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DE ANGOLA
À CONTRA-COSTA
M AA
DE ANGOLA
À CONTRA-COSTA
DESCRIPÇÃO DE UMA VIAGEM
ATRAVEZ DO
CONTINENTE AFRICANO
COMPREHENDENDO
NARRATIVAS DIVERSAS, AVENTURAS E IMPORTANTES DESCOBERTAS
ENTRE AS QUAES FIGURAM A DAS ORIGENS DO LUALABA,
CAMINHO ENTRE AS DUAS COSTAS,
VISITA ÁS TERRAS DA GARANGANJA, KATANGA
E AO CURSO DO LUÁPULA,
BEM COMO A DESCIDA DO ZAMBEZE, DO CHOA AO OCEANO
POR
H. CAPELLO-R. IVENS
Officiaes da Armada Real Portugueza
EDIÇÃO ILLUSTRADA COM MAPPAS E GRAVURAS
VoLuxE 1 qMiTHSONIAA,
SEP 10 1986
LIBRARIES
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
SUA MAGESTADE EL-REI
O SENHOR
DOM LUIZ 1
COM ESPECIAL PERMISSÃO
AO
POVO PORTUGUEZ
VINCULAM NESTA PAGINA OS AUCGTORES A MARCA INDELEVEL
DO SEU PROFUNDO RECONHECIMENTO
ÃO EXCBLLENTISSIMO SENHOR
MANUEL PINHEIRO CHAGAS
MINISTRO D'ESTADO HONORÁRIO
A QUEM DEVEM O TER SIDO NOMEADOS PARA TÃO ELEVADO CARGO
E À EXPEDIÇÃO O SEU BOM EXITO
PELO DECIDIDO INTERESSE COM QUE A PROTEGEU
CONSAGRAM ESTA PAGINA
a
Us anctozes.
RELAÇÃO DOS INDIVIDUOS PERDIDOS
DURANTE À EXPEDIÇÃO AO INTERIOR DE AFRICA
Nome e naturalidade
1 Eae anja. chefe...
bO
HF» Co
14
15
16
à
18
19
20
21/Somma (Nano)
Cacheque.. saco os
Caioqueza (Mucelli)...
Cha-note (Mucelli)....
Dezesete homens
Quiari-Ocamba. ......
ni] silo o
mielfalio| ejjujiolia: ajpio! (o/a (o) a
N'Gombo (Cabinda)...
Nambero
Samba (Ganguella)...
Chiteta (Ganguella)...
Sandéra (Ganguella)..
Mabanda (Ganguella).
F. (Ganguella)
Guenjo (Ganguella)...
Chandallad ss.
Or O O
F. (Ganguella)
Chico (Quinbare)......
Catinga (Lunda)......
elis a [oleo o:
22 | Quinhangana (menor).
BNB uma. se o ensaio selo Morto de dysenteria (?)
24 | Chico
1884-1885
Qualidade da perda
Eu MTO (o BA
Preso para a fortaleza
de S. Miguel.
Morto defadigana fuga
Morto de fadiganafuga
Fugidos em massa....|
Morto de congestão pul-
monar, por ter caído
aos rapidos do rio.
Morto/detisicar is
Fugido
mile me j[o Ih (0/0/0107 0) oval (o,
Perdido (alienação)...
Perdido com carga de
missanga.
Fugido com um fardo
de riscado.
Fugido com um fardo
de fazendas.
Fugido com um fardo
de algodão.
Fugido com o bote....
Fugido com o bote....
Fugido do libambo....
Fugido dolibambo pela
segunda vez.
Fugido do libambo pela
segunda vez.
Morto de pneumonia...
Perdido, morto de fome
Perdido, morto (?)....
Morto de pneumonia...
No hospital css.
Logar
em que se effectuou
No Croque.
Em Loanda.
No Croque.
| No Croque.
No Croque.
No Croque.
Em Mossamedes.
Na Huilla.
Na Huilla.
Chimpumpunhime.
No rio Iquebo.
| No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Cuatir.
No rio Cuatir.
No rio Cueio.
No rio Iquebo.
Em Mossamedes.
Em Mossamedes.
Frelação dos individuos perdidos
Nome e naturalidade Qualidade da perda
Desertou com fome...
Desertou com fome...
Uamo (Moisumbi)..... | Desertou com um cu-
nhete.
Benedicto (Mossame- | Morto de epylepsia e
des). queda no fogo.
Caxinda (Loballe) .... | Morto de tremores ner-
vosos e idiotismo.
Morto de entexite. . -..
Morto de anemia......
Morto de fadiga......
Eugido-Lr po se
Abandonado, morto (?)
Ega dida. enssn ada
iyiatelrelo ser
0) 0) o le) nu) jo le) aja jo) je
o)» falta e (eis) aloe jo a (ajlo, [o sia cujo a
E HERO DROPS DL QRO OO O
GO lo Oro ONO O GO
ELO OUTRO SERA DS QT QRO DOS O
Quilumbo (mulher)....
Cabombol soe
andas. co e cr nae Evadido, morto (?)....
Bacara ars doe dee Perdido, morto (?)....
Cha-Cassenda. ....... Morto de fadiga. .....
Qubandagi
Chico
Morto de fadiga......
Perdido, morto de fa-
diga (?).
Eyadidas
Morto de fadiga, ane-
mia e meningite.
Morto de fadiga, ane-
mia e meningite.
Evadido, morto (?)....
Domingos Eyvadidoss
Mamnico- gere Edema e fadiga, morto
Hé:Camane. e Extraviado com a mala
dos instrumentos.
Morto de meningite e
fadiga.
Elmo (o) ro en Morto de meningite e
anemia.
Extraviado, morto (?)
no mato.
Morto (?) (bobas).....
Morto de tisica. ......
Quipeio (mulher).....
Catumbo
cv... .. no... .. ..
O DSO O DIO CUÓNO. O O
Caminho
cc... ...... ...
ce... o... 0 o 4 4 0 4 0 0 0 q
Logar
em que se effectuou
No rio Luatuta.
No rio Luatuta.
Adiante do Luata-
ta.
Muene Chindoma.
Soana Quifoaco.
No rio Ninda.
No rio Ninda.
No rio Cabompo.
No rio Cabompo.
No rio Cabompo.
Muene Caheta.
Muene Furumana.
Muene Furumana.
No rio Mumbeje.
No rio afluente do
Luengue.
No Lualaba.
No Lualaba.
Muene Canhinga.
No rio Muana.
Cha-Malundo.
Cha-Malundo.
Cha-Malundo.
Cha-Malundo.
Cha-Malundo.
No Quinguebe.
No Quinguebe.
No rio Moachi.
No rio Choa.
Table bay.
INDICE DAS GRAVURAS
Pag
+ ironto dl op ju reioo RD o RR 61
Enpariga CON spo ps Ne RN RT O E RR RO R 69
Fiomrcua, do Nano a 13
Lnoig=CarTaOREA oa dra neon LA Pe qe PDS Ro SA RODE 85
Fanaa Condes (Ce sErco) ER RD RR 89
Sapaz Concerto ea ei vb RR A 98
Eme orocanide face) cn Dn O O racao logo STE qué 94
somem Conecte 101
irugo Cl TORGA oro, Crosas RO PGR PR RO RR RR RD AD 109
Windenorime leão approximoqu=Ser ano caia a eis dea al aaa o a Io
aros Cha-Mialundo sc air da RR RR OM DO 132
sTlonndO E GENS e ORA PC RR RO SRA ER 137
Bambi... ..... E 6 SACRA ONE CEAR QUIS LOERO 144
casca 6 Iii opp. a 148
Um carmo Ce lSdo is a dp O Dar ou NEAR DR 161
po muinhaneca Iupollo-. “sa donas simao spas A re Seo DU)
nmllas un ing aj e RR 1d
nele phantesM mr oa DN DA RR UT 185
siundiognas Joendalitrolo Nao a a RR RED E RP TRONO OR 198
paris a nam dino as RD EPs Sd) io cb SR ana So 19%
Wilhers mundiniba saias Sena emas S o AGE ad 201
Solrando um latido, desapparece.. ces au nes saia oie Sc EA dera ali 205
niqnlineo Go ME RtroAlo és rr gra AS Po q DR RR RA 208
Epic neRouiden sis o pen o Dee a PA DRA aRe 213
Elo md orElymales o RO sa A nr ra SD 221
“To Inema aihaioa nan rea a no PARE a de GRE ERR 225
ElontemdoREumbes rs es da RA DO 229
XIV Indice das gravuras
Pag.
DES ERAS SS o tone ta de mL ND RSA UT SA 242
pala (macho). ei Sus o a RR RS A 249
Mulher da Eandas sam preto Mara a rel rito E ag 259
Apsteatopyeiamiumalhottentote re opp. a 254
Nas margens do Cueio. giga ee rata adio a Eno eco Ha o pp 265
Mulher amboellardo Cubango: E E PR 269
Elomem amboeclla dolCibanso a PE 243
Cabeçarde guga (Eland)... e ara ao RR 280
Passagem do Cuatir.s. sua curados og ação 5 Sra oa RS o 289
Boi do matos o ps eo eres mibimENo situa effgsta ra Reta ef NE E TE ZON
Elabitaçoes do Cuito. a ss 2 sms gpga preste oa TS a PR 305
Naturalida Donga.. 4. e riso çoo VE an ap PE 313
IndisenaiRibeminho/do Cuito 321
Escorregsando no Lameiro: a ro po Red BR)
TEypo-cam-bunda... «Msn suis tias ss elo a ford Er RE o PA 391
Tão grande era a abundancia e variedade de animaes....... opp. à 398
Capadyi(cabra dos pantanos) Jd o 341
Peixe do rio Conjumbia;sa -42guao crao des a aba rep 345
Muene Caliri arts ss aro, 3 5 Mp eo END 349
Indigena láuma a... qa eba conta alo ee pote laio forro E E do
Zebra. do eçanns ete io 6a o talat ao 6 o A E pa do e 365
E perseguindo uma recua de zebras; fere duas ...-... =. opp. a 368
Cabeça de palanca., seco spiotia dove onua CUP do epa 6 a E 313
Elomem do Lobale rr ata TVD a 6 10 8 2, 6 a E 34
Muipelo Me cj area o Wajeiro o E eane tada to ad Poe ça£d a a 380
Antilope Caamái. a ss ams disstajag e Saio a E fala anca o 8 Te ode E E 389
Indigena do Geni: iso uma ao a cs Ga spa ra e do 391
Mulheres ba-runda ....% 2. cena pices as eae vigora PS E 405
| “Cabeça de harrisbuck.. 2... tuo .o seio cms ana o nr /o ERR 409
Egpo ca rótze. ses css era dao qo EN SAE Sara jo ENA 413
Phacochocrus afr... un cons anais o ai, e ama o E 41%
Antonio empoleirado. 20, s = a Bispo pj erra fer vale E RR 425
Mulher amboella .... usas Sopa ir epe e a go à leio RR 429
Ffomem amboella. .. .'. cg ico aero ide e tapa = ED 435
Quissema ZEgoceros ellipsiprimnus (femea)... o 431
Quissema Asoceros ellipsiprimnus (macho) 441
Narguilé gentilico . ... 0. 2.2u o unas resta o polo a Sie PR 448
Mappas (quatro).
INDICE DOS CAPITULOS
ESEU CORES PO RICO! e are apr MAPA O o ER ola apa 1a O RS Baeanoo;
DECONGO SE see ss cr erofa ro pera O SU crai Eros o Ne aa E aa Da VS ta a ETA O Te LAN ADE R AV FRA Pag.21a 37
EISPORTAPPOBURICA:DO CONGO) Emas sexo tsteto ore spo Soa! teto! Mb ou o apo Veloso to) des o Pag.39a 51
CAPITULO 1
NA COSTA OESTE
Em Angola — Aspecto do cordão litoral e sua vegetação — Terras do interior — Entre
Cuanza e Bengo, quadro triste — Problemas que nos propunhamos — Material e pes-
soal — Considerações — Artigos da expedição — Francisco Ferreira do Amaral —
Uma noticia historica — Salvador Correia e a conquista de Loanda — Fortalezas e
edifícios publicos — Os jardins, os muceques, a vegetação, a salubridade e a ilha —
Os muxi-loandas e a sua opinião aristocratica — Rendimentos e governo —Tribunaes
judiciaes — Considerações sobre os deportados e colonias penaes......... Pag. 59 a 81
CAPITULO II
PRIMEIROS PASSOS
O companheiro negro e a sua ingratidão — À corveta Rainha de Portugal e a abalada —
Porto Pinda — Os areaes e a primeira noite — Ponto de partida e rasões de sua es-
colha— O homem põe e Deus dispõe — À primeira marcha e o aspecto do terreno —
Caracteres geologicos — Os habitantes do Coróca e o clique dental — Numeração —
Dos trajes e mulheres — O adulterio e os funeraes — O boi preto e a circumcisão —
Terrores gentilicos —Vegetação do Coróca — Fauna ornithologica — Fuga de qua-
FOnta CrdOLSPROMENS Rr Tpe NS ce pesto opala) Va VEo or fo LEO Evo Ito CN LOLA SE e o eia ade L Na Pag. 83 a 106
o
XVI Indice dos capitulos
CAPITULO III
NA REGIÃO LITORAL
Mossamedes — Breve noticia sobre a historia da sua fundação — Clima, constituição geo-
logica e vegetação — Tribus indigenas — Habitações — Uma marcha vertiginosa —
Cincoenta e quatro milhas em vinte e cinco horas — Uma necessaria refeição e o
encontro dos fugitivos — De novo no rio Coróca — Noticia sobre este — Suas mar-
gens— Fadiga da marcha — Uma cheia — A solidão e os animaes silvestres — Re-
gresso a Mossamedes — Partida definitiva para o sertão — À geologia e os odres —
O primeiro bao-bab— A aridez “do paiz e recuas de zebras — À couag-gha? — De-
positos de agua — Pedra Pequena — Pedras Grande e Maior — Nestor, o caçador de
leões — Uma morte ridicula e uma visita inesperada — À agricultura no districto e
a villa de Capangombe — A fortaleza e duas considerações geologicas. .. Pag. 107 a 133
CAPITULO IV
CHELLA ARRIBA
.
A zona litoral e o planalto — O vento sueste e as accumulações de vapor — As portellas
do Bruco, de Calleba e da Banja — A serra da Chella e as convulsões geologicas ali
— Antigo aspecto d'esta— A escalada e a vegetação — São 1:829 metros — Pano-
rama — O terreno, a caça e duas considerações sobre a distribuição zoologica dos
animaes em Africa— A cobra e o carneiro do Nano — Historias indigenas — Pheno-
meno atmospherico notavel — A Huilla — Sua salubridade e vegetação — Importan-
cia agricola — Plantas uteis — A propaganda e os geographos — A viação accelerada,
— Directriz media da linha a estabelecer para o interior —Vantagens d'esta — Colo-
nisação e considerações sobre ella — Zonas mortiferas......iscccresero Pag. 135 a 158
CAPITULO V
NA HUILLA
Coincidencia feliz — Antonio Carlos Maria, o companheiro caçador — O acampamento
e o soba da Huilla — À feitiçaria — Suas relações com os regulos — A habitação do
feiticeiro e os instrumentos do officio — Processo de adivinhação — Uma scena pela,
noite— A missão da Huilla e os missionarios — Duparquet e a sua obra — Partida
para Quipungo — As florestas e o passaro cabra — À fauna da Huilla e as penedias
de leste — Os ba-nhaneca e os dentistas — Effeitos do tiro entre africanos — A habi-
tação do soba de Quipungo —Visita ao regulo — Um companheiro apeado e o re-
gresso pelo sul — Casulo estranho — Considerações. ................... Pag. 159 a 182
Indice dos capitulos ETTA EH
CAPITULO VI
AO SUL
Consolações de quem viaja — A abalada da Huilla — Uma fuga e o abandono das camas
— O Chimpumpunhime — O caminho dos Gambos e os espinheiros — O Tongo-tongo
ou o morro sagrado — Os dias n'esta terra — As florestas e a fauna — Os ban-dimba
e a sua voracidade —Vestimentas e proceder para com os mortos — Considerações e
a festa da hela — Iorocuto e uma erupção granitica — Cahama e Xicusse— A mesa
e suas consolações — Quatro elephantes e a fauna ornithologica — O crocodilo e a
pomba — A floresta que termina — Os ba-cancalla ou bushmen; duas palavras a res-
peito d'elles — Tatouage, armas envenenadas — Seu caracter — O Humbe e a caça
considerada pelos ban-cumbi...... SS OO RSRS NE CNE or BASS A
CAPITULO VII
ENTRE OS BAN-KUMBI '
O Humbe — Sua posição — Quadro historico — Os ban-kumbi e os seus costumes — Habi-
tações e typo — O hamba — Homens e mulheres, seus trabalhos — Chronologia e fes-
tas — Funeraes — Missões catholicas — Os bana-cutuba e o Cuanhama — Proezas de
Nampandi — Riqueza dos cuanhamas e um aperçu geologico — O ronco do leão im-
pressionando no mundo animado — O cacimbo e as considerações — O Cunene e o
alagamento marginal — Mupei encontra a mãe — À caonha e o processo da vaccina
— Os reptis e a vegetação — Zero de graus e a impressão consequente — Um almoço
10
ACICOULO, sorrisos MS ST a O o rafa Tea na E TE E E ER ERES PR RE TE Pagialida 231
/APITULO VII
ENTRE CUNENE E CUBANGO
A reluctancia dos guias e o recurso dos bois — À fome e um quadro do sertão — Disposi-
cão geologica das terras percorridas — Rochas vulcanicas e minas — À vegetação, o,
frio e os lobos — Cobra original — A caça e as pégadas do elephante — À noite e o
charivari das feras — As matas da Handa — Cachira — Os povoadores d'ali— As mu-
pandas e a terra sem pedras — À cabra que assobia e os bushmen — A steatopygia —
A natureza do solo; conversa com um indigena — Os ba-cua-neitunta — Exageros
gentilicos — O leão e os mabecos — Os macacos e o armadilho — O Cubango — Consi-
HERACOESTEO NECLO NGOCCUESD & Mp dt o Ros ce S qhara vma a ninibio ae ora 00... PAG. 299 à 2062
SEVBAL ei “Indice dos capitulos
Ed
CAPITULO IX
O RIO CUBANGO
Sete annos depois — O caminho de Moçambique e as caras volvidas ao sul — Muene Ca-
tiba e a mandioca — Entre os amboellas — À confluencia do Cutchi e a doença de
Muene Mionga — Um trabalho photographico interrompido — Scenas de feitiçaria —
Tribunaes africanos e uma anecdota sobre o caso — Os ma-chaca — O rio Cuebe —
Subitas deserções e uma noite de angustia — Philosophicas considerações que um
funeral remata — O rio Cueio e os atoleiros que o marginam — Frios, sêdes e fomes
— O rio Cuatir— Natureza do solo e os pantanos intransponíveis — Aldeias lacustres
— Ainda um atoleiro e a pobreza das plantações — Um chefe mais humano e a morte
de um companheiro — À fome — Duas considerações sobre a geologia africana —
Adeus Cubano. a eira to o !ejo o veio raito fofo Pa to ooo daN o hoo Sa o fo Po EA o JOR ao AD Pag. 263 à 2
CAPITULO X
A CAMINHO DO ZAMBEZE
As poeticas impressões da chegada e a consequente desillusão — Soffrimentos que nos
aguardam — Ainda o Cuatir e a perda de um homem — O rio Luatuta é como o Cua-
tir— Libatas miseraveis e a situação dos nossos — À caravana torna-se n'um bando
de salteadores —Visita de grupo singular — A mulher soba e a penuria de viveres —
Considerações e ingenuidade sem igual — A partida e a fuga de dois homens — O
Longa e a fuga de um outro — Continuam o deserto e as zonas areosas — Às mupan-
das e a altitude — Pouca caça e o rio M'palina — Um acampamento cannibalesco —
Os caçadores de ratos — Subsiste a fome — Mupei, o esposo infeliz — Curiosidade dos
man-bunda — Os bois-cavallos e as suas vantagens em viagem — Efeitos de miragem
e um animal como o gnú — O Cuito e sua noticia .........ccccccriciass Pag. 287 a 309
CAPITULO XI
ACERCA DO NEGRO
O indigena africano — Similhança de caracteres, difficuldade em descriminar typos e fa-
milias de origem commum — Traços caracteristicos do negro — Aspecto geral — In-
dicações scientificas sobre a conformação craneana — O europeu e o ethiope enca-
rado pelo lado esthetico — Os hamitas e a philanthropia — Uniformidade de ser, sob
o ponto de vista intellectual — Feitiços — O Otjiruro, os Sandis e o Zambi — Super-
stições e o terror pelos mortos — Difficil comprehensão — Dados cosmogonicos indi-
genas — O sentimento moral e as lendas — Difficuldades de estudo — À lingua e os
Indice dos capitulos XIX
costumes — Traços approximativos de tribus distantes — Dâmaras, ban-cumbi, ba-
cuatir, bayeye, ban-dirico, etc. — Enterramento dos defuntos e pratica da circumci-
são — Ba-yeye, namácuas e ba-coróca, suas habitações — Os ba-vico os ba-visa e os
clicks — Tendencia nomada — Os ba-cuanaiba e a Cafima — A emigração e a influen-
cia do pantano — Os ma-tchona e os dâmaras — Tribus que originaram — Os ba-nha-
neca e os ban-cumbi exceptuados — Os dâmaras e ainda uma tentativa para atinar
com a sua proveniencia — Opinião de Anderson— A arvore progenitora — Conclu-
SÊ o é o 0 o RN RR pato PMES de dei O O boo nododBa coa (RES Eb Lg) as)
CAPITULO XH
LODAÇAES E LAGOAS
Adeus Cuito — À carne e a morosidade das marchas — Os ba-cuito e os ma-côa — Planu-
ras monotonas e phenomenos de miragem — Libatas lacustres e timidez dos indige-
nas— O bijou africano e um tombo inopinado — Artigos de alimentação e trajo dos
ba-cuito — À Adenota léchee? — As planuras e a caça — O hopo — Um homem perdido
— A cobra da areia e as florestas do Conjumbia — Mam-bunda, trajos, funeraes dos
sobas — Um homem abandonado — As meningites cerebro-rachidianas — O muchito
de Cajimballe e os elephantes — A terra do Cubango ao Zambeze, e as difficuldades
do transito — Considerações amargas — O cyclone de 18 de agosto — Modo de attra-
hir as gazellas pelo som — Muene Quitiaba e os ba-iauma — Os guias e o alagamento
— Critica posição dos chefes e da caravana entre o arundo das margens do Cuando
— O rio irá ao Zambeze? — Com o apparecimento do milho esquecem-se as fadigas
— O rio Cuti e o trilho commercial do Bié— A bacia do Congo e a do Zambeze —
Considerações consequentes — O paiz é park-like ............. sb 000 005) PeHSs GRdl py Gr!
CAPITULO XII
NO VALLE DE BARÓTZE
A lua de agosto e os nossos receios — Idéa geral sobre a distribuição das chuvas na Africa
tropical do sul — O cloud-ring e o seu movimento para o meio dia — Retardamento
na marcha pelo oriente — O limite sul e as quatro estações — As marchas do Cuti e
Muene Lionze — Os acampamentos de Silva Porto — Os man-bunda e o elephante —
Curiosidades — O Ninda e uma sepultura — Aspecto pittoresco do valle— O dco e o
seu aroma — À caça e um obito — Perda de companheiro — Gnú, cabra e nº'caca —
O silencio da noite — Calungo-lungo e os luinas — Typo d'estes, e pouca importancia
das entrevistas africanas — O paiz é um parque; abundancia dos animaes n'elle —
Os cães e seu prestimo na caça do gnú — O alagamento crescente da terra — Ausen-
cia do tabaco e presença da palmeira — Guia feiticeiro e adivinhação inesperada —
Os ba-nhengo ladrões — Muene Munda e os seus dotes physicos — Um capote de in-
testinos de elephante — A musica e um baile de doze horas — Impressão produzida
pelas beldades da terra nos auctores d'estas linhas — A caça e a quadra da creação
— O acampamento pela noite — Multiplicam-se as lagoas — A expedição emfim at-
tinge o Zambeze......... Ena e id Mae POR o E ás ENT E END AONRTE Pag. 355 a 381
Indice dos capitulos *
CAPITULO XIV
LIBONTA
Territorios atravessados e outros a percorrer — O que havia para alem do Zambeze —
A nossa curiosidade e o que se pensa sobre a Africa — O que é a final o interior do
continente — As planuras zambezeanas — À verdade sobre ellas — Difliculdades, ven-
tos e temperatura — E uma d'essas regiões de que falla Stanley e onde Livingstone
pereceu — Contraste compensador nas scenas de caça — Opiniões de Livingstone e
nossos juizos antecipados — Abundancia de antilopes e o hopo — Libonta — A vege-
tação ao tempo d'aquelle viajante e agora — Seu aspecto — A terra em redor — Mu-
cobessa e os habitadores do Genji — Seus trajos e porte das mulheres — Uso immo-
derado do rapé e o lenço dos luinas — Profundo abatimento physico da gente da
expedição — Dia 13 de setembro — As moscas de Libonta — Caçada às rolas — Or-
nithologia do Zambeze — Considerações geraes sobre o valle de Barótze e trilhos que
ali CONAUZEDA oa too ra loser pone na ole iane Potato | oo E Lea fas RS SS O Sm pd nO 00 66 - Pag 385 à
CAPITULO XV
DE LIBONTA AO CABOMPO
Programma de viagem — À nossa satisfação e o susto que dominava os carregadores —
(Con
Rasões d'esse facto — Meios de querer impedil-o — O Liambae e o Cambae — Os ma-
róze, habitações e trajo — Decepcões e roubos curiosos — Inopinada noticia sobre o
apparecimento da mosca — Palancas, léchees e um leão — À Hyphane ventricosa e o
papyrus — Encontro com a tzé-tzé — Duas quissemas, um Felix jubata e um songo —
De novo na floresta, vantagens do apparecimento d'esta— Os ataques do leão e as
nossas ordens por tal motivo — Nos limites do estado da Lunda — O Muata Tanvo e
o seu prestígio — À liberdade do negro e duas considerações a respeito d'elle — A
maior das victimas, a mulher — Afastamento dºesta de todos os negocios-e recepções,
e condição social do selvagem de hoje — Mantimentos à farta e satisfação conse-
quente — O typo ca-runda e o ca-róze — Informações sobre o Cabompo e effeito das
palavras de Muene Chilembi — Os mangoia e o receio da mosca — Pretensão inespe-
vada de um bando de salteadores — Um dilemma para ponderar — Tentativa de fuga
de um carregador e o rio Cabompo................ dereio aa ioloiolo a spc - Pag. 403 a
CAPITULO RV
FERA NATURA
siderações tristes — O deserto e o silencio — O Cabompo e a noite — O elephante e o
arvoredo — Limite ao terreno silicioso — Primeiras rochas — À floresta e os animaes
silvestres — Perda de um companheiro — Homem e cão mortos — Dois elephantes —
O somno da girafa e obito de outro homem — Fuga de um carregador — Morte de
mais um cão — Individuo perdido no bosque — O rhinoceronte curioso e os erocodi-
los do Cabompo — Os destroços do leão —Vam-Boôé — O leão e uma noite de poleiro
401
421
— Beiços furados € seios pendentes — À primeira tempestade. .......... Pag. 423 a 448
PREFACIO
Desde a publicação do nosso trabalho denominado
De Benquella ás terras de Jácca, em 1881, não tivemos
a satisfação de ver livros, nem mappas ou outros im-
pressos de ordem qualquer, que muito adiantassem
os conhecimentos africanos do mundo geographico da
Kuropa.
Omittiremos, é claro, os esforços relativos á abertura
do Congo, nos quaes aliás se comprehendem labores
mteressantes, mas que, pelo seu caracter essencial-
mente pratico, executados n'uma região em grande
parte conhecida, não devem aqui encorporar-se.
O livro hoje submettido ao publico encerra a histo-
ria de uma peregrmação, modelada passo a passo nos
apontamentos do respectivo diario; e embora não tenha
a jactancia de descrever cousas fóra do vulgar, nem
por isso deixa de longe em longe transluzir a íntima
XXI Prefacio
convicção de que algum merecimento teve quanto em
Africa fizemos.
Os resultados praticos que della possam advir não
compete a nós aprecial-os, pois em geral o homem que
considera e mais tarde attenta na propria obra, é quem
d'ella menos se satisfaz; não nos é aprazivel, porém,
suppor que o facto de percorrermos com cuidado 4:500
milhas de terreno sobre as zonas que mais nos pare-
ciam proprias se não necessarias de visita, deixe de l-
sonjear o espirito dos africanistas, ou escape desaper-
cebido, embora pouco luminoso, nas ignotas e escuras
manchas da Africa selvagem.
E mesmo muito provavel que a parte do nosso tra-
balho do Zambeze para o oriente apresente alguma
cousa de importante, por ser feito em um novo cami-
nho (o mais curto e melhor talvez), por onde a civili-
sação e o commercio da costa occidental podem facil-
mente attingir a região dos lagos.
O aspecto arido e imnhospito do grande continente,
o barbarismo dos seus habitantes, os horrores da vida
selvagem, que outrora emmolduravam as idéas sobre
aquella terra estranha, constituem notas que começam
a apagar-se no meio do concerto das acelamações vo-
tadas a quem se empenha na difficil empreza de lhe
desvendar os mysterios, são factos que impressionam
ao presente, um pouco á similhança de quando, apoz
phantastico sonho, se passa a positiva realidade.
Hoje já ninguem vê na Africa senão um dos vastos
quarteirões do mundo, tão proprio á vida como qual-
Prefacio XXIII
quer dos outros conhecidos, tão digno de desvelo como
o mais rico dos supracitados, amplo campo de afam
commercial, cuja primeira base de segura civilisação
cumpre ou antes é dever do europeu explorar, não só
no interesse dos seus habitadores, como em proveito
do trafego commum; emfim, de esquecido e oceulto
que foi, tornar-se-ha dentro em pouco opulento, cubi-
cavel e assás visitado, transformando-se n'um grande
centro de consumo para todo o excesso da nossa pro-
ducção.
Longe vae a epocha dos terrores que esse Sahara
originou, como barreira intransponível á curiosidade,
em que a Abyssinia era por assim dizer um sonho,
Timbuctu um mysterio, as nascentes do Nilo um pesa-
delo.
De vagar se proseguiu, é verdade; não foi porém
nossa à culpa, ou porque o homem, no irresistível im-
peto de tudo subordinar no planeta terrestre ao domi-
nio do seu querer, esquecesse esse immenso continente
que proximo lhe ficava; mas sim proveiu do subito ap-
parecimento do outro campo de exploração —a Ame-
rica, cheio de riquezas e em superiores termos de uti-
lisar-se, mais consentanea a ser tratada pelos meios de
que dispunhamos, a navegação, ligando-se á Europa
finalmente pela melhor das estradas —o mar!
A America deve contar-se como um dos factores que
muito influiram para a demora na civilisação do conti-
nente negro, por absorver ahi durante seculos todos
os esforços da Europa, e, estendendo-se de um ao
XXIV Prefacio
outro polo, cmgir nos dois hemispherios zonas varia-
veis, entre as quaes se contavam algumas de tropical
caracter, onde só o preto podia trabalhar com o pre-
CISo animo.
E o branco, procurando imtroduzil-o al, teve de o
buscar e perseguir em África, implantando com egois-
mo n'aquella terra imfeliz o maior dos flagellos, e pon-
do-lhe o mais serio obstaculo ao humano progresso —
a escravatura.
Agora, que da America já não trata, arrependido pe-
nitenceia-se contricto, posto que interessado, e d'esse
mteresse despontou a aurora da liberdade em Africa e
vae breve raiar com todo o esplendor o sol da sua
felicidade.
Continue pois a boa vontade no trabalho, saiba o
capital aproveitar-se do muito já feito, eis os nossos
votos, convencidos de que mais duas duzias de annos
bastarão para transformar radicalmente as cousas no
extenso contmente.
“onecluidas estas considerações, benevolo leitor, res-
ta-nos a tarefa pouco facil, embora menos escabrosa
que uma travessia, de pegar-vos pela mão, e condu-
Zir-vos passo a passo n'essa tortuosa vereda por nós
trilhada, desde Angola até Moçambique; de vos guiar
por meio de serras e planuras, pantanos e desertos;
de patentear-vos emfim todos os soffrimentos, fadi-
gas, fomes, chuvas, angustias e mortes que nos ser-
viram de lugubre cortejo desde o mar Atlantico até ao
Indico!
Prefacio XXV
Não conteis com uma muito attrahente companhia,
porque é sempre um pouco rude o convivio do explo-
rador, mas em paga ser-vos-ha agradavel a certeza de
que encontraes aqui a inteira verdade e o muito firme
proposito de vos prestar um serviço que cremos sem
duvida util.
Sendo hoje o desejo de tudo conhecer e averiguar
a feição predominante do seculo, no qual a ignoran-
cia é uma prova de fraqueza, estamos certos de que,
abrindo nova faxa do continente negro à comprehen-
são de nacionaes e estrangeiros, e tentando na pre--
sente narrativa registar quanto ali vimos de mais im-
portante, teremos jus á maior das recompensas, a de
bem merecermos dos que se interessam pelo progresso da
humanidade.
Antes de nos adiantarmos, porém, pelas paginas que
vão seguir-se, cumpre-nos em duas linhas exprimir o
nosso reconhecimento ás provas de elevada conside-
ração com que nos honraram ao regressar.
Não podendo seguramente fazer o que desejavamos,
isto é, especificar aqui todos esses factos, para nós de
tão grata memoria, limitar-nos-hemos a registar quan-
to nos interessa, recebam e comprehendam n'este sin-
| gelo tributo uma prova do alto apreço que nos me-
recem. ;
A Suas Magestades El-Rei e a Rainha, e toda a
Real Familia, pelos altos favores e distincções que nos
dispensaram, respeitosamente aqui traçâmos a expres-
são do nosso profundo reconhecimento.
XXVI Prefacio
A Sua Magestade o Imperador do Brazil e à Au-
gusta Princeza sua filha, e a Sua Magestade a Raimha
regente de Hespanha, a homenagem de respeito, pelas
provas de deferencia que se dignaram conceder-nos.
Á Sociedade de Geographia de Lisboa, e particu-
larmente ao seu presidente Antonio Augusto de Aguiar
e secretario Luciano Cordeiro, cumpre-nos em espe-
cial assignalar um extremo reconhecimento, pela bri-
lhante recepção que nos preparou como recompensa
ao exito das nossas lides exploradoras, confermdo-nos
ainda a sua medalha de oiro.
Seguem-se as Associações Commerciaes de Lisboa
e do Porto, o Atheneu Commercial da mesma cidade
e a Sociedade de Geographia Commercial, assim como
a Sociedade Geographica de París, que, offerecendo-
nos espontaneamente medalhas de oiro e diplomas de
seus membros honorarios, nos consentiram figurar ao
lado de tantos homens distinctos, cuja auctoridade é
na sciencia e no trabalho um esteio para idéas gene-
rosas e incentivo para novos commettimentos.
Ás populações e auctoridades de Lisboa, de Porto,
de Coimbra, do Funchal, da Praia, de Loanda e da
ilha de S. Vicente, á corporação da Armada Real Por-
tugueza, a que temos a honra de pertencer, e á juven-
tude Academica de Coimbra, aqui lavrâmos um affe-
ctuoso protesto de gratidão.
Ás Sociedades de Geographia de Madrid, de Roma
e do Mexico, pelos diplomas conferidos, ao Centro Mi-
litar d'aquella cidade, e especialmente a s. ex.º o sr.
Prefacio XXVII
Moret, o testemunho de muita sympathia, bem como
ás sociedades e associações estrangeiras, e a tantos
cavalheiros illustres que nos significaram, pela sua li-
sonjeira apreciação, o quanto valiam os serviços que
acabavamos de prestar, como são o nosso particular
amigo o ex.Ӽ sr. Francisco Joaquim da Costa e Silva,
director geral do ultramar, e ainda aos cavalheiros
do Cabo da Boa Esperança e ao prime minister Upim-
gton, d'aqui enviâmos a nimia expressão do sentimento
que nos domina.
Muito particularmente reservâmos uma especial re-
cordação ás terras da nossa naturalidade, pelas subidas
demonstrações com que nos honraram, bem como aos
nossos compatriotas no Brazil, e em especial áquelles
que nos distinguiram com um precioso volume conten-
do as suas assignaturas, e outros com pennas de oiro,
enviâmos a nimia expressão do nosso grato sentir.
Ás Camaras Municipaes do paiz e das colonias, aos
Clubs que nos honraram com especiaes saudações e
diplomas, á imprensa periodica que tão delicada e li-
sonjeiramente apreciou os nossos trabalhos, e a quan-
tos, emfim, possam mvoluntariamente ser olvidados,
um sincero agradecimento.
É por ultimo cabe-nos aqui vincular o nosso reco-
nhecimento á administração geral da Imprensa Nacio-
nal, aos srs. revisores, compositores e estampadores,
pelo interesse e decidido apoio que nos dispensaram,
e sem o qual este livro tarde appareceria a publico.
Lisboa, 30 de setembro de 1886.
Mp. Cuapolio — Ke CLrers.
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ESBOÇO HISTORICO
E julgareis qual é mais excellente,
Se ser do mundo rei, se de tal gente.
CamõEs, Lusiadas, canto 1.
L'Afrique intérieure a été découverte et parcou-
rue par les portugais au xvI* siécle... Les portu-
gais de cette époque connaissaient mieux Vintérieur
de ce continent, la région des lacs, etc., qu'on ne la
connait aujourd"hui... Livingstone a donc retrouvé
seulement ce que les anciens portugais avaient dé-
couvert, et encore il s'est servi de renseignements
portugais sans avoir la loyauté de le dire.
L'apBÉ DURAND, de la Société de Géographie
de Paris, lettre du 16 septembre 1880,
- Às tentativas feitas pelos portuguezes para devas-
sar a África e transpor aquelle continente, ligando a
provincia de Angola á de Moçambique, são de bem
velha data.
Se fôramos escavar no pó das bibliothecas os livros
e documentos que de similhante assumpto tratam, e
folheando antigas chronicas transcrevessemos os capi-
tulos que lhes dizem respeito, veriamos que volumes
eram necessarios para desenrolar similhante questão,
que, por vezes estreitamente ligada ás proezas pelos
nossos antecessores praticadas no oriente, nos levaria
à narrativa das nossas brilhantes tradições, 4 exposi-
ção d'essa epopéa sem igual, de que deixímos o vin-
culo em gloriosos padrões por todo o globo.
2 De Angola á contra-costa
Como, porém, não é nosso intuito demonstrar mais
uma vez, o que de resto toda a humanidade conhece,
ser Portugal uma nação que se ufana de com o seu
genio e com o braço dos seus conquistadores ter tra-
cado as mais brilhantes paginas dos annaes da civih-
sação, e se orgulha de ter primeiro que nenhum outro
povo plantado a cruz e a bandeira nos mais remotos
confins da terra, deixaremos em socego as velhas chro-
nicas, para evitar digressões, não abandonando no em-
tanto a imstrucção historica, pela qual vamos passar
com a rapidez possivel. |
No começo do xv seculo Portugal, após as gran-
des convulsões penmsulares, enceta com a tomada de |
Ceuta a grande tarefa de devassar o Negro Continen-
te. É ali que D. Henrique, o infante sabio e principal
heroe d'esse assombroso feito de armas, em contacto
com o torrão africano, e ouvindo as maravilhosas
narrativas que Edrisi, natural dessa chave do estrei-
to, conta do interior, mais uma vez concerta o plano,
já formulado, de procurar pôr-se em relações com o
mysterioso Preste João.
Volve á patria, e apenas descansado de tamanha
fadiga, começa os seus emprehendimentos maritimos
n'esse sentido, ao passo que, como nos conta ÁAzura-
ra, se empenha tambem em obter informações do in-
terior do continente; d'esse continente que fascinára
o mundo romano e o medieval com as miragens de
riquezas prodigiosas; d'esse paiz do sol, do oiro, do
marfim e dos escravos, cujo amago era um mysterio!
Assim, 4 medida que vemos esse manto caliginoso,
que a superstição e a ignorancia haviam lançado sobre
5)
Fisboço hastorico õ
a vastidão do mar irrequieto, ir sendo rasgado pelo
argenteo e luminoso sulco das caravélas, vemos tam-
bem de par, aventurosos enviados do mfante lança-
rem-se na incerteza dos sertões, para arrancarem ao
desconhecido os segredos que a natureza parece tão
avidamente oceultar ahi.
Haviam-se apenas descoberto os Açores e a Ma-
deira, estava amda presente no espirito: de todos a
lembrança da passagem do terrivel Bojador, quando
em 1445 Portugal lançava no mterior do continente o
primeiro explorador europeu, o primeiro homem que,
abalado da velha Europa, punha olhos n'essa terra
mysteriosa.
João Fernandes, companheiro de Antão Gonçalves,
que capitaneava uma caravéla em viagem para o rio
do Oiro, e que estivera captivo em Marrocos, conhe-
cendo por isso a lingua arabe, offerece internar-se
com os azenegues, e sete mezes divaga pelo mterior,
penetrando até Tagazza, no paiz dos tuaregs. À sua
relação, anterior um seculo a Leão Africano, dá-nos,
ácerca das caravanas, mformações em tudo conformes
com as obtidas por este geographo arabe, bem como
em acerto com as de Clapperton, Marmol, Jackson,
Denham e os itmerarios do barão Walckenaer, Bur-
ckardt, Oukney e Rennell.
“No dizer do visconde de Santarem, torna-se sobre-
tudo notavel a analogia que offerecem as mais sm-
celas particularidades de sua narrativa com aquellas
mais tarde escriptas pelo mfeliz Mungo Park.
Dois annos depois volve ainda João Fernandes á
provincia de Sus, a fim de vigiar em Messa as cara-
4 De Angola á contra-costa
vanas que vinham de Timbuctu, desapparecendo então
dos dominios da historia.
D. João IL subíra ao throno portuguez, e, como
principe illustrado e zeloso do engrandecimento do
seu paiz, toma sobre si a grandiosa herança do im-
fante D. Henrique, procurando com afan o caminho
da India. São seguidas as viagens para conseguir tal
fim, não tardando que o distmcto monarcha tivesse
um premio a tantos esforços, na descoberta do cabo
que elle denommou da Boa Esperança; descoberta
que, legada a seu feliz successor, lhe deixava aberto
e franco o caminho para este riquissimo paiz, que
tornou Portugal, de pequeno reino europeu, a pri-
meira potencia maritima do mundo.
A lenda do Preste João das Indias, que tanto.vogára
na idade media, oceupando o espirito dos cosmogra-
phos e dominando as attenções do infante, tinha mu-
dado agora para um paiz situado nas regiões niloticas.
D. João, continuando com porfia as imvestigações de
D. Henrique, procura atacar o Negro Continente pelo
occidente e oriente. À imsistencia do monarcha portu-
guez dá em resultado a viagem, em 1486, de João
Affonso de Aveiro, que explora o delta do Niger e
penetra no remo de Benim, dizendo muito da Nigricia
mterior. No anno immediato outros viajantes se lhe
seguem, e Pero de Evora, Gonçalo Eannes, Mem Ro-
drigues, Rodrigo Rebello e Rodrigo Remel recolhem
informações novas sobre a região percorrida pelo Ni-
ger desde Timbuctu, e d'essa cidade até ao Senegal.
Pelo oriente o imabalavel rei prepara a celebre
expedição de Affonso de Paiva e Pero da Covilhã,
Hisboço historico 5
D. João II pretendia relacionar-se a todo o transe com
o Preste João, e para isso lhe enviava cartas por estes
emissarios, em que lhe significava o grande desejo que
tinha de saber, se elle possuia cidades no Manicongo
(costa occidental), porque elle rei de Portugal ahi tra-
ma suas caravélas.
Ao Egypto se dirigem seus embaixadores, e depois
de navegarem pelo mar Roxo até ao Aden, Affonso
de Paiva corta a Suaquem, na costa da Abyssinia, e
Vahi volve ao Cairo, onde fallece; emquanto que Pero
da Covilhã, depois de correr o golfo Persico e visitar
a costa do Malabar, vem a Sofala, no oriente da Africa,
sobe ao Cairo, onde recebe a noticia do fallecimento
do seu companheiro, e recebendo tambem ordens do
rei de Portugal, para se internar na Africa em busca
do Preste João, dirige-se à Abyssinia. Ahi succumbiu
o ousado viajante, pois jamais o imperador V'aquelle
“paiz lhe consentiu regressasse á patria; não deixando
até a sua morte de incutir com suas informações novo
fervor nos animos dos emprehendedores portuguezes,
que ao tempo já sulcavam as aguas do Indico.
Ao passo que pelo oriente isto succedia, Ruy de
Sousa, no oceidente, desembarcava em 1491 na bahia
de Sonho (foz do Zaire), e, impulsado ainda pelas idéas
e ordens de seu monarcha, procura interhar-se na
Africa equatorial em cata do Preste João. Ao lado do
rei do Congo, alliado dos portuguezes, investe com o
sertão, e coadjuvando-o n'uma campanha contra certas
tribus revoltosas do alto Zaire, que habitavam as ilhas
e as margens do lago de onde sáe o grande rio (Stan-
ley-Pool, sem duvida), Ruy de Sousa toma conheci-
6 De Angola á contra-costa
mento com os mundateque ou anzicos, que não são
outros senão os ba-teque ou povos de Macoco, recom-
mendando depois msistentemente aos portuguezes o
passem para alem do tal lago.
O venturoso re D. Manuel completa a obra mi-
ciada pela escola de Sagres e continuada pelo Principe
Perfeito. O domimio portuguez estende-se ao extremo
oriente, todos os principes da Ásia nos são tributarios;
e, desde Suez e Ormuz até Ceylão e Malaca, desde o
Japão e Chima até ás Molucas, tudo os portuguezes
commandam, todos os mares elles cruzam. |
O continente africano passa então a oceupar uma
posição secundaria no grande plano de dominar o glo-
bo, não deixando, porém, de merecer amda cuidado,
pois D. Manuel não persiste agora só em relacionar-
se com o Preste João, e intenta de novo cruzar esse
paiz, que parece obstimar-se em negar o mgresso à
expansão europêa. |
Assim, em 1508 Affonso de Albuquerque manda
pôr em terra no Porto Feliz, perto do cabo Guardatwm,
a Fernão Gomes Sardo, João Sanches e Cid Mohamed
de Tunis com duas cartas para o Preste João. O mouro
havia afiançado que a sua tornada a Portugal seria
por Timbuetu, e d'ali a Arguim pelo rio de Canaga
(Senegal), camimho que elle já conhecia.
Em 1521, diz Damião de Goes, envia D. Manuel
a Gregorio de Quadra, homem experimentado e que
percorrêra toda a Arabia, ao rio do Congo, com ordem
expressa de procurar o caminho dali até à Abyssinia.
A morte subita do monarcha, que teve logar n'esse
mesmo anno, tolheu a empreza de ir por diante. Acha-
Fisboço historico q
vam-se comtudo no Congo dois homens emprehende-
dores, que em longa pratica do sertão buscavam o
projecto de percorrer o curso superior do rio, e esses
homens eram Balthazar de Castro e Manuel Pacheco,
aos quaes o rei defunto havia em 1520 enviado ims-
trueções para o completo descobrimento do remo de
Angola. Balthazar permaneceu seis annos no mterior,
afiançando, em carta datada de 1526, a D. João, ser
navegavel o curso superior do rio; Manuel Pacheco
escrevia em 1536, que o rei do Congo tinha já la-
vrada madeira — acima da quebrada que o rio tem
(Yelalla?) — para dois bergantins, onde elle esperava
ir fazer o descobrimento do lago.
A 15 de março de 1546, D. João III escrevia aos
portuguezes que residiam na Abyssinia, para tentarem
descobrir e explorar o caminho entre aquelle paiz e o
Congo, ordenando ao governador da India que lhes
mandasse mstrumentos e lhes desse mstrucções ácerca
do modo de determinar os diversos pontos do trajecto
e os trabalhos a fazer.
Em 1560 o padre Gonçalo da Silveira percorre a
Mocaranga, indo morrer no coração da Africa austral,
na Lunda do Cazembe, ao oriente do Luapula, logar
onde, dois seculos mais tarde, outro martyr da explo-
ração africana, o dr. Lacerda, havia tambem de en-
contrar a morte.
Logo em 1565 D. João Bermudes, patriarcha de
Alexandria e Ethiopia, publica a relação da embaixada
ao Preste João, divulgando na Europa curiosas infor-
mações do que víra n'aquelle paiz, onde residiu mais
de quinze annos.
8 De Angola á contra-costa.
Cinco annos depois Francisco Barreto, em procura
das minas do oiro do Monomotapa, penetra até dez
dias de jornada acima de Sena. Vasco Fernandes Ho-
mem, que lhe succede, entra por Sofala e vae até alem
da Chiconga. À estas expedições pela costa oriental
podemos ainda juntar, no fm d'aquelle seculo, multi-
plicadas viagens feitas pelos portuguezes de Angola,
no intuito de devassar os adustos sertões do Negro
Continente.
E assim que numa relação coeva, ultimamente pu-
blicada por Luciano Cordeiro, se allude ás frequentes
communicações dos portuguezes com os reinos do im-
terior, no alto Zaire, fallando-se a miudo no paiz do
Macoco !, Ibare e Bo-zanga, amda não ha muito visi-
tados por Stanley.
Domingos Abreu de Brito traçou, em 1592, um
plano definitivo do seguro estabelecimento de corres-
pondencia entre as duas costas, apontando a forma-
ção de uma linha estrategica de postos militares da
banda do oceidente.
Findava o seculo xvr. À situação de Portugal em
face do imperio luso-asiatico modificára-se profunda-
mente, e, sem embargo, a nossa vitalidade ía sempre
accentuando-se em labores differentes, entre os quaes
se contam muitos no Negro Continente, e em que avul-
tam tentativas para a sua travessia. À obra do mfante
1 O Macoco ou Micoco, é sem duvida o mesmo de que ha pouco nos
fallou De Brazza. Ibare não atinâmos muito bem com o que possa ser.
Stanley chamou o Cuango, Ibare, e em quiniamezi este termo significa
sumptuoso, grande. Vide Memorias do ultramar e A questão do Zwrre,
de Luciano Cordeiro.
Esboço historico 9
D. Henrique, ainda hoje por concluir, contmuava a
merecer-lhe as mesmas sympathias.
Em 1606 trata-se de novo ao oeste de uma viagem
de travessia.
Era então governador de Angola D. Manuel Pereira
Forjaz, que, ordenando a reunião de todos os elemen-
tos para uma empreza de tal magnitude, encarregou
de seu commando a Balthazar Rebello de Aragão, re-
commendando-lhe especialmente a descoberta de um
caminho para a contra-costa, o que elle sem duvida
teria feito, se um ataque dirigido á fortaleza de Cam-
bambe o não houvesse obrigado a retroceder”.
Penetrou elle muito no interior, segundo presumi-
mos, pois se refere a um grande lago, do qual até
indica o logar. Eis o que diz em sua relação: «Ás
provincias que encontrei no descobrimento que fazia
para Monomotapa, por mandado de D. Manuel Pe-
reira, têem um rei que chamam (Chicova; não che-
guei lá por se levantar o rei de Angola contra a for-
taleza de Cambambe, a qual vim soccorrer, estando
80 leguas pela terra dentro e a 140 do mar». E mais
adiante diz «este lago está em a altura de 16º», o
que leva a crer fosse o Nyassa, devendo tambem
suppor-se que as sobreditas 80 leguas se contavam
a partir da fronteira de Angola.
“Dois annos depois Estevão de Athaide dirigia-se
da costa oriental ás minas de Monomotapa e Chicova,
ao passo que em 1613 o padre Fernandes vimha da
Abyssimia a Melinde, por terra.
1 Vide Memorias do ultramar, de Luciano Cordeiro.
10 De Angola à contra-costa
Não decorrem cinco annos que não encontremos
novas explorações, vindo o padre Pedro Paes, dois se-
culos antes de Bruce, Burton, Speke e Grant, encon-
trar na Ethiopia e no remo de Go-Gojan, territorio
de Sacahata, paiz dos agaus, um dos tributarios do
Nilo, o rio Abai ou Nilo Azul.
Em 1624 sobe o padre Jeronymo Lobo o Jubo,
á Abyssinia, seguindo-se logo depois o padre Manuel
de Almeida, que, em proseguimento da obra d'aquelle,
percorre grande parte d'este paiz. À relação de sua
viagem, publicada pelo padre Balthazar "Telles, sob o
titulo de Historia geral da Ethiopia a Alta, ow Preste
Joiio, esclarece em muito a geographia e ethnogra-
phia d'aquella mysteriosa região, que durante tantos
seculos fôra a esphinge da Europa curiosa; região
que, quasi cem annos antes, havia sido percorrida por
D. Christovão da Gama, com quatrocentos portugue-
zes em expedição militar, de que Miguel de Casta-
nhoso nos deixou a narrativa.
Por este tempo Antonio de Oliveira Cadornega, na
costa occidental, percorre durante muitos annos a pro-
vincia de Angola, trazendo noticias e mformações so-
bre o Macoco e os anzicos.
Segue-se em 1648 Salvador Correia de Sá Benevi-
des, que, depois de restaurar Loanda do poder hollan-
dez, se dispõe a ir submetter o reino de Pate na Ethio-
pia oriental, abrindo caminho entre ambas as costas.
Manuel Godinho, em 1663, publíca em Lisboa a
relação da viagem que fizera da India a Portugal por
terra e mar, assignalando um novo e breve caminho
de Angola á contra-costa.
fisboço historico ol
Ouçâmos o que em breves palavras elle diz desta
questão:
«O caminho de Angola por terra à India não é am-
da descoberio, mas não deixa de ser sabido, e será
facil em sendo cursado; porque de Angola á lagoa
Zachaf!. que fica no sertão da Ethiopia e tem de largo
15 leguas, sem até agora se lhe saber o comprimento,
são menos de 250 leguas. Esta lagoa põem os cosmo-
graphos em 15º.50', e segundo um mappa que eu
vi feito por um portuguez, que andou muitos annos
pelos remos de Monomotapa, Manica, Butua e outros
Vaquella cafraria, fica esta lagoa não muito longe de
Zembaué, quer dizer, côrte do Mesura ou Marabia
(Maravi?).
«Sáe della o rio Aruvi, que por cima do nosso forte
de Tete se mette no rio Zambeze.
«EE tambem o rio Chire, que, cortando por muitas
terras, e ultimamente pelas do Rondo, se vae ajuntar
com o rio de Cuama, para baixo de Sena.
«Isto supposto, digo agora: quem pretender fazer
este caminho de Angola a Moçambique e d'aqui á
India, atravessando o sertão da cafraria, deve deman-
dar a sobredita lagoa Zachaf, e, em a achando, descer
pelos rios aos nossos fortes de Tete e Sena; destes á
barra de Quelimane, de Quelimane se vae por terra e
mar a Moçambique, de Moçambique em um mez a
Goa.»
1 Zachaf. Aqui é de suppor haja confusão de escripta ou omissão de
letra, Zachafi ou Zachavi é o que Godinho quereria dizer, se não Zachevi,
que seria a lagoa dos a-chevi ou chevas, como lhe chama Gamitto, e que
nos antigos mappas figura tambem com o nome de lago Maravi.
12 De Angola á contra-costa
Esta lagoa, de que falla Godimho, e de que os por-
tuguezes ouviam fallar em pontos diversos, póde muito
bem ser a facha lacustre que sinuosamente se estende
de norte-sul, comprehendendo Chirua, Nyassa, Hicua
e Tanganika, que elles por confusão reuniam n'uma
só. Parece esta talvez a melhor maneira de mterpretar
o texto de Manuel Godinho, e se era n'essa idéa que
escrevia, este livro mostrará ao diante, que a viagem
que levámos a cabo é approximadamente aquella de
que fallava o nosso compatriota ha duzentos e vinte
annos, e esta comcidencia nos escusará, de certo modo
tambem, de havermos sobre elle sido um pouco ex-
tensos,
Em 1667 Manuel Barreto diz, fallando dos remos
de Manica, Maungo e Butica: «Este conquistou Sise-
nando Dias Bayão (o Mossuampaca), capitão mór dos
rios, o mesmo que percorreu a Botonga, Mocaranga
e Butua; para por elle communicar esta conquista
com a de Angola, que lhe fica nas costas, o que será
grande utilidade de ambas as conquistas; mas vol-
tando a Sena a descansar e conduzir soccorros, o ma-
taram seus emulos com peçonha, invejosos do seu
grande nome e poder, e da honra que novamente ga-
nhava com esta conquista. Por sua morte se recolheu
a gente que deixou nos chuambos da Butica, e ficou
aquelle remo levantado; mas será facil a sua con-
quista depois de conquistada Mocaranga e Manica».
Passados annos, em 1678, o governador de An-
gola, Ayres de Saldanha, manda por sua vez uma
expedição para tentar a travessia, saíndo de Massan-
gano capitaneada por José da Rocha.
Esboço lstorico 13
No seculo passado ainda, em 1795, vae a expedi-
cão commercial de Assumpção e Mello de Benguela
pelo Bié ao Lovale, e no anno seguinte Manuel Cae-
tano Pereira tenta passar 4 contra-costa.
Fecha o xvmnr seculo com a mallograda expedição
do dr. Lacerda, homem de sciencia e valor, de que
tanto havia a esperar, e que saíndo de Tete para
Angola, foi mfelizmente morrer no Cazembe em 1798.
O padre João Pinto, companheiro do dr. Lacerda
e que mais tarde reconduziu a expedição a Tete, fez
amda altas tentativas para atravessar do Cazembe
para a nossa provincia de oeste.
Eis o que a proposito diz, na sua entrevista com o
monarcha da terra: «... propuz e fallei sobre a passa-
gem de Angola e abertura de seu caminho. Logo acu-
diu o rei com difficuldades de guerras e fomes», etc.
Frustradas as tentativas do padre João Pinto, com
a decidida opposição do Cazembe e sua volta a Tete,
só em 1802 temos noticia de se haverem renovado os
esforços dos portuguezes durante o governo, ao que
Julgâmos, de Antonio Saldanha da Gama, no imtuito
de conseguir a resolução do problema ha tanto ambi-
cionado.
E desta vez foram elles coroados por completo exito,
se bem que os homens em similhante serviço emprega-
dos, não eram de molde a poder garantir-lhe o mais
smgelo valor scientifico. |
Foi de nove annos essa viagem, certamente cheia
das mais notaveis peripecias, peripecias que ficaram
no escuro pela falta de instrucção dos protogonistas,
deixando suspeitar sofrimentos que deviam ter sido
14 De Angola à contra-costa
extraordinarios, a julgar pelo tempo empregado e dis-
tancia percorrida, e em que em não menor numero
deviam ser as noções de interesse, que a sciencia a
final não pôde aproveitar.
Honorato, tenente coronel estabelecido em Cassan-
ge, foi ao tempo o imiciador atrevido d'esta empreza
sympathica.
Organisando uma expedição de tudo supprida, poz
à testa d'ella dois dos seus mais habeis pombeiros, Pe-
dro Baptista e Amaro José, e soltando-os da margem
esquerda do Cuango, ordenou-lhes que procurassem
a todo o transe chegar a Tete.
Assim o fizeram estes, e havendo abalado de Cas-
sange em novembro de 1802, só chegaram áquelle
ponto em 2 de fevereiro de 1811!
Pinham partido novos, chegavam ali já encanecidos.
Tres annos esteve a expedição detida nas terras de
Mussico, e quatro na d'esse grande descendente dos
muropues que se chama Cazembe (Muata), exhaurindo
certamente todos os seus recursos, e passando, Deus
sabe, quantas provações estupendas!
Por isso a posteridade, registando este facto, presta
agora um preito de homenagem a esses homens, que,
embora obscuros, deram as mais evidentes provas de
um arrojo e pertinacia sem iguaes, pela perseverança
com que levaram a cabo o trabalho que lhes havia
sido commettido. i
Chega o anno de 1831, e Correia Monteiro e Anto-
nio Pedroso Gamitto emprehendem e levam a cabo
uma viagem do Zambeze á Lunda do Cazembe, e
regressando a Tete, o ultimo publica a sua relação.
Lisboço hastorico 15
Joaquim R. Graça, de 1843 a 1847, vae de Loanda
ás nascentes do Zambeze e visita o paiz da Lunda,
governada por esse poderoso descendente dos muro-
pues, que se denomina Muata-Tanvo.
Em 1852, cabe a Silva Porto !, negociante portu-
guez estabelecido no Bié, o mesmo que encontrou
1 Acabando de nos chegar à mão um jornal quinzenal que se pu-
blíca em Bruxellas, sob o titulo de Le mouvement géographique, n.º 18
de 6 de setembro de 1885, cabe-nos aqui corrigir uma apreciação menos
justa, feita pelo seu redactor em chefe mr. A. J. Wauters, na segunda
pagina, quando trata das «Travessias da Africa central» com relação
a Silva Porto. Essa apreciação, que sem duvida s. ex.? fez, por se ter in-
formado no livro Missionary Travels in South Africa, escripto por esse
celebre escossez, cujo odio e má fé para com os portuguezes tanto o des-
mereceu aos olhos do publico em geral, odio que mais de feição estaria
n'um mercador de escravos do que em um homem revestido de tão es-
pecial caracter e que tantos favores recebeu de nós, é de todo o ponto
inexacta.
Silva Porto não é un métis de la tribu des mambari (Bié), embora Li-
vingstone de proposito queira insinuar isso na nota do seu livro a pag.
217, quando diz: «On asking the headman of the mambari party, named
Porto, whether he had ever heard...»
Silva Porto é um cidadão portuguez, nascido na cidade do Porto.
Seus paes, tambem portuguezes, educaram-no de modo, que se acha ha-
bilitado a redigir todos os seus diarios, com uma perfeição maior do que
se imagina, e sobretudo apontaram-lhe bem qual é o caminho da honra,
porque Silva Porto, com quem contrahimos relações pessoaes, é um dos
homens mais probos que temos encontrado. Ignorâmos se esteve para ser-
vir junto da expedição de Serpa Pinto como guia, mas sabemos não ser
um traficante, e que a sua mercadoria principal nunca foi o homem!
As comitivas que envia por vezes ao sertão não lhe pertencem exclusi-
vamente; vão a ella aggregados muitos secúlos biénos, que fazem nego-
cios por sua conta, sendo provavel que tambem façam trocas e compras
de gente, sem que Porto seja responsavel. A caravana que o illustre
Cameron encontrou devia estar n'estas cireumstancias.
Velho, com a sua longa barba branca, alquebrado pelas fadigas serta-
nejas, não merece este ancião, no ultimo quartel da vida, o indigno epi-
theto de mulato mercador de escravos. Julgâmos assim, rendendo justiça
a quem a merece, ter sido agradaveis a mr. Wauters.
16 De Angola á contra-costa
Living'stone no Zambeze em Naliele, a honra de fazer
uma nova tentativa, para pôr em communicação as
duas costas africanas.
Á testa de uma Importante expedição commercial,
por elle mesmo organisada, e que se dirigia para o
Genji, seguiu o nosso ousado compatriota, e assen-
tando os seus arraiaes no alto Zambeze, destacou
ahi pombeiros e gente sua, a fim de levarem a Mo-
cambique dois officios do governo geral de Angola,
pessoal que attingiu o Ibo.
Longa foi tambem essa jornada, onde sem duvida
não faltaram peripecias e contrariedades, a julgar pelo
que mais de uma vez temos ouvido sobre ella, e que
Silva Porto conta em seu roteiro, denominado Uma
viagem à contra-costa.
Os enviados, ao volver, haviam feito tão exagerada
noticia da extensão percorrida, que carteada ella por
rumos e marchas, atirava a distancia tal, que punha
Moçambique a meio do Indico!
Mas, apesar disso, não parece que se houvessem
elles afastado muito da verdade, sendo que tal distan-
cia, por ser tomada approximadamente em linha se-
guilda, não levava em conta as numerosissimas voltas
por elles operadas.
De então para cá o sertão é diariamente trilhado
pelos portuguezes mercadores, em todos os sentidos,
e Gonçalves, João Baptista”, etc., são outros tantos
que por ali divagam como senhores.
1 Os individuos a que nos referimos são portuguezes e europeus;
não fallâmos dos africanos, como Alves, que Cameron encontrou,
Jisboço hústorico 1%
Gonçalves explora por vezes o Mucusso; Baptista
leva as suas explorações commerciaes sem igualavel
arrojo até ao Cassongo Calombo, para as bandas de
Nyangue, atravessando o Lobale, o Moio e Urua pela
primeira vez em 1872; Silva Porto continua em suas
viagens para o Genji e outros pontos.
Pelo oriente Montanha e Teixeira vão em 1855-
1856 a Zoutpansberg, atravessando os sertões a leste
do Limpopo; os negociantes do Zumbo percorrem as
terras ao oriente do rio Aroangoa, aquellas da Manica
(norte), Chuculumbes, etc., levando as suas excursões
até ao já citado Gengji.
Em 1877 é organisada uma nova expedição, que
abalando de Benguella se subdivide no Bié; uma parte,
sob o commando do major Serpa Pinto, dirige-se para
o oriente e após attingir o curso do Zambeze, corta
para a costa oriental, ao passo que a outra, sob a direc-
ção dos auctores do presente livro, se dirige para o
Quióco em busca das cabeceiras do Cuango, e, prolon-
gando o curso d'este rio, vae até Jacca, d'onde volve
a Loanda.
Emtfim, em 1884, frequentemente incitado pela So-
ciedade de Geographia de Lisboa, ordena o governo
de Sua Magestade uma outra expedição, de que o pre-
sente livro vos dará conta.
“Eis resumidamente o que durante quatrocentos e
quarenta annos fizeram os portuguezes, esse povo por
vezes tão indelicadamente tratado por estranhos, para
explorar e conseguir a ligação das duas costas occl-
dental e oriental da Africa, o que sempre se lhes afi-
gurou do maior interesse, a julgar pelos premios que
2
18 De Angola á contra-costa .
o governo offerecia áquelle que levasse a cabo tal
commettimento, e assim devia ser.
Se considerarmos que ao tempo, ou melhor aimda
até ha poucos annos, eram os portuguezes os que ex-
clusivamente percorriam os sertões entre Angola e Mo-
cambique, traficando e influindo de um modo serio na
vida dos povos centraes do grande contimente; se
attentarmos que de tal circumstancia resultava a im-
fallivel obrigação de ahi contrahir amisade, creando
por esse facto pontos de apoio e segurança para as
suas pacificas transacções; se notarmos anda que par-
tir ao meio a contenda (seja-nos lieito dizer) entre as
duas provincias, no interesse de tal fim, seria a idéa
dominante, o pensamento fixo d'aquelles no problema
empenhados; se observarmos, emfim, que a lembran-
ca de uma eficaz protecção politica ía assim repartir
pelas duas colonias, como immediata consequencia,
uma preciosa qualidade, qual a da relativa rapidez;
veremos logo que com a mais sã e boa rasão, governo
e homens atrevidos se empenhavam em fazer vmgar
essa empreza, que, se já não é hoje um problema, se
deve muito principalmente aos esforços que o nosso
paiz empregou sempre pela sua resolução. E termina-
remos com a segumte observação justissima que sal-
ta dos factos que temos narrado:
«Aimsi, aprês avoir ouvert à la science et à la civi-
lisation chrétienne tout le vaste httoral africaim, jus-
qu'au Zaire et au sud de celui-ci, —aprês leur avoir
révélé Vexistence et la navigabilté du cours mférieur
du grand fleuve, nous nous empressions dmitier de
ce côté, comme nous le faisions pour Vautre, la rude
Jusboço hastorico 19
et glorieuse campagne de [Vexploration intérieure de
PAfrique équatoriale, ou seulement plusieurs sitcles
plus tard, les autres nations civilisées devaient venir
nous faire concurrence...
«Il convient de bien nous fixer sur ce point. La dé-
couverte des régions intéricures ctait conduite et opé-
rée en même temps que celle du littoral, non pomt
par une simple correlation éventuelle du trafic, ni
par des circonstances dues au hasard de Pexploration
maritime, mais bien par le désir persistant, manifeste
et onéreux qui animait le gouvernement portugais,
de connaitre le pays, de pénétrer dans ces régions et
de les assujettir au commerce, à VEvangile, et à la
domination nationale.» (La question du Zaire, Droits
du Portugal.)
O CONGO
Le roi Jean TI de Portugal, peu de temps apreês,
ajoute à ses titres officiels celui de seigneur de Gui-
né: toutes les côtes jusqu'alors reconnues par ses su-
jets, ainsi que la mer sillonnée par leurs caravelles,
semblérent désormais former un seul domaine dont
une prise de possession solennelle était constatée.
AvEZAC, Ency. des gens du monde.
Por seu reino vão os portuguezes ao reino do Ma-
coco a negociar, e assim ao reino de Ybare e ao de
Bozanga, que é um rei poderoso e se não pódeir por
outra parte...
Garcia MENDES CAaSTELLO BRANCO, Relação
sobre o reino do Congo, 1603, publicada por
Luciano Cordeiro. ;
“Quatro annos haviam decorrido desde que nós, vol-
vendo da viagem a lacca, tinhamos deixado as afri-
canas costas.
Tranquillos, despendiamos na Europa o nosso tem-
po, nos ocios e distraceções que a civilisação por toda
a parte offerece ao homem que, arredado por annos,
dá m'ella de subito ingresso, esquecidos e alheios um
pouco ao movimento africanista, quando um imespe-
rado facto nos colheu de surpreza.
Manuel Pinheiro Chagas, o ilustre ministro da ma-
rmha e ultramar, que havia apenas dias assumíra taes
funcções, resolvêra enviar uma expedição 4 Africa, e
22 De Angola à contra-costa
collocando à sua frente os auctores d'este livro, orde-
nára-lhes que partissem sem perda de tempo, conce-
dendo só o necessario para a organisação do material.
Assim, a 6 de janeiro do anno do Senhor de 1884,
pelas nove horas da manhã, achavamo-nos a bordo do
vapor S. Thomé, da empreza nacional de navegação,
promptos a abalar. |
Tangêra a smeta pela segunda vez o signal de reti-
rar, convidando a saír essa multidão, que se agita
sempre confusa no convez do barco que se apresta a
partir, que gesticula, commenta e fica, uns porque os
distrahe o que para elles é novidade, outros porque
lhes custa o separar-se dos entes queridos, e muitos
porque não sabem mesmo o que o signal significa, até
que ao terceiro toque de todo se varreu a tolda.
Estremecêra o casco sob nossos pés, cessára a vI-
bração mecommoda que o vapor produz ao despedir-
se pelo tubo da descarga, como allívio desses pulmões
monstruosos que respiram atmospheras a setenta e
cmeo hbras; redemombára a agua na popa, partimos.
Adeus paixões, e ficando-se de pé com a saudade,
essa inseparavel companheira das recordações affe-
ctuosas, cada qual se accommodou como pôde, em-
quanto o navio, approximando-se da barra, arfava
magestoso, encetando os primeiros galões.
Era o aviso terrivel, para os que enjoam, do soffri-
mento que os esperava.
Começam de empallidecer os rostos, aggravou-se
a tristeza com um ar de vaga apprehensão, um aeres-
cimo de secreção salivar se adianta, para ceder logo o
passo a torturas angustiosas e às primeiras contrae-
O Congo 28
ções estomacaes, que um sabor metallico e o cheiro
dos oleados compromette fortemente, até alfim romper
a formidavel symphonia em urro maior.
Quão invejavel não será n'esses momentos, para
taes infelizes, a immunidade dos homens do mar? En-
fada-os a nossa presença, porque nos observam des-
peitados; no seu vago olhar, quando em nós se fita,
transparecem por vezes lampejos á guisa de odio, ena
contracção dos labios transluz uma como que paga em
desprezo, ao nosso ar correntemente zombeteiro.
Sulcando donairoso pelo oeste dentro, avança o na-
vio emquanto o sol se occulta, e o cordão da terra
pela popa começa a esbater-se no azul dos céus.
Os ultimos clarões desappareceram, amortalhou-se
a abobada no funereo manto da noite, entrou a hora
das cogitações.
Junto á amurada, abysmado para o estendal dos
céus, eil-o, o passageiro que não enjôa, abraçado á
saudade em pleno cortejo de gratas e pungentes re-
cordações, perpassando-lhe pela mente, em kaleidos-
copico movimento, quantas idéas estremecidas.
À esposa e os filhinhos, tudo que na terra tem de
caro, o lar domestico, esse ninho onde ainda na vespe-
ra entrára distrahido, sem bem precisar quanto é duro
o afastar-se delle, rodam constantes, apertando-o em
angustioso scismar.
E não lhe póde fugir, não póde desviar-se, agonia-
se e a final apraz-lhe o sacrificio doloroso; ainda que
o não queira ha de pensar n'elle, percorrer-lhe todos os
recantos, povoal-o dos seus habitadores estremecidos,
ouvir-lhe as derradeiras palavras, receber-lhe as ulti-
24 De Angola á contra-costa
mas carícias, até que o somno, amerciando-se delle,
o prostre no acanhado esquife do camarote.
Então socega.
Não tencionâmos, leitor, proseguir, porque não é
nosso fim o fazer-vos a monotona deseripção de uma
viagem a Angola, d'esses vinte e cinco dias aborreci-
veis e mvariaveis, de somnos alternados com refeições,
estas baralhadas com palestras banaes e consumindo
charutos, vmdo sempre a achar o remate n'essa pseu-
do-cogitação, que abysma sem pensar quem, recos-
tado, contempla as vagas que se succedem, e procura
aborrecido cerrar os ouvidos ao que lhe não interessa.
E depois uma viagem por mar e em paquete é de to-
dos conhecida, igual pelas scenas, caracteristica pelo
enfado, desde o momento de abalar, symbolisada n'esse
brouhaha de que ha pouco vos fallámos, até ao avistar
pela prôa o cordão azulado da terra, que nos annuncia
o terminus do nosso percurso.
Tudo se passa da mesma fórma n'esse acanhado re-
cinto que se chama um navio e se repete diariamente,
desde a baldeação, até às confidencias da noite, que
um jantar, convenientemente regado, sempre provoca.
Passando pois pelos primeiros dias sem menção es-
pecial, deixemos os pontos de escala como a Madeira,
essa graciosa ilha tantas vezes descripta, o archipe-
lago de Cabo Verde, a Gumé e S. Thomé em silencio,
para nos approximarmos em linha directa do conti-
nente.
A 30 de janeiro de 1884, diz o nosso diario, come-
cámos a navegar desde o alvorecer nas aguas verde-
barrentas que, espalhando-se em enorme sector para
O Congo 25
o noroeste, se escapam pela embocadura do Zaire;
manchando na distancia de 3º a azulada superficie
do oceano.
Aqui e alem, vêem-se feixes de hervas a que amda
adhere o torrão, e por vezes, emergindo do meio com-
pletas arvores, evidenceiam os esforços do colosso na
lucta em abrir o seu caminho para o mar; esforços
que se vão traduzindo no alargamento do leito na
parte do curso junto ás costas, e na formação de um
colossal delta a 15 milhas da embocadura.
Pouco a pouco approximámo-nos; uma larga ondu-
lação que o desnivelamento produz, impelle suave-
mente o navio. Já ao longe se distinguem no norte
e no sul as barreiras avermelhadas caracteristicas da
costa, que, baixando gradualmente, vem morrer em
duas orlas verde-escuras de mangue que margina o
rio, até que ás onze horas se vê distinctamente a en-
trada, á qual servem de marca pelo sul arvores da
Mouta Secca, e pelo norte os tectos brancos das fei-
torias do Banana.
Rasgando a todo o vapor um sulco lamacento por
meio dessa corrente de 6 milhas, fundeámos no porto
mmterior, de 2 milhas de comprido a 0,5 de largo, a
50 metros de terra.
Confessâmos que, apenas chegados, nos Impressio-
nou o socego que ali reinava, e esperando vel-o alvo-
rotado em virtude do recente apparecimento da ex-
pedição belga, Associação Internacional (chamada) ou
ainda Comité Vétudes du haut Congo, que tudo julgâmos
quer dizer a mesma cousa, não volvemos da nossa
surpreza em meio d'aquelle silencio.
2.6 De Angola á contra-costa
Era o mesmo Banana que conhecemos em 1872,
quando faziamos parte da estação naval de Angola, o
que mostra ter o Zaire amda muito maior importancia
do que o barulho feito em redor dos trabalhos da asso-
“ciação.
Ao sulcar as aguas do formidavel rio, aqui apenas
separadas do oceano por delgada linha de areia de
2,5 milhas de comprido, onde se acham edificadas as
feitorias de quasi todas as casas commerciaes da costa,
e ao mirar suas margens de um lado e outro, per-
correu-nos o corpo um estremeção, por lembrar as
luctas e dificuldades que deviam ter passado os nossos
antecessores que se extenuaram no trabalho de sua
exploração; por lembrar os nomes de Ruy de Sousa,
de Gregorio de Quadra, de Francisco de Gouveia, o
vencedor dos jaggas, de Duarte Lopes e outros!
Quantas decepções e quantos soffrimentos não de-
vem ter marcado ahi os passos d'esses homens, que,
impellidos pelo dever, no meio das contingencias de
uma vida cheia de durezas, vida que ainda hoje, com
todos os recursos da moderna sciencia, é um valle de
miseria! Basta relembrar os sympathicos vultos que
derradeiramente ali encontraram um termo ás suas
aspirações; tentaram levar a civilisação ao amago do
continente, e a final de tamanho afan, apenas haviam
ficado os traços n'essa ingrata terra, verdadeira ma-
drasta do branco, porque então, como hoje tambem
está succedendo, se persuadiu o europeu que com a
sua energica força podia desbravar e exercer dommio
sobre selvas e negraria, sem reflectir que acima de
tudo dictava a lei o clima, ao qual a constituição phy-
O Congo 27
sica era difhcil que resistisse. — Hoje como então, esta
é a verdade.
Com o vapor e o telegrapho, essas duas poderosas
alavancas de progresso, opéra actualmente o europeu .
maravilhas, onde, encontrando ponto de apoio, possa
o seu braço manejal-as livremente; mas na África,
onde a natureza lhe poz o clima como barreira aos
esforços, e cirecumstancias de caracter meteorologico
e tellurico, primeiro que cousa alguma lhe quebram
as forças e minam a existencia; mal poderão aquelles
dois elementos produzir aproveitamento, quando ma-
nejados por sua mão. Na pretensão de se substituir ao
mdigena, enceta uma lucta em que o partido favora-
vel é o da morte!
Mas apesar de tudo, embora assim considerasse-
mos, assomava-nos ainda um lampejo de sympathia
por esse curso de agua, por essas terras de monotono
aspecto, porque constituam um dos titulos da nossa
gloria, cuja propriedade muito apreciavamos, e no seu
progredir tinhamos o maior empenho; era o rio a que
pozeram o nome de Diogo Cam, como homenagem
áquelle que conseguiu levar as explorações até Cabo
Frio, e na volta, narrando taes descobertas, fez com
que o monarcha juntasse aos seus titulos o de senhor
da Guiné, facto este, acrescenta o nosso estimavel
amigo e distmeto africanista Luciano Cordeiro, no
seu trabalho intitulado A questão do Zaire, que posi-
tivamente correspondia n'aquella epocha á affirmação
mternacional de um direito de soberania e dominio, e,
acrescentaremos nós, que nunca foi nos remados sub-
sequentes desmentido nem olvidado.
