriosos  estudos  feitos  sobre  o  assumpto 
pelo  erudito  professor  Capistrano  de  Abreu  ficou  pro- 
vado que  o  grande  explorador  de  minas  foi  Belchior 
Moreya  e  o  que  se  conta  de  Rubelio  não  passa  de 
lenda. 

Segundo  uma  carta  dirigida  ao  conde  de  Sabugosa 
em  1725  pelo  coronel  Pedro  Barboza  Leal  sabe-se  o 
seguinte  : 

«  Belchior  Dias  Moreya  (Caramurú)  era  descendente 
de  Diogo  Alvares  e  foi  um  dos  primeiros  naturaes  da 
Bahia. 

«  Vivia  no  Rio  Real  (Sergipe)  e  era  primo  de  Gabriel 
Soares. 

c<  Fez  diversas  entradas  pelos  sertões  da  Bahia  de 
Sergipe  e  de  Pernambuco  e  em  uma  delias  demorou-se 
oito  annos,  nella  descobrindo  minas  de  salitre,  ame- 
thystas,  prata  e  ouro. 

«Embarcou  para  Portugal,  diz  o  coronel  Leal, 
passou  á  corte  de  Hespanha,  declarou  os  haveres  que 
tinha  achado,  pretendeu  mercês,  e  ou  porque  julgassem 
altas  as  mercês,  ou  porque  julgassem  que  por  ser  na- 
tural do  Brazil  não  merecia  nenhuma  attenção,  o  trou- 
xeram quatro  annos  em  requerimentos,  até  que  desen- 
ganado voltou  para  ser  deferido. 


398  HISTOKIA  DO  BRASIL 

«Passou  segunda  vez  a  Portugal  e  em  dois 
annos  de  pretendente  sem  conseguir  cousa  alguma 
tornou  a  voltar  para  o  B.-asil.  Terceira  vez  intentou  o 
mesmo  mandando  seu  sobrinho  Domingos  de  Araújo, 
remettido  ao  conde  de  Almirante  com  todas  as  in- 
strucções. 

«  Voltou  da  mesma  sorte  sem  despacho  algum. 

«Achou-se  neste  tempo  governando  Pernambuco  D. 
Luiz  de  Souza,  avô  ou  bisavó  do  marquez  das  Minas, 
e  tendo  noticia  dos  grandes  descobrimentos  que  havia 
feito  coarctasse  nas  mercês  que  pretendia  de  Sua  Ma- 
gestade  que  elle  queria  ser  seu  procurador  para  na 
corte  alcançar  aquellas  que  pudesse  conseguir.  Sujeitou- 
se  o  velho  Melchior  Dias,  áquelle  Mecenas,  cansado 
já  de  seu  trabalho,  de  sua  velhice  e  de  tantos  baldados 
requerimentos. 

«Protegeu  D.  Luiz  de  Souza  o  requerimento  de 
Belchior  Dias  na  corte,  offerecendo-se  para  com  elle 
examinar  e  certificar  umas  e  outras  minas,  alcançando 
em  primeiro  logar  a  promessa  do  titulo  de  marquez  das 
Minas  para  si,  que  entáo  teve  principio  este  titulo,  tendo 
a  sua  confirmação  do  Rei  D.  João  VI  e  para  Bel- 
chior Dias  algumas  mercês  que  se  lhes  destinaram. 
Conseguindo  este  despacho,  escreveu  D.  Luiz  de  Souza, 
de  Pernambuco,  a  Belchior  Dias  que  Sua  Magestade 
tinha  deferido  as  mercês,  cujo  escripto  ficava  em  suas 
mãos  para  lh'o  entregar  quando  se  ajustassem  áquella 
diligencia  e  que  em  tal  tempo  o  fosse  esperar  no  rio  de 
S.  Francisco  para  ahi  se  incorporarem  e  darem  prin- 
cip  o  ao  descobrimento,  cuja  carta  firmada  pelo  dito 
governador  D.  Luiz  de  Souza  se  acha  em  meu  poder. 
Resolveu-se  depois  vir  á  Bahia  incorporar  com  o  go- 
vernador delia  o  Sr.  D.  Francisco  de  Souza,  seu  primo 
para  ambos  fazerem  entrada  no  reconhecimento  das 
minas.  Desceu  Belchior  Dias  à  Bahia  para  guiar  e 
acompanhar  os  governadores,  como  fez. 

«  Parece  que  Belchior  Dias  Moreya  com  o  uso  das 
vezes  que  foi  aquellas  cortes  se  fez  politico  e  soube  se- 
guir algumas  máximas  que  nellas  se  praticam,  porque 
contam  seus  descendentes  que,  tendo  peitado  e  obrigado 
a  um  pagem  particular  de  um  dos  governadores  ;  este 
seado  inconfidente  a  seu  amo  revelara  a  Belchior  Dias 
que  conversando  ambos  os  governadores  sobre  as 
mercês  que  el-rei  lhe  fazia,  dissera  um  para  o  outro  :  — 


SEGUNDA  EPOOHA  399 


Mostre  elle  as  minas,  que  o  caboclo  para  que  quer 
mercês?  do  que  precedeu  entrar  em  desconfiança  do 
que  resultou  o  seguinte  :  Partiram  da  Bahia  os  dois 
governadores  com  Belchior  Dias  que  os  levou  direito  á 
serra  da  Itabaiana  e  que  chegando  a  ella  dissera  aos 
governadores  que  suas  senhorias  estavam  com  os  pés 
nas  minas,  mas  que  não  lhas  mostrava  emquanto  elles 
não  lhe  entregassem  primeiro  as  cartas  de  mercês  que 
Sua  Magestape  lhe  fazia. 

«Ao  que  ellts  lhe  responderam  que  mostrasse  as 
minas,  que  as  mercês  estavam  certas,  e  se  lhes  entre- 
gariam o  alvará  de  Sua  Magestade  d(.pjis  que  as 
mostrasse. 

c<  Parece  que  ao  mesmo  tempo  que  cresceu  a  duvida 
em  os  governadores  crescia  mais  a  desconfiança  em 
Belchior  Dias,  que  se  resolveu  a  não  patentear  os  des- 
cobrimentos, pelo  que  se  precisaram  os  governadores 
a  prendel-o,  querendo  por  este  meio  obrigal-o  a  mostrar 
o  que  sabia,  e  vendo-se  preso  os  levou  a  um  serrote 
que  chamam  das  minfis  em  meio  dos  campos  de  Ita- 
baiana, em  o  qual  se  fazendo  exame  se  achou  umas 
pedras  cravadas  de  niarquesita  que  não  deram  de  si 
prata  alguma,  á  vista  do  que  voltaram  os  governadores 
para  a  praça  da  Bahia  e  Belchior  Dias  preso  na  cadeia 
delia  o  obrigavam  a  pagar  os  nove  mil  cruzados  que 
se  tinha  feito  na  despeza  da  jornada. 

«Vendo-se  Belchior  com  dois  annos  de  prisão  e 
por  não  pagar  os  nove  mil  cruzados  se  resolveu  em 
descobrir  e  mostrar  o  que  sabia  ao  que  acudiram  Pedro 
Garcia,  o  velho  e  outros  parentes  escandalisados  do 
mau  tratamento  que  lhe  haviam  feito  os  governadores, 
dizendo  que  não  descobrisse,  nem  mostrasse  nada  e 
pagasse  os  nove  mil  cruzados  que  lhe  suppririam  com 
elles,  e  com  effeito  pagou  os  nove  mil  cruzados,  foi 
solto  para  o  rio  Real,  aonde  passados  dois  ancios 
morreu,  deixando  todas  as  noticias  d'aquelles  desco- 
brimentos sepultadas  com  a  sua  morte  que  succedeu 
em  o  anno  de  1619,  tendo-se  passado  mais  de  um  século 
sem  que  se  tenha  com  certeza  averiguado  o  logar 
d'aqueílas  minas.  » 

O  titulo  de  marquez  das  Minas,  tão  cubicado  pelo 
inditoso  Belchior  Moreya  foi  conferido  aniios  depois  ;i 
um  descendente  de  D.  Luiz  de  Souza,  o  cruel  martyri- 
sador  de  Belchior. 


400  HISTORIA  DO   BRASIL 

Terminação  da  trégua  na  guerra  liispano- 
bollandeza. — No  anno  de  1621,  em  que  D.  Luiz  de 
Souza  concluía  o  seu  governo,  terminnva-se  na  Europa 
a  trégua  que  os  Paizes  Baixos  haviam  celebrado  com  a 
Hespanha  em  1609.  Não  sendo  a  mosn  a  renovada  por 
não  o  querer  os  hoUandezes  que  se  sentiam  já  bastante 
fortes  para  tomar  a  offensiva  edesforrar-sedo  quehaviam 
soffrido  dos  reis  castelhanos  e  seus  preposíos  nos  Paizes 
Baixos. 

Depois  de  haver  figurado  como  Estado  indepen- 
dente, a  Hollanda  passou  a  fazer  parte  do  império  d'Aus- 
tria  pela  alliança  matrimonial  de  sua  princeza  Maria  de 
Borgonha  com  o  imperador  Maximiliano,  conservando 
no  emtantu  os  povos  seus  íóros  e  privilégios  constitu- 
cionaes,  não  idênticos  em  todas  as  cidades. 

Herdando  a  Áustria  tornou-se  Carlos  V  soberano 
da  Hollanda  e  ao  abdicar  passou  este  paiz  á  coroa,  reti- 
rando-o  da  submissão  ao  império. 

Philippe  II,  successor  de  Carlos  V,  dominado  pelo 
mais  sombrio  e  sanguinário  fanatismo,  á  semelhança  do 
seu  pai  que  trabalhava  tenazmente  pela  realização  da 
monarchia  universal,  preoccupava-se  com  a  ideia  de 
uma  só  religião,  pelo  menos  nos  seus  vastíssimos  do- 
mínios e  á  força  procurou  introduzir  no  paiz  dos  honestos 
e  laboriosos  lutheranos  e  calvinistas  flamengos  o  nefando 
tribunal  da  Inquisição. 

Explodio  a  revolta  contra  esse  despotismo  e  não 
obstante  a  carnificina  executada  pelo  duque  d'Alba,  por 
ordem  do  Demónio  do  Meio  Dia,  os  hoUandezes  conse- 
guiram pelas  mais  assignaladas  heroicidades  e  pela 
energia  e  civismo  de  Guilherme  o  Taciturno  e  Marnix 
de  Sainte  Aldegonde  sacudir  o  bárbaro  jugo  hespanhol. 
E  logo  que  se  viram  livres  organisaram  ama  pode- 
rosa marinha  de  guerra  e  continuaram  briosamenti  a 
guerra  contra  a  Hespanha. 

Em  1609  os  dois  paizes  concluíram  umas  tregoas 
por  dozeannos,  porém  antes  mesmo  que  terminasse  esse 
prazo,  isto  é,  em  1621,  o  povo  hollaudez  deu  por  findas  as 
referidas  tregoas,  ancioso  como  se  achava  de  obter  justa 
vingança  contra  os  seus  antigos  algozes  e  também 
movido  pela  sede  de  riquezas  que  essa  guerra  poderia 
satisfazer,  já  com  a  captura  dos  soberb  s  galtõjs  hes- 
panhóes,  já  pela  probabilidade  de  um  ataque  bem  suc- 
cedido  em  terras  ,do  Brazil . 


CAPITULO  IX 


GOVERNO  GERAL  DE  DIOGO  DE  MENDONÇA 
FURTADO 


Diogo  de  Mendonça  Furtado,  successor  de  D.  Luiz 
de  Souza  na  governação  geial  do  Biazil,  foi  empossado 
a  12  de  Outubro  de  1621. 

E'  memorável  o  seu  governo  porque  durante  elle 
apoderaram-se  os  hollandezes  da  Bahia,  capital  do  Es- 
tado do  Brasil,  sendo  elle  próprio  feito  prisioneiro. 

Uesitruiçfto  dos  estabelecimentos  estrau- 
geiros  no  Aiuazoiías. — Com  o  intuito  de  destruir  os 
diversos  estabelecimentos  de  hollandezes  e  francezes 
que  se  haviam  formado  no  Amazonas  em  epochas  ante- 
riores á  daoccupação  do  Pará  por  Caldeira,  e  bem  assim 
impedir  que  navios  dessa  nacionalidade  continuassem  a 
traficar  com  os  selvagens  de  taes  regiões  despachou  a 
corte  de  Madrid  em  1621  Luiz  Aranha  de  Vasconcellos, 
em  commissão  especial,  eestefez-se  de  velapara  o  Brasil 
munido  de  provisões  para  que  todos  os  capitães-móres  o 
ajudassem  segundo  pudessem. 

Aportou  primeiro  Luiz  Aranha  em  Pernambuco 
onde  recebeu  de  Mathias  de  Albuquerque  uma  caravella 
com  dezessete  soldados  e  o  piloto  António  Vicente  Co- 
Ihado,  muito  pratico  na  navegação  dos  rios  do  Pará  e 
Amazonas,  emais  oito  mil  cruzados  em  fazendas. 

No  Rio  Grande  do  Norte,  o  capitão  André  Pereira 
Themudo  lhe  deu  quatro  soldados  e  no  Maranhão  obteve 
mais  quinze,  que  lh'os  deu  o  respectivo  capitão  António 
Muniz  Barreiros. 

Nesta  ultima  capitania  acabou  de  preparar-se,  re- 
unindo á  esquadrilha  grande  numero  de  canoas  e  uma 
multidão  de  Índios  frecheiros. 

Partiu  Luiz  Aranha  em  Maio  de  1622  e,  conforme  as 
instrucções  que  levava,  accordou  com  Bento  Maciel 
Parente,  capitão-mór  do  Pará,  que  a  exploração  come- 
çaria pelo  lado  do  sul. 

2Õ 


402  HISTORIA  DO  BBASIL 

Partiô  pois  Aranha  para  dar  cumprimento  á  sua 
missão  e  conseguio  logo  bater  um  magote  de  soldados 
hoUandezes,  pertencentes  á  guarnição  do  forte  Muturú, 
que  veio  atacal-o  á  noite;  peios  prisioneiros  soube  que 
no  dito  forte  havia  apenas  vinte  soldados  com  al- 
guns escravos  que  cultivavam  fumo.  lodos  ao  receberem 
a  intimação  vieram  entregar-se  com  escravos,  armas  e 
artilharia. 

Mandou  depois  Luiz  Aranha  três  soldados  8  qua- 
renta frecheiros  reconhecer  um  outro  forte  que  os 
hoUandezes  tinham  á  margem  do  Rio  Gurupá.  A  em- 
barcação foi  atacada  por  doze  canoas  de  Índios,  porém 
resistio  e  chegando  o  reforço  ale  inçou  Aranha  mais 
uma  victoria.  Os  do  torte  de  Gurupá,  em  numero  de 
trinta  e  cinco,  renderam-se  e  entregaram  a  artilharia  e 
as  armas. 

D'ahi  voltou  Luiz  Aranha  ao  Pará  afim  de  refazer-se 
para  atacar  duas  feitorias  inglezas  que  diziam  existir 
mais  para  o  centro  e  na  volta  encontrou-se  com  Bento 
Maciel  Parente  que  ia  em  seu  auxilio,  pois  constava  em 
Belém  que  Aranha  achava-se  cercado  pelos  Índios  do 
Gurupá. 

Resolveu-se  [então,  que  Aranha  volvesse  atraz  e 
bem  assim  Teixeira  em  outro  navio,  emquanto  Maciel 
costearia  com  as  canoas,  sondando  todos  os  rios  até  ao 
Gurupá  que  seria  o  ponto  de  juncção. 

Maciel  destruio  todos  os  entrincheiramentos  de 
francezes,  inglezes  e  hoUandezes  que  encontrou  no 
Gurupá,  queimou  diversas  feitorias  e  depois  dirigio-se  â 
ilha  dos  Tucujús  cujas  fortificações  foram  abandonadas 
ao  approximar-se  os  portuguezes.  Sabendo  ahi  que 
em  soccorro  dos  habitantes  que  se  haviam  internado 
npproximava-se  um  possante  navio  hoUandez,  pro- 
curou altacal-o  e  conseguio  abordal-o.  sendo  extermi- 
nada toda  a  tripolação  com   excepção  de  um  mancebo. 

Voltou  novamente  Maciel  ao  Gurupá  e  edificou  um 
forte  no  logar  chamado  Mariocay,  dando-lhe  o  nome  de 
Santo  António. 

Estava  terminada  a  expulsão  dos  estrangeiros  do 
Amazonas.  Maciel  regressou  a  Belém  adoptando  o  ti- 
tulo ,  de  Prmeí>o  descobridor  e  conquistador  dos  rios 
das  Ama:sonas  e  do  Curupá,  titulo  íalso  que  Luiz 
Aranha  disputou-lhe  e  também  adoptou,  comquanto 
nem  um  nem  outro  o  merecessem,  pois  essa  gloria  de 


SEGUNDA  BPOOHA  403 


ha  muito  tiaha  sido  decernida  pela  historia  a  Orellana  e 
a  Lope  de  Aguirre  e  até  ao  piloto  portuguez  conhecido 
pelo  nome  de  Meirinho,  do  qual  nesse  tempo  ainda 
existia  um  roteiro  para  a  diííicil  navegação  por  entre  as 
numerosas  ilhas  do  Amazonas  e  seus  aííluentes. 

Compaohia  hollandeza  das  Cndias  Ooci- 
dentaos.— No  mesmo  anno  de  1621  em  que  terminava 
o  prazo  da  trégua  ajustada  entre  a  Hespanha  e  a  Hol- 
landa,  outorgava-so  neste  ultimo  paiz  peia  patente  de  3 
de  Janeiro  licença  para  a  creação  da  Companhia  das 
índias  Occidentaes,  empreza  commercial  e  militar  mo- 
delada pela  da  antiga  companhia  das  índias  Orientaes 
que  tão  lucrativa  fora  aos  Paizes  Baixos  por  occasião 
de  explorar-se  as  regiões  situadas  em  Africa  e  Ásia. 

A  Companhia  das  índias  Occidentaes  tinha  por  fim 
principal  fazer  conquistas  no  Brasil  e  especialmente 
apoderar-se  da  Bahia  e  Pernambuco  que  eram  então  os 
mais  importantes  núcleos  coloniaes  e  agrícolas  desse 
Estado  e  chegou  a  organizar-se  seriamente,  embora 
muitas  municipalidades  se  oppuzessem,  combattendo-a 
com  argumentos  que  demonstravam  ser  ella  muito  dis- 
pendiosa e  mais  que  incertos  os  seus  resultados. 

Os  Estados  Geraes  facultaram  á  Companhia  o  di- 
reito exclusivo  de  commerciar  durante  vinte  e  quatro 
annos  em  quasi  toda  a  America  e  Africa,  nomear  gover- 
nadores e  mais  empregados,  concluir  tratados  de  al- 
liança  e  de  commercio  com  os  indígenas  e  construir 
fortes,  tudo  mediante  prévio  juramento  prestado  ao  pre- 
sidente da  Republica. 

Obrigavam-se  mais  os  Estados  Geraes,  afim  de 
gosar  dos  lucros  auferidos  pela  companhia,  a  pagar 
duzentos  mil  florins  durante  cinco  annos. 

Seu  capital,  que  no  começo  era  de  pouco  mais  de 
sete  milhões  de  florins,  logo  elevou-se  a  dezoito  milhões. 

Era  ella  composta  de  cinco  secções,  de  differentes 
estados,  tendo  cada  uma  seus  chefes,  sendo  no  emtanto 
a  administração  geral  confiada  a  desenove  directores  ou 
deputados  das  diversas  secções,  na  ordem  proporcional 
aos  fundos  de  cada  um,  isto  é,  oito  por  Asterdam,  quatro 
pela  Zelândia,  duis  por  Groiiingue  e  os  outros  pelos 
Estados  Geraes. 

Logo  que  se  constituio  a  Companhia,  organisou  ella 
uma  grande  esquadra  cujo  commando  foi  confiado  ao 
almirante  Jacobo   Willekens,   tendo  por  immediaft)  o 


404  HISTOEIA  DO  BRASIL 

vice-almirante  Pieter  Piet  Heyn,  nomeando  também 
Johaa  Van  Dorth  para  o  cargo  de  commandante  das 
tropas  e  governador  das  futuras  conquistas. 

Inipre% idencia  da  metrópole.  —  A  côrte  de 
Hespanha  pelos  numerosos  espiões  que  tinlia  em  Ans- 
terdam  e  outras  cidades  da  Holianda  achava-se  perfeita- 
mente informada  dos  fins  da  Companhia,  mesmo  porque, 
como  diz  Varnhagen  na  sua  obra  Os  Hollandezes  no 
Brasil  « não  era  mysterioso  o  destino  immediato  da 
mesma  expedição.  Em  um  paiz  de  imprensa  livre, 
como  já  eram  as  Províncias  Unidas,  não  devia  ser  fácil 
conservar-se  o  segredo  em  um  assumpto  em  que  tantos 
estavam  interessados.  Todas  as  nolicicias  desde  1621, 
em  que  a  Companhia  fora  outorgada,  eram  concordes 
em  assegurar  que  a  mesma  expedição  se  destinava  ao 
Brasil,  e  designadamente  á  Bahia  ou  a  Pernambuco.  » 

Apezar  disso,  no  emtanto,  Philippe  IV  e  seu  mi- 
nistro o  Conde  Duque  de  Clivares  não  agiram  como 
convinha,  afim  de  resguardar-se  do  terrível  golpe  que  se 
preparava  com  o  intento  de  cortar  as  correntes  que 
prendiam  ao  Escurial  a  opulenta  colónia  d'além  do 
Atlântico. 

Nada  ou  quasi  nada  fez  a  metrópole.  Apenas  Dom 
Diogo  de  Mendonça  Furtado,  ao  ser  nomeado,  recebeu 
ordens  para  fortificar  o  Brasil.  Como  porém  essas  ordens 
não  fossem  acompanhadas  dos  competentes  fundos, 
somente  conseguio  o  governador,  com  o  arbitramento 
de  uma  nova  contribuição  que  diíílcilmente  cobrou, 
guarnecer  os  fortes  já  feitos  e  levantar  uai  em  uma 
lage  que  havia  no  porto  (1). 

Fácil  devia  ser,  por  conseguinte,  aos  hollandezes, 
que  tão  bem  apparelhados  vinham,  apoderarem-se  da 
da  Bahia. 

Foi  o  que  aconteceu,  como  veremos. 

Perda  da  Bahia.  —  A  grande  esquadra  com- 
mandada  pelo  almirante  hollandez  Jacobo  AVillekens 
sahio  do  porto  de  Terei  em  Dezembro  de  1623  e  tendo-se 
dispersado  os  navios,  á  vista  de  Plymouth,  em  conse- 
quência de  um  temporal,  só  em  Cabo  Verde  poude-se  de 
novo  effectuar  a  juncção.  Depois  de  transposta  alinha 


(1)    Forte  de  N.  S.  do  Populo  ou  de  S.  Marcello. 


SEGUNDA  EPOCHA  405 


equinoxial,  outro  temporal  os  dispersou,  sendo  Van- 
Dorth  repeli  ido  para  a  Serra  Leoa. 

Willekens,  no  emtanto,  conseguio  romper,  mesmo 
contra  o  vento  e  ganhando  o  morro  de  S.  Paulo  que  fica 
a  doze  léguas  da  cidade  do  Salvador,  poz-se  a  capear 
ao  largo,  á  espera  de  Van  Dor  th,  esperando  também,  diz 
Southey,  «que  estM  demora  diminuísse  a  inquietação 
que  causara  o  seu  apparecimento,  suppondo  os  portu- 
guezes  que  elle  teria  vindo  alli  arribado.» 

Diogo  Furtado,  no  emtanto,  por  melhores  que  fossem 
as  suas  intenções,  achava-se  impossibilitado  para  ofíe- 
recer  uma  resistência  efficaz  :  na  cidade  apenas  havia 
uns  três  mil  homens  d'armas;  e  tendo  o  governador 
convocado  dos  arredores  todos  os  da  ordenança,  emba- 
raçou-o  o  bispo  D.  Marcos  Teixeira  que  começou  a  in- 
citar o  povo  adesobedecel- os,  pregando  a  desnecessidade 
de  reunir  na  cidade  tanta  tropa,  isto  por  questiúnculas 
de  amor  próprio  e  conflictos  de  jurisdicção.  » 

No  dia  8  de  Maio  de  1824  foram  avistadas  as  velas 
hollandezas,  sendo  immediatamente  tocado  rebate  na 
cidade. 

A'  vista  do  numero  das  naus  reconheceu  então  o 
bispo  quão  levianamente  procedera  hostilisando  o  go- 
vernador e  como  prova  de  sincero  arrependimento 
offereceu  a  D.  Diogo  Furtado  os  seus  próprios  serviços 
pessoaes  com  os  de  sua  casa  e  de  seu  clero  e  armados 
todos  os  clérigos  começaram  logo  a  montar  guarda, 
com  grande  satisfação  de  D.  Diogo,  que  por  sua  parte 
se  offereceu  a  sustentar  á  sua  custa  todos  os  que  preci- 
sassem desse  auxilio,  somente  para  que  ninguém  aban- 
donasse a  cidade. 

Na  madrugada  do  dia  9  os  hollandezes  forçaram  a 
barra,  passando  longe  do  alcance  do  canhão  dos  fortes, 
e  cinco  navios  fundearam  defronte  de  Santo  António, 
emquanto  os  demais,  com  a  almiranta,  seguiram  até 
pôr-se  em  linha  de  fronte  da  cidade,  sendo  esta  inti- 
mada pela  mesma  almiranta  com  um  tiro  de  pólvora 
secca  que  os  de  terra  responderam  com  balas  de  arti- 
lharia e  de  fusilaria . 

Então  os  hollandezes  assestaram  a  sua  artilharia 
contra  o  forte  do  mar  e  contra  a  cidade  e  começou  o 
bombardeio. 

Dentro  da  bahia  achavam-se  uns  quinze  navios 
portuguezes,  cujas  tripolações  logo  os  abandonaram  no 


406  HISTOSIA  DO   BBABIL 

começo  da  acção,  depois  de  lançar-lhes  fogo  que  os 
inimigos  conseguiram  extinguir  em  oito  delles. 

Em  seguida  atacaram  o  forte  e  facilmente  se  apo- 
deraram delle,  pois  a  guarnição  portugueza  não  chegou 
a  ferir  as  ultimas  pederneiras  de  seus  mosquetes,  e 
fugiu  tomada  de  pânico.  O  assalto  ao  íortefoi  coniman- 
dado  por  Pieter  Heyn,  que  foi  o  segundo  a  galgar-lhe 
as  trincheiras,  e  nesta  acção  os  hollandezes  perde- 
ram unicamente  quatro  homens. 

Considerando  Pieter  Heyn  que  a  sua  gente  estava 
extenuada,  e  que  o  forte  ficava  ao  alcance  dos  tiros 
da  praia,  encravou  as  peças  e  regressou  para  a  es- 
quadra. 

Nesse  Ínterim  mil  e  duzentos  soldados  hollan- 
dezes, sob  o  com  mando  de  Alberto  Schouten,  desem- 
barcaram perto  do  pontal  do  forte  de  Santo  António, 
apoderaram-se  do  forte  e  marcharam  sobre  a  cidade 
sem  encontrar  quem  lhes  embargasse  a  passagem, 
embora  fosse  empreza  de  fácil  execução,  pelos  muitoa 
desfiladeiros  que  existem  no  caminho.  Assim  mar- 
charam até  a  noite,  alojando-se  em  S.  Bento,  extra- 
muros . 

Os  moradores  da  Bahia,  sabendo  acharem-se  tão 
próximos  os  inimigos,  tomaram-se  do  um  pânico  in- 
descriptivel  e  fugiram,  levando  comsigo  os  objectos 
de  valor.  O  bispo  foi  um  dos  primeiros,  apezar  do 
arreganho  com  que  se  apresentara  para  montar  guarda. 

Os  fugitivos  marcharam  até  o  rio  Vermelho,  e 
como  o  rio  nâo  era  vadeavel,  ahi  se  arr.^ncharam, 
emquanto  os  hollandezes,  penetrando  na  cidade,  apri- 
sionavam o  governador  Diogo  Furtado  de  Mendonça, 
seu  filho  António  de  Mendonça,  o  ouvidor  geral  Pedro 
Casqueiro,  o  sargento-mór  Francisco  de  Almeida,  o 
provincial  dos  jesuítas,  quatro  frades  dessa  ordem, 
mais  quatro  irmãos  destes,  que  todos  foram  enviados 
para  Amsterdam,  e  assenhorearam-se  completamente 
da  cidade,  tratando  logo  de  entrincheirarem  por  meio  de 
fossos,  parapeitos  e  artilhando  baterias,  depois  do  que 
lançaram  uma  proclamação  convocando  os  habitantes 
a  regressar  ás  suas  casas,  sob  a  garantia  da  maior 
tolerância  religiosa,  liberdade  de  commercio  e  respeito 
á  propriedade — chamado  esse  ao  qual  poucos  acu- 
diram. 


■BOUNDA  EPOOHA  40T 


GoYerno  interino  da  Bahia  pelo  deaembar- 
g;ador  Antnio  de  Mesquita  deOilveira.  —  Tendo 
sido  ftito  prisioneiro  o  governador,  entenderam  os 
fugitivos  do  rio  Vermelho  que  podiam  abrir  as  vias 
de  successão,  pelas  quaes  se  soube  achar-se  designado 
Mathias  de  Albuquerque  para  o  cargo  de  governador 
geral ;  como  este,  porém,  se  achava  em  Pernambuco, 
fizeram  uma  eleição,  e  recahiu  a  escolha  no  desem- 
bargador António  Mesquita  de  Oliveira,  que  tomou  o 
titulo  de  Capitão-mór  do  Recôncavo,  sendo  logo  de- 
posto pelos  officiaes  da  camará,  que  escolheram  para 
substituil-o  no  exercício  de  tal  cargo  o  bispo  D.  Marcos 
António  Teixeira,  e  para  coronéis  da  milícia  os  brazi- 
leiros  António  Cardoso  de  Barros  e  Lourenço  Ca- 
valcanti. 

Ooyerno  Interino  da  Bahia  pelo  bispo 
D.  Marcos  Ferreira.  —  Logo  que  foi  empossado 
no  cargo  de  Capitão-mór  do  Recôncavo,  ordenou  o 
bispo  que  seiscentos  homens,  divididos  em  vinte  e 
sete  guerrilhas,  ou  companhias  de  emboscada,  de  vinte 
e  cinco  a  quarenta  indivíduos  cada  uma,  se  appro- 
ximassem  da  cidade,  ás  ordens  dos  dois  coronéis  bra- 
zileíros  Baaros  e  Cavalcanti,  ficando  o  primeiro  in- 
cumbido do  districto  de  S.  Bento  e  outro  do  districto 
do  Carmo,  únicos  pontos  pelos  quaes  a  cidade  era 
accessivel,  por  causa  do  dique,  incumbindo-se  o  pró- 
prio bispo,  com  os  demais  soldados,  em  numero 
superior  a  mil,  de  se  approximarem  também  da  cidade, 
fortificando-se  á  margem  do  Rio  Vermelho.  Assim  o 
fez  e  para  a  construcção  das  trincheiras  dobradas 
«  sendo  o  primeiro  que,  para  as  fazer,  tomou  a  en- 
seada e  cesto.  » 

As  companhias  de  emboscada  approximaram-se 
da  cidade,  e  em  algumas  investidas  mataram  ou  apri- 
sionaram alguns  inimigos.  Van  Dorth  foi  morto  em 
um  ataquo  dirigido  por  Francisco  Padilha  e  dias  depois 
cahiu  em  uma  cilada  o  commandante  do  forte  de 
Itapagipe  e  foi  feito  prisioneiro. 

Affonso  Rodrigues  Adorno  e  Perode  Campos  arma- 
ram também  aos  inimigos  uma  cilada  na  ilha  de  Ita- 
parica,  com  a  qual  se  apoderaram  de  duas  lanchas 
e  cinco  roqueiras,  e  o  já  mencionado,Padilha  armoij 
outra,;  na  qual  íalleceuj  Van  Dorth. 


408  mSTOEIÁ  DO  BRASIL 

Governo  da  Bahia  de  Franciíico  r¥unes 
Marinho.  — Inteirado  Mathias  de  Albuquerque  do  que 
se  passava  na  Bahia,  e  sabedor  de  que  se  ach-ava  inte- 
rinamente investido  do  cargo  de  governador  geral  da 
Bahia,  mandou  pelo  capitão-mór  a  este  Francisco  Nunes 
Marinho,  com  algum  soccorro  de  munições  e  poderes 
para  que  o  seu  mando  se  estendesse  também  a  Sergipe, 
Ilhéos  e  Porto  Seguro. 

D.  Marcos  Teixeira  fez-lhe  entrega  do  governo,  fal- 
lecendo  pouco  depois. 

Nunes  Marinho  foi  bem  succedido  em  algumas 
investidas  feitas  para  o  lado  do  Carmo,  Itaparica  e 
ilha  de  Itaparica. 

Marinho  governou  apenas  três  mezes  a  Bahia, 
sendo  substituído  pelo  pernambucano  Francisco  de 
Moura,  que  chegou  de  Portugal  com  poderes  especiaes 
para  administrar  o  Recôncavo  e  organisar  o  ataque 
decisivo  aos  hollandezes. 

Governo  especial  de  D.  Francisco  de 
Moura.  —  D.  Francisco  de  Moura  trouxe  á  Bahia  a 
noticia  de  que  na  Hespanha  se  equipava  uma  grande 
esquadra  com  um  corpo  de  oito  até  doze  mil  homens 
de  todas  as  tropas,  sendo  também  portador  de  um 
auxilio  de  cento  e  cincoenta  homens  de  guerra,  tre- 
sentos  arcabuzes  apparelhados,  cincoenta  quintaes  de 
pólvora,  dez  de  morrão,  vinte  e  nove  de  chumbo  em 
pão    e  cento   e  cincoenta  formas  para  fazer  pelouros. 

Em  Pernambuco  recebeu  mais  D.  Francisco  de 
Moura  seis  caravellões  e  oitenta  mil  cruzados  mais  de 
novos  provimentos. 

O  que  succedeu  de  importante  na  Bahia  após  a 
chegada  de  D.  Francisco  de  Moura,  será  tratado  no 
capitulo  seguinte,  pois  já  pertence  ao  periodo  da  go- 
vernação de  Mathias  de  Alburquerque. 

Captura  de  Frei  Vicente  <lo  SIalvador 
pelos  hollandezes.  —  Não  podemos  deixar  de  inserir 
uí^ste  nosso  modesto  trabalho  o  que  succedeu  a  frei 
Vicente  do  Salvador  durante  essa  epocha,  pois  deve-nos 
interessar  tudo  o  que  se  refere  a  vultj  tão  eminente 
como  o  illustre  franciscano,  que  escreveu  a  Historia 
Geral . 

Queremos  falar  de  sua  captura  pelos  hollandezes, 
e  no  seu  proprfo  livro  iremos  tom^r  a  narração  do 
episodio. 


SEGUNDA  EPOOHA  4:09 


«  Quando  os  hollandezes  tomaram  a  Bahia  acharam 
trinta  naVios  ancorados,  alguns  ainda  ancorados,  alguns 
ainda  carregados  com  as  fazendas  que  trouxeram  do 
Reino,  outros  de  assucar,  já  para  partirem,  outros  de 
farinha  da  terra  e  outros  mantimentos  para  Angola,  os 
quaes  todos  tomaram  descarregando-os  nos  seus,  em 
suas  loges,  escolheram  os  melhores  para  os  armarena,  e 
servirem  delles;  e  aos  mais  metteram  no  fundo,  e  fora 
este  lhes  vieram  depois  a  cahir  nas  mãos  mais  um  vinte 
porque  como  este  porto  é  de  tanto  commercio,  e  vem  a 
elle  do  partes  tão  remotas,  que  nemd'ahi  a  quatro  mezes 
se  pôde  nellas  saber  como  estava  impedido,  por  sise 
vinham  entregar  e  ancorar  entre  os  inimigos,  com  quanto 
lhes  era  necessário  de  farinha  de  trigo,  biscouto,  azeite, 
vinho,  sedas  e  outras  ricas  mercadorias,  e  por  remate 
lhes  veio  um  do  Rio  da  Prata  carregado  delias  em  que 
vinha  D.  Francisco  Sarmento,  que  servido  em  Potosi  de 
carregadar  e  trazia  mulher,  filhos,  um  genro  e  um  neto, 
que  todos  recolheu  o  coronel  em  sua  casa  depois  de  rou- 
bados, e  lhes  deu  mesa  e  vestidos. 

«  Entre  estes  navios  tomados  foi  logo  dos  primeiros 
mm  dos  padres  da  companhia,  em  que  costumam  visitar 
os  collegios  e  casas  que  têm  por  esta  costa  e  n'esta  occa- 
sião  vinha  ao  Rio  de  Janeiro  o  padre  Domingos  Coelho, 
seu  provincial,  que  ia  já  acabando  e  o  padre  António  de 
Mattos,  que  lhe  havia  de  succeder  e  outros  padres  e 
irmãos  da  Companhia,  que  por  todos  eram  dez. 

Vinham  também  quatro  religiosos  de  S.  Bento  e  eu 
e  meu  companheiro  da  Ordem  do  nosso  padre  S.  Fran- 
cisco :  amanhecemos  aos  vinte  e  oito  de  Maio  da  dita  éra 
de  mil  seiscentos  e  vinte  e  quatro  na  ponta  do  morro  de 
S.  Paulo,  que  é  por  onde  se  entra  na  primeira  bocca  da 
bahia,  onde  vimos  duas  lanchas  e  uma  náu  que  se  vie- 
ram a  nós  e  brevemente  ferraram  do  navio  por  vir  des- 
armado e  se  senhorearam  de  nós  e  de  quanto  trazia  que 
era  caixõi's  de  assucar,  marmeladas,  dinheiro  e  outras 
cousas  de  encommendas  de  passageiros  que  nelle  vinham 
e  nos  trouxeram  para  o  porto,  d'onde  nos  repartiram 
pelas  suas  naus  de  dois  em  dois,  e  de  quatro  em  quatro, 
e  assim  estivemos  até  o  fim  de  Julho  qua  o  seu  general 
se  partio  com  onze  naus  para  as  Salinas  e  o  almirante 
com  cinco  e  dois  patachos  para  Angola  e  juntamente 
partiram  quatro  em  direitura  carregadas  de  assucar  para 
a  HoUanda  em  que  mandaram  o  governador  D.  Diogo 


410  HISTORIA  DO  BRASIL 

de  Mendonça  Furtado,  com  s€U  filho  e  o  ouvidor  geral 
Pêro  Casqueiro  da  Rocha  e  o  sargonto-mor  e  também  os 
padres  da  Companhia  e  osde  S.  B3nto  e  a  nós  deixaram 
para  nos  trocaram  pelos  seus,  que  estavam  captivos  dos 
assaltos,  sobre  o  que  andava  um  portuguez,  morador 
na  terra,  que  fallava  a  lingua  flamenga,  o  qual  depois 
acharam  que  lhe  era  Iredo  e  os  enganava,  pelo  que  o 
prenderam  e  o  enforcaram  com  um  irmão  seu  e  um  mu- 
lato que  os  acompanhava  e  anos  se  ficaram  dilatando 
as  esperanças  da  nossa  liberdade,  de  tal  sorte  qne  meu 
comppnheiro,  por  melhor,  arriscou-se  a  ir  a  nado,  o  que 
eu  ainda  que  quizera  não  podia  fazer,  porque  quem  não 
sabe  nada  vae-se  ao  fundo  e  assim  estive  na  prisão  do 
mar  quatro  mezes,  os  quaes  passados  me  pedio  Manoel 
Fernandes  de  Azevedo,  um  dos  moradores  portuguezes 
que  ficaram  na  cidade  e  concederam  que  viesse  para  sua 
casa  e  pudesse  andar  em  sua  companhia  pela  cidade, 
comtanto  que  não  chegasse  aos  muros  e  fortificações, 
d'onde  me  occupei  em  confessar  os  portuguezes,  em 
forma  que  nenhum  morreu  sem  confissão  como  até  este 
tempo  morriam,  mns  não  eram  muitos,  porquê  todos  os 
que  se  quizeram  ir  deram  licença  e  três  navios  em.  que 
se  foram,  um  para  Pernambuco  e  dois  para  o  Rio  de  Ja- 
neiro, nos  quaes  foram  tresentas  pessoas,  os  mais  delles 
gente  do  mar  e  passageiíos  dos  naaios  que  tomaram, 
também  fugiram  muitos  para  o  nosso  arraial,  para  onde 
lhes  não  queriam  dar  licença  e  de  lá  se  veio  para  elles 
uma  mulher  casada,  fugindo  a  seu  marido  com  uma  filha 
formosa  que  o  coronel  casou  com  um  mercador  hollan- 
dez  e  lhes  fez  grandes  festas  em  seu  recebimento  de  mu- 
sicas, danças  e  banquetes  que  duraram  três  dias. 

a  Aos  maib  portuguezes  que  ficamos,  davam  ração 
como  aos  seus  de  pão,  vinho,  azeite,  carne,  peixe  cada 
semana  ;  e  as  obras  que  lhes  faziam  alguns,  que  eram 
alfaiates  e  sapateiros,  e  camisas  que  as  mulheres  faziam, 
pagavam  muito  bem  (1).  » 


(l)  Frei  Vicente  do  Sauv abou. "Historia  do  Brasil. 


CAPITULO  X 

GOVERNO  GERAL  DE  MATHIAS 
DE  ALBUQUERQUE 

Mathias  de  Albuquerque,  que  pelas  vias  de  succes- 
são  deixadas  por  Diogo  de  Mendonça  Furtado,  foi  desi- 
gnado para  exercer  interinamente  o  cargo  de  governador 
geral  do  Brazil,  vio  esta  nomeação  confirmada  pela  me- 
trópole pelo  correr  do  anno  de  1624,  sendo-lhepermittido 
também  pela  corte  residir  em  Pernambuco. 

O  portador  destes  despachos  trouxe  a  Francisco 
Coelho  de  Carvalho  que  estava  nomeado  governador 
do  Maranhão,  e  já  em  viagem  para  este  ponto,  que  se 
detivesse  em  Pernambuco  com  a  gente  que  levava. 
Também  foi  intimido  Martim  de  Sá,  governador  do  Rio 
de  Janeiro  a  acudir  a  Bahia  com  quanta  gente  e  manti- 
mentos pudesse. 

Desciiidoii  dos  hollaudezes   na  Bahia  —  A 

recuperação  da  Bahia  deve-se  em  parte  attribuir  á  enga- 
nosa segurança  em  que  se  julgavam  os  hollandezes,  ,já 
pela  força  do  que  dispunham,  já  pelos  actos  de  mani- 
festa cobardia  que  os  portuguezes  deram  prova  ao 
apossarem-se  as  batavos  da  velha  capital  brazileira. 

Tanto  é  assim  que,  conforme  vimos  no  capitulo  an- 
terior,  pela  narração  de  fiei  A^icente  do  Salvador  e  Wil- 
lekens  julgou  poder  retirar-se  da  Bahia  e  seguir  para 
Angola  com  onze  naus  e  Pieter  Hein,  suppondo  igual- 
mente ser  desnecessária  a  sua  presença  neste  ponto  de- 
samparou-o,  fazendo-se  de  vela  com  outras  cinco  naus 
para  umas  salinas. 

Eiifraquecendo-se  por  tal  forma  alimentavam  a 
esperança  de  que  em  breve  lhes  chegaria  de  Hollanda 
um  poderoso  reforço  com  o  qual  pudessem  transpor  as 
muralhas  da  cidade  e  proceder  á  occupação  effectiva 
da  capitania  da  Bahia,  cujos  rendosos  engenhos  tanlo 
cubicavam. 

Os  acontecimentos  vieram  demonstrar-lhes  quão 
imprudentemente  praticavam  assim  procedendo. 

Iiiipresstto  causada  na  Península  Iberloa 
ipela  perda  da  Bnhla.— Grande  abalo  produziu  em 


412  HISTORIA  DO  BRASIL 

Portugal  e  Hespanha  a  tomada  da  Bahiapelos  Hollande- 
zes,  reconhecendo  então  Philippe  IV  e  Clivares,  seu  pri- 
meiro ministro, quanto  lhes  teria  sido  vantajoso,  si,  atten- 
dendo  ás  repetidas  reclamações  dos  governadores  do 
Brazil,  dispensassem  á  fortificação  desta  colónia  mais 
desvelos  e  dinheiro. 

Comtudo  tratou  Philippe  IV  de  recuperar  o  que  tão 
levianamente  havia  perdido,  já  organizando  em  Hespa- 
nha uma  poderosa  esquadra,  já  estimulando  o  patrio- 
tismo e  brios  cavalheirescos  dos  fidalgos  portuguezes. 

A  estes  dirigiu-seo  soberano  nos  seguintes  termos: 

c(  Não  duvido  que  taes  vassallos  em  tal  occasião  por 
me  servirem  se  sacrifiquem,  e  que  mais  necessidade 
haverá  de  contel-os  que  não  embarque,  do  que  de  in- 
cital-os  a  fazerem-n'o.  Pois,  por  minha  fé,  tanto  os  amo 
e  estimo  que  me  alegrara  de  arriscar  na  jornada  minha 
própria  pessoa,  provando-lhes  o  meu  desejo  não  só  de 
conservar  essa  coroa,  mas  de  augmental-a  e  engran- 
decel-a,  como  taes  vassallos  merecem.» 

Como  era  de  esperar,  taes  palavras,  partidas  d'a- 
quelle  a  quem,  embora  submettida  a  nobreza  lusitana, 
esta  considerava  como  um  suzerano  pouco  affectuoso, 
encheu  de  satisfação  todas  as  almas,  já  por  exprimirem 
uma  consideração  pouco  vulgar,  já  pela  confiança  que  o 
rei,  por  ellas  transformado  de  usurpador  em  soberano 
cheio  de  paternaescuidadospelosseus  súbditos, demons- 
trava ter  na  coragem  e  nobres  sentimentos  dos  fidalgos 
portuguezes. 

Assim  um  batalhão  dos  nobres  e  á  porfia 
se  disputavam  logares  nelle,  chegando  a  alistar-se 
como  simples  soldados  os  mais  importantes  persona- 
gens da  fidalguia  portugueza,  taes  como  D.  Aífonso  de 
Noronha,  que  já  tinha  exercido  o  cargo  de  vice-rei  na 
índia. 

Tão  pouco  se  poupou  dinheiro  para  a  expedição  : 
o  presidente  da  camará  da  cidade  de  Lisboa  deu  da 
renda  da  mesma  cem  mil  cruzados,  o  duque  de  Bragança 
contribuiu  com  vinte  mil  cruzados,  o  duque  de  Ca- 
minha com  dezeseis  mil  e  quinhentos  cruzados,  o  du- 
que de  Villa  Hermosa,  presidente  do  conselho  de  Por- 
tugal com  dois  mil  e  quatrocentos,  o  marquez  de 
Castello  Rodrigo  com  mil  trezentos  e  cincoenta  cruza- 
dos, D.  Luiz  de  Souza,  ex-governador  do  Brazil,  com 
três  mil  e  tresentos  cruzados  e  trinta  moios  de  trigo 


SEGUNDA  EPOCHA  413 


para  biscoutos,  O  conde  de  Castanheira  com,  dois  mil, 
D.Pedro  de  Alcobaça  com  mil  e  quinhentos,  Francisco 
Soares  com  mil,  os  filhos  de  Heitor  Mendes  com 
quatro  mil,  o  arcebispo  de  Lisboa  com  dois  mil,  o  ar- 
cebispo primaz  com  dez  mil,  o  arcebispo  de  Évora  com 
quatro  mil,  o  bispo  de  Coimbra  com  quatro  mil,  o  bispo 
de  Guarda  com  dois  mil,  o  bispo  do  Porto  com  mil  e 
quinhentos,  o  bispo  do  Algarve  com  mil  e  muitos  outros 
íidalgos  e  eclesiásticos  que  concorreram  com  menores 
quantias.  Os  mercadores  portuguezes  de  Lisboa  entre- 
garam para  o  mesmo  fim  trinta  mil  cruzados,  os  ita- 
lianos quinhentos  e  os  allamães  dous  mil  e  cem  cru- 
zados. 

A  esquadra  portiigueza. — Tratou-se  pois  de 
apparelhar  a  esquadra  que  se  compozdos  galeões  S.  João 
Sant'Annae  Conceição,  âãs  na.us  Caridade,  Nossa  Se- 
nhora do  Rozario,  Nossa  Senhora  da  Ajuda,  Nossa  Se- 
nhora do  Rosario-Maior ,  Nossa  Senhora  do  Rosário 
Menor,  Nossa  Senhora  das  Neves,  S.  João  Evangelis- 
ta, Nossa  Senhora  du  Boa  Viagem,  Senhor  Bom  Homem, 
da  naveta  Santa  Cruz  e  de  mais  alguns  patachos  ecara- 
vellas,  ao  todo  vinte  e  seis  embarcações,  das  quaes  dez 
eram  do  Porto  e  Vianna  e  as  mais  de  Lisboa. 

A.  esquadra  heis panhola.— A  armada  prepara- 
da em  Hespanhapara  reunir-se  com  a  portugueza,  afim 
de  tentar  a  recuperação  da  Bahia,  compunha-se  de  trinta 
e  duas  naus.  Para  generalíssimo  das  duas  esquadras  e 
de  terra,  nomeado  D.  Fradique  de  Toledo  e  para  almi- 
rante D.  João  Fajardo. 

Quatro  desses  navios  eram  commandados  pelo  mar- 
quez  de  Coproni  e  transportavam  um  grande  contin- 
gente de  napolitanos. 

Oh  reforços  de  Pernambuco  e  Rio  de  «la- 
neiro. — O  reforço  quo  Mathias  de  Albuquerque  conse- 
guiu em  Pernambuco,  foi  confiado  a  Jeronymo  de  Albu- 
querque Maranhão  e  o  que  reuniu  o  governador  do  Rio 
de  .Janeiro  foi  entregue  a  seu  filho  Salvador  Correia 
de    Sá. 

Este,  na  viagem  que  fez,  tocou  no  Espirito  Santo, onde 
auxiliou  o  respectivo  capitão  mór  Francisco  de  Aguiar 
Coutinho  a  repellir  alguns  navios  hollaudezes  que  ahi 
haviam  aportado,  sendo  os  mesmos  forçados  a  se  fazerem 
ao  largo  com  algumas  perdas. 


414  HISTOEIA  DO  BRASIL 

Viagem  da  esqiiad&*a  Eibertado^>a. — As  duas 
esquadras  hespanhola  e  poríngueza,  que  se  propunham 
libertar  a  Bahia  do  jugo  iioliandez,  reuniram-se  em 
Cabo  Verde  em  começos  de  Fevereiro  de  1625,  tendo  a 
portugueza,  na  travessia  para  o  archipelago  de  Cabo 
Verde,  perdido  o  galeão  Conceição,  com  cento  e  cincoenta 
soldados. 

A  onze  de  Fevereiro  partiram  as  armadas  de  Cabo 
Verde  e  a  29  de  Março  chegavam  á  Bahia,  com  a  perda 
da  nau  Caridade  que  se  partira  de  encontro  aos  recifes 
da  Parahyba  do  Norte. 

Recuperação  da  Bahia. — Tanto  portugiiezes  e 
hollandezes,  consoante  os  desejos  que  alimentavam, 
sentiram- se  esperançados  ao  verem  surgir  as  vehis  no 
horisonte,  pois  uns  e  outros  julgavam  ser  ellas  as  que 
aguardavam. 

Pouco  durou  no  emtanto  a  illusão  para  os  hollande- 
zes; e  por  isso  assim  que  perceberam  a  verdadeira  nacio- 
nalidade da  esquadra  que  entrava  fizeram  a  suacoser-se 
com  a  terra  e  metteram  ao  fundo  três  navios  mercantes 
para  com  elles  obstruírem  o  canal,  ao  mesmo  tempo  que 
a  armada  de  D.  Fradique  adiantando-se  pela  bahia  dis- 
punha-se  em  semi-circulo  e  tomava  toda  a  enseada  da 
cidade. 

Trouxeram  os  hollandezes  para  a  cidade  todos  os 
portuguezes  que  se  achavam  a  bordo,intimando-osanão 
sahirem  das  casas  em  que  os  recolheram  ;  levaram  para 
o  CoUegio  e  outros  pontos  alguma  artilharia  e  evacua- 
ram o  forte  de  S.  Philippe,  situado  a  uma  légua  da  cida- 
de, entendendo  serem  de  mais  necessidade  nesta  os  ses- 
senta homens   que  o  guarneciam. 

Nt  ste  Ínterim  os  da  esquadra  libertadora  foram  des- 
embarcando junto  ao  forte  de  Santo  António,  em  nu- 
mero de  dois  mil  castelhanos,  commandados  por  D.  Pe- 
dro Ozori  e  D.  João  de  Orelhana,  mil  o  quinhentos  por- 
tuguezes dirigidos  por  D.  Francisco  de  Almeida  e  Antó- 
nio Muniz  Barreto,  e  quinhentos  napolitanos  ás  ordens 
de  Marquez  de  Torrecusa. 

O  general  coUocou  no  quartel  de  S .  Bento  a  Pedro 
Ozorio,  D.  Francisco  de  Almeida  e  Marquez  de  Torre- 
cusa, cada  um  como  seu  terço,  perfazendo  um  total  de 
dois  mil  soldados,  e  elle  próprio  passou-se  ao  Carmo  com 
as  mais  forças  depois  de  enviar  artilharia  para  as  que  se 
achavam  em  S.  Bento. 


SEGUNDA  EPOOHA  415 


Contra  esses  dois  mil  homens  que  occupavam  S. 
Bento  mandaram  os  hoilandezes  a  2  de  Abril  tresentos 
mosqueteiros  travando-seu  ma  batalha  durou  duas  horas. 
Os  hoilandezes  toram  attrahindo  o  inimigo  até  ficar  este 
ao  alcance  de  sua  artilharia,  com  o  que  mataram  oitenta 
entre  os  quaes  D.  Pedro  Ozorio  e  feriram  a  muitos. 

Exasperados  os  chefes  das  forças  libertadoras  com 
este  revez,  assestaram  no  dia  seguinte  a  artilharia  contra 
a  cidade  e  começaram  a  bombardeal-a. 

De  noite  os  hoilandezes  reparavam  os  estragos  feitos 
no  muro,  não  cessando  no  emtanto  de  hostilisar  o  inimi- 
go. Entre  outros  expedientes  lançaram  uma  noite  duas 
naus  a  chammejar,  e  estas  puzeram  em  grave  risco  a 
capitánea  da  esquadra  portugueza  e  a  almiranta  da  es- 
quadra do  Estreito. 

D.  Fradique,  como  vimos,  alojou-se  no  Carmo  onde 
logo  assentou  uma  possante  bateria  e  a  9  de  Abril  come- 
çou a  bombardear  a  esquadra  inimiga  que  lhe  ficava 
fronteira,  damnificando-a  extraordinariamente  com  os 
pelouros,  e  chegando  a  metter  a  pique  a  maior  de  todas 
as  naus  hollandezas  e  não  era  só  nas  embarcações  hol- 
landezas  que  as  balas  da  artilharia  libertadora  faziam 
estrago,  na  cidade  furaram  o  muro  e  a  porta  e  derriba- 
ram muitas  casas. 

Além  destes  contratempos  começou  a  reinar  a  dis- 
córdia no  campo  hollandez;  alguns  mercenários  france- 
zes  que  com  elles  se  achavam  tentaram  por-lhes  fogo  á 
pólvora,  sendo  no  emtanto  descobertos  em  tempo.  Pouco 
depois  a  soldadesca  revoltou-se  contra  o  coronel  Alberto 
Schoppe  e  o  depoz,  substituindo-o  pelo  capitão  Kijf. 

Entrementes  recrudescia  o  bombardeio  por  parte  das 
tropas  libertadoras  e  vendo-se  os  hoilandezes  debilitados 
pela  escassez  de  viveres  e  munições,  assim  como  desen- 
ganados sobre  a  chegada  de  qualquer  auxilio,  capitula- 
ram, obrigando-os  D.  Fradique  a  tomar  o  seguinte  com- 
promisso : 

Entregar  a  cidade  com  toda  a  artilharia,  armas, 
bandeiras,  munições,  petrechos,  bastimentos  e  navios 
que  estivessem  no  porto,  bem  como  todo  o  dinheiro, 
ouro,  prata,  jóias,  mercancias,  utensílios,  escravaria  e 
tudo  o  mais  que  houvesse  na  cidade  enos  na\ios; 

Restituir  todos  os  prisioneiros; 

Não  tomarem  os  vencidos  armas  contra  a  Ilespanha 
até  chegarem  à  HoUanda ; 


416  HISTORIA  DO  BBASIL 


A  entrega  naquella  mesma  noite  de  uma  das  portas 
da  cidade,  recebendo  em  troco  reféns  a  contento. 

Sobre  isto  lhes  garantia  o  generalissimo  hespanhol 
voltarem  impunemente  para  a  Pátria  com  toda  a  sua 
roupa  em  embarcações  que  lhes  daria  com  mantimentos 
para  três  mezes  e  meio  e  armas  com  que  se  defendessem 
depois  de  deixar  o  porto;  não  podendo  usar  destas  em- 
quanto  ahi  estivessem,  excepto  os  ofticiaes  que  levariam 
espada.  . 

Estas  capitulações  foram  assignadas  em  1°  de  Maio 
de  162Õ,  entrando  im mediatamente  as  forças  libertadoras 
na  cidade. 

A'  vista  do  pouco  trabalho  que  D.  Fradique  teve  para 
recuperar  a  Bahia,  lembraram-se  alguns  da  esquadra 
que  este  general  podia  parodiar  desta  forma  a  phrase  de 
Cezar  :    Cheguei,  vi  e  Deus  venceu. 

A  esquadra  de  Heudriksou. — Vinte  e  tantos 
dias  depois  que  os  hollandezes  capitularam  appareceram 
â  barra  da  Bahia  trinta  e  quatro  navios  hollandezes  com- 
mandados  pelo  almirante  Hendrikson  que  vinha  soccor- 
rer  os  seus  compatriotas. 

Informado  da  capitulação  dos  mesmos  ainda  assim 
entrou  no  porto  como  que  provocando  os  hespanhóes  e 
portuguezes  e depois  fez-se  ao  largo,  sem  que  D.  Fradi- 
que se  animasse  a  perseguil-o. 

Essa  esquadra  foi  aportar  à  Bahia  da  Traição  afim 
de  fazer  aguada,  abandonando-a  em  1°  de  Agosto  por 
approximar-se  uma  força  enviada  por  Mathias  de  Al- 
buquerque. 

Guerra  aosi  Potyguures  da  Copahoba. —  A 
occupação  da  Bahia  pelos  hollandezes  fez  com  que  se 
sublevassem  muitas  cabildas  de  Índios  Potyguaras  que 
viviam  á  beira  mar  e  até  as  de  logares  mais  centraes, 
como  as  da  Serra  da  Copahoba,  na  Parahyba  do  Norte, 
as  quaes,  rebellando-se,  mataram  logo  dezoito  homens 
brancos  seus  visinhos  e  lhes  captivaram  seis  donzellas  e 
alguns  meninos. 

Forçou-os  a  se  entregarem  Gregório  Lopes  que  os 
encontrou  asylados  pelas  Tapuyas,  sendo  morto  a  cuti- 
ladas o  Índio  Taquarassú,  um  dos  principaes,  e  escravi- 
sados  os  outros  que  foram  distribuídos  aos  soldados, 
como  premio  aos  seus  serviços. 


SEGUNDA    EPOCIIA  íll 


A  7  de  novembro  de  162-6  terminou  o  seu  governo 
Mathias  de  Albuquerque,  e  o  seu  elogio  vamos  brscal-o 
em  um  escriptor  coevo,  frei  Vicente  do  Salvador,  que 
o  conheceu  de  perto  e  no  seu  governo  termina  essa  bella 
Historia  do  Brasil  que  escreveu  com  tanto  encanto, 
verdade  e  observação  : 

c  Foi  Mathias  de  Albuquerque  tcdo  o  tempo  que 
serviu,  assim  de  capitã o-mór  de  Pernambuco,  como  de 
Goverriador  Geral  do  Brasil,  que  foram  sete  annos, sem- 
pre maito  limpo  de  mãos,  não  aceitando  cousa  alguma 
a  alguém,  nem  tirando  ofdcios  para  dar  a  seus  criados. 
Nas  occasiões  de  guerra  e  do  serviço  de  Sua  Magestade 
foi  muito  diligente,  não  se  poupando,  nem  de  noite  ao 
trabalho:  nunca  quiz  andar  em  rede,  como  no  Brazil 
se  costuma,  sinão  a  cavallo  ou  em  barcos,  e  quando 
nestes  entrava  não  se  assentava,  mas  em  pé  os  ia  elle 
próprio  governando.  Tinha  grande  memoria  e  conheci- 
mento dos  homens, ainda  que  dosnavios  uma  vez  vinham 
áquelle  porto,  tornando  outra  d'ahianiUÍto  tempo.  Antes 
de  chegar  o  mestre  dizia  cujos  eram,  e  vez  houve  que 
vindo  um  com  o  mastro  mudado,  vendo-o  de  niui  Icnge 
com  o  óculo,  disse  :  «  Aquelle  é  tal  navio,  que  aqui  veiu 
ha  um  ai  mo,  mas  traz  outro  mastro»;  e  assim  o  affirmou 
o  mestre  depois  que  chegou,  sendo  perguntado.» 


Em  1626,  istoé,  na  véspera  da  conquista  de  Pernam- 
buco e  subsequenie  dominação  do  Brasil  pelos  hollande- 
zes,  desde  u  Maranhão  a  Sergipe,  o  Brasil  já  denuncia 
o  grande  paiz  que  veiu  e  ainda  ha  do  vir  a  ser. 

O  povoamento  estendeu-se  até  o  Pará  na  facha  do 
littoral;  a  renda  da  costa  vai  chamando  a  civilisação  para 
cada  reentrância  que  oflereça  abrigo  ao?  navios;  o  Ama- 
zonas, o  S.  Francisco,  o  Parahyba,  o  Tietê  encaminham 
o  europeu  para  o  sertão  ;  surgem  os  primeiros  arraiaes 
na  raiz  das  serras  que  beiram  o  planalto.  O  progresso 
material  do  Brasil  é  palpável. 

As  lettras,  no  emtanto,  não  têm  ainda  obreiros  ori- 

27 


41'^  HISTORIA     DO    BKASIL 


ginaes.  Apenas  nesse  período  vemos  um  escriptor  dis- 
tinclo  —  Irei  Vicent<3  do  Salvador,  o  velho  autor  dá 
Historia  do  Brasil,  obra  que  ainda  hoje  se  lè  com  satis- 
fação. Arte  não  existe  ainda,  embora  o  zelo  religioso  le- 
vante igrejas  e  mosteiros  por  toda  a  parte;  os  mestres  de 
obras  boçaas  são  os  únicos  architectos  dessa  epocha. 

Em  compensação  o  luxo  é  excessivo,  porém  sem 
gosto,  preoccupando-se  somente  com  a  ostentação  de 
sedarias  caras  e  jóias  de  grande  peso  metallico. 


FIM  DA  SEGUNDA  EPOCHA 


TERCEIRA  EPOCHA 

Phase  de  agregação  ethnica 
1630-  1632 


TERCEIRA  EPOCHA 


Pliasc   de    ag't*cg'aon[o   ctliuSca 
1G30  — I63S 


Dividimos  esta  terceira  epocha  da  historia  pátria  em 
dois  periodos  :  o  primeiro  vai  do  momento  em  que  Diogo 
Luiz  de  Oliveira  ó  empossado  no  cargo  de  gove-rnador 
geral  do  Brasil,  quatro  annos  antes  de  começar  a  memo- 
rável pugna  com  os  hollandezes  em  Pernambuco,  até 
passar  novamente  o  Brasil  ao  dominio  de  Portugal,  pela 
revolução  de  Lisboa  de  1640  ;  o  segundo  periodo  começa 
ao  ser  acclamado  D.  João  IV  e  vai  até  1661,  ao  assig- 
nar-se  na  cidade  de  Haya  o  tratado  de  paz  definitiva  entre 
Portugal  e  a  HoUanda.  O  primeiro  periodo  assignala  a 
phase  da  invasão  estrangeira  :  o  hollandez  apodera-se 
de  todas  as  capitanias  septentrionaes  desde  Maranhão 
até  Sergipe  ;  o  segundo  periodo  é  caracterisado  pela 
reacção  exercida  pelos  povos  que  occupavam  o  solo. 
Durante  elle  o  flamengo  vai  pouco  a  pouco  sendo  ex- 
pulso dos  pontos  que  havia  usurpado,  até  que  afinal 
abandona  o  Recife,  seu  primeiro  e  ultimo  reducto. 

Enche-se  pois  completamente  da  guerra  hollandeza 
esta  terceira  epocha  da  historia  pátria,  e  todas  aquellas 
regiões  que  se  conservam  alheias  á  grande  lucta,  isto  ó, 
o  Pará  e  o  Amazonas  ao  norte  e  de  Porto  Seguro  para 
o  sul  furtam-seá  evidencia  histórica  nesse  momento,  ou 
por  outra,  jazem  na  penumbra,  apenas  denunciadas  pela 
massa  confusa  de  factos  pouco  importantes. 

Comtado,  não  esmorecem  as  causas  que  haviam 
inaugurado  o  bandeirismo  e,  por  conseguinte,  o  devas- 
tamento  dos  sertões,  que  se  começou  a  fazer  de  um  modo 
systematico  na  epocha  anterior,  continua  a  praticar-se 
€om  mais  ou  menos  ardor,  principalmente  pelos  colonos 
de  S.  Vicente  que  possuem  o  magnifico  roteiro  indicado 
pelo  curso  do  Tietê,  seguindo  o  qual  se  intrometterào  até 
os  campos  da  Vaccaria  e  do  Viamâo. 


422  HISTOEIA  DO  BRASIL 

Todavia  a  guerra  hoUandeza  é  o  facto  que  ver- 
dadeiramente impressiona  na  historia  desse  periodo,  não 
só  pela  extensão  da  área  geographica  em  que  a  mesma 
SB  desenvolveu,  como  por  haver  esse  grande  conflicto 
promovido  a  approxi mação  das  três  raças  que  viviam 
no  paiz,  acontecimento  que,  permittindo  a  fusão  dos 
diversos  typos  ethnicos,  facilitará  pouco  depois  a  forma- 
ção da  nacionalidade  brasileira. 


Fniiieiío  iifrioílo 


CAPITULO  I 

o  BRASIL  SOB  O  GOVERNO  DE  DIOGO  LUIZ  DE 
OLIVEIRA,  ANTES  DA  INVASÃO  DE  PERNAM- 
BUCO PELOS  HOLLaNDEZES. 


Diogo  Luiz  de  Oliveira,  nomeado  governador  geral 
do  Brasil,  em  substituição  a  Mathias  de  Albuque  rque, 
partiu  de  Lisboa  em  25  de  agosto  de  1626,  e  aos  7  de  no- 
vembro do  mesmo  ânno  chegava  a  Pernambuco. 

Como  trouxesse  ordem  da  metrópole  para  não  se 
deter  por  muito  tempo  no  Recife  ;  apenas  ani  se  demo- 
rou quatro  dias,  e  depois  passou-se  á  Bahia,  sem  ter 
podido  castigar,  como  pretendia,  ura  aventureiro  hol- 
landez  que  em  navio  bem  armado  atacara  na  barra  de 
Goyana  uma  embarcação  portugueza  carregada  de  as- 
sucar. 

Os  successos  de  mais  importância  occorridos  no 
Brasil  desde  1628,  anno  em  que  Diogo  Luiz  de  Oliveira  é 
empossado  no  cargo  de  governador  geral,  até  a  tomada 
do  Recife  e  Olinda,  em  1630,  pelos  hollandezes,  são  os 
que,  em  continuação,  passamos  a  narrar- 

Pleter  Heyn  na  Bahia. — Aos  3  de  março  de  1627 

apresentou-se  outra  vez  na  Bahia  o  atrevido  almirante 
batavo  Pieter  Heyn,  homem  que  de  simples  marinheiro 
chegara  pelos  seus  méritos  a  alcançar  um  dos  primeiros 
postos  na  armada  hollandeza. 

Pieter  Heyn  entrou  na  Bahia  com  treze  navios,  a  pezar 
das  novas  muralhas  que  defendiam  a  cidade  e  mais  de 
quarenta  canhões  que  nestas  se  haviam  assentado. 

Atacou  a  frota  de  vinte  e  um  navios  que  se  achava 
no  porto,  entre  os  quaes  quatro  de  guerra,  e,  coUocando 
ousadamente  a  sua  náu  entre  dois  dos  principaes  navio  s 


424  HISTOEIA  DO  BRASIL 

da  esquadra,  conseguiu  mettera  pique  a  sota-capitánea 
e  apriosinar  muitos  navios  mercantes  que  se  achavam 
carregados  de  assucar. 

Commettida  esta  proeza  ainda  Pieter  Heyn  permane- 
ceu no  porto  durante  vinte  e  quatro  dias  e  depois  vele- 
jou para  ama  enseada  visinha  de  Cabo  Frio,  onde  fez 
aguada  ;  voltou  de  novo  á  Bahia  a  10  de  junho  e  ahi 
ainda  aprisionou  dois  barcos  mercantes  que  estavam 
fundeados  em  Itapagipe. 

A.  14  de  julho  de  1627  Pieter  Heyn,  depois  de  ter 
assolado  o  Recôncavo,  resolveu  abandonar  a  Bahia  e 
voltar  á  Eur.^pa,  levando  vinte  e  quatro  vasos  de  guerra. 

Capá^iira  dos  £çaleoe§>  de  D.  Juan  BeneTi- 
des  por  Pieter  Heyai  —  A  9  de  setembro  de  1628  o 
venturoso  Pieter  Heyn,  que  tinha  partido  paraum-^  nova 
expedição  nos  mares  americanos,  atacou  D .  Juan  Bene- 
vides, que  voltava  á  Hespanha,  e  íomou-lhe  varies 
galeões  que  continham  o  valor  de  nove  mil  milhões  de 
cruzados,  pouco  mais  ou  menos,  capital  este  com  o  qual  a 
Companhia  da^  índias  poude  restabelecer  os  seus  fundos, 
um  tanto  abalados  com  o  mallogro  da  primeira  tentativa 
sobre  a  Bahia. 

