Bnraiii ISniíreriítlxr
JOHN CÁRTER BROWN
LIBRARY
Purchased from the
Trust Fund of
Lathrop Colgate Harper
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SDc^cendatitin úzfcrnum miLôntej Ne desccndantmoricntcô- s.Bnm.
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DESENGANO
D Q S
PECCADORES,
nfcessario a todo género de pessoas,
utilíssimo aos missionários-,
t aos Predadores de/enganados, que fá defeja» a
faJvaçaÕ das Almas,
DEDICADO
AO sereníssimo senhor
D. MANOEL,
INFANTE DE PORTUGAL.
ESCRITO P£LO
R.P. ALEXANDRE PERIER
Da Companhia de Jefus , e MiíTionario da Pro-
víncia do Brafíl,
ACCRESCENTADO COM HVMA ADDIÇAM
àe hrnn café horrível nefia terceira Iml^rejfao ,
Por LOURENÇO MO RG ANTI,
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"t>>3-cr >'i^«».
M. DCC. XKXV.
Csm .-?/ licenças necepirias, s Privilegio Red.
%^\
Bibliothccario do Illuftriffimo, e Reverendiffimo Senhor
Patriarcha L de Lisboa Oecidental. %^
LISBOA OCCIDENTAL,
NaOfficmade ANTÓNIO PEDR020 GALRAM, 1]
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SENHOR.
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E nao fora notória a todas
aquellas Nafoes ^que V. ALTEZA quizj
honrar com a fua Real prefença ^ a bondade
§ ij de
ÉÍÍÍtiT>ÉiirMflli^BinirTi T— iM I mu — I i.i.iii...ri ■.»!.»■■ - - ..^^ÊÊmtiÊtí/SÊ-l
^e que lÓeô$ fof ferviâo adornar O elda
)efpmto de V. ALTEZA^eu me nao atreve^
'&^a 5 fendo Efir angeir a em Portugal \ a ta^
^m M M^erdade ^^ que agora tomo^ ^ ée cMf
J agrar a FI ALTEZA a prefente ohra ^ a
qual ajfim peta importante matéria que con-
tem y como pelo de^voto ^ e religiofo Author
que a compoz^ y fefaZj, digna ^ nao fó do feu
foherano patroçinio^mas de Poda a fua Real
attençaÕi
Todos os difcurfos que fe lem nejla ohra
fe dirigem' a defenganar hum peccador das
^vaidades do mundo ^ e a con^vencer os en^
ganos de nojfa miferia 3, com a verdade das
mais f o lidas doutrinas^ E como nao e/p era--
rey eu de V. ALTEZA a effícacia da Jua
Real protecção para huma ohta y que fe en-
caminha a tao útil e fanto fim. ISlellà ^er^
V^ ALTEZA lowvadas as 'virtudes que
praticaS os jufos e arguidos òíS^^icios ^ qm
precipitao a todos aquelles y c^ t-em a ^oir-
tude o me f mo ódio y que fá deivèraS ter -av
K
f ':V.AL^TpZA unjehuma eUuéaçao muy
çhrifiãa para deixar de faber 3 que a mefr
ma foberania f que o exalta ^ o expõem a
grandes perigos y e que faÕ majores as obri-
gaççe^ dos Frir^cepes ^ que as de to dós os ou^
tros homens^ Os grandes do jMundo fao hum
injirumèntos de que Deos fe [er^ue paraèXem
€Utar couz^as grandes. Quando Deos qutr
fantificar hum Reyno ^faz^nafcef nelléhuM
'<Princepe cheyo de piedade 3 e de religião. E
quem duvida ^ que V. ALTEZA fabe d^
f empenhar todas as obrigações da fuà Real
'Pejfon y como Princepe y e como Chrijlao'^
E que nafceo em Portugal para o fantificar
-pelo fxemplo das 'virtudes , que pratica 5 e
que quando falsio da Pátria para <jer as
"Cortes de Europa , em todas Je feZò amar\
ie ref peitar y nao fé pelo feu 'alto nafcimenr
to y^ fenaã também pelo feu z^elo y pela fuç^
■modejlia y e pela fua piedad.e.
Por todas eflasi circunfl anciãs tao amar
méis mereceo V, ALTEZA em todas as Cof^
teiúnde affiftio o affeão y a confiança y e a
% ?■
ffiimaçao dos Princepes com quem tratou ,
t a merece tamhem do Augufto Monarca^
que nos go verna^ o qual ama^ aV. ALTEZA
naÕ fó com amor de bom Irmão y mas com
amor de Princepe prudente ^ e fahio ^ por^
que fó elle fahe, dar o 'ualor , e o preço^
que jujlamente merecem as^uirtudes de V.
ALTEZA as quaes fao injinit ame nte mais
ejtimaveis y que todas as^ventages , que a V.
ALTEZ A communicou a naturez^a , e deu
V nafcimento.
Qj^e impref] ao y Senhor y nao faZj o ex-
emplo dam da de V. ALTEZA tao regula^
da pela Ley de Deos nefia illujlre Corte y onde
todo o mundo attento , e devoto ejla apren^
dendo deV. ALTEZA aregular osfem cof-
tumes y e a dirigir a fua vida ? Poderá fub/l-
ftir a irreligião a vifia do profundo refpeito ,
que V. ALTEZA profefja atodosos Myfle-
rios danojfa Santa Fe > Deixara Jefe conr
fundir a indevoçao a vi fia da reverencia ,
dofervor y e da humiliafao ^ que fe admira
fmV. ALTEZA quando chega aos. no jf os
Sa-'
^SacrameMOs\ Camo naotera hum a cenfurà
ou condemnaçao rigor of a na ajj-ahilidade y-i^
^doçura de V. ALT EZ A e na fua caridade^
incomparável^ adurez^a ^ e infenfihilidade ^
ique mojlrao osricvs aos pobres ^ e aeleuaçaò^
pu foherha efcandalofa^ que mofirao os Gran*
des aos pequenos \
O certo he ^ Senhor^ que fo de^r^^^
-ALTEZA podemos diz^er ^ que he hum
'Frincepe ^ que geralmente reyna nos corações
de todos 3 e que juflamente merece o nome de
Delícias da fua Pátria. J\das ainda ^ que o
tenro^ e refpeitofo amor ^ que lhe profejfa^
mos ^ fe funde principalmente nas eminen-
tes qualidades que V. ALTEZA pojJue"^'^&
nas raras virtudes que pratica 5 com tudo
nao poffo deixar de diz^er ^ que efe amor
Jamhem he ejfeito daquelle ar de bondade
daquelle accejjofacil^ daquelle modo agra-
dável com que V. ALTEZA recebe^ e obri-
ga a todos 5 os que tem a inejfavel honra de
chegpLr aos feos Reaes pès ^ e que fo V.
ALTEZA fabe unir f em indecencia dafo-
berania
> /-\
I \-
éerania o amor y e a afabilidade a clrcunf*
f€Cfao dos Princepes,
Efias admira^veis qualidades de que ff
adorna a grande alma de V. JÍLTEZA me
^nfpirarao o deflgnio , e a refoluçao de pedir
humildemente aV. ALTEZA me permitia :>y
que efia obra f aja a publico debajxo de feuf
%eaes aufpicios^ e que eu tenha de hoje por
dia^nte o honrofo ^ e eflima^el titulo de cr è a-
da de V. ALTEZA a quem deZjCJo dar re-
fétidos, tejlemunh os públicos da grande "ver
meraçaS ^ do grande amor ^ .e do grande ref
-peito y que confervo ao, feu grande m^ereci^
^mento y m feu. gr ande génio ^ÀsfUas grandes
^irtudesv DjospmÈde a F, ALTEZA mui-^
âo$ annos* ^
,^.k.
?1 . ... ' . ^v' ^ Lourenço J^^rgaml.
-í\ ^V. rVvu*. i':i'^\\Vit ^^'^\ w^ ^4^'^ xx'íià.i\vb^
AO PIO LEYTOR.
Anta Catharina de Sena , co-
mo taõ amante de N. Senhor
I JefuChriftojdeiejavacomo
grande exceíTo do feu zelo,
porfe na boccadolnferno 5 c
S cõfoíFrerellafó todos aquel-
les tormentos , fechala a todas as Almas remi-
das com o precioíiíTimofanguedo feu dilefto
Efpofo. Eu, que naõ tenho o efpiritO; nem o
fervor defta taõ grande Santa, defejo ao me-
nos fechar para alguns , com eíle meu Livro
aquella bocca infernal , que fem nunca ter ter-
mo 5 fempre eftá aberta para engulir todos os
Peccadores enganados : Dilatavit infernus a-
nimamjuam , & aperuit os futm abfque ullo ^^* ^*
termino. E porque entre aquelies poucos , que
eu intento , e efpéro , mediante a graça Divi-
na , vos ( oh meu caro, e pio Leitor) tendes o
primeiro lugar ; a vòs mefmo prefento efte
pequeno volume, intitulado DESENGANO
DOS PECCADORES, c nelle achareis oen^
gano palpável, em que atègora tendes vivido,
e juntamente o defengano certo , com o re-
*^* me*
médio feguro para a voíTa falvaçao.
Poi- ifto tenhodividyo pfte Livro em qi^.
torzcdiíciMos , que todos alem da matéria do
inferno, conte vários pontosde doutrina muy
íonda,e moral. De maneira q difficultofamen-
te fe achará vicio ,ou má inclinação, em que o
peccador vi via já de muitos annos habituado,
que naõ fe poffa livrar daquelle pego , em que
efta fubmergido • e ainda que agora , pela re-
beldia , e violência da natureza corrupta lhe
pareça como impoíEvel o refurgir , refolvaíTe
a ler cada dia com attençao na hora mais def-
occupada algum ponto do difcurfo da eterni-
dade, ou da pena do dano , ou de algum outro
que trate do vicio , que o predomina, e in vo^
^-^^.-■5 T^ Fii^eiro a DeiDs , com as palavras do Pro-
" ^ íeta Samuel : Loguere Domine, quia audit fer^
IMS tuus. Fallai Senhor que efte peccador voit
íoefcravo vos eíM ouvindo. E como a graça
de Deos nunca falta a quem o bufca , conhe-
cera o engano em que vivia 3 e defenganado
íicara mais forte para reíiftír as tentações , e
venceros mãos hábitos, e o jugo da Icyde
RoíTo Senhor JefuChriflo, que dantes lhe pa^-
recia taÕ difficultofo , e pefado , o achará de^
Manh. P^^s^^y f3cil,e com a experiência muy leve,
, j. e íuave ijugum meumfuave efl, & onusmeum
leve.
Mim íiiccedeo aS. Agoflinho, como elle
meímo refere de fi nas fuás Conflífoes. Eftava
elle .
êjlc emhíia perpetua batalha da carne , com o
eípirito. Cometia o peccado, e logo depois lê^
brando-lhe o Inferno merecido , o aborrecia.
Chamava-o Deos com as íiias infpiraçoens a
mudar vida , e querendo-lhe obedecer, a vio-
Jeticia do amor profano em que eramalabi-
tuado 3 vencia ao Divino. Deí]:e modo com-
batido de dous amores totaluriente oppoftos
hum ao outro , foyfe aíTentar debaixo de hua
arvGre,e chorando afua miferia brotou neftas
palavras: U/que quo Atigujline ufque quò. E até
quando hey de continuar , nefta mà vida [Sem-
pre hey de defFerir de anno, em anno, de mez,
cm mez , de hoje á manha a minha conver-
íâõ ? Quandíu , eras & eras. Se ha de fer húa
vez 5 porque naõ agora , fe ha de fer á manhã,
porque naõ hoje , porque naõ nefta hora , nef-
te momento 3 acabarey de por íim para fem-
pre a eftas minhas torpezas : Quare non moão^
quarô non in hac hora finis turpitudinis me<z. f^f^
Affim chorando , e fallando comfigo , ouvio cap.u^
hua beUiíTima voz , que lhe cantava tolk lege^
tolle legâj e naõ vendo Peffoa, nem lugar don-
de podeffe fahir taõ linda voz , imaginou fer
Angélica. Foyfe logo para o feu apofento , c
pegando nas Epiftolas de S.Paulo, as quiz abrir
acafo com animo refoluto de executar quanto
Deos lhe infinuaíTe por ellas. E achou no pri- . ^
meiro período o defengano, e juntamente o
tcmedioiNofk incubiUhus^& impudicitiis.Eh
Rom. 1 5
**
ahi
ahi o defengano, e vem afer , que quem de-
veras quer falvarfe , convém que largue as de-
licias do corpo ve os deleitesda carne: Sed tn-
didmini Daminum nofirum Jefum CkriJiunK
Eis-aqui o remédio. Quem determina vèffir a
Hbrè de noíTo Senhor JefuChrifto,eíle o pro-
tege como a feu fervo, e o defende com a fua
gpça 5 como fez a S. Agoflinho, que dahi por
\ diante , de hum grande pcccador fahio hum
* ' grandiíTimo Santo.
A maõ de Deo&naõ he abreviada : Manus
Bomininon efl abreviata ; e noíTo Senhor Je-
Matth. ^" ^^"f^o diffede fua própria hocàvNon enim
5. veni vocarejuflos yfedpeccatores. Que naõ ve-
yo ao Mundo para chamar os juffos , mas os
peccadores. Pelo que tolk lege , toUekge, Be
pode fer , que em lendo algum ponto deftc
livro , fiqueis convencido, conhecendo que
tudo o que ha neííe Mundo , he vaidade , fin-
gimento , e hum puro engano» E que de pec-
cador, de tantos annos enganado , em hií inf-
tante vos acheis hu verdadeiro penitente arre-
pendido 5 que he hum grande paífo , para fer
fanto. Supponho, que nunca vos paífará pela
imaginação, que nos difcurfos deite livro , cu-
p principal matéria, he aterribilidade dos tor-
mentos do inferno , ppíía haver exageração?
ou encarecimento. Mas quando por acafo vi-
eíTe eftepenfamento lembrayvos 3 que as pe-
nas do Inferno faõ fobrcnaturacs > c aíílm de
toda
todo incompreheníiveís ao entendimento , é
inexplicáveis á noíTa lingoa 5 porque como diz
S. Paulo fallandoda Bemaventurança;que na5
víraõ os olhos , nem os ouvidos ouvirão, nem
pode caber nos corações dos homés a immen-
fidade da gloria 5 que Deos tem preparado pa-
ra os feus efcolhidos : Non oculus vidit^nec au- i.Cor^
ris audivit , nec in cor hominis afcendii , quds.
pr<eparavit Deus tis qtd diligmt illum, Affim
havemos de difcorrer do Inferno.Qiie naò he
perceptivel ao noífo entendimento , nem en-
tre a esfera dos noffos fentidos , a immeníida-
de dos tormentos que Deos tem preparado
para os réprobos feus inimigos. Pois confor-
me a mifericordia Divina he immeníà , e in-
finita para premiar os juftos ; do mefmomodo-
a fua juftiça he também immenfa, e infinita
para eafiigar com jufto rigor os peccadores.
Os bêsjcmafes da vidaílitura excedem fem
proporção 5 e medida os bês 5 e males da vida
prefente, nao fónaextençaõ, mas também na
intenção 5 e como elles faõ, e feraõ para fem-
pre eternos , por muito que fe encareça, por
muito que fe cuyde , por muito , que fe diga,
fempre como diz S. Agoftinho fera muito me-
nos, do quehe na realidade : jQuid quid vis,
dicas de dttermtate quía quid quid dixeris , mi~ p/fif^
mis Seis. Oh Inferno ! Oh eternidade; Infer-
no, que encerra em fi todo género de tormê-
tos i eternidade , que fempre começa, e nun-
:x
Ch
í'
.^pL^çabâv Sempre , e nuíica ; e nunca , e {hm-
pYQ. Nunca ter húminimo alívio , femprc pa-
decer todas as penas. O cuydarno Inferno , e
na eternidade , chama 3- Agoftinho, aqueíie
grande penhmcmo^magna cõgitatio^qne bem
dirigido tem feyto refolver a tantos Monar-
: cas , e Príncipes , a tantos nobres , e ricos , ^
tantas donzellas virgês, a darás cofias ao Mun-
do, deyxar afua liberdade, e encerrarfe en-
tre quatro paredes , para fugir das occaíiões,
para fazer penitencia , e chorar os feus pec-
cados ; e naõ moverá também a vòs , meu a-
mado Leytor , a mudar vida, a deixar hú goflo
momentâneo , para evitar hua eternidade de
penas ! Eu creyo, e efperoque fim.Mas quan^
dofe achaíle algum peccador taô endureci-
do 5 que a efte trovaõ do Inferno, a efte rayo
da eternidade 5 naoíe defpertaíTe do letargo
dos feus vicios , já pode fechar efte livro , já
para elle , naõ ha efperança do Paraifo , jà he
£^p[;^ morto anticipadamente para o Inferno : ^Í
£^'í' ad h£c tonúrua non expergifcitur , mm mor^i
INTRO-
■^
INTRODUCÇAM
ao Livro.
Andou EIRey Nabuco-
donofor fabricar huma
eftatua de ouro , e no
mefmo tempo convo-
cou as Relações , e Tri-
bunaes, os Príncipes , e
Magnates com todos os
Povosdofeuímperio, para que a adoraffem.
A penas tocava o final, com o fom das trombe*-
tas, tambores , e mais inftrumentos, que logoi
todos proftrados, de joelhos , obedeciaõ ado-
rando a eftatua. Pois como ! Naõ fabiaõ todos
elles y que efte limulacro naõ era o verdadeyro
Deos vivente , mas hu ídolo falfo , hum pou.
CO de ouro fundido pelo qual concorreriaõ tal
vez,j:ambem elles , como oslfraelitas na fun-
dição do bezerro. Sim fabiaõ ; Simidacra gejt-
tium, argentum ,& aurum , opera 7nanuim ^'^''^'^^
hominum^ E juntamente viaõ , que efte era híi
ídolo, que tinha boca, mas naõfallava ; tinha,
ouvido^, mas naõ ouvia , tinha mãos , e pcs,.
mas naõ obrava, nem fe podia mover : Os ha- ^^^^''5
bem , & mn hquentur , manus habent, & non ^^'
]M^pabunt , pedes habent , & mn ambulaUinU
t. com tudo deixavaõ a Deos todo poderofo,..
para idolatrar efte fimulacro. Naõ vos efpan-
teis>,
\
im
teis ,Biz S..Joa5Chryfoftomo : NolkemirarL
Porque tinhao adiante dos olhos acefa huma
grande fornalha de fogo , com hum Arefto ir-
revogável delRey, que , quem naõ fe ajoe-
Dan.^, íhaffé logo , e não adoraffe o fimulacro , fof-
fe no mefmo inftante lançado nella : Si quis
autemmn projlratus adoraverit , eadefn hora
mitietur incaminumignis ardentis. Tanto po-
de hum Rey 5 para fer logo obedecido , com
pôr fomente à vifta huma fornalha de fogo ! c
que feria fe foíTe experimentada.
Eu também nefte meu livro , prefento aos
peccadores enganados , não a fornalha de Ba-
bilónia 5 não o incêndio de Troya , naõ as la-
varedasdoVefuvio, mas a medonha, e hor-
rorofa fornalha do Inferno. Será grande mife-
ria, que de tantos Súbditos delRey Nabu-
00, fó os três Mancebos, defprezando gene-
rofos o feu falfo ídolo , quizeíTem antes ferem
lançados na fornalha , que deixar a adoração
devida ao verdadeiro Deos , todo poderofo,
que no mefmo inftante , lhes trocou o ardor
do fogo , em hum brando zéfiro , e em hum
2)^^ .^ rocio celefte : Etfecit ?nediumfornacis , quafi
i8. ' vmtumroris flãfítem. E que o noíTo Rey, e
Redemptor Jefu Chrifto, de hum numero in-
numerável de Chriftãos,tenha taõ poucos,que
lhe obedeçaõ , com lhes prometter o Paraifo,
e que a mayor parte queira antes feguir ofalfo
Idolodas fuaspaixóes^e nao tema a fornalha do
Inferno. ^^"
^ Dkth y que o fogo c}^ fornalha de Babiíd-
nia, era fogo real, e verdadeiro, e que o fogo q
prefento nas efianipss defte meu livro , hc fo-
go pintado ! AíEm he ? Mas com© effes meus
Difcurfos faõ dirigidos aos Cathoiicos, que
por^^randespeGcadores q^e fejaõ 3 tem ainda
a fé , e efperao com mudar de vida de fe falva-
rem , íupponbo y que efta mefma fé 3 os fará
também crer , que ha tal diííerença entre eíie
noffo fogo fublunar, e o fogo do Inferno , que
fe Deospermittira, que hum condenado paf-
faífe da fornalha do Inferno a fornalha mais
terrivel defte Munda , efla lhe pareceria hum
jardim de flores,os carvões acefos, rofas deje-
ricô, eo ardor do fogo , o mefma fogo pinta-
do, que vedes nas imagês defte livro.
Bogòre Rey dos Búlgaros 5 era P^a5>
c de génio guerreiro. Por muitos annos conti-
nuou a guerra contra Teófilo Em perador do
Oriente- Feitas finalmente as pazes , mais á
forças, que de vontadeyierido de natural feroj
occupavaíTô em icaçar nos matos, as feras,.
mais brabas , e monftruofas. Soube , que
em Roma , haviahum Monge por nome Me-
todio 5 Pintor celeberrimo'. Mmàov o loç^o
bufcar, e a perias chegado- , ordeno? .he , qíie
delineaíle em hum painel os mc..in\.: mais
horridos,eas figuras mais medonhas , que lhes
vieíTemá; imaginação. Como nos Poetas, e
Pintores he licito, dequimerizaír todo género
'^'^^ de
r
deiatfevimeiitos cjii^aa fátitafia ÇQiidu^^ a
perfeição da íba arte. - ^mo-^m-i ^-ã.
Mor. PiãoribusatquePoetis-, ^r; v»'>i^
^f^^t- ■ Quiâlibíitaudendifemperfíiitx^quíipoteflas,
AíTim Metodio 5 íendoinaõ- menos pTsrfeyto
Religíofo 5 que Pintor aíFàeiado;,riaõaehoii
afiia fantafía , poder forjar painel ^ itiais itie-
donho, que o da juftiça final dos Réprobos
para o ínferno; Via Bogòreno alto do painel
o vulto refplandeeente, e falminante, de huii^
Dcos irado , e irritado; via debaixo húa gran-
de fornalha de fogo, donde, fahiaÔ innu-
Bieraveis demónios em figuras taÒ horro*
rofas , que em as vendo os precitos 5 Gorriaq
por medo a fepultarem-fe naqueile abifnío
de fogo. Confiderava ElRey o painel , já at-
tento 5 já cuydadoío , já tímido na confcien-
Hift.in cia 5 e já mudando de cores; Entaõ Metodioj
Bmore- conhecendolhe O coração já difpoíia., expii'
coulhe o myfterio do paioeljC com elle os mais
myfterios da noíTa Santa fé^e em breve tempo
inftruido neiia , mandou a Emperatriz fua pri».
ma hum Bifpo , que o; bautizou. Eis- aqui,
como o fogo pintado em hum painel bailou
para reduzir hum Pagaõ a fazerfe CatholicO;
e de Leaõ íuriofoa trocarfe em hum Cordeiro
manfo. E como na5' poderá fazer o mefm0»>
em hum peccador por grande que feja , pois
alem de fer baiuizado , tem o lume da fé ,^e a
luz do Evangelho, que o guiaõ , eorefreao. i
?;.,>; Mas
^ Mãs^ porque refiro; ewexemplosLHos^ífew
los paífados , qirando ia mim meímò- em /trin-
ta, e mais annos , qne eftive MiffiDnario i\9
Brafil, líiefuccederaõ muitos cafos femelhan-
tes. Tinha eu húa deftas imagens , ilkiminada
com a mefma cor do fogo.Naõ he crivei a imr
preíTaõ do Inferno, que fazia nos índios; tanto
^ííim y que algús vinhaõ, jáaltanoite a confef-
faremfcje perguntandolhes eujporque náô ef-
peravaõ pela manhã, refpondiaõ, ter medo de
morrer aquella noite , com fe lhes repreíentar
íia imaginação aqueile condenado 5 que efíava
ardendo com os Demónios no Inferno. Direy
mais, que nas Miffoes , que eu fazia nas Villás,
e nòs engenhos , por muito , que eu efiudaíTe
de reprefentar ao vivo os infoíFriveis tormen-
tos eternos ; bem poucos , e raros fe.moviaõ.
Porém em moftrando do púlpito a imagem
de hum condenado , logo todo o auditório,
fe desfazia em lagrimas, e gemidos. Tanto he
verdade , que a vifla faz fé , ainda qtie feja de
fogo pintado em hum papel ; muyto mais,
quando eíla fé he de Deos, com crer,e ter por
infallivel o fogo do Inferno. -
j Efte foy o principal motivo , que me indu-
'mo a unireftaseftampas, com efletivrodode-
fengano dos peccadores , para que depois de
viííasje coníideradas, fuprao o pouco efpirito,
e zelo 3 com que em tantos annos de M iíEona-*
rio 5 trabalhei taõ froxamepte na falvaçaõ das
'^■"■^ ' ^^^^ 2 -AI-
1
r
jftMFnfciif I II «■ni—nMMiiiiiii •
Almas. Oh íe quizera Deos , que alguiriaS fb
j^^^^ convertelTem , e eu pudeffe reddere animam
% i . pro anima erii defcoiito dos meus peccados , e
das minhas tibiezas nx) feu ferviço; Tenho ra^
zaõ de crer , e éfperar affini ; pois diz S. Pau-
io,qae Deos coftiima eleger para femelhantes
emp rezas da fua gloria os fogeitos mais viz , e
^1^^* defpreíiveis : Ignobilia Mundi'i& contempúbi-
lia elegit Deus. Q\\q fe pois , nem a viftá do fo-
go pintado neftas imagens, nem a confidera-
çaõ do Inferno , faõ baftantes para defenganar
a algum peccador endurecidor; faiba,que toda
a Sagrada Efcritura , e o mefmo Filho de
Déos no feu Evangelho^ naõ achou remédio
mais eíficaz para reduzir os peecadores à pe-
nitencia, quç o tormento do fogo eterno: Ite
jf^Mth. fnaledtãi in ignem Mernim.. E bem pode apli-
^^* car a íi aquella formidável fentença , que pro-
nunciou Deos por boca do Profeta Ifaias; Hm:
dicit Dominus , infanahilis fraãura tuapeiji-
J^rem. -fyi^ plaga tua^ A chaga da tua maldade, he jà
tam apodrecida , e corrupta , que be incurá-
vel, efem remédio , verificando-fe delia a-
quelle celebre aforifmo da Medicina : Quod
Fern.de fionfãfmt jnedicamentum fanat ferrum y quod
nonfanat fernm fanat ignis j quodnonfmat
ignis^ftinf^mihik.
LICEN.
mo
Cftr.
LICENÇA DOS.OFFICIO.
POde-fetormr 3 imprimir o Livro dequcfetra-
ta,e depois dí imprcíTo , tornará para fc confe-
rir, c dar licença que corra ,fem a qual nao correrá.
Lisbja Occidental o priméyro de Fevcreyrode 1755.
Fr. Rodrigo Lmcajlre. Teyxeyra. Sylva. Soares,
Abreu.
LICENÇA DO ORDINÁRIO.
POde-fetornir a imprimir o Livro de que fe tra-
ta , e depois de ímpreíTo tornará para íc confe-
rir ,e dar licença para que corra. Lisboa Occidental
/.dcFcvereyrodc 1735.
Gouvea.
LICENÇA DO PAÇO.
Cenf/iradô P. M, Fr Felippe da Conceyçao ^^ialifi'
cador do Santo Qfficto, &c.
SENHOR.
O Livro mencionsdo nefta petição retro, ha muy-
to tempo que o li com muyto gofto ; porque ale
de conter doutrinas muy importantes para afalva-
çaõ dís almas, naõ tem coufa aigu3, que feja diíTonan-
te aos DecretoSjC Reaes politicas deV.Magcftade pelo
que me parece digno , c digniífimo ds íc reimprimir
mui-
,^,^(^i^ia,fiiiag^
itiuitás vczès. S. Fr ânòifco dá Cidade de Lisboa Ô^
cí dèntâ 1 1 ò. de Fe ycrey ro de j 7 3 5 . •
¥r. Felippeda Conceyfc^,
Ue íe poíTa imprimir vifías as licenças do Santo
^OíBcio, e.Oi"dinario , e depois de impreífo tor-
nará a eOa Meza para íc coníerir,e taxar ,.è dar licen-
ça para correr , c íem iíTo naõ correrá. Lisboa Occi-
dental 10, de Março de 17 35/
Teyxeyra, Bonich^»
'4?;'-í r^^l ,
■'«IO* \^
mm
•®f i.^3Í* ,^i^^i^^ >íi^l^ ..y^s^
«ô? /:i::r^..,:íL*- 4.,~.r-!.v.^5*jr L^r^-f^^-s- ty5=5f^*/í5«.>i
r>,tt >.,Oí^>t ijV^íS-^ ■-■^"--'^ ,r-<K,<u-» --í-í;'-^ y-.-r-í'^» — -^-"í>'5. J^-1Í>» *-;-5SÍÍ^ g q^
5r>rf'í«i5=í<r v^^^í-v;^*?*" kssít^-t-ri^^ >?::^í?^*'^-^ v~^n:*m??/' fi^
•w4i '^teaÇí*- ^t?s?t» «P^^.ei a.ÇÍ^^*! <*Ir^'« ^í^
J^ &Mi!^J-S SAL^«J^^ «-■'vjfci'^ ^v^->^', ^^Ks'^'^^ ísQ»
:''\ L I C E NC, AS.
1) OMe correr. Lisboa Occidental 19. de
Agoftodei735.
Fr^Uoãrígo Lencajln, Teixeira. Sylva,
Cabedo. Soares^ Abreu.
Ifto eftar conforme com o original po-
de correr. Lisboa Occidental 19. de
AgQftodei735.
Gouvea,
T" Aíxao elíe' tí^^ro èm hlitlè quatroc
equatenta reis em papel. Lisboa Occi-
dental 22. de Agofto 1735.
Pereira,
Teixeira.
índice
DOS DISCURSOS*
IfciiríbL Tormentel. do Cárcere do In-
^^^^ ferno. P^g- ^
Difcurfo 11. Do twmentoda vifta entre as tre-
vas do Inferno, ^7
Difcurfo III. Do tormento dos Ouvidos. 5 5
Difcurfo IV. Do tormento do infofrivel fedor
do Inferno. . ^í
Difcurfo V. Do tormento do Goflar, 105
Difcurío il.Do tormento, do Taão. 1 33
Difcurfo. VIL Do. tormento dos Soberbos ,- e
Prejumidos, ^ 2:65
DifcorfoVlILDo tormento dos Avarentos. 20^^
Difcurfo IX. Do tormento dos Luxwrmfos.i^J^
Difcurfo X..Doiormento ãosTyrannos y eVin-
gativos, , ^75
Difcurfo XL Dq tormento do Sitio immo-
veL 309
DifciarfoXlL De tormento da pena do Da-
no. 34^
Difcurfo XIV. Do tormento da Defefperar
çaõ. 373'
Difcurfo ultimo. Do tormento da Etermda^
de. 405
Aúic^zí). De bum cafo horrendo de hum joga-
dor ^quefoyfovertido vivo na Inferno. 441 •
âj>
DISCURSO I.
TORMENTO PRIMEYRO
Do Cárcere do Inferno,
Claudentur ihiin Cárcere AíàU c. 24.
Ntreaspenas,queasleys huma-
nas tem decretado para punir
os delinquentes, as mais ufiiaís
faô a priíaò, e o degredo; e .lin-
da que cRas, por ferem mais c5-
muas,naõ fazem ao Povo aquei-
le terror,que comíigo trazem os
fionies dos tratos , dos equleos,
das rodas,e dosTouros de F-ilia-
ris, e outros gcnerosde tormencos,quca juíliça huniana
julgou porporcionados para caftigar os delidos mais
atrozes dos Malfeytores, ou a barbaridade dosTyranoi
íoube inventar, para vencer a infuperavel conilancia
dos Martyres ; com tudofe a priíaò for apertada , e por
toda â vida, he muyto mais cruel que todos eftes tormê-
tos , e que a mefma morte , poys ; EJipge martyrium,
A hc
< I
2 Difcúvfo L
hehum martyrio continuado. Por ifio viíítando hum
diap Emperador Tibério as priíces , hum Fidalgo,
^ qu-jàdemuytos annos vivia naquelle tormento, lhe
pedio , naõ, que o fokaíTe , pois bem íabia , que jà cíia-
va como eíquecido, mas que ao menos \hx déííe a
S^et.m morte. Refpondco-lhe Tibério: Nond^Hm m Pratiam
^^'^- mectmreàiftt. Ifichc , o que vôs deíc.aes , e quereis,
mas ainda naõ fois tornado na minha graça , julgan-
do que a morte por cruel , que fcíTe , lhe fer viria de
ahv:o,emuyto maisíuave, que a pena da prifaò. E
m verdade, íe o cárcere he com aperto, c o delin-
quente eítá em algum calabouço, aonde naõ o deyxem
ver, nem fallar com Alma viva,jà a penado cárcere
he mays fenílvel por lhe eflar anexa aquella do degre-
do, poys vive na fua Pátria, ou em húa Cidade, como
íecflivcíTe longe mil legoas emhumdeferto, Eis-aqui
dibuxada por alto foda a matéria, que hey de tratar
nefte primeyro diícurfo do Cárcere do Inferno. Mo-
ilrarey cm primeyro lugar , quam terrivcl he cfíe cár-
cere infernal, naô tendo comparação com os mays me-
donhos, e cruéis do Mundo ;'em fegundolugar vere-
mos como a Jufíiça Divina tem encerrado neíkprifaQ
todos os géneros de tormentos aífim na quantidade,
como na qualidade ao noíío entendimento imperceptí-
veis para caftigar os Peccadores,que deyxaõ ao feu
Crcador pelas creaturas.
Mas quanto mais terrível , e penofa fera a \^ú{m
à(ò Inferno , das que ínvenráraô os Tiranos , ou imagi-
narão os Poetas, e quanto mais ícníivcl fera o degre-
do , depois que a Alma defpida do corpo , conhece-
ra claramente que a íua Pátria , para a qual foy creada,
era o Paraifo IO labirinto de Creta, como refere Ce-
iiojfoy húa prifaô condecorada com cík nome , para
moftrar , que era muy fácil a entrada , mas fcm à cfpe •
rança de achar afaida. Chaniava-fc Lahyrintus qmfi
labor
Celiiu
itb. 7.
Tormento L do cárcere do Inferm. j
labor intuSi porque quem lá hua vez entra \ra,naò acha-
va íenaò trabalhos, c penas. Dionizio Rey, ou pa- .
ra melhor dizer, Tirano de Siracuía , mandou fabri.,/ ^^^
car híi j prifaô , que por fora parecia hum palácio mag- cèuut
niíico de eftruilrura Regia , ainda mais viítofo , cfo-M, 17,
bsrbo, que o Pa^o do mcímo Rey, mas quem por fua
dcfgraça encrava dentro , o achava melancólico , cícu-
ro, tétrico, com as paredes Zaq ruilicas , c horroro-
ias, que em breve tempo ác pura melancolia acaba-
va os ícus dias. No tempo de Vertes , os Romanos
lhe piizcrâò o nome GcOrhíídomicilium pelos muytos
que làentravaõ , c nunca mavs fahiaô. Os MelTenios . 'Hf!','
labricarao hum cárcere horrendiíim^o ,e tao mal ar-,^^
chite(flado,quc parecia hum monfíro , cíiava debayxo
da terra , ícmprc cm hua perpetua obícuridade , naõ
tinha portas, nem janellas, por onde cntraíTe a luz,
nem tranípiraíTc o ar. Sô tinha hum buracQ i por onde
cntravaõ os Réos , e lo^o íe fechava com huma erandc
pedra a modo de íepultura : Monílrum horrenditm ^^eiti,
informe mgens y cuí Iwmsn ademptiim, EaciiccarcereA^.Ó.
para lhe diminuir a horribilidade com huin bellifiimo
nome , lhe chamarão o ihefouro. Pelo contrario a
Republica de Athcnas poznomc de báratro a hCia Aia
priíac f.ibricadaa modo de poço, era por dentro to- ^^''^^
da de pedra mármore, mas no fundo cílava hum cn- ' ''^*
xarcode immundicias, nas quaes logo q:ie hnç?.vaõ
dentro do dito poço algum delinquente morria affo-
gado. Os Romanos, alem do cárcere Tulliano, ti-
nhaõ por prifaô a rupcTarpcya , cavada em hiii penha ^''«'•'^^'
altiíTima perto do Capitólio, mas muyto peores craõ
os dcgraos gemonios , calabouço feyco a modo de e iça-
da no Monte Aventino , c fe chamava o lugar dos ge-
midos, c eíiancia das calamidades; Locíís gemiUim^
cala calamitatmn. Galeacio Vifconti, Duque de Mi-
lão fez fabricar hua priíaô em forma redonda, ccom.
A 2 a abo-
4 Difcurfo }.
^^.^"^^aabobcda taõbayxa, que lhe chamavão o fornoi c
m vttíi, p^,35 cj-2 po/fj vei c(^3j. }^yj^ Homem em pè , por peque-
no que foííc , nem havia outra luz , que a da bocca do
forno , quando fe abria. Porém ninguém íuperou na
crueldade ferina s Ezeiino Romano /depoy^ KegulOjC
Tirano de Pádua. Efte fez fabricar hum cárcere , a
que cllc,e os Povos puzeraõ o nome de priíaô infer-
nal, na qual quem hua vez entrava , nunca mais fahiaj
de nenbúa parte entrava nelia luz, ou ar: os mortos
matavaôaos vivos. Cada dia entravaonella quantida-
de de peíToas a borboutaõ como ovelhas. Morriaò
íem numero , c aífim innumcraveis eraô aquelles , que
todos os dias entravaó , pois já ninguém tomava o
etldT ^^'^^^^^^"^ P^^''^ grande confufaõ de os contar. A prifaõ
fàt, P°^' ^ ^"^^ obícuriíTima, c naô fc ouvia nella outra cou-
ía , que gemidos , gritos , e alaridos. O tormento naõ
ícy íc mcdigaincreivcl, ou inexplicável. Cada hum
padecia fome, fede, calma, com a penúria de todas
aquelías couías, que faóá humana mifcria neceíTariaSi
oícdor era intolerável , co que mais os molefeva,
craô certas ícvandijas, que denrro daqucllas fedo-
rentas immundicias íe criavaõ, c Icm dar hum momen-
to de deícanço , hiaô roendo de dia , e de noy te aquel-
les corpos dos miícraveis prcíos.Naò fe choravaõ na-
quclia prifaõ os defuntos , antes os que morriaõ , eraô
cítiíiiados fcliccs,e bcmafortunados , poys ficavaô li-
vres de tanta infelicidade, e miíeria. Eftas em com-
pendio íaô^s prifccs mais horrendas, c pcnofas , que
foubcraõ inventar os Tiranos mais deshumanos, e por
muyto que fe enfurcceííe o íeu ódio , e íe deshumanaf-
íe a fua natureza, todas cftas prifocs faõ jardins de
flores , c camas de rofas , à vifla do cárcere do Infer-
no , que alem de íer de fogo , encerra em íi , como vc*
Cipr, ^^"'^os , todo género de tormentos.
tt)m %, S. Cipriano repara j oue Dcos na crcaçaô do Mun
do
Tormento h do cárcere ào Ínfimo, f
âõ tem pofto emoCeo no alto fobre as noíTass cabeças,
creando o Homem dircyto , a fim de que coníiderando
es reíplandores do Sol, e a fermofura das eftrellas , nos
íerviíTem como dedegraos para contemplarmos a íua
Divindade, eeaamorarmo-nos do Paraiíb. Omcfmo
conhcoéraô os Poetas gentios. .,
Fronaque cum teneant ammdia deterá fronte^ ^^^^^'
OsHominifubUmededit coelumquetíiert, ^ Metar»
Pelo contrario, tem eícondido a horrorofa prifaô in-
fernai no lugar mais profundo debayxo dos noíTos pès,
para dar-nos a entender , que ofeu fim principal naò
era, que o amemos, cfirvamos obrigados como eícra-
vos, por medo |C rigor dosfuplicios, mas por amor,
como Filhos aoPay, e como feus herdeyros. Porem
vendo Deos a ingratidão dos Homes,que íe haviaô de
render fempre mais inícnfiveis aos íeus bencficios,
multiplicando culpas , e amontoando delidos íobre
delidos , fe vio para a íua emenda obrigado a defcu-
brirlhes o grande abilmo de tormentos , que eftá para
clles preparado nefta prifaò do Inferno.
Que haja eflc cárcere do Inferno , he verdade taõ
certa, como he certo, que ha Deos, eíc Deos hejufto
cverdadeyro, enaô pôde mentir, feguefcique aju-
ftiç^ por fer reda , ha de dar o premio aos bons , e o
caâigo aos màos. O Paraifo aos efcoihidos , que obra-
rão bem, e o amarão, e íerviraõ. O Inferno aos Preci-
tos,que obráraõ mal, por fazerem a íua perverfa von-
tade , enaõ lhe obedecerão. Publicou pois Deos efta
verdade do cárcere do inferno na ley antiga, em to-
dos os livros do teftamento velho por bocca de rodos
os Profetas i ena Ley nova começou a publicalla o
Prodromo S. Joaõ Bautifla; Praàícanshapifmum pw- -^^^^^^^
niteriti^m remijjtomm feccatorum ; ameaçando o fogo ^^^ ^ '
do Inferno, que nunca fe apaga, edura íemprej^^
mteriti^mremijfltonem feccatorum; ameaçando ofego
do Inferno, que nunca fe apaga, edura íemprej^^
ícas autemcombuntigni inexunguibilí. Pepois o mef-
A 3 "^^
jítC.Ç'
5>^
D, Bem
Sen. o-
pfís i .6
D, An,
ton. Sã'
maThe-
JfaU.v.
^ Dtfimfi h
moChrifto tantas vezes deíua própria bõccajcpoí
bõCca dos íeus Apoítolas , que como trombetas da \ç,j
Evangélica annunciàraô efte cárcere do fogo do Infer-
no a todo o Mundo; Inomnem Urram extvit fonmeú'
rum, e^ m finem orbis terra verba eorum.
De qualquer maneyra, que nôs conílderarmos cfla
prifaõ do Inferno , e 6s diáerentes ítiplicios , que nel-
la fe padecem, nada acharemos, quenaô íeja dcfti-
nádo pela divina juftiça, para dar mayor pena, e tor-
mento aos Condenados. O itio he o maystrifíe, o
mays tctriòe , e hediondo, que fe poíTa imaginar , o cli-
ma o mays peftifero,o lugar o mays infamejO mays bay-
X:0, e profundo, poys heomeímo centro da terra, o
fangradouro de todas as fezes do Mundo. Porque, co-
mo bem diz S. Bernardino de Sena , a morada da Cafa
ha de ter proporção com os moradores , que a abitaõ,
eaffim como ofírio mais elevado, que heo Ceo Em-
pireo, fe deve aos corpos glorioíos , que faõ os Santos,
affim o lugar mays bayxo, e inficionado •,. que he o
Inferno, tocca, e fe deve aos corpos mais infames, c
vis , como faõ os dos peccadores. Outra razaõ dá San-
to Antonino Areebifpo de Florença , c argumenta af»
fím. O lugar mays proprioaos corpos mnys peíanres he
a terra , e da mefma terra o mays profundo, e bayxo hc
o que mays pefa , pois dos corpos que mays peíaõ , íao
os que contem em fi a mayor carga doi peccados,íc-
gue-fe logo i que o centro da terra, como mayspefado^
íeja o lugar mays próprio , e proporcionado aos Pecca-
dores Precitos f que faõ os mays pefados , pela grande
carga das culpas , que carregaô comíigo.
Se pois Gonfídcrarmos a grandeza, e capacidade
dó inferno. O Eípirito Santo ,pelo Profeta Ifaias nos
faz faber , que o Inferno tem dilatado o feu vc.ntre de
modo, que naõ tem medida ; Dilatavit Infernus ani*
mamfiiam, e tem aberta auia bocca, que naõ ici»
ter-
Tormento h do cárcere do Inferno. %
termo .- Et aperuit osfuum akfque ullo termm.Cotnçn**
ta efte texto Cornelio Alapide, e diz que o Profeta
falia mccaforicamente , dando ao Inferno corpo , e al-
ma, e fazendo olemelhante a húa grande bcih infacia-
vel,quefempre tem fome,e tudo devora: Inferus infa-
tUbtUter cava gtitura pandit. Domefmo modo Salo-
mão nos íeus Provérbios , entre as caufas^ que elie
chama infaciaveisjpoem em primeyro lugar o Inferno,
e no ultimo o mefmo fogo do Inferno , que nunca diz
bana,e nunca deyxará de arder, e atormentar : Trtá
funt inJaturabiUa Infernns^ os vulva ^& ignís qui nun*
quamdicit , Jufficit, Quer dizer o Sagrado Texto, que
naò íe conlolem , nem fe allucinem os Peccadores,
por ferem muytos , porque ainda que íejaõ innumera-
veis, na priíaò do Inferno haverá lugar para todos, e
quantos forem todos caberão , mas fortemente aperta-
dos, como agora veremos.
Os Matemáticos mays peritos , que muytas vezes
tem tomado as medidas defte globo terráqueo , que
íoa o meímo , que efte noíTo Mundo fublunar , provaõ
com nummence; como diz o P. Menochio , que em to-
do o íeu circuito, e grandeza , he pouco mays , ou me-
nos de íeis mil legojs. Conforme efta dimençaò fizem
o computo, que o Cárcere do Inferno, aquella cava-
medonha , aquella bocca fedorenta , aquelle chãos
de confufaó naò chega a ter mays de largura , de pro-
fundidade, de extensão , e de circuito que efcaçamcn-.
te duas legoas , pois a groíTura das paredes fera em tor
da a parte, e circunferência defti prifaõ,ou cava infer-
nal de mil e quinhentas legoas. Nem pareça efte eípa-
cio do cárcere do Inferno increivel ao pio Ley tor , por
pequeno , e muyto limitado , para caberem tantos mi-
lliôes de Condenados, que deídeo principio do Muni-
do faô entrados, e haô de entrar , até íe acabar o.
Muiado , fcm ícrcm entrç íí pÊjietrgdo.s : ppys hc cer-
o. ^ " A4 tií:
lap ^^ -
faUlfiè
Prev]
cap ^o^
Steph.
Menae,
Mèclef,
1.15.
Matth
8 Úifeuvfo h
dífiiTio , c de fé , que no ultimo dia do' juízo haô di
refuícitâF todos os corpos , a ffim dosjuftos, cómodos.
Peccadorcs, e todos affim cfcolhidos , como Precitosy
íe haô de arruinar ,, e caber no Valle de Jofaf^t, para
ouvirem a fua íentença , e haõ também de ferem diviw
didos,e feparados.Os Santos ámaõdirey ta, como ove-
lhas, que ouvirão a voz , e íeguiraô o caminho do fea
Paftor. Oi Réprobos à maô eíquerda , comp Cabri-
tos,qiie íahiraõ do rebanho de Chrifto,e fe aliíiàraô de
bayxQ da bandep-a do Demónio , pára depois entrar
comeíles no chiqueyro do Inferno: fe no Valle de Jo-
íafat haô de caber apartados, e divididos gs Predcf-
tinados dos Precitos , quem poderá logo duvidar , que
no Inferno caibaô fó^ os Réprobos , íendo efte muyta
mayor que o Valle de Jakfac , ainda que o numero fera
quaíí infinito, como diz Salomão : Sttdtornm injinitus
eji numerus ; epor innumeraveisque íejaõ, o grande
aperto, em queeflaráó , como veremos , íempie lhes.
dará lugar.
Será pois efla prizaó do Inferno taô apertada, que
os miferos Condenados ficaráõ neila como Sardinhas
€m hum barri 1 , ou como huns cachos de uvas efpre-
jnidos no lagar. Mas deftc apertofallarey mais por cx-
tenío nodifcurfodotormentodofítio immovcl. Ago-
ra digo focom o Profeta 1 faias, que os Réprobos fe-
raõ todos congregados em hum montaô, e depois
atados como feyxesdè le/rna , & lançados na fornalha
do Inferno : Congregabmtnr in cofigregaíivne tinhisfa^
Jcis -i ó^claudentm ibim cárcere: Feyxes de lenha fc
chamaõ vários paos atados , grandes , e pequenos fcm'-
maysdiftiriçaô,ourefguardo.Lenha para o fogo iab os
Peccadorcs, como diz Chrifto no Evangelho ; Omnis^
ârbor ^quanon facitfruõium bonum^excidetur^ & in
ígnemmittetur. Toda a arvore, que não derbomf.u-
U),;feja cortada para o fogo, e comparando, os bons-
iQvniefftoh do tmmtéo Jnferm. f
ao trigo , c os màos á zlzania , ordenou , que a zizânia
foíFe atada em fey xcs , e eftes lançados no fogo.jdoijin-
ferno: AlUgate in fnfciculos ad cotiburendum. S.Grc-Matth.
goriohe de parecer, que eftes feyxes fcraó de varias<^'«^l^
taflas de Peecadores , como as lenhas faõ de varias caf-
tas de paos. Soberbos com Soberbos , Avarenios com
Avarentos , Laícivos com Lafcivos , Zizanarios com j^ ^^^^;_
Zizanarios; Congregabuntur ihi congregattone Mírnsfa- tiom in
fcis^ nt quiparesfunt in cnlpú^ àamnentur pariter , & m Evang.
foenÍ6; Síipethi cum Super bis , Avartcum Avarú ; Lu- Mmh,.
Kurtofi cum L uxnrio/iS'.
Mas Gomo pôde fer, qnc os Réprobos fiquem atai
dcs a modo de feyxes iJllígaie infajciculos. Com pri-
mcyro íer apriíionado cada hum por íi, e carregado de
algemas nas mãos, e de grilhões nos pés , para depoys
congregados cm feixes ícrem lançados n^quelle efcuro
calabouço ; Ltgatií manibus , é' pedtbtís mittíte in tem- ^atth,
bras exteriores. QuandoChriíio no ultimo dia dojui- ^.12 15;
zo pronunciada a fentença lhes ordenará , que fe apar-
tem delie^ecorraõaprecipitar-fe no fogo eterno: Di-
fcedite ame Malediài inignem ater num. Declarando,
quecfta priíaò infernal foy preparada deíde oprimey-
ro dia dacrcaçaõ do Mundo para os Demónios , e naó
para o Homem, que foy creado no feptimo , nem para
os ícus íueeeíTores , íenaõ em caio , que pelo peccado
mortal íe trasformaffem elles também em DcmonioSi Mmhl
como feusíequazes \Difcedite ame Maleàiãí inignem^^P-^^S^
afernnm,qmparatuseft a conflitntione tSdundi,Dia-
bolo^Ó' Angeluejus. Diz mais o Evangelifta Saõ Ma-
thcuà , que os Precitos j^ naõ mandados , nem roga-
dos , naõ obrigados,, nem arraiados , mas corno de
íuff própria vontade, como de feu raeímo pè/ fem
detença , fcmmaiis demora , antes com precipitação,
iráó bufcar o feu íupplicio , e penar eternamente no Matth,
Inicvno ilbuntinfuf^liciumaternum. Mas qual. he o^-^J-^^
Rêo,
Râo, ou Mdfe^torjcm qualquer parte , quefeja dd
Mnido , que ouvindo o arrefto irrevogável da fua fcti-
.. . . .^ teaça de morte, vá cUemeicno efpontaneameDte , e de
•^ -<l»^' íeu pè buícar o patíbulo? Muytos Belegins armados,^
ò kvaó cora as mãos algemadas , com huma groíTa cor^*
renEe , que vá' arraflara^ oospès, e com o laço ao
peícoço i por raayor íegurança , o tem^ por detraz o
Verdugo nas próprias mãos. Nada difíiotcm mifíer
os Condemdos no Inferno : Uum in fuppUcium at^k
ntim, IburU -f iráõ acompanhados com o Aigoz mais
cruel da lua rèa confciencia, que lhes repreíencará
fempre á memoria as fuás maldades , atados com
buas corrêtes compridas de tantos fuzis , quantos íaõ
os feus pcccados : e da mefma maneyra , que hua gran-
de pedra de moinho, atada, e cercada de barras de
ferro , e levantada no ar, epoíla em equilíbrio, ella
fem mais morulas fedeyxarácahir a precipício, átc
, chegar ao íeu centro , e o pefo do ferro , e das 4tadu^
ras , naõ íó naò impedirá , nem retardará o íeu cur^
íOi mas antes o facilitará ,c dará mayor impulío no
feu movimento. ; AíTim do mefmo modo , os infames
corpos dos Precitos , ainda que fejaô atados cada hum
por íi de pès, e mãos com os terríveis grilhões dos feus
delidos, e reiigados em feyxes com a forte corren-
te das culpas , entre elles commuas ,e da mefma eípe^
cie , re5fa via pelo caminho mais direyto , e breve fem
\ ■ ■ torcerderta, ou daquella parte, fem divertir de huma,
ou da outra banda: Mole fua ruent in infernum com
a carga fobrada , e pefo immenío dos feus pcccados
feprecipitaráôforçofamente no centro da terra mais
pefada , que he o Infetno, Ibunt. Iraõ envergo-
nhados das íuas torpezas , enganos , embuftias ,50
calumnias, vendo-fe entre tanosjuflos, que delles
mefmos atribulados , íoffrendo-os com paciência
fouberaõ ganhar o Cco, íbunU Irlôõ t^iíles » e. coa-
funf
Túrmentõ Id&mvaredo Infernei ^t
fíindidos, por t€t oíf(ín<lido, c dcíprezâdo a Dco« 9
por naõ ter recorrido á Virgem NoíTa Senhora, quc^
como Mãy dos Peccadores , podia com o ícu patro-
cinio impetrar-ihes do fcu bendito Filho o pcrdaô das
funs culpas, e fazeiosherdcyros do Paraifo. Agora íi
que ibunt iraõ j e naô fó iraô , mas correràõ cm
precipício como dcfeíperados , a cnterrarfe naqueilc
profundo abifmo de tormentos; e naõ contentes do
aperto da prilaõ ,eftando já tahtos milhares, e mi-
lhões de condenados, hunsíbbrc os outros , pedirão,
como diz o Evangelho aos montes, que cayaõ fobre , 'c
€\\cs : Inapient dícere , tunç àicent montibm cadite fU' capXxf
fer nos , e rogaràõ os mefmos colles , que lhes fechem
a bocca daquellc eterno calabouço , íervindo-lhes de,
pedra fepulcral , para nunca mais ícrem viílos , nem
ouvidosj nem lembrados ; Et collibus operite nos,
Efcaçamente fe achou oRicco Avarento fepulta-
do nefta prifaô do Inferno^ quelogofcyto MiíTionario
zelofopedio ao Padre Abrahaó que mandaíTe algum
dos já defuntos para converter os fcus cinco Irmãos,
queeflavaõ rcgalando-fe no Mundo com asriquezas} ^ ,
que lhes tinha dcyxado : Sed fiqvU exmorínú ierit ad ^^p \c,
€os , píenitentiam ãgent. Era coufa natural , que para
fizer crtas converções mandaíTe a elle, como Irmaõ
mais velho, e porque o aperto úo cárcere lhe era iníof-
frivel , imaginava teria algum alivio,ou mayor largue-
za com íair do cárcere naquelles breves inflantes,
que fazia a fua embayxada. Naõ lho cõcedeo Abrahaõ,
porque aos condenados, que naô quizeraò fazer ne-
fle Mundo a vontade de Deos , alem de nunca mais te-
rem no Inferno o minimo alivio nas fuás penos, para
mayor íeu tormento fe lhe fará íempre o contrario do
que apetecer a íua vontade. Com tudo tem pf rmcti*
do Deos rnras vezes para noíTa emenda certos caíos,
qucaicu lugar referiremos: «m que algum Precito
í J por
QQ
it Difcurfo h
porbreyc efpâcio de tempo tem fahido da prizaS B^
Inferno j mas ifl:o foy para declaramos as penas atro-
zes , que lápadeciaô, c muito mais para convencei:,
c confundir aquciles Peccadores inveterados , que
immerlos nos vicios vivem titubantcs na fé , e faría-
mcntc enganados fe allucinaô como Athciftas , e di-
zem, que naô tem viflo até agora , de tantos, que mor-
rem , quem feja tornado, e nos déíTe diílinca noticia
do que íe paffa naquclla região taô medonha , e decan-
tada do Inferno : "Dixertmt enim cogitanies apud fe non
Sapimt.. Ye^e , non eft qui agnitus fit rever fus ab inferis.