28 De Angola á contra-costa
Tudo mudára em nossos dias. À fingida abertura
ao commercio da embocadura deste rio poderoso,
como lhe chamára Martim de Behaim!, ía breve ser
causa ou pretexto para que se espoliasse Portugal de
sua posse, e se attribuisse a um monarcha europeu o
estranho titulo de soberano de um estado livre, que só
existe no papel, fazendo-se de necessidade o arrancal-o
a este paiz, para ornar o nome do chefe de uma pe-
quena nação, a fim de que os pavilhões de todas as
marinhas do globo podessem livremente tremular ah!
E fingida, dizemol-o muito de proposito, porque de ha
muito o mundo o sabe, ou para melhor dizer, o Zaire
esteve sempre franco ao commercio de todos os pai-
zes, não podendo ser pois o facto da sua abertura ra-
são para que se espoliasse Portugal d'aquillo que em
bom direito e rasão lhe pertencia.
À tentativa da pesquiza e dependencia do seu curso
superior tambem não é argumento que se adduza' a
favor da citada espoliação, podendo accommodar-se
as cousas satisfactoriamente para a Belgica, e no im-
teresse de Portugal, tudo em fórma de justiça, como
adiante lembraremos. E não venham com o argumento
estranho, já empregado, de que, se é msalubre, pesti-
lencial, mutil emfim, para que o queremos nós; ou
anda, se tanto affimco mostrâmos na posse de um ter-
ritorio sem provada vantagem, demonstra empenho
de encobrir um interesse que nos não convem eviden-
1 Martim de Behaim era cosmographo, dando-se como certo que acom-
panhou Diogo Cam em sua expedição, sendo elle que fez a celebre es-
phera de Nuremberg, onde se achavam marcados os descobrimentos dos
portuguezes durante o seculo xv.
O Congo 29
clar; porque não só concebemos o possivel aproveita-
mento do Zaire (aliás seriamos cegos) pelo emprego
systematico do indigena, mas comprehendemos igual-
mente que a nnguem apraz ser espoliado, sirva ou
não preste para alguma cousa. |
Não se julgará de certo que aquelles que tanto se
téem esforçado em desvendar o desconhecido cora-
ção do Negro Continente possam achar-se movidos de
sentimentos, que por serem em favor do seu paiz, po-
deriam ser contrarios ao interesse da abertura dos
sertões centraes ao commercio europeu; um facto, pa-
rece-nos, destroe o outro; e é simplesmente a causa
da justiça aquella que por isso nos leva a cortar esta
questão.
Nem se deverá pensar mesmo, como de resto nos
parece já se fez, que quanto dissemos em nossas con-
ferencias sobre a bacia do Congo, ao aprecial-a de-
baixo do ponto de vista da salubridade, podia ter o
menor viso a uma propaganda contra os trabalhos da
Internacional ali. Muito ao contrario, as palavras que
de novo vamos aqui transcrever foram traçadas sob o
sentimento da obrigação que nos assiste de dizer a
verdade, e no interesse do mesmo trabalho da Inter-
nacional, pois que, levando pelo seu caracter especial
à ponderação, poderiam por vêzes servir de freio a
quaesquer impulsos menos meditados.
E não somos só nós que sobre o clima do Congo te-
mos fallado. O consul americano W. P. 'Tisdel, no seu
relatorio de julho de 1885, diz:
«A questão do clima é extremamente seria. Humido
e enervante para brancos da Europa e America, resul-
50 De Angola á contra-costa
ta que são innumeras as doenças. No primeiro anno
de residencia torna-se aos incautos necessaria grande
precaução, para não serem logo victimas da perniciosa
influencia da malaria espalhada por todo o paiz.»
Eis o que nos acudiu dizer sobre o viver europeu
no Congo:
«Em Africa deve o europeu residir em ponto alto...
Viver no cordão litoral, na zona perto do mar, estabe-
lecer-se no Comptoir em meio dessas planuras onde o
bao-bab e o espinheiro vegetam e as aguas dos planal-
tos se espraiam, formando por toda a parte pantanos;
procurar depressões gigantescas como a do Congo,
para ahi ageremiar europeus, suppondo que basta fun-
dar-lhes estabelecimentos nas eminencias marginaes
para os salvar da nefasta mfluencia climaterica, emi-
nencias que, quando escalvadas e nuas, batidas pelos
ventos, são anda as mais perigosas, como póde servir
de exemplo Vivi, e outras estações do Congo inferior,
é um ludibrio, de que só será victima a inexperiencia
ou a pertinacia em não querer ver e acceitar.
« Como quereis, senhores, phantasiar um futuro de
prosperidades para o Congo, sonhar para as margens
d'esse rio Nimives e Babylonias, crear ahi centros de
vida e movimento á europêa, se só a simples mspecção
da carta vos mostra que a 1:500 milhas da embocadu-
ra, approximadamente, tem esse curso de agua 600
metros de cota?
«Ao fundo d'essa gigante depressão onde se aceu-
mulam todas as aguas que derivam do sul, desde o
Quioco até Babisa, e pelo norte, desde o Tanganika
até aos affluentes que entestam com o Ogowai, que
O Congo au
collocada mesmo sob o equador está em permanente
crue pelo movimento alternado das chuvas no norte e
no sul, despejando para as zonas lateraes as aguas su-
perabundantes, onde as calmas e um sol de fogo lu-
ctam de esforço para aniquilar as organisações, e tri-
bus selvagens pullulam por toda a parte, não espereis
ver estabelecer-se com facilidade o europeu, nem tirar
outros resultados senão a morte e o desolamento.
«De sobejo conheceis factos comprovativos, assás
é notorio que muitos jovens cheios de vida acabam
nos ultimos tempos de dar com sua morte remate a
esperançosos futuros, para que adduzamos mais pro-
vas sobre similhante assumpto.» Sem embargo mais
duas palavras. «Não julgâmos ter-nos, em todas estas
considerações, afastado muito d'aquelles que desinte-
ressadamente tratam da questão, ao dizer que não só
o clima, como a selvageria dos naturaes, seria obsta-
culo ao estabelecimento do europeu».
É ainda Tisdel que nol-o diz, ao fallar dos traços
caracteristicos dos negros:
«Com excepção das tribus de Loungo e Cabin-
da, as gentes do Congo, são ferozes, selvagens e
crueis.» |
Asserto este, que bem evidencia a causa do retar-
damento na assimilação d'aquellas tribus pelo esforço
civilisador portuguez.
E proseguindo, ao fallar da facilidade com que um
preto, mediocremente conhecedor de linguas, por ali
transita, acrescenta:
«Este facto prova-me claramente, que um preto
mdustrioso, com um mediocre conhecimento da lin-
32 “De Angola á contra-costa
gua fiote, será mais capaz de exercer uma maior e
melhor influencia sobre estes povos, do que nunca
será capaz homem branco. »
Estamos d'aqui mesmo a ouvir a exclamação im-
mediata de muitos dos cavalheiros na questão imte-
ressados: ;
— E precisamente pela rasão de serem selvagens
e bravos que urge primeiro que tudo pensar em sub-
mettel-os.
Muito verdade, sem duvida; nós porém, que escre-
vemos n'este momento, não só no imteresse do imdi-
gena, mas muito particularmente no interesse dos
“capitaes europeus, perguntaremos áquelles que o des-
embolsam:
—Tendo forçosamente de ver-se na obra da Inter-
nacional duas phases differentes de trabalho, e que
devem fatalmente preceder-se uma á outra: o de
submetter os habitadores do Congo e civilisal-os —a
que andam ligados vastos problemas sobre a viação —
e o de explorar depois o commercio; estaes dispos-
tos a arriscar Os vossos capitaes na primeira para,
depois de exhaustos, procederdes pacificamente à se-
gunda ?
Volvâmos á nossa questão, aquella de se haver
na conferencia de Bruxellas preparado a perda do
Congo para Portugal.
Sendo o direito a arma dos fracos, não foi, nos pa-
rece, de boa politica o afastar-se d'este axioma; e não
1 Referimo-nos sempre ao Congo inferior, é claro, aquelle que daria
accesso por Noqui e S. Salvador para a bacia do Cuango.
O Congo Sa
é para admirar que estranhemos ser aquelles que se
acham em taes crrcumstancias justamente os primeiros
a fornecer armas, que mais tarde se podem voltar
contra elles.
O desejo de plantar defimtivamente o estandarte da
civilisação no solo da Africa central, palavras da aren-
ga real na conferencia de Bruxellas, se era o pensa-
mento da Belgica, era tambem o anceio de ha muito
em Portugal; que melhor exemplo, pois, podiamos dar
ao mundo, que concertar-nos, e, fortes pela união, pro-
ceder á grande obra? |
Não urgia seguramente para isso isolar-se a Bel-
gica primeiro, e procurando depois alheia protecção,
ferir os interesses dos portuguezes que tão boa von-
tade têem mostrado no empenho de que tratâmos, e
tão dispostos se achavam a fazer quantas concessões
se lhes pedissem.
É triste, e sentimos bem, que o subsequente pro-
cedimento nos confunda por modo a tornal-o dificil
de coadunar com as palavras que o illustre principe
proferiu por occasião da conferencia de Bruxellas em
“187,6, relativamente á obra que se dispunha a patro-
cmar:
«Il m'a paru que la Belgique, état central et neu-
tre, serait un terram bien choisi pour une semblable
réunion, et c'est ce qui m'a enhardi à vous appeler
tous, 1ci, chez moi, dans la petite conférence que j'ai
la grande satisfaction d'ouvrir amjourd'hui: Ai-je be-
som de dire qu'en vous conviant à Bruxelles, je n'ai
pas été guidé par des vues égoistes? Non, messieurs,
si la Belgique est petite elle», etc.
co
34 De Angola á contra-costa
Converteram-se em realidade, ha pouco consum-
mada n'um congresso, onde se faziam representar
aleumas nações completamente estranhas á questão
africana, as nossas suspeitas em 1884, quando escre-
viamos o que se segue em nosso diario:
«E já bastante fallâmos da questão do Congo;
deixemos aqui agora registado e em remate o que
pensâmos d'aquella que confiou aos delegados da com-
missão reunida em Bruxellas, em junho de 1877, a
missão de fundar na sua bacia estações scientificas e
hospitaleiras.
cCivilisar a Africa central, sómente impulsado por
um pouco vulgar affecto humanitario, sómente mo-
vido pelo origmal desejo de fazer a felicidade do ne-
ero, como se deprehende das palavras de Stanley
perante o club do seu nome, em París, que excla-
mou: ...o capital entregue à communidade dos bran-
cos era para se applicar do modo mais conveniente ao
bem estar dos naturaes da sua area; era para se repartir
como beneficio. .. ete.; e logo mais adiante acrescen-
tou: O nosso intuito... é plantar e semear para o negro
colher. . . etc.; enviar, como diziamos, para aqui ho-
mens e milhões, no elevado e santo mtuito de lhe
preparar o futuro, ou melhor, dotal-os com um bem
estar assás problematico; sacrificando vidas e traba-
lho a uma tão arrojada quanto imprudente empreza,
que. muitos entendidos consideram como mexequivel,
cuiando-se só pelas vagas informações existentes; pôr
em pratica um problema, por assim dizer, não estu-
dado e superior sem duvida á força e intelligencia de
um só homem, só porque esse homem afiançava que
O Congo 35
com duas duzias de imfelizes mancebos imexperientes
o podia resolver; emfim disfarçar perante a Europa
todo este proceder, com um facies de decidida vontade
e evangelica resignação, mais propria de missionarios
do que de homens afeitos ao manejo da espada; e pôr
como cupula d'este estranho edificio um homem, cuja
bravura e temeridade não podem contestar-se, mas a
quem os conselhos da prudencia devem por vezes
quadrar de geito para soffrear as suas Impetuosas
paixões, os seus estranhos impulsos, para nos servir-
mos de um termo por elle empregado, ao referir-se á
sua propria pessoa e ao descrever de certa maneira o
seu modo de ser e de obrar; em que debutou assim:
Well you know! Tam a very mpulsive man; parece-nos,
acima de tudo, uma suspeitosa mystificação, encobrm-
do pretensão ambiciosa!»
Isto escreviamos nós quando ainda se não fallava
na conferencia de Berlim, mas quando já muito cer-
tamente se machinava contra a mtegridade do nosso
territorio.
Se a abertura dos sertões centraes á civilisação e
ao commercio era uma necessidade, repetimos, porque
não se tratou com aquelles que melhor podiam auxiliar
tal empreza, e se preferiu deslealmente a intriga?
Porque, se não fossem estranhas machinações, ter-
sela a Belgica entendido muito bem comnosco, na
tão meritoria obra de nos coadjuvar no mteresse es-
pecial da abertura d'aquelle sertão, e no geral de be-
neficiar o negro. Mas então, imfelizmente, faltaria o
titulo em tal caso! — verdadeira nota grave n'esta
grande questão!
56 De Angola á contra-costa
Aqui pomos a corda ao pescoço pelo nosso governo
(e disto está a Belgica bem convencida), de que se
empenharia elle com todas as suas forças para auxi-
liar tal empreza, não como está sendo posta em pra-
tica, á louca, na bacia pestilencial do Congo, com
centos de europeus mexperientes que com a vida dia-
riamente pagam a sua audacia; mas na justa medida
do bom senso e do menor risco, pelo emprego racio-
nal do indigena, de cuja coadjuvação e trabalho, unica
e exclusivamente, se póde conseguir aproveitamento.
E ainda lhe afiançâmos, que ao lado dos illustres
officiaes belgas que ali em tão grande numero têem
encontrado a morte, havia cá muitos homens capazes
de encontrar no sacrificio do dever o mesmo fim, e
que aquelles que amda ha pouco penetravam na
Quimpata de Bunqueia com quatorze homens, e ahi
encontrando Musiri, que dias antes fôra visitado por
um explorador europeu, lhe passavam um documen-
to para sua salvaguarda, no caso da Europa o ac-
cusar da morte forçada de um companheiro do ci-
tado europeu, e isto porque o sobredito Musiri assim
o rogára, seriam os primeiros a apoiar dentro do seu
paiz o movimento em questão, pela mais energica das
propagandas.
Infelizmente resta-lhes só o lamentar o rumo que
as cousas tomaram, e fazer um smcero voto para que,
com o aniquilamento do vigesimo milhão, não vacille a
coragem d'aquelles ainda em desembolso; e este voto,
que de certo não quadrará de geito aos olhos de mui-
tos, pelo espirito que anima as vistas desta nação de
esclavagistas, a primeira a iniciar o nefando trafico, e a
O Congo | 57
ultima a acabal-o, na phrase, meptamente calumniosa,
de um dos agentes da Internacional, potencia cujos
subditos em Africa ligados por laços de sangue á afri-
cana gente, se não pejam de sentar pretos e pardos à
sua mesa logo que d'isso sejam dignos; este voto, re-
petimos, fica aqui registado com a mais mteira sin-
ceridade.
Antes de partir para o sul, porém, permitti ainda
duas palavras, leitor, no mteresse da vulgarisação so-
“bre o vasto paiz que este rio banha, palavras que vos
farão comprehender quão justo é o resentimento dos
portuguezes em face do proceder ultimamente havido
com elles, e quão numerosos foram os trabalhos e as
convulsões por que passou o nosso dominio e politica
ali.
HISTORIA POLITICA DO CONGO
Deux choses sont à remarquer: la premitre c'est
que depuis 1512 le roi du Congo est le vassal du Por-
tugal; la seconde, qu'au temps de Pétablissement des
portugais au Congo et à Angola le premier royaume
s'étandait beaucoup plus au S. e à VE.
Lucraxo CorDEIRO, L'hydrographie africaine.
A importancia e extensão do estado do Congo era
tal, ao tempo da chegada dos portuguezes ali, as lu-
ctas com os povos circumvizinhos, a suecessão repe-
tida dos seus monarchas e as estreitas relações com
Portugal tão frisantes ao depois, que entendemos não
deixar fugm este ensejo, sem com dois traços darmos
uma idéa da sua historia politica.
Sabido é que Diogo Cam, encarregado por carta
regia de 14 de abril de 1484 de descobrir novos terri-
torios na costa, entrou no Zaire e ahi estabeleceu um
padrão na ponta sul da foz do rio, que denominou
de S. Jorge, como marca ou signal de haver tomado
posse d'aquellas terras em nome do seu rei.
O navegador portuguez estabeleceu logo relações
com o rei do Sonho (tio do Muene), as quaes com
o decorrer do tempo se estenderam ao Muene Congo,
40 De Angola á contra-costa
senhor do estado, conhecido tambem pelo nome de
Manicongo:; poderoso potentado que dominava dire-
ctamente ou por suzerania sobre um vastissimo impe-
rio, que constava ir desde o Loango até ao Cabo Ne-
gro pelo litoral, e, comprehendendo ao nordeste o
Macoco ou ÂAnzicana, se estendia até ao Muene Muezi,
no Uniamezi!
Diz-nos Duarte Lopes, que esse importante monar-
cha reunia ao titulo de rei do Congo o de senhor dos
ambundos, da Matamba, da Quissama, de Angola e do
Cacongo, sem contar os sete remos de Congere-Amu-
lalla, o dos ban-guelungos, o senhorio do rio Zaire,
dos anzicos e o do Loango!
Dapper, geographo hollandez, e o seu traductor
Ogilby, tambem de seus titulos nos fallam, e se em
verdade omittem alguns, trazem a lume outros novos.
“Assim dizem que ao de senhor do Congo, juntava o
de Angola, Macomba, Ocanga, Cumba, Lula, Zenza,
bem como o senhorio dos ducados de Batta, Sunda,
Bamba, Ambuilla e territorios dependentes, e ainda
aquelle dos condados do Songo, Angoy, Cacongo, da,
monarchia dos ambundos e do grande e maravilhoso
rio Zaire *. |
Em todos os casos, bastam as singelas enumerações
precedentes para darem uma idéa do poderio dos mo-
narchas do Congo ao tempo; esses descendentes de
1 E de todo o ponto acceitavel, que aos historiadores portuguezes seja
devida a designação ducado e condado, applicada à zona territorial que
tinha sem duvida nome especial, como tambem é para notar que, esten-.
dendo-se os estados do Congo até ao Uniamezi, não figure entre os titulos
a zona ou terra do interior encravada no curso do rio.
Historia politica do Congo 41
Luquem, ou Nimia-Luqueni, que, tendo vindo, con-
forme parece, do oriente, mvestiram com as terras de
que tratâmos, e desbaratando os tchenus ou ba-tchenu,
seus habitadores, avassallaram os grupos dispersos,
fundando o estado do Congo.
Mas volvâmos ao assumpto que nos interessa. À
primeira expedição portugueza dirigida ao Zaire saíu
do porto de Lisboa a 19 de dezembro de 1490. Ex-
pressamente enviada pelo governo da metropole para
explorar aquellas regiões, partiu, commandada por
Gonçalo de Sousa, que, morrendo em viagem, legou
a sua direcção a Ruy de Sousa, seu irmão, e era com-
posta de missionarios, operarios e colonos, que espe-
ravam levar a luz e a arte áquellas terras.
Um mez depois de ali chegar, a expedição entrava
na Banza Real (hoje S. Salvador), cedendo ás instan-
cias do mesmo Muene Congo, que dizia querer imi-
ciar-se na religião dos brancos, estreitar assim a sua
amisade e estabelecer relações commerciaes com elles.
Reimava então Nguiga-o-cúum, a quem Ruy de Sousa
auxiliou n'uma expedição contra os povos que se ti-
nham revoltado no Alto Zaire, conhecidos por munda-
quetes ou anzicos, no mtuito de os submetter á vassal-
lagem. É desta epocha que data o descobrimento dos
povos do Macoco, descriptos em 1505 por Duarte
Pacheco, e mais largamente depois por Duarte Lopes
(BRelatione del reame di Congo, Roma; 1591).
Estabelecida a amisade com os portuguezes, foi Jovi,
em 1493, o primeiro dos monarchas do Congo que
ao rei de Portugal prestou vassallagem, enviando para
esse im a D. João IL o seu embaixador Pero Mani-
42 | De Angola á contra-costa
congo, que tempos depois volveu ao imperio acompa-
nhado do residente portuguez João Soares.
— “Fomou então o monareha africano o nome de João,
e sua mulher Mani Mombada o de Leonor, em honra
dos lusitanos reis.
Vacillou mais tarde a fé religiosa deste principe,
e, esquecendo os sabios principios da doutrima christã,
entregou-se de novo ao grosseiro fetichismo, commet-
tendo barbaridades só proprias de selvagem.
Affonso T (Mani Sundi), ou melhor N'pamba-cá-
N'Ginga, que lhe succedeu em 1509, foi um dos pri-
meiros principes firmes na fé, e desviando-se do
trilho do seu antecessor, manifestou em carta que
escreveu a el-rei de Portugal em 1512, por via de
seu embaixador Rodrigo Zacuteu, o desejo de conti-
nuar sendo seu fiel vassallo.
N'ella accentuava o reconhecimento pelo auxiho
que lhe fôra prestado na guerra que teve com seu
mrmão Mani Pango ou Pansa Aquitimo, que indo sub-
metter os muzumbis!, com elles se alliára por occasião
de o elegerem, vindo atacar S. Salvador com cem mil
pretos. io
Era tal a amisade e consideração que pelos por-
tuguezes tinha este principe, que, partindo para fazer
a guerra aos ambundos sublevados no sul, deixou por
capitiio no Congo, com todo o seu poder, Alvaro Lopes,
feitor do rei de Portugal, como elle mesmo D. Affonso
communicou em carta datada de 4 de março de 1516.
1 Muzumbo significa homem branco na lingua bunda, não sendo por
isso facil comprehender tal indicação.
Historia politica do Congo 43
-
Foi um verdadeiro apostolo da fé n'aquellas terras
este principe, cujo zélo o levou a dirigir-se ao papa
Paulo III, rogando-lhe enviasse para o seu estado
missionarios, de que lá muito carecia. No reinado delle
edificaram-se as igrejas de S. Salvador, Nossa Senhora,
do Soccorro e de S. Thiago, termmando por enviar
seu filho primogenito para Lisboa, a quem desejava
proporcionar uma educação christã, e á altura da po-
sição que lhe estava destmada no paiz natal.
Este, que em 1521 o substituu no throno, tomando
o nome de D. Pedro I, imitou o zêlo e piedade do
pae.
Seu irmão, D. Francisco, succedeu-lhe em 1530,
não esquecendo o justo proceder do predecessor. In-
felizmente só cingiu a corôa por dois annos, legando-a
por sua morte a um primo D. Diogo.
O fervor religioso não abrandava então, e indo
Mérolla nos conta, foram tres dominicanos os primei-
ros missionarios que Portugal enviou áquellas terras;
tres martyres que breve succumbiram, dois sob a
acção do clima, e o terceiro assassinado pelos jaggas,
capitaneados por Zimbo. Logo depois conduziu Diogo
Cam, em sua terceira viagem, doze franciscanos para
aquellas desconhecidas paragens, sendo por esta epo-
cha, a 3 de outubro de 1534, creado o bispado de
S. Thomé e Congo.
D. Diogo tornou-se notavel por grande coragem,
prudencia, espirito liberal e fervoroso zêlo pelo chris-
tianismo. Em poucos annos o genio militar levou-o á
conquista de paizes vizinhos, e, alargando os seus es-
tados, distinguiu-se sempre por sua affeição aos por-
44 De Angola á contra-costa
tuguezes, de quem adoptára os costumes, abandonan-
do os habitos indigenas.
À sua magnificencia excedia tudo quanto até ali se
tinha visto, manifestando-se, quer na ornamentação do
seu palacio, quer no modo de trajar. Uma fazenda
boa nunca lhe parecia cara, pois as cousas raras, di-
z1a elle, devem encontrar-se nas mãos dos reis.
Levára o requinte do luxo a usar apenas uma ou
duas vezes o mesmo traje, offerecendo-o depois à gente
do seu sequito. Às tapeçarias, os brocados de oiro, de
seda e as fazendas mais ricas do reino começaram no
seu tempo a ter voga na terra do Congo.
Ensanguentou-se então n'esta epocha o solio, pelas
rivalidades que se levantaram entre pretendentes di-
versos, discordias que baniram a dynastia remante e
a raça dos reis do Congo.
Morrêra D. Diogo. Tres foram os individuos que
appareceram pleiteando os seus direitos à corôa; o
primeiro era filho do rei, mas embora destmado a
succeder por direito de nascimento, era em geral tão
detestado, que a morte violenta lhe arrebatou subito
as esperanças.
Os dois outros eram tambem de sangue real, um
porém favorecia-o o povo, emquanto que o outro pro-
tegiam-no os portuguezes e muitos dos poderosos se-
nhores do reino. |
Como os chefes dos dois partidos repellissem qual-
quer tentativa de accordo, pretenderam os do derra-
deiro impor-se ao povo por um attentado, e decidindo
a morte do principe junto do altar, ao assistir á cele-
bração dos officios divinos, ahi o assassinaram. O par-
Historia politica do Congo - 45
tido opposto vingou-o, matando aquelle que os nobres
propunham.
Havendo assim desapparecido os ultimos preten-
dentes ao throno, msurgiu-se o povo contra os por-
tuguezes, a quem attribuiu as desgraças nacionaes,
trucidando muitos destes que ali residiam.
Foi então eleito D. Henrique, tio do rei defunto,
em 1540. Logo depois teve este monarcha de decla-
rar a guerra aos anzicos, deixando regente D. Alvaro.
N'uma batalha foi-lhe a sorte adversa, e, morrendo,
extinguiu-se n'elle a raça dos antigos reis do Congo.
D. Alvaro tinha vinte e seis annos quando foi elevado
ao throno pelo consenso unanime da nação, em 1542.
No seu reinado teve logar um inquerito, com res-
peito ao trafico da escravatura pelo rio Zaire, orde-
nado por Simão da Motta (7 de maio de 1548), caval-
lero da casa de el-rei de Portugal e ouvidor e
provedor com poder de alçada no reino e senhorios
do Congo, que deu como resultado solicitar o Muene,
do monarcha portuguez, que continuasse a manter a
prohibição d'esse trafico nos portos do sul.
Seu successor, D. Alvaro II, teve um remado mfeliz,
por isso que os jaggas, que haviam assolado a maior
parte dos paizes vizinhos, mvadiram o remo pela pro-
vincia de Batta. Não podendo o exercito enviado con-
tra elles suster-lhes o impeto, avançaram acto con-
tínuo sobre a capital. O rei ainda quiz oppor-se-lhes
à testa de algumas tropas, mas, não se suppondo em
força para dar batalha, recolheu precipitadamente 4
capital, passando d'ahi com o clero portuguez e a prm-
cipal nobreza do paiz para uma ilha do Zaire.
46 De Angola á contra-costa
- Os jaggas, a quem Lopes dá tambem o nome de
jndes, habitavam o Monemuji (Uniamezi?) a leste de
Angola, na região dos lagos d'onde sáe o Nilo !.
D. Alvaro Il enviou seu primo, D. Sebastião Al-
vares, a pedir auxilo ao rei de Portugal, o qual lhe
“mandou soccorro por Francisco de Gouveia, que, per-
manecendo por quatro annos no Congo, o restabele-
ceu no throno.
D'este tempo data a cessão feita pelo Muene aos
portuguezes do litoral, desde Pinda até Loanda. Teve
este principe largas relações com os monarchas Jusi-
tanos, enviando cartas ao cardeal D. Henrique, bem
como a D. Filhppe II por varios embaixadores, e nos
ultimos tempos pelo proprio Duarte Lopes, auctor da
relação de Pigafetta.
Foi elle tambem que em 1578 mandou o seu lo-
gar-tenente D. Sebastião, duque de Bamba, acompa-
nhado de cento e vinte portuguezes e eincoenta mil
conguezes, auxiliar a Paulo Dias de Novaes na cele-
bre batalha de Anzelle, bem como em 1583 enviou
numerosos ba-xicongo a Cambambe, com o fim de
coadjuvarem os quinhentos portuguezes que se acha-
vam em defeza d'aquella praça.
1 Battel, na colleeção de Purchas, afirma que os jaggas, com quem
elle serviu dezeseis mezes, e no tempo d'elle assolaram o Congo, tinham
vindo da Serra Leoa. Elles mesmos lhe disseram que os portuguezes
lhes davam o nome de jaggas; mas que entre si se denominavam im-
bangollas. Eram doze mil commandados por Elembe. Parece-nos mais
acceitavel a indicação de Lopes, podendo comtudo admittir-se, sendo tão
numerosas as hordas de jaggas que se espalharam por todo o occidente,
que esta confusão provenha do apparecimento de um troço que, tendo ido
primeiro pelo norte até à Mina, volvesse depois para o sul.
Historia politica do Congo Aq
No reinado d'este monarcha effeituou-se, por bulla
de 20 de maio de 1595, a separação do bispado do
Congo do de S. Thomé, ficando a séde em S. Sal-
vador.
Emfim, fechou este prmcipe o seu remado menos
sympathicamente do que era de esperar dos seus al-
liados, pois, mdo em 1610 Antonio Gonçalves Pitta
tratar com elle da construcção do forte de Pinda, a
fim de sacudir os hollandezes dah, elle, que ao tempo
começára por inclmar-se ao partido destes, procedeu
com evasivas e falsas desculpas, escrevendo ao mesmo
tempo ao Mani Sonho, para que lhe enviasse uma
carta sua ao conde Mauricio de Nassau, carta que
sem duvida não era traçada em nosso interesse.
A D. Alvaro II succedeu seu irmão D. Bernardo,
em 1614. Lavravam então graves discordias entre o
Mani-Bamba e os affeiçoados do rei, o que deu em
resultado, poucos mezes depois de subir ao throno,
ser este principe morto -na ermida de Santo Antonio
pelo proprio duque de Bamba, que collocou em seu
logar a um sobrinho do defunto e filho de D. Alvaro.
Pouco sobrio e assaz turbulento, o novo rei, logo
que assumiu o governo em 1615, com o nome de
D. Alvaro III, começou em disputas com seus vas-
sallos, e em 1619 declarava a guerra ao mesmo Mani-
Bamba D. João da Silva, seu sogro, vindo só a con-
seguir-se a paz, pela sensata intervenção dos padres
Duarte Vaz e Matheus Cardoso.
Dois annos depois desta lucta succumbim, e os reis
que lhe succederam, D. Pedro II (1622), D. Garcia 1
' (1624), D. Ambrozio (1625), D. Alvaro IV (1631),
48 De Angola á contra-costa
e D. Alvaro V (1637), remaram entre todos quinze
annos, não havendo durante todo este tempo facto
digno de noticia, excepto no reinado de D. Ambro-
z1o a transferencia da sé do Congo para Loanda, e
n'aquelle do feroz Alvaro V guerras intestinas que lhe'
mereceram a desgraça de precipital-o do throno ao
tumulo na flor da idade.
Principiára a questão por suspeitas mal fundadas
sobre o duque de Bamba e o marquez de Chiona,
contra os quaes elle levantou um exercito.
Não foi a guerra favoravel ao rei, e desbaratadas
as suas forças, caiu prisioneiro em poder d'elles, que,
em vez de abusarem da victoria, o trataram com a
consideração devida á sua elevada categoria, recon-
duzindo-o á capital, de que lhe fizeram entrega.
Vexado por dever a corôa ea vida a seus vassal-
los, o feroz Alvaro, logo que se viu livre, organisou
novo exercito, e, marchando contra os seus vencedo-
res, foi derrotado e morto.
Com o nome de Alvaro VI foi o Mani-Bamba pro-
clamado rei, e pouco depois morto pelo marquez de
Chiona, seu irmão, que se fez acclamar em 1638 com
o titulo de D. Garcia II. %
Posto que houvesse subido ao throno por um acto.
criminoso, D. Garcia deu a principio grandes espe-
ranças, pela sua capacidade no governo, rigorosa jus-
tiça e fervor religioso. A fatal ambição, porém, tudo
veiu obscurecer, e o malfadado prmecipe, pretendendo
fazer passar a corôa sem eleição, e contra as leis, a
D. Affonso seu filho primogenito, começou a tramar
o exterminio dos principes da familia real, que antes
Historia politica do Congo 49
do duque de Bamba e delle haviam direito ao logar
que elle usurpára.
Perseguindo-os, pois, D. Garcia não poupou ne-
nhum dos desventurados principes que pôde descobrir,
e como os padres catholicos lhe censuraram severa-
mente tal proceder, o selvagem monarcha lançou-se
nos braços dos feiticeiros.
Estes apoiaram D. Garcia, espirito credulo e super-
sticioso, mas conhecendo que D. Affonso, seu filho, por
muito affeiçoado ao christianismo, detestava os ritos
idolatras, começaram a malquistar o pae com o filho,
dando logar este facto a que o primeiro, que tanta
crueldade commettêra por causa do segundo, o accu-
sasse perante os estados reunidos de o ter querido
elle envenenar, declarando-o mdigno do throno, e fa-
zendo coroar em sua presença D. Antonio, seu filho
segundo.
Foi em seu reinado e no anno de 1645 que chega-
ram ao Congo os primeiros capuchinhos italianos, com
bullas de Urbano VIII, remessa que em 1647 se re-
novou com mais quatorze frades desta ordem.
Como muitos dos seus antecessores, D. Garcia era
faustoso, e disso nos falla Dapper ao descrever a ma-
gnificencia da sua côrte, quando recebeu a embai-
xada que os hollandezes lhe enviaram em 1642, de-
pois da tomada de Loanda por Cornelius Cornelison
Jol Houtebeen.
Morto D. Garcia, succedeu-lhe no throno D. Anto-
nio em 1658.
O primeiro acto do seu governo, ao subir ao thro-
no, foi mandar matar o irmão mais velho. D. Garcia
4
50 De Angola á contra-costa
na hora do passamento parece lhe havia recommen-
dado isso muito expressamente, bem como lhe lem-
brára a conveniencia de não poupar nenhum dos prin-
cipes de sangue real; mdicações que elle facilmente
executou, levando o cuidado ao ponto de se desfazer
do irmão mais novo.
A maior parte dos prmeipes que poderam escapar
ao cutello ou punhal de D. Garcia haviam-se refu-
giado no reino de Angola; D. Antonio até ahi se sup-
põe os foi buscar, assassinando todos sem piedade.
Não lhe aproveitavam as constantes admoestações
dos missionarios, para impedirem taes crueldades, e
como novamente fosse por estes censurado, por haver
contrahido um casamento incestuoso, tão indignado
ficou, que retirou todos os bens ao clero, e promul-
gando editos contra a religião, declarou que faria cair
a sua Ira sobre todos os portuguezes.
O seu successor D. Alvaro VII (1662), meitado pe-
los feiticeiros, levantou contra os portuguezes um exer-
cito numeroso, disposto a esmagal-os. N'essa epocha
o absoluto poder que o rei do Congo exercia sobre os
povos vizmhos era tal, que d'elles dispunha a seu
bel-prazer. Ao mmimo signal levantava exercitos in-
numeraveis, pondo-se de subito em campo. Carli e
outros viajantes contam que elle marchou contra os
portuguezes á testa de novecentos mil homens, cifra
estupenda, pouco acceitavel mesmo, a não querermos
suppor que o audaz monarcha se dispunha a conquis-
tar o mundo.
Os seus n'ganga lhe haviam predito a victoria, bem
como uma entrada triumphal em Loanda, capital do
Historia politica do Congo 51
remo que ía mvadir, conduzido pelos principaes se-
nhores portuguezes.
Alvaro, entontecido com similhantes idéas, avançou
sobre Angola em 1663.
Governava então aquelle remo André Vidal de Ne-
greiros, que enviou ao encontro da estranha multidão
Luiz Lopes de Sequeira com duas peças, quatrocen-
tos espmgardeiros portuguezes e quatro mil pretos,
commandados por Manuel Rebello de Brito, Diogo
Rodrigues de Sá e Simão de Matos.
Quando se avistaram os belhgerantes nas terras do
dembo Ambuila, o cauteloso D. Antonio retirou-se
para uma emmencia, a fim de observar a acção.
Travou-se a lucta, e empenhando-se seriamente
n'ella os portuguezes, desbarataram ao cabo de pou-
cas horas as forças do rei negro, caíndo Luiz Lopes
de Sequeira com sua columna sobre a emimencia onde
estava D. Antonio, que pagou com a cabeça a auda-
cia de arremetter com Angola. Essa cabeça foi levada
em triumpho para Loanda, terminando assim a ques-
tão por um desfecho bem differente Vaquelle que lhe
“haviam prophetisado os n'gangas. Carh diz que Se-
queira lhe affirmára que todas as guarnições das ar-
mas e adereços do rei eram de puro oiro batido. Em
acção de graças pela victoria de Ambuilla foi fundada
na capital a igreja da Nazareth.
Assim terminou este infeliz monarcha, a quem o
orgulho e a cegueira fizeram esquecer os favores nu-
merosos recebidos dos seus allados, levando-os contra
vontade a inflingir-lhe um serio castigo.
Succedeu-lhe então Alvaro VII, que, fazendo as
52 De Angola á contra-costa
pazes com o governo de Angola, permittiu que se
procedesse á exploração das suppostas mimas de oiro
do Congo. |
Depois delle, Mérolla falla-nos de D. João Simão
Tamba e de D. Sebastião Grilho, até que em 1671
Luiz Lopes de Sequeira aniquila o poder do ultimo
rei do Congo, D. João Hary.
Em 1680 os portuguezes conquistam o condado
do Sonho, e logo o Mami, despeitado, escreveu ao
nuncio de Bruxellas, para lhe mandar outros missio-
narios em substituição dos capuchinhos, facto a que
este não accedeu, e se lhe enviou em verdade tres
franciscanos, foi isso com a condição de continuar
a obedecer ao superior dos capuchmhos, que era en-
tão o padre Thomaz de Sistula.
Havia no tempo de Mérolla dezoito igrejas no So-
nho, e Dapper diz que o mesmo paiz tinha muitas
escolas, onde os naturaes aprendiam a religião christã
e a ler e escrever o portuguez, facto que, digâmos
aqui, não se limitava só áquelle ponto da costa, pois
em 1684, ao tempo em que era governador Luiz Lobo
da Silva, fundou-se em Loanda um seminario para a
educação dos indigenas.
Em vista dos ultimos successos e da extincção da
dynastia reinante, achava-se o remo do Congo sem
governo autonomo, quando el-rei de Portugal, D. Pe-
dro II, se lembrou de remediar este grave estado de
cousas, ordenando ao governador de Angola, por car-
tas de 17 de março (1690), 29 de abril (1691), e 24
de janeiro (1693) que fizesse proceder a eleição de
novo rel.
Historia politica do Congo 53
Preparou-se tudo, e por carta de 5 de março de 1700
é mandada reunir uma commissão composta dos vul-
tos principaes d'ali, como o conde do Sonho, o duque
de Bamba e o marquez de Pemba, para que, auxiliado
pelo padre Francisco de Pavia, superior dos capuchi-
nhos, procedesse à dita eleição.
Foi indigitado e eleito D. Pedro de Agua Rosada,
que em 1702 recebeu a confirmação do governo de
Portugal. |
Contimuaram os capuchinhos a obra dos seus pre-
decessores no Congo, chegando mesmo em seus tra-
balhos para o sul a fundar em 1708 um hospício
em Loanda. D'ahi para cá, começou de afrouxar o
trabalho dos missionarios por muitas rasões, entre
as quaes figura a extraordimaria mortalidade entre
os padres que se dedicavam a tão nobre fim, de mo-
do que em 20 de março de 1814 D. Garcia V se
queixava a el-rei de Portugal do abandono em que se
encontrava o Congo, solicitando a remessa de novos
missionarios.
Em 1859 dissensões imtestinas attrahem para ali de
novo a attenção do governo portuguez.
Um pretendente á corôa empolga a capital, S. Sal-
vador, fazendo com que o rei legitimo reclame o auxi-
lo de Portugal. O capitão Zacharias da Silva parte
do Bembe e entra em S. Salvador a 25 de junho, ao
mesmo tempo que outras forças, sob.o commando do
capitão de fragata José Baptista de Andrade, coadju-
vado por Theotonio M. Coelho Borges e pelo major
Roberto dos Santos, mvestem com o Bembe. Derro-
tando o inimigo, avançam para o norte e desbara-
54. De Angola á contra-costa
tando o Dongo rebelde na capital, restituem a corôa
ao Muene Totella, D. Pedro V, deixando ahi o major
Ventura José com trezentos homens.
Eis muito summariamente exposta a resenha do
movimento politico no estado do Congo, durante um
lapso de trezentos e setenta annos, em que teve sempre
acção activa Portugal, até ao dia em que, entendendo
de necessidade, para evitar luctas, a annexação a An-
gola, o encorporou em seus dominios.
Decaído do seu velho esplendor, transformado suc-
cessivamente em districto e depois concelho da nossa
provincia africana, esse antigo imperio não conserva
da passada grandeza outros vestigios senão nos tem-
plos, nas ruinas e nos padrões que por todo elle dei-
xaram os portuguezes.
Para aquelles que pelos olhos passarem estas pagi-
nas deve similhante facto impressionar profundamente,
levando-os a considerar como foi possivel apagar-se
da superficie da terra, ou afogar-se no meio das sel-
vas, o potente trabalho de tantas gerações.
Deve ter sido a mcuria governativa, dirão muitos;
o afrouxamento do zêlo religioso, dirão outros; a im-
fluencia nefasta da escravatura, dirão os mais atila-
dos, a causa da desorganisação d'esse estado, que mui
proximo do curso de um grande rio, e portanto em
faceis communicações com a Europa, natural seria
que prosperasse.
Não suppomos ter sido, nem a imcuria, nem o afrou-
xamento, mas sim outro o motivo.
A enxada do progresso não entra com igual facili-
dade em todos as glebas, e assim como o arado do
Historia politica do Congo 55
lavrador em chão batido de argilla e semeado de rocha
o rasga a custo, e partindo-se no choque de encontro
as arestas d'esta, não deixa sulco que abrigue a se-
mente, que então, exposta ás mtemperies, se decompõe
e perde; asssm a energia e os capitaes das nações,
poderosos mstrumentos a empregar na obra da civili-
sação e colonisação do mundo, se embotam e perdem
multas vezes, por não encontrarem meio proprio onde
possam implantar e fazer vmgar essa preciosa semente,
donde brotam as sociedades, o trabalho e o progresso,
e se denomina o colono.
À bacia do Congo parece-nos ser uma d'essas nu-
merosas zonas que se acha no caso citado, e como a
costa da Mina, o ardente Sahara, a terra Caliente do
Mexico e tantas outras, ha de zombar sempre dos esfor-
ços do europeu, e constitumdo, por assim dizer, os der-
radeiros reductos onde a raça negra só poderá vingar
e aquartelar-se, ha de tambem e infelizmente consti-
tuir uma protecção à barbarie, envolvendo-a nas sel-
vas e num meio onde o europeu succumbirá sempre.
Quantas não foram, se compulsarmos a historia, as
tentativas feitas por Portugal para colonisar defimtiva-
mente aquella zona e mtroduzir ali os beneficios da ci-
vilisação, e quantos, se os contarmos, os revezes sof-
fridos? |
' Por centenas foram para ali os missionarios, por de-
zenas as colonias, por duzias se contam as expedições
militares, e, sem embargo, essa nação que de um fo-
lego fez o grande imperio do Brazil, apertada aqui
no ferreo circulo da insalubridade em combate com
o impossivel, viu desfazerem-se em pó todas as suas
56 De Angola á contra-costa
esperanças, derribadas pela mortifera fouce que lhe
ceifava as vidas de quantos filhos lá mandava. É uma
hecatombe a historia d'essas tentativas, a sua enume-
ração uma a uma seria o De profundis entoado em
louvor de victimas, pois outra cousa não ha por ali
a assignalar.
“Attentemos no que se vê hoje, lembremos no meio
da grande labutação que por lá vae (e sem embargo
dos poderosos recursos da sciencia medica moderna),
as numerosas victimas que vão marcando cada passo
do progresso; escutemos os constantes conselhos que
os homens mais conhecedores a todo o momento dão
sobre a hygiene a observar; lembremos as declara-
ções como a de Tisdel sobre a impossibilidade da ma-
nutenção do europeu ali; e quando, reunindo todos
esses factos, os sobraçarmos, abalando para os tem-
pos remotos, veremos que, se hoje a lucta é enorme
e gigante, talvez impossivel, n'aquellas epochas devia
ter ido mais longe, devia ser msupportavel!
Quanto fica dito não é mais do que a expressão da
verdade; o clima é sempre o factor mais valioso, se
não o preponderante no retardamento da obra da ervi-
lisação em todas as terras tropicaes, muito prmeipal-
mente ali; e se os portuguezes que em todo o tempo
se abalançaram ás emprezas mais atrevidas, recua-
ram ou antes não proseguiram no Congo, apesar da
attrahente cobiça de devassar os grandes sertões do
norte, é porque alguma causa fóra do commum os im-
pediu, e essa causa de certo foi o clima.
Saneêmos o Congo, se tal empreza é praticavel, e
então ver-se-ha para ali correr a torrente colonisado-
Historia politica do Congo Dl
ra; nas circumstancias actuaes digamos outra vez com
Tisdel: «Um preto com certa mstruceção e medioere
conhecimento da lingua fioti, póde fazer entre os natu-
raes o que o branco nunca fará»; acrescentando de
nossa casa: «e esse preto, que nós prepararemos nos
logares salubres, será o unico colono capaz de ada-
ptar-se n'aquelle ponto, o unico capaz de ter predo-
minio no Congo».
CEEE
NA COSTA OESTE
Em Angola— Aspecto do cordão litoral e sua vegetação — Terras
do interior — Entre Cuanza e Bengo, quadro triste— Problemas que nos
propunhamos — Material e pessoal — Considerações — Artigos da expedi-
ção— Francisco Ferreira do Amaral — Uma noticia historica— Salvador
Correia e a conquista de Loanda — Fortalezas e edificios publicos — Os
jardins, os muceques, a vegetação, a salubridade e a ilha — Os muxi-loan-
das e a sua opinião aristocratica — Rendimentos e governo —"Tribunaes
judiciaes— Considerações sobre os deportados e colonias penaes.
ga
S A zona htoral
— das possessões
portuguezas na
costa oeste tem
um aspecto uni-
“forme e n'alguns
pontos arido, que
- contrasta com as
“terras do norte
debaixo do equa-
dor.
ce O viajante por
“* toda a parte vê
o um longo cordão
e ramjadio mina ou
n'outro ponto por pequenas bahias areosas, ao fundo
das quaes a mancha escura do mangue verde accusa
Pci q
a existencia de agua, e extensas barreiras aprumadas
62 De Angola á contra-costa
e vermelhas entreligam, projectando-se sobre um fun-
do longinquo de morros e serras elevadas. À vegeta-
ção, de triste aspecto em geral, accentua-se pelo bao-
bab, esse gigantesco vegetal, cujos troncos medem ás
vezes 20 e 30 metros de circumferencia, por euphor-
bias como a cassoneira, outra à similhança de um can-
delabro, e que é suppomos a Huphorbia hermentiana (?),
algumas Hyphocnes, legummosas rasteiras, bosques de
jasmimeiros, aloes e sycomoros.
Junto ao mar, nas praias, arrastam-se tristes Con-
volvulus, a fava do Calabar, etc.
No sul e nos areiaes safaros a Welwitschia mirabilis
e ennegrecidas Baulumas caracterisam a flora.
Logo para o interior o paiz é frequentemente park-
lhe, e a scena a 8 ou 10 milhas do mar modifica-se
para dar logar a pittorescos golpes de vista, por meio
de verdes campinas, onde avermelhados Convolvuli,
amarellas Orchideas e brancos Commeleynce rivalisam
de brilho, atapetando o terra d'onde emergem Erythe-
rinas de flores rutilantes e mais avultados exemplares
do remo vegetal.
A disposição, de mais em mais elevada, das terras
opéra notaveis mudanças na vegetação, e ao quadro
que acabâmos de descrever succede-se, 4 medida que
vamos para o interior, outro de mais risonho aspecto,
pelas arvores gigantes que tudo cobrem com a sua fo-
lhagem, elevadas gramineas e numerosas palmeiras
oleosas.
No parallelo de Loanda as grandes florestas appro-
ximam-se muito do litoral, vendo-se em Cazengo e Go-
lungo os mais formidaveis exemplares africanos.
Na costa oeste 63
Junto ao mar, emfim, e entre os rios Bengo e Quan-
za, é triste o quadro que se revela na nudez das bar-
reiras avermelhadas do Cacuaco, Dande, ete., e nas
ondulações interiores de Caculo-Cassongo e outros
pontos, como adiante veremos.
Foi em março de 1884 que ahi começou os seus
trabalhos a nossa expedição, esperançada em resolver
rarios problemas, nos quaes figurava o de encontrar
um caminho commercial entre as provincias portu-
guezas de Angola e Moçambique; mquirir nas regiões
centraes as relações das bacias hydrographicas do
Zaire e Zambeze; e atravessar emfim pelo meiô as
zonas branqueadas que na carta existiam, taes como
a terra ao oeste do valle de Barotze, aquella que se
estira para o nordeste do Cabompo até à região dos
lagos, e emfim toda a que do sul do Bangueolo vae
“até ao Zambeze.
Ligavam-se a este triplo problema outros de im-
portancia secundaria, que deixavamos ao acaso o cui-
dado de nos fazer conhecidos; mas o nosso plano era
principalmente estudar e esclarecer em definitivo toda
a zona central da nossa provincia angolo-moçambi-
cana, calculando até que ponto os ferteis sertões que
a constituem poderiam encontrar no Zambeze uma
saída para os seus productos.
Como facilmente se póde deprehender, tão grave
assumpto representava para os nossos Interesses uma
questão de summa importancia, e carecia de attento
estudo, bem como reclamava uma apropriada escolha
de itmerario, que melhor podesse decidir em materia
de aproveitamento.
64 De Angola á contra-costa
,
Escusado é acrescentar que não foi sem séria he-
sitação que tomámos sobre os hombros esta empreza
que tão longe nos iria arrastar pelos matos; rude ta-
refa, quiçá um pouco superior aos recursos de que dis-
punhamos, apesar de ter o governo de Sua Magestade
ordenado que se nos entregasse tudo quanto para tal
fim requisitassemos.
Contando porém com os conhecimentos na primeira
viagem adquiridos, preparámo-nos como podémos,
não devendo por isso causar estranheza o modo por
que a ageitámos, e sobretudo a exiguidade dos ar-
tigos de que nos fornecemos, factos sobre que vamos
dizer duas palavras.
Devia contar o nosso pessoal o limitado numero de
cento vinte e quatro pessoas, numero sem duvida res-
tricto, mas que não convinha exceder, embora grande
fosse o commettimento.
À pratica que temos do sertão ha muito nos evi-
denciou que, quanto mais numerosa é a caravana,
maiores são os embaraços e mais graves as complica-
ções que por toda a parte se lhe deparam; bem como
é obvio que, para maior numero de cargas, mais cres-
cido deve ser o numero de carregadores, e que, em
igualdade de circumstancias, tudo quanto excede uma
centena de homens vae muito alem das necessidades
de uma viagem ao mato, excedendo sobretudo em
muito a cifra para que em geral se podem encontrar
recursos ah.
Não é só sob este ponto de vista que deve encarar-
se a organisação de uma comitiva preparada para lon-
gos emprehendimentos, bem o sabemos; da sua segu-
Na costa oeste 65
rança atravez dos bosques africanos póde depender o
exito dos trabalhos a executar, segurança que princi-
palmente se baseia no numero, e deste é consequencia
tambem a maior ou menor somma de confortos de que
precisa cercar-se o europeu quando percorre aquellas
regiões. |
Como, porém, a gente deve habituar-se um pouco a
andar á mercê da sua boa estrella, e convencer-se de
que n'este mundo nada resiste a uma força de vontade
determinada, e que o principal é ter saude, lançámos
de banda receios, prescindindo de tudo que podesse
embaraçar a nossa marcha, circumstancia da qual de-
pendia, a nosso ver, o problema que nos propunhamos.
Considerando isto, em logar de uma centena de far-
dos de fazenda, dispozemos e organisámos vinte e sete
de algodão e riscado; em vez de uma profusão de
cargas de missanga, sómente uma duzia de saccos de
cincoenta libras; para miudezas, instrumentos e raros
presentes tres caixas; quatro ditas para o que cha-
mavamos rancho, isto é, chá, café, sal, assucar e adu-
bos ou temperos; e, finalmente, uma para artigos de
mesa !. |
Duas grandes canoas, uma pharmacia, seis cunhe-
tes de cartuchame Snider e dois de nossas armas, duas
tendas, um fardo de arame de latão, dois saccos de
lona pintada, contendo fatos de flanella, e uma mu-
hamba com artigos de cozinha, compunham por assim
dizer todo o material da expedição.
1 As caixas eram forradas e de dimensões proprias a poderem ser
conduzidas ao hombro.
5
66 De Angola á contra-costa
Ageitado este, ficava a parte mais aborrecida é en-
fadonha; a do engajamento do pessoal, tarefa sempre
cheia de decepções e duro soffrer para quem a sorte
aprouve lançar em taes commettimentos, e a que só
paciencia de aço e desusada pertimacia, envelhecida
no seu conhecimento, póde fazer frente.
Que o digam aquelles que, como nós, ali têem tra-
balhado, se alguma cousa ha que desafie ao desespero,
como essas scenas repetidas de fugas, enganos e per-
fidias que acompanham sempre os preliminares de
uma expedição africana.
Nenhum explorador pôde isentar-se d'elles, nem um
só deixou de relatar as angustias desses primeiros dias
de mato, da desesperação causada pelas fugas, receios
e conhuios de carregadores e chefes, sem exprimir pro-
funda tristeza. |
Entretanto, nada aproveitam as suas sentidas des-
cripções e os seus numerosos esclarecimentos; aquelle
que infelizmente lá volte, tem de passar pelos mes-
mos dissabores, ficando-lhe sómente dos camaradas a
recordação de os haver tido por companheiros no sof-
irer,
Felizmente para nós, deu-se uma circumstancia que
minorou todos estes obstaculos, a qual de bom grado
aqui registâmos, como tributo de serio reconhecimento
ao homem que em Angola nos dispensou a mais apre-
ciavel protecção.
Achava-se à testa do governo da provincia Fran-
cisco Ferreira do Amaral, um dos mais sympathicos
officiaes da marinha real portugueza, e foi elle que, por
habituado ás lides africanas e de imtelligencia a com-
Na costa oeste 61
prehender estes obstaculos, nos aplanou com o seu
auxilio e conselho bastantes dificuldades. Tudo se fez
com ordem e por maneira tal, que nos primeiros dias
de março íamos a caminho de Mossamedes, onde uma
corveta de guerra nos devia receber e transportar,
acto contínuo, a Porto Pinda, ponto indicado como
inicio para a partida.
Alegres e contentes se achavam prestes a largar
Loanda cento e duas pessoas do Celli, da Quisanga,
de Novo Redondo e do Nano, que fam encontrar com-
panheiros em Benguella, e satisfeitos nós tambem de-
sejariamos abalar; não o faremos, todavia, sem dizer
duas palavras ácerca da posição geographica, aspecto
e importancia da primeira cidade da provincia de
Angola e séde do seu governo. |
Com grande receio vamos lançar-nos ainda nos
domimios da historia, pois tememos que por abuso
d'ella se melindre a benevolencia do leitor; mas se na
verdade é aborrecivel relembrar factos e datas que
pela maior parte deviam existir na memoria de todos,
nada ha tão agradavel como restabelecel-os.
Acontece que, se de muitos é conhecida a historia
e seus geraes detalhes com referencia às nossas pos-
sessões mais Importantes, outros parecem completa-
mente 1gnoral-os, e não figuram pelo menor numero
os estrangeiros, que de resto, tendo estado n'ellas, as
amesquinham e deturpam nos seus escriptos, espa-
lhados com profusão, produzindo nos espiritos idéas
erroneas a nosso respeito!
Está n'este caso a nossa cidade de Loanda, capital
da provincia, que, por desleixo imcomprehensivel de
68 De Angola á contra-costa
um eseriptor, se não por má fé, amda ha bem pouco
foi alvo de uma injustissima descripção feita em volu-
moso livro, que a arrastava pelo nivel da mais sordida
das senzalas.
Urge pois, sem pretender eleval-a, dar á sobredita
descripção, em uma singela noticia, o cunho verda-
deiro de que carece. |
A historia da conquista de Angola e fundação de
Loanda seria longa tarefa, que os limites impostos a
este capitulo não permittem. Afastando-nos pois da
narrativa das nossas descobertas na costa, e da expo-
sição minuciosa dos trabalhos ali operados por Paulo
Dias de Novaes, seu primeiro governador, tão distincto
diplomata quanto intelligente general, assignemos a
primeira data notavel.
E a de 1641, anno da conquista de Loanda pelos
hollandezes, que asssm se achavam dominando na
Africa occidental, depois de possurem uma grande
parte do Brazil.
Salvador Correia de Sá Benevides, que partira de
Portugal com uma frota para limpar as costas da
America do sul, aportando ali pouco depois, trava
lucta, e batendo os hollandezes no Recife e logo na
Bahia, prosegue para leste, incumbido pelo monarcha
D. João IV de ergir uma fortaleza na feitoria e porto
de Quicombo, se infelizmente não podesse tomar posse
de Loanda. |
Foi a 12 de março de 1648 que elle, capitaneando
a referida frota, composta de quinze navios, quatro
dos quaes adquirira e equipára á sua propria custa,
soltou véla do Rio de Janeiro.
Na costa oeste 69
Chegado a Quicombo em agosto com cerca de no-
vecentos homens, Salvador Correia reuniu acto conti-
nuo conselho de officiaes, e explicando-lhes a necessi-
dade de livrar a villa mterior de Massangano das mãos
E. vaN MUY DEN. a
RAPARIGA CELLI
Tirado de uma photographia
dos mimigos, convidou-os a que o acompanhassem na
empreza. Com tanta arte soube actuar no coração dos
audazes companheiros, por tal modo lhes fallou nas
esperanças da patria, na grandiosidade dos feitos de
outrora, e na honra e gloria que os esperava, que,
70 De Angola á contra-costa
concluido o conselho, tudo se dispoz da melhor von-
tade para a partida.
Sendo mdubitavelmente a cidade de Loanda chave
da conquista, para ali se fez a esquadra de véla, e em
12 de agosto surgia no seu porto. :
Não se demorou Salvador Correia com planos e
delongas, e enviando um official a terra, imtimou a
guarnição da fortaleza a que se rendesse, conceden- .
do-lhe dois dias para dar resposta.
Ao cabo de quarenta e oito horas, como se recu-
sassem os hollandezes a responder, fez um tiro o na-
vio chefe, desembarcando da esquadra toda a força
disponivel.
À principio quizeram os mdigenas oppor tenaz re-
sistencia, mas vendo o numero dos nossos fugiram
aterrados, ao passo que Salvador Correia, rompendo
com a sua artilheria um vivo fogo, dava no dia 15
assalto geral 4 fortaleza.
“Abandonados pelos naturaes seus alliados, começa-
ram os hollandezes de se arreceiar, até que pela tarde
d'esse dia propozeram a capitulação, que foi pelo ge-
neral immediatamente acceita.
Entregando assim as armas, saíram ao todo mil e
quatrocentos mdividuos, segundo parece, dos quaes
trezentos andavam juntos 4 rainha Ginga, e, sendo
mettidos em tres navios, foram enviados sem demora
para a Europa. |
No curto espaço de dois dias, pois, e impellidos pelo
genio de Salvador Correia, conquistaram os portu-
guezes de novo a capital da sua provincia, que sete
annos estivera na posse dos hollandezes.
Na costa oeste TO
E na latitude 8º.47' sul e longitude 13º.7'.80” oeste
de Greenwich ao fundo de formosa bahia, que está
edificada a cidade de Loanda; dividida em dois bairros
distmctos, respectivamente denominados alto e baixo;
sendo o primeiro o bairro elegante e onde se acham
os edificios mais importantes, e o segundo aquelle
propriamente commercial,
Defendem-na ao presente quatro fortalezas, que
se denominam S. Miguel, S. Francisco do Penedo,
S. Pedro do Morro de Cassamdama e Nossa Senhora
da Conceição.
À primeira, construida pelo systema Vauban, com
a fórma de um polygono irregular, adaptada á con-
figuração do morro de S. Miguel, é de todas a mais
importante. bra
Começada em 1638 pelo governador Francisco de
Vasconcellos da Cunha, foi concluida em 1689 por
D. João de Lencastre, juntando-lhe em 1770 o go
vernador D. Francisco de Sousa Coutinho a bateria,
que aimda hoje se conhece pela do Cavaleiro, com
dezeseis peças.
Para o lado do mar uma cortina com quatorze fa-
ces póde montar setenta e oito bôcas de fogo, sem
contar uma pequena bateria de seis peças, ao passo
que pelo lado da terra dois valentes baluartes, com
dez canhões cada um, cruzam os sens fogos com a
bateria do Cavalleiro. |
1 Na ponta norte da ilha existiu em outro tempo, no começo do seculo
xvirr, O forte de Nossa Senhora da Flor da Rosa, de que hoje resta ape-
nas a memoria, e na barra de Corimba o forte de S. Fernando.
12 De Angola á contra-costa
No seu vasto recinto ha residencia para o governa-
dor, quarteis, paioes, e cisternas para mais de mil e
quinhentas pipas de agua, como tambem capella, pri-
sões, etc.
Foi aqui que em 15 de agosto de 1648, sete an-
nos depois de terem conquistado a cidade, como dis-
semos, os hollandezes capitularam.
Vem em segundo logar a do Penedo, systema Vau-
ban, cujos fundamentos foram lançados em 1687 pelo
governador Luiz Lobo da Silva, e que D. Francisco
de Sousa Coutinho completou em 1765, unindo uma
rocha isolada no mar às penedias da terra firme, no
curto espaço de dezoito mezes.
Tem a bateria superior vinte e quatro peças, e a
inferior trmta e sete d'estas machmas de guerra, fa-
zendo com que o forte domine por completo a entrada
do porto, bem como o caminho do Cacuáco para Loan-
da. No seu paiol armazenam-se 128:000 libras de pol-
vora.
Successivamente encontra-se o forte de S. Pedro,
obra do governador D. Antonio Alvares da Cunha,
que o começou em 1703, acabando em 1705. Para o
lado do mar duas baterias se sobrepõem, a de cima
com dez bôcas de fogo e a de baixo oito, ao mesmo
tempo que dois baluartes, cada um tendo nove peças,
a defendem dos ataques de terra.
O governador possue ahi residencia, bem como
quarteis, depositos e cisterna para cincoenta pipas de
agua.
Emfim, tem a de Nossa Senhora da Conceição, de
menos importancia, com quatro bôcas de fogo.
Na costa oeste io
Loanda é uma cidade ampla, limpa e pittoresca.
Graciosamente reclinada na encosta das terras que
miram ao noroeste, ostenta, quando vista do lado do
mar, o aspecto de uma cidade europêa, com os seus
renques de asseiadas e bem dispostas casarias, que,
HOMEM DO NAXO
Segundo uma photographia
sobrepondo-se garridas umas ás outras, se ligam por
extensas calçadas.
Possue muitos edificios e seria longo aqui enumerar
todos. Citaremos, entre os principaes, o hospital perto
de Ponta Negra, verdadeiro sanatorium, que não tem
igual em Africa; o palacio do governador, obra im-
14 De Angola á contra-costa
portante; o palacio do bispo, a escola de artes e offi-
cios, o tribunal da relação, a casa da camara, a alfan-
dega, officmas de fundição, etc., sem contar muitos
templos e grande numero de edificios particulares.
Existem varios jardins. publicos, entre os quaes
figura o da Ponta de Izabel, com quinhentas arvores
de fructo, dividido em cmco avenidas, de que a cen-
tral tem nove terraços com uma pyramide em cada
extremidade, cortando direita por um lado á casa de
recreio do governador, construida em 1817 pelo vice-
almirante Mota Feo, e à igreja da Nazareth; o jardim
do largo de Salvador Correia, etc.
Nas terras altas, que pelo nordeste a dommam,
são numerosas as casas de campo denomimadas muce-
ques, onde os abastados de Loanda passam em ocios
os seus dias de ferias.
A cidade alta é imdubitavelmente considerada a
mais saudavel, e onde reside uma grande parte da
população branca.
À vegetação é constituida em geral por euphorbias,
bao-babs e aloes.
Completamente livre de pantanos, que tanto' con-
correm, como é sabido, para a msalubridade de qual-
quer região, Loanda soffre um pouco de falta de agua,
problema que não seria difhicil resolver, e está mesmo
em via de solução, fazendo-se o seu abastecimento de
agua do rio Bengo.
As ruas são bem calçadas, mas depois de termina-
rem as chuvas é necessario desobstruil-as das areias
que se accumulam, em consequencia da desaggrega-
ção, nas encostas das terras altas.
Na costa oeste 75
Dá este facto logar a que o recemchegado n'aquella
epocha supponha não calçada a cidade baixa, sendo
este um defeito irremediavel até agora.
Fronteira á cidade está a ilha, especie de quebra-
mar de areia, que, estirando-se do sul ao norte, abriga
dos movimentos do oceano o porto interior, que se
póde considerar um verdadeiro tanque.
Numerosos coqueiros vestem essa longa facha are-
nosa, outr'ora Importante pela colheita do cauri!. Por
meio do palmar, brancas casas de campo constituem
o recreio de muitos senhores de Loanda, e á sua som-
bra vive uma população de talvez mil e quinhentas
almas, compondo-se a terça parte de pescadores.
Os habitantes da referida ilha são os muxi-loan-
das, aristocraticos e directos descendentes dos mani-
congo (em sua opinião), povos que ali tiveram o seu
ultimo asylo, fazendo de suas pessoas idéa muito h-
sonjeira”.
Em resumo, a capital da provincia de Angola, tem
hoje uma população de dezeseis mil almas, um movi-
mento de importação e exportação de vulto é um ren-
dimento para o thesouro assás consideravel.
A sua força publica monta em caso de guerra a
vinte mil homens, quinze mil dos quaes são de segunda
linha, guerra preta e empacaceiros, e os restantes de
primeira.
1 Cauri, zimbo, buzio. Nº'esta ilha residia, nos tempos da grandeza do
Congo, um logar tenente do rei para apanhar o cauri.
* No tempo de Merola e outros, havia n'esta ilha sete povoações (li-
batas), sendo a principal a do Espirito Santo, com sua capella.
ED E E E RT EN
76 De Angola á contra-costa
À instituição da sua camara municipal data do anno
de 1648, e compõe-se de um presidente e seis mem-
bros gratuitos, percebendo salario apenas o secretario
d'aquelle corpo collectivo.
De longa data desappareceu a escravatura ah, e
quando pelo decreto de 10 de dezembro de 1836 se
prohibiu a entrada nas colonias de todos os escravos
por mar, e em 14 de dezembro de 1854 a sua intro-
ducção pela via terrestre, já na cidade capital da pro-
vincia se não pensava sequer no homem n'estas con-
dições. |
A séde do governo geral é n'esta cidade, e está in-
vestido na pessoa de um governador militar, official
que logra as honras dos antigos capitães generaes,
supremo administrador, que faz todas as nomeações:
civis e militares com a conveniente sancção do gover-
no da metropole, e preside á junta governativa, com-
posta das principaes summidades ecclesiasticas, civis
e militares, assim como sancciona todos os negocios de
fazenda.
Nos tempos da conquista os negocios judiciaes de
Loanda e dos districtos em redor eram dirigidos pelo
ouvidor geral, jurisconsulto para esse ffm nomeado,
com a assistencia de dois magistrados, um em Loanda,
outro em Massangano.
Em todos os presidios a magistratura era investida
nos commandantes militares.
Em 1721 nomeou-se para ali o primeiro juiz de
fóra, e em 1837 foram creadas as comarcas de Angola
e Benguella; hoje são numerosas na provincia e todas
têem seus juizes e delegados.
Na costa oeste Ti
Ha um tribunal judiciario com as varas respectivas
do crime e civel, e uma relação; um procurador regio,
um guarda mór ou ajudante completam o quadro, e
alem destes um curador geral dos indigenas na costa.
Uma das grandes catastrophes que durante annos
victimou a cidade capital de Angola, e quiçá os dis-
trictos do sul, causando-lhe na metropole uma repu-
tação aterradora, foi a proveniente da remessa dos
degradados para ali, facto que, occasionado por sen-
tenças condemnatorias de deportação e degredo, espa-
lhou entre as populações provinciaes de Portugal as
mais negras suspeitas a proposito d'aquella parte da
monarchia. Muitas seriam as mães que consentissem
a emigração de seus filhos para o Brazil, com espe-
ranças no seu bom futuro; mas raro quem, ao ouvir
dizer «o teu filho vae partir para Angola», podesse
conter as lagrimas.
Felizmente as cousas têem mudado com as sabias
medidas do governo; e como em capitulo adiante te-
remos de fallar das zonas saudaveis da nossa colonia
oceidental africana, e do imteresse da sua povoação,
digamos alguma cousa sobre o modo de prover ás
menos salubres.
Se os trabalhos publicos podem nas terras sãs en-
contrar nos agrupamentos de degradados um precioso
recurso para o seu desenvolvimento, não menos apro-
veitam as zonas pouco saudaveis com a applicação re-
grada dos esforços d'estes.
As grandes derrubadas, as multiplices drenagens e
outros elementos de saneamento podiam ter no, traba-
lho do degredado um precioso auxiliar, e não menos
18 | De Angola á contra-costa
ganharia a moral pelo emprego delle n'esta zona, pois
a febre intermittente para o criminoso deve conside-
rar-se a melhor das medidas sanitarias, debaixo deste
ponto de vista.
O criminoso de boa constituição physica é em geral
um ente de imstinctos brutaes, rebelde a quaesquer
sentimentos humanitarios; logo, porém, que a doença
o domina, o seu modo de ver modifica-se e sob a
suave pressão da morbidez o espirito como que se pu-
rifica!
Não é necessario ir longe para encontrar demon-
strações a este facto (aos olhos da philanthropia talvez
condemnavel por monstruoso); está elle no animo de
muitos governadores, cujas opmiões aqui podiamos
facilmente citar, e diz-nol-o, emfim, um celebre via-
jante, que em suas peregrinações passou por Angola,
homem insuspeito, attento o caracter religioso que o
revestia. |
«E um facto notavel, diz elle, que durante a noite
quasi todas as armas de Loanda estão sem perigo nas
mãos de homens enviados para ali por degredo. Mui-
tas são as rasões apresentadas a favor d'este suave
procedimento por parte das auctoridades; mas nenhu-
ma dellas, quando comparada com o que sobre o caso
conhecemos na Austraha, nos parece valiosa. À reli-
gião não eremos que se relacione com a mudança ope-
rada no europeu. O clima provavelmente tem mfluen-
cia em dominar as suas turbulentas disposições; para
os habitantes, etc. Se nós mglezes devemos ter colo-
nias penaes, parece-nos que um serio estudo ácerca
do clima deve ter vantagens na selecção.»
Na costa oeste 19
Isto “dizia um homem tão conhecedor do assumpto
como nós da nossa casa; e isto, repetimos, é um facto
que merece muita attenção, ao qual se não deve jogar
a humanitaria pedrada de assassmar quem possue di-
reito á vida.
Não queremos de certo a morte do degradado, mas
o que desejâmos é aproveitar d'elle o mais possivel, e
concorrer eficazmente para regeneral-o em beneficio
proprio e da patria.
Diminua-se, pois, o tempo do degredo a doze, sete
e cinco annos; revogue-se de uma vez para sempre
a reclusão em masmorras, que é a morte n'aquellas
regiões; organisem-se colonias penaes agricolas em
Ambaca, Malange, Duque, Cassanje e Cuango, e dis-
tribuam-se por ellas os individuos condemnados a de-
gredo que a metropole envia periodicamente para
cumprirem sentença.
Sejam arejadas as residencias, substancial a alimen-
tação, bem distribuido o trabalho. Estradas, edificios,
arroteamentos de terras mandem-se fazer por elles, e
em horas especiaes, das seis ás dez da manhã e das
tres ás seis da tarde. À ninguem se conceda isenção,
excepto no caso de molestia, nem se permitta licença
para afastar-se do recinto da colonia senão após qua-
tro annos de exemplar comportamento.
Prohiba-se toda a especie de transacção monetaria
no primeiro espaço de dois annos, aproveitando inva-
riavelmente os esforços d'essa gente reunida, no bem
da colonia e saneamento da zona. Às febres virão sem
duvida, mas para essas temos o quinino e as imdica-
ções de individuo conhecedor do mester, que só aucto-
ig enem mm e O DO
80 De Angola á contra-costa
risará o regresso à capital dado o caso de perigo de
vida.
Do seu enervante influxo conseguir-se-ha a corres-
pondente depressão de espirito, sendo o primeiro passo
para o saneamento moral, como que o sulco onde se
lança a semente da regeneração, que o trabalho mo-
derado e a fagueira esperança do indulto depois com-
pletam.
E se infelizmente por systema tal não se podérem
obter os desejados fins, legisle-se de modo a crear
mais energicos meios repressivos.
E deixemo-nos de ternuras, repetimos, com a lem-
brança dos effeitos do clima. Não ha motivo plausivel
para nos enternecermos mais por degradados do que
pelos nossos officiaes, membros de magistratura e ou-
tros que por lá andam, e diariamente se empregam no
serviço do seu paiz.
Acima de tudo está o que propomos, sendo questão
secundaria o meio de o conseguir.
“Trata-se de evitar a liberdade contraproducente de
que desfructa o deportado na colonia, liberdade que,
dando largas ao vicio, agerava a desmoralisação, es-
perdiçando homens que aproveitados poderiam pro-
duzir muitissimo; portanto tome-se uma resolução;
e aquella que apresentâmos, modificada ou desenvol-
vida por individuos mais conhecedores do assumpto,
é de todas a que nos parece mais acceitavel.
E uma tentativa, e quando nada mais se consiga,
ter-se-ha ao menos ganho a certeza de que tarde ou
nunca serão colonisaveis as zonas assim trabalhadas
e que o europeu dificilmente ali poderá viver.
Na costa oeste 81
A philanthropia quando vae alem de certos limites
descamba na loucura.
Eis em breves traços um esboço da cidade de Loan-
da, que só aguarda os beneficios da moderna viação
para attmgimr a prosperidade que merece, bem como o
nosso parecer sobre a questão dos deportados; e agora
que o tempo urge, abandonemol-a para, segundo
Atlantico afóra, ir até ao porto de Mossamedes.
ap A DPIRSIE TE > “SN
Cao
PRIMEIROS PASSOS
O companheiro negro e a sua ingratidão — À corveta Rainha de Por-
tugal e a abalada — Porto Pinda— Os areaes e a primeira noite — Ponto
de partida e rasões de sua escolha —O homem põe e Deus dispõe — À
primeira marcha e o aspecto do terreno -— Caracteres geologicos— Os
habitantes do Coróca e o clique dental — Numeração — Dos trajes e mu-
lheres—O adulterio e os funeraes—O boi preto e a circumcisão —Ter-
rores gentilicos— Vegetação do Coróca— Fauna ornithologica — Fuga
de quarenta e dois homens.
» Ps y
um Is
O dia tinha
apenas acla-
reado; os pri-
meiros alvo-
res da manhã,
mvadindo com a
sua luz tenue o es-
paço, começavam de
deixar perceber os contornos da vasta bahia, que em
escuro cordão nos rodeava; as fulgurantes constella-
ções do sul, desvanecendo-se, desappareciam no fun-
do ceruleo, quando nós preoceupados nos erguemos.
86 De Angola á contra-costa
Chegára a hora de partir, hora sempre cheia de cui-
dados para quem se propõe a qualquer empreza arro-
Jada.
O facto de organisar uma expedição africana, e espe-
cialmente o momento da sua partida, embora a muitos
pareçam objectos de pequena monta, estão bem longe
de o ser, repetimol-o mais ama vez.
O companheiro negro, verdadeira gazella voluvel,
espirito irrequieto e vicioso, caracter frouxo e em
extremo timido, dificilmente comprehendendo as ne-
cessarias obrigações a que o liga um contrato, e não
acreditando de modo algum nos altos imteresses de
questões desta ordem, prepara a todo o momento,
com uma inconsciencia, pueril, a sua perda nos mais
smgelos actos.
Nada lhe importa depois de engajado e de recebi-
dos os adiantamentos; o mesmo volumoso material,
cuja organisação auxiliou durante dias, tem para elle
um valor secundario, assim como o interesse e o afan
que os chefes manifestam pelo lote de artigos que cui-
dadosamente prepararam: sendo o seu sonho unico,
feitos os avanços, burlar quem lh'os concedeu, e para
Isso põe em pratica todos os meios imaginaveis!
E nós, que os conhecemos, tremiamos de antemão.
Engajae a vossa gente em toda a costa, e dae-lhe
adiantado quanto exigirem; reuni-os em torno de vós,
dispondo tudo para a partida; na vespera desta abri
tres ou quatro fardos de algodão, e, rasgando à direita
e 4 esquerda, distribui por todos gratuitamente, a fim
de os affeiçoardes e prenderdes 4 vossa pessoa; fazei
mais, chamae os chefes, e presenteae-os com um fato
Primeiros passos 87
completo, dinheiro, etc.; pois bem, no momento de
abalar, desertar-vos-hão em massa metade d'aquelles
a quem generosamente recompensastes!
A imgratidão e a perfidia, essas torpes faculdades
tão communs nas imtelligencias rudimentares, formam
o traço característico do negro.
E não se imagme que jeremiâmos aqui para mais
avultar a nossa obra, ou crearmos maior sympathia a
esta ordem de trabalhos; de modo algum é essa a idéa,
e, sob o ponto de vista da verdade, julgâmo-nos tão
felizes e afoitos como todos os nossos predecessores.
Ouçamos sobre o caso Stanley, a quem no Tanga-
nika fugiram de uma vez meia centena de homens:
«E á infidelidade dos seus carregadores que se de-
vem attribuir os longos rodeios a que Living'stone foi
obrigado em sua ultima viagem. Cameron, por sua
vez, igualmente perdeu um grande numero de homens,
primeiro no Unyaniembê e depois em Udyii. Eu por.
minha parte sabia, pela experiencia adquirida na pri-
meira viagem na África central, que os ba-nguana
aproveitariam todas as occasiões para desertar, espe-
cialmente na vizinhança dos depositos arabes.
«Foi para restrmgmr o numero destas occasiões
que eu deixei o caminho», etc.
Carece assim o explorador de toda a energia e boa
vontade para supportar os primeiros revezes e os fre-
quentes golpes, e se em tirocimio anterior não conse-
gu dominar de algum modo o imdigena nesta qua-
dra dos seus trabalhos, póde convencer-se de que
pouco fará, não lhe sendo tambem possivel a convi-
vencia com elles,
88 De Angola á contra-costa
Preoccupados, como dissemos, e com rasão, ergue-
mo-nos.