Conipanlila  de  navegação  e  couiiuercio  da 
índia,  llina  e  Guiné. — As  repetidas  investidas  dos 
hollandezes  sobre  o  Brasil  e  as  noticias  propaladas  na  Pe- 
ninsulalberica  de  que  seorganisavam  nos  Paizes  Baixos 
novas  expedições  com  idênticos  fins,  fez  com  que  a  me- 
trópole procurasse  fundar  a  Companhia  de  Navegação  e 
Commercio  da  índia,  Mina  e  Guiné,  que  deveria  opnôr- 
se  á  Companhia  Hollandeza  das  índias  Oecidentaes. 

Essa  ideia,  porém,  não  vingou,  pois  a  referida  com- 
panhia nunca  chegou  a  organisar-se.  í 

O  real  d'agua. — Também  por  esses  tempos  teve 
logar  a  creacção  do  imposto  chamado  real  d'' agua,  esta*- 
belecido  com'  o  fim  de  levantar  capitães  para  a  defesa 
da  colónia. 

Esse  imposto,  que  só  mais  tarde  começou  a  ser  co- 
brado, consistia  no  tributo  de  um  real  por  libra  de  carne 
ou  canada  de  vinho  que  se  vendesse  para  o  consumo. 

A  abolição  da  RelaçSo. — A  occupação  da  Bahia 
pelos  hollandezes  determinou  á  metrópole  abolir  o  tri- 
iDunal  da  Relação,  ficando  outra  vez  colonial  a  justiça,  a 
oargo  dos  ouvidores. 


TERCEIRA   EPOOnA  425 


c<  Estes  deviam  residir  na  capitania  em  que  estivesse 
o  governador,  salvo  si  o  'serviço  exigisse  que  passissom 
a  outra  e  o  governador  osmandasst3.  Nulogarem  que  um 
estivesse,  e  cinco  léguas  em  redor,  conheceria  por  acção 
nova,  com  alçada  no  eivei  até  cem  mil  róis,  e  d'ahi  para 
cima  com  appellação  para  a  Casa  da  Supplicaçâo  de  Lis- 
boa.  Dentro  da  mesma  alçada  conheceria  das  appella- 
ções  e  aggravos   que  interpuzessem  os   capitães-mór^.s, 
cuja  alçada  se   reduzira  a    vinte    mil  réis,    em   vez  de 
cem  que  lhes  havia  sido  concedida  pelas  doações.    No 
crime  teria  alçada  até  morte  natural  nos  escravos,  gen- 
tios o  p  -õôs  ;  mas  a  pena  de  morte   não  seria  executdda 
sem  hiver  outro  voto  mais  confor  ne,  ou  do  governador 
ou  do  provodor-mór.  Em  p3S3oi,s  de  mór  qualidade  toria 
alçada  até  cinco  annos  de  degredo  e  cincoenta  cruzados 
de  multa.    Só  podaria  proceder  contra  os  capitães  das 
outras  capitanias,  havendo  parte  queixosa.  Não  ;i   ha- 
vendo, concorde  o  governador,  pod.unaemprazal-os  para 
a  Corte,  afim  de  responderam  perante  o  corregedor  do 
crime.  Quando  se  achasse  em  outra  capitania,  conhece- 
ria nas  causas  crimes,  ficando  suspensa,  durante  a  sua 
residência  nella,  a   alçada    concedida  aos  capitães   em 
suas  doações.  Em  todo  caso,  para  elle  deveiiam  appellar 
os    capitães    e  ouvidores,    nos  casos  superiores  á  sua 
alçada,  também   reduzida.  No  logar  onde  estivesse  e  até 
quinze  léguas  ao  rodor  poderia  avocar  os  feitos,   proce- 
dendo nelles  conforme  a  sua  alçada.   Quando  fosse  às 
outras  capitanias,  devia,  sem  proceder  a  processo  ou  in- 
quirição  em   forma,   tomar  conhecimento  do   procedi- 
mento dos  capitães  respectivos,  promovendo  igualmente 
a  respeito  das  faltas  das  camarás  das  villas.   As  senten- 
ças seriam  dadas  em  nome  do  rei,  ecom  os  competentes 
sellos  das  chancellarias.  Não  deveria  ser  suspenso  pelo 
governador,  e  em  caso  de  culpa  só  poderia  ser  autoado  e 
enviado  á  presença  do  rei .  » 


Depois  de  abolida  a  Relação"  dois'  desembargadores 
ainda  ficaram  no  Brasil  ;  um  foi  Antão  de  Mesquita  que 
ficou  exercendo  o  cargo  de  ouvidor-geral,  o  outro  foi 
Diogo  de  S.  Miguel  Garcez,  nomeado  provedor-mór  de 
defuntos. 

_  As  explorações  dos  paulistas. — Em  demanda 
de  Índios  proseguem  nesta  epocha  os  paulistas  nas  suas 
explorações  pelo  sul  do  Brasil,  chegando  até  a  margem 


426  HISTORIA  DO   BRASIL 

esquerda  do  Paraná,  apezar  dns  prohibições  da  corte 
que  comminava  penas  severas  aos  contravenlores. 

Esses  aventureiros  atacaram  as  Missões  da  Encar- 
nacion,  nas  cabeceiras  do  Tibag} ,  as  de  Villa  Rica  do 
Espirito  Santo  nas  do  Rio  Ivahy  e  outras  estabelecidas 
pelos  jesuitas  nos  terrenos  que  ficam  ao  sul  do  Tietê, 
região  que  tinha  o  nome  de  Prooincía  de  Vera.  Tam- 
bém atacaram  a  Missão  de  Guayra,  de  onde  trouxeram 
cerca  de  quinze  mil  Índios. 

Os  jesuitas  protestaram  com  vehemencia  contra 
essas  invasões.  Debalde  o  fizeram,  no  emtanto.  pois 
as  «  bandeiras  »  ainda  por  muito  tempo  continuaram  a 
devassar  o  sertão  em  busca  de  escravos  Índios. 

CApi(auia§(  do  sul.— Martim  de  Sá,  governador 

do  Rio  de  Janeiro,  providencia  nessa  epocha  sobre  a 
construcção  das  fortalezas  da  barra  e  se  abastece  de 
munições  de  guerra,  temendo  insultos  dos  flamengos  á 
sua  capitania. 

Dá  esse  mesmo  governador  as  primeiras  sesmarias 
nos  Campos  dos  Goytacazes,  sendo  elle  o  primeiro  que 
teve  ideia  da  fundação  de  um  hospital  de  lázaros  no  Rio 
de  Janeiro. 

Na  Ilha  Grande,  na  Ilha  de  S.  Salvador  e  na  costa 
fronteira  progride  a  colonisação  e  na  villa  de  Angra  dos 
Reis  dá -se  principio  á  construcção  de  uma  nova  igreja 
de  pedra  (1626). 

Nas  capitanias  intermediarias  do  Espirito  Santo, 
Porto  Seguro  e  Ilhéos  nada  se  verifica  de  importante. 

EiStado  do  llaraahão. — Os  acontecimentos  de 
maior  vulto  que  se  produziram  nas  capitanias  que  cons- 
tituiam  o  novo  estado  do  Maranhão  foram  os  seguintes: 

Martim  Soares,  no  Ceará,  resistiu  aos  assaltos  feitos 
nessa  região,  pelos  hollandezes,  em  1624. 

No  Pará,  o  custodio  frei  Christovão  de  Lisboa,  che- 
gado de  Portugal  em  fins  de  abril  de  1625,  promoveu  o 
recrutamento  de  grande  numero  de  Índios  que  deviam 
auxiliarosportuguezes  naexpulsão alguns  dehollandezes 
e  inglezes,  que  sob  o  mando  de  seus  chefes  Hosdan  e  Por- 
cel  ainda  occupavam  dois  postos  no  Xingu  e  nos  Tucu- 
jús.  Essa  empreza  foi  levada  a  effeito  com  êxito  feliz, 
sendo  commandante  da  expedição  o  capitão  Pedro  Tei- 
xeira que  levou  por  auxiliares  os  pernambucanos  Pedro 
da  Costa  Favella  e  Jeronymo  de  Albuquerque. 


TERCEIRA   EPOCUA  427 


O  mesmo  trei  Cliristovão  de  Lisboa  havia  apresen- 
tado em  camará  um  alvará  que  trouxera  da  metrópole, 
pela  «[ual  esta  confiava  exclusivamente  á  Ordem  dos 
Franciscanos  a  administração  das  aldeias  de  Índios,  pri- 
vando assim  os  moradores  de  coMtaiuar  a  exploral-os. 
Este  alvará,  tendo  no  emtanto  excitado  os  ânimos,  ficou 
resolvido  que  se  nãodésse  cunjprimenlo  a  elleatéa  che- 
gada do  novo  governador  Franci-->co  de  Albuquerque 
Coelh  )  de  Carvalho,  que  já  se  achava  em  Pernambuco. 

No  Maranhão  Manuel  de  Souza  d'Eça  melhorou  a 
fortaleza  de  S.  Luiz,  chamada  do  Baluarte,  que  até  então 
era  de  faxina  e  nella  construiu  casas  para  morada  dos 
governadores. 

B^nto  Maciel,  que  se  passara  á  Europa  conduzindo 
Jayme  Porcel  que  cahiraprisio!ieiro,oíTereceu-se  em  1625 
ao  rei  para  effectuar  a  conquista  do  rio  Amazonas  e  seus 
affluentes,  sem  ónus  algum  para  a  coroa ;  foi  aceito  o 
seu  offerecimento.  «  Esta  concessão,  porém,  diz  "\'ar- 
nhagen,  si  é  que  chegou  a  receber  antes  de  partir,  era- 
Ihe  de  todo  inútil  ;  pois  deixava  elle  de  poder  cumprira 
sua  promessa  desde  que  se  puzessem  em  vigor  as  dispo- 
sições do  mencionado  alvará  (de  15  de  março  de  1624), 
delle  só  conhecido  no  mez  de  maio  do  anno  seguinte,  um 
mez  justamente  depois  de  haver  feito  a  sua  proposta.  » 

Manuel  de  Souza  d'Eça,  successor  de  Bento  Maciel 
ordenou  duas  expedições  contra  os  indios  :  uma,  com- 
mandada  por  Pedro  Teixeira,  contra  os  Tapuyassús  que 
habitavam  junto  ao  Tapajós  ;  outra,  contra  os  Pacajás, 
commandada  por  Pedro  da  Costa  Favella. 

Em  abril  de  1623  os  hoUandezes  tornaram  a  esta- 
belecer-se  no  Tucujú  sob  o  commando  do  mesmo  Por- 
cel que  ahi  levantou  ou  forte  quadrado,  chamado  de  Tou- 
rege,  com  barbacã  e  fosso,  que  guarneceu  com  quatro 
canhões  pedreiros  e  uma  peça  de  artilharia.  Contra  esso 
forte  seguiu  o  pernambucano  Pedro  da  Costa  Favella 
commandando  trinta  e  tantos  soldados  e  oitocentos  in- 
dios ;  Favella  chegou  a  emprehender  alguns  ataques, 
sentindo-se  porém  falto  de  munições  recolheu-se  a  Gu- 
rupá.  Levou-lhe  reforço  Pedro  Teixeira  e  ambos  parti- 
ram para  o  Tucujú,  obrigando  o  forte  a  render-se  por 
capitulação,  em  fins  de  outubro.  Entregando~se  outra 
vez  Jayme  Porcel,  foi-lhe  concedida  passagem  para 
Lisboa.  Os  soldados  que  garneciam  o  forte,  em  numero 
de    oitenta,    foram  .  distribuídos    para  o  Maranhão    e 


428  HISTOEIA   DO   BRASIL 

para  Gurupy .  Uns  três  dias  depois  da  capitulação  o  capi- 
tão liollandez  Nort,  com  grandes  soccorros  trazidos  era 
dois  navios,  um  patacho  e  duas  lanchas  chegava  ao  Tu- 
cujús.  Experimentando  saltar  em  terra,  «offreu  uma 
perda  de  quatro  homens  e  com  isto  reembarcou,  indo  es- 
tabelecerse  no  forte  de  Camamú. 


CAPITULO    II 

LUCTAS   COM    OS    HOLLANDEZES 

DESDE    A     TOMADA     DE    OLINDA    ATE   a'     INVESTIDA   CONTRA 
O   CABO   DE   SANTO   AGOSTINHO 

(1630  —  1632) 

A  captura  dos  opulentos  galeões  hespanhóes  feita 
pelo  audacioso  PieterHeyn,  as  prezas  por  este  realisadas 
dentro  do  porto  da  Bahiae  a  convicção  firmada  ein  Hol- 
landa  de  que  a  perda  da  cidade  r'o  Salvador  não  fora  de- 
terminada pela  impossibilidade  de  conservarem  os  bata- 
vos essa  conquista  contra  as  forças  hespanholas  e  por- 
tuguezas,  porém  sim  um  mero  desastre,  occasionado 
pela  condemnavel  dilação  na  remessa  de  soccorros  e 
pela  indisciplina  plantada  nas  tropas  que  a  guarneciam, 
determinaram  os  hollandezes  a  commetter  novamente  a 
empreza  difficil,  porém  tentadora,  de  se  assenhorearem 
de  um  vantajoso  ponto  da  costa  brasileira. 

Mais  do  que  por  occasião  de  se  oganisar  a  Compa- 
nhia das  índias  Oecidentaes  surgiram  condemnações  a 
essaidéa,  agora  que  ella  tinha  contra  si  o  mallogro  da 
primeira  tentativa  ;  o  príncipe  de  Orange,  no  emtanto 
conseguiu  dominar  a  opposição  e  a  expedição  foi  resol- 
vida, não  já  á  Bahia,  que  naturalmente  devia  achar-se 
agora  bem  defendida,  porém  sim  a  Pernambuco,  que 
por  suas  riquezas  rivalisava  com  a  capital,  e  era  dos 
flamengos  bastante  conhecido  pelas  informações  de  Von 
Noord,  Hartmann,  Broer  e  Carden  que  anteriormente  o 
haviam  visitado. 

Além  disso  Pernambuco  ficava  mais  próximo  da  Eu- 
ropa e  a  Bahia  ainda  se  sentia  das  devastações  que  os- 
mesmos  hollandezes  nella  haviam  feito. 

Aprestou-se  pois  nos  Paizes  Baixos,  por  ordem  do 
Conselho  dos  XIX,  uma  esquadrade  cincoenta  eseis  na- 
vios, e  deu-se  o  seu  commando  geral  ao  experi- 
mentado marinheiro  Hendrick  Cornelis  Loncq,  para  o 


430  HISTORIA   DO    BRASIL 

cargo  de  almirante  foi  nomeado  Pieter  Adrianszoon  e 
para  o  de  commandante  das  forças  de  terr.i,  Diederick 
von  Werdemburk,  fazendo- se  de  vela  a  frota  com  esses 
comnicindantes  em  fins  do  anno  de  16.29. 

llisísSode  llathiiis  de  Albuquerque. — Bem 

informada  achava-se  a  corte  de  Hespanha  dos  aprestos 
que  em  HoUanda  se  faliam  com  desiino  ao  Brasil,  pois 
não  só  a  infanta  D.  Isabel,  como  muitos  espiões  residen- 
tes em  Amsterdam  e  outras  povoações  batavas  commu- 
nicavam-lhe  immediatamente  qualquer  resolução  tomada 
pelos  Estados  Geraes  ou  pelo  príncipe  de  Orange. 

No  emtanto,  como  já  acontecera  nas  vésperas  de  ser 
atacada  a  Bahia,  poucas  providencias  tomou  a  metrópole, 
quer  pela  negligenci;i  habitual  do  conde  duque  de  Cli- 
vares, supremo  ministro  do  soberano  de  Castella,  quer 
pelas  difificuldades  em  que  a  Hespanha  se  debatia  nesse 
momento,  angustioso  para  ella,  na  qual  via  na  França 
suas  tropas  derrotadas  por  Conde  e  Turenne,  Milão  e  a 
Catalunha  revoltadas  e  Nápoles  transformado  em  repu- 
blica pelo  arrojo  de  Mazaniello. 

Assim,  limitou-se  unicamente  a  despachar  Mathias 
de  Albuquerque  para  o  Brasil  com  a  nomeação  de  Su- 
perintendente na  guerra  e  foríificador  das  capitanias  do 
norte,  e  jurisdicçáo  e  mando  independentes  do  gover- 
nador geral,  entregando-lhe  no  emtanto  apenas  27  sol- 
dados, quando  no  emtanto  a  expedição  hoUandeza  tinha 
para  mais  de  7,000  homens. 

Mathias  de  Albuquerque  chegou  a  Jaraguá  em  4  de 
de  outubro  de  1629  e  a  18  do  mesmo  mez  já  se  achava 
em  Pernambuco,  para  onde  se  dirigiu  por  terra.  Logo  ao 
chegar  desenvolveu  a  maior  actividade  afim  de  prepa- 
rar-se  para  convenientemente  receber  o  inimigo,  em- 
bora recc»nhecesse  que  não  dispunha  de  meios  suffi- 
cientes. 

Fomentou  as  obras  da  defesa  do  porto,  providen- 
ciou sobre  o  armamento  e  disciplina  da  milicia  de  terra, 
que  nessa  epocha  se  compunha  de  três  companhias  de 
linha  com  cento  e  trinta  praças  somente  e  mais  quatro 
companhias  de  milicias  em  Olinda  euma  no  Recife,  per- 
fazendo todas  um  total  de  seiscentos  e  cincoenta  praças. 

Organisou  duas  companhias  de  marinheiron  ;  orde- 
nou que  estivessem  de  promplidão  para  o  primeiro  cha- 
mado todos  os  homens  d'armas  e  Índios  amigos  que 
residiam  na  capitania  e  postou  atalaias  pelas  costas  para 


TERCEIRA   EPOCITA  431 


que  estas  dessem  aviso  por  meio  de  fogueiras  collocadas 
de  distancia  em  distancia,  dos  navios  que  se  avistas- 
sem ao  largo. 

Em  seguida  despachou  contra  os  hollandezes  de 
Fernando  de  Noronha  o  sargento-mór  das  milicias  Ruy 
Calaza  Borges,  o  qual  conseguiu  desalojar  o  inimigo  e  to- 
mar-lhe  uma  lancha  e   seis  roqueiras. 

Finalmente,  segundo  nostransmittem  os  mais  crite- 
riosos historiadores,  fez  o  que  estava  ao  seu  alcance, 
embora  para  o  futuro  fosse  detractado,  somente  por  não 
lhe  ter  a  fortuna  sorrido  quando  o  inimigo  se  apresentou. 

Mais  ainda  : 

Logo  que  soube  achar-se  em  viagem  a  esquadra 
hollandeza  convocou  á  capital  todos  os  da  Ordenança  e 
em  nome  do  rei  concedeu  perdão  aos  homisiados  que  se 
apresentassem  a  tomar  armas  ;  flanqueou  os  fortes  de 
novas  baterias  e  armou-os  de  palancas  ou  palissadas  ; 
fechou  vov  meio  de  barcos,  reunidos  ou  mettidos  a  pique, 
a  principal  entrada  do  porto  e  as  suas  duas  barretas  e 
distribuiu  forças  pelos  diversos  portos,  fazendo  para  as 
mesmas  as  nomeações  dos  officiaes  subalternos  e  infe- 
riores. 

Estes  foram  os  trabalhos  realisados  por  Albuquer- 
que anos  de  apresentar-se  o  inimigo  e  segundo  o  va- 
lioso jviizo  do  conde  da  Ericeira  «  dispuzera  tudo  o  que 
julgara  útil  para  a  defensa,  porém  como  havia  de  animar 
sessenta  léguas  de  costa...  não  fora  possivel  que  o 
effeito  correspondesse  á  diligencia.  » 

Tomada  de  Olinda  pelos  hollandezes.  (16  de 

Fevereiro  de  1630.  — A  esquadra  hollandeza  chegou 
a  Pernambuco  a  14  de  fevereiro  de  1630  e  procedendo 
Loncq  á  intimação  das  fortalezas,  o  escaler({ue  par.iesse 
fim  enviou  foi  recebido  com  cargas  de  fuzilaria,  troando 
logo  de  parte  a  parte  a  artilharia. 

Como  operação  inicial  combinaram  os  hollandezes 
atacar  no  dia  seguinte  dois  pontos  diíferentes  ao  mesmo 
tempo,  ficando  resolvido  que  Hendrick  Loncq  tentaria 
um  desembarque  no  porto  do  Recife  e  Werdemburck 
dirigir-se-ia  às  praias  situadas  ao  norte  de  Olinda. 
A  tentativa  do  primeiro  mallogrou-se  : 
Em  consequência  dos  navios  com  que  Mathias  de 
Albuquerque  entulhara  a  entrada  do  porto,  não  poude 
Loncq  approximar-se  da  praia,  sendo  além  disso  muito 
hostilisado  pela  artilharia  dos  fortes. 


432  HISTOEIA   DO   BEASIL 

Melhor  sorte  teve  Diederick  von  ^Yerdembiirk.  pois 
conseguiu  desembarcar  a  sua  tropa  a  três  ou  quatro  lé- 
guas ao  riorte  da  cidade,  no  logar  denominado  Pau  Ama- 
rello,  onde  passou  a  noite. 

Para  que  os  soldados  não  pensassem  na  retirada, 
logo  que  se  effectuou  o  desembarque  Werdemburck 
mandou  reunir  á  esquadra  os  dezeseis  navios  em  que 
tinha  levado  a  tropa,  apenas  conservando  algumas  ca- 
nhoneiras em  quaes  haviam  onze  boccas  de  fogo  ao  lodo. 
Suas  forças  constavam  de  1,400  soldados,  300  mari- 
nheiros e  outros  trezentos  para  o  trem.  Estas  forças 
estavam  dispostas  em  três  divisões  :  —  a  da  vanguarda, 
com  mandada  pelo  tenente-coronel  Elts,  a  do  centro 
eominandada  pelo  tenente-coronel  Stein  Callenfels,  a  da 
retaiguada  commandada  pelo  major  Honcks. 

Logo  que  se  divulgou  em  Olinda  a  noticia  do  desem- 
barque dos  hollandezes  no  Pau  Amarello  estabeleceu-se 
a  desordem  na  villa. 

c<  Muitos,  diz  Roberto  Southey,  que  por  obediência 
ao  edicto  não  se  tinham  ainaa  retirado  da  cidade,  nãa 
puderam  agora  resistir  ao  terror  pânico  que  se  apoderou 
d'elles  ;  as  mulheres  e  crianças  fugiram  para  o  campo  ; 
os  maridos  seguiram  as  esposas,  e  os  filhos  iam  atraz 
para  protegerem  os  pais  ;  os  objectos  mais  portáteis  e 
preciosos  eram  apanhados  ás  pressas,  e  muitas  cousas 
cabiam  com  a  precipitação  da  fuga.  Alguns  atiraram-se 
a  roubar  as  mulheres  e  as  crinças,  chegando-se  a  dizer 
que  os  portuguezes  soffreram.  mais  da  sua  própria  cana- 
lha do  que  do  inimigo. 

Muitos  escravos  aproveitaram  o  ensejo  para  se 
emanciparem,  e  estes  como  fossem  homens  ou  brutaes 
por  natureza,  ou  sedentos  de  vingança  pelos  maus  tratos 
recebidos,  dobravam  a  confusão,  saqueando  as  casas  e 
deitando-lhes  fogo.  » 

No  dia  seguinte  Werdemburck  marchou  sobre 
Olinda  (1),  acompanhando-o  as  canhoneiras  ao  correr 
da  costa.  Podia  ser  facilmente  detido  no  Rio  Doce,  cujas 
aguas  encontrou  avolumadas  por  chuvas  torrenciaes  e 
junto  ao  qual  havia  um  forte,  guarnecido  por  oitocentos 
e  tantos  homens,  e  com  elles   Mathias  de  Albuquerque 


(1)  Servio-lhe  de  guia  o  judeu  António  Dias  Papa-Robalos 
que,  depois  de  haver  commerciado  em  Pernambuco,  se  passara  á 
Hollanda. 


TERCEIRA  EPOCHA  433 


que  correra  do  Recife  em  defesa  do  Olinda,  mais  beiia- 
mente  ameaçada  ;  logo  porém  que  a  artilharia  das  bar- 
caças começou  a  sacudir,  afrouxaram  quasi  todos  er- 
tugiram  forçando  o 'próprio  Albuquerque  que  se  viur 
apenas  c  jm  cem  homens  a  abandonar  a  posição  e  reco- 
Iher-se  á  Olinda  onde  se  collocou  na  plaliforma  do  con- 
vento de  S.  Francisco,  posição  que  dominava  o  caminho 
da   praia. 

Ahi  mesmo,  porém,  não  se  demorou  muito  íempo^ 
Assim  que  os  hollandezes  se  approximaram  mais. 
Mathias  de  Albuquerque  trocou  o  convento  de  S.  Fran^ 
cisco  pelo  CoUegio  dos  Jesuítas  onde  já  se  achavam  re- 
fugiadas muitas  famiUas.  Dentro  em  pouco,  nu  emtanto,. 
o  inimigv^  assenhoreou-S6  dessa  posição  e  ogei.eral  por- 
tuguez  teve  que  abandonar  Olinda  que  foi  por  Werclern- 
burck  entregue  ao  saque. 

Os  hollandezes  perderam  cinco^-nta  ou  sessenta 
homens  nesta  acção  e  os  portuguezes  tiveram  quarenta 
e  cinco  mortos,  entre  os  quaes  o  capitão  António  Pereira 
Themudo,  e  bem  assim  contaram  cincoenta  e  seis  feridos. 

Diversos  autores  portuguezes,  aos  quaes  se  ailia  Ro- 
berto Southey,  affirmam  que  os  hollondezes  commette- 
ram  em  Olinda  os  mais  condemnaveis  excessos,  sendo- 
acompanhados  nos  mesmos  e  até  excedidos  pelos  afri- 
canos que,  polo  facto  da  usurpação  estrangeira  so  consi- 
deravam legalmente  emancipados. 

Tomada  do  Recife  pelos  liollaridezes.  (2  dk 

Março  de  1630. — Afugentado  do  forte  do  Rio  Doce  e  á& 
Olinda,  mais  por  tibieza  dos  que  o  cercavam  que  por  in- 
capacidade de  resistir,  aquartelou-se  o  esforçado  general 
Mathias  de  Albuquerque,  no  Recife  vedando  com  uma 
trincheira  a  passagem  que  punha  em  communicação  esta 
cidade  com  Olinda.  Sabendo  porém  pouco  depois  que  o- 
inimigo  havia  descoberto  um  outro  caminho,  pelo  qual 
mais  cedo  ou  mais  tarde  tornar-se-ia  senhor  do  Re- 
cife, deliberou  incendiar  trinta  navios  que  se  achavam 
carregados  no  porto  e  bem  assim  os  armazéns,  em  os- 
quaes  se  queimaram  milhares  de  caixas  de  assucar  & 
outras  mercadorias  de  valor,  procurando  furtar  por  esto 
modo  aoshoUendezes  taes  cabcdaes,  já  que  os  não  podia 
conservar. 

J.  de  Laet  diz  que  os  portuguezes  num  documento 

28 


434  HISTORIA  DO   BRASIL 


official  avaliaram  o<  prejuízos  causndos  por  tão  desespe- 
rado recurso  estratégico,  em  2,000,000  de  ducados. 

Assim  que  Werdemburck  conheceu  que  os  portu- 
gu  vps  tinham  desistido  de  conservar  o  Recife,  hcenci^u 
os  soldados  e  permiltiu-lhes  o  saque,  e  estes  se  lança- 
ram furiosamente  naquelle  empoiio  conimercial  do 
Brasil  que  as  chammas  haviam  em  grande  parte  de- 
vorado, porém  onde  assim  mesmo  acharam  bastante 
para  cevar  a  cubica  e  a  intemperança,  pois  conseguiram 
apodei-?ir-se  ainda  de  mil  e  quinhentas  caixas  de  assucar 
e  três  mil  pipas  de  vinho. 

T4»isi»d;&  cloíi  fortes  íIo  Picão  e  de  ${.  Jorg^e 
peBos  Uitílfiaiiilezes  — í2  de  Março  de  1630) .  — Depois 
de  incendiar  o  Recife,  Mathias  de  Albuquerque  reforçou 
a  guarnição  dos  fortes  do  Picão  o  i  do  Mar  e  de  S.  Jorge, 
passando  a  residir  na  casada  Asseca  que  ficava  fronteira 
a  este  ultimo  reduclo,  ao  qual  nesse  tempo  podia  pfis- 
sar-se  quando  a  mnré  baixiva. 

Ordenou  que  o  capitão  Martim  FeiToira  co-  i  vinte 
homens  occupasse  o  posto  visinho  de  Santo  Amaro  e 
organisou  diversas  guerrilhas  com  o  nome  de  compa- 
nhias d'i  embtisctydas,  das  quaes  também  faziam  parte  os 
Índios.  Com  ellas  pretendia  impedir  as  communica- 
^ões  dos  habitantes  com  o  inimigo  e  obstar  que  este  ad- 
quirisse mai-^  amplos  conhecimentos  dos  arredores. 

Aos  hollandezes,  porém,  interessava  agora  asse- 
nhorearem-se  dos  fortes  do  Picão  e  de  S.  Jorge,  afim 
de  teimem  livre  transito  no  porto. 

Assim,  fizeram  convergir  seus  esforços  nesse  em- 
penho. 

■  "A  20  de  fevereiro  investiram  contra  o  fone  de 
S.  Jorge  e,  segundo  o  próprio  Werdemburck,  tel-o-iam 
tomado  de  assalto  se  não  sahissem  curtas  as  escadas  que 
levavam.  Commandou  o  ataque  o  tenente-coronel  Stein 
Callenfels  e  os  hollandezes  retiraram-se  com  vinte  mor- 
tos e  quarenta  feridos,  o  que  animou  uni  tanto  as  forças 
de  Albuquerque  e  os  povos  do  interior,  os  quaes  logo 
começnram  a  acudir  ao  littoral  trazendo  ao  general  por- 
tuguez  reforços  de  valor. 

A  24  do  mesmo  mez  o  inimigo  tentou  um  reconhe- 
cimento até  perto  da  casa  em  que  se  achava  Mathias  de 
Albuquerque,  sendo  outra  vez  forçado  a  retirar-se  com 
grandes  perdas. 

No  dia  2  de  março  foi  atacado  o  forte  de  S.   Jorge, 


TKBOEmA  EPOOHA  435 


cuja  guarnição  íugiu,  ticando  apenas  sete  homens  com  o 
commandante  António  de  Limique  S3  via  obrigado  a 
capitular  depois  de  empregar  os  mais  desesperados  es- 
forços para  manter  a  posição. 

Igualmente  não  poude  resistir  a  pequena  guarnição 
do  forte  do  Picão,  também  conhecido  pelos  nomes  da 
forte  de  S.  Francisco  e  forte  do  Mar  e  assim  os  hol- 
landezes  torn  iram-se  senhores  absolutos  do  porto  t 
de  suas  fortiticações,  tanto  como  já  o  eram  das  praças 
do  Recife  e  Olinda. 

Durante  o  ataque  Mathias  de  Albuquerque,  brioso 
como  era,  tentou  soccorrer  o  forte  de  S.Jorge,  Si  lhe 
sobejava  no  emtanto  a  coragem  e  a  resolução  de  animo, 
escasseava-lhe  nesse  momento  a  força  moral  e  por  isso 
a  sua  gente,  cada  vez  mais  acobarbada,  recusou-se  a 
obedecel-o  e  obrigou-o  a  retirar-se. 

TrabiElliO!»  realísados  pelo.<«  hollandezes 
parài.  it  dofejisa  da  conquista. — Logo  que  os  fla- 
mengos ultimaram  a  conquistados  fortes,  confiaram  ao 
engenheiro  Commersteyn  o  trabalho  de  fortificar  mais 
regularmente  a  cidade  e  puzeram  a  coberto  dos  ticos  que 
pudessem  vir  do  continente  os  armazéns  e  casas  do 
Recife  qne  haviam  escapado  ao  incêndio  ateado  por  Ma- 
thias de  Albuquerque.  Occuparam  depois  a  ilha  de  An- 
tónio Vaz  que  tinha  sido  abandonada  e  fortificaram  o 
conviíuto  de  Santo  António,  nolla  exist  mte  ao  qual 
deram  o  nome  á^ForU  Ernesto,  pois  esse  ponto  entrava 
no  plano  geral  de  defensa  que  haviam  imaginado. 

O  engenheiro  Von  Buren  levantou  a  planta  do  Re- 
cife e  o  seu  coUega  Drews  levantou  a  da  ilha  de  Santo 
António. 

Repararam  o  forte  de  S.  Jorge  e  terminarauí  a  con- 
strucção  de  um  outro  <[ue  já  navia  sido  começado  pelos 
portuguezes  defronte  da  barra,  forte  esse  conhecido  pelo 
nome  de  Diogo  Paes,  que  os  hoUandezes  substituíram 
pelo  de  Forte  do  Bruyn  (1). 

Diz   Varnhagen  (2). 

«  Todas  essis  obras  eram  pelo  in!;ni.;o  eíTeotuadas 
com  grandes  difficuldades,    por  falta  de  madeiras  e   de 


1)  E'  o  actual  Forte  \do  Bruin. 

{ij  V \  is  iKGKs .  —  flistori  t  da<!  íxctai  '/l:>s  IiolLandezes  com  o 
Brasil . 


436  HISTORIA  DO  BRASIL 

materiaes,  e  em  virtude  dos  grandes  calores  ;  de  modo 
que  diariamenle  lhes  crescia  o  numero  dos  doentes  entre 
os  soldados  destinados  aos  trabalhos.  » 

O  arraial  do  Bom  Jesus. — Re'.irando-se  do 
Recife  com  a  sua  gente,  Mathias  de  Albuquerque  foi 
acampar  em  uma  paragem  situada  a  igual  distancia  do 
R  cife  e  de  Olinda,  onde.  por  accòrdo  dos  mais  compe- 
tentes estabeleceu  o  seu  quartel  general. 

Fortificou  uma  casa  que  nesse  logar  encontrou,  e 
accrescentou-lhes  vários  postos  e  baterias. 

Essas  fortificações  que  tomaram  o  nome  de  Arraial 
do  Bom  Je<^iis  estRxa^m  situadas,  segundo  nos  informa 
Duarte  Coelho  nas  suas  Mpmorias  Diárias,  «  á  margem 
esquerda  do  Capiberibe,  além,  um  tiro  de  arcabuz  do 
riacho  Paranàmirim,  ás  vezes  secco ;  próximo  de  um 
outeiro  sobre  o  qual  (por  occasião  da  cheia  do  Capibe- 
ribe em  1632)  se  addiccionou  ao  mesmo  arraial  um  forte 
reducto,  e  finalmente  áquem  do  engenho  do  Monteiro, 
nome  este  bem  conhecido,  pelas  suas  casas  de  campo, 
nos  subúrbios  do  Recife  ». 

A.S  companhias  do  enibascada. — A'  seme- 
lhança do  que  se  praticara  na  Bahia  no  tempo  do  bispo 
D .  Marcos,  Mathias  de  Albuquerque  teve  o  máximo  cui- 
dado de  organisar  as  celebres  companhias  de  embos- 
cada. 

Uma  dessas  companhias  era  commandada  por  Es- 
tevão de  Távora  e  outra  por  Simão  Figueiredo,  ao  depois 
jesuita.  As  quatro  companhias  que  tinham  sido  orga 
nisadas  em  Olinda  ficaram  subordinadas  a  Mathias 
de  Albuquerque  Maranhão,  individuo  que  possuia  uma 
estancia  em  Santo  Amaro  ;  Lourenço  Cavalcanti  de  Al- 
buquerque, de  Goyana.  commandou  outras;  o  pernam- 
bucano Luiz  Barba  lho  foi  capitão  de  uma  que  se  arran- 
chava  no  actual  bairro  da  Bòa  Vista,  e  António  Ribeiro 
de  Lacerda,  que  se  arranchava  nos  Afogados,  comman- 
dou as  que  se  propunham  a  resguardar  a  Várzea. 

Além  das  companhias  de  emboscada,  que  foram  de 
muito  proveito  na  lucta  com  os  hollandezes,  Mathias  de 
Albuquerque  guarneceu  diversos  postos  com  Índios,  um 
dos  quaes  foi  commandado  pelo  jesuita  Manuel  de  Mo- 
raes, outro  por  Felippe  Camarão  (o  Poty)  e  outro  por 
João  Fernandes  Vieira. 

João  Fernandes  Vieira.  —  Pelo  papel  saliente 


TERCEIRA  EPOCHA  437 


que  representou  na  grande  lucta  com  os  hoUandezes  me- 
rece este  chefe  uma  menção  especial  em  nossa  historia. 
Segundo  frei  Raphael  de  Jesus  (1),  seu  panegyrista, 
João  Fernandes  Vieira  nasceu  em  1613  na  cidade  do 
Funchal,  ilha  da  Madeira. 

3Em  1624,  qunndo  apenas  contava  onze  annos  de 
idade  transportou-se  com  os  pais  para  o  Brasil,  e  pouco 
depois  era  mettido  como  caixeiro  numa  casa  commer- 
cial  do  Recife. 

Activo  e  intelligente,  encontrou  annos  depois  meios 
de  se  estabelecer  por  conta  própria  e  não  tardou  em 
adquirir  cabedaes  que  Ihegrangearam  consideração. 

Vieira  foi  proeminente  fi^^ura  no  agitado  drama  da 
■reconquista  de  Pernambuco.  Comtudo  diversos  autores 
são  de  opinião  que  nem  sempre  se  comportou  com  honra, 
durante  a  lucta,  e  affirmam  até  que  por  vezes  com  o 
inimigo. 

O  certo  é  que  sua  fortuna  nunca  diminuiu.  Num 
momento  em  que  todos  os  patriotas  se  exhauriam  para 
alimentar  a  resistência  ao  invasor,  Vieira,  pelo  contrario, 
ao  terminara  guerraera  um  dos  mais  opulentos  colonos; 
sua  capacidade  militar  e  valor  guerreiro  também  são 
postos  em  duvida;  e,  na  verdade  o  combate  das  Tabocas, 
que  mais  tarde  apreciaremos,  não  constitue  pagina  muito 
gloriosa  para  um  general.  Comtudo,  Vieira  foi  o  mais 
apotheosado  dos  chefes  que  dirigiram  a  guerra  contra  o 
hollandez,  e  isto  explica-se  por  ser  elle  portuguez  de 
nascimento. 

António  Felippe  Camarão. —  Segundo  já 
vimos  na  segunda  parte  deste  trabalho.  Camarão  era 
Índio  da  tribu  Potyguar ;  nascera  no  actual  estado 
do  Rio  Grande  do  Norte,  e,  segundo  os  cálculos  do  se- 
nador Cândido  Mendes  de  Almeida,  foi  baptisado  a  22  de 
fevereiro  de  1612  na  sua  aldeia  de  Yg  ipó. 

Entre  os  indígenas  era  conhecido  pelo  nome  de  Poty, 
que  na  lingua  indígena  quer  dizer — camarão. 

Alliando-se  aos  portuguezes  prestou-lhes  grandes 
serviços  na  conquista  da  Parahyba  e  do  Rio  Grande  do 
Norte.  De  muito  maior  importância,  porém,  são  os  que 
agora  vel-o-emos  praticar  com  o  intuito  do  expellir  do 
solo  brazileiro  o  hollandez  intruso. 

Camarão  foi  um  dos  mais  ardentes  paladinos  desta 

(1)  Frei  Raphael  de  Jesus.—  Castrioto  Lusitano. 


438  HISTORIA  DO  BBASIL 

grande  causa,  à  qual  trouxe  o  concurso  dos  da  sua  raça, 
os  valentes  índios  Potyguaras. 

Ligado  ao  nome  de  Poty  figura  na  historia  pátria  o 
de  sua  esposa  D.  Clara  Camarão,  que,  acompanhando  o 
marido  em  todas  as  expedições  guerreiras,  por  vezes 
combateu  impávida  ao  seu  lado,  levando  com  sua  pre- 
sença e  exemplo  animação  aos  soldados  i^os  momentos 
em  que  o  desalento  começava  a  relaxar-lhes  a  energia. 

Ataque  ao  arraial  do  Bum  Jesus  por  Van 
der  EIst.  (14  de  Março  de  1630)—  Considerando  os 
hollandezes  quanto  lhes  era  prejudicial  a  visinhança  do 
acanipamento  inimigo  do  Bom  Jesus,  mandaram  contra 
elle  em  14  de  março  o  tenente-coronel  Van  der  EIsl,  que 
não  poude  tomal-o  de  assalto  e  foi  depois  repellido  pelas 
companhias  de  emboscada  de  Luiz  Barbalho  e  Luiz  Ca- 
valcanti as  quaes  promptamente  acudirauí  emsocccrro. 
Van  der  EIst  retirou-se  deixando  no  caihpo  muitos 
mortos,  ao  passo  que  os  contrários  só  tiveram  dezeseis 
baixas,  entre  mortos  e  feridos.  Serviu  de  guia  aos  hol- 
landezes nesse  ataque  mallogrado  o  seu  compatriota 
Adriar.  Frank. 

Diversas  escaramuças. —  as  companhias  de 
escaramuças  e  tropas  regulares  do  exercito  de  Mathias 
de  Albuquerque  aniniaram-se  com  essa  victoria  alcan- 
çada sobre  os  flamengos,  e  de  então  por  diante  não  os 
deixaram  mais  em  descanso,  de  modo  que  os  hollan- 
dezes jâ  não  podiam  sahir  fora  das  cidades  e  dos  fortes, 
nem  transitar  com  segurança-de  Olinda  para  o  Recife  ô 
vice-versa. 

Luiz  Baibalho  e  António  Ribeiro  de  Lacerda,  na 
noite  de  24  de  maio  atacaram  por  dois  pontos  differentes 
08  entrincheiramentos  que  os  hollandezes  faziam  na  ilha 
de  Santo  António;  mais  de  300  soldados  conseguiram 
transpor  as  duas  primeiras  trincheiras:  descaval- 
garam  as  peças  e  feriram  quasi  todos  os  ofhciaes 
inimigos,  entre  os  quaes  Van  der  Elst  e  o  engenheiro 
em  chefe  Dommersteyn.  Sendo  porém  ferido  mortal- 
mente o  capitão  Ribeiro  de  Lacerda  retiraram-se  os 
atacantes,  deixando  dentro  das  trincheiras  dezenove 
mortos. 

A  18  de  julho  Luiz  Barbalho  atacou  pela  madru- 
gada o  forte  do  Bruyn  e  embora  não  conseguisse  o  in- 
tento, sua  gente  portou-se  com  tanta  galhardia  que  o 


TERCEIRA    KPOCUA  439> 


próprio  Werdembiirck  falando  desse  feito  formulou  um 
JUÍZO  muito  lisongeiro  sobi  e  os  seus  intrépidos  inimigos, 
os  quaes  no  emtanto  logo  á  chegada  dos  hollandezes  em 
Pernambuco,  tinham-se  mostrado  um  tanto  tibios. 

Disse  Werdemburck:  «Acho  este  um  povo  de  sol- 
dados vivos  e  impetuosos,  aos  quaes  nada  mais  falta  que 
boa  direcção:  e  que  não  são  de  nenhum  modo  cordeiros, 
posso  eu  alíirmar  porque  por  vezes  o  tunhu  experi- 
mentado.» 

Um   mez    depois,   procurando    os   hollandezes    le- 
vantar no  outro  lado  da  ilha  de  Santo  António  o  forte 
das  Cinco  Pontas  ao  qual  deram  o  nome  de  Frederico 
Henrique,   manddU  Mathias  de  Albuquerque  (rezemos 
soldados  e  oitocentos  indios  atacal-os  nesse  ponto;  não 
foram  e--tcs  no  emtanto  bem  succedidos,   e  tiveram  que 
bater  em   retirada  com  quatorze  mortos  e  oito  feridos, 
além  de  demonstrarem  ao  flamengo  as  imperfeições  da 
sua  construcção  qu?  elles  trataram  derepai-ar,  bem  como 
as  do  redueto  avançado  a  que  haviam  dado  o  nome   de 
Amélia. 

Com  a  mesma  infelicidade  atacaram  a  3  de  ieve- 
reiro  de  1631  o  forte  em  construcção  das  Três  Pontas 
que  os  hollandezes  tinham  denominado  de  Werdem- 
burck; nesta  acção  Albuquerque  perdeu  treze  soldados 
eteve  vinte  e  um  feridos. 

()   intrépido    pernambucano    Luiz  Barbalho    con- 
seguiu  desalojar   o   inimigo  do  forte  do    Bnracu  que  os 
hollandezes   haviam  construído,  e  ao  qual  tinhan.  dado 
o  nome  de  forte  de   Mme.     Bruyn.     Não   conseguiu   no 
emtanto  Barbalho   manter-se  na    posição  conquistada, 
sendo  obrigado  a  abandona  1-a  de  novo  aos  hollandezes. 
^(  Afoularam-se  tanto   os  poi-tuguezes.   diz  Rober  to 
Southey,  que  sabendo  ir  o  general  holiandez  do  Recife, 
para  Olinda  com  IJOO  homens,    posios  de  emboscada  o 
surprehenderam;  desbaratada  a  gente  de  Werdemburck 
morto    um   dos  pastores    piotestanti  s,     ter-se-ia    elle 
próprio  rendido,  si  o  seu   cavallo,   recebendo  ligeira  fe- 
rida, o  nâo  tivesse  arrebatado.     E  lá  foi  elle  deixando 
perto  de  quarenta  mortos.  Tantu  foi   crescendo  o  perigo 
de  passar  d'uma  á  outra,  que  fizeram  os  hollandezas  um 
regulamento,  ordenando  que   todas   as   vezes   que  uma 
expedição  estivesse    para  tentar  a   partida,   se  dispa- 
rassem' duaspeças,e  sahisse  d'ambos  os  pontos  um  des- 
tacamento a  segurar  o  caminho.» 


410  HISTOliíA  DO   BRASIL 

Si  taes  arrojos  faziam  realçar  aos  olhos  do  invasor 
-o  denodo  dos  que  occupavam  o  paiz,  quer  na  qualidade 
de  naturaes,  quer  na  de  primitivos  conquistadores,  é 
facto  igualmente  provado  que  essas  investidas  fizeram 
com  que  o  precavido  hollandez  curasse  mais  attenta- 
menle  de  forlificar-se  na  terra  que  havia  empolgado, 
tornando-se  por  conseguinte  cada  vez  mais  árdua  a 
tarefa  de  desalojal-o. 

Também  os  hollandezes  de  vez  em  quando  accora- 
mettiam  postos  ou  forças  que  obdcciam  a  Mathias  de 
Albuquerque,  mormente  quando  a  necessidade  de  fazer 
fachinas,  etc,  os  forçava  a  devassar  o  campo:  a  10  de 
agosto  assaltaram  o  posto  das  Salinas,  a 23  de  setembro 
incendiaram  uma  casa  que  neste  havia  e  amiudadas 
vezes  escaramuçavam  com  aquelles  inimigos  que  se 
atreviam  a  avisinhal-os  mais. 

Xo  emtanto,  quer  uns,  quer  outros  mantinham-se 
nas  suas  respectivas  posições,  aguardando  reforços  da 
Hollanda  ou  da  Hespanha  e  nem  Òiederick  van  ^Ye^dem- 
burck  se  animava  a  atacar  de  modo  decisivo  o  inimigo 
no  seu  airaial  do  Bom  Jesus,  nem  Mathias  de  Albu- 
querque dispunha  de  meios  para  buscar  o  flamengo  nas 
suas  praças  fortes  do  Recife  e  Olinda. 

liii|>rea)São  causada  na  Hespanha  peia  in- 
vasão fios  liollandczes  $*^sn  Ifernamliuco.  —  Não 

acFi^ditamos  que  fosse  muito  vivo  na  Península  Ibérica 
o  desgosto  causado  pela  perda  de  Olinda  e  do  Recife  em 
1630,  pois,  como  já  fizemos  sentir  em  anterior  para- 
grapho,  b-^-m  conhecida  era  de  portuguezes  e  hespanhoes 
as  intenções  dos  Estados  Geraes  relativamente  ao  Brasil 
e  os  afortunados  atrevimentos  de  Piet  Heyn  deviam  ex- 
jjrimir  com  bastante  clareza  que  o  inimigo  seria  capaz 
de  maiores  em  prezas. 

Todavia  Mathias  de  Albuquerque  e  os  seus,  ani- 
mados pelo  que  succedêra  na  Bahia  em  1624,  esperavam 
ser  t-occorridos  efíicazmente  de  um  momento  para  outro, 
e  até  propaIava~se  em  Pernambuco  que  o  mesmo  D.  Fra- 
dique  de  Toledo  rão  tardaria  a  chegar  com  uma  pode- 
rosa esquadra  e  grosso  exercito. 

Em  Madrid,  no  emtanto,  decahida  como  se  achava  a 
monarchia  hespanhola  pelos  continuos  revezes  nos  com- 
bales e  repetidas  sublevações  nos  paizes  que  havia 
submettido,   não  se  cogitava  em  soccorrer  Mathias  de 


TERCEIRA   EPOCHA  iil 


Albuquerque,  de  modo  tão  efUcaz  comosuccedêra  annos 
antes,  por  occasião  de  restaurar-se  a  Bahia. 

Eis  o  memorial  que  os  estadistas  hespanhoes  leva- 
ram ao  conde  duque  de  Olivares  para  ser  presente  ao 
próprio  rei,  relativamente  ao  desanimo  que  se  assenho- 
reou dos  espirites : 

«  Si  se  íazia  snhir  uma  armada  a  restaurar  Pernam- 
buco, devia  dar  á  vela  em  agosto  por  causa  da  monção, 
mas  não  era  possível  aprest;»l-a  no  correr  do  anrio. 
Assim,  quando  ella  chegasse,  já  os  hoUandezes  estariam 
vinte  m^zes  de  posse  da  sua  conquista,  nem  havia  que 
duvidar  que  empregariam  elles  este  tempo  em  fortiíica- 
rem-se  e  segurarem- so.  Na  costa  de  Pernambuco  não 
havia  outro  porto  além  da  Parahyba,  agora  que  o  Recife 
era  perdido,  nem  aquelle  admíttia  navios  de  grande 
porte.  Onde  pois  acharia  abrigo  a  armada,  ou  onde 
desembarcaria  tropas  e  artilharia,  numa  costa  em  que 
até  uma  ligeira  bri^a  podia  sossobrar  embarcação? 
Perto  do  inimigo  nenhuma  esperança  de  effectuar  um 
dersembarque,  exprimentado  como  elle  era  na  guerra,  e 
preparado  como  devia  estar,  e  de  longe  o  paiz  coberto 
de  matagaes  e  paues,  desfiladeiros  perigosos  que  passar 
e  rios  que  atravessar,  e  tudo  isto  com  contrario?,  que  de 
toda  a  vantagem  sabiam  tirar  partido.  Mas  dado  que 
todas  estas  diíficuldades  se  venciam,  que  se  punham  as 
tropas  em  terra  e  se  assentava  cerco  ao  Recife,  devia 
este  sitio  ser  negocio  de  tempo  e  durante  elle  que  havia 
de  ser  da  armada  f  Cruzando  numa  costa  aberta  e  ex- 
posta, só  por  milagrí^  escaparia  a  algum  desastre  grande. 
Si  entrasse  a  estação  antes  de  rendida  a  praça,  seriam 
as  tropas  dizimadas  pela  doença,  nem  sem  infinito  perigo 
e  grande  perda  se  deixaria  eíTectuar  o  reembarque  Tão 
pouco  estaria  a  armada  em  estado  de  volver  á  Europa. 
E  onde  se  aprovisionariam  e  dariam  crena  os  navios? 

«Ainda  isto  não  era  tudo.  O  primeiro  custo  do 
armamento,  a  parte  com  que  a  Hespanha  devia  carregar, 
seria  dois  milhões  :  restava  ainda  a  despeza  dots  re- 
forços e  fornecimentos  e  vinte  navios  haviam  também 
de  ser  esquipados  para  a  costa  da  Hespanha.  Porquanto, 
achando-se  no  Brasil  a  armada,  ficava  desguarnecido  o 
littoral  do  reino,  e,  attento  o  estado  das  guarniçõees  não 
era  impossível  que  em  qualquer  ponto  fizesse  algum 
inimigo  conquistas  que  puzessem  em  sobresalto  a  mo- 
narchia  inteira.  Também  ficariam» expostas  as  índias. 


442  niSTOIilA   DO  BEA8IL 

A  França  tinha  então  oitenta  ou  cem  navios  promptos 
para  o  serviço,  e  poderia  suppôr-se  que  emquanto  as 
forças  da  Hespanha  se  empregavam  eni  Flandres,  na 
Itália  ou  no  Brasil,  não  percebesse  ella  quão  fácil  seria 
atacar  as  índias  í  (1)  Havana  era  o  único  logar  capaz 
de  resistir,  e  esse  mesmo,  não  sendo  soccorrido,  podia 
cahir ;  e  perdido  elle,  ou  Carthagena,  ou  Porto  Bello, 
acabavam  as  remessas  de  dinheiro,  que  até  ura  bloqueio 
d'aqueiles  portos  podia  demorar  por  annos.  Conside- 
rando pois  todas  estas  dilTiculdades  e  incommensuraveis 
males,  e  a  perda  total  do  Biasil,  que  era  segura  si  se 
mallograsse  o  fim  da  expedição,  o  único  expediente  se- 
guro, e  qutí  promettia  alguma  esperança,  seria  mandar 
a  Albuquerque  dois  mil  homens  de  tropas  escolhidas 
.  com  um  chefe  resoluto  que  o  ajudasse  a  elle  e  ao  povo 
do  paiz  a  continuar  com  as  hostilidades,  cujo  fim  seria 
cansrir  os  holiandezes,  desenganal-os  dos  esperados 
lucros,  e  afinai  induzil-os,  segundo  todas  as  probabili- 
dades, a  abandonarem  o  paiz    » 

Este  alvitre  foi  aceiLo  e  com  dififerentes  intervallos 
se  despacharam  nove  caravellas  para  o  Brasil.  Algumas 
dessas  embarcações  cahii-am  em  poder  dos  hullandezes, 
poucos  foram  os  soldados  que  conseguir.im  alcançar 
o  arraial  do  Bom  Jesus. 

JGstadu  dos  espirito»    em   Peraianibiieo.  — 

Esta  escassez  de  recursc^s  enviados  pela  metrópole,  que 
por  suas  condições  precárias  deixava  a  colónia  entregue 
á  sua  própria  sorte,  ensombrava  os  e>piritos  da  popula- 
ção eiij  Pernambuco  e  explorando  esta  circumstancia  os 
sagazes  batavos  trabalhavam  por  fazer  desapparecer  a 
repugna* ncia  que  se  lhes  votava  por  antagonismos  eth- 
nicos  e  religiosos  e  procuravam  tornar  aceitável  a  idéa 
do  seu  domiaio,  à  qual  se  inclinavam  já  alguns  portu- 
guezes  e  principalmente  brasileiros. 

Mathias  de  Albuquerque,  no  auge  do  desespero  pela 
feição  que  as  cousas  touiavam,  assaltou  Olinda,  porém, 
foi  repeilido  com  grande  mortandade  e  esie  facio  au- 
gmentou  o  desgosto  e  fez  crescer  o  desalento  em  todos 
que  desejavam  a  restauração  de  Pernambuco,  em- 
bora não  fosse  invejável  a  situação  dos  holiandezes  que 
escassos  recursos  também  recebiam  de  sua  pátria  ealém. 


(1)  Estas  índias  a  qu%se  refere  o  memorial  eram  as  occidentaes. 


TERCEIRA  EPOCHA  443 


de  lutarem  com  a  falta  d'agua  no  Recife,  tinham  de  re- 
ceber da  Hollanda  todos  artigos  necessários  á  vida,  in- 
clusive a  lenha  e  a  madeira,  pois  o  inimigo  sempre 
alert  i  não  lh'o  permittia  abastecer-se  de  taes  cousas  nas 
mattas  visinhas. 

A  esquadra  coiianiandada  por  Oquondo.  — 
Não  podia  no  emtanto  a  Hespanha,  sem  enormíssima 
lesão  aos  próprios  interosses,  deixar  de  empregar  alguns 
esforços  no  sentido  de  reconquistar  Pernambuco,  e 
assim,  vendo  que  não  surtira  efleito  o  alvitre  a  que  já 
nos  referimos,  deUberou  mandar  ás  paragens  occupadas 
pelo  hoUandez  uma  pequena  esquadra  para  a  qual  Por- 
tugal somente  carregou  com  as  despezas. 

Essa  esquadra  que  trazia  por  almirante  D.  António 
de  Oquendo  compunha-sií  de  dezoito  vasos  de  guerra 
aos  quaes  se  jumaram  mais  cinco  navios  fretados  e  con- 
duzia mil  homens  para  Pernambuco,  duzentos  para  a 
Parahyba  e  oito  centos  para  a  Bahia,  porto  em  que  a 
armada  devia  primeiro  tocar. 

A  esquadra  coaumandada  por  «lausseu 
Pater  — Assim  que  na  Hollanda  se  teve  conhecimento 
dos  aprestos  que  na  Hespanha  se  faziam  para  a  esquadra 
de  D.  António  de  Oquendo.  começaram  os  Estados  Ge- 
raes  a  enviar  a  Pernambuco  vários  navios  com  scccor- 
ros,  emquanto  se  preparava  uma  armada  cujo  :com- 
mando  confiaram  ao  ahniranto  Adrian  Janssen  Pater,  a 
qual  achando-se  prompta  em  breve  prazo,  fez-se  logu  de 
vela  para  o  Brasil. 

Com  Janssen  Pater  vieram  os  generaes  Rembach, 
Lichtardt,  von  Schkoppe,  o  j^olaco  Arcizewsky  e  algumas 
famihas  hollandezas  que  prelundiani  estabelecer-se  no 
Brasil. 

Vautai^ens  eslratej^^icaii  de  Peruainbuco 
se;;undo  Weerdemburek.  — Unia  das  razões  que 
compelliram  a  Hespanha  a  enviar  Oquendo  ao  Brasil, 
foi  chegar  a  ella  a  vantajosa  opinião  que  o  general  hol- 
landez  tinha  sobre  Pernambuco  como  ponto  estratégico 
e  divulgarem-se  os  ambiciosos  projectos  de  conquista 
geral  do  Brasil  que  o  mesmo  general  julgava  possíveis 
de  realisar  si  seus  compatriotas  pudessem  manter-se 
n'aquella  excellente  posição. 

E  não  era  infundada  esta  apprehensão,  nem  falsos- 
os  boatos  espalhados. 


444  HISTOEIA   DO   SfiASIL 

Weerdemburck  no  officio  que  dirigiu  aos  Estados 
Geraes  em  7  de  março,  falando  de  Pernambuco,  assim 
se  exprimia : 

«  E'  esta  uma  paragem  da  qual  todo  o  Brasil  se  pôde 
conquistar;  e  espero,  ao  ver  o  medo  com  que  está  todo 
o  paiz,  que  poderei  fazer  progressos  que  dém  a  VV.  SS. 
nome  eterno.  Porque  d'aqui  se  pôde  enfrear  e  guardar  o 
Brasil  todo  com  poucos  gastos,  arruinar  a  navegação  do 
inimigo  nas  costas  e  attrahir  os  habitantes  a  mutua  ami- 
zade e  alliança.  » 

O  foa*te  Oran^se.  —  Chegando  Adrian  Janssen 
Pater  ao  Brasil,  entendeu  o  conselho  militar  que  os  hol- 
landezes  tinham  em  Pernambuco  forças  de  mais  e  por 
conseguinte  podiam  sem  inconveniente  algum  desviar 
uaia  parte  da  esquadra  e  do  exercito  para  conquistar  a 
ilha  de  Itamaracá. 

Prepararam  pois  uma  expedição,  cujos  navios  con- 
fiaram ao  commando  de  iVIaerten  Teyssen  e  cujas  tropas 
de  terra  puzeram  á  disposição  do  tenente  coronel  Cal- 
lenfels. 

Fez-se  de  vela  a  esquadrilha  em  22  de  maio  de  1631 
e  chegando  ao  porto  sul  da  ilha,  d'ahi  não  passou  con- 
tentando-se  os  hollandezes  em  occupar  uma  restinga 
quasi  ilhada  que  ficava  fronteira  á  barra  e  na  qual 
construíram  um  forte  de  quatro  frentes  abaluartadas, 
com  um  revelim  ou  hornaveque,  do  lado  do  isthmo  que 
s-:;  estende  para  a  ilha. 

Essa  fortificação  que  elles  guarneceram  com  qui- 
nhentas e  tantas  praças  commandadas  pelo  official  po- 
laco Crestofle  d'Artiiáchau  Arciezewsky  recebeu  o  nome 
de  Forte  Orange. 

Mathias  de  Albuquerque,  logo  que  soube  do  estabe- 
leciuiento  dos  hoUandezes  nesse  local,  mandou  contra 
elles  Bento  Maciel  Parente  com  alguma  tropa,  ao  qual 
Juntou-se  depois  Jeronymo  Cavalcanti;  como,  porém, 
reconhecessem  estes  capitães  que  o  inimigo  se  hmitava 
a  conservar  o  forte,  deixaram-n'o  em  paz. 

Mais  tarde,  em  1  de  julho,  tentaram  os  hollandezes 
-assenhorear-se  do  posto  dos  x\fogados,  porém  foram  re- 
pellidos  com  denodo  por  Francisco  Gomes  de  Mello. 

Combate  naval  eutre  Oquendo  e  Pater.  — 

(12  DE  Setembro  de  1631)  D.  António   de  Oquendo,  com 
sua  esquadra  chegou  à  Bahia  a  13  de  julho  de  1631  e 


1 


TERCEIRA   EPOCHA  445 


aos  18  do  agosto  seguinte  partiu  do  Recife  o  almirante 
Pater  ao  seu  encontro . 

Somente,  porém,  aos  12  de  setembro  encontraram- 
se  as  duas  esquadras  em  agu^s  da  Bahia. 

Varnhagen,  seguindo  a  Relacion  de  Jornada,  im- 
pressa em  Sevilha  por  Francisco  de  Lyra  nesse  mesmo 
anno  de  1631,  descreve  pela  seguinte  fórina  essa  memo- 
rável   batalha  naval  : 

«  Cada  um  dos  dois  chefes  ao  examinar  as  forças 
do  contrario,  julgava  a  victoria  segura  :  Pater  fiado  na 
maior  pujança  de  algumas  de  suas  naas,  em  nâo  ter 
barc!>s  que  comboiar,  na  sua  resolução  e  audácia  e  no 
plaiio,  que  jà  levava,  de  deixar  a  esquadra  contraria  sem 
chefe,  accommettendo  a  um  tempo  a  capitánea  e  a  almi- 
ranta,  e  tonando-as  por  abordagem  com  muita  gente 
que  para  isso  trazia.  Oquendo,  tiava-se  na  superioridade 
numérica  de  suas  força^,  contando  dezoito  vasos  de 
guerra  e  mais  cinco  fretados  ;  pelo  que  chegara  a  dizer, 
ao  avistar  as  dezeseis  naves  inimigas,  que  eram  ellas 
(palavras  formaes)/)oaca  roupa. 

«  A  um  tiro  da  capitáne:^  de  Oquendo  sedispuzeram 
os  navios  de  guerra  em  batalha,  collocando-se  os  tran- 
sportes ao  abrigo  delles,  e,  a  um  novo  tiro  de  bala  da 
mesma  capitánea,  içou  esta  o  pavilhão  real  e  viu  diri- 
gir-se  a  ella  o  chefe  inimigo  ;  ao  passo  que  o  vice-almi- 
rante  Thysoon,  tomava  á  sua  conta  a  vice-almiranta 
hespaiihola,  de  vinte  e  seis  peças  de  bronze,  a  qual 
antes  de  fazer  fogo,  recebeu  uma  tremenda  banda, 
além  de  outra  de  um  galeão  que  veiu  em  auxilio  de 
Thysoon ;  e  que,  ao  passar-lhe  pela  popa  disparou 
sobre  ella  de  tal  modo  que  a  abriu  e  metteu  a  pique  ; 
havendo-lhe  sido  de  nenhum  soccorro  o  queatravessan- 
do-lhe  -i  proa  pretendeu  subministrar-lhe  o  galeão  São 
Boavent'cra,  que  foi  victima  de  sua  zelosa  intenção, 
accommettendo-o  o  inimigo  até  o  tomar. 

«A  capitánea  hollandeza,  de  cincoenta  e  s^is 
canhões,  buscando  a  hespanhola,  de  trinta  e  quatro, 
atravez  do  fogo  de  quatro  navios,  que  ficavam  a  barla- 
vento, atracou-se-lhe  por  bombordo,  deitando-lhe  arpéo, 
para  segurar  o  que  julgava  preza  sua.  Travou-se  então 
mais  renhido  este  combate  parcial  :  um  galeão  inimigo 
veiu  em  auxilio  de  sua  capitánea,  abordar  a  nossa  por 
estibordo,  e  um  navio  portuguez,  o  Prazeres  Menor,  ao 
mando  de  Cosme  do  Ct»uto,  querendo  soccorrer  a  Oquen- 


446  HISTOEIA   DO   BRASIL 

do  pela  proa  foi  mettido  a  pique  e  o  seu   comniandante 
cahiu  prisioneiro. 

«  Durava  a  acção  desde  as  oito  da  manhã,  e  eram  já 
quatro  da  tarde,  quando  s  ■  manifestou  incêndio  na 
Príncipe  Guilherme,  capitánea  inimiga.  E  o  fogo  ia  já 
commuaicando,  por  seis  ou  sete  partes  á  Jiespanhola  a 
ella  aferrada,  quando  a  conseguio  salvar  o  capitão  João 
do  Prado,  subministrando-lhe  um  cabo  ou  rajeira. 

«  Abordou  ainda  com  outro  inimigo  um  dos  galeões 
da  frota  hespanhola  e  os  demais  contentaram-se  de  im- 
pedir que  eiles  fossam  soccorrer  a  sua  capitánea,  outro 
navio  denominado  Prorincia  de  Utrecht,  do  qual  ape- 
nas cincoenta  pessoas  conseguiram  não  se  afogar.  A 
capitánea  de  Oquendo  salvou-se,  mas  ficou  impossibi- 
litada de  marear.  E  por  esta  circumstancia  e  pela  de 
julgar  preferível  a  tudo  deitar  a  salvo  em  terra  os  soc- 
C"rros  que  vinham  para  Pernambuco  e  Parahyba,  tra- 
tou Oquendo  de  evitar  novo  eacontro,  que  aliás  anciava 
ter  o  inimigo. 

«  A  circumstancia  de  ter  conseguido  deixar  impu- 
nemente estes  soccorros  deve  ter  sido  a  mais  attendida 
para  haver  sido  pela  Hespanha  contada  esta  acção  como 
victoria,  e  ainda  hoje  é  considerada  como  tal  em  um 
quadro  dViquella  época,  pintado  a  óleo,  que  se  vê  em 
Madrid  no  Museu  Naval.  A  perda  total  de  um  e  outro 
lado  se  avaliou  em  mais  de  mil  homens.»  (1) 

O  bravo  almirante  Adrian  Jansen  Pater,  segundo 
a  maioria  dos  autores,  ao  ver  perdida  a  batalha  que  elle 
com  tanta  segurança  presumia  ganha,  envolveu-se  no 
estandarte  de  sua  pátria  e  afundou-se  nas  ondas  dizendo: 
«  Só  o  maré  digno  tumulo  de  um  almirante   batavo  ». 

António  Thysio,  escriptor  coevo  desse  aconteci- 
mento e  autor  de  uma  historia  das  batalhas  navaes  de 
seus  compatriotas  não  menciona  tal  facto,  affirraando 
somente  que,  sendo  o  almirante  perfidamente  abando- 
nado dos  seus,  succumbiu  de  cansaço  em  meio  das 
ondas. 

Oquendo  desembarcou  na  Barra  Grande  as 
tropas  que  trazia  para  Pernambuco,  só  700  homens  ■% 
não  1,000  como  tinham  partido  de  Hespanha  e  d'ali 
mesmas  se  dirigiram  para  o  arraial  do  Bom  Jesus,  ao 


\ 


(VA.RGNAGEX. —  Historiu  das  lutas  com  os  hollandetes  no  Brasil. 


TERCEIRA  EPOCHA  447 


qual  chegaram  a  12  ou  13  de  novembro,  após  terem  per- 
corrido cerca  de 40  léguas. 

Commaiidava  esse  contingente  o  conde  de  Bagnuolo 
que  já  havia  tomado   parte   da  Bahia    na  restauração   e 
-acompanhava   Duarte   Coelho,  donatário    de   Pernam- 
buco. 

OincoMiUo  de  Olinda.  (2-1  de  Novembro  de  1630). 
Depois  desse  revez  resolveram  os  hollandezcs  retirar 
de  Olinda  as  forças  que  tinham  nessa  praça  e,  para  que  o 
inimigo  não  a  occupasso,  incendiaram-n'a  a  24  de  no- 
vembro de  1631. 

Sciíundo  lemos  em  Southey, antes  de  praticarem  psta 
devastação  mandaram  os  hollandezes  perguntar  a  Ma- 
thias  de  Albuquerque  si  queria  resgatar  a  sua  cidade, 
aliás  seria  queimada,  ao  que  Albuquerque  respondeu 
mais  du  menos  o  seguinte:  «  Queimai-a,  si  a  não 
podeis  guardar,  aue  nós  saber<Mnos  edificar  ontra 
melhor.» 

.Itaqiid    da   Parahyba   pol!»si   hollaiielezes . 

—  Atemorisaram-se  um  taní.o  os  invasores  quando  sou- 
beram ter  chegado  ao  arraial  do  Bom  Jesus  as  forças 
vindas  com  D.  António  de  Oquendo,  pois  presumiam 
ser  muito  3ons;ideravel  esse  soccorro;  conhecendo  porém 
dentro  em  pouco  que  o  contingente  de  Bagnuolo  era  de 
pouca  importância,  foram-se-lhes  os  receios,  principal- 
mente depois  que  souberam  achar-se  o  inimigo  dividido 
por  uma  rivalidade  mesquinha,  em  consequência  de 
terem  Bagnuolo  e  Duarte  de  Albuquerque  concordado  em 
favorecer  as  tropas  regulares  que  haviam  trazido  e  me- 
nosprezar os  habitantes  armados,  embora  constituíssem 
estes  a  garantia  da  capitania. 

