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Full text of "De Angola à contra-costa;"

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pùblico  de  um  livro  pode  variar  de  pais  para  pais.  Os  livros  de  dominio  pùblico  sào  as  nossas  portas  de  acesso  ao  passado  e  representam 

urna  grande  riqueza  histórica,  cultural  e  de  conhecimentos,  normalmente  dificeis  de  serem  descobertos. 

As  marcas,  observa^òes  e  outras  notas  nas  margens  do  volume  originai  aparecerào  neste  arquìvo  um  reflexo  da  longa  jornada  pela  qiial 

o  livro  passou:  do  editor  à  biblioteca,  e  finalmente  até  voce. 


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DE  ANGOLA 


A  CONTRA-COSTA 


DE  ANGOLA 


A  CONTR A-  COSTA 


DESCRIPgiO  DE  UMA  VIAGEM 


ATRAVEZ  DO 


CONTINENTE  AFRICANO 


COMPREHENDENDO 

NARBATIVA8  DIVERSAS,  AVENTURAS  E  IMP0RTANTE8  DESC0BERTA8 

ENTRE  AS  QUAE8  FIGURAM  A  DA8  ORIOENS  DO  LUALABA, 

CAMINHO  ENTRE  AS  DUAS  COSTAS, 

VISITA  À8  TEBRAS  DA  GARANGANJA,  KATANGA 

E  AO  CURSO  DO  LUAPULA, 

BEH  COMO  A  DESCIDA  DO  ZAMBEZE,  DO  CHOA  AO  OCEANO 

POR 

H.  CAPELLO-R.  IVENS 

Ollìcia^da  Armada  Real  Portugueza 


EDI9AO  ILLU8TRADA  COM  MAPPAS  E  URAVirilAa 


Volume  I 


LISBOA 

IMPRESSA  NACIONAL 

1886 


A 


SUA  MAGE8TADE  EL-REI 


0  SENIIOR 


DOM  LUIZ  I 


COM  ESPECIAL  PERMISSÀO 


RK8PEITOSA1IKNTE  DEDICAM  E8TE  LITRI» 


\i\  atxdoit». 


r 


AO 


POVO  PORTUGUEZ 


VIXCIJLAM  N'ESTA  PAGINA  OS  ArCTORES  A  MARCA  INDELEVEL 
no  SEU  PROFUNDO  RECONHECIMEMO 


AO  EXCELLENTISSIMO  SENHOR 


MANUEL  PINHEIRO  CHAGAS 


MIMSTKO  D  ESTADO  HONORARIO 


A  QUEM  DEYEM  0  TER  SIDO  NOMEADOS  PARA  TAO  ELEYADO  CARGO 

E  A  EXPEDICAO  0  SEU  BOM  EXITO 

PELO  DECIDIDO  INTERESSE  COM  QUE  A  PROTEGEU 


CONSAGRAM  ESTÀ  PAGINA 


C/d  avidott». 


■N 


RELACAO  DOS  INDIVIDUOS  PERDIDOS 
DURANTE  A  EXPEDICAO  AO  INTERIOR  DE  AFRICA 

1884-1885 


Nome  e  naturalidadu 


Qualidaflc  da  perda 


Logar 
ein  que  se  effectaou 


GarangaDJa,  chefe 


2   Cacheque. 


3 
4 
5 
6 


7 

8 
9 
10 

11 

12 

13 

14 
15 
16 
17 

18 

19 
20 
21 
22 
23 
24 


Caioqueza  (Mucclli). 
Clia-note  (Mueelli).. 
Dezesetc  homem». . . 
Quiari-Ocainba 


Gonga  

Capenda 

N'Gombo  (Cabinda). 
Nambero 


Samba  (Ganguella) . . 

Chiteta  (Gangiiella). . 

Sandéra  (Ganguella). 

Mabanda  (Gauguclla) 

F.  (Ganguella) 

Guenjo  (Ganguella). . 
Chandalla 


F.  (Ganguella) 


Ciuco  (Quinbare) 

Catinga  (Lunda) 

Sonuna  (Nano) 

Quinbangana  (menor) 

Bumba. 

Chico 


Fugido 

Preso  para  a  fortaleza 

de  S.  Miguel. 
Morto  de  fadìgana  fuga 
Morto  de  fadiga  nafuga 
Fugidos  em  massa .... 
Morto  de  eongcstào  pul- 

monar,  por  ter  caido 

aos  rapidos  do  rio. 

Morto  de  tisica 

Fugido 

Perdido  (aliena^ào). . . 
Perdido  com  carga  de 

mìssanga. 
Fugido  com  um  fardo 

de  riscado. 
Fugido  coni  um  fardo 

de  fazendas. 
Fugido  com  um  fardo 

de  algodào. 
Fugido  com  o  bote. . . . 
Fugido  com  o  bote. . . . 

Fugido  do  libamì)o 

Fugido  dolibambo  pela 

segunda  vez. 
Fugido  do  libambopela 

segunda  vez. 
Morto  de  pneumouia. . 
Perdido,  morto  de  fome 

Perdido,  morto  (?) 

Morto  de  pneumonia. . 
Morto  de  dysenteria  (?  ) 
No  hospital 


No  Croque. 
£m  Loanda. 

No  Croqui?. 
No  Croque. 
No  C'roque. 
No  Croque. 


Km  Mossamedes. 
Na  Huilla. 
Na  Huilla. 
Chimpumpunhime. 

No  rio  Iquebo. 

No  rio  Iquelx). 

No  rio  Iquebo. 

No  rio  Iquel)o. 
No  rio  Iquebo. 
No  rio  Iquebo. 
No  rio  Iquebo. 

No  rio  Iquebo. 

No  rio  Cuatir. 
No  rio  Cuatir. 
No  rio  Cucio. 
No  rio  Iquebo. 
£m  Mossamedes. 
Em  Mossamedes. 


xn 


Rdagào  dos  individuos  perdidos 


Nome  e  naturalidade 


25 
26 
27 

28 

29 

30 
31 
32 
33 
34 
35 
36 
37 
38 
39 

40 
41 

42 
43 

44 

45 
46 
47 

48 

49 

50 

51 

52 
53 


Quizeuduca 

Jimbi 

Uamo  (Moisumbi) — 

Benedicto  (Mossame 

dea). 
Caxinda  (Loballe) . . . 

F.  (menor) 

F 

ChiàJla 

Joariuim 

F 

Quiluinbo  (inulher). . . 

Cahombo 

Jainba 

Bacaià 

Cha-Casscuda 

Quibanda 

Chieo 

Quipeio  (inulher) 

Catumbo 

Cacbìpia 

Calei 

Domingos 

Manico 

Fé-Camjino 

Caminho 

Humbo  (?) 

N'gulo 

Quinbanda ■  • . 

F 


Qualidade  da  perda 


Desertou  coni  fonie . . . 
Desertou  eom  fome . . . 
Desertou  eom  um  eu- 

nhete. 
Morto  de  epylepsia  e 

queda  no  fogo. 
Morto  de  tremores  ner- 

Yosos  e  idiotismo. 

Morto  de  enterite 

Morto  de  anemia. 

Morto  de  fadiga 

Fugido 

Abandonado,  morto  (?) 

Evadida. 

Evadido 

tLvadido,  morto  (?).  . . . 
Pordido,  morto  (?) .... 
Morto  de  fadiga. 

Morto  de  fj^liga 

Perdido,  morto  de  fa- 
diga  (V). 

Evadida 

Morto  de  fadiga,  ane- 
mia e  meningite. 

Morto  de  fadiga,  ane- 
mia e  meningite. 

Evadido,  morto  (?j.. . . 

Evadido 

Edema  e  fadiga,  morto 

Extraviado  eom  a  mala 
dos  instrumentos. 

Morto  de  meningite  e 
fadiga. 

Morto  de  meningite  e 
anemia. 

Extraviado,  morto  (?) 
no  mato. 

Morto  (?)  (bobas) 

Morto  de  tisica 


Logar 
em  que  se  effectuoa 


No  rio  Luatuta. 
No  rio  Luatuta. 
Adiaute  do  Luata- 

ta. 
Muene  Chindoma. 

Soana  Quifoaco. 

No  rio  Ninda. 
No  rio  Ninda. 
No  rio  Cabompo. 
No  rio  Caì>ompo. 
No  rio  Cabompo. 
Muene  Caheta. 
Muene  Furumana. 
Muene  Furumana. 
No  rio  Mumbeje. 
No  rio  affluente  do 

Luengue. 
No  Lualaba. 
No  Lualaba. 

Muene  Canhinga. 
No  rio  Muana. 

Cha-Malundo. 

Cha-Malundo. 
Cha-Malundo. 
Cha-Malundo. 
Cha-Malundo. 

No  Quinguebe. 

No  Quinguebe. 

No  rio  Moaclii. 

No  rio  Clioa. 
Table  bay. 


INDICE  DAS  GKAVURAS 


PftR 

A  bordo  do  paquete tU 

Rapariga  Celli 69 

Homeiu  do  Nano 78 

Bois-cavallos 85 

Rapaz  Coróca  (de  face) 89 

Rapaz  Coróca  (de  perfil) 93 

Homem  Coróca  (de  face) 97 

Homem  Coróca  (de  perfil) 101 

Fuga  de  pretos 109 

Um  enorme  leao  approxiniou-sc i2i) 

Morrò  Cha-Malundo 132 

Subindo  a  encosta 137 

Bambi 144 

Cascata  da  Huilla. opp.  a   148 

Um  carro  de  boera 161 

Typo  mu-nhaneca  lupollo 169 

Senzalla  em  Quipungo 177 

Ob  elephantes 185 

Mulheres  ban-dimba 193 

Rapariga  mun-dimba. 197 

Mulher  mun-dimba 201 

Soltando  um  latido,  desapparece 205 

Mulher  do  Humbe 208 

Hyphoene  guinensis 213 

Homem  do  Humbe 221 

Typos  bana-cutuba 225 

Homem  do  Humbe 229 


XIV  Indice  das  (jravuras 

Pae. 

As  glrafas 242 

M  pala  (macho) 249 

Mullìcr  da  Haiida. 253 

A  flteatopxgia  u*uiiia  hotteiitot4' c»pp.  a  2r>4 

Nas  margons  do  Cucio 2G5 

Mulher  amboclla  do  (.^ubango 2G9 

Homem  amboclla  do  Cubaiigo 273 

Cabc^a  de  gunga  (  Ehuid) 280 

Passagem  do  Cuatir 289 

Boi  do  mato 297 

Habita^ocs  do  Cuito ^305 

Naturai  da  Donga. 313 

Indigena  Ribeirinho  do  Cuito 321 

Escorregando  no  lamciro 333 

Typo  cam-bunda 337 

T2o  grande  era  a  abundancia  e  varirdadc  de  animacB opp.  a  338 

Capadji  (cabra  dos  pantanos) 341 

Peize  do  rio  Conjunibia 345 

Muene  Caluri 349 

Indigena  iàuma 357 

A  zebra 3G5 

E  perscguindo  urna  recua  de  zebras,  fcn;  duas opii.  a  3G8 

Cabe9a  de  palanca 373 

Homem  do  Lobale 377 

Mupei 385 

Antilope  Caama 389 

Indigena  do  Genji 397 

Mulheres  ba-runda  » 405 

Cabe^a  de  barrisbuck 409 

Typo  ca-rótze 413 

PhacochceruB  afr 417 

Antonio  empoleirado 425 

Mulher  amboclla 42f) 

Homem  amboclla. 433 

Quissenia  JEgoceros  ellipsiprinums  (fenica) 437 

Quissema  ^goceros  cllipsiprimnu»  (macho) 441 

Narguilé  gentilico 448 

Mappas  (quatro). 


INDICE  DOS  CAPITULOS 


ESBOgO  HI8T0RIC0 pRg.    1  a    20 

O  CONGO PftR.  21  a    87 

HISTORIA  POIJTICA  DO  CONGO Pag.  39  a    r.7 

CAPITULO  I    . 

NA  COSTA  OESTE 


Km  Angola  —  Anpecto  do  cord&o  litoral  e  sua  vegetala©  —  Terras  do  interior  —  Entrc 
Cuanza  n  Bongo,  quadro  triste  —  Problenias  que  nos  propunhamos  —  Material  epcs* 
8oal  —  Considora^òcfl  —  Artigos  da  expodi^ilo  —  Francisco  Forreira  do  Amarai  — 
Urna  noticia  historica  —  Salvador  Correla  e  a  conquista  de  Loanda  —  Fortalezas  e 
ediflcios  publicos  —  Os  jardius,  os  muctqw»,  avegcta^&o,  a  salubridado  o  a  ilha  — 
Os  muxi-loandas  e  a  suaopini&o  aristocratica  —  Kondimcntos  e  governo — Tribunacs 
Judiciaes  —  Considera90e8  sobre  os  deportados  e  colonlas  penaos Pag.  59  a    81 


CAPITOLO  II 


PRIMEIROS  PASSOS 


O  companheiro  negro  e  a  sna  ingratid&o  —  A  corveta  Rainha  dt  Portugal  e  a  abalada  — > 
Porto  Piuda  —  Os  aroaes  e  a  prìmoira  noite  —  Ponto  de  partida  o  rasocs  do  sua  es* 
colha — O  homem  poe  e  Deus  dispòe  —  A  primeira  marcha  e  o  aspecto  do  terreno  — 
Caracteres  gcologicos  —  Os  habitantes  do  Conica  e  o  dùptt  dentai  —  Numera^fto  — 
Dos  trajes  e  mulheres  —  O  adulterio  e  os  funernes — O  boi  proto  e  a  circumclsào  — 
Terron's  gentilicos — Vegeta^ào  do  Coróca  —  ?'auna  oruithologica — Fuga  do  qua- 
rcnta  e  dois  homens Pag.  83  a  106 


XVIII  Indice  dos  capitulos 


CAPITULO  IX 


0  RIO  CUBANGO 


Boto  annos  depois  —  O  ramlnho  de  Mo^amblque  e  ai  carai  voi vldaa  ao  «al  —  Maone  Ca- 
tiba  e  a  mandloca — Entra  os  amboollai  —  A  conflaenria  do  Cutchi  e  a  doen^a  de 
Mapne  Mionga  —  Um  trabalho  photographico  iuterrompido  —  Scenao  do  fcitifarìa  — 
Trìbunaes  africanos  e  orna  anecdota  sobre  o  caso  —  Os  ina-rhaca  —  (>  rio  Cuobo  — 
Subitas  dos«r9-5es  e  uina  noite  de  auf^stla  —  Philosopbioas  rouiiidcrafi^ns  quo  um 
ftineral  remata  —  O  rio  Cueio  e  os  atolelros  que  o  roaririnam  —  Frios.  sòde*  e  fomes 

—  O  rio  Cuatir — Natureza  do  solo  e  os  pautanos  intransponiveis  —  Aldolas  lacustres 

—  Ainda  um  atoleiro  e  a  pobresa  das  planta^òos  —  Um  chefo  mais  hutnano  o  a  morte 
de  am  companheiro — A  fome  —  Duas  considerafoes  sobre  a  geolofiia  africana  — 
Adeus  Cabango Pag.  263  a  2 


CAPITULO  X 


A  CAMINHO  DO  ZAMBEZE 


As  poeticas  impressòes  da  chegada  e  a  consequeuto  dcsilluRào  —  Soffrimontos  quo  nos 
aguardam  —  Ainda  o  Cuatir  e  a  jienla  de  um  homom  —  O  rio  Luatuta  ó  corno  o  Cua- 
tir—  Libata»  ml»eravcÌH  e  a  situn^fto  do^  noM808  —  A  caravana  torna-so  n'um  bando 
do  salteadores  —Visita  do  grupo  Kingular  —  A  mullior  soba  e  a  penuria  de  vivere»  — 
Considcra^Ses  e  ingenuidadc  sem  igual  —  A  partida  e  a  fuga  de  dois  homcns  — (> 
Longa  e  a  fuga  de  um  outro  —  Continuam  o  deserto  e  as  zonas  arcosas  —  Asmupan- 
das  0  a  altitude  —  Pouca  ca9a  e  o  rio  &rpalina  —  Um  acampamento  cannibalesco  — 
Ob  ca^Jidores  de  rato»  —  Subsiste  a  fome  —  Mupei,  o  e«tp080  infeliz  —  Curiosldade  dos 
man-banda  —  Os  bois-cavallos  e  as  suas  vantagens  em  viagem  —  Effeitos  de  miragem 
e  am  animai  corno  o  gnu  —  O  Culto  e  sua  noticia Pag.  2M7  a  309 


CAPITULO  XI 


ACERC'A  DO  SEGUO 


O  indigena  africano  —  Slmilhan^a  de  caractercs,  difflculdade  em  doscriminar  typos  e  fa- 
roilias  de  origem  commam  —  Tra^ os  caracteristicos  do  negro  —  Aspccto  gcral  — In- 
dlcaf(Vo8  scientificas  sobre  a  coufonnaf&o  craueana  —  O  curo])eu  e  o  ethiopc  enea- 
rado  pelo  lado  esthetico — Os  hamitas  e  a  philanthropia  —  Uniformidade  de  scr,  »ub 
o  ponto  de  vista  intellcctual — Feitlfos  —  O  Otjiruro,  os  Sondi»  e  o  Zamòi— 8upor- 
stlfdes  e  o  terror  pelos  mortos  —  Diffidi  comprchensio  —  Dados  cosmogonicos  indi- 
genas  —  O  sentimento  moral  e  as  lendaa — Dlfflcaldades  de  estudo  —  A  lingua  e  os 


Indice  dos  capitulos  xvn 


CAPITULO  VI 


AO  SUL 


ConRola^uos  do  qacni  viaja  —  A  abalada  da  HuiUa — Urna  Alga  e  o  abandono  daR  camaa 
—  O  Chimpumpunhimo  —  O  caminho  don  Gambos  e  os  csplnhoiros  —  O  Tongo-tongo 
<>u  o  morrò  sagrado  —  Oh  dias  nWta  terra — A»  florciitas  o  a  fauna  —  Os  ban-dimba 
o  n  8ua  voracidadc  — Vestimniitaii  e  proceder  para  com  os  mortos  —  Confiderà^ Sos  e 
a  feflta  da  hda  —  foroouto  e  ama  erupfio  granitica  —  Cahama  e  Xicunse  —  A  mesa 
e  Auas  confiola^òes  —  Quatro  clephantcs  e  a  fauna  omithologioa  — O  croeodilo  e  a 
pomba  —  A  fioresta  que  termina — Os  ba-cancalla  on  ìnuhmtn;  duas  palavras  a  rcs- 
petto  d*elIos  —  Tatouage,  armas  enveuenadas  —  Seu  caracter — O  Huinbe  e  a  cafa 
couHidorada  pelos  ban-cumbi Pag.  183  a  210 


CAPITULO  VII 


ENTUE  OS  BAN-KUMBI 


O  ITumbe  —  Sua  posifio  —  Quadro  historìco  —  Os  ban-kumbi  e  os  seus  costumes  —  Habi- 
ta^òps  0  typo  —  O  hamha  —  Homens  e  mulheres,  seus  trabalhos  —  Chronologia  e  fes- 
tas  —  FuneraeR  —  Mìahòcs  catholicas  —  Os  bana-cutuba  e  o  Cuauhama — Proexas  do 
Nampandi  —  Kiftuoza  dos  cuanhamas  o  um  apejn;u  geologico  —  O  ronco  do  leao  im- 
preHflionando  no  muudo  animado  —  O  cacimbo  o  as  considera^òos  —  O  Cunene  e  o 
alaganuMitn  marginai — Mupei  oncontra  a  mSo  —  A  caonìui  e  o  processo  da  vaccina 
—  Oh  roptis  e  a  vegnta^&o  —  Zero  de  graus  e  a  impress&o  connequento  —  Umalmo^o 
de  couro Pag.  211  a  237 


CAPITULO  Vili 


ENTRE  CUNENE  E  CUBANGO 


A  reluctancia  dos  gnias  e  o  recurso  dos  bois — A  forno  e  mn  quadro  do  sertio — Disposi- 
9S0  geologica  das  terras  percorridas  —  llochas  vulcanicas  o  minas — A  vegeta^So,  o 
frio  e  OS  lobos  —  Cobra  originai  —  A  ca^a  o  as  pégadas  do  elephante  —  A  noite  e  o 
charivari  das  feras  —  As  matas  da  Ilanda  —  Cachira  —  On  povoadores  d^all  —  As  mu- 
pandas  e  a  terra  sem  pedras  —  A  cabra  que  assobia  o  os  bushmen  —  A  steatopygia — 
A  natureza  do  solo;  conversa  com  um  indigena — Os  ba-cua-neitunta — Exageros 
gentilicos  —  O  leio  o  os  mabeeoa  —  Oh  macacos  o  o  aimadilho  —  O  Cubangro  —  Consi- 
dera(5es  sobre  o  seu  curso Pag.  239  a  2C2 


XVIII  Indice  dos  capitulos 


CAPITULO  IX 


0  RIO  CUBANGO 


Soto  annos  depois  —  O  caminho  de  Mo^ambique  e  ai  caras  volvidas  ao  sul  —  Mnene  Ca- 
tlba  e  a  maudiooa — Entro  os  ambocllas  — A  confluencia  do  Cutchi  o  a  doen^a  de 
Muene  Mlonga — Vm  trabalho  photo^aphico  Interrompido  —  Scenas  dn  feiti^arìa  — 
Tribunaes  africanos  e  uma  anecdota  sobre  o  caso  —  Os  ma-chaca  —  ()  rio  Cuebe  — 
Subitas  dosor^^es  e  uma  notte  de  antnistia — Philosophicas  ronsidera^rxts  que  um 
ftkncral  remata — O  rio  Cueio  e  os  atoleiros  que  o  marginam  —  Frìos,  sòdes  e  fomes 

—  O  rio  Cuatir— Natureza  do  solo  e  os  pautanos  Intransponlveis  —  Aldelas  lacustres 

—  Ainda  um  atolelro  e  a  pobreza  das  planta95es  —  Um  chofe  mais  humano  e  a  morte 
de  um  companheiro  —  A  fome  —  Doas  consideraf5es  sobre  a  geologia  africana  — 
Adeus  Cubango Pag.  263  a  2 


CAPITULO  X 


A  CAMINHO  DO  ZAMKEZE 


As  poetlcan  impressSes  da  chcgada  e  a  consequonte  dcsillusio  —  Soffrimentos  que  nos 
agaardam  —  Aiuda  o  Cuatir  e  a  porda  de  um  homcm  —  O  rio  Luatuta  é  comò  o  Cua- 
tir—  Libatas  miseraveis  o  a  situa^&o  dos  nossos  —  A  caravaua  toma-se  n*uui  bando 
de  salteadores  —Visita  de  grupo  «iugular  —  A  mulher  soba  e  a  penuria  de  viveres  — 
Considera^Dos  e  ingenuidade  sera  igual  —  A  partida  e  a  fuga  de  dois  homens— O 
Longa  e  a  fuga  de  um  outro  —  Continuam  o  deserto  e  as  zonas  areosas  —  As  mupan- 
das  e  a  altitudo  —  Pouca  ca9a  e  o  rio  M*palina  —  Um  acampamento  cannibalesco  — 
Ofl  caf  adores  de  ratos  —  Subsiste  a  forae  —  Mupoi,  o  esposo  infeliz  —  Curiosidade  dos 
man-bunda  —  Os  bois-cavallos  e  as  suas  vantagens  em  viagem — Effeitos  de  miragem 
e  um  animai  corno  o  gni'i  —  O  Culto  e  sua  noticia Pag.  287  a  300 


CAPITOLO  XI 


ACERCA  DO  NEGRO 


O  indigena  africano  —  Similhan9a  do  caractercs,  difflculdade  em  descriminar  typos  e  fa- 
mllias  de  origem  commura  —  Tra^os  caracteristlcos  do  negro  —  Aspecto  goral  — lu- 
dicafSes  scientiflcas  sobre  a  conformatilo  craneana  — O  europeu  e  o  ethiope  enoa- 
rado  pelo  lado  esthetico— Os  hamitas  e  a  philanthropia  —  Uuiformidade  de  ser,  sob 
o  ponto  do  vista  intellectual  — PeitÌ90s  — O  Otjiruro,  os  SandU  e  o  Zamhi—iiupvr- 
stÌ95es  e  o  terror  pelos  mortos  —  Difficil  comprchensio — liados  cosmogonicos  Indi- 
genas  —  O  sentimento  moral  e  as  lendas  —  Difficuldades  de  estudo  —  A  lingua  e  os 


Indice  dos  capitulos  xix 

costumes  —  Tra^os  approximativos  de  tribua  distantes — Dàmaras,  ban-cumbi,  ba- 
cuatir,  baycye,  ban-diriro,  ctc. — Eutcrramnuto  dos  dcfuntos  e  pratica  da  circumci- 
8&0  —  Ba-yoye,  noniacuas  o  ba-coróca,  suas  habita^òos  —  Os  ba-vico  oh  ba-visa  e  o« 
dicka  —  Tendcncia  Dotnada  —  Os  bn-cuanniba  e  a  Caflina  —  A  emi^a^fio  e  a  iuflucn- 
cia  do  pantano  —  Ot»  ma-tchona  e  os  dilmaras  —  Trìbus  quc  originaram  —  Os  ba-uhu- 
neca  e  os  ban-cunibi  excoptuados  —  Oh  dainaras  e  ainda  urna  tcutativa  para  attuar 
com  a  sua  provcuiencla  —  Opiui&o  dfi  Anderson — A  arvorc  progenitora  —  Couclu- 
«•So rajr.  311  a  y^JI 


CAPITULO  XII 


LODAVAKS  E  LAGOAS 


Adeus  Ciito  —  A  carne  e  a  inorosidade  das  marchas  —  0«  ba-ouito  o  os  ma-eòa  —  Planu- 
ras  lUDuotonas  e  phenomcnos  de  iniragem  —  Libatas  lacuritres  e  tiinidez  dos  indifre- 
nas — O  bijou  nfrioano  e  um  tuinbo  inupinado  —  Artigos  do  alimentavAo  e  trajo  dos 
ba-ouitu  —  A  AiUwita  téchee  f  —  As  planuras  e  a  ca^a  —  O  /topo  —  Un»  homein  perdido 

—  A  cobra  da  an'ia  e  as  tìorc8ta«  do  Conjiunbia  —  Mani-buuda,  trajon.  funoraes  dos 
Kobas  —  Um  homem  abandonado  —  As  monins^ites  cerebro-racliidianas  —  O  muchi/o 
de  Cajiiiballc  e  os  olephantes  —  A  terra  do  Cubangu  ao  Zauibezc,  e  as  diftìculdades 
do  tranitito  —  Considera9r*es  amargas  —  O  cyelone  de  18  de  agosto  —  Modo  de  attra- 
hir  as  gavellas  pelo  som  —  Mucnc  Quitiaba  e  os  ba-iauma  —  Os  guias  e  o  alagameuto 

—  Critica  posi^-So  dos  cbefes  e  da  caravaua  entre  o  arando  das  margeus  do  Cuando 

—  O  rio  ìk.  ao  Zambeze?  —  Com  o  apparecimento  do  milho  esquecem-se  as  fadigas 
--0  rio  Culi  e  o  trilho  commercial  do  Bié  —  A  bacia  do  Congo  e  a  do  Zambeze  — 
Considera^òes  consequentes  —  O  paiz  é  park-like Pag.  331  a  3.'»-l 


CAPITULO  XIII 
XO  VALLE  UE  BARÓTZE 


A  Ina  de  agosto  e  os  nossos  receios  —  Idèa  gcral  sobrc  a  distribuÌ92o  das  chuvas  na  Africa 
tropical  do  sul  —  0  doud-ring  e  o  seu  movimento  para  o  meio  dia  —  Ketardamento 
na  marcha  pelo  oriente  —  O  limite  sul  e  as  quatro  esta^Scs  —  As  marehas  do  Cuti  e 
Muene  Lionze  —  Os  atrampamentost  de  Silva  Porto  —  Os  man-bunda  e  o  elephante  — 
Curiofiidades  —  O  Ninda  e  urna  sepultura  —  Aspecto  pittoresco  do  valle  —  O  6eo  e  o 
.«cu  aroma  —  A  cava  e  uni  obito  —  Perda  do  corapauheiro  —  CJnù,  cabra  e  n'caca  — 
O  silencio  da  notte  —  Calungo-lungo  e  os  luinas  —  Typo  d'estes,  e  pouca  importancia 
das  entrevistas  africanas  —  O  paiz  è  um  parquc;  abimdancia  dos  animaes  niello  — 
Oh  càos  e  seu  prestimo  na  cava  do  gnu  —  O  alagamento  crescente  da  terra  —  Ausen- 
eia  do  tabaco  e  presenva  da  palmeira  —  Gula  feiticeiro  e  adivinha^So  incsperada  — 
Oh  ba-nbengo  Iadrr»i>s  —  Muene  Munda  e  os  seus  dotes  physicos  —  Um  capote  de  tn- 
testinos  de  elephante  —  A  musica  e  um  bailo  de  doze  horas  —  Im]>ressào  pro<luzida 
I>elas  beldades  da  terra  nos  auctores  d'estas  linhas  —  A  ca^a  e  a  quadra  da  crca^fto 
—  O  acampamento  pela  notte  —  Multtplicam-se  as  lagoas  —  A  expediv&o  emflm  at- 
tinge o  Zambeze Pag.  355  a  381 


XX  Indice  dos  capitulos 


CAPITTILO  XIV 

LIIJONTA 


Torritoriog  «traveHRados  o  outros  a  porcorror— O  quo  havia  para  alom  do  Zambozo  — 
A  noflsa  curìoitidade  o  o  que  no  ponsa  dobrc  a  Africa  —  O  que  ó  a  final  o  interior  dr 
contiuonte  —  Ah  ])Iamira8  zaiubozeaiias  —  A  vt-nlado  «obro  eììan  —  DiflinildadcH,  voi> 
toK  e  toniporatura  —  K  urna  dViiMaa  rogioes  de  quo  falla  8tniil<>y  e  undc  LiviiiKHtoiP 
])on»e«'U  —  Coutra.itfì  coinitoiiMador  naii  scc>iia8  de  ca^a  —  f^piiiirirH  de  Ltviiit^stone  e 
noHNOH  juizos  aiitecipados  —  Aboudancia  de  antilope»  o  o  hojn»  —  Libonta  —  A  vedc- 
ta^Ho  ao  tempo  d'aquelle  viajante  e  a^ora  —  Seu  a»pecto  —  A  terra  eiii  re<lor  —  .\u- 
eo1>eMHa  e  os  habitadoreH  do  (Jeuji  —  8euR  trajoK  e  porte  das  niullien*»  —  Tuo  iiiiiio- 
derado  do  rapè  e  o  leu^o  do8  luinao  —  Profundo  abatiinento  pliy^ico  da  freutr  da 
expedi^So — I>ia  13  de  Keteinbro  —  A»  niOKeaH  de  Libonta  — Cavada  à»  rola^;  — Or- 
nitholotda  do  Zambexe  —  CoiiHiderafùeM  perae*  Mobn»  o  valle  de  liarótze  e  trillio*  quo 
ali  conduzeni Vat;  JHu  a  4«U 


CAPITULO  XV 
DE  LUJONTA  AO  C'AHOMl'O 

Profrrainma  de  viapem  —  A  uossa  satlHfafSo  e  o  gusto  quo  dominava  o»  cnrre^adores  — 
KaHÒOH  dVHHfì  facto — Melos  de  quercrimpedil-o  —  O  Liambae  e  o  Cambae  —  Oh  ma- 
róze,  habita^òcR  e  trajo  —  Decoi)9ÒCM  o  roubos  curioHos  —  Iu<»pinada  not'eia  nobre  o 
apparecimento  da  monca  —  Palancai,  lèchcc*  e  um  leSo  —  A  JlypJttme  tmfricrwa  e  o 
jHìpyrxut  —  Encoutro  com  a  tzé-tzé  —  Duati  quiMmema».  um  Felix  jubata  eum  honpo  — 
De  novo  na  flore»ta,  vanta(r<>ns  do  apparecimento  d*o«ta  —  Os  ataquei  do  leùo  e  ax 
uoMsa»  ordens  por  tal  motivo  —  Nos  limites  do  OHtado  da  Luuda  —  <>  lluata  lanvo  e 
o  »eu  prentiirio — A  liberdade  do  nepro  •*  dnax  concidera^òes  a  rexpeito  d'elle  —  A 
maior  da»  victimafl)  a  mulhcr  —  AfaHtamento  d*etita  de  todos  oh  ne^ocios  <;  recop^r»eM, 
e  condivAo  Hoeial  do  nelvaifem  de  hoje  —  Mantini(>utoH  ù  flirta  e  h.itii«fa«.'ào  rtm^e- 
qu<*nto  —  O  ty]»o  ca-ruuda  e  o  ca-róze  —  Infonnavòi^H  nobre  o  Cabonipo  e  etfeilo  das 
]ialavraH  de  Muene  Chilembi  —  0^  mangoia  e  o  re<"eio  da  niOHca- Pn-tensao  inespe- 
rada  de  um  bando  de  saltcadores  —  Um  dilemma  para  ponderar  — Teutativa  de  fupa 
de  um  earrega«lor  e  o  rio  Cabom]»o Pag.  403  a  421 


CAPITULO  XVI 
FERA  NATURA 


ronsidera^òen  triste»  —  O  deserto  e  o  silencio  —  O  Cabompo  e  a  nolte  —  O  elephante  e  o 
arvorodo  —  Limito  ao  terreno  pìHcìoho  —  Primeiras  rochas  —  A  floreala  e  os  animaeH 
HilvoHtres  —  Perda  de  um  companbeiro  —  Homem  e  cào  morto«  —  Dois  elepbanten  — 
(ì  Homno  da  girafa  o  obito  de  outro  liomem  —  Fujra  de  um  carregador  —  Morte  de 
maiM  um  cào  —  Individuo  penlido  no  bowjue  —  <>  rhiuo<*erontc  curioso  e  os  crocodi- 
loH  do  Cabompo  —  Os  destro^os  do  leSo — Vam-Bow  —  O  leUo  euma  noiledopolein» 
—  Beifos  furados  e  seios  pcndcutes  —  A  primeira  tempestadc Pag.  423  a  448 


PREFACIO 


Desde  a  publica^ao  do  nosso  trabalho  denominado 
De  Benguella  ds  terras  de  lacca,  em  1881,  nao  tivemos 
a  satisfa9ao  de  ver  livros,  nera  mappas  ou  outros  im- 
pressos  de  ordera  qualquer,  que  multo  adiantassem 
OS  conhecimentos  africanos  do  mundo  geographico  da 
Europa. 

Omittiremos,  é  claro,  os  esfor^os  relativos  à  abertura 
do  Congo,  nos  quaes  alias  se  coraprehendem  labores 
interessantes,  mas  que,  pelo  seu  caracter  essencial- 
mente  pratico,  executados  n'uraa  regiao  era  grande 
parte  conhecida,  nao  devera  aqui  encorporar-se. 

0  livro  hoje  subraettido  ao  publico  encerra  a  histo- 
ria  de  urna  peregrina^ao,  modelada  passo  a  passo  nos 
apontaraentos  do  respectivo  diario;  e  embora  nao  tenha 
a  jactancia  de  descrever  cousas  fora  do  vulgar,  nem 
por  isso  deixa  de  longe  em  longe  transluzir  a  Intima 


xxn  Prefaxdo 

convic^ao  de  que  algum  merecimento  teve  quanto  em 
Africa  fizemos. 

Os  resultados  praticos  que  duella  possam  advir  nao 
compete  a  nós  aprecial-os,  pois  em  geral  o  liomem  que 
considera  e  mais  tarde  attenta  na  propria  obra,  é  quem 
d'ella  menos  se  satisfaz;  nao  nos  e  aprazivel,  poréu), 
suppor  que  o  facto  de  percorrermos  com  cuidado  4:500 
millias  de  terreno  sobre  as  zonas  que  mais  nos  pare- 
ciam  proprias  se  nao  necessarias  de  visita,  deixe  de  li- 
sonjear  o  espirito  dos  africanistas,  ou  escape  desaper- 
cebido,  embora  pouco  luminoso,  nas  ignotas  e  escuras 
manchas  da  Africa  selvagem. 

E  mesmo  multo  provavel  que  a  parte  do  nosso  tra- 
ballio do  Zambeze  para  o  oriente  apresente  alguma 
cousa  de  importante,  por  ser  feito  em  uni  novo  canii- 
nho  (o  mais  curto  e  mellior  talvez),  por  onde  a  civili- 
sa9ao  e  o  commercio  da  costa  occidental  podem  facil- 
mente attingir  a  regiào  dos  lagos. 

0  aspecto  arido  e  inliospito  do  grande  continente, 
o  barbarismo  dos  seus  liabitantes,  os  liorrores  da  vida 
selvagem,  que  outr'ora  emmolduravam  as  idéas  sobre 
aquella  terra  estranila,  constituem  notas  que  come^am 
a  apagar-se  no  melo  do  concerto  das  acclama9oes  vo- 
tadas  a  quem  se  empenha  na  difficil  empreza  de  Ihe 
desvendar  os  mysterios,  sao  factos  que  impressionam 
ao  presente,  um  pouco  à  similhan^a  de  quando,  aj)Oz 
pliantastico  sonilo,  se  passa  a  positiva  realidade. 

Hoje  jà  ninguem  ve  na  Africa  senao  um  dos  vastos 
quarteiroes  do  mundo,  tao  proprio  a  vida  comò  qual- 


Prefado  xxiii 

quer  dos  outros  conhecidos,  tao  digno  de  desvelo  corno 
o  mais  rico  dos  supracitados,  ampio  campo  de  afan 
commercial,  cuja  primeira  base  de  segura  civilisa^ao 
cumpre  ou  antes  é  dever  do  europea  explorar,  nao  so 
no  interesse  dos  seus  habitadores,  comò  em  proveito 
do  trafego  communi;  emfim,  de  esquecido  e  occulto 
que  foi*  tomar-se-lia  dentro  em  pouco  opulento,  cubi- 
9avel  e  assàs  visitado,  transformando-se  n'um  grande 
centro  de  consumo  para  todo  o  excesso  da  nossa  pro- 
duc9ao. 

Longe  vae  a  epoclia  dos  terrores  que  esse  Sahara 
originou,  comò  barreira  intransponivel  à  curiosidade, 
em  que  a  Abyssinia  era  por  assim  dizer  um  sonho, 
Timbuctu  um  mysterio,  as  nascentes  do  Nilo  um  pesa- 
delo. 

De  vagar  se  proseguiu,  e  verdade;  nao  foi  porém 
nossa  a  culpa,  ou  porque  o  homem,  no  ìrresistivel  im- 
peto de  tudo  subordinar  no  pianeta  terrestre  ao  domi- 
nio do  seu  querer,  esquecesse  esse  immenso  continente 
que  proximo  Ihe  ficava;  mas  sim  proveiu  do  subito  ap- 
parecimento  do  outro  campo  de  explora9ao — a  Ame- 
rica, clieio  de  riquezas  e  em  superiores  termos  de  uti- 
lisar-se,  mais  consentanea  a  ser  tratada  pelos  meios  de 
que  dispunhamos,  a  navega9ao,  ligando-se  à  Europa 
finalmente  pela  melhor  das  estradas — o  mar! 

A  America  deve  contar-se  comò  um  dos  factores  que 
muito  influiram  para  a  demora  na  civilisa^ào  do  conti- 
nente negro,  por  absorver  ahi  durante  seculos  todos 
OS  e8for90s  da  Europa,  e,  estendendo-se  de  um  ao 


XXIV  Prefacio 

outro  polo,  cingir  nos  dois  hemispherios  zonas  varìa- 
veis,  entre  as  quaes  se  contavam  algumas  de  tropical 
caracter,  onde  so  o  preto  podia  trabalhar  com  o  pre- 
ciso animo. 

E  o  branco,  procurando  introduzil-o  ahi,  teve  de  o 
buscar  e  perseguir  em  Africa,  impiantando  com  egois- 
mo n'aquella  terra  infeliz  o  maior  dos  flagellosj  e  pon- 
do-lhe  o  mais  serio  obstaculo  ao  humano  progresso — 
a  escravatura. 

Agora,  que  da  America  jà  nao  trata,  arrependido  pe- 
nitenceia-se  contricto,  posto  que  interessado,  e  d'esse 
interesse  despontou  a  aurora  da  liberdade  em  Africa  e 
vae  breve  raiar  com  todo  o  esplendor  o  sol  da  sua 
felicidade. 

Continue  pois  a  boa  vontade  no  trabalho,  saiba  o 
capital  aproveitar-se  do  nmito  jà  feito,  eis  os  nossos 
votos,  convencidos  de  que  mais  duas  duzias  de  annos 
bastarao  para  transformar  radicalmente  as  cousas  no 
extenso  continente. 

Concluidas  estas  considera^oes,  benevolo  leitor,  res- 
ta-nos  a  tarefa  pouco  facil,  embora  menos  escabrosa 
que  uma  travessia,  de  pegar-vos  pela  mao,  e  condu- 
zir-vos  passo  a  passo  n'essa  tortuosa  vereda  por  nós 
trilhada,  desde  Angola  até  Mo^ambique;  de  vos  guiar 
por  meio  de  serras  e  planuras,  pantanos  e  desertos; 
de  patentòar-vos  emfim  todos  os  soflFrimentos,  fadi- 
gas,  fomes,  chuvas,  angustias  e  mortes  que  nos  ser- 
viram  de  lugubre  cortejo  desde  o  mar  Atlantico  ate  ao 
Indico  ! 


Prefacio  xxvii 

Moret,  0  testeiiiunho  de  milita  sympatliia,  bem  corno 
às  sociedades  e  associacjoes  estrangeiras,  e  a  taiitos 
cavalheiros  illustres  que  nos  sigiiificaram,  pela  sua  li- 
sonjeira  apreciacjao,  o  quanto  valiam  os  servicjos  que 
acabavamos  de  prestar,  corno  sao  o  nosso  particular 
ainigo  0  ex.*"®  sr.  Francisco  Joaquim  da  Costa  e  Silva, 
director  geral  do  ultramar,  e  ainda  aos  cavalheiros 
do  Cabo  da  Boa  Esperan^a  e  ao  prime  minister  Upin- 
gton,  d'aqui  enviàmos  a  nimia  expressao  do  sentimento 
que  nos  domina. 

Muito  particularmente  reservàmos  urna  especial  re- 
cordacjao  as  terras  da  nossa  naturalidade,  pelas  subidas 
demonstra^oes  com  que  nos  lionraram,  bem  comò  aos 
nossos  compatriotas  no  Brazil,  e  em  especial  àquelles 
que  nos  distinguiram  com  um  precioso  volume  conten- 
do as  suas  assighaturas,  e  outros  com  pennas  de  oiro, 
enviàmos  a  nimia  expressao  do  nosso  grato  sentir. 

As  Camaras  Municipaes  do  paiz  e  das  colonias,  aos 
Clubs  que  nos  honraram  com  especiaes  sauda^oes  e 
diplomas,  à  imprensa  periodica  que  tao  delicada  e  li- 
sonjeiramente  apreciou  os  nossos  trabalhos,  e  a  quan- 
tos,  emfim,  possam  involuntariamente  ser  olvidados, 
um  sincero  agradecimento. 

E  por  ultimo  cabe-nos  aqui  vincular  o  nosso  reco- 
nhecimento  à  administra^ao  geral  da  Imprensa  Nacio- 
nal,  aos  srs.  revisores,  compositores  e  estampadores, 
pelo  interesse  e  decidido  apoio  que  nos  dispensaram, 
e  sem  o  qual  este  livro  tarde  appareceria  a  publico. 

Lisboa,  30  de  setembro  de  1886. 


ESBOgO  HISTORICO 


E  Julgareii  qnal  é  mail  exceliente, 
Se  ser  do  mando  rei,  le  de  tal  ^nto. 

CamÒU,  LtuiadoMf  canto  i. 

L^Afrlque  Intérleurc  a  été  découverte  et  parcotu 
rue  par  les  portugaii  au  xvi*  siècle. . .  Lei  portu- 
gala  de  cetto  epoque  connaissaicnt  mieux  Tlntérieur 
de  ce  continent,  la  région  dea  lacs,  etc.,  qu*on  ne  la 
connaìt  ai^ourd^hui. . .  Liviugstone  a  donc  retrouvé 
seulement  co  quo  les  ancieui  portugai«  avaient  de* 
couvert,  et  encore  il  s'est  servi  de  renseignements 
portugais  sans  avoir  la  loyauté  de  le  dire. 

L*abb£  Durakd,  de  la  Société  de  Géographle 
de  Paris,  lettre  du  16  septembre  1880. 


As  tentativas  feitas  pelos  portnguezes  para  devas- 
sar  a  Africa  e  transpor  aquelle  continente,  ligando  a 
provincia  de  Angola  à  de  Mo^ambiqiie,  sao  de  bem 
velha  data. 

Se  fóramos  escavar  no  pò  das  bibliothecas*os  livros 
e  docTimentos  que  de  similhante  assumpto  tratam,  e 
folheando  antigas  chronicas  transcrevessemos  os  capi- 
tulos  que  Ihes  dizem  respeito,  veriamos  que  volumes 
eram  necessarios  para  desenrolar  similhante  questao, 
que,  por  vezes  estreitamente  ligada  às  proezas  pelos 
nossos  antecessores  praticadas  no  oriente,  nos  levaria 
à  narrativa  das  nossas  brilhantes  tradicjoes,  à  exposi- 
9S0  d'essa  epopèa  sem  igual,  de  que  deixàmos  o  vin- 
culo  em  gloriosos  padrSes  por  todo  o  globo. 


2  De  Amjola  d  coiìfra-cosfa 

Como,  porem,  nao  é  iiosso  intuito  dcmonstrar  mais 
uma  vez,  o  quo  de  resto  toda  a  hiimanidade  conlieoe, 
ser  Portuj^al  uma  mi^ao  que  se  ufiina  de  com  o  seu 
genio  e  com  o  bracco  dos  seus  conquistadores  ter  tra- 
(;ado  as  mais  brilliantes  paginas  dos  annaes  da  civili- 
sac^ao,  e  se  orgullia  de  ter  primeiro  que  nenhum  outro 
povo  plantado  a  cruz  e  a  bandeira  nos  mais  remotos 
confins  da  terra,  deixaremos  em  socego  as  vellias  chro- 
nicas,  para  evitar  digressoes,  nao  abandonando  no  eni- 
tanto  a  instruc^ào  historica,  j)ela  qual  vamos  passar 
com  a  rapidez  possi vel. 

No  comedo  do  xv  seculo  P()rtugal,  após  as  gran- 
des  convulsoes  peninsulares,  enceta  com  a  tomada  de 
Ceuta  a  grande  tarefa  de  devassar  o  Negro  Continen- 
te. E  ali  que  D.  llenrique,  o  infante  sabio  e  principal 
lieroe  d'esse  assombroso  feito  de  annas,  em  contacto 
com  o  torrao  africano,  e  ouvindo  as  maravilhosas 
narrativas  que  Edrisi,  naturai  d'essa  cliave  do  estrei- 
to,  conta  do  interior,  mais  uma  vez  concerta  o  plano,, 
jd  formulado,  de  procurar  por-se  em  relac^oes  com  o 
mvsterioso  Preste  Joao. 

Volve*à  patria,  e  apenas  descansado  de  tanìanlia 
fadiga,  come^*a  os  seus  empreliendimentos  maritimos 
n'esse  sentido,  ao  passo  que,  comò  nos  conta  Azura- 
ra,  se  empenlia  tambem  em  obter  informa^'oes  do  in- 
terior do  continente;  d'esse  continente  que  fascinerà 
o  mundo  romano  e  o  medieval  com  as  miragens  de 
riquezas  prodigiosas;  d'esse  paiz  do  sol,  do  oiro,  do 
marfim  e  dos  escravos,  cujo  amngo  era  um  mysterio! 

Assim,  à  mec^ida  que  vemos  esse  manto  caliginoso, 
que  a  supersti^ao  e  a  ignorancia  haviam  lancjado  sobre 


Eshoco  Mstoinco  3 

> 

a  vastidao  do  mar  irrequieto,  ir  sendo  rasgado  pelo 
argenteo  e  luminoso  sulco  das  caravélas,  vemos  tam- 
bem  de  par,  aventurosos  enviados  do  infante  lan^a- 
rem-se  na  incerteza  dos  sertoes,  para  arrancarem  ao 
desconhecido  os  segredos  que  a  natureza  parece  tao 
avidamente  occultar  ahi, 

Haviam-se  apenas  descoberto  os  Acjores  e  a  Ma- 
deira, estava  ainda  presente  no  espirito  de  todos  a 
lembrancja  da  passagem  do  terrivel  Bojador,  quando 
em  1445  Portugal  laudava  no  interior  do  continente  o 
primeiro  explorador  europeu,  o  primeiro  homem  que, 
abalado  da  velila  Europa,  punha  ollios  n'essa  terra 
mvsteriosa. 

Joao  Femandes,  companlieiro  de  Antao  Goncjalves, 
que  capitaneava  uma  caravéla  em  viagem  para  o  rio 
do  Oiro,  e  que  estiverà  captivo  em  Marrocos,  conhe- 
cendo  por  isso  a  lingua  arabe,  ofFerece  inteniar-se 
com  OS  azenegues,  e  sete  mezes  divaga  pelo  interior, 
penetrando  até  Tagazza,  no  paiz  dos  tuaregs.  A  sua 
relacjao,  anterior  um  seculo  a  Leao  Africano,  dà-nos, 
Hcerca  das  caravanas,  informacjoes  em  tudo  conformes 
com  as  obtidas  por  este  geograplio  arabe,  bem  comò 
em  acerto  com  as  de  Clapperton,  Marmol,  Jackson, 
Denham  e  os  itinerarips  do  barao  Walckenaer,  Bur- 
ckardt,  Oukney  e  Rennell. 

No  dizer  do  visconde  de  Santarem,  toma-se  sobre- 
tudo  notavel  a  analogia  que  offerecem  as  mais  sin- 
gelas  particularidades  de  sua  narrativa  com  aquellas 
mais  tarde  escriptas  pelo  infeliz  Mungo  Park. 

Dois  annos  depois  volve  ainda  Joao  Femandes  à 
provincia  de  Sus,  a  fim  de  vigiar  em  Messa  as  cara- 


6  De  Angola  d  coììtra^-costa 

mento  com  os  mundateque  ou  anzicos,  quo  nao  sao 
outros  senao  os  ba-tcque  ou  povos  de  Macoco,  recom- 
mendando  depois  insistentemente  aos  portuguezes  que 
passem  para  alem  do  tal  lago. 

O  venturoso  rei  D.  Manuel  completa  a  obra  ini- 
ciada  pela  escola  de  Sagres  e  continuada  pelo  Principe 
Perfetto.  O  dominio  portuguez  estende-se  ao  extremo 
oriente,  todos  os  principes  da  Asia  nos  sao  tributarios; 
e,  desde  Suez  e  Ormuz  até  Ceylào  e  Malaca,  desde  o 
Japao  e  China  até  às  Molucas,  tudo  os  portuguezes 
commandam,  todos  os  mares  elles  cruzam. 

0  continente  africano  passa  entaó  a  occupar  uma 
posÌ9ao  secundaria  no  grande  plano  de  dominar  o  glo- 
bo, nao  deixando,  por<5m,  de  merecer  ainda  cuidado, 
pois  D.  Manuel  nao  persiste  agora  so  em  relacionar- 
se  com  o  Preste  Joao,  e  intenta  de  novo  cruzar  esse 
paiz,  que  parece  obstinar-se  em  negar  o  ingresso  à 
expànsao  europea. 

Assim,  em  1508  Affonso  de  Albuquerque  manda 
por  em  terra  no  Porto  Feliz,  perto  do  cabo  Guardafui, 
a  Fernao  Gonies  Sardo,  Joao  Sanches  e  Cid  Mohamed 
de  Tunis  com  duas  cartas  para  o  Preste  Joao.  0  mouro 
liavia  afiancjado  que  a  sua  tornacja  a  Portugal  seria 
por  Timbuctu,  e  d'ali  a  Arguim  pelo  rio  de  (^s,n2i^2i, 
(Senegal),  caminho  que  elle  jà  conhecia. 

Em  1521,  diz  Damiao  de  Goes,  envia  D.  Manuel 
a  Gregorio  de  Quadra,  homem  experimentado  e  que 
percorrerà  toda  a  Arabia,  ao  rio  do  Congo,  com  ordem 
expressa  de  procurar  o  caminlio  d'ali  até  à  Abyssinia. 

A  morte  subita  do  monarcha,  que  teve  logar  n'esse 
mesmo  anno,  tolheu  a  empreza  de  ir  por  diante.  Aclia- 


Eshoqo  historico  5 

D.  Joao  II  pretendia  relacionar-se  a  todo  o  transe  coni 
o  Preste  Joao,  e  para  isso  Ihe  enviava  carta»  por  estes 
cmissarios,  ein  quo  Ihc  significava  o  grande  desejo  que 
tinha  de  saber,  se  elle  possnia  cidades  no  Manicongo 
(costa  Occidental),  porque  elle  rei  de  Portugal  ahi  tra- 
zia  suas  caravelas. 

Ao  Egypto  se  dirigem  seiis  embaixadores,  e  depois 
de  navegarem  pelo  mar  Roxo  até  ao  Aden,  AfFonso 
de  Paiva  corta  a  Suaquem,  na  costa  da  Abyssinia,  e 
d'ahi  volve  ao  Cairo,  onde  fallece;  emquanto  que  Pero 
da  Covilha,  depois  de  correr  o  golfo  Persico  e  visitar 
a  costa  do  Malabar,  vem  a  Sofala,  no  oriente  da  Africa, 
sobe  ao  Cairo,  onde  recebe  a  noticia  do  fallecimento 
do  seu  companheiro,  e  recebendo  tambem  ordens  do 
rei  de  Portugal,  para  se  internar  na  Africa  em  busca 
do  Preste  Joao,  dirige-se  à  Abyssinia.  Ahi  succumbiu 
o  ousado  viajante,  pois  jamais  o  imperador  d'aquellc 
paiz  Ihe  consentiu  regressasse  à  patria;  nào  deixàndo 
até  a  sua  moi-te  de  incutir  coin  suas  informaijoes  novo 
fervor  nos  animos  dos  emprehendedores  portuguezes, 
que  ao  tempo  jà  sulcavam  as  aguas  do  Indico. 

Ao  passo  que  pelo  oriente  isto  succedia,  Ruy  de 
Sousa,  no  occidente,  desembarcava  em  1491  na  bahia 
de  Sonho  (foz  do  Zaire),  e,  impulsado  ainda  pelas  idéas 
e  ordens  de  seu  monarcha,  procura  intemar-se  na 
Africa  equatorial  em  cata  do  Preste  Joao.  Ao  lado  do 
rei  do  Congo,  alliado  dos  portuguezes,  investe  com  o 
sertao,  e  coadjuvando-o  n'uma  campanha  contra  certas 
tribus  revoltosas  do  alto  Zaire,  que  habitavam  as  ilhas 
e  as  margens  do  lago  de  onde  sàe  o  grande  rio  (Stan- 
ley-Pool,  sem  duvida),  Euy  de  Sousa  toma  conheci- 


6  De  Angola  d  coiitrcKosta 

mento  com  os  mundateque  ou  auzicos,  quo  nao  sao 
outros  senao  os  ba-teqiie  ou  povos  de  Macoco,  recom- 
mendando  depois  insistentemente  aos  portuguezes  qua 
passem  para  aleni  do  tal  lago. 

0  venturoso  rei  D.  Manuel  completa  a  obra  ini- 
ciada  pela  escola  de  Sagres  e  continuada  pelo  Principe 
Perfeito.  O  dominio  portuguez  estende-se  ao  extremo 
oriente,  todos  os  principes  da  Asia  nos  sao  tributarios; 
e,  desde  Suez  e  Ornniz  até  Ceylao  e  Malaca,  desde  o 
Japao  e  China  até  às  Molucas,  tudo  os  portuguezes 
commandam,  todos  os  mares  elles  cruzam. 

0  continente  africano  passa  entàó  a  occupar  urna 
posÌ9ao  secundaria  no  grande  plano  de  dominar  o  glo- 
bo, nao  deixando,  porém,  de  merecer  ainda  cuidado, 
pois  D.  Manuel  nao  persiste  agora  so  em  relacionar- 
se  com  o  Preste  Joao,  e  intenta  de  novo  cruzar  esse 
paiz,  que  parece  obstinar-se  em  negar  o  ingresso  à 
expànsao  europea. 

Assim,  em  1508  Affonso  de  Albuquerque  manda 
por  em  terra  no  Porto  Feliz,  perto  do  cabo  Guardafui, 
a  Fernao  Gonies  Sardo,  Joao  Sanclies  e  Cid  Mohamed 
de  Tunis  com  duas  cartas  para  o  Preste  Joao.  0  mouro 
havia  afiancjado  que  a  sua  tornacja  a  Portugal  seria 
por  Timbuctu,  e  d'ali  a  Arguim  pelo  rio  de  ^anaga 
(Senegal),  caminlio  que  elle  jà  conhecia. 

Em  1521,  diz  Damiao  de  Goes,  en\na  D.  Manuel 
a  Gregorio  de  Quadra,  homem  experimentado  e  que 
percorrerà  toda  a  Arabia,  ao  rio  do  Congo,  com  ordem 
expressa  de  procurar  o  caminho  d'ali  até  à  Abyssinia. 

A  morte  subita  do  monarclia,  que  teve  logar  n'esse 
mesmo  anno,  tolheu  a  empreza  de  ir  por  diante.  Aclia- 


Esboqo  histoinco  7 

vam-se  conitudo  no  Congo  dois  homens  emprehende- 
dores,  que  èm  longa  pratica  do  sertao  buscavam  o 
projecto  de  percorrer  o  curso  siiperior  do  rio,  e  esses 
homens  eram  Balthazar  de  Castro  e  Manuel  Pacheco, 
aos  quaes  o  rei  defunto  liavia  em  1520  enviado  ins- 
truccjoes  para  o  completo  descobrimento  do  reino  de 
Angola.  Balthazar  permaneceu  seis  annos  no  interior, 
afian9ando,  em  carta  datada  de  1526,  a  D.  Joao,  ser 
navegavel  o  curso  superior  do  rio;  Manuel  Pa^heco 
escrevia  em  1536,  que  o  rei  do  Congo  tinha  jà  la- 
vrada  madeira  — acima  da  quebrada  que  o  rio  tem 
(Yelalla?) —  para  dois  bergantins,  onde  elle  esperava 
ir  fazer  o  descobrimento  do  lago. 

A  15  de  mar^o  de  1546,  D.  Joao  HI  escrevia  aos 
portuguezes  que  residiam  na  Abyssinia,  para  tentarem 
descobrir  e  explorar  o  caminho  entre  aquelle  paiz  e  o 
Congo,  ordenando  ào  governador  da  India  que  Ihes 
mandasse  instrumentos  e  Ihes  desse  instruc^oes  àcerca 
do  modo  de  determinar  os  diversos  pontos  do  trajecto 
e  OS  trabalhos  a  fazer. 

Em  1560  o  padre  Gonzalo  da  Silveira  percorre  a 
Mocaranga,  indo  morrer  no  corac^ao  da  Africa  austral, 
na  Limda  do  Cazembe,  ao  oriente  do  Luapula,  logar 
onde,  dois  secidos  mais  tarde,  outro  martyr  da  explor- 
racjao  africana,  o  dr.  Lacerda,  havia  tambem  de  en- 
contrar  a  morte. 

Logo  em  1565  D.  Joao  Bemiudcs,  patriarcha  de 
Alexandria  e  Ethiopia,  publica  a  rela9ao  da  embaixada 
ao  Preste  Joao,  divulgando  na  Europa  curiosas  infor- 
ma^oes  do  que  vira  n'aquelle  paiz,  onde  residiu  mais 
de  quinze  annos. 


8  De  Aìigola  d  contra-costa 

Cinco  aimos  depois  Francisco  Barreto,  em  procura 
das  minas  do  oiro  do  Monomotapa,  penetra  até  dez 
dias  de  jomada  acima  de  Sena.  Vasco  Femandes  Ho- 
mem,  que  llie  succede,  entra  por  Sofala  e  vae  at<5  aleni 
da  Chiconga.  A  estas  expedÌ9oes  pela  costa  orientai 
podemos  ainda  juntar,  no  firn  d'aquelle  seculo,  multi- 
plicadas  viagens  feitas  pelos  portuguezes  de  Angola, 
no  intuito  de  devassar  os  adustos  sertoes  do  Negro 
Continente. 

E  assim  que  n'uma  relac^ao  coeva,  ultimamente  pu- 
blicada  por  Luciano  Cordeiro,  se  allude  às  frequentes 
communica9oes  dos  portuguezes  com  os  reinos  do  in- 
terior, no  alto  Zaire,  fallando-se  a  miudo  no  paiz  do 
Macoco  *,  Ibare  e  Bo-zanga,  ainda  nao  ha  muito  visi- 
tados  por  Stanley. 

Domingos  Abreu  de  Brito  tracjou,  em  1592,  um 
plano  definitivo  do  seguro  estabelecimcnto  de  corres- 
pondencia  entre  as  duas  costas,  apontando  a  forma- 
<jao  de  urna  linha  estrategica  de  postos  militares  da 
banda  do  occidente.  • 

Findava  o  seculo  xvi.  A  situacjao  de  Portugal  cm 
face  do  imperio  luso-asiatico  modificàra-se  profunda- 
mente,  e,  sem  embargo,  a  nossa  vitalidade  fa  sempre 
accentuando-se  em  labores  differentes,  entre  os  quaes 
se  contam  muitos  no  Negro  Continente,  e  em  que  avul- 
tam  tentativas  para  a  sua  travessia.  A  obra  do  infante 


1  0  Macoco  ou  Micoco,  ó  sem  duvida  o  mesmo  de  que  ha  poiico  nos 
fallou  De  Brazza.  Ibare  nSo  atinàmos  muito  bein  com  o  que  possa  ser. 
Stanley  chamou  o  Cuaugo,  Ibare,  e  em  quiniamczi  este  termo  significa 
Bumptuoso,  grande.  Vide  Memorias  do  ultramar  e  A  questào  do  Zaire, 
de  Luciano  Cordeiro. 


Esboqo  historico  9 

D.  Henrique,  ainda  hoje  por  concluir,  continuava  a 
merecer-lhe  as  mesmas  sympathias. 

Em  1606  trata-se  de  novo  ao  oeste  de  urna  viagem 
de  travessia. 

Era  entao  govenaador  de  Angola  D.  Manuel  Pereira 
Forjaz,  que,  ordenando  a  reuniao  de  todos  os  elemen- 
tos  para  urna  empreza  de  tal  magnitude,  encarregou 
de  seu  commando  a  Baltliazar  Rebello  de  Aragao,  re- 
commendando-llie  espccialmente  a  descobei-ta  de  um 
caminlio  para  a  contra-costa,  o  que  elle  sem  duvida 
teria  feito,  se  um  ataque  dirigido  à  fortaleza  de  Cam- 
bambe  o  nao  liouvesse  obrigado  a  retroceder*. 

Penetrou  elle  multo  no  interior,  segundo  presumi- 
mos,  pois  se  refere  a  um  grande  lago,  do  qual  até 
indica  o  logar.  Eis  o  que  diz  em  sua  rela^ao:  «As 
provincias  que  encontrei  no  descobrimento  que  fazia 
para  Monomotapa,  por  mandado  de  D,  Manuel  Pe- 
reira, téem  um  rei  que  chamam  Cliicova;  nào  clie- 
guei  là  por  se  levantar  o  rei  de  Angola  contra  a  for- 
taleza de  Cambambe,  a  qual  vim  soccorrer,  estando 
80  leguas  pela  terra  dentro  e  a  140  do  mar».  E  mais 
adiante  diz  «este  lago  està  em  a  altura  de  16^»,  o 
que  leva  a  crer  fosse  o  Nyassa,  devendo  tambem 
suppor-se  que  as  sobreditas  80  leguas  se  contavam 
a  partir  da  fronteira  de  Angola. 

Dois  annos  depois  Estevao  de  Atliaide  dirigia-se 
da  costa  orientai  às  minas  de  Monomotapa  e  Cliicova, 
ao  passo  que  em  1613  o  padre  Fernandes  vinha  da 
Abyssinia  a  Melinde,  por  terra. 


1  Vide  Mtmorias  do  ultrainar,  de  Luciano  Cordeìro. 


10  De  Angola  d  coìitra-costa 

Nao  decorrem  cinco  anno»  qiie  nao  encoutremo8 
nova»  explora96es,  virido  o  padre  Fedro  Paes,  dois  se- 
Culos  antes  de  Briice,  Burton,  Speke  e  Grant,  encon- 
trar  na  Ethiopia  e  no  reino  de  Go-Gojan,  territorio 
de  Sacaliata,  paiz  dos  agaus,  uin  don  tributarios  do 
Nilo,  o  rio  Abai  ou  Nilo  Azul. 

Em  1624  sobe  o  padre  Jerouymo  Lobo  o  Jubo, 
a  Abyssinia,  seguindo-se  logo  depoi»  o  padre  Manuel 
de  Almeida,  que,  em  proseguimento  da  obra  d'aquelle, 
percorre  grande  parte  d'este  paiz.  A  relacjao  de  sua 
viagem,  publicada  pelo  padre  Balthazar  Telles,  sob  o 
titulo  de  Histona  geral  da  Ethiopia  a  Alta,  ou  Preste 
Joào,  esclarece  em  muito  a  geographia  e  ethnogra- 
pliia  d'aquella  mysteriosa  regiào,  que  durante  tanto» 
seculos  fora  a  esphinge  da  Europa  curiosa;  regiào 
que,  quasi  cem  annos  antes,  havia  sido  percorrida  por 
I).  Christovào  da  Gama,  com  quatrocentos  portugue- 
zes  em  expedic^ao  militar,  de  que  Miguel  de  Casta- 
nlioso  nos  deixou  a  narrativa. 

Por  este  tempo  Antonio  de  Oliveira  Cadornega,  na 
costa  Occidental,  percorre  durante  muitos  annos  a  pro- 
vincia de  Angola,  trazendo  noticias  e  infonnacjoes  so- 
bre  o  Macoco  e  os  anzicos. 

Segiie-se  em  1648  Salvador  Correia  de  Sa  lienevi- 
des,  que,  depois  de  restaurar  Loanda  do  poder  jiollan- 
dez,  se  dispoe  a  ir  submetter  o  reino  de  Paté  na  Ethio- 
pia orientai,  abrindo  caminho  entre  ambas  as  costas. 

Manuel  Godinho,  em  1663,  publica  em  Lisboa  a 
rela9ao  da  viagem  que  fizera  da  India  a  Portugal  por 
terra  e  mar,  assignalando  um  novo  e  breve  caminho 
de  Angola  à  contra-costa. 


Esboqo  historico  11 

Ou9àmo8  o  que  em  breves  palavras  elle  diz  d'està 
questao: 

«  0  caminho  de  Angola  por  terra  à  India  nao  é  ain- 
da descoberto,  mas  nao  deixa  de  ser  sabido,  e  sera 
facil  em  sendo  cursado  ;  *  porque  de  Angola  à  lagoa 
Zachaf  *,  que  fica  no  sertao  da  Ethiopia  e  tem  de  largo 
15  legiias,  sem  at<5  agora  se  Ihe  saber  o  comprimento, 
sao  menos  de  250  leguas.  Està  lagoa  poem  os  cosmo- 
graplios  em  15^.50',  e  segimdo  um  mappa  que  eu 
vi  feito  por  um  portiiguez,  que  andou  muitos  annos 
pelos  reinos  de  Monomotapa,  Manica,  Butua  e  outros 
d'aquella  cafraria,  fica  està  lagoa  nao  muito  longe  de 
Zembaué,  quer  dizer,  córte  do  Mesura  ou  Marabià 
(Maravi?). 

«  Sàe  d'ella  o  rio  Aruvi,  que  por  cima  do  nosso  forte 
de  Tete  se  mette  no  rio  Zambeze. 

«E  tambem  o  rio  Cliire,  que,  cortando  por  muitas 
terras,  e  ultimamente  pelas  do  Eondo,  se  vae  ajuntar 
com  o  rio  de  Cuama,  para  baixo  de  Sena. 

«Isto  supposto,  digo  agora:  quem  pretender  fazer 
este  caminho  de  Angola  a  Mo9ambique  e  d'aqui  à 
India,  atravessando  o  sertao  da  cafraria,  deve  deman- 
dar a  sobredita  lagoa  Zachaf,  e,  em  a  achando,  descer 
pelos  rios  aos  nossos  fortes  de  Tete  e  Sena;  d'estes  d 
barra  de  Quelimane,  de  Quelimane  se  vae  por  terra  e 
mar  a  Mo^ambique,  de  Mo^ambique  em  um  mez  a 
Goa.  »  ' 


1  Zachaf.  Aqui  é  de  suppor  haja  confusilo  do  escripta  ou  omiss^io  de 
letra,  Zachafi  ou  Zachayi  é  o  que  Godinho  quererìa  dizcr,  se  nào  Zachevi« 
que  seria  a  lagoa  dos  a-chevi  ou  chevas,  corno  Ihe  chama  Gainitto,  e  que 
nos  antigos  mappas  figura  tambem  com  o  nome  de  lago  Maravi. 


12  De  Angola  d  contrd-costa 

Està  lagoa,  de  que  falla  Godinlio,  e  de  que  o8  por- 
tuguezes  ouviam  fallar  em  pontos  diversos,  pódc  muito 
bein  ser  a  faclia  lacustre  que  sinuosamente  se  estende 
dc'norte-sul,  compreliendendo  Chirua,  Nyassa,  Hicua 
e  Tanganika,  que  elles  por  coiifusao  reuniam  n'uma 
so.  Parece  està  talvez  a  melhor  maneìra  de  interpretar 
o  texto  de  Manuel  Godinlio,  e  se  era  n'essa  idèa  que 
escrevia,  este  livro  mostrarà  ao  diante,  que  a  viagem 
que  levàmos  a  cabo  6  approximadamente  aquella  de 
que  fallava  o  nosso  compatriota  lia  duzentos  e  vinte 
aniios,  e  està  coincidencia  nos  escusarà,  de  certo  modo 
tambem,  de  liavermos  sobre  elle  sido  um  pouco  ex- 
tensos. 

Em  1667  Manuel  Barreto  diz,  fallando  dos  reinos 
de  Manica,  Maungo  e  Butica:  «Este  conquistou  Sise- 
nando  Dias  Bayao  (o  Mossuampaca),  capitao  mór  dos 
rìos,  o  mesmo  que  percorreu  a  Botonga,  Mocaranga 
e  Butua;  para  por  elle  communicar  està  conquista 
com  a  de  Angola,  que  Ihe  fica  nas  costas,  o  que  sera 
grande  utilidade  de  ambas  as  conquistas;  mas  vol- 
tando a  Sena  a  descansar  e  conduzir  soccorros,  o  ma- 
taraìn  seus  emulos  com  pedonila,  invejosos  do  seu 
grande  nome  e  poder,  e  da  lionra  que  novamente  ga- 
nliava  com  està  conquista.  Por  sua  morte  se  recolheu 
a  gente  que  deixou  nos  chuamhos  da  Butica,  e  ficou 
aquelle  reino  levantado;  mas  sera  facil  a  sua  con- 
quista depois  de  conquistada  Mocaranga  e  Manica». 

Passados  annos,  em  1678,  o  governador  de  An- 
gola, Ayres  de  Saldanha,  manda  por  sua  vez  mna 
expedi^ao  para  tentar  a  travessia,  saindo  de  Massan- 
gano  capitaneada  por  Jose  da  Rocha. 


Eshoqo  historico  13 

• 

No  seculo  passado  ainda,  em  1795,  vae  a  expedi- 
9ao  commercial  de  Assump9ào  e  Mello  de  Benguella 
pelo  Bié  ao  Lovale,  e  no  amao  seguinte  Mamiel  Gae- 
tano Pereira  tenta  passar  à  contra-costa. 

Fecha  o  xviii  seculo  com  a  mallograda  expedicjao 
do  dr.  Lacerda,  homem  de  sciencia  e  valor,  de  que 
tanto  havia  a  esperar,  e  que  saindo  de  Tete  para 
Angola,  foi  infelizmente  morrer  no  Cazembe  em  1798. 

0  padre  Joao  Finto,  companheiro  do  dr.  Lacerda 
e  que  mais  tarde  reconduziu  a  expedi^ao  a  Tete,  fez 
ainda  altas  tentativas  para  atravessar  do  Cazembe 
para  a  nossa  provincia  de  oeste. 

Eis  o  que  a  proposito  diz,  na  sua  entrevista  com  o 
monarcha  da  terra  :<(...  proj^uz  e  fallei  sobre  a  passa- 
gem  de  Angola  e  abertura  de  seu  caminlio.  Logo  acu- 
diu  o  rei  com  difficuldades  de  guerras  e  fomes»,  etc. 

Frustradas  as  tentativas  do  padre  Joao  Finto,  com 
a  decidida  opposicjao  do  Cazembe  e  sua  volta  a  Tete, 
so  em  1802  temos  noticia  de  se  haverem  renovado  os 
esforcjos  dos  portuguezes  durante  o  governo,  ao  que 
julgàmos,  de  Antonio  Saldanha  da  Gama,  no  intuito 
de  conseguir  a  resolu^ao  do  problema  ha  tanto  ambi- 
cionado. 

E  d'està  vez  foram  elles  coroados  por  completo  exito, 
se  bem  que  os  liomens  em  similliante  servilo  emprega- 
dos,  nao  eram  de  molde  a  poder  garantir-lhe  o  mais 
singelo  valor  scientifico. 

Foi  de  nove  annos  essa  viagem,  certamente  clieia 
das  mais  notaveis  peripecias,  peripecias  que  ficaram 
no  escuro  pela  falta  de  instruc^ao  dos  protogonistas, 
deixando  suspeitar  soffrimentos  que  deviam  ter  sido 


14  De  Angola  d  contra-costa 

extraordinarioa,  a  julgar  pelo  tempo  empregado  e  dis- 
tancia  percorrida,  e  em  que  em  nSo  menor  numero 
deviam  ser  as  no^ocs  de  interesse,  que  a  sciencia  a 
final  nao  póde  aproveitar. 

Honorato,  tenente  coronel  estabelecido  em  Cassan- 
ge,  foi  ao  tempo  o  inieiador  atrevido  d'està  empreza 
sympatliica. 

Organisando  uma  expedi^ao  de  tudo  supprida,  poz 
à  testa  d'ella  dois  dos  seus  mais  habeis  pombeiros,  Fe- 
dro Baptista  e  Amaro  Jose,  e  soltando-os  da  margem 
esquerda  do  Cuango,  ordenou-llies  que  procurassem 
a  todo  o  transe  cliegar  a  Tete. 

Assim  o  fizeram  estes,  e  liavendo  abalado  de  Cas- 
sange  em  novembro  de  1802,  so  cliegaram  àquelle 
ponto  em  2  de  fé vereiro  de  1 8 1 1  ! 

Tinham  partido  novos,  ebegavam  ali  jà  encanecidos. 

Tres  annos  esteve  a  expedi^ao  detida  nas  terras  de 
Mussico,  e  quatro  na  d'esse  grande  descendente  dos 
muropues  que  se  chama  Cazembe  (Muata),  exliaurindo 
certamente  todos  os  seus  recursos,  e  passando,  Deus 
sabe,  quantasj)ro\a96es  estupendas! 

Por  isso  a  posteridade,  registando  este  facto,  presta 
agora  um  preito  de  liomenagem  a  esses  bomens,  que, 
embora  obscuros,  deram  as  mais  evidentes  provas  de 
um  arrojo  e  pertinacia  sem  iguaes,  pela  perseveranza 
com  que  le  varani  a  cabo  o  trabalho  que  Ibes  liavia 
sido  commettido. 

Cliega  o  anno  de  1831,  e  Correla  Monteiro  e  Anto- 
nio Pedroso  Gamitto  empreliendem  e  levam  a  cabo 
uma  viagem  do  Zambeze  à  Lunda  do  Cazembe,  e 
regressando  a  Tete,  o  ultimo  publfca  a  sua  rela^ao. 


Eshoqo  historico  15 

Joaquim  R.  Gra9a,  de  1843  a  1847,  vae  de  Loanda 
às  nascentes  do  Zambezc  e  visita  o  paiz  da  Lunda, 
governada  por  esse  poderoso  descendente  dos  muro- 
pues,  que  se  denomina  Muata-Ianvo. 

Em  1852,  cabe  a  Silva  Porto*,  negociante  portu- 
guez   estabelecido  no  Bié,  o  mesmo  que  encontrou 


1  Acabando  de  nos  chegar  à  mào  um  jomal  quinzcnal  que  se  pu- 
blica  em  Bruxellas,  sob  o  titulo  de  Le  mouvement  géographigtte,  n.«  18 
de  6  de  seterobro  de  1885,  cabe-nos  aqui  corrigir  urna  aprecia^So  menos 
justa,  feita  pelo  seu  redactor  em  chefe  mr.  A.  J.  Wauters,  na  segunda 
pagina,  quando  irata  das  «Travesaias  da  Africa  centrai»  com  relaQào 
a  Silva  Porto.  Essa  aprecia^ao,  que  sem  duvida  s.  ex.*  fez,  por  se  ter  in- 
formado  no  livro  Misaionary  TraveU  in  South  Africa,  escripto  por  esse 
celebre  escossez,  cujo  odio  e  ma  fé  para  com  os  portuguezes  tanto  o  des- 
ntereceu  aos  olhos  do  publico  em  gcral,  odio  que  mais  de  fei^^  estarìa 
n*um  mercador  de  escravos  do  que  em  um  homem  revestido  de  tao  es- 
p<;cial  caracter  e  que  tantos  favorcs  recebeu  de  nós,  é  de  todo  o  ponto 
iucxacta. 

Silva  Porto  nSo  é  un  métia  de  la  tribù  des  mamhari  (Bié),  embora  Li- 
vingstone  de  proposito  qucira  insinuar  isso  na  nota  do  seu  livro  a  pag. 
217,  quando  diz  :  «On  asking  the  headman  of  the  mambarì  party,  named 
Porto,  wbether  he  had  ever  heard ...» 

Silva  Porto  é  um  cidadao  portuguez,  naseido  na  cidade  do  Porto. 
Seus  paes,  tambcm  portuguezes,  educaram-no  de  modo,  que  se  acha  ha- 
bìlitado  a  redigir  todos  os  seus  diarios,  com  uma  perfei^ào  maior  do  que 
se  imagina,  e  sobretudo  apontaram-lhe  bcm  qual  é  o  caminho  da  honra, 
porquc  Silva  Porto,  com  quem  contrahimos  rela^oes  pessoaes,  é  um  dos 
homens  mais  probos  que  temos  encontrado.  Ignoràmos  se  esteve  para  ser- 
vir jimto  da  cxpedi^ào  de  Serpa  Pinto  corno  guia,  mas  sabemos  nSo  ser 
nm  traficante,  e  que  a  sua  mcrcadoria  prìncipal  nunca  foi  o  homem  ! 

As  comitivas  que  envia  por  vezes  ao  sertào  nSo  Ihe  pertencem  exclusi- 
vamcnte  ;  vào  a  ella  aggregados  muitos  seculos  biénos,  que  fazem  nego- 
cios  por  sua  conta,  scudo  provavel  que  tambem  fa^am  trocas  e  compras 
tic  gente,  sem  que  Porto  seja  responsavel.  A  caravana  que  o  illustre 
Cameron  encontrou  devia  estar  n*estas  circumstancias. 

Velho,  com  a  sua  longa  barba  branca,  alquebrado  pelas  fadigas  serta- 
nejas,  nào  merece  este  anello,  no  ultimo  quartel  da  vida,  o  indigno  epi- 
theto  de  mutato  mercador  .de  escravos,  Julgàmos  assim,  rendendo  justÌ9a 
a  quem  a  merece,  ter  sido  agradaveis  a  mr.  Wauters. 


16  De  Angola  d  controrcosta 

Livingstone  no  Zambeze  em  Naliele,  a  lionra  de  fazer 
urna  nova  tentativa,  para  por  em  communica9ao  as 
duas  costa»  africanas. 

A  testa  de  urna  importante  expedicjao  commercial, 
por  elle  mesmo  organisada,  e  que  se  dirigia  para  o 
Genji,  seguiu  o  nosso  ousado  compatriota,  e  assen- 
tando OS  sens  arraiaes  no  alto  Zambeze,  destacou 
d'alii  pombeiros  e  gente  sua,  a  fim  de  levarem  a  Mo- 
(jambique  dois  officios  do  governo  geral  de  Angola, 
pessoal  que  attingiu  o  Ibo. 

Longa  foi  tambem  essa  jomada,  onde  sem  duvida 
nao  faltiu'am  peripecias  e  contrariedades,  a  julgar  pelo 
que  mais  de  uma  vez  temos  ouvido  sobre  ella,  e  que 
Silva  Porto  conta  em  seu  roteiro,  denominado  Uma 
viagùm  d  contra-costa. 

Os  enviados,  ao  volver,  liaviam  feito  tao  exagerada 
noticia  da  extensao  percorrida,  que  carteada  ella  por 
rumos  e  marclias,  atirava  a  distancia  tal,  que  punlia 
Mo^ambique  a  meio  do  Indico! 

Mas,  apesar  d'isso,  mìo  parece  que  se  houvessem 
elles  afastado  muito  da  verdade,  sendo  que  tal  distan- 
cia, por  ser  tomada  approximadamente  em  linha  se- 
guida,  nao  levava  em  conta  as  numerosissimas  voltas 
por  elles  operadas. 

De  entao  para  cà  o  sertao  e  diariamente  trilliado 
pelos  portuguezes  mercadores,  em  todos  os  sentidos, 
e  Goni^alves,  Joao  Baptista*,  etc,  sao  outros  tantos 
que  por  ali  divagam  comò  senliores. 


1  Os  individuos  a  que  nos  refcrimos  s5o  portuguezes  e  europeus; 
nao  fallàinos  dos  afrieauos,  corno  Alves,  que  Camerou  encontrou. 


Eshocp  historìco  17 

Gon9alves  explora  por  vezes  o  Mucusso;  Baptista 
leva  as  suas  explora9oes  commerciaes  sem  igualavel 
arrojo  até  ao  Cassongo  Calombo,  para  as  bandas  de 
Nyangue,  atravessando  o  Lobale,  o  Moio  e  Urua  pela 
primeira  vez  em  1872;  Silva  Porto  continua  em  suas 
viagens  para  o  Genji  e  outros  pontos. 

Pelo  oriente  Montanha  e  Teixeira  vao  em  1855- 
1856  a  Zoutpansberg,  atravessando  os  sertoes  a  leste 
do  Limpopo;  os  negociantes  do  Zumbo  percorrem  as 
terras  ao  oriente  do  rio  Aroangoa,  aquellas  da  Manica 
(norte),  Chuculumbes,  etc,  levando  as  suas  excursoes 
até  ao  jà  citado  Genji. 

Em  1877  é  organisada  uma  nova  expedicjao,  que 
abaiando  de  Benguella  se  subdivide  no  Bié  ;  uma  parte, 
sob  o  commando  do  major  Serpa  Pinto,  dirige-se  para 
o  oriente  e  após  attingir  o  curso  do  Zambeze,  corta 
para  a  costa  orientai,  ao  passo  que  a  outra,  sob  a  direc- 
9ào  dos  auctores  do  presente  livro,  se  diriga  para  o 
Quióco  em  busca  das  cabeceiras  do  Cuango,  e,  prolon- 
gando  o  curso  d'este  rio,  vae  até  lacca,  d'onde  volve 
a  Loanda. 

Emfim,  em  1884,  frequentemente  incitado  pela  So- 
ciedade  de  Geographia  de  Lisboa,  ordena  o  governo 
de  Sua  Magestade  uma  outra  expedi^ao,  de  que  o  pre- 
sente livro  vos  darà  conta. 

Eis  resumidamente  o  que  durante  quatrocentos  e 
quarenta  annos  fizeram  os  portuguezes,  esse  povo  por 
vezes  tao  indelicadamente  tratado  por  estranbos,  para 
explorar  e  conseguir  a  liga^ao  das  duas  costas  Occi- 
dental e  orientai  da  Africa,  o  que  sempre  se  Ihes  afi- 
gurou  do  maior  interesse,  a  julgar  pelos  premios  que 


Esboqo  histonco  19 

et  glorieuse  campagne  de  Texploration  interieure  de 
TAfrique  equatoriale,  où  seulement  plusieurs  siècles 
plus  tard,  les  autres  nations  civilisées  devaient  venir 
nous  faire  concurrence ... 

«Il  convient  de  bien  nous  fìxer  sur  ce  point.  La  de- 
couverte  des  régions  interieures  etait  conduite  et  opé- 
rée  en  méme  temps  que  celle  du  littoral,  non  point 
par  une  simple  correlation  (5vcntuelle  du  trafic,  ni 
par  des  circonstances  dues  au  liasard  de  Texploration 
maritime,  mais  bien  par  le  désir  persistant,  manifeste 
et  onéreux  qui  animait  le  gouvemement  portugais, 
de  connaltre  le  pays,  de  pénétrer  dans  ces  régions  et 
de  les  assujettir  au  commerce,  à  TEvangile,  et  à  la 
domination  nationale.»  (Tm  question  du  Zaire,  Ih'oits 
du  PortugaL) 


H 


0  CONGO 


Le  roi  Jean  II  de  Portugal,  pen  de  tempB  aprèi, 
ajoute  à  seti  titrcB  officiclB  celui  de  seignenr  de  Gui- 
né  :  toutcB  les  cOtes  jusqu'alorB  reconnues  par  seB  bu- 
jetB,  ainsi  que  la  mer  Billonnée  par  Icurs  caravelles, 
8cmbU>reut  désonnais  former  un  Bcnl  donialnc  dout 
uno  prise  de  poBseBsIon  Bolennelle  était  conBtatée. 

AvEZAC,  Enry.  de*  gen»  du  mondt. 

Por  Bcn  reino  v&o  ob  portiiguczcs  ao  reino  do  Ma- 
ooco  a  negoclar,  e  aKHlm  ao  reino  do  Ybaro  e  ao  de 
Bozanga,  que  é  uui  rei  poderoso  e  se  nSo  póde  Ir  por 
outra  parte . . . 

O ARGIA  MsNDsa  Castxllo  Brahco,  Rda^So 
$olre  o  rtino  do  Congo,  1603,  publicada  por 
Lnciano  Cordeiro. 


Quatro  annos  liaviam  decorrido  desde  que  nós,  vol- 
yendo  da  viagem  a  lacca,  tiiiliamos  deixado  as  afri- 
canas  costas. 

Tranquillos,  despendiamos  na  Europa  o  nosso  tem- 
po, nos  ocios  e  distrac9oes  que  a  civilisa9ao  por  toda 
a  parte  oiBEerece  ao  liomem  que,  arredado  por  annos, 
dd  n'ella  de  subito  ingresso,  esquecidos  e  allieios  um 
pouco  ao  movimento  africanista,  quando  um  inespe- 
rado  facto  nos  collieu  de  surpreza. 

Manuel  Pinheiro  Cliagas,  o  illustre  ministro  da  ma- 
rinila e  ultramar,  que  liavia  apenas  dias  assumlra  taes 
func9oes,  resolvéra  enviar  uma  expedÌ9ao  à  Africa,  e 


22  De  Angola  d  contro-costa 

collocando  à  sua  frente  os  auctores  d'este  livro,  orde- 
nàra-lhes  que  partissem  sem  perda  de  tempo,  conce- 
dendo so  o  necessario  para  a  organisa9ao  do  material. 

Assìm,  a  6  de  Janeiro  do  anno  do  Senhor  de  1884, 
pelas  nove  horas  da  manhà,  acliavamo-nos  a  bordo  do 
vapor  S.  Thomé,  da  empreza  nacional  de  navega9ào, 
promptos  a  abaiar. 

Tangéra  a  sineta  pela  segunda  vez  o  signal  de  reti- 
rar, convidando  a  sair  essa  multìdao,  que  se  agita 
sempre  confusa  no  convez  do  barco  que  se  apresta  a 
partir,  que  gesticula,  commenta  e  fica,  uns  porque  os 
distrahe  o  que  para  elles  e  novidade,  outros  porque 
Ihes  custa  o  separar-se  dos  entes  queridos,  e  muitos 
porque  nao  sabem  mesmo  o  que  o  signal  significa,  até 
que  ao  terceiro  toque  de  todo  se  varreu  a  tolda. 

Estremecéra  o  casco  sob  nossos  pes,  cessàra  a  vi- 
bra9ao  incommoda  que  o  vapor  produz  ao  despedir- 
se  pelo  tubo  da  descarga,  conio  allivio  d'esses  pulmoes 
monstruosos  que  respiram  atmospheras  a  setenta  e 
ciuco  libras  ;  redemoinliàra  a  agua  na  popa,  partimos. 

Adeus  paixoes,  e  ficando-se  de  pò  com  a  saudade, 
essa  inseparavel  companlieira  das  recorda9oes  alBfe- 
ctuosas,  cada  qual  se  accommodou  comò  póde,  em- 
quanto  o  navio,  approximando-se  da  barra,  arfava 
magestoso,  encetando  os  primeiros  galoes. 

Era  o  aviso  terrivel,  para  os  que  enjoam,  do  soflfri- 
mento  que  os  esperava. 

Come9am  de  empallidecer  os  rostos,  aggravou-se 
a  tristeza  com  um  ar  de  vaga  apprehensao,  um  acres- 
cimo  de  secre9ao  salivar  se  adianta,  para  ceder  logo  o 
passo  a  torturas  angustiosas  e  às  primeiras  contrac- 


0  Congo  23 

^oes  estomacaes,  que  iim  sabor  metallico  e  o  cheiro 
dos  oleados  compromette  fortemente,  até  alfim  romper 
a  formidavel  symphonia  em  urro  maior. 

Quao  invejavel  nào  sera  n'esses  momentos,  para 
taes  infelizes,  a  immunidade  dos  homens  do  mar?  En- 
fada-os  a  nossa  presen9a,  porque  nos  observam  des- 
peitados;  no  seu  vago  olhar,  quando  em  nós  se  fita, 
transparecem  por  vezes  lampejos  à  guisa  de  odio,  e  na 
contrac^ao  dos  labios  transluz  uma  comò  que  paga  em 
desprezo,  ao  nosso  ar  correntemente  zombeteiro. 

Sulcando  donairoso  pelo  oeste  dentro,  avanza  o  na- 
vio  emquanto  o  sol  se  occulta,  e  o  cordao  da  terra 
pela  popa  come9a  a  esbater-se  no  azul  dos  céus. 

Os  ultimos  claroes  desappareceram,  amortalhou-se 
a  abobada  no  funereo  manto  da  noite,  entrou  a  bora 
das  cogita^oes. 

Junto  à  amurada,  abysmado  para  o  estendal  dos 
céus,  eil-o,  o  passageiro  que  nao  enjóa,  abra^ado  à 
saudade  em  pieno  cortejo  de  gratas  e  pungentes  re- 
cordacjoes,  perpassando-lhe  pela  mente,  em  kaleidos- 
copico  movimento,  quantas  idéas  estremecidas. 

A  esposa  e  os  filliinbos,  tudo  que  na  terra, tem  de 
caro,  0  lar  domestico,  esse  ninho  onde  ainda  na  vespe- 
ra  entràra  distrabido,  sem  bem  precisar  quanto  é  duro 
o  afastar-se  d'elle,  rodam  constantes,  apèrtando-o  em 
angustioso  scismar. 

E  nào  Ihe  póde  fugir,  nao  póde  desviar-se,  agonia- 
se  e  a  final  apraz-lhe  o  sacrificio  doloroso;  ainda  que 
o  nao  queira  ha  de  pensar  n'elle,  percorrer-lhe  todos  os 
recantos,  povoal-o  dos  seus  habitadores  estremecidos, 
ouvir-lhe  as  derradeiras  palavras,  receber-llie  as  ulti- 


24  De  Angola  d  contro-costa 

mas  caricias,  até  que  o  somno,  amerciando-se  d'elle, 
o  prostre  no  acanhado  esquife  do  camarote. 

Entao  socega. 

Nao  tencionànios,  leitor,  proseguir,  porque  nao  é 
nosso  firn  o  fazer-vos  a  monotona  de8crip9ào  de  nma 
viagem  a  Angola,  d'esses  vinte  e  cinco  dias  aborreci- 
veis  e  invariaveis,  de  somnos  altemados  com  refeicjoes, 
estas  baralhadas  com  palestras  banaes  e  consumindo 
charutos,  vindo  sempre  a  acliar  o  remate  n'essa  pseu- 
do-cogita^ao,  que  abysma  sem  pensar  quem,  recos- 
tado,  contempla  as  vagas  que  se  succedem,  e  procura 
aborrecido  cerrar  os  ouvidos  ao  que  Ihe  nao  interessa. 

E  depois  uma  viagem  por  mar  e  em  paquete  é  de  to- 
dos  conbecida,  igual  pelas  scenas,  caracteristica  pelo 
enfado,  desde  o  momento  de  abaiar,  symbolisada  n'esse 
brouhaha  de  que  ha  pouco  vos  fallàmos,  até  ao  avistar 
pela  próa  o  cordao  azulado  da  terra,  que  nos  annuncia 
o  teìminus  do  nosso  percurso. 

Tudo  se  passa  da  mesma  fórma  n'esse  acanbado  re- 
cinto que  se  cbama  um  navio  e  se  repete  diariamente, 
desde  a  baldea9ao,  até  às  confidencias  da  noite,  que 
um  jantar,  convenientemente  regado,  sempre  provoca. 

Passando  pois  pelos  primeiros  dias  sem  mencjao  es- 
pecial, deixemos  os  pontos  de  escala  comò  a  Madeira, 
essa  graciosa  ilha  tantas  vezes  descripta,  o  archipe- 
lago  de  Cabo  Verde,  a  Guiné  e  S.  Tliomé  em  silencio, 
para  nos  approximarmos  em  linha  directa  do  conti- 
nente. 

A  30  de  Janeiro  de  1884,  diz  o  nosso  diario,  come- 
(jàmos  a  navcgar  desde  o  alvorecer  nas  aguas  verde- 
barrentas  que,  espalhando-se  em  enorme  sector  para 


0  Congo  25 

o  noroeste,  se  escapam  pela  embocadura  do  Zaire; 
manchando  na  distancia  de  3°  a  azulada  superficie 
do  oceano. 

Aqui  e  alem,  véem-se  feixes  de  hervas  a  que  ainda 
adhere  o  torrao,  e  por  vezes,  emergindo  do  meio  com- 
pletas  arvores,  evidenceiam  os  esfor90s  do  colosso  na 
lucta  em  abrir  o  seu  caminho  para  o  mar;  esfor9os 
que  se  vao  traduzindo  no  alargamento  do  leito  na 
parte  do  curso  junto  às  costas,  e  na  forma9ao  de  um 
colossal  delta  a  15  milhas  dà  embocadura. 

Pouco  a  pouco  approximàmo-nos  ;  urna  larga  ondu- 
la^ao  que  o  desnivelamento  produz,  impelle  suave- 
mente  o  navio.  Jà  ao  longe  se  distinguem  no  norte 
e  no  sul  as  barreiras  avermelhadas  caracteristicas  da 
costa,  que,  baixando  gradualmente,  vem  morrer  em 
duas  orlas  verde-escuras  de  mangue  que  margina  o 
rio,  até  que  às  onze  horas  se  ve  distinctamente  a  en- 
trada,  à  qual  servem  de  marca  pelo  sul  arvores  da 
Monta  Secca,  e  pelo  norte  os  tectos  brancos  das  fei- 
torias  do  Banana. 

Rasgando  a  todo  o  vapor  um  sulco  lamacento  por 
meio  d'essa  corrente  de  6  milhas,  fundeàmos  no  porto 
interior,  de  2  milhas  de  comprido  a  0,5  de  largo,  a 
50  metros  de  terra. 

Confessàmos  que,  apenas  chegados,  nos  impressio- 
nou  o  socego  que  ali  reinava,  e  esperando  vel-o  alvo- 
rotado  em  virtude  do  recente  apparecimento  da  ex- 
pedÌ9ao  belga.  Assodando  Intemadonal  (chamada)  ou 
ainda  Comité  d'étvdes  du  haut  Congo,  que  tudo  julgàmos 
quer  dizer  a  mesma  cousa,  nao  volvemos  da  nossa 
surpreza  em  meio  d'aquelle  silencio. 


26  De  Angola  d  contro-costa 

Era  o  mesmo  Banana  que  conhecemos  em  1872, 
quando  fazìamos  parte  da  esta9So  naval  de  Angola,  o 
que  mostra  ter  o  Zaire  ainda  multo  maior  importancia 
do  que  o  barulho  feito  em  redor  dos  traballios  da  asso- 
cia9ào. 

Ao  sulcar  as  aguas  do  formidavel  rio,  aqui  apenas 
separadas  do  oceano  por  delgada  linha  de  areia  de 
2,5  millias  de  comprido,  onde  se  acham  edificadas  as 
feitorias  de  quasi  todas  as  casas  commerciaes  da  costa, 
e  ao  mirar  suas  margens  de  um  lado  e  outro,  per- 
correu-nos  o  corpo  um  estreme^ao,  por  lembrar  as 
luctas  e  difficuldades  que  deviam  ter  passado  os  nossos 
antecessores  que  se  extenuaram  no  trabaiho  de  sua 
explora9ao;  por  lembrar  os  nomes  de  Ruy  de  Sousa, 
de  Gregorio  de  Quadra,  de  Francisco  de  Gouveia,  o 
vencedor  dos  jaggas,  de  Duarte  Lopes  e  outros! 

Quantas  decep9oes  e  quantos  soffrimentos  nào  de- 
vem  ter  marcado  ahi  os  passos  d'esses  liomens,  que, 
impellidos  pelo  dever,  no  meio  das  contingencias  de 
uma  vida  cheia  de  durezas,  vida  que  ainda  hoje,  com 
todos  OS  recursos  da  moderna  sciencia,  é  um  valle  de 
miseria!  Basta  relembrar  os  sympathicos  vultos  que 
derradeiramente  ali  encontraram  um  termo  às  suas 
aspira9oes;  tentaram  levar  a  civilisa9ào  ao  amago  do 
continente,  e  a  final  de  tamanho  afan,  apenas  haviam 
ficado  OS  tra90s  n'essa  ingrata  terra,  verdadeira  ma- 
drasta  do  branco,  porque  entao,  comò  hoje  tambem 
està  succedendo,  se  persuadiu  o  europeu  que  com  a 
sua  energica  for9a  podia  desbravar  e  exercer  dominio 
sobre  selvas  e  negraria,  sem  reflectir  que  acima  de 
tudo  dictava  a  lei  o  clima,  ao  qual  a  constituÌ9ao  phy- 


0  Cmgo  27 

sica  era  dìfficil  que  resìstisse. — Hoje  corno  entao,  està 
é  a  verdadé. 

Com  o  vapor  e  o  telegraplio,  essas  duas  poderosa» 
alavancas  de  progresso,  opdra  actualmente  o  europeu 
maravilhas,  onde,  eiicontrando  ponto  de  apoio,  possa 
o  seu  bra^o  manejal-as  livremente;  mas  na  Africa, 
onde  a  natureza  llie  poz  o  clima  comò  barreira  aos 
esfor90s,  e  circumstancias  de  caracter  meteorologico 
e  tellurico,  primeiro  que  cousa  alguma  Ihe  quebraivi 
as  for^as  e  minam  a  existencia;  mal  poderao  aquelles 
dois  elcmentos  produzir  aproveitamento,  quando  ma- 
nejados  por  sua  mao.  Na  pretensao  de  se  substituir  ao 
indigena,  enceta  uma  lucta  em  que  o  partido  favora- 
vel  é  o  da  morte! 

Mas  apesar  de  tudo,  embora  assim  considerasse- 
mos,  assomava-nos  ainda  um  lampejo  de  sympathia 
por  esse  curso  de  agua,  por  essas  terras  de  monotono 
aspecto,  porquc  constituiam  um  dos  titulos  da  nossa 
gloria,  cuja  propriedade  muito  apreciavamos,  e  no  seu» 
progredir  tinliamos  o  maior  empenho  ;  era  o  rio  a  que 
pozeram  o  nome  de  Diogo  Cam,  comò  liomenagem 
ilquelle  que  conseguiu  levar  as  .explora9oes  até  Cabo 
Frio,  e  na  volta,  narrando  taes  descobertas,  fez  com 
que  o  monarcha  juntasse  aos  seus  titulos  o  de  senhor 
da  Guiné,  facto  este,  acrescenta  o  nosso  estimavel 
amigo  e  distincto  africanista  Luciano  Cordeiro,  no 
seu  traballio  intitulado  A  qaestào  do  Zaire,  que  posi- 
tivamente correspondia  n'aquella  epocha  à  affirma9ao 
intemacional  de  um  direito  de  soberania  e  dominio,  e, 
acrescentaremos  nós,  que  nunca  foi  nos  reinados  sub- 
sequentes  desmentido  nem  olvidado. 


28  De  Angola  d  contror-costa 

Tudo  mudàra  em  nossos  dias.  A  fingida  abertura 
ao  commercio  da  embocadura  d'este  rio  poderoso, 
corno  llie  chamàra  Martim  de  Behaim*,  la  breve  ser 
causa  ou  pretexto  para  que  se  espoliasse  Portugal  de 
sua  posse,  e  se  attribuisse  a  um  monarcha  europeu  o 
estranho  titulo  de  soberano  de  um  estado  livre,  que  so 
existe  no  papel,  fazendo-se  de  necessidade  o  arrancal-o 
a  este  paiz,  para  ornar  o  nome  do  chefe  de  uma  pe- 
quena  na9ao,  a  fim  de  que  os  pavilhoes  de  todas  as 
marinhas  do  globo  podessem  livremente  tremular  ali! 
E  fingida,  dizemol-o  muito  de  proposito,  porque  de  ha 
muito  o  mundo  o  sabe,  ou  para  melhor  dizer,  o  Zaire 
esteve  sempre  franco  ao  commercio  de  todos  os  pai- 
zes,  nao  podendo  ser  pois  o  facto  da  sua  abertura  ra- 
salo para  que  se  espoliasse  Portugal  d'aquillo  que  em 
bom  direito  e  rasao  Ihe  pertencia. 

A  tentativa  da  pesquiza  e  dependencia  do  seu  curso 
superior  tambem  nao  é  argumento  que  se  adduza  a 
favor  da  citada  espolia^ao,  podendo  accommodar-se 
as  cousas  satisfactoriamente  para  a  Belgica,  e  no  in- 
teresse de  Portugal,  tudo  em  fórma  de  justÌ9a,  comò 
adiante  lembraremos.  E  nao  venham  com  o  argumento 
estranho,  jà  empregado,  de  que,  se  é  insalubre,  pesti- 
lencial,  inutil  emfim,  para  que  o  queremos  nós;  ou 
ainda,  se  tanto  affinco  mostràmos  na  posse  de  um  ter- 
ritorio sem  provada  vantagem,  demonstra  empenho 
de  encobrir  um  interesse  que  nos  nao  convem  eviden- 


1  Martim  de  Behaim  era  cosmographo,  dando-se  comò  certo  que  acom- 
panhou  Diogo  Cam  em  sua  expedÌ9ao,  sendo  elle  que  fez  a  celebre  es- 
pilerà de  Nurembcrg;  onde  se  achavam  marcados  os  descobrimcntos  dos 
portuguezes  durante  o  seculo  xv. 


0  Cmgo  29 

ciar;  porque  nao  so  concebemos  o  possivel  aproveita- 
mento  do  Zaire  (alias  seriamos  cegos)  pelo  emprego 
systematico  do  indigena,  mas  comprehendemos  igual- 
mente  que  a  ninguem  apraz  ser  espoliado,  sirva  ou 
nSo  preste  para  alguma  cousa. 

Nào  se  julgarà  de  certo  que  aquelles  que  tanto  se 
téem  esfor9ado  em  desvendar  o  desconhecido  cora- 
9ao  do  Negro  Continente  possam  achar-se  movidos  de 
sentimentos,  que  por  serem  em  favor  do  seu  paiz,  pò- 
deriam  ser  contrarios  ao  interesse  da  abertura  dos 
sertoes  centraes  ao  commercio  europeu  ;  um  facto,  pa- 
rece-nos,  destroe  o  outro;  e  é  simplesmente  a  causa 
da  justÌ9a  aquella  que  por  isso  nos  leva  a  cortar  està 
questao. 

Nem  se  deverà  pensar  mesmo,  comò  de  resto  nos 
parece  jà  se  fez,  que  quanto  dissemos  em  nossas  con- 
ferencias  sobre  a  bacia  do  Congo,  ao  aprecial-a  de- 
baixo  do  ponto  de  vista  da  salubridade,  podia  ter  o 
menor  viso  a  uma  propaganda  contra  os  trabalhos  da 
Intemacional  ali.  Muito  ao  contrario,  as  palavras  que 
de  novo  vamos  aqui  transcrever  foram  tra^adas  sob  o 
sentimento  da  obriga9ao  que  nos  assiste  de  dizer  a 
verdade,  e  no  interesse  do  mesmo  traballio  da  Inter- 
nacional,  pois  que,  levando  pelo  seu  caracter  especial 
à  pondera9ao,  poderiam  por  vezes  servir  de  freio  a 
quaesquer  impulsos  menos  meditados. 

E  nao  somos  so  nós  que  sobre  o  clima  do  Congo  te- 
mos  fallado.  0  consul  americano  W.  P.  Tisdel,  no  seu 
relatorio  de  julho  de  1885,  diz: 

ce  A  questao  do  clima  é  extremamente  seria.  Humido 
e  enervante  para  brancos  da  Europa  e  America,  resul- 


30  De  Angola  d  contra-cosfa 

ta  que  sao  iunumeras  as  doen^as.  No  primeiro  anno 
de  residencia  toma-se  aos  incautos  necessaria  grande 
precau^ao,  para  nao  sereni  logo  victimas  da  perniciosa 
influencia  da  malaria  espalhada  por  todo  o  paiz.  » 

Eis  o  que  nos  acudiu  dizer  sobre  o  viver  enropeu 
no  Congo: 

«  Em  Africa  deve  o  europea  residir  em  ponto  alto . . . 
Viver  no  cordao  litoral,  na  zona  perto  do  mar,  estabe- 
lecer-se  no  Còmpioir  em  meio  d'essas  planuras  onde  o 
,bao-bab  e  o  espìnlieiro  vegetam  e  as  aguas  dos  planai- 
tos  se  espraiam,  formando  por  toda  a  parte  pantanos  ; 
procurar  depressoes  gigantescas  corno  a  do  Congo, 
para  ahi  aggremiar  europeus,  suppondo  que  basta  fun- 
dar-llies  estabelecimentos  nas  eminencias  marginaes 
para  os  salvar  da  nefasta  influencia  climaterica,  emi- 
nencias que,  quando  escalvadas  e  nuas,  batidas  pelos 
ventos,  sao  ainda  as  mais  perigosas,  comò  póde  servir 
de  exemplo  Vivi,  e  outras  esta^oes  do  Congo  inferior, 
6  uni  ludibrio,  de  que  so  sera  victima  a  inexperiencia 
ou  a  pertinacia  em  nao  querer  ver  e  acceitar. 

«  Como  quereis,  senhores,  phantasiar  um  futuro  de 
prosperidades  para  o  Congo,  sonhar  para  as  margeus 
dVsse  rio  Xinives  e  Biibvlonias,  crear  ahi  centros  de 
vida  e  movimento  &  europea,  se  so  a  simples  inspecfào 
da  C4vrta  vos  mostra  que  a  1:500  milhas  da  embocadu- 
ra^  approximadameiite,  tem  esse  corso  de  agua  600 
metros  de  cota? 

«Ao  fuiido  d'essa  gigamte  depressao  onde  se  accu- 
mulam  toilas  as  aguas  que  derìvam  do  sul,  desde  o 
Quìoco  ató  Biibisa^  e  pelo  norte^  desde  o  Tanganika 
até  aos  afflueutes  que  entestam  com  o  Ogowai,  que 


0  Congo  31 

collocada  mesmo  sob  o  equador  està  em  permanente 
Cfnie  pelo  movimento  altemado  das  cliuvas  no  norte  e 
no  sul,  despejando  para  as  zonas  lateraes  as  aguas  su- 
perabundantes,  onde  as  calmas  e  um  sol  de  fogo  lu- 
ctam  de  esfor9o  para  aniquilar  as  organisa^oes,  e  tri- 
bus  selvagens  puUulam  por  toda  a  parte,  nao  espereis 
ver  estabelecer-se  com  facilidade  o  europeu,  nem  tirar 
outros  resultados  senao  a  morte  e  o  desolamento. 

«De  sobejo  conheceis  factos  comprovativos,  assàs 
<5  notorio  que  muitos  jovens  clieios  de  vida  acabam 
nos  ultimos  tempos  de  dar  com  sua  morte  remate  a 
esperan90sos  futuros,  para  que  adduzamos  mais  pro- 
vas  sobre  similhante  assumpto.»  Sem  embargo  mais 
duas  palavras.  «Nao  julgàmos  ter-nos,  em  todas  estas 
considera9oes,  afastado  muito  d'aquelles  que  desinte- 
ressadamente  tratam  da  questao,  ao  dizer  que  nao  so 
o  clima,  comò  a  selvageria  dos  naturaes,  seria  obsta- 
culo  ao  estabelecimento  do  europeu». 

E  ainda  Tisdel  que  nol-o  diz,  ao  fallar  dos  tra^os 
caracteristicos  dos  negros: 

.<Com  excep^ao  das  tribus  de  Loango  e  Cabin- 
da,  as  gentes  do  Congo,  sao  ferozes,  selvagens  e 
crucis.  » 

Asserto  estc,  que  bcm  evidencia  a  causa  do  retar- 
damento  na  assimila9ao  d'aquellas  tribus  pelo  esfor90 
civilisador  portuguez. 