Estavamos a bordo da corveta Rainha de Portu-
gal, do commando do capitão tenente Guilherme Au-
gusto de Brito Capello!, que, surta no porto de Mos-
samedes, se aprestava a transportar a expedição por
nós capitaneada para Porto Pmda.
Por cima da tolda, em confuso borbormho, agitam-
se todos os nossos companheiros de côr, ora escan-
carando os ultimos bocejos, ora espreguiçando os
membros envolvidos em pannos multicores, com ar de
despreoccupados, quando o toque da corneta para a
ração da aguardente os arrancou á imconsciente ta-
reta.
Rodando a celha, começavam de aquecer os estoma-
gos, emquanto no navio as cousas se dispunham, e
tão regularmente tudo se fez que, escapando o vapor
pelo tubo da descarga ás emco horas e meia, momen-
tos depois estava a amarra guarmecida ao cabrestan-
te, e, achando-se de seguida postados ao leme e á pru-
mada os marinheiros especiaes desse serviço, subia o
commandante a ponte trimta minutos depois.
Vira; está a pique; arranca; está a olho; engata o
turco, vira ao apparelho; ávante devagar; a estibordo o
leme, foram as phrases que se seguiram no meio do
silencio de uma manobra de bordo; e, n'um volver
de olhos, a elegante corveta, fazendo cabeça para o
mar, seguia donairosa a bahia de Mossamedes afóra,
e dando a popa a essas areias de monotono aspecto,
1 Irmão de um dos auctores d'este livro.
Primeiros passos 89
botava ao susudoeste parallelamente á costa, cujo cor-
dão se distinguia até morrer no sul em ponta avan-
cada.
Uma brisa fagueira soprava no mar, que, plano e
como que ainda adormecido, mal embalava o navio.
E vaM MUYDENM
RAPAZ CORÓCA (de face)
Sequndo photographia
Subimos.
Era a nossa derradeira viagem pelo oceano n'esta
epocha; e, na qualidade de marinheiros, queriamos
desfructar o prazer de nos suppor na ponte, encarre-
gados de um quarto d'alva.
—— fia 12
ia ao
gor De Angola á contra-costa
É que, apesar de tudo, embora seja duro o viver
do homem do mar, mal vae a quem, ao apartar-se por
annos d'aquelles paus ao alto, não sente confranger-
se-lhe o coração.
O navio é tudo para o marmheiro. Nimho, lar, com-
panheiro imseparavel, especie de pedaço solto do paiz
natal; lembra-lhe a todo o momento este, acarician-
do-o com a idéa de que talvez um dia, arrastado nas
azas do vento, para lá o conduza.
Duas longas horas passámos, respirando a largos
tragos as frescas brisas d'esse oceano que por tanto
tempo íamos esquecer, e do qual nunca suspeitâmos
afastar-nos tão contristados, soltando vôos com o pen-
samento. |
Ao cabo despertámos; tam já dobradas duas pon-
tas, e transposta mais uma bahia, Cabo Negro appa-
receu, é logo depois demos vista de Porto Pinda, onde
pelas doze horas e meia surgimos no ancoradouro.
Ão avistar os extensos areiaes que o formam e as
soltas dunas que para o mterior se alongam, sem o
mais singelo signal de vegetação, se exceptuarmos
uma lagoa que escoado o rio ali fica e que grupos de.
Borassus demarcam, pensámos achar-nos abeirados
de um Sahara. Comprimiu-senos o coração à vista
de tanta nudez, e embora habituados ao viver do
mato, um sentimento desagradavel nos dommou, ao
lembrar as fadigas que nos esperavam por meio dºes-
ses arelaes estereis.
Como, porém, não vinhamos a Pimda para fazer a
smgela experiencia de se — sim ou não — nos agra-
dava o panorama que em redor da bahia se desdobra
Primeiros passos oa
nt)
aos olhos do viajante, lançêmos para longe impressões,
e no curto espaço de tres horas mandavamos para a
terra uma centena de homens e todo o material que
nos pertencia.
Estavamos decididamente no Continente Negro, ur-
ora proceder á moda do mato.
Foi o que se fez.
Depois de se construir o acampamento numa emi-
nencia e de nos certificar que na proxima lagoa havia
agua, embora sulphurosa, pozemos tudo em ordem, e
bebendo um copo de vinho á saude de Capello, que
n'esse dia completava o seu quadragesmo terceiro
anno, despedimo-nos dos sympathicos officiaes da cor-
veta, que, voltando para o mundo que pensa, nos Jan-
cavam um ultimo olhar de amigavel interesse.
Entrára a noite, e recolhendo-nos ás pequenas ten-
das fomos buscar-no somno um allívio para as fadigas
do dia, emquanto a corveta, fazendo-se ao rumo do
norte, desapparecia nas brumas escurecidas.
Profundo socego envolvêra o acampamento. Esta
sombria região, destituida de habitadores humanos e
apenas visitada pelos corvos, que com o seu grasnar
quebram pelo dia o encanto do mutismo natural, e de
noite pela hyena e outras feras, cujos habitos se ac-
commodam com a solidão perturbando o silencio, tem
o quer que seja de tetrica e pavorosa. º
Pelo immenso areal atóra nem a brisa encontrava
onde rumorejar, e, fugindo pressurosa em meio das
planuras, ía talvez para as arvores longinquas ciciar
nas ramagens, em pungentes queixumes, a aridez do
deserto!
92 De Angola á contra-costa
E a nossa imaginação, dominada por esta scena, es-
candecida pelos calores do dia e cuidados do ámanhã,
fugia buliçosa ao somno, atirando-nos irrequieta ás
mais estranhas considerações.
Ali estavamos, sós, separados de tudo e todos, es-
tranhos aos ruidos do mundo, para dar começo a uma
empreza, que nmnguem podia dizer onde nos levaria.
Quando, sem querer o pensamento, como que para
nos castigar, fugia até ao Indico, e, perpassando sobre
os vastos territorios africanos, lembrava a sua gran-
deza, as convulsões que lhe atormentam a superficie,
os rIos, os lagos, as luctas emfim que nos esperavam,
nós, erguendo meio corpo na bragata, e mirando tudo
em redor, sentiamos uma especie de desalento, e cal-
culavamos a pequenez das nossas forças.
E que apesar de tudo o homem é um pygmeu, e,
embora saiba que pequenos esforços reunidos podem
produzir uma grande força, amarga-lhe sempre a no-
ção do tempo, aterra-o o convivio d'essa fatal compa-
a Incerteza.
nheira em todas as emprezas
Mas prosigamos no que importa.
Por numerosas rasões haviamos escolhido para pon-
to de partida Pmda, logar meridional da provmcia, e
d'ellas vamos dar aqui rapida idéa.
1.º Sendo de ha muito costume transportar-se a
Benguella todo aquelle que deseja transitar para o
mterior, acontece que as grandes zonas e cammhos
do sul têem sido esquecidos, e os sertões por onde
elles cortam mais ou menos ignorados.
2.º Succedendo, em geral, serem os imdividuos que
o viajante comsigo leva engajados no norte, o facto
Primeiros passos 93
de transportal-os para o sul parece que devia evitar |
deserções. |
3.º A suavidade do clima era uma garantia do suc-
cesso, porque, sendo mais gradual a adaptação do eu-
ropeu, lhe consente ir mais longe sem o castigo da
febre.
RAPAZ CORÓCA (perfil)
Segundo photographia :
4.º Interessando-nos correr diagonalmente o gran-
de districto de Mossamedes, e visitando o Humbe |
conhecer do grau de facilidade do percurso até ao
Zambeze, anda Pinda ou qualquer ponto no sul nos
punha em melhor medida de o fazer.
94 De Angola á contra-costa
5.º Emfim, o reconhecimento do curso do Coróca,
e o acertar se este rio tinha ligação com o Cunene,
como suppunhamos e se verá pela descripção adian-
te, era ammda uma rasão a additar.
Eis o que se acha em nosso diario:
« Muitas imformações nos levam a crer que o ro
“Coróca tem pelo sueste uma communicação com algum
rio, por damba' ou valla, que em outros tempos dava
talvez regular vasão às aguas, e agora se tornou perio-
dica por estar em parte obstruida, só dando passagem
a esta nas cheias exageradas.
«E; se attentarmos em que toda a zona entre a
bahia dos Tigres e o Cunene é constituida por areias
soltas, e que os ventos ali predominantes são do susu-
doeste, facilmente poderemos comprehender que, jun-
tando-se aquellas conduzidas pelo ar ao constante tra-
balho das aguas, conseguiriam ao fim de um tempo
qualquer embaraçar o curso que primitivamente l-
cava o Cunene (?) ao Coróca, fazendo com que este
fosse uma das suas embocaduras. Assim se explica-
riam as extraordmarias cheias do ultimo e a falta de
aguas na barra do primeiro.»
Por todos estes motivos escolhemos Pimda como
ponto inicial da partida, convictos de que ahi, melhor
podendo domimar a gente, e resolver os problemas que
primeiro mteressavam, maior somma de garantia de
exito teriamos para os trabalhos a effectuar-se.
Mas o homem põe e Deus dispõe, diz o popular rtão,
e bem verdadeiro é elle por vezes, pois breve vamos
1 Damba, rio cujo curso se conserva secco na estiagem.
Primeiros passos | 95
ver, como, apesar de toda a doçura e perseverança
empregadas com o fim de persuadir os nossos com-
panheiros a essa submissão que elles desconheciam,
mas fatalmente necessaria; apesar de todo o esforço
para, sem rigor ou prepotencia, tornal-os de selva-
gens em homens, elles, enganando-nos, tudo fam com-
promettendo, como expozemos no começo do presente
capitulo. j
Erguendo-nos com a aurora do dia seguinte, reco-
lhemo-nos com o occaso, despendendo o espaço de
tempo que mediou entre os dois phenomenos, com
uma serie de observações astronomicas, magneticas e
meteorologicas, a que acrescentámos uma excursão
geologico-botanica e um exercicio geral de tiro ao
alvo.
Ão terceiro dia abalámos areiaes afóra, em procura
da fazenda de S. Bento do Sul, e escorrendo em suor
por causa do excessivo calor, ali chegámos ao: anoi-
tecer, depois de percorridas 17 longas milhas, pelo leito
do rio Coróca, n'esta quadra completamente secco.
O aspecto do paiz conservou-se o mesmo. Eis o
que delle podemos dizer: |
Imagme o leitor um vasto terreno pouco alto e for-
mado por soltas e dispersas dunas, tendo pelo norte e
a partir da costa em 10 milhas de extensão, uma fa-
cha arenosa e lisa, que, correndo a leste, constitue o
leito de um rio sem gota de agua; acompanhe a banda
opposta por mais elevado cordão em todo o dito per-
curso, arido e secco como a bacia de que vos fallá-
mos: volva, ao cabo das milhas mdicadas, esta ordem
de cousas ao rumo de sul; pare no fim de 5 ou 6 mi-
Ê
96 De Angola á contra-costa
lhas junto de umas edificações quadrangulares de ado-
be, algumas vermelhas, outras caiadas, assentes como
ao acaso sobre o plano esteril que constitue esta re-
gião, e terá idéa approximada da terra vista por nós
da costa até S. Bento.
Os caracteres geologicos da zona foram ligeiramen-
te estudados. Antigo fundo do mar, esta região, co-
berta por mteiro, emergiu formando a linha litoral.
Tudo mdica ser uma formação terciaria que a des-
coberto se acha na linha da costa n'este parallelo. Á
superficie encontra-se um calcareo silicioso, compacto
e cinzento, cortado de vinculos de quartzo e silex em-
zento atravessado por estes sub-parallelamente, que,
representando certos accidentes do mesmo calcareo, se
acha disperso em calhaus á superficie do solo e numa
altitude de 40 e 50 metros acima do mar.
Este é constituido por grés muito fino argillo-calca-
rifero, de côr amarellada (molassa?) e por um calcareo
argillo-arenoso compacto, enchendo moldes de Car-
dium do typo de Cahians, Brocchi, etc.
Encontra-se um outro duro concrecionado stalacti-
tico, com fragmentos de quartzo e pequenos calhaus
rolados de quartzite avermelhada; para o mterior é
mais amarello e terroso, achando-se empregnado de
crystaes de talcite, onde conchas petrificadas foram
substituídas por esta, e são dos generos Natica, Nassa,
Buceinum ou Eburna e Ostreas, todas de pequena es-
tatura; e mais uma outra recente do genero Achatina;
e eis quanto sobre o caso podemos dizer.
Os habitantes d'esta pobre zona denommam-se,
segundo nos informam, ba-ximba, ba-coróca e ba-
e
Primeiros passos 97
coanhóca, parecendo que estes são descendentes de
cubaes, em outro tempo vindos dos Gambos.
À sua simples mspecção e Imguagem evidenciam
logo estarmos entre gente que proximas relações de
parentesco deve ter com as tribus do sul, isto é, entre
HOMEM CORÓCA (de face)
Segundo photographia
mdividuos d'essa grande familia que alguns auctores
designam genericamente por a-bantu, e que compre-
hende no-sul os dámara e os ovambo; tem perto os
ba-tehuana, e para o oriente o grande grupo ama-zulo
e ama-xoza, assim como a infinidade de tribus do sul
q
98 De Angola á contra-costa
e margens do Zambeze. conhecidas por ba-nhungue
(Tete), ban-sua (Zumbo), ma-bzite (Landim), ba-tonga,
ba-nhiai, ba-zizulo, ba-tóca, ma-chona, ba-senga, ba-
rara, ba-rengue, ma-cololo, ba-rounda, ba-gõa, ete.
Um facto muito digno de notar-se n'estes povos
é o celebrado clique dental, que eivando-lhes a lim-
guagem, estala em todas as suas phrases, fermdo o
ouvido do viajante e levando a crer que, embora não
seja esta uma variante da Imgua nama ou córa dos
habitadores de Namaqua e terras do sul, tem sem em-
bargo muitos termos d'ella. À numeração differe tanto
das Imnguas do norte, que devemos pol-a aqui para dar
uma idéa!.
Smpgelos pastores, raras vezes caçando, fazem con-
stituir a sua fortuna em algumas duzias de cabeças de
gado. Um sordido panno na emta, um bordão ou za-
caia na destra, e um mólho de amuletos, paus e bu-
z1os ao pescoço, juntos a fiadas de missanga, consti-
tuem a suprema distmeção.
A sua pelle é extremamente retinta, untam com
manteiga os cabellos, como os ban-dombe do norte,
amassando-os por maneira que o penteado parece
uma verdadeira cabaça!
As mulheres, em geral, são horrorosas, aggravando
este desfavor da natureza com enfeites de missanga
1 Um (Te'uí). Dois (Tz'ana). Tres (Dato). Quatro (Na). Cinco (Ta-
no). Seis (Tyuinho). Sete (Tz'aio). Oito (Sebereto). Nove (Moia). Dez
(Mola). Onze (Tr'ui-sôfa). Doze (Te'ui-ana). Treze (Datui'a). Quatorze
(Nei'a). Quinze (Tamud'a). Dezeseis (Nemol'a). Dezesete (Tz'ai-nhoba
ou Tuai-nhoba). Dezoito (Tz'ui-munho ou Sebereto). Dezenove (Mola-
moia). Vinte (Tz'ui-mola).
Primeiros passos | 99
em redor do pescoço e rins, o que lhes dá grotesco
aspecto.
Pouca estima parece terem os homens por ellas, ou
melhor estão n'estes mteiramente adormecidos os mais
elementares sentimentos de dignidade, pois conside-
ram o adulterio como um negocio que, se o esposo sus-
peita ou tem provas cabaes, não pensa em castigar,
mas ao contrario faz volver em seu proveito.
Assim, ao ter noticia do facto, é quem primeiro
dá rebate, accusando perante a tribu o individuo que
pretende espoliar, o qual, provando-se o crime, paga
pelo menos um boi.
O curioso, porém, é que a circumstancia de haver
satisfeito esta imposição confere de futuro ao espolia-
do o direito de se mtroduzir em casa da sua adorada
quantas vezes quizer. De maneira que se apontam
esposos, possuindo manadas de gado que as pequeni-
nas faltas das levianas companheiras augmentam dia
a dia, o qual dariam de bom grado para poderem um
momento ter ingresso no proprio domicilio!
Os ba-coróca não sepultam os mortos, contentan-
do-se em lançal-os nos vallados, onde as feras têem
pela noite o cuidado de os fazer desapparecer.
Logo que um infeliz está para morrer prepara-se
tudo na habitação, escolhendo-se dez homens dos mais
poóssantes da tribu, para serem empregados na obra do
seu afastamento. Estes aguardam o instante em que
elle exhale o ultimo suspiro, e quando d'isso se con-
vencem, envolvem-no num. panno, que ajustam e
amarram, pegando-lhe um dos dez, e abalam por
determinado caminho.
100 De Angola á contra-costa
Seguem-no em linha os restantes.
Percorrido um certo espaço de caminho, faz o da
frente signal, e o que se lhe segue approxima-se, re-
cebendo delle o cadaver, e quem se libertou do fardo,
volvendo-lhe as costas, parte a correr desordenada-
mente para a retaguarda, não devendo uma só vez
voltar os olhos!
Por seu turno o segundo, ao cabo de alguns pas-
sos, faz signal ao terceiro, e assim vão successiva-
mente até ao ultimo, que, completo o seu caminho,
Joga á terra o corpo, safando-se!
Quando o defunto é pessoa de consideração, como,
por exemplo, soba, segue-se processo em quasi tudo
analogo, differmdo só na cireumstancia de ser este
envolvido numa pelle de boi preto, morto para a oe-
casião, cuja carne não póde ser comida por pessoa
alguma, devendo por isso lançar-se fóra.
E notavel a coincidencia deste proceder com o que
diz sir J. Lubbock no Homme avant Phistoire, quando
falla do tumulo de Treenhoi, na Jutlandia, e que diz:
«onde o guerreiro, envolvido nos seus pannos, se acha
encerrado n'uma pelle de boi».
Ao inquirirmos por que devia o boi ser preto, res-
ponderam-nos: porque é como o soba; rasão extraordi-
naria que nada explica, e nós julgâmos ser preferido
por se tornar mais facil adquirir para o rebanho bois
d'aquella côr.
Huca ow Suca é tambem designação por elles dada
quando imquiridos de como chamam a Deus. Zuaria,
que era o mu-coróca interrogado, riu-se quando quize-
mos sobre o caso adiantar mais alguma cousa, fazendo
Primeiros passos 101
logo confusão com o sol, demonstrando claramente que
a similhante termo não andava ligada idéa alguma so-
bre o Creador.
Praticam os ba-coróca a cireumcisão, e o que se tor-
na notavel é que a fazem quando já proximos da vi-
HOMEM CORÓCA (perfil)
Segundo photographia
rilidade. Emquanto adolescente conhece-se o não cir-
cumciso por uma facha de cabello no alto da cabeça,
da nuca á testa, sendo o resto rapado, fórma extrava-
gante que só abandonam depois do dia da operação
para deixarem inteira a trunfa, que, mvariavelmente
102 De Angola á contra-costa
untada com a já referida manteiga, umas vezes aper-
tam com estreita correia por cima das orelhas, outras
mettem inteira na pança, limpa e preparada de um
boi! |
- É apto o terreno daqui para a cultura do algodão,
batata, milho, sorgho, etc., sendo para lamentar que
as prolongadas estiagens aniquilem em certos annos
os esforços dos agricultores.
Estudo attento das lagoas existentes, assim como
um trabalho de reprezas e poços, poderia talvez obviar
a parte d'estes males.
À nossa chegada a este logar foi saudada dois dias
depois por uma deserção em massa de todos os co-
rócas da localidade, e isto pela smgela causa de que,
solicitando do soba uns vinte carregadores para nos
levarem mantimentos até ao Cunene, este declarou
que, nós iriamos certamente morrer, pois nunca pes-
soa alguma ali fôra.
Isto foi sufficiente, com uns additamentos que a
imaginação gentilica costuma condimentar facilmente
com pavores, para que os espiritos dos nossos come-
cassem a Incitar-se.
Era infallivel a morte, a seu ver, e radicando-se-lhes
no espirito esta convicção, todos viam já o respectivo
esqueleto branqueado, marcando no areal uma agonia
de mais e uma vida de menos!
Comprehendendo com muito boas rasões que qual-
quer demora podia ser-nos nociva, aggravando uma
situação já de si tão séria, démos aos nossos o signal
de leva-arriba, e, coadjuvados por alguns homens do
estimavel proprietario d'ali, o sr. Emygdio de Figuei-
Primeiros passos 103
redo, abalámos rio acima, escrevendo o que se segue
em nosso diario:
«O terreno, ao principio plano, torna-se a 3 mi-
lhas adiante fragoso, embrenhando-nos por entre pe-
nedias recortadas em sentidos diversos e que devem
nas chuvas originar uma damba.
«O seu aspecto mdica serem constituidas pelo gneiss
e sclusto amphibolico; welwitchias e euphorbias con-
stituem a vegetação da terra mais elevada, de envolta
com toros de resequido capim, traçado pelo dente dos
antilopes, o qual reverdece ás primeiras aguas.
«Na margem do rio uma graminea mais elevada,
similhando o Arundo, e uma leguminosa arborescente,
Acacia albida, à mistura com esse supposto cedro Ta-
mara articulata, entrelaçam os seus ramos à beira da
agua, que as depressões represaram, d'onde emergem
Hyhpenes. Leões, gazellas como uma de barriga e
lombo branco, 4. euchore; antilopes como o galengue,
Ore gazella!; o unir, Sterp. cudu, cuja femea des-
provida de hastes, tem longas orelhas como o burro,
percorrem esta zona á procura de alimento e agua.
«Um macaco, cuja pégada não tem menos de 12
centimetros, de grande cauda e pello fulvo, que sup-
pomos ser um eynocephalo, por causa de arremetter,
segundo disseram, encontra-se aqui.
«Um pequeno quadrupede, a que os indigenas cha-
mam maboque, talvez uma genetta, vive nos penedos,
em abundancia. |
! E o galengue na fórma tal como o gemsbok; sómente julgâmol-o
diferir um pouco na côr, que é castanha clara.
104 De Angola à contra-costa
«Aves são numerosas, sendo para notar o grande
numero e variedade de patos.
«O pato ferrão, Plectropterus gambensis; o pato com-
mum, Poecilonetta erythrorhyncha; o Spatulata capen-
sis; o Querquedula hottentota; o Thalassiornis leuconota;
o Deudorocygna viduata; são outras tantas especies de
que nos occorre fallar.
«Vê-se amda o famingo, Phoenicopterus erythrocus
o pelicano, que os pretos chamam quicúa, Pel. rufes-
cens, com a sua poupa, e a bolsa gutural amarella;
pernaltas, especie de garças, Herodias alba e Herodias
ntermedia, que associadas andam n'esta epocha; o
gallo das pedras, a que os naturaes chamam tiatra,
Saxicola leucomelaena-monticola, talvez não conhecido
sclentificamente n'esta zona; uma pequena rolla de
longa cauda e peito preto, chamada tondul-lo, Oena
capensis; um milharuco, Merops superciliosus, de com-
prido bico e verde plumagem; emfim, voam tambem
aqui os corvos e as pintadas, de que ha duas varieda-
des, bem como na costa um corvo marinho, Graculus
lucidus.»
Emquanto nós socegados no acampamento, onde ti-
nhamos chegado ás cinco horas, escrevendo estas linhas
e fechando de manso o diario, nos preparavamos des-
cuidosos para a refeição improvisada em curto espaço
de tempo, um facto bem grave se dava no couce da co-.
mitiva, que amda atrazada pelo tempo não recolhêra.
E, inconscientes, sem de leve suspeitarmos o com-
promettimento por que estavam passando nossos inte-
resses, ao anoitecer, pelas oito horas, acrescentavamos
no diario:
Bi
Primeiros passos 105
«E smgular, faltam quarenta e dois homens com as
respectivas cargas, que embora se tivessem atrazado
pelas horas de maior calor, já tmham tempo de sobra
para chegar. Cansados, não tiveram forças para arras-
tar-se até aqui, e, acampando no primeiro logar apro-
priado que encontraram, só pela manhã apparecerão.»
Cerrou-se a noite. Estirados, tendo a abobada ce-
leste por tecto e uma fogueira por manta, pois as tendas
vinham na retaguarda, adormecemos n'aquelle somno
consequente da fadiga, e proprio de uma saude sã e
robusta, levando de um folego todas as horas do escu-
ro. E só quando o sol, com a sua aureola gloriosa,
começou de espargir pelos espaços torrentes de luz,
animando e enchendo de mil ruidos o ambito enrege-
lado, é que nós, descerrando as palpebras, compre-
hendemos que urgia levantar.
Durante tres longas horas esperâmos a gente que .
atraz ficára, dominados por aquelle anceio que ator-
menta e mortifica quem espera; até que a final resol-
vemos mandar em sua procura o chefe e dois homens
de mais confiança, ordenando-lhes que sem perda de
tempo obrigassem taes mandriões a caminhar.
Bem pouco haviam elles mandriado, ao que parece!
Mais duas horas ainda decorreram; já o sol, abei-
rando-se do zemth, escaldava a tudo e a todos com os
seus frementes raios, e o natural quebramento nos
convidava a repousar 4 sombra de um proximo espi-
nheiro, quando subito ruido entre os nossos nos cha-
mou a attenção para as bandas do norte.
Tres vultos ao longe avançavam azafamados por
meio do areal.
106 | De Angola á contra-costa
Às duvidas que nas ultimas horas tinham domma-
do o nosso espirito começavam a fortalecer-se, e um
presentimento qualquer nos dizia que se fam tornar
em certeza; esperámos amda um momento, approxi-
mam-se; já se lhe vêem as caras, todos lhe miram o
olhar, com o mtuito de por elle poderem alguma cousa
concluir; chegaram.
— Então? onde está a gente?
Fugiu tudo, senhores! No meio do campo jazem os
fardos abertos, tendo parte do conteúdo roubado de
mistura com caixas partidas, sextantes e theodolitos
dispersos. É uma confusão tal, que só á vista podem
“apreciar.
ARMA O EL
NA REGIÃO LITORAL
Mossamedes — Breve noticia sobre a historia da sua fundação — Clima,
constituição geologica e vegetação — Tribus indigenas — Habitações —
Uma marcha vertiginosa — Cincoenta e quatro milhas em vinte e cinco
horas — Uma necessaria refeição e o encontro dos fugitivos — De novo no
rio Coróca— Noticia sobre este— Suas margens — Fadiga da marcha
Uma cheia
A solidão e os animaes silvestres — Regresso a Mossame-
des— Partida definitiva para o sertão— À geologia e os odres - O pri-
meiro bao-bab— A aridez do paiz e recuas de zebras — A couag-gha? —
Depositos de agua — Pedra Pequena — Pedras Grande e Maior — Nestor.
o caçador de leões— Uma morte ridicula e uma visita inesperada — À
agricultura no districto e a villa de Capangombe — À fortaleza e duas
considerações geologicas.
a”
Em 1785, sendo
governador geral de
Angola José de Almeida
: Vasconcellos, barão de Mossa-
a A medes, organisaram-se na capital
da provmncia duas expedições, com o proposito de es-
tudarem as terras que do districto de Benguela se
estendiam para o sul.
À primeira, devendo ser imtentada por mar, foi
commettida ao coronel Luiz Candido Cordeiro Pimhei-
ro Furtado, que para esse fm recebeu n'um navio
equipado e prompto tudo o que podia necessitar.
À segunda, cujo fm era proseguir para as terras
do interior e ahi fazer o reconhecimento completo
dos sertões do sul, foi confiada a Gregorio José Men-
TO De Angola à contra-costa
des, homem assás conhecido e respeitado na provin-
cia.
Partindo em desempenho do serviço que lhes havia
sido commettido, proseguiram por mar e terra respe-
ctivamente para o sul, mdo encontrar-se na ampla
bahia que ao tempo era conhecida pela denominação
de Angra do Negro.
Ahi imstallados, e depois de a haverem baptisado
com o nome de bahia de Mossamedes, em honra do
governador geral, começaram de entabolar relações
com os mdigenas, no mtuto de os trazer á submissão
e reconhecimento da nossa soberania.
Não julgâmos que tivessem completo exito os tra-
balhos desta expedição, aliás tão bem organisada,
a qual se assignalou pela lamentavel perda do tenente
Sepulveda, do cirurgião do navio de Pinheiro Furtado,
e mais dois marimheiros assassmados pelos mdigenas,
rasão por que se deu ao rio Bero o nome de rio dos
Mortos.
Em todo o caso, -desde essa epocha para cá, os so-.
bas do Dombe, do Giraul, do Quipolla e Coróca fica-
ram conhecendo os novos senhores da vasta região
onde habitavam, e imiciados na forçosa necessulade
de se considerarem vassallos do rei de Portugal.
Passaram depois largos annos sem mais se pensar
na Angra do Negro, que apenas era visitada por algum
baleeiro desgarrado que vmha ali fazer a aguada, até
que em 1839, sendo governador de Angola D. Antonio
de Noronha, enviou duas novas expedições a Mossa-
medes, uma por mar na escuna Izabel Maria, sob o
commando do primeiro tenente Pedro Alexandrino da
Na região litoral Topa
Cunha, que mais tarde tambem governou aquella pro-
vincia, e-outra por terra, sob a direcção do major
Garcia.
Datam d'este tempo os verdadeiros trabalhos para
a colonisação e dominio d'aquella região, que, pela
sua distancia da capital e arido aspecto talvez, a tmha
feito tanto tempo esquecer.
Em 1.840 decidiu-se construir o forte de Ponta Ne-
era, assim como se assentaram os fundamentos de
uma villa, estabelecendo-se ahi uma feitoria dirigida
por dois negociantes Jacomo Filippe Torres e Antonio
Joaquim Guimarães, e pouco depois foi esta terra colo-
nisada por gente vinda da Madeira e do Brazil, que
a 4 de agosto do anno de 1845 n'ella se imstallou
definitivamente.
D'ahi para cá Mossamedes tem progredido por ma-
neira, que é hoje um dos logares mais pittorescos e im-
portantes da costa do oeste.
O seu clima suave e temperado; as brisas que a
refrigeram, devidas á influencia da corrente oceanica
que vinda do cabo da Boa Esperança parallelamente
à costa sob ellas passa; as viçosas hortas que a cir-
cumdam, contrastando com a aspereza das encostas
e planicies em redor, attrahem ah quantos individuos
pretendem restabelecer a saude deteriorada pelos ca-
lores do norte, e mostra bem quanto tem podido a
vontade d'esse punhado de homens, que, ao entrarem
em tal terreno, o encontraram quasi deserto e percor-
rido de quando em quando por salteadores. Raras são
as febres de grave caracter, apenas as intermitten-
tes, quando imunda o Bero, atacam a um ou outro, e
112 De Angola á contra-costa
anda as cephalalgias e conjunctivites são frequentes,
como as ophthalmias, derivadas do reverbero da luz
nas areias. |
Ácerca da constituição geologica de Mossamedes
pouco diremos por se terem perdido parte dos exem-
plares que alcançámos n'aquella região, dando isto
logar a que ao nosso sabio amigo e distincto geolo-
go o sr. Nery Delgado se tornasse impossivel fazer
qualquer trabalho proficuo a respeito della.
Eis os unicos elementos que encontrou relativa-
mente á bahia de Mossamedes, á costa do sul da
ponta do Noronha e á bahia dos Elephantes no norte.
Mossamedes:
Grés calcarifero amarello (molassa), com moldes de
bivalvas, provavelmente da epocha terciaria, eviden-
ciando o mesmo deposito que nas margens do Coróca,
bem como um silex pyromaco.
Ao sul da ponta do Noronha, 150 metros de altitude:
Grés grosseiro amarello de cimento calcareo, pro-
vavelmente terciario. Conchas recentes dos generos
Lespula, Conus ou Erato, Purpura ou Cancellaria,
Fusus? Purpura (subgenero Thalessa), Patella, Caly-
ptraca (proxima de U. trochiformis, Grat.), Arca senúilis.
Nota-se serem as especies iguaes ás da bahia dos Ele-
phantes.
Bahia dos Elephantes, 170 metros de altitude:
Conchas recentes dos generos Phorus, Triton (T.
succintum, Lank.) Patella, (duas especies de P. Lusi-
tanica, Gmchin e P. corulea Lim), Calyptreea (simi-
lhante a O. trochiformis, Grat.), Area senilis, Linn,
(Senilia senilis, Gray) e Lespula sps.
Na região litoral 113
De tudo isto se infere a existencia a descoberto
aqui, como no Coróca e na bahia dos Elephantes, da
formação terciaria, sem que comtudo seja facil precisar
a qual das sub-divisões pertence a facha sub-alluvial,
onde tambem se encontra uma rocha empregada na
construcção, constituida por numerosas bivalvas ci-
mentadas por um calcareo, conchas que nos parece-
ram ser a Cyrena Cuneiformis, e outra no grés calca-
rifero uma Cerithium?
Ao norte da bahia dos Elephantes no Dombe está
a descoberto o terreno cretaceo, que se estende até
Novo Redondo, onde parece existir a hulha e abun-
dantes mmas de chumbo.
O que porém se nota de original é o grande nume-
ro de calhaus rolados que encontrâmos a 150 e 160
metros de altura, por toda a parte, uns de calcareo
silicioso, outros de textura porphirica, etc., e que,
recentemente trabalhados, parecem evidenciar, ou um
sublevamento assás recente, ou uma lenta elevação
de toda a facha da costa, que de resto os colonos d'ah
testemunham, mostrando o logar onde outr'ora desem-
barcaram, e que hoje está a 15 metros das maiores
marés.
Outra circumstancia digna de toda a attenção é a
seguinte. Trabalhando-se na perfuração de um poço
em Mossamedes, encontrou-se, á profundidade de 3
metros, um dente. Trazido para a Europa, este pare-
ceu fóra de toda a duvida ter pertencido a um hippo-
pótamo pequeno.
À presença de tal quadrupede em similhante lo-
gar, onde não existe rio de vulto, e só a 180 milhas
8
114 De Angola á contra-costa
se encontra o Cunene, parece indicar que n'uma epo-
cha não mui distante desaguava na bahia um grande
rio, que mais tarde desappareceu por circumstancias
quaesquer.
Não ousâmos aventar theorias sobre o caso; mas,
segundo presumimos, similhante facto confirma, até
certo ponto, o sublevamento da terra, que póde ter
originado um desvio, se não desseccamento do refe-
rido leito, do mesmo modo que vae tornando agora
apenas torrencial o curso dos existentes como o Co-
róca, lete:
Ficam expostas estas indicações, para que mais
tarde alguem trate de aproveital-as, não abandonan-
do hós a idéa de que a costa oeste da Africa, como
a occidental da America, estão lentamente emergindo
do seio do oceano que as banha. |
A vegetação n'esta zona é extremamente rachitica
e feia, fazendo em tudo lembrar a parte septentrional
do deserto de Kalahari, essa extensa região que, vindo
encontrar o mar na costa da terra de Namaqua e no
paiz dos dámaras, se prolonga para o norte a for-
mar parte do districto de Mossamedes, como diz o
lustre botanico o sr. conde de Ficalho.
Assm como da Dangoena e do Solle para o mar,
atravessa o rio Cunene areias ou fachas rochosas
aridas, despidas de fertil vegetação, e amda para o
norte, como vimos em nossa viagem, o Coróca, es-
trebuxando no apertado leito cavado nas ravinas das
rochas gmeissicas, sempre cobertas de franzma ver-
dura, vem espraiar-se abaixo nos areaes e desertos de
Pinda; assim estas terras correm para o norte, entre
Ni região litoral 115
o mar e a serra de Chella, até as alturas do Bum-
bo, com identico aspecto.
Adiante, funde-se gradualmente na vegetação mais
rica do districto de Benguella, emquanto pelo lado do
oriente, e 4 medida que a altitude vae augmentando,
se transforma na flora variadissima da Humpata e da
Huilla.
Este caracter phytographico, acrescenta amda o dis-
tincto botanico, manifesta-se claramente na presença
de algumas fórmas typicas, como são a Welwitschia
mirabilis, a Copaifera mopané, e especies espinhosas
de acacia, a Horrida e outras, etc.
Nos Montes Negros, nos primeiros contrafortes da
Chella e mesmo na Huilla, subindo para ali pelo lado
do rio Caculovar, os espinheiros são frequentes e va-
riados, formando florestas baixas ou matos mais ou me-
nos raros, attestando a evidencia de uma zona arida,
que por aquella altura vem terminar.
Uma rasteira euphorbia abunda nas planuras em
redor, que os habitantes colhem para com ella alimen
tarem o fogo, bem como uma acacia minuscula.
Acelimam-se todos os vegetaes da Europa, como
hoje é sabido, e desde a oliveira até á videira tudo
ali progride.
Ha quatro tribus indigenas que povoam: esta região,
a saber: os quipóllas (mini-quipólias, assim chamados),
que residem pelo Valle dos Cavalleiros; os giraues,
que se acham estabelecidos nas margens do rio d'este
nome; os corócas, com quem já fizemos conhecimento
no rio assim designado, e os ba-cuisso nas rochas do
litoral.
116 De Angola á contra-costa
Duas destas são sem duvida descendentes da gran-
de familia dos cubaes, que se acha estabelecida n'este
parallelo desde o mar até aos socalcos da Chella, e
mesmo acima para o sul do Hoque; as duas outras,
ba-coróca e ba-cuisso, provém certamente das terras
meridionaes, por terem grandes traços de similhança
com os novos dali, etc., até mesmo no seu clique espe-
cial e em outras affinidades, como já dissemos.
Pendem para a vida pastoril, alimentam-se muito
de leite, que, quando cugulado e azedo, denominam
n'gunde.
As suas habitações são miseraveis e sordidas, bas-
tando-lhes o tronco de uma especie de carrapateiro com
os seus pequenos ramos, para que construam uma cu-
bata.
Espetada a prumo no solo, curvam os ramos meno-
res em roda, e, prendendo-os ao chão, cobrem-os com
um pouco de capim, revestindo o todo com o excre-
mento de boi.
Um pequeno buraco dá passagem para esses reem-
tos, mais parecendo a fórma de forno do que habita-
ção de gente. |
Supersticiosos em extremo, fallando tambem do
celebre Huco (ente supremo ?), têem o conhecido pavor
pela lembrança dos mortos, e uma grande veneração
pelo gado vaccum.
Achámo-nos em Mossamedes!, após as peripecias
narradas no capitulo antecedente, onde nos trouxe
1 Esta viagem foi feita por um de nós, Ivens, emquanto o outro, Ca-
pello, ficou com a comitiva e material.
Na região litoral 117
uma marcha forçada de 54 milhas, percorridas em
vinte e cinco horas, quanta era a distancia que me-
deava entre o ultimo acampamento do Coróca e esta
villa, cuja cifra, mais eloquentemente que uma des-
cripção extensa, dará a medida da nossa angustia e
sofirimentos.
Felizmente para nós achava-se o governador geral
ali, e ao ver-nos entrar pela residencia, estafado, sujo,
com ar mais de salteador do que de pacato peoneiro
da sciencia, não pôde conter uma exclamação de es-
panto:
— Que foi, que ventos contrarios o trazem por aqui,
onde não tencionava volver?
— O adiantarmo-nos a quarenta e dois homens nos-
sos que fugiram, e devem a esta hora vir a caminho
deste logar, respondemos com voz cavernosa.
E como nos dispozessemos a encetar a descripção
do revez que nos acontecêra, elle cortou rapido, dizen-
do: « Deixe-se disso; como o negocio é só de gente,
tem bom remedio»; e insinuando-nos graciosamente
que para os males moraes a sciencia recommenda ás
vezes as consolações physicas, ordenou que nos des-
sem de comer, principal necessidade no momento.
E bem verdade era! Desde as nove horas da ves-
pera o nosso estomago recebêra apenas a visita de
umas tristes sardinhas de Nantes; que se ajuize pois
o prazer experimentado após a ingestão da primeira
travessa de bifes, porque... foi mais de uma que nós
com certeza devorámos; e julgue-se da grandeza do
nosso reconhecimento, ou melhor o do estomago, para
com tal bemfeitor!
118 De Angola á contra-costa
Apenas nos achámos installados em Mossamedes,
realisaram-se as nossas previsões, apparecendo no dia
immediato o primeiro grupo de fugitivos.
Errando pelas aridas campinas do sul, vinham es-
farmados e sequiosos os miseraveis, e tanto soffreram
no pouco tempo decorrido, que lá haviam marcado o
rastro da sua passagem com os cadaveres de dois
companheiros mortos pela fadiga.
Prevenidos do seu apparecimento n'uma praia pro-
xima, tivemos de pôr em execução mais um rasgo
audacioso, qual foi o de montar um macho folgado,
para lhes saír ao encontro, facto que, para pessimos
cavalleiros como nós, não deixou de nos embaraçar
seriamente.
Balouçando-nos como se estiveramos em plena tol-
da de navio sob o impulso de tempestuoso mar, para
lá nos dirigimos, e pouco a pouco, reunindo os que
em redor appareciam, conseguimos alcançar metade
d'elles, tendo os restantes desapparecido.
A idéa de fazer caminho pelo rio Coróca com a
nossa gente estava demonstrada impraticavel, urgindo
procurar outro qualquer trilho, que lhes não inspirasse
tão graves receios.
Após diversas considerações de chã philosophia, de-
cidimos pelo da Huilla, não abrindo comtudo mão da
idéa de pelo menos fazer um pequeno reconhecimento
áquelle rio.
Volvendo de novo a S. Bento, preparou-se para
isso uma pequena expedição, com poucos dos nossos
de mais confiança, a fim de ver até que ponto seria
possivel a fallada ligação do Coróca com o Cunene,
Na região litoral os
expedição que em seis dias de pesquizas volveu, ha-
vendo concluido e visto o seguinte:
O Coróca é um rio torrencial, intermittente, impe-
tuoso nas grandes cheias, cujas origens estão nas ver-
tentes da Chella, e cujo curso nada de commum póde
ter com o Cunene, que lhe fica para o sul.
O seu leito, de 50 a 60 metros como media, ergue-
se rapidamente, sendo curioso na parte mais inferior
o contraste das terras que o margmam, pois é a mar-
gem esquerda formada por dunas de areia solta, e a
do norte por terras elevadas, archaicas, de feio aspe-
cto, constituídas em geral pelo gneiss e schisto am-
phibolico.
A 30 milhas acima da embocadura cessa a areia
da margem meridional, junto ao curso de uma damba,
denominada dos Carneiros, cujo leito superior ao do
rio só recebe d'elle agua por trasbordo em grandes
enchentes, agua que, demorada em poços, deixa por
evaporação coberto o lodo de efflorescencias de nitrato
de soda.
O seu curso é de encontro á corrente do rio, o que
evidenceia um canal de derivação d'este e nunca um
afluente que ali trouxesse as aguas do Cunene.
A montante do ponto citado, começam as margens
a accidentar-se de mais em mais, e, erguendo-se e
caíndo, formam depois ravinas em todos os sentidos.
Torna-se então a marcha para o viajante n'uma
fadiga permanente, pois, obrigado a caminhar pelas
encostas que deitam sobre o rio, tropeça e resvala a
todo o mstante, quebrando-se-lhe o corpo com os es-
forços de equilibrio.
ENE Ts
anadioo tati mm
120 De Angola á contra-costa
- Que diga o meu companheiro Guilherme Capelo,
distincto commandante da corveta que a Mossamedes
nos transportou, quão amargo lhe foi aquelle primeiro
tirocimio de explorador pelas encostas das serranias
do Coróca sob um sol de escaldar, a despeito de toda
a sua boa vontade!
Como fossemos avançando dia a dia pelo curso do
rio, antegostando a idéa de fazer um quasi completo
reconhecimento do seu serpear, aprouve ao acaso im-
pedir-nos o caminho com um embaraço, que nos dissi-
pou totalmente a satisfação de tal conseguir.
Era ao alvorecer do terceiro dia. À aurora, desdo-
brando o seu luminoso manto, começára de aclarar
as terras em redor; uma brisa fresca, rociando-nos, re-
temperava o animo, convidando a marchar; acabava
de se erguer o acampamento, íamos partir, quando de
subito, um ruido inesperado atroa os ares, rola o quer
que seja perto de nós, um rumorejar estranho adianta-
se em meio d'esta balburdia, uma exclamação unanime
sauda emfim a causa originaria do mesperado pheno-
meno!
N'uma curva do rio e a montante de nós, uma vaga
espumante barra-lhe o curso de lado a lado, e galgan-
do enfurecida por meio de penhascos e accidentes, es-
padana aqui, salta acolá, espraiando-se ligeira pelo
leito abaixo.
É um phenomeno curioso o d'essas enchentes tor-
renciaes aqui, onde a agua com a sua presença anima
e vivifica tudo em poucos mstantes.
- Até então, um silencio sepulchral nos envolvia, e o
curso do rio secco e emmaranhado entre as rochas nuas
Na região litoral 121
e tisnadas que o apertam, mal deixa suspeitar ao via-
jante a sua existencia.
Agora, cheio, entumecido, elevando-se a olhos vistos
pelas margens que se alongam, absorvendo penhascos
e ravinas, palpita a formidavel arteria, engrossada e
resplandecente à luz do sol, e lá vae como longa fita
a caminho do oceano, murmurando em todo o traje-
cto. Foi como que magica operação, esse subito trans-
formar de uma zona nua, secca e calada, em fresca,
vivificante e ruidosa.
Penedias e accidentes do fundo, tudo desappareceu,
o humido lençol estira-se-lhes por cima; e nós, que até
então, descendo por vezes para o seu leito, evitava-
mos trabalhos e marcha pelas encostas, somos agora
forçados a caminhar sempre por ellas.
Não foram muito longe os nossos esforços, porque,
estreitando-se pouco a pouco as margens, que pro-
gressivamente fam tambem subindo, chegámos a uma
garganta apertada, cujas paredes talhadas a pique
formam um vortice onde o rio redemomha furioso,
e que foi impossivel transpor.
Forçados a pôr ponto na excursão, volvemos, dando
ao sexto dia entrada em S. Bento.
Pouco temos a acrescentar sobre esta região, quasi
esteril e alheia a factos de scientifico aproveitamento.
Uma das facies sem duvida mais caracteristicas della,
e que não tem seguramente outra comparavel na pro-
vincia, é o estado de isolamento em que se acha.
Entrando, após meia duzia de leguas de marcha,
parece que o viajante se afastou para os mais recon-
ditos sertões do Negro Continente.
ca ai e e e ai O, a e A e e e ce ts “ei
cdi
122 De Angola á contra-costa
Nem ser humano, nem a marca da passagem do
homem numa cabana ou em singela canoa de casca.
Apenas alguns ba-ximba nomadas por ahi ás vezes
se aventuram, como deprehendemos de um tronco
queimado que encontrámos e por uns circulos de pe-
dras, talvez sepulturas, dispostas á feição dos cromle-
chs, nas proximidades da garganta de que fallâmos;
onde, sem embargo de muitas excavações, não en-
contráâmos despojos, e isto nos levou a crer que, se para
tal fim al foram collocadas, era cireumdando o cada-
ver que as aves e feras devoraram, se não ao lado
que o depunham, segundo o nascente ou poente, como
já no Senegal se encontrou. |
Em compensação, e em virtude deste isolamento,
abundam os animaes silvestres, tendo encontrado a
expedição constantes imdicios da passagem de nume-
rosos elephantes, de rhmocerontes, de leões, de leo-
pardos, de galengues e de ungiris; e, facto notavel,
acham-se estes animaes distribuidos nas margens com
rigorosa precisão. Assim nos areaes vê-se o Orgya ga-
zella, esse antilope que tanto resiste 4 séde, e outros,
percorrendo-os em todos os sentidos; emquanto que
nas serranias têem guarida o leão e as outras feras de
que fallâmos.
Só basta que o rei das selvas transponha o rio
para encontrar fartos recursos entre os mfelizes rumi-
nantes que por lá divagam, e cujas brancas ossadas
evidenceiam a miudo ao viajante uma agonia muda e
uma lucta pela vida.
É tempo de terminar a descripção d'essa triste zona
do silencio, a fim de volver para o caminho sertanejo.
Na região litoral 128
Reunidos todos os elementos dispersos da expedi-
ção, assentámos de novo os nossos arraiaes em Mos-
samedes, e, tendo tudo prompto, preparámos a mar-
cha, repetindo-se as mesmas fastidiosas scenas por
que haviamos passado no norte.
Estavamos decididamente agarrados ao oceano, e
elle, de que com tanta saudade nos tinhamos separado,
começava agora com a sua presença a impressionar-
nos de modo desagradavel, fazendo nascer em nosso
espirito suspeitas de que estaria escripto no livro do
destino o nosso impossivel apartamento.
Os prejuizos que, impondo-se ao espirito, o domi-
nam ás vezes, de sorte que se torna difficil libertal-o,
são sempre causas attendiveis que urge prevenir.
Procedemos com urgencia aos arranjos indispensa-
veis, preparando tudo no curto espaço de uma semana.
À nossa partida teve logar a 24 de abril.
Depois de imvariaveis peripecias, eis-nos de novo
a caminho do imterior, e, bifurcados nos bois-cavallos,
despedimo-nos do oceano pela segunda vez.
Transpostas as hortas e jardins dependencia da
villa, entrâmos na estrada de Capangombe, que, ele-
vando-se gradualmente, se desenrola smuosa para o
mterior, atravez dos terrenos terciarios formados de
rochas inconsistentes, como o melasso que afiloreia
o terreno, o marne, etc., para logo encontrar como
succedaneos e interpostos entre elles e os primordiaes,
os secundarios do quaderstein, terminados no plano
inferior pela formação laurenciana do gneiss amphi-
bolico, que aqui é ainda separado das formações se-
dimentares por uma facha de schisto primitivo.
124 De Angola á contra-costa
Impressionam de modo desagradavel as primeiras
jornadas atravez d'essas terras aridas, onde apenas
vegetam rachiticas acacias ou euphorbias, que, entris-
tecidas sob um sol abrazador, parecem esperar uma
trovoada que lhes desembarace os estomatos da poeira
accumulada, e lhes restabeleça a respiração, trazen-
do-lhes á seiva a vivificante agua.
Por toda a parte, a perder de vista, emergem da
terra morros de gmeiss, que os musgos e o tempo
téem manchado com negras tintas, e os raios do sol
fenderam com profundos sulcos.
Entre os factos de digna menção, figura sem du-
vida o que se refere a uma original planta, conhecida
pelos odres.
Depois de transposto o curso do rio Giraul, sobe-se
uma rampa da estrada, e adiante, no planalto supe-
r1or de schistos primitivos, entra-se na planura, onde
aquelles em silencio aguardam do viajante as excla-
mações de espanto.
À um tronco rasteiro e tortuoso de folhas largas,
duras e resistentes prende-se o celebrado fructo, cuja
fórma e aspecto é inteiramente como o de um odre
de pelle de cabrito. O mais atilado odreiro tomal-
os-ia, quando suspensos entre outros, por obra de
mão de mestre, e só se desenganaria ao apreciar-lhe
o peso.
Encontrámos aqui o primeiro bao-bab a uma alti-
tude proximamente de 500 metros, e como n'um local
chamado Pedra Maior não houvesse sufficiente agua,
proseguimos a caminho de outro chamada Pedra Pe-
quena. |
Na região litoral “125
Tem tão mediocre interesse esta parte da viagem,
que vamos proseguir, transcrevendo na integra o que
em nosso diario se acha exarado.
«Dia 25 de abril.. |
« Prosegue o trilho pela mesma maneira e aspecto,
“só com a singela variante ao apparecimento de um ge-
nero de cogumelo branco volumoso, que, aqui e alem,
corta a arida monotonia. |
« Desappareceram os odres; leguminosas de espinho
arborescentes, com a copa á feição de uma umbella,
acompanham o viajante ao longo do trilho.
«Facto notavel e digno de menção! À vida vertebra-
da minuscula (se isso se póde dizer para o caso) é por
aqui escassa ou raramente representada. As mesmas
aves quasi desappareceram, e os reptis, esses atrevi-
dos habitadores de quantas penedias e tractos aridos
de terreno existem no mundo, tambem al se não ob-
servam.
«Ao caír do dia acampámos na Pedra Pequena, bloc
de gneiss cavado a meio, onde a agua existente era
em tão pouca quantidade, que a nossa gente a es-
gotou ao anoitecer.
« Grandes bandos ou recuas de zebras foram obser-
vadas, bem como nos affirmam que algumas eram bran-
cas, o que nos levou a suppor seriam couagghas.
«Defronta-nos a leste uma região inteiramente se-
meada de morros. »
«Dia 26 de abril.
«Ao alvorecer poz-se a caravana a caminho; 3
milhas adiante o trilho enfia por entre os cerros de
que hontem fallámos, verdadeiras massas, ou de grés
126 De Angola á contra-costa
ou de gneiss, à mistura com penedias de schistos mi-
caceos, etc. |
« Vae variando o remo vegetal, que pouco a pouco
se torna mais opulento, fazendo lembrar uma zona
por nós atravessada em a nossa primeira viagem do
Dombe para Quillengues. Falham os espinheiros, ap-
parecem acacias differentes, papilionaceas, algumas
erythrinas de vermelhos cachos e outras.
«O remo animal vae guardando similhante propor-
ção, sendo já numerosas as especies de aves que nos
distrahem com alegres gorgeios.
«Ás nove horas da manhã chegámos a Pedra Gran-
de, que, como as anteriores, não passa de ser um aflo-
ramento de gneiss com amplas depressões ou vasios a
meio, onde se accumula a agua da chuva, coberta lt-
teralmente pela alfacinha, que julgâmos ser a Psistia |
stratiotes. | o recurso dos ban-dombe e viajantes em
transito para o interior, bem como das feras e anti-
lopes. |
«Abunda o leão n'esta terra, observando-se por toda
a parte restos de suas presas.
« Começa precisamente aqui a apparecer essa arvore
denominada mutiate, uma Bauhinia, segundo pensá-
mos, ao passo que vão desapparecendo as legummo-
sas de espinho,
«Gazellas numerosas percorrem a planura, assim
como bastos reptis habitam quantos buracos se en-
contram nos penedos circumvizinhos, e um cágado
minusculo, na agua.
« Desappareceu o galengue, apparecem em bandos
os ungiris. Montados nos bois proseguimos em nossa
Na regiiio litoral 12%
viagem para a Pedra Providencia, aonde chegámos
pelas duas horas da tarde.
«Agrada já o aspecto do paiz. Um manto de ver-
dura cobre ao longe a terra, dando-lhe um ar de ale-
gria e vida. »
«Dia 27 de abril.
« Percorremos durante esta jornada toda a distan-
cia que vae da Pedra Providencia á fazenda Nas-
cente, na margem do rio Muninho.
«E seu proprietario um cavalheiro chamado Nestor,
afamado caçador de leões, que até á presente data tem,
ao que se diz, livrado a zona que habita de vinte e seis
destes ferozes animaes. |
«Entre varias peripecias succedidas a este senhor
(que têem sido muitas, pondo por vezes em risco a vida
desse segundo Gerard), ouvimos narrar uma, que pelo
ridiculo merece apontar-se.
«Versa sobre uma partida de caça ao leão.
« Succedeu um dia Nestor ser atacado em sua pro-
pria casa por atrevido leão que lhe farejava o curral.
“Saíndo ao cercado, attrahido pelo barulho da gente,
topou de frente com o animal, que, vendo-o, mvestiu.
«O recurso do bravo homem foi ir recuando para
o compartimento que servia de casa de jantar, cuja
porta se achava aberta, e onde sabia ter as suas ar-
mas. Tendo por felicidade um candieiro acceso, sal-
vou-o na surpreza, pois, batendo de frente no leão ao
atirar-se, o fez estacar.
«Lançando mão da carabina, apontou e fez fogo.
O animal, ao sentir-se ferido, saltou desnorteado, pe-
netrando ao acaso pela porta da cozinha, cujas caça-
128 — De Angola à contra-costa
rolas e panellas n'um momento poz na mais comple-
ta confusão! |
«Revolvendo tudo, saltava em todas as direcções, até
que de uma vez com grande arranco enfiou a cabeça
por entre as travessas de uma mesa de cozinha, e ahi
acabou entalado, mais vilmente que o seu congenere
da fabula!
«Esta accidentada região é dividida do noroeste ao
sueste pelo rio Muninho, em cujas margens se acham |
as plantações, compostas exclusivamente de algodoei-
ros, unico artigo de exportação, e milho, que se apro-
veita só como mantimento, segundo nos informaram,
para os trabalhadores.
«E notavel que os agricultores de Mossamedes, os
quaes com tanto afan buscam engajar gente e tão
caro a pagam, estejam hoje quasi reduzidos a plantar
mantimentos para essa gente.
« Com a baixa do algodão abalaram-se as suas espe-
ranças, e ainda se o mantimento podesse ser enviado à
costa, para lá ser vendido, bom seria, mas, na opinião
delles, sendo isso impossivel (e nós o acreditâmos),
em virtude da exagerada despeza nos carretos, não é
facil perceber o que esperam.
«Assim, essas grandes propriedades do interior do
districto estão hoje quasi só produzindo milho, que
os serviçaes cultivam, e elles mesmo comem, e isto
quando as chuvas são regulares, aliás o agricultor
tem de caíi na mão dos especuladores do litoral.
«A situação agricola n'esta parte da provincia é
pouco prospera, e um estudo no sentido de conseguir
agua permanente n'esta terra é de urgencia fazer-se,
Na região litoral 129
estudo que não parece muito dificil, pois por muitos
logares nesta importante terra nos forneceram escla-
UM ENORME LEÃO APPROXIMOU-SE
recimentos da provavel existencia de agua, e de nume-
rosas nascentes que poderiam talvez aproveitar-se.»
p)
130 De Angola á contra-costa
«Dia 28 de abril.
« Considera-se hoje dia de descanso para a gente.
Fizeram-se variadas observações. Deu-se pela noite
um facto original.
« Como estivessemos exhauridos de mantimentos,
abatemos um boi, que veiu para junto das nossas ten-
das, e ahi foi esfolado.
«Ficára, como é natural, uma basta porção de san-
gue, que, pelo adiantado da hora, se não pensou em
limpar. Entra o escuro, socega a gente.
« Seriam perto das duas horas, dormia tudo a somno
solto e no mais sepulchral silencio, quando visita mes-
perada penetrou no campo.
« Um enorme leão approximou-se, deu ingresso, e,
dirigindo-se ás poças de sangue, lambeu-o com toda a
placidez.
«O mais notavel, porém, foi um dos moleques, que
dormia junto ás nossas barracas, despertou, mas teve
tamanho terror, que se conservou immovel, não dando
o menor signal.
«Era muito grande, senhor, dizia elle, e ao abalar
ta atirando com a tenda a terra, porque tropeçou nas
cordas que pelos lados a seguram!
« Estranha crise devia ser a nossa, se no momento
de retirar-se tal visita nos cáe a habitação, deixando-
nos entontecidos e abraçados com um animal d'aquella
Jaia!»
Abandonando o diario, prosigamos.
No intuito de nos mternarmos rapidamente, partimos
com o findar do mez de abril a caminho de Capan-
gombe, por meio de uma floresta de espinheiros que
Na região litoral 1a
logo adiante se nos deparou, dardejados por sol de 40º
centigrados. |
Ao longe via-se, entre os socalcos da Chella, er-
guer-se um morro colossal denominado Cha-Malundo,
do qual nos pretendiamos approximar, cortando por
meio das plantações.
Capangombe, logar chefe do concelho do Bumbo,
está assente n'uma planicie pouco pittoresca, que en-
costando por leste ao socalco das asperas serranias,
recebe em baixo quanta agua espadana pelas ravinas
Vaquellas.
A meio está a vasta fortaleza, protectora deste lo-
gar, a cuja escolha não presidiu o bom senso.
Existem varias plantações, sendo apenas recommen-
davel o algodão, de que já se exportam cerca de trinta
mil arrobas. À |
Termimam aqui as terras mferiores com uma alti-
tude media de 555 metros no sopé das aprumadas en-
costas do planalto, cuja altura e vertical rasgado, ou
viveza das testas das cumiadas do gneiss (como diz o
nosso Ilustre naturalista Anchieta), bem evidenceiam
a rapidez com que se produziu essa grande depressão
do solo primordial, constituido nas mais profundas ca-
madas da crusta terrestre por elementos que do gneiss
ou do granito devem pelo menos ter a analogia com-
ponente e igual resistencia, e que só uma retracção do
elobo ou grandes vacuos na profundidade podem ex-
plicar.
Deu talvez origem a esses terrenos inferiores o fundo
do mar cretaceo, que em lucta se quebrou de encontro
aos rochedos hoje visiveis, formando as costas do con-
132 De Angola á contra-costa
tmente por aquelle lado, e de cujo sublevamento mais
tarde veiu a fazer-se a zona litoral.
À petrographia, acrescenta amda o nosso illustre
compatriota e notabilisssmo homem de sciencia, de-
nota ter sido protunda junto da costa a dita depressão;
isto é, consideravel a differença de nivel entre o fundo
e a Inha das rochas; parecendo que o movimento su-
dei da Ta SS / TUAÇA ES MENTES
; rs a Wo ps
ZA) A e as EM, 4) J /
E Tm TU hi ho Rh ES bi WU V)
af 77% PIDE,
MORRO CHA-MALUNDO
blevador que este derradeiro phenomeno originou, o
concernente à formação da zona litoral, se estendeu
ao solo primitivo, porquanto nenhuma das variadas re-
giões ali se-acham isentas delle, visto estarem as mes-
mas rochas inferiores ás superfícies do terreno sedi-
mentar, emergindo quasi sempre d'este nas cumiadas.
Na região litoral 133
Em resumo, a verdade é que, embora não seja facil
ao explorador, n'um singelo golpe de vista e no resu-
mido tempo da sua passagem, poder dar conta ou ap-
proximada imdicação das convulsões de que esta terra
foi theatro nas epochas geologicas, nem por isso elle
deixa de as suspeitar e presentir ao encaral-as, obser-
vando a grandeza e amplitude desses rasgados de ter-
reno, que pela sua soberba altura hão de ser sempre
um obstaculo ao accesso da onda civilisadora para o
interior.
CAPITULO IV
CHELLA ARRIBA
O explorador é o percursor do colono; e o co-
lono o humano instrumento empregado n'essa fa-
brica — a maior e mais dificil das emprezas — a
de civilisar o mundo.
S. W. BAKER.
.
A zona litoral e o planalto—O vento sueste e as accumulações de
vapor — Às portellas do Bruco, de Calleba e da Banja— À serra da
Chella e as convulsões geologicas ali— Antigo aspecto d'esta— À esca-
lada e a vegetação — São 1:829 metros — Panorama — O terreno, a caça e
duas considerações sobre a distribuição zoologica dos animaes em Afri-
ca—A cobra e o carneiro do Nano — Historias indigenas — Phenomeno
atmospherico notavel —A Huilla-—Sua salubridade e vegetação — Im-
portancia agricola— Plantas uteis — À propaganda e os geographos — À
viação accelerada — Directriz media da linha a estabelecer para o inte-
rior—Vantagens d'esta— Colonisação e considerações sobre ella— Zonas
mortiferas.
Es
“adaptação economica que lhe perturba as funeções e o
volve como que em indolente e constante mau estar,
O viajante que
effectua a parti-
da da costa occl-
dental da Africa
= e na zona junto
ao oceano experi-
menta os primei-
ros rigores do cli-
ma, transudando
sob um sol de es-
caldar, soffrendo
= aS Crueis Impres-
sões do tirocimio,
n'essa especie de
considera o azul cordão das serras ao longe o seu per-
manente anhelo; a idéa de se guindar ás grandes alti-
tudes o seu mais querido pensamento.
OS De Angola á contra-costa
E tem rasão, porque ahi tudo muda. O calor, as
bonanças, os miasmas, o constrangimento emfim, que
tanto o agoniaram nas primeiras semanas, modifi-
cam-se, porque nas terras elevadas o ar fresco e os
ventos reinantes o refrigeram e tornam á vida, cons-
titumdo-lhe, por assim dizer, um meio mais normal ou
proximo do que existe pela Europa.
É a segunda vez em nossas viagens que passâmos
por esta transição, transportando-nos do terreno do
bao-bab para o da acacia no curto espaço de algumas
horas; e pela segunda vez tambem podemos apreciar
o consolo que essa libertação subita de um clima em
extremo tropical traz para o corpo e espirito Vaquelle
que, apenas chegado da Europa, se viu mopimada-
mente sob a sua influencia.
É uma sensação similhante talvez á experimentada
pelo homem que, preso durante tempos em escura
masmorra, emerge para a claridade.
Esse banho de luz e de ar deve desembaraçar-lhe
o espirito, varrer-lhe os tetricos pensamentos que uma
reclusão forçosamente origina, rociando-o com o bal-.
samo consolador do allivio.
Assim tambem suecedeu ao vermo-nos no cimo da
serra. |
Sopra ali em maio o vento de sueste. À atmosphera,
até então forrada de nimbos e grossos cumulos carre-
gados de electricidade, que os ares atroam permanen-
temente com o ribombar do trovão, despedindo em to-
dos os sentidos linhas de fogo, principia de limpar-se.
Só pela banda do noroeste se vêem as mais amea-
cadoras accumulações de vapor, só para essa banda
Chella arriba 139
fuzila, e no quadrante, por onde começaram as trovoa-
das, vão agora tambem terminar.
Soltos novellos como flocos de algodão correm pelo
azul dos céus, impellidos por uma brisa fresca que tudo
varre, Isto é, o vento geral de sueste sopra no planalto,
do mesmo modo que no oceano.
Apenas no 1.º de maio começaram os alvores da
manhã a esbater as sombras da noite, que nós de pé
nos aprestámos para a partida.
Urgia aproveitar para a escalada a frescura matu-
tina, a fim de, quando colhidos pelo sol, já em alto nos
acharmos.
Depois espertava-nos o desejo de continuar a fugir
a essa zona que atraz deixavamos, feia e esteril, cuja
paizagem solitaria e desoladora nos imprimíra no es-
pirito as mais tristes recordações, e onde as penedias,
escalvadas e ennegrecidas, como que nos ameaçavam
a todo o momento com a morte pela sêde.
Podem escolher-se tres caminhos para de Capan-
gcombe subir 4 Chella, todos elles de muito mau aspe-
cto, attento o aprumado declive das encostas.
O primeiro é o da portella do Bruco (buraco tal-
vez?), mais frequentemente trilhado; o segundo o da
portella de Calleba, que fica um pouco mais ao norte
Vaquelle; e o terceiro, emfim, o da Banja, que, des-
viando-se para o sul, é principalmente escolhido por
quem se dirige para as zonas meridionaes.
Foi o Bruco por nós preferido, e, logo que terminou
a refeição matutina, entestámos com a profunda que-
brada, começando a ascensão pelas oito horas da ma-
nhã.
140 De Angola á contra-costa
Um trilho em zig-zags debuta por entre as rochas
e o arvoredo, seguindo approximadamente o curso de
um ribeiro que se despenha das alturas, semeado em
toda a extensão de calhaus, ora soltos, ora meio enter-
rados, e que com difficuldadede consente ao viajante
o escalamente da formidavel quebrada, cuja altitude,
em relação à planicie de Capangombe, não é menor
de 1:200 metros.
A ascensão da serra da Chella divide-se na zona
por que vamos caminhando em dois quarteis, se por-
ventura é permittido exprimirmo-nos desta maneira:
a subida do Bruco e depois a da Chella propriamente
dita.
Tudo, caro leitor, se encontra no grande contimente
feito em exagerada escala, proporções taes, que exce-
dem quanto de vulgar conhecemos, parecendo ter a
natureza, ao cuidar delle, caprichado em produzir tudo
gigantesco.
Basta que consideremos no remo vegetal, para nos
persuadirmos disto, vendo quanto ella póde, vigorada
pelo calor, desdobrar de magnificencia e surprezas por
essas terras afóra; e se no remo animal admirâmos
anda os mais crescidos exemplares da fauna actual,
lá estão os phenomenos meteoricos para exceder pelo
seu apparato retumbante quanto d'esses factos conhe-
cemos; e não menos as convulsões geologicas, pelo
geral de monta tambem a exigirem crescido respeito;
pois rios, quebradas e serranias, tudo é enorme, só
assenhoreavel por lucta porfiada.
A serra onde agora nos achâmos, e que se estende
n'uma linha de quasi 400 milhas do Cuanza á terra
Chella arriba 141
de Namáqua, é um dos mais frisantes exemplos d'esses
exagerados movimentos de terras.
Barreira gigante feita e ageitada durante as epochas
geologicas remotas no gneiss e na quartrite, abrange
longa linha de terrenos, formando pelo oeste um som-
brio paredão que foi por espaço de seculos sentinella
ao continente e protecção ao movimento convulsio-
nado do mar, defendendo com a sua gneissica testada
a acção erosiva d'este na terra continental.
Outrora seu aspecto devia ser muito differente.
Batidas pelos ventos marmhos, lavadas a miudo pelas
aguas espumantes, essas penedias erguiam-se certa-
mente aridas e ennegrecidas, contrastando pela tris-
teza com à paizagem mais suave de hoje.
O afastar do oceano, do ruido e da sua varia in-
fluencia, desviou d'ali a causa originaria da pertinaz
lucta entre o viver vegetal e a acção triumphante das
brisas do mar, e então, em vez das salgadas aguas
que lhe lavavam os sopés, vieram ou continuaram os
doces arroios do alto a sua obra benefica em favor do
mundo vegetal.
E logo á aridez de uma costa maritima, só visitada
pela gaivota, pelo corvo marmho e outras aves do
mar, que entre os seccos ramos das euphorbias e nas
anfractuosidades do rochedo construiam seus nmhos,
succedeu o verde manto da vegetação tropical, que,
recolhendo e enlaçando com suas raizes e cypós os
desageregos e os humus vindos de cima, a tornaram
de nua em fertil e viçosa. |
Pela encosta arriba sente-se o viajante extasiado em
meio da variabilidade de scenario que aos seus olhos
142 De Angola á contra-costa
se desdobra, e das profusas e variadas transições que
uma vegetação exuberante em roda lhe prepara.
Pouco depois de se erguer, desapparecem-lhe as le-
guminosas de espmho, as euphorbias, as acacias ras-
teiras, para ceder o logar ás Baulinias, mutiates, que
por sua vez, alentando-se, se afastam a 800 metros,
para as substituir o bao-bab, esse elephante do remo
vegetal, que attinge aqui proporções colossaes, aos
Combretum lepidoptreum, verdadeiro carvalho no aspe-
cto, às musassas esguias, etc. Está-se a meia encosta;
em redor a atmosphera embalsama-se com o aroma
das jasmineas, das papileonaceas odoriferas, de uma
especie de malva com o cheiro adocicado d'essa myrta-
cea a que chamam jambo, entrelaçando seus ramos com
uma arvore similhante á palmeira rasteira Phemia (?),
com hypheenes, limoeiros, cidreiras, laranjeiras, ali
dispostas pela mão do homem.
Entre as rochas serpeia a agua em todos os senti-
dos, e dez ou quinze variedades de fetos revestem ht-
teralmente o terreno, formando um verde tapete ás
arvores gigantescas que sáem do seu seio, e cuja
abundante seiva é animada por mnumeras raizes ad-
venticias.
Estamos a 1:000 metros de altitude. Numa cla-
reira a vista estende-se por cima dos copados macis-
sos esse oceano de verdura, e então um panorama
pouco frequente se espraia aos olhos do viajante.
A direita e esquerda destacam-se as vivas arestas
das rochas, que se elevam muito acima de nossas
cabeças, e são n'essa altitude limite forçado ao desen-
volvimento do arvoredo. D'ahi até ao cume a barreira
Chella arriba 143
manchada de pedra não consente um pé do mais sin-
gelo arbusto; e dominando senhoril o verde macisso
onde assenta, parece não consentir que tão alto ouse
acompanhal-a.
Pela abertura media alongam-se, a perder de vista,
as planuras de Capangombe, mdo confundir-se des-
maiadas no cordão azul dos morros longinquos, em-
quanto o viajante, sentado num penedo, descansa e
prepara a derradeira avançada, aguardando a gente
que se atrazou. :
Uma brisa fresca lhe rocia por estas alturas o afo-
gueado rosto e, rumorejando por entre o folhedo, des-
pede para o chão as gotas erystallinas do orvalho que
os raios solares ainda não poderam evaporar.
Continúa o tortuoso atalho por funda ravima, serras
acima, de mais em mais mclmado.
Já são 1:200 metros, depois 1:400; a agua salta,
por todos os lados, atolam-se os pés no humus balofo ;
a atmosphera humida carrega o pulmão, o suor es-
corre, vergam as pernas, parece quebrarem os joelhos;
amda supremo esforço: n'um lacete horisontal a 1:600
metros resfolega-se, toma-se alento, está-se quasi no
cimo, não se respira, assobia-se; a seceura extrema
agerava por vezes a situação, os pés pesam duas ar-
robas, o bordão vae a escapar-se das mãos; uf... eis
o plateau.
São 1:829 metros! ;
Milha e meia adiante acampámos n'um logar deno-
minado o arraial de Caionda, extenuados de forças e
tendo pago caro o anceio de nos vermos em cima, sof-
frmento que foi de prompto esquecido por mesa bem
144 De Angola á contra-costa
fornecida e o subsequente doce considerar perante
uma chavena de café e um cachimbo carregado.
O aspecto do terreno e da vegetação na aba do pla-
teau variou agora.
Ás rochas vivas de alem, succederam-se tractos
argillosos coloridos pelo oxido de ferro; á vigorosa
vegetação da encosta, um mato franzino e rachitico,
que por vezes desapparece totalmente, para substi-
tuir-se por anharas, largas campmas cobertas de ca-
pim, como nas margens da lagoa Inite, onde tivemos
BAMBI
de empregar serios cuidados para precaver os nossos
cães dos ataques do crocodilo.
Pouquissima caça vimos, só matando um bamba,
Cephalophus mergens, e a esse respeito acode-nos agora
uma breve consideração, em que já no Coróca pensa-
ramos. pi
E facto por nós mais de uma vez notado, que os
grandes antilopes da Africa, embora pareça deverem
procurar as regiões mais ferteis e que maior pasto
offerecem, fogem a ellas, prefermdo encurrallar-se es-
Chella arriba 145
faimados em tractos de terreno inculto, sem agua,
quando não povoados por feras.
Assim o galengue, Oryar gazella, cuja falta já no-
táramos em baixo, não se encontra tambem aqui, posto
que o separe um unico grau de distancia do rio Coró-
ca, onde, abundando pelas margens, embora desnu-
dadas e estereis, divaga aterrado por meio dos leões,
que ali vivem em numero extraordinario.
É diffcil comprehender-se a causa da distribuição
zoologica dos animaes n'esta parte da Africa, que, de-
vendo estar principalmente subordinada ao alimento,
sem contarmos as variantes que a ella podem trazer
determinados perigos, como a proximidade do homem,
a presença de animaes de presa, aqui faz completa ex-
cepção a taes principios.
Ha por aqui alguns reptis, entre os quaes figura
certa cobra, que, existindo proximo dos rios, é por essa
rasão denomimada cobra de agua, e se arremessa como
dardo, picando e matando em pouco tempo um cavallo,
segundo nos afiançaram.
Não tivemos opportunidade de vel-a, pondo sempre
de prevenção o exagero da morte do cavallo em poucos
minutos, facto que a final póde ter origem muito dif-
ferente.
Os indigenas propendem, mais decididamente ammda
que os viajantes, para amplificar as suas narrativas,
levando-se pela imaginação até ao inverosimil com
extrema naturalidade.
Assim, ao informarmo-nos do reptil acima alludido,
tivemos ensejo de ouvir historias de cobras de duas
cabeças, de cobras voadoras, etc.
10
146 De Angola á contra-costa
Um dos creados, cabimda ladino que nos acompa-
nhára já na primeira viagem, narrou a proposito factos
estupendos suecedidos na sua terra com esta especie
de reptis, asseverando que ao entrarem nos curraes
similhavam o balir do bezerro, a fim de mammar nas
vaccas; outras vezes, penetrando de noite nas cuba-
tas, afastavam os filhos dos seios maternos para em
seu logar sugarem o leite!
Entre as diversas historietas ouvimos uma que,
alem de enunciar à audacia da cobra, dava a medida
do pesado somno da embriaguez dos conterraneos do
nosso creado. |
Certo compatriota do cabinda, assistmdo pela noite
a um batuque, deixou-se arrastar no meio das dansas
pelos bacchicos deleites, a ponto de, ao concluir da
festa, achar-se nas mais criticas circumstancias.
À caminho de casa o mfeliz, cambaleando, approxi-
mou-se da porta da habitação, mas, faltando-lhe as
forças, caiu adormecido.
Ao alvorecer o estonteado acordou, quiz mexer-se,
mas não pôde; gritou, bracejando; era impossivel le-
vantar-se: immobilidade estranha o domimava, tinha
as duas pernas mettidas no esophago de uma python
enorme! |
À proposito de cobras ainda occorre dizermos o se-
ocumte.
Existe por aqui um typo de carneiro (mdigena, ao
que parece, pois nos afiançam ser oriundo do Nano),
de pequenos chifres retorcidos, grande juba que lhe
desce até ao peito, e é considerado como o mais ter-
rivel inimigo da cobra.
Chella arriba 147
Quando pressente algum reptil d'aquella especie,
põe-se de guarda á toca dias inteiros, até que o en-
contra, e n'uma lucta de poucos momentos victima-o
mvariavelmente.
E notavel este animal por gostar muito da cerveja
mdigena, que nos asseguraram beber sofrega e em
abundancia, sobretudo quando este liquido está fer-
mentando.
Em seguida o seu maior prazer é deitar-se ao sol,
notando, quem o observa n'essa occasião, uma grande
quantidade de vapor que lhe sae da pelle e se dissipa
no ar!
A 2 de maio terminaram as chuvas no plateau da
Huilla, caíndo nessa mesma noite pela primeira vez
copioso cacimbo *.
Pela tarde assistimos a um smgular phenomeno
atmospherico.
O céu, que durante o dia se conservára coberto de
cumulos minusculos, com aquelle aspecto que o vulgo
designa por pedrento, começou a limpar-se do lado
do poente. j
A corrente de ar, porém, que tal phenomeno ope-
rava, fazia-o com tanta regularidade, que ao appro-
ximar-se do occaso o astro rei, formára das nuvens
um regular e gracioso arco, com 45º de altura, que
“Irisado com todas as cores do espectro, tinha a mais
original e bella. apparencia, emmoldurado de raios
brilhantes e divergentes. |
1 Cacimbo é a quadra secca das ventanias do sueste, que se esten-
de desde maio a agosto n'esta região.
148 De Angola á contra-costa
Schweimmfurth parece ter observado alguma cousa
similhante no paiz dos bongos, e é notavel a comei-
dencia do mez da observação, pois foi a 18 de maio
que em sua viagem viu o phenomeno.
Do arraial de Caionda proseguiu a expedição por-
tugueza atravez dos virentes plateaux que a defron-
tam a cammho directo da Huilla, onde chegou a 3
de maio.
A villa apresenta um aspecto agradavel, embora
muito deixe ainda a desejar, com as suas casas bem
situadas, tendo no meio a ampla fortaleza, mas que
carece de reparos.
Á frente estão as plantações e aos pés o rio Lupollo,
correndo leste a oeste n'um risonho e pittoresco valle,
depois de derivar de uma cascata formosa de que da-
mos o desenho.