^^■P'2" Nem por ifto o miferavcl Condenado , para qual-
quer parte do Mundo ,quc a Juftiça Divina o mande,
ou em qualquer lugar lhe ordene , que efteja , deyxai á
de trazer comíigo o mefmo aperto da prifaõ, e tole-
rar todos aquelles tormentos, que fofFria eftando aper-
tado, c amontoado com os outros no Inferno. Ba-
Ía:^etcs primeyro Emperador dos Turcos , que pela
Dí^. facilidade,e' preikza, que tinha em conquiftar Provin-
hi/ijit. cias, e Reynos , o chama vaõ por alcunha Gilderin ^ que
^* cm lingoaTurqueíca foa o mefmo que na noíTa Por-
tugueza rayo. Começarão as íuas conquiftas no an-
no 1 392. e fubjugou a Bulgária , Macedónia , Armé-
nia, Teíralia,e durando pelo efpacio de dez annos
â fua fortuni fenhoreou húi porção da Europa, c hua
grande parte da Aíia. Atemorizados os Príncipes con-
finantes' de tantas viílorias i cconhecida a ambição,
c tirania de Baj izetes , fe unirão , e recorrerão ao graõ
Tamborlam dos Tártaros Rey porentiííimo ; eQe, pre-
parado em breve tempo hum formidável exercito , ve-
yo, vio , vencco, e o preíionou na primeyra bata-
lha. Fevto captivo o íoberbo Bajazetes no 1 402. man-
dou o Tamborlam fazer huma forte gayola com varas
de ferro, e ahi imprefionado , para o humilhar, tra-
zia-o comfigo em toda a parte fcyto trofco da vaida-
de,
Tormento h do cãYcere ão Inferno, -i^
dè, baículhoda fortuna, e opróbrios de toda â Aíía>.
Em tanta deígraça , e mi feria nunca afrouxou o oigUr
Iho de Bajazctes, nem quiz pedir graça, ou favor ao
Tamboriam , nem reconhcccio , e rcfpcytalo como vi-
dorioío. Finalmente enfadado de hum cárcere taõ
pcnofo , naô achando quem lhe déíTe veneno , ou al-
gum iníirumento para íc matar dcíefperado , deu tan.-
tas vezes , c com tanta força com a cabeça naqucl-
las barras de ferro, quc derramando os miolos, tro-
cou com a morte apriíaõ temporal dcfla vida coma
eterna do Inferno. Eis-aqui , como Bajazetcs fcm
lahir do aperto da fuapriíaõ corria todas as Provín-
cias da Afia com mayor ignominia , e tormento, que fc
foíTc fechado em hum eícuro calabouço.
Tenho referido eík fucceíTo para mayor intelligcn-
cia de hum Texto da Sagrada Efcritura , que confirma
quanto atê agora temos dito. O Profeta David fem-
pre maiszelofo contra os Pcccadorcs , diz que Deos
meterá os Peccadores cm hum forno de fogo, c que
ahi a ira de Deos os conturbará \ e o fogo os devorará; /y^/ jç
Tones eos , ut clibanum ignís m tempore 'vtíltns tui , Do- ^z. lo.
minus in trafua conUirbdnt eos , cf deojorabit eos igníí,
Naõ ha peyor priíaò,como diífemosno principio, que
aqueila de hum forno, ou fornalha, e muyto peyor
fe qualquer defles eOá accfo por dentro com fogo.
S.Matheus faltando dos Peccadores eícandaloíosdiz,
que íeraõ atormentados cm huma fornalha de foge,
aííim chama o Inferno aonde íicharàô Ligvimas, ge-
midos, c efiridores ác dentes : CHittent cos in caminum ^^'^'
igníâ, íbi erttjletíis , érfiridor dentiv.m. E que diíTercn- ' ^' ^*
ça vay entre o forno , e a fornalha ? naò ha outra^
íenaõ que o forno he mais pequeno, e fc cozenelle
o pnõ ; e a fornalha he mayor , c íe cozem nella os la-
drilhos. Os pães íe metem no forno com aítençsõ,
e.diftiridos com alguma largueza cRc daquellc, mas
os
iMMÍi^BB^^i^Haa
14 Difcmfo t.
os ladrilhos faõ lançados fem refguardo j em confu-
íaõ, ficando apertados, e amontoados huns íobrc os
outros. Ainda mais pequeno he o forno , de que
falia o Profeta David; CM^Utes eos in cUbanum ignis.
» Clibano hc huma palavra grccolatina , que íijnifícj
p hum fornofinlio mancyro , e portátil , ufaõ muyto del-
les os navegantes , eípecialmcntc nas noíTas nàos de
guerra, e da índia. Ha cfta diíFercnça entre o clí-
bcíno.c as fornalhas, e os outros fornos , que eíies
íaõ fabricados de pedra, e cal , tem alicerícs , c íaõ
fixos, cimmovcis, CO clibano he fcyto de cobre, e
vulgarmente de ferro ^ c ferve como hum movei di
cozinha, ou de cafa , que fe tranfporta de hum lugar
a outro. Nem por fer mais pequeno , c portátil , fe-
ra menos horrível, e penoío , nem o Precito que cítiver
reclufo nelle, eftará menos apertado dos outros , que
cftaô como tijolos embirrilados na grande fornalha
do Inferno. Porque o ambiente daquclle clibano to-
do ardendo em fogo fe ajuftará, c adatarà ao individuo
;" daquelle condenado , apertando o, como fe eftiveíTc
cm hum lagar de fogo. Daqui nafce , que , fe aparecef-
íe algum condenado com o íeu clibano de ferro ru-
bente, quemotocaíTecoii fó a extremidade de hum
dedo ainda levemente, e por hum único inílante íen-
tiria humadoriníoffrivel.Oh mifcravel Pcccador, que
porabuíoda tua liberdade corres á rcdea folta a pre-
cipitarte nefta priíaõ do Inferno , coníídera, que o
aperto delia , que agora te parece taõ horroroío, hc
o menor dos innumeraveis tormentos , que foffre , e ha
de íoíFier p-ira fempre quem morrer em peccado , co-
mo o veremos no ponto feguinte.e muyto mais nos dií-
curfos, que a poz deflc íe íeguem.
Muyr s vezes tenho confiderado,quecoufa fcjaefla
prifaõ do inferno, e dcfpois de ter lido muytos San-
tos Padres, e Expoficorcsíagrados , que a defcrevcm , a
ne-
lai
Tormefíto 1. cio cárcere do Inferno. t^
nenhum tenho achado , que me céífe a íiia defini-
ção adequada , c aífim havia de fer j porque para hum
Filofofo , ou Teólogo definir bem hua cc uía , deve co-
nhccer , c penetrar a effencia delia ; e que conhecimen-
to , ou experiência pode ter, quem nunca avio, nem
a tratou , e menos a experimentou. Seja para fempre
bendito , e louvado NoíTo Senhor JESU Chriíto , que
no feu Evangelho fez fallar a hum condenado , o qual
achando-fe fcpultado no Inferno , logo que vio , o
que era , e o como lá fc paíTava cum effet m tormentis
provando as dores dcfatinadas , que padecia, em duas
palavras o definio admiravelmente , chamando ao In-
ferno lugar de tormentos locum tormentorum^cnvo de
agonias, miíerias , centro de todos os males. Adc-
mittem concordcmente as Eícolas a definição de
Boecio íobre a bemaventu rança do Paraifo : Beatitu- ^°'^*
do ejl Jiatus bononim omnium aggregattom ferfeãns, ^^'^^
Qiier dizer , que o Paraiío he huma cltancia , aonde os
eícolhidosgozaôperfeytamenre,e para fempre todos
os bens unidos; aílim o Inferno he huma priíaô, aonde
os Precitos padecem perpetuamente congregados , c
3 untos todos os males j mais breve , o Paraifo he hum
lugar aonde fe achaò todos os bens , e nunca fe expe-
rimenta mal algum. Pelo contrario o Inferno he hum
lugar, aonde íe achaô todos os mâlcs , c nunca fe goza
de algum bcm.e aílim íe pôde definir tnalorwn cmnmm T>etiter.
tdtmmUrmims.Víc de advertir, que o Efpirito Santo, 32.23,
naõ íó diz , que no Inferno congregará todos os males,
mas também, que íefcrvirá de todas as íuasarmas,para
e^iíiigar os condcmnados, atè dar complemento ac
rjgor da íua ju^iça ; Corígrfgabofiiper mm ala ,& fa-
ginasmeas compkbo m eis. Por iílo o rico avarento
naô fó íe queyxa da priíaõ, mas também do fogo iníof-
frivel do Inferno, naô diz fomente cracior eíloo pe-
nando ncfíc lotai aperto da minha liberdade , mas
cru-
^^ . Difcurfo /.
^rucior in hacflamma , cftou afíligido , c atormentada
neítc cai fogo. E dcfte tal fogo , que encerra em íi todo
o gcnero dos mais tormentos, faiiaremos agora oofe-
Scgõdog""^^P^"t^o-
ponco. ^- confultarmos osTheoIogos , acharemos, que
por duas couías o Peccador fe rende culoavei diante
deDeos, cporconíequcnciadignode todoocaftígo.
A primcyra he o abufo , que tem fcyto da fu i liberda-
cie ; a fcgundao gofto iIíicito,e vedado, que tom-i com
as Creaturas com defprezo do feu Creador , preferin-
do hum bem temporal , e caduco ao íeu bem fobsra-
^..r.«, no, c eterno, que heDeos: Confregiftí jtigum meum,
dirupiftt vmmla mea , & àixijii non ferviam. Pclo-
que Deos juftamcnte caftiga no outro Mundo o abuío,
que o Peccador faz da íua liberdade, com o aperto
da priíaój c o goRo , ou delcyte prohibido , com
toda a dor, c tormento univeríai do fogo dolnfer-
^ohcAp "? * ^^^^^^or hac flamma. Mas porque a juftiça Di-
3^0, vina, para juílo , e univerfal caftigo dos Pcccado-
res, efcolhe entre os mais elementos o fogo f A pri-
meira razaó tirada da Efcntura,e dos Santos Padres
Dente- V'^ ,^ ^^*' ' P^^"^^^^ ^ pena de\re fer proporcionada
^''- a culpa: Pr o mmfiira peccati^ ent & plagarummO'
dus. O Peccado mortal , que taô facilmente fe com-
niette,hchum crime de primeyra cabeça , he hum
attentado contra a Divina Mageftade iefa , he hum
alevantamcnto , hum m^nifeflo deíprczo de hum vi-
iifunio eícravo contra o íeu fenhor , e Rej/ íoberano,
de huma creatura de nada , contra o Creador íeu , e
de rudo; aíTm para reparar a defordem dos ag.^ra-
vos, c affi-ontis , que o Peccador rebelde , e atrevido
fez ao feu Deos , foy neceííario, queajuaiça Divina
cicoIheíTc o tormento do fogo, como mais propor-
cionado , para cafiigar, como merece, a fua rebefdia,
c atrevimento. A fegunda razaó, porque a juíiiça Di-
vina
Tormento l do cãvcere dó Infevm» 17
vida íe ferve do fogo, como inftrurnento mays pró-
prio para atormentar os condenados no Inferno i he
porqueaffimjáofez nefte Mundo , quando os crimes
íaôtaô atrozes, e enormes , que bradaõ para o Ceo,
pedindo hum caftigo exemplar, e hua prompta fatisfa-
çíiõ de Deos ; Clamor Sodomorum multiflicatus eft , &
feccatum eorum aggravatum eftnimis. O clamor, e o
eícandalo íe vaô dilatando, eoj» peccados vaõ crecen-
do com circunílancias íempre mays agravantes: Igitur
'Domimis fhttfuíphur & igncm^&Jubvertit Civitates-,
& omnes hahitatores Urbním. Mandou iogo Deos do
Ceo hua chuva de fogo , mifturada com enxofre fedo-
rento, e abrazou as Cidades, e queymando todos os
M oradores , os reduzio em cinza. Eftando gravemen-
te enfermo EíRey Ochoíias , em lugar de recorrer ao
Profeta Elias , pava que rogando ao verdadeyro Rey
de Hrael o íaraítc da fua doença, mandou confaitar ao
Demónio Belfebub. Eík peccado irritou de qualida-
de a Deos , que mandando depoys EUiey por duas
vezes hum íeu Miniftro com a comitiva de cincoenta
PeíToas a bufcar o Profeta para tratar com ellc da fua
íaude : Homo Dei^ Rex pracepit, tit de/tenderes. Porém
a reporta, que lhes deu Elias ambas as vezes , foy man.
dar ao fogo do Ceo, que os coníumiíTe a todos : Si Ho-
mo Deifíím , defcendat ignis de Ceelo , & devorei te^ ér
qvanquãgínta mos. Defcendit ergo ignis de Coslo , &
àevoravit illtim , <& quinquóiginta ejus. A terccyra ra-
zão, porque a julhça Divina le ferve deíie fogo.he, co-
mo diz Tertulliano, porque todos os condenados íaó
as viítimas,e os holocauilos das fuás vi ngãça?, No anti-
go teíhmêto entre as vi<flimas,qúe fe offercciaô aDeos,
aviaõ huas,que fe chamavaô as vi<ílimas do holociuífo;
que à juQiça Divina fe fazia immoUx \ Immolavit, &
holocaufli viãimam. E efla paíTava toda pelo fogo,
até ficar totalmente deflruida, Daqui infere Ter*
B tul-
Genej.
Gevef.
Levit.ç".
9. II.
i# V Bifeurfo L
tuiliano, que os CondcDados, fendo as viâimas doho-
iocauíio,qiieàjuíHça Divina fe faz immolar, hcne-
ceí^ario,queeíiejaôíemp^e ardendo no fogo do Infer-
no, í em nunca ficarem deftruidas.
Eíia verdade vem admiravelmente explicada ,c
confirmada pela mefma bocca de NoíTo Senhor JESU
Chriílo. No capitulo nono do Evangelifla S. Marcos
nos intima o rigor das penas do Inferno, daquelle ver-
me da coníciencia, que fempre roe, e nunca morre, da-
quelle fogo terrível , que fempre arde , e nunca fe
Marc. ^^ãg!^'. íngehenam ignps , ubivermps eorum nonmori'
^•9'^^-tm\ & ignis non extmguitur. E depoys de ter repeti-
do bem três vezes efta admoeíiaçaõ , para que a tivef-
femos íemprc viva na memoria , e firme no coraçaõy
accreícenta depoys eftas palavras , e acaba com di-
zer, que todo Peccador fera faigado com fogo , c
toda 3 viíflima fera íalgada com íal : OmnU enim
ignCs falíetur , & omnis vitima fale falietur. E que
enfático faltar he efte , falgar os corpos humanos de-
poys de rcfufcitados , e as meímas Almas com fogOi
a modo de fal ! O fogo , e o íal , diz S^h Hilário, faõ
3S propriedades neceíTarias para os Pcccadores, que íaa
âs vidimas deholocaufto,qi]e haõ de fer eternamen-
te immolâdas á juftiça de Deos : Omnu vitima fah
fahetur. O fal tem duas propriedades , a primcyra he
áz confumir tudo aquillo , que caufa corrupçaõj a iz^
gunda he de produzir hiia efpecie de incorruptibilida->
de no individuo,que defeca. Aííim o fogo do Inferno tê
efías duns propriedades , queymará os corpos dos Con-
denados depoys de refuícitados , os deíecará, e con-
fervará para fempre incorruptíveis. Ainda maisi da'
mefma maneyra , que para preíervarmos algúa carne
da corrupção» afalgamos de forte, e com tal adver-
tência , que a virtude, c acrimonia do fal fe iníinúô
em todas as paríes, e apenetre toda > aíTim o divi-
i no
^,9.50.
Tormento L dó cdrceré ão hferm. 19^
RO Jufe irritado, como Deos das vinganças : Deus tiU
tionum. Fará , que o fogo do Inferno le iníiDÚe em to.
dos os membros , e penetre todo o corpo de qualquer
Gondenado. A alma eíbrá toda empapada, e ember
bida,como em hum tanque de fogo, tn ftagnoigníí. ^^^^.
Q corpo achando-fe, como diíTemos , em hua fornalha c, lo.
de fogo , todos os feus íentidos exhaiaràô também
chammasdefogo. Fogo nos olhos, fogo nos ouvidos,
fogo nos narizes, fogo na bocca, c garganta, fogo
no coração, fogo nos miolos, fogo nos tutanos dos
offos. Naó a verá nem veyas,nem nervos, nem ten-
dões, nem mufculos , nem junturas, nem cartila-
gens, nem parte minima de hum dedo da maô, ou
dope, que naò fique cuberta, c penetrada do fogo.
Por ifío o Profeta Ifaias fatiando do fogo do Inferno
para melhor exprimir a íui grande adlividade , o cha-»
ma fogo devorante ; ^Inis poterit hahitare devo^ís^*-^-
cum. tgne devorante. E o Profeta David ameaçando os-^^ ^^'
Peccad res diz , que o fogo do Inferno os devora-
rá a todos. Devorabiteos ignís. Mas naô baftava di-
zer , que cfte fogo infernal os queymará eternamente PC<zo
com hum.idor iníoffrivel, os atormentará com hum '**
ardor inexplicável! Naõ. Naõ baftava; quer dizer,
que como todo o maniar,que íe come, ou devora, paf-
lana fubftíiocia de quem o recebe ,aííim o corpo, e
a Almadehumcondcnndo, paíTarà como em alimen-
to , e íubftancia do mefmo fogo , ficando em hum
certo modo todo o compofto hum.ano traníubífan^
ciado ncUe. Oh Peccador enganado , como eíhràs
bem falgado no Inferno ! Vidima defgraçada da ju-
fíiça ds Deos , infeliz holocaurto das íuas vinganças,
como eíhràs bem embalfamado , com busjn fogo,
que íempre arderá, e te queymará , íem nunca te con-
íumir : Omnis Feccator igne falietttr , & omnis viãimã,
falefalieturMcM Senhor J ES U Chriao , Salvador , e
,. ;:. B 2 Rcr
ii
to Di/cuy/b L
Redcmptor meu. E que cflranha mctámorfoíís he cf-
ta , que em mim vejo, c que mudança para íempre em
mim taô deploravc! í Vós me tendes creado ncfte
Mundo para arder em cbammasde voíío amor, eme
vejo condenado para arder eternamente no fogo da
voíTa ira. Eu fuy deainado para íer a vidima da vofía.
caridade , para vos amar , para vos bendizer , para
vos adorar erernamente. e fera poíTivel, que eu qucyra
antes íer oholocaufto da voffa indignação, e furor í
Oh triíie peccado mortal ( já começo a cahir no ver-
dadcyro defengano ) quam grande deve de íer atua
malicia , pois obrigas a hum Deos taõ miíericordiofo,^
e que tanto nas ama a precipitamos fto Inferno, pa-
ra íoffrer eternamente tormentos , que quanto mays
os coníidéro, fempre mays os acho incomprebenfi veis^
e inexplicáveis.
Digo incompreheníiveis, porque, quem não per-
cebc bem a malicia do peccado mortal , o defprezoj
c afFronía , que faz a Deos , nunca poderá perceber o
rigor, com que o cafíigarà na priíaõ do Infernos com
peDas,e tormentos taõ inexplicáveis, e inperceptiveis,
quanto inexplicável, e imperceptivel heanòsomef-
mo Deos, cujas perfeyções, e attributos , faô infinitos.
Todos os Monarcas da terra unidos , diz S. JoaõChry-
fom il f^^^^^í.^^^^^^^^PO^c»' de produzir huma moíca,oii
^dPop "^^ foí'™ga, e Deos com hua íó palavra creou o Mun-
^' do todo de nada, ecom elie todas asCreaturas: Ipfe
Pfnlm ^^^^^ * ^ f^^^^ fi^^^' ^^^ ^^ ^^^ ^^^ ^^"3l evidente
148- ^^ ^"^ Omnipotência ? Moíirou o feu infinito faber,
na fubftancia ,e uniaô das effencias , que fendo com-
potas df qualidades entre /i contrarias: Frigida ptfg"
Metmí nabunt calídís , hnmentia ficcis. Em lugar defe deí-
Ub.u truirem, feconíervaõ, e fubíiftem. O attributo da
fua miíericordia íe vê manifefíamente no altiírinio mi-
fícrÍQ da Incarnação 3 e aíTim diícorrcndo dos mais.
'•■ '^ 4 ■■i Com
wm
Tormento l do cárcere do Inferno. 1 1
Com tudo em dous 1 ugares, todas as luasperfeyções,
c atributos , obraò com toda a força, c virtude. No
Paraíío ,eno Inferno. No Paraífo ; por íera recom-
pcníadosBemaventurados, poys os Santos o tem fer-
vido , c amado com todas as forças , com todo o co-
ração, ecom todas as potencias da Alma i he juftiíTimo,
que todas as perfcyçôes Divinas fejaò occupadas,em
lhes procurar todos' os bens imaginaveys na fua bema-
venturança. O fegundo lugar he o Inferno , aonde to-
dos os attributos íeraó inceíTantemente applicados
no caftigo dos Precitos < c aíTim os caftigaráò com to-
do rigor da íua jurtiça , da íua omnipotência, da fua
immeníidade, da fua íantidade, da fua infinidade,
da fua eternidade ,e para dizer jComTertulliano tudo ^^^^^^^
cm duas palavras : Inpknitudme Divinitatvs fuiC, E '^ '
quando Deos caftiga hum Condenado com rodo o feu
ftr , com todo o feu poder , com todo o feu faber,
que penas , que tormentos poderá a mente humana
imaginar 3 que íejiô adequados aos que na realidade
padecem ? Senaó confeíTar com S. Paulo , que confor-
me á mifcricordia Divina , para premiar os feus cíco-
Ihidos, lhes tem preparado no Paraíío hua bemavcncu-
rança, que os olhos humanos nunca viraõ femdhan-
te, me ocítlus njiàit . Oi ouvidos nunca ouvirão diícur-
íos , que a igualem, ou a expliquem , nec auris auâivit.
EonolTo entendimento nunca poderá fovmar idéa,
quecorrcfponda a hua perfeyta poíTeçaô de rodos os
bens fem a mínima miftura de mil ; Nec in cor Horai-
nvs afcmdit , qua pr^paravit Deus tis , qui ddigunt ^.Co^'
illum, Aííiin por hua julia , verdadeyra , e infallivel op- f^^P''^'l
pofijaô podemos dizer o meímo da priíaõ do Inferno,
que he impoíTivel a todo entendimento humano o po-
der comprehender, e explicar as penas , que Deos tem
preparadas aos Precitos íeus Inimigos : Nsc oculus vi^
dit , nec aurts auàvií nec in cor Hominú ajcendity qu^e
B 3 pr^'
l
2t Bifcurfo h
fraparavit Deus Ht , qui oàerunt illim*
Quero concluir efte primeyro difcurfo ^ C provar /
© que- atè agora tenho ditio , eom hum reparo dç
Sé Dionyíio Areopagita. Diz eíi€ grande San co,e na©»
menos grande Thcologo , cjue querendo Deos. repre-
íentaralgia imagem da fua unidade ,, encerra muytas
eou-fòs na fimplicidade de hu.a íófubftancia , aílini te-
mos nà'Efcritur'afagrada5quenoítmpl€smaná encer-
rou Deos todos os goflos, c todos osfabores para o
palladar do Povo eícolhido : Omne àele^ammtum infe-
Sap.çap. habertíem j & omjmfaporis fuavitaíem. Daqui fc le-
io, lo. gue ,quecomo a miíencordia Divina emprega toda
a fuâ Oínnipotencia „ e todos os íeus attributos obran-
do milagres no Ceo ,. c na Terra a favor dos^feus efco"
Ihidos j para que no íimples lume da gloria achem (co^
mo dizem os Theologos % todos os bcns:Omnebonumi
Afllm também heforçofo , que a fiia jufliça íc firva da
meíma íuaOmnipotencia^jC mais attributos, para cafti^
gar na priiad do Inferno os Réprobos , elevando mi-
iagroíamcnte o fogo^e encerrando na fímples fua fub-
íianciatodo G género de tormentos, toda efpeeie de
penas , e comodiz o R-ofeta Job ,. hum extraélo de to-
das as dores yque podem atormentar a Ahna ,e o cor-
oca r^p. pode hum Conácnaào: Omnú dolor irrmt [ttper eum»
20. Oh prifaõ ,,oh inferno , oh fogo ! quem em vos fem-
pre cuydara , para fugir o peccado ,e viver fantamen-
tc. Oh prifaõ , quanto es medonha l Oh Calabouço,
quanto es horrivel ? Oh fogo quanto es tormentoío /r
_ . Gom razaõ a tua lembrança faizia tremer a S. Bernardo^
í^m!X ^'^^^^'"P^^^^^^^^^P^'^^^^^ * ^^ Regia dura , & ex^
qttirtqm iiwefienda^mra affUãíonm^ & mifenarum, aCarcer
Regionufugiendus ^ htus tor mentor um. Sotas tremo ,. at que
kiis. howeo , aà^ mêmonamifins regimúconctij^a funtomma^.
cjjitmea. A lembrança dcfta priiaõ, com a íimpics Gon-
fidcra^aò do que fepaííandlâ 3 me faz arrepiar os ca-
be-
Tormento h do cárcere ào hferm. 1 3
belos , tremer as carnes , e gelar o íangue nas veyas.
Oh Pcecadorcs ! Se hum Santo , que na ílor da íua mo-
cidade, primeyro de conhecer o Mundo,o tinha deita-
do para rccolherfe , e viver em huma Religião auftera
com tanto exemplo, e innocencia da vida , que fazia
acadapaíTo milagres, atè reíafcitar mortos , teme,
treme, c deímaya ao nome de Inferno, que fera 4c
tantos, que achando-fe com milhares de peccado*
mortaes , nâo tem feyto, nemcuydaõ fazer taõ cedo
penitencia, diíFerindo-a enganados para a hora da mor-
te. Diífe , enganados , porque nenhum Peccador Con-
denado ellá no Inferno, íe não porque nefti vidanao
quizcuydar no Inferno. E como bem diz SJoaõChry-
loíbmo. Nenhum daquelles, que vivendo nefte Mun-
do, ou naõ cuida , ou defpi eza, ou náo f^z cafo , quaa-
doouvefallar das penas do Inferno, efcaparà ^mcl- Chnf.^
mo Inferno : NuUus ex lís , qui gehenam dejpiciunt , ef- J^'^ ^ •
fugient gehennm. , -r *»^7^^*
Eis aqui ( Peccadores ; o jufto fupplicio da prilaò
eterna do Inferno , que Dcos tem preparado para
feafti<^aro abufo da noíTa Uberdade. 0\\ maldita , oh
execranda liberdade ,que como diz o Apoftolo, S. Pe- j^p^^^
dro , he o vèo de todas as culpas , e peccados : Vela- g^^^^ç^^
men habentes malitta Ubertatem. Vòs, quereis neíte
Mundo cuydarnosobjeaos mais viflofos ,e que mais
vos dekitaò. Vòs quereis dizer mal de todos , e fallar
nas honras dcfíes, ou daquelles como mais vos agra-
da. Vòs quereis fazer o que vos parece melhor, pa-
ra contentar o voíTo brutal apetite,e as voíTaspayxôes
deíordcnadas, Defemganayvos, que náo fera fcmprc
aíTim.Efesgora por brcviíTimo tempo gozais mal,c
individamcnte da voíTa. liberdade , no inferno naõ fe-
ra fó impriíionada a liberdade exteviot , ficando im-
niovcis todos os membros do corpo , como diíTemos
no primeyro ponto j mas também a liberdade interior
B 4 ^^s
24 Difcurfo L
das potencias da Alma , memoria , entendimento^
e vontade. Agora não tendes hum quarto de hora de
tempo , para cuydar em Deos , e meditar as verdades
eternas, Agora naó fazeis caio dos Pregadores quan-
do reprchendem os voíTos vicios , c vos admoeftaõ^
que deyxeis as vaidades no Mundo, para tratares da
voíTa íalvaçaõ. No Inferno náo vos lembrará outra
couía,queo tempo perdido, e o deíprezo de tantas
infpiraçoens Divinas , e de tantas occaíiões de vos fal-
var. Agora naô podeis ouvir buma Mi íía , nem rezar
hum terço do Rofario, fcm hum continuo fluxo, c re-
, fiuse^^e diftracç5cs>No Inferno fereis perfcytos Con-
templativos ,fem nunca ter em toda a eternidade hí^a
miriima difiracção. Ovoffo entendimento fera íem-
pre fixo, invariável , e forçofamente obrigado, em na6
cuydar outra couía , que o voíTo deícuydo em deyxar
a Deos noíTo único , c verdadeyro bem por amar, e fer-
vir as Creat uras ,e fazer vos efcravos do Demónio. E
CamJn ^^^ ^^^'^ ^ peníamento fucceíUvo , e confíderação per-
D.cho, P|^f'^i'ii cm que íe occuparà eternamente o Precito; De-
imebitnr intelk^Ms aâ confiàermàtim , &vohmtas aã
ditefiandum. A vontade íerà também captivada , e
coníkangida a deteftarneceííariamentc a fua eterna
dcfgraça para femprc : Detinebitur vohmtcis ad dete^
ftandum. Amaldiçoaràp a íi , e a hora , cm que nafce-
raô 5 aos pays , e as mãys , que os geràraò , c criâraõ , e a
todos aquelles, que foraô cúmplices das culpas , & de-
lidlos ,que cometerão. Eftas íaô as lembranças eflcs
faõ os argumentos , e difcuríos , que já fazem' os Con-
denados,e faraõ para íempreos Peccadores impeniten-
tes no Inferno; DeUneíníur intelleãusad cenfidermz
dum , ó" vQluntas ad deteftandum,
RoCm t Vivia na Cidade de Paris hum Doutor celcberri-
i.exep, n^ocom tam grande fama de íaber , que todos o vene-
%^, ravaô por hum poço de letras , c a eiie concorriam
nas
Tormento L do cárcere do Inferno. tf
nàs demandas mays embaraçadas. Fez cfle hum con-
certo com outro Letrado íeu Amigo , queo primeyro
dí?lles , que morreffe, tornalTea dar parte do cftado,
cm que fe achava na outra vida, como là fepaffava,
CO quelà fe fazia. Em menos de hum anno morreo
oceiebre Doutor, e por permifTaò Divina appareceo
logo ao Letrado fcu Amigo veftidode húa beca com
huma gorra na cabeça , tudo de cor purpúrea , porque
tudo era fogo. DiíTe , que o ícu cfíado era de Preci-
to , a ília eSancia , em que havia de morar eternamen- ^o^câp:
te, era o Inferno: Inferms domus mea ejl. Epergun* 17.1^,
tandpíhe o Letrado fe no Inferno o leu grande ía-
ber lhe fervia de algum alivio^ refpondeo , quede
mayor tormento , pois toda a rezaõ , faber , e difcur- eccI c,
lofe lhe era barrido da memoria. NecratiOyfiec fclen- 9.10,
cia-ifiec fafientia erunt afud inferos. Que no Inferno
íó.íc rcpreíentava naentcndimento dos Condenados,
hu3 única, e breve qucfíaõ : Gluid non fit fanal Quer
dizer, fe havia alguma coufa naquella piilaõ,quenão
deíTe tormento, ou naô foíTepuro penar; c que to-
iJospor experiência refolvem , que no Inferno, naõ
ha , nem haverá por toda a eternidade iníiante de tem-
po, cm que hum Condenado tenha hum pequeno fo-
cego,ou hum mínimo alivio; Porque como diíTemos,'-
aprifaõ do Inferno hc hum lugar , aonde o Precito
nunca gozará de bem algum , c para fempre padece-
rá todos os males. Pois o feu eftado affim o^pede:
Eft fiattis malartim omnuim tiggregatione perfeãiís. Eu
confcíío, que naò tenlx) palavras para exprimir o meu
paÍJiio, confidcrando hum Catholico , que vive em
peccado mortal, e naò faz reflexão , nem repara ao pe-
rigo imminente de cair para fempre no inferno. Os
Navegantes, que eftaó no mar alto, eftaô pouco diftan-
tesdo naufrágio. Aílim a vidadellcs, como a morte
coníiftç em húa taboa da groíTura de dous dedos. Os
Pcc-
JÊÊÊÊÊêM
mm
^ Dí/cur/â L
Pcccadorcs,qiicn3vega5 no mar tempefluozo defíc
Mundo, tena fempre debayxo dos pâs hum mar de
fogo, c tudo, o que os divide-, hc muy to menos , que
a groíTura de hua taboa; quero dizer hu i vida frágil , e
logeyta a mil accidentes.Naõ he neccíTaria, a queda de
hum Cavallojou híía efpinha na garganta,bafta hui reí-
piraçaô tomada, ou hum ar de apoplexia, para deytarfe
valente,e amanhecer morto,ou ievantarfe profpêro ,,c
anoytecer para fempre no Inferno. Eu para mim ( meu
Deos) naó vos íabercy nunca dar as devidas gracas,por
me ver livre decantas occafióes,e perigos do Mundo;
e de ter humeftado de vida . em que deveria cuydar fó
nefta prjfaõ do^Inferno, para aíTegurar melhor a miniia
íalvaçaõ. Se vos naõ podeys deyxar o Mundo de todo,
d«yxay-o ao menos com o affeâro , e para o poder dey-
xar com o aííedo , deyxay o peccado , e fazey peniten-
cia} eeftejais certos, que nenhúa coufa vos fará experi-
mentar a penitencia mais fuave , e mais doce , nem vos
fará aborrecer mais o peccado , que ter frequentemen-
te no fentido a intolerável , c horrorofa priíaõ do In-
ferno ; porque , como diz SJoaó Chryfoíiomo j naõ he
fíom.z. poíTi vel , que quem tem medo , e cuyda na eterna du-
^"íírM**^^^^^^^^^"^^ ^^ inferno torne cedo, e com facih'-
' dade a peccar ; Fieri nonpoteíi , ut anima degehena,foU
'licita aí â pecceí.
DIS-
ç
1»-*
4
TORMENTO DA VIS TA
■■
^.
ISCURSOII.
^^Do tormento da villa entre as
trevas do Inferno.
/;/ (Ztemum non viâehit lúmen. Pfal. 48'. Exordii
Empre julguey por verdadeyro
aquelle apGlogo,quc no mcímo
thrononaô Cabem dous aífen-
tos,na mefma Monarquia dous
Príncipes , na mefma Igreja^;
dous Paí\oYQs IJ^c fedes non ca^-^
pit tina dnos. Naõ he affim neíie
Mundo pequeno do compofto
humano ; aonde reynaõ dous
Monarcas entre fitaóunidos5que iguais nos movimen-
tos, íemelhantcs na rcprefenraçaô dos objcdos , fen*
pertençaô, ou inveja, vivem irmãmÊce contentes dp ícii^
governo. Eíks dous Monarcas faô os olhos , que goIIo-
eados em fitio eminente dominao as mais parces do cor-
po, fenhoreaô , ícm íercm Neptunos , todos os mares, -
medem em híi iníiante as Cidades, os campos, e os boi-
^ues i e fendo pequenas efireilas da terra , piíquizaõ , a
devaçaó as eftrelias da primeyra grandeza , c os mayo- *
res Planetas do Ceo : fao logo os olhos dous Principcr^..
que, defcidas as cortinas das peíianasenccrraô-fe no
JUAtth,
cap. 8.
Seru.
Scr.i6,
in C4nt
Betnar.
Serm.%.
in Pfa/.
Qui ha*
htat.
Difcurfd Ih
fcurcal gabinete i nefando fua prcfença a todos j c
cto levantadas , a todos íe moftraõ, prevem os pe-
rigos , provem as ncccílidades , brilhantes alegrão;
triftcs deCconfolaõ , agaílados offendem , piadoíôs
movem, eabrandaô atê ao meímo Deos dando-Ihc
huanova cafta de pezames pela morte da Alma com
ospcccados, derramando aospès do Crucifixo hum
poder de pérolas. Eftas pérolas íaò as lagrimas, que
nacidisnomar de hum coração contrito, faem dos
olhos^ como das fuás conchas , e íobcm logo na cfti-
maçaõ de Deos ataô alto preço, que qualquer Mer-
cador Evangélico pôde dar por bem empregada toda
a íua fazenda , para com hua delias comprar o Reyno
do Ceo. Oh lagrimas bem afortunadas, fenos fazem
defprczar o Mundo , enostiraô do Inferno para nos
meter no Paraifo ! Saô Mattheus no íeu Evangelhoi|
b^m quatro vezes faz menção , e repete os choros , g
lagrimis continuadas dos réprobos oaquelle calabou-
ço eterno ; Ibit erit flettts , & ftridor dentmn. E
S. Bernardo coníiderando , e meditando efta repitida
íentença de noífo Senhor Jeíu Chrifto lhe pedia, que
os feus olhos foíTem duas fontes perennes nefta vida,
para prevenir as lagrimas, c choros eternos na outra;
§uú (inquit) dabítoculismeisfontemUcrymãrum.ut
praveniam fletibus fletum aternum , & ftridorem den-
tmm. e com muyta razaô ; e efpirito ; povquc ( como;
diz clle ; as lagrimas íaô pelo intolerável tormento do
fogo, que fempre arde , e queyfna,e nunca fe apga;
o cftridírdos dentes pelo verme da conferencia , que
{emprcrô:,e nunca morre: Fletus quidem (inquit;
oh igmm, quinon extin^mUir , ftridor vero dentium
eb vermem, qui mnmoritur. Sobre o fundamento de,
hui doutrina taõíolida de S-Bernardo^ e taõ útil, e
nrceíTiria para afalvaçaôde noffas Almas, alevanta
oaíTumpto deftc ícgundo difcurfo, que divido logo
cm
Do tonnento da vifta. 29
em dous pontos. No primeyro veremos o horrível tor-
mento , que padeccráô os olhos no Inferno pela cul-
pa das viíias peccaminofas ; e no fegundo, que íó as
lagrimas dos meímos olhos naícidas da dor , e arre-
pendimento de tantas culpas , nos pòdcm livrar defta
pena.
He coufa digna de reparo , que a providencia Di-
vina déíTc aos olhos dous officios , caos mays íenti-
dos do corpo àèí^c hum íó. Ao olfacflo deu-ihe o chey-
rar, aos ouvidos o ouvir , o goftar ao gollo, o to-
car ao tadlo i porem aos olhos dobrou os officios dan-
do-lhes o ver , c o chorar. E iíio porque ? Porque,
como a mayor parte dos peccados tem ordinariamen-
te o íeu principio nos olhos, era conveniente, que
da mefma fonte , em que rtíidia a doença , íahiíTe
prompto o remédio ; na meíma officina , aonde fe
formava o veneno, fe fabricaíTe também o antídoto.
Aprimeyra culpa, que houve no Mundo, foy a de
Adam, e Eva. E que principio teve.'' O ver. Fidit,
E parccendo-lhe o pomo for mofo aos olhos. Ptíkhrum
oculis j logo comeo , e preíentou-o a Adam, para
que também comeíTc dellc; Comedit-i dediíque Firo fio, GeneÇe,
Caftígou Deos efta culpa de leia Magcíiade j com áú- ^.v. 6.
terrarlogo a ambos os Delinquentes do Paraiío ter-
real , para com eíTe degredo livialos juntarrente da
occaíiaò próxima da reincidência ; Et omifit eos Detis q^^ ^ ^ -
âe Paradifo voltiptatís. Ccufa notável ! no mefmo tem. .j,, j .
po, que íc deu á execução eíia ícntença , mandou
Deos hum Cherubim com hua eípnda de fogo namaõ,
c que cftiveííe femprc à vifia de Adam , e Eva nas por-
tas do Parai fo: CGllocã'v'it anteVarãàifum Chcnibim^Gemf.vl
C^ flameum gladiam , atque 'verfattkm, £ naõ baftava 27.
para declarar o cafligo da fua Divina juiliça hua cípada
de aço com hua tempera fínííli ma ,comofoy a dejudit.
que degolou a Olofernes, ou a de David j que de hum
ío
I 1 !
5^ - ^^Difcmfo IL '[
íó golpe cortou a cabeça a hum Gigante f Na5.HâviaT)
deícr de logo , queihercpreíentaíTe o Inferno, que
iTiereciaò, e tambcm efta havia de íer efpada veríatil,
que quer dizer eígrimidora, lançando chammas horro-
rofas , e fulminantes para atemorizar a vifia de Adam^
c Eva ; confiderando o tormento , que haviaõ de íof-
freros fcus olhos peccaminofos no báratro Infernal,
quando humildes }€ mortificados naõ continoaiTema
fazer penitcncia,que,aind.i que era de novecentos an.
nos, lhes pareceria íuave , e breve, em comparação
da eternidade.
O principal tormento da vifta no Inferno íerà a
. falta da luz, como diz o Profeta David: In aternum
'^ "^ mn videbit lumen.Hum^ prizaõ taô apertada, hum cár-
cere taô eíireito, he forçofo também, que feja demafia"
damente efcuro. Porque a meíma multidão de tantos
corpos amontoados, huns fobre os outros , e aperta-
dos como as uvas no Ligar, ainda que o Inferno folTe
claro como o dia, naõ havendo lugar por onde poíTa
paíTar a luz, ou outra matéria diafana,e tranfparente,
hc neceíTario , que fique com bui cícuridaô perpetua^
,> como huma noyte eterna. Porém efta cícuridaõ , e efta
noyre, qulz Deos para mayor caftigo dos Condenados,
quefoíTe bua qualidad: própria do fogo do Inferno,
chamada na efcritura com none de trevas. O Glo-
riofo ApofíoioSaõTadeo,depoys deter eícri^o com
'7^^^ admiráveis metáforas a atrevida maldade dos Pecca^
dores, nciba dizendo: /// fimt qtiibus procellatene-
hrarum Jervãta eft in aternum. Eíks laô aquelles,
para quem eftá qu^irdid} para íempre b.u.i cempefí-íde
de trevas. Procella tenebrarum. E que combinação
tem as trevas com a tempeflade ? Muyta. Porque aíHm
c mo nas tormentas do mar fe enche o cmisferio de
buas nuvens groíTas, e medonhas j eícurecc-fe oSo!}
levautaô-fc as ondas , enfurecem-íe os mares jc naô fe
ouve
Do fermento da xifla* ^x
ouve mnys,quco roncar medonho nefíe furibundo ele-
mento; o Zcnit dos Tuffbes impetuofosjo ranger das
cnxarças ; o raígarfe das velas; o romperfe dos ca-
bos i o abalarfe dos maflros ; aqui gritos , e alaridos
dos marinheyros; acolá lagrimas , e arrependimento
dos navegantes $ e finalmente , tudo he huma confuíaô
de fazer , para evitarem o perigo da morte, e íalva-.
rem as vidas. Da mefma maneyrano mar de fogo dp
Inferno fc acharáôos Condenados entre huas trevas^
eelcuridõesjluins blasfemando contra a juíiiça divi-
na, que os lançou naquelle calabouço infernal. Ou-
tros amaldiçoando osPays, e as Mãys, que os ge-
rarão , e criàraõ. Eftes daiáõ bramidos ccmo Leões,
equereráõ poder defpedaçar a quem os incitou ao
peccadoj e aquelles daráõ em fúrias como deíeípe-
rados. Ajunte-fe a ifto os efírondos , e ruídos , que fa-
raó os Demónios, atormentando os corpos dos Ré-
probos com mil genei os de tormentos, tomando vi-
fagens medonhas, dando rifadas , fingindo pefquins,
e fazendo eícarnio das culpas, que nefle Mundo come-
terão ; peio q,uc naquelle cárcere infernal tudo fera,
como diíTc Job , hum Cháos , huma confufaô , hua ^^-ny^ ,
fordeiTi,e a vííia hum perpetuo horror: Vbi nttllus or- ^*'^
do, feáfempiurnus honor mhahitat.
Entre as grandes pragas, que Deos mandou aos
Egypciospara caí^igar a foberba delRcy Faraó, ain-
daque todas foraô moleftas , medonhas, t: aíquero-
ías, com tudo , íó a praga , e caí^igo das trevas, tem
na Sagrada Eícritura, o epitcto, ou apeilido de hor- ^-^oã,
riveis: FaBa fmt tenéra horrihiks iniiniverfa terra ^°*^'
tyEgypti. E porque íóaicntc as trevas haõ de rer eífe ^^*
lobrenome de horríveis , e as outras praoas naõí A
rnayor razaõ dará o doutiíl^mo Interprete 'Nicolao de
1-yra, que comentandoeíle texto repara, que era tal
â efcuridaô , que nenhum Egypcio via áq outro , nem.
oufa-
n
31 Dtfctírfo IL
oufava partir, ou mudiríe do lugar , em que eftava*
Nem) vtd'íí Fratremfuum , nec movit fe de loco , m quo
^'>«^- eraí. A.ccreícenta miys, que appareciaò entre eiies
^'^'''^huasfincafmas taô efpantofos , huas figuras taò me-
donhas , huns Monftros taó abomináveis , e lhes cau-
íavaô tal horror , qus iádefejavaó antes mil vezes a
morte que a vida. Do mefmo modo glofa efle paíTo o
Cardeal Hugo ; porè n com hum reparo digno do íeu
^^ ^ emtnentiai;iio engenho,e do feu grande efpirito : Hor-
inT^od'^íbíks dicmtur tenebra , qma apfarebant eis quedam
caf.^. imagines valde eos deterr entes. Heu Domine Deus , qtud
entm Inferno. Quer dizer ,> íe as trevas do Egypto,
fendo como cmpreftadas , daô hum tormento taõxx- í
ccíTiVO; íe os corpos fantafticos, que viaó entre el-
las, ihes faziaò tal aíTooibramcnto , que íe durara mays
tempo efte caftigo , a terra do Egypto ficaria mhabi-
tavel. Oh bom JESUS! Qus íerá no Inferno! Aqui
as trevas íaõ como fombrasvqiie efpantaò. No Infer-
no íaô realidades , que afiligem. Neftc Mundo faó
figuras fantafticas, que apparecem para fazer medo.
No Inferno íaó verdadeyros Demónios, que com a
vifla , c com todo género de penas atormentaò. A
Águia dos Doutores S. Agoriinho com o Eminentiai-
mo Cardeal Caetano Interprete Claííico de SantoTho-
más fcguindo a vcríaô dos Setenta , íaô de parecer,
que eíVas pragas doEsypto foraõ antes ameaços aFa-
2) Aug r?.ò , que caíti^o ; Ad fimilitudlnem ilkdentú , manife-
é^C^rd.fiatDeus. fefacere h<ec ftgna , quãfinon feno .fedjoco
C^et tn ^p^xerit Deus Pharaonem , & (L/Egyptos. A modo de
^^'"^^"" quem faz zombaria , mindou Deos cliis trevas ao
'''^- E,avpto , como íe naÔ de veras , e feriamente .fedjoco^
contemptu .mas como fe com defpreío ridículo quizcíle
fjzcr medo a Faraó ^ e mortificar aos íeus VaíTailos.
Noannode 1588. eílando Felippe Prudente , Mo-
narca de Caftelia cm guerra viva com Inglaterra , e
Oian-
DõtúYffientõdavifla* 35
Olandczcs, mandou huma potente, cnumc^ofa Ar-
mada , que com vento profpero, e bom íucceíTo en-
trou cm poucos dias no canal de ínglaterrá. Aviílou
logo as fragatas de linha dos Inglezes , que vinhaõ
íaindode Londres ;e da banda do SudueOc a Armada
de Olanda , que dous dias antes levantou ferro em
Dunquerque , e velefando bufcava cncorporarfecom
a Inglcza. Achou-íe de repente a Armada Catholica
çojmo cercada dwis duas Armadas inimigas, e faltan-
do totalmente o vento , todos foraò conítrangidos a
botar ferro. Ficou depois aquellc inconftance ele-
mento taôconftante na bonança, que fendo por ra-
zão do clima naturalmente turbulento , agora qiic
havia de fcr temido , e foberbo por carregar no feu
curfomaritimoastres mayores Armadas de Europa,
compendiadas em 300. Navios de guerra í como hu-
milde , e rendido a tanto pefo parecia o mar pacifico.
Chegou a noyte , ecomo eramuyto efcura , eo mar
taõ quieto, determinarão os Cabas Olandezcs de dar
hum fobrefalto aos Caftelhanos , lembrados , que
poucos mezes antes , com huns navios de fogo , eftan-
dono cerco de Amberts, llies tinhaõ queymado ai-'
guns pataxos , e embarcaçoens meudas, fahiraõ de
repente com oyto chalupas carregadas de gente, que
mais hiajõ para folguedo, que para a peleja. Levavaõ
todos bus fachos acefos nas mãos, e davaõ taes brados,
e vozerias, que bem moftravaõ ,hiaô mais deprcííi
a fazer medo, que a intentar alguma grave entrepreía.
Com tudo a Armada Efpanhola entre as trevas, eef-
curidaõda noyte, vendo aquellas luzes, g ouvindo
o eftrondo daquellas gritarias , mò podendo diftin-
guir,nem atinar o que era , pareceram lhes as oyto
chalupas oyto navios de fogo, que hiaô a renovar o
írifte fucceffo de Ambercs.Peioquefobrcfaltadosdc
hum teínor bem fundado , que de noyte as nãos de-
C vem
Càrd,
Bent,
Be/g..
■ |V
PéUhaq.
tomjh.
n
|4 bifcurfo IL
vêm èftar longe do fogo, fem eíperar párâVcr 3c*
mais perto, o que era, cortarão logo as amarras, e
^ ' tratarão depor-íe ao largo. E como por acafo entrou
o vento contrario , que íe foy defpertando , procu-
rarão os Cabos de declinar todo o vento noélurno,
e eíperar a luz do dia , parecendo-íhes , que , pegando
o fogo com a força do vento , naô íe poderia apagar»
O efcuix) da noy ta foy grande,mayor porem foy a con-
fufaõ, porque naô fe viaô os navios amigos, nem
íe ouviaô os Comandantes, nem appareciaõ íinaes , c
aííim topando-fe huns com os outros , muytos íe per-
derão , e os mais feparados bufcàraô os feus portos.
Grande laftimadehfva Armada Catholicataó florente
ficar como vencida , e fem effcyto por hum folguedo,
naò ícy, fe fingido , ou verdadeyro , ou para melhor
dizer, por bum rebate falío de quatro marinheyros.
Ora fe os fogos de noyíe, que reprefentados em muy-
to mayor quantidade cm tempo , que fe celebraõ as pa-
zes, ou nafce algum Infante, ou Princepe foberana»
faõ matéria de tanta alegria , e diverfamente repre-
fentados em tempo de guerra faò capazes de influir
Glofin-vmtã triííeza , e de atemorizar, e deftruir tantos
terl.ifi Alumnos de M-irteje íe as trevas do Egypto acom-
Mxoíi. paahadas de humas figuras fantafiicas , que Deos
mandou como efpantalhos de meninos , para humi-
lhar a íoberba de Faraó: Uí tllud€retz_yEgypúis.^à^
recèraó aos Egypcios taô horríveis , e iníoportaveis
que íe duraíTem mais tempo , haviaõ como defeípera--
dos de buícar a morte. Que íerá pois das trevas do
Inferno! Qjk horror ! Que tormento! Que terrí-
veis repreíentaçoens íe acharão naquella mafmorra !
Por iíio o Profeta Job , confíderando a terribilídadc
deftas trevas , pedia a Deos , que fendo a íua vida
taô breve , lha dilata-íe por algum cfpacio detempoj,
para chorar, cter dor das íuas culpas, a fim de naõ
fer
%iv
Do tormento da vlfia. 3j
fcr condenado para huma terra cheya de miferias , e
de trevas ( affiíTí chama elle ao Inferno ) aonde quem
entra huma vez, he para nunca mais íair: Nunquid
paucitas dieriim meorum finietur hrevi. Dimitte ergo
me^ ut piangam fanluíum dolorem metim , antequam
'vaãam , & mn revertar ad terram mifert^ , & tem-
br ar um.
Também Chriíio no feu Evangelho chama ao In-
ferno com nome de trevas exteriores •, e aíTim naquel-
lebanquetc das vodas , vendo entrar hum Réprobo,
quenaò tinha a veííe nuptiai da graça . mandou , que
atado de pês , emãos, o lançaíTem nas trevas ç.^x.ç.~
nmt%\ Ligatumamhus^ & pedibus. Eis-ahi os aper-
tos da piiíaõ , e a eitreytcza do cárcere, de que fal-
Iamos.no- diíçurfo antecedente; CMittiteenm in tene-
bras exteriores. Eis-aqui as trevas d;) Inferno , de Matth:
que agora vamos diícorrendo. He doutrina do ^n-cap.^^.,
geiico Doutor Santo Thomás , que o fogo do Inferno
terà/como veremos em outro difcurío ) hum ardor ds
qualidade inteníiílima , porem fem luz alguma.- Ibt erit D.Tho.
ardor fine cUritate. Arde, e arderá fempre com huminoptífc,
milagre oppoíio, e totalmente contrario ao fogo de
B-ibilonid. Quando os três mancebos naõ quizeraõ
iíiolatrar ácflatua delRey Nabucodonofor, m:indou
ofoberbo Princepe,que fe acere fcen ta íTe fete vezes
mais o fogo nas fornalhas, de modo,quecischammas
fobiaô quarenta ç nove covados mais alto que as meí-
mas fornalhas :Pyvfí-^/>/í. utfiiccenderettir fornaxfep- ^t^^ci
tulum^ quam accendi confueverat , & efundebaturl-
flamma Juper fornacem ciihitU qnãdragmta novem. E
com tudo ncíTa occaííaõ, querendo Deos íalvar aos
três mancebos, fuípendeo ao fogo toda a potencia de
arder, equeymar, e deyxou-Ihc íó a propriedade
de luzir. No Inferno não fera aíBm , porque Deos pa-
ra mayor çaftigo dos Condenados, náo íó dcyxarà
C 2 ao
3^ jD//:ôr7í^ //.
ao fogo o appetite íDnat<rdc queymar , c confumki
mas lhe elevará á potencia, porque arda,c queymc com
mayor a(n:ividade,eíufpenderá toda a luz, ficando
húaeícuridaõ medonha, huis trevas horrendas. Eftas
trevas , affirmaõ muy tos Santos Padres, que teraõ
íeus lúcidos intcrvallos , quero dizer , buns como va-
pores Ígneos , ou cxhalaçoens aceías Da meíma
maneyra que em huma tcropeftade ncâiurna , erítre as
nuvés mais denfas apparecem relâmpagos. Eftes po^
rèm , he tanto pelo contrario, que aliviem, cu rc-
crcem a vifta dos navegantes , que antes , os atemo-
rizaõ mais , c lhes accrefcentaõ nova pena , por ícrcm
prenúncios de algum rayo , que caindo os poderá
conf umir. Affim entre as trevas do Inferno , apparc»
cera hua nova cafta de luz íobrc modo pallida , c me-
donha, nafcida daquelle fogo, cuja matéria fera de
cnxofre,pcz,e outros betumes hediondos. Efta luK
mifturada com huma jnfofFrivel fumaça , que encherá
toda aquella gr utta infernal , íerá por permiíTaô divi-
na baftante , para fe cnxergarein as borriveis vifagens,
os aípcíílos monfíruofos, c as fantaímas medonhas,
que em corpos fantafticos,e como quiméricos toma-
raõ os Demónios para mayor tormento dos Pcccado-
rcs» Ob viftas horrendas f Oh trevas medonhas/ Oh
noyte eterna ! Confídere o Peccador a deíefperaça5
de hum Réprobo , condenado por toda a eternidade
. i emhuapriíaôtaôeícura,
I '1| ^^^- Mandou EIRey Dom Fernando de Caííella , pren«
^*/or. jçj. g Pqj^ Diogo Óíorio > e ordenou >que levado a Si-
'■^' vilhajOaíTeguraífcm emhumaeafa de fegredo, que
havia nos cárceres daquclla Cidade. Entrou na pri-
1 * íaô pelas féis horas da tarde, e foy tal ©horror y c
?Mch. t, aíTombro , que teve , çonfiderando-íe fechado na-
2./.33. qucllecalabouçotaôeícuro^foraõ tantas as imagina-
£ocns y que lhe pcrturbavaõ o juizo naqucUa noyte,
Dô Urmento da vi fia, j f
que eftando na primavera dos annos ^ arriranheceo com
o inverno da velhice, cendo a cabeça taò carregada
de brancas ,que parecia cuberta ds neve. Bem íe po-
dia dizer de D. Diogo , o que o Princepc das agudez is
diíTe de outro em hum caio íemelhinte. O nox ^-^^^^ L
qtiam longa es , qi'ae factã una fimm. Meíhor dilíera. 4-^^íí^*
O nox qtíàm longa ejt , qua cartt una die. Que nuncà
mais verá a luz do dia , nem a aurora , nem quem
eflivernelh , nunca íerá velho, mas íempre por to-
da a eternidade como moço , e freíco sos tormentos
eternos. Oh noyte ,comiO es comprida -, poys chegas
afazer hum homem de moço vellio ! Ora ,rc huma £,^^^^
noyte, que durou bem poucas horas fem mais tor- ^^^ inf,
mento, que ficar oRèocntre as eícuridòes de hum
carccrc , foy baftante para obrar hum exccíTo taó
extraordinário, de trocar repentinamente a mocida-
de em velhice. Que efFeyíos naò obraráò as trevas do
Inferno! As trevas doEgypto durarão fó três dias,
ccom tudo dalhfs a Soprada Eícritura o fobrcnomc
de horriveis : Faã^ frnt ienebríe horrthiles tnbns Exod.c}
diebus. E que nome dr/émos nós áquciias trevas, lo.
que depois de durarem três milhões de feculos, du-
raráò por toda a eternidade! Oh Peccador deígraça-
do, que vivei:ido com a cegueyra da culpa , defprezas
agora a luz da graça , para ficar fepultado para fem-
pre nas trevas do Inferno ! Oh noyte eterna ! Hor- fferêií[
rida , líirida , fqtiâlltda , ietnca , terrihtlis nox. Oh ^^^í'
noyte efcura ! Tiiik,dc quem cair em ti , porque'^*^*'^
nunca mais verá a belia luz do dia : In aterniimnon
*uidebit himen.