E  proseguindo,  ao  fallar  da  facilidade  com  que  um 
preto,  mediocremente  conhecedor  de  linguas,  por  ali 
transita,  acrescenta: 

«Este  facto  prova-me  claramente,  que  um  preto 
industrioso,  com  um  mediocre  conhecimenta  da  lin- 


32  De  Angola  d  contror-costa 

gua  fiote,  sera  mais  capaz  de  exercer  urna  maior  e 
melhor  influencìa  sobre  estes  povos,  do  que  nunca 
sera  capaz  homem  branco.  » 

Estamos  d'aqui  mesmo  a  ouvir  a  exclaina9ào  im- 
mediata de  muitos  dos  cavalheiros  na  questao  inte- 
ressados  : 

— E  precisamente  pela  rasao  de  serem  selvagens 
e  bravos  que  urge  primeiro  que  tudo  pensar  em  sub- 
mettel-os. 

Muito  verdade,  sem  duvida;  nós  porém,  que  escre- 
vemos  n'este  momento,  nao  so  no  interesse  do  indi- 
gena, mas  muito  particularmente  no  interesse  dos 
capitaes  europeus,  perguntaremos  àquelles  que  o  des- 
embolsam: 

— Tendo  formosamente  de  ver-se  na  obra  da  Inter- 
nacional  duas  phases  diflferentes  de  trabalho,  e  que 
devem  fatalmente  preceder-se  uma  à  outra:  o  de 
submetter  os  liabitadores  do  Congo  e  civilisal-os  — a 
que  andam  ligados  vastos  problemas  sobre  a  via^ao — 
e  o  de  explorar  depois  o  commercio;  estaes  dispos- 
tos  a  arriscar  os  vossos  capitaes  na  primeira  para, 
depois  de  exhaustos,  procederdes  pacificamente  à  se- 
gunda? 

Volvàmos  à  nossa  questao,  aquella  de  se  liaver 
na  conferencia  de  Bruxellas  preparado  a  perda  do 
Congo  para  Portugal  *. 

Sendo  o  direito  a  arma  dos  fracos,  nao  foi,  nos  pa- 
rece,  de  boa  politica  o  afastar-se  d'este  axioma;  e  nao 


1  Referimo-no8  sempre  ao  Congo  inferior,  é  claro,  aquellc  que  daria 
accesso  por  Noqui  e  S.  Salvador  para  a  bacia  do  Cuaugo. 


0  Congo  33 

é  para  admirar  qiie  estranhemos  ser  aquelles  que  se 
acham  em  taes  circumstancias  justamente  os  primeiros 
a  fomecer  armas,  que  mais  tarde  se  podem  voltar 
centra  elles. 

0  desejo  de  piantar  definitivamente  o  estandarte  da 
dvilisa^ào  no  solo  da  Africa  centrai,  pala\Tas  da  aren- 
ga  real  na  conferencia  de  Bruxellas,  se  era  o  pensa- 
mento da  Belgica,  era  tambem  o  anceio  de  ha  muito 
em  Portugal;  que  melhor  exemplo,  pois,  podiamos  dar 
ao  mundo,  que  concertar-nos,  e,  fortes  pela  uniao,  pro- 
ceder à  grande  obra? 

Nào  urgia  seguramente'para  isso  isolar-se  a  Bel- 
gica primeiro,  e  procurando  depois  alheia  protec9ao, 
ferir  os  interesses  dos  portuguezes  que  tao  boa  von- 
tade  téem  mostrado  no  empenlio  de  que  tratàmos,  e 
tao  dispostos  se  acliavam  a  fazer  quantas  concessoes 
se  Ihes  pedissem. 

E  triste,  e  sentimos  bem,  que  o  subsequente  pro- 
cedimento nos  cohfunda  por  modo  a  tornal-o  difficil 
de  coadunar  com  as  palavras  que  o  illustre  principe 
proferiu  por  occasiao  da  conferencia  de  Bruxellas  em 
1876,  relativamente  à  obra  que  se  dispunha  a  patro- 
cinar : 

«H  m'a  paru  que  la  Belgique,  état  centrai  et  neu- 
trej  serait  un  terrain  bien  clioisi  pour  une  semblable 
réunion,  et  c'est  ce  qui  m'a  enhardi  à  vous  appeler 
tous,  ici,  cliez  moi,  dans  la  petite  conférence  que  j'ai 
la  grande  satisfaction  d'ouvrir  aujourd'hui:  Ai-je  be- 
soin  de  dire  qu'en  vous  conviant  à  Bruxelles,  je  n'ai 
pas  été  guide  par  des  vues  égoistes?  Non,  messieurs, 
si  la  Belgique  est  petite  elle»,  etc. 


34  De  Angola  d  controncosta 

Converteram-se  em  realidade,  ha  pouco  consum- 
mada  n'um  congresso,  onde  se  faziam  representar 
algumas  na9oes  completamente  estranhas  à  questao 
africana,  as  nossas  suspeitas  em  1884,  quando  escre- 
viamos  o  que  se  segue  em  nosso  diario: 

«E  jà  bastante  fallàmos  da  questao  do  Congo; 
deixemos  aqui  agora  registado  e  em  remate  o  que 
pensàmos  d'aquella  que  confiou  aos  delegados  da  com- 
missao  reunida  em  Bruxellas,  em  junlio  de  1877,  a 
missao  de  fundar  na  sua  bacia  esta^oes  scientificas  e 
hospitaleiras. 

«Civilisar  a  Africa  cenfral,  semente  impulsado  por 
um  pouco  vulgar  affecto  Immanitario,  sómente  mo- 
vido  pelo  originai  desejo  de  fazer  a  felicidade  do  ne- 
gro, comò  se  deprehende  das  palavras  de  Stanley 
perante  o  club  do  seu  nome,  em  Paris,  que  excla- 
mou:  .  . .  o  capital  eTdregue  d  communidade  dos  bran- 
cos  era  para  se  applicar  do  modo  mais  conveniente  ao 
bem  estar  dos  natura£S  da  sua  area;  èra  para  se  repartir 
corno  beneficio . . .  etc.  ;  e  logo  mais  adiante  acrescen- 
tou  :  0  nosso  intuito .  .  .  é  piantar  e  semear  para  o  negro 
colher .  • .  etc.  ;  enviar,  comò  diziamos,  para  aqui  lio- 
mens  e  milhoes,  no  elevado  e  santo  intuito  de  llie 
preparar  o  frituro,  ou  mellior,  dotal-os  com  um  bem 
estar  assàs  problematico;  sacrificando  vidas  e  traba- 
llio a  uma  tao  arrojada  quanto  imprudente  empreza, 
que  muitos  entendidos  consideram  comò  inexequivel, 
guiando-se  so  pelas  vagas  informa96es  existentes;  por 
em  pratica  um  problema,  por  assim  dizer,  nao  estu- 
dado  e  superior  sem  duvida  à  for^a  e  intelligencia  de 
um  so  liomem,  so  porque  esse  homem  afian^ava  que 


0  Congo  35 

com  duas  duzias  de  infelizes  mancebos  inexperientes 
o  podia  resolver;  emfim  dÌ8far9ar  perante  a  Europa 
todo  este  proceder,  com  wai  facies  de  decidida  vontade 
e  evangelica  resigna^ao,  mais  propria  de  missionarios 
do  que  de  homens  afeitos  ao  manejo  da  espada;  e  por 
comò  cupula  d'este  estranho  edificio  um  homem,  cuja 
bravura  e  temeridade  nao  podem  contestar-se,  mas  a 
quem  os  consellios  da  prudencia  devem  por  vezes 
quadrar  de  geito  para  soffrear  as  suas  impetuosas 
paixoes,  OS  seus  estranhos  impulsos,  para  nos  servir- 
mos  de  um  termo  por  elle  empregado,  ao  referir-se  à 
sua  propria  pessoa  e  ao  descrever  de  certa  maneira  o 
seu  modo  de  ser  e  de  obrar;  em  que  debutou  assim: 
Well  you  know!  I  am  a  very  impulsive  man;  parece-nos, 
acima  de  tudo,  urna  suspeitosa  mystifica9ao,  encobrin- 
do  pretensao  ambiciosa!» 

Isto  escreviamos  nós  quando  ainda  se  nao  fallava 
na  conferencia  de  Berlim,  mas  quando  jà  muito  cer- 
tamente se  macliinava  contra  a  integridade  do  nosso 
territorio. 

Se  a  abertura  dos  sertoes  centraes  à  civilisa^ao  e 
ao  commercio  era  uma  necessidade,  repetimos,  porque 
nao  se  tratou  com  aquelles  que  melhor  podiam  auxiliar 
tal  empreza,  e  se  preferiu  deslealmente  a  intriga? 

Porque,  se  nao  fossem  estranhas  macliina9oes,  ter- 
se-la a  Belgica  entendido  muito  bem  comnosco,  na 
tao  meritoria  obra  de  nos  coadjuvar  no  interesse  es- 
pecial da  abertura  d'aquelle  sertao,  e  no  geral  de  be- 
neficiar o  negro.  Mas  entao,  infelizmente,  faltaria  o 
titulo  em  tal  caso!  —  verdadeira  nota  grave  n'esta 
grande  questao! 


36  De  Angola  d  controncosta 

Aqui  pomos  a  corda  ao  pe8C090  pelo  nosso  governo 
(e  d'isto  està  a  Belgica  bem  convencida),  de  que  se 
empenharia  elle  com  todas  as  suas  for9a8  para  auxi- 
liar  tal  empreza,  nao  comò  està  sendo  posta  em  pra- 
*  tica,  à  louca,  na  bacia  pestilencial  do  Congo,  com 
centos  de  europeus  inexperientes  que  com  a  vida  dia- 
riamente pagam  a  sua  audacia;  mas  na  justa  medida 
do  bom  senso  e  do  menor  risco,  pelo  emprego  racio- 
nal  do  indigena,  de  cuja  coadjuva9ao  e  traballio,  unica 
e  exclusivamente,  se  póde  conseguir  aproveitamento. 

E  ainda  Ihe  afian9àmos,  que  ao  lado  dos  illustres 
officiaes  belgas  que  ali  em  tao  grande  numero  téem 
encontrado  a  morte,  havia  cà  muitos  homens  capazes 
de  encontrar  no  sacrificio  do  dever  o  mesmo  fim,  e 
que  aquelles  que  ainda  ha  pouco  penetravam  na 
Quimpata  de  Bunqueia  com  quatorze  homens,  e  ahi 
encontrando  Musiri,  que  dias  antes  fora  visitado  por 
lun  explorador  europeu,  Ihe  passavam  um  documen- 
to para  sua  salvaguarda,  no  caso  da  Europa  o  ac- 
cusar da  morte  for9ada  de  um  companheiro  do  ci- 
tado  europeu,  e  isto  porque  o  sobredito  Musiri  assim 
o  rogàra,  seriam  os  primeiros  a  apoiar  dentro  do  seu 
paiz  o  movimento  em  questao,  pela  mais  energica  das 
propagandas. 

Infelizmente  resta-lhes  so  o  lamentar  o  rumo  que 
as  cousas  tomaram,  e  fazer  um  sincero  voto  para  que, 
com  o  aniquilamento  do  vigesimo  milhao,  nao  vacille  a 
coragem  d'aquelles  ainda  em  desembolso;  e  este  voto, 
que  de  certo  nao  quadrarà  de  geito  aos  olhos  de  mui- 
tos, pelo  espirito  que  anima  as  vistas  d'està  ncu^ào  de 
esclavagistas,  a  primeira  a  iniciar  o  nefando  trafico,  e  a 


0  Congo  37 

vkima  a  acabal-o,  na  phrase,  ineptamcnte  calumniosa, 
de  um  dos  agentes  da  Inteniacional,  potencia  cujos 
subditos  em  Africa  ligados  por  la9os  de  sangue  à  afri- 
cana gente,  se  nao  pejam  de  sentar  pretos  e  pardos  & 
sua  mesa  logo  que  d'isso  sejam  dignos;  este  voto,  re- 
petimos,  fica  aqui  registado  com  a  mais  inteira  sin- 
ceridade. 

Antes  de  partir  para  o  sul,  porcjm,  permitti  ainda 
duas  palavras,  leitor,  no  interesse  da  vulgarisa9ao  so- 
bre  o  vasto  paiz  que  este  rio  banha,  palavras  que  vos 
farao  compreliender  quao  justo  6  o  resentimento  dos 
portuguezes  em  face  do  proceder  ultimamente  havido 
com  elles,  e  quao  nmnerosos  foram  os  trabalhos  e  as 
convulsoes  por  que  passou  o  nosso  dominio  e  politica 
ali. 


HISTORIA  POLITICA  DO  CONGO 


Dcux  rhoMCH  8ont  à  remaniuer:  In  promlòre  cVst 
que  (lopuÌ8  1512  Io  roi  du  Couro  est  Io  vassal  du  Por- 
tugal  ;  la  Rccomlo,  qu*au  toinps  dorétablissementdos 
porlufirais  au  Congo  ot  à  Augola  Io  premier  royaumo 
8*étaiulait  beaucoup  plus  au  S.  o  à  TE. 

Luciano  Cordkiro,  L'hytìrograpfùe  (tfricaine. 


A  importancia  e  extensao  do  cstado  do  Congo  era 
tal,  ao  tempo  da  chegada  dos  portiiguezes  ali,  as  lu- 
etas  com  os  povos  circumvizinlios,  a  successao  repe- 
tida  dos  seus  monarchas  e  as  estreitas  rela^oes  com 
Portugal  tao  frisantes  ao  depois,  que  entendemos  nao 
deixar  fugir  este  ensejo,  sem  com  dois  tra90S  darmos 
urna  idèa  da  sua  historia  politica. 

Sabido  6  que  Diogo  Cam,  encarregado  por  carta 
regia  de  14  de  abril  de  1484  de  descobrir  novos  terri- 
torios  na  costa,  entrou  no  Zaire  e  ahi  estabeleceu  um 
padrao  na  ponta  sul  da  foz  do  rio,  que  denominou 
de  S.  Jorge,  comò  marca  ou  tignai  de  liaver  tomado 
2)osse  d'aquellas  terras  eni  nome  do  seu  rei. 

O  navegador  portuguez  estabeleceu  logo  rela9oe8 
com  o  rei  do  Sonho  (tio  do  Muene),  as  quaes  com 
o  decorrer  do  tempo  se  estenderam  ao  Muene  Congo, 


40  De  Angola  d  contra<osta 

senhor  do  estado,  conhecìdo  tambem  pelo  nome  de 
Mauicongo;  poderoso  potentado  que  dominava  dire- 
ctamente  ou  por  suzerania  sobre  um  vastissimo  impe- 
rio, que  constava  ir  desde  o  Loango  até  ao  Cabo  Ne- 
gi'o  pelo  litoral,  e,  comprehendendo  ao  nordeste  o 
Macoco  ou  Anzicana,  se  estendia  até  ao  Muene  Muezi, 
no  Uniamezi! 

Diz-nos  Duarte  Lopes,  que  esse  importante  monar- 
cha  reunia  ao  titulo  de  rei  do  Congo  o  de  senhor  dos 
ambundos,  da  Matamba,  da  Quissama,  de  Angola  e  do 
Cacongo,  sem  contar  os  sete  reinos  de  Congere-Amu- 
lalla,  o  dos  ban-guelungos,  o  senhorio  do  rio  Zaire, 
dos  anzicos  e  o  do  Loango! 

Dapper,  geogi-aplio  hollandez,  e  o  seu  traductor 
Ogilby,  tambem  de  seus  titulos  nos  faJlam,  e  se  em 
verdade  omittem  alguns,  trazem  a  lume  outros  novos. 
Assim  dizem  que  ao  de  senhor  do  Congo,  j untava  o 
de  Angola,  Macomba,  Ocanga,  Cumba,  Lula,  Zenza, 
bem  comò  o  senhorio  dos  ducados  de  Batta,  Sunda, 
Bamba,  Ambuilla  e  territorios  dependentes,  e  ainda 
aquelle  dos  condados  do  Songo,  Angoy,  Cacongo,  da 
monarchia  dos  ambundos  e  do  grande  e  maravilhoso 
rio  Zaire  *. 

Em  todos  OS  casos,  bastam  as  singelas  enumera9oes 
precedentes  para  darem  uma  idèa  do  poderio  dos  mo- 
narchas  do  Congo  ao  tempo;  esses  descendentes  de 


1  É  de  todo  0  ponto  acccitavel,  que  aos  historiadores  portuguezes  seja 
devida  a  de8Ìgna9So  ductido  e  condado,  applicada  à  zona  territorial  quo 
tinha  Bcm  duvida  nome  éspecial,  corno  tambem  é  para  notar  qiic,  esten- 
dendo-se OS  estados  do  Congo  até  ao  Uniamezi,  nSo  figure  entro  os  titulos 
a  zona  ou  terra  do  interior  encravada  no  curso  do  rio. 


Exstoria  politica  do  Congo  41 

Luqueni,  ou  Nimia-Luqueni,  que,  tendo  vindo,  cqp- 
forme  parece,  do  oriente,  investiram  com  as  terras  de 
que  tratàmos,  e  desbaratando  os  tchenus  ou  ba-tchenu, 
seus  habitadores,  avassallaram  os  grupos  dispersos, 
fundando  o  estado  do  Congo. 

Mas  volvàmos  ao  assumpto  que  nos  interessa.  A 
primeira  expedÌ9ao  portugueza  dirigida  ao  Zaire  safu 
do  porto  de  Lisboa  a  19  de  dezembro  de  1490.  Ex- 
pressamente  enviada  pelo  governo  da  metropole  para 
explorar  aquellas  regioes,  partiu,  commandada .  por 
Gron9alo  de  Sousa,  que,  morrendo  em  viagem,  legou 
a  sua  direc9ao  a  Ruy  de  Sousa,  seu  irmao,  e  era  com- 
posta de  missionarios,  operarios  e  colonos,  que  espe- 
ravam  levar  a  luz  e  a  arte  aquellas  terras. 

Una  mez  depois  de  ali  chegar,  a  expedÌ9ao  entrava 
na  Banza  Real  (hoje  S.  Salvador),  cedendo  às  instan- 
cias  do  mesmo  Muene  Congo,  que  dizia  querer  ini- 
ciar-se  na  religiao  dos  brancos,  estreitar  assim  a  sua 
amisade  e  estabelecer  rela9oes  commerciaes  com  elles. 

Reinava  entao  Nguiga-o-ciium,  a  quem  Ruy  de  Sousa 
auxiliou  n'uma  expedÌ9ào  contra  os  povos  que  se  ti- 
nham  revoltado  no  Alto  Zaire,  conliecidos  por  munda- 
quetes  ou  anzicos,  no  intuito  de  os  submetter  à  vassal- 
lagem.  E  d'està  epocha  que  data  o  descobrimento  dos 
povos  do  Macoco,  descrìptos  em  1505  por  Duarte 
Pacheco,  e  mais  largamente  depois  por  Duarte  Lopes 
(Belatione  del  reame  di  Congo,  Roma,  1591). 

Estabelecida  a  amisade  com  os  portuguezes,  foi  Jovi, 
em  1493,  o  primeiro  dos  monarchas  do  Congo  que 
ao  rei  de  Portugal  prestou  vassallagem,  enviando  para 
esse  fim  a  D.  Joào  II  o  seu  embaixador  Pero  Mani- 


42  De  Angola  d  contro-costa 

Congo,  que  tempos  depois  volveu  ao  imperio  acompa- 
nhado  do  residente  portuguez  Joao  Soares. 

Tomou  entSo  o  monarcha  africano  o  nome  de  Joao, 
e  sua  mulher  Mani  Mombada  o  de  Leonor,  em  honra 
dos  lusitanos  reis. 

Vacillou  mais  tarde  a  fé  religiosa  d'este  principe, 
e,  esquecendo  os  sabios  principios  da  doutrina  christà, 
entregou-se  de  novo  ao  grosseiro  fetichismo,  commet- 
tendo barbaridades  so  proprias  de  selvagem. 

Affonso  I  (Mani  Sundi),  ou  melhor  N'pamba-cà- 
N'Ginga,  que  Ihe  succedeu  em  1509,  foi  um  dos  pri- 
meiros  principes  firmes  na  fé,  e  desviando-se  do 
trilho  do  seu  antecessor,  manifestou  em  carta  que 
escreveu  a  el-rei  de  Portugal  em  1512,  por  via  de 
seu  embaixador  Rodrigo  Zacuteu,  o  desejo  de  conti- 
nuar sendo  seu  fiel  vassallo. 

N'ella  accentuava  o  reconhecimento  pelo  auxilio 
que  Ihe  fora  prestado  na  guerra  que  teve  com  seu 
irmao  Mani  Fango  ou  Pausa  Aquitimo,  que  indo  sub- 
metter OS  muzumbis  *,  com  elles  se  alliàra  por  occasiao 
de  o  elegerem,  vindo  atacar  S.  Salvador  com  cem  mil 
pretos. 

Era  tal  a  amisade  e  considera9ao  que  pelos  por- 
tuguezes  tinha  este  principe,  que,  partindo  para  fazer 
a  guerra  aos  ambimdos  sublevados  no  sul,  deixou  por 
capitào  no  Congo,  com  todo  o  seu  poder,  Alvaro  Lopes, 
feitor  do  rei  de  Portugal,  comò  elle  mesmo  D.  Affonso 
communicou  em  carta  datada  de  4  de  marcjo  de  1516. 


1  Muznmbo  significa  hometn  branco  na  lingoa  bunda,  nSo  sendo  por 
isso  facil  comprehender  tal  indica^So. 


Eistoria  politica  do  Congo  43 

Foi  um  verdadeiro  apostolo  da  fé  n'aquellas  terras 
este  principe,  cujo  zèlo  o  levou  a  dirigir-se  ao  papa 
Paulo  m,  rogando-lhe  enviasse  para  o  seu  estado 
missionarios,  de  que  là  milito  carecia.  No  reinado  d'elle 
edificaram-se  as  igrejas  de  S.  Salvador,  Nossa  Senhora 
do  Soccorro  e  de  S.  Tliiago,  terminando  por  enviar 
seu  filho  primogenito  para  Lisboa,  a  quem  desejava 
proporcionar  uma  educa9ao  christà,  e  à  altura  da  po- 
8Ì9ao  que  Ihe  estava  destinada  no  paiz  natal. 

Este,  que  em  1521  o  substituiu  no  throno,  tomando 
o  nome  de  D.  Fedro  I,  imitou  o  zèlo  e  piedade  do 
pae. 

Seu  irmSo,  D.  Francisco,  succedeu-lhe  em  1530, 
nao  esquecendo  o  justo  proceder  do  predecessor.  In- 
felizmente  so  cingiu  a  coróa  por  dois  annos,  legando-a 
por  sua  morte  a  um  primo  D.  Diogo. 

0  fervor  religioso  nao  abrandava  entao,  e  segundo 
Mérolla  nos  conta,  foram  tres  dominicanos  os  primei- 
ros  missionarios  que  Portugal  enviou  àquellas  terras; 
tres  martyres  que  breve  succumbiram,  dois  sob  a 
ac93o  do  clima,  e  o  terceiro  assassinado  pelos  jaggas, 
capitaneados  por  Zimbo.  Logo  depois  conduziu  Diogo 
Cam,  em  sua  terceira  viagem,  doze  franciscanos  para 
àquellas  desconliecidas  paragens,  sendo  por  està  epo- 
cha,  a  3  de  outubro  de  1534,  creado  o  bispado  de 
S.  Thomé  e  Congo. 

D.  Diogo  tomou-se  notavel  por  grande  coragem, 
prudencia,  espirito  liberal  e  fervoroso  zèlo  pelo  chris- 
tianismo.  Em  poucos  annos  o  genio  militar  levou-o  à 
conquista  de  paizes  vizinlios,  e,  alargando  os  seus  es- 
tados,  distinguiu-se  sempre  por  sua  affeÌ9ao  aos  por- 


44  De  Angola  d  controrcosta 

tuguezes,  de  quem  adoptàra  os  costumes,  abandonan- 
do  08  habitos  indigenas. 

A  sua  magnìficencia  excedia  tudo  quanto  sié  ali  se 
tinha  visto,  manifestando-se,  quer  na  omamenta9So  do 
seu  palacio,  quer  no  modo  de  trajar.  Uma  fazenda 
boa  nunca  Ihe  parecia  cara,  pois  as  cousas  raras,  di- 
zia  elle,  devem  encontrar-se  nas  maos  dos  reis. 

Levàra  o  requinte  do  luxo  a  usar  apenas  uma  ou 
duas  vezes  o  mesmo  traje,  offerecendo-o  depois  &  gente 
do  seu  sequito.  As  tape9arias,  os  brocados  de  oiro,  de 
seda  e  as  fazendas  mais  ricas  do  reino  come9aram  no 
seu  tempo  a  ter  voga  na  terra  do  Congo. 

Ensanguentou-se  entào  n'esta  epocha  o  solio,  pelas 
rivalidades  que  se  levantaram  entre  pretendentes  di- 
versps,  discordias  que  baniram  a  dynastia  reinante  e 
a  racja  dos  reis  do  Congo. 

Morréra  D.  Diogo.  Tres  foram  os  individuos  que 
appareceram  pleiteando  os  seus  direitos  &  coróa;  o 
primeiro  era  filho  do  rei,  mas  embora  destinado  a 
succeder  por  direito  de  nascimento,  era  em  geral  tao 
detestado,  que  a  morte  violenta  Ihe  arrebatou  subito 
as  esperan9as. 

Os  dois  outros  eram  tambem  de  sangue  real,  um 
porém  favorecia-o  o  povo,  emquanto  que  o  outro  pro- 
tegiam-no  os  portuguezes  e  muitos  dos  poderosos  se- 
nliores  do  reino. 

Como  OS  chefes  dos  dois  partidos  repellissem  qual- 
quer  tentativa  de  accordo,  pretenderam  os  do  derra- 
deiro  impor-se  ao  povo  por  um  attentado,  e  decidindo 
a  morte  do  principe  junto  do  aitar,  ao  assistir  &  cele- 
bra9ao  dos  officios  divinos,  ahi  o  assassinaram.  0  par- 


JERstoria  politica  do  Congo  45 

tido  opposto  vingou-o,  matando  aquelle  que  os  nobres 
propunham. 

Havendo  assim  desapparecido  os  ultimos  pretén- 
dentes  ao  throno,  insurgiu-se  o  povo  contra  os  por- 
tuguezes,  a  quem  attribuiu  as  desgra9as  nacìonaes, 
trucidando  muitos  d'estes  que  ali  residiam. 

Foi  entao  eleito  D.  Henrique,  tio  do  rei  defunto, 
em  1540.  Logo  depois  teve  este  monarcha  de  decla- 
rar  a  guerra  aos  anzicos,  deixando  regente  D.  Alvaro. 

N'uma  batalha  foi-lhe  a  sorte  adversa,  e,  morrendo, 
extinguiu-se  n'elle  a  ra9a  dos  antigos  reis  do  Congo. 
D.  Alvaro  tinha  vinte  e  seis  annos  quando  foi  elevado 
ao  throno  pelo  consenso  unanime  da  na9ao,  em  1542. 

No  seu  reinado  teve  logar  um  inquerito,  com  res- 
peito  ao  trafico  da  escravatura  pelo  rio  Zaire,  orde- 
nado  por  Simao  da  Motta  (7  de  maio  de  1548),  caval- 
leiro  da  casa  de  el-rei  de  Portugal  e  ouvidor  e 
provedor  com  poder  de  al9ada  no  reino  e  senhorios 
do  Congo,  que  deu  comò  resultado  solicitar  o  Muene, 
do  monarcha  portuguez,  que  continuasse  a  manter  a 
prohibÌ9So  d'esse  trafico  nos  portos  do  sul. 

Seu  successor,  D.  Alvaro  II,  teve  um  reinado  infeliz, 
por  isso  que  os  jaggas,  que  haviam  assolado  a  maior 
parte  dos  paizes  vizinhos,  invadiram  o  reino  pela  pro- 
vincia de  Batta.  Nào  podendo  o  exercito  enviado  con- 
tra elles  suster-lhes  o  impeto,  avan9aram  acto  con- 
tinuo sobre  a  capital.  0  rei  ainda  quiz  oppor-se-lhes 
&  testa  de  algumas  tropas,  mas,  nao  se  suppondo  em 
for9a  para  dar  batalha,  recolheu  precipitadamente  à 
capital,  passando  d'ahi  com  o  clero  portuguez  e  a  prin- 
cipal  nobreza  do  paiz  para  uma  ilha  do  Zaire. 


n 

4 

\ 

j  46  De  Angola  d  contro-costa 

Os  jaggas,  a  quem  Lopes  d^  tambem  o  nome  de 
jindes,  habitavam  o  Monemuji  (Uniamezi?)  a  leste  de 
Angola,  na  regiao  dos  lagos  d'onde  sàe  o  Nilo  *. 
f  D.  Alvaro  II  enviou  seu  primo,  D.  Sebastiao  Al- 

I  vares,  a  pedir  auxilio  ao  rei  de  Portugal,  o  qual  Ihe 

mandou  soccorro  por  Francisco  de  Gouveia,  que,  per- 
manecendo  por  quatro  annos  no  Congo,  o  restabele- 
ceu  no  throno. 

D'este  tempo  data  a  cessao  feita  pelo  Muene  aos 
portugiiezes  do  Utoral,  desde  Pinda  até  Loanda.  Teve 
este  principe  largas  rela9oes  com  os  monarclias  lusi- 
tanos,  enviando  cartas  ao  cardeal  D.  Henrique,  bem 
comò  a  D.  Fillippe  II  por  varios  embaixadores,  e  nos 
ultimos  tempos  pelo  proprio  Duarte  Lopes,  auctor  da 

frela9ao  de  Pigafetta. 
Foi  elle  tambem  que  em  1578  mandou  o  seu  lo- 
'  gar-tenente  D.  Sebastiao,  duque  de  Bamba,  acompa- 

*  nhado  de  cento  e  vinte  portuguezes  e  cincoenta  mil 

*  conguezes,  auxiliar  a  Paulo  Dias  de  Novaes  na  cele- 
\  bre  batalha  de  Anzelle,  bem  comò  em  1583  enviou 
\  numerosos  ba-xicongo  a  Cambambe,  com  o  firn  de 
^                                  còadjuvarem  os  quinhentos  portuguezes  que  se  aclia- 

vam  em  defeza  d'aquella  pra9a. 


I 


1  Battei,  na  collec^So  de  Purchas,  affirma  que  os  jaggas,  com  quem 
elle  serviu  dezeseis  mezes,  e  no  tempo  d'elle  assolaram  o  Congo,  tinham 
vindo  da  Serra  Leoa.  Elles  mesmos  Ihe  disseram  que  os  portuguezes 
Ihes  davam  o  nome  de  jaggas  ;  mas  que  entre  si  se  denominavam  im- 
bangollas.  Eram  doze  mil  commandados  por  Elembe.  Parece-nos  mais 
acceitavel  a  indica^So  de  Lopes,  podendo  comtudo  admittir-se,  sendo  tSo 
nomerosas  as  hordas  de  jaggas  que  se  espalharam  por  todo  o  occidente, 
que  està  confusSo  provenha  do  apparecimento  de  um  tro90  que,  tendo  ido 
primeiro  pelo  norte  até  à  Mina,  yolyesse  depois  para  o  sul. 


JERstoria  politica  do  Congo  47 

No  reinado  d'este  monarcha  eflfcituoii-se,  por  bulla 
de  20  de  maio  de  1595,  a  separa^ao  do  bispado  do 
Congo  do  de  S.  Thomé,  ficando  a  sède  em  S.  Sal- 
vador. 

Emfim,  fecliou  este  principe  o  seu  reinado  menos 
sympathicamente  do  que  era  de  esjDerar  dos  seiis  al- 
liados,  pois,  indo'  em  1610  Antonio  Gon^alves  Pitta 
tratar  com  elle  da  construc9ao  do  forte  de  Pinda,  a 
firn  de  sacudir  os  hoUandezes  d'ali,  elle,  que  ao  temj^o 
come^àra  por  inclinar-se  ao  partido  d'estes,  procedevi 
com  evasivas  e  falsas  desciilpas,  escrevendo  ao  mesmo 
tempo  ao*  Mani  Sonho,  para  que  llie  enviasse  unia 
carta  sua  ao  conde  Mauricio  de  Nassau,  carta  que 
sem  duvida  nao  era  tra^ada  em  nosso  interesse. 

A  D.  Alvaro  II  succedeu  seu  ii-mao  D.  Bernardo, 
em  1614.  Lavravam  entào  graves  discordias  entre  o 
Mani-Bamba  e  os  affeÌ9oados  do  rei,  o  que  deu  em 
resultado,  poucos  mezes  depois  de  subir  ao  tlirono, 
ser  este  principe  morto  na  ermida  de  Santo  Antonio 
pelo  proprio  duque  de  Bamba,  que  collocou  em  seu 
logar  a  um  sobrinho  do  defunto  e  filho  de  D.  Alvaro. 

Pouco  sobrio  e  assaz  turbulento,  o  novo  rei,  logo 
que  assumiu  o  governo  em  1615,  com  o  nome  de 
D.  Alvaro  IH,  come90u  em  disputas  com  seus  vas- 
sallos,  e  em  1619  declarava  a  guerra  ao  mesmo  Mani- 
Bamba  D.  JoSo  da  Silva,  seu  sogro,  vindo  so  a  con- 
seguir-se  a  paz,  pela  sensata  interven^ao  dos  padres 
Duarte  Vaz  e  Matheus  Cardoso. 

Dois  annos  depois  d'està  lucta  succumbiu,  e  os  reis 
que  Ihe  succederam,  D.  Pedro  II  (1622),  D.  Garcia  I 
(1624),  D.  Ambrozio  (1625),  D.  Alvaro  IV  (1631), 


48  De  Angola  d  contro-costa 

e  D.  Alvaro  V  (1637),  reinaram  entre  todos  quinze 
annos,  nao  havendo  durante  todo  este  tempo  facto 
digno  de  noticia,  excepto  no  reinado  de  D.  Ambro- 
zio  a  tran^ferencia  da  sé  do  Congo  para  Loanda,  e 
li'aquelle  do  feroz  Alvaro  V  guerras  intestinas  que  Ihe 
mereceram  a  desgra9a  de  precipital-o  do  throno  ao 
tumulo  na  fior  da  idade. 

Principiàra  a  questào  por' suspeitas  mal  fiindadas 
sobre  o  duque  de  Bamba  e  o  marquez  de  Cliiona, 
oontra  os  quaes  elle  levantou  um  exercito. 

Nao  foi  a  guerra  favoravel  ao  rei,  e  desbaratadas 
as  suas  forcjas,  caiu  prisioneiro  em  poder  d'elles,  que, 
em  vez  de  abusarem  da  Victoria,  o  trataram  com  a 
con8Ìdera9ao  devida  &  sua  elevada  categoria,  recon- 
duzindo-o  &  capital,  de  que  Ihe  fizeram  entrega. 

Vexado  por  dever  a  corèa  e  a  vida  a  seus  vassal- 
los,  o  feroz  Alvaro,  logo  que  se  viu  livre,  organisou 
novo  exercito,  e,  marchando  contra  os  seus  vencedo- 
res,  foi  derrotado  e  morto. 

Com  o  nome  de  Alvaro  VI  foi  o  Mani-Bamba  pro- 
clamado  rei,  e  pouco  depois  morto  pelo  marquez  de 
Cliiona,  seu  irmao,  que  se  fez  acclamar  em  1^38  com 
o  titulo  de  D.  Garcia  II. 

Posto  que  houvesse  subido  ao  throno  por  um  acto 
criminoso,  D.  Garcia  deu  a  principio  grandes  espe- 
ran^as,  pela  sua  capacidade  no  governo,  rigorosa  jus- 
tÌ9a  e  fervor  religioso.  A  fatai  ambi^ao,  porém,  tudo 
veiu  obscurecer,  e  o  malfadado  principe,  pretendendo 
fazer  passar  a  corèa  sem  eleÌ9ao,  e  contra  as  leis,  a 
D.  Affonso  seu  filho  primogenito,  come90u  a  tramar 
o  exterminio  dos  principes  da  familia  real,  que  antes 


Sistoria  politica  do  Corico  49 

do  duque  de  Bainba  e  d'elle  haviam  direito  ao  logar 
que  elle  usurpàra. 

Perseguindo-os,  pois,  D.  Garcia  nao  poupou  ne- 
nlium  dos  desventurados  principes  que  póde  descobrir, 
e  corno  OS  padres  catholicos  Ihe  censuraram  severa- 
mente tal  proceder,  o  selvagem  monarclia  lan90u-se 
nos  bracjos  dos  feiticeiros. 

Estes  apoiaram  D.  Garcia,  espirito  credulo  e  «uper- 
sticioso,  mas  conhecendo  que  D.  Affonso,  seu  filho,  por 
muito  affeÌ9oado  ao  christianismo,  detestava  os  ritos 
ìdolatras,  come9aram  a  malquistar  o  pae  com  o  filho, 
dando  logar  este  facto  a  que  o  primeiro,  que  tanta 
crueldade  commetterà  por  causa  do  segundo,  o  accu- 
sasse perante  os  estados  reunidos  de  o  ter  querido 
elle  envenenar,  declarando-o  indigno  do  throno,  e  fa- 
zendo  coroar  em  sua  presen9a  D.  Antonio,  seu  fillio 
segundo. 

Foi  em  seu  reinado  e  no  anno  de  1645  que  chega- 
ram  ao  Congo  os  primeiros  capucliinlios  italianos,  com 
bullas  de  Urbano  Vili,  remessa  que  em  1647  se  re- 
novou  com  mais  quatorze  frades  d'està  ordem. 

Como  muitos  dos  seus  antecessores,  D.  Garcia  era 
faustoso,  e  d'isso  nos  falla  Dapper  ao  descrever  a  ma- 
gnificencia  da  sua  córte,  quando  recebeu  a  embai- 
xada  que  os  hollandezes  Ihe  enviaram  em  1642,  de- 
pois da  tomada  de  Loanda  por  Cornelius  Comelison 
Jol  Houtebeen. 

Morto  D.  Garcia,  succedeu-lhe  no  throno  D.  Anto- 
nio em  1658. 

O  primeiro  acto  do  seu  governo,  ao  subir  ao  thro- 
no, foi  mandar  matar  o  irmào  mais  velho.  D.  Garcia 

A 


50  De  Angola  d  contra-^osta 

na  liora  do  passamento  parece  Ihe  havia  recommen- 
dado  isso  muito  expressamente,  bem  corno  Ihe  lem- 
bràra  a  conveniencia  de  nao  poiij^ar  neiilium  dos  prin- 
cipes  de  saugue  real;  indica^oes  que  elle  facilmente 
executou,  levando  o  cuidado  ao  ponto  de  se  desfazer 
do  irmao  mais  novo. 

A  maior  jjarte  dos  princii)es  qiie  poderam  escapar 
ao  entello  on  punlial  de  D.  Garcia  haviam-se  refii- . 
giado  no  reino  de  Angola;  ì).  Antonio  até  ahi  se  sup- 
poe  OS  foi  buscar,  assassinando  todos  sem  piedade. 

Nao  Ihe  aproveitavam  as  constantes  admoesta96es 
dos  missionarios,  para  impedirem  taes  crueldades,  e 
comò  novamente  fosse  por  estes  censurado,  por  haver 
contrahido  um  casamento  incestuoso,  tao  indignado 
ficou,  que  retirou  todos  os  bens  ao  clero,  e  promul- 
gando editos  contra  a  religiào,  declarou  que  faria  cair 
a  sua  ii*a  sobre  todos  os  portugue^es. 

0  seu  successor  D.  Alvaro  VII  (1662),  incitado  pe- 
los  feiticeiros,  levantou  contra  os  portuguezes  um  exer- 
cito  numeroso,  disposto  a  esmagal-os.  N'essa  epocha 
o  absoluto  poder  que  o  rei  do  Congo  exercia  sobre  os 
povos  vizinhos  era  tal,  que  d'elles  dispunha  a  seu 
bel-prazer.  Ao  minimo  signal  levantava  exercitos  in- 
numeraveis,  pondo-se  de  subito  em  campo.  Carli  e 
outros  viajantes  contam  que  elle  marchou  contra  os 
portuguezes  à  testa  de  novecentos  mil  homens,  cifra 
estupenda,  jjouco  acceitavel  mesmo,  a  nao  queremios 
suppor  que  o  audaz  monarcha  se  dispunha  a  conquis- 
tar o  mundo. 

Os  seus  n  ganga  Ihe  haviam  predito  a  Victoria,  bem 
comò  urna  entrada  triumphal  em  Loanda,  capital  do 


Histaria  politica  do  Congo  51 

reino  que  fa  invadir,  conduzido  pelos  principaes  se- 
nhores  portuguezes. 

Alvaro,  entontecido  com  similliantes  idéas,  avan90u 
sobre  Angola  em  1663. 

Governava  entao  aquelle  reino  André  Vidal  de  Ne- 
greiros,  que  enviou  ao  encontro  da  estranila  multidao 
Luiz  Lopes  de  Sequeira  com  duas  pe9as,  quatrocen- 
tos  espingardeiros  portuguezes  e  quatro  mil  pretos, 
commandados  por  Manuel  Rebello  de  Brito,  Diogo 
Rodrigues  de  Sa  e  Simao  de  Matos. 

Quando  se  avistaram  os  belligerantes  nas  terras  do 
dembo  Ambulila,  o  cauteloso  D.  Antonio  retirou-se 
para  uma  eminencia,  a  fim  de  observar  a  accjao. 

Travou-se  a  lucta,  e  empenhando-se  seriamente 
n'ella  os  portuguezes,  desbarataram  ao  cabo  de  pou- 
cas  horas  as  for9as  do  rei  negj*o,  calndo  Luiz  Lopes 
de  Sequeira  com  sua  columna  sobre  a  eminencia  onde 
estava  D.  Antonio,  que  pagou  com  a  cabe^a  a  auda- 
cia de  arremetter  com  Angola.  Essa  cabe^a  foi  levada 
em  triumpho  para  Loanda,  terminando  assim  a  ques- 
tao  por  um  desfecho  bem  differente  d'aquelle  que  Ihe 
haviam  prophetisado  os  ngangcts.  Carli  diz  que  Se- 
queira Ihe  aflSrmàra  que  todas  as  guarni^oes  das  ar- 
mas  e  adere90s  do  rei  eram  de  puro  oiro  batido.  Em 
ac9ao  de  gr^,9as  pela  Victoria  de  Ambulila  foi  fundada 
na  capital  a  igreja  da  Nazareth. 

Assim  terminou  este  infeliz  monarcha,  a  quem  o 
orgulho  e  a  cegueira  fizeram  esquecer  os  favores  nu- 
merosos  recebidos  dos  seus  alliados,  levando-os  contra 
vontade  a  inflingir-lhe  um  serio  castigo. 

Succedeu-lhe  entao  Alvaro  Vili,  que,  fazendo  as 


52  De  Angola  d  contrapposta 

pazes  com  o  governo  de  Angola,  permittiu  que  se 
procedesse  à  explora9ào  das  suppostas  minas  de  oiro 
do  Congo. 

Depois  d'elle,  MéroUa  falla-nos  de  D.  Joao  Simao 
Tamba  e  de  D.  Sebastiào  Grillio,  até  que  em  1671 
Luiz  Lopes  de  Sequeira  aniquila  o  poder  do  ultimo 
rei  do  Congo,  D.  Joao  Hary. 

Em  1680  OS  portuguezes  conquìstam  o  condado 
do  Sonho,  e  logo  o  Mani,  despeitado,  escreveu  ao 
nuncio  de  Bruxellas,  para  llie  mandar  outros  missio- 
narios  em  substituÌ9ào  dos  capucliinhos,  fa^to  a  que 
este  nao  accedeu,  e  se  Uie  enviou  em  verdade  tres 
franciscanos,  foi  isso  com  a  condi^ao  de  continuar 
a  obedecer  ao  superior  dos  capucliinhos,  que  era  en- 
tao  o  padre  Thomaz  de  Sistula. 

Havia  no  tempo  de  Mérolla  dezoito  igrejas  no  So- 
nilo, e  Dapper  diz  que  o  mesmo  paiz  tinha  muitas 
escolas,  onde  os  naturaes  aprendiam  a  religiao  cliristà 
e  a  ler  e  escrever  o  portuguez,  facto  que,  digàmos 
aqui,  nao  se  limitava  so  àquelle  ponto  da  costa,  pois 
em  1684,  ao  tempo  em  que  era  govemador  Luiz  Lobo 
da  Silva,  fundou-se  em  Loanda  um  seminario  para  a 
educa9ao  dos  indigenas. 

Em  vista  dos  ultimos  successos  e  da  extinc^ao  da 
dynastia  reinante,  achava-se  o  reino  do  Congo  sem 
governo  autonomo,  quando  el-rei  de  Portugal,  D.  Fe- 
dro II,  se  lembrou  de  remediar  este  grave  estado  de 
cousas,  ordenando  ao  governador  de  Angola,  por  car- 
tas  de  17  de  mar^o  (1690),  29  de  abril  (1691),  e  24 
de  Janeiro  (1693)  que  fizesse  proceder  a  eleÌ9ao  de 
novo  rei. 


s 


ERstoria  politica  do  Congo  53 

Preparou-se  tudo,  e  por  carta  de  5  de  mar90  de  1700  . 
é  mandada  reunir  urna  commissao  composta  dos  vul- 
tos  pri^cipae8  d'ali,  corno  o  conde  do  Sonho,  o  duque 
de  Bamba  e  o  marquez  de  Pemba,  para  que,  auxiliado 
pelo  padre  Francisco  de  Pavia,  superior  dos  capuclii- 
nhos,  procedesse  à  dita  eleÌ9ao. 

Foi  indigitado  e  eleito  D.  Pedro  de  Agiia  Rosada, 
que  em  1702  recebeu  a  confirma9ao  do  governo  de 
Portugal. 

Continuaram  os  capuchinhos  a  obra  dos  seus  pre- 
decessores  no  Congo,  chegando  mesmo  em  seus  tra- 
balhos  para  o  sul  a  fundar  em  1703  um  liospicio 
em  Loanda.  D'ahi  para  cà,  come^ou  de  afrouxar  o 
traballio  dos  missionarios  por  muitas  rasoes,  entre 
as  quaes  figura  a  extraordinaria  mortalidade  entre 
OS  padres  que  se  dedicavam  a  tao  nobre  fim,  de  mo- 
do que  em  20  de  mar 90  de  1814  D.  Garcia  V  se 
queixava  a  el-rei  de  Portugal  do  abandono  em  que  se 
encontrava  o  Congo,  solicitando  a  remessa  de  novos 
missionarios. 

Em  1859  dissensoes  intestinas  attrahem  para  ali  de 
novo  a  atten9ao  do  governo  portuguez. 

Um  pretendente  à  coróa  empolga  a  capital,  S.  Sal- 
vador, fazendo  com  que  o  rei  legitimo  reclame  o  auxi- 
lio  de  Portugal.  0  capitao  Zacharias  da  Silva  parte 
do  Bembe  e  entra  em  S.  Salvador  a  25  de  junlio,  ao 
mesmo  tempo  que  outras  for9as,  sob  o  commando  do 
capitao  de  fragata  José  Baptista  de  Andrade,  coadju- 
vado  por  Theotonio  M.  Coelho  Borges  e  pelo  major 
Roberto  dos  Santos,  investem  coni  o  Bembe.  Derro- 
tando  o  inimigo,  avan9am  para  o  norte  e  desbara- 


54 


De  Angola  d  controrcosta 


tando  o  Dongo  rebelde  na  capital,  restituem  a  coróa 
ao  Muene  Totella,  D.  Fedro  V,  deixando  ahi  o  major 
Ventura  José  com  trezentos  homens. 

Eis  muito  summariamente  exposta  a  resenha  do 
movimento  politico  no  estado  do  Congo,  durante  um 
lapso  de  trezentos  e  setenta  annos,  em  que  teve  semj^re 
ac^ào  activa  Portugal,  até  ao  dia  em  que,  entendendo 
de  necessidade,  para  evitar  luctas,  a  annexa9ao  a  An- 
gola, o  encorporou  em  seus  dominlos. 

Decaido  do  seu  velho  esplendor,  transformado  suc- 
cessivamente em  districto  e  depois  concelho  da  nossa 
provincia  africana,  esse  antigo  imperio  nao  conserva 
da  passada  grandeza  outros  vestigios  senao  nos  tem- 
plos,  nas  ruinas  e  nos  padroeB  que  por  todo  elle  dei- 
xaram  os  portuguezes. 

Para  aquelles  que  pelos  olhos  passarem  estas  pagi- 
nas  deve  similhante  facto  impressionar  profundamente, 
levando-os  a  considerar  comò  foi  possivel  apagar-se 
da  superficie  da  terra,  ou  afogar-se  no  meio  das  sel- 
vas,  0  potente  traballio  de  tantas  gera^oes. 

Deve  ter  sido  a  incuria  governativa,  dirao  muitos  ; 
o  afrouxamento  do  zelo  religioso,  dirao  outros;  a  in- 
fluencia  nefasta  da  escravatura,  dirao  os  mais  atila- 
dos,  a  causa  da  desorganisa9ao  d'esse  estado,  que  mui 
proximo  do  curso  de  um  grande  rio,  e  portanto  em 
faceis  communica9oes  com  a  Europa,  naturai  seria 
que  prosperasse. 

Nao  suppomos  ter  sido,  nem  a  incuria,  nem  o  afrou- 
xamento, mas  sim  outro  o  motivo. 

A  enxada  do  progresso  nao  entra  com  igual  facili- 
dade  em  todos  as  glebas,  e  assim  comò  o  arado  do 


.j^.,^ 


• 


ERstoria  politica  do  Congo  55 

lavrador  em  chao  batido  de  argilla  e  semeado  de  rocha 
o  rasga  a  custo,  e  partindo-se  no  cheque  de  encontro 
as  arestas  d'està,  nao  deixa  siilco  que  abrigue  a  se- 
mente, que  entao,  exposta  às  intemperies,  se  decompoe 
e  perde;  assim  a  energia  e  os  capitaes  das  na^oes, 
poderosos  instriimentos  a  empregar  na  obra  da  civili- 
sa^ào  e  colonisa9ao  do  mundo,  se  embotam  e  perdem 
muitas  vezes,  por  nao  encontrarem  meio  proprio  onde 
possam  implantare  fazervingar  essa  prèciosa  semente, 
d'onde  brotam  as  sociedades,  o  traballio  e  o  progresso, 
e  se  denomina  o  colono. 

A  bacia  do  Congo  parece-nos  ser  uma  d'essas  nu- 
merosas  zonas  que  se  aclia  no  caso  citado,  e  comò  a 
costa  da  Mina,  o  ardente  Sahara,  a  terra  Caliente  do 
Mexico  e  tantas  outras,  ha  de  zombar  sempre  dos  jesfor- 
90S  do  europeu,  e  constituindo,  por  assim  dizer,  os  der^ 
radeiros  reductos  onde  a  ra9a  negra  so  poderà  vingar 
e  aquàrtelar-se,  ha  de  tambem  e  infelizmente  consti- 
tuir  uma  protec^ao  à  barbarie,  envolvendo-a  nas  sel- 
vas  e  n'um  meio  onde  o  europeu  succumbirà  sempre. 

Quantas  nao  foram,  se  compulsannos  a  historia,  as 
tentativas  feitas  por  Portugal  para  colonisar  definitiva- 
mente aquella  zona  e  introduzir  ali  os  beneficios  da  ci- 
vilisa9ao,  e  quantos,  se  os  contarmos,  os  revezes  sof- 
fridos  ? 

Por  centenas  foram  para  ali  os  missionarios,  por  de- 
zenas  as  colonias,  por  duzias  se  contam  as  expedÌ9oes 
militares,  e,  sem  embargo,  essa  na9ao  que  de  um  fo- 
lego  fez  o  grande  imperio  do  Brazil,  apertada  aqui 
no  ferreo  circulo  da  insalubridade  em  combate  com 
o  impossivel,  viu  desfazerem-se  em  pò  todas  as  suas 


66  De  Angola  d  contro-costa 

esperaiKjas,  dembadas  pela  mortifera  fouce  qiie  Ihe 
ceifava  as  vidas  de  quantos  filhos  là  mandava.  E  uma 
hecatombe  a  historia  d'essas  tentativas,  a  sua  enume- 
ra^ao  urna  a  uma  seria  o  De  profundis  entoado  em 
louvor  de  victimas,  pois  outra  cousa  nao  ha  por  ali 
a  assignalar. 

Attentemos  no  que  se  ve  hoje,  lembremos  no  meio 
da  grande  labuta9ao  que  por  là  vae  (e  sem  embargo 
dos  poderosos  recursos  da  sciencia  medica  moderna), 
as  numerosas  victimas  que  vao  marcando  cada  passo 
do  progresso;  escutemos  os  constantes  consellios  que 
OS  liomens  mais  conhecedores  a  todo  o  momento  duo 
sobre  a  hygiene  a  observ-ar;  lembremos  as  declara- 
(joes  comò  a  de  Tisdel  sobre  a  impossibilidade  da  ma- 
nuten9ao  do  europeu  ali;  e  quando,  reimindo  todos 
esses  factos,  os  sobra9ai-mos,  abaiando  para  os  tem- 
pos  remotos,  veremos  que,  se  hoje  a  lucta  é  enorme 
e  gigante,  talvez  impossivel,  n'aquellas  epochas*  devia 
ter  ido  mais  longe,  devia  ser  insupportavel  ! 

Quanto  fica  dito  nao  é  mais  do  que  a  expressao  da 
verdade  ;  o  clima  é  sempre  o  factor  mais  valioso,  se 
nao  o  preponderante  no  retardamento  da  obra  da  civi- 
lisa^ao  em  todas  as  terras  tropicaes,  muito  principal- 
mente ali;  e  se  os  portuguezes  que  em  todo  o  tempo 
se  abalan^aram  às  emprezas  mais  atrevidas,  recua- 
ram  ou  antes  nao  proseguiram  no  Congo,  apesar  da 
attrahente  cobicja  de  devassar  os  grandes  sertoes  do 
norte,  é  porque  alguma  causa  fora  do  commum  os  im- 
pediu,  e  essa  causa  de  certo  foi  o  clima. 

Saneémos  o  Congo,  se  tal  empreza  é  praticavel,  e 
entao  ver-se-ha  para  ali  correr  a  torrente  colonisado- 


istoria  politica  do  Congo  57 

ra  ;  uas  circumstancias  actuaes  digamos  outra  vez  com 
Tisdel:  «Um  preto  com  certa  instruccjao  e  mediocre 
conhecimento  da  lingua  fioti,  póde  fazer  entre  os  natu- 
raes  o  que  o  branco  niinca  farà»;  acrescentando  de 
nossa  casa:  «e  esse  preto,  que  nós  prepararemos  nos 
logares  salubres,  sera  o  unico  colono  capaz  de  ada- 
ptar-se  n'aquelle  ponto,  o  unico  capaz  de  ter  predo-' 
minio  no  Congo  » . 


N 


CAPITULO  I 


NA  COSTA  OESTE 


Em  Angola — Aspecto  do  coi*dao  litoral  e  sua  vcgcta^So — Terras 
do  interior — Entre  Cuanza  e  Bengo,  quadro  triste — Problemas  que  noB 
propunhamos — Material  e  pessoal — Considera^oes — Artigos  da  expedi- 
9ao — Francisco  Ferreira  do  Amarai — Urna  notieia  historica — Salvador 
Correia  e  a  conquista  de  Loanda — Fortalezas  e  edifieios  publicos — Os 
jardins,  os  muceques,  a  vcgeta^ào,  a  salubridadc  e  a  ilha — Os  muxi-loan- 
das  e  a  sua  opiniilo  aristocratica — Rcudimcutos  e  governo — Tribuuaes 
judiciacs-^  Considera^ucs  sobre  os  deportailos  e  colonias  penaes. 


A  zona  litoral 
das  possessSes 
portuguezas  na 
costa  oeste  tem 
um  aspecto  uui- 
foi-me  e  n'alguna 
pontos  arido,  que 
contrasta  com  as 
tcrraa  do  norte 
debaixo  do  equa- 
dor. 

O  viajante  por 
toda  a  parte  ve 
um  longo  cordSo 
'*"*  '  franjado  n'um  ou 
n'outro  ponto  por  pequcnas  bahiaa  areosas,  ao  fundo 
das  quacs  a  mancha  escura  do  mangue  verde  accusa 
a  existencia  du  agua,  e  extensas  barreiras  aprumadaa 


62  De  Angola  à  contror-costa 

e  vennelhas  entreligam,  projectando-se  sobre  um  fun- 
do  longinquo  de  morros  e  serras  elevadas.  A  vegeta- 
(jao,  de  triste  aspecto  em  geral,  acceutua-se  pelo  bao- 
bab, esse  gigantesco  vegetai,  ciijos  troncos  medeni  as 
vezes  20  e  30  metros  de  circumferencia,  por  euplior- 
bias  corno  a  cassoneira,  oiitra  à  simillian<;a  de  iim  can- 
delabro, e  que  6  supponios  a  Eajjluorbia  hervientiana  (V), 
algunias  Hyplweiies,  leguminosas  rasteii'as,  bosques  de 
jasmineiros,  aloes  e  sycomoros. 

Junto  ao  mar,  nas  praias,  arrastam-se  tristes  Con- 
volmdus,  a  fava  do  Calabar,  etc. 

No  sul  e  nos  areiaes  safaros  a  Welwitsc/da  mirabUis 
e  ennegrecidas  Bauhinias  caracterisam  a  flora. 

Logo  para  o  interior  o  paiz  é  frequentemente  park- 
like,  e  a  scena  a  8  ou  10  millias  do  mar  modifica-se 
para  dar  logar  a  pittorescos  golpes  de  vista,  por  Hieio 
de  verdes  campinas,  onde  avermelhados  Coiivolvuli, 
amarellas  Orchideas  e  brancos  Commeleì/nce  rivalisam 
de  brillio,  atapetando  o  terra  d'onde  emergem  Erythe- 
Hnas  de  flores  rutilantes  e  mais  avultados  exemplares 
do  reino  vegetai. 

A  disposi^ao,  de  mais  em  mais  elevada,  das  terras 
opera  notaveis  mudancjas  na  vegeta9ao,  e  ao  quadro 
que  acabàmos  de  descrever  succede-se,  à  medida  que 
vamos  para  o  interior,  outro  de  mais  risonilo  aspecto, 
pelas  arvores  gigantes  que  tudo  cobrem  coni  a  sua  fo- 
Ihagem,  elevadas  gramineas  e  numerosas  palmeiras 
oleosas. 

No  parallelo  de  Loanda  as  grandes  florestas  appro- 
ximam-se  muito  do  litoral,  vendo-se  em  Cazengo  e  Go- 
lungo  OS  mais  formidaveis  exemplares  a&icanos. 


Na  costa  oeste  63 

Junto  ao  mar,  emfim,  e  entre  os  rios  Bengo  e  Quan- 
za,  é  triste  o  quadro  que  se  revela  na  nudez  das  bar- 
reiras  avermelliadas  do  Cacuaco,  Dande,  etc,  e  nas 
ondula^oes  interiores  de  Caculo-Cassongo  e  outros 
pontos,  corno  adiante  veremos. 

Foi  em  mar^o  de  1884  que  ahi  comeiyou  os  seus 
traballios  a  nossa  expedi^ao,  esperan(;ada  em  resolver 
varios  problemas,  nos  quaes  figurava  o  de  encontrar 
um  caminlio  commercial  entre  as  provincias  portu- 
guezas  de  Angola  e  Mo^ambique;  inquirir  nas  regioes 
centraes  as  rela^oes  das  bacias  liydrographicas  do 
Zaire  e  Zambeze;  e  atravessar  emfim  pelo  meio  as 
zonas  branqueadas  que  na  carta  existiam,  taes  corno 
a  terra  ao  oeste  do  valle  de  Barotze,  aquella  que  se 
estira  para  o  nordeste  do  Cabompo  até  à  regiao  dos 
lagos,  e  emfim  toda  a  que  do  sul  do  Bangueolo  vae 
até  ao  Zambeze. 

Ligavam-se  a  este  triplo  problema  outros  de  im- 
portancia  secundaria,  que  deixavamos  ao  acaso  o  cui- 
dado  de  nos  fazer  conhecidos;  mas  o  nosso  plano  era 
principalmente  estudar  e  esclarecer  em  definitivo  toda 
a  zona  centrai  da  nossa  provincia  angolo-mozambi- 
cana, calculando  até  que  ponto  os  ferteis  sertoes  que 
a  constituem  poderiam  encontrar  no  Zambeze  uma 
salda  para  os  seus  productos. 

Como  facilmente  se  póde  deprehender,  tao  grave 
assumpto  representava  para  os  nossos  interesses  uma 
questào  de  summa  impoi-tancia,  e  carecia  de  attento 
estudo,  bem  conio  reclamava  imia  apropriada  escolha 
de  itinerario,  que  rpellior  podesse  decidir  em  materia 
de  aproveitamento. 


64  De  Angola  d  contro-costa 

Escusado  é  acrescentar  que  nao  foi  sem  sèria  he- 
sita9ào  que  tomàmos  sobre  os  hombros  està  empreza 
que  tao  longe  nos  iria  arrastar  pèlos  matos;  rude  ta- 
refa,  quÌ9à  um  pouco  superior  aos  recursos  de  que  dis- 
punhamos,  apesar  de  ter  o  governo  de  Sua  Magestade 
ordenado  que  se  nos  entregasse  tudo  quanto  para  tal 
firn  requisitassemos. 

Contando  porém  com  os  conhecimentos  na  primeira 
viagem  adquiridos,  preparàmo-nos  corno  podémos, 
nao  devendo  por  isso  causar  estranlieza  o  modo  por 
que  a  ageitàmos,  e  sobretudo  a  exiguidade  dos  ar- 
tigos  de  que  nos  fomecemos,  factos  sobre  que  vamos 
dizer  duas  palavras. 

Devia  contar  o  nosso  pessoal  o  limitado  numero  de 
cento  vinte  e  quatro  pessoas,  numero  sem  duvida  res- 
tricto,  mas  que  nao  convinha  exceder,  embora  grande 
fosse  o  commettimento. 

A  pratica  que  temos  do  sertao  ha  muito  nos  evi- 
denciou  que,  quanto  mais  numerosa  é  a  caravana, 
maiores  sao  os  embara90s  e  mais  graves  as  complica- 
9oes  que  por  toda  a  parte  se  Ihe  deparam;  bem  comò 
é  obvio  que,  para  maior  numero  de  cargas,  mais  cres- 
cido  deve  ser  ò  numero  de  carregadores,  e  que,  em 
igualdade  de  circumstancias,  tudo  quanto  excede  uma 
centena  de  homens  vae  muito  alem  das  necessidades 
de  uma  viagem  ao  mato,  excedendo  sobretudo  em 
muito  a  cifra  para  que  em  geral  se  podem  encontrar 
recursos  ali. 

Nao  é  so  sob  este  ponto  de  vista  que  deve  encarar- 
se  a  organisa9ao  de  uma  comitiva  preparada  para  lon- 
gos  emprehendimentos,  bem  o  sabemos  ;  da  sua  segu- 


1 


Na  costa  ceste  65 

ran^a  atravez  dos  bosques  africanos  póde  depender  o 
exito  dos  trabalhos  a  executar,  seguran9a  que  princi- 
palmente se  baseia  no  numero,  e  d'este  é  consequencia 
tambem  a  maior  ou  menor  somma  de  confortos  de  que 
precisa  cercar-se  o  europeu  quando  percorre  aquellas 
regioes. 

Como,  porém,  a  gente  deve  habituar-se  um  pouco  a 
andar  à  mercé  da  sua  boa  estrella,  e  convencer-se  de 
que  n'este  mundo  nada  resiste  a  uma  for9a  de  vontade 
determinada,  e  que  o  principal  é  ter  saude,  lan^àmos 
de  banda  receios,  prescindindo  de  tudo  que  podesse 
embara9ar  a  nossa  marcila,  oircumstancia  da  qual  de- 
pendia,  a  nosso  ver,  o  problema  que  nos  propunliamos. 

Considerando  isto,  em  logar  de  uma  centena  de  far- 
dos  de  fazenda,  dispozemos  e  organisàmos  vinte  e  sete 
de  algodao  e  riscado;  em  vez  de  uma  profusào  de 
cargas  de  missanga,  semente  uma  duzia  de  saccos  de 
cincoenta  libras;  para  miudezas,  instrumentos  e  raros 
presentes  tres  caixas;  quatro  ditas  para  o  que  cha- 
mavamos  rancho,  isto  é,  clià,  café,  sai,  assucar  e  adu- 
bos  ou  temperos;  e,  finalmente,  uma  para  artigos  de 
mesa  *. 

Duas  grandes  canoas,  uma  pharmacia,  seis  cunhe- 
tes  de  cartuchame  Snider  e  dois  de  nossas  armas,  duas 
tendas,  um  fardo  de  arame  de  latSo,  dois  jliT^cos  de 
Iona  pintada,  contendo  fatos  de  flanella,  e  uma  mu- 
hamba  com  artigos  de  cozinha,  compunliam  por  assim 
dizer  todo  o  material  da  expedÌ9ao. 


1  As  caixas  eram  forradas  e  de  dimensocs  proprias  a  poderem  scr 

couduzidas  ao  bombro. 

ù 


66  De  Angola  A  cantra-costa 

Ageitado  este,  ficava  a  parte  mais  aborrecida  e  en- 
fadonlia;  a  do  engaj amento  do  pessoal,  tarefa  sempre 
chela  de  decep^oes  e  duro  soflFrer  para  quem  a  sorte 
aprouve  laiKjar  em  taes  commettimentos,  e  a  que  so 
paciencia  de  a90  e  desusada  pertinacia,  envelliecida 
no  seu  conliecimento,  póde  fazer  frente. 

Que  o  digam  aquelles  que,  comò  nós,  ali  téem  tra- 
balhado,  se  alguma  cousa  ha  que  desafie  ao  desespero, 
comò  essas  scenas  repetidas  de  fugas,  enganos  e  per- 
fidias  que  acompanham  sempre  os  preliminare»  de 
uma  expediijao  africana. 

Nenhum  explorador  póde  isentar-se  d'elles,  nem  um 
so  deixou  de  relatar  as  angustias  d'esses  primeiros  dias 
de  mato,  da  desesperacjao  causada  pelas  fugas,  receios 
e  conluios  de  carregadores  e  chefes,  sem  exprimir  pro- 
funda  tristeza. 

Entretanto,  nada  aproveitam  as  suas  sentidas  des- 
crip^oes  e  os  seus  numerosos  esclarecimentos;  aquelle 
que  infelizmente  là  volte,  tem  de  passar  pelos  mes- 
mos  dissabores,  ficando-lhe  semente  dos  camaradas  a 
recorda9ao  de  os  haver  tido  por  companheiros  no  sof- 
frer. 

Felizmente  para  nós,  deu-se  uma  circumstancia  que 
minorou  todos  estes  obstaculos,  a  qual  de  bom  grado 
aqui  registàmos,  comò  tributo  de  serio  reconhecimento 
ao  homem  que  em  Angola  nos  dispensou  a  mais  apre- 
ciavel  proteccjao. 

Achava-se  d  testa  do  governo  da  provincia  Fran- 
cisco Ferrei ra  do  Amarai,  um  dos  mais  sympathicos 
officiaes  da  marinila  real  portugueza,  e  foi  elle  que,  por 
habituado  as  lides  africanas  e  de  intelligencia  a  coni- 


Na  costa  oeste  67 

prehender  estes  obstaculos,  nos  aplanou  com  o  seu 
auxilìo  e  conselho  bastantes  difficuldades,  Tudo  se  fez 
com  ordem  e  por  maiieira  tal,  que  nos  primeiros  dias 
de  mar90  lamos  a  caminho  de  Mossamedes,  onde  urna 
coi'veta  de  guerra  nos  devia  receber  e  transportar, 
acto  continuo,  a  Porto  Pinda,  ponto  indicado  corno 
ivicio  para  a  partida. 

Alegres  e  contentes  se  acliavam  prestes  a  largar 
Loanda  cento  e  duas  pessoas  do  Celli,  da  Quisanga, 
de  Novo  Redondo  e  do  Nano,  que  fam  encontrar  com- 
panlieiros  em  Benguella,  e  satisfeitos  nós  tanibeni  de- 
sejariamos  abaiar;  nao  o  faremos,  todavia,  sem  dizer 
duas  palavras  àcerca  da  posicjao  geogi*apliica,  aspecto 
e  importancia  da  prinieira  cidade  da  provincia  de 
Angola  e  sede  do  seu  governo. 

Com  grande  receio  vamos  lancjar-nos  ainda  nos 
dominios  da  liistoria,  pois  tememos  que  por  abuso 
d'ella  se  melindre  a  benevolencia  do  leitor;  mas  se  na 
verdade  é  aborrecivel  relembrar  factos  e  datas  que 
pela  maior  parte  deviam  existir  na  memoria  de  todos, 
nada  ha  tao  agradavel  corno  restabelecel-os. 

Acontece  que,  se  de  muitos  e  conliecida  a  liistoria 
e  seus  geraes  detallies  com  referencia  às  nossas  pos- 
sessoes  mais  importantes,  outros  parecem  completa- 
mente ignoral-os,  e  nSo  figuram  pelo  menor  numero 
OS  estrangeiros,  que  de  resto,  tendo  estado  n'ellas,  as 
amesquinham  e  deturpam  nos  seus  escriptos,  espa- 
lliados  com  profusfto,  produzindo  nos  espiritos  idt'as 
en'oneas  a  nosso  respeito! 

Està  n'este  caso  a  nossa  cidade  de  Loanda,  capital 
da  provincia,  que,  por  desleixo  incomprehensivel  de 


68  De  Angola  d  contra-^osta 

um  escriptor,  se  nao  por  ma  fé,  ainda  ha  bem  pouco 
foi  alvo  de  urna  injustissima  de8crip9ao  feita  em  volu- 
moso  livro,  que  a  arrastava  pelo  nivel  da  mais  sordida 
das  senzalas. 

Urge  pois,  sem  pretender  eleval-a,  dar  à  sobredita 
descrip9ao,  em  uma  singela  noticia,  o  cunlio  verda- 
deiro  de  que  carece. 

A  historia  da  conquista  de  Angola  e  funda9ao  de 
Loanda  seria  longa  tarefa,  que  os  limites  impostos  a 
este  capitulo  nào  permittem.  Afastando-nos  pois  da 
narrativa  das  nossas  descobertas  na  costa,  e  da  expo- 
8Ì9ao  minuciosa  dos  trabalhos  ali  operados  por  Paulo 
Dias  de  Novaes,  seu  primeiro  govemador,  tao  distincto 
diplomata'  quanto  intelligente  general,  assignemos  a 
primeira  data  notavel. 

E  a  de  1641,  anno  da  conquista  de  Loanda  pelos 
hoUandezes,  que  assim  se  achavam  dominando  na 
Africa  Occidental,  depois  de  possuirem  uma  grande 
parte  do  Brazil. 

Salvador  Correia  de  Sa  Benevides,  que  paiifra  de 
Portugal  com  uma  frota  para  limpar  as  costas  da 
America  do  sul,  aportando  ali  pouco  depois,  trava 
lucta,  e  batendo  os  hollandezes  no  Recife  e  logo  na 
Bahia,  prosegue  para  leste,  incumbido  pelo  monarcha 
D.  Joào  IV  de  erigir  uma  fortaleza  na  feitoria  e  porto 
de  Quicombo,  se  infelizmente  nSo  podesse  tomar  posse 
de  Loanda. 

Foi  a  12  de  mar9o  de  1648  que  elle,  capitaneando 
a  refenda  frota,  composta  de  quinze  navios,  quatro 
dos  quaes  adquirfra  e  equipara  à  sua  propria  custa, 
soltou  véla  do  Rio  de  Janeiro. 


Ka  costa  oeste 


69 


Chegado  a  Quicombo  em  agosto  com  cerca  de  no- 
vecentos  homens,  Salvador  Correla  reuniu  acto  contf- 
nuo  conselho  de  oilìciaes,  e  explicando-llies  a  necessi- 
dade  de  livrar  a  villa  interior  de  Massangano  das  mSos 


dos  inimigos,  convidou-og  a  que  o  acompanhassem  na 
empreza.  Com  tanta  arte  soube  actuar  no  cora^So  dos 
audazes  companlieiros,  por  tal  modo  Ihea  fallou  nas 
esperamjas  da  patria,  na  grandiosidade  dos  feitos  de 
outr'ora,  e  na  honra  e  gloria  que  os  esperava,  que, 


70  De  Ali ff ola  d  cmìfra^os^fa 

concliiido  o  conselho,  tudo  se  dispoz  da  mellior  von- 
tade  para  a  partida. 

Sendo  mdnbitavelmente  a  cidade  de  Loanda  cliave 
da  conquista,  para  ali  se  fez  a  esquadra  de  véla,  e  em 
12  de  agosto  surgia  no  seu  porto. 

Nao  se  deraorou  Salvador  Correia  coni  planos  e 
delongas,  e  enviando  um  officiai  a  terra,  intimou  a 
guarni^ao  da  foj-taleza  a  que  se  rendesse,  conceden- 
do-llie  dois  dia»  para  dar  resposta. 

Ao  cabo  de  quarenta  e  oito  lioras,  corno  se  recu- 
sassem  os  lioUandezes  a  responder,  fez  um  tiro  o  na- 
vio  cliefe,  deserabarcando  da  esquadra  toda  a  for^a 
disponivel. 

A  principio  quizeram  os  indigenas  oppor  tenaz  re- 
sistencia,  mas  vendo  o  numero  dos  nossos  fugiram 
aterrados,  ao  passo  que  Salvador  CoiTcia,  rompendo 
com  a  sua  artillieria  um  vivo  fogo,  dava  no  dia  15 
assalto  geral  a  fortaleza. 

Abandonados  pelos  naturaes  seus  alliados,  comecja- 
ram  os  hollandezes  de  se  arreceiar,  até  que  pela  tarde 
d'esse  dia  propozeram  a  capitula^ao,  que  foi  pelo  ge- 
neral immediatamente  acceita. 

Entregando  assim  as  armas,  safram  ao  todo  mil  e 
quatrocentos  individuos,  segundo  parece,  dos  quaes 
trezeutos  andavam  jimtos  a  rainha  Ginga,  e,  sendo 
mettidos  em  tres  navios,  foram  enviados  seni  demora 
para  a  Europa. 

No  curto  espacjo  de  dois  dias,  pois,  e  impellidos  pelo 
genio  de  Salvador  Correia,  conquistaram  os  portu- 
guezes  de  novo  a  capital  da  sua  provincia,  que  sete 
annos  estiverà  na  posse  dos  hollandezes. 


Na  costa  oeste  71 

É  na  latitude  8\47'  sul  e  longitude  13\7'.30"  oeste 
de  Greenwich  ao  fundo  de  formosa  bahia,  que  està 
edificada  a  cidade  de  Loanda  ;  dividida  em  dois  bairros 
distinctos^  respectivamente  denominados  alto  e  baixo; 
sendo  o  primeiro  o  bairro  elegante  e  onde  se  acham 
OS  edificios  mais  importantes,  e  o  segundo  aquelle 
propriamente  commercial. 

Defendem-na  ao  presente  quatro  '  fortalezas,  que 
se  denominam  S,  Miguel,  S.  Francisco  do  Penedo, 
S.  Fedro  do  Morrò  de  Cassamdama  e  Nossa  Senliora 
da  Concei^ao^ 

A  primeira,  construida  pelo  systema  Vauban,  com 
a  fórma  de  um  polygono  irregular,  adaptada  à  con- 
fìgura9ao  do  morrò  de  S.  Miguel,  é  de  todas  a  mais 
importante. 

Comeijada  em  1638  pelo  governador  Francisco  de 
Vasconcellos  da  Cunlia,  foi  concluida  em  1689  por 
D.  Joao  de  Lencastre,  juntando-llie  em  1770  o  go 
vemador  D.  Francisco  de  Sousa  Coutinlio  a  bateria, 
que  ainda  lioje  se  conhece  pela  do  Cavaileiro,  com 
dezeseis  pe9as. 

Para  o  lado  do  mar  uma  cortina  com  quatorze  fa- 
ces  póde  montar  setenta  e  oito  bócas  de  fogo,  sem 
contar,  uma  pequena  bateria  de  seis  pcijas,  ao  passo 
que  pelo  lado  da  terra  dois  valentes  baluartes,  com 
dez  canlioes  cada  um,  cinizam  os  seus  fogos  com  a 
bateria  do  Cavaileiro. 


1  Na  ponta  norie  da  ilha  existlu  em  outro  tempo,  no  comedo  do  seeulo 
xviii,  0  forte  de  Nossa  Senhora  da  Fior  da  Rosa,  de  que  hoje  resta  ape- 
nas  a  memoria,  e  na  barra  de  Corimba  o  forte  de  S.  Fernando. 


72  De  Angola  d  contr accosta 

No  seu  vasto  recinto  ha  residencia  para  o  govema- 
dor,  quarteis,  paioes,  e  cistemas  para  mais  de  mil  e 
quinhentas  pipas  de  agua,  comò  tambem  capella,  pri- 
soes,  etc. 

Foi  aqui  que  em  15  de  agosto  de  1648,  sete  an- 
nos  depois  de  terem  conquistado  a  cidade,  corno  dis- 
semos,  08  hollandezes  capitularam. 

Vem  em  segundo  logar  a  do  Penedo,  systema  Vaii- 
ban,  cujos  fundamentos  foram  lan9ado8  em  1687  pelo 
govemador  Luiz  Lobo  da  Silva,  e  que  D.  Francisco 
de  Sousa  Coutinlio  completou  em  1765,  imindo  urna 
roclia  isolada  no  mar  às  penedias  da  terra  firme,  no 
curto  espa90  de  dezoito  mezes. 

Tem  a  bateria  superior  vinte  e  quatro  pe^as,  e  a 
inferior  trinta  e  sete  d'estas  machinas  de  guerra,  fa- 
zendo  com  que  o  forte  domine  por  completo  a  entrada 
do  porto,  bem  comò  o  caminho  do  Cacuàco  para  Loan- 
da.  No  seu  paiol  armazenam-se  128:000  libras  de  pol- 
vora. 

Successivamente  encontra-se  o  forte  de  S.  Fedro, 
obra  do  governador  D.  Antonio  Alvares  da  Cunlia, 
que  o  come90u  em  1703,  acabando  em  1705.  Para  o 
lado  do  mar  duas  baterias  se  sobrcpoem,  a  de  cima 
com  dez  bócas  de  fogo  e  a  de  baixo  oito,  ao  mesmo 
tempo  que  dois  baluartes,,  cada  um  tendo  nove  pe9as, 
a  defendem  dos  ataques  de  terra. 

0  governador  possue  ahi  residencia,  bem  comò 
quarteis,  depositos  e  cisterna  para  cincoenta  pipas  de 
agua. 

Emfim,  tem  a  de  Nossa  Senhora  da  ConceÌ9ao,  de 
menos  importancia,  com  quatro  bòcas  de  fogo. 


Na  co^a  oeste 


73 


Loanda  é  urna  cldade  ampia,  limpa  e  pittoresca. 
GracioBamente  reclinada  na  encoata  das  terraa  que 
miram  ao  noroeste,  ostenta,  quando  vista  do  lado  do 
mar,  o  aspecto  de  urna  cidade  europèa,  com  os  aeus 
renques  de  asseiadas  e  bem  dispostas  casarias,  que, 


sobrepondo-se  garrìdas  umas  às  outra»,  se  ligam  por 
extensas  cal<;adas. 

Possue  midtos  edificios  e  seria  longo  aqui  enumerar 
todos.  Cìtaremos,  entre  os  principaes,  o  hospital  porto 
de  Ponta  Negra,  verdadeiro  scmatorium,  que  nSo  tem 
igual  em  Africa;  o  palacio  do  govemador,  obra  im- 


,74  De  Angola  d  coTìtror-costa 

portante;  o  palacio  do  bispo,  a  escola  de  artes  e  offi- 
cios,  o  tribunal  da  rela9ào,  a  casa  da  camara,  a  alfan- 
dega,  officinas  de  fundÌ9ao,  etc,  sem  contar  muitos 
templos  e  grande  numero  de  edificios  particulares. 

Existem  varios  jardins  publicos,  entre  os  quaes 
figura  o  da  Ponta  de  Izabel,  com  quinhentas  arv^ores 
de  fructo,  dividido  em  cinco  avenidas,  de  que  a  cen- 
trai tem  nove  terra90s  com  uma  pyramide  em  cada 
extremidade,  cortando  direita  por  um  lado  à  casa  de 
recreio  do  governador,  construìda  em  1817  pelo  vice- 
almirante  Mota  Feo,  e  à  igreja  da  Nazareth;  o  jardim 
do  largo  de  Salvador  Correla,  etc. 

Nas  terras  altas,  que  pelo  nordeste  a  dominam, 
sao  numerosas  as  casas  de  campo  denominadas  rruLce- 
qaes,  onde  os  abastados  de  Loanda  passam  em  ocios 
OS  seus  dias  de  ferias. 

A  cidade  alta  é  indubitavelmente  considerada  a 
mais  saudavel,  e  onde  reside  uma  grande  parte  da 
populacjao  branca. 

A  vegeta9ao  é  constituida  em  geral  por  euphorbias, 
bao-babs  e  aloes. 

Completamente  livre  de  pantanos,  que  tanto  con- 
correm,  comò  é  sabido,  para  a  insalubridade  de  qual- 
quer  regiao,  Loanda  soflEre  um  pouco  de  falta  de  agua, 
problema  que  nao  seria  difficil  resolver,  e  està  mesmo 
em  via  de  8olu9ao,  fazendo-se  o  seu  abastecimento  de 
agua»  do  rio  Bengo. 

As  ruas  sao  bem  cal9adas,  mas  depois  de  termina- 
rem  as  chuvas  é  necessario  desobstruil-as  das  areias 
que  se  accumulam,  em  consequencia  da  desaggrega- 
9^0,  nas  encostas  das  terras  altas. 


Na  costa  deste  75 

Dà  este  facto  logar  a  que  o  recemchegado  n'aquella 
epocha  siipponha  nao  cal9ada  a  cidade  baìxA,  sendo 
este  um  defeito  irremediavel  até  agora. 

Fronteira  à  cidade  està  a  illia,  espécie  de  quebra- 
mar  de  areia,  que,  estirando-se  do  sul  ao  norte,  abriga 
dos  movimentos  do  oceano  o  porto  interior,  que  se 
póde  considerar  um  verdadeiro  tanque. 

Numerosos  coqueiros  vestem  essa  longa  facka  are- 
nosa, outr'ora  importante  pela  collieita  do  cauri  ^  Por 
meio  do  palmar,  brancas  casas  de  campo  constituem 
o  recreio  de  muitos  senhores  de  Loanda,  e  à  sua  som- 
bra vive  uma  popula^ao  de  talvez  mil  e  quinhentas 
almas,  compondo-se  a  ter^a  parte  de  pescadores. 

Os  habitantes  da  refenda  ilha  sao  os  muxi-loan- 
das,  aristocraticos  e  directos  descendentes  dos  mani- 
congo  (em  sua  opiniao),  povos  que  ali  tiveram  o  seu 
ultimo  asylo,  fazendo  de  suas  pessoas  idea  muito  li- 
sonjeira*. 

Em  resumo,  a  capital  da  provincia  de  Angola,  tem 
hoje  uma  populacjao  de  dezeseis  mil  almas,  um  movi- 
mento de  importa^ao  e  exporta^ào  de  vulto  e  um  ren- 
dimento para  o  thesouro  assàs  consideravel. 

A  sua  for9a  publica  monta  em  caso  de  guerra  a 
vinte  mil  liomens,  quinze  mil  dos  quaes  sao  de  segunda 
linha,  guerra  preta  e  empacaceiros,  e  os  restantes  de 
prihieira. 


'  Cjiuri,  zimbo,  buzio.  N'esta  ilha  residia,  nos  tcmpos  da  grandeza  do 
Congo,  um  logar  tenente  do  rei  para  apanliar  o  cauri. 

2  No  tempo  de  Merola  e  outros,  havia  n'csta  ilha  sete  povoa^ues  (li< 
batas),  sendo  a  prineipal  a  do  Espirìto  Santo,  com  sua  capella. 


76  De  Angola  d  contror-costa 

A  institui^So  da  sua  camara  municipal  data  do  anno 
de  1648,  e  compSe-se  de  um  presidente  e  seis  mem- 
bros  gratuitos,  percebendo  salano  apenas  o  secretano 
d'aquelle  corpo  collectivo. 

De  longa  data  desappareceu  a  escravatura  ali,  e 
quando  pelo  decreto  de  10  de  dezembro  de  1836  se 
proliibiu  a  entrada  nas  colonias  de  todos  os  escravos 
por  mar,  e  em  14  de  dezembro  de  1854  a  sua  intro- 
duc^ao  pela  via  terrestre,  jà  na  cidade  capital  da  pro- 
vincia se  nSo  pensava  sequer  no  homem  n'estas  con- 
di^oes. 

A  sede  do  governo  geral  é  n'esta  cidade,  e  està  in- 
vestido  na  pessoa  de  um  govemador  militar,  officiai 
que  logra  as  honras  dos  antigos  capitaes  generaes, 
supremo  administrador,  que  faz  todas  as  nomea^oes 
civis  e  militares  com  a  conveniente  sanc^ao  do  gover- 
no da  metropole,  e  preside  à  junta  governativa,  com- 
posta das  principaes  summidades  ecclesia^ticas,  civis 
e  militares,*  assim  comò  sancciona  todos  os  negocios  de 
fazenda. 

Nos  tempos  da  conquista  os  negocios  judiciaes  de 
Loand^a  e  dos  districtos  em  redor  eram  dirigidos  pelo 
ouvidor  geral,  jurisconsulto  para  esse  firn  nomeado, 
com  a  assistencia  de  dois  magistrados,  um  em  Loanda, 
outro  em  Massangano. 

Em  todos  OS  presidios  a  magistratura  era  investida 
nos  commandantes  militares. 

Em  1721  nomeou-se  para  ali  o  primeiro  juìz  de 
fora,  e  em  1837  foram  creadas  as  comareas  de  Angola 
e  Benguella;  lioje  sSo  numerosas  na  provincia  e  todas 
téem  seus  juizes  e  delegados. 


Na  costa  oeste  77 

Ha  um  tribunal  judiciario  com  as  varas  respectivas 
do  crime  e  civel,  e  urna  rela9ao  ;  um  procurador  regio, 
um  guarda  mór  ou  ajudante  completam  o  quadro,  e 
alem  d'estes  um  curador  geral  dos  indigenas  na  costa. 

Uma  das  grandes  catastrophes  que  durante  annos 
victimou  a  cidade  capital  de  Angola,  e  quÌ9à  os  dis- 
trictos  do  sul,  causando-lhe  na  metropole  uma  repu- 
ta9ao  aterradora,  foi  a  proveniente  da  remessa  dos 
degradados  para  ali,  facto  que,  occasionado  por  sen- 
ten9as  condemnatorias  de  deporta9ao  e  degredo,  espa- 
Ihou  entre  as  popula9oes  provinciaes  de  Portugal  as 
mais  negras  suspeitas  a  proposito  d'aquella  parte  da 
monarcliia.  Muitas  seriam  as  maes  que  consentissem 
a  emigra9ao  de  seus  filhos  para  o  Brazil,  com  espe- 
ran9as  no  seu  bom  futuro;  mas  raro  quem,  ao  ouvir 
dizer  «o  teu  fillio  vae  partir  para  Angola»,  podesse 
conter  as  lagrimas. 

Felizmente  as  cousas  téem  mudado  com  as  sabias 
medidas  do  governo;  e  comò  em  capitulo  adiante  te- 
remos  de  fallar  das  zonas  saudaveis  da  nossa  colonia 
Occidental  afiricana,  e  do  interesse  da  sua  povoa9ao, 
digamos  alguma  cousa  sobre  o  modo  de  prover  às 
menos  salubres. 

Se  OS  trabalhos  publicos  podem  nas  terras  sas  en- 
contrar  nos  agrupamentos  de  degradados  um  precioso 
recurso  para  o  seu  desenvolvimento,  nao  menos  apro- 
veitam  as  zonas  pouco  saudaveis  com  a  applica9ao  re- 
grada dos  esfor90s  d'estes. 

As  grandes  derrubadas,  as  multiplices  drenagens  e 
outros  elementos  de  saneamento  podiam  ter  no  traba- 
llio do  degredado  um  precioso  auxiliar,  e  nao  menos 


78  De  Angola  d  contrcb-costa 

ganharìa  a  moral  pelo  emprego  d'elle  n'esta  zona,  pois 
a  febre  intermittente  para  o  criminoso  deve  conside- 
rar-se  a  mellior  das  medidas  sanitarids,  debaixo  d'este 
ponto  de  vista. 

0  criminoso  de  boa  constituÌ9ao  physica  e  em  geral 
um  ente  de  instinctos  brytaes,  rebelde  a  (juaesquer 
sentimentos  liumanitarios  ;  logo,  porém,  qiie  a  doen^a 
o  domina,  o  seu  modo  de  ver  modifica-se  e  sob  a 
suave  pressào  da  morbidez  o  espirito  comò  que  se  pu- 
rifica! 

Nao  e  necessario  ir  longe  para  encontrar  denion- 
strac^oes  a  este  facto  (aos  ollios  da  pliilanthropia  talvez 
condemnavel  por  nipnstruoso);  està  elle  no  animo  de 
muitos  govemadores,  cujas  opinioes  aqui  podiamos 
facilmente  citar,  e  diz-nol-o,  emfim,  um  celebre  via- 
jante,  que  em  suas  peregrina^oes  passou  por  Angola, 
homem  insuspeito,  attento  o  caracter  religioso  que  o 
rcvcstia. 

wE  um  facto  notavel,  diz  elle,  que  durante  a  noite 
quasi  todas  as  armas  de  Loanda  estào  sem  perigo  nas 
maos  de  homens  enviados  para  ali  por  degredo.  Mui- 
tas  sao  as  rasoes  apresentadas  a  favor  d'este  suavo 
procedimento  por  parte  das  auctoridades  ;  mas  nenhu- 
ma  d'ella s,  quando  comparada  coni  o  que  sobre  o  caso 
conliecemos  na  Australia,  nos  parece  valiosa.  A  reli- 
giào  nao  cremos  que  se  relacione  com  a  mudan^a  ope- 
rada  no  europeu.  0  clima  provavelmente  tem  influen- 
cia  em  dominar  as  suas  turbulentas  disposi<;6es;  para 
08  habitantes,  etc.  Se  nós  inglezes  devemos  ter  colo- 
nias  penaes,  parecé-nos  que  um  serio  estudo  àccrca 
do  clima  deve  ter  vantagens  na  selec^ao.» 


Na  costa  oeste  79 

Isto  clizia  iim  liomem  tao  conhecedor  do  assùmpto 
corno  nós  da  nossa  casa;  e  isto,  repetìmos,  é  um  facto 
que  merece  muita  atten^ao,  ao  qual  se  nao  deve  jogar 
a  humamtaria  pedrada  de  assassinar  quem  possue  di- 
reito  à  vida. 

Nao  queremos  de  certo  à  morte  do  degradado,  mas 
o  que  desejàmos  é  aproveitar  d'elle  o  mais  possivel,  e 
concorrer  efficazmente  para  regeneral-o  em  beneficio 
proprio  e  da  patria. 

Diminua-se,  pois,  o  tempo  do  degredo  a  doze,  sete 
e  cinco  annos;  revogue-se  de  uma  vez  para  sempre 
a  reclusao  em  masmorras,  que  é  a  morte  n'aquellas 
regioes;  organisem-se  coloiiias  penaes  agricolas  em 
Ambaca,  Malange,  Duque,  Cassanje  e  Cuango,  e  dis- 
tribuam-se  por  ellas  os  individuos  condemnados  a  de- 
gredo que  a  metropole  envia  periodicamente  para 
cumprirem  sentenza. 

Sejam  arejadas  as  residencias,  substancial  a  alimeii- 
ta^ao,  bem  distribuido  o  traballio.  Estradas,  edificios, 
arroteamentos  de  terras  mandem-se  fazer  por  elles,  e 
em  horas  especiaes,  das  seis  às  dez  da  manha  e  das 
tres  às  seis  da  tarde.  A  ningnem  se  conceda  isen9ao, 
cxcepto  no  caso  de  molestia,  nem  se  permitta  licenza 
para  afastar-se  do  recinto  da  colonia  senào  após  qua- 
tro  annos  de  exemplar  comportamento. 

Proliiba-se  toda  a  especie  de  transac9ao  monetaria 
no  primeiro  espa90  de  dois  annos,  aproveitando  inva- 
riavelmente  os  esfor90s  d'essa  gente  reunida,  no  bem 
da  colonia  e  saneamento  da  zona.  As  febres  virao  sem 
duvida,  mas  para  essas  temos  o  quinino  e  as  indica- 
9oes  de  individuo  conliecedor  do  mester,  que  s6  aucto- 


80  De  Angola  d  contro-costa 

risarà  o  regresso  à  capital  dado  o  caso  de  perigo  de 
vida. 

Do  seu  enervante  influxo  conseguir-se-ha  a  corres- 
pondente  depressao  de  espirito,  sendo  o  primeiro  passo 
para  o  saneamento  moral,  corno  que  o  sulco  onde  se 
lan9a  a  semente  dd;  regenera9So,  que  o  traballio  mo- 
derado  e  a  fagueira  esperan9a  do  indulto  depois  com- 
pletam. 

E  se  infelizmente  por  systema  tal  nao  se  podérem 
obter  OS  desejados  fins,  legìsle-se  de  modo  a  crear 
mais  energicos  meios  repressivos. 

E  deixemo-nos  de  temuras,  repetimos,  com  a  lem- 
bran9a  dos  effeitos  do  clima.  Nào  ha  motivo  plausivel 
para  nos  entemecermos  mais  por  degradados  do  que 
pelos  nossos  officiaes,  membros  de  magistratura  e  ou- 
tros  que  por  là  andam,  e  diariamente  se  empregam  no 
servÌ90  do  seu  paiz. 

Acima  de  tudo  està  o  que  propomos,  sendo  questao 
secundaria  o  meio  de  o  conseguir. 

Trata-se  de  evitar  a  liberdade  contraproducente  de 
que  desfructa  o  deportado  na  colonia,  liberdade  que, 
dando  largas  ao  vicio,  aggrava  a  de8moralisa9ao,  es- 
perdÌ9ando  homens  que  aproveitados  poderiam  pro- 
duzir  muitissimo;  portanto  tome-se  uma  resolu9ao; 
e  aquella  que  apresentàmos,  modificada  ou  desenvol- 
vida  por  individuos  mais  conhecedores  do  assumpto, 
é  de  todas  a  que  nos  parece  mais  acceitavel. 

E  uma  tentativa,  e  quando  nada  mais  se  consiga, 
ter-se-ha  ao  menos  ganho  a  certeza  de  que  tarde  ou 
nunca  serSo  colonisaveis  as  zonas  assim  trabalhadas 
e  que  o  europeu  difficilmente  ali  poderà  viver. 


Na  costa  ceste  81 

A  pliilantliropia  quando  vae  alem  de  ccrtos  limitcs 
descamba  na  loucura. 

Eis  em  breves  tra^os  uni  esbo^o  da  cidade  de  Loan- 
da,  que  so  aguarda  os  beneficios  da  moderna  via^ao 
para  attingir  a  prosperidade  que  mereee,  beni  eomo  o 
iiosso  parecer  sobre  a  questiio  dos  deportados;  e  agora 
que  o  tempo  urge,  abandonemol-a  para,  seguindo 
Atlantico  afóra,  ir  até  ao  porto  de  Mossamedes. 


ù 


CAPITULO  II 


PRIMEIROS  PASSOS 


0  companheiro  negro  e  a  sua  iugrutidao — A  corvcta  Rainha  de  Por- 
tu4jal  e  a  abalada — Porto  Pinda — Os  areacs  e  a  primcira  noitc — Ponto 
de  partida  e  rasòes  de  sua  escolha — 0  honicm  poe  e  Deus  dispoe — A 
primcira  marcha  e  o  aspecto  do  terreno — Caractercs  geologicos — Os 
liabitautes  do  Coróca  e  o  dique  dentai — Numera9ao — Dos  trajcs  e  mu- 
lliercs — 0  adulterio  e  os  fuueraes — 0  boi  preto  e  a  circuincisao — Ter- 
rores  gentilicos — Vegeta^So  do  Coróca — Fauna  ornitliologica — Fuga 
de  quarcnta  e  dois  homcns. 


[1(1(1  ;  nspri- 
nifiriLs  alvo- 
i-fs  dn  manhfi, 
vadindo  com  a 
(»•  sua  Inz  tfiiiie  o  ea- 
pa^o,  come^avam  de 
deixar  perceber  os  contornos  da  vasta  bahia,  qiie  em 
escuro  cordào  nos  rodeava;  as  fulgiirantes  constella- 
qòes  do  sul,  dtsvanecendo-sc,  desappareciam  no  fun- 
do  ceruleo,  quando  nós  preoccupados  nos  erguemo». 


HG  Do  Amjoìa  d  contrd-costa 

Cliegiira  a  liora  de  partir,  hora  sempre  chela  de  cui- 
dados  para  quem  se  propoe  a  qualquer  empreza  arro- 
jada. 

0  facto  de  organisar  urna  expedÌ9ao  africana,  e  espe- 
cialmente o  mcMnento  da  sua  partida,  embora  a  muitos 
pare<;am  objectos  de  pequena  monta,  estao  bem  longe 
de  o  ser,  repetimol-o  mais  ama  vez. 

0  companlieiro  nejifro,  verdadeira  gazella  voluvel, 
espirito  irrcipiieto  e  vicioso,  caracter  fronxo  e  em 
extremo  timido,  difficilmente  compreliendendo  as  ne- 
cessarias  obriga^oes  a  que  o  liga  um  contrato,  e  nao 
acreditando  de  modo  algum  nos  altos  interesses  de 
(piestoes  d'està  ordem,  prepara  a  todo  o  momento, 
coni  nma  inconsciencia  pueril,  a  sua  perda  nos  mais 
singelos  actos. 

Xada  Ihe  importa  depois  de  engajado  e  de  recebi- 
dos  OS  adiantamentos;  q  n;iesmo  volumoso  material, 
cuja  organisa^ao  auxiliou  durante  dias,  tem  para  elle 
um  valor  secundario,  assim  comò  o  interesì^e  e  o  afan 
que  OS  chefes  manifestam  pelo  lote  de  artigos  que  cui- 
dadosamcnte  prepararam;  scudo  o  seu  sonho  unico, 
feìtos  OS  avauf^os,  burlar  quem  lli'os  concedeu,  e  para 
isso  |)oe  em  pratica  todos  os  meios  imaginaveis! 

E  nós,  que  os  conhccemos,  tremiamos  de  antemao. 

Kngajac  a  vossa  giunte  em  toda  a  costa,  e  dae-llie 
adiantado  quanto  cxigìnnn:  rcuni-os  em  tomo  de  vós, 
dìsj>ondo  tudo  pani  a  paitìda:  na  vespera  d'està  abri 
tn^s  ou  quatn>  fanlos  de  algi>dào,  e,  nìsgando  ai  direita 
o  a  osquonla,  distnbui  jv^r  tiMÌos  gratuitamente,  a  fini 
de  OS  atFcivH>;inlcs  e  j>n*ndonìos  ji  vossa  pessoa;  fazei 
mais,  ohamac  osohefcs,  o  presonteae-os  coni  um  fato 


Primeiros  passos  8  7 

completo,  dmheiro,  etc;  pois  bem,  no  momento  de 
abaiar,  desertar-vos-hao  em  massa  metade  d'aquelles 
a  quem  generosamente  recompensastes  ! 

A  ingratidao  e  a  perfidia,  essas  torpes  faculdades 
tao  communs  nas  intelligencias  rudimentares,  formam 
o  tracjo  caracteristico  do  negro. 

E  nao  se  imagine  qiie  jeremiàmos  aqui  para  mais 
avnltar  a  nossa  obra,  ou  creamios  maior  sympathia  a 
està  ordem  de  trabalhos;  de  modo  algum  é  essa  a  idèa, 
e,  sob  o  ponto  de  vista  da  verdade,  julgàmo-nos  tao 
felizes  e  afoitos  comò  todos  os  nossos  predecessores. 

Oucjamos  sobre  o  caso  Stanley,  a  quem  no  Tanga- 
nika  fugiram  de  uma  vez  meia  centena  de  homens: 

«E  a  infidelidade  dos  seus  carregadores  qiie  se  de- 
vem  attribuir  os  longos  rodeios  a  que  Livingstone  foi 
obrigado  em  sua  ultima  viagem.  Cameron,  por  sua 
vez,  igualmente  perdeu  um  g^-ande  numero  de  homens, 
primeiro  no  Unyaniembé  e  depois  em  Udjiji.  Eu  por 
minha  parte  sabia,  pela  experiencia  adquirida  na  pri- 
meira  viagem  na  Africa  centrai,  que  os  ba-nguana 
aproveitariam  todas  as  occasioes  para  desertar,  espe- 
cialmente na  vizinhancja  dos  depositos  arabes. 

«Foi  para  restringir  o  numero  d'estas  occasioes 
que  eu  deixei  o  caminho»,  etc. 

Carece  assim  o  explorador  de  toda  a  energia  e  boa- 
vontade  para  supportar  os  primeiros  revezes  e  os  fre- 
quentes  golpes,  e  se  em  tirocinio  anterior  nao  conse- 
guiu  dominar  de  algum  modo  o  indigena  n'esta  qua- 
dra dos  seus  trabalhos,  póde  convencer-se  de  que 
pouco  farti,  nao  Ihe  sendo  tambem  possivel  a  convi- 
vencia  com  elles. 


88  De  Angola  d  contra-costa 

Preoccupados,  corno  dissemos,  e  com  rasao,  ergue- 
mo-nos. 

Estavamos  a  bordo  da  corveta  Rainha  de  Pm^ivr- 
gcH,  do  cominando  do  capitao  tenente  Gnilherme  Au- 
^sto  de  Brito  Capello*,  que,  surta  no  porto  de  Mos- 
samedes,  se  aprestava  a  transportar  a  expedi^ao  por 
nós  capitaneada  para  Porto  Pinda. 

Por  cima  da  tolda,  em  confuso  borborinlio,  agitam- 
se  todos  OS  nossos  companheiros  de  cor,  ora  escan- 
carando  os  ultimos  bocejos,  ora  espreguicjando  os 
membros  envolvidos  em  pannos  multicores,  com  ar  de 
despreoccupados,  quando  o  toque  da  cometa  para  a 
ra(;ao  da  aguardente  os  arrancou  a  inconsciente  ta- 
refa. 

Rodando  a  ceiba,  comecjavam  de  aquecer  os  estoma- 
gos,  emquanto  no  navio  as  cousas  se  dispunham,  e 
tao  regularmente  tudo  se  fez  que,  escapando  o  vapor 
pelo  tubò  da  descarga  às  ciuco  lioras  e  mela,  momen- 
tos  depois  estava  a  amarra  guamecida  ao  cabrestan- 
te,  e,  achando-se  de  seguida  postados  ao  leme  e  à  pru- 
.  mada  os  marinheiros  especiaes  d'esse  servilo,  subia  o 
commandante  a  ponte  trìnta  minutos  depois. 

Viva;  estd  a  piqué;  an^amca;  està  a  olho;  engaia  o 
turco,  vira  ao  apparelho;  dvante  devagar;  a  estihordo  o 
leme,  foram  as  plirases  que  se  seguiram  no  meio  do 
silencio  de  uma  manobra  de  bordo;  e,  n'um  volver 
de  ollios,  a  elegante  corveta,  fazendo  cabe9a  para  o 
mar,  seguia  donairosa  a  bahia  de  Mossamedes  afóra, 
e  dando  a  popa  a  essas  areias  de  monotono  aspecto, 


1  IriTìMO  de  uin  dos  auotorcs  d'este  livro. 


Primeiros  passos 


89 


botava  ao  susudoeste  parallelamente  à  costa,  cujo  cor- 
dSo  ae  distingiiia  até  morrer  no  sul  em  ponta  avan- 
9ada, 

Urna  brisa  fagueira  soprava  no  mar,  qne,  plano  e 
corno  que  aìnda  adormecido,  miil  embalava  o  navio. 


=  ^1  Mv'Pél 


Subimo». 

Era  a  nossa  derradeira  viagora  pelo  oceano  n'esta  « 
epoclia;  e,  na  qualidade  de  marinbeiroB,  queriamos 
desfructar  o  prazer  de  nos  aiippor  na  ponte,  encarre- 
gadoB  de  um  quarto  d'alva. 


90  De  Angola  d  contra-costa 

-  E  que,  apesar  de  tndo,  embora  seja  duro  o  viver 
do  liomem  do  mar,  mal  vae  a  qiiem,  ao  apartar-se  por 
annos  d'aquelles  paiis  ao  alto,  iiao  sente  confranger- 
se-lhe  o  corac^ao. 

O  navio  é  tudo  para  o  marinlieiro.  Ninho,  lar,  com- 
panlieiro  inseparavel,  especie  de  pedalo  solto  do  paiz 
iiatal;  lembru-llie  a  todo  o  momento  este,  acarician- 
do-o  com  a  idea  de  que  talvez  um  dia,  arrastado  nas 
azas  do  vento,  para  là  o  conduza. 

Duas  longas  lioras  passàmos,  respirando  a  largos 
tragos  as  frescas  brisas  d'esse  oceano  que  por  tanto 
tempo  iamos  esquecer,  e  do  qual  nunca  suspeitàmos 
afastar-nos  tao  contristados,  soltando  vóos  com  o  pen- 
samento. 

Ao  cabo  despertàmos;  lam  jà  dobradas  duas  pon- 
tas,  e  transposta  mais  lima  bahia,  Cabo  Negro  app^i- 
receu,  e  logo  depois  demos  vista  de  Porto  Pinda,  onde 
pelas  doze  horas  e  mela  surgimos  no  ancoradouro. 

Ao  avistar  os  extensos  areiaes  que  o  foiinam  e  as 
soltas  dunas  que  para  o  interior  se  alongam,  seni  o 
mais  singelo  signal  de  vegetacjào,  se  exceptuarmos 
uma  lagoa  que  escoado  o  rio  ali  fica  e  que  grupos  de 
Borassus  demarcam,  pensàmos  achar-nos  abeirados 
de  um  Sahara.  Comprimiu-se-nos  o  cora^ao  à  vista 
de  tanta  nudez,  e  embora  habituados  ao  viver  do 
mato,  um  sentimento  desagradavel  nos  dominou,  ao 
lembrar  as  fadigas  que  nos  esperavam  por  meio  d'es- 
ses  areiaes  estereis. 

Como,  porém,  nao  vinliamos  a  Pinda  para  fazer  a 
singela  experiencia  de  se  ~ — sim  ou  nao —  nos  agra- 
dava o  panorama  que  em  redor  da  baliia  se  desdobra 


Prìmeiros  passos  9 1 

aos  ollios  do  viajante,  lan<jàmos  para  longe  impressoes, 
e  no  curto  espac^o  eie  tres  lioras  mandavamos  para  a 
terra  urna  ceiitena  de  liomens  e  todo  o  material  que 
iios  pertencla. 

Estavamos  decididamente  no  Continente  Negro,  ur- 
gia  proceder  a  moda  do  mato. 

Foi  o  que  se  fez. 

Depois  de  se  construir  o  acampamento  n'uma  emi- 
nencia  e  de  nos  certificar  que  na  proxima  lagoa  liavia 
agua,  embora  sulplmrosa,  pozemos  tudo  em  ordem,  e 
])ebendo  um  copo  de  vinlio  à  saude  de  Capello,  que 
n'esse  dia  completava  o  seu  quadragesimo  terceiro 
anno,  despedimo-nos  dos  sympathicos  officiaes  da  cor- 
veta,  que,  voltando  para  o  mundo  que  pensa,  nos  lan- 
^avam  um  ultimo  olliar  de  amigavel  interesse. 

Entràra  a  noite,  e  recolhendo-nos  as  pequenas  ten- 
das  fomos  buscar  no  somno  um  allivio  para  as  fadigas 
do  dia,  emquanto  a  corveta,  fiizendo-se  ao  rumo  do 
norte,  desapparecia  nas  brumas  escurecidas. 

Profundo  socego  envolvéra  o  acampamento.  Està 
sombria  regiao,  destituida  de  liabitadores  humanos  e 
apenas  visitada  pelos  corvos,  que  coni  o  seu  grasnar 
quebram  pelo  dia  o  encanto  do  mutismo  naturai,  e  de 
noite  pela  hyena  e  outras  feras,  cujos  liabitos  se  ac- 
commodam  com  a  solidao  perturbando  o  silencio,  tem 
o  quer  que  seja  de  tetrica  e  pavorosa. 

Pelo  immenso  arcai  afóra  nem  a  brisa  encontrava 
onde  rumorejar,  e,  fugindo  pressurosa  em  meio  das 
planuras,  fa  talvez  para  as  arvores  longinquaS  ciciar 
nas  rarnagens,  em  pungentes  queixumes,  a  aridez  do 
deserto ! 


92  De  Ampia  d  contra-costa 

E  a  nossa  imagina^ao,  dominada  por  està  scena,  es- 
candecida  pelo»  calores  do  dia  e  cuidados  do  àmanha, 
fugia  bidÌ90sa  ao  somno,  atirando-nos  irrequieta  às 
mais  estranhas  considera^oes. 

Ali  estavamos,  sós,  separados  de  tudo  e  todos,  es- 
tranhos  aos  ruidos  do  mundo,  para  dar  comedo  a  urna 
empreza,  que  ninguem  podia  dizer  onde  nos  levaria. 