Diz  um  autor: 

«  Depressa  descobriram  os  hollandezes  essa  mise- 
rável politica  e  prepararam-se  a  tirar  d'ella  partido: 
abriram  relações  com  Bagnuolo,  que  imprevidente  as 
admittiu ;  seguiu-se  uma  troca  mutua  de  cortezias  e  pre- 
sentes entre  os  commandantes,  o  que  desgostou  os  por- 
tuguezes,  e  ao  inimigo  offerecou  ensejo  de  sondar  e 
apalpar  os  descontentes.  » 

Assim,  deliberaram  os  batavos  dilatar  a  sua  con- 
quista e  a  Parahybifoi  a  pi-imeira  região  para  a  qual 
Irinçaramas  vistas.  Co  itra  essa  capitania  mandaram  três 
mil  homens  commandados  pelo  tenente  coronel  Callen- 


448  HISTOEIA   DO   BRASIL 

fens  que  a  9  de  dezembro  desembarcou  nas  proximi- 
dades do  Cabedello  onde  loqo  fez  construir  uma  trin- 
cheira. 

Com  mandava  o  forte  do  Cabedello  o  capitão  João  de 
Mattos  Cardoso  eeste  a  trincheira  dos  Iil  llandezes  oppoz 
uma  ouira  na  distancia  de  oitenta  passos  da  sua  mu- 
ralha, sendo  a  direcção  da  mesma  confiada  ao  en- 
genheiro Diogo  Paes.  Callefens  procurou  impedir  a 
construcção  da  trincheira,  chegando  a  ptrder  vinto  e 
tantos  mortos  no  ataque. 

No  dia  seguinte  tornou  o  hollandez  a  investir  a 
fortificação,  procurando  surprehender  o  inimigo  em  hora 
de  repouso  por  quatro  pontos  difíerentes,  porém  foi  nova- 
mente repellido.  Muitos  foram  os  mortos  de  parte  a 
parte  e  entre  elles  o  franciscano  frei  Manuel  da  Piedade 
que  com  um  crucifixo  alçado  se  lançara  no  meio  da 
refrega . 

Desanimados  com  esse  duplo  revez  fizeram-se  de 
vela  os  hollandezes  para  Peinambucu. 

Jeronymo  de  Alíjuquerque  Maranhão  morreu  em  um 
desses  assaltos  dos  hollandezes  ao  forte  do   Cabedello. 

Teaitativa  niallog^rada  cie  ataque  ao  Rio 
Grantli^  do  !^'orti^  pelos  hollandezes. —  Mal  suc- 
cedidos  na  Parahybi  do  Norte,  nem  por  isso  desalenta- 
ram-se  os  hollandezes  e  pouco  depois  tentavam  a  con- 
quista do  Rio  Grande  do  Norte,  depois  de  simularem 
um  ataque  á  ilha  de  Itamaracá. 

Sabedor  dos  intentos  dos  hollandezes,  Mathias  de 
Albuquerque  mandou  logo  para  o  sitio  ameaçado  seu 
irmão  Mathias  de  Albuquerque  Maranhão  com  trezentos 
europeus  e  igual  numero  de  Índios,  frustrando-se  por 
essa  forma  o  projecto  de  Werdemburck. 

l^entativa  de  occupação  do  Cabo  de  l§iaiito 
Agostinho.  (Janeiro  de  1632).  —  Perdido  o  porto  do 
Recife  os  pernambucanos  faziam  todo  o  seu  commercio 
marítimo  pelo  porto  de  Nazareth,  sete  léguas  ao  sul 
do  Recife  e  junto  ao  Cabo  de  Santo  Agostinho,  onde, 
apezar  da  rigorosa  vigilância  dos  cruzeiros  hollandezes, 
chegavam  ainda  assim  muito  a  miúdo  embarcações  que 
os  suppria  de  artigos  europeus  e  lhes  comprava  os 
productos. 

Bagnuolo,  para  ali  mandado  com  o  seu  terço  de  tre- 
sentos  n-apolitanos,  tinha  construído  dous  reductos  e  não 


TERCEIRA  EPOCHA  449 


convindo  aos  hollandezes  essa  válvula  marilima  que  os 
da  terra  ainda  conservavam,  atacaram-n'o  com  dezoito 
navios,  tentando  em  seguida  desembarque  no  Pontal 
de  Nazareth,  foram,  no  emtantorepellidos  e  obrigados  a 
retirarem-se  com  grande  perda,  isto  pela  resistência  que 
lhes  oppoz  Bento  Maciel. 

B  ignuolo  construiu  então  o  forte  conhecido  pelo 
nome  de  Nazareth. 

«  Ninguém,  afora  elle  próprio,  diz  um  autor,  ficou 
satisfeito  com  a  obra  ;  mal  escolhido  o  logar  e  por  de- 
mais longe  da  barra.  » 


Aqui  tjrminamos  este  primeiro  capitulo  da  luta  com 
os  hollandezes  em  Pernambuco,  o  qual,  embora  extenso, 
apenas  relata  o  succedido  em  dois  annos  de  pelejas. 

Pelo  que  se  leu  vê-se  que  os  hollandezes  nada  adian- 
taram depois  da  conquista  do  Recife  e  de  Olinda  e  as 
cousas  dous  annos  depois,  achavam-se  para  os  interesses 
dos  Estados  Geraes  de  Ilollanda  no  mesmo  pé  em  que 
haviam  ficado  logo  depois  da  occupação,  graças  princi- 
palmente ao  zelo,  actividade  e  tezura  militar  de  Mathias 
de  Albuquerque,  que,  si  não  possuía  as  raras  qualidades 
de  um  grande  capitão,  era  no  entanto  animado  por  um 
desejo  real  de  expulsar  o  invasor. 

Nada  adiantaram  os  hollandezes,  como  até  perderam; 
mallograram-se  as  tentativas  que  fizeram  para  occupa- 
ção de  Itamaracá,  Parahyba,  Rio  Grande  do  Norte  e 
Cabo  de  Santo  Agostinho  e  foram  até  forçados  a  aban- 
donar Olinda. 

A  Companhia  das  índias  Occidentaes,  que  acima 
de  tudo  era  uma  empreza  commercial,  considerando  o 
minguado  lucro  ou  antes  a  pesada  despeza  que  o  Recife 
lhe  acarretava  e  bem  como  os  enormes  prejuízos  tra- 
zidos á  sua  caixa  com  o  desbarato  da  esquadra  de  Jansen 
Pater  ia  arrefecendo  o  seu  empenho  pela  conservação  da 
conquista  e  tudo  faz  crer  que  o  pavilhão  neerlandez  que 
tremulava  na  capital  pernambucana,  seria  recolhido 
dentro  era  breve  á  Ilollanda  pelo  esmorecimento  que 
ganharia  a  todos,  inclusive  a  própria  Companhia,  se  a 
deserção  de  Calabar  não  viesse  mudar  a  face  das  cousas, 
fazendo  reverdecer  as  esperanças  do  invasor. 

23 


CAPITULO  III 

LUCTA  COM  OS  HOLLANDEZES 
Desde  a  deserção  de  Calabar  á  Invasão  daParabyb». 

(1632^1635) 

A  dewerçfto  de  Citlabar.  —  Um  facto,  na  appa- 
rencia  insignilicante,  veiu  imprimir  nova  feição  á  lucta 
que  se  feria  no  Brasil,  permittindo  aos  hollandezes  es- 
praiarem-se  além  do  Recife,  onde  até  então  permane- 
ceram encurralados. 

Este  facto  foi  a  deserção  do  mameluco  Domingos 
Fernandes  Calabar,  natural  de  Porto  Calvo,  e  a  sua 
passagem  para  os  arraiaes  hoUandezes  em  20  de  Abril 
de  163--'. 

Frei  Calado,  (1)  cujo  critério  como  historiador  é 
muito  falso,  e  o  aristocrático  visconde  de  Porto  Seguro, 
(2)  que  em  se  tratando  de  africanos  e  Índios  sempre  se 
moscra  oífensivo  quando  os  mesmos  vão  de  encontro 
aos  interesses  monarchicos  e  lusitanos,  procuraram 
denegrir  a  memoria  de  Calabar. 

Porto  Seguro,  diz: 

«  Consta  pelo  testemunho  de  dois  escriptores  que 
conheceram  pessoalmente  o  mesmo  Calabar  (3),  e  que 
deram  depoimentos  ante  a  posteridade,,  alguns  annos 
depois  da  morte  do  mesmo  Calabar,  que  a  origem  da 
deserção  procedeu  de  temor  do  castigo,  em  virtude  de 
grandes  crimes  commettidos.  Esses  crimes,  segundo 
uma  das  duas  testemunhas  que  foi  nada  menos  que  o 
sacerdote  que  ouviu  o  réo  de  confissão  i.a  hora  da  morte 
foram  grandes  furtos,  em  virtude  dos  quaes  o  desertor 
receiava  ser  perseguido,  pelo  provedor  'André  d&- 
Almeida,  » 


(1)  Fri:i  Mancel  CxLxun— Valeroso  Lucideno. 

(2)  PouTo  SiifiURO.— //úsíorto  Geral. 

(3)  Frei  Manuel  Galado  e  Frei  Eafael  de  Jesus. 


452  HISTORIA  DO   BRASIL 

Quanto  a  nós  taes  ciffirmações  são  prejudicadas  por 
um  lacto  de  alta  importância  nesta  questão.  Como 
devem  estar  lembrados  os  leitores,  Mathias  de  Albu- 
querque logo  no  começo  da  lucta  e  com  o  intuito  de 
engrossar  as  suas  fileiras,  concedeu,  em  nome  do  rei, 
perdão  a  todos  os  réos  homisiados  que  se  apresentassem 
a  tomar  armas.  Ora,  si  Calabar  era  um  criminoso,  não 
devia  ainda  assim  arreceiar-se  da  acção  da  justiça,  pois 
íoi  um  dos  primeiros  que  se  apresentaram  para  a  lucta  ; 
em  14  de  março  de  1630  já  elle  combatia  com  denodo  na 
deíesa  do  arraial,  recebendo  até  um  ferimento  honroso 
Dizer  que  taes  furtos  foram  commettidos  depois  de 
começada  a  guerra,  tanibem  não  pôde  ser,  pois,  como 
bem  crê  o  Dr.  Joaquim  Manoel  de  Macedo  onde  o  pobre 
mula  lo  Calabar  de  quem  nunca  antes  se  falara,  e  que 
combatia  no  Campo  Real,  inteiramente  livre  de  perse- 
guições, apanharia  a  fazenda  real  para  a  furtar  em  suas 
rendas  bem  desordenadas  então?. . .  »  (1) 

Somos,  por  conseguinte,  propensos  a  acreditar  que 
motivos  de  natureza  diversa  da  que  apontam  os  referidos 
autores,  levaram  o  mestiço  pernambucano  a  offerecer 
seus  serviços  aos  inimigos  dos  portuguezes  ;  Calabar 
não  era  um  ladrão.  A  sua  deserção,  porem,  embora 
tenha  aos  nossos  olhos  o  valor  de  um  facto  prematuro 
da  evolução  histórica,  um  acontecimento  que  annuncia 
os  grandes  conílictos  de  ódios  de  raça  que  ao  depois 
explodirão,  o  historiador  imparcial  não  pôde  ver  nelle 
sinão  um  miserável  traidor. 

Na  apreciação  do  caracter  dos  personagens  mais 
salientes  da  guerra  hollandeza  não  se  pôde  admittir 
critérios  differentes,  accommodaticios  a  cada  um  para 
que  todos  sejam  julgados  pelo  lado  bom,  tantos  os  leaes, 
como  os  traidores;  e  assim,  querendo  exaltar  a  despeito 
de  tudo  o  mameluco  Calabar,  seremos  obrigados  a 
coudemnar  Henrique  Dias,  Camarão  e  Negreiros  como 
individues  nefastos  á  obra  da  civilisação  nacional. 

Ora  ó  o  que  a  historia  não  pode  f;ízer  e  conferindo 
laureas  áquelles  três  grandes  paladinos,  só  um  titulo 
de  traidor  pôde  reservar  ao  que  fora  pedir  armas  ao 
inimigo  para  com  ella  apunhalar  a  pátria,  pois  esta 
para  Calabar  não  podia  ser  outra  sinão  aquella  massa 


(1)  Joaquim  Maxcel  de  Macedo. —An/io  biographico» 


TERCEIRA    EPOCHA  453 


de   poi'tuguezes,    in4ios   e  negros  que  em  tal  momento 
se  reuniam  e  se  sympatliisavam  pela  primeira  vez. 

Como  ó  natural  os  tiamengos  receberam  Calabar 
com  muita  satisfação.  «  Foi  o  primeiro  pern  imbucano 
que  desertou  para  os  hollaiidezes,  diz  Southey,  e  si  a 
estes  fosse  dado  (Teiitre  lodos  íazer  selecção  de  um, 
não  teriam  escolhido  outro,  ião  activo,  sagaz,  emprehen- 
dedor  e  desesperado  era  elle,  nem  havia  quem  melhor 
conhecesse  o  paiz  e  a  costa.  »  (Ij 

Itaqiie   a    l»iiai*it.<!isíri  pelos  li»llaiiileze.«. 

(30  DE  ABRIL  DE  1(332). —  Logo   quo  se  viu  entre  os  hol- 
landezos,    Calabar  offereceu-se   a  Werdemburck    para 
guial-^  em  um  ataque  de  surpreza  á  villa  de  Iguarassú 
cujo  local  o  condições  de  defesa  conhecia  de  sobra.  "      ' 

Werdemburck  acquiesceu  e  a  30  de  abril  de  163"^ 
partiu  elle  á  frente  de  500  soldadf>s  e  trinta  e  tantos 
pretos,  para  conduzir  os  feridos,  todos  guia  los  por 
Calabar.  Passaram  junto  de  Olinda,  onde  foram  pres- 
sentidos pelos  vigias,  que  der^im  logo  aviso  ao  Arraial. 

Tiveram  que  vadear  alguns  rios  cujas  ao-uas  sê 
achavam  avolumadas  e  no  dia  seguinte,  achavam-se  em 
ípento  a  Iguarassú  que  foi  acommettida  por  Werdem- 
burck depois  áe  deixar  três  companhias  ás  ordens  do 
Major  Rembach. 

No  ataque  mataram  os  hollandezes  varias  pessoas 
de  distincçào  e  prenderam  alguns  ecclesiasticos,  vol- 
tando com  elles  em  triumpho  para  o  Recife.  Iguarassú 
foi  saqueada  e  queimada,  não  chegando  a  tempo  de  soc- 
correl-a  uma  força  commandada  por  D.  Fernando  de  la 
Riba  Aguero  que  Mathias  de  Albuquerque  despachara 
logo  que  recebera  o  aviso  dos  vigias  de  Olinda.  ' 

Como  era  natural,  o  successo  da  expedição  a  Igua- 
rassú fez  crescer  a  consideração  com  que  Werdemburck 
e  os  demais  oííiciaes  hollandezes  distinguiam  Calabar. 

Varias  investidas  felizes  praticadas  poios 

hollandezes  por    conselho  de  Calabar. Loo-q 

depois  do  assalto  a  Iguarassú,  Calabar  guiou  os  hollan- 
dezes a  diversos  pontos  visinhos  do  Recife,  quer  para 
atacar  estancias  do  inimigo,  quer  para  fazer  fachina 
ou  para  colherem  fructas  ^nos  pomares  dos  arredores 
de  Olinda.  O  mesmo  Calabar  ensinou  aos  hollandezes  o 


1-2    Roberto  Sovthey.  —Historia  do  Brasil. 


454  HISTORIA  DO  BEABIL 

systeii.a  de  guerrilhas  e  estes  até  fizeram  duas  embos- 
<;adas  das  .|uaes  sahirara-se  bem,  uma  em  Tacarunà 
e  outra  na  Ponte  do  Biberibe,  onde  aprisionaram  o  ca- 
pitão  Francisco  Rebello. 

Matliias  de  Albuquerque  e  principalmente  Bagnuolo 
desesperavam  com  estes  revezes  o  para  desforrar-se 
o  primeiro  assestou  uma  bateria  contra  o  forte  d'Orange, 
porém  logo  retirou-a,  pois  de  nenhum  effeito  eram  os 
tiros  que  contra  o  forte  disparava. 

Eis  o  juizo  de  Southey  sobre  Bagnuolo  nesta  acção 

bellica  :  «  Bagnuolo  tentou  a  empreza  de  assaltar  o  forle 

Orauifô.   Despiu  o    mais  próximo  estabelecimento  por- 

tuguez  de  sua  artilharia  para  guarnecer  as  próprias 

baterias,   e  desenganado  atinai  de  que  nada  faria  contra 

tão  solidas  obras,   retirou-se,  deixando  estas  peças  ao 

inimigo .    Não  admira  que  os  brazileiros  o  suspeitassem 

de  traição:    ha  um  certo  grau  de  imbecilidade  que  com 

ella  se  confunde,  pois  que  produz  os  mesmos  effeitos. » 

O  cónego  Fernandes  Pinheiro   não  concorda  porém 

com  estas  duras  palavras  de  Southey  e  sobre  ellas  disse 

que  era  :  «  summamente  injusto  tal  juizo  pois  a  perícia 

de  Ragnuolo,   devia  se  a    retirada   para    Sergipe    e  a 

defesa  da  Bahia  contra  Nassau .  » 

Os  directores  cheâi,ados  de  Holiauda. — Em 
íins  de  1632,  logo  depois  desses  successos  por  nós  nar- 
rados, os  quaes  inauguravam  uma  phase  de  victorias 
para  os  invasores  de  Pernambuco,  mandou  a  Compa- 
nhia das  índias  Occidentaes  para  o  Brasil  dois  directo- 
res, Mathias  Van  Ceulen,  de  Amsterdam,  e  João  Gys- 
selingh,  de  Middelburg,  os  quaes  vieram  investidos  de 
plenos  poderes  e  trouxeram  três  mil  homens,  manti- 
mentos e  munições,  bem  como  a  licença  que  Weerdem- 
burgh  soliicitara  para  retirar-se  á  HoUanda,  o  que  rea- 
lisou  depois  de  ter  dado  todas'as  instrucções  aos  dois 
referidos  directores. 

Weerdemburck  foi  substituído  no  com  mandado 
geral  das  tropas  pelo  velho  general  Laurens  de  Rembach, 
o  qual  no  emtanto,  ficava  sujeito  á  direcção  dos  com- 
missarios   ou  directores. 

Estabeleciam  pois  os  hollandezes  no  Brasil  o  seu 
primeiro  governo  civil,  visto  como  até  então  o  comman- 
dante  das  armas  fora  a  suprema  autoridade  na  conquista 
para  todos  os  effeitos. 

Rembach  continuou  a  servír-se  da  Calabar  ao  qual 


TEECEIEA  EPOOHA  455 


proporcionou  postos  militares  e  os  directores  lançaram 
logo  aos  povos  de  Pernambuco  uma  proclamação  na 
qual  se  promettia  protecção  a  todos  que  se  submettessem. 

Ts*aiçâo  de  Ijeonardt  Vau  Lioiii. — Os  directo- 
res M  ithias  van  Ceulen  e  João  Gysselingh  pouco  de- 
pois de  chegados  ao  Brasil  descobriram  que  um  certo 
Leonardt  van  Lom,  funccionario  da  Companhia  das 
Índias  Occidentaes  no  Recife,  mantinha  relações  secretas 
com  os  do  paiz,  pois  viera  de  Hollanda  pago  por 
alguns portuguezes  para  servir-lhes  de  espião.  A  puni- 
ção foi  barbara,  porém  merecida.  Cortaram  a  van  Loon 
dois  dedos  da  mão  direita  e  depois  decapitaram-n'o  e  es- 
quartejaram-n'o. 

Um  mulato  que  servia  de  mensageiro  ao  traidor  na 
sua  criminosa  correspondência  com  os  postuguezes,  foi 
estrangulado  e  decapitado. 

Ataque  do  Rio  Formoso  pelos  hollaudezes. 

—  7  DE  Fevereiro  de  1633. — Commandava  o  rjducto  do 
rio  Formoso  nos  começos  do  anno  de  1633  o  denodado 
capitão  Pedro  de  Albuquerque. 

Pois  bem,  contra  esse  ponto  lembrou-se  Calabar  de 
dirigir  as  armas  hollandezas,  e  o  ataque  teve  logar  na 
madrugada  do  dia  7  de  fevereiro. 

Pedro  de  Albuquerque,  com  a  pequena  guarnição 
de  vinte  homens,  defendeu  o  posto  com  bravura  inexce- 
divel,  e  resistiu  a  quatro  ataques  consecutivos,  nos 
quaes  morreram  dezenove  combatentes,  e  entre  elles 
Jeronymo  de  Albuquerque,  parente  do  capitão. 

Apreciando  devidamente  o  valor  de  Jeronymo  de 
Albuquerque,  que  fora  feito  prisioneiro,  os  hoUandezes 
mandaram-n'o  levar  ás  Antilhas,  de  onde  elle  se  passou 
á  Hespanha. 

A'  vista  de  tão  grandes  e  repetidos  revezes  prepa- 
rados habilidosamente  pelo  génio  vingativo  de  Calabar, 
Mathias  de  Albuquerque  tentou  por  todos  os  meios  pos- 
síveis seduzir  o  mestiço  e  chegou  até  a  offerecer-lhe 
mercês,  si  elle  se  resignasse  a  deixar  os  hollandezes. 

Nada  porém  fez  o  intelligente  e  decidido  mameluco 
trahir  o  compromisso  que  havia  jurado  aos  seus  novos 
amigos. 

OccupaçtKo  do  posto  dos  Afogpados  pelos 
lioUandezes. — A  paragem  a  que  em  seguida  os  hol- 
landezes lançaram   as  vistas,  sempre  por  conselhos  de 


456  HISTORIA  DO   BRASIL 

Calabar,  foi  Afogados,  posto  de  alta  importância  estra- 
tégica que  os  portuguezes  no  emtânto,  tinham-se  des- 
cuidado de  fortificar  convenientemente.  Este  posto  ficava 
na  foz  do  Capiberibe . 

Os  hollandezes  atacaram-n'o  com  um  crescido  nu- 
mero de  forças  e  sem  difíiculcíadeo  occuparam,  embora 
do  Bom  Jesus  seguisse  contra  elles  um  reforço,  e  se- 
nhores da  posição  construiram  um  forte  abaluartado 
de  quatro  frentes,  o  Forte  Príncipe  Guilherme,  com  o 
qual  o  arraial  do  Bom  Jesus  ficava  exposto  a  ser  flan- 
queado e  impedido  de  receber  qualquer  soccorro  da 
Várzea,   cujos  moradores   logo  a  abandonaram. 

Na  defesa  improfícua  do  posto  dos  Afogados  dis- 
tinguio-se  o  franciscano  frei  Belchior,  que,  com  um 
chucho  por  arma,  fez  inauditas  bravuras.  Isto  fez-lhe 
conquistar  annos  depois  o  báculo  episcopal. 

Ataque  ao  Bom  Jesus  e  luorte  de  Reui- 
bach. — (24  de  Março  de  1633). — Animados  por  tão 
frequentes  victoriasos  hollandezes  emprehenderam  ata- 
car o  inimigo  no  seu  mais  temeroso  reducto  — o  arraial 
do  Bom  Jesus,  quarlel-general  de  Mathias  de  Albu- 
querque e  centro  da  resistência  brasileira  ao  invasor. 

Foi  ainda  Calabar  o  inspirador  desse  arrojado  em- 
prehendimento. 

Rembach  em  pessoa  commetteu  a  empreza  á  testa 
de  mil  e  duzentos  homens,  segundo  a  affirmação  de 
Netscher. 

Avançaram  os  hollandezes  pela  Várzea  e  passaram 
o  Capiberibe  junto  ao  riacho  Paramirim,  então  quasi 
secco.  - 

Os  defensores  do  arraial  ao  verem  o  inimigo  appro- 
ximar-se  concentravam  todas  as  suas  forças  e  conse- 
guiram repellir  os  assaltantes.  Rembach  foi  ferido  mor- 
talmente, e  os  hollandezes  logo  que  viram  seu  chefe 
estendido  no  campo  fugiram  desordenadamente.  Vários 
officiaes  .e  quinze  soldados  ficaram  prisioneiros,  grande 
numero  perdeu  a  vida. 

Os  do  Bom  Jesus  tiveram  vinte  e  cinco  mortos  e 
quarenta  feridos,  incluindo  entre  estes  últimos  os  capi- 
tães Martim  Soares  e  Estevão  de  Távora. 

Na  acção  readquiriram  os  portuguezes  o  capitão 
Francisco  Rebello  que  se  achava  em  poder  dos  hollan- 
dezes. 

Heui-ique  Dias. — Na    defesa  do  arraial  do  Bom 


TECCEIRA   EPOCHA  457 


Jesus  surgiu  pela  primeira  vez,  como  luctador,  o  bravo 
Henrique  Dias  que  se  tornou  um  dos  chefes  mais  proe- 
minentes na  cfimpanha  contra  o  hollandez. 

Henrique  Dias  era  de  còr  preta,  porém  nascido  no 
Brasil.  Sua  historia  até  1633  não  é  conhecida,  nesse 
anno  porém,  apresentou-se  com  alguns  negros  a  Ma- 
thias  de  Albuquerque,  no  arraial  do  Bom  Jesus,  offe- 
recendo-se  para  luctar  contra  o  inimigo  commum.  O 
general  portuguez  acceitou  o  offerecimento  e  nomeou 
Henrique  Dias  capitão  permittindo-lhe  que  reunisse 
quantos  homens  da  sua  còr  pudesse,  comtanto  que  não- 
fossem  escravos. 

Henrique  Dias  sabia  lêr  e  escrever  e  o  seu  zelo  pela 
causa  da  expulsão  do  invasor  foi  sempre  em  augmento. 

Crê-se  que  os  primeiros  negros  com  que  elle  se 
apresentou  no  Bom  Jesus  foram  tirados  dos  celebres 
mocambos  dos  Palmares. 

Occiípaçfto  da  illia  de  Itaiiiaracá  pelos  kol- 
landezes. — Não  desanimaram,  no  emtanto  os  hollan- 
dezes  com  o  revez  soífrido  ao  atacarem  o  Bom  Jesus  e 
logo  depois  deliberaram  proceder  á  occupação  da  ilha  de 
Itamaracá,  o  que  facilmente  conseguiram,  derrotando 
cento  e  tantos  homens  de  Salvador  Pinheiro  que  defen- 
diaa  villa  da  Conceição. 

Commandou  o  assalto  Segismundo  von  Schkoppe, 
pelo  que,  em  signal  de  reconhecimento,  os  directores  de- 
ram á  povoação  o  nome  de  villa  Schkoppe. 

Feita  a  conquista  os  hollandezes  entrincheiraram  a 
igreja,  e,  do  lado  opposto,  por  onde  seguia  o  caminho 
para  o  interior  da  ilha,  levantaram  uma  torre  castrense. 

Mathias  de  Albuquerque,  com  o  intuito  de  impedir 
que  o  inimigo  desse  local  depredasse  o  continente, 
mandou  forças  occuparos  pontos  fronteiros.  Isto  não  im- 
pediu no  emtanlo  que  elle  devastasse  a  Goyana,  onde 
queimou  quatro  engenhos  e  pilhou  tudo  que  encontrou. 

rVoTas  iu vestidas  dos  hollandezes. — Após  a 
occupação  de  Itamaracá  os  hollandezes  fizeram  duas 
pequenas  escaramuças  para  os  lados  dos  Afogados,  em 
uma  das  quaes  foi  ferido  Hedrique  Dias.  Tentaram  ata- 
car de  novo  o  arraial  e  fortificaram-se  á  margem  do  Ca- 
piberibe,  em  três  pontos  próximos  do  mesmo  arraial. 
Porém  tomando  os  pernambucanos  um  barco  e  três  lan- 
chões  que  subiam  o  Capiberibe  carregados  de  muniçOes 


458  HISTORIA  DO   BRASIL 

e  artilharia  desalentaram-se  com  este  revez  e  retroce- 
deram. 

Mathias  de  Albuquerque  foi  louvado  por  esse  feito  e 
premiado  com  uma  commenda  lucrativa. 

Proseguindo  nas  suas  investidas  os  hoUandezes 
commandados  pelo  teneute-coronol  Byma,  pouco  depois 
auxiliado  com  maior  força  pelo  coronel  Segismundo 
von  Schkoppe  atacaram  Iguarassú.  Na  defesa  empe- 
nharam-se  diversos  chefes  entre  os  quaes  Camarão, 
Luiz  Barbalho,  Riba  Aguero  e  Henrique  Dias  que  foi 
novamente  ferido. 

Depois  de  pequenos  recontros  os  hollandezes  reco- 
Iheram-se  a  Itamaracá. 

Também  fizeram  sortidas  pnraolado  do  sul  e  em 
uma  delias  morreu  o  sargento-mór  de  milícias  Ruy 
Calaza  Borges ;  em  uma  outra  que  fizeram  contra  o 
engenho  de  Santo  Amaro,  na  Moribeca  foram  derrotados 
pelo  sargônlo-mór  Pedro  Corrêa  da  Gama. 

Estas  foram  as  mais  importantes  sortidas  que  os 
hollandezes  fizeram  antes  de  desdobrarem-se  os  acon- 
tecimentos dos  quaes  passamos  a  nos  occuparmos. 

CoudiçSes)  de  guerra. — Diz  Southey  :  «De 
natureza  anómala  fora  até  aqui  a  guerra  no  Brazil  : 
dava-se  ou  não  se  dava  quartel  e  os  prisioneiros,  si  não 
eram  immolados,  nem  por  isso  deixavam  de  ficar  á 
mercê  do  aprezador.  Bagnuoio  propoz  agora  que  se 
puzesse  termo  a  este  systema,  que  levava  a  tantos  actos 
de  barbaridade,  e  que  se  fizesse  a  guerra  segando  os 
princípios  seguidos  nos  Paizes  Baixos.  Comprazejfoi 
acceita  a  proposta,  e  concordou-se  nas  condições.  Não 
se  queimaria  igreja  alguma,  nem  se  destruiriam  ou 
desacatariam  imagens ;  mas  si  de  dentro  de  qualquer 
templo  se  oppuzesse  resistência,  ou  si  alguém  tentasse 
fortificar-se  em  algum,  não  seria  em  tal  caso  obriga- 
tório este  artigo.  Em  batalha,  recontro,  emboscada,  em 
que  qualquer  soldado  cahisse  no  poder  do  inimigo, 
logo  que  pedisse  quartel,  nenhum  mal  mais  se  lhe  faria, 
entregando  o  prisioneiro  as  suas  armas  e  quanto  com-» 
sigo  levasse,  excepto  camisa,  calças,  gibão,  meias  e 
sapatos.  O  resgate  d'um  mestre  de  campo,  over  velt 
heer  ou  coronel,  foi  fixado  num  mez  de  soldo ,  um 
tenente  coronel,  sargento-mór  e  commissario  de  orde- 
nanças devia  pagar  na  mesma  razão ;  um  capitão  qua- 
renta cruzados  de  dez  reales  de  prata  cada  um  ;   um 


TERCEIRA    EPOCHA  459 


'tenente  o  so!do  d'um  mez;  um  alferes  ou  porta-baiideira 
quinze  cruzados ;  um  sargento  ordinário,  nove ;  um 
soldado  razo,  quatro.  Os  prisioneiros  deviam  requisitar 
-do  conimandante  da  praça  para  onde  fossem  remettidos, 
um  tambor  que  aos  seus  conterrâneos  levasse  aviso  do 
numero  e  nomes  d'elles,  e  o  resgate  devia  ser  pago 
dentro  de  vinte  dias  depois  de  feita  a  notificação  ;  pas- 
sados trinta  dias  sem  se  fazer  inteiro  pagamento  tanto 
do  resgate  como  da  conta  das  comedorias,  perderia  o 
prisioneiro  o  direito  ao  quartel,  ficando  á  mercê  do 
^prezador.  A  taxa  para  mantença  de  um  soldado  foi  íixada 
em  um  real  de  prata  por  dia.  Os  marinheiros  foram  com- 
prehendidos  nessas  condições,  quer  aprisionados  em 
combate  por  mar  ou  por  terra,  quer  atirados  á  costa 
peia  força  do  tempo;  mas  os  que  viessem  em  navios 
pertencentes  á  coroa  de  Hespanha  seriam  exceptuados, 
excepção  que  os  portuguezes  não  deveriam  ter  admit- 
tido,  salvo  entendendo-se  que  estes  seriam  trucados  na 
Europa. 

«  Outra  prova  de  que  os  Hollandezes  representavam 
■o  papel  do  mais  forte  na  estipulação  destas  condições 
ó  que  a  respeito  dos  paizanos  deviam  seguir- se  as 
mesmas  regras  que  nos  Paizes  Baixos  entre  os  súbditos 
do  rei  e  as  Provindas  Unidas,  pois  que  em  virtude 
deste  artigo  os  habitantes  i^ue  fizessem  causa  commum 
com  os  invasores,  ficariam  isentos  do  justo  castigo  que 
aliás  receberiam.  índios  e  negros  deviam  pagar  a 
metade  do  resgate  de  um  soldado,  mas  si  se  servissem 
de  armas  defesas,  não  teriam  direito  a  quartel.  Não  se 
havia  de  atirar  com  balas  envenenadas,  mastigadas  ou 
encadeadas,  nem  com  pedaços  de  ferro  ou  chumbo.  Tão 
pouco  se  devia  fazer  uso  de  espingardas  de  cano  raiado 
(é  esto  talvez  o  único  caso  em  que  a  moderna  pratica 
de  guerra^  é  menos  escrupulosa  do  que  o  costume 
d'aquelles  tempos)  ;  as  armas  de  fogo  legaes  eram 
arcabuzes,  mosquetes,  espingardas  de  íuzil,  clavinas  e 
pistolas.  Nenhuma  offensa  se  faria  a  qualquer  prisio- 
neiro, e  os  clérigos,  mulheres  e  crianças  teriam  as 
vidas  salvas.  O  resgate  de  um  capellão  fixou-se  num 
mez  de  salário,  e  o  de  um  religioso,  ou  padre  d'aldeia 
em  quatro  moedas  de  oito.  Pregadores,  preleitores  e 
ecciesiasticos  da  communidade  hoUandeza  seriam  equi- 
parados a  capellâes.  Si  \im  só  homem  fizesse  muitos 
prisioneiros  ficaria  detido  o  principal  dentre  estes,  e 


iz^.-.:- 


460  HISTORIA  DO   BRAZIL 


seriam  soltos  os  outros,  obrigando-se  estes  pelos  res- 
pectivos quinhões  de  resgate  para  com  o  seu  represen- 
tante forçado.  Todo  o  prisionero  convicto  de  ter  occul- 
tado  a  sua  verdadeira  qualidade  e  condição,  e  negado  a 
verdade,  seria  castigado  como  merecia,  para  exemplo. 
Quem  quebrantasse  estes  termos,  ou  violasse  o  quartel 
dado,  seria  punido  de  morte  para  plena  satisfação  da 
parte  contraria.  Todos  os  prisioneiros  existentes  seriam 
sem  resgate  postos  em  liberdade  por  ambas  as  partes. 
Estes  artigos  foram  assignados  por  Mathias  de  Albu- 
querque de  um  lado  e  por  Van  Ceulen  e  Gyssheling  do 
outro.» 

Expedição  hollandeza  ás  \l»g^ôas.  —  Pelo 
tempo  da  estipulação  das  condições  de  guerra  de  que 
acabamos  de  tratar,  ideiou  Calabar  uma  invasão  desde 
o  Porto  das  Pedras  nté  as  duas  Alagoas,  conseguindo 
que  fosse  posto  em  execução  o  seu  plano. 

Tomou  a  direcção  da  mesma  Gysseling  que  se 
embarcou  com  seissentos  homens  em  alguns  navios  ao 
mando  de  Lichtardt,  e  estes  aportaram  á  Barra  Grande 
no  dia  1 1  de  outubro  de  1633,  d'ali  passando  ao  Porto 
das  Pedras  onde  chegaram  no  dia  seguinte  á  meia 
noite . 

Ahi  tomaram  o  assucar  que  encontraram,  incen- 
diaram os  barcos  que  não  lhes  poderiam  servir  e  pas- 
saram ao  Camaragibe,  incendiando  todas  as  habitações 
e  arrebanhando  o  gado  que  encontravam. 

Em  seguida  dirigira m-se  ao  porto  dos  Francezes 
onde  se  apossaram  de  cem  caixas  de  assucar  e  depois 
foram  â  Alagôa  do  sul  ou  Manguaba,  ahi  incendiando  a 
villa  de  Nossa  Senhora  da  Conceição  que  já  possuia 
boas  construcções.  Quizeram  fazer  o  mesmo  â  villa 
de  Santa  Luzia,  na  Alagôa  do  Norte,  não  o  conseguindo 
devido  à  resistência  que  lhes  oppoz  o  capitão  António 
Lopes  Filgueira,  o  qual  perdeu  a  vida  na  acção. 

A  isso  limitou-se  a  invasão  das  Alagoas,  achando- 
se  os  hollandezes  de  volta  ao  Recife  em  9  de  No- 
vembro . 

i^rovidenclas  tonindas  pela  corte  de  Hes- 
panlia  contra  os  Hollandezes  no  Brazil.  —  Em 
1°  de  dezembro  de  1631  publicou  a  corte  de  Hespanha 
uma  carta   regia  na   qual    declarava    haver   resolvido 


TEECEIKA    EPOCHA  i61 


partir  para  o  Brasil    uma    podero.sa   esquadra    sob   o 
commando  de  D,  Fradique  de  Toledo. 

Dois  annos  depois,  no  emtanto,  ainda  essa  famosa 
esquadra  não  linha  sido  organisada  e  a  16  de  seiembro 
de  16J3,  o  rei  sollicitava  de  todas  as  camarás  que  o 
auxiliassem  urgentemente  no  apresto  da  mesma  e  a 
3  de  outubro  requisitava  elle  ainda  que  cada  villa  ou 
logar  de  Portugal  desse  desde  logo  um  ou  dois  recrutas 
para  o  Brasil. 

Nesse  ínterim  os  únicos  reforços  que  chegaram 
ao  Brasil  for.im  seiscentos  homens  e  muitos  suppri- 
mentos  de  todo  o  género  que  Francisco  Vasconcellos 
■da  Cunha,  da  ilha  da  Madeira,  reuniu  á  sua  própria 
custa  e  transportou  em  dois  galeõas  e  cinco  caravellas. 
Todavia  a  corte  se  esforç  iva  por  preparar  soccor- 
ros,os  quaes,  embora  com  difficuldade, conseguiu  reunir, 
como  veremos  adiante. 

liivasSo  do  Rio  Oi*i»iide  pelo.«i  h»llaudezes. 
—  A  invasão  do  Rio  Grande  do  Norte  pelos  hoUandezes 
realisou-se  a  5  de  dezembro  de  1633,  pouco  depois  de 
chegar  ao  Recif  5  os  navios  que  tinham  tomado  parte 
na  expedição  ás  Alagoas. 

Essa  expedição  foi  dirigida  pelo  commissario  Van 
Ceulen  ecompunha-se  de  quatro  companhias  de  fuzi- 
leiros e  quatro  de  mosqueteiros  às  ordens  do  tenente- 
coronel  Byma,  o  qual  partiu  em  uma  esquadrilha  com- 
mandada  por  LichtarJt.  As  tropas  desembarcaram  junto 
do  Cabo  Negro,  três  léguas  ao  sul  da  foz  do  Rio  Grande, 
seguindo  a  esquadra  a  forçar  a  barra. 

A  esquadra  foi  deixando  á  margem  do  rio  alguns 
troços  de  marinheiros,  e  estes  protegidos  p6'a  columna 
de  Byma,  atacaram  o  forte  dos  Três  Reis  Magos. 

Era  o  fort?  defendido  por  oitenta  e  cinco  homeus  e 
guarnecido  com  treze  peças  de  artilharia.  Como,  porém, 
lhe  ficava  a  cavalieiro  um  outeiro  de  areia,  Calabar  para 
ali  conduziu  us  sitiantes,  os  quaes  lhe  fizeram  uma 
brecha  e  feriram  o  seu  com  mandante,  capitão  Pedro 
Mendes  de  Gouveia,  o  que  deu  motivo  a  affrouxar  a 
resistência  e  depois  a  capitular  n  praça. 

Com  o  forte,  que  passou  a  demoninar-se  de  Ceulen, 
apoderaram-se  os  hollandezes  de  ires  navios  portú- 
.guezes. 

No  dia  seguinte  chegava  da  Parahyba,  em  soccorro 
•do  forte,  500  homens.  Era  tarde,  porém,  a  melhor  forta- 


462  HISTOlilA    DO   BEAZIL 

leza  do  Brasil,  segundo  Brito  Freire,  já  se  achava,  em 
poder  do  inimigo. 

Alliauça  dos  holt»udezes  com-  es  selva- 
geift^i.  —  Depois  de  ultimada  a  occupação  do  forte  dos 
Três  Reis  Magos,  Calabar  dirigiu-so  com  alguna  força  a 
perseguir  os  moradores  dos  campos  visinhos,  escapando 
de  cahir  em  uma  cilada  que  lhe  armaram. 

Querendo  vir.gar-se,  Calabar  mandou  convidar  a  vir 
á  costa  o  morubixaba  Janduhy,  chefe  de  uma  tribu  der 
Tapuyas  que  vivia  a  umas  oitenta  léguas  para  o  sertão. 
O  selvagem  aceitou  o  convite  e  chegando  ao  littoral 
cahiu  inesperadamente  sobre  o  engenho  de  Francisco 
Coelho,  onde  os  referidos  moradores  tinham-se  concen- 
trado. 

Igual  convite  fez  Calabar  ao  chefe  indio  Simão- 
Soares  Jaguarary,  o  qual  não  o  aceitou,  dando  assim 
prova  de  um  bello  exemplo  de  fidelidade,  como  se  vè 
pelas  seguintes  palavras  que  tomamos  a  Roberto  Sou- 
they,  apoiado  peias  affirmações  de  alguns  chronistas: 

<«  Oito  annos  jazera  em   ferros   no   Rio  Grande   um 
indio,    chamado  Jaguar  iry  pelos  seus  cont^-rraneos  e 
Simão  Soares  pelos  portuguezes.  O  seu  crime  íura  ter- 
desertado  para  os  hollnndezes  quando  estavam  na  Bahia,, 
mas  elle  protestava  ter  sido  unicamente  para  buscar  sua 
mulher  e  filho,  que  tinham  cabido  nas  mãos  do  inimigO; 
Aos  juizes  íaltava  virtude   própria  para  acreditar    na^ 
alheia,  e  apezar  do  indio  ser  tio  de  Camarão,   o  melhor 
alliado  dos  portuguezes,  tinham-n'o  estes  conservado- 
oito  annos  em  cárcere  tão  duro.    Os   hollandezes  puze- 
ram-n'o  em  liberdade.   Immediataniente   foi   ter  com   a 
sua  tribu  :  Sangram  ainda,  disse,  os  signaes das  minhas 
cadeias,  mas  é  a  culpa,  não  o  castigo  que  infama.  Quanto- 
peior  me  trataram   os  portuguezes,   tanto   maior  serão 
vosso  e  o  meu  merecimento,  conservando-nos  fieis  ao 
serviço  d^elles,  especialmente  agora,  que  o  inimigo  os 
aperta.  Ouviram-lhe  os  seus  as  razões  e  elle  levoU:  aos 
seus  oppressores  um  corpo  de  alliados  constantes,  com 
os  quaes  os  serviu  tão  bem,   que    mereceu  na  historia 
menção.  ». 

Embora  repellidos  por  Jaguarary;  os  hollandezes 
conseguiram  firmar  alliançis  com  liiversos  caciques-do 
interior,  por  meio  das  quaes  puderam  explorar  o  Rio- 
Grande  do  Norte  em  todas  as- direcções» 


TERCEIRA    EPOCHA  463 


nrentaliva  fie  occupaçito  da  Paraliyba  do 
IVorte.  —  Reduzido  o  Rio  Grande  do  Norte  ao  seu  do- 
mínio, voltaram  os  hoUandezes  as  suas  vistas  para  a 
região  visinha  da  Parahyba  do  Norte. 

Assim  desembarcaram  na  enseada  de  Lucena  uns 
mil  homens  aos  quaes  fizeram  marchar  direito  para  o 
forte  de  Santo  António,  que  ficava  fronteiro  ao  Cabe- 
dello. 

Em  caminho  encontraram  uma  trincheira  construida 
pelos  da  Parahyba  e  sendo  a  mesma  atacada,  sahiu  do 
forte  de  Santo  António  em  sua  defesa  o  capitão  Lourenço 
de  Brito. 

Contra  a  referida  trincheira  levantaram  os  hoUan- 
dezes uma  outra  trincheira.  Porém,  tão  rudemente  se 
viram  hostilisados,  principalmente  com  os  ataques  que 
pelo  flanco  e  pela  retaguarda  lhes  dava  o  capitão-mór 
António  de  Albuquerque,  que  julgaram  prudente  levan- 
tar o  acampamento  e  dirigirem-se  ao  cabo  de  S.  Agosti- 
nho, esperando  serem  ali  mais  bem  afortunados. 

llalloã^rado  ataque  ao  Recife  poios  pcr- 
uauibiieaiios  (1°  de  Março  de  I60-I).  —  Vendo  Mathias 
de  Albuquerque  e  Bagnuolo  que  as  forças  hollandezas 
achavam-se  muito  dispersadas  com  as  expedições  á 
Parahyba  do  Norte  e  Rio  Grande  do  Norte  animaram-se 
a  atacar  o  Recife  que  julgavam  fracamente  guarnecido. 

Foi  encarregado  do  ataque  o  capitão  Martim_  Soares 
Moreno  ao  qual  se  ordenou  que  procurasse  principal- 
mente ateiar  fogo  aos  depósitos. 

Compunha-se  a  força,  por  elle  commandada,  de  50O 
homens,  os  quaes  se  dividiram,  vadeando  uns  o  Bibe- 
ribe  e  avançando  pelo  isthrao  e  entrando  outros  pela 
porta  do  Brum  que  liga  Olinda  ao  Recife.  Porém,  um 
portuguez  atraiçoou  o  plano  dos  seus  compatriotas,  con- 
fiando aos  hoUandezes  o  intento  dos  atacantes. 

Achavam-se  pois  de  sobreaviso  os  do  Recife  e  assim 
mallogrou-se  a  tentativa  de  tomada  da  praça. 

Oecupaçao  do  Cabo  de  §>aiito  Agosiiulio.  — 
Como  já  dissemos  as  forças  hollandezas  dirigiram-se  ao 
ao  cabo  de  Santo  Agostinho  ao  deixarem  a  Parahyba. 

O  cabo  era  defendido  pelo  sârgento-mór  Pedro 
Corrêa  da  Gama  com  Iresentos  homens,  logo,  porém, 
que  Mathias  de  Albuquerque  soube  das  intenções  do  ini- 


464  HISTOEIA   DO   BEAZIL 

migo  mandou  um  pequeno  reforço  e  logo  depois  seguiu 
em  pessoa  com  toda  a  gente  disponível. 

Grande  era  o  empenho  dos  hollandezes  em  assenho- 
rearem-sedo  cabo,  pois,  como  diz  Southey,  «a  conquista 
deste  logar,  bem  o  conheciam  elles,  era  o  primeiro 
passo  para  a  subjugação  Pernambuco ;  era  ali  que  os 
iDrasileiros  recebiam  soccorros  de  gente  e  materiaes,  era 
ali  que  embarcavam  os  seus  productos.  » 

Assim  que  a  esquadra  chegou,  tentaram  os  hollan- 
desembarcar  a  primeira  divisão  na  praia  de  Itapoan, 
ao  norte  do  cabo,  porém,  não  o  conseguindo,  deli- 
beraram fazel-a  um  pouco  mais  ao  norte. 

A  gente  de  Pedro  Corrêa  da  Gama,  bem  como  uma 
força  que  chegara  do  Bom  Jesus,  sob  ocommando  de 
Riba  Aguero,  íoi  acompanhando-os  ao  longo  da  costa 
até  o  sitio  denominado  das  Pedras  em  que  os  hol- 
landezes  tentaram  um  segundo  desembarque,  sem  que 
ainda  o  pudessem  conseguir;  e  assim  a  primeira  divisão 
teve  que  desistir  do  intento. 

A  segunda  divisão  da  esquadra  hollandeza,  com- 
posta de  onze  navios  (dos  quaes  se  perdeu  um),  forçou  a 
barra  e  seguiu  pelo  lagamar  afim  de  dirigir-se  ao  logar 
em  de  ordinário  fundeavam  dos  navios  com  intenção  de 
occupar  o  Pontal,  que  não  se  achava  artilhado,  nem 
guarnecido. 

A  terceira  divisão  inimiga  compunha-se  de  todas 
as  lanchas  e  estava  confiada  ao  com  mando  de  Calabar, 
por  esse  tempo  já  capitão  dos  hollandezes.  Nelias  acha- 
vam-se  mil  homens  de  desembarque. 

Diz  Southey  ' 

«  Meia  légua  ao  sul  hivia  polo  Recife  uma  entrada 
para  o  porto,  tão  estreita  em  verdade,  que  jamais  se 
pensara  que  a  mais  pequena  canoa  a  podesse  passar, 
mas  nada  escapava  a  Calabar,  formara  elle  melhor 
juizj,  e  introduzindo  por  ali  as  lanchas,  foi  desembarcar 
a  gente  no  Pontal,  onde  ella  principiou  immediatamente 
a  fortificar-se.  Singular  era  agora  a  situação  das  partes 
belligerantes  :  o  porto  estava  om  poder  dos  Hollandezes, 
que  ali  tinham  dez  dos  seus  navios,  mas  só  podiam 
communicar  com  o  grosso  da  sua  força  por  meio  de 
botes  pelo  canal  descoberto  por  Calabar,  sendo  os  Por- 
luguezes  senhores  ainda  da  terra.  » 

Ao  forte  do  Pontal  deram  os  hollandezes  o  nome  de 
Dass  e  a)   entrinctieiramento  levantado  no   ponto    em 


TERCEIRA    EPOCHA  4  >5 


que  as    forças  de  Calabar  desembarcavam  o   iio  ne  de 
Gysselingh. 

Novo  revez  soíTreu  Albuquerque  em  um  outro 
ataqn'3  que  deu  ao  Pontal  3  desalentado  então  conformou- 
se  em  guardar  os  fortes  de  Nazareth  e  da  Barra  e  levan- 
tar um  reducto  na  praia  por  onde  ia  o  caminho  para  o 
Pontal. 

O  districío  da  Ipojuca  onde  já  haviam  quinze  en- 
genhis  foi  devastado  pelos  hollandezes  que  se  achavam 
senhores  da  ilha  fronteira,  chamada  do  Borges,  pelo  que 
Mathias  de  Albuquerque  creou  ali  algumas  companhias 
de  emboscadas  com  o  auxilio  de  reforços  vindos  da 
Bahia  e  da  Parahyba  e  foi  tudo  quanto  poude  fazer  o 
infeliz  Mathias,  pois  de  facto  o  cabo  a  hava-se  já  em 
podei'  do  inimigo. 

Neste  ínterim  fizeram  os  hollandezes  sob  o  com- 
mando  do  tenente  coronel  Byma  uma  investida  contra 
o  Bom  Jesus;  porém  foi  batido  Henrique  Dias  e  nova- 
mente ferido  nesta  acção. 

Proposta  do  paz  comprada  repolSida  peSos 
hollitudezes.  —  Acabrunhados  como  se  achavam  os 
chefes  portuguezes  e  brasileiros  pelos  continues  suc- 
cesGs  das  armas  hollandezas  que  dia  a  dia  iam  levan- 
tando o  pavilhão  inimigo  sobre  todas  as  suas  posições, 
tiveram  a  infeliz  idéa  de  propor  ao  inimigo  a  paz 
pagando  a  este  todas  despezas  feitas,  si  elle  se  resi- 
gnasse a  evacuar  o  paiz.  Esta  proposta  foi  altivamente 
repellida  pelos  hollandezes  que  declararam  não  serem 
vindos  para  vender  as  conquistas  e  sim  alargal-as  e 
mantel-as  por  Suas  Altezas,  os  Estados  Geraes,  o  prín- 
cipe d'Orange  e  a  Companhia. 

Reforços   chcg;adosí   aos   hollandezes. — Ao 

mesmo  que  os  zelad ares  da  integridade  do  paiz 
davam  por  essa  inepta  proposta  uma  prova  inconcussa 
da  própria  fraqueza  e  desanimo,  cresciam  as  forças  do 
inimigo. 

Gysselingh  e  Van  Ceulen,  os  dois  commissarios 
da  Companhia  das  índias  em  Pernambuco  partiram 
para  a  Hollanda  e  d'ahi  ha  pouco  regressavam  com 
3,000  homens,  ao  passo  que  os  portuguezes  apenas 
recebiam  duzentos  homens  vindos  da  Parahyba  e 
cento  e  trinta  chegados  de  Lisboa,  pois  a  corte  de  Hes- 

3j 


466  HISTORIA   DO   BEAZIL 

panlia  ainda  não   havia   conseguido   aprestara  famosa 
esquadra  que  se  propunha  a  restaurar  Pernambuco. 

OccupaçSo  definitiva,  da  Paritliyba  d» 
I\'orte.  —  Fortes  pela  chegada  de  taes  reforços  delibe- 
raram os  hollandezes  realisar  um  ataque  decisivo  ás 
fortificações  portuguezas  da  Parahyba  do  Norte,  que 
até  então  tinham  resistido  ás  diversas  tentativas  feitas 
contra  ellas. 

A  expedição  partiu  do  Recife  a  2õ  de  novembro  de 
1634,  indo  encarregado  do  mando  das  tropas  Segismundo 
Schkoppe  que  levava  como  auxiliares  Arcizeweski  e 
o  tenente-coronel  Hinderson.  Servia  de  almirante 
Lichtardt. 

As  fortificações  da  Parahyba  constavam  dos  fortes 
Cabedello  e  Santo  António,  de  uma  bateria  de  sete 
peças  na  ponta  da  restinga,  do  lado  do  Cabeaello  e 
varias  baterias  para  o  sul  e  para  o  norte  da  barra.  O 
total  das  forças  portuguezas  era  de  oitocentos  homens. 
A  4  de  dezembro  apresentaram-se  os  hollandezes 
em  frente  ao  cabo  Branco  com  cincoenta  barcaças  con- 
duzindo dois  mil  e  tantos  homens,  dos  quaes  desem- 
barcaram seiscentos  na  enseada  de  Jaguaribe,  á  vista 
do  governador  António  de  Albuquerque,  que  nenhum 
estorvo  lhes  poz  em  consequência  da  inferioridade  das 
suas  forças. 

Travou-se  pouco  depois  um  tiroteio  do  qual  resultou 
ficar  prisioneiro  dos  hollandezes  Bento  do  Rego  Bezerra, 
personagem  de  importância,  e  em  seguida  os  invasores 
puzeram  cerco  ao  Cabedello.  Como  lhes  causasse  im- 
menso  damno  a  bateria  da  ponta  da  Restinga,  Lichtardt 
forçou  a  barra  com  a  esquadra,  protegido  por  um 
espesso  nevoeiro  e  fazendo  desembarcar  oitocentos 
homens  assenhoreou-se  da  sobredita  bateria  que  trans- 
formaram em  reducto  contra  o  Cabedello,  onde  logo 
no  primeiro  dia  mataram  ou  feriram  trinta  homens. 

A'  vista  disso  tornou-se  muito  difhcil  levar  soccorros 
ao  forte  :  por  terra  seria  preciso  vencer  nove  léguas  e 
affrontar  as  ciladas  de  Calabar,  muito  conhecedor  do 
paiz;  por  agua  tinham  que  passar  quasi  por  baixo  das 
baterias  da  Restinga.  Com  tudo  era  esta  a  via  preferida 
pelos  portuguezes  que  se  aproveitavam  da  treva  e  em- 
pavezavam  os  seus  bateis  com  couros. 

No  emtanto  o  bombardeio  contra  o  velho  forte  do 
Cabedello  continuava.  Contra  elle  haviam  os  hollandezes 


TERCEIRA    EPOC  li  A  iCJ 


assestado  quatro  baterias,  com  cujos  tiros  mataram  cu 
feriram  todos  os  artilheiros,  excepto  o  capitão,  e  des- 
montaram todas  as  peças. 

Estavam  as  cousas  neste  pé  quando  Bagnuolo 
chegou  ao  forte  de  Santo  António,  onde  António  de 
Albuquerque  tinha  assentado  o  seu  quartel  general;  e 
da  conferencia  que  os  dois  realisaram  ficou  resolvido 
que  se  enviasse  Riba  Aguero  com  duzentos  e  cincoenla 
homens  ultimamente  chegados  de  Pernambuco  a  in- 
quietar o  inimigo  pela  retaguarda. 

Quando  porém  Riba  Aguero  se  approximava  do 
íortejá  este  pertencia  aos  hollandezes,  tendo  agu.irnição 
capitulado. 

Procurou  António  de  Albuquerque  concentrar  a 
resistência  no  forte  de  Santo  António.  Como  porém  re- 
cusassem destacar  para  ali  o  contingente  de  italianos 
de  Bagnuolo  e  escasseasse  a  pólvora,  ahi  deixou  um 
comniandante  que  apenas  resistiu  durante  quatro  dias 
e  retirou -se  para  a  povoação  da  Parahyba,  fácil  de 
defender-se. 

Os  hollandezes  no  emtanto,  valendo-se da  traição 
de  Bezerrd,  que  lhes  ensinou  uma  passagem  pela  qual 
era  possível  tomar-se  a  praça,  marcharam  sobre  ella  e  a 
conquistaram,  rctirando-se  Albuquerque  e  Bagnuolo 
para  Pernambuco. 

Em  honra  do  stathouder  de  HoUanda  impuzeram 
os  hollandezes  á  capital  da  Parahyba  o  nome  de  Fre- 
derica,  o  quai,  assim  como  o  de  FeLippea  que  os  lison- 
geir»  s  do  monarcha  castelhano  lhe  haviam  dado,  não 
conseguiu  vingar. 

Logo  que  se  apossaram  da  Parahyba  comprehen- 
deram  os  hollandezes  que  lhes  seria  em  extremo  pre- 
judicial o  abandono  dos  engenhos  e  das  culturas  pelos 
moradores,  e  assim  aos  13  de  janeiro  de  1635,  o  faculta- 
ram aos  ditos  moradores,  em  nome  do  principe  d'Orange, 
dos  Estados  Geraes  da  HoUanda  e  da  Companhia  das 
índias  Occidentaes  as  seguintes  concessões: 

1."  Affiançamento  da  liberdade  de  consciência  e  do 
serviço  do  culto  como  anteriormente,  com  a  devida  pro- 
tecção ás  imagens  e  sacerdotes. 

2."  Garantia  de  paz,  justiça  e  protecção  contra 
quaesquer  inimigos. 

3.°  Segurança  da  propriedade,   mediante  a  conti- 


468  HISTORIA   DO   BRAZIL 

nuação  da  paga  dos  mesmos  direitos  e  alcavalas,  não  se 
impondo  novos  tributos. 

4."  Concessão  de  toda  protecção  aos  tratos  e  ne- 
:gocios . 

õ.°  Franquiado  passaportes  aos  que  para  seus  ne- 
gócios s^  quizessem  ausentar  por  mar  ou  por  terra. 

6."  Isenção  aos  moradores  e  seus  filhos  de  serem 
obrigados  a  tomar  armas  contra  forças  vindas  da  me- 
trópole, permittindo  retirarem-se  a  tempo  os  que  não 
quizessem  ficar  na  terra,  si  ella  estivesse  em  risco  de 
ser  recuperada. 

7-°  Direito  de  recoirerem  aos  tribunaes  do  paiz 
contra  os  próprios  governantes,  nos  casos  contenciosos. 

S'"  De  terem  juiz  seu  nas  questões  entre  uns  e 
outros,  que  sentenciasse  segunelo  as  ordenações  e  leis 
portuguezas. 

9."  Fnalmente,  poderem  trazer  comsigo  armas, 
inclusivamente  para  se  defenderem  dos  salteadores  e 
levantados.  » 

Deserção  do  jesiait»  Manuel  delloraes. — 

Durante  a  luta  dos  hollandezes  na  Parahyba  do  Norte 
desertou  para  as  fileiras  inimigas  o  jesuita  Manuel  de 
Moraes,  que  por  vezes  tinha  governado  todas  as  aldeias 
de  Índios  das  capitanias  de  Pernambuco,  Rio  Grande  e 
Parahyba. 

Em  seguida  Moraes  renunciou  as  ordens,  com 
grande  escândalo  do  clero  catholico  e  fez-se  calvinista, 
casando-se  em  Amsterdam. 

Henrique   Dias  ferido   pela  quinta  vez. — 

Emquanto  se  pelejava  cruamente  na  Parahyba,  dirigia  o 
inimigo  dois  ataques  ao  arraial  do  Bom  Jesus,  sendo  no 
emtanto  repellido  por  Luiz  Barbalho. 

No  segundo  foi  ferido  pela  quinta  vez  o  bravo  chefe 
negro  Henrique  Dias. 

Capitulaçllo  do  Arraia  1. — Segismundo 
Schkoppe,  o  conquistador  da  Parahyba  do  Norte,  veiu 
reduzindo  toda  a  região  costeira  comprehendida  entre 
aquella  capitania  e  o  Recife,  inclusive  a  ilha  de  Itama- 
racá  onde  os  invasores  já  possuíam  um  forte,  o  da  villa 
da  Conceito  e,  logo  que  chegou  a  Pernambuco  cogi- 
tou o  Conselho  num  ataque  serio  e  decisivo  ao  arraial 


TERCEIRA    EPOCHA  469 


do  Bom  Jesus  e  ao  furte  d'.'  Nazarcth,  esses  derjadciros 
e  temerosos  reductos  da  resistência  porlugncza  em  Per- 
nambuco. • 

Mathias  de  Albuquerque  sabendo  dos  intentos  do 
inimigos  passou-se  com  Duarte  Coelho  e  Bagnuolo  a 
defender  Nazareth  que  lhes  parecia  de  mais  importância 
estratégica  e  no  arraial  deixou  André  Marins  com  cin- 
coenta  homens  o  a  milicia  da  terra. 

A  investida  aos  dois  logares  foi  operada  ao  mesmo 
tempo,  porém  neste  paragrapho  só  trataremos  da  que  se 
praticou  contra  o  Bom  Jesus. 

Dirigiu  ao  official  polaco  Arcizewsky  que  marchou 
a  frente  de  uma  divisão. 

Feriram-S3  diversos  combates,  e  afinal,  após  três 
mezes  de  duro  cerco,  em  que  os  portuguezes  e  brasilei- 
ros praticaram  actos  insignes  de  bravura,  que  as  chro- 
nicas  do  tempo  registram  com  os  mais  alevantados  lou- 
vores, capitulou  o  arraial  esse  celebre  reducto  que 
durante  quatro  annos  foi  a  única  barreira  em  que  o 
flamengo  esbarrou. 

A  intrépida  guarnição  obteve  do  inimigo  a  concessão 
de  sahir  com  honras  militares  e  ter  passagem  livre  para 
as  índias  Occidentaes.  O  mesmo  não  aconteceu  com  a 
milicia  da  terra  e  outros  moradores  que  foram  barbara 
mento  martyrisados  até  pagar  a  somma  que  se  lhe^? 
estipulou 

A  capitulação  do  arraial  do  Bom  Jesus  teve  legar  a 
6  de  junho. 

Abandono  de  Porto  CalTo  por  Bagnnolo. — 
Mathias  de  Albuquerque  que  havia  seguido  para  Naza- 
reth, estabeleceu  o  seu  quartel  general  em  Villa  For- 
mosa, localidade  situada  a  seis  léguas  ao  sul  e  d'ahí 
destacou  Bagnuolo  a  defender  e  fortificar  Porto  Calvo 
que  ficava  vinte  e  cinco  léguas  mais  ao  sul,  e  era  uma 
villa  muito  importante  peldS  numerosas  fazendas  e  pas- 
tos dos  seus  arredores. 

«  Albuquerque,  diz  Variihagen,  poude  porém  apenas 
destacar  para  ahi,  ás  ordens  de  Bagnuolo,  umas  compa- 
nhias do  terço  italiano,  que  unicamente  serviam  a  cha- 
mar para  esta  paragem,  pátria  do  Calabar,  a  attenção 
deste,  e  por  consequência  a  do  inimigo.  » 

Lichtardt  ao  entrar  na  barra  do  Rio  Orando  soube 
achar-se  Bagnuolo  fortificando  Porto  Calvo  e  por  sug- 
gestões  de  Calabar  para   ali  partiu  a  13  de  março  de 


J:70  HISTORIA  DO  BEAZIL 

1635,  com  o  referido  mameluco,  levando  ás  suas  ordens 
duzentos  e  oitenta  homens,  com  os  quaes  esperava  apo- 
derar-se  das  obras  antes  quo  Bagnuolo  as  concluisse. 
Este  porém  sendo  em  tempo  avisado,  mandou  ao  encon- 
tro do  inimigo  Riba  Aguero  com  quarenta  homens  o 
qua!  para  nã  >  cahir  nas  mãos  do  general  hollandez  teve 
que  se  melter  por  uns  alagados  e  fugir. 

Bagnuolo  esperou  a  pé  firme  o  inimigo,  porém  ao 
começ -ir  o  tiroteio  meltea-so  a  desordem  nas  suas  filei- 
ras e  elle  foi  obrigado  a  abandonar  Porto  Calvo,  reti- 
rando-se  com  a  gc-nte  que  poude  reunir  para  o  Rio  das 
Pedras  e  d'ahi  para  a  Alagoa  do  Norte. 

1'«»££ia(ia  do  forte  de  I%ÍAZAr4)tSi  |>o>l»^  hol- 
iamlezes.  — Logo  depois  de  desalojados  os  soldados  de 
Bagnuolo  de  Porto  Calvo,  dirigiu-se  o  inimigo  a  Na- 
zareth  que  era  guardado  por  cento  e  trinta  hoii  ens. 

Commandava  a  expedição  o  intrépido  Segismundo 
Schkoppo  que  começou  accommettendo  um  posto  avan- 
çado de  Mathias  de  Albuquerque,  guarnecido  com  cento 
e  trinta  homens. 

«  Mathins  de  Albuquerque  e  o  irmão,  diz  Southey, 
avançaram  a  soccorrel-o  com  outra  tanta  gente,  que  era 
toda  a  força  que  lhes  restava,  mas  esmagados  pelo  nu- 
mero tiveram  de  retirar-se  sobre  o  rio.  Perseguiram- 
n'os  os  hollandezes,  até  que  os  portuguezes,  nem  na  fuga 
vendo  a  salvação,  com  a  coragem  do  desespero  de  novo 
fizeram  frente  ao  inimigo,  e,  desbaratando-o,  recupe- 
raram o  já  perdido  posto.  » 

O  assedio  de  Nazaré  th  prolongo  u-se  ;  com  tão  min- 
guadas forças,  porém,  não  podiam  por  fóriua  alguma 
resistir  os  defensores  do  forte;  e  capitularam  sob  as  se- 
guintes condições  a  2  de  julho  de  1635  e  assim  : 

1 .°  A  fortaleza  artilharia,  vitualhas  e  munições  se- 
riam entregues  a  Van  fSchkoppe  ou  a  seus  deputados. 

2."  Os  governadores,  capitães  e  mais  ofíiciaes  sol- 
d idos  e  pessoas  de  guerra  poderiam  sahircomas  in- 
s  gnias,  armas  e bagagens,  bandeiras  tendidas,  cordas  e 
caixas  temperadas.  Vinte  escravos  se  tirariam  para  se 
repartirem  pelos  oíficiaes,  os  outros  se  haviam  de  en- 
tregar . 

3."  Sahiriam  também  os  religiosos  com  suas  mo- 
bílias. 

4."  A  infantaria  toda  e  os  religiosos,  seriam  embar- 


TERCEIRA    EPOOHA  471 

cados  para  as  índias  de  Castella,  e  teriam  no  caminho 
bastunentos  e  ração  como  soldados.  O  capitão  Lourenço 
Vaz,  condestaveis  o  artilheiros  sahiriain  como  a  infan- 
taria. 

5.°  O  governador  mandaria  duas  companhias  tomar 
a  entrega  dos  dois  baluartes,  antes  de  ameaçar  sahir  a 
guarnição. 

6.°  Com  os  moradores  que  entrariam  na  fortaleza 
antes  cercada,  não  se  entendiam  estes  artigos  ;  e  com 
suas  fazendas,  ficariam  á  ordem  do  governador  e  dos 
conselheiros. 

7."  Dos  seus  escravos  se  trata  no  artigo  segundo. 

8."  Os  indivíduos  a  quem  se  achasse  alguma  fazenda 
illicita,  ou  pertencente  aos  moradores  presentes  ou  au- 
sentes, não  seriam  comprehendidos  nestes  artigos. 

9.0  Estes  não  se  entenderiam  com  os  reunidos. 

10.  O  capitão  D.  Joseph  de  Soto  Ponce  de  Leon 
ficaria  por  fiador  do  ajustado  e  como  em  reféns. 

Ainda  em  Villa  Formosa,  posição  sem  condições  de 
defensa,  tentou  Mathias  de  Albuquerque  resistir,  j  á  levan- 
tando trincheiras, já  organisando  companhias  de  embos- 
cadas, uma  das  quaes  foi  a  dos  Baptistas,  treze  irmãos 
(de  pai  e  mãe)  que  quasi  todos  morreram  na  luta.  Eram. 
porém  os  hollandezes  verdadeiros  senhores  de  toda  a 
terra;  e  assim,  tendo  elie  comprehendido  afinal  que  todo 
esforço  seria  inútil,  e  a  3  de  julho  de  1635  começou  a 
retirar-se  para  a  Alagôa  do  Norte,  de  onde  o  chamara 
Bagnuolo. 

Muitos  moradores  com  suas  famílias,  senhores  de 
engenho  tanto  de  Pernambuco  como  da  Goyanae  da 
Parahyba  também  emigraram  para  o  sul  por  essa  occa- 
sião  c  o  facto  das  extensas  caravanas  de  homens,  mu- 
lheres e  crianças  abandonando  os  lares  pelo  temor  do 
estrangeiro,  reproduzia  o  espectáculo  de  um  novo  êxodo. 