Obrigou Chrifio a huma legiaó de Demónios, a m
que largaíTem o corpo de hum Endemoninhado. %
Obedecerão elies logo ao império da voz Divina ; he %
porem de reparar, que fendo os Demónios os Corti-
ços da íobcrba, competição humilde, o fuppiicàraõ,
C 3 por
^8 Difcmfo 11.
por compayxaõ naô os deíierraíTe notcncbrofo abií-^
g " modo Inferno : Rogabant illum^ nt imperarei ilUs^
ut in Abifftimtrent. hxcravagantenaõ menos que im-
plicada pctiçaõ ! Se o Inferno foy crcado da Omnipo-
tência Óivina i j^r/W^r/^ para os Demónios, confor-
_^ , me fe !é no Evangelho; Giui f aratus efi Diabolo , à*
céiB-zi ^^é^^^ d^^- ^ ^^^^s ^^^" íabcm , que lie, e ha de
' fera íua própria morada. Mais, fe eiles íâò capitães
inimigos dos mtferos condenados , c fe deívclaôcom
toda a anciã, para os atormentar íempre mais J co*
mo na5 correm logo para aíua negra officina de tor-
mentos , &: com o triík fogo , e com a lúgubre funria-
ça naô dcfabafaò contra os deígraçados Réprobos à
íua feriílima tirania ? Mais, fe cfta mefmalegiaô de
Demónios, que refedia no corpo do endemoninhado^
podendo viver em hum campo aberto , aíliflir no po-
voado, habitar em palácios j diz omefmo Evangelho,
, quebuícava as efcuridôes dos ícpulchros , as trevas
8 * dos monumentos : iW^íiíí enimmanebat in domo, fedin
w, âj. rãonummtis. Como logo pedem a Chriflo com tantas
veras , que naô os obrigue , a reíiituirem-íe com a
fuareíidencianaquelie tenebroío fepulchro do Infer-
no ? Ne imperar et illisy ut inahiffum irent. Ah que
muyta difFcrença vay dos monumentos da terra ao
abifmo do Inferno ; das efcuridôes dcfta vida às
*' trevas eternas. Eflas íaô taô horríveis , e iníopor-
.,. taveisj*quc omefmo Demónio, com fer o Anteíin-
^* hano á^ foberba, abate a bandeyra, íó pela eíperança
de fc ver por algum tempo, ainda que breve, livre
rmall ^^^^3s '^-^ft locus tenebrcftts. Saô palavras deSaô Cyril-
exíttia- lo Alexandrino : ^em ipfe quoque Diabolus pertimef-
mma. cit. E f e o mefmo Demónio com fer o Príncipe das
tY€Vã$ :Princeps tenebrarnm. Sendo o Inferno ehcyo
de infinitos tormentos, íó deflas trevas fe qucyxa,
€ pede algum alivioj que íerá dos miferaveis Pcccado-
rcs,
^
Do tmnmu da vi/l a, 3.3
r^, quando íe vcraô eternamente condenados na-
quelle báratro eícuro , aonde eftaráò todos atadcs,
como diz o Erpirito Santo, com a meíma corrente
de trevas í Una catena temhrarum erunt omncs caWga- ^
ti. Eftranho modo de faliar , mas porèin entatico. ,7 ^^'>
Quer dizer, que as trevas lhes ícrviraò de priíaô,
de correntes , de algemas, e grilhões ; e como ce-
gos naõíe atreverão dar hum paíTo, nem m.udar íitio,
nem viraríe a outra banda, annellando fempre na-
quella noyte cícuraaque amanheça alguma luz; mas
nunca apparecerà a cíirelía da alva, nem amanhecerá
outra aurora, que aquella de principiar íempre a fua,
pena ; In aternum non vietebit lúmen.
Efle tormento das trevas naõ fera incompaíUvel
com o tormento da virta; porque no Inferno os tor-
mentos fe daô de maõ , huns aos outros , e com hum
modo admirável fazem liga entre íi os contrários i e
aílimofogo naõ derreterá o gelo, nem a agua apa-
gará o fogo ; e a miyor intenção de hum calor íum-
rpo nt oBo naõ poderá diminuir o minimo grão de
frio ut unmn : ^iod enim mirahile erat , ín aqua^ qua
omnia extmgmt .^pltfs ignps valebat. N/x autem , é-^f'^"*^'
gelu fiiftmebant Vim ignvs. Da mefma maneyra , os |^'^^^
olhos de hum Condenado naquellas trevas do Inkx-verf.xz.
no , entre as horri veis fumaças de tantos corpos , que
eternamente íc ertaô aífando, íeráõ como cegos pa-
ra ver a qualquer objedojque for capaz de lhe dar
algum alivio ; pelo contrario , pjra ver aqiielies
monftros horrendos, informes, c agií:nntados , naõ
fera , como fabulava Virgilio,fcm v'é:\Monftnm hor- /^í''*''*
r-endum, informe, vagens, cm lúmen ademptum. An- ' '
Us , para íua mayor pena , fera hum Lince , que tres-
paííarácomhãavitli aguda, e penetrante as monta-
i^has de corpos precitos^quc tem amõtoados fobre elle.
SM iiiim ArgQSj^e cem olhos ^ para ver hua multidão
.<-■.'. C 4 in^
4© Dtfcuvfo Ih
inniimeravel de Demónios encaretados com efpcíflros^
diabólicos, reprefentando figuras taõ extravagantes,
' e cípantoíss , que o Profeta Job , e toda a Sagrada
Efcritura naõ as fabe explicar , íenaó, com o nome
Vib céip. ^*^' ^^c>rrí veis ; Fadent , & venient fuper eum horribiles,
j^. Diga agora o vulgo , e repita muycas vezes , efte íeu
adagio. O Demónio naõ he taô feyo , conio íe pinta.
Oh bocca facrilega , que tal diíTeftc ! Oh lingua dia-
bólica , que ditado taô perniciofo para as Almas pro-
fcrifíe ! Eu bem entendo,o que encerra em íi íemeihan-
te propoíição. Quer dizer, que o Peccado naõ hc a-
quellemonftro taò abominável, como o deícrevem
os Pregadores, afíirmando trazer comíigo o fel amar-
gofo do arrependimento i e na verdade aíTimhe, ao
depois que a deliquente natureza íe fartou da doçu-
ra , que traz comfígo o mel do dclcyte. Oh Pcccador,
Deos te livre , a ti , c a todo Fiel Chriftaô , de ver,
nem por hum inflante ao Demónio. Vio o o ojoriofo
Patriarca S. Francifco, e confeíTou ao venerável Frey
Gil ícu Companheyro,que era impofifivel , fem auxilio
eípecial ác Deos, olhar para tal monflro , fem fe
5,^„^^ morrer de repente. Refere S, Antonino Arcebifpo de
DiW /r. Fiorencia , que tendo viflohumReligiofoao Demo-
i.í.28.nio, diíTe, que antes de tornar avelo, elegeria an-
tes entrar para fempreemhúa fornalha de fogo. Nar-
D. Ber- ra S. Bernardo , que aparecendo o Demónio a hum feu
nar.jHp. Patrizio , dco- tal alarido , que acudirão todos os
-^•^'*'^'9 • veísnhos, c ficando muyto tempo fem falia, tornan-
do depois em íí,faziarigurofas penitencias, mas fem-
^/fjy^^j^pre como frenético, e furioío. Finalmente S. Cate-
^p/r.í-ri*,rina de Sena por permiíTaô divina por hum íóinftante
.14. vio ao Demónio j c pelo tempo adiante pedia conti-
nuamenre a Deos, que antes a fizeífe caminhar defcal-
ça por hum caminho laftrado de fogo athc o dia do
jiiizo, que tornar a ver humobjedotaõhorrorofo.
Dc-
CroTé.p.
Do tormento da vi ff a. 4 1
Deftes todos fe verificou , o que diíTe o Profgtci Jt)b fi-
gurado na PeíToa de hum Peccador ; fíofiísmemíer- n t .
rihlibus oculis me intuitus ejl. Torne a dizer agora o l^''^^^'
vulgo ignorante , que o Demónio naõ he taô feyo,
como fe pinta. Sirva de remate a efte primeyro ponto
hua prova do Angélico S.Thomàs,ademitida comu-
m^nte de todos os Theologos j c vem a íer, que aíTim
como no Paraifo ha o lume da gloria , que conforta,
e eleva a potencia ; captiva fuavemcnte os Santos, e
os une à viftâ de Deos, obrigando neccífariamente a
fua vontade a amalo , CO íeu entendimento a ver as
fuás perfeyçóes , c os olhos a ver a humanidade de
Chrifío com aquelle gofto immenfo , que refulta da
vifaõ beatifica: aíTim no Inferno o fogo encerra emfi
hum lume de pena, humaluz de infâmia , que ainda,
ao entendimento , c vontade dos condenados, os fará
conhecer a íua íumma mifcria , c obrigará osfcuso-
Ihos a ver neccífariamente todos os rronflros^cefpc-^
dros,que temos dito, c fouberem inventar os De-
mónios, com todas as mais figuras medonhas, emais
terríveis, que forem capazes de excitar nos Precitos
o aífombramcnto, o furor, e a deíefperrçaô; e ven-
do tudo iflo forçadamente, cftaraôfemprefepultados
nastrcvasjfem nunca ver hum rayo de luz,que os ali-
vie, ou conlole : In aternnm non videbit Uimen. Pfaf»\
Rcíia agora o vermos no fegundo ponto, como os 48.
olhos faõ a caufa principal dcfíe tormento das tre-
vas 5 e aííim a elles toca com as lagrimas continuadas
apagar o fogo de tantas culpas , que o acenderão. An-
da celebre entre os Jurifías hum ponto de direy to muy-
tas vezes dcfc icido , e vem a fer 5 fe bafta , para to*
mar poífe de algua herdade, ou fazendas, velas íó com
os olhos, ouíe íeja neceíTario ir coma prefença lo-
cai também tocallas ? eíle tomar pcíTc dos bens do
Mundo fó com a viíla , fem mais nada , tem grandes
con-
4^^ 'Difêurf& Ih ■
controveríí ís nas íevs i e achaQ.fc muytos juf ifpcritosy
. que íegueií) o 'contrario. Porém nos bens da Alma»
e nas matérias de efpirito hedeciíaõ já firmejc jurídica,
de todos os Santos Padres , que no meímo iníiante,
que 03 olhos viraô a algum objedo , logo toaiáraõ.
a poíTe compieti deíle. E eíia decifaó he infeilivel,
poríerfundadiem vários arêftos publicados por bo-..
ca do meímo Deos,c dos fcus Profetas. Santo Ambr( íío
chama aos olhos redes , e laços, com que prendem,
ecaptivaô as Almasmais innoçentes : Ratio qubus
"f^.fp^^^ofas Jiivemim animas capiunt, Saõ Bernardo , c
j^y^^ ^Teoíiiâto os chamaõ eorreyos , c traydorcs, que
. ' 'entregaô á morte as próprias Almas, que lhes diô a
vidai Nmtii lathales anim^ proditores. O Profeta
^"^^' Hieremias chorava a íua deígraça, em ver , que os
Jp°' ísus olhos câptivàraô aíua Alma; Or/^/í/í meusdepra^
■ áatusejl ammammeam. E Chrifto no íeu Ev..ngciho
7Ãr.c.5 nos adverte, que qualquer, que lançou os olhos, e
vio a hui mulher por mào fim, vçm a íer o meímo,
qne \k ter tomado poíTc delia no feu coração : §lni
viderit mtiUerem adconcupifcenâum^eamjammechatm
efi tn cordefído. Grande liga , ainda que oculta , de-
vem de ter entre íi os olhos, e o coração. Parece-
nie , que. entre elles paíTa aquella íecreta correípon-
dencia , que tem entre fí certos montes , que de
. quando em quando lançaõ fogo. Obícrváraô os
curioÍQs, como no meímo tempo que o Vcfuvio
em Nápoles , e o monte Etna em Sicilia lançavaó em
Flor.ven ítalin tantas lavaredas de fogo ,que parecia hiim-.in-
inir ti. cendio; no meímo tempo por canos íubterrsneosj
dsreh. e por vias ocuitas outros montes áo Chile, e do Po-
^^'*^' wú na America Meridional íe enfureciaó , lançando
chammis , como fe paíTaíTe entre elles huma recipro-
ca inteliigencia. E he ccrtilfimo , que no anno 1672.
quando houverâQ aquclles grandes terremotos , que
af-
Do tormento da vifta, 43
aíTóIáraô Arimino, emuytas outras Cidades do efía-
do Pontifício , e do Reyno de Nápoles , correndo a
cofta do mar Adriático ,no mcfmo tempo houveraõ
femelhantes terremotos na Cidade de Lima no Peru,
correndo a corta toda do mar do Sul , que chamao
Pacifico. Eíla mutua intelligencia , e efte comercio
ocultof entre os olhos , e o coração, hetaõ infallivel,
que paralivrarmo-nos no martcmpcfluofo dcfla vida
das cruéis tormentas das tentaçoens , naõ ha melhor
remédio, que fer bom Piloto dos olhos , vedando-lhes
todo o rumo , que com viftas incautas vay dar nos
abrolhos dos objecílos profanos. E bem fe confirma
com o noíTo ditado Portugucz. O que os olhos naõ
vem, o coração naõ defcja. Tanto aííim que o Pro-
feta Job naõ achou mayor argumento, cem que pro-
var a innocencia da fua vida inculpável , como ale-
gar a Deos, que nunca o feu coração tinha íeguido os
íeus olhos, quando na variedade dos objedos tinhaó
fido pouco acautelados .• Si fecutum eji óculos meos corfçhc.'^!
menm,
Cuyda o vulgo pouco intelligente nas matérias de
cfp!riro,que os olhos faõ noíTos amigos j pelos muy-
tos divertimentos , que nos daõ íempre intentos a
nos fornecer de novas efpecies , recreando-nos com
variedade de cores em milhares de objídos , como^^^y^,
já diíTeoPoeta amante do arco íris: CHílle trahit ,i^éú.z
vários adverfo Sole colores. Muyto mais, que Chiiíio
diz no feu Evangelho, que os olhos faô como noffns
guias,fazendooiicio de pagens ,que carregaò as to-
chas para diante, livrando nos de rnil quèdas,e tro-
peços : Ltícerna corforis Uiiociihs ínns. Ainda níílm
digo, que os olhos íaô os peores inimigos, que \.t- Matth,
mos , aííim o ffirma por experiência o gnn-idc Meflre '^'^PS-
da milícia eípiritual , que jà não íe atrevendo com
tantas batalhas a bom livrar, tratou de padear trcgoas
com
44 Blfcurfo tf.
^olfcap, com elles : Fepigi f^edus cum oculis méis. He ceftiííi-
l^' mo , que as uegojs na 5 fc fazem com os amigos,;
mas cem os inimigos intendos a pelejar. E prouvera
a Deos ,, foíTem íò inimigos como os mais , capazes
ao menos de alcançar humapaz íírme; mas nunca íe
podem vencer na batalha de qualidade, que naò fi-
quem no campo, fenaó mcyo rendidos , e femprc
capazes de nos acometer tantas vezes , quantos íaõ
os novos, ou antigos objedos ,cjue nos rcprefentaõ
na Alma: Pepigi faâus cum ociílú méis , ut ne cogita-
rem quidem de Fírgim. Eftranho mod j de ta liar!
Os olhos naô foraò creados para cuydar, mas para
ver. Mais! Na guerra, que move opeccado à Alma,
os olhos naõ faò os Capitães , nem os foldados , mas
íaõ íímples exploradores, cnaõ fazem outro officio,
que de efpias, relatando tudo ao penfamento , com
a repreíentaçaô fiel à Alma do modo ,queoobjedo
na aparência exiftc. As tregoas não íe trataò com as
: eípias ;( nem íe ajurtaõ com os exploradores, mas com
os Generaes, e Plenipotenciários, que para ifto faq
deputados. AíTim hz meCmo. Porém confiderava o
Santo Profeta , como perito na arte , o grave dano,
ea rota total do exercito , queíe avia de feguir, íe
déíTeentrad-iaeíks exploradores. Via no olhar, que
o penfamento curiofo o íeguia i no penfamento via
lllj ' odeleyrc;nodcleyteocon{enío;noconfenfoaobra^
f i na obra o habito i no habito a dcfcíperaçaõ 5 na àtkí-
peraçiõ a impenitencia final, na impcnitencia final
a condenaçsô; na condeniçaô o Inferno. E aífim
prevendo eilc total extermínio da fua Ahiia , queria
j padear a tempo com as eípias , que íaõ os olhos , por-
querendo d elles obedientes, c pacíficos, efcufava
de experimentar a força das tentaçocns i a violência
dos aíTaltos com rifo evidente de ficar vencido , c
roto na batalha. Sabia, que nas praças fortificadas,
cm
Dõtormentodavifta. 4r.
em nenhúa parte fc ufa de mayor prevcnçaõ,c cautela,;^
que cm gwardar > c defender bem as portas^ Affim
na fortaleza da Alma achaõ-fe cinco portas , que íaõ
os cinco fentidos. Porem , nenhuma he mais fácil a fer
conquiRada que a da vifía; por ifío todos os Santos
Padres, feguindo a doutrina de Chrifío , tanto en-
comendaõ a vigilante cautela dos olhos. E cfía hca
porta contra a qual o Demónio levanta logo a pri-
meyra bataria , affegurando-fe com a experiência,
que, cfta vencida, fica a nobre praça da Alma con-
quiftada. Affim foy vencido David olhando para Ber-
fabè em hum cyrado; Viâit mulierem fe hvantem in ^-^'f'
folario. AiTim fepcrdeo Dina com o Príncipe de Si-*^'*^'*'^
chem ,porcuriofa em querer ver o trajo das rrulhe-
res eftranhas : Egrejja eft Dina , nt videret muliercs. ^*"^C'
Aííim oconfeflade fio Poeta amante, que o nicfmo*^'^*^^*
foy o ver, que cair no laço de mil erros ,e morrer;
Ut vidiy ut perti ^ uí me mdus abftnUt error. Refe-
re Tcituiliano de hum certo Filoíofo, que defeípe- Ot//^í/^
rado de poder olhar para as mulheres, fem as cubi- ^r/.
çar , arrancou de fi gcnerofamente ambos os olhos:
Giuõà mvlitre fim concupij gentia ajpicere Tion poffet , é- Teri„,
Meretfi mn ejjet potttm , excaijit fe, Eíie Filofo- in^pd,
fo , com íer Pagaò ,,lcm ter luz algíia do Evangelho, ^^p'^6.
interpretou ao pè da letra , c com todo rigor o con-
ícihode Chriíio: St ocuhs tuus fcandahzat te , eme ^^tt^^
eiim^& pTõjict abs te.k IcyDi vina naõ requer tanto nos '^'^P* * ^í
ícus preccytos. Baíia que tenhamos tregoas com eU
les, enaô lhes larguemos o campo na batalha, e íc
por acafo nos vencerem, os obriguemos com as la-
grimas areflaurar o dano, que nos tem fcyto, Aííim
o enfinou S AmbrQÍio a huma Donzela , que pouco a-
cautelada tinha caído como frágil em huma míferia
humana. Saya o remédio (diz ellei da? meímas fon-
tes, por onde íe diftillou a culjpa : O culilacrymis de-
Jluauti
tAm,
m.
i:
1 í
ir
■SEB
flmnPy^^MimaJculumi ímpliciter nom afiexerúfitrE ji-
que oéoilííòí» pçrdèndb à íirtiplicidade innoGcrjievCom^
faiícas arnoroías acenderão o incêndio daf culpa^^ hc
bem jtifto,qLiecom continuados rios de lagrimas o a-^
paguem. ' ■áOiJai oiíi - lí^d^s oyp ;■ 03
Succ^de ifíúytâs"Vézcs nefte>àlQndo , que as lagri-
liiâs, ainda que naícidas da trifleza , ou de aigum<
^j,^-^^^^ eftranho accidsnte,que nos afílige , emolcfia , íoce-v
arte. guern , OU aliviem a dor da noíTa pena : Sedatur la-
crymii , egeriturqm dolor. No Inferno , naò íerà
^ aíFiín , antes tudo ao contrario. O chorar fera íem-
'}; pre continuado ,c eterno; porque o ardor do fogo,
e a atrocidade dos mais tormentos obrigarão à força
Matth, osmíferos condenados a deplorar a fua mifcria ; Ibl
^lx^:^eritfletus. iVías quando virem , que efle choro naô
*^'''" modera, nem move a compayxaõ^ antes irrita os Dck
moBÍos , a ferem mais cruéis , c provoca os conipa-
nheyros ,e os cúmplices na culpa" ,~ a infultar ,' c pi'0-t
. ferie miyores blasfémias, cotaõ o choro paíTa em
, -"..furor, em fayva> c em defeíperaçaô , que os incita ^^
Bermr. c obriga ao eílridor dos dentes: Stridor dentium. Como
5.Í/.8.Í» bem o explica S. Bernardo? Plane vero fletus ex dolo-
pfaim^ re^ftridúr dtntíumex furor e, Verificando-feaíenterí-
Qjttha- ^^ do Profeta Rcy contra os Peccadore^ Precitos:
^'^'*'' Peccator videbit , & irafcetnr^ dentihus fuis fremet,
p)d%.^&ta^jefcet. 0\\ íeos Pcccadores coníideraffcm os ge-
midos defefperados ,e os choros inúteis dos Precitos
no inferna, quinto aborreceriaô as âpparencias enga-
nofas dàlc Mundo, cujos deleytes , e deiiciaí; paíUiô
em hum momento ? Momentãtieum qtiod deieãaf, ater-
num qtiod cniciât. Oh íe cxperiment-aíTcm , quam do-
ces, equam íuaves Ía5 as lagrimas derramad-js por
hum coração contrito , e peíarofo de ter oflendido
. a Deos , toda a pena lhe pareceria delicia , e todo o
trabalho levefVefitava Saõjoaõ Climaco os Mofíey-
ros
Do tormento ia vi (la. ^,
ros da fua Ordem , e achou erítre os mais Rcligioios
a hum Leygo cofinheyro, que fempre chorava ,e fa-
zia acoíinha com humildade ,c paciência , amais de
duzentos Monges. Quiz íaber dcile , como Supe-.
rior , o principio , e fundamento de tantas lagrir^
mas. Relpondeo o Leygo , que t\\ç> fe imaginava
de fervir a noíTo Senhor Jcíu Chriíio, e aos feus Diíèi-
pulos, e como para coíínhar com attençaô , lhe era
neceítario eftar fem^pre ao fogo , coníiderava a graça,
que Dcos lhe tinha feyto , de o livrar do fogo do In-
ferno, que elle muytas vezes tinha merecido , por tan-
tos peccados cometidos no íeculo.
• Nos dcíertos da Sitia efíava o Abbade Macário em
conceyto de grande virtude, eíantídade pelos muy-
tos milagres , que obrava. Determinarão os outros.
Monges em hum Capitulo geral , que íízeraõ, man«
dalo chamar , para que os dirigiíTe na vi.da Monafli-
ca, e lhes déííe algíías regras , ou breve infíruiçaô , pa-
ra a reforma dos íeus Moíieyros. Apenas que chegou
Saõ Macário, logo todoaquelle íagrado congrcíTo fe
lançou de geolhos 5 e admirados da fua humildade, ti
modcflia, quizeraõ á força beyjarlhe os pês, pedin-
do'lhe , que quizeíTe coníolar a todos com alguma pr3=
rica efpiri tua l , com que renovsíTem o fervor, c eí-
piritoda antiga pbíervancia. Entaò Saa Macário de-
pois de hum breve efpacio de orsçaõ feyta a Deos,
deu principio à fua pratica com cíias palavras mal
pronunciadas , pelo interrompimcnro dns lagrimas , e
íoluços, com que as dizia iPloremus ( mqmt) & Fr a-
três , & lacrymas noftri ocuh prodmant , anteqiiam^^f*' ,
bine eo migremus^^ ubi lacrjma comhurunt corpora, ' ^'^
Choremos , Irmãos cariíTimos , e os noííos olhos íe der-
retaõ em lagrimas de dor, e arrependimento, para
evi-tarmosdeiráquelle Itigar, aonde as lagrimas fí-
earáô inúteis, e qucymaráè para íempre os jaoífos cor-
pos.
I .\y
! '
48 Bifcurfú U.-^^
pos. Efte foy o exórdio , cíks fofao os diícurfosí
citas foraò as provas , efta foy a peroraça6 , e epilogo
de todo o Sermão ; e ai naô diíTe ; deyxando a rodos
os Mbnges penfativos , echorofos, ecom propoíito
firme de lavar dahi por diante com lagrimas os ícus
defFey tos, e de íeguir a mais regida obíervancia.
PaíTava Chrifto com a Cruz às coftas peias ruas
de Jcruíalem, quando ouvio os gemidos, e higrimas
de humas devotas mulheres , que laílimando a fua
eruel morte , íe rendiaõ inconíolaveis. Cuydava cu,
^.ííí^. que Chriíloasconfolaria com a íua doutrina ; Beati
c.s> quilugent,qmaipficonfolabuntur. Porem acho , que
asexhortaa continuar com as lagrimas, c que dcrra-
! mando-as, não tenhaô laftima delle , mas lafíimem a íi,
jF^^^jjCaos feus íiíhos; Filia Hierufalemy nolite flere fuper
V. ^9. ^^-yfid fuper vos, & fuper Fdios vefiros. Pois, continua
a fua cxhortaçaõ derte modo. Porque virá tempo, em
que diraó. Bsmaventuradas as mulheres , que naó
parirão, e as paridas, que naô\ vingarão os Filhos, e
pediráo aos montes, caos valles, qus os fepultem.
Porque fe aífim íe acccnde o fogo dos tormentos no
lenho verde , como íou eu ; que fará na lenha feca , c
Llío.^lêí\fyo\^^ das Peccadorcs ? ^luomam ecce venient dtes , in
qnibus âícent : Beat£fteriles ^ qua non genuertmt ^ ò*>
nhera qu£ mn latíaverunt, §luia fiin viridi ligno hoc
facnmt.in ando qtúdfiet? Muito cuidado dava a Chri-
fto o fogo, que le havia deaccender na lenha feca, c
diípofta dos Peccadores , quando naquellc extremo
desfalecimento ciufadoda grande carga da Cruz , ain-
da fc lembrava dellc. Diz Tcrtulliano , que o fazer
Chnfto msnçaõ do ufo matrimonial nafrafe de parir,
e criar os filhos , foy declarar com honeftas palavras
as torpezas , e deleytes illicitos , que fàõ como a le-
nha jà alcatroada, para arder no fogo dolnfern'^. E
ainda qus Tcofilato hc de parecer , que Chrifto nc-
ftc
V. 1.
hítnc loG
Do têvmefito da vi/!a. 49
fte paíTo fallaíTc metaforicamente, daado a entender,
que na dèftruiçaô de Jeruíalem, muytas máys com
; horror inaudito haviaô de aíTar ao fogo os íeiís Rihos^
e comelos : Erant immma crudeltter fuos íilios affd' '^'°J-
tura^& comejiur^. líTo íerá huma incerprctaçaò tac-
(Comodaticiaaopê da letra; mas em fentido tropoio-
gicoda Igreja Militante naô ha duvida, que muyto
mayor cuydado davaó a Chriíio as fornalhas aceías
do Inferno , a cujo fogo lento haõ de íer aliados vi-
úvos os Peccadores para fempre. Confirma efta myíli-
ca , e importante doutrina o Venerável Beda , expli-
cando as citadas palavras de QX\ú{\q'. giuiaji in vir i- Beda
diligno hoc facííint ^ in árido qiiidfietf 5ecuCordey-í^í.
ro jnnocente, ícndo por natureza impeccavel, par-
to deík Mundo cercado do fogo de tantos tormentos^
feeu, ícndo a verdadeyra arvore da vida, florente, c
;vcrdejante, pelas maldades do meu Povo íou deíii-
nado ao íacrificio , como a mais cruel vicflima da
morte: Propter fcelera Populi mei prcujjl etm, Qúc/faicap:
penas, que tormentos cítaò preparados, para as ar-55,«
vores ítcas dos homens, para as fígueyras eíiereis
dos Peccadores ! Coníidercmos attcntos cftis pala-
vras de Chrifto já agonizante, para que excitem em
nôs hum verdadeyro arrependimento das noíTas cul-
pas. Profundemo-nos com a imaginação neile incên-
dio, que á vidada luz medonha defte fogo infernal
(dizTertulliano ) fe deíiillará pelos alambiques dos
noíTos olhos a mais fubida quinta eíTencia de lagrimas,
íacadaspcranriperiflaíis de hum verdadeyro arrepen-
dimento das meímas rofas de Vénus , e das mais flores
de Cupido ; Oculi lacrymis defluant-, qiú cupídmt in-Tei^M
fiammatt invemrtum amor em arfertmt.
He opinião dos Santos Padres , que entre eí^as
cievotas filhas de Jerufalem , a qucu) Chrifto deu
por coníelho , choráíTem a fi , c náo a cUc ; Noltte
D fe^
■n
ofô Dífcurfo Ih
. flere fuper mê , fed. fttfer vosipfasflete. Efta va tambcfe
a Mcigdalena ^ que^ penetrando o íentido^as palavra?
do Redemptor , aplicou*as a fí , c confíderando a íua
' ^ ercandalofâ vida , parecia-ihe fer elia o pao íeco , qde
^ íó fervia para qiieymar no Inferno ; Mtdier in Civita-
tePeccatrix, E, como diz S, Joaõ Chry íoílomo, naô fó
íe julgava peccadora , mas o mefmo peccado de toda
a Cidide ; Non peccaírix fblum ^fed totius Ctvitatpsfa-
k^' ^^ipfi precatam. Conheceo elia, que na pouca cau-
yjj^^^' relia dos íeus olhos, íe rematava o compendio de
todas as fuás maldades : c que a fonte dos íeus vicios
tsVA manava dos mcfmos olhos igualmente culpados, ( co-
mo diz S. Ambroíio ) tanto porcuriofos cm ver,quan-
to que por libidinofos em ferem vií^os : Invicem\ fe ea-
âtm oculorum gratia âeftderant , ejufdem hbtdtnis tfi
i}iâm^ ó* videre, Rcíolveo-íe logo a Magdalena a
íepararíe de feus Irmãos Lazaro ^ c Maria 5 e porque
já lhe aborrecia o nome de Cidade, que lhe deu oti'-
Ambr, tulo de í^cccaàoYâ : In Cívitate peccatrix. Largou Ig-
inEfampoQ Marcella, c foy bufcar a gruta mais efcondida
dos Alpes , para não ver mais ,e nunca mais fer vifta.
Mas que importa » que cila ccrraífc os olhos a todo
obje^ílo humano aíFaíiando-fedeiudo, o que chama-
mos Mundo viíivel , íe o Demónio na imaginação , e
fantaíiacom a lembrança do paffado , lhe armava húa
guerra invifivcL Naô Magdalena, (dizia o Demónio)
naô he poííivel paliar cm taô breve tempo de hum
cíiremo a outro ; Nemo repente fit fummus, PaíTar da
Cidade ao dcferto , da converíaçaô á íoiidaõ , fera
converíaô de pouca dura. Quem fc acoflumou a ter
por fua morada hum palácio , pouco poderá durar em
huma cova Alpcí^re. Nunca peccoude ingrato , quem
teve íangue fidalgo nas veas > muyto mais quando a
peíToa he amorofa de génio, e branda por natureza;
entaõ virar as coíias y a ^uem idolatrava aos voíTos
V* olhos
Do toYineHto da nAfla, $ i
olhos, lifi liua eípccie de tyrànnia, que nunca teV« jazi^
go na Corte. Quantos choraõ agora em Betania , por-
que naò vos vem chorar ncíTa gruta , c fe agora poclef-
ícm enxugar as voíTas lagrimas , logo paranaõ as fuás.
Quantos luípiraó , por naõ poder ouvir hunn dos
voíTos fufpiros : que , íe os ecos deílaefpelunca là re-
tumbaíTem ,como cáretumbaô os voíTos ays ,jáBe'
tania , já a Palcrtina , jâ a Judea toda- formaria a íua
Corte neftc deíerto. Bem íey que o voíTo Divino Me-
Ore vos inculcou a penitencia j e que cníina no feu
Evangelho, que naôhadefer no inverno da velhice:
Orate neftigavefirajiat in hyeme. Mas também vòs ^^'í^.
naõ deveis tazela na primavera dos annos; pois com^^-^i'
a flor da mocidade, corre rifco evidente de naõ fe vin-
garem os frutos delia. Seja logo no vcraõ da vida,
quando a idade já vay para madura ; e aíTim vingando
Os defcjados frutos da penitencia , fe lograráó fafo-
nados: Facite vobis fruãus dignos pcenitenti/e. Arê **'* ^'
aqui o Demónio, para enganar a Magdalena , a fiirt
de que ceifando com as lagrimas , difFcriífe a peniten-
cia. Mas ella como quem fe defpcrta de hum leve fo-
no, abrio os olhos da Alma , e conhecendo o enga-
no , começou a fligellaríe. Dobrava os fufpiros, c
redobrava os açoutes ,c entre as lagrimas, e faluçns,
dizia. Chora Peccadora , chora. Chorou Ezcchias,
c chegando ás portas do Inferno ,com as lagrimas apa-
gou aquelle incêndio. Peccou David huma fóvez , e
com tudo as lagrimas foraõ taõ abundantes, que de
dia lhe íerviaõ de bebida ,e de noyce lhe alaga vão o
jey ro , em que íe recoftava; Potum cumfletu mfcebam, Pf^l 6.
Ó'lacrymi6 Jiratum meum rigaham. Poucos inttanrcs ^/^''». \
duráraõ as negações de Pedro, quando por medo fe ^°^* v
moflrou vacillante no amor de feu Meiire; e com -
Xudodeíçeqhaya-fe de dia , c de noytfi çm hyiua ror^
r^-: à D 2 rcn-
li!
tente de lagrimas, qac fulcando as faces , 'deyxiraa
formados dous regos, por onde continuamente cor-
riaô; Petrm auíem amar) flebat. Cliora Peccadorai
'^'^^^^^ chora Magdaiena ,Da5por temor do eterno tormen-
^^^ ^ ' to das trevas, merecendo os teus alhos dever nunca
mais a luz Divina : In aternum nm videbit lúmen. Cho-
ra Magdalcua , e refina as tuas lagrimas » chorando as
aufencias do teu Amante JESUS , que para íer teu ef-
pofo , te perdoou tantas culpas, para depois dotar
paraíempre a tua Alma com o lume da gloria. Atè
aqui Magdalena eníinando-nos com o fcu fervor o
modo , com que havemos de rebater as tentações do
Demónio, e da carne. Diz SaõCypriano, que todas
. as vezes que a Magdalena íe lembrava dos feus pecca-
'^^' dos, logo chorando fe rebaptizava nas fuás lagrimas.»
fttporM. Cumfe fordídam agnofceret , jietibusfe abhút , & Ia-
Aíagd. crymis fe baptizãL Muyros fe alegrão, e coníolaô em
ler, ou ouvir a converfaõ da Magdalena , c argumen-.
tão aíBm. A Magdalena foy publica Peccadora , c
naôfófe falvou, mas foy huma grande Santa: Ioga
me falvarcy também eu. E0a coníequencia fdizSan-
J> Amb ^^ ÀíTitíroíio ; be falfa , e iunt.^mente cnganofa. Por-
éuLCaf. 9'-*^ ^ Magdalena naô íe falvou porque foy Peccadora;
masporque foy penitente, € derramou muytas lagri-
mas. O meímo haveis de fazer vós j íe quereis falvar-
vos :Sífeeutus€s ^JMagdalenam errantem , fequerepce^'
mtentem. Larguem daqui por diante os voíTos olhos
o oíficio ydc ver a qualquer objed;o incentivo da cuU
p2,e tomem por ofacio, como diz o Profeta Biere-
'jf mias, de derretcrfe de dia, e de noyte em lagrimas
capZ^T de arrependimento: Deducant ocnli meilacrymas fer
uimbr. diemy&noãem. Oh doces, e mil vezes felices lagri-
"in £fam. mssy pois delias emana aredempçaô dos noííos pee-
cados : Felices lacryma j píhs eft redempia pec-
Do tormento da vi fia. yj
catorum. Eílas lagrimas , diz Saõ Gregório Papa , fa5
como hum novo bautiímo , que apura a vifta do noí- £) Qyg.^
ío entendimento : Mens lacrymis bapúzata vidi Im- ji4or,
pidíus. Produzem na Alma hua nova regeneração da
graça, para fugirmos das trevas do Inferno, e alcan-
çarmos o lume da gloria , que he a eterna bcmaventu-
r^nça.
D I
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:-/5 ' '-■,■.'■
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TORMENTO DOS OVVWOS
DISCURSO III.
Do Tormento dos Ouvidos.
Vox Citharedorujn , & Mujicorum non audie-
tur amplius. Apoc. i8.
Muíica , arte admirável , pedra
ImandoscoraçoCxHS humanos,
ainda que a façaõ naícida na
obíciíra oííicina de Tubalca n,
quando com os armonioloi
golpes dos três martellos , com
uni fona diíTonancia reCLimbin-
do,fez obedecer, e íervir o fer-
ro, aobom, ou mao ufodeíla
Irilis vida-, com tudo, naô faltaõ Authores, que digaó,
íer divina a fua origem, trazendo os feus princípios da
íciencia infufa cm Adaò. Arifloielcs chamo à Muíicm,
alivio, c refrigério das noíTas penas. Piataó bin doce,
-ainda que eííi;nera,fGpultura dosnoffos cuvdíidos.Os
^Gregos conravaõ a Muíica nonumcro das íciencias ,x
faziaõ as meímas honras aos Mulicos ^ que aos Poetas,
-coroando-os com coroas de louro. S, Agoflinho^que cô
a agudeza da íua pcnna, efcrcveo íeis iivi-o^ eríi louvm'
'da Muíica ^prodUm^ â Sdl& pór uxú Divitm | g^isq^-
D 4 xan-
for. Eh
l.GÀt
Lth. 8.
pol.
Uh. 4.
àe Rep.
l.C
Pah.
56 Dtfcuvfo III
xando-fc, que a fua nobrezi naõ feja conhecida, antes
deípreíada na cerra : §lnoniatn vilefcitin terris. Amca-
'-^«^ //^ ça ao Mundo j com dizer , que cornará a recolhcvíe
'•■^^ noCeo. E julga, que ofer alguém amante da Muíi-
^^■^ ca jhéhuni final, ou huma tâi qual congruência de íer
predeilinado. Canonizou pois Dcos a Muíica como
fanta , quando ordenou , que no feu Templo hou-
veíTem quatro mil Muíicos , com largos eftipendios
Parai, ^3(^3 anno , para cantarem de dia , e de noyte os feus
^S- louvores; Úniverfi ad cantandumm Templo Domim,
díftribtiú erant , in cymbalis , pjdteriis , & citharis,
. Por iilo S. Gregório Papa naò cteyxou de fcr grande,
^y^'^*^'"^ por enfinar ellc meímo aos moços do coro o canlo
chaô , que do íeu nome fe chama o Gregoriano , nem
S. Luís Rey de França abatco daíua Mageftade, nem
Carlos Magno poz em menos preço a coroa imperial,
Ij porque ambos honrarão as íolcmnidadcs da Igreja,
11 com cantarem publicamente neila. Pois íe a Mufi-
{' ca he hua arte , que os meímos Anjos exercitaõ , co-
í j I,ue. mo íc ouvio em Belcm no naícimento de Cbrifíc ; G/ie-
j! 9sf.i. m /w ^ífíí//í> í)íí?. SehehúenfayodaBemaventuran-
il çaj íche hum raígo da gloriado P.raiíb;como lo-
1 jjl go tanta gente por caufa delia fe perde í' E quanto
til! mais fuave , e deliciofa parece aos ouvintes , com
i tanto mayorcs penas lhes atormentará os ouvidos no
inferno. E efta ícrá a total matéria defie difcurío ,em
,( que moftraremos os grandes males , e danos , que
i I caufaô as cantigas deshonefías , e os baylcs , e danças
indecentes , ate fazerem eítràgo total nos Povos,
e Republicas; e no fim veremos a tcrribilidade dos tor-
1 mentos, que foffreraó cflcs muficos , e tangcdorcs,
que povoaráó o inferno de tantas Almas ,que com
a fua innocencia , c cantigas devotas efíariaô no Pa-
ra ifo. Ou fo bom , ou mao da muíica: o ouvir, ou
cantar cantigas licitas j ou illicitas > he o que merece a
prc-
Do tormento dos Ouvidos. S7
premio , ou a pena j he o que dá a vida , ou a moric,
IDoutamcnte advertio Platão a todos os Magif-
trados, que por nenhum caio coníintaô na fua Re-
publica mudanças de Muíicas } porque cfías nunca íe
fazem f em mortaes pai oci imos no governo , c íem no- ^^^^
tavel prejuízo das Leys : Ntmquam enim Mujici moài m^L^è.
mutanttír ^ abfque máxima legum civilium miitatione, deRefp,
E tenho reparado^ íer iflo aíTim , porque ncfíe Vixo^-apud
íil depois que íe inventarão certos géneros de bayles, Stob,
c cantigas, no efpaço dç quinze, ou vinte annos,
vaõ íerpando os vicios, e dcpravando-íe os coftumcs,
com mayor licença , e publicidade j e ainda que o
Prelado , como Ercules Eccicílaflico , com a clava
do feu báculo paftorai , faz o poíTivel para extinguir
efta Hydra corcandolhe com a efpada da Igreja a ca-
beça; o efpirito infernal do Afmodeos faz nalccr logo
outras mais peiores,que os fete demónios, de que Chri-
í^o falia no íeu Evangelho:C//«? immundusj^iritus exie^
rit -> tunc vaàety & afftimet fipem altos Ipititus nequio- Lue.i i
resfe , &fiiint novíffimapejoraprioribus. E que aMu-
fica com húa doce violência prenda os corações, tro-
que os afre(flos,e mude os coflumesi he couía taõ certa,
como a experiência em tantos caíos o tem moflrado, c
nôs o moftrarcmos, com o que fe fcguc mais adiante.
Alexandre Magno foy defde Infante inclinado
a ouvir , c tocar inArumentos j atê que o íeu rígido
Pedagogo lhe diíTe, que a fua maõreal fora talhada
para o ícetro , e naõ para o plcdro : Non ad plecínimt*^iiàn1
fed adfceptrnm. Guardou porém fcmprc eípecial amor ^A-i^ff.
o Timóteo, celebre Citarcdo, e iuntamente Muíico'^''^^';^^
taõ iníigne , que fe aíimilhava a Orfeo , naõ o fabuloío ' ' '
daquelles tempos. Eíie como fido Achates , o acompa-
nhava ainda no exercito , aonde reparando hú dia , que
elle eíiava com os feus Aulicos fobre otrifle,ecomo
fpnolcnto , armou de repente na viola huma batalha,
co-
'!h
h I,
58 Difcurfo 11 f.
eomeçou a correr as cordas, prirney roas folas, de-
pois todas juncas, como quem vay bufcando, e af-
íegurando,a confonancia , aperrando depois a pri-
ma , a modo de guem toca Ivum clarim , carrega iogo
como de falto no bardaõ, econtraprima , parecendo
hum tambor batente com pífaros, eíaindo no meímo
tempo com a fua voz angeliea começou a cantar,
Guerra , Guerra , Alexandre ; Alexandre , Guerra.
Plm. in Mudou femblante o valerofo Príncipe , com íubirihe
vita. o fogo de Marte ao coração , c já com os olhos em
chammas^ao modo, que Turno ,Jnfl:igado por Juno
contra os Troyanos. gritou : FerUcitifernm , date te-
VirgJ, la Jcandíte muros. AlTim Alcxandre,dcíembainhandoa
g. efpada ,e já veftido do furor bcllico , levantou a voz,
edicc. Armas ; armas j toquem depreíTi as cayxas;
em fileyra todos j cadahum ao ícu pofto. Então Ti-
motheo, tocando com fom mais leve a retirada , e mu-
dando com a viola totalmente a fena , com voz entre
amorofa, e languente cantava. Paz, Alexandre, paz.
Ao teu valor já todo o Mundo cede. Parou o invido
Heroe, e já com o vulto fereno , já defpindo as armas,
moftrava nos olhos o fogo marcial apagado. Continu-
ando pois Timotheo os feus Vilaníicos, e defc:mtes,
com a fineza da arte , e com o languido do íom , fazia
acabar a voz em delíquios i e Alexandre paliando com
fuavc metísmorfcíis de Leaô a Cordeyi o , experimen-
tou em íi a volubilidade dos íeus afFeâas ; que quando
os imaginava mais terríveis , como íoidado valente, 20
fom de húa viola fe deyxou cair deímayado, como hu
amante.
EQa he a fuíive violência , com que o obje ão pre-
íente di Muíica atrahe a fi a potencia fenfitivra dos ou-
vidos; e ainda que nunca poderá predeterminala fifí-
cimente, com tudo com fuavidade , c doçura a obri-
gará a privaricar ,e feguir , o que por via do íom , e
do
Do tormento âosOuvidos. f9
do cafifo, íe reprcfenta nã Alma, como íe vcrà cia-
ramenre neftc íucccíTo. Foy cercada a Cidade de-
Groninga em Olanda por Alexandre Farncfío , no an-:
Bo 1568. Tem o torríaõ da Cidadela féis columbrinas
de bronze , fabricadas pelo Artífice comtal indufíria,
que pelas vozes fuaves , que lhes fahiaõ da bocca,
quando o fogo as animava na pólvora , lhes deraô
os nomes das fcis celebres fyllabas : Do Re Mi Fa^"^^'/^".
SoILà, queíaôos elementos, com que fe compõem ^*7jf^*
toda a Solfa , c a efcada , por onde íe fobe ao mais ^ '
íublime da arte do canto , ou doce encanto da Mufica.
Eu me perfuado , a que feria hua delicia , quando apli-
cando eícaçamente , a modo de relâmpago, o fogo no
ouvido do bellico inftrumento , como íe déffe a Alma
ao férreo parto , que encerrava nas entranhas, o vo-
mitava pela bocca com tal ímpeto, que aballando
com oíonoro eí^rondo a terra , emulava os mais me-
donhos trovões do Ceo. Começava com a fyllaba Do^
fcguia-fe o 7^^ , depois o M; eíte afinando a tiple, a-
qucllc imitando o contralto. Continuava o Fá ^ Soly
Là. Hum fazendo o papel de tenor, ooutro deoytai.
vabayxa, e todos de falfetes , conforme a mayor , ou
menor medida da pólvora, que lhes dava oefpirito,
c alento , para íairem as vozes , entre íi enlaçadas , c
ajuíladasao metro, que a íimetria do perito Artífice
inventara. Couía prodigiofa ! que fcis canudos de
bronze , que cm latim fe chamaõ tormentos da guerra.
Tormenta bellica : Mais aptos aíaciar o furor de Mar-
te , que a mover a manfidaõ , ou piedade compu-
nhaó huma nova cafta de orgaô , cujas vozes taô com-
paíTadas fem compaíTo j agora triftes , c querulss j de-
pois alegres, feíiivas , e paufadas, fem paufas, fe
desfazem em gargantejos trémulos, em cadencias fof-
tenídas ,em paíTagcs volantes, e em fugas aceleradasj
€ aífim difcordemente concordes ^ retumbando os
W
*
, ;iL.
qua-
6o Drfcurfo ///.
quatro elementos com o éco , como íc lhes deffcm os
eiiges , recreavaõ os ouvidos humanos com hum
íom táo fuavc , e mageftoío , que parecia a armo-
nia do Mundo, ou a melodia Pitagoricadas esferas,
r^orém os efteytos foraõ taô differcnces das vozes,
que faindo impetuoíos , a modo de corifcos , os globos
de ferro, aonde cahiraò , oubatèraô , fizcraô tal eftra^
go no exercito, que incendiando ,c deftruindo, naô
rcípeytando , nem aos quartos dos Generaes , que
mandaô, nem aos quartéis dos foldados , que obe-
decem , tudo arruinarão , c a todos derrotarão , até
o mefmo campo ficar todo alTolado. AíTim acabou
a fuavc, e juntamente horroroía melodia das vozes
deftes canudos de bronze , que , como íe foffem finos,
ao mefmo tom , e tempo ,em que alegres os cerca-
dos fcftejavão com repiques a vitoria i oíficiofos,
c triftes fc dobravaô para os funerais dos ficiado-
res.
Nunca li , nem ouvi inftrumentos da Muíica, nem
taó pefados, c graves, nem taõ curiofos, e terri-
i veis. Sey eu, andarem celebres entre os Poetas Or-
í feo, e Anfion ; efte inventor da Solfa , e filho de
. j Mercúrio ; aquellc Filho de Apolo , Deos da Mufi-
1 1 caj porèín ambos na perícia de tocar inftrumentos
craó M-ftres tsò eminentes , que fenhoreavaò os fen-
tidos,náo íó dos racionaes , mas também dos bru-
I tos, e de todo o Creado. O Racional elevado ficava
1 1 attonito.O feníicivo dos Brutos na fancafia , e apren-
' ' ! íaô parava fuípenío. Os paíTaros , cm ouvindo tocar
j os inftrumentos, como fe foíTcm capazes de Solfa,
j : lavgavaô os pomares , e ao fom da Cithara cantando,
' I c dobrando, fe desfaziaò em cantos, c gargantejos.
í Coiifa maravílhoÍ3, fcnâo foíTe fabula inventada pelos
Poetas; pois ainda as meímas pedras infenfiveis , co-
mo puxadas dáhua força magnética, do meímo mo-
dO)
Do tormento dos Ouvidos. e^i
ão , que a pedra Iman âtrahe o ferro , fcguiaô a doce
melodia decanto, e daCithara, cem tanta quanti-
dade, que fazendo como corte a Anfion, c Orfeo, a-
montoando-fe cm toda huma íobre a outra, deu ma-
téria a fingirem , que com ellasaflím arrumadas fc fa-
bricarão os muros da famofa Cidade de Thebas; I/orJâ
Fertur , ó' Aufion Thúana conàitor areis. arf.paet.
Saxa mover e fonn teftudmps ; é^ prece blanda Onid,
'Dticere^ qnovellet. Metam:
Keparemos nas palavras : Ducere , quo velkt.Qucx ^'^ ^^'
'dizer, que o objedto dos ouvidos nos levará, por on-
de quizer. Bem íabiaó Ovidio,e Horácio, Varoens
taõ doutos, e entendidos , que nem as arvores fe ar-
rancarão do lugar, em que cflavaõ plantadas , para ou-
virem a Orfeo , nem as pedras íaíraõ das fuás torren-
tes, movidas da cithara de Anfion. Porque , íe eraõ in-
feníiveis por natureza.como podiaõ ouvir,que hehum
dos cinco fcntidos? Fallavao logo metaforicamente,
dando nos a entender, que buma voz cantadora paíTa/^/^i?
logo a encantadora , e feyra huma Circcs , transforma ^^^f^^Jf^
o racional em bruto , e o feníivel no infenfível , co-"^*^''"?
mo Hefiodo, c Natal Comité expiicão as íuas notas. ^"*
Temos a prova evidente , na fagrada Eícritura
no mais fabio , e entendido homem do Mundo. Ef-
cafamenteouvio Salomão as cantarrices cftrangeyras,
asMoabitas,eSidonias, que de racional o mais per-
feyto , le transformou em bruto , o mais efíólido:
Depravattm eft cor rjus , nt fequeretnr Veos aUems.x.Reg:
Comenta Cornelio Alapide : Depravatum eft cor ejtiscap.i i.
fer mulíeres, ha enim Sidónia ( que faô as Cantarri-
ces (quadementavertmt eum,F\zcvâò-no louco, pri • CorMeh
varaôno do juízo, dementaverunt. Pois quem hc^^^p*
louco, e já naõ tem ouío da razão, que he o racio-^^'*
nal , fíca-Ihe íó o íeniitivo , que he o coníiitarivo dos
brutos. Ora fatal maga, c terrível Cirçes, he aMu-
íicaj
iii
'<
i
í
j
]
ii
ú^ Difcurfo III.
fica , que fem fer fabula , mas com toda a verdade da
racionais nos iransfocma em brutos. Mas, oh gran^
de miícria dos noílos ouvidos! Ainda as Cantaratrices
fizeraô a Salomão peyor que bruto. Obrigàráo-o a
adorar a Aftarcher , Deofa dos Sidonios , que era entre
os H;breos a Deoía Vénus de Grécia , obrigáraô-o a
darincenfo aMoloch ídolo dos Moabitas , chamado
o Deos da luxuriarJ"^^ colehat Salomon Aftarthen Deam
keg.r. Sidomorumi& Moloch idolum Ammonitartm. Eain-
cap.ii, da o obrigarão a mayor exceíTo, que naò fora crivei
em hum homem , que por antonomaíia fe chama
ameímafabsdoria, íe naõ fora de fé » e foy , que
kvantou hum fumptuoío Templo a Chamos ídolo
Uiti ^^^ Moabitas , que era entre elles o Deos das Bebe^
**'"'' '*dices,como Bacco entre es Gregos .- Tunc aàifica*
vit Salomon fanum Chamos^ erat autem Chamos Deus
temukntia , ficut , & Baccus, Expofiçaõ do grande
Interprete CornelioAlapide. A tanto naõ íe atreve-
rão com ás fuás poeíias , nem os inventos de Homero,
^ nem as fantafus de Horácio, nem as transformaçoens
de O vidio ; pois cftes , quando muy to differaô , que a
cithara de Orfeo , c de Aníion faziaô coma íua me-
lodia as arvores, eas pedras de iníeníiveis íeníiveis.
Porem as Circes Moabiticas,e asSereas fiioniascom
o íeu doce canto ,encantavaò de maneyra os ouvidos
de Salomão , que chegou a dar ás arvores , e às pedras,
naõ íó o fcnfitivo, mas também o mcionaí, e o Divino;
pois bem íabia Salomão, que nem oldolode Mo|och.,
nem o de Chamos podiaõ íer Deos , pois eraô por
eííencia huma arvore talhada, e entalhada cm hum
fiava lacro de cedro i ou húa pedra dibuxada , e eícu'pi-
da en hu i eftatua de mármore.