Quando,  sem  querer  o  pensamento,  comò  que  para 
nos  castigar,  fugia  até  ao  Indico,  e,  perpassando  sobre 
08  vastos  territorios  africanos,  lembrava  a  sua  gran- 
deza,  as  convulsoes  que  llie  atormentiim  a  superficie, 
OS  rios,  OS  lagos,  as  luctas  emfim  que  nos  esperavam, 
nós,  erguendo  meio  corpo  na  bragata,  e  mirando  tudo 
em  redor,  sentiamos  uma  especie  de  desalento,  e  cal- 
culavamos  a  pequenez  das  nossas  for^as. 

E  que  apesar  de  tudo  o  homem  é  um  pygmeu,  e, 
embora  saiba  que  pequenos  esfor^os  reunidos  podem 
produzir  uma  grande  for9a,  amargarlhe  sempre  a  no- 
(^ao  do  tempo,  aterra-o  o  convivio  d'essa  fatai  compa- 
nheira  em  todas  as  emprezas — a  incerteza. 

Mas  prosigamos  no  que  importa. 

Por  numerosas  rasoes  haviamos  escolhido  para  pon- 
to de  partida  Pinda,  logar  meridional  da  provincia,  e 
d'ellas  vamos  dar  aqui  rapida  idèa. 

1.*  Sendo  de  ha  muito  costume  transpòrtar-se  a 
Benguella  todo  aquelle  que  deseja  transitar  para  o 
interior,  acontece  que  as  grandes  zonas  e  caminhos 
do  sul  téem  sido  esquecidos,  e  os  sertoes  por  onde 
elles  cortam  mais  ou  menos  ignorados. 

2.*  Succedendo,  em  geral,  serem  os  individuos  que 
o  viajante  comsigo  leva  engajados  no  norte,  o  facto 


Primeiros  passos 


93 


de  transportal-09  para  o  sul  parece  que  devia  evitar 
deser^Ses. 

3.'  A  Buavidade  do  clima  era  urna  garantia  do  suc- 
cesso, porque,  sendo  mais  graduai  a  adapta^So  do  eu- 
ropeu,  Ihe  consente  ir  mais  louge  scm  o  castigo  da 
febre. 


4.'  Intercssando-nos  corrw  diagonalmente  o  gran- 
de districto  de  Mossamedes,  e  visitando  o  Humbe 
conbecer  do  grau  de  facilidade  do  percurso  até  ao 
Zambeze,  ainda  Pinda  ou  qiialquer  ponto  no  sul  nos 
punlia  em  mcllior  medida  de  o  fazer. 


94  De  Angola  d  controH:osta 

5/  Emfiiii,  o  reconhecimento  do  curso  do  Coróca, 
e  o  acertar  se  este  rio  tiiilia  ligacjao  com  o  Cuncue, 
corno  suppunhamos  e  se  vera  pela  descripcjào  adiaii- 
te,  era  ainda  urna  rasao  a  additar. 

Eis  o  que  se  aclia  em  nosso  diario  : 

ccMuitas  iiifomiacjoes  nos  levam  a  crer  que  o  rio 
Coróca  tein  pelo  sueste  urna  commiinica<;ao  com  algum 
rio,  por  damha^  ou  valla,  que  em  outros  tempos  dava 
talvez  regular  vasào  às  aguas,  e  agora  se  toriiou  perio- 
dica por  estar  em  parte  obstruida,  so  dando  passagem 
a  està  iias  clieias  exageradas. 

«E  se  atteiitarmos  em  que  toda  a  zona  entre  a 
bahia  dos  Tigres  e  o  Cmiene  e  constituida  por  areias 
soltas,  e  que  os  ventos  ali  predominantes  sao  do  susu- 
doeste,  facilmente  poderemos  comprehender  que,  j un- 
tando-se aquellas  conduzidas  peloar  ao  constante  tra- 
ballio das  aguas,  conseguiriam  ao  fim  de  um  tempo 
qualquer  embara^ar  o  cursQ  que  primitivamente  li- 
gava  o  Cunene  (?)  ao  Coróca,  fazendo  com  que  este 
fosse  uma  das  suas  embocaduras.  Assim  se  explica- 
riam  as  extraordinaria s  clieias  do  ultimo  e  a  falta  de 
aguas  na  barra  do  primeiro.  » 

Por  todos  estes  motivos  escolhemos  Pinda  corno 
ponto  inicial  da  partida,  convictos  de  que  alii,  melhor 
podendo  dominar  a  gente,  e  resolver  os  problemas  que 
primeiro  interessavam,  maior  somma  de  garantia  de 
exito  teriamos  para  os  trabalhos  a  effectuar-se. 

Mas  0  ìiomem  pòe  e  Deus  dispoe,  diz  o  popular  rifòo, 
e  beni  verdadeiro  e  elle  por  vezes,  pois  breve  vamos 


1  Damhay  rio  cujo  curso  se  couserva  secco  na  estiagem. 


Primeiros  passos  95 

ver,  corno,  apesar  de  toda  a  do^ura  e  perseveranza 
empregadas  com  o  lim  de  persuadir  os  nossos  com- 
panlieii'os  a  essa  submissao  que  elles  descoiiheciam, 
mas  fatalmente  necessaria;  apesar  de  todo  o  esforijo 
para,  sem  rigor  ou  prepotencia,  tornal-os  de  selva- 
gens  em  homens,  elles,  enganando-nos,  tudo  lam  com- 
promettendo, comò  expozemos  no  comezo  do  presente 
capitulo. 

Erguendo-nos  com  a  aurora  do  dia  seguinte,  reco- 
Ihemo-nos  com  o  occaso,  despendendo  o  espazo  de 
tempo  que  mediou  entre  os  dois  phenomenos,  com 
uma  serie  de  observa^oes  astronomicas,  magneticas  e 
meteorologicas,  a  que  acrescentàmos  uma  excursào 
geologico-botanica  e  uni  exercicio  geral  de  tiro  ao 
alvo. 

Ao  terceiro  dia  abalàmos  areiaes  afóra,  em  procura 
da  fazenda  de  S.  Bento  do  Sul,  e  escorrendo  em  suor 
por  causa  do  excessivo  calor,  ali  cliegàmos  ao  anoi- 
tecer,  depois  de  percorridas  17  loìiyas  milhas,  pelo  leito 
do  rio  Coróca,  n'esta  quadra  completamente  secco. 

0  aspecto  do  paiz  conservou-se  o  mesmo.  Eis  o 
que  d'elle  podemos  dizer: 

Imagine  o  leitor  um  vasto  terreno  pouco  alto  e  for- 
mado  por  soltas  e  dispersas  dunas,  tendo  pelo  norte  e 
a  partir  da  costa  em  10  milhas  de  extensào,  uma  fa- 
cha  arenosa  e  lisa,  que,  correndo  a  leste,  constitue  o 
leito  de  um  rio  sem  gota  de  agua  ;  acompanhe  a  banda 
opposta  por  mais  elevado  cordao  em  todo  o  dito  per- 
curso,  arido  e  secco  comò  a  bacia  de  que  vos  fallà- 
mos;  volva,  ao  cabo  das  milhas  indicadas,  està  ordem 
de  cousas  ao  rumo  de  sul;  pare  no  fim  de  5  ou  6  mi- 


96  De  Aìigola  d  conti^a-^osia 

llias  junto  de  umas  edifica(;oes  quadrangulares  de  ado- 
be,  algumas  vermelhas,  outras  caiadas,  assentes  corno 
ao  acaso  sobre  o  plano  esteril  que  constitue  està  re- 
giao,  e  terà  idèa  approximada  da  terra  vista  por  nós 
da  costa  até  S.  Sento. 

Os  caracteres  geologicos  da  zona  foram  ligeiramen- 
te  estudados.  Antigo  fundo  do  mar,  està  rcgiao,  co- 
berta  por  inteiro,  emergiu  formando  a  linha  litoral. 

Tudo  indica  ser  uma  forma^ào  terciaria  que  a  des- 
coberto  se  aclia  na  linha  da  costa  n'este  parallelo.  A 
superficie  encontra-se  um  calcareo  silicioso,  compacto 
e  cinzento,  cortado  de  vincidos  de  quartzo  e  silex  cin- 
zento  atravessado  por  estes  sub-parallelamente,  que, 
representando  certos  accidentes  do  mesmo  calcareo,  se 
aclia  disperso  em  calhaus  à  superficie  do  solo  e  n'uma 
altitude  de  40  e  50  metros  acima  do  mar. 

Este  é  constituido  por  grès  muito  fino  argillo-calca- 
rifero,  de  cor  amarellada  (molassa?)  e  por  um  calcareo 
argillo-arenoso  compacto,  encliendo  moldes  de  Car- 
dium  do  typo  de  Cahians,  Brocchi,  etc. 

Encontra-se  um  outro  duro  concrecionado  stalacti- 
tico,  com  fi'agmentos  de  quartzo  e  pequenos  calhaus 
rolados  de  quartzite  avermelhada;  para  o  interior  e 
mais  amarello  e  terroso,  achando-se  empregnado  de 
crystaes  de  talcite,  onde  conchas  petrificadas  foram 
substituidas  por  està,  e  sao  dos  generos  Natica,  Nassa, 
Bucdnum  ou  Ehuima  e  Ostreas,  todas  de  pequena  es- 
tatura; e  mais  uma  outra  recente  do  genero  Achatina; 
e  eis  quanto  sobre  o  caso  podemos  dizer. 

Os  habitantes  d'està  pobre  zona  denominam-se, 
segundo  nos  informam,  ba-ximba,  ba-coróca  e  ba- 


Primeiros  paasos  9  7 

coanhóca,  parecendo  que  estes  sào  descendentea  de 
cubaes,  em  outro  tempo  viiidos  dog  Gambos. 

A  sua  simples  inspec^So  e  lingiiagem  evìdenciam 
logo  estarmos  entre  gente  quo  proximas  i*ela(;5e8  de 
parentesco  deve  ter  coni  as  tribus  do  sul,  iato  é,  entre 


individuos  d'essa  grande  famìlia  que  algiins  auctores 
designam  genericamente  por  a-bantu,  e  que  compre- 
bende  no  sul  OS  dàmara  e  os  ovambo;  tem  perto  [oa 
ba-tchuana,  e  para  o  oriente  o  grande  grupo  ama-zulo 
e  ama-xoza,  assim  corno  a  iufinìdade  de  tiibus  do  sul 


98  De  Angola  d  contra-costa 

e  margens  do  Zambeze.  conhecidas  por  ba-nhungue 
(Tete),  ban-sua  (Zumbo),  ma-bzite  (Landim),  ba-tonga, 
ba-nhiai,  ba-zizulo,  ba-tóca,  ma-chona,  ba-senga,  ba- 
rara,  ba-renguc,  ma-cololo,  ba-rounda,  ba-góa,  etc. 

Um  facto  multo  digno  de  notar-se  n'estes  povos 
é  o  celebrado  clic/ite  dentai,  que  eivando-llies  a  Hn- 
giiagem,  estala  em  todas  as  suas  phrases,  ferindo  o 
ouvido  do  viajante  e  levando  a  crer  que,  erabora  nào 
seja  està  urna  variante  da  lingua  nama  ou  córa  dos 
habitadores  de  Namaqua  e  terras  do  sul,  tem  seni  em- 
bargo muitos  termos  d'ella.  A  numera9ao  diflFere  tanto 
das  linguas  do  iiorte,  que  devemos  pol-a  aqui  para  dar 
unia  idea  *. 

Singelos  pastores,  raras  vezes  cacando,  fazem  con- 
stituir  a  sua  fortuna  em  algumas  duzias  de  cabeijas  de 
gado.  Um  sordido  panno  na  cinta,  um  bordào  ou  za- 
gaia  na  destra,  e  um  mólho  de  amuletos,  paus  e  bu- 
zios  ao  pesco9o,  juntos  a  iiadas  de  missanga,  consti- 
tuem  a  suprema  distincijao. 

A  sua  pelle  é  extremamente  retinta,  untam  com 
manteiga  os  cabellos,  comò  os  ban-dombe  do  norte, 
amassando-os  por  maneira  que  o  penteado  parece 
uma  verdadeira  caba9a  ! 

As  mulheres,  em  geral,  sao  horrorosas,  aggravando 
este  desfavor  da  natureza  com  enfeites  de  missanga 


i  Um  (r^'ui).  Dois  (Tz'ana),  Tres  (Dato).  Quatro  (Na).  Cinco  (Ta- 
ne). Seis  (Tz'umho),  Sete  {Tz'aìo),  Oito  (Sebereto).  Nove  (Moia).  Dez 
(Mola).  Onze  (rz'ui-sófa).  Doze  (Tz^ui-ana).  Treze  (Datui'a).  Quatorze 
(Nei'a).  Quinze  (Tamud'a).  Dezeseis  (Nemora).  Dezesete  (7z*ai-nhoba 
ou  Tuainhoba).  Dezoito  (Tz'ui-munho  ou  Sebereto).  Dezenove  (Mola- 
mola).  Vinte  (Tz'ui-mola). 


Pnmeiros  passos  9  9 

em  redor  do  pesco90  e  rins,  o  que  llies  dà  grotesco 
aspecto. 

Pouca  estima  parece  terem  os  homens  por  ellas,  ou 
melhor  estao  n'estes  inteiramente  adormecidos  os  mais 
elementares  sentimentos  de  dignidade,  pois  conside- 
ram  o  adulterio  comò  um  negocio  que,  se  o  esposo  sus- 
peita  ou  tem  provas  cabaes,  nao  pensa  em  castigar, 
mas  ao  contrario  faz  volver  em  seu  proveito. 

Assim,  ao  ter  noticia  do  facto,  é  quem  primeiro 
dà  rebate,  accusando  perante  a  tribù  o  individuo  que 
pretende  espoliar,  o  qual,  provando-se  o  crime,  paga 
pelo  menos  um  boi. 

0  curioso,  porém,  é  que  a  circumstancia  de  liaver 
satisfeito  està  imposÌ9ao  confere  de  futuro  ao  espolia- 
do  o  direito  de  se  introduzir  em  casa  da  sua  adorada 
quantas  vezes  quizer.  De  maneira  que  se  apontam 
esposos,  possuindo  manadas  de  gado  que  as  pegueni- 
ThOLS  faltas  das  levianas  companheiras  augmentam  dia 
a  dia,  o  qual  dariam  de  bom  grado  para  poderem  um 
momento  ter  ingresso  no  proprio  domicilio! 

Os  ba-coróca  nao  sepultam  os  mortos,  contentan- 
do-se em  lan^al-os  nos  vallados,  onde  as  feras  téem 
pela  noite  o  cuidado  de  os  fazer  desapparecer. 

Logo  que  um  infeliz  està  para  morrer  prepara-se 
tudo  na  habita^ao,  escolliendo-se  dez  homens  dos  mais 
possantes  da  tribù,  para  serem  empregados  na  obra  do 
seu  afastamento.  Estes  aguardam  o  instante  em  que 
elle  exhale  o  ultimo  suspiro,  e  quando  d'isso  se  con- 
vencem,  envolvem-no  n^um  panno,  que  ajustam  e 
amarram,  pegando-lhe  um  dos  dez,  e  abalam  por 
determinado  caminho. 


100  De  Angola  d  contro-costa 

Seguem-no  em  Hnha  os  restantes. 

Percomdo  um  certo  espa^o  de  caminho,  faz  o  da 
frente  signal,  e  o  que  se  Ihe  segue  approxima-se,  re- 
cebendo  d'elle  o  cadaver,  e  quem  se  libertou  do  fardo, 
volvendo-lhe  as  costas,  parte  a  correr  desordenada- 
mente  para  a  retaguarda,  iiao  devendo  urna  so  vez 
voltar  OS  olhos! 

Por  seu  turno  o  segundo,  ao  cabo  de  algims  pas- 
sos,  faz  signal  ao  terceiro,  e  assim  vao  successiva- 
mente até  ao  ultimo,  que,  completo  o  seu  caminho, 
joga  à  terra  o  corpo,  safando-se! 

Quando  o  defunto  é  pessoa  de  considera9ao,  comò, 
por  exemplo,  *  soba,  segue-se  processo  em  quasi  tudo 
analogo,  diflFerindo  so  na  circumstancia  de  ser  este 
envolvido  n'uma  pelle  de  boi  preto,  morto  para  a  oc- 
casiao,  cuja  carne  nào  póde  ser  comida  por  pessoa 
alguma,  devendo  por  isso  lan^ar-se  fora. 

É  notavel  a  coincidencia  d'este  proceder  com  o  que 
diz  sir  J.  Lubbock  no  Homme  avant  Vhistoire,  quando 
falla  do  tumulo  de  Treenhoi,  na  Jutlandia,  e  que  diz: 
«  onde  o  guerreiro,  envolvido  nos  seus  pannos,  se  acha 
encerrado  n'uma  pelle  de  boi  » . 

Ao  inquirirmos  por  que  devia  o  boi  ser  preto,  res- 
poftderam-nos  :  poi^que  é  conio  o  sóba;  rasao  extraordi- 
naria que  nada  explica,  e  nós  julgàmos  ser  preferido 
por  se  tornar  mais  facil  adquirir  para  o  rebanlio  bois 
d'aquella  cor. 

Huca  ou  Suca  é  tambem  de8Ìgna9ao  por  elles  dada 
quando  inquiridos  de  comò  chamam  a  Deus.  Zuaria, 
que  era  o  mu-coróca  interrogado,  riu-se  quando  quize- 
mos  sobre  o  caso  adiantar  mais  alguma  cousa,  fazendo 


Prìmdros  passos 


101 


logo  confusilo  com  o  sol,  dcmonstrando  claramcnte  que 
a  aimilhante  termo  nao  andava  ligada  idèa  alguma  bo- 
bre  o  Creador. 

Praticam  os  ba-coróca  a  circumcisào,  e  o  que  se  tor- 
na notavel  é  que  a  fazem  quando  jà  proximoa  da  vi- 


-^^. 


t 


rilidade.  Emquanto  adolescente  conliece-se  o  nào  cir- 
cumciso  por  urna  faclia  de  cabello  no  alto  da  cabc^a, 
da  nuca  ^  testa,  sendo  o  resto  rapado,  fónna  extrava- 
gante que  aó  abaudonam  depois  do  dia  da  operaijSo 
para  deixarem  inteira  a  trunfa,  que,  invariavelmente 


102 


De  Angola  d  co7itrar<osta 


untada  com  a  jà  refenda  manteìga,  umas  vezes  aper- 
tam  com  estreita  correla  por  cima  das  orelhas,  outras 
mettem  inteira  na  panqa,  limpa  e  preparada  de  um 
boi! 

E  apto  o  terreno  d'aqui  para  a  cultura  do  algodao, 
batata,  milho,  sorgilo,  etc,  sendo  para  lamentar  que 
as  prolongadas  estiagens  aniquilem  em  certos  annos 
08  esforijos  dos  agricultores. 

Estudo  attento  das  lagoas  existentes,  assim  comò 
um  traballio  de  reprezas  e  po^os,  poderia  talvez  obviar 
a  parte  d'estes  males. 

A  nossa  chegada  a  este  logar  foi  saudada  dois  dias 
depois  por  uma  desercjao  em  massa  de  todos  os  co- 
rócas  da  localidade,  e  isto  pela  s^ngela  causa  de  que, 
solicitando  do  soba  uns  vinte  carregadores  para  nos 
levarem  mantimentos  até  ao  Cunene,  este  declarou 
que,  nós  iriamos  certamente  morrer,  pois  nunca  pes- 
soa  alguma  ali  fora. 

Isto  foi  sufficiente,  com  uns  additamentos  que  a 
imagina9ào  gentilica  costuma  condimentar  facilmente 
com  pavores,  para  que  os  espiritos  dos  nossos  come- 
^assem  a  incitar-se. 

Era  infallivel  a  morte,  a  seu  ver,  e  radicando-se-llies 
no  espirito  està  convic9ao,  todos  viam  jà  o  réspectivo 
esqueleto  branqueado,  marcando  no  arcai  uma  agonia 
de  mais  e  uma  vida  de  menos! 

Comprehendendo  com  muito  boas  rasoes  que  qual- 

.quer  demora  podia  ser-nos  nociva,  aggravando  uma 

situa9ào  jà  de  si  tao  sèria,  dèmos  aos  nossos  o  signal 

de  leva-<irriba,  e,  coadjuvados  por  alguns  homens  do 

estimavel  proprietario  d'ali,  o  sr.  Emygdio  de  Figuei- 


Primeiros  passos  103 

redo,  abalàmos  rio  acima,  escrevendo  o  que  se  segue 
em  nosso  diario: 

«O  terreno,  ao  principiò  plano,  torna-se  a  3  mi- 
Ihas  adiante  ffagoso,  embrenhando-nos  por  entre  pe- 
nedias  recortadas  em  sentidos  diversos  e  que  devem 
nas  chuvas  originar  urna  damba. 

«O  seu  aspecto  indica  sereni  cohstituidas  pelo  gneiss 
e  schisto  amphlbolico  ;  welwitchias  e  eupliorbias  con- 
stituem  a  vegeta9ao  da  terra  mais  elevada,  de  envolta 
com  toros  de  resequido  capim,  tra^ado  pelo* dente  dos 
antilopes,  o  qual  reverdece  às  primeiras  aguas. 

«Na  margem  do  rio  uma  graminea  mais  elevada, 
similhando  o  Ainmdo,  e  uma  leguminosa  arborescente, 
Acacia  albida,  à  mistura  com  esse  supposto  cedro  Ta- 
marix  articidaia,  entrela9am  os  seus  ramos  à  beira  da 
agua,  que  as  depressoes  represaram,  d'onde  emergem 
Hyhpcenes.  Leoes,  gazellas  comò  uma  de  barriga  e 
lombo  branco,  A.  euchore;  antilopes  comò  o  galengue, 
Oryx  gazella^;  o  unjiri,  Sterp.  cudù,  cuja  femea  des- 
provida  de  hastes,  tem  longas  orelhas  comò  o  burro, 
percorrem  està  zona  à  procura  de  alimento  e  agua. 

«Um  macaco,  cuja  pégada  nao  tem  menos  de  12 
centimetros,  de  grande  cauda  e  pello  fulvo,  que  sup- 
pomos  ser  um  cynoceplialo,  por  causa  de  arremetter, 
segundo  disseram,  encontra-se  aqui. 

«Um  pequeno  quadrupede,  a  que  os  indigenas  clia- 
mam  maboque,  talvez  uma  genetta,  vive  nos  penedos, 
em  abundancia. 


r 

1  £  o  galengue  na  fóruia  tal  corno  o  gcmsbok  ;  sóineute  julgàmol-o 
differir  um  pouco  na  cor,  que  é  castanha  clara. 


104  De  Angola  d  controncosta 

«Aves  sao  numerosas,  sendo  para  notar  o  grande 
numero  e  variedade  de  patos. 

«0  pato  ferrao,  Plectropterus  (/ambensis;  o  pato  com- 
muni, Poedlonetta  erythrm^hyncha;  o  Spatulata  capen- 
sis;  o  Querquedula  hottentota;  o  Thalassiomis  leuccniotay 
o  Deadorocygna  viduaia;  sao  outras  tantas  especies  de 
que  nos  occorre  fallar. 

«Vé-se  ainda  o  flamingo,  Pìioenicopterus  efì^ythrocus ; 
o  pelicano,  que  os  pretos  chamam  quiciia,  Pd.  rufes- 
cens,  com  a  sua  poupa,  e  a  bolsa  gutural  amarella; 
pemaltas,  especie  de  gar^as,  Herodias  alba  e  Herodias 
intermedia,  que  associadas  andam  n'esta  epocha;  o 
gallo  das  pedras,  a  que  os  naturaes  chamam  tiatra, 
Saoricola  leucomelaenor-nioniicola,  talvez  nao  conhecido 
scientificamente  n'esta  zona;  uma  pequena  rolla  de 
longa  cauda  e  peito  preto,  cliamada  tondul-lo,  Oena 
capensis;  um  milharuco,  Merops  superciliosus ,  de  com- 
prido  bico  e  verde  plumagem;  emfim,  voam  tambem 
aqui  OS  corvos  e  as  pintadas,  de  que  ha  duas  varieda- 
des,  bem  comò  na  costa  um  coi'vo  marinho,  Graculus 
luddus.  » 

Emquanto  nós  socegados  no  acampamento,  onde  ti- 
nhamos  chegado  às  ciuco  horas,  escrevendo  estas  linhas 
e  fechando  de  manso  o  diario,  nos  preparavamos  des- 
cuidosos  para  a  refeÌ9ao  improvisada  em  curto  espa^o 
de  tempo,  um  facto  bem  grave  se  dava  no  conce  da  co- 
mitiva, que  ainda  atrazada  pelo  tempo  nao  recolhéra. 

E,  inconscientes,  sem  de  leve  suspeitarmos  o  com- 
promettimento  por  que  estavam  passando  nossos  inte- 
resses,  ao  anoitecer,  pelas  oito  horas,  acrescentavamos 
no  diario: 


s 


Primeiros  passos  105 

«E  singnlar,  faltam  quarenta  e  dois  homens  com  as 
respectivas  cargas,  que  embora  se  tivessem  atrazado 
pelas  horas  de  inaior  calor,  jà  tinham  tempo  de  sobra 
para  chegar.  Cansados,  nao  tiveram  forcjas  para  arras- 
tar-se  até  aqui,  e,  acampando  no  primeiro  logar  apro- 
priado  que  encontraram,  so  pela  manhà  apparecerao.  » 

Cerrou-se  a  noite.  Estirados,  tendo  a  abobada  ce- 
leste por  tecto  e^uma  fogueira  por  manta,  pois  as  tendas 
vinham  na  retaguarda,  adormecemos  n'aquelle  somno 
consequente  da  fadiga,  e  proprio  de  urna  saude  sa  e 
robusta,  levanda  de  um  folego  todas  as  horas  do  escu- 
ro. E  so  quando  o  sol,  com  a  sua  aureola  gloriosa, 
come^ou  de  espargir  pelos  espa90s  torrentes  de  luz, 
animando  e  enchendo  de  mil  ruidos  o  ambito  enrege- 
lado,  é  que  nós,  descerrando  as  palpebras,  compre- 
hendemos  que  urgia  levantar. 

Durante  tres  longas  horas  esperàmos  a  gente  que 
atraz  ficàra,  dominados  por  aquelle  anceio  que  ator- 
menta e  mortifica  quem  espera;  até  que  a  final  resol- 
vemos  mandar  em  sua  procura  o  chefe  e  dois  homens 
de  mais  confiancja,  ordenando-lhes  que  sem  perda  de 
tempo  obrigassem  taes  mandrioes  a  caminhar. 

Bem  pouco  haviam  elles  mandriado,  ao  que  parece! 

Mais  duas  horas  ainda  decorreram;  jà  o  sol,  abei- 
rando-se  do  zenith,  escaldava  a  tudo  e  a  todos  com  os 
seus  fi:ementes  raios,  e  o  naturai  quebramento  nos 
convidava  a  repousar  &  sombra  de  um  proximo  espi- 
nheiro,  quando  subito  ruido  entre  os  nossos  nos  cha- 
mou  a  atten^ao  para  as  bandas  do  norte. 

Tres  vultos  ao  longe  avan^avam  azafamados  por 
meio  do  areal. 


PS 


106  De  Angola  d  contro-costa 

As  duvidas  que  nas  ultimas  horas  tinham  domina- 
do  o  nosso  espirito  come9avain  a  fortalecer-se,  e  um 
presentimento  qualquer  nos  dizia  que  se  iam  tornar 
em  certeza;  esperàmos  ainda  um  momento,  approxi- 
mam-se;  jà  se  Ihe  véem  as  caras,  todos  Ihe  miram  o 
olhar,  com  o  intuito  de  por  elle  poderem  alguma  cousa 
concluir;  cliegaram. 

— Entao?  onde  està  a  gente? 

Fugiu  tudo,  senhores!  No  meio  do  campo  jazem  os 
fardos  abertos,  tendo  parte  do  conteiido  roubado  de 
misturk  com  caixas  partidas,  sextantes  e  theodolitos 
dispersos.  E  uma  confusao  tal,  que  so  à  vista  podem 
apreciar. 


CAPITULO  III 


NA  REGIAO  LITORAL 


Mossainedes — Breve  iioticia  sobrc  a  historia  da  sua  funda^tlo — Clima, 
consti tui^ao  geologica  e  vegeta^So — Tribus  indigenas — Habita^oes— 
Urna  marcha  vertiginosa — Cincoenta  cquatro  milhas  em  vinte  e  cinco 
horas — Urna  necessaria  refei^ilo  e  o  encontro  dos  fugitivos — De  novo  no 
rio  Coróca — Noticia  sobre  cstc  —  Suas  margens — Fadiga  da  marcha — 
Urna  chela — A  solidSo  e  os  animaes  silvestres — Regresso  a  Mossame- 
dcs — Partida  definitiva  para  o  sertìio — A  geologia  e  os  odres  -  0  pri- 
meiro  bao-bab — A  aridez  do  paiz  e  recuas  de  zebras — A  couag-ghaV — 
Depositos  de  agiia — Fedra  Pequena — Fedras  Grande  e  Maior — Nestor, 
0  ca9ador  de  leoes — Urna  morte  ridicala  e  urna  visita  inesperada — A 
agricultura  no  districto  e  a  villa  de  Capangombe — A  fortaleza  e  duas 
considera^oes  geologicas. 


■s 


Em  1785,  Bendo 
govcrnador  goral  de 
Angolii  José  de  Almeìda 
-  n  Vasconcellos,  barSo  de  Mossa- 

^^  'X  medert/orgaiiisaram-se  na  capital 

da  provincia  duas  expedi^òcs,  coni  o  proposito  de  es- 
tudarem  "  as  ten-as  que  do  districto  'de  Bcnguella  se 
estendiam  para  o  sul. 

A  primeira,  devendo  ser  intentada  por  mar,  foì 
commettida  ao  coronel  Luiz  Candido  Cordeiro  Pinhei- 
ro  Furtado,  que  para  esse  firn  recebeu  n'um  navio 
equipado  e  prompto  tudo  o  que  podia  necessitar. 

A  segunda,  cujo  firn  era  proseguir  para  as  terras 
do  interior  e  ahi  fazer  o  rcconhecimento  completo 
dos  sertSea  do  sul,  foi  ctJnfiada  a  Gregorio  José  Men- 


110  De  Angola  d  contro-costa 

des,  homem  assàs  conhecido  e  respeitado  na  provin- 
cia. 

Partindo  em  desempenho  do  servÌ90  que  Ihes  havia 
sido  commettido,  proseguiram  por  mar  e  terra  respe- 
ctivamente  para  o  sul,  indo  encontrar-se  na  ampia 
bahia  que  ao  tempo  era  conhecida  pela  denominammo 
de  Angra  do  Negro. 

Ahi  installados,  e  depois  de  a  haverem  baptisado 
com  o  nome  de  bahia  de  Mossamedes,  em  honra  do 
goveniador  geral,  comemaram  de  entabolar  rela^oes 
com  OS  indigenas,  no  intuito  de  os  trazer  à  submissào 
e  recónhecimento  da  nossa  soberania. 

Nào  julgàmos  que  tivessem  completo  exito  os  tra- 
balhos  d'està  expedimao,  alias  tao  bem  organisada, 
a  qual  se  assignalou  pela  lamentavel  perda  do  tenente 
Sepulveda,  do  cirurgiào  do  navio  de  Pinheiro  Furtado, 
e  mais  dois  marinheiros  assassinados  pelos  indigenas, 
rasào  por  que  se  deu  ao  rio  Bero  o  nome  de  rio  dos 
Mortos. 

Em  todo  o  caso,  desde  essa  epocha  para  cà,  os  so- 
bas  do  Dombe,  do  Giraul,  do  Quipolla  e  Coróca  fica- 
ram  conhecendo  os  novos  senhores  da  vasta  regiao 
onde  habitavam,  e  iniciados  na  formosa  necessidade 
de  se  considerar  em  vassallos  do  rei  de  Portugal. 

Passaram  depois  largos  annos  sem  mais  se  pensar 
na  Angra  do  Negro,  que  apenas  era  visitada  por  algum 
baleeiro  desgarrado  que  vinha  ali  fazer  a  aguada,  até 
que  em  1839,  sendo  govemador  de  Angola  D.  Antonio 
de  Noronha,  enviou  duas  novas  exi^edi^oes  a  Mossa- 
medes, uma  por  mar  na  escima  Izabel  Maria,  sob  o 
commando  do  primeiro  tenente  Pedro  Alexandrino  da 


Na  regiào  litoral  111 

Cunha,  que  mais  tarde  tambem  govemou  aquella  pro- 
vincia, e  outra  por  terra,  sob  a  direccjSo  do  major 
Garcia. 

Datam  d'este  tempo  os  verdadeiros  trabalhos  para 
a  colonÌ8a9ào  e  dominio  d'aquella  regiào,  que,  pela 
sua  distancia  da  capital  e  arido  aspecto  talvez,  a  tinha 
feito  tanto  tempo  esquecer.- 

Em  1840  decidiu-se  construir  o  forte  de  Ponta  Ne- 
gra, assim  comò  se  assentaram  os  fundamentos  de 
uma  villa,  estabelecendo-se  ahi  uma  feitoria  dirigida 
por  dois  negociantes  Jacomo  Filippe  Torres  e  Antonio 
Joaquim  Guimaraes,  e  pouco  depois  foi  està  terra  colo- 
nisada  por  gente  vinda  da  Madeira  e  do  Brazil,  que 
a  4  de  agosto  do  anno  de  1845  n'ella  se  installou 
definitivamente. 

D'ahi  para  cà  Mossamedes  tem  progredido  por  ma- 
neira,  que  é  hoje  um  dos  logares  mais  pittorescos  e  im- 
portantes  da  costa  do  ceste. 

0  seu  clima  suave  e  temperado;  as  brisas  que  a 
refi'igeram,  devidas  à  influencia  da  corrente  oceanica 
que  vinda  do  cabo  da  Boa  Esperan9a  parallelamente 
à  costa  sob  ellas  passa;  as  vi^osas  hortas  que  a  cir- 
cumdam,  contrastando  com  a  aspereza  das  encostas 
e  planicies  em  redor,  attrahem  ali  quantos  individuos 
pretendem  restabelecer  a  saude  deteriorada  pelos  ca- 
lores  do  norte,  e  mostra  bem  quanto  tem  podido  a 
vontade  d'esse  punliado  de  homens,  que,  ao  entrarem 
em  tal  terreno,  o  encontraram  quasi  deserto  e  percor- 
rido  de  quando  em  quando  por  salteadores.  Raras  sao 
as  febres  de  grave  caracter,  apenas  as  intermitten- 
tes,  quando  inunda  o  Bero,  atacam  a  imi  ou  outro,  e 


112  De  Angola  d  contro-costa 

ainda  as  cephalalgias  e  conjunctivites  sao  frequentes, 
corno  as  ophthalmias,  derivadas  do  reverbero  da  luz 
nas  areias. 

Acerca  da  constitui^ao  geologica  de  Mossamedes 
pouco  diremos  por  se  terem  perdido  parte  dos  exem- 
plares  que  alcaiKjàmos  n'aquella  regiào,  dando  isto 
logar  a  que  ao  nosso  sabio  amigo  e  distincto  geolo- 
go o  sr.  Nery  Delgado  se  tornasse  impossivel  fazer 
qualquer  traballio  proficuo  a  respeito  d'ella. 

Eis  OS  unicos  elementos  que  encontrou  relativa- 
mente d  baliia  de  Mossamedes,  à  costa  do  sul  da 
ponta  do  Noronha  e  à  bahia  dos  Elephantes  no  uorte. 

Mossamedes: 

Grès  calcarifero  amarello  (molassa),  com  moldes  de 
bivalvas,  provavelmente  da  epocha  terciaria^  eviden- 
ziando o  mesmo  deposito  que  nas  margens  do  Coróca, 
bem  comò  um  silex  pyromaco. 

Ao  sul  da  ponta  do  Noronha,  150  metros  de  altltude: 

Grès  grosseiro  amarello  de  cimento  calcareo,  pro- 
vavelmente terciario.  Conchas*  recentes  dos  generos 
Lespula,  "  Conus  ou  Erato,  Purpura  ou  Caiicellaria, 
Fusus?  Puirpura  (subgenero  Thalessa),  Patella,  Caly- 
ptraca  (proxima  de  C.  trochiformis,  Grat.),  Arca  senilis. 
Nota-se  serem  as  especies  iguaes  às  da  baliia  dos  Ele- 
phantes. 

Bahia  dos  Elephantes,  170  metros  de  altitude: 

Conchas  recentes  dos  generos  Phorus,  Triton  (T. 
succintum,  Lank.J  Patella,  (duas  especies  de  P.  Lusi- 
tanica,  Gmchin  e  P.  coerulea  Linn,),  Calyptroea  (simi- 
Ihante  a  C.  trocJiifonnis,  Grat.),  Area  senilis,  Linn, 
(Senilia  senilis,  Gray)  e  Ledila  sps. 


Na  regiào  litorol  113 

De  tudo  iste  se  infere  a  existencia  a  descoberto 
aqui,  corno  no  Coróca  e  na  baliia  dos  Elephantes,  da 
forma9ao  terciaria,  sem  que  comtudo  seja  facil  precisar 
a  qual  das  sub-di visoes  pertence  a  facha  sub-alluvial, 
onde  tambem  se  encontra  urna  rocha  empregada  na 
construc9ao,  constituida  por  numerosas  bivalvas  ci- 
mentadas  por  um  calcareo,  conclias  que  nos  parece- 
ram  ser  a  Cyrena  Cuneiformis,  e  outra  no  grès  calca- 
rifero  urna  Cerithium? 

Ao  norte  da  bahia  dos  Elej^hantes  no  Dombe  està 
a  descoberto  o  terreno  cretaceo,  que  se  estende  até 
Novo  Redondo,  onde  parece  existir  a  hulha  e  abun- 
dantes  minas  de  chumbo. 

0  que  porém  se  nota  de  originai  é  o  grande  nume- 
ro de  calhaus  rolados  que  encontràmos  a  150  e  160 
metros  de  altura,  por  toda  a  parte,  uns  de  calcareo 
silicioso,  outros  de  textura  porpliirica,  etc,  e  que, 
recentemente  traballiados,  parecem  evidenciar,  ou  um 
sublevamento  assàs  recente,  ou  uma  lenta  eleva9ao 
de  toda  a  facha  da  costa,  que  de  resto  os  colonos  d'ali 
testemunliam,  mostrando  o  logar  onde  outr'ora  desem- 
barcaram,  e  que  hoje  està  a  15  metros  das  maiores 
marés. 

Outra  circumstancia  digna  de  toda  a  atten9ao  é  a 
seguinte.  Trabalhando-se  na  perfiira9ao  de  um  P090 
em  Mossamedes,  encontrou-se,  à  proftindidade  de  3 
metros,  um  dente.  Trazido  para  a  Europa,  este  pare- 
ceu  fora  de  toda  a  duvida  ter  pertencido  a  um  hippo- 
pótamo  pequeno. 

A  presen9a  de  tal  quadrupede  em  similhante  lo- 
gar, onde  nao  existe  rio  de  vulto,  e  so  a  180  millias 

8 


114  De  Angola  d  contra-cosfa 

se  eiicontra  o  Cuneiie,  parere  indicar  quo  ii'iinia  epo- 
cha  nao  nini  distante  desaguava  na  bahia  uni  grande 
rio,  que  mais  tarde  desappareceu  por  circumstancias 
quaesquer. 

Nao  onsiinios  aventar  tlieorias  sobre  o  caso;  mas, 
segmido  presumimos,  similliante  facto  confirma,  até 
certo  ponto,  o  sublevamento  da  terra,  que  póde  ter 
originado  uni  desvio,  se  nao  desseccamento  do  refe- 
rido  leito,  do  mesmo  modo  que  vae  tornando  agora 
apenas  torrencial  o  curso  dos  existentes  conio  o  Co- 
róca,  etc. 

Ficam  expostas  estas  indica^oes,  para  que  mais 
tarde  alguem  trate  de  aj^roveital-as,  nao  abandonan- 
do  nós  a  idea  de  que  a  costa  oeste  da  Africa,  conio 
a  Occidental  da  America,  estao  lentamente  emergindo 
do  scio  do  oceano  que  as  banlia. 

A  vegeta9ao  n'esta  zona  e  extremamente  rachitica 
e  feia,  fazendo  em  tudo  lembrar  a  parte  septentrional 
do  deserto  de  Kalahari,  essa  extensa  regiao  que,  vindo 
encontrar  o  mar  na  costa  da  terra  de  Namacjua  e  no 
paiz  dos  dàmaras,  se  prolonga  para  o  norte  a  for- 
mar parte  do  districto  de  Mossamedes,  conio  diz  o 
illustre  botanico  o  sr.  conde  de  Ficallio. 

Assim  comò  da  Dangoena  e  do  Solle  para  o  mar, 
atravessa  o  rio  Cunene  areias  ou  faclias  rocliosas 
aridas,  despidas  de  fertil  vegeta9ao,  e  ainda  para  o 
norte,  conio  vinios  em  nossa  viagem,  o  Coróca,  es- 
trebuxando  no  apertado  leito  cavado  nas  ravinas  das 
rochas  gneissicas,  sempre  cobertas  de  franzina  ver- 
dura, vem  espraiar-se  abaixo  nos  areaes  e  desertos  de 
Pinda;  assim  estas  terras  correm  para  o  norte,  entre 


Na  reffiào  litoral  115 

o  mar  e  a  serra  de  Chella,  até  as  altiiras  do  Bum- 
bo,  com  identico  aspecto. 

Adiante,  funde-se  gradiifilmente  na  vegeta9ao  mais 
rica  do  districto  de  Bengiiella,  emquanto  pelo  lado  do 
oriente,  e  a  medida  (pie  a  altitude  vae  angmentando, 
se  transforma  na  flora  variadissima  da  Humpata  e  da 
Hiiilla. 

Este  caracter  ijhytograidiico,  acrescenta  ainda  o  dis- 
tincto  botanico,  manifesta-se  claramente  na  presenta 
de  algumas  fórmas  typicas,  corno  sao  a  Welwitschia 
mirahilis,  a  Copaifcra  mopanv,  e  especies  espinliosas 
de  acacia,  a  Horrida  e  outras,  etc. 

Nos  Montes  Negros,  nos  i)rimeiros  contrafortes  da 
Cliella  e  mesmo  na  Huilla,  subindo  para  ali  pelo  lado 
do  rio  Caculovar,  os  esi^inheiros  sao  frequentes  e  va- 
riados,  formando  florestas  baixas  ou  matos  mais  ou  me- 
nos  raros,  attestando  a  evidencia  de  urna  zona  arida, 
que  por  aquella  altura  Vem  terminar. 

Uma  rasteira  eui)liorbia  abunda  nas  planuras  em 
redor,  que  os  liabitantes  colhem  para  com  ella  alimen 
tarem  o  fogo,  bem  conio  uma  acacia  minuscula. 

Acclimam-se  todos  os  vegetaes  da  Europa,  comò 
hoje  e  sabido,  e  desde  a  oliveira  até  à  videira  tudo 
ali  progride. 

Ila  quatro  tribus  indigenas  que  i)ovoam  està  regiao, 
a  saber:  os  quipóllas  (mini-quipóllas,  assim  chamados), 
que  residem  pelo  Valle  dos  Cavalleiros;  os  giraues, 
que  se  acliam  estabelecidos  nas  margens  do  rio  d'este 
nome;  os  corócas,  com  quem  jà  fizemos  conhecimento 
no  rio  assim  designado,  e  os  ba-cuisso  nas  roclias  do 
litoral. 


116  De  Angola  d  contra-costa 

• 

Duas  d'estas  sao  sem  duvida  descendentes  da  gran- 
de familia  dos  cubaes,  que  se  acha  estabelecida  n'este 
parallelo  desde  o  mar  até  aos  socalcos  da  Chella,  e 
mesmo  acima  para  o  sul  do  Hoque;  as  duas  outras, 
ba-coróca  e  ba-cuisso,  provém  certamente  das  terras 
meridionaes,  por  terem  grandes  tra90s  de  similhan^a 
com  OS  novos  d'ali,  etc,  até  mesmo  no  seu  clique  espe- 
cial e  em  outras  affinidades,  comò  jà  dissemos. 

Pendem  para  a  vida  pastoni,  alimentam-se  muito 
de  leite,  que,  quando  cugulado  e  azedo,  denominam 
n'gunde. 

As  suas  liabitaijoes  sao  miseraveis  e  sordidas,  bas- 
tando-lhes  o  tronco  de  uma  especie  de  cari'apateiro  com 
OS  seus  pequenos  ramos,  para  que  construam  uma  cu- 
bata. 

Espetada  a  prumo  no  solo,  curvam  os  ramos  meno- 
res  em  roda,  e,  prendendo-os  ao  chao,  cobrem-os  com 
um  pouco  de  capim,  revestindo  o  todo  com  o  excre- 
mento  de  boi. 

Um  pequeno  buraco  dà  passagem  para  esses  recin- 
tos,  mais  parecendo  a  fórma  de  forno  do  que  liabita- 
9ao  de  gente. 

Supersticiosos  em  extremo,  fallando  tambem  do 
celebre  Huco  (ente  supremo?),  téem  o  conhecido  pavor 
pela  lembran9a  dos  mortos,  e  runa  grande  venera^ao 
pelo  gado  vaccum. 

Achàmo-nos  em  Mossamedes*,  após  as  peripecias 
narradas  no  capitulo  antecedente,  onde  nos  trouxe 


1  Està  viagcm  foi  feita  por  um  de  nós,  Ivens,  emquanto  o  outro,  Ca- 
pello, ficou  com  a  comitiva  e  material. 


Na  regidx)  litoral  117 

urna  marcha  for^ada  de  54  milhas,  percorridas  em 
vinte  e  cinco  horas,  quanta  era  a  distancia  que  me- 
deava  entre  o  ultimo  acampamento  do  Coróca  e  està 
villa,  cuja  cifra,  mais  eloquentemente  que  uma  des- 
crip^ao  extensa,  darà  a  medida  da  nossa  angustia  e 
soffrimentos. 

Felizmente  para  nós  achava-se  o  govemador  geral 
ali,  e  ao  ver-nos  entrar  pela  residencia,  estafado,  sujo, 
com  ar  mais  de  salteador  do  que  de  pacato  peonciro 
da  sciencia,  nao  póde  conter  uma  exclama<jao  de  es- 
panto: 

—  Que  foi,  que  ventos  contrarios  o  trazem  por  aqui, 
onde  nao  tencionava  voi  ver? 

—  0  adiantarmo-nos  a  quarenta  e  dois  homens  nos- 
sos  que  fugiram,  e  devem  a  està  hora  vir  a  caminho 
d'este  logar,  respondemos  com  voz  cavernosa. 

E  comò  nos  dispozessemos  a  encetar  a  descrip<jao 
do  revez  que  nos  acontecéra,  elle  cortou  rapido,  dizen- 
do:  «Deixe-se  d^sso;  comò  o  negocio  6  so  de  gente, 
tem  bom  remedio  »;  e  insinuando-nos  graciosamente 
que  para  os  males  moraes  a  sciencia  recommenda  às 
vezes  as  consolacjoes  physicas,  ordenou  que  nos  des- 
sem  de  comer,  principal  necessidade  no  momento. 

E  bem  verdade  era  !  Desde  as  nove  horas  da  ves- 
pera  o  nosso  estomago  recebéra  apenas  a  visita  de 
tmias  tristes  sardinhas  de  Nantes;  que  se  ajuize  pois 
o  prazer  experimentado  após  a  ingestao  da  primeira 
travessa  de  bifes,  porque ...  foi  mais  de  uma  que  nós 
com  certeza  devoràmos;  e  julgue-se  da  grandeza  do 
nosso  reconhecimento,  ou  melhor  o  do  estomago,  para 
com  tal  bemfeitor! 


118  De  Angola  d  carUror^osta 

Apeiia8  U08  achàmos  installados  em  Mossamedes, 
realisaram-se  as  nossas  previsoes,  apparecendo  no  dia  , 
immediato  o  primeiro  grupo  de  fugitivos. 

Errando  pelas  aridas  campinas  do  sul,  vinliam  es- 
faimados  e  sequiosos  os  miseraveis,  e  tanto  soffreram 
no  pouco  tempo  decorrido,  que  là  haviam  marcado  o 
rastro  da  sua  passagem  com  os  cadaveres  de  dois 
companlieiros  mortos  pela  fadiga. 

Prevejiidos  do  seu  apparecimento  n'uma  praia  pro- 
xima,  tivemos  de  por  em  execu^ao  mais  uni  rasgo 
audacioso,  qual  foi  o  de  montar  um  macho  folgado, 
para  llies  sair  ao  encontro,  facto  que,  para  pèssimos 
cavalleiros  comò  nós,  nao  deixou  de  nos  embara^ar 
seriamente. 

Balou9ando-no8  comò  se  estiveramos  em  piena  tol- 
da de  navio  sob  o  impulso  de  tempestuoso  mar,  para 
là  nos  dirigimos,  e  pouco  a  pouco,  reunindo  os  que 
em  redor  appareciam,  conseguimos  alcan9ar  metade 
d^elles,  tendo  os  restantes  desapparecido. 

A  idea  de  fazer  caminho  pelo  rio  Coróca  com  a 
nossa  gente  estava  demonstrada  impraticavel,  urgindo 
procurar  outro  qualquer  trilho,  que  llies  nao  inspirasse 
tao  graves  receios. 

Após  diversas  considera9oes  de  cha  pliilosophia,  de- 
cidimos  pelo  da  Huilla,  nao  abrindo  comtudo  mao  da 
idèa  de  pelo  menos  fazer  um  pequeno  reconliecimento 
àquelle  rio. 

Voi  vendo  de  novo  a  S.  Bento,  preparou-se  para 
isso  uma  pequena  expedÌ9ao,  com  poucos  dos  nossos 
de  mais  confian9a,  a  fim  de  ver  até  que  ponto  seria 
possivel  a  fallada  liga9ao  do  Coróca  com  o  Cunene, 


Na  reyidx)  litoral  119 

expediijao  que  em  seis  dias  de  pe«quizas  volveu,  lia- 
veiido  concluido  e  visto  o  seguinte: 

O  Coróca  e  uni  rio  torrcncial,  iiiterinittente,  impe- 
tuoso iias  grandes  clieias,  cujas  origens  estao  uas  ver- 
tentes  ^a  Cliella,  e  cujo  curso  nada  de  communi  póde 
ter  com  o  Cunene,  que  llie  fica  para  o  sul. 

0  seu  leito,  de  50  a  60  metros  comò  media,  ergue- 
se  rapidamente,  sendo  curiosò  na  parte  mais  inferior 
0  contraste  das  terras  que  o  marginam,  pois  e  a  mar- 
gem  esquerda  formada  por  duiias  de  areia  solta,  e  a 
do  noi*te  por  terras  elevadas,  archaicas,  de  feio  aspe- 
cto,  constituidas  em  geral  pelo  gneiss  e  scliisto  am- 
phibolico. 

A  30  milhas  acima  da  embocadura  cessa  a  areia 
da  margeni  meridional,  jiinto  ao  curso  de  urna  damba, 
denominada  dos  Carneiros,  cujo  leito  superior  ao  do 
rio  so  recebe  d'elle  agiia  por  trasbordo  em  grandes 
enclieiites,  agua  que,  demorada  em  po^os,  deixa  por 
evapora^ao  coberto  o  lodo  de  efflorescencias  de  nitrato 
de  soda. 

0  seu  curso  e  de  encontro  (i  corrente  do  rio,  o  que 
evidenceia  um  canal  de  deriva^ào  d'este  e  nunca  um 
affluente  que  ali  trouxesse  as  aguas  do  Cunene. 

A  montante  do  ponto  citado,  come^*am  as  margens 
a  accidentar-se  de  mais  em  mais,  e,  erguendo-se  e 
caindo,  formam  depois  ravinas  em  todos  os  sentidos. 

Torna-se  entao  a  marcila  para  o  viajante  ii'uma 
fadiga  permanente,  pois,  obrigado  a  caminliar  pelas 
encostas  que  deitani  sobre  o  rio,  trope9a  e  resvala  a 
todo  o  instante,  quebrando-se-Uie  o  corpo  com  os  es- 
for90s  de  equilibrio. 


120  De  Angola  d  contro-costa 

Que  diga  o  meu  companheiro  Guilherme  Capello, 
distincto  commandante  da  corveta  que  a  Mossamedes 
nos  transportou,  quSo  amargo  Ihe  foi  aquelle  primeiro 
tirocinio  de  explorador  pelas  encostas  das  serranias 
do  Coróca  sob  um  sol  de  escaldar,  a  despeito  ^e  toda 
a  sua  boa  vontade! 

Como  fossemos  avanzando  dia  a  dia  pelo  curso  do 
rio,  antegostando  a  idèa  de  fazer  um  quasi  completo 
reconhecimento  do  seu  serpear,  aprouve  ao  acaso  im- 
pedir-nos  o  caminho  com  um  embaracjo,  que  nos  dissi- 
pou  totalmente  a  satisfa9ao  de  tal  conseguir. 

Era  ao  alvorecer  do  terceiro  dia.  A  aurora,  desdo- 
brando  o  seu  luminoso  manto,  come9àra  de  aclarar 
as  terras  em  redor;  uma  brisa  fresca,  rociando-nos,  re- 
temperava o  animo,  convidando  a  marchar;  acabava 
de  se  erguer  o  acampamento,  lamos  partir,  quando  de 
subito,  um  ruido  inesperado  atroa  os  ares,  rola  o  quer 
que  seja  perto  de  nós,  um  rumorejar  estranilo  adianta- 
se  em  meio  d'està  balburdia,  uma  exclama9ao  unanime 
sauda  emfim  a  causa  originaria  do  inesperado  pheno- 
meno  ! 

N'uma  curva  do  rio  e  a  montante  de  nós,  uma  vaga 
espumante  barra-lhe  o  curso  de  lado  a  lado,  e  galgan- 
do  enfurecida  por  meio  de  penhascos  e  accidentes,  es- 
padana aqui,  salta  acolà,  espraiando-se  ligeira  pelo 
leito  abaixo. 

E  um  phenomeno  curioso  o  d'essas  enchentes  tor- 
renciaes  aqui,  onde  a  agua  com  a  sua  presenta  anima 
e  vivifica  tudo  em  poucos  instantes. 

Até  entao,  um  silencio  sepulchral  nos  envolvia,  e  o 
curso  do  rio  secco  e  emmaranhado  entre  as  rochas  nuas 


Na  regiào  litorol  121 

e  tisnadas  que  o  apertam,  mal  deixa  suspeitar  ao  via- 
jante  a  sua  existencia. 

Agora,  cheio,  entumecido,  elevando-se  a  olhos  vistos 
pelas  margens  que  se  alongam,  absorvendo  penhascos 
e  ravinlfe,  palpita  a  formidavel  arteria,  engrossada  e 
resplandecente  à  luz  do  sol,  e  là  vae  corno  longa  fita 
a  caminho  do  oceano,  murmurando  em  todo  o  traje- 
cto.  Foi  corno  que  magica  opera^ao,  esse  subito  trans- 
formar de  uma  zona  nua,  secca  e  calada,  em  fresca, 
vivificante  e  ruidosa. 

Penedias  e  accidentes  do  fiindo,  tudo  desappareceu, 
o  humido  len9ol  estii*a-se-lhes  por  cima;  e  nós,  que  até 
entao,  descendo  por  vezes  para  o  seu  leito,  evitava- 
mos  trabalhos  e  marcha  pelas  encostas,  somos  agora 
for9ados  a  caminhar  sempre  por  ellas. 

Nao  foram  muito  longe  os  nossos  esfor^os,  porque, 
estreitando-se  pouco  a  pouco  as  margens,  que  pro- 
gressivamente iam  tambem  subindo,  chegàmos  a  uma 
garganta  apertada,  cujas  paredes  talliadas  a  piqué 
formam  um  vortice  onde  o  rio  redemoinha  furioso, 
e  que  foi  impossivel  transpor. 

For9ados  a  por  ponto  na  excursao,  volvemos,  dando 
ao  sexto  dia  entrada  em  S.  Bento. 

Pouco  temos  a  acrescentar  sobre  està  regiao,  quasi 
esteril  e  alheia  a  factos  de  scientifico  aproveitamento. 
Uma  das  facies  sem  duvida  mais  caracteristicas  d'ella, 
e  que  nao  tem  seguramente  outra  comparavel  na  pro- 
vincia, e  o  estado  de  isolamento  em  que  se  acha. 

Entrando,  após  meia  duzia  de  leguas  de  marcha, 
parece  que  o  viajante  se  afastou  para  os  mais  recon- 
ditos  sertoes  do  Negro  Continente. 


122  De  An<fola  d  cantra-costa 

Nein  ser  liumaiio,  nem  a  inarca  da  passagem  do 
liomein  ii'uma  cabaiia  ou  em  singola  canoa  de  casca. 

Apenas  alguns  ba-ximba  nomadas  por  ahi  às  vezes 
se  aventuram,  corno  depreUendemos  de  um  tronco 
qneimado  que  encontràmos  e  por  uns  circuloPde  pe- 
dras,  talvez  sepulturas,  dispostas  a  fei(;ao  dos  cromh- 
clis,  nas  proximidades  da  garganta  de  que  fallàmos; 
onde,  sem  embargo  de  muitas  excavacjoes,  nao  en- 
contràmos  despojoa,  e  isto  nos  levou  a  crer  que,  se  para 
tal  firn  ali  forani  collocadas,  era  cir(*nnidando  o  cada- 
ver  que  as  aves  e  feras  devoraranx,  se  nao  ao  lado 
que  o  depunliam,  segundo  o  nascente  ou  poente,  corno 
ja  no  Senegal  se  encontrou. 

VaVli  compensa^ào,  e  em  virtude  d'este  isolamento, 
abundam  os  animaes  silvestres,  tendo  encontrado  a 
expedi^ao  constantes  indicios  da  passagem  de  nume- 
rosos  elephantes,  de  rhinocerontes,  de  leoes,  de  leo- 
pardos,  de  galengues  e  de  ungiris;  e,  facto  notavel, 
acliam-se  estes  animaes  distribuidos  nas  margens  coni 
rigorosa  precisao.  Assim  nos  areaes  vé-se  o  Oryx  <ja- 
zdla,  esse  antilope  que  tanto  resiste  à  sede,  e  outros, 
percorrendo-os  em  todos  os  sentidos;  emquanto  que 
nas  serranias  téem  Marida  o  leiio  e  as  outras  feras  de 
que  fallàmos. 

So  basta  que  o  rei  das  selvas  transponha  o  rio 
para  encontrar  failos  recursos  entre  os  infelizes  nmii- 
nantes  que  por  là  divagam,  e  cujas  brancas  ossadas 
evidenceiam  a  miudo  ao  viajante  uma  agonia  muda  e 
luna  lucta  pela  vida. 

E  tempo  de  terminar  a  descrip^ao  d'essa  triste  zona 
do  silencio,  a  fim  de  volver  para  o  caminho  sertanejo. 


Na  regiào  liioral  123 

Reuiiidos  todos  os  elementos  dispersos  da  expedi- 
(jao,  assentt'imos  de  novo  os  nossos  arraiaes  em  Mos- 
samedes,  e,  tendo  tudo  prompto,  preparàmos  a  mar- 
cha,  repetindo-se  as  mesmas  fastidiosas  scenas  por 
qiie  ha^amos  passado  no  norte. 

Estavamos  decididamente  agarrados  ao  oceano,  e 
elle,  de  que  com  tanta  saudade  nos  tinhamos  separado, 
come^ava  agora  com  a  sua  presenta  a  impressionar- 
nos  de  modo  desagradavel,  fazendo  nascer  em  nosso 
espirito  suspeitas  de  qne  estaria  escripto  no  livro  do 
destino  o  nosso  impossivel  apartamento. 

Os  prejuizos  que,  impondo-se  ao  espirito,  o  domi- 
nam  As  vezes,  de  sorte  que  se  torna  difficil  libertal-o, 
sao  sempre  causas  attendiveis  que  urge  prevenir. 

Procedemos  com  urgencia  aos  arranjos  indispensa- 
veis,  preparando  tudo  no  curto  espa^o  de  uma  semana. 

A  nossa  partida  teve  logar  a  24  de  abril. 

Depois  de  invariaveis  peripecias,  eis-nos  de  novo 
a  caminho  do  interior,  e,  bifurcados  nos  bois-cavallos, 
despedimo-nos  do  oceano  pela  segunda  vez. 

Transpostas  as  liortas  e  jardins  dependencia  da 
villa,  entràmos  na  estrada  de  Capangombe,  que,  ele- 
vando-se gradualmente,  se  desenrola  sinuosa  para  o 
interior,  atravez  dos  terrenos  terciarios  formados  de 
rochas  inconsistentes,  comò  o  molasso  que  affloreia 
o  terreno,  o  marne,  etc,  para  logo  encontrar  comò 
succedaneos  e  interpostos  entre  elles  e  os  primordiaes, 
OS  secundarios  do  quaderstein,  terminados  no  plano 
inferior  pela  forma9So  laurenciana  do  gneiss  amphi- 
bolico,  que  aqui  é  ainda  separado  das  forma9oes  se- 
dimentar es  por  uma  facha  de  schisto  primitivo. 


1 24  De  Angola  d  contro-costa 

Impressionam  de  modo  desagradavel  as  primeiras 
jomadas  atravez  d'essas  terras  aridas,  onde  apenas 
vegetam  rachitica»  acacias  ou  eupliorbias,  que,  entris- 
tecidas  sob  um  sol  abrazador,  parecem  esperar  urna 
trovoada  que  Uies  desembarace  os  estomatos  da  poeira 
accumulada,  e  Ihes  restabele9a  a  re8pira9ao,  trazeii- 
do-lhes  à  seiva  a  vivificante  agua. 

Por  toda  a  parte,  a  perder  de  vista,  emergem  da 
terra  morros  de  gneiss,  que  os  musgos  e  o  tempo 
téem  manchado  com  negras  tintas,  e  os  raios  do  sol 
fenderam  com  profundos  sulcos. 

Entre  os  factos  de  digna  men9ao,  figura  sem  du- 
vida  o  que  se  refere  a  urna  originai  pianta,  conliecida 
pelos  odi'es. 

Depois  de  transposto  o  curso  do  rio  Giraul,  sobe-se 
urna  rampa  da  estrada,  e  adiante,  no  planalto  supe- 
rior  de  scliistos  primitivos,  entra-se  na  pianura,  onde 
aquelles  em  silencio  aguardam  do  viajante  as  excla- 
ma9oes  de  espanto. 

A  um  tronco  rasteiro  e  tortuoso  de  folhas  largas, 
duras  e  resistentes  prende-se  o  celebrado  fructo,  cuja 
fórma  e  aspecto  é  inteiramente  comò  o  de  um  odre 
de  pelle  de  cabrito.  0  mais  atilado  odreiro  tomal- 
os-la,  quando  suspensos  entre  outros,  por  obra  de 
mao  de  mestre,  e  so  se  desenganaria  ao  apreciar-lhe 
0  peso. 

Encontràmos  aqui  o  primeiro  bao-bab  a  urna  alti- 
tude  proximamente  de  500  metros,  e  comò  n'um  locai 
cliamado  Fedra  Maior  nao  houvesse  sufficiente  agua, 
proseguimos  a  caminho  de  outro  chamada  Fedra  Fe- 
quena. 


Na  regiào  litorol  125 

Tem  tao  mediocre  interesse  està  parte  da  viagem, 
que  vamos  proseguir,  transcrevendo  na  integra  o  que 
em  nosso  diario  se  acha  exarado. 

«Dia  25  de  abril. 

«  Prosegue  o  trilho  pela  mesma  maneira  e  aspecto, 
so  com  a  singela  variante  ao  apparecimento  de  um  ge- 
nero de  cogumelo  branco  volunioso,  que,  aqui  e  alem, 
corta  a  arida  monotonia. 

«  Desappareceram  os  odres;  leguminosas  de  espinho 
arborescentes,  com  a  copa  d  fei^ao  de  uma  umbella, 
acompanham  o  viajante  ao  longo  do  trilho. 

«Facto  notavel  e  digno  de  men^'So!  A  vida  vertebra- 
da  minuscula  (se  isso  se  póde  dizer  para  o  caso)  é  por 
aqui  escassa  ou  raramente  representada.  As  mesmas 
aves  quasi  desappareceram,  e  os  reptis,  esses  atrevi- 
dos  habitadores  de  quantas  pencdias  e  tractos  aridos 
de  terreno  existem  no  mundo,  tambem  ali  se  nao  ob- 
servam. 

«  Ao  cafr  do  dia  acampdmos  na  Fedra  Pequena,  hloc 
de  gneiss  cavado  a  meio,  onde  a  agua  existente  era 
em  tao  pouca  quantidade,  que  a  nossa  gente  a  es- 
gotou  ao  anoitecer. 

«  Grandes  bandos  ou  recuas  de  zebras  foram  obser- 
vadas,  bem  comò  nos  affirmam  que  algumas  eram  bran- 
cas,  0  que  nos  levou  a  suppor  seriam  couagghas. 

«Defronta-nos  a  leste  uma  regiao  inteiramente  se- 
meada  de  morros.  » 

«Dia  2G  de  abril. 

«Ao  alvorecer  poz-se  a  caravana  a  caminho;  3 
milhas  adiante  o  trilho  enfia  por  entre  os  cerros  de 
que  hontem  fallàmos,  verdadeiras  massas,  ou  de  grès 


126  De  Angola  d  contra-cosia 

ou  de  gneiss,  a  mistura  com  peiiedias  de  seliistos  mi- 
eaceos,  etc. 

«  Vae  variando  o  reino  vegetai,  que  i)onco  a  pouco 
se  toiTia  mais  opulento,  fazendo  lembrar  uma  zona 
por  nós  atravessada  em  a  nossa  primeira  viagem  do 
Dombe  para  Quillengues.  Falham  os  espinheiros,  ap- 
parecem  acacias  differentes,  papilionaceas,  algumas 
ervtlirinas  de  vemiellios  caclios  e  outras. 

M  0  reino  animai  vae  guardando  similhante  propor- 
9ao,  sendo  jà  numerosas  as  especies  de  aves  que  nos 
distrahem  com  alegres  gorgeios. 

«As  nove  lioras  da  manlia  chegàmos  a  Fedra  Gran- 
de, que,  comò  as  anteriores,  nao  passa  de  ser  um  aflo- 
ramento  de  gneiss  com  amplas  depressòes  ou  vasios  a 
meio,  onde  se  accumula  a  agua  da  chuva,  coberta  lit- 
teralmente  pela  alfacinlia,  que  julgamos  ser  a  Psistia 
stvdtiotes.  E  o  recurso  dos  ban-dombe  e  viajantes  em 
transito  para  o  interior,  bem  comò  das  feras  e  anti- 
lopes. 

«  Abunda  o  leào  n'esta  terra,  observando-se  por  toda 
a  parte  restos  de  suas  presas. 

<(  Cometa  precisamente  aqui  a  apparecer  essa  arv  ore 
denominada  mutiate,  uma  Bauhhiia,  segundo  pensa- 
mos,  ao  passo  que  vao  desapparecendo  as  legumino- 
sas  de  espinlio. 

«Gazellas  numerosas  percorrem  a  pianura,  assini 
comò  bastos  reptis  liabitam  quantos  buracos  se  en- 
contram  nos  penedos  circumvizinhos,  e  um  càgado 
minusculo,  na  agua. 

«  Desappareceu  o  galengue,  apparecem  em  bandos 
OS  ungiris.  Montados  nos  bois  proseguimos  em  nossa 


Na  regimo  litoì^al  127 

• 

viagem  para  a  Fedra  Providencia,  aonde  chegàmos 
pelas  duas  horas  da  tarde. 

«Agrada  jà  o  aspecto  do  paiz.  Um  manto  de  ver- 
dura cobre  ao  longe  a  terra,  dando-lhe  um  ar  de  ale- 
gria  e  vida.  » 

«Dia  27  de  abril. 

«Percorremos  durante  està  jomada  toda  a  distan- 
cia  que  vae  da  Pedra  Providencia  à  fazenda  Nas- 
cente, na  margem  do  rio  Muninlio. 

«  E  seu  proprietario  um  cavalheiro  chamado  Nestor, 
afamado  ca9ador  de  leoes,  que  até  a  presente  data  tem, 
ao  que  se  diz,  livrado  a  zona  que  liabita  de  vinte  e  seis 
d'estes  ferozes  animaes. 

«Entre  varias  peripecias  succedidas  a  este  senlior 
(que  téem  sido  muitas,  pondo  por  vezes  em  risco  a  vida 
d'esse  segundo  Gerarci)?  ouvimos  narrar  uma,  que  pelo 
ridiculo  merece  apontar-se. 

«Versa  sobre  uma  partida  de  ca^a  ao  leao. 

«  Succedeu  um  dia  Nestor  ser  atacado  em  sua  pro- 
pria casa  por  atrevido  leao  que  Ihe  farejava  o  curral. 
Saindo  ao  cercado,  attrahido  pelo  barulho  da  gente, 
topou  de  frente  com  o  animai,  que,  vendo-o,  investiu. 

«0  recurso  do  bravo  homem  foi  ir  recuando  para 
o  compartimento  que  servia  de  casa  de  jantar,  cuja 
porta  se  acliava  aberta,  e  onde  sabia  ter  as  suas  ar- 
mas.  Tendo  por  felicidade  um  candieiro  acceso,  sal- 
vou-o  na  surpreza,  pois,  batendo  de  frente  no  leao  ao 
atirar-se,  o  fez  estacar. 

«Lan9ando  mao  da  carabina,  apontou  e  fez  fogo. 
0  animai,  ao  sentir-se  ferido,  saltou  desnorteado,  pe- 
netrando ao  acaso  pela  porta  da  cozinha,  cujas  ca^a- 


128  De  Angola  d  coniror^osta 

rolas  e  panellas  n'um  momento  poz  na  mais  comple- 
ta confusao! 

«Revolvendo  tudo,  saltava  em  todas  as  direc9oe8,  até 
que  de  uma  vez  com  grande  arranco  cnfiou  9.  cabe9a 
por  entre  as  travessas  de  mna  mesa  de  cozinha,  e  ahi 
acabou  entalado,  mais  vilmente  que  o  seu  congenere 
da  fabula  ! 

c(  Està  accidentada  regiSo  é  dividida  do  noroeste  ao 
sueste  pelo  rio  Muninho,  em  cujas  margens  se  acham 
as  planta^oes,  compostas  exclusivamente  de  algodoei- 
ros,  unico  artigo  de  exporta9ao,  e  milho,  que  se  apro- 
veita  so  comò  mantimento,  segundo  nos  informaram, 
para  os  trabalhadores. 

«  E  notavel  que  os  agricultores  de  Mossamedes,  os 
quaes  com  tanto  afan  buscam  engajar  gente  e  tao 
caro  a  pagam,  estejam  lioje  quasi  reduzidos  a  piantar 
mantimentos  para  essa  gente. 

«  Com  a  baixa  do  algodao  abalaram-se  as  suas  espe- 
ran9as,  e  ainda  se  o  mantimento  podesse  ser  enviado  à 
costa,  para  là  ser  vendido,  bom  seria,  mas,  na  opiniao 
d^elles,  sendo  isso  impossivel  (e  nós  o  acreditàmos), 
em  virtude  da  exagerada  despeza  nos  carretos,  nao  é 
facil  perceber  o  que  esperam. 

«Assim,  essas  grandes  propriedades  do  interior  do 
districto  estao  hoje  quasi  so  produzindo  milho,  que 
OS  serviijaes  cultivam,  e  elles  mesmo  comem,  e  isto 
quando  as  chuvas  sao  regulares,  alias  o  agricultor 
tem  de  cair  na  mao  dos  especuladores  do  litoral. 

«A  situa9ao  agricola  n'esta  parte  da  provincia  é 
pouco  prospera,  e  um  estudo  no  sentido  de  conseguir 
agua  permanente  n'esta  terra  é  de  urgencia  fazer-se, 


Na  regiào  lito7'al  129 

estudo  que  nSo  parece  multo  tUfficil,  pois  por  muìtos 
i  n'esta  importante  terra  nos  fomeceram  escla- 


recimentos  da  provavel  existencia  de  agua,  e  de  nume- 
rosas  naaccntcs  que  poderiam  talvez  aproveitar-se.» 


130  De  Angola  d  coìdra-costa 

«Dia  28  de  abril. 

«  Considera-se  lioje  dia  de  descanso  para  a  gente. 
Fizeram-se  variadas  observa9oes.  Deu-se  pela  noite 
iim  facto  originai. 

«Como  estivessemos  exhauridos  de  mantimentos, 
abatenios  uni  boi,  que  veiu  para  junto  das  nossas  ten- 
das,  e  ahi  foi  esfolado. 

«  Fictlra,  comp  e  naturai,  urna  basta  por9ao  de  san- 
gue, que,  pelo  adiantado  da  bora,  se  nao  pensou  em 
limpar.  Entra  o  escuro,  socega  a  gente. 

«  Seriam  perto  das  duas  horas,  donnia  tudo  a  somno 
solto  e  no  mais  sepulcbral  silencio,  quando  ^^sita  ines- 
perada  penetrou  no  campo. 

«Um  enorme  leao  approximou-se,  deu  ingresso,  e 
dirigindo-se  às  poijas  de  sangue,  lambeu-o  com  toda  a 
placidez. 

«0  mais  notavel,  porém,  foi  lun  dos  moleques,  que 
dormia  junto  às  nossas  barracas,  despertou,  mas  te  ve 
tanmnlio  terror,  que  se  conservou  immovel,  nao  dando 
o  menor  signal. 

«Era  multo  grande,  senhor,  dizia  elle,  e  ao  abaiar 
ia  atirando  com  a  tenda  a  ten-a,  porque  trope^ou  nas 
cordas  que  pelos  lados  a  seguram! 

«  Estranila  crise  devia  ser  a  nossa,  se  no  momento 
de  retirar-se  tal  visita  iios  càe  a  babita^ao,  deixando- 
nos  entontecidos  e  abracjados  com  um  animai  d'aquella 
laia  !  » 

Abandonando  o  diario,  prosigamos. 

No  intuito  de  nos  internannos  rapidamente,  partimos 
com  o  findar  do  niez  de  abril  a  caminho  de  Capau- 
fombe,  por  meio  de  uma  floresta  de  espiaheiros  que 


Na  regiào  Utcn^al  131 

logo  adiante  se  nos  deparou,  dardejados  por  sol  de  40° 
centigrados. 

Ao  longe  via-se,  entre  os  socalcos  da  Chella,  er- 
guer-se  um  morrò  colossal  denominado  Cha-Malundo, 
do  qual  nos  pretendiamos  approximar,  cortando  por 
melo  das  planta^ocs. 

Capangombe,  logar  chefe  do  concelho  do  Bumbo, 
està  assente  n'uma  planicie  pouco  pittoresca,  que  en- 
costando  por  leste  ao  socalco  das  asperas  serranias, 
recebe  em  baixo  quanta  agua  espadana  pelas  ravinas 
d'aquellas. 

A  meio  està  a  vasta  fortaleza,  protectora  d'este  lo- 
gar, a  cuja  escolha  nao  presidia  o  bom  senso. 

Existem  varias  planta9oes,  sendo  apenas  recommen- 
davel  o  algodao,  de  que  jà  se  exportam  cerca  de  trinta 
mil  arrobas. 

Terminam  aqui  as  terras  inferiores  com  urna  alti- 
tude  media  de  535  metros  no  sopé  das  aprumadas  en- 
costas  do  planalto,  cuja  altura  e  vertical  rasgado,  ou 
viveza  das  testas  das  cumiadas  do  gneiss  (comò  diz  o 
nosso  illustre  naturalista  Ancliieta),  bem  evidenceiam 
a  rapidez  com  que  se  produziu  essa  grande  depressao 
do  solo  primordial,  constituido  nas  mais  profundas  ca- 
madas  da  crusta  terrestre  por  elementos  que  do  gneiss 
ou  do  granito  devem  pelo  menos  ter  a  analogia  com- 
ponente e  igual  reslstencia,  e  que  so  uma  retrac9ao  do 
globo  ou  grandes  vacuos  na  profundidade  podem  ex- 
plicar. 

Deu  talvez  orlgem  a  esses  teiTenos  inferiores  o  fundo 
do  mar  cretaceo,  que  em  lucta  se  quebrou  de  encontro 
aos  rochedos  hoje  visiveis,  formando  as  costas  do  con- 


132  De  Angola  d  contro-costa 

tinente  por  aquelle  lado,  e  de  ciijo  sublevaniento  inaia 
tarde  veiu  a  fazer-se  a  zona  litoral. 

A  petrographia,  acrescenta  ainda  o  nosao  illustre 
compatriota  e  notabilissimo  homem  de  scieneia,  de- 
nota ter  sido  protunda  junto  da  costa  a  dita  dcpressSo  ; 
Ì8to  é,  consideravel  a  differen9a  de  nivel  entre  o  fundo 
e  a  linha  daa  rochas;  parecendo  que  o  movimento  su- 


blevador  que  este  derradeiro  phenomeno  originou,  o 
concernente  à  fonna^So  da  zona  litoral,  se  estendeu 
ao  solo  primitivo,  porquanto  nenlmma  das  variadaa  re- 
giòes  ali  se  acham  ìsentas  d'elle,  \'Ì8to  estarem  as  mes- 
mas  rochas  inferiores  às  superfìcies  do  terreno  sedi- 
mentar, emergindo  quasi  sempre  d'este  nas  cumiadas. 


Na  regiàx)  litoral  133 

Em  resumo,  a  verdade  é  que,  embora  nao  seja  facil 
ao  explorador,  n'um  singelo  golpe  de  vista  e  no  resu- 
mido  tempo  da  sua  passagem,  poder  dar  conta  ou  ap- 
proximada  indìca9ao  das  convulsoes  de  que  està  terra 
foi  theatro  nas  epochas  geologicas,  nem  por  isso  elle 
deixa  de  as  suspeitar  e  presentir  ao  encaral-as,  obser- 
vando  a  grandeza  e  amplitude  d'esses  rasgados  de  ter- 
reno, que  pela  sua  soberba  altui-a  liao  de  ser  sempre 
um  obstaculo  ao  accesso  da  onda  civilisadora  para  o 
interior. 


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CAPITULO  IV 


CHELLA  ARRIBA 


O  cxplorador  é  o  porcursor  do  colono  ;  o  o  co- 

lono  o  humano  instruinento  emprcgado  n^esNa  fa- 

brii'a  —  a  maior  e  mais  difHeil  das  emprezos  —  a 

de  eivilisar  o  mundo. 

S.  W.  Bakbb. 


A  zona  litoral  e  o  planalto — 0  vento  sueste  e  as  accumula^oes  de 
vapor — As  portellas  do  Bruco,  de  Calleba  e  da  Banja — A  serra  da 
Chella  e  as  convulsoes  geologicas  ali — Antigo  aspecto  d'està — A  esca- 
lada  e  a  vegeta^ao — Sào  1:829  metros — Panorama — 0  terreno,  a  ca^a  e 
duas  considera^oes  sobre  a  distribuÌ9ao  zoologica  dos  animaes  em  Afri- 
ca— A  cobra  e  o  cameiro  do  Nano — Historias  iudigenas — Phenomeno 
atinospherico  notavel — A  Huilla — Sua  salubridade  e  vegetaQSo — Im- 
portancia  agricola — Plantas  uteis — A  propaganda  e  os  geographos — A 
via^ào  accelerada — Directriz  media  da  linlia  a  estabelecer  para  o  inte- 
rior— ^Yantagens  d'està — Colonisa^ao  e  con8idera90es  sobre  ella — Zonas 
mortiferas. 


0  viajante  que 
effectua  a  parti- 
(la  (la  costa  Occi- 
dental da  Africa 
na  zona  junto 
'  ao  oceano  experi- 
menta  os  primei- 
ros  rigores  do  cli- 
ma, transudando 
Bob  um  sol  de  ea- 
caldar,  soifrendo 
;  aa  crueìs  imprea- 
sòes  do  tirocinio, 
n'essa  especie  de 
adaptatjSo  economica  que  Ihe  perturba  as  func^òes  e  o 
volve  corno  que  em  indolente  e  constante  man  estar, 
considera  o  azul  cordào  das  serras  ao  longe  o  aeu  per- 
manente anlielo;  a  idi?a  de  se  guindar  às  grandea  alti- 
tudes  o  seu  mais  querido  pensamento. 


138  De  Angola  d  contra-costa 

E  tem  rasao,  porque  ahi  tudo  muda.  O  calor,  as 
bonan^as,  os  miasmas,  o  constrangimento  emfim,  qiie 
tanto  o  agoiiiaram  nas  primeiras  semanas,  modifi- 
cam-se,  porque  nas  terras  elevadas  o  ar  fresco  e  os 
ventos  reinantes  o  refrigeram  e  tomam  à  vida,  cons- 
tituindo-lhe,  por  assim  dizer,  um  melo  mais  norma!  ou 
proximo  do  que  existe  pela  Europa. 

E  a  segunda  vez  em  nossas  viagens  que  passàmos 
por  està  transi^ao,  transportando-nos  do  terreno  do 
bao-bab  para  o  da  acacia  no  curto  espacjo  de  algumas 
lioras;  e  pela  segunda  vez  tambem  podemos  apreciar 
o  consolo  que  essa  liberta(;ao  subita  de  um  clima  em 
extremo  tropical  traz  para  o  corpo  e  espirito  d'aquelle 
que,  apenas  chegado  da  Europa,  se  viu  inopinada- 
mente  sob  a  sua  influencia. 

E  uma  sensa(;ào  similhante  talvez  à  experimentada 
pelo  liomem  que,  preso  durante  tempos  em  escura 
masmorra,  emerge  para  a  claridade. 

Esse  banlio  de  luz  e  de  ar  deve  desembara^ar-lhe 
o  espirito,  varrer-lhe  os  tetricos  pensamentos  que  uma 
reclusao  formosamente  origina,  rociando-o  com  o  bal- 
samo consolador  do  allivio. 

Assim  tambem  succedeu  ao  vermo-nos  no  cimo  da 
serra. 

Sopra  ali  em  maio  o  vento  de  sueste.  A  atmosphera, 
até  entao  forrada  de  nimbos  e  grossos  cumulos  carre- 
gados  de  electricidade,  que  os  ares  atroam  permanen- 
temente com  o  ribombar  do  trovao,  despedindo  em  to- 
dos  OS  sentidos  linhas  de  fogo,  principia  de  limpar-se. 

So  pela  banda  do  noroeste  se  véem  as  mais  amea- 
(jadoras  accumulamoes  de  vapor,  so  para  essa  banda 


Chella  arriba  139 

fuzila,  e  no  quadrante,  por  onde  comecjaram  as  trovoa- 
das,  vao  agora  tambem  terminar. 

Soltos  novello»  corno  flocos  de  algodào  correm  pelo 
aziil  dos  céus,  impellidos  por  urna  brisa  fresca  que  tudo 
varre,  isto  é,  o  vento  geral  de  sueste  sopra  no  planalto, 
do  mesmo  modo  que  no  oceano. 

Apenas  no  1.^  de  maio  come9aram  os  alvores  da 
manlià  a  esbater  as  sombras  da  noite,  que  nós  de  pé 
nos  aprestàmos  para  a  partida. 

Urgia  aproveitar  para  a  escalada  a  frescura  matu- 
tina,  a  fim  de,  quando  colliidos  pelo  sol,  jà  em  alto  nos 
acharmos. 

Depois  espertava-nos  o  desejo  de  continuar  a  fugir 
a  essa  zona  que  atraz  deixavamos,  feia  e  esteril,  cuja 
paizagetn  solitaria  e  desoladora  nos  imprimira  no  es- 
pirito as  mais  tristes  recorda^oes,  e  onde  as  penedias, 
escalvadas  e  ennegrecidas,  corno  que  nos  ameacjavam 
a  todo  o  momento  com  a  morte  pela  sede. 

Podem  escolher-se  tres  caminlios  para  de  Capan- 
gombe  subir  a  Chella,  todos  elles  de  muito  mau  aspe- 
cto,  attento  o  aprumado  declive  das  encostas. 

0  primeiro  é  o  da  portella  do  Bruco  (buraco  tal- 
vez?),  mais  frequentemente  trilhado;  o  segundo  o  da 
portella  de  Calleba,  que  fica  mn  pouco  mais  ao  norte 
d'aquelle;  e  o  terceiro,  emfim,  o  da  Banja,  que,  des- 
viando-se  pai-a  o  sul,  é  principalmente  escolliido  por 
quem  se  dirige  para  as  zonas  meridionaes. 

Foi  o  Bruco  por  nós  preferido,  e,  logo  que  terminou 
a  refeiijao  matutina,  entestàmos  com  a  profunda  que- 
brada,  come9ando  a  ascensao  pelas  oito  horas  da  ma- 
nhS. 


140  De  Angola  d  conironcosta 

Um  trilho  em  zig-zags  debuta  por  entre  as  rochas 
e  o  arvoredo,  seguindo  approximadamente  o  curso  de 
um  ribeiro  que  se  despenha  das  altiu'as,  semeado  em 
toda  a  extensSo  de  calhaus,  ora  soltos,  ora  melo  enter- 
rados,  e  que  com  difficuldadede  consente  ao  viajante 
o  escalamente  da  formidavcl  quebrada,  cuja  altitude, 
em  rela9So  à  planicie  de  Capangombe,  nao  é  menor 
de  1:200  metros. 

A  ascensao  da  serra  da  Chella  divide-se  na  zona 
por  que  vamos  caminliando  em  dois  quarteis,  se  por- 
ventura  é  permittido  exprimirmo-nos  d'està  maneira: 
a  subida  do  Bruco  e  depois  a  da  Chella  propriamente 

dita. 

Tudo,  caro  leitor,  se  encontra  no  grande  continente 
feito  em  exagerada  escala,  propor96es  taes,  qi\e  exce- 
dem  quanto  de  vulgar  conliecemos,  parecendo  ter  a 
natureza,  ao  cuidar  d'elle,  capricliado  em  produzir  tudo 
gigantesco. 

Basta  que  consideremos  no  reino  vegetai,  para  nos 
persuadirmos  d'isto,  vendo  quanto  ella  póde,  vigorada 
pelo  calor,  desdobrar  de  magnificencia  e  surprezas  por 
essas  terras  afóra;  e  se  no  reino  animai  admirànios 
ainda  os  mais  crescidos  exemplares  da  fauna  actual, 
là  estao  os  plienomenos  meteoricos  para  exceder  pelo 
seu  apparato  retumbante  quanto  d'esses  factos  conlie- 
cemos; e  nao  menos  as  convulsSes  geólogicas,  pelo 
geral  de  monta  tambem  a  exigirem  crescido  respeito; 
pois  rios,  quebradas  e  serranias,  tudo  é  enorme,  so 
assenhoreavel  por  lucta  porfiada. 

A  serra  onde  agora  nos  achàmos,  e  que  se  estende 
n'uma  linha  de  quasi  400  millias  do  Cuanza  à  terra 


Chdla  arriba  141 

de  Namàqua,  é  um  dos  mais  frisantes  exemplos  d'esses 
exagerados  movimentos  de  terras. 

Barreira  gigante  feita  e  ageitada  durante  as  epochas 
geologicas  remotas  no  gneiss  e  na  quartrite,  abrange 
longa  linha  de  terrenos,  formando  pelo  oeste  um  som- 
brio  paredao  que  foi  por  espa9o  de  seculos  sentinella 
ao  continente  e  protec9ao  ao  movimento  convidsio- 
nado  do  mar,  defendendo  coni  a  sua  gneissica  testada 
a  ac9ao  erosiva  d'este  na  terra  continental. 

Outr'ora  seu  aspecto  devia  ser  muito  differente. 
Batidas  pelos  ventos  marinhos,  lavadas  a  miudo  pelas 
aguas  espumantes,  essas  penedias  erguiam-se  certa- 
mente aridas  e  ennegrecidas,  contrastando  pela  tris- 
teza  coni  a  paizagem  mais  suave  de  lioje. 

O  afastar  do  oceano,  do  ruido  e  da  sua  varia  in- 
fluencia,  desviou  d^ili  a  causa  originaria  da  pertinaz 
lucta  entre  o  viver  vegetai  e  a  ac9ao  triumphante  das 
brisas  do  mar,  e  entao,  em  vez  das  salgadas  aguas 
que  llie  lavavam  os  sopés,  vieram  ou  continuaram  os 
doces  arroios  do  alto  a  sua  obra  benefica  em  favor  do 
niundo  vegetai. 

E  logo  à  aridez  de  uma  costa  maritima,  s6  visitada 
pela  gaivota,  pelo  corvo  marinilo  e  outras  aves  do 
mar,  que  entre  os  seccos  ramos  das  euphorbias  e  nas 
anfractuosidades  do  rochedo  construiam  seus  ninhos, 
succedeu  o  verde  manto  da  vegeta9ao  tropical,  que, 
recolliendo  e  eiila9ando  com  suas  raizes  e  cypós  os 
desaggregos  e  os  humus  vindos  de  cima,  a  tomaram 
de  nua  em  fertil  e  vÌ9osa. 

Pela  encosta  arriba  sente-se  o  viajante  extasiado  em 
nieio  da  variabilidade  de  scenario  que  aos  seus  oUios 


142  De  Angola  d  contra-costa 

se  desdobra,  e  das  profusas  e  variadas  tran8Ì9oes  qiie 
urna  vegeta9ao  exiiberante  eia  roda  llie  prepara. 

Pouco  depois  de  se  erg-uer,  desapparecem-Uie  as  le- 
guminosas  de  espinlio,  as  eupliorbias,  as  acacias  ras- 
teiras,  para  ceder  o  logar  às  Bauhimas,  miitiates,  que 
por  sua  vez,  alentando-se,  se  afastam  a  800  metros, 
para  as  substituir  o  bao-bab,  esse  elephante  do  remo 
vegetai,  que  attinge  aqiii  propor^oes  colossaes,  aos 
Combretum  lepidoptreum ,  verdadeiro  cars^allio  no  aspe- 
cto,  às  mnsassas  esgnias,  etc.  Està-se  a  meia  encosta; 
ein  redor  a  atmospliera  embalsania-se  coni  o  aroma 
das  jasmineas,  das  papileoiiaceas  odoriferas,  de  urna 
especie  de  malva  coni  o  clieiro  adocicado  d'essa  myrta- 
cea  a  que  cliamam  jambo,  entrela^ando  seus  ramos  coni 
uma  arvore  similliante  à  palmeira  rasteira  Phenix  (?), 
com  lij^hoenes,  limoeiros,  cidreiras,  laranjeiras,  ali 
dispostas  pela  mao  do  liomeni. 

Entre  as  roclias  serpeia  a  agua  eni  todos  os  seiiti- 
dos,  e  dez  ou  quiiize  variedades  de  fetos  revestem  lit- 
teralmente  o  terreno,  formando  um  verde  tapete  às 
arvores  gigantescas  que  sàem  do  seu  scio,  e  cuja 
abundante  seiva  e  animada  por  innumeras  raizes  ad- 
venticias. 

Estamos  a  1:000  metros  de  altitude.  N'unia  cla- 
reira  a  vista  estende-se  por  cima  dos  copados  macis- 
sos  d'esse  oceano  de  verdura,  e  entao  uni  panorama 
pouco  frequente  se  espraia  aos  olhos  do  viajante. 

A  direita  e  esquerda  destacam-se  as  vivas  aresta s 
das  roclias,  que  se  elevam  muito  acima  de  nossas 
cabe9as,  e  sao  n'essa  altitude  limite  for9ado  ao  desen- 
volvimento  do  arvoredo.  D'alii  até  ao  cume  a  barreira 


Chella  arriha  143 

mancbada  de  pedra  nao  consente  um  pé  do  mais  sin- 
gelo  arbusto;  e  dominando  senhoril  o  verde  macisso 
onde  assenta,  parece  nao  consentir  que  tao  alto  ouse 
acompanhal-a. 

Pela  abertura  media  alongam-se,  a  perder  de  vista, 
as  plamiras  de  Capangombe,  indo  confundir-se  des- 
maiadas  no  cordao  azul  dos  morros  longinquos,  em- 
quanto  o  viajante,  sentado  n'um  penedo,  descansa  e 
prepara  a  derradeira  avan^ada,  aguardando  a  gente 
que  se  atrazou. 

Uma  brisa  fresca  Ihe  roda  por  estas  alturas  o  afo- 
gueado  rosto  e,  rumorejando  por  entre  o  folliedo,  des- 
pede  para  o  chao  as  gotas  crystallinas  do  orvalho  que 
OS  raios  solares  ainda  nao  poderam  evaporar. 

Continiia  o  tortuoso  atalho  por  fimda  ravina,  serras 
acima,  de  mais  em  mais  inclinado. 

Jà  sao  1:200  metros,  depois  1:400;  a  agua  salta 
por  todos  OS  lados,  atolam-se  os  pés  no  humus  balofp; 
a  atmosphera  humida  carrega  o  pulmao,  o  suor  es- 
corre, vergam  as  pernas,  parece  quebrarem  os  joelhos; 
ainda  supremo  esfor9o;  n'imi  lacete  horisontal  a  1:600 
metros  resfolega-se,  toma-se  alento,  està-se  quasi  no 
cimo,  nao  se  respira,  assobia-se;  a  seccura  extrema 
aggrava  por  vezes  a  situacjào,  os  p(5s  pesam  duas  ar- 
robas,  o  bordao  vae  a  escapar-se  das  maos;  uf .  .  .  eis 
o  plateau. 

Sao  1:829  metros! 

Milha  e  meia  adiante  acampàmos  n'um  logar  deno- 
minado  o  arraial  de  Caionda,  extenuados  de  for9as  e 
tendo  pago  caro  o  anceio  de  nos  vermos  em  cima,  sof- 
frimento  que  foi  de  pronipto  esquecido  por  mesa  bem 


144  De  Ajigola  d  contro-costa 

fomecida  e  o  subsequente  <loce  considerar  perante 
urna  cliavena  de  café  e  um  cacliìmbo  carregado. 

O  aspecto  do  terreno  e  da  vegeta^So  na  aba  do  pla- 
teau variou  agora. 

As  rocbas  vìvas  de  alem,  succederam-se  tractos 
argillosos  coloridos  pelo  oxido  de  ferro;  é.  vigorosa 
vegeta^ao  da  encosta,  um  mato  franziiio  e  racbitico, 
que  por  vezes  desapparece  totalmente,  para  substi- 
tuir-se  por  anharas,  largas  campìnas  cobertas  de  ca- 
pim,  corno  nas  margens  da  lagoa  Inite,  onde  tivemos 


de  empregar  serìos  cuidados  para  precavcr  os  nossos 
c3.es  dos  ataques  do  crocodillo. 

Pouqiiissima  ca«;a  vimos,  so  matando  um  bambi, 
CepJtalophìis  mergens,  e  a  esse  respeito  acode-nos  agora 
uma  breve  consideracjao,  em  que  jA  no  Coróca  pensa- 
ramos, 

E  facto  por  nós  mais  de  uma  vez  notado,  que  os 
grandes  antilopes  da  Africa,  cmbora  pare<^a  devercm 
procurar  as  regiÒes  mais  ferteis  e  que  maior  pasto 
offcrecem,  fogem  a  ellas,  preferindo  eucurrallar-se  es- 


Chdla  arìiba  145 

faimados  era  tractos  de  terreno  inculto,  sem  agua, 
quando  nao  povoados  por  feras. 

Assim  o  galengue,  Ori/x  gazella,  cuja  falta  jà  no- 
tàramos  em  baixo,  nao  se  encontra  tambem  aqui,  posto 
que  o  separé  um  unico  gran  de  distancia  do  rio  Coró- 
ca,  onde,  abundando  pelas  margens,  embora  desnu- 
dadas  e  estereis,  divaga  aterrado  por  meio  dos  leoes, 
que  ali  vivem  em  numero  extraordinario. 

E  difficil  comprehender-se  a  causa  da  distribuÌ9ao 
zoologica  dos  animaes  n'esta  parte  da  Africa,  que,  de- 
vendo estar  principalmente  subordinada  ao  alimento, 
sem  contarmos  as  variantes  que  a  ella  podem  trazer 
determinados  perigos,  comò  a  proximidade  do  liomem, 
a  presenta  de  animaes  de  presa,  aqui  faz  completa  ex- 
cep^ao  a  taes  princij>ios. 

Ha  por  aqui  alguns  reptis,  entre  os  quaes  figura 
certa  cobra,  que,  existindo  proximo  dos  rios,  é  por  essa 
rasao  denominada  cobra  de  agua,  e  se  arremessa  comò 
dardo,  picando  e  matando  em  pouco  tempo  um  cavallo, 
segundo  nos  afian^aram. 

Nao  tivemos  opportunidade  de  vel-a,  pondo  sempre 
de  preven9ao  o  exagero  da  morte  do  cavallo  em  poucos 
minutos,  facto  que  a  final  póde  ter  origem  muito  dif- 
ferente. 

Os  indigenas  propendem,  mais  decididamente  ainda 
que  OS  viajantes,  para  amplificar  as  suas  narrativas, 
levando-se  pela  imagina9ao  até  ao  inverosimil  com 
extrema  naturalidade. 

Assim,  ao  informarmo-nos  do  reptil  acima  alludido, 
tivemos  ensejo  de  ouvir  historias  de  cobras  de  duas 
cabe9as,  de  cobras  voadoras,  etc. 

10 


146 


De  Angola  d  contro-costa 


\H 


Um  dos  creados,  cabinda  ladino  que  nos  acompa- 
nliàra  jà  na  primeira  viagem,  narrou  a  proposito  factoj 
estupendos  succedidos  na  sua  terra  com  està  especi< 
de  reptis,  asseverando  que  ao  entrarem  nos  curraei 
similhavam  o  balii-  do  bezerro,  a  firn  de  mammar  nai 
vaccas;  outras  vezes,  penetrando  de  noite  nas  cuba 
tas,  afastavam  os  fillios  dos  seios  matemos  para  en 
seu  logar  sugarem  o  leite! 

Entre  as  diversas  liistorietas  ouvimos  urna  que 
alem  de  enunciar  a  audacia  da  cobra,  dava  a  medidf 
do  pesado  somno  da  embriaguez  dos  conten^aneos  de 
nosso  creado. 

Certo  compatriota  do  cabinda,  assistindo  pela  noit< 
a  um  batuque,  deixou-se  arraètar  no  meio  das  dansai 
pelos  bacchicos  deleites,  a  ponto  de,  ao  concluir  di 
festa,  acbar-se  nas  mais  criticas  circumstancias. 

A  caminho  de  casa  o  infeliz,  cambaleando,  approxi 
mou-se  da  porta  da  babita9ao,  mas,  faltando-llie  aj 
for9as,  cafu  adormecido. 

Ao  alvorecer  o  estonteado  acordou,  quiz  mexer-se 
mas  nao  póde;  gritou,  bracejando;  era  impossivel  le 
vantar-se:  immobilidade  estranila  o  dominava,  tinlu 
as  duas  pernas  mettidas  no  esophago  de  uma  pytboi 
enorme  ! 

A  proposito  de  cobras  ainda  occorre  dizermos  o  se 
guinte. 

Existe  por  aqui  um  typo  de  carneiro  (indigena,  ac 
que  parece,  pois  nos  afian9am  ser  oriundo  do  Nano) 
de  pequenos  cbifres  retorcidos,  grande  juba  que  lh( 
desce  até  ao  peito,  e  é  considerado  comò  o  mais  ter- 
rivel  inimigo  da  cobra. 


Chella  arriha  147 

Quando  pressente  algiim  reptil  d'aquella  especie, 
poe-se  de  guarda  à  toca  dias  inteiros,  até  que  o  en- 
contra,  e  n'uma  lucta  de  poucos  momentos  victima-o 
invariavelmente. 

É  notavel  este  animai  por  gostar  multo  da  cerveja 
indigena,  que  nos  asseguraram  beber  sofrega  e  em 
abundancia,  sobretudo  quando  este  liquido  està  fer- 
mentando. 

Em  seguida  o  seu  maior  prazer  é  deitar-se  ao  sol, 
notando,  quem  o  obsei-va  n'essa  occasiao,  uma  grande 
quantidade  de  vapor  que  llie  sae  da  pelle  e  se  dissipa 
no  ar! 

A  2  de  maio  terminaram  as  clmvas  no  plateau  da 
Huilla,  camdo  n'essa  mesma  noite  pela  primeira  vez 
copioso  cacimbo  *. 

Pela  tarde  assistimos  a  um  singular  phenomeno 
atmospherico. 

0  céu,  que  durante  o  dia  se  conservàra  coberto  de 
cumulos  minusculos,  com  aquelle  aspecto  que  o  vulgo 
designa  por  pedrento,  come90u  a  limpar-se  do  lado 
do  poente. 

A  corrente  de  ar,  porém,  que  tal  phenomeno  ope- 
rava, fazia-o  com  tanta  regularidade,  que  ao  appro- 
ximiir-se  do  occaso  o  astro  rei,  formàra  das  nuvens 
uni  regular  e  gracioso  arco,  com  45®  de  altura,  que 
irisado  com  todas  as  cores  do  espectro,  tinha  a  mais 
originai  e  bella  apparencia,  emmoldurado  de  raios 
brilhantes  e  divergentes. 


1  Cacimbo  é  a  quadra  secca  das  vcntanias  do  sueste,  que  se  esten- 
de desde  maio  a  agosto  n*esta  regimo. 


148  De  Angola  d  controncosta 

Schweinftirth  parece  ter  observado  alguiua  cousa 
8Ìmilhante  no  paiz  dos  bongos,  e  é  notavel  a  coinci- 
dencia  do  mez  da  observa^ao,  pois  foi  a  18  de  maio 
que  em  sua  viagem  viu  o  phenomeno. 

Do  arraial  de  Caionda  proseguiu  a  expedÌ9ao  por- 
tugueza  atravez  dos  virentes  plateaux  que  a  defron- 
tam  a  caminho  directo  da  Huilla,  onde  chegou  a  3 
de  maio. 

A  villa  apregenta  um  aspecto  agradavel,  embora 
muito  deixe  ainda  a  desejar,  com  as  suas  casas  bem 
situadas,  tendo  no  meio  a  ampia  fortaleza,  mas  que 
carece  de  reparos. 

A  frente  estao  as  planta^oes  e  aos  pés  o  rio  LupoUo, 
correndo  leste  a  oeste  n'um  risonilo  e  pittoresco  valle, 
depois  de  derivar  de  uma  cascata  formosa  de  que  da- 
mos  o  desenho. 

Meia  duzia  de  morros,  dispersos  em  vasto  semi-cir- 
culo  de  éste  pelo  norte,  animam  o  panorama  com  os 
seus  vultos  gigantescos. 

A  importancia  agricola  da  Huilla  póde  tomar-se 
grande,  por  emquanto  nao  o  (5.  Cada  qual  semeia  para 
si  trigo,  centeio,  milho,  couves,  batatas,  e  com  isso  se 
contenta.  A  distancia  que  a  separa  do  litoral  tem-lhe 
impedido  o  desenvolvimento,  pois  é  impossivel  enviar 
para  a  costa  qualquer  artigo,  estando  sòbrecarregado 
o  carreto  na  rasao  de  20  libras  esterlinas  por  100  ar- 
robas. 

A  expedi^ao  portugueza  demorou-se  n'esta  terra  até 
29  de  maio,  a  fim  de  refazer-se  de  alguns  artigos  que 
precisava,  e  sobretudo  esperar  por  vinte  carregadores 
que  da  costa  vinham  em  caminho. 


Chdla  arriha  149 

Entre  diversos  estudos  diurnos,  ocios  da  tarde  e 
urna  viagem  a  Quipungo,  na  inten9ao  de  visitar  o  Cu- 
nene,  passaram-se  esses  vinte  e  seis  dias  n'um  dos  mais 
salubres  logares  da  nossa  Africa  occidental. 

0  clima  da  Huilla  nao  carece  de  encomios.  A  sua 
altitude,  temperatura  moderada,  brisa  fresca,  regula- 
ridade  de  esta9oes,  tem-lhe  valido  justa  reputa9ao. 

Ahi  vivem  os  europeus  comò  em  piena  Europa, 
tendo  so  a  queixar-se  de  alguma  bronchite  ou  pneu- 
monia,  doencjas  frequentes  ;  pouco  visitados  pela  febre, 
fortes  e  robustos,  apresentam  frequentemente  estra- 
nhos  exemplos  de  longevidade. 

A  terra  fertil  d'esse  paiz  produz  quanto  se  lembra- 
rem  de  lancjar-lhe  ;  desde  o  pecego  e  o  trigo  até  à  gin- 
guba  ou  mendobi,  vimos  que  tudo  vingava  com  igual 
facilidade. 

As  bastas  florestas  d'està  pittoresca  regiao  abun- 
dam  em  numerosas  especies  uteis,  hoje  bem  conheci- 
das,  as  quaes  os  indigenas  com  muito  proveito  appli- 
cam  a  diversos  usos. 

Assim  se  véem  promiscuamente  de  um  lado  as  fru- 
ctiferas  Dio^yros  inespili formis ,  arvore  de  boa  madeira 
e  fructo  comestivel,  que  os  indigenas  denominam  mu- 
lande,  juntas  com  as  erguidas  nocheiras,  Par.  mabola, 
de  folhas  verde  escuras  de  um  lado  e  claras  do  outro, 
comò  o  platano,  arvore  que  mais  tarde  nos  foi  tao  pro- 
veitosa  nas  matas  do  Lualaba;  e  logo  perto  a  Euclea 
lanceolata,  cujo  fructo  vermelho  muito  appetecivel  é 
conhecido  por  n'boto;  e  a  ucha  ou  uxa,  tambem  ver- 
melha,  maior  qué  uma  cereja,  e  que  jà  haviamos  en- 
contrado  em  Caconda;  e  ainda  o  gongó,  d'onde  se 


150  De  Angola  d  corUra-costa 

extrahe  do  fructo  amarello  urna  bebida  inebriante,  a 
par  da  Striclnws  sps.^  laraiija  do  niato,  de  que  existem 
variedades  de  uni  cinzento  claro,  que  sao  venenosas 
e  OS  iiidigenas  chamam  mabóca;  e  outras  à  mistura, 
conio  as  •  combretaceas  e  a  Terminalia  anc/oleìisis;  de 
formosas  proteaceas;  a  IVicJios  speciosa,  de  espigas 
floridas;  de  gigantes  leginninosas,  corno  Pterocarpus 
erinaceus,  cujo  tronco  exsuda  vemiellia  resina;  de  ru- 
beaceas,  etc. 

Ali  se  encontra  o  pan  caniphora,  t'chicongo,  scien- 
tificamente conhecido  pelo  Ihrchonanthus  camphoraius , 
que  eni  certos  logares  constitue  parte  dos  bosques;  o 
pan  sandalo,  Pterocarpus  (?),  muito  estimado  pelos 
indigena»,  e  que,  quando  arde  na  fogueira,  exhala 
aroma  similhante  ao  da  madeira  da  China,  servindo 
para  aquecer  os  quartos  dos  sobas  e  muitos  outros  usos. 

Tiradas  encomiasticas  com  respeito  a  està  regiao, 
por  todos  conliecida  e  apreciada,  tomam-se  em  ver- 
dade  superfluas. 

Ali  acham-se  reunidas  as  condi^oes  para  urna  vasta 
colonisacjào  europèa,  e  em  circumstancias  pouco  faeeis 
de  encontrar  na  Africa;  e  pois  urgente  tornal-a  o  alvo 
de  todos  OS  nossos  esforcjos  e  atten9oes,  envidar  todos 
OS  recursos  para  que  prospere,  formando  o  grande  cen- 
tro de  nio\àmento  que  breve  irradiarà  para  as  terras 
do  norte  e  nordeste. 

Deixemo-nos  de  mais  considera9oe8;  capital  e  que 
se  deseja,  propaganda  fazemol-a  iiós  aqui,  recordando 
que  n'uma  terra  que  tao  generosamente  secunda  os  es- 
for90s  do  colono  nada  póde  resistir  a  forcja  de  von- 
tade  bem  determinada;  e  sirva  de  cxemplo  esse  pu- 


Chdla  arriha  151 

nhado  de  colonos  que,  tendo  ido  para  ali  em  1840, 
pela  maior  parte  com  os  bolsos  vasios,  levantaram  a 
esplendida  villa  de  Mossamedes,  e  sao  lioje  pelo  geral 
proprietarios. 

Os  geographos  pela  sua  parte  téem  feito  o  que  Ihes 
incumbe;  continue  o  governo  a  empenhar-se  com  se- 
riedadè  na  obra;  venliam  para  o  interior  o  missiona- 
rio, o*  mercador  e  o  colono,  e  breve  veremos  operar-se 
a  mais  radicai  transfòrmacjao. 

A  primeira  cousa  precisa  e  crear  meios  de  transpor- 
te; de  outra  fórma  todo  o  successo  sera  impossivel. 

0  recemcliegado,  negociante,  mercador  ou  làvra- 
dor,  por  melhor  que  seja  a  sua  vontade,  nada  póde  no 
interesse  de  um  paiz  falto  de  bons  caminhos  e  vias 
de  communica^ao. 

Que  importa  o  facto  da  Huilla  produzir  multo  tri- 
go,  se  cada  carro  boer,  por  exemplo,  leva  o  excessivo 
precjo  de  meia  libra  esterlina  por  arroba  para  o  trans- 
portar à  costa? 

Para  que  vos  serve  saber  que  das  vertentes  da 
Chella  até  à  bacia  de  Quillengues  póde  colher-se  todo 
o  millio  preciso  para  o  consumo  da  provincia,  e  ainda 
para  abastecer  a  colonia  do  Cabo,  se  nem  uma  espiga 
podeis  trazer  atravez  das  serranias  do  Munda? 

A  viacjao  é  o  objecto  capital,  e  isto  em  detrimento 
de  todas  as  outras  obras,  comò  hospitaes  sumptuosos, 
residencias,  quarteis,  etc,  de  que  de  resto  temos  abu- 
sado  multo. 