Meia duzia de morros, dispersos em vasto semi-cir-
culo de éste pelo norte, animam o panorama com os
seus vultos gigantescos.
À importancia agricola da Huilla póde tornar-se
grande, por emquanto não o é. Cada qual semeia para
s1 trigo, centeio, milho, couves, batatas, e com isso se
- contenta. À distancia que a separa do litoral tem-lhe
impedido o desenvolvimento, pois é impossivel enviar
para a costa qualquer artigo, estando sobrecarregado
o carreto na rasão de 20 libras esterlinas por 100 ar-
robas.
À expedição portugueza demorou-se n'esta terra até
29 de maio, a fim de refazer-se de alguns artigos que
precisava, e sobretudo esperar por vinte carregadores
que da costa vinham em camimho,
VITIAH VN VLVOSVO
Chella arriba 149
Entre diversos estudos diurnos, ocios da tarde e
uma viagem a Quipungo, na intenção de visitar o Cu-
nene, passaram-se esses vinte e seis dias n'um dos mais
salubres logares da nossa Africa occidental.
O clima da Huilla não carece de encomios. À sua
altitude, temperatura moderada, brisa fresca, regula-
ridade de estações, tem-lhe valido justa reputação.
Ahi vivem os europeus como em plena Europa,
tendo só a queixar-se de alguma bronchite ou pneu-
monia, doenças frequentes; pouco visitados pela febre,
fortes e robustos, apresentam frequentemente estra-
nhos exemplos de longevidade.
A terra fertil d'esse paiz produz quanto se lembra-
rem de lançar-lhe; desde o pecego e o trigo até á gm-
guba ou mendobi, vimos que tudo vingava com igual
facilidade.
As bastas florestas d'esta pittoresca região abun-
dam em numerosas especies uteis, hoje bem conheci-
das, as quaes os indigenas com muito proveito appli-
cam a diversos usos.
Assim se vêem promiscuamente de um lado as fru-
“ctiferas Diospyros mespiliformis, arvore de boa madeira
e fructo comestivel, que os indigenas denominam mu-
lande, juntas com as erguidas nocheiras, Par. mabola,
de folhas verde escuras de um lado e claras do outro,
como o platano, arvore que mais tarde nos foi tão pro-
veitosa nas matas do Lualaba; e logo perto a Buclea
lanceolata, cujo fructo vermelho muito appetecivel é
conhecido por n'boto; e a ucha ou uxa, tambem ver-
melha, maior que uma cereja, e que já haviamos en-
contrado em Caconda; e amda o gongó, d'onde se
150 De Angola á contra-costa
extrahe do fructo amarello uma bebida mebriante, a
par da Strichnos sps., laranja do mato, de que existem
variedades de um eimzento claro, que são venenosas
e os imdigenas chamam mabóca; e outras 4 mistura,
como as combretaceas e a Perminalia angolensis; de
formosas proteaceas; a Trichos speciosa, de espigas
floridas; de gigantes leguminosas, como Prerocarpus
erinaceus, cujo tronco exsuda vermelha resina; de ru-
beaceas, ete.
Al se encontra o pau camphora, t'chicongo, scien-
tificamente conhecido pelo Tarchonanthus camphoratus,
que em certos logares constitue parte dos bosques; o
pau sandalo, Prerocarpus (?), muito estimado pelos
indigenas, e que, quando arde na fogueira, exhala
aroma similhante ao da madeira da China, servindo
para aquecer os quartos dos sobas e muitos outros usos.
Piradas encomiasticas com respeito a esta região,
por todos conhecida e apreciada, tornam-se em ver-
dade superfluas.
Al acham-se reunidas as condições para uma vasta:
colonisação europêa, e em circumstancias pouco faceis
de encontrar na Africa; é pois urgente tornal-a o alvo
de todos os nossos esforços e attenções, envidar todos
os recursos para que prospere, formando o grande cen-
tro de movimento que breve irradiará para as terras
do norte e nordeste.
Deixemo-nos de mais considerações; capital é que
se deseja, propaganda fazemol-a nós aqui, recordando
que numa terra que tão generosamente secunda os es-
forços do colono nada póde resistir a força de von-
tade bem determmada; e sirva de exemplo esse pu-
Chella arriba 151
nhado de colonos que, tendo ido para ali em 1840,
pela maior parte com os bolsos vasios, levantaram a
esplendida villa de Mossamedes, e são hoje Pelo. g ceral
proprietarios.
Os geographos pela sua parte têem feito o que lhes
mecumbe:; continue o governo a empenhar-se com se-
riedade na obra; venham para o imterior o missiona-
rio, o mercador e o colono, e breve veremos operar-se
a mais radical transformação.
À primeira cousa precisa é crear meios de transpor-
te; de outra fórma todo o successo será Impossivel.
O recemchegado, negociante, mercador ou lavra-
dor, por melhor que seja a sua vontade, nada póde no
mteresse de um paiz falto de bons cammhos e vias
de communicação. |
Que importa o facto da Huilla produzir muito tri-
go, se cada carro boer, por exemplo, leva o excessivo
preço de meia hbra esterlina o arroba para o trans-
portar à costa?
Para que vos serve saber que das vertentes da
Chella até á bacia de Quillengues póde colher-se todo
o milho preciso para o consumo da provincia, e amda
para abastecer a colonia do Cabo, se nem uma espiga
podeis trazer atravez das serranias do Munda?
À viação é o objecto capital, e isto em detrimento
“de todas as outras obras, como hospitaes sumptuosos,
residencias, quarteis, ete., de que de resto temos abu-
sado muito. |
Abrir camimhos, porém, atravez das terras aridas e
em seguida dos matos mteriores para se servirem com
carros de bois, é um erro sem nenhuma vantagem.
152 De Angola á contra-costa
Grande capital seria necessario para uma obra de
que apenas ha a esperar resultado mediocre, sem com-
prehender tempo, trabalho e outros factores, como
morte de gados, etc.
Procuremos, portanto, na viação accelerada resol-
ver este problema, e vamos ao caminho de ferro ou ao
tramway a vapor, como unico recurso para transfor-
mar tudo aquillo. "omemos Mossamedes como ponto
de partida, prosigâmos, por exemplo, pelo valle do Gi-
raul ou do Bero.
Ganhando o interior, essa linha attingirá a região
proxima de Capangombe, procurando a directriz mais
conveniente para vencer as alturas da Chella.
Está aqui sem duvida a pedra angular do edificio,
mas com estudo e trabalho póde conseguir-se.
Podendo proseguir pelo valle do Muninho, teriamos
talvez a vantagem de a levar para o nordeste, isto é, na
direcção dos centros mais productores; no caso con-
trario dirigir-se-iía para o sul do Hoque.
Das duas direcções porém a mais proveitosa, posto
que a julgâmos mais dificil para o caso da subida, é
a do sul, porque havendo de bifurcar-se no planalto,
a fim de lançar o ramal do Humbe, ficava assim dimi-
nuido este, e o ramo directo iria a caminho da Huilla
e Handa para Caconda.
Escusado será dizer que esta direcção media da li-
nha, por nós apresentada pelo nordeste, não se funda
simplesmente na necessidade de servir aquelle presi-
dio, pois, pela exigua importancia que tem o forte, po-
dia ella desviar-se mais ao sul ou ao norte; mas por-
que toda a tentativa ulterior de prolongamento para
Chela arriba 153
o sertão ha de ir approximar-se do Bié, a fim de
buscar a linha divisoria das aguas no mterior, na terra
alterosa.
Assim, em pouco tempo veriamos nós Mossamedes
ligada a Caconda por uma linha directa, que atraves-
sando as terras elevadas teria, n'uma zona lateral de
20 kilometros, a area de 18:000 kilometros quadrados
de terrenos ferteis.
Qualquer companhia que podesse dispor do capital
necessario para o estabelecimento de uma tal empreza,
toparia n'aquella região vantagens muito especiaes e
em circumstancias raro encontraveis.
Primeiro, a sua construcção seria relativamente pra-
ticavel na zona litoral, não só pela facilidade em obter
braços, como tambem, por não offerecer exagerados
obstaculos, estando alem disso proxima do mar e em
vantajosa posição.
Protegida por todos os agricultores e negociantes,
tendo imfallivelmente o transito de todas as mercado-
rias sem competencia, pois a tonelada de algodão que
de Capangombe pagava 335000 réis, pagaria agora,
pela tarifa de 50 réis o kilometro, 55000 réis; teria
esta linha como poucas outras a immediata exploração
de toda a salubre zona marginal, onde breve appare-
ceriam aldeias e villas.
Não podemos seguramente calcular a cifra que a
produeção agricola desde logo attingiria, mas por certo
seria enorme. Os trigos, os milhos, os algodões, os le-
gumes, sem contar desde o principio com a saída de
productos naturaes, que, desviados dos trilhos do nor-
te, viriam ali buscar o terminus da mesma linha; al-
154 De Angola á contra-costa
ternaria sem duvida com o transporte de gados, tam-
bem representado por uma verba importante, e muitas
producções novas.
O cammho de ferro por modo nenhum póde ser
um desastre n'esta região, pelo simples motivo do seu
traçado fazer-se numa zona em que o indigena não
predomina exclusivamente, e porque estamos conven-
cidos de que procreará vastos centros de população
branca, cujas necessidades, bem differentes das do ne-
oro, dependerão das relações exteriores.
Attentemos na situação actual das cousas, e logo
veremos, á luz do bom senso, as grandes vantagens
a advir do seu estabelecimento n'esta região quasi
mexplorada, e quanto d'ella tem a esperar o europeu,
e o negro especialmente.
O commercio na costa oceidental da Africa está, por
assim dizer, no estado primitivo.
Raras são as explorações agricolas de vulto, raros
os estabelecimentos fundados no intuito de arrancar à
terra tudo quanto póde.
A exploração dos productos naturaes é o grande
problema que a todos fascina, como fasemou recen-
temente ainda estrangeiros nos seus calculos relati-
vos ao commercio do Congo, e a final é um recurso
mais variavel do que se suppõe, e meio pouco proprio
a conseguir alguma cousa na questão do progresso
dos naturaes.
O marfim, a cera, o oiro, a borracha, etc., artigos
que este facilmente encontra, são nos mercados cen-
traes permutados pelos cafuses ignorantes, que os tra-
gem à costa, sem que o indigena sequer ganhe as van-
Chella arriba 155
tagens provenientes de uma viagem á mesma costa
ou das relações com o europeu.
O negro recolhe uma bola de borracha, espera o
mercador, vende-lh'a por uma jarda de fazenda, e
quem a compra vae-se, ficando elle como até ali estava,
ignorando tudo.
Não é assim que se civilisam povos, não é por meio
de um tal trafico (erradamente chamado commercio)
que a civilisação tem a ganhar n'aquellas regiões, e
apenas póde aproveitar delle a rabula mercantil do
cafuz e até certo ponto a correspondencia amda pouco
facil com o interior.
Urge estabelecer-se entre os africanos, claro é que
nos referimos ás zonas onde o europeu póde viver; mos-
trar-lhes as vantagens a advir da cultura da terra, fa-
zer-lhes, pelo gostoso exemplo da posse, crear affinco ao
trabalho; imfundir-lhes, pela amostra progressiva do
bem estar, o desejo do ganho e a noção da proprie-
dade; ligar com taes principios a idéa da familia, da
successão, da garantia do trabalho na descendencia;
constituir sociedades cujo modo de ser se affeiçoem ao
que conhecemos n'esse sentido, com principios e ne-
cessidades identicas aos nossos, e só assim teremos
conseguido em África dar um grande passo na senda
civilisadora; só então travará com ella a Europa um
commercio verdadeiro e regular.
Quando ao marfim se substituir a gimguba, 4 gomma
as toneladas de assucar, ao oiro os carregamentos de
algodão, vereis em Africa pullular uma população im-
dustriosa e activa, branca e de côr, capaz de fazer muito
mais do que se pensa; emquanto o commercio se ba-
156 De Angola á contra costa
secar nas contingencias da caça ao elephante, em zonas
asperas e insalubres, só observareis bandos de saltea-
dores negros e a barbarie polygamica espalhada por
sobre o continente.
Attente-se na questão principal, a salubridade, e fu-
jâmos um pouco do norte.
Determimemo-nos a proceder com bom senso e a
cessar de uma vez com essa dispersão irreflectida pela
provincia, de dinheiro e vidas, que em muitos casos
não tem feito mais do que continuar uma terrivel re-
putação para todos os districtos da colonia, e quando
muitos tal não merecem, sem vantagem alguma di-
recta para a mesma colonia.
Querer adaptar o europeu recemvindo e não de-
portado a um meio como o que se encontra no Bengo .
ou nas margens do Cuanza, em Ambaca ou Malanje;
constrangel-o a estabelecer-se ahi com a mulher e fi-
lhimhos que o acompanham, e a empregar-se como
colono no amanho da terra; exigir que ahi edifique,
crie, prospere e consiga ao cabo de annos converter
n'um paraizo aquellas terras, é desconhecer a Africa,
é positivamente matal-o!
Com alguns traços de penna já Livimgstone nos ar-
guiu —e d'essa vez teve bastante rasão, — dizendo
que nós não faziamos muitas vezes mais do que estra-
gar força e perder riqueza, sacrificando improficua-
mente as vidas de tantos milhares de homens que para
ali enviâmos, os quaes podiam occupar-se nas zonas
salubres, para resolver problemas de muito interesse.
Estude-se com seriedade este assumpto, attente-se
bem no que deixâmos dito na epigraphe do presente
Chella arriba 157
capitulo sobre o colono, conceituosamente como o hu-
mano instrumento da magna empreza de civilisar o
mundo; considere-se que sem elle todo o progresso
em Africa é uma chimera, porque só elle ha de assen-
tar as verdadeiras bases de um commercio regular,
activando a exploração do paiz, como contrabalanço
às necessidades que a industria europêa satisfaz; que
só com elle póde radicar-se o elemento social, a fami-
ha, e constituir vastos centros civilisados, d'onde o
mdigena ha de approximar-se, seguindo-lhe as leis
fataes; que emfim elle, levando para ahi a noção exa-
cta do direito da vida e da propriedade, ha de iniciar
o negro na sublime obra da comprehensão d'esses no-
bres sentimentos, que, principiando no respeito pelos
progenitores, se alargam ao lar pela constituição da
familia, e estendendo-se suavemente á prole, acabam
no homem a tendencia animal e egoista de apenas em
si pensar, tornando-o bom filho, marido extremoso,
terno e solícito pae, e depois, quando ajustarmos nas
precedentes considerações, veremos que a principal
cousa a fazer para a colonisação é crear ao colono,
nas terras por onde elle se dirige, todos os confortos
possiveis para resistir aos primeiros embaraços, todas
as garantias para que do seu trabalho derive um suc-
cesso. -
- E não é seguramente, repetimos, no valle do Bengo,
do Cuanza, no Congo em Cabinda ou outro ponto de
condições similhantes, que elle ha de prosperar, dire-
mos mesmo, viver!
Attentae infelizes, que, levados pela cobiça de ad-
quirir riqueza, vos illudis com palavras fallazes e
158 De Angola á contra-costa
enganadoras de quem não sabe ou pretende à vossa
custa fazer fortuna.
Fugi com vossas familias da zona da costa até ao pa-
rallelo do Ambriz vindo do norte, e para o mterior, do
valle dos rios na região htoral e mesmo montanhosa
n'esse parallelo; caminhae para o sul, e encontrareis
no districto de Benguella e sobretudo de Mossamedes,
vastos tractos de terreno, onde o vosso trabalho se po-
derá desenvolver e a saude correrá sem risco no meio
dos labores mcessantes da mais rude das vidas—o
arrancar á terra o sustento de cada dia.
Tudo o que fizerdes em contrario das mformações
que vos fornecemos aqui, será o resvalar para a beira
do abysmo, um passo inconsciente para esse termo fa-
tal, que se chama o tumulo!
E se estas mdicações servirem áquelles que gover-
nam, já apoiando-vos com o seu inigualavel patroci-
nio, já auxiliando a organisação de companhias que
vos possam coadjuvar na lucta dos primeiros tempos
em terras novas, nós d'aqui, afiançando o rapido pros-
perar da região sobre que ora escrevemos, agourâmo-
vos um futuro de felicidade.
CAPITULO V
NA HUILLA
Coincidencia feliz — Antonio Carles Maria, o companheiro caçador —
O acampamento e o soba da Huilla
A feitiçaria— Suas relações com
os regulos —A habitação do feiticeiro e os instrumentos do officio — Pro-
cesso de adivinhação — Uma scena pela noite — À missão da Huilla e os
missionarios— Duparquet e a sua obra— Partida para Quipungo— Às
florestas e o passaro cabra — À fauna da Huilla e as penedias de leste —
Os ba-nhaneca e os dentistas — Efeitos do tiro entre africanos — À ha-
bitação do soba de Quipungo — Visita ao regulo — Um companheiro apeado
e o regresso pelo sul — Casulo estranho — Considerações.
Desde o dia 3 de
maio até 29 do mes-
mo mez, dissemos no
precedente capitulo,
demorou-se a expe-
dição portuguezanas
“terras da Huilla, or-
canisando, conforme
era sempre seu cos-
| tume, um acampa-
mento no mato.
Nada ha melhor,
para evitar as repe-
tidas visitas de im-
portunos e prevenir desgostos provenientes de que-
rélas e complicações, frequentissimas entre africanos,
do que isolar-se o explorador e a sua gente em acam-
pamento afastado das aldeias.
162 De Angola á contra-costa
Só assim descansa e póde disciplinar os seus, bem
como se faz trabalho aproveitavel, e tal é a nossa con-
vicção a este respeito, que, embora tivessemos uma
fortaleza e a residencia da auctoridade 4 nossa dis-
posição, preferimos conservar-nos de longe no socego
do bosque.
A intenção era aproveitarmos aquella demora para
visitar as terras do Quipungo, onde se dirigiria um de.
nós, avançando, se porventura podesse, até à margem
do rio Cunene.
Por acaso o chefe do concelho precisava ir al em
objecto de serviço do governo; uma tal cireumstancia
nos proporcionou o ensejo de ter por companheiro
um individuo conhecedor do paiz e prompto a auxi-
liar-nos com a melhor vontade.
Esta eventualidade feliz teve ainda um outro re-
sultado, que foi travarmos relações com um joven
africano, Antonio Carlos Maria, que depois fez com-
nosco a travessia á contra-costa na qualidade de ca-
cador, e, seja dito sem rebuço, pela sua andacia e
energia nas correrias cynegeticas, dez vezes salvou a
expedição de um dos mais desgraçados fins — a morte
pela fome!
Como houvessemos solicitado do sr. Chaves o obse-
quio de nos procurar um homem, conhecedor da lim-
gua do paiz, para n'esta digressão auxiliar-nos com
as informações gentilicas que precisassemos, apresen-
tou-nos o mancebo já citado, com quem bastaram tres
dias de convivio para reconhecermos um estimavel ca-
valheiro de não vulgar caracter; e decidimo-nos a todo
o transe a contratal-o para a viagem. |
Na Huilla 163
Antonio Carlos Maria é a perola dos rapazes afri-
canos; seu pae, a quem corriam as lagrimas ao entre-
gar-nol-o, conta já oitenta e dois annos, e deve exul-
tar, julgando-se pago dos sacrifícios que por elle fez,
quando ler estas breves linhas.
Permimada a construeção do grande acampamento
fronteiro á villa, abrimos um parenthesis de descanso,
para em seguida nos lançarmos aos labores que nos
esperavam.
E foram dias agradaveis esses, passados à sombra
de gigantesco sycomoro, no centro de paizagem sorri-
dente, entregues a miudo aos prazeres de uma mesa
bem servida, o que na Huilla é facil conseguir. Durante
elles recebemos numerosas visitas, umas por curiosi-
dade ou passatempo, outras por dever de delicadeza,
muitas para conseguir algum beneficio em fazenda ou
aguardente, etc., mediante artigos de negocio, que se-
ria longo enumerar.
Entre os visitantes figurava sempre um velhote que
se considera regulo ali, e que nas suas entrevistas
pedia apenas aguardente.
Era o seu pensamento fixo, desde que saíra do nosso
campo e cremos que toda a noite, o inventar a ma-
neira de no dia segumte nos extorquir mais copos do
entbriante liquido. |
Ultimamente, para assegurar o exito, trazia comsigo
uma macota, creatura feia e de repellente aspecto,
mas em cujo olhar transluziam os coriscos de velha-
caria, e que se dizia ser um w'ganga!
É um terrivel feiticeiro, afiançou alguem em áparte;
possue o segredo de todos os mgredientes que podem
164 De Angola á contra-costa
matar; adivinho formidavel que tudo sabe; bastando-
lhe olhar qualquer pessoa para que os Sandis se ape-
quem com ella.
Capaz até de adivinhar onde estava a aguardente,
considerámos nós!
Toda a cautela é pouca, foi a conclusão, e tal crea-
tura nada aqui póde vir fazer de bom.
E nós, olhando para o nºganga, e logo para os imter-
locutores, pasmavamos do quanto póde a superstição e
a ignorancia n'um cerebro mal alumiado pelo juizo.
Entre as crenças estranhas, arreigadas no espirito
do negro, existe aquella — sabem-no todos — de que
certos mdividuos téem o poder de adivinhar, e esta
triste convicção faz com que nas diversas tribus exista
um ou mais d'esses mdividuos, n'gangas ou adivinhos,
que, valendo-se da cegueira dos seus conterraneos,
commettem toda a casta de extorsões e de mfamias!
E para lastimar, porém, que, estreitamente ligados à
tribu onde residem pelos laços da necessidade e do
respeito, estes heroes, embora odiados, sejam sempre
um grande recurso para os chefes no processo de espo-
liarem os vassallos, tornando-se por vezes mstrumen-
tos de oppressão e tyrannia, quando por conta propria
os seus perversos corações não os levam, arrastados
pela cobiça ou vingança, a commetter actos da mais
requintada barbaridade.
1 Sandis, segundo Magyar, é entre os binbundo o feitiço do bem;
segundo nós é uma designação generica de feitiço e alma de mortos, ou
o seu vulto, como quizerem. No nosso primeiro livro, De Benguella às ter-
ras de Tacca, fallâmos do Quilulo NºSandi, como o grande feitiço bieno,
assim como entre os dâmaras é o Otjiruro, absolutamente o mesmo.
É
Na Huilla 165
O imdigena africano, em tudo que seja menos vul-
gar, encontra a explicação na feitiçaria, e para Isso
torna-se-lhe necessaria a presença do adivinhador!
A morte de qualquer parente, a fractura de um
membro, a mais simples doença, ou a perda de uma
cabeça de gado, são questões que não passam sem
elle ser chamado e ouvido.
Accumulando alem disso o conhecimento das her-
vas do mato, e mézinhas a empregar em sua grosseira
therapeutica, d'onde propriamente lhe deriva o nome
de n'ganga, é considerado como verdadeiro salvador,
unico capaz de evitar esses grandes infortunios.
Os adivmhos são pelo geral homens feios, mesmo
defeituosos, e quasi sempre individuos a quem a de-
cepção e sérias contrariedades tornaram biliosamente
perversos e mimigos do seu similhante.
Vivem sós, em uma pequena cubata, no logar mais
escuso da aldeia e afastados do rumor. |
O mterior da habitação, e frequentes vezes uma
pequena gaiola fronteira, especie de miniatura da vul-
gar casa africana, impressionam o viajante. Ahi se
observam em pequenas hasteas craneos de diversos
animaes desde o boi até ao macaco, panellas meio en-
terradas, contendo chifres de antilope cheios de uma
massa preta e outros mmusculos de gazella, caudas
“de boi e de leopardo, unhas de leão, bicos de papa-
gaio e cabeças de morcego, á mistura com cascas de
kagado, pés de pato, emfim quantos objectos pelo seu
estranho aspecto possam impressionar a Imaginação!
Usam invariavelmente um adorno de cabeça com
plumas, uma vara com sementes cheias de cascalho,
166 De Angola á contra-costa
ruidosa ao agitar-se, bem como determinados mgre-
dientes para a pintura pessoal, isto é, pós brancos,
outros vermelhos ou amarellos, etc.
“Estas creaturas exercem o seu malefico officio por
diversos modos: dão a engulir aos accusados o gura-
mento (prova da bebida), preparam ciladas a qualquer,
de quem os parentes pretendam desfazer-se, mimis-
trando a estes beberagens vomitivas, em panellas que
depois se encontram com os ingredientes em casa do
suspeito réu, por ahi haverem sido postas clandesti-
namente; n'outras conjuncturas roubam e trocam ob-
jectos, e, enterrando-os defronte das portas, resultam
por causaes coincidencias revelações do crimimoso.
Os processos que se empregam na adivinhação va-
riam conforme as tribus e os ariolos, mas constam
sempre, é claro, de scenas de magia mais ou menos
phantasticas.
Umas vezes é mediante paus e pedras redondas que
conseguem conhecer os criminosos: outras léem nas
convulsões de uma galinha ou cabra moribunda as
scenas do futuro, e pelos gritos nocturnos da coruja
ou da hyena, animaes em cujo corpo, pelo geral, sup-
põem residir o espirito dos mortos; m'algumas, emfim,
empregam fingidos extasis, etc.
Torna-se hoje quasi importuno repetir similhantes
factos, por isso limitar-nos-hemos, só para o ultimo
dos ditos casos, a narrar quanto nos foi desecripto.
Logo que por qualquer cireumstancia, como rou-
bo, assassinio ou doença, o adivinhador é chamado por
uma tribu, tudo ali se prepara para a ceremonia, que
quasi sempre é depois do accaso do sol, escolhendo-se
Na Huilla 167
noites escuras, e parece que ás vezes na lua nova, a
fim do feiticeiro poder tirar maior vantagem, impres-
sionando a imaginação do publico com o contraste das
trevas e do fogo, que para esse effeito ateiam em di-
versos pontos.
Reunidos todos os individuos da terra em vasto cir-
culo, dentro do qual crepitam, como dissemos, foguel-
ras que pela sua luz tremulante dão à scena phantas-
tico aspecto, colloca-se a meio o n'ganga, prompto e
paramentado, a face riscada com traços de cores, um
enorme pennacho, a cabeça ornada de chifres de anti-
lope, um bilboquet na mão e ás vezes caudas de ani-
maes à cinta. Junto a elle, em pequena esteira, vê-se
uma panella de barro contendo certo hquido especial,
pequenos paus dispersos, e uma cabaça cortada em
tórma de bacia, com varios objectos, cuja vista causa
espanto, e que seria difficil descrever.
Bagos de missanga, buzios, pequenas imagens de
pau, arremedando um homem ou uma mulher, pedras,
bicos de aves, garras, pés resequidos de corujas, etc.,
que ahi o visitante póde notar boquiaberto.
De subito o adivinho solta um silvo, e agitando o
bilboquet enceta uma dansa grotesca.
As mulheres cantam em côro ao compasso das pal-
mas, emquanto elle, aos saltos, percorre os grupos e
observa attentamente os circumstantes.
Aqui pergunta, acolá responde; finge afastar-se, de
subito volve, mira, affirma-se, e como esperto e obser-
vador, espera a todo o momento ver transparecer no
rosto ou nos movimentos inquietos de alguem as pro-
vas do crime.
168 De Angola á contra-costa
Por vezes sãe do circulo, acocora-se, confunde-se
com a multidão, e raro será que, no caso de roubo, o
-supersticioso auctor, estando presente, não se tráhia
por algum signal.
Apenas iniciado volve, e, em pulos estranhos, appro-
xima-se da esteira.
Acocorou-se. Eil-o de joelho em terra, cabaça de
feitiços na destra, a mão esquerda estendida horison-
talmente, a cabeça curvada, acenando a compasso.
Ligeiros impulsos dados no sentido vertical deixam
ver os objectos contidos no mterior, até que, repetin-
do o movimento com mais energia, um d”elles cáe no
terreno.
Largando a cabaça apodera-se delle, mira com ar
bestial por mómentos, firme, emmudecido; depois co-
meça com esgares e momices, que pouco a pouco exa-
gera, escancára a bôca, e arregalando os olhos imje-
ctados de sangue, eillo que se levanta, e em saltos
vertiginosos percorre a arena como um louco!
A luz palhida dos madeiros que ardem, esse homem
sarapintado, agitando-se no meio das mais estranhas
convulsões, narinas entreabertas, labios espumantes,
parece um verdadeiro demonio, revestido de todos os
attributos com que a imaginação adorna esta casta de
creações!
Apoz a estranha lueta, cáe emfim extenuado e, es-
trebuxando, profere o nome da victima, que, cheia de
espanto, pretende fugir, mas é acto contínuo agarrada.
Poderiamos amda relatar factos curiosos, principal-
mente ácerca da cura de doenças, por meio de en-
cantamentos e scenas de feitiçaria; isso porém levar-
É Na Huilla 169
nos-ía longe, em repetição de certo pouco proveitosa,
pois raro é o viajante que a elles não tenha alludido.
Alem de que entre os ba-nhaneca têem cessado simi-
lhantes costumes, o que se deve à vigilancia exercida
pela auctoridade local.
Entre os cavalheiros com quem nos relacionámos na
Huilla, e nos deixaram grata impressão pelo affectuoso
TYPO MU-NHANECA LUPOLLO
Segundo photographia
recebimento que nos fizeram, figuram sem duvida os
missionarios, á frente dos quaes se acha um sacer-
dote de muito merecimento e alto valor intellectual,
o reverendo Duparquet, hoje vice-prefeito apostolico.
Esse homem, a cuja persistencia e firmeza se deve
em grande parte o estabelecimento da missão e o seu
estado prospero, cujos trabalhos, quer no interesse da
170 De Angola á contra-costa
propaganda religiosa, quer no da geographia, são
conhecidos em todas as publicações, desde o jornal
das missões até aos boletms das sociedades geogra-
phicas, cuja vida tem sido uma constante lucta no
serviço da religião, ora em Zanzibar, Kimberly, no
Dámara ou no Ovampo, ora na Huilla; esse homem,
dizemos, é bem digno que Deus lhe conceda saude e
prolongue a vida, para completo exito do piedoso e
relevantissimo serviço em que está empenhado.
A missão, que está collocada em risonho valle por
onde serpeia pittoresco rio, compõe-se de vastos es-
tabelecimentos bem construidos, cercados de jardims,
hortas e terras de semeadura, devido tudo a grande
esforço e trabalho, tendo que drenar as terras em gran-
de extensão, e dirigir as aguas do rio; é n'esse aprazi-
vel sitio onde mais agradavelmente se passa na Huilla,
e o recemchegado se sente satisfeito ao entrar no ga-
bmete de leitura.
Exultámos ao ver o sentido pratico que a missão dá
aos seus trabalhos, a par d'aguelles da catechese, der-
ramando na areà da sua acção o gosto pelos labores
de toda a ordem, principalmente agricolas.
Lembra-nos o que escrevemos ao concluir da nossa
obra De Benquella ás terras de Tacca, quando fallámos
do missionario, e apraz-nos notar que a missão da
Huilla, embora não tenha sido guiada pela singeleza
das mdicações, de resto sem a menor pretensão, vae
casualmente em linha parallela com o nosso pensa-
mento.
Diziamos nós então: «O negro, desde o primeiro dia
que avistar o missionario, deve ver n'elle, não uma
Na Huilla nErAl
creatura suspeita, revestida de caracter mais ou menos
mysterioso: mas um bom guia, todo carmho, juiz recto,
de cujo contacto só lhe resulte a felicidade.
«Deve successivamente encontrar um mestre, não
disposto a indicar-lhe com alambicado mysticismo o
caminho da bemaventurança, mas sm a ensmar-lhe
o modo de regenerar-se, deixando os habitos mdolen-
tes pelo trabalho, fugindo do ermme pela constante
pratica da virtude, e pondo-o à altura, sobretudo, de
exercer qualquer mdustria util para si e para os seus
similhantes.
«Ensinar o indigena a fazer a charrua e extrahir o
ferro pelo modo mais aproveitavel, a combimal-o com
o carbene para produzir o aço; incutir-lhe a primeira
noção do moinho, revelar-lhe o modo de aproveitar a
força das aguas e as vantagens do amanho da terra,
eis em resumo o fim serio da missão ali.»
Paes eram as nossas palavras ao tempo, e que feliz-
mente vamos vendo realisadas na Huilla.
Fazemos votos pela prosperidade da missão, con-
vencidos de que o negro ha de sentir em curto espaço
de tempo os seus beneficos effeitos, acabando por modo
gradual com essas repugnantes e torpes scenas de fei-
tiçaria, cuja deseripção, para bem frisante se tornar
ao leitor, intencionalmente pozemos antes d'estas con-
siderações.
Apenas nos sentimos refeitos do cansaço da via-
gem, preparámos tudo para abalar. Dez dias levámos
n'uma digressão para o nascente, de que pouco se co-
lheu, por causa de embaraços imprevistos, não conse-
guindo a final ver o Cunene.
172 De Angola á contra-costa
Eis o que se encontra no diario, a proposito:
«A 6 partimos ao romper da aurora, acompanhados
de trmta homens, o chefe do concelho e o nosso joven
caçador, montando aquelle uma soberba egua, compra-
da a Erikson, negociante inglez do Cabo, e nós em
bois-cavallos ou typoia.
«Uma manhã radiante e um tempo esplendido con-
vida-nos a marchar. À estrada é de carro.
«O caminho segue para leste, marginando pelo norte
dois morros, Catalla e Nandumboe, por meio de es-
pesso arvoredo, tendo na perpendicular depressões
que aceusam pequenos riachos na epocha chuvosa.
«Mupandas, n'dumbiros, mutontos, mumóes e aca-
cias pouco elevadas emergem do meio do tapete de
fofo capim, protegendo-nos com a sombra de sua ra-
magem.
«Quatro horas sucecessivas a andar nos levam atra-
vez dos bosques, que pela sua invariabilidade come-
cam a tornar-se monotonos. Aqui e alem uma rola foge
espantada diante de nós, emquanto que o Schizorhis
concolor, Smith., com o seu corpo cmzento, comprida
cauda e popa elegante, nos acompanha pulando de
ramo em ramo, e com ar de curiosidade solta de
espaço a espaço um balido similhante ao da cabra.
«Antonio conta-nos em caminho historias das suas
caçadas, de como matou o primeiro leopardo, e o des-
dem que o leão lhe inspira, esforçando-se por mostrar
ser Immerecido o titulo de re das selvas.
«Falla-nos da inveja que tem das armas dos boers,
das caçadas ao elephante, e ao referir-se a estes, exal-
ta-lhe a imtelhgencia, a ponto de nos afiançar que o
Na Huilla Rio
elephante femea corrige o irregular proceder dos fi-
lhos, arrancando pequenas arvores para lhes inflingir
o necessario castigo!
«Pela tarde acampámos, e, emquanto se preparava
a comida, entretivemo-nos a desenhar alguns typos
lupollos. Estavamos no limite das terras entre Hluilla
e Quipungo dos banhaneca.
«Durante o dia 7 fez-se marcha extensa, por meio
de um panorama similhante ao do dia anterior. O ter-
reno continua horisontal, sendo deserto de habitações
humanas.»
E abundante a caça n'este districto, tendo nós occa-
sião de saber da existencia de m'pallas, Zpyceros me-
lampus; de gungas, Boselephus oreas (?); de nuimas, de
unjimris, Sterpsiceros cudu; de quihunos, de bambis, Ce-
phalophus mergens; de gazellas, Cervicapra bohor; sem
contar zebras, elephantes, leões, leopardos, chacaes,
hyenas, etc., nas florestas do sul.
À terra em todo o caminho tinha pittoresco aspe-
cto; a natureza do solo é quasi geralmente constituida
por tractos argillosos, com massas concretas, coradas
pelo hydroxydo de ferro, assim como por affloramen-
tos de grés.
Sopra uma brisa do sueste, que mitiga extraordina-
riamente os ardores do sol, alentando quem viaja.
Durante o dia 8 proseguimos a principio por terra
deshabitada, encontrando só as primeiras habitações
pela tarde.
À circumstancia mais notavel é que logo de manhã
começou o solo a apparecer semeado de negras pene-
dias de gneiss, sobre as quaes se ergue uma planta ori-
Ad De Angola á contra-costa
gmal, cujo caule, negro, ereeto e desnudado, termina
por delgadas folhas, planta que entre os indigenas é
conhecida por cachmde e a sciencia designa com o
nome de Myrothamnus flabellifolia.
Este facto, o do terreno começar em declive rapido
para leste, e ainda o das penedias contmuarem na li-
nha norte-sul, mdica claramente que o sublevamento
que teve logar para o gneiss do subsolo vir á super-
ficie, origimou que se formasse a bacia do Cunene.
À vegetação por sua parte varia ao oriente da zona
pedregosa, desapparecendo as especies do genero Ber-
linia, as mupandas, Bachystegia spiceformis, ete., para
ceder logar ás legumimosas de espinho e de comma,
como a Acacia albida, Acacia pennata (?) e outras. Caso
notavel, topámos aqui com um rachitico bao-bab, que
n'estas altitudes se atreveu a vingar!
Durante o dia 9 proseguimos ligeiros para a em-
balla do soba, atravez de enormes arimos de milho e
sorgho, plantações a que sem duvida a terra onde nos
achâmos, Quipungo, deve o seu nome, derivado de
Epungo, milho.
Numerosos lameiros e pantanos embaraçam o cami-
nho, levando-nos a suppor que as penedias ao oeste
traçam um como que limite à vegetação da Hhulla
e marcam tambem o extremo da facha, alem da qual a
salubridade poderá talvez soffrer alguma modificação.
Habitam esta zona os ba-nhaneca, distmgumdo-se
dos ban-dimba no sul, por partirem os dois imeisivos
medios de cima, emquanto estes partem os dois de bai-
xo, e dos cubaes no oeste, que arrancam uns e outros
dentes.
Na Huila 175
Assim, no plateau da Huilla, bastava-nos a simples
mspeceção da dentadura do primeiro mdigena encon-
trado, para sabermos a que familia pertencia.
O processo de ablação dos dentes, empregado pelos
dentistas da terra, é curioso e de uma simplicidade im-
comparavel. Apenas um paciente a Isso se propõe, o
operador pega dos ferros de duas machadinhas, e im-
troduzindo um na bôca, encosta-o no rebordo da gen-
giva de dentro para fóra, emquanto com o outro, fa-
zendo de martello, extrahe á terceira pancada o mais
seguro dente. Rebenta, pelo geral, o sangue em abun-
dancia, e então um pau quasi em braza se introduz
entre as gengivas do operado, que, apertando-o com
força de encontro ao logar contendido, estanca a he-
morrhagia!
O original é que este processo se emprega tambem
para os queixaes, não deixando nenhum à terceira
pancada de ficar com as raizes ao ar!
Os ba-nhaneca são em geral de boa presença e sym-
pathicos. Dividem-se em numerosas tribus com os
nomes de ban-gambue, ban-jau, ban-pata, ba-pungo,
ba-pollo, ba-hae e ba-quihita, ocenpando uma grande
parte da terra em que nos achâmos, de que se consi-
deram exclusivos habitantes.
Empregam-se na agricultura e principalmente no
mester de pastores, possuindo grandes manadas de ga- |
do. Doceis e laboriosos, é facil aproveital-os em muitos
generos de trabalho. D'elles anda volveremos a fallar.
As duas horas démos vista da residencia do soba;
approximámo-nos, escolhemos logar apropriado, e em
seguida mandámos arriar as cargas.
176 | De Angola á contra-costa
Pouco depois estavamos cercados de uma multidão
de indigenas, typos variadissimos, apertando-se para.
observar o branco que vinha visitar o soba.
Era a segunda vez que nos achavamos entre es-
tes povos, pois já com os do norte haviamos em nossa
primeira viagem feito conhecimento, quando de Quil-
lengues fomos para Caconda.
Emquanto à sombra de uma arvore repousavamos,
e esperando que terminasse o arranjo do acampamen-
to, exhibiamos a nossa humilde pessoa á avida curiosi-
dade dos mdigenas, que commentarios faziam a nosso
respeito, fomos esboçando alguns dos seus typos mais
notaveis, facto que lhes causou grande surpreza. Pas-
sado algum tempo recebiamos um boi que o regulo
nos enviava e um tiro certeiro prostrou immediata-
mente, acrescentando mais o geral espanto.
Que impressão causa ao africano a rapidez e cer-
teza do tiro feito por mão de europeu!
Ão pegar da carabina, observa-se sempre uma dis-
posição em todos para fugirem ao minimo movimento
suspeito; depois, ao verem apontar ao animal, appro-
ximam-se, apertam-se, miram ora o atirador, ora o bi-
cho, e quando de subito o tiro parte e a victima tomba,
grande é a celeuma que se levanta, começando todos
aos saltos.
E ai d'aquelle que em scenas d'estas tenha a imfe-
licidade de errar o tiro. O seu prestigio entre os sel-
vagens perderá logo metade da grandeza.
Duas horas depois, preparámo-nos, partindo com o
chefe da Hluilla, e o novo companheiro de viagem, An-
tonio, para a banza do regulo no imtuito de o visitar.
Na Huilla Jor
A residencia de um chefe por estas terras conhece-
se sempre pelos meios de defeza que a cireumdam. Vi-
ctimas muitas vezes de mcursões de inimigos saltea-
dores, e tendo de defender os povos das vizinhanças,
têem forçosamente de lhes dar amplas porporções e
E de ado
dit
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AVR PETOA ! ) U
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SENZALLA EM QUIPUNGO
Segundo photographia
collocal-as em estado de não serem facilmente surpre-
hendidas.
- Por isso a banza de Cunde-M'bumba, embora mo-
desta e composta de casas distribuidas sem ordem,
n'um vasto reemto quadrangular, com o mesmo aspe-
cto que todas as communs habitações dos africanos
do oeste, é defendida por uma forte paliçada fixa até
ao meio na accumulação de terra alta, que a abertura
12
178 De Angola á contra-costa
de um fosso por fóra origmou. No interior ainda cor-
rem linhas de estacaria em direcção diversa, e que
pelas respectivas portas dão accesso para quintaes ou
recintos fechados, formando uma especie de labyrim-
tho, ao meio do qual se acha a vivenda particular do
soba, dos seus guardas, mulheres, creanças, etc.
Sentado o encontrámos nós a um canto do quintal,
cercando-o uma duzia de seus vassallos mais impor-
tantes, entre os quaes figurava o calti, especie de ge-
neral, que se distingue por um pennacho amarrado
no alto da cabeça e pendendo para a testa, o calfele, e
um cavalheiro, que julgámos ser o quissongo grande,
ou fallador mór da côrte; smgelamente vestido, com
um panno á cinta, sem armas, nem insignia alguma
emfim, que denotasse a sua alta posição.
Um pote de pombé veiu cortar a monotonia desta
scena serio-grotesca, e emquanto os nossos compa-
nheiros se regalavam com copos successivos, diverti-
mo-nos a observar o caléi, personagem que nos pare
ceu para tudo ter geito, menos para general.
Terminadas as libações, vestiu o regulo uma farda
que lhe demos, permittindo-se então proferir algumas
palavras, que a turbamulta se encarregava de abafar,
por exclamarem, mal elle abria a bôca, Quieto! Quieto!
Tate-Culo! Calunga! especie de agradecimento e baju-
lação banal.
Dando-lhe as costas, voltámos para o nosso campo,
e, philosophando sobre a misera vida que em pleno
seculo xIx passa esta gente, entre o pirão de milho e
a ociosidade, uns com os cabellos untados, outros com
smgela pelle de gato bravo pendente da cemta, a nós
Na Huilla 179
mesmo mentalmente perguntavamos se elles estariam
condemnados a viver sempre assim, e em tal caso que
satisfação lhes offerece a vida!
Metteu-se a noite, e, envolvendo-nos n'uma manta,
adormecemos sobre a terra, para logo ao alvorecer
nos mettermos de novo a caminho.
Muene Muanja, soba que adiante encontrámos, deu-
nos seis caçadores para guias, porque, dizia elle, as
matas até ao Cunene eram bravas.
Andámos até ao declinar da tarde, quando duas
circumstancias imprevistas nos impediram de ir mais
longe.
A primeira foi um accesso febril que nos sobreveiu,
proveniente da ingestão de agua leitosa, unica que
encontrámos numa poça em Quipungo; a segunda
consistiu na fuga para a retaguarda da egua em que
um dos nossos companheiros vinha montado.
Rebentára a corda que a segurava, e o animal, se-
guindo velhos habitos, talvez causa da sua venda por
Erikson, partiu florestas a dentro, deixando o seu pos-
suidor apeado, e sendo muteis quantos esforços se fi-
zeram para a alcançar.
Perdido o dia 11 na fama de a procurar, resolvemos
retroceder, e passando de novo por Quipungo, cortá-
-mos pelo sul em direcção á Quihita, conduzindo como
despojo uma gazella que matámos.
À zona percorrida no sul é mteiramente similhante,
como era de presumir, 4 do norte, optima para trilha-
do de carro do systema boer. Pela mesma longitude
encontrâmos a zona pedregosa, bem como identica
variante na vegetação.
180 De Angola á contra-costa
Grandes plainos se alongam pelo oriente do rio Cu-
culo-bale, onde observámos bandos de zebras, e al-
guns macacos pulando de arvore em arvore, dos quaes
matámos um da especie denominada Cercopithecus
Werneri.
Notámos frequentes vezes entre as folhas do capim
uma substancia branca em tudo similhante á secreção.
salivar. Inquirmdo da sua proveniencia, soubemos que
um insecto, Bombya (?), fazia aquella especie de casulo,
que mais tarde, sob a acção dos raios solares, endure-
cia, servindo para ahi collocar uma larva. O msecto
não o podémos ver.
Grandes morros se erguem mais adiante no terreno,
por entre os quaes dois dias inteiros levámos a cami-
nhar até que, topando com o Cuculo-bale, o transpo-
zemos no dia 15, e a 16 entrámos de novo no acampa-
mento.
A digressão feita durante estes dias, se por um lado
não teve grande alcance scientifico, offereceu por outro
suas vantagens, pois nos veiu evidenciar mais uma vez
quanto é propria à colonisação esta terra, cujo salu-
bre clima e feracidade resaltam aos olhos do mais im-
differente.
Os mesmos lameiros que encontrámos na trilhada
do norte estão cireumseriptos a uma pequena zona,
desapparecendo totalmente no sul para dar logar a
um paiz aberto, fresco, saudavel e apto a variadissimas
culturas.
O que urge é arroteal-a, crear centros de colonisa-
ção, como já dissemos, promover a Immigração, offe-
recendo todas as garantias de que carece o imício de
Na Huilla 181
uma tão importante obra, e, digamos agora tambem a
verdade, providenciar de um modo pratico ao traba-
lho do mdigena.
Isto de reger colonias em tão especial situação, letra
a letra pelo nosso codigo fundamental, de collocar o
negro ao abrigo das leis beneficas n'elle outorgadas,
de crear-lhe mesmo curadorias por toda a provincia,
trazendo juizes e seus subalternos em constantes cor-
reições, no imtuito de vigiar e impedir as exigencias
do branco para com o preto; e deixar este na ociosI-
dade, levando uma vida licenciosa, e quiçá tendo sen-
zallas e banzas, ás quaes elles se arrogam o direito
de senhorio e governança dentro da mesma provincia;
parece-nos que, se por um lado se póde considerar
louvavel no intuito tocante á protecção, é assás repre-
hensivel sobre o ponto de vista moral e economico.
À protecção e a liberdade bem consideradas não
devem consistir n'esse amplo consentimento, que hoje
damos ao mdigena africano de trabalhar só quando
quer, com grave detrimento de quantas mdustrias ali
se iniciam e prejuizo do commercio e da propriedade
rural.
Se a lavoura, por exemplo, em Africa não dispensa
o preto, e este no sertão, feito soba e encurralado na
banza, despreza qualquer trabalho, como póde fazer-se
prosperar a terra? É Impossivel!
Ora, sendo de todos conhecido este facto, não jul-
gâmos convemente conservar no centro dos mais ri-
cos districtos o negro n'um estado de liberdade que
nem na Europa conhecemos, só porque alguns igno-
rantes, mteressados pela situação desse chamado im-
182 De Angola á contra-costa
feliz das selvas, clamam ao menor principio de repres-
são que lhe diz respeito.
Permittir-lhe a vadiagem é deixal-o contrahir na
ociosidade repugnantes vicios, que pouco a pouco ori-
gimam crimes; e querer depois castigal-o com a appli-
cação do codigo penal do reino, que elle não com-
prehende, nem sente, nem o molesta, garantindo-lhe,
por exemplo, o alimento no caso de prisão (seu sonho
dourado, comer sem trabalhar), torna-se uma verda-
deira calamidade.
É digno de estudo este assumpto, que nos suscitou
a visita pelas terras onde nos achámos, objecto que
fatalmente carece de leis e regulamentos especiaes,
fundados em grandes recenseamentos e na ampla
alçada da auctoridade admimistrativa para extmguir
a vadiagem do preto e submettel-o ao trabalho; preci-
sando tambem de penas adequadas para os crimes que
pratíca, a fm de afastal-o da directa mtervenção da
tutela amda hoje existente.
Se o negro é cidadão portuguez, regendo-se pelos
prmeipios do codigo pohtico, que nos impõe determi-
nados deveres, mas nos concede preciosos direitos, não
carece de tutela judicial.
Esta é a verdade.
CAPITULO VI
AO SUL
Consolações de quem viaja — A abalada da Huilla—Uma fuga e o
abandono das camas —O Chimpumpunhime—O caminho dos Gambos e
os espinheiros—O Tongo-tongo ou o morro sagrado —Os dias n'esta
terra— As florestas e a fauna — Os ban-dimba e a sua voracidade — Ves-
timentas e proceder para com os mortos — Considerações e a festa da
hela—orocuto e uma erupção granitica— Cahama e Xicusse—A mesa
e suas consolações — Quatro elephantes e à fauna ornithologica —O ero-
codilo e a pomba— A floresta que termina — Os ba-cancalla ou bushmen,
duas palavras a respeito d'elles— Tatouage, armas envenenadas — Seu
caracter —O Humbe e a caça considerada pelos ban-cumbi.
Entre os diversos
consolos que experi-
mentámos n'essa tri-
lhada de esperanças
e decepções, angus-
tias e labores de uma
à outra costa, figu-
ram sem duvida os
da manhã do dia 29
de maio.
Contornados em
todos os sentidos pe-
los numerosos con-
celhos da provincia,
centros agradaveis para o indígena, e de cujo remanso
lhe é tão custoso afastar-se, assentes com a nossa ca-
ravana n'um acampamento aberto, d'onde era facil
evadir, não foi sem grande commoção que, depois de
186 De Angola á contra-costa
tantos dias de anceio, nos erguemos, e ao fazer a cha-
mada vimos que nenhum homem, nem apenas uma
carga faltavam.
Deu-nos alento este facto, pois, evidenciando que
necessariamente uma optima disposição continha agora
os espiritos, mostrava tambem que os receios eram
“imfundados, e a final a nossa gente estava disposta a
seguir-nos.
E persuadiu-nos ainda de que, se o goso da hber-
dade no campo concorrêra em muito para bem os
dispor, sobretudo havia servido o systema de os des-
embaraçar de idéas simistras, e que o processo agora
seguido, de calar os nossos imtuitos, refermdo-mnos,
quando mterrogados sobre o fim da viagem, a sim-
ples digressões no districto, era o unico para dar bom
resultado.
A idéa de uma travessia, se para nós era o supremo
anhelo, para elles seria o signal de debandada geral;
e a declaração de uma viagem até meio do contmente,
bastaria para nos limpar o quilombo de metade dos
companheiros.
O segredo, pois, era a alma do negocio, urgindo
evitar a todo o transe confidencias e expansões, para
não ver reproduzir a estranha scena que as notas so-
noras da trombeta de Jerichó provocaram, isto é, o
desabamento completo do nosso edificio á mais pe-
quena phrase de revelação!
Continuando a narrativa da nossa peregrmação,
que o leitor por vezes desculpará em seus candidos e
pouco romanticos detalhes, que a final não deixam de
approximar ali as nossas impressões, dêmos a voz de
Ao sul 187
leva arriba, e, voltando as costas para a Huilla, parta-
mos ao sul.
Eis o que no diario se acha em referencia a essa
retirada, prova bem evidente da nossa disposição ao
efreitual-a::
«Ás sete horas largámos. Em extensa linha desdo-
brou-se a caravana para a banda do sueste, e serpean-
do por entre os verdes capims, breve desappareceu por
detraz dos morros.
« Estava uma manhã linda, havia geada, calma, ti-
nhamos frio; os passarinhos gorgelavam, sentiamo-nos
bem, os membros entorpecidos animavam-se, cavalgá-
mos os bois. Era tempo.»
E, na verdade, enfada muito o estar parado, quando
se pensa no que ha a percorrer.
Em Africa sobretudo, longe do bulicio do mundo
civilisado, e dos milhares de scenas attrahentes e con-
stantes, a immobilidade n'um d'esses angulos socega-
dos do mato faz fremitos, como que frisa a nossa m-
significancia, parece uma amostra do descanso final!
À primeira etape era até ao rio Chimpumpunhime,
que recolhe as aguas derivantes ao oeste da serra da
Neiva, e as envia pelo Caculovar para o Cunene; ali
chegámos pela tarde.
São as margens deste rio constituídas por um dos
mais ferteis tractos do planalto; bem dispostas, pitto-
rescas, em tudo proprias para estabelecimento de co-
lonos.
O clima ali é como na Europa, podendo o braço do
habitante do norte entrar como factor assás valioso
no amanho da terra.
188 De Angola á contra-costa
Muito acertadamente diz o rifão portuguez, não ha
bem que não acabe, etc., e disso tivemos nós a eviden-
cia, pois a satisfação da manhã acabou de se annuviar
na entrada da noite, com um novo successo infeliz.
À caminho um dos carregadores, cogitando sobre as
vicissitudes d'este genero de vida, e crendo que o me-
lhor que tinha a fazer era alliviar-nos do exagerado
carrego, partiu, roubando a carga de missanga que
transportava.
Ao amanhecer do dia seguinte, tendo adoecido um
homem, começámos a reducção da bagagem, e cortan-
do pelos contortos, aquelles que se propunham ir até
Moçambique tiveram de abandonar sem demora as
respectivas camas de campanha.
Enfiando resolutos pelos matos, proseguimos até
Maionje, onde um velho secúlo, que veiu espontanea-
mente offerecer carregadores, nos ludibriou de modo
vergonhoso. Ao cabo attingimos o Hai.
Largas planuras arborisadas constituem este tracto
de terra, semeada de um sem numero de aldeias, que
lhe dão pittoresco aspecto; desprovidas porém de agua
corrente, vêem-se os seus habitantes obrigados a tirar
esta de cacimbas, facto lamentavel, e que por certo
tem impedido o desenvolvimento da população n'este
aprazivel logar.
A caminho dos Gambos, o trilho, que até então cor-
tava por adustas florestas, entra de novo na zona do
espinho, o que mostra ix baixando para o leito do Ca-
culovar; ali o nosso fato e pelle ficaram em misero
estado, por ser dificil sofrear o impeto dos bois na
carreira. Por vezes a terra enxuga, e as Bauhinias,
Ao sul 189
que haviamos encontrado nas faldas da serra da Chel-
la, apparecem de novo, com a sua folha bipartida.
Enormes penedos gneissicos emergem do terreno,
observando-se fendas verticaes de fresca data, ao que
parece. Notam-se com frequencia schistos amphiboli-
cos e micaceos, ao passo que por toda a parte se vêem
vestigios do leopardo, da hyena e do chacal, bem
como abundam perdizes e rolas, de que matámos tres,
elevando a cincoenta o numero dos exemplares desta
especie colhidos desde a costa.
As cubatas ficam longe do trilho, e por isso pouco
podemos dizer dos habitantes. O camimmho apresenta-se
aspero e tortuoso, visto approximar-se do cordão oro-
eraphico, cujo ponto culminante é o morro Tongo-
tongo.
As temperaturas minimas, pela noite, chegaram a
descer a 2º centigrados e mesmo a 1º,5, enregelando
os membros dos indigenas, que ninguem pela manhã
conseguia arrancar de junto do fogo.
Pela tarde observava-se a leste para o sertão uma
negra barra de cacimbo, e logo em seguida amainava
o vento do sueste.
Adiante passámos em Nauéoa, proseguindo para a
margem do Caculovar, que transpozemos no sitio
onde se divide em dois braços. |
Abunda por aqui o sesqui-oxido de ferro magnetico,
encontrando-se grandes massas de magnetite, que pro-
duzem sobre a agulha os mais extraordinarios desvios.
Logo ao amanhecer avistámos o morro Tongo-ton-
go, de que já fallámos, conhecido tambem por morro
Sagrado, onde os indigenas da localidade celebram an-
SJ) De Angola á contra-costa
nualmente uma festa; ao meio dia acampámos na
Chibemba, logar chefe do concelho dos Gambos, de-
terminando acto contínuo a posição geographica.
D'aqui a vista espraia-se em grande distancia, ob-
servando-se a todos os rumos numerosos morros e
azuladas serranias ao longe, sobretudo para a banda
dos Cubaes.
Fustigados toda a noite por vento rijo do sueste,
que ameaçava levar as tendas pelos ares, almejavamos
pelo dia, e assim que este assomou, pozemo-nos a ca-
minho.
Tudo nos era favoravel.
Uma bella estrada carreteira, que, vindo da Huilla,
continúa aqui a principio por alluvião areosa e depois
pelos tractos argillosos que o oxido de ferro coloriu,
vestidos de Bauhinias, de muitos sycomoros e de um
ou outro rachitico bao-bab.
Bellos são tambem os dias n'esta epocha. Hlumina-
dos pelo sol, que em todo o seu brilho esparge em
atmosphera limpida como o crystal milhares de fulgu-
rantes raios, lembram ao viajante quão feliz será quem
de futuro ahi residir, quando, pela frescura matutima,
contemplar das varandas dos pequenos chalets os seus
campos dourados pelo amadurecido trigo, os frondo-
sos pomares vergando com os fructos, as longas ave-
nidas ladeadas de sycomoros; quando, emfim, ao rosto
negro do mdigena, e ao seu vulto desnudado, se sub-
stituir a rubicunda face, os louros cabellos, a figura
graciosa da joven europêa, que o viajante surprehen-
derá fugindo envolta na sua matinte e sobraçada de
ramos de rosas!
Ao sul 191
Considerando na possivel realisação d'este devaneio
que a natura em redor parecia condemnar pela sua
fereza, proseguiram os auctores destas linhas a mar-
cha, e, tangendo os bois-cavallos, lá se fam distrahindo
na apanha de mineraes para a sua colleeção; perse-
guidos pelas saudades e recordações da Europa, dili-
genciando afastar do pensamento certas idéas que por
vezes lhes assaltavam o espirito!
E bem tristes eram ellas!
Ao passar por Mucope, onde uma enorme mulolla
deriva durante a epocha das chuvas a agua do Cacu-
lovar, e o caminho para Quiteve se aparta para ir por
Ielobanda, apertámos a marcha, a fim de chegarmos
ao acampamento de Munguri antes de anoitecer.
Ás cinco horas acampámos.
D'este logar para o sul termmam as habitações e
começa uma longa floresta, que nos levou tres dias a
atravessar. Constitue ella n'esta zona a orla da mata
com que defrontam pelo occidente o Quipungo, Quihi-
ta, Gambos, etc., e que o Cunene delimita pelo oriente:
valhaconto de quanto bicho bravio existe, pois, quasi
impenetravel pela espessura do arvoredo, é composta
na maior parte de espinheiros.
Por lá divagam elephantes, rhinocerontes, bufalos
e leopardos, a coberto de qualquer aggravo do rei da
creação, pastando e entredevorando-se placidamente,
sem que pessoa alguma pense em perturbal-os.
Atravessando as matas iluminadas pelos beneficos
raios de um sol matutino, ladeados por duas muralhas
de verdura, onde a vista se perde n'um labyrintho de
troncos, e o sentimento da dor por vezes acorda, em
192 De Angola á contra-costa
consequencia de um ou outro ramo mais saliente de
espinhosa, que gracioso se balouça no caminho, lá fo-
mos proseguindo, ora philosophando no caracter pri-
mitivo do viver africano, ora deslumbrados ante as sce-
nas da natureza, até que pelas onze horas o astro do
dia, aprumando-se, começava a chamar á pelle uma
a transpiração.
das suas mais Importantes funeções
Abafados pelo crescente calor e arvoredo que nos
cercava, arquejavamos de fadiga, até que, impotentes
em proseguir, suspendiamos.
Os poeticos pensamentos que a rociante manhã e as
frescas auras nos inspirára, dando-nos força e vigor,
confundidos por seu turno ou extinctos, levaram-nos
a considerar que, embora o brilhante sol anime o orbe
e faça n'elle manifestar a vida por mil modos, não é
este astro precisamente aquelle sob cujo mfluxo, quan-
do no apogeu de sua gloria, os mimosos sentimentos
de enlevo pela obra da natureza se mspiram com fa-
cilidade.
Á sombra da arvore mais proxima, estendidos sobre
a relva os quebrados corpos, aguardavamos a chegada
dos nossos companheiros, que, arcando sob uma carga
de sessenta libras, bem mostravam pelo suor, que lhes
escorria pelos dorsos espaduados, a fadiga que os do-
minava, e emquanto descansavam ou dormiam, nós
fumavamos, deixando deslisar em socego essas horas
de impossivel aproveitamento.
E como brevemente vamos entrar no Humbe, diga-
mos alguma cousa dos povos que atraz ficaram.
Os povoadores desta parte percorrida dos Gam-
bos denominam-se ban-dimba, e, como os ban-dombe
Ao sul 193
e ba-coróca, oceupam sordidas habitações e alimen-
tam-se de leite.
Custa a comprehender na verdade como esta gente
vive, fazendo consistir a alimentação em tal artigo
MULHERES BAN-DIMBA
e pequena porção de massa de milho uma vez ao dia,
isto é, ao anoitecer, só mgerindo a intervallos a cele-
bre borlun Ob, SVAraAapa feita tambem de milho.
2) )
13
194 De Angola á contra-costa
A negra fome deve apoquental-os muito, a julgar
pelo seu proceder, pois ao receberem carne ou outro
qualquer artigo em abundancia, devoram-no sofrega-
mente! O ventre distende-se-lhes, o estomago (avolu-
mado em consequencia da mtroducção diaria de fari-
nhas e vegetaes, que por conterem poucos elementos
nutrientes precisam ser mgeridos em quantidades exa-
geradas), recolhe a carne em tal proporção, que deixa
o observador abysmado.
As vestimentas destes mdigenas são de extrema
smgeleza, reduzmdo-se a pelles de animaes bravios,
ou de boi preto, côr por elles muito estimada; a que
juntam adornos com basta contaria.
Uma rapariga vimos nós, e a estampa póde dar
idéa, com o cabello dividido em tranças carregadas de
missanga, e que, não contente com isso, trazia ao pes-
coço monumental collar do mesmo artigo, addicionan-
do, para ageravar este peso, um cinto de grossas con-
tas, e tudo untado e a escorrer em manteiga de vacca!
Entre os amuletos que esta joven, de rosto galante,
trazia ao pescoço, notámos uma fechadura de bahú e
uma unha de porco, sem contar outros artigos miudos
de dubia proveniencia!
As mulheres são em geral formosas, mas sordidas, o
coravado ainda pela alludida untura de man-
OQ
quietcãa
teiga.
Limam ou partem os incisivos medios de cima; uma
espiral de ferro de 30 centimetros de altura, perfei-
tamente polida, enfeita-lhes as pernas e braços, bem
como usam de infinidade de bocados de latão, chapas
de cobre, enfiadas de sementes, etc.
Ao sul 195
Os homens trazem habitualmente suspensa do pes-
coço uma pequena tenaz de ferro, ou melhor pinça,
com que se divertem a arrancar um a um os raros
pellos da barba.
O sexo forte, e sobretudo os velhos, usam do rapé,
as mulheres não vimos que d'elle fizessem emprego.
Os ban-dimba, como os ba-nhaneca, são extrema-
mente supersticiosos, e, se não téem a crença da outra
vida, pelo menos mostram por vezes uma suspeita,
facil de acreditar, na immortalidade da alma.
A rude ou grosseira metempsycose do sertão appa-
rece aqui, sendo para elles como certo o espirito dos
mortos andar depois do apartamento, pelo geral, no
corpo de animaes (cães, hyenas, etc.), e ás vezes no
do homem. E todo aquelle a quem esse espirito, Qui-
lulu, apparecer e perseguir n'este ultimo estado, consi-
deram homem prestes a morrer!
Em resumo, os povos desta terra mostram recor-
dar-se dos amigos fallecidos, observando-se nas occa-
siões de successos nefastos, attribudos á influencia
dos mortos, trazerem provisões para junto dos tumu-
los, onde são collocadas, no mtuito de os apaziguarem.
Entre os factos relativos ao modo como procedem
com aquelles que partiram para nunca mais voltarem,
existe um que, por origmal, e-nos ter creado uma
pequena decepção, aqui transcrevemos approximada-
mente do nosso diario.
A q de junho mettemo-nos a caminho ao alvorecer,
de Munguri para o sul. Chegados a uma volta do tri-
lho observámos proximos dois círculos de pedras, a
meio dos quaes se viam numerosos ramos resequidos,
196 De Angola á contra-costa
sem duvida ali collocados pela mão do homem. Um
delles estava cortado de fresco, e posto certamente
pouco antes.
Inquirmdo da significação do que viamos, soubemos
que é de uso entre estes povos, quando algum dos
companheiros morre em viagem, marcar com os mon-
ticulos de pedra o sitio onde caíu, e, afastando-o, en-
terral-o logo na floresta proxima.
Volvendo então ao logar do obito, cada companheiro
corta um raminho da arvore mais proxima, e, acercan-
do-se das pedras, depõe-no cuidadoso em cima, reti-
rando-se.
Não se limita porém só a isto, pois de futuro, sem-
pre que qualquer conhecido ou amigo do defunto lá
passa, afasta-se respeitoso a cortar um ramo, voltando
delicadamente a depol-o.
Escusado será descrever a impressão que similhante
narrativa nos causou.
Passar ali o mdigena, apoderar-se do ramo, deixal-o
respeitosamente no local do apartamento do amigo,
que quererá isto dizer, reflectiamos nós?
E logo acudia-nos a idéa de que os ramimhos eram
postos como marca de affeição por quem estimaram
na vida, e, sem querer, pensavamos na velha Europa,
na viuva e na filhmha orphã, que nos tristes anniver-
sarios do fallecimento Vaquelle que tanto estimaram
na terra, sempre encontram em seu jardim perpetuas
e golvos, para entretecer corôas com que vão adornar
a sepultura, regada por lagrimas aferventadas pela
cruciante saudade. Então penitenciavamo-nos, repe-
sos de termos por vezes condemnado o preto por in-
Ao sul 197
differente e pouco caritativo, quando aliás é accessivel
a sentimentos superiores.
Antonio, porém, cortou rapido a esta ordem de sen-
sações, contando-nos em breves palavras a veridica
historia.
Informou-nos elle que, sobre estes montes e na sua
RAPARIGA MUN-DIMBA
Segundo um croquis
proximidade, se suppõe existirem sempre espiritos tre-
mendos, cuja animadversão tem as mais sérias conse-
quencias. Por isso, acrescentou, natural algum do paiz
ali passa sem expor religiosamente sobre o morro um
dos ditos raminhos e proferir uma formula só d'elles
conhecida, pelo estranho motivo de que, se o não fizer,
198 De Angola á contra-costa
será, quando menos, victima de permanentes caimbras
nas pernas!
Um horrivel episodio se conta mesmo de certo ho-
mem que seguiu caminho sem praticar as mvariaveis
ceremonias, e esse infeliz foi atacado de paralysia, que
o prostrou para sempre! Claro é que muito commen-
támos Isto, e como occasionalmente passasse toda a
caravana sem lançar sobre os monticulos os necessa-
rios raminhos, chegou-se á facil conclusão de que taes
factos tinham um caracter especial referentes a indi-
viduos isolados, nunca applicaveis ás caravanas em
marcha para Moçambique.
É o prosaico receio de que lhes déem caimbras nas
pernas, que os leva a proceder d'esse modo; e assim
por terra ficou aquelle poetico castello de cartas!
Existem aimda factos mencionaveis na vida d'estes
mdigenas; taes são as festas celebradas em epochas
certas, como na de lançar o mantimento á terra, na da
colheita, etc.
D'esta ultima vamos em poucos traços dar uma ra-
pida idéa.
Denomina-se a festa da hela!, e é celebrada em ju-
1 No seu interessante livro intitulado 4 raça negra falla-nos o sr. À.
F. Nogueira de uma festa feita n'esta epocha proximamente, pelos ba-nha-
neca do norte, e que tem por fim celebrar o estado de paz e abundancia
da terra, cujo symbolo é um boi a que dão o nome de Géroa, acompa-
nhado de outro a que chamam Xicaca e um vitello Tembo-Onjuo.
Pela epocha da lua nova esses bois percorrem processionalmente em
cortejo de donzellas enfeitadas e homens sarapintados até a residencia
do regulo, e ahi lhe chegam à bôca o pó amargo da casca do bungurullo,
que, conforme é lambido ou não, assim constitue um presagio feliz ou
agourento de revez. No caso affirmativo fecha a ceremonia uma arenga
do regulo, e nos dias subsequentes ha dansas em honra das mulheres d'elle.
Ao sul 199
nho, epocha em que termina por estas regiões a co-
lheita.
Ássm que a lua cheia se approxima, começam as
mulheres de todas as aldeias a fazer a hela, especie
de cerveja confeccionada com o sorgho, que depois de
humedecido, secco e triturado, é mettido num funil
de capim para dirigir a agua coada atravez da massa,
que mais tarde, fermentando, constitue a bebida.
Dois individuos dos mais importantes de qualquer
aldeia sáem após, bem sarapintados, para, na quali-
dade de festeiros, prepararem as cousas, e ao primeiro
rebate acodem todos com armas e grotescos traços
pelo rosto, etc.
Attingido que seja um determinado numero, começa
a scena, e de senzalla em senzalla prosegue a festa,
tocando e cantando, recebendo aqui um boi, alem fa-
rinha, mais longe bebida, em inferneira contínua, que
por dias se prolonga.
Ai do habitante encontrado em caminho, pois, vi-
ctima destes energumenos que á solta percorrem os
campos, o roubam e mesmo espancam, escapando-lhes
das mãos a muito custo.
O mesmo viajante estranho á terra, embora o con-
siderem mais, não deixa por isso de ser roubado, fi-
cando invariavelmente em plena campina como Adão
andava no paraizo! |
O notavel, porém, é que o regulo, chefe supremo da
terra, perde durante o primeiro dia todas as regalias e
superioridade de que gosa em seus dominios. Assim,
quando lhe chega a noticia dos festeiros terem partido
para percorrer os primeiros logares, elle esconde-se.
200 De Angola á contra-costa
À multidão avança então no sentido da sua residencia
e pára a grande distancia.
Tres latagões armados e tintos de cores extrava-
gantes partem na direcção da emballa, e chegando ahi
cautelosos, fazem um giro em redor.
Nem alma viva apparece! Escondidos, os habitantes
tremem de susto; o soba, recluso no quarto, nem res-
pira: a sua presença então acarretar-lhe-ía immediato
termo á existencia.
De uma das portas feitas na paliçada sáem mopima-
damente tres typos. São mulheres. À da frente, peque-
nita, quando muito de oito annos, traz ao pescoço um
amuleto, similhante a pá de ferro mmuscula; a se-
gunda, já idosa, é a esposa mais velha do soba; a ter-
ceira, especie de creada, conduz com todo o cuidado
uma cabaça de hela.
Ao vel-as, os espiões afastam-se, depoem as armas e
prostram-se por terra, emquanto a princeza donairosa
caminha para o sitio onde se acha o grosso da gente, e
entregando a cabaça da hela magica e a pequena pá
que a ha de mexer, deixa-os feiticeiros que a esgotam,
levantando o interdicto ao regulo.
Livre este, póde logo saír.
Não atinâmos bem com a significação d'esta masca-
rada, que finalisa por contínuas dansas, parecendo
intencionalmente mostrar uma como que supremacia
eventual do povo sobre o chefe supremo. Occorre-nos
se isto terá alguma ligação com o celebrado muquixé
do Quiõco, que tambem nas povoações faz tudo quanto
quer, aterrando todos, ou será apenas reminiscencia
dos jaggas devastadores, que, correndo na epocha da
Ao sul 201
maturação do mantimento as terras, para roubarem,
só se evitariam as suas tyrannias pelas offertas e con-
cessões!
Logo depois d'esta festa faz-se outra, cujo fim é con-
sagrar por uma ceremonia a idade nubil das donzellas,
até ahi não consideradas aptas para casar, abatendo
bois, de que ellas vestem a pelle, dansando, etc.
E RAS ARNS
MULHER MUN-DIMBA
Tirado de um croquis
Jorocuto, Cahama, Xicusse, foram pontos por que
successivamente fomos acampando na grande mata,
repetindo-se de modo invariavel as extravagantes sce-
nas já descriptas.
No primeiro destes pontos temos a assignalar o im-
opimado apparecimento do granito, que em natural
erupção por meio das rochas laurencianas afloreia o
terreno, erguendo-se de todos os lados.
202 De Angola á contra-costa
A marcha pelo bosque ía-se tornando de todo o
ponto enfadonha; avalie-se pelo que encontrâmos exa-
rado em nosso diario.
Nada mais banal, diz-se ah, do que viajar por uma
deserta e longa floresta.
Depois de vinte e quatro horas nada attrahe e cousa
alguma diverte; assim como em horisonte immenso,
recortado por azulados montes, a vista se espraia por
vastas campinas, onde se destacam pelas diferentes
cradações do verde os valles que se succedem -e os
brancos pennachos aqui e alem das senzallas occultas
pelo arvoredo, dando margem para divagações deseri-
ptivas e assumpto para distrahir quem viaja; do mes-
mo modo a monotona repetição dos troncos que nos
ladeiam, no meio de silencioso bosque, apenas convida
a um triste mutismo. Pudo se resume a erguer de ma-
nhã, marchar durante o dia, acampando pela tarde em
sitio onde se encontre agua.
Inspeccionados mvariavelmente os novos domimãos,
installavamo-nos na primeira clareira de chão batido e
plano que se nos offerecia, e onde Mupei, acto conti-
nuo, ageitando tres pedras, dava começo à culinaria
tarefa, essa mais séria das nossas preoceupações, ver-
dadeira questão importante do dia.
Dificilmente se póde comprehender os desejos e a
satisfação que a vista dos fumegantes pratos mspira:
ao viajante africano, e como contribuem para adoçar
as agruras do mato, esses bocados de carne assada na
braza ou nadando em um môlho que póde ter por ori-
gem todos os mpgredientes, desde o azeite de palma até
ao tutano de elephante!
Ao sul 203
Nunca na Europa, diante de bem servido jantar, nos
sentimos com mais appetite do que em frente da nossa
caixa arvorada em mesa, com um guizado smgelo em
cima.
Activadas as funcções vitaes por um exercicio exa-
gerado que a temperatura, as aguas, etc., exaltam,
anda o viajante sempre sob a impressão de uma amea-
ça de fome, que lhe orvalha a bôca de agua ao ante-
gostar na Imaginação um prato, que a necessidade lhe
pinta como muito saboroso. Á mingua de distracções
de espirito, torna-se mais imperativo o goso material
de encher o estomago, aprecia mais essa idéa, domi-
na-o grosseiramente o desejo sensual de mgerir o que
vê, trazendo sempre interessado o receio constante das
faltas frequentes.
Muitas vezes pensámos n'este facto, que de certa
maneira explica as inclinações sofregas do preto, c
ahi, melhor que em parte alguma, comprehendemos
que nada iguala n'este pequeno torrão a alegria de
uma boa mesa, e serenamente apreciâmos em sua gas-
tronomica grandeza os Hortensius, Apicius e Lucul-
lus, a quem a posteridade deve, pelo menos, conside-
rar como homens de bom gosto.
Então a sós consideravamos tambem quanto neces-
Ssarlos são os convivas, para tornar completo o suave
consolo de encher pausadamente o estomago: apre-
ciavamos em devida escala as rasões que deviam ter
levado Pharaó Menes, esse sybarita da velha antigui-
dade, a fazer da mesa quasi uma questão de estado;
que arrastaram Solon, o celebre legislador atheniense,
a sustentar que menos de trinta era numero inadmis-
204 De Angola á contra-costa
sivel em um jantar de tom, e que finalmente obrigou
Vitellius a ter dentro do palacio todos os cozinheiros
do imperio!
Assim muitas vezes se passava o tempo, que mais
bem aproveitado podia ser, e, prolongando depois a
conversação até ao entrar da noite, almejavamos no
regresso para as tendas pelo alimento da tarde seguim-
te, porque sabiamos que durante ella se passariam as
melhores horas do dia. |
Adiante de Cahama tivemos pela primeira vez a
agradavel surpreza de ver quatro elephantes, que, ao
avistar-nos, partiram floresta a dentro.
Não ousando perseguir tão grossa caça, por não es-
tarmos ainda affeitos a ella, e porque a floresta, fecha-
da completamente pelos espmheiros, apenas póde ser
transitavel por animaes cuja pelle, como a do elephan-
te, só dá rasão de si a machado, abalámos, consolan-
do-nos com o registar em nosso diario o seu appare-
cimento.
Pela nossa direita corre o Caculovar, e a presença
da agua basta para que encham os ares os gorgeios
de alados cantores.
Aves de bella plumagem avistavamos por toda a
parte e a começar na Vidua paradisea, notámos uma
outra preta avelludada, bem como terceira vermelha
e azul de longa cauda, e ainda uma especie de pôpa
de pintas brancas, cauda extensa e longo bico encar-
nado, não contando milhares de pintadas, da especie
callinacea.
Havendo pegado nas armas, seguimos até à margem
do rio em busca de caça. Duas rollas, cinco gallmhas
AÁo sul 205
e uma gazella, Cephalophus mergens, eis o fructo do
nosso passeio.
Pela tarde d'este dia deu-se a primeira morte entre
os nossos cães, que foi miseravelmente colhido pelo
crocodilo. |
Ao atirarmos á ultima pintada, as companheiras,
levantando vôo para atravessar o curso da agua, attra-
hiram a attenção de uma cadella, a Pomba, que, ven-
do-as, se lançou com denodo ao rio.
«.. SOLTANDO UM LATIDO, DESAPPARECE
Apenas tinha entrado na agua, uma cabeça hor-
renda apparece à superficie, duas queixadas defendidas
por aguçados dentes se abrem, mostrando escancara-
da guela vermelhenta; grande redemoimho se segue,
e o infeliz animal, soltando um ultimo latido, desappa-
rece para sempre.
A estrada continúa a prolongar com o rio, que tem
aqui 30 a 40 metros de largo, 2 milhas ou menos de
velocidade, agua barrenta, margens alagadas cobertas
de gramineas, que vão morrer junto ás acacias, que
206 De Angola á contra-costa
na força das chuvas devem ficar cobertas, não abo-
nando por isso a salubridade d'esta zona.
A altitude diminuiu, achando-nos por aqui mais bai-
xos que na Huilla, consequencia de começar a floresta
a rarear e a apparecer por toda a parte o bao-bab.