Tornemos agora ao orgaô das bombardas de Grc-
ninga , )à que ellas , a modo das trombetas de J:ricô, no
mefiTio tempo , que as tocavaõ , deftruhiaô, e lançavaõ
por
Ai
met.
Do mfnem^ dos Ouvidos. 6^
'pdr terra os muros : Et dangtntihus .tubis ^ muri illicofof-^'
(omterímt. E vejamos , fc as podemos moralizar com
hum texto do S Job, cuja explicação naó lie taõ fácil. ' .'^
Defcrevejobahum pcccador , em figura deBehemot,
palavra Hebraica , que na noíTa lingua íignifíca jumen-
to i ediz, que os feus oíTos tem a forma dcfrautas,
ou canudos de bronze: Ojja ejus njtlut fiftula aris, v^j^.q;
Ariíloteles diz na íua Mctafifica , que o compoflo hu-
mano he como hum orgaõ, e a Alma he a forma,
que o informa ,e oefpirito, que o anima, e lhe dá a
vida ; Anima eft aãus corporu organis , potmtia vi-
iam habentis. Efe o corpo humano he hum orgaô,
quem duvida, que falia admiravelmente oSantoJob,
chamando aosoíTos, canudos, ou frautas: 0£a ejus
-.fjitda. Reparo , porque caufa eftas frautas haviaõ
de fer de bronze f Fíjiula aris. Se faô frautas os oíTos,
diga antes , que faò de marfim , ou de ouro , ou de pra-
ta , ou de cobre, ou de ferro. Mas naô ; porque todas
cftas couías cada hua por íi faó de húa fó efpccie. Haó
bem fim de fer de bronze ; Fiftula ^w, que he metal
compoflo de diverfos metais. Mais. E porque o
peccador fcaviadc fer figurado em Behemot, c naó
cm Afmodeos , ou Belfebub ? Porque Behemot me-
lhor reprefenta a hum Pcccador , pois fígnifica hum
jumento, qiiche o animal mais vil, cefíolido de to-
dos, íem brios, fempre pigro, c por ifto maltrata-
do, e obrigado a toda a carga , e a todo género de
trabalho : íem eftimaçaõ , ou cuydado deile , antes deí-
prezado como hum jumento.
EqueeftcfejiofentidojaíTimmyftico, como tro«
pologico defte texto. O Profeta Rcy, que na ma-
téria da Muíica , entre os mais Profetas, he o melhor
contrapontifla , já que Job leu na cadey ra do feu mu-
ladarafualiçaõdeponto, David, não jà com a fua
arpa, mas com o orgaô do íeu corpo, explicará o con-
tra-
riMMMkÉite^aiii«HriMM
i I
w
64 Di/cíir/o III.
traponto, Queyxa-fc pois o Real Profeta, que nâõ
pôde firmar as pazes com os íeus oíTos: Non efi pax
^Í^^'l5 Bjfibus mm. E que guerra íerá efía , que tem David
nos íeus oíTos, que naô admitte , nem tregoi , nem
quietação, nem pazes? Non eftpax Gjjibus meà. Saô
as frautas de bronze dos íeus oíTos : OJJa cjusfifttiU
aris. Que , aíTopradas pelo Demónio , tazem rinir o
íom de codos os mctaes , agora juntos , jà dividido^;
conforme a diípofíçaò da noffa natureza corrupta.
Huma vez com o fom do ouro , e da prata, que,
como gerados do Sol, c da Lua, faõ os dous Pla-
nej:as mais rutilantes , e nos infíigaô á foberba , e
vaidade , para luzirmos melhor que os outros. O
ouro , e a prata fe falfiflcaõ com o cobre , e como
cfte metal tem o influxo de Mercúrio, nos inílnua q
roubo, o engano, a trapaffa, e todo género de fal-
ftdades. O Planeta de Mírrte favorece muyto o fer-
ro, e, como efte metal he o ordinário inílrumento pa-
ra as guerras , aíTopra o fogo da ira , fufcita os cfpi-
ritos bsllicozos, reprefenta à imaginação injurias, e
afrontas ,^ e alterando o coração com hum yefuyio
de cólera , o faz arrojar em vinganças , precipícios,
e mortes. O Planeta de Vénus, tem eíFeytos total-
mente contrários a Marte. Chama-fe cík Planeta do
vulgo a eftrella di Alva , e dos Mathcmaticos o Plane-
ta de Vénus. He beneficio ao corpo humano, etem
íuas icíluencicns benignas, e domina nos naturaesbran-
dos , amigos de ouvirem inftrumentos , e Muíí^as,
que' fe forem profanas, e amorofas , afFeminando íe
o coração , acha-fe depois com huma íuave violência
engolfado em deley tes, que do nome dcfte Planeta cha-
maõ venéreos.
ConfeíTa agora David, como Mcfírc da Capella
taõ exercitado no fom deftas frautas, o que experi-
mentou emfi. Checou David do cajado ao fceptro ,c
de
DoteMento doiOuvidoi. íj
iJcPaílpr, a fer Rcy. Confiderava-fc como o Sol ái
Judea , coroado de tantas luzes , quantas craó as pe-
dras precioías , e peças de ouro guardadas no fcu the-
fouro; cortejado de tantos Planetas, quantos eraõ
m Pr incepes, c Grandes da íua Corte. A' vifta de tan-
to poder, e grandeza tocou o cfpirito maligno a frau*
ta da vangloria, c jrendido logo ao íom delia, man-
dou aliítar porjoab , noeípaço de nove mezes , hum
milhaó, c trezentos mil homens de armas •, often-i.^í-^;
taça5„de que Dcos ficou muy irritado. Fez a peniten- cap.i^^
cia, que Dcos pelo Profeta Gadlhc mandou efc^lher.
Mas que importa, íe cllc da galaria do feu paço , ou-
vindo outro fom mais íuave de outra frauta , que
nefta occafiaô lhe íervio também de canudo de oculo,
de verão longe , para alcançar a Beríabè , que fc efta- \\
va lavando: Vidit muUerem fe lavantem. Foy-lhe re- ^' *^'
cado, vey o ao paço , e do mcfmo modo , que Dl na com
o Princepc de Sichem , aíTim Berfabè tornou indigna
para fua cafa : Et rever/a e/Í tn domum fuam concep
to fatu. Entrou depois outra frauta de ferro , que
tocando em tom de guerra a batalha, naquâl ficou
vencedor Behcmot , dcftruíndo , e aniquilando ao
pobre Urías , marido de Berfabè , que teve, com
lhe tirarem a íua conforte , taô pouca lorte i porque
pcrdeo a honra , o credito, e a vida.
Coma defconccrtada melodia defte orgaô gaQou
David mais de hum anno , atè que alumeado pelo
Profeta Natan, conhcceo , que as faltas defta íolfa
não crão minimas, nem feminimas ; mas graves,
c agudas , e todas corridas , procedendo naó tanto da
roim matéria das frautas , quando do efpirito , que
com maliciofo aíTopro as animava. Oh luz Divina,
quanto es poderofa , quando entras em huma Aln^a!
Cpnhccco David , que o concerto das frautas dsfte
- ^ ' E noíTo
\ f
Gev.l;^
06 v^DifcurfíiIlhAfi
jãoíTo orgaõ corpóreo coaíiOe na srítioiiia dgs payxôcs
ajuíiadas á razaó, e que os deíeaníes verdadcyros Íai5
as frequentes jacuiatorias em Deosje aífim trocando
asdeiicias da folfa, que recrça os Mentidos ,eom a
penitcneia, que conforta ,^7 i\lm^^;eoiite^u ,, qu€;
todo o fom ,,e canto profano era bu^nn; encanto vicio^
'] lo; OJjfamea velut fifiula ark. Que com efte nunca re-
/ I riaõ pazes os íeus oiros; A7(?«^jí?á a: offlhmmek.Eq\HÈ
, i final mente , eiie eca o y er dadey «o Pcccador figura do
j I em Behem o t , que fe ti nl|a rransforimidov, e fiey to }U*
i í^cmo:U£jumentMmfaãusfum4pfidte'^. : ...:.'
Para ficar amuíica deíia doucrina mais concorde^^
e per fey ta ; a t raz dos i níh'umcntos do Pay , f egucm-lc
os%ancares do Filho. Diz pois Salomão no capitulo-
' '^' íetimo: ^ud vldebitinSunamitenift choros caflrvrttnii
Que fe pôde jà ver na Sunamite , icnaõ arraays , ten^
|Í||t das, e eíquadrões armados ! Difficultoío texto^-r©
naô menos duro , que ode Job , com os oÍTí* de hroh-^
ze. Se a Suoamitíshe figura de huma Alma i elevada
aDeos com huTn extais gozando as muíicasdo Pa-»
raízo , como diz ) que feoaõ achanella, fe naõ cl3#
rins , c tambores da terra f Se ella eflà íõlitaria , er
pacifica na contemplação , como afaz entre os excr-
fiios , e tumultos de guerra ? e íc finalmente Suna-
mitis no original Hebreo fignifica , í)<?r;»/>wí, Eftà re-
pou fando no fcyo do feu Dikdlo '.Dikãm meus mibi,
é^egoilli. Como quer , que fejafentinella ,. com con-
tinuadas vigias contra os fcus inimigos ? Reparou Sa-^
lomaõ 5 que ícu Pay David , bem ícte vezes no dia^í
JBfAlm. pegando na íua arpa, cantava louvores a Dcos : Se-^i
li 8. pttes m die ,, laudem dixi tihh Reparou também,,
que de dia, e de noyte eíiava meditando o modo*
Pfilm. mais feguro , para guardar pcrfey tamentc a Eey do íeu;'
1:23. ^^^hov rXôta die lex tua meditatiâmea efi. Reparou?*
' ■ . ^ finai--
■Dosnmento dos Ònvldáié &7
inalmcnte, ^uc defíes cânticos^ repetidos, c defta
flieditaçaò continuada tirava David por coníequen-
ciar Perfequar inimicos meos , ^ comprehendam illos.
Farcy guerra aos meus inimigos , e os reduzirey á mi-
nha obediência , atè eu ficar Senhor abfoluto delies.
Entendeoentaõ ,que eíVes inimigos eraõ as frautas do
OTgaõ do ícu corpo defordeaadãs ,que íaõ as payxôes
da ira , do amor, e do ódio > e efcrevco entaò nos Can-
tares ; Q^id vídebis m Sunamitt. Eis-aqiii a Alrna
«levadaem hum extafis com afuave Miaíica da con-
templação : Nifi choros Cafirorum. Eis-ahi o períe-^
guiu os inimigos , que faô o Demónio , o Mundo , e a Thenà,
Garne. Admiravelmente a cfte propoíito Theodoreto,'«^'í«ff
fobre efte mefmo textOvapprová,e confirma quan.^''^^'»'
to temos dito:D««/ apudAltiJJímum preces funâit,&
Mu fiei officiumfacit , & mtlítis } (JMuJici quidem dum
placat iram Dèi } CM^íUtis dum vincit fetpfum. Eftas
iaõ as Muficas , ás quacs nefta vida havemos de aplicar
osnoíTos íentidos, com cantar, e ouvir os louvores
deDeos,c no mefmo tempo pelejar com osnoíTos ví-
cios, o vencer as noffas payxões: CMufici officiumfa' ^■^^•'•3'
cit i & tMtlitís. '^'^'^'
Foy reparo de Marco Tullio , que nas Cidades da
Grécia, com as mudanças das Muficas, fe mudarão
também os coftumes dos Povos , tornando-íe de
guerreyros em effeminados , atè ficar a Grécia , que
eraotheatrodc tod^as as Sciencias, comohuma cloa-
ca de immundicias* Sò os Lacedemonios, como ain-
da eRavaô freícas na fua Metropoli de Eí parta askys
doíeu Legislador Licurgo , viviaô mais comedidos,
porque com a infaliivei execução das penas, naô con-
íentia o Senado, que paíTieaírcm defcaradas as culpas. ^|.^^'
Naõ foraò aífim os Povos Sibàritas , que cfquecidos da
deftruíçaõ , e incêndio de Troya fua Pátria , entrega n-
do-ie a coda género de delicias > íoitàraõ as rédeas
£ 2 SiOS
P/ut. iê
^!fc.^'
1 í
í: i\
éS Dtfcttvfo 11 L 3
aos viciosj c, como fc fcftejaírem a fua Ekna;nâ8ícorí:
tentes das fuás Muíicas, c danças, eníinàraô tambcm ao
íofn íaftenido, c grave de humas fiautas, a baylar
com arte os fcus meímos cavallos. Oh quanto me-
lhor fora , qúc os cavallos, em lugar deíe adeftra-i
remcom o fom madioío das frautas para obayle, íc
cnfayaífem com o tinnir afinado das trombetas, e com»
o marcial eftrondo dos tambores, que lhes fufcitaf-
fem os brios para a peleja. Succcdeo depois entrar
o pomo da diícordia , entre os Lacedemonios , e Si-
baritas, ainda que os Authorcs Gregos, oaõcfpeci-
fiquem qual foy o Paris, que o lançou. Sò convém-
todos, queosSibaritas prepararão hum exercito nusí
meroíiilimoíCuja notícia certa deu taõ grande aba-
lo á aepubh"ca de Eíparta , que , chamados a concelho
os Senadores, todos votarão concordemente , que o
numero de trezentos mil combatentes , poflo em para-tí
leio com a limitação da gente de Efparta, que com
grande trabalho poderia ajuntar trinta mil, era que-
rer húa formiga , pelejar com hum Elefante. Porém
que, fe fcmediíTe adcfigualdade do numero dos íol-
dados com o difFerente valor das duas nações; no
calor do combate fe achariaõ trinta mil Elefantes con-
tra trezentas mil formigas. Acordarão mais , que o gé-
nio dos Sibaritas, mais era inclinado a ouvir concenros
Muficos,que inflrumentos bcllicosi cque mais depreífa
arsmavaõ com os pês húa dança , que nas mãos hua lan- '
ça^ Mas porque o valor fó naõ bafta , quando as forças
faõdemaíiadamente inferiores, determinarão valerfc
de hum cfíratagema , com que aíTcguraífem a vito-
ria. Efcolhèraô a huns poucos de íoldados , dos
mais fieis da Republica, c mandàraõ-os, como fugi- í
dos, e queyxofos , paffar para o exercito inimigo com
inftruiçaó fcoreta , de comprarem as frautas de me-
tal, e aprenderem as peças, a cujo íom cuflujnava5
<^''^'-> dan-
Dâ tõVf^ientQ dos Ouvidos. 6^
dançar os Cavalios. Chegarão ao exercito ; e , fíngin-
do-íe traydorcs , pedirão, que os aliftaíTem debayxo
dasbandeyras inimigas, Naóforaõ admittidos a íer^
vir no exercito j porque eraô fugitivos , conforme eníl-
na o Meíire da Arte Militar Vegccio : Transfug^e nuU .^. .
lo modo m exercitu admittendi, Buícàraò logo aos^'^'J^/*
Tangedores, e tratando amigavelmente com çW^^^Milit.
porfiavaõ , que naô era poílivel , que huns brutos,
como faô os Cavalios, aprendeíTem bayles, e dan-
çar a ponto. Da porfia paíTáraó à apoíta -, da apof-
ta á execução dobayle, cdobayleao enfmo jcaíTim
cnfinados , compraraõ-lhes os Cavalios , e junta-
mente as frautasi depois induzidos os mefmos Tan-
gedores com hum desfarcc notável paíTáraõ outra
vez para Eíparta, aonde os cftavãoeíperando já pre-
parados para a guerra. Viraô , c ouvirão aííim as
frautas, como os bayles , e Cavalios; e certificados,
como o eftratagema havia de íortir o íeu eíFeyto , af-
íentáraõ de acometer ao inimÍ£»o. Checarão à vifta
os dous exércitos, c acometendo os Lacedemonio?
com Ímpeto , fizeraó forte reíiliencia os Sibaritas
com a Cavallaria , mas durou pouco j porque tocan-
do as frautas a coíiumada melodia , e applicando os
Cavalios os ouvidos, paráraõ logo de repente } c o ini-
migo > entrando dentro das fiicyras com íoccgo , fazia
grande eftrago. Feridos os Sibiritas , feriaõ com as ef-
poras os Cavalios , porém eftcs obedecendo ao fom das
frautas, fem d ar paíTo adiante, baylavaõ com mayor
força; e o inimigo , jâ entrado no exercito, dego-
lando, profeguia no eftrago. Conhecendo os Sibaritas,
queperdiaõ a batalha, por terem Cavalios dançan-
tes , tocàraõ a retirada , por não ficarem de todo der-
rotados. Porem os Tangedores aífinavaó as frautas,
eos Cavalios , tomando mayores brios , levantavaõ
as mãos , e com faltos compaffados piíavaõ o meímo
< .: E 3 ter-
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. :''V'
terreno no fcu poíio. Galharda viíía , c. tia verdade
alegre, fe com huma peripécia íimultanea não obraíFe
cfFeytos encontrados , pois no meímo tempo, que
osCavallos eraô a recreação dos olhos, os Cavalley-
Tosforaô o objeâo da mais laíiimofa magoa. Porque
os Lacedemonios , vendo a invenção da eíiratacema
Gorrercom toda a felicidade, foraó ferindo^ e degolan*
doj atê ter completa a vitoria.
Eíle eftratagema y que a muy tos parecerá no^
voí^ íeos que lerem eftc livro, tiverem com o lume
da fé abertos os olhos da Alma ? acharáô fer muy an-
tigo j e que , primeyro que os Lacedemonios, íe fer*
viraõ fempre dclleos Demónios. Suponhamos, qué"
hum moço, inclinado deíde a primavera dos feus an-
ãos a ouvir Mufrcas lafcivas , aprende a tocar huma
viola / as primeyras peças baõ de fer de danças , e bay*
lesj os primeyros defcantes haõ de acompanhar can-
tigas amoroías. E que importa, que a voz fahinda
do laringe, como por hum cano de prata, feja an-
gélica, fe no^ repercutir doar , forma taes palavras,
que fe faz diabólica. Eíia voz, que parece taõ doce
unida com oíom taô agradável, entrando pela por^
fa^ dos ouvidos , infunde iníeníivelmente no coração
hín- caíla de veneno, que quanto maisíuave,e ami-^
go do corpo, tanto mais mortífero, e inimigo da?
Alma. xALÍfim inficionado paíFa o Moço , mezes, ç:
annos, ncfle cxercicio, fempre em muíicas , fempre
em cantigas ,. c bayles» Chega depois huma doençaj,
c^eícem os fimptomas , o corpo enfraquece, e a po-
tm'i ^^^ ^'"^^5 fenaô eflà immerfa , como a Alma dos
• ^ brutos, na matéria r Luten váfa poriam. Viveío-
mergida no viíeofo lodo dos vicios. Ghega íinali
mente a morte ; e quero, queamifericordia Divina
permitta, naõ fer apreíTada , nem repentina ; mag.
tue,,dèpois de alguns dias de perigoía doença., de cer-
to
Do tormento dosOuvldos. 7'
ão final ao Medico , que he tempo de tocâr o reba-
te, para tomar as armas dos Sacramentos, e prepa-
;rar-ie para a agonia (palavra, que íign'fica ; Certa-
mm ultimum. ) A ultima batalha canipal ; ou para
vencer para íempre, ou para íempre ficar vencido,
A ConfííTaõ geral já naô he a tempo , porque os dias
•antecedentes, em que havia de cuydar, e diíporfc
^paraella, íe gafláraõ , em tocar inftrumentos pava
aliviar ao doento. A penas íe confeíTa , (\o que fc iem-
■branaquelle inftante, que logo vem o Pároco com o
•Santiíiimo Viatico ,e pouco depois o Coadjutor com
os Santos Óleos, para coníolar,c confortar o enfer-
«10 nefte ultimo tranfe,paraa outra vida. íQo alfim
admiravelmente diípofto , vejamos agora a traça
.occulta,com queefte miferavel peccador ,com hum
íucceíTo taõ proípero fica enganado. Entra já na ago-
nia; já ofirro lhe aperta a garganta j já perde afalla,
•c a vifta; e já não ouve. Poem-íe de geolhos o Sa-
•eerdote , com os mais circundantes, echorofos rc-
zaò as Ladainhas, comas mais orações da Igreji, pa-
ra que com a fun interceíTaõ acudjô propicias , coiii a
■Virgem NoíTa Senhora, o Santo do feunome , e
rSaôJofcph, com os mais fcus Advogadas , e Pró-
<florcs. No mcfmo tempo ajuda-fe inviíivelmente
■huma Jegiaò de Demónios , que com as violas , e mais
iníirumentosna maô , defperta5,e avivaô na fantá-
■fía do moribundo os bayles, e laraos , com as mais
inuficas deshoneíias. Repitem com' fom im iginarib,
c com vozes fjntaíticas, asmefmas palavras d iscan-
tigas , com os mefmos dcfcantcs , que as acompa-
nhavaô. Eo pobre do enfermo, ainda que proíiraio
<le forças, acuílumado como Sibarita a viver entre
as fonòras delicias , firma- íe voluntariíimente na lem-
•brança dos goftos paíTados; e o coração , que ainda
vive como bruto , torna a deíejar, e recrcarfe no
E 4 que
?i ; Dtfcurfo III
que em vida fempre amou j e a vontade , que pelo
cfpa^o de tantos annos, nunca íoube, nem quiz ré-
íiiiir , ou vencerle , em violência fe rende , e inclinada
pelo mao habito fc dà por vencida.
Finalmente, vendo já oSacerdate os íinaes certos
da morte, cque por inflantcs, íc fepàra a Alma do
/M^rí-^'. corpo , começa a rezar em voz alta; Profifcere Ani*
^°^- ma Chriftiana de hoc mundo-, in nomtm Dei Patrps omm-
potentíí ^ quite creavit. ISlo mefmo tempo o Demo*
nio Aímodeos levanta o compaíTo, e os feus com-^
panheyros tocaô os mefmos dcícantcsj cantaô as meí-
mas cantigas, a que foy íempre inclinado , e com
o engano de hua falfa cíperança lhe dizem ; Dumjpi'
TO ,j}er&. Em quanto dura a refpiraçaó no corpo , ha
vidij em quanto ha vida , íe pôde eíperar a íaude;
Dum f£iro , r^ero. E affim cm quanto a Alma refpi^
rando eípera , deíefperada efpira. Adverte o Sa-
cerdote, que jà a Alma fe feparou do corpo; e, co-
mo cuyda dos antecedentes , que terá lugar na Bema-
venturança , reza logo : Subvenite SanBiDet, accttr^
nu Angeli Domim tjufcipentes animam ejm, offerentes
eaminconj^eêíu Altífflmi. Chama aos Santos da Corre
do Cco , que a acompanhem , e aos Anjos, qiic
a levem á prefcnça do feu Creador,clha offereçaô
como fua. Porém como a Alma no mefmo lugar , aon-
de íe apartou do corpo , ahi ficou julgada , cm quanto
os parentes prcparaô o enterro ao feu corpa, arra-
ftada da cometiva dos Demónios , que a tentavaã,
]á vitoriofos , c triunfantes a levàraõ como íua para
faríU, ^ ^"^ íepultiira , que he o Inferno : Sepelierunt iam in
z5. lepukrofm.
Finalmente efle he o eftratagcma , de que fe fer-
ve o Demónio , para enganar os peccadores, que ncfla
vida recreaô os feus ouvidos, com Muficas,e can-
tos lafcivos. Oh triac , e defgraçada alma, como
fica-
■
Do toYjmntodos Ouvidos. 7}
ficaria defenganada , naquella ultima hora , quan-
do íe vio entregue a Lúcifer i aquelle infernal monf-
tro, olhando para ella com vulto medonho. Vôsfois
(lhe diíTe ) aquelle , que no Mundo gaftaftes a melhor
parte da voíTa vida, com fom madiofo em cantigas dcs-
honeftasí* 0\k meus Collegas, fazeylhe ouvir para íem-
pre as muíicas do Inferno, E que diverfos inftrumen-
tos ouviria , c ouvirá eternamente ! Que gritos impor-
tunos ! que alaridos iníofFrivcis ! que efírondos medo-
nhos ! e que ays defefperados !
Dionyíio Rey , e juntamente Tyranno de Sicília
mandou em Siracuía fabricar hum ouvido de pedra
mármore do meímo modo , e architedura dos ou-
vidos humanos ; e o fez coUocar no meyo da abo-
beda da prifaô , que eftava debayxo de íeu palá-
cio , com o beneficio de hum canudo de bronze,
que começava da fummidade do ouvido artificio-
fo , e hia acabar no gabinete do cruel Príncipe , aon-
de eftava ouvindo todas as qucyxas, e fuípiros dos
miferaveis prefos ; como fe na mefma priíaò mo-
raíTe com cUes. Porém , ou as queyxas , que fa-
zíaô , craõ juftas pela tyrannia , que íem culpa
cxperimentavaô , ou as palavras foíTem encómios,
ou vitupérios, que delle diziaó, fempre lhe davao
goflo i porque Dionyíio, como tyranno, íatisfazia
a huma curioíidade própria , e voluntária , de os ouvir
queyxoíos,e defefperados. Na priíaó porém do infer- ^^^^^
tio naòhcattími Foxciíharedortimy&MíiJlcormn non 18.
audietur ampUus. Nunca mais ouvirá aquella viola
tocada por pontos , que tanto lhe agradava ; nem
aquella bella voz, a que chamava o íeu feytiço,
nem aquellas comedias , que craõ o íeu encanto^
antes ouvirá tudo ao contrario. Naõfe ouvirá gemi-
do , que não de pena ; nem voz , que não moleíicj
«em blasfémia , que náo irrite. As meímas cantigas,
que
( ')
^jí0lltMÊÊÊaiÈÊÉltíSÊÊÊ^ÊÊm
Bifèurfi Uh '"^
que nefté Mundo íoraòo noíTo fcytiço, cantadas no
Inferno, com vozes deíencodas , e fantaílicas, to-
cadas com bozínas de corno, c outros inílrumentos
medonhos, c horroroíos, accrefcentaràô particular
tormento j veriíícando-fc o que diz o Eípirito Santo,
que pelos mefmos íentidos , com que peccamos, íe-
Jíi^.21 rem3s punidos: Per qua quis peccat i per h£C ^ &
fumeíur.
•'' Nem ícrà làneceíTaria âinduílria do ouvido de
pedra, nem do canudo de bronze > porque , fe Gu-
glierme , Duque de Mantua , no palácio 'da fua
quinta , que íe chama a Virgiliana , tem huma lala de
notável grandeza , fabricada pela groíTura das pare-
des com tal artificio , que qualquer palavrinha dita
em voz fecreta , ou ténue refpiraçaô em hum canto,
houve-íediftintamente no outro; que fera pois da pri-
íaó do inferno ! (iae, eftando neceíTariamente no cen-
tro da terrj, tem forma concava, porque he como hum
globo redondo, cujas paredes faô da largura de mil,
c quinhentas legoas. Aquella horrenda gritaria dos
Demónios , aquella confufaõ de vozes defentoadas
dos condenados , aquellas blasfémias horendasi
naícidas de coraçoens defeíperados , aqucUes ays
knçados da bocca , naõ para mover os circunítan-
fés'a compaixão da fua mifetia, mas por hum odip
éíitranhavel , de fe comerem , fe pudeíTem , huns aos
outros ; em qualquer parte, que efleja botado o
mifcravel Precito , amigo de bayles , e cantigas^
tudo ouvirá taó clara , c difliniamente , como íe
qualquer Voz deíunida das outras eflivcíTe tinindo
nos íeus ouvidos: Omnis qni aitdiet ^ tinnient âtres
9eyem. ^j^^^- E que lerá , ouvir codas eftas vozes juntas,
J9. * como íe foffem feparadas ? Será , como efcreve o San-
to Monge Dionyfio Cartufiano, accrefcentar as do-
res , multiplicar as magoas , comerem-íc eterna*
men-
Al
Do tormento dos Otíviâos. 7 j
mente cm defeíperaçôes,- e rayvas: Suisquoqtte da?
tnoribus augebunt mi feriam mutuam. Oh torniento in-
íoportavel! Oh pena iníoffrivel / Que, bemconfider
rada, baftará para a emenda, e para tomar horror a
todo género de muficas deshonefías.
C^ero tratar do fim defte difcurfo, começando
porhumafentença de S. Bernardo, a qual, cifrando
em duas palavras quanto atègora temos dito 9
e íe poderá dizer do penoío tormento dos ouvidos,
bem ponderada, c com vagar , ao lume da fé Ca-
tholíca, fervirá de defengano a todo o Peccador,que
nas delicias do canto acha o íeu encanto: Damnatus
in inferno femper audiet , qtíod nollet J minqtiam
ãíiàtet i quoà veUt. Terrível f cntença para huma al-
ma condenada ! Sempre ha de ouvir , o que não quer; ^^mM
nunca ha de ouvir, o que quer; Semper attdiet^ qtiõd !^
nollet , nunquam audiet , quod veUt. Sempre ha de -
ouvir vozes , que o atormentem j nunca ha de ou-
vir huma voz , que o confole. Sempre ha de ouvir
gritos dos Demónios, que o atemorizem ; nunca ha
de ouvir hum fuípiro, que delle fe compadeça. Sem-
pre ha de ouvir rumores ^e bulhas, que o pertur-
bem 5 nunca ha de experimentar hum filencio , que
ofoceguc. Sempre ha de ouvir alaridos, que odef-
pertem ; nunca ha de ouvir hum dei cante , cm que
defcance. Sempre ha de ouvir toadas íem tom, que
o entriiieçaô ; nunca ha de ouvir hum tom entoado,
que o recree. Sempre ha de ouvir huns ays medo-
nhos , que o deíefperem ; nunca ha de ouvir hum ay
eompaílivo, que o alivie :tS'é';^p^r audiet ^ quod nollet;
nunquam audiet -^ quod -velit. Oh Alma dcfgraçada!
Oh Peccador infeliz! Quanto melhor ,^ te fora ap-
plicar os teus ouvidos, cm ouvir a palavra de Deosf
que confola,e promette a vida eterna: D amíne ver- ^^^'^'^
êavita aíern^ babes. A diferença, q^càf^ieiiita^e os-
a-
fiil ilfVriin M I II iiiiJBJfcaiiinr
lai
' \ J^
'éc,^.
Spec.
£xemp.
Poli. D o
Dejp
Chri[}.
7<S Difcurfò llt.
Predeftinados , e Precitos , vem a fer , que os Predc-
ílinados k anticipaô, para ouvirem as muficas do
Paraizo, com ouvirem a palavra de Deos, c canta-
rem louvores Divinos : giui ex Deo eft^ verba Dei
audit, E os Precitos ouvem , e cantaó as cantigas
deshoneftas , que íaò os prelúdios das muíicas do De-
mónio ; Proptereavos non auditis , quia ex Patre Dia-
bolo eftis. Como veremos no exemplo feguinte , refe-
rido, e citado por vários Authorcs fidedignos ; e efte
efpaptoío cafo íervirà de deíengano , e fim defleter-
ccyro difcurfò.
Morreo improvifamente hum defles Sardanapo-
los, cuja vida fòy empregada cm bayles, e cantigas;
e, com eíbs provocando a outros , dava mayor fartu-
ra á fu3 deshonsftidade. Para noffo enfino, quiz Deo?,
que hum Santo feu fervo, que eftava em contcmpU-
ça5,viífc a entrada, e recebimento, que lhe fízerap
os Demónios no Inferno. Sairaó em grande numero
a encontralo; e, aconapanhando-o em ala , diziaõ
em voz alta : Date locum. Lugar, lugar, que aqui
vem hum grande noíTo Amigo j e o levarão com
grande fefta em prefetiça de Lúcifer , que o recebeo
com os braços abertos; e depois apertando-o com
hum abraço , ficou o miferavel todo trefpaífado de
fogo,coTi3 hum ferro ardente , que íay da fornalha;
eíhe diiTe. Scjí V. M. muyto bem vindo a efte feu
palácio , aonde provará as delicias , que lhe tenho pre-
paradas O' lá , diíTc Lúcifer aos Demónios y todos
abracem a cfte noífo fiel amigo , como noíTo bem-
feltor, que nos tem aqui mandados muytos, e deyxa
amuycos outros inficionados com o íeu mao exem-
plo, que cedo viraó cá acabar , e fazer-lhe compa^
nhia. Vejaõ , que virá cançado do caminho i levay-o
aomeubanho, para que fe regale. No mefmo tem-
po., o lançarão em hum tanque de fogo de enxofre,
... cm
n
Dõ terkJètJiô dos OUvidos^ fT
Im que ahdavaõ nadando muytos Diabos cm for-
ma de krpentes, c bafiliícos, que lhe accrcfccnta?
vaô o tormento. Depois replicou Lúcifer. Levem-o
depreíTa ao feu leyto , para que defcance na cama.
Era cíia cama húa grade de ferro , jà afogueada , com
Irrazas ardentes debayxo. Então Lúcifer. Tragaô-lhc
agora parafeus deleytes, de que tanto goflava, hua
moça muyto fermofa. Appareceo-lhe logo bum Dra-
gão muyto eípantofo , que lançava rayos pelos olhos,
c chammas pela bocca ; c abraçando-fe com o miíera-
vel , lhe diffe. Eftcs íaô osgoftos, c deleytes, que tu
deves gozar aqui por toda a eternidade 5 mas agora
começaó , cjpcre pelos outros. Entaô Lúcifer diíTe.-
Dem-lhc agora hum púcaro de agoa para o refrefcar.
Trouxeraò-lhe logo huma caldeyra de chumbo derre-
tido à bocca, eo infeliz, que atê entaó linha cala-:
do, pafmado da novidade do lugar , e de íeverdc
repente cm tantos tormentos, exclamou, bradando'
em voz alta. Ay miferavel, e defgraçado de mim]
Entaó diíTe Lúcifer. Eya , meu amigo, já V. M. eíla-
rá deícançado. Venha agora cantamos alguma letri-i
nha. Ouçaô todos, que cantava muyto bem, e com'
grande garbo lá no Mundo. Cante V. M. meu ami--
go , que recreará a todos. Porem ellc callava , en-!
fadado , e trifte , pelos tormentos , que padecia.
Ora cante, replica Lúcifer, que todos deíejSmos, c;
o queremos ouvir. O miferavel deu hum fuípiro, ^
c gritou em voz alta. ginid cantíih^ Que tenho eu/)^^^^^
que cantar f Senaô que feja maldito o dia , e a hora, chnjí.
cmquecunaíci. Muyto bem -, proííáia para diante. ífr.59
â^/i cantabo? Que cantarey eu? Malditos ícjaõ os
pays, que me gcráraô } malditos fcjaô os goílosj -
malditos fejaô os amigos , e amigas , que aqui me
arrafíàraô no ii:iferno. Oh como canta bem. Và ou-
tra
I
tÉKSfiGCKMi
;í í 11
r n
l^a letmha. g|//^:r4Ȓ4^o f Que quereis , qne ca
c^hte? Cantarey^ malditos fejaõ: os SâT3tos do Ceòj
'malditos ícjaô os Anjos do Paráizo j maldito ícja
também cu, que podendo , com mortifiGarme , e
fà2€r penitctida , i&ftir na? gloria] com ellcs $ agoia
me acho , e mè achare^r par toda a eternidade e©mi
vôs outros Demónios no' infcrEO.. 0b quiebcHat can-
tiga foy cfti. Vá ainda outra. Eya , que não baila.
§luid cmtaho '^. Ainda querem mais ? Maldita fcja
( pio , e devoto Leytor , me treme a maô emícfcrever
blasfémias taõ execrandas , mas melhor he ifábelas pa-
ra o noíTo remédio , para naó dizelas de veras , quando
jà deíeíperadòs nò inferno.) Maldita fejai a Saníiílima
Trindade. Maldito feja o Creador» que me creou,i
Maidit3Íeja o Redemptor , que me remio. Aqui o
interromperão os Demónios, fazendo^ huma grande
algazarra , eo levkaõ aaíeu lugar deftinando4ihc .no
inferno ; aonde eftá , e eftará eternamente, cm quan-
to Deos for Deos. Nem pareça a quem ler efte exem-
plo, que a viíao do Santo Anacoreta foíTe hum fo-
nho, ou ialgum a invenção, para terror dos Peccador es.
Efíehe o manifefto engano do Demónio vque, quan-
do naôpòdc barremos do fentido os tormentos do
Inferno, os diminue , ou procura , que duvidemos:
delles. Efte exemplo he hum tofco rafcunho ao nof-
fo modo de perceber , he como hum mappa em pon-
to pequeno; que lá no Inferno he muyto peyor, co-
tno vimos no primeyro diícurfo, e veremos nos ou-
tros qiic íe íegucm- O ponto he , que nôs nos de/en-
ganemos , Gom eVitdrmos todas as occaíiocns de
baylcs,^ comedias , e cantigas deshonefías; eemiu-,
gár delias, cantarmos as Ladainhas de NoíTa Senhora;
íczarmos cada dia o feu Rofario, que he hum gran-
de me/o, e final mais certo , para affegurarmo* a íal-
va-
Do tormetito dos Ouvldoh yp
vaçaõ } pois cila como Mây dos Peccadores , ro-
gará por nôs agora, ena hora da noíTamortc, aoícu
bendito Filho, que nos livre do Interno, e nos leve
comfígo , a louvalo para fempre na íua conapanhia no
Paraiío^
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TORMENTO DO OLFACTO
8i
DISCURSO IV.
Do Tormento do íníoiEfrivcl fedor
do Inferno^
Erit pro fuavi odorifator. Ifai. Cé 3.
Unca cuidcy,quc o fedor doln-
fcrno foíTe tormento taô infof-
frivel , que bem coníivlerado, fe
naõ vence a qualquer das penas,
que haô de íofrer os raais fcnti-
dos , pelo menos naô cede , nem
he menor daquelias,que mais fe
podem cxcogitar. E fe hum fó
fedor , que he intenfo ynaõ ha,
quem o poíTa {oportar por muy to tempo. Quem duvi-
da, que , íe os fedores forem muy tos, e todos unidos no
meímo lugar, e com a mefma intenção, naõ fcinô capa-
zes de tirar milhares de vidas no primeyro inilante! Se-
rá logo o fedor do Inferno inteníiíTimo ,e totalmente
intolleravcl por trcs razões. A primeyra cmrazaô do
lugar , e do íitio ; a fegunda cm razaõ da quantida-
de innumeravel dos corpos dos condenados j a ter-
ccyra cm razaõ da continuada aíTiílcnci^ dos De-.
moaioi^Ho tocaate ao lugar , diz o Doítpr An-
' ~ - " F gcli-
JÍÍ}!^^m-MMã.}ÊSÍ^.
w
'
-Jà
Difcmfo íV.
^•'^^!''g^\'icoSm\.o Thomás r que , depois de eftar a terra bcift
m ^.difl puiigadà i^ela viòíencia; 6 axílividad^ do %a do ul-
^^-f-^^' Eiíí)0dià<ibjuizoi depois de reduzida em cinza cílá
upt¥erfar máquina do Orbe j depois de eâár purife-
cadj) o Mundo de todas as immundiçias dos peccadojsf
tod.isas fezes, que reítarem, ajuntadas entre íí iraô
por can?os fubterraneos a Icpultarcm-fe na intoUera^;
yelíentina do Inferno. Mais o alGatraãj o ênxofrÇí|
o breu, e outras matérias bctuminofas, que fervèni
de .aiimeíffo àqu^Ue fogo ,. accrefcentaráó , e lev3íç••
í at*a 5 é m grão riiàí s í úbi do éfte ma o chcy ro. E , í e ò ar^,
por puro que íejay fechado por muytos annos cm^
qualquer morada , íe corrompe de qualidade , que fica
iníoportavel 5 e peílilçnte , julguemos agora , que
taes fícarâã os ares do Inferno fechados , ha tantos^^
íeculos y em hum hediondo veduélo de tantas im-
mundiçias , fem nunca ter por onde exhalar^ ou pur^-
gaitfcí. CLue peftc refinada na© cauíará ! E quem a ve-
rá, que imagine , o poderá íofrer I quando aqui ne-^
ftc Mundo o, fumo de. huatcandca mai apagada , que
ia no Inferno pareceria híí cheyro mtiy fuave , fe rcn-
derâ^o noíTo oífato tdiò moleflo , eomo fe foíTe hum
jfaúc.i fedorviníoportavel tiM^it fro fuavi odore fàtonZ^s^
24. hc a íuíiancia rciumida ^ de quanto h^j. de trataiP:
neftedrfcurfo; no. qual veremos em primeyro lugar,
quam. penofo ieja c^e tormento do fedor do Infernoi &
nofc^undo o defengano , de qvic fc valèraô muytos
Santos para k livrar dtlle..
Menos licdionda, e fedorenta feria a cloaca do
inferno^ Gom encerrar emíi todas as fezes do Mun-i
do, íc; os corpos dos Condenados naõcxhaiaíTem
deíi hum fedor muy to mais abominável ^èaíqucro*
fo. Tcirivtl , c deshumano foy o tormento, que ^
inventou a tyrannia de Mczcncio Rcy dos Tirenosí
Eâc tyrauno jConfórmc cfcreve , € o ~ dcícrcve Virgl*
laoj
• 4p'
B$ tevmeniMofeMr éò Inferno, S 3
Mó^com\\umà inaudita baibiridâde mandava atar
hum corpo vivo a Ivum cadáver já corrupto,é fedoren-
rto r ajuntando , e unindo tnâos com mãos , pés com pêS}
-C^bpGca com bocca.
í tMortua quin ttiamjungebat corpora víviSy
- Compomns manihufque-manus^ atque oribus ora
(Tormenti genus) ,, &famei t aboque flttení es
Complexu in mijero longa, fic morte necabat.
rirgit.
Itb.S,
Naõ ii âtègora
nas Hiltorias , nem Divmas
nem
jun-
pro ia nas, gene rode tormento mais terrível i c
camente aíquerofo. Acho porem nos livros dos Ma-
cabeos, que por caftigo manifefto deDeos fahia do
corpo delRey Antioco hua efpecic de bichos taõ abo-
mináveis,c hum fedor taô intolerável, que inficio-
nava ao exercito: Itaut tllius fatore exercttus grava-
retur. E nenhum dos íeus criados fe atrevia chegar a
elle , para o mudar de hum lugar- a outro j c, íer villo:
Eum nemo poterat propter intolerantiamfatorís por ta-
re. Omeímo íbccedeo a ElRey Herodes , e a vários
Emperadores do Oriente , todos comidos vivos dos
pi-oprios guzanos, que íe geráraô nos íeus mefmos
corpos , exhalando hum fedor taõ infoportavel , qiíc
osmeímosíervos,como deferpérados, largavaó por
hua vez o fazerlhes aíTiftencia nas ítias neceílidades.
Mayor pena, fem comparação) he , o eílar pegada
a bocca de hum vivo á bocca de hum defuntoí eo
vivo naõ ter outra rcípiraçaô,quc asexhaiaçôes pef-
tiíentes, que vaô emanando da podridão do Gada-
yer já corrupto; nem outro fuftenco, que os guxít-
nos, osquaes fahindo da bocca, c narizes do De-
funto, entaõ na bocCá , nos olhos, c nas ventas do
vivo. Oh tormento deshumano I Oh fedor pêíli lente!
Que fóconíideradofazaÍGo,c horror à natureza kci-
mana. Também efíc tormento naõ faltará tio Infer-
UQf pois., cpmõ diz 0 Profeta líâifts , íalkado dos
*.Qí F % con«
Maeh,
Jbid.io
/Aí. 54
3
Dyèx,
Eh(.
Jiterem
D.Bon.
eit.aP.
■í i
condenados j delles fshtrà hum fedor inexplicável t2>#'
Cadavevibus afcendet fator, Ghama o Profeta aos Rc^
probos, Cadáveres , e corposímartos , ainda qiie íejxiò
vivos ) porque íerao íó vivoi para os toriivento^,, que
haô de íofrer , e líiorÈos pelo fedor iníoportavei , que
agudo ,e penetrante íahirá de ta,ntos milhões de cor-
pos amontoados naqivelle calabouço.
He notável o reparo, qiie faz o- Doutor Serafíco
S. Boaventura neRa maceria,afíirmando , que , íc Deos
permittira^ que bum fé condenado faliiíFe daqucUa
gruta infernal para eíla vida ^ largaria deíi hum fedop
taó horrendo y que feria baftante paraapeftar o Mun-
do , e matar logo a todas as creaturas : e deftc pare-
cer íaô todos os Santos Padres , que tratarão efla
matgria do Inferno: Si velunins D amn^tt Cadáver in
Orbe hocmjirojit , Orbem totumãb eo inficiendum. No
. anno de i óB6. cliegou úsl cofta de Africa , que chama-
mos de Guine, ou Mina , hum Navio a Pernambu^
■Co, que,, cncontrando-íe no mar com hum pataxo
Olandez , reccbeo delíc huns barris de carnes de
Olanda, que deviaõ de íer já de alguns annos; por-
que abrtndo-fe depois hum defíes barris no Porto áo
RccifFe ^ foy tal o fedor peiliienciai , que exhalouy
que nomeímo infla nte ^ quem o abria, cahio morto
logo > e oâ circuníiantes dahi a- algúas horas ; depoii
cftes fétidos vapores foraô dilatando-fe aos poucos , e
ínfíeionàraÕGs aresi e dcOemodo íe formou apefte
em Pernambuco com tanta força, que já não havia
quem enterraíTe os infeélos do contagio; Nem paroii
aqui a exhorbitanciadeíic fedorj porque, continuando.
acorrupçâãdosares,.paífou à Bahia , aonde fez hum.
total cftrago da melhor gente aíTim naturaes ,. co-
mo Europeos.* e correndo as maisCidadcs^,e luga-
res , inficionou toda acofta doBraírl ,naõ perdoando
iajem afcxo ,- nem a condijaõ de pcíiloas j caíFolou a
Do tormento do fedor do Inferno. i f
todos com igual extermínio. Ifto fuppofto como cer-
to, c evidente , argumentemos agora allim. Se o fedor
de hum barril de carnes, que, para naô apodrecerem,
foy em hú certo modo embalíamado com íal , corrom-
pendo» fe depois de algum tempo , foy fufficicntc, par«
apeftar , e deftruir hum Reyno taô dilatado , que tem
porcoila mais defeisccntas legoas,comoheo eftado
do Brafil.Qual ícrá logo o fedor do corpo de hum coa-
dcnado,que ha tantos feculos vive, e vi virá morrendo
naquelle hediondo calabouço! Tanta difFercnça vay do
fedor defta terra ao fedor do Inferno ; que o corpo
de hum fó condenado federá em grão taõ fublimado,
c íupcrior , que vencerá todos os fedores das lagoas,
Eí^igias , das paludes Lerneas , e de todos os Cadá-
veres juntos do Univerío. E que fera com tantos
milhões de condenados , apertados em huma gruta
fubterranea taòeftreyta,e taò fechada, que naò terá
dcfabafíb nenhum por toda a eternidade ! Por certo
que íe qualquer condenado tornaífe ao Mundo , lhe
pareceria eíle noíTo fedor da terra, hum jardim de
flores , com hum cheyro muy to íuave : Eritpro fuavi /faic.%
odore fíBtor,
Segue-fe agora em terceyro lugar o faltarmos do
fedor inenarrável , que de íi lançaráõ os Demónios.
Parece coufa impoflivel , que os Demónios, fendo
Efpiritos , poíTaõ cfpirar roins cheyros. Naô tem
duvida, que em quanto faõ puros, e fímplices efpiritos
por natureza i nem podem feder, nem chcyrar. Com ^•'^•^
tudohe fentença commua , e opinião mais ^^^,^^^^ [^yg^eL
dos Thcologo^;, que Deos com a fua Omnipotência y,£^^;*
fez, que os Demónios cm penada fua deíobediencia Mí ^
íejaõ forçadamente atados a huns corpos igneos, fui- a/UDoSl
fureos , alcatroados , e betuminoíos ; e vendo-fc
cfles efpiritos malignos eternamente obrigados a eíta
pena , pelo ódio cntr anhavel , que tem aos Repro-
F 3 ^^h
tjcurjõ IV^
, fc moverão com tal fúria , c atormentarão âí
Almas com jcai vehemcncia, que, desfazendo-le em
fuores pcfíiferos , exhalaráõ fedores de todo o géne-
ro, e todos muito peyores , que os dos condemnadosj
ppfe déféjaô com elles dar-lhes fempre novos , q
mais horriyeis tormentos. Appareceo huma vez o De-
mónio ao glorioío S. Martinho, em hum traje muyr
galante , ycftido de ouro, e de purpura , com huma
coroaengafíada de pedras preciofas na cabeça; c fa^
lou-lhe nefta maneyra. Eu íou Chrifto, teu Senhor,
adora-mc , como mereço , pois fou o Filho de Deos.
Porem o Santo illuíirado com a luz Divina, e conhe-
cendo o engano do Pay das mentiras , refpondeo-lhe
dçfte modo. Meu Senhor Jeíu Chrifto tem na fua cabe-
ça hiia coroa deefpinhos ,e a purpura, de que o vejo
veftido , he eftar o feu corpo pelos meus peccados to-
Lanr. cio flagelado, eenfanguentadó: DomimsmeusJESUS^
S»r,in geritin capi:fecoronamfpm€am^ ó' corpus fro peccatis
vita D meti dtris flageUts anentaium, E neíTc habito das vai-
dades do mundo , que tu trajas, naÔ o conheço. ODe-
íbonio vendo fe defcuberto defapareceo. Deyxoupo*
rêm hú tal fedor no apofento do Santo , que bem deil
a entender a toda a vizinhança, quem era; poispare-
cia-lhcs a todos, que eíiavaô no Inferno; e taô inficio-
nado íicou aquelle lugar que por muytos annos naã
foy habitável. A' vifta defte fucccíFo argumento a-
gora aíTim j fc o báratro infernal , conforme a dou-
trina de Santo Thomás , he a fentina , aonde haó
de ir aparar todos os conduflos das mais hediondas
fezes da terra ; e, fe o corpo de hum íó Precito fe-
derá mais , que a meíma fentina de todas as immun-
dicias do Mundo; e,fe havendo milhões, emilhoens
de condenados , hum fó Demónio lerá fem compara-
ção mais fedorento , que todos elles i e íendo os De-'
monios em taô grande npmcro , como cada hum;
Mart.
DotôrmenfodofedoY dé Inferno. ff
Ic excôgitáf i quc penna poderá defere Vèr^ oú
^uelingua íe atreverá a explicar a effencia , a quali-
dade , a quantidade , e a intenfaõ de hu fedor taõ inex-
plicável, e imperceptivei. Sò o EminentiíTimo Car-
deal Baronio, que, parece , eftavâ na profunda coníide- l,
yâçaõ dos fedores do Inferno bsm radicado ^ era M
primavera dos íeus annos naturalmente inclinado á
toda a forte de cheyros. Entrando depois no caírit-
hho mais apertado da falvaçaô , procurou de íer alum-
no, e imitar a S.Filippe Neri,para íer a íegunda cotum-
na da íua Congregação do Oratório. Naquellc cftadd
já mais pèrfeyto , ainda prevalecia nelle o antigo
aborrecimento, que tinha a tudo , o que era aíqueroíó,
ou naô lhe cheyrava bem , e para vencer os melindres
da natureza corrupta, obrigou a íua imaginação á
profundarfe nos feàores do Inferno, que tantas ve-
zes ( dizia elle ) tinha merecido. E , como diz o Pro-
feta David , que In meditatiom mea exardefcit ignis, Pftlm:
Aííim eile nefta meditação acendeo-íe com tal fogo de *8 4.
penitencia , e de amor Divino o feu efpirito , quebuf-
cando hua maõ chea de perccvelhos , cujo fedor era
o que mais aborrecia , generoíamente os poz na bocca,
comco-os, eos cngulio. Acçaô foy efta muyto mais^"^'^'
{ieroyca de tantas, que a trombeta da fama tem di- ^''' '*''
Vulgado do Emperador Augufto Cefar ; porque fc
Cefar Augufto vencco com o valor das fuás armasPro-
vincias , e Reynos dilatados no Mundo ; Ceíar Ba-
ronio venceoa íimefmo ; que, comfodiz Plataô , hc
o homem hum microcofmo , que quer dizer hum
Mundo pequeno , pois no entendimento, ena von-
tade he capaz de milhares de mundos. E que bem re-
munerou Deos a Baronio por efta acção heróica , ain-
da nefta vida j porque além do dom da fciencia, quç
teve , foy honrado com a purpura Cardinalícia j e , íe Raimd.
p feu nome aaô entra ainda* como Heroe nos íeus Qt^.an. &ecl.
F 4 nais
!'• j
8f Difcurfo IV.
nais Eccicfíafíicos , cííá porem para íemprc rcgiftrís^
do peios fcus fucccíTi^rcs no glorioío Catalogo dos
YarõesIHuftreSjC bem fe pôde dizer dellcj que neftc
Mundo : lllt erat profuavi odore foetor,
Averjn > . He axioma filolofofico, que ; Contrariorum eadem
eft difcíplinaXiilcv dizer , que da eíTcncia de hum con-
com.
jirifiJ. trato facilmente íc infere a cíTcncia do outro. Ifto fup-
Iferqicr. pofto. Crcou Dcos neftc Mundo huma grande quanti-
dade deflores. Creou a Rofa de Alexandria , o Cra-
vo da Rochela , as Boninas de Portugal , os Junqui->
lhos de Caftclla, o Jaímim de Itália, a Violeta, a An-
gélica , o Narçifo, a Açucena j com outras tantas
variedades deflores, entre íi taõ difcrepantes na fi-
gura, como diverfas no chcyro. Todas eíías flores di-
i^iliadas em hum lambique , e largando com a força
do fogo , cada huma por íi , o íeu cheyro } conforme
da roía fahirâ agua rofada, aílimde todas as flores,
cde todos os cheyros unidos em hum fó lambique,
íahirá húa agua taõ delicioía , e agradável ao fcntido,
de que tratamos ,e taô confortativa do cérebro , que
naò tendo os Diftilladores nome próprio na terra, para
explicar a fua fragrância, foraõ-o buícar no Ceo , cha-
r mando- lhe agua d* Angeles. Crcou o Author da na-
tureza vários animaes , cujos cfcrcmentos , quem
os peíTue, vive na fua caía, como fefoíTe morador
na Arábia feliz , poys naô faõ menos , qi^e o ambar^
que a algalia , e que o almiícar : Creou os aromas da
Afia, os bejuins da Africa , os balfamos do Brafíl,'
com as mais drogas cheyroías da índia, e da Sabèa,
Se hum perito na Química , ou Efpargirica , quizeí-
fc agora apurar eí^es miílos} fublimando-os , íubtili-
zando-os, e fazendo-os volatizar : Depois de fub-
tjlizâdos, fublimados, e volatizados , íahiria huma
quinta eíTencia taô admirável^ c hum cxtrado taõ íua-
ye» que havia de fero alivio da cabeça , o conforto
do
Do tormento dofedordò Inferno» \9
âoGoraçaô , e a maravilha dos cheyros, epara ònão
chamar Paraiío do olfado, lhe daremos oíeu nome
próprio dos Químicos, que cliamaõ a cfta quinta effcn-
cia de tantas cíTencias o EUxir vita.
Do mefmo modo, que temos difcorrido do chcy-i
ro, ha vemos agora de difcorrer do fedor. Naõ che-
garão as fantafías dos Poetas, para explicar os he-
diondos , e inenarráveis fedores do Inferno , nem a
voar mais alto , que a referir os mãos cheyros dos
Rios Letes , e Acheronte , da palude Eftigia , dos Tan-
ques de Cocito, e finalmente da lagoa do Averno, tan-
tas vezes de Virgilio repetida. ^fV
Grave olentisAvernu ''**^5
Cocytt ftagna alta vides^ftygiamque paludem,
Efta palavra Avermshc Grega, comporta de J priva-
tivo, e de rerntís , que íígnifica primavera , donde
o mcímo he dizer Àvernus , como já diíTeem ou-
tro difcurfo , que íem primavera. E como na pri-
mavera naíccm , e brotaô todas as flores , bem fe dey-
xa entender o Poeta , dizendo , que nunca haverá
odor , que coníole , ou rccrce ; mas fedor , que
fempre molefte ,e mate : Grave olentú Jverni. Tan-
to aíTim que Santo Ifidoro refere , que o fedor , que fay
dcfle lago do Averno , he taó agudo , e pcftilcnte,
que todas as Aves , que voando por alto paíTavaõ ^ y^^^^^
por elle,logo namefma lagoa cahiaô mortas: ■^^'«^^/^ij.