Abrir  caminhos,  porém,  atravez  das  terras  aridas  e 
em  seguida  dos  matos  interiores  para  se  servirem  com 
carros  de  bois,  é  um  erro  sem  nenhuma  vantagem. 


152  De  Angola  d  contra-costa 

Grande  capital  seria  necessario  para  urna  obra  de 
que  apenas  ha  a  esperar  resultado  mediocre,  sem  com- 
prehender  tempo,  traballio  e  oiitros  factores,  comò 
morte  de  gados,  etc. 

Procuremos,  portanto,  na  viacjao  accelerada  resol- 
ver este  problema,  e  vamos  ao  caminho  de  ferro  ou  ao 
tramway  a  vapor,  corno  unico  recurso  para  transfor- 
mar tudo  aquillo.  Toniemos  Mossamedes  comò  ponto 
de  partida,  prosigàmos,  por  exemplo,  pelo  valle  do  Gi- 
raul  ou  do  Bero. 

Ganhando  o  interior,  essa  linlia  attingirà  a  regiao 
proxima  de  Capangombe,  procurando  a  directriz  mais 
conveniente  para  vencer  as  alturas  da  Cliella. 

Està  aqui  sem  duvida  a  pedra  angular  do  edificio, 
mas  com  estudo  e  traballio  póde  conseguir-se. 

Podendo  proseguir  pelo  valle  do  Muninlio,  teriamos 
tiilvez  a  vantagem  de* a  levar  para  o  nordeste,  isto  é,  na 
direccjao  dos  centros  mais  productores;  no  caso  con- 
trario dirigir-se-la  para  o  sul  do  Hoque. 

Das  duas  direccjoes  porém  a  mais  proveitosa,  posto 
que  a  julgàmos  mais  difficil  para  o  caso  da  subida,  e 
a  do  sul,  porque  havendo  de  bifurcar-se  no  planalto, 
a  fim  de  lanciar  o  ramai  do  Humbe,  ficava  assim  dimi- 
nuido  este,  e  o  ramo  directo  iria  a  caminlio  da  Huilla 
e  Handa  para  Caconda. 

Escusado  sera  dizer  que  està  direc9ao  media  da  li- 
nlia, por  nós  apresentada  pelo  nordeste,  nao  se  funda 
simplesmente  na  necessidade  de  servir  aquelle  presi- 
dio, pois,  pela  exigua  importancia  que  tem  o  forte,  po- 
dia  ella  desviar-se  mais  ao  sul  ou  ao  norte;  mas  por- 
que toda  a  tentativa  ulterior  de  prolongamento  para 


Chella  arriba  x  153 

o  sertao  La  de  ir  approximar-se  do  Bié,  a  firn  de 
buscar  a  linha  divisoria  das  aguas  no  interior,  na  terra 
alterosa. 

Assim,  em  pouco  tempo  veriamos  nós  Mossamedes 
ligada  a  Caconda  por  urna  linha  directa,  que  atraves- 
sando  as  terras  elevadas  teria,  n'uma  zona  lateral  de 
20  kilometros,  a  area  de  18:000  kilometros  quadrados 
de  terrenos  ferteis. 

Qualquer  companhia  qiie  podesse  dispor  do  capital 
necessario  para  o  estabelecimento  de  urna  tal  empreza, 
toparia  n'aquella  regiào  vantagens  muito  especiaes  e 
em  circumstancias  raro  encontraveis. 

Primeiro,  a  sua  construccjao  seria  relativamente  pra- 
ticava na  zona  litoral,  nao  so  pela  facilidade  em  obter 
bragos,  comò  tambem,  por  nao  offerecer  exagerados 
obstaculos,  estando  alem  d'isso  proxima  do  mar  e  em 
vantajosa  posicjao. 

Protegida  por  todos  os  agricultores  e  negociantes, 
tendo  infallivelmente  o  transito  de  todas  as  mercado- 
rias  sem  competencia,  pois  a  tonelada  de  algodao  que 
de  Capangombe  pagava  33^000  réis,  pagaria  agora, 
pela  tarifa  de  50  rcis  o  kilometro,  5|i000  réis;  teria 
està  linha  comò  poucas  outras  a  immediata  exploracjao 
de  toda  a  salubre  zona  marginai,  onde  breve  appare- 
ceriam  aldeias  e  villas. 

Nao  podemos  seguramente  calcular  a  cifra  que  a 
produccjào  agricola  desde  logo  attingiria,  mas  por  certo 
seria  enonne.  Os  trigos,  os  milhos,  os  algodoes,  os  le- 
gimies,  sem  contar  desde  o  principio  com  a  salda  de 
productos  naturaes,  que,  desviados  dos  trilhos  do  nor- 
te,  viriam  ali  buscar  o  terminus  da  mesma  linha;  al- 


154  De  Angola  d  contro-costa 

ternaria  sem  duvida  coni  o  transporte  de  gados,  tam- 
bem  representado  por  urna  verba  importante,  e  miiitas 
produc9oes  novas. 

0  caminho  de  ferro  por  modo  nenhum  póde  sor 
mn  desastre  n'esta  regiào,  pelo  simples  motivp  do  seu 
tra9ado  fazer-se  n'uma  zona  em  que  o  indigena  nào 
predomina  exclusivamente,  e  porque  estamos  conven- 
eidos  de  que  procrearà  vastos  centros  de  populacjao 
branca,  cujas  necessidades,  bem  differentes  das  do  ne- 
gro, dependerào  das  relacjoes  exteriores. 

Attentemos  na  situa^ao  actual  das  cousas,  e  logo 
veremos,  à  luz  do  boni  senso,  as  grandes  vantageiis 
a  advir  do  seu  estabeleciniento  n'esta  regiao  quasi 
inexplorada,  e  quanto  d'ella  tem  a  esperar  o  europeu, 
e  o  negro  especialmente. 

0  commercio  na  costa  occidental  da  Africa  està,  por 
assim  dizer,  no  estado  primitivo. 

Raras  sao  as  exploracjoes  agricolas  de  vulto,  raros 
OS  estabelecimentos  fundados  no  intuito  de  arrancar  à 
terra  tudo  quanto  póde. 

A  explora(;ao  dos  productos  naturaes  é  o  grande 
problema  quQ  a  todos  fascina,  comò  fascinou  recen- 
temente ainda  estrangeiros  nos  seus  calculos  relati- 
vos  ao  commercio  do  Congo,  e  a  final  é  um  recurso 
mais  variavel  do  que  se  suppoe,  e  meio  pouco  proprio 
a  conseguir  alguma  cousa  na  questào  do  progresso 
dos  naturaes. 

0  marfim,  a  cera,  o  oiro,  a  borracha,  etc,  artigos 
que  este  facilmente  encontra,  sao  nos  mercados  cen- 
traes  permutados  pelos  cafuses  ignorantes,  que  os  tra- 
zem  à  costa,  sem  que  o  indigena  sequer  ganhe  as  van- 


Chella  arriha  155 

tagens  provenientes  de  urna  viagem  à  mesma  costa 
ou  das  relacjoes  com  o  europea. 

0  negro  recolhe  urna  boia  de  borraclia,  espera  o 
mercador,  vende-lli'a  por  urna  jarda  de  fazenda,  e 
quem  a  compra  vae-^e,  ficando  elle  corno  até  ali  estava, 
ignorando  tudo. 

Nao  e  assim  que  se  ci\41isam  povos,  nào  e  por  meio 
de  um  tal  trafico  (erradamente  chaniado  commercio) 
que  a  civilisacjao  tem  a  ganliar  n'aquellas  regioes,  e 
apenas  póde  aproveitar  d'elle  a  rabula  mercantil  do 
cafuz  e  até  certo  ponto  a  correspondencia  ainda  pouco 
facil  com  o  interior. 

Urge  estabelecer-se  entre  os  africanos,  claro  é  que 
nos  referimos  às  zonas  onde  o  europeu  póde  viver;  mos- 
trar-llies  as  vantagens  a  advir  da  cultura  da  terra,  fa- 
zer-lhes,  pelo  gostoso  exemplo  da  posse,  crear  affinco  ao 
traballio;  infundir-lhes,  pela  amostra  progressiva  do 
bem  estar,  o  desejo  do  ganlio  e  a  no9ao  da  proprie- 
dade;  ligar  com  taes  principios  a  idèa  da  familia,  da 
successao,  da  garantia  do  traballio  na  descendencia  ; 
constituir  sociedades  cujo  modo  de  ser  se  aflPeicjoem  ao 
que  conliecemos  n'esse  sentido,  com  principios  e  ne- 
cessidades  identicas  aos  nossos,  e  so  assim  teremos 
conseguido  em  Africa  dar  um  grande  passo  na  senda 
ci vilisadora  ;  so  entao  travarà  com  ella  a  Europa  um 
commercio  verdadeiro  e  regular. 

Quando  ao  marfim  se  substituir  a  ginguba,  à  gomma 
as  toneladas  de  assucar,  aò  oiro  os  carregamentos  de 
algodao,  vereis  em  Afii-ica  pullular  uma  popula9ao  in- 
dustriosa e  activa,  branca  e  de  cor,  capaz  de  fazer  muito 
mais  do  que  se  pensa;  emquanto  o  commercio  se  ba- 


156  De  Angola  d  contra  costa 

sear  nas  contingencias  da  cacja  ao  elephante,  em  zonas 
asperas  e  insalubres,  so  observareis  bandos  de  saltea- 
dores  negros  e  a  barbarie  polygamica  espalhada  por 
sobre  o  continente. 

Attente-se  na  questao  principal,  a  salubridade,  e  fu- 
jàmos  um  pouco  do  norte. 

Determinemo-nos  a  proceder  com  bom  senso  e  a 
cessar  de  urna  vez  com  essa  dispersao  irreflectida  pela 
provincia,  de  dinheiro  e  vidas,  que  em  muitos  casos 
nào  tem  feito  mais  do  que  continuar  uma  terrivel  re- 
putacjao  para  todos  os  districtos  da  colonia,  e  quando 
muitos  tal  nao  merecem,  sem  vantagem  alguma  di- 
recta  para  a  mesma  colonia. 

Querer  adaptar  o  europeu  recemvindo  e  nao  de- 
portado  a  um  meio  comò  o  que  se  encontra  no  Bengo 
ou  nas  margens  do  Cuanza,  em  Ambaca  ou  Malanje; 
constrangel-o  a  estabelecer-se  ahi  com  a  mullier  e  fi- 
Ihinhos  que  o  acompanham,  e  a  empregar-se  corno 
colono  no  amanho  da  terra;  exigir  que  ahi  edifique, 
cric,  prospere  e  consiga  ao  cabo  de  annos  converter 
n'um  paraizo  aquellas  terras,  é  desconhecer  a  Africa, 
é  positivamente  matal-o! 

Com  alguns  tra90s  de  penna  jà  Livingstone  nos  ar- 
guiu  — e  d'essa  vez  teve  bastante  rasao, —  dizendo 
que  nós  nao  faziamos  muitas  vezes  mais  do  que  estra- 
gar  for9a  e  perder  riqueza,  sacrificando  improficua- 
mente  as  vidas  de  tantos  milhares  de  homens  que  para 
ali  enviàmos,  os  quaes  podiam  occupar-se  nas  zonas 
salubres,  para  resolver  problemas  de  muito  interesse. 

Estude-se  com  seriedade  este  assumpto,  attente-se 
bem  no  que  deixàmos  dito  na  epigraphe  do  presente 


Chdla  arriha  157 

capitalo  sobre  o  colono,  conceituosamente  corno  o  hu- 
mano  instrumeiito  da  magna  erapreza  de  civilisar  o 
mundo;  considere-se  que  sem  elle  todo  o  progresso 
em  Africa  é  urna  chimera,  porque  so  elle  ha  de  assen- 
tar  as  verdadeiras  bases  de  um  commercio  regalar, 
activando  a  exploracjao  do  paiz,  comò  contrabalan90 
às  necessidades  qiic  a  indastria  earopéa  satisfaz;  qae 
so  com  elle  póde  radicar-se  o  elemento  social,  a  fami- 
lia,  e  constitair  vastos  centros  civilisados,  d'onde  o 
indigena  ha  de  approximar-se,  segnindo-lhe  as  leis 
fataes;  qae  emfim  elle,  levando  para  ahi  a  nocjào  exa-  , 
età  do  direito  da  vida  e  da  propriedade,  ha  de  iniciar 
o  negro  na  sablime  obra  da  comprehensao  d'esses  no- 
bres  sentimentos,  que,  principiando  no  respeito  pelos 
progenitores,  se  alargam  ao  lar  pela  constitaicjao  da 
familia,  e  estendendo-se  saavemente  à  prole,  acabam 
no  homem  a  tendencia  animai  e  egoista  de  apenas  em 
si  pensar,  tornando-o  bom  filho,  marido  extremoso, 
temo  e  solfcito  pae,  e  depois,  quando  ajustarmos  nas 
precedentes  considera^oes,  veremos  que  a  principal 
cousa  a  fazer  para  a  colonisa9ao  é  crear  ao  colono, 
nas  terras  por  onde  elle  se  dirige,  todos  os  confortos 
possiveis  para  resistir  aos  primeiros  embara^os,  todas 
as  garantias  para  que  do  seu  traballio  derive  um  suc- 
cesso. 

E  nao  é  seguramente,  repetimos,  no  valle  do  Bengo, 
do  Cuanza,  no  Congo  em  Cabinda  ou  outro  ponto  de 
condicjoes  similhantes,  que  elle  ha  de  prosperar,  dire- 
mos  mesmo,  viver! 

Attentae  infelizes,  que,  levados  pela  cobÌ9a  de  ad- 
quirir  riqueza,  vos  illudis   com  palavras  fallazes  e 


158  De  Angola  d  contro-costa 

enganadoras  de  qiiem  nao  sabe  oii  pretende  à  vossa 
custa  fazer  fortuna. 

Fiigi  com  vossas  familias  da  zona  da  costa  até  ao  pa- 
rallelo do  Anibriz  vindo  do  norte,  e  para  o  intenor,  do 
valle  dos  rios  na  regiao  litoral  e  mesmo  montanhosa 
n'esse  parallelo;  caminliae  para  o  sul,  e  encontrareis 
no  distrieto  de  Benguella  e  sobretudo  de  Mossamedes, 
vastos  tractos  de  terreno,  onde  o  vosso  traballio  se  po- 
derà  desenvolver  e  a  saude  correrà  seni  riseo  no  meio 
dos  labores  incessantes  da  mais  rude  das  vidas — o 
arrancar  à  terra  o  sustento  de  cada  dia. 

Tudo  o  que  fizerdes  em  contrario  das  infomia^oes 
que  vos  fornecemos  aqui,  sera  o  resvalar  para  a  beira 
do  abysmo,  um  passo  inconsciente  para  esse  termo  fa- 
tal,  que  se  chama  o  tumulo! 

E  se  estas  indiea^oes  servirem  àquelles  que  gover- 
nam,  jà  apoiando-vos  com  o  seu  inigualavel  patroci- 
nio, jà  auxiliando  a  organisacjào  de  companhias  que 
vos  possam  coadjuvar  na  lucta  dos  primeiros  tempo» 
em  terras  novas,  nós  d'aqui,  afiancjando  o  rapido  pros- 
perar da  regiao  sobre  que  ora  escrevemos,  agouràmo- 
vos  um  futuro  de  felicidade. 


CAPITULO  V 


NA  IIUILLA 


Coinciileiicia  feliz — Antonio  Carlos  Maria,  o  companlieiro  ca^ador — 
0  acampamento  e  o  soba  da  Huilla — A  fciti^aria — Suas  rcla9oe8  com 
08  rcgiilos — A  habìta9ao  do  fcitiecLro  e  os  ìnstrunicntos  do  officio — Pro- 
cesso de  adivinha^ao — Urna  scena  pela  noite — A  niissSo  da  Huilla  e  os 
missionarios — Duparquet  e  a  sua  obra — Partida  para  Quipungo — Ab 
florestas  e  o  passaro  cabra — A  fauna  da  Huilla  e  as  penedias  de  leste — 
Os  ba-nhaneca  e  os  dentistas — Effeitos  do  tiro  entre  africanos — A  ha- 
bita^ao  do  soba  de  Quipungo — Visita  ao  regulo — Um  companheiro  apeado 
e  o  regresso  pelo  sul — Casulo  estranho — Considerayoes. 


Desde  o  dia  3  de 
maio  até  29  do  mes- 
mo  mez,  dissemos  no 
precedente  capitulo, 
demorou-se  a  expe- 
di^aoportugiiezanaa 
terras  da  Huilla,  or- 
ganisando,  conforme 
era  sempre  seu  cos- 
tume, um  acampa- 
mento  no  mato. 

Nada  ha  melhor, 


para  evitar  as  repe- 
tidas  visitas  de  im- 


portunos  e  prevenir  deagostos  provenientes  de  que- 
rélaa  e  complica95cs,  frequentissimas  entre  africanos, 
do  qiie  isolar-se  o  explorador  e  a  sua  gente  em  acam- 
pamento  afastado  das  aldciae. 


162  De  Angola  d  contr accosta 

So  assim  descansa  e  póde  disciplinar  os  seus,  bem 
corno  se  faz  traballio  aproveitavel,  e  tal  é  a  nossa  con- 
vic9ao  a  este  respeito,  que,  embora  tivessemos  urna 
fort^leza  e  a  residencia  da  aiictoridade  &  nossa  dis- 
posÌ9ao,  i^referimos  conservar-nos  de  longe  no  socego 
do  bosque. 

A  inten9ao  era  aijroveitarmos  aquella  demora  para 
visitar  as  terras  do  Quipungo,  onde  se  dirigiria  um  de 
nós,  avan9ando,  se  porventura  podesse,  até  à  margem 
do  rio  Cunene. 

Por  acaso  o  chefe  do  concellio  precisava  ir  ali  em 
objecto  de  servÌ90  do  governo;  urna  tal  circumstancia 
nos  proporcionou  o  ensejo  de  ter  por  companlieiro 
um  individuo  conhecedor  do  paiz  e  prompto  a  auxi- 
liar-nos  com  a  mellior  vontade. 

Està  eventualidade  feliz  teve  ainda  um  outro  re- 
sultado,  que  foi  travarmos  rela9oes  com  um  joven 
africano,  Antonio  Carlos  Maria,  que  depois  fez  com- 
nosco  a  travessia  &  contra-costa  na  qualidade  de  ca- 
9ador,  e,  seja  dito  sem  rebu90,  pela  sua  audacia  e 
energia  nas  correrias  cynegeticas,  dez  vezes  salvou  a 
expedÌ9ào  de  um  dos  mais  desgra9ados  fins — a  morte 
pela  fome! 

Como  houvessemos  solicitado  do  sr.  Cliaves  o  obse- 
quio  de  nos  procurar  um  homem,  conhecedor  da  lin- 
gua do  paiz,  para  n'esta  digressào  auxiliar-nos  com 
as  informa9oes  gentilicas  que  precisassemos,  apresen- 
tou-nos  o  mancebo  jà  citado,  com  quem  bastaram  tres 
dias  de  convivio  para  reconhecermos  um  estimavel  ca- 
valheiro  de  nao  vulgar  caracter;  e  decidimo-nos  a  todo 
o  transe  a  contratal-o  para  a  viageni. 


Na  malia  163 

Antonio  Carlos  Maria  é  a  perola  dos  rapazes  afri- 
canos;  seu  pae,  a  quem  corriam  as  lagrimas  ao  entre- 
gar-nol-o,  conta  jà  oitenta  e  dois  annosj  e  deve  exul- 
tar,  julgando-se  pago  dos  sacrificios  que  por  elle  fez, 
quando  ler  estas  breves  linlias. 

Terminada  a  construc^ao  do  grande  acampamento 
fronteiro  à  villa,  abrimos  uni  parenthesis  de  descanso, 
para  em  seguida  nos  lan^armos  aos  labores  que  nos 
esperavam. 

E  foram  dias  agradaveis  esses,  pas^sados  à  sombra 
de  gigantesco  sycomoro,  no  centro  de  paizagem  sorri- 
dente, entregues  a  miudo  aos  prazeres  de  urna  mesa 
bem  servida,  o  que  na  Hiiilla  é  facil  conseguir.  Durante 
elles  recebemos  numerosas  visitas,  umas  por  curiosi- 
dade  ou  passatempo,  ontras  por  dever  de  delicadeza, 
muitas  para  conseguir  algum  benefìcio  em  fazenda  ou 
aguardente,  etc,  mediante  artigos  de  negocio,  que  se- 
ria longo  enumerar. 

Entre  os  visitantes  figurava  sempre  um  velhote  que 
se  considera  regulo  ali,  e  que  nas  suas  entrevistas 
pedia  apenas  aguardente. 

Era  o  seu  j^ensamento  fixo,  desde  que  saira  do  nosso 
campo  e  cremos  que  toda  a  noite,  o  inventar  a  ma- 
neira  de  no  dia  seguinte  nos  extorquir  mais  copos  do 
enebriante  liquido. 

Ultimamente,  para  assegurar  o  exito,  trazia  comsigo 
uma  macota,  creatura  feia  e  de  repellente  aspecto, 
mas  em  cujo  olhar  transluziam  os  coriscos  de  vellia- 
caria,  e  que  se  dizia  ser  um  n  ganga! 

E  um  terrivel  feiticeiro,  afian90u  alguem  em  àparte; 
possue  o  segredo  de  todos  os  ingredientes  que  podem 


164  De  Angola  d  contror-costa 

matar;  adivinlio  fomiidavel  que  tiido  sabe;  bastando- 
llie  olhar  qualquer  pessoa  para  que  os  Sandis  se  ape- 
ffuem  COVI  ellaK 

Capaz  até  de  adivinhar  onde  estava  a  agnardente, 
consideràmos  nós! 

Toda  a  cautela  6  pouca,  foi  a  conclusao,  e  tal  crea- 
tura nada  aqui  póde  vir  fazer  de  bom. 

E  nós,  olhando  para  o  n  ganga,  e  logo  para  os  inter- 
locutores,  pasmavamos  do  quanto  póde  a  8uperstÌ9ao  e 
a  ignorancia  n'um  cerebro  mal  alumiado  pelo  juizo. 

Entre  as  cren9a8  estranhas,  arreigadas  no  espirito 
do  negro,  existe  aquella  — sabem-no  todos —  de  que 
certos  individuos  teem  o  poder  de  adivinhar,  e  està 
triste  conviccjào  faz  com  que  nas  diversas  tribus  exista 
um  ou  mais  d'esses  individuos,  ngangas  ou  adivinlios, 
que,  valendo-se  da  cegueira  dos  seus  conterraneos, 
commettem  toda  a  casta  de  extorsoes  e  de  infamias! 
E  para  la  stimar,  porém,  que,  estreitamente  ligados  à 
tribù  onde  residem  pelos  la90s  da  necessidade  e  do 
respeito,  estes  lieroes,  embora  odiados,  sejam  sempre 
um  gi-ande  recurso  para  os  cliefes  no  processo  de  espo- 
liarem  os  vassallos,  tornando-se  por  vezes  instrumen- 
tos  de  oppressao  e  tyrannia,  quando  por  conta  propria 
OS  seus  perversos  cora^oes  nao  os  levam,  arrastados 
pela  cobÌ9a  ou  vingancja,  a  commetter  actos  da  mais 
requintada  barbaridade. 


1  Sandis,  segundo  Magyar,  é  entre  os  binbundo  o  feiti^o  do  bem; 
segiindo  nós  é  urna  designa^ao  generica  de  feitÌ90  e  alma  de  mortos,  ou 
o  seu  vulto,  comò  quizerem.  No  nosso  primeiro  livro,  De  Bengudla  às  ttr- 
ras  de  lacca,  fallàmos  do  QuUulo  N^Sandi,  corno  o  grande  feiti90  bieno, 
assim  comò  entre  os  dàmaras  é  o  Otjiruro,  absolutamente  o  mesmo. 


Na  Huilla  165 

0  indigena  africano,  em  tudo  que  seja  menos  vul- 
gar,  encontra  a  expKca9ào  na  feitÌ9aria,  e  para  isso 
toma-se-llie  necessaria  a  presen9a  do  adivinhador! 

A  morte  de  qualquer  parente,  a  fractura  de  uni 
membro,  a  mais  simples  doen9a,  ou  a  perda  de  urna 
cabe9a  de  gado,  sao  questoes  que  nao  passam  sem 
elle  ser  chamado  e  ouvido. 

Accumulando  alem  d'isso  o  conhecimento  das  her- 
vas  do  mato,  e  mézinlias  a  empregar  em  sua  grosseira 
therapeutica,  d'onde  propriamente  Ihe  deriva  o  nome 
de  ri  ganga,  é  considerado  corno  verdadeiro  Salvador, 
unico  capaz  de  evitar  esses  grandes  infortunios. 

Os  adivinhos  sao  pelo  geral  homens  feios,  mesmo 
defeituosos,  e  quasi  sempre  individuos  a  quem  a  de- 
cep9ao  e  sérias  contrariedades  tomaram  biliosamente 
perversos  e  inimigos  do  seu  similhante. 

Vivem  sós,  em  uma  pequena  cubata,  no  logar  mais 
escuso  da  aldeia  e  afastados  do  rumor. 

0  interior  da  liabita9ào,  e  frequentes  vezes  uma 
pequena  gaiola  fronteira,  especie  de  miniatura  da  vul- 
gar  casa  africana,  impressionam  o  viajante.  Ahi  se 
observam  em  pequenas  hasteas  craneos  de  diversos 
animaes  desde  o  boi  até  ao  macaco,  panellas  meio  en- 
terradas,  contendo  chifres  de  antilope  cheios  de  uma 
massa  preta  e  outros  minusculos  de  gazella,  caudas 
de  boi  e  de  leopardo,  unhas  de  leao,  bicos  de  papa- 
gaio  e  cabe9as  de  morcego,  à  mistura  com  cascas  de 
kagado,  pés  de  pato,  emfim  quantos  objectos  pelo  seu 
estranilo  aspecto  possam  impressionar  a  imagina9ao! 

Usam  invariavelmente  um  adomo  de  cabe9a  com 
plumas,  uma  vara  com  sementes  clieias  de  cascalho, 


166  De  Angola  d  contro-costa 

ruidosa  ao  agitar-se,  bem  corno  determinados  ingre- 
dientes  para  a  pintura  pcssoal,  isto  e,  pós  branco», 
oiitros  vermelhos  ou  amarcllos,  etc. 

Estas  creatura»  cxerceni  o  seu  malefico  officio  por 
diverso»  modo»  :  dao  a  engulir  aos  accusado»  o  jura- 
mento  (prova  da  bebida),  prej^aram  ciladas  a  qualquer, 
de  queni  o»  parente»  pretendam  desfazer-»e,  mini»- 
trando  a  e»tes  beberagens  vomitiva»,  em  panellas  que 
depoi»  se  encontram  coni  o»  ingrediente»  em  casa  do 
8U»peito  réu,  por  ahi  liaverem  sido  posta»  clande»ti- 
namente;  n'outra»  conjunctura»  roubam  e  trocam  ob- 
jectos,  e,  enteiTando-o»  defronte  da»  porta»,  resultam 
por  causaes  coincidencias  revelac^oes  do  criminoso. 

0»  processo»  que  se  empregam  na  adivinha9ao  va- 
riam  conforme  a»  tribù»  e  o»  ariolo»,  ma»  con»tam 
»empre,  e  claro,  de  «cena»  de  magia  mai»  ou  meno» 
phantastica». 

Uma»  veze»  e  mediante  pau»  e  pedras  redondas  que 
conseguem  conliecer  os  criminoso»;  outras  léem  nas 
convulsoe»  de  uma  gallinha  ou  cabra  moribunda  as 
scena»  do  futuro,  e  pelo»  gritos  nocturno»  da  coiiija 
ou  da  hyena,  animae»  em  cujo  corpo,  pelo  geral,  »up- 
poem  re»idir  o  e»pirito  do»  morto»;  n'alguma»,  emfim, 
empregam  fingido»  exta»is,  etc. 

Torna-se  hoje  quasi  importuno  repetir  similhantes 
factos,  por  isso  limitar-nos-liemos,  so  para  o  ultimo 
dos  dito»  casos,  a  narrar  quanto  no»  foi  descripto. 

Logo  que  por  qualquer  circumstancia,  comò  rou- 
bo,  assassinio  ou  doen9a,  o  adivinhador  (5  chamado  por 
uma  tribù,  tudo  ali  se  prepara  para  a  ceremonia,  que 
quasi  sempre  ù  depois  do  accaso  do  sol,  escolhendo-se 


NaHuilla  167 

noites  escuras,  e  parece  que  às  vezes  na  lua  nova,  a 
firn  do  feiticeiro  poder  tirar  maior  vantagem,  impres- 
sionando a  imagina^ào  do  publico  com  o  contraste  das 
trevas  e  do  fogo,  que  para  esse  effeito  ateiam  em  di- 
versos  pontos. 

Reunidos  todos  os  individuos  da  terra  em  vasto  cir- 
culo,  dentro  do  qual  crepitam,  comò  dissemos,  foguei- 
ras  que  pela  sua  luz  tremulante  dao  à  scena  phantas- 
tico  aspecto,  coUoca-se  a  meio  o  n' ganga,  prompto  e 
paramentado,  a  face  riscada  com  tra90s  de  cores,  um 
enorme  pennacho,  a  cabe^a  oniada  de  chifres  de  anti- 
lope, um  hilhoquet  na  mao  e  às  vezes  caudas  de  ani- 
maes  à  cinta.  Junto  a  elle,  em  pequena  esteira,  vé-se 
uma  panella  de  barro  contendo  certo  liquido  especial, 
pequenos  paus  dispersos,  e  uma  caba9a  cortada  em 
fórma  de  bacia,  com  varios  objectos,  cuja  vista  causa 
espanto,  e  que  seria  jdifficil  descrever. 

Bagos  de  missanga,  buzios,  pequenas  imagens  de 
pan,  arremedando  um  homem  ou  uma  mulher,  pedras, 
bicos  de  aves,  garras,  i^és  resequidos  de  corujas,  etc, 
que  ahi  o  visitante  póde  notar  boquiaberto. 

De  subito  o  adivinho  solta  um  silvo,  e  agitando  o 
hilhoquet  enceta  uma  dansa  grotesca. 

As  mulheres  cantam  em  còro  ao  compasso  das  pai- 
mas,  emquanto  elle,  aos  saltos,  percorre  os  grupos  e 
observa  attentamente  os  circumstantes. 

Aqui  pergunta,  acolà  responde;  finge  afastar-se,  de 
subito  volve,  mira,  affirma-se,  e  comò  esperto  e  obser- 
vador,  espera  a  todo  o  momento  ver  transparecer  no 
rosto  ou  nos  movimentos  inquietos  de  alguem  as  pro- 
vas  do  crime. 


168  De  Angola  d  controrcosta 

Por  vezes  sàe  do  circulo,  acocora-se,  confunde-se 
com  a  multidào,  e  raro  sera  que,  no  caso  de  roubo,  o 
supersticioso  auctor,  estando  presente,  nao  se  tràhia 
por  algum  signal. 

Apenas  iniciado  volve,  e,  em  pulos  estranhos,  appro- 
xima-se  da  esteira. 

Acocoroii-se.  Eil-o  de  joelho  em  terra,  caba9a  de 
feiti^os  na  destra,  a  mao  esquerda  estendida  horison- 
talmente,  a  cabe9a  curvada,  acenando  a  compasso. 

Ligeiros  impulsos  dados  no  sentido  vertical  deixam 
ver  08  objectos  contidos  no  interior,  até  que,  repetin- 
do  o  movimento  com  mais  energia,  um  d'elles  càe  no 
terreno . 

Largando  a  caba9a  apodera»-se  d'elle,  mira  com  ar 
bestiai  por  momentòs,  firme,  emmudecido;  depois  co- 
me9a  com  esgares  e  momices,  que  poiico  a  pouco  exa- 
gera,  escancàra  a  bóca,  e  arregalando  os  olhos  inje- 
ctados  de  sangue,  eil-o  que  se  levanta,  e  em  saltos 
vertiginosos  percorre  a  arena  comò  um  louco! 

A  luz  pallida  dos  madeiros  que  ardem,  esse  liomem 
sarapintado,  agitando-se  no  meio  das  mais  estranhas 
convulsSes,  narinas  entreabertas,  labios  espumantes, 
parece  ^m  verdadeiro  demonio,  revestido  de  todos  os 
attribvi^Qs  com  que  a  imagina9ao  adoma  està  casta  de 
crea^oes ! 

Apoz  a  estranha  lucta,  càe  emfim  extenuado  e,  es- 
trebuxando,  profere  o  nome  da  victima,  que,  cheia  de 
espanto,  pretende  fugir,  mas  é  acto  continuo  agarrada. 

Poderiamos  ainda  relatar  factos  curiosos,  principal- 
mente àcerca  da  cura  de  doen9as,  por  meio  de  en- 
cantamentos  e  scenas  de  feitÌ9aria;  isso  porém  levar- 


Na  HuUla  169 

nos-fa  longe,  em  repeti^So  de  certo  poiico  proveitosa, 
pois  raro  é  o  viajante  que  a  elles  nào  teuha  aIlu<]ido. 
Alem  de  que  entre  oe  ba-nhaneca  téem  cessado  simi- 
Ihantes  costumes,  o  que  se  deve  à  vìgìlancìa  cxercida 
pela  auctoridade  locai. 

Entre  os  cavalheiroa  com  quem  uos  relaciondmos  na 
Huilla,  e  nos  deixaram  grata  impressSo  pelo  affectuoso 


recebùnento  que  nos  fizeram,  figuram  sem  duvida  os 
missionarios,  à  frente  dos  quaes  se  acha  um  sacer- 
dote de  multo  merecimento  e  alto  valor  ìntellectual, 
o.  reverendo  Duparquet,  hoje  vice-prefeìto  apostolico. 
Esse  homem,  a  cuja  persistencia  e  firmeza  se  deve 
em  grande  parte  o  estabelecimento  da  missSo  e  o  seu 
estado  prospero,  cujos  trabalhos,  quer  no  interesse  da 


170  De  Angola  d  controrcosta 

propaganda  religiosa,  quer  no  da  geographia,  sSo 
conhecidos  em  todas  as  publicacjoes,  desde  o  jomal 
das  missoes  até  aos  boletins  das  sociedades  geogra- 
pliicas,  cuja  vida  tem  sido  urna  constante  lucta  no 
servilo  da  religiào,  ora  em  Zanzibar,  Kimberly,  no 
Dàmara  oii  no  Ovampo,  ora  na  Huilla;  esse  liomem, 
dizemos,  e  beni  digno  que  Deus  Ihe  conceda  saude  e 
prolongue  a  vida,  para  comjjleto  exito  do  piedoso  e 
relevantissimo  servÌ90  em  que  està  empenhado. 

A  missao,  que  està  coUocada  em  risonilo  valle  por 
onde  serpeia  pittoresco  rio,  comp6e-se  de  vastos  es- 
tabelecimentos  bem  construidos,  cercados  de  jardins, 
hortas  e  terras  de  semeadura,  devido  tudo  a  grande 
esfor(;o*e  traballio,  tendo  que  drenar  as  terras  em  gran- 
de extensào,  e  dirigir  as  aguas  do  rio;  é  n'esse  aprazi- 
vel  sitio  onde  mais  agradavelmente  se  passa  na  Huilla, 
e  o  recemcliegado  se  sente  satisfeito  ao  entrar  no  ga- 
binete  de  leitura. 

Exultàmos  ao  ver  o  sentido  pratico  que  a  missao  dà 
aos  seus  traballios,  a  par  d'aquelles  da  catecliese,  der- 
ramando  na  area  da  sua  ac9ao  o  gosto  pelos  labores 
de  toda  a  ordem,  principalmente  agricolas. 

Lembra-nos  o  que  escrevemos  ao  concluir  da  nossa 
obra  De  Benguella  ds  ten^as  de  lacca,  quando  fallàmos 
do  missionario,  e  apraz-nos  notar  que  a  missao  da 
Huilla,  embora  nao  tenha  sido  guiada  pela  singeleza 
das  iiidica9oes,  de  resto  sem  a  menor  pretensào,  vae 
casualmente  em  linha  parallela  com  o  nosso  pensa- 
mento. 

Diziamos  nós  entao:  «0  negro,  desde  o  primeiro  dia 
que  avistar  o  missionario,  deve  ver  n'elle,  nao  urna 


NaHuilla  171 

creatura  suspeita,  revestida  de  caracter  mais  ou  menos 
mysterioso;  mas  um  bom  guia,  todo  carinlio,  juiz  recto, 
de  cujo  contacto  so  Ihe  resuite  a  felicidade. 

«Deve  successivamente  encontrar  um  mestre,  nao 
disposto  a  indicar-lhe  com  alambicado  misticismo  o 
caminho  da  bemaventuran^a,  mas  sim  a  ensinar-lhe 
o  modo  de  regenerar-se,  deixando  os  liabitos  indolen- 
tes  pelo  traballio,  fugiudo  do  crime  pela  constante 
pratica  da  virtude,  e  pondo-o  à  altura,  sobretudo,  de 
exercer  qualquer  industria  util  para  si  e  para  os  seus 
similhantes. 

«Ensinar  o  indigena  a  fazer  a  cliaiTua  e  extrahir  o 
ferro  pelo  modo  mais  aproveitavel,  a  combinal-o  com 
o  ckrbone  para  produzir  o  acjo;  incutir-llie  a  primeira 
no9ao  do  moinlio,  revelar-llie  o  modo  de  aproveitar  a 
forerà  das  aguas  e  as  vantagens  do  amaidio  da  terra, 
eis  em  resumo  o  fim  serio  da  missao  ali.» 

Taes  eram  as  nossas  palavras  ao  tempo,  e  que  feliz- 
mente  vamos  vendo  realisadas  na  Huilla. 

Fazemos  votos  pela  prosperidade  da  missao,  con- 
vencidos  de  que  o  negro  ha  de  sentir  em  curto  espa90 
de  tempo  os  seus  beneficos  effeitos,  acabando  por  modo 
graduai  com  essas  repugnantes  e  torj)es  scenas  de  fei- 
ti^aria,  cuja  descrip^ao,  para  bem  frisante  se  tornar 
ao  leitor,  intencionalmente  pozemos  antes  d'estas  con- 
sideracjoes. 

Apenas  nos  sentimos  refeitos  do  causalo  da  via- 
geni,  preparàmos  tudo  para  abaiar.  Dez  dias  levàmos 
n'unia  digressao  para  o  nascente,  de  que  pouco  se  co- 
llieu,  por  causa  de  embaraijos  imprevistos,  nao  conse- 
guindo  a  final  ver  o  Cunene. 


172  De  Angola  d  corUrd-costa 

Eis  o  que  se  encontra  no  diario,  a  proposito: 

«A  6  partimos  ao  romper  da  aurora,  acompanhados 
de  trinta  homens,  o  chefe  do  concelho  e  o  nosso  joven 
ca9ador,  montando  aquelle  urna  soberba  egua,  compra- 
da  a  Erikson,  negociante  inglez  do  Cabo,  e  nós  em 
bois-cavallos  ou  typoia. 

«Uma  manha  radiante  e  um  tempo  esplendido  con- 
vida-nos  a  marchar.  A  estrada  é  de  carro. 

«0  caminho  segue  para  leste,  marginando  pelo  norte 
dois  morros,  Catalla  e  Nandumboe,  por  meio  de  es- 
pesso arvoredo,  tendo  na  perpendicular  depressoes 
que  accusam  pequenos  riaclios  na  epoclia  chuvosa. 

«Mupandas,  n'dumbiros,  mutontos,  mumóes  e  aca- 
cias  pouco  elevadas  emergem  do  meio  do  tai)ete  de 
fofo  capim,  protegendo-nos  com  a  sombra  de  sua  ra- 
magem. 

«Quatro  horas  successivas  a  andar  nos  levam  atra- 
vez  dos  bosques,  que  pela  sua  inyariabilidade  come- 
(jam  a  tornar-se  monotonos.  Aqui  e  aleni  mna  rola  foge 
espantada  diante  de  nós,  emquanto  que  o  Schizorhis 
concolor,  Smith.,  com  o  seu  corpo  cinzento,  comprida 
cauda  e  popa  elegante,  nos  acompanha  pulando  de 
ramo  em  ramo,  e  com  ar  de  curiosidade  solta  de 
espa90  a  espa90  um  balido  similhante  ao  da  cabra. 

«Antonio  conta-nos  em  caminho  historias  das  suas 
ca9adas,  de  comò  matou  o  primeiro  leopardo,  e  o  des- 
dem  que  o  leao  Ihe  inspira,  esfor^ando-se  por  mostrar 
ser  immerecido  o  titulo  de  m  das  selvas. 

«Falla-nos  da  inveja  que  tem  das  armas  dos  boers, 
das  ca9adas  ao  elephante,  e  ao  referir-se  a  estes,  exal- 
ta-lhe  a  intelligencia,  a  ponto  de  nos  afian9ar  que  o 


Na  Euilla  173 

elephante  femea  corrige  o  irregular  proceder  dos  fi- 
llios,  arrancando  pequenas  ai*\^ores  para  Ihes  inflingir 
o  necessario  castigo! 

«Pela  tarde  acampàmos,  e,  emquanto  se  preparava 
a  comida,  entretivemo-nos  a  desenhar  alguns  typos 
lupollos.  Estavamos  no  limite  das  terras  entre  Huilla 
e  Quipungo  dos  banhaneca. 

«Durante  o  dia  7  fez-se  marcila  extensa,  por  meio 
de  um  panorama  similliante  ao  do  dia  anterior.  0  ter- 
reno continua  horisontal,  sendo  deserto  de  liabita9oes 
humanas.» 

E  abundante  a  cacja  n'este  districto,  tendo  nós  occa- 
siào  de  saber  da  existencia  de  m'pallas,  JEjpyceros  me- 
lampus;  de  gungas,  Boseleplms  oreas  (?);  de  nuimas,  de 
unjiris,  Sterpsiceros  cudù;  de  quihunos,  de  bambis,  Ce- 
phalophus  mergens;  de  gazellas,  Cervicapra  hohor;  sem 
contar  zebras,  elepliantes,  leoes,  leopardos,  chacaes, 
hyenas,  etc,  nas  florestas  do  sul. 

A  terra  em  todo  o  caminho  tinlia  pittoresco  aspe- 
cto;  a  natureza  do  solo  e  quasi  geralmente  constituida 
por  tractos  argillosos,  coni  massas  concretas,  coradas 
pelo  hydroxydo  de  ferro,  assim  comò  por  affloramen- 
tos  de  grès. 

Sopra  unia  brisa  do  sueste,  que  mitiga  extraordina- 
riamente  os  ardores  do  sol,  alentando  quem  viaja. 
Durante  o  dia  8  proseguimos  a  principio  por  terra 
desliabitada,  encontrando  so  as  primeiras  habita9oes 
pela  tarde. 

A  circumstancia  mais  notavel  é  que  logo  de  manha 
come90u  o  solo  a  apparecer  semeado  de  negras  pene- 
dias  de  gneiss,  sobre  as  quaes  se  ergue  uma  pianta  ori- 


174  De  Angola  d  controrcosta 

ginal,  cujo  caule,  negro,  erecto  e  desnudado,  termina 
por  delgadas  follia  s,  pianta  qne  entre  os  indigenas  é 
conhecida  por  eachinde  e  a  scien(*ia  designa  com  o 
nome  de  Myrothamniis  jìal)ellifolia. 

Este  facto,  o  do  terreno  come^ar  em  declive  rapido 
para  leste,  e  ainda  o  das  penedias  continuarem  na  li- 
nha  norte-sul,  indica  claramente  que  o  sublevamento 
que  teve  logar  para  o  gneiss  do  subsolo  vir  à  super- 
ficie, originou  que  se  formasse  a  bacia  do  Cunene. 

A  vegeta9ào  por  sua  parte  varia  ao  oriente  da  zona 
pedi'egosa,  desapparecendo  as  especies  do  genero  Ber- 
linia,  as  mupandas,  Bcichystegia  spiceformis,  etc,  para 
ceder  logar  às  leguminosas  de  espinho  e  de  gomma, 
comò  a  Acacia  alìnda,  Acacia  pennata  (?)  e  outras.  Caso 
notavel,  topàmos  aqui  coni  uni  rachitico  bao-bab,  que 
n'estas  altitudes  se  atreveu  a  vingar! 

Durante  o  dia  9  proseguimos  ligeiros  para  a  em- 
balla  do  soba,  atravez  de  enormes  arimos  de  millio  e 
sorgilo,  planta^oes  a  que  seni  duvida  a  terra  onde  nos 
acliàmos,  Quipungo,  deve  o  seu  nome,  derivado  de 
EpungOy  millio. 

Numerosos  lameiros  e  pantanos  embara^am  o  cami- 
nlio,  levando-nos  a  suppor  que  as  penedias  ao  oeste 
tra9am  um  comò  que  limite  à  vegeta^ao  da  Huilla 
e  marcani  tainbem  o  extremo  da  facha,  alem  da  qual  a 
salubridade  poderà  talvez  soifrer  alguma  modificacjao. 

Habitam  està  zona  os  ba-nlianeca,  distinguindo-se 
dos  ban-dimba  no  sul,  por  partirem  os  dois  incisi vos 
medios  de  cima^  emquanto  estes  partem  os  dois  de  bai- 
xo,  e  dos  cubaes  no  oeste,  que  arrancam  uns  e  outros 
dentes. 


Na  Huilla  175 

Assim,  no  plateau  da  HuiIIa,  bastava-nos  a  simples 
inspec9ao  da  dentadura  do  primeiro  indigena  encon- 
trado,  para  sabermos  a  que  familia  pertencia. 

0  processo  de  abIa9ao  dos  dentes,  enij^regado  pelos 
dentistas  da  terra,  é  curioso  e  de  urna  simplicidade  in- 
comparavel.  Apenas  um  paciente  a  isso  se  propoe,  o 
operador  pega  dos  ferros  de  duas  machadinhas,  e  in- 
troduzindo  um  na  bóca,  encosta-o  no  rebordo  da  gen- 
giva de  dentro  para  fora,  emquanto  com  o  outro,  fa- 
zendo  de  martello,  extrahe  à  terceira  pancada  o  mais 
seguro  dente.  Rebenta,  pelo  geral,  o  sangue  em  abun- 
dancia,  e  entao  um  pau  quasi  em  braza  se  introduz 
entre  as  gengivas  do  operado,  que,  apertando-o  com 
for^a  de  encontro  ao  logar  contendido,  estanca  a  he- 
morrhagia  ! 

0  originai  é  que  este  processo  se  emj^rega  tambem 
para  os  queixaes,  nao  deixando  nenhum  à  terceii-a 
pancada  de  ficar  com  as  raizes  ao  ar! 

Os  ba-nlianeca  sao  em  geral  de  boa  presen9a  e  s}Tn- 
pathicos.  Dividem-se  em  numerosas  tribus  com  os 
nomes  de  ban-gambue,  ban-jau,  ban-pata,  ba-pungo, 
ba-pollo,  ba-hae  e  ba-quihita,  occupando  uma  grande 
parte  da  terra  em  que  nos  achàmos,  de  que  se  consi- 
deram  exclusivos  liabitantes. 

Empregam-se  na  agricultura  e  principalmente  no 
mester  de  pastores,  possuindo  grandes  manadas  de  ga- 
do.  Doceis  e  laboriosos,  é  facil  aproveital-os  em  muitos 
generos  de  traballio.  D'elles  ainda  volveremos  a  fallar. 

As  duas  lioras  dèmos  Arista  da  residencia  do  soba; 
approximàmo-nos,  escolhemos  logar  apropriado,  e  em 
seguida  mandàmos  arriar  as  cargas. 


176  De  Angola  d  contro-costa 

Pouco  depois  estavamos  cercados  de  urna  multidao 
de  indigenas,  typos  variadissimos,  apertando-se  para 
observar  o  branco  que  vinha  visitar  o  soba. 

Era  a  segunda  vez  que  nos  achavamos  entre  es- 
tes  povos,  pois  jà  com  os  do  norte  haviamos  em  nossa 
primeira  viagem  feito  conliecimento,  quando  de  Quil- 
lengues  fomos  para  Caconda. 

Emquanto  &  sombra  de  urna  arvore  repousavamos, 
e  esperando  que  terminasse  o  arranjo  do  acampamen- 
to,  exhibiamos  a  nossa  humilde  pessoa  à  avida  curiosi- 
dade  dos  indigenas,  que  commentarios  faziam  a  nosso 
respeito,  fomos  esbo9ando  alguns  dos  seus  typos  mais 
notaveis,  facto  que  Ihes  causou  grande  surpreza.  Pas- 
sado  algum  tempo  recebiamos  um  boi  que  o  regulo 
nos  enviava  e  um  tiro  certeiro  prostrou  immediata- 
mente, acrescentando  mais  o  geral  espanto. 

Que  impressao  causa  ao  africano  a  rapidez  e  cer- 
teza  do  tiro  feito  por  mao  de  europeu! 

Ao  pegar  da  carabina,  observa-se  sempre  uma  dis- 
posÌ9ao  em  todos  para,fugirem  ao  minimo  movimento 
suspeito;  depois,  ao  verem  apontar  ao  animai,  appro- 
ximam-se,  apertam-se,  miram  ora  o  atirador,  ora  o  bi- 
cho,  e  quando  de  subito  o  tiro  parte  e  a  victima  tomba, 
grande  é  a  celeuma  que  se  levanta,  come9ando  todos 
aos  3altos. 

E  ai  d'aquelle  que  em  scenas  d'estas  tenha  a  infe- 
licidade  de  errar  o  tiro.  0  seu  prestigio  entre  os  sel- 
vagens  perderà  logo  metade  da  grandeza. 

Duas  horas  depois,  preparàmo-nos,  partindo  com  o 
chefe  da  Huilla,  e  o  novo  companheiro  de  viagem,  An- 
tonio, para  a  banza  do  regulo  no  intuito  de  o  visitar. 


Na  malia  111 

A  residencia  de  um  clicfe  por  estas  terras  coiiliece- 
se  sempre  pelos  meìos  de  defeza  que  a  circuindam.  Vi- 
ctinias  muitas  vezes  de  hiciir»3es  de  ìnìmigos  saltea- 
dores,  e  tendo  de  defender  os  povos  das  vìziuhan^as, 
tèeni  for908amente  de  Ihes  dar  amplas  porpor95e8  e 


collocal-a8  em  estado  de  nSo  serein  facilmente  surpre- 
hendìdas. 

Por  isso  a  banza  de  Cunde-M'biimba,  embora  mo- 
desta e  composta  de  casas  distribnidas  sem  ordem, 
n'iim  vasto  recinto  qiiadrangular,  com  o  niesmo  aspe- 
cto  que  todas  as  communs  habita^Ses  dos  africanos 
do  oeste,  é  defendida  por  uma  forte  pali^ada  fixa  até 
ao  meio  na  accumida^So  de  terra  alta,  que  a  abertura 


178  De  Angola  d  contro-costa 

de  um  fosso  por  fora  originou.  No  interior  ainda  cor- 
rem  linhas  de  estacaria  em  direc^ao  diversa,  e  qiie 
pelas  resi)ectivas  portas  dao  accesso  para  quintaes  oii 
recintos  fechados,  formando  uma  especie  de  lab^^rin- 
tho,  ao  meio  do  qual  se  aclia  a  vivenda  particular  do 
soba,  dos  seus  guardas,  mulheres,  crean9as,  etc. 

Sentado  o  encontràmos  nós  a  um  canto  do  quinta!, 
cercando-o  uma  duzia  de  seus  vassallos  mais  impor- 
tantes,  entre  os  quaes  figurava  o  calti^  esj)ecie  de  ge- 
neral, que  se  distingue  por  um  pennaclio  amarrado 
no  alto  da  cabe^a  e  pendendo  para  a  testa,  o  calfele,  e 
um  cavalheiro,  que  julgàmos  ser  o  qidssongo  grande, 
ou  fallador  mór  da  córte;  singelamente  vestido,  coni 
um  panno  à  cinta,  sem  amias,  nem  insignia  alguma 
emfini,  que  denotasse  a  sua  alta  posicjao. 

Um  potè  de  j^ombé  veiu  cortar  a  monotonia  d'està 
scena  serio-grotesca,  e  emquanto  os  nossos  compa- 
nheiros  se  regalayani  coni  cojios  successivos,  diverti- 
mo-nos  a  observar  o  caUi,  personagem  que  nos  pare 
ceu  jiara  tudo  ter  geito,  menos  para  general. 

Terminadas  as  liba<,»oes,  vestiu  o  regulo  uma  farda 
que  llie  demos,  permittindo-se  entao  proferir  algumas 
palavras,  que  a  turbanmlta  se  encarregava  de  abafar, 
por  exclamarem,  mal  elle  abria  a  bóca,  Quieto!  Quieto! 
Tate-Culo!  Calunga!  especie  de  agradecimento  e  baju- 
la^ao  banal. 

Dando-llie  as  costas,  voltamos  jiara  o  nosso  campo, 
e,  j)liilos()pliando  sobre  a  misera  vida  que  em  pieno 
seculo  XIX  ])assa  està  gente,  entre  o  pirao  de  millio  e 
a  ociosidade,  uns  coni  os  cabellos  imtados,  outros  coni 
singela  pelle  de  gato  bravo  pendente  da  cinta,  a  nós 


NaHuilla  179 

mesmo  mentalmente  perguntavamos  se  elles  estariam 
condemnados  a  viver  sempre  assim,  e  em  tal  caso  que 
8atisfa9ao  Ihes  offerece  a  vida  ! 

Metteu-se  a  noite,  e,  envolvendo-nos  n'uma  manta, 
adormecemos  sobre  a  terra,  para  logo  ao  alvorecer 
nos  mettermos  de  novo  a  caminho. 

Muene  Muanja,  soba  que  adiante  encontràmos,  deu- 
nos  seis  ca^adores  para  guias,  porque,  dizia  elle,  as 
matas  até  ao  Cunene  eram  bravas. 

Andàmos  até  ao  declinar  da  tarde,  quando  duas 
circumstancias  imprevistas  nos  imj^ediram  de  ir  mais 
longe. 

A  primeira  foi  um  accesso  febnl  que  nos  sobreveiu, 
proveniente  da  ingestao  de  agua  leitosa,  unica  que 
encontràmos  n'uma  po9a  em  Quipungo;  a  segunda 
consistiu  na  fuga  para  a  retaguarda  da  egua  em  que 
um  dos  nossos  companlieiros  A^inha  montado. 

Rebentàra  a  corda  que  a  segurava,  e  o  animai,  se- 
guindo  vellios  liabitos,  talvez  causa  da  sua  venda  por 
Erikson,  partiu  florestas  a  dentro,  deixando  o  seu  pos- 
suidor  apeado,  e  sendo  inuteis  quantos  esfor^os  se  fi- 
zeram  para  a  alcan9ar. 

Perdido  o  dia  1 1  na  faina  de  a  procurar,  resolvemos 
retroceder,  e  passando  de  novo  por  Quipungo,  cortà- 
mos  pelo  sul  em  direc9ao  à  Quihita,  conduzindo  comò 
despojo  uma  gazella  que  matàmos. 

A  zona  percorrida  no  sul  é  inteiramente  similhante, 
comò  era  de  presumir,  à  do  norte,  optima  para  trilha- 
do  de  carro  do  systema  boer.  Pela  mesma  longitude 
encontràmos  a  zona  pedregosa,  bem  conio  identica 
variante  na  vegeta^ao. 


180  De  Angola  d  contro-costa 

Grandes  plainos  se  alongam  pelo  oriente  do  rio  Cu- 
culo-baie, onde  observàmos  bandos  de  zebras,  e  al- 
guns  macacos  pulando  de  arvore  em  arvore,  dos  quaes 
matàmos  um  da  especie  denominada  Cercopithecus 
Wemeri. 

Notàmos  frequentes  vezes  entre  as  follias  do  capini 
urna  substancia  branca  em  tudo  similhante  à  secrcQao 
salivar.  Inquìrindo  da  sua  proveniencia,  soubemos  que 
um  insecto,  Boinbyx  (?),  fazia  aquella  especie  de  casulo, 
que  mais  tarde,  sob  a  ac9ao  dos  raios  solares,  endure- 
cia,  servindo  para  ahi  collocar  uma  larva.  0  insecto 
nao  o  podémos  ver. 

Grandes  morros  se  erguem  mais  adiante  no  terreno, 
por  entre  os  quaes  dois  dias  inteiros  levàmos  a  cami- 
nliar  até  que,  topando  com  o  Cuculo-baie,  o  transpo- 
zemos  no  dia  15,  e  a  16  entràmos  de  novo  no  acampa- 
mento. 

A  digressao  feita  durante  estes  dias,  se  por  um  lado 
nao  teve  grande  alcance  scientifico,  offereceu  por  outro 
suas  vantagens,  pois  nos  veiu  evidenciar  mais  uma  vez 
quanto  é  propria  à  colonisa9ao  està  terra,  cujo  salu- 
bre clima  e  feracidade  resaltam  aos  olhos  do  mais  in- 
differente. 

Os  mesmos  lameiros  que  encontràmos  na  trilhada 
do  norte  estao  circumscriptos  a  uma  pequena  zona, 
desapparecendo  totalmente  no  sul  para  dar  logar  a 
um  paiz  aberto,  fresco,  saudavel  e  apto  a  variadissimas 
culturas. 

0  que  urge  é  arroteal-a,  crear  centros  de  colonisa- 
(jao,  comò  jà  dissemos,  promover  a  immigra9ao,  offe- 
recendo  todas  as  garantias  de  que  carece  o  inicio  de 


Na  Huilla  181 

urna  tao  importante  obra,  e,  digamos  agora  tambem  a 
verdade,  providencìar  de  um  modo  pratico  ao  traba- 
Iho  do  indigena. 

Isto  de  reger  colonia»  em  tao  especial  situa^ao,  letra 
a  letra  pelo  nosso  codigo  fundamental,  de  collocar  o 
negro  ao  abrigo  das  leis  benefica»  n'elle  outorgadas, 
de  crear-lhe  mesmo  curadoria»  por  toda  a  provincia^ 
trazendo  juizes  e  seu»  subalterno»  em  constantes  cor- 
reÌ9oes,  no  intuito  de  vigiar  e  impedir  as  exigencias 
do  branco  para  com  o  preto;  e  deixar  este  na  ociosi- 
dade,  levando  uma  vida  licenciosa,  e  quÌ9à  tendo  sen- 
zallas  e  banzas,  às  quaes  elles  se  arrogam  o  direito 
de  senhorio  e  goveman9a  dentro  da  mesma  provincia  ; 
parece-nos  que,  se  por  um  lado  se  póde  considerar 
louvavel  no  intuito  tocante  à  protec9ao,  é  assàs  repre- 
liensivel  sobre  o  ponto  de  vista  moral  e  economico. 

A  protec9ao  e  a  liberdade  bem  consideradas  nao 
devem  consistir  n'esse  ampio  consentimento,  qui3  hoje 
damos  ao  indigena  africano  de  trabalhar  so  quando 
quer,  com  grave  detrimento  de  quanta»  industrias  ali 
se  iniciam  e  prejuizo  do  commercio  e  da  propriedade 
rural. 

Se  a  lavoura,  por  exemplo,  em  Africa  nao  dispensa 
o  preto,  e  este  no  sertao,  feito  soba  e  encurralado  na 
banza,  despreza  qualquer  traballio,  comò  póde  fazer-se 
prosperar  a  terra?  E  impossivel! 

Ora,  sendo  de  todos  conliecido  este  facto,  nao  jul- 
gàmos  conveniente  conservar  no  centro  dos  mais  ri- 
cos  districtos  o  negro  n'um  estado  de  liberdade  que 
nem  na  Europa  conhecemos,  so  porque  alguns  igno- 
rantes,  interessados  pela  situa9ao  d'esse  chamado  in- 


182  De  Angola  d  contrcv^osta 

feliz  das  selvas,  clamam  ao  menor  principio  de  repres- 
sào  que  Ihe  diz  respeito. 

Pennittir-lhe  a  vadiagem  é  deixal-o  contrahir  na 
ociosidade  repugnantes  vicios,  que  pouco  a  pouco  ori- 
ginam  crimes  ;  e  querer  depois  castigal-o  coni  a  appli- 
ca9ao  do  codigo  penai  do  reino,  que  elle  nao  com- 
prehende,  nem  sente,  nem  o  molesta,  garantindo-lhe, 
por  exemplo,  o  alimento  no  caso  de  prisao  (seu  sonilo 
dourado,  conier  sem  traballiar),  toma-se  uma  verda- 
deira  calamidade. 

E  digno  de  estudo  este  assumpto,  que  nos  suscitou 
a  visita  pelas  terras  onde  nos  achàmos,  objecto  que 
fatalmente  carece  de  leis  e  regulamentos  especiaes, 
fundados  em  grandes  recenseamentos  e  na  ampia 
al^ada  da  auctoridade  administrativa  para  extinguir 
a  vadiagem  do  preto  e  submettel-o  ao  traballio  ;  preci- 
sando tanibem  de  penas  adequadas  para  os  crinies  que 
pratica,  a  fini  de  afastal-o  da  directa  intervenc^ao  da 
tutela  aiiida  lioje  existente. 

Se  o  negro  é  cidadao  portuguez,  regendo-se  pelos 
principios  do  codigo  politico,  que  nos  imjioe  detemii- 
nados  deveres,  mas  nos  concede  preciosos  direitos,  nao 
carece  de  tutela  judicial. 

Està  é  a  verdade. 


CAPITULO  VI 


AO  SUL 


Consola^ùes  de  quoni  viaja — A  abalada  da  Hnilla — Urna  fuga  e  o 
abandono  das  cainas — O  Cliiinpiiui|jiiiihimc — 0  eamiuho  dos  Gainbos  e 
OS  espinhoiros — 0  Toiigo-tongo  oii  o  morrò  sagrado — Os  dias  n'esta 
terra — As  florestas  e  a  fauna — Os  bau-dimba  e  a  sua  voracidade — Ves- 
timentas  e  proceder  para  coin  os  mortos — Considera^òes  e  a  festa  da 
hela — loroeuto  e  urna  erup^ao  granitica  —  Caliaina  e  Xicusse — A  mesa 
e  suas  consola^oes  —  Quatro  elcpliantcs  e  a  fauna  omithologica — 0  cro- 
codilo  e  a  pomba — A  floresta  que  termina — Os  ba-canealla  ou  bushmen, 
duas  palavras  a  respeito  d'elles — Tatouage,  armas  envenenadas — Scu 
earacter — 0  Hunibe  e  a  ca^a  considerada  pelos  ban-cumbi. 


Entre  os  dìversos 
consolos  que  experi- 
mentdnios  n'essa  tri- 
Ihada  de  csperan^as 
e  decep^oes,  angiis- 
tias  e  Ifibox'es  de  urna 
A  outra  costa,  figu- 
rarli sem  duvida  os 
da  manlià  do  dia  29 
de  maio. 

Contornadoa  em 
todos  OS  sentidos  pe- 
lo3  numerosos  cou- 
celhos  da  provincia, 
ceiitrort  agradaveis  para  o  indigena,  e  de  cnjo  remanso 
Ihe  é  tSo  custoso  afastar-se,  aasentes  com  a  nosaa  ca- 
ravana  n'unì  acainpamento  aberto,  d'onde  era  faeil 
evadir,  n3o  foi  seni  grande  commo<;So  que,  depoia  de 


186  De  Angola  d  corUra-costa 

tantos  dias  de  anceio,  nos  erguemos,  e  ao  fazer  a  clia- 
mada  vimos  quo  nenhum  homem,  nem  apenas  urna 
carga  faltavani. 

Deii-nos  aleuto  este  facto,  pois,  evidenciando  que 
necessariaiiieiite  uina  optima  dÌ8poHÌ<;ào  continha  agora 
OH  espiritos,  mostrava  tambem  que  os  receios  eram 
iiifundados,  e  a  final  a  nossa  gente  estava  disposta  a 
seguir-nos. 

E  persuadiu-nos  ainda  de  que,  se  o  goso  da  liber- 
dade  no  campo  concorrerà  em  muito  para  bem  os 
dispor,  sobretudo  liavia  servido  o  systema  de  os  des- 
embara(;ar  de  idéas  sinistras,  e  que  o  processo  agora 
seguido,  de  calar  os  nossos  intuito»,  referindo-nos, 
quando  interrogados  sobre  o  firn  da  viagem,  a  sim- 
2)les  digressoes  no  districto,  era  o  unico  para  dar  bom 
resultado. 

A  idea  de  urna  travessia,  se  i)ara  nós  era  o  supremo 
anlielo,  para  elles  seria  o  signal  de  debandada  geral; 
e  a  declara9ao  de  urna  viagem  até  meio  do  continente, 
bastaria  para  nos  limpar  o  quilombo  de  metade  dos 
comjìanheiros. 

0  segredo,  pois,  era  a  alma  do  negocio,  urgindo 
e\4tar  a  todo  o  transe  confidencias  e  expansoes,  para 
nao  ver  reproduzir  a  estranila  scena  que  as  notas  so- 
noras  da  trombeta  de  Jerichó  provocaram,  isto  é,  o 
desabamento  completo  do  nosso  edificio  à  mais  j^e- 
quena  phrase  de  revela^ao! 

Continuando  a  narrativa  da  nossa  peregrinacjao, 
que  o  leitor  por  vezes  desculparà  em  seus  candidos  e 
pouco  romanticos  detallies,  que  a  final  nao  deixam  de 
approximar  ali  as  nossas  impressoes,  dèmos  a  voz  de 


Ao  sul  187 

leva  arriba,  e,  voltando  as  costas  para  a  Huilla,  parta- 
mos  ao  sul. 

Eis  o  que  no  diario  se  acha  em  referencia  a  essa 
retirada,  prova  bem  evidente  da  nossa  disposi^ao  ao 
efFeitual-a  : 

«As  sete  lioras  largàmos.  Em  extensa  linha  desdo- 
brou-se  a  caravana  para  a  banda  do  sueste,  e  serpean- 
do  por  entre  os  verdes  capins,  breve  desappareceu  por 
detraz  dos  morros. 

«Estava  urna  manlia  linda,  liavia  geada,  calma,  ti- 
nhamos  fi-io  ;  os  passarinhos  gorgeiavam,  sentiamo-nos 
bem,  OS  membros  entorpecidos  animavam-se,  cavalgà- 
mos  OS  bois.  Era  tempo.» 

E,  na  verdade,  enfada  muito  o  estar  parado,  quando 
se  pensa  no  que  ha  a  percorrer. 

Em  Africa  sobretudo,  longe  do  bulicio  do  mundo 
civ^lisado,  e  dos  milhares  de  scenas  attrahentes  e  con- 
stantes,  a  immobilidade  n'um  d'esses  angulos  socega- 
dos  do  mato  faz  fremitos,  comò  que  frisa  a  nossa  in- 
significancia,  parece  uma  amostra  do  descanso  final! 

A  primeira  etape  era  até  ao  rio  Cliimpumpunhime, 
que  recolhe  as  aguas  derivantes*  ao  oeste  da  serra  da 
Nei  va,  e  as  envia  pelo  Caculovar  para  o  Cunene;  ali 
chegàmos  pela  tarde. 

Sao  as  margens  d'este  rio  constituidas  por  um  dos 
mais  ferteis  tractos  do  planalto  ;  bem  dispostas,  pitto- 
rescas,  em  tudo  proprias  para  estabelecimento  de  co- 
lonos. 

0  clima  ali  6  comò  na  Europa,  podcndo  o  bra^o  do 
liabitante  do  norte  entrar  comò  factor  assàs  valioso 
no  amanlio  da  terra. 


188  De  Angola  d  controrcosta 

Multo  acertadamente  diz  o  rifSo  portuguez,  rulo  ha 
bem  que  nào  acabe,  etc,  e  d'isso  tivemos  nós  a  eviden- 
cìa,  pois  a  satisfa^ào  da  manhS  acabou  de  se  annuviar 
na  entrada  da  noite,  com  um  novo  successo  infeliz. 

A  caminho  um  dos  carregadores,  cogitando  sobre  as 
vicissitudes  d'este  genero  de  vida,  e  crendo  que  o  me- 
llior  que  tinlia  a  fazer  era  alliviar-nos  do  exagerado 
carrego,  partiu,  roubando  a  carga  de  missanga  que 
transportava. 

Ao  amanhecer  do  ^a  seguinte,  tendo  adoecido  um 
homem,  come9àmos  a  reduc^ao  da  bagagem,  e  cortan- 
do  pelos  confortos,  aquelles  que  se  propunham  ir  até 
Mo9ambique  tiveram  de  abandonar  sem  demora  as 
respectivas  camas  de  campanha. 

Enfiando  resolutos  pelos  matos,  proseguimos  até 
Maionje,  onde  um  velho  seciilo,  que  veiu  espontanea- 
mente offerecer  carregadores,  nos  ludibriou  de  modo 
vergonhoso.  Ao  cabo  attingimos  o  Hai. 

Largas  planuras  arborisadas  constituem  este  tracto 
de  terra,  semeada  de  um  sem  numero  de  aldeias,  que 
Ihe  dao  pittoresco  aspecto  ;  desprovidas  porém  de  agua 
corrente,  véem-se  os*  seus  liabitantes  obrigados  a  tirar 
està  de  cacimbas,  facto  lamentavel,  e  que  por  certo 
tem  impedido  o  desenvolvimento  da  popula^ao  n'este 
aprazivel  logar. 

A  caminho  dos  Gambos,  o  trilho,  que  até  entao  cor- 
tava  por  adustas  florestas,  entra  de  novo  na  zona  do 
espinho,  o  que  mostra  ir  baixando  para  o  leito  do  Ca- 
culovar;  ali  o  nosso  fato  e  pelle  ficaram  em  misero 
estado,  por  ser  difficil  sofrear  o  impeto  dos  bois  na 
carreira.  Por  vezes  a  terra  enxuga,  e  as  Bauhvnias, 


Ao  sul  189 

que  haviamos  encontrado  nas  faldas  da  serra  da  Chel- 
la,  apparecem  de  novo,  com  a  sua  follia  bipartida. 

Enormes  pencdos  gneissicos  emergem  do  terreno, 
observando-se  fendas  verticaes  de  fresca  data,  ao  que 
parece.  Notam-se  com  frequencia  scliistos  ampliiboli- 
cos  e  micaceos,  ao  passo  que  por  toda  a  parte  se  véem 
vestigios  do  leopardo,  da  liyena  e  do  cliacal,  bem 
corno  abundam  perdizes  e  rolas,  de  que  matàmos  tres, 
elevando  a  cincoenta  o  numero  dos  exemplares  d'està 
especie  colhidos  desde  a  costa. 

As  cubatas  ficam  longe  do  trilho,  e  por  isso  pouco 
podemos  dizer  dos  liabitantes.  0  caminho  apresenta-se 
aspero  e  tortuoso,  visto  ai)proximar-se  do  cordao  oro- 
grapliico,  cujo  ponto  culminante  é  o  morrò  Tongo- 
tongo. 

As  temperaturas  minimas,  i)ela  noite,  cliegaram  a 
descer  a  2°  centigi-ados  e  mesmo  a  1^,5,  enregelando 
OS  membros  dos  indigenas,  que  ninguem  pela  manlia 
conseguia  arrancar  de  j unto  do  fogo. 

Pela  tarde  observava-se  a  leste  para  o  sertao  uma 
negra  barra  de  cacimbo,  e  logo  em  seguida  amainava 
o  vento  do  sueste. 

Adiante  passàmos  em  Nauéoa,  proseguindo  para  a 
margem  do  Caculovar,  que  transpozemos  no  sitio 
onde  se  divide  em  dois  bra90s. 

Abunda  por  aqui  o  sesqui-oxido  de  ferro  magnetico, 
encontrando-se  grandes  massas  de  magnetite,  que  pro- 
duzem  sobre  a  agulha  os  mais  extraordinarios  desvios. 

Logo  ao  amanliecer  avistàmos  o  morrò  Tongo-ton- 
go,  de  que  jà  fallàmos,  conliecido  tambem  por  morrò 
Sa^rado,  onde  os  indigenas  da  localidade  celebram  an- 


190  De  Angola  d  contro-costa 

nualmente  urna  festa;  ao  meio  dia  acampàmos  na 
Chibemba,  logar  chefe  do  concelho  dos  Gambo»,  de- 
terminando acto  continuo  a  posi^ao  geographica. 

D'aqui  a  vista  espraia-se  em  grande  distancia,  ob- 
servando-se  a  todos  os  rumos  numerosos  morros  e 
azuladas  serranias  ao  longe,  sobretudo  para  a  banda 
dos  Cubaes. 

Fustigados  toda  a  noite  por  vento  rijo  do  suestc, 
que  amea^ava  levar  as  tendas  pelos  ares,  almejavamos 
pelo  dia,  e  assim  que  este  assomou,  pozemo-nos  a  ca- 
minho. 

Tudo  nos  era  favoravel. 

Urna  bella  estrada  carreteira,  que,  vindo  da  Huilla, 
continua  aqui  a  principio  por  alluviao  areosa  e  depois 
pelos  tractos  argillosos  que  o  oxido  de  ferro  coloriu, 
vestidos  de  Banhinias,  de  muitos  sycomoros  e  de  um 
ou  outro  rachitico  bao-bab. 

Bellos  sao  tambem  os  dias  n'esta  epocha.  Illumina- 
dos  pelo  sol,  que  em  todo  o  seu  brillio  esparge  em 
atmospliera  limpida  comò  o  crystal  milhares  de  fulgu- 
rantes  raios,  lembram  ao  viajante  quào  feliz  sera  quem 
de  futuro  alii  residir,  quando,  pela  frescura  matutina, 
contemplar  das  varandas  dos  pequenos  chalets  os  seus 
campos  dourados  pelo  amadurecido  trigo,  os  frondo- 
sos  pomares  vergando  com  os  fructos,  as  longas  ave- 
nidas  ladeadas  de  sycomoros  ;  quando,  emfim,  ao  rosto 
negro  do  indigena,  e  ao  seu  vulto  desnudado,  se  sub- 
stituir  a  rubicunda  face,  os  louros  cabellos,  a  figura 
graciosa  da  joven  europèa,  que  o  viajante  surprehen- 
derà  fugindo  envolta  na  sua  matinée  e  sobra^adu  de 
ramos  de  rosas! 


Ao  sul  191 

Considerando  na  possivel  realisa^ao  d'este  devaneio 
que  a  natiu'a  em  rcdor  parecia  condemnar  pela  suti 
fercza,  proseguiram  os  aiictores  d'estas  linhas  a  mar- 
cila, e,  tangendo  os  bois-cavallos,  là  se  iani  distrahindo 
na  apanha  de  mineraes  para  a  sua  eollec9ao;  perse- 
guidos  pelas  saudades  e  recorda^oes  da  Europa,  dili- 
genciando  afastar  do  pensamento  certas  idéas  que  por 
vezes  Ihes  assaltavam  o  espirito! 

E  beni  tristes  eram  ellas! 

Ao  passar  por  Mucope,  onde  urna  enorme  mulolla 
deriva  durante  a  epoclia  das  clmvas  a  agua  do  Cacu- 
lovar,  e  o  caminlio  para  Quiteve  se  aparta  para  ir  por 
lelobanda,  apertàmos  a  marcila,  a  fini  de  cliegannos 
ao  acampamento  de  Munguri  antes  de  anoitecer. 

As  ciuco  lioras  acampàmos. 

D'este  logar  para  o  sul  terminam  as  habita^oes  e 
come9a  uma  longa  floresta,  que  nos  levou  tres  dias  a 
atravessar.  Constitue  ella  n'esta  zona  a  orla  da  mata 
com  que  defrontam  pelo  occidente  o  Quipungo,  Quilii- 
ta,  Gambos,  etc,  e  que  o  Cunene  delimita  pelo  oriente: 
valliacouto  de  quanto  biclio  bravio  existe,  pois,  quasi 
iinpenetravel  pela  espessura  do  arvoredo,  é  composta 
na  maior  parte  de  espinlieiros. 

Por  là  divagam  elepliantes,  rhinocerontes,  bufalos 
e  leopardos,  a  coberto  de  qualquer  aggravo  do  rei  da 
creacjao,  pastando  e  entredevorando-se  placidamente, 
seni  que  pessoa  algunia  pense  em  perturbal-os. 

Atravessando  as  matas  illuminadas  pelos  beneficos 
raios  de  uni  sol  matutinp,  ladeados  por  duas  nuirallias 
de  verdura,  onde  a  vista  se  perde  n^nn  labyrintlio  de 
troncos,  e  o  sentimento  da  dor  por  vezes  acorda,  em 


194  De  Angola  d  controncosta 

A  negra  fonie  deve  apoquental-os  multo,  a  julgar 
pelo  seu  proceder,  pois  ao  rece])erem  carne  ou  outro 
qualquer  artigo  em  abundancìa,  devoram-no  sofrega- 
mente!  0  ventre  distende-se-lhes,  o  estomago  (avohi- 
niado  eni  consequencia  da  introduc^'ào  diaria  de  fari- 
nlias  e  vegetaes,  que  por  conterem  poueos  elementos 
nutrientes  precisani  ser  ingeridos  em  quantidades  exa- 
geradas),  recolhe  a  carne  em  tal  pro})or(^*ao,  que  deixa 
o  oLservador  abysmado. 

As  vestimentas  d'estes  indigenas  sao  de  extrenia 
singeleza,  reduzindo-se  a  pelles  de  animaes  bravios, 
ou  de  boi  preto,  cor  por  elles  muiìo  estimada;  a  que 
juntam  adornos  com  basta  contaria. 

Urna  rapariga  vimos  nós,  e  a  estampa  póde  dar 
idea,  com  o  cabello  dividido  em  tran9as  carregadas  de 
missanga,  e  que,  nao  contente  com  isso,  trazia  ao  pes- 
coso monumentai  coUar  do  mesnio  artigo,  addicionan- 
do,  para  aggravar  este  peso,  um  cinto  de  grossas  con- 
tas,  e  tudo  untado  e  a  éscorrer  em  manteiga  de  vacca! 

Entre  os  amuletos  que  està  joven,  de  rosto  galante, 
trazia  ao  pesco90,  notàmos  uma  fecliadura  de  baliii  e 
uma  unlia  de  porco,  sem  contar  outros  artigos  miudos 
de  dubia  proveniencia! 

As  mullieres  sao  em  geral  formosas,  mas  sordidas,  o 
que  6  aggravado  ainda  pela  alludida  untura  de  man- 
teiga. 

Limam  ou  partem  os  incisivos  medios  de  cima;  uma 
espirai  de  ferro  de  30  centimetros  de  altura,  perfei- 
tamente  polida,  enfeita-llies  as  pernas  e  bra9os,  bera 
comò  usam  de  infinidade  de  bocados  de  latao,  cliapas 
de  cobre,  enfiadas  de  sementes,  etc. 


Ao  sul 


193 


e  ba-coróca,  occupam  sordidas  habita^des  e  alimen- 
tam-se  de  leite. 

Guata  a  comprehender  na  verdade  comò  està  gente 
vìve,  fazendo  consistir  a  alimentatjào  em  tal  artigo 


e  pequena  por9ào  de  iiiaasa  de  milho  urna  vez  ao  dia, 
iste  é,  ao  anoitecer,  bó  ingerindo  a  intcrvallos  a  cele- 
bre borlunga,  garapa,  feita  tambem  de  milho. 


194  De  Angola  d  controncosta 

A  negra  fome  deve  apoquental-os  muito,  a  julgar 
pelo  seu  proceder,  pois  ao  receberem  carne  ou  outro 
qualquer  artigo  em  abundancia,  devoram-no  sofrega- 
meiite!  0  ventre  distende-se-lhes,  o  estomago  (avolu- 
mado  em  consequencia  da  introduc^ao  diaria  de  fari- 
nlias  e  vegetaes,  que  por  conterem  pouco»  elementos 
nutrientes  precisam  ser  ingeridos  eni  quantidades  exa- 
geradas),  recollie  a  carne  em  tal  propor^ao,  que  deixa 
o  ob?servador  abysmado. 

As  vestimentas  d'estes  indigenas  sao  de  extrema 
singeleza,  reduzindo-se  a  pelles  de  animaes  bravios, 
ou  de  boi  preto,  cor  por  elles  muilo  estimada;  a  que 
juntam  adorno»  coni  basta  contaria. 

Urna  rapariga  vimos  nós,  e  a  estampa  póde  dar 
idea,  coni  o  cabello  dividido  em  tran<jas  carregadas  de 
missanga,  e  quo,  nao  contente  coni  isso,  trazia  ao  pes- 
coso monumentai  coUar  do  niesmo  artigo,  addicionan- 
do,  para  aggravar  este  peso,  uni  cinto  de  grossas  con- 
tas,  e  tudo  uiitado  e  a  escorrer  em  manteiga  de  vacca! 

Entre  os  amuletos  que  està  joven,  de  rosto  galante, 
trazia  ao  pescoso,  notàmos  uma  fecliadura  de  baiai  e 
uma  unlia  de  porco,  seni  contar  outros  artigos  miudos 
de  dubia  proveniencia! 

As  mullieres  sao  em  geral  formosas,  mas  sordidas,  o 
que  &  aggravado  ainda  pela  alludida  untura  de  man- 
teiga. 

Limam  ou  partem  os  incisivos  medios  de  cima;  uma 
espirai  de  ferro  de  30  centimetros  de  altura,  perfei- 
tamente  polida,  enfeita-llies  as  pernas  e  bra^os,  beni 
comò  iisam  de  infinidade  de  bocados  de  latao,  cliapas 
de  cobre,  enfiadas  de  sementes,  etc. 


Ao  sili  195 

Os  liomcns  trazem  liabitualmente  suspensa  do  pes- 
coso urna  pequeua  teiiaz  de  ferro,  ou  mellior  pin<ja, 
com  que  se  divertem  a  arrancar  uni  a  uni  os  raros 
pellos  da  barba. 

0  sexo  forte,  e  sobretudo  os  velhos,  usam  do  rape, 
as  niulheres  nao  vimos  que  d'elle  fizessem  einprego. 

Os  ban-diinba,  conio  os  ba-nlianeca,  sao  extreina- 
mente  supersticiosos,  e,  se  mìo  teem  a  cren9a  da  outra 
Vida,  pelo  menos  mostrani  por  vezes  unia  suspeita, 
facil  de  acreditar,  na  immortalidade  da  alma. 

A  rude  ou  grosseira  metempsycose  do  sertao  appa- 
rece  aqui,  sendo  para  elles  conio  certo  o  espirito  dos 
mortos  andar  depois  do  apartamento,  pelo  geral,  no 
corpo  de  animaes  (caes,  liyenas,  etc),  e  as  vezes  no 
do  liomem.  E  todo  aquelle  a  quem  esse  espirito,  Qui- 
lulìi,  apparecer  e  perseguir  n'este  ultimo  estado,  consi- 
deraiii  liomem  prestes  a  inorrer! 

Em  resumo,  os  j)ovos  dY'sta  terra  mostram  recor- 
dar-se  dos  amigos  fallecidos,  o])servaiido-se  nas  occa- 
siòes  de  successos  neftistos,  attribuidos  a  influencia 
dos  mortos,  trazerem  provisoes  para  junto  dos  tumu- 
los,  onde  sao  collo(*adas,  no  intuito  de  os  apaziguarem. 

Elitre  OS  factos  relativos  ao  modo  conio  procedem 
coni  aquelles  que  partiram  para  nuiica  mais  voltarem, 
existe  uni  que,  por  originai,  e  nos  ter  creado  uma 
pequena  decep(;ao,  aqui  transcrevemos  approximada- 
niente  <lo  nosso  diario. 

A  7  de  junlio  mettemo-nos  a  caminho  ao  alvorecer, 
de  Munguri  })ara  o  sul.  Cliegados  a  uma  volta  do  tri- 
llio  observamos  proximos  dois  circulos  de  pedras,  a 
nieio  dos  qiiaes  se  viam  numerosos  ramos  resequidos, 


196  De  Angola  d  controncosta 

sem  duvida  ali  coUocados  pela  mao  do  homem.  Um 
d'elles  estava  cortado  de  fresco,  e  posto  certamente 
pouco  antes. 

Inquirindo  da  significa^ao  do  que  viamos,  soubemos 
que  é  de  uso  entre  estes  povos,  quando  algum  dos 
companheiros  morre  em  viagem,  marcar  com  os  mon- 
ticulos  de  pedra  o  sitio  onde  cafu,  e,  afastando-o,  en- 
terral-o  logo  na  floresta  proxima. 

Volvendo  entao  ao  logar  do  obito,  cada  companheiro 
corta  um  raminlio  da  arvore  mais  proxima,  e,  acercan- 
do-se das  pedras,  dep6e-no  cuidadoso  em  cima,  reti- 
rando-se. 

NSo  se  limita  porém  so  a  isto,  pois  de  futuro,  sem- 
pre que  qualquer  conhecido  ou  amigo  do  defunto  là 
passa,  afasta-se  respeitoso  a  cortar  um  ramo,  voltando 
delicadamente  a  depol-o. 

Escusado  sera  descrever  a  impressao  que  similhante 
narrativa  nos  causou. 

Passar  ali  o  indigena,  apoderar-se  do  ramo,  deixal-o 
respeitosamente  no  locai  do  apartamento  do  amigo, 
que  quererà  isto  dizer,  reflectiamos  nós? 

E  logo  acudia-nos  a  idèa  de  que  os  raminlios  eram 
postos  comò  marca  de  aflfei^ao  por  quem  estimaram 
na  vida,  e,  sem  querer,  pensavamos  na  velila  Europa, 
na  viuva  e  na  filhinha  orpha,  que  nos  tristes  anniver- 
sarios  do  fallecimento  d'aquelle  que  tanto  estimaram 
na  terra,  sempre  encontram  em  seu  jardim  perpetuas 
e  goivos,  para  entretecer  coróas  com  que  vào  adornar 
a  sepultura,  regada  por  lagrimas  aferventadas  pela 
cruciante  saudade.  Entao  penitenciavamo-nos,  repe- 
sos  de  termos  por  vezes  condemnado  o  preto  por  in- 


Ao  svi 


197 


differente  e  pouco  caritativo,  quando  alias  é  acceesivel 
a  sentimentos  superiores. 

Antonio,  porém,  cortou  rapido  a  està  ordem  de  sen- 
sa^Ses,  contando-nos  em  breves  palavras  a  veridica 
historia. 

Informou-nos  elle  que,  sobre  eetes  monte»  e  na  sua 


proximidade,  se  Kupp3c  exiatirem  sempre  espiritos  trc- 
mendos,  cuja  animadversSo  tem  as  mais  sèria»  conse- 
quencias.  Por  isso,  acrescentou,  naturai  algum  do  paiz 
ali  passa  seni  expor  religiosamente  sobre  o  morrò  um 
dos  ditos  raminhos  e  proferir  urna  formula  so  d'elles 
conhecida,  pelo  estranilo  motivo  de  que,  se  o  nSo  fizer, 


198  De  Angola  d  contra-costa 

sera,  quando  nienos,  victiina  de  permanentes  caimhras 
nas  pernas  ! 

Um  liorrivel  episodio  se  conta  mesmo  de  certo  lio- 
mem  que  seguiu  caiiiiulio  seni  praticar  as  invariaveis 
ceremonias,  e  esse  infeliz  foi  atacado  de  paralysia,  que 
o  prostrou  para  sempre!  Claro  e  que  muito  commen- 
tàmos  isto,  e  conio  occasionalmente  passasse  toda  a 
caravana  seni  laudar  sobre  os  monticiilos  os  necessa- 
rios  raminhos,  cliegou-se  à  facil  conclusao  de  que  taes 
factos  tinliam  uni  caracter  especial  referentes  a  indi- 
viduos  isolados,  nunca  applicaveis  às  caravanas  em 
marcila  para  Mo^ambique. 

E  o  prosaico  receio  de  que  Ihes  déem  caimbras  nas 
pernas,  que  os  leva  a  proceder  d'esse  modo;  e  assilli 
por  terra  fìcou  aquelle  poetico  castello  de  cartas! 

Existem  ainda  factos  mencionaveis  na  vida  d'estes 
indigenas;  taes  sào  as  festas  celebradas  em  epoclias 
certas,  corno  na  de  laudar  o  mantimento  a  terra,  na  da 
collieita,  etc. 

D'està  ultima  vanios  em  poucos  tra^os  dar  uma  ra- 
pida idea. 

Denomina-se  a  festa  da  hela^,  e  e  celebrada  em  ju- 


^  No  seu  interessante  livro  intitulado  A  raga  ìiegra  falla-nos  o  sr.  A. 
F.  Nogiieira  de  uma  festa  feita  n'esta  epoeha  proxiniamente,  pelos  ba-nha- 
neea  do  norte,  e  que  tein  por  fini  celebrar  o  cstado  de  paz  e  abundancia 
da  terra,  cujo  synibolo  é  um  boi  a  que  dao  o  nome  de  Géroa,  acompa- 
nhado  de  outro  a  que  chamam  Xicaca  e  um  vitello  Tembo-Onjuo, 

Pela  epoclia  da  lua  nova  esses  1)0Ì3  pereorrem  proeessionalmente  em 
cortejo  de  donzella»  enfeitadas  e  homens  sarapintados  até  arosidencia 
do  regalo,  e  ahi  Ihe  cliegam  a  bóca  o  pò  amargo  da  casca  do  ImnguruUoy 
que,  conforme  é  laml)ido  ou  nao,  assim  constitue  um  presagio  feliz  ou 
agourento  de  revez.  No  caso  aftirmativo  feclia  a  ceremonia  uma  arenga 
do  regulo,  e  uos  dias  subsequentes  ha  dansas  cm  honra  das  mulheres  docile. 


Aosul  199 

nho,  epoclia  em  que  termina  por  estas  regioes  a  co- 
llieìta. 

Assim  que  a  lua  chela  se  approxima,  conie^am  as 
mulheres  de  todas  as  aldeias  a  fazer  a  Iieìa^  especie 
de  cerveja  confeccionada  coni  o  sorgho,  que  depois  de 
luimedecido,  secco  e  triturado,  é  mettido  n'um  funil 
de  capim  para  dirigir  a  agua  coada  atravez  da  massa, 
que  mais  tarde,  fermentando,  constitue  a  bebida. 

Dois  individuos  dos  mais  importantes  de  qualquer 
aldeia  sàem  após,  bem  sarapintados,  para,  na  quali- 
dade  de  festeiros,  prepararem  as  cousas,  e  ao  primeiro 
rebate  acodem  todos  coni  armas  e  grotescos  tra^os 
pelo  rosto,  etc. 

Attingido  que  seja  uni  determinado  numero,  cometa 
a  scena,  e  de  senzalla  em  senzalla  prosegue  a  festa, 
tocando  e  cantando,  recebendo  aqui  uni  boi,  aleni  fa- 
rinlia,  mais  longe  bebida,  em  inferneira  continua,  que 
por  dias  se  prolonga. 

Ai  do  liabitante  encontrado  em  caminho,  pois,  vi- 
ctima  d'estes  energumenos  que  d  solta  pcrcorrem  os 
campos,  o  roubani  e  mesmo  espancam,  escapando-lhes 
das  maos  a  niuito  custo. 

0  mesmo  viajante  estranilo  d  terra,  enibora  o  con- 
siderem  mais,  nao  deixa  por  isso  de  ser  roubado,  fi- 
caiido  invariavelmente  em  piena  campina  comò  Adào 
andava  no  paraizo! 

0  notavel,  poréni,  e  que  o  regulo,  cliefe  supremo  da 
terra,  perde  durante  o  primeiro  dia  todas  as  regalias  e 
superioridade  de  que  gosa  em  seus  dominios.  Assini, 
quando  llie  cliega  a  noticia  dos  festeiros  terem  partido 
para  percorrer  os  primeiros  logares,  elle  esconde-se. 


200  De  Angola  d  controrcosta 

A  multidSo  avan9a  entSo  no  sentido  da  sua  residencia 
e  para  a  grande  distancia. 

Tres  latagoes  armados  e  tintos  de  corea  extrava- 
gantes  partem  na  direcijào  da  emballa,  e  chegando  ahi 
cautelosos,  fazem  nm  giro  em  redor. 

Nem  alma  viva  apparece!  Escondidos,  os  habitantes 
tremem  de  susto;  o  soba,  recluso  no  quarto,  nem  res- 
pira: a  sua  presenta  entao  acarretar-lhe-fa  immediato 
termo  à  existencia. 

De  uma  das  portas  feitas  na  palÌ9ada  sàem  inopina- 
damente  tres  typos.  Sao  mulheres.  A  da  frente,  peque- 
nita,  quando  muito  de  oito  annos,  traz  ao  pescoso  um 
amuleto,  similhante  a  pà  de  ferro  minuscula;  a  se- 
gunda,  jà  idosa,  é  a  esposa  mais  velha  do  soba;  a  ter- 
ceira,  especie  de  creada,  conduz  com  todo  o  cuidado 
uma  caba9a  de  hela. 

Ao  vel-as,  os  espioes  afastam-se,  depoem  as  armas  e 
prostram-se  por  terra,  emquanto  a  princeza  donairosa 
caminha  para  o  sitio  onde  se  acha  o  grosso  da  gente,  e 
entregando  a  caba9a  da  hela  magica  e  a  pequena  pà 
que  a  ha  de  mexer,  deixa-os  feiticeiros  que  a  esgotam, 
levantando  o  interdicto  ao  regulo. 

Livre  este,  póde  logo  salr. 

Nao  atinàmos  bem  com  a  significa9ao  d'està  masca- 
rada,  que  finalisa  por  continuas  dansas,  parecendo 
intencionalmente  mostrar  uma  comò  que  supremacia 
eventual  do  povo  sobre  o  chef  e  supremo.  Occorre-nos 
se  isto  terà  alguma  Hga9ao  com  o  celebrado  muquixé 
do  Quióco,  que  tambem  nas  povoa9oes  faz  tudo  quanto 
quer,  aterrando  todos,  ou  sera  apenas  reminiscencia 
dos  jaggas  devastadores,  que,  correndo  na  epocha  da 


Ao  mi  201 

matura^ào  do  maDtimento  as  tcrras,  para  roubarem, 
so  se  evitarìam  as  saan  tyrannias  pela»  offerta»  e  con- 
cessSes! 

Logo  depois  d'està  festa  faz-se  outra,  cujo  firn  é  con- 
sagrar por  urna  ceremonia  a  idade  nubil  das  donzellas, 
até  ahi  11S.0  consideradas  aptas  para  casar,  abateado 
boi»,  de  que  ellas  vestem  a  pelle,  dansando,  etc. 


lorocuto,  Cahama,  Xicusse,  foram  pontos  por  que 
successivamente  fomos  acampando  na  grande  mata, 
repetindo-se  de  modo  invariavel  as  extravagantes  sce- 
nas  jà  descriptas. 

No  primeiro  d'estes  pontos  temoa  a  assignalar  0  in- 
opinado  apparecìmento  do  granito,  que  em  naturai 
erup^So  por  meio  das  rocha»  laiirencìanas  affloreia  0 
terreno,  erguendo-se  de  todos  os  lados. 


202  De  Angola  d  contro-costa 

A  marcila  pelo  bosque  fa-se  tornando  de  todo  o 
ponto  enfadonlia  ;  avalie-se  pelo  que  encontràmos  exa- 
rado  eni  nosso  diario. 

Nada  mais  banal,  diz-se  ali,  do  que  viajar  por  uma 
deserta  e  longa  floresta. 

Depois  de  vinte  e  quatro  lioras  nada  attraile  e  cousa 
algunia  diverte;  assim  conio  eiii  liorisonte  immenso, 
recortado  por  azulados  montes,  a  vista  se  espraia  })or 
vastas  campiiias,  onde  se  destacam  pelas  differentes 
grada^oes  do  verde  os  valles  que  se  succedem  e  os 
brancos  peiinachos  aqui  e  alem  das  senzallas  occultas 
pelo  ai'voredo,  dando  inargem  para  divaga(;6es  descri- 
ptivas  e  assumpto  para  distraliir  quem  viaja;  do  mes- 
mo  modo  a  monotona  repeti^ao  dos  troncos  que  nos 
ladeiam,  no  nieio  de  silencioso  bosque,  apenas  convida 
a  uni  triste  mutismo.  Tudo  se  resumé  a  erguer  de  ma- 
nlia,  marcliar  durante  o  dia,  acampando  pela  tarde  ein 
sitio  onde  se  encontre  agua. 

Inspeccionados  invariavelmente  os  novos  dominios, 
installavamo-nos  na  primeira  clareira  de  cliao  batido  e 
plano  que  se  nos  offerecia,  e  onde  Mupei,  aeto  conti- 
nuo, ageitando  tres  pedras,  dava  comedo  à  culinaria 
tarefa,  essa  mais  seria  das  nossas  preoecupa9oes,  ver- 
dadeira  questao  importante  do  dia. 

Difficilmente  se  póde  compreliender  os  desejos  e  a 
satisfa(;ao  que  a  vista  dos  fumegantes  pratos  inspira 
ao  viajante  africano,  e  conio  contribuem  para  adorar 
as  àgruras  do  mato,  esses  bocados  de  carne  assada  na 
braza  ou  nadando  em  uni  mólho  que  póde  ter  por  ori- 
g^m  todos  OS  ingredientes,  desde  o  azeite  de  palma  até 
ao  tutano  de  depilante! 


Ao  sul  203 

Nimca  na  Europa,  diante  de  bem  scrvido  jantar,  nos 
seiitimos  coni  mais  appetite  do  que  eiii  frente  da  nossa 
caixa  arvorada  em  mesa,  coni  um  guizado  singelo  em 
cima. 

Activadas  as  func^oes  vitaes  por  um  exercicio  exa- 
gerado  cpie  a  temperatura,  as  aguas,  etc,  exaltam, 
alida  o  viajante  sempre  sob  a  impressilo  de  lima  aniea- 
9a  de  fonie,  que  Ihe  orvalha  a  buca  de  agua  ao  aiite- 
gostar  na  imagina^ao  um  j)rato,  que  a  necessidade  llie 
pinta  conio  milito  salioroso.  A  niingua  de  distrac^oes 
de  espirito,  torna-se  mais  imperativo  o  goso  material 
de  encher  o  estomago,  aprecia  mais  essa  idea,  donii- 
iia-o  grosseiramente  o  desejo  sensual  de  ingerir  o  que 
ve,  ti'azendo  sempre  interessado  o  receio  constante  das 
faltas  frequentes. 

Muitas  vezes  pensamos  n'este  facto,  que  de  certa 
maneira  explica  as  incliiia(;oes  sofregas  do  preto,  e 
ahi,  mellior  (pie  em  parte  alguma,  compreliendemos 
que  nada  iguala  n'este  peqiieno  torrao  a  alegria  de 
Ulna  boa  mesa,  e  serenamente  apreciamos  em  sua  gas- 
tronomica grandeza  os  Hortensius,  Apicius  e  Lucul- 
lus,  a  qiiem  a  posteridade  deve,  pelo  menos,  conside- 
rar conio  homens  de  boni  gosto. 

Entao  a  sós  (^onsideravamos  tambeni  quanto  neces- 
sarios  sao  os  convivas,  para  tornar  completo  o  siiave 
consolo  de  encher  pausadamente  o  estomago;  apre- 
ciavamos  em  devida  escala  as  rasòes  que  deviani  ter 
levado  Miaraó  Menes,  esse  sybarita  da  velha  antigui- 
dade,  a  fazer  da  mesa  quasi  uma  questao  de  estado; 
que  arrastaram  Solon,  o  celebre  legislador  atheniense, 
a  sustentar  que  menos  de  trinta  era  numero  inadmis- 


204  De  Angola  d  corUrOnCosta 

sivel  em  um  jantar  de  tom,  e  que  finalmente  obrigou 
Vitellius  a  ter  dentro  do  palacio  todos  os  cozinheiros 
do  imperio! 

Assim  muitas  vezes  se  passava  o  tempo,  que  mais 
bem  aproveitado  podia  ser,  e,  prolongando  depois  a 
conversa9ào  até  ao  entrar  da  noite,  almejavamos  no 
regresso  para  as  tendas  pelo  alimento  da  tarde  seguin- 
te,  porque  sabiamos  que  durante  ella  se  passariam  as 
melhores  horas  do  dia. 

Adiante  de  Caliama  tivemos  pela  primeira  vez  a 
agradavel  surpreza  de  ver  quatro  elepliantes,  que,  ao 
avistar-nos,  partiram  floresta  a  dentro. 

Nao  ousando  perseguir  tao  grossa  ca9a,  por  nao  es- 
tarmos  ainda  affeitos  a  ella,  e  porque  a  floresta,  fecha- 
da  completamente  pelos  espinheiros,  apenas  póde  ser 
transitavel  por  animaes  cuja  pelle,  comò  a  do  elephan- 
te,  so  dà  rasào  de  si  a  machado,  abalàmos,  consolan- 
do-nos  com  o  registar  em  nosso  diario  o  seu  appare- 
cimento. 

Pela  nossa  direita  corre  o  Caculovar,  e  a  presen9a 
da  agua  basta  para  que  encham  os  ares  os  gorgeios 
de  alados  cantores. 

Aves  de  bella  plumagem  avistavamos  por  toda  a 
parte  e  a  come9ar  na  Vidua  paradisea^  notàmos  uma 
outra  preta  avelludada,  bem  comò  terceira  vermelha 
e  azul  de  longa  cauda,  e  ainda  uma  especie  de  pópa 
de  pintas  brancas,  cauda  extensa  e  longo  bico  encar- 
nado,  nao  contando  milhares  de  pintadas,  da  especie 
gallinacea. 

Havendo  pegado  nas  armas,  seguimos  até  à  margem 
do  rio  em  busca  de  ca9a.  Duas  roUas,  ciuco  gallinhas 


Ao  sul 


205 


e  urna  gazella, .  Cephalophus  mergeìis,  eia  o  fructo  do 
DOSSO  passeio. 

Pela  tarde  d'este  dia  deu-se  a  primeira  morte  entre 
08  nossos  càes,  que  foi  iniseravelmente  colhido  pelo 
crocodilo. 

Ao  atirarmos  à  ultima  pintada,  as  companheiras, 
levantando  v6o  para  atravegsar  o  curso  da  agua,  attra- 
hirani  a  atten<;ao  de  urna  cadella,  a  Pomba,  que,  ven- 
do-as,  se  lan^ou  com  denodo  ao  rio. 


Apenas  tinha  entrado  na  agua,  uma  cabe<;a  hor- 
renda  apparece  à  superficie,  duas  queixadas  defendidas 
por  agu<;ado8  dentea  se  abrem,  mostrando  escancara- 
da  gliela  vermellienta;  grande  redemoinho  se  segue, 
e  o  infeliz  animai,  soltando  um  ultimo  latido,  desappa- 
rece  para  sempre. 

A  estrada  continua  a  prolongar  com  o  rio,  que  tem 
aqui  30  a  40  metros  de  largo,  2  milhas  ou  menos  de 
velocidade,  agua  barrenta,  margens  alagadas  cobertas 
de  gramineas,  que  vào  morrer  junto  às  acacias,  que 


206  De  Angola  d  contro-costa 

na  for^a  das  chuvas  devem  ficar  cobertas,  nao  abo- 
nando  por  isso  a  salubridade  d'està  zona. 

A  altitude  diniinuiu,  acliando-nos  por  aqui  mais  bai- 
xos  cpie  na  Huilla,  consequcncia  de  comecjar  a  floresta 
a  rarear  e  a  apparecer  por  toda  a  parte  o  bao-bab. 

Adiante  encoutram-se  vestig'ios  do  laborioso  traba- 
llio do  homem  e  pouco  depois  véeni-se  aa  primeiras 
liabita(;oes. 

Quando  estas  appareeeram,  tivenios  ensejo  de  ver 
e  apalpar,  pela  prinieira  vez  em  nossa  vida,  um  dos 
mais  estranlios  tj'pos  do  continente  africano,  o  niu- 
ciiancalla  ou  hushmnn,  a  leste  conliecido  por  ba-clie- 
quelle  *,  ciijas  pegadas  nos  caminhos  os  pretos  distin- 
gnem  coni  a  maior  facilidade. 

Nada  ha  mais  abjecto  e  repugnante  do  que  esse  ar- 
remedo  de  homem,  que  hoje  vagabundeia  pelos  bos- 
ques  e  campinas  do  grande  continente,  em  lucta  per- 
tinaz  para  se  poder  alimentar. 

Tilo  revoltante  6  està  raridade  do  humano  genero, 
tao  mesquinho  o  seu  ar,  apoucado  o  vulto  e  estranilo 
o  modo,  que  degrada  e  afflige  ter  que  descrevel-o. 

E  corno  se  defronte  de  nós  se  erguera  um  cadaver, 
e  parando  nos  fitasse  envolto  em  miseria  e  frio. 

A  sua  altura  media  e  de  1",4  approximadamente, 
havendo  muitos,  porém,  que  nao  chegam  a  està  cra- 
veira. 

A  pelle  6  amarellada,  as  arcadas  zygomaticas  pro- 
eminentes,  a  face  triangular  e  terminada  em  bico  no 
queixo,  deprimida  a  meio,  nariz  chato,  bei^os  grossos, 


*  Sao  03  mu-cusscquére  de  que  nos  falla  Scrjia  Fiuto. 


Ao  mi  207 

olhos  obliquos,  pequenos,  distantes,  dispostos  à  feic^ao 
dos  chinas:  o  seu  aspecto  é  repellente. 

Unia  especie  de  tatouarje  no  rosto,  resiiltado  de  pe- 
quenos golpes  parallelos  feitos  com  instrumento  cor- 
tante,  aggrava  estes  tra^os  geraes,  que  se  podem 
reniatar  inferiormente,  dizendo  que  o  tronco  é  des- 
carnado,  e  os  bra^os  e  pernas  resequidos  sao  longos 
e  nodosos  nas  juntas! 

A  descrip^ao  das  niulheres  seria  tal,  que  nol-a  im- 
pede  um  respeito  delicado  pelo  sexo  amavel. 

A  vestimenta  d'elles  e,  quando  muito,  urna  pelle  de 
gcneta  ou  de  antilope  ;  as  suas  armas  o  arco  e  a  fleelia, 
muitas  vezes  envenenada  com  o  succo  de  uma  euplior- 
bia,  que  suppomos  ser  a  Amaryllis  toodcarìa,  e  outras 
com  o  veneno  da  buta.  Echidna  arietans,  que  extrahem 
das  vesiculas  alveolares. 

Vivem  nos  reconditos  dos  bosques,  em  miseras  cu- 
batas;  a  sua  alimentatilo  consiste  no  mei  e  na  carne; 
o  seu  maior  prazer  e  o  isolamento!  Eis  as  informa^oes 
sobre  essa  degradada  casta,  de  que  encontràmos  um 
grupo  perto  de  Chipàlongo,  do  qual  conservàmos  triste 
recordacjao. 

Muitos  viajantes  fallam  do  hushman  e  respectivo  ca- 
racter,  nos  termos  menos  lisonjeiros. 

Parece  que  a  perfidia  e  a  crueldade  sao  apanagio 
d'essas  mesquinhas  creaturas,  transparecendo  nota- 
velmente  exageradas  no  cora^ao  da  mulher. 

Assim  se  conta  de  maes  que  abandonam  em  piena 
floresta  os  filhos,  por  nao  quererem  carregar  com  elles, 
ou  que  OS  atiram  às  feras,  para  fugirem  à  morte  ine- 
vitavel,  de  preferencia  às  pobres  crean9as  ;  de  velbos, 


208 


De  Angola  d  contro-costa 


emfim,  deixados  naa  selvas  ao  desamparo,  por  Ihes 
faltarem  jà  for9as  para  acompanhar  a  caravana  em 
viagem. 

0  pouco  tempo  que  com  ellea  nos  demoràmos  nào 
no8  consente  garantir  nenhuma  d'estas  asser<;5eB,  as 
quaes  de  reato  podem  ser  multo  verdadeiras. 


Continuando  a  marcila  por  meio  de  aldeias  e  cam- 
pos  cultivados,  transpozemos  a  fronteira  de  Humbe 
perto  de  um  logar  denominado  Belavella,  achando-nos 
n'uma  tribù  de  uso»  diiferentes,  a  avaliarmos  pelo 
novo  e  originai  penteado  das  mulheres,  qvie  parece 
terem  ido  buscar  o  modelo  na  configura^jSo  da  cabe9a 
do  elephante! 


Ao  mi  209 

Numerosos  bao-bab  vegetam  na  campina,  para  d« 
subito  desapparecerem  ao  entrarmos  n'uma  zona  pan- 
tanosa. 

Um  typo  de  periqiiìto  ruidoso  esvoa9a  por  aqui  em 
bandos,  atroando  os  ares  com  seiis  gritos,  e  deixan- 
do-se  levar  à  mercé  do  vento  do  sueste,  que  n'esta 
quadra  sopra  rijo  e  forte. 

Debaixo  do  ponto  de  vista  cynegetico,  é  està  urna 
regiào  altamente  interessante,  que  pelo  oeste  os  boers 
da  Humpata  jà  come9aram  nos  ultimos  annos  a  per- 
correr. 

0  proprio  Erikson,  esse  audaz  ca9ador  que  trilha 
com  seus  carros  muitos  sertoes  do  sul,  tambem  dei- 
tou  até  aqui  em  suas  ca9adoras  pesquizas,  no  intuito 
de  OS  atulhar  de  marfim. 

Sao  numerosos  os  elepliantes  a  leste  e  oeste  da  es- 
trada, encontrando  nós  em  muitas  partes  bem  visiveis 
tra90S  da  sua  passagem;  assim  comò  abundam  ali  os 
rhinocerontes,  bufalos  e  varios  antilopes  de  grande 
tamanho. 