Adiante encontram-se vestigios do laborioso traba-
lho do homem e pouco depois vêem-se as primeiras
habitações.
Quando estas appareceram, tivemos ensejo de ver
e apalpar, pela primeira vez em nossa vida, um dos
mais estranhos typos do contmente africano, o mu-
cuancalla ou bushman, a leste conhecido por ba-che-
quelle!, cujas pegadas nos caminhos os pretos distin-
guem com a maior facilidade.
Nada ha mais abjecto e repugnante do que esse ar-
remedo de homem, que hoje vagabundeia pelos bos-
ques e campinas do grande continente, em lucta per-
tinaz para se poder alimentar.
Tão revoltante é esta raridade do humano genero,
tão mesquinho o seu ar, apoucado o vulto e estranho
o modo, que degrada e affige ter que descrevel-o.
E como se defronte de nós se erguêra um cadaver,
e parando nos fitasse envolto em miseria e frio.
A sua altura media é de 1”,4 approximadamente,
havendo muitos, porém, que não chegam a esta cra-
veira.
A pelle é amarellada, as arcadas zygomaticas pro-
eminentes, a face triangular e termimada em bico-no
queixo, deprimida a meio, nariz chato, beiços grossos,
1 São os mu-cussequére de que nos falla Serpa Pinto.
Ao sul 207
olhos obliquos, pequenos, distantes, dispostos á feição
dos chmas: o seu aspecto é repellente.
Uma especie de tatouage no rosto, resultado de pe-
quenos golpes parallelos feitos com instrumento cor-
tante, agerava estes traços geraes, que se podem
rematar inferiormente, dizendo que o tronco é des-
carnado, e os braços e pernas resequidos são longos
e nodosos nas juntas!
A descripção das mulheres seria tal, que nol-a im-
pede um respeito delicado pelo sexo amavel.
A vestimenta d'elles é, quando muito, uma pelle de
geneta ou de antilope; as suas armas o arco e a flecha,
muitas vezes envenenada com o sueco de uma euphor-
bia, que suppomos ser a Amaryllis toxicaria, e outras
com o veneno da buta, Lchidna arietans, que extrahem
das vesiculas alveolares.
Vivem nos reconditos dos bosques, em miseras cu-
batas; a sua alimentação consiste no mel e na carne;
o seu maior prazer é o isolamento! Eis as mformações
sobre essa degradada casta, de que encontrámos um
grupo perto de Chipálongo, do qual conservâmos triste
recordação.
Muitos viajantes fallam do bushman e respectivo ca-
racter, nos termos menos lisonjeiros.
Parece que a perfidia e a crueldade são apanagio
dessas mesquinhas creaturas, transparecendo nota-
velmente exageradas no coração da mulher.
Assim se conta de mães que abandonam em plena
floresta os filhos, por não quererem carregar com elles,
ou que os atiram ás feras, para fugirem 4 morte ine-
vitavel, de preferencia ás pobres creanças; de velhos,
208 De Angola á contra-costa
emfim, deixados nas selvas ao desamparo, por lhes
faltarem já forças para acompanhar a caravana em
viagem.
O pouco tempo que com elles nos demorámos não
nos consente garantir nenhuma d'estas asserções, as
quaes de resto podem ser muito verdadeiras.
MULHER DO HUMBE
Tirado de um croquis
Continuando a marcha por meio de aldeias e cam-
pos cultivados, transpozemos a fronteira de Humbe
perto de um logar denominado Belavella, achando-nos
n'uma tribu de usos differentes, a avaliarmos pelo
novo e original penteado das mulheres, que parece
terem ido buscar o modelo na configuração da cabeça
do elephante!
Ao sul 209
Numerosos bao-bab vegetam na campina, para de
subito desapparecerem ao entrarmos n'uma zona pan-
tanosa.
Um typo de periquito ruidoso esvoaça por aqui em
bandos, atroando os ares com seus gritos, e deixan-
do-se levar á mercê do vento do sueste, que n'esta
quadra sopra rijo e forte.
Debaixo do ponto de vista cynegetico, é esta uma
região altamente interessante, que pelo oeste os boers
da Humpata já começaram nos ultimos annos a per-
correr.
O proprio Erikson, esse audaz caçador que trilha
com seus carros muitos sertões do sul, tambem dei-
tou até aqui em suas caçadoras pesquizas, no intuito
de os atulhar de marfim.
São numerosos os elephantes a leste e oeste da es-
trada, encontrando nós em muitas partes bem visiveis
traços da sua passagem; assim como abundam ali os
rhmocerontes, bufalos e varios antilopes de grande
tamanho.
A causa desta frisante multiplicação de animaes de
vulto, tão proximos da residencia do homem, consiste
em dois factos especiaes: a natureza das florestas,
exclusivamente compostas em grandes zonas do espi-
nheiro, o que as torna Impenetraveis, e a abundancia
dos gados, fazendo com que o imdigena pouco ou
nada pense em caçar.
Assim, raro se vê um bando de ban-cumbi partir
para a caça, e quando se lhes falla d'isso, respondem
sempre indifferentes, com ar de quem pouco pensa ou
se emprega em tal.
14
210 De Angola á contra-costa
O ponto referido dista 12 milhas da séde do conce-
lho do Humbe.
Erguendo-nos com a aurora, bifurcâmo-nos em
nossos bois-cavallos, e, entestando com o trilho por
uma manhã primaveral, seguimos pelas plantações e
propriedades dos europeus e africanos ali residentes,
até que alfim, transpondo o Caculovar, acampámos.
à sombra de duas copadas arvores.
Estavamos a 600 milhas do ponto da partida, pois
tal era a distancia pelo caminho por nós percorrido;
e quando, ao pensar na região dos lagos, desdobrámos
cautelosos a carta sobre o joelho, emmudecemos ante
a zona que se alongava, e que passo a passo timhamos
de visitar.
CARO NATE
ENTRE OS BAN-KUMBI
O Humbe — Sua posição — Quadro historico — Os ban-kumbi e os seus
costumes — Habitações e typo—O hamba — Homens e mulheres, seus tra-
balhos -— Chronologia e festas — Funeraes — Missões catholicas — Os ba-
na-cutuba e o Cuanhama — Proezas de Nampandi — Riqueza dos cuanha-
mas e um aperçu geologico—O ronco do leão impressionando no mundo
animado —O cacimbo e as considerações —O Cunene e o alagamento
marginal — Mupei encontra a mãe — A caonha e o processo da vaccina —
Os reptis e a vegetação—Zero de graus e a: impressão consequente —
Um almoço de couro.
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A villa do Hum- :
be acha-se situada
na confluencia do
Caculovar! e do
Es" Cumene, sob o pa-
= rallelos 169420007
wi. e o meridiano de
HYPHCENE GUINENSIS Oo a leste
de Greenwich; altitude proximamente de 1:067 metros.
Este ponto da nossa provincia obriga-nos, antes de
proseguir na viagem, objecto deste livro, a um deva-
1 Caculovar, corrupção do Caculo-Bale.
214 De Angola á contra-costa
neio historico, que, embora nos afaste do prmcipal
fim proposto, nem por isso deixa de ter um determi-
nado valor para os que se mteressam pela Africa.
Parece tóra de duvida que ao tempo da conquista de
Angola pelos portuguezes, um vasto districto ou pro-
vincia se estendia desde o Bié até para alem do Cu-
nhama, e era governado por um chefe conhecido pelo
nome de Humbi-lnêné!. Este chefe, alhado dos reis
de Angola, preparou-se para correr em seu soccorro.
quando rebentou a guerra contra os conquistadores;
tal auxilio, porém, não pôde ter logar, em vista da
opposição de um dos seus vassallos no norte, o soba
do Bié, que nisso não consentiu.
D'este facto deriva a mdependencia do Bié, pois,
querendo o Humbi castigar o soba desta região, par-
tilhou com elle os azares de uma guerra civil, em que
foi vencido e obrigado a pedir a paz, voltando para a
sua cidade.
Não é bem certo o logar d'esta então Importante ca-
pital, onde reinava como despota o senhor de tão vastos
domimios; tudo, porém, leva a crer que fosse approxi-
madamente no ponto em que hoje se acha o moderno
Humbe, não só pela comcidencia do nome, como tam-
bem pela posição estrategica que oceupa, pois achan-
do-se assente n'essa nesga de terra encravada entre
os dois rios Caculovar e Cunene, naturalmente devia
agradar ao homem, cujo genero de vida o trazia sem-
pre em lucta com estranhos.
1 Inêné significa grande. O Humbi seria talvez um vassallo do grande
chefe dos mataman.
Entre os ban-kumbi 215
São curiosas as informações ácerca da conquista
ou primeira occupação conhecida por parte dos indi-
cenas desta ampla zona, quando se compulsa a his-
toria.
No meio de uma confusão de factos estranhos ou
exagerados, encontram-se alguns, que em duas pala-
vras vamos frisar, e que deixarão ver para o caso apro-
veitamento immediato.
Dissemos que o Humbe podia muito bem ter sido o
centro ou capital de um grande imperio, de que hoje
nem restam as sombras, pois de velha data outras
mdicações existiam, não menos aproveitaveis e con-
ducentes ao mesmo evidenciar.
Segundo Cavazzi, Lopes, etc., os jaggas ou çumbis
appareceram no Congo pelo meado do seculo xvr, ca-
pitaneados pelo jagea Zimbo !, que, mvadindo aquelle
remo, o limpou dos seus habitadores, e queimando a
cidade de S. Salvador, obrigou o rei a refugiar-se
numa ilha do Zaire com todo o pessoal importante da
sua córte.
Não contente com as vantagens obtidas, esse verda-
deiro Attila africano, percebendo a impossibilidade de
conservar quietas as hordas de seus guerreiros habi-
tuados a vencer, dividiu o exercito em grupos, que
enviou à conquista para pontos differentes. |
1 Zimbo ou Ximbo, conforme o modo de pronunciar. E de crer que
estas numerosissimas hordas fossem formadas de tribus diferentes, toman-
do umas vezes para a collectividade o nome do chefe, outras tomando
este para si o nome da tribu ou terra d'onde haviam saído. Assim os jag-
gas seriam os má-iácca, os cumbi eram os ban-cumbi, os ximbo os ba-
ximba de hoje talvez.
216 De Angola á contra-costa
Uma das colummas, capitaneada, ao que parece, pela
propria esposa do monarcha, a feroz Temba-Ndumba,
dirigiu-se pela Mina e costa da Malagueta até á serra
Leoa; outra enviou Zimbo para a conquista da Abys-
smia (?) e Moçambique, dando o commando della ao
seu logar-tenente Quizuva.
Este, mvestindo com o oriente, levou as suas con-
quistas até perto do mar, e sendo batido pelos portu-
guezes em Pete !, recuou suspendendo.
Zimbo, conhecedor do facto, prestou-lhe auxiho, e
após uma serie de victorias, mvestindo com o reino
de Melinde, ahi foi completamente derrotado, conse-
gumdo escapar-se com pequeno numero de compa-
nheiros.
Pomando então pelo sul, transpoz o Zambeze, e, se-
gundo talvez pelo norte do Calahari, veiu estabelecer-
se nas margens do rio Cunene, avassallando os seus
1 Eis a rasão por que Duarte Lopes tanto falla das temerosas bata-
lhas travadas entre os jaggas pelo lado do Monemueji, e as amazonas
que defendiam o Monomotapa.
E d'estas amazonas está mais que provada a sua existencia, pois
entre os jaggas as mulheres eram temiveis.
Temba-Ndumba, de que fallâmos, era mulher cruel, ardente e apaixo-
nada que mal desprendia os amantes dos braços, os sacrificava, no meio
das maiores torturas.
Foi ella que se proclamou rainha dos jaggas, decretando que todas
as creanças do sexo masculino a quem nascessem primeiro os dentes de
cima que os de baixo, fossem estranguladas pelas proprias mães, para
se lhes transformarem os corpos n'um oleo especial; ordenou, emfim, que
OS prisioneiros machos, depois de servirem na perpetuação da raça, fossem
mortos e devorados, e mil outras monstruosidades.
Não menos notavel foi sua mãe Mussassa, mulher de um dos capitães
mais famosos d'aquelle tempo, Donji, que governou largo tempo em Ma-
tamba e cuja educação feroz produziu a filha de que fallâmos.
Entre os ban-kumbi Pal
habitadores. O ponto por elle escolhido não está bem
averiguado, porém póde tomar-se como acceitavel que
soffrendo derrota pouco antes, a experiencia lhe pro-
vocasse a idéa de assentar os seus arraiaes em logar
naturalmente defendido, e sobre o Cunene nenhum
melhor havia que aquelle onde se acha o Humbe |.
E se assim fez, se construiu o primeiro quilombo,
porque não seria elle o fundador do imperio de Hum-
bi-Inêne? Demais, vemos que entre os companheiros
de Zimbo ou Ximbo deviam vir ban-ximba, bem como
cumbis ou ban-kumbi, nomes que ainda hoje desi-
gnam aquellas tribus, cujos costumes nos parece rela-
cionarem por modo frisante com os dos habitadores do
norte. |
É fóra de duvida, porém, que os ban-kumbi con-
trastam com tudo quanto os cerca, assim como nos
parece assente ser o paiz d'onde procedem muito dis-
tante do que occupam agora, acreditar no que por
mais de uma vez nos disseram, isto é, serem prove-
“mientes do norte.
E já que fallâmos da impressão causada pelos cos-
tumes e o modo de vida dos ban-kumbi, dêmos num
momento a palavra ão sr. À. F. Nogueira, o illustre
auctor da faça negra, que viveu muito tempo entre
! De todas as informações que podémos colher no Humbe, resultou
chegarmos ao conhecimento da existencia outrora de um povo que
habitou este paiz largo tempo, conhecido pela designação de ba-cua-naiba.
Fronteiro a Quiteve vimos mais tarde um morro, onde parece tiveram uma
grande libata, que se denomina Punda-ia-Cave. Não podémos, porém,
acertar se eram elles os representantes dos primeiros habitadores desta
zona, se tribus dispersas dos companheiros dos jaggas, ou emfim, o que
é a mesma cousa, descendentes dos dâmaras do sul.
218 De Angola á contra-costa
elles, tendo largo conhecimento dos seus habitos, e
veremos talvez mais uma comprovação do que avan-
cúmos.
Eis o que elle nos diz n'uma memoria apresentada
à sociedade de geographia de Lisboa, sobre o dialecto
Jun-kumbi:
«Os costumes dos ban-kumbi téem uma notavel
analogia com os dos arabes. Como estes, elles rapam
a cabeça, deixando no oceiput uma ou mais tranças
de 8 a 10 centimetros de comprido; repetem as sau-
dações, descalçam-se quando entram em casa de al-
guem, e isto em signal de respeito, cantam pelas ruas,
têem uma tfórma de casamento, cuja base é a polyga-
mia; quando morre alguem, os parentes e amigos do
defunto despojam-se dos seus adornos mais vistosos,
substituem por outros de côr preta, e celebram, can-
tando com uma triste melopéa e gestos doloridos, as
qualidades e feitos do fmado, e finalmente usam a eir-
cumcisão, que, se não é de origem arabe, foi desde
tempos remotos adoptada por estes.
«As habitações ma-humbo consistem num conjun-
cto de vivendas particulares, em cada uma das quaes
reside determinada familia, só differmdo das dos ara-
bes no emprego de cabanas em vez de tendas cireum-
dando o curral e de correrem parallelamente na dis-
tancia de 10 metros.
«Como nos duars arabes, etc.
«O chefe de cada um d'estes aggregados de habi-
tações, que se denomina é-umbo, é, como os arabes, o
chefe da povoação mu-cunda, que governa em nome
do hamba (principe ou soberano), etc.
Entre os ban-kumbi 219
«E notavel, diz o sr. Nogueira, a comcidencia de
servir aqui o nome mu-cunda para designar a mesma
cousa que entre os fullas; assim, fulla-cunda significa,
entre estes, aldeia ou povoação dos fullas.»
Todas estas considerações vem de certo modo ar-
reigar em nosso espirito a idéa da probabilidade de
antigas relações dos ban-kumbi com os jaggas, o que
nem de longe podemos garantir; mas esmiuçadas por
mão habil poderão alguma cousa dar, e emfim, postas
aqui, deixam assumpto interessante para a ethnogra-
phia africana, fazendo mais tarde dissipar as discre-
pancias entre Duarte Lopes e Alvares de Almada,
quando aquelle falla do apparecimento dos jaggas no
oriente.
Os ban-kumbi são reforçados, robustos e retimtos;
o aspecto d'elles não é menos bello e sympathico do
que o dos ba-nano.
Trajam pelles de boi preto e nunca de côr, usando
pelo geral uma collocada posteriormente, e, caso sm-
gular, cortando-a em meia lua com a concavidade
para cima e suspendendo-a nos quadris pelas pontas,
de pouco ou nada serve, sobretudo quando estes se-
nhores se curvam.
“Como os ban-dimba, as mulheres por aqui são bas-
tante immoraes, usam os mais exquisitos penteados,
addicionando-lhes, como se disse, junto aos temporaes
dois enfeites tecidos de cabello 4 feição de orelhas, que
lhes imprimem um ar muito estranho.
Carregam-se de contaria no pescoço e nos rins, e,
do mesmo modo que todas as tribus pastoris, téem o
repugnante costume de se untar com manteiga.
220 De Angola á contra-costa
Os homens empregam-se em apascentar os reba-
nhos, cortam madeiras e desbastam matas; os rapazes
mugem as vaccas e preparam a manteiga e o leite
coalhado, seu primcipal se não unico alimento, com a
massa de sorgho:; as mulheres amanham as terras, e
nas epochas convenientes fazem as sementeiras, etc.
O boi é para esta gente tudo, riqueza, distracção,
base do seu sustento e causa de quantas pendencias
entre elles se levantam.
E notavel que os ban-kumbi não usam para vestir
fazenda de cores vistosas, sobretudo da encarnada.
Por cousa alguma vestiria qualquer d'elles panno
vermelho, contentando-se de preferencia com o couro
de boi preto, de que, é preciso dizer, só se servem,
não podendo fazel-o o hamba ou chefe, para quem são
reservadas as pelles de cabra preta.
Os penteados variam desde o rapado, com rabicho
no occiput (mais geral), até aos mais caprichosos da
arte. Os pastores divergem, usando sempre uma gran-
de trunfa repuxada para traz, ligando-a por dois ou
tres atilhos.
Segundo diversas narrações, os ban-kumbi têem
uma chronologia rudimentar que se reduz a fazer co-
meçar o anno em outubro e concluir em setembro, divi-
dindo-o em lunações: para cada uma destas ha festas
particulares, de duas ou tres das quaes daremos rapi-
da idéa.
Fevereiro, festa do Gongó.
E n'este mez que termina a preparação da bebida
feita com o fructo do gongó, que depois de fermentada
é extremamente inebriante.
Entre os ban-kumbi Zi
A festa reduz-se simplesmente ao seguinte:
É de praxe guardar uma panella da primeira bebida
feita, que no anno seguinte ha de ser substituida por
outra com liquido novo.
Logo, pois, que se conclue esta, junta-se o povo em
grande algazarra em redor de alguns homens sarapin-
HOMEM DO HUMBE
Tirado de um croquis
tados e vestidos com estranhos artigos, que tomam a
direcção da festa, dirigindo-se, com a nova panella, ao
logar onde está guardada a antiga.
Quando chegam ahi, trocam-as, e partindo para
a residencia do hamba, entre musicas e dansas, entre-
gam-lh'a, ao que elle retribue com um boi ou outro
animal, começando então o consumo da bebida por
toda a terra.
22 De Angola á contra-costa
Setembro, festa do mantimento.
E desta especialmente encarregada a mulher mais
velha do hamba, apesar de elle abrilhantar a scena
com a sua presença.
Pelo minguante da lua de setembro, reunem-se to-
das as mulheres em circulo, junto da residencia do
chefe. No centro está a esposa citada, tendo junto a
si uma quinda ou cesta de sementes, para a qual pas-
sados momentos se dirige o feiticeiro da terra, todo
emplumado, praticando determimadas scenas de en-
cantação em volta da cesta; depois disso, a extremosa
cara metade do chefe começa a distribuir sementes
por quantos d'ella se approximam, e quando vê a quin-
da quasi a esgotar-se, ergue-se, partindo com o resto
para o melhor arimo do regulo. Seguindo-a todos, ro-
deiam novamente a primceza, que tem junto a si uma
moleca conduzimdo porção de cré, com o qual aquella
se sarapinta, misturando o remanescente com as se-
mentes de virtude. Acto contínuo cada qual deita al-
gumas em pequena cova, e reserva para si o restante,
prneipiando depois as dansas, que se prolongam por
aleuns dias.
— À festa da chuva segue-se a esta, cercada de scenas
de feitiçaria, pela maior parte similhantes às que mui-
tos auctores têem Já descripto.
Os ban-kumbi, ao contrario dos ba-coróca, enter-
ram os mortos. Os seus funeraes são ruidosos, como
por toda a Africa, tendo porém alguns traços origi-
naes.
Assim, logo depois do passamento, quebram ao de-
funto os ossos principaes com um pau de pilão e, fa-
Entre os ban-kumbi PAS]
zendo-o num feixe, embrulham-no seguidamente em
panno.
É de uso só participarem a sua morte passados
dias, na intenção naturalmente de haver tempo para
prepararem as festas, e logo que as cousas se acham
dispostas, collocam-no a meio da casa onde falleceu,
dando então a noticia.
Começa invariavelmente a matança dos bois, as
dansas e as bebedeiras, cortadas por imtervallos de
ridiculo choro caramunhado pelas esposas do fallecido.
Á medida que os dias passam, avança a decomposi-
ção cadaverica, formigando os vermes por toda a par-
te, até chegar o dia em que, cansados da fadigosa ta-
reta, se decidem ao funeral.
Abre-se o recinto em que está o cadaver, e pene-
trando ali os membros da famiha, reduzem este a uma
bola, que é cuidadosamente cozida n'um couro de boi,
preto. Acto continuo é este volume mettido em colos-
sal panella, e pegando n'ella os coveiros (familia es-
pecial a quem cumpre tanto este serviço, como o de
executores de alta justiça), transportam-n'a para o lo-
gar onde deve realisar-se a mhumação.
Um boi preto é então immolado sobre a sepultura,
e regada esta com o seu sangue, sendo a carne comi-
da por aquelles que acima citámos.
Existe no Humbe uma succursal da missão catholica
da Huilla, onde os reverendos padres buscam reunir
quantos adeptos conseguem, para ostrazerem ao gre-
mão da religião e do sentimento. Aquelle pequeno re-
cinto, não sendo assás confortavel, é comtudo muito
limpo, com as janellas alinhadas, o jardim proximo
224 De Angola á contra-costa
cuidadosamente cultivado, tendo uma pequena sala de
estudo, em que o viajante póde encontrar varios livros
e onde se vêem faces radiantes de bonhomia e reima
aquelle sorriso de suave consolação, que só ilumina
as consciencias propensas ao bem: esparge-se dali
um perfume de uncção; circumda-o uma como que
atmosphera de virtude, que attrahe e captiva o ho-
mem affeito durante mezes ao viver com negros.
Uma vez assistimos ao sacrificio da missa, e ao per-
correr o reverendo Campana as teclas do harmonium
no momento da consagração, nós, tão afastados do
mundo que pensa, sentimos uma imeffavel doçura em
recordal-o, imaginando-nos de subito immmersos n'elle.
Ali encontrámos tambem os reverendos Ogan, Del-
pueche, e outros, luctando com imnumeras difficulda-
des para continuarem a meritoria obra em que por-
fiam, e que praza á Providencia levem a cabo.
Para alem do Cunene habitam os bana-cutuba, as-.
sm denominados pelo uso de um cinto, d'onde pende
posteriormente uma pequena rodella de sola, da qual
o desenho junto dará idéa; comprehendendo prmei-
palmente Cuanhama, a que nos vamos referir, homens
do valle, etc.
O Cuanhama é hoje um estado de que se falla, não
pela sua extensão, mas pelo pavor que os seus habi-
tadores têem sabido incutir aos povos circumvizinhos,
sobretudo no sul, e que ultimamente deveria ter pro-
gredido muito se as luctas, em que seu chefe Nam-
pandi anda sempre, a isso não obstassem.
Este homem vae longe, dizia-nos um inglez com
quem estivemos no Humbe, fallando delle; é um
225
Entre os ban-kumbi
vulto estranho entre os seus similhantes, capaz de
emprehender grandes cousas e de as pôr mais tarde
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TYPOS BANA-CUTUBA
das qualidades que
mina
em pratica. Alliando a vontade de ferro e a energia
de vinte e cinco amnos, dete
15
22.6 De Angola á contra-costa
constituem o traço dos heroes, como, por exemplo, o
desprezo da vida, a arte de remunerar e o segredo de
se impor, esse homem, que hoje manda n'um pequeno
estado, que possue apenas trimta cavallos e tres mil
homens armados de Martmis e Richards, póde num
tempo muito proximo domimar grandes extensões em
redor!
Effectivamente: assim poderia ser. Nampandi é um
ente que se extrema entre todos os seus similhantes;
comtudo a todas as grandes qualidades acima enun-
ciadas reune uma, que basta para destruir as outras.
Nampandi é feroz, bestialmente tyranno e sangui-
nario.
Eis o que em nosso diario escrevemos a respeito
desse mancebo:
«O soba do Cuanhama, Nampandi, primo direito de
Chipandeca (Otjipandeca), seu antecessor, pois é filho
de uma irmã mais nova da mãe d'aquelle, entrou no
estado ha cmco amnos approximadamente.
«Bem parecido, cheio de vida e vigor, dotado tam-
bem da mais desmedida ambição, com uma natural
tendencia para abusar do poder e tyrannisar, esse ho-
mem é hoje a leste do Cunene, no territorio portuguez,
o terror dos seus e de quantos indigenas ali appare-
cem, exigindo que a auctoridade portugueza lhe dê já
uma seria lição, ou o faça banir”.
«Praja sempre á europêa, possumdo uma bem ar-
mada guarda com carabinas modernas, que elle mes-
1 A data em que escrevemos estas linhas, Nampandi já não é d'este
mundo.
Entre os ban-kumbi PAP
mo ensina a atirar ao alvo, no que é artista consum-
mado, a ponto de matar á bala passaros no vôo; de-
safia ao alvo quantos brancos por ali passam, de quem
zomba logo que errem o mais simples tiro; possue
soberbos cavallos em que habitualmente anda mon-
tado, e que ora lança à solta na carreira, galgando
de um salto acima d'elles, ora, partindo direito à
porta da paliçada, que cerca em Toquero a sua resi-
dencia, desmonta de subito, por maneira que só o ca-
vallo entra, ficando elle de pé junto da mesma porta.
Pelo singelo entornar de um copo de agua que um
mmfeliz vassallo lhe vimha servir em presença de euro-
peus, deu-lhe em castigo a morte, disparando uma bala
da propria carabina, e tendo igual correcção o facto
de, achando-se presente no acâmpamento dos euro-
peus!, apparecerem ahi homens com quindas de fari-
nha para negocio. À mais grata das suas distracções
é espetar na sua zagaia ou fazer com que se espetem
as suas mais galantes mulheres, para o que se colloca
pela noite em escuro corredor da residencia, de lança
em riste, clamando por ellas de modo imperativo. À
unica boa qualidade que possue, é receber hospitaleira
e galhardamente quantos europeus o visitam, presen-
teando-os com generosidade. Nampandi, pelo que aca-
bámos de dizer, é um monstro que está precisando da
mais séria e severa das correcções.»
Felizmente para o mundo civilisado, e sobretudo
para nós portuguezes, esse malefico tyranno já não
existe, como indicúmos em nota, evitando-nos com o
1 Eram dois inglezes.
228 De Angola á contra-costa
seu desapparecimento o mcommodo de o subjugarmos
pela força, já que não queria ceder aos repetidos con-
selhos.
Os ba-cuanhama, com quem não travámos conheci-
mento, parece serem mais audazes e bellicosos que os
ban-kumbi, percorrendo a miudo os sertões que lhes
ficam proximos com guerras devastadoras. O paiz terá,
quando muito, 5:000 milhas quadradas de superficie;
a capital, que elles denominam emballa do Toquero
ou do poente, acha-se situada em Ghiva, no meio de
extensas planuras alagadiças, despidas na sua maior
parte de vegetação, seccas durante a estiagem.
À riqueza d'elles consiste nas grandes manadas de
gado, que facilmente augmentam com a rapina.
Similha-se muito nos costumes e habitos aos dá-
maras.
O tracto do terreno em que nos achavamos acam-
pados differe do anterior.
Constituído pelas rochas primitivas, onde não podé-
mos fazer especial estudo, é semeado de espimheiros,
Bauhinias, Mopanes, bao-babs, e de uma arvore que
os indigenas muito apreciam, cujo fructo, quando ma-
duro, com dois caroços negros, é comestivel. Encon-
tram-se alem d'isso ali sycomoros, hyphoenes e outras
arvores.
O aspecto local differe muito do planalto de Huilla,
sendo pelos seus habitadores europeus considerado
salubre.
A uma milha do Caculovar o terreno eleva-se al-
gum tanto, achando-se ali edificadas todas as habita-
ções, livres assim das grandes cheias no tempo inver-
Entre os ban-kumbi 229
noso, epocha em que os crocodilos vem quasi junto
das casas visitar seus moradores.
Desde que nos approximámos do Humbe, começou
a acalentar-nos a idéa de fazer uma exploração a esse
mysterioso curso do (Cunene inferior, sobre o qual
amda hoje não ha idéa precisa. À cataracta, subdi-
HOMEM DO HUMBE
Tirado de um croquis
vidida em braços variados, e as grandes perdas por
evaporação ou infiltração, eram outros tantos proble-
mas que nos attrahiam ali antes de proseguirmos de-
finitivamente para leste.
A nossa gente, porém, não possuindo pelo Cunene
a mesma admiração e interesse que nós, mal suspei-
taram do caso, tocaram a rebate aos receios!
— Eil-os que tornam para a tal região, exclamaram
todos amedrontados.
230 De Angola á contra-costa
— E eil-os de novo em debandada, volvemos por
nosso turno, antevendo outras fugas e decepções.
Convencidos de que qualquer tentativa no sentido
de explorar o rio só podia acarretar-nos desgostos e
comprometter a nossa situação, entendemos necessa-
rio abandonar o projecto para sempre, deixando a
outros o gosto de resolvel-o, e a 16 de julho, logo que
alyorecesse, voltar as costas ao Humbe, fazendo-lhe
as nossas despedidas.
Eram duas horas da noite quando termimámos estas
considerações, e haviamos apenas adormecido, quando
fomos acordados de sobresalto. Um rumor estupendo
nos despertára; julgavamos talvez uma debandada dos
nossos, quando de subito um ronco estranho estron-
deou na floresta e repercutimndo-se nas quebradas se
perdeu ao longe, chamando-nos á realidade.
Á claridade da lua, que suave illuminava a terra
em redor, o rei das selvas passeava proximo, demons-
trando com seus rugidos o espanto que lhe causava
a nossa presença.
Que impressão estranha causa no mundo animado
o urro tremendo d'esse feroz quadrupede! Os proprios
grillos e rallos emmudecem, os bois aconchegam-se,
as gallnhas acocoram-se: é como se todos receiassem,
com o menor movimento, provocar as iras tremendas
do bicho!
A final, despontando a preguiçosa aurora, dissipa-
ram-se os sustos, e lançando-nos aos bois-cavallos,
fomos a caminho de Quiteve.
O primeiro acampamento foi na mu-cunda de Caon-
go, o segundo na de Quima,
Entre os ban-kumbi 2 cul.
Este paiz é park-like, frisando-se a vegetação por
adansonias e elegantes hyphoenes.
O terreno é silicioso, alternando por vezes com ar-
cillas; o caminho corre ao norte.
À viagem ia-se fazendo alegremente; as manhãs ca-
cimbadas e frescas, e o sol um pouco encoberto, da-
vam á paizagem um tom de meia luz, que fazia lem-
brar o romper de manhã primaveral na nossa querida
patria. Parece pueril, mas é verdade; que mfluencia
tem no espirito do viajante uma circumstancia como
esta! Que de idéas e recordações nos acudiam, ao
olhar para aquelle aspecto da natureza, tão differente
do commum entre tropicos!
Poucas vezes a lembrança da terra natal nos cavou
tão rapido e fundo o soffrer, como n'estes dias aqui.
Tinhamos saudade, sem a final comprehendermos
muito bem a rasão; lembranças estranhas do céu, da
brisa, do lar, que se nos afiguravam mais bellos do que
nunca, achando espelho na paizagem de agora, refle-
ctiam-se ahi, e volvendo sobre nosso espirito, ao que
parece, desenrolavam aos olhos da alma todo um pa-
norama de recordações e suave cogitar, que a labuta-
ção dos ultimos tempos havia amortalhado no manto
do olvido, e que a saudade n'um momento despeda-
cava com tyranna mão. ;
- Felizmente, quando era mais mtensa a dor, o sol,
verdadeiro açoite de quantos sentimentos capazes de
fazer titubear o viajante, descobria, dardejando-nos de
prumo, e, varrendo idéas e emoções, transformava esse
montão de confuso experimentar, em muda fadiga e
catadupas do suor.
252 De Angola á contra-costa
Adiante o aspecto da terra mudou mais uma vez, e,
fechando-se em mata para a esquerda, démos entrada
n'uma zona charcosa, coberta pelo Arundo phragmites.
Era nada menos que o leito do rio Cunene na epo-
cha das chuvas, e que estava agora a 3 milhas de nós.
Em roda viam-se, suspensos aos ramos dos espi-
nheiros e dobrados no sentido da corrente a 1.5 e
mais de altura, feixes de grammineas, que, arrastadas
pelas aguas, ali tinham ficado detidas.
Calcule-se o aspecto imponente desse rio por aqui
em tal epocha, a ajuizar por este volume de agua, e
ter-se-ha a explicação d'essas informações que muitos
viajantes d'elle têem trazido, e que mais de uma vez
se julgaram como exageradas.
E facil será tambem comprehender como o Cunene,
drenando todo o plateau de Galangue, chega ao mar
com pouca agua; basta para isso considerarmos que
pelo lado do valle as suas margens téem o mesmo as-
pecto, e portanto, n'este colossal alagamento, vae elle
em seu curso medio, perdendo parte das aguas por m-
filtração e estagnação, sobre centenas de kilometros
quadrados.
A salubridade d'esta zona poderia ainda considerar-
se hypothetica, se toda a gente não fosse unanime em
declaral-a assás saudavel.
Um objecto que nos prende a attenção é a abun-
dancia e variedade de aves, que esvoaçam, mergulham
e vageiam pelas lagoas e suas margens.
Cegonhas, patos, garças, gaivotas pardas do imte-
rior, pelicanos, pernaltas exoticas, como se fosse um
jardim de acelimação, vivem feliz nas lagoas.
Entre os ban-kumbi Do
Uma ave azul ferrete e que suppomos ser o Chara-
drius caruncula, pouco menor que a rola, attrahe-nos
a vista pela sua pouca timidez, saltando de ramo em
ramo, para nos mirar curiosa.
Podos os rebanhos do sul para aqui vem n'esta
epocha, pois os pastores sabem que por todo o leito do
rio existem bellas pastagens.
Com mais uma marcha penetrámos no districto da
Camba, dominios do hamba N'gonga, sem ter ensejo
de com elle fallarmos, e proseguindo no trilho, parallelo
ao qual se estiram muitas lagoas em que hippopotamos
e crocodilos vivem na mais perfeita communidade, fi-
zemos ponto n'um logar chamado Peonga.
Accorreu aqui uma scena, que em dois traços es-
boçaremos, por se referir a um rapaz africano, Au-
gusto Mupei, que hoje passeia contente nas ruas da
Europa, e já por duas vezes foi comnosco à Africa,
tendo todo o direito a figurar n'este livro.
Ao chegarmos a Peonga, e depois de acamparmos,
disse-nos elle:
— Esta é a minha terra, eis o logar em que passei
os meus primeiros annos, e donde fui afastado aos dez,
pelos guerreiros do Nano, que, vindo aqui n'uma 7az-
2a, me roubaram á mãe. Aqui residia por esse tempo
toda a minha familia. |
' Mediocremente indifferentes a esta subita revelação,
não achámos melhor para lhe responder:
— Procura-os e vae cumprir com as tuas obrigações
de bom filho, isto é, vel-os e abraçal-os.
Mal acabavamos de formular o nosso conselho ao
filho extraviado, quando de subito entra no acampa-
234 De Angola á contra-costa
mento um imdigena, e, topando com Mupei'de chapéu
e paletot, reconheceu-o e começou a rx como louco.
Findo tal exordio, encetaram-se explicações, d'onde
se concluiu o segumte:
Mupei tmha perdido o pae havia pouco tempo.
E como? Devorado ali mesmo por um leão! Mupei
ouviu a narrativa sem pestanejar!
Um irmão succumbira tambem. E de que modo?
Colhido na lagoa fronteira por enorme crocodilo.
Sua mãe, emfim, conservava-se viva; mas, excla-
mou o informador, parece que longe aqui.
Estavam as cousas neste pé quando acto continuo
ouviu-se clamar: «Mupei, olha a mãe de Mupei!»
Saímos das barracas. Fóra achava-se acocorada,
uma velha com uma quinda de farinha defronte, duas
bolas de tabaco, e um tarro de borlunga (vaso de cer-
veja de massambala), mirando tudo com espanto.
«E a mãe de Mupei», repetia a gente em côro; e a
velhinha, circumvagando com o olhar os que a rodea-
vam, aconchegava de si os ditos artigos, receiosa que
toda aquella scena fosse feita no intuito de lhe rouba-
rem quanto possuia.
«Então, Mupei, não vaes comprimentar tua mãe?»
exclamámos nós.
Erguendo-se, marchou direito a ella, e observando-a
de frente balbuciou: «Adeus mmhbha mãe, então não me
conhece ?»
Um subito estremecimento percorreu o corpo da
velhota; dez minutos decorreram sem ella proferir
palavra, conservando-se espantada a miral-o sem se
lembrar de tudo que a cercava.
Entre os ban-kumbi 235
Era um quadro original, a pose dos dois, causando
mteresse reflectir nos sentimentos que deviam n'esse
momento animar quem, apesar de tudo, era mãe.
A final a pobre creatura resolveu-se, e, pegando de
quanto tinha defronte de si, objectos que eram talvez
o seu unico pensamento quando veiu ao quilombo, e
com que pretendia a compra de objectos de seus con-
stantes sonhos, entregou-os ao filho!
Assim lhe mostrava todo o affecto; não sabendo
dar-lhe n'um osculo ou n'um abraço a prova da sua
maternal satisfação em vel-o junto a s1, offerecia-lhe
o capital com que vinha negociar.
Duas horas depois saía ella, coberta de fazendas
de todas as cores e estampas.
Emquanto estas scenas se passavam, Antonio, o dex-
tro caçador, mais disposto a espreitar a caça do que
os sentimentos que domimavam a mãe de Mupei em
presença do filho, mimoseou-nos com cinco pintadas
e dois patos reaes, optimo recurso para quem só ti-
nha carne de um boi que succumbira de caonha *.
1 É a caonha um dos maiores flagellos do gado no plateau da Huilla,
e para a qual as tentativas de cura são quasi infructiferas. O melhor
meio é afastar da manada o boi achacado. Um dos processos, de que ou-
vimos fallar como talvez eficaz, é o da vaccina: logo que se pretende
tornar immune um boi, amarra-se e, abrindo-lhe a cauda abaixo da ulti-
ma vertebra, introduz-se ahi uma tira de fazenda que se empregnou de
massa pulmonar de boi morto com a tuberculose, ligando tudo com longa
percinta. Ao cabo de duas ou tres semanas cáe-a ligadura, cicatriza a
ferida, e diz-se que o animal póde viver indemne entre similhantes com
caonha. Outras vezes a inflammação propaga-se para a parte superior e
o animal succumbe. E esta doença extremamente contagiosa. Diz-se que
um touro procedente da Hollanda infficionára com ella o Cabo e terras
do norte, e Chapmann na primeira viagem a trouxera para N'gami.
236 De Angola á contra-costa
São muito numerosas as cobras por aqui, havendo
nós encontrado durante o trajecto para Peonga tres,
uma das quaes saltou defronte de nós; tambem na
agua existe uma assás perigosa.
À vegetação pela linha por que vamos correndo en-
contra-se distribuida em tres zonas distinctas. Na alta,
caracterisa-a o bao-bab, o sycomoro, e algumas aca-
cias de espinho, na baixa as Bauhinias, junto ao rio
o espinheiro e o arundo; habitadas, na parte superior,
pelos antilopes, na media pelo javali, especie que jul-
gâmos ser o Cochon à verrues, e a toupeira; perto da
agua pelos hippopotamos e aves aquaticas.
Um frio extraordinario enregela n'esta quadra os
membros, baixando 4 hora da minima o thermometro
a zero de graus centigrados, facto que talvez de certo
modo tenda a explicar a salubridade d'esta zona, tão
coberta de pantanos, por impedir o desenvolvimento
do germen miasmatico.
No acampamento seguinte, em Tchinguembe, ficá-
mos detidos na barraca e junto do fogo, como se esti-
vessemos na Siberia! Ás cinco horas da manhã ainda
o thermometro marcava proximo do zero, e um prato
conservado com agua, continha um disco de gêlo. Nu-
merosas hyenas rodeavam esfaimadas o recinto, inci-
tando-se-lhe o appetite por este frio apperitivo.
Ninguem imagina a impressão que uma tal tempe-
ratura produz no europeu em África, quando pelo dia
sobe a 28º e 30º.
Não é comparavel este frio com o da Europa, natu-
ralmente pelo contraste da noite com o dia; e na ver-
dade torna-se doloroso e msupportavel. Ao metter as
Entre os ban-kumbi VN Sm
mãos em agua, parece que nos arrancam as unhas, ao
molhar a cabeça afigura-se-nos que nol-a esfregam
com uma escova esbraseada!
Quando a final nos erguemos, topámos com uma
scena estranha, para devaneio.
Quatro carregadores da terra que comnosco vinham,
tendo recebido na vespera uma porção de couro de
boi, para fazer alpercatas, entretinham-se junto do
fogo n'aquelle trabalho; o notavel, porém, é que, com
todo o engenho proprio de um africano, tinham estes
heroes achado outra applicação para o couro, não me-
nos util, e mais agradavel talvez.
Á medida que procediam á feitura das alpercatas,
iam almoçando as aparas!
O processo é em tudo singelo.
Apenas reunidos uns poucos de bocados, punham-
os ao fogo, e logo que começavam a encarquilhar-
se, deitavam-os para o chão, e, assentando-lhes qua-
tro ou seis pancadas para amollecerem, mesmo cheios
de terra, os Ingeriam.
Nem na retirada da Russia!
Emfim, a 22 de junho, abandonando a varzea ala-
gada do rio e, seguindo por terra mais alta, atravez de
densos bosques, entrámos em Quiteve, onde tem vas-
ta residencia um portuguez ha amnos ali estabelecido,
n'uma das mais bellas posições da margem do rio Cu-
nene, e que a simples vista basta para reconhecer como
excellente e propria para uma colonia.
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CAPITULO VIII
ENTRE CUNENE E CUBANGO
A reluctancia dos guias e o recurso dos bois — À fome e um quadro
do sertão — Disposição geologica das terras percorridas — Rochas vulca-
nicas e minas — À vegetação, o frio e os lobos — Cobra original — À caça
e as pégadas do elephante — À noite e o charivari das feras — As matas
da Handa—Cachira— Os povoadores d'ali— As mupandas e a terra sem
pedras— À cabra que assobia e os buslmen — À steatopygia — À natureza
do solo; conversa com um indigena — Os ba-cua-neitunta — Exageros gen-
tilicos—O leão e os mabecos — Os macacos e o armadilho—O Cubango —
Considerações sobre o seu curso.
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digena africano em
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” lo . nada região, qual o
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o. ul a “A tadores, qual a na-
ER ir NM MA ih o! N]. tureza dos alimen-
7 | | tos ali encontrados,
evel-o-heis prestes
erguer-se, estender
7 o braço esquerdona
do SER RO a “direcção de que se
trata, e, dando com a mão > Ras pequenos estalos,
responder: «To longe, senhor; má gente a de lá; po-
bre, não tem para si e mento
E se acrescentardes que, sem embargo, quereis ali
que tendes imteresse em os visitar, e o convidaes
16
242 De Angola á contra-costa
a acompanhar-vos como guia, elle retorquirá amda:
«Isso para mais tarde, depois fallaremos, agora tenho
que beber o meu pombé!» E não imsistir, não procurar
convencel-o, porque todas as diligencias n'esse sentido
serão frustradas, se não perigosas aos olhos dos vossos
companheiros, quando escutarem attentos as narrações
extraordimarias dos perigos a correr, que o mformador
irá exagerando sem duvida, na justa medida da msis-
tencia.
Durante a nossa demora em Quiteve dez vezes fi-
zemos tentativas d'este genero, no intuito de arranjar
um guia que nos conduzisse á habitação do regulo
portuguez da Handa, e outras tantas cortámos de su-
bito as negociações, ao ver e ouvir os exageros dos
mdigenas, que os nossos, approximando-se, começa-
vam à commentar.
A idéa de que o mterior do contmente africano é em
vastas zonas ermo e coberto de areias, em outras po-
voado de feras e cannibaes, se de ha muito se dissi-
pou do espirito do europeu, pelas pesquizas de imtel-
ligentes e audaciosos viajantes, que lhe trouxeram a
certeza da fertilidade e riqueza do solo, e da densa
população dos districtos, conserva-se, caso estranho,
amda arreigada na imaginação do negro, repleta de
brumas e cheia de perigos. |
Ninguem o demove do seu proposito, e se seguindo
uma linha qualquer de trajecto encontra sempre popu-
lações pacificas que bem o recebam, resta-lhe o recurso
de considerar que se n'esse rumo não existe O caso sus-
peito, mais para um lado ou outro será facil achar a
prova de quanto affirma.
Entre Cunene e Cubango 243
Assim, pois, o melhor é valer-se dos proprios recur-
sos para conseguir os seus fins, abstendo-se de fallar
ácerca do caminho por onde se dirige.
Tal era a impressão que nos dominava ao tempo da
partida para a Handa, e, preparando as nossas duas
erandes canoas, a 26 de junho transpozemos o Cune-
ne, acampando na sua margem esquerda.
Tem elle aqui 100 a 150 metros de largo e 2".5 de
profundidade, margens elevadas e cobertas de arvore-
do, e é livre de cachoeiras desde o Mulondo para baixo
da Dangoena.
Até agora, a parte do paiz percorrida, frequentada
de europeus, apresenta-se ao leitor pittoresca e limpa
de obstaculos, por onde o viajante despreoceupado
póde transitar de luva e badime.
Sujeitos aos trabalhos agricolas e commerciaes, os
mdigenas, sob a suave pressão da auctoridade, perde-
"am a sua ferocidade nativa, entregando-se a uma vida
de certo modo laboriosa, que proporciona ao viajante
o modesto bem-estar de que carece.
Não tanto assim para o diante.
Avançando para as raias da nossa provincia, as cou-
sas começam a variar, e embora não tenhamos que
referir grandes obstaculos origimados pelos ndigenas,
nem por isso deixaremos breve de entrar em lucta com
dificuldades d'esta e outra natureza.
Os grandes rios, as planuras alagadas, os pantanos,
a escassez dos mantimentos, e emfim a fome, são cir-
cumstancias graves que representam o mais impor-
tante factor n'estas viagens, sendo a ultima merece-
dora de toda a attenção.
244 De Angola á contra-costa
Com receio de caírmos victimas de similhante fla-
gello, mettemos em Quiteve mais vinte bois, que jun-
tos aos já possuiídos perfaziam a cifra de trinta e dods,
precioso recurso que muito concorreu para a nossa
salvação. |
E assim dizemos, porque em verdade, quando saí-
mos d'essa terra, mal pensariamos que d'ali até ao
grande Zambeze só em dois ou tres logares se encon-
traria mantimento em abundancia, caso estranho, que
raras vezes em África o viajante terá topado, e nos
proporcionou angustiosos dias, apertados por este ter-
rivel mal.
A fome, eis o terror do sertão.
Chuvas, frios, feras, salteadores; nada perturba e
apavora, como essa terrivel idéa, que ao assomar logo
desmoralisa.
Não ha meio nem phrase para conter e animar o
homem faminto!
(Quereis vel-o, errante e desvairado, os membros
nús e emmagrecidos, a pelle do ventre rugada, depri-
mida em concavidade, divagando com o olhar empar-
vecido por entre a floresta em procura de qualquer
cousa que lhe mitigue a fome, volvendo-se ao menor
rumor onde suppõe existir um reptil, mirando attento
onde pensou ver uma abelha, imdifferente aos vossos
clamores, abandonando carga e companheiros, para
vaguear em matos onde fatalmente tem de perder-se;
ide á Africa, e embrenhae-vos por essas florestas onde
só o elephante e o rhinoceronte vivem!
Ahi, quando ao acaso aprouver collocar-vos n'uma
das muitas e tristes situações em que nos achámos,
Entre Cunene e Cubango 245
apreciareis bem, leitor; tudo quanto a penna aqui não
póde descrever-vos!
Antes de partir não vem fóra de proposito algumas
resumidas considerações sobre os traços physicos ge-
raes das terras atravessadas. |
À vasta cordilheira, que corta de norte a sul o Fendi
e determina n'esta altura pelo oriente a bacia do Cu-
nene, desvia-se a caminho do meio dia para leste, vm-
do gradualmente transformar-se nas vastas ondulações
do plateau da Handa.
Assim nivelada, deprime-se para a banda do occi-
dente, concorrendo de novo para a delimitação ao
poente da mesma bacia.
É ella, póde dizer-se, o limite leste do enorme cordão
orographico, que, correndo parallelamente à costa a
200 kilometros de distancia, começa para alem dos
contrafortes da Chella, no limite dos schistos paleozoi-
cos de que fallâmos, e vem morrer n'esta longitude,
com o apparecimento da formação laurenciana que a
constitue, profundando para o nascente, sob um tra-
cto de terrenos primarios pouco extensos e caracte-
TIStICOS. | |
E notavel porém a disposição das terras sedimen-
“tares de uma banda e outra da imponente massa gneis-
sICa.
Para alem passámos successivamente pelas forma-
ções terciarias, com o seu grés grosseiro de cimento
calcareo, grés calcariferos amarelos, como a molas-
sa, etc., para em seguida entrarmos nas secundarias
com os seus calcareos argillosos, marnes, e, transpondo
um plateau schistoso, encontrar a laurenciana.
246 De Angola á contra-costa
Aqui largâmol-a agora, entre schistos micaceos, que
breve desapparecem, para dar logar aos grés em ex-
tremo impregnados de oxido de ferro, fendidos abru-
ptamente e cheios de ravinas pela acção das aguas, que,
desageregando-os com rapidez, lhes consentem affe-
ctar as mais estranhas fórmas; logo adiante se divisa
o quer que seja, como calcareos, e, segundo suppomos,
contmuam muto amda para o oriente.
À estratificação do gneiss, por toda a parte onde a
temos observado, é plana e horisontal, por vezes ligei-
ramente curva, prova de que quando o sublevamento
primitivo se operou ainda aquelle permanecia no es-
tado plastico, circumstancia que nos mduz a suspei-
tar um trabalho orogenico, de caracter assás primor-
dial.
Até à presente data só uma vez tivemos occasião
de observar rochas eruptivas de origem ignea, encon-
trando, como já dissemos, exemplares graniticos em
Iorocuto, promiscuamente com gneiss.
De rochas vulcanicas nada sabemos, e embora nos
tenham dito que para o oeste, entre Mossamedes e
Chella, se encontra uma rangé basaltica, não démos
noticia, posto que para essa região dizem existir a
phonolite.
E de crer que toda a zona atravessada seja mineira,
abundando os jazigos metalhferos, como ha noticia na
Pedra Grande, na Chella, nos Gambos, no Humbe e
no Hambo, e até no planalto, na limonite dos panta-
nos, d'onde os mdigenas extrahem o mimerio; como,,
porém, é ponto melindroso a que dificilmente se póde
attender em viagem de exploração geographica, abste-
Entre Cunene e Cubango 247
mo-nos de n'elle entrar, deixando a pessoas mais com-
petentes similhante tarefa *.
À vegetação falta facies especial n'este sitio; densa
na margem do rio, começa a rarear nas zonas do grés,
mostrando leguminosas de espinho e plantas de triste
aspecto, que para o oriente são substituídas por espe-
cies de maior vulto.
Emfim, o frio que n'esta terra temos sentido impel-
le-nos amiudadas vezes a pensar que a sua origem não
é devida á altitude, pois sendo certo estarmos n'um
plano inferior ao da Huilla (onde não observámos ta-
manhas baixas de temperatura), talvez que a causa
principal esteja na rapida evaporação ou em qualquer
circumstancia similhante.
Abundam no rio os hippopotamos e os crocodilos,
bem como julgâmos existirem duas variedades de ba-
eres Clarias capensis, e outra de que não conservâmos
noticia, emquanto que na terra divagam leões e ele-
phantes (muito numerosos), rhmocerontes, leopardos e
lobos, que nos mimosearam com uma serenata na der-
radeira noite ali passada, e no acampamento teve o sen
echo no permanente latido dos nossos cães.
O apparecimento dos elephantes n'esta zona, que em
redor é bastante povoada, foi um facto que nos cau-
sou estranheza, pois o colossal pachyderme procura
sempre os logares mais sombrios e retirados, parecen-
1 Variam as indicações mineralogicas com relação ao tracto de terra
por nós atravessado, sendo conhecido na costa o ferro magnetico dos
Gambos, oligisto de Mossamedes, como carvão de pedra da mesma proce-
dencia, e ainda a malachite, e tambem o cobre nativo, o sal-gemma, etc.
248 De Angola á contra-costa
do-nos ver a explicação deste facto, nas recentes e re-
petidas perseguições que lhe movem no norte do Ca-
lahari, no Betchuana Land, etc.
Existe na terra que vamos atravessar certa cobra
venenosa, de 3 a 4 metros de comprido, manchada
no dorso, ventre branqueado, levando-nos primeiro a
suppor ser uma python, que denominam tóca, cujo ha-
lito ou cheiro perturba o viandante quando proximo
passa!
O modo por que se alimenta, é, segundo dizem os
indigenas, extremamente original.
Enrolada durante dias n'uma arvore, espera pacien-
temente qualquer animal, e, logo que o colhe em seus
poderosos amnneis, acaba-lhe a vida, para em seguida
o abandonar, subindo de novo para o seu posto de
observação.
Ahi permanece impassivel à espera que a fermenta-
ção putrida comece, e quando os vermes affluem já em
tão grande numero que cobrem inteiramente o bicho,
ella, mirando-os cubiçosa, lança-se sofrega para devo-
ral-os!
Nos curraes, afiançaram-nos ainda, penetra de ordi-
nario sem ageredir o gado, e só no intuito de procurar
os vermes que se agitam nas materias e dejectos em
decomposição !
Este estranho caso é digno de ser apontado, embora
não possamos garantir a sua veracidade, por falta de
ensejo para o observar.
Como a frescura do tempo convidasse à marcha,
e não menos a idéa de que, se as chuvas sobreviessem
antes de attingirmos o Lobale, ahi ficariamos presos
Entre Cunene e Cubango 249
sem conseguir transpol-o para alcançar o Zambeze,
partimos logo para o nascente, prolongando um rio
denominado Calonga, affluente do Cunene, cujas mar-
M'PALA (macho)
gens são extremamente pantanosas e cobertas de gra-
mineas.
No parallelo onde o famos margimando, não consen-
tindo vau, tivemos no segundo dia de marcha de sus-
pender, para construirmos uma ponte, trabalho que
nos absorveu dez horas, vencendo-se o obstaculo na
manhã do terceiro dia.
250 De Angola à contra-costa
Contra toda a expectativa, porém, ao tentarem a
passagem os primeiros, descobriram mais rio do lado
opposto!
É que uma longa ilha nos havia illudido, pela terra
firme da outra extremidade, e, dividindo-se o curso da
agua em dois braços, tivemos de fazer segunda ponte.
Ao norte corre outro, o Cachitanda, que vem da
terra dos amboellas e nhembas, cujo deslisar, com o
deste, forma uma cunha de terras alagadas impossivel
de percorrer, e na margem do qual se acha hoje esta-
belecida uma delegação da missão catholica. Notavel
doença acommette n'esta terra os europeus, queixan-
do-se d'ella os reverendos padres: é o apparecimento
de numerosas feridas nas pernas, acompanhado de im-
flammação ou sorte de edema.
Apenas haviamos camimnhado 3 ou 4 milhas, démos
com o quilombo de uma guerra que na vespera ali
passára, e devia conter muitas centenas de pessoas, a
Julgar pelos numerosos fogos dispersos, e anda crepi-
tantes.
Tal encontro ter-nos-ia sido fatal, pois estas enor-
mes cohortes, vindas ás vezes de longe, percorrem ás
soltas os sertões sem rei nem lei; e, dominadas apenas
pela rapina e ancia de pilhar, desviam-se, respeitando
só a força, sem attenderem jamais a reclamações de
quem quer que seja.
E frequente a caça, matando nós logo no começo
da viagem uma m'pala, Epyceros melampus, de cuja
cabeça damos um mau desenho; assim como as péga-
das do elephante no terreno amollecido eram tantas,
que difficilmente os bois-cavallos podiam transitar.
"
ND)
Eintre Cunene e Cubango 51
Uma manada, superior a cmcoenta, havia pouco
tempo antes trilhado o camimho por onde nos dirigia-
mos, creando em fundas covas verdadeiros obstaculos
à marcha regular. Por toda a floresta se viam arvores
esgarçadas, umas fendidas pelos impulsos da tromba
do formidavel pachyderme, outras de raizes para o ar
pelo trabalho das possantes defensas.
Foi aqui onde pela primeira vez tambem Antonio
caiu sobre a trilhada de umas girafas, que rapidas se
escapavam por entre as selvas.
É uma verdadeira arca esta zona deserta de habi-
tadores humanos, pacifica de dia, ruidosa pela noite,
tamanho é o charivari de uivos e roncos que se esca-
pam d'essas guelas esfarmadas, de que o triste via-
jante apenas está separado por um circulo de foguei-
ras!
A hyena, sobretudo a denominada crocnta, de re-
dondas manchas pretas, unica habitadora da Africa
austral, e digna descendente da H. Spele, é de um
atrevimento sem igual, levando as suas avançadas a
rastejar silenciosa com o quilombo.
O proprio crocodilo, pouco acostumado á visita do
homem, mostra-se a miudo, chegando nós a querer
pescar um com o osso de boi, tantas foram as tenta-
tivas por elle feitas, para colher qualquer dos nossos
quando ía na agua! |
À terra que medeia entre esta zona e o districto de
Handa é coberta por uma mata impenetravel de espi-
nheiros, entre os quaes figura a Acacia cafira (?), deno-
minada unha de gato, a mupa com suas varas elasticas
e outras, que nos deixaram n'um miseravel estado:
E” 2)
252 De Angola á contra-costa
Começam então a sumir-se as Bauhinias, substituim-
do-as gigantes Rubiaceas, typos do genero Berlinia e
outras que não podémos reconhecer. Antes de chegar
à residencia do soba da Handa, topámos com o curso
do Cuelai (Cuerrai), rio que, correndo direito ao sul,
se divide junto ao Valle em dois braços (umbuas), um
dos quaes passa no Cuanhama, originando n'essa se-
paração a celebre lagoa, designada nas cartas com o
nome de Evalle, e que não passa de um vasto pan-
tano.
É por elle que derivam todas as aguas do elevado
plateau dos amboellas ao norte, e que continuando o
seu percurso pelos dois braços acima citados, vae um
entrar na lagoa salgada da Donga (Etocha) e outra
na dos Gangjellas.
Depois de uma visita de Cachira, o chefe daqui, e
de lhe transmittirmos as ordens que levavamos, apres-
támos a partida da caravana para a região dos am-
boellas.
O planalto da Handa é extremamente fertil e salu-
176:
A disposição das terras em largas ondulações, im-
tervalladas de ravinas, faz com que os rios tenham os
seus leitos bem definidos, evitando assim os perigosos
pantanos. Os ventos frescos aqui predominantes puri-
ficam a atmosphera, tornando-a uma terra muito pro-
pria para residir.
Os habitadores, apesar do pouco tempo que entre
elles nos demorámos, pareceram-nos similhantes aos
de Cuanhama e gente do Valle, o que suppomos de
resto estar certificado.
Entre Cunene e Cubango Bão
MULHER DA HANDA
Fr
Usam alguns a cu-
tuba, as mulheres en-
feitam-se com missan-
gas, correias, buzios e
manilhas, conforme a
figura junta represen-
ta, uns e outros culti-
vam pouco, têem habi-
tos pastoris e abusam
do rapé.
O trilho para diante
tomou ao norte, e com
elle tudo começou a
mostrar o aspecto de
verdadeiro sertão.
254 De Angola á contra-costa
Vieram as mupandas que nos haviam de acompa-
nhar á contra-costa, como tambem, facto notavel, ap-
pareceram rochas affloreando o terreno, resultado sem
duvida de uma ramificação da serra dos amboellas.
que para aqui deriva; e isto, que parece uma circum-
stancia de nenhuma monta, teve para a nossa gente
muito valor, pois precisando cozinhar no chão, assente
a panella em tres pedras, andavam desde Qumteve a
clamar: « N'esta terra, nem à pedrada se podem per-
seguir os mimigos; não se encontra sequer um calhau
para lhes atirar!»
São raras as aves, emquanto que abunda a caça
grossa, encontrando-se frequentemente palancas, Hyp-
potragus equinus, zebras e uma cabra de agua, conhe-
cida na Huilla por N'dughi, quem sabe se a Adenota
Lechee (?), cujo assobio caracteristico se assimilha ás
vezes ao pio de certas aves nocturnas.
Estavamos então no limite da terra dos amboellas,
e foi aqui que novamente tivemos ensejo de ver uma
troupe esses imfelizes de que já fallâmos e que diva-
gam pelos bosques africanos, conhecidos por bushmen.
Tendo-nos avistado, abalaram para o interior da flo-
resta, dando porém o tempo necessario para notar um
facto, para nós duvidoso, e que suppunhamos existir
particularmente entre os hottentotes.
mulher por nós observada de relance, damos ao leitor
um exemplar hottentote na gravura junta, copia fiel
de uma photographia.
De todos é hoje conhecida essa particularidade phy-
sica da gente hottentote, que com outras rasões esteve
o
E a stéatopygia. Não podendo aqui representar a .
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TOTE
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GIA
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s
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Entre Cunene e Cubango 255
para a collocar em grupo especial, constitumdo uma
raça unica, homo africanus ou homo hottentotus!
Originada por um desenvolvimento adiposo na re-
gião elutica, que se exagera pela parte posterior em
pr-gas da derme, esta protuberancia, á medida que a
mulher avança em idade, tende a enrugar-se, e por
vezes parece não fazer parte mtegrante do corpo, ou,
pelo menos, ser uma deformidade de doença estranha!
A côr amarellenta da pelle (igual à da folha de taba-
co secca), à sua pequena estatura, os traços repellen-
tes do rosto, o aspecto de decrepitude prematura, a
fatal e constante miseria, tornam amda a mulher bus-
hmen victima desta deformidade, mais hedionda, se-
gundo julgâmos, que a hottentote.
Vis arremedos da especie humana, esses mdeseri-
ptiveis seres parece que foram muito de proposito ar-
chitectados para permanente msulto á plastica!
Os bushmen habitam tambem nos povoados, ao que
presumimos, e no sul, entre os ovampos, vivem em
paz e n'uma especie de servidão. Estas rachiticas crea-
turas não suscitam muito dó como 4 primeira vista
poderia julgar-se, e o odio que em geral lhes têem as -
tribus africanas é a consequencia dos seus actos ruims.
Assim nos afiançaram que muitos casos se téem dado
de assassinios por elles commettidos, com a mira no
roubo, ou por outro qualquer motivo, sendo as victi-
mas preferidas quasi sempre as mulheres.
A grande mololla Mué marca pelo norte o limite
da Handa.
Caminhando 3 milhas encontra-se uma serie de col-
limas, erguendo-se gradualmente até se transformarem
256 De Angola á contra-costa
em altos morros, que desenham os arredondados dor-
sos no azul dos céus e quebram de vez a monotonia das
terras percorridas.
As densas matas d'aqui são o retiro favorito da caça,
matando nós ao chegar ao campo uma enorme cutun-
gué ou quissema femea, Aigoceros ellipsiprimmnus.
O aspecto do terreno, porém, é assás tristonho n'esta
epocha. O solo tisnado pelas recentes queimadas, as
folhas resequidas pela severa geada, indicam que o
sopro da morte passou por ali, pesando tal panorama
melancolicamente no espirito do viajante.
O leão faz tambem seus destroços, encontrando nós
a evidencia d'elles junto ao rio Quimpolo, no esqueleto
de uma girafa.
E deserta toda a região atravessada desde a Handa,
e só aqui começãâmos a avistar os armmos de Moi Cam-
pullo. As marchas continuam em permanente excursão
venatoria, tão numerosos se apresentam os animaes
desde as toupeiras, furões e lontras até ás zebras e gi-
rafas! O solo, porém, dificulta bastante este exercicio,
por ser constituido por uma rocha quartzosa dura e
branca, que, afloreando-o, contrasta com a sua enne-
grecida côr.
De um amboella soubemos que o Cubango estava
a tres marchas adiante, circumstancia esta, que nos
obrigou a alargar as jornadas, a fim de mais depressa
ahi chegarmos.
Deu-se aqui um facto curioso, que mostra o exa-
gero dos naturaes nas suas informações. Tendo per-
guntado ao mesmo indigena qual a direcção do Cu-
bango e onde ía este confluir, respondeu-nos: para
Entre Cunene e Cubango 251
um grande rio filho do mar, acrescentando que os ha-
bitantes d'esse sitio são os ba-qua-neitunta — anões.
E tão volumosa a cabeça -d'estes mdigenas, que,
deitando-a, se torna dificil depois levantal-a; por Isso
durante a noite, emquanto o homem dorme, véla Junto
delle a mulher, para o ajudar a erguer quando des-
perta, serviço que retribue á cara metade por fórma
similhante!
Á noite acampámos junto de uma grande aldeia,
donde nos fugiu um dos carregadores com um fardo
de fazenda.
Cortando de novo a leste estivemos em Cabandgje,
sitio em que felizmente encontrámos algum mantimen-
to, facto consolador, pois nos ultimos tempos quasi se
vivia de carne.
Ao sueste avistámos outro acampamento de bush-
men, em meio de uma d'essas largas ondulações que
constituem o plateau.
A 9 de julho podémos evitar a fuga de alguns com-
“panheiros ganguellas, o que nos trouxe muitos dias
em sobresalto, sendo necessario conduzil-os debaixo
de escolta.
Ha tambem por aqui numerosos leões; avistámos
dois ao terceiro dia de marcha, passando um perto
de nós perseguido pelos mabecos, Canis mesomelus,
1 Parece que entre os dámaras as tribus se dividem em castas, a fim
de cada qual encontrar a sua origem n'aquillo que mais lhe appetece, de
modo que uns descendem de arvores, outros de bichos, ete. Os ba-qua-iu-
ba vem do sol, os ba-qua-nombula da chuva, os ba-qua-neitunta ou tunda
dos bosques. Estas indicações do amboella poderiam referir-se a alguns
dâmara-bushmen, que tivessem adoptado para si similhante designação.
17
k
5
uv
258 De Angola á contra-costa
como se poderia facilmente imfermr das pégadas que
analysámos.
E curioso este pequeno animal, que tamanho odio
vota ao rei das selvas.
Diz-se serem destros caçadores, e, caso estranho,
marchando sempre em grandes matilhas, ao aperce-
berem a caça, separam-se logo d'ellas dois para a per-
seguirem directamente e sem ruido, emquanto que os
outros, flanqueando-a, tentam cercal-a.
Na fórma do costume choveram a este respeito m-
formações e anecdotas, havendo quem afiançasse ser
tal o respeito mutuo, que quando está a matilha a de-
vorar uma rez e apparece outro mabeco a saltar-lhe
em cima, é Isto motivo para todos os mais abandona-
rem o repasto!
Antes de acampar, fomos de subito surprehendidos
pelo grande rumor que fazia um bando de mais de
cem macacos, pulando de arvore em arvore. À rapi-
dez com que se precipita este animal é tanta, que no
primeiro momento similham uma nuvem de passaros.
Meia duzia de tiros, ao acaso, não tiraram d'elles o
menor partido.
Ao anoitecer apanhámos proximo do rio um animal
pouco vulgar, a que os mdigenas chamam n'caca e
scientificamente se denomma Manis multiscutatum ou
Temmincki (?), similhante ao armadilho. Os naturaes
consideram a caça delle como imdicio de felicidade,
sendo obrigado o soba da terra onde é colhido a matar
um boi, cuja carne cozem com a do n'caca e as esca-
mas deste distribuem para amuleto entre os caçadores
da senzalla,
Entre Cunene e Cubango 259
Comeidencia notavel: era o dia 10 de julho, e fo-
lheando um calendario francez que levavamos, encon-
trámos: «Dia de Santa Felicidade!»
Na manhã seguinte chegavamos às margens do rio
Cubango, já nosso conhecido da viagem de 1878, eujo
curso transpuzemos para a margem esquerda. Tem
neste logar 110 metros de largo sobre 3 de profun-
didade media e corrente de 1,5 milha.
As orlas são regularmente cortadas e muito pittores-
cas, ora vestidas do arundo, ova de densos arvoredos.
Sobre a direita a terra é deserta até 4 Cafima, falta
de agua para o sul e como tal intransitavel, excepto
na direcção da mololla Ombongo, que vem do valle
para o Cubango ao norte de Dirico; para o oriente,
povoam-na as tribus amboellas, de que fallâmos, acom-
panhando o seu curso em grande distancia.
Na beira de alem acampou a expedição para tomar
folego, planeando com conhecimento de causa a con-
tinuação dos nossos trabalhos.
Estavam percorridas até ali muitas milhas geogra-
phicas, fixadas numerosas posições, estudada a zona
que explorámos tanto quanto consentiam os recursos
c o tempo de que dispunhamos.
O que urgia agora fazer?
Prolongando o curso do rio pelo menos até ao Mu-
cusso (Bucusso), poderia a expedição a nosso cargo
resolver problemas importantes, e, descobrindo defimi-
tivamente o mysterioso destmo deste, volver ao nor-
deste. Era longo o trajecto, e o receio das chuvas no
norte fizeram-nos a principio hesitar, até que alfim de-
cidimos seguir pelo sul, dispondo tudo para a viagem.
260 De Angola á contra-costa
E o Cubango iria ao Zambeze? |
Ao contemplar a sua largueza, e attentando no vo-
lume de aguas que leva por esta latitude, mal póde o
viajante acceitar a idéa de similhante caudal mw per-
der-se nas terras austraes |.
A quantidade de agua que n'este parallelo deriva
para as regiões meridionaes, embora esteja por deter-
minar, é consideravel. |
As informações de que deslisa todo para o sul, per-
dendo-se ali em parte, por infiltração ou evaporação,
Julgâmol-as macceitaveis, tamanho é o fluido volume
que corre pelo seu leito.
Depois, alem dos numerosos tributarios que conduz
do norte, vae agora sobre elle o Cuito, á beira do qual
breve nos achariamos, cuja drenagem não lhe é muito
inferior, formando na estação pluviosa um alagamen-
to que inunda immenso territorio, e os indigenas desi-
gnam por lagôa Mamo. Então recebe outros afluentes
orientaes, imdo, segundo dizem os indigenas, entrar
n'um grande rio. Tamanha accumulação de aguas, que
vae perder-se no N'gami, traria forçosamente a neces-
sidade de ser este um lago de maior amplitude.
O Cubango é sem duvida um dos mais poderosos
afluentes do Zambeze, deixando correr em epochas
parte das suas aguas para o sul, como vamos explicar;
e se porventura ha conservado a sua direcção media
desconhecida para os geographos, é isso devido a que,
P
1 E escusado produzir aqui argumentos tendentes a demonstrar que
não foi Anderson o descobridor do Cubango, pois dezenas de portugue-
zes de ha muito por elle transitavam, como Candimba, Gonçalves, etc.
Entre Cunene e Cubango 261
na parte inferior da carreira, tendo de atravessar ex-
tensas planicies cobertas de bastas grammeas, serpeia,
alarga, subdivide-se, para adiante de novo se unir, e
por maneira tão complicada, que com dificuldade se
póde dar conta d'ella n'uma só viagem.
E isto, repetimos, foi corroborado em toda a parte
pelas mformações dos imdigenas, e assim nol-o affir-
maram tambem aquelles que comnosco aqui fallaram
sobre o caso.
Eis pois quanto ácerca d'elle pensâmos.
Se attentarmos sobre o modo por que no plateau
central se faz o movimento das aguas, veremos serem
tres as especies de cursos (se assim póde dizer-se) que
ahi se apresentam, e poderiamos mesmo designar rios
correntes todo o anno, outros que deslisam só na epo-
cha das chuvas, seccando na estiagem, denominados
dambas, e emfim as molollas, ou cursos de movimento
alternado, conforme a elevação das aguas nos grandes
leitos que as originam.
A mololla é uma depressão lateral de terreno, que
estando pouco superior ao nivel medio da extrema
estiagem das aguas no rio, fica muito mferior ao nivel
no tempo das chuvas e se liga com o rio pelos extre-
mos ou por um só ponto.
Claro é pois que, na epocha da cheia, a agua, pene-
trando ali, caminha mui vagarosa e parallela ao rio, até
estabelecer-se o nivel; mas logo que este baixa ou
despeja rapidamente, vê-se então a agua da mololla no
seu rumo superior retrogradar, ageitando-se ao nivel,
emquanto que no rumo inferior caminha na mesma
direcção.
262 De Angola à contra-costa
Este facto succede quando está a mololla ligada
pelos dois extremos ao rio. Se porém considerassemos
o seu extremo inferior ou meridional para o caso des-
ligado, e terminando, por exemplo, n'uma depressão,
veriamos que o dito movimento retrogrado se não
operaria só na metade superior, mas sim em todo o
comprimento, e que a agua viria assim a reentrar em
parte no curso origmario.
É este o caso que se dá com o Cubango e as molollas
Tonque e Dzo, etc., que delle derivam para o N'cami,
e onde, segundo as epochas do anno, a agua tem mo-
vimento directo ou retrogrado, conforme imdicámos.
O Macaricari completa este systema repositorio no
sul pelo Zouga com o N'gami, e quando no norte
baixa de nivel a agua nos rios, reflue d'aquelle imme-
diatamente para ali.
Pal é a idéa que fazemos do curso do Cubango, em
cuja margem nos achâmos, e ao longo do qual deter-
mimâámos novas marchas.
CAEETELO IX
O RIO CUBANGO
Sete annos depois—O caminho de Moçambique e as caras volvidas
ao sul — Muene Catiba e a mandioca — Entre os amboellas — À confluen-
cia do Cutchi e a doença de Muene Mionga — Um trabalho photographico
Tribunaes africanos e uma anecdo-
interrompido — Scenas de feitiçaria
ta sobre o caso— Os ma-chaca —O rio Cuebe — Subitas deserções e uma
noite de angustia — Philosophicas considerações que um funeral remata
— O rio Cueio e os atoleiros que o marginam — Frios, sêdes e fomes —
“O rio Cuatir — Natureza do solo e os pantanos intransponiveis — Aldeias
lacustres— Ainda um atoleiro e a pobreza das plantações — Um chefe
mais humano e a morte de um companheiro — À fome — Duas considera-
ções sobre a geologia africana — Adeus Cubango.
NAS MARGENS DO CUEIO
Sete annos tinham decorrido desde que pela pri-
meira vez haviamos visitado o Cubango no parallelo
do Bié.
Attentando no limpido lençol de suas aguas, que
serenas derivavam a caminho do sul, recordavamos
tão precisamente as impressões então experimentadas,
que nos parecia ter desapparecido o lapso de tempo
que mediára entre ambos os factos, que esta viagem,
emfim, era como sequencia da outra!
E, sem embargo, no limbo do olvido fam elles já
abysmados, a sexta parte da vida de um homem em
completo vigor; annos que passaram de mocidade e
despreoceupação para jamais volverem.
a Sa
266 De Angola á contra-costa
Então era a nossa primeira viagem, cheia de attra-
ctivos e pocticos sonhos, tendo como norte a aventu-
ra, por caminho aquelle que primeiro se deparasse, e a
uma saude de ferro respondia sempre vigor inque-
brantavel, que tudo afigurava dourado.
Agora era uma missão reflectida e subordimada a
determinados fins, peregrinação sem duvida longa,
para que carecia poupar as forças; era a reputação e a
pratica de dois homens já com tirocimo, as quaes, pos-
tas em acção, tinham fatalmente de corresponder ao
que d'ellas se esperava.
Urgia pois marchar cautelosos, e, meditando seria-
mente os mais singelos devaneios, considerar de conti-
nuo no equilibrio das forças de que se dispunha, nos ho-
mens que possuiamos, nos recursos existentes, pondo,
como Argus mfatigavel d'esta ordem de cousas, o dever
e a lembrança da contra-costa.
Por isso, tendo de volver as frontes ao sul, visto
como o objectivo da expedição consistia no reconheci-
mento do curso do rio a cuja beira nos achavamos, não
podiamos deixar de ver no caso um facies desagrada-
vel, para affrontar o qual tivemos de revestir-nos de
toda a boa vontade, pois não é o caminho do meio dia
precisamente aquelle que nos levaria a Moçambique.
À obrigação porém venceu os nossos receios, e em-
bora n'essa marcha pouco fizessemos de aproveitavel,
em vista dos obstaculos que se nos depararam, nem
por isso mostrámos menos imsistencia e energia, de que
nos resta a consolação n'estas candidas declarações.
Muene Catiba, o regulo dali, homem velho, de feio
aspecto, coxo e sordidamente vestido, fez a sua visita
O rio Cubango 261
ao acampamento e presenteou-nos com um porco, ver-
dadeiro recurso mesperado para a nossa exhaurida co-
ambha.
Foi em sua terra que primeiro vimos a mandioca,
artigo não existente para oeste, facto que de per st só
explica a depressão em que nos achavamos, e que et-
fectivamente era de 1:160 metros; tambem abundava
o milho e a batata, generos naturalmente importados
do Bié pelos mercadores portuguezes, que ao longo
do Cubango transitam para o Mucusso.
O trilho que seguimos, contornando rigorosamente
a margem do rio, era traçado em terreno que para
diante se torna aspero, deixando ver pelas ravinas um
subsolo de rocha quartzosa, de que resultam os ca-
lhaus dispersos pelas duas margens.
Chamam-se amboellas os habitantes da zona que
vamos percorrendo, e são os pretos de melhor appa-
rencia que temos encontrado.
Os seus penteados, entretecidos de tranças e conta-
ria, distinguem-os logo, assim como o uso de pamnos,
ao contrario dos congeneres do oeste, que se cobrem
com pelles.
As habitações circulares de tecto ponteagudo são
barradas de argilla e postas com ordem.