Heroiãiuio  de  9.  liaria  de  Souza  — Em  um 

dos  ataques  dos  hollandezes  para  se  apossarem  do  forte 
de  Nazareth  presenciou-se  um  exemplo  de  heroísmo  fe- 
minino que  deve  figurar  na  historia  de  nossa  Pátria  com 
o  mesmo  realce  com  que  nos  fastos  latinos  se  admira  a 
memorável  acção  de  Cornélia,  a  mãe  dos  Gracchos. 

Diz  Southey  : 

«Nesta  acção  cahiu  Estevam  Velho,  filho  de  D.  Maria 
de  Souza,  uma  das  mais  nobres  damas  da  familia.  Já 
nesta  guerra  perdera  dois  filhos  e  o  genro,  e  ao  chegar- 


472  HISTORIA  DO   BEAZIL 

lhe  a  noticia  desta  nova  desgraça,  chamando  os  dois  que 
ainda  lhe  restavam,  dos  quaes  um  de  quatorze  annos  de 
idade,  e  o  outro  um  anno  mais  moço,  disse-lhes  : 

—  «Hoje  foi  vosso  irmão  Estevam  morto  pelos  hol- 
landezes;  a  vós  agora  toca  cumprir  o  dever  de  homens 
honrados  numa  guerra  em  que  se  serve  a  Deus,  ao  rei  e 
Pátria.  Cingi  as  espadas,  e  quando  vos  lembrar  o  triste 
dia  em  que  as  pondes  á  cinta,  inspire-vos  elle,  não 
magua,  mas  desejo  de  vingança, que  quer  vingueis  vossos 
irmãos,  quer  succumbais  como  elles,  nem  degenerareis 
dellesf,  nem  de  mim.» 

Com  esta  exhortação  os  enviou  a  Malhias  de  Al- 
buquerque pedindo-lhe  que  por  soldados  os  contasse. 
De  tal  tronco  não  podia  desdizer  a  prole  e  de  tal  mãe 
se  mostraram  dignos  os  filhos.  » 

Os  Buocaaubos  dos  Palmares.  —  Além  da  crua 
guerra  que  as  tropas  de  Mathias  de  Albuquerque,  bem 
como  todos  os  moradores  soffriam  em  Pernambuco  do 
exercito  hollandez,  juntava-se  para  os  miseros  o  flagello 
das  correrias  dos  Tapuyas,  principalmente  os  da  barbara 
horda  dos  Janduis,  cujo  principal  Jandovi  era  alliado  dos 
flamengos  e  também  as  depredações  continuas  que  nos 
engenhos  e  pequenas  povoações  faziam  os  negros  fugi- 
dos que  se  reuniam  nos  celebres  mocambos  ou  quilom- 
bos dos  Palmares. 

Estes  quilombos  que  tomaram  o  nome  das  extensas 
florestas  de  palmeiras  em  que  se  achavam,  ficavam  a 
trinta  léguas  da  costa  e  nelles  se  asylavam  milhares  de 
negros  que  pelos  maus  tratos  recebidos  de  senhores 
brutaes  e  pelo  natural  desejo  de  liberdade  furtavam-se 
ao  trabalho  árduo  e  aos  injustos  castigos  nas  fazendas  e 
engenhos. 

Ahi,  nesse  asylo  do  sertão,  cuja  topographia  e  fauna 
transportava-os  pelo  pensamento  a  saudosas  regiões  da 
terra  natal,  esses  infelizes  entregavam-se  á  mais  pesada 
indolência,  como  reacção  do  muito  que  agiram  sem  von- 
tade sob  o  estalido  do  azorrague  e  quando  a  fom.e  lhes 
empolgava  o  estômago  desciam  aos  povoados  e  pratica- 
vam na  alheia  propriedade  e  nas  vidas  todos  os  actos  de 
rapina  e  crueza,  naturaes  do  homem  bárbaro. 

Ora  taes  negros  muito  contribuíram  para  acabru- 
nhar os  defensores  da  integridade  territorial  da  Pátria 
que  se  formava  num  momento  de  agonias,  todo  de 
luctás,  de  grandes  sacrifícios,  de  vilipêndios  e  torturas. 


CAPITULO  IV 

A  LUTA  COM  OS  HOLLA.NDEZES 

DESDE   A   RESTAURAÇÃ.^   DE   PORTO   CALVO   ATÉ  A  NOMEAçAo 
DE   MAURÍCIO   DE   NAUSSAU 

(1615  — 1639) 

ReistaiiraçSo  do  Porto  Calvo.  —  Os  pernam- 
bucanos enjigravam  em  tão  grande  numero  para  o  sul  e 
eram  portadores  de  tão  valiosos  cabedaes  que  não  podiam 
deixar  de  despertar  a  cubica  de  seus  inimigos,  os  hol- 
landezes,  e  estes  naturalmente  procurariam  esbulhar  os 
infelizes  d'aquillo  que  salvavam. 

Cumpre-nos  aqui  dizer  que  o  povo  hollandez  é  me- 
recedor do  maior  respeito  por  parle  das  nações  civilisa- 
das,  não  só  pela  perseverança  com  que  emprehende  e 
leva  a  cabo  os  mais  rudes  trabalhos,  como  por  suas  altas 
virtudes  civicas,  pelas  quaes  sempre  soube  preservar 
liberdade  politica,  mesmo  sob  formas  de  governo  que 
lhes  são  adversas  e  princip  ilmente  por  uns  tantos  prin- 
cipies de  honestidade  privada;  deve-se  attender,  porém, 
que  as  tropas  hollandezas  que  então  se  achavam  no  Bra- 
sil não  representavam  esse  povo.  Não  só  a  vida  prolon- 
gada no  acampamento  era  sufficieute  para  perv^erter  os 
sentimentos,  como  também  a  maior  parto  do  exercito 
rea  composto  de  mercenários  recrutados  pela  Companhia 
das  índias  em  todos  os  paizes  da  Europa,  e  de  preferen- 
cia nos  de  costumes  mais  dissolutos.  Assim,  nem  sempre 
a  campanha  que  fizeram  contra  os  portuo;uezesera  nobre 
e  generosa,  e  tanto  de  um  lado  como  de  outro  pralica- 
vam-se  barbaridades  revoltantes  e  traições   miseráveis. 

Mas,  passemos  adiante. 

Quando  o  comboio  de  eiiigrantes  se  achava  pró- 
ximo de  Porto  Calvo,  que  os  hullandezes  occupavam, 
Sebastião  do  Souto,  porUiguez  que  se  havia  submettido 
ao  jugo  estrangeiro,  vendo  os  invasores  propensos  a 


474  nitíTORIA   DO   BRASIL 

atacareai  os  seus  compatriotas,  delibei-ou  encaminhar  os 
hollandezes  a  uma  cilada. 

Te  ido  assim  determinado,  solliciíou  de  Picard,  go- 
vernador bollandoz,  cuja  confiança  havia  captado,  per- 
missão para  reconhecer  as  forças  de  Mathias  de  Albu- 
querque, e  sendo-lhe  isto  permittido,  deu  ao  seu  compa- 
triota instrucções  exactas  a  respeito  dos  meios  pelos 
quaes  poderia  apoderar-se  da  povoação. 

De  accòrdo  com  as  suas  informações  agiram  os 
portuguezes  e  dentro  em  pouco  achavam-se  em  Porto 
Calvo  onde  fizeram  uma  horrível  matança,  tomando  á 
viva  força  a  fortaleza  principaL 

Picard  e  Calabar,  com  o  resto  da  guarnição,  refugia- 
ram-se  em  uma  c  :sa  onde  se  entricheiraram  e  suppor- 
taram  o  cerco.  Porém,  a  19  de  Julho  de  1635,  V(  ndo  que 
era  impossível  p)'olongar  a  resistência,  propuzeram  ca- 
pitulação que  foi  aceita,  garantindo-se-lhes  as  vidas, 
■excepto  a  de  Calabar. 

A  guarnição  hollandeza  compunha-se  do  major  Pi- 
card, vinte  e  cinco  officiaes  e  inferiores,  trezentos  e  ses- 
senta e  sete  soldados  armados,  vinte  e  sete  feridos  e  en- 
fermos; a  dos  sitiantes,  não  passava  de  cento  e  quaronta 
segundo  se  lê  em  Varnhagen. 

§>upplicio  de  Calabar.  —  (22  de  julho  de  1635) 
Seguido  alguns  autores,  a  entrega  de  Calabar  aos  seus 
rancorosos  inimigos  foi  feita  por  Picard  S3m  muito  cons- 
trangimento por  parte  deste.  Outros,  porém,  atíirmam  que 
os  hollandezes  estavam  dispostos  a  sacrificarem-se  todos 
antes  que  votarem  a  uma  morte  certa  o  camarada,  sendo 
o  próprio  Calabar  que  disso  os  dissuadiu. 

O  certo  é  que  que  o  intrépido  mameluco  não  foi 
-comprehendido  na  capitulação  e  Ijgo  que  se  effectuou  a 
mesma,  os  portuguezes  o  sentenciaram  á  forca  como 
traidor,  embora  entre  os  h  )llandezes  tivesse  o  posto  de 
major  o  qual  lhe  dava  o  direito  a  uma  morto  mais 
nobre. 

Foi  confessor  de  Calabar,  durante  os  três  dias  que 
elle  esteve  no  oratório,  frei  Manuel  do  Salvador,  o  mesmo 
religioso  que  com  o  pseudonymo  de  frei  Manuel  Calado 
escreveu  o  Valeroso  Lucídeno,  obra  que  não  deixa  de 
■ser  interessante  para  o  estado  desse  agitado  periodo  da 
historia  pátria;  tanto  este  religioso,  como  frei  Rafiel  de 
Jesus  são  accordes  em  aíTirmar  que  Calabar  recebeu 
com  firmeza  a  morte,  a  qual  lhe  foi  dada  a  22  de  julho 


J 


TERCEIRA   EPOCnA  475 


de  j 635,  sendo  depois  o  seu  cor|))  esquartejado,  vindo 
por  conseguinte  morrer  na  própria  villa  que  ilie  íòra 
berço.  * 

Frei  Manuel  do  Salvador  e  frei  Rafael  de  Je^us 
aflirmam  que  Calabar  havia  commettido  em  Porto  Calvo, 
antes  de  desertar  para  oshollandezes,  alguns  crimes 
atrozes.  A  isto  porém  objecta  com  muita  sisudez  o  cónego 
Fernandes  Pinheiro  que  nem  Brito  Freire,  nem  frei  José 
de  Santa  Thereza,  chronistas  de  muito  mais  pezo  e 
graviflade,  falam  de  taes  crimes,  pelo  que  se  nos  afligura 
não  passar  isso  de  perversa  invenção  de  frei  Manuel 
do    Salvador. 

Depois  de  executado  Calabar,  ]  Mathias  de  Albu- 
querque mandou  arrazar as  fortificações  de  Porto  Calvo 
6  continuou  a  sua  jornada  para  as  Alagoas,  entrando  os 
inimigos  logo  em  seguida  na  villa,  com  mandados  por 
Schkoppe,  que  prestou  honra  fúnebres  militares  a  ('ala  bar 
e  ordenou  que  se  passasse  á  espada  todo  o  portuguez 
que  fosse  encontrado  pelas  mattas,  para  vingar  a  morte 
do  heróico  alliado,  barbaridade  que  pela  intercessão  de 
frei  Manuel  do  Salvador  que  se  communicava  com  Ar- 
cizewsky,  em  latim,  foi  revogada,  podendo  os  jiioradores 
voltar  ás  suas  casas. 

Ko tirada  de  ilathias  de  Albuquerque.  — 
Não  se  contando  com  os  Índios,  os  destroços  das  forças 
portuguezas,  com  as  quaes  Mathias  de  Albuquerque  se 
retirou  para  as  Alagoas,  compunham-se  unicamente  de 
quatrocentos  homens. 

Mathias  de  Albuquerque  seguiu  pelo  caminho  da 
costa  e  logo  fortificou-se  em  Alagoas;  Arcize^vsky  d'ahi 
a  quinze  dias  chegava  a  Peripucira,  logar  alto  sobre  a 
costa,  a  dezlegoasda  Alagôa  do  Norte,  e  ahicollocouum 
grande  destacamento,  persuadido  de  que  assim  interce- 
ptaria as  commuiiicações  do  general  portuguez  com 
o  povo  dos  campos.  Isto  porém  apenas  deu  em  resul- 
tado ficarem  os  portuguezes  conhecendo  o  caminho  do 
sertão  das  Alagoas  para  Pernambuco. 

Mathias  de  Albuquerque  chegou  a  29  de  agosto 
á  Alagôa  do  Norte,  onde,  de  accordo  com  Bagnuolo, 
resolveu  passar  ádo  Sul,  por  ser  mais  defensável  e  mais 
central  para  os  tros  portos  de  Jaraguá,  Francezes  e 
Alagoas. 

dtmmando   ^eral  de  s> .    Ijnlx  «?«  Ro,|a.«    y 

Dorja.  —  Embora  com  muito    custo,  a  corte  de  lies- 


470  UISTORIA   DO   BKASIL 

panlia  conseguiu  fiiiulmente  reunir  alguns  SLCCurros 
para  enviar  ao  Brazil,  os  quaes  deveriam  seguirem  uma 
esquadra  de  vasos  das  coroas  hespanhola,  portugueza  e 
napolitana. 

Foi  convidado  para  o  cominando  da  mesma  D.  Fra- 
dique  de  Toledo.  Tendo  porém  este  general  declarado 
que  ftó  acceiíaria  a  commissão  si  lhe  dessem  doze  mil 
homens  de  tropa  de  desembarque,  exasperou-se  o 
conde  duque  de  Òlivares  e  mandou  encarceral-o. 

Pensou-se  então  em  nomear  D.  Francisco  da  Silva 
que  havia  firmado  o  seu  nome  como  general  de  mérito 
nas  guerras  de  Flandres.  Este  porém  declinou  da  honra, 
pretextando  ser-lhe  extranho  o  exercicio  da  guerra  na 
America. 

Por  esse  motivo  foi  nomeado  D.  António  d'Avila  e 
Toledo,  marquezde  Velada  e  grande  de  Hespanha.  Como 
porém  este  chefe  não  pudesse  partir  immediatamente, 
passou  o  commando  das  tropas  ao  seu  immediato 
D.  Luiz  do  Rojas  y  Borja,  que  havia  militado  em 
Flandres  e  acabava  de  ser  presidente  no  Panamá. 

Compunham-se  de  mil  e  setecentos  homens 
as  forças  entregues  a  D.  Luiz  de  Rojas  y  Borja  e  foram 
embarcadas  em  trinta  navios  sob  o  commando  de 
D.  Lopo  deHozes  e  D.  Rodrigo  Lobo,  os  quaes  traziam 
ordem  de  desembarcar  em  S.  Salvador  Pedro  da  Silva, 
novo  governador  geral  e  receber  a  bordo  Diogo  Luiz  de 
Oliveira. 

D.  Luiz  de  RDJas  y  Borja  vinha  com  o  posto  de 
mestre  de  campo  geneíal,  ficando  Bagnuolo  com  o  de 
capitão  general  da  ca vallaria  e  da  artilharia.  Por  essa 
mesma  occasião  foi  conferido  o  titulo  de  Dom  a  António 
Felippe  Camarão,  o  intrépido  indio  Poty,  cujos  serviços 
aos  portuguezes  eram  incalculáveis,  não  só  nas  terríveis 
emboscadas,  como  na  retirada  para  as  Alagoas. 

Con':ordam  os  autores  que  si  D.  Luiz  de  Borja  ti- 
vesse atacado  o  Reciíe  logo  aochegar  ao  Brazil,  facil- 
mente teria  reconquistado  o  porto  e  a  cidade,  pois  as 
forças  hollandezas  achavam -se  nesse  momento  muito 
dispersadas.  O  novo  mestre  de  campo  general,  porém, 
chegando  á  vista  do  Recife  não  se  animou  a  atacal-o 
e  velejou  para  o  cabo  de  Santo  Agostinho  e  d'aqui  para 
a  ponta  de  Jaraguá  onde  desembarcou  as  tropas. 

Perseguição  a  llatbiais  de  .41buquerc|ue. — 

D.  Luiz  de  Rojas  y  Borja  trouxera  ordem  da  corte  a 


TERCEIRA   EPOCHA  477 


Mathias  de  Albuquerque  para  que  este  se  retirasse  á 
metrópole;  Maihi  is  promptamente  obedeceu.  Porém  che- 
gado ao  reino  foi  este  esforçado  varão  objecto  de  uma 
persi:'guição mesquinha,  porpaite  exactamented'aquelles 
a  quem  competia  premial-o  pelo  muito  quo  obrara  no 
desempenho  do  posto  que  lhe  fora  confiado. 

Diz  Varnliagen  na  sua  Historia  das  latas  com  os 
Hollaiidezes  no  Brasil: 

«Deixou  este  cnispicno  chefe  o  exercito  em  16  de 
dezembro  de  1635,  depois  de  haver  militado  com  tanta 
constância  e  firmeza  no  Brazil,  d'esta  vez  durante  seis 
annos.  O  sentimento  geral  que  observou  na  sua  partida 
serviria  de  fazer-lhe  esquecer  alguns  desgostos  ante- 
riores. Não  cobrara  jamais  ordenados  e  grangeára 
sempre  merecida  reputação  por  sua  honradez  e  pru- 
dência. 

Regressando  á  metrópole,  não  foi  porém  gosar  do 
descanso,  nem  de  dias  felizes. 

A  Mesa  da  Conseiencia  lhe  mandou  tirar  devassa 
pela  perda  de  Pernambucoe  por  todo  o  seu  procedimento 
como  governador.  Foi  tirada  a  mesma  devassa  pelo 
doutor  Francisco  Leitão,  agregandu-se  a  ella  depoimen- 
tos de  testemunhas  que  não  descubriam  os  seus  nomes 
como  na  Inquisição.  » 

Em  uma  nota  do  mesmo  livro  lê-se  no  emtanto  : 

«Ainda  seguia  o  processo  nojuizo  dos  cavalleiros 
em  1640,  quando  a  restauração  veiu  a  necessitar  da 
espada  do  valente  general,  e  todos  os  cargos  se  desva- 
neceram, e  elle  foi  elevado  á  grandeza  e  feito  conde  de 
Alegrete,  etc. » 

Progressos  dos  Hollaiidezes.  —  Ao  tempo 
em  que  D.  Luiz  de  Rojas  e  Borja  chegava  ao  Brazil, 
muito  já  se  haviam  adiantado  os  hollandezes,  não  só 
pela  vastidão  de  suas  conquistas  que  alcançavam  no 
littoral  desde  o  Rio  Grande  do  Norte  até  Peripueira 
nas  Alagoas,  como  tambe  n  pelos  notáveis  progressos 
materiaes  realisados  no  Recife. 

Entre  esses  cumpre  fazer  sobresahir  que  haviam 
creado  arsenaes  navaes  de  alta  importância,  e  nestas 
easas  se  apparelhavam  agora  as  esquadras,  sem  mais 
dependerem  da  Hollanda. 

Com  taes  esquadras  davam  caça,  muitas  vezes 
feliz,  aos  ricos  galeões  da  índia,  e  conseguiram  até 
apoderar-se  novamente  de  Fernando  de  Noronha,  cuja 


478  HI8T0EIA   DO  BRA9IL 

insignificante  guarnição  capitulou   após   doze  dias   de 
cerco . 

Batalha  da  ll^itta  Redonda.  —  ll»2*te  de^ 
Kojas  (18  DE  JANEIRO  DE  1635.  — Logo  ao  desembarcar 
em  Jaraguá,  D.  Luiz  de  Rojas  y  Borja  marciíou  precipi- 
tadamente sobre  Porto  Calvo,  embora  officiaes  mais  ex- 
perimentados desapprovassem  o  seu  procedimento. 

Mandou  a  artilharia  para  a  villa  de  Santa  Luzia, 
onde  Baguuolo  havia  ficado  cora  setecentos  homens  e 
com  o  restante,  que  prelazia  mil  e  quatrocentos,  fora  os 
Índios,  pôz-se  a  caminho. 

V^n  Schkoppe,  que  se  achava  em  Porto  Calvo, 
logo  que  soube  da  marcha  de  Rojas,  abandonou  a  praça, 
e  embarcou-se  para  o  Recife,  f  icto  este  com  o  qual  o 
castelhano  muito  se  envaideceu. 

D.Luiz  occupou  Porto  Calvo,  porém  immediatamente 
resolveu  regressar,  na  intenção  de  encontrar-se  com  o 
polaco  Arcizeweski  que  se  recolhia  da  Peripueira,  afim 
de  secundar  o  seu  collega  que  elle  julgava  achar-se 
ainda  em  Porto  Calvo. 

Tão  seguro  achava-seRojas  de  venceroiniraigo,  que 
não  pensou  enfraquecer-se  deixando  quinhentos  homens 
em  Porto  Calvo;  tendo,  porém,  logo  que  se  pòz  em 
marcha,  mandado,  por  instancias  de  Martim  Soares 
Moreno,  alguns  Índios  que  deviam  explorar  o  terreno  a 
percorrer,  ficou  assombrado  ao  saber  que  o  inimigo  já 
emparelhava  com  elle  e  cercava-o  pela  retaguarda. 

Chegara,  pois,  mais  depressa  do  que  elle  pensava  o 
momento  de  combater,  e  no  dia  seguinte  ao  de  sua  par- 
tida de  Porto  Calvo,  encontrando  elle  os  liollandezes 
occupando  as  proximidades  de  um  bosque,  mandou 
faze  fogo . 

Os  liollandezes  sustentaram  com  galhardia  a  inves- 
tida, e  assim  que  observaram  uma  carta  deserdem 
nas  fileiras  inimigas,  carregaram  \áolentamente  sobre 
ellas  e  as  debandaram. 

Nesta  acção,  que  ficou  se  chamando  da  Matta  Re- 
donda, foi  morto  Rojas,  qué  recebeu  uma  bala  pelas 
costas,  quando,  no  emtanto,  teve  sempre  a  face  voltada 
para  o  inimigo,  e  trinta  e  tantos  homens  das  suas 
forças,  havendo  igual  numero  de  feridos. 

Após  a  victoria,  Arcizewski  recolheu-se  á  villa 
Formosa,  destacando  uma  pequena  guarnição  para 
Peripueira. 


TERCEUÍA  EPOCHA  479 


Tiveram  elles  na  batalha  quarenta  mortos  e  outros- 
tantos  feridos,  porém  salvaram  as  suas  conquistas, 
pois  si  as  forças  de  Rojas  não  são  interrompidas  de 
modo  tão  lúgubre^  bem  certo  ó  que  muito  alcançariam 
pelo  Ímpeto  deste  general,  quo  para  o  seu  triumpho 
também  podia  contar  com  os  esforços  dos  habitantes, 
os  quaes  só  com  muita  repugnância  supportavam  o  jugo 
hoUandez. 

Cii»uiniuiido  geral  do  Coude  de  Btig^nuolo. 
— Pelo  disposto  na-s  vias  de  successão  abertas  ao  morrer 
D.  Luiz  de  Rojas,  foi  empossado  no  cargo  de  comman- 
dante  geral  das  tropas  o  conde  deBagnuolo,  embora  com 
visível  constrangimento  da  maior  parte  dos  officiaes, 
que  com  muita  razão  não  lhe  depositavam  confiança. 

Bagnuolo  achava-se  então,  como  sabemos,  na  vi  lia 
de  Santa  Luzia,  e  assim  que  lhe  chegou  a  noticia  do  que 
por  ordem  legal,  fora  col locado  na  chefia,  pòz-so  em 
marcha  em  direcção  ao  norte  por  um  novo  caminho  que 
fez  abrir,  e  a  19  de  março  chegava  a  Porto  Calvo. 

Bagnunlo  toma  a  oífensiva  pelo  ;yy§iteiua 
dais  guerrilliiís.  — Comquanto  até  então  Bagnuolo 
não  tivesse  dado  grandes  provas  do  seu  tino  militar, 
coiiitudo  soube  comprehender  que  com  as  diminutas 
forças  de  que  dispunha  seria  insensato  provocar  o  ini- 
migo para  as  acções  em  campo  raso,  e  o  único  svstema 
de  guerra  que  lhe  seria  proveitoso  era  o  das  embos- 
cailas  e  escaramuças,  quo  durante  dois  annos  havia 
conservado  os  hollandezes  encurralados  no  Recife,  e 
pelo  qual  durante  tanto  tempo  puderam  conservar  o 
arraial  do  Bom  Jesus. 

Tendo  assim  deliberado,  logo  que  chegou  a  Porto 
Calvo,  despachou  a  occupar  a  linha  do  Una,  distante 
dez  léguas,  algumas  forças,  com  ordens  de  despachar 
para  a  frente  pequenas  escoltas,  que  deviam  conservar 
o  inimigo  em  sobresalto,  e  para  o  norte  mandou  Fran- 
cisco Rebello  com  450  homens,  os  quaes  deviam  chegar 
ate  onde  lhes  fosse  possível,  devastando  e  queimando 
tudo  quanto  encontrasse. 

A  força  destacada  para  a  linha  do  Uni  soffreu  al- 
guns ataques  de  pouca  importância ;  as  de  Francisco 
Rebello  cahiram  inesperadamente  sobre  um  engenho  no 
Cabo;  ahi  mataram  trinta  soldados  hollandezes  e  apri- 
sionaram quarenta,  com  os  quaes  seguiram  devas- 
tando até  S.  Lourenço,   distante  cinco  léguas  do  Recife. 


480  HISTORIA  DO   BRASIL 

_ 

NessQ  ponto  foi  Francisco  R-,bello  embargado  por  Jacob 
Stachower,  que  partira  do  Recife  com  oitocentos  ho- 
mens; Stachower  derrotou-o  e  conseguiu  libertar  os 
quarenta  hollandezes  que  iam  presos. 

Diz  Varnh?igen  que  «  a  expedição  de  Rebello  pro- 
duziu no  emtanto  entre  outros  favoráveis  resultados,  o 
de  permittir  que  se  lhe  reunissem  os  moradores  que  o 
desejavam,  e  neste  num- ro  entrou  Henrique  Dias  com 
sua 'mulher,  filhos  e  vários  parentrs,  pois  havendo 
este  chefe  capitulado  no  Arraial,  mas  tendo  sido  con- 
servado em  liberdade  pelo  inimigo,  aproveitava  a  occa- 
sião  para  reuni r-se  ás  antigas  bandeiras. 

Por  esse  tempo  haviam  os  hollandezes  deliberado 
fazer  algumas  nomeações  de  commandantes  de  dis- 
trictos  militares,  afim  de  que  fosse  soccorrido  com 
mais  promptidão  qualquer  ponto  atacado  pelo  inimigo. 
O  referido  Stachower  tinha  por  missão  seguir  as  tropas 
em  operações,  Ipo  Eysen  ficou  encarregado  do  mando 
de  Itamaracá  para  o  norte ;  Schott  do  districto  do 
cabo  de  Santo  Agostinho  até  o  rio  das  Jangadas,  e  Bal- 
thazar  Wintjes,  com  Elias  Herckman,  do  Recife. 

A'  expedição  de  Rebello  seguiu-se  a  expedição  de 
João  da  Silva  Azevedo,  com  trezentos  e  cincoenta  ho- 
mens, a  qual  obteve  poucos  resultados.  Logo  depois 
partiram  D.  António  Felippe  Camarão  com  uns  trezen- 
tos Índios  e  Henrique  Dias,  já  condecorado  pela  metró- 
pole com  o  titulo  de  governador  dos  pretos;  os  dois 
conspícuos  batalhadores,  com  pasmo  geral,  talaram  toda 
a  região  até  Goyana,  ao  norte  de  Pernambuco  e  ao  re- 
gressar defenderam-se  durante  os  dias  23  e  24  de  agosto 
contra  as  forças  de  Arcizewsky  que  os  atacaram  em  S. 
Lourenço.  Três  mezes  depois  do  partidos  achavam-se 
de  volta  a  Porto  Calvo,  acompanhados  de  grande  nu- 
mero de  moradores  que  se  lhos  juntaram  no  percurso 
da  jornada,  os  quaes  também  foram  protegidos  por  uma 
columna  de  oitenta  homens  commandados  por  Sebas- 
tião do  Souto,  que  partiu  de  Porto  Calvo  a  encontral-os. 

Em  seguida  organisou-se  uma  nova  expedição  que 
teve  por  commandantes  Francisco  Rebello,  João  Lopes 
Barbalho  e  outros ;  estes  avançaram  até  Parahyba, 
onde  destruíram  muitos  engenhos  e  culturas  e  até  mata- 
ram Ipo  Eysens  que  ahi  commandava.  Para  reforçar  a 
expedição  marchou  Sebastião  do  Souto,  que  conseguiu 
reunir-se  a  Rebello,  porém,  a  17  de  novembro  foram  os 


TEECEIEA  EPOOHA  481 


dois  capitães  derrotados,  após  duas  horas  de  acção  e  a 
muito  custo  puderam  recolher-se  a  Porto  Calvo. 

Seguiu-sc  outra  excursão  dirigida  pelos  capitães 
Francisco  Peres  do  Souto  e  Paulo  de  Parada  que  não 
passaram  dos  engenhos  de  Goyana,  dos  quaes  queima- 
ram alguns  e  logo  depois  confiou  Bagnuolo  a  direcção 
do  pernambucano  Estevão  de  Távora  e  do  preto  Henri- 
que Dias  uma  outra  que  chegou  até  uma  légua  ao  sul  do 
Recife.  Souto  e  o  ajudante  André  Vidal  encarregaram-se 
pelo  mesmo  tempo  de  uma  expedição  que  chegou  até 
Paiahyba  devastando  tudo  na  passagem.  Souto  foi  fe- 
rido nessa  excursão  com  uma  frechada  no  braço  e  An- 
dré Vidal  com  uma  chuçada  no  peito. 

André  Vidal  de  Negreiros,  que  era  natural  da  Pa- 
rahyba  do  Norte,  tornou-se  depois  um  dos  mais 
conspicuos  vultos  da  luta  com  os  hoUandezes. 

MoineaçSo  de  Massau.  —  Esta  luta  de  guerri- 
lhas e  escaramuças  si  inquietava  o  inimigo  e  lhe  pro- 
duziu miúdas  avarias,  só  podia  no  emtanto  apresentar 
resultados  verdadeiramente  satisfactorios  quando  um 
exercito  fosse  aproveitando-se  dos  esforços  empregados 
pelos  guerrilheiraos.  Bagnuolo,  porém,  achava-se  sem 
tropas  sufficientes  e  a  corte  de  Hespanha  apezar  da  bòa 
vontade  de  Felippe  IV  nenhum  soccorro  poude  fornecer- 
Ihe  e  por  conseguinte  não  se  podia  exigir  mais  de  Ba- 
gnuolo, pois  muito  já  havia  feito  elle  levando  a  guerra 
até  as  portas  do  Recife,  em  logar  de  esperar  que  o  ini- 
migo lh'a  trouxesse  aos  seus  fortes  das  Alagoas. 

Si  em  Hespanha,  porém,  nada  se  podia  ou  não 
queriam  fazer  em  prol  da  restauração  de  Pernanjbuco, 
de  modo  diverso  procediam  os  hoUandezes  no  sentido 
de  resguardar  suas  importantes  conquistas. 

Assim  resolveram  o  stadthouder,  os  Estados  Geraes 
e  a  Companhia  das  índias  dar  o  máximo  desenvolvi- 
niente  á  defesa  de  Pernambuco,  confiar  a  direcção  ab- 
soluta da  conquista  a  um  chefe  de  prestigio  superior. 

A  escolha  recahiu  em  .loão  Maurício,  conde  de 
Nassau  e  primo  do  stadthouder  príncipe  d'Orange,  o 
qual  aceitou  a  incumbência  por  cinco  annos,  sendo  du- 
rante esse  tempo  auxiliado  por  três  conselheiros  íntimos. 

A  Nassau  conferiu-se  a  retribuição  de  dois  mil  e 
duzentos  florins  por  mez,  2  °/o  de  todas  as  presas,  e  deu- 
se-lhe  um  regulamento  constante  de  99  artigos,   pelo 

31 


482  HISTORIA   DO  BRASIL 

qual  era  el!e  autorisado  a  preencher  os  postos  milita- 
res quando  estivesse  em  campanh;i. 

Os  cargos  civis  que  não  fossem  providos  pela  me- 
trópole deviam  ser  conferidos  pela  junta  ou  conselho  por 
elle  presidido. 

Para  os  cargos  de  conselheiros  Íntimos  foram  no- 
meados os  dois  directores  Gysseling  e  Ceulen  que  já  se 
achavam  no  Recife,  agregando-se-lhes  um  novo  Adrian 
van  der  Dussen. 

A  nomeação  do  conde  de  Nassau  teve  logar  a  2  de 
agosto  de  1636. 


CAPITULO  V 

A  LUTA  COM. OS  HOLLANDEZES 


DEM)E    A    CHEGADA    DE   MAURÍCIO    DE    NASSAU    ATÉ    LEVAN- 
TAR-SE    O   CERCO   DA    BAHIA 


O  illiístre  condo  de  JNaysaii  chegou  ao  Recife^' com 
quatro  navios  a  123  de  janeiro  de  1637  e  alojou-se  na 
ilha  de  Santo  António  ou  de  António  Vaz.  Segundo  uma 
carta  qued'ahi  ha  dias  escrevia  para  sua  pátria  achara 
«o  paiz  dos  mais  bellos  do  mundo,  e  a  situação  d'aquella 
praça  bastante  forte  e  vantajosa,  w 

Portuguezes  e  brasileiros  recrudesciam  nas  suas 
correrias  quando  elle  chegou  c  por  isso  Nassau  não 
perdeu  um  instante,  pondo  tudo  em  ordem  afim  de  com- 
batel-os. 

Cosubalo  de  Coibi eudatiibn,  e  tomada  de 
Porto  Calvo  j»or  i\'a«isaii.  —  Depois  de  haver  dis- 
tribuido  '-cJjôOO  homens  pelas  diííerentes  guarnições,  orga- 
nisou  Nassau  um  exercito  de  3,000  homens,  oitocentos 
marinheiros  e  seiscentos  e  tantos  pretos  e  Índios,  força 
que  em  parte  ficou  sob  o  cominando  deSegismundo  ^'aii 
Sclikoppe.  Ordenou  que  Arcize^^ski  se  dirigisse  por  mar 
com  outra  força  para  a  Barra  Grande  e  elle  próprio  mar- 
chou para  o  rio  Una  que  attravessou  no  dia  16  de  fe- 
vereiro de  1637.  As  tropas  de  Arcizewski  chegaram  á 
Barra  Grande  no  dia  16  e  immediatamente  puzeram-se 
de  accôrdo  com  as  de  terra,  marchando  as  duas  sobre 
Porto  Calvo  onde  se  achava  Bagnuolo  com  quinhentos 
homens,  pouco  mais  ou  menos. 

Bagnuolo  quando  soube  da  approximaçào  do  ini- 
migo mobtrou-se  indeciso,  optando  afinal  pelo  plano 
mais  absurdo  que  era  o  de  defender  Porto  Calvo,  embora 
suas  forcas  fossem  muito  inferiores  ;  assim  fortificou-se 
em  um  dos  reductos,  collocando  Miguel  Giberton,  com-- 
mandfinte  da  artilharia,  em  outro. 

Quando,    porém,    o   inimigo    chegou    á  vibta  Ba- 


484  HISTORIA  DO  BRASIL 

gnuolo  mudou  de  resolução  e  deliberou  acommettel-o, 
ordenando  que  o  seu  immediato  Almiron  com  um  corpo 
de  oitocentos  homens,  incluindo  os  Índios  de  Camarão, 
em  numero  de  trezentos  e  os  negros  de  Henrique  Dias 
em  igual  numero  sahissem  ao  encontro  dos  hollan- 
dezes. 

Almiron  avançou  até  a  margem  do  Comendatuba, 
onde  julgou  poder  entricheirar-se  vantajosamente  e 
conter  o  inimigo  na  sua  marcha.  Tal,  porém,  não  succe- 
deu. 

Nassau  tinha  ordenado  que  os  seus  Índios,  escondi- 
dos pelos  mattos,  contornássemos  Índios  inimigos  pelos 
flancos  ;  estes  assim  o  fizeram  logo  que  se  estabeleceu  a 
confusão  nas  fileiras  portuguezas  pelo  inesperado  ataque 
que  recebiam,  Nassau  cahiu  sobre  ellas  violentamente, 
destroçando-as  com  facilidade. 

D.  António  Felippe  Camarão,  como  eempre,  obrou 
prodígios  de  valor,  e  até  sua  própria  mulher  D.  Clara 
Camarão  sahiu  a  campo  e  pelejou  galhardamente. 

Henrique  Dias  foi  ferido  pela  sexta  vez.  Esse  feri- 
mento foi  produzido  por  uma  bala  que  lhe  penetrou  no 
punho  esquerdo,  e  presumindo  elle  estar  a  mesma  enve- 
nenada, ordenou  que  lhe  amputassem  o  braço. 

Também  se  distinguiu  Francisco  Rebello. 

Neste  ínterim  Bagnuolo  sentia-se  tão  acobardado 
que  precipitadamente  fugiu  para  as  Alagoas,  sem  ao 
menos  levar  o  seu  plano  ao  conhecimento  de  Miguel 
Gíberton,  commandante  do  outro  forte. 

Nassau  mandou  perseguir  a  retaguarda  de  Bagnuolo 
até  duas  léguas  de  distancia,  fazendo  ainda  alguns  pri- 
sioneiros e  depois  entrou  em  Porto  Calvo,  onde  obrigou 
Miguel  Giberton  a  capitular,  tratando-o  no  emtanto  com 
muita  distincção. 

Animado  por  esta  victoria,  Nassau  ao  sul,  Segis- 
mundo  van  Schoppe  com  alguma  força  dirigiu-se  por 
terra  ao  sul,  e  elle,  acompanhado  das  restantes,  embar- 
cou-se  na  Barra  Grande  com  destino  a  Jaraguá,  de  onde 
marchou  até  as  margens  do  S.  Francisco,  paragem  a 
que  chegou  a  27  de  março  de  1637,  sem  encontrar  Ba- 
gnuolo e  suas  forças  que  já  tinham  passado  para  Ser- 
gipe d'El-Rei. 


(1)  Bagnuolo  tinha  feito  recolher  a  Porto  Calvo  as  forças  do 
Una. 


1 


TERCEIRA     EPOCHA  485 


A  s  margens  do  S.  Francisco  eno  morro  que  domina 
a  povoação  do  Penedo,  Nassau  fez  construir  um  íorte  a 
que  deu  o  nome  do  Maurício,  e  pela  mesma  occasião 
dispoz  que  por  meio  de  outros  fortes  fosse  occupada  a 
margem  do  grande  rio  que  escolheu  para  fronteira  de 
suas  conquistas. 

_  Bagnuolo  seguiu  fugindo  até  S.  Christovão,  em  Sor- 
gipe,  onde  chegou  em  fins  de  março,  e  íacil  seria  a 
Nassau  enxotal-o  até  a  Bahia,  quiçá  tomar  esta  de 
assalto,  porém,  havia  deliberado  o  contrario  e  por  con.- 
u^iV ^^í'  oi^denou  a  Arcizewski  que  se  retirasse  para  a 
Hollanda,  «  ao  parecer,  diz  Varnhagen,  por  não  estar 
comelieem  boa  intelligvncia»  e  regressou  para  o  Recife. 

Guardando  a  fronteira  do  S.  Francisco  ficou  Segis- 
niundo  van  Schkoppe  ;  e  á  esquadra,  ao  mando  de  Li- 
chtardt,  ordenou  Nassau  que  fosse  cruzar  ao  sul. 

T5^í5^*^^^^  ^^^  diversas  avarias  em  barcos  mercantes 
da  Bahia,  saqueou  e  incendiou  Camamú  e  chegou  a 
eíTectuar  um  desembarque  na  villa  dos  Ilhéos. 

Retirada  de  Bagnuolo  para  a  Bahia.  — 
Chegando  a  S.  Christovão,  Bagnuolo  mandou  á  Hespa- 
nha  e  ao  governador-geral  Pedro  da  Silva,  oíTerecer-se 
para  soccorrer  a  Bahia,  receioso  como  se  achava  de 
que  Nassau  animado  pelas  victorias  anteriores  não  tar- 
dasse a  investir  a  capital  do  Estado  ;  no  emtanto,  nem  a 
metrópole,  nem  o  governador  aceitaram  o  seu  offereci- 
mento,  antes  responderam-lhe  desdenhosamente,  dizen- 
do-lhe  :  «  que  melhor  seria  ficar  onde  estava  do  que 
acarretar  sobre  a  Bahia  a  má  sina  de  Pernambuco  ». 

A'  vista  disso  deliberou  Bagnuolo  voltar  á  guerra  de 
depredação,  que  tão  bons  resultados  lhe  havia  dado 
quando  tinha  o  seu  quartel-goneral  em  Porto  Calvo. 

Começou  perseguindo  os  hollandezes  do  forte  Mau- 
rício que  se  aventuravam  pela  capitania  de  Sergipe,  afim 
de  se  abastecerem  de  gado  e  depois  organisou  expedi- 
ções de  guerrilheiros  que  ousadamente  chegavam  até  as 
portas  do  Recife. 

Considerando  quão  damninhas  eram  estas  incur- 
sões, Nassau  fez  seguir  o  conselheiro  intimo,  Gysshe- 
Img,  com  dois  mil  homens  a  fazer  juncçâo  com  Schkoppe 
no  torte  Mauricio  o  a  ambos  ordenou  que  expellissem  de 
Sergipe  o  inimigo. 

Assim  quo  Bagnuolo  soube  ter-se  reforçado  a  guar- 
nição do  íorte  Mauricio  procurou  saber  o  seu  numero. 


486  HISTORIA  DO  BRA8IL 

Diz  Southey  : 

«  Com  três  camaradas  passou  Souto  o  rio  a  nado, 
entrou  numa  casa.  e  apoderando-se  de  um  official  hol- 
landez,  trouxe-o  para  o  acampa meiUo.  Reuniu-se  então 
um  conselho.  Alguns  ospiritos  mais  bravos  foram  de 
opinião  que  mais  se  carecia  de  reputação  com  que  resistir 
o  inimigo,  do  que  de  gente,  e  que  convinha  f.jzev  frente; 
aliás  que  fazer  si  abandonavam  Sergipe  e  a  Bihia  os 
não  queria  receber.  A  isto  retrucou-se  que  a  Bahia 
agora  aceitaria  gostosa  os  soccorros  que  antes  rejeitara 
desdenhosa,  por  quanto  não  se  podia  arrancar  das  espa- 
das em  Sergipe,  sem  que  de  S.  Salvador  se  lhes  visse  o 
fuzilar.  Demais  er,.  ali  o  verdadeiro  logar  de  provar 
brios,  que  guardindo  a  cabeça  do  Estado  se  defendia  o 
tolo.  A  estes  argumentos  se  rendeu  Bagnuolo,  e  man- 
dando uma  partida  a  assolar  a  fogo  o  paiz  que  deixava 
atraz,  de  novo  =-e  poz  em  retirada  com  os  miseros  emi- 
grados das  conquistadas  provincias.  Mais  uma  vez  tive- 
ram estes  desgraçados  de  passar  jiclos  horrores  de  uma 
fuga.  Os  Potyguares  como  mastins  os  foram  acossando 
por  lodo  o  caminho  ;  e  os  tristes  que  rendidos  de  fadiga 
ou  por  qualquer  accidente  ficavam  atraz,  eram  sem  dó 
despedaçados  por  estes  selvagens.  Outros  mais  felizes 
cabiam  nas  mãos  dos  hollandezes,  muitos  pereceram 
nas  mattas  mordidos  das  cobras  (1).  Exhaustos  de  sof- 
frimentos  muitos  houve,  que  resolveram  submetter-se 
ao  inimigo,  de  quem  obtiveram  passaporte  para  regre?  sar 
ás  abandonadas  habitações.  Os  próprios  chefes,  a  quem 
se  communicava  esta  resolução,  a  animavam:  melhor 
era,  diziam,  este  alvitre  para  o  serviço  do  rei;  lá  a  todo 
o  tempo  estariam  promptos  a  ajudar  os  seus  conterrâ- 
neos aberta  ou  secretamente,  valendo  mais  que  fossem 
para  onde  poderiam  coadjuvar  os  soldados,  do  que 
seguir  o  exercito  e  carecer  do  auxilio  d'elles.  Ainda 
assim  não  poude  o  maior  numero  dos  pernambucanos 
soffrer  a  ideia  da  submissão,  e  desesperadamoiUe  foram 
por  di mte,  sem  saberem  onde  nem  quando  teria  fim  a 
fuga  ». 


(1)  Eniquanto  a  partida  fazia  altD  foi  uma  mulher  lavar 
roupa  em  um  reerato,  e  depoz  o  filho  numa  mouta  :  logo  dejiois 
ouvindo-o  orritar  voltou-se  e  viu  uma  onça  a  devorai  o.  Perdidos 
a  esta  vista  os  sentidos,  cahiu  na  ;igua  com  o  rosto  para  baixo, 
afogando-se  num  arroio,  que  mal  lhe |  dava  pelo  tornozelo.    Brito 


Frbire. 


TEEOBIRA  EPOOHA  487 


Ao  chogar  á  Torre  de  Garcia  d' Ávila  aciíou  Bag- 
niiolo  um  mensageiro  do  governador  geral  Pedro  da 
Silva  que  lhe  ordenava  fazer  alto  nessa  paragem,  em- 
qnanto  se  preparavam  em  S.  Salvadar  quartéis  para 
as  tropas  ;  pouco  depois  chegava  o  mesmo  governador, 
o  qual,  conferenciando  com  Bagnuolo,  assentou  em  res- 
taurar as  fortificações  da  Bahia. 

Uevastaçilo  tie  !§ii)rg;ipo. — A  destruição  de  Ser- 
gipe, começada  por  Bagnuolo  na  sua  retirada,  foi  termi- 
nada pelos  hollandezes. 

«  Bagnuolo,  diz  o  dr.  Felisbello  Freire,  em  uma 
incandescência  de  ódio  e  rancor,  no  intuito  do  inimigo 
nada  encontrar  na  nascente  capitania,  entrega  tudo  á 
destruição  de  souã  soldados,  desapparecendo  uma  pe- 
quena riqueza  accumulada  em  quarenta  e  sete  annos  de 
colonisação  o  (1). 

Os  hollandezes  por  sua  vez  desembarcaram  na 
fortificação  que  tinham  defronte  do  forte  Mauricio  e  diri- 
giram-se  a  8.  Christovão,  onde  chegaram  a  18  de  no- 
vembro. 

«  A  destruição,  diz  ainda  o  dr.  Felisbello  Freire, 
encetada  pelos  conquistados  é  acabada  pelos  conquista- 
dores, que  entregam  ás  chammas  a  pequena  cidade, 
devastam  os  cann  iviaes  e  os  sitios,  incendeiam  os  enge- 
nhos e  em  vez  de  protegerem  os  infelizes  abandonados, 
aqucllôs  cujas  forças  privaram  de  acompanhar  os  seus 
concidadãos,  enxotam-n'os  de  seus  lares  para  com  a 
miséria  e  a  dòr,  seguirem  a  reforçar  o  exercito  fugi- 
tivo. » 

Tomada  de  S.  «lorge  da  lliua.— Por  este  tempo 
resolveu  Mauricio  de  Nassau  fazer  uma  diversão  militar 
á  costa  d'Africa.  isto  em  consequência  de  um  aviso  que 
recebeu  de  Nicolau  Va a  Ypern,  commandante da  coló- 
nia hollandeza  Nassau  na  costa  de  Mina.  Dizia-Ihe  este 
aviso  que  com  alguuías  forças  poderiam  os  hollandezes 
apoderar-se  facihnenle  do  castello  de  S.  Jorge  da 
Mina,  ponto  principal  do  commercio  de  africanos  es- 
cravos . 

Despachou  pois  Nassau  a  tentar  a  empreza  João 
Kcen  com  oitocentos  saldados  e  quatrocentos  marinhei- 
ros, os  quaes  fizeram-se  ao  largo  em  2õ  de  junho  de 
1637. 


(1)  Felisbello  Fhe»re.  —  Hiêiaria  de  Sdrgipo, 


488  HISTORIA   DO    BRASIL 

Chegado  á  Africa  marchou  Koen  contra  a  fortaleza, 
e,  ao  avistal-a  postou-se  em  um  serro  do  qual  mandou- 
Ihe  alguns  tiros  e  intimou  o  governador. 

Este,  embora  a  praça  fosse  fortíssima  e  tivesse  os 
fossos  abertos  em  rocha,  prr  cobardia  não  resistiu,  ca- 
pitulando logo  após  a  intimação. 

Teve  logar  este  facto  a  29  de  agosto  de  1637. 

Occiípaçao  do  Ceará  pelos  liollandexeis. — 
Depois  do  feliz  ataque  ao  forte  de  S.  Jorge  da  Mina  re- 
solveu Nassau  occupar  o  Ceará  e  pari  este  fim  confiou 
ao  major  Joris  Garttman  duzentos  homens. 

Garttman  partiu  do  Recife  em  outubro  de  1637  e  em 
dezembro  chegou  ao  seu  destino. 

Ahi  reuniu-se  com  o  morubixaba  Maniú  que  com- 
mandava  duzentos  Índios  e,  assim  reforçado,  atacou  a 
povoação  que  os  portuguezes  tinham  nas  proximidades 
do  local  hoje  occupado  pela  cidade  da  Fortaleza. 

Essa  povoação  era  defendida  por  um  forte  quadrado, 
tinha  duas  peças  de  ferro  e  achava-se  guarnecido  por 
vinte  ou  trinta  soldados  e  alguns  Índios,  os  quaes  após 
vigorosa  resistência  capitularam,  cahindo  por  essa 
forma  o  Ceará  em  poder  dosholiandezes. 

.4s«>edio  da  Baliia  poa*  Maurício  de  ]\íassati. 

(1638 — 1639).  —  Maurício  de  Nassau  sentia  agora  não  ter 
perseguido  Bagnuolo  até  a  Bahia,  pois  lhe  parecia  ter 
sido  esta  fácil  pr^za  naquella  occasião  em  que  lhe  era 
tão  propicia  a  sorte  das  armas  e  as  forças  do  inimigo 
achavam-se  completamente  desmoralisadas  ;  todavia 
pensou  que  ainda  era  tempo  de  roalísar  aquella  con- 
quista e  começou  a  preparar-se  para  a  expedição,  na 
qual  aproveitou  duzentos  soldados  que  lhe  tinham  che- 
gado da  HoUanda. 

A  8  de  abril  de  1838  fez-se  Nassau  de  vela  do  Recife 
e  segundo  o  calculo  do  escriptor  hollandez  Netscher  com- 
punham-se  as  suas  forças  de  3,400  soldados  e  marinhei- 
ros, além  de  1,000  indígenas. 

No  dia  14  do  mesmo  mez  achavam-se  os  seus  na- 
vios na  Bahia.  Antes  de  entrar,  porém,  talvez  por  artificio 
ou  levado  pelos  ventos  e  correntes,  velejou  mais  para  o 
norte  até  a  altura  do  Rio  Vermelho. 

No  dia  16  a  esquadra  forçou  a  barra  e  entrou  na 
Bahia,  mettendo-se  pelo  Recôncavo,  afim  de  evitar  os 
tiros  dos  fortes  e  ás  quatro  horas  da  tarde  foi  fundear 
além  de  Itapagipe,  defronte  das  praias  situadas  entre  aa 


TERCEIRA  EPOOHA  489 


ermidas  de  S.  Braz  e  da  Escada,  começando  logo  a  des- 
embarcar tropas  que  nessa  mesma  noite  foram  acampar 
nos  serros  visinhos,  onde  encontraram  abundância  de 
agua  e  lenha. 

Ao  encontro  do  inimigo  partiram  da  cidade  três  bri- 
gadas commandadas  pelo  governador  geral  D.  Luiz 
da  Silva,  Bagnuolo  e  Duarte  de  Albuquerque  e  já  se 
achi.vam  próximas  d'aquelle,  quando  Bagnuolo  fez  sen- 
tir que  era  imprudente  abandonar-se  a  cidade  para  ata- 
car-se  o  inimigo  com  tão  pequenas  forças,  quando  no 
emtanto  era  mais  avisado  recolherem-setodosá  capital  e 
ahi  aguardarem  o  ataque.  Muitos  vociferaram  contraeste 
alvitre,  porém  elle  foi  aceito  pelos  generaes  e  as  forças 
regressaram  á  capital.  Nesta,  o  povo  ao  saber  da  decisão 
tomada  amotinou-se  :  tocou  a  rebate  o  sino  da  ca- 
mará e  magotes  de  populares  percorreram  as  ruas  bra- 
mindo contra  os  chefes,  pelo  que  foi  preciso  que  Duarte 
de  Albuquerque  eo  bispo  sahissem  á  praça  e  acalmas- 
sem os  ânimos  com  a  promessa  de  que  o  inimigo  seria 
buscado  na  manhã  seguida. 

Effectivamente  ao  outro  dia  Bagnuolo  marchou  com 
todas  as  tropas  a  dar  combate  aos  hollandezes,  estes 
porém  já  haviam  mudado  de  posição  e  Bagnuolo  poude 
regressar  á  cidade  sem  trocar  tiro,  satisfazendo  assim  a 
vontade  popular  e  os  seus  temores. 

Occupou-se  primeiro  Nassau  em  investir  os  fortes  e 
começou  occupando  uma  posição  que  ficava  fora  do 
alcance  dos  tiros  de  canhão  da  cidade  eá  bala  de  mos- 
quete da  capella  de  Santo  x\ntonio. 

D'ahi  começou  a  bater  a  cavalleiro  o  forte  do  Ro- 
zario  e  o  reducto  da  Agua  dos  Meninos  que  protegia  a 
praia,  fortificações  essas  que  logo  se  renderam,  embora 
as  respectivas  guarnições  pelejassem  com  apreciável  de- 
nodo. Seguiu-se  a  rendição  do  forte  Monserrate,  sem  re- 
sistência, e  depois  a  do  de  S.  Bartholomeu,  também  sem 
resistência,  embora  guarnecido  com  setenta  homens  e 
defendido  por  dez  canhões. 

Na  cidade  começava  a  reinar  a  insubordinaçõo  nas 
tropas  :  os  olíiciaes  da  guarnição  não  queriam  obedecer 
a  Bagnuolo  e  as  tr.)pas  de  Pernambuco  insurgiam-se 
contra  Pedro  da  Silva  ;  e  como  a  indisciplina  fosse 
emaugmento,  pediu  o  governador  geral  que  Bagnuolo 
tomasse  sobre  si  o  commando  de  todas  as  tropas  durante 
o  a@sediO|  o  que  este  aceitou. 


490  HISTORIA   DO  BRASIL 

c<  Como  general,  diz  Southey,  andava  Bagnuolo 
militas  vezes  errado,  e  sempre  infeliz.  Conheci;i.  a  sua 
própria  impopularidade  e  esso  aclo  de  )ião  esperada  con- 
fiança parece  quasi  tel-o  regenerado  ;  o  zelo,  a  activi- 
dade e  intrepidez,  que  desenvolveu  agora,  tornarain-n'o 
tanto  objecto  de  admiração,  como  antes  o  havia  sido  de 
ódio  e  desprezo.  » 

Bagnuolo  poz-se  logo  a  trabalhar  com  muita  activi- 
dade nas  trincheiras  da  capella  de  Santo  António,  as 
quaes  ainda  não  estavam  terminadas  quando  Nassau 
mandou  contra  ellas  1,500  homens  que  foram  repeilidos 
galhardamente  ficando  no  campo  duzentos  c  idaveres. 

Dentro  os  portuguezes  foi  morto  o  denodado  capitão 
Estevão  de  Távora  que  com  tanto  esforço  havia  pelejado 
em  Pernambuco. 

Este  revez  sofTrido  pelos  hoUandezes  conteve-os  um 
pouco,  com  o  que  os  da  cidade  se  animaram  a  fazer 
algumas  sortidas  para  arrebanhar  prisioneiros  e  se  a 
bastecerem  de  gado  ;  nestes  serviços  se  distinguiram 
muito  Souto  e  Rebello. 

Terminadas  as  trincheiras  de  Santo  Antónia  pas- 
sou-se  Bagnuolo  a  levantar  outras  nas  Palmas,  posto  do 
qual  D.  Fradique  grande  damno  fizera  aos  hoUan- 
dezes em  1624,  pelo  que  Nassau  resolveu  abrir  as  suas 
baterias  no  dia  1  de  maio. 

«  Hoje  em  dia,  diz  Southey,  era  que  a  obra  da  des- 
truição se  faz  em  tão  tremenda  escala  semelhantes  bate- 
rias quasi  excitam  o  riso;  na  maior,  que  ficava  fronteira 
a  Santo  António  do  lado  do  mar,  não  so  montaram  mais 
de  seis  peças  de  vinte  e  quatro ;  e  nas  outras  do  lado  de 
terra  duas  de  igual  calibre.  Jamais  talvez  se  fizesse 
guerra  com  meios  tão  desproporcionados  ao  intento  : 
duas  nações  se  disputavam  um  império  não  menor  em 
extensão  do  que  a  Europa  civilisada,  e  nunca  de  ambos 
os  lados  chegaram  as  forças  a  quinze   mil  homons  ». 

As  guarnições  destas  baterias  foram  muilo  hostili- 
sadas  pelos  sitiados  nos  quaes  pouco  damiio  iazia  e  por 
isso  Mauricio  de  Nassau  resolvera  pôr  em  execução  um 
supremo  esforço  para  apoderar-se  da  cidade.  Esse  ataque 
realisou-se  a  18  de  maio. 

Contra  as  trincheiras  marcharam  três  mil  hoUan- 
dezes, os  quaes  ganharam  o  fosso  e  nelie  se  inlrinchei- 
ram  arremettendo  contra  as  portas,  onde  o  combate  se 
tornou  sanguinolento.    Sobre  os  sitiados   cabiam  balas 


TERCEIRA  EPOCHA  491 


nrdoiitos  que  produzi  im  grande  estrago  e  om  cima  os 
alncantes  lançavam  do  dentro  traves  e  pedras  ;  o  como 
os  portngnezo.s  tinhnm  qnasi  todas  as  snas  forças  con- 
centradas nesse  ponto,  por  iiiiprevidcncia  dos  iiollandezes 
qne  nâo  deram  rebate  nos  outros  postos,  não  puderam 
estos  vencer  a  resistência  e  ao  descer  a  noite  retiraram-se, 
desanimando  Nassau  de  levar  avante  a  empreza  de  as- 
senhnrrai-se  da  Bahia,  pois  as  >suasforças  achavnm-se 
muito  lednzidns. 

Os  hoU  indezes  deixnram  cerca  de  trezentos  e  tantos 
mortos  no  campo  e  cincoenta  prisioneiros. 

'  Dentre  os  mortos  contou-se  o  capitão  Houwyn  e  o 
engenheiro  Berchen.  O  major  Hinderson  foi  ferido  em 
uma  perna. 

Os  portuguezes  tiveram  duzentas  bnixas,  entremor- 
tos  e  feridos.  O  celebre  Sebastião  do  Souto  foi  um  dos 
mortos. 

Exasperados  com  esta  derrota  empregaram-se  os 
hollandezes  em  devastar  o  Recôncavo,  onde  commette- 
ram  toda  a  sorte  de  crueldades,  até  que  na  noite  de  2.")  de 
março  Nassau  mandou  levantar  ferro  á  sua  esquerda  e 
velejou  para  o  Recife,  muito  contrariado  peloinsuccesso 
da  tentativa  que  acabava  de  fazer. 

Entre  outros,  um  dos  principaes  erros  de  Nassau 
nesta  campanha  foi  tel-a  tentado  depois  de  haver  ex- 
pellido  de  Sergipe  o  exercito  de  Bagnuolo,  reforçando 
assim  a  guariíição  da  cidade  com  mil  e  duzentos  solda- 
dos veteranos,  que,  segundo  o  padre  Vieira,  eram  os 
ossos  da  guerra,  e  pelo  seu  valor  dignos  de  serem  ve- 
nerados como  rehVpras. 

O  Senado  da  Gamara  da  Bahia  recompensou  as 
tropas  pernambucanas,  pelos  grandes  serviços  prestados 
dinanteo  cerco,  com  um  donativo  de  mil  e  seiscentos 
cruzados. 

1).  r.uiz  da  Silva  foi  jeremiado  pela  metrópole  com 
otilnlo  do  conde  de  S.  Lourenço,  Bagnuolo  comum 
principado  no  reino  de  Nápoles  que  nes-e  tempo  se 
achava  sujiito  á  Hospanha,  D.  António  Felippe  Camarão 
obteve  na  Ordem  ile  ('hristo  uma  commenda  lucrativa  e 
bem  assim  Luiz  B.irbalho. 


CAPITULO    VI 

LUCTA  COM  OS  HOLLANDEZES 

Desde  a  elieg^ada  do  conde  da  Torre  até  a  restau- 
ração de  Portugal 

Chega«la  ilo  conile  da  Torre. —  A  noticia  dos 
vexames  que  soffrêra  a  Bahia,  quando  assediada  por 
Mauricio  de  Nassau  e  o  zelo  com  que  este  procurava  ali- 
cerçar as  conquistas  holiandezas  na  terra  brazileira,  de- 
terminaram afinal  a  metrópole  a  fazer  um  grande 
esforço  no  intuito  de  rehaver  o  que  por  desidia  ou  escas- 
sez de  meios  havia  deixado  que  o  inimigo  empolgasse. 

Assim,  em  11  de  agosto  de  1639  creou  a  corte  hes- 
panhola  uma  junta  para  ultimar  os  aprestos  de  uma  po- 
derosa esquadra,  e,  por  meio  d'ella,  propoz-se  o  governo 
a  fazer  um  contracto  com  o  capitalista  João  Fernandes 
de  Oliveira,  que  pouco  depois  se  comprometteu  a  prover 
ao  Brazil  com  a  somma  de  um  milhão,  contribuindo 
para  o  resgate  os  bens  ecclesiasticos  e  os  das  ordens  re- 
ligiosas. 

Foi  convidado  para  chefe  da  expedição  o  conde  de 
Linhares;  e  tendo  este  recusado,  nomeou-se  D.Fernando 
Mascarenhas,  conde  da  Torre,  grande  militar  e  conse- 
lheiro de  estado,  que  veiu  para  o  Brazil  afim  de  assumir 
conjuntamente  os  cargos  de  governador  geral  e  capitão 
general  de  mar  e  terra. 

Compoz-se  a  esquadra  em  que  veiu  o  conde  da  Torre 
de  trinta  e  três  embarcações,  vinte  e  cinco  equipadas  em 
Portugal  e  oito  em  Hespanha,  partindo  a  mesma  de  Lis- 
boa a  7  de  setembro  de  1639. 

Embora  Mauricio  de  Nassau  andasse  bem  infor- 
mado do  que  se  passava  em  Hespanha  relativamente  ao 
Brasil,  escapou-lhe  a  do  apresto  de  tal  esquadra  e  por 
isso  foi  com  verdadeiro  espanto  que  a  lobrigou  no  hori- 
sonte  a  23  de  janeiro  de  1636,  acnando-se  elle  completa- 
mente desprevenido. 

São  de  opinião  alguns  autores  que  si  o  conde  da 
Torre  atacasse  nesse  momento  o  Recife,  fácil  ter-lhe-ia 


494  HISTORIA  DO  BRASIL 

sido  dar  um  golpe  mortal  no  domínio  hollandez.  Porém 
n  metrópole  não  aprendera  a  mudar  de  láctica  com  o 
mallogro  da  expedição  de  D.  Luiz  de  Rojas  e  como  pro- 
cedera com  este,  ordenou  ao  conde  da  Torre  que  apor- 
tasse primeiro  á  Bahia,  com  o  que  o  activo  Nassau  co- 
brou animo  e  procedeu  com  todaaurgeijcia  aos  aprestos 
para  a  defesa. 

A  esquadra  do  conde  da  Torre  singrou  para  a  Bahia 
e  um  anno  demorou-se  nesta  capital  a  recrutar  soldados 
e  a  proceder-se  a  novos  preparativos,  limitando-se  o  ge- 
neral a  mandar  André  Vidal  de  Negreiros  e  Camarão  a 
assolar  as  capitanias  submettidas  aos  hollandezes. 

Instrucçôes  dadas  aos  g;ueri*ilheíi'os. —  O 
primeiro  chefe  do  guerrilhas  que  partiu  foi  André  Vidal 
de  Negreiros  e  em  principio  de  julho  de  1636  seguiu 
D.  António  Felippe  Camarão  que  devia  passar  o  S.Fran- 
cisco, reunir  ás  suas  forças  a  gente  de  uma  aldeia  de 
Índios  amigos  que  havia  ás  margens  do  mesmo  e  seguir 
a  entender-se  com  o  chefe  indio  Rodella  e  com  eíie  e 
sua  gente  marchar  pelos  aerlões  até  a  Ipajuca,  Cabo, 
S.  Lourenço  e  Várzea,  procedendo  sempre  de  modo  a 
nunca  expòr-se  a  ficar  cercado. 

Devia  iguahiiente  conservar-se  em  intelligencia 
com  Vidal  que  seguira  para  a  Parahyba  e  ter  espiões 
para  saber  do  seguimento  da  armada,  afim  de  servir  a 
esta,  quando  necessitasse  communicar  com  a  terra. 

Seguiu  depois  João  Lopes  Barbalho,  que  levava  por 
instrucções  incendiar  tudo  quanto  não  lhe  aproveitasse  e 
guerrear  só  á  maneira  india,  por  meio  de  assaltos  e 
emboscadas. 

Combate  uaval  de  liasuaracá  (12  de  Janeiro 
1640). —  Aos  18  de  novembro  de  1639  partiu  da  Bahia  a 
esquadra  hespanhola  que  se  propunha  restaurar  Per- 
nambuco e  logo  que  Nassau  teve  conhecimento  da  sua 
marcha,  fez  reunir  no  Recife  todos  os  vasos  da  armada 
hollandeza  que  se  achavam  dispersos  pela  costa,  e 
equipando  bem  quarenta  e  um,  despachou-os  ao  encon- 
tro da  esquadra  do  conde  da  Torre. 

Este,  depois  de  aportar  ás  Alagoas,  onde  pretendeu 
communicar  com  as  forças  de  terra,  velejou  para  o 
Recife. 

A  10  de  janeiro  de  1640  soube  Nassau  achar-se  a 
esquadra  hespanhola  para  os  lados  do  norte  e  imn.edia- 
tamente  ordenou  que  a  armada  hollandeza  que  já  havia 


TKRCiEIKA   EPOCHA  i95 


regressado  ao  Reciío,  fosso  ao  seu  encontro ;  esta  assim 
o  fez  o  avistando  a  frota  inimiga  no  dia  12,  defronte  da 
ponla  das  Pedras,  na  ilha  de  itamaricâ,  ahi  feriu-se  o 
combate. 

O  conde  da  Torre  preparava-se  a  operar  um  desem- 
barque no  Páu  Amarello ;  não  lhe  permittiu  porem  o 
almirante  hollandez,  que,  seguindo  a  mesma  táctica 
observada  no  combate  entre  Pater  e  Oquendo,  partiu 
logo  em  direcção  á  almiranta  hespanhola,  e  com  ella  c 
mais  quatro  galeões  luctou  valentemente  durante  três 
horas. 

Os  hoUandezes  só  tiveram  quatro  mortos,  porem 
um  delles  foi  o  almirante,  e  por  isso  suspendeu-se  a 
peleja,  ficando  indecisa  a  acção. 

Combate  naval  entre  Goyana  e  CJabo 
Briftuco  (13  UE  Janeiro  de  1640).—  Morto  o  almirante, 
assumiu  o  commando  da  esquadra  hollandeza  o  vice- 
almirantc  .Jacob  Huygens,  o  qual  enfrentou  a  esquadra 
inimiga  no  dia  seguinte  ás  10  horas  da  manhã,  entre  o 
cabo  Branco  e  Goyana.  Esta  acção  foi  mais  porfiada  e 
nella  foi  a  pique  a  nau  hollandeza  Gede  Son,  cujo  com- 
mandante  afogou-se,  bem  como  quarenta  e  quatro  sol- 
dados que  a  guarneciam. 

Combate  naval  «la  Parabyba  (14  de  .Janeuio 
DE  1640). —  Sempre  levadas  pelas  correntes  e  pelos  ven- 
tos, as  duas  esquadras  chocaram-se  de  novo  no  dia  se- 
guinte, achando-se  ellas  em  aguas  da  Parahyba,  a  duas 
milhas  do  forte  do  Cabedello. 

A  almiranta  hollandeza  tendo-se  mettido  entre  as 
almirantas  do  Castella  e  Portugal,  estas  ihe  fizeram  um 
fogo  vivíssimo,  o  qual  no  emtanto  produziu  mais  estra- 
gos ao  velame  e  á  mastreação  do  que  á  guarnição. 

A  nau  Swaen,  do  vice-almiranle  hoUandez  Alderik- 
sen,  vendo-se  desmastreada,  lançou  ferro,  sendo  imme- 
diatamente  accommettida  por  vários  navios  da  esquadra 
do  conde  da  Torre  que  conseguira:ii  dar-lhe  abordagem. 
Logo,  porem,  Alderiksen  mandou  picar  as  amarras,  po- 
dendo assim  capturar  a  nau  Chagas,  onde  encontrou 
vinte  e  um  canhões. 

Combate  naval  «le  Cunbaii  (17  de  Janeiro 
DE  lb40). —  Dois  dias  depois,  quando  as  esquadras  se 
achavam  na  altura  de  Cunhaú,  viu-se  o  conde  da  Torre 
inopinadamente  atacado  por  Jacob  Huygens,  e  forçado 
a  relirar-sc,  apczar  da  resistência  que  alguns  galeões 
oppuzeram  ás  investidas  do  inimigo. 


496  HISTORIA  DO  BRASIL 

Consequências  dos  quatro  combates  na- 
■vaes.—  As  consequências  dos  quatro  combales  navaes 
foram  assignalar  ao  hollandez  mais  uma  victoria  me- 
morável e  desprestigiar-se  o  conde  da  Torre,  que,  apezar 
das  suas  oitenta  e  sete  velas  foi  vergonhosamente 
batido. 

Os  hollandezes  apenas  perderam  a  nau  Gelle  Son  e 
não  incluindo  os  soldados  que  a  guarneciam,  tiveram 
nas  outras  embarcações  apenas  22  mortos ;  a  perda  dos 
hespanhoes  e  portuguezes  foi  noemtanto  enornie  e  mais 
uma  vez  mallogrou-se  o  intento  de  restaurar-se  Per- 
nambuco. 