A  causa  d'està  frisante  multiplica9ao  de  animaes  de 
vulto,  tao  proximos  da  residencia  do  liomem,  consiste 
em  dois  factos  especiaes:  a  natureza  das  florestas, 
exclusivamente  compostas  em  grandes  zonas  do  espi- 
nlieiro,  o  que  as  toma  impenetraveis,  e  a  abundancia 
dos  gados,  fazendo  com  que  o  indigena  pouco  ou 
nada  pense  em  ca9ar. 

Assim,  raro  se  ve  um  bando  de  ban-cumbi  partir 
para  a  ca9a,  e  quando  se  Ihes  falla  d'isso,  respondem 
sempre  indifferentes,  com  ar  de  quem  pouco  pensa  ou 
se  emprega  em  tal, 

14 


210  De  Angola  d  controncosta 

O  ponto  refendo  dista  12  millias  da  sède  do  conce- 
Ilio  do  Humbe. 

Erguendo-nos  com  a  aurora,  bifurcàmo-nos  em 
nossos  bois-cavallos,  e,  entestando  com  o  trilho  por 
urna  nianha  primaveral,  seguinios  pelas  plantacjoes  e 
propriedades  dos  europeus  e  africanos  ali  residentes, 
até  que  alfim,  transpbndo  o  Caculovar,  acanipàmos 
à  sombra  de  duas  copadas  arvores. 

Estavamos  a  GOO  millias  do  ponto  da  partida,  pois 
tal  era  a  distancia  pelo  caminho  por  nós  percorrido; 
e  quando,  ao  pensar  na  regiao  dos  lagos,  desdobràmos 
cautelosos  a  carta  sobre  o  joellio,  emmudecemos  ante 
a  zona  que  se  alongava,  e  que  passo  a  passo  tinliamos 
de  visitar. 


CAPITULO  VII 


ENTRE  OS  BAN-KUMBI 


O  Huiiibe — Sua  posi^'ao — Quadro  historico  —  Os  ])an-kumbi  e  os  seus 
costumcs — Habita^oes  e  typo — 0  hamha — Homens  e  nuilheres,  séustra- 
balhos  —  Chronologia  e  fcstas  —  Fuueraea  —  Missoes  catholicas — Os  ba- 
na-eutuba  e  o  Cuauhatna — Proezas  do  Nainpaudi — Riqueza  dos  cuanha- 
nias  e  um  aper^v  geologico — 0  ronco  do  loùo  impressionando  no  niundo 
aniuiado — 0  caoinibo  e  as  eonsi(lcra9ucs — O  Cuuenc  e  o  alagamcnto 
marginai — Mupei  cncontra  a  niao — A  vaortha  e  o  processo  da  vaccina — 
Os  reptis  e  a  vegetatilo  —  Zero  de  graus  e  a  impressilo  consequente  — 
Um  almo90  de  couro. 


A  villa  (lo  lluiii- 

be  acha-se  8ituada 

Ila  conflueucia  do 

Uaculovar'  e  do 

Cunene,  sob  o  pa- 

-^  1  1         ^.    lallelo    16".42'.00" 

ui  e  lidi  duo  (le 

nn««ai>a».a  15°.00'.24",  a  leste 

de  Greenwich;  altitude  proximamente  de  1:067  metro». 

Este  ponto  da  iiossa  provincia  obrìga-nos,  antea  de 

proseguir  na  viagem,  objecto  d'este  livro,  a  um  deva- 


'  Caculovar,  conup^  do  Caculo-Bale. 


214  De  Angola  d  contr(Kosta 

neio  historico,  que,  embora  nos  afaste  do  priucipal 
firn  proposto,  uem  por  isso  deixa  de  ter  um  determi- 
nado  valor  para  os  que  se  interessam  pela  Africa. 

Parec^e  fora  de  duvida  que  ao  tempo  da  conquista  de 
Angola  pelos  portuguezes,  um  vasto  districto  ou  pro- 
vincia se  estendia  desde  o  Bié  até  para  aleni  do  Cu- 
nliama,  e  era  govemado  por  um  chefe  conhecido  pelo 
nome,  de  Humbi-Inéné  *.  Este  chefe,  alliado  dos  reis 
de  Angola,  preparou-se  para  correr  em  seu  soccorro, 
(piando  rebentou  a  guerra  (*ontra  os  conquistadores; 
tal  auxilio,  porcm,  nao  póde  ter  logar,  em  vista  da 
opposi(;ao  de  um  dos  seus  vassallos  no  norte,  o  soba 
do  Bié,  que  n'isso  nao  consentiu. 

D'este  facto  deriva  a  independencia  do  ]iié,  pois, 
(pierendo  o  Humbi  castigar  o  soba  d'està  regiao,  par- 
tilliou  coni  elle  os  azares  de  unia  guerra  civil,  em  que 
foi  vencido  e  obrigado  a  pedir  a  paz,  voltando  para  a 
siui  cidade. 

Nao  e  beni  certo  o  logar  d'està  entao  importante  ca- 
pital, onde  reinava  comò  despota  o  senhor  de  tao  vastos 
dominios;  tudo,  porém,  leva  a  crer  que  fosse  approxi- 
madamente  no  ponto  em  que  hoje  se  aclia  o  moderno 
Ilumbe,  nao  so  pela  coincidencia  do  nome,  conio  tam- 
beni  pela  posi(;ao  estrategica  que  occupa,  pois  aclian- 
do-se  assente  n'essa  nesga  de  terra  encravada  entre 
OS  dois  rios  Caculovar  e  Cunene,  naturalmente  devia 
agradar  ao  liomem,  cujo  genero  de  vida  o  trazia  sem- 
pre em  lucta  coni  estranhos. 


1  Inéné  significa  grande.  0  Humbi  seria  talvez  um  vassallo  do  grande 
ehefe  dos  mataman. 


Elitre  OS  ban-kumbi  215 

Sao  curiosa s  as  informa9oes  àcerca  da  conquista 
ou  primeira  occupacjao  conliecida  por  parte  dos  indi- 
genas  d'està  ampia  zona,  quando  se  compulsa  a  his- 
toria. 

No  meio  de  uma  confusao  de  factos  estranhos  ou 
exagerados,  encontram-se  alguns,  que  em  duas  pala- 
vras  vamos  frisar,  e  que  deixarao  ver  para  o  caso  apro- 
veitamento  immediato. 

Dissemos  que  o  Humbe  podia  nmito  beni  ter  sido  o 
centro  ou  capital  de  uni  grande  imperio,  de  que  hoje 
iiem  restam  as  sombras,  pois  de  velha  data  outras 
indica9oes  existiam,  iiao  meno»  aproveitaveis  e  con- 
ducentes  ao  mesmo  evidenciar. 

Segundo  Gavazzi,  Lopes,  etc,  os  jaggas  ou  9uiiibis 
appareceram  no  Congo  pelo  nieado  do  seculo  xvi,  ca- 
pitaneados  pelo  jagga  Zinibo  *,  que,  invadindo  aquelle 
reino,  o  limpou  dos  seus  habitadores,  e  queimando  a 
cidade  de  S.  Salvador,  obrigou  o  rei  a  refugiar-se 
ii'unia  illia  do  Zaire  coni  todo  o  pessoal  importante  da 
sua  córte. 

Nao  contente  com  as  vantagens  obtidas,  esse  verda- 
deiro  Attila  africano,  percebendo  a  impossibilidade  de 
conservar  quietas  as  liordas  de  seus  guerreiros  liabi- 
tuados  a  vencer,  dividiu  o  exercito  em  grupos,  que 
enviou  il  conquista  para  pontos  differentes. 


r 

1  Ziml)o  ou  Xiiiibo,  conforme  o  modo  do  pronunciar.  E  de  crcr  que  ^ 
estas  numcrosis9Ìmas  liordas  fossem  formadas  de  tribus  differentes,  tornan- 
do umas  vezes  para  a  collectividade  o  nome  do  chefe,  outras  tornando 
oste  para  si  o  nome  da  tribù  ou  terra  d'onde  haviam  saido.  Assim  os  jag- 
gas seriam  os  mà-iàcca,  os  ^umbi  eram  os  ban-cumbi,  os  ximbo  os  ba- 
ximba  de  hoje  talvez. 


216  De  Angola  d  contrcKosta 

Urna  das  columnas,  capitaneada,  ao  que  parece,  pela 
propria  esposa  do  monarcha,  a  feroz  Temba-Ndumba, 
dirigiu-se  pela  Mina  e  costa  da  Malagueta  até  à  serra 
Leoa;  outra  enviou  Zimbo  para  a  conquista  da  Abys- 
sinia  (?)  e  Mo9ambiqiie,  dando  o  commando  d'ella  ao 
seu  logar-tenente  Quizuva. 

Este,  investindo  com  o  oriente,  levou  as  suas  con- 
quistas  até  perto  do  mar,  e  sendo  batido  pelos  portu- 
guezes  em  Tete  *,  recuou  suspendendo. 

Zimbo,  conhecedor  do  facto,  prestou-llie  aiixilio,  e 
após  mna  serie  de  victorias,  investindo  com  o  reino 
de  Melinde,  ahi  foi  completamente  derrotado,  conse- 
guindo  escapar-se  com  pequeno  numero  de  compa- 
nlieiros. 

Tomando  entao  pelo  sul,  transpoz  o  Zambeze,  e,  se- 
guindo  talvez  pelo  norte  do  Calahari,  veiu  estabelecer- 
se  nas  margens  do  rio  Cunene,  avassallando  os  seus 


1  £is  a  rasSo  por  que  Duartc  Lopes  tanto  falla  das  temerosas  bata- 
Ihas  travadas  entre  os  jaggas  pelo  lado  do  Moneinueji,  e  as  amazonas 
que  dcfendiam  o  Monomotapa. 

E  d'estas  amazonas  està  mais  que  provada  a  sua  existencia,  pois 
entre  os  jaggas  as  mulheres  eram  temiveis. 

Teniba-Ndumba,  de  que  fallÀmos,  era  mulher  cruel,  ardente  e  apaixo- 
nada  que  mal  desprendia  os  amantes  dos  bra^os,  os  sacrificava,  no  nieio 
das  maiores  torturas. 

Foi  ella  que  se  proclamou  rainha  dos  jaggas,  decretando  que  todas 
as  crean^as  do  sexo  masculino  a  quem  nasccsscm  prime  irò  os  deutes  de 
cima  que  os  de  baixo,  fossem  estranguladas  pelas  proprias  mScs,  para 
se  Ihes  transformarem  os  corpos  n*um  oleo  especial  ;  ordenou,  emfim,  que 
OS  prisioneiros  machos,  depois  de  servirem  na  perpetuammo  da  rama,  fossem 
mortos  e  devorados,  e  mil  outras  monstruosidades. 

Nào  menos  notavel  foi  sua  màe  Mussassa,  mulher  de  um  dos  capitSes 
mais  famosos  d*aquelle  tempo,  Donji,  que  govemou  largo  tempo  em  Mh- 
tamba  e  cuja  educammo  feroz  produziu  a  filha  de  que  fallàmos. 


Entre  os  han-hirnhi  217 

habitadores.  0  ponto  por  elle  escolhido  nao  està  bein 
averiguado,  porém  póde  tomar-se  corno  acceitavel  que 
soflÉrendo  derrota  pouco  antes,  a  experiencia  Ibe  pro- 
vocasse a  idèa  de  assentar  os  seus  arraiaes  em  logar 
naturalmente  defendido,  e  sobre  o  Cunene  nenlium 
melhor  liavia  que  aquelle  onde  se  acha  o  Hunibe  *. 

E  se  assim  fez,  se  construiu  o  primeiro  quilombo, 
porque  nao  seria  elle  o  fundador  do  imperio  de  Hum- 
bi-Inéne?  Demais,  vemos  que  entre  os  companbeiros 
de  Zimbo  ou  Ximbo  deviam  vir  ban-ximba,  bem  corno 
9umbis  ou  ban-kumbi,  nomes  que  ainda  hoje  desi- 
gnam  aquellas  tribus,  cujos  costumes  nos  parece  rela- 
cionarem  por  modo  frisante  coni  os  dos  habitadores  do 
norte. 

E  fora  de  duvida,  porém,  que  os  ban-kumbi  con- 
trastam  com  tudo  quanto  os  cerca,  assim  comò  nos 
parece  assente  ser  o  paiz  d'onde  procedem  multo  dis- 
tante do  que  occupam  agora,  acreditar  no  que  por 
mais  de  urna  vez  nos  disseram,  isto  e,  serem  prove- 
nientes  do  norte. 

E  jà  que  fallàmos  da  impressao  causada  pelos  cos- 
tumes e  o  modo  de  vida  dos  ban-kumbi,  dèmos  n'um 
momento  a  palavra  ao  sr.  A.  F.  Nogueira,  o  illustre 
auctor  da  Rcu^a  negi^a,  que  viveu  multo  tempo  entre 


1  De  todas  as  informa^oes  que  podémos  colher  no  Humbe,  resultou 
chegarmos  ao  eonliecimento  da  existencia  outr'ora  de  um  povo  que 
habitou  este  paiz  largo  tempo,  conhecido  pela  designarlo  de  ba-cua-naiba. 
Fronteiro  a  Quiteve  vimos  mais  tarde  um  morrò,  onde  parece  tiveram  uma 
grande  libata,  que  se  denomina  Punda-ia-Cave.  Nao  podémos,  porém, 
acertar  se  eram  elles  os  representantes  dos  primeiros  habitadores  d'està 
zona,  se  tribus  dispersas  dos  companbeiros  dos  jaggas,  ou  emfim,  o  que 
é  a  mesma  cousa,  descendentes  dos  dàmaras  do  sul. 


218  De  Angola  d  contra-costa 

elles,  tendo  largo  conhecimento  dos  seus  habitos,  e 
veremos  talvez  mais  urna  comprova(;ao  do  que  avaii- 
(jàinos. 

Eis  o  que  elle  nos  diz  ii'uma  memoria  apresentada 
a  sociedade  de  geograpliia  de  Lisboa,  sobre  o  dialecto 
luTi-kmnbi: 

«Os  costimies  dos  ban-kumbi  téem  miia  notavel 
analogia  coni  os  dos  arabes.  Como  estes,  elles  rapam 
a  cabe9a,  deixando  no  occiput  urna  ou  mais  tran9as 
de  8  a  10  centimetros  de  comprido;  repetem  as  sau- 
da96es,  descal^am-se  quando  entram  em  casa  de  al- 
guem,  e  isto  em  signal  de  respeito,  cantam  pelas  mas, 
teem  uma  fórma  de  casamento,  cuja  base  ó  a  polyga- 
mia;  quando  morre  alguem,  os  parentes  e  amigos  do 
defunto  despojam-se  dos  seus  adornos  mais  vistosos, 
substituem  por  outros  de  cor  preta,  e  celebram,  can- 
tando coni  uma  triste  melopéa  e  gestos  doloridos,  as 
qualidades  e  feitos  do  finado,  e  finalmente  usam  a  cir- 
cumcisào,  que,  se  nao  é  de  origem  arabe,  foi  desde 
tempos  remotos  adoptada  por  estes. 

«As  liabitac^oes  ma-hurnho  consistem  n'um  conjim- 
cto  de  vivendas  particulares,  em  cada  uma  das  quaes 
reside  determinada  fiimilia,  so  differindo  das  dos  ara- 
bes no  emprego  de  cabanas  em  vez  de  tendas  circum- 
dando  o  curral  e  de  correrem  parallelamente  na  dis- 
tancia  de  10  metros. 

«Como  nos  duars  arabes,  etc. 

«0  cliefe  de  cada  um  d'estes  aggregados  de  liabi- 
ta9Òes,  que  se  denomina  é-uvìbo,  e,  comò  os  arabes,  o 
cliefe  da  povoa9ao  mu-cunda,  que  governa  em  nome 
do  hamba  (principe  ou  soberano),  etc. 


Entre  os  ban-kumbi  219 

«È  notavel,  diz  o  sr.  Nogiieira,  a  coincidencia  de 
servir  aqui  o  nome  mu-cunda  para  designar  a  mesma 
cousa  que  entre  os  fiillas;  assim^  fulla-amda  significa, 
entre  estes,  aldeia  ou  povoacjao  dos  fullas.» 

Todas  estas  considera^oes  veni  de  certo  modo  ar- 
reigar  em  nosso  espirito  a  idea  da  probabilidade  de 
antigas  rela96es  dos  ban-kumbi  com  os  jaggas,  o  que 
nem  de  longe  podemos  garantir;  mas  esmiu9adas  por 
mào  habil  poderao  alguma  cousa  dar,  e  emfim,  postas 
aqui,  deixam  assumpto  interessante  para  a  ethnogra- 
phia  africana,  fazendo  mais  tarde  dissipar  as  discre- 
pancias  entre  Duarte  Lopes  e  Alvares  de  Almada, 
quando  aquelle  falla  do  apparecimento  dos  jaggas  no 
oriente. 

Os  ban-kumbi  sao  refor^ados,  robustos  e  retintos; 
o  aspecto  d'elles  nao  é  menos  bello  e  sympatliico  do 
que  o  dos  ba-nano. 

Trajam  pelles  de  boi  preto  e  nunca  de  cor,  usando 
pelo  geral  uma  collocada  posteriormente,  e,  caso  sin- 
gular,  cortando-a  em  meia  lua  com  a  concavidade 
para  cima  e  suspendendo-a  nos  quadris  pelas  pontas, 
de  pouco  ou  nada  serve,  sobretudo  quando  estes  se- 
nhores  se  curvam. 

Como  OS  ban-dimba,  as  nmllieres  por  aqui  sao  bas- 
tante immoraes,  usam  os  mais  exquisitos  penteados, 
addicionando-Uies,  comò  se  disse,  junto  aos  temporaes 
dois  enfeites  tecidos  de  cabello  à  feÌ9ào  de  orellias,  que 
Ihes  imprimem  um  ar  muito  estranbo. 

Carregam-se  de  contaria  no  pesco90  e  nos  rins,  e, 
do  mesmo  modo  que  todas  as  tribus  pastoris,  téem  o 
repugnante  costume  de  se  untar  com  manteiga. 


220  De  Angola  d  contror-cosia 

Os  homens  empregam-se  em  apascentar  os  reba- 
nhos,  cortam  madeiras  e  desbastam  matas  ;  os  rapazes 
mugem  as  vaccas  e  preparam  a  manteiga  e  o  leite 
coalhado,  seu  principal  se  nao  unico  alimento,  com  a 
massa  de  sorgho;  as  mulheres  amanham  as  terras,  e 
nas  epochas  convenientes  fazem  as  sementeiras,  etc. 

0  boi  e  para  està  gente  tudo,  riqueza,  distrac9ao, 
base  do  seu  sùstento  e  causa  de  quantas  pendencias 
entre  elles  se  levantam. 

E  notavel  que  os  ban-kumbi  nao  usam  para  vestir 
fazenda  de  cores  vistosas,  sobretudo  da  encamada. 

Por  cousa  alguma  vestina  qualquer  d'elles  panno 
vermelho,  contentando-se  de  preferencia  com  o  couro 
de  boi  preto,  de  que,  é  preciso  dizer,  so  se  servem, 
nao  podendo  fazel-o  o  hamba  ou  chefe,  para  quem  sao 
reservadas  as  pelles  de  cabra  preta. 

Os  penteados  variam  desde  o  rapado,  com  rabicho 
no  occiput  (mais  geral),  até  aos  mais  caprichosos  da 
arte.  Os  pastores  divergem,  usando  sempre  uma  gran- 
de trunfa  repuxada  para  traz,  ligando-a  por  dois  ou 
tres  atilhos. 

Segundo  diversas  narra96es,  os  ban-kumbi  téem 
uma  chronologia  rudimentar  que  se  reduz  a  fazer  co- 
mecyar  o  anno  em  outubro  e  concluir  em  setembro,  divi- 
dindo-o  em  luna96es  ;  para  cada  uma  d'estas  ha  festas 
particulares,  de  duas  ou  tres  das  quaes  daremos  rapi- 
da idèa. 

Fevereiro,  festa  do  Gongó. 

E  n'este  mez  que  termina  a  preparacjao  da  bebida 
feita  com  o  fructo  do  gongó,  que  depois  de  fermentada 
é  extremamente  inebriante. 


Enire  os  ban-kuTnM  221 

A  festa  reduz-se  simplesmente  ao  seguilite: 

E  de  praxe  guardar  urna  panella  da  primeira  bebida 

feita,  que  no  anno  seguinte  ha  de  ser  substituida  por 

outra  com  liquido  novo. 

Logo,  pois,  que  se  conclue  està,  junta-se  o  povo  em 

grande  algazarra  em  redor  de  alguns  homens  aarapin- 


tados  e  vestidos  com  eatranhos  artigos,  que  tomam  a 
direc^ào  da  festa,  dìrigindo-se,  com  a  nova  panella,  ao 
logar  onde  està  guardada  a  antiga. 

Quando  chegam  ahi,  trocam-n'as,  e  partindo  para 
a  residencia  do  hamba,  entre  musìcas  e  danaas,  entre- 
gam-lh'a,  ao  que  elle  retribue  com  um  boi  ou  outro 
animai,  come«;ando  entSo  o  consumo  da  bebida  por 
toda  a  terra. 


222  De  Angola  d  contro-costa 

Setembro,  festa  do  maiitiinento. 

E  d'està  especialmente  encarregada  a  niulher  mais 
velha  do  hamha,  apesar  de  elle  abrilliantar  a  scena 
coni  a  sua  presenta. 

Pelo  minguante  da  Ina  de  setembro,  reunem-se  to- 
das  as  nmlheres  em  circulo,  junto  da  residencia  do 
cliefe.  No  centro  està  a  esposa  citada,  tendo  junto  a 
si  urna  quinda  ou  cesta  de  sementes,  para  a  qual  pas- 
sados  momentos  se  dirige  o  feiticeiro  da  terra,  todo 
emplumado,  praticando  determinadas  scenas  de  en- 
canta^ao  em  volta  da  cesta;  depois  d'isso,  a  extrémosa 
cara  metade  do  cliefe  cometa  a  distribuir  sementes 
por  quantos  d'ella  se  approximam,  e  quando  ve  a  quin- 
da quasi  a  esgotar-se,  ergue-se,  partindo  coni  o  resto 
para  o  mellior  arimo  do  regulo.  Seguindo-a  todos,  ro- 
deiain  novamente  a  princeza,  que  tem  junto  a  si  uma 
nioleca  conduzindo  por^ao  de  ere,  com  o  qual  aquella 
se  sarapinta,  misturando  o  remanescente  coni  as  se- 
mentes de  virtude.  Acto  continuo  cada  qual  deità  al- 
gunias  em  pequena  cova,  e  reserva  para  si  o  restante, 
principiando  depois  as  dansas,  que  se  prolongam  por 
alguns  dias. 

A  festa  da  cliuva  segue-se  a  està,  cercada  de  scenas 
de  feiti^aria,  pela  maior  parte  siniilliantes  às  que  inui- 
tos  auctores  téeni  jà  descripto. 

Os  ban-kumbi,  ao  contrario  dos  ba-coróca,  enter- 
ram  os  mortos.  Os  seus  funeraes  sao  ruidosos,  conio 
por  toda  a  Africa,  tendo  porém  alguns  tra^os  origi- 
naes. 

Assini,  logo  depois  do  passamento,  quebram  ao  de- 
funto OS  ossos  principaes  com  um  pau  de  pilao  e,  fa- 


Entre  os  ban-kumbi  223 

zendo-o  n'um  feixe,  embriilliam-no  seguidamente  em 
panno. 

E  de  uso  so  participarem  a  sua  morte  passados 
dias,  na  inten(;ao  naturalmente  de  haver  tempo  para 
prepararem  as  festas,  e  logo  que  as  cousas  se  acliam 
dispostas,  collocam-no  a  meio  da  casa  onde  falleceu, 
dando  entào  a  noticia. 

Cometa  invariavelmente  a  matan^a  dos  bois,  as 
dansas  e  as  bebedeiras,  cortadas  por  intervallos  de 
ridiculo  clioro  caramunhado  pelas  esposas  do  fallecido. 

A  medida  que  os  dias  passam,  avanza  a  decomposi- 
9ao  cadaverica,  formigando  os  vermes  por  toda  a  par- 
te, até  chegar  o  dia  em  que,  cansadosda  fadigosa  ta- 
refa,  se  decidem  ao  funeral. 

Al)re-se  o  recinto  em  que  estj'i  o  cadaver,  e  pene- 
trando ali  OS  membros  da  familia,  reduzem  este  a  uma 
boia,  que  e  cuidadosamente  cozida  n'unì  couro  de  boi 
preto.  Acto  continuo  6  este  volume  mettido  em  colos- 
sal  panella,  e  pegando  n'ella  os  coveiros  (familia  es- 
pecial a  quem  cumpre  tanto  este  servilo,  comò  o  de 
executores  de  alta  justi^a),  transportam-n'a  para  o  lo- 
gar  onde  deve  realisar-se  a  inhuma^ao. 

Um  boi  preto  e  entao  immolado  sobre  a  sepultura, 
e  regada  està  com  o  seu  sangue,  sendo  a  carne  comi- 
da  por  aquelles  que  acima  citàmos. 

Existe  no  Humbe  uma  succursal  da  missao  cattolica 
da  Huilla,  onde  os  reverendos  padres  buscam  reunir 
quantos  adeptos  conseguem,  para  os  trazerem  ao  gre- 
mio  da  religiao  e  do  sentimento.  Aquelle  pequeno  re- 
cinto, nao  sendo  assàs  confortavel,  é  comtudo  muito 
limpo,  com  as  janellas  alinhadas,  o  jardim  proximo 


224  De  Angola  d  contrcb-costa 

cuidadosamente  cultivado,  tendo  urna  pequena  sala  de 
estudo,  em  que  o  viajante  póde  encontrar  varios  Uvros 
e  onde  se  véem  faces  radiantes  de  bonhomia  e  reina 
aquelle  sorriso  de  suave  consola9ao,  que  so  illumina 
as  consciencias  propensas  ao  bem;  esparge-se  d'ali 
um  perfume  de  unc9ao;  circumda-o  urna  corno  que 
atmosphera  de  virtude,  que  attrahe  e  captiva  o  ho- 
mem  afFeito  durante  mezes  ao  viver  com  negros. 

Urna  vez  assistimos  ao  sacrificio  da  missa,  e  ao  per- 
correr o  reverendo  Campana  as  teclas  do  harmonium 
no  momento  da  consagra9ao,  nós,  tao  afastados  do 
mundo  que  pensa,  sentimos  uma  inefFavel  do^ura  em 
recordal-o,  imaginaudo-nos  de  subito  immersos  n'elle. 

Ali  encontràmos  tambem  os  reverendos  Ogan,  Del- 
pueche,  e  outros,  luctando  com  innumeras  diflSculda- 
des  para  continuarem  a  meritoria  obra  em  que  por- 
fiam,  e  que  praza  à  Providencia  levem  a  cabo. 

Para  alem  do  Cunene  habitam  os  bana-cutuba,  as- 
sim  denominados  pelo  uso  de  um  cinto,  d'onde  pende 
posteriormente  uma  pequena  rodella  de  sola,  da  qual 
o  desenlio  j unto  darà  idèa;  comprehendendo  princi- 
palmente Cuanhama,  a  que  nos  vamos  referir,  homens 
do  valle,  etc. 

0  Cuanhama  é  hoje  um  estado  de  que  se  falla,  nao 
pela  sua  extensao,  mas  pelo  pavor  que  os  seus  habi- 
tadores  téem  sabido  incutir  aos  povos  circumvizinhos, 
sobretudo  no  sul,  e  que  ultimamente  deveria  ter  pro- 
gredido  multo  se  as  luctas,  em  que  seu  chefe  Nam- 
pandi  anda  sempre,  a  isso  nao  obstassem. 

Este  homem  vae  longe,  dizia-nos  um  inglez  com 
quem  estivemos  no   Humbe,   fallando  d'elle;   é  um 


Entre  os  han-kwmbi  225 

vulto  estranho  entre  os  seus  almilhantes,  eapaz  de 
empreliender  grandes  cousas  e  de  as  por  mais  tarde 


f>-. 


em  pratica.  Allìando  a  vontade  de  ferro  e  a  energia 
de  vinte  e  cinco  annoB,  dcterminadas  qualidades  que 


226  De  Angola  d  controncosta 

constituem  o  tra<;o  dos  heroes,  corno,  por  exemplo,  o 
desprezo  da  vida,  a  arte  de  remunerar  e  o  segredo  de 
se  impor,  esse  homein,  qiie  hoje  manda  n'um  pequeno 
estado,  que  possue  apenas  trinta  cavallos  e  tres  mil 
homens  amiados  de  Martinis  e  Ricliards,  póde  n'unì 
tempo  multo  proximo  dominar  grandes  extensoes  em 
redor! 

Effectivamente  assim  poderia  ser.  Nampandi  é  um 
ente  que  se  extrema  entre  todos  os  seus  simìlhantes  ; 
comtudo  a  todas  as  grandes  qualidades  acima  enun- 
ciadas  renne  uma,  que  basta  para  destruir  as  outras. 

Nampandi  6  feroz,  bestialmente  tyranno  e  sangui- 
nario. 

Eis  o  que  em  nosso  diario  escrevemos  a  respeito 
d'esse  mancebo: 

«0  soba  do  Cuanliama,  Nampandi,  primo  direito  de 
Cliipandeca  (Otjipandeca),  seu  antecessor,  pois  é  filho 
de  uma  irma  mais  nova  da  mae  d'aquelle,  entrou  no 
estado  ha  ciuco  annos  approximadamente. 

((Beni  parecido,  clieio  de  vida  e  vigor,  dotado  tam- 
bem  da  mais  desmedida  ambitalo,  com  uma  naturai 
tendencia  para  abusar  do  poder  e  tyrannisar,  esse  ho- 
niem  é  hoje  a  leste  do  Cunene,  no  territorio  portuguez, 
o  terror  dos  seus  e  de  quantos  indigenas  ali  appare- 
cem,  exigindo  que  a  auctoridade  portugueza  Ihe  de  jà 
uma  seria  li^ao,  ou  o  fa9a  banir*. 

<(Traja  sempre  à  europea,  possuindo  uma  bem  ar- 
mada  guarda  com  carabinas  modernas,  que  elle  mes- 


*  A  data  em  que  escrevemos  estas  linhas,  Nampandi  jà  nao  é  d'aste 
mundo. 


Entre  os  ban-kumbi  227 

mo  ensina  a  atirar  ao  alvo,  no  qiie  é  artista  consum- 
mado,  a  ponto  de  matar  a  baia  passaros  no  vóo;  de- 
safia  ao  alvo  quantos  branco»  por  ali  passani,  de  quem 
zomba  logo  que  erreni  o  mais  simples  tiro;  possue 
soberbos  cavallo»  cm  que  liabitualmente  anda  mon- 
tado,  e  qiie  ora  lan^a  a  solta  na  carreira,  galgando 
de  um  salto  acima  d'elles,  ora,  partindo  direito  à 
porta  da  palicjada,  que  cerca  em  Toquero  a  sua  resi- 
dencia,  desmonta  de  subito,  por  maneira  que  so  o  ca- 
vallo entra,  ficando  elle  de  pé  junto  da  mesma  porta. 
Pelo  singelo  entornar  de  um  copo  de  agua  que  um 
infeliz  vassallo  llie  vinlia  servir  em  presenta  de  euro- 
peus,  deu-llie  em  castigo  a  morte,  disparando  unia  baia 
da  propria  carabina,  e  tendo  igual  correc^ao  o  facto 
de,  acLando-se  presente  no  acampamento  dos  euro- 
peus*,  apparecerem  ahi  liomens  coni  quindas  de  fari- 
nlia  para  negocio.  A  mais  grata  das  suas  distraccjoes 
é  espetar  na  sua  zagaia  ou  lazer  com  que  se  espetem 
as  suas  mais  galantes  mullieres,  para  o  que  se  colloca 
pela  noite  em  escuro  corredor  da  residencia,  de  lan9a 
em  riste,  clamando  por  ellas  de  modo  imperativo.  A 
unica  boa  qualidade  que  possue,  é  receber  hospitaleira 
e  galhardamente  quantos  europeus  o  visitam,  presen- 
teando-os  com  generosidade.  Nampandi,  pelo  que  aca- 
bàmos  de  dizer,  é  um  monstro  (pie  està  precisando  da 
mais  seria  e  severa  das  correc^oes.» 

Felizmente  para  o  mundo  civilisado,  e  sobretudo 
para  nós  portuguezes,  esse  malefico  tyranno  jà  nao 
existe,  conio  indicamos  em  nota,  evitando-nos  com  o 


^  Eram  dois  inglezcs. 


228  De  Angola  d  amtrd-costa 

seu  desapparecimento  o  iucommodo  de  o  subjugarmos 
pela  for<;a,  jà  que  nao  queria  ceder  aos  repetidos  con- 
selhos. 

Os  ba-cuanhama,  com  quem  nao  travàmos  conlieci- 
mento,  parece  serem  mais  audazes  e  bellicosos  que  os 
ban-kumbi,  percorrendo  a  miudo  os  sertoes  que  Ihes 
ficam  proximos  com  guerras  devastadoras.  0  paiz  terà, 
quando  multo,  5:000  milhas  quadradas  de  superficie; 
a  capital,  que  elles  denominam  emballa  do  Toquero 
ou  do  poente,  acha-se  situada  em  Ghiva,  no  meio  de 
extenàas  planuras  alagadicyas,  despidas  na  sua  maior 
parte  de  vegeta^ao,  seccas  durante  a  estiagem. 

A  riqueza  d'elles  consiste  nas  grandes  manadas  de 
gado,  que  facilmente  augmentam  com  a  rapina. 

Similha-se  muito  nos  costumes  e  habitos  aos  da- 
mar as. 

0  tracto  do  terreno  em  que  nos  achavamos  acam- 
pados  difFere  do  anterior. 

Constituido  pelas  rochas  primitivas,  onde  nao  podé- 
mos  fazer  especial  estudo,  é  semeado  de  espinheiros, 
Bauhinias,  Mopanes,  bao-babs,  e  de  uma  arvore  que 
OS  indigenas  muito  apreciam,  cujo  fructo,  quando  ma- 
duro,  com  dois  caro^os  negi-os,  é  comestivel.  Encon- 
tram-se  alem  d'isso  ali  sycomoros,  hyphoenes  e  outras 
arvores. 

0  aspecto  locai  difFere  muito  do  planalto  de  Huilla, 
sendo  pelos  seus  habitadores  europeus  considerado 
salubre. 

A  uma  milha  do  Caculovar  o  terreno  eleva-se  al- 
gum  tanto,  achando-se  ali  edificadas  todas  as  habita- 
9oes,  livres  assim  das  grandes  cheias  no  tempo  inver- 


Entre  OS  han-himìn  229 

no80,  epocha  em  que  os  crocodilos  yem  quasi  junto  ' 
das  casas  visitar  seua  moradores. 

Desde  que  nos  approximàmos  do  Humbe,  come90u 
a  acalentar-nos  a  idèa  de  fazer  urna  explora^So  a  esse 
mysterìoso  curso  do  Cunene  iiiferior,  sobre  o  qual 
ainda  hoje  iiSo  ha  idt5a  precìsa,  A  cataracta,  subdi- 


vidida  em  braQos  variados,  e  as  grandes  perdas  por 
evapora(j3o  ou  infiltra9ào,  eram  outros  tantOB  proble- 
mas  que  nos  attrahiam  ali  antes  de  proseguirmos  de- 
finitivamente para  leste. 

A  nossa  gente,  pordm,  nSo  possuindo  pelo  Cunene 
a  mesma  admira^So  e  interesse  que  nós,  mal  suspei- 
taram  do  caso,  tocaram  a  rebate  aos  receios! 

— Eil-08  que  tomam  para  a  tal  regiSo,  exclamaram 
todos  amedrontados. 


• 


• 


230  De  Aìigóla  d  contra-costa 

•  — E  eil-os  (le  novo  em  debandada,  volvemos  por 
no88o  tiu'iio,  aiitevendo  outras  fugas  e  decejxjoes. 

Coiiveiicidos  de  que  qualquer  teutativa  no  sentido 
de  explorar  o  rio  so  podia  acarretar-nos  desgostos  e 
conipronietter  a  nossa  situacjao,  entendenios  necessa- 
rio abandonar  o  projecto  para  sempre,  deixando  a 
outros  o  gosto  de  resolvel-o,  e  a  IG  de  jullio,  logo  qiie 
alvorecesse,  voltar  as  costa»  ao  Hunibe,  fazendo-Uie 
as  nossas  despedidas. 

Erani  diias  horas  da  noite  quando  terniinamos  estas 
considera^oes,  e  liaviamos  apenas  adormecido,  quando 
fonios  acordados  de  sobresalto.  Uni  rumor  estupendo 
nos  despertàra;  julgavamos  talvez  unia  debandada  dos 
nossos,  quando  de  subito  uni  ronco  estranilo  estron- 
deou  iia  floresta  e  repercutindo-se  nas  quebradas  se 
perdeu  ao  longe,  chamando-nos  a  realidade. 

A  claridade  da  lua,  que  suave  illuminava  a  teri'a 
em  redor,  o  rei  das  selvas  passeava  proximo,  demons- 
trando  coni  seus  rugidos  o  espanto  que  llie  causava 
a  nossa  presen(;a. 

Que  impressào  estranila  causa  no  mundo  animado 
o  urro  tremendo  d'esse  feroz  quadrupede!  Os  proprios 
grillos  e  rallos  emniudecem,  os  bois  aconcliegam-se, 
as  gallinhas  acocoram-se:  é  corno  se  todos  receiassem, 
coni  o  menor  movimento,  provocar  as  iras  tremendas 
do  bicho! 

At- final,  despontando  a  pregui<;osa  aurora,  dissipa- 
ram-se  os  sustos,  e  laii(;ando-nos  aos  bois-cavallos, 
fomos  a  caminlio  de  Quiteve. 

0  primeiro  acampamento  foi  na  mu-^unda  de  Caon- 
go,  o  segundo  na  de  Quima. 


Entre  os  han-kumhi  231 

Este  paiz  é  park-like,  frisando-se  a  vegetjKjao  por 
adansonias  e  elegantes  hyphoDnes. 

O  terreno  é  silicioso,  alternando  por  vezes  coni  ar- 
gillas;  o  caminho  coitc  ao  noi-te. 

A  viagem  ia-se  fazendo  alegremente  ;  as  nianlias  ca- 
chubadas  e  frescas,  e  o  sol  um  pouco  encoberto,  da- 
vam  à  paizagem  um  tom  de  nieia  luz,  que  fazia  leni- 
brar  o  romper  de  manlul  primaveral  na  nossa  querida 
patria.  Parece  pueril,  mas  e  verdade;  que  influencia 
tem  no  espirito  do  viajante  uma  circumstaneia  conio 
està!  Que  de  idéas  e  recordacjoes  nos  acudiam,  ao 
olliar  para  aquelle  aspecto  da  natureza,  tao  diflferente 
do  communi  entre  tropico»! 

Poucas  vezes  a  leiiibraiKja  da  terra  natal  nos  cavou 
tao  rapido  e  fuiido  o  soffrer,  conio  n'estes  dias  aqui. 

Tinhamos  saudade,  seni  a  final  compreliendermos 
milito  beni  a  rasao;  lenibran^as  estranhas  do  céii,  da 
brisa,  do  lar,  que  se  nos  afiguravam  mais  bellos  do  (pie 
nunca,  acliando  espelho  na  paizagem  de  agora,  refle- 
ctiam-se  ahi,  e  volvendo  sobre  nosso  espirito,  ao  que 
parece,  desenrolavam  aos  ollios  da  alma  todo  um  pa- 
norama de  recorda^oes  e  suave  cogitar,  que  a  labiita- 
(jao  dos  ultimos  tempos  liavia  amortalliado  no  manto 
do  olvido,  e  que  a  saudade  n'unì  momento  despeda- 
9ava  coni  tyranna.maò. 

Felizmente,  quando  era  mais  intensa  a  dor,  o  sol, 
verdadeiro  acoite  de  quantos  sentimentos  capazes  de 
fazer  titubear  o  viajante,  descobria,  dardejando-nos  de 
prumo,  e,  varrendo  id^as  e  emocjoes,  transformava  esse 
montao  de  confuso  e?q)erimentar,  em  muda  fadiga  e 
catadupas  do  suor. 


232  De  Angola  d  contr arrosta 

Adiante  o  aspecto  da  terra  mudou  mais  urna  vez,  e, 
fechando-se  em  mata  para  a  esquerda,  dèmos  entrada 
n'uma  zona  charcosa,  coberta  pelo  Arando  phragmites. 

Era  nada  menos  que  o  leito  do  rio  Cunene  na  epo- 
cha  das  chuvas,  e  qiie  estava  agora  a  3  milhas  de  nós. 

Em  roda  viam-se,  suspensos  aos  ramos  dos  espi- 
nheiros  e  dobrados  no  sentido  da  corrente  a  1",5  e 
mais  de  altura,  feixes  de  grammineas,  que,  arrastadas 
pelas  aguas,  ali  tinham  ficado  detidas. 

Calcule-se  o  aspecto  imponente  d'esse  rio  por  aqui 
em  tal  epocha,  a  ajuizar  por  este  volume  de  agua,  e 
ter-se-ha  a  explica^ao  d'essas  informa^oes  que  muitos 
viajantes  d'elle  téem  trazido,  e  que  mais  de  uma  vez 
se  julgaram  comò  exageradas. 

E  facil  sera  tambem  comprehender  comò  o  Cunene, 
drenando  todo  o  plateau  de  Galangue,  chega  ao  mar 
com  pouca  agua;  basta  para  isso  considerarmos  que 
pelo  lado  do  valle  as  suas  margens  téem  o  mesmo  as- 
pecto, e  portanto,  n'este  colossal  alagamento,  vae  elle 
em  seu  curso  medio,  perdendo  parte  das  aguas  por  in- 
filtra9ao  e  estagnacjào,  sobre  centenas  de  kilometros 
quadrados. 

A  salubridade  d'està  zona  poderia  ainda  considerar- 
se  hypothetica,  se  toda  a  gente  nao  fosse  unanime  em 
declaral-a  assàs  saudavel. 

Um  objecto  que  nos  prende  a  attencjao  é  a  abun- 
dancia  e  variedade  de  aves,  que  esvoa^am,  mergulham 
e  vageiam  pelas  lagoas  e  suas  margens. 

Cegonlias,  patos,  gar^as,  gaivotas  pardas  do  inte- 
rior, pelicanos,  pernaltas  exoticas,  comò  se  fosse  um 
jardim  de  acclimacjao,  vivem  feliz  nas  lagoas. 


Entre  os  han-ku/mM  233 

Urna  ave  azul  ferrete  e  que  suppomos  ser  o  Chara- 
driìts  caruncola,  pouco  menor  que  a  rola,  attrahe-nos 
a  vista  pela  sua  pouca  tìmidez,  saltando  de  ramo  em 
ramo,  para  nos  mirar  curiosa. 

Todos  OS  rebanhos  do  sul  para  aqui  vem  n'esta 
epocha,  pois  os  pastores  sabem  que  por  todo  o  leito  do 
rio  existem  bellas  pastagens. 

Com  mais  uma  marcha  penetràmos  no  districto  da 
Gamba,  dominios  do  hamha  N'gonga,  sem  ter  ensejo 
de  com  elle  fallarmos,  e  proseguindo  no  trilho,  parallelo 
ao  qual  se  estiram  muitas  lagoas  em  que  liìppopotamos 
e  crocodilos  vivem  na  mais  perfeita  communidade,  fi- 
zemos  ponto  n'um  legar  chamado  Peonga. 

Accorreu  aqui  uma  scena,  que  em  dois  tracyos  es- 
bo^aremos,  por  se  referir  a  um  rapaz  africano,  Au- 
gusto Mupei,  que  lioje  passeia  contente  nas  ruas  da 
Europa,  e  jà  por  duas  vezes  foi  comnosco  à  Africa, 
tendo  todo  o  direito  a  figurar  n'este  livro. 

Ao  chegarmos  a  Peonga,  e  depois  de  acamparmos, 
disse-nos  elle: 

— Està  é  a  minha  terra,  eis  o  logar  em  que  passei 
OS  meus  primeiros  annos,  e  d'onde  fui  afastado  aos  dez, 
pelos  guerreiros  do  Nano,  que,  vindo  aqui  n'uma  raz- 
zia, me  roubaram  à  mae.  Aqui  residia  por  esse  tempo 
toda  a  minha  familia. 

Mediocremente  indifferentes  a  està  subita  revela^ao, 
nao  achàmos  melhor  para  Ihe  responder: 

—  Procura-os  e  vae  cumprir  com  as  tuas  obriga^oes 
de  bom  filho,  isto  é,  vel-os  e  abra<;al-os. 

Mal  acabavamos  de  formular  o  nosso  conselho  ao 
filho  extraviado,  quando  de  subito  entra  no  acampa- 


234  De  Angola  d  contro-costa 

mento  um  indigena,  e,  topando  coni  Mupei  de  chapéu 
e  paletot,  reconlieceu-o  e  come^ou  a  rir  corno*  louco. 

Findo  tal  exordio,  encetaram-se  explicacjoes,  d'onde 
se  conchiiu  o  segiiinte: 

Mupei  tinlia  perdido  o  pae  liavia  poiico  tempo. 

E  conio?  Devorado  ali  mesmo  por  um  leao!  Mupei 
ouviu  a  narrativa  seni  pestanejar! 

Um  irmào  succumbira  tanibem.  E  de  que  modo? 
Colludo  iia  lagoa  fronteira  por  enorme  crocodilo. 

Sua  nuìe,  emfim,  conservava-se  viva;  mas,  exda- 
mou  o  informador,  parece  que  loiige  d'aqui. 

Estavam  as  cousas  ii'este  pé  quando  acto  continuo 
ouviu-se  clamar:  «Mupei,  ollia  a  mae  de  Mupei!» 

Salmos  das  barracas.  Fora  acliava-se  acocorada, 
lima  velha  coni  lima  quinda  de  fariiiLa  defronte,  duas 
bolas  de  ta])a(*o,  e  um  tarro  de  horlunga  (vaso  de  cer- 
veja  de  massambala),  mirando  tiido  com  espanto. 

«E  a  mae  de  Mupei»,  repetia  a  gente  em  còro;  e  a 
velhinlia,  circumvagando  coni  o  olliar  os  que  a  rodea- 
vam,  aconcliegava  de  si  os  ditos  artigos,  receiosa  que 
toda  aquella  scena  fosse  feita  no  intuito  de  Ihe  rouba- 
rem  quanto  possuia. 

«Entao,  Mupei,  nao  vaes  comprimentar  tua  mae?» 
exclamàmos  nós. 

Erguendo-se,  marcliou  direito  a  ella,  e  observando-a 
de  frente  balbucioii:  «Adeiis  minila  mae,  entiio  nao  me 
conhece?» 

Uni  subito  estremecimento  percorreu  o  corpo  da 
velliota;  dez  minutos  decorreram  seni  ella  proferir 
palavra,  conservando-se  espantada  a  miral-o  sem  se 
lembrar  de  tudo  que  a  cercava. 


^ 


Entre  os  han-kumhi  235 

Era  um  quadro  originai,  a  pose  dos  dois,  causando 
interesse  reflectir  nos  sentimentos  que  deviam  n'esse 
momento  animar  quem,  apesar  de  tudo,  era  mae. 

A  final  a  pobre  creatura  resolveu-se,  e,  pegando  de 
quanto  tinlia  defronte  de  si,  objectos  que  eram  talvez 
o  seu  unico  pensamento  quando  Veiu  ao  quilombo,  e 
com  que  pretendia  a  compra  de  objectos  de  seus  con- 
stantes  sonhos,  entregou-os  ao  fillio! 

Assim  Ihe  mostrava  todo  o  affecto;  nao  saberido 
dar-llie  n'um  osculo  ou  n'um  abrado  a  prova  da  sua 
maternal  satisfanno  em  vel-o  junto  a  si,  ofierecia-llie 
o  capital  com  que  vinha  negociar. 

Duas  horas  depois  saia  ella,  coberta  de  fazendas 
de  todas  as  cores  e  estampas. 

Emquanto  estas  scenas  se  passavam,  Antonio,  o  dex- 
tro  ca^ador,  mais  disposto  a  espreitar  a  cana  do  que 
OS  sentimentos  que  dominavam  a  mae  de  Mupei  em 
presenta  do  fillio,  mimoseou-nos  com  ciuco  pintadas 
e  dois  patos  reaes,  optiiiio  recurso  para  quem  so  ti- 
nlia carne  de  um  boi  que  succumbira  de  caanha  ^ 


r 

1  £  a  caonha  um  dos  maiorcs  flagellos  do  gado  no  plateau  da  Huilla, 
e  para  a  qual  as  tentati vas  de  cura  sào  quasi  infructifcras.  0  melhor 
mcio  é  afastar  da  manada  o  boi  aehacado.  Um  dos  processos,  de  que  ou- 
vimos  fallar  corno  talvez  efficaz,  é  o  da  vaccina:  logo  que  se  pretende 
tornar  imnmne  um  boi,  amarra-se  e,  abrindo-lhe  a  cauda  abaixo  da  ulti- 
ma vertebra,  introduz-se  ahi  uma  tira  de  fazenda  que  se  empregnou  de 
massa  pulmonar  de  boi  morto  com  a  tuberculosc,  ligando  tudo  com  longa 
.percinta.  Ao  cabo  de  duas  ou  tres  semanas  cAe  a  ligadura,  cicatriza  a 
ferida,  e  diz-se  que  o  animai  póde  viver  indemne  entre  similhantes  com 
caojJia,  Outras  vezes  a  inflamma^ao  propaga-se  para  a  parte  superior  e 
o  animai  succumbe.  £  està  doen^a  extrcmamente  contagiosa.  Diz-se  quo 
um  touro  procedente  da  Hollanda  infficionàra  com  ella  o  Cabo  e  terras 
do  norte,  e  Chapmann  na  primeira  viagem  a  trouxera  para  N*gami. 


236  De  Angola  d  contra-costa 

Sao  multo  numerosas  as  cobras  por  aqui,  havendo 
nós  encontrado  durante  o  trajecto  para  Peonga  tres, 
urna  das  quaes  saltou  defronte  de  nós;  tambem  na 
agua  existe  urna  assàs  perigosa. 

A  vegeta<;ao  peln  Hnlia  por  que  vamos  correndo  en- 
contra-se  distribuida  em  tres  zonas  distinctas.  Na  alta, 
caracterisa-a  o  bao-bab,  o  sycomoro,  e  algumas  aca- 
cias  de  espinho,  na  baixa  as  Bauhinias,  junto  ao  rio 
o  espinheiro  e  o  arundo;  liabitadas,  na  parte  superior, 
pelos  antilopes,  na  media  pelo  javali,  especie  que  jul- 
gàmos  ser  o  Cochon  à  verrues,  e  a  toupeira;  perto  da 
agua  pelos  liippopotamos  e  aves  aquaticas. 

Um  frio  extraordinario  enregela  n'esta  quadra  os 
membros,  baixando  à  hora  da  lyiinima  o  themiometro 
a  zero  de  graus  centigrados,  facto  que  talvez  de  certo 
modo  tenda  a  explicar  a  salubridade  d'està  zona,  tao 
coberta  de  pantanos,  por  impedir  o  desenvolvimento 
do  germen  miasmatico. 

No  acampamento  seguinte,  em  Tcliinguembe,  ficà- 
mos  detidos  na  barraca  e  junto  do  fogo,  corno  se  esti- 
vessemos  na  Siberia!  As  ciuco  horas  da  manhà  ainda 
o  thermometro  marcava  proximo  do  zero,  e  um  prato 
conservado  com  agua,  continlia  um  disco  de  gèlo.  Nu- 
merosas hyenas  rodeavam  esfaimadas  o  recinto,  inci- 
tando-se-lhe  o  appetite  por  este  frio  apperitivo. 

Ninguem  imagina  a  impressao  que  uma  tal  tempe- 
ratura produz  no  europeu  em  Africa,  quando  pelo  dia 
sobe  a  28°  e  30°. 

Nào  é  comparavel  este  frio  com  o  da  Europa,  natu- 
ralmente pelo  contraste  da  noite  com  o  dia;  e  na  ver- 
dade  toma-se  doloroso  e  insupportavel.  Ao  metter  as 


Entre  os  ban-kumbi  237 

màos  em  agua,  parece  que  nos  arrancam  as  unhas,  ao 
molhar  a  cabe^a  afigura-se-nos  que  nol-a  esfregam 
com  urna  escova  esbraseada! 

Quando  a  final  nos  erguemos,  topàmos  com  urna 
scena  estranha,  para  devaneio. 

Quatro  carregadores  da  terra  que  comnosco  vinham, 
tendo  recebido  na  vespera  urna  por<;ao  de  couro  de 
boi,  para  fazer  alpercatas,  entretinliam-se  junto  do 
fogo  n'aquelle  trabalho;  o  notavel,  porém,  é  que,  com 
todo  o  engenho  proprio  de  um  africano,  tinham  estes 
heroes  achado  outra  applica^ao  para  o  couro,  nao  me- 
nos  util,  e  mais  agradavel  talvez. 

A  medida  que  procediam  à  feitura  das  alpercatas, 
lam  almo9ando  as  aparas! 

0  processo  é  em  tudo  singelo. 

Apenas  reunidos  uns  poucos  de  bocados,  punham- 
os  ao  fogo,  e  logo  que  come^avam  a  encarquilhar- 
se,  deitavam-os  para  o  chao,  e,  assentando-lhes  qua- 
tro ou  seis  pancadas  para  amollecerem,  mesmo  cheios 
de  terra,  os  ingeriam. 

Nem  na  retirada  da  Russia! 

Emfim,  a  22  de  junho,  abandonando  a  varzea  ala- 
gada  do  rio  e,  seguindo  por  terra  mais  alta,  atravez  de 
densos  bosques,  entràmos  em  Quiteve,  onde  tem  vas- 
ta residencia  um  portuguez  ha  annos  ali  estabelecido, 
n'uma  das  mais  bellas  posi<;oes  da  margem  do  rio  Cu- 
nene,  e  que  a  simples  vista  basta  para  reconhecer  comò 
exceliente  e  propria  para  uma  colonia. 


CAPITULO  Vili 


ENTRE  CUNENE  E  CUBANGO 


A  reluctancia  dos  guias  e  o  n^curso  dos  boi» — A  fome  e  uni  quadro 
do  sertao — Disposi^ao  geologica  das  terras  percorridas — Roclias  vulca- 
lìicas  e  minas — A  vcgeta^ao,  o  frio  e  os  lobo» — Cobra  originai — A  ca^a 
e  as  pégadas  do  elepliaute — A  iioito  e  o  charivari  das  feras — As  matas 
da  Hauda — Cachira — 0»  imvoadoros  d'ali — As  mupandas  e  a  terra  Sem 
pedras — A  cabra  que  asHobia  e  os  bv^hmen  —  A  steatopygia — A  iiatureza 
do  solo  ;  conversa  com  um  indigena — Os  ba-oua-neitunta — Exageros  gen- 
tilicos — 0  leao  e  os  niabecoa  —  Os  macaco»  e  o  arinadilho — 0  Cubango  — 
ConsiderayOcs  sobre  o  seu  curso. 


CAPITULO  Vili 


ENTRE  CUNENE  E  CUBANGO 


A  rcluctancia  dos  guias  e  o  rocurso  doa  l)ois — A  fome  e  um  quadro 
do  sertao — Disposi^ao  geologica  das  terras  pereorridas — Rochas  vulca- 
nicas  e  minas — A  vcgetagao,  o  frio  e  os  lobos — Cobra  originai — A  ca^a 
e  as  pégadas  do  depilante — A  noitc  e  o  charivari  das  fcras — As  matas 
da  Ilanda — Cacliira — Os  povoadores  d'ali — As  uiupandas  e  a  terra  sem 
pedras — A  cabra  quo  assobia  e  os  hitahinen — A  steatopygia — A  natureza 
do  solo  ;  conversa  com  uni  indigena — Os  ba-cua-neitunta — Exageros  gen- 
tilicos — 0  leao  e  osmabecos — Os  macacos  e  o  arinadilho  —  O  Cubango — 
Con8Ìdera95cs  sobrc  o  seu  curso. 


Perguntae  ao  in- 
digena africano  em 
sua  terra  a  que  dis- 
tancia  fica  determi- 
nida  r^So,  qual  o 
caracter  dos  habi- 
tadoreB,  qual  a  na^ 
tureza  dos  alimen- 
tos  ali  encontradoB, 
e  vel-0-heÌB  prestes 
erguer-se,  estender 
o  bra^o  esqiierdo  na 
direc9So  de  que  se 

irata,  e,  dando  com  a  mSo  direìta  pequenos  estalos, 

responder:  «E  longe,  senhor;  ma  gente  a  de  Id;  po- 

bre,  nSo  tem  para  si  de  corner!" 

E  se  acrescentardes  que,  sem  embargo,  quercia  ali 

ir,  que  tendes  interesse  em  os  visitar,  e  o  convidaes 


Perguntae  ao  in- 
f-  digena  africano  em 
/'  sua  terra  a  que  dis- 
tali eia  fica  determi- 
nada  regiao,  qual  o 
cai'acter  dos  habi- 
tadores,  qual  a  na- 
tureza  dos  alimen- 
tos  ali  encontrados, 
e  vel-o-heis  preetea 
erguer-se,  estender 
obraijo  esquerdo  na 
direcQ^o  de  qua  se 
trata,  e,  dando  com  a  mao  direita  pequenos  estalos, 
responder:  «E  longe,  aenhor;  ma  gente  a  de  là;  po- 
bre,  nJo  tem  para  si  de  corner!» 

E  ee  acrescentardes  que,  sem  embargo,  quereis  ali 
ir,  que  tendea  interesse  em  os  visitar,  e  o  convidaes 


242  De  Angola  d  coìitra-costa 

a  acompanliar-vos  conio  guia,  elle  retorquinl  aiuda: 
«Isso  para  mais  tarde,  depois  fallaremos,  agora  teiilio 
quc  beber  o  meu  ponibé!»  E  iiao  insistir,  iiao  procurar 
couveucel-o,  porque  todas  as  diligencias  ii'esse  sentido 
serao  frustradas,  se  nao  perigosas  aos  ollios  dos  vossos 
compaidieiros,  quando  escutarem  attentos  as  narra^'oes 
extraordinarias  dos  perigos  a  correr,  que  o  infonnador 
irà  exagerando  seni  duvida,  na  justa  medida  da  iiisis- 
tencia. 

Durante  a  iiossa  demora  em  Quiteve  dez  vezes  fi- 
zemos  tentativas  d'este  genero,  no  intuito  de  arranjar 
uni  guia  que  nos  conduzisse  à  liabita<;ao  do  regulo 
portuguez  da  Handa,  e  outras  tantas  cortàmos  de  su- 
bito as  negocia<;6es,  ao  ver  e  ouvir  os  exageros  dos 
indigenas,  que  os  nossos,  approximando-se,  come<;a- 
vain  a  commentar. 

A  id(ja  de  que  o  interior  do  continente  africano  e  em 
vastas  zonas  ermo  e  coberto  de  areias,  em  outras  po- 
voado  de  feras  e  cannìbaes,  se  de  ha  niuito  se  dissi- 
pou  do  espirito  do  europeu,  pelas  pesquizas  de  intel- 
ligentes  e  audaciosos  viajantes,  que  llie  trouxeram  a 
certeza  da  fertilidade  e  riqueza  do  solo,  e  da  densa 
popula<,»ao  dos  districtos,  conserva-se,  caso  estranilo, 
ainda  arreigada  na  imagina^ao  do  negro,  repleta  de 
brumas  e  clieia  de  perigos. 

Ninguem  o  demove  do  seu  proposito,  e  se  seguindo 
uma  linlia  qualquer  de  trajecto  encontra  sempre  popu- 
lac^oes  pacificas  que  beni  o  recebain,  resta-llie  o  recurso 
de  considerar  que  se  n'esse  rumo  nao  existe  o  caso  sus- 
peito,  mais  para  uni  lado  ou  outro  sera  facil  acliar  a 
prova  de  quanto  affinila. 


Entre  Cunene  e  Cuhango  243 

Assim,  pois,  o  mellior  e  valer-se  dos  proprios  recur- 
sos  para  conseguir  os  seus  fins,  absteiulo-se  de  fallar 
àeerca  do  caminlio  por  onde  se  dirige. 

Tal  era  a  impressào  que  nos  dominava  ao  tempo  da 
partida  para  a  Handa,  e,  preparando  as  nossas  dna» 
grandes  canoas,  a  26  de  junho  transpozemos  o  Cune- 
ne, acampando  na  sua  margem  esquerda. 

Tem  elle  aqui  100  a  150  nietros  de  largo  e  2™,5  de 
profundidade,  margens  elevadas  e  cobertas  de  arvore- 
do,  e  é  livre  de  caclioeiras  desde  o  Mulondo  para  baixo 
da  Dangoena. 

Até  agora,  a  parte  do  paiz  percorrida,  frequentada 
de  europeus,  apresenta-se  ao  leitor  pittoresca  e  limpa 
de  obstaculos,  por  onde  o  viajante  despreoccupado 
póde  transitar  de  luva  e  l)adine. 

Sujeitos  aos  trabalhos  agricolas  e  commerciaes,  os 
indigenas,  sob  a  suave  pressao  da  auctoridade,  perde- 
ram  a  sua  ferocidade  nativa,  entregando-se  a  uma  vida 
de  certo  modo  laboriosa,  que  pro])orciona  ao  viajante 
o  modesto  bem-estar  de  que  carece. 

Nào  tanto  assim  para  o  diante. 

Avanzando  para  as  raias  da  nossa  provincia,  as  cou- 
sas  come^am  a  variar,  e  embora  nao  tenliamos  que 
referir  grandes  obstaculos  originados  pelos  indigenas, 
nem  por  isso  deixaremos  breve  de  entrar  em  lucta  coni 
difliculdades  d'està  e  outra  natureza. 

Os  grandes  rios,  as  planuras  alagadas,  os  pantanos, 
a  escassez  dos  mantimentos,  e  emfim  a  fome,  sao  cir- 
cumstancias  graves  que  representam  o  mais  impor- 
tante factor  n'estas  viagens,  sendo  a  ultima  merece- 
dora  de  toda  a  atten9ào. 


244  De  Angola  d  covtroncosta 

Com  receio  de  cairmos  victimas  de  similhante  fla- 
gello,  mettemos  em  Quiteve  mais  vinte  bois,  que  jun- 
tos  aos  jà  possuidos  perfaziam  a  cifra  de  trinta  e  dois, 
precioso  recurso  que  muito  concorreu  para  a  nossa 
8alva9ào. 

E  assim  dizemos,  porque  em  verdade,  quando  sal- 
mos  d'essa  terra,  mal  pensarìamos  que  d'ali  até  ao 
grande  Zambeze  so  em  dois  ou  tres  logares  se  encon- 
traria  mantimento  em  abundancia,  caso  estranho,  que 
raras  vezes  em  Africa  o  viajante  terà  topado,  e  nos 
proporcionou  angustiosos  dias,  apertados  por  este  ter- 
rivel  mal. 

A  fome,  eis  o  terror  do  sertao. 

Chuvas,  frios,  feras,  salteadores;  nada  perturba  e 
apavora,  comò  essa  terrivel  idèa,  que  ao  assomar  logo 
desmoralisa. 

Nao  ha  meio  nem  phrase  para  conter  e  animar  o 
homem  faminto! 

Quereis  vel-o,  errante  e  desvairado,  os  membros 
niis  e  emmagrecidos,  a  pelle  do  ventre  rugada,  depri- 
mida  em  concavìdade,  divagando  com  o  olhar  empar- 
vecido  por  entre  a  floresta  em  procura  de  qualquer 
cousa  que  Ihe  mitigue  a  fome,  volvendo-se  ao  menor 
rumor  onde  suppoe  existir  um  reptil,  mirando  attento 
onde  pensou  ver  uma  abelha,  indifferente  aos  vossos 
clamores,  abandonando  carga  e  companheiros,  para 
vaguear  em  matos  onde  fatalmente  tem  de  perder-se; 
ide  à  Africa,  e  embrenliae-vos  por  essas  florestas  onde 
so  o  elephante  e  o  rhinoceronte  vivem  ! 

Ahi,  quando  ao  acaso  aprouver  collocar-vos  n'uma 
das  muitas  e  tristes  situa96es  em  que  nos  achàmos, 


Entre  Cunene  e  Cubango  245 

apreciareis  bem,  leitor  ;  tudo  quanto  a  penna  aqui  nao 
póde  descrever-vos  ! 

Antes  de  partir  nao  vem  fora  de  proposito  algumas 
resumidas  considera^oes  sobre  os  tra9os  pliysicos  ge- 
raes  das  terras  atravessadas. 

A  vasta  cordilheira,  que  corta  de  norte  a  sul  o  Fendi 
e  determina  n'esta  altura  pelo  oriente  a  bacia  do  Cu- 
nene, desvia-se  a  caminlio  do  meio  dia  para  leste,  vin- 
do  gradualmente  transformar-se  nas  vastas  ondula<;oes 
do  plateau  da  Handa. 

Assim  nivelada,  deprime-se  para  a  banda  do  occi- 
dente, concorrendo  de  novo  para  a  delimitacjao  ao 
poente  da  mesma  bacia. 

E  ella,  póde  dizer-se,  o  limite  leste  do  enorme  cordào 
orographico,  que,  correndo  parallelamente  à  costa  a 
200  kilometros  de  distancia,  come9a  para  alem  dos 
contrafortes  da  Cliella,  no  limite  dos  schistos  paleozoi- 
cos  de  que  fallàmos,  e  vem  morrer  n'esta  longitude, 
com  o  apparecimento  da  forma^ao  laurenciana  que  a 
constitue,  profondando  para  o  nascente,  sob  um  tra- 
cto  de  terrenos  primarios  pouco  extensos  e  caracte- 
risticos. 

E  notavel  porém  a  disposi^ao  das  terras  sedimen- 
tares  de  uma  banda  e  outra  da  imponente  massa  gneis- 
sica. 

Para  alem  passàmos  successivamente  pelas  forma- 
9oes  terciarias,  com  o  seu  gres  grosseiro  de  cimento 
calcareo,  grès  calcariferos  amarellos,  comò  a  molas- 
sa,  etc,  para  em  seguida  entrarmos  nas  secundarias 
com  OS  seus  calcareos  argillosos,  marnes,  e,  transpondo 
um  plateau  schistoso,  encontrar  a  laurenciana. 


246  De  Angola  d  contra-costa 

Aqui  largàniol-a  agora,  elitre  scliistos  niicaeeos,  que 
breve  desapparecem,  para  dar  logar  aos  gres  em  ex- 
tremo  iiiipregiiados  de  oxido  de  ferro,  fendidos  abru- 
ptamente  e  elieios  de  raviiias  pela  JU'^ao  das  aguas,  que, 
desaggregando-os  coni  rapidez,  llies  (*oiisenteiii  affe- 
ctar  as  mais  estraiilias  fóriiias;  logo  adiante  se  divisa 
o  querque  seja,  conio  caleareos,  e,  seguiido  suppomos, 
coutinuam  milito  aiiida  para  o  oriente. 

A  estratifìca<;ao  do  gneiss,  por  toda  a  parte  onde  a 
teiiios  observado,  é  plana  e  liorisontal,  por  vezes  ligei- 
ramente  curva,  prova  de  que  quando  o  sublevamento 
primitivo  se  operou  ainda  ac^uelle  permanecia  no  es- 
tado  plastico,  (àrcumstancia  que  nos  induz  a  suspei- 
tar  um  traballio  orogenico,  de  caracter  assàs  prinior- 
dial. 

Até  à  presente  data  so  unia  vez  tivemos  occasiao 
de  observar  roclias  eruptivas  de  origem  ignea,  encon- 
trando,  conio  jà  dissemos,  exemplares  graniticos  em 
lorocuto,  promiscuamente  coni  gneiss. 

De  roclias  vulcanicas  nadà  sabemos,  e  embora  nos 
tenliam  dito  que  para  o  oeste,  entre  Mossamedes  e 
Cliella,  se  encontra  uma  ramje  basaltica,  nào  demos 
noticia,  posto  que  para  essa  regiao  dizem  existir  a 
plionolite. 

E  de  crer  que  toda  a  zona  atravessada  seja  mineira, 
abundando  os  jazigos  metalliferos,  conio  ha  noticia  na 
Pedra  Grande,  na  Cliella,  nos  Gambos,  no  Humbe  e 
no  Hambo,  e  ate  no  planalto,  na  limonite  dos  panta- 
nos,  d'onde  os  indigenas  extrahem  o  minerio;  conio, 
porém,  é  ponto  melindroso  a  que  difficilmente  se  póde 
attender  em  viagem  de  explora9ào  geographica,  abste- 


Entre  Cunene  e  Cuhango  247 

mo-nos  de  n'elle  entrar,  deixando  a  pessoas  mais  com- 
petentes  similliaute  tarefa  ^ 

A  vegeta^ao  falta  facies  especial  n'este  sitio;  densa 
na  margem  do  rio,  cometa  a  rarear  nas  zonas  do  gres, 
mostrando  leguminosas  de  espinlio  e  plantas  de  triste 
aspecto,  qiie  para  o  oriente  sao  substituidas  por  espe- 
cies  de  maior  viilto. 

Emfim,  o  frio  qiie  n'esta  terra  temos  sentido  impel- 
le-nos  amiudadas  vezes  a  pensar  que  a  sua  origem  nao 
e  devida  à  altitude,  pois  sendo  certo  estamios  n'um 
plano  inferior  ao  da  lluilla  (onde  nao  observàmos  ta- 
manhas  baixas  de  temperatura),  talvez  que  a  causa 
principal  esteja  na  rapida  evapora^ao  ou  em  qualquer 
circumstancia  similhante. 

Abundam  no  rio  os  liippopotamos  e  os  crocodilos, 
beni  comò  julgàmos  existirem  duas  variedades  de  ba- 
gres  ClaAas  capensis,  e  outra  de  que  nao  conservàmos 
noticia,  emquanto  que  na  terra  divagam  leoes  e  ele- 
phantes  (muito  numerosos),  rhinocerontes,  leopardos  e 
lobos,  que  nos  mimo^aram  com  urna  serenata  na  der- 
radeira  noite  ali  passada,  e  no  acampamento  teve  o  seu 
eclio  no  permanente  latido  dos  nossos  caes. 

0  apparecimento  dos  elephantes  n'esta  zona,  que  em 
redor  (5  bastante  povoada,  foi  um  facto  que  nos  cau- 
sou  estranlieza,  pois  o  colossal  pacliyderme  procura 
sempre  os  logares  mais  sombrios  e  retirados,  parecen- 


1  Variam  as  indica90cs  niincralogicas  com  rela^So  ao  tracio  de  terra 
por  nós  atravessado,  sendo  conhccido  na  costa  o  feiTo  magnetico  dos 
Gambos,  oligisto  de  Mossamedes,  corno  carvào  de  pedra  da  mesma  proce- 
dencia,  e  ainda  a  malacliitc,  e  tambcm  o  cobrc  nativo,  o  sai-gemma,  eie. 


■     Perguntae  ao  in- 

'■  digena  africano  em 

,  sua  terra  a  que  dis- 

-.  tancia  fica  determi- 

.  nada  regiSo,  qual  o 

caracter  dos  habi- 

1  tadores,  qual  a  na- 

tureza  dos  alimen- 

tos  ali  encontrados, 

e  vel-o-heÌ8  prestes 

erguer-se,  estender 

^  obrac^esqiierdona 

j^>v|_     -rJ^%*  -  _     .-,^iv-..-w.x  direci;ào  de  que  se 

trata,  e,  dando  com  a  mSLo  direita  pequenos  estalos, 

responder:  «E  longe,  senhor;  ma  gente  a  de  là;  pò- 

bre,  nào  tem  para  si  de  corner!)) 

E  se  acrescentardes  que,  sem  embargo,  quereis  ali 
ir,  que  tendes  interesse  em  os  visitar,  e  o  convidaes 


250  De  Angola  d  amtra-costa 

Coiitra  teda  a  expectativa,  porém,  ao  tentarem  a 
passageiii  os  jjrinieiros,  descobriram  mais  Ho  do  lado 
opposto! 

E  que  urna  longa  illia  nos  liavia  illudido,  pela  terra 
firme  da  outra  extreinidade,  e,  dividindo-se  o  ciirso  da 
agiia  em  dois  bracjos,  tiveinos  de  fazer  segunda  ponte. 

Ao  norte  corre  outro,  o  Cachitanda,  que  vem  da 
terra  dos  amboellas  e  nlieml)as,  cnjo  deslisar,  com  o 
d'este,  forma  mna  cunlia  de  terras  alagadas  impossi vel 
de  percorrer,  e  na  margem  do  qiial  se  aclia  hoje  esta- 
belecida  uma  delega^ao  da  missao  catholica.  Notavel 
doen^a  acommette  n'esta  terra  os  europeus,  queixan- 
do-se  d'ella  os  reverendos  padres:  é  o  apparecimento 
de  numerosas  feridas  iias  periias,  acompanliado  de  in- 
flammacjao  ou  sorte  de  edema. 

Apenas  liaviamos  caminhado  3  ou  4  millias,  demos 
com  o  quilombo  de  uma  guerra  que  na  vespera  ali 
passàra,  e  devia  conter  muitas  centenas  de  pessoas,  a 
julgar  pel  OS  numerosos  fogos  dispersos,  e  ainda  crepi- 
tantes. 

Tal  encontro  ter-nos-la  sido  fatai,  pois  estas  enor- 
mes  coliortes,  vindas  às  vezes  de  longe,  percorrem  às 
soltas  OS  sertoes  sem  rei  nem  lei;  e,  dominadas  apenas 
pela  rapina  e  ancia  de  pilhar,  desviam-se,  respeitando 
so  a  for^a,  sem  attenderem  jamais  a  reclama9oes  de 
quem  quer  que  seja. 

E  frequente  a  ca^a,  matando  nos  logo  no  comedo 
da  viagem  uma  m'j^ala,  jEpyceros  melampus,  de  cuja 
cabe9a  damos  um  mau  desenlio;  assim  conio  as  péga- 
das  do  elephante  no  terreno  amollecido  eram  tantas, 
que  difficilmente  os  bois-cavallos  podiam  transitar. 


Entre  Cunene  e  Cuhango  243 

Assim,  pois,  o  mellior  e  valer-se  dos  proprios  reciir- 
sos  para  conseguir  os  seus  fins,  abstendo-se  de  fallar 
àcerca  do  caminho  por  onde  se  dirige. 

Tal  era  a  impressao  que  nos  dominava  ao  tempo  da 
partida  para  a  Handa,  e,  preparando  as  nossas  diias 
grandes  canoas,  a  26  de  junlio  transpozemos  o  Cune- 
ne, acampando  na  sua  margem  esquerda. 

Tem  elle  aqui  100  a  150  metros  de  largo  e  2"",5  de 
profundidade,  margens  elevadas  e  cobertas  de  arvore- 
do,  e  (5  livre  de  caclioeiras  desde  o  Mulondo  para  baixo 
da  Dangoena. 

Até  agora,  a  parte  do  ])aiz  percorrida,  frequentada 
de  europeus,  apresenta-se  ao  leitor  pittoresca  e  limpa 
de  obstaculos,  por  onde  o  viajante  despreoccupado 
póde  transitar  de  luva  e  Ijadine. 

Sujeitos  aos  trabalhos  agricolas  e  commerciaes,  os 
indigenas,  sob  a  suave  pressào  da  auctoridade,  perde- 
ram  a  sua  ferocidade  nativa,  entregando-se  a  uma  vida 
de  certo  modo  laboriosa,  que  pro])orciona  ao  viajante 
o  modesto  bem-estar  de  que  carece. 

Nao  tanto  assim  para  o  diante. 

Avanzando  para  as  raias  da  nossa  provincia,  as  cou- 
sas  come^am  a  variar,  e  embora  nao  tenliamos  que 
referir  grandes  obstaculos  originados  pelos  indigenas, 
nem  por  isso  deixaremos  breve  de  entrar  em  lucta  coni 
ditficuldades  dY^sta  e  outra  natureza. 

Os  grandes  rios,  as  planuras  alagadas,  os  pantanos, 
a  escassez  dos  mantimentos,  e  emfim  a  fonie,  sao  cir- 
cumstancias  graves  que  representam  o  mais  impor- 
tante fa(*tor  n'estas  viagens,  sendo  a  ultima  nierece- 
dora  de  toda  a  atten9ào. 


242  De  Angola  d  contror^osla 

a  acompanliar-vo8  corno  gnìa,  elle  rttorqiiird  aiii 
«Isso  para  mais  tarde,  clcipois  fallarcmo»,  agora  tei 
que  beber  o  niou  ponibé!»  E  nào  iiiHÌstir,  iiào  procu 
conveiicel-o,  porque  todas  as  diligciitiaiS  n'esse  st'iit 
serao  frustradas,  se  iiào  pengosas  aos  oUios  dos  \o» 
compaiiheiroSj  quando  escutareni  attentos  as  narrai 
extraordinarias  dos  perigos  a  correr,  que  o  informai 
irà  exageraudo  sem  duvida,  na  jii^ta  medida  da  in; 
teiieia. 

Durante  a  uossa  demora  em  Quiteve  dez  vezes 
zemoa  tentativas  d'este  genero,  no  intuito  de  arran 
um  guia  que  uos  conduzisse  à  liabita(,'iio  do  reg 
portuguez  da  Handa,  e  outras  tantas  cortànios  de 
bito  as  negocia<;òe8,  ao  ver  e  ouvir  os  exageros  i 
indigenas,  que  os  nosaos,  approxiniando-se,  come 
vani  a  commentar. 

A  idea  de  que  o  interior  do  continente  africano  6 
vastaa  zonas  ermo  e  coberto  de  areias,  em  outras  ] 
voado  de  feras  e  cannibaes,  se  de  ba  muito  se  di? 
pou  do  espirito  do  europeo,  pelas  pesquizas  de  ini 
ligentes  e  audaciosos  viajantes,  que  Ihe  trouxeran 
certeza  da  fertilidade  e  riqueza  do  solo,  e  da  dei 
popula^'ào  dos  districtos,  conserva-se,  caso  estran! 
ainda  arrelgada  na  imagina^-So  do  negro,  repleta 
brumas  e  chcia  de  perigos. 

Ninguem  o  demove  do  seu  proposito,  e  se  seguili 
urna  linha  qualquer  de  trajeeto  eneontra  sempre  poj 
lai^òes  pacifìcas  que  beni  o  recebam,  resta-lbe  o  recui 
de  considerar  que  se  n'esse  rumò  nao  existe  o  caso  si 
peito,  mais  para  um  lado  cu  outro  sera  facii  acliai 
prova  de  quanto  afiirnia. 


Entre  Cimene  e  Cuhango  243 

Assim,  pois,  o  mellior  e  valer-se  dos  proprios  recur- 
sos  para  conseguir  os  seus  fins,  abstendo-sc  de  fallar 
àcerca  do  caminlio  por  onde  se  dirige. 

Tal  era  a  impressao  qiie  nos  dominava  ao  tempo  da 
partida  para  a  Handa,  e,  preparando  as  nossas  duas 
grandes  canoas,  a  2tì  de  junlio  transpozemos  o  Cune- 
ne,  acampando  na  sua  nuirgem  esquerda. 

Tem  elle  aqui  100  a  150  metros  de  largo  e  2™,5  de 
profundidade,  margens  elevadas  e  cobertas  de  arvore- 
do,  e  é  livre  de  caclioeiras  desde  o  Mulondo  para  baixo 
da  Dangoena. 

Até  agora,  a  parte  do  ])aiz  percorrida,  frequentada 
de  europeus,  apresenta-se  ao  leitor  pittoresca  e  linipa 
de  obstaculos,  por  onde  o  viajante  despreoccupado 
póde  transitar  de  luva  e  badine. 

Sujeitos  aos  traballios  agricolas  e  commerciaes,  os 
indigenas,  sol)  a  suave  pressao  da  auctoridade,  perde- 
rani  a  sua  ferocidade  nativa,  entregando-se  a  urna  vida 
de  certo  modo  laboriosa,  que  proporciona  ao  viajante 
o  modesto  bein-estar  de  que  carece. 

Nao  tanto  assim  para  o  diante. 

Avanzando  para  as  raias  da  nossa  provincia,  as  cou- 
sas  come^am  a  variar,  e  embora  nao  tenhamos  que 
referir  grandes  obstaculos  originados  pelos  indigenas, 
nem  por  isso  deixaremos  breve  de  entrar  em  lucta  com 
ditficuldades  d'està  e  outra  natureza. 

Os  grandes  rios,  as  planuras  alagadas,  os  pantanos, 
a  escassez  dos  mantimentos,  e  emfim  a  fonie,  sao  cir- 
cumstancias  graves  que  representam  o  mais  impor- 
tante factor  nestas  viagens,  sendo  a  ultima  merece- 
dora  de  toda  a  atten9ao. 


254  De  Angola  d  contra-costa 

Vieram  as  mupandas  que  nos  liaviam  de  acompa- 
nliar  à  coiitra-costa,  conio  tambem,  facto  notavel,  ap- 
pareceram  rorlias  affloreando  o  terreno,  resultado  sem 
duvida  de  unia  ramifica<;ao  da  serra  dos  ainboellas 
(pie  j)ara  acpii  deriva;  e  isto,  cpie  parece  urna  circum- 
slancia  de  nenlnnna  monta,  teve  para  a  nossa  gente 
multo  valor,  pois  precisando  cozinhar  no  cliào,  assente 
a  panella  em  tres  pedras,  andavam  desde  Quiteve  a 
clamar:  «N\ista  terra,  nem  à  pedrada  se  podem  per- 
seguir OS  inimigos;  nao  se  encontra  secpier  uni  ealhau 
para  llies  atirar!  » 

Sao  raras  as  aves,  emquanto  que  abunda  a  ca^a 
grossa,  encontrando-se  frequentemente  palancas,  Hyp- 
potrcufiis  equinus^  zebras  e  urna  (*abra  de  agua,  conhe- 
cida  na  Huilla  por  N'diujhi,  quem  sabe  se  a  Adenota 
Lechee  (?),  cujo  assolno  caracteristico  se  assimilha  às 
vezes  ao  pio  de  certas  aves  nocturnas. 

Estavamos  entao  no  limite  da  terra  dos  amboellas, 
e  foi  aqui  que  novamente  tivemos  eiisejo  de  ver  urna 
troupe  d'esses  infelizes  de  que  jà  fallàmos  e  que  diva- 
gani  pelos  boscpies  africanos,  coidiecidos  por  hushmen. 
Tendo-nos  avistado,  al)alaram  para  o  interior  da  flo- 
resta,  dando  porém  o  tempo  necessario  para  notar  um 
facto,  para  iiós  duvidoso,  e  que  sui)punliamos  existir 
pai'ticularmente  entre  os  hottentotes. 

E  a  stéatopygia.  Niìo  podendo  aqui  representar  a 
mulher  por  nós  ol)servada  de  relance,  damos  ao  leitor 
um  exemplar  hottentotc  na  gravura  junta,  copia  fiel 
de  uma  photograpliia. 

De  todos  e  lioje  conliecida  essa  particularidade  pliy- 
sica  da  gente  liottentote,  que  coni  outras  rasoes  esteve 


Entre  Cunene  e  Cithango  255 

para  a  collocar  em  grupo  especial,  constitiiindo  urna 
ra9a  unica,  hyììio  africanns  ou  homo  hottentotus! 

Originada  por  um  desenvolvimento  adiposo  na  re- 
giao  glutica,  que  se  exagera  pela  parte  posterior  em 
pr.gas  da  demie,  està  protuberancia,  à  medida  que  a 
niulher  avanza  em  idade,  tende  a  enrugar-se,  e  por 
vezes  parece  nao  fazer  parte  integrante  do  corpo,  ou, 
pelo  menos,  ser  uma  deformidade  de  doen^a  estranila! 

A  cor  amarellenta  da  pelle  (igual  &  da  follia  de  tabà- 
co  secca),  a  sua  pequena  estatura,  os  tra^os  repellen- 
tes  do  rosto,  o  aspecto  de  decrepitude  prematura,  a 
fatai  e  constante  miseria,  tornam  ainda  a  mulher  bus- 
kmen  victima  d'està  deformidade,  mais  liedionda,  se- 
gundo  julgàmos,  que  a  liottentote. 

Vis  arremedos  da  especie  huniana,  esses  indescri- 
ptiveis  seres  parece  que  foram  muito  de  proposito  ar- 
chitectados  para  permanente  insulto  à  plastica! 

Os  hushmen  liabitam  tambem  nos  povoados,  ao  que 
presumimos,  e  no  sul,  entre  os  ovamj^os,  vivem  em 
paz  e  n'uma  especie  de  servidao.  Estas  rachiticas  crea- 
turas  nao  suscitam  muito  dò  comò  à  primeira  vista 
poderia  julgar-se,  e  o  odio  que  em  geral  llies  téem  as 
tribus  africanas  é  a  consequencia  dos  seus  actos  ruins. 
Assim  nos  afiancjaram  que  muitos  casos  se  teem  dado 
de  assassinios  por  elles  commettidos,  com  a  mira  no 
roubo,  ou  por  outro  qualquer  motivo,  sendo  as  victi- 
mas  preferidas  quasi  sempre  as  mulheres. 

A  grande  mololla  Mué  marca  pelo  norte  o  limite 
da  Handa. 

Caminhando  3  milhas  encontra-se  uma  serie  de  col- 
linas,  erguendo-se  gradualmente  até  se  transformarem 


256  De  Angola  d  contro-costa 

em  altos  morros,  que  desenham  os  arredondaàos  dor- 
sos  no  azul  dos  céus  e  quebram  de  vez  a  monotonia  das 
terras  percorridas. 

As  densas  matas  d'aqui  sao  o  retiro  favorito  da  ca<;a, 
matando  nós  ao  chegar  ao  campo  uma  enorme  cutun- 
gué  ou  quissema  femea,  Aigoceros  ellipsiprimnus. 

0  aspecto  do  terreno,  porém,  é  assàs  tristonho  n'esta 
epocha.  0  solo  tisnado  pelas  recentes  queimadas,  as 
folhas  resequidas  pela  severa  geada,  indicam  que  o 
sopro  da  morte  passou  por  ali,  pesando  tal  panorama 
melancolicamente  no  espirito  do  viajante. 

0  leao  faz  tambem  seus  destro^os,  encontrando  nós 
a  evidencia  d'elle  s  junto  ao  rio  Quimpolo,  no  esqueleto 
de  uma  girafa. 

E  deserta Ì;oda  a  regiao  atravessada  desde  a  Handa, 
e  so  aqui  comeQàmos  a  avistar  os  arimos  de  Moi  Cam- 
puUo.  As  marchas  continuam  em  permanente  excursao 
venatoria,  tao  numerosos  se  apresentam  os  animaes 
desde  as  toupeiras,  furoes  e  lontras  até  às  zebras  e  gi- 
rafas!  0  solo,  porém,  difficulta  bastante  este  exercicio, 
por  ser  constituido  por  uma  rocha  quartzosa  dura  e 
branca,  que,  affloreando-o,  contrasta  com  a  sua  enne- 
grecida  cor. 

De  um  amboella  soubemos  que  o  Cubango  estava 
a  tres  marchas  adiante,  circumstancia  està,  que  nos 
obrigou  a  alargar  as  jornadas,  a  fim  de  mais  depressa 
ahi  chegarmos. 

Deu-se  aqui  um  facto  curioso,  que  mostra  o  exa- 
gero  dos  naturaes  nas  suas  informa^oes.  Tendo  per- 
guntado  ao  mesmo  indigena  qual  a  direcQao  do  Cu- 
bango e  onde  la  este  confluir,  respondeu-nos  :  para 


Entre  Cunene  e  Cuhango  257 

um  grande  rio  fillio  do  mar,  acrescentando  que  os  lia- 
bitantes  d'esse  sitio  sao  os  ba-qua-neitunta — anoes*. 

E  tao  volumosa  a  cabe^a  d'estes  indigenas,  que, 
deitando-a,  se  toma  difficil  depois  levantal-a;  por  isso 
durante  a  noite,  emquanto  o  homem  dorme^  véla  junto 
d'elle  a  mulher,  para  o  ajudar  a  erguer  quando  des- 
pérta,  servilo  que  retribue  à  cara  metade  por  fórma 
similliante! 

A  noite  acampàmos  junto  de  urna  grande  aldeia, 
d'onde  nos  fugiu  um  dos  carregadores  com  um  fardo 
de  fazenda. 

Cortando  de  novo  a  leste  estivemos  em  Cabandje, 
sitio  em  que  felizmente  encontràmos  algum  mantimen- 
to,  facto  consolador,  pois  nos  ultimos  tempos  quasi  se 
vi  via  de  carne. 

Ao  sueste  avistàmos  outro  acampamento  de  hush- 
men,  em  meio  de  uma  d'essas  largas  ondulaQoès  que 
constituem  o  plateau. 

A  9  de  jullio  podémos  evitar  a  fuga  de  alguns  com- 
panlieiros  ganguellas,  o  que  nos  trouxe  muitos  dias 
em  sobresalto,  sendo  necessario  conduzil-os  debaixo 
de  escolta. 

Ha  tambem  por  aqui  numerosos  leoes;  avistàmos 
dois  ao  terceiro  dia  de  marcila,  passando  um  perto 
de  nós  perseguido  pelos  mabecos,   Cards  mesoraeluSj 


1  Parece  que  entre  os  dàmaras  as  trìbus  se  dividem  em  castas,  a  firn 
de  cada  qual  encontrar  a  sua  origem  n*aquillo  que  mais  Ihe  appetece,  de 
modo  que  uns  descendem  de  arvores,  outros  de  bichos,  etc.  Os  ba-qua-iu- 
ba  vem  do  sol,  os  ba-qua-nombula  da  chuva,  os  ba-qua-neitunta  ou  tunda 
dos  bosques.  Estas  indica^oes  do  amboella  poderiam  refcrir-se  a  alguns 
dàmara-buslunen,  que  tivessem  adoptado  para  si  similhante  designalo. 

17 


258  De  Angola  d  contro-costa 

corno  se  poderia  facilmente  inferir  das  pégadas  que 
analvsàmos. 

E  curioso  este  pequeno  animai,  que  tamanlio  odio 
vota  ao  rei  das  selvas. 

Diz-se  sereni  destros  ca^adores,  e,  caso  estranilo, 
marcbando  sempre  eni  gi'andes  matilhas,  ao  aperce- 
berem  a  cac^a,  separam-se  logo  d'ellas  dois  para  a  per- 
seguirem  directamente  e  seni  ruido,  emquanto  (pie  os 
outros,  flanqueando-a,  tentani  cercal-a. 

Na  fórma  do  costume  choveram  a  este  respeito  in- 
forma^oes  e  anecdotas,  liavendo  quem  afiaiKjasse  ser 
tal  o  respeito  mutuo,  que  quando  està  a  matillia  a  de- 
vorar  uma  rez  e  apparece  outro  mabeco  a  saltar-lhe 
em  cima,  e  isto  motivo  para  todos  os  mais  abandona- 
reni  o  repasto! 

Antes  de  acampar,  fomos  de  subito  surpreliendidos 
pelo  grande  rumor  que  fazia  um  bando  de  mais  de 
ceni  macacos,  pulando  de  arvore  em  arvore.  A  rapi- 
dez  coni  que  se  precipita  este  animai  é  tanta,  que  no 
primeiro  momento  similliam  uma  mivem  de  passaros. 
Meia  duzia  de  tiros,  ao  acaso,  nao  tiraram  d'elles  o 
menor  partido. 

Ao  anoitecer  apanluimos  proximo  do  rio  um  animai 
pouco  vulgar,  a  que  os  indigenas  cliamam  n'caca  e 
scientificamente  se  denomina  Manis  multi scutatum  ou 
Temiiìincki  (V),  similliante  ao  armadillio.  Os  naturaes 
consideram  a  cacja  d'elle  conio  indifno  de  felicidade, 
sendo  obrigado  o  soba  da  terra  onde  (5  colhido  a  matar 
um  boi,  cuja  carne  cozem  com  a  do  n'caca  e  as  esca- 
mas  d'este  distribuem  para  amuleto  entre  os  ca9adores 
da  senzalla. 


Entre  Cunene  e  Cnhango  259 

Coincìdeiicìa  notavel:  era  o  dia  10  de  jullio,  e  fo- 
llieando  iim  calendario  francez  que  levavamos,  encon- 
tramos:  «Dia  de  Santa  Felicìdade!» 

Na  nianha  segninte  chegavamos  às  niargens  do  rio 
Cnl)ango,  jà  nosso  conliecido  da  viagem  de  1878,  ciijo 
cnrso  transpuzemos  })ara  a  margem  esquerda.  Tem 
n'este  logar  110  metros  de  largo  sobre  3  de  profun- 
didade  media  e  corrente  de  1,5  niillia. 

As  orlas  sao  regularmente  cortadas  e  multo  pittores- 
cas,  ora  vestidas  do  annido^  ora  de  densos  arvoredos. 

Sobre  a  direita  a  teiTa  e  deserta  até  a  Cafima,  falta 
de  agiia  para  o  sul  e  conio  tal  intransitavel,  excepto 
na  direcc^'So  da  mololla  Ombongo,  que  veni  do  valle 
jiara  o  Cubango  ao  norte  de  Dirico;  para  o  oriente, 
povoam-na  as  tribus  amboellas,  de  que  fallamos,  acom- 
})anliando  o  seu  curso  em  grande  distancia. 

Na  beira  de  aleni  acampou  a  expedi^ao  para  tomar 
folego,  planeando  coni  conliecimento  de  causa  a  con- 
tinua(;ao  dos  nossos  traballios. 

Estavam  percorridas  até  ali  muitas  millias  geogra- 
l)liicas,  fixadas  numerosas  j)osi(;oes,  estudada  a  zona 
(pie  exploràmos  tanto  quanto  consentiam  os  recursos 
e  ()  tempo  de  que  dispunliamos. 

()  que  urgia  agora  fazer? 

Prolongando  o  curso  do  rio  pelo  nienos  ate  ao  Mu- 
cusso  (Bucusso),  poderia  a  expedi^ao  a  nosso  cargo 
resolver  problemas  importantes,  e,  descobrindo  defini- 
tivamente o  mysterioso  destino  d'este,  volver  ao  nor- 
deste.  Era  longo  o  trajecto,  e  o  receio  das  chuvas  no 
norte  fizeram-nos  a  principio  liesitar,  até  que  alfim  de- 
cidimos  seguir  pelo  sul,  dispondo  tudo  para  a  viagem. 


260  De  Angola  d  controncosta 

E  o  Cubango  irla  ao  Zambeze? 

Ao  contemplar  a  sua  largueza,  e  attentando  no  vo- 
lume de  aguas  que  leva  por  està  latitude,  mal  póde  o 
viajante  acceitar  a  idèa  de  similhante  caudal  ir  per- 
der-se  nas  terras  austraes  *. 

A  quantidade  de  agua  que  n'este  parallelo  deriva 
para  as  regioes  meridionaes,  embora  esteja  por  deter- 
minar, é  consideravel. 

As  informa^oes  de  que  deslisa  todo  para  o  sul,  per- 
dendo-se ali  em  parte,  por  infiltra^ao  ou  evapora9ao, 
julgàmol-as  inacceitaveis,  tamanho  é  o  fluido  volume 
que  corre  pelo  seu  leito. 

Depois,  alem  dos  numerosos  tributarios  que  conduz 
do  norte,  vae  agora  sobre  elle  o  Cuito,  à  beira  do  qual 
breve  nos  achariamos,  cuja  drenagem  nao  Ihe  é  muito 
inferior,  formando  na  esta9ao  pluviosa  um  alagamen- 
to  que  inunda  immenso  territorio,  e  os  indigenaa  desi- 
gnam  por  lagóa  Mamo.  Entao  recebe  outros  affluentes 
orientaes,  indo,  segundo  dizem  os  indigenas,  entrar 
n'um  grande  rio.  Tamanha  accumula^ao  de  aguas,  que 
vae  perder-se  no  N'gami,  traria  forQOsamente  a  neces- 
sidade  de  ser  este  um  lago  de  maior  amplitude. 

0  Cubango  é  sem  duvida  um  dos  mais  poderosos 
affluentes  do  Zambeze,  deixando  coiTer  em  epochas 
parte  das  suas  aguas  para  o  sul,  comò  vamos  explicar; 
e  se  porventura  ha  conservado  a  sua  direc^ao  media 
desconhecida  para  os  geographos,  é  isso  devido  a  que, 


r 

^  £  escosado  produzir  aqui  argumentos  tendentes  a  demonstrar  que 
nSo  foi  Anderson  o  descobridor  do  Cubango,  pois  dezenas  de  portngae- 
zes  de  ha  muito  por  elle  transitavam,  corno  Candimba,  Gon^alves,  etc. 


Entre  Cunene  e  Cvbango  261 

na  parte  inferior  da  carreira,  tendo  de  atravessar  ex- 
tensas  planicies  cobertas  de  bastas  gramineas,  serpeia, 
alarga,  subdivide-se,  para  adiante  de  novo  se  unir,  e 
por  maneira  tao  complicada,  que  com  difficuldade  se 
póde  dar  conta  d'ella  n'uma  so  viagem. 

E  isto,  repetimos,  foi  corroborado  em  toda  a  parte 
pelas  informa^oes  dos  indigenas,  e  assim  nol-o  affir- 
maram  tanibem  aquelles  que  comnosco  aqui  fallaram 
sobre  o  caso. 

Eis  pois  quanto  àcerca  d'elle  pensàmos. 

Se  attentarmos  sobre  o  modo  por  que  no  plateau 
centrai  se  faz  o  movimento  das  aguas,  veremos  serem 
tres  as  especies  de  cursos  (se  assim  póde  dizer-se)  que 
ahi  se  apresentam,  e  poderiamos  mesmo  designar  rios 
correntes  todo  o  anno,  outros  que  deslisam  so  na  epo- 
cha  das  chuvas,  seccando  na  estiagem,  denominados 
damhas,  e  emfim  as  molollas,  ou  cursos  de  movimento 
altemado,  conforme  a  eleva9ao  das  aguas  nos  grandes 
leitos  que  as  originam. 

A  Toololla  é  uma  depressao  lateral  de  terreno,  que 
estando  pouco  superior  ao  nivel  medio  da  extrema 
estiagem  das  aguas  no  rio,  fica  muito  inferior  ao  nivel 
no  tempo  das  chuvas  e  se  liga  com  o  rio  pelos  extre- 
mos  ou  por  um  so  ponto. 

Claro  é  pois  que,  na  epocha  da  cheia,  a  agua,  pene- 
trando ali,  caminha  mui  vagarosa  e  parallela  ao  rio,  até 
estabelecer-se  o  nivel;  mas  logo  que  este  baixa  ou 
despeja  rapidamente,  vé-se  entao  a  agua  da  mololla  no 
seu  rumo  superior  retrogradar,  ageitando-se  ao  nivel, 
emquanto  que  no  rumo  inferior  caminha  na  mesma 
direccjao. 


262  De  Angola  d  contra^osta 

• 

Este  facto  succede  quando  estó  a  mololla  ligada 
pelos  doÌ8  extremos  ao  rio.  Se  poreui  conaìderassenios 
o  seu  extrenio  inferior  cu  meridional  para  o  caso  des- 
ligado,  e  terminando,  por  exemplo,  n'uma  depressilo, 
veriamos  ([ue  o  dito  movimento  retroo-rado  se  nao 
operaria  so  na  metade  superior,  mas  sim  em  todo  o 
comprimento,  e  cpie  a  agua  viria  assim  a  reentrar  em 
parte  no  curso  originario. 

E  este  o  caso  ([ue  se  dà  coni  o  Cubango  e  as  molollas 
Tonque  e  Dzo,  etc,  que  d'elle  derivam  j)ara  o  Negami, 
e  onde,  segundo  as  epoclias  do  amio,  a  agua  tem  mo- 
vimento directo  ou  retrogrado,  conforme  indicane )s. 

O  Macaricari  completa  este  systema  rej)ositorio  no 
sul  i^elo  Zouga  coni  o  N'gami,  e  quando  no  norte 
baixa  de  nivel  a  agua  nos  rios,  reflue  d'aquelle  imme- 
diatamente para  ali. 

Tal  e  a  idea  que  fazemos  do  curso  do  Cubango,  em 
cuja  margem  nos  achàmos,  e  ao  longo  do  qual  deter- 
mindmos  novas  marchas. 


CAPITOLO  IX 


0  RIO  CUBANGO 


Sete  annoH  dopois — 0  caininho  do  Mo^nmìùque  e  as  caras  volvidas 
ao  Hill  —  Miiene  Catiba  e  a  niandioea — Entro  os  aniboellas — A  confluon- 
cia  do  Cutchi  e  a  doen^a  do  Muono  Mion^a  —  Uni  traballio  photograjihioo 
intorronipidu — Sconas  de  feiti^aria — Triìmnaes  africanos  o  urna  anecdo- 
ta 8obre  o  caso  —  Os  ma-chaca — -0  rio  Cue})e — Subitas  desor^oos  e  urna 
noite  de  angustia — Pbilosopliicas  considera^òes  quo  uni  funeral  remata 
— 0  rio  Cuoio  e  os  atoleiros  quo  o  margiuam — Frios,  sedos  e  fonios  — 
0  rio  Cuatir — Naturoza  do  solo  e  os  pantanos  intransponiveis — Aldeias 
laoustres — Ainda  uni  atoloiro  e  a  pol»roza  das  planta^òos  —  Um  chefe 
mais  buinauo  e  a  morte  de  uni  oompanboiro — A  foine  —  Duas  eonsidera- 
VÒos  sobro  a  geologia  africana  —  Adous  Cubango. 


Sete  annos  tinham  decorrido  desde  que  pela  pri- 
meira  vez  havìamos  vìsitado  o  Cubango  no  parallelo 
do  Bié. 

Attentando  no  limpido  len^ol  de  suas  aguas,  que 
serenas  derivavam  a  caminho  do  sul,  recordavamos 
tao  precisamente  aa  ìmpreBBÒes  entao  experimentadas, 
que  nos  parecia  ter  desapparecido  o  lapso  de  tempo 
que  mediàra  entre  ambos  os  factos,  que  està  vìagem, 
emfim,  era  corno  sequencia  da  outra! 

E,  sem  embargo,  no  limbo  do  olvido  fam  elles  jà 
abysmados,  a  sexta  parte  da  vida  de  um  liomem  em 
completo  vigor;  annos  que  passaram  de  mocidade  e 
despreoccupa^So  para  jamais  volverem. 


266  De  Angola  d  contror-costa 

p]utao  era  a  nossa  primeira  yiagem,  chela  de  attra- 
ctivos  e  poetico»  soiihos,  tendo  corno  norte  a  aventu- 
ra,  por  camiiiho  acjuelle  que  primeiro  se  deparasse,  e  a 
lima  saiide  de  ferro  respoiidia  sempre  vigor  inque- 
l>rantavel,  (pie  tudo  afigiirava  doiirado. 

Agora  era  urna  missao  reflectida  e  subordinada  a 
determiuados  fius,  peregriiiacjào  sem  duvida  loiiga, 
para  que  carecia  poupar  as  for^as;  era  a  reputa^ao  e  a 
pratica  de  doìs  liomens  jà  com  tirocinio,  as  quaes,  pos- 
tus  em  ac(;ao,  tinham  fatalmente  de  corresponder  ao 
«pie  d'ellas  se  esperava. 

Urgia  pois  marchar  cautelosos,  e,  meditando  seria- 
mente OS  mais  singelos  devaneios,  considerar  de  conti- 
nuo no  equilil)rio  das  for^as  de  que  se  dispunha,  nos  lio- 
mens que  possuiamos,  nos  recursos  existentes,  pondo, 
ccmio  Artjns  infatigavel  d'està  ordeni  de  cousas,  o  dever 
e  a  lenii  )ran(;a  da  contra-costa. 

Por  isso,  tendo  de  volver  as  frontes  ao  sul,  visto 
conio  o  objectivo  da  expedi^ao  consistia  no  reconheci- 
iiiento  do  curso  do  rio  a  cuja  heira  ncns  achavamos,  imo 
podiamos  deixar  de  verno  caso  um  facies  desagrada- 
vel,  para  affrontar  o  qiial  tivemos  de  revestir-nos  de 
toda  a  boa  vontade,  pois  nao  e  o  caminlio  do  meio  dia 
})recisainente  acpielle  que  nos  levaria  a  Mo^ambique. 

A  obriga^ao  poréni  venceii  os  nossos  receios,  e  em- 
bora  n'essa  marcila  pouco  fizessemos  de  aproveitavel, 
em  vista  dos  ol)staculos  que  se  nos  dej)araram,  nem 
por  isso  inostrtlmos  menos  insistencia  e  energia,  de  que 
nos  resta  a  consola^ao  n'estas  candidas  declara^oes. 

Muene  Catiba,  o  regulo  d'ali,  homem  velilo,  de  feio 
aspecto,  coxo  e  sordidamente  vestido,  fez  a  sua  visita 


0  rio  Cuhango  267 

ao  acampamento  e  preseiiteou-nos  coni  iim  porco,  ver- 
(ladeiro  recurso  inesperado  para  a  nossa  exliaiirida  co- 
zinlia. 

Foi  em  sua  terra  que  primeiro  vimos  a  mandioca, 
artij^o  iiao  existente  para  oeste,  facto  que  de  per  si  so 
explica  a  deprcssao  eni  que  nos  acliavamos,  e  que  ef- 
fe(*tivamente  era  de  1:1  GO  metros;  tambem  abundava 
o  uiillio  e  a  batata,  generos  naturalmente  importados 
do  Bié  pelos  mercadores  poi-tuj'uezes,  que  ao  longo 
do  Cubango  transitani  para  o  Mucusso. 

0  trilho  que  seguinios,  contornando  rigorosamente 
a  margem  do  rio,  era  tra^ado  em  terreno  que  para 
diante  se  torna  aspero,  deixando  ver  pelas  ravinas  uni 
subsolo  de  rodia  quartzosa,  de  (}ue  resultam  os  ca- 
lliaus  dis})ersos  i)clas  duas  margens. 

Cliamam-se  and)oellas  os  lialntantes  da  zona  que 
vanios  percorrendo,  e  sào  os  jìretos  de  mellior  appa- 
rencia  que  temos  cncontrado. 

Os  seus  pentcados,  cntretecidos  de  trangas  e  conta- 
ria,  distinguem-os  logo,  assim  ('omo  o  uso  de  pannos, 
ao  contrario  dos  congeneres  do  ocstc,  que  se  cobrem 
coni  j^elles. 

As  habitacjòes  circulares  de  tecto  ponteagudo  sào 
barradas  de  argilla  e  postas  coni  ordeni. 

A  distancia  media  de  uni  dia  de  joniada  e  rumo 
que  n'esta  latitude  corre  approximadamente  ao  sueste, 
acliam-se  estabelecidas,  à  beira  do  rio,  as  libatas  dos 
regulos  mais  importantes,  que  em  acto  successivo  fo- 
mos  visitando. 

E  notavel  o  contraste  das  duas  margens  tao  proxi- 
mas,  pela  sua  anima9ào,  flora  e  accidentes. 


268  De  Angola  d  contro-costa 

D'aquem  eleva-se  o  terreno,  formando  urna  encos- 
ta,  veste-o  frondosa  vegeta^ào,  cobrem-no  as  aldeias  e 
outras  povoa^oes,  affluem  numerosos  rios;  para  alem  e 
plano  e  coberto  de  gramineas,  deserto  até  à,  Cafima,  no 
dizer  dos  naturaes,  nào  possuindo,  sequer,  um  so  tri- 
butario. 

Encontram-se  bastas  fiorestas  de  mupandas,  moton- 
tos  e  ndumbiros,  por  onde  numerosas  aves.  esvoaijam  e 
no  meio  das  quaes  se  observam  habita^oes,  em  que 
pela  tarde  e  noite  ha  ruidosos  batuques  para  entrete- 
nimento  dos  indigenas. 

Os  amboellas  sào  grandes  musicos,  dextros  ferreiros 
e  habeis  pescadores  das  lagoas,  aventurando-se  raras 
vezes  a  pescar  no  leito  do  rio. 

Ao  terceiro  dia  transpozemos  o  Cutchi,  de  70  me- 
tros  de  largo,  e  com  o  qual  jà  haviamos  feito  conhe- 
cimento  no  norte,  sendo  as  nossas  canoas  o  objecto 
da  mais  embasbacada  admira^ào. 

Entre  os  amboellas,  que  se  distinguem  pelas  cabe9as 
rapadas  com  pequenas  trauQas  no  alto,  véem-se  ho- 
mens  do  sul,  bana-catuba  da  Cafima  e  do  Cuanhama, 
com  o  seu  pittoresco  trajo  e  a  tez  menos  retinta  que 
a  d'aquelles. 

Raros  sao  os  gados  por  està  parte,  onde  escasseia  de 
novo  a  mandioca,  assim  comò  o  sorghum,  cultivando- 
se  exclusivamente  o  millio.  0  rio  deslisa  formidavel, 
sendo  para  lamentar  o  seu  abandono  pelos  indigenas, 
que  so  possuem  canoas  para  o  transpor. 

Um  barco  do  molde  da  Lady  Alice  de  Stanley,  pres- 
taria  um  alto  servilo  na  rapida  explora9ao  d'esse  vasto 
len9ol  de  agua. 


0  rio  Cubango  269 

Na  libata  de  Muene  Mionga,  onde  chegàmoa,  acha- 
va-se  a  popula^ào  azafamada  com  um  negocio  impor- 
tante. 0  rcgulo  estava  doente. 

Dentro  d'ella  e  n'um  terreiro  a  meio,  Muene  Mion- 
ga via-se  sentado.  envolto  em  ampio  cobertor,  tendo 
a  cajinga  (barrete)  na  cabala;  à  direita  e  eaquerda 


collocados  quatro  quinhandas,  de  frontes  omadas  de 
grinaldas  de  pcnnas,  dois  com  caba^as  na  mSlo  con- 
tendo peda^os  de  pan,  ferro,  etc,  e  os  outroa  dois 
com  ferrinlios  qne  tangiain;  em  frente  do  aoba,  esten- 
dìda  no  solo,  urna  cauda  de  elephante. 