(faô fuás palavras ; exhaUns inde fator gravijjimus gf^^y
fuper volantes Aves halitu fubnecaret. Continuemos
agora o noíTo difcurfo , argumentando do meímo mo-
do , que do cheyro. Ora fe diflillaíTemos todas as
aguas defla lagoa do Averno , e dos mais Rios fingi-
dos ou imaginados Letcs, Cocitis , Efligios , c dé to-
das as íentina^, Paludes, e Tanques fedorentos, c
depois de diíli liadas , c reftilladas , fe tornaffem a
diíiiilar até fair, naô digo a quinta cíFcqdaj mas a
\H
m
Dijcmfo IV.
tíltimacflTçncia. Que agoa feria efla? Por certo que
fahiria huma agoa com hum fedor taõ fublimado, e
operativo, que não íó íeria agoa forte, mas agoa
de morte. E íe ajutKarmos aos fedores da agoa os fe-
dores dá terra , como faô íentinas, monturos , cloa-
cas, canos, redudos, com todos os mais mifto^
fedorentos , c aiílm congregados, c unidos , foíTem
por virtude da arte química apurados , elevados , íu-
biimados, e fubtilizados atê fair o íai volátil, por
certo que íubiria cftc fedor a taes quilates, que fó os
Vapores dellc baílariaô , para apeftar a todo o géne-
ro humano , c caufar a mil mundos miihoens de mor*
tes. Oh fedor eterno/ Oh fedor imperceptível , que
quanto menos coníiderado nefta vida , tanto mais in-
tolerável ficará para fempre na outra , aonde ; Eritpté
Juavi odore fator.
Quando o inferno naõ foíTe bum calabouço eícu»
ro,mas hum Paiz ameno, huma regiaô clara, e naõ
houveffe o tormento do fogo , nem outra pena , que
fofFrcr , mais que efta quinta eíFencia de todos os fe*
dores , fcrá hum íuplicio taõ violento , c iníoporta^
vcl , qu2 nefta vida ^como já diffemos ) daria no pri^
meyroinftmte a morte. Porem, íc a efta quinta eí-*
fencia de fedores , fe ajuntaíTem todas as outras quin-
tas cíTencias de cada género de tormentos , entaò os
condenados naõ padeceriaõ hum inferno, mas mil in-
fernos. Parece , que o Efpirito Santo faz menção
defle penfamenro, no Texto Sagrado , que diz aílim:
Eccie. Sunt.fpiritus ^ qui aàvlnàiãam creaúfunt-, in tempo»
^g,^^,re confummaUoms effhnden£ virtutem. Perguntaõ os
Expoíitores , co;ti os Santos Padres. Quem íaò efles
Bfpiritos , que Deos creoui, para cafligar , e vingaríe
d©3,Peccadores? Muitos íaô de parecer , que íejaô os
Demónios V porém efta opinião envolve íuas difficul-'
dadssi, pois os. Demónios naõ foraõ creados {rima'-»
Do tormento ào fedor do Inferno, f i
Tio pata íerem Demónios, inimigos de Deosi roas
•para Anjos > e Miniftros, que haviaò de aíTifíir ao íea
throno, c gozar da íua gloria- Nemcfla opinião cfíl
âopè da terra , porque o facro Códice naõ nomea
por Miniftros dcfta vingança os Demónios ,masofoT
ga, a farayva, a fome, e outras couías capazes de
atormentar : Ignis ygr ando yf ames ^ romfhea , &C' omnia EccUf,
hacadvindiãamcreatafunt. Pois fc o fogo, a fomc/''P35>
c a íaraiva , íaõ coufas materiaes , como as chamaô 34^*
Spritus» Reípondem os Interpretes, c dizem : Qge
da mefma maneyra , que os Qtiimicos , e Eípargiri-»
cos, occupadosem apurar no. fogo os miilos,cavaã
os extrados , e quintas cíTencias , que faõ como a
flor das íubfíancias , e a tudo iíio chamaócom o no-
me de Sptritus, AíTim também de todas as febres agu-
das, e malignas ardentes , íahirá hum Efpirito de fc-:
bre } de todas as fomes caninas, c rayvofas , hum,
efphrito de fome ; de todas as dores de gotta, de fcia-^
tica, de reumatiímo, como também de pedra, re-
nela , cálculos , e de todos os mais géneros de ma-^
les, ou tormentos , que podem vir, ou fe podem
dar no corpo humano , cftes todos , reíumida a íua
força, e virtude em huma quinta cíTencia, ou eípirito
mais apurado , in tempore confnmmattonis ( como diz o ^'^^^*
meímo texto ) effnndetvirtutem. No inferno por toda ^^^Z^'
a eternidade atormentarão osmiíeraveís condenados.
Oh grande rigor da Juftiça Divina ! ecom tudo^oPec-
cador íabendo ifto , nem treme , nem teme , ou naõ
Grej mas naõ paíTarà muyto tempo, que a feu grsín- Eufeh:
de pezar , e fem remédio conhecerá , c experimen- Emif. ^
tara a força deftas verdades :Va qmhus hac {rius lu-j^^^M
gendajunt , qukm credenda, ^^"*
Nem pareça difficultofo, que no inferno fe congre-
guem em hum condenado todos os extrados, ecf->
piri tos , de quantos géneros de males ha , e pode haver ;
no
!■!■(•■]'
jt ,- - Bifem foíV^ 1
ío Mundo; porque cftes cftaráô todos encerrados ;e
tinidos na quinta effencia do fogo. Quando Dcos
quizconfolar oPoYocfcolhido, que fc qucyxava da
fome , fez logo chover do Cco o Maná , c no Maná
encerrou todos os goftos dos gutzados , c comeres,
e todos os faborcs de todos os frutos da terra : Omne
^ âthUammtum inft habtnum , & omnis J apor is fttavi-
i6iT ^^^^^' ^^ meímo modo ( eníinaô os Thcologos ) que
' ^' Dcos no Parai fo encerra no lume da gloria todos os
bens: Omnia pna. Que agora ( como diz S. Pau! o>
naô podemos comprehender , nem imaginar : N€C in
corhominis ajcenderunt, E,lc a mifericordia Divina
emprega a lua Omnipotcnciat cm fazer milagres na
Ceo , e na terra a favor dos feus cícolhidos, quer tam-
bém a razaõ , que a fua juftiça , por ícr reâa , empre-
gue a Aia Omnipotência com tormentos milagrofosj
que encerrem : Omma mala^ todos os males, para cafli,
gar os ícus inimigos, e reprovados.
Sirva de prova concludente o Rico Avarento
com as mefmas fuás palavras \ pois falia como expe-
rimentado. Apenas fe achou cfte fepultado no in-
ferno, que logo íe vio cercado de todo o género de
tormentos : Cum efet in tormentií. Que logo pcdio
■ mifericordia ao Pay Abraham , par^ que o livraíTe da-
quellc fogo -.Pater Abraham miferere mei.quia cru-
' cior in hac flamma. Mas fe o Rico Avarento define,
c chama ao inferno lugar de todos os tormentos : In
hcum tormmtorum. Como íe queyxa íó do fogo? A
razaô he ; porque aquclle fogo encerrava em fi todos
Ltic \6 ^^ "^^'^ tormentos ; pelo que naõ diíTe abfolutamente:
>A. * 'Crucíorin flamma^ nem Crucior in igne Mas Crucior m
• hac flamma, Nefta tal chama , ncftc tal fogo , miiy di-
verío dos outros , que encerra, e contém cm fi eminen-
temente todos os mais tormentos. Efe iflo he afllm;
Pí)rqu6 cauía p Rico Avarento naô pede alivio dos
ou-
Dô tormento ãifeáor âo hferm, P3
outros fupplicios , que pâdccc , rras íó peck algum re-
fnigerio para a íua língua f Ut nfrigerer linguâm.-
mam. Refpondcm os Santos Padres , queDcos com-
municou a efíe tal fogo, como a Miniliro das fuás vin-
ganças, huma virtude difcernitiva, para caftigar os
Réprobos. E bem íe prova ifta (diz S. Joaõ Chryíoftc-
fno}na fornalha de Babilónia , que eílando dentro
os três Mancebos innocentes , o fogo naò lhes tocou
hum cabeUo , c faindo a chama íóra da fornalha quey-
fwou vivos aos verdugos, que a todos os tinhaô lan-
çados dentro ; Porro íllos, qtú miferaní, interfecitDAn.cJ^
ftamma ígnii, Cafliano chama a eík fogo Inquifidor 25.
dos crimes: Ignem dehíhrum Inquifiterem.E S. Ago-
ftinho o chama fogo íapiente, que caUiga conforme ^
os delidos de cada hum : giiiantum ftulta miquítas fu- Jll'° j^
geffit y tantum fapiens ignU âtfevtret. Vancos agora
ao Rico Avarento, cujo crime principal era a golodi-?
CC) porque vivia comacpulaõfemprc çm banquetes,
fera nunca dar huma efmola ao pobre Lazaro , que
morria de fome : Epulabatur qtiottàie Jpkndide. E
por ifto o fogo como favio, e intdiigcnte , carrega-
va mais o tormento na Hngoa, que era o inílrumen-
to ,com que fatisfazia ao goflo , no comer bons boca-
dos. Domcfmo modo íe adatarà por cafíigo oícdor
dolnferno. Aquclles que ufaõ dos cheyroS|por vai-
dade , para parecer galantes , ou por delicia lafciva, ou
por mao íím,fe lhes apurará o fedor do inferno de qua-
lidade, que todos os fedores mais hediondos do Mun-/
do unido na quinta eííencia lhes pareccriaõ íuaves::;
Erit profnaviodorefí^tor.
Tomara eu agora perguntar a certas moças de.
poueo cizo^ criadas com tanto melindre , que a tu-
do tem aíco , de tudo cem horror. A cercas Matro-
nas, e Fidalgas da Corte taô mimoías, que paíTan-
éto nos íeus. coches., Gujitey.ra^ por algiía rua., aí>n-,
m
Luc.
37.
7
94 'Difcuvfo IV. '^^' r^-XS
^á^ corrupção de aigiim animal morto cxhalaí a^-
giimniao cheyro; no me imo inftante pocm o icnço
borriííadòdeagoa de Córdova na boca ^e torcendo o
roflo ) gritaô em voz alta; tange Cocheyro-, anda
depreíTâ , parece , que os teus narizes faô de bronzCi
pois naô te fede eíia pelle. Tomara , digo , per-
guntarlhes, íc cftaõ defenganadas, que todos os fe-
dores da terra , reduzidos em ci^radlo , naõ faõ mais,
que hum a garraffade agoa de flor, em comparação
dos fedores do Inferno. E que direy eu de hua im-
meníídadcde outras mulheres, que pertendendo de
ferem as Helenas dos noffos tempos , feytas Difcipu-
las de Vénus, íervcmfe dos cheyros por mao fimj
ufando delles, naõ por recreação do olfado , mas
para mayof incitamento ao peccado, e para laço, e
deftruiçaô das Almas* Oh que trifte forte ! Com que
ímpeto, e com qual vehcmencia de fedores atormen-
taráô os Demónios a ta5 perniciola cafta de mulhe-
res, em recompenfa de taõ depravados cheyros*, Tc
naó fe defenganarem ncfta vida com tempo : procu-
rem de imitar a Magdalena. Foy efta Santa Matrona
muyto illuftre de íanguc, c íenhota de Villas, e
Gaádlos , mas foy também mulher Peccadora : cJ^«-
lierm Chitatepsccatrtsc Porém logo , que conhecco
a Chrifto^ dclenganou-íe das vaidades do Mundo.-
A primeyra prova dofeu dcfengano foy defpirfc das
galas , e de todo o ornato , e quebrados os alaba^
fíros, em que guardava os aromas, e cheyros pré-»
oiofos, lançados aos pès dó mefmo Chriílo: Marta
hahens alabafirum ungnenti nardi piftici pretloft unxit
fedes Jefú, Nfaò ufou , em todo o tempo da fua vida,
de outras agoasodoriferas, que as das fuás próprias
íagrimas, com que lavava as maculas da íua Alma , co-
metidas na primavera dos fcus annos : Lacrymú ccepit
rígare:ped€stjii$. Como temo? dito cm outro diícurlo.
Tam?
Dot&rmenh dúfedÒftíõ Iffferm.
Também devem procurar cfíc dcíengano , hufls
certos Paraninfos , que aípiraõ a tcda& as vedas , c
pcrtendcm os melhores cafamcntos: huns certos Nar-
cifos , que contemplam a cada paíTo no clpclho a fua
fermofiira, efícaõ Idolatras de fi mcfmos. Huns Ga- ?'
nimcdes aereoá , que andaô femprc com polvilhos
noscabcllos, c cabellcyras , e nunca fe lembraõ da
morte -, coníiderem , que o Príncipe das agudezas^
com fer Poeta gentio , cflranhava no feu tempo , a-
quelles Fidalgotes de Roma , que, eomo cfíemina^
dos, hiaõ fempre, com luvas ambreadas nas mãos,
carregados de chcyros ^ dizendo com lutileza , que
naô deyxa de cheyrar miiyto mal , quem cheyra
íempre bem : Non bene ftmfer olet i qui bene fen.pr w^^^'
olet, l>lcm o fedor dos peccados fe tira com ^sdcli-^^^^
cias dos eheyros > mas com a penitencia , e com a
mortificação do olfa(flo , c dos mais fentidos. Imi-
tema S. Arfenio,aquclle grande exemplar dos Ana-
coretas ^ que, fendo Valido do Empcrador Theodo»
fio, trocou a Corte com hum defeito jeopaludamçn-
ta na Cuculla, largando as grandezas do paço , com a
pobreza de hum tugúrio. Acoflomou-fe com os mais.
Monges cm certas horas do dia, dedicadas ao cxer*
cicio exterior, a tecer cfleyras, e ceftos j e porque
era neceíTario a fim, de que os juncos , e eí partos , corn
qtie fe teciaô , eftiveíFem íempre na agoa, para fe
manterem verdes » e brandos , nunca mudava a agoa^
que tinha no vaio ; mas aílim fedorenca , como era^
the accrefcentava outra , para que le eonfervaíTc fem^
pre com o mefmofcdor. Hiaô das outras Ermidas ^
vifelo os Monges mais anciãos ,. e não podendo
tolerar aquelle mao cheyro, pcrguntavaô-ibe, ^^'^^f^'^\
mo oaô lançava fora aquella agoa itaô cotrupta,. c ^^{J'"'
taô nociva? que erabaflante para apeíiar a íua ceUa:.,^y.y^^,,
K.efpondca Arfeni(^. > CojifçrvO'a::por - amor do regai o
■■■''' • do-
I f
I ' í
I t
'96 ,^u-rv\iti Vifcmfò ■•Í^;-^X'^\ ^
do âmbar , e àlmifcar , que lempre trouxe comigo;
quando eu vivia no íeculo no paço de Geíir , e me lis
neccíTaFio, que agora íofracfte fedor a fim, de que
no dia do juízo me livre Deos dos fed )rcs do Inferno:
TheM. Utindiejtidícií de íUúgehen^e imenarrahili fatore li-
wu beretme Dominus, Oh icmbrança do Inferno , quan-
to es efficaz para aliviar os Gatholicos das mokliias,
ç afflicções defta vida! Pelo contrario, quampeno-
íocaftjgoeftà preparado, para aquelles, que vivem
defcuydados dcfía lembrança ; porque , como diz a
Eterna Sspicncia por bocca de Salomão; enganando-
S^p.e. ^c aÍ4i^efmos,difcurfaômuytomal: Cogit antes apud
2. I. &íenonreãe exigmm, é^cum tadioeftttmpis vitorio-
6.&^>Jira. Vemte coronemus ms rojis antequam marcefcant,
A noíTa vida além de fcr breve , fe naó buícârmoi ai-
gum modo de alegria , naturalmente he trifte. De-
prcíTa coroemo-nos com capelias de rofas , primey-
ro que murchem : Nullum fit pratum , quod nonper-
tranfeàt luxnrta nojira. Naõ haja nos prados, c jar-
dins defte Mundo flor algua de fermoíura , que a nofr
fa luxuria naò apeteça , e naõ alcance. Eíiesfaõ os
axiomas Epicureos, que reynaõ nos corações moUes , e
cfFeminados , íem reparar que todas as flores de de-
licias , ou chèyros , ícmorc nefta vida laõ efli meras:
ípfadiesaperit .conficit ipfa dies. E durando taó pou-
co, vay depois parar para fcmprc nos eternos:f(^*
dores do Inferno. rr
Entre os Emperadores Romanos , nenhum houve,
nem mais dado aos rcgdos, nem mais amante do$
cheyros, que fe iguaiaíTc a Eiliogabalo, Convido»
pois efte aflor da Fidalguia de Roma a hum galhardo
banquete, que com profufo difpendio tinha prepa-
rado na mayor fala d3 feu real palácio. Naõ f alio
na extravigancia das viandas , na preciofiJade dos
comeres; porque , cpmo fe a Europa toda naô foíTç
' ca-
DotormentQ ào fedor do Inferno] fT
Capaz , de íatisfazer ao apetite, para fartar a intcra-
^erança , de Africa , e de Aíia mandava conduzir a
RoíTiaomaisíeleto. No melhor do banquete ,quan-
jdojá asMalvafias,eas Candias com osíeus cípirito^
alegres avivavaõ a fantaíia, de repente começou 8
cair do tedo da Aula hum chuveyro taô copioío de
flores íobre os convidados , que parecia y q\ic Hibla,
c Flora para lifongear a Cefar , concorriaô a folemni-
zaro banquete. De grande feftejo foy efta novi<ladcr
Ver cm hum inílante a mefa marchetada de cravos , ç
alcatifada de rofas. Mudavaò-fe as iguarias, e aílim
0s que entravaô , como as que fahiaõ , logo ficavão
cubertas de flores. Brindavaô-fe huns aos outroSi
c elíando com os falemos mais fubidos nas mãos , en-
tre a alvura dos alabaftros, e porcellanas, por onde
bebiaô^ mifturava-fe no meímo tempo o purpúreo
das roías, que do forro eftavaõ cahindo, Emfim tu-
do rofas , tudo flores , tudo cheyros , tudo delicias.
Porem, como diz o Efpirito Santo, domayor da ale-
gria paíTáraó ao mayor extremo da trifteza: Extre- ^^* ,
ma gaudit luãus occupat, E quanto melhor fora para ^ '^'
elies , entrarem triíks , para dar os peíamesna caía '
do luto , que irem alegres ao paço , para receber os . ^;;
parabéns de ferem convidados ao banquete; Meltks ^^ '''
ejl ire adDõmum lu5íus » quàm ad Domum Convivii,
jporquc continuando com igual copia a chover flores,
o que primeyro era delicia , já paíTava a tédio dos
convidados, Sahitído depois da íala Elliogabalo,
mandou fechar as portas; e, fubindo elle meímo aq
tcdlo , fez lançar em mayor abundância flores , e
j?ia is flores , a-té que osinfclices convidados btidosf
c combatidos de hua tempeíiade odorífera , eftjndo
i mefa de flores, e entre a fragrância djschcyros
pifando purpuras , fícàraõ todos miíeravelínente afo-
gados, encontran,do cm cama de roías a íepultura.
G De-
75-
'I. ■
Mn. de
re^,nat.
Mtrtm
màt-
JBapt..
DteíeíigaiiGmríe tçios aquelles ^ que por ímuy to m^
^>€ia)clitid):efaõ mais amantes da feyta de Epjcur%
^tQâf\hf ^ Ghrifta Porque he traça antiquiffimt
4p^ Ikmo0io procti^rar, que nefte Mundo vivamos
edtrçâs delicias mímofas (feschcfras, para queaffim
dfiÍG^ydàdosy viodo de improvifo a morte, 'voamos-
aíparar com clle entre o& tormentos ^c fedores d<>
laíernov
i Foy opinião nntiga dos Pitagoricos , giie ochej^*
150 bailava para a nutrição» e íuftento, aMm^ da vid*
Ijiiíiaatia , como de qualquer oytro individuo. Ale-
gaõporfi, que Ariftotelcs, eftando em huma^rave
doença com faftio mortal , e íem poder levar couí^
alguma pela bocca y com cheyros conforta ti vos , e
íufia^ciaes^ lhe foraõ prolongando^ a vida, ate ter
alguma melhora da fua íaudeje , que Plucarco efere*
ve , como na Aíia vive hum Paítara, cujo aliment^y
naô hc outra coufa ,. que puramente o cheyro : dç>
meímo modo , que o Camaleão iuíien ta ávida com
fartarfe de ár , e do vento. Eí^a mefma íentença
íegue ofecretario d^hnatureza , Plinio r o qual affirr^
• ma, como nas naícentes do Ganges y eftaô íítuados
certos Povos , cujo veftido íaô folhas de arvores^
qm-i tendo buin nariz de grandes ventas^ e aíFazcom^
pridoynao tem bocca para comer» chama6«íe Aftô-^
mos , que he palavra Grega ^ que íignifica o mermoi
que fem bocca* Eíks y qi^ando he tempo de alimen*
tar^corpocom o íuíknto, vaõ com toda a fua fa-^
miliaabufcar asarvoresfrudliferas ^ e a{Fentando-%
dcbayxo delias , colhem as frutas, e tomando-as na»
npaô „ as eftaô cheyrandio y até , matar a fome com^
o íini pies cheyro.. Efla opinião dos Pitagoricos , ain-
da que tem vários Authores,hcmuy duvidofa, e ÓQ
muy poucos admitida. Mais depreffa provarey eu?
' com aexperiencia „x com fucccíTos evidentes ,,que o
.:'tM '■ ' - chey:-
Dd tõYtneètõ iêfedõf ào Inferno. $9
*^}icyn>, quanto he mais precioío para o corpo, tah-
■:to Hg mais p^rtiícioíb para a Alma , e continuando o
'iífo dclle , em lugar de acrcfcentar a vida , prccipitaas
inais das vezes para a morte.
; 1 Refere Saõ Pedro Damião , como o Emperador ^ j,^^^;
ftho Terccyro, prefo dos naturaes encantos da fer^^^^^^^
ofura, egraça deD.Joanna, Nobilifliitia Matrona wí« l[»
Romana , mandou matar ao Marquez Creíècnci^, feu Rom^
maridò,dandGlhc efperanças , que pelo tempo adiatttc
havia de cafaríe com ella^ e coroala Emperatriz. Eftan-
do depois Otho , com grave eícrupulò , e remorfo
da confcicncia , foy para Ravena a confeffarfe com
Saò Romualdo, que naqiielle fccuio cftava no ma-
yoraugc da veneração , e fantidade. Fez propoííto
de mudar vida, e com fazeríe Religiofo , trocar a
purpura com a coguUa* Mandou com grande magni-
ficência fabricar o Mofteyro à íua cufta , e no em tan-
To foy para a Cidade de Pavia , a dar ordem para a
renuncia do Império. Tornou depois para Ravenaí
clogo Saõ Romualdo foylhc lembrar a promcíTa de
íer Religiofo. Porque lhe tinha revelado o Efpirito
Santo 5 que antes de hum anno havia de dar conta a
Deos, naô fó dos fcus pcccados , mas também do
mao exemplo , que no diícurío da fua vida deu a tan-
tos feus vaíTallos. Refpondeo Geíar, que cftava de
acordo , mas que naò podia fêr logo: porque lhe era
forçofo dar primeyro iúa chegada a Roma , para dey-
xarconcluíos certos negócios » equc na volta guar-
daria íem falta o feu propoíito. Porém o Sanio, en-
ternecido pela perdição diquelia Alma , lhe profe-
tizou claramente , que , fe hia a Roma ^ niô tornaria _
nunca mais a Ravena; St Romam thk ^ R^'^^^^^'^ f^^'J^
nmpUasnonredibis. Ê afllmfoy: porque renovando ^^^^^
como por deípcdida a antiga amizade com D.Joanna,
ícUa, coníiderandQ-fe como burliida , e pi^vendo , que
G 2 uaõ
i
i f
4m>0th
Cf.
^0ò Dífcuvfo ÍV.
naõ havia de íer Eíppcratriz, armou a vingança , tau?
to. mais atrevida , quanto nas mulheres o fogo da im
hcmais accfo. Sabia a Marqueza,quc o Emperadoí:
era naturalmente inclinado a iodo género de cheyros»
c por ifto com huma traça atreiçoa4a , mandou-lhedc
prtfentc hum par de luvas, para que chcyrando.l^
íe lembraíTe , que era a ultima prenda do íeu affedo»
Como a fragrância era fuavc , e peregrina , aflim tam»
bem a compofiçaô dos cheyros era medicada com
hum veneno taõ agudo, e penetrante , que .fubiní-
do logo ao cérebro , e do cérebro ao coração , co^
mo fe foíTe ferido de huma apoplexia jfemconfiíTaõ,.
ciem poder dizer JESUS, cahio fubitamemc morto.
Oh caio terrível ! Oh íucceffo laftiraoío \ Cujas con-
fcquendasíaô dignas de hum ferio reparo, para to^
tal defenganodospeccadores. E quam diverfos chey-
ros acharia o Emperador Otho naquclle meímo in-
ftante , que das delicias do Paço , paf ou para o fe-
dorento calabouço do Inferno \ Ahi fím , que expe-
rimentaria à fua cufta íer verdade, que: Eritprojua^
m oàoref/etor,
He confideraçaô minha , que fallando tantas ve-
zes a Efcrituraíobre as penas refcrvadas aos Pecca-
dorcs no inferno, femprc que nomea o fogo a acreí-
centa também o enxofre. O Profeta David no Píal^
4 modecimo diz , que naqueUa gruta infernal chove-
Tfdm, rà feire oa condenados fogo, c enxofre: Pketfuper
^o-7- pccateres ignis , & fulphnr^ O Profeta Ifaias diz,
que o alimento , e nutrição dos Réprobos fcrà o fo-
Jfai e. go , e a bebida huma torrente de enxofre : Nuírmen-
5° 53' ta ejiisignis\& torrens fuTpm. SJoaõno feu Apo-
"^^'''^■^' ealypfe muytas vezes falia delle : Crmiabmtur tgnt
ctq^íoà-fulJure.Qpcos Prefeitos feraõ atormentados cora
c. 10.9. fc^o, e enxofre : tMiffifmt m fiagmm ignis arden^
í.âi.8. mfnWure. tj^éus efi m fiagmm ignis ^ 'áfulfum.
Do tormento âo fedor do hífevm» foi
Brit in ftagné ardenti igne , & fulfure. Que íeraõ
fcntcnciadoa , a fotrer para íemprç o tormento exccí*
Civo de hum fogo íulfureo. E que combinação tem o ;
enxofre com o fogo do Inferno ? Para reíponder com
acerto a cfte qucíito , he-me ncceffario explicar pri-
mcyro as qualidades, e os effey tos do enxofre, Q'^»^-
celebre André de Laguna, Protomedico do Summo^*^^'*
Pontifíçe Júlio Terceyro, e depois delRey Filippe o V '
Prudente de Caiiella , diz > que o enxofre tem huma
Jiga iníeparaveí com o elemento do fogo, e proya fc
com a experiência, porque aproximando-fe o enxofre
ao fogo , no mefmo inílante inflamma-fe, acende-fe,^^.^'*^^'
carde : e por ifto os Químicos o chamaõ fogo vir-^^;! y^^
tuai, ou virtualmente fogo. Refere Dioícorides, que
feachaó agoas íulfureas , que paíTando por minas de
enxofre, brotaó, e lahem fervendo j o que denot»,
fer ofeu calpr cxceflivo. Os mefmos rayos,qae fc
formão, c compõem de vários vapores, a mayor
parte delles faõ fulfureos , pois por onde paffaô , dcy-
xaó hum fedor manifefto de enxofre. Lembra-me,
que na Cidade de Mantua , em tempo dos canicula-i
reSí armou-íe huma trovoada taõ eícura , c medonha,
que fazia horror. Desfechando depois às três da
tarde , deíarmou-fe com vários rayos. Cahio hum
delles em huma cafa, e de dezafete peíToas , que
moravaõ nella , matou logo a quinze, íem achar nos
cadáveres lezaõ alguma ; e as duas mais , que fic^raõ
como femivivas , refpirayaõ com difficuldadc; por-,
que o fedor do enxofre, quedsyxou orayo, era taõ
agudo, e maligno , que penetrava o cérebro, c afo-
gava o coração. Para fer outra vez habitável efta
caía foy neceíTario lavala com vinagres fortes, ede-
fumala com fogo de alecrins, e outros aromas con-
fortativos. Prova-fe tudo iilo com a experiência dos
mefmos , que tem por officio de cavar enxofre das
G 3 mi-
li .:
Jn Cútn
ment.
Dioíc, •
! ■: I-:
II
ímiôaSi Eftes .mincyrDs , como já deftros ttâ arlê^
altríj de teTem perto de íi algaas cbeyros contrários,
'pròduéâô fempre de ça^ar o enxofre em lugares nvíijr
clarosv edefcubertos} parque fe trabalhaífem íem
.cfle reíguardo ,?e icm lugar fechado ,]afaUivelmenté
^ ;^'^ Êâhím^ mortos^ Eftèsiaõ ós effbftos, eas^tKilidaí.
' des '^ ^6 eflxoíre» Agora reípondo ao quefíco i que
cotribinaíçaô tem o enxofre , com o fogo do Inferno.?
E digo ;, que tem a mefma , que tem o fogo com o en-
Icofre-na terra. Ê porque Deos para caftigar aos pcc-
' \. , èàdoVBs nainferno ^ eritrjs os .tormentos do taiflo , ef-
; " '. colliéo ao fogo camôlínaiso^perativoje violento, aílim
para punir os melindroíos, ecíFemiriados nos chcy-
ifos V eatre os tormentos do olfadto efcollieo ao cn»
:Rofr6^> porque tem^o íeu fedor mais acflivo , e pene-
trante : Miffl fiínt in fiagnum tghís afàentè-fníftire'^
E conforme ã^crcaturà do fogo^^eíèvada peia Omni»
potencia Divina , obra com muy to mayor ^dli vidatley
c violência, de tal forte , que efte noíFò fogo natu-
ral pareceria aos condenados , íem efía de vaça5 , \mm
foigiá 'pintado > affim também o enxofre^ elevado da
meiíma virtude^Divina , largara de fi dum fedor muy-
tò mais vehemente, eScaz , e perietrâtivõ ^ tanto
áíEm, que todos os fedores do Mundo congregados^
parèceràõ aos Repfoboshuma fuave fragrância: Erit
fUií pra fuavi odore faton : 1^
Foy coftume da aatiguid3de,purgarcm-fe as cafas,
habitadas dos Demónios , com o fogo do enxofre. Eile
iiío foy rambem admettido na Grécia entre os Saccr-
Sioman ^ótes Gentiosf^que expeíliíiõ com ofeufumo os ma-
Odíff, ^gnos cfptritos dos corpos dós Invafados ; e aíTim
Homero refere , que UlyíTes defumou a fua ca f a com
■^í^y^-'» Q fedor do enxofre , para expellir as Almas infedas,
^^^^^,^ qucaaírombravaõ. Será tudo ifto fabiila, ou inven-
farl í 0 poética, ainda que naô faltem Authorcs > que o di-
'Apoc.c.
Í9.20.
gao.
\
Do tormeníMópáwíSé hfevno\ loj
g3Ôé He porém verdade de fé , o que narra o Evan^-
gciiflaS. Lucas, qúc cftando Chrifto lançando huma
legião de OemòniôS, pediraô-lhe eftes , que naô Os
obrigaíTca tornar para o Inferno , que antes entrariaô
cmhumlote deanimaes immundos, queeftavaõ paí-
l-ando no montCé Deípachou-llies Ghrifto â pcciçaõr
Pe^mifit illís: E íca ça mente e n t ro u a legião dos Dc^ Lhc.c,%
nvonios no lote immundo , que cfte preeipitando-íc do 3*-
monte abaixo íoy buícar hú lago de agoa onde íe afo-
gou : Abiitgnxfer praceps tn Jiagnum , & Çuffocatus iyii'%\
eft. Reparaõ ob Santcs Padres íobre cíle Texto , que,
ícndo cftcs anímaes naõ fó por nome, mas também
por natureza immundos , criados em monturos , e
quanto mais fe deytaô em lamarões, e fedores, mais
crefccm ,eengordaõ, agora eftranhaíTem de qualida-
de o fedor dos Demónios , que para o naõ fofrer huoi
fó iaílance, elegerão todos juntos morrerem afogados.
Aífim itc, reípondc Saõ Pedro Cryfologo. E iÚo prova
a diffcrença que vay do fedor do Inferno aos rtoíTos fe- s.Petr'^
dores ; Siceftodor ejus tartareus , & crudeíís , ut eum chryC.
nec parcorum natura fufficeret ftifiinere. Deniquè de-^^^-^J*
wergt in mari , ó- fluBtbus maluit deperire-, quà m ejus
ímmundiuam & putredimm toUerare. Oh fedor Tar-
tareo/ Qli fedor do Inferno ! que , co.nodiz Saõ Ber-
nardo , íic taô iníoportavel , que naõ ha linaóà ,i que
o|íayba explicar , nem ha penna , que o poíTa deícre- D.Berní
ver ; Fator ifitollerabilCs , Fator innenarrabilis. De Ser. ad
íenganem-íe os peccadores, quea fuavidadé dos chey- fr.
ros , que havemos de procurar neíia vida , he a virtu-
de , c íantidadè ; e fobre tudo o bom exemplo da
noíTa vida, com que havemos de edificar os noíTos pro- 2. Cor.
ximos, para podermos dizer com o Apoíf olo : Chri-z^S*
ftibonusodor fumus. Pelo contrario], regalar o palato
com chey ros , c aíFcdlar fragrâncias nos veílidos , diz
SrJoaõChryíoftomo , que denota hum animo effcmi-
G 4 na-
yp4 Dtfcúrfi IV'
Bâdo, c laítivõ ; que procura com eftcs cheyros cn-
Chryfod ^^^^. ^ ^ ^g^^ j. (jog (-çys vícios: Of /í^rííí í«/«2,^c veftmm
tTi" /}'^£^«^/^ ,' ^^^^'^ i^i^^ ^^^^^^ ""^'"^^'^ graveskníem
tmt &mmundnm\Uz^ nunca poderá por toda a ctcrnida^
de encobrir os fedores do Inferno , aonde cites , de que
tanto agora foge , là lhe haverão de parecer íuavcs;
Erit [liií í^^fi^'^' ^J^^ f^^^^*' ^" '
.i.c ;■
íjíioii-í'
DIS
-^iP$ÃmB5-
TORMElSrTO DO GOSTAR.
lOjf
DISCURSO V.
Do Tormento do Goftar.
r'
Epulahatur quotídfefplenãide , & fepulUiS eji
in hferno. Luc. i6.
Nvcjando o infernal inimigo â
dignidade humana , pouco in-
ferior à fu •: Mtnmjli etím-pafí-
lo mims ah Ângelú, E vcndo-a p^^^^.
collocada no Paraifo terreal, ^J^^ *
para depois ir gozar da bcm^-
vcnturança, valeo-fede todas
jl ás traças J para que rebellando-
■^ fc como elle ao leu Creador^
fartaffe defte modo a íua inveja , ficando o género hu-
mano como íçu íubdito no inferno. He dereparar, co-
mo,© Efpirito Santo , que dirigio a pcnna de Moyíis,
primcyrohiíloriador da Sagrada Eícritura,antcs de re-
latar a kric da ruina dos noíTos primeyros pays , deu
principio ao tcrceyro Gapitulo , fcr vindo- íe como de ^
prologo da aftueiamaliciofa do Demónio iv^z/^r^^wí^^^^-^^^^
erát edliáiõr omnéus animantibus terra. Procede
depoia s narração do infaufta fucccffo Q9^Q total
loá Difcurfo V.
cxtermipio de Adam, eEva ,e de toda a íu* pofíeri-
éade, He Lúcifer o Proteo infernal, que para en^
laçar as Almas, veíie todos os trajes ViCõma todas as
figuras , buíca todjis as-fórmas , inventa todos os
artifícios , e cftratagemas 4 porem coí^ çudo ifío,
conhecia claramente , que Adam i e Eva eftavaô
guardados da juftiça original , como cm hum forre
rocli^edo , com abundante preíidip de auxílios » e for-
talecidos de todas as bandas com a graça fantificante,
epor ifto capazes , naò íó de rcíiftir a todos os aíTaítos,
mas de envergonhaio , vencelo,c çonfumilo emhua
batalha muy arrifcada. Que íorte de armas efcolhc-
ria Lúcifer , para alcançar a vitoria ? Por certo,
que a malicia de Lúcifer naó achou ma quina mais ter-
rível , para derrubar as duas columnas^ fundamentaès
de todo o género humana , que o ÍCntido do goíbr.
Oh trifte pcccado da gula , que com a doçura mo-
mentânea do teu mel , tivefte poder de enlaçar aos
noíTos Protoparentes com toda á íua pÒRcridade ! E
por ifto bem mereces o nome , com que te chama
SJoaó Climaco, de cruel tyranna de todo o género
\\\xm^no : Totius generis hurnani crudeUs Dorhimtrix. ^
'^f^' Efte quarto ícntído do goftar tem moyto mayor car
, ' ''^'^'dcncia, para quebrantar a Ley de Dèos , que os ou^
tros três i porque além de íer natural , hc forçofaj-
mente necGÍTario valerfe dei le cada dia , para viver; ;
Naô he aílim dos outros fcntidos. Porque íendo a
vifta hum grande adjutorio para a vida, muytos ce-
gos , com naô ver , vivem com íaude , e livraô íe da-s
occaíiôes dos objccílos atradivos , e a cegueyra do
corpo lhes abre os olhos da Alma. Huma Muíica de
ricas vozes, huns inftrumentos bem tocados , rçi
creáõ os ouvidos i mas quantos íurdos vivem meJhor^
porque naó ouvem cantigas deshoncftas , nem murmu-»
rajõcs defijOU dos xíutrps! A íuavjdadcidos^chey^
ros
Do tormento âõGop av. i©7
fòs co'nfola,écotifortaos cfpiritos , mas quantos fo-
gem dclies como nocivos! Equem naô tem olfsiflo»
quando naõ fe rccree das delicias dos cbeyros , naò
padecerá a pena dós fedores. Pelo contrario, como
naõ ha viver, íem comer, aíTim naô ha paladar fem
'goftar. E ícndo iíio aflim , Deos naõ prohibe o co-
mer neceffârio , para oluftcnto, mas oíupcrfíuo,c
dcmaíiado da golodice. Naô veda oufo das' bebidas;
mas ò abufo da bebedice, E eíla fera toda a matéria
deftc difcurfo , que dividirey em dous pontos. No
primeyro veremos, quam gravemente Deos caftiga
os comilões , e bebedores , ainda neíla vida com
mortes impròvifás. Nó íegundo moftraremos , que
aquelles, que ávifta dcftes cafíigos perfeveraô no le-
targo defte vicio da gula, íem duvida morreráõ im-
penitentes ^ eferaô fepultados por toda a eternidade
cofli o Epulaõ no inferno : Sepultas efl in inferno,
"• Grande vicio de Vé de ler o da gula , pois abor-
recendo Deos a todo género de peccados, fofre os
peccadores, ccompadecs-íe delles, ufando mais da
miícricordia, que dâ juftiçá j porém na intemperan*
ça da gula , e na crápula , abomina Deos a qualquer
exceíTb. Muyto mais , fe chegar a fartaríe fobre
proffe, ou á perturbar fe dojuizo ; entaõ irritafe Deos,
ca modo de enfurecido, íem mais efpera, defcarre-
^a o furor fobre os intemperantes,caftigando-os em
todo o tempo ;neQa vida apreíTando lhes a morte, e
na outra fepultando-os no inferno. Tudo confia do Sa-
grado Texto. Fallando tantas vezes o EípiritoSanto
por bo.cca d)s Profetas, acharemos , que todos uni-^»
formes ameaçaõ os peccadores com o terror do in- <
ferno. Porem naô fe apontará texto nenhum do Tef-
tamento velho , em que fe lea , que Deos nomeada-
mente mindaíTe alguém vivo ao inferno, exceptuan-
do a Core , Natan , c Abiron. Ajuntaraõ-fc cíles três
Pre-
26
33
i I f:
Nftmc.
io8 Difcuvfo V.
Precitos ," e conílituindo-fc cabeça de motim , le-
vantarão ao Povo contra Moyíés , e Araõ j eíte Sum-
mo Sacerdote} aquclle Liigartenente de Deos nater^
ra. Naó tardou Deos com o cafíigo. De repente
íc lhes abrio a terra debayxo dos pês , cforaõ buir
car o feu centro , eaílim vivos ficàraõ íepultadps no
i^^w.r; inferno : Confefiim igitur difruptaeftterrafub pedihs
eoríf/n , & aperiens osfuum devoravit illos , defcende'
rtmtqueviviininfernum. Equal foy ocrimetaò exer
crando, e cfcandaloío , que mereceo taô terrivel ca-
fíigo? Sc bufcarmos o principio , donde emanou a
deíobediencia , e pouco refpeyto , que tiveraõ a Moy,
fés, acharemos, que foy o defordenado appetite d|
gula , que os precipitou na fua ultima perdição, quey-
xando-íe , que os tinha tirado de huma terra abundanr
te de todo género de ladtieinios , para os, ir matar á
jg ^ fome no deferto: Non venimus. Naô queremos vir,neni
j^2. obedecertc .- Nunquid parum eft tihí-, quod duceres nos
de terra , qua lacie , & melle mmabat ^ ut occidires m
deferto.
Do meímo modo fallou Chriílo muytas vezes do
inferno, declarando por bocca dos Icus Apofíolos , ç
Evangeliíias , a diverfidade , c terribilidadc daqueU
les tormentos , que devem fofrer os condenados.
Com tudo, náo fe achará cm todo o novoTeflamento,
texto algum , que falle clara ,c deílintamente , de
outro fogcyto, que fcja fepultado vivo cm corpo,
cAlmano inferno , como defíe infeliz Epulaõ, que
cfqiiecido de Deos, banquetcava-fe todos os dias , com
ocíplendor, c migníficencia de todas as delicias, c
re.oalq? : Epulabatur qtiotidie fplendide , e por iíio , /(?*
pultuseft m inferno. Etie hc o parecer de S.Pedro Cii-
fologo , que confiderando a fatal mudança do eílado
do pobre Lazaro, e do rico EpuUô, acha, que La-
zaro depois de fofrer tantos males nefía vida , Laza»
TUS
Dõtorínentõ âoGo[lar. - 109
Yus àutemmala. Os Anjos o leváraô , como cm triun-
foparao Seyode Abraham, cos Demónios abrirão a
terra , para que cnguliíTe ao Epulaõ, para ficar para ^ ^^jr
íemprc fcpultado no inferno : EnFratreSsquam re- ub^str.
rum lamentanda mutatio ^ pauperem fortant Angeh in m.
finum Abraba ^ divitfmdeglutttinfernus. Oh quanto
he melhor naícer ncfta vida pobre, que rico; viver
faminto, que farto. O pobre com pouco íe contcn-
ta i ao faminto qualquer legume lhe fabs , todo o
comer I he fatisfaz } e pór ifío dà graças a Deos , quan-
do acha o neceffario , para o fuflento. Pelo contra-
rio , o rico , e goloío , quanto mais nada na fartu*
ra, tanto mayor naufrágio padece na indigcftaój â
multidão das iguarias , a variedade dos comeres , lhe
deprava o íentido do gofto i com o mefmo cuydado,
que tem de lifongear o palato, com tantas caflas de
viandas, concertadas com drogas de hum , e outro
pòlo> eftaslhe corrompem o eíiamago, e lhe cau-
faô nauka a todo o comer íimpks , e ordinário ; de-
pois nafcc hum faftio mortal , que o obriga a vivei?
na fua muyta fartura faminto , e infeliz na íua mef-
ma felicidade. Ecom naõ conhecer nsfla vida outro
Deos , que o feu ventre , ( como diz Saó Paulo ) §}no' pi^^if^
rum Dem venUr tfi: acha a morte , c o inferno, aon- ,,/ '^V
de poz a lua bemaventurança.
Reparou o Profeta líaías , que eflando a bocca
do Inferno femprc aberta , para cngulir as Almas, íc
hia fcmpre mais alargando', dilatando-fc de modo,
que já naõ trnhancm medida, nem termp : Prepte- /íai.c.f}
reàdilatavit infermis animam fitam , aperuit os funm
e^Jqne ulk termim, E qual íeria a razaò defla voraci-
dade interminável doinfcrnof Eíie adverbio prfl/>/írfi,
que a Profeta antepõem ao feu período j dcnôia cor-
relação ,.e certa a ca ufa, porque aquelle báratro ín^
fernal alargue com tanta aucia as fuás garras, para
és»
t, À'
jio Difcmfd V. 1
dcvotaír o género humano. Ouçamos ao mefmo Ifaíaj,
ljfài.Cs^,p^ra que melhor fique íolta cfta duvida: F£ , quifur*
gttis mane adpotandum in cowviviitvtfiris. Eíia parti-
cuta^ aífim no novo, como no velho Teftâmenco,
íemprefoy comi nativa das penas do inferno. Per iilo
o Profeta, depois de ameaçar a -todos eíles Sardana-
palos, embebidos nas delicias da gula, c que vaõ
ajuntando companheyros áíua crápula nos banque-
tes, fem terem o minimo cuydado da cutra vida;
Jfaiásc ^f>^^àamus , &èibamus , eras mim mortemur, Osad-
zz, verte feriamente , que nem por ferem muytos, por
ifto haõ de evitar o eterno caftigo , que merecem , an-
tes por efta mefma caufa , infere efta confequenciai
que irritado fempre mais o furor Divino , dilatará as
boccas do inferno , para que todos juntos fiquem
eternamente fepultados naqueíle calabouço de fogo.
Eefta interpretação do Profeta Ifaias he taõ genuina,
que naô duvidaò os Ejcpofítores, glozando eíle meí-
mo texto , de affirmar por confequencia certa , que
todos aqueiles, que vivem immeríos nefte vicio da
gula , fervem de lenha , que o Demónio vay guardan-*
Mauf. ^^ P^*^^ cevar o fogo do inferno : Proptenà inferreU'
trat.% I . cet^ quõdquigul£y^ crápula àediúfunt^ Ugnafint qiii-
de gtil(i,bustgnis mfernalps nutritur.
Terrivcl fentençi foy aquella ( como refere Saô Lu-
casj ,que pronunciou Ciirifto contra os Peccadores,
privandoos do Reyno do Ceo, deínaturalizando-os
de feus filhos adoptivos, e degradando os para o in-
ferno ; e com tal circunftancia de sborrecimem-oj
que moftrava , que naõ os conhecia ,. nem a pátria^
aonde nafceraô : Ne feio 'V os unde fitis. Dtfcedíte k
we omnes operar ti iniquitatis , tbi erit fletus ^ & Jiri^
dor àenimm. E qual íerà a caufa , que moveo a Chi i-
ftca taõ grande rigor, e fentsmento ? O mefmo S. Lu-
' casa infmua no meímo Capitulo, Pregando Chriíio
às
1
Do tormentê do Go/lar, 1 1 1
fs Turbas fobre o Reyno do Cco, toraõ huns curiòfos,
que lhe perguntarão, fe eraõ poucos, os que fe haviaõ
<ie íalvar: Domine y ji panei Jtmt , qm falvavtur, k
eflenomede íálvaçaò requintou Chriflo aíUadoutrt-
exhortando os à mortificação das íuas payxôes>
Luci^
fazendo violência a íí , para eiitrar na porta do Cco,
que era muy eftreyta : Contendite intran per angufiam
fartam. Porque muy tos bufcaráó outros caminhos,
para entrar, e naõ entraráõ : Glnia mulú , qu^erent
intrare ,& nm poterunt. E quaes íeraõ eftes cami-
nhos diveríos , que tanto defagradaò, irrita õ a JESU
Çhrifto ? Elle mefmo no íeu Evangelho os aponta.
Entre as Turbas, que feguiraô a Chriíio no deferto,
aonde com cinco pães , e cinco peyxcs fartou a mais
de cinca mil homens? havia muytos , que lhes pare-
cia ter merecimento bafíaríte para entrar no Cto,
Gom ter ouvido a lua doutrina , e ter comido , e be-
bido na fua prefença: Tunc incipietís dmre^ mandu-
eavimus coram te , éf hibimus , c^ inplateu noftrU do^
mijli. Ha mayor atrevimento , que efle ! alegar por
grande ferviço a efmola , e caridade , que Chriflo
lhes fez , matando-lhes a fome em hum deferto ! Vio-fò
algum dia entre gentes brutalidade mais disforme!
Frèga-ihes Chrifto o defprezo do Mundo , o jejum , e
a penitencia, que faõ o único meyo para cntrarno-
Paraifo , e efperando nelles o arrependimento , a
compunção , e o aborrecimento às delicias do corpo5>
©fruyto, que tira delles , he refponderem-lhe com
eom.eres „ e bebidas Mandti eavimus^ & bihimtis. Ora*
claro eíiá , que osgoloíos embebidos na crápula, naa
conhecem a outro Deos j que aofeu ventre, e, co-
mo a fua bemaventurânça na terra he fnrtaríe, íatis--
fazem a fua golodfce , coma, fe o Rcyno do Ceo'
foíFe Efiaéfpotm, Por ifto oEvangelifta conhccen-
<fo,.quccfí€ vkia taõ abominável naõ ti»ha nelles»
emcn-r
Lttc. I g
24.
'i , .-
itt Dífcí/r/ò V.
emenda , lhes intimou immediatamcnfe tm nome de
Chrifto ,que jà naô os conhecia por feus DifcipulosvC
comoobreyros da maldade , c Precitos , fc foffem íe-
pultar no Inferno; T«»í* dicet^ nefciovos^ unâefitu. DiJ-
çediíe à me omnes Operarti iniqmtatís , ibi eritjletus^ &
firtdor âmttum,
Suppofto o aborrecimento , que Deos tem aos
goloíos , he provada , como infallivel a fua conde-
narão i faltâ-nos faber, que tormentos padccctàõ
no inferno, e íc tem alguma penadininta , proporcio-
nada , e devida a efíe vicio. Perguntaó os Santos
Padres , como o inferno , fendo huma congerie de pe-
lias, hum aggregado de todos os tormentos, fal-
lando Chriftodeile , faz fomente mençaõ do pranto, c
do ranger dos dentes : Ibteritfletus^ érfirlàor dentium,
JLea-íe o Evangelho todo deSaõ Mattheus, e achare-
mos , que ameaçando Chrifto com o fogo eterno aos
peccadores , naô huma fó vcss i mas íim oyto vezes, re-
duz , c recopila a infinidade das penas , que padecem,
c padecerão para fempre os condenados, ao choro,
e ao eílridor dos dentes : Ibi tritfleBus , &ftndor den-
ttum. Refpondem , que a mayor razaô he , porque cn^
trca multidão depeccados,quehano MundOíachaô-
fe dous géneros, que íempre triunfaõ , e fubminiflraô
continuadamente a lenha, com que íc accende íem-
pre mais aquelle infernal incêndio. Hum dcfles gé-
neros tema fua raiz nadeíenfreada licença dos olhos^
que depois brota cm muytas elpecies de torpezas,
çomodiíTcmos no íegundo difcurfo. A cíias correí-
pondc a pena do choro inconfolavel , e dos gemidos
íem remédio Jbierit fletus. O outro gcnero he o vicio
da gula, que foy, cíerá íempre origem de tantos ma-
les no Mando , e porque a gula tem huma natural cor- .
relação com os dentes, tem também por pena efpecial,
p. ranger dps mcíroos. ^'i\xx,ç,%\ Stridor dcntium* Vcrifi-r.i
can-
■'^f
Do tortnénto doGollar. 115
eatido-fe , o que diz o Efpirito Sanro por bocca de Sa-
kmaõ : Per qua qupspeccat^per hac & torquetur.Con-Sáp:
firma claramente a ferie ^ de quanto temos dito , o dou-*''*^- > '•
tiílimo Hugo ; Fkbunt ocuh , quia invagt^fuerunt va-
guftrlâtbímt dentes , quia fuerunt edaccs. PerJí^c duo
mtantur díio ger^era culpanim , pro qmhiispuràuntnr;
fctlicet concupifcenUa oculoram , qu£ perfletum > >ilO'
fitas, qu^ ptrfiridorem dentiiím deJJgnatur, Choiaráõ
os olhos peia lua pouca cautela , cm ver objcdlos , que
provocaõ á deshoneftidade. Rangeràó os dentes , por-
que foraô comilões ,e vorazes. Eeftesíaõos dous gé-
neros de cul pas merecedoras dos dous tormentos : I&i
eritjlettis , &Jlrtdor dentium.
' Quero moltrar mais claramente as grandes penas,
que padeceráõ os golofos no inferno, com o meímo
texto do Epulaôi e advirto, que o Evangelina S.Lu-
cas, que relata eíla hiftoria taò fuccintamente, naõ
ecm palavra , qac nao encerre em fi muytos myíkrios.
PrimeyramentcS. Joaõ Chryfofíomo repara com agu-
deza , íobre aqaclia palavra: Ctim ejjet intormeníis.
E diz, que cfte fjllar taõ myfterioío do Evangclilia
iíníinua hum cumulo innumeravel de íbplicíos , e to-
dos cxceíli vos i pelo qiic parece ao dito Santo, que
cíle rico avarento encerrava em fi , e tinha ao re-
dor de íi innumeraveis tormentos, e por iíTo naõ
diííe: Cnmejjet tn tormmto. Sed m tormentús. Por-
que todoaqueiie individuo era hua infinidade de pe-
cas: Ijfum mjinita tormenta pojfidebtínt. Uri de nof^CrifoIM
dicit , ctim effet in tormento^ fid cum ejfet m tormentis. cat.aur,
Totus enim m tormentis erat. Agora cae bem, e {zctt.aS.
conhecerá a força daquella palavra enfática do Evan- ^«'^'"'*
geiiflír ó' fepuUus ejirninferno. Foy fepultadono in-*'* '
ícrno,com que explica o mnplks ultra dos cormen-
tos defti nados para os íequazes da gula, e para os^
imitadores do Epulaô. Todas as vezes , que vemos'
-. . H a bum
!
lih.zÂe
Civ, ^.,
ahuiB malvadov jogar de dia , e de noy te, perdeu^
do o tempo ^ o dinhcf ra y a fazenda ^ a honrará
conÍGiencia. a Alma ,.€ a tudo quanto tem, e naa
tem de íi. Logo dizemos ; efte homem cOâ fepulta-
do no; jogo ate a gargaata; O^meím^x praticamos de
humluxurioÍQyquc tudogaík em mais occafíões j eftc
hòmemeflá perdida na íua deshonefíidade j fcpultan*
do-fe cada vez mais do Iodo da íua lafcivia .• Sèpultu&
sftin eomtw tífyuè aifmm. E com eíla fraze ie arre-
mara, quanto le podia dizer , e inventar ,^ para cn^
carecer a maldade defte jogador , ou deshonefto^ Dei.
ta meínia figura feierve neík occafíaô Saõ Lucas, por*
quequiz compendiar oimmenfa Cataloga das ínnii^
iiicravcis penas do noífo EpulaÕ , e naô contente de
dizer muy£o em potico, dide tudo, c quanto íc po-
dia, e poderá dizer com eftas duas palavras: Stpnlim
ejiin mferno'. Admirado Santo Agoflinho do tremcn*
do enfaíis deíle íemiperiodo , lhe fez huma glofa , que
bem moara o feu grande engenho , e diz affim ; S^pu^,
tUTã infertú , fanar um prõfunditas efl. Que a íepul-
tora do inferno he como hum poço profundiírimo de
penas. Como fediíTeííe. Quanto mais fundo he hum
poço, tanto mais perto cftáda mãy da agoa, que he
Gomahuma fonte indeficiente, que íempre brota,©
Buncâ íéca. A fcpulrura do inferno he hum poço che»
yo de hua infinidade de tormentos , que tem avcain»
deficiente do fiifor Divino , que dura , e durará eter-
namente. Conidere agora- o gol of o com vagar á
profundidade defte poço, que ha de íer a íua íepuU
tura 5 cançará o íeu entendimento em excogirar , eim
que chãos ,e preeipicio alevaaíua golodiee y e , fe
for cpm os olhos cm Dcos , e com verdadbyro arre^
pendimento, poderá iivrarfe delle ^ecom o jejum.
e penitencia , paífar ao banquete da, gJoria y c poi*
jEq torno a dizer í conTidcre „ c medite compaufav
cre-
Do torWeèto âoGoflar. i í y
[II .ifeflexaô;, cachará, que nunca poderá eígotar eftc
poço do a by Imo , nem na, qualidade das penas, ncrn
:iia quantidade dos tormentos: Sepdtura inferni ^een^^
^fjimp^ofm ditas tft,
[ '^ O Beato Alberto Magno, eFr. Diogo Stella,amT
.bos Varões eíclarcçidos , aflim na fantidade , come
;nas letras, cík da Religião Seráfica , aquellede S. Do-
mingos, eícre vem íobreelk Texto, que he colluinc
ufuâi de todo oMundo , que cada freguez fc catcrf
"i%t, na íua Parroquia , aonde eíU de reíidencia , e que nà
morte lhe aílifta o ieu Pároco , e depois o acom»
panhe com os feus Coadjurores , e Clérigos rczan*
<lG-liie peia Alma , até o lançarem na Tua íepuitu*
ira. Gomo Luciferhe o Supremo Paíior de todos os
golofos , repavtio o Mundo em varias Fregucíiís.c
as provede Párocos vigilantes, de Vigayros diligen-
tes, fieis, e tão zcloíos , que tomaò por feus Mi-
uiflrGs, e Coadjutores , aos mefmos comiloens, c
bebedores í para que vaõ fazendo gente, e convidan-
do a outros companhcyros , para as fuás crápulas, c
aíTim multiplicar-lhe os freguezcs. PeíTimo oíficio
he fazerfc hum homem Miílionario do Diabo, c
íer feu ad vogado, como diz S.Ambroíio: /Íí?w<?Z)/<í-
Mí Advocátusy e irtopara grangear-lhe Almas para "T""-^^
o inferno. Quero , que hum terribiliílimo íucceíTo
íirvacomo de principio, e fundamento das provas, _ . _.
do que vamos dizendo. O Padre Martinho dei Rio, da /,^ . J^
coíTâ Companhia , e outros Aurhores claíTicos o refe Man.
rem , e na verdade, bem confíderado, he cipaz de
atemorizar os mefmos Anacoretas no deferto, quan-
to mais aos golofos cntempcrantes na Corte. No Con-
dado de Flandes ha hum certo Priorado , farto, e
de boas rendas, aonde aíTifliaô três Sacerdotes, que
todos intentos a impinguar o corpo, fartavaò-fe de
bebidas > c bons. boccados ^ c aada trata vaõ da fust
-: :„a. Hz Al-
Amb.i»
■'ií
i; i«
I I h
ii6 Difcurfh V.