Toda  a  esquadra  do  conde  da  Torre  desmantelou-se: 
dois  galeões  e  um  navio  mercante  naufragaram  nos  bai- 
xios do  cabo  de  S.  Roque,  outros  navios  foram  por  livre 
arbitrio  de  seus  commandantes  ou  tripolação  parar  ás 
Antilhas,  outros  se  recolheram  ao  Maranhão  e  em  outros 
a  guarnição  succumbiu. 

Finalmente,  foi  um  desmantelo  geral  e  o  conde  da 
Torre,  apoz  tão  vergonhosa  derrota,  fugiu  para  a  Bahia, 
apenas  com  um  bergantim  artilhado  com  dez  peças. 

Algumas  tropas  da  esquadra  desbaratada,  vendo-se 
acossadas  pelas  necessidades,  arribaram  ao  porto  dos 
Touros  e  desembarcaram.  Eram  umas  mil  e  tresentas 
praças  ás  ordens  de  Luiz  Barbalho,  auxiliado  por  Fran- 
cisco Barreto  e  outros  officiaes. 

Desse  ponto  dirigiram-se  por  terra  à  Bahia,  distan- 
te umas  quatrocentas  léguas,  tendo  de  combater  em  di- 
versos pontos  forças  inimigas. 

«Com  valor  e  constância  se  arrostou  a  essa  retirada 
comparável  a  dos  dez  mil  gregos,  ao  regressar  da  Pér- 
sia; sendo  porem  para  sentir  que  o  Xenoíonte  pernam- 
bucano não  nos  deixasse,  como  a  atheniense,  a  narração 
dos  serviços  que  então  lhe  deveu  a  pátria  (Ij. 

O  mesmo  acrescenta  o  seguinte: 

«Temos  por  mais  que  provável  que  em  sua  retirada 
fosse  Barbalho  agregando  a  si  os  differentes  destaca- 
mentos que,  ás  ordens  de  Henrique  Dias,  André  Vidal, 
D.  António  Camarão  e  João  Lopes  Barbalho,  se  acha- 
vam disseminados  por  toda  a  extensão  do  território  ini- 
migo.» 


(1)  Varnhaoem.  — Obra  citada. 


TERCEIRA  EPOCHA 


497 


Castigo  do  conde  da  Torre.  —  Logo  que  a  Me- 
trópole foi  informada  do  desmantelo  da  esquadra  confiada 
ao  conde  da  Torre,  desautorou  completamente  pelo  de- 
creto de  22  de  julho  de  1640  o  mesmo  Conde  da  Torre,  pn- 
vou-o  do  titulo,  das  commendas  lucrativas  e  cargos 
que  desfructava,  e  manduu-o  preso  para  a  Torre  de  S.  Ju- 
lião, onde  permaneceu  pouco  tempo,  por  ocorrer  d'ahi 
ha  pouco  tempo  a  restauração  de  Portugal. 

Para  substituir  o  coado  da  Torre  no  governo  do  Brasil 
foi  nomeado  d.  Jorge  Mascarenhas,  marquez  de  Montal- 
vão,  que  a  5   de  junho  do  mesmo  anno  tomara  posse. 

Ucvai^taeSo  do  ReconcaTo  pelas  força.»*  de 
Xassaii.— Alem  de  desbaratar  completamente  a  esqua- 
dra do  cnnde  da  Torre  e  perseguir  com  vantagem  as 
forças  dos  guerrilheiros  que  talavam  o  interior  do  paiz, 
determinou  Nassau  iniciar  uma  sanguinosa  guerra  de 
represálias.  . 

Com  esse  intento  expedio  primeiro  o  almirante  Cor- 
nei io  Jol  com  oito  navios,  nos  quaes  se  embarcararu 
setecentos  soldados  e  duzentos  Índios,  ordenando-lhe 
que  se  dirigisse  ao  rio  de  S.  Francisco  para  ver  si 
podia  alcançar  a  divisão  de  Luiz  Barbalho  e  depois 
despachou  Lichtardt  com  vinte  navios  e  dois  mil  e 
quinhentos  soldados,  ás  ordens  do  coronel  Carlos 
Tourlon,  mandando-lhe  que  se  encaminhasse  para  a 
Bahia  e  ahi  puzesse  tudo  a  ferro  e  fogo,  em  represália 
ás  instrucções  que  o  conde  da  Torre  havia  dado  a  Cama- 
rão e  outros  guerrilheiros. 

Lichtardt  chegou  á  Bahia  em  fins  de  Abril  e  se- 
gundo as  ordens  que  levava  devastou  a  ilha  de  Itapa- 
rica  e  o  Recôncavo,  onde  só  engenhos  de  canna  quei- 
maram vinte  e  sete. 

Nessa  occasião  talvez  atacasse  e  tomasse  a  cidade 
de  S.  Salvador  si  Luiz  Barbalho  já  alli  não  se  achasse 
com  os  seus  mil  e  duzentos  homens. 

Tanto  Lichtardt  como  Cornelio  Jol,que  se  achava  no 
S-  Francisco,  receberam  ordem  para  regressar  a  Per- 
nambuco afim  de  se  encarregarem  de  uma  outra  com- 
missão    alheia    á     historia    da    nossa  pátria. 

Expulsão  dos  frades  de  Pernanibaco.— 
Por  esse  mesmo  tempo  Maurício  de  Nassau  deliberou 
lançar  fora  de  Pernambuco  e  demais  capitanias  sub- 
mettidas    ao    dominio   hollandez    todos  os  frades  que 

32 


498  HISTORIA  DO  BRASIL 

nellas  se  achavam,  aliegando  que  esses  religiosos 
haviam  auxihado  os  da  esquadra  do  conde  da  Torre, 
sinão  com  mantimentos,  ao  menos  com  informações. 

Assim  reunio  na  Ilha  de  Itamaracá  sessenta  frades 
benedictinos,  carmelitas  e  franciscanos  e  embarcou-os 
todos  para  as  Antilhas,  com  grande  magua  da  popu- 
lação portugueza  e  brasileira,  que  protestou  viva- 
mente, accusando  Nassau  de  attentar  contra  a  liber- 
dade religiosa,  garantida  pelos  tratados. 

Respondeu-lhes  Nassau  dizendo  que,  quando  ces- 
sassem as  invasões  dos  guerrilheiros,  seriam  resti- 
tuídos osh^ades- 

Os  ecclesiasticos  então  outorgaram  licença  para 
mandar  á  Bahia  um  corneta  com  essa  resolução  a  qual, 
sob  o  pretexto  religioso,  disfarçava  uma  verdadeira 
proposta  de  trégua. 

Conveuçôes  entre  rVasitiiau  e  lIontalTão. — 

Montalvão,  que  era  um  espirito  altamente  conciliador^ 
acceitou  a  proposta  e  de  parte  a  parte  enviaram-se  reféns 
como  garantia  do  facto.  Estes  foram  o  tenente-coronel 
Henderson  e  o  major  Day,  por  parte  de  Nassau  e  o 
mestre  de  campo  Martim  Ferreira  com  o  sargento-mór 
Pedro  Arenas,  por  parte  do  marquez  de  Montalvão. 

No  Recife  os  três  antigos  conselheiros  Íntimos 
tinham  sido  substituídos  por  Hendrick  Hamel,  Dirck 
Kodd  van  der  Burgh  e  Adrian  van  BuUestrade  e 
principalmente  o  segundo  d'estes  personagens inclinava- 
se  muito  para  os  actos  conciliatórios. 

Cansadas  estavam  ambas  as  parcialidades  das 
guerras  de  depredação. 

« Não  houve  porém  d'ambos  os  lados  igual  sin- 
ceridade, diz  Southey.  Frustrada  a  ultima  grande  expe- 
dição, nenhuma  razão  tinha  o  vice-rei  para  esperar  que 
outro  esforço  se  fizesse  em  prol  da  restauração  do 
Brazil,  sabendo  aliás  muito  bem  que  os  hollandezes 
avaliavam  a  importância  destas  conquistas  pelo  ultimo 
saldo  das  suas  contas  do  anno.  Valia  pois  mais  do  que 
batel-os,  estragar-  lhes  o  commercio.  Convencido  d'isto 
recorreu  a  deshonroso  artificio,  e  emquanto  com  os 
hollandezes  negociava,  para  prevenir  toda  a  guerra  de 
depredações,  despachava  secretamente  Paulo  da  Cunha 
e  Henrique  Dias  a  talar-lhes  os  domínios.  Depois  diri- 
gio-se  officialmente  a  Nassau  e  ao  Conselho  Supremo, 
dizendo   que  alguns  dos  seus  soldados   desertados  com 


TERCEIRA  ErocnA  499 


medo  do  castigo,  procurariam  provavelmonle  com  o 
favor  de  sua  excellencia  passar-se  para  a  Europa;  era 
Iam  bem  muito  de  recear-se  que  elles  commettessem 
alguns  excessos  na  sua  marcha,  pelo  que  pedia  que, 
succedendo  assim,  fossem  severamente  punidos.  Aven- 
turou o  vice-rei  esta  mentira,  liado  em  que  era  a  sua 
gente  demais  pratica  do  paiz  e  experta  no  seu  ofllcio, 
para  deixar-se  agan-ar  ou  atraiçoar  a  el!e.  Nem  nisto 
se  enganou,  e  acommissão  foi  plenamente  executada  ; 
dividindo-se  a  tropa  em  partidas  pequenas,  com  seus 
districtos  de  devastações  traçados  e  legares  de  reunião 
aprazados  e  mais  uma  vez  foi  todo  Pernambuco  posto  a 
ferro  e  fogo». 

Restauração  de  Portugal .  — (1640)  Estavam 
as  cousas  neste  pé  no  Brazil,  quando  em  consequência 
de  uma  revolução  que  rebentou  em  Lisboa  a  1"  de  De- 
zembro de  1640  foi  acclamado  rei  de  Portugal,  com  o 
titulo  de  D.  João  IV,  o  duque  de  Bragança,  successor 
legitimo  de  D.  Manuel;  assim  passou  novamente 
o  Brazil  ao  dominio  portuguez,  apoz  ter  permanecido 
durante  cincoenta  e  nove  annos  sob  o  jugo  de  Casíella. 
direitos  dn  acclainacao  de  l>.  JoSo  IV  uo 
Brasil.  — Trouxe  a  noticia  ao  Brazil  uma  caravella  e 
o  vice-rei  logo  que  teve  conhecimento  da  mesma 
mandou  pôr  incomnmnicavel  a  referida  cara^'ella,  ecomo 
faziam  parte  da  guainição  da  cidade  de  S.  Salvador 
umas  seiscentas  praças  de  tropas  hespanholas  e  napoli- 
tanas, tratou  antes  de  tudo  de  mandar  que  somente 
estivessem  em  armas  as  demais. 

Depois  ordenou  a  seu  filho  D.  Fernando  que  com  o 
seu  terço  occupasse  o  terreiro  da  companhia  e  a  João 
Mendes  de  Vasconcellos,  que  estava  de  guarda,  mandou 
que  com  outras  tropas  fosse  postar-se  na  praça  do  palácio. 
Tendo  tomado  estas  providencias  fez  Montalvão 
entrar  um  por  um  no  seu  gabinete  o  bispo,  o  capitão 
general  da  artilharia  D.  Francisco  de  Moura,  os  mestres 
de  campo,  o  ouvidor-geral,  o  provedor  morda  íazenda 
e  os  prelados  das  religiões  e  a  cada  um  em  particular 
communicou  a  importante  nova.  Em  seguida  reuniu-os 
todos,  todos  votaram  que  se  acclamasse  immedia- 
tamente  o  novo  rei,  o  que  eíTecti vãmente  se  fez,  as- 
sistindo-se  depois  a  um  Te  deum  em  acção  de  graças. 

Este  facto  parecia  modificar  de  modo  singular  as 
condições    da    lucta    batavo-brasileira,    pois    Portugal 


500  HISTOEIA   DO   BEASIL 

tinha   conveniência  em   conservar  como  amiga  a  Hol- 
landa,  a  fim  de  bater  o  inimigo  commum. 

As->ini  comprehendendo  ^íontalvão  entabolou  uma 
corre-spondenciamuito  amistosa  com  Mauricio  de  Nassan, 
«eguindo-se  permutas  de  prisioneiros. 


CAPITULO  Vil 

ADMINISTRAÇÃO  DE  MAURÍCIO  DE  NASSAU 

Passireinos  em  revista  neste  cipitulo  os  melhora— 
mmtos,  reformas  e  des  nvolvimento  artístico,  litterario 
e  scientifico,  realizado  em  Pernambuco  durante  o  go- 
verno de  Mauricio  de  Nassau.  Esse  grande  homem,  alem. 
de  illusire  guerreiro  era  um  abalisado  estadista,  amigo 
sincero  di  civilisação  e  interessado  seriamente  no  pro- 
gresso da  região  cujos  destinos  guiava. 

O  Recife. —  Logo  qud  Nassau  chegou  a  Pernam- 
buco tiveram  os  membros  do  Conselho  Supremo  ideia 
de  mudar  a  capital  bat  ivo-brazileira  para  a  uha  do  Ita- 
maracá;  aliegavam  que  alli  estariam  mais  a  coberto  dos 
ataques  do  inimigo,  Nassau,  no  emtuiio,  oppoz-se  a 
semelhante  projecto,  e  predo  ninando  o  heu  voio.  oc- 
cupou-se  logo  em  introduzir  alguns  melhoramentos 
materiaes  no  Recife. 

Assim  reforçou  a  cidade  p  ^r  novas  fortificações  e- 
unio,  por  meio  de  duas  pontes,  a  ilha  de  Santo  António 
a )  Recife  e  ao  coniiuente,  mandando  editi  car  na  primeira 
excellentes  habitações. 

Nassau  reservou  a  parte  septentrional  da  ilha  de 
Santo  António  p  ira  sua  residência,  a  que  deu  o  nome  de- 
Vrijburg  (1).  «  Ficava,  diz  Varnhagem,  como  uma  espé- 
cie de  cidadella,  separada  do  resto  da  ilha  por  fossos- 
aquaiicos  e  defendida  na  frente  prjlo  convento  dos  Capu- 
chos, já  bem  fortificado. Todo  odit  >  espaço  era  occupido 
não  só  pt^lo  pilacio  da  residência,  como  por  duas  altas- 
torres,  como  de  igreja,  com  frente  para  o  Recife,  i^to  é, 
para  o  mar,  donde  se  avistam  na  distancia  de  seis  a  seta 
milhas,  e  serviam  de  balisa  aos  navegantes,  como  tam- 
bém por  um  espaçoso  quintalão.  com  ruas  de  coqueiros 
ou  palmeiras,  trazid^is,  em  numero  de  setecentas,  dos 
arredores ;  com  viveiros  para  peixes,  bananal,  pomares 
do  espinho  (sic;  e  de  outras  fructas,  etc.» 


ll)  Sem  cuidad:)3. 


502  HISTORIA   DO    BRASIL 

Alem  de  Vryburg,  Xassau  fez  construir  o  palácio 
da  Bòa  Vista,  coai  f-ente  p-Ta  o  continente  e  situado  á 
direita  do  encontro  da  ponte  que  para  o  mesmo  conti- 
nente communicava.  Ignaluente  fomentou  por  toda  a 
cidade  PxOtaveis  melhoramentos. 

«  Por  todo  o  Brazil,  diz  o  mesmo  escriptor  a  que 
acima  nos  referimos,  não  houvera  anteriormente  obras 
tão  consideráveis  e  tão  habilmente  executadas ;  nem 
podiam  encontrar-se  para  as  obras  melhores  engenhei- 
ros do  que  na  Hoilanda,  que  á  sciencia  hydraulica  deve 
a  existência  de  algumas  de  suas  províncias.  As  obras 
publicas  emprehendidas  levavam  em  si  mesmas  o  cunho 
da  bòa  administração;  o  essas  paginas  do  livro  da  civi- 
iisaçào  de  um  paiz  que  primeiro  iè  o  forasteiro,  eram  em 
Pernambuco  todas  em  abono  do  chefe  holiandez.» 

.ll-.i.tiricia. —  Como  fosse  em  augmento  a  popula- 
ção do  Recife,  Nassau  propoz  fundar  na  ilha  de  Santo 
António  uma  nova  cidade.  Logo  se  esgotaram  com  ca- 
naes  os  pântanos,  demarcaram-se  ruas  e  immediata- 
mente  levantaram-se  casas. 

Olinda,  que  se  achava  abandonada,  foi  de  todo  des- 
truída, sendo  os  materiaes  empregados  na  construcção 
da  nova  cidade,  que,  em  honra  ao  seu  fundador,  tomou  o 
nome  de  Matiricia. 

Arpeglmeutaçao  dos  mercadores. — Logo  que 
Nassau  chegou  ao  Brazil,  arregimentou  em  companhias 
todas  as  possoas  que  nesta  cidade  e  na  de  Olinda  acha-  ' 
vam-se  estabelecidas  com  fins  commerciaes,  devendo 
cada  uma  dessas  companhias  ter  seus  ofíiciaes  a  ban- 
deira. 

Assim   assegurava-se  elle  dos  serviços  daquelles 
cuja  lealdade  era  suspeita. 

Orgaoisiíçao  iiiiiiiicipal. —  As  camarás  muni- 
cipaes  portuguezas  de  juizes  e  vereadores  foram  substi- 
tuídas em  todas  as  villas  por  camarás  de  escabinos,  aná- 
logas ás  que  existiam  na  Hoilanda.  Era  variável  o  nu- 
mero de  escabinos,  segundo  a  importância  da  povoação. 
Parece  no  emtanto  que  nunca  excedia  de  nove  e  cada 
uma  das  duas  nacionalidades,  portugueza  e  hoUandeza, 
em  separado,  tinha  igual  numero,  porém  o  esculteto  ou 
presidente  de  taes  camiras  só  podia  ser  holiandez,  o  que 
dava  sempre  maioria  de  votos  aos  dominadores.  Alem 
de  autoridade  executiva,  ou  delegado  da  administração, 


TEZCEIRA  EPOCHA  503 


O  esculteto  era  timbein   o  promotor  publico  do  logar  e 
exaclor  da  Fazenda. 

Brazôes)  d'ai*iuiasí. —  Seguindo  os  usos  estabele- 
cidos na  terra  natal,  Mauricio  de  Nassau  deu  brazões 
d'armas  a  todas  as  provincias  sujeitas  ao  seu  dominio. 

O  brazão  de  Pernambuco  era  representado  por  uma 
donzella,  com  uma  canna  de  assucar  na  mão  direita, 
vendo-se  em  um  espelho  que  sustinha  á  mão  esquerda ; 
o  de  Itamaracà  figurava-se  por  três  cachos  de  uvas,  por 
ser  muito  cultivada  a  parreira  nesta  ilha ;  o  da  Parahyba 
por  cinco  pães  de  assucar ;  o  do  Rio  Grande  do  Norte 
por  uma  ema. 

«  Todos  estes  emblemas,  diz  Southey,  foram  esquar- 
telados  no  sello  grande  do  senado,  sobre  o  qual  se  via  a 
fírjara  da  justiça,  sem  que  por  isso  se  notasse  a  essência 
nas  medidas.» 

Liberdade  relíg;iosa.  —  Nassau  confirmou  as 
concessões  feitas  pelos  seus  antecessores  sobre  a  liber- 
dade de  cultos,  permittindo  aos  portuguezes  e  brazilei- 
ros  que  se  subínettessem  ao  dominio  hollandez  a  con- 
servação de  suas  igrejas  á  custa  do  Estado;  não  podiam 
os  mesmos,  no  emtanto,  receber  visitador  da  Bahia,  nem 
admittir  novos  frades,  emquanto  delles  houvesse  numero 
sufficiente  para  celebração  das  cerimonias   da  religião. 

Liberdade  de  coniiiiercio. —  Pouco  depois  de 
írustrar-se  a  tentativa  de  occupaçáo  da  Bahia  por  Mau- 
ricio de  Nassau,  a  Companhia  das  Índias  Occidentaes,  a 
conselho  deste  príncipe,  declarou  livre  o  commercio, 
reservando  a  Companhia  o  trafico  de  escravos,  artigos 
de  guerra  e  pau  brazil ;  no  emtanto  prohibia  expres- 
samente a  todos  os  altos  íunccionarios  o  commercio,  o 
que  era  altamente  moralisador. 

A  respeito  do  parecer  de  Nassau  sobre  a  consulta  a 
elle  feita  pela  Companhia  das  índias,  Southey,  seguindo 
Barloeus,  nos  informa  do  seguinte  : 

«  Quiz-se  sobre  isto  ouvir  Nassau.  Respondeu  este 
que  o  que  haviam  sido,  já  não  eram  os  lucros  da  Com- 
panhia. A  principio  faziam  tudo  os  directores,  agora 
concediam-se  contractos;  a  principio  regorgitavam  de 
assucar  os  armazéns  dos  portuguezes,  e  escasseando  os 
géneros  europeus  pedidos  em  escambo,  vendiam-sc  com 
enorme  proveito,  anciosos  os  da  terra  por  se  verem 
livres  de  productos  constantemente  em  risco  de  serem 
presa  do  inimigo.  Mais  seguro  agora  o  paiz,  crescera  a 


504  HISTORIA  DO  BRASIL 


propriedade  hoUandeza.  Melhor  era,  declarando  livro  o 
comniercio.  eximir-se  â  carga  do  monopólio.  Não  podia 
a  Companhia  comprar  géneros  bastantes  com  que  abas- 
tecer o  mercado,  a  tanto  lhe  não  alcançavam  os  fundos  ; 
e  que  fazia  das  mercadorias  que  houvesse  deixad  i  en- 
trar no  paiz  ?  Não  podia  compral-as  sem  prejuízo... 
d'ella,  comprando  pelo  preço  que  aliás  obteriam . .  dos 
donos,  querendo  tomal-as  por  menos.  E  neste  ultimo^ 
caso  contrabandeariam  os  particulares  a  sua  fazenda. 

«  Depois,  ÍHlando  como  estadista,  ponderou  a  ne- 
cessidade de  colonisar  o  Brasil;  assim,  disse,  se  robus- 
teria  o  paiz,  podendo-se  diminuir  as  guarnições  sem 
que  o  Estado  deixasse  de  sentir-se  seguro.  Agora,  s6 
pelo  medo  se  continham  os  portuguezes,  tirasse-lhesv 
porém,  a  esperança  de  verem  restabelecido  seu  próprio 
governo,  e  tornar-se-iam  bons  súbditos.  Mas  não  atra- 
vessariam colonos  os  mares  para  morrerem  de  fome  em 
paiz  estranho,  e  emquanto  mantivesse  a  Companhia  o 
seu  monopólio,  cortaria  todas  essas  expectativas  de  for- 
tuna que  só  podiam  altrahir  aventureiros.  Já  os  brasi- 
leiros se  queixavam  das  restricções  que  lhes  impunham; 
com  representações  diai-ias  o  acabrunhavam,  dize  ido. 
que  com  os  hoU  indezes  haviam  tratado  viverem  debaixo 
do  governo  delles  como  debaixo  do  portuguez,  podendo» 
vender  o  producto  de  seus  moinhos  a  seu  próprio  gosto, 
e  não  à  vontade  de  outros;  si  lhes  tiravam  essa  liber- 
dade, prefeririam  antes  passar-se  a  outras  partes,  e 
correr  os  azares  da  fortuna  do  que  soffrer  semelhante 
escravidão.  Soltai  vossos  enxames,  disse  elle,  sobr& 
estes  novos  paizes  e  dai  terras  aos  soldados  licenciados:, 
sejam  colónias  vossos  postos  avançados  e  p;uar.)ições,. 
qiie  íoi  assim  que  Roma  subjugou  o  inundo  ». 

Com  o  cónego  Fernandes  Pinheiro  dizemos  : 
Honra  ao  illustre  varão  quo  no  decimo  sétimo  século 
sustentou  taes  princípios. 

As  leis.  —  Afim  de  que  houvesse  mais  homoge- 
neidade na  distribuição  da  justiça,  Maurício  de  Nassan 
cassou  a  concessão  feita  pelos  seus  antecessores  ao  povo 
submettido  de  que  se  r  'gessem  pelas  leis  portuguezas  e- 
ordenou  que  d'ahi  por  diante  tudo  se  decidisse  de  ac- 
còrdo  com  as  leis  hol  andezas. 

Igualmente  ordenou  a  adopção  de  pesos  e  medidas- 
holland^zas  em  todas  as  províncias  submettidas  ao  do- 
mínio batavo. 


TERCEIKA   EPOCHA  505 


4<s  artes.  — Fl  cresceram  ns  arto«  sob  a  admini- 
straíjão  sábia  de  Maunicio  de  Nas>an. 

A  architectura,  que  tão  brilhante  iiente  surgia  nos 
palácios  de  Vriburo:  e  Boa  Vista,  e  em  muitas  outras  edi- 
fic  ições  publicas  ou  particulares  tinlui  o  seu  principal 
cultor  no  architecto  Post. 

A  pintura  era  representada  por  Francisco  Post, 
irmão  do  precedente,  e  ambos  filhos  do  pintor  de  vi- 
draças, de  Harleni  João  Post.  Francisco  Post  perpetuou 
na  tela  o  Combate  de  Comendatuba,  as  quatro  acções 
navaes  contra  a  esquadra  do  Conde  da  Torre  e  muitas 
paizagens  e  marinhas  brasileiras. 

Litteratura.  —  Cultivou  a  poesia  durante  o  go- 
verno de  Nassau  o  seu  capellão  Francisco  Plante,  que 
escreveu  um  posma  em  Intim,  dedicado  ao  Conde.  Mau- 
tiados  é  o  nome  desse  poema. 

Meioiicia.«9  pliywicas  e  nnturaes. — Mais  ainda 
do  que  as  artes  e  do  que  a  litteratura  foram  cultivadas 
pelos  hollandezes  no  Brasil  as  sciencias  naturaes,  le- 
vados a  isso  pelas  prodif^iosiis  r-quezas  da  nossa  flora  e 
fauna  e  pelos  variados  e  deslumbrantes  aspectos  que  a 
natureza  apresenta  nesta  regi^To. 

Nassau  trouxera  para  o  Brasil  como  seu  medico  o 
snbio  Willem  Piso  e  este  conseguio  qne  o  acompanhas- 
se dois  jovens  estudiosos  allemãesH.  Cralitz,  mathe- 
matico  e  George  Marcgrav. 

Cralitz  falleceu  pouco  depois  de  chegar  a  Pernam- 
buco sem  ter  ainda  encetado  os  trabalhos  que  tinha  em 
mente. 

A  Willem  Piso  deve-se  uma  Historia  da  índia  Oc- 
cidental, publicída  em  1648  e  ric  i  de  informações  sobre 
o  clima,  p  antas  eanimaes  do  Brasil ;  Maregrav  escreveu 
o  Tratado  d'^  topo  iraphia  a  rw^teorologia  do  Brasil,  com 
o  ecli/pse  solar  k  c  >in  os  co  nrwjntarios  sobre  a  Índole  e 
ling  i,a  dos  brasileiros. 

As  plantas  colhidas  por  \\'illem  Piso  acham-se  na 
collecção  líotboll,  na  Dinamarca. 

f|}.<itailo  cla«  proviacias  sii  btuot  lidas  ao  do- 
Miiuio  liollailiez  — Pelo  relatório  apresentado  por 
um  senador  á  Companhia  Occid^nt  d  das  Índias,  sabe-se 
que  essa  importinte  empreza  possuia  no  Brasil  seis  pro- 
víncias ddsde  Sergipe  ao  Ceará. 


506  HISTOEIA    DO   BRAZIL 


Sergipe  tinha  sido  completamente  devastado  por 
Van  Schkopps  e  apsnas  possuia  um  forte  guarnecido 
por  quarenta  homens. 

Pernambuco  era  a  mais  importante  das  províncias  : 
contava  as  cinco  vil  ias  de  Iguarassú,  OKnda,  Recife, 
Ipojuca  e  Serinhaem  e  muitas  aldeias  importantes. 
Antes  da  invasão,  Pernambuco  possuia  C3nto  e  vinte 
engenhos,  destes  porém  trinta  e  quatro  foram  abando- 
nados. 

Em  Itamaracá  trabalhavam  quatorze  engenhos,  de 
vinte  e  três  que  florescia' u  antes  da  conquista. 

Na  Pcirahyba  funccionavam  dezoito  engenhos,  tendo 
sido  apenas  destruídos  dois. 

O  Rio  Grande  do  Norte,  de  dois  que  possuía,  ficara 
reduzido  a  um. 

Os  dizimos  dos  productos  desses  engenhos  eram 
arrendados  pelas  seguintes  quantias  :  os  de  Pernam- 
buco por  148,5*0  l^orins,  os  de  Itamaracá  e  Goyana  por 
19,000,  os  da  Parahyba  por  54,000. 

O  total  das  arrematações  dos  engenhos  elevava-se  a 
280,900  florins. 

Faltn  fie  colonos. — O  paiz  submettido  aos  hol- 
landezes  sentia-se  extraordinariamente  da  fnlta  de  bra- 
ços. Os  Índios,  apezar  das  allianças  com  elles  contra- 
hidas  pelos  hoUandezes,  si  eram  excellentes  auxiliares 
na  guerra,  de  forma  alguma  se  subordinavam  aos  duros 
labores  da  paz.  Os  africanos  eram  em  pequeno  numero, 
embora  os  hollandezes  tivessem  se  apossado  do  forte  de 
S.   Jorge  da  Mina. 

«  Muito  havia  soffrido  o  paiz  com  a  invasão  hollan- 
deza,  diz  Southey  ;  regiões  inteiras  jaziam  assoladas, 
tendo  morrido  mais  gente  do  que  o  vagaroso  curso  da 
natureza  podia  supprir  em  muitos  e  compridos  annos. 
A  cidade  do  Recife  prosperava  na  verdade  :  era  a  sede 
do  governo,  principal  posto  militar  e  naval,  e  o  grande 
mercado  commercial  em  que  se  apinhavam  as  casas 
onde  quer  que  apparecia  espaço.  Hollandezes  havia  que 
esperançosos  previam  já  o  dia  em  que  a  sua  capital  se 
tornaria  outra  Tyro,  e  si  estes  homens  tivessem  podido 
inspirar  aos  conterrâneos  os  seus  próprios  espíritos  ge- 
nerosos e  emprehendeiores,  realisada  veríamos  a  pro- 
phecia.  Clamavam  elies  por  colonos  ;  mandai-nos,  di- 
ziam, os  vossos  menesteriaes,  que  mal  acham  na  pátria 
com  que  supprir  as  vitaes  necessidades,  e  aqui  depressa 


TERCEIRA    EPOCHA  507 


fa 


se  tornarão  ricos.  Três,  quatro  e  seis  florins  por  dia  era 
o  jornal  de  pedreiros  e  carpinteiros;  e  os  officias  me- 
chanicos,  de  que  careciam  os  engenhos  de  assucar,  ainda 
eram  mais  bem  pagos.  Três  classes  de  homens,  se 
dizia,  faziam  falta  no  Brasil  :  capitalistas,  que  especu- 
lassem em  engenhos  de  assucar  ;  artezãos  e  operários 
que  depois  de  junto  algum  pecúlio  se  entregassem  á 
agricultura,  íixando-se  no  solo  adoptivo  como  no  natal  o 
teriam  feito.  Com  tal  gente  depressa  se  tornaria  a  vòr  o 
aiz  tão  florescente  como  o  haviam  encontrado  os  hol- 
andezes  ». 

Gaspar  vaii  Baerle.  — Concluindo  esta  simples 
descripção  do  estado  da  conquista  hollandeza  durante  o 
governo  de  Maurício  de  Nassau  cumpre-nos  mencionar 
o  mais  notável  dos  historiadores  hoUandezes  que  se 
occuparam  do  Brasil  dessa  epocha. 

E'  elle  Gaspar  van  Baerle  que  além  de  historiador 
era  medico,  poeta  e  theologo.  Barleus,  como  é  mais  co- 
nhecido, escreveu  em  latim  a  Historia  dos  oito  annos  do 
governo  de  Aa^sau,  fonte  copiosa  de  informações  sobre 
historia,  a  geographia,  a  fauna  e  a  flora  do  Brasil  hol- 
landez. 

Barleus  falleceu  em  Amsterdam  com  64  annos  de 
idade,  aos  14  de  Janeiro  de  1648. 


^eiiiiHlo  Eciiodõ 


CAPITULO  I 

LUCTA  COM  os  HOLLANDEZES 

Desde  n  acclamaçào  de  D.  João  IV  até  á  retirada 
de  SEanricio  da  i\assau  para  a  Europa 

(1640-1644) 

Deposlefto   cio  llarqiiez  de  llontalvtlo.  —  A 

família  Mascarenhas  gosava  da  estima  dos  soberanos 
hespanhoes  e  tendo  dois  membros  dessa  mesma  familia. 
fugido  para  Madrid,  ao  ser  acclamadoD.  João  IV,  este 
■rei  despachou  para  o  Brazil  o  jesuita  Francisco  de  Vi- 
lhena com  instrucções  secretas  para  observar  a  conducta 
do  nifirquez  de  Montalvão  e  depol-o  si  o  vice-rei  mos- 
trasse sympathisar  com  a  ca-jsa  de  Castella. 

Como  vimos  no  capitulo  anterior  Montalvão  pro- 
cedeu com  a  maior  circumspecçãoao  receber  a  noticia 
da  restauração  de  Portugal  e  nenhum  motivo  dera  para 
soíTrer  qualquer  violência.  Xoemtanto  o  jesuíta  Vilhena, 
«  por  ventura  em  virtude  de  algum  despeito  ou  resen- 
íimento  por  ambição  de  dominio  mallograda»  diz  Var- 
nhagen,  exhibio  aos  interessados  as  ordens  que  trazia  e 
ímmedia'amente  foi  deposto  o  marquez  de  Montalvão, 
quando  já  no  emtanto  havia  feito  partir  para  Lisboa  seu 
tilho  D.  Fernando  e  os  dois  illustres  padres  jesuítas 
Simão  de  Vasconcellos  e  António  Vieira  atim  de  ievarera 
ao  novo  rei  as  suas  saudações  e  cumprimentos. 

Ao  ser-lhe  notificada  a  deposição  D.  Jorge  de  Mas- 
carenhas retirou-se  para  o  Collegio  dos  Jesuítas  ahi 
posto  em  custodia  sendo  depois  mettido  a  bordo  de  uma 
caravella. 

Antes  de  levantar  ferro  a  embarcação,  entrou   no 


J 


^ 


510  HISTORIA  DO   BEAZIL 

porto  um  navio  com  bandeira  hespanhola  e  sendo  este 
capturcxdo,  nelle  se  encontraram  para  o  marquez  algu- 
mas cartas  do  rei  de  Hespanha  e  dos  parentes  seus  que 
se  tinham  refugiado  em  Madrid,  cartas  essas  que  foram 
remet tidas  na  mesma  caravella  para  Portugal,  como 
prova  da  sua  traição. 

A  •Imita.  Pelas  mesmas  instrucções  trazidas 
ao  Brazil  pelo  jesuita  Vilhena,  ao  ser  deposto  Montalvão 
o  governo  devia  passarás  mãos  de  uma  Junta  composta 
do  bispo,  de  Luiz  Barbalho  e  do  provedor-mór  Lourenço 
de  Brito  Còrrea  e  etiectivamente  foi  este  triumvirato 
empossado  na  suprema  administração  dos  negócios  do 
Estado. 

^'eg^ociaçOes  entro  Portug^ale  a  Hollaiida. 

—  A  passagem  do  Brazil  ao  governo  portuguez  modi- 
ficou muito  as  condições  da  lucta  com  oshollandezes,  e, 
exactamente  quando  ^Montalvão  era  deposto  do  cargo 
de  vice-rei.  recebiam  na  cidade  de  Haya  como  embai- 
xador de  Portugal  Tristão  de  Mendonça  Furtado,  facto 
esse  que  por  si  só,  segundo  o  estabelecido  pelo  direito 
internacional,  implicava  uma  suspensão  de  hostilidades. 

Além  disso  os  Estados  Geraes  ordenaram  a  13  de 
Fevereiro  de  1641  que  os  portuguezes  fossem  conside- 
rados como  amigos,  ao  que  immediatamente  D.  João 
IV  correspondeu  pela  carta  régia  de  20  de  Março  do 
mesmo  anno,  dispondo  outro  tanto  relativamente  aos 
hollandezes.  Por  Furtado  foi  também  apresentada  aos 
Estados  Geraes  proposta  de  paz  e  alliança  mediante 
as  seguintes  condições  :  1°  Uma  indemnisação  pela 
parte  do  Brazil  que  os  hollandezes  occupavam;  2"  com- 
mercio  franco  com  Portugal,  como  dantes  ;  3"  fornecer 
a  Hollanda  uma  esquadra  e  ofificiaes  para  o  exercito 
portuguez. 

A  junta  que  governava  o  Brazil,  afim  de  fixar 
melhor  os  direitos  de  ambas  as  partes  durante  a  sus- 
pensão das  hostilidades, mandou  logo  ao  Recife  o  tenente- 
coronel  Pedro  Corrêa,  acompanhado  do  licenciado 
Simão  Alvares  de  la  Penha  e  immediatamente  fez-se 
a  restituição  de  uns  trinta  prisioneiros,  ficando  no 
entanto  ainda  detidos  na  Bahia  os  majores  Van  der 
Brande  e  Garstman ;  igualmente  ordenou-se  que  se 
recolhessem  á  Bahia  todos  os  guerrilheiros  ou  cam- 
panhistas  que  ainda  se  achavam  nas  províncias  sub- 
mettidas    aos  hollandezes. 


TERCEIRA  EPOCHA  511 


Occupaçao  lie  S^ergipe  pelos  kollaiidezeis. — 

Maurício  de  Nassau,  em  consequência  do  traiçoeiro  pro- 
cedimento do  marquez  de  Montalvão,  tiniia  justos  mo- 
tivos para  não  acreditar  na  lealdade  dos  portuguezes  e, 
por  isso,  não  obstante  a  suspensão  de  hostilidades, 
mandou  occupar  Sergipe  e  assim  praticando  agiu  como 
zeloso  defensor  dos  interesses  cuja  guarda  lhe  estava 
confiada,  attendendo-se  ainda  mais  que  o  tratado  de  paz 
não  estava  ainda  ractificado. 

Varnhagen,  que  na  sua  Historia  das  luctas  com  os 
Hollande^es  no  Èrazil  não  diz  uma  palavra  a  respeito 
da  deslealdade  com  que  se  houvera  Montalvão  para  com 
Maurício  de  Nassau,  verbera  com  a  maior  indignação 
o  acto  do  príncipe  hollandez. 

c<  Quem  diria,  em  presença  deste  proceder  de 
Nassau,  diz  Varnhagen,  das  expressões  de  sua  carta 
a  Montalvão,  da  nobreza  de  seu  sangue  e  de  seus 
precedentes,  que  elle  obrava  com  duplicidade,  e  que 
necessitava  da  suspenção  das  hostilidades  para,  com  fé 
púnica,  abusar  delia?» 

Achando  Varnhagen  muito  apaixonado,  preferimos 
na  apreciação  deste  facto  acompanhar  em  suas  judi- 
ciosas observações  oDr.  Felisbello  Freire  : 

Diz  elle  : 

« Não  era  em  obediência  ás  suggestões  vindas  de 
HoUanda  que,  si  na  Europa  dava  uma  mão  amiga  a 
Portugal,  na  America,  mandava  que  se  realisassem 
aggressões,  até  a  ratificação  do  tratado,  pois,  conside- 
rava a  emancipação  portugueza  puramente  transitória, 
não  era  em  obediência  a  suggestões,  dizemos,  que 
Nassau,  íechando  os  olhos  ás  probabilidades  de  uma 
paz,  rompia  um  pacto,  que  todos  os  espíritos  animavam 
e  promoviam,  e  tornava-se  aggressivo  contra  a  especta- 
tiva  geral . 

«Perante  os  interesses  que  visava  em  favor  dos 
Estados  Geraes,  com  a  recuperação  de  Sergipe  e  o  as- 
sedio de  Angola,  que  na  mesma  occasião  autorisou, 
pouco  se  importou  que  a  posteridade  apontasse  um 
momento  de  sua  vida,  em  que  a  sua  vida,  dignidade 
e  honra  comprometteram-se,  pois  officialmente  podia 
justiíícar-se  com  o  artigo  8°  do  mesmo  tratado,  em  vir- 
tude, do  qual  a  cessação  das  hostilidades  só  deveria 
começar,  quando  fosse  apresentada  a  ratificação  da 
mesmo  tratado,  que  ainda  não  se  tinha  dado. 


J                                               Õ12                                        HISTORIA   DO   BEAZIL 
i 


4 


«  Convicto  de  que  a  separação  de  Sergipe  do  seu 
dominio  poderia  trazerdesvantagens,  comprehendendo  a 
segurança  da  posição  que  ahi  linha  o  inimigo,  muito 
próximo  de  sua  fronteira  em  S.  Francisco,  onde  os  in- 
teresses não  podiam  ser  convenientemente  zelados, 
pela  proximidade  em  que  ficavam  dois  povos,  de  ante- 
cedentes históricos  e  habites  tão  diversos  ;  convencido 
de  que  essa  proximidade  entre  elles  não  era suíficiente 
para  manter  um  zelo  reciproco  de  interesses,  esqueceu 
todos  os  preparativos  de  iregoas,  com  que  largamente 
tinha  comparticipado,  para  tornar-se  aggressivo,  pe- 
rante os  portugueses,  retomando  Sergipe  em  1641. 

«A  suspensão  das  hostilidades  não  poderia  ser 
fielmente  mantida  collocando-se  a  linha  divisória  em  S. 
Francisco.  As  condições  mudariam,  si  ella  fusse  col- 
locada  no  Rio  Real,  pois,  a  gra;ide  extensão  inhabitada 
entre  este  rio  e  a  capital  da  colónia,  sem  um  centro 
populoso,  privaria  pequenas  guerrilhas  e  as  questõões 
de  jurisdicção,  muito  prováveis  entre  dois  povos,  tão 
justamente  unidos,  das  quaes  poderia  resultar  um  rom- 
pimento do  pizes.  Havia  de  dar-se  um.a  absorpção  por 
parte  daquelle  ([ue  maior  força  mental  possuísse». 

Deu-se  pois  a  occupação  de  Sergipe.  Em  1641  o 
almiranie  hoUandez  Andréas  entra  pela  barra  do  Vasa- 
Barris  arvorando  na  sua  esquadra  a  bandeira  de  tréguas 
e  facilmente  apodera-se  da  cidade  de  S.  Christovão. 
Xa  barra  oshollandezes  levantam  uma  boa  fortificação  e 
encetam  pesquizas  de  minas  por  Itabaiana. 

Ao  chegar  a  noticia  deste  facto  m  Bahia,  a  Junta 
mandou  Camarão  assediar  S.  Christovão,  este,  porém, 
nada  conseguio  em  consequência  das  forças  diminu- 
tas que  levara. 

Occiipaçâ.o  de  Aiig;ola.  —  Igualmente  mandou 
Xassau  occupar  Angola.  Para  essa  expedição  partio  do 
Recife  em  30  de  Maio  de  1641  o  almirante  Cornelio  Jol, 
o  Perna  de  Pari  o  qual  a  25  de  Agosto  do  mesmo  anno 
asscnhoreava-se  da  cidade  de  Loanda,  apenas  com  a 
perda  de  três  mortos  e  oito  feridos. 

Em  seguida  Jol  assenhoreou-se  da  ilha  de  S. 
Thomé,  porém  ahi  perdeu  a  vida. 

No  Recife  e  em  Haya  foram  formulados  enérgicos 
protestos  por  parte  dos  embaixadores  portuguezes  po- 
rem resultado  algum  obtiveram  e  o  próprio  marquez  de 
Montalvão  que  já  se  achava  nas  boas  graças  do  rei  por- 


TERCEIRA   EPOCHA  513 


tuguez,  endereçou  improficuamente  uma  longa  e  delica- 
da missiva  a  Maurício  de  Xaussau  que  lhe  relribuio  com 
outra, também  muito  amigável,  porem  cheia  de  evasivas. 

Montalvão  chegou  até  a  procurar  subornar  Nassau 
oíTerecendo-lhe  em  nome  do  rei  o  marquezado  de  Villa 
Rei  e  outras  grandes  vantagens. 

O  tratado  de  paz— O  tratado  de  tréguas  entre  Por- 
tugal e  a  Hollanda  constava  de  trinta  e  cinco  artigos  e 
foiassignado  na  cidade  dellaya  aos  12  de  Junho  de  1641. 

Por  elle  se  estipulava  a  cessação  de  host  lidades  por 
dez  annos,  as  quaes  «nas  terras  e  tnares  pertencentes  ao 
distrícto  da  júris  Licção  concedida  pelos  Senhores  das  Or- 
dens Gerais  á  Companhia  da  Índia  Occidentalw.(isto  é 
no  Brazil  e  na  Africa )  só  deveriam  começar  a  contar  em 
cada  logar  desde  que  ahi  fosse  apresentada  a  ractificação 
do  tratado. 

Foi  pelo  mesmo  tratado  adraittido  reciprocamente  os 
cônsules  nos  portos  de  uma  e  outra  nação;  estipulada  a 
liberdade  religiosa;  reconhecido  ao  dominio  hollandez  o 
dominio  adquirido  pela  conquista  e  aos  súbditos  hollan- 
dezes  o  direito  ás  propriedades  e  engenhos  de  que  esta- 
vam de  posse;  estipulou-se  mais  que  nenhum  súbdito 
portuguez  poderia  fretar  nem  comprar  navio  para  a  na- 
vegação do  Brazil  que  não  fosse  hollandez.  Alguns  arti- 
gos tratavam  da  índia  Oriental  e  outros  diziam  respeito 
a  uma  frota  de  vinte  navios  com  que  a  Hollanda  devia 
desde  logo  soccorrer  Portugal. 

Essa  frota  foi  eíTectivamente  mandada  ao  Tejo,  com- 
mandando-a  o  almirante  Adrian  Gissels. 

Coiic|iii«ta    do    .llaraiiltâo     pc3o.%i     Hollait- 

4lezos. —  Esperando  que  se  ractificasse  esse  celebre 
tratado, Maurício  de  Nassau  resolveu  fazer  uma  tentativa 
para  a  conquista  do  Maranhão. 

A  esquadra  destinada  a  esse  fim  compunha-so  de 
treze  navios  de  guerra,  três  bergantins  e  outros  três  bar- 
cos menores  e  foi  entregue  ao  commando  de  Lichtardt. 

A  tropa  consistia  em  mil  soldados  sob  o  commando 
do  Coronel  Koen. 

Tanto  a  esquadra  como  a  tropa  estavam  subordina- 
das a  Pedro  Bas,  conselheiro  politico. 

A  esquadra  hollandeza  fundeou  primeiro  no  porto 
do  Préa  e  aos  25  de  novembro  apresentou-se  diante  do 
porto  do  Maranhão. 

Bento  Mac'el  Parente,  governador  do  Maranhão,  á 


514  HISTORIA   DO   BRASIL 

vista  de  tão  inesperado  ataque,  ordenou  ao  provedor- 
mór  Ignacio  do  Rego  Barreto  e  bem  assim  ao  je- 
suita  Lopo  do  Couto  que  se  entendessem  com  o  comman- 
dante  da  esquadra,  ao  qual  deviam  communicar,  que 
no  Maranhão  já  se  liavia  recebido  noticia  das  tréguas  ce- 
lebradas em  Haya.  O  hollandez,  no  emtanto,  oloservou 
aos  emissários  que  essas  tréguas  só  poderiam  ser  alle- 
gados  apoz  a  conlirmação  do  tratado,  conforme  precei- 
tuava o  artigo  8"  do  mesmo  elogo  foi  se  apoderando  do 
forte  e  da  cidade . 

Bento  Maciel  foi  preso  e  remettido  para  o  Recife, 
fallecendo  em  viagem  ;  a  guarnição  de  cento  e  trinta 
homens,  que  havia  na  praça,  íoi  embarcada  para  diver- 
sos destinos. 

Os  hollandezes  apoderaram-se  não  só  da  artilharia, 
dos  fortes  que  consistia  em  cincoenta  e  cinco  canhões  e 
muitas  munições,  bem  como  de  tudo  que  pertencia  ao 
fisco  e  ás  igrejas  ;  aos  proprietários  dos  cinco  engenhos 
e  três  engenhocas,  o  hollandez  multou  no  valor  de  umas 
seis  mil  arrobas,  valor  que  foi  immediatamenta  pago  e 
em  cada  um  dos  engenhos  coilocou  guardas. 

As  três  aldeias  da  ilha  e  bem  assim  os  moradores 
de  Tapuitapera  (Alcântara)  prestaram  homenagem  ao 
vencedor. 

Plano  de  re§ít»urâç3LO  de  Pernambuco  e 
llai*an!iSo. — Compreheiídendo  os  portuguezes  e  bra- 
sileiros que  o  simulacro  de  paz  firmado  em  Haya  ne- 
nhuma A^antagem  trazia,  em  virtude  da  obstinação  de 
Maurício  de  Nassau  em  desrespeital-o,  cogitaram  numa 
conspiração,  urdida  nas  sombras  dessas  tréguas  simu- 
ladas, afim  d'  responderam  com  justas  reprezalias  aos 
ataques  em  Sergipe  d  no  Ma-anhão. 

Comquanto  os  panegyristas  do  portuguez  João  Fer- 
nandes Vieira  deem-lhe  a  iniciativa  desse  p!  ano  está  hoje 
provado  com  o  resultado  de  innumeras  pesquizas  que 
essa  gloria  cabe  ao  parahybano  André  Vidal  Negreiros, 
sendo  Vieira  convencido  a  entrar  no  negocio  pelo  mesmo 
Vidal. 

Varnhagen,  que  não  pôde  ser  suspeito  em  tratando- 
se  de  um  portuguez,  assim  se  exprima  relativamente  a 
este  facto  : 

«  A  preferencia  com  que  os  nossos  procuravamcap- 
tar  a  João  Fernandes  Vieira  não  tinha  outra  origem  mais 
que  o  ser  elle,  de  todos  os  moradores  de  Pernambuco, 


TERCEIRA  EPOCHA  51."» 


O  que  gosava  de  maior  favor  entr3  os  dominadores,  e  um 
dos  que  ahi,  em  seu  nome  e  do  seu  coinmittente  Jacob 
Stachower,  mais  fundos  manejava.  Por  outro  lado  pare- 
cia Vieira  do  caracter  bastante  basofio  e  mui  accessivel 
aos  estímulos  da  ambição  ;  de  modo  que  não  foi  difficil 
angarial-o  por  meio  de  promessas  de  vir  a  receber  pos- 
tos e  commendas  lucrativas,  e  de  ficar,  juntamente  com 
os  filhos  que  viesse  a  ter,  engrandecido  e  rico.  Não  sa- 
bemos si  já  então  si  estipulou  que  seria  desde  logo  feito 
mestre  de  campo,  e  que  concluída  a  restauração,  seria 
elevado,  como  foi,  a  governador  e capitão  general,  porém 
o  quo  temos  por  certo  é  que  o  mesmo  Vieira  exigio,  para 
tomar  parte  no  movimento,  ser  d'elle  o  primeiro  caudi- 
lho, com  preferencia  a  todos  os  outros  moradores  e  ficar 
autorisado  a  declarar  quites  os  que  deviam  aos  hollan - 
dezes,  em  cujo  numero,  segundo  estes,  entrava  com  uma 
avuUrida  quantia  elle  próprio  Vieira.  ^ 

Mais  adiante  diz  o  mesmo  Varnhagen  : 
«  Vieira  não  chegou  nunca  a  ser  o  conductor  da 
insurreição,  como  depois  nunca  foi  o  director  da  guerra. 
O  seu  papel  restringio-se  antes  ao  que  em  linguagem 
vulgar  se  costuma  designar  por  testa  de  ferro.  » 

Vidal  veio  ao  Recife,  sob  o  pretexto  de  entender-se 
com  Nassau  a  respeito  da  occup;!Ção  do  Maranhão  o 
seu  verdadeiro  intuito  era  no  em  tanto  fomentar  a  in- 
surreição. A  diversos  mostrou  secretamente  documentos 
afim  de  provar  que  os  serviços  nella  feitos  seriam  recom- 
pensados pelo  rei,  pois  até  já  trazia  seis  hábitos  de 
Cfiristo  para  distribuírem  Pernambuco.  Assim  conse- 
guio  aliciar  muitos  conjurados. 

Ro.«!itau ração  do  llaranhão. — A  conjuração 
de  que  era  chefe  André  Vidal  de  Negreiros  começou  a 
operar  fazendo  explodir  uma  revolução  no  Maranhão  re- 
centemente conquistado  pelo  inimigo  e  onde  a  oppressão 
se  tornava  cada  vez  mais  pesada. 

Pelos  conjurados  do  Maranhão  foi  escolhido  para 
chefe  do  movimento  António  Muniz  Barreiros,  possui- 
dor de  dois  ou  três  engenhos  e  que  já  havia  sido  capitão- 
mór  do  Maranhão. 

O  movimento  foi  combinado  para  30  de  Setembro  • 
na  noite  desse  dia  surprehenderam  e  aprisionaram  ou 
degolaram  as  guarnições  de  cinco  engenhos  e  pela  ma- 
drugada dirigiram-se  todos  ao  forte  do  Calvário,  no  Ita- 
picuro,  o  qual   conseguiram  tomar  de  assalto,  aprisio- 


:  516  HISTORIA   DO   BRASIL 

naram  o  seu  commandante  e  mataram  algumas  senti- 
ne  lias. 

Do  forte  do  Calvário  passaram  os  subi  vados  á  ilha, 
■degolaram  a  primeira  guarda  hollandeza  que  encontra- 
ram e  foram  assentar  acampamento  a  trcs  léguas  da  ci- 
dade, com  avançadas  junto  ao  rio  Cot^m  ;  e  ahi  aguar- 
d  iram  o  inimigo,  contiados  na  excellencii    da  posição. 

Logo  soube  Muniz  que  os  h^llandezes  em  numero 
de  cento  e  vinte  marchavam  a  atacal-o  e  á  vista  disso 
desceu  para  o  rio  Cotim  onde  lhes  armou  uma  cilada  na 
qual  o  inimigo  cahio,  podendo  apenas  escapar  com  vida 
•seis  soldados. 

Animado  por  osta  victoria  e  pelas  armas  e  munições 
que  adquirio,  resolveu-se  Muniz  a  sitiar  a  cidade. 

Os  hollandezes,  que  se  achavam  muito  desfalcados 
de  tropas,  limitaram-se  a  fortificar  a  parte  alta  da  mesma 
cidade  e  entrincheiraram-se  nas  immediações  do  actual 
palácio  do  governo,  deixando  de  fora  vnrias  casas  e  igre- 
jas, incluí-ive  o  Convento  do  Carmo,  quii  Muniz  im- 
mediatameníe  occupou  e  bem  assim  um  edifício  situado 
no  caato  da  rua  que  vai  para  Santo  António. 

Tiveram  logar  diversos  tiroteios  sem  resultado  algum 
jàté  o  dia  3  de  Janeiro  em  que  chegaram  do  Pará  os  ca- 
pitães Pedro  da  Costa  Favelli,  Bento  Rodrigues  de  Oli- 
veira e  Ayres  de  Souza  Chichorro,  em  cincoenta  o  quatro 
canoas,  condu, cindo  cento  e  treze  soldados,  seiscentos 
índios,  alguma  artilharia  e  poucas  munições. 

Mnniz  não  soube  no  emtanto  aproveitar-se  em  tempo 
deste  valioso  auxilio  e  assim  e:a  logar  de  proceder  ao 
ataque  immediatamente  deixou  passaruma  semana  ^em 
nada  intentar  ;  no  dia  15  de  Janeiro  recebíamos  inimigos 
trezentos  soldados  e  duzentos  Índios  commandados  pelo 
tenente-coronel  Henderson. 

»  Este  sahiologo  no  dia  seguinte  á  frente  de  quatro- 
-centos  soldados,  cento  e  cincoenta  Índios  cjutra  o  quar- 
tel do  Carmo,  que  tomou  sem  dilfículdade  passando  á 
espada  todos  os  que  a  defendiam.  Em  seguida  atacou  um 
outro  posto,  sendo  no  emtanto  obrigado  a  retirar-se  com 
per.ia  de  sessenta  a  setenta  feridos.  Os  maranhenses 
perderam  poucos  homens,  entre  estes  porém  conta-se  o 
intrépido  António  Muniz  Barreiros,  chefe  dos  suble- 
vados. 

Muniz  íoi  substituído  por  António  Teixeira  de  Mello 
c  çual,  na  noite  do  dia  25  de  Janeiro  resolveu  retirar-se 


TECCEIRA   EPOCHA  517 


com  toda  n  sun  gent«^para  as  cabeceiras  do  Colini,  acam- 
pando «  em  uma  posição  bastante  forte,  além  de  um  des- 
filadeiro, tão  estreJto/que  não  podia  past^arpor  elle  mais 
de  um  homem  de  cada  vez.  » 

Afim  de  perseguil-o  partio  o  capitão  hoilandez 
Jacob  Evers  com  cento  ecincoenta,  estes,  porém,  ao  chega- 
rem ao  desfiladeiro  foram  todos  accommettidos  emortos» 

Durante  três  mezes  conservou-se  António  Teixeira 
na  ilha  causando  continuamente  estragos  nos  hollan- 
dezes,  mas,  vendo-se  afinal  falto  de  munições  e  viveres 
passou-se  a  Tapuitapera  (Alcântara),  do  outro  lado  da 
bahia,  de  onde  seguiram  para  ^  Pará  os  chefes  do  soc- 
corro  que  de  lá  tinham  vindo,  afim  de  sollicilar  mu- 
nições de  guerra.  Estas  não  tirdaram  a  chegar  e  per- 
mittindo  de  novo  a  Teixeira  de  Mello  approximar-se  da 
ilha  e  continuar  a  inquietar  o  inimigo  por  mar  e  por 
terra. 

Passou-se  depois  á  ilha,  estabelecendo-se  no  cha- 
mado Arrayal,  em  frente  do  Itapicurú,  de  onde  podia^ 
por  esse  rio  ser  facilmente  soccorrido  de  mantimentos. 

Desesperados  os  hoUandezes  por  tão  fatal  visi- 
nhança  e  cansados  de  tantos  soffrimentos,  encravaram 
toda  a  artilharia  do  forte  e  em  dois  navios  velhos  par- 
tiram a  28  de  Fevereiro  de  1644  seus  compatriotas  para 
o   Ceará,   de  onde  seguiram  por  terra  até  o  Rio  Grande. 

Destruição  de  liollandezes  pelos  indics  no 
Ceará— Parte  dos  hollandezes  que  abandonaram  a  ilha 
do  Maranhão  ficou  no  Ceará  ás  ordens  de  Gideon  Mor- 
ritz. 

Quando  seus  compatriotas  conquistaram  o  Ceará 
trouxeram  um  grande  numeio  de  tapuyas,  dos  quaes- 
muitos  morreram  e  os  oitenta  sobreviventes,  foram 
ingi-atamuile  afiastados  i^aia  as  margens  desertas  do 
Camocim. 

Indignados  por  f  ssa  crueldade  que  eicontraram, di- 
versas hordas,  se  lançaram  sobre  as  forças  de  Gedeon 
Morritz  e  tjucidaram  lodos  os  soldados.  Depois  pa.^sa- 
ram-se  às  visinhas  salinas  de  Upanema  e  arrasaram, 
as  obras. 

4iitouio  Teixeira  de  Mello.— Varnhagen,  na 
sua  Historia  das  lutas  com  os  liollande::es  no  Brasil,  re- 
ferindf-se  ao  esforçado  chefe  dos  insurgentes  mara- 
nhenses conta  o  seguinle  que  não  deixa  de  ser  curioso  : 

«  Cumpre-nos  "dizer  que,   logo  depois  que  o  Mara- 


518  niexoEiA  do  brasil 

nhão  foi  libertado  pelo  esforço  dos  seus  bravos  habitan- 
tes e  do  dos  seus  risinhos  do  Pará.  e  apenas  disso  teve 
noticia  o  miserável  donatário  de  Tapuitapera,  que  ne- 
nhuma ajuda  havia  dado  aos  que  assim  combatiam  por 
arrancar  das  mãos  dos  hollandezes  a  sua  capitania,  a 
estes  subordinada,  em  vez  de  enviar  presentes  e  recom- 
pensas ao  seu  hbertador  António  Teixeira  de  Mello,  pas- 
sou a  accusal-o  ante  os  tribunaes,  fazendo-o  responsá- 
vel por  quatro  mil  cnisados  de  damnos  e  prejuízos,  em 
consequência  de  haver  obrigado  os  seus  colonos  aos 
trabalhos  da  guerra  I  E  o  mais  é  que  houve  em  Portu- 
gal um  tribunal  que  ípor  sentença  de  12  de  Dezembro 
de  1646)  o  condemnou  a  realisar  semelhante  pagamento. 
E  o  miserável  donatirio  era  nada  menos  que  um  des- 
embargador, cujo  nome  deve  a  historia  deixar  gravado, 
para  memoria  e  esciruiento.  Chamava-se  António  Coelho 
ae  Carvalho.  A  doação  havia-lhe  sido  feita  por  um  irmão, 
e,  a  influxo  seu,  confirmada  pela  Coroa. 

c(  Talvez  como  ténue  indemnisação  de  tanta  injus- 
tiça, o  rei  depois  de  restaurado  Pernambuco,  vendo 
António  Teixeira  de  Mello  reduzido  à  pobreza  lhe  fez 
mercê  fpor  carta  do  1°  de  Dezembro  de  1654)  da  capi- 
tania do  Pará. 

luundaeocs  e  peste  em  Pernaiiibueo . — Por 

esse  tempo  grandes  calamidades  affligiram  Pernambuco 
e  as  demais  capitanias  submettidas  ao  dominio  hoUan- 
dez. 

Cahiram  copiosas  chuvas  que  fizeram  transbordar 
os  rios  e  mataram  homens  e  gado,  especialmente  nas 
visinhaçasdo  C;ipiberibe,  onde  os  cannaviaes  foram  com- 
pletamente destruídos,  sendo  os  que  escaparam  das 
inundações  atacados  por  um  verme  aquático  que  os 
estragava  de  todo. 

Éni  seguida  grassaram  as  bexigas  por  forma  tal  que 
só  na  capitania  da  Parahyba  morreram  1,100  negros  e, 
diz  Southt-y  :  «  Acarretando  um  mal  sempre  outro,  não 
puderam  os  portuguezes  nestas  províncias  conquistadas 
pagar  os  impostos,  peio  que  requereram  aos  Estados 
remissão  delles,  allegando  que  em  taes  occasiões  costu- 
mava o  seu  próprio  governo  exigir  apenas  dos  arrema- 
tantes dos  dizimes  um  decimo  destes.  » 

Representação  de  líassaa  á  Companhia, 
•das  índias.— Além  destas  calamidades  outi-as  diffi- 
culdades  vexaram  Maurício  de  Nassau  que  já  desalen- 


TERCEIRA    EPOCHA  519 


lava  de  conservor  o  grande  império  que  os  seus 
compatriotas  haviam  conquistado  e  eile  próprio  liavia 
engrandecido  e  tornado  respeitável. 

Ordenou-lhe  a  companhia  que  despedisse  muitos 
dos  oPticiaes  e  reduzisse  o  soldo  aos  solda<los,  represen- 
tando Nassau  energicamente  contra  acto  táo  impolitico. 

«  Muitos  officiaes,  dizia  Nassau  aos  directores,  in- 
dignados só  com  o  boato  de  semelhante  medida,  tinham 
já  deixado  o  serviço,  embarcando-se  para  Portugal  a 
militar  debaixo  do  novo  rei.  Não  eram  tempos  estes  para 
reduzir  o  trem  de  guerra  pois  os  portuguezes  aguarda- 
davam  impacientes  um  ensejo  para  recuperar  o  que 
haviam  perdido  e  vingarem-se  ;  provocara-os  a  tomada 
de  Loanda,  S.  Thomé  e  Maranhão  e  nas  publicas  re- 
presentações se  lhes  trahia  a  irritação. 

c<Era  necessário  precaver-secontraelles  eao  mesmo 
tempo  conciliar  por  todos  os  modos  os  que  se  haviam 
submettido  ao  governo  hollandez,  importando-lhes  prin- 
•cipalmente  conceder-lhes  essa  plena  liberdade  religiosa 
que  se  lhes  promettera,  porquanto  nada  os  exasperara 
tanto  como  a  expulsão  dos  jesuitas  e  outros  religiosos, 
sendo  apenas  a  vergonha  e  o  vasculho  da  igreja  os  que 
ficaram.  Tinha  elle  recebido  ordem  de  restringir  a  tole- 
rância dentro  dos  mais  estreitos  limites  e  o  clero  refor- 
mado a  perseguii-o  para  que  executasse  tão  imprudente 
-ordenação  :  mas  lembrava  elle  á  Companhia  que  não  era 
a  liberdade  de  religião  dentro  de  suas  próprias  casas, 
•que  aos  portuguezes  se  haviam  estipulado  e  sim  o  goso 
pleno  e  publico  de  seus  ritos  e  cerimonias  tão  livre- 
mente como  debaixo  do  seu  antigo  governo.  Eram  elles 
um  povo,  contiimava  Nassau,  obstinado  na  sua  supers- 
tição e  que  jamais  faria  logar  permanente  da  sua  resi- 
dência no  paiz  em  que  não  pudesse  ouvir  a  voz  do  sacer- 
dote. Estabelecendo  escolas  nas  suas  conquistas, 
■educando  cuidadosamente  a  mocidade,  e  procurando 
melhorar  os  selvagens,  se  promoveria  a  fé  mais  pura. 
Todos  os  outros  meios  eram  tão  perigosos  como  ineífica- 
zos.  i> 

Quanto  aos  judeos  Nassau  suspeitava  delles  e  dizia 
•estarem  sempre  promptos  para  a  maldade. 

Instava  com  a  Companhia  que  animasse  a  coloni- 
sação  nos  seus  domínios  do  Brasil,  «  pois  não  era  com 
guarnições,  nem  com  o  terror  que  elles  se  haviam  de 
defender  sempre,  mas  com  o  aífecto  do  povo.  Muito  se 


520  HISTOEIA  DO  BRASIL 

promoveria  isto,  concedendo  aos  noivos  pr  occasião  de 
seu  casamento  sete  annos  de  isenção  de  dizimos  e  no 
fim  desse  termo  mais  um  anno  de  immunidade  para  cada 
íilho  que  tivessem.  Pareceria  no  emtanto  acto  de 
ingrata  injustiça  fazer  isso  sem  conceder  também  uma 
graça  adequada  aos  senhores  e  feitores  de  engenhos  de 
assucar,  cuja  tidelidade  estava  provada  e  que  tinham 
supportado  o  m.ai^s  duro  da  guerra,  casando-se  muitos 
com  hollandezas  e  fazendo  com  o  seu  trabalho  florescer 
o  commercio.  » 

UlHuias  reco»iiii?udaçues  cIc  ^'as.^Hii  ao- 
Grão  Conselho. — Pouco  aitendido  pela  Companhia 
das  índias  nas  suas  justas  reclamações  e  contrariado 
pelas  queixas  injustas  que  frequentemente  formulavam 
contra  elle,  desgostàra-se  Nassau  do  governo  do  Brasii 
e  solicitara  a  sua  exoneração,  sendo-lhe  esta  conce- 
dida. 

Antes  de  partir  para  a  Europa, recommendou  Nassau 
ao  Grão  Conselho  que  olhasse  com  especial  cuidado  para 
as  necessidades  dos  soldados,  jamais  deixando  de  es- 
cutar-lhes  as  queixas,  afim  de  se  evitarem  as  deserções- 
que  eram  muito  communs  no  Brasil. 

c(  O  soldo  dos  officiaes,  recommendava  Nassau,  se- 
gundo se  lé  em  Southey  fl),  cumpria  pagai  o  pontual- 
mente, pois  nada,  dizia  elle,  quebrava  tão  facilmente  os 
laços  de  fidelidade  e  impunha  a  necessidade  de  obrar  o 
mal  como  a  pobreza.  Quanto  aos  delictos  da  tropa  antes 
aconselhou  medidas  severas  que  brandas  num  paiz 
onda  de  continuo  se  viam  maus  exemplos  e  os  meios 
enérgicos  eram  necessários  para  cohibir  a  maldade.  Para 
com  os  generaes  nenhuma  consideração  seria  demasiada, 
com  tanto  que  o  Grão  Conselho  não  prescindisse  do 
respeito  devido  á  sua  autoridade  ;  deviam  elles  ter  sem- 
pre franco  accesso  perante  o  governo,  mas  faziam  bem 
os  governadores  não  convivendo  muito  com  elles,  para 
queda  familiaridade  não  nascesse  o  desprezo.  Sobre- 
tudo, porém,  cumpria  vigiar. por  que  não  se  tornassem 
pesadof^  aos  colonos  os  soldados,  mal  em  demasia  vul- 
gar ní-quellas  províncias  onde  a  perpetua  escassez  de 
viverei   fazia  o   povo  descontente  e  insolente  a  solda— 


1.   SovTHEY .  —Historia  do  Brasil. 


TERCEIRA   EPOCHA  521 


desça.  De  facto  receiavam  por  isto  mais  a  paz  do  que  a 
guerra  os  lavradores  e  senliores  de  engenho. 