Procedem  os  quiiìbandas  a  encanta^òes,  que  nos  di- 
zem  tendente»  a  adìvinhar  a  causa  da  doen9a  do  re- 


270  De  Angola  d  coììtra-costa 

gulo,  ou  mellior  a  conliecer  quem  por  malefica  ipiflucn- 
cia  o  enfeiticjou. 

De  roda  a  niultidào  canta  monotonamente,  emquan- 
to  nma  especie  de  aranto,  enfeitado  dos  mais  estranhos 
ornamentos,  pega  j)or  vezes  do  rabo  do  elepliante, 
come^ando  em  saltos  pelo  terreiro. 

Nào  tendo  o  menor  interesse  em  conliecer  a  enfeiti- 
^ada  causa  de  que  o  soba  fora  victima,  voltàmos  as 
costas  a  està  scena  banal  e  assàs  conliecida,  j)rose- 
giiindo  impavidos  para  leste. 

Ao  cabo  de  nmas  poucas  de  lioras  de  marcila,  clie- 
gamos  à  aldeia  de  Mnene  Moloino,  sitiiada  n'uma  enii- 
neiicia  que  o  rio  contorna,  e  que  pelo  seu  aspecto 
j)ittoresco  nos  levou  a  preparar  um  cliché. 

Estes  traballios  no  matdfcao,  poréni,  muito  differen- 
tes  dos  operados  no  remanso  de  uni  atelier  da  Europa, 
e,  quando  satisfeitos  acabavamos  de  tapara  objectiva, 
j)()r  estar  feita  a  exposÌ9ao,  eis  que  macliina,  tripé  e 
artigos  relativos,  se  derrubam,  cafiido  cada  objecto 
para  seu  lado. 

Uma  cobra  liavia  saltado  junto  de  nós,  e  na  ancia 
de  evitar  o  seu  contacto,  cada  qual  se  escapou  conio 
póde,  esquecendo  a  machina,  que,  victima  dos  emba- 
tes  do  reptil,  foi  cair  entre  as  liervas,  do  que  resultou, 
na  volta  ao  vellio  mundo,  esse  clicM  nao  dar  cousa  al- 
guma,  por  ter  apanliado  luz,  segundo  parece. 

Estava-se  em  piena  pliase  de  adivinliac^oes  e  sorti- 
legios. 

Na  libata  d'este  regulo  tangiam  tambem  os  ferri- 
nlios  e  procedia-se  a  similhantes  scenas  de  feitÌ9aria 
com  estranilo  bambare. 


(J  rio  Cubango  271 

Era^o  caso  (alias  pouco  frequente  em  Africa),  ter 
certo  rapaz  cravado  urna  faca  em  pieno  abdonien  de 
outro;  o  réu  negava,  declarando  haver  ac^uelle  sido 
ferido  no  niato  por  um  animai  qualquer. 

Tratava-se  de  adivinhar  a  verdade  d'este  protesto, 
por  isso  era  grande  a  confusao. 

Tencionavam  no  seguinte  dia  matar  um  boi,  para 
d'elle  extrahirem  o  milongo  (remedio)  apropriado  jìara 
tal  adivinha^ao,  esperando  deduzir  por  cabalisticas  ar- 
timanhas  e  pelas  contrac^oes  das  visceras  a  causa  do 
crime. 

Nào  soubemos  as  consequencias  de  todo  este  longo 
processo,  que  devia  ser  curioso,  a  julgar  pelo  negocio 
em  questao;  pois  occasionam  frequentemente  debates, 
cuja  originalidade  e  finura  deixam  nao  poucas  vezes 
o  europeu  admirado. 

Eis,  conio  exemj^lo  frisante,  uma  anecdota  que  le- 
mos  ou  ouvimos  algures  a  i)roposito  da  deliberac^ào 
tomada  n'um  tribunal  indigena. 

Aconteceu  que  um  individuo  possuidor  de  grande 
manada  accusava  outro  de  llie  haver  morto  um  boi 
coni  mna  zagaia,  queixa  de  que  elle  se  defendia,  re- 
})licando  nao  ter  sido  elle,  mas  sim  outro  boi,  que  em 
lucta  o  prostrerà  coni  uma  chifrada. 

(  )  trilìunal,  a  que  fora  sujeito  o  caso,  após  muita  dis- 
cussao,  fa  decidir-se  alfim  a  favor  do  accusado,  (piando 
um  velilo  da  tribù,  erguendo-se,  ordenou  que  suspen- 
dessem  o  veredictum. 

—  Ou^am!  exclamou  elle  em  toni  imperioso,  vol- 
tando-se para  a  victima  da  accusacjao.  Onde  téem  os 
bois  o  rabo? 


272  De  Angola  d  contro-costa 

A  està  pergimta  o  criminoso  mirou-o  com  espanto 
e  respondeu,  indicando  com  a  mao  direita  o  respectivo 
logar  : 

— Aqui. 

— E  comò  anda  o  rabo:  cafdo  para  baixo,  erguido 
para  cima  ou  pendente  do  lado? 

— Para  baixo. 

— E  onde  téem  os  bois  as  armas? 

— Na  cabe9a. 

— E  sào  para  baixo,  para  cima  ou  para  o  lado  que 
ellas  se  acham  dispostas? 

— Para  cima. 

— Beni;  se  uni  boi  entao  ferir  outro,  a  ferida  deve 
ser  de  baixo  para  cima  ou  vice-versa?  proseguiu  elle, 
virando-se  para  o  tribunal. 

— De  baixo  para  cima,  disseram  todos. 

— Vamos  pois  ver  o  boi,  replicou  o  ladino  vellio,  e 
se  assim  estiver  disposta  a  ferida,  fica  livre  este  lio- 
mem,  e  é  falsa  a  accusacjao  que  Ihe  fazem! 

Infelizmente  a  ferida,  feita  com  uma  zagaia  por  mao 
de  homem,  era  de  cima  para  baixo,  e  o  accusado  sof- 
freu  portanto  penalidade! 

Muene  Mionga  era  extremamente  velho;  os  vassal- 
los  d'elle  constituem  uma  tribù  um  pouco  differente 
dos  amboellas,  denominam-se  ma-chaca,  téem  as  faces 
angulosas  e  sao  mais  feios  no  todo  do  que  os  jà  cita- 
dos. 

Para  leste  ficava-nos  o  Cuebe,  rio  caudaloso  e  que 
na  fórma  dos  anteriores  leva  as  aguas  ao  Cubango,  a 
par  do  Cuatir  e  outros.  Como  os  indigenas  nos  afian- 
^aram  que  na  confluencia  havia  gi'ande  accumula^ao 


0  Ho  Cuhango  273 

de  pantanoa  difficilmente  transìtaveis,  decidimo-nos, 
por  consellio  seu,  a  transpor  03  dois,  e,  seguindo  0 
curso  d'este  para  o  sul,  ganhar  de  novo  o  d'aquelle 


Denaos  boaques  eobrem  para  alem  do  Cuebe  toda 
a  zona  que  medeia  entre  elle  e  o  Cuatir,  desprovidoe 
de  agua  em  muitos  logarea,  cujo  solo,  conatituido  por 
onduIa<;5es  de  grès  e  cortado  por  fundos  sulcos,  aflfe- 
cta  aqui  e  alem  as  mais  estranlias  fórmas. 

Junto  do  rio  Mabanda  acampàmoa  n'uma  encosta, 
onde  precisamente  come^am  os  tractos  sìliciosos.  A 


274  De  Angola  d  contra-<osta 

areia  branca  inipede  a  inarclia  e  fatiga  os  viajantes; 
ahi  comeCj'aram  para  a  expedic^'ao  iiovas  fatalidades, 
pois  ao  chegar  o  tercciro  dia  de  jornada  desertaram 
nns  poucos  dos  nossos  eiii  caminho,  continuando  as 
tentativas  nos  segiiinte.s,  conio  succedeu  })erto  do  rio 
Icpiebo,  onde  coni  desespero  procuraram  evadir-se  em 
massa,  abaiando  a  tóa  pelos  niatos,  nuiitos  conipanhei- 
ros  nas  noites  de  20  e  23  de  jnllio. 

N'esta  ultima,  sobretudo,  a  nossa  an<»;ustia  cresceu 
de  maneira,  que  fìcamos  convictos  de  ser  abandona- 
dos  em  pieno  sertào. 

Antonio  partiu  para  a  retaj^uarda  em  cata  dos  pri- 
meiros,  que  tinliam  fugido  coni  tres  fardos  de  fazenda 
e  uina  das  canoas  de  desarmar;  nós,  prevenidos  de 
que  se  preparavam  outras  fugas,  haviamos  amarrado 
OS  ganguellas  suspeitos  de  cliefes  do  movimento,  dei- 
xando-os  pelas  lioras  do  sonino  coni  sentinellas  a  vista. 
Inutil  empenho;  pois,  (piando  mais  socegados  e  segu- 
ros  nos  julgavamos,  elles  de  subito,  desprendendo-se, 
abalaram  em  boni  numero,  iiào  tornando  mais  a  appa- 
recer. 

Noite  terrivel  foi  essa,  em  que  tivemos  de  largar 
fogo  a  Ulna  enorme  floresta,  na  esi)eran9a  de  ver  oii 
cercar  aquelles  que  n'ella  suspeitavanios  escondidos, 
e  em  que  de  carabina  em  punlio  coni  os  restantes  (pie 
se  conservaram  fieis,  percorremos  em  cac^a  da  diabo- 
lica turnia  por  nieio  de  matas  em  cliammas  e  troncos 
esbrazeados,  jogando  conio  loucos  inna  cartada  de 
vida  Oli  morte! 

Morrer  ou  avante,  era  o  dilemma  formidavel  que  se 
levantava  espeetral  ali  a  europeus  e  africanos! 


0  rio  Cuhamjo  275 

Tal  proeediniento  da  parte  de  lioniens  a  cpiem  nós 
deranios  exuberaiites  })rovas  de  affei(;ao  era  iiidescul- 
pavel,  e  o  tratamento  sempre  bondoso  e  indulgente 
pa{^ava-nos  essa  eoliorte  de  ingratos  eoni  a  })ei*tìdia, 
se  nào  coni  o  roubo.  Qiiebrando  seni  eonsciencia  os 
eontratos  (pie  eoninosco  haviani  feito,  abandonavam- 
nos,  levando  o  que  nos  perteneia! 

Neni  um  setpier  se  (lueixjira  até  ali,  pela  simples 
rasào  de  faltar  motivo  para  isso. 

Nos  dias  mais  aziaj^os,  nos  dias  de  fonie,  para  o 
honieni  do  mato  semj)re  de  nini  serio  caraeter,  elles 
sal)iani  beni  (pie  cpiando  (bi  ra(,*a  morta  honvesse  para 
n(')s  duas  ra(;(")es,  liavia  tambem  para  elles,  e  que  um 
punliado  de  fariidia  (pie  no  aeann)amento  apparecesse 
era  por  todos  ij»ualmente  dividido,  enibora  a  cada  qual 
eoubesse  apenas  um  simples  bago. 

Mas,  leitor,  o  negro  e  a  expressao  embryonaria  do 
sentimento,  e  na  sua  rude  inconnu'ehensào  do  de  ver  e 
(bi  dignidade,  faz  parentbesis  eni  (piasi  todos  os  prin- 
ei{)ios  (bi  nobilita(;ao  buniana. 

Coni  isto  nao  queremos  afiam^ar  (pie  elle  pende  por 
in(b)le  ])ara  o  mal;  scimente  sup])omos  que  exereita 
este  por  ignorancia  oii  })or  desconliecer  a  sublimidacLe 
da  pratica  do  beni. 

E  nào  se  imagine  que  tambem  isto  (3  pbilosophia, 
e  muito  menos  pretendem  as  nossas  pabivras  fazer 
doutrina  eni  materia  nova;  S(>niente  mirani  a  tornar 
conn)reliensivel  uni  facto  em  (pie  todos  errani,  ten- 
tando porventura  acliar  n'elle  unia  cousa  (pie  precisa- 
mente nào  podeni  ver,  i)or  imaginarem  n'essa  creatura 
uni  conio  espellio  onde  se  reproduzem  directamente 


276  De  Angola  d  corUra-costa 

as  imagens,  quando  nao  passa  de  um  arremedo  enga- 
nador^  em  cnjo  cerebro  o  principio  do  bem  é  diffidi 
de  fixar-se,  se  nao  refractado  pelo  prisma  da  manha, 
se  dispersa  e  mesmo  inverte,  produzindo  phenomenos 
similhantes  àquelles  da  miragem  para  o  viajante  do 
deserto,  isto  é,  o  contrario  do  que  deve  ser! 

Inconscientemente  e  sem  o  notar,  os  europeus  tra- 
tam  o  negro  corno  de  igual  a  igual,  exigem  d'elle  urna 
declaraijao,  empenham  a  sua  palavra,  consideram  o 
contrato  feito  in(iuebrantavel,  por  ser  baseado  na  obri- 
ga9ao  e  no  dever,  e  eis  que  de  subito  foge,  deixando-os 
a  piqué  de  urna  perda  e  quieta  da  morte;  e  entao  que 
levados  pela  ira  o  condemnam,  pensam  em  castigal-o! 

E  a  final  os  verdadeiros  culpados  somos  nós,  que  o 
julgàmos  pela  amplificadora  lente  da  ingenuidade  e 
da  boa  fé. 

Pois  que  sao  a  dignidade  e  a  honra  senao  virtudes 
provenientes  do  contacto  do  liomem  sociavel,  que,  co- 
nhecendo  a  sua  superioridade  intellectual,  Ihe  servem 
de  penlior  à  demonstra^ao  de  que,  alem  dos  singelos 
instinctos  naturaes,  alguma  cousa  mais  sublime  existe 
n'elle? 

E  se  isto  assim  é,  acaso  o  negro  no  estado  da  mo- 
ralidade  inicial  em  que  se  o^cha,  elle  que  tem  para  o 
evidenciar  por  companheira  uma  mulher  que  desco- 
nhece  o  pudor,  esse  delicadissimo  sentimento  que  pri- 
meiro  que  nenhum  nos  parece  deve  ter  assomado  ru- 
bro às  faces  das  nossas  selvagens  antecessoras  ;  sujeito 
à  egoista  necessidade  de  prover  à  subsistencia,  presos 
a  quantas  materialidades,  que,  por  obcecarem  o  espi- 
rito, o  for9am  a  rodar  n'um  circulo  restricto  de  satis- 


0  rio  Cuhangp  277 

facjoes  mal  remediadas;  acaso,  repetlmos,  póde  elle 
comprehender  o  que  seja  o  dever,  a  honra  empenhada? 

Nào  precisànios  responder,  os  factos  estao  por  iiós, 
e  a  verdade  é  que  em  todos  os  assumptos  importantes 
coni  negros,  tanto  mais  duvidavamos  d'elles  quanto 
mais  afinco  e  boa  fé  pretendiam  mostrar-nos. 

Se  um  negro  se  vos  mostrar  recalcitrante  ou  mesmo 
indifferente,  excitae-lhe  a  cubica,  e  tereis  d'elle  alguma 
cousa;  ao  contrario,  se  o  virdes  fazer  protestos  de  de- 
dica^ao  à  vossa  causa  e  generoso  afian9ar-vos  o  seu 
apoio,  abaiidonae-o,  porque  de  certo  sereis  breve  en- 
ganado ! 

Apraz-lhe  o  ludibrio,  e  no  exercicio  d'essa  infima 
faculdade  intellectual — a  astucia,  pareceu-nos  perce- 
ber  por  vezes,  no  preparar  de  trama  velliaco,  um  ine- 
vitavel  antegosto  na  idea  malefica. 

Entretanto  para  o  liomem  selvagem  assim  deve  ser. 
Elle,  que  na  escola  da  natureza  aprende  na  lucta  de 
cada  dia  so  a  defender-se  dos  males  que  Ihe  aniea- 
(jam  a  triste  existencia,  acaba  por  identificar-se  com 
este  estado  de  cousas,  e,  vendo  n'aquella  a  imagem 
da  grandeza,  trata,  quando  pensa  engrandecer-se,  em 
praticar  o  mal,  que  de  resto  mais  facilmente  inspira  a 
admira^ao  que  o  bem! 

Consternados  por  este  estado  de  cousas,  conservà- 
nio-nos  no  Iquebo  até  à  volta  de  Antonio,  ora  ageitan- 
do  cargas  e  desistindo  de  artigos  de  conforto  por  falta 
de  portador,  ora  vigiando  pela  noite  aquelles  dos  nos- 
sos  que  mais  suspeitas  inspiravam.  Pela  manlià  voltou 
Antonio  com  a  triste  nova  de  que  nem  um  sequer  fora 
possivel  encontrar;  està  noticia  cliegava  precisamente 


278  De  Angola  d  contra-costa 

na  tetrica  occasiao  eni  (jiie  era  inliuniada  unia  rapa- 
riga  (pie  suecunibira  pela  noite  a  (luj)la  pneiiiiioiiia. 

Concluida  a  funebre  eerenionia,  pozémo-iios  pelas 
oito  lioras  da  tarde  a  eaminlio,  tanianlia  era  a  ancia 
que  nos  dominava  de  deixar  acinelle  logar  de  nefasta 
reeorda(,*ao. 

Coine(,*jira  a  noite,  e  quein  visse  n'esse  momento  a 
expedic^ao  portugiieza,  triste,  o])])ressa,  avan(;aiido  ein 
linlia  })or  meio  das  matas  e  areiaes  que  a  defrontavam, 
dizimada  pelas  ultimas  fugas  e  persejifuida  pelo  frio, 
carregando  com  agiia  pela  ineerteza  de  a  eneontrar 
adiante,  e  pensasse  tambem  que  esse  bando  de  homens 
se  destinava  a  atravessar  todo  o  continente  africano, 
uao  garantiria  tal  empenho  com  a  mais  singela  phra- 
86  de  consolo! 

Pelo  escuro  acampamos,  esperando  a  todo  o  mo- 
mento ser  surpreliendidos  pelo  grito  de  alarme  das 
sentinellas,  que  annunciavam  alguma  nova  evasao. 

Uni  silencio  sepulcliral  eiivcdvia  o  campo,  so  inter- 
rompido  ao  longe  })elos  gi'itos  das  hyenas.  Tristonlios 
presentimentos  dominavam  o  espirito  de  todos  com  a 
lembraiKja  de  (pie  se  consumira  a  maior  parte  dos 
mantimentos  na  demora  junto  ao  rio  Icpiebo. 

A  terra  e  deserta  pelo  eaminlio  que  levamos;  ao 
cabo  de  um  dia  de  marcila  avistamos  a  agua  do  rio 
Cucio,  que  para  o  meio  dia  deslisa  ligeiro. 

Nos  terrenos  pantanosos  que  o  marginam  gastamos 
as  for(;as  no  aturado  labor  de  obrigar  os  bois  a  traiis- 
pól-o,  pois  OS  miseros  animaes,  caminhando  pelos  pan- 
tanos,  atolavam-se  por  maneira  que  apenas  a  cabecja 
e  o  dorso  llies  ficavam  de  fora. 


0  Ho  Cuhango  279 

Ramos  de  arvorcs  e  até  os  proprios  troncos  laiKjados 
para  o  lamacjal,  tudo  era  insuificiente  para  tornal-o  via- 
vel;  <)8  pobres  cliefes  e  mais  pessoal  da  expèdi^ao,  of- 
fegaiites,  escorreudo  agiia,  aiiida  pelas  nove  lioras  da 
noite,  a  claridade  da  lua  qiie  parecia  carpil-os,  traba- 
lliavam  na  suspeiisao  dos  bois  e  seu  transporte  para 
a  marg-eni  opposta. 

Diiras  scenas  eram  essas. 

Do  Ciieio  para  o  nascente  continuam  as  matas  es- 
])essas,  intervalladas  por  valles  Mesnudados,  entre  as 
(piaes  })roseoniinos  a  tóa,  esperando  a  toda  a  bora  en- 
eontrar  agua;  baldado  enipeidio,  que  sempre  prepa- 
rou  unia  decejx^'ào! 

Pouco  a  pouco  o  trilbo  quasi  imperceptivel  cortou  ao 
sueste,  no  meio  de  urna  terra  cnjo  silencio  era  corno 
sepulcliral. 

A  gente,  desanimada,  segnia  emmudecida,  comò  se 
a  levassemos  para  o  cadafalso,  imprimindo  com  està 
disposÌ9ao  um  ar  estranliamente  tetrico  a  tudo  quanto 
nos  cercava. 

Emfim,  após  dois  dias  de  caminbar,  encontràmos  o 
leito  do  rio  Cuatir. 

Eis  algumas  Knlias  do  nosso  diario  a  proposito  d'esse 
facto. 

«Logo  ao  romper  do  dia  agitou-se  o  acampamento 
com  uma  desagradavel  noticia.  Somma,  rapaz  do  Nano, 
evadira-se  pebi  noite  com  armas  e  respectiva  baga- 
gem,  deixando-nos  perplexos  pela  sua  audacia,  e  im- 
pressionados  pelo  fim  que  o  aguardava,  isolado  em 
meio  d'estas  matas. 

E  o  medo  da  fonie  que  os  afugenta! 


280 


De  Angola  d  amira-costa 


0  frio,  que  ttni  crescido,  amca^a  os  nossos  com- 
panlieiroB  africanos  coni  doerHjas  do»  orgàos  respi- 
ratorios. 

Ciuco,  naturai  de  Uenguolla,  està  a  braijos  com  urna 
pneumonia  dupla,  de  que  uiìo  escapa  certamente. 


Pelaa  dez  lioras  topàmos  de  subito  com  agua,  onde 
todos  se  dessedentaram,  prosegtiindo  àvante  atravez 
das  terras  onduladas. 

Quando  pela  tarde,  extenuados  e  clieios  de  fadigas, 
jà  desesperavamos  de  novo  encontrar  bebìda,  aprouve 
à  Providencia  abeirar-nos  de  urna  vasta  planicie,  a 
meìo  da  qual  serpeia  um  rio  de  algunia  importancia. 
Era  o  Cuatir,  segundo  nos  disse  de  longe  um  negro  que 


0  Ho  Cubanyo  281 

veiu  espreitar-nos,  primeiro  vulto  humano,  de  quem 
dèmos  vista  depois  dos  ultimos  dias,  que  tao  attribu- 
lados  no  8  f or  ani. 

Antilopes  numerosos  vagueiavam,  entre  os  quaes 
vimos  gungas,  de  que  danios  o  desenho. 

Duas  niilhas  de  terra  alagadÌ9a  nos  separam  do  car- 
so d'este  tributario  do  Cubango. 

0  solo  nas  margens  e  bastante  variavel^  tornando- 
se,  à  medida  que  avan^àmos  para  o  sul,  de  mais  em 
mais  silicioso. 

Ao  norte  é  composto  de  tractos  argillosos,  mistura- 
dos  à  superficie  coni  fina  areia  branca,  sendo  o  subsolo 
constituido  por  uni  tufo  calcarifero  córado  pelo  oxido 
de  ferro,  vendo-se  apparecer  em  abundancia  em  todos 
OS  pantanos,  avermelliando-os  a  limonite,  cuja  base 
movedicja  os  transfornui  em  perigosos  atoleiros  capa- 
zes  de  abysmar  completamente  os  bois. 

Os  poucos  lialiitadorcs  dV»sta  terra  téeni  as  suas  cu- 
batas  a  nieio  do  curso  do  rio  sobre  estacarias,  consti- 
tuindo  verdadeiras  aldeias  lacustres,  defendidas  pelos 
loda^aes  que  as  cercani. 

De  longe  em  longe  v6em-se  cupulas  conicas  emer- 
gindo  do  meio  do  cannÌ90,  evidenciando  a  residencia 
do  liomeni. 

Parece  que  reiteradas  perseguiijoes,  quer  dos  man- 
bunda,  quer  da  gente  do  sul,  que  denominam  ma-ciias, 
OS  teem  levado  a  està  precaucjao,  tornando-os  por  isso 
em  extremo  suspeitosos. 

Infelizmente  para  nós,  logo  a  j usante  encontràmos 
um  bra9o,  que  d'elle  deriva,  chamado  moloUa,  onde 
quasi  todos  os  bois  de  subito  se  atolaram. 


282  De  Angola  d  contra-costa 

Xào  (?  fcicil  descrever  as  an}>['ustias  acini  experinieii- 
tadas,  iiem  convein  repetil-as  para  nao  causar  o  leitor. 

Calciile-as  (|iu*ni  (|uizer,  e  (luando  tenlia  esbo(;ado 
eni  niente  o  ([nadro,  enfeite-o  coni  a  fadi<»a  do  dia,  o 
frio  da  noite,  e  cnnnoldnr(*-o  por  fini  coni  a  fonie,  jiois 
a  està  data  liaviani-se  acaliado  os  inantinientos. 

Apenas  conse;»'ninios  ver-nos  para  aleni  da  niololla, 
espraiando  a  vista  jiela  lonf>*a  bacia  do  Cnatir,  litteral- 
niente  coberta  ])elo  Arumb)  jfhrdijìiiita^,  jio/A'nio-nos  <le 
novo  a  caniinbo. 

Do  meio  do  cannical  sonios  vifiia<los  pelos  naturaes, 
(pie  o  binocnlo  nos  deixa  descortinar  envolvidos  no  ca- 
pini.  X'nni  jionto  ou  oiitro  snspende-se,  clama-se,  ace- 
na-se,  inoveni-se  iins  viiltos  ao  redor  das  casas;  n'nni 
instante  sn})ponios  (pie  al}»nein  veni;  triste  anceio,  des- 
aj)})areceraiii,  caiii  tudo  eni  Inj^iibre  silencio. 

As  iinicas  plaiita(;(Vs  (pie  existeni  sào  de  Penisetum, 
inassanjro,  e  essas,  einl)ora  pelo  direito  da  tome  nos 
acliasseinos  dispostos  a  pillial-as,  se  porventnra  eais- 
seni  ein  nossa  trilliada,  estao  long-e  e  feitas  nas  illias. 

Supjdicio  de  Tantalo  este  qiie  nos  aconipanlioii  atcj 
ao  limite  meridicmal  da  nossa  exciirsào,  onde  emfìm 
lini  cliefe  mais  Imniano  nos  soccorren,  indicando  o  ca- 
niinlio  (pie  para  traz  fieava. 

Tomando  ao  norte,  desalentados  por  tanta  contra- 
riedade,  abandonanios  a  id(ia  de  attinj^ir  o  Ciibango, 
e  prevendo  qiie  ([iianto  mais  para  o  snl,  mais  se  aggra- 
varia  a  nossa  sitiiac^'ào,  deixamo-nos  giiiar  ])elo  regiilo, 
(pie  ao  cabo  de  dois  dias  nos  mostrou  uni  sitio  onde 
as  canoas  poderam  vogar,  embora  coni  difficiihbide, 
pois  ali  tambem  os  pantanos  se  aeoitavam  trai^oeiros. 


0  rio  Cuhamjo  283 

Iniagiiie-se  a  alejrrici  quasi  ìnfaiitil  qne  de  nós  se 
a])0(ler(>u,  ao  vermo-noa  livres  d'esses  labyrinthos  fei- 
tos  ])ara  enil)ranquecer  os  mais  negros  cal)ellos. 

Era  conio  se  tivessemos  sido  laiKjados  por  largo 
tempo  em  negra  ])ris{ìo,  e,  eneontrando  de  subito  a 
porta  aberta,  nos  escapassenios. 

Tao  poueo  l)asta  [)ara  contentar  uni  espirito  op])ri- 
niido!  Apenas  acanipados  celebrou-se  gentilic«aniente 
a  ventura  do  dia,  abatendo  uni  boi. 

Nao  terininou,  jiorcni,  seni  registarnios  um  funebre 
aconteciniento,  e  liavendo  ordcnado  a  uns  rapazes  que 
fossem  CUI  procura  do  infeliz  (Miico,  (pie  para  traz  fi- 
cara,  voltarain  trazendo-nos  a  noticia  de  que  era  ja 
cadaveri 

Para  nos  eiitristecer  tainbeni,  indo  os  bois  a  diminuir 
ra])idaniente,  a  negra  imageni  (bt  fonie  come^ava  a  er- 
guer-se  ante  nós,  facto  gravissimo,  (jiie  nao  sabiamos 
conio  remediar,  tao  pol)res  eram  as  terras  (pie  iamos 
atravessando.  O  triste  seciilo  (pie  nos  acompaiibilra 
havia-nos  vendido  unicamente  um  y<^/yy/6a//a  (cesta)  de 
feijào,  e  esse  miserrimo  recurso,  dividido  por  cento 
e  tantos  esfaimados,  desapparecéra  n'um  momento;  o 
nosso  desanimo  ain(bi  augmentava  ao  presencearmos 
a  aridez  do  solo  (pie  pela  sua  natureza  esteril  pouco 
nos  poderia  fornecer.  As  mesnias  plaiita(;()es  do  Peni- 
spfum  eram  racliiti(*as  iiV*ste  cluìo  ingrato  de  que  ja 
fallamos. 

Registemos  (bias  consi(lera9(les  aiiubi. 

Todos  OS  factos  aio  A  jiresente  data  nos  arreigam 
a  convic(^ao,  de  resto  lioje  geralmente  acceita,  de  que 
a  Africa  centrai  iiunca  soffreu  urna  d'essas  completa» 


284  De  Angola  d  controrcosta 

submersoes  por  que  passaram  os  grandes  contineiites, 
corno  a  Europa,  Asia  e  America,  nas  epoclias  secun- 
daria,  terciaria  e  mesmo  recente. 

E,  a  nosso  ver,  o  mais  velho  de  todos  elles,  haven- 
do-se  durante  os  periodos  geologicos  conservado  tal- 
vez  erguido,  todo  ou  pelo  menos  parte,  em  meio  das 
ondas  revoltas  dos  mares  que  o  circumdam. 

Sempre  que  tivemos  ensejo  d'està  banda,  jà  em  ravi- 
nas  profundas,  jà  em  cortes  abruptos,  de  ver  a  desco- 
berto  terrenos  inferiores,  remexemos  e  escavàmos  no 
sentido  de  encontrar  algum  calcareo  com  fosseis  ma- 
rinlios,  que  provasse  que  està  terra,  comò  em  outros 
pontos,  estiverà  em  condi96es  de  submersao,  e  nem 
uma  so  vez  podémos  obter  prova  que  nos  servisse. 

Para  àquem  da  barreira  do  granito^  e  entre  as  ro- 
chas  igneas,  do  gneiss  e  outras  metamorpliicas,  temos 
encontrado  forma^oes  schistosas,  ondula(,'6es  de  gr(?s 
mais  ou  menos  silicios,  tractos  argillosos,  em  meio  dos 
quaes  se  acliam  massas  concrecionadas  de  hydroxido 
de  ferro,  rochas  quartzosas,  etc,  todas  em  partes 
cobertas  pelo  desaggrego  devido  às  condÌ96es  atmos- 
pliericas  ordinarias. 

Mais  para  dentro,  nas  grandes  depressoes,  comò 
n'aquella  em  que  ora  nos  achàmos  na  bacia  do  Zam- 
beze,  o  solo,  ou  mais  propriamente  o  subsolo,  que  é 
formado  por  um  tufo  calcarifero  de  mistura  com  de- 
positos  ferruginosos,  e  todo  recoberto  de  areias,  accu- 
mulaijao  consequente  dos  alagamentos  prolongados. 


1  Està  exprc8sao  nSo  é  correcta,  pois  entre  a  rocha  fundamental,  o 
gneiss,  é  onde  se  ve  às  vezcs  aquelle  affloreando  o  terreno. 


0  rio  Cubango  285 

A  antiga  e  especial  condicjao  em  que  se  tem  conser- 
vado  a  superficie  do  continente,  apenas  actuada  por 
influencias  aereas  e  lacustre»,  é  a  causa  d'essa  estra- 
nheza  de  quasi  todos  os  viajantes,  pelo  caracter  de 
uniformidade  que  em  toda  a  parte  Ihe  observam. 

A  falta  frequente  de  rochas  eruptivas  e  de  massas 
vulcanicas,  companheiras  das  grandes  convulsoes  sub- 
terraneas,  póde  até  certo  ponto  corroborar  os  factos  in- 
dicados,  que  fazem  da  Africa  um  continente  de  aspecto 
singular,  pela  immutabilidade  das  suas  condÌ9oes  ter- 
restres  atravez  de  um  longo  periodo,  a  par  das  mu- 
dan^as  operadas  em  todas  as  outras  partes  do  mundo. 

D'este  concurso  de  circumstancias  de  permanente 
caracter  resalta  logo  a  idea  de  que,  admittido  o  tra- 
ballio regular  das  aguas  atravez  da  successao  dos 
seculos,  nas  vertentes  das  linlias  orograpliicas,  occi- 
dentaes  e  orientaes,  quer  para  o  oceano,  quer  para  a 
depressilo  centrai,  devem  hoje  ser  mais  fundos  os  leitos 
dos  rios,  e  portanto  em  igualdade  de  tempo  e  chuva, 
mais  rapida  a  drenagem  para  aquelle,  ao  passo  que 
identico  facto  dando-se  para  està,  os  desaggregos  na 
bacia  centrai  elevam-se  de  nivel,  e  portanto  tornam 
maior  o  desnivelamento,  que  abreviarà  com  sua  parte 
a  mencionada  drenagem. 

D'aqui  o  fatai  saneamento  do  sertào  pelo  esgoto 
rapido  das  aguas,  que  para  diante  deve  talvez  come- 
9ar  a  manifestar-se  em  zonas  que  se  esterilisem,  a  que 
nao  faltarà  o  concurso  do  homem  com  a  derrubada 
das  matas,  diminuindo  assim  as  causas  da  humidade. 

E  se  considerarmos  ainda  que  a  eleva^ao  de  nivel 
na  depressilo  centrai  é  feita  à  custa  do  desaggrego 


286  De  Angola  d  cantra-costa 

(le  rochas,  que  por  sua  especial  iiatureza  produzeni  eni 
alto  orali  a  areia,  que  està  parte  do  anno  submersa,  po- 
derenios  tanibeni  assentar  que  uas  profundezas  d'este 
valle  é  mais  difficil  a  vida  para  o  homem,  em  coiise- 
(jnencia  da  exigua  cultura,  pois  a  semente  fermenta  e 
perde-se  por  afo<ì^ada  durante  niezes,  oii  pouco  produz, 
visto  crear  raiz  em  terra  seni  a  precisa  substancia,  e 
comprehender  a  rasào  das  nossas  anteriores  phrases, 
beni  conio  o  receio  de  })ara  diante  e  longe  continuareni 
as  cousas  por  maneira  identica,  se  mìo  agoravadas. 

Assim,  pois,  a  idea  de  ter  cortado  })ara  leste,  a  fini 
de  evitar  os  alagamentos  da  confluencia  do  Cuatir,  se 
por  uni  lado  nos  liavia  lan(;ado  nas  suas  pantanosas 
margens,  inliibindo-nos  de  proseguir,  por  outro  sai- 
vara  a  expedi(;ào  de  gravissimos  embara(,*os,  se  acaso 
ella,  prolongando  pelo  oeste  o  Cubango  (conio  ainda 
pensàmos  primeiro),  o  tivesse  transposto  no  Cuangar, 
proseguindo  diagonalmente  para  Libonta. 

E  portanto  a  parte  do  curso  do  Cubango  que  medeia 
entre  os  Macliaca  e  o  Cuangar,  continuou  inexplorada, 
porqiie  tortuoso  nos  foi  desistir  d'essa  empreza  no  inte- 
resse de  salvar  as  nossas  vidas. 

E  conio  Anderson  no  sul,  nós  diremos  tainbem: 

Uma  retirada  immediata  tornava-se  inn)erativa;  mìo 
foi  seni  lucta  seria  entre  o  boni  senso  e  o  desejo  de 
ser  iiteis  (pie  nós  tomàmos  està  resohu^'ao,  e  obede- 
cendo  aos  inn)ulsos  da  consciencia,  dirigimos  uni  olliar 
de  despedida  })ara  esse  trillio  interessante  que  nos  le- 
varia  de  certo  a  deterniina(^*ào  de  iim  problema  valioso. 

Por  tal  modo  concluiu  a  nossa  memoravel  visita  ao 
Cubango. 


CAPITULO  X 


A  CAMINHO  DO  ZAMBEZE 


A 8  pootieas  imprcssòcs  da  chc^ada  e  a  conscquonto  do8Ìlhisao — Sof- 
frimciito8  (jiie  nos  a«xiiardaiii  —  Aiii<ia  e»  Cuatir  o  a  perda  de  lun  homoin 
—  O  rio  Luatiita  é  comò  o  C'uatir^ — Libatas  iniscraveÌB  e  a  BÌtiia^'ilo  dos 
noHsos — A  caravana  torna-so  n'unì  hando  de  salteadorcs — Visita  do  grupo 
siiif^ular — A  iiiulhor  sciba  e  a  jx'iiuria  do  vivoros — Considoravòc»  e  in- 
genuidado  Rom  igual — A  partida  o  a  fugjf  do  dois  liouìons — ()  Lonp^a 
e  a  fuga  do  lun  outro  —  Coiitiiìuani  o  dosorto  o  as  zona»  areosas — A» 
nnipandas  o  a  altitudo — Pouoa  oa^a  o  o  rio  M'palina — Uni  acanipa- 
Hiouto  oannibaloHOo— ()?<  oa^adoros  ih'  ratos — Subsisto  a  fouio — Mupoi, 
o  o8poso  infoliz — Curiot^idado  doa  man-))un(bi — Os  bois-oavallos  o  as 
sua»  vaiitagous  vm  viagoni — Effoitos  de  niiragoni  o  uni  animai  comò  o  gnu 
— O  Cuito  e  Kua  noticia. 


Vìajando  Africa  a  dentro,  pormeio  tlos  desertoB  ser- 
toes  d'aquellt;  continente,  deixando  após  de  si,  sepa- 
rados  por  centenas  de  millias,  os  bulifjosos  centros  da 
civilisaijào,  o  explorador  mal  suspeita,  a  principio,  os 
soffrimentos  que  o  esperam. 

Prepara-lhe  a  natureza,  por  toda  a  parte,  é  verdade, 
n'uma  vegetatjào  esuberante,  as  mais  pittorescas  pai- 
zagens;  mostra-lhe  no»  extensos  azues  da  distancia 
ffolpes  de  vista  soberbos,  que  o  cobalto  nSo  imitaria; 
dardeja  com  os  raios  de  um  glorioso  sol  quadros  in- 
imitaveis  de  colorido  e  oiro,  que  pincel  algum  seria 
capaz  de  reproduzir;  bafeja-o  emfim  pela  tarde  com 
aromaticas  e  tepidas  auras,  que  o  incitam  ao  repouso; 


290  De  Angola  d  contro-costa 

mas  quando  o  viajante,  dominado  por  toda  està  prodi- 
galidade,  ergile  os  ollios  ao  céii,  conio  para  agradecer 
tanianhos  favores,  ella,  qiie  ao  fiindo  de  cada  consolo 
esconde  iim  esjnnho,  seni  se  desniascarar,  desillude! 

O  sol,  esse  agente  inexliaurivel  de  todos  os  bens, 
torna-se  ali  o  principal  dos  niales  ;  coni  os  raios  escan- 
decentes,  qiie  tudo  fereni,  amea^a  de  morte  o  europeii, 
e,  robustecendo  a  vegetacjao  por  uma  seiva  exeessiva, 
que  constantemente  se  substitue,  cria  no  humus  orga- 
nisnios  que,  fermentando,  envenenam  a  pouco  e  pouco 
aqiielle  que  póde  resistir  a  primeira  lucta. 

As  aromaticas  iiragens  ra])ido  se  tornam  em  tempes- 
tades  medonhas,  e  os  agentes  meteorologicos,  juntos 
coni  a  malaria,  breve  extenuam  o  organismo  liumano. 

A  paizagem,  ao  principio  attraliente,  jà  nììo  prende 
a  atteiKjao  de  (iiiem  a  observa;  o  siiave  gosto  de  bem- 
estar  em  face  de  iim  miindo  sorridente  cedeii  a  iiiquie- 
ta(;ào  nervosa  de  uni  cerebro  escandecido;  a  vontade 
irrequieta  pousa  variavel  no  mais  singelo  facto:  qiier 
e  logo  liesita,  apraz-llie  a  incolierencia! 

A  par  d'isto  augmenta  a  secre(;ao  sudoral,  que  as 
influencias  depressivas  aggravam  de  mais  em  mais,  e 
o  elevado  calor  exige  conio  contrabalan<jo  a  sua  ac(;ao, 
que  se  traduz  por  vezes  em  permanente  fonie  e  em  es- 
tranilo activar  do  orgao  digestivo. 

Depois  OS  phenomenos  da  sede  e  da  fonie  exage- 
rada  desappurecem  gradualmente,  para  seguirem-se 
morosas  digestoes,  pregui(;a  de  intestino,  pouca  flui- 
dez  segregaticia,  constipai^ào  rebelde. 

Comecjam  a  perturbar-se  as  funccjoes  e  apparecem 
OS  primeiros  symptomas  da  febre,  que  o  tempo  torna 


A  caminho  do  Zambeze  291 

lenta  e  era  pouco  se  denuncia  pelo  augmento  de  vo- 
lume do  figado  ou  pelo  excesso  de  bilis. 

0  estado  oppresso  do  peito  accelera  a  respiracjao  do 
ar  niorno  e  rarefeito  pelo  calor,  a  fadiga  permanente 
convida  ao  descanso,  que  uni  aborrecimento  indefini- 
vel  conio  que  repulsa;  o  caracter  do  individuo  perver- 
te-se;  na  ancia  de  questionar  de  ludo  e  coni  todos,  a 
gente  desconliece-se,  &  menor  contrariedade  irrita-se; 
o  lioniem  emfiin  é  outro! 

pjstranlia-se,  quer  reprimir-se;  porém  uni  prurido 
nervoso,  uni  conio  que  vacuo  de  senso  inorai,  uni  in- 
([uieto  nial-estar  impelle-o;  deixa-se  dominar  pela  ira, 
encolerisa-se,  grita,  ainea(;a,  o  causalo  enifini  pros- 
tra-o,  cae,  arrcpeiide-se  e  adornicce! 

E  uni  iiieio  desmoralisador  onde  o  individuo  pouco 
a  pouco  se  desjic  da  soberania  dos  seus  mais  nobres 
sentimentos,  onde  a  doen<ja  pliysica  arrasta  e  desnor- 
teia  a  consciencia,  e,  calando  o  vibrar  das  mais  sensi- 
veis  tìbras  do  cora(,*jìo  liumano,  deixa  so  campo  para 
as  impulsoes  animaes  se  expandirem  seni  freio. 

O  seu  sonino,  a  principio  pesado  e  morbigeno,  en- 
trecorta-se  breve  d'esses  pesadelos  e  tremores  sempre 
coinj)anlieiros  da  perturbatilo  funccional;  o  suor  es- 
corre-llie  lentamente  do  tronco  fatigado,  e  pelos  labios 
resequidos  escapa  sibilante  o  ar  calido  da  respiracjao 
opprimida. 

Quando  desperta,  devoradora  sede  o  domina  e  um 
quebramento  geral  o  prostra;  quer  erguer-se,  càe,  a 
coniida  repugna-llie,  bebé,  amarga-llie! 

A  percep(;ao  dos  objectos  que  o  cercara  e  lenta;  mo- 
mentos  se  passam  antes  de  relacionar-^e  com  o  mundo 


292  De  Angola  d  contro-costa 

que  o  rodeia;  boceja,  senta-se,  apraz-lhe  e8preguÌ9ar- 
se;  o  pulso  é  lento  e  filiforme;  urna  vaga  oppressao 
epigastrica  o  agonia;  pesa-lhe  a  cabe9a,  apoiando-a 
no  punho  cerrado;  fica  abstracto. 

Eis  que  està  prestes  a  febre,  pouco  demorada  em 
manifestar-se,  so  esperando  singelo  desequilibrio  de 
temperatura  ou  o  primeiro  desgosto. 

E  se  por  acertadas  medidas  prophylacticas  o  infeliz 
consegue  evital-a,  e,  repetindo-as,  obsta  ao  desfecho 
final;  entao  dizemos-lhe  n^este  logar:  attente  nas  indi- 
cacfoes  hygienicas  que  Ihe  houverem  sido  fomecidas, 
e  evite  sobretudo  os  desgostos  profundos,  para  que  na 
repeti<;ào  dos  phenomenos  jà  enumerados  Ihe  nSo  suc- 
ceda aquillo  de  que  foram  victimas  Capello  e  Ivens; 
isto,  é,  andar  sob  a  influencia  do  receio  de  inopinada 
febre,  por  se  verem  a  bracjos  com  decepcjoes  crucis! 

E  bem  verdade  é  o  que  acabàmos  de  dizer. 

Poucas  vezes,  leitor,  terà  o  cliefe  de  urna  expe- 
di<;ào  soffrido  privacjoes  physicas  e  torturas  moraes, 
comò  aquellas  por  nós  experimentadas  durante  os  pri- 
meiros  mezes  que  vamos  descrevendo,  porque  tambem 
poucas  vezes  mais  estranilo  concurso  de  circumstan- 
cias  se  póde  reunir,  para  contrariar  quaesquer  desi- 
gnios. 

Fomes,  sédes,  desertos  alternavam-se  systematica- 
mente,  para  produzirem  o  seu  maximo  effeito  no  espi- 
rito da  desnorteada  caravana;  era  comò  se  muito  de 
proposito  as  cousas  se  houvessem  disposto  para  ani- 
quilar  todos  os  nossos  esforcfos.  Mas  prosigamos. 

Do  lado  esquerdo  corria  agora  lamacento  o  Cuatir, 
emquanto  nós,  deixando  o  velho  regulo,  cuja  cubifa 


A  caminho  do  Zambeze  293 

nao  conseguimos  excitar  a  firn  de  o  ter  por  guia,  nos 
dirigiamos  para  o  norte,  no  intuito  de  achar  o  trilho, 
que,  segundo  elle,  deslisava  a  leste. 

Pelas  duas  horas  entràmos  n'este,  e  proseguindo  por 
meio  de  terras  areosas  esse  dia  e  o  seguinte,  vienios 
alfim  às  margens  do  rio  Luatuta,  depois  de  nos  atolar- 
mos  um  cento  de  vezes  nos  riachos,  mollolas  e  varzeas 
alagadas  que  cobrem  aquella  regiao,  e  havermos  per- 
dido  um  rapaz  que  transportava  os  encerados,  facto 
que  breve  nos  la  por  as  cargas  à  mercé  das  chuvas. 

Aqui  esperavam-nos  iguaes  difficuldades,  e  se  ao 
apartarmo-nos  do  Cuatir  tinhamos  soltado  um  sus- 
piro  de  allivio,  ao  avistar  o  Luatuta  proferimos  tre- 
menda impreca9ao! 

Feito  à  imagem  e  simillian^a  do  antecedente,  de  que 
(3  tributario,  o  Luatuta  corre  n'um  valle,  que  em  outras 
circumstancias  poderiamos  descrever  ao  leitor  comò 
risonho;  largo,  coberto  de  gramineas,  mas  marginado 
por  uma  faclia  lodosa  de  1  millia,  em  que  nos  atas- 
càmos  até  à  cintura. 

0  lodo  silicioso,  avermelliado  superiormente  pelos 
depositos  da  limonite,  desloca-se  ao  menor  impulso,  e, 
cedendo  ao  mais  pequeno  peso,  conio  que  absorve  o 
que  n^elle  se  encrava!  Sob  as  indica<;oes  dos  indigenas 
conseguimos  alfim  transpol-o,  nao  sem  liaver  um  a 
um  atolado  todos  os  bois! 

Depois,  nas  libatas  miseraveis  do  meio  do  rio,  diziam 
nao  liaver  nada  para  comer! 

Imagine-se  um  bando  de  liomens  oppressos  pelo  ca- 
lor,  abatidos  pelo  cansa9o,  gemendo  semanas  e  mezes 
sob  a  carga  de  60  libras;  famintos,  vendo  nos  compa- 


294  De  Angola  d  contra-costa 

nlieiros  desanimados  a  prova  da  gravidade  dos  faetos 
que  08  assediavam,  e  nas  miserias  qiie  os  persegiiiam 
urna  conio  fatai  sentenza  de  morte;  eolloqueni-se  aqui 
em  pianura  ardente  onde  a  sede  os  devora,  aleni  n'unì 
lameiro  difficil  onde  cada  passo  e  objecto  de  Incta, 
obriguem-os  a  percorrer  d'este  modo  a  distancia  de 
15  milhas,  e  digam-nos  coni  que  coragem,  depois  de 
tudo  isto,  liaviamos  de  obrigal-os  a  arrastar  duas  du- 
zias  de  bois  immersos  no  lodo?! 

Antonio,  que  fora  em  niissào  a  aldeia  proxima,  voi- 
tou  pelas  seis  lioras  coni  os  saccos  vasios  e  a  ccmsola- 
dora  noticia  de  que  o  dono  da  libata  nao  era  lio- 
mem,  mas  sim  uma  muUier  de  provecta  idade! 

Acrescentou  ainda  que  no  dia  seguinte  receberia- 
mos  a  sua  visita,  pois  a  nobre  senliora-,  nada  tendo 
que  nos  desse,  neni  niesmo  vendesse,  estava  na  me- 
Ihor  disposi^ao  de  tudo  acc^iitar! 

A  caravana  tornàra-se  agora  n'unì  bando  de  saltea- 
dores,  e  pela  noite,  abaiando  pelo  escuro,  là  foram 
n'uma  razzia  roubar  quanto  encontrassem,  seni  qiie 
nós  tivessemos  a  coragem  de  os  impedir. 

Logo  ao  alvorecer  recebemos  a  visita  annunciada  ; 
eis  em  breves  palavras  o  quadro  que  d'ella  se  encontra 
em  nosso  diario: 

Socegados  à  porta  das  cubatas,  aguardavamos  o 
regresso  dos  nossos,  quando  deu  entrada  no  acam- 
pamento  uma  vellia  esguia,  rugosa  e  sordida,  seguida 
de  outra  creatura  cujo  sexo  nao  podémos  determinar, 
tao  anguloso,  reintrante,  antigeometrico  e  pouco  com- 
mum  era  o  seu  contorno,  de  tres  cavallieiros  liedion- 
dos  e  desdentados,  e  de  uma  entidade,  verdadeira  tou- 


A  caminho  do  Zamheze  295 

peira  hiimana,  pelo  feitio  e  pequenez  dos  ollios  impos- 
siveis  de  aperceber. 

Que  casal  esvaparia  da  arca,  para  oinfjinar  est  e  ga- 
laide  (jvujjoì  pensamos,  mirando  os  recemvindos,  e  so- 
bretiido  os  cabellos  da  velila,  que,  eseorreudo  gordura 
e  enfeitados  coni  canulas  de  porco  espinlio,  llie  davam 
o  aspecto  de  uni  ouri^o;  emquanto  no  pesco90  enima- 
grecido  uni  formidavel  kisto  sebaceo,  aneurisma  ou  o 
que  fosse,  se  niovia  a  merce  do  musculo  mais  proximo, 
atropellando  um  collar  de  contas  e  cliifres  de  antilope, 
e  OS  seios,  estirados  na  direc(;ao  dos  graves,  oseillavam 
pendentes  e  graciosos  em  busca  da  nornial! 

—  kSìÌo  ba-qua-tir,  disse  Antonio  fleugmaticamente, 
e  miseraveis  conio  nao  ha  outros. 

A  repellente  velila,  approximando-se  de  iiós,  acoco- 
rou-se . 

Uni  trapo  immundo,  conio  defeza  do  casto  pudor 
d'està  d'iva,  caia  por  diante  até  aos  nodosos  joellios, 
que,  cansados  de  supj)ortar  (ao  qiie  parecia)  tanta  sqr- 
didez,  estavam  dispostos  a  fugir  de  elitre  feinurs  e 
tibias  ! 

Encetada  a  invariavel  pasmaceira,  conservdmo-nos 
em  exliibicjao,  até  que  demasiadamente  enfastiados  ex- 
clamamos. 

— ^las  a  final  que  veiu  isto  cA  fazer? 

— Neni  mais  iiem  nienos,  retorquiu  o  interprete,  do 
que  ver  os  brancos,  receber  d'elles  uni  brinde  e  apre- 
sentar uni  guia  (apontando  para  o  tmipeira),  ao  passo 
que  aquelle  senlior  veni  propor  certo  negocio,  termi- 
nou  elle,  indicando  um  dos  vellios  desdentados,  que 
tiiilia  na  inao  uina  gallinlia. 


296  De  Angola  d  contro-costa 

Trazer-nos  o  toupeira  para  guia,  um  individuo  seni 
olhos  ou  pelo  nieno8  com  elles  invisiveis,  era  um  cu- 
mulo, era  a  mais  atrevida  das  zombarias! 

— E  de  corner?  tomàmos. 

— Nem  nada,  respondeu  elle  aìnda. 

— Està  terra  nào  tem  bois,  nem  porcos,  nem  milho, 
nem  mandioca,  nem.  .  .  cousa  alguma,  acrescentou  a 
illustre  dama;  e  à  medida  que  isto  dizia,  cruzava  os 
bracjos  sobre  o  peito,  batendo  palmadas  nos  hombros, 
perante  as  nossas  pessoas  pei-plejxas! 

— E  ella  o  que  faz,  perguntàmos  espantados;  corno 
vive  ? 

— E  viuva,  responde  zombeteiramente  o  interprete! 

— Nào  e  isso  que  se  deseja  saber,  dissemos;  o  que 
come  para  subsistir,  é  a  pergunta. 

— Ab!  raizes,  additou  elle  com  ar  mysterioso! 

Enviuvàra,  aborrecia  os  liomens,  gostava  do  fogo, 
tendo  por  alimento  raizes  ;  taes  eram  as  qualidades  e 
afFeÌ96es  d'està  triste  creatura,  segundo  as  informa- 
9oes  obtidas. 

E  quando,  ao  olliar  attentos  para  tao  infeliz  arre- 
medo  da  humana  especie,  comecjàmos  a  reflectir  fran- 
camente, sentimo-nos  amesquinhados  e  rebatidos  ao 
nivel  da  animalidade. 

A  final  era  um  ente  da  nossa  especie,  uma  creatura 
similhante  a  nós,  cujos  dotes  physicos  nos  podiam  ter 
pertencido,  se  acaso  a  natureza  se  bouvesse  lembrado 
de  atirar  para  a  Africa,  em  vez  de  por  na  Europa, 
OS  nossos  respeitaveis  progenitores  ! 

Dèmos  gracjas  à  Providencia,  leitor,  porque  a  posse 
de  um  tal  envolucro  em  vida,  seria  para  o  espirito  edu- 


A  canwifio  do  Zambeze 


297 


cado  Oli,  a  imposÌ9ao  do  suicidio,  ou  a  fatalìdade  de 
urna  reclusSo  perpetua! 

E  para  desopilar-nos  d'està  deprìmente  obsessào 
mental,  liouvemos  por  mellior  apenaa  pensar  na  velha 
Europa,  e  buscando  aquelks  cujos  fins  eram  na  terra 
08  mesmos,  aprouve-nos  trazel-as  dos  polos  oppostos, 
e  juxtapo]-as  em  nossa  escaldada  ìmagìna^So. 


Era  urna  d'essas  jovens  graciosas  e  bellas,  cnjos 
ollios  coruscantes  zombam  da  castidade,  ao  passo  que 
o  alabastrino  collo,  de  loiyas  niadeixas  inundado,  Ra- 
pliael  e  Angelo,  pincel  e  cìnzeÌB  jamais  reproduziram; 
bóca  que  diz  enigmas,  fórmas  que  recordam  myate- 


2i)8  De  Angola  d  contraH:osta 

rios  e  accendem  febricitantes  arripios;  pé  ligeiro  conio 
a  fìmbria  (jue  o  encobre,  mais  de  geito  para  aereo 
caminho,  de  que  para  pisar  a  terrena  superficie:  mii- 
Iher  magica,  scentelha  divinai,  que  so  onsaria  approxi- 
mar-se  de  nos  para  nos  tocar  no  espirito  coni  o  rocio 
dos  céiis,  e  que  nós  mentahnente  punliamos  eni  con- 
fronto coni  o  vulto  tetrico  da  nossa  interlocutora!  Coni- 
parae! 

Gloria  in  cxcelsis,  et  in  terram  pax  hominibus!  0 
que  nos  tinliamos  era  fonie! 

Yj  a  final  acrescentiimos: 

—  0  que  deseja  aquelle  senlior  que  traz  a  gallinlia? 
— Este  cavallieii'o  quer  fazer  negocio,  retorquiu  q 

interprete,  pois  e  ca^ador,  e  deseja  possuir  uni  pol- 
vorinlio. 

— Nao  temos  polvorinlios  para  vender,  foi  a  res- 
})osta;  e  famos  a  levantar  a  sessao,  quando  o  velilo, 
adiantando-se,  insistiu  : 

— E  falso,  téem  aqni  niuitos! 

—  Aonde?  volvemos  nos. 

-^— Ali,  disse  elle,  apontando  para  as  cabe^as  dos 
bois. 

— E  entao? 

— E  entao,  arranquem  o  cliifre  de  uni  boi,  que  eu 
don  por  elle  està  galHnlia! 

Parallelamente  ao  Luatuta,  e  a  12  millias  de  distan- 
cia,  corre  o  rio  Lunga,  o  mais  importante  affluente  do 
Cuito,  cujo  curso  veloz  desliza  por  entre  terrenos  al- 
cantilados  e  pittorescos,  a  que  nao  faltam  todavia  as 
margens  pantanosas,  e  para  onde  nos  dirigdinos  logo 
ao  alvorecer. 


A  caminho  do  Zamheze  299 

i\Ial  o  dia  assoniAra,  e  o  radiante  sol,  ergiiendo-se, 
delirava  os  encimados  ramos  da  floresta,  que  resoou 
aos  iiossos  ouvidos,  despertaiido-iios,  o  gerito:  «Fiigi- 
raiu  mais  dois  liomens!  Urge  diminuir  as  cargas». 

Queimando  meio  quartel  de  uma  das  canoas,  e  lan- 
ciando ao  rio  uni  cunliete  inteiro  de  Siiider,  assini  nos  ' 
fumos  alliviando,  e  pela  tarde  ao  aeampar  junto  do 
Longa,  retumbou  de  novo  a  exclama^ao:  «Mais  uni 
lioniem  fu"iu  ein  via<>eni!)) 

Era  estupendo  conio  em  piena  Africa  centrai,  tao 
longe  de  sua  terra,  estes  miseraveis  abandonavam  o 
campo,  e,  impellidos  pela  fonie,  ìain  buscar  talvez  a 
escravidao  elitre  estranlios. 

A  terra  e  agora  deserta,  e  uma  libata  encontrada 
d'aleni  a  beira  rio,  fora  seni  duvida,  pela  desordem  em 
que  estava,  assaltada  pelos  man-bunda,  em  alguma 
das  siias  guerras. 

Faltam-nos  informa^òes  acerca  dos  seiis  habitantes, 
porcine  andamos  sós,  mas  e  de  crer  que  sejani  milito 
similliantes  aos  do  Luatuta,  gente  misera,  so  conipa- 
ravel  ao  esteril  e  arenoso  torrao  onde  viveni,  cujas  se- 
menteiras  apenas  se  fazem  nos  liiiios  do  rio. 

Pouco  ha  a  dizer  da  natureza  geologica  do  terreno, 
podendo  apenas  affirmar-se  que  a  superficie  (5  coberta 
de  areia,  e  o  subsolo  constituido  por  gres  silicioso  que 
naturalmente  a  origina. 

Vanios  caminliando  n'uma  altitude  tal,  que  é  inte- 
ressante notar  as  variantes  da  vegeta(;ao.  Assim,  na 
linlia  divisoria  do  Cubango-Cuito,  aj)enas  deixàmos  a 
bacia  do  primeiro,  viiiios  as  verdejantes  mupandas, 
que  tanto  alegram  a  vista,  desapparecendo  estas  logo 


300  De  Angola  d  contror^osta 

que  se  fez  a  descida  para  a  segunda,  ficando  em  seu 
logar  08  tortuoso»  n^jangòs  e  mucaratis. 

Seguindo  pelas  terras  àreosas  e  desertas  que  nos 
defrontavam,  ora  em  matas  lavradas  pelas  ultimas 
queimas,  ora  em  planicies  nuas  e  despidas,  levando 
o  cora<;ao  denegrido  corno  ellas,  là  fomos  sobresalta- 
dos,  ora  pela  fome,  ora  pelo  receio  das  desercjoes. 

Era  urna  iievrose,  urna  verdadeira  loiiciira  a  idea 
de  fugir,  e  apenas  qualquer  se  lembrava  de  tal,  logo 
dois  e  tres  o  imitavam,  nào  se  recordando  que  por  estas 
matas,  sem  norte  nem  bussola,  nenhum  d'elles,  conio 
nós,  saberia  aonde  dirigir-se,  e  succumbiria  for908a- 
mente  à  sua  audacia. 

Depois,  muito  ao  contrario  do  que  ao  diante  succe- 
deu  nas  florestas  do  Luapula,  olliavam-nos  corno  igno- 
rantes,  liomens  desaffeitos  ao  mato,  nao  acreditando 
que  lamos  de  rumo  para  o  Liambae,  onde  llies  asse- 
guravamos  que  se  encontraria  mantimento,  e  so  con- 
vencidos  de  que  os  impelliamos  a  uma  perda  certa. 

A  cacja  encontrada  nos  campos  é  pouca,  sendo  nota- 
vel  tambem  a  ausencia  de  cacja  do  ar,  talvez  devida  à 
falta  de  arimos,  ou  a  outra  circumstancia  por  nós  des- 
conhecida. 

Ao  fundo  de  uma  encosta  acampàmos  ao  anoitecer 
na  margem  do  M'palina,  aflfluente  do  Cuito. 

Ao  longe  viam-se  as  cubatas  de  uma  antiga  aldeia 
agora  deserta,  e  emquanto  abatidos  consideravamos  a 
nossa  misera  situa9ao,  a  bracjos  coni  a  fome  desde  o 
Cubango,  à  luz  das  fogueiras  esfolava-se  um  boi,  que 
mandaramos  matar  para  distribuir  pelos  estomagos  o 
conveniente  consolo,  desannuviando  sombrios  rostos. 


A  caminho  do  Zambeze  301 

Durante  a  noite  estalaram  permanentemente  os  os- 
80S  sob  o  pesado  ferro  dos  machados,  emquanto  a  com- 
passo as  maxillas  rangiam,  triturando  nervosas  os  en- 
durecidos  musculos. 

O  aspecto  do  acampamento,  a  ferocidade  dos  rostos, 
a  ancia  na  ingestào  e  a  magreza  dos  extenuados  corpos 
faziam  lembrar  ao  observador  uma  scena  de  campo 
cannibalesco,  onde  avido  e  suspeitoso  o  bomem  devo- 
rasse  o  seu  similhante! 

Nós  mesmo  nao  podiamos  eximir-nos  a  um  precìpì- 
tado  agarrar  do  alimento  que  nos  apresentavam,  e  ao 
ver  exsudando  sangue  a  carne  assada  nas  brazas,  que 
o  cozinbeiro  nos  enviava,  sentiamos  vontade  de  nos 
arrojarmos  a  ella,  devorando-a  por  inteiro. 

E  se  ao  acaso  pensavamos  no  longo  trajecto  que  jà 
fa  feito,  no  meio  da  estranha  escassez  de  recursos,  e 
consideravamos  que  os  bois  tinliam  sido  a  nossa  sal- 
va9ao,  seni  os  quaes  jà  liaveriamos  todos  perecido 
miseravelmente,  nao  podiamos  deixar  de  pensar  que 
ao  compràl-os  na  costa,  a  Providencia  velava  por  nós. 

Assim  caminliando  fomos  ao  longo  do  rio,  ora  em 
varzeas,  ora  pelas  matas  que  o  orlam  de  espa9o  a 
espa90,  sobresaltados  com  o  apparecimento  de  habi- 
tacjoes,  que  depois  se  reconbeciam  desertas,  até  que 
pelas  onze  lioras  suspendemos. 

Achavamo-nos  à  sombra  de  uma  arvore,  descan- 
sando das  fadigas  da  marcha,  e  fazendo  planos  com 
relacjao  ao  nosso  destino  e  ao  caminho  a  seguir,  em- 
quanto OS  bois  pastavam  tranquillos,  esse  recurso  que 
dia  a  dia  minguava,  quando  de  repente  fomos  sur- 
prehendidos  pelos  acenos  de  muitos  dos  nossos. 


302  De  Angola  d  contror-costa 

Convictos  de  quo  alji[iinia  colisa  importante  succede- 
rà, er{»*iienio-nos,  dej)aran(lo  logo  coni  dois  individnos, 
que  pela  sua  niidez  e  comj)li(*ada  cabelleira  differiani 
da  j^ente  que  nos  aconipanhava. 

Erani  man-bunda,  ca(,*adores  de  ratos,  de  cujos  ani- 
niaes  traziani  unia  entìada  de  trinta  e  tantos. 

Inforniados  por  elles  de  (pie  proximo  liavia  libata» 
e  arinios,  resolveraos  acampar  ali,  e  coniprando-lhes 
OS  ratos,  que  os  nossos  niiravani  soffreg-os,  enviàmos 
OS  dois  luan-bunda  ao  rejifulo,  coni  o  con  vite  de  nos 
visitar  e  trazer  inaiitiinentos. 

Até  ao  cair  da  noite  conseguiiiios  alcan^ar  trinta 
espigas  de  niillio  e  cpiarenta  raizes  de  inandioca,  arti- 
gos  (pie  s(')  reproduzindo  a  scena  niilagrosa  da  iiinlti- 
})lica(,»ao,  operada  pelo  Redeniptor,  poderiain  aprovei- 
tar  a  caravana. 

No  eintanto,  ratos  a  uns,  inillio  e  inandioca  a  outros, 
là  se  conseguiu  uni  relativo  contentamento,  adorine- 
cendo  todos  confiados  iia  fartura  do  dia  seguinte. 

O  typo  negro  d'atpii  e  sympatliico,  intelligente  e 
beni  apessoado. 

Apresentàmos  ao  leitor  uni  specimen,  o  (piai,  me- 
llior  (pie  descrip^oes,  llie  darà  idea  d'elles. 

Mupei,  o  chete  de  cozinlia,  (pie  na  costa,  obtida  a 
necessaria  licenza,  se  eiila(;àra  matrimonialmente  coni 
lima  das  graciosas  beldades  viiidas  de  Novo  Redondo, 
andava  ag^^ra  desgostoso,  por  modo  que  esquecia  às 
vezes  o  exercicio  do  mester,  coni  grave  prejuizo  dos 
nossos  estomagos.  Pela  noite  fizera  grande  barullio, 
dando-nos  parte  das  suas  suspeitas.  A  esposa,  contra 
toda  a  espectativa,  liavendo  adormecido  a  seu  lado, 


A  caminho  do  Zamheze  303 

acorddra  pela  manha  nos  bra^os  de  iim  outro,  plieno- 
meiio  estranilo  para  que  elle  no  prhneiro  momento 
nao  póde  achar  explica^ao  acceitavel!  Mais  tarde, 
após  prolongada  niedita(;ao,  tradnziu-se-llie  o  soffrer 
em  grave  explosao  de  despeito,  a  que  se  succederam 
crneis  amea9as  de  matar  a  culpada! 

Coni  grande  espanto  iiosso,  poréni,  dez  lioras  bas- 
tarain  para  tudo  liarnionisar;  pela  tarde,  junto  do 
fogo,  OS  dois  conversavam  tranquillamente! 

O  amor  é  conio  esse  fabuloso  passaro,  de  cujo  nome 
taiitas  companliias  de  seguro  se  tee;n  apropriado;  ape- 
nas  reduzido  a  cinzas,  renasce  bello  conio  d'antes! 

Superfluo  sei-ci  aqui  acrescentar  (jue  todo  o  dia  se- 
guinte  se  esperou  em  vào  por  mantimentos,  e  que  de- 
pois da  visita  de  Muene  Cuando,  liavendo  comprado 
tanto  conio  na  vespera,  partimos  apenas  coni  dois  com- 
panlieiros  para  indicarem  a  trilliada. 

Yamos  no  prolongamento  do  rio  M'palina,  procu- 
rando elitre  as  cliatas  canipinas  o  caminho  a  seguir,  e 
scudo  em  cada  libata  objecto  da  indigena  curiosidade. 

Os  man-bunda  sao  assas  curiosos  e  ingenuos.  Ulti- 
mamente, pela  tarde  e  iias  lioras  do  ocio,  tenios  des- 
pendido  o  iiosso  teiii])o  em  notar  os  seus  actos  e  as 
suas  conversas,  conio  distrac(;ao  as  fadigas  do  dia. 

Assilli,  liontem,  5  de  agosto,  cliegàmos  ao  acanipa- 
iiiento  de  Muene  Cuando  aiites  do  iiieio  dia,  esbafo- 
ridos  e  correndo  suor.  Despindo-nos  quasi  totalmente, 
pozemos  o  instrumento  em  estacjao,  e  tomando  uiiia 
altura  meridiana,  sentàmo-nos  d  porta  da  cubata,  a 
fini  de  termos  o  scientifico  lenitivo  de  determinar  o 
parallelo  em  que  estavamos. 


304  De  Angola  d  contro-costa 

Perante  non  agachavam-se  em  grupo  umas  velha.s 
damas,  a  quem  uni  cavalheiro  acocorado  explicava 
todos  08  nossos  actos. 

Uni  dos  casos  quo  mais  as  interessava,  conforme 
parece,  coiisistia  em  saber  se  o  nosso  corpo  era  branco 
conio  a  cara,  e  scudo  impossivel  resolver-se  isto  seni 
conveniente  exhibiijao,  o  iiiesmo  siijeito  pediu-nos  por 
acenos  qiie  puxassemos  a  caniìsa,  a  firn  de  coiivencer 
aquellas  senlioras  do  (pie  debalde  Ihes  afian9ava. 

Feito  isto,  deixàmos  uni  quadril  a  descoberto,  facto 
(jue  causou  verdadeiro  assombro,  se  nào  receio  pouco 
lisonjeiro  para  o  exemplar. 

Kao  se  restringili  ainda  assim  a  curiosidade  femi- 
nil,  e  areugando  coni  o  interlocutor,  pretendiam,  ao 
que  suppomos,  saber  mais  algunia  cousa! 

Inquirindo-o,  pois,  disse-nos  que  ellas  desejavam 
saber  a  rasao  de  sermos  brancos;  respondendo-lhe  o 
cavalheiro,  muito  atiladamente,  «porque  nfio  eramos 
pretos»,  argumento  que,  por  inacceitavel,  foi  exposto 
da  seguinte  estranila  maneira,  para  se  tornar  mais 
compreliensivel. 

«Os  liomens  sao  brancos  por  fora,  porque  sào  pretos 
por  dentro».  E,  iiao  scudo  facil  verificar  està  circum- 
stancia,  ficoii  tudo  explicado  a  contento! 

Os  guias  que  Miiene  Cuando  iios  forneceu  levavani- 
iios  a  caminlio,  sempre  com  pouco  de  comer,  deixan- 
do-nos  convencidos  de  que,  apesar  das  infonna^oes  dos 
naturaes,  so  encontrarianios  niantimento  no  Zambeze. 

Jà  nao  baixa^  o  tliermometro  a  zero,  consentindo 
que  coniecemos  cedo  as  jornadas,  as  quaes  d'este  modo 
se  anipliam  sensivelmente. 


A  caminko  do  Zambeze 


305, 


O  emprego  dos  bois-cavalloa  é  o  mais  precioso  re- 
curso  que  se  conhece  no  mato,  sendo  diffieilìmo  de 
outra  fórma  poder  resistir  às  nossas  marclias  for<;a- 
daa,  as  quaes  ainda  assim,  feitas  n'estas  circmnstan- 
cias  relativamente  favoraveis,  fatigam  muito,  poi»  so 
do  Cnnene  até  aquì  andàmos  cerca  de  500  mìlhas. 


Pela  manhii,  e  depois  de  nos  habìtuannos  ao  choìto 
especial  do  boi  e  ao  movimento  da  pelle  que  faz  com 
que  o  apparelho  role  com  o  cavalleiro,  lembrando  os 
balan<;o8  de  um  navio  em  mar  suavemeiite  ondulado, 
este  genero  de  transporte  tem  o  seu  tanto  de  agrada- 
vel. 


306  De  Angola  d  contro-costa 

0  viajante,  depois  de  singola  refeì<;ao,  bifurca-se,  e 
dissipados  os  tetricos  pensamentos  da  noite,  là  vae, 
rociado  pela  aura  niatutiiia,  poiipaiido  for^as  que  a 
mareha  a  pé  rapido  gattaria. 

Està  disposicjao  de  espirito  iias  priineiras  horas  é 
reeurso  precioso  para  o  resto  do  dia,  evitando  mais 
tarde,  pelo  calor  e  pela  fadiga,  a  desproj30sitada  ten- 
deneia  para  o  hiimorismo. 

Muitas  vezes  eonsideràmos  n'isto,  e  frequentemente 
nos  conveucemos  de  que,  se  de  principio  tivessemos 
caminhado  a  p($,  marcariamos  lioje  coni  a  ossada  al- 
guma  clareira  no  mato,  nao  tendo  a  alegi'ia  de  cliegar 
a  MoCj^ambique. 

Os  males  moraes  sao  taes  e  tantos  que  bem  deve- 
mos  a  salvatilo  a  uni  cuidadoso  poupar  de  for9as,  que 
contrabalan<;ou  em  grande  parte  os  soffrimentos  do 
espirito. 

E  mais  tarde,  quando,  sob  as  j)icadas  da  mosca,  nos 
cairarii  todos  os  bois,  entào  em  marcila  sob  o  acjoìte 
das  chuvas  a  ainarga  experiencia  beni  iiol-o  eviden- 
ciou. 

A  teiTa  onde  corre  o  M'palina  6  por  tal  maneira  pla- 
na, (pie  por  toda  a  parte  de  nianlià  se  observavam  ex- 
traordinarios  phenomenos  de  miragem.  Foi  aqui  que 
pela  prinieira  vez  encontràmos  um  animai,  que  Anto- 
nio designava  por  gallengue,  nome  na  costa  applicado 
ao  Oryx  gazella,  e  que  assimilliando-se  ao  gnii,  nao  e 
propriamente  este,  segundo  parece,  pela  difl'erente  dis- 
posi^ào  das  defensas. 

A  sua  longa  cauda  de  cavallo,  a  juba  felpuda  e  a  cor 
escura,  dao-llie  um  aspecto  nobre  entre  os  outros  ani- 


A  caininho  do  Zambeze  307 

luaes,  seiido  notavel  que,  corno  o  Onjx,  quando  aper- 
tado  pelos  caes,  nao  foge;  ao  contrario,  para  a  firn  de 
investir  coni  elles,  dando  ao  ca(;ador  tenq)o  de  se  ap- 
proximar. 

Aqui  matàmos  uni,  do  qual  damos  o  desenho  ao 
leitor.  Mais  adiante,  depois  de  uina  marcila  de  18  nii- 
llias,  transpozemos  o  Cuito. 

Ilio  formidavel  e  caudaloso,  diz  o  nosso  diario. 

De  mais  de  100  metros  de  largo  eni  niuitos  pontos, 
serpeia  a  ampia  faclia  de  agua  em  leito  extremamente 
sinuoso,  deixando  derivar  muitos  bra^os,  que,  aqui 
saindo  e  aleni  entrando,  llie  semeiain  o  curso  de  illias, 
nao  cedendo  na  apparencia  ao  Cubango. 

Ulna  varzea  de  2  a  3  niilhas  consente  o  voltear  des- 
enibaracjado,  sendo  que  pela  margem  direita  o  terre- 
no mais  alto  se  approxima  do  leito,  permittindo  ao 
viajante  em  caminlio  pela  beira  gosar  de  poiitos  de 
vista  pittorescos. 

0  Cuito  e  navegavel  em  grande  extensao.  Eis  quanto 
d'elle  disse  Muene  Mussongo,  soba  do  sul,  e  que  em 
sua  canòa  viera  para  nos  ver. 

0  rio  (t  largo  e  seni  enibara9os  até  ao  Cubango, 
onde  entra  n'unì  sitio  cliamado  Cangungo,  formando 
coni  este  iinia  grande  lagòa  denominada  Marno  coni 
lima  illia  arborisada  a  nieio,  terra  em  que  està  a  li- 
bata do  soba  Mabanja,  cliefe  do  Bucusso. 

D'alii  deslisam  os  dois  na  dii'cc^ao  sueste,  deixando 
para  o  sul  derivar  parte  da  sua  agua,  jior  grandes  mo- 
lollas,  seguindo  depois  em  voltas  capricliosas  através 
de  jilanicies  cobertas  de  Arundo,  até  que  por  fim  lan- 
9am  as  aguas  restantes  no  Cliobe. 


308  De  Angola  d  controrcosta 

A  jusante  de  Cangungo,  cerca  de  15  a  20  milhas, 
deriva  um  prinieiro  len9ol  de  agua,  a  moloUa  Chindon- 
ga  (Omaramba  Oudonga),  que  cortando  para  o  oeste 
vae  direita  ao  Cuanhama,  e  devia  ser,  quando  aprovei- 
tada,  um  optimo  caminho  para  ligar  esses  dois  pontos. 

Mais  abaixo  fica  o  Dirico,  e  adiante  urna  cachoeira 
que  quasi  se  cobre  na  for9a  da  chuva. 

Os  habitadores  sao  os  ba-n'dirico  e  os  cangungo 
proximo  da  lagoa,  povos  que  entretéem  Tela96es  com- 
merciaes  com  a  Cafima  e  o  Vale,  assim  comò  frequen- 
tes  vezes  com  o  Bié  e  os  bin-bundo,  que  em  viagem 
com  OS  portuguezes  para  os  ba-vico  por  là  transitam. 

0  Cuangar  està  da  banda  de  là  e  proximo  do  Di- 
rico; a  terra,  emfim  e  plana  e  alagada,  conforme  nos 
disse  Muene  Mussongo. 

Para  alem  do  Dirico  ficam,  comò  é  sabldo,  os  ba-vico, 
cuja  capital  e  Libebe,  paiz  que  pelo  meio  dia  defronta 
com  as  tribus  ma-tzanhama,  que  por  sua  parte  confi- 
nam  com  os  ba-yeye,  povoadores  da  mololla  Teoge 
e  outras.  0  aspecto  d'estas  terras,  d'aqui  para  o  sul, 
e  sempre  monotono.  Extensas  planuras  se  alongam  a 
perder  de  vista,  coberta^  de  gramineas,  semeadas  aqui 
e  alem  de  manchas  escuras  de  mais  densa  vegeta9ao. 
Entre  os  ba-yeye  avultam  HypìuBues  elegantes  para 
cortar  a  monotonia  da  paizagem.  Todos  os  viajantes 
dao  noticia  de  zonas  alagadas,  o  que,  comò  jà  disse- 
mos,  tem  concorrido  para  tornar  difficil  discriminar  o 
leito  do  Cubango  e  a  complicada  distribuÌ9ao  de  suas 
aguas. 

0  que  todavia  nos  parece  (repetimos  ainda)  comple- 
tamente assente,  é.  que  as  mais  distantes  cabeceiras 


A  caminho  do  Zambeze  309 

do  Zambeze  estao  no  planalto  do  Bié,  junto  aos  morros 
Manso  e  Chinbango,  d'onde  originalmente  deriva  o 
Cubango,  cujo  curso  imponente  drena  toda  a  depressao 
centrai  que  do  Cunene  vae  ao  Barótze. 

0  mesmo  systema  do  Cuerrai  nos  parece  ligar-se  a 
elle  pela  grande  mololla  Cliindonga,  notando-se  comò 
tambem  dissemos  a  particularidade  de  estar  a  lagoa 
Etocha  para  o  curso  d'està,  corno  o-N'gami  para  o  Cu- 
bango, ambos  reservatorios  que  recolliem  aguas  super- 
abundantes. 

Assim  o  colosso  que  a  Quelimane  vae  desaguar,  tri- 
buta ao  Indico  aguas  originarias  do  Bié  e  de  Babisa, 
n'uma  distancia  media  de  1:500  millias  geographicas. 


Il 


CAPITULO  XI 


ACERCA  DO  NEGRO 


Do  todoB  OS  factos  enumerados,  vé-se  que  a  es- 
tructura  do  negro  approxima-se  hiequfvocamente 
d'aquella  do  macaco.  Nfto  diflToro  simplesmente  do 
typo  caucasico,  mas  distingue-se  d'elle  exn  dois  res- 
poitu8:  reduc^àb  de  caractercs  intellectuaes  e  fa- 
cies animai  amplindo  em  oxagcro. 

I^AWRENCE,  Ethiopian  Variefy. 


0  indigena  africano — Siniilban^a  de  caracteres,  difficuldade  em  dis- 
criminar typos  e  familias  de  origom  communi — Tra^os  caracteriscos 
do  negro  —  Aspocto  geral  —  Indica^òos  scientificas  sobre  a  conformammo 
cranoana — 0  em*opcu  e  o  etliiope  encartido  pelo  lado  esthetico  — 08  ha- 
mitas  e  a  philantliropia — Unifornùdade  de  ser,  sob  o  ponto  de  vista 
intellcctual — Feitivos. — 0  OtjinirOy  os  Saiidis  e  o  Zamhi — Supersti- 
^.oes  e  o  tciTor  pclos  mortos — Difficil  comprelionsao — Dados  cosmogo- 
nicos  indigcnas — (.)  sentimento  moral  e  as  lendas — Difficuldades  de  cstu- 
do — A  lingua  e  os  costumes — Tramos  approximativos  de  tribus  distantes 
— Dàmaras,  ban-cumbi,  ba-qua-tlr,  ba-yeye,  ban-dirico,  ete. — Enterra- 
mento  dos  defunto»  e  pratica  da  circumcisao — 13a-yeye,  namàcuas  e  ba- 
eoróca,  suas  habitamòes — Os  ba-vieo  os  ba-visa  e  os  clicks — Tendeiicia 
nomada — Os  ba-qua-iiaiba  e  a  Cafima — A  cmigra^ao  e  a  influeiicia  do 
pantano — Os  ma-teliona  e  os  djlmaras — Tribus  que  originaram — Os  ba- 
nhaneca  e  os  ban-cumbi  exeeptuados — Os  dàmaras  e  ainda  urna  tenta- 
tiva  para  atinar  com  a  sua  proveniencia — Opiniììo  de  Anderson — A  ar- 
vore  j)rogenitora — Conclusilo. 


No  intuito  de  variar  a 
monotona  narrativa  da 
nossa  marcila  por  entre 
lamcno-)  e  pantano»,  lu- 
ctìndo  coni  fomes  e  sé- 
dci  ft^àinos  urna  pausa 
por  momentos  a  firn  de 
disti  ahir  o  leitor  com 
algiimas  considera^òes 
geraes  sobre  o  indigena 
africano  e  particularmente  o  da  zona  por  nós  percor- 
rida. 

Nào  é  por  certo  assumpto  facil,  mas  (quando  tra^a 
as  grandes  linhas  geographicas  do  continente,  esbo- 
^ando  OS  seus  tratjos  physicos,  deve  o  viajante  por 
vezes  tentar  reuiiir  o  que  viu  àcerca  dos  i-especti- 
V08  habitantes. 


314  De  Angola  d  contrci-costa 

Colleetivameiite  os  negros,  talvez  sujeitos  a  um  cli- 
ma poiico  variavel,  apresentam  urna  tal  unifomiidade 
de  caracteres  pliysicos  e  mentaes,  mostram-se  tao  cou- 
stantes  ein  seu  modo  de  ser  e  operar,  téem  norma  de 
vida  tao  primitiva  e  organisa<;ào  de  sociedade  tao  siii- 
o-ela  e  jieral,  que  difficilmente,  quando  dispersos  por 
trilms  distantes,  se  aelia  o  fio  originario  (pie  entreliga 
membro»  da  mesma  familia. 

Porque,  a  final,  quaes  sao  os  tra(;os  que  distinguem 
o  negro? 

Todos  téem  a  pelle  preta,  excepto  nas  palmas  das 
•maos  e  sola  dos  pes,  onde  o  pigmento  foi  naturalmente 
removido  pela  prolongada  Fric9ào;  assim  corno  toda 
ella  e  mais  ou  menos  fina,  afóra  os  logares  menciona- 
dos,  vendo-se  por  isso,  em  geral,  o  africano,  pegar  no 
earvao  em  brasa  e  depol-o  no  caehimbo  seni  a  menor 
impressilo! 

O  negro  typico  tem  sempre  basta  earapinha,  espessa 
conio  a  la,  e  raras.vezes  barba  ou  bigode. 

A  sua  estatura  e  mediana,  angular,  mais  grosseira 
(pie  a  do  l)ranco.  0  craneo  fortemente  ligado,  depri- 
mida  a  fronte,  proeminente  o  occiput,  bem  conio  as 
queixadas  e  arcadas  zygomaticas,  adiantando-se-llie, 
do  mesmo  modo  que  nos  (juadrupedes  glutoes,  a  bóca, 
guarnecida  de  largos  e  grossos  labios. 

O  nariz  e  acliatado,  estreito  o  pescoso,  ao  passo 
(pie  a  columna  vertebral  extremamente  curva  para  a 
frente,  logo  aeima  da  ba(!Ìa,  parecendo  tal  conforma- 
^ao  prestar-se  mais  k  marcila  sobre  quatro  pés! 

Os  membros  loeomotores  afastam-se  do  parallelis- 
mo, curvando-se  externa  mente,  as  rotulas  sao  proemi- 


Acerca  do  negro  315 

nentes,  os  calcanhares  excedem  a  Hnha  vertical  do 
tendao  de  Achilles,  as  maos,  quando  caidas  ao  longo 
do  corpo,  tocam  quasi  nos  joelhos. 

Mais  scientificamente  acrescentaremos  : 

A  capacidade  do  craneo  aclia-se  reduzida  quando 
comparada  com  a  do  europeu,  sobretudo  na  regiao 
anterior. 

A  face,  porém,  avulta. 

0  osso  frontal  e  os  parietaes  sao  curtos  e  menos 
escavados,  tendo  aquelle  menos  capacidade  que  estes. 

A  frente  do  craneo  acha-se  comprimida  e  elevada 
n'uma  corno  que  nervura  entre  os  poderosos  muscidos 
temporaes,  que  nascem  proximo  da  parte  mais  elevada 
da  cabe^a,  avultando  assim,  cm  consequencia  da  gros- 
sui'a  dos  mesmos  musculos. 

A  substancia  ossea  e  mais  resistente  e  densa,  os 
rochedos  extremamente  grossos,  o  peso  do  craneo 
consideravel. 

0  fovamon  maijmni}  e  maior,  collocado  muito  atraz, 
e  maiores  sao  tambem  todas  as  outras  aberturas  para 
a  passagem  dos  nervos. 

Tanto  o  apparelho  osseo  da  mastiga(;ào  com  as 
cavidades-receptaculos  para  os  orgaos  dos  sentidos, 
dentes,  etc,  sao  grandes,  solidos,  e  mais  poderosa- 
mente construidos  no  negro,  mais  aptos  a  satisfazerem 
as  exigencias  animaes  do  que  nas  ra^as  civilisadas, 
onde  certas  func^oes  se  attenuam  pelo  extensivo  uso 
da  rasào  e  da  experiencia. 

A  fossa  tempora!  e  grande,  o  seu  limite  pela  parte 
superior  està  collocado  mais  alto  no  crianeo  do  negro 
do  que  no  do  europeu. 


/  316  De  Angola  d  contro-costa 

As  orbitas  e  zygomas  sao  enonnes,  bem  corno  rs 
narinas,  ampia  a  cavidade  nazal  e  ob  cometoò  do 
etlimoide,  mais  extensa  a  lamina  cribifoniie. 

O  maxillar  superior  prolonga-se  notavelmeiite  eni 
frente,  e  a  por9ao  alveolar  vé-se  obliqua  comò  no  ma- 
caco. 

A  espinba  nazal  6  reduzida,  a  abobada  palatina  lon- 
ga  e  mais  elliptica,  o  queixo,  em  logar  de  vir  à  verti- 
cal  dos  dentes,  recolhe  de  modo  sensivel. 

O  angulo  facial  e  em  media  de  65®,  a  distancia 
da  base  das  narinas  à  parte  proeminente  do  occiput 
exagerada,  o  perfil  de  um  prognatismo  frisante. 

Comparado  com  as  fórmas,  propor^oes  e  còres,  que 
todos  admiràmos  nas  bellas  figuras  da  Grecia,  o  la- 
nudo  cabello,  o  acliatado  nariz,  os  grossos  bei(;os,  a 
deprimida  fronte,  as  maxillas  avancjadas,  a  pelle  tis- 
nada,  e  o  rude  vulto  do  negro,  fazem  um  contraste 
esrtanho  ! 

Nào  acrescentaremos  a  estes  caracteres  physicos 
extemos  outros  especiaes  que  a  sciencia  se  tem  encar- 
regado  de  estudar  na  compara9ao  da  ra9a  negra  com 
a  aryana,  taes  comò  differen<jas  de  pigmento,  de  bilis, 
de  manchas  escuras  da  pia-inater,  porque  nao  é  nosso 
intuito  aqui  expor  essa  compara^ào,  nem  discutir  se 
nos  excedem  ou  sao  inferiores,  deixando  em  completo 
socego  a  pliilantliropia  meticulosa,  que  facilmente  se 
consideraria  insultada  com  o  aventar  de  similhante  tes- 
temunlio. 

Debaixo  do  ponto  de  vista  intellectual,  tambem  cus- 
ta  a  differen^al-os  (referimo-nos  sempre  aos  negro»  do 
sertao). 


0 

Acerca  do  tic  grò  317 

Em  materia  de  religiao,  por  exemplo,  ainda  formà- 
mos  o  mesmo  jiiizo  que  emittimos  ao  escrever  o  iiosso 
primeiro  livro  sobre  Africa,  isto  é,  que  o  negro  nao  a 
professa  ou  tem  a  do  feiticjo,  que  é  completa  negativa 
d'ella,  em  que  todos  procedem  por  igual  fórma,  coni 
identicos  preceitos,  tornando-se  difficil  distinguil-os. 

Assim  o  dàmara  tem  o  Otjiruro,  o  mu-nhaneca  os 
Sandis,  comò  os  quiocos  o  Zartìhi,  e  os  niam-niam* 
o  muqivisso,  sendo  para  elles  o  feiti^o  uma  idea  tetrica, 
aterradora,  com  influencia  nefasta,  que  elles  tratam 
de  conjurar  por  todos  os  modos  possi veis. 

0  bieno  diz  :  e  feitiqariay  pregou4he  um  jinwingi,  o 
que  quer  exprimir:  pol-o  sob  a  accjao  do  feitÌ90,  de  que 
tem  de  se  livràr  por  qualquer  medicina,  se  nao  quizer 
ser  victima. 

0  mu-nhaneca  exclama:  olita  nào  se  apeguem  os  San- 
dis comtigo,  querendo  significar  que  para  tao  grande 
mal  faltarà  remedio.  IC  se  Ihes  perguntardes  :  mas  o 
que  é  isto  que  tanto  mal  me  faz?  Elles  apenas  attri- 
buirao  ao  terror  inspirado  pelo  possivel  aj^parecimento 
do  morto! 

Nem  mesmo  é  uma  transmigi-a^ao  a  guisa  de  me- 
tempsicose,  porque,  quando  os  gritos  da  liyena  Ihe 
suggerem  a  idea  de  qualquer  que^  desappareceu,  nao 
é  o  espirito  que  imaginam  incubado  no  corpo  do  ani- 
mal,  porquanto  carecem  de  similhante  no^ao,  mas  sim 
o  homem  transformado  em  hyena,  com  o  mesmo  cor- 
po, OS  mesmos  olhos,  semente  coberto  de  pellos  e  com 
quatro  patas! 


1  Niam-niam  ou  inelhor  Nhuin-nliainos. 


318  De  Angola  d  contro-costa 

A  coniprehen.sao  de  tudo  qiie  os  cerca  e  difficil,  se 
iiao  erronea  e  inipo^sivel,  nivelada  pela  rnesma  fórma 
em  quasi  todas  as  tribus. 

Assilli  vereis  o  indigena  africano  facilmente  suppor, 
conio  muitos  acreditam,  que  o  sol  nascente  difiere  do 
visto  no  dia  anterior,  do  qne  explicar  na  rota9ao  com- 
pleta o  reapparecimento  do  mesmo  astro! 

Verdade  e  que  às  vezes  os  seus  argumentos  téem  a 
for9a  de  deixar  boquiaberto  o  viajante. 

Assilli  um  dia,  assentados  d  porta  de  nossa  tenda, 
satisfeitos  por  ter  acliado  uni  preto  esperto,  a  quem 
iamos  arrancar  no(;oes  de  cosmogonia,  perguntàmos- 
llie,  apontando  para  a  abobada  celeste,  o  que  e  o  céii? 
inquiricjao  em  verdade  estranila  a  que  muito  camponez 
na  Europa  deixaria  de  responder,  elle  disse:  «0  ceu 
é  de  pedra,  ou  mellior,  urna  serra  enorme  que  està  por 
cima  das  nossas  cabe^as!»  E  comò  Ihe  obtemperasse- 
mos,  tomando  uma  pedra  do  cliao,  que  nos  nao  pare- 
cia  o  celi  ter  pontos  de  contacio  com  aquillo,  pois  Ibe 
bastava  a  cor,  replicou:  «E  boa;  vé-se  azul  porquc 
està  longe,  assim  comò  as  serranias  quando  vistas  a 
distancia!» 

0  sentimento  inorai,  a  conscieiicia  do  bem  e  do 
mal,  embryonarios,  tambem  diversificam  tao  pouco 
entre  todas  as  tribus,  que  é  ditììcil  por  essa  circuin- 
stancia  encontrar  facies  por  onde  possa  operar-se  a 
meiior  discriiiiina(;ao. 

Emfim,  as  lendas,  tornam-se  tao  confusas,  que  mal 
se  póde  aproveitar  indicios  d'ellas,  e  sobretudo  encon- 
trar tribus  que,  enibora  da  niesma  origeni,  conseguis- 
sem  conserval-as  immaculadas. 


Acerca  do  neyro  319 

Passando  de  uns  a  oiitros  povos,  alteradas  pela  fa- 
culdade  mais  ou  menos  imagiiiativa  do  narrador,  qiie 
as  adapta  multo  naturalmente  as  circumstancias  de  le- 
gar e  impressao  de  momento,  exaltadas  na  Loca  dos 
homens  por  tendencias  arrogantes,  pervertidas  nos 
•contos  da  mae  ao  fillio  pelo  sentimento  do  medo,  mu- 
dam  de  gera^ao  em  gera^ao  e  perdem-se  pliantasistas 
de  tribù  em  tribù. 

De  que  laudar  mao,  pois,  para  fazer  uni  estudo  su- 
perficialmente ethnogi*apliieo  dos  povos  por  onde  se 
decorre?  Da  lingua  e  de  alguns  usos  e  costumes  mais 
ou  menos  tradicionaes,  espalhados  entre  elles,  é  a  res- 
posta. Acontece  porém  que  ao  explorador  e  sempre 
difficil  assenliorear-se  da  priineira,  pelo  pouco  espa<;o 
de  tempo  de  que  dispoe,  e  do  seu  desconliecimento 
veni  o  embaracjo  de  poder  aproveitar-se  das  descri- 
P9oes  sobre  o  modo  de  proceder  do  indigena,  ficando 
assim  à  mercé  de  interpretes,  que  tudo  confundem  e 
alteram. 

Nao  deve  admirar,  pois,  qye  todo  o  traballio  ii'esse 
sentido  e  feito  por  homens  que  rapidamente  atravcssa- 
ram  as  tribus  de  que  pretendem  tratar,  seja  deficiente 
e  incapaz  de  satisfazer  k  naturai  exigencia  de  queiii 
deseja  informar-se. 

Desde  a  costa  Occidental  até  à  bacia  do  Cuito  per- 
corremos  varias  zoiias  povoadas  de  negraria,  onde, 
pelo  menos  sob  o  ponto  de  vista  dos  caracteres  pliy- 
sicos,  notiimos  algumas  differen9as,  que  exultariamos 
em  poder  apresentar  ao  leitor. 

Ao  baralharmo-nos,  porém,  agora  entre  as  notas 
multiplicadas  do  diario,  vemo-nos  por  tal  modo  con- 


320  De  Angola  d  corUronCosta 

fusos,  achàmos  entre  ellas  tao  estranhas  indica9oes, 
qne  se  toma  quasi  impossivel  delimitar  tribus  e  expor 
casualmente  a  sua  proveniencia. 

Assim  o  córoca,  para  exemplificar,  parece-se  com 
esses  aborigenes  do  sul  do  Càoco,  liill-dàmaras  clia- 
mados,  e  mais  longe  com  os  ba-qua-tir. 

As  mulheres  dàmara,  ban-cumbi,  ban-dirico  e  ba- 
yeye  ou  ba-cóca  vestem  do  mesmo  modo  a  pelle  de 
boi,  enfeitando-se  com  missanga,  emquanto  as  do 
0  vampo  empregam,  comò  as  do  Valle,  uma  especie  de 
cutuba,  ou  melLor  uma  pelle  cortada  em  triangulo, 
ageitando-a  posteriormente*. 

Os  bana-cutuba,  os  ba-tchuana  os  dàmaras  e  a 
gente  do  Cuangar  enterram  os  mortos  pela  mesma 
maneira,  quebrando-llies  a  colunma  vertebra!,  e  envol- 
vendo-os  n'uma  pelle  para  os  coUocarem  com  a  cara 
para  o  norte,  ao  passo  que  os  ba-qua-róca  e  ba-ximba 
OS  deixam  insepultos  ou  marcam  o  logar  em  que  os 
abandonaram  com  circulos  de  penedos. 

Os  bana-cutuba,  os  ba-qua-róca,  os  dàmara,  e  sup- 
pomos  que  os  habitadores  do  sul  do  Cubango,  circum- 
cisam-se  à  fei^ao  dos  ban-galla  de  Cassange,  jaggas, 
etc,  emquanto  que  os  lupollo,  ba-nhaneca  chamados, 
OS  amboellas  e  outros  do  norte  nao  o  fazem. 

Os  dàmaras,  os  ovampos  e  os  corócas  tiram  as  san- 
dalias  ao  entrar  na  residencia  do  europeu,  emquanto 
que  biénos  e  amboellas  nao  os  imitam;  as  suas  dansas 
representam  quasi  sempre,  em  mimica,  ac96e8  do  boi, 


1  E  notavcl  està  cspceic  de  cauda  usada  pelos  qua-nhama  e  pelos 
uham-ubamos. 


Àcerca  do  negro  321 

da  cabra  e  de  outros  animaea,  ao  passo  qiie  as  d'estes 
téeni  logar  em  vastos  circulo»,  onde  por  cada  vez  sàe 
um  figurante  que  se  mencia  isolado. 

Os  ba-yeye,  segando  a  aifirmativa  de  Anderson, 
construem  habita^Òes  redondas  conio  os  naniàqua. 


Os  ba-qua-róca  e  ban-dombe  fazem-nas  identicas,  à 
medida  que  os  bandas,  cafimas,  ban-db^co,  ba^qua-tir, 
as  formani  altas  e  conicas. 

Os  ba-vìco,  ao  sul  do  ponto  onde  nos  achàmos,  ves- 
tem,  diz  um  escriptor,  corno  os  ba-visa  de  Mo9ambi- 
que,  emquanto  que  o  dialecto  lu-yeye  comò  o  lu-crero, 
o  dAmara  e  o  coróca  pareceni  assimilhar-se  às  lingua» 
da  mesma  costa  orientai,  apesar  dos  cHcks,  que  nioa- 
tram  iutcrven^So  Iiottentotica. 


322  .  De  Angola  d  contro-costa 

0  mesmo  dàmara,  inteiramente  siniilliantc  ao  iiiu- 
erero  e  ao  mu-qua-róea,  tem  o  typo  do»  ma-liniansì, 
tribù  da  costa  de  leste. 

De  tudo  isto  nao  vanios  conci uir  que  as  tribus  eni 
questao  se  estendem  ii  urna  facha  de  territorio  atra- 
vez  da  Africa  de  uiiia  a  outra  costa,  nem  acertar  coni 
a  sua  proveniencia  e  esj^t^cial  distribuÌ9ào  ;  mas  ver  se 
dos  pontos  de  contacto  ìndicados  se  póde  laudar  algu- 
nia  luz. 

Unia  parte  das  tribus  que  povoam  as  planuras  do 
sul  téem  decidida  tendencia  para  a  vida  nomada,  de 
resto  uni  tanto  concomitante  coni  a  pastoril  quando 
escasseiam  os  pastos,  e  grande  facilidade  em  emigra- 
reni,  ou  porque  as  terras  siliciosas,  causando  rapida- 
mente, OS  obriguem  a  procurar  novos  campos  para  a 
semeadura,  ou  por  outra  qualquer  rasào  que  desco- 
nhecemos. 

Assim,  ao  transpor  o  Quiteve,  disseram-nos  que 
existira  ali  em  tempo  (cincoenta  ou  setenta  annos)  o 
poderoso  estado  dos  ba-qua-naiba,  que  de  subito  des- 
apparecera  *. 

A  Handa  era  um  deserto,  que  gente  de  proveniencia 
desconhecida  povoàra,  tambem  de  data  nào  muito  re- 
mota, conforme  se  suppoe. 


1  Ptu'ece  que  anterioniiciite  a  osta  epocha  existia  no  plateau,  que  iiio- 
(leia  entro  o  Cunone  o  a  serra  da  Ohella,  urna  densa  populayào,  eonsti- 
tuiudo  um  reiuo  sub  a  dcsigna<;ào  de  Mataman.  Os  Iiabitant(;s  eram  som 
duvida  dàmaras,  pois  que  ainda  entro  ollcs  ha  a  tradiyào,  que,  forQados  i>or 
povos  invasores,  tivoram  de  ceder  a  sua  ton'a,  transpondo  o  rio  na  Quia- 
bicua,  corno  em  outros  tempos  elles  haviara  por  sua  vez  dcrrotado  os  que 
là  residiam,  talyez  partidarios  do  celebre  Humbi-Iénene. 


Aceixa  do  neg^ì'o  323 

A  Cafima,  lia  poucos  annos  ainda  urna  terra  assàs 
povoada,  està  hoje  (iiiasi  em  ahandono,  devido,  se- 
guiido  afiaii^avain  pessoas  d'ali,  a  escassez  das  aguas; 
eiufini  as  margens  do  Ciibango,  que  de  Massacra  até  a 
Bunja  eram  bastante  povoadas,  estào  presentemente 
quasi  desertas. 

P^stas  tendencias  migratorias,  se  nao  encontrarem 
so  causa  no  proprio  solo  e  n'uma  disposi^ao  naturai 
dos  indigenas  para  a  instabilidade,  o  que  explicaria 
talvez  a  existencia  eiu  suas  veias  de  sangue  bu^hmen , 
deveni  ter  a  origeni  nas  invasoes  de  territorio  e  na 
naturai  liesita(,*ao  de  (piem  està  habituado  a  retirar-se 
CUI  presen<;a  de  outros  mais  foi-tes;  d'onde  se  infere 
que  a  menos  guerreira,  menos  forte  e  qui^à  menos 
nol)re  e  de  erer  fosse  a  rac^'a  que  povoava  as  planuras 
(pie  oceupam  a  depressilo  centrai  da  Africa. 

E  se  o  nao  foram  ao  tempo  d'esses  movimento», 
sao  hoje,  porque  e  facto  conhecido  que  os  indigenas 
que  residem  permanentemente  nas  regiOes  pantanosa» 
soffrem  profundas  modifìca(j6es  physicas  e  mentaes 
por  inhala<;ao  sol)  a  constante  influencia  deleteria. 

Os  liomens  da  beira  dos  pantanos,  os  babitadores 
das  aldeias  lacustres,  avelhantam-se  coni  rapidez,  sào 
})reinaturaniente  senis,  assim  comò  os  descendentes 
fracos,  racliiticos,  pallidos,  tendo  o  abdomen  proemi-  . 
nente,  a  figura  curvada  e  os  caracterc^s  moraes  e  intel- 
lectuaes  deprimidos  e  degradados. 

Raras  vezes  attingem  urna  idade  avan9ada,  e  tanto 
na  bacia  do  Nilo,  na  Virginia,  corno  aqui,  o  limite  da 
vida  regula  entre  quarenta  e  cincoenta  annos  appro- 
xìmadamente. 


324  De  Angola  d  controrcosta 

Das  presentes  considera^oes  podemos  jà  concluir 
que  todos  os  habitantes  da  grande  depressao  centrai 
norte  do  Calahari  apresenta,  em  seus  tra^os  geraes, 
urna  inferioridade  manifesta,  quando  se  comparam 
com  08  robustos  ba-bie,  os  elegantes  mam-boella  e 
outros  povoadores  do  norte,  e  que  portanto  este  facto 
caracteristico  nos  leva  a  isolal-os,  considerando-os 
mais  ou  menos  originarios  da  mesma  tribù,  e  a  accei- 
tar  emfim  que,  se  nào  provieram  do  sul,  nao  derivam 
pelo  menos  directamente  das  gentes  do  norte. 

Mas  quem  foram  os  seus  progenitores?  Quaes  os 
povos  originarios  d'essas  tribus  dispersas  desde  a  ba- 
cia do  Cunene,  com  o  nome  de  ba-qua-róca  e  ba-xim- 
ba,  e  mais  a  leste  ovampos  e  ba-qua-nhama,  e  ainda 
adiante  com  a  designa9ao  de  cafima,  de  ba-rongo,  de 
ba-qua-tir,  de  ba-qua-n'gar,  ba-yeye,  etc? 

Eis  a  resposta: 

Parece  que  n'uma  epocha  multo  remota  existia  por 
toda  a  zona  que  se  estende  entre  o  Ovampo  e  o  curso 
inferior  do  Cubango  um  poderoso  estado,  que  se  de- 
nominava dos  ma-tchona  *. 

Este  povo,  que,  segundo  se  presume,  vivia  pacifica- 
mente ao  longo  do  curso  dos  rios  mais  importantes^ 
alimentando-se  naturalmente  da  ca^a  e  da  pesca,  foi 
um  dia  surprehendido  pelo  inopinado  apparecimento 


r 

1  E  notayel  a  coincideucia  dos  ma-tcbona  com  os  ma-tcheno,  de  que  nos 
falla  Bastian  corno  povoadores  do  Congo,  ao  tempo  da  chegada  dos  jaggas. 
Està  circumstancia  pelo  menos  lembra,  para  ntto  dizer  corrobora,  o  que 
dissemos  n^outro  capitulo  sobre  o  jagga  Ximbo,  e  mostra  a  probabilidade 
de  bayer  trazido  comsigo  tribus  avassalladas  de  ma-tcbeno,  quando  inves- 
tiu  com  Mo^ambiquci  tribus  que  depois  na  retirada  se  estabeleceram  alL 


Acerca  do  negro  325 

de  tribus  numerosas  que  se  chamavam  dàmaras,  bem 
corno  o  foram  tambem  os  povos  do  sul  que  com  elles 
tinham  rela9oes,  isto  é,  hushmen  e  talvez  as  tribus  hot- 
tentotes. 

Derrotados  e  vencidos,  dìspersaram-se  em  todas  as 
direc^oes,  e  aquelles  que  escaparam  ao  cutello  ou  à 
escravidao,  foram  procurar  guarida  em  logares  reti- 
rados,  mais  ou  menos  accessìveis. 

Diffundido  por  elles  em  grande  abundancia  o  sangue 
hushmen,  veiu  agora  pouco  a  pouco  fazer  sua  entrada 
o  dos  dàmaras,  e  separando-se  em  todos  os  sentidos 
para  fugir  à  aridez  das  terras  primeiro  conquistadas, 
ficaram  os  propriamente  dàmaras  na  terra;  entre  o 
Cunene  e  Chella,  d'onde  depois  salram  comò  jà  disse- 
mos,  acossados  pelos  nano  ou  por  quem  fosse,  distri- 
buindo-se  os  outros,  comò  os  vemos  desde  a  emboca- 
dura  do  Cunene  até  a  altura  do  Cuatir  e  do  Culto,  e 
incursando  a  pouco  e  pouco  entre  man-bunda,  mam- 
boella,  bienos,  gente  do  Nano,  ban-cumbi  e  quantos 
appareceram  a  final,  com  os  nomes  de  ba-qua-róca 
ao  norte  do  Cunene,  bana-qua-tuba  e  ba-nbemba  a 
leste  d'este  rio,  ao  longo  da  Chella  com  o  de  ba-qua- 
balle,  para  alem  de  Cuanhama  com  os  de  Cafima,  ba- 
qua-n'gar,  ba-qua-tir,  etq. 

Uma  unica  circumstancia  nos  confunde  em  meio 
d'està  discrimina9ao,  e  vem  a  ser  que,  suppondo  nós 
OS  ba-nhaneca  e  os  ban-cmnbi  oriundos  multo  do 
norte,  e  talvez  directos  descendentes  dos  jaggas,  comò 
jà  dissemos,  vemos  entre  elles  e  em  parte  dos  povos 
de  que  acima  tratàmos,  a  permanente  pratica  da  cir- 
cumcisao,  assim  comò  entre  os  ban-cumbi  seguir-se 


326  De  Angola  d  contra-^osta 

na  inhuma^ao  dos  niortos  nm  processo  identico  ao 
d'aquelles. 

pjsta  circumstancia,  porém,  podera  explicar-se,  ad- 
mitindo  que  os  ban-cumbi,  por  multo  proxìmos  e  em 
contacto  coin  elles,  tendo  de  modificar  os  seus  habitos 
e  talvez  passado  da  agricultura  si  vida  pastoni,  aJo- 
ptassem  os  costumes  dos  povos  coni  quem  tivessem  re- 
laijoes  e  sobretudo  aquelles  que  por  mnito  estninlios 
mais  OS  impressiona  vani. 