Afma. Huma noyte , depois de íc ter lautamente
,.,. p banqueteado,; diíTc hum dellês i affaz temos hoje
5^i fervido a- Bacco , e a Vénus ( e o peyor he,que aílím
era ) demos graças a Deos: Sat Baechoy hhidimqm
d^tum: Deo grMias agamus. Reípondco hum deiics.
Eli antes darey graças ao Diabo, e parece, que to-
dos as aviamos de dar j pois clle a nòs , e nos a elíé
lhe fazemos n n to a von ta de : Ego B&mini gratias aga^
&agen(lum teí^o t ctijus apus agmtn, líio affim ditp^
levantáraõ-fe da meza ^ e cada hum íe foy para o fea
apòíento, para ir à cama. Eftavaô-fc defpindo',
quando ouvem hum grande efírondo na porta, a
qual aberta logo por íí , entrou , e appareceo hum Ef-
peclro agigantado com hum femblante horrorofo (era
efíc o Demónio ) e trazia a poz de i dous criados
de menor efíat ura, negros, e feyos, queparcciaô fer
coíinheyf os ; pois hum levava hum grande cfpeta
na maô,e o outro nas coíbas hum feyxe de lenha , e
botando os olhos , que knçavaõchammas, íobre os três
delinquentes, diíTe em voz alta , e medonha: Ubi
efi » qtii mihi gr atm egií? Aonâc çMaqucUcquo
medeo as graças ? Rcipondeo o deígraçado , mais
por lifonja , c medo, que por vontade, já remor-
deiido-lhe a eònfciencia , e já adcvinhando-lhe o co»
raçaõ a íua ultima mmz: Adfumy ac iterum refe^
tâm. Aqui eíbuj e as tornarey outra, vez a dar, íe
affim qiiizer»Enraô o Demónio, pegando nellc, raf-
gou-ihe com violência osvcfíidos, e affim nu , o^n-
tregou aos dous Miniílros , dizendo. E§c homem^
foy fempre noífo freguez , chegou-lhe a hora peremp>^
toria da fua morre, he força affifíir-lhe, e fazer-lha
as exéquias eofiumadas. Saitáraõ nelle os dous Mi-
Hifíios, e trefpaífando-o com o cfpcto., já reduzida
a lentia em hum brazeyro ardente , o fòraô aíTando
vive, e ao fogo, lento. A Ychcmencia das dores por
cftaitr
Dotõvmênto dõGòflãv. 117
cfíar aquellc corpo aíTim trefpaíTado daquellc cruel
ferro, como tambcm o ardor, e adividade extraor-
dinária do fogo, anticiparao-lhc a morte. A penas eí-
piroLi; diíTc o Demónio aos outros dous. A Alma
defte voíío companheyro jà eíiá íepuliada no inferno,
no lugar dcttinado aos Epuiões, eihes eftaò fazenda
as exéquias merccidss. Naò levo comigo agora eíle
cadavcr,paralhe fazer omeímo, porque me man-
ílaôodcyxe por exemplo, e emenda volfa , e de muy-
tos outros. Todos trcs eftavcis condenados ao mef-
mo fuplicio, nem a mim falta o dcfejo, nem a von-
tade , mas huma força íuperior mo impede ; voume
confrangido, e obrigado J c advirto-vos, que là fí-
caô eternos tormentos , que íaò muyto peore?, e mais
atrozes dos qu£ íofreo o voíTo companheyro, c naô
tem comparação alguma, porque cíies faô como pin-
tados, duraô pouco, e logo acabaô .* Dignivos etiam sibl
fjlis pari fnppUcio , nec deeft voluntas mihi. Vetor vi M>in($,
maiort , mviãtís abeo , & momo. Refcipifcite aitt ma-v-Gnl»
nent ternbilíora. Ficou aquelle cadáver medonho,
como áz hum condenado, e denegrido como hum car-
vão ; os pingos da gordura , que cahiaõ nas brafas,
levantarão tal cfcuridaõ, e fumaça, que lo pela fil-
ia íe diftinguiaõ, hum do outro , e deyxaraõ hum fe-
dor taô infoportavcl , que foy neccíTario mudarem ca^
fas, cíitio, ficando aquellaspor muyto tempo inha*
bitaveis.
Tornemos agora ao Beato Alberto Magno , e com
as fuás mefmas palavras fechemos o noíTo diícurío,
ç demos também fím a cfte primcyro ponto : Ecce
exeqtiiarum officium a Demonibus , Presbyteris impen-
Çtim 1 inhoc enim pr/e'cipue verum eJi^Dimitte , mor-
tuosfepellire mortnos Juos, Eftehe oofficio, eiias íaò
as exéquias, com que os Demónios honraô aos fcus
Frcguezes j quando os levaô para a fepultura do in-
, H I ferno*
Manh
ili
ii8 :^mfcurf(y¥^
ferno. E qi]€ belíâ interpretação apontou cftc SanM
Doutor, fobreíuim Texto taô difficultoío , como
efíe do Evangelho. Defejou hum Mancebo deyxar
o Mundo, feguir os:coníeIhos de Chriao com toda
a perfeyçaô , e para o executar logo , pedio-lhc íó ií-
eença de ir aííifíir às exéquias, e enterro de feu pay^
que de pouco era morto: Dcmine ^permitte^me pri^
mumtre, & fepelire Patrem mmm. Parece , que naô
podia pedir eíie Mancebo couía maisjuíb, que- que-
rer konrar aíeupay, efazerlhe aquelle ultimo obíe^
qiiio , que era devido depais de morto. Com tuda
negou-lheGhriííoaJicença, e refpondeo-Ihc aípera*
mente ; que o fegulíTej e q,ue deyxaíTe^ que os mortos
cnterraíFem aos feus mortos .• Jit iUit ^fequereme^, é*
âimim mortmsfepellire mortuosfuos. E quem vio nun-
ca defuntos enterrar a outros defuntos ! Sabia Chriíí
fío, que o pay dcfle Mancebo morrera em peccadoi
c quejá os Demónios tinhaó fepultada aíua Alma no
inferno. Gomo os Demónios pelo peccado faõ verda-
deyramente mortos á graça para íempre ,, e efta hê
a morte, que Chriíio encommenda tanto, que fa
havemos de temer.. Pois bem ; já que efles tem fepuí*
tada a Alma de voíFo pay no inferno , dey xay-os tâ m^
bem fcpultar o corpo ^ Dimitte mortms fepelliremòr-»
tms fms. Vejamos agora apro^ja tirada donoíTothc-
ma. O Epiilaô ( diz o Evangclifta ) que depois de
morto, foy íepultado no inferno : Sepultas eji in tn*
ferm. E quem o acompanhou! Cultura jc o lan-
çou dentro delia! Por ventura' ói^ Parentes z' Claro
eíiá que naõ. Quem foy logof Era êlle Epulaõ da-
lnc.i6^^<^ às crápulas: EpiiMatíir qíwtidie fpkndide. Lo-
go era fregucz do Demónio. Logo "o mcímo De*
íuonio , que era o feu Pároco , o mandou lançar
em corpo , e Alma na fepultura do Inferno, que
tem preparada para os Comilões jC Bcbedoiesy
% -^ ' íeus.
^
Do tõfifienu do Goftar, 1 19
,^ei^ Fíeguçzcs ; Seimltus ejim wftrno.
/ He obíeryaçaò dos Santos PádiKS , que tntrc
os peccadores de qualquer gcncro de vícios ; os
^oloíos íaô , os que mais diííicukoísmente (e dif-
poem a bem morrer. E por ifto foccede, que morrem
de improvifo , e km conôííaÔ •, e íe tem tempo , para
conícíTaríe, o vaô prolongando até morrerem impe-
nitentes, ícm dar ílnal algum de arrependimento,
ou da íua íalvaçaô , que he o fegundo ponto delle
diícurío. Vendo Moyíés, que Deos eivava irritado,
contra o íeu Povo , pela reincidência na idolatria,
ador.indo o bezerro , começou logo a pedirlhe cffi-
çazmente , que lhe perdoaíTe ^ mas quando vio, que
os feus rogos eraõ, baldados, reforçou com rcfoluçaó
as inftancias, atè padear com DcosiJut dimitteil-
lis hanc noxam y autâele mtde libro í//í?. Pelo contra-
rio apetecendo cík mefmo Povo as carnes , e cebo-
Jas.do-Egy ptOjdçícubrio a Moyíés a fua golodicc; GhtCs
dabit nobis carnes admfimdum^in mentem nojtram 've-
Minnt cepe, & dita. Vendo Moyíés a extravagância
deí^c Povo, quiz renunciar ogoverno delle, e quan-
do, naõ v pedia a Deos, que Ibe tiraíie ávida: Non
pffumfolus fufiinere hum Põpulum , qniagravis ejimi-
.hi % fm aliter obfecro-, ut mterficias me. Niô lemos
porem, que Moyíés pediíTe a Deos por cUe, e mais
fabendo, que eivava altamente irritado ^ e que o havia
áç, caftigar , como fez com todo o rigor. Qual íerá a
cauía, porque Moyíés intercedeo pelo Povo, quan-
do eivava- idolatrando , e naò agora, que o via golo-
lo, e intemperante ? Por ventura 4' idolatria fcrá pec-
cado inferior ao da gula ? Abfit. Por neohurn c do, O
pcccado da idolatria em todo rigor Theologico exce-
de a todos os mais géneros de peccados, E naô h€
menos, que tirar a Deos a Divindade , pondo-a em
bum mármore, cm hum metal., ou em hum madeyro.
H 4 Sen-
Segun-
do PÒ'i
ca.
ni
mmsmíÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊiÊf^
no ■ Difcuffo V.
Sendo íago íílò affim 5 porque Moyfés fe cmpedhott
tanto para impetrar o perdão de idolatrar ao bezerro,
e pnra o peccado da gula naô diíTe Ima íópalavra, an-
tes peno eximiríe daquellePovo, deyxando-o expo-
rta aa fiiror Divino ?E que bem obroti Moyfés co-
mo iIIumiBado de Deos I Sabia, qi^e o peccado da
idolatri^ rinha emenda i porque dando-ihes a beber
os pos do meímo bezerra , vendo que íe reduziaÕ
era nada y era notório , e palpável o deíei^ano , que
o bezerra mo a,a Deos. Porém o vicio da gula fen-
.do caa conatural aos homens , os faz como iucor^
rigiveis. Aííi;n explica eae texto o Caetano , CoJ
mencador de Santo Thomh iFeccat um mUquafi eÊ
mcorrigikle. Conhecia também Moyfèst qucos feus
rogosnaohaviao.de tcrvaliapara com Deos ^ porque
no peccado da gula Deos ordinariamente he , ou fe faz
mexoravei: Cognominfuper Moyfés., preces faas inhoe
^^Jiimmmeexaudmãasfore,(^mafciebat,Deumcúnt^^^^^
kocpeccatumgmnmoinexorahikmeffe.
^ PaíTemos. agora de Moyfés a Noè , tambcm Va*
rao.querido de Deos , c de virtude Gonhedda ,. c ej&í
perimentada pelo eípacio de féis centos annos;. que
tantos tinha, quando Deos lhe confiou, a fupcrintètt^
dencia da Arca. Reveiou-lhe Deos , que o gencra
humano havia de iicar dcBruJdo , pois o via perfeve-
rar na maldade , fem eíperançaalgua de emenda :: Dià.
satãdNoc: Fmúumverfa carnk^enit cotam mi-.r^.
peta efi terra imquitaU. Começou logo- Noè a tra^
balhar na Arca, efoy gaflando hum feculo inteyro
na^coflfirucçaõ delia, Eípalhou-íe afamaideíla nova
íabrica,, ordenada por Deos a Noè; e como. já fe hia-
encorporando, e fazendo vulto, dò que haviade íer,
eoncorriaô não íó^ os naturacs da terras, mas também
de outras Províncias,, c Rcynos , para ver a cftru..
^ura ,^ e forma de. taô grandioía obra. Noè feyt<fc
\
Dofome^toéôGoftar. rtt
Pregador íncanfavcl , a todos admoeOava, que lar-
gaíTcm os vidos, choraíTem as íuas culpas, e cmen»
daíTemavida ; porque Deos lhe tinha revelado, que
eftavàimíBirienteo diluvio, cm que, íem remédio,
haviaõ de morrer todos afogados. Porém elles tam
longe cftiveraõ da emenda , que fe fumcrgiaô cada
dia mais nas fuás crápulas , carregando a. Noê de af-
f roncas , chamando-lhc homem infeníato , e Velho
tonto, que prodigamente gaíhva o dinheyro, e o
tempo na fabrica de hum Caftello nadante porhum3
louca abuíaò , que lhe deu na cabeça ; e que clle fô
com a fua família fehaviao de íalvar nellc,.em hú di-
luvio imaginário. Coufa incrivel , fe não foíFe de fé.
De tantos milhões depeííoas, que no cfpaço de cciii
annos ouvirão pregar a Noé o diluvio , ou lhes che-
gou á noticia a Arca ,que elle por cauíá do dito di-
luvio efta va fabricando , naõ houve hum ,, que íe con-
verteffe. E o que mai^ me faz palmar ,-he, que ain-
da nos últimos períodos , c;m que elle , e os fcus fi-
lhos , íe foraô deípedir dos Amigos , que o acom-
panharão atê entrar na Arca , alem de huma i nfínida-^
de de gente ^ que por curioíidade foy aíliflir a cfle
embarque , por ver a comitiva de toda a eípccie de
aoimacs , que obedientes o feguiaô ; naõ houve
hum Í6, que creíFe, ou ao menos duvidaíTe da ver-
dade defte diluvio >e,. para aíTegurar a fua vida, lho -m^
pediíFc , ou como parente, ou como Amigo de ficar
eomelic na Arca! Naõ fe efpante ópio Icytorique
© EvangeliftaS. Lucas dá arepoíla, que explica com
elareza, admiravelmente , quanto temos provado: X/s^r-i^'
■Ed'ehant^& bibebant i^fque mSem , qua intravit Nce v.i%
in arcam yó-venit diluvmm , & perdidit omnes^, Co-
miaô,c bebiaõ atê no dia ,: que Noè entrou na Ar-
^1 veyo o diluvio , todos morrerão afogados. De
^c ícr virão as pregações de Noè ! Qijc importava
o íea-
I í
,' \
PÇálm,
oíeu bons exemplo ! Eraò elics comilões , e bebedores' :
Eâáant ^&.bibtbam, Dokna 5 cem que fc cançarcm'
cm eíperax emenda i porque naô admittem, nem ar
doraô a outro Deos , que o feu ventre : §uonm Deus
^mter £fi y^ncm tem outro fim , qu:e com a mort€
eterna* ficarem íe|mltados no Inferno : Eí.qmnmfi-
nuinteritus. ■ -.1.1^^
' ' Gonheeeo a verdade deílta doutrina , ainda que
tarde,e áfua cufta, o Epulaõ do Evangelho. Nun-
ca quiz crer , emquanto vjveo , que na outra vida fc
Ihehayiaô de trocar os regalos em tormeníos.Por mui-
tos avifos, que Ihederaô , para que íc emendaíTe da
fuâ crápula ; por muytas razões , que lhe alegaíTem,
fcmpre i<ij íurdo , c;^ incorr igivcl; antes ( como diz
SJoaõ Chryíoftomo 5 era taô cego , que aos exemplos
dafágrada.Efcritura chamava fabulas, e cxibilando
aosProfetas,fâ!zia efcarneo do zelo , que moflravaõ
eomasfuasadiHO£Íkçôes,edocumentos.Einalmente a
fumaça do inferao, aondede repente fc vio íepultado,
lhe apurou a viila do entendimento , e a adividadc
dofogocom aforçt dos tormentos íhc fez confeíTar
afs verdades, que neíla vida impugnava , como fabu-
loías ; c invocou logo ao grande Pay Abraham , para
quemandjíTea Lazaro pregar a cinco irmãos ,. que ti-
nha, e os deíenganaíTe , e naõfoíTem parar com eJlc
?«p. 16 no inferno i Habeoenim quinquefiatres , nt teftaíur
tllís , ut ò' tpfi vmlunt m hunc locumJormentorum.
Porem Abraham reípondeo-lhe , que tinhuó a Moy-
íés , que era feu Legislador ^ e aos Profetas , que
' - craô os interpretes da Ley, e Pregadores, que os cu-
viíTsm, e fe emendaíTem. Naó bafia , replicou o E-
pulaô; porque elles tem os meímos vícios , que euj
defprezaò o Decálogo, ereputaõ as fagradas Efcritu-
ras por fabulas. Porèmríe viíTem a Lazaro rcfuícitado
clhesdéíTeas novas dos tormentos, que padecia 5 no
in-
A
Do tôféetífoioGoftar. iij
ièferno,í^ed?kô poderiaô rcduziríe á penitencia,
© emendarcm-fe. Porém Abraham conhecendo , que
os Irmáos craò dados aos meímos vicios da ^ula, e
por ifto incorregiveis, rejpondco ; Si Moyfen , & Lneàbi.
Fr of et as non aiidmnt , neqtte yfi quis ex mortuis refn- D.chry
rexenty credenh Como íe diffeíTe. He tal a oh^ma- fiH iln*
çaò dos golofos , e tal a cegueyra , em- que vivem
embebidos nas íuas crápulas , que naò dando fé nem
a Pregadores, nem ás Efcrituras, fe eu lhes mandar
o raefmo Lazaro , queelles conhecerão ,. e vifaõ men-
digo, echey o de chagas, já refuícitado , haò de cuy-
dar , e dizer , que he huma fantafma , hum efpedro,
e huma apparencia cnganofa , com forma , e fenibrante
humano, para lhes fazer medo , e os enganar. Eíle
he o fentido de S. Joaô Chry íoftomo , íobre efíe Texto
doEpulaò: §tnaaudíendofcrifturas contemnebat y &'D.Ber1
fabulas effe , futabat. Pelo que fica claro, que o vi '«^.4.
cio dá gula he irremediável ; e como diz Saò Bernar- efiji.6^
úo-i que os comilões, e golofos íó depois de mortos mu-
darão co^umt%'.§lui gulofus effeúns €fty vix aliur^qíiam
morte mores mutabit.
Suppofta a impenitencia final dos goloíos, fegue-fc
oabreviar-lhe Deos a vida, com mortes efpantofas,
e precipitadas i eopeyor he que fubitas , e impro-
viías. Ecomo a tempo, e com beilo modo, o noíTo
fupiemoJuizJESU Ghrifloadmoeftou aos feusDiíci-
pulos , e a nôs todos ! Guardayvos (f faõ fuás palavras)
com grande cuydado , e artençaõ , que naô fejais
colhidos na crápula , e bebedice; que vos virá de
repente a morte a modo de laço; Âttendite vohís ;ne'L^ç^^^
forte graventur corda 'veftra , in crápula . '& ebrícta-
íej é^ fuperveniat in vos repentina dies lUa , tanqtiam
laqueus enim fufervemet. Deyxo a veríaó deíia íen-
tença ; pois ao pé da letra eonfirnia , quanto vamos
dizendo. Efó 'reparo Gòm 'Saò Boaventura na íeme*-
^' Ihan-
11'
D.Bm,
Í.KC.S
apnd
Àianf.
Kum.c
II.
Nnm.
11.33.
124 uix^ifcmfo V*
Ihança ácy laço , com que cahcm).os paffaros ^ quando
famintos bufcaín a comida; que naò podia ícr mais
accommodada, par,a explicar a morte improviía aos
golofos. Compara Chriílo os comilões aos paffaros,
GU avesí porque como eftes ao paílo , por comeri
faõ prefos no laço. pela garganta , e pefcoço , aflim
também p&golofos , pelo vicio da gula , morrem pe-
la garganta: Comparatur avi» namficut avisper coU
'lumlaqueo tenetur ^ fíc gnlofus par collum, & gutur
capíturvíúo guU.^Dcúc modo íuccedeo aos líraeli^
tas , { c reparem nefte íucceíTo ) quando cnfafíiados
domaná no deferto queyxando-íe de Moyíés , com
choros, e alaridos lhe pcdiaô carnes, para comer:
Da nobis carnes ^ ut comedamus. Conhecida a ingrati-
dão, e rebeldia dcfte Povo, que queria naò íó onç-
eeíTario , para píuftcnto, mas o regalo para a gula;
mandau-lhcs Dcos huns bandos de corurnizes taóco-
piofos 5 que pareçiaõ chuveyros , para que fartaíTem a
vontade do feu appetite. Acudirão logo a cilas, co-
mendo , como lobos vorazes ; mas eivando ainda com
aprcfa nos dentes, cahiraô no laço da morte, que os
afogou a todos : Adhuc cernis erant m âentibtís ^ &
eçce furor Domini »cõncitatusin Popuíum , &percu£it
eum plaga magna nimis , vocatufque cli hcus illefe-,
píãcra co/ícnpi/centía, A úm de que aonde cometté-
raó o delicfio da giila,ahi achaíTcm a fepultura da golo-
dice.
Dcftas mortes repentinas , e defies cafligos im-
mediatos depois da culpa, eílá cheyo o fagrado có-
dice; e lendo-o, acharemos , que o furor Divino cay
quafí fempre íobrc os golofos. Morreo àe repcDíc
o noíTo Epulaó. A razaò a ák S. Luca^: Bpulahaítir
qMotiãíè fpkndide. Era comilão, e cada dia emban*
quetcs. tinha convidado EIRcy Baltazar os Magna-
Í6S do Reyno a hutna grandioía cea , e aa mcfma noy-
Do tormento do Go[laY.
125
tefoy morto : Eadem no^e interfe5ítís eft, E^^va-íe^^^r
gloriando aquelle -rico do Evangelho , porque ti- ''^y'
nh-i os celeyros, c as adegas cheasj porém a penas
coníolou-fe , dizendo : Comede , bibe , efulare. Come,
bebe, regâlate,que logo Deos fulminou afatalíen-
tença da morte , que íe executou na mefma noyte:
Stniteihac mãe animam tuamrepetent k te. Tanto he
verdade , que os embebidos na crápula fazem , com
que Deos para com elles fe naõ mova á piedade. E, pa-
ra que os exemplos naô fejaô todos antigos reftrirey
-hum moderno ,que Thomàs Cantipratcnfe, Author
celebre , e fidedigno , aííirma fer acontecido no fcu
tempo. Viviaõ em hum Moíteyro dous Monges,
mais inclinados a comer bonsboccados no Refeyto-
rio, que a rezar devotamente no coro. Cufíumavaõ
cear ambos juntos, em bua mefa aparte, eregajaríc
eom guizados, que lhes vinhaô de fora, com pouca
^dificaçaõ dos mais Religioíos , que fe contentavaô
com a raçâô da Communidade, Hum delles, ao íé-
gundo, ou rerceyro boccado , parece, que íe lhe
atraveífou taõ fortemente na garganta, que virandoí
os olhos, nomefmo inflante efpirou. Levantàraõ-íé
da meia oAbbade, com os mais Religioíos, eípan-
tâdos do fúnebre lueceíío.E mandando vir o eíquife,
acompanharão o cadáver para a Igreja. E que tal
áca ria o eompanheyro Rco, e cúmplice do meíma
delido! ('Coufa incrível , fe naô foííe em material
do vicio da gula , que he irremediável ) tornoufe a
aíTentar fana meia , dizendo. Quem bem cta , me-^
Ihor dorme. E fartando-fe y are naõ poder mais^
afiim repleto perdeo os fentrdos ; a morte foy, ^r-' ^^
rebentar logo como hum bruto : Et enormi ^^'^p^' r^m *
repleíur, qm(i brutum animal exfiravit. Vei iican- ;^^^ 2,^;
do.fe defles dous comiloens , o coe diíFí: o Profeta 12,,
Eiavid, que efiando ainda com a vianda na bocca,
aju-
l I \
iiá V Wfcurfi) V,
^I^^'J7 aiuaavíngaeçâdeDeps cahioíobrcelks : A4hunfcte
mrum ermt in ore ipimrum, & ira D et ajcendit fufer ti-
los. Imanto he verdade , que em todo tempo , lempríe
Deos foy , e íerà fempre para os golofos, c comilões,
Juiz riguroío, e íem piedade.
AdTnira.vçi documento he aquellc ,que <ià Salo-
Ecclef. niaõ , quando diz ; que por muyto corner muytos
57. morrerão : Propter crapulum multi ohiermt, Eúã
fcntcnça hequan comoaqueila deS. Paulo : Síatutum
eftomnibus Hominibus femel mori, Eftá lançado por
Peos o areíio irrevogável, que todos havemos de mor-
rer. Ainda que naõ foíTe de fé , a experiência quotidia-
na nos moííra » que ninguém fica cá j mas todos vaõ,
e morrem. Aílim temos por evidente experiência,
que a crápula matou a muytos de repente. O Em-
perador Alexandre Severo comeo tanto em hum jan-
tar, que dahi a duas horas arrebentou. Se fora feve-
ro comíigo , como o era cjom os outros , naõ arrcbea-
tara. Peyor he a crápula , quando vay junta com a be-
bedice; porque cntaô comíó o achaque do vinho fe
abrevia a vida. Miguel Paleologo > o terccyro Em^
perador do Oriente embcbcdou-fe^ como coflumar
va cm hum banquete. Deytourfe cm hum leyto dou^
rado, como Oioferncs; porém Bafilio , que gover-
navaolmpsrio , vendo, que eftava em hum profun*
do Ict argo,com hum alfange lhe cortou a cabeça. O
Emperador Zeno Ifaui'ico , tendo o meímo^ vicio ási
bebedice, contrahio o achaque de gota coral. E^
como cflc>, quando eílava bêbado , defcompunha
muytas vezes a Emperatriz Ariadna fua mulher, eft m-
do hum dia á meia , lhe dobrou o achaque da goia co-
ral com o do vinho. No mefmo tempo aEmperatrizj
fua mulher fez publicar, que o, Emperador. era mor-
to , c o mandou logo enterrar ; e também guardar por
ÍCíJtipclaa a ícpulturp, DclpcrtouJe 2cno já aliviado
...-::.;; de
põ iorfHento áè Golfar. 3 ^f
de iamboé oi' achaques , c por muyto que GiamaíTe,
e bradaíTe, para que lhe levantaffein a pedrada íe-
pultura ,com dizer, que era o Empcrador Zeno, c
Gue faria muytas mercês ; lhe rcfpondéraô , que já
outra peíToa governava por elle. Naô importa ^re:*
píicou o mif travei Zeno) levem-n:e ao menos a hum
Convento , para me poder confeíTar , e làmeficarey
fazendo penitencia dos meus grandes peccados» Mas
íem fruyto^e fem compayxaõfoy o miícravel ouvi-
do > e aílim morreo rayvofo, comcndo-fe pela fome
os dedos , e as mãos. He tambcm de reparar , o que
vay profeguindo Salomão: Inmultis ejcis infirmitas.
Que na variedade dos comeres,e noluperfluo dosgui-
zados ,fempre fe geraô doenças. Falia genérico fem
individuar as efpeciesj porque, parece , que inclue
a todas. Pelo que he certo aquelle adagio j quem
come muyto , come pouco. E , quem come pouco,
come muytó > porque tem muytos mais annos devi-
da , para comer, He também ditado muy antigoj
que na mefa , ninguém envelhece : Inmenfa nemo cm-
finefeit. Será aííim pelo fobrio, é moderudo comer,
€ beber j mas muyto mais íe verifica , dos que comem,
eu bebem mais do neccíTariDj^^ porque cíles, ou mor-
rem moços, ou antes do tempo; eaílim nunca che-
gaó a envelhecer. A fazâô he de Arifíotelcs; por-
que ; Omne figtns , dgmdo refaútur, A íiim vemos „ ,
que a lima , limando o ferro , fe confome \ a faca, cor- ^^ "**
tando^ perde o fío. Dó mcfmo modo, o calor vi-
talcozendo o alimento no eíiomago , fe he muyto , e
dediverfas igoarias , enfraquece , e fe diminuc; c»
, affim diminuído , jâ naô tem força , para ajudar a
digefíaõ í c, fuffocnndo-íe fem pre mais pela copi^
exorbitante dos comeres , abandona o ofíicio viraf,
efâlrnndvefie, de todo falta também a vkh : Inmul-^'''^^*'
Jâ
\ I
if
lii
i t
Petr.
Dam.l
Pptlm.
104.
S.Ânt.
JBelLjp.
%%% t)ifcurfa V.
Já he tempo de darmos algum remédio J para
aqiielies goloíos , que naõ íâõ totalmente incorre-
giveis, e precitos. Depois que o Efpirito Santo nos
advertio,que muytos pelo peccâdo da gula íc pre-
cipitarão na morte : Propter crãpulam multiokerunt,
Proferio immcdiatamente aíenteoçade larga, e dila-
tada vida, a quem foíTe parco , e abfiinente : Eí qtu
abliinens eft^adjiciet vttam Efta verdade he taò pa-
tente , que reparaõ os Santos Padres, que deíde o prin-
cipio do Mundo até o diluvio , quefoy na idade d^
Noè de féis centos, e tresannos, vivicJÕ os homens
Qytoçentos , e novecentos annos , fem nunca adoece-
rem ; e Saõ Pedro Damiaô dà a razão com outros muy-
tos i porque, dizem, não bebiaó vinho, nem comiaô
carnes , contentando-íe das ervas , e fruytas , que
produzia a terra : Afaculi origtm munâus , tifque ad
fexcmufmum tertium Noè amum^prorfus vinum igno-
rajje çognojcitiir y ohiijfe qmdem^ fed nullus agrctnjfe.
Eiíto confirma o Profeta David , quando diire tal-
landodoPovoeícolhido,que naô havia em todas as
tribiis hum fó enfermo : Non erat in tribubus eorum
injirmus. Mas naõ he íó , antes do diluvio , que a
parfimonia livrava das doenças , e prolongava os dies
da vida. Ds Galeno , Príncipe da Medicina , eícrevc
S. Antonino Arcebifpo de Florença, que viveo cen-
to e vinte annos, e que nunca tivçta doenças ; por-
que fempre aljominoti a variedade dos comeres , e
íempre fe levantou da meia com fome. E o Bel-
lovaeeníecitahui repoflados Brâmanes a Alexandre
Magno, defejofo defabcr, como chega vaô todos a
idade decrépita , e paíTavaõ de nonagenarios , e cen-
tenários, e com forças, c íem achaques. Reícreve-
raõ lhe , que a fua meia era muy to parca , e elles co-
miaô muy to pouco, e por iíTo viviao muyto , e íem-
brccora faudejC aunca neccífitavaõ de purgas, ou
^ ían-
Do tõrmémú dõ Go/lar. ^ 129
faogrias , ou gucios remédios da Mcdicma ; por-
que nenhum deílcs gravava o eftamago com fuperfluir
dades : Apud ms íllicita eft veníris extenjio, proinde Bellov)
fumus Jine agritudine. Diu vivimus^ & quandm "^^'^f- 5*
'vinrns^famjumus ; medicinas mllas facimus^ quía na-^^J^' '-
tnram nojiram nullís fuperjltútatibus gravamus, E íc
a parfimonia tanto obra nos Gentios j para eíknder
a Vida temporal j que naô obrará o jejum entre os
Catholicos,para íervir a Deos , e ganliar a vida eternal
Santiago o Menor , quando Herodes Agripa o man-
dou martyrizar, tinha noventa e leis annos de ida-
de j e qucmfabe, quantos viviria mais, no feu pet-
pctuo jejum , e penitencia ! Era taõ Santo , que íó cl-
ie entre os Apofíolos entrava no SanBa SanHonim.
S. Hilariaõ foy bem moço para o deíerto , aonde vi-
veo oytenta annos , com aquella aufteridade , que
fe lê na f ua vida. Santo António Abbade viveo cento c
vinte ^ e deites , como eícrevc Santo Athanafio , cento
é três , em hum perpetuo jejum , comendo íó ao pôr
do Sol humas ervas ícm fal. Saó Paulo primeyro Eríiú-
taô viveo cento e treze annos , íubminiftrando-ihe
o veftido , e o luílento huma palmeyra, com húa fonte
de agoa , que eftava perto. Também Saõ Romualdo
viveo cento e vinte annos, e foy Fundador dos Ca-
niaIdu!enfes,com húa vida aufteriíTima. E Saò Fran-
tífco de Paula deyxou por preceyto indiípenfavel aos
íeus Religiofos , de nunca comer carne , nem ovos
nem laticinios ; c guardando com todo rigor elie,
c os íeus Religiofos cflc preceyto, conforme viveo
noventa e hum annQs ; também os feus Alumnos,
íe muytos naõ paíCaõ , ou dhegaó a efta idade , naô
vivem porém menos de muytos, que por qualquer
achaque , ou verdadeyro , ou imaginado , tomaõ pè
Bà Quarcíma , para ícrcm diípenfados , naò fó dç
Comer ovgS| e laticínios, mas também carncj por*^
!W I.
6 Exmn
: ' CBlfcurfo VI.
^ue dçfíe tiiodo na íua ientença podem almoçar ,€ ecal
á nóyr^i pois já naô faõ obrigados ao jejum. Nem goi»
todas eílas CS utelas,e pre=vençõGs íe vive mais. O^
jiim moderado , c o fcr abftinente , he ccrtiíiifflo , e in-
fjiiiveí , que prolonga a vida :^i ahpnms efi^aâm
mtmitanky
i : Arrematamos o pri raej^ro ponto com provar, que
^ goloíos. fáõ íubditos, c frcguezes do Demónio j.
que exercita nelles oofficio de Pároco , ede Senhor.
Agora arrèraatarej^ eíle íegundo „ com moíii^ar, què
os abítjnentes predominaô, c íe fazem ícnhorcs dos
Demónios, que tremem dellcsfc os feusicjuns íaõo
antidoto>ÍTrefragavel,que cora , e deílroc toda a pe*
fíc do vicio da guia, Dis Santo Ambroíiojfcr proprie^
dade natural^ que^íe a ierpents goffar da fâliva dá
qualquer peíToa j que efíà em jeium, logo fmmedia^
tamente morre. £ com i£io quiz Decs. mcinífeílíarj;
quam mara.vilhf>íâ íeja a virtude , e força do jejum};
e que íe íayba , que ., íe o homem efíando cm jejum,
mata com a fua íaliva os Dragões , e íerpentcs da ter-
ra; muyto mais, jejuando por amrjr íeu , poílrarà,
e vencerá os Dragões , cíerpeoces do Inferno: Jejii-^
m hominii^ (ptitus ^ fi firpns gnfhivtrit , moritnr. Vi-
dCf quanta-' v^s jejmnjit , ut & Jputofm homo ter^
renum fermentem inttrficmt^ quanto magu pritualtmM
Eícreve S.Pedro Damiaô „ que a ferpentc , envelhcs»
cendo , eM quarenta dias fem eomev ,, nem bebei*
çouía algua; e afilm debel irando- fe ate emniagreccr
de qualidade, que a pellc fica como defapegada ío-
bre a carne ,. bufca entaõ a abertura de duas pedras
contíguas, ou algum Eui-aeo aperudo na terra dura/
c entrando com violência , iargs , deípiíido-fe da an*
tiga pellei , a velhice ; e fuprin^do a natureza com ou.-
tra nova , retorna ao priíiino vigor dafua mocidada
Oh. quantos lEpulôcs , envelhecidos na crápula íe
Dâ formhSddúoPâr. f } i
tIMára 5 totalmente , perdendo calor do "^eípiricoí
GreiTiedio contra ellc grande mal hc imitar, como
iíoscníina noíTo Senhor |oíu Chriftono íeuSvange. ^^'f^*
lho , a prudcncia das íerpences : EJlote prudentes Jicut ^^'J^ll
ferj^ens. Vã^ãv pela porta etlreyca do jejuín; Intra- ^^^p ^ j
te per angíiftam poriam. Largando todo o regalo ,e
deipindo íc da pelie de lobo voraz ; de homem ve-
jJho, veftirfe de homem novo ; Inàuite novum homi^ Efh.c,^
nem, Porém ifio íó fe aícança ( como bem adv.rtcSaò
Pedro Damião j com o jejum. Kepare o pio leytor nas
fuás palavras ; Fís adfèrpentú exemplumnúvttsfieri]& S.Petr^
languentem ãnim£ feneButem , impubtjcentis adolefcen- ^<^^-^'
tia refiorere decorem ijejuna 4;um ferpentc, • * •^^* ' ^
. Defenganem-íe oá peccadorcíi gol >fos , que íd
naõ imitarem o jejum da ferpente neiU vida, experi*
riientaráõ huma fome canina, c rayvoía na outra jO
cm lugar das delicias dos bons comeres^ e iguarias^
a íerpente infernal lhes dará a tragar fel de Dragões, Deut,\
t venenos de viboras, c baííiifcos : Fel Vracomim,vh cap.i^i,
num eorum venenum afpidum. E porque a fede fera fe-
melhanre àiqucíla do rico ayarento j riaô pedindo
já licor feícdo, mas huma gota de agoa, pára alivio
daíua garganta abrazada com tanto fogoi o fcu re*
frigcrio fera, ^tomarem os Demónios chumbo desfey-
to, e metal derretido , t abrindo-lhcs á força com
ganchos de ferro afogueado a bocca, Lho lançarão den-
tro das goelas 5 e lho faraó tragar, para encher, e
fartar aquelle ventre, que nèíie Mundo foy o feu Dcos.
§luorumDms venter eíl. Óh gula! Oh inferno! Oh
eternidade! Hum enfermo, para íc livrar de huma
febre, que tem algum gerigo, faz dietas continua-
das , e naô fe queyxa ví^u^^ enfraquecem ; tem fe-
des iníofriveis , e naõ íó lhe prohibem o vinho , mas
também lhe negaõ a agoa; e tem paciência; daõ-ihe
bebidas amargofiíEmas , que a natureza mefina abor-
■'Vi^-^j. I 2 reccj
^'^ I
w
)\m >
tp Difcur/oFL
tcccy naô repugna j íe faz violência , obedece j nada
diz , tudo toma , tudo íofrc. E porque tanta rcíigna-
çaô , € obediência a hum Medico taô rigurofo , que tal
vez, cnganando-fe ,. ordenará o eontrario áíaudc?
Naõ he por outro fim ,.q.ue por fe ver livre da febre,
que lhe ameaça a morte. Oh cegucyra dos homens! Oh
engano ! E naô faráò os comilões , e bebedores outro
tanto i para fe verem livi^es da febre do vicio da gula,
que o& conduz ahuma morte improviía, preludio da
morte eterna fOb vicio da gula! Oh inferno.' Oh eter-
nidade ! Se eftas verdades naô movem os Epulôes^e
goloíos ahuma refoluçaó firme de huma total emea-
da ; íerá verdadeyro onoíTo affumpto , que o vicio da
gula naõ tem rcmq^io; e; que os comilões ,e bebé^do-
res , íaõ freguczes dos Demónios, que já lhes tem pre*
parado com o Epulaõ a {cpujtura no Inferno :
tm eftininftrmk
DIS'
r
TOl^MENTODO TACTO
Discurso vi.
f - ■ ■ ■ .
Do Tormento do Ta6to.
'Pr^cepit mb is Deus^ ne taugeremus illud*
Gen. c. 3.3.
Oncordaô todos os Santos Pa-
dres , que entre codos os íenti-
dos I o do taíflo he o mais peiv
niciofo, ecmcoiifeqiiecia o de
mayor perigo 5 pois mais tacilf
mente faz prevaricar hua Ah
ma,e com qualquer pequena
detença a precipita no-Inferno,
Saõ os outros íentiJos,como as
janelías de aigúa fortaleza,que íe naõ forem bem vigia-
das, c com as íentitieilas alerta^ entra o inimigo, faque-
ando , e denredando todas as virtudes , ate dar a morte
à Alma : Morsintrat per feneftras noftras. Porém o ta- 1'^^^- ,
iflojhecomohu Capitão General, qucdàlogooultimo^^'* ^
aíTalto à porta mayor da fortaleza^ fazendo-fc com
império íenhor delia. Hebelliííimo o reparo de Saõ Ba-
íilio, diícorrendo fobre o vicio do taiflo , e diz , que
çs outros fcntidos lhe fervem como os cães da caça,
para lhes entregarem a prefa. Os olhos avem , ea
de fcobrç m ) os ouvidos a fentcm } o olfa(flo acheyra^
aimagiaaçaõ adà a goftar , efaz appeicccrj e fínal-
,:, ; I y ^' menj
l-líU
S.Baftl,
lib da
Dijcurfo VI.
mcataj ^í?r£cc, que to4os ellcs no excrcítat. o ím
oííicía Yaõ eiti buícadeJJa. Poram o nicímo tado he
o próprio caçador, que a penas viíia , ou deícubcr-
ta a caça, com íó rocala/
a agarra i
« - ' » -♦*&-»*«»€ quanto mais
brandamente a vay apalpando , com tanto mayor era-
cidadela delpedaça , e a mata. 4^or iRo o meímô
Santo Doutor cxhorta a todos, a cftar com grande cail.
tela , por guardarfe defte íentido, e fu^ir delle
como da occaíiaô próxima, cliamando-o íorrateyrd
traydor, que traz todos apozde fí, e obriga coma
^ca>randura tirana os mais fcntidos à fua obediência:
ifclumj, inqmt ) ntommumfènfmmf^rmciommnm,
O-Javipmehkndmtem, quàm maxmâ eurâíervabis.
Eltehe oraícunho da matéria, que avemos detratar
n^íte Icxto difcurfo do tormeíito do tado^ é coma
cfla matem he muyto ampla, é impor tantiííima, pa^
laaTioíTafalvaçaõjprocurareyde a reduzir cm com-
pendio, dividmdo-a por mayor clareza em três úni-
cos pontos. Nó primtyro veremos, como cfle vicio
dotaí^ohe aquelie , que no género humano faz ma-
yor cflrago nas Almas. No fegundo, moararemos
ounico, e mais íeguro remédio, para emenda rfe.
provado com asfagradas letras, eaprovack)s dos San-
tos iadres. No terceyro finalmente^ com as razSes»
ccomos exemplos feíará patente o defensa no, para
quemeípera emendarfc na hora da morte, que ofeii
arrependimento íerá falío ,eaíua penitencia £nPÍda.
cnaolhe ferviráô de ourra coufa ^quedclbc accref-
centar mayor pena,e tormento no Inferno.
S: Agoílinho faz huma cngenhofa comparação da
taéto, que he o infímo de todos os?ientidõS , com
a terra , que , entre os quatro elementos , he tamben»
^ultimo, c menos nobre j porque conforme o ar, o
fogf),ea agoa,faõ elementos mais poros , c de ma-
y or perfeyçaõ ^ com tudo obedecem , c tmm á ter.
"■ ra.
Dotôfffienlo dêJaBo, ijy
ra, O ar com a fazer habitável; o fogo com a purificarj
c-aagoacom acender fecunda. Aífim os outros fen-
tidos, ainda que mais apurados, por íerem de con-
dição mais exccliente, fervem, e obsdecem aos go-
ííos , e delicias do taflo. Porém eík he hum íenhor
iníquo, e naturalmente tyrânoo, quequsndofemoí-
tiamaisbrando,entaõ he mais crucU porque o pec-
cado, que começa ater aíua primeyra entrada pe-
las janellas dos outros fentidos , em chegando ao ea-
(fto., cite lhe pocm logo de par em par as portas , c
depois de entrado , elle he o Algoz , que quanto
m^ais fe detém apalpando, mais dcpreíTa lhe dá o ul-
timo complemento , e confequentemcntc a morte
eterna. Bem fe eípeciíica ifto de hum Poeta facro :
Poft vi/um rifum , poft taãum 'uemt ad aHum. As
inais das vezes o ver , eo ouvir paíTa por hum íimples
CQmprimcnto com hum lorrifo agradável ; mortra a
peíToa hum génio obrigante , hum nstural dócil, e
Capaz de toda a converfaçaõ : Pofi vifum , rifum.
Porem , fe o ver , e o rir , paíTa ao tocar , infalli vcl-
mentcpela grande atradiva defte íentido , e pela oc-
caíiaò próxima , e proximifiima , paífará o t^do ao
acflo peccaminofo i e fe naõ com a obra, por falta
de tempo, ou do lugar, íerá com o con fen ío : Pofi
taãum vmit aâãctum. E deíia verdade taó certa , co-
mo por noíTa o:iikria tantas vezes experimentada , fe
fegue logo a prova evidente tirada das palavras do
noíTo thema: Pracepií nobís Deus ^ m tãngeremusn,
illuâ.
■■ Envcjofo o Demónio da felicidade do^ánoíTos pri-
meyros pays , fe refolveo tentar a Eva j para que
eomelTe cio pomo prohibido , com dizerlhe : Cur
fracepit vohú Deus ^ ut non cemenàeretis ex omm hgm
Paraâifi? Porque vos tem Deos prohibido, quenaô
comais de toda a fruta , que produz o Paraiío ? Ref-
1 4, pon-^
Oí?7.<r.5
2.. 17.
Cen. €.
f^a^^. m comemos , e nos fuílemmoá de
todas .• mfruBuhgnomm , ^«^ /?,«í mParadtfo vefl
cmur. Porem íó do pamJdc/hu,na arvore ,Í
Ocos reíer vou, nao quer, que comamos delie, nem
qiic o troquemos : Tf^cepit mhéi Deus , me comeâere^
fnus. & m tangmmm tlkd. Mas, como podia Eva-
inventar , e dizer hua faifídade tam craíFa , e patcntej
como he^odizer, que Deos lhe prohibira de tocar a
pomo? Ne tangeremusiUud. Ella não ouvio o prc-
ceytoi poi-que quando. Dcos ofez a Adaõ, Eva ain-
da naoeíiava creada no Mundo. Nem Adaô lho po.:
dia ter dito^^ porque quando Deosíhe intimou o prc,
ceyto,probibio!beí6mentc ocomer do pomo, fob*
pena de morte, enaõo tocaio: De Iigno atitem fcttn..
tí^ bom- & mdt necomedas.m ^mtmmi diecme*
áetu^mertemoriem. Sendo 1^0 aífim^comolo^ofâí.:
iouEvafaiío ao Demomoi^inveDCândadefua cabeça
^ue o prcceyío divino era de naõ comer , e de naô to!
çar o pomo : Ne tangeremus tlluà. Ah que naõfov
invenção, nem faifídade , nem menos engana j foy-
bemfecautela neccíraria,.para fugir o perigo próxi-
mo i e íoF huma prevenção coníecutiva , conhecendo.
muybem),comotínhafcierí€Ía infuía, que o mefmo
era tocaT o pomo, que comelo: Pofl tadhmvemtai
&^um:. E qimndo Dcos prohibe o. peccar , prohibc
lamoem rodo o perigo evidente, e toda a difpoíirao,
proxm^ , dí quai procede iiifòlivelmentc o pcccad<í>.
E poriíio faliou Eva , como prudente , e acauteiada,
quando diíTc : Fracepn mhisDens, ne tm^erenm iU
Lud. Prouvera a Deos, que cal cautela durara ; que
nao padeceríamos agora tantas mifcrias , e tentacoens,
neos tantos cahiriam nellas. Mas ptoíigamos o^ mcí^
mo ¥exto , e tocaremos com a maô a díffcrença , que
vay entre © fcntido do tado, e os outros ícntidos.
i^pois ^ue o Demónio reípondco a.Eva, guc, co-
-^
Do tormento àoTa&o. H7
mtúào á6 pomo , naõ marreriaõ , tnas feriaô como
Deofes: Nequaquam moritmini , Çtà erituficut Viu
ÇoníidcrouEva,queopomohavia de ícr mais íabc- Gmef-
roío, c agradável ao pailadar .• Viáit tgitur mulier, ca^-l-^
quodhmum ejfeí Ugnum aâ vefcendum. Eis^aqiii o fcn-
tido do goíUr, c com tudo mortificou- íe, e naô p
comeo. Depois vio , que era fermofiíTimo : P«/-
ehrum oculis. Eis-aqui o íentido da vifta. Venceo-fe
cteve paciência J mas logo que dasjancllas dos olhos
appareceo a áclcytã^ãò : JJpeãu que deleÕiabile. Ota-
<lo,como mais atrevido, c violento , arrombou as
portas todas , e pegou no pomo , e o tirou da arvo-
re, c no meímo inftante o comeo , c engulio, tra-
gando também opeecado, que hea morte da Alma;
TuUtquedefrucíu dlius , & comedit. Oh vicio de ta-
c^o, quanto es atradivo, e poderoío / Como es fey-
ticeyro entre os mais fentidos! Naò contente Eva de
ter quebrado opreceyto , foy logo pretentar o pomo
aoííiarido : TíiUtqm viro ftia. Dcfgraçado íucccíTof
A penas Adam pegou nelic , que inficionado daquel- ^
le contado, e eíquecendo íe deDcos, do preceyto,
de íi, edc toda a fua pofieridade ; o mefmo foy re-
ceber o pomo , e tocaio , que correio; Veditque.
viro fm , & comedit. Perdendo a fí , e deyxando em
total ruína , c perdição o género humano : Fofi iaSítim
venit ad aHum. E f e o laÔo de hua fruyta eterogcnea,,
que naô teve outra vida , que a vegetavei , c fem al-
guma corrcípondeneia teve tal atraíliva „ em fuíeitar
o appetite do gofto em Adam , e Eva , qne baOcLv
para os fazer prevaricar no prcceytov ainda que vi-
veíTemno efíado da innocencia ,c livres áo fomes fec-
íãtL Que íerá logo do tadlo psrigoío do corpo íui-
niano , qu-e a'èm de ter o íeníiiívo, qje allucin.?,,
temofer homogéneo, que logo íe fcz congeneo re-
ciproco 5;C conreípondenitc Com tal viveza deafíedo,^,
/v ■ que
13^ Difmrfo Vh
que parece hum fcytíço ? Oh trifte , e maldito vicio
do tado , como es atrevido , c como es cego ! Atre-
vido, porque cc atreves a todo o género de peffoas,
e em todas as partes do corpo ; cego , porque naõ
fazes difíinçaò , nem de lugar , nem de idade , nem de
grão, ncmdc íexo, nem de eftadoj e do teu atrc-^
vimento, e cegueyra namvés ,nem reparas as coníe-
quencias, que nafcem de mil enormidades, eabfur-
dos. Do teu mao habito , e inclinação de tocar , c
apalpar , íeguc-íe , que , fe o tado for com peíToa dcf-
obrigada, fera fornicação } fe o tadto for com virgem,
paíTará iogo a eftupro J íe com parenta , paíTarà ao
Inceílo ; fe com cazada , naícerá o Adultério j fc
com Peífoa de voto, hum facrilegio. Nem fe con-
tentará efte torpe vicio do tado, de íe ter feyto como
hum infame Proteo , tomando todas as formas, e re-
prcfentandotodâs as figuras* Que, íenaô for detido
comotemor d; Deos, ou refreado com o lume da
razaô , chegará com a fua cegueyra , a ter a maldição,
com que o am.eaça Deos na Sagrada Efcrítura .* P<í/-
É'.2S.2Q^^^ /« meridie , (icut falpâve folet c^ecus in tenehrú.
C^uer dizer, que , eftando hum Chriftaõ com a luz do
meyodiadâfé Catholica, efte enorme vicio de tocar,
e apalpar , o fará efquecer do feu racional , e humano,
obrando peyor , que bruto contra a mefma natureza,
atè íe transformar com nefandas metamorfoíes em
outras eípecias, que depois acabaô em brutalidades,
e catafirofcs , mais dignas de ferem queymadas com
o fogo, qucinercem, anticipadonefla vida, que def-
critas com a pena. Tanto pôde a torpe , e cega in-
dinaçaô ao vicio do tacSloiPf^/? taBttm 'venit adaBum,
Por ifto diíTe bem Eva : Pracepit nobis Deusj ne tange-
rennis illud.
Querendo Deos cafligar ElRey Joachim , e aos
fcus Povos de Judàj diz o Sagrado Texto, que lhes
mau-
Do tôMefifo do Taão. J}f
mandou varias cafías de Jadroeníinhos de pátria , c
cofíumcs diverfos j huns Caldeos $ outros da Siria;
cftes Moabitas ? aquelles defccndentcs de Airon:
Mijif Dominusin terra Jnda latranculos CeJdaoriím, Lib^",
éf latrunculos Siria, latrunculos Moab , & latrun- ^'&'^'
Cfílos Jilionim Amon* Mas vendo , que cftes naô ba- *4"
flavaò , para os reduzir à íua obediência , mandou
a Nabucodonoíor , Rey de Babylonia , que i ouboU|
efsqueoutoda ajiidea, e levou coinfígo captivos a
ElReyJoachim,ea todos os Príncipes de Judà : Aâ
extremum mifit Nabncodonofor Regem Babilotua , qtti
depradattis eft terram illam , qm &Joachim 5 & Frtn»
cipes captivitati fuhjecit. Deík mcíVno modo faz o
Demónio, para vencer , c conquiíiar a fermolâ Ci*
dade de Jeruíalcm , que lie a noíTa Alma. Serve-fc
em primeyro lugar dos quatro ladroenfinhos , que
cíiaô em diverfas moradas , e fervem a differen-
tes Qfíicios , e uíosj efles íaõ os quatro primcyros
íentidosj mas íe cftes, ou com a pouca cautela no
ver, ou com a demíifiada curioíidade no ouvir, ou
com o depravado apetite do goftar , naô abrem ío-^
gooa brecha, por onde poíTa entrar o peccado mortal,
c roubar, eíaquear a Alma, manda logo aofcntido
do tado , que como tyranno , e atrevido , faquea logo
todas as virtudes , entra predominante no forte áo
coração , e fc faz íenhor dclle ; cega o entendimen-
to, que he como Rey, defenfordas leys da razaô}
apriíiona , e faz eícra va a vontade , que llie obedece
cm tudo, o que apetece, ecaptiva os mais fcntidos,
que lhes fervem como de vis fenfais para os tor-
ces tocamentos do íeu infame gofto. O peyot he , quc
àinda fem a guia doscbtros íentidos , o todo fó por
íi, com o uníco gofto de tocar, e apalpar, vive,
teynà, e triunfa fcmpre mais cfeandaíofo em todo
o género de torpezas. Tenho conhecido ncfte Bra"-^
U ,1
H l
6enef.