«  Também  aconseliiou  que  por  todos  os  meios  ho- 
nestos se  procurasse  attrahir  os  portuguezes,  que  mais 
aferrados  parecessem  ao  seu  paiz,  com  especialidade  os 
padres,  que,  comprados  estes,  jamais  se  esconderiam  os 
segredos  do  povo.  A  boatos, contra  elles  não  devia dar-se 
fácil  credito,  pois  que  se  originavam  quasi  sempre  entre 
aquelles  que  nada  tendo  que  perder,  invejavam  os  ricos 
e  os  ditosos.  Também  dos  desertores  se  havia  de  des- 
confiar sempre,  nem  era  para  recommendar-se  a  pra- 
tica dos  tormentos,  que  tãc  facilmente  extorquia  a  falsi- 
dade como  a  verdade.  Era  como  si  Nassau  previsse  os 
perigosos  tempos  que  se  avisinhavam.  Os  fortes,  disse 
elle,  deviam  ser  frequentemente  inspeccionados, para  que 
estivessem  sempre  em  estado  de  defesa,  e  como  não 
podia  haver  fossos  em  terreno  secco  e  arenoso,  era  par- 
ticularmente necessário  vêr  que  as  palissadas  se  con- 
servassem sempre  perfeitas,  não  fosse,  arrumando 
constantemente  o  tempo  estes  baluartes,  uma  brecha  ou 
uma  parte  fraca  attrahir  o  inimigo.  Era  de  grande  im- 
portância preservar  Vriburg  e  suas  florestas,  que  em 
caso  de  guerra  facilitariam  osmeiosde  abastecer  d'agua 
o  Recife.  A  ponte  da  Bòa  Visin  uigia  fortifical-a  com  um 
reducto  para  sua  defesa,  que  eram  ambas  as  pontes  de 
essenci.l  utilidade,  si  o  Recife  chegasse  a  ser  sitiado, 
não  podendo  estar  ainda  esquecido,  como  ant(  s  de  for- 
mada esta  communicação  atravéz  do  rio,  sofíréra  a  ci- 
dade fome,  quasi  a  ponto  de  perdcr-se.  Aconselhou 
que  de  modo  nenhum  se  provocasse  sem  necessidade  o 
governador  da  Bahia.  Estavam  as  províncias  hollan- 
dezas  expostas  á  vingança,  que  podia  luandar  tropas  a 
atacal-as  ou  com  uma  palavra  soltar  contra  ellas  os  sel- 
vagens. Nem  os  próprios  portuguezes  actualmente  sob  o 
domínio  de  Hollanda  podiam  véi  njenoscabado  o  repre- 
sentante do  rei  de  Portugal  ;  e  eram  el!es  um  povo  dócil, 
quando  bem  tratados,  mas  altivo  e  indomável  quando  se 
sentiam  injuriados,  podendo  mais  sobre  seus  ânimos  o 
orgulho  da  própria  dignidade  do  que  a  cobiça  das  rique- 
zas. Havia  pessoas  que  os  insultavam  no  exercício  de 
suas  ceremonias  religiosas,  mas  deviam  ser  castigadas 
como  gente  cuja  loucura  punha  em  perigo  a  Republica. 
Os  portuguezes  que  fossem  claramente  convictos  de  ma- 
chinações  traiçoeiras,   convinha  severamente  punil-os. 


522  HISTORIA  DO   BRAZIL 

mas  O  mesmo  instincto  da  própria  conservação  exigia 
que  os  não  irritassem  com  injurias  e  insultos,  pois  quem 
o  fizesse  compromettia  até  a  existência  do  governo 
hollandez  no  Brasil.  Já  o  Maranhão  e  o  Ceará  eram 
prova  da  instabilidade  de  um  domínio  unicamente  fun- 
dado na  força.  » 

Recommendou  mai.i  ao  Conselho  que  não  conce- 
desse indiscriminadamente  licença  para  usar  armas  a 
qualquer  pessoa,  aconselhou  que  se  castigasse  severa- 
mente o  assassinato  e  o  due!lo.e  que  se  cobrassem  rigo- 
samente  todos  os  impostos  devidos  á  Companhia. 

Partida  de  IVassau.  — Após  ter  feito  essas  sabias 
recommendações,  Maurício  de  Nassau,  o  mais  conspícuo 
europeu  que  aportou  ao  Brasil  no  século  dezesete,  seguio 
por  torra  até  a  Parahyba.e  ahi  embarcou-se  com  destino 
á  Hollanda,  a  22  de  Maio  de  1644,  retirando-se  com 
elle  do  Brasil  nada  menos  de  mil  e  quinhentas  pessoas 
de  todas  as  hierarchias  e  profissões. 

O  governo  do  Brasil  hollandez  ficou  confiado  aos 
três  conselheires  secretos  Henrique  Hamel,  antigo  ne- 
gociante em  Amsterdam,  A.  von  BoUestrate,  outr'ora 
carpinteiro  em  Midleburg  e  Kodd  vau  der  Burg,  o  qual, 
ausentando-se  pouco  depois, foi  substituído  por  Pedro  S. 
Bas,  antigo  ourives. 

Foi  nomeado  secretario  J.  van  Balbeck  e  comman- 
<iante  geral  das  tropas  Henrick  Hans. 


CAPITULO  II 

A  LUCTA  COM  OS  HOLLÀNDEZES 

DESDE     A    PARTIDA   DE   NASSAU    ATÉ   O    ABANDONO     DE 
OLINDA   PELOS   HOLLANDEZES 

(1644-1646) 

A  partida  de  Maurício  de  Nassau  para  a  Europa  veio 
úe  certa  forma  accelerar  o  grande  movimento  da  insur- 
reição pernambucana. 

'  Obedecendo  ao  espirito  da  epocha,  a  população  sub- 
mettida  ao  dominio  hollandez  supportava  com  pouca 
pepiiíinancia  o  jugo  de  um  príncipe  illustre,  notável  por 
seus  talentos  e  nobres  qualidades,  embora  estrangeiro; 
o  orgulho  portuguez  não  poderia  no  em  tanto  tolerar  o 
governo  que  o  substituio  composto  de  homens  sabidos 
das  camadas  populares  —  um  negociante,  um  ourives  e 
um  carpinteiro,  tal  era  a  força  dos  preconceitos  domi- 
nantes, avessos  em  absoluto  nos  sentimentos  democrá- 
ticos que  modernamente  constituem  a  força  das  grandes 
nacionalidades. 

Assim  não  se  fizeram  esperar  os  protestos  armados, 
como  veremos  no  presente  capitulo,  e  o  pensamento  de 
André  Vidal  de  Negreiros,  animado  pelo  rei  e  pelo  go- 
verno geral  não  tardou  em  traduzir-se  em  facto,  inician- 
do-se  durante  a  vigência  de  um  tratado  de  paz  que  ne- 
nhuma das  partes  berigerantes  respeitava  um  novo 
periudo  de  guerras,  mais  encarniçadas  e  vivas  que  as 
anteriores. 

Embaraços  da,  Conipiínhia  cias  Índias.  ^ 
Logo  ao  partir  Nassau,  formulou-se  na  Hollanda  o  prj- 
jecto  de  se  íundrem  as  duas  Companhias  das  índias, 
^Oriental  e  Occidental.  Essa  idéa,  porém,  que  indubitavel- 
mente salvaguardaria  os  interesses  nollandezes  na 
America,  não  foi  pasta  em  execução,   em  consequência 


52i  HISTOEIA   DO   BRASIL 

dos  grandes  embaraços  com  que  lutava  a  ultima  e  com 
os  quaes  os  accionistas  da  Companhia  Oriental  não 
queriam  arcar,  prósperos  e  tranquillos  como  se  achavam 
com  os  quantiosos  lucros  auferidas  por  esta  ultima.  Era 
isso  o  interesse  pessoal  sobrepujando  a  causa  publica,  o 
espirito  de  ganância  compromettendo  o  progresso  na- 
cionfil. 

Eífectivamente  a  Companhia  das  índias  occideataes 
via-se  em  tal  momento  assoberbada  por  grandes  em- 
baraços. 

Todos  os  thesouros  achavam-se  exhaustos,  e  ten- 
tando o  Conselho  cobrar  as  grandes  dividas  contraídas 
fraudulentamente  pelos  portuguezes,  nada  conseguio, 
pois   a  escassez  de  tlinhidro  era  geral. 

Dahi  uma  longa  série  de  perseguições  e  medidas 
violentas  que  apenas  serviam  para  fomentar  a  rebeldia, 
pois,  todos  os  devedores,  sob  promessa  feita  pelos  emis- 
sários da  corte  portugueza.  anciavam  pela  restauração^ 
que  os  libertaria  dos  compromissos  contrahidos. 

«  A  escassez  de  dinheiro,  diz  Southey,  começou  a 
sentir-se  tão  geralmente,  que  seriamente  assustadoras 
se  tornaram  as  consequências  para  o  Estado.  Quando  a 
mesma  pessoa  era  devedora  ao  governo  e  a  credores 
particulares  levantavam-se  disputas  sobre  a  preferencia 
ao  pagamento,  e  para  obterem  o  que  era  legalmente  seu,, 
não  escrupulisavam  em  empregar  meios  manifesta- 
mente injustos.  Assim  procurava  um  credor  preferir  a 
outro,  tentando  o  devedor  traspassar-lhe  a  propriedade, 
mediante  considerável  abatimento;  outros,  servindo-se 
de  meios  estrictamente  lega  es,  mas  não  menos  repro- 
váveis, mettiam  sem  piedade  na  cadeia  os  desvalidos 
devedores.  O  próprio  governo  se  via  obrigado  a  ser 
rigoroso.  Não  podendo  fazer-se  pagar  por  meios  mais 
brandos,  cahia  sobre  os  devedores  por  occasião  da  co- 
lheita do  assucar  e  aprehendia-lhes  o  producto,  ao  que 
se  seguiam  todos  os  vexames,  males  e  misérias  dos 
processos  judiciários.  Muitas  vezes  iam  os  próprios  mem- 
bros do  Conselho  em  pessoa  pelo  interior  do  paiz  assistir 
a  essas  execuções,  pensando  que  com  mostrarem  assim 
zelo  pelos  interesses  da  Companhia,  produziam  dom 
effeito  sobre  o  publico.  Foi  mui  diversa  a  conse- 
quência. Os  negociantes,  commissarios  e  outros  cre- 
dores dos  fazendeiros  queixaram-se  de  que  o  governo, 
apprehendendo  o  assucar  nos  engenhos,  os  privava  bos 


TEECEIEA    EPOOllA 


meios  de  haverem  o  seu  pagamento.  Alto  e  ameaçador 
se  tornou  o  seu  descontentamento,  e  emquanto  faziam 
para  a  mãe  pátria  queixas  e  accusações  contra  o  Con- 
selho, principiaram  para  segurar-se  quanto  possivel  a 
seo:uir  igual  sysiema  de  rigor,  apprehendcndo  negros, 
gado,  caldeir.is  e  todos  os  bens  dos  fazendeiros.  Igual 
expediente  foi  adoptado  pelos  mutuantes  de  dinheiro. 
Alguns  lavradores,  indignados  ao  pensarem  nos  juros 
usurários,  com  que  hnviam  tomado  dinheiro,  para  dila- 
tar o  (lia  do  aperto,  exasperavam- se  ao  ver  que  esse  dia 
se  não  deixava  mais  alongar,  e  defendiam  á  força  a  sua 
propriedade,  de  modo  que  pareciam  as  cousas  tender 
para  uma  insurreição  gernl.  Mesmo  onde  nenhuma 
resistência  se  offerecia,  mal  se  viam  menos  embaraçados 
os  credores,  pois  que  levadas  as  terras  executivamente 
â  praça,  tinham  elles  de  ser  os  próprios  compradoris,  e 
depois,  si  não  sabiam  administral-as,  ou  não  podiam 
residir  nellas  (o  que  era  ini possivel  aos  negociantes  e 
commissariosj  tornava-se-lhes  a  acquisição  um  peso 
mortal  nas  suas  mãos  ». 

Vidal  de  ?Vogi*ciros  em  aceíEo.  —  A  restaura- 
ção do  Maranhão  encheu  de  satisfação  André  Vidal  de 
Negreiros  e  estimulou-o  a  envidar  novos  esforços  afim 
de  libertar  Pernambuco  e  principalmente  a  Parahyba, 
sua  terra  natal. 

Em  11  de  Agosto  de  1G44  André  Vidal  de  Negreiros 
era  nomeado  governador  e  c  ipitão  general  do  Maranhão. 
Antes  disto,  porém,  havia  elle  já  proposto  a  António 
Telles  da  Silva,  governador-geral,  voltar  de  novo  a  Per- 
nambuco e  ir  até  a  Parahyba  afim  de  levantar  o  animo 
dos  patriotas,  e  o  governador  deu-se  pressa  em  acei- 
tar tão  generoso  oflereci mento. 

Vidal  paitio  da  Bahia  em  companhia  do  alferes  Ni- 
colau Aranha,  o  qual  devia  apresentar-se  no  Recife  de- 
clarando que  ia  em  busca  de  duas  iru/ãs,  que  alli  tinha, 
para  as  conduzir  á  Bahia. 

Telles  da  Silva  forneceu  a  Vidal  uma  caravella  e 
abundantes  provisões  e  mantimentos  que  no  Recife  de- 
viam ser  vendidos  simuladamente  a  João  Fernandes 
Vieira,  afim  de  constituírem  um  armazém  no  qual  so 
se  abastecessem  os  que  se  levantassem. 

A  partida  de  Vidal  teve  logar  em  Setembro  de  1644, 
porém  no  Recife  não  lhe  permittiram  vender  o  que  a 
caraveiía    levava,   salvo   duas  pipas  de  vinho  e  dois 


526  HISTORIA  DO   BliASIL 

barris  de  azeite,  mercadorias  com  as  quaes  os  do  Con- 
seiiio  julgaram  produzir  o  sufficiente  para  pagar  a 
querena  que  a  mesma  caravella  precisava  fazer  atim  de 
regressar  à  Bahia. 

Vidal  hospedou-se  em  casa  de  Vieira  onde  o  \isi- 
taram  António  Cavalcanti,  Amador  de  Araújo,  e  outros 
pernambucanos  de  nome,  seguindo  depois  para  a  Para- 
hyba,  onde  visitou  seu  velho  pai  e  combinou  o  plano  da 
conspiração  com  Fernão  Rodrigues  de  Bulhões,  Manuel 
de  Queiroz  Siqueira,  Jeronymo  Cadena,  Lopo  Curado 
Garro  ô  outros  ;  ficando  assentado  que,  para  satisfazer 
aos  desejos  e  exigências  de  João  Fernandes  Vieira,  de- 
veria o  movimento  rebentar  primeiro  na  Parahyba. 

Ainda  estando  na  Paiahyba  Vidal,  o  forte  do  Ca- 
bedello  sob  o  pretexto  de  cumprimentar  o  commandante 
Blaeobeeck  que  o  honrou  com  uma  salva  de  três  tiios,  e 
ao  cabo  de  dez  ou  doze  dias  regressou  a  Bahia,  tendo  em 
caminho,  não  longe  da  Barra  Grande,  deixado  escondido 
algumas  munições  que  não  pudera  desembarcar  no  Re- 
cife. 

A  expedição   de  Autouio  Dias   Cardoso.  — 

Sabedor  o  governador  geral  do  que  fazia  André  Vidal 
de  Negreiros  em  Pernambuco  e  na  Parahyba,  fez  logo 
partir  por  terra  para  Pernambuco  quarenta  soldados 
de  linha, dos  mais  valentes, ás  ordens  do  intrépido  capitão 
António  Dias  Cardoso  e  dos  ofíiciaes  Paulo  Velioso  e 
António  Gomes  Taborda. 

Essa  força  marchou  por  pequenas  partidas  e  por 
sertões  muito  desviados  até  uma  paragem  convencio- 
nada, a  pouca  distancia  do  Recife,  além  dos  Apipucos, 
entre  os  engenhos  do  Borralho  e  Maciape,  en'uma  inatta 
de  pau  brazi  i  da  qual  João  Fernandes  Vieira  era  arrema- 
tante. Essa  pequena  força  recebeu  ordem  de  Vieira  para 
conservar-se  em  tal  paragem  até  o  momento  de  rebentar 
a  insurreição,  recebendo  delle  o  sustento. 

Pouco  depois  António  Dias  Cardoso  regressou  á 
Bahia  pedindo  ao  governador,  novas  forças  em  nome  de 
Vieira,  que  não  se  animava  a  nada  emprehender  com 
tão  diminuto  contingente,  embora  lhe  fosse  fácil  re- 
crutar entre  os  moradores  avultado  numero  de  praças. 

António  Dias  Cardoso  desempenhou  com  prom- 
ptidão  a  sua  commissão,  e  em  Janeiro  de  1645  regressava 
da  Bahia,  levando  a  Vieira  a  nomeação  de  ea/)íf«o-míír 


TERCEIRA    EPOCHA  527 


e  governador  da  guerra  e  a  promessa  de  que  em  breve 
o  seguiriam,  devassando  a  fronteira  do  Rio  Real,  as 
tropas  de  Camarão  e  Henrique  Dias. 

Provideucias    toiundns    pelo  Conselho.  — 

Tendo  o  judeu  Gaspar  Francisco  da  Cunha  denunciado 
em  13  de  Outubro  de  1644  ao  Conselho  Supremo  os 
intuitos  de  Vidíd, ao  visitar  Pernambuco,  aquelle  mandou 
á  Bahia,  em  Janeiro  de  164õ,  o  conselheiro  Gisberth  de 
With  e  o  major  Theodoro  Hoogstrate  afim  de  sondarem 
o  que  havia  de  real  nessa  denuncia. 

O  governador  António  Telles  da  Silva  respondeu 
evasivamente  aos  dois  commissarios  e  os  do  Concelho 
entãoapressaram-se  em  pedir  soccorros  á  Hollanda,  li- 
mitando-S(3  a  isso  as  providencias  que  tomaram. 

Expedicíto  de  Henrique  Dias  eCnenardo.  — 
Aos  25  de  Março  de  1645  o  governador  geral  António 
Telles  fez  seguir  paraPernambuco  Henrique  Dias,  com 
sua  gente,  e  que  havia  sido  um  tanto  dizimada  nos 
mocambos  de  Itapocurú.  Pouco  depois  partio  Camarão 
com  os  seus  Índios. 

O  pretexto  para  estas  duas  expedições,  apresentado 
aos  hollandezes,era  que  Henrique  Dias  fugia  e  Camarão 
marchava  em  seu  encalço. 

Novos  reforços  deviam  partir  em  seguimento  de 
Henrique  Dias  e  Camarão.  Para  despachal-os,  aguar- 
dava-se  porém  na  Bahia  a  esquadra  do  Rio  de  Ja- 
neiro, que   Salvador  Corrêa  devia  mandar. 

O  facto  da  Snsiirreiçõo.  — Apoz  algumas  dis- 
sidências entre  os  conjurados  em  Pernambuco,  dissi- 
dências que  chegaram  quasi  a  fazer  retroceder  António 
Dias  Cardoso  com  os  seus  quarenta  valentes,  harmo- 
nisaram-se  todos  afinal  e  aos  23  de  Maio  de  1645  as- 
signaram  um  pacto. 

Eis  o  theor  do  mesmo  e  as  assignaturas  que  o 
cobriram: 

«  Nós  abaixo  assignados  nos  conjuramos,  e  pro- 
mettomos,  em  serviço  da  liberdade,  não  faltar,  a  todo 
tempo  que  fòr  necessário,  com  toda  a  ajuda  de  fazenda 
e  pessoas,  contra  qualquer  inimigo,  (?m  restauração  da 
nossa  pátria  ;  para  o  que  nos  obrigamos  a  manter  todo 
o  segredo  que  n'isto  convém;  sob  pena  de,  que  quem 
o  contrario  fizer,  ser  tido  por  rebelde  e  traidor,  e  ficar 
sujeito  ao  que  as  leis,  em  tal  caso,  permittam.  E, debaixo 
deste    compromettimento,  nos  assignamos,  em  23    de 


52S  nrsTORiA  do  brasil 

Maio  de  164Õ.  —  Joã)  Fe/mandei  Víjíra. — António 
Bezerra.  —  António  C-ica^canH.  —  Bernardino  dri  C  ir- 
valho  —  Frawnsco  Ber'>nrj'i,er'  de  Andr^da.  —  António 
da  Siloa.  —  Pantaleão  Cirne  da  Siloi.  -^  Luiz  da  Costa 
Sepaloeda.  — Manoel  Pereira  Còrte-Real. — -António 
Borges  Uchóa.  —  Amaro  Lopes  Madeira.  — -  Bastião  de 
Carualho.  —  Manoel  Alues  Deosdará.  —  António  Car- 
neiro Falcato.  —  António  Carneiro  de  Mari^.  —  Fran- 
cisco Bezerra  Monteiro.  —  Aloaro  Teireira  de  Mes- 
quita. —  Padre  Diogo  Rodrigues  da    Siloa.  » 

Vieira  e  Cavalcanti,  em  nome  da  liberdade  divina, 
nomear,] m  capitães  para  os  diíTerentes  districtos  das 
provincias  com  poderes  p;ira  reiuisitarem  dos  povos 
mantimentos  <^.  dinheiro  h  autorisação  p  ira  deitarem 
bandos,  convocando  a  todos,  quer  nacionaes,  quer  es- 
trangriros,  judeus  ou  Índios  para  tomarem  armas,  as- 
segurando-lhes  perdão  pelo  passado. 

Primeiros    Rsoviíiieiitos    insurreccioiíaesi. 
— João  'F^ernandos  Vieira  era  de  opinião  que  a  revolução 
só  explodisse  a  24  de  Junho,  dia  de  S.  João,  afim  de 
que  houvesse  tempo  pai-a  que  em  toda  a  parte  se  com- 
binasse a  insurreição  e  o  movimento  fosse  geral.  Essa 
demora,  porém, foi  um  erro,  pois  o  Conselho  Geral  Hol- 
landez  teve   logo  denuncia  do  que  se  tramava  e  pòz-se 
em  guarda,  ordenando  varias  prisões,  peio  que  os  con- 
jurados tiveram   que  se  refugiar  nas  mattas,   trahindo 
alguns  o  compromisso  como  aconteceu  com   Sebastião 
de  Carvalho. 

Das  florestas  onde  se  occultavam  os  conjurados, 
que  já  se  haviam  reunido  aos  seus  parentes,  es- 
cravos e  muitos  morador  js.  dirigiram  se  para  os 
mocambos  de  Camaragibe,  e  dahi  passaram -se  para  os 
do  Borralho,  onde  a  elles  se  juntou  António  Dias 
Cardozo  e  sua  gente,  começando  então  o  acampamento 
a  ter  uma  organisação  regular,  com  vedetas  para  todos 
os  lados  e  necessárias  guardas. 

Cardoso  tinha  o  pasto  de  sargento-mór  da  guerra; 
Vieira  utilisou-se  do  titulo  de  capitão-mór  e  governador 
da  guerra,  porém  as  nomeaçõ3s  feitas  por  elle  para 
serem  válidas  deviam  trazer  também  a  assignatura  de 
António  Cavalcanti. 

Pronunciamento  em  Ipojnca. — Nesse  Ínterim, 
algumas  centenas  de  moradores,  saccudidos  no  seu 
patriotismo  ofuo  capitão-mór  Amador  de  Vasconcellos 


TETíCETiíA  rrocnA  521) 


sublevavaiii-se  na  Pojiica,  Cabo  e  Moribeca,  collocando-' 
se   todos   sob  o  guião  de  Domingos  Fagundes  Barbosa, 
homem  pardo,  de  coragem  provada,  que  já  contava  c|u\- 
torze  annos   de  campanha  e  em   combates  tinha   silo 
ferido  três  vezes. 

Tinham  os  hoHandezes  em  Pojuca,  sob  o  commando 
de  Jacob  Flem-ning,  um  destacamento  de  30  homens  que 
o  Conselho  Geral  mandou  remover  para  Santo  António 
áo  Cabo.  Os  habitantes  sublevados  capturaram  os  dois 
l^jjuenos  barcos  que  transportavam  esse  destacamento 
e  aprcsionaram  todos  que  iam  a  bordo,  c  >m  excepção 
<{•  um  marinheiro  que  conseguio  escapar.  Em  seguida 
cortaram  os  insurrectos  todas  as  communicações  com  o 
forte  de  Santo  Agostinho. 

Contra  os  revoltosos  de  Pojuca  partio  o  coronel 
Hous  que  conseguio  dispersal-os  e  libsrtar  quarenta 
liollandezes  que  elles  haviam  aprisionado. 

Os  bandois  liolLiitiIozos.  —  Sendo  infructiíeras 
as  prisões  ordenadas  pelo  Conselho  contra  os  conjurados 
expedio  este  para  a  Parahyba  o  oííicial  Paulo  de  Linge, 
afim  de  fazer  abortar  nessa  província  o  movimonio 
revolucionário  ;  e  esperançado  do  que  o  arrependimento 
poderia  ganhar  os  ma'S  tibios  dos  insurrectos,  publicou 
no  dia  18  de  Junho  um  bando  concedendo  amnistia 
íios  sublevados  que  se  apresentassem  dentro  do  praso 
de  cinco  dias,  passados  os  quaes  tomariam  represálias 
em  seus  bens  efamilias. 

Este  bando,  no  emtanto,  não  surlio  o  effeito  desejado 
e  apenas  sérvio  para  que  os  insurrectos  ganhassem 
algimi  tempo  em  que  melhor  se  prepararam.  Vieira, 
Cavâlc.inti  e  outros  protestaram  contra  um  prazo  tão 
curto.  Amador  de  Araújo  e  Pedro  Marinho  pediram 
salvo-conductos  dos  quaes  não  se  utilizaram. 

Então  os  hollandezes  publicaram  outros  bandos 
pondo  a  preça  a  cabeça  dos  chefes  da  revolta,  aos 
quaes  estes  responderam  levantando  os  preços  pelas 
cabeças  de  cada  um  dos  membros  do  Conselho. 

Coiubnto  (lo  lloiitc  (liis  Tabocas.  —  (3  de 
AGOSTO  DE  1645).  A'  vista  da  inellicacia  dos  bandos  o 
Conselho  expedio  contra  as  forças  insurrectas  o  capitão 
Blaar,  tendo  comsigo  Pêro  Poty  com  uns  cena  indios 
vindos  da  Parahyba  e  mais  uns  duzentos  jovens  volun- 

tarios  hollandezes. 

.3-4 


530  HISTORIA  DO  BRASIL 

As  forças  restauradoras  logo  que  tiveram  noticia 
dessa  marcha  deixaram  os  mocambos  do  Borralho 
e  passaram-se  a  Maciape,  onde  se  demoraram  cinco 
dias,  sendo  ahi  reforçados -com  uma  respeitável  força 
recrutada  pelo  jesuiía'  Simão  de  Figueiredo,  outr'ora 
chefe  de  guerrilhas.  Como,  porém,  a  maior  parte  dos 
patriotas  estivesse  mal  armada  e  não  se  dispuzesse 
de  munições  sufficientes,  o  sargenlo-mór  António  Dias 
Cardoso  julgou  prudente  evitar  ainda  a  acção,  até 
que  se  lhe  reunissem  as  forças  de  Henrique  ^ Dias  e 
Camarão. 

Assim  deixaram  Maciape,  os  insurrectos  passa- 
ram o.  Capiberibe  e  marcharam  até  o  engenho  do 
Covas  onde  se  aquartelaram,  reuniudo-se-lhes  ahi  mais 
uns  tresentos  homens,  vindos  do  Cabo  e  Ipojuca  com 
Amador  d^Araujo,  Pedro  Marinho  Falcão,  João  Paes 
Cabral,  o_  pardo  Domingos  Fagundes,  e  bem  assim  uns 
quatorze  Índios  e  um  corneta  das  avançadas  deCamarão, 

Soube-se  então  que  se  approximava  para  atacar  o 
engenho  do  Covas  o  coronel  Wous  com  a  sua  columna, 
_e  que  para  empenhar  a  acção,  apenas  aguardava  a 
juncção  com  as  forças  do  coronel  Blaar. 

Ora,  os  insurrectos  que  a  tcdo  o  momento  espe- 
ravam a  chegada  de  Camarão  e  Dias  tentaram  ainda 
editar  o  combate  e  mudaram  de  acampamento,  indo 
aquartelarem-se  no  monte  das  Tabocas,  paragem  forte 
e  defensável  por  natureza,  situada  para  as  bandas  do 
sertão. 

«  Quanto  á  posição  verdadeira  do  monte  das  Ta- 
bocas, diz  Varnhagen,  pelos  exames  locaes  que  pes- 
soalmente fizemos,  não  duvidamos  hoje  assignal-a  á 
pequena  serra  do  Comocim,  não  lono-e  da  antiga  igreja 
do  Santo  Antão,  actual  cidade  da  Victoria,  do  cimo 
da  qual  se  descobrem  todos  âquelles  contornos  até 
a  Várzea  do  Recife,  na  distancia  de  seis  léguas. » 

Esse  nome  provinha-lhe  de  abundantes  e  espessas 
montas  de  tabocas  (certa  variedade  de  taquaras, 
vegetaes  da  familia  das  gramíneas  edo  género  arundo) 
que  vestiam  as  faldas  do  monte. 

Os  insurrectos  estabeleceram  o  seu  quartel  ge- 
neral no  principal  dos  morros  dessa  pequena  serra, 
e  apenas  as  avançadas  deram  a  3  de  Agosto  signal 
da  appi^oximação  do  inimigo,  que  constava  de  mil 
®    cem    homens,    pouco    mais  ou  menos,  o  sargento- 


TERCEIKA     EPOCnA 


531 


mór  António  Dias  Cardoso  dispoz  as  suas  tropas  em 
quatro  emboscadas  nostaboaes,  íicaiido  o  re^to  das  mes- 
mas no  oito  do  morro  com  Fernandes  Vieira. 

A's  primeiras  investidas  dos  hollandezes  o  capitão 
Fagundes,  offereceu  alguma  resistência,  mns,  depois,  foi 
se  retirando,  assim  precedendo  com  o  inimigo  para  as 
emboscadas  dos  tabocaes. 

Accommetteram  então  os  hollandezes  contra  os  dos 
tabocaes, sendo  no  emtanto  obrigados  a  retirarem-se  com 
grande  perda,  e  ainda  na  campina  foram  atacados  de 
flanco  pelo  capitão  Fagundes,  que  se  havia  reforçado 
com  oitenta  homens, e  bem  assim  pelo  capitão  Francisco 
Ramos. 

Começaram  então  os  hollandezes  a  atacar  ao  mesmo 
ao  meS'no  tempo  as  forças  que  os  hostilisavam  na  cam- 
pina e  as  que  se  achavam  nos  tabocaes,  sendo^  mortos 
nessa  occasião  os  pernambucanos  capitão  João  Paes 
Cabral  e  o  alferes  João  de  Mattos. 

Em  consequência  do  vivíssimo  fogo  que  lhes  faziam 
os  hollandezes,  reliraram-se  os  insurrectos  da  primeira 
emboscada,  cahindo  o  inimigo  na  segunda  onde  a  luta 
se  prolongou  por  uma  hora.  Nesta  acção  foi  morto  o 
capitão  insurrecto  Matheus  Ricardo.  Reconhecendo  en- 
tão o  hollandezes  que  não  podiam  vencer  a  resistência 
pela  fi-ente,  lançaram  pelos  flancos  algumas  mangas 
para  envolver  os  inimigo  pela  retaguarda,  não  o  conse- 
guindo pela  presteza  com  que  o  padre  simâo  de  Figuei- 
redo mandava  soldados  aos  pontos  atacados. 

A' vista  disso  renovaram  os  hollandezes  o  ataque 
pela  frente  e  com  tanta  impetuosidaie  qu'^.  chegaram  a 
subir  muito  pelo  mono  acima,  embora  com  grandes 
perdas,  pondo  em  pperto  João  Fernandes  Vieira. 

Este.  porém,  na  imminencia  do  perigo  em  que  se 
achava,  despenhou-se  com  toda  a  tropa  pelo  morro 
abaixo  e  a  Juta  travou-se  corpo  a  cf  rpo,  sendo  os 
hollandezes  forçados  a  abandonar  o  campo,  embpra 
depois  de  reforçados  com  as  reservas,  disparassem 
ainda  três  descargas  cerradas. 

Neste  comenos  c.nhiu  a  noite,  que  foi  borrascosa,  e 
no  dia  seguinte  não  se  viu  mais  um  só  hollandez  no 
canipo. 

Os  hollandezes  perderam  nesse  comi  ate  trezen- 
tos o  cincoenla  homens,  entre  os  quaes  os  tenentes  Jacob 
Hamel,Huickerflooí  e   Henr.  Ringholat,  e  feridos  mor- 


>y2  )'láTOi;lA   1)0   EiiASII, 


talmente  o  capiíáo  Andries  vau  Loú  e  teaente  Willeii 
Sch.it,  que  veio  a  morrer  no  dia  19. 

Receberc-  n  feriaientos  de  algaiiia  gravidade  o  capi- 
tão Sickema  c  u  tenente  Henr.  Dorville. 

H  Da  nos-ia  par;e,  diz  Varnhagen,  a  perda  foi  muito 
menor,  como  era  natural,  visto  que,  em  geral,  combate- 
r  :m  mais  a  coberto  ;  mas  casía-nos  quasi  a  crer  que  se 
limitasse  a  oii:-  mortos  e  trinta  e  dois  feridos,  como 
assegura  NicMliofi  e  como  se  lê  em  uma  representação 
official  do  teij.po  ". 

Os  priitel|»e9  ilo  Brasil.  —  «  .\  notic'.a  da  revo- 
lução, diz  o  mesmo  Varnhagen,  e  provavelmente  já 
desta  primeira  \  ictoria,  foi  em  Portugal  r -cebida,  como 
era  natural,  com  muita  satisfação;  e  por  ventura  con- 
;iribuio  a  que  hisse  promulgado  o  decreto  de  27  de  Outu- 
bro (16ÍD),  dispondo  que  os  primogénitos  dos  reis,  her- 
dcir.js  presuíiípiivos  da  Coroa  se  intitulassem,  d'ahi  em 
áiãnie,  princfjcs  do  Brasil  w. 

As  foi*c;a««  <l<^  Camarão  e  0eti2*íque  Dia». — • 

Pouco  depoi-  -le  alcançarem  a  menoravei  victoria  do 
monte  das  'iabucas,  foram  os  insurrectos  reforçados 
com  as  forças  de  Camarás  e  Henrique  Dias,  que  leva- 
ram mais  i  ..  unaírj  mezes  na  marcha  desde  o  rio 
Real. 

Compunham-se  essas  forças  de  quatrocentos  Índios 
de  Camai-ão,  ireseriios  Índios  líodelas  do  rio  de  S.  Fran- 
cisco, cinco-iiiia  p.''etos  de  Henrijue  Dias,  '.t  um  crescido 
numero  d-j  brasileii  •■s  m  uidaios  por  um  irmão  de  An- 
tónio Cavalcbiili. 

Os  euii^^.^arios  lioIlAiide/:3S.  —  Assim  que  no 
Kecife  se  diviifííou  a  noticia  da  ch?gadx  dessas  forcas 
partiram  para  a  Bahia,  como  emissário^  do  Conselho, 
B  illhazar  vau  d  ■  Wjorde  e  Theodoro  van  Hoogstraten 
afim  de  represeiit  ii-em  energicaiuent  ■  contra  esse  novo 
attentado  às  tréguas  assignadas. 

O  govcr;:ãdjr  A.itonio  Te.les  affirmou-lhes  que 
nada  tinha  coni  os  manejos  dos  revoltosos,  pro  iietteado 
~no  entanto  n  .iiida;  brevemente  alguma  força  aquietar  o 
inO''imenL'). 

Os  emissailos  regressaram  ao  Recife  sob  a.  im- 
pressão desío  amaeçador  auxilio  e  logo  vaií  de  Voo!'de 
_;aríio  para  a  Ib.dianda  afim  de  pedir  soccorros  urgentes 
€  :evar  ao  fu    governo   a   segiircinça   de   que   orei   de 


TEK':'i.iR.v  ::rociiA  ~>'->'^ 


Portugal  e  o  seu  pro-consul  no  Brasil  estavam  conluia- 
dos na  sublevação. 

Effectivamenle  assim  era.  Na  Bahi.-7  prepara^''am-se 
dois  terços  ou  regimentos  de  linha,  que  devi?)ni 
partir  brevemente  para  o  theatro  da  lut.-i,  scb  o  com- 
mando  de  Vida!  de  Negreios  e  Martim  Soares,  e  bem 
assim  já  estava  prompta  uma  esqiiadiilha  ao  mando 
do  capilão~mór  de  mar  Jeronymo  Serrão  de  Pai\'H, 
co:nposta  de  oito  barcos  grandes,  quairo  caraveila^  e 
quatro  sumacas,  e  que  para  fazer-se  á  vela,  só  espe- 
rava a  chegada  da  frota  do  Rio  de  Janeiro,  ás  ord.  ns 
de  Salvador  Corrêa. 

Deslealdade  de  Nnlvador  í"i»rriiSrt. — Salvador 
Corrêa  não  tardou  a  chegar,  e  logo  Antf-nio  Telles  foz 
partir  a  esquadilha  de  Serrão  de  Paiva,  qno  a  28  de  .luiho 
já  desembarcava  tropas  em  Serinhac. m,  conforme  as- 
ordens  que  levava. 

Salvador  Corrêa  partio  da  Bahia  três  ou  qua  ro 
dias  depois,  e  em  começo  de  Agosto  reuni o-se  á  es- 
quadrilha de  Serrão  de  Paiva;  a  este,  porém,  fez  Scibor 
então  que  não  estava  resolvido  a  empenliar-se  em  com- 
bate algum,  isto  por  levar  a  familia  a  bordo  e  ter  pressa 
de  chegar  á  Europa.  Assim  trahia  a  confiança  que  nelle 
havia  depositado  o  governador  geral  o  compromettia 
o  êxito  da  empreza  confiada  a   Senão   de  Paiva. 

Tão  resolvido  estava  Salvador  Corr<'a  em  não  entrar 
im  lúcta,  que  sendo  perseguido  por  liíchlardfpreíerio 
vel-o  tomar  um  dos  seus  mais  ronceiros  navios  a 
fazer-lhe   frente. 

Reuillçâodo  forte  de  Serinlia^^rjjj .  —  Os  terces 
de  André  Vidal  de  Negreiros  e  Martirn  Soares,  que 
tinham  vindo  na  esquadrilha  de  Serrão  de  Paiva,  desem- 
barcaram em  Seriíihaein  e  immediatamente  sublevando 
os  povos  visinhos.  publicando  ambos  urra  proclamnção 
em  que  declaravam  terem  vindos  para  pôr  termo  á  guerra 
civil,  por  ordem  do  governo  da  Bahia.  Em  seguida  Paui<> 
da  Cunha  avançou  contra  o  forte  de  Serinhaem  e  forçou 
os  dois  commandantcs,  Cosme  deMoucheron  e  JeanPaul 
Jacquet   a  capitularem. 

A'  guarnição  foi  concedido sahir  com  armas,  honrnS' 
degueira,  bens  e  familia s.  podendo  transportar-se  para 
onde  quizesse,  porém  quarenta  e  noAX  Índios  que  auxi- 
liavam os  hollandezes   foram  enforcados. 

lloríe   de   António    CavalcanIS  — No   dia  10 


33J:  UIísTORIA   DO    BRASIL 

de  Agosto  João  Feraandes  Vieira  resolveu  levantar  o 
acampamento  do  monte  das  Tabocas  e  fazer  juncção  com 
os  terços  de  Vidal  e  Martim  Soares.  Como  dissemos, 
já  se  haviam  reunido  os  contingentes  de  Camarão  e 
Henrique  Dias. 

Havendo  algumas  desintelligencias  entre  Vieira  e 
Cavalcanti,  as  quaes  existiam  desde  quando  as  forças 
se  achavam  aquarteladas  no  Engenho  do  Covas,  deli- 
berou-se  que  António  Cavalcanti,  fjito  capilão-mór,  se- 
guiria para  o  norte  com  algumas  forças. 

Poaco    depois    fallecia   Cavalcanti  em   Iguarassú. 

«  Os  amigos  de  Vieira,  diz  Varnhagen,  chegaram 
a  accusar  Cavalcanti  de  intenções  pérfidas,  como  a  de 
haver  pretendido  descartar-se  delle  por  qualquer  meio, 
sem  omittir  o  da  propinação  do  veneno ;  mas  o  que 
é  sem  duvida  é  que  foi  Cavalcanti  quem,  logo  depois 
de  separar-se,  perdeu  a  vida,  em  Iguarassú,  e  as 
cruéis  aecusações  que  lhe  fizeram,  auida  depois  de 
morto,  os  seus  inimigos  deixam  essa  morte  envolvida 
em  cert  j  mysterio.  » 

O  "cupaçSo  da  fortaleza  de  S.  .Votoiíio  do 
Cabo.  —  Vieira  e  António  Cardoso  ao  separaroni-se  de 
Cavalcanti  difigiram-se  á  fortaleza  de  Santo  António 
do  Cabo  por  lhes  constar  que  o  seu  commandante 
Gaspar  Vanderley,  casado  com  uma  pernambucana, 
prompiiticava-se  a  passar-se  com  tada  á  guarnição  para 
os  insurrectos. 

No  emt  into  aassim  não  aconteceu  porque  Vander 
Ley  linha  sido  removido  para  o  Pontal,  atim  de  refor- 
çar Hoogstraten ;  e  encontrando  os  insurrectos  a  for- 
taleza de  Santo  António  abandonada,  apoderaram-se 
delia  sem  difficuldade.  Alguns  dias  depois  André 
Vidal  e  doze  soldados,  que  se  haviam  adiantado  ao 
seu  fegiínento    chegavam  a  essa  mesma  fortaleza. 

André  Vidal  trouxe  a  Vi  dra  a  piitente  de  mestre 
de  campo,  *  mas,  diz  Varnhagen,  si  até  então  Vieira 
nada  resolvia,  siiião  pela  boca  de  António  Dias  Car- 
doso, d'ahi  em  diante,  até  tomar  o  mando  o  general 
Francisco  Barreto,  foi  Vidal  o  verdadeiro  director  dá 
guerra,  e  assim  o  entendeu  o  inimigo,  que  com  elle 
manteve  s-empre  a  correspondência,  que  possiiimos, 
traduzida  em  hollandez  e  que  mostra  a  sua  muita  capaci- 
dade.» 

Combate dãCnsáFortè. ^17  de  Agoste  del645) 


TERCEIRA  EPOCHA  535 


Vidal  depois  de  ordenar  a  Marlim  Soares  que  fosse  com 
o  seu  terço  atacar  a  fortaleza  do  Pontal,  seguiu,  o 
grosso  das  forças  afim  de  bater  a  columna  de  fjçus 
que  se  achava  junto  ao  Recife.  : 

O  inimigo  foi  encontrado  no  logar  denominado  Qasa 
Forte,  pouco  distante  do  Recife,  e  sendo  repentinamente 
atacado  apenas  teve  tempo  de  recolher-se  á  dita  Casa 
Forte,  onde  se  defendeu  durante  três  horas,  ren- 
dendo-Stí  atinai  ao  ver  que  os  nossos  se  preparavam 
para  incendiar  o  ediíicio. 

Os  hollandezes  que  se  entregaram  eram  em  numero 
de  tresentos  e  vinte  e  dois  entre  os  quaes  o  tenente-co- 
ronel  Hous,  o  sargento-mór  Listry  (commandante  dos 
índios),  os  capitães  Wildtschut  e  Blaer,  os  tenentes  La 
Motte,  Trelamis  e  Zacheus  e  outros  officiaes.  Fòfáni 
todos  mandados  á  Bahia  e  lá  chegaram  a  salvamento, 
com  excepção  do  capitão  Blaer,  que,  segundo  parece, 
foi  assassinado  em  viagem.  Os  Índios  que  se  entregaram 
íoram  condemnados  á  pena  ultima. 

Os  insurrectos  tiveram  no  combate  da  Casa  Forte 
dezesseis  mortos  e  trinta  e  seis  feridos,  entrando  no 
numeroiídestes  últimos  Henrique  Dias  e  Domingos  Fa- 
gundes. 

^^  ReudiçAo  da  fortaleza  do  Pontal.  —  Depois 
da  victoriada  Casa  Forte, eemquanto  Vieira  se  occupava 
em  preparar  o  assédio  que  ao  Recife  se  premeditava, 
correu  Vidal  em  auxilio  de  Marti m  Soares  que  fora 
mandado  ao  Pontal,  á  fortaleza  que  tão  proeminente 
papel  representara  na  primeira  phase  da  luta  com  os 
hollandezes. 

Commandava-a  Hoogstraten,  que,  quando  enviado 
á  Bahia  pelo  Con-  elho,  se  mostrara  accessi vel  a  propostas 
de  suborno  e  por  isso  Vidal  julgou  fácil  a  capitulação 
da  praça,  mas  Hoogstraten  desta  vez  mostrou-se  mais 
digno  e  assim  oppoz  vigorosa  resistência. 

Todavia  a  3  de  Setembro  o  Pontal  capitulou  obtendo 
a  guarnição  sahiram  com  honras  de  guerra  e  ujuitos 
soldados  se  alistar  nas  fileiras  da  tropa  restauradora, 
sendo-lhes  pagos  dois  mezes  de  soldos  que  os  hollan- 
dezes lhes  deviam. 

Acreditamos  que  esses  miseráveis  não  eram  com- 
patriotas de  Guilherme  o  Taciturno  e  Maurício  de  Nassa  u, 
e  sim  mercenários  r-  crutados  pela  Companhia  das 
índias  nos  diversos  paizes  da  Europa. 


536  HIííTOKIA    1)0    RlíASIL 

Combato  uavni  do  Taiuantlaré.  —  Senão  tle 
Paiva,  chefe  da  esquadrilha  enviada  ao  norte  afim  de- 
secundar  as  operações  dos  revolucionários,  ao\er-se 
abandonado  covardemente  pelo  desleal  Salvador  Corrêa 
de  Sá  e  Benevides,  recolheu-se  ao  porto  de  Tamandaré; 
e  ahi  fez  desembarcar  parte  da  guarnição  e  construir 
em  terra  duas  baterias,  julgando  assim  poder  resistir 
melhor  a  qualquer  ataque. 

Lichtardt,  porem,  andava-lhe  ao  encalço,  e  a  7  de- 
Setembro  uma  esquadrilha  por  elle  commandada  e- 
composta  de  dois  ou  três  barco3  apresentava-se  diante- 
do  p^rto  de  Tamandaré  a  informar-se  da  posição  de 
Serrão  de  Paiva.  Na  noite  de  8  para  9  chegara m-lhe  de 
reforço  o  barco  Leyd^n  e  o  hiãte  Een-Corn  e  no  dia  ^ 
feriu-se  o  combate,  sendo  Serrão  de  Paiva  completa- 
mente derrotado,  ap  zar  de  ter  combattido  até  cahii" 
estendido  no  convezcom  miiitis  feridas. 

Três  dos  melhores  navios  foram  enviados  para  o 
Recife  e  os  demais  foram  incendiados. 

Serrão  de  Paiva,  depois  de  curado, seguio  preso  para 
a  HoUanda. 

llntaiaça  cm  diuli:iu.  —  Como  já  dissemos,  o 
conselho  geral  hollandez  mandara á  Parahyba Paulo  de- 
Linge,  afim  de  obstar  qualquer  movimento  sedicioso. 
Pois  bem  ,  chegado  Paulo  de  Linge  ordenou  varias 
prisões  e  per.iiittio  que  Pêro  Puty,  chefe  de  varias 
cabildas  de  indios  bárbaros  que  tinham  baixado  do 
sprtào,  fizesse  horrível  matança  nos  m. oradores  das- 
pi'oxiaiidades  de  Cunhaú. 

Os  ík9$iiiiToctos    lia    Parahyba.  —  As   forças 

que  partiram  para  o  norte  sob  o  commando  de  António 
Cavalcanti,  que,  como  sajá  sabe,  íallecèra  em  Igua— 
rassú,  alcançaram  em  começo  de  Setembro  o  Tybery,  a 
t  es  léguas  da  cidade  da  Parahyba,  já  reforçadas  com 
um  contingente  que  se  lhes  mandara  juntar  depois  do 
combale  da  Casa  Forte. 

Na  Parahyba  entendera m-se  ellas  com  alguns 
chefes  da  conspiração  e  ganharam  sobre  Paulo  di> 
Linge  um  combate  junt )  ao  engenho  Inhobim. 

ISeiidiçiEo  de   Porto  Calvo.  —  Christovão  Lins 
e     Marinho    Falcão  aperlavam   pela   mesma   epocha  a 
guarniçã>   holl-'n.'eza   de    Porto  Calvo   e  após  alguns 
ataques   forc.iram    w   c  m manda' de    do    forte    a  capi 
tu'ar 


lEKCEÍKA    EPOCIIA 


Este  facto  consuminou-se  a  17  de  Setembro. 
ReudiçAo  do  Forto   do   Penod».    -  iV   19   do 

mesmo  mez  de  Setembro  conseguiram  ainda  os  insur- 
rectos render  mais  uma  praça  inimiga,  o  forte  do 
Penedo,  junto  ao  Rio  S.  Francisco,  p.iragcm  onde  a 
iasurreiçào  tiniia  começado  tenho  á  frente  Valentim  da 
Rocha  Pitta. 

Occupneilo  da   ilha  de   f taiuaracii.  —  Afim 

de  guarnecerem  a  Parahyba  e  o  Rio  Grande  os  hollan- 
dezes  haviam  feito  retirar  de  Itamaracá  todos  os  Índios,  e 
sabendo  disto  os  chefes  do  movimento  restaurador, 
tentaram  occupar  a  ilha,  o  que  conseguiram. 

A  25  de  Setembro,  porém,   chegou  com   soccorros 
o  conselheiro  Bollestrate   e  os   insurrectos  foram   obri- 
gados a  retirar-se  da  villa  e  acamparem  do  lado  do  norte. 
«  Ao   principio,   diz  Varnhagen,  pareciam  os  suc- 
cessos   corrv.-r  á  proporção   dos   desejos  dos  atacantes, 
porque  para   maior  prevenção  foram  passar  á   ilha  do 
lado   ào  norte,  e  coiísegniram  sorprehender  um   patacho 
com  quatro  peças,  que  nhi  tinha  postado  o  inimigo  ;  mas 
depois  ha  que   confessar  que  foram  completamente  re- 
pellidos.    O  coaimandante  hollandez  Dortmou  deu  logo 
aviso   para  o  Recifo  e  foi  sojcorrido  a  tempo.  Os  nossos 
cscriptoros  procuram  disfarçar  essa  derrota,  contando-a 
fie  um  modo  confuso  ;  porém  Moreau  diz  positivamen  e 
que   os  attacantes,  não   se  atrevendo   a  acommetter  at 
fortaleza  da  barra,  se  dirigiratn  á  villa,  e  que  ahi   foram 
derrotados  deixando   tresentos  mortos,  numero  que  os 
nossos  baixam  a  setenta,  contando  outros  tantos  feridos, 
comprehendendo  o   Camarão.   De  novo  tentaram   outra 
sorpreza  em  junho   seguinte  (1G16)  ;   e   desta  segunda 
vez  o  inimigo  abandonou  a  villa,  retirando-se  do   forte, 
onde   fez  fuzilar  alguns  artilheiros,  que  julgou  susp  itos 
de  haverem  sido  peiteados.  » 

A  iiiiSiii*a*ciç(to  no  Kio  Graúdo  do  !Vi>rto.  — 
A  insurreição  no  Rio  Grando  do  Norte  exulodio  depois 
que  se  divulgou  a  noticiada  horrível  carniíkina  no  Cu- 
nhaú.  Setenta  habitantes  tomaram  armas  e  recolhe- 
ram-secoii  suas  familiar  a  um  arraial,  distmte seis  lé- 
guas da  Capital,  pelo  rio  acima,  no  qual  se  entrinchei- 
raram com  cahiçaras,  á  maneira  dos  Índios. 

Ao  saber  disto  Jacob  Rabbi,  que  f()ra  o  principal 
instigador  da  matança  no  Cunhaú,  dirigio-se  ao  mencio- 
nado arraijl   com  algumas  hordas  indígenas  que  lhe 


538  HISTORIA    DO    BRASIL 


obedeciam  e  o  poz  em  apertado  cerco,  esperando  rendel-o 
pela  fome.  Os  que  guarneciam  o  arraial  po.-om  fizeram 
uma  sortida  e  desta  vez  frustraram-lhe  o  plano. 

Sendo  no  emtanto  novamente  assediados  no  mes- 
mo arraial  foram  afinal  os  insurrectos  obrigados  a  ren- 
de.^em-se,  ajustando  de  antemão  uma  capitulação 
pela  qual  teriam  salvas  as  vidas,  isto  porém  nào  foi 
cumprido,  pois  chegando  no  dia  2  de  Outubro  a  >  Rio 
Grande  do  Norte,  o  conselheiro  BoUestrate,  este  entre- 
gou-os  birbaramente  a  Uruassú,  chefe  indígena,  que 
sacrificou  cinco  que  tinham  sido  transportados  para  a 
Fortaleza  da  Barra. 

Outras  crueldades,  tão  indignas  de  um  povo  civili- 
sado  como  era  o  hoUandeze  que  até  nos  repugna  aore- 
ditir,  foram,  segundo  a  fíirmação  de  conscienciosos 
autores,  commettidas   nos  prisioneiros. 

Camarão  passou  logo  ao  Rio  Grande  a  vingar  os 
martyres  e  em  seguida  dirigio-se  a  Parahyba,  onde,  em 
Agosto  veio  reunir-se  a  elle  André  Vidal;  os  dois  juntos 
bateram  o  inimigo  em  diversos  encontros,  voltando  depois 
Vidal  a  Pernambuco  e  ficando  Camarão  no  Rio  Grande 
afim  de  castigar  mais  severamente  os  que  praticaram 
tão  nefandas  atrocidades. 

O  cruel  André  Rabbi  foi  na  noite  de  5  de  Junho  de 
1646  morto  traiçoeiramente  por  mandado  do  chefe  hol- 
landez  Garstman. 

Camarão  conseguio  alliciar  muitos  Índios  no  Rio 
Grande  e  até  o  próprio  Janduhy,  que  era  o  mais  firme 
alliados  dos  hollandezes  esteve  inclinado  a  acompa- 
nhal-o,  o  que  tel-o-hia  feito  se  não  recebesse  logo  do 
Recife  um  valioso  presente. 

A.bauilou»  de  Oliuila.  —  Abatidos  como  se 
achavam  pelos  repetidos  revezes  que  sofTriam  no  norte  e 
vendo-se  completamente  desfalcados  de  forças  pelos  con- 
tinues destacamentos  que  a  todo  momento  era  preciso 
fazer  partir  para  os  pontos  attacados  ou  ameaçados 
pel  )S  insurrectos,  os  hollaidezes  abandonaram  Olinda 
que  já  não  podiam  defender,  sem  grave  risco  para  a 
capital,  e  recolheram-se  ao  Recife  e  ilha  de  Santo  An- 
tónio ou  cidade  Mauricia,  installando-se  a  tropa  no 
palácio  da  Bòa- Vista.  Por  ahi  se  vê  quanto  havia  al- 
<jançado  o  patriotismo  e  a  coragem  cívica  dos  insur- 
rectos, 0  3  qaàes,  relativamente  insigniticantes,  sob  o 
ponto  de  vista  da  força  numérica,  pela  fé  naquella  causa 


TERCEIRA    EPOCHA  539 


que  lhe?  era  saiit  i  e  pelo  arrojo  e  constância  com  que  a 
ella  se  dedicavam,  conseguiam  no  entanto  encurralar 
novamente  na  sua  praça  forte  os  seus  poderosos  inimi- 
gos, isto  depois  de  ter  o  pavilhão  neerlandez  tremu- 
lado desde  o  rio  Real  em  Sergipe  até  a  capital  do 
Maranhão. 


CAPITULO  III 

LUCTA  COM  OS  HOLLANDEZES 

Desfle  o  assedio  do  ReciTc  até  a  ordem  regia 
iiiaiidaudo  evacuar  Pernambuco 

(1646-1C4À) 

O  Arraial  ;\ov«  do  Baui-Josii«(.  — Occupada 
pelos  pelos  insurrectos  a  villa  de  Olinda  quo  o  inimigo 
tinha  abandonado,  entregaram-se  os  brazileiros  ao 
irabjlJio  de  liívantar  varias  trincheiras  e  estancias  em 
redor  do  Recife,  íicando  assentado  o  seu  quartel  ge- 
neral na  Várzea,  á  margem  direita  do  Capiberibe.  Esse 
acimpamento  tomou  o  nome  de  Arraial  Xovo  do  Bom 
Jesus. 

O  aíssedio  do  Iftuciro.  —  Reproduziram-se  as 
scenas  que  tiveram  logar  cm  tempo  de  Mathias  de  Albu- 
querque, quando  este  chefe  acampava  no  Arraial  Velho 
do  Bom  Jesus.  Escaramuças,  sorpresas  aos  que  se 
aventuravam  fora  das  muralhas,  ataques  aqui  e  alli, 
etc.  n  )S  quaes  muito  se  distinguiram  divei\sos  insur- 
rectos e  entre  elles  principalmente,  Henrique  Dias,  go- 
vernador dos  pretos. 

No  acampamento  a  orde  n  esteve  duas  vezes  para 
ser  perturbada  :  a  primeira  pela  deserção  para  o  inimigo 
de  duas  companhias  de  hollandezes  que  serviram  com 
os  nossos  desie  a  capitulação  do  Pontal,  a  segunda  por 
ter  havido  quem  intentasse  contra  a  vida  de  João  Fer- 
nandes Vieira. 

Houve  tainbam  um  momento  em  que  os  insur- 
gentes  soiíreram  escassez  de  viveres,  esta  porém  fji 
de  pouca  duração,  pois  logo  lhes  chegaram  do  Rio  Grande 
do  Xoríe  quatrocentas  cib3ças  de  gado  vaccum  e  pouco 
depois  receberam  mais  duzentas  do  Rio  de  S.  Francisco, 
providenciando  o  governador  geral  para  que  da  villa 
do  Penedo  fosse  d'ahi  em  diante  enviado  a  Pernambuco 
todo  o  gado  que  o  exercito  restaurador  precisasse. 

Entre  os  sitiados,  porém,  as  circumstancias  eram 
mais  alllictivas.  A  fome  já  começava  a  reinar;  até  cães. 


Õi2  HISTORIA   DO    BRASIL 

gatos  e  ratos  foram  comidos,  e  a  plebe  ameaçava  su- 
blevar-se.  Os  membros  do  Conselho  ordenaram  que 
vários  magistrados  fossem  de  casa  em  casa  reco- 
lhendo todos  os  géneros  que  encontrassem  para  que  os 
levassem  a  depósitos  públicos  afim  de  distribuil-os  em 
pequenas  rações. 

A  falta  de  combustível  obrigava  muitos  a  comerem  as 
rações  cruas,  e,  segundo  Niewoff  até  os  animaes  mortos 
foram  desenterrados,  para  os  aproveitar  d'elles  a  carne 
meioinfecta.  Alémdisso  chuvas  copiosas  desmoronaram 
varias  trincheiras  e  o  trabalho  para  restaural-os  era  em 
extremo  penoso.  Muita  gente  morreu  de  miséria  e  can- 
saço. 

Não  faltou  também  para  tormento  dos  sitiados  a 
sedição  e  a  desordem.  As  tropas  chegaram  a  exigir  que 
se  capitulasse,  visto  não  receberem  soldo  e  foi  preciso 
muita  prudência  para  contel-as,  contrahindo  afinal  o 
governo  com  alguns  judeus  ricos  um  empréstimo  de 
cem  mil   florins. 

lloedas  obsidio uaes.  —  Datam  dessa  epocha 
as  primeiras  moedas  obsidionaes,  mandadas  cunhar 
pelo  conselho  geral  Hollandez  e  são  ellas  as  mais  anti- 
gas do  Brazil. 

Tinham  o  valor  de  três,  seis  e  doze  florins  e 
eram  de  prata  e  ouro.  As  primeiras  eram  quasi  qua- 
dradas t  as  segundas  romboides. 

Soccora*o  chegado  de  Hollanda.  —  Quando 
mais  afflictiva  era  a  penúria  no  Recife  chegaram  aos 
hollandezes  dois  barcos  O  Falcão  e  a  Isabelcom  algumas 
munições  e  viveres  trazendo  além  disso  a  uoticia  de  (|ue 
em  breve  chegaria  um  forniidavel  soccorro.  Foi  muito 
festejada  a  vinda  deste  primeiro  auxilio  e  de  tanta  im- 
portância considerado  que  para  perpetuar-lhe  a  lembrança 
cunharam  uma  medalha  com  a  seguinte  inscripção  :  — 
Door  de  Valk  en  Elisabetti  is  het  Recife  houUet.  O 
Recife  foi  salvo  pelo  Falcão  e  Isabel. 

Os  sitiantes  assim  que  tiveram  noticia  da  chegada 
deste  primeiro  soccorro  recolheram  á  linha  de  sitio  todas 
as  tropas  que  tinham  no  Rio  Grande  do  Norte,  na  Para- 
hyba  e  em  Itamaracá. 

Cbegada    de  Schkoppe  e  llciiderson.  --  Os 

grandes  soccorros  que  os  hollandezes  esperavam  chega- 
ram  effectivamente.    Constavam    de  dois  mil  homens- 


TERCEIRA    EPOCUA  543 


commandados  pelos  coronéis  Segismundo  vau  Schkoppe 
e  Henderson,   que  já  haviam   servido   no  Brazil. 

Os  navios  que  trouxeram  esse  contingente  largaram 
successivamente  de  Hollanda  durante  o  mez  de  Abril  de 
1646,  e  só  a  1  de  agosto  puderam  apresentar-se  no 
Reciife,  em  consequência  de  violentos  teniporaes  que 
soffreram . 

IVovo  governo  liollaiidez.  — Com  esse  soccorro 
vieram  para  Pernambuco  novos  governadores,  sendo 
exonerados  os  antigos. 

Eram  elles  Walter  van  Schouenborch,  que  fazia 
parte  dos  Estados,  por  Groninga.  Este  foi  escolhido 
para  presidente  do  Conselho.  Os  outros  dois  conselhei- 
ros eram  Yan  Goch,  magistrado,  pensionario  de  Fle- 
singue  e  deputado  aos  Estados  Geraes  pela  Zelândia  e 
Siniou    Van  Beaumout,   advogado  fiscal  de  Dordrecht. 

«Eram  os  três  recommendaveis  por  sua  probidade, 
saber  e  virtudes  »,  diz  Yarnhagen. 

Para  adjuntos  destes  conselheiros  foram  nomeados 
Hendrick  Haex  e  Abraham  Trowel,  negociantes  de 
Arastcrdam  ;  para  secretario  foi  escolhido  Hermite, 
advogado  em  Delft. 

Logo  ao  chegar,  o  novo  governo  publicou  uma  pro- 
clamação concedendo  amnistia  aos  sublevados  que  se 
submettessem.  e  a  ella  respondeu  Fernandes  Vieira  com 
outra,  concedendo  amnistia  aoshollandezes  que  se  apre- 
sentassem; c,  segundo  affirma  Moreau,  com  muito  mais 
êxito. 

Tentativa  de  Van  Slehkoppe  contra  Olinda. 
—  Como  inicio  de  suas  operações  emprehendeu  Van 
Schkoppe  apoderar-se  de  Olinda,  porem  não  o  conse- 
guio,  sendo  até  ferido  em  umn  perna. 

Foi  igualmente  infeliz  em  diversas  sortidas  que  íez 
para  o  sul,sendo  por  isso  obrigado  a  voltar  para  oKccife, 
onde  os  azares  da  guerra  haviam  encurralado  os  seus 
compatriotas. 

it|ioderani-se  os  liollandczes  do  Penedo.  -^ 
Mal  succedidos  nos  seus  esforços  para  fazer  levantar 
o  cerco  do  Recife,  deliberaram  os  hollandezes  liostilisar 
o  inimigo  em  portos  distantes. 

A  24  de  Outubro  de  164Gpartio  do  Recife  uma  esqua^ 
drilha  de  10  navios  e  8  barcas  com  destino  ao  Rjo  de 
S.  Francisco,  afim  de  apoderar-se  do  Penedo  e  inter- 
ceptar a  passagem  de  gados  para  os  revoltosos. 


544  lilSTOEIA  1)0  URASIL 


As  forças  de  terra  iam  sob  o  cominando  do  coronel 
Honderson  o  qual  fa^ilmcnle  assenlioreou-se  do  Forte 
Maurício  e  occupou-ss  logo  em  construir  um  novo  forte, 
de  barro.  rs'essa  construcção  se  achavaempenhado  quan- 
do a  um  quarto  de  légua  do  forte,  foi  sorpreliendido  um 
posto  avançado  de  hollandezes  composto  de  vinte  ho- 
mens. Sahio  a  perseguir  o  inimigo  o  capitão  Irancez 
Samuel  Lambert  (La  Montagne),  que  na  paragem  de 
Ur.imbú  encontrou  duzentos  homens  e  atacou-os. 

Estes,  porem,  fizeram  uma  retirada  falsa  pela  qual 
atlrahiram  os  inimigos  a  uma  embuscada,  sendo  ahi 
coiiipletamente  derrotados.  La  Montagne  e outros  oíli- 
ciacs  hollandezes  ficaram  estendidos  no  campo,  e  a  perda 
foi  total  de  cento  e  quatorze  homens. 

«Esta  derrota  desconcertou  os  planos  dos  inimigos 
que  pensavam  fazer  no  rio  do  S.  Francisco  uma  base 
de  operações,  para  seguir  invadindo  d'ahi  para  o  norte 
e  vil-  aggredir  pela  retaguarda  os  sitiantes  do  Recife.  » 

Occiípivçâo  «la  iilia  «lo  Knparica.  —  Obde- 
condo  ainda  ao  plano  que  haviam  formado,decidiram-se 
os  hollandezes  a  assediar  a  Bahia  ou  pelo  menos  hosti- 
lisal-a  vivamente,  occupando  desde  logoa  Ilha  de  Itapa- 
rica. 

O  desembarque  effectuou-se  a  8  de  Fevereiro  e, 
segundo  Moreau,  «  os  soldados  não  pouparam  ahi  uma 
S;ó  vida,  mataram  até  mulheres  e  creanças,  saquearam 
tudo  quanto  quizeram,  o  só  o  incendiar  lhes  foi  prohi- 
bido  ;  de  modo  que  de  dua-  mil  pessoas  que  contava  a 
ilha.  pereceram,  umas  pelo  ferro,  outras  afjgadas  nos 
barcos,  em  que  a  tropel  se  lançavam,  atim  de  passarem 
á  cidade  da  Bahia,  quando  chegaram  os  hollandezes  ;  os 
quaes  deste  modo  viram  vingada  a  perda  que  acabavam 
de  experimentar  no  Rio  de  S.  Francisco. » 

Os  hollandezes  fortificaram-se  na  ponta  da  Baleia, 
perto  do  logar  em  que  está  a  povoação  que  hoje  ainda 
tem  o  mesmo  nome  de  ilha.  Comtudo  as  nossas  forças 
conseguiram  entrar  nessa  ilha  e  chegaram  a  apertar 
o  inimigo  no  seu  forte,  embora  recebessem  estes  um 
reforço  do  quinhentos  homens  commandados  pelo  ce- 
lebr?  Hous,  que  tão  p''oeminente  papel  represent  na  an- 
tes de  ser  feito  prisioneiío  no  combale  da  Casa-Foríe. 

Então  o  governador  António  Telles  mandou  á  ilha 
uma   força   de  oitocentos    homens  escolhidos,  e   rstes 


TEUCKIRA   El»OCUA  7)^7} 


sorprebeaderam  o  capitão  Munsterque,  com  vinte  e  s  is 
homens,  se  havia  embrenhado  na  ilha  para  fazer  lenha. 

No  dia  23  avançaram  as  forças  enviadas  por  António 
Telles  e  se  entrincheiraram  a  um  tiro  de  mosquete  das 
fortificações  inimigas,  porem  Van  Schkoppe  com  qui- 
nhentos e  sessanta  homens,  arremetteu  no  dia  seguinte 
contra  ellas  e  as  poz  em  fuga,  com  grande  perda. 

D'ahi  a  alguns  mezes  António  Telles  ordenou 
novo  ataque,  confiando  a  empreza  ao  Mestre  de  campo 
Francisco  Rabello.  Este  realisou  o  tiroteio  na  noite  de 
10  de  agosto  e  conseguio  penetrar  nas  primeiras  defesas, 

Eorém  não  resistio  ao  fogo  das  outras  e  depois  de  duas 
oras  de  tiroteio  foram  os  brazileiros  obrigados  a  batler 
em  retirada, o  que  fizeram  com  grande  confusão  e  dei- 
xando noventa  mortos  no  campo,  entre  os  quaes  Fran- 
cisco Rabello. 

«  Apezar  destas  vantagens,  diz  Varnhagen  os  hol- 
landezes  não  se  julgavam  seguros.  Já  em  6  de  maio 
tinham  pedido  com  instancia  novos  reforços,  e  descon- 
fiados de  que  tardassem,  haviam  para  apressal-os 
expedido,  em  fins  de  agosto,  á  metrópole  um  dos  seus 
próprios  companheiros  o  conselheiro  Hendrick  Haecr.  » 

Morte  de  Ijichtardt.  —  Foi  por  esses  tempos 
que  falleceu  o  bravo  e  perseverante  almirante  hollandez 
Lichtardt. 

Sua  morte  occorreu  no  Penedo  em  30  de  novembro 
de  1G46  em  consequência  de  haver  bebido  agua  fria 
depois  de  ter-se  acalorado  excessivamente,  segundo 
J.  Nieuhoff ;   seu    corpo  transportado    para  o    Recife. 

Lichtardt  era  um  dos  mais  distinctos  oíliciaes 
hoUandezes  e  á  sua  actividade  e  valor  deveram  seus 
compatriotas  assignaladas  victorias. 

Legalização  da  guerra  ua  Brasil.  —  Essa 
guerra  hypocrita  que  se  fazia  no  Brasil,  na  vigência  de 
um  tratado  de  paz  que  apenas  serviu  para  tornar  mais 
encarniçada  a  lucta,  foi  atinai  legalisada  pela  Hollanda, 
que  pelas  resoluções  de  '-ÍÁ  de  dezembro  de  1616  e  22  de 
janeiro  de  1647  auctorisou  a  todos  os  officiaes  de  terra  o 
mar,  ao  serviço  da  companhia  das  índias  Occidentaes, 
a  usarem  de  represálias  para  com  os  que  procurasseai 
occasionar  prejuízos  á  companhia. 

A  ordem  régia. — Estavam  as  cousas  nesse  pá» 
quando  os  mestres  de  campo  acampados  em  frente  ao 
Recife  receberam, por  interaiedio  de dous  jesuítas, orJjia 


Õ4()  HISTORIA  DO   BEASIL 

do  rei  de  Portugal  para  levantarem  o  cerco  e  abando- 
narem Pernambuco. 

Não  se  pôde  comprehender  o  espanto  e  o  des- 
alento que  se  apossaram  de  todos  ser  conhecida  apresen- 
tadas ordem  tão  absurda. 

'  João  Fernandes  Vieira  e  André  Vidal  de  Negreiros 
fora^m  de  opinião  que  não  se  devia  obedecer  ;  Martim 
Soaí-res,  porém,  hesitou,  acabando  por  decidir-se  pela 
subordinação  ao  mandato  real. 