Assim  foi  que,  fundidos  os  ma-tchona  coni  os  dama- 
ras  e  dosado  o  seu  sangue  com  uma  boa  por^ao  do  da 
racja  hishmen^  se  estabeleceram  por  toda  a  regiao  de 
que  temos  fallado,  e,  tomando  ao  principio  designa^oes 
comò  aquellas  a  que  jà  nos  referimos,  a  saber:  ba- 
qua-naiba,  ou  ba-qua-naiiiba,  descendentes  do  sol  ;  ba- 
qua-numbula,  da  cliuva;  ba-qua-naitunta  ou  ba-qua- 
naitunda,  da  floresta*,  etc,  modificaram-nas  pouco  a 
pouco,  substituindo-as  pelas  das  terras  que  liabitavam, 
ou  por  appellativos  designando  a  sua  occupa^ào  ou 
modo  de  ser,  taes  comò  ba-qua-ito,  ba-qua-tir,  ba-qua- 
n'gar,  ba-qua-niama,  ba-qua-vaiija,  ba-qua-bicua,  etc. 

Curioso  seria  aqui,  embora  se  referisse  esse  traba- 
Iho  a  tribus  que  ficaram  distantes  do  nosso  caminho, 
acertar  com  a  proveniencia  dos  dàmaras,  os  verdadei- 
ros  povos  originarios  de  todas  estas  tribus. 

Apenas  Anderson  diz  alguma  cousa,  e  isso  mesmo 
e  pouco  para  chegar  a  qualquer  conclusao.  Oucjamol-o: 

«Que  OS  dàmaras  nao  residem  de  longa  data  no  paiz 
que  ora  liabitam,  e  muito  de  crer,  comquanto  seja  du- 


1  Efltes  mais  earaotcristipamontc  hnshmen. 


Acerca  do  negro  327 

vidoso  o  logar  d'onde  ellea  vieram.  Apontam  alguns 
para  o  norte  corno  patria  originai,  outros  afian^am 
qne  viéram  do  nordeste,  e  descendcm  de  urna  arvore 
qiie  denominam  m'borambonga,  collocada  n'um  logar 
cliamado  Mar  uni  *. 

«Ora  corno  elles  nao  sao  agricultores,  pois  nem 
termo  téem  em  sua  linguagem  para  designar  cercai, 
e  as  tribus  do  norte  o  sao,  é  de  crer  que  fossem  vindos 
das  terras  do  nordeste  ou  leste,  onde  existem  povos 
pastores. 

«Mas,  seja  corno  for,  o  que  parece  é  que,  ha  setenta 
ou  oitenta  annos,  nem  um  dàmara  se  achava  ao  sul 
do  Caóco,  mas  que  por  essa  epoclia  elles  invadiram  o 
paiz,  habitado  por  bushmen  e  hill-dàmaras,  sendo  os 
derradeiros  naturalmente  os  aborigenes. 

«Os  dàmaras  formavam  uma  grande  na^So,  que 
mais  tarde  se  desmembrou,  subdividindo-se. 

«Depois  da  conquista  estenderam-se  até  ao  lago 
N'gami,  quando  entjxo  os  namaqua-hottentote  os  guer- 
rearam  ajudados  por  outros  do  sul,  e  se  tornaram  de 
opprimidos  em  oppressorcs.» 

Mais  adiante  diz  elle  ainda: 

«A  divindade  principal  dos  damaras  denomina-se 
Omuhuru. 

«A  sua  influencia  parece  residir  muito  no  norte,  e 
difficil  seria  especificar  os  seus  attributos.  Cada  tribù 
tem  o  seu  oninkuni^  com  seus  supersticiosos  habitos 


1  Maniru  ou  malulu  paroce-nos  o  plural  do  quilulu,  desigiia^So  bieua 
de  feiti^o  (o  quUulu-n'aandi),  que  mais  se  deve  dirigir  à  arvore  feiticeira 
do  que  ao  logar. 


328  De  Angola  d  contru-costa 

e  costumes,  pecuHaridades,  etc,  e  cada  urna  d'ellas 
se  divide  em  castas  a  eandas  yy . 

Muhiru  ou  mukuìv^  é  um  termo  muito  empregado 
no  interior,  sobretudo  n'esta  regiao,  para  designar  um 
curso  de  agua,  ou  mais  correntemente  exprimir  rio  ;  e 
comò  uma  tal  lembran9a  para  homens  que  viveni  em 
terra  arida  e  falta  de  agua  deve  ser  grata,  nao  admira 
que  elles  vissem  em  qualquer  curso  de  agua  um  ele- 
mento de  prosperidade,  e  portanto  o  deificassem  (se 
isso  se  póde  dizer)! 

Mas  tambem  isto  faria  lembrar  que  se  téem  tal  idèa 
a  respeito  de  um  rio,  é  porque  alguma  tradÌ9ao  correu 
entre  elles  de  tempos  felizes  ali  passados,  implicando 
a  consequente  deduc^ao  de  que  originariamente  resi- 
diram  nas  suas  margens. 

Qual  seria  elle,  o  Cunene? 

E  mais  provavel  que  assim  fosse,  que  os  dàmaras, 

*  comò  viraos,  liabitassem  a  sua  margem  norte,  havendo 

d'ali  saldo  por  causas  que  nao  é  facil  conhecer,  mas 

muito  frequentes  ali  em  consequencia  do  naturai  de- 

sejo  das  tribus  pòderosas  em  dominar  junto  da  agua. 

Assim  as  asser96es  de  Anderson  coincidem  de  certo 
modo  com  as  nossas;  a  idea  de  terem  os  dàmaras  sido 
uma  grande  na^ào,  bem  comò  o  seu  movimento  de 
leste,  tambem  encontra  n'ellas  confirma^ao,  e  ainda  se 
nota  n'elle  disposi^ao  a  acceitar  que  desde  o  Ovampo 
até  ba-yeye*  todas  as  tribus  centraes  tiveram  uma 
proxima  proveniencia. 


Cooly  suppòe  que  os  ba-ycye  vieram  tambem  do  ceste. 


Àcerca  do  inegro  329 

Em  resumo,  parte  dos  povos  que  deram  logar  a  estas 
considera9oes  sao  parentes,  e  espalliados  n'uma  Hnha 
obliqua,  que  desde  o  parallelo  de  15°  na  Handa  vae 
até  à  embocadura  do  Chobé,  representando  elementos 
disperso»  de  tribus  orìginarias,  mas  sobretudo  dàma- 
ra,  hoje  cruzados  com  bushmen  e  hottentote,  que  quanto 
mais  para  o  interior,  tanto  mais  deprimido  Ihes  tomam 
o  typo. 

Estabeleceram-se  nos  limite»  impostos  pela  gente  do 
Nano,  que  quanto  a  nós  comprehende  bienos,  ganguel- 
las  e  outros,  e  se  acham  estabelecidos  nas  regioes  supe- 
riores,  em  posse  de  terras  ferteis  e  abundantes,  que 
singularmente  frizam  com  a  aridez  e  pobreza  das  do 
sul,  contrastando  tambem  no  corpo  avultado  e  robus- 
tez  naturai  com  o  rachitismo  e  fealdade  dos  habita- 
dores  da  Cafima,  Cuatir,  baixo  Cuito,  etc. 

Remataremos  por  aqui  as  considera9oes  que  nos 
propozemos  sobre  assumpto  tao  obscuro,  quanto  cu- 
rioso, convencidos  de  que,  sendo  sempre  materia  diffi- 
cil  explicar  satisfactoriamente  a  proveniencia,  causas 
de  transforma9ao,  etc,  de  muitos  povos  da  Africa  cen- 
trai, so  poderà  conseguir-se  isso  por  uma  longa  serie 
de  observacjoes  e  cuidadoso  estudo  philologico. 

Sem  embargo,  e  se  o  tempo  nol-o  permittir,  volve- 
remos  no  volume  ii  d'està  obra  a  entrar  em  tao  inte- 
ressante quao  espinhoso  estudo. 


CAPITULO  XII 


LODACAES  E  I.AGOAS 


Lea  oinbrfìR  de  la  nuit  oiit  fnit  pince  nu  mntin, 
riiucun  (tMt  ù  son  poMte,  on  ho  mot  en  rhcniiii. 
Lii  terrò  «òoho  ot  duro,  oi  IVau  daii»  Io»  oniicTo», 
<)M  pasKo  «loH  ruiriHcaux,  <»n  franchit  do»  riviòr*'»; 
Lrs  piods  tumX  tìiiììH  In  faiifro  ot  Ioh  frunts  niiKuolant», 
So  cuiirbont  harasHÓn  moum  d<>M  rayoiiM  bnilaiits. 

J.  ] U-  MtfMiiitn-  —  Vavki.1.0  K  Ive!(S.  oto. 


Aden»  Cuito — A  csirnc  e  a  morosidadc  <l}is  inarchas — Os  l»a-cuito  e  os 
ma-eòa  —  Plamiras  inonotonas  e  jdicMiomoiiOH  d<?  iiiira^em  —  Libatas  hicus- 
tres  e  tiniidez  dos  indifroiuis  —  O  bijou  africano  (»  uni  tombo  inopinado — 
Artip)8  de  alinicntavào  v  trajo  dos  ba-cuito — A  Adenota  Ucheef — Aspla- 
nnras  e  a  ea^a — 0  Uopo  —  Uni  lionicni  jiordido — A  ('ol)ra  da  areia  e  as 
florestas  do  C'onjundiia^Mani-l)unda,  trajos,  funoraes  dos  sobas— Um 
honHMii  aliandonado — As  nieningitos  ccrebro-rachidianas — Omuchito  de 
C^ajindmllo  o  08  eloiihantcs — A  teiTa  do  Cubango  ao  Zanibezo,  e  as  dif- 
iiculdades  do  transito — Considoraf^oes  amargjis — 0  cyclono  de  18  de 
agosto  — Modo  de  attraliir  as  gazelbis  pelo  som — Miiene  Quitialia  e  as 
l>a-iaiima — Os  guias  e  o  alagamento — Critiea  posi^^o  dos  chefes  e  da 
earavana  entre  o  artindo  da»  margcus  do  Quando  —  0  rio  ira  ao  Zamlie- 
zoV — Coni  o  apparecimento  do  milho  esqueeem-se  as  fadigas — C)  rio  Cu- 
ti e  o  trilho  commercial  do  Bi«i  —  A  ba^*ia  do  Congo  e  a  do  Zambeze — 
Considcra^òcs  conscquentes — 0  paiz  v  park-like. 


Deixando  atraz  a  varzea  do  Cuito,  entràmos  em  ter- 
reno ligeiramente  ondulado,  de  meio  grau  talvez  de 
extensSo,  onde  nem  um  so  riaclio  se  encontra.  E  a 
terra  elevada,  que  separa  a  bacia  d'este  rio  d'aquella 
do  Cuando,  e  onde  comecja  o  dominio  dos  man-bunda. 

Depois  de  muito  tempo  que  a  alimentajjào  da  cara- 
vana  era  exclueivamente  constituida  pela  carne.  Por 
esse  motivo  comeijavamoB  a  notar  entre  a  gente  phe- 
nomenos  estranhos  de  fraqueza,  cuja  causa  a  principio 
desconheciamos.  Jd  nSo  supportavam  as  marchas  lon- 
gas  e  regulares  de  outr'ora,  pois  mal  partiam  do  acam- 
pamento,  viam-se-lhe  signaes  evidentes  de  fadiga  e  de 
cansa90,  e  eram  forfjados  frequentemente  a  arrear  as 
cargas  pelo  caminho. 


334  De  Angola  d  controb-costa 

Os  vultos  esqueleticos  dos  carregaclores  inspiravani 
eonipaixao  tal,  qiie  iiiio  ousavamos  insistir  para  pro- 
seguirein,  e  descaiisaiido  a  niiiido  no  trajecto  de  uiiia 
joruada,  viamos  tristeniente  decorrer  o  tempo  .seni  o 
podermos  aprovoitar. 

Desde  este  ponto,  o  trillio  dirige-se  a  les-nordeste, 
conservando  està  direc<;ao  até  à  margeni  do  Cuando, 
unico  logar  onde  este  e  facilmente  transponivel.  Nas 
primeiras  aldeias  (pie  attingimos,  os  lial)itantes  raianos 
receberam-nos  desconfiados,  por  julgarem,  segun<lo 
suppomos,  que  eram  ma-cóa  os  recemcliegados. 

Jà  em  capitalo  anterior  fizemos  notar  ao  leitor  a 
desconfian^a  d'estes  ((pie  ao  principio  julgàmos  ma-co- 
lolos)  sereni  brancos,  caso  certo  no  dizer  dos  indige- 
iias,  e  que  vivem  para  as  bandas  da  confluencia  do 
Cliobe,  onde  fabricam  pannos  e  facas,  inspirando  aos 
ribeirinlios  da  bacia  do  Zambeze  uni  permanente  re- 
ceio. 

Tal  facto  teni  for(josanieiite  algunia  explica(;ào,  (jue 
nós  nào  aventuràmos,  por  falta  de  segiiras  indicacjoes 
para  a  basear;  comtudo  aqui  fica  registada,  a  fini  de 
que  outros  a  procurem. 

Os  exploradores  sào  lioje  os  Argus  sertanejos,  e  se 
llies  cumpre  informar-se  do  modo  de  proceder  dos  in- 
dividuos  estabelecidos  no  interior,  torna-se  tambem 
obrigatorio  a  exploradores  portuguezes  fazel-o,  nao  s(> 
para  alijar  suspeitas,  destruindo  as  accusa^oes  tantas 
vezes  assacadas  aos  seus  compatriotas,  mas  para  co- 
liibir  (visto  serem  os  que  coni  mais  frequencia  là  an- 
dam),  no  interesse  da  liumanìdade,  scenas  repellentes 
de  pilhagem. 


Lodaxpes  e  lagoas  335 

0  solo  vae  seguindo  areento,  ondulado,  denegrido 
em  parte  pelas  ultimas  queimadas,  e  a  sua  vegeta9ao 
consiste  apenas  em  algumas  mupandas,  tortuosos  niu- 
caratis  e  n'jangos. 

Sopra  um  vento  fresco  do  sueste,  que  refrigera  os 
calores  do  dia.  Ao  cabo  de  duas  marchas  encontràinos 
o  rio  Cuma,  derradeiro  affluente  do  Cuito. 

Transpostas  as  ultimas  collinas  que  delimitam  a 
sua  bacia,  alongam-se  planuras  monotonas  a  perder 
de  vista,  e  onde  os  effeitos  da  miragem  pela  manhà 
nos  levavam  a  crer  na  existencia  de  lagoas  por  toda  a 
parte. 

Numerosas  libatas  de  man-bunda  se  véem,  sempre 
no  centro  de  estacaria,  e  dispostas  de  modo  a  ficarem 
cercadas  de  agua,  o  que  Ihes  dà  o  aspecto,  observan- 
do-as  a  distancia,  de  grandes  monitores  coura9ados. 

Os  naturaes  sao  timidos  ou  de  nós  se  arreceiavam, 
pois  nas  recentes  marchas  nem  uma  mulher  logràmos 
ver,  apparecendo  no  acampamento  so  os  representan- 
tes  do  sexo  forte. 

Abunda  a  cacja,  e  n'este  logar  pela  primeira  vez 
tivemos  ensejo  de  observar  de  perto  um  gnu  *  ou  bison 
africano. 

Antonio,  que  safra  ao  acaso,  apertou  com  um  bando 
d'estes  quadrupedes,  um  dos  quaes,  tresmalliando-se, 
veiu  passar  junto  ao  acampamento. 

Ao  vel-o  approximar-se,  partiu  um  de  nós  de  arma 
em  punho  ao  seu  encontro;  em  tao  ma  bora  poréni  o 


1  Assiinilha-se  uo  corpo  ao  giià  de  que  falla  Livingstone,  Catoplebas 
Gnu,  mas  tem  as  defensas  n'uma  PO8Ì9S0  inteiramente  differente. 


336  De  Angola  d  contra-costa 

fez,  que,  escorregando  no  lameiro  do  rio,  estendeu-se 
horisontalmente  e  desfechou  a  arma  na  direc9ao  do 
quilombo  ! 

Com  gi-ande  felicidade  encontràmos  mantimentos 
na  regiao  de  que  estamos  tratando,  e  embora  nao  fosse 
em  grande  abundancia,  sempre  mitigou  por  vezes  o 
fastio  da  carne. 

Muene  Caluri,  soba  ratao  de  mna  tribù  de  ba-cuito, 
e  cujo  retrato  apresentàmos,  offereceu-nos  massango, 
Penisetum,  e  mandioca  de  suas  lavras,  allegando  nao 
trazer  milho  por  haver  pouco  na  terra. 

Tabaco  nao  possuem,  e  o  sai  de  Quitengue  é  urna 
mistura  ennegrecida  de  chloreto,  azotato  de  soda  e 
outras  impurezas,  que  so  a  necessidade  obriga  a  apro- 
veitar. 

Larga  correia  à  cinta,  pelles,  ampia  patrona  collo- 
cada  posteriormente,  e  uma  faca  com  o  cabo  mettido 
entre  o  ventre  e  a  correia,  a  foiba  em  linha  vertical 
de  ponta  para  cima,  eis  a  suprema  distinc9ao  na  terra. 

0  uso  das  transinhas  é  commum. 

Foi  por  estes  plainos,  e  sempre  proximo  de  lagoas 
ou  regioes  alagadÌ9as,  que  demos  vista  de  um  antilope 
elegante,  à  feÌ9ao  do  j^piceros  melampus  ou  m'palla, 
cujos  chifres  téem  a  graciosa  curva  d'aquelles  da  quis- 
sema,  cor  amarello  torrado,  peito  e  barriga  brancos, 
vivendo  em  bandos  numerosos;  julgàmos  ser  o  mesmo 
que  a  Adenota  léchee. 

Extremamente  timidos,  fogem  rapidos  comò  o  vento 
ao  mais  pequeno  ruido,  acompanhando  as  femeas,  que, 
desprovidas  de  hastes,  pulam  ligeiras  em  seu  segui- 
mento. 


Lodaqaes  e  lagoas  337 

E  um  quadro  interessante  e  pittoresco  ver  milhares 
de  elegantes  animaes  cobrindo  inteiramente  urna  cam- 
pina  e  abaiando  agitados  ao  menor  rumor.  Quem  pela 
primeira  vez  corno  nós  os  observar,  nSo  deixarà  de 
sentir  urna  admira^So  naturai,  considerando  a  super- 
abundancia  de  vida  espalhada  n'aquelles  logares. 


Por  estas  extensas  planuras  cobertas  de  fina  relva, 
verdadeiro  paraizo  de  herbivoros,  encontram  elles 
muitas  especies  do  seu  normal  sustento,  por  isso  ahi 
divagam  em  grande  numero,  podendo  qualquer  via- 
jante  certificar-se  d'este  facto,  pela  observa<jao  da» 
milhares  de  pegadas  que  existem  sobre  o  solo,  circum- 
stancia  ponderosa  que  tambem  denuncia  a  proximida- 
de  da  agua. 


338  De  Angola  d  conira-^osta 

Nas  margens  do  Lomba  estivemos  durante  urna 
bora  boquiabcrtos,  tao  grande  era  a  abundancia  e  va- 
riedade  de  aniniaes  que  perante  nós  se  agitavam. 

Consistiam  eni  zebras,  que  a  galope  coni  as  peque- 
nas  crias  se  collocam  a  distancia  em  observa^ao;  bi- 
sons,  que  se  ditferencjam  pelo  ennegrecido  vulto  e  pelos 
vagarosos  niovimentos;  eapadjis;  graciosas  cabras  dos 
pantanos,  que  assobiam  muito  caracteristicamente,  e 
cujo  correr  intervallado  por  saltos,  em  que  levantam  as 
ancas  similliando  o  movimento  do  conce,  impressiona 
de  prompto  o  viajante;  e  outros  animaes  de  que  nào 
nos  recordàmos. 

Que  esplendido  campo  para  urna  excursao  cynege- 
tica,  conio  essas  feitas  no  sul  do  Zambeze,  de  que  nos 
falla  Livingstone  sob  a  designacjào  de  Itojìo^  e  que  con- 
siste ii'uina  colossal  annadilha  em  fórma  de  V,  tendo 
no  vertice  urna  estreita  passagem  adiante  da  qual  um 
precipicio  recolhe  os  animaes  acossados  pelas  correrias 
dos  negros! 

No  rio  Conjumbia  perdeu  a  ex})edi(^*ao  mais  um  lio- 
mem,  que,  soffrendo  de  epylepsia,  caiu  no  fogo,  ficando 
em  estado  deploravel.  O  mais  notavel,  porém,  foi  que 
preparava  a  ceia  coni  um  companlieiro,  e  ao  succe- 
der-lhe  similhante  fatalidade,  este,  contem})lando  por 
momentos  o  infeliz  que  estrebucliava,  ergueu-se  alfim 
serenamente,  pegou  da  arma  e  parti u  })ara  junto  de 
outro  grupo,  seni  se  lembrar  de  prevenir  ninguem. 

Tirilia  feitiqo  do  fogo,  foi  a  resposta  do  imbecil  ao 
inquiril-o  sobre  a  causa  da  sua  desliumanidade! 

Sào  frequentes  aqui  as  cobras  brancas  chamadas  da 
areia,  tomandp-se  necessaria  toda  a  cautela  ao  fazer 


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Lodaqaes  e  lagoas  339 

o  acampamento.  Havendo-a  observado  com  attencjao, 
achàmos  ser  identica  àquella  nossa  conliecida  de  Mos- 
samedes  no  oeste. 

0  aspecto  do  paiz  modificàra-se,  parecendo  até  aqui 
feito  por  quarteiroea,  que  se  repetiam  com  enfadonha 
constancia,  pois  deixava-se  urna  encosta,  vestida  de 
mupandas,  mumóes,  n'jaiigos  e  mucaratis  para  entrar 
em  intensissima  anhara  de  capim,  e  logo  n'outra  zona 
arborisada,  a  que  se  seguia  nova  anhara,  para  volver 
a  caminho  coberto  por  densa  floresta. 

Achàmo-nos  proxinios  do  limite  das  terras  dos  man- 
bunda,  que  por  este  lado  acaba  no  rio  Cuchó. 

Pelo  geral  estes  povos,  de  que  em  breve  nos  vamos 
afastar,  nao  sao  inferiores  aos  amboellas,  e  se  em  seu 
todo  ha  o  quer  que  seja  de  asselvajado,  concorre  para 
isso  o  modo  corno  se  adornam  e  penteam. 

Pelles  de  cobra  enroladas  ao  pescoso,  d'onde  pen- 
dem  dentes  e  garras  de  leao;  grossas  trancjas  dispersas 
na  cabe^a  em  todos  os  sentidos,  dando-lhes  por  vezes 
aspecto  de  medusas;  enorme  faca  à  cintura  e  uma  cau- 
da  de  gnii  pendente  do  lado,  nao  podem  formar  um 
conjuncto  que  os  tome  attrahentes. 

Pobres  em  extremo,  vivem  divididos  sob  a  direc^ao 
de  secùlos,  isolados  nas  matas  e  margens  dos  rios,  ali- 
mentando-se de  massango.  Nao  possuem  gados,  mas' 
ca^am  com  frequencia  o  elephante. 

As  mulheres  sao  mais  feias  que  as  suas  congcneres 
amboellas. 

Tendo  morrido  ha  pouco  um  soba  d'està  terra,  ouvi- 
mos  narrar  scenas,  pelas  quaes  concluimos  serem  elles 
mu'ito  deshumanos. 


340  De  Angola  d  contra-<osta 

Contava-se  que,  quando  este  adoeceu,  se  tratou  de 
inquirir  a  causa  da  molestia,  e  liavendo-se  numerosos 
quimbandas  empregado  na  operacjào,  chegaram  ao  co- 
nliecimento  de  que  o  espirito  de  um  certo  fulano,  que 
o  regulo  mandàra  matar  eia  tempos  remotos,  era,  pelo 
seu  constante  sobresalto,  a  verdadeira  causa  de  taes 
perturba9oes. 

Mortas  algumas  cabras  e  aspergido  com  o  sangue  o 
logar  onde  habitava,  conseguiu-se  urna  comò  que  sus- 
pensao  de  hostilidades  ;  breve  porém,  exasperado,  voi- 
tou  o  espirìto  a  carga,  nao  liavendo  cabras  e  gallinlias 
que,  enchendo  o  estomago  dos  quimbandas,  apaziguas- 
sem  as  formidaveis  iras. 

0  remedio  unico  foi  passar  o  soba  para  melhor  exis- 
tencia,  e  enterral-o,  para  o  que  se  faz  uma  grande  cova 
no  recinto  da  residencia  do  defunto,  e  juntando  fazen- 
das,  estrangulam-se  duas  pobres  creancjas,  uma  de  cada 
sexo,  para  Ihe  servirem  no  outro  mimdo  o  cachimbo  e 
o  tabaco  ;  envolvidos  depois  com  elle  nas  fazendas,  um 
pela  frente  e  a  outra  por  traz,  là  vao  para  a  cova,  que 
nunca  é  coberta  de  terra. 

0  que  se  tornou  notavel,  porém,  foi  que  inquirindo 
sobre  o  desagradavel  cheiro  que  na  libata  haviam  de 
exhalar  os  cadaveres  em  putrefaccjao,  so  cobertos  de  fa- 
zendas, fetido  que  sem  duvida  devia  incommodar  os 
habitantes,  obtivemos  a  seguinte  laconica  resposta: 

(f  A  libata  e  terra  e  d'elle,  està  no  seu  direito  de  chei- 
rar  mal!» 

Muene  Mungamba,  o  soba  da  localidade,  tendo  de- 
clarado  que  as  margens  do  Cucio  eram  por  tal  fórma 
lodosas  que  seria  impossivel  transpol-as  sem  indica- 


Loda^aes  e  lagoas  341 

9S0,  decidiu-ae  vir  em  pessoa  (depois  de  avultado  pre- 
sente, é  claro),  mostrar-nos  a  passagem  mais  conve- 
niente. 

Nada  mais  foi  preciso  para  que,  apenas  traneposto 
o  rio,  nos  atolassemos  todos,  gente  e  gado,  sendo  ne- 


cessario puxar  com  corda  a  um  e  um  os  boÌs  totalmente 
eniodados! 

Abandonàmos  n'este  logar  um  oiitro  homem,  por 
incapaz  de  caminhar. 


342  De  Angola  d  contro-costa 

Foi  por  està  epoclia  que  comecjou  a  apparecer,  conio 
se  disse,  urna  doencja  terrivel,  que  mais  tarde  havia  de 
arremessar  muita  gente  para  o  sepulcliro. 

Come9ava  por  uns  syniptomas  de  cansacjo,  a  que 
logo  se  seguia  magreza  esqiieletica,  ligeiros  tremores 
e  tendencia  para  a  abstrac(;ao. 

Cliegados  que  eram  ao  acampamento  os  atacados, 
sentavam-se  e,  indifferentes  a  tudo,  ali  passavam  mui- 
tas  lioras  absortos. 

Primeiro  comiam,  depois  era-llies  isso  difficil,  a  fa- 
diga  crescia,  augmentavam  os  tremores  nervosos,  a 
posicjao  vertical  tomava-se  intoleravel,  sobrevinham 
dejecijoes  alvinas,  logo  suores  frios,  e  no  curto  espaijo 
de  ciuco  ou  seis  dias  succumbiam! 

Diverso  foi  o  tratamento  que  Ihes  fizemos,  mas  a 
tudo  resistia  a  terrivel  doenija,  que  por  vezes  se  mani- 
festava,  momentos  antes  da  moi-te,  por  uma  desorga- 
nisaijào  nervosa,  que  levava  o  individuo  a  ver  os  obje- 
ctos,  e  querendo  d'elles  apoderar-se,  errar  o  sitio  onde 
estavam. 

Attribuimos  este  estado  de  cousas  a  uma  sorte  de 
meningite  cerebro-rachidiana,  que  teria  a  sua  origeni 
na  insola^ào,  na  fadiga,  mau  alimento  e  sobretudo  no 
habito  de  muitas  das  victimas  trazerem  a  carga  com 
frequencia  à  cabecja,  a  ponto  de  llies  tirar  o  cabello,  em 
vez  de  a  levarem  alternadamente  nos  honibros  para 
mellior  descanso. 

Para  alem  do  Cucio,  o  plateau  alonga-se  mais  plano 
e  monotono,  sem  a  menor  depressao,  corno  um  mar 
de  areia  resplandecente  sob  a  accjao  do  sol,  algumas 
vezes  coberto  de  rasteiros  capins,  d'onde  emergiam 


Lodaqaes  e  lagoas  343 

ai-vores  nodosas  e  enncgrecidas  pelo  fumo  das  recentes 
queimadas. 

Proximo  do  rio  Donerà  Aljenofue  entràmos  em  co- 
lossal  floresta,  deserta,  souibria  e  enorme,  cujo  aspe- 
cto  fazia  frio,  ape.sar  do  intenso  calor  que  nos  darde- 
java. 

Era  o  miicldto  de  Cajimballe,  selvagem,  bravio,  pri- 
mitivo, cujo  amago  emmaranhado  nos  suscitou,  quando 
espraiàmos  a  vista  por  meio  d'esses  troncos,  tetricos 
pensamentos  de  fraqueza  e  isolamento. 

So  o  elephante  consegue  abrir  passagem  por  entre 
esses  macissos  arvoredos  e  espessos  matagaes,  e  ali 
vive  isolado  dos  plainos  que  o  circumdam,  zombando 
dos  esfor^os  do  liomem,  que  nào  se  atreve  a  transpor 
OS  seus  limites. 

Pela  tarde  saimos  d'elle,  seguindo  as  pégadas  de 
dois  elepliantes,  e  viemos  aeampar  junto  de  imi  rio. 

Deixando  as  florestas,  entramos  em  planuras  alaga- 
das,  onde  serpeavam  alguns  riaclios,  cobertas  de  in- 
tenso capim,  e  n'um  ou  outro  ponto  de  houquets  de  pe- 
quenas  arvores. 

Aconteceu  niuitas  vezes  tomarmos  de  um  salto  ba- 
nlios  involuntarios,  embora  fossem  constantes  as  pre- 
cau^oes. 

Por  nuiis  attento  (pie  se  caminlie,  guiando  cuidado- 
samente  o  boi-cavallo  .sobre  o  taj)ete  extenso  de  relva, 
a  travessia  das  margens  lodosas  dos  rios  e  sempre 
perigosa,  pois  onde  a  agua  e  mais  baixa  e  o  terreno 
parece  nuiis  duro,  o  animai,  atolando-se  de  subito, 
projecta  o  cavalleiro,  após  um  salto  de  acrobata,  de 
costas  em  piena  lama! 


344  De  Angola  d  controrcosta 

Póde  imaginar-se  quào  penoso  deveria  ser  o  traba- 
Iho  de  desatolar  um  cavalleiro,  em  solo  escorregadlo, 
debaixo  de  sol  tropical. 

Um  vento  de  les-sueste  soprou  rigissinio  durante  o 
dia  18  de  agosto*,  e  similhando  o  simoun  cobriu  a 
atmospbera  de  poeira  e  cinza.  Grossos  cumulos  ao 
mesmo  tempo  appareceram  dos  quadrantes  meridio- 
naes,  e  pela  primeira  vez,  depois  de  quatro  mezes,  nos 
achàmos  à  sombra  de  uma  nuvem. 

As  difficuldades  encontradas  pela  expedicjao  em 
todo  o  trajecto  desde  o  Cubango  até  este  ponto,  foram 
taes,  que  de  fórma  alguma  convem  deixar  de  aqui  no- 
tar a  impossibilidade  de  poder  de  futuro,  em  similhante 
facha  de  terra,  tra9ar-se  caminbo  commercial  entre 
costas. 

A  zona  plana  que  se  comprehende  entre  o  Cubango 
e  o  Zambeze,  e  que  o  Lobale  delimita  pelo  norte,  fi- 
cando  pelo  sul  o  Chobe,  parece-nos  de  todo  o  ponto 
impropria,  se  nao  quasi  impossivel,  em  parte  do  anno, 
de  ser  cruzada  de  leste  a  oeste,  com  carregadores  ou 
animaes  de  qualquer  genero. 

0  viajante  que  a  ella  se  aventurar  conte  com  mezes 
de  dissabor,  no  meio  de  embara^os  de  todo  o  genero;  e 
se,  caminhando  vagaroso,  o  surprehenderem  as  aguas, 
fique  na  certeza  que,  embora  longe  do  Zambeze,  po- 
derà  muito  bem  deixar  com  a  ossada  a  unica  marca 
da  sua  passagem  ali! 


r 

J  E  facto  curioso  e  digno  de  notar-se,  que  a  20  de  agosto  de  1878 
encontrou  o  major  Serpa  Pinto  no  Ninda,  a  leste  d'este  logar,  um  pheno- 
meno  em  tudo  similhante  ao  que  citàmos. 


Lodo/^obes  e  lagoas  345 

Nao  é  facil  descrever  com  precisào,  sem  enfastiar  o 
leitor,  as  tremendas  difficuldades  que  devem  deparar- 
se  a  quem  a  esta9ao  pluviosa  ahi  surprehender. 

Na  compaiihia  de  numerosa  comitiva,  oppresso  pela 
fome  que  por  toda  essa  terra  reina,  circumdado  de  agua 
nas  planuras,  ou  entre  loda9ae8  na  proximidade  dos 
rios,  envolto  nas  gramineas,  batido  pelas  chuvas  e  ven- 
tos  da  quadra  das  trovoadas,  immerso  emfim  n'uma 
atmosphera  pestilencial,  sem  um  palmo  de  terreno  en- 
xuto  para  abrigo,  quem  em  tal  jneio  estivesse,  deve- 
ria  considerar-se  feliz,  se  conseguisse  escapar  a  tao 
estranho  curso  de  contratempos. 


PEIXE  DO  RIO  CONJUMBIA 


Nós  — que  tudo  haviamos  calculado  para  transpor 
està  regiao  na  melhor  quadra,  e,  levando  ca9adores  e 
bois,  lamos  de  certo  modo  prevenidos  contra  o  maior 
dos  perigos,  a  fome, —  ainda  hoje  recordàmos  com 
terror  essa  travessia  angustiosa,  onde  cada  jomada 
nos  deixou  uma  decep9ao,  e  cada  anoitecer  uma  que- 
bra  de  animo. 

Ah!  scenas  d'estas  experimentam-se,  nao  se  julgam, 
e  quando  o  auctor  insiste  em  descrevel-as,  obtem  comò 
recompensa  quasi  sempre  um  inopinado  cerrar  de  pal- 
pebras,  preambulo  de  gostoso  somno! 

Depois  o  isolamento,  a  separa9ao  dos  seres  civilisa- 
dos  é  comò  um  a90Ìte  que  traz  a  campo  tetricos  pen- 


346  De  Angola  d  controncosta 

samentos,  e  com  elles  vem  o  desanimo  pouco  de  fei^ao 
con  a  audacia  de  qiie  fatalmente  deve  achar-se  reves- 
tido  quem  joga  a  taes  emprezas.  Ha  milita  gente  que 
diz  nao  existir  mais  aborrecida  solidao  do  que  a  das 
grandes  cidades,  e  similliante  asserto  so  póde  ter  ori- 
gem  no  fiicto  de  nunca  se  liaverem  achado  n'uma  zona 
toda  deserta  do  grande  continente  africano. 

Na  monotona  Africa,  nem  os  mesmos  ollios  podem 
muitas  vezes  alliviar  o  espirito  do  triste  considerar, 
tao  invariavel  6  o  que  nos  cerca;  e  no  aborrecimento 
profundo  que  envolve  a  mente  comò  um  véu,  apenas 
a  dor  consegue  rasgar  de  longe  em  longe  pequenis- 
sima  fenda  por  onde  a  luz  da  realidade  penetra,  fe- 
rindo  o  intellecto. 

N'esta  terra  de  tedio,  à  medida  que  o  corpo  enfra- 
quece,  o  pensar,  tendo  na  robustez  d'este  a  garantia, 
vae  por  grada^oes  fraquejando  tambem,  e,  alterada 
a  necessaria  coordena9ao  de  seu  vibrar,  modifica  as 
imagens  e  no^oes  que  nós  temos  de  tudo,  por  urna 
maneira  singularissima. 

Perde-se  ou  esquece-se,  ao  cabo  de  tanta  injuria,  o 
amor  à  vida,  desprende-se  de  nós  a  nocjao  da  propria 
conserva9ao,  porque  là  abandonados  olvida-se  o  seu 
proprio  valor;  a  par  d'isto  afiguram-se-nos  ridiculos 
OS  mais  nobres  sentimentos,  e,  duvidando  por  fini  do 
successo  da  empreza  em  que  nos  acliamos  empenlia- 
dos,  cremo-nos  illudidos,  por  todos  ludibriados,  con- 
siderando com  màglia  n'aquillo  que  antes  liouveramos 
de  fazer. 

A  montmiania  suicida  aclia  aqiii  elementos  para  se 
aggravar,  e  aquelle  que  iiifelizmente  d'ella  se  possuir, 


Loda^aes  e  lagoas  347 

com  facilidade  toparà  argumento  convincente  para  llie 
dar  execu9ao. 

Agoitados  pelo  cyclone,  percorremos  rapidos  corno 
a  imagina^ao,  pelas  reflexoes  expendidas;  e  atraves- 
sando  a  direito  a  extensa  pianura,  entràmos  em  outra 
floresta  tambem  deserta. 

N'essa  especie  de  labyrintho  teve  a  expedi^ao  quc 
deter-se  largo  tempo,  a  firn  de  metter  em  frente  ho- 
niens  qiie  de  machado  em  punho  abrissem  uma  vereda 
a  caravana. 

Antonio,  incansavel  perseguidor  de  quanto  antilope 
pastava  em  socego,  nao  se  detinlia,  e  no  desespero  de 
OS  nao  encontrar  ao  alcance  da  espingarda,  preferia  o 
partido  de  attraliil-os. 

Assim,  momentos  depois  de  termos  alcan9ado  a  orla 
orientai  da  mata,  quando,  estirados  à  sombra  de  um 
arvore,  fumavamos  em  comprido  cacliimbo,  contem- 
plando reflexivos  o  céu  africano,  um  estranilo  som  nos 
chegou  aos  ouvidos,  fazendo  lembrar  uma  gazella,  que, 
transviada,  procurasse  a  mae. 

Nao  mediou  muito  tempo  sem  que  uma  denota9ao  se 
ouvisse  e  o  clamor  dos  nossos  evidenciasse  presa  re- 
cente. 

Dirigindo-nos  para  o  logar  da  ac9ao,  vimos  uma  ga- 
zella, que  Antonio  acabava  de  traÌ9oeiramente  ludi- 
briar  e  ferir,  e  que,  mirando-nos  com  seus  grandes  e 
.  ternos  ollios,  no  supremo  arranco  da  agonia,  parecia 
lan9ar-nos  uma  derradeira  censura  por  tao  torpe  pro- 
ceder. 

Simples  tubo  de  cannÌ90  fendido  de  um  lado,  para 
dar  entrada  a  peda90  de  foiba  de  qualquer  arvore,  eia 


348  De  Angola  d  controncosta 

o  instriimento  de  que  Antonio  se  servia  para  attrahir 
esses  timidos  animaes. 

Em  seguida  a  urna  marcha  da  floresta  entràmos  fé- 
lizmente  nos  dominios  e  residencia  de  Muene  Quìtìaba, 
regulo  de  urna  tribù  ba-iauma,  que  assim  se  chamam 
08  povos  ribeirinlios  do  Quando,  apesar  de  confundidos 
pelo  norte  com  os  amboellas,  de  quem  se  distinguem 
no  uso  dos  comprimentos,  acompanhados  de  ruidosas 
palmas,  conforme  o  costume  d'estes. 

DiflPerindo  no  aspecto  dos  liomens  do  sul,  é,  con- 
forme julgàmos,  gente  proxima  ainda  dos  ba-uano. 

Estavamos  abeirados  do  caudaloso  Quando,  cujas 
varzeas  alagadas,  de  2  milhas  por  banda,  so  podem 
transpor-se  na  confluencia  do  Quembo. 

Muene  Quitiaba,  que  d'isto  nos  preveniu,  oflPereceu, 
após  um  avultado  presente,  guias  para  nos  conduzi- 
rem  ao  ponto  de  passagem,  prestando  para  isso  as  suas 
canoas. 

0  disco  do  sol  nascente,  rubro,  em  meio  de  uma 
atmosphera  cacimbada,  encontrou-nos,  ao  erguer-se, 
jà  em  aprestos  de  partida. 

A  caminho,  e  mal  nos  approximàmos  do  curso  do 
rio,  compreliendemos  o  traballio  que  nos  estava  des- 
tinado. 

De  alem  a  terra  eleva-se,  e  o  Cuando,  escostando-se 
a  ella,  deslisa,  mal  consentindo  A^arzea.  Do  nosso  lado, 
porém,  um  len9ol  de  cannÌ90  se  estendia  até  onde  a 
vista  alcancjava,  nao  permittindo  distinguir  o  limite  da 
margem. 

Montando  os  bois-cavallos,  entestàmos  sob  a  direc- 
9ào  dos  guias  com  a  campina,  sumindo-nos  em  breve 


Lodaqaes  e  lagoas  349 

por  meio  do  emmaranhado  arundo.  Pouco  a  pouco  o 
terreno  amollece,  logo  depois  surge  a  agua,  onde  os 
bois  patinham.  A  meia  niilha  jà  dava  peloa  joelhos 
ao»  auimacs,  a  tres  quartos  pelo  ventre,  mais  àvante 
cobria-lhes  os  peitos,  fazendo  nós  e  ellcs  curso  no  ìrn- 
mido  fluido,  rompendo  a  casto  pelo  denso  cannavial. 


Por  vezes  urna  depress5o  ou  outra  obriga  os  ani- 
maes  a  movimentos  irregulares,  que  aniea^am  o  equi- 
librio do8  cavalleiros;  a  agua  dd-nos  pelos  joellios,  e, 
esfriando  os  menibros  inferiores,  prosegue  vagarosa 
pelo  effeito  da  osmose  sobre  a  flanella. 

O  teiTeno  1:iaixa,  a  agua  jà  cliega  à  garupa;  de  su- 
bito 08  bois  come9ani  a  nadar,  e,  desequilibrando  os 
cavalleiros,  atiram  com  elles  em  sentidos  diversos! 


350  De  Angola  d  contrd-costa 

Uf!  iim  banho  inesperado,  a  que  os  guias  respon- 
(lem  erguendo  os  pannos  à  altura  da  cabe^a  e  mos- 
trando graciosamente  diias  fiadas  de  dentes  brancos 
conio  o  jaspe! 

Proseguindo  coni  agua  pelos  peitos,  fonio»  andando 
na  extensao  de  2  niilhas,  até  que,  abeirando-nos  de 
unia  pequena  illia,  apenas  elevada  2  pahnos  acima  do 
nivel,  ahi  suspendemos,  por  nos  aeliarmos  na  con- 
fluencia  dos  rios. 

O  Queinbo  renne  n'este  logar  as  suas  aguas  às  do 
Cuando,  e  olhando  em  redor  mal  poderianios  dizer 
se  estavamos  na  confluencia  ou  no  nieio  de  qnalqner 
d'elles. 

Era  um  mar  em  volta  da  caravana,  extenso  e  co- 
berto  de  cannic^o,  onde  o  leito  do  Cuando  so  se  eviden- 
ciava  pelo  movimento  da  agua  para  o  sul. 

0  rio  propriamente  tem  agora  70  a  80  metros  de 
largo;  na  quadra  das  cliuvas  o  seu  curso  deverà  ser 
de  3  millias,  ou  pouco  menos,  tomando-se  entào  so 
navegavel  por  caiioas  de  grande  tamanlio. 

Extenuados  e  tiritando,  ali  passàmos  tres  etemas 
horas,  assistindo  cuidadosos  ao  transporte  do  material, 
d  espera  a  todo  o  momento  de  ver  abysmar-se  para 
sempre  o  exito  dos  nossos  esforcjos,  confiado  aos  es- 
treitos  esquifes  de  que  os  indigenas  se  servem. 

Depois  chegou  a  vez  do  transporte  do  gado,  que^ 
derivando  rio  abaixo,  esteve  em  perigo  de  perder-se 
por  nao  poderem  algiins  escalar  a  encosta  fronteii'a, 
até  que  alfim  se  seguiram  os  tristes  chefes,  os  quaes, 
ensopados  e  famintos,  transpozeram  pelas  tres  horas 
d'este  memoravel  dia  o  rio  Cuando! 


Lodaqaes  e  lagoas  351 

Nao  podemos  rigorosamente  concluir  se  este  rio 
afflile  ao  Zambeze*  ou  ao  Cliobe;  o  qiie  nos  afian^a- 
ram,  porém,  os  naturaes  foi  que  o  Oliando,  antes  de 
affluir  ao  grande  rio,  estreita  para  passar  debaixo  (ou 
entre?)  grandes  rochas,  e  alarga  depois  até  ir  desa- 
guar  n'elle. 

Para  o  sul,  alongam-se  a  perder  de  vista  plainos 
immensos,  que  nós  almejavamos  abandonar.  Arvorada 
a  bandeira  das  quinas,  acampou  em  redor  a  expedi- 
9ao  n'esse  sitio,  onde  nunca  europeu  estiverà,  e  corno 
tivessemos  comprado  mantimentos,  passou-se  a  noite 
em  galhofa  junto  das  fogueiras.  Uma  densa  floresta  de 
espinheiros  veste  as  20  milhas  que  distam  do  Cuando 
ao  rio  Muesse,  que  a  caravana  atravessou  sem  descan- 
sar, deixando  n'ella  o  fato  e  uma  parte  da  pelle. 

Encontràmos  aqiii  millio,  de  que  nos  refizemos  para 
as  marchas  futuras,  pois  que  mais  longe  nos  assegura- 
ram  nao  liaver  abundancia.  0  massango  tende  a  des- 
apparecer,  porque  a  fraqueza  das  terras  e  tal  que  nem 
tabaco  dào,  produzindo  mantimento  so  nas  varzeas  dos 
rios.  As  diflferen^as  de  longitude  por  nós  encontradas 
jà  montam  a  24  milhas  n'este  meridiano,  levando-nos 
a  crer  que  grandes  diflferen^as  existem  para  o  diante. 

Abaiando  do  Muesse  cortàmos  por  meio  de  terras 
aridas,  ou  mal  arborisadas  para  les-nordeste,  topando 
ao  cabo  de  12  milhas  com  um  rio. 


1  De  numcrosos  aziinuths  tomados  d'oste  logar,  segundo  a  direc^jlo 
iudicada  pelos  indigenaS)  devia  deprehendcr-sc  estju*  a  conflueucia  no 
Zainbeze,  e  mesmo  proximo  de  Litofe;  nào  é  està,  porém,  uma  iudica9ào  que 
mere^a  confian^a. 


352  De  Angola  d  controncosta 

Era  o  Cuti,  conhecido  no  Nano  por  Cussibi. 

0  grande  trilho  commercial  do  Bié  sobre  qua  estava- 
mos  prolonga-se  pelo  lado  norte  do  dito  rio,  para  n'esta 
altura  o  cortar,  dirigindo-se  ao  valle  do  Ninda. 

Tra<;aram-no  assim  os  bienos  por  saber  a  impossi- 
bilidade  em  que  se  achariam,  no  tempo  das  aguas,  de 
transpor  com  cargas  o  curso  alagado  do  Quando  e  as 
varzeas  lamacentas  do  Cuti. 

Agora  mesmo,  no  tempo  da  estiagem,  o  solo  tremia 
sob  OS  nossos  pés. 

Apenas  estariamos  3**  ao  sul  de  Quioco,  e  sem  embar- 
go, quao  grande  era  a  diiFeren^a  entre  està  terra  e 
aquella  onde  ora  nos  achavamos,  assim  comò  entre  a 
regiào  drenada  pelo  Congo  e  a  alagada  do  Zambeze. 

0  Quioco  — esse  paiz  magnifico,  coberto  de  bos- 
ques,  sulcado  de  limpidos  regatos,  varrido-  por  ventos 
frescos;  abundante  em  ferro,  que  por  toda  a  parte  se 
encontra  em  limonite  e  pepitas,  no  qual  os  indigenas 
trabalham  com  muita  habilidade;  com  uma  flora  que 
sustenta  milhoes  de  republicas  de  abelhas,  origem  da 
principal  riqueza  do  paiz,  a  cera  e  o  mei;  cujos  habi- 
tantes,  altos  e  esbeltos,  nos  haviam  recebido  aiFavel- 
mente —  era  aqui  substituido  por  uma  campina  rasa, 
alagada,  triste,  onde  os  liomens  suspeitosos  nada  ti- 
nham  que  nos  ofi*erecer,  e  a  natureza,  comò  zombando 
d'aquelles  para  quem  a  comida  e  a  aguardente  consti- 
tuia  o  tliema  unico  dos  seus  pensamentos  e  sonlios,  Ihes 
mostra  invejaveis  volumes  de  carne,  sobre  as  rapidas 
pemas  das  zebras  e  gazellas. 

Existe  ainda  hoje  no  vulgo,  e  mesmo  entre  pessoas 
distinctas,  que  mais  ou  menos  conhecem  a  Africa  por 


Lodaqaes  e  lagoas  353 

d'ella  ouvirem  fallar,  a  idèa  de  que  é  em  grande  parte 
constituida  por  um  paiz  plaino,  arido,  areioso  e  mono- 
tono, onde  o  viajante,  escorrendo  sob  um  sol  abraza- 
dor,  se  afadiga  a  marchar  em  terreno  movedÌ90. 

E  està  idèa,  quando  apurada  para  comparar  com 
as  descripcjoes  feitas  por  muitos  viajantes  do  aspecto 
das  terras  por  elles  percorridas,  onde  figuram  zonas 
montanbosas,  cordilheiras  correndo  parallelamente  aos 
merìdianos,  serras  comò  Kilimandjaro  e  o  Kenia,  con- 
trasta por  tal  maneira  com  ellas,  que  tem  sido  em 
geral  condemnada. 

Ora  é  isso  que  inteiramente  se  nao  póde  fazer  em 
rigor,  e  esses  senbores,  que  desgostosos  devem  ter  fi- 
cado  ao  dissipar-se-lbes  unia  idea  querida,  que  tinbam 
pliantasiado  àcerca  das  luctas  e  soffrimentos  experi- 
mentados  pelos  viajantes  em  Africa,  devem  saber  que 
alguma  cousa  ba  com  effeito  de  verdade,  pelo  menos 
quanto  aos  i)lainos  e  areias,  e  que  é  no  Lobale  onde 
elles  podem  dar-se  o  prazer  de  encontrar  a  realisa9ao 
dos  seus  pensamentos. 

Este  enorme  continente,  de  60.000:000  kilometros 
quadrados  de  superficie,  guarda  cuidadoso  um  variado 
menu  de  paizagem,  onde  golpes  de  vista  pittorescos  se 
alternam  com  a  decep9ao  inopinada  de  quadros  de 
tristeza,  proprios  a  satisfazer  todos  os  gostos  de  touris- 
te,  e  onde,  se  è  facil  encontrar  a  montanba  de  impossi- 
vel  accesso,  nao  menos  o  é  descobrir  a  pianura,  que 
esteril  umas  vezes,  alagada  outras,  confirma  as  idèas 
citadas. 

Foi  por  estas  rasoes  que  a  bacia  do  alto  Zambeze 
muito  nos  impressionou  ao  descer  das  vertentes  dos 

2S 


354  De  Angola  d  contra-costa 

plateaus  do  oeste,  e  quc  n'essa  terra  sem  pedras  (no 
dizer  dos  nossos  conipanliciros)  todos  os  soflPrimentos 
augmentarani. 

Paiz  de  franzina  vegetaijào  a  principio,  toma-se  para 
aleni  do  Cuti,  conio  6  de  uso  inodemamente  dizer, 
Ijark'like. 


CAPITITLO  XlìI 


NO  VALLE  DE  BAROTZE 


Lobnlo,  is  a  land  of  inorasse^  and  dangerous  boga 
in  which  ini-nutiouH  wiiyfarers  ofteu  perifth. 

cooLEY.  —  Inner  Africa  La'td  open. 


A  Ina  de  agosto  e  os  iiossos  reciùos  —  Idra  gcral  sobro  a  distril)uivao 
das  oliuvas  iia  Africa  tropical  do  sul  —  O  doud-ring  o  o  scii  movimento 
para  o  meio  dia — Kctardaiiiciito  na  marclui  pelo  oriento — 0  limite  sul  e 
as  quatro  estavòo»  —  As  marchas  do  Cuti  e  Muene  Lionze  —  0»  acampa- 
mentos  de  Silva  Porto — O.^  man-bunda  e  o  elcpliante — Curiosidades — 
0  Ninda  e  unui  sepultura  —  Aspecto  pittoresco  do  valle  —  0  òco  e  o  seu 
aroma — A  caya  e  um  obito  Perda  de  eomiianlieiro — Gnu,  cabra  e  n*caca 
—  0  sileucio  da  noite  —  C'alungo-lungo  e  os  luinas —  Typo  d'oste»,  e 
pouca  importancia  das  entrevistas  africanas  —  0  paiz  é  um  pai'que  ;  abun- 
dancia  dos  aninuies  n'elle  — Os  càos  e  seu  prestimo  na  ca^*a  do  gnu — 0 
alagamento  crescente  da  terra  —  Ausencia  do  tabaco  e  preaenva  da  pal- 
meira  —  Guia  fejticeiro  e  adivinlmvào  inesperada  —  Os  ba-nliengo  ladròes 
— Muene  Munda  e  os  seus  dotes  physicos  —  Um  capote  de  intestinos  de 
elepbante  —  A  uuisica  e  um  baile  de  doze  lioras  —  Impressilo  {U'oduzida 
pela»  beldades  da  terra  nos  auctores  d'estas  linlias  —  A  caga  e  a  quadra 
da  creac^'ào  —  0  acampamento  pela  noite —  Multiplicam-sc  as  lagoas  —  A 
cxpediySo  emfim  attinge  o  Zambeze. 


A  Ina  nova  de  agosto  passdra  sem  chuva  e  08  nos- 
B08  receios  (liminuìram,  pela  certeza  de,  pelo  menos, 
termos  mais  um  mez  de  estìagem  por  aquellas  terras; 
circumstancia  està  de  alta  ìmportancia  na  execmjao 
do  nosso  plano,  pois,  desejando  cortar  n'uraa  dìagonal 
do  Cuando  para  a  conflucncia  do  Lungué-Bungo  com 
o  Liambae,  pensavamos  (caso  nos  surprehendesse)  fi- 
car  envolvìdos  no  Lobale  em  melo  de  lagoas  e  panta- 
no8,  que  talvez  inhibiasem  a  caravana  de  proseguir. 


358  De  Angola  d  cantra-costa 

E  il  final  eram  j)recii)itados  os  nossos  receios,  loiige 
ainda  vinlia  a  quadra  em  que  fariam  o  seu  appareci- 
mento. 

Doseonhecendo  a  epocha  eni  quo  principiani  as  tro- 
voadas  por  aqiiella  regiao,  ou  niellior,  faltando-nos  so- 
bre  isso  infornia^oes  exactas,  andavam  nossas  suspei- 
tas  à  revelia,  e,  aggravando-se  agora  pela  lembran^a 
da  immobilidade,  traziam-nos  em  constante  sobresalto, 
à  espera  das  primeiras  tenqjestades  n'iima  epocha  em 
que  nunca  ali  se  realisani. 

Poucos  sao  ainda  lioje  os  logares  em  Africa  onde 
se  tenliam  feito  exactas  observa(;oes  sobre  està  ordem 
de  plienomenos.  Ila  apenas  indicios  vagos  aqui  e  alem, 
provenientes  do  traballio  de  viajantes,  que,  pelo  cara- 
cter  de  mobilidade  de  suas  missoes,  mal  podem  para 
determinado  ])ont()  coordenar  d'ellas  uma  ou  duas  du- 
zìas.  E  por  esse  motivo  e  tambein  diffieil  ao  que  se 
aventura  pelo  interior,  corrigir  pequenas  differen^as 
nas  epocha s  mais  aproveitaveis  para  a  travessia  d'està 
ou  d'aciuella  zona. 

Achando-nos  nas  mesmas  circumstancias,  torna-se 
impossivel  sobre  o  assumpto  e  em  limitadas  linlias  lau- 
dar segura  luz  ;  todavia,  podendo  a  este  respeito  dizer 
alguma  cousa  em  face  da  nossa  pratica,  e  justo  que  o 
consigiiemos  aqui. 

Convem  j)rimeiro  lembrar  que  a  Africa  tropical  do 
sul,  cercada  ao  oeste,  leste  e  meio  dia  por  oceanos 
que  pela  evaporacelo  llie  devem  fornecer  copiosissimas 
chuvas,  e  varrida  por  ventos  que,  embora  no  mar  te- 
nliam uma  directriz  fixa,  comò  o  sueste  do  Indico  e  o 
su-sudoeste  do  golfo  de  Guiné,  variam  um  pouco  na 


No  Valle  de  Barótze  359 

terra  firme,  coni  o  movimento  do  sol  entre  o  equador 
e  o  tropico,  resultando  que  aqiielles  principios,  em  vez 
de  seguirem  leis  geraes  e  invariaveis  comò  era  de  es- 
perar, se  modifiquem  as  vezes  frisantemente  e  escapem 
a  rigorosa  siibordina(;ao  (pie  tinhamos  na  idea  imi)or- 
llies. 

As  chuvas  da  Africa  intertropical  do  sul  regulam 
pelo  movimento  pendular  da  verticalidade  do  sol  so- 
bre  OS  diversos  pontos  do  continente,  subordinadas 
ainda  ao  sopro  constante  das  mon(;6es  de  um  e  outro 
lado.  D'estes  dois  factores  combinados,  porcm,  procede 
a  nosso  ver,  para  a  zona  nublosa  equatorial  (cloud- 
rhì<])y  um  movimento  especialissimo,  cuja  no^ao  ahi 
fica  esbo^ada. 

Se,  compulsando  as  narrativas  dos  viajantes  africa- 
nos,  procedessemos  a  compila(;ao  rigorosa,  alias  in- 
admissivel  nos  limites  de  um  capitulo,  acliariamos  que 
no  Chinclionxo  e  no  Congo  comec;a  a  chuva  em  princi- 
pios de  setembro;  que  no  Cuango  as  tivemos  emnossa 
primitiva  viagem  em  fins  de  agosto;  que  na  costa  de 
Angola  come9arani  ellas  nos  primeiros  dias  do  dito 
mez  de  setembro;  que  no  Manuyema  sao  em  outubro, 
beni  comò  no  Bangueolo  e  nos  fins  dV*ste  mez  no  alto 
Zambeze,  no  Aroangua,  e  ainda  em  Zanzibar,  para  em 
uovembro  apparecerem  pela  terra  que  medeia  entre  o 
Xyassa  e  a  costa,  caindo  tambem  n'esta  mesma  qua- 
dra em  Mo^ambicpie. 

De  tudo  isto  parece  inferir-se  que  a  linlia  que  de- 
limita pelo  sul  (se  assim  nos  e  licito  exprimir)  a  faclia 
nublada  da  Africa  tropico-meridional,  e  (pie  nos  me- 
zes  de  junlio,  jullio  e  agosto  se  conserva  estacionaria 


360  De  Angola  d  controrcosta 

&  beira  do  parallelo  de  4**  sul,  so  cometa  a  mover-se 
com  a  proximidade  do  equinocio  do  outono  a  cami- 
nlio  do  meio  dia,  nao  conservando  a  perpendiculari- 
dade  ao  meridiano,  mas  inclinando-se  e  proseguindo 
parallelamente  àquella  que  vae  de  Benguella  à  illia 
de  Zanzibar. 

Està  direc9ao  faz  adiantar  a  parte  occidental,  do 
que  resulta  o  caso  notado  em  toda  a  metade  de  oeste 
do  continente,  se  nao  na  orientai  tambem,  de  virem 
pelo  noroeste  as  primeiras  trovoadas  de  setembro,  cor- 
roborando um  facto  assàs  conhecido,  e  que  observàmos 
nas  indica9oes  dos  viajantes,  a  saber:  que  para  iguaes 
latitudes  n'uma  e  outra  costa  da  terra  africana,  as  chu- 
vas  apparecem  mais  tarde  a  leste  do  que  no  oeste,  e 
do  mesmo  modo  a  meio  do  continente  ellas  se  verifi- 
cam  n'uma  epocha  intermedia  ou  proxima,  onde  pre- 
cisamente a  igualdade  da  declina9ao  e  latitude  marca 
o  come90  das  primeiras  tempestades,  e  grandes  quédas 
de  agua. 

Este  retardamento  de  marcha  pelo  oriente,  segundo 
vemos,  se  póde  ter  origem  nos  caracteres  physicos  do 
continente,  nao  deixa  comtudo  de  ir  buscar  uma  causa 
no  rumo  dos  ventos  reinantes  e  sua  influencia,  encon- 
trando  muito  naturai  explica^ao  no  esfor90  opposto  do 
sueste  do  Indico,  que,  invadindo  a  superficie  da  terra 
negra,  se  Ihe  oppoe  ao  caminhar,  impellindo-a  para  o 
(quadrante  do  occaso  do  sol,  bem  comò  na  abundancia 
de  vapor  que  os  ventos  do  sul  do  Atlantico  Ihe  enviam 
de  ponto  proximo,  preparando-lhe  ao  mesmo  tempo  a 
condensa9ao  pela  baixa  da  temperatura  nas  terras  ele- 
vadas. 


No  Valle  de  Barótze  361 

Entao  (lesencadeiam-se  os  elementos,  constituindo 
a  pequena  estacjao  chuvosa,  que  segue  ininterrupta- 
mente  até  come908  de  dezembro,  e  pouco  a  pouco  a 
facha  nublosa,  alastrando  por  toda  a  parte,  desde  o 
occidente  até  ao  oriente,  desfaz-se  eni  catadupas,  que 
a  principio  sempre  trovoadas  do  noroeste  produzem  e 
depois  formam  pela  banda  do  sueste,  d'onde  nas  gran- 
des  chuvas  sopraram  constantemente  as  mais  terriveis 
tempestades. 

Nao  é  facil  acertar  aqui,  nem  ha  mesmo  elementos 
sufficientes  para  isso,  coni  a  latitude  attingida  em  seu 
movimento  para  o  meio  dia  pela  zona  nublosa  equato- 
rial  atravez  do  continente,  sob  a  influencia  do  sol  ;  tudo 
leva  a  crer  porém  que,  ao  menos  na  costa  de  oeste,  ella 
nao  vae  muito  longe  do  parallelo  austral  de  12®  ou  13®, 
pois,  conio  de  sobra  està  conliecido,  as  cliuvas  sao  ir- 
regulares  ou  raras  pela  latitude  de  Mossamedes,  muito 
para  o  sul  mesmo,  e  até  para  o  interior  no  Cubango 
por  16®  e  18®. 

Em  resumo,  póde  dizer-se,  a  fim  de  terminar  sob 
ponto  de  vista  um  pouco  generico,  porquanto  para  o 
oriente  as  cousas  se  retardam  de  algum  modo,  que, 
sendo  quatro  as  esta9oes  por  aqui,  duas  de  estiagem  e 
duas  de  chuva,  se  acliam  approximadamente  distribui- 
das  da  seguinte  fórma: 

1.*  Pequena  esta9ao  das  cliuvas,  aquella  que  come- 
ta com  a  passagem  do  sol  no  zenith,  quando  este  vem 
do  tropico  de  cancer. 

2.*  Pequena  estacjao  de  estiagem,  a  que  tem  logar 
quando  o  astro  do  dia  descreve  o  tropico  de  capricor- 
nio. 


3G2  De  Angola  d  contro-costa 

3.*  Grande  estac^iio  das  chiivas,  quc  principia  com 
a  passageni  do  sol  no  zenitli,  quando  se  dirige  do  tro- 
pico de  capricomio. 

4.*  Grande  esta^ào  da  secca,  a  que  tem  logar  quan- 
do o  sol  se  avizinha  do  tropico  de  cancer. 

Yj  aqui  se  podenl  tambem  acrescentar,  que,  se  mais 
cuidadosamente  houveramos  meditado  todas  estas  cir- 
cumstancias,  nao  so  poupariamos  o  tempo  que  leva- 
mos  a  reflectir  n'esse  problema  de  importancia  pra- 
tica, mas  teriamos  evitado  os  estranilo»  sobresaltos  de 
que  fomos  victimas,  esperando  logo  em  agosto  as  chu- 
vas  no  Zambeze  e  terras  adjacentes. 

0  rio  Cuti  é  aproveitado  pelos  indigenas  para  a  na- 
vega^ao,  vendo-se  constantemente  numerosas  canoas 
subindo  e  descendo  carregadas  de  generos  e  de  gente, 
de  proveniencias  diversas. 

Os  ba-iàuma  sào  habeis  marinheiros,  assim  comò 
as  mulheres,  que  por  vezes  observamos  de  vara  na 
mao,  dirigindo  as  embarcacjoes. 

As  varzeas  d'este  curso  de  agua,  enibora  seccas 
e  endurecidas  pela  superficie,  acham-se  inferiormente 
n'um  tal  estado  de  lodosa  consistencia,  oscillando  sob 
OS  nossos  passos,  que  so  conseguimos  que  o  gado  trans- 
pozesse  o  rio  com  o  auxilio  dos  indigenas.  0  sobeto  da 
localidade,  um  d'esses  transfugas  que,  para  descredito 
nosso,  se  apresentam  nao  raras  vezes  comò  portu- 
guezes  aos  viajantes,  intitulava-se  Muene  Liovze,  e 
era  mais  nem  menos  de  que  um  desertor,  o  onze 
de  qualquer  companhia  de  ca^adores,  que,  evadin- 
do-se  de  Benguella  com  a  propria  arma,  para  ali 
viera  estabelecer-se.  Exigia  cartuchame  Snider  com 


No  Valle  de  Barótze  363 

tal  atrevimento,  que  liouvemos  por  mellior  offerecer- 
Ihe  com  urna  cabala  de  jjoinbé  na  physionomia,  a  firn 
de  o  conter  nos  limites  do  respeito  que  se  obstinava 
em  esquecer,  lamentando  que  nao  fosse  o  nosso  carni - 
nlio  para  a  costa  de  oeste,  a  firn  de  o  levar  de  presente 
à  auctoridade. 

Allegava  em  defeza  da  sua  insistencia  o  facto  de 
llie  ter  Serpa  Finto  dado  muito  cartuchame,  do  que 
tambem  duvidàmos,  por  sabermos  quanto  elle  e  cioso 
e  economico  de  similliante  genero  de  artigos,  tao  ra- 
ros  no  mato. 

Depois  de  atravessarnios  urna  longa  floresta,  onde 
a  natureza  siliciosa  do  terreno  se  accentua  em  tractos 
de  areia,  transpozemos  o  Cliicolui  no  meio  de  uma  nu- 
vem  de  lepidopteros  de  variegadas  cores,  encontrando 
n'este  locai  uni  recente  acampamento  de  Silva  Porto. 
0  ousado  sertanejo  devia  mez  e  meio  antes  ter  passado 
por  ali,  em  viagem  do  Lui  para  o  Bit'. 

Estivemos  uni  dia  todo  junto  ao  rio,  em  consequen- 
cia  dos  esforcjos  empregados  para  o  atravessar  com  o^ 
gado. 

Uma  comitiva  de  man-bunda  (ca9adores)  appareceu 
ali,  carregada  de  carne  secca  de  depilante,  e  pela 
primeira  vez  em  iiossa  vida  tivemos  occasiao  de  ver 
a  descoberto  os  musculos  do  enorme  pachyderme,  que 
em  verdade  se  os  liouveramos  encontrado  dispersos 
pelo  elmo,  mais  depressa  tomariamos  por  peda(;os  de 
madeira  ennegrecida  pelo  fumo,  do  que  parte  inte- 
grante de  (piahpier  organismo  animai. 

Divagavam  estes  homens  havia  mezes  pelas  selvas, 
comendo  mei  oii  carne,  e  tao  nedios  e  luzidios  se  acha 


364  De  Angola  d  contro-costa 

vam,  que  comecjàmos  soffregos  a  appetecer  essa  cho- 
ruda  alimentacjao  ! 

Contaram  elles  que,  tempo  antes,  um  dos  seus  com- 
panheiros  fora  atacado  por  grande  elephante,  cujo,  col- 
locando-o  cuidadosamente  sob  urna  das  patas,  o  havia 
reduzìdo  ali  às  tristes  propor^oes  de  enorme  pastelao! 
0  mais  notavel,  porém,  foi  que  o  cruel  proboscida, 
depois  de  finda  a  triste  tarefa,  nao  querendo  que  o 
infeliz  corresse  os  perigos  talvez  da  insola9ao,  diri- 
giu-se  cauteloso  à  arvore  proxima,  e,  esgalhando  os 
ramos  que  Ihe  aprouve,  cobriu  delicadamente  os  restos 
informes  da  victima. 

«Sao  muito  curiosos  os  elepliantes  !  »  replicou  logo 
um  interlocutor,  descrevendo  enthusiasmado  comò  um 
d'estes  animaes,  em  sua  pre8en9a,  colhéra  um  liomem 
com  a  tromba,  e  o  entalàra  de  ventre  para  o  ar,  em 
grosso  tronco  previamente  rachado,  abaiando  no  meio 
da  mais  galhofeira  alegria! 

Que  originai! . . . 

0  Combulé,  rio  que  adiante  deslisa  no  meio  de 
branca  e  solta  areia,  é  o  divisorio  das  terras  dos  ba- 
iàuma  e  dos  ba-róze,  pelos  bienos  denominados  lui- 
nas. 

E  deserto  aqui  o  terreno,  coberto  de  matas,  onde 
ha  muito  mei  n'esta  quadra,  vendo-se  por  toda  a  parte 
gente  a  chupar  nos  dedos. 

Para  attingir  as  nascentes  do  Ninda,  tivemos  de 
atravessar  nova  floresta  fecliada,  em  que  uma  sub- 
vegetacjao  de  mupas,  agora  despidas  de  folhas,  nos 
fustigava  constantemente  com  as  rigidas  varas,  dei- 
xando-nos  em  deploravel  estado. 


No  Valle  de  Barótze 


365 


Quando  chegàmoa  àquelle  rio,  deparou-ae-nos  um 
eapectaculo  commovente,  especie  de  visSo  ineaperada 
em  meìo  do  deserto,  que  nos  levou  o  espirito  a  consi- 
dera9oea  de  ordem  triste,. entibiando-nos  o  animo  por 
alguns  momentos,  e  recordando-nos  corno  podem  ter- 
minar as  mais  arrojadaa  emprezas  humanaa. 


Era  a  cruz  symbolica  erguida  na  cabeceìra  de  uma 
modesta  scpultura,  marcando  o  logar  de  descanso  de 
compatriota  nosso,  que  fora  victima  de  mal  ferido  bu- 
falo. 

O  valle  do  Ninda  é  extremamente  pittoresco  e  odo- 
rifero n'esta  epocha,  pois  abunda  n'elle  uma  ai-vore 
que  08  naturaes  cbamam  6co,  cujas  flores,  espalliadas 
pelo  vento,  atapetam  o  solo,  rescendeiido  d'ellas  deli- 
cioso  aroma. 


366  De  Angola  d  contrd-costa 

Serpeando  em  larga  varzea  de  capim,  na  qual  se 
apascentam  bufalos,  gniis  e  zebras,  ladeado  por  dois 
renques  de  fechada  mata,  onde  o  elepliante  e  o  leao 
se  acoutam,  o  alegre  valle,  com  seu  risonho  aspecto, 
desannuviàra  tristezas,  parecendo  levar-nos  para  a 
terra  da  promissao. 

Ao  acam})ar  do  primeiro  dia  demos  em  terra  com 
urna  formosa  palanca,  Hypp.  eqrnnus,,  ciijo  desenho 
apresentàmos. 

Sepultiimos  ahi  uma  pequenita  qiie  morreu  ao  nas- 
cer, succumbindo  taiiibeni  na  segiinda  marcila  um  car- 
regador  àqnella  sorte  de  meningite  de  que  jà  tivemos 
ensejo  de  fallar. 

Continuando  a  caravana  em  perseguitilo  da  ca^a, 
cairam  um  gnii  e  uma  cabra  de  agua,  bem  comò  uma 
especie  de  tartaruga,  Emìjdes?  e  um  n'caca,  Manis  tnìi- 
mincld. 

Continuam  as  matas  desertas,  dominio  so  de  ele- 
phantes,  macacos,  liyenas  e  girafas,  de  que  julgàmos 
ter  visto  pégadas. 

Silencio  se})ulchral  envolve  pela  noite  a  extensa 
zona,  onde  vagueiam  cautelosos  e  esfaimados  todos 
esses  haljitadores  dos  bosques  em  procura  de  alimen- 
to. Apenas  de  quando  em  quando  o  pio  dq  desconhe- 
cida  ave  nocturna,  com  dois  assobios  e  um  trilo  final, 
quebra  o  profimdo  socego  d'estas  solidoes,  a  que  por 
vezes  respondem  os  gritos  do  malarico,  ao  elevar-se 
estremunhado  da  margem  do  rio,  })rovando  seni  du- 
vida  que  algum  quadrupede  se  approximàra  da  agua. 
O  vento  abrandou,  e  apenas  comò  lenitivo  d'este  som- 
brio quadro,  se  nao  para  entristecer  com  penosas  re- 


No  Valle  de  Barótze  367 

cordacjoes,  tudo  branqueia  de  prata  a  brilliante  lua 
de  agosto. 

Luctam  de  esfor90s  o  silencio  e  a  solidao,  e  ein- 
quanto a  sombra  da  meia  noite  de  pc  e  aprumada  no 
ponto  mais  distante  do  dia  caminlia  pela  superficie  da 
terra  à  cata  de  uma  luz  que  jamais  logrq,  encontrar, 
a  imaginacjao  assombreada  por  tetricos  pensamentos 
assalta  o  inquieto  espirito,  revolve-o,  escurecendo-o 
tambem. 

E  nós,  erguendo-nos,  niiravanios  em  volta  os  vultos 
tisnados  dos  nossos  companheiros  de  infortunio,  e  ao 
vel-os  pacificamente  adormecidos,  tendo  apenas  no  cre- 
pitar das  fogueiras  uma  l)arreira  as  famintas  guelas 
que  de  longe  os  appetecem,  reflectiamos  na  miseria  da 
nossa  situa9ao,  para  depois,  contemplando  o  astro  da 
noite,  dirigirmos  pungente  saudade  para  a  distancia 
ainda  a  percorrer. 

0  trillio  e  feito  ao  longo  do  rio;  a  caravana,  anciosa 
por  cliegar  ao  Zambeze,  caminlia  rapida  por  elle. 

Nem  um  ser  humano  se  encontrou  em  todo  o  traje- 
cto  do  Ninda,  a  nao  ser  na  proximidade  da  confluen- 
cia  coni  o  Nliengo,  onde  vimos  as  primeiras  liabita- 
9oes. 

Muene  Calungo-lungo  era  regulo  n'esses  sitios,  cu- 
jos  povoadores  nos  pareceram  um  mixto  de  man-bun- 
da  e  barótze,  de  mais  feia  catadura  que  os  encontra- 
dos  até  ali,  differindo  muito  os  seus  comprimentos, 
feitos  n'um  aperto  reciproco  das  duas  maos,  dos  que 
usam  OS  ba-iàuma,  que  se  limitam  a  um  })unhado  de 
terra  arremettido  ao  peito,  a  que  se  seguem  palmas 
compassadas. 


368  De  Angola  d  contro-costa 

Pela  tarde  passou  uni  bando  de  luinas  pelo  nosso 
campo,  coni  as  suas  pelles  ao  liombro,  penteados  de 
tran^as  coni  contarla»  e  pennas,  inanìllias  de  cobre, 
longas  zagaias  de  niadeira  e  ponta  de  ferro,  amplos 
escudos,  lembrando  os  dos  landin»,  cor  esciira,  aspe- 
cto  robusto,  o  todo  enifini  attraliente.  Embora  nasci- 
dos  e  creados  em  regiào  plana  e  pantanosa,  onde,  por 
varia»  vezes  tenios  dito,  o  liomeni  deve  fatalmente 
soffrer  pela  influencia  miasmatica,  perdendo  em  vigor 
a  sua  constitui^So  pliysica  e  inental  pelo  envenena- 
mento  palustre;  os  que  observàmos  constituiam  urna 
perfeita  excep^ao. 

Viam-se  liomens  vellios  e  niocjos,  e  em  nenhuns 
d'elles  notdmos  essa  pallidez,  depressilo  corporea,  ru- 
gas  e  tra9os  de  prematura  velliice,  que  formam  o  facies 
typico  das  organisacjoes  arruinadas;  ao  contrario,  via- 
mol-os  todos  robustos,  denotando  excepcional  audacia 
e  decisao. 

Calungo-lungo  visitou-nos;  abstemo-nos  de  descre- 
ver  essa  scena,  porque  as  entrevistas  africanas  téem 
tal  similhancja,  que  a  Listoria  de  uma  basta  para  toda 
a  vida  de  liomem  curioso. 

Sempre  o  mesnio  quadro! 

E  ainda  6  tao  ridicula  a  gravidade  d'esses  encon- 
tros,  que  às  vezes  o  mais  absurdo  incidente  quebra 
de  modo  pueril  ;  sao  tao  stultas  as  ceremonias  e  iiiter- 
minaveis  os  speeches,  em  que  os  negi-os,  propensos  para 
OS  circumloquios,  exibeni  a  sua  altiloquencia  em  esti- 
radas  ora^oes,  tratando  em  geral  de  todos  os  assum- 
ptos,  menos  d'aquelle  para  cujo  fini  se  reuniram,  que 
estremecemos  coni  a  idea  de  ter  agora  de  as  explicar, 


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No  Valle  de  Barótzé  369 

cansados,  corno  estamos  das  vezes  que  fomos  constran- 
gidos  a  supportal-as. 

Aguardemos  a  nossa  chegada  à  Garanganja,  onde 
o  leitor  ficarà  ao  facto  do  que  se  passa  n'essas  aborre- 
cidas  visitas. 

Partindo  de  Cubango-lungo,  dèmos  ingresso  nova- 
mente  n'uma  zona  deserta,  e,  passada  uma  noite  junto 
ao  rio  Colombeu,  deixàmos  no  dia  immediato  o  trilho 
commercial  do  Genji,  3  millias  adiante  d'aquelle  rio, 
seguindo  ao  nordeste  pela  immensa  campina,  que,  aqui 
comò  em  parte  alguma,  se  assimilila  a  um  longo  par- 
que. 

Diffidi  nos  6  agora  caminhar  desembara9ados,  por 
causa  dos  numerosos  desvios  a  que  constantemente 
obriga  a  busca  da  ca9a.  Em  roda  da  caravana  saltam 
OS  gniis,  as  zebras  e  antilopes  em  tal  quantidade,  que 
a  multo  custo  conseguimos  ficar  indifferentes.  As  pe- 
ripecias  succedem-se.  Aqui  Antonio  dà  em  terra  com 
elegante  Adenota  lechee,  e  perseguindo  uma  récua  de 
zebras,  fere  duas,  emquanto  da  parte  opposta  lun  de 
nós  vara  grande  gnii,  e  o  outro,  exasperado,  solta  al- 
luviao  de  impreca9oes  por  Ihe  ter  a  arma  feito  chap 
quando  deu  ao  gatillio! 

Os  caes  prestam  excellente  servÌ90,  sendo  conve- 
niente a  sua  companhia  a  todos  os  viajantes  n'estas 
paragens,  sobretudo  para  a  ca9a  e  perseguÌ9ao  do 
ultimo  dos  bichos  citados. 

Quando  ouve  o  latido  do  cao  junto  a  si,  este  animai, 

embora  levado  pela  mais  vertiginosa  das  carreiras, 

suspende,  e  virando-se  para  elle,  esfor9a-se  em  ata- 

cal-o,  esquecendo  a  presen9a  do  ca9ador,  que  em  taes 

ti 


2f70  De  Angola  d  contro-costa 

circumstancias  póde  perfeitamente  atirar-lhe  à  queima 
roupa. 

Com  frequencia  tivemos  occasiao  de  assistir  a  sce- 
nas  d'estas,  e  raras  vezes,  quando  era  pequena  a  dis- 
tancia  que  nos  separava,  deixou  Antonio  de  abater  um 
dos  ditos  quadrupedes. 

0  terreno  toma-se  progressivamente  alagadi90,  an- 
dando a  caravana  em  marcila  por  agua  desde  a  mar- 
gem  direita  do  Lia-Mu cussi,  onde  se  enloda  a  cada 
passo.  Junto  a  este  rio  encontràmos  umas  miseraveis 
senzallas  de  ba-nhengo,  que,  ao  avistarem-nos,  abala- 
ram.  As  mulheres  sobretudo,  ao  presentir-nos,  fugiam, 
parecendo  uma  nuvem  de  passaros,  so  deixando  si- 
gnaes  da  sua  presen9a  pelas  pégadas  no  movedicjo  la- 
ma^al. 

O  solo  é  tao  pouco  proprio  para  a  cultura,  que  se 
veem  os  naturaes  na  necessidade  de  cavar  grandes 
vallas  em  volta  do  recinto  da  plantacjao,  accumulando 
a  terra  na  altura  de  50  centimetros,  para  que  a  semen- 
te nao  apodre^a  mergulhada  n'agua.  Apenas  produz 
o  Pinisetum  e  nunca  o  tabaco,  que  nao  se  encontra 
d'està  banda  do  valle  do  Zambeze,  onde  por  contraste 
comecjàmos  a  notar  desde  o  Ninda  numerosas  Hyphce- 
nes  e  uma  palmeira  rasteira,  sorte  de  Rapida,  dispersa 
pela  campina.  Por  causa  da  fraqueza  da  terra  que 
duas  ou  tres  sementeiras  seguidas  deixam  extenuada, 
sao  OS  indigenas  obrigados  a  mudar  com  frequencia  o 
logar  das  suas  habita^oes,  procurando  no  solo  virgem 
a  riqueza  de  que  precisam. 

Dois  man-bunda,  um  dos  quaes  é  feiticeiro,  nos  ser- 
vem  de  guias  por  meio  d'esses  atoleiros,  até  à  libata 


No  Valle  de  Barófze  371 

(lo  regulo  Muene  Munda;  o  nosso  gaia  entrega-se  a 
sortilegios,  passando  longas  horas  da  noite  em  eiican- 
tamentos  e  adivinha9oes  com  a  sua  caba9a  de  artigos 
a  isso  apropriados. 

N'um  logar  cliamado  Quiiila  deu-se  com  elle  certo 
caso  que  nos  deixou  vexados  aos  olhos  dos  nossos,  ar- 
reigando-se  ainda  urna  vez  em  seu  espirito  a  idea  de 
que  OS  ngangas  possuem  o  segredo  de  poder  adivinhar. 

Eis  o  facto. 

Quando  proseguiamos  por  meio  das  planuras,  pas- 
sando proximos  de  planta(;oes  ou  senzallas  desertas  de 
ba-nhengo,  avisou-nos  ao  segundo  dia  o  7i  ganga,  de 
que  urgia  tornar  toda  a  cautela  com  os  povoadores, 
porque,  sendo  pelo  geral  liostis,  comò  quasi  todos  os 
ba-lobale,  eram  sobretudo  e  muito  especialmente  con- 
sunmiados  ladroes! 

Està  declara^ao  na  bòca  de  um  preto  do  mato  nao 
nos  mereceu  grande  confian^a,  pois  o  gentio,  por  andar 
sempre  fugido,  parecia  extremamente  timido,  e  pouco 
disposto  a  qualquer  tentativa  audaciosa. 

Desprezando  assim  as  suas  indica^oes,  alvitràmos- 
Ihe  um  outro  modo  de  ganliar  a  vida,  pela  improficui- 
dade  d'aquelle;  recommenda9ao  que  ouviu  attento,  e 
depois  afastou-se  para  o  mato,  procedendo  de  cabala 
na  mao  a  outras  adivinha^oes,  às  quaes  de  longe  as- 
sistiamos,  quando  por  vezes  nos  davamos  ao  trabalho 
de  observal-o. 

Approximava-se  o  sol  do  horisonte,-  e  tinliamos  aca- 
bado  de  jantar,  quando  o  nosso  Lomem  de  novo  se 
apresentou,  encontrando-nos  entao  em  mellior  dispo- 
siijào  que  de  manha. 


372  De  Angola  d  ccmtra-costa 

Vinha  satisfeito  e  com  ar  de  quem  decidlra  questào 
importante,  após  as  profundas  locubra9oes  a  que  se 
entregsira. 

Chamado  o  interprete  Fedro,  rapaz  da  nossa  comi- 
tiva, acocoraram-se  os  dois,  come^ando  o  n  ganga  a  fal- 
lar. A  complicada  oraijao  prolongou-se  por  um  bom 
quarto  de  liora. 

— Entao,  que  disse  elle?  inquirimos  nós  a  Fedro, 
esperando  alguma  revela9ao  estupenda. 

— For  ora,  respondeu  este  muito  fleugmaticamente, 
ainda  nào  disse  nada! 

Escusado  sera  descrever  aqui  o  nosso  espanto  pe- 
rante  similliante  facto,  que  so  julgavamos  apanagio 
dos  tribunos  da  velha  Europa,  e,  silenciosos,  esperà- 
mos  se  dignasse  proferir  alguma  cousa. 
Entao? 

Tornando  a  tornar  a  palavra,  arengou  longo  tem- 
po o  quer  que  fosse.  Fedro  nos  explicou  ser  urna  es- 
pecie de  fabula,  relativa  a  scenas  passadas  entre  cor- 
pulento depilante  que  se  nao  arreceàra  das  amea9as  de 
um  grupo  de  ìnssonde  (formigas  guerreiras),  as  quaes, 
colhendo-o  a  dormir  pela  noite,  se  Ihe  enfiaram  pela 
tromba,  levando  o  animai  no  desespero  a  suicidar-se, 
batendo  com  ella  pelas  arvores. 

Additou  outra,  concernente  à  entrada  dos  ratos  pela 
noite  nos  celleiros,  etc,  que,  por  mal  interpretada,  fi- 
càmos  sem  comprehender  o  que  elle  desejava  e  se  nos 
eram  applicaveis  similhantes  narrativas,  até  que  dis- 
postos  a  deixar  de  escutal-o,  famos  levantar  a  sessao, 
quando  o  mysterioso  interlocutor  se  decidiu  por  fini 
a  explicar-se. 


No  Valle  de  Barótze  373 

Queria  primeiro  que  tudo  quatro  jardas  de  fazenda, 
corno  pagamento  do  servÌ90  que  se  propunha  fazer- 
1109  ;  logo  depois  de  recebidas,  declarou  que  acabava 
de  adivinhar  que  dentro  de  limitadissuno  e8pa9o,  quan- 
do multo  de  dois  sóes,  serìanios  infalHvelniente  rou- 
bados  pelos  naturaes  da  terra  onde  estavamos. 


Atii  aqui  nSo  offerece  origìnalìdade  a  bistoria,  nem 
credito  deviani  valer  as  indicaQSes  do  negro;  o  certo, 
porém,  é  que  n'essa  noite  àa  duas  boras  eramos  effe- 
ctivamente  roubados,  Bendo  para  lamentar  que  elle 
n'gaTiya  nào  tivesse  aproveitado  para  si  a  parte  que 
Ihe  cabia  da  rcvelafjao,  pois  foi  tambem  umadas  vi- 
ctinias,  perdendo  o  proprio  macbado! 


374  De  Angola  d  contro-costa 

Introduzìndo-se  de  subito  no  acampamento,  os  ba- 
nhengo  furtaram-nos  urna  arma,  urna  espada,  os  pan- 
nos  de  um  homem  e  o  niachado;  caso  estupendo,  e  quo 
jamais  em  nossa  viagem  se  toniou  a  repetir,  pois  nSo 
ousam  OS  indigcnas  penetrar  nos  acampamentos  pela 
noite,  fìcando  os  nossos  convencidos  que  nada  ha  corno 
um  uijawja  para  adivinhar,  sendo  tambem  certo  nao 
haver  quem  conio  elle  fìque  tao  tranquillo  quando  o 
expoliam! 

Proseguindo  em  cynegetica  excursao  canìinhava  a 
comitiva  desi^reoccupada  das  tenebrosas  idéas  da  fonie 
elitre  alluvioes  de  antilojies,  esperando  a  todo  o  mo- 
mento soborear  a  carne  que  por  todos  os  lados  se  of- 
ferecia  comò  estimulo  appetitoso,  até  que  cheg^mos  a 
habita^'ao  de  Muene  Munda,  sobeto  man-bunda,  que 
outr'ora  residiu  em  Colombeu,  d'onde  se  retirou  por 
serem  fracas  e  pouco  productivas  as  terras  que  llic 
circumdavam  a  aldeia: 

Muene  Munda  e  em  extremo  feio.  Physicamente  des- 
favorecido  pela  natureza,  possue,  entre  varios  defeitos 
que  o  tornam  repellente,  uma  bronchite  chronica,  coni 
a  qual  anda  em  permanente  lucta,  e  que  o  leva  a  in- 
terromper a  conversa^ao  com  repetidos  ataques  de 
tosse! 

— Ja  vos  esperava,  disse-nos  elle  radiante  de  ale- 
gria  e  dispersando  perdigotos  em  todos  os  sentidos; 
ao  mesmo  tempo  contemplava  os  nossos  fardos  de  fa- 
zenda  e  o  seu  originai  capote  de  hitestino  de  depilante 
surrado  e  batido,  com  ar  de  quem  pensava  que  emfim 
se  la  emancipar  da  suja  companhia  do  sordido  manto, 
curioso  sobretudo  pelos  numerosos  exemplares  d'essa 


No  Valle  de  Barótze  375 

fauna  minuscula  e  cosmopolita,  que  se  apostou  em  ser 
companlieira  do  liomem,  logo  que  esque9a  ou  desco- 
nlie^a  a  liygienica  necessidade  da  ablucjao! 

As  mulheres  d'està  aldeia  gostam  muito  da  musica, 
mas  principalmente  da  dansa.  Possuem  um  talento  es- 
tranilo na  apreciacjao  da  liarmonia,  executando  córos 
com  proficiencia  notavel,  e  sobretudo  desusada  ex- 
tensao. 

Os  seus  instrumentos  musicaes  sao  em  absoluto  ru- 
dimentares,  reduzindo-se  a  marimba  e  tambor,  mas 
OS  treclios  de  canto  agradaveis  e  suaves,  inspirando, 
quando  ouvidos  pelo  socego  da  noite,  uma  emo9ao,  a 
que  estavamos  longe  de  nos  suppor  accessiveis  no 
amago  dos  sertoes  africanos. 

No  furioso  afan  com  que  se  entregam  aos  exerci- 
cios  choreograpliicos,  excedem  })orém  toda  a  expecta- 
tiva. 

Pelas  sete  horas  da  noite  deram  ingresso  no  acam- 
pamento  as  beldades  da  terra,  para  dansar  em  nossa 
lionra,  e  às  sete  e  meia  os  prìmeiros  iiifos  annuncia- 
ram  o  come9o  da  scena,  em  vasto  circulo  junto  das 
tendas. 

Os  tra^os  geraes  das  mulheres  d'ali  nao  imprimem 
repulsa,  e  o  seu  aspecto,  embora  isento  de  encantos  e 
pouco  digno  de  aturada  contemplacjao,  perturba  a  paz 
dos  sentidos,  quando  vivifìcado  pelas  fórmas  da  joven- 
tude  ! 

Ao  vel-as  menear-se  com  donaire  ao  compasso  das 
palmas  e  do  canto,  lan9ando  por  momentos  para  os 
brancos  um  olliar  de  maravilliada  e  suspeitosa  9uriosi- 
dade,  os  tristes  auctores  d'estas  linhas,  acocorados 


376  De  Angola  d  contra-costa 

junto  das  tend^s,  esqueceram  por  mais  de  urna  vez 
o  rumo  a  que  Ihe  fica  va  Mocjambìque! 

Pelas  sete  e  mela,  dissemos  nós,  come^ou  a  dansa, 
a  qual  so  concluiu  às  sete  da  manhà. 

Durante  doze  horas  conseciitìvas  cantaram  e  dan- 
saram  essas  filhas  de  Eva,  com  o  intuito  de  dar  urna 
prova  da  sua  alta  consideracjao  pelas  nossas  humildes 
pessoas,  prova  que,  por  demasiado  extensa,  nao  po- 
démos  acolher  acordados,  mas  a  que  nem  por  isso 
fomos  menos  sensiveis  depois,  reflectindo  na  pertina- 
cia e  resistencia  que  é  mister  para  supportar  urna 
noite  inteira  de  tal  exercicio. 

Traduzido  o  nosso  reconhecimento  em  len<jos  de 
cores  e  contarias  às  gentis  da  terra,  envolvemos  o 
catarrho  de  Muene  Munda  n'um  panno,  promettendo- 
Ihe  que  na  volta  seriamos  mais  generosos,  e  tomando 
de  novo  o  caminho  das  campinas  alagadas,  deixàniol-o 
pavonear-se  entre  os  seus. 

Por  meio  dos  canni^aes  tivemos  durante  o  dia  de 
fazer  as  mais  estranhas  voltas,  para  tornear  os  gran- 
des  alagamentos  que  cobriam  a  superficie  do  solo,  to- 
mando por  vezes  banhos  involuntarios;  e  atolando-nos 
aqui  para  mais  adiante  nos  levantarmos,  fomos  assim 
dirigindo  a  nossa  comitiva  pelas  tristes  terras  dos  ba- 
lobale. 

Junto  à  lagoa  Lissale-ia-Muringa  vimos  abundancia 
de  cacja,  fazendo-se  larga  colheita  de  varios  animaes, 
figurando  entre  elles  duas  formosas  zebras,  que  foram 
acto  continuo  devoradas. 

E  està  a  quadra  da  crea^ao,  principalmente  para 
gnus,  palancas  e  outros  antilopes,  andando  as  femeas 


Ko  Vaile  de  Barótze  377 

com  OS  filhinhos  ou  proxinio  a  tel-os,  de  maneira 
qiie  sao  ellas  quasi  sempre  as  victìmas  da  persegui- 
9ào  dos  ca^adores. 

Quem  obser\'asse  pela  noite  n'esse  acampamento, 
illuminados  pela  luz  avermelhada  das  fogueiras,  de- 
zenas  de  liomens  de  facas  em  punho  e  de  aspecto  pa- 


tibolar, rodando  aa  pe^aa  de  cacja,  extrahindo  aquì  as 
visceras  de  urna  zebra,  e  esvasiando-as  por  movimen- 
tos  de  bra^o,  à  moda  de  quem  mede  fitas,  esfolando 
alem  um  gnii,  cuja  carcassa  pouco  a  pouco  emerge  do 
negro  envolucro,  disputando  entre  si  a  cauda  ou  as 
mÈlos,  e  quasi  esfaqueando-se  na  divisSo  da  pelle;  mais 
jnlgaria  eatar  entre  cannibaes,  do  que  entre  homens 
ao  servilo  da  causa  da  sciencia  e  dirig^dos  por  euro- 
peus! 


378  De  Angola  d  corUra-costa 

Nós  mesmos,  de  ha  multo  habituados  a  estas  scenas, 
quando  a  melo  d'este  movimento  attentavamos  nos 
actos  dos  nossos  companheiros,  e  eramos  testemunhas 
da  ancia  selvagem  com  que  estes  esbrugavam  a  apo- 
physe  de  um  femur,  e  aquelle  devorava  sofrego  os 
tendoes  agarrados  a  uma  tibia,  nao  podiamos  deixar  de 
reflectir  quanto  o  homem  se  rebaixa  ao  nivel  da  ani- 
malidade  sempre  que  a  falta  de  recursos  o  obriga  à 
lucta  para  alimentar-se  ;  e  quanto  o  infeliz  perde  da 
superioridade,  e  se  apresenta  aos  olhos  do  investiga- 
dor  comò  o  mais  vii  e  despresivel  dos  irracionaes. 

A  medida  que  do  Zambeze  nos  lamos  approximan- 
do,  as  cousas  peoravam. 

Nao  era  jà  o  simples  alagamento  do  solo  n'um  ou 
n'outro  ponto,  mas  lagoas  que  se  alongavam  em  todos 
OS  rumos  da  agiilha,  e  que  tinhamos  de  atravessar  com 
agua  pela  cintura. 

A  caravana,  oppressa  de  causalo  e  sob  um  sol  de 
queimar,  que  esses  atoleiros  recoze,  e  dos  quaes  ao  me- 
nor  movimento  se  exlialam  gazes  envenenadores  para 
as  mais  robustas  organisa9oes,  continuou  ainda  assim 
para  o  nordeste,  e  transpondo  lamas,  derribando  gra- 
mineas,  propunha-se  attingir  o  grande  rio  na  sua  con- 
fluencia  com  o  Lungué-Bungo. 

Pouco  a  pouco,  porem,  tudo  se  aggravou,  e  adiante 
do  Malauca  fechou-nos  pelo  oriente  a  passagem  uma 
linha  de  pantanos  a  come^ar  na  lagoa  Icanhocando, 
que  se  tornou  impenetravel. 

Arquejantes  e  esbaforidos  no  meio  d'esses  matagaes, 
e  dando  a  Satanaz  tao  rude  trabalho,  ora  desatolava- 
mos  OS  bois,  ora  tinhamos  de  safar  dois  homens  enter- 


No  Valle  de  Barótze  379 

rados  com  as  respectivas  cargas,  ora  inopinadamente, 
fallando  o  pé  aos  bois-caVallos,  batiamos  com  o  corpo 
em  clieio  iia  agua  !  D'ahi  para  diante  foi  mister  cortar 
ao  norte,  e  volvendo  mais  longe  ao  oeste,  por  se  mnl- 
tiplicarem  os  embara^os,  tivemos  que  voltar  para  o 
sul  após  dois  dias  de  marcila,  e  passando  de  novo  por 
Icanhocando,  seguir  direitos  a  Libonta. 

De  dia  para  dia  se  emaranham  os  matagaes,  unem- 
se  OS  ribeiros,  alastram-se  as  lagoas,  fazendo  d'este 
paiz  o  labyrintho  de  mais  estranho  caracter  que  temos 
visto. 

Era  um  martyrio  o  avanzo  de  urna  milha  em  tal 
solo,  tao  numerosos  e  repetidos  foram  os  fracassos 
succedidos,  assim  corno  enfadonlio  o  procurar  cami- 
nho  dir  cito. 

Ilouve  mesmo  occasioes  em  que  desesperàmos  da 
empreza  de  attingir  o  Zambeze,  acreditando  que  a  ex- 
pedi^ao  a  nosso  cargo  nao  prose«uiria  na  linlia  itine- 
raria que  projectàra,  e  ao  contrario  tinlia  de  volver  ao 
norte,  se  nao  para  a  retaguarda,  e  assim,  enfurecidos, 
desesperados,  rodando  oppressos  pelos  lameiros  em 
busca  de  salda,  comò  a  fera  em  apertada  jaula,  per- 
diamos  a  no9ao  da  serenidade,  desentranhando-nos  em 
imprecacjoes. 

No  rio  Loanguinga,  estirada  e  ennegrecida  faxa  de 
agua,  que  deslisando  n'um  leito  lodoso,  intransitavel, 
draina  as  regioes  superiores  do  Lobale  e  que  de  subito 
se  nos  atravessou  no  caminho,  estivemos  a  ponto  de 
perder  a  rasao  em  face  de  tanto  obstaculo. 

Parecia  que  a  lama,  o  capim,  as  contrariedades  dos 
nossos  e  a  perfidia  gentilica  se  haviam  coUigado  trai- 


380  De  Angola  d  contro-costa 

^oeiramente  para  nos  derrotar  o  animo  e  impedir  a 
passagem. 

Foi  aqui  que  recebemos  os  primeiros  emissarios  de 
Luanhica,  o  chefe  maior  do  Genji,  com  que  o  major 
Serpa  Finto  estiverà  em  viagem  para  o  Natal,  e  de  sua 
parte  nos  vinliam  convidar  a  que  o  visitassemos  em 
Lialui. 

Aquelles  mesmos  que  encontràmos,  tinham  conhe- 
cido  e  fallado  com  o  nosso  compatriota,  cujo  porte  e 
trajo  descreviam. 

Tal  visita,  porém,  so  podia  ser  feita  por  canoas  no  lo- 
gar  em  que  estavamos,  e  nSo  tendo  os  indigenas  as  suf- 
ficientes  para  conduzir  Loanguinga  abaixo  toda  a  co- 
mitiva a  nosso  cargo,  declinàmos  similhante  con  vite, 
enviando  ao  regulo  os  nossos  emboras. 

E  extremamente  abundante  o  peixe  no  Valle  de  Ba- 
róze,  tendo  nós  occasiào  de  ver  e  provar  o  Mugil  afri- 
canus,  o  Glanis  sUuris,  o  Clarion  capensis  e  outros  cujos 
nomes  nSo  nos  occorrem  n'este  momento. 

Do  solo  tambem  pouco  podémos  dizer,  tao  diffidi 
era  o  seu  estudo  e  principalmente  a  conserva9ao  de 
qualquer  exemplar.  Pareceu-nos  porém  ser  constituido 
inferiormente  por  um  sandstohe  em  desaggrego,  co- 
berto  de  um  tuff  ou  quer  que  seja  de  caracter  alluvial, 
semeado  de  uma  sorte  de  conglomerados  ferruginosos, 
alternando  com  tractos  de  areia  mais  ou  menos  longos. 

E  pobre,  corno  jà  mais  de  luna  vez  o  dissemos,  de 
todo  improprio  para  as  culturas  que  carecem  cuidado, 
e  a  nossos  olhos  incapaz  de  mellior amento. 

Apenas  produz  uma  colheita,  urgindo  depois  aban- 
donal-o  à  influencia  dos  depositos  da  quadra  pluviosa. 


No  Valle  de  Barótze  381 

Transposto  o  Luanguinga,  após  as  mais  enfadonhas 
scenas,  entestàmos  com  a  linha  de  leste,  atufando-nos 
de  novo  nos  lameiros  e  pantanos. 

Os  carregadores  mais  possantes  haviam  quebrado 
nos  ultimos  tempos,  e  na  lucta  do  transporte  de  um 
pesado  volume  e  do  constante  esfor90  de  se  desenter- 
rarem,  caiam  por  terra,  abafados  pela  fadiga. 

Urgia  suspender  ou  procurar  terra  onde  as  circum- 
stancias  fossem  outras,  alias  em  pouco  tudo  se  perde- 
ria. 

Fazendo  urna  ultima  diligencia  avan9àmo8. 

A  11  de  setembro,  pelo  meio  dia,  deu  a  expedÌQao 
vista  do  Zambeze,  e,  soltando  um  huìrak  de  alegria. 
acampou  na  sua  margoni. 


^1 
1-1 


F. 


I 


CAPITULO  XIV 


LIBOXTA 


. . .  mas  fui  infomindo  quo  era  parte  algnina  està 
regiào  é  oaudavcl.  Quando  as  aguas  come^aiu  a  re- 
tirar (lo  vallo,  tae8  e  tamanhaa  s&o  a8  massas  vege- 
tilo» eni  (UH'oinpOMÌv&o,  e  expostaa  a  um  torrido  sol, 
quo  08  iudigeuas  soffrein  de  febre. 

liiviNdSTOKE  —  Mi»9Ìonary  travd*. 


Territorios  atravossados  e  outros  a  percorrer — O  qiie  liavia  para  aloin 
do  Zambczc — A  iiossa  curiosidade  e  o  que  se  pensa  sobre  a  Africa — O 
que  é  a  final  o  interior  do  continente — As  planuras  zambezeanas — A 
verdadc  sobre  cllas — I)itHcul(hides,ventos  e  temperatura — E  urna  d'essas 
regiOes  de  que  falbi  Stanley  e  onde  Livingstone  pereceu — Contraste  com- 
pensjidor  nas  scenas  de  caya — Opiuiòes  de  Livingstone  e  uossos  juizos 
autecipados — Aliundancia  de  antilopes  e  ohopo — l^ibouta — Avcgcta^ao 
ao  tempo  d'aquelle  viajante  e  agora — Seu  aspecto — A  teiTa  em  redor — 
Mucobessa  e  os  babitadorcs  do  Geuji — Seus  trajos  e  porte  das  mulheres 
—  Uso  immoderado  do  rapè  e  o  lenyo  dos  luinas — Profundo  abatimento 
jiliysico  da  gente  da  expedi^ao — Dia  13  de  setembro — As  moscas  de 
Libonta — Ca^»ada  jIs  rollas — Ornitbologia  do  Zambeze — Considerayoes 
geraes  sobre  o  valle  de  Barótze  e  trilhos  que  ali  eonduzcm. 


Os  teri-itorios  que  acabavamoa 
de  atravessar,  embora  d'elles  hou- 
vesse  urna  no^ao  mais  ou  menoa 
vaga,  pelas  grandes  linhae  na  car- 
ta tra^adas,  nem  por  isso  deixa- 
h  vam  de  ter  iim  caracter  de  novi- 
dade,  de  que  evitàmos  abrir  mSo. 
O  curso  do  Cubango  a  montante 
do  Bucusso  (Mucusao),  bem  comò 
o  de  todo8  OS  seus  grandes  affluen- 
tes,  eatava  por  visitar,  e  ainda  boje  reclama  desvelada 
atten^So. 

O  aspecto  das  terras  e  a  natureza  do  solo  das  duas 
margena  d'este  rio  tambem  era  em  grande  parte  Ìgno- 
rado,  pois  viajante  algum  por  là  se  aventuràra,  para 
poder  dizer-nos  em  livro  quanto  vira,  e  apenas  Dufour 
n'uraa  correspondencia  deu  indìca^Ses  multo  confusas 
àcerca  dos  amboellas. 


386  De  Angola  d  contro-costa 

Urna  mancha  branca  estendia-se  no  mappa,  que  o 
nosso  itinerario,  cortando  pelo  meio,  de  certo  modo 
illuminou  agora. 

Mas  se  até  aqui  era  necesario  um  estudo  interes- 
sante, e  n'elle  alguma  cousa  se  fez,  adianle  havia  mais 
e  melhor. 

Ahi  principiava  a  parte  mais  seria  da  nossa  viagem 
de  exploracjao  atravez  do  continente  africano,  assim 
comò  iam  ter  comedo  os  soffrimentos  da  caravana,  os 
quaes  até  tao  longe  a  tinham  de  acompanhar,  ceifando 
a  vida  de  tantos  dos  nossos  companheiros. 

Para  alem  do  Zambeze  estendia-se  uma  regiao 
enorme  coberta  de  florestas,  onde  tudo  era  novidade, 
tudo  estava  por  descobrir  e  fazer;  facies  que  muito 
naturalmente,  comò  deve  suppor-se,  nos  attrahia  cu- 
riosos,  sem  embargo  dos  receios  que  os  indigenas  com 
suas  informa9oes  terriveis  tinham  derramado  no  ani- 
mo de  todos. 

A  Africa,  verdadeiro  nadir  da  civilisa9ao,  quando 
se  considere  a  Europa  comò  zenith,  continiia  a  ser  o 
ultimo  refugio  do  maravilhoso  e  do  romanesco.  E  uma 
terra  estranha,  pensa-se  geralmente,  muito  elevada  di- 
zem  OS  que  a  conhecem,  e  comò  tal  salubre  na  opiniao 
dos  que  julgam  saber,  pela  necessaria  invencjao  de 
grandes  correntes  aereas  por  essas  altitudes;  mas  in- 
felizmente  cercada  de  uma  zona  baixa,  onde  a  mala- 
ria, a  insola9ao  e  muitas  outras  causas  impedem  o  seu 
regular  accesso.  No  centro  d'ella  presume-se  que  exis- 
tem  as  mais  extraordinarias  cousas  desconhecidas  de 
nós,  e^  se  nao  é  completo  mysterio,  comò  nos  tempos 
de  Herodoto  e  de  Plinio,  esse  vasto  territorio,  ora  se- 


Libonta  387 

meado  de  serranias,  ora  divìdido  por  extensos  e  areno- 
sos  valles,  conserva  pontos  fora  do  alcance  da  inves- 
tiga9ao. 

Qiiem  se  nao  recorda  ainda  do  homem  cynocephalo 
do  primeiro  dos  historiadores  acima  alludìdos,  dos  in- 
dividuos  com  cauda,  dos  navegadores  do  oriente,  de 
quem  Gastelnau  nos  falla,  corno  muitos  outros,  refe- 
rindo-se  espantados  a  essa  peculiaridade  organica,  que 
a  tradicjao  conservava;  do  unlcornio  fabuloso  que  os 
primitivos  colonos  liollandezes  do  sul  viram,  e  no  secu- 
lo  XVI  osnossos  compatriotas  testemunharam  a  existen- 
cia,  aggravando  a  originai  dcscoberta  com  um  movi- 
mento especial  da  defensa;  de  milliares,  emfìm,  de 
outras  crea^oes  da  liumana  concep^ao,  que  càem  sem- 
pre no  absurdo? 

Ninguem,  certamente;  e  a  verdade  é  que  no  meio 
de  tao  interessantes  e  attrahentes  casos,  faz  pena  que 
appare^am  os  singelos  pioneiros  da  epocha  actual,  e 
largando  o  bordao  para  calcar  a  hi  va,  e,  acto  succes- 
sivo, descalcjando  està  para  pegar  da  penna,  venham 
com  dois  rabiscos  dissipar  tao  phantasiosas  idéas,  var- 
rer  com  as  illusSes  desde  o  unicomio  fabuloso,  até  as 
serranias  tremendas,  cujas  cabe9as  branqueadas  pelas 
neves  perpetuas  contrastavam  com  os  pés  immerso» 
nas  areias  ardentes! 