I :ilÍ^-
f4Ci ^^DifiurfoVt*
ííl. hum cego dcnaícimento, taô immerfo no infame
lodo da luxuria , que era o efcandalo dos moradores
daqtíeila paragem , aonde elle habitava. Como era
ccgo,n3Ò podia ufar daqucllas advertências, e cau-
telas, de qus uíaô , os que tem vifta; mas era-Ihç
forçofoferviríe das noticias, de quem lhe referia de
bacca as qualidades das peffoas , que deíejava i q
como era rico, , valia-fe com o dlnhcyro , de quem
as foíTe bufcar a horas, que elle , fiando-fe, cuy-^
dava foíTem nod:íJirnas, ou cfcuras} epodiaô íer pa-
tentes , e de meyo díâ. Eftava cu fazendo MiíTaô na-
queile deftrido, e achey , que o cícandalo era puj
blico ; e que fenaô fallava em outra couía , íenap
do engano, e miíeria defte pobre cego. Naò falta-
rão zcloíos , que me introduzirão a faliar com elle^
para o difpor a ganhar o jubileo da MiíTaô , e porfe
bemcomDeos. Odifcurío começou com razões hu-
manas > para depois acabar com as verdades eternas
Perguntey-lhecu , fendo verdadeyro aquellc noíTc^
adagio Portugucz: o que os olhos naõ vem , o coração
naõ defeja ; como podia elle deíejar, e cubicar com
tantas veras, objedlos, que nunca vira ? Mais; por.
quehecommijm odit^o, que a vii^a faz fé; c quç
fé podia ellti dir àz hu i pcíToa , que nunca vio , nem a
pode ver f Refpondeo logo o cego. Oh quanto fe en-
gana. Padre, oh quanto fe engana! A mim íupre q
tadlí para os mais fentidos. Efte com o apalpar me
faz conhecer as idades, e fendo correlativo, e reci-
proco, conheço o génio , e aíFeyçaô das peffoas , mais
que das mefmas palavras. Defte mododiiíe cu te-
reis vôs mm conhecimento dequalq u cr objcdo ,jdo
que teve o cego Ifaac dos feus filhos, que , com naô fer
cego k mUvltaU , conhíceo a voz fer de Jacobj
porque Jacob na5 a íoube contrafazer.? Foiç quidem
Jacob éfi. Mas fe Ciiganou ao Uão , porque tocan-
àOy
DotúrníeniodoTãfte. ^ 141
dOyC apalpando as mãos, parecersõ-Ihe as mãos
de Efaú ; Sedmams , mantis fmt Efiu. Eu naõ íey jíe
teve emenda; íey , que achcy nelic bem pouca dif-
poíiçaõ ,e que em menos de hum snno morreo im-
provifamentc , c fem eonfiffaò , c Sacramentos. Oh
meu Deos !: Que importa , que hum tenha a voz de
Jacob, voz do Ceo , que te falia ao coração , para
^ue deyxes eftes toques ; voz da confeieneia , que te
remorde j voz do Pregador , que te chama à peniten-
cia; voz finalmente deík livro , que efiàs lendo, que
te eníina a fugir o perigo , para íalyar a tua Alma!
Mas que importa , que a voz íeja de' hum Predefíina-
do como Jacob , fe tu queres ter , e confcrvar as mãos
de Eíau j mãos coflumadas a tocamentos torpes r mãos
precitas-, que em tocando pcceaô, em apalpando fa-
zem a outros pcccar ; mãos de Inferno, e peyoies , que
o Inferno ! Fox quidem ■, vox Jacob ,fedmanus , mams
funt Efau^
Jà he tempo que demos algum remédio , P^*s-2un3
ra livrarmonos de hum vicio tam perniciofo , co- ^^ p^,
mahe o dotado. Eu naô acho outro mais profícuo, to.
nem maisfeguro y que aquelle ,que nos dà o Eípiri^
to Santo jquando noscxhorta a fugir dos peccados co-
mo da preícnça de híáa cobra , ou íerpente : iv//, ff^^J^ E^cl^r
0 facie cohbri fuge pccata. Mas porque naô diz Ocap,%'ii
Efpirito Santo, que fujamos dos peccados , como da 2.
preíença de hum Leaò Í/^n> Leonú.Ou de qualquer
©utra fera cruel, que acomete , morde, c devora?
Porque as outras feras- por viciofas , c cruéis , que;
fcjaô, naô tem peçonha i c aílim , quando mordem>
em hum braço , ou tragam huma maô , pôde ainda O'
homem viver fem algum dcíles membros , ficaedo to-
do o reflante do corpO'faô , e livre , como vemos cada.
dia i porém a cobra,, como he deíl peçcnhenca , mor-
dendo a maõ^ ou; hum pà,.,ou í^inda picada íó a.
■í I
í
1142, DifiuvJoVL ■'
CKtrcmi(fe33 de hum dedo , baila para caufar a mojí-
te ; porque diíFundmdo-íe o ícu veneno nas veas , c
correndo com a circulação do íangue todos es mcrrí-
bros , em chegando ao coração, fem mais remédio , he
neccCario morrer. Toda erta doutrina fcgue , e con-
£rraa o grande S. Baíiiio , comparando o perigoío kn-
tido do taíflo noGorpo humano á venenoía mordedií-
ra de huma cobra, dizendo aíTim : Non altter fiobú hum
fenfum mintme cohibentibus evemtêy qtfàmji caudam
Jerpentps tangeremus. Da mcfiiía maneyra íuccederà a
nôs,fe formos pouco acautelados^ em refrear ofcn"
tido do tado , que íuccedc àquelles , que com pouca
adí^ertcncia tocaó , ou manejaòalgua cobra, ou fer^
pcntCw Eííi , logo que fcntc tocarfe no íeu corpo,
fc rcvifa, c morde com taímaKgnidade, aquém a
toCou ,que na mefma mordedura deyxa o veneno, c
Ihedáa morte. Aílim notadto.nao ncceírarío no cor-
po humano he taô peftilentc, que logo move o fari^
gue, altera os cfpifitos, ediffunde eO:è féu contagio
cm todíís os outros^ membros \ atè que, cegando-fé
oenténdimento , do fèníó paffaao cdnfenío ,e dà à
Atmaamorte^ferhâ: Ita tâãus minus árcunffêBtis
%hb\ f<>^^*^ tangente mfustnft-eonvmit t & 4d pavum
^yirajonfènfumtrahit. ^ . ^
, * Nem faltaõ exemplos na Sagrada; Ef cri tora , que
r provaô , e confírmaõ eíla doutrina taô' recomendada
dosSíintos Padres. Quando aqueíla fcnhora do Egyp-
to , mulher de Putifar , convidou ao cafto Mance-
bo Jofcph ,quGeraícu cfcraVo, para Violar o leyto
conjugal do feu marido } fcckuíou eíle com moftrar
horror a hum crime , que era de alta trayçaô contra
íeu Amo, e Senhor. Mas quando vio, que às paia*
vras brandas, aos mimos , e carinhos , ajuntou o
trido , deu-íeentaõlogo por perdido , e aífim buícqu
o ultimo , c único remédio , que era o fugir 5 pelo
que
D Ba^
Do tormento ãbTúâo. :j4J
que logo deu hum arranco , e fugio-lhc ^ dfyxan-
do-lhcacapanasmâos. Naô ha duvida., que Jofeph
obrou bem i masfc poz em manifcfto perigo de perder
afua reputação, e também a vida, com deyxar a ca-
pa , que , poíla cni juizo , fazia papei de corpo do de-
íiélo, e fervia de prova quaíi concludente do negro
attentado ,. contra íua Senhora , e íuccedeo aíHm;
porque a mulher vendo-fe como afrontada , c def-
prezada , temendo y que Jofeph falIaíTe , o accufou
eom grandes queyxas ao marido , o qual demaíiada-
mente crédulo „ vendo a capa do íervo fobre o ícu
kyto, femmais interrogação, ou proccíTo , naõ lhe
dando a ira mais lugar,, o mandou meter no fundo de
hum cárcere, fem nunca mais lembrarfe delle, co-^^^^f-^
tno ícnaôíoíTeno Mundo: OJiendit palihtm marito,^^^^^'
& att : Ingreffiis eji ad me fervas heâr^tis , nt illnde- *
retmihi, Cnmque audijfet me clamore , rel/qtiit pallium,
quõd tembéim^ & fugitjoras. His audttU •^DomimiS',
& nirniitm credulus verbú çonjvgú^ iratnsefi valdu
traditquejôlefh in car cerem. Mas como he poíTivel,
quejoíeph, lendo tam prudente, naõ previíTc a fua
total ruina com deyxar a eapa na maõ da fua Senho-
ra, podendo-lha arrancar por força ,. fendo elk mo-
ço valente 3,6 na flor da idade ,e depois fugir com
eila ? Bem prévio Jofeph o perigo , e o mal , que
haviqde virão íeu corpo com deyxar a fua capa nas
mãos de hua mulher laíciva; mas fez reílexaô,. que
muyto mayor perigo ,- e muyto peyor ruina para a íua
Almaícria o fícarfe elle com a capa, jà inficionada
€om o taâo daquella mu-Iher Quiz „ como comcn-
taô os Santos Padres fobre cíie Texto., fugir naõ fó
daoccaííiõ próxima, mas rarnbem da remota , e de
toda a lembrança delia.. Sabia, quev quando nos lem-
bramos de algum eommodo , que tivemos , para fatis-
íazer.aodoceenciínto do noífo íeiííual appctite , efta
'■■^ km"
ii.ij
;:
144 Difcmfo VI
lembrança lifoDJeyra entra com doçura innocente ar
^níamento, e depois íeiníinúa na imaginação , re-
prefentando-íhe vivamente ofucccíTo paíTâdo, e no
mefmo tempo defperta a fenfualidade com oíogojá
acceío da concupifcencia. Deyxou togo prudente-
mente a capa > porque fe a trouxcíTe comfigo , todas
as vezes, que pegaffe nella, lhe poderia infundir o
veneno da culpa , com a lembrança daquelle tadlo,
c contado, e da occafuô de oíFender a Deos. E co-
mo bem remunerou Deos cftaacçaò generoía de Jo-
fephl Como bem lhe desfez à calumnia , eacudio ao
feu credito ! Ds feytor , que era da caía de Putif ar , íu-
bio a Mordomo mordo Paço de ElRcy Faraó, o qual
tanto o amava , e fe fiava delis , que além de o CDnfti-
tuir feu primeyro Miniílro» o fez publicar a fom de
trombetas por Viíorey de todo oEgypto , cque to-
dos tiveíTem entendido , que clle era o íupremo, ç
único Commandante, a quem todos os fcus OEcaes,
e Povos deviaõ obedecer, ageolhando-íe em qualquer
parte, que elle paílaíTe ; e que foubeíTem , que entre
ElRey, e clle naô havia outra differença , que Jofeph
ter o mando , e Faraó o aíTento no throno : Tu erisfu-
Cemf,c. p^r domum meam y & aâtui oris mferium cunBus fo^
^^A^'pulus obediet ; mo tantum regni folio te fr acedam.
Parece , que a cafta , e valerola Judith , tomou a li-
ção de Joíeph , e o quiz imitar em tudo ; pois os San-
tos íe aoroveytaõ huns dos outros dos bons exem-
plos. Depois de ter Judith cortada a cabeça aogran-
de General Oiofcrnes , e ter dado a vitoria aos feus
Compatriotas , contra os Aflirios , tratarão os Go-
vernantes, de repartir os dcfpojos dos vencid^os, pa-
ra dar a cada hum dos vencedores o quinhão , que
lhes cabia proporcionalmente, coníórmeos feus mere-
cimentos. Julgarão, que tudo , o qije era do pc^
culiar ferviço da peffoa de Oloferncs , ouro , prata,
Do tõYttíento do TaBô. 14T
veílidoS) íoupas, e camas, com as mais â!fayasi
tudo com univerfa! conícntimento fc entregaíTe a Ju- n^^.
dith: Porro atitem univerfa ^qu^ Olojernú p^cuUarla[^^ '^
fmjfe probatã fnnt ^dederunt Judith , in auro^ & ar- 1^^
gento y & 'veftihus , & gemmis , & omnl fttpeUèãílí,
traditajunt omnia ílU a Popnlo. Porém Juuitíi fez taò
pouco calo do precioío quinhaó , que ihe tocou , c
dos ricos deípojos , que lhe trouxcraô, que não Í6,
não os quiz receber, mas os mindou afaíkr defí^e
da íua cafa , por nam ter occaíiaõ de velos , ou to-
caios, nem ter a mínima lembrança deitas; Porro Ju- n ..
dith univerfa vafa belltca Olofernvs , qua deditilli po-[ \'^^
ptíhs, é^cQHOp^eum ^qmd ipfa fiifiuleraí de cubtlt ipfiuS) i^^
obtuttt inanathema oblivmiis. Mas porque Judithre-
cuia, edeipreza os deípojos de huma vitoria tam af-
íinaiada ? Porque não os toma, e oáo os tem muy
bem guardadvos , para fazer illuftres os íeus defccti-
dentes í Como naõ os mttt entre os trofcos dos íeus
Avôs i para dar a conhecer oíeu valor à pofleridade,
c eternizar a fiía memoriai E fe cila nâo quiz guardar
a eípada , o punhal , e outros géneros de armas pró-
prias de hum General do exercito , pois não ihe crao
ufuais,nem convinhaõ ahuma mulher i porque náo
guarda a^ outras alfayas, as roupas, c alcatifas, cf-
pcci ilmentc o icy to , e o pavilhão , que era hum mo-
vei pxoprio do feu fexo ? Muy to mais, que era de
Damafco cremeíim bordado de ouro , c guarnecido
de eímeraldas , e outras gemmas preeioías : ConO' j^^^^
fattm , quod êrat ex purpm a , & auro , & fmaragào^ cap. ló.
& lapidtbtispratiõfis contextum. E lhe podia íervir de 29.
ornamento na fua alcova, no cempo, que as outras
Matronas de Betulia a hiaõ viíitar, e dârlhcos pa-
rabéns. E quando naó parcccffe bem â fua modeflia,
c cftado viuvai , ter hum leyto taó preciofo à vifta ,0
podia r£cpliicr,çdeyxalo a algum dos fcus parentes
1^ fliâis
Wfturfâ
mais chegados, que o guardaria, como illufire mò2
nurnento dâ Tua familia. Nada diítoquizjudith. Pre-.
vio prudentemente, e conííderou , que codas as ve-
zes, que viíTe o íeyco, íbe tornaria em lembrança a
occaiíiaô,queelIa teve de oíFender aDeos com Olo.
fcrnes, fe quando eílava no ley to naôíicaíTc logopre-
fo do fono. E que eíia lembrança podia íixarfe na
íua imaginação , e fazer algum movimento na íua
fenrualidâdé} por ifío lançou longe de fi, e da fua
caía alfáyas yíeytos , pavilhões, e tudo aquillo , que
podia ter tocado Olofernes, como fe tiveíTc excom-
munhaõ o tocaias; eaíTim poz tudo em hum perpetuo
e íqueci men to ; Obtuíit in anathema oblivionis.
Dos exemplos do Teftamento velho , que hc a
ley êfcrita , paíTemosaos doTeftamento novo, que
he a ley da graça , veremos , quanto Deos concor-
re com ella, para todos aquelíes, que naô íó fogem
daoccaiiaò próxima deíle vicio do tado, mastam-
berti da remota, com afaftaríe delle. Saô Martinia-
no , para fugir de toda a óccaíiaô dcfte vicio, dey-
xou' a Cidade ,e a pátria, e foy recolherfe hum lon-
ge em hum deferto, aonde gozando bua i^ummapaz
da Alma, fazia penitencia. Mâs nem sbi fe achou
feguro, porque huma mulher do Mundo, com pre-
texto, ou vcrdâdeyro, ou falfo de largar a mà vida^
e tratar íóda íua falvação, teve modo de penetrar
todos aquelíes boíques, átè achar a pobre choupa-
na de Marciniaoo. Ahi entrou dentro, e naõ vendo
outra couía mais que cilícios com pontas de ferro ; e;
diíciplinaseníanguentadas, fe poz logo de geolhos
a gemer, e chorar. No entanto tornou da fonte
Martiniano,couvio gemidos, efoluços na íua chou-
pana. Ficou palmado de tal novidade naô cfperada,
e chegando à porta delia , vio dentro a nova hofpeda.
Diííe logo comíigo. Já cíía habitação naô me ferve
mais.
Dõ tormento do Taão. 1 47
^aís.. Deyxou o pote da agoa na porta, com todos
';/)s ínfirumentos da penitencia , que là eftavâo, e
-jícm:^erguntaránoYahoípcda, aqueveyo, nem co-
Wveyoi tomando outro caminho, e por rwmo di-
tvcrío, caminhou toda anoyte, e todo o dia fegum-
^teVatê que toy dar na prayra do mar. Ahi íoube,
■qiie havia huma Ilhota , que apparecia ao longe,c cm^íi
'tinha.húa pequena alagoa, que naó produzia fe não
jiiriCGS, e vimes. Ajuftou-íe com hum Marinheyro;
paraqueláoIevaíTena íuabarca,eque cada mez lhe
foíTe levar hum pouco de bifcouto, que em p^g^-pj^ji^:
inepto lhe daria os ceílos , c ceftinhos de junco, quc^retom.
cUehia trabalhando. Foy íideliííimo o Marinhcyro, i.w///:
cm lhe levar o fuftentoj e Martiniano vivia na íua
Ilhota deferta como em hum Paraiío terreal, fora de
rodas as occaíiões , e perigos , íem outro cuydado,
que de fazer oraçaô, e os Teus certos. Mas quem o
cuydára ! Porque nem ahi ficou de todo livre onoíTo
Santo íolitario; pois os perigos do mar lhe puzeraô
asoccaíioensemterra. Naufragou caíualmente huma
caravela em hum cachopo junto á lihota deferta. E
cm quanto os Marinheyros tratavaô de fazer humí
prancha, para íalvarem as vidas , pois naô cabiaõ
todos nobatelinho, húa moça, que hia de paílagem
na mcfma embarcação, com o benefício de humataboa
alcançou a Ilhota, Quando íe vio com o pê cm ter-
ra, naô quiz mais n^ida do marj e os Marinheyros
no feu batel fizeraô dalli fua viagem. Foy logo a moça
a buícar S. Mirtiniano , o qual , em vendo-a , lhe fal-
Ipu aílim. Minha fílha, o fogo,e aeílopa naô eílaõ '-^
bem, eftando juntos -, quero antes deixar-me nas
mãos da providencia Divina , e ííarme delia , que
da fragilidade da minha natureza; aqui tendes hum
pequeno de bifcouto , que vos baflará , para matar-
a fome por algum tempo. Nao paffaráômuy tos dias,
,- ' K 2 que
PHiP
■«
Uí fi 'f'"
148 Di/ctir/o VI
que chegará a efle lugar hum Marinheiro , qMc cm
o meu provedor de bifcouto ; a elle entregareis cftc»
ceftos jejuncos , edizeylhe , que vos dè a paíTageni
na fua barca , atè a terra, que eu rogarey a DeoS|
que vos leve a ambos de dous em paz , c falvamenta.
Naõ he crivei as lagrimas , que derramava a moça^
vendo, que a deyxava íó^e defcmparada emhuma
Ilhota » que melhor íc chamara hum penhafco. Ma$
o Santo olhando para omar diflíe , quero antes fiar-mc
da inconftancia dos ventas , c d^ inílabilidade das on-
das, que porme emrtíeo, ou em occaítaó de comct-
ter hum peccado mortal. Aflim dito ,. levantou os
olhos ao Ceo ,- depois fez o final da Cru^ , e generofo
fe lançou ao mar. Efcaçamente começou nadando a
lidar com as ondas , que a providencia Divina lhe
mandou hura Delfim,, que pondo -íe dcbayxo dclle,
lhe foy levantada os peytos , atd que deu geyto^
para aíTcntaríe nel]e,elhc fervia de batel, que eru
breve efpaçadetempa olevou àquella meímapraya,
aonde alguns annos antes fe tinha embarcado. Diraõ
©s peccadores ^ que efte exemplo de Marriniano^
para fugir toda a perigo, eoccaiaô do peccado , he
mais,, para fe admirar, que para íe imitar. Aííim'
he , mas cu diga, qtie daqui íc infere , quanta -efti-
nia,c gofb Deos„ que nas ©ccâ^oens , € perigos
recorramos logo aelk com toda a coniança ícguros^
qucfendij reíJftirmos. ao noífo appetite rebelde coin
raffje^'^^^lr Deos não nos faltará com a fua graça: Fa^
gratia- ^^^^í fuod iufe eft^ Deus^mndenegãtgratiam.Emny'
kkz. ta mais íe vencermos o ardor da noíTa concupiíccncia^
coma^promptafugado objeífto ,,qu€ nos allucina a^
peecadò i,entâa fe obrigará Dcos , até a fazer miia-
gresi,eomoaS.MartinÍQno,paraque fiquemos triun-
fetes de toda a occafiaõ, e perigo;
Onero corroborar ^ejílas provas da obrigação , qm
Bõ tovmènto do Ta fio. 1 49
lemos de fugir a ocçafíaô próxima, comi a doutrina»
que eníinou Chriao no feu Evangelho j e veremos
claramente , que Saô Marriniano , que a feguio , naô
devia, nem podia obrar diverfamente, parafe livrar
do pecccido , e aíTegurar a lua íalvaçaô. He neccíía-
rio , que huma ordem , ou Mandamento , ícja dç
grande coníequcneia , para a vida eterna, e aíHfií
digno de fer com diligencia guardado , quando o
meímoFiihodeDeos o inculca com ameaças, e o re-
pete bem três vezes } duas cm Saõ Matcheus , e outra,
cm Saô Marcos/Contra nenhum vicio fe valeoChrif-.
to nas íuas pregações de mayores invectivas , e amea-
ças mais terriveis , como quando pregava contra o
cícandalo : r^ Mundo k fcandalii. Fa Homim t^^^^íf^^^^^
per quemfianáalu/p vemt, EÍU partícula ^^ na Efcn- ^^.^^ * ^
lura íempre íigniíica perdição , reprovação eterna,
condenação intáilivel do Inferno. O efcandalo pois,
como dizem os Theologos , naõ he outra coufa , que
Diãum, vel fartum prabens próximo occafionem peC'
candí. E que acçaò lahirà dos noíTos fencidos , que
tenha mais prompta a occaíiaõ do pcccado , e que
lhe abra mais deprcíTa as portas , e que enfcytice
com mais íuave violência o coração do proxim.o, pa-
ra cometelo, como o vicio do tado, que lie^o que
temos mais acima dito ,e provado no primeyro pon-
to! Sendo pois ifto aíTim, profigamos a doutrina,
que ChriPco nos dá no feu Evangelho ,e acharemos
huma prova, que convence, conclue,e fera o remate
defte íegundo ponto. Apenas os Evangciifías Saõ Mat-
theus,e Saô Marcos acabaò de dizer da occafijò de
peccar , que dà o eícandalo , que logo immediata-^^"^-
mente dizem : Etfimcinus íuafcândaUzavent te ,ak ^^^'J^^'
fcinde tilam. Que fe a noíTa maò nos efcandaliza,^^^^*^ '
com ícr occaíiaõ de peccar, manda , que a cortemos. ^^^
Ò mefmodiz do pd ,e dos olhos ,* Si pes tmisfcan-
i i
j
m §r
àaUzã^érít téyamfuta illum , é'fi oculm tmsj
Imat te , erue eum. Com mandar , que cortemos 6
pè, arranquemos os olhos ; todas as vezes , que
aos forerò, occaíiaõ de ofFendermos aDeos. Mas por-
que ciõfa os Evangelizas ,, quando íe traça de remé-
dios, c cauceias, para evitar as occafíoens de perder
a Alma, põem em primeyro lugar as máos, e naõ
os outros membros? Que as mãosfejaõ mais nobres,
que os pèsv naõ tem duvida. Mâs^queasmãosnaã
precedam aos olhos, qoe íaó os dous Monarchas Iri-
mãos, que governa õ eflenoíTo Mundo, pequeno , ú^
fcm clles nem as mãos faberiaô, no que pegaõ , nemi:^
os pês ^ por onde andaò \ cambem naõ ha duvida.,
Gom tudo põem o Sagrado Texto cm primeyro lugar
'-' , as mãos ; porque o ícntido do tadobe-o^mais atray-.
coada, c tyranno, que attabc os outros ícnttdos; e
com hm doce violência os obriga a obedccerlhe. Os
olhos lhe íervem de efpias , para lhe deícubrir o»
©bjedlos , que elie depois cfcoihc mais proporciona-
dos à ítia deieytaçaò feníivel; os pês o acompanhaõ
como fâmulos para o raeímo fim. Porém, o que me
faz mais temer eíie vicio dotado, hc reparar, que
S. Mattheus no repetir eRe Texto, accrcícenta efta
palavra dêxtera. Si dextera manns tua [candalizat te^
Mattk. ah/cinde eam ^ & proiice abs te, E porque naõ diz o
1r.jr.50. meímo dos pès? Etfifes tuus. dexter fcandâUzat te^&i^
A razaô hcj porque * quando a ncceffidade obriga,.
a que fe corte hum p^éj pouco importa, que íeja o
direyto, ou o eíqucrdo; porque ifemprc com fazer
outro de pao, igualmente ícremedea a hum, e ao ou-
tro. Naõ he porém affim das máos; porque muyto
vay ,que íecôrce a direyta , ou a efqucrda. Sem efía,
pode ainda o homemi íerviríc, porque lhe fupprc a
diréyta nas coufíjs de mayor importância ; como de
manejar huaeípada ,0Uí0Utra arma para fua defenfaói
. pô-
Do toMemo do Ta&ol ^ ' Ç *
.pôde pegar na pcrina , para eícrever i ou em hú pincel,
(para pintar j e fiaalmente eUahe,a que faz mdo^e
acíqiierda lhe kr vede coadjutora, que: a ajuda. Paí-
íemos sgora do fiíico, ao moral , c veremos mais
claramente a genuína intelligencia defke Texto, Suc-
cede a cada paífo confeírâilc algum pcccador , que
íem tropeçado em huma occafiaò> logo o emenda o
^ConfeíTor, com obrigalo a deyxala i ecomo cftaoc-
Wiaó he caíual,paírageyro, e de pouco tempo, o
penitente obedece, e fe affaftadçlla. Eis-aqui cor-
tada a maô eíquerda. Vem outro peccador, e con-
feíTa também a lua fragilidade, c miíeria , com
.o tropeço de outra occafiaô demais tempo, c o peyor
he , que de portas a dentro. A* vifta do que , ellá
^orteoConfelTor em negarlhe a abíolviçaô j por naò
pcrderfe a fi , e ao penitente. Efte allega em razão,
de nnó poder lançar fora a amiga, íem primcyro ac-
comodalaemhum Convento, ou acharlhe cafameu-
to; c que de outro modo , defemparando-a , fcrá
taõ fomente evitar , que peque com hum íój ínas
que peccarà, a cada hora, com todos. Outros dif-
iicultaó , e impoííibiiitaô o apartaríc daquella cria-
da, daquella ferva j daquella eícrava ( c he o com-
mum neOe noíTo Brafii ) com dizer , ou que naò con-
vem ao feu credito ■, porque fervindo à mulher , oii
aoirmaô, fe dcfcubreria o peccado, o qual ciiydao
íer oculto , quando os de caía, e os vclinbos mur-
fiiuraõ,e íe efcandaiizaô; e com dizclo a todos em
ícsjredo, o fazem publico. E finalmente quando fc
trata de lançar fora de veras a occaíiaó daquella
moça, ou daquella eícrava ; logo naíce a ncceíTida*
de precifâ , de que ella he , a que faz o comer a feU
goáo, e paladar; que lhe lava a roupa; que tem to-
do o governo da caía; e finalmente , ella he a fua
maõ direytai e que fem ella mo pòdc viver. Ora
K4 de:
Áíatth,
•' i
>
1
■
1
'Mmh.
m fupr.
Tercei
1 roPon-
ío.
íl ç
j>ípocal.
sap,iS.
m^ Dí/cur/õ VI.
deaa maõdlrcyta falia o Evangelho ; Si dextra mdi
■ms tuafcandaUzat. E naó íóracnte ordena Cbriíloj
que íe corte; Abfcinàe eam. Mas que fc lance Jongc
de íi ; para nunca mais a ver, & projice abs te. Affim-
o fez Jofepli j fugio logo eíie da occafiaõ , largou-
lhe a capa j para naõ íe lembrar mais delia j naò fc
ih& deudo feu credito, nem da calumoia, nem da
injufta prifaò, e rifco da vida. AíTim fez Judirh,
que lançou dos olhos, e da íua cafa as precioías al<
iayas de Oiofernes j para que lhe fícaíFe em hum per-
petuo efquecimento a occaííaõ , que teve de tratar
comelle: Inanathema oblivionú. ÁíTim o fez Mar-
ttniano, que para eftar longe da occaíiaô fugio do
Mundo í fugio do deferto i fugio de fi mefmo ; e naõ
duvidou de querer antes encontrar a morte do corpo^
que de pôr cm perigo a vida da Alma. Mas naõ cuy-
dem os amancebados fcr rigurofo efíe pr ecey to de
Chríííojpois muytomais terrível ,he oquefe legue
110 Evangelho i com dizer, que melhor he entrar^^no
Ceo com menos a maõ direyta; que com ambas de
duas ícr lançado no Inferno, para arder eternamente:
§luam duas manus habentem ire m gahenam , in ignem
inextinguMem. Que he a matéria do cerceyro ponto.
Como ofcntido dotado hc geral para todas as
crcaruras , e para todas as partes do corpo $ aíTim
também os tormentos , que devem reparar a defor-
dem de ínnumeraveis tados libidinoíós , fcraô uni-
vcrfais em todos os membros do meímo corpo : Fer
qna peccat quú y fer hac^& torquetur, E quanto ma-
yores delicias, e goftos terá o peccador procurados
com os toques deshoncí^os, e npalpamentos ilHeitos,
tanto mayor pena , e cafíigo experimentará elle no
Inferno : ^liantumgloríficaiit fè, & deltciisfuit , tam-
tim date tlli tormentum , & luãum. Mas quem po-
derá dizer ocílrago, que faz dâs Almas eíle vicio do
ta-
Do tormento âõlaâo. ^ ^ ^fl
tado! E quantas creaturas, que craõ, c vlviaô in-
nocentes,apefíadas com o íeu contagio, provoca-
das como feu mao exemplo, eftaõ agora, e eftaráô
para fcmprc íofrendo as penas eternas ! Efte era o
mayor fentimento , que tinha ElRey penitente Da-
vid , o naó poder conhecer todas aqucllas culpas,
de queajuftiça Divina lhe havia de fazer cargo na ho-
ra da morte; DeliÚaquis intelUgit, E aqui alagan-
do-íe em hum mar de lagrimas i todo confuío , e
contrito , recorre á miícricordia de Deos , e diz affim:
Ab eccultú méis munâa me. Senhor alimpayme ^^ pfai,i%
todos os peccados occultos , que tenho fey to, c da-
quelles, que naô conheço : Et ãbalmii prcefewo
tíw. E perdoayme também { meu Senhor ) os pec-
cados alheyos. Que dizeis David ! Cada hum he
obrigado a dar conta de íi , e levar fó a carga dos
ícus peccados , como diz o Apoftolo Saõ Paulo : Unuf-
quifquQ onns juum fortabit. Logo para que pedis a GaL6\
Deos perdaõ dos peccados alheyos .? Ah , refponde
David, que conheço aíevcridade do juizo, que me
eípera, e ícy , que naò íó, hey de dar conta dos
peccados manifeftos , e occultos , que tenho fcyto;
mas também dos que outros tem cometido , por caula,
ou occafiaó minha , ou com o meu mao exemplo. Mi-
fericordia, meu Deos , pelos peccados alheyos : Jb
alimvs parce fervo tno. Sctlicet, Como diz o ác\.\ú{- loM
íimo Interprete Lorino: Giu^e alu meo exemplo cofn- inPlali
miferunt. E tanto temor tazia a David eila coníidera-
çaò dos peccados alheyos , que por íua culpa ; ou
mao exemplo podiflô nafcer , que chegou a hfiimarrcy p^/.^^
dizendo : Círcumdederunt me mala j quorum non e[l nu ■ , ^
meras : Cemprebenâerunt me miquitates mea , & non
potuiut viderem. Mc tem cercado tantos males , que
naô os porfo numerar-, achome comprehendido em
lantas maldades ^ que nem as poíTo diílinguir , eco-
nhe*
I í
mmmsmm
í
^if4 , '*mfcMrfo VI:
nhecer;'eo peyorhe.que fe vam multiplicando em
tam grande numero, que já faõ mais, que os meus
M/3«^^^-^^^°^ ^^ cabeça: Multtplicata funt fuper camllos
^ ♦ '^^ Cãptis meí\ Mas íc confta do Sagrado Texto , que
os peccados de David foraô fó dous; hum adultenoj
c huma morte j eeíies pela grande contrição , que te-
ve , lhes foraõ logo perdoados j como o aíFegurou por
parte de Deos o Profeta Nathan ; Bominus quoqm
trmfiulit peccatum Uium. Como pôJc ícr , que os
2.;?^f. ^^"^ peccados fejaò innumeraveis ; e as íuas mai>.
^^/?.i2.^^^^^ "^^'^» ^"^os kus cabcllos ? LMtihipIicatafuní
fuper capillos capitis mel. Ah , que fabia muy bem
cite Santo Rey Penitente , que os íeus pcccados , em
quanto e^iveraõ fecretos , craô íó dous i mas de-
pois, que fahiraõao publico, c começou a diiatarfe
oefcandalo,eo mao exemplo, que deu aosfeus Po-
vos i entaó foy , que começou a entriftecerfe , c
." pedir perdaõ dos peccados alheyos , dos quaes na5
íabia o numero : Gluorum non ejl numerus , nem po-
dia velos, ou fabelos: Non potui ^ ut viderem Por-
que cada dia mais muItip!icando-fe, como os cabel-
pfáijn '^^^ ^^^ quanto mais fc cortam , mais crefcem : Mui'
jg^ tiphcatafuntfúpr capillos capitii má. A meímacon-
íideraçaò , o meímo temor , e o meímo arrependi-
mento, que ceve Djvid , devem ter todos aquelles,
quetemdadooccaííaõ depeccarao feu proximo,com
o vicio d^tacfío, e com mais razaõ ; porque o mao
exemplo dado a B:rfabê , como cúmplice do adulte-
rio, naõp-iííoii adiante, remediando David o peri-
^ go , com a declarar Rainha , e fua mulher. Naó he
porem aíTim do tadlo ; eíie paíTa adiante, e fendo
naturalmente contngioío , por onde toca , dcyxa
iníícionnda a peíToa, que tocou. A pedra de Cevar tem
tal Íi;np3tia Q.o:n o ferro , que íem o tocar , puflo cm
diíl^ncia competente, o atrahe a íi, para abraçaríc
com
Do tormento àôTa&õ. 15 j
com elle. Muyto mais , fc chega a tocaio ; entaò
iincfe logo a pedra com o ferro , naôobílante,quc
fejaô dediverfa cípecia : e eu tenho viílo, que hiima
argolinha de ferro tocada de pedra de Cevar, tinha
virtude de uniríc com outra argolinha y efía com
outra, ate for mar hiHiiacadea; tanta he a força íim-
patica , que tem a pedra de Cevar com o ferro. Sen-
do ifto aâim ; que efírago naõ fará o vicio apegadiça
^o tadio , com a fua meíma eípccie ! A quantas pcf-
foas toca, ou apalpa , logo as inficiona, infundin^
do-lhes o doce veneno do dcleyte, com privalas da
veftê nupcial da innocencia. Eíias , já inficionadas,
tocaô, c apegaó a outras o mefmo veneno } c que
duvida faz , que a força fimpatica da concupiícencia
cm homens , c mulheres , que naõ íaô de pedra,
nem de ferro / mas de carne tragil , os atrahe , os
une, como tantas argolas , ate formar humas corren-
tes compridas , com que todos atados de pès , e Mmth:
mãos , vaò para femprc a penar no inferno : Ligatis ^^p-ia.
manibus^ &peâíbiis .mittite tn tenebr as exteriores y ibi^^'
eritjietidSi &Jirídôr dentium,
E que grandes tormentos padecerão no inferno
todos aquelles} que inclinados a efte vicio peccami-
noío do taélo , induzirão » com o íeu mao exemplo
a outros , a deleytarem-íe na meíma torpeza , e efles
já crecidos, e feytos meftres eníinaõ a outros mais
pequenos , multiplicando-íe as culpas ao galarimf
Também ao galarim íe multipiicaráõ na interno os
tormentos? e o mayor torm-ento íerà o acharemfe
todos naqueiie eterno calabouço , amaldiçoando-fe
huns aos outros ^ e deípeçando-fe , íe naõ com a
obra, por ferem apertados, e ímmovcis, no menos
com a rayva /rancor , edeferperaçaõ : Feccator vi- ' ''*'^'
debtt , ó" irafcetur , dentibus fuis fremet^ò- tabefcet,
Ds hua tcrrivel invetÍLVa íc ferve o Profeta Jeremias,.
Gon^
I t :
Pfalml
/
15^ Difcuvfo VI.
contra cftes pcccadorcs ,quenaó contentes de fc per-
derem a íi , bufcaõ traças , e píaô de modos laícivosí
{>3ra terem companheyros úeí fua maldade , com a
Bierem Perdição de infinitas Álmas: Tu Domine^ ne pro-
eap.i2. pitierisiniqiittate eonm , & feccatum eorum à facie tua
f è.' non dekatur. Vôs ( meu Deos ) não perdoeis huma taõ
grande maldade , c huns pcccados taõ enormes , co-
mo eftes , nunca íc rifquem do voffo livro, c fcmpre
cílejjôáviíia na voíTa prcfença. Naõachona Sagra-
da Efcritura imprecação mais horrenda que efta j mas
o que me rende mais attonito, faô as palavras, que
immediatamente fe feguem ; Et in tempore fiirorCs tui
ãbutere eis, E no tempo do furor davoíTa maisrigu-
ifwí»?? ^oí^â juftiça abufay delles. Eftranho modo de fâllar i
mfapr, Abutereeis Quando já eftaraô penando no calabou-
ço áo Inferno. Oh , tremendo cafíigo/ Oh, ter-
riveí, mas porem juíla vingança do furor Divino!
Abutere eis Hoc eft ( diz outra verfaô ; creatura , qtú-
jé^om^speccatares abufifunt ad peccandum ^nmc ah utan-
íànhHstureii ad maius fupplicimi in inferno. Os peccado-,
^«í^. res íe abufaõ das creacuras , divertindo-as do íim,
para que foraõ creadas , que he honrar, e amar a
Deos , e depois gozalo eternamente no Paraifo ; c
elies , por íatisfazerem ao feu torpe appetitc , com os
feus toques , e apaipamentos laícivos , as precipltâo
no Inferno. Ora todo o abufo peccaminoío , íabc
muy bem o Profeta , que deve ler reparado da Divina
Juftiça icpor iílo pede a Deos, que as meímas crea-
turas , que » por íercm induzidas á culpa, faõ inca-
pazes da gloria eterna, fejciô ellas mefmas miniflros
do feu furor, para vingar eíle abuío : Et intempore
fworistui abutere eis. Os pcccadores íc abularão das
creaturas, para os feus goftos: Deos íc fervirá del-
' las para os feus tormentos. Oh , que blasfémias hor-
rendas / Oh, que imprecações execrandas , proferi-
rão
DoíormmôáõTaBo] "»57
raõ os compliccs , huns aos outros , os tentadores,
c os tentados ! Tcraô dous Infernos í hum de fogo
pelas fuás culpas i outro de ódio , de vingança, c
de defeíperaçaõ , de naõ fe poderem aniquilar entre
iu Oh , maldito peccado , que obrigas a hum Deos
taôpiedofo, a darte penas taõ riguroías, c eternas?
0 1 , peccador enganado , íe por dcígraça te achas
immerfo no viíco pcgadiço dcÔas torpezas, peeote»
que logo mortifiques atua carne , fazendo violência
á fragilidade da natureza , para arrancartc delle. E
delcnganateem-naõ deferir a emenda, efpcrando na
hora da morte defapegarte dcfíe brutal vicio do ta-
<n:Qi porque ainda, que Deos te conceda tempo,
para te confeíFares, chorando as tuas culpas ^ fcrá
tal a força do abito continuado , que eftando para
cfpirar atua alma, te repreíentará o Demónio aquei-
ks toques , c apalpamentos deshoneíVos , e coníentin-
do nelles conforme o teu roim Gofíume, dcyxará^^
de cnrrarno Ceo , eflando já as portas abertas , e com
aquelle ultimo, e momentâneo deleyte te precipitarás
no Inferno, como moilra a prova do eafo feguinte.
Paulo Aringo , Author moderno, porém celebre
pc!o Irvro, que tem dado à luz^ intitulado: Movs
Feccatarum peffima. Em que moflra com hum longo
catalogo de mortes deígraçadas ^ e repencinvis , o
grande rigor ^ com queajufliça Divina cafliga os iu-
xuriofos. Eu tenho eícolliido de tantos exemplos hum
fó, por fer muyto apropoíito da matéria, que tra-
tamos. Em hua Cidade de Itaíia havia hu^i moço No-
bre ,. (, diz o Autor , que não referia o nome, por fer a?
família mmy conhcGida ) filho de hãa Matrona viuva,,
com grande cuflodia nos bons coftumss; e com f re-
quentar as noff.isclaffes, fazia náo menos progreíFo»
na piedade, que nas letras. O Demónio inimigo de
tanu ÍQnoccru:ia,,fez:quc buana moça donzela,, que
Armg.
tom. I ,
lib, i.
VíXJl
tj>}8 Dtfcurjò VL
cftava retirada ,e corno em depoíito na inefina fua
cafa, lhe tomaffe aíFeyçaô , e de quando cm quando
lhe tocava a mão , lhe apertava os dedos , ou lhe da-
va algum beiircaô;mas íemprc aticulodepura ami-
zade, c de hum áffedo íincero 5 bem depreíTa efles
'toques de pudicos paíTáraô a impudicos. Haõ no Bra-
ríii jccrtos paos , que os Índios nas viagens íempre
, trazem comíigo, que roçando-fe hum com o outro,
logo ardem , fazem fogo , e fe accendem em chammas.
Do mefmo modo íuccedeoaelles com os toques , c
tanto aíTim, que o mop , em quem ainda reynava
o temor deDeos, picado da fynderiíi , e combatido
dos efcrupulos , não podia dormir , nem íocegar,
ate que foy ao CoUegio buícar o feu ConfeíTor, c
poílradoaosfeus pèslhefez patente o mao eftado da
iuaAlma , pedindo-lhc , que o tornaíTe apor outra
^czna graça de Deos. Conhece-o logo o ConfeíTor,
^e ihc diíTe, que hum taô peíTimoprincipio^o havia
"de guiar a algum defgraçado fim, Deu-lhe a abfolvi-
çâó , advertindo-o , que cortaffe logo tal occaíiaô,
fenaõ que iria de mal em peyor. PrometteocUejmas
naô guardou a promeíTa j porque tornou logo a cahir,
naôhuma^masmuytas vezes} e quanto mais crcícia
o amor á creatura, tanto diminuhia o temor .do ícu
Greador. Com tudo nâo podendo mais fofrer o rc-
morço daconícien:ia, determinou de tornar ao feu
ConfeíTor, que com mayor energia lhe expoz operi.
go próximo , cm que cQava de morrer em peccado,
e Ihs fez fazer hum aâo de contrição , com propcíí-
té firme de apartaríe totalmeníe, e da occaíiaò , c
do vicio , e com ií^o o abíoíveo. Tornou a caía o
moço codo contrito, e por algum tempo, cíleve for-
te, em rúi cahir , refiftindo com penitencias , e morj
tificaçôes aos carinhos di moça , que quando naõ
podia tocaio com a maõ , porque fugia dçlia , lhe
Dõtêrmento âõGoPúr, ^ ^9
plfcava os olhos, que faõ as guias do tadlo : SI mfcú, q^,^^
ocuUfunt in amore duces. Mas , oh força encantadora ca ^^^^.
laícivia! Parece, que efte jejum da culpa lhe acccn*
deu mais o fogo da concupifcencia , que eflava com
acautela, e mortificaçáô,íenaô apagado, ao menos
adormecido, e lhe accreícentou a íede de beber no
púcaro da maldade com mais anciã ;pois a modo de
huma torrente rcprefada , derrubando o antcmural
do pejo dos homens , c os muros da ley, c temoi*
de Dcos, tornou á mefma pratica; nâòjácomme^
do , e ás cícondidas , com.o antes; mas defaforada-
mente , ás abertas, c publicadas; fazendo paffar a
moça , que eftava no quarto di May retirada , para
huma camera contigua áquella , aonde elle dormia,
com grande íentimento da Mãy , que já naõ podia,
porlhe o remédio. Com efta viíinhança das cameras,
todas as vezes , que queria íatisfazcr ao feufenfual
apetite , dava três palmadas na parede, e aparecen-
do a Amiga, íe dcleytavâo em todo o género de to-
ques, c avfios peccaminoíos , excepto aquelles (que
ainda he peyor ) , os qines a podiaô render pejada.
Com tudo a Mãy deplorando a perdição do filho re-
correo ao ConfeíTor, e lhe contou tudo ; para que
vieífe a amoeftalo. Veyo o ConfeíTor , e achando o
pouco bem difpofío , para a emenda , lhe diíTe, def-
pedindo-fe delle. Qra acabe V. M. por huma vc2:
cfla ma vida , que o coração me diz , que a ira de
Deos lhe efiá jà preparando algú grave caíVigo. Efoy
aíTim ; porque naõ paíTárâo dous mezes , que cilan^-
do elle defcuydado , no meyo dos íeusdelcytes , lhe
deuimprovifamente hum deímayo, que lhe deyxoU'
huma pequena febre. Acudirão logo os Médicos i e
achando-o n - flor da idide , tam proílrado ds forças,
julgarão a febre por íurrateyra , e naõ fizergõ bom
pronoflico da doença. Então o moço mandou com
preí-
lóo Dtfcurfo Vh
preíTa chamar o ConfeíTor, e diffe-ihe. Pâdrc , as vof-
ías ameaças tem fido profecias i temo da minha vida,
€ da minhi falvaçaô. Agora fim , que me quero con-
verter de veras aDeos, e largar toda a occaíiaò de
mais oíFendcllo. ConfcíTou-íe com finais de verda-
deyro arrependimento. Chorava o ConfeíTor de can-
íolaçáoj chorava o confeffado de contrito. Porem
D mal não abrandou , antes de carrcyra o levava , pa-
ra a morte, Foy o Padre a defcançar , e vicraõ ou-
tros dous Rcligioíos a aíTiflirlhc na recomendação
da Alma , ecllç rcfpondia com muyta piedade , beijan-
do muytas vezes o Crucifixo, que tinha nas mãos:
Crefccndo pois a agonia, o moribundo, perdida já
a falia, com a outra mâo hia apalpando, e pegando
no çubertor, como quem o queria apertar; quando
de repente fez hum grande esforço, c levantando-íe
daçama,eahio-lhe oCrucifiKo,edeu três punhadas
na parede; mas como eíiava jà exhaufto de eípiri-
tos , não íc pode reger em pèjcdeyxando fc cahir
efpirou. Forão osRcligiofos aconfolar a Mãy, com
dizerlhc , que o filho , tivera huma morte de fanto;
G que dcyxara as miferias defta vida , para ir gozar
a bsmaventurança. Mas que íó huma couía repararão,
que antes de morrer fempre hia apalpando o çubertor,
cqucievantando-ícdaçama dera três punhadas na pa-
rede; e âhi , caindo, morrera. Então a Mây cxclan ou;
Ah deígraçada de mim ! Meu filho morrco precitoj
meu filho ji he condenado; já eflá no inferno! Co*
mo, fenhora, pode íer iílo (diíTcraó os Religiofos
aílillentes ) f Deos nos mande a nos a morte , que cllc
teve. Naô digaó tal , meus Padres í Deos nos livre
de tal morte; meu filho eftá no inferno ! Aquelle pe-
gar no çubertor era omao habito, de pegar íempre
nas mãos , e no rofto de huma moça impudica ; e o ba»
tier três vezes na parece foy o final, quedava, cftan^
do
Dotèrfnentoàolaâo. i^'
idpella ria camcra contigua , para que foflTe ter com
cUc.Enraõos dous Reiigiõíos íe defpediraô muyto
triftcs , dizendo : Oh altos ,'incomprehenfiveis jui*
zos de Deos! Judicia tua abyjfus multa, E muyto
mais, quando íouberaò , que preparando- íe o Con-
fcíTor ,para dizer a MiíTa de Requiem pela fua Almai
lhe appareceo o Moço envolto em hum manto de tbgOj
pedindo- lhe, que naô lhe acere feentaíTc os tormen-
tos com celebrar o Santo Sacrifício j porque jâ efíava
no inferno. Paímado o ConfeíTor diffe ; e as lagrimas,
que derramaftes na ConfiíTaõ.naô vos valéraõf Sim va-
lérjõ ( replicou ellej e ainda que naõ era bem contri-
to i a attriçaõ Com a íincera confiffaò foy baftantCipara
cu tornar em graçaj mas áquelle mao abito , com huma
forte reprefentaçaõ do Demónio dos deleytes paíTa-
dos, me commoveo os efpiritos , e me fez conlcncír
EO peccado i e levantando- me para efte fim, cahi
morto, eahimefmo foy logo em hum inftante a mi-
nha Alma julgada , convencida , ícntcncÍ3da,e juíla-
mente condenada , e arraflada por toda a eternidade
apenar no inferno.E aílim dito defapparcceo.Eis-aqui
aonde vay acabar a penitencia differida na hora da
morte , em que põem tanta confiança os peccadores,
para continuar nas fuás culpas.
'» Defenganem-fe os pcccadorcs, que a morte hc
da cor da vida j equal íerá ávida, tal fera a morte;
ailim oaffirma S.Bernardo, c o confirma a experiên-
cia : 6lualvs vitafinis ita. E Santo Agoftinho não pode
levar em paciências queopcccadorqueyra viver nas
fuás torpezas , com a efperança de fazer penitencia
na hora da morte , íendo cafo muy contado , que
íe converta hum peccador abituado; c na Sagrada
Efcritura naó íe acha outro fenaô o bom Ladraõ;
Pmitentia ferararo vera. Pois he muyto mayor mi-
iagrcrcíuícitar hua Alma morta pelo peccado abitual,
L àvi-
p/4/,7.
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à vida da graça ; que hum defunto de muyco tèm|^
ávida do corpo. E que mais podia fazer Deos , pu
rafalvar aquelle moço .? Entre os innumcraveis tqríf
mentos, que padecera fio Inferno, parece, que íe*
rá o mayor , o abuío y que teve das crcaturas, prc*
ferindo-as por hum breve deleyte ao íeu Creadorj
mas muyto mayor tormento fcrà o ter abufado da
mifericordia Divina j fervindo-íe delia como media*
neyra , t fiadora , para continuar nos feus infames
goflos.Os precitos no inferno íe conhecerão huns aos
outros; os pcccados ,quefizera5na vida j e a mor*
te , que tiveraõ. Blasfemará hum j dizendo } oh juf-^
tiça de Deos, quanto es contraria agora á fua miíc*
ricordia / Eu tinha determinado de confeífarme pe*
ia Pafchoa com fazer penitencia , e mudar vida j masl
hum golpe de apoplexia , que me deu improvifamen*
Ée a morte , me tirou o rempo. E, eu , dirá outro,
que eíimdo cm hum ícrtão longe da Igreja, indo a
CGnfeffarme , no paíFar de hum Rio afogucymei c
t<)do efludiofo a falvar a vida do corpo , não me
lembrey do nome de JESUS, nem de Maria , para faU
var a da Alma» Sahirà outro enfurecido, bradando,
çeu, que tinha já no m&u coração perdoado ao meu
inimigo as alFrontas, qije mefeZiC cíperando-mc ci-.
k em hum eaminho , com hum tiro de efpingarda me
tirou a vidaje no mefmo tempo,odiando-o> o meu cor-
po cahio no cha6,e a minha alma foyfcpultada nefle
eterno calabouço. Ora todos cfíes , e outros fem nu*
mepo,que cometerão muyto menos pcccados , que
nôs > que blasfémias execrandas naô iançao contra
Deos , por naô lhes ter concedido hum quarto de ho-»
ra de tempo , para arrependerfe ! Deíefperados amai*
diçoaráõ 5 para íemprc ao íeu Anjo da guarda i aoí
feus Santos Protedorcs , a me/ma Virgem Mãydè
Peos > poíqiiG mô lhes alcançou daícufiibotamctaT
^ j óti j)àrtc dós auxílios , q«c deu áquelle moço , pa
Ta fe íalvar. Depois dicy os de rayva , defcarrcga-
fáô íobre o mefnío moço mrí ignominias , pragas , €
ifnproperios , com dizeriíie. Tia , precito infame , ít,
^ue mereces mil iofcinos i pois tivcftc tempo de te
confeíTares , c receber todos os Sacramentos, ate a rc-
-éòmendaçaõ da Almaj e tendo já hum pè nas porcas do
faraiío , com hum momentâneo conícnfo aos teus dc-
'^èytestç prccipitaftc no inferno. Sahirà no mefmó
-céífipoh^atropa de Demónios j com varas de ferro a^
•fogueadas nas mãos, dizendo. Ah , moço malvado, c
traydor,cuydavas tu depois de nos ter fervido tanto
%empo, com as tuas torpczas,efcaparnos das unhas por
iiu inftantede penitencia , nafcida mais por medo dós
•ftoiTos tormentos , que por amor, que tiveíTcs a DeoS
noffo inimigo ? Agora he tempo de gozar o fruito dos
teus loques, eapalpamentos deshonefíosj toca, apal-
pa i e abraçate com eíks ferros rubentes j e, já que
eras amigo de dar ofculos com a bocca , aííbguea
eíTesteus beyços,e dalhes a beber os noíTos íorvetes
de bronze derretido, para Tctrcfco daquellas entra-
nhas, que íemprc cÁavap acceías^Com ofego da lu-
xuria. Oli , meu bom J E S U S , meu Senhor , e Rc-
dempfOrmeu! E que caro vos Guftàráôeíías noíTas
torpéàjas j pois quiz o voíTo amor iàtisfazcr a ellas,
com o preeo infinito de tantos milhares de atoutes.
Hum fó daquellcs açoutes , ofFcreGÍdo por" vôs ao
voíTo Eterno Pay, com hum vcrdadeyrp arrependi-
mento, e hum firme propoíitopoíTo de fugir toda a
occaíiaõ , baíb , para de efçravos do Demónio , fa-
zemos filhos deDeos , e herdeyros do Ceo. AíTim
fera , fc procurarmos imitar ao glorioío penitente
Saô Pedro de Alcântara , que nem na hora da morte
permittioao Frade infermeyro, que IhetocaíTe hum
P^J cipy taó grande inimigo do íeu corpo , que alem
■ ; L 2 de
de a inakratar: continuamente com penitencias J ^
nhafeyto padto com elle , que em quanto eRiveíTe no-
fía vida , naõ lhe havia de dar gofto algum , ainda qiiq
/„^^^^. liçiroj ç por illo logo depois de morto appareeco a
iJ.Pííri Ssnta Tcreía ,ve£íido de gloria , com dízerihc; 0_í/é*
/íleant. lix fmiíenúa -i qua mihi tantam y gloriam prmnermt»
X3* bemavcnturada penitencia , que me merecGotaiv.
ta gloria. Meu pio , c devoto Lcy tor y fe naõ te atrcr
-ives aíanto, lembrate defte dito dos Santos Padres^
sd74ommt'àmumquoâ deleõfat , aternum quad cruàali^
cOs gollos neíla vida faõ momentâneos j os tormen-
tos n^ outra fâó eternos, Coníidera bem efta verda-
de i a morte , que pode vir repentina y e as penas do
^cclef. inferno, que durâráõ para fempre ; e ficarás deíen-
7. ganado, para nunca mais peccar: CHemeran mvijff^^
ma tim^ & in íeurnum non^
'^ i i í ,
BIS.