Vieira  deciarou  em  conselho  de  officiaes  que  a  tae.^ 
ordens  não  se  devia  obedecer  e  sim  representar  ao  rei 
fazendo-lhe  sentir  a  rosição  prosperaem  que  se  acha- 
vam. 

Souíhey  assim  se  exprime  a  respeito  do  procedi- 
mento dos  mestres  de  campo : 

c(  Sendo  positivas  e  explicitas  as  ordens,  só  á  virtude 
heróica  cabe  a  força  de  caracter  necessária  para  discer- 
quando  cessa  a  obediência  de  ser  o  dever  do  saldado,  e 
este,  o  maior  louvor  a  que  poder  aspirar  o  militar,  me- 
rece-o  Vidal  plenamente.  João  Fernandes  não  podia 
obedecer  sem  tornar-se  um  aventureiro  arrimado  â 
meji'cê  d'um  governo  que  não  queria  reconhecel-o.  Não 
podia  pois  o  seu  comportamento  ter  o  mérito  do  de  Vidal 
nem  de  tal  carece  a  sua  fama.» 

Vidal  aconselhou  que  se  redobrasse  de  ardor  na 
lucta  e  vencendo  a  sua  opinião,  Aíartim  Soares  fez  as 
suas  despedidas  e  partiu  para  a  Europa. 

I%*es;ociaçoesicoiu  aUollauda. — Vejamos  agora 
os  motivos  que  determinaram  a  metrópole  a  expedir  uma 
ordem  tão  contraria  aos  seus  próprios  interesses  e  le- 
siva á  dignidade  das  armas  lusitanas,  ordem  publicada 
exactamente  no  momento  em  que  os  esforçados  insur- 
gentes  pernambucanos  haviam  á  custa  de  labores  sem 
numero  e  dolorosos  sacrifícios  varrido  os  hollandezes 
de  quasi  todo  o  território  que  elles  haviam  con- 
quistado, apertando  os  de  novo  na  sua  primitiva  presaj 
o  Recife. 

Essa  ordem  que  era  simplesmente  um  aviltamento, 
fora  determinada  pelo  egoismo  dos  interesses  dymnas- 
íicos,  sempre  contrários  aos  interesses  nacionaes. 

D.  João  VI,  ao  vêr  que  se  projectava  uma  alliança 
entre  a  HoUanda  e  a  Hespanha,  receiou  perder  o  ihrono 
em  qu3  havia  sido  coilocado  com  tanta  facilidade, 
pois,  avigorada  por  essa  alliança  era  natural  que  Cas- 


TERCEIRA   EPOCUA  547 


tella  voltasse  a  suas  vistas  para  o  velho  reino  de  yVffonso 
Henriques;  assim  submetteu-se  a  umas  tantas  humi- 
lhações para  eterno  desdouro  seu  e  do  seu  povo. 

O  notável  estadista  íSousa  Coutinho,  embiixador 
portuguez  na  Hollanda,  tinha  conseguido  durante  muito 
tempo  entreter  os  Estados  Geraes,  permittindo  por  essa 
forma  que  os  insurgentes  se  coUocassem  na  vanta- 
josa posição  em  que  se  achavam,  pois,  se  não  fossem 
os  seus  manejas  diplomáticos,  a  Companhia  das  índias, 
comquanto  em  condições  precárias  teria  soccorrido  o 
Recife,  logo  emcomeço  os  int.^resses  do  throno  fallavam 
porém  mais  alto  que  os  da  honra  e  por  isso,  logo  que 
se  soube  em  Portugal  ter  a  Hollanda,  pelo  tratado  de 
Múnster,  firmado  pazes  com  a  Hespanha,  D.  João  IV, 
ordenou  ao  seu  ambaixador  que  também  propuzesse 
pazes  aos  Estados  Geraes,  conformando-se  em  restituir 
aos  hoUandezes  todas  as  conquistas  feitas  pelos  insur- 
rectos. 

Os  hollandezes,  no  emtanto,  desconfiaram  da  oííerta 
por  lhes  parecer  vantajosa  de  mais,  e  responderam  que 
só  a  acceitariam  se  lhes  dessem  como  penhor  a  Ilha 
Terceira  ou  a  Bahia. 

Crescendo  no  emtanto  os  receios  de  D.  João  IV  e 
assustando-o  a  occupação  da  Ilha  de  Itaparica,  quiz  o 
soberano  portuguez  dar  aos  Estados  Geraes  uma  prova 
da  sua  boa  íé  e  est  i  foi  a  causa  da  indigna  ordem  man- 
dando retirar  de  Pernambuco  as  forças  revolucionarias,, 
ordem  que,  com.  ganho  de  causa  para  o  brio  nacional,^ 
foi  felizmente  revogadas  pouco  depois. 


CAPITULO  IV 

A  LUCTA  COM  OS  HOLLANDEZES 

DESDE    A    CHEGADA    DO  CONDE  DE   VILLA    POUCA   DE   AGUIAR. 
ate'  a    TERMINAÇÃO    DA    GUERRA. 

(1648-1661) 


o  eoude  do  Villa  Pouca  de  Aguiar,  no^o»' 
governador  geral. — Receiosa  de  perder  a  Bahia 
com  a  mesma  facilidade  com  que  Pernambuco  lhe  fôrâ- 
arrebatada,  a  metrópole  nomeon  para  o  cargo  de  gover- 
nador geral  do  Brasil,  o  conde  de  Villa  Pouca  de  Agu- 
iar, a  cujas  ordei.s  poz  algumas  forcas  tiradas  do 
exercito  cio  Alemtejo.  Ao  mesmo  tempo,  determinoia 
a  Francisco  de  Figueiróa,  antigo  capitão  no  forte  de  S. 
Jorge  e  já  n'esse  tempo  mestre  de  campo  que  se  pas- 
sasse ás  ilhas  para  d'ahi  levar  mais  quatro  compa- 
nhias. 

Villa  Pouca  de  Aguiar  acompanhado  de  tão  impor- 
tante reforço  chegou  á  Bahia  cm  164»  e  logo  os  hoilan- 
dczes  abandonaram  a  ilba,  pois  era-lhes  impossível' 
luctar  com  forças  Ião  su}  eriores. 

Reforço  liollaiidex.  —  Sciente  do  reforço  trazido- 
pelo  condo  de  Villa  Pouca  de  Aguiar  o  Supremo  Con- 
selho hollandez  despachou  logo  para  o  Brasil  nove  bar- 
cos de  guerra,  quatro  paiachcs  c  vinte  oilo  transportes 
com  tropas  e  viveres,  sendo  Schkoppe  convidado  para 
chefe  principal,  com  mais  podei  es  e  o  posto  de  geneia}, 
devendo  o  commandanle  de  Wiih  con  mandar  a  es- 
quadra. 

Estes  reforços  chegaram  ao  Recife  em  março  de 
1648,  tendo  já  Schkoppe,  mez  e  ii.eio  anles  recupeí^rado- 
as  terras  fronteiras  a  llamaracá. 

Francisco  Barreto  de  llenczes.  — Depois  de- 
chegar  ao  Brasil  o  conde  de  ^'illa  Pouca  de  Aguiar  as- 
sumiu o  commando  geial  das  ircpas  o  mestre  de  campo 


.>.)l)  HISTORIA   DO   BRASIL 


general  Francisco  Barreto,  bastante  pratico  da  guerra 
no  Brasil  e  um  dos  que  acompanharam  Luiz  B:irbalho 
na  sua  celebre  retirada  do  Rio  Grande  do  Norte  para  a 
Bahia. 

A  nomeação  de  Barreto  data  de  12  de  feveieiro  de 
1647;  quando  el!e,  porém,  se  dirigia  da  Europa  para  o 
Brasil  foi  aprisionado  pelos  holiandezes  e  enviado  para 
o  Recife,  de  onde  só  conseguiu  evadir-se  mezes  depois 
apresentando-se  ao  exercito  em  23  de  janeiro  do  anno 
seguinte.  Immediatamenteassumio  o  o  commando  geral 
das  forças,  dando-lhe  ista  ensejo  de  ligar  o  seu  nome 
á  mais  notável  acção  bellica  que  se  produziu  na  lucta 
com  os  holiandezes — a  batalha  dos  Guararapes. 

A  batalha  dos  Guararapes.  —  (19  de  Abril 
DE  1648) — PeJa  mesma  esquadra  hullandeza  que  veiu  de 
reforço  ao  Recife,  recebeu  Segismundo  van  Schkoppe 
ordem  do  Conselho  Supremo  para  atacar  o  inimigo  im- 
mediatamente  e  assim, dando  cumprimento  a  essa  ordem 
Van  Schkoppe  preparou  toda  a  sua  infantaria  e  no  dia 
18  de  abril,  sahiu  a  campo  com  mil  e  quinhentos 
infantes,  quinhentos  homens  de  mar  e  trezento^^  índios 
tapuvas,  servindo-lhe  de  auxiliares  os  coronéis  Hous, 
Van  Elts,  Hautyn,  Pedro  Keerweer,  Van  den  Brande  e 
Brinck. 

O  exercito  hollandez  dirigio-se  para  os  lados  da 
Barreta,  onde  degolou  quarenta  soldados  das  torças  de 
Barreto.  Este  logo  que  soube  da  marcha  do  inimigo  re- 
uniu em  conselho  os  officiaes  generaes  e  sendo  resol- 
vido que  sahissem  ao  encontro  do  adversário,  mar- 
charam para  os  outeiros  dos  Guararapes  e,  depois  de 
havel-os  transposto,  fizeram  alto  na  baixa  dos  mesmos 
e  ahi  passaram  a  noite. 

No  dia  seguinte,  19  de  abril  e  domingo  da  Pas- 
choela  marcharam  os  holiandezes  sobre  os  insurrectos, 
começaram  os  batedores  holiandezes  a  pefeja  e  logo  que 
elles  se  descobriram  pelo  alto  dos  montes  Guararapes, 
Barreto  mandou  tocar  a  avançada,  collocando  Vieira 
na    vanguarda  e  Cam.arão  e  Henrique  Dias  nos  flancos. 

Após  a  primeira  carga  investiram  de  ambos  os 
lados  á  espada,  rompendo-se  todos  os  batalhões  dos  hol- 
la.ndezes,  com  excepção  de  dous  que  procuravam  des- 
viar-se  dos  que  iam  ser  rotos,  e  carregavam  para  o 
"flanco  em  quo  se  achava  Henrique  Dias. 

v<  Mandei,  diz  o  próprio  Barreto  na  sua  parte  official 


TERCEIRA  EPOCHA  ">51 


do  combate,  quinhentos  e  sessenta  homens,  que  também 
linha  de  reserva,  para  que,  encorporando-se  coni  o  dito 
Henrique  Dias,  o  ajudassem  a  romper  os  dois  batalhões 
que  o  iam  accommetter  ;  mas  os  nossos  capitães,  que, 
em  dois  terços  governavam  os  ditos  quinhentos  homens, 
não  considerando  os  damnos  que  lhes  podia  vir  de  não 
observarem  a  ordem  que  levavam,  investiram  por  outra 
parte,  onde,  por  caminho  mais  abreviado,  lhes  pareceu 
que  havia  occasião  de  maior  destroço,  mas  resultou 
d'esse  engano  não  destruirmos  totalmente  os  contrários, 
que,  por  não  poder  Henrique  Dias  sustentar  o  peso  delles 
se  veio  retirando  sobre  os  nossos,  os  quaes,  por  serem 
poucos,  e  cansados,  fizeram  também  o  mesmo.  Acudi 
logo  a  ter  mão  em  todos,  para  que  o  inimigo  não  tornasse 
a  cobrar  a  sua  artilharia,  munições  e  dinheiro  que  já 
lhes  tínhamos  ganho  ;  mas  não  o  pude  conseguir ; 
porque,  com  a  rota  que  havíamos  feito  ao  inimigo, 
estavam  os  nossos  mais  desordenados  que  os  mesmos 
inimigos,  a  quem  romperam.  ;  porem,  a  poucos  passos, 
me  puz  em  um  regato  que  havia  na  campanha, ondc.ani- 
mando  a  uns  e  ferindo  a  outros  da  nossa  infantaria,  a 
obriguei  a  fazer  alto  ;  e  comecei  a  formar,  mandando 
fazer  o  mesmo  ao  terço  do  mestre  de  campo  João  Fer- 
nandes Vieira  ;  e  pondo  na  vanguarda  ao  mestre  de 
campo  André  Vidal  de  Negreiros,  tornou  coni  pouca 
gente  da  sua,  mas  com  grande  esforço,  a  investir,  com 
as  mangas  que  o  inimigo  trazia  diante  de  seus  batalhões; 
e,  escaramuçando  com  elles,  os  tornou  de  novo  a  romper 
matando  alguns  de  seus  capitães  e  muitos  dos  soldados. 
E  começando-se  novamente  a  pendência,  formando-se 
de  uma"  e  outra  parte  os  campos,  durou  a  batalha  por 
espaço  de  quatro  horas;  no  fim  das  quaes,  depois  de 
se  obrarem  da  nossa  parte  maravilhosos  actos  de  va- 
lentia, assignalando-se  nelles  geralmente,  com  o  mestre 
de  campo,  todos  os  mais  officiaes,  o  inimigo  se  retirou 
a  occupar  suas  eminências  a,  nossa  vista  ;  retirando 
para  detraz  delias  os  feridos  que  mais  perto  lhe  ficavam. 
Considerando  eu,  neste  tempo  quanto  cansados  estavam 
os  nossos  soldados,  havendo  mais  de  vinte  e  quatro 
horas  que  não  comíamos,  e  muitos  delles  occupados  em 
retirar  os  mortos  e  feridos  que  tivemos,  me  deixei  ficar 
formado  na  mesma  frente  do  inimigo,  mandando  re- 
colher as  bandeiras  que  havíamos,  que  chegaram  a. 
trinta  e  três.  » 


552  HISTORIA   DO  ERASIL 

Continua  Barreto  na  sua  parte  official: 
c(  Estando  um  campo  á  vista  do  outro,  por  todo  o- 
dia.  tanto  que  anoiteceu,  mandei  algumas  tropas  in- 
quietar o  inimigo,  afim  de  que  também  na  volta  me 
trouxessem  aviso  de  squs  mtentos  ;  e  posto  que  não 
seguissem  todas  as  ordens  quanto  convinha,  não 
deixaram  comtudo  de  picar  o  inimigo,  o  qual,  no  decurso 
da  noite,  se  retirou,  sem  que  eu  disso  alcançasse- 
noticia.  » 

Os  hollandezes  perderam  na  batalha  dos  Guara- 
rapes  os  coronéis  Hons,  Van  Elts  e  Hautyn,  fallecendo 
este  ao  chegarão  Recife  ; 

O  coronel  Pedro  Keerweer  ficou  prisioneiro,  de 
sorte  que,  de  seis  coronéis  que  os  hollandezes  trouxeram 
só  dois  escaparam.  Van  den  Brande  e  Brinke. 

Além  de  Van  Schoppe,  que  foi  íerido  em  uma  perna, 
os  _  hollandezes  tiveram  cerca  de  quinhentos  e  vinte  sete 
feridos  e  470  mortos,  segundo  Netscher.  Das  forças  revo- 
lucionarias morreram  oitenta,  incluindo  os  quarenta 
degolados  na  Barreta  e  cerca  de  quatrocentos  feridos, 
quasi  todos  levemente. 

Apóz  esta  memorável  victoria  Barreto  marchou  a 
occiípar  as  estancias  fronteiras  ao  Recife;  procedeu  á 
occupação  da  villa  de  Olinda  que  pouco  antes  havia 
abandonado  e  tornou  a  occupar  os  postos  arraial  do 
Bom  Jesus. 

A  derrota  que  soffreram  os  hollandezes  desalentára- 
os  em  extremo, não  só  por  que  nos  Guararapes  empenha- 
ram forças  mais  que  sufficientes  para  a  obtenção  da  vi- 
ctoria, como  por  ter  ficado  no  campo  a  flor  de  seus  offi— 
ciaes.  Tornararn-se,pois  mais  precavidos  e  durante  mui- 
tos mezes  não  se  animaram  a  uma  nova  sortida,  enibora- 
ainda  contassem  com  um  exercito  de  seis  mil  seiscentas 
e  trinta  praças. 

Xas  cartas  que  escreviam  para  a  Pátria  diziam  que- 
nâo  haviam  offerecido  nova  amnistia,  por  não  esperarem 
•colher  disso  nenhum  resultado,  pois  a  experiência  lhes 
havia  mostrado  que  es  brazileiros  se  haviam  família— 
risado  portal  forma  com  a  guerra  que  se  achavam  nos- 
casos  de  medir-se  com  os  mais  exercitados  soldados. 

«  Accrescentavam  que,  diz  Varnhagen,  ainda  quando 
■conseguissem  conquistar  de  novo  todo  o  paiz,  o  acha- 
riam deserto  ;  que  na  Parahyba,  antes  tão  fértil,  tudo 
estava  incendiado  e  arrasado,  cie  modo  que  diífícilmentg. 


TEECEIKA    EPOCIIA  553 


se  encontrava  uma  laranja,  a  muitas  legoas  do  povoado 
e  que  o  Rio  Grande,  antes  tão  abundante  em  gados,  se 
via  de  todo  devastado.  » 

Em  Portugal,  onde  muitos  estadistas,  á  frente  dos 
quaes  se  achava  o  jesuita  António  Vieira,  propendiam 
para  a  cessão  de  Pernambuco,  a  victoria  dos  Guara- 
rapes  deu  rumo  diverso  á  opinião,  comquantu  Vieira 
aiiida  se  obstinasse,  publicando  até  contra  a  prolon- 
garão das  hostilidades  o  seu  celebre  Papel  Forte. 

D.  João  IV,  porém,  animado  pela  victoria  dos  Gua- 
rarapes  e  pela  recuperação  de  Angola,  realisada  em  15 
de  agosto  de  1618  por  Salvador  Corrêa  de  Sá  e  Benevides, 
conformou- se  com  a  opinião  dos  iribunaes  que  se  mani- 
festaram contra  a  cessão  de  Pernambuco,  opinião  essa 
que  havia  provocado  Papel  Forte  do  Padre  Vieira,  a 
que  já  nos  referimos. 

Henrique  Dias  no  Rio  Grande  do  IVofte.  — 
Ainda  em  íins  do  anno  de  1618  o  celebre  preto  Hen- 
rique Dias  invadio  o  Rio  Grande  do  Norte,  com  os  seus 
e  alguns  Índios,  sendo  bem  succedido  nas  pelejas  que 
travou  na  ilha  da  Guanaira  e  no  Engenho  Cunhaú. 

O  regimento  A,\m  illias».  —  Logo  apoz  a  batalha 
dos  Guaraiapes  o  conde  de  Villa  Pouca  de  Aguiar, 
mandou  conv,  reforço  a  Barreto  o  regimento  de  ilhcos 
qut^,  commandado  por  Francisco  de  Figueirôa,  com  elle 
tinha  vindo  da  Europa,  limitando-se  a  i'SSO  o  auxilio 
enviado  pelo  libio  governador  geral,  que  não  admittia 
a  possibilidade  de  victoria  contra  forças  tão  superiores 
€omo  eram  as  dos  hollandezes. 

O  regimento  das  ilhas  chegou"  a  Pernambuco  em 
fins  de  agosto  de  :648,  coincidindo  quasi  sua  chegada 
com  a  morte  de  Camarão. 

llortc  de  António  Felippe  Caniarfto.  — Tinha 
sessenta  e  oito  annos  de  idade  quando  falleceu  o  indio 
Poty,  posteriormente  D.  António  Felippe  CamarAo, 
commendador  professo  na  Ordem  de  Christo.  Camarão 
servira  com  as  armas  aos  portuguozos  durante  quarenta 
annos,  isto  desde  que  S'-  emp.  nhara  em  combatter  os 
Aymorés  que.  em  tempo  do  capitão  mór  Álvaro  de  Car- 
valho, invadiram  a  Bahia. 

Sua  constância,  seu  ardor  no  combate  e  seu  enthn- 
siasmo  pela  reinvidicação  do  território  nacional  fizeram 
delle  um  dos  mais  proeminentes  vultos  da  campaniia 
pernambuca:  a  ;  além  disso  era   homem   de  boas  incli- 


554  nitíTOElA    DO   BKASIL 

nações,  muito  commedido,  cortez  e  grave  no  fallar;  lia 
e  escrevia  bem,  não  lhe  sendo  mesmo  estranho  o  latim. 
Existem  duvidas  serias  a  respeito  da  verdadeira 
naturalidade  e  da  epocha  do  nascimento  de  António 
Felippe  Camarão.  Querem  alguns  que  elle  tenha  nascido 
no  Ceará,  outros  em  Pernambuco,  outros  ainda  na  Para- 
hyba,  e  muitos,  entre  os  quaes  Varnhagen,  conferem  ao 
Rio  Grande  do  Norte  essa  honra. 

.Veções  navaes.  —  Mais  felizes  por  mar  do  que 

por  terra,  conseguiam  os  hollandezes  algumas  victorias 
n&vaes  por  esse  tempo. 

De  With,  seu  almirante,  comi  uma  esquadra  de 
nove  va«os  de  guerra  e  outros  navios  menores,  íez 
diversas  presas, do  mez  de  maio  em  diante  e  em  dezem- 
bro desse  mesmo  anuo  de  1648,  tomou  da  esquadra  do 
conde  de  Castel  Melhor  um  barco  inglez  fretado  e  a  ga- 
leota   ò"    Bafthnlomeu. 

A  fragata  portugueza  Rosário  sustentou  galhar- 
damente o  combate  com  as  suas  duas  inimigas  Utrecht 
6  Gissilingh,  sendo  porem  afinal  atracada,  seu  comman- 
dante  poz  fogo  ao  paiol  da  pólvora  e  todas  três  foram  ao 
íundo.  De  tão  heróico  feito  apenas  temos  conhecimento 
por  uin  ofihcio  de  Schkoppe,  diz  Varnhagen,  e  sentimos 
que,  com  a  noticia  delle,  nos  não  seja  possível  traiismittir 
o  nome  do  destemido  e  abnegado  ofíicial  que  lançou  o 
fogo  ao  paiol,  e  deixou  nas  aguas  do  Brazil,  ás  gerações 
futuras,  um  exemplo  de  tão  nobre  heroísmo. 

Yan  den  Bran  !e  com  alguns  barcos  devastou  o 
Recôncavo  e  incendiou  na  Bahia  vários  edifícios  e  vinte 
e  três  engenhos. 

Foram  estes  os  commettimentos  mais  importantes  que 
a  esquadrahollandeza  operou, e  com  ellesos  membros  do 
conselho  se  animaram  um  tanto,  aventando-se  até  a 
idéa  de  attacar-se  o  Rio  de  Janeiro.  Esse  projecto  no  en- 
tanto foi  rejeitado,  íicando  apenas  resolvido  que  se  fi- 
zesse uma  nova  tentativa  para  se  levantar  o  cerco,  isto 
com  o  voto   contrario  de  Schkoppe. 

Kíe^^iuda    batalhín  dos     Giiararapes.  —  (19 

DE  Fevereiro  de  1649).  Os  hollandezes  partiram  do  Re- 
cife na  noite  de  17  de  Fevereiro  de  1649,  commandan- 
do-os  o  coronel  Brinck.  por  achar-se  ainda  impedido 
Segismundo  Yan  Schkoppe,  em  consequência  do  feri- 
mento recebido  na  primeira  acção  dos  Guararapes, 


TERCEIRA    EPOCHA  555 


Segundo  Net.scher  compu!ilia-se  o  exercito  hollan- 
dez  de  1.510  homens. 

Esse  exercito  passou  na  vasanto  o  Rio  dos  Afogados 
e  foi  amanhecer  na  Barrota,  d'ahi  seguindo  em  ordem 
de  marcha  até  á  abegoaria  de  António  Cavalcanti,  de 
onde,  apoz  um  pequeno  descanso  foi  tomar  posição  nos 
Guararapes,  cujas  alturas  occupou,  bem  como  o  passo 
ou  o  desHladeiro  em  os  quacs  os  insurgentes  haviam-se 
estabelt^cids   na  acção  precedente. 

Barreto  logo  quo  soube  da  marcha  do  inimigo  le- 
vantou o  acampamento  e  dirigi u-se  para  os  mesmos 
mont-^s  Guararapes,  situando-se  na  altura  chamada  do 
Oitiseiro. 

Durante  a  tarde  desse  dia  nada  emprehenderain  os 
dous  campos  inimigos,  a  não  ser  pequenos  tiroteios  sem 
importância,  logo  porém  que  desceu  a  noite  Barreto 
marchou  com  as  suas  tropas  para  o  engenho  chamado 
dos  Guararapes  e  acampou  na  várzea  de  cannaviaes  e  no 
matto,  ao  sul  dos  mesmos  montes,  apoiando-se  nos  ala- 
gados e  coníorneando  já  quasi  o  inimigo  pela  banda  do 
sul,  sem  que  este  percebesse  a  manobra. 

Ao  amanhecer,  vendo  Brinck  o  que  se  tinha  pas- 
sado, mudou  a  sua  primitiva  linha  de  batalha,  e  col- 
locou-se  com  a  frente  para  a  várzea,  no  entanto,  nté 
ao  meia  dia  ainda  não  se  tinha  decidido  a  ordenar  a 
peleja. 

Os  no=iSos  contavam  diversas  vantagens:  não  só 
achavam-se  mais  descansados,  isto  por  haverem  dor- 
mido bem  a  noite,  como  possuia  armas  de  maior  al- 
cance, além  de  que  os  hollandezes  achavam-se  expos- 
tos aos  rigores  do  sol  e  em  paragem  falta  d'  agua, 
ao  passo  que  elles  viam-se  abrigados  e  com  abundância 
de  tão  precioso  liquido. 

Attendendo  a  estas  vantagens  os  officiaes  hollan- 
dezes reunidos  em  conselho,  resolveram  retirarem-se 
paia  a  Barrcta  immediat  jmente,  ficando  Van  Goch  in- 
cumbido de  ir  ao  Recife  dar  as  necessárias  explicações. 

De  accordo  com  esta  resolução  começaram  a  retirar 
às  3  horas  da  tarde  e  já  tinham  abandonado  a  posição 
quando  Barreto  mandou  atacal-os 

O  capitão  hollande?:  Tenbergen,  que  commandava 
cinco  companhias  na  retaguardi,  offereceu  seria  resis- 
tência ao  inimigo  e  em  seguida  Hautjin  com   uma  co- 


556  HISTOIÍIA    DO    BRASIL 

lumna  carregou  pela  direita,  este  porem  foi  repellido  e 
depois  ferido. 

Ainda  assim  tornou  a  juntar  os  seus  e  reforçado 
pela  colurana  de  Claes,  atacou  novamente  os  insurre- 
ctos que  já  estavam  senhores  da  estrada,  porém  d'ahi 
a  pouco  era  elle  forçado  a  desalojar  a  posição  conquis- 
tada, isto  pela  impetuosidade  com  que  os  nossos  os  in- 
vés li  ram. 

Estabeleceu-se  então  a  confusão  no  acampamento 
das  forças  hollandezas  que  começaram  a  fugir  desor- 
denadamente, sendo  completamente  destroçadas. 

Brinck  perdeu  a  vicia  n'esta  batalha  e  bem  assim 
cento  e  trinta e  três  othciaes  e  ao  todo  contáramos  hol- 
landezes  oitocentas  e  cincoenta  e  cinco  mortos  e  noventa 
prisioneiros. 

No  campo  deixaram  cinco  peças  de  campanha  e 
cinco  bandeiras. 

Nas  forças  de  Barreto  quarenta  houve  e  cinco  mor- 
tos e  duzentos  feridos,  figurando  Henrique  Dias  entre 
esies  últimos. 

O  general  porluguez  em  memoria  d'esta  solemne 
victoria,  mandou  editicar,á  sua  custa  e  nas  proximidades 
do  local  em  que  se  feriu  a  acção,  uma  capella,  confian- 
do-a  aos  Benedictinos  de  Pernanjbuco.  e  fazendo  n  ella 
gravar  uma  lapide  commemorativa. 

A  segunda  batalha  dos  Guararapes  foi  o  mais  so- 
lemne golpe  vibrado  nos  hoUandezes  do  Brasil,  ella  des- 
alentou completamente  a  companhia  das  índias  Occi- 
dentaes. 

A  Companhia  Geral    ile   Cooiíiiorclo. — Por 

esse  tempo  organisou-se  em  Portugal  uma  Companhia 
Geral  de  Commercio  para  o  Brasil,  a  qual  muito  con- 
correu para  a  rápida  conclusão  da  guerra. 

Essa  companhia  obrigou-se  a  trabalhar  para  a  re- 
cuperação dos  portos  que  estavam  em  poder  dos  hoUan- 
dezes . 

Logo  em  novembro  de  1648  a  Companhia  Geral  de 
Commercio  enviou  alguns  soccorros  a  Pernambuco. 

Os  sitiados  no  Recife.  —  Cada  vez  mais  af- 
flictiva  era  a  condição  dos  hollandezes  sitiados  no  Re- 
cife. Não  só  lhes  faltava  dinheiro  para  pagamento  das 
tropa?;,  como  também  os  viveres.  O  abatimento  era 
gera!     e   repetidas  queixas  se  enviavam   á  metrópole. 


TERCEIRA    ErOCHA 


Meg^ociações  entre  Portugal  e  a  nollaiida. 

— Sousa  Coutinho,  apezar  da  sua  provada  competência, 
nada  conseguiu  em  Haya  e  o  governo  fel-o  recolher,  ao 
reino,  pois  o  povo  hollandez  execrava-os  chegando  os 
zelandezes  a  declarar  publicamente  que  haviam  de 
atiral-o  ao  mar,  se  o  pudessem  pilhar  na  viagem  para 
Portugal.  Souza  Coutinho  retirou-se  para  a  Ilollanda.  em 
5  de  março  de  1649  e  as  condições  de  Portugal  se  dilH- 
cnltaram  ainda  mais  por  ter  D.  João  IV  se  malquistndo 
com  Cromwell,  que  então  dirigia  os  destinos  da  Ingla- 
terra . 

Em  substituição  a  Souza  Coutinho  foi  nomeado  An- 
tónio de  Souza  cie  Macedo,  que  teve  frio  acolhimento 
por  parte  dos  Estados  G^raes.  Oífereceu  Macedo,  em 
nome  do  seu  governo,  uma  indemnisaçáo  pecuninria 
pelos  postos  que  a  Hollanda  possuía  no  Brasil.  A  tal 
proposta  os  Estados  responderam  com  ameaças,  e  es- 
tando terminado  o  prazo  de  dez  annos  das  tréguas, Souza 
<ie  Macedo  recolheu-se  á  Pátria. 

Não  só  a  Portugal  como  á  Hollanda  não  convinha 
mais  a  guerra  franca. 

«Os  mercadores  hollandezes,  diz  Roberto  Southey, 
propuzeram  ao  embaixador  comprar  licenças  para  trafi- 
carem com  Portugal,  como  mesmo  no  reinado  de  Fe- 
lippe  se  havia  praticado  a  respeito  do  negocio  do  sal,  e, 
independentemente  d'  essa  foruialidade,  deixou  o  go- 
verno portuguez  seguir  o  commeicio  o  seu  curso 
regular,  de  modo  que  se  achavam  as  duas  nações  em 
paz  na  Europa,  onde  a  ambas  convinha  a  paz,  e  em 
guerra  onde  quer  que  qualquer  das  potencias  se  sentia 
bastante  forte  para  operações  oíTensivas.» 

N'esse  Ínterim,  porém,  Cromwel  declara  guerra  á 
Hollanda,  a  qual,  procurando  prevenir-se  contra  tão 
respeitável  inimigo  como  era  a  Inglaterra,  deixou  que  a 
Oompanhia  das  índias  acudisse  ao  Brasil  da  maneira 
que  pudesse  e  como  esta  achava-se  em  manifesta  deca- 
dência e  completamente  exhausía  de  meios  pecuniários, 
foram  baldados  os  insistentes  pedidos  de  reforços  feitos 
por  Schkoppe,  membro  do  Conselho  do  Recife. 

Tomada  do  Recife  pelos  insurrectos.  — - 
Justamente  ufanos  pelas  memoráveis  batalhas  ganhas 
nos  Guararapes,  dominava  nos  heróicos  insurgentes 
pernambucanos  o  pensamento  de  tomarem  o  Recife. 

Obtiveram  pois  o  auxilio  da   Companhia  Geral  de 


558  HISTORIA    DO     BBASIL 

Commercio  e  com  esta  poderosa   empreza   combinaram 
um  golpe  decisivo  á  capital  do  Brasil  hollandez. 

Assim  partiu  de  Lisboa  a  frota  da  companliia  sob  o 
commando  de  Pedro  Jacques  de  Magalhães  e  a  20  de 
dezembro  de  1653  apresenta va-se  diante  do  Recife,  com- 
binando os  officiaes  de  terrajuntamente  com  os  do  mar, 
que  se  attacassem  primeiro  as  obras  avançadas  do  con- 
tinente, o  que  levaram  a  effeito. 

O  forte  do  Rego  capitulou  na  noite  de  lõ  de  janeiro 
de  1854  com  oito  officiaes  e  setenta  soldados,  e  na  tarde 
de  19  do  mesmo  mez  rendeu-se  o  forte  de  Altenar,  com- 
mandado  por  Berghen  e  cuja  guarnição  compunha-se 
de  180  praças. 

No  dia  21  Vidal  de  Negreiros  apoderou-se  do  forte 
Amélia  e  marchou  sobre  o  forte  das  Cinco  Pont;íS  de 
onde  receberam  os  insurrectos  um  emissário  do  Grão 
Conselho  do  Recife,  que  pedia  para  que  se  suspendesse 
as  hostilidades  e  se  entrasse  em  ajustes. 

Accedeu  Barreto  ao  pedido  e  designou  a  Campina 
do  Taborda  para  que  ahi  se  entendessem  os  parlamen- 
tares. 

Representaram  os  nossos  n'essa  conferencia,  que  se 
realisou  no  dia  26  de  janeiro  e  na  qual  foi  assignada 
pelos  hollandezes  a  capitulação  do  Recife,  o  auditor 
geral  Francisco  Alvares  Moreira,  o  capitão  secretario  do 
exercito  Manuel  Gonçalves  Corrêa  e  o  capitão  refor- 
mado Affonso  d'Albuquerque  ;  representaram  os  hollan- 
dezes n'esse  momento  solemne  para  elles,  em  que  viam 
baquear  miseravelmente  o  império  que  haviam  sonhado 
poderoso  e  invencível  na  America  o  conselheiro  Gis- 
berth  de  With,  o  presidente  dos  escabunos  e  director 
das  barcas  pichelingues  do  porto,  Huybrecht  Brest  e  o 
capitão  Van  Loo.  Para  tratar  dos  assumptos  de  milicia 
por  parte  dos  insurgentes  foi  nomeado  André  Vidal  de 
Negreiros  por  parte  dos  hollandezes  o  tenente-coronel 
Van  de  Wall. 

\  capitulaçiio. — A  capitulação  que  transcreve- 
veremos  na  integra,  pois  elia  é  a  apotheose  do  brio  bra- 
sileiro n'esse  primeiro  drama  da  nossa  vida  nacional  foi 
assignada  debaixo  das  seguintes  condições: 

Eil-a: 

«  1."  Que  o  Sr.  mestre  de  campo  general  Francisco 
Barreto,  dá  por  esquecida  toda  a  guerra  que  se  tem  com- 
mettido  por  parte  dos  vassalos  dos  senhores  Estados 


TEBCEIRA   EPOCHA  559 


Geraes  das  províncias  g  da  Companhia  Occidental  com 
a  Naçã)  Portugiiezi,  ou  seja  por  mar,  ou  seja  por  lerra, 
a  qu  U  será  tida,  e  esquecida,  como  se  nunca  houvera 
sido  comtnettida. 

2."  Concede  a  todos  os  sobreditos  vassalos  que 
estão  debaixo  da  obediência  dos  senhores  Estados  Ge- 
raes, e  a  todas  as  pessoas  súbditas  aos  ditos  senhores, 
tudo  o  que  fòr  de  bens  moveis,  que  actualmento  esti- 
vessem possuindo. 

3."  Concede  aos  vassallos  dos  ditos  senhores  Es- 
tados Geraes,  que  lhes  dará  de  todas  as  embarcações 
quo  estão  dentro  do  porto  do  Recife,  aquellas  que  forem 
capazes  de  passar  a  linha,  com  a  artilharia  que  ao 
Sr.  Mestre  de  Campo  parecer  bastante  para  sua  defensa 
e  d'esta  não  será  nenhuma  de  bronze,  excepto  a  que  se 
concede  ao  Sr.  General  Segismundo  Schkoppe  no  ca- 
pitulo das  condições  militares. 

4."  Concede  a  todos  os  vassallos  acima  referidos, 
que  quizerem  ficar  nesta  terra,  debaixo  da  obediência 
das  armas  portuguezas,  que  serão  governados  e  esti- 
mados como  os  mais  portuguezes  ;  e  no  tocante  á  reli- 
gião viverão  em  a  conformidade  que  vivem  todos  os  es- 
trangeiros em  Porlugal  actualmente. 

5.^  Que  os  fortes  situados  em  redor  do  Recife  e  Yilla 
Mauricia,  a  saber:  o  forte  das  Cinco  Pontas,  a  casa  da 
Boa  Vista,  o  Mosteiro  de  Santo  António,  o  Kate  da  Villa 
Mauricia,  o  das  Três  Pontas,  o  Brum  com  seu  reducto, 
o  Castello  S.  Jorge,  o  Castello  do  M;ir,  e  as  mais  casas, 
fortes  e  baterias  se  entregarão  todos  á  ordem  do  Sr. 
Mestre  de  Campo  General,  logo  que  se  acabar  de  firmar 
este  accordo,  e  concerto,  com  a  artilharia  e  munições 
que  tem . 

6."  Que  os  vassallos  dos  ditos  senhores  Estados 
Geraes  moradores  no  Recife  e  cidade  Mauricia,  poderão 
ficar  nas  ditas  praças  por  tempo  de  três  mezes,  contanto 
que  entreguem  logo  a-s  armas  e  bandeiras,  as  quaes  se 
metterão  em  um  armazém  á  ordem  do  Sr. Mostre  de  Cam- 
po General,  durante  os  três  mezes;  e  que  quando  se  qui- 
zerem euibarcar,  ainda  que  seja  antes  dos  tros  mezes, 
lh'os  darão  para  sua  defendia ;  e  logo  juntamente  com  as 
ditas  forças  entregarão  o  Recife  e  cidade  Mauricia ;  e 
lhes  concede  aos  ditos  moradores  que  possam  comprar 
aos  portuguezes  nas  ditas  praças  todos  os  mantimentos 
que  lhes  forem  necessários  para  seu  sustento  e  viagem. 


560  HISTORIA  DO   BRASIL 

7'  As  negociações  e  alienações  que  os  ditDs  vas- 
sallos  fizerem  em  quanto  durarein  os  ditos  três  mezt- s, 
serão  feitas  na  contormidade  acima  referida. 

8.'  Que  o  Sr.  Mestre  de  Campo  General  assis- 
tirá com  o  seu  exercito  aonde  lho  melhor  -parecer  ; 
mas  fará  que  os  vassallos  dos  senhores  Estados  Ge- 
raes  não  sejam  molestados,  nem  avexados  de  nenhuma 
pessoa  portugueza,  antes  serão  tratados  com  muito 
respeito  e  cortezia;  e  lhes  concede  que  nos  ditos  três 
mezes  que  hão  de  estar  n'esta  terra,  possam  decidir 
os  pleitos  e  questões  que  tiverem  uns  com  outros,  diante 
de  seus  Ministros  de  Justiça. 

^.*  Que  concede  aos  ditos  vassallos  dossenhjres 
Estados  Geraes,  que  levem  todos  os  papeis  que  tiverem, 
de  qualquer  sorte  que  sejam,  e  levem  também  todos  os 
bens  moveis  que  lhes  tem  outorgado  o  senhor  Mestre 
de  Campo  General  no  terceiro  artigo. 

10'  Que  poderão  deixar  os  ditos  bens  moveis  acima 
outorgados,  que  tiverem  por  vender  ao  tempo  de  sua 
embarcação,  jiOS  procuradores  que  nomearem  de  qual- 
quer nação  que  seja,  que  fiqueui  debaixo  da  obediência 
das  armas  portuguezas. 

11°  Que  lhes  concede  todos  os  mantimentos,  a-sim 
secos  como  molhados,  que  tiverem  nos  armazéns  do 
Re';ife,  e  Fortalezas,  para  se  servirem  d'elles  e  fazerem 
suas  viagens,  largando  aos  soldados  os  de  que  elles  ne- 
cessitarem para  seu  sustento  e  viagem  ;  mas  não  lhes 
outorga  o  niassame  para  os  navios,  porque  promette 
dar-lh'os  aprestados,  para  quando  partirem  para  a  Hol- 
landa. 

12*  Que  sobre  as  pretenções  e  dividas  que  os  ditos 
vassallos  dos  senhores  Estados  Geraes  pretendem  da 
nação  portugueza,  lhes  concede  a  direito,  que  Sua  Ma- 
gestade  o  Sr.  Rei  de  Portugal  decidir,  ouvidas  as 
partes. 

13'  Que  lhes  concede,  que  as  embarcações  perten- 
centes aos  ditos  vassallos,  que  chegarem  a  este  porto, 
ou  íóra  delle,  por  tempo  dos  primeiros  quatro  mezes, 
sem  terem  noticia  deste  accordo,  e  concerto  no  logar 
donde  partiram,  que  possam  livremente  voltar  para 
Hollanda,  sem  se  lhes  fazer  moléstia  alguma. 

14'  Que  concede  aos  ditos  vassallos  dos  senhores 
Estados  Geraes  que  possam  mandar  chamar  seus  navios 
que  trazem   nesta  costa,  para  que  neste  porto  do  Recife 


TERCEIRA    EPOCHA  561 


se  possam  também  embarcar  nelles  e  levar  os  bens 
moveis  acima  outorgados 

15  E  no  que  toca  aos  que  os  ditos  vassallos  pedem 
sobro  não  prejudicar  este  assento,  e  concerto  ás  conve- 
niências que  poderem  estar  feitas  entre  o  Sr.  Rei  de 
Portugal  e  os  Srs.  Estados  Geraes,  antes  de  lhes  chegar 
a  noticia  este  dito  concerto  e  assento:  não  concude  o 
Sr.  Mestre  de  Campo  General  ;  porque  se  não  introajette 
nos  taes  accordos  que  os  ditos  senhores  tiverem  feito  ; 
porquanto  de  presento  tem  exercito,  e  poder  para  con- 
seguir quanto  emprehender  em  restituição  tão  justa. 

Couiliçoojs  relativas  á  niiilícia. — Pela  mesma 
capitulação  assignada  na  campina  do  Taborda, rendeu- 
se  a  milícia  sob  as  seguintes  condições: 

1"  Que  toilas  as  ofíensas  e  hostilidades  que  da  parto 
dos  senhores  Estados  Geraes  e  seus  vassallos  se  tem 
commettido,  se  esquecem  da  nossa,  na  conformidade 
acima  referida. 

2"  Que  o  Sr.  Me>tre  de  Campo  General  concede  que 
os  soldados  assistentes  no  Recife,  cidado  Mauricia  e 
Fortes  saiam  com  suas  armas,  mecha  aceza,  balas  em 
boca  e  bandeiras  largas  ;  com  condição  que  passando 
pelo  exercito  porluguez  ai3agarão  logo  os  morrões  e 
tirarão  ;is  pedras  das  espingardas  acara  binas  e  mett-rão 
as  ditas  armas  na  casa  ou  armazém  que  o  Sr.  Mes- 
tre de  Campo  General  lhes  nomear  ;  das  quaes  o 
dito  Sr.  mandará  ter  cuidado  para  lh'as  entregarem 
quando  se  embarcarem  e  só  ficarão  com  cilas  todos  os 
officiaes  de  sargentos  para  cima  ;  e  que  quando  se 
embarcarem  seguirão  directamente  a  viagem  para  os 
porlos  de  N  mt.-^s,  ou  a  Rochella  ou  outros  das  Províncias 
Unidas  sem  tomarem  porto  algu.n  da  coroa  de  Portuo-al; 
para  tirmezi  do  que  deixarão  os  vassallos  dos  ditos 
senhores  Estados  Geraes  em  reféns  três  pessoas,  a  saber 
um  official  maior  de  guerra,  outra  pessoa  do  conselho 
supremo  e  outra  d'is  moradores  vassallos  dos  Srs. 
Estados  Geraes  e  que  os  officiaes  de  guerra,  e  soldados 
desta  praça  do  Recife,  e  mais  forças  juntas  a  elle,  se 
embarcarão  todos  juntos  em  companhia  do  Sr.  General 
Sogismundo  Schkoppe,  com  condição  de  que  se  entre- 
garão primeiro  á  ordem  do  Sr.  Mestre  de  Campo  General 
as  praris  e  forças  do  Rio  Grande,  Parahyba  e  It  maracá 
deixando  as  pesso  is  que  s<í  pedem  nos  refons,  para 
cumprimento  de  tudo  o  referido  n'este  capitulo. 

36 


562  HISTORIA  DO   BRASIL 

3'  Que  concede  ao  senhor  Segismundo  Van  Sch- 
koppe,  que  depois  de  entregues  as  ditas  praças,  e  forças 
acima  referidas,  com  a  artilharia  que  tinliam  antes,  ou 
até  a  hora  da  chegada  da  Armada,  que  ora  está  sobre 
o  Recife,  leve  vinte  peças  de  bronze  sorteadas  de  qua- 
torze  até  dezoito  libras,  além  das  peças  de  ferro  que 
forem  necessárias  para  defensa  dos  navios  que  forem 
cm  sua  companhia,  as  quaes  peças  lhe  dará,  com  suas 
carretas  e  munições  necessárias;  o  toda  a  mais  artilharia 
munições  e  trem,  se  entregarão  á  ordem  do  Sr.  Mestre 
de  Campo  General. 

4*  Que  o  Sr.  Mestre  de  Campo  General  lhe  concede 
as  embarcações  mais  nscessarias  para  a  dita  viagem 
na  conformidade  acima  referida. 

5'  Que  o  Sr.  Mestre  de  Campo  lhe  concede  os  manti- 
mentos na  conformidade  em  que  estão  concedidos  no 
Capitulo  11"  acima  ;  e  dado  caso  que  não  bastem  os  ditos 
mantimentos,  o  Sr.  Mestre  de  Campo  General  promette 
dar  os  de  que  necessitareni  os  soldados. 

6'  Que  o  Sr.  Mestre  de  Campo  General  concede  ao 
Sr.  General  Sigismundo  Schkoppe  que  possa  possuir, 
alienar  ou  embarcar  quaesquer  bens  moveis,  ou  de  raiz 
que  tiver  no  Recife,  e  os  escravos  que  tiver  comsigo, 
sendo  seus  ;  e  que  o  mesmo  favor  concede  o  Sr.  Mestre 
de  Campo  General  aos  officiaes  de  guerra,  sendo  os  taes 
bens  legitimanicnte  seus  até  á  hora  da  chegada  da 
armada  a  esta  costa  e  concede  aos  officiaes  de  guerra 
que  possam  morar  nas  casas  em  que  vivem  até  á  hora 
de  sua  partida- 

7'  O  Sr.  Mestre  de  Campo  General  concede  que  os 
soldados  doentes  e  feridos  se  possam  curar  no  hospital 
em  que  estão,  até  que  tenham  saúde  para  se  poderem 
embarcar. 

8'  Que  emquanto  estiverem  os  soldados  do  Sr. 
general  Segismundo  em  terra,  não  serão  molestados 
nem  offendidos  de  pessoa  alguma  portugueza ;  e  em  caso 
que  o  sejam,  ou  lhes  íaçam  alguma  moléstia,  se  dará 
logo  conta  ao  Sr.  Mestre  de  Campo  General,  para  cas- 
tigar quem  lh'a  fizer. 

9*  No  tocante  a  irem  juntos  com  os  soldados  que 
hoje  estão  no  Recife,  os  que  se  renderam  e  aprisionaram 
antes  deste  accordo  e  assento,  nã»-  concede  o  Sr.  Mestre 
de  Campo  General,  porque  já  tem  dado  cumprimento 
ao  que  com  elles  capitulou  sobre  sua  entrega. 


TERCEIRA  EPOCHA  563 


10'  o  Sr.  Mestre  de  Campo  General  concede  perdão 
a  todos  ss  rebelladois,  especialmente  a  António  Mendes, 
e  a  todos  os  mais  iiidios  assistentes  nas  praç  is  e  forças 
do  Recife;  e  da  mesma  marnsira  acs  mulatos,  mame- 
lucos e  negros  mas  que  llies  não  concede  aos  ditos  rebel- 
lados  a  honra  de  sahirem  com  as  armas. 

IV  Que  tanlo  que  foi  em  assignadas  as  ditas  capi- 
tulações, se  entregai ão  á  ordem  do  Sr.  Mestre  de  Campo 
Gemral  as  praças  do  Recife  e  cidade  Mauricia,  e  todas 
as  mais  praças  com  sua  artiliiaria,  trem  e  munições:  e 
que  o  dito  Sr.  Mestre  de  Campo  Gtneral  se  obriga  a 
dar  a  guarda  necessária  para  que  no  alojamento  das 
ditas  praças  esteja  com  segurança  a  pessoa  do  Sr. 
General  Segismundo  Schkoppe,  e  mais  otliciaes  e 
ministros  durante  o  tempo  concedido. 

12'  E  110  quo  toca  ao  que  o  dito  Sr.  Segismundo  e 
seus  Soldados  pedem,  sobre  ll^e  não  prejudicar  esta 
concerto  c  assento  ás  conveniências  que  puderem  ser 
feitas  entre  o  Sr.  Rei  de  Portugal  e  os  senhores  Estados 
Geraes,  antes  de  lhes  chegar  a  noticia  este  dite  concerto 
e  assento  :  não  concede  o  Sr.  Mestre  de  Campo,  porque 
se  não  intromette  nas  taes  conveniências,  porquanto 
tem  o  ex'  rcito  e  poder  para  conseguir  quanto  empre- 
hender  em  restituição  tão  justa. 

13'  E  sobre  todos  estes  capitules  e  condições  acima 
contractados  se  obrigam  os  senhores  do  Supremo  Con- 
selho residentes  no  Recife  a  entregar  também  logoá 
ordem  do  Sr.  Mestre  de  Campo  General,  as  praças  da 
ilha  do  Fernão  de  Noronha,  Ce  ;rá,  Rio  Grande,  P;ira- 
hyba  e  ilha  de  Itamaracá,  com  todas  as  suas  forças  e 
artilharia  que  tem  e  tinham  até  a  chegada  da  armada 
portugueza,  que  de  present-3  está  sobre  o  Recife  e  o 
trem  de  artilh  iria,  e  mais  munições  ;com  condição  que 
03  moradores,  e  soldados  assistentes  nas  ditas  pi"aç  is 
e  forças,  gosarão  dos  mesmos  privilégios  e  condições 
concedidas  aos  moradores  e  saldados  da  praça  do  Recife; 
mas  que  o  Sr.  Mestre  de- Campo  General  será  obrigado 
a  mandar  ao  Ceará  uma  nau  sufficiente  para  se  em- 
barcar nella  a  gente,  assim  aos  moradores,  como  sol- 
dados vassalos  dos  senhores  Estados  Geraes,  com  os 
referidos  bens  ;  a  qual  não  levará  mantimentos  para 
sustento  da  viagem  das  ditas  pessoas  que  se  embar- 
careai   do  Ceará;   e  que  todos  os  navios  e  embarcações 


564  mSTOBIA  DO  BRASIL 

que  estiverem  n'aquelles  portos  do  Rio  Grande,  Parahyba 
e  ilha  de  Itamaracà  capazes  de  poderem  passar  a  linha 
lhes  concede  o  Senhor  Mestre  de  Campo  General  para 
sua  viagem,  e  trespasso  de  seus  bens  ;  mas  que  não 
levarão  artilharia  de  bronze,  e  só  lhes  dará  o  Senhor 
Mestre  de  Campo  General  a  de  ferro  que  bastar  para 
sua  defeza. 

Recompensas  aos  lieròes.  —  Eífectuada  a 
expulsão  dos  h-jllandezes  do  Brazil  foi  pródiga  a  corte 
portugueza  em  morcês  aos  heróes  da  notável  pugna. 

Barrrto  foi  nomeado  capitão  general  dePernambuco, 
Vidal  foi  confiriiiado  no  postj  de  capitão  geut^rul  de 
Angola,  governando  a  Bahia  emquanto  o  logar  não 
vagasse.  Henrique  Dias  foi  gratiticado  com  o  augmento 
de  dois  escudos  meiísaes  ou  vinte  e  quatro  aunuaes, 
fora  os  mais  vencimentos,  recebendo  igualmente  em 
propriedade  as  casas  e  terrenos  ondo,  durante  o  sitio 
tivera  a  sua  estancia.  Em  sua  honra  creou-se  em  ,li- 
versas  cidades  e  povoações  regimentos  de  soldados  e 
officiaes  pretos  que  tomaram  o  nome  de  regimento  dos 
Henriques 

António  Dias  Cardoso  foi  feito  mestre  de  campo. 
Ultimas  negfociações  entre  Portugal  e  a 
Hollauda.  — As  pazes  detinitivas  entre  Portugal  e  as 
Províncias  Unidas  de  Holiandasó  foram  clebraaas  em 
6  de  Agosto  de  1661  pelo  tratado  que  n'esta  datasse 
assignou  na  cidade  de  Haya,  apoz  muitas  tentativas 
feiías  pela  diplomacia  hoUandeza  afim  de  recuperar 
Pernambuco . 

A  protecção  dispensada  a  Portugal  por  Luiz  XIV, 
rei  de  França  e  bem  o  casamento  de  D.  Catharina,  de 
Portugal,  com  Carlos  II  de  Inglaterra,  dissudiram  a 
Hollanda  de  sua  pretençào. 

Pelo  tratado  de  paz  Portugal  obrigou-se  a  pagar 
a  Hollanda  quatro  milhões  de  cruzados  dentro  de  dezes- 
seis  annos,  na  razão  do  duzentos  e  cincoenta  mil  cru- 
zados por  anno,  em  dinheiro,  ou  em  assucar,  sal,  ou 
tabaco. 


CAPITULO  V 

o  ESTADO  DO  MARANHÃO  DURANTE  O  SEGUNDO 
período  DA  GUERRA  HOLLANDEZA 

Abstrahindo  do  que  se  refere  á  invasão  dos  hollan- 
dezes  no  Estado  Maranhão  e  subsequente  expulsão, 
por  termos  já  tratado  de  taes  acontecimentos  em  capitulo 
anterior,  íoram  estes  os  factos  de  maior  importância  alli 
occorridos  durante  o  segundo  periodo  da  guerra  hollan- 
deza. 

Movas  capitanias.— Quasi  pelo  mesmo  tompo 
em  que  D .  João  IV  era  acclamado  rei  de  Portugal  o  go- 
vernador do  Pará  creou  arbitrariamente  duas  novas  ca- 
pitanias :  a  de  Caité  que  doou  ao  seu  herdeiro  e  a  de 
Tapuitapera  concedida  a  seu  irmão. 

A  segundo  veio  a  ser  valida  em  15  de  Abril  de  1643, 
por  confirmação  regia. 

O  Pará-llarauhSo  em  16X0.-0  notável  je- 
suíta Padre  António  Vieira  deixou-nos  nas  seguintes 
linhas  um  bosquejo  da  vida  no  Pará-Maranhão  durante 
o  segundo  periodo  da  guerra  hoUandeza. 

«  O  estylo  ou  pouco  governo,  com  que  se  vive  na- 
quellas  partes,  porque  excepto  a  cidade  de  S.  Luiz  do 
Maranhão,  onde  de  poucos  tempos  para  cá  se  corta 
carne  algumas  vezes,  em  todo  o  Estado  não  ha  açougue, 
nem  ribeira,  nem  horta,  nem  tenda  onde  se  vendam  as 
cousas  usuaes  para  o  comer  ordinário,  nem  ainda  um 
arrátel  de  assucar,  como  se  faz  na  terra-  E  sendo  que 
no  Pará  todos  os  caminhos  são  por  agua,  não  ha  em 
toda  a  cidade  um  barco  ou  canoa  de  aluguel  para  ne- 
nhuma passagem,  que  para  um  homem  ter  o  pão  da 
terra,  ha  de  ter  roça  ;  para  com^r  carne,  ha  de  ter  caça- 
dor ;  para  comer  peixe,  pescador  ;  para  vestir  roupa  la- 
vada, lavadeira  ;  e  para  ir  à  missa  ou  a  qualquer  parte, 
conòa  e  romeiros.  E  isto  é  o  que  precisamente  tem  os 
moradores  mais  pobres,  tendo  os  de  mais  cabedal  cos- 
tureiras, fiandeiras,  teares,  e  outros  instrumentos  e  offi- 
ciaes  de  mais  fabrica,  com  que  cada  família  vem  a  ser 
uma  republica  ;  o  os  que   não   podem  alcançara  tanto 


566  HISTOEIA  DO  BRASIL 

numero  de  escravos,  ou  passam  miseravelmente,  ou 
vendo-se  no  espelho  dos  demais  lhes  parece  que  é  mise- 
rável a  sua  vida. 

«  Na  ilha  do  Maranhão,  responde  muito  mal  a  terra 
com  o  pão  natural  d'aquellas  partes,  queé  a  mandioca, 
e  no  Pará,  por  serem  as  terras  todas  alagadas,  são  tão 
poucos  os  logares  capazes  da  planta  da  dila  njandioca, 
(]ue  é  necessário  aos  moradores  mudarem  muitas  vezes 
suas  casas  e  íazendaí^,  deixando  perdidas  e  despovoadas 
as  que  tinham,  e  ir  fabricar  outras  de  novo  d'alli  a  muitas 
léguas  com  excessivo  trabalho  e  despeza.  x\s  madeiras, 
com  a  fabrica  dos  navios,  e  destruição  das  roças,  em  que 
se  deirubame  queimam,  são  já  menos,  e  muito  distantes 
As  canoas  de  assucar  não  se  plantam  uma  só  vez  como 
no  Brasil,  mas  quasi  é  necessário  que  s-  vãorepLuitando 
todos  os  annos.  As  terras  capazes  de  tabaco  também  se 
vão  já  buscar  muito  longe.  O  coner  ordinário  é  caça  e 
pescado,  e  a  caça,  sendo  antigamente  t  inta,  que  quasi 
se  mettia  pelas  casas,  hoje  pela  continuação  com  que  se 
tem  batido  os  mattos,  está  quasi  extincta.  E  no  peixe  se 
tem  experimentado  quosi  o  mesmo,  sendo  no  começo 
infinito.  E  a  razão  de  tudo  é  não  serem  as  terras  da 
America  tão  criadoras,  como  também  mostrou  a  expe- 
riência no  Brasil,  para  onde  se  carrega  de  Portugal  tanto 
peixe  seco  ;  ajudando  muito  no  Maranhão  a  esterilisar 
os  mares  e  rios  os  modos  de  pescar  que  se  usam,  sem 
nenhuma  providencia  ;  com  que  é  mais  o  que  destroem, 
que  o  que  se  aproveita,  e  se  perde  :otalmente  a  cr;ação  ; 
e  como  a  gente  cresce  e  o  sustento  diminue  é  força  que 
se  padeça.  A  este  trabalho  se  acrescenta  outro  incon- 
veniente, também  natural  que  é  o  das  distancias,  assim 
de  uma  povoação  a  outra,  como  dos  fieguezes  á  igreja, 
e  dos  moradores  e  casas  entre  si,  porque  muitas  vezes 
vive  um  morador  distante  do  outro  oito  e  dez  léguas  ;  e 
um  freguez  distante  da  sua  parochia  quarenta,  e  uma 
povoação  de  outra  povoação  cento  e  cincoenta,  que  tantas 
léguas  ha  do  Maranhão  ao  Pará,  sem  haver  em  meio 
mais  que  a  chamada  villa  de  Gurupy,  que  não  tem  trinta 
visinhos;  com  que  o  comn;ercio  e^^communicação  fica 
mui  diíficultoso,  e  é  necessário  que  em  remaras  canoas 
que  vão  e  vem,  se  occupe  tanta  quantidade  de  Índios, 
que  poderá  remediar  muitos  pobres  ;  e  não  se  pôde  acu- 
dir a  este  inconveniente  de  tão  insupportavel  trabalho  e 
despeza  de  outra  sorte,  porque  a  costa  é  incapaz  de  a 


TERCEIRA    EPOCHA  567 


navegarem  barcos  ou  navios,  por  razão  dos  ventos  e 
aguas,  que  sempre  correm  do  uma  parte  com  tanto  Ím- 
peto, que  não  é  possível  romper,  nem  navegar  para 
outra.  » 

Além  do  que  nos  transrnítteo  padre  António  Vieira, 
J.  F.  Lisboa  nos  asse^^up;).  que  as  casas  dos  moradores 
deS.  Luiz  eram  em  ger  d  cob  rtas  de  pindoba.  A  cisa 
da  camará  estava  a  cahir  ea  receita  municipal  não  ex- 
cedia de  53S860,  subindo  a  despeza  a  60g000.  Em  1655, 
porém,  já  a  mesma  receita  havia  attingido  á  cifra  de 
I23á5l90. 

A  povoação  de  S.  Luiz  só  começou  a  gozar  do  bene- 
íicio  de  terçardes  verdes  em  1654,  cornproinettendo-se 
um  rematantea  matar  duas  vezes  por  semana,  mas  obri- 
gando-se  a  camira  a  ficar  com  a  que  não  fosse  vendida. 

Até  1653  fibricou-se  aguardente  de  mmdioci,  a 
que  davam  o  nom(3  de  tiqníra  sendo  então  prohibido 
este  fabrico  e  taxada  a  de  canna  a  400  róis  a  canada. 

A  moeda  ordinária  da  t°rra  eram  fazendas  e  no- 
vellos  de  linha. 

Em  1662  a  cidade  de  S.  Lu'z  contava  uns  seiscentos 
moradores,  e  na  ilha  do  Maranhão  existiam  três  aldeias 
de  Índios  que  forneciam  trabalhadores,  os  quaes  eram 
gratificados  recebendo  por  mez  de  duas  a  seis  varas  de 
paniio  de  algodão.  Na  ilha  moiam  dois  engenhos  de  as- 
sucar  e  seis  engenhocas  de  aguardente  ;  no  Meary  ha- 
via três  engenhos;  no  Itapicurú,  seis  ;  noMony,  três. 
Além  de  assucar  e  aguardente,  vendida  esta  ultima  a 
600  réis  a  c  inada,  exporta va-se  também  tabaco  e  cravo. 

A  capitania  deTapuitapera  onde  linha  sido  edificada 
a  vi  lia  de  Alcântara  desenvolvera-se  com  o  auxilio  de 
colonos  açorianos  vindos  das  ilhas  de  S .  Miguel  e  Santa 
Maria.  Possuía  dois  engenhos  e  cento  e  vinte  mora- 
dores ;  contava  igual  numero,  tanto  de  moradores  como 
de  engenhos  a  capitania  de  Caité. 

Belém  possuía  quatrocentos  moradores  e  em  toda  a 
capitania  do  Pará  encontravam-se  sete  engenhos  ;  a  de 
Cametá  tinha  um. 

Tanto  acidado  deS.  Lni^  como  a  de  Belém  pos- 
suíam, além  da  respectiva  matriz  e  Casa  de  Misericórdia, 
mais  quatro  conventos  e  duas  igrejas. 

Comprava-se  no  Pará  um  escravo  índio  por  cento  i; 
cincoenta  varas  de  panno  de  algodão  e  no  Maranhão 
por  quatrocentos,   custando  a   vara  de  200  róis  e  estes 


568  HISTOEIA  DO  BRASIL 

preços  ínfimos  pelos  quaes  se  traficava  com  a  liberdade 
do  homem  americano,  e  que  começaram  a  vigorar  em 
1L70,  eram  ainda  assim  muito  elevados  relativamente 
aos  que  vigoravam  annos  íintes. 

O  ordenndo  do  governador  do  Estado  era  de  3,000 
cruzados  ;  o  do  capitão-mór  200  ;  o  do  sargento-mór  40 
ou  50  ;  dos  capitães  de  infantaria  25  a  28  e  dos  soldados 
seis  a  oito  mil  réis. 

A  acclauiaçâo  de  O.  «Voão  IV. — Foi  Pedro 
Maciel  Parente,  sobrinho  do  capitão- general,  e  já  no- 
meado capilão-mór  do  Pará,  quem  trouxe  ao  Brasil  a 
noticia  da  restauração  de  Portugal,  procedendo-se  logo 
em  S.  Luiz  e  em  Belém  e  com  as  solemnidades  do  cos- 
tume á  acclamação  de  D ,  João  IV. 

Factrts    políticos    occorridos    no    Pará.  — 

Quando  chegou  a  Belém  a  noticia  da  occupação  de 
S.  Luiz  pelos  hollandezes,  o  capitão-mór  C  imacho  fez 
vir  para  a  Capital  do  Pará,  com  as  forças  que  tinha  ao 
seu  dispor,  Pedro  Velho,  capitão-mór  do  cabo  do  Norte 
e  Gurupá  ;  pouco  depois,  no  ent^inio,  sobrevieram  des- 
intelhgencias  entre  os  dois  e  João  Veiho,  contrariado, 
retirou-se  para  o  Una. 

Logo  em  seguida  falleceu  Camacho  e  tendo  o  go- 
verno passado  ás  m.ãos  da  Camará  Municipal,  conti 
nuaram  ainda  por  algum  tempo,  até  que,  as  discórdias 
a  gente  de  Pedro  Velho,  durando  esta  recebendo  no- 
ticia da  sublevação  effectuada  no  Maranhão  por  António 
Muniz  Barreiros,  todos  se  harmonisaram  outra  voz  afim 
de  enviar  a  S.Luiz  os  soccorros  pedidos  dos  quaes  já 
falíamos  em  anterior  capitulo. 

^  Não  tenios  toda  a  certeza,  diz  Varnhagen,  apezar 
doque  a  este  respeito  escrevemos  em  outro logar,  si  esses 
reforços  chegaram  a  seu  destino,  quando  sabemos  que, 
menos  de  dois  mezes  depois  de  partidos,  regressava  do 
Maranhão  á  ilha  do  Sol  parte  da  trop  i  auxiliar  paraense 
que  em  Tapuitapera,  por  falta  de  munições  de  bocca  e 
de  gu«írra.  haviam  resolvido  separar-se  de  António  Tei- 
xeira de  Mello,  successor  do  dito  António  Muniz  Bar- 
reiros, e  o  qual  só  chegou  a  receber  desta  capitania  mais 
soccorros  depois  que  nella  desembarcou  o  seu  terceiro 
governador  e  capitão-general  eífectivo.  » 

Este  governador  a  que  se  refere  Varnhagen  foi  Pe- 
dro de  Albuquerque,  o  celebre  defensor  do  Rio  For- 
moso, o  qual,  quasi  ao  chegar  a  Belém  ia  sendo  victima 


TERCEIRA    EPOCHA  569 


de  um  naufrágio.  Pelro  de  Albuquerque  falleceu  em 
1(544,  sete  mezes  depois  de  ser  empossado  no  governo  do 
Pará,  substituindo-o  Feliciano  Corrêa,  que  leveporad- 
junto  o  sargento-mòr  Francisco  Coelho  de  Carvalho,  por 
automasia  o  Sardo. 

Durante  o  governo  de  Feliciano  Corrêa  realisa-se 
a  expulsão  dos  hollandezes  de  Maricary,  onde  elles  se 
achavam  ás  ordens  de  Vau  der  Góes. 

Successivamente  substituiram  Feliciano  Corrêa  os 
seguintes  gove:nadores  :  Manuel  Pitta  da  Veiga,  Ayres 
de  Souza  Chichorro,  Luiz  de  Magalhães  e  Ignacio  do 
Rego  Barreto,  nada  occorrendo  de  importante  sob  o  go- 
verno dos  mesmos,  a  não  ser  a  campanha  aberta  pelo 
Padre  António  Vieira  com  o  intuito  de  subordinar  com- 
pletamente aos  jesuítas  todos  os  Índios  d'aquelle  Estado. 

O  padre  António  Vieira  e  os  iiKíios  — Foi 
empenhando-se  na  celebre  questão  dos  Índios  que  o  je- 
suíta António  Vieira  começou  a  adquirir  nouieda  entre 
os  seus  contemporâneos. 

Vieira  que  tinha  sido  creado  no  Brasil,  ao  qual  cha- 
mava sua  segunda  pátria,  desembarcara  no  Maranhão 
como  superior  da  Companhia  de  Jesus  aos  16  ou  17  de 
Janeiro  de  1653,  trazendo  ordem  ampla  para  proceder  a 
respeito  dos  Índios  conforme  lhe  conviesse. 

Bem  depressa,  porém,  desenganou-se  Vieira  de 
conseguir  os  intentos  da  Companhia  no  Maranhão  em 
consequência  da  opposicão  que  encontrou  nos  morado- 
res e  assim  resolveu  passar  se  ao  Pará,  onde  chegou  a 
24  de  Novembro  de  1653. 

Não  foi  porém  mais  feliz  nesta  outra  capitania, 
e  ahi  foi  atéobrigadoaassignarumapromessade  que  não 
se  envolveria  nas  questões  relativas  á  liberdade  dos  Índios. 
«  Resolveu-se  entretanto  a  acompanhar,  diz  Varnhagen, 
como  capellão,  uma  expe  lição  mandada  por  um  Gaspar 
Cardoso,  ferreiro  do  Pará,  que  foi  ao  Tocantins  em  busca 
de  Índios.  De  volta,  enriquecido  com  a  observação  das 
injustiças  e  rigores  que  em  taes  guerras  se  praticavam 
(como  alliàs  succede  em  todas  as  guerras)  (1)  tratou  de 
pôr  em  contribuição  o  seu  engenho,  para  mostrar,  como 
chegou    a    fazer  em  uma    carta   que  então    dirigio   à 


fl)  Protestamos  contra  essa  qualiíicaçriO  que  Varnhagen  dá 
ás  exfitídições  contra  os  índios  :  não  eram  guerras  e  sim  caçadas 
infamissimas. 