À distancia media de um dia de jornada e rumo
que m'esta latitude corre approximadamente ao sueste,
acham-se estabelecidas, 4 beira do rio, as hbatas dos
regulos mais importantes, que em acto successivo fo-
mos visitando.
É notavel o contraste das duas margens tão proxi-
mas, pela sua animação, flora e accidentes.
268 De Angola á contra-costa
D'aquem eleva-se o terreno, formando uma encos-
ta, veste-o frondosa vegetação, cobrem-no as aldeias e
outras povoações, affluem numerosos rios; para alem é
plano e coberto de gramineas, deserto até á Cafima, no
dizer dos naturaes, não possuindo, sequer, um só tri-
butario.
Encontram-se bastas florestas de mupandas, moton-
tos e ndumbiros, por onde numerosas aves esvoaçam e
no meio das quaes se observam habitações, em que
pela tarde e noite ha ruidosos batuques para entrete-
nimento dos indigenas.
Os amboellas são grandes musicos, dextros ferreiros
e habeis pescadores das lagoas, aventurando-se raras
vezes a pescar no leito do rio.
Ao terceiro dia transpozemos o Cutchi, de TO me-
tros de largo, e com o qual já haviamos feito conhe-
cimento no norte, sendo as nossas canoas o objecto
da mais embasbacada admiração.
Entre os amboellas, que se distinguem pelas cabeças
rapadas com pequenas tranças no alto, vêem-se ho-
mens do sul, bana-catuba da Cafima e do Cuanhama,
com o seu pittoresco trajo e a tez menos retinta que
a d'aquelles.
Raros são os gados por esta parte, onde escasseia de
novo a mandioca, assim como o sorghum, cultivando-
se exclusivamente o milho. O rio deslisa formidavel,
sendo para lamentar o seu abandono pelos indigenas,
que só possuem canoas para o transpor.
Um barco do molde da Lady Alice de Stanley, pres-
taria um alto serviço na rapida exploração d'esse vasto
lençol de agua.
O rio Cubango 269
Na libata de Muene Mionga, onde chegámos, acha-
va-se a população azafamada com um negocio impor-
tante. O regulo estava doente.
Dentro d'ella e n'um terreiro a meio, Muene Mion-
ga via-se sentado. envolto em amplo cobertor, tendo
a cajinga (barrete) na cabeça; á direita e esquerda
MULHER AMBOELLA DO CUBANGO
Segundo um croquis
collocados quatro quinbandas, de frontes ornadas de
orimaldas de pennas, dois com cabaças na mão con-
tendo pedaços de pau, ferro, etc., e os outros dois
com ferrinhos que tangiam; em frente do soba, esten-
dida no solo, uma cauda de elephante.
Procedem os quinhandas a encantações, que nos di-
zem tendentes a adivinhar a causa da doença do re-
210 De Angola á contra-costa
gulo, ou melhor a conhecer quem por malefica mfluen-
cia o enfeitiçou.
De roda a multidão canta monotonamente, emquan-
to uma especie de arauto, enfeitado dos mais estranhos
ornamentos, pega por vezes do rabo do elephante,
começando em saltos pelo terreiro.
Não tendo o menor interesse em conhecer a enfeiti-
cada causa de que o soba fôra victima, voltámos as
costas a esta scena banal e assás conhecida, prose-
gundo impavidos para leste.
Ao cabo de umas poucas de horas de marcha, che-
cúmos 4 aldeia de Muene Molomo, situada n'uma emi-
nencia que o rio contorna, e que pelo seu aspecto
pittoresco nos levou a preparar um cliché.
Estes trabalhos no mato são, porém, muito differen-
tes dos operados no remanso de um atelier da Europa.
e, quando satisfeitos acabavamos de tapar a objectiva,
por estar feita a exposição, eis que machina, tripé e
artigos relativos, se derrubam, caíndo cada objecto
para seu lado.
Uma cobra havia saltado junto de nós, e na ancia
de evitar o seu contacto, cada qual se escapou como
pôde, esquecendo a machima, que, victima dos emba-
tes do reptil, foi cair entre as hervas, do que resultou,
na volta ao velho mundo, esse chché não dar cousa al-
guma, por ter apanhado luz, segundo parece.
Estava-se em plena phase de adivinhações e sorti-
legios.
Na libata d'este regulo tangiam tambem os ferri-
nhos e procedia-se a similhantes scenas de feitiçaria
com estranho bambaré.
O rio Cubango BATO
Era o caso (aliás pouco frequente em Africa), ter
certo rapaz cravado uma faca em pleno abdomen de
outro; o réu negava, declarando haver aquelle sido
ferido no mato por um animal qualquer.
Pratava-se de adivmhbhar a verdade d'este protesto,
por 1sso era grande a contusão.
Pencionavam no seguinte dia matar um boi, para
elle extrahirem o milongo (remedio) apropriado pare
tal adivinhação, esperando deduzir por cabalisticas ar-
timanhas e pelas contracções das visceras a causa do
crime.
Não soubemos as consequencias de todo este longo
processo, que devia ser curioso, a julgar pelo negocio
em questão; pois occasionam frequentemente debates,
cuja originalidade e finura deixam não poucas vezes
o europeu admirado.
Eis, como exemplo frisante, uma anecdota que le-
mos ou ouvimos algures a proposito da deliberação
tomada n'um tribunal imdigena.
Aconteceu que um imdividuo possuidor de grande
manada accusava outro de lhe haver morto um boi
com uma zagaia, queixa de que elle se defendia, re-
plicando não ter sido elle, mas sm outro boi, que em
lucta o prostrára com uma chifrada.
O tribunal, a que fôra sujeito o caso, após muita dis-
cussão, ta decidir-se alfim a favor do aceusado, quando
um velho da tribu, erguendo-se, ordenou que suspen-
dessem o veredictum.
— Ouçam! exclamou elle em tom imperioso, vol-
tando-se para a victima da accusação. Onde téem os
bois o rabo?
212 De Angola á contra-costa
À esta pergunta o criminoso mirou-o com espanto
e respondeu, indicando com a mão direita o respectivo
logar:
— Aqui.
— E como anda o rabo: caído para baixo, erguido
para cima ou pendente do lado?
— Para baixo.
— E onde têem os bois as armas?
— Na cabeça.
— E são para baixo, para cima ou para o lado que
ellas se acham dispostas?
— Para cima.
— Bem; se um boi então ferir outro, a ferida deve
ser de baixo para cima ou vice-versa? proseguiu elle,
virando-se para o tribunal.
—De baixo para cima, disseram todos.
— Vamos pois ver o boi, replicou o ladino velho, e
se assim estiver disposta a ferida, fica livre este ho-
mem, e é falsa a accusação que lhe fazem!
Infelizmente a ferida, feita com uma zagaia por mão
de homem, era de cima para baixo, e o accusado sof-
freu portanto penalidade!
Muene Mionga era extremamente velho; os vassal-
los delle constituem uma tribu um pouco differente
dos amboellas, denominam-se ma-chaca, têem as faces
angulosas e são mais feios no todo do que os Já cita-
dos. |
Para leste ficava-nos o Cuebe, rio caudaloso e que
na fórma dos anteriores leva as aguas ao Cubango, a
par do Cuatir e outros. Como os indigenas nos afian-
caram que na confluencia havia grande accumulação
O rio Cubango 273
de pantanos dificilmente transitaveis, decidimo-nos,
por conselho seu, a transpor os dois, e, segumdo o
curso d'este para o sul, ganhar de novo o d'aquelle
FIO.
AMBOELLA DO CUBANGO
Tirado de um croquis
Densos bosques cobrem para alem do Cuebe toda
a zona que medeia entre elle e o Cuatir, desprovidos
de agua em muitos logares, cujo solo, constituido por
ondulações de grés e cortado por fundos sulcos, affe-
cta aqui e alem as mais estranhas fórmas.
Junto do rio Mabanda acampámos n'uma encosta,
onde precisamente começam os tractos siliciosos. À
18
274 De Angola á contra-costa
areia branca impede a marcha e fatiga os viajantes;
ahi começaram para a expedição novas fatalidades,
pois ao chegar o terceiro dia de jornada desertaram
uns poucos dos nossos em caminho, continuando as
tentativas nos segumtes, como succedeu perto do rio
Iquebo, onde com desespero procuraram evadir-se em
massa, abalando á tõôa pelos matos, muitos companhei-
ros nas noites de 20 e 23 de julho.
N'esta ultima, sobretudo, a nossa angustia cresceu
de maneira, que ficámos convictos de ser abandona-
dos em pleno sertão.
Antonio partiu para a retaguarda em cata dos pri-
meiros, que tinham fugido com tres fardos de fazenda
e uma das canoas de desarmar; nós, prevenidos de
que se preparavam outras fugas, haviamos amarrado
os ganguellas suspeitos de chefes do movimento, dei-
xando-os pelas horas do somno com sentimellas á vista.
Inutil empenho; pois, quando mais socegados e segu-
ros nos julgavamos, elles de subito, desprendendo-se,
abalaram em bom numero, não tornando mais a appa-
Re (Cem
Noite terrivel foi essa, em que tivemos de largar
fogo a uma enorme floresta, na esperança de ver ou
cercar aquelles que n'ella suspeitavamos escondidos,
e em que de carabima em punho com os restantes que
se conservaram fieis, percorremos em caça da diabo-
lica turma por meio de matas em chammas e troncos
esbrazeados, jogando como loucos uma cartada de
vida ou morte!
Morrer ou avante, era o dilemma formidavel que se
levantava espectral ali a europeus e africanos!
O rio Cubango 275
Tal procedimento da parte de homens a quem nós
deramos exuberantes provas de affeição era imdescul-
pavel, e o tratamento sempre bondoso e imndulgente
pagava-nos essa cohorte de ingratos com a perfidia,
se não com o roubo. Quebrando sem consciencia os
contratos que comnosco haviam feito, abandonavam-
nos, levando o que nos pertencia!
Nem um sequer se queixára até al, pela simples
rasão de faltar motivo para isso.
Nos dias mais aziagos, nos dias de fome, para o
homem do mato sempre de mui serio caracter, elles
sabiam bem que quando da caça morta houvesse para
nós duas rações, havia tambem para elles, e que um
punhado de farimha que no acampamento apparecesse
era por todos igualmente dividido, embora a cada qual
coubesse apenas um simples bago.
Mas, leitor, o negro é a expressão embryonaria do
sentimento, e na sua rude mcomprehensão do dever e
da dignidade, faz parenthesis em quasi todos os prin-
cipios da nobilitação humana.
Com isto não queremos afiançar que elle pende por
indole para o mal; sómente suppomos que exercita
este por ignorancia ou por desconhecer a sublimidade
da pratica do bem.
E não se imagine que tambem isto é philosophia,
e muito menos pretendem as nossas palavras fazer
doutrma em materia nova; sómente miram a tornar
comprehensivel um facto em que todos erram, ten-
tando porventura achar n'elle uma cousa que precisa-
mente não podem ver, por imagimarem n'essa creatura
um como espelho onde se reproduzem directamente
276 De Angola á contra-costa
as Imagens, quando não passa de um arremedo enga-
nador, em cujo cerebro o principio do bem é diffcil
de fixar-se, se não refractado pelo prisma da manha,
se dispersa. e mesmo inverte, produzindo phenomenos
similhantes áquelles da miragem para o viajante do
deserto, isto é, o contrario do que deve ser!
Inconscientemente e sem o notar, os europeus tra-
tam o negro como de igual a igual, exigem d'elle uma
declaração, empenham a sua palavra, consideram o
contrato feito inquebrantavel, por ser baseado na obri-
gação e no dever, e eis que de subito foge, deixando-os
a pique de uma perda e quiçá da morte; é então que
levados pela ira o condemnam, pensam em castigal-o!
E a final os verdadeiros culpados somos nós, que o
julgámos pela amplificadora lente da ingenuidade e
da boa fé. |
Pois que são a dignidade e a honra senão virtudes
provenientes do contacto do homem sociavel, que, co-
nhecendo a sua superioridade intellectual, lhe servem
de penhor á demonstração de que, alem dos singelos
mstinctos naturaes, alguma cousa mais sublime existe
n'elle?
E se isto assim é, acaso o negro no estado da mo-
ralidade imicial em que se acha, elle que tem para o
evidenciar por companheira uma mulher que desco-
nhece o pudor, esse delicadissimo sentimento que pri-
meiro que nenhum nos parece deve ter assomado ru-
bro ás faces das nossas selvagens antecessoras; sujeito
à egoista necessidade de prover à subsistencia, presos
a quantas materialidades, que, por obcecarem o espi-
rito, o forçam a rodar n'um circulo restricto de satis-
O rio Cubango 211
fações mal remediadas; acaso, repetimos, póde elle
comprehender o que seja o dever, a honra-empenhada?
Não precisâmos responder, os factos estão por nós,
e a verdade é que em todos os assumptos importantes
com negros, tanto mais duvidavamos delles quanto
mais afinco e boa fé pretendiam mostrar-nos.
Se um negro se vos mostrar recalcitrante ou mesmo
imdifferente, excitae-lhe a cubiça, e tereis delle alguma
cousa; ao contrario, se o virdes fazer protestos de de-
dicação à vossa causa e generoso afiançar-vos o seu
apoio, abandonae-o, porque de certo sereis breve en-
ganado!
Apraz-lhe o ludibrio, e no exercicio d'essa infima
faculdade intellectual — a astucia, pareceu-nos perce-
ber por vezes, no preparar de trama velhaco, um ime-
vitavel antegosto na idéa malefica. |
Entretanto para o homem selvagem assim deve ser.
Elle, que na escola da natureza aprende na lucta de
cada dia só a defender-se dos males que lhe amea-
cam a triste existencia, acaba por identificar-se com
“este estado de cousas, e, vendo m'aquella a imagem
da grandeza, trata, quando pensa engrandecer-se, em
praticar o mal, que de resto mais facilmente inspira a
admiração que o bem!
Consternados por este estado de cousas, conservá-
mo-nos no Iquebo até á volta de Antonio, ora ageitan-
do cargas e desistindo de artigos de conforto por falta
de portador, ora vigiando pela noite aquelles dos nos-
sos que mais suspeitas inspiravam. Pela manhã voltou
Antonio com a triste nova dé que nem um sequer fôra
possivel encontrar; esta noticia chegava precisamente
2418 De Angola á contra-costa
na tetrica occasião em que era inhumada uma rapa-
riga que succumbira pela noite a dupla pneumonia.
Concluída a funebre ceremonia, pozémo-nos pelas
oito horas da tarde a caminho, tamanha era a ancia
que nos dommava de deixar aquelle logar de nefasta
recordação.
Começára a noite, e quem visse n'esse momento a
expedição portugueza, triste, oppressa, avançando em
linha por meio das matas e areiaes que a defrontavam,
dizimada pelas ultimas fugas e perseguida pelo frio,
carregando com agua pela imcerteza de a encontrar
adiante, e pensasse tambem que esse bando de homens
se destinava a atravessar todo o contmente africano,
não garantiria tal empenho com a mais smgela phra-
se de consolo!
Pelo escuro acampámos, esperando a todo o mo-
mento ser surprehendidos pelo grito de alarme das
sentinellas, que annunciavam aleuma nova evasão.
Um silencio sepulchral envolvia o campo, só inter-
rompido ao longe pelos gritos das hyenas. "Pristonhos
presentimentos dominavam o espirito de todos com a
lembrança de que se consumíra à maior parte dos
mantimentos na demora junto ao rio Iquebo.
À terra é deserta pelo caminho que levâmos; ao
cabo de um dia de marcha avistâmos a agua do rio
Cueio, que para o meio dia deslisa ligeiro.
Nos terrenos pantanosos que o marginam gastâmos
as forças no aturado labor de obrigar os bois a trans-
pôl-o, pois os miseros animaes, caminhando pelos pan-
tanos, atolavam-se por maneira que apenas a cabeça
e o dorso lhes ficavam de tóra.
O rio Cubango 279
Ramos de arvores e até os proprios troncos lançados
para o lamaçal, tudo era msufficiente para tornal-o via-
vel; os pobres chefes e mais pessoal da expedição, of-
fegantes, escorrendo agua, amda pelas nove horas da
noite, à claridade da lua que parecia carpil-os, traba-
lhavam na suspensão dos bois e seu transporte para
a margem opposta.
Duras scenas eram essas.
Do Cueio para o nascente continuam as matas es-
pessas, mtervalladas por valles desnudados, entre as
quaes proseguimos 4 tôa, esperando a toda a hora en-
contrar agua; baldado empenho, que sempre prepa-
rou uma decepção!
Pouco a pouco o trilho quasi immperceptivel cortou ao
sueste, no meio de uma terra cujo silencio era como
sepulchral,
À gente, desanimada, sega emmudecida, como se
a levassemos para o cadafalso, imprimindo com esta
disposição um ar estranhamente tetrico a tudo quanto
nos cercava.
Emtfim, após dois dias de camimhar, encontrámos o
leito do rio Cuatir.
Eis algumas linhas do nosso diario a proposito V'esse
facto.
«Logo ao romper do dia agitou-se o acampamento
com uma desagradavel noticia. Somma, rapaz do Nano,
cvadira-se pela noite com armas e respectiva baga-
cem, deixando-nos perplexos pela sua audacia, e im-
pressionados pelo fim que o aguardava, isolado em
meio destas matas.
E o medo da fome que os afugenta!
280 De Angola á contra-costa
O frio, que tem crescido, ameaça os nossos com-
panheiros africanos com doenças dos orgãos respi-
ratorios.
Chico, natural de Benguella, está a braços com uma
pneumonia dupla, de que não escapa certamente.
CABEÇA DE GUNGA (Eland)
Tirado de um croquis
Pelas dez horas topámos de subito com agua, onde
todos se dessedentaram, prosegumdo ávante atravez
das terras onduladas.
(Quando pela tarde, extenuados e cheios de fadigas,
já desesperavamos de novo encontrar bebida, aprouve
à Providencia abeirar-nos de uma vasta planicie, a
meio da qual serpeia um rio de alguma importancia.
Era o Cuatir, segundo nos disse de longe um negro que
O rio Cubango 281
velu espreitar-nos, primeiro vulto humano, de quem
démos vista depois dos ultimos dias, que tão attribu-
lados nos foram.
Antilopes numerosos vagueiavam, entre os quaes
vimos gungas, de que damos o desenho.
Duas milhas de terra alagadiça nos separam do cur-
so deste tributario do Cubango.
O solo nas margens é bastante variavel, tornando-
se, à medida que avançâmos para o sul, de mais em
mais silicioso.
Ao norte é composto de tractos argillosos, mistura-
dos á superficie com fina areia branca, sendo o subsolo
constituido por um tufo calcarifero córado pelo oxido
de ferro, vendo-se apparecer em abundancia em todos
os pantanos, avermelhando-os a limonite, cuja base
movediça os transforma em perigosos atoleiros capa-
zes de abysmar completamente os bois.
Os poucos habitadores desta terra téem as suas cu-
batas a meio do curso do rio sobre estacarias, consti-
tudo verdadeiras aldeias lacustres, defendidas pelos
lodaçaes que as cercam.
De longe em longe vêem-se cupulas conicas emer-
gmdo “do meio do canniço, evidenciando a residencia
do homem.
Parece que reiteradas perseguições, quer dos man-
bunda, quer da gente do sul, que denominam ma-cúas,
os têem levado a esta precaução, tornando-os por isso
em extremo suspeitosos. j
Infelizmente para nós, logo a jusante encontrámos |
um braço, que delle deriva, chamado mololla, onde
quasi todos os bois de subito se atolaram.
282 De Angola á contra-costa
Não é facil descrever as angustias aqui experimen-
tadas, nem convem repetil-as para não cansar o leitor.
Calcule-as quem quizer, e quando tenha esboçado
em mente o quadro, enfeite-o com a fadiga do dia, o
frio da noite, e emmoldure-o por fim com a fome, pois
a esta data haviam-se acabado os mantimentos,
Apenas conseguimos ver-nos para alem da mololla,
espraiando a vista pela longa bacia do Uuatir, litteral-
mente coberta pelo Arundo phragmites , pozémo-nos de
novo a caminho.
— Do meio do camniçal somos vigiados pelos naturaes,
que o bimoculo nos deixa descortimar envolvidos no ca-
pim. Num ponto ou outro suspende-se, clama-se, ace-
na-se, movem-se uns vultos ao redor das casas; n'um
mstante suppomos que alguem vem; triste anceio, des-
appareceram, caiu tudo em lugubre silencio.
As unicas plantações que existem são de Penisetum,
massango, e essas, embora pelo direito da fome nos
achassemos dispostos a pilhal-as, se porventura caís-
sem em nossa trilhada, estão longe e feitas nas ilhas.
Supplicio de "Pantalo este que nos acompanhou até
ao limite meridional da nossa excursão, onde emfim
um chefe mais humano nos socecorreu, mdicando o ca-
minho que para traz ficava.
Tomando ao norte, desalentados por tanta contra-
riedade, abandonámos a idéa de attmgir o Cubango,
e prevendo que quanto mais para o sul, mais se agera-
varia a nossa situação, deixámo-nos guiar pelo regulo,
que ao cabo de dois dias nos mostrou um sitio onde
as canoas poderam vogar, embora com dificuldade,
pois ali tambem os pantanios se acoitavam traiçoeiros.
O rio Cubango 283
Imagme-se a alegria quasi infantil que de nós se
apoderou, ao vermo-nos livres d'esses labvrimthos fei-
tos para embranquecer os mais negros cabelos.
Era como se tivessemos sido lançados por largo
tempo em negra prisão, e, encontrando de subito a
porta aberta, nos escapassemos.
Tão pouco basta para contentar um espirito oppri-
mido! Apenas acampados celebrou-se gentilicamente
a ventura do dia, abatendo um boi.
Não terminou, porém, sem registarmos um funebre
acontecimento, e havendo ordenado a uns rapazes que
fossem em procura do mfeliz Chico, que para traz fi-
cára, voltaram trazendo-nos a noticia de que era já
cadaver! |
Para nos entristecer tambem, imdo os bois a dimimuur
rapidamente, a negra imagem da fome começava a er-
ouer-se ante nós, facto gravissimo, que não sabiamos
como remediar, tão pobres eram as terras que íamos
atravessando. O triste secúlo que nos acompanhára
havia-nos vendido unicamente um quimballa (cesta) de
feijão, e esse miserrimo recurso, dividido por cento
e tantos esfaimados, desapparecêra n'um momento: o
nosso desanimo aimda augmentava ao presencearmos
a aridez do solo que pela sua natureza esteril pouco
nos poderia fornecer. Às mesmas plantações do Pemi-
setum eram rachiticas n'este chão mgrato de que Já
fallámos.
Registemos duas considerações ainda.
Todos os factos até à presente data nos arreigam
a convicção, de resto hoje geralmente acceita, de que
a Africa central nunca soffreu uma dessas completas
284 De Angola á contra-costa
submersões por que passaram os grandes continentes,
como a Europa, Ásia e America, nas epochas secun-
daria, terciaria e mesmo recente.
É, a nosso ver, o mais velho de todos elles, haven-
do-se durante os periodos geologicos conservado tal-
vez erguido, todo ou pelo menos parte, em meio das
ondas revoltas dos mares que o eircumdam.
Sempre que tivemos ensejo d'esta banda, já em ravi-
nas profundas, já em córtes abruptos, de ver a desco-
berto terrenos mferiores, remexemos e escavámos no
sentido de encontrar algum calcareo com fosseis ma-
rinhos, que provasse que esta terra, como em outros
pontos, estivera em condições de submersão, e nem
uma só vez podémos obter prova que nos servisse.
Para áquem da barreira do granito” e entre as ro-
chas igneas, do gneiss e outras metamorphicas, temos
encontrado formações schistosas, ondulações de grés
mais ou menos silicios, tractos argilosos, em meio dos
quaes se acham massas concrecionadas de hydroxido
de ferro, rochas quartzosas, etc., todas em partes
cobertas pelo desagerego devido ás condições atmos-
phericas ordinarias.
Mais para dentro, nas grandes depressões, como
n'aquella em que ora nos achâmos na bacia do Zam-
beze, o solo, ou mais propriamente o subsolo, que é
formado por um tufo calcarifero de mistura com de-
positos ferrugimosos, é todo recoberto de areias, aceu-
mulação consequente dos alagamentos prolongados.
1 Esta expressão não é correcta, pois entre a rocha fundamental, o
gneiss, é onde se vê às vezes aquelle afloreando o terreno.
O rio Cubango 285
À antiga e especial condição em que se tem conser-
vado a superficie do continente, apenas actuada por
mfluencias aereas e lacustres, é a causa d'essa estra-
nheza de quasi todos os viajantes, pelo caracter de
uniformidade que em toda a parte lhe observam.
A falta frequente de rochas eruptivas e de massas
vulcanicas, companheiras das grandes convulsões sub-
terraneas, póde até certo ponto corroborar os factos im-
dicados, que fazem da Africa um contmente de aspecto
smgeular, pela immutabilidade das suas condições ter-
restres atravez de um longo periodo, a par das mu-
danças operadas em todas as outras partes do mundo.
D'este concurso de cireumstancias de permanente
caracter resalta logo a idéa de que, admittido o tra-
balho regular das aguas atravez da successão dos
seculos, nas vertentes das linhas orographicas, ocei-
dentaes e orientaes, quer para o oceano, quer para a
depressão central, devem hoje ser mais fundos os leitos
dos rios, e portanto em igualdade de tempo e chuva,
mais rapida a drenagem para aquelle, ao passo que
identico facto dando-se para esta, os desageregos na
bacia central elevam-se de nivel, e portanto tornam
maior o desnivelamento, que abreviará com sua parte
a mencionada drenagem.
D'aqui o fatal saneamento do sertão pelo esgoto
rapido das aguas, que para diante deve talvez come-
car a manifestar-se em zonas que se esterilisem, a que
não faltará o concurso do homem com a derrubada
das matas, diminuindo assim as causas da humidade.
E se considerarmos ainda que a elevação de nivel
na depressão central é feita á custa do desaggrego
286 De Angola á contra-costa
de rochas, que por sua especial natureza produzem em
alto grau a areia, que está parte do anno submersa, po-
deremos tambem assentar que nas profundezas deste
valle é mais difheil a vida para o homem, em conse-
quencia da exigua cultura, pois a semente fermenta e
perde-se por afogada durante mezes, ou pouco produz,
visto crear raiz em terra sem a precisa substancia, e
comprehender a rasão das nossas anteriores phrases,
bem como o receio de para diante e longe continuarem
as cousas por maneira identica, se não ageravadas.
Assim, pois, a idéa de ter cortado para leste, a fim
de evitar os alagamentos da confiuencia do Cuatir, se
por um lado nos havia lançado nas suas pantanosas
margens, inhibmdo-nos de proseguir, por outro sal-
vára a expedição de gravissimos embaraços, se acaso
ella, prolongando pelo oeste o Cubango (como aimda
pensámos primeiro), o tivesse transposto no Uuangar,
prosegumdo diagonalmente para Libonta.
E portanto a parte do curso do Cubango que medeia
entre os Machaca e o Cuangar, continuou mexplorada,
porque forçoso nos foi desistir dessa empreza no imte-
resse de salvar as nossas vidas.
E como Anderson no sul, nós diremos tambem:
Uma retirada immediata tornava-se imperativa; não
foi sem lucta séria entre o bom senso e o desejo de
ser uteis que nós tomámos esta resolução, e obede-
cendo aos impulsos da consciencia, dirigimos um olhar
de despedida para esse trilho imteressante que nos le-
varia de certo 4 determinação de um problema valioso.
Por tal modo concluiu a nossa memoravel visita ao
Cubango.
CAPITULO X
À CAMINHO DO ZAMBEZE
As poeticas impressões da chegada e a consequente desillusão — Sof-
frimentos que nos aguardam — Ainda o Cuatir e a perda de um homem
— O rio Luatuta é como o Cuatir— Libatas miseraveis e a situação dos
nossos —À caravana torna-se n'um bando de salteadores — Visita de grupo
smgular — À mulher soba e a penuria de viveres — Considerações e in-
genuidade sem igual — A partida e a fuga de dois homens—O Longa
e a fuga de um outro— Continuam o deserto e as zonas areosas — Às
mupandas e a altitude — Pouca caça e o rio M'palina—Um acampa-
mento cannibalesco —Os caçadores de ratos — Subsiste a fome — Mupai,
Os bois-cavallos e as
o esposo infeliz — Curiosidade dos man-bunda
suas vantagens em viagem — Effeitos de miragem e um animal como o gnú
— O Cuito e sua noticia.
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PASSAGEM DO CUATIR
Viajando Africa a dentro, por meio dos desertos ser-
tões Vaquelle contmente, deixando após de si, sepa-
rados por centenas de milhas, os buliçosos centros da
civilisação, o explorador mal suspeita, a principio, os
soffrimentos que o esperam.
Prepara-lhe a natureza, por toda a parte, é verdade,
numa vegetação exuberante, as mais pittorescas pai-
zagens; mostra-lhe nos extensos azues da distancia
golpes de vista soberbos, que o cobalto não imitaria;
dardeja com os raios de um glorioso sol quadros im-
imitaveis de colorido e oiro, que pincel algum seria
apaz de reproduzir; bafeja-o emfim pela tarde com
aromaticas e tepidas auras, que o ncitam ao repouso;
19
290 — De Angola á contra-costa
mas quando o viajante, dominado por toda esta prodi-
galidade, ergue os olhos ao céu, como para agradecer
tamanhos favores, ella, que ao fundo de cada consolo
esconde um espinho, sem se desmascarar, desillude!
O sol, esse agente mexhaurivel de todos os bens,
torna-se ali o principal dos males; com os raios escan-
decentes, que tudo ferem, ameaça de morte o europeu,
e, robustecendo a vegetação por uma seiva excessiva,
que constantemente se substitue, cria no humus orga-
nismos que, fermentando, envenenam a pouco e pouco
aquelle que pôde resistir à primeira lucta.
As aromaticas aragens rapido se tornam em tempes-
tades medonhas, e os agentes meteorologicos, juntos
com a malaria, breve extenuam o organismo humano.
À paizagem, ao principio attrahente, já não prende
a attenção de quem a observa; o suave gosto de bem-
estar em face de um mundo sorridente cedeu 4 inquie-
tação nervosa de um cerebro escandecido; a vontade
irrequieta pousa variavel no mais singelo facto: quer
e logo hesita, apraz-lhe a mcoherencia!
A par disto augmenta a secreção sudoral, que as
mfluencias depressivas ageravam de mais em mais, €
o elevado calor exige como contrabalanço a sua acção,
que se traduz por vezes em permanente fome e em es-
tranho activar do orgão digestivo.
Depois os phenomenos da sêde e da fome exage-
rada desapparecem gradualmente, para seguirem-se
morosas digestões, preguiça de imtestino, pouca flui-
dez segregaticia, constipação rebelde.
Começam a perturbar-se as funcções e apparecem
os primeiros symptomas da febre, que o tempo torna
A caminho do Zambeze. 291
lenta e em pouco se denuncia pelo augmento de vo-
lume do figado ou pelo excesso de bilis. |
O estado oppresso do peito accelera a respiração do
ar morno e rarefeito pelo calor, a fadiga permanente
convida ao descanso, que um aborrecimento imdefini-
vel como que repulsa; o caracter do individuo perver-
te-se; na ancia de questionar de tudo e com todos, a
gente desconhece-se, à menor contrariedade irrita-se;
o homem emfim é outro!
Estranha-se, quer reprimir-se; porém um prurido
nervoso, um como que vacuo de senso moral, um m-
quieto mal-estar impelle-o; deixa-se domimar pela ira,
encolerisa-se, grita, ameaça, o cansaço emfim pros-
tra-o, cáe, arrepende-se e adormece!
É um meio desmoralisador onde o individuo pouco
a pouco se despe da soberania dos seus mais nobres.
sentimentos, onde a doença phvysica arrasta e desnor-
teia a consciencia, e, calando o vibrar das mais sensi-
veis fibras do coração humano, deixa só campo para
as impulsões animaes se expandirem sem freio.
O seu somno, a principio pesado e morbigeno, en-
trecorta-se breve d'esses pesadelos e tremores sempre
companheiros da perturbação funccional; o suor es-
corre-lhe lentamente do tronco fatigado, e pelos labios
resequidos escapa sibilante o ar-calido da respiração
opprimida.
(Quando desperta, devoradora sêde o domina e um
quebramento geral o prostra; quer erguer-se, cáe, a
comida repugna-lhe, bebe, amarga-lhe! |
A percepção dos objectos que o cercam é lenta; mo-
mentos se passam antes de relacionar-se com o mundo
292 De Angola á contra-costa
que o rodeia; boceja, senta-se, apraz-lhe espreguiçar-
se; o pulso é lento e filiforme; uma vaga oppressão
epigastrica o agonia; pesa-lhe a cabeça, apoiando-a
no punho cerrado; fica abstracto.
Eis que está prestes a febre, pouco demorada em
manifestar-se, só esperando singelo desequilibrio de
temperatura ou o primeiro desgosto.
E se por acertadas medidas prophylacticas o mfeliz
consegue evital-a, e, repetimdo-as, obsta ao desfecho
final; então dizemos-lhe n'este logar: attente nas imdi-
cações hygienicas que lhe houverem sido fornecidas,
e evite sobretudo os desgostos profundos, para que na
repetição dos phenomenos já enumerados lhe não suc-
ceda aquillo de que foram victimas Uapello e Ivens;
isto, é, andar sob a influencia do receio de mopinada
febre, por se verem a braços com decepções crueis!
E bem verdade é o que acabâmos de dizer.
Poucas vezes, leitor, terá o chefe de uma expe-
dição soffrido privações physicas e torturas moraes,
como aquellas por nós experimentadas durante os pri-
meiros mezes que vamos descrevendo, porque tambem
poucas vezes mais estranho concurso de circumstan-
cias se póde reunir, para contrariar quaesquer desi-
gnios.
Fomes, sêdes, desertos alternavam-se systematica-
mente, para produzirem o seu maximo effeito no espi-
rito da desnorteada caravana; era como se muito de
proposito as cousas se houvessem disposto para ani-
quilar todos os nossos esforços. Mas prosigamos.
Do lado esquerdo corria agora lamacento o Cuatir,
emquanto nós, deixando o velho regulo, cuja cubiça
A caminho do Zambeze 295
não conseguimos excitar a fim de o ter por guia, nos
dirigiamos para o norte, no intuito de achar o trilho,
que, segundo elle, deslisava a leste.
Pelas duas horas entrámos n'este, e proseguindo por
meio de terras areosas esse dia e o seguinte, viemos
alfim ás margens do rio Luatuta, depois de nos atolar-
mos um cento de vezes nos riachos, mollolas e varzeas
alagadas que cobrem aquella região, e havermos per-
dido um rapaz que transportava os encerados, facto
que breve nos ia pôr as cargas à mercê das chuvas.
Aqui esperavam-nos iguaes dificuldades, e se ao
apartarmo-nos do Cuatir tinhamos soltado um sus-
piro de allivio, ao avistar o Luatuta proferimos tre-
menda imprecação!
Feito à imagem e similhança do antecedente, de que
é tributario, o Luatuta corre n'um valle, que em outras
cireumstancias poderiamos descrever ao leitor como
risonho; largo, coberto de gramineas, mas marginado
por uma facha lodosa de 1 milha, em que nos atas-
câmos até 4 cintura.
O lodo silicioso, avermelhado superiormente pelos
depositos da limonite, desloca-se ao menor impulso, e,
cedendo ao mais pequeno peso, como que absorve o
que n'elle se encrava! Sob as indicações dos indigenas
conseguimos alfim transpol-o, não sem haver um a
um atolado todos os bois!
Depois, nas libatas miseraveis do meio do rio, diziam
não haver nada para comer! |
Imagine-se um bando de homens oppressos pelo ca-
lor, abatidos pelo cansaço, gemendo semanas e mezes
sob a carga de 60 libras; famintos, vendo nos compa-
294 De Angola á contra-costa.
nheiros desanimados a prova da gravidade dos factos
que os assediavam, e nas miserias que os perseguiam
uma como fatal sentença de morte: colloquem-se aqui
em planura ardente onde a sêde os devora, alem num
lameiro dificil onde cada passo é objecto de lucta,
obriguem-os a percorrer d'este modo a distancia de
15 milhas, e digam-nos com que coragem, depois de
tudo isto, haviamos de obrigal-os a arrastar duas du-
gas de bois imersos no lodo?!
Antonio, que fôra em missão á aldeia proxima, vol-
tou pelas seis horas com os saccos vasios e a consola-
dora noticia de que o dono da libata não era ho-
mem, mas sim uma mulher de provecta idade!
Acrescentou amda que no dia segumte receberia-
mos a sua visita, pois a nobre senhora, nada tendo
que nos désse, nem mesmo vendesse, estava na me-
lhor disposição de tudo acceitar!
À caravana tornára-se agora n'um bando de saltea-
dores, e pela noite, abalando pelo escuro, lá foram
n'uma razzia roubar quanto encontrassem, sem que
nós tivessemos a coragem de os impedir.
Logo ao alvorecer recebemos a visita annunciada;
eis em breves palavras o quadro que d'ella se encontra
em nosso diario:
Socegados á porta das cubatas, aguardavamos o
regresso dos nossos, quando deu entrada no acam-
pamento uma velha esguia, rugosa e sordida, seguida
de outra creatura cujo sexo não podémos determinar,
tão anguloso, remtrante, antigeometrico e pouco com-
mum era o seu contorno, de tres cavalheiros hedion-
dos e desdentados, e de uma entidade, verdadeira tou-
4 caminho do Zambeze 295
peira humana, pelo feitio e pequenez dos olhos impos-
siveis de aperceber.
Que casal escaparia da arca, para originar este ga-
lante grupo? pensámos, mirando os recemvindos, e so-
bretudo os cabellos da velha, que, escorrendo gordura
e enfeitados com canulas de porco espinho, lhe davam
o aspecto de um ouriço; emquanto no pescoço emma-
orecido um formidavel kisto sebaceo, aneurisma ou o
que fosse, se movia á mercê do musculo mais proximo,
atropellando um collar de contas e chifres de antilope,
e os seios, estirados na direcção dos graves, oscillavam
pendentes e graciosos em busca da normal!
— São ba-qua-tir, disse Antonio fleugmaticamente,
e miseraveis como não ha outros.
A repellente velha, approximando-se de nós, acoco-
rou-se.
Um trapo immundo, como defeza do casto pudor
d'esta diva, caia por diante até aos nodosos joelhos,
que, cansados de supportar (ao que parecia) tanta sor-
didez, estavam dispostos a fugir de entre femurs e
tibias!
Encetada a mvariavel pasmaceira, conservámo-mnos
em exhibição, até que demasiadamente enfastiados ex-
clamámos.
— Mas a final que veiu isto cá fazer?
— Nem mais nem menos, retorquiu o interprete, do
que ver os brancos, receber elles um brmde e apre-
sentar um guia (apontando para o toupeira ), ao passo
que aquelle senhor vem propor certo negocio, termi-
nou elle, indicando um dos velhos desdentados, que
tinha na mão uma gallinha.
296 De Angola á contra-costa
Trazer-nos o toupeira para guia, um individuo sem
olhos ou pelo menos com elles invisíveis, era um cu-
mulo, era a mais atrevida das zombarias!
— É de comer? tornámos.
— Nem nada, respondeu elle ainda.
— Esta terra não tem bois, nem porcos, nem milho,
nem mandioca, nem... cousa alguma, acrescentou a
lustre dama; e á medida que isto dizia, cruzava os
braços sobre o peito, batendo palmadas nos hombros,
perante as nossas pessoas perplexas!
— É ella o que faz, perguntámos espantados; como
vive?
—E viuva, responde zombeteiramente o interprete!
—Não é isso que se deseja saber, dissemos; o que
come para subsistir, é a pergunta.
— Ah! raizes, additou elle com ar mysterioso!
Enviuvára, aborrecia os homens, gostava do fogo,
tendo por alimento raizes; taes eram as qualidades e
affeições desta triste creatura, segundo as imforma-
ções obtidas.
E quando, ao olhar attentos para tão imfeliz arre-
medo da humana especie, começámos a reflectir fran-
camente, sentimo-nos amesquinhados e rebatidos ao
nivel da animalidade.
À final era um ente da nossa especie, uma creatura
similhante a nós, cujos dotes physicos nos podiam ter
pertencido, se acaso a natureza se houvesse lembrado
de atirar para a África, em vez de pôr na Europa,
os nossos respeitaveis progenitores!
Dêmos graças 4 Providencia, leitor, porque a posse
de um tal envolucro em vida, seria para o espirito edu-
A caminho do Zambeze 294
cado ou a imposição do suicidio, ou a fatalidade de
uma reclusão perpetua!
E para desopilar-nos d'esta deprimente obsessão
mental, houvemos por melhor apenas pensar na velha
Europa, e buscando aquellas cujos fins eram na terra
os mesmos, aprouve-nos trazel-as dos polos oppostos,
e Juxtapol-as em nossa escaldada imaginação.
BOI DO MATO
Segundo um croquis
Era uma d'essas jovens graciosas e bellas, cujos
olhos coruscantes zombam da castidade, ao passo que
o alabastrmo collo, de louras madeixas mundado, Ra-
phael e Angelo, pincel e cinzeis jamais reproduziram:
bôca que diz enigmas, fórmas que recordam myste-
298 De Angola á contra-costa
rios e accendem febricitantes arripios; pé ligeiro como
a fimbria que o encobre, mais de geito para aereo
caminho, de que para pisar a terrena superficie: mu-
lher magica, scentelha divinal, que só ousaria approxi-
mar-se de nós para nos tocar no espirito com o rocio
dos céus, e que nós mentalmente puhhamos em con-
fronto com o vulto tetrico da nossa imterlocutora! Com-
parae!
Gloria in excelsis, et in terram pax homimibus! O
que nós tinhamos era fome!
E a final acrescentámos:
— O que deseja aquelle senhor que traz a galinha?
— Este cavalheiro quer fazer negocio, retorquiu o
mterprete, pois é caçador, e deseja possuir um pol-
vorimho.
— Não temos polvorimnhos para vender, foi a res-
posta; e íamos a levantar a sessão, quando o velho,
adiantando-se, msistiu:
— E falso, teem aqui muitos!
— Aonde? volvemos nós.
— Ah, disse elle, apontando para as cabeças dos
bois.
— E então?
— E então, arranquem o chifre de um boi, que eu
dou por elle esta galinha!
Parallelamente ao Luatuta, e a 12 milhas de distan-
cia, corre o rio Lunga, o mais importante afiluente do
Cuito, cujo curso veloz desliza por entre terrenos al-
cantilados e pittorescos, a que não faltam todavia as
margens pantanosas, e para onde nos dirigimos logo
ao alvorecer.
A caminho do Zambeze 299
Mal o dia assomára, e o radiante sol, erguendo-se,
dourava os encimados ramos da floresta, que resoou
aos nossos ouvidos, despertando-nos, o grito: «HF ugi-
ram mais dois homens! Urge dimmuir as cargas».
(Queimando meio quartel de uma das canoas, e lan-
cando ao rio um cunhete inteiro de Snider, assim nos
fomos alliviando, e pela tarde ao acampar junto do
Longa, retumbou de novo a exclamação: «Mais um
homem fugiu em viagem!»
Era estupendo como em plena Africa central, tão
longe de sua terra, estes miseraveis abandonavam o
campo, e, impellidos pela fome, íam buscar talvez a
escravidão entre estranhos.
A terra é agora deserta, e uma libata encontrada
alem á beira rio, fôra sem duvida, pela desordem em
que estava, assaltada pelos man-bunda, em alguma
das suas guerras.
Faltam-nos mformações Acerca dos seus habitantes,
porque andámos sós, mas é de crer que sejam muito
similhantes aos do Luatuta, gente misera, só compa-
ravel ao esteril e arenoso torrão onde vivem, cujas se-
menteiras apenas se fazem nos limos do rio.
Pouco ha a dizer da natureza geologica do terreno,
podendo apenas afirmar-se que a superficie é coberta
de areia, e o subsolo constituido por grés silicioso que
naturalmente a origma.
Vamos caminhando n'uma altitude tal, que é mte-
ressante notar as variantes da vegetação. Assim, na
limha divisoria do Cubango-Cmito, apenas deixámos a
bacia do primeiro, vimos as verdejantes mupandas,
que tanto alegram a vista, desapparecendo estas logo
300 De Angola á contra-costa
que se fez a descida para a segunda, ficando em seu
logar os tortuosos nJangos e mucaratis.
Seguindo pelas terras areosas e desertas que nos
defrontavam, ora em matas lavradas pelas ultimas
queimas, ora em planícies nuas e despidas, levando
o coração denegrido como ellas, lá fomos sobresalta-
dos, ora pela fome, ora pelo receio das deserções.
Era uma nevrose, uma verdadeira loucura a idéa
de fugir, e apenas qualquer se lembrava de tal, logo
dois e tres o Imitavam, não se recordando que por estas
matas, sem norte nem bussola, nenhum d'elles, como
nós, saberia aonde dirigir-se, e succumbiria forçosa-
mente á sua audacia.
Depois, muto ao contrario do que ao diante succe-
deu nas florestas do Luapula, olhavam-nos como igno-
rantes, homens desaffeitos ao mato, não acreditando
que íamos de rumo para o Liambae, onde lhes asse-
guravamos que se encontraria mantimento, e só con-
vencidos de que os impellamos a uma perda certa.
À caça encontrada nos campos é pouca, sendo nota-
vel tambem a ausencia de caça do ar, talvez devida à
falta de arimos, ou a outra circumstancia por nós des-
conhecida.
Ao fundo de uma encosta acampámos ao anoitecer
na margem do M'palima, affluente do Cmto.
Ao longe viam-se as cubatas de uma antiga aldeia
agora deserta, e emquanto abatidos consideravamos a
nossa misera situação, a braços com a fome desde o
Cubango, à luz das fogueiras esfolava-se um boi, que
mandaramos matar para distribuir pelos estomagos o
conveniente consolo, desannuviando sombrios rostos.
A caminho do Zambeze 301
Durante a noite estalaram permanentemente os os-
sos sob o pesado ferro dos machados, emquanto a com-
passo as maxillas rangiam, triturando nervosas os en-
durecidos musculos.
O aspecto do acampamento, a ferocidade dos rostos,
a ancia na ingestão e a magreza dos extenuados corpos
“faziam lembrar ao observador uma scena de campo
cannibalesco, onde avido e suspeitoso o homem devo-
rasse o seu similhante!
Nós mesmo não podiamos eximir-nos a um precipi-
tado agarrar do alimento que nos apresentavam, e ao
ver exsudando sangue a carne assada nas brazas, que
o cozinheiro nos enviava, sentiamos vontade de nos
arrojarmos a ella, devorando-a por inteiro.
E se ao acaso pensavamos no longo trajecto que já
ta feito, no meio da estranha escassez de recursos, e
consideravamos que os bois tinham sido a nossa sal-
vação, sem os quaes já haveriamos todos perecido
miseravelmente, não podiamos deixar de pensar que
ao comprál-os na costa, a Providencia velava por nós.
Assim caminhando fomos ao longo do rio, ora em
varzeas, ora pelas matas que o orlam de espaço a
espaço, sobresaltados com o apparecimento de habi-
tações, que depois se reconheciam desertas, até que
pelas onze horas suspendemos.
- Achavamo-nos à sombra de uma arvore, descan-
sando das fadigas da marcha, e fazendo planos com
relação ao nosso destino e ao camimho a seguir, em-
quanto os bois pastavam tranquillos, esse recurso que
dia a dia minguava, quando de repente fomos sur-
prehendidos pelos acenos de muitos dos nossos.
302 De Angola á contra-costa
Convictos de que alguma cousa importante succedê-
ra, erguemo-nos, deparando logo com dois individuos,
que pela sua nudez e complicada cabeleira differiam
da gente que nos acompanhava.
Eram man-bunda, caçadores de ratos, de cujos ani-
maes traziam uma enfiada de trinta e tantos.
Informados por elles de que proximo havia libatas
e arimos, resolvemos acampar ah, e comprando-lhes
os ratos, que os nossos miravam sofiregos, enviámos
os dois man-bunda ao regulo, com o convite de nos
visitar e trazer mantimentos.
Até ao caír da noite conseguimos alcançar trinta
espigas de milho e quarenta raizes de mandioca, arti-
gos que só reproduzindo a scena milagrosa da multi-
plicação, operada pelo Redemptor, poderiam aprovei-
tar À caravana.
No emtanto, ratos a uns, milho e mandioca a outros,
“Já se conseguiu um relativo contentamento, adorme-
cendo todos confiados na fartura do dia segumte.
O typo negro d'aqui é sympathico, mtelligente e
bem apessoado.
Apresentâmos ao leitor um specimen, o qual, me-
lhor que descripções, lhe dará idéa d'elles.
Mupei, o chefe de cozimha, que na costa, obtida a
necessaria licença, se enlaçára matrimonialmente com
uma das graciosas beldades vindas de Novo Redondo,
andava agora desgostoso, por modo que esquecia ás
vezes o exercicio do mester, com grave prejuizo dos
nossos estomagos. Pela noite fizera grande barulho,
dando-nos parte das suas suspeitas. À esposa, contra
toda a espectativa, havendo adormecido a seu lado,
A caminho do Zambeze 303
acordára pela manhã nos braços de um outro, pheno-
meno estranho para que elle no primeiro momento
não pôde achar explicação acceitavel! Mais tarde,
após prolongada meditação, traduziu-se-lhe o sofirer
em grave explosão de despeito, a que se succederam
crueis ameaças de matar a culpada!
Com grande espanto nosso, porém, dez horas bas-
taram para tudo harmonisar; pela tarde, junto do
fogo, os dois conversavam tranquillamente!
O amor é como esse fabuloso passaro, de cujo nome
tantas companhias de seguro se têem apropriado; ape-
nas reduzido a cinzas, renasce bello como d'antes!
Superfluo será aqui acrescentar que todo o dia se-
oumte se esperou em vão por mantimentos, e que de-
pois da visita de Muene Cuando, havendo comprado
tanto como na vespera, partimos apenas com dois com-
panheiros para indicarem a trilhada.
Vamos no prolongamento do rio M'palina, procu-
rando entre as chatas campinas o caminho a seguir, e
sendo em cada libata objecto da imdigena curiosidade,
Os man-bunda são assás curiosos e mgennos. Ulti-
mamente, pela tarde e nas horas do ocio, temos des-
pendido o nosso tempo em notar os seus actos e as
suas conversas, como distracção ás fadigas do dia.
Assim, hontem, 5 de agosto, chegámos ao acampa-
mento de Muene Cuando antes do meio dia, esbafo-
ridos e correndo suor. Despindo-nos quasi totalmente,
pozemos o instrumento em estação, e tomando uma
altura meridiana, sentámo-nos á porta da cubata, a
fim de termos o scientifico lemtivo de determinar o
parallelo em que estavamos.
304 De Angola á contra-costa
Perante nós agachavam-se em grupo umas velhas
damas, a quem um cavalheiro acocorado explicava
todos os nossos actos.
Um dos casos que mais as imteressava, conforme
parece, consistia em saber se o nosso corpo era branco
como a cara, e sendo impossivel resolver-se isto sem
conveniente exhibição, o mesmo sujeito pediu-nos por
acenos que puxassemos a camisa, a fim de convencer
aquellas senhoras do que debalde lhes afiançava.
Feito isto, deixámos um quadril a descoberto, facto
que causou verdadeiro assombro, se não receio pouco
lisonjeiro para o exemplar.
Não se restrmgiu amda assm a curiosidade femi-
nil, e arengando com o imterlocutor, pretendiam, ao
que suppômos, saber mais alguma cousa!
Inquirindo-o, pois, disse-nos que ellas desejavam
saber a rasão de sermos brancos; respondendo-lhe o
cavalheiro, muito atiladamente, «porque não eramos
pretos», argumento que, por imacceitavel, foi exposto
da segumte estranha maneira, para se tornar mais
comprehensivel.
«Os homens são brancos por fóra, porque são pretos
por dentro». E, não sendo facil verificar esta cirecum-
stancia, ficou tudo explicado a contento!
Os guias que Muene Cuando nos forneceu levavam-
nos a caminho, sempre com pouco de comer, deixan-
do-nos convencidos de que, apesar das informações dos
naturaes, só encontraríamos mantimento no Zambeze.
Já não baixa o thermometro a zero, consentndo
que comecemos cedo as jornadas, as quaes deste modo
se ampliam sensivelmente.
A caminho do Zambeze 305
O emprego dos bois-cavallos é o mais precioso re-
curso que se conhece no mato, sendo difficilimo de
outra fórma poder resistir às nossas marchas força-
das, as quaes ainda assim, feitas n'estas cireumstan-
cias relativamente favoraveis, fatigam muito, pois só
do Cunene até aqui andámos cerca de 500 milhas.
f. 7 MLS TES E WET Ae
HABITAÇÕES DO CUITO
Segundo um eroquis
Pela manhã, e depois de nos habituarmos ao choito
especial do boi e ao movimento da pelle que faz com
que'o apparelho role com o cavalleiro, lembrando os
balanços de um navio em mar suavemente ondulado,
este genero de transporte tem o seu tanto de agrada-
vel.
306 De Angola á contra-costa
O viajante, depois de singela refeição, bifurca-se, e
dissipados os tetricos pensamentos da noite, lá vae,
rociado pela aura matutina, poupando forças que a
marcha a pé rapido gastaria.
Esta disposição de espirito nas primeiras horas é
recurso precioso para o resto do dia, evitando mais
tarde, pelo calor e pela fadiga, a despropositada ten-
dencia para o humorismo.
Muitas vezes considerâmos nisto, e frequentemente
nos convencemos de que, se de principio tivessemos
caminhado a pé, marcariamos hoje com a ossada al-
cuma clareira no mato, não tendo a alegria de chegar
a Moçambique.
Os males moraes são taes e tantos que bem deve-
mos a salvação a um cuidadoso poupar de forças, que
contrabalançou em grande parte os soffrimentos do
espirito.
E mais tarde, quando, sob as picadas da mosca, nos
caíram todos os bois, então em marcha sob o açoite
das chuvas a amarga experiencia bem nol-o eviden-
ciou.
À terra onde corre o M'palima é por tal maneira pla-
na, que por toda a parte de manhã se observavam ex-
traordinarios phenomenos de miragem. Foi aqui que
pela primeira vez encontrámos um animal, que Anto-
mo designava por gallengue, nome na costa applicado
ao Ora gazella, e que assimilhando-se ao gnú, não é
propriamente este, segundo parece, pela differente dis-
posição das defensas. |
À sua longa cauda de cavallo, a juba felpuda e a côr
escura, dão-lhe um aspecto nobre entre os outros ani-
A caminho do Zambeze 301%
maes, sendo notavel que, como o Ora, quando aper-
tado pelos cães, não foge; ao contrario, pára a fim de
mvestir com elles, dando ao caçador tempo de se ap-
proximar.
Aqui matámos um, do qual damos o desenho ao
leitor. Mais adiante, depois de uma marcha de 18 mi-
lhas, transpozemos o Uuito.
Rio formidavel e caudaloso, diz o nosso diario.
De mais de 100 metros de largo em muitos pontos,
serpeia a ampla facha de agua em leito extremamente
smuoso, deixando derivar muitos braços, que, aqui
saindo e alem entrando, lhe semeiam o curso de ilhas,
não cedendo na apparencia ao Cubango.
Uma varzea de 2 à 3 milhas consente o voltear des-
embaraçado, sendo que pela margem direita o terre-
no mais alto se approxima do leito, permittmndo ao
“viajante em caminho pela beira gosar de pontos de
vista pittorescos.
O Cuito é navegavel em grande extensão. Eis quanto
delle disse Muene Mussongo, soba do sul, e que em
sua canôa viera para nos ver.
O rio é largo e sem embaraços até ao Cubango,
onde entra n'um sitio chamado Cangungo, formando
com este uma grande lagõa denomimada Mamo com
uma ilha arborisada a meio, terra em que está a li-
bata do soba Mabanja, chefe do Bucusso. |
D'ahi deslisam os dois na direcção sueste, deixando
para o sul derivar parte da sua agua, por grandes mo-
lollas, seguindo depois em voltas caprichosas através
de planicies cobertas de Arundo, até que por fim lan-
çam as aguas restantes no Chobe.
508 De Angola á contra-costa
À jusante de Cangungo, cerca de 15 a 20 milhas,
deriva um primeiro lençol de agua, a mololla Chindon-
ga (Omaramba Ondonga), que cortando para o oeste
vae direita ao Cuanhama, e devia ser, quando aprovei-
tada, um optimo caminho para ligar esses dois pontos.
Mais abaixo fica o Dirico, e adiante uma cachoeira
que quasi se cobre na força da chuva.
Os habitadores são os ba-n'dirico e os cangungo
proximo da lagoa, povos que entretéem relações com-
merciaes com a Cafima e o Vale, assim como frequen-
tes vezes com o Bié e os bim-bundo, que em viagem
com os portuguezes para os ba-vico por lá transitam.
O Cuangar está da banda de lá e proximo do Di-
rico; a terra, emfim é plana e alagada, conforme nos
disse Muene Mussongo.
Para alem do Dirico ficam, como é sabido, os ba-vico,
cuja capital é Libebe, paiz que pelo meio dia defronta
com as tribus ma-tzanhama, que por sua parte confi-
nam com os ba-yeye, povoadores da mololla "Peoge
e outras. O aspecto d'estas terras, d'aqui para o sul,
é sempre monotono. Extensas planuras se alongam a,
perder de vista, cobertas de grammeas, semeadas aqui
e alem de manchas escuras de mais densa vegetação.
Entre os ba-yeye avultam Hyphones elegantes para
cortar a monotonia da paizagem. Podos os viajantes
dão noticia de zonas alagadas, o que, como já disse-
mos, tem concorrido para tornar difficil discriminar o
leito do Cubango e a complicada distribuição de suas
aguas. 7 |
O que todavia nos parece (repetimos ainda) comple-
tamente assente, é que as mais distantes cabeceiras
A caminho do Zambeze 309
do Zambeze estão no planalto do Bié, junto aos morros
Manso e Chimbango, d'onde originalmente deriva o
Cubango, cujo curso imponente drena toda a depressão
central que do Cunene vae ao Barótze.
O mesmo systema do Cuerrai nos parece ligar-se a
elle pela grande mololla Chindonga, notando-se como
tambem dissemos a particularidade de estar a lagoa
Etocha para o curso d'esta, como o N'gami para o Cu-
bango, ambos reservatorios que recolhem aguas super-
abundantes. |
Assim o colosso que a Quelimane vae desaguar, tri-
buta ao Indico aguas originarias do Bié e de Babisa,
numa distancia media de 1:500 milhas geographicas.
q el Hora
Ro E ca
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a
A
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i + ;
CNE LO RI
ACERCA DO NEGRO
De todos os factos enumerados, vê-se que a es-
tructura do negro approxima-se inequivocamente
d'aquella do macaco. Não differe simplesmente do
typo caucasico, mas distingue-se d'elle em dois res-
peitos: reducção de caracteres intellectuaes e fa-
cies animal ampliado em exagero.
LawRrENCE, Bthiopian Variety.
O indigena africano — Similhança de caracteres, difficuldade em dis-
criminar typos e familias de origem commum-—'Traços caracteriscos
do negro — Aspecto geral — Indicações scientificas sobre a conformação
craneana— O europeu e o ethiope encarado pelo lado esthetico — Os ha-
mitas e a philanthropia— Uniformidade de ser, sob o ponto de vista
intellectual —Feitiços—O Otjiruro, os Sandis e o Zambi — Supersti-
ções e o terror pelos mortos — Difficil comprehensão — Dados cosmogo-
nicos indigenas — O sentimento moral e as lendas — Difficuldades de estu-
do—A lingua e os costumes — Traços approximativos de tribus distantes
— Dâmaras, ban-cumbi, ba-qua-tir, ba-yeye, ban-dirico, ete. — Enterra-
mento dos defuntos e pratica da circumeisão — Ba-yeye, namácuas e ba-
coróca, suas habitações — Os ba-vico os ba-visa e os clicks — Tendencia
Os ba-qua-naiba e a Cafima — A emigração e a influencia do
pantano— Os ma-tchona e os dámaras— Tribus que originaram — Os ba-
nhameca e os ban-cumbi exceptuados — Os dâmaras e ainda uma tenta-
Opinião de Anderson— À ar-
nomada
tiva para atinar com a sua proveniencia
vore progenitora — Conclusão.
No intuito de variar a
monotona narrativa da
nossa marcha por entre
lameiros e pantanos, lu-
“ ctando com fomes e sê-
- des, façâmos uma pausa
* por momentos, a fim de
| distrahir o leitor com
Ei aloumas considerações
Tirado de um croquis : :
geraes sobre o indigena
africano e particularmente o da zona por nós percor-
rida. |
Não é por certo assumpto facil, mas quando traça
as grandes linhas geographicas do continente, esbo-
cando os seus traços physicos, deve o viajante por
vezes tentar reunir o que viu ácerca dos respecti-
vos habitantes.
314 De Angola á contra-costa
Collectivamente os negros, talvez sujeitos a um elh-
ma pouco variavel, apresentam uma tal uniformidade |
de caracteres physicos e mentaes, mostram-se tão con-
stantes em seu modo de ser e operar, têem norma de
vida tão primitiva e organisação de sociedade tão sm-
cela e geral, que dificilmente, quando dispersos por
tribus distantes, se acha o fio originario que entreliga
membros da mesma familia.
Porque, a final, quaes são os traços que distinguem
o negro? |
Podos téem a pelle preta, excepto nas palmas das
mãos e sola dos pés, onde o pigmento foi naturalmente
removido pela prolongada fricção; assim como toda
ella é mais ou menos fina, afóra os logares menciona-
dos, vendo-se por isso, em geral, o africano, pegar no
carvão em brasa e depol-o no cachimbo sem a menor
impressão ! |
O negro typico tem sempre basta carapinha, espessa
como a lã, e raras vezes barba ou bigode.
À sua estatura é mediana, angular, mais grosseira
que a do branco. O craneo fortemente ligado, depri-
mida a fronte, proeminente o occiput, bem como as
queixadas e arcadas zygomaticas, adiantando-se-lhe,
do mesmo modo que nos quadrupedes glutões, a bôca,
cuarnecida de largos e grossos labios.
O nariz é achatado, estreito o pescoço, ao passo
que a columna vertebral extremamente curva para a
frente, logo acima da bacia, parecendo tal conforma-
cão prestar-se mais 4 marcha sobre quatro pés!
Os membros locomotores afastam-se do parallelis-
mo, curvando-se externamente, as rotulas são proemi-
Acerca do negro 515
nentes, os calcanhares excedem a Imha vertical do
tendão de Achilles, as mãos, quando caídas ao longo
do corpo, tocam quasi nos joelhos.
Mais scientificamente acrescentaremos:
A capacidade do craneo acha-se reduzida quando
comparada com a do europeu, sobretudo na região
anterior.
À face, porém, avulta.
O osso frontal e os parietaes são curtos e menos
escavados, tendo aquelle menos capacidade que estes.
A frente do craneo acha-se comprimida e elevada
n'uma como que nervura entre os poderosos musculos
temporaes, que nascem proximo da parte mais elevada
da cabeça, avultando assim, em consequencia da gros-
sura dos mesmos musculos.
A substancia ossea é mais resistente e densa, os
rochedos extremamente grossos, o peso do craneo
consideravel.
O foramen magnum é maior, collocado muito atraz,
e maiores são tambem todas as outras aberturas para
a passagem dos nervos.
Tanto o apparelho osseo da mastigação com as
cavidades-receptaculos para os orgãos dos sentidos,
dentes, etc., são grandes, solidos, e mais poderosa-
mente construidos no negro, mais aptos a satisfazerem
as exigencias animaes do que nas raças civilisadas,
onde certas funcções se attenuam pelo extensivo uso
da rasão e da experiencia. ;
A fossa temporal é grande, o seu limite pela parte
superior está collocado mais alto no craneo do negro
do que no do europeu.
316 De Angola á contra-costa
As orbitas e zygomas são enormes, bem como as
narinas, ampla a cavidade nazal e os cornetos do
ethmoide, mais extensa a lamina cribiforme.
O maxillar superior prolonga-se notavelmente em
frente, e a porção alveolar vê-se obliqua como no ma-
caco. |
À espinha nazal é reduzida, a abobada palatima lon-
ga e mais elliptica, o queixo, em logar de vir á verti-
cal dos dentes, recolhe de modo sensivel.
O angulo facial é em media de 65º, a distancia
da base das narmas á parte proemmente do occiput
exagerada, o perfil de um prognatismo frisante.
Comparado com as fórmas, proporções e côres, que
todos admirâmos nas bellas figuras da Grecia, o la-
nudo cabello, o achatado nariz, os grossos beiços, a
deprimida fronte, as maxillas avançadas, a pelle tis-
nada, e o rude vulto do negro, fazem um contraste
esrtanho!
Não acrescentaremos a estes caracteres physicos
externos outros especiaes que a sciencia se tem encar-
regado de estudar na comparação da raça negra com
a aryana, taes como differenças de pigmento, de bilhis,
de manchas escuras da pia-mater, porque não é nosso
mtulto aqui expor essa comparação, nem discutir se
nos excedem ou são inferiores, deixando em completo
socego a philanthropia meticulosa, que facilmente se
consideraria insultada com o aventar de similhante tes-
temunho.
Debaixo do ponto de vista intellectual, tambem cus-
ta a differençal-os (referimo-nos sempre aos negros do
sertão). |
Ácerca do negro 311
Em materia de religião, por exemplo, ainda formã-
mos o mesmo juizo que emittimos ao escrever o nosso
primeiro livro sobre Africa, isto é, que o negro não a
professa ou tem a do feitiço, que é completa negativa.
della, em que todos procedem por igual fórma, com
identicos preceitos, tornando-se dificil distmguil-os.
Assim o dúmara tem o Otgiruro, o mu-nhaneca os
Sandis, como os quiocos o Zambi, e os niam-niam |
o muquisso, sendo para elles o feitiço uma idéa tetrica,
aterradora, com imfluencia nefasta, que elles tratam
de conjurar por todos os modos possiveis.
O bieno diz: é feitiçaria, pregou-lhe um gin'vungi, o
que quer exprimir: pol-o sob a acção do feitiço, de que
tem de se livrar por qualquer medicina, se não quizer
ser victima.
O mu-nhaneca exclama: olha não se apeguem os San-
dis comtigo, querendo sigmficar que para tão grande
mal faltará remedio. E se lhes perguntardes: mas o
que é isto que tanto mal me faz? Elles apenas attri-
buirão ao terror mspirado pelo possivel apparecimento
do morto!
Nem mesmo é uma transmigração á guisa de me-
tempsicose, porque, quando os gritos da hyena lhe
suggerem a idéa de qualquer que desappareceu, não
é o espirito que imaginam incubado no corpo do ani-
mal, porquanto carecem de similhante noção, mas sim
o homem transformado em hyena, com o mesmo cor-
po, os mesmos olhos, sómente coberto de pellos e com
quatro patas!
1 Niam-niam ou melhor Nham-nhamos.
518 De Angola á contra-costa
À comprehensão de tudo que os cerca é difheil, se
“não erronea e Impossivel, nivelada pela mesma fórma
em quasi todas as tribus.
Assim vereis o mdigena africano facilmente suppor,
como muitos acreditam, que o sol nascente differe do
visto no dia anterior, do que explicar na rotação com-
pleta o reapparecimento do mesmo astro!
Verdade é que às vezes os seus argumentos têem a
força de deixar boquiaberto o viajante.
Assim um dia, assentados 4 porta de nossa tenda,
satisfeitos por ter achado um preto esperto, a quem
iamos arrancar noções de cosmogonia, perguntámos-
lhe, apontando para a abobada celeste, o que é o céu?
mquirição em verdade estranha a que muito camponez
na Europa deixaria de responder, elle disse: «O céu
é de pedra, ou melhor, uma serra enorme que está por
cima das nossas cabeças!» ES como lhe obtemperasse-
mos, tomando uma pedra do chão, que nos não pare-
cia o céu ter pontos de contacto com aquillo, pois lhe
bastava a côr, replicou: «5 boa; vê-se azul porque
está longe, asssm como as serranias quando vistas a
distancia!»
O sentimento moral, a consciencia do bem e do
mal, embryonarios, tambem diversificam tão pouco
entre todas as tribus, que é dificil por essa circum-
stancia encontrar facies por onde possa operar-se a
menor disermmimação.
Emfim, as lendas, tornam-se tão confusas, que mal
se póde aproveitar indicios d'ellas, e sobretudo encon-
trar tribus que, embora da mesma origem, conseguis-
sem conserval-as immaculadas.
Acerca do negro 319
Passando de uns a outros povos, alteradas pela fa-
culdade mais ou menos imaginativa do narrador, que
as adapta muito naturalmente ás circumstancias de lo-
gar e impressão de momento, exaltadas na bôca dos
homens por tendencias arrogantes, pervertidas nos
contos da mãe ao filho pelo sentimento do medo, mu-
dam de geração em geração e perdem-se phantasistas
de tribu em tribu.
De que lançar mão, pois, para fazer um estudo su-
perficialmente ethnographico dos povos por onde se
decorre? Da lingua e de alguns usos e costumes mais
ou menos tradicionaes, espalhados entre elles, é a res-
posta. Acontece porém que ao explorador é sempre
dificil assenhorear-se da primeira, pelo pouco espaço
de tempo de que dispõe, e do seu desconhecimento
vem o embaraço de poder aproveitar-se das descri-
pções sobre o modo de proceder do mdigena, ficando
- 4 A e ' -
assim á mercê de imterpretes, que tudo confundem e
alteram.
Não deve admirar, pois, que todo o trabalho n'esse
sentido e feito por homens que rapidamente atravessa-
ram as tribus de que pretendem tratar, seja deficiente
e mcapaz de satisfazer à natural exigencia de quem
deseja informar-se.
Desde a costa occidental até á bacia do Cuito per-
corremos varias zonas povoadas de negraria, onde,
pelo menos sob o ponto de vista dos caracteres phy-
sicos, notámos algumas differenças, que exultariamos
em poder apresentar ao leitor.
Ao baralharmo-nos, porém, agora entre as notas
multiplicadas do diario, vemo-nos por tal modo con-
N
520. De Angola á contra-costa
fusos, achâmos entre ellas tão estranhas indicações,
que se torna quasi impossivel delimitar tribus e expor
casualmente a sua proveniencia.
Assim o córoca, para exemplificar, parece-se com
esses aborigenes do sul do Cáoco, hill-dámaras clia-
mados, e mais longe com os ba-qua-tir.
As mulheres dámara, ban-cumbi, ban-dirico e ba-
veye ou ba-cóca vestem do mesmo modo a pelle de
boi, enfeitando-se com missanga, emquanto as do
Ovampo empregam, como as do Valle, uma especie de
cutuba, ou melhor uma pelle cortada em triangulo,
ageitando-a posteriormente”. |
Os bana-cutuba, os ba-tchuana os dámaras e a
cente do Cuangar enterram os mortos pela mesma
maneira, quebrando-lhes a columna vertebral, e envol-
vendo-os n'uma pelle para os collocarem com a cara
para o norte, ao passo que os ba-qua-róca e ba-ximba
os deixam imsepultos ou marcam o logar em que os
abandonaram com circulos de penedos.
Os bana-cutuba, os ba-qua-róca, os dámara, e sup-
pomos que os habitadores do sul do Cubango, eireum-
cisam-se á feição dos ban-galla de Cassange, jaggas,
etc., emquanto que os lupollo, ba-nhaneca chamados,
os amboellas'e outros do norte não o fazem.
Os dâmaras, os ovampos e os corócas tiram as san-
dalias ao entrar na residencia do europeu, emquanto
que biénos e amboellas não os imitam; as suas dansas
representam quasi sempre, em mimica, acções do boi,
1 E notavel esta especie de cauda usada pelos qua-nhama e pelos
nham-nhamos.
Acerca do negro 321
da cabra e de outros animaes, ao passo que as destes
téem logar em vastos circulos, onde por cada vez sãe
um figurante que se meneia isolado.
Os ba-yeye, segundo a affirmativa de Anderson,
construem habitações redondas como os namáqua.
NE
INDIGENA RIBEIRINHO DO CUITO
Tirado de um croquis
Os ba-qua-róca e ban-dombe fazem-nas identicas, á
medida que os handas, cafimas, ban-dirico, ba-qua-tir,
as formam altas e conicas,
Os ba-vico, ao sul do ponto onde nos achámos, ves-
tem, diz um escriptor, como os ba-visa de Moçambi-
que, emquanto que o dialecto lu-yeye como o lu-erero,
o dâmara e o coróca parecem assimilhar-se ás linguas
da mesma costa oriental, apesar dos clicks, que mos-
tram intervenção hottentotica.
322 De Angola á contra-costa
O mesmo dámara, imteiramente similhante ao mu-
erero e ao mu-qua-róca, tem o typo dos ma-limansa,
tribu da costa de leste.
De tudo isto não vamos concluir que as tribus em
questão se estendem n'uma facha de territorio atra-
vez da Africa de uma a outra costa, nem acertar com
a sua proveniencia e especial distribuição; mas ver se
dos pontos de contacto mdicados se póde lançar algu-
ma luz.
Uma parte das tribus que povoam as planuras do
sul têem decidida tendencia para a vida nomada, de
resto um tanto concomitante com a pastoril quando
escasselam os pastos, e grande facilidade em emigra-
rem, ou porque as terras siliciosas, cansando rapida-
mente, os obriguem a procurar novos campos para a
semeadura, ou por outra qualquer rasão que desco-
nhecemos.
Assim, ao transpor o Quiteve, disseram-nos que
existívra ali em tempo (cmcoenta ou setenta annos) o
poderoso estado dos ba-qua-naiba, que de subito des-
apparecêra *.
A Handa era um deserto, que gente de proveniencia
desconhecida povoára, tambem de data não muito re-
mota, conforme se suppõe.
1 Parece que anteriormente a esta epocha existia no plateau, que me-
deia entre o Cunene e a serra da Chella, uma densa população, consti-
tuindo um reino sob a designação de Matamamn. Os habitantes eram sem
duvida dâmaras, pois que ainda entre elles ha a tradição, que, forçados por
povos invasores, tiveram de ceder a sua terra, transpondo o rio na Quia-
bicua, como em outros tempos elles haviam por sua vez derrotado os que
lá residiam, talvez partidarios do celebre Humbi-Iénene.
Acerca do negro 29
A Cafima, ha poucos annos ainda uma terra assás
povoada, está hoje quasi em abandono, devido, se-
gundo afiançavam pessoas dali, a escassez das aguas;
emfim as margens do Cubango, que de Massaca até à |
Bunja eram bastante povoadas, estão presentemente
quasi desertas.
Estas tendencias migratorias, se não encontrarem
só causa no proprio solo e numa disposição natural
dos mdigenas para a imstabilidade, o que explicaria
talvez a existencia em suas veias de sangue bushmen,
devem ter a origem nas invasões de territorio e na
natural hesitação de quem está habituado a retirar-se
em presença de outros mais fortes; d'onde se mfere
que a menos guerreira, menos forte e quiçá menos
nobre é de crer fosse a raça que povoava as planuras
que oceupam a depressão central da Africa.
E se o não foram ao tempo d'esses movimentos,
são hoje, porque é facto conhecido que os mdigenas
que residem permanentemente nas regiões pantanosas
sofftrem profundas modificações physicas e mentaes
por mhalação sob a constante influencia deleteria.
Os homens da beira dos pantanos, os habitadores
das aldeias lacustres, avelhantam-se com rapidez, são
prematuramente senis, assim como os descendentes
fracos, rachiticos, pallidos, tendo o abdomen proemi-
nente, a figura curvada e os caracteres moraes e intel-
lectuaes deprimidos e degradados.
Raras vezes attmgem uma idade avançada, e tanto
na bacia do Nilo, na Virginia, como aqui, o limite da
vida regula entre quarenta e cincoenta annos appro-
ximadamente.
224 De Angola á contra-costa
Das presentes considerações podemos já concluir
que todos os habitantes da grande depressão central
norte do Calahari apresenta, em seus traços geraes,
uma inferioridade manifesta, quando se comparam
com os robustos ba-bie, os elegantes mam-boella e
outros povoadores do norte, e que portanto este facto
característico nos leva a isolal-os, considerando-os
mais ou menos originarios da mesma tribu, e a accel-
tar emfim que, se não provieram do sul, não derivam
pelo menos directamente das gentes do norte.
Mas quem foram os seus progenitores? Quaes os
povos originarios dessas tribus dispersas desde a ba-
cia do Cunene, com o nome de ba-qua-róca e ba-xim-
ba, e mais a leste ovampos e ba-qua-nhama, e amda
adiante com a designação de cafima, de ba-rongo, de
ba-qua-tir, de ba-qua-n'gar, ba-yeye, etc.?
Eis a resposta:
Parece que numa epocha muito remota existia por
toda a zona que se estende entre o Ovampo e o curso
inferior do Cubango um poderoso estado, que se de-
nominava dos ma-tchona *.
Este povo, que, segundo se presume, vivia pacifica-
mente ao longo do curso dos rios mais importantes,
alimentando-se naturalmente da caça e da pesca, foi
um dia surprehendido pelo mopinado apparecimento
1 É notavel a coincidencia dos ma-tchona com os ma-tcheno, de que nos
falla Bastian como povoadores do Congo, ao tempo da chegada dos jaggas.
Esta circumstancia pelo menos lembra, para não dizer corrobora, o que
dissemos n'outro capitulo sobre o jagga Ximbo, e mostra a probabilidade
de haver trazido comsigo tribus avassalladas de ma-tcheno, quando inves-
tiu com Moçambique, tribus que depois na retirada se estabeleceram ali.
Ácerca do negro 325
de tribus numerosas que se chamavam dámaras, bem
como o foram tambem os povos do sul que com elles
tinham relações, isto é, bushmen e talvez as tribus hot-
tentotes.
Derrotados e vencidos, dispersaram-se em todas as
direcções, e aquelles que escaparam ao cutello ou á
escravidão, foram procurar guarida em logares reti-
rados, mais ou menos accessiveis.
Diffundido por elles em grande abundancia o sangue
bushmen, veiu agora pouco a pouco fazer sua entrada
o dos dámaras, e separando-se em todos os sentidos
para fugir á aridez das terras primeiro conquistadas,
ficaram os propriamente dâmaras na terra; entre o
Cunene e Chella, d'onde depois saíram como já disse-
mos, acossados pelos nano ou por quem fosse, distri-
buimdo-se os outros, como os vemos desde a emboca-
dura do Cunene até a altura do Cuatir e do COuito, e
meursando a pouco e pouco entre man-bunda, mam-
boella, bienos, gente do Nano, ban-cumbi e quantos
appareceram a final, com os nomes de ba-qua-róca
ao norte do Cunene, bana-qua-tuba e ba-nhemba a
leste d'este rio, ao longo da Chella com o de ba-qua-
balle, para alem de Cuanhama com os de Cafima, ba-
qua-n'gar, ba-qua-tir, etc.