Lamentàmos,  e  mais  somos  do  officio,  pela  dupla 
rasao  de  que,  se  tal  existisse,  seria  mais  vasto  o  campo 
que  teriamos  a  explorar  em  nossas  narrativas,  e  por 
havermos  sido  victimas  da  mais  cruel  das  desillusoes 
no  mesmo  cora9ào  da  Africa,  quando  nos  preparava- 
mos  para  ver  e  notar  tanta  cousa  extraordinaria. 


388  De  Angola  d  contra-^osta 

0  interior  do  continente  nào  passa,  é  certo,  de  ser 
em  muitos  logares,  corno  todas  as  regioes  centraes  das 
differentes  partes  do  mundo,  urna  terra  na  generalidade 
mais  elevada,  vegetante  e  salubre  do  que  o  cordao  li- 
toral,  tendo  là  dentro,  para  mostrar  ao  viajante,  muita 
cousa  que  elle  de  resto  póde  ver  no  exterior. 

Està  é  a  verdade,  e  por  isso  foi  triste  a  impressào, 
ao  abeirarmo-nos  do  curso  do  grande  Zambeze. 

Intenso  desanimo  experimentàmos  ao  chegar  a  essa 
regiao  desolada  pelos  ardores  de  um  sol  de  chumbo, 
onde  nem  sequer  um  arbusto  nos  salvaguardava  da 
sua  perniciosa  influencia!  Bem  phantasiavamos  nós  o 
rio  caudaloso,  espadanando  por  meio  de  penedias  em 
escumados  len^oes,  e  que  trazendo  em  seu  caminho 
amea^as  de  destrui^ao  e  ruina,  cavava  persistente  as 
rochas  e  raizes  encravadas  no  argilloso  leito;  assom- 
breado  o  imaginavamos  por  frondosos  arvoredos,  nos 
quaes  m'bafus,  taculas,  mupandas  e  mutontos  erguiam 
à  porfia  OS  ramos  em  desafio  com  a  elegante  hyphoene 
e  outras  plantas  dos  tropicos,  onde  a  tempestade  desfe- 
riria  comò  nas  cor  das  de  uma  harpa  numerosas  notas 
tetricas  dos  seus  córos  dissonantes,  para  depois  estalar 
medonha,  echoando  ao  longe  nas  encostas  das  serra- 
nias  ;  e  ao  cabo  viemos  bater  em  cheio  n'um  areal,  por 
onde  deslisa  prateada  fita,  de  quando  muito  400  me- 
tros  de  largo,  tendo  nas  margens  d'aqui  e  d'alem  zonas 
de  150  metros  que  nas  chuvas  o  rio  cobre,  sem  mon- 
tes,  sem  arvores,  sem  attractivos  emfim. 

Era  um  Zambeze  chato,  arido  de  descrever. 

Perplexos  à  sua  beira,  os  auctores  da  narrativa  que 
vae  seguindo,  apoz  a  inspec^ao  do  barometro,  obser- 


Ubonta 


389 


vando  cuidadosamente  quanto  os  cercava,  chegaram  a 
concluir  que  entre  muitas  cousas  pela  Europa  aìnda 
ignoradas,  figura  a  do  interior  da  Africa,  e  isto  pelo 
simples  motivo  de  que  aos  viajantes  apraz,  segando 
parece,  deturpar  com  muita  frequencia  as  notas  sin- 
gelas  que  nos  seuB  diario»  devem  conter-se, 


Porque,  em  summa,  qual  é  a  rasSo  de  occultarmos 
a  verdade,  e  pelo  contrario  esagerar  quanto  observà- 
mos,  incitando  futuros  infelizei^  viandantes  a  que  to- 
mem  sobre  si  a  empreza  de  curtir  illusÒes  e  fa<;am  des- 
eambar  para  a  realidade  phantasias  mais  ou  nienos 
gratas  sobre  o  assumpto?! 

Dizer  que  o  valle  do  Zambeze  é  urna  maravilha  de 
riqueza,  um  prodigio  de  scenario,  um  eden  emfim, 


390  De  Angola  d  contro-costa 

idèa  que  entao  nos  dominava  comò  a  miiitos,  importa 
substituir  o  ludibrio  à  verdade,  pois  o  valle  do  grande 
rio  (pelo  menos  n'este  parallelo)  é  um  pantano,  verde 
corno  panno  de  bilhar,  menos  liso  do  que  este,  depri- 
mido,  triste,  cercado  de  urna  atmospliera  de  estufa! 

Aquelle  que  de  là  se  abeirar,  depois  de  transpor 
terras  altas  e  arejadas,  ha  de  fatalmente  sentir7se  do- 
minado  pela  mesma  impressao  desagradavel  que  nós 
experimentàmos,  imaginando-se  comò  que  submerso 
no  fundo  de  uma  ravina,  d'onde  anceia  por  sair. 

E  ainda  està  bacia,  lavrada  em  cliào  plano,  nao  e 
isenta  de  obstaculos.  Escondida  nos  grossos  e  bastos 
capins  que  por  toda  a  banda  a  cobrem,  cheias  de  la- 
goas  e  atoleiros,  que  os  espinhos  e  altas  gramineas 
guardam  cuidadosos,  impedindo  todo  o  trilho  regular, 
offerece-se  ao  que  viaja  comò  um  vasto  campo,  onde  a 
cada  momento  se  perde  offegante,  sem  mira  ou  ponto 
de  referencia  que  sirva  de  guia. 

Os  ventos,  de  uma  variabilidade  extrema,  augmen- 
tam  as  difficuldades  pelas  alternativas  de  calmas  e  ven- 
davaes,  que  na  epocha  pluviosa  devem  ser  grande  em- 
bara9o  n'esta  terra,  onde  tudo  causa  e  aborrece. 

0  tliermometro  sobe  com  frequencia  e  extraordina- 
riamente,  comò  se  póde  ver  das  temperaturas  observa- 
das,  de  fórma  que  no  meio  dos  espessos  macissos  das 
gramineas,  sobre  o  terreno  molhado  e  balofo,  em  piena 
calma,  nós  abafavamos,  nao  sabendo  a  que  recorrer 
para  nos  refrigerar. 

E  uma  d'essas  regioes  liumidas,  perigosas,  indesori- 
ptiveis,  onde,  os  viajantes  atormentados  pela  tempera- 
tura e  humidade  de  um  lado,  e  pelos  reptis  e  insectos 


Libonta  391 

do  outro,  enfraquecidos  quasi  sempre  pela  febre  após 
dias  de  lucta,  soflrem  cruelmente,  e  do  que,  se  téem  a 
felicidade  de  éscapar,  se  lembrarao  com  horror! 

Muitos,  no  curso  das  suas  aventurosas  expedicjoes, 
d'ellas  fallam,  e  alfim  ahi  veiu  tambem  Livingstone  a 
succumbir,  enterrado  durante  semanas  na  margem  sul 
do  Bangueolo. 

Os  animaes  ferozes  pareceu-nos  nao  se  arriscarem 
muito  pelo  Lobale,  difficilmente  trilhavel  para  aquelles 
de  maior  vulto,  sem  embargo  de  nos  dizer  o  dito  explo- 
rador  que  ao  tempo  da  sua  passagem  muitos  leoes  an- 
davam  de  roda  de  Libonta. 

Em  compensa9ao  nunca  em  paiz  algum  estivemos 
tao  ricos  de  ca9a  conio  n'este,  porque  a  Africa  dooeste, 
e  sobretudo  o  norte  de  Angola,  sao  pobres  a  este  res- 
peito,  tendo  pouco  ou  nada  visto  em  nossa  primeira 
viagem. 

Parece  mesmo  que  muito  de  proposito  o  acaso  nos 
preparou  scenas  maravilhosas,  para  que,  presencian- 
do-as,  nos  penitenciassemos  das  primitivas  idéas. 

Foi  aqui  que  vimos  primeiro  o  Ant.  Caama  de  que 
damos  desenho. 

Effectivamente  quando  em  outro  tempo  nos  veiu  à 
mao  o  livro  de  Livingstone,  traduzido  e  illustrado  no 
j  ornai  francez  o  Tour  du  monde,  impressionaram-nos 
de  todo  o  ponto  as  gravuras  relativas  a  ca9adas. 

As  armadilhas  gigantes  de  que  o  explorador  inglez 
falla  no  Zambeze,  as  hecatonibes  estupendas  de  nao  sei 
quantos  animaes  caidos  n'ellas,  pareceram  aos  nossos 
olhos  tao  exageradas,  que  (sinceramente  aqui  confes- 
sàmos)  nao  soffremos  deixal-as  passar  sem  as  ter  con- 


392  De  Angola  d  corUrorCosta 

demnado  corno  devaneio,  pelo  menos,  do  artista  que 
fizera  os  desenhos! 

Assim,  empoleirados  em  nossos  alias  pretenciosos 
conhecimentos  sobre  cousas  de  Africa,  estranhàmos  o 
que  dizia  o  dito  explorador,  com  a  aggravante  de  ter 
consentido  que  taes  gravuras  salssem  à  luz,  sem  sus- 
peitarmos  que  poucos  annos  depois  teriamos  de  cor- 
roborar quanto  elle  dissera,  assistindo  a  scenas  simi- 
Ihantes  e  em  circumstancias  que  so  a  cegueira  poderia 
oppor-se  à  nossa  inteira  convic^ao. 

E  na  verdade,  podemol-o  exprimir,  é  estupendo! 

Toda  a  terra  que  pelo  oeste  do  Zambeze  se  estende 
até  às  margens  do  Cubango,  e  para  o  norte  constitue 
na  epocha  pluviosa  a  alagada  e  nào  transitavel  pianura 
de  Lobale  é,  corno  dissemos,  pela  sua  especial  natu- 
reza,  magnificas  pastagens,  desembara9ados  horison- 
tes,  etc,  procurada  por  quantos  lierbivoros  as  flores- 
tas  distantes  acoutaram  em  suas  densas  ramagens. 

Similhando  um  immenso  jardim  corno  que  batido 
e  relvado  por  mao  de  liomem,  esse  à  primeira  vista 
attrahente  paiz  completa  tal  illusào,  por  ser  semeado 
de  numerosas  placas  de  terra,  que  por  mais  altas  dei- 
xam  vegetar  arvores  e  plantas  diversas,  afigurando 
com  exactidao  os  irregulares  canteiros  de  um  parque 
inglez. 

Pelos  fins  do  mez  de  agosto,  n^forqa  da  sécca,  comò 
dizem  os  cacjadores  portuguezes,  é,  ao  que  nos  parece, 
a  epocha  mais  favoravel  para  as  excursoes  venatorias, 
pois  que  na  das  chuvas  so  se  fossem  feitas  em  canòas. 
Ahi  chegàmos  cheios  de  fome,  e  bem  dispostos  a  dizi- 
mar  n'esses  infelizes  antilopes,  cuja  existencia  està  su- 


Lihonta  393 

jeita  a  urna  constante  lucta  para  escapar  dos  perigos 
que  OS  amea^am. 

Foi  com  effeito  aqui  que  assistimos  à  maior  diver- 
sao  cynegetica  de  que  temos  memoria,  matando  deze- 
nas  d'esses  timidos  quadrupedes,  nao  proseguindo  na 
ardua  tarefa,  por'nos  faltarem  litteralmente  as  for^as, 
sobretudo  a  Antonio,  que  andava  desorientado. 

A  todo  o  momento  achavamo-nos  entre  nuvens  de 
animaes,  que,  debandando  em  varias  direc^oes,  nos 
deixavam  estupefactos,  comò  que  presos  de  urna  mys- 
tifica9ao. 

Os  indigenas,  conscios  d'este  precioso  recurso,  de- 
dicam-se  com  afan  aos  cynegeticos  devaneios,  e  pre- 
parando em  epochas  proprias  essas  formidaveis  arma- 
dilhas  jà  citadas  sob  a  designa^ao  de  ìwpo,  apanham 
em  verdadeiras  hecatombes  duzias  de  infelizes  e  timo- 
ratos  antilopes. 

Nao  se  nos  proporcionou  ensejo  de  assistir  a  algu- 
ma  d'estas  extraordinarias  scenas,  que  devem  ter  para 
o  recemchegado  muito  interesse,  assimilhando-se  tal- 
vez  ao  que  em  nossa  primeira  viagem  testemunhàmos 
no  Quioco. 

Estavamos  acampados  junto  a  Libonta,  ultima  po- 
voa9ao  dos  ma-cololo  ao  tempo  da  passagem  de  Li- 
vingstone,  e  hoje  habitada  por  uma  popula9ao  mixta 
de  ba-lui  e  ma-róze,  sob  a  direc9ao  de  Mucobessa,  vas- 
sallo de  Luanhica,  soba  do  Genji. 

A  julgar  pelo  que  o  viajante  inglez  diz  d'este  sitio, 
deve  ter  progredido  muito  desde  a  morte  das  duas 
viuvas  de  Sebituane,  assim  comò  variou  de  aspecto  o 
terreno  e  a  natureza  em  redor. 


394  De  Angola  d  controH^osta 

«Libonta,  diz-nos  elle,  està  collocada  em  iim  oiiteiro* 
conio  o  resto  das  aldeias  do  valle  de  Barótze;  e  só- 
mente  n'este  as  zonas  cobertas  de  arvoredo  se  appro- 
ximam  aqui  mais  da  inargem  do  rio.» 

Ora  corno  os  bosques  desappareceram  na  regiao  em 
que  se  aclia  estabelecida,  é  de  crer  que  no  citàdo  lapso 
de  tempo  fossem  as  florestas  derribadas  pelos  indige- 
nas  da  localidade,  do  que  resulta  serpear  o  Zambeze 
ali  entre  terras  cujo  aspecto  jà  descrevemos,  onde  so 
vegeta  a  marianga. 

Vista  em  distancia  pela  banda  do  noroeste,  qua- 
drante d'onde  primeiro  a  observàmos,  tem  està  povoa- 
9ao  unia  apparencia  originai  e  mesmo  imponente,  que 
contrasta  com  a  aridez  das  terras  em  que  assenta. 

Sobre  a  eminencia  que,  a  distancia  de  1,5  milha, 
acompanlia  o  curso  do  rio,  ergue-se,  ou  melhor  empo- 
leira-se,  a  populosa  villa,  que  jà  trasborda  na  planicie. 

ErÌ9ada  de  centenas  de  agudas  cupulas  de  colmo, 
amea9ando  os  ares  com  as  suae  vivas  arestas,  similha, 
quando  vista  de  longe,  estampada  no  limpido  azul  dos 
céus,  o  extenso  cerro  cuja  pouco  resistente  estructura 
liouvesse  cedido  ao  lavor  prolongado  das  chuvas  dos 
tropicos. 

A  meio  levanta-se  isolada,  comò  que  para  escarne- 
cer  dos  capins  circumvizinhos,  lima  unica  ai-vore,  um 
espinheiro,  esguio,  debru9ado  para  o  nascente,  pare-» 


1  As  villas  o  aldeias  no  valle  de  Barótze  sao  por  toda  a  parte  estabe- 
lecidas  em  morros  e  ccrros.  Por  vezes  sào  estes  artificiacs,  corno  aconte- 
ceu  coni  a  que  outr'ora  Santuru  edifieou  ao  sul  de  Naliele,  antiga  capital 
do  districto. 


Lìbonta  395 

cendo  espreitar  o  curso  do  rio,  qiie  o  observador  ve 
marcado  na  pianura  por  tortuosa  fita  de  alvacenta 
areia. 

Em  roda  estiria-se  adormecida  a  campina  em  ineio 
da  calma,  coberta  por  um  céu  anilado,  e  cortando-se 
ao  longe  em  circulo  bem  definido  comò  de  horisonte 
maritimo. 

Pelo  dia  tudo  convida  ao  somno,  e  emquanto  o  rei 
da  crea9ao  dentro  da  cubata  deixa  descuidado  correr 
as  horas,  sacudindo  na  ociosidade  as  moscas  importu- 
nas,  OS  antilopes  retiram,  o  crocodilo  na  varzea  amos- 
tra o  aspero  lombo  ao  sol,  espreitando  com  toda  a  sua 
paciencia  a  preza  que  d'elle  se  abeira  pouco  cautelosa, 
ò  hyppopotamo  emerge  a  miudo  bufando,  as  aves  e 
OS  insectos  percorrem  azafamados  o  ar  e  a  praia  em 
busca  de  alimento. 

Ilhas  se  destacam  pela  face  do  rio,  cujo  desnivela- 
mento  no  tempo  das  chuvas  vae  1"*,5  do  nivel  actual, 
drainando  todas  as  aguas  da  enorme  pianura  do  no- 
roeste. 

Libonta  tem  um  chefe  supremo,  comò  dissemos,  que 
se  denomina  Mucobessa,  sorte  de  mytho,  a  suppor  pelas 
contradictorias  informa9oe8  que  nos  foram  fomecidas 
sobre  o  seu  modo  de  existir  e  àcerca  do  logar  onde  ao 
presente  liabita. 

A  verdade  é  que  nunca  o  podemos  ver,  apesar  de 
dois  dias  o  esperarmos. 

Os  liabitadores  luinas  ou  ba-genji,  pelo  geral  altos, 
esbeltos,  usam  pelles  ou  pannos;  sendo  que  as  primei- 
ras  muito  compridas  os  cobrem  elegantemente,  amar- 
radas  com  garbo  em  redor  do  pe8C090. 


396  De  Angola  d  contror^osta 

As  damas  podem  dizer-se  galantes,  trajam  coni 
gosto,  corno  se  ve  pelo  desenho,  usando  quasi  sempre 
pelles  de  boi  preto. 

Ostentam-se  assàs  senhoris,  e  parece  pelo  seu  ar 
que  a  metade  mais  forte  nào  propoe  e  dispoe  d'ellas, 
corno  de  resto  é  de  uso  em  muitos  logares  do  sertào 
africano. 

SSo  vivas,  e  a  final,  à  guisa  do  que  é  frequente,  em 
jovens  diveHem-se ;  em  adultas  pervertem-se,  às  vezes; 
em  velhas,  eu  sei.  .  .  convertem-se ,  talvez! 

Os  ba-genji  fazem  uso  immoderado  do  rapè,  tendo 
suspensa  do  pesco90  uma  pequena  espatula  de  ferro, 
que  à  laia  de  len90  empregam  na  limpeza  do  labio  su- 
perior. 

Dois  dias  nos  demoràmos  ali,  alentados  pela  espe- 
ran^a  de  comprar  mantimento  que  nos  chegasse  para 
longe;  mas  foi  frustrada,  attenta  a  carestia  e  a  falta 
d'elle. 

Desde  a  partida  do  Cunene,  nSo  logràmos  comprar 
um  dia  de  farinha  para  toda  a  gente,  havendo  vivido, 
comò  fica  dito,  da  ca^a  e  do  gado,  que  comnosco  trans- 
portavamos,  mercé  de  Deus,  recurso  sem  o  qual  teria- 
mos  certamente  succumbido. 

Acresce  nao  ser  està  a  alimenta9ao  mais  conveniente 
a  quem  trabalha  com  ardor,  notando-se  portanto  em 
todos  profundo  abatimento  physico.  Nós  mesmo  nao 
escapémos  a  elle,  e  se  é  verdade  que  à  for9a  de  riscos 
e  soffrimentos  temos  vivido  no  meio  de  tantos  obsta- 
culos,  com  a  indifferenza  bemfazeja  que  constitue  o 
apanagio  de  quem  a  miudo  affronta  o  perigo,  nem  por 
isso  deixavamos  de  estar  apprehensivos  sobre  a  futura 


Lihonta 


397 


sorte,  em  frente  da  ardua  empreza  que  nos  propunlia- 
mos. 

Eis  o  que  se  encontra  corno  remate  nas  paginas 
derradeiras  do  nosso  diario: 

A  13  de  setembro  dispozemo-nos  a  transpor  o  Zam- 
beze,  cortando  por  tal  fórma  na  perpendicular  a  der- 
rota  do  velho  Livingstone  para  Lobale. 


Tendo-se  porém  levantado  vento  rijo,  as  ondas  que- 
bravam  com  tal  furia  na  praia,  que  so  pelas  trea  ho- 
ras  póde  comefjar  a  faina. 

Foi,  porém,  vantajosa  essa  delonga,  attenta  a  diffi- 
culdade  em  conseguir  que  os  naturaes  nos  coadju- 
vassem  com  as  suas  rapidas  pìrogas,  auxilio  que  so 
prestaram  depois  de  agu^ada  a  cubica  por  um  bom 


398  De  Angola  d  contror-costa 

pagamento,  e  mediante  ainda  dois  ou  tres  disciirsos 
suasorios. 

Assim  n'uma  liora  estava  a  expedÌ9ao  portugueza 
dirigida  por  Capello  e  Ivens  do  outro  lado  do  Liam- 
bae,  tendo  terminado  a  primeira  parte  de  sua  viagem 
para  o  oriente. 

Se  a  animalidade  de  grande  vulto  està  milito  espa- 
lliada  por  toda  està  terra,  comò  jà  notàmos,  nao  me- 
nos  abundante  é  a  mìnuscula,  esvoacjando  aos  milhoes 
pelos  ares  moscas  e  mosquitos,  o  que  julgàmos  devido 
aos  amplos  pantanos  que  marginam  o  rio. 

Emquanto  estivemos  em  Libonta  tomou-se  um  mar- 
tyrio  a  presen9a  dos  dypteros  no  acampamento.  Era 
impossivel  socegar  um  instante,  e  dentro  da  tenda  ou 
fora,  escorrendo  agua  a  temperatura  elevada,  achava- 
mo-nos  sempre  cobertos  d'elles. 

Importunos  e  vorazes,  atiravam-se  acima  de  tudo, 
cobrindo  cargas  e  barracas  comò  um  negro  sudario, 
nao  ousando  pessoa  alguma  saf r  de  sua  casa,  sem  mu- 
nir-se  com  pennacho  feito  de  cauda  de  boi  ou  de  gnii, 
que  constantemente  precisava  agitar. 

A  ornithologia  tem  aqui  largo  estudo  para  .fazer, 
pois  sao  numerosissimas  as  especies  de  aves  que  ha- 
bitam  por  estas  terras. 

So  nas  margena  do  rio  existem  aquellas  por  muitas 
dezenas. 

N'um  pequenissimo  espinheiro,  junto  ao  nosso  cam- 
po, ponto  escolhido  pelas  rolas  para  descanso  da  noi- 
te,  matàmos  duas  duzias  na  primeira  tarde. 

Os  indigenas  jamais  atiram  às  aves,  so  as  perse- 
guem  nos  ninhos  ou  nas  armadilhas,  de  maneira  que 


Libonta  399 

OS  innocentes  animaes,  nao  se  arreceiando  dos  tiros, 
eram  victimas  de  todas  as  descargas. 

Ao  longo  do  Liambae  véem-se  pelicanos  ibis,  n'esta 
epocha  pouco  frequentes,  patos  pretos,  outros  mergii- 
lliadores,  gaivotins,  bicos  de  tesoura,  com  a  mandibula 
inferior  meia  pollegada  mais  longa,  urna  especie  de 
pequena  garcja  de  bico  curvo  para  cima,  Recurvirostra 
avocetta,  a  Parrà  afrìcana,  ma9aricos,  passeando  à  su- 
perficie da  agua,  e  quantas  aves  um  tao  importante 
lenQol  com  seus  alagamentos  póde  attrahir. 

Em  terra  percorrem  os  ares  as  rolas  cinzentas,  os 
pombos  verdes,  as  nduas  de  typos  diversos,  os  Textor 
erythr.  e  a  ardetta,  Herodias  huhulcus,  que  pousam  nds 
bois  e  nos  elephantes,  e  aiiida  outras  aves,  comò  o 
passaro  do  mei  C.  indicatola  o  ferreiro,  ou  campainha, 
Pluvianus  armatiis,  o  passaro  que  espreita,  Charadrius 
canincula,  ave  originai,  cuja  curiosidade  attrahe  as  at- 
ten9oes  do  viajante,  a  quem  elle  acompanha  de  ramo 
em  ramo  ;  e  ainda  a  Numida  melegrés,  e  muitos  outros. 

Libonta  é  necessariamente  insalubre.  Collocada  no 
fundo  da  depressao  onde  corre  o  Zambeze,  a  pequena 
altitude,  cercada  de  pantanos  pela  frente  e  por  detraz, 
deve  ser  nociva  à  saude  dos  europeus. 

Pela  pouca  riqueza  do  solo  extremamente  silicioso, 
abundancia  de  pantanos,  temperatura  exagerada,  pe- 
quena elevacjao,  etc,  este  districto  da  Africa  centrai, 
onde  ainda  de  subito  apparece  a  tzé-tzé,  està  condem- 
nado  a  um  permanente  abandono  por  parte  dos  euro- 
peus. 

Ninguem  n'elle  pensarà,  porque  nao  se  presta  a 
cousa  alguma,  so  escolhendo-o,  quando  multo,  comò 


400  De  Angola  d  contra-costa 

terra  de  passagem  para  alcan^ar  os  sertSes  orientaes. 
Em  parte  nenhuma,  corno  aqui,  o  viajante  que  partir 
de  qualquer  das  costas  encontrarà  embara908,  sobre- 
tudo  se  for  pesada  a  sua  caravana  e  levar  animaes 
de  carga. 

Do  Bié,  OS  trilhos  para  attingir  o  valle  sào  indubi- 
tavelmente  aquelles  de  Silva  Porto  ;  o  logar  para  trans- 
por  o  Quando,  este  onde  nós  o  cortàmos.  Nao  pense 
ninguem  em  se  aventurar,  sobretudo  na  quadra  das 
chuvas,  mais  para  o  meio  dia  ao  longo  d'elle;  encon- 
trarà aponas  ahi  obstaculos  sempre  crescentes;  nSo 
imagine  qualquer  buscar  variantes  para  um  lado  ou 
outro,  porque  sera  fatalmente  victima  dos  seus  atre-  ' 
vidos  devaneios. 

Cuatir,  Luatuta,  Longa  e  Cuito  serao  caminhos  tanto 
peiores,  quanto  mais  proximos  do  Zambeze  se  fizerem, 
e  que  nem  mesmo  para  os  ba-vico  darSo  facil  accesso  ; 
assim  comò  é  justo  avisar,  que  nao  pensem  os  viageiros 
do  sul  vir  do  N'gami  ou  de  outro  qualquer  ponto  com 
carros  ao  longo  d'esses  rios,  porque  os  perderao  entra 
OS  loda^aes  dos  parallelos  de  15°  e  18®;  ou  para  es- 
capar serao  for(;ados  a  retroceder. 

0  terreno  movedi9o,  marginando  sempre  os  rios,  e 
estes  correndo  uns  sobre  os  outros,  formam  uma  rede 
complicada,  cujos  cruzamentos  é  impossivel  evitar. 
Mais  aqui  ou  mais  alem  aquelle  que  transita  encontra 
uma  confluencia,  d'onde  sàe  so  ao  cabo  de  innumeras 
fadigas. 

0  mesmo  caminho  do  Bié  para  o  Mucusso,  ao  longo 
do  Cubango,  unico  trilhavel  em  boas  circumstancias, 
come9a  a  modificar-se  do  Dirico  e  Sambio  em  diante, 


Lihonta  401 

vindo  nas  plamiras  de  Sulatebele,  onde  derivam  as 
grandes  mollolas  do  sul,  a  alagar-se  por  modo  tal,  que 
é  perigoso  aventurar-se  n'elle. 

— Nós,  disseram-nos  uns  rapazes  viajantes  do  Bie, 
na  primeira  excursao,  prosegiiimos  urna  vez  do  Mu- 
ciisso  para  o  sul,  no  intuito  de  tentar  negocio  com  os 
ba-cóca  e  outros  povos  que  habitam  aquellas  terras,  e 
conseguir  orientar-nos  sobre  a  bifurcacjao  do  rio,  que 
nos  diziam  ser  em  Sulatebele  ou  Clmlatebele.  A  medida 
porém  que  avan9avamos,  as  cousas  oflFereciam  peior 
aspecto,  e  após  oito  ou  dez  dias  de  viagem,  tivemos 
de  suspender,  emmaranhados  entre  a  mananr/a  e  o 
mahu,  que  tudo  cobria,  e  os  numerosos  bra^os  de  agua 
que  recortavam  a  terra  em  todos  os  sentidos.  Era  um 
immenso  loda^al,  que  provavelmente  na  epocha  das 
chuvas  ^  iJa  de  tornar  n^im  lago. 

Estas  indica9oes,  que  nós  reputàmos  verdadeiras, 
confirmam  as  nossas  suspeitas  quanto  ao  valle  de  Ba- 
rótze,  e  podem  aproveitar  àquelles  que,  propondo-se 
seguir  por  estas  paragens,  se  derem  ao  incommodo  de 
ler  as  presentes  linlias. 

E  deixando  aos  mais  ousados  o  verificar  se  sim  ou 
nao  (3  exacto  aquillo  que  assertàmos,  abalemos  à  aven- 
tura,  dando  gra^as  à  Providencia  por  nos  ter  consen- 
tido   sair  illesos   d'essa   terra  de    triste  recorda9ao. 


2G 


•  • 


CAPITULO  XV 


DE  LIBONTA  AO  CABOMPO 


Programma  de  viagem — A  nossa  aatisfavào  e  o  susto  quc  dominava 
OS  Ciirrcgadorcs — Rasoes  d'esse  facto — Melos  de  querer  impedil-o — O 
Liambae  e  o  Caiiibae — Os  ma-róze,  haliitavòes  e  trajo — Deeep^òes  e 
roubos  curioHOS — luopinada  notieia  sobre  o  appareeimento  da  mosca — 
Palaucas,  lécbces  e  uni  leào — A  Hyphfvnt  vcntrì'cosa  e  o  papi/ìnis — En- 
contro  coni  a  tzé-tzc — Duas  quisseinas,  uni  Felix  j ubata  e  um  songo — 
De  novo  na  floresta,  vantagens  do  appareeimento  d'està — Os  ataques  do 
leào  e  as  nossas  ordeijs  por  tal  motivo  —  Nos  limites  do  estado  da  Lunda 
— 0  Muata  lanvo  e  o  seu  prestigio — A  liberdadc  do  negro  e  duas  eonsi- 
dera^òcs  a  respeito  d'eHe — A  maior  das  vietimas,  a  mulher — Afasta- 
mento  d'està  de  todos  os  iiegfxùos  e  reeep9Òes,  e  coiidiyào  social  do  sel- 
vagem  de  hoje — Mantimentos  à  farta  e  satisfaQÌlo  eonsequentc — 0  typo 
ca-runda  e  o  ca-rózc  — Informa9oes  sobre  o  Cabomjio  e  effeito  das  pala- 
vras  de  Muene  Cliilembi — Os  mangoia  e  o  reccio  da  mosca — Pretensa© 
inesperada  de  uni  bando  de  salteadores — Um  dilemma  para  ponderar — 
Tentativa  de  fuga  de  um  carregador  e  o  rio  Cabonipo. 


Colie  luul  OS 

o»  preparati- 
V08  de  Jorna- 
da e  depoi«<  dt 
havemios  sof- 
frido  coni  iii- 
crìvel  pacicn- 
cia  as  centra-  -•".'•^'b» «.m»!.. 

riedadus  e  vexames  que  acompanliam  sempre  a  par- 
tida  de  grande  caravana  de  qualqiier  povoa93o  impor- 
tante, eis-n08  a  14  de  setembro  a  caniiiilio  do  norte 
ao  longo  do  Liaiiibae. 

0  1108S0  programma  de  viagem  fora  feito  junto  a 
este  rio,  e,  depois  de  discutido  termo  a  termo,  adopta- 
do  definitivamente.  Ba8eava.-se  elle  na  eseollia  de  uni 
itinerario  que,  atravessando  pelo  meio  aa  zonaa  bran- 
queadas  da  carta,  ligast^e  os  mercados  ccntraes  mais 


406  De  Angola  d  contro-costa 

importantes,  accommodando-se  tanto  quanto  possivel 
a  resolver  se  o  Cabompo  era  ou  nào  o  Zambeze,  se 
acaso  derivava  do  laji^o  Bahgueolo^  e  podesse  ao  mes- 
mo  tempo  interpretar  as  relacjoes  daa  bacias  liydrogra- 
pliicas  do  Zaire  e  o  dito  rio.  Escnnado  sera  considerar 
sobre  o  que  a  carta  mostra  coni  evidencia,  bem  corno 
dizer  que  a  linha  de  Libonta  ao  lago  Moero  era  aquella 
que,  prplongada  para  o  nascente,  resolveria  por  in- 
teiro  o  problema. 

Assim,  ao  partir  do  Liambae,  a  expedi^ao- portu- 
gueza  destinava-se  a  transpor  as  florestas  do  nor- 
deste,  e,  visitando  o  Musiri  e  o  Cazembe,  tornear  o 
Bangueolo,  para  depois  seguir  por  Ulalla  a  caminho 
de  Mo^ambique. 

Grande  era  a  alegria  que  nos  animava  por  essas 
chaìias  alagadas,  afóra  a  idea  dos  problemas  que  breve 
se  nos  podiam  deparar;  mas,  se  liavia  exagero  em  a 
nossa  satisfacjao,  tremendo  era  o  receio  e  o  susto  de 
(piem  nos  acompanbava. 

Internados  no  amago  do  continente,  esses  homens 
que  apenas  conheciam  Angola,  e  quando  muito  ti- 
nham  ouvido  ftillar  dos  ma-quioco,  consideravam-se 
envolvidos  na  mais  estupenda  das  emprezas,  olhando- 
nos  conio  uns  loucos  a  correr  a  morte  certa!  Vaofos 
rumores  corriam  entre  a  caravana  sobre  os  nossos  in- 
tuitos,  cliegando  a  afiancjar-se  (|ue  procuravamos  cami- 
nho para  Portugal  por  melo  das  matas  africanas,  nao 
deixando  os  mais  imaginosos  de  acrescentar  de  sua 
casa  liistorias  sol)re  os  obstaculos  que  nos  esperavani. 

Erara  cannibaes  a  cortar-nos  o  caminho,  anoes  de 
cabe^as  disformes  que  nos   aterrorizariam,  desertos 


De  Libonta  ao  Cahompo  407 

sem  agua  a  percorrer,  feras,  cobras  a  debellar,  emfim 
sofiFrimentos,  cujo  remate  seria  a  fome  e  a  morte! 

Comprebende-se  facilmente  quanto  melindrosa  era 
està  conjunctura,  nao  dando  nós,  apesar  de  interessa- 
dos,  o  valor  de  uma  carga  de  missanga  pelo  exito  do 
trabalbo.  A  diivida  pungente  assoberbava-nos  a  inter- 
vallos  o  animo,  sumindo  no  tedio  a  satisfaxjao  que  nos 
animàra  ao  relembrar  descobertas  e  estudos  scientificos 
pelos  sertoes;  e  corno  o  espectador  retardatario,  apoz 
um  quadro  final  de  gloria  em  magica  de  vulto,  trope- 
(ja,  ao  tenue  brilho  dos  ultimos  lumes,  com  os  bancos, 
remirando  triste  o  panno  que  o  separa  da  attrahente 
visao,  nós,  escurecida  a  alegria  das  conquistas  neces- 
sarias  para  a  sciencia,  pelo  subito  fenecer  da  esperan- 
9a,  topavamos  irritados  nos  receios  dos  nossos  compa- 
nheiros,  conio  barreira  que  nos  separava  dos  sonlios 
de  cada  instante. 

—  Sabem  ou  nao  sabem  para  onde  se  dirigem?  Dizia 
um  mais  atilado.  Se  sabem,  porque  o  occultam?  Se 
ignoram,  para  que  proseguem? 

E  nós,  calando  as  explosoes  communicativas,  con- 
servavamo-nos  n'um  silencio  impertinente,  que  os  tra- 
zia  na  mais  completa  perplexidade. 

0  negro  tem  uma  antipatica  especial  ou  mesmo 
desconfian9a  por  tudo  que  desconhece,  e  no  receio  de 
se  perder,  assim  comò  no  desejo  de  conjurar  o  perigo, 
procura  esclarecer-se,  ou  entao  fugir. 

Regularmente  conhecedores  d'està  circumstancia, 
tremiamos  a  todo  o  instante  pelo  desfecbo,  e  redobran- 
do  de  vigilancia,  pensavamos  no  modo  de  evital-o. 
Dansava-se  pela  noite,  apesar  das  miserias  que  nos 


408  De  Angola  à  contro-costa 

rodeavam,  e  isso  porque  o  ordenavamos;  comprava-se 
quanto  poinbé  apparecia,  abatiain-se  bois,  distribuia-se 
fazenda  aos  mais  ladinos;  mas,  apenas  passada  qual- 
quer  d'estas  distrac96es,  recafa  o  acampamento  no  te- 
trico  silencio  do  costmne. 

Era  lima  caravana  de  crentes  ao  approximar-se  re- 
lif^osa  da  Caaba! 

0  Liaml)ae  divide-se,  na  regiao  em  que  nos  achà- 
mos,  n'um  bra^o  formidavel  denominado  Cambae,  que 
entra  no  grande  rio,  logo  a  jusante  de  Libonta,  margi- 
nado  ao  nascente  por  grandes  lagoas  e  pantanos. 

Nas  ondulacjoes  da  terra  à  direita  ficavam  as  ca- 
banas  dos  ma-róze,  pescadores  na  maior  parte  e  per- 
feitos  marinlieiros.  Em  suas  longas  piroga»,  munidos 
sempre  de  fisga  e  zagaia,  operam  j)ro(Hgios  de  evolu- 
^iio  e  rapidez,  deixando-nos  maravnlliados  coni  taes 
exercicios. 

As  suas  miseraveis  haìjitacjoes  mudam,  ao  que  pa- 
rece,  conforme  as  estacjoes,  da  zona  alagada  para 
aquella  mais  firme.  0  seu  trajo  é  singelo;  a  pelle  de 
leopardo,  o  lenco  metaUico  e  a  cabala  de  rapé^  ou  pe- 
quenas  espheras  de  marfim  lavrado,  sao  objectos  in- 
dispensaveis  para  quantos  se  prezam. 

De  catadura  feroz,  o  seu  modo  de  fallar  e  curioso, 
guttural,  semeado  por  uns  constantes  Euli!  Euh!  que 
similliando  ao  recemcliegado  traduzir  o  espanto,  nao 
passam  de  uma  banalidade  interjectiva.  A  rapina  e  a 
sua  occupacjao  mais  predilecta. 

Seria  ocioso  aqui  contar  a  serie  de  decep^oes  que 
nos  primeiros  dias  de  marcba  nos  succederam,  origi- 
nadas  pela  perfidia  do  negro.  Basta  dizer,  para  ava- 


De  Lihonta  ao  Cabompo  409 

liar-se  o  caracter  d'estes  indigenaa,  que  no  pequeno 
periodo  de  qnatro  diaa,  seis  d'elles,  que  servìam  de 
guias,  fugiram,  rouI>ando-nos. 

Eis  ainda  uni  facto  comprovatìvo  : 

Em  Libouta  apparetieram  no  campo  tres  sevhoras 
de  aspecto  jiivenil  u  rtcatado,  a  queni  iim  cavaVmro 


introduziu,  diziMido  que  eram  tres  daa  mais  dilectas 
esposas  de  Mucubessa,  (pie  nos  vinliara  visitar  eni  no- 
me d'elle. 

Attrahidos  pelo  seu  ar  de  honeatidade  e  de  candura, 
e  pai'a  scmios  ajiiradaveis  ao  fatno»o  regulo,  que  a  fi- 
nal nào  conhccianioa,  houvemos  por  mclhor  abrir  um 
fardo,  preparando  a  cada  urna  vohiinoso  regalo. 


410  De  Angola  d  contror-costa 

Infelizmente  fomos  ludibriados,  pois  ao  quarto  dia 
de  iiiarcha  para  o  norte  encontràmos  o  citado  cava- 
Iheiro  enverg-ando  os  pannos  que  tinliamos  offerecido 
lis  beldades,  indo  estas  atraz  d'elle,  quasi  niias,  earre- 
gadas  corno  uns  camellos  com  artigos  da  casa  do  dito 
seiìhor,  o  qual  n'este  momento  se  mudava. 

Ao  avistar-nos  veiu  a  falla,  sorrindo-nos  com  appa- 
rencia  de  Victoria! 

Entre  todas  as  decep^oes  a  mais  cruci  e  inopinada, 
porém,  foi  a  produzida  pela  noticia  da  proximidade 
da  tzé-tzé.  Quando  ouvimos  assim  fallar  da  mosca,  que 
presumiamos  acoit^da  muito  para  o  oriente,  todos  os 
planos  se  confundiram,  todas  as  suspeitas  se  aggrava- 
ram,  temendo  a  cada  instante  perder  os  bois  e  caes  que 
levavamos. 

A  expedi^ao,  tendo  transposto  o  alagado  circulo  dos 
lameiros,  que  a  extenuàra,  mas  sa  e  salva  proseguirà, 
la  agora  entrar  n'aquella  regiao  mortifera  da  mosca, 
onde  llie  estavam  certamente  preparadas  grandes  per- 
das.  Assim  nos  acbavamos  por  uni  lado  cercados  de 
pantanos,  por  outro  de  florestas  infestadas  pelo  mais 
terrivel  diptero,  ao  qual  adiante  dedicaremos  caj)itu- 
lo  especial.  A  caija  ali  abunda,  matando  nós  nos  pri- 
meiros  dias  algumas  palancas  e  léchees.  No  dia  17 
caimos  sobre  a  trilhada  de  uni  leào  que  se  acoitou  nas 
gramineas,  evidenciando-nos  a  existencia  n'estas  pa- 
ragens  de  grandes  animaes  silvestres,  de  que  até  ahi 
duvidavamos. 

0  aspecto  do  paiz  é  ainda  o  mesmo,  notando-se  o 
apparecimento  do  Papyrus  e  de  numerosas  Hyphosnes 
com  uma  intumescencia  a  meio  da  liastea,  que  julgà- 


De  Lihonta  ao  Cabompo  411 

mos  ser  a  Hyphcene  ventricosa,  bcm  corno  de  urna  eu- 
plìorbia  elevada.  Abunda  por  aqui  a  cacja  avistando 
nós  por  està  occasiao  o  liarrisbuck,  que  ainda  nao  ti- 
nhamos  visto. 

Foi  nas  iiiargens  do  Lueti,  onde  primeiro  se  nos 
deparou  a  tzé-tze,  vendo-nos  obrigados  a  partir  coni  o 
gado  às  tres  horas  da  madrugada,  a  firn  de  pelo  escuro 
transpormos  a  orla  de  urna  grande  floresta  por  ella  in- 
vadida. 

N'esta  viagem  matanios  duas  (piissemas,  um  felino 
conliecido  ])or  felix  jubata  e  uni  songo. 

xV  terra  eleva-se  gradualmente,  bastas  florestas  co- 
nie^ani  a  vestil-a,  consolando-nos  com  a  amenidade  da 
sombra  e  a  idea  da  sua  exi stenda,  para  nós  jà  quasi 
esquecida  e  tao  preeiosa;  pois  vivendo  em  cubatas  fei- 
tas  a  moda  indigena,  haviamos,  por  falta  de  arvores, 
nos  ultimos  tenipos,  quasi  dormido  à  la  belle  étoile^  ou 
em  miseras  clio(;as  feitas  de  cannicjo,  que  pela  noite  ao 
menor  movimento  ameai^avam  (lesal)ar. 

Depois  o  cercado  de  ramos  no  acampamento  e  urna 
questao  importante  em  zonas  onde  vive  o  leao,  e  so- 
bretudo  quando  se  levani  bois.  Defendido  o  quilombo 
apenas  por  fogueiras,  que  pela  noite  amortecem,  està 
o  viajante  e  o  gado  um  pouco  a  merce  das  incursoes 
do  formidavel  felino,  que  de  subito  com  a  sua  presenta 
tudo  póde  comprometter. 

Raro  e,  bem  o  sabemos,  atacar  o  leao  na  Africa  me- 
ridional um  acampamento,  e  isto  pelo  muito  naturai 
motivo  de  que  nao  anda  esfaimado  conio  o  seu  conge- 
nere do  Atlas;  mas,  conio  unia  vez  póde  fazer  exce- 
pcjào,  conveni  mais  prevenir  do  que  lamentar. 


412  De  Angola  d  contrar<osta 

A  qudda  (le  similhante  quadrupede  sobre  urna  co- 
luitìva  so  póde  trazer  desgracjas,  que  conveni  impedir 
por  todos  OS  meios.  Basta  lembrar  o  numero  de  mu- 
Iheres  e  crean^as  que  nos  aeompanliavam,  para  ealcu- 
larmos  quantas  nao  seriam  as  victimas,  caso  se  lem- 
brasse  de  nos  acommetter. 

Para  evitannos  quanto  possivel  um  tal  accidente, 
haviamos  ordenado  aos  nossos  carregadores  que  nun- 
ca  fizessem  fogo  sobre  o  leao,  amea^ando  mesmo  coni 
um  tiro  quem  se  atrevesse  a  transgredir  as  nossas  or- 
dens. 

Coni  o  apparecimento  das  florestas  conliecemos  que 
nos  approximavamos  do  limite  da  terra  do  Genji,  ter- 
ra dos  llanos  e  campinas  alagadas,  que  confinam  coni 
OS  estados  da  Lunda. 

Esse  immenso  paiz,  que  so  no  parallelo  de  10°  teni 
540  niilhas  de  largo,  e  governado  pelo  omnipotente 
Muata-Ianvo  \  tendo  muitos  dos  seus  vassallos  disse- 
minados  por  està  latitude,  a  uma  distancia  de  400  mi- 
Ihas  da  capital. 

E  seni  embargo  regulo  algum  do  sertao  é  mais  res- 
peitado  do  que  esse  lioniem,  o  qual  reside  no  interior 
da  Africa,  ao  nascente  do  rio  Lulua.  Todos  os  liabi- 
tantes  de  seus  vastos  dominios  sao  tributados,  e  ne- 
nlium,  embora  inorando  nos  confins,  deixa  de  pagar 
integralmente  o  devido  imposto.  E  ai  d'aquelle  que  se 
lembrar  de  fugir  ao  pagamento,  que  em  breve  o  Muene 
Cutapa  ou  qualquer  cdcuoia,  vira  sem  delonga  tirar- 
llie  rasao  da  cabecja! 


Muata-Ianvo,  ou  Mata-Iafa  sao  corrup^oes  de  Muato-Nvo. 


De  LiboiUa  ao  Cabompo  413 

Muene  Chilcmbi  foi  o  rejfulo  ea-ninda  ou  ca-lunda 
que  prinioiro  encontnlmos  ali,  iiiformamlo-notì  de  que 
poiic'O  tempo  antes  tiiiham  partìdo  da  terra  os  envia- 
dos  do  Muata,  rpic  por  sua  ordem  cobraiii  impostos  iia 
zona  do  3ueste. 

Nào  causa  estranheza  o  modo  preciso  por  que  se 
tratain  estas  qiiestoes  i'azeiidarias  n'um  dominio  bar- 


baresco, encravado  entre  ontroa  mio  menos  gelvageiis 
tambem  ? 

E  a  liistoria  de  todos  os  povos  na  infancia:  a  vio- 
lencia  fazendo  o  seu  pape!  na  fomiatjàc  dos  estados, 
a  forQa  brutal  dìspomlo  da  sua  consideravel  iiiflucncia 
para  maiiter  priiicipios  e  uni  tanto  direitos  contesta- 
veis. 

UiH  bomem  a  (pieni  so  o  preHti<rio  do  teiTor  póde 
conservar  solu-anccìro  ao  nivel  dos  seiiK  contoiTaiicoH, 


414  De  Angola  à  contror^osta 

acerca-se  ou  rodeia-se  de  uiii  grupo  de  sequazes,  e 
coinpreliendendo  aquella  necesBidade,  espallia-os  de 
cutello  Ila  niào,  derribando  coni  as  cabe9as  os  protes- 
tos  que  em  caminlio  se  Ihe  erguem. 

Iniciada  a  obra  de  devastacjào,  o  terror  apodera-se 
das  iiiassas,  cada  qual  treme  por  si  e  pelo  que  tem  de 
caro,  e  tanto  basta  para  conservar  millioes  de  liomens 
acorrentados  a  urna  so  vontade! 

Quao  nienos  livre  é  o  selvageni  ao  presente  do  que 
o  liomem  da  civilisada  Europa! 

Esses  filbos  das  selvas  — que  na  plirase  dos  poetas 
apparecem  livremente  pintados  conio  a  veloz  gazella 
ou  a  graciosa  ave  dos  bosques,  e,  irrequietos  conio  as 
brisas,  os  ditos  vates  poem  bulicjosos  por  matagaes  e 
florestas,  inipellidos  pelos  inipetos  da  propria  vontade, 
seni  iiorte  neiii  peias  que  Uies  restrinjam  os  desejos, 
levando  urna  vida  a  seus  ollios  invejosa —  sao  as  mais 
infelizes  e  escravisadas  creaturas  da  terra,  a  quem  urna 
infinidade  de  costumes  barbaros  e  absurdas  leis  re- 
pressivas  apertaiii  em  ferreo  circulo  no  viver  quoti- 
diano ! 

Yàva  vez  de  urna  completa  liberdade  pessoal,  conio 
à  primeira  vista  se  poderia  presumir,  o  negro  tem  su- 
perior  a  si  o  regulo,  que  estuda  constantemente  o  nie- 
llior  modo  de  aproveitar-se  d'elle,  envolvendo-o  n'um 
sem  numero  de  preceitos  e  imposicjoes  que  llie  tolliem 
todo  o  meio  de  ac9ao. 

Mesmo  dentro  da  propria  casa  o  triste  iiào  gosa  pre- 
rogativas  sobre  os  seus,  porque  o  cliefe  n'um  momento 
póde  tudo  aniquilar,  tirando-llie  mullier  e  filbos.  Fora, 
no  arimo  e  na  terra  que  a  familia  agricultou,  nada  pos- 


De  Libonta  ao  Cabompo  415 

sue  tambeni,  porque,  sendo  o  torrao  propriedade  do 
regulo,  d'elle  dispoe  a  seu  belprazer.  Mais  longe,  se, 
afastando-se,  o  misero,  após  prolongada  fadiga,  con- 
segue abater  um  animai  em  terra  de  vizinlios,  eis  que  o 
chefe  d'ali,  acercando-se,  Ihe  exige  o  mellior  producto 
do  seu  traballio,  ficaiido  o  remanescente  à  mercé  do 
outro. 

Emfim,  se,  transitando  em  campo  alheio,  occasio- 
nalmente ultrapassou  praxes  por  elle  ignoradas,  ou 
ofiFendeu  interesses  de  alguem,  eil-o  perseguido  conio 
uma  fera,  tendo  de  pagar  cara  a  sua  ignorancia  ou 
imprevidencia,  n'um  cliamado  mucano! 

Ya  um  codigo  de  tyrannias  que  vigora  no  interior  do 
continente  africano,  contendo  disposÌ9oes  espantosas 
que  nada  teeni  de  similliante  no  mundo  civilisado,  ten- 
dentes  a  suj citar  niìo  so  a  voiitade,  mas  ainda  os  lia- 
veres,  os  interesses  e  a  vida  do  fraco  a  ordem  do  mais 
'  forte. 

Os  privilegios  sào  exclusivo  apanagio  do  regulo. 
Os  melliores  animaes  e  alimentos,  os  mais  excellentes 
objectos  eniiim,  sao  interdictos  a  todos  e  para  elle  ex- 
clusivamente  reservados. 

E  naó  ousàmos  entrar  a(|ui  iia  mais  grave  das  ques- 
toes,  apontando  a  maior  das  victimas — a  niulher. 

Para  essa  infeliz  ha  na  terra  apenas  os  labores,  as 
proliibicjoes  e  o  esquecimento,  ou  antes  o  desprezo  na 
velliice!  E  se  e  verdade  que  por  vezes  o  preto  parece 
estimar  sua  mulher  emquanto  joven,  e  isso  antes  a 
expressao  de  egoismo,  porque  tem  n'ella  a  garantia 
de  uma  relativa  somma  de  bem-estar,  do  que  a  evi- 
dencia  de  sentimento  affectuoso.  0  desgracjado,  vieti- 


416  De  Angola  d  coritra-costa 

ma  da  repressào  por  parte  do  cliefe,  toma-se  tambem, 
emquanto  póde,  um  pequeno  tyranno  entre  os  seus, 
impondo-lhes  a  sua  voutade  coni  determina^òes  op- 
pressiva». 

Assim  isola-se  para  corner,  devora  os  melhores  bo- 
eados  que  a  mullier  preparou,  proliibindo-lhe  o  toear 
ou  separar  para  si  uni  quinhao,  aproveita  as  canies,  os 
mais  superiores  vegetaes,  e  deixa-lhe,  corno  a  um  eào, 
o  que  llie  uao  appetece  ou  apraz  ! 

E  uma  vida  de  miserias  e  prepotencias,  omle  a  fra- 
queza  caminlia,  subjugada,  sem  murmurio,  a  mercé  da 
vontade  do  forte;  onde  nem  sequer  a  eonsola^ào  do 
convivio  e  consentida  àquella  que  a  natureza  deu  ao 
homem  para  sua  companheira. 

Quem  viu  jamais,  n'essas  recep^oes  publicas,  cheias 
de  formalidades  fastidiosas,  onde  a  par  das  palmas  a 
compasso  o  negro  introduz  uma  serie  de  sauda^oes  e 
respostas  apropriadas,  que  proseguem  em  arengas  in- 
terminaveis,  apparecer  uma  mullier?  Ninguem,  e  in- 
feliz  d'aquella  que  tal  ousasse. 

De  longe,  escondida  e  timida,  ella,  naturalmente  cu- 
riosa, observa  quantas  scenas  se  passam,  desejosa  de 
approximar-se,  ver  e  fallar,  mas,  là  estao  os  olbos  do 
chefe  ou  do  companlieiro  para  Ibe  conter  os  impetos, 
là  està  o  uso  feito  lei,  que  a  inliibe  de  intervir  na  mais 
singela  controversia.  Como  o  cao,  ou  qualquer  outro 
animai  domestico,  o  seu  logar  é  quasi  sempre  junto  à 
palbota  ! 

Comparando  a  condicjao  das  popula9oes  que  se  agi- 
tam  pela  superficie  do  nosso  pequeno  pianeta,  o  esta- 
do  social  do  selvagem  abre,  na  tendencia  liumana  de 


^ 


De  Lihcmta  ao  Cabompo 


417 


caminhar  para  a  perfectibilidade,  um  parenthese,  que 
confonde  todos  oa  calculos,  tornando  o  indigena  de 
hoje  a  per8onÌfica9ào  immutavel,  a  expressSo  fiel  de 
urna  das  primeiras  phasea  por  que  passou  a  ra^a  hu- 
mana! 

Voivàmos  ao  assTUnpto. 

Durante  o  dia  passado  com  Muene  Chilembi,  en- 
cheu-se  a  caravana,  fazendo  [)ela  vez  primeira  depois 


da  partida  de  oeste  lun  fomecimento  completo  de  fa- 
rinhas  e  cereaes,  gallinhas,  etc.  ;  e  tamanho  era  o  con- 
tentamento, que  nós  mesmoa,  possuidos  de  urna  infan- 
ti! alegria,  riamos  e  galhofavamos  de  tudo,  corno  se 
da  memoria  se  nos  liouvera  varrido  a  lembran<;a  dos 
antigos  sofFrimentos  e  a  idèa  do  futuro  que  nos  espe- 
rava! 


418  De  Angola  d  coTttrcb-costa 

A  gallinha,  essa  etema  «gallinha»  da  Africa  inte- 
rior, rara  avis  que  acabavamos  de  encontrar,  tomava- 
se  agora  para  nós  um  enlevo,  sonho  das  semanas  an- 
teriores,  na  ancia  de  substituir  a  monotonia  da  carne 
fumada. 

Bem  pouco  é  preciso  para  mitigar  desalentos  e  con- 
solar desejos! 

0  typo  ca-runda  é  differente  do  ca-róze.  Pelo  geral 
aquelles  sao  mais  altos,  esbeltos  e  svmpathicos  do  que 
estes,  recordando-nos  os  ma-quióco,  com  quem  con- 
trahimos  rela96es  em  nossa  primeira  viagem. 

0  trajo  das  mulheres  e  assàs  originai  e  constituido 
por  uma  especie  de  panno  feito  do  entrecasco  de  certa 
arvore,  que,  depois  de  puxado  e  batido,  ellas  lan^am 
sobre  o  corpo,  corno  a  gravura  do  principio  d'este  ca- 
pitulo  indica. 

Muene  Chilembi  infonnou-nos  minuciosamente  so- 
bre a  existencia  e  direc9ào  do  Cabompo,  bem  corno 
refutou  todas  as  nossas  idéas  relativas  à  possibilidade 
de  ser  aquelle  rio  o  Liambae. 

— Este  rio  nasce  em  Quissenga,  disse-nos  elle,  onde 
o  vi  sair  com  nienos  porcjao  de  agua  do  que  a  contida 
n'uma  cabala;  recebe  a  caminho  do  Genji  muitos  tri- 
butarios,  dos  quaes  um  é  o  Cabompo.  Por  seu  lado 
este  deriva  do  sertao  do  nordeste  ;  onde  nasce,  porém, 
nao  o  sei,  porque  as  terras  para  essa  banda  sao  deser- 
tas,  nao  ousando  os  mesmos  ca^adores  aventurar-se 
por  ellas;  elephantes  e  moscas  é  o  que  por  là  se  encon- 
tra,  habitantes  nenhuns! 

Calcule-se  o  effeito  d'estas  palavras,  que,  comò  lima 
bomba  arremessada  aos  nossosjà  pouco  animosos  com- 


De  Libonta  ao  Cahompo  419 

panheiros,  nada  mais  fa  fazer  do  que  descoro9oal-08 
completamente,  e  avaliem-se  tanibem  as  alternativas 
de  alegria  e  tristeza  em  que  andavam  os  chefes  da 
expedicjao  ! 

As  largas  chanas  do  Liambae  terminaram,  e  logo 
ao  sair  da  libata  entràmos  em  densa  mata,  dominio  do 
rhinoceronte  de  dois  chifres,  de  que  vimos  um  bello 
exemplar,  e  do  porco  de  que  damos  desenho. 

A  estreita  nesga  das  terras  do  lanvo  é  apertada  a 
leste  pela  zona  que  umas  tribus  de  borrendo  aspecto 
occupam,  sem  armas  de  fogo  e  apenas  zagaias  e  arcos, 
e  nos  disseram  cliamarem-se  mangoia,  por  aonde  cor- 
tàmos  no  intuito  de  apanhar  o  Cabompo  a  montante 
da  longitude  de  Chilembi,  evitando  com  a  maior  rapi- 
dez  a  mosca  tzé-tzé  e  a  alluviào  de  outras  que,  em- 
bora  nao  perigosas  corno  està,  affligem  o  gado  por 
maneira  tal,  que  nem  mesmo  junto  as  fogueiras  con- 
segue comer. 

Adiante  de  Muene  Cliingongocliella,  a  22  de  setem- 
bro,  caminhavamos  socegadamente  por  uma  campina, 
quando  Antonio,  que  ia  na  testa  da  caravana,  deu  vista 
ao  longe  de  muitos  vultos  negros,  que  suppoz  serem 
gniis. 

Partindo  a  correr,  eil-o  que  de  subito  estaca,  e, 
volvendo-se  apressado,  retrocede.  Os  gnùs  haviam-se 
transformado  n'um  bando  de  homens,  nao  inspirando 
pelo  seu  aspecto  confiancja  alguma.  Avancjavam  em 
linlia,  tendo  na  vanguarda  uma  banda  de  musicos  com 
marimbas  e  bombos,  e  deixando  ver  a  meio  um  in- 
dividuo, que,  por  envolyido  em  pannos  de  cor  e  vir 
acompanliado  de  um  servo  de  umbella,  para  o  abrigar 


420  De  Angola  d  conlra^osta 

dos  ardores  do  sol,  nós  julgàmos  ser  creatura  impor- 
tante. 

Assim  que  se  acharam  em  frente  de  nós  acocora- 
ram-se  para  parlamentar;  e  foram  tao  infelizes  as  ne- 
gocia<;oes,  que,  ao  cabo  de  meia  bora,  erguendo-nos 
e  carregando  armas,  cobriamos  a  retirada  da  carava- 
na  contra  esse  bando  de  salteadores,  pois  outra  cousa 
nao  eram  aquelles  cuja  presenta  nos  surprehendéra, 
nem  o  seu  chef  e,  Muene  Oianda,  irmào  do  Lobossi  do 
Genji. 

Ao  que  suppomos,  era  tao  grande  a  insaciedade  do 
tal  sujeito,  que  so  se  contentaria  com  toda  a  nossa 
fazenda;  e  comò  o  facto  tinha  contra  si  a  muito  natu- 
rai circumstancia  da  impossibilidade,  entendemos  por 
bem  e  mesmo  para  contrastar,  dar-lhe  apenas  seis  len- 
90S  de  pintado  para  seu  uso;  collocando  todas  as  suas 
pretensoes  perante  o  formidavel  dilenuna  de  nada  mais 
receber  e  retirar-se  em  paz,  ou  tomar  a  fazenda  por 
inteiro,  levando  ao  mesmo  tempo  um  tiro  de  revolver 
na  cabega! 

Hesitou  o  heroe  por  momentos,  mas,  convencido  al- 
fim  que  feitigo  de  branco  p6de  mais  que  o  de  preto, 
ficou-se  quédo,  emquanto  os  exploradores,  seguindo 
prestes  a  caravana,  volviam  gi'aciosamente  as  costas 
a  tao  antipathica  creatura. 

Assim  nos  descartàmos  sem  mais  ceremonias  dos 
importunos  rapinantes,  que  nao  passavam  de  uns  pu- 
sillanimes. 

Em  Moi  Cafuta  achavamo-nos  a  8  milhas  do  Ca- 
bompo,  e  tornando  dois  guias  para  nos  mostrarem  o 
logar  da  passagem,  para  là  nos  dirigimos  a  24  de  se- 


N 


De  Libonta  ao  Cabompo  421 

tembro,  depois  de  submettido  um  homem  que  se  eva- 
dlra  e  de  termos  notado  a  altitude  de  mna  cachoeira 
no  rio,  que  embaracja  a  navega9ao,  lamentando  mais 
mna  vez  a  proximidade  das  chuvas,  pois  nmnerosos 
e  grossos  cumulos  semeavàm  a  abobada  celeste  em 
todos  OS  quadrantes,  prognostico  desagradavel  dos  ba- 
nhos  que  se  nos  estavam  preparando. 

As  onze  horas  chegàmos  à  beira  do  Cabompo,  rio 
que  tem  n'este  locai  150  a  200  metros  de  largo,  agua 
verdenegra  e  as  margens  occultas  em  frondoso  arvo- 
redo. 


CAPI  TU  LO  XVI 


FERA  NATITKA 


Kt  devant  oiix  s'élòvfì  une  immense  fopèt, 
Dout  tout  hommc  uouvoau  ignoro  le  serret. 
Iinprnrtrable. . . 

J.  li.  J/f*ft»<T  — Cai*elx.o  b  Ivexs,  etc. 


Considera^Oes  tristos — 0  d(^sorto  e  o  silencio — 0  Cabompo  e  anoite 
— 0  elephante  e  o  an'oredo — Limite  ao  torreno  silìcioso — Primeiras  ro- 
chas — A  floresta  e  08  aniiiiaes  silvcstres — Pc^rda  do  uni  oompanhoìro — 
Homem  e  eào  inortos — Doìs  elcphantos — 0  sonmo  da  girafa  e  obito  de 
outro  homem — Fuga  de  um  caiTegador — Morte  de  mais  um  eao — Indi- 
viduo i)erdido  no  bosque — 0  rhinoeeronte  curioso  e  os  erocodilos  do 
Cabompo —  Os  destro^os  do  leao — Vam-Boòé — 0  leào  e  uina  noite  de 
poleiro — lieÌ908  funidos  e  seios  pcudeutes — A  primeira  tempestHde. 


Fiitre  OS  va- 
Iissimos  fa- 
qne  podem 
(listingiiiro  cur- 
o  II  edio  de  um 
1  o  los  seus  af- 
fi RI  tc9,  figuram 
1  n  sso  ver,  co- 
rno principaes, 
I  OS  qiie  se  refe- 
ì  rem  à  disposi- 
ii^a  orographi- 
UJjNSca  do9  terrenOB 
p  r  elle  drena- 
d  '•  il  3ua  lar- 
gura mèdia  à  cor  mais  ou  menos  constante  da  agua, 
à  velocìdade,  a  que  ainda  se  podem  juntar  outros,  comò, 
por  esemplo,  indica^So  indigena  sobre  o  modo  de  de- 
signar tal  bra*;o,  o  calculo  do  volume  de  fluido,  etc. 


426  De  Angola  d  contra-costa 

Apenas  installados  à  beira  do  Cabompo,  come^àmos, 
depois  de  attentar  bem  nos  seus  tra^os  mais  salientes, 
a  comparal-o  com  o  rio  Zambeze,  e,  approximando  da 
nossa  observacjao  pessoal  o  que  os  naturaes  dìziam  a 
esse  respeito,  viemos  a  conclusao  de  que  o  Cabompo  e 
indiscutivelmente  um  affluente  do  Zambeze  e  nunca  o 
seu  ramo  medio.  A  agua  d'este  é  verde  um  tanto  claro 
e  por  vezes  pendendo  para  azulada,  a  d'aquelle  verde- 
negra,  comò  se  salra  de  vasto  lago. 

A  sua  largura,  no  sitio  em  que  nos  achàmos,  oscillarà 
entre  100  e  150  metros,  ao  passo  que  o  Zambeze  tem 
300  ou  mais,  e  uma  corrente  de  3  milhas  de  velocida- 
de,  emquanto,  n'esta  quadra,  pelo  menos,  o  Cabompo 
sera  de  0,5  milha,  se  tanto. 

As  terras  que  para  o  norte  se  alongam  pelas  do  lunda 
Shinte  extremam  pelo  oeste  uma  vasta  chana^,  que, 
acompanhando  a  parte  superior  do  Zambeze,  Ihe  dao 
em  tudo  o  aspecto  do  curso  medio;  e  o  Cabompo,  logo 
a  montante  da  cachoeira  Lumupa,  corre  entro  terrenos 
alcantilados,  que,  erguendo-se,  vao  até  ganhar  o  pla- 
teau elevado  que  divide  os  systemas  Congo-Zambeze. 

0  valle  de  Barótze  é  aìnda,  geologicamente  fallan- 
do, constituido  nos  seus  tra90s  mais  geraes  por  tuff 
calcarifero,  assente  sobre  um  deposito  de  grès  mais  ou 
menos  endurecido,  amarello  ou  um  tanto  vermellio, 
perfurado  em  zonas  por  molluscos  lithophagos,  trans- 
formando-se,  quando  limpo  e  separado  da  parte  menos 
densa,  em  tractos  arenosos  estereis  ou  fracos,  ao  passo 
que  subindo  o  Cabompo,  ve  o  viajante  apparecerem-lhe 


1  Ghana,  pianura  coberta  de  gramincas. 


Fera  natura  427 

as  terras  argillosas  vermelho  sangue,  de  envolta  com 
um  conglomerado  ferruginoso,  cobrindo  rochas,  comò 
o  gneiss,  outras  de  grès,  etc,  muito  ferteis  e  cobertas 
de  arvoredo. 

Em  resumo,  a  quantos  ìndigenas  e  guias  inquirimos, 
todos  invariavelmente  nos  responderam  no  mesmo  sen- 
tido  do  que  nós  imaginavamos,  isto  é,  que  o  Cabompo 
é  um  affluente  do  Liambae  e  nao  o  mesmo  Liambae, 
comò  se  poderia  acreditar. 

0  notavel,  porém,  é  que  jamais  ouvimos  fallar  em 
Liba,  esse  rio  que  Livingstone  cita,  comò  percorrido 
em  viagem  para  Loanda,  e  por  elle  pittorescamente 
descripto,  facto  que  nos  leva  a  crer  na  sua  existencia, 
trocado  o  nome  em  Liambae,  ou  seja  uma  confusao  do 
mesmo  termo. 

E  nao  tem  isto  muito  de  extraordinario,  se  conside- 
rarmos  nas  numerosissimas  transfonna9oe8  ou  mesmo 
na  corrup^ao  de  nomes  que  por  toda  a  parte  se  notam 
em  Africa  e  cada  viajante  emprega  a  seu  bel-prazer. 

Assim  o  rio  Aruangóa,  que  affine  ao  Zambeze,  é  por 
uns  chamado  Luangóa,  por  outros  Luanga  e  até  Ruan- 
ga,  ao  passo  que  vemos  no  norte  estabelecida  a  con- 
fusao no  paiz  de  Lunda  e  seus  povoadores  ba-lunda, 
onde  promiscuamente  se  encontram  Lunda,  Runda, 
Urunda  com  o  prefixo  U  designativo  da  terra.  Urna  e 
Lua,  e  OS  povoadores  ba-lunda,  ca-lunda,  mu-lua  e 
ba-lua,  ca-runda,  etc,  citados  no  mesmo  documento. 

Nao  admira,  pois,  que  o  viajante  inglez,  fallando 
uma  lingua  tao  estranha,  embora  percorresse  tantos 
pxiizes,  tivesse  difficuldade  em  pronunciar  correcta- 
mente  os  dialectos  africanos,  e  transformasse  o  Liam- 


428  De  Angola  d  contrcu-costa 

badji  dog  ba-lunda  no  Liambae  dos  ma-róze  e  no  Liba 
de  qualquer  que  por  ahi  Ihe  fosse  guia. 

A  verdade  é  que  tal  rio  para  nós  ficou  letra  morta. 

Transposto  o  Cabompo,  acampàmos  na  outra  mar- 
gem,  depois  de  passarmos  as  mais  crueis  angustias  na 
tarefa  do  transporte  de  nossos  bois,  pois  era  a  riba 
direita  talhada  quasi  a  piqué,  nào  podendo  os  animaes, 
ao  abordar  a  terra,  finnar-se  de  modo  que  podessem 
vencer  o  seu  aspero  declive. 

Achavamo-nos  na  mais  estranha  perplexidade,  la- 
9ando  aqui  um,  clamando  por  outro,  que  embaracjado 
nos  ramos  do  arvoredo  pendente  amea9ava  asphixiar- 
se,  sem  saber  que  partido  tomar,  quando  um  indige- 
na, que  até  ao  rio  acompanhàra  a  caravana,  nos  deu  o 
mais  intelligente  quinau,  e  revelou  a  nossa  triste  igno- 
r ancia  ou  pouco  senso  pratico. 

Gritavamos,  remexiamos,  serviamo-nos  de  cordas, 
sem  nada  conseguirmos;  de  subito,  a  jusante,  os  bois 
come9am  a  subir  a  encosta  com  a  maior  naturalidade. 
Approximando-nos  do  logar,  vimos  entao  operado  com 
a  maior  esperteza  um  trabalho  que  mais  cedo  nos  de- 
véra ter  occorrido,  e  que  um  negro  do  mato,  a  sós,  ti- 
nha  posto  em  pratica. 

Empregando  a  machadinha  corno  enxada,  havia  elle 
rapidamente  feito  um  carreiro  em  lacetes  até  ao  nivel 
da  agua,  por  onde  os  animaes  trepavam  à  vontade. 

0  aspecto  selvagem  de  tudo  quanto  nos  cercava,  as 
numerosas  pégadas  de  elephante,  os  cipós  e  as  urzel- 
las,  tudo  emfim  evidenciava  que  tinhamos  dado  entra- 
da  n'uma  terra  erma,  onde  os  trabalhos  e  as  difficulda- 
des  corriam  naturalmente  parelhas  com  a  sua  braveza. 


Fera  natura  429 

Antonio,  lego  ao  entrar  n'ella,  abatéra  duas  formo- 
Has  quissemas  e  urna  gazella,  quc  ptila  noite  se  prepa- 
raram  e  mesmo  desappareceram  em  parte,  emquanto 
urna  manada  de  elephantes  se  approximou  do  acampa- 
mento,  atroando  tudo;  eram  dez  horas  da  noite.  Eis  o 
que  no8  diz  o  diario,  rubrìcado  sob  a  impressao  do 
momento  : 


«...  scenas  estranbas  sào  aquellas  a  que  assisti- 
mo8  agora,  e  bem  dignas  de  penna  melhor  maneja- 
da.  Imagine-se  uma  noite  muito  escura,  envolveudo 
tudo. . . 

<(Den8Ì88Ìma  mata  debru^a-se  sobre  o  curso  do  rio, 
e  alastrando  para  leste,  abre  a  100  metros  d'este  uma 
pequena  clareira,  ao  meio  da  qual  um  espinbeiro  gi- 
gante se  copa  à  fei^ào  de  pàra-sol.  Dola  europeus  estSo 
sentados  em  caixas  e,  fumando  socegados  em  longo 
cachimbo,  contemplam  tudo  que  os  cerca.  Em  vasto 


43^0  De  Angola  d  contror-costa 

circulo  urna  centena  de  homens,  à  luz  de  numerosas 
fogueiras,  se  agita  em  faina  de  interesse,  correndo  pres- 
surosos  n'um  e  n'outro  sentido.  Ao  clarSo  canibiante 
dos  brazeiros  os  vultos  tisnados,  gesticulando  e  brace- 
jando  por  meio  dos  troncos  e  linguas  de  fogo,  similham 
urna  caterva  de  demonios  na  tremenda  tarefa  que  os 
espiritos  timidos  e  apprehensivos  llies  apraz  imaginar. 
Tres  antilopes  mortos,  jà  despidos  da  pelle  e  conve- 
nientemente abertos,  estao  prestes  a  serem  esquarteja- 
dos,  emquanto  alguns  individuos  aproveitam  o  sangue, 
outros  OS  intestinos,  disputando-se  as  mais  pequenas 
parcellas. 

«Diligentes,  as  mulheres  buscam  os  utensilios  de 
cozinha  que  os  companlieiros  Ihes  pedem,  ao  passo  que 
08  filhos,  por  momentos  abandonados,  tiritam  de  frio, 
rompendo  n'um  charivan  de  guinchos. 

«Estourada  medonha  atroa  os  ares  em  roda,  an- 
nunciando que  urna  manada  de  elephantes  entregues 
a  gostosa  tarefa  de  procurar  repasto,  esgar9am  e  que- 
bram  quantas  arvores  e  ramos  encontram  no  caminho. 

«Ladram  os  caes,  ronca  no  rio  o  liyppopotamo,  ru- 
moreja  tristonho  o  vento  na  folhagem,  rangem  os  ossos 
sob  as  poderosas  maxillas  dos  nossos  companheiros, 
chiam  as  cames  no  brazeiro,  e,  despedindo  a  gordura 
para  o  fogo,  alentam  de  subito  as  labaredas,  que,  so- 
brepujando  os  grupos,  comò  que  amea9am  o  arvoredo; 
trocam-se  os  gi-itos  e  as  phrases  asselvajadas,  emfim 
vae  luna  noite  prehistorica!» 

Como  primeiro  debute  defrontava-nos  floresta  de- 
serta, que  oito  dias  nos  levaria  a  passar  sem  trilhos 
nem  indicios. 


Fera  natura  431 

A  narrativa  dos  soffrimentos  experimentados  pela 
expedicjao  n'esses  bosques  que  se  alongam  pela  mar- 
gem  do  Cabompo,  é  difficil  de  apreciar  no  remanso 
do  nosso  gabinete  na  Europa,  e  por  isso  pedimos  ve- 
nia ao  leitor  para  transcrever  na  integra  quanto  em 
nosso  diario  se  aclia  exarado,  convictos  de  que  assim 
obedecemos  mais  à  necessaria  obriga9ao  de  sermos 
fieis. 

Foi  urna  corno  que  marcila  funebre  por  esses  sertoes, 
dissemos  nós  em  nossa  conferencia  de  Madrid,  e  assim 
exprimimos  a  singola  verdade. 

Especie  de  marcila  funebre,  repetimos,  em  que  a 
suspeita  da  morte  imminente  arrastava  a  caravana  em 
tetrico  silencio,  o  medo  do  deserto  abaiava  os  animos 
mais  firmes,  a  ancia  de  se  alimentar  fazia  de  cada 
liomem  um  egoista  terrivel,  prompto  a  sacrificar  o  seu 
companheiro  para  salvar  a  propria  vida;  em  que,  em- 
fim,  a  idea  da  propria  conserva^ao  havia  varrido  todo 
o  sentimento  de  caridade,  e  uma  provacjao  mais  basta- 
ria  talvez  para  iniciar  as  hediondas  scenas  de  desen- 
freado  cannibalismo! 

Que  triste  espectaculo! 

Quantos  liomens  marcaram  na  terra  com  seus  cor- 
pos  a  trilhada  da  comitiva  por  essas  sombrias  flo- 
restas,  onde  o  depilante  em  bandos  numerosos  tudo 
devasta,  o  rliinoceronte  divaga  solitario,  a  mosca  cam- 
peia  voraz,  amea9ando  de  morte  quantos  animaes  do- 
mesticos  d'ali  se  approximem  ;  onde,  finalmente,  pas- 
seia  comò  senhor  o  rei  das  selvas,  atroando  pela  noite 
OS  ares  com  a  sua  voz  formidavel,  e  espavorindo  o 
mundo  animai  com  o  seu  rugir  tremendo! 


432  De  Angola  d  contrcu-costa 

Bem  nefastos  dias  e  duras  scenas  foram  essas  que 
ainda  hoje,  ao  lanciar  mao  da  penna  para  as  descrever, 
nos  sentimos  dominados  pelas  mais  lugubres  e  tetri- 
cas  recordaijoes. 

Nem  um  vnlto  humano  sequer  por  esses  sombrìos 
bosques,  para  nos  dizer:  «Por  ali  é  o  caminho!»  Nem 
uma  indica9ao  que  nos  servisse,  no  meio  d'esse  intrin- 
cado  dedalo  de  soffrimentos  e  amea9as,  de  norte  ou 
guia,  para  nos  livrar  do  desfecho  a  todo  o  momento 
esperado,  a  morte! 

Sempre  o  silencio  da  floresta,  apenas  cortado  por 
esses  ruidos  originaes  e  inexplicaveis,  que  sao  o  se- 
gredo  da  natureza  selvagem,  corno  um  murmurio  de 
mysterios  que  so  despertam  terror;  sempre  a  igno- 
rancia  do  nosso  fim,  o  angustioso  lembrar  das  miserias 
que  nos  esperavam,  excruciando-nos  a  alma,  repu- 
gnando à  consciencia  o  facto  de  havermos  provocado 
tamanho  soflFrer! 

E  quando  pela  noite  toda  essa  agglomera9ao  de 
homens  nus,  famintos,  entristecìdo8,'Uns  estirados  em 
redor  das  fogueiras,  outros  divagando  absortos  à  luz 
das  labaredas,  calam  alfim  sob  o  imperio  do  somno, 
gemendo  aqui,  resonando  acolà;  nós,  dominados  pelos 
negros  pensamentos  do  dia  seguinte,  apprehensivos 
com  a  idèa  do  risco  imminente  em  que  se  achava  a 
missao  que  nos  era  tanto  cara,  contemplavamos  taci- 
tumos  sìmilhante  scena;  e  esentando  esse  còro,  que  nos 
parecia  um  lamento  de  condemnados  pedindo  a  sua 
redemp9ào,  marejavam-se-nos  os  olhos  de  lagrimas, 
convictos  de  sermos  os  unicos  culpados  de  tao  grandes 
desgra9as. 


Fpra  natura  433 

Diario  : 

«Diii  24  de  setembro, 

«  Estamos  acampados  uà  margem  direita  do  Ca- 
boiiipo,  tendo-o  transposto  com  gi-aves  difficuldades. 

»0  rio  tem  aqui  lóO  a  200  metros  de  largo,  com  a 
profundidade  media  de  3  metros,  agua  esverdeada, 


margens  fechadas  de  frondosissima  vegeta»;So,  cor- 
rente fraca. 

«Logo  ao  amanhecer  desertou-noa  um  homem,  que 
mais  tarde,  batida  a  floresta,  póde  ser  colhido  às  mSos. 

«Para  està  banda  os  matos  fecliam  de  mais  em  mais, 
tuniando-se  extremamente  selvagem  o  aspecto  da  na- 
turerà. 

«Longe  estào  as  habita^Òes  hiimanas,  funebre  sìlen- 
cio  domina  por  aqui;  um  presentimento  nos  diz  que 
adiante  nos  esperam  dui-os  soffrimentos. 


434  De.  Angola  d  contro-costa 

«Xos  plateaiix  ao  lado  encontraiii-se  por  toda  a  par- 
te numerosas  pégadas  de  elephante,  sigimi  evidente  de 
regiao  deserta. 

«Assalta-nos  de  novo  a  idea  de  (jue  o  C^ihompo  po- 
desse  vir  do  lago  Bangiieolo. 

«A  sua  agua,  um  tanto  eseura,  a  pequ(»na  velc^eida- 
de,  a  dire(*9ao  do  curso,  quem  sabe? 

«Depois  lenibrou-nos  lioje  a  deelara^ao  de  Jacob 
Wainriglit,  o  fiel  servidor  de  Livingstone. 

«  0  Luapula,  disse  elle,  corre  para  o  por  do  sol. 

«A  nossa  gente  està  beni  disposta,  apesar  das  deser- 
<;!oes  dos  iJtiinos  dias,  e  das  aftìrniatìvas  dos  indigenas, 
de  que  para  està  banda  lia  apeiias  elephantes  e  nioseas. 

"Dia  25  de  setembro. 

«  Ao  amanliecer  pozemo-nos  a  caniinho.  Estamos  in- 
fatigaveis  e  decididos  a  concluir  a  enipreza  que  pro- 
jcctàmos,  euste  o  que  eustar. 

«Sao  longas  as  niatas  que  iios  defrontam;  muito  em- 
bora,  liao  de  transpor-se.  Adiante  é  o  caminlio,  e  que 
a  Providencia  se  amercie  de  nós.  Para  as  regioes  des- 
eonliecidas  é  que  tem  merito  o  avanzar,  pois  por  ca- 
niinlios  trilhados  toda  a  gente  o  faz. 

«Aqui  o  norte  e  a  bussola,  a  indicacjao,  o  palpite,  o 
apoio,  a  vontade;  retroceder  6  inipossivel! 

«Caminhàmos  até  ao  meio  dia  ao  longo  do  rio,  por 
valles  e  serras  do  mais  pittoresco  aspecto,  atravessando 
zoiias  extensas,  densamente  vestidas,  sómente  habita- 
das  pelo  elephante. 

((()  terreno  accidenta-se  de  todo  o  ponto,  appare- 
cendo  a  affloreal-o  roclias  variadas,  e  tendendo  a  des- 
apparecer  as  terras  arenosas  do  valle  de  Barótze. 


Fera  natura  4.^5 

«Vae-se  elevando  o-radualmente;  o  rio  serpeia  tor- 
tuoso em  sileneio,  coni  a  mesma  largura  e  as  marjLfens 
a  piqué. 

«Por  toda  a  parte  se  encontram  arvores  recente- 
mente derribadas,  outras  fendidas  e  com  as  raizes  a 
descoberto,  conio  prova  do  traballio  do  maior  dos  ani- 
niaes  terrestres  conhecidos. 

«  0  espinlieiro  e  sobretudo  o  mais  procurado,  por 
«j^ostar  o  elepliante  multo  das  pontas  dos  ramos. 

«No  caso  de  sermos  atacados  por  uni  d'estes  ani- 
niaes,  nao  poderia  servir  de  defeza  o  empoleirarmo-iios 
n'unia  arvore,  i)()rque,  segundo  aftirmou  uni  dos  nossos 
liomens,  enibora  o  elepliante  iiào  consiga  derribal-a, 
atira  coni  paus  a  (pieni  pretende  assiin  escapar-se-lhe! 

((E  Ulna  estranila  habilidade,  que  carece  de  coniir- 
ma(^Ȉo. 

<(  Redobra  o  calor,  castigando  severamente  pelas  lio- 
ras  em  (pie  é  mais  intenso. 

<(  Alguns  liomens  cansam  rapidamente,  atrazando-se 
na  marcila. 

<(()  aspecto  bravo  da  natureza  testemunlia  as  indica- 
^oes  (pie  nos  deram. 

«Su8i)eitamos  liaver  ja  por  aqui  a  tzé-tz(5. 

«Dia  26  de  setembro. 

«Estamos  junto  a  margem  do  Cabompo,  coberta 
a(iiii  (l(ìs  espinlieiros  (bi  gomma. 

«A  marcila  o})erou-se  por  unia  densa  floresta,  milito 
abuii(biiite  em  ca(^a;  abatemos  liqje  tres  quissemas  for- 
midaveis. 

«pjxtremamente  emmaranliada  por  cipós  e  ramos 
(pie  se  cruzani  e  entrela(;am,  e  nos  difficultam  a  mar- 


436  De  Angola  d  controtesta 

cha,  tomou-se  necessario  levar  gente  na  vanguarda, 
que  de  niachados  eni  punbo  foi  desembara^ando  o 
caminho. 

«Por  vezes  a  mata  està  intransitavel,  tao  grandes, 
numerosas  e  fundas  sao  as  pégadas  dos  elephantes  que 
se  atolaram  no  terreno  argilloso. 

«Temos  a  registar  um  funebre  successo,  que  muito 
nos  impressionou. 

«Um  dos  nossos  rapazes,  que,  andando  ao  bote,  ha 
dias  se  queixava  de  fadiga,  lioje,  logo  depois  de  sair 
do  acampamento,  caiu  por  terra,  morrendo  em  poucos 
momentos.  E  singular!  Emmagrecem  rapidamente, 
perturbam-se-lhe  as  idéas  e  os  movimentos.  Esten- 
dem  a  mao,  querendo  colher  cousas  que  nao  existem 
no  logar  a  que  se  dirigem,  suspiram,  cobrem-se  de  suo- 
res  frios,  o  pulso  fraqueja,  succumbem. 

«Infeliz!  Continuàmos  a  suspeitar  ser  a  molestia 
unui  meningite.  A  insolacjao,  a  carga  à  cabe^a,  o  can- 
sa^o,  a  estranba  perturba^ao,  tudo  indica  a  causa  ori- 
ginaria do  rapido  desfeclio. 

«Silencio  lugubre  reina  por  essas  matas  afóra,  so  in- 
terrompido  durante  a  noite  pelos  rugidos  dos  animaes 
silvestres. 

«0  rio  segue  socegado,  limpo  de  cachoeiras,  occulto 
na  vegetacjao  das  margens. 

«Dia  27  de  setembro. 

«A  Jornada  de  lioje  foi  longa  pelas  campinas  que 
marginam  aqui  o  Cabompo. 

«Parecia  um  jardim  zoologico  a  terra  atravessada, 
tao  numerosas  e  differentes  sao  as  especies  animaes 
que  observàmos. 


Fera  natura 


437 


«Gazellas,  zeJmis,  elephantus,  quissemas,  palancas, 
rhmoceronttis,  jiivardos,  ctc,  fugiam  eupavoridos  ante 
nós. 

"D'estos  matdinos  doi«,  proto»,  inttira mente  d  fei^So 
dos  nossos  da  Kiiropa. 


«Ainda  um  facto  triste  a  ri-gistar.  Um  dos  nosHog 
cSes  (o  Pnmbo),  o  iiiellior  sera  duvida  qne  poBsuiamos, 
dcsapparoceu  de  subito  no  rio,  colbido  por  grande  cro- 
codilo,  quando  perseguia  urna  pe(;a  de  ca^a. 

«0  numero  d'estes  animaes  no  Cabonipo  é  uxtraor- 
dinario,  assini  comò  as«ombrosa  a  dcvasta9ào  que  fa- 
zem  nos  antilopes. 

«Àinda  lioje  tìvemos  occasiào  obscrvar  isso. 


43S  De  Angola  d  contra-cmia 

«  Ha  vendo  apertado  coni  uni  cabra  assobiadora,  fe- 
riniol-a  leveniente.  0  animai,  atordoado,  fujpa,  conio 
sempre  fazeni  os  seus  similhantes,  para  o  rio,  no  intuito 
de  se  metter  a  a;^ua;  mal  porcim  liavia  caldo,  que  um 
vulto  enorme  redemoinlia,  um  dorso  eri^ado  de  aspe- 
rezas  eiicurva-se,  es(*an(;ara-se  nma  guella,  defendida 
por  aj^udos  dentes,  n'um  relampago  abysma-se  tudo, 
ficando  so  a  superficie  o  revoltear  da  ugna  após  uma 
submersao. 

«  Cometa  a  dar-nos  serio  cuidado  a  falta  de  farinlias. 

w  Alfifuns  dos  nossos  liomens  comeram  tao  precipita- 
damente  a  matalotagem,  que  pouco  ou  nada  teem,  e  a 
carne  parece  nao  ser  para  elles  alimento  sufficiente, 
011  pela  rapida  digestao,  ou  por  outro  qualcpier  motivo. 

«  EmmagTccem  muitos  coni  rapidez,  domina-os  coni 
frequencia  a  fadiga. 

«Dias  28  e  29  de  setembro. 

<(  Continuam  a  aggravar-se  os  padecimcntos  de  mui- 
tos dos  nossos  homens.  Sào  taes  as  difliculdades  da 
marcila,  onde  a  todo  o  instante  urge  arriar  cargas,  cor- 
tando  OS  matos,  e  succedendo-se  os  accideiites  e  ob- 
staculos,  que  vae  tudo  em  caminho,  aterrado,  clieio  de 
cansa(;o,  avanzando  por  esses  desertos  afóra. 

«O  fogo  em  varios  pontos  devastou  as  selvas,  tis- 
nando  coni  negros  residuos  vastas  extensoes  de  terra, 
onde  uni  ou  outro  escpieleto  marca  o  logar  de  pungente 
angustia,  envolvendo  em  sombrios  pensamentos  os  der- 
rotados  animos. 

c(Uma  triste  admira^ao  se  apodera  do  mesnio  via- 
jante  em  face  de  taes  scenas,  fazendo  anceiar  pelo  bu- 
licio  da  gente.  A  tzé-tzé  e  outros  dipteros  infestam  as 


Fera  natuni  439 

matas  liniitroplies  do  rio,  perse}>'uiiido  08  bois  impla- 
ca\'eliiiente. 

(cHoje  2i),  pelas  dez  lioras,  nioiTeu  outro  lioiiiein, 
deiioiiiiiiado  Chialla,  uni  dos  iiossos  iiielhores  conipa- 
nheiros. 

«  Ha  poucos  dias,  aiiida  alej»Te  e  contente  pro.se{*;uia 
de  carii'a  as  eostas  na  vanaiuirda  da  comitiva.  Victinia 
ibi  seni  (Invida  de  doenca  identica,  perecendo  eni  pou- 
cos  moinentos. 

«Dois  liomens,  andando  ao  mei,  depararam  ao  sues- 
te  coni  ig'ual  numero  de  elepliantes  enormes  fugando 
espavoridos.  Proseguiu-se-llies  na  pista,  nao  sendo 
possivel  tornar  a  encontral-os.  Um  grande  quadru- 
mano  vive  n'estes  sitios,  de  que  ohserviimos  as  pcga- 
das,  beni  conio  viiiios  ao  oeste  do  campo  as  do  leao, 
([ue  proximo  deve  residir,  a  julgar  pelos  destro(;os  que 
se  notam  dispersos. 

«Dia  30  de  setembro. 

((A  primeira  consa  a  fazer  e  registar  mais  um  obito. 

«Logo  de  nianha  tivemos  que  abandonar  um  rapaz 
do  Celli,  completamente  perdido,  prestes  a  expirar. 

«A  raj)idez  da  doen(,*a,  que  ha  dias  Ihe  minava  a  exis- 
tencia,  aggravou-se  com  a  necessidade  de  farinha,  ou 
o  exclusivo  regimen  animai,  que  Ihe  repugnava  ao  ex- 
tremo. 

«Os  symptomas  eram  em  tudo  os  mesmos  que  nos 
precedentes  casos,  apparecendo  comò  variante  a  abun- 
dancia  de  dejectos  alvinos. 

«E  notavel  a  fonie  com  (lue  toda  a  gente  anda,  ape- 
sar da  abundancia  de  ca(;a  que  se  tem  morto.  Apenas 
suspendem,  eil-os  a  assar  na  braza  quanta  carne  pò- 


440  De  Angola  d  contra-costa 

dem,  e  a  devoral-a  sofregos,  accusando  na  deprejij:iao 
abdominal  a  necessidade  qiie  os  opprime. 

«Em  caminho,  pela  sombria  mata  que  vem  sobre  o 
rio  Maninga,  e  ciijo  nome  acaso  soubemos  pela  rasSo 
adiante  exposta,  encontràmos  os  ossos  de  urna  girafa, 
que  ha  pouco  fora  devorada  pelas  bestas  de  preza. 
Ouvìmos  que  este  animai,  cujo  habitat  nao  suppunha- 
mos  vir  até  aqui,  se  colloca  junto  às  ai-vores  para  dor- 
mir, mettendo  a  cabe^a  entre  dois  galhos. 

«Foi  a  meio  do  trajecto  de  hoje  que  tivemos  a  estra- 
nila surpreza  de  encontrar  ciuco  homens,  ca^adores, 
segundo  nos  disseram,  de  Muene  Chinhama,  e  que, 
vindos  do  noroeste,  se  aventuraram  por  estes  desertos 
para  cliegar  ao  Genji. 

«A  muito  custo  conseguimos  trazel-os  à  falla,  afian- 
^ando-nos  que,  seguindo  sempre  Cabompo  arriba,  en- 
contrariamos  gente  d'aqui  a  cinco  dias  no  ponto  de 
encontro  de  um  affluente,  o  Lunga. 

«Praza  a  Deus  que  assim  seja,  pois  a  nossa  gente 
vae  em  progressivo  desalento. 

«Dia  1  de  outubro. 

<(Temos  que  lastimar  ainda  hoje  a  perda  de  outro 
homem.  Chamava-se  Joaquim,  e  no  intuito  de  seguir 
talvez  a  trilhada  dos  ca^adores  de  hontem  para  se  sal- 
var, fugiu,  vindo  a  ser  victima  das  feras  ou  da  fome 
por  esses  desertos. 

«Um  dos  melhores  caes,  o  Atrevido,  desappareceu 
tambem  no  rio,  quando  ahi  saltou  atraz  de  urna  ga- 
zella. 

«Os  crocodilos  téem  tido  largo  repasto  com  a  nossa 
passagem. 


Fera  naivra  441 

«Gra^as  ti  Provklencia,  carne  nào  falta,  abatendo 
Antonio  aindii  hojc  dna»  quissemas.  Ninguem  jà  possile 
uin  2:)uiihado  de  farinha,  e  apeuas  nós  consenàmos 
para  dmanhà  um  pouco  df  feijào.  Ao  sueste  urna  ra- 
vina  corta  o  rio  perpendiciilarmente,  formando  ca- 
chocira. 


«A  vegetatilo  em  tudo  identica.  Jnnto  à  margem  a 
Acacia  alhida,  cnja  gomma  os  uossos  devoram  em  ca- 
minlio.  Para  longe  aa  innpandas,  os  mutoiitOB,  ctc. 

«Dia  2  de  oiitubro. 

«Hojc  em  viagem  perdc\i-sc  entro  liomem,  Mazom- 
bo,  que  se  extraviou  com  a  carga,  sem  que  se  podesse 


442  De  Angola  d  contra-costa 

coniprelieiider  a  causa,  e  que  la  vae  coiidemiiado  a 
servir  de  pasto  as  hyeiias. 

"Largas  canipiiias  por  vezes  se  achaiii  elitre  o  arvo- 
redo,  e  entào  póde  ver-se  a  intìiiidade  de  animaes  que 
divaji'am  por  està  terra.  A  meio  da  joiiiada  ferimos 
unia  quissema,  que,  saltando  ao  rio,  Ibi  collùda  por  um 
crocodilo,  ao  passo  que  adiaute  tivemos  occasiao  de 
ver  a  ossada  de  um  elephaute  mettida  no  extrenio  de 
«gigante  armadillia.  Era  urna  cova  eircular  de  fuiido 
mais  largo,  feita  junto  a  arvore  de  tronco  derruido, 
que  estes  animaes  eseolliem  para  se  eo<;ar,  e  onde  o 
colosso  cafra! 

«Antonio  teve  lioje  uni  encontro  perigoso.  Haviamos 
acampado  pelas  duas  lioras,  quando  elle,  pegando  da 
ca(;adeira,  abalou  jielo  campo,  em  procura  de  galli- 
nlias  do  mato. 

«Pouco  depois  ouviram-se  tiros,  e  muito  natural- 
mente suppozemos  que  andava  elle  em  faina,  nao 
dando  a  isso  atten^ào.  Declinava  o  sol,  apropinquan- 
do-se  mesmo  do  occaso,  quando,  suspeitosos  pelo  si- 
lencio  de  tantas  lioras,  mandamos  bater  mato  e  pro- 
cural-o.  ()  audaz  ca(;ador,  perseguido  por  um  rhinoce- 
ronte,  e  tendo  em  mao  uma  carabina  com  chumbo, 
nada  encontràra  de  mellior  de  ([ue  largar  a  arma,  tre- 
pando  para  uma  arvore  à  espera  que  o  livrassem.  (  ) 
notavel,  porém,  e  que  o  animai  nao  o  abandonava,  e 
rodando  comò  que  enfurecido,  fazia  sentinella  ao  po- 
leiro,  so  fugindo  a  approximacjao  da  gente. 

«Estranilo  ciuadrupede  este,  que  por  vezes  parece 
andar  acommettido  de  vertigens  ou  accessos  de  lou- 
cura. 


Fera  natura  443 

«Antonio,  para  se  vinfi^ar,  logo  que  ehegou  ao  qui- 
lombo,  feriu  de  morte  um  hyppopotamo,  o  qual  la  foi 
rio  abaixo.  (>ho\eu  hoje  pela  primeira  vez. 

wDia  o  (le  outubro. 

«De  entre  os  flagellos  que  nos  perseguem  n'estas 
niatas  interminaveis,  nao  figura  por  menos  esse  até 
agora  para  nós  desconliecido,  a  tzé-tzé!  Bois,  caes, 
tudo  anda  furioso,  nào  escapando  os  proprios  lioniens, 
que  silo  victimas  dos  seus  ataques.  Os  magros  doentes, 
coni  andrajos  em  redor  da  cinta,  seguem  na  retaguar- 
da  da  caravana,  em  funebre  fileira,  similhando  um 
bando  de  resurrectos  erguidos  no  momento  do  tumu- 
lo, e  luctando  em  viìo  contra  os  assaltos  da  terrivel 
glosdìui, 

«Estamos  acampados  ao  nordeste  de  um  quilombo 
de  ca(,*adores  Vam-Booé,  provavelmente  luinas,  que 
para  aqui  vieram  do  sul  no  intuito  de  se  estabelecer. 
Extremamente  miseraveis,  teem  repellente  aspècto,  li- 
mam  em  ponta  os  dentes,  e  fumam  de  continuo  por 
narguilés  feitos  de  pequenas  convolvulaceas.  So  pos- 
suiam  para  vender  pilhas  de  um  endurecido  tabaco, 
que  ainda  assim  compramos,  pois  é  o  unico  de  que 
nos  servimos.  D'este  logar  as  origens  do  Lualaba  se- 
nio nns  doze  dias,  segundo  elles,  e  a  terra  para  essa 
banda  e  deserta.  Dizem-nos  qué  iimanhà,  no  Lunga, 
talvez  arranjemos  guias  para  duas  ou  tres  jomadas.  0 
solo,  pela  zona  que  vamos  percorrendo,  e  em  geral 
constituido  por  uma  roclia  de  gres  abundante  em  con- 
crecjoes  siliciosas  com  affloreamento  de  quartzo  hya- 
lino,  etc.  Encontram-se  tractos  argillosos,  ve-se  com 
frequencia  a  limonite,  ferro  pisolitico,  quartzites,  ou- 


444  De  Angola  d  cuntra-costa 

tros  minerae»  corno  laseas  de  silex  pyromacho,  e  al- 
guns  que  nào  reconliecemos.  A  vejreta^ao  é  densa,  pò- 
rem  de  peqiieno    viilto. 

«Dia  4  de  outubro. 

wO  dia  de  lioje  Ibi  enipregado  em  transpor  o  Lunga, 
importante  affluente  do  Cabompo,  a  fim  de  nos  abeirar- 
mos  da  residencia  de  Muene  Calieta.  Tornou-se  neces- 
sario abater  um  boi,  uni  d'esses  infelizes  companheiros, 
cuja  presenta  na  comitiva  serve  de  grande  auxilio  para 
consolar  estomagos,  visto  nào  se  ter  ca^ado  nos  ulti- 
nios  dois  dias.  O  nosso  regimen  agora  e  puramente 
animai.  A  carne  assada  na  braza,  sem  condimento  nera 
sai,  que  jà  ha  muito  acabou,  constitue  o  prato  inva- 
ria vel. 

«O  tempo  continua  amea^ador,  o  que  nos  contraria 
seriamente.  Grossos  cumulos  forram  em  todos  os  sen- 
tidos  o  céu,  ribonibando  a  curtos  intervallos  o  trovao. 

«  Atufada  nas  florestas  e  envolvida  pelas  cliuvas,  a 
caravana  vae  sem  duvida  atravessar  uma  seria  qua- 
dra. Quando  acampavamos  appareceu-nos  um  homem 
que  suppunliamos  extraviado,  a  quem  um  leao  conteve 
suspenso  n'uma  arvore  toda  a  noite  de  hontem. 

«  Dia  5  de  outubro. 

«Acampàmos  alfim  entre  gente.  Muene  Calieta  e  o 
regido  luina  d'aqui.  Velilo  e  descortez  teve  comnosco 
uma  questào  logo  ao  cliegar,  o  que  impediu  por  algum 
tempo  a  compra  de  mantimentos,  que  so  tarde  appare- 
ceram.  Loucos,  os  nossos  dao  tudo  por  um  punliado  de 
feijao  da  terra,  e  sem  reflectirem  que  se  desarmam, 
largam  pela  mais  pequena  cesta  uma  duzia  de  cartu- 
clios  Snider! 


Fera  natura  445 

«As  mulheres  (raqiii  furam  o  labio  superior,  iutro- 
(luziiido  ii'elle  uni  grosso  eorai,  e  teem  o  depravado 
costume  desde  joveiis  de  amarrar  os  seios,  de  maneira 
que  se  proloiigam  até  o  abdomen. 

«Pouco  mantlmento  ha.  Desertou  uma  mullier,  nao 
podendo  sal)er-se  iiotieias  da  infeliz. 

«Dia  6  de  outubro. 

«A  Jornada  de  lioje  foi  longa  e  feita  ao  rumo  do  nor- 
fe,  por  terreno  eoberto  de  calila us  e  roehas  quartzosas 
fragmentadas.  Aeami)amos  n'uma  densa  mata  para 
nos  defendermos  de  trovoada  inmiinente,  fechando  o 
campo  e  cobrindo  cargas.  Dois  liomens  acabam  de  de- 
sertar  em  direeeào  desconliecida.  Ennegreceu  o  céu. 
Calma  multo  al)afadora  domina  o  ambiente,  transu- 
dando  nós.  Eil-as  as  primeiras  aragens.  Come^ou  a 
tempestade.)) 

Transportae-vos,  leitores,  pela  imagina(,*ao,  para  o 
melo  de  floresta  espessa  e  sombria,  em  que  arvores 
gigantes,  que  januiis  desi)em  sua  folliagem,  entrela- 
(jam  ramos  e  feeliam  o  espa(;o  eom  uma  rede  de  cipós. 

Assentae-a  em  suave  encosta,  que  uma  sub-vegeta- 
(jào  forra  completamente,  cercando-a  pelo  longe  das 
ondulacjòes  de  altas  terras. 

A  melo  vae  uni  curso  de  agua  escura  e  rapida,  que 
murmura  em  lodoso  leito,  cavando  entre  podres  tron- 
cos  e  nodosas  raizes  a  lama  que  llie  tinge  a  transpa- 
rencia. 

Aos  lados  largas  orlas  lamacentas  vem  bater  de 
encontro  a  terras  mais  elevadas  de  humus  ennegreci- 
do,  que  uma  cobertura  de  fetos  esconde  com  suas  fo- 
Ihas  rendilhadas. 


446  De  Angola  d  contra-^osfa 

XV'ste  sombrio  retiro,  inipede  em  larga  volta  a  vista 
o  coniplieado  macisso  dos  troncos  e  ramos  do  arvo- 
redo. 

Eiivolvei  este  todo  no  negro  manto  da  noite,  a  quo 
o  caliginoso  escuro  da  imminente  tempestade  (hi  um 
aspecto  sinist4'0  e  funerario. 

Accommodae  a  està  scena  o  tremendo  ronco  do  rei 
das  selvas,  que  })or  vezes  o  assobiar  do  vento  acompa- 
nlia  rijo  e  tetrico.  Emmoldurae  este  estranilo  (juadro 
coni  o  exagerado  calor  que  no  ambiente  reina,  fazendo 
transudar  em  suor  liomens  e  animaes  entristecidos ; 
lembrae-vos  (pie  nem  um  liabitante  existe  iias  terras 
proximas,  que  nao  ha  alimenta(;ao  a  esperar,  excepto 
se  o  acaso  a  pozer  ao  alcance  da  vossa  carabina;  con- 
siderae  (jiie  uma  dezena  de  feras  vos  espiam  n'esse 
momento,  completando  este  todo  coni  a  agonia  e  os 
repux(")es  da  fonie;  accommodae.  emfini,  ao  nieio  de  tao 
extraordinario  (juadro  o  sentido  gemer  de  um  compa- 
nlieiro  moribundo. 

Crepitam  as  fogueiras  a  intervallos  e,  amortecendo 
a  pouco  e  pouco,  enviam  com  sens  lampejos  uma  tenue 
anima^ao  em  derredor. 

Por  vezes  um  tronco,  a  que  faltou  o  necessario  apoio, 
despede-se  e,  estourando  coni  fragor,  rola  para  o  ter- 
reno ao  lado. 

Ja  uns  ultimos  vultos  (|ue  se  liaviam  conservado  de 
có(*oras,  o))servaiido  melancolicos  os  ti^'oes  fronteiros, 
abandonaram  a  statica  c(mteinpla(;*ào,  e  estirand(ì-se 
j)arallelos  roncam  pausadameiite. 

Por  vezes  uni  urro,  grito  angustioso  ou  pio  sinistro 
([uebram  està  monotcuiia,  conio  annuncio  de  que  o  clia- 


Fei'n  nati  fra  447 

cai  descontento  cu  ave  no(*turna,  eneontrando  o  acani- 
])anìento,  se  desvia  d'elle  pressuroso. 

Seguiu-se  sileneio  profundo,  preeursor  das  gigantes 
convulsoes  da  natureza. 

Todos  esses  niunnurios  e  ruidos  estranhos,  que  se 
(»seapani  de  bosques  e  valles,  notas  tristes  e  agourei- 
ras,  sìniilliando  sorriso  de  denionios,  estertor  de  ago- 
nisantes,  eii  sei  qiie  mais  — para  iniagina^oes  exalta- 
das —  acabani  de  sus])ender,  conio  ([ue  esentando 
qnanto  vae  pelo  espa(;o! 

(^oberta  de  negro  a  abobada  celeste,  e  apenas  lis- 
trada  a  intervallos  pelas  iaiscas,  (pie  ora  distantes 
franjani  o  liorisonte,  ora  proxinias  pareceni  cair  sobre 
nós,  lendjra  uni  grande  manto  de  atande,  que,  propin- 
(pio  às  nossas  cabec^'as,  (piizesse  envolver-nos. 

As  togneiras  oscillam,  alumiando  coni  a  sua  Inz 
amarellada  corpos  magros,  a  quem  a  fonie  concede  na 
fraqneza  algunia  bora  de  allivio. 

De  subito,  illuminando  de  alto  a  baixo,  o  relampago 
deslund)ra  o  ambiente,  para  repercutir  medonlio  e  ras- 
gar  coni  scintillante  faisca  o  fundo  retinto  dos  céiis. 

(jrossos  pingos  fustigam  as  fracas  tendas,  que, 
a(;òitadas  pelos  rijos  repelloes  do  vento  crescente, 
amea(;ain  fugir  a  tempestade,  escapando-se  pelo  inato. 

llibomba  o  trovao  incessante,  succedem-se  ininter- 
ruptas  as  descargas  electricas,  sopra  furioso  o  vento 
por  elitre  os  troncos  das  arvores  vizinlias  e  dos  cipos 
que  as  entrelacam,  abalando-as  conio  simples  arbus- 
tos,  assobiando  terrivel,  corno  se  n'unì  momento  gran- 
de numero  de  serpeiites  bouvesse  penetrado  n'aqnelb» 
recinto. 


448  De  Angola  d  cmitrar^osta 

Os  vclho8  C0I0SSO8  da  floresta  gemem  sobre  as  no- 
(losas  raizes,  similhando  despedir-sc  da  terra,  que  por 
tanto  tempo  as  alimentou;  as  escarpadas  penedias,  as 
cavernas  distantes  roiieam  e  urram  com  ruidos  sinis- 
tro» de  monstros  descoiihecidos! 

Sombriameiite  illuminada  pelos  relampagos,  a  flo- 
resta braceja  com  os  iiumerosos  ramos,  traliindo  o 
mysterio  de  taiitos  liorrores,  por  iim  chanvaH  de  gid- 
tos,  de  lameiitos,  de  gemidos,  de  suspiros;  eonvulsoes 
que  sao  iim  protesto  enorme  contra  as  iras  dos  ventos 
desencadeados. 

Era  lima  tarde  da  crea^ào,  ou  melhor  urna  noite  do 
chaos ! 


MABOUII.K  OKMTIUCO 


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