570  HISTORIA  DO  BBÂBIL 

Corte,  que  taes  abusos  só  poderiam  acabar,  entregando 
a  Corte  á  Companhia  de  Jesus  toda  a  jurisdicção  tempo- 
ral sobre  os  mesmos  Índios,  conforme  a  mesma  compa- 
nhia tanto  aspirava  no  sul  do  Brasil,  a  exemplo  do  muito 
poder  que  outros  dos  seus  companheiros  já  sobre  elles 
exerciam  no  visinho  Paraguay,  onde  chegaram  a  fun- 
dar um  pequen  >  império  indf pendente,  exclusivamente 
em  proveito  da  dita  companhia.  » 

Ainda  animado  por  esse  projecto  resolveu  Vieira  pas- 
sar-se  á  metrópole,  e  ahi  conseguio  do  rei  a  creação  de 
uma  Juiita,  chamada  das  Mis§,ões  e  composta  de  lettra- 
dos  a  qual,  apezar  dos  protestos  do  povo  do  Maranhão 
obteve  a  promulgação  da  lei  de  9  de  Abril  de  1655,  con- 
cedendo á  companhia  toda  a  supremacia  sobre  os  Índios, 
com  exclusão  de  outra  qualquer  ordem  ou  poder,  e  sendo 
o  padre  Vieira  declarado  loge  chefe  ou  superior,  com 
poderes  quasi  iilimitados. 

A  lei  de  9  de  Abril,  no  emtanto,  apezar  de  redigida 
sob  a  influencia  de  Vieira,  não  prohibia  a  escravidão  dos 
Índios  e  íi penas  subnrdinava-os  á  companhia,  p-lo  que 
não  poder*  mos  deferir  ao  illustre  jesuíta  a  aureola  de 
philantropo  visto  como  todos  os  seus  esforços  tendiam 
unic  imente  para  a  satisfação  de  suas  ambições  de  casta. 
A  lei  foi  recebida  com  muito  desagrado,  dando  até 
logar  a  algans  conflictos  que  assoberbariam  s  í  não  fosse 
a  energia  posta  em  execução  por  André  Vidal  de  Negrei- 
ros, grande  aniígo  de  Vieira,  e  então  governador  geral 
do  Estado  do  Maranhão. 

Conseguindo  esse  triumpho  Vieira  percorreu  o  sertão 
de  Ibiapaba  ao  Amazonas  afim  de  fomentar  a  catechese. 
Em  15  de  Janeiro  de  1661  Vieira  recebeu  uma  re- 
presentação assignada  pelos  moradores  do  Pará  e  Mara- 
nhão, em  a  qu^il  estes  se  queixavam  amargamente  da 
falta  de  escravos,  Vieira,  no  entamto  não  se  moveu  a 
estas  lamentações. 

A  camará  de  S.  Luiz  irritou-se  com  essa  dureza  do 
padre  e  lavrou  um  protesto  que  foi  dirigido  ao  gover- 
nador e  ao  governo  da  metrópole,  forçando  ao  mesmo 
tempo  o  superior  a  desistir  perante  a  camará  do  mando 
supremo  dos  índios. 

No  Pará  também  levantou-se  o  povo  e  todos  os  je- 
suítas das  duas  cidades  foram  presos  e  enviados  para 
Portugal,  com  consentimento  do  governador. 

A'  vista  destes  acontecimentos  o  padre  fez-se  de  vela 


TERCEIRA  EPOCHA  -571 


pira  o  ro'no,  porém  ao  chegar  ahi  já  não  encontrou  mais 
vivo  o  seu  protector.  D.  João  IV.Eulão  reinava  o  joven 
AíTonso  VI ;  Vieira  nada  poudo  cnseguir  sendo  até  per- 
seguido pela  inquisição,  que  o  nccusou  pelo  seu  es- 
cripto  acerca  do  Quinto  Império.  Vieira  só  regressou  ao 
Brasil  em  1681,  porém  já  velho  e  alquebrado. 

Dos  seus  trabalhos  e  méritos   litterarios  faláramos 
em   outro  legar. 


CAPITULO    VI 

o  ESTADO  DO  BRASIL  EXTRANHO  A'  LUCTa 
HOLLAND-EZA  DURANTE  O  SEGUNDO  PE- 
RÍODO DA  GUERRA. 

Sem  difficLildade  realisou-se  a  acclamação  de 
D.  João  IV,  no  Rio  de  Janeiro,  embora  o  respectivo  go- 
vernador, Salvador  Corrêa  de  Sá  e  Benevides,  ao  começo 
mostrasse  alguns  escrúpulos  que  foram  afinal  dissipados 
pelos  jesuítas  portuguezes. 

Pouco  depois  foi  a  mesma  ceremonia  realisada  em 
Santos  e  S.  Vicente  e  afmal  em  S.  Paulo,  coinquanto 
com  alguma  demora. 

.tniador  Bueno. — Ao  chegar  a  S.  Paulo  a  no- 
ticia da  resLauração  dos  Braganças  no  throno  lusitano, 
tiveram  os  paulistas,  segundo  affirmam  alguns  autores, 
ideia  de  se  fazerem  independentes,  e  convidaram  para 
rei  do  novo  estado  que  pretendiam  formar  Amador 
Bueno,  filho  da  província  e  homem  que  gosava  de  illi- 
mitado  credito  entre  os  seus  conterrâneos. 

Frei  Gaspar  da  Madre  de  Deus,  que  nos  transmitte 
semelhante  fdcto,  o  qual  se  podo  considerar  como  a 
mais  remota  origem  da  iniependencia  nacional,  diz  no 
entanto  que  Amador  Bueno  recusou  obstinadamente 
essa  subida  lionra,  aconselhando  aos  seus  compatriotas 
a  se  submetterem  ao  rei  de  Portugal. 

Os  Jesuítas. — A  debatida  questão  da  escravidão 
dos  Índios  tornava  os  jesuítas  impopulares  em  todo  o 
Brasil. 

Em  Julho  de  1640  foram  esses  padres  expulsos  de 
S.  Paulo;  pouco  depois  tornaram  a  acceital-os  sob 
certas  condições,  porém  em  19  de  maio  de  1641  votou  a 
camará  para  que  se  tornasse  efifectiva  a  mesma  ex- 
pultrão. 

No  Rio  de  Janeiro,  vendo-se  os  jesuítas  ameaçados 
em  um  motim  popular,  propuzeram,  por  intermédio  de 
Salvador  Corrêa  uma  transacção  em  que  cada  parcia- 
lidade cedesse  do  mais  exagerado  de  suas  pretenções. 
O  accordo  foi  assignado  aos  2'Z  de  Junho  de  1640,  decla- 


574  HISTORIA   DO   BEAZIL 

rando  os  padres  desistir  dos  direitos  que  pudescem  ter 
com  a  publicação  o  execução  da  bulia  que  exhibiam; 
bem  como  de  serem  parte  em  tal  questão,  ou  de  agen- 
ciareui  directamente  por  ella  em  Roma  :  compromette- 
ram-se  a  mais  não  se  envolverem  na  administração  dos 
Índios  qu  ;  os  moradores  tivessem  era  suas  casas,  mas  só 
nos  das  ai  leias  dentro  das  quaes  se  obrigaram  a  não 
consentir  que  entrassem  os  do=5  particulares.  Pela  sua 
parte  a  camará  e  povo  comprometteram-se  a  desistir, 
e  a  retirar  os  capitul  >s  e  resposta  que  tinham  dado  em 
seu  aggravo,  sem  d'isso  tornar  a  tratar  nem  directa, 
nem  indirectamente;  salvo  se  os  padres  faltassem  ao 
que  capitulavam. 

Em  S.  Paulo,  porém,  as  cousas  passaram-se  de 
modo  diverso. 

De  ha  muito  sentiam-se  os  paulistas  indispostos 
com  Salvador  Corrêa,  governador  do  Rio  de  Janeiro, 
e  essa  antipathia  cresceu  quando  o  mesmo  Salva- 
dor Corrêa  procurou  accommodal-os  com  os  jesuítas 
que  tinham  sido  expulsos  de  S.  Paulo. 

Em  S.  Vicente  c./nseguiu  elle  que  se  assignasse  um 
accordo  idêntico  ao  do  Rio  de  Janeiro;  em  Piratiiiinga, 
porém,  os  moradores,  ao  saberem  da  sua  approximação, 
tomaram  armas  e  elegeram  quarenta  e  oito  individuos 
para  que  estes  mantivessem  illesos  os  seus  direitos. 

A'  vista  d'isso  Salvador  Corrêa  propôz  os  s  guintes 
capítulos  de  conciliação  que  toram  aceitos  após  algumas 
duvidas : 

Eis  os  capítulos: 

«  Que  os  quarenta  e  oito  do  povo  se  obrigariam, 
com  os  officiaes  da  camará,  a  obdecer  ás  ordens  que 
viessem  de  El-Rei,  sem  direito  de  replicar,  excepto  no 
que  respeitasse  aos  índios,  se  as  ordens  não  fossem  a 
seu  gosto. 

« Que  elle  governador  elegeria,  para  administrar 
e  fazer  beneficiar  as  minas,  três  directores,  dos  quaes 
dous  seriam  individuos  da  villa  de  S.  Paulo,  e  um  de 
Santos. 


(1)  Salvador  jurisdiccionava  os  paulistas  em  virtude  da 
nomeação  que  possuía  de  capitão  greneral,  com  o  titulo  de  almi- 
rante governador  com  que  o  distinguira  o  raarquez  de  Mon- 
talvão . 


TERCEIRA    EPOCHA  575 


ft  Que  estes  três  directores,  com  o  thesoureiro  e  offi- 
ciaes  das  minas,  lhe  dariam  conta  do  que  se  fizesse. 

«Que  obedeceriam  iodos  aos  ofíiciaes  de  justiça 
legalmente  postos,  e  havendo  duvidas  se  decidiriam 
pelo  maior  numero  de  votos,  entre  os  ditos  officiaes  e 
os  quaienta  e  oito  eleitos 

«  Que  não  consentiriam  dissenções  nem  palavras 
para  com  os  moradores  das  vil'as  marinhas. 

«  Que  aceitos  estes  capitules,  desimpediriam  os  de 
S.  Paulo  os  portos  e  caminhos,  e  elle  governador  os 
deixaria  em  paz,  recolhendo-se  ao  Rio  de  Janeiro.» 

Apezar  d'isso  os  paulistas  enviaram  á  corte  uma 
representação,  o  mesmo  fizeram  os  jesuilas,  e  o  governo 
da  metrópole  ordenou  que  estes  fossem  restiiuidos  até 
que  se  tomassem  providencias  mais  completas. 

«O  íacto,  porém,  diz  Varnhagen,  é  que  houve  de- 
mora antes  de  chegarem  os  paulistas  a  um  novo  accor- 
do  com  os  jesuítas,  e  que  a  principio  somente  elle  se 
levou  avanttí  cedendo  os  mesmos  jesuítas  da  pretenção 
dl'  se  intrometterem  na  questão  da  escravidão  dos  ín- 
dios. Deste  modo  ainda  em  1648  uma  numerosa  ban- 
deira de  paulistas  accommetleu  a  missão  de  Xerez,  sobre 
o  Embotetey,  hoje  denominado  Mondego,  que  já  era  bis- 
pado, e  fez  prisioneiros  a^uelles  de  seus  moradores  que 
não  conseguiram  fagir.  Chegaram  os  invasores  a  pro- 
jectar um  ataque  á  própria  cidade  de  Assumpção,  onde 
estava  então  de  governador  D.  Andres  Garavito  de 
Leon;  e  talvez  houveram  levado  avante  o  seu  propósito 
se  não  lhes  sahe  em  campo,  á  frente  de  numerosas 
forças  de  índios,  o  Padre  Alfaro,  obrigando  os  aggres- 
sores  a  retirarem-so  destroçados.  Por  ventura  seriam 
restos  d'estas  bandeiras  as  que,  correndo  para  o  norte, 
vieram  vaiar  ao  Tocantins  e  a  descer  as  aguas  desse 
rio,  ao  mando  do  mestre  de  campo  António  Raposo, 
apresentando-se  em  Gurupá  em  1651.» 

Privilégios  outorgados  aos  iiioradoros  do 
Rio  de  Janeiro.— Querendo  D.  João  IV  recompen 
sar  a  camará  eos  moradores  pelo  zelo  com  que  serviram 
aos  seus  interesses,  por  occasião  de  receberem  a  noticia 
de  sua  acclamação,  utorgou-lhe  os  seguintes  privilé- 
gios :  o  goso  dos  foros  de  nobres  ou  infanções,  não  po- 
dendo ser  postos  a  tormento,  nem  presos  nas  cadeias, 
porém  só  no^  castellos  ou  em  suas  cascas  ;  fazerem  U'^o 
de  sedas  e  trajos  mais  ricos,  andarem  armados,  isenção 


576  HISTORIA  DO   BEAZIL 

de  dar  aposentadorias,  não  serem  apenados  ou  seus 
gades,  nem  os  seus  creados  recrutados  para  a  guerra. 

Estes  privilégios  tornaram-se  depois  extensivos  a 
diversas  cidades  do  Brasil,  a  começar  pela  do  Ma- 
ranhão. 

Estado  das  capitanias  meridiouaos. — Sal- 
vador Corrêa  foi  substituído  na  governaçãj  do  Rio  de 
neiro  por  Luiz  Barbalho,  o  famoso  pernambucano,  que 
após  o  desbarato  da  esquadra  do  conde  da  Torre  com- 
mettera  a  celebre  retirada  do  porto  dos  Touros  (no  Rio 
Grande  do  Norte)  para  a  Bahia,  cabendo  a  elle  a  inicia- 
tiva da  canalisação  das  aguas  do  riacho  Carioca. 

Fallecendo  p-iuco  depois  passou  o  governo  ás  mãos 
da  camará  municipal. 

A  cultu;a  das  terras  visinhas  á  cidade  do  Rio  de 
Janeiro  era  prospera  e  esta  já  possuia  três  ruas  na  parte 
baixa,  sendo  avultada  a  exportação  de  assucar. 

Em  1648  fundou-se  nella  a  Ordem  Trceira  do 
Carmo,  análoga  a  de  >S.  Francisco  da  Penitencia,^  que, 
segundo  já  existia  parece  desde  1616. 

O  povo  do  Rio  de  Janeiro  andou  durante  muito 
tempo  em  conflictos  com  as  auctoridades  e  agentes  ao 
Santo  Officio,  os  quaes  em  tudo  se  intromettiam  e  até 
faziam  prisões;  a  10  de  Maio  de  1646,  porém,  uma 
carta  regia  ordenou  aos  ouvidores  do  Rio  que  não 
consentissem  que  o  bispo  ou  os  seus  ministros  pren- 
dessem seculares. 

Na  c  ipitania  do  Espirito  Santo  verificou-se  que  não 
eram  esmeraldas  as  pedras  existentes  na  seria  do 
mesmo  nome  ;  em  Porto  Seguro  e  Ilhéus  nomearam-se 
em  1644  feitores  para  o  monopólio  do  pau  brasil  e  na  Ba- 
hia elegeram-se  mestres  e  juiz  do  povo,  idênticos  aos  de 
Portugal,  resolução  e>sa  que  foi  approvad^i  pela  Corte, 
a  qual,  em  1652  restabeleceu  o  antigo  Tribunal  da 
Relação,  só  com  oito  dezembargadores  em  logar  de 
dez,  como  (iutr'ora. 

Em  1651  descobriram-se  para  os  lados  de  Para- 
naguá algumas  minas. 

Uoitopolios  obtidos  pela  Companhia  Geral 
do  Cosiimercio  do  Brasil. — Terminada  a  lucta  com 
os  hollaiidezes,  a  Companhia  Geral  de  Com-nercio,  que 
efficazraente  contribuirá  para  a  expulsão  total  dos  in- 
vasores, obteve  em  recompensa  diversos  favores,  entre 
os  quaes  o  monopólio  da  venda  do  bacalhau,  da  farinha 


TERCEIRA  EPOCHA  577 


de  trigo,  do  azeite  e  do  vinho,   que  se  obrigou  a  vender 
por  certos  preços,  fixos  no  seu  próprio  regimento. 

Esta  concessão  produziu  o  absurdo  e  vexatório  al- 
vará de  I9de  setembro  de  1649,  mandando  cumprir  uma 
providencia  anterior  que  extinguia  no  Brasil  as  bebidas 
do  chamado  vinho  de  mel,  aguardente  de  canna  e  ca- 
chaça. 

Tal  protecção  concedida  á  Companhia  prejudicou 
extraordinariamente  o  progresso  nacional,  muito  depri- 
miu a  riqueza  particular  e  suffocou  nascente  indus- 
tria e   commercio  já  prospero. 

Aqui  fazemos  terminar  a  terceira  epocha  da  historia 
pátria. 

A  lucta  com  os  hollandezes,  si  levou  a  effeito  a  ap- 
proximação  das  três  raças  que,  desde  os  albores  do  sé- 
culo XVI,  viviam  no  paiz,  facilitando  assim  a  formação 
da  nacionalidade  brasileira,  que,  conforme  veremos  no 
seguimento  desta  obra,  de  então  por  diante  começa  a 
detinir-se  e  cada  vez  com  mais  relevo,  embargou  no  en- 
tanto, por  algum  tempo  o  progresso  material  da  região, 
não  sendo  sufficientemente  compensativos  os  melhora- 
mentos introduzidos  por  Nassau  no  Recife  e  cidade 
Mauricia. 

Pernambuco,  que  era  o  principal  centro  da  prod ac- 
ção assucareira,  Itamaracá,  Parahyba,  Rio  Grande  do 
iíorte,  Alagoas,  Sergipe  que  começavam  a  animar-se  na 
lavoura  da  corna  e  na  industria  pastoril,  ficaram  corn- 
pletamente  devastados ;  a  Bahia  sofíreu  damnos  consi- 
deráveis, no  Ceará  nada  se  adiantou,  o  Maranhão  foi 
muito  maltratado.  Fortificações  brechadas  ou  arrazadas, 
cidades  e  villas  reduzidas  a'  montões  de  ruinas,  povoa- 
voações  abandonadas,  estancias  e  engenhos  incendiados 
e  a  desolação  por  toda  a  parte,  tal  era  o  aspecto  e  condi- 
ção do  Brasil  que  se  chamou  hollandez,  após  a  termina- 
ção da  grande  guerra. 

As  capitanias  meridionaes,  isto  é,  as  capitanias  de 
Ilhéos,  Porto  Seguro,  Espirito  Santo,  Rio  de  Janeiro, 
Santo  Amaro  e  São  Vicente  conservaram-se  estaciona- 
rias durante  os  trinta annos  da  lucta;  mal  podia  a  me- 
trópole attender  ás  exigências  da  guerra,  quanto  mais 
preoccupar-se  com  regiões  que  achavam-se  em  plena 
paz;  desfructava-as  unicamente  e  mais  nada. 

Aqui  ou  ali,   é  verdade,    ergue-se  uma  povoação, 

37 


578  HISTOEIA   DO   BRASIL 


este  ou  aquelle  faz  uma  entrada  pelo  sertão  em  busca 
de  minas  ou  de  Índios  para  escravisar,  porem  a  vida  por 
ahi  é  ainda  puramente  vegetativa  ;  dilata-se  a  custo,  sem 
elasticidade,  nem  vigor. 

As  lettras  participam  do  desanimo  geral ;  apenas  o 
Padre  Vieira  exibe  aos  fieis  da  Bahia,  do  Maranhão  e  do 
Pará,  os  seus  sermões,  muito  fartos  de  imagens,  porem 
ocos  de  ideas,  e  um  ou  outro  frade  começa  a  escrever 
chronjcas  insipida?. 

Artes  também  ainda  não  existem  ;  um  ou  outro 
convento  ou  ermida,  ás  vezes  levantados  á  custa  de 
qualquer  piedosa  patifaria,  como  a  de  Frei  Pedro  Pa- 
lácio no  Espirito  Santo,  em  geral  muito  pittorescos  pela 
posição  em  que  os  assentam,  porém  de  architectura  ba- 
nal ou  grosseira;  uns  retábulos  pintados  por  mão  pesa- 
das, mais  affeitas  ao  manejo  da  brocha  d^  caiação  que 
ao  do  pincel,  uns  productos  de  ourivesaria  graúdos, mas- 
siços,  muito  ricos  na  quantidade  de  metal  empregado, 
mas  pobre  de  gosto,  e,  por  acaso,  um  ou  outro  trabalho 
de  talha  arranjado  com  certa  perfeição,  eis  o  que  apenas 
se  via  no  Brasil  em  1661 . 

Grande,  futurosa,  possuindo  todas  as  condições  exigi- 
das para  um  rápido  desenvolvimento  n'essa  epocha,  no 
entanto  nossa  pátria  não  passava  ainda  de  uma  pobre 
terra  colonial,  atrazadissima,  grosseira,  valendo  só  pelos 
bons  rendimentos  que  proporcionava  a  semente  lançada 
á  terra,  bem  como  por  suas  excellentes  madeiras  e  me- 
aes  de  preço. 


Resta-nos  agora  dizer  uma  palavra  sobre  questão 
que  costuma  surgir,  sempre  que  se  trata  de  hoUande- 
zes  no  Brasil.  Refere-se  ao  facto  de  «aber  se  o  pr(^- 
gresso  deste  paiz  estaria  hoje  mais  accentuado  dado  o 
caso  de  que  tal  povo  se  estabelecesse  aqui  definitiva- 
mente. 

Pensamos  que  não,  ejulgamos  que  é  sufficiente  lan- 
çar-se  um  olhar  para  o  estado  de  decadência  em  que  os 
hoUandezes  tém  conservado  as  suas  colónias  da  Oceania, 
para  se  comprehender  que  pouco  teriam  eiles  feito  no 
Brastl. 

Nosso  progresso  seria  tão  embaraçado  por  esse  povo, 
como  o  fora  pelo  portuguez  ;  e  quanto  a  este,   por  forma 


TERCEIRA  EPOCHA 


alguma  pôde  reclamar  para  si  excluí^ivamenle  a  paierni- 
dade  de  nossa  civilisação,  que  aliás,  é  o  producto  de  di- 
versos factores  de  natureza  diversa . 

Si  o  portuguez  fosse  o  único  agonie  a  influir  na  nesta 
evolução,  o  Brasil  seria  ainda  hoje  Angola  uu  Moçam- 
bique. 


FIM   DA  TERCEIRA  EPOCHA 


índice 


Pags. 

Introducção | 

rVoçòes  de  :sreologpia 

A  sciencia  da  geologia 5 

A  crosta  terrestre & 

Phenomenos  de  dynamica  terrestre  externa ft 

Dunas ^ 

A  erosão  marinha 7 

Depósitos  sedimentares 7 

Erosões  torrenciaes g 

Os  deltas 8 

Os  canõns 8 

Alluviões S 

Avalanches 8 

Geleiras 9 

Acção  da  agua  do  mar 9 

Acção  das  aguas   meteóricas 9 

Turfeiras  e  bancos  corallinos 10 

Phenomenos  de  dynamica  terrestre  interna 10 

Os  vulcões * 10 

Solfataros 10 

Geysers 11 

Traver  tinos 11 

Fontes  thermo-dj^namicas , II 

Volcões  de  lama 11 

Mof  etas 11 

Tremores  de  terra 11 

Phenomenos  geológicos  antigos 1^ 

Eras  geológicas 12 


582  índice 

PAGS. 

Epocha  azoica  ou  primitiva - «3 

Epocha  paleozóica  ou  primaria 13 

Epocha  mezosoica  ou  secundaria 14 

Epocha  neozoica    ou  terciária 16 

Epocha  quaternária 18 

Xoçòes  de  anthropologrla 

Craneologia 19 

Caracteres  anthropologicos  do  esqueleto • 22 

Caracteres  anthropologicos,  estudados  no  corpo  vivo 23 

Influencia  dos  meios , 23 

Accli  mação 23 

Classificação  das  raças 23 

Causas  da  extincção  das  raças 24 

Typos  anthropologicos 25 

•Origem  da  espécie  humana •...  25 

IVoções  de   paleoethnologi^ 

'Chronologia  paleoethnologica 28 

Chronologia  pre-historica  de  Broca 29 

O  homem  terciário • 30 

O  homem  de  Thenay 30 

O  homem  do   Cantai 31 

•O  homem  de  Portugal * 31 

O  homem  terciário  americano 31 

Periodo    paleolithico 32 

Epocha  de  Chelles 33 

Epocha  do  Moustier 34 

Epocha  de   Solutré 34 

Jlpocha  da  Magdalena 34 

O  homem  paleolithico   americano 35 

Periodo  neoUthico 35 

Palaffitas « 36 

•Crannoges 37 


índice  583 


PAGS. 

Habitações   terrestres 37 

Officinas 37 

Exploração  do  silex 38 

Kjoekkenmoedd  ings 38 

Monumentos    megalithicos 38 

Menhirs 38 

Cromlechs 38 

Dolmens 39 

Túmulos 39 

Nuraghi 39 

O  homem  mesolithico  americano 39 

Civilisações  americanas  extinctas 42 

Os  Pueblos  ou  cli ff-dwellers 42 

Civilisações  do  México  e  da  America  Central 43 

Civilisações  extinctas  do  Peru  e  da  Bolivia 44 

Civilisação  dos  Chibchás  ou  Muyscas 4õ 


NOÇÕES  SOBRE  A   EVOLUÇÃO   DA  CIVILISAÇÃO  HUMANA 
Evolaçào  da  vida  nutritiva 


Os  alimentos ^.    •.  4  5 

A  cosinha 47 

As  bebidas  embriagantes .......  47 

As  substancias  enervantes  ou  excitantes 4S 


Evolução   da  vida    sensitiva 

O  amor 48 

Delicadeza  dos  sentidos 48 

Os  adornos ' 49 

As  artes  49 

A  dansa 49 

A  musica  vocal 50 

A  musica    instrumental 50 


584  índice 


Artes  graphicas  e  plásticas 50 

A  pintura 51 


Evolução  da  vida  affectÍTa 

A  desalieição   pela  prole 51 

O  aborto , 5r 

O  infanticídio 52 

A  afleição  pela  prole 5a 

Amor  filial 52 

Assistência  aos  velhos  e  doentes 52 

Instinctos  ferozes... 52 

Os   sentimento^   altruístas 53 

A  condição  da  mulher 53 

Costumes  guerreiros 53 

O  canibalismo 54 

Attenção  para  com  os  mortos 54 

A  religião 55 

A  vida  futura 55 

Os   deuses 55 

O  culto  e  o  sacerdócio 56 


Evolução  da    vida  social 

O  casamento 57 

A  familia 57 

A  propriedade 58 

A  moralidade 58 

A  constituição  das  sociedades  5^ 

Evolução  da  vida  intellectual 


Os  grãos  da  vida  psychica 60 

A  industria 60 

As  linguas 61 


índice  585 


PAGS. 

Aptidões  mathematicas f52 

Asupputação   do  tempo .• ^ 02 

.,  CAPITULO  I 

Estmctiira  ireolosica 65 

Phenomenos  geológicos    recentes 66 

Terrenos   primitivos 67 

Terrenos  primários g-y 

Terrenos  secundários ^^q 

Terrenos  terciários -yj 

Terrenos   quaternários §2 

Historia  geológica    do  Brasil • 74 

CAPITULO  II 

O   meio  ptayslco 77 

Posição  e  limites 79 

A  costa , 7g 

Relevo  do  solo §2 

Rios  e  vertentes ^  84 

Climas,  ventos,  estações   e    salubridade S4 

A  flora gg 

A  fauna §7 

Os  mineraes 88 

CAPITULO  III 

Prehistorla  Brasileira 9 1 

Theoria  da  procedência  asiática  do   homem  europeo 92 

O   autochtonismo 93 

Dr .  Peter  Wilhelm  Lund 96 

O  antropithecua   brasiliensis 98 

Os  sambaquis I02 

Os  ceramios I05 


586  IXDICE 


PAGS. 
CAPITULO  IV 

Factorps    ethnicos .     . 113 


O    PORTUGUEZ 


lypo  anthropologíco 117 

Origem   do  povo  portuguez q 118 

Factos  históricos ]  19 

O  direito 120 

A  lingua  portugueza 122 

A  litteratura  portugueza 123 

As  artes 125 

A  religião 126 

O  índio 


Classificação  dos  Índios 128 

Os  Tupys 129 

Os  Gés 130 

Os  Goytacás 131 

Os  Carahybas 131 

Os  Nu-Arkuahs 132 

Os  Panos 132 

Os  Guaycurús 133 

Os  Miranhas . .  -.  133 

Tribus  não  classificadas 133 

Ty po  anthropologico 133 

Alimentação 134 

Ornamentos 134 

Artes 133 

A  condição  das  mulheres 136 

Costumes  guerreiros 137 

Ritos  fúnebres 138 

Crenças  religiosas 138 

O  Curupira 1*0 


índice  587 

PAGS. 

O  Yurupary 241 

O  Kâápora I43 

A  Oyara I40 

O  Sacy   Serêrê I44 

O  Mboitatá - I44 

O  Urutau • 144 

Tradicção  do  Diluvio • I44 

A  lenda  de  Sumé I45 

Sacerdócio  e  culto ]45 

ídolos ]4g 

Crença  na  vida  futura ^47 

O  casamento  e  a  família 248 

A  tribu 24g 

A  Industria 150 

A  caça  e  a  pesca j52 

A  agricultura ]52 

Conhecimentos  scientificos ^..,  J52 

A  linguagem I53 

Contos  indígenas 15g 

Poesia  indiana Igl 


O    NEGRO 


Typo  anthropologico , 165 

Classificação  dos  negros ,.  155 

A  lingua 166 

Usos  e  costumes  dos  negros 165 


PRIMEIRA  EPOCHA 


A    CONQUISTA    E    O    PRIMITIVO    POVOAMENTO 

1500  —  1581 

CAPITULO  I 

PrellmlnBres j-^^ 


588  índice 

PAGS. 

Os  Northmen 177 

Incentivos  as  grandes  navegações  do  século  XV 178 

O  infante  D .  Henrique 179 

As  primeiras  descobertas 179 

Bartholomeu  Dias 180 

Christovão  Colombo 181 

Vasco  da  Gama 184 

CAPITULO    II 

Snppostos  e  verdadeiros  precursores  de  Cabral  187 

Jean  Cousin 187 

Alonso  d'Hoieda 187 

João  Ramalho 188 

Vicente  Yanez  Pinson 188 

A  pororoca 189 

Questão  do  Amapá 180 

Diego  de  Lepe 191 

Juízo  do  professor  Capistrano  de  Abreu 192 

A  festa  nacional  de  3  de  Maio 192 

CAPITULO  III 

A  Tiagem  de  Cabral 195 

A  divisória  imaginaria 195 

Partida  de  Cabral 196 

Chegada  de  Cabral  ao  Brasil 197 

Primeira  missa  no  Brasil 198 

Pêro  Vaz  Caminha 199 

Os  calendários 199 

CAPITULO  IV 

Descoberta  total  da  Costa  Brasileira 201 

Armada  exploradora  de  André  Gonçalves  (1001-1502) 201 

Rio  de  Janeiro 203 

Armada  exploradora  de  Gonçalo  Coelho,  (1503-1504) 203 

Armada  exploradora  de  D.  Nuno  Manuel,  ;1505-I506j 205 

Arribadas  de  capitães  portuguezes  á  terra  de  Véra-Cruz. . .  205 

Navegantes  hespanhoes  que  cursaram  a  costa  brasileira...  206 


índice  589 

PAGS. 

Os  ave  n  tureiros 2^^ 

Brasil  eiros  e  brasis 209 

CAPITULO  V 

Primitivo  povoafnento  do  Brasil 211 

As  feitorias 211 

Os  degradados,  desertores  e  náufragos 213 

As  capitanias  primitivas 213 

As  esq  uadras  de  guarda-costas 214 

Ideia  da  fundação  de  uma  grande  colónia 215 

Exped  ição  de  Martin  Affonso  de  Souza 217 

A  primeira  colónia  regular  do  Brasil 219 

Diogo  Alvares,  o  Caramurú 210 

João  Ramalho  e  António  Rodrigues 220 

O  bacharel  de  Cananéa 222 

CAPITULO  VI 

Capitanias  hereditárias 221 

Divisão  do  Brasil  em  capitanias  hereditárias 222 

Fora  es 223 

Foraes  dos  donatários 224 

Foraes  dos  colonos 225 

Prerogativas  da  coroa 226 

CAPITULO  VII 

Capitanias  meridionaes 227 

Capitania  de  S.  Vicente 227 

Os  Guayanazes 228 

Os  Tamoyos 229 

Os  Carijós 229 

Capitania  de  S.  Amaro 229 

Capitania  da  Parabyba  do  Sul 230 

Os  Goyatacazes 231 

Capitania  do  Espirito-Santo •  •  •  •  231 

Os  Ay mores 233 

Os  B  otucudos 233 

Capitania  do  Porto  Seguro 234 


590  índice 


PAGS. 

CAPITULO    VIII 

Capitanias  septentriouacs 237 

Capitania  dos  Ilhéos 237 

Capitania  de  Todos  os  Santos 237 

Os  Tupinambás 238 

Os  Tupiniquins 239 

Capitania  de  Pernambuco 239 

Os  Caethés  e  Tabajaras 240 

Capitania  de  Iramaracá 241 

Capitania  do  Maranhão 241 

Capitania  do  Ceará 242 

A  viagem  de  Orellana,  1540 242 

CAPITULO    IX 

O  Brasil  no  regimen  das  capitanias 245 

Os  negros 247 

Os  Índios 248 

CAPIIULO  X 

Governo  geral  de  Tliomè  de  Souza 251 

Regimento  dado  a  Thiomé  de  Souza 25^ 

O    f unccionalismo 259 

Chegada  de  Thomé  de  Souza 260 

Chegada  dos  primeiros  jesuítas 260 

O  primeiro  bispo  do  Brasil 261 

Visita  de  Thomé  de  Souza  ás  capitanias  do  Sul 262 

Primeiras  noticias  do  ouro : . , .  262 

Terminação  do  governo  de  Thomé  de  bouza 263 

CAPITULO  XI 

Governo  g^eral  de  D .  Duarte  da  Costa 265 

As  desordens  de  D.  Álvaro 265 

Morte  do  primeiro  bispo  do  Brasil 266 

Luta  com  os  indios 266 

Os  jesuítas 267 

O  gentio  em  Pernam  buço 26? 


índice  591 

PAGS. 

O  gentio  no  Espirito-Santo ^07 

Cunhambebe i:67 

Hans  Staden 268 

Willegaignon 268 

Jean  de  Lery 269 

Mortos  notáveis . . .'. 270 

Terminação  do  governo  de  D.  Duarte  da  Costa,  1558 270 

CAPITULO  Xll 

Governo  ^cral  de  Hl  em  de  Sá 273 

Primeiros  actos  de  Mem  de  Sá 273 

As  Missões 277 

Lutas  com  o  gentio  da  Bahia 273 

Batalha  dos  nadadores 274 

Luta  com  os  francezes  no  Rio  de  Janeiro ■'74 

Mem  de  S^i  em  S.  Vicente  . . , 275 

Mem  de  Sá  no  Espirito-Santo - 27(5 

Guerra  contra  os  Aymorés 277 

Guerra  contra  os  Tamoj-os  no  sul  do  Brasil • 277 

Progresso  das  Missões 278 

Fundação  da  cidade  do  Rio  de  Janeiro 278 

A  libertação  dos  Índios 282 

João  Boles 283 

Pedro  de  Orsúa .   , 284 

Morte  do  padre  Manuel  da  Nóbrega 285 

Morte  de  D .  Luiz  Fernandes 285 

Morte  de  Mem  de  Sá : ••  285 

CAPITULO  XIIÍ 

Governo  dual  e  regresso  ao   singular 287 

Os  dous  governadores 287 

A  conferencia  dos  governadores 288 

O  captiveiro  dos  indios 288 

Governo  de  Luiz  de  Brito 289 

Governo  de  António  Salema 290 

Prelazia  do  Rio  de  Janeiro •  •  291 

Regresso  ao  governo  singular 291 

Philippe  lide  Hespanha ^92 


592  índice 

PAGS. 
CAPITULO  XIV 

O  Brasil  em  1581 2yb 

Capitania  de  Itamaracá 297 

Capitania  de  Pernambuco 297 

Capitania  da  Bahia 298 

Capitania  dos  Ilhéos 298 

Capitania  de  Porto-Seguro 299 

Capitania  do  Espirito-Santo 299 

Capitania  do  Rio  de  Janeiro 299 

Capitania  de  S.  Amaro 299 

Capitania  de  S.  Vicente 299 

SEGU.NDA  EPOGHA 

A    ESPA^SÃO  COLONIAL 

1581  -  1626 
CAPITULO  I 

Governo  interino  e  arbitrário  de  Cosnie  Rangel  305 

Cosme  Rangel 305 

Os  mesteres 306 

Malogro  da  tentativa  de  colonisação  da  Parahyba 306 

Os  índios  da  Parahyba 307 

Eduardo  Tenton 308 

M  issão  de  Flores  Valdez 309 

O  Rio  de  Janeiro  durante  o  governo  de  Cosme  Rangel 310 

CAPITULO  II 

Governo  geral  de  3Ianuel  Telles  Barreto 313 

Primeiros  actos  de  Barreto 313 

Terceira  tentativa  de  conquista  da  Parahyba ...  314 

Occupação  definitiva  da  Parahyba 318 

Traição  dos  indios  de  Sergipe. 319 

Luta  com  .4ymorés  nos  Ilhéos 320 


índice  593 

PAGS, 

Ordens  religiosas 320 

Morte  de  Manuel  Telles  Barreto ,  331 

CAPITULO  III 

C^overno  Interino  da  junta  composta  por  D.  An- 
tónio Barreiros  e  t3liristoTào  de  Barros 823 

A  Bahia  atacada  pelos  inglezes 323 

Commercio  do  Brasil  com  as  regiões  do  Prata  e  do  Pacifico  324 

Francisco  Giraldes 324 

Occupação  definitiva  de  Sergipe 324 

Caçada  aos  Índios 327 

Colonisação   de  Alagoas 328 

O  Tribunal  da  Relação 329 

CAPITULO  IV 

Croverno  g^eral  de  D.  Francisco  de  Souza 331 

Gabriel  Soares  e  as  minas  do  sertão 331 

Novas  lutas  com  os  Índios  na  Parabyba  do  Norte 333 

Thomaz  Cavendish 334 

James  Lancaster 335 

Os  corsários  da  Rochella  na  Bahia  e  em  Santos 336 

Primeiros  commettimentos  dos  hollandezes  no  Brasil 337 

Causa  que  desviou  os  inglezes  do  Brasil 337 

Os  francezes  nos  Ilhéos  e  na  Parahyba 339 

Conquista  do  Rio  Grande 340 

Os  hollandezes  na  Bahia 342 

O  Índio  Tavira. : 343 

Luta  com  os  Aymorés  na  Bahia 344 

Viagem  do  governador  ao  Sul 344 

José  de  Anchieta 345 

Os  jesuítas  e  os  indios 347 

As  bandeiras 349 

CAPITULO  V 

Ooverno  geral  de  Diog^o  Botelho .%3 

OTindio  Sorobabe 357 

Dioíío  Botelho  e  as  Missões 3r.S 

A  pese?,  da  baleia 350 

38 


594  índice 

PAGS. 

A  renda  do  Brasil  em  1602 359 

Conquista  do  Ceará  tentada  pelos  jesuítas 359 

O  padre  Francisco  Pinto 360 

Lei  contra  estrangeiros 3òl 

Os  judeus 361 

Conselho  da  índia 362 

CAPITULO  VI 

Governo  de  D.  Dlo^o  de  Menezes 363 

Primeiros  actos  do  seu  governo 363 

A  Relação 36i 

Nova  Ouvidoria 366 

A  legislação 366 

Regimento  do  capitão  da  Parahyba 366 

Queixas  do  governador  contra  o  bispo  e  contra  os  jesuítas.  367 

Colonisação  do  Ceará 368 

Terminação  do  governo  de  D .  Diogo  de  Menezes 368 

As  capitanias    em  1612,   conforme  o  Razão  do  Estado  do 

Brazil 369 

Rio  Grande    do    Norte 369 

Parahyba  do  Norte... 369 

Itamaracá 369 

Pernambuco 370 

Sergipe • ; —  370 

Bahia 370 

Ilhéos • 370 

Porto  Seguro 370 

D.  Francisco  de  Souza  no  governo  das  capitanias  do  Sul. .  370 

As  minas > 371 

CAPITULO  VII 

Governo  geral  de  Gaspar  de  Souza 373 

Jacques  Rifauit  e  Charles  des  Vauxno  Maranhão 373 

Expedição  de  la  Ravardière 373 

Expedição  de  Jeronymo  de  Albuquerque  contra  os  francas 

do  Maranhão  - 375 

Batalha  de  Guaxenduva 378 


índice  5í)5 

PAGS» 

Claude  d'Albeville  e  Yves  d'Evreux 386 

Conquista  do  Pará • 'àbl 

CAPITULO    VIU 

■Governo  ^eral  de  D.    I.iiiz  de  Souza 389 

Principaes  factos  occorridos  no  Maranlião 38Í) 

Principaes  factos    occorridos  no  Pará 390 

Estado  independente  do  Maranhão 3U1 

Aldeias  de  índios  para  defesa   da  cesta 393- 

Minas  de  salitre  em  Sergipe -"^ys 

Providencias  para  a  furtificação  da  costa 394 

Leis  iniquas  contra  os  estrangeiros 394 

Desconfiança  contra  o  filho  de  D.  António 394 

Monopólio  da  pesca  da  baleia 395- 

A  pesca  das  pérolas 39d 

Despezas  com  o  funccionalismo  e  o  clero 396 

Franquia  das  minas 397 

Belchior  Dias  Moreya 397 

Terminação  da  trégua  na  guerra  hispano-hollandeza 40O 

CAPITULO  IX 

Governo  geral  de  Diogo  de  ])Iendonça  Furtado.  401 

Destruição  dos  estabelecimentos  estrangeiros  no  Amazonas  401 

Companhia  hollandeza  das  índias  Occidentaes 403 

Imprevidência  da  metrópole 404 

Perda  da  Bahia 404 

Governo  interino  da  Bahia  pelo  desembargador  António  de 

Mesquita  de  Oliveira 407 

Governo  interino  da  Bahia  pelo  bispo  D.  Marcos  Ferreira- .  407 

Governo  da  Bahia  de  Francisco  Nunes  Marinho ...  408 

Governo  especial  de  Francisco  de  Moura 40& 

Captura  de  frei  Vicente  do  Salvador  pelos  hoilandezes 40& 

CAPITULO  X 

Governo  geral  de  Mathlas  de  Albuquerque 411 

Descuidos  dos  hoilandezes  na  Bahia 411 

Impressão  causada   na  Península  Ibérica  pela  perda  da 

Bahia 411 


596  índice 

PAGS. 

A  esquadra  portugueza 413 

A  esquadra  hespaah  ola 413 

Os  reforços  de  Pernam  buço  e  Rio  de  Janeiro 413 

Viagem  da  esquadra  libertadora 414 

Recuperação  da  Bahia 414 

A  esquadra  de  Hendrikson 416 

Guerra  aos  portuguezes  da  Copahoba 416 

TERCEIRA  EPOGHA 

PHASE    DE    AGREGAÇÃO    ETHMCA 

1626  -  1661 

CAPITULO  I 

O  Brasil  aob  o  g^overno  de  Diog^o  Luiz  de  Oli- 
veira,   antes   da  invasão  de  Pernambueo 

pelos  hollandezcs 423 

Pieter  Heya  na  Bahia 423 

Captura  dos  galeões  de  D.  Juan  Benevides,  por  Pieter  Heyn  424 
Companhia  de  navegação  e  commercio  da  índia,  Mina  e 

Guiné 424 

O  real  d'agua = 424 

A  abolição  da  Relação 424 

As  explorações  dos  paulistas 425 

Cap itanias  do  Sul 426 

Estado  do  Maranhão 426 

CAPITULO  11 

Lutas  eom  os  hollandezes,  desde  a  tomada  de 
Olinda  até  a  investida  contra  o  cabo  de 
Santo  Agostinho 429 


IXDICE  597 

PAGS. 

Missão  de  Mathias  de  Albuquerque 430 

Tomada  de  Olinda  pelos  hollandezes 431 

Tomada  do  Recife  pelos  hollandezes 433 

Tomada  dos  fortes  do  Picão  e  de  S.  Jorge  pelos  hollandezes  434 
Trabalhos  realisados  pelos  hollandezes  para  a  defesa  da 

conquista • ,  435 

O  arraial  do  Bom-Jesus 436 

As  companhias  de  emboscada 436 

João  Fernandes  Vieira 436 

António  Felippe  Camarão 437 

Ataque  ao  arraial  do  Bom-Jesus,  por  Van  der  Elst 438 

Diversas  escaramuças 438 

Impressão  causada  na  Hespanha  pela  invasão  dos  hollan- 
dezes em  Pernambuco 440 

A  esquadra  commandada  por  Oquendo 443 

A  esquadra  commandada  por  Janssen  l-'ater 443" 

Vantagens  estratégicas  de  Pernambuco,  segundo  Weerdem- 

burck 443 

O  forte  Orange 444 

Combate  naval  entre  Oquendo  e  Pater 444. 

O  incêndio  de  Olinda 447 

Ataque  da  Parahyba  pelos  hollandezes 447 

Tentativa  malograda  de  ataque  ao  Rio  Grande  do  Norte. 

pelos  hollandezes 448 

Tentativa  de  occupação  ao  cabo  de  Santo-Agostinho 44S 

CAPITULO  III 

Lufa  com  os  hollandezes  desde  a  deseroào  de 

Calabar  até  a  Invasào  da  Parahyba 451 

A  deserv^ão  de  Calabar 451 

Ataque  de  Iguarassú  pelos  hollandezes 45S 

Varias  investidas  felizes  praticadas  pelos  hollandezes  por 

conselho  de  Calabar 453 

Os  directores  chegados  de  Hollanda 454r 

Traição  de  Leonardt   Vam    Lom 455 

Ataque  do  Rio  Formoso   pelos  hollandezes 455 

Occupação  do  posto  dos  Afogados  pelos  hollandeze 455 

Ataque  do  Bom  Jesus  e  morte  de  Rembach 45& 

Henrique  Dias 456 


598  índice 

PAGS. 

Ocoapação  da  Ilha  de  Itamaracá  pelos  hollandezes 456 

Novas  investidas  dos  hollandezes 457 

Coniições  de   guerra 458 

Expedição  hoUandeza  ás  Alagoas 460 

Providencias  tomadas  pela  corte  de  Hespanha  contra  os  hol- 
landezes no  Brasil 460 

Jnvasão  do  Rio  Grande  pelos  hollandezes 461 

Alliança  dos  hollandezes  com    os  selvaarens  4õ2 

Tentativa  de  occapação  da  Parahyba  do  Norte 463 

Mal  logrado  ataque  ao  Recife   pelos  Pernambucanos 463 

Occupação  do  Cabo   de  Santo  Agostinho 463 

Proposta  de  paz   comprada,  repellida  pelos  hollandezes.   ■ .  465 

Reforços  chegados  aos  hollandezes  465 

Occupação  definitiva  da  Parah^-ba  do  Xorte 466 

Deserção  do  jesuita  Manoel  de  "V^oraes 468 

Henrique  Dias  ferido  pela  quinta  vez 468 

Capitulaçã  j  do  arraial 468 

AbanJono  de   Porto   Calvo  por  Bagnuolo 469 

Tomada  do  Forte  de  Nazareth  pelos  hollandezes 470 

Heroísmo  de  D .  Maria  de   Souza 471 

Os  mocambos  dos  palmares 472 

CAPITULO   IV 

A  lucta  coEii  os  hollandezes,  desde  a  restaura- 
de  Porto  Calvo  até  a  nomeação  de  Maurí- 
cio  de    líauâsau 473 

Restauração   de    Porto  Calvo 473 

Supplicio  de  Calabar 474 

Retirada  de  Mathias  de  Albuquerque 475 

Commando  geral  de  D.  Luiz  de  Rosas  e  Borja 475 

Períeguiçã^i  a  Mathias  de  Albuquerque 476 

Progresso  dos-  hollandezes 477 

Batalha  da  Matta  Redonda  —  Morte  de  Roja.? 478 

Commando  geral  do  CDnde   de   Bagnuolo 479 

-Bagnuolo  toma  a  offensiva   pelo  sx^stema  das  guerrilhas..  479 

-Nomeação  de  Nassau 481 


IXDICE  599 

CAPITULO  V 

PAGS. 

Lúcia  com  os  hollandezes  desde  a  clicjarada  de 
Maurício  de  IVassau  ate  levau(ar-se  o  cerco, 
da  Bahia  . . .  ^ 433 

Combate  de  Comendatuba  e  tomada  de  Porto  Calvo    por 

Nassau 433 

Retirada  de    Bagnuolo  para  a  Bahia -tSS 

Devastação  de  Sergipe 435 

Occupação  do  Ceará  pelos  hollandezes 488 

Assedio  da  Bahia  pc  r  Maurício  de  Nassau 4S8 

CAPITULO  VI 

Lacta  com  os  lioll»ndezes.  Desde  a  chegada  do 
conde  da  Torre  até  a  restauravào  de  Por- 
tugal   493 

Chegada   do   conde  da   Torre 493 

Instrucções  dadas  aos  guerrilheiros 494 

Combate    naval  de  Itamaracá 494 

Combate  naval  entre  Goyana  e  Cabo  Branco. 495 

Combate  naval  da  Parahj^ba 495 

Combate  naval  de   Cunhaú 4&5 

Consequência  dos  quatro  combates  navaes 496 

Castigo  do  conde    da  Torre...- 497 

Devastação  do  Recôncavo  pelas  forças  de  Nassau 497 

Expulsão  dos  frades  de  Pernambuco 497 

Convenções  entre  Nassau  e  Montalvão 498 

Restauração  de  Portugal 499 

Effeitos  da   acclamação   de  D.João   IV  no  Brasil, 499 

CAPITULO  VII 

Administração  de   Maurício  de  IVassau 501 

O  Recife 5q^ 

Mauricia 5q2 

Arregimentação  dos  mercadores 502 

Organisação  municipal 502 

Brazões   d 'armas .-^(13 

Liberdade  religiosa 503 


GOO  índice 

PAGS. 

Liberdade  de  commercio . . .  • 503 

As  leis 504 

As  artes 505 

Litteratura 505 

Sciencias  physicas  e  naturaes 505 

Estado  das  províncias  submettidas  ao  dominio  hollandez..  505 

Falta  de  colonos 506 

Gaspar  van  Baerle 507 

TERCi:iRA  EPOCHA 

CAPITULO  I 

L.ucta  com  os  hollandezes.   Desde  a  acclaiua- 
çào  de  I>.   João  IV,  até  a  retirada  de  Mau- 

ricio  de  IVassau  para  a  Europa 509 

Deposição  do  Marquez  de  Montalião 509 

Negociações  entre  Portugal  e  a  Hollanda 510 

Occupação  de  Sergipe  pelos  hollandezes 511 

Occupação  de  Angola 512 

O  tratado  de  paz 513 

Conquista  do  Maranhão  pelos  hollandezes 513 

Plano  de  restauração  de  Portugal  e  Maranhão 514 

Restauração  do  Maranhão 515 

Destruição  de  hollandezes  pelos  Índios  no  Ceará 51T 

António  Teixeira  de  Mello 517 

Inundações  e  peste  em  Pernambuco 518 

Representação  de  Nassau  ã  Companhia  das  ludias 518 

Ultimas  recommendações  de  Nassau  ao  Grão  Conselho 520 

Partida  de  Nassau 522^^ 

CAPITULO  II 

A  laia  com  os  Iiollaudezes*  Desde  a  partida  de 
tVassau    até  o  abandono   de  Olinda,  pelos 

jnollandezes 52^ 


índice  601 

PAGS. 

Embaraços  da  Companhia  das  índias 523 

Vidal  de  Negreiros  em  acção 525 

A  expedição  de  António  Dias  Cardozo 526 

Providencias  tomadas  pelo  Conselho 527 

Expedição  de  Henrique  Dias  e  Camarão 527 

O  facto  da  insurreição 527 

Primeiros  movimentos  insurreccionaes 528 

Pronunciamento  em  Ipojuca 528 

Os  bandos  hollandezes 529 

Combate  do  Monte  das  Tabocas 529 

Os  príncipes  do  Brasil 532 

As  forças  de  Camarão  e  Henrique  Dias 532 

Os  emissários  hollandezes 532 

Deslealdade  de  Salvador  Corrêa 533 

Rendição  do  Forte  de  Serinhaem 533 

Morte  de  António  Cavalcante 533 

Occupação  da  Fortaleza  de  Santo  António  do  Cabo 534 

Combate  da  Casa  Forte 534 

Rendição  da  Fortaleza  do  Pontal 535 

Combate  naval  de  Tamandaré 536 

Matança  em  Cunhaú 536 

Gs  insurrectos  na  Parahyba 536 

Rendição  de  Porto  Calvo 536 

Rendição  do  Forte  de  Penedo  537 

Occupação  da  Ilha  de  Itamaracá 537 

A  insurreição  no  Rio  Grande  do  Norte 537 

O  abandono  de  Olinda 538 

CAPITULO  III 

L.ata  com  os  hollandezes.  Desde  o  assedio  do 
Recife,  até  a  ordem  régia,  mandando  eva- 
cuar Pernambuco 540 

O  arraial  novo  do  Bom  Jesus 540 

O  assedio  do  Recife 540 

Moedas  obsidionaes 541 

Soccorro  chegado  de  Hollanda 541 

Chegada  de  Schkoppe  e  Henderson 541 

Novo  governo  hollandez 542 

Tentativa  de  Van  Schkoppe  contra  Olinda 542 


602  índice 


PÂGS. 

Apoderam- se  os  hollandezes  do  Penedo 542 

Occupação  da  Ilha  de  Itapar ica 543 

Morte  de  Lichtardt , 544 

Legalisação  da  guerra  no  Brasil 544 

A  ordem  régia 544 

Negociações  com  a  Hollanda 545 

C.-vPITULO  IV 

A  lata  eoni  os  bollaudezes.    Desde   a  ebegada 
do  Conde  de  Villa  Fonea  de  Aguiar,  até  a 

teriuinaçào  da  g:uerra 547 

O  conde  de  Yilla  Pouca  de  Aguiar,  novo  governador  geral..  547 

Reforço  hollandez 547 

Francisco  Barreto  de  Menezes 547 

A  batalha  dos  Guararapes 548 

Henrique  Dias  no  Rio  Grande  do  Norte 551 

O  regimento  das  ilhas 55^ 

Morte  de  António  Felippe  Camarão 551 

Acções  navaes 552 

Segunda  batalha  dos  Guararapes 552 

A  companhia  geral  de  Commercio 554 

Os  sitiados  no  Recife 554 

Negociações  entre  Portugal  e  a  Hollanda 5õ5 

Tomada  do  Recife  pelos  insurrectos .• 555 

A  capitulação 556 

Condições  relativas  á  milícia 559 

Recompensas  aos  heróes 562 

Ultimas  negociações  entre  Portugal  e  a  Hollanda 562 

CAPITULO  V 

O  Estado  do  llaranliào  durante  o  segundo  pe- 
ríodo da  guerra  bollandeza c63 

Novas  capitanias 563 

O  Pará  —  Maranhão  em  1640 563 

A  acclamação  de  D.  João  IV .566 

Factos  politicos  occorridos  n d  Pará 506 

O  padre  António  Vieira  e  os  Índios 567 


índice 


603 


CAPITULO  VI 

PAGS. 

o  Estado  «fo  Brasil  extranho  á  lata  liollandeza 

durante  o  segundo  período  da  guerra. . .,. .  571 

Amador  Bueno 571 

Os  jesuítas 571 

Privilégios  outorgados  aos  moradores  do  Rio  de  Janeiro —  573 

Estado  das  capitanias  meridionaes • 574 

Monopólios  cbtidcs  pela  Companhia  Geral  de  Commercio 

do  Brasil , 574 


Tyfor/raphia  Montenegro— Travessa  do  Ouvidor  ns.  12  e  11 


AVISO 


Tendo  corrido  a  impressão  deste  livro 
sem  a  revisão  do  autor,  é  possivel  que  es- 
capassem erros;  estes,  porem,  serão  apon- 
tados pelo  mesmo  autor  em  conveniente 
errata,  a  qual  apparecerá  no  fim  do  se- 
gundo e  ultimo  volume  desta  obra. 


Os  Editores. 


?: 

ju 


QUARESMA  &  d  -  Livreiros-Editores 


ACABA  DE  SAHIR  Á  LUZ 


A  .«som!  irosa  collerrno  do  verila-loiras  historias 
dl-    nlnias    do    outro    inundo,   loliislioniens,    nuilas-sein-cabera. 
liruxas,  casns  mal  assombradas,  sacys,  cautos  de  coruja, 
clioros  de   meninos  pacHos,  uivos  agoureiros  de 
cães,  maidiçõ''s  de  mãe,  avisos  ou  sittuaes 
de  pessoas  fallecidas,   carros  de 
enterro  quando  param  á 
porta,    indivíduos    que    fazem    pacto 
com  o  Demónio,  visões,  espiritos  diabólicos,  episó- 
dios passados  em  cemitérios,  apparigões,  vozes   de   além- 
lumulo  e  toda  a  sorte  de  factos  sobrenaturaes  observados  por  insuspeitos 

testemunlios.  f 


E'  isto  o  LIVRO  DOS  PHANTASMAS.  Obra  escripta  proficientemente,  • 
liníruagem   natural   e  simplt.-s,  lia  do  atrradar  por  força.     São  coutos,  s 
descripções^que  fazem  tremer,  que  fazem  erriçar  os  cabelloí?,  e  Iiumedec  i 
a  pelie  com  o  ííéliilo  suor  da  agonia. 

Todo  aqutite  que  pegar  neste  livro  e  ler  as  primeiras  paginas,  fatal- 
mente proseguiiá  a  leitura  e  devorará  todas  as  demais,  seja  qual  fôr  o 
horror,  o  medo,  a  impressão  que  siuta. 

El'  uma  obra  única  no  seu  género,  e  nella  não  ha  a  menor  sombra 
de  r.speculacão.  Nem  uma  só  mentira,  babuseira,  falsidade  ou  invenção. 
Não  ha  uma  só  palavra  pornographica,  e  totia  a  gente  pôde  lél-o.  Em  uma 
pnlnvra:   o   LIVRO  DOS  PHANTASMAS  é  hotiesto,  verdadeiro,  bem  escripto 


L'm  grosso  volume  deW)0  pagmas,  enriquecido  de  grande  numero 
linissimas  estampas  Be  pagina  inteira,  desenhadas  por  Julião   Machada. 
I.ucas,  Childe    e  outros  desenhistas  notáveis,   e  pavorosa   capa  colorida, 
•  •hrouio-lithograpliia,  trabalho  do  immortal  Julião  Machado 5$000 


LIVRARIA   DO   POVO  -  RUA  DE  S.  JOSÉ  NS.  65  E  67 


;;!;;:;!! 


,;i::;:l;;i:!:íi!M;i:i:i:n:l:;;lii;;;Í!l!:Í!;; 
iiii:iii:ii!iiiiMiiit>i:M!!iiii!iiiiri>iiiiiii: 


:::!;::t:i::iii::IÍ!Í:;::i:;;;::;:ii;:!Í;:i\:!:: 


iliiiiíii 


íiiiíiiiiii 


iWWl 


1!!:!!!?; 


•iS!-!;;; 


j|í:|(ij!ijj|i 


jri>i>;t!fFiipt!iiíiiiii 
:!íil"íiii'!;'íillí:i.; 


:í;im:iíí;k:)míi;;;íí 
);::;}!:;!!!"ii!;t;:ii: 


5!i!!5limÍÍ! 


jlilil^iiii 

;:iiitii!;;ii 


;;;;;;;;;;:;;;;;;;«! 


iííiil 


Éiíillíiiii 


itlJiti;iil 


iliiiiiiiii 
iiiiiiíllil 


ií:!i!i::;i:ii:iiiii:H!!!::ii:i 
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiusiiiii!;;:;;::: .:;; 


íljlllj 


]JHJjÍjíj|IÍljjÍ| 


!!;:i:^' 


iliiilliíiiiíiiiliilíííiiililiiiiiiiiliii^ 


l;:il 


|j|jiij;jjJÍJijíjijfiiii|iíj|ijjMJijjj|ji^^ 
i:!r;H5|;{iiiiíií|íiii|liij!|!:'!!!Í!|!:::íi:!li:;: 

iii-:i|aS!!ijjjj|jlll|!lii|lili|i>it!jj!|iijni|l;ín 

i!i:;i;£;;!!;;:;ljlpli;:l:il!H^;l!;Í!!:l:liil:i!;::il;i!:i:^^ 

ijllliiaiai  II  iiiifitift|li;tiiii|i(*iitif|V(1tIl***t* '•"•>*■•"** '•••«(■•(■•((■■■'•'■In'***!'***'*"*'*'*' 

R|:j;!;;j!;|)i;!i;;!;[|:!li;níií;ifil!!||!llllh;!|;i!;^ 


'.v.iiv.n 


iiiii!:; 

iiíiir' 


làliiímUlíiiíSiMÍuitiMJii 


!tii!iiít!;iiiiu;i  f' 


■injsíii 

•ificiinii 


il:;;l:í:l!!!:;!jH:;::H!:!:!èn!!!H!:U!!!:!Í!!t!:!íii!Í!HHí^ 


liii!'! 


:2;;'i!!: 


iiiii" 


;;!! 


liilili: 


iiiiti 


:::;:ífi) 

Ijmiili 


:!!:il!::iiií;i!í!:i:!!!!!!l!!i!í51I!l!!!!i 

;::;;!;;;:;!;:;;;::;;;!í;!:;;;::;!;!;:;;i;; 

li!! 


]:i::::::;:i:::i!;:.';::r:i:;!::;::í:i3:::::. 
u!ti!í'iíí!!Si!!í(lín!!'íiil!!!i!ili!í{!!l' 
.".::íi;;:í:;;íí;;ií;iíi:íii!;í!í;:iííí:iI!;í 

::!!ii::::::::;!;::i::i::!:!:i::::íii!í!i!i! 
ÍI!!pÍÍ!;:ÍiÍÍ;:Í:Í:jj5Í:j:l;l:!Í;::Í::!! 

lllllIMIIItilllllBIlf  jlllllVUlBIllliailll 

!!í!!iíi<i!!ií-ilífilfi!!l!!(l!íí(i!Ii!!tí!i 
!íS!Í;íi;';H::;íil!"i;;:;!í!r""""'""" 


iifíl:}: 


iiiiiSiii|jiiiiiii)iÍi|ÍíÍ!Íli<!ÍiiílliiS!iili)i 


glIjfjjjjJIJJJI 


!!!  i  I  i::'.!!!!!!!!!!!»  |!!!ji|!i;!h!!!Í!!:!l!ti:!; , 

piiliiillli!!!"^  " 


iíiiíiii 


iiiiiiil 


iiiiii: 
III 


;r:í;!:::::;:::;:;::!;:::Kj::;2::::;::i::::;;::;:i:!:::!:;!!:::::;::::::::!::::;;:::;:!:!;)!::::!::;:::;;;;:;::;!:;;::;i 
;:::!;!:::!i::i:!i;:::!;il^!íín!::!!!::!:!!:!!íi:!:;:!::!!i!;í:!!!!:i::r.;!:!í;!!:»!|:M;!!;!;s!í!i:HM!:::;!i!;:» 

;ru:::<:::u:::t::::ual:[ini::u^::;::;;:::r.:^':::;:;::::::i::i:3;u::);:i::::::::!:3::::::::i:i::i:::'.::;::: :::::::; 

lí!!ií»;!nnH5Í;;i;i;!:;Kií;;;!u;i:::;::;:ní:s5::;::H!«:ii!!iSinH!!!!H;:!!!í!!H!^^ 


i;i!H{!í!f!:!JÍ!!í!Í 


i;!3::|i:í;  _ 

n!i||lSfíj{! 

illuiílãiiii' 


liiijlia!!! 
iliiiiiiiíilililili^l 


ilííiii 
IMIlll 


llilí!;:!!! 

rniiiiaiii 

tiiiiS: 


Jiiliii! 


iji|jni|||iil!í|i|MÍM>!ri[ii!i'!|iiíiií|í!|j|!jii|j^ 
nMiii!iilHU!iuiiinHWiinhi(M!nriiiliiiiiiil.'W!iill!l(íiii!iili):iiiiiir 


Ji;||!iJ!!Í!!i;i|ii;:i!ilH|i;i!il!ÍI!iií;;iÍ!!J>illliniiiíl!H^ 

lK4Hii4aÍa  11  (•■li»l»'^*K  (•■laia*  at-a^  «■•»(■*•  »>i«u»««*<*iialui  fim  ■*lBi.>«aM>aBvs**ir-  ' 


tM«t:fiMi(iIiit:<iiiiiiruMlllftEuHitS^luE!ilíi>iprtilíMHhiiu.unri»iiifiliiin 

tTie;(]licr{|>li|f  iMilifvliI;7i(|ififlf(iiiiii|i«Fiitiífiiiitiiiiaiiwtltif>iiftifitiflri*íi{i^{llUÍ|iii«criiiV;ii        '    i    i  > 
()triiU(i|iii(iif  ■■■iii|r|it-f  t*i*l|*n*iKiiitiiiiiBifi*itiii«iai-ki«tIitiii*MiiikStii(|ii<ikr}il|tUp  ' 


ií!e:;i!: 


iiiiii:: 

í;;m!!;;;;;íí;;í:ííí 


iitiiiiiiiiiiiiti! 

!!;)!Íini:!.'ii:!: 


j|'ruiiiiim 

iiiiii: 


::í:!!í:; 


lililuní:! 

iiiiii::; 

lillllHI 


!!l(itl 


íítniiiiiiíiin 

;í:!:!!!:í;i!!í; 


iiiiiiiliiiiii:: 
liiiiiiiiiiiiiii 


iiiiiiii 
iiiiii 


lillillliilijjiiinijijijlíípjiil^ 

luiitiiiiillIlHtiilliiiltiiiiiiiuiiiiuiiiniiiiHuiHiiiuiMuuiuiMjiiiiaii|iiiiniiiiuuiruiinuiniui)MU]iiuitHfiuiMM)^ 


ii;íi!llipipi|Si!llillilliíllli»i«!IS!Sl 

•""'=-"""~«'|jj|l||!l|l|illlH»lHi 


!::; 


■iMjiílIíníiii 

fM»<;j|ii;;]j!i 


itiii)iiJuiiiis!ilíliiiiiUiiíi)inÍHyliJiíili; 


!'!!!!!!!!!! 


iSiii 


"íjiii!:;: 


III 


i?ii:ilii 


i;ii!(i!!!:i;iili;!»{i!l!l!>it!l; 
:;:;;;;;;;ii;i;;:!;!;il;;!;i:;:::;:; 
'::|i!ii!;::!i!!:i!iíi;lií;:;:::;:-: 

iiíitili!til!nliÍ!Í:ii!ltiliiíi(iii 


!!l!!!!l!!!!J!;!!Í]!:!!!!í]l!!!!!!lJ 


!!nr(ÍJ'"!!H!5!'!I!M""i!'!!H5|!IIIC|!!!Ii««}Íirni[aiH!!ÍI!!íJ!!!r!!!!í!:!!!!!!:!M!!í!"í!!:!!^ 
IUUllUIilltllllÍtllMIIÍ!lliMU]nuiUIMIIlUU|ÍJllMniaiUÍI1fUllillllIMIi|l)IU>ll 

iii!Siiin!ínílHSinl)iíÍiiin!ÍMÍl!ii  liiiijIinlInjiiiiK^ 

■  iliiiiii<ili>tiiiii)i<iii5iiii«ii!iniiii)i<i>ili<iiiiii>iil>>iliiiiiiMiiiiiiliiiiiiiiiiii<(iiiii>><iiiiMni 

»>>u «•ti.irjij.n>mnini..iiiriin.ntn«if mariiii>M.-l<itMtiii><f<iiii»«>iiriicfi<>Mii 


;;iiHnnÍKUiiiÍljjjiiiÍ!;ji:ÍiiHÍH:!iiri;i;i:hii:;H!Íarlií:í!^^ 

!iiii!!!»i:!;!!!!!!Í;i;lH!HII|!in!!!:i!!r.!!imi:iii!i:!»ii;i;!n!l!i!i!;!!!:;n^ 
.^';:::::li;:;l:;:;;i!:;;;w:I;:!!i;!;l;;::!ii;:l:;:;:;l:!:;;;:::!;;::":!;!:;:;:;::::i;;;:i:;:;:;:!;;'--:>i: 

!i'!::!:::i::H:!:l:l:!:!::!:!H!::''!:i!-'::!i:'l:::!'!: 
.iiiiiiiiiiiiiiiiiiHiiiiiiiíjiíl^iiiiilisiniiiiiiiiiiiiiliiiiHiiilíH 

i|liliiiiiiiiiriiiiiiiiiiiii:iiniimiiiii(iiliiiiiilii|jtiiiisllitlii!illiiii!i>fitiiitii»ie'ii>iii:;w<uiii 

l!i!!ll;!!:lil!!ii=i!ii!!!iíil!i;i!|!ii!i;iiii 

::i;:s:;:í;:::::í;:::;;::::;:;::í!:!í::;:::::;;::;:;:::;:;i:;;>;;:p;:í;::^i::::;;::m::;;;,-;:;: 
jijJ!Hjiji;f|ii|Í:;|j|!!í;|i;;lí|j;JÍÍijn^ 

lii::l;!!:iii;;i:i:::!;í;!:;Ji:;iii;;i;;;;iil;!Í!Í:!:;i;;i:;i;:iiii:^ 

!!!!:::•::  ::::!::;:;:::::;::t;;!:::;::!::;!:::!:;::E!:;::!!:!::;:::!::j:;i!:;:f::::::::'..: 

jjlljJIJjjIljjIljjlljjjjjljjjKljlJlIlj.j;:;:!:;!^^ 

!iii:)t!l|:Ul:;'!:!:!!i!:!!:l?ijl:!!!!!:!Íluí::y'U':n 

l!:!!:ii:!ii;ii::ii:!ii!;:;;l!;ll!!ili!i;ií!;li!i:±l:!iií:;:i!i:íii::iiil:^ 


iiliiiiiifililillillíiijSÍiiiíiiiiíiiiJ! 


iiii!ii<Í!ji!(Mlíí!!t!níliÍiSÍtÍiíl|| 


lilíl! 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
CARDS  OR  SLIPS  FROM  THIS  POCKET 


UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 


iillllii; 


illi' 


;■  wl^i 


^  <<< 


r/ 


-^w- 


.f 
^