Uma unica circumstancia nos confunde em meio
d'esta discriminação, e vem a ser que, suppondo nós
os ba-nhaneca e os ban-cumbi oriundos muito do
norte, e talvez directos descendentes dos jaggas, como
Já dissemos, vemos entre elles e em parte dos povos
de que acima tratámos, a permanente pratica da cir-
cumcisão, assim como entre os ban-cumbi seguir-se
326 De Angola á contra-costa
na inhumação dos mortos um processo identico ao
d'aquelles.
Esta circumstancia, porém, poderá explicar-se, ad-
mitindo que os ban-cumbi, por muito proximos e em
contacto com elles, tendo de modificar os seus habitos
e talvez passado da agricultura á vida pastoril, aão-
ptassem os costumes dos povos com quem tivessem re-
lações e sobretudo aquelles que por muito estranhos
mais os Impressionavam.
Assim foi que, fundidos os ma-tchona com os dáma-
ras e dosado o seu sangue com uma boa porção do da
raça bushmen, se estabeleceram por toda a região de
que temos fallado, e, tomando ao principio designações
como aquellas a que já nos referimos, a saber: ba-
qua-naiba, ou ba-qua-naiúba, descendentes do sol; ba-
qua-numbula, da chuva; ba-qua-naitunta ou ba-qua-
naitunda, da floresta !, ete., modificaram-nas pouco a
pouco, substituindo-as pelas das terras que habitavam,
ou por appellativos designando a sua oceupação ou
modo de ser, taes como ba-qua-ito, ba-qua-tir, ba-qua-
n'gar, ba-qua-niama, ba-qua-vanja, ba-qua-bieua, ete.
Curioso seria aqui, embora se referisse esse traba-
lho a tribus que ficaram distantes do nosso camimho,
acertar com a proveniencia dos dâmaras, os verdadei-
ros povos origimarios de todas estas tribus.
Apenas Anderson diz alguma cousa, e Isso mesmo
é pouco para chegar a qualquer conclusão. Ouçamol-o:
«(ue os dâmaras não residem de longa data no paiz
que ora habitam, é muito de crer, comquanto seja du-
1 Estes mais caracteristicamente bushmen.
Acerca do negro 321
vidoso o logar d'onde elles vieram. Apontam alguns
para o norte como patria origmal, outros afiançam
que vieram do nordeste, e descendem de uma arvore
que denominam m'borambonga, collocada n'um logar
chamado Maruru”.
«Ora como elles não são agricultores, pois nem
termo têem em sua Imguagem para designar cereal,
e as tribus do norte o são, é de crer que fossem vindos
das terras do nordeste ou leste, onde existem povos
pastores.
«Mas, seja como for, o que parece é que, ha setenta
ou oitenta annos, nem um dámara se achava ao sul
do Caõeo, mas que por essa epocha elles mvadiram o
paiz, habitado por bushmen e hill-dámaras, sendo os
derradeiros naturalmente os aborigenes.
«Os dámaras formavam uma grande nação, que
mais tarde se desmembrou, subdividindo-se.
«Depois da conquista estenderam-se até ao lago
N'gami, quando então os namaqua-hottentote os guer-
rearam ajudados por outros do sul, e se tornaram de
opprimidos em oppressores.»
Mais adiante diz elle ainda:
«À divindade principal dos dámaras denomina-se
Omukwru.
«A sua mfluencia parece residir muito no norte, e
difficil seria especificar os seus attributos. Cada tribu
tem o seu omukuru, com seus supersticiosos habitos
! Maruru ou malulu parece-nos o plural de quilulu, designação biena
de feitiço (o quilulu-n'sandi), que mais se deve dirigir à arvore feiticeira
do que ao logar.
328 De Angola á contra-costa
e costumes, peculiaridades, ete., e cada uma d'ellas
se divide em castas «ccandas».
Mulkuru ou mulurru é um termo muito empregado
no interior, sobretudo n'esta região, para designar um
curso de agua, ou mais correntemente exprimir rio; e
como uma tal lembrança para homens que vivem em
terra arida e falta de agua deve ser grata, não admira
que elles vissem em qualquer curso de agua um ele-
mento de prosperidade, e portanto o deificassem (se
isso se póde dizer)!
Mas tambem isto faria lembrar que se têem tal idéa
a respeito de um rio, é porque alguma tradição correu
entre elles de tempos felizes ali passados, implicando
a consequente deducção de que origmariamente resi-
diram nas suas margens.
(Qual seria elle, o Cunene?
É mais provavel que assim fosse, que os dámaras,
como vimos, habitassem a sua margem norte, havendo
V'ali saído por causas que não é facil conhecer, mas
muito frequentes ah em consequencia do natural de-
sejo das tribus poderosas em domimar junto da agua.
Assim as asserções de Anderson comeidem de certo
modo com as nossas; a idéa de terem os dâmaras sido
uma grande nação, bem como o seu movimento de
leste, tambem encontra n'ellas confirmação, e amda se
nota n'elle disposição a acceitar que desde o Ovampo
até ba-yeye! todas as tribus centraes tiveram uma
proxima proveniencia.
1 Cooly suppõe que os ba-yeve vieram tambem do oeste.
y Sup sy
Ácerca do negro 329
Em resumo, parte dos povos que deram logar a estas
considerações são parentes, e espalhados n'uma linha
obliqua, que desde o parallelo de 15º na Handa vae
até 4 embocadura do Chobé, representando elementos
dispersos de tribus origimarias, mas sobretudo dáma-
ra, hoje cruzados com bushmen e hottentote, que quanto
mais para o interior, tanto mais deprimido lhes tornam
o typo.
Estabeleceram-se nos limites impostos pela gente do
Nano, que quanto a nós comprehende bienos, ganguel-
las e outros, e se acham estabelecidos nas regiões supe-
riores, em posse de terras ferteis e abundantes, que
smgularmente frizam com a aridez e pobreza das do
sul, contrastando tambem no corpo avultado e robus-
tez natural com o rachitismo e fealdade dos habita-
dores da Cafima, Cuatir, baixo Custo, etc.
Remataremos por aqui as considerações que nos
propozemos sobre assumpto tão obscuro, quanto cu-
rioso, convencidos de que, sendo sempre materia difh-
cil explicar satisfactoriamente a proveniencia, causas
de transformação, etc., de muitos povos da Africa cen-
tral, só poderá conseguir-se isso por uma longa serie
de observações e cuidadoso estudo philologico.
Sem embargo, e se o tempo nol-o permittir, volve-
remos no volume 11 d'esta obra a entrar em tão mte-
ressante quão espinhoso estudo.
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CAPITULO XH
- LODAÇÃES E LAGOAS
Les ombres de la nuit ont fait place au matin,
Chacun est à son poste, on se met en chemin.
La terre sêéche et dure, et I'cau dans les ornitres,
On passe des ruisseaux, on franchit des riviéres;
Les pieds sont dans la fange et les fronts ruisselants,
Se courbent harassés sous des rayons brúlants.
J. R. Mesnier — CAPELLO E IVESS, etc.
Adeus Cuito— À carne e a morosidade das marchas — Os ba-cuito e os
* ma-côa— Planuras monotonas e phenomenos de miragem — Libatas lacus-
tres e timidez dos indigenas— O bijou africano e um tombo inopinado —
Artigos de alimentação e trajo dos ba-cuito — À. Adenota léchee? — As pla-
nuras e a caça—O hopo— Um homem perdido— À cobra da areia e as
florestas do Conjumbia— Mam-bunda, trajos, funeraes dos sobas — Um
homem abandonado — As meningites cerebro-rachidianas — O muchito de
Cajimballe e os elephantes— À terra do Cubango ao Zambeze, e as dif-
ficuldades do transito—Considerações amargas —O cyclone de 18 de
agosto — Modo de attrahir as gazellas pelo som — Muene Quitiaba e as
ba-iauma— Os guias e o alagamento — Critica posição dos chefes e da
- caravana entre o arundo das margens do Cuando — O rio irá ao Zambe-
ze?-—Com o apparecimento do milho esquecem-se as fadigas — O rio Cu-
tie o trilho commercial do Bié— A bacia do Congo e a do Zambeze —
Considerações consequentes — O paiz é park-like.
|
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Lithographia da laprensa Nacional
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«+ ESCORREGANDO NO LAMEIRO
Deixando atraz a varzea do Culto, entrámos em ter-
reno ligeiramente ondulado, de meio grau talvez de
extensão, onde nem um só riacho se encontra. E a
terra elevada, que separa a bacia d'este rio Vaquella
do Cuando, e onde começa o dominio dos man-bunda.
Depois de muito tempo que a alimentação da cara-
vana era exclusivamente constituida pela carne. Por
esse motivo começavamos a notar entre a gente phe-
nomenos estranhos de fraqueza, cuja causa a principio
desconheciamos. Já não supportavam as marchas lon-
gas e regulares de outrora, pois mal partiam do acam-
pamento, viam-se-lhe signaes evidentes de fadiga e de
cansaço, e eram forçados frequentemente a arrear as
cargas pelo caminho.
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554 De Angola á contra-costa
Os vultos esqueleticos dos carregadores mspimravam
compaixão tal, que não ousavamos insistir para pro-
seguirem, e descansando a miudo no trajecto de uma
jornada, viamos tristemente decorrer o tempo sem o
podermos aproveitar.
Desde este ponto, o trilho dirige-se a les-nordeste,
conservando esta direcção até á margem do Cuando,
unico logar onde este é facilmente transponivel. Nas
primeiras aldeias que attingimos, os habitantes raianos
receberam-nos desconfiados, por julgarem, segundo
suppoemos, que eram ma-côa os recemchegados.
Já em capitulo anterior fizemos notar ao leitor a
desconfiança destes (que ao principio julgámos ma-co-
lolos) serem brancos, caso certo no dizer dos indige-
nas, e que vivem para as bandas da confluencia do
Chobe, onde fabricam pannos e facas, inspirando aos
ribeirmhos da bacia do Zambeze um permanente re-
Gelo.
Tal facto tem forçosamente alguma explicação, que
nós não aventurâmos, por falta de seguras mdicações
para a basear; comtudo aqui fica registada, a fim de
que outros a procurem.
Os exploradores são hoje os Argus sertanejos, e se
lhes cumpre informar-se do modo de proceder dos in-
dividuos estabelecidos no imterior, torna-se tambem
obrigatorio a exploradores portuguezes fazel-o, não só
para alijar suspeitas, destrumdo as aceusações tantas
vezes assacadas aos seus compatriotas, mas para co-
hibir (visto serem os que com mais frequencia lá an-
dam), no interesse da humanidade, scenas repellentes
de pilhagem.
Lodaçaes e lagoas 590
O solo vae seguindo areento, ondulado, denegrido
em parte pelas ultimas queimadas, e a sua vegetação
consiste apenas em algumas mupandas, tortuosos mu-
caratis e n'jangos.
Sopra um vento fresco do sueste, que refrigera os
calores do dia. Ão cabo de duas marchas encontrámos
o r1o Cuma, derradeiro afiluente do Custo.
Transpostas as ultimas collnas que delimitam a
sua bacia, alongam-se planuras monotonas a perder
de vista, e onde os effeitos da miragem pela manhã
nos levavam a crer na existencia de lagoas por toda a
parte.
Numerosas libatas de man-bunda se vêem, sempre
no centro de estacaria, e dispostas de modo a ficarem
cercadas de agua, o que lhes dá o aspecto, observan-
do-as a distancia, de grandes monitores couraçados.
Os naturaes são timidos ou de nós se arreceiavam,
pois nas recentes marchas nem uma mulher lográmos
ver, apparecendo no acampamento só os representan-
tes do sexo forte.
Abunda a caça, e n'este logar pela primeira vez
tivemos ensejo de observar de perto um gná'* ou bison
africano.
Antonio, que saíra ao acaso, apertou com um bando
destes quadrupedes, um dos quaes, tresmalhando-se,
veiu passar junto ao acampamento.
Ao vel-o approximar-se, partiu um de nós de arma
em punho ao seu encontro; em tão má hora porém o
1 Assimilha-se no corpo ao gnú de que falla Livingstone, Catoplebas
Gnu, mas tem as defensas n'uma posição inteiramente differente.
E ae TE Ee A ii ADD O is RÃS = RE RÁ E RD AG DE MEET UM Tee e
356 De Angola á contra-costa
fez, que, escorregando no lameiro do rio, estendeu-se.
horisontalmente e desfechou a arma na direcção do
quilombo!
Com grande felicidade encontrámos mantimentos
na região de que estamos tratando, e embora não fosse
em grande abundancia, sempre mitigou por vezes o
fastio da carne.
Muene Caluri, soba ratão de uma tribu de ba-cuito,
e cujo retrato apresentâmos, offereceu-nos massango,
Penisetum, e mandioca de suas lavras, allegando não
trazer milho por haver pouco na terra.
Tabaco não possuem, e o sal de Quitengue é uma
mistura ennegrecida de chloreto, azotato de soda e
outras impurezas, que só a necessidade obriga a apro-
veitar.
Larga correia 4 cemta, pelles, ampla patrona collo-
cada posteriormente, e uma faca com o cabo mettido
entre o ventre e a correia, a folha em linha vertical
de ponta para cima, eis a suprema distincção na terra.
O uso das transmhas é commum. |
Foi por estes plainos, e sempre proximo de lagoas
ou regiões alagadiças, que demos vista de um antilope
elegante, à feição do Epiceros melampus ou m'palla,
cujos chifres téem a graciosa curva d'aquelles da quis-
sema, côr amarello torrado, peito e barriga brancos,
vivendo em bandos numerosos; julgâmos ser o mesmo
que a Adenota léchee.
Extremamente timidos, fogem rapidos como o vento
ao mais pequeno ruido, acompanhando as femeas, que,
desprovidas de hastes, pulam ligeiras em seu segui-
mento.
Lodaçaes e lagoas 3357
E um quadro mteressante e pittoresco ver milhares
de elegantes animaes cobrindo mteiramente uma cam-
pmma e abalando agitados ao menor rumor. Quem pela
primeira vez como nós os observar, não deixará de
sentir uma admiração natural, considerando a super-
abundancia de vida espalhada n'aquelles logares.
TYPO CAMBUNDA
Tirado de um croquis
Por estas extensas planuras cobertas de fina relva,
verdadeiro paraizo de herbivoros, encontram elles
muitas especies do seu normal sustento, por isso ahi
divagam em grande numero, podendo qualquer via-
jante certificar-se d'este facto, pela observação das
milhares de pegadas que existem sobre o solo, circum-
stancia ponderosa que tambem denuncia a proximida-
de da agua.
338 De Angola á contra-costa
Nas margens do Lomba estivemos durante uma
hora boquiabertos, tão grande era a abundancia e va-
riedade de animaes que perante nós se agitavam.
Consistiam em zebras, que a galope com as peque-
nas crias se collocam a distancia em observação; bi-
sons, que se differençam pelo ennegrecido vulto e pelos
vagarosos movimentos; capadjis; graciosas cabras dos
pantanos, que assobiam muito caracteristicamente, e
cujo correr intervallado por saltos, em que levantam as
ancas similhando o movimento do couce, impressiona
de prompto o viajante; e outros animaes de que não
nos recordâmos.
Que esplendido campo para uma excursão eynege-
tica, como essas feitas no sul do Zambeze, de que nos
falla Livingstone sob a designação de hopo, e que con-
siste numa colossal armadilha em fórma de V, tendo
no vertice uma estreita passagem adiante da qual um
precipício recolhe os animaes acossados pelas correrias
dos negros!
No rio Conjumbia perdeu a expedição mais um ho-
mem, que, soffrendo de epylepsia, caiu no fogo, ficando
em estado deploravel. O mais notavel, porém, foi que
preparava a ceia com um companheiro, e ao sucece-
der-lhe similhante fatalidade, este, contemplando por
momentos o infeliz que estrebuchava, ergueu-se alfim
serenamente, pegou da arma e partiu para junto de
outro grupo, sem se lembrar de prevenir ninguem.
Tinha feitiço do fogo, foi a resposta do imbecil ao
mquiril-o sobre a causa da sua deshumanidade!
São frequentes aqui as cobras brancas chamadas da
areia, tornando-se necessaria toda a cautela ao fazer
DY
too
No |
1
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Breve
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TA E VARIEDADE DE ANIMAI
. TÃO GRANDE ERA À ABUNDAN(
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Lodaçaes e lagoas 339
o acampamento. Havendo-a observado com attenção,
achámos ser identica áquella nossa conhecida de Mos-
samedes no oeste.
O aspecto do paiz modificára-se, parecendo até aqui
feito por quarteirões, que se repetiam com enfadonha
constancia, pois deixava-se uma encosta, vestida de
mupandas, mumôes, n'jangos e mucaratis para entrar
em intensissima anhara de capim, e logo n'outra zona
arborisada, a que se seguia nova anhara, para volver
a caminho coberto por densa floresta.
Achâmo-nos proximos do limite das terras dos man-
bunda, que por este lado acaba no rio Cuchó.
Pelo geral estes povos, de que em breve nos vamos
afastar, não são inferiores aos amboellas, e se em seu
todo ha: o quer que seja de asselvajado, concorre para
isso o modo como se adornam e penteam.
Pelles de cobra enroladas ao pescoço, d'onde pen-
dem dentes e garras de leão; grossas tranças dispersas
na cabeça em todos os sentidos, dando-lhes por vezes
aspecto de medusas; enorme faca á emtura e uma cau-
da de gnú pendente do lado, não podem formar um
conjuneto que os torne attrahentes.
Pobres em extremo, vivem divididos sob a direcção
de secúlos, isolados nas matas e margens dos rios, ali-
mentando-se de massango. Não possuem gados, mas
caçam com frequencia o elephante.
As mulheres são mais feias que as suas congeneres
amboellas.
Tendo morrido ha pouco um soba desta terra, ouvi-
mos narrar scenas, pelas quaes concluimos serem elles
muito deshumanos.
340 De Angola á contra-costa
Contava-se que, quando este adoeceu, se tratou de
imquirir a causa da molestia, e havendo-se numerosos
quimbandas empregado na operação, chegaram ao co-
nhecimento de que o espirito de um certo fulano, que
o regulo mandára matar em tempos remotos, era, pelo
seu constante sobresalto, a verdadeira causa de taes
perturbações.
Mortas algumas cabras e aspergido com o sangue o
logar onde habitava, conseguiu-se uma como que sus-
pensão de hostilidades; breve porém, exasperado, vol-
tou o espirito á carga, não havendo cabras e gallinhas
que, enchendo o estomago dos quimbandas, apaziguas-
sem as formidaveis iras.
O remedio unico foi passar o soba para melhor exis-
tencia, e enterral-o, para o que se faz uma grande cova
no recinto da residencia do defunto, e juntando fazen-
das, estrangulam-se duas pobres creanças, uma de cada
sexo, para lhe servirem no outro mundo o cachimbo e
o tabaco; envolvidos depois com elle nas fazendas, um
pela frente e a outra por traz, lá vão para a cova, que
nunca é coberta de terra.
O que se tornou notavel, porém, foi que mquirindo
sobre o desagradavel cheiro que na libata haviam de
exhalar os cadaveres em putrefacção, só cobertos de fa-
zendas, fetido que sem duvida devia incommodar os
habitantes, obtivemos a segumte laconica resposta:
«A libata e terra é d'elle, está no seu direito de chei-
rar mal!»
Muene Mungamba, o soba da localidade, tendo de-
clarado que as margens do Cueio eram por tal fórma
lodosas que seria impossivel transpol-as sem imdica-
Lodaçaes e lagoas 341
ção, decidiu-se vir em pessoa (depois de avultado pre-
sente, é claro), mostrar-nos a passagem mais conve-
niente.
Nada mais foi preciso para que, apenas transposto
o rio, nos atolassemos todos, gente e gado, sendo ne-
CAPADJI (cabra dos pantanos)
cessario puxar com corda a um e um os bois totalmente
enlodados!
Abandonámos n'este logar um outro homem, por
incapaz de caminhar.
542 De Angola á contra-costa
Foi por esta epocha que começou a apparecer, como
se disse, uma doença terrivel, que mais tarde havia de
arremessar muita gente para o sepulchro.
Começava por uns symptomas de cansaço, a que
logo se seguia magreza esqueletica, ligeiros tremores
e tendencia para a abstracção.
Chegados que eram ao acampamento os atacados,
sentavam-se e, indifferentes a tudo, ali passavam mui-
tas horas absortos.
Primeiro comiam, depois era-lhes isso diffcil, a fa-
diga crescia, augmentavam os tremores nervosos, a
posição vertical tornava-se intoleravel, sobrevinham
dejecções alvimas, logo suores frios, e no curto espaço
de cinco ou seis dias succumbiam!
Diverso foi o tratamento que lhes fizemos, mas a
tudo resistia a terrivel doença, que por vezes se mani-
festava, momentos antes da morte, por uma desorga-
nisação nervosa, que levava o mdividuo a ver os obje-
ctos, e querendo d'elles apoderar-se, errar o sitio onde
estavam.
Attribuimos este estado de cousas a uma sorte de
meningite cerebro-rachidiana, que teria a sua origem
na msolação, na fadiga, mau alimento e sobretudo no
habito de muitas das victimas trazerem a carga com
frequencia 4 cabeça, a ponto de lhes tirar o cabello, em
vez de a levarem alternadamente nos hombros para
melhor descanso.
Para alem do Cueio, o plateau alonga-se mais plano
e monotono, sem a menor depressão, como um mar
de areia resplandecente sob a acção do sol, algumas
vezes coberto de rasteiros capims, d'onde emergiam
Lodaçaes e lagoas 343
arvores nodosas e ennegrecidas pelo fumo das recentes
queimadas.
Proximo do rio Donga Abengue entrámos em co-
lossal floresta, deserta, sombria e enorme, cujo aspe-
cto fazia frio, apesar do mtenso calor que nos darde-
java.
Exa o muchito de Cajimballe, selvagem, bravio, pri-
mutivo, cujo amago emmaranhado nos suscitou, quando
espraiámos a vista por meio d'esses troncos, tetricos
pensamentos de fraqueza e isolamento.
Só o elephante consegue abrir passagem por entre
esses macissos arvoredos e espessos matagaes, e ali
vive isolado dos plamos que o cireumdam, zombando
dos esforços do homem, que não se atreve a transpor
os seus limites.
Pela tarde saímos delle, segumdo as pégadas de
dois elephantes, e viemos acampar junto de um rio.
Deixando as florestas, entrámos em planuras alaga-
das, onde serpeavam alguns riachos, cobertas de im-
tenso capim, e num ou outro ponto de bouquets de pe-
quenas arvores.
Aconteceu muitas vezes tomarmos de um salto ba-
nhos mvoluntarios, embora fossem constantes as pre-
cauções.
Por mais attento que se caminhe, guiando cuidado-
samente o boi-cavallo sobre o tapete extenso de relva,
a travessia das margens lodosas dos rios é sempre
perigosa, pois onde a agua é mais baixa e o terreno
parece mais duro, o animal, atolando-se de subito,
projecta o cavaleiro, após um salto de acrobata, de
costas em plena lama!
344 De Angola á contra-costa
Póde imaginar-se quão penoso deveria ser o traba-
lho de desatolar um cavalleiro, em solo escorregadio,
debaixo de sol tropical.
Um vento de les-sueste soprou rigissimo Glad O
dia 18 de agosto !, e similhando o simoun cobriu a
atmosphera de poeira e cinza. Grossos cumulos ao
mesmo tempo appareceram dos quadrantes meridio-
naes, e pela primeira vez, depois de quatro mezes, nos
achámos á sombra de uma nuvem.
As dificuldades encontradas pela expedição em
todo o trajecto desde o Cubango até este ponto, foram
taes, que de fórma alguma convem deixar de aqui no-
tar a impossibilidade de poder de futuro, em similhante
facha de terra, traçar-se camimho commercial entre
costas.
A zona plana que se comprehende entre o Cubango
e o Zambeze, e que o Lobale delimita pelo norte, fi-
cando pelo sul o Chobe, parece-nos de todo o ponto
Impropria, se não quasi impossivel, em parte do anno,
de ser cruzada de leste a oeste, com carregadores ou
animaes de qualquer genero.
O viajante que a ella se aventurar conte com mezes
de dissabor, no meio de embaraços de todo o genero; e
se, caminhando vagaroso, o surprehenderem as aguas,
fique na certeza que, embora longe do Zambeze, po-
derá muito bem deixar com a ossada a unica marca
da sua passagem ali!
pr.
1 E facto curioso e digno de notar-se, que a 20 de agosto de 1848
encontrou o major Serpa Pinto no Ninda, a leste d'este logar, um pheno-
meno em tudo similhante ao que citâmos.
Lodaçaes e lagoas 345
Não é facil descrever com precisão, sem enfastiar o
leitor, as tremendas difficuldades que devem deparar-
se a quem a estação pluviosa ahi surprehender.
Na companhia de numerosa comitiva, oppresso pela
fome que por toda essa terra reina, circumdado de agua
nas planuras, ou entre lodaçaes na proximidade dos
rios, envolto nas gramineas, batido pelas chuvas e ven-
tos da quadra das trovoadas, immerso emfim numa
atmosphera pestilencial, sem um palmo de terreno en-
xuto para abrigo, quem em tal meio estivesse, deve-
ria considerar-se feliz, se conseguisse escapar a tão
estranho curso de contratempos.
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N Ho o 1) hj hj o EN ii Ni) mo NE NA ON
PEIXE DO RIO CONJUMBIA-
Nós —que tudo haviamos calculado para transpor
esta região na melhor quadra, e, levando caçadores e
bois, íamos de certo modo prevenidos contra o maior
dos perigos, a fome, — ainda hoje recordâmos com
terror essa travessia angustiosa, onde cada jornada
nos deixou uma decepção, e cada anoitecer uma que-
bra de animo.
Ah! scenas d'estas experimentam-se, não se julgam,
- e quando o auctor insiste em descrevel-as, obtem como
recompensa quasi sempre um inopinado cerrar de pal-
pebras, preambulo de gostoso somno!
Depois o isolamento, a separação dos seres civilisa-
dos é como um açoite que traz a campo tetricos pen-
346 De Angola á contra-costa
samentos, e com elles vem o desanimo pouco de feição
com a audacia de que fatalmente deve achar-se reves-
tido quem joga a tacs emprezas. Ha muita gente que
diz não existir mais aborrecida solidão do que a das
grandes cidades, e similhante asserto só póde ter ori-
gem no facto de nunca se haverem achado numa zona
toda deserta do grande continente africano.
Na monotona Africa, nem os mesmos olhos podem
muitas vezes alliviar o espirito do triste considerar,
tão mvariavel é o que nos cerca; e no aborrecimento
profundo que envolve a mente como um véu, apenas
a dor consegue rasgar de longe em longe pequenis-
sima fenda por onde a luz da realidade penetra, fe-
rindo o intellecto. |
N'esta terra de tedio, à medida que o corpo enfra-
quece, o pensar, tendo na robustez deste a garantia,
vae por gradações fraquejando tambem, e, alterada
a necessaria coordenação de seu vibrar, modifica as
Imagens e noções que nós temos de tudo, por uma
maneira smgularissima.
Perde-se ou esquece-se, ao cabo de tanta injuria, o
amor 4 vida, desprende-se de nós a noção da propria
conservação, porque lá abandonados olvida-se o seu
proprio valor; a par disto afiguram-se-nos ridiculos
os mais nobres sentimentos, e, duvidando por fim do
successo da empreza em que nos achâmos empenha-
dos, cremo-nos illudidos, por todos ludibriados, con-
siderando com mágua n'aquillo que antes houveramos
die tazen
À monomania suicida acha aqui elementos para se
ageravar, e aquelle que mfelizmente d'ella se possuir,
Lodaçaes e lagoas 347
com facilidade topará argumento convincente para lhe
dar execução.
Açoitados pelo cyclone, percorremos rapidos como
a imaginação, pelas reflexões expendidas; e atraves-
sando a direito a extensa planura, entrámos em outra
floresta tambem deserta.
N'essa especie de labyrimtho teve a expedição que
deter-se largo tempo, a ffm de metter em frente ho-
mens que de machado em punho abrissem uma vereda
à caravana.
Antonio, incansavel perseguidor de quanto antilope
pastava em socego, não se detinha, e no desespero de
os não encontrar ao alcance da espmgarda, preferia o
partido de attrahil-os.
Assim, momentos depois de termos alcançado a orla
oriental da mata, quando, estirados à sombra de um
arvore, fumavamos em comprido cachimbo, contem-
plando reflexivos o céu africano, um estranho som nos
chegou aos ouvidos, fazendo lembrar uma gazella, que,
transviada, procurasse a mãe.
Não mediou muito tempo sem que uma denotação se
ouvisse e o clamor dos nossos evidenciasse presa re-
cente.
Dirigindo-nos para o logar da acção, vimos uma ga-
zella, que Antonio acabava de traiçoeiramente lJudi-
briar e ferir, e que, mirando-nos com seus grandes e
ternos olhos, no supremo arranco da agonia, parecia
lançar-nos uma derradeira censura por tão torpe pro-
ceder.
Simples tubo de canniço fendido de um lado, para
dar entrada a pedaço de folha de qualquer arvore, eis
348 De Angola á contra-costa
o instrumento de que Antonio se servia para attrahir
esses timidos animaes.
Jim seguida a uma marcha da floresta entrámos fe-
lizmente nos domimios e residencia de Muene Quitiaba,
regulo de uma tribu ba-iauma, que assim se chamam
os povos ribeirinhos do Cuando, apesar de confundidos
pelo norte com os amboellas, de quem se distimguem
no uso dos comprimentos, acompanhados de ruidosas
palmas, conforme o costume destes.
Differmdo no aspecto dos homens do sul, é, con-
forme julgámos, gente proxima aimda dos ba-nano.
Estavamos abeirados do caudaloso Cuando, cujas
varzeas alagadas, de 2 milhas por banda, só podem
transpor-se na confluencia do Quembo.
Muene Quitiaba, que disto nos preveniu, offereceu,
após um avultado presente, guias para nos conduzi-
rem ao ponto de passagem, prestando para isso as suas
canoas.
O disco do sol nascente, rubro, em meio de uma
atmosphera cacimbada, encontrou-nos, ao erguer-se,
Já em aprestos de partida.
A caminho, e mal nos approximámos do curso do
rio, comprehendemos o trabalho que nos estava des-
tinado.
De alem a terra eleva-se, e o Cuando, escostando-se
a ella, deslisa, mal consentindo varzea. Do nosso lado,
porém, um lençol de canniço se estendia até onde a
vista alcançava, não permittindo distinguir o limite da
margem.
Montando os bois-cavallos, entestámos sob a direc-
ção dos guias com a campina, sumindo-nos em breve
Lodaçaes e lagoas 349
por meio do emmaranhado arundo. Pouco a pouco o
terreno amollece, logo depois surge a agua, onde os
bois patinham. À meia milha já dava pelos joelhos
aos animaes, a tres quartos pelo ventre, mais ávante
cobria-lhes os peitos, fazendo nós e elles curso no hu-
mido fluido, rompendo a custo pelo denso cannavial.
MUENE CALURI
Tirado de um croquis
Por vezes uma depressão ou outra obriga os ani-
maes a movimentos irregulares, que ameaçam o equi-
librio dos cavaleiros; a agua dá-nos pelos joelhos, e,
estriando os membros inferiores, prosegue vagarosa
pelo effeito da osmose sobre a flanella.
O terreno baixa, a agua já chega á garupa; de su-
bito os bois começam a nadar, e, desequilibrando os
cavalleiros, atiram com elles em sentidos diversos!
350 De Angola á contra-costa
Uf! um banho mesperado, a que os guias respon-
dem erguendo os pannos á altura da cabeça e mos-
trando graciosamente duas fiadas de dentes brancos
como o jaspe!
Prosegumdo com agua pelos peitos, fomos andando
na extensão de 2 milhas, até que, abeirando-nos de
uma pequena ilha, apenas elevada 2 palmos acima do
nivel, ahi suspendemos, por nos acharmos na con-
fluencia dos rios.
O Quembo reune n'este logar as suas aguas ás do
Cuando, e olhando em redor mal poderiamos dizer
se estavamos na confluencia ou no meio de qualquer
d'elles.
Era um mar em volta da caravana, extenso e co-
berto de canniço, onde o leito do Cuando só se eviden-
ciava pelo movimento da agua para o sul. |
O rio propriamente tem agora TO a 80 metros de
largo; na quadra das chuvas o seu curso deverá ser
de 3 milhas, ou pouco menos, tornando-se então só
navegavel por canoas de grande tamanho.
Extenuados e tiritando, ali passámos tres eternas
horas, assistindo cuidadosos ao transporte do material,
à espera a todo o momento de ver abysmar-se para
sempre o exito dos nossos esforços, confiado aos es-
treitos esquifes de que os mdigenas se servem.
Depois chegou a vez do transporte do gado, que,
derivando rio abaixo, esteve em perigo de perder-se
por não poderem alguns escalar a encosta fronteira,
até que alfím se seguiram os tristes chefes, os quaes,
ensopados e famintos, transpozeram pelas tres horas
deste memoravel dia o rio Cuando!
Lodaçaes e lagoas Dl
Não podemos rigorosamente concluir se este rio
aflue ao Zambeze! ou ao Chobe; o que nos afiança-
ram, porém, os naturaes foi que o Cuando, antes de
afiluimr ao grande rio, estreita para passar debaixo (ou
entre?) grandes rochas, e alarga depois até ir desa-
guar n'elle.
Para o sul, alongam-se a perder de vista plainos
immensos, que nós almejavamos abandonar. Arvorada
a bandeira das quinas, acampou em redor a expedi-
ção n'esse sitio, onde nunca europeu estivera, e como
tivessemos comprado mantimentos, passou-se a noite
em galhofa junto das fogueiras. Uma densa floresta de
espinheiros veste as 20 milhas que distam do Cuando
ao rio Muesse, que a caravana atravessou sem descan-
sar, deixando n'ella o fato e uma parte da pelle.
Encontrámos aqui milho, de que nos refizemos para
as marchas futuras, pois que mais longe nos assegura-
ram não haver abundancia. O massango tende a des-
apparecer, porque a fraqueza das terras é tal que nem
tabaco dão, produzindo mantimento só nas varzeas dos
rios. Às differenças de longitude por nós encontradas
já montam a 24 milhas n'este meridiano, levando-nos
a crer que grandes differenças- existem para o diante.
Abalando do Muesse cortámos por meio de terras
aridas, ou mal arborisadas para les-nordeste, topando
ao cabo de 12 milhas com um rio.
1 De numerosos azimuths tomados d'este logar, segundo a direcção
indicada pelos indigenas, devia deprehender-se estar a confluencia no
Zambeze, e mesmo proximo de Litofe; não é esta, porém, uma indicação que
mereça confiança.
352 De Angola á contra-costa
“Era o Cuti, conhecido no Nano por Cussibi.
O grande trilho commercial do Bié sobre que estava-
mos prolonga-se pelo lado norte do dito rio, para n'esta
altura o cortar, dirigindo-se ao valle do Ninda.
Praçaram-no assim os bienos por saber a impossi-
bilidade em que se achariam, no tempo das aguas, de
transpor com cargas o curso alagado do Cuando e as
varzeas lamacentas do Curta.
Agora mesmo, no tempo da estiagem, o solo tremia
sob os nossos pés.
Apenas estariamos 3º ao sul de Quioco, e sem embar-
go, quão grande era a differença entre esta terra e
aquella onde ora nos achavamos, assim como entre a
região drenada pelo Congo e a alagada do Zambeze.
O Quioco — esse paiz magnifico, coberto de bos-
ques, sulcado de limpidos regatos, varrido por ventos
frescos; abundante em ferro, que por toda a parte se
encontra em limonite e pepitas, no qual os mdigenas
trabalham com muita habilidade; com uma flora que
sustenta milhões de republicas de abelhas, origem da
principal riqueza do paiz, a cera e o mel; cujos habi-
tantes, altos e esbeltos, nos haviam recebido affavel-
mente — era aqui substituido por uma campina rasa,
alagada, triste, onde os homens suspeitosos nada ti-
nham que nos offerecer, e a natureza, como zombando
Vaquelles para quem a comida e a aguardente consti-
tuia o thema unico dos seus pensamentos e sonhos, lhes
mostra invejaveis volumes de carne, sobre as rapidas
pernas das zebras e gazellas.
Existe ainda hoje no vulgo, e mesmo entre pessoas
distmctas, que mais ou menos conhecem a Africa por
Lodaçaes e lagoas 355
della ouvirem fallar, a idéa de que é em grande parte
“constituida por um paiz plamo, arido, areioso e mono-
tono, onde o viajante, escorrendo sob um sol abraza-
dor, se afadiga a marchar em terreno movediço.
E esta idéa, quando apurada para comparar com
as descripções feitas por muitos viajantes do aspecto
das terras por elles percorridas, onde figuram zonas
montanhosas, cordilheiras correndo parallelamente aos
meridianos, serras como Kilimandjaro e o Kenia, con-
trasta por tal maneira com ellas, que tem sido em
geral condemnada.
Ora é isso que mmteiramente se não póde fazer em
rigor, e esses senhores, que desgostosos devem ter fi-
cado ao dissipar-se-lhes uma idéa querida, que tinham
phantasiado ácerca das luctas e soffrimentos experi-
mentados pelos viajantes em Africa, devem saber que
alguma cousa ha com effeito de verdade, pelo menos
quanto aos planos e areias, e que é no Lobale onde
elles podem dar-se o prazer de encontrar a realisação
dos seus pensamentos.
Este enorme continente, de 60.000:000 kilometros
quadrados de superficie, guarda cuidadoso um variado
menu de paizagem, onde golpes de vista pittorescos se
alternam com a decepção imopimada de quadros de
tristeza, proprios a satisfazer todos os gostos de touris-
te, e onde, se é facil encontrar a montanha de impossi-
vel accesso, não menos o é descobrir a planura, que
esteril umas vezes, alagada outras, confirma as idéas
citadas.
Foi por estas rasões que a bacia do alto Zambeze
muito nos impressionou ao descer das vertentes dos
23
994 De Angola á contra-costa
plateaus do oeste, e que n'essa terra sem pedras (no
dizer dos nossos companheiros) todos os soffrimentos '
augmentaram. |
Paiz de franzina vegetação a prmcipio, torna-se para
alem do Cuti, como é de uso modernamente dizer,
park-lie.
CCEE O XI
NO VALLE DE BARÓTZE
Lobale, is a land ofmorasses and dangerous bogs
in which incautious wayfarers often perish.
CooLEY. — Inner Africa Laid open.
A lua de agosto e os nossos receios — Idéa geral sobre a distribuição
das chuvas na Africa tropical do sul — O cloud-ring e o seu movimento
Retardamento na marcha pelo oriente —O Iimite sul e
as quatro estações — As marchas do Cuti e Muene Lionze — Os acampa-
mentos de Silva Porto—Os man-bunda e o elephante — Curiosidades —
O Ninda e uma sepultura — Aspecto pittoresco do valle — O ôco e o seu
aroma — À caça e um obito Perda de companheiro— Gnú, cabra e n'caca
— O silencio da noite— Calungo-lungo e os lumnas— 'Typo destes, e
pouca importancia das entrevistas africanas — O paiz é um parque; abun-
para o meio dia
dancia dos animaes n'elle — Os cães e seu prestimo na caça do gnú— O
alagamento crescente da terra — Ausencia do tabaco e presença da pal-
meira — Guia feiticeiro e adivinhação inesperada — Os ba-nhengo ladrões
— Muene Munda e os seus dotes physicos -- Um capote de intestinos de
clephante— A musica e um baile de doze horas — Impressão produzida
pelas beldades da terra nos auctores d'estas linhas — À caça e a quadra
da creação — O acampamento pela noite — Multiplicam-se as lagoas — A
- expedição emfim attinge o Zambeze.
INDIGENA IÁUMA
Segundo photographia
A lua nova de agosto passára sem chuva e os nos-
sos receios dimmuiram, pela certeza de, pelo menos,
termos mais um mez de estiagem por aquellas terras;
circumstancia esta de alta importancia na execução
do nosso plano, pois, desejando cortar n'uma diagonal
do Cuando para a confluencia do Lungué-Bungo com
o Liambae, pensavamos (caso nos surprehendesse) fi-
car envolvidos no Lobale em meio de lagoas e panta-
nos, que talvez imnhibissem a caravana de proseguir.
398 De Angola á contra-costa
E a final eram precipitados os nossos receios, longe
amda vinha a quadra em que fariam o seu appareci-
mento.
Desconhecendo a epocha em que prmecipiam as tro-
voadas por aquella região, ou melhor, faltando-nos so-
bre isso mformações exactas, andavam nossas suspei-
tas á revelia, e, ageravando-se agora pela lembrança
da immobihidade, traziam-nos em constante sobresalto,
à espera das primeiras tempestades n'uma epocha em
que nunca ali se realisam. ,
Poucos são ainda hoje os logares em Africa onde
se tenham feito exactas observações sobre esta ordem
de phenomenos. Ha apenas indicios vagos aqui e alem,
provenientes do trabalho de viajantes, que, pelo cara-
cter de mobilidade de suas missões, mal podem para
determinado ponto coordenar d'ellas uma ou duas du-
nlas. E por esse motivo é tambem difficil ao que se
aventura pelo interior, corrigir pequenas diferenças
nas epochas mais aproveitaveis para a travessia d'esta
ou V'aquella zona.
Achando-nos nas mesmas circumstancias, torna-se
impossivel sobre o assumpto e em limitadas linhas lan-
car segura luz; todavia, podendo a este respeito dizer
alguma cousa em face da nossa pratica, é Justo que o
conisignemos aqui.
Convem primeiro lembrar que a Africa tropical do
sul, cercada ao oeste, leste e meio dia por oceanos
que pela evaporação lhe devem fornecer copiosissmas
chuvas, é varrida por ventos que, embora no mar te-
nham uma directriz fixa, como o sueste do Indico e o
su-sudoeste do golfo de Guiné, variam um pouco na
No Valle de Barótze 359
terra firme, com o movimento do sol entre o equador
e o tropico, resultando que aquelles principios, em vez
de seguirem leis geraes e mvariaveis como era de es-
perar, se modifiquem ás vezes frisantemente e escapem
à rigorosa subordinação que tinhamos na idéa impor-
lhes.
As chuvas da Africa imtertropical do sul regulam
pelo movimento pendular da verticalidade do sol so-
bre os diversos pontos do continente, subordinadas
amda ao sopro constante das monções de um e outro
lado. D'estes dois factores combinados, porém, procede
a nosso ver, para a zona nublosa equatorial (cloud-
ring), um movimento especialissimo, cuja noção ali
fica esboçada.
Se. compulsando as narrativas dos viajantes africa-
nos, procedessemos a compilação rigorosa, aliás im-
admissivel nos limites de um capitulo, achariamos que
no Chinchonxo e no Congo começa a chuva em primci-
pios de setembro: que no Cuango as tivemos em nossa
primitiva viagem em fins de agosto; que na costa de
Angola começaram ellas nos primeiros dias do dito
mez de setembro; que no Manuyema são em outubro,
bem como no Bangucolo e nos fins d'este mez no alto
Zambeze, no Aroangua, e amda em Zanzibar, para em
novembro apparecerem pela terra que medeia entre o
Nyassa e a costa, caindo tambem n'esta mesma qua-
dra em Moçambique.
De tudo isto parece inferir-se que a linha que de-
limita pelo sul (se assim nos é hcito exprimir) a facha
nublada da Africa tropico-meridional, e que nos me-
zes de junho, julho e agosto se conserva estacionaria
360 De Angola á contra-costa
à beira do parallelo de 4º sul, só começa a mover-se
com a proximidade do equinocio do outono a cami-
nho do meio dia, não conservando a perpendiculari-
dade ao meridiano, mas imclinando-se e proseguindo
parallelamente áquella que vae de Benguella á ilha
de Zanzibar.
Esta direcção faz adiantar a parte occidental, do
que resulta o caso notado em toda a metade de oeste
do continente, se não na oriental tambem, de virem
pelo noroeste as primeiras trovoadas de setembro, cor-
roborando um facto assás conhecido, e que observámos
nas indicações dos viajantes, a saber: que para iguaes
latitudes numa e outra costa da terra africana, as chu-
vas apparecem mais tarde a leste do que no oeste, e
do mesmo modo a meio do continente ellas se verifi-
cam n'uma epocha mtermedia ou proxima, onde pre-
cisamente a igualdade da declinação e latitude marca
o começo das primeiras tempestades, e grandes quédas
de agua.
Este retardamento de marcha pelo oriente, segundo
vemos, se póde ter origem nos caracteres physicos do
continente, não deixa comtudo de 17 buscar uma causa
no rumo dos ventos remantes e sua mfluencia, encon-
trando muito natural explicação no esforço opposto do
sueste do Indico, que, invadindo a superficie da terra
negra, se lhe oppõe ao camimhar, impellindo-a para o
quadrante do occaso do sol, bem como na abundancia
de vapor que os ventos do sul do Atlantico lhe enviam
de ponto proximo, preparando-lhe ao mesmo tempo a
condensação pela baixa da temperatura nas terras ele-
vadas.
No Valle de Barótze 361
Então desencadeiam-se os elementos, constituindo
a pequena estação chuvosa, que segue immterrupta-
mente até começos de dezembro, e pouco a pouco a
facha nublosa, alastrando por toda a parte, desde o
occidente até ao oriente, desfaz-se em catadupas, que
a principio sempre trovoadas do noroeste produzem e
depois formam pela banda do sueste, donde nas gran-
des chuvas sopraram constantemente as mais terriveis
tempestades.
Não é facil acertar aqui, nem ha mesmo elementos
sufficientes para isso, com a latitude attingida em seu
movimento para o meio dia pela zona nublosa equato-
rial atravez do continente, sob a influencia do sol; tudo
leva a crer porém que, ao menos na costa de oeste, ella
não vae muito longe do parallelo austral de 12º ou 13º,
pois, como de sobra está conhecido, as chuvas são Ir-
regulares ou raras pela latitude de Mossamedes, muito
para o sul mesmo, e até para o interior no Cubango
porno” e 18”.
Em resumo, póde dizer-se, a fim de termimar sob
ponto de vista um pouco generico, porquanto para o
oriente as cousas se retardam de algum modo, que,
sendo quatro as estações por aqui, duas de estiagem e
duas de chuva, se acham approximadamente distribui
das da seguinte fórma:
1.º Pequena estação das chuvas, aquella que come-
ca com a passagem do sol no zenith, quando este vem
do tropico de cancer.
2.º Pequena estação de estiagem, a que tem logar
quando o astro do dia descreve o tropico de capricor-
nio.
362 De Angola á contra-costa
3.º Grande estação das chuvas, que principia com
a passagem do sol no zemth, quando se dirige do tro-
pico de capricornio.
4.º Grande estação da seeca, a que tem logar quan-
do o sol se avizinha do tropico de cancer.
E aqui se poderá tambem acrescentar, que, se mais
cuidadosamente houveramos meditado todas estas cir-
cumstancias, não só poupariamos o tempo que levá-
mos a reflectir n'esse problema de importancia pra-
tica, mas teriamos evitado os estranhos sobresaltos de
que fomos victimas, esperando logo em agosto as chu-
vas no Zambeze e terras adjacentes.
O rio Cuti é aproveitado pelos mdigenas para a na-
vegação, vendo-se constantemente numerosas canoas
subindo e descendo carregadas de generos e de gente,
de proveniencias diversas.
Os basáuma são habeis marinheiros, assim como
as mulheres, que por vezes observámos de vara na
mão, dirigindo as embarcações.
As varzeas d'este curso de agua, embora seccas
e endurecidas pela superficie, acham-se inferiormente
n'um tal estado de lodosa consistencia, oscillando sob
OS Nossos passos, que só conseguimos que o gado trans-
pozesse o rio com o auxilio dos mdigenas. O sobeto da
localidade, um desses transfugas que, para descredito
nosso, se apresentam não raras vezes como portu-
guezes aos viajantes, imtitulava-se Muene Lionze, e
era mais nem menos de que um desertor, o onze
de qualquer companhia de caçadores, que, evadin-
do-se de Benguella com a propria arma, para ah
viera estabelecer-se. Exigia cartuchame Snider com
No Valle de Barótze 363
tal atrevimento, que houvemos por melhor offerecer-
lhe com uma cabaça de pombé na physionomia, a fim
de o conter nos limites do respeito que se obstinav:
em esquecer, lamentando que não fosse o nosso cami-
nho para a costa de oeste, a ffm de o levar de presente
à auctoridade.
Allegava em defeza da sua insistencia o facto de
lhe ter Serpa Pimto dado muito cartuchame, do que
tambem duvidámos, por sabermos quanto elle é cioso
e economico de similhante genero de artigos, tão ra-
ros no mato.
Depois de atravessarmos uma longa doresta, onde
a natureza siliciosa do terreno se accentua em tractos
de areia, transpozemos o Chicolui no meio de uma nu-
vem de lepidopteros de variegadas cores, encontrando
n'este local um recente acampamento de Silva Porto.
O ousado sertanejo devia mez e meio antes ter passado
por ali, em viagem do Lui para o Bié.
Estivemos um dia todo junto ao rio, em consequen-
cia dos esforços empregados para o atravessar com o
gado.
Uma comitiva de man-bunda (caçadores) appareceu
ali, carregada de carne secca de elephante, e pela
primeira vez em nossa vida tivemos occasião de ver
a descoberto os musculos do enorme pachyderme, que
em verdade se os houveramos encontrado dispersos
pelo chão, mais depressa tomariamos por pedaços de
madeira ennegrecida pelo fumo, do que parte inte-
grante de qualquer organismo animal.
Divagavam estes homens havia mezes pelas selvas,
comendo mel ou carne, e tão nedios e luzidios se acha
E
364 De Angola à contra-costa
vam, que começámos soffregos a appetecer essa cho-
ruda alimentação!
Contaram elles que, tempo antes, um dos seus com-
panheiros fôra atacado por grande elephante, cujo, col-
locando-o cuidadosamente sob uma das patas, 'o havia
reduzido ali ás tristes proporções de enorme pastelão!
O mais notavel, porém, foi que o cruel proboscida,
depois de finda a triste tarefa, não querendo que o
mfeliz corresse os perigos talvez da imsolação, diri-
oju-se cauteloso à arvore proxima, e, esgalhando os
ramos que lhe aprouve, cobriu delicadamente os restos
informes da victima.
«São muito curiosos os elephantes!» replicou logo
um interlocutor, descrevendo enthusiasmado como um
destes animaes, em sua presença, colhêra um homem
com a tromba, e o entalára de ventre para o ar, em
orosso tronco previamente rachado, abalando no meio
da mais galhofeira alegria!
Que original!...
O Combulé, rio que adiante deslisa no meio de
branca e solta areia, é o divisorio das terras dos ba-
iáuma e dos ba-róze, pelos bienos denominados Iui-
nas.
E deserto aqui o terreno, coberto de matas, onde
ha muito mel n'esta quadra, vendo-se por toda a parte
gente a chupar nos dedos.
Para attimgir as nascentes do Ninda, tivemos de
atravessar nova floresta fechada, em que uma sub-
vegetação de mupas, agora despidas de folhas, nos
fustigava constantemente com as rigidas varas, dei-
xando-nos em deploravel estado.
No Valle de Barótze 365
(Quando chegámos áquelle rio, deparou-se-nos um
espectaculo commovente, especie de visão mesperada
em meio do deserto, que nos levou o espirito a consi-
derações de ordem triste, entibiando-nos o animo por
aleuns momentos, e recordando-nos como podem ter-
minar as mais arrojadas emprezas humanas.
A ZEBRA
Era a cruz symbolica erguida na cabeceira de uma
modesta sepultura, marcando o logar de descanso de
compatriota nosso, que fôra victima de mal ferido bu-
falo. |
O valle do Nimda é extremamente pittoresco e odo-
rifero n'esta epocha, pois abunda n'elle uma arvore
que os naturaes chamam Ôco, cujas flores, espalhadas
pelo vento, atapetam o solo, rescendendo d'ellas deli-
cioso aroma.
mm
566 De Angola á contra-costa
Serpeando em larga varzea de capim, na qual se
apascentam bufalos, gnús e zebras, ladeado por dois
renques de fechada mata, onde o elephante e o leão
se acoutam, o alegre valle, com seu risonho aspecto,
desannuviára tristezas, parecendo levar-nos para a
terra da promissão.
Ao acampar do primeiro dia demos em terra com
uma formosa palanca, Hypp. equinus., cujo desenho
apresentâmos.
Sepultámos ahi uma pequenita que morreu ao nas-
cer, succumbindo tambem na segunda marcha um car-
regador áquella sorte de meningite de que já tivemos
ensejo de fallar.
Continuando a caravana em perseguição da caça,
caíram um enú e uma cabra de agua, bem como uma
especie de tartaruga, Mimydes? e um n'caca, Manias tem-
mincki.
Continuam as matas desertas, dommmio só de ele-
phantes, macacos, hyenas e girafas, de que julgâmos :
ter visto pégadas.
Silencio sepulchral envolve pela noite a extensa
zona, onde vagueiam cautelosos e esfarmados todos
esses habitadores dos bosques em procura de alimen-
to. Apenas de quando em quando o pio de desconhe-
cida ave nocturna, com dois assobios e um trilo fimal,
quebra o profundo socego d'estas solidões, a que por
vezes respondem os gritos do maçarico, ao elevar-se
estremunhado da margem do rio, provando sem du-
vida que algum quadrupede se approximára da agua.
O vento abrandou, e apenas como lenitivo deste som-
brio quadro, se não para entristecer com penosas re-
No Valle de Barótze 361
cordações, tudo branqueia de prata a brilhante lua
de agosto.
Luctam de esforços o silencio e a solidão, e em-
quanto a sombra da meia noite de pé e aprumada no
ponto mais distante do dia caminha pela superficie da
terra á cata de uma luz que jamais logra encontrar,
a imaginação assombreada por tetricos pensamentos
assalta o inquieto espirito, revolve-o, escurecendo-o
tambem.
E nós, erguendo-nos, miravamos em volta os vultos
tisnados dos nossos companheiros de imfortunio, e ao
vel-os pacificamente adormecidos, tendo apenas no cre-
pitar das fogueiras uma barreira ás famintas guelas
que de longe os appetecem, reflectiamos na miseria da
nossa situação, para depois, contemplando o astro da
noite, dirigirmos pungente saudade para a distancia
ainda a percorrer.
O trilho é feito ao longo do rio; a caravana, anciosa
por chegar ao Zambeze, caminha rapida por elle.
Nem um ser humano se encontrou em todo o traje-
cto do Nimda, a não ser na proximidade da confiuen-
cia com o Nhengo, onde vimos as primeiras habita-
ções.
Muene Calungo-lungo era regulo n'esses sitios, cu-
Jos povoadores nos pareceram um mixto de man-bun-
da e barótze, de mais feia catadura que os encontra-
dos até al, differindo muito os seus comprimentos,
feitos n'um aperto reciproco das duas mãos, dos que
usam os ba-iáuma, que se limitam a um punhado de
terra arremettido ao peito, a que se seguem palmas
compassadas.
aa rag
DE RO A qt pan e E a
f
368 De Angola á contra-costa
Pela tarde passou um bando de lumas pelo nosso
campo, com as suas pelles ao hombro, penteados de
tranças com contarias e pennas, manilhas de cobre,
longas zagaias de madeira e ponta de ferro, amplos
escudos, lembrando os dos landins, côr escura, aspe-
cto robusto, o todo emfim attrahente. Embora nasci-
dos e creados em região plana e pantanosa, onde, por
varias vezes temos dito, o homem deve fatalmente
soffrer pela influencia miasmatica, perdendo em vigor
a sua constituição physica e mental pelo envenena-
mento palustre; os que observámos constituiam uma
perfeita excepção.
Viam-se homens velhos e moços, e em nenhuns
elles notâmos essa pallidez, depressão corporea, ru-
gas e traços de prematura velhice, que formam o facies
typico das organisações arrumadas; ao contrario, via-
mol-os todos robustos, denotando excepcional audacia
e decisão.
Calungo-lungo visitou-nos; abstemo-nos de descre-
ver essa scena, porque as entrevistas africanas têem
tal similhança, que a historia de uma basta para toda
a vida de homem curioso.
Sempre o mesmo quadro!
E ainda é tão ridicula a gravidade d'esses encon-
tros, que ás vezes o mais absurdo mcidente quebra
de modo pueril; são tão stultas as ceremonias e mter-
minaveis os speeches, em que os negros, propensos para
os circumloquios, exibem a sua altiloquencia em esti-
radas orações, tratando em geral de todos os assum-
ptos, menos d'aquelle para cujo fm se reuniram, que
estremecemos com a idéa de ter agora de as explicar,
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No Valle de Barótze 369
cansados, como estamos das vezes que fomos constran-
gidos a supportal-as.
Aguardemos a nossa chegada à Garanganja, onde
o leitor ficará ao facto do que se passa nessas aborre-
cidas visitas.
Partindo de Cubango-lungo, démos ingresso nova-
mente n'uma zona deserta, e, passada uma noite junto
ao rio Colombeu, deixámos no dia immediato o trilho
commercial do Genji, 3 milhas adiante d'aquelle rio,
seguindo ao nordeste pela immensa campina, que, aqui
como em parte alguma, se assimilha a um longo par-
que.
Difficil nos é agora caminhar desembaraçados, por
causa dos numerosos desvios a que constantemente
obriga a busca da caça. Em roda da caravana saltam
os gnús, as zebras e antilopes em tal quantidade, que
a muito custo conseguimos ficar indifferentes. Às pe-
ripecias succedem-se. Aqui Antonio dá em terra com
elegante Adenota lechee, e persegumdo uma récua de
zebras, fere duas, emquanto da parte opposta um de
nós vara grande gnú, e o outro, exasperado, solta al-
luvião de imprecações por lhe ter a arma feito chap
quando deu ao gatilho!
Os cães prestam excellente serviço, sendo conve-
niente a sua companhia a todos os viajantes n'estas
paragens, sobretudo para a caça e perseguição do
ultimo dos bichos citados.
Quando ouve o latido do cão junto a si, este animal,
embora levado pela mais vertiginosa das carreiras,
suspende, e virando-se para elle, esforça-se em ata-
cal-o, esquecendo a presença do caçador, que em taes
24
570 De Angola á contra-costa
circumstancias póde perfeitamente atirar-lhe á queima
roupa.
Com frequencia tivemos occasião de assistir a sce-
nas d'estas, e raras vezes, quando era pequena a dis-
tancia que nos separava, deixou Antonio de abater um
dos ditos quadrupedes.
O terreno torna-se progressivamente alagadiço, an-
dando a caravana em marcha por agua desde a mar-
gem direita do Lia-Mucussi, onde se enloda a cada
passo. Junto a este rio encontrámos umas miseraveis
senzallas de ba-nhengo, que, ao avistarem-nos, abala-
ram. As mulheres sobretudo, ao presentir-nos, fugiam,
parecendo uma nuvem de passaros, só deixando si-
onaes da sua presença pelas pégadas no movediço la-
maçal.
O solo é tão pouco proprio para a cultura, que se.
vêem os naturaes na necessidade de cavar grandes
vallas em volta do recinto da plantação, accumulando
a terra na altura de 50 centimetros, para que a semen-
te não apodreça mergulhada n'agua. Apenas produz
o Pimisetum e nunca o tabaco, que não se encontra
desta banda do valle do Zambeze, onde por contraste
começámos a notar desde o Nimda numerosas Hyphoe-
nes e uma palmeira rasteira, sorte de faplna, dispersa
pela campina. Por causa da fraqueza da terra que
duas ou tres sementeiras seguidas deixam extenuada,
são os indigenas obrigados a mudar com frequencia o
logar das suas habitações, procurando no solo virgem
a riqueza de que precisam.
Dois man-bunda, um dos quaes é feiticeiro, nos ser-
vem de guias por meio d'esses atoleiros, até à libata
No Valle de Barótze E
do regulo Muene Munda; o nosso guia entrega-se a
sortilegios, passando longas horas da noite em encan-
tamentos e adivinhações com a sua cabaça de artigos
a 18so apropriados.
N'um logar chamado (Quiúla deu-se com elle certo
caso que nos deixou vexados aos olhos dos nossos, ar-
teigando-se ainda uma vez em seu espirito a idéa de
que os mgangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos por meio das planuras, pas-
sando proximos de plantações ou senzallas desertas de
ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o n'ganga, de
que urgia tomar toda a cautela com os povoadores,
porque, sendo pelo geral hostis, como quasi todos os
ba-lobale, eram sobretudo e muito especialmente con-
summados ladrões!
Esta declaração na bôca de um preto do mato não
nos mereceu grande confiança, pois o gentio, por andar
sempre fugido, parecia extremamente timido, e pouco
disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assmm as suas mdicações, alvitrámos-
lhe um outro modo de ganhar a vida, pela improficui-
dade d'aquelle; recommendação que ouviu attento, e
depois afastou-se para o mato, procedendo de cabaça
na mão a outras adivinhações, ás quaes de longe as-
sistiamos, quando por vezes nos davamos ao trabalho
de observal-o.
Approximava-se o sol do horisonte, é tinhamos aca-
bado de jantar, quando o nosso homem de novo se
apresentou, encontrando-nos então em melhor dispo-
sição que de manhã.
DL, De Angola á contra-costa
Vinha satisfeito e com ar de quem decidira questão
Importante, após as profundas locubrações a que se
entregára.
Chamado o interprete Pedro, rapaz da nossa comi-
tiva, acocoraram-se os dois, começando o nº ganga a fal-
lar. A complicada oração prolongou-se por um bom
quarto de hora.
— Então, que disse elle? inquirimos nós a Pedro,
esperando alguma revelação estupenda.
— Por ora, respondeu este muito fleugmaticamente,
ainda não disse nada!
Escusado será descrever aqui o nosso espanto pe-
rante similhante facto, que só julgavamos apanagio
dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos, esperá-
mos se dignasse proferir alguma cousa.
Então?
TPornando a tomar a palavra, arengou longo tem-
po o quer que fosse. Pedro nos explicou ser uma es-
pecie de fabula, relativa a scenas passadas entre cor-
pulento elephante que se não arreceára das ameaças de
um grupo de bissonde (formigas guerreiras), as quaes,
colhendo-o a dormir pela noite, se lhe enfiaram pela
tromba, levando o animal no desespero a suicidar-se,
batendo com ella pelas arvores.
Additou outra, concernente à entrada dos ratos pela
noite nos celleiros, etc., que, por mal mterpretada, fi-
cámos sem comprehender o que elle desejava e se nos
eram applicaveis similhantes narrativas, até que dis-
postos a deixar de escutal-o, íamos levantar a sessão,
“quando o mysterioso interlocutor se decidiu por fim
a explicar-se.
No Valle de Barótze Sta
Queria primeiro que tudo quatro jardas de fazenda,
como pagamento do serviço que se propunha fazer-
nos; logo depois de recebidas, declarou que acabava
de adivinhar que dentro de limitadissimo espaço, quan-
do muito de dois sóes, seriamos infallivelmente rou-
bados pelos naturaes da terra onde estavamos.
GF
A GP
CABEÇA DE PALANCA
Segundo um croquis
Até aqui não offerece originalidade a historia, nem
credito deviam valer as indicações do negro; o certo,
porém, é que n'essa noite ás duas horas eramos effe-
ctivamente roubados, sendo para lamentar que elle
nganga não tivesse aproveitado para si a parte que
lhe cabia da revelação, pois foi tambem uma das vi-
ctimas, perdendo o proprio machado!
AL De Angola á contra-costa
Introduzindo-se de subito no acampamento, os ba-
nhengo furtaram-nos uma arma, uma espada, os pan-
nos de um homem e o machado; caso estupendo, e que
jamais em nossa viagem se tornou a repetir, pois não
ousam os indigenas penetrar nos acampamentos pela
noite, ficando os nossos convencidos que nada ha como
um nv'ganga para adivinhar, sendo tambem certo não
haver quem como elle fique tão tranquillo quando o
expoliam! |
Prosegumdo em cynegetica excursão camimhava a
comitiva despreoceupada das tenebrosas idéas da fome
entre alluviões de antilopes, esperando a todo o mo-
mento soborear a carne que por todos os lados se of-
ferecia como estimulo appetitoso, até que chegámos à
habitação de Muene Munda, sobeto man-bunda, que
outr'ora residiu em Colombeu, d'onde se retirou por
serem fracas e pouco productivas as terras que lhe
circumdavam a aldeia.
Muene Munda é em extremo feio. Physicamente des-
favorecido pela natureza, possue, entre varios defeitos
que o tornam repellente, uma bronchite chronica, com
a qual anda em permanente lucta, e que o leva a m-
terromper a conversação com repetidos ataques de
tosse!
— Já vos esperava, disse-nos elle radiante de ale-
gria e dispersando perdigotos em todos os sentidos;
ao mesmo tempo contemplava os nossos fardos de fa-
zenda e o seu origimal capote de intestino de elephante
surrado e batido, com ar de quem pensava que emfim
se fa emancipar da suja companhia do sordido manto,
curioso sobretudo pelos numerosos exemplares d'essa
No Valle de Barótze . 315
fauna minuscula e cosmopolita, que se apostou em ser
companheira do homem, logo que esqueça ou desco-
nheça a hygienica necessidade da ablução!
As mulheres d'esta aldeia gostam muito da musica,
mas principalmente da dansa. Possuem um talento es-
tranho na apreciação da harmonia, executando córos
com proficiencia notavel, e sobretudo desusada ex-
tensão.
— Os seus mstrumentos musicaes são em absoluto ru-
dimentares, reduzimdo-se a marimba e tambor, mas
os trechos de canto agradaveis e suaves, mspirando,
quando ouvidos pelo socego da noite, uma emoção, a
que estavamos longe de nos suppor accessiveis no
amago dos sertões africanos.
No furioso afan com que se entregam aos exerci-
cios choreographicos, excedem porém toda a expecta-
tiva. |
Pelas sete horas da noite deram ingresso no acam-
pamento as beldades da terra, para dansar em nossa
honra, e às sete e meia os primeiros rufos annuncia-
ram o começo da scena, em vasto circulo junto das
tendas.
Os traços geraes das mulheres d'ali não imprimem
repulsa, e o seu aspecto, embora isento de encantos e
pouco digno de aturada contemplação, perturba a paz
dos sentidos, quando vivificado pelas fórmas da joven-
tude!
Ao vel-as menear-se com donaire ao compasso das
palmas e do canto, lançando por momentos para os
brancos um olhar de maravilhada e suspeitosa curiosi-
dade, os tristes auctores destas linhas, acocorados
376 De Angola á contra-costa
Junto das tendas, esqueceram por mais de uma vez
o rumo a que lhe ficava Moçambique!
Pelas sete e meia, dissemos nós, começou a dansa,
a qual só concluiu ás sete da manhã.
Durante doze horas consecutivas cantaram e dan-
saram essas filhas de Eva, com o intuito de dar uma
prova da sua alta consideração pelas nossas humildes
pessoas, prova que, por demasiado extensa, não po-
démos acolher acordados, mas a que nem por isso
fomos menos sensiveis depois, reflectindo na pertina-
cia e resistencia que é mister para supportar uma
noite inteira de tal exercicio. |
Traduzido o nosso reconhecimento em lenços de
cores e contarias ás gentis da terra, envolvemos o
catarrho de Muene Munda n'um panno, promettendo-
lhe que na volta seriamos mais generosos, e tomando
de novo o caminho das campinas alagadas, deixímol-o
pavonear-se entre os seus.
Por meio dos canniçaes tivemos durante o dia de
fazer as mais estranhas voltas, para tornear os gran-
des alagamentos que cobriam a superficie do solo, to-
mando por vezes banhos mvoluntarios; e atolando-nos
aqui para mais adiante nos levantarmos, fomos assim
dirigindo a nossa comitiva pelas tristes terras dos ba-
lobale.
Junto á lagoa Lissale-ia-Muringa vimos abundancia
de caça, fazendo-se larga colheita de varios animaes,
figurando entre elles duas formosas zebras, que foram
acto continuo devoradas.
É esta a quadra da creação, principalmente para
enús, palancas e outros antilopes, andando as femeas
No Valle de Barótze TA
com os filhinhos ou proximo a tel-os, de maneira
que são ellas quasi sempre as victimas da persegui-
ção dos caçadores.
(Quem observasse pela noite n'esse acampamento,
Iluminados pela luz avermelhada das fogueiras, de-
zenas de homens de facas em punho e de aspecto pa-
HOMEM DO LOBALE
Segundo um croquis
tibular, rodando as peças de caça, extrahindo aqui as
visceras de uma zebra, e esvasiando-as por movimen-
tos de braço, à moda de quem mede fitas, esfolando
alem um gnú, cuja carcassa pouco a pouco emerge do
negro envolucro, disputando entre si a cauda ou as
mãos, e quasi esfaqueando-se na divisão da pelle; mais
Julgaria estar entre canmibaes, do que entre homens
ao serviço da causa da sciencia e dirigidos por euro-
peus!
378 De Angola á contra-costa
Nós mesmos, de ha muito habituados a estas scenas,
quando a meio d'este movimento attentavamos nos
actos dos nossos companheiros, e eramos testemunhas
da ancia selvagem com que estes esbrugavam a apo-
physe de um femur, e aquelle devorava sofrego os
tendões agarrados a uma tibia, não podiamos deixar de
reflectir quanto o homem se rebaixa ao nivel da ani-
malidade sempre que a falta de recursos o obriga à
lucta para alimentar-se; e quanto o mfeliz perde da
superioridade, e se apresenta aos olhos do mvestiga-
dor como o mais vil e despresivel dos irracionaes.
Á medida que do Zambeze nos íamos approximan-
do, as cousas peoravam.
Não era já o simples alagamento do solo num ou
n'outro ponto, mas lagoas que se alongavam em todos
os rumos da agulha, e que timhamos de atravessar com
agua pela emtura.
À caravana, oppressa de cansaço e sob um sol de
queimar, que esses atoleiros recoze, e dos quaes ao me-
nor movimento se exhalam gazes envenenadores para
as mais robustas organisações, continuou ainda assim
para o nordeste, e transpondo lamas, derribando gra-
mineas, propunha-se attingir o grande rio na sua con-
fluencia com o Lungué-Bungo.
Pouco a pouco, porém, tudo se aggravou, e adiante
do Malauca fechou-nos pelo oriente a passagem uma
linha de pantanos a começar na lagoa Icanhocando,
que se tornou impenetravel.
Arquejantes e esbaforidos no meio d'esses matagaes,
e dando a Satanaz tão rude trabalho, ora desatolava-
mos os bois, ora tinhamos de safar dois homens enter-
No Valle de Barótze 349
rados com as respectivas cargas, ora mopinadamente,
faltando o pé aos bois-cavallos, batiamos com o corpo
em cheio na agua! D'ahi para diante foi mister cortar
ao norte, e volvendo mais longe ao oeste, por se mul-
tiplicarem os embaraços, tivemos que voltar para o
sul após dois dias de marcha, e passando de novo por
“Icanhocando, seguir direitos a Libonta.
De dia para dia se emaranham os matagaes, unem-
se os ribeiros, alastram-se as lagoas, fazendo deste
paiz o labyrintho de mais estranho caracter que temos
visto.
Era um martyrio o avanço de úuma milha em tal
solo, tão numerosos e repetidos foram os fracassos
succedidos, assim como enfadonho o procurar cami-
nho direito. |
Houve mesmo occasiões em que desesperámos da
empreza de attingir o Zambeze, acreditando que a ex-
pedição a nosso cargo não proseguiria na linha itime-
raria que projectára, e ao contrario tinha de volver ao
norte, se não para a retaguarda, e assim, enfurecidos,
desesperados, rodando oppressos pelos lameiros em
busca de saída, como a fera em apertada jaula, per-
diamos a noção da serenidade, desentranhando-nos em
Imprecações.
No rio Loanguinga, estirada e ennegrecida faxa de
agua, que deslisando n'um leito lodoso, imtransitavel,
draina as regiões superiores do Lobale e que de subito
se nos atravessou no caminho, estivemos a ponto de
perder a rasão em face de tanto obstaculo.
Parecia que a lama, o capim, as contrariedades dos
nossos e a perfidia gentilica se haviam colligado trai-
ESA me mo
Font Sae
Toi ae 3 em Apa — MAS,
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do and
380 De Angola á contra-costa
coeiramente para nos derrotar o animo e impedir a
passagem.
Foi aqui que recebemos os primeiros emissarios de
Luanhica, o chefe maior do Genji, com que o major
Serpa Pinto estivera em viagem para o Natal, e de sua
parte nos vinham convidar a que o visitassemos em
Lialui.
Aquelles mesmos que encontrámos, tinham conhe-.
cido e fallado com o nosso compatriota, cujo porte e
trajo descreviam.
Tal visita, porém, só podia ser feita por canoas no lo-
gar em que estavamos, e não tendo os indigenas as suf-
ficientes para conduzir Loanguinga abaixo toda a co-
mitiva a nosso cargo, declnámos similhante convite,
enviando ao regulo os nossos emboras.
E extremamente abundante o peixe no Valle de Ba-
róze, tendo nós occasião de ver e provar o Mugil afri-
canus, o (Grlanis siluris,o Clarias capensis e outros cujos
nomes não nos occorrem n'este momento.
Do solo tambem pouco podêmos dizer, tão difhcil
era o seu estudo e principalmente a conservação de
qualquer exemplar. Pareceu-nos porém ser constituido
mferiormente por um sandstone em desagerego, co-
berto de um tuff ou quer que seja de caracter alluvial,
semeado de uma sorte de conglomerados ferruginosos,
alternando com tractos de areia mais ou menos longos.
E pobre, como já mais de uma vez o dissemos, de
todo improprio para as culturas que carecem cuidado,
e a nossos olhos incapaz de melhoramento.
Apenas produz uma colheita, urgindo depois aban-
donal-o 4 mfluencia dos depositos da quadra pluviosa.
No Valle de Barótze 381
Transposto o Luanguinga, após as mais enfadonhas
scenas, entestámos com a linha de leste, atufando-nos
de novo nos lameiros e pantanos.
Os carregadores mais possantes haviam quebrado
nos ultimos tempos, e na lucta do transporte de um
pesado volume e do constante esforço de se desenter-
rarem, caíam por terra, abafados pela fadiga.
Urgia suspender ou procurar terra onde as circum-
stancias fossem outras, aliás em pouco tudo se perde-
ria.
Fazendo uma ultima diligencia avançámos.
A 11 de setembro, pelo meio dia, deu a expedição
vista do Zambeze, e, soltando um hurrah de alegria.
acampou na sua margem.
CAPITULO XIV
LIBONTA
- mas fui informado que em parte alguma esta
região é saudavel. Quando as aguas começam a re-
tirar do valle, taes e tamanhas são as massas vege-
taes em decomposição, e expostas a um torrido sol,
que os indigenas sofirem de febre.
LivIxGsTONE — Missionary travels.
Territorios atravessados e outros a percorrer —O que havia para alem
do Zambeze — A nossa curiosidade e o que se pensa sobre a Africa—O
que é a final o interior do continente — Às planuras zambezeanas— À
verdade sobre ellas — Dificuldades, ventos e temperatura E uma d'essas
regiões de que falla Stanley e onde Livingstone pereceu — Contraste com-
pensador nas scenas de caça— Opiniões de Livingstone e nossos juizos
antecipados — Abundancia de antilopes e o hopo — Libonta — À vegetação
ao tempo d'aquelle viajante e agora— Seu aspecto — À terra em redor —
Mucobessa e os habitadores do Genji— Seus trajos e porte das mulheres
— Uso immoderado do rapé e o lenço dos luinas — Profundo abatimento
physico da gente da expedição —Dia 13 de setembro — As moscas de
Libonta—Caçada às rollas— Ornithologia do Zambeze — Considerações
geraes sobre o valle de Barótze e trilhos que ali conduzem.
.
*
=:
' , *
Mu
E.
> que
*
Ê
.:
+
Os territorios que acabavamos
- de atravessar, embora d'elles hou-
É vesse uma noção mais ou menos
“ vaga, pelas grandes linhas na car-
; - ta traçadas, nem por isso deixa-
=) vam de ter um caracter de novi-
- dade, de que evitâmos abrir mão.
O curso do Cubango a montante
**- do Bucusso (Mucusso), bem como
MUPEI
o de todos os seus grandes affluen-
tes, estava por visitar, e amda hoje reclama desvelada
attenção.
O aspecto das terras e a natureza do solo das duas
margens deste rio tambem era em grande parte igno-
rado, pois viajante algum por lá se aventurára, para
poder dizer-nos em livro quanto vira, e apenas Dufour
n'uma correspondencia deu mdicações muito confusas
ácerca dos amboellas.
t9
o
386 De Angola á contra-costa
Uma mancha branca estendia-se no mappa, que o
nosso itinerario, cortando pelo meio, de certo modo
llumimou agora.
Mas se até aqui era necesario um estudo imteres-
sante, e n'elle alguma cousa se fez, adianie havia mais
e melhor.
Ahi principiava a parte mais seria da nossa viagem
de exploração atravez do continente africano, assim
como tam ter começo os soffrimentos da caravana, os
quaes até tão longe a tmham de acompanhar, ceifando
a vida de tantos dos nossos companheiros.
Para alem do Zambeze estendia-se uma região
enorme coberta de florestas, onde tudo era novidade,
tudo estava por descobrir e fazer; facies que muito
naturalmente, como deve suppor-se, nos attrahia cu-
riosos, sem embargo dos receios que os indigenas com
suas Informações terriveis tinham derramado no ani-
mo de todos.
A Africa, verdadeiro nadir da civilisação, quando
se considere a Europa como zenith, continúa a ser o
ultimo refugio do maravilhoso e do romanesco. É uma
terra estranha, pensa-se geralmente, muito elevada di-
gem os que a conhecem, e como tal salubre na opinião
dos que julgam saber, pela necessaria invenção de
grandes correntes aereas por essas altitudes; mas 1m-
felizmente cercada de uma zona baixa, onde a mala-
ria, a insolação e muitas outras causas impedem o seu
regular accesso. No centro d'ella presume-se que exis-
tem as mais extraordinarias cousas desconhecidas de
nós, e, se não é completo mysterio, como nos tempos
de Herodoto e de Plinio, esse vasto territorio, ora se-
Tabonta 381
meado de serranias, ora dividido por extensos e areno-
sos valles, conserva pontos fóra do alcance da imves-
tigação.
(Quem se não recorda ainda do homem cynocephalo
do primeiro dos historiadores acima alludidos, dos m-
dividuos com cauda, dos navegadores do oriente, de
quem Castelnau nos falla, como muitos outros, refe-
rindo-se espantados a essa peculiaridade organica, que
a tradição conservava:; do unicornio fabuloso que os
primitivos colonos hollandezes do sul viram, e no secu-
lo xv1 os nossos compatriotas testemunharam a existen-
cia, ageravando a original descoberta com um movi-
mento especial da detfensa; de milhares, emfim, de
outras creações da humana concepção, que cáem sem-
pre no absurdo?
Ninguem, certamente; e a verdade é que no meio
de tão interessantes e attrahentes casos, faz pena, que
appareçam os singelos pioneiros da epocha actual, e
largando o bordão para calçar a luva, e, acto succes-
sivo, descalçando esta para pegar da penna, venham
com dois rabiscos dissipar tão phantasiosas Idéas, var-
rer com as illusões desde o wnicornio fabuloso, até as
serranias tremendas, cujas cabeças branqueadas pelas
neves perpetuas contrastavam com os pés Immersos
nas areias ardentes!
“Lamentâmos, e mais somos do officio, pela dupla
rasão de que, se tal existisse, seria mais vasto o campo
que teriamos a explorar em nossas narrativas, e por
havermos sido victimas da mais eruel das desillusões
no mesmo coração da Africa, quando nos preparava-
mos para ver e notar tanta cousa extraordimaria.
388 De Angola á contra-costa
O interior do continente não passa, é certo, de ser
em muitos logares, como todas as regiões centraes das
differentes partes do mundo, uma terra na generalidade
mais elevada, vegetante e salubre do que o cordão l-
toral, tendo lá dentro, para mostrar ao viajante, muita
cousa que elle de resto póde ver no exterior.
Esta é a verdade, e por isso foi triste a Impressão,
ao abeirarmo-nos do curso do grande Zambeze.
Intenso desanimo experimentámos ao chegar a essa
região desolada pelos ardores de um sol de chumbo,
onde nem sequer um arbusto nos salvaguardava da
sua perniciosa mfluencia! Bem phantasiavamos nós o
rio caudaloso, espadanando por meio de penedias em
escumados lençoes, e que trazendo em seu caminho
ameaças de destruição e ruma, cavava persistente as
rochas e raizes encravadas no argilloso leito; assom-
breado o imaginavamos por frondosos arvoredos, nos
quaes m'bafus, taculas, mupandas e mutontos erguiam
á porfia os ramos em desafio com a elegante hyphoene
e outras plantas dos tropicos, onde a tempestade destfe-
riria como nas cordas de uma harpa numerosas notas
tetricas dos seus córos dissonantes, para depois estalar
medonha, echoando ao longe nas encostas das serra-
nias; e ao cabo viemos bater em cheio n'um areal, por
onde deslisa prateada fita, de quando muito 400 me-
tros de largo, tendo nas margens V'aqui e d'alem zonas
de 150 metros que nas chuvas o rio cobre, sem mon-
tes, sem arvores, sem attractivos emfim.
Era um Zambeze chato, arido de descrever.
Perplexos á sua beira, os auctores da narrativa que
“vae seguindo, apoz a inspecção do barometro, obser-
Labonta 389
vando cuidadosamente quanto os cercava, chegaram a
concluir que entre muitas cousas pela Europa ainda
ignoradas, figura a do interior da Africa, e isto pelo
simples motivo de que aos viajantes apraz, segundo
parece, deturpar com muita frequencia as notas sin-
gelas que nos seus diarios devem conter-se.
Dm
ANTILOPE CAAMA
Segundo um croquis
Porque, em summa, qual é a rasão de occultarmos
a verdade, e pelo contrario exagerar quanto observã-
mos, incitando futuros infelizes viandantes a que to-
mem sobre si a empreza de curtir illusões e façam des-
cambar para a realidade phantasias mais ou menos
gratas sobre o assumpto?!
Dizer que o valle do Zambeze é uma maravilha de
riqueza, um prodigio de scenario, um eden emfim,
ED)
390 De Angola á contra-costa
idéa que então nos dominava como a muitos, importa
substituir o ludibrio á verdade, pois o valle do grande
rio (pelo menos n'este parallelo) é um pantano, verde
como panno de bilhar, menos liso do que este, depri-
mido, triste, cercado de uma atmosphera de estufa!
Aquelle que de lá se abeirar, depois de transpor
terras altas e arejadas, ha de fatalmente sentir-se do-
minado pela mesma impressão desagradavel que nós
experimentámos, imagimando-se como que submerso
no fundo de uma ravina, d'onde anceia por saír.
E amda esta bacia, lavrada em chão plano, não é
isenta de obstaculos. Escondida nos grossos e bastos
capmms que por toda a banda a cobrem, cheias de la-
goas e atoleiros, que os espinhos e altas gramineas
guardam cuidadosos, impedindo todo o trilho regular,
offerece-se ao que viaja como um vasto campo, onde a
"ada momento se perde offegante, sem mira ou ponto
de referencia que sirva de guia.
Os ventos, de uma variabilidade extrema, augmen-
tam as dificuldades pelas alternativas de calmas e ven-
davaes, que na epocha pluviosa devem ser grande em-
baraço n'esta terra, onde tudo cansa e aborrece.
O thermometro sobe com frequencia e extraordma-
riamente, como se póde ver das temperaturas observa-
das, de fórma que no meio dos espessos macissos das
gramineas, sobre o terreno molhado e balofo, em plena
calma, nós abafavamos, não sabendo a que recorrer
para nos refrigerar.
E uma d'essas regiões humidas, perigosas, indeseri-
ptiveis, onde os viajantes atormentados pela tempera-
tura e humidade de um lado, e pelos reptis e msectos
Tabonta 991
do outro, enfraquecidos quasi sempre pela febre após
dias de lucta, soffrem eruelmente, e do que, se téem a
felicidade de escapar, se lembrarão com horror!
Muitos, no curso das suas aventurosas expedições,
d'ellas fallam, e alfim ahi veia tambem Livimgstone a
succumbir, enterrado durante semanas na margem sul
do Bangueolo.
Os animaes ferozes pareceu-nos não se arriscarem
muito pelo Lobale, dificilmente trilhavel para aquelles
de maior vulto, sem embargo de nos dizer o dito explo-
rador que ao tempo da sua passagem muitos leões an-
davam de roda de Libonta.
Em compensação nunca em paiz algum estivemos
tão ricos de caça como n'este, porque a Africa do oeste,
e sobretudo o norte de Angola, são pobres a este res-
peito, tendo pouco ou nada visto em nossa primeira
viagem. |
Parece mesmo que muito de proposito o acaso nos
preparou scenas maravilhosas, para que, presencian-
do-as, nos penitenciassemos das primitivas idéas.
Foi aqui que vimos primeiro o Ant. Caama de que
damos desenho.
Effectivamente quando em outro tempo nos velu à
mão o livro de Livingstone, traduzido e illustrado no
jornal francez o Tour dw monde, impressionaram-nos
de todo o ponto as gravuras relativas a caçadas.
As armadilhas gigantes de que o explorador inglez
talla no Zambeze, as hecatombes estupendas de não sei
quantos animaes caídos n'ellas, pareceram aos nossos
olhos tão exageradas, que (sinceramente aqui confes-
sâmos) não sofremos deixal-as passar sem as ter con-
392 De Angola á contra-costa
demnado como devaneio, pelo menos, do artista que
fizera os desenhos!
Assim, empoleirados em nossos aliás pretenciosos
conhecimentos sobre cousas de Africa, estranhámos o
que dizia o dito explorador, com a aggravante de ter
consentido que taes gravuras saíssem á luz, sem sus-
peitarmos que poucos annos depois teriamos de cor-
roborar quanto elle dissera, assistmdo « scenas simi-
lhantes e em circumstancias que só a cegueira poderia
oppor-se à nossa inteira convicção.
E na verdade, podemol-o exprimir, é estupendo!
Toda a terra que pelo oeste do Zambeze se estende
até às margens do Cubango, e para o norte constitue
na epocha pluviosa a alagada e não transitavel planura
de Lobale é, como dissemos, pela sua especial natu-
reza, magnificas pastagens, desembaraçados horison-
tes, etc., procurada por quantos herbivoros as flores-
tas distantes acoutaram em suas densas ramagens.
Similhando um immenso jardim como que batido
e relvado por mão de homem, esse á primeira vista
attrahente paiz completa tal ilusão, por ser semeado
de numerosas placas de terra, que por mais altas dei-
xam vegetar arvores e plantas diversas, afigurando
com exactidão os irregulares canteiros de um parque
inglez.
Pelos fins do mez de agosto, na força da sécca, como
dizem os caçadores portuguezes, é, ao que nos parece,
a epocha mais favoravel para as excursões venatorias,
pois que na das chuvas só se fossem feitas em canôas.
Ahi chegámos cheios de fome, e bem dispostos a dizi-
mar n'esses infelizes antilopes, cuja existencia está su-
Labonta 393
jeita a uma constante lucta para escapar dos perigos
que os ameaçam.
Foi com effeito aqui que assistimos á maior diver-
são cynegetica de que temos memoria, matando deze-
nas d'esses timidos quadrupedes, não proseguimdo na
ardua tarefa, por nos faltarem litteralmente as forças,
sobretudo a Antonio, que andava desorientado.
À todo o momento achavamo-nos entre nuvens de
animaes, que, debandando em varias direcções, nos
deixavam estupefactos, como que presos de uma mys-
tificação.
Os indigenas, conscios d'este precioso recurso, de-
dicam-se com afan aos cynegeticos devaneios, e pre-
parando em epochas proprias essas formidaveis arma-
dilhas já citadas sob a designação de hopo, apanham
em verdadeiras hecatombes duzias de mfelizes e timo-
ratos antilopes.
Não se nos proporcionou ensejo de assistir a algu-
ma d'estas extraordinarias scenas, que devem ter para
o recemchegado muito interesse, assimilhando-se tal-
vez ao que em nossa primeira viagem testemunhámos
no (Quioco.
Estavamos acampados junto a Libonta, ultima po-
voação dos ma-cololo ao tempo da passagem de Li-
vingstone, e hoje habitada por uma população mixta
de ba-lui e ma-róze, sob a direcção de Mucobessa, vas-
sallo de Luanhica, soba do Gengji.
A julgar pelo que o viajante inglez diz deste sitio,
deve ter progredido muito desde a morte das duas
viuvas de Sebituane, assim como variou de aspecto o
terreno e a natureza em redor.
994 De Angola á contra-costa
«Libonta, diz-nos elle, está collocada em um outeiro!
como o resto das aldeias do valle de Barótze; e só-
mente n'este as zonas cobertas de arvoredo se appro-
ximam aqui mais da margem do rio.»
Ora como os bosques desappareceram na região em
que se acha estabelecida, é de crer que no citado lapso
de tempo fossem as florestas derribadas pelos indige-
nas da localidade, do que resulta serpear o Zambeze
ali entre terras cujo aspecto já descrevemos, onde só
vegeta a marianga.
Vista em distancia pela banda do noroeste, qua-
drante d'onde primeiro a observámos, tem esta povoa-
ção uma apparencia origmal e mesmo imponente, que
contrasta com a aridez das terras em que assenta.
Sobre a emmencia que, a distancia de 1,5 milha,
acompanha o curso do rio, ergue-se, ou melhor empo-
leira-se, a populosa villa, que já trasborda na planicie.
Eriçada de centenas de agudas cupulas de colmo,
ameaçando os ares com as suas vivas arestas, similha,
quando vista de longe, estampada no limpido azul dos
céus, o extenso cerro cuja pouco resistente estructura |
houvesse cedido ao lavor prolongado das chuvas dos
tropicos.
A meio levanta-se isolada, como que para escarne-
cer dos capins circumvizinhos, uma unica arvore, um
espinheiro, esguio, debruçado para o nascente, pare-
1 As villas e aldeias no valle de Baroótze são por toda a parte estabe-
lecidas em morros e cerros. Por vezes são estes artificiaes, como aconte-
ceu com a que outr'ora Santuru edificou ao sul de Naliele, antiga capital
do districto.
Libonta 395
cendo espreitar o curso do rio, que o observador vê
marcado na planura por tortuosa fita de alvacenta
areia. |
Em roda estira-se adormecida a campina em meio
da calma, coberta por um céu anilado, e cortando-se
ao longe em circulo bem definido como de horisonte
maritimo.
Pelo dia tudo convida ao somno, e emquanto o rei
da creação dentro da cubata deixa descuidado correr
as horas, sacudindo na ociosidade as moscas Importu-
nas, os antilopes retiram, o crocodilo na varzea amos-
tra o aspero lombo ao sol, espreitando com toda a sua
paciencia a preza que delle se abeira pouco cautelosa,
o hyppopotamo emerge a miudo bufando, as aves e
os Insectos percorrem azafamados o ar e a praia em
busca de alimento.
Ilhas se destacam pela face do rio, cujo desnivela-
mento no tempo das chuvas vae 1”,5 do nivel actual,
drainando todas as aguas da enorme planura do no-
roeste. |
Libonta tem um chefe supremo, como dissemos, que
se denomina Mucobessa, sorte de mytho, a suppor pelas
contradictorias informações que nos foram fornecidas
sobre o seu modo de existir e ácerca do logar onde ao
presente habita.
“ A verdade é que nunca o podémos ver, apesar de
dois dias o esperarmos.
Os habitadores luinas ou ba-genji, pelo geral altos,
esbeltos, usam pelles ou pannos; sendo que as primei-
ras muito compridas os cobrem elegantemente, amar-
radas com garbo em redor do pescoço.
E
Tie 1 premente
e
PRE
596 De Angola á contra-costa
As damas podem dizer-se galantes, trajam com
gosto, como se vê pelo desenho, usando quasi sempre
pelles de boi preto.
Ostentam-se assás senhoris, e parece pelo seu ar
que a metade mais forte não propõe e dispõe d'ellas,
como de resto é de uso em muitos logares do sertão
africano.
São vivas, e a final, á guisa do que é frequente, em
jovens divertem-se; em adultas pervertem-se, às vezes;
em velhas, eu sei... convertem-se, talvez!
Os ba-genji fazem uso immoderado do rapé, tendo
suspensa do pescoço uma pequena espatula de ferro,
que á laia de lenço empregam na limpeza do labio su-
perior.
Dois dias nos demorámos ali, alentados pela espe-
rança de comprar mantimento que nos chegasse para
longe; mas foi frustrada, attenta a carestia e a falta
delle.
Desde a partida do Cunene, não lográmos comprar
um dia de farinha para toda a gente, havendo vivido,
como fica dito, da caça e do gado, que comnosco trans-
portavamos, mercê de Deus, recurso sem o qual teria-
mos certamente succumbido.
Acresce não ser esta a alimentação mais conveniente
a quem trabalha com ardor, notando-se portanto em.
todos profundo abatimento physico. Nós mesmo não
escapámos a elle, e se é verdade que á força de riscos
e soffrimentos temos vivido no meio de tantos obsta-
culos, com a indifferença bemfazeja que constitue o
apanagio de quem a miudo affronta o perigo, nem por
1sso deixavamos de estar apprehensivos sobre a futura
Tabonta 394
sorte, em frente da ardua empreza que nos propunha-
mos.
Eis o que se encontra como remate nas paginas
derradeiras do nosso diario:
A 13 de setembro dispozemo-nos a transpor o Zam-
beze, cortando por tal fórma na perpendicular a der-
rota do velho Livingstone para Lobale.
INDIGENA DO GENJI
Tirado de um croquis
Tendo-se porém levantado vento rio, as ondas que-
bravam com tal furia na praia, que só pelas tres ho-
ras pôde começar a fama.
Foi, porém, vantajosa essa delonga, attenta a difh-
culdade em conseguir que os naturaes nos coadju-
vassem com as suas rapidas pirogas, auxilio que só
prestaram depois de aguçada a cubiça por um bom
398 De Angola á contra-costa
pagamento, e mediante ainda dois ou tres discursos
SUaSoTIoS.
Assim n'uma hora estava a expedição portugueza
dirigida por Capello e Ivens do outro lado do Liam-
bae, tendo terminado a primeira parte de sua viagem
para o oriente.
Se a animalidade de grande vulto está muito espa-
lhada por toda esta terra, como já notámos, não me-
nos abundante é a mmuscula, esvoaçando aos milhões
pelos ares moscas e mosquitos, o que julgâmos devido
aos amplos pantanos que margimam o rio.
Emquanto estivemos em Libonta tornou-se um mar-
tyrio a presença dos dypteros no acampamento. Era
impossivel socegar um mstante, e dentro da tenda ou
fóra, escorrendo agua a temperatura elevada, achava-
mo-nos sempre cobertos d'elles.
Importunos e vorazes, atiravam-se acima de tudo,
cobrindo cargas e barracas como um negro sudario,
não ousando pessoa alguma sair de sua casa, sem mu-
nir-se com pennacho feito de cauda de boi ou de gnú,
que constantemente precisava agitar.
A ornithologia tem aqui largo estudo para fazer,
pois são numerosissimas as especies de aves que ha-
bitam por estas terras.
Só nas margens do rio existem aquellas por au die
dezenas.
N'um pequenissimo espinheiro, junto ao nosso cam-
po, ponto escolhido pelas rolas para descanso da noi-
te, matámos duas duzias na primeira tarde.
Os indigenas jamais atiram ás aves, só as perse-
guem nos ninhos ou nas armadilhas, de maneira que
Labonta 399
os Innocentes animaes, não se arreceiando dos tiros,
eram victimas de todas as descargas.
Ao longo do Liambae vêem-se pelicanos ibis, n'esta
epocha pouco frequentes, patos pretos, outros mergu-
lhadores, gaivotins, bicos de tesoura, com a mandibula
mferior meia pollegada mais longa, uma especie de
pequena garça de bico curvo para cima, frecurvirostra
avocetta, a Parra africana, maçaricos, passeando á su-
perficie da agua, e quantas aves um tão Importante
lençol com seus alagamentos póde attrahir.
Em terra percorrem os ares as rolas cmmzentas, os
pombos verdes, as mduas de typos diversos, os Teator
erythr. e a ardetta, Herodias bubulcus, que pousam nos
bois e nos elephantes, e ainda outras aves, como o
passaro do mel €. indicator, o ferreiro, ou campainha,
Pluvianus armatus, o passaro que espreita, Charadrius
caruncula, ave original, cuja curiosidade attrahe as at-
tenções do viajante, a quem elle acompanha de ramo
em ramo; e amda a Numida melegrés, e muitos outros.
Libonta é necessariamente msalubre. Collocada no
fundo da depressão onde corre o Zambeze, a pequena
altitude, cercada de pantanos pela frente e por detraz,
deve ser nociva á saude dos europeus.
Pela pouca riqueza do solo extremamente silicioso,
abundancia de pantanos, temperatura exagerada, pe-
quena elevação, etc., este districto da Africa central,
onde aimda de subito apparece a tzé-tzé, está condem-
nado a um permanente abandono por parte dos euro-
peus.
Ninguem n'elle pensará, porque não se presta a
cousa alguma, só escolhendo-o, quando muito, como
400 De Angola á contra-costa
terra de passagem para alcançar os sertões orientaes.
Em parte nenhuma, como aqui, o viajante que partir
de qualquer das costas encontrará embaraços, sobre-
tudo se for pesada a sua caravana e levar animaes
de carga.
Do Bié, os trilhos para attingir o valle são mdubi-
tavelmente aquelles de Silva Porto; o logar para trans-
por o Cuando, este onde nós o cortámos. Não pense
nnguem em se aventurar, sobretudo na quadra das
chuvas, mais para o meio dia ao longo delle; encon-
trará apenas ahi obstaculos sempre crescentes; não
imagine qualquer buscar variantes para um lado ou
outro, porque será fatalmente victima dos seus atre-
vidos devaneios.
Cuatir, Luatuta, Longa e Cuito serão caminhos tanto
peiores, quanto mais proximos do Zambeze se fizerem, .
e que nem mesmo para os ba-vico darão facil accesso;
assim como é justo avisar, que não pensem os viageiros
do sul vir do N'gami ou de outro qualquer ponto com
carros ao longo desses rios, porque os perderão entre
os lodaçaes dos parallelos de 15º e 18º; ou para es-
capar serão forçados a retroceder.
O terreno movediço, marginando sempre os rios, e
estes correndo uns sobre os outros, formam uma rede
complicada, cujos cruzamentos é impossivel evitar.
Mais aqui ou mais alem aquelle que transita encontra
uma confluencia, d'onde sãe só ao cabo de innumeras
fadigas.
O mesmo caminho do Bié para o Mucusso, ao longo
do Cubango. unico trilhavel em boas cireumstancias,
começa a modificar-se do Dirico e Sambio em diante,
Libonta 401
vindo nas planuras de Sulatebele, onde derivam as
grandes mollolas do sul, a alagar-se por modo tal, que
é perigoso aventurar-se n'elle.
— Nós, disseram-nos uns rapazes viajantes do Bié,
na primeira excursão, proseguimos uma vez do Mu-
cusso para o sul, no intuito de tentar negocio com os
ba-cóca e outros povos que habitam aquellas terras, e
conseguir orientar-nos sobre a bifurcação do rio, que
nos diziam ser em Sulatebele ou Chulatebele. À medida
porém que avançavamos, as cousas offereciam peior
aspecto, e após oito ou dez dias de viagem, tivemos
de suspender, emmaranhados entre a marianga e o
mabú, que tudo cobria, e os numerosos braços de agua
que recortavam a terra em todos os sentidos. Era um
immenso lodaçal, que provavelmente na epocha das
chuvas se ha de tornar n'um lago.
Estas indicações, que nós reputâmos verdadeiras,
confirmam as nossas suspeitas quanto ao valle de Ba-
rótze, e podem aproveitar áquelles que, propondo-se
seguir por estas paragens, se derem ao ncommodo de
ler as presentes Imhas.
E deixando aos mais ousados o verificar se sim ou
não é exacto aquillo que assertâmos, abalemos á aven-
tura, dando graças à Providencia por nos ter consen-
tido sair illesos d'essa terra de triste recordação.
26
st
CAPITULO XV
DE LIBONTA AO CABOMPO
Programma de viagem — À nossa satisfação e o susto que dominava
os carregadores — Rasões d'esse facto — Meios de querer impedil-o— O
Liambae e o Cambae—Os ma-róze, habitações e trajo— Decepções e
roubos curiosos — Inopinada noticia sobre o apparecimento da mosca —
Palancas, léchees e um leão— A Hyphone ventricosa e o papyrus — En-
contro com a tzé-tzé— Duas quissemas, um Felix jubata e um songo—
De novo na floresta, vantagens do apparecimento d'esta— Os ataques do
leão e as nossas ordens por tal motivo — Nos limites do estado da Lunda
— O Muata lanvo e o seu prestigio —À liberdade do negro e duas consi-
derações a respeito d'elle— A maior das victimas, a mulher — Afasta-
mento d'esta de todos os negocios e recepções, e condição social do sel-
vagem de hoje — Mantimentos à farta e satisfação consequente — O typo
ca-runda e o ca-róze — Informações sobre o Cabompo e effeito das pala-
vras de Muene Chilembi— Os mangoia e o receio da mosca — Pretensão
inesperada de um bando de salteadores — Um dilemma para ponderar —
Tentativa de fuga de um carregador e o rio Cabompo.
SE
css as = ag ri coaçae, Satie apre - E ——==—raão TO RE SER E EB ENT REESES aro EEE qro ES SEN EEE Sm Ra mma iCEErE Tao = e
a ate — - om E o Ni 2 eq iq E am — e Ari E sim mma 7 ie me mo in GT Gs Sm qu SU 2 pi maine pa to o Criei, DM a o area ge E pro SS eat A = SIRER o = Coat ça
as ERES Ea a En; e e Sã paca estante EPE RD mo a Dad o gere qa era ia a Si Emo a ga se
- — coco m =" — e — == ——— O E e a,
Concluídos
mm”
Il,
os preparati- !
Gn
vos de jorna-
da e depois de |
havermos sof-
frido com im-
crivel pacien- Si
MULHERES BA-RUNDA
cia as contra-
riedades e vexames que acompanham sempre a par-
tida de grande caravana de qualquer povoação impor-
tante, eis-nos a 14 de setembro a camimho do norte
ao longo do Liambae.
O nosso programma de viagem fôra feito junto a
este rio, e, depois de discutido termo a termo, adopta-
do definitivamente. Baseava-se elle na escolha de um
Itmerario que, atravessando pelo meio as zonas bran-
queadas da carta, ligasse os mercados centraes mais
406 De Angola á contra-costa
importantes, accommodando-se tanto quanto possivel
a resolver se o Cabompo era ou não o Zambeze, se
acaso derivava do lago Bangueolo, e podesse ao mes-
mo tempo interpretar as relações das bacias hydrogra-
phicas do Zaire e o dito rio. Escusado será considerar
sobre o que a carta mostra com evidencia, bem como
“dizer que a linha de Libonta ao lago Moero era aquella
que, prolongada para o nascente, resolveria por im-
teiro o problema. |
Assim, ao partir do Liambae, a expedição portu-
gueza destmava-se a transpor as florestas do nor-
deste, e, visitando o Musiri e o Cazembe, tornear o
Bangueolo, para depois seguir por Ulalla a caminho
de Moçambique.
Grande era a alegria que nos animava por essas
chanas alagadas, afóra a idéa dos problemas que breve
se nos podiam deparar; mas, se havia exagero em a
nossa satisfação, tremendo era o receio e o susto de
quem nos acompanhava.
Internados no amago do continente, esses homens
que apenas conheciam Angola, e quando muito ti-
nham ouvido fallar dos ma-quioco, consideravam-se
envolvidos na mais estupenda das emprezas, olhando-
nos como uns loucos a correr a morte certa! Vagos
rumores corriam entre a caravana sobre os nossos m-
tuitos, chegando a afiançar-se que procuravamos cami-
nho para Portugal por meio das matas africanas, não
deixando os mais imaginosos de acrescentar de sua
casa historias sobre os obstaculos que nos esperavam.
Eram cannibaes a cortar-nos o camimho, anões de
cabeças disformes que nos aterrorizariam, desertos
De Libonta ao Cabompo 407
sem agua a percorrer, feras, cobras a debellar, emfim
soffrimentos, cujo remate seria a fome e a morte!
Comprehende-se facilmente quanto melimdrosa era
esta conjunctura, não dando nós, apesar de interessa-
dos, o valor de uma carga de missanga pelo exito do
trabalho. À duvida pungente assoberbava-nos a mter-
vallos o animo, sumindo no tedio a satisfação que nos
animára ao relembrar descobertas e estudos scientificos
pelos sertões; e como o espectador retardatario, apoz
um quadro final de gloria em magica de vulto, trope-
ça, ao tenue brilho dos ultimos lumes, com os bancos,
remirando triste o panno que o separa da attrahente
visão, nós, escurecida a alegria das conquistas neces-
sarias para a sciencia, pelo subito fenecer da esperan-
ca, topavamos irritados nos receios dos nossos compa-
nheiros, como barreira que nos separava dos sonhos
de cada instante.
— Sabem ou não sabem para onde se dirigem? Diga
um mais atilado. Se sabem, porque o occultam? Se
ignoram, para que proseguem?
E nós, calando as explosões communicativas, con-
servavamo-nos n um silencio Impertimente, que os tra-
zia na mais completa perplexidade.
O negro tem uma antipathia especial ou mesmo
desconfiança por tudo que desconhece, e no receio de
se perder, assim como no desejo de conjurar o perigo,
procura esclarecer-se, ou então fugir.
Regularmente conhecedores desta circumstancia,
tremiamos a todo o mstante pelo desfecho, e redobran-
do de vigilancia, pensavamos no modo de evital-o.
Dansava-se pela noite, apesar das miserias que nos
408 “De Angola á contra-costa
rodeavam, e isso porque o ordenavamos; comprava-se
quanto pombé apparecia, abatiam-se bois, distribuia-se
fazenda aos mais ladinos; mas, apenas passada qual-
quer d'estas distracções, recaíia o acampamento no te-
trico silencio do costume.
Era uma caravana de crentes ao approximar-se re-
ligiosa da Caaba!
O Liambae divide-se, na região em que nos achã-
mos, n'um braço formidavel denominado Cambae, que
entra no grande rio, logo a jusante de Libonta, margi-
nado ao nascente por grandes lagoas e pantanos.
Nas ondulações da terra 4 direita ficavam as ca-
banas dos ma-róze, pescadores na maior parte e per-
feitos marinheiros. Em suas longas pirogas, munidos
sempre de fisga e zagaia, operam prodigios de evolu-
ção e rapidez, deixando-nos maravilhados com taes
EXCrcICIOS.
Às suas miseraveis habitações mudam, ao que pa-
rece, conforme as estações, da zona alagada para
aquella mais firme. O seu trajo é singelo; a pelle de
leopardo, o lenço metallico e a cabaça de rapé, ou pe-
quenas espheras de marfim lavrado, são objectos im-
dispensaveis para quantos se prezam.
De catadura feroz, o seu modo de fallar é curioso,
guttural, semeado por uns constantes Euh! Euh! que
similhando ao recemchegado traduzir o espanto, não
passam de uma banalidade interjectiva. À rapina é a
sua occupação mais predilecta.
Seria ocioso aqui contar a serie de decepções que
nos primeiros dias de marcha nos succederam, origi-
nadas pela perfidia do negro. Basta dizer, para ava-
F
)
)
4
e
a]
|
|
|
De Libonta ao Cabompo 409
lar-se o caracter d'estes mdigenas, que no pequeno
periodo de quatro dias, seis d'elles, que serviam de
guias, fugiram, roubando-nos.
Eis ainda um facto comprovativo:
Em Libonta appareceram no campo tres senhoras
de aspecto juvenil e recatado, a quem um cavalheiro
CABEÇA DE HARRISBUCK
Segundo croquis
mtroduziu, dizendo que eram tres das mais dilectas
esposas de Mucubessa, que nos vmham visitar em no-
me d'elle.
Attrahidos pelo seu ar de honestidade e de candura,
e para sermos agradaveis ao famoso regulo, que a fi-
nal não conheciamos, houvemos por melhor abrir um
fardo, preparando a cada uma volumoso regalo.
DO E mm
410 De Angola á contra-costa
Infelizmente fomos ludibriados, pois ao quarto dia
de marcha para o norte encontrámos o citado cava-
lheiro envergando os pannos que tinhamos offerecido
às beldades, indo estas atraz delle, quasi núas, carre-
gadas como uns camellos com artigos da casa do dito
senhor, o qual n'este momento se mudava.
Ao avistar-nos veiu á falla, sorrmdo-nos com appa-
rencia de victoria!
Entre todas as decepções a mais cruel e mopmada,
porém, foi a produzida pela noticia da proximidade
da tzé-tzé. Quando ouvimos assim fallar da mosca, que
presumiamos acoitada muito pata o oriente, todos os
planos se confundiram, todas as suspeitas se agerava-
ram, temendo a cada mstante perder os bois e cães que
levavamos.
A expedição, tendo transposto o alagado cireulo dos
lameiros, que a extenuára, mas sã e salva proseguira,
ia agora entrar n'aquella região mortifera da mosca,
onde lhe estavam certamente preparadas grandes per-
das. Assim nos achavamos por um lado cercados de
pantanos, por outro de florestas imfestadas pelo mais
terrivel diptero, ao qual adiante dedicaremos capitu-
lo especial. À caça al abunda, matando nós nos pri-
meiros dias algumas palancas e léchees. No dia 17
caímos sobre a trilhada de um leão que se acoitou nas
gramineas, evidenciando-nos a existencia n'estas pa-
ragens de grandes animaes silvestres, de que até ahi
duvidavamos.
O aspecto do paiz é ainda o mesmo, notando-se o
apparecimento do Papyrus e de numerosas Hyphocnes
com uma intumescencia a meio da hastea, que julgá-
De Libonta ao Cabompo 411
mos ser a Hiphone ventricosa, bem como de uma eu-
phorbia elevada. Abunda por aqui a caça avistando
nós por esta occasião o harrisbuck, que ainda não ti-
nhamos visto.
Foi nas margens do Lueti, onde primeiro se nos
deparou a tzé-tzé, vendo-nos obrigados a partir com o
gado ás tres horas da madrugada, a fim de pelo escuro
transpormos a orla de uma grande floresta por ella m-
vadida.
N'esta viagem matámos duas quissemas, um felmo
conhecido por feliz jubata e um songo.
À terra eleva-se gradualmente, bastas florestas co-
meçam a vestil-a, consolando-nos com a amenidade da
sombra e a idéa da sua existencia, para nós já quasi
esquecida e tão preciosa; pois vivendo em cubatas fei-
tas à moda indigena, haviamos, por falta de arvores,
nos ultimos tempos, quasi dormido à la belle étoile, ou
em miseras choças feitas de canniço, que pela noite ao
menor movimento ameaçavam desabar.
Depois o cercado de ramos no acampamento é uma
questão importante em zonas onde vive o leão, e so-
bretudo- quando se levam bois. Defendido o quilombo
apenas por fogueiras, que pela noite amortecem, está
o viajante e o gado um pouco á mercê das incursões
do formidavel felino, que de subito com a sua presença
tudo póde comprometter.
Raro é, bem o sabemos, atacar o leão na África me-
ridional um acampamento, e isto pelo muito natural
motivo de que não anda esfarmado como o seu conge-
nere do Atlas; mas, como uma vez póde fazer exce-
pção, convem mais prevenir do que lamentar.
412 . De Angola á contra-costa
A quéda de similhante quadrupede sobre uma co-
mitiva só póde trazer desgraças, que convem impedir
por todos os meios. Basta lembrar o numero de mu-
lheres e creanças que nos acompanhavam, para caleu-
larmos quantas não seriam as victimas, caso se lem-
brasse de nos acommetter.
Para evitarmos quanto possivel um tal accidente,
haviamos ordenado aos nossos carregadores que nun-
ca fizessem fogo sobre o leão, ameaçando mesmo com
um tiro quem se atrevesse a transgredir as nossas or-
dens.
Com o apparecimento das florestas conhecemos que
nos approximavamos do Imite da terra do Genyji, ter-
ra dos llanos e campimas alagadas, que confimnam com
os estados da Lunda.
Esse immenso paiz, que só no parallelo de 10º tem
540 milhas de largo, é governado pelo omnipotente
Muata-lanvo !, tendo muitos dos seus vassallos disse-
minados por esta latitude, a uma distancia de 400 mi-
lhas da capital.
E sem embargo regulo algum do sertão é mais res-
peitado do que esse homem, o qual reside no interior
da Africa, ao nascente do rio Lulua. Todos os habi-
tantes de seus vastos dominios são tributados, e ne-
nhum, embora morando nos confins, deixa de pagar
mtegralmente o devido imposto. E ai d'aquelle que se
lembrar de fugir ao pagamento, que em breve o Muene
Cutapa ou qualquer cácuata, virá sem delonga tirar-
lhe rasão da cabeça!
! Muata-Tanvo, ou Mata-lafa são corrupções de Muato-Nvyo.
De Libonta ao Cabompo - 413
Muene Chilembi foi o regulo ca-runda ou ca-lunda
que primeiro encontrámos ali, mformando-nos de que
pouco tempo antes tmham partido da terra os envia-
dos do Muata, que por sua ordem cobram impostos na
zona do sueste.
Não causa estranheza o modo preciso por que se
tratam estas questões fazendarias n'um dominio bar-
TYPO CA-RÓTZE
Tirado de um croquis
baresco, encravado entre outros não menos selvagens
tambem?
É a historia de todos os povos na infancia: a vio-
lencia fazendo o seu papel na formação dos estados,
a força brutal dispondo da sua consideravel mfluencia
para manter principios e um tanto direitos contesta-
veis.
Um homem a quem só o prestigio do terror póde
conservar sobranceiro ao nivel dos seus conterraneos,
414 De Angola à contra-costa
acerca-se ou rodeia-se de um grupo de sequazes, e
comprehendendo aquella necessidade, espalha-os de
cutello na mão, derribando com as cabeças os protes-
tos que em caminho se lhe erguem.
Iniciada a obra de devastação, o terror apodera-se
das massas, cada qual treme por si e pelo que tem de
caro, e tanto basta para conservar milhões de homens
acorrentados a uma só vontade!
Quão menos livre é o selvagem ao presente do que
o homem da civilisada Europa!
Esses filhos das selvas — que na phrase dos poetas
apparecem livremente pintados como a veloz gazella
ou a graciosa ave dos bosques, e, irrequietos como as
brisas, os ditos vates põem buliçosos por matagaes e
Horestas, impellidos pelos impetos da propria vontade,
sem norte nem peias que lhes restrmjam os desejos,
levando uma vida a seus olhos mvejosa — são as mais
infelizes e escravisadas creaturas da terra, a quem uma
mfinidade de costumes barbaros e absurdas leis re-
- pressivas apertam em ferreo circulo no viver quoti-
diano !
Em vez de uma completa liberdade pessoal, como
à primeira vista se poderia presumir, o negro tem su-
perior a si o regulo, que estuda constantemente o me-
lhor modo de aproveitar-se d'elle, envolvendo-o n'um
sem numero de preceitos e imposições que lhe tolhem
todo o meio de acção.
Mesmo dentro da propria casa o triste não gosa pre-
rogativas sobre os seus, porque o chefe n'um momento
póde tudo aniquilar, tirando-lhe mulher e filhos. Fóra,
no arimo e na terra que a familia agricultou, nada pos-
De Libonta ao Cabompo 415
sue tambem, porque, sendo o torrão propriedade do
regulo, d'elle dispõe a seu belprazer. Mais longe, se,
afastando-se, o misero, após prolongada fadiga, con-
segue abater um animal em terra de vizinhos, eis que o
chefe V'ali, acercando-se, lhe exige o melhor producto
do seu trabalho, ficando o remanescente à mercê do
outro.
Emfim, se, transitando em campo alheio, occasio-
nalmente ultrapassou praxes por elle ignoradas, ou
offendeu interesses de alguem, eil-o perseguido como
uma fera, tendo de pagar cara a sua ignorancia ou
imprevidencia, n'um chamado mucano!
E um codigo de tyrannias que vigora no interior do
continente africano, contendo disposições espantosas
que nada téem de similhante no mundo civilisado, ten-
dentes a sujeitar não só a vontade, mas amda os ha-
veres, os mteresses e a vida do fraco 4 ordem do mais
forte. |
Os privilegios são exclusivo apanagio do regulo.
Os melhores animaes e alimentos, os mais excellentes
objectos emfim, são interdictos a todos e para elle ex-
clusivamente reservados.
E não ousâmos entrar aqui na mais grave das ques-
tões, apontando a maior das victimas —a mulher.
Para essa infeliz ha na terra apenas os labores, as
prohibições e o esquecimento, ou antes o desprezo na
velhice! E se é verdade que por vezes o preto parece
estimar sua mulher emquanto joven, é isso antes a
expressão de egoismo, porque tem n'ella a garantia
de uma relativa somma de bem-estar, do que a evi-
dencia de sentimento affectuoso. O desgraçado, victi-
416 De Angola á contra-costa
ma da repressão por parte do chefe, torna-se tambem,
emquanto póde, um pequeno tyranno entre os seus,
impondo-lhes a sua vontade com determinações op-
pressivas.
Assim isola-se para comer, devora os melhores bo-
cados que a mulher preparou, prohibindo-lhe o tocar
ou separar para si um quinhão, aproveita as carnes, os
mais superiores vegetaes, e deixa-lhe, como a um cão,
o que lhe não appetece ou apraz!
É uma vida de miserias e prepotencias, onde a fra-
queza caminha, subjugada, sem murmurio, à mercê da
vontade do forte; onde nem sequer a consolação do
convivio é consentida áquella que a natureza deu ao
homem para sua companheira.
(Quem viu jamais, n'essas recepções publicas, cheias
de formalidades fastidiosas, onde a par das palmas a
compasso o negro introduz uma serie de saudações e
respostas apropriadas, que proseguem em arengas m-
terminaveis, apparecer uma mulher? Nmguem, e in-
feliz Vaquella que tal ousasse.
De longe, escondida e timida, ella, naturalmente cu-
riosa, observa quantas scenas se passam, desejosa de
approximar-se, ver e fallar, mas, lá estão os olhos do
chefe ou do companheiro para lhe conter os impetos,
lá está o uso feito lei, que a imhibe de intervir na mais
smgela controversia. Como o cão, ou qualquer outro
animal domestico, o seu logar é quasi sempre junto à
palhota!
Comparando a condição das populações que se agi-
tam pela superficie do nosso pequeno planeta, o esta-
do social do selvagem abre, na tendencia humana de
De Libonta ao Cabompo 417
caminhar para a perfectibilidade, um parenthese, que
confunde todos os calculos, tornando o indigena de
hoje a personificação immutavel, a expressão fiel de
uma das primeiras phases por que passou a raça hu-
mana!
Volvâmos ao assumpto.
Durante o dia passado com Muene Chilembi, en-
cheu-se a caravana, fazendo pela vez primeira depois
PHACOCH(CERUS AFR.
Segundo um croquis
da partida de oeste um fornecimento completo de fa-
rinhas e cereaes, gallinhas, etc.; e tamanho era o con-
tentamento, que nós mesmos, possuidos de uma infam-
til alegria, riamos e galhofavamos de tudo, como se
da memoria se nos houvera varrido a lembrança dos
antigos soffrimentos e a idéa do futuro que nos espe-
rava!
to
-1
418 De Angola contra-costa.
A gallnha, essa eterna «galinha» da Africa inte-
rior, rara avis que acabavamos de encontrar, tornava-
se agora para nós um enlevo, sonho das semanas an-.
teriores, na ancia de substituir a monotonia da carne
fumada.
Bem pouco é preciso para mitigar desalentos e con-
solar desejos!
O typo ca-runda é differente do ca-róze. Pelo geral
aquelles são mais altos, esbeltos e sympathicos do que
| estes, recordando-nos os ma-quiôco, com quem con-
| trahimos relações em nossa primeira viagem.
O trajo das mulheres é assás origimal e constituido
por uma especie de panno feito do entrecasco de certa
arvore, que, depois de puxado e batido, ellas lançam
sobre o corpo, como a gravura do principio d'este ca-
pitulo mdica, )
Muene Chilembi informou-nos mimuciosamente so-
bre a existencia e direcção do Cabompo, bem como
refutou todas as nossas idéas relativas á possibilidade
de ser aquelle rio o Liambae.
— Este rio nasce em Quissenga, disse-nos elle, onde
o vi saír com menos porção de agua do que a contida
numa cabaça; recebe a caminho do Genji muitos tri-
butarios, dos quaes um é o Cabompo. Por seu lado
este deriva do sertão do nordeste; onde nasce, porém,
não O sei, porque as terras para essa banda são deser-
tas, não ousando os mesmos caçadores aventurar-se
por ellas; elephantes e moscas é o que por lá se encon-
tra, habitantes nenhuns!
Calcule-se o effeito destas palavras, que, como uma
bomba arremessada aos nossos já pouco animosos com-
De Libonta ao Cabompo 419
panheiros, nada mais ía fazer do que descoroçoal-os
completamente, e avaliem-se tambem as alternativas
de alegria e tristeza em que andavam os chefes da
“expedição!
As largas chanas do Liambae terminaram, e logo
ao sair da libata entrámos em densa mata, dominio do
rhmoceronte de dois chifres, de que vimos um bello
exemplar, e do porco de que damos desenho.
A estreita nesga das terras do lanvo é apertada a
leste pela zona que umas tribus de horrendo aspecto
oceupam, sem armas de fogo e apenas zagaias e arcos,
e nos disseram chamarem-se mangoia, por aonde cor-
támos no intuito de apanhar o Cabompo a montante
da longitude de Chilembi, evitando com a maior rapi-
dez a mosca tzé-tzé e a alluvião de outras que, em-
bora não perigosas como esta, afligem o gado por
“maneira tal, que nem mesmo junto ás fogueiras con-
segue comer.
Adiante de Muene Chingongochella, a 22 de setem-
bro, caminhavamos socegadamente por uma campina,
quando Antonio, que fa na testa da caravana, deu vista
ao longe de muitos vultos negros, que suppoz serem
gnus.
Partmdo a correr, eil-o que de subito estaca, e,
volvendo-se apressado, retrocede. Os gnús haviam-se
“transformado n'um bando de homens, não inspirando
pelo seu aspecto confiança alguma. Avançavam em
linha, tendo na vanguarda uma banda de musicos com
marimbas e bombos, e deixando ver a meio um in-
dividuo, que, por envolvido em pannos de côr e vir
acompanhado de um servo de umbella, para o abrigar
420 De Angola á contra-costa
dos ardores do sol, nós julgámos ser creatura impor-
tante.
Assim que se acharam em frente de nós acocora-
ram-se para parlamentar; e foram tão infelizes as ne-
gociações, que, ao cabo de meia hora, erguendo-nos
e carregando armas, cobriamos a retirada da carava-
na contra esse bando de salteadores, pois outra cousa
não eram aquelles cuja presença nos surprehendêra,
nem o seu chefe, Muene Oianda, irmão do Lobossi do
Genji.
Ao que suppomos, era tão grande a insaciedade do
| tal sujeito, que só se contentaria com toda a nossa
fazenda; e como o facto tinha contra si a muito natu-
ral circumstancia da impossibilidade, entendemos por
bem e mesmo para contrastar, dar-lhe apenas seis len-
| cos de pintado para seu uso; collocando todas as suas
| pretensões perante o formidavel dilemma de nada mais
receber e retirar-se em paz, ou tomar a fazenda por
inteiro, levando ao mesmo tempo um tiro de revolver
na cabeça!
Hesitou o heroe por momentos, mas, convencido al-
E oo rem SE
fim que feitiço de branco póde mais que o de preto,
ficou-se quêdo, emquanto os exploradores, seguindo
prestes a caravana, volviam graciosamente as costas
a tão antipathica creatura.
Assim nos descartámos sem mais ceremonias dos
Importunos rapinantes, que não passavam de uns pu-
' sillanimes.
É Em Moi Cafuta achavamo-nos a 8 milhas do Ca-
] bompo, e tomando dois guias para nos mostrarem o
logar da passagem, para lá nos dirigimos a 24 de se-
a sr =”:
Petro tita ta em
De Libonta ao Cabompo 421
tembro, depois de submettido um homem que se eva-
díra e de termos notado a altitude de uma cachoeira
no rio, que embaraça a navegação, lamentando mais
uma vez a proximidade das chuvas, pois numerosos
e grossos cumulos semeavam a abobada celeste em
todos os quadrantes, prognostico desagradavel dos ba-
nhos que se nos estavam preparando.
Ás onze horas chegámos á beira do Cabompo, rio
que tem n'este local 150 a 200 metros de largo, agua
verdenegra e as margens occultas em frondoso arvo-
redo. |
CAPITULO XVI
FERA NATURA
Et devant eux s'élêve une immense forêt,
Dont tout homme nouveau ignore le secret.
Impénétrable...
J. R. Mesnier — CAPELLO E IVENS, etc.
Considerações tristes —O deserto e o silencio-—O Cabompo e a noite
— O elephante e o arvoredo — Limite ao terreno silicioso — Primeiras ro-
chas —A floresta e os animaes silvestres — Perda de um companheiro —
Homem e cão mortos — Dois elephantes —O somno da girafa e obito de
outro homem — Fuga de um carregador — Morte de mais um cão — Indi-
viduo perdido no bosque — O rhinoceronte curioso e os crocodilos do
Cabompo — Os destroços do leão—Vam-Boôé6 — O leão e uma noite de
poleiro — Beiços furados e seios pendentes — À primeira tempestade.
CROSS Vas
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A
f
la, à COr MaiS ou Menos cons
á velocidade, a que ainda se podem
gura méd
juntar outros,
re o modo de de-
jun
sob
d
tal braço, o calculo do volume de flu
Ido, efe.
Igena
Icação mm
por exemplo, ind
signar
$
426 De Angola á contra-costa
Apenas mstallados á beira do Cabompo, começámos,
depois de attentar bem nos seus traços mais salientes,
a comparal-o com o rio Zambeze, e, approximando da
nossa observação pessoal o que os naturaes diziam a
esse respeito, viemos á conclusão de que o Cabompo é
mdiscutivelmente um afluente do Zambeze e nunca o
seu ramo medio. À agua d'este é verde um tanto claro
e por vezes pendendo para azulada, a d'aquelle verde-
negra, como se saíra de vasto lago.
À sua largura, no sitio em que nos achâmos, oseillará
entre 100 e 150 metros, ao passo que o Zambeze tem
300 ou mais, e uma corrente de 3 milhas de velocida-
de, emquanto, n'esta quadra, pelo menos, o Cabompo
será de 0,5 milha, se tanto.
As terras que para o norte se alongam pelas do lunda
Shinte extremam pelo oeste uma vasta chana!, que,
acompanhando a parte superior do Zambeze, lhe dão
em tudo o aspecto do curso medio; e o Cabompo, logo
a montante da cachoeira Lumupa, corre entre terrenos
alcantilados, que, erguendo-se, vão até ganhar o pla-
teau elevado que divide os systemas Congo-Zambeze.
O valle de Barótze é amda, geologicamente fallan-
do, constituido nos seus traços mais geraes por tuf/
calcarifero, assente sobre um deposito de grés mais ou
menos endurecido, amarello ou um tanto vermelho,
perfurado em zonas por molluscos lithophagos, trans-
formando-se, quando limpo e separado da parte menos
densa, em tractos arenosos estereis ou fracos, ao passo
que submdo o Cabompo, vê o viajante apparecerem-lhe
! Chana, planura coberta de gramineas.
Fera natura j 427
“as terras argillosas vermelho sangue, de envolta com
um conglomerado ferrugmoso, cobrindo rochas, como
o gmeiss, outras de grés, etc., muito ferteis e cobertas
de arvoredo.
Em resumo, a quantos mdigenas e guias mquirimos,
todos mvariavelmente nos responderam no mesmo sen-
tido do que nós imagmavamos, isto é, que o Cabompo
é um afiluente do Liambae e não o mesmo Liambae,
como se poderia acreditar.
O notavel, porém, é que jamais ouvimos fallar em
Liba, esse rio que Livimgstone cita, como percorrido
em viagem para Loanda, e por elle pittorescamente
descripto, facto que nos leva a crer na sua existencia,
trocado o nome em Liambae, ou seja uma confusão do
“mesmo termo.
E não tem isto muito de extraordinario, se conside-
rarmos nas numerosissimas transformações ou mesmo
na corrupção de nomes que por toda a parte se notam
em Africa e cada viajante emprega a seu bel-prazer.
Assim o rio Aruangõa, que afflue ao Zambeze, é por
uns chamado Luangõa, por outros Luanga e até Ruan-
ga, ao passo que vemos no norte estabelecida a con-
fusão no paiz de Lunda e seus povoadores ba-lunda,
onde promiscuamente se encontram Lunda, Runda,
Urunda com o prefixo U designativo da terra, Urua e
Lua, e os povoadores ba-lunda, ca-lunda, mu-lua e
ba-lua, ca-runda, ete., citados no mesmo documento.
Não admira, pois, que o viajante inglez, fallando
uma lingua tão estranha, embora percorresse tantos
paizes, tivesse difficuldade em pronunciar correcta-
mente os dialectos africanos, e transformasse o Liam-
)
e
pe
rece a S enç Sg
428 De Angola á contra-costa
badyi dos ba-lunda no Liambae dos ma-róze e no Liba
de qualquer que por ahi lhe fosse guia.
A verdade é que tal rio para nós ficou letra morta.
Transposto o Cabompo, acampámos na outra mar-
gem, depois de passarmos as mais crueis angustias na
tarefa do transporte de nossos bois, pois era a riba
direita talhada quasi a pique, não podendo os animaes,
ao abordar a terra, firmar-se de modo que podessem
vencer o seu aspero declive.
Achavamo-nos na mais estranha perplexidade, la-
cando aqui um, clamando por outro, que embaraçado
nos ramos do arvoredo pendente ameaçava asphixiar-
se, sem saber que partido tomar, quando um indige-
na, que até ao rio acompanhára a caravana, nos deu o
mais inteligente quinau, e revelou a nossa triste igno-
rancia ou pouco senso pratico.
Gritavamos, remexiamos, serviamo-nos de cordas,
sem nada conseguirmos; de subito, a jusante, os bois
“começam a subir a encosta com a maior naturalidade.
Approximando-nos do logar, vimos então operado com
a maior esperteza um trabalho que mais cedo nos de-
vêra ter occorrido, e que um negro do mato, a sós, ti-
nha posto em pratica.
Empregando a machadinha como enxada, havia elle
rapidamente feito um carreiro em lacetes até ao nivel
da agua, por onde os animaes trepavam á vontade.
O aspecto selvagem de tudo quanto nos cercava, as
numerosas pégadas de elephante, os cipós e as urzel-
las, tudo emfim evidenciava que tinhamos dado entra-
da n'uma terra erma, onde os trabalhos e as dificulda-
des corriam naturalmente parelhas com a sua braveza.
Fera natura "429
Antonio, logo ao entrar n'ella, abatêra duas formo-
sas quissemas e uma gazella, que pela noite se prepa-
raram e mesmo desappareceram em parte, emquanto
uma manada de elephantes se approximou do acampa-
mento, atroando tudo; eram dez horas da noite. Eis o
que nos diz o diario, rubricado sob a impressão do
momento:
“aaa
MULHER AMBOELLA
Tirado de um croquis
«... scenas estranhas são aquellas a que assisti-
mos agora, e bem dignas de penna melhor maneja-
da. Imagine-se uma noite muito escura, envolvendo
BRIdO.. .
«Densissima mata debruça-se sobre o curso do rIo,
e alastrando para leste, abre a 100 metros d'este uma
pequena clareira, ao meio da qual um espinheiro gi-
gante se copa á feição de pára-sol. Dois europeus estão
sentados em caixas e, fumando socegados em longo
cachimbo, contemplam tudo que os cerca. Em vasto
Na
Spa ei 7 E st O
430 De Angola á contra-costa
cireulo uma centena de homens, á luz de numerosas
fogueiras, se agita em faina de interesse, correndo pres-
surosos num e n'outro sentido. Ao clarão cambiante
dos brazeiros os vultos tisnados, gesticulando e brace-
jando por meio dos troncos e linguas de fogo, similham
uma caterva de demonios na tremenda tarefa que os
espiritos timidos e apprehensivos lhes apraz imagimar.
Pres antilopes mortos, já despidos da pelle e conve-
nientemente abertos, estão prestes a serem esquarteja-
dos, enquanto alguns mdividuos aproveitam o sangue,
outros os intestinos, disputando-se as mais pequenas
parcellas. |
« Diligentes, as mulheres buscam os utensilios de
cozinha que os companheiros lhes pedem, ao passo que
os filhos, por momentos abandonados, tiritam de frio,
rompendo num charivari de gumchos.
«Jistourada medonha atroa os ares em roda, an-
nunciando que uma manada de elephantes entregues
à gostosa tarefa de procurar repasto, esgarçam e que-
bram quantas arvores e ramos encontram no caminho.
«Ladram os cães, ronca no rio o hyppopotamo, ru-
moreja tristonho o vento na folhagem, rangem os ossos
sob as poderosas maxillas dos nossos companheiros,
chiam as carnes no brazeiro, e, despedindo a gordura
para o fogo, alentam de subito as labaredas, que, so-
brepujando os grupos, como que ameaçam o arvoredo ;
trocam-se os gritos e as phrases asselvajadas, emtim
vae uma noite prehistorica!»
Como primeiro debute detrontava-nos floresta de-
serta, que oito dias nos levaria a passar sem trilhos
nem immdicios.
Fera natura 431
A narrativa dos soffrimentos experimentados pela
expedição n'esses bosques que se alongam pela mar-
gem do Cabompo, é dificil de apreciar no remanso
do nosso gabmete na Europa, e por isso pedimos ve-
mia ao leitor para transcrever na integra quanto em
nosso diario se acha exarado, convictos de que assim.
obedecemos mais á necessaria obrigação de sermos
fieis.
Foi uma como que marcha funebre por esses sertões,
dissemos nós em nossa conferencia de Madrid, e assim
exprimimos a smgela verdade.
Especie de marcha fumebre, repetimos, em que a
suspeita da morte imminente arrastava a caravana em
tetrico silencio, o medo do deserto abalava os animos
mais firmes, a ancia de se alimentar fazia de cada
homem um egoista terrivel, prompto a sacrificar o seu
companheiro para salvar a propria vida; em que, em-
fim, a idéa da propria conservação havia varrido todo
o sentimento de caridade, e uma provação mais basta-
ria talvez para miciar as hediondas scenas de desen-
freado cannibalismo !
Que triste espectaculo!
(Quantos homens marcaram na terra com seus cor-
pos a trilhada da comitiva por essas sombrias flo-
restas, onde o elephante em bandos numerosos tudo
devasta, o rhmoceronte divaga solitario, a mosca cam-
pela voraz, ameaçando de morte quantos animaes do-
mesticos d'ali se approximem; onde, finalmente, pas-
sela como senhor o rei das selvas, atroando pela noite
os ares com a sua voz tormidavel, e espavormdo o
mundo animal com o seu rugir tremendo!
)
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ii a
fe, a
E
DI a E a o a Te
EGP US Ec, pr o,
432 De Angola á contra-costa
Bem nefastos dias e duras scenas foram essas que
ainda hoje, ao lançar mão da penna para as descrever,
nos sentimos dominados pelas mais lugubres e tetri-
cas recordações.
Nem um vulto humano sequer por esses sombrios
bosques, para nos dizer: « Por ali é o caminho!» Nem
uma indicação que nos servisse, no meio d'esse imtrin-
cado dedalo de soffrimentos e ameaças, de norte ou
gula, para nos livrar do desfecho a todo o momento
esperado, a morte! |
Sempre o silencio da floresta, apenas cortado por
esses ruidos originaes e mexplicaveis, que são o se-
gredo da natureza selvagem, como um murmurio de
mysterios que só despertam terror; sempre a igno-
rancia do nosso fim, o angustioso lembrar das miserias
que nos esperavam, excruciando-nos a alma, repu-
gnando á consciencia o facto de havermos provocado -
tamanho soffrer!
E quando pela noite toda essa agelomeração de
homens nús, famintos, entristecidos, uns estirados em
redor das fogueiras, outros divagando absortos á luz
das labaredas, caíam alfim sob o imperio do somno,
gemendo aqui, resonando acolá; nós, dominados pelos
negros pensamentos do dia seguinte, apprehensivos
com a idéa do risco Immimente em que se achava a
missão que nos era tanto cara, contemplavamos taci- |
turnos similhante scena; e escutando esse côro, que nos
parecia um lamento de condemnados pedindo a sua
redempção, marejavam-se-nos os olhos de lagrimas,
convictos de sermos os unicos culpados de tão grandes
desgraças.
Fera natura 433
Diario:
«Dia 24 de setembro.
« Estamos - acampados na margem direita do Ca-
bompo, tendo-o transposto com graves difficuldades.
«O rio tem aqui 150 a 200 metros de largo, com a
profundidade media de 3 metros, agua esverdeada,
HOMEM AMBOELLA
Segundo um croquis
margens fechadas de frondosissima vegetação, cor-
rente fraca.
«Logo ao amanhecer desertou-nos um homem, que
mais tarde, batida a floresta, pôde ser colhido ás mãos.
«Para esta banda os matos fecham de mais em mais,
tornando-se extremamente selvagem o aspecto da na-
tureza.
«Longe estão as habitações humanas, funebre silen-
cio domina por aqui; um presentimento nos diz que
adiante nos esperam duros soffrimentos.
434 De Angola á contra-costa
«Nos plateaux ao lado encontram-se por toda a par-
te numerosas pégadas de elephante, signal evidente de
região deserta.
«Assalta-nos de novo a idéa de que o Cabompo po-
desse vir do lago Bangueolo.
«À sua agua, um tanto escura, a pequena velocida-
de, a direcção do curso, quem sabe?
«Depois lembrou-nos hoje a declaração de Jacol
Waimmright, o fiel servidor de Livingstone.
«O Luapula, disse elle, corre para o pôr do sol.
«A nossa gente está bem disposta, apesar das deser-
ções dos ultimos dias, e das affirmativas dos mdigenas,
de que para esta banda ha apenas elephantes e moscas.
«Dia 25 de setembro.
«Ao amanhecer pozemo-nos a cammho. Estamos m-
fatigaveis e decididos a concluir a empreza que pro-
Jectámos, custe o que custar.
«São longas as matas que nos defrontam; muito em-
bora, hão de transpor-se. Adiante é o cammho, e que
a Providencia se amercie de nós. Para as regiões des-
conhecidas é que tem merito o avançar, pois por ca-
minhos trilhados toda a gente o faz.
«Aqui o norte é a bussola, a indicação, o palpite, o
apoio, a vontade; retroceder é impossivel!
«Caminhámos até ao meio dia ao longo do rio, por
valles e serras do mais pittoresco aspecto, atravessando
zonas extensas, densamente vestidas, sómente habita-
das pelo elephante.
«O terreno accidenta-se de todo o ponto, appare-
cendo a affloreal-o rochas variadas, e tendendo a des-
apparecer as terras arenosas do valle de Barótze.
Fera natura 435
«Vae-se elevando gradualmente; o rio serpeia tor-
tuoso em silencio, com a mesma largura e as margens
a pique.
«Por toda a parte se encontram arvores recente-
mente derribadas, outras fendidas e com as raizes a
“descoberto, como prova do trabalho do maior dos ani-
maes terrestres conhecidos.
«O espmheiro é sobretudo o mais procurado, por
costar o elephante muito das pontas dos ramos.
«No caso de sermos atacados por um d'estes ami-
maes, não poderia servir de defeza o empoleirarmo-nos
numa arvore, porque, segundo affirmou um dos nossos
homens, embora o elephante não consiga derribal-a,
atira com paus a quem pretende assim escapar-se-lhe!
«B uma estranha habilidade, que carece de confir-
mação.
« Redobra o calor, castigando severamente pelas ho-
ras em que é mais mtenso.
«Aleuns homens cansam rapidamente, atrazando-se
na marcha.
«O aspecto bravo da natureza testemunha as mdica-
ções que nos deram.
cSuspeitâmos haver já por aqui a tzé-tzé.
«Dia 26 de setembro.
«Estamos junto 4 margem do Cabompo, coberta
aqui dos espmheiros da gomma.
«A marcha operou-se por uma densa floresta, muto
abundante em caça; abatemos hoje tres quissemas for-
midaveis.
«Extremamente emmaranhada por cipós e ramos
que se cruzam e entrelaçam, e nos difficultam a mar-
436 ue Angola á contra-costa
cha, tornou-se necessario levar gente na vanguarda,
que de machados em punho foi desembaraçando o
caminho.
«Por vezes a mata está intransitavel, tão grandes,
numerosas e fundas são as pégadas dos elephantes que
se atolaram no terreno argilloso.
— «Temos a registar um funebre successo, que muito
nos Impressionou.
«Um dos nossos rapazes, que, andando ao bote, ha
dias se queixava de fadiga, hoje, logo depois de saír
do acampamento, caíu por terra, morrendo em poucos
momentos. É smgular! Emmagrecem rapidamente,
perturbam-se-lhe as idéas e os movimentos. Esten-
dem a mão, querendo colher cousas que não existem
no logar a que se dirigem, suspiram, cobrem-se de suo-
res frios, o pulso fraqueja, succumbem.
«Infeliz! Contimuâmos a suspeitar ser a molestia
uma meningite. À insolação, a carga à cabeça, o can-
saço, a estranha perturbação, tudo indica a causa ori-
gimaria do rapido desfecho.
«Silencio lugubre rema por essas matas afóra, só m-
terrompido durante a noite pelos rugidos dos animaes
silvestres.
«O rio segue socegado, limpo de cachoeiras, oceulto
na vegetação das margens.
«Dia 27 de setembro.
«A jornada de hoje foi longa pelas campmas que
marginam aqui o Cabompo.
«Parecia um jardim zoologico a terra atravessada,
tão numerosas e differentes são as especies animaes
que observámos.
Fera natura A
«Gazellas, zebras, elephantes, quissemas, palancas,
rhinocerontes, javardos, etc., fugiam espavoridos ante
nós.
D) , . . . , . mo
«D'estes matámos dois, pretos, inteiramente á feição
dos nossos da Europa.
QUISSEMA ZGOCEROS ELLIPSIPRIMNUS (femea)
Tirado de um croquis
c«Aimmda um facto triste a registar. Um dos nossos
cães (o Pombo), o melhor sem duvida que possuiamos,
desappareceu de subito no rio, colhido por grande cro-
codilo, quando perseguia uma peça de caça.
«O numero destes animaes no Cabompo é extraor-
dinario, assim como assombrosa a devastação que fa-
zem nos antilopes.
«Amda hoje tivemos occasião observar Isso.
438 De Angola á contra-costa
«Havendo apertado com um cabra assobiadora, fe-
rimol-a levemente. O animal, atordoado, fugia, como
sempre fazem os seus similhantes, para o rio, no intuito
de se metter á agua; mal porém havia caído, que um
vulto enorme redemomha, um dorso eriçado de aspe-
rezas encurva-se, escancara-se uma guella, defendida.
por agudos dentes, n'um relampago abysma-se tudo,
ficando só à superficie o revoltear da agua após uma
submersão.
« Começa a dar-nos serio cuidado a falta de farinhas.
« Aleuns dos nossos homens comeram tão precipita-
damente a matalotagem, que pouco ou nada têem, e é
carne parece não ser para elles alimento sufficiente,
ou pela rapida digestão, ou por outro qualquer motivo.
« Emmagrecem muitos com rapidez, domina-os com
frequencia a fadiga.
« Dias 28 e 29 de setembro.
« Continuam a aggravar-se os padecimentos de mui-
tos dos nossos homens. São taes as dificuldades da
marcha, onde a todo o instante urge arriar cargas, cor-
tando os matos, e succedendo-se os accidentes e ob-
staculos, que vae tudo em caminho, aterrado, cheio de
cansaço, avançando por esses desertos afóra.
«O fogo em varios pontos devastou as selvas, tis-
nando com negros residuos vastas extensões de terra,
onde um ou outro esqueleto marca o logar de pungente
angustia, envolvendo em sombrios pensamentos os der-
rotados animos.
« Uma triste admiração se apodera do mesmo via-
jante em face de taes scenas, fazendo anceiar pelo bu-
licio da gente. A tzé-tzé e outros dipteros mfestam as
Fera natura 439
matas limitrophes do rio, persegumdo os bois impla-
cavelmente.
« Hoje 29, pelas dez horas, morreu outro homem,
denominado Chialla, um dos nossos melhores compa-
nheiros.
« Ha poucos dias, amda alegre e contente proseguia
de carga ás costas na vanguarda da comitiva. Victima
foi sem duvida de doença identica, perecendo em pou-
cos momentos.
«Dois homens, andando ao mel, depararam ao sues-
te com igual numero de elephantes enormes fugindo
espavoridos. Proseguiu-se-lhes na pista, não sendo
possivel tornar a encontral-os. Um grande quadru-
mano vive n'estes sitios, de que observámos as péga-
das, bem como vimos ao oeste do campo as do leão,
que proximo deve residir, a julgar pelos destroços que
se notam dispersos.
«Dia 30 de setembro. |
«À primeira cousa a fazer é registar mais um obito.
«Logo de manhã tivemos que abandonar um rapaz
do Celh, completamente perdido, prestes a expirar.
«A rapidez da doença, que ha dias lhe mmava a exis-
tencia, ageravou-se com a necessidade de farmha, ou
o exclusivo regimen animal, que lhe repugnava ao ex-
tremo.
«Os symptomas eram em tudo os mesmos que nos
precedentes casos, apparecendo como variante a abun-
dancia de dejectos alymos. |
«É notavel a fome com que toda a gente anda, ape-
sar da abundancia de caça que se tem morto. Apenas
suspendem, eil-os a assar na braza quanta carne po-
440 De Angola á contra-costa
dem, e a devoral-a sofregos, accusando na depressão
abdominal a necessidade que os opprime.
«Em camimho, pela sombria mata que vem sobre o
rio Maninga, e cujo nome acaso soubemos pela rasão
adiante exposta, encontrámos os ossos de uma girafa,
que ha pouco fôra devorada pelas bestas de preza.
Ouvimos que este animal, cujo habitat não suppunha-
mos vir até aqui, se colloca junto ás arvores para dor-
mir, mettendo a cabeça entre dois galhos.
«F'01 a meio do trajecto de hoje que tivemos a estra-
nha surpreza de encontrar cinco homens, caçadores,
segundo nos disseram, de Muene Chinhama, e que,
vindos do noroeste, se aventuraram por estes desertos
para chegar ao Gengji.
«À muito custo conseguimos trazel-os á falla, afian-
cando-nos que, seguindo sempre Cabompo arriba, en-
contrariamos gente d'aqui a cinco dias no ponto de
encontro de um afluente, o Lunga.
«Praza a Deus que assim seja, pois a nossa gente
vae em progressivo desalento.
«Dia 1 de outubro.
«“Pemos que lastimar amda hoje a perda de outro
homem. Chamava-se Joaquim, e no intuito de seguir
talvez a trilhada dos caçadores de hontem para se sal-
var, fugiu, vmdo a ser victima das feras ou da fome
por esses desertos.
«Um dos melhores cães, o Atrevido, desappareceu
tambem no rio, quando ahi saltou atraz de uma ga-
zella.
«Os crocodilos téem tido largo repasto com a nossa
passagem.
Fera natura 441
«Graças á Providencia, carne não falta, abatendo
Antonio ainda hoje duas quissemas. Ninguem já possue
um punhado de farmha, e apenas nós conservâmos
para ámanhã um pouco de feijão. Ao sueste uma ra-
vma corta o rio perpendicularmente, formando ca-
choeira.
QUISSEMA EGOCEROS ELLIPSIPRIMNUS (macho)
Segundo croquis
«À vegetação em tudo identica. Junto á margem a
Acacia albida, cuja gomma os nossos devoram em ca-
minho. Para longe as mupandas, os mutontos, etc.
«Dia 2 de outubro.
«Hoje em viagem perdeu-se outro homem, Mazom-
bo, que se extraviou com a carga, sem que se podesse
o cá
442 De Angola á contra-costa
comprehender a causa, e que lá vae condemnado a
servir de pasto ás hyenas.
«Largas campinas por vezes se acham entre o arvo-
redo, e então póde ver-se a infinidade de animaes que
divagam por esta terra. À meio da jornada ferimos
uma quissema, que, saltando ao rio, foi colhida por um
crocodilo, ao passo que adiante tivemos occasião de
ver a ossada de um elephante mettida no extremo de
cigante armadilha. Era uma cova circular de fundo
mais largo, feita junto a arvore de tronco derruido,
que estes animaes escolhem para se coçar, e onde o
colosso caíra!
«Antonio teve hoje um encontro perigoso. Haviamos
acampado pelas duas horas, quando elle, pegando da
caçadeira, abalou pelo campo, em procura de galh-
nhas do mato. |
«Pouco depois ouviram-se tiros, e muito natural-
mente” suppozemos que andava elle em fama, não
dando a isso attenção. Declinava o sol, apropmquan-
do-se mesmo do occaso, quando, suspeitosos pelo si-
lencio de tantas horas, mandámos bater mato e pro-
cural-o. O audaz caçador, perseguido por um rhmnoce-
ronte, e tendo em mão uma carabma com chumbo,
nada encontrára de melhor de que largar a arma, tre-
pando para uma arvore á espera que o livrassem. O
notavel, porém, é que o animal não o abandonava, e
rodando como que enfurecido, fazia sentmella ao po-
leiro, só fugindo 4 approximação da gente.
«Estranho quadrupede este, que por vezes parece
andar acommettido de vertigens ou accessos de lou-
cura.
o
Fera natura 443
«Antomo, para se vmgar, logo que chegou ao qui-
lombo, feriu de morte um hyppopotamo, o qual lá foi
rio abaixo. Choveu hoje pela primeira vez.
«Dia 3 de outubro.
«De entre os flagellos que nos perseguem n'estas
matas intermmaveis, não figura por menos esse até
agora para nós desconhecido, a tzé-tzé! Bois, cães,
tudo anda furioso, não escapando os proprios homens,
que são victimas dos seus ataques. Os magros doentes,
com andrajos em redor da cinta, seguem na retaguar-
da da caravana, em funebre fileira, similhando um
bando de resurrectos erguidos no momento do tumu-
lo, e luctando em vão contra os assaltos da terrivel
glossina.
«Estamos acampados ao nordeste de um quilombo
de caçadores Vam-Booé, provavelmente lumas, que
para aqui vieram do sul no intuito de se estabelecer.
Extremamente miseraveis, têem repellente aspecto, li-
mam em ponta os dentes, e fumam de contínuo por
narguilés feitos de pequenas convolvulaceas. Só pos-
suiam para vender pilhas de um endurecido tabaco,
que ainda assim comprámos, pois é o unico de que
nos servimos. D'este logar ás origens do Lualaba se-
rão uns doze dias, segundo elles, e a terra para essa
banda é deserta. Dizem-nos que ámanhã, no Lunga,
talvez arranjemos guias para duas ou tres jornadas. O
solo, pela zona que vamos percorrendo, é em geral
constituido por uma rocha de grés abundante em con-
creções siliciosas com afioreamento de quartzo hya-
limo, etc. Encontram-se tractos argillosos, vê-se com
frequencia a limonite, ferro pisoltico, quartzites, ou-
444 De Angola á contra-costa
tros mineraes como lascas de silex pyromacho, e al-
guns que não reconhecemos. À vegetação é densa, po-
rém de pequeno vulto.
«Dia 4 de outubro.
«O dia de hoje foi empregado em transpor o Lunga,
importante afluente do Cabompo, a fim de nos abeirar-
mos da residencia de Muene Caheta. Tornou-se neces-
sario abater um boi, um d'esses infelizes companheiros,
cuja presença na comitiva serve de grande auxilio para
consolar estomagos, visto não se ter caçado nos ulti-
mos dois dias. O nosso regimen agora é puramente
animal. À carne assada na braza, sem condimento nem
sal, que já ha muito acabou, constitue o prato mva-
riavel. |
«O tempo continúa ameaçador, o que nos contraria
seriamente. Grossos cumulos forram em todos os sen-
tidos o céu, ribombando a curtos intervallos o trovão.
«Atufada nas florestas e envolvida pelas chuvas, a
caravana vae sem duvida atravessar uma seria qua-
dra. Quando acampavamos appareceu-nos um homem
que suppunhamos extraviado, a quem um leão conteve
suspenso n'uma arvore toda a noite de hontem.
«Dia 5 de outubro.
« Acampámos alfm entre gente. Muene Caheta é o
regulo luna d'aqui. Velho e descortez teve comnosco
uma questão logo ao chegar, o que impediu por algum
tempo a compra de mantimentos, que só tarde appare-
ceram. Loucos, os nossos dão tudo por um punhado de
feijão da terra, e sem reflectirem que se desarmam,
largam pela mais pequena cesta uma duzia de cartu-
chos Snider!
Fera natura A45
«As mulheres d'aqui furam o labio superior, intro-
duzindo n'elle um grosso coral, e téem o depravado
costume desde jovens de amarrar os seios, de maneira
que se prolongam até o abdomen.
«Pouco mantimento ha. Desertou uma mulher, não
podendo saber-se noticias da infeliz.
«Dia 6 de outubro.
«A jornada de hoje foi longa e feita ao rumo do nor-
te, por terreno coberto de calhaus e rochas quartzpsas
fragmentadas. Acampámos n'uma densa mata para
nos defendermos de trovoada imminente, fechando o
campo e cobrmdo cargas. Dois homens acabam de de-
sertar em direcção desconhecida. Ennegreceu o céu.
Calma muito abafadora domina o ambiente, transu-
dando nós. Eil-as as primeiras aragens. Começou a
tempestade.»
Transportae-vos, leitores, pela imaginação, para o
meio de floresta espessa e sombria, em que arvores
gigantes, que jamais despem sua folhagem, entrela-
cam ramos e fecham o espaço com uma rede de cipós.
Assentae-a em suave encosta, que uma sub-vegeta-
ção forra completamente, cercando-a pelo longe das
ondulações de altas terras.
À meio vae um curso de agua escura e rapida, que
murmura em lodoso leito, cavando entre podres tron-
cos e nodosas raizes a lama que lhe tinge a transpa-
rencia.
Aos lados largas orlas lamacentas vem bater de
encontro a terras mais elevadas de humus ennegreci-
do, que uma cobertura de fetos esconde com suas fo-
lhas rendilhadas.
Pe E AE E SDS ES PE aa EST
E SR IDR man gr e tic o O NS a 7 SS
446 De Angola á contra-costa
N'este sombrio retiro, impede em larga volta a vista
o complicado macisso dos troncos e ramos do arvo-
redo.
Envolvei este todo no negro manto da noite, a que
o caligmoso escuro da Immimente tempestade dá um
aspecto simistro e funerario.
Accommodae a esta scena o tremendo ronco do rei
das selvas, que por vezes o assobiar do vento acompa-
nha rijo e tetrico. Emmoldurae este estranho quadro
com o exagerado calor que no ambiente reina, fazendo
transudar em suor homens e animaes entristecidos;
lembrae-vos que nem um habitante existe nas terras
proximas, que não ha alimentação a esperar, excepto
se o acaso a pozer ao alcance da vossa carabima; con-
siderae que uma dezena de feras vos espiam n'esse
momento, completando este todo com a agonia e os
repuxões da fome; accommodae, emfim, ao meio de tão
extraordinario quadro o sentido gemer de um compa-
nheiro moribundo.
Crepitam as fogueiras a mtervallos e, amortecendo
a pouco e pouco, enviam com seus lampejos uma tenue
animação em derredor.
Por vezes um tronco, a que faltou o necessario apoio,
despede-se e, estourando com fragor, rola para o ter-
reno ao lado.
Já uns ultimos vultos que se haviam conservado de
cócoras, observando melancolicos os tições fronteiros,
abandonaram a statica contemplação, e estirando-se
parallelos roncam pausadamente.
Por vezes um urro, grito angustioso ou pio simistro
quebram esta monotonia, como annuncio de que o cha-
Fera natura A4T
cal descontente ou ave nocturna, encontrando o acam-
pamento, se desvia delle pressuroso.
Seguiu-se silencio profundo, precursor das gigantes
convulsões da natureza.
Podos esses murmurios e ruidos estranhos, que se
escapam de bosques e valles, notas tristes e agourei-
ras, similhando sorriso de demonios, estertor de ago-
nisantes, eu sei que mais — para imagimações exalta-
das — acabam de suspender, como que escutando
quanto vae pelo espaço!
Coberta de negro a abobada celeste, e apenas lis-
trada a imtervallos pelas faiscas, que ora distantes
franjam o horisonte, ora proximas parecem cair sobre
nós, lembra um grande manto de ataúde, que, propim-
quo ás nossas cabeças, quizesse envolver-nos.
As fogueiras oscillam, alumiando com a sua luz
amarellada corpos magros, a quem a fome concede na
fraqueza alguma hora de allivio. .
De subito, iluminando de alto a baixo, o relampago
deslumbra o ambiente, para repercutir medonho e ras-
car com seimtillante faisca o fundo retinto dos céus.
Grossos pingos fustigam as fracas tendas, que,
açoitadas pelos rijos repellões do vento crescente,
ameaçam fugir à tempestade, escapando-se pelo mato.
Ribomba o trovão incessante, succedem-se minter-
“ruptas as descargas electricas, sopra furioso o vento
por entre os troncos das arvores vizimhas e dos cipós
que as entrelaçam, abalando-as como simples arbus-
tos, assobiando terrivel, como se n'um momento gran-
de numero de serpentes houvesse penetrado n'aquelle
recinto.
448 De Angola á contra-costa
Os velhos colossos da floresta gemem sobre as no-
dosas raizes, similhando despedir-se da terra, que por
tanto tempo as alimentou; as escarpadas penedias, as
cavernas distantes roncam e urram com ruidos simis-
tros de monstros desconhecidos!
Sombriamente illumimada pelos relampagos, a flo-
resta braceja com os numerosos ramos, trahindo o
mysterio de tantos horrores, por um charivari de gri-
tos, de lamentos, de gemidos, de suspiros; convulsões
que são um protesto enorme contra as iras dos ventos
desencadeados.
Era uma tarde da creação, ou melhor uma noite do
chaos!
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