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DISCURSO VII.
Do Tormento dos Soberbos,
e Prefumidos.
O pr<zfiimptÍQ pequijjima unde creata es ?
Ecclef. 37.
Hamou Salomão à íoberba,a
vcrdadeyra origem de todas as £aUf.
mãlmá-t^Jmtium omnispeccati vz.
ejifuperbm. E com razaò ( diz
S, Fulgcncio; pois deíla,^ co-
mo dehú:i raiz gencraliíiima,
vao pulando, e prefilhando to-
das as miis eipecias de pecca- £, p^,
dos ; Ideo fnperbia âicitur im- ^p-i^ ad
iium omnís pccaú , ut omne feccatum de ípfa , tanquani Pr,
deradice pnllularemonftreturMh^ primogénita da fo^
berba hc a prefumpção.E íarito mais he pcftilente,e no-
civ.i,qu3nto mais hc oeciilta,e desfarçada . A foberba de
aâoreconhecer aDeos por íoberano , e íeu Grcador>
Oii de quersr moftrarfc independente delle , todos â
|f|l1|
ti I \
%
I>Jhe.
1.2.
i66 pifem fo Vil.
fogem , e abominao ; ainda nem coní^çrando-fe hum
^ homem., por- grande que ícja, foge/to ás miferias
defla vida, lhe ^^^^ pebpènfarnento. Porém preíumir
de falvarfe, vivendo mal , fiado na bondade , e mi--
íericordia de Dcosj e querer continuar no pcccadc^
com huafalfa confiança » de que Deos nsô lhe faltará
com o tempo , de íe confeífar, e poder iazer peniten-
cia» hehuma prefumpçâo diabólica >e humaíoberba
liiciferina, que merece fer punida com os raeímos
tormentos, que o mefmo Lúcifer padece, e pade^
cera eternamente no inferno. Por ifto Salomão , co-
- mo eíiatico exclama : O' frafumfiwmquijjima], mde
íreata es> Oh preíunçaò maligna , e iniquiíTima , aon-
de nâfcenc , e quem te creou f' Eis-aqui { pio Leitor )
toda a matéria rcfumida, e juntamente todo o aíTum-
pto deiie difcurfo , já dividido em dous pontos. Na
primeiro veremos a engano, dos que peccaó confia-
dos na bondade , e mifcricordia Divina. No fegun-
do , o engano manifefto ^ dc^ que cometem a culpa
perfoadindo-fe por certo o poder fazer verdadeyra
ConfííTaõ , e penitencia. O dtíengano deBes doui
enganos, que eu irey delineando ,. he muy útil, e
neceííario, para quem defeja falvar a íua Alma , e
âíilm requer ioda a confideraçaõ , e reparo y pois
be certo, oquc diz S. Bernardo, que por falta delle de-
fengano, efíá o i nferno cheyo de enganados»
He íeatcnça^ quanto mais debatida entre osTheo-
logos, tanto mais ditíicultoía derefolver, aqucllaj,
que S.Thomàs trata na primeyra parte da íiia Theolo-
gia,fobre a qualidade, ecircuníiancias do primeyra
pCGcado dos Anjos. He certiílimo ; e f conforme fal-
ia o Texto Sagrado ) também de fé , que Lúcifer , ca-'
Ifii. 14
mo Primaz y e todos os Anjos rebeldes , peccàraã
de fobevba : Jfcendam fufer aftra "Dei , exaltabo Jo^
hum meum , ^milú ero Miffimo. Subírey íobre as
Eftrel.
Do tormento dos Soberbos. *6f
Eflrellas do Empíreo , e ahi Icvantarcy o meu throno,
cfefcy no governo, e íoberania ícmelhnnte a Deos
AitiífiíDO. A ditíiculdade coníifte, cm explicar, co-
mofoy poíTivel, quehumefpirito Angelixío , taõ fu-
blime, dotada de cantos dons , e de todas as ícien-
cias naturaes,c íobrenaturaesi hiim entendimento
taô claro, tão agudo , e perfeyto enriquecido de
tantas luzes, que por antonomaíia fc chamava Luci- ^
fer , fe eníoberbeccíTe , e maquinaffc húa trayçáo taô
atroz, c mal fundada-, com fe psríuadir, que podia
chegar a fcr Deos ? Ekvatum ejl cor tuum m decore»
Perdidifti faptentiam. Náo fabia Lúcifer, que Deos
he hum lo, e que no íeu throno, ainda que im-
-menío, não podem caber dous aíTenros í Num.nis
hoec fedes non capit una duos'. Naõ íabia , que a lua
Omnipotência o faz independente de todds as crea-
turas , c que eíias todas neceíTariamente em tudo de-
pendem cieile, lendo efíe o íloraõ, mais zeloío da
íua coroa ? Ommfqtie potefias impatíens confortís erit.
•Naò íabia finalmente , que Deos he infinitamente
3ufto,eque a fua jufliça ohavia de obrigar, a punir
hum actentado , o mais horrendo ; hum facrilegio,
o mais execrando; hum crime de leia, e Divina Ma-
• ceíbde, ò mais atrayçoado ; c que Deos tudo vè,
•tudo íabe, e que atè o minimo dcfejò do coração
Ihecflà claro, e patente ? EgoDominus fcnttans cor. Hierl
Sim lábia. Por iào, osmeímos Profetas, q-ie efcre- i/-
vêraóefte fucceíTo a modo de quem não percebe , co-
mo ifto podia ler, o perguntão ao mefmo Lúcifer:
gitwmodocecidiítidecíBlo Lúcifer ? §lí^i dicehas m cor de //*«'. 14
tuOy afcendam fuper alitudtnem nubmm. Vertimtd'
mem a d mfernum detraheris m profunâum laci. E íe
os meímos Profetas pedem a ioluçaô defla duvida;
como a podem dar os Thcologos , cuja fciencia he to-
^jl futtdada nas Profecias , e na Sagrada Efcritura?
L 4, lâ
mÊmmmÊÊÊÊm
«BMMqi
I ,r
I I li
i68 DifcmfõVlL
Já que a Theologia cfcolaíiica nada decide de Ver?
to lobre cílc ponto , me valcrey da Theologia myftica
dcSaò Bernardo , naõ aprendida nas claíTes^ mas dir
tada-lhe pejo Eípirito Santo, naqiielles ermos, aon-
de fe recolhia a contemplar os myíkrios Divinos. Rc^-
iplve pois o Santo. Qiie Lúcifer íabia pcrícytamen-»
tç , quanto temos dito acima , e naõ duvidava da
Omnipotência de Deos^e dafua íabedoria infínitaj
masqueconítderando-íe , como a creaturamais fer*
mofa, mais nobre, e mais perfcyra de todas, fe
deívaecèra , formando húa idea taõ quimérica da bon^
dade , e miíericordia Divina > que preíumio » fer Dcos
taõ bom,c mifcrieordiofo , que antes conlentiria de
telo , como igual no throno } que odialo, para fcm-
pre , e velo padecer eternos tormentos. Eífca prefump*
çaõ quimérica foy o crime enormiífimo de Lúcifer^,
e indigniííimo de todo o perdaô : Inventa eJUniquitaf
D Bem ^^"^ * ^^^ ^^ ^^^^ momentaneam , feâ ad admm , &
^'^^ odium fempttermm. O peccâdo deAdaõjC ospecca-
hnm.gr. dos dos mais homens , merecerão , e merecem a ira
\^ de Dcos. Porem , o attentado da prefumpçaô de
Lúcifer, mcreçeo a ódio naõ paíTageyro, maseter*
no j pois foy dircyta , e diamctrarmente , mn ad
timfiis y fed ffo femptr , contra a bondade Divina»
Ouvi como o melmo S, Bernardo doutamente argu-
menta contra Lúcifer. Naõ he huma maldade mftnf-
truofa , e hum attentado Diabólico > o valeríe da
bondade deDeos,paraoffenderaqiielIa mefma bon-
dade f Naõ he híia ingratidão luciferina o íaber , que
Deos te pôde aniquilar ? Pois he teu Crcador , que
te pòds punir com: huma eternidade de penas yhe teu
Senhor, e teu Deos ^ que de nada te ercou efpirita,
o mais perfeyto , inteliigencia, a mais fublimej c
formaík híi3 prefumpçaô tcmerariiaj rendendo ©mal
por bem, hum ódio entranhave! ,. pela mais- fina ca-
rida-
Do túvmento ão$ Soberbos. ^ c$é§
t\à2iàt\?ofmruní adverfumme malaproknis.&odiíím Pf^^*
prodiWione.E que htm perguntou Saicmaõ.quanap lo»
diffe : Ohprafumptio neqnijfma mde creaía es ? Pois bê
fabia,quc náo teve os léus princípios na terra j mâs^^'^^'
nafceo da foberba de Lucifer,c foy creada no inferno. ^7-
Efta prcfumpçaõ da bondade , e miícricordia Divi-
na , foylogo o engano, que fez precipitar Lúcifer,
com os mais efpiritos rebeldes ícus íequazes,do Parai-
fo no inferno , tornando-k de Anjos em Demónios.
Eíe efía preíumpçaô foy capaz de enganar, e perver-
ter as creaturas Angélicas, dotadas de cntcndime&.
tos, tão claros, e penetrantes; que coufa não fará
com as creaturas humanas í Como não enganará en-
tendimentos rudes , c pelos vicios , c peccados obf-
cuiecldos ! Muyto mais ; que os Demónios põem
todo o feu mayor defvelo , em enganar os peccado-
res com efta preíumpçaô temerária da bondade , e
mifericordia de Deos ', porque, aífim pelo ódio , que
tem a Deos , como pela enveja,que tem aos homens,
não podem levar em paciência, que a mefma bonda-
de, e mifericordia íalve a efíes, c não falvalTe a cl-,
les. He logo neccffario , que o peceador , quando
confiado na bondade, e mifericordia Divina, fe arro-
ja a peccar , confidere com attençaõ, que commettc
hum pcccado , que tem muyto de lucifcríno ; hum cri-
me como diabólico, e da mefma cfpecic daqucUe dos
Demónios ; c, que não íe Mc , nem fe arriíque a tal ab-
furdoj porque infallivelmeme na hora da morte fe
achará enganado, como fe acharão , e fe aehão ca-
da dia tantos outros. Mas porque efle ponto he de
grande importância , darcy logo algumas provas , que
ferviraô de hum total defeogano je argumento aiTini.
Ou vôs pec^eador , que dizeis , que Deos he bori?^
ctão mifericoídioío , efperaes , que elic perdoará o
VoíTo peccadQ , depois de o ter oííendido ? Ou naof
.-. , . Sc..
• *'<'. .K*
m
sfò lÀ.. Dí/cfír/o VIL
Sevòsnioeípcracs o perdaój não he ifto ter perdi-
do o juízo ! Querer o goíiode hum momèíito , c
fabcr decerto, que depois haveis de penar eterna-
mente no inferno ! E ncfte caio , como podeis di-
zer, que Deos he bom, pois paravòs íe moitrataõ
-juílo, e riguroío ? Se pelo contrario y cíperacs ícr
perdoado j e que mayor moníiro de ingratidão , e que
inimigo mais pérfido podeis íer (como diz S. Pedro
Chrylologo), que , por íer Deos bom, e mifcricor-
dioíò, fazer vos mais cruel tyranno ! Fteri deDomim
mifitaúòm crudeles. Vos dizeis , que Deos he bom,
t itiifericordioío. Aílim he. E a íua mifericordia he
tnuyto mayor , que a noíTa maldade : Maior eji mife-
'yíu»/il,'^^^^^díà tua , quam iniquitas mea, E com tudo vôs
rConf, ciefmentis efta verdade, com querer em hum certo
modo, igualar a íiia mifericordia infinita com a
VoíTamalicia infinita; em quanto de hum bem infini-
to, qual he a bondade de Deos, tomais ouzadia de
cometer hum mal como infinito , qual he o peccado
totalmente oppoflo a Deosj e ifto nâohc, em huma
certa m meyra , querer igualar a voíTa infinita malícia
f)or relação á fua infinita bondade 1 - j -
• Deos he bom; Deos he mifcricordiofo. Vôs di-
èéis a verdade; mas não dizeis tudo. Deveis também
éi^çx \ que he juntamente jufto > e com quem ufa da
fua mifericordia; e com quem exercita a íua juí^iça.
Quereis íaber, com quem Deos he bom? Oiiç.imos
os Profetas: Quam h ónus es Ifrãel Deus its s qmrcão
funt corde. Oh como Deoshe bom para todos aquèl-
les ,que tem o coração recílo ! Benefac Domine bonis.
Senhor ufay di voíTa miíericordia com aquelies , que
viv:m bem ; Bónus ^ Dominus anima qiurenú ilkm.
De )shs bom àquellas Almas, queo buícáo, eoamac;
mas nunca diíTsraô , nem dizem , que he bom para
aqueilcs , que o oíFcndem , e buícaô o Demónio com
o pcc-
PfdLjz
Pptím.
124.
Do tormenta àes Scberhos, i7f
lá peccada. Quereis íaber , para quem he jufío ^ lOu-
vi o oráculo do Efpirito , que não pôde mentir ,
nem enganar, emlfaias: Fa imptim in malum ^re- Jfai '^,
tributio enim fet ei. Deígraçado do peccador ; pois
receberá a íeu teinpo o caíiigo do íeu peccado. Em
Job , que íempre tremia , íabendo , que nenhum
peccado ficaria nefta vida impunido : Sciens , qtiodfohq\
non fárceres delinquenú. Em Ezechiel. Que Deos
dcícarrcgará o íeu furor contra os peccadores cbfti^
nados, eque naõ terá compayxão dellesj nem lhes
perdoará , e conhecerão todos , que he hum Deos ju-
ib , que caftiga,eíabe caftigar a feú tempo os ítus
inimigos : Immittam fttrorem mívm , mn mifirebor,
& non parcet oculus meus , & fctetU\ quia ego Do- Ez.ecbl
mmuspercutiens. E o Profeta Naum não fâiia fe naõ 7-
cm hum Deos zelofo da fua honra , que íc vinga dos
peccadores, e armado do feu furor , naõ ceíTa de
períeguir os íeus inimigos: Vens amnlator -^ & ^^l- jsiahum
cifeens Dominus , & habens furorem ulcifcenslDominus /,^.i.
contra hojtesfuos, E Saò Paulo diz , que a ira , e indig-
nação de Deos, as tribulações, e angufíias, cOejnô íem-
pre atormentando aqucllas Almas, queobraõ mal; Irat
& indignatío^ tribuUtio „ & anguftia in omnem animam R^m.zl
o^erantis malum.
Deos he bom; Deos hc mifericordiofoi e euac-
crefcento, que o he infinitamente mais , do que vds
dizeis , oucuydais, e do que vôs podeis dizer, e
imaginar. Porém nunca achareis , que tcriha pro-
mcttido a fua mikricordia a nenhum peccador em
particular. A concede íó aos feus cícolhidos , c a
quem melhor lhe parece , e tende bem no fentido
cfia verdade taô importante , e vos íirva de deíenga-
no, e vem a íer,que por grande , e infinita que
fe'}a a bondade , e miferieordia Divina , Deos a exer-
cita^ para com os peccadores muyto menos , do qtic
âíua
f ]
sii
«/i Bifem [o VIL
afuajuftiçai não porque Ocos não fcja mais incíl^
nado a perdoar} mas porque à obíiínaçaó , c mal-
dids dos Réprobos, aííim o pedem» como veremos.
Lea qualquer , que feja , toda a EfcriCura Sagrada,
o velho , c novo Teftamento } e cu vos aíTeguro , que
não achará hum fó Texto, qi-is prometia a miíericor-
dia, aos que offendem a Deos obftinadamente 5 acha-
rá bem íim , que a promstte , e dà , a alguns poucos,
que arrependidos defejâo , c pedem muy de ve-
ras , ferem reílituidos na fua graça ; mas efíes ( diz o
Profeta líaias ) que faõ taõ poucos , como iaó ra-
ros os cachos de uvas depois da vinha vindimada:
§luomodopauciracemi^cum fmrit finita víndemia. E
/fm.%^, Q pnjiíeyro Vigário de Chrifto , Saò Pedro , faz o nu-
mero dos cícolhidos , taõ limitado , que o compa-
ra às oy to Almas, que fe íalvàraô na Arcaj em compa-
ração das muytas , que perecerão no diluvio : ^rca
,^^^^^' inqua, fauc^ ^ideft oão anm<e ^fâlv£ fâBa fmtper
^\ aquam. E o meímo noíTo Senhor JESU Chrifto , per-
guntado,fe era verdade, que muy poucos íe haviaõ
dcfalvar f ílcípondeo : Contendi t tntrare per angu-
LncAiftam portam, quée ducit ad vítam Morcificayvos,
, " e fazey o poíTivel , para çntrar pela porta eftreyta , que
vos leva ao Paraifo} porém íaõ muv poucos, os que
Mm\i, a achaó aberta, e entraô neila : Et pauci fiint, qiã
7. invemunt eam. Argumentay agora , íb vôs íois do
numero dos poucos efeolhidos , pai4Ci vero ek^íh
Ou daquelles, que com a temerária prefumpçaõ, de
queDeos he bom , buícaô o caminho largo, que
Conduza porta da percliçaô, por onde muytos entraõ:
Matth. §u^ ducit in perditionem , & multt fmt , qui intrant
7.13. percam. >
Deos naõ he íómente bom , e jufto ; mas he to-
do poderofo.; , immenfo , infinitamente grande , fa.
hio^ c Santo , dotado de hmii numero infinito de
per-
Do Mmmodvs Soberbos. ,^i^
perfeyç6cs l é aífím quando cometeis algum pçccadp,
naõ ha duvida que.a.todas ofFcndeis, c todas ficão vof-
fas inimigas : Manus tua contra omnes,& manas omnip Gmf.i
contra te. Pois todas eftas pcrfeyçócs íaó huma mefma
eoufa entre íi , como também faôhuma meímacouía
com a eíTencia divina, Ifío íuppofto. Que prefumpçaò!
Que temeridade execranda feria de hum Vaffallo,
que featreveíTe afrontar a peíToa Real do íeu Prínci-
pe, fiado na protecção de hum fcu Patrono, que
tem por íeu Amigo j porque fabe , que he Valido,
epòde muyto com o íeu Rey ^fcm confiderar, quç
na meíma Corte baviaõ milhares de Cortezáos com
ameíma graça , favor, e valimento, e efles como
ofFendidos, e zelofos da honra do íeu Rey, logo fe
fdziaõ voíFos inimigos declarados , e lhe pediaô fc
eíqueceíTc da fua mifericordia , e triunfaíTe aíua jU'
ítiça com punir exemplarmente lemelhante prcíump-
çaõ, e atrevimento. Todas as perfeyções de Deos
íaó delle igualmente amadas, fe faz a meíma eíiima-
ção de humas, como das outras J^ pois todas íaô do
mefmo modo amáveis , Divinas , e infinitas. Vede
logo, quam mal fundada he a voífa preíumpçaô, na
ibondadc, e miíericordia Divina, com querer huma
psrpctua batalha das perfeyções , contra as perfey-
ções j levantar huris atributos, contra outros atri*
butos ; e finalmente armar Dcos contra Deos. Não
he ifto procurar a fua ira , o feu c dio, e a íua eterna
vingança ( como diz Saõ Paulo ) ! Ira^ & indignatio & Rm.^l
étngtiftia in omnem animam operantis maUim,
Deos he bom, e mifericordiofo. E fe eu agora
vos provaíFe,que a meíma bondade, e mifericordia
de Deos , que vos cuydais fer voíía Protedora, he
a voíla mayor inimiga je que 3quclla,que vos toma^
Bes por voíía Advogada , íe unio com as partes aggra-
, c ke vo€a contraria j e que as armas , que
ti-
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i lii
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cfcoítisfíes ^ para aífcgurar a :vo€á dcfcía > ícrTif-
fcm , para pelejar contra vòs, pondòvos em total
rtiiíia, atê vosdãr nô mefmo tempo âmoítfí rempo-
ral , e eterna. Que direis emão ? Que Deoshe
fcfn , e miícricoi-diofo ? Bonns t & mifericois Do-
mintts, Ou que lie jufto,e vingativo ? Deus ultionum
r j i'Dominus t jujius, ac rectus. Eu bem poderia rra:2:ir
22, ' aqui hlí a quantidade grande de exemplos , e todos de
Autlioies graves, e de fama , com que prova íTe efta
verdade ;màs, porque, com íerem eíles fidedignoá,
^aõ faõ por ifto de fé, me valcrey nefta occafiaò por
-prova evidente de hum exemplo da Sagrada Efcritu-
ira, que quanto mais he fabido de muytos, tanto menos,
Ijebímconíideradovainda de poucos. -'
Querendo o Texto Sagrado refumir cm compen-
dio afunefta hiftoria do delgraçado Aman, começa
com efla fentença ,que foy o fundamento da fua rui-
Eíiher. na : Multi bonltate Primipum abufi funt tn fuperbiam.
i^- Que muytos abuíando-íe da graça, e favor do fcu
Rey , prefumem de poder tudo , c uíaõ tyrannias com
òs povos. Efta foy a culpa, e a defgraça de Aman,
que chegou a tal altura de valimento com ElRey Aí-
fiiero , que ordenou , que o feu aíTento foíTe fobrê
todos os Grandes , e Magnates ào fcu Império ; e que
todos 03 Teus fubditos, eav o vendo , íe lhe ajoèlhaf-
fem /Ihc^obedcceíTcm, e o adoraíTem : Rex Afftierus
ÉJlhsr. 'exãítãvit Aman^ & pofuit/olium ejusfiper i mms Prin-
i> ■'- cipes ^ cunãiqite firvi Regú fieítebantgenua , & adô-
rabant Aman. Sic énhn fraceperàt eps Imperator, £'fíc
éaò alto valimento fez cahir cm tal prcíumpçaõ a
Am^n, que para fe vingar de Msrdoqueo, que nãõ
íc queria ajoelhar, quando entrava, ou íahia do paço,
determinou de d ir a morte, na5 fó aelle , mas tam^
Be Ti a toda a fua naçaõ Hebrea , paííando edito a ro-
as cento e viate fcte Províncias do Iijiperio;
Do têrménfô âm Súherhos. i% f
pâfàquc em tal dia determinado, foíFem todos cru-
ciíicados. Parece , que a fortuna queria exaltar ain- ^1
ida mais a Aman , pois a Rainha Efíhtr, convidando
a ÈiRey AíTuero, íeu Conforte , a hum grandiafo
banquete, que lhe tinlia preparado, pedio lhe , que
•Aman reccbeííe cfta honra , de comer com as duas
peíToas Reays na mefa , e logo lho concedeo , eo mefe-
mo Rey o trouxe comíigo : Venerunt itaqiie Rex ^ & EJIher,
Jlmanad convivitim , qttod eií Regina paraverat, Naé j.
ha mais , que fubir no valimento , nem ha mais,
que efpcrar de hum íimples íubdito , que náo nafcco
Príncipe i ou naô tinha fangue de tefla coroada; Uw E/iher:
to a íTim, que tornando elle ao íeu palácio leetus y & ^^
.<?/í«fi?r, alegre , e contente , narrou as honras ,e glo^
^iasíj, que tinha recebido , eípeciaimente da Rainha
Eflher , quede tantos Princepes, e Grandes, íó a
ElRey,eaelle convidou ao íeu banquete, convidan-^y?;^^;.;
do-o também para o dia feguinte : Regina qfíoq^iéiT^.
Efiher ^ nulhm aJium vocavtt ad ccn^uivium ip7'^ter
me apíid quem etiam eraspranfiirtis fum. Aqui chegou * T
oçumedapreíumpçaõ, e foberba de Amanj porque
mandou levantar nofcu jardim Ima grande cruz : ^uf^
fitex ceifam fraparari crticem. Para que y no templo]
qucelléeftava jantando com a Rainha , Mafdoqueo
foíTenella crucificado. 'Eque pouco durou eíla feli-
cidade! Oh fortuna potens ^ qmm variabilu l Nnòfa-o^íi^
bia Aman , que a Rainha Eíiher era de naçaõ do po^
yoefcolhido,que elle perfeguia a fogo , c íanguej
eque Mardoqueo além de fer íeu Tio, por morte
dos parentes lhe foy feu pay nutricice a tinha adop-
tada por íua filha herdeyra , e ficou pafmado,;
quando tornando ao banquete , ouvio aEílhcr, que]
pedia vingança ao Rey da Aia preíuiTnpçaõ , e cruelda--^
de ; -HofiM , & inimkm mfier pejjmns , eft ifte Amam
Epáraaplacar a ira dcEÍRey íoy neccíTario , -que;
^i do
J
I
II
'dô banquete paíTaíré ao meimo patíbulo, que tíbhl
ífih. 8. prcparad0,para Mardoqueo: Sufpnftis eft itaque Aman
mpduhih^^uõJpdraverat iMardocheo. Et ira Regis
^iíiwit^ ;.:-:-.■■ ■ -■
í Efta hc ap pè da letra a íuftancia refumida dá
fatai tragedia do deígraçado Amani que fe do íen-
tido literal defta Sagrada Hiftoria , paíTarmos , con-
forme a doutrina dos Santos Padres , e facvos Expa-
íitores, ao íentido myftico. c tropologico, acharei
mos, que ella he hum verdadeyro retrato de todos
aquelles peccadorcs , que confiados na bondade , c
miíericordia de Deos , o offendem , e prefumem te-
mcrariamente falvarem-fe. Eno inopinado ,ehorro-
rofo caftigo de Aman , eftá perfeytamcntc delineado,
que quando elles cuydaõ viverem mais deícançados,
efeguros na culpa ientaô a juftiça Divina mais irrita-
^ da deícarrcgafobre cUes hua morte improviía , que do
banquete dos feus goftos , os faz paífar de repente ao
penofo patíbulo do inferno ; Cumdixerunt^ fax &fi'-
thcf^. ctiritas , tmc repentinus eis/uperveniet mteritus.
Seymuy bem o arrezoado de muytos, quedil-
Gorremafíim. Eu naô fou taõ defcuydido da minha
falvaçaô, que queyra arriícar a rainha Alma , vivenda
no mar tempeftuofo ds tantas culpas.entre os abrolhos
de tantas payxoens , em hum batel , que tem a unica
ancora da bondade de Deos , em que íe affegure. Te-
mos de mais amais, hum ancorote, em que nos fia-
mos, e nos damos por íeguros. Efle he a devaçaò à
BeâtiíTima Virgem. Huns dizem , que íaõ daCon^
fraria ds noíTa Senhora do Carmo , e que tuazcm com-
fiíToo íeu Bentinho , e nunca comem carne nas quar-
tal feyras. Outros , que faò Confrades do Roíario,
que olevaõ femprc comfi^o , c orezaò fcm falta to-
dos os dias. Ha também alguns, que tomaô o titu-
lo oncroío de Efcravos da Senhora , trazendo nobra-
Do tovmmto dos Soberbos. « 77
cohuacadcínhapor final doíeii cativeyro, com pa-
gar-ihç todos osSabbadoso tributo de hum jejum ri-
^orofo. Eíks todos , muy confiados , pre fumem , e di-
zem aflin. Efteancorote da dcvaçaõ a NoíTa Senhora
he , o que tem maó na ancora da bondade , e mifcricor-
dia Divina; pois íendo elia , como canta a Igreja , Máy
de miíericordia , c refugio dos peccadores ? Mater m-
fmcordi^^Refngium Peccatorum. Nunca permittirà,
que tantos léus tlevotos padeçaò para fcmpre no infer-
no hum naufrágio erer no.
Oh engano dos enganos , que quanto mais cncuber-
,to, tanto maispcrniciofo! Nao ha pcyor tentarão do
Demónio, que quando elle,fendo o Príncipe das trevas,
fe transfigura em Anjo de iuz,emoftrando.fc zelofo
de f .Ivar certas Almas , ns move, e as incita, a algumas
devaçõcs, e também penitencias exteriores , que na
aparência cobraõboa opinião no Povo , e ihespro-
metrccomcllasinfaUivelmente oParaiío; ena reali-
dade , continuando com mayor confiança a peccar^
as leva á rédea foi ta ao inferno, E quem havia de cuy*
dar , que de dous ingredientes taô perfeytos , de dous
antidotos taô fantos , como faô a mifericordia , c bon-
dade de Deos, e adevaçaò a NoíTa Senhora , pudeíTe
fahirhui compodçaò taõ diabólica, hum veneno taõ
refinado , como he huma prefumpçaõ temerária de fal-
varfe com multiplicar peccados. lílo fuppoftoj que
diríeis vÔ3,{e eu agora vos fizefTe ver, e tocar com
.amâo,quceíkvoÀoancorote da devaçaõ da Senho-
ra, em que pondes toda a voíTa confiança , fera q pri-
,nicyro,que maisdepreffa vos puxara a vos -, e ao voíTo
batei, a pique no profundo do inferno f Dayme a t ten-
ção, c firva, o que fc legue, de hum verdadey ro deíen-
gano à voíTa temerária prefumpçáo; e tornemos àKair
,nha Efther , poisa íua hiftoria he cheya de grandes my-
íierios, e admiráveis documentos.
M To-
M
/
Efther.
178 Bifem ft> Vil.
Todos íabem, que a Rainha Efíbcr era ào Po-
vo eícolhido, e também afigura da Rainha dosAo.
jQS , a, Virgem noíTa Senhora ; tanto íiílim , que os
Expoíirores Sagrados entre tantas Profecias, e Tex-
tos do Teftamcnío Velho , que provaõ a Conceyçaô
da Senhora , fcr immaculada ? admiraô as palavras,
que EiRey AíTuero diffe à Rainha Erther; pois cia-
1'a, c diíiintamentc publicaõ o privilegio, que re-
futa.ç annuUa toda a duvida; Efthtr nonm»-
rieris, non enim pro te.fed proommbus hac lex con-
fittuta eft. Peio que aquella \ty univeríal , em que os
dcícendtntes át Adaõ omms peccaverunt , ainda que
'«'"»-3»foyfeyta para todos pro ommhus, naô foy feyta pa-
ra a Virgem NoíTa Senhora non pro te i pois no pri-
meyro inftantc da íua Conceyçaô foy prefervada. Ar-
gumcntay agora aífim. Se a Rainha Efíher, por fcr
doPovoefcolhido, foy a primcyra, que pcdio vin-
gança a ElRey AíTuero , para que logo mandaíTc
executar a fentença de morte contra Aman ; porque
perfeguia ao fcu Povo. A Rainha doCeo, que além
de íer doPovoefcolhido, hc Filha do Padre Eterno,
Eípofado Eípirito Santo , e May do Verbo Encarna-
do j que juíliça , c que vingança naô pedirá ella â
juftiça de Deos , vendo , que com capa de íeres feu
devoto , crucificais dçnovo com novos peccados ao
feu bemdiro Filho! íternm crucifigentesvobis metipfis
FiUtm Dei OíFend.eis a SantiíTima Trindade , e a todas
J^ebrS as pcrfeyções divinas, com as quaes a Senhora tem h«a
correlação taõ tfíreyta.
Finalmente quero acabar efíe primeyro ponto
com hum dilema , que tal vez vos poderá conven-
cer. Ou vòs conheceis a bondade ,c mifericordia de
Deos ? Ou naô ? St vos a naô conheceis ; porque
pondes todas as voíTas efperanças cm hum objcdlo,
que naõ fabcis, qual he ! Sc vòs a conheceis , g,
fia-
Do tormento dos Sõberèou «7?
ííadôs nclla , cometeis novos peccadosi prefumis
tcnierariamentc , que a bondade , e mirericordia
de Dcos , por íer infinita, vos perdoará. Mâá nii^o
eicímo coníifte o voffo engano , porque (como diz
5.Joa5; vôsíois Imm mentiroío , pois dizeis, que
conheceis a Deos, e no mefmo tempo o ofFcndeisj
ifto henaòfallar verdade jhe huicraíTa ^epura men-^^í^w.i:
tira: §ui dicit , fe nofe De um, & imndatãejtis mn ^•
^MftoÀit , mendax ejt , & ventas m eo non efi. Eiía
prcfumpçaõ de poder enganar a Dccs , comdefpre-
zar a lua' bondade , e abafar da fua paciência (diz
S.Paulo) que he hum querer viver íempremais en- A'tfw.4.
ganindo: An dtvttiasbonitdtisejus^& patienti£ con-^-
temnis. EOa voíTa dureza , e obitinâçaò , e cite voíTo
coração impenitente, vaõ cumulando , e entheíou-
rando a ira de Deos contra vôs ; declarando-vos , e ^
conftituindo-vos anticipadamentc por precitos no
feu re6ío juizo: Secimdum âtttem dtiritiam ttiam , & Rom.z:
ímp£mtens cor thefatinzas tihi iram m diem ir^ juftt 5.
judiei Det. Bem fey , que huma grande parte dos pec-
cadorescoílumaò dizer: eu nunca experimente^ na
minha Alma eRa dureza , eobílin^çâo, c muy to me-^
fíos o meu cornçaò he inclinada a viver , e morrer
impenitente. ConfeíTo , que pecco como homem,
•e fou rambcm recidivo í porém quando me refolvo
a peccar, já finto em mim hum principio de arrepen-
dimento } c depois de cometido o peccado huma rcío-
luçaô firme de confeíTarme, e pormc bem outra vez
com Deos. EOa he a matéria , que devemos tratar
no íegundo ponto. E,íe opeccar, preíumindo te-
inerariamcntc o perdaõ da bondade , e miícricordia
divina, he o engano dos enganos i o peccar com a pre-
íumpçaõ de confcíTarfc logo , e fazer penitencia , he o
engano dos enganados íem remédio; dos quaes, (como
veremos) lá eftá, e cftará íemprc mais cheyo o inferno.
. Ml AqucU
^
Fj
1
t
; í
1
Segun-
do Pó-
10 i
Chryj.
ep. aà
Cor-,
D.Amb
Serm 9.
fíe uf».
iSo tiffcmfo P/A
Aquelle grande Doutor da Igreja Saô Joaô Chryi
foftomo , conliderando a divcríidade dos artifícios,
de que fe ferve o Demoob , para impedir a ia Iva-
çaó de noíTâs Almas y avança huma propofíçaô, que
á primeyra^vifta parece humparadjxo/c,bctB pon-
derada, naõ he, íe naõ muy importante, e verda-
deira. E diz , que o Demónio leva a muytos ao in-
ferno pelaeíirada larga do pcccadoj c a muytos ou-
tros pelo caminho eflreyto da penitencia : AM03
per pccatum , aliõs per panitentiam áammu Levar
ao inferna pelo caminho cftrcy to da penitencia \ Efíc
hehumeftratagema nunea ouvido ^ huma contramina
nunca vifta , ehuma contrabataria de nava invenção»
he baternas , e combatemos com as noífas pró-
prias armas ; be levantarem os trofcos com; os in-
fírumentos das noífas vitorias i e finalmente f coma
diz Santo Ambrofío ) he levamos para o inferno peio
eami nho do Parai fo^ ficando o noíTo único remedia
íendo> o íeu mayo^r triunfo : Remtdmm mfirum fit
BíahõU triumphus. E aííim he , pois- hum grande
numero de Chriftâos, dosCatholicos amayorpartc»
por naõ dizer qiiafi todos aquelks, que vaã ao inv
fcrna ,. clles mcímos fc eondcnaô pela peniíencia,
ou prefusiida; ou iilegitima , ou nãa executada..
He cGuía certa, o quedeyxou efcritoo grande Mií^
fionariô^, que falia por experiência , que de cem Ca-
tholicos , que fe atrevem a cemnictter o peccado , mais
de oytcnta tomaõ cíía ouíadia , peia prefumpçaõ,
que tem de fazer penitencia , dizendo comíígo, de-
pois, que nòs tivermos íatifeyCo à noíFa piyxaõj
c contentado o nofíb appetite , nos confcíTarcmos ,. c
faremos penitencia 5 c deíiesoy tenta, què prefumem
fazer penitencia , haverá ao menos feíTeota , que con-
tinuando nos peccados nunea a faraó f porque lhes
ialtarâ o tempo 5 como vercflios adiante, £ dos viní-
Dõtoyffíentõ dos Soberbos. 18 1
te, que a fazem, a fazem illegitima , diminuta , ou ícm
o verdidcyroarrepentiimento.
Vòs dizeis , que quereis fâzer o voíTo gofto , e
contentar ovoílo appetite , fiados naeíperança de
vos arrepender. Muy boa propoíiçáo heclb, para
hum homem, que tem o ufo da razaó / O motivo
hemuy lindo jC o fim hc muy acertado, por hum
Catholico, que defeja lalvarfe ! Foy convidado hum
Filofofo anrigo , a entrar em certa caía pouco hone-
fía, que pela Helena , que morava dentro, era a^^^^
perdição da mocidade de Aihenas. Reípondeo 10;£>w^.
go reíoluto ; E^o non mo tanti pcemtere. Eu naò
compro por preço tão caro o arrependerme. A rc-
pofla foy verdadeyramentc de hum Filofofo ,que dif-
€01 rc ,c ainda que gentio combinava o principio da
obra > que pedia hum íemelhante invite, com o fin,
que era depois arrcpenderfe: Ego tanti non emopce"
nitere. E vòs com o lume da fé, e com a luz do E-
vangelho difcorreis todo o contrario , pois o arre-
pendimento, que ao Filofofo íervia de freyo , para
nãopeccar, fazeis, que vos íirva de elpora , que
incite a voíTa prefumpção temerária a commctter mais
depreíTa o peccado. Quando vòs vedes, que algum
VoíTo parente, ou amigo, quer entrar cm alguma
locicdadc , ou contrato, fabeis , que provavel-
mente vay perdido , depois de lhe ter dadas muy-
tasrazoens, c clle reíoluto não íe rende, coQumais
dizer-Ihe por fim. Entray embora no contrato , que
nãopaíTará muy to tempo, que ficareis arrependido.
Para diíTuadir a hum voíTo irma5,ou a outra qual-
quer peíToa de voíTa obrigação, de alguma obra, que
alémdefcrde deícrcdito,traz comfigo toins confe-
qucncias , depois de o ter convencido com 03 mais
fortes argumentos 5 cellcpcrfíftc íemprc mais duro,
c confiante na íua rcfoluçáo , acabais todo o voíTo
Mj. ^^z
tn
; I
Í.UI
V^i Dlfèurfo vil
difcurfo, c ô fechais com eíias palavras, que vòè
fervem como de conclufaô. já que o quereis aífim,
fazey n voíTí vontade ^ mas vos aíT.guro, que logo
vos arrependereis. Sendo ifto aífim J como lie pof-
fivel , que do arrependimento , de que vos íervis^
para diíTuadir aos outros das culpas , vos firvais
também, pira commetteraos mais enormes delicftos^
Gom^ dizer , me arrependerey , me confeíTarey, hvcf
penitencia \
Digo n:ais , que efta propofíçaô ; quero fatisfa-
zcr ao meu appetite : quero eommetterefte peccadoi
porque depois me arrependerey , e confeíFarey ; naf-
cc de hum entendimento erróneo, e de hum juizo
enganado, pois nem ha forma de dikurío redo,nem
tem connexaõ entre as partes , porque a natureza
corrupta he inclinada ao pcccado , c por ifto lhe
quereis dar aquelle gofto 5 e porque fabeis , que a
pcccado he eíTencialmente contrario a Dtos , que
não o pode deyxar impunido , e vos o pagareis com.
fer caíligado eternamente no inferno \ por ifto fempre
vos enganais , dizendo , que vos arrependereis. E
porque naõ dizeis antes affim , diícorrendo com a
razaõ, c com o temor de Dcos, como diícorreraõ,
ediícorrem todos aquelles , que de veras querem
íâivarfe. Se cu faço o meu goíio, e commetto cfle
peccado, efte me ícrvirá de entroduçaõ , para com
mais facilidade commetter outro , e depois outro , t
ouírosTem fim , como me tem fuccedidojá tantas ve-
zes, dizendo fempre ; me arrependerey , me con^
fcíFarey, Quantos forem os meus peccados , cantos
Icraó os fuíis , que formão a corrente mais compri-
da, epezantc, com que o Demónio me tem prefo^
Thr.i. c atado: Aggfavavit compedem meum. E pela força
do mao abito, e appetite brutal predominante , já
me coníidcra,/e traía como€fcravoíeu,a ellc ven-
dido
.»<>' BI
Do tormntõ dos Soberbos* » 8 3
dido pelo prcçQ de tantas reínciJencias peçeaminofas,
íem nunca ter dcile efperança do refgacc , ou de me li-
vrar d s Tuas mãos : Dedit me m manam ^ de quanoup- Thr. f,
terof-urgere. Eíic íi r^que hediícurío formai, reClo, c de ^J.
quem vi ve já deícnganado , e com deíejo íoUdo da íua
íalvaçaõ.
Irritado Deos contra Achab Rey de íírael , por
ter morto a Naboth,': haverlhe ufurpado a íua
vinha , ordena ao Profeta Elias , que foíTc intimar-
ihc a íentença de morte. Chega Elias á audiência
do Key, o qual lhe à\^t\Num, mvenifti me inimir
cum tibi? Por ventura achaftes , que eu íou voíTo ini-
migo ? Reparemos na repofla de Elias : hiveni ^ ^^ Rey\
quodvenmdatnsíis, ut [aceres malum ceram Domino. ^^^ '
Tenho achado , que vôs mcímo vos tendes vendido,
çfcytoefcravo,parapeccar, c offender a Deos na
fua prcíença. Eílranho modo de faliar he cfte do
Profeta! Se Naboth já era morto, ea fua vinha já
cftava ufurpada, parece , que devia dizer , que £c
tinha vendido por cfcravo dos crimes , que já tinha
feyto, eoquodfecerii malum; e naò peios peccados
futuros , que havia de fazer ! ut f aceres malum. Pro-
va-íeiíio com a fcntença , que Girino diíTe por bo-
ca deSaõToaò Evangelina: Amen , amm dica vohis , „
omnú qtufacitpeccatum ..fervus ejt peccat/. Diz bsm
o Evangeliík > admoeflando a todos , que nsõ fe
arrifquem a peccar , pois o peccado he por fua na^
tureza hum veneno taó maligno» que no mefmo in-
fiantc , que fe commctte, caufa a morte da Alma:
Peccatum^cum confimatum fuent , generat mortem.
E conílituc opcccador, efcravo do íeu pcccado ,e/^^'W.
do Demónio. Mais, o Profeta, que vay a converter ^^'
a Achab, Ihereprefentao infelice cftado dofcu ca-
tiveyro ; que hc amontoar peccados íobre ^tc-^
cados,p9Ísíeiidp-ÍÇ VÇPíjido aos peiíiQfiios , c fey-
1^4 Dtfcurfò Vil
to cícravo dos íeus appetitcs, íenaõ recorrer a Dcos, c
não fizer violência a fi ; lhe fcrà ncceíTario obedecer a
clles^comoa feusSefibores, pelo que diíTebem ; E&
quoâ vtmmâatm [is yUt facetes mahm.
Quem foffe viíirar as galês de Nápoles, ou de
Sardenha, acharia entre aquella chuíma de gente
três claíTes de cícravos, huns malfeytores infígnes,
que a juftiça , por aderências , ou algum outro mo-
tivo, lhes trocou opatibulo em ficar condenados a
hum remo perpetuo» Outros tem a íentença por dez
annosi q«e pela má efíancia , epeyor mantimento,
vem reputado o meímo, que cm toda a vida •, e fe
os crimes faõ menores , a pena também hc fó de
quatro, ou cinco annos. Aterceyra forte de efcra-
vos faò , os que chamaô voluntários. Achaò íc
moços vadios , que por naõ trabalharem , nunca
quizeraô aprender officio. Para íervir , ninguém os
quer ; porque faô conhecidos , e inclinados , hyns
a Bacco , outros a Vénus , e como lhes falta o di-
nheyro , para comprazer aos íeus vícios , buícaô o
Capitão de huma galè , pcdem-lhe cinco , ou íeis
moedas de ouro , e fazem-lhe obrigação por efcrito
de fervircm deeícravos na dita galé, por bum , ots
deus annos, conforme o contrato entre clles eftipu-
lado. Parte a galè , c depois de alguns mezcs de
corío , torna ao ícu porto. Quem havia de cuydar,
que cfíes forçados voluntários , tendo experimenta-
do o fuíiento de bifcouto negro , e duro, com huma
medida de agoa com bichos , e hum fedor intolerá-
vel da ícntina, pediffem de novo dinhcyro , para
íatisfâzer a íua payxaõ , que , devendo cfíar , fe
não morta, ao menos mortificada ,reíuícita taó fa-
minta, que obriga os miíeraveis voluntários a per-
peruarfe no caíiveyro ! Se mais o ConfeíTor deffc
pòr psnitenciâ a qualquer deOes moços vadios em
de-
,h:'
Do mmente àesSohevbos. * ^ 5
dcfconto dosfcus cnorrrcs peccados, qiie foíle ícr-
virpor dous mezcs, com os mais forçados na ga e,
rcíponderia logo, que cra impoffivcl, poder cllc
fazer tal penitencia j pois a galé he o inferno deita
vida ; c poRo que Dcos , o tinha creado liberto,
não era feu credito , que appareceffe cativo i nerrl
por duas horas. Confideray agora com cita repolta
9 tyrannia de hum habito viciofo , e a força , que tem
de envolver em taicegueyra o entendimento dos ho-
mens , que todas as vezes , que pcccaô mortalmen-
te , vendem ,e revendem a íua Alma ao Capitão in-
fernal, c feytos cfcravosdo fcu apetite quanto mais
osfartaô, tanto mais fe rendem iníaciaveis, e com
o engano de íe arrepender , e confeíTar , peccarào
c mais peccarào , e tornaràó a pcccar , atè que do
cativeyro , e inferno defta vida , paíTaràô com huma
morte improvifa ao inferno eterno da outra: Venunda-
iusjís , ut faceres mahm.
Não ha homem no Mundo por malvado , que le-
ia, que, fendo Catholico, enaô tenha perdido total-
mente a fé , nâo tema a morte, e muyto mais o
Inferno., Pelo que todo o feu dcívelo he querer vi-
ver mal , e morrer bem. Conhecem todos os pçc-
cadores , que , continuando no peccado , o Demónio
oscnganacm vida j mas prefumem , que Dcos lhes
dará tempo de fe confeíFarem , e arrependerem , e
aflTimnahora da morte o Demónio ficará enganado.
A tal engano, e a tal atrevimento exclama o Profe-
ta líaias : Audite verbttm Domint , Viríílhfires. Vi- jj-^i^^^
xiíiismim^prcuijjimusfadiíscum morte, & cum in-
ferno fecimus faHam. Chama a tftes tais homens^ //-
h/ores^ enganadores por ironia, pois elles , faô os
enganados. E quem ha nefte Mundo , que poífa fa-
zer tregoas com a morte -, pois falia taõ claro o
Evan-
1 1
I I ^'1
li!
1^6 Dífcurfo VU. '
Evangelho, c â experiência , que quanto eila^fic
mais certa, tanto he mais incerto o lugar, e o tem-
po. Virá como o ladrão, e quando menos o cui-
j-^^y^ .darmos : Sicut fur in m5fe ita 'venkt..... Çluabora
non puíatií. E que padlo fcrà cfte , que tem fcyto
^^^,2, com o inferno? Et cum inferno fecitmt^ paãttm. O
pado coníifte , em que o Demónio lhes promette, que
antes de morrerem, teraó tempo de fe confcíTarem,
c arrependerem ,c quando falte oConfcíTor, faraõ,
como Catholicos,hum Adodc Contrição , que fen-
do perfeyto, voará immcdiatamentc a Alma para o
Ceo Pois , fe eftas condiçoens faô de taõ grande
ventagem aos homens , e de tanto prcjuizo ao De-
mónio, que fica com ellas enganado , como naõ fó
as confentc o Demónio » que he taõ íagaz , e afiu-
to , mas as quer , e incita , e tenta os homens , pa-
ra que lhas facão? Porque na execução delias, elle
fica o enganador, e os homens, que pertendiaô fer
iilufores,ficaô illuíos. Coftuma o Demónio nos feus
contratos, negocear íobre o fcguro. Pedenos o pre-
íenre , com promclía larga de nos dar ao depois o
futuro. Agora opcccado,e depois o arrependimen-
to. E como o prefentc he fácil, e certo; co futuro
he contingente , e difficultofo , fegueíe, que agora,
que hl tempo de íe arrepender, e fazer penitencia,
peccaô confiadamente , e quando chegar a hora da
morte , em pena defta confianç:3 , e preíumpçaó , muy
poucos, ou nenhum fará vcrdadeyra penitencia jeaf-
fi;rjcom omefmopaâo , com que cuydayão enganar
ao Demónio , ficarão elies enganados : Et cum inferno
^* *^* fecimm paãtim,
Vay taô íeguro o Demónio nefte pacílo, que,
como negociante rico, tem banco publico no Mun-
do, offireccndo riquezas , dinheyros, e todo: o gé-
nero de delicias, e goftos, com promcflía de muy-
tos
Do tormento dos Soberhou 187
tos annos de vida, eflipula contratos, faz , e rece-
be cfcritos , c o que mais importa , com obrigação
de lhes dar tempo de fc arrependerem", e tornarem
a Deos ; contentando-fc o Demónio dos peccados,
que fizerem , por íeu emolumento. Bem poderia cu
alegar muytos , c muytos cafos , íuccedidos em va-
rias partes por confirmação defta verdade } porem
direy hum íó, referido pelo Cardeal Saô Pedro Da- p^/r.
miaò. Em hua grande Cidade de Itália havia hummo- Dam.in
ço ( diz o Santo ; igualmente nobre por naícimento, ''Ç'*í^-
que bem herdado por léus pays; porém como cflcs
craõ já falecidos, em breve tempo gaílou com mu-
lheres, c jogos toda a herança. Vendo-fe já chegada
á extrema miíeria , e pelos fcus vicios também de
■todos aborrecido , em lugar de recorrer a Deos,
bufcou ao Demónio. Eíle apparecco-lhe logo muy
galante, e aíFavel, com fe lhe ofFcrccer atiralo de
todas as íuas afflicçócs,etornarlbe a rcftituir dobra-
dos os goOos , que dcfejava , c que para tudo ifto
naó lhe pedia outra couía , fenaô a fua Alma. O
moço, que, tendo perdido a graça de Deos , naô ti-
nha ainda perdido totalmente a fé; diífe logo. Eu
-naô quero vender a minha Alma. E porque ( diz o
Demónio) Porque ( reíponde o moço) depois de
vendida, quem ma ha de refgatar ? Vòs mefmo ( re-
plica o Demónio J como a tendes já refgatada tantas
vezes, confcíTando-vos, E quantos me tem vendi-
do a fu3 Alma por toda a vida, e depois na hora da
morte fiquey eu burlado , reígatando-a com hum
Adio deContriçaô, dizendo arrependidos, 'como Da»
vid, Feccavi. Pequey ; e baftou iíio para rcíga tarem
a fua Alma , e gozarem logo de Deos: Vay bem,
diíTe o moço ; porém cu quero aíTegurarme , c naô
quero piffar efcrito de venda , íenáo com a condi-
faõjquevôs me avlforeis três dias antes de cu mor-
rer.
'<:'
fi
III
188 Dlfèurfo VU.
rer. Parcçcmc muyto bem ( diffc o Demónio ) e aííTm
faz, quem tem juízo, e eu vos prometto deguardat
á condição, e ícm cila , que o noíTo contrato em
todo o tempo , feja nullo. Firmarão o padto , e
aífináraô o efcrito , que lhe fez, com reciprcca fatis-
façâo de ambas as partes. Ficou muy contente o
moço , c fc de primeyro vivia mal , começou a vi-
ver peyor. Achava-fc com dinheyro ,nem lhe faltayão
occaíioens de csfogar com liberdade os íeus^ appctites
cm todo o género de vicios. Durou porém pouco
cila falfa felicidade , baftava vir do Demónio,
para íer cffimera. Eftando cllc cm hum fcftim bem
defcuydado , entrou hum Cavalheyro de muy bom
garbo, que acoftando-fe aelle, perguntou-lhe, fc
o conhecÍA f Reípondeo , que naô. 4Eu íou o Demó-
nio (diíTe elle ) e ainda que cu me chamo , c fou o
pay da mentira , com tudo quero guardar a coadi-
çaõ do noíTo contradto, c aflim vos advirto , que
dcfta hora a três dias,^vôs íereis já morto i c eu
livre da minha promeífa. E àl naô diffc •, pois logo
defapareceo. Com cíie aviío ficou o moço taó per-
turbado, que naõ podia fallar. Cuydando os cir-
cunftantes , que foffe algum ar de apoplexia, cha-
marão os Médicos , que o acháraõ com febre , e
hum letargo mortal. Procurarão vários remédios,
para o deípertarj que nada aprovcytavaô , e fó
dormindo felhe ouvirão eflas palavras. Eu fuy en-
ganado no tempo J pois ainda naõ tem acabado
hum anno , depois que aífiney o contrato no efcrij'
toj que depois de morto fc lhe achou. Cuydáraô
os Religioíos , c Médicos , que lhe affiftiaõ , que
naõ eftwa em íí , c por ifto faleceo fcm Sacramen-
tos. Já amortalhado , e preparando-íe o enterro,
entrarão dous Negros agigantados com o feu triden-
te na maõ j e hum dclles diffc com voz medonha.
Quem
Do tormento dos Soberlos. 189
Quem compra a cfpada, compra também a bainha.
Eílenos vendeo afua Alma, que jà cflá no iníernOj
agora vimos bufcar o corpo, porque, como foraô
companheyros nos goftos , o ícjaô também nos tor-
mentos i e fincando o tridente nas ilhargas do defunto,
o carregarão nos hombros j e íahindo por huma jancl-
la , deyxàraõ aos circunftantes affim pelo medo,, co-
mo pelo fedor intolerável , mais mortos, que vivos.
Aflim vay a acabar a preíumpçaõ de íe conteíTar,
ou de fazer hum A£ko de Contrição antes da mor-
te. Efte teve três dias de tempo , e com tudo , naõ íe
achou capaz de dizer arrependido, pequey : PeC"
cavi.
Efte cafíigo, que faz horror > e parece rigoro-
lo i naò he ( cTiz S. Gregório Magno ) fe não juAif-
fímo, e intimado pelo Efpirito Santo naquellas
formidáveis palavras : Focavi, & renuijii , delfe- Pyo'0'
xiftii omm confiltum meum ; ego quoque in tnteritu ve- <^^h^*
ftro rídebo , & fuhfanabo. Vos chamey com as mi-
nhas inípiraçoens , e naò me quizeftes^ ouvir jnunca
fizeftcs cafa dos meus coníclhos , nem dos meus
avifos i eu também na hora da voffa morte me rirey^
ridebo^ efarey cfcarnio, (de que notay cfla palavra
Subfãnabo) de ver, que cuydaveis com hum fal-
iopeceavi enganar a Deos neíks breves dias de vida,
€ ficaíks enganados^ por toda a eternidade no infer-
no. Af^m fuccedeo a ElRey Abim.elec r que vivco
íempre mal, e efnuecido de Deos cm todo o tempo ^^'''"^
da lua vida j e Deos permittio 3 que na lua morce^^^
naõ fe lembraíFe, nem de Deos ,nem defí. Foy efle^^^^
itiar a Cidade de Tebas , c eft^ndo já vitoriofo,
para entrar nas- portas , huma fnulher, que eílava
em alto, pegou* cm huma grande pedra, g deyxan-
dolha Cahir fobrc a eabeça , lha partio' peJo mcyo..
Coniieçendo í:illey ,qaé morria j que AâodeCon-
tri-
ii
\ /;"
190 DtfciírfoVll
triçió fez ? De que feccãvi fe lembrou ? Chamou
logo hum fcu pagem , e lhe diífe , acaba de prcíTa
de matarmc com a tua eípada , para que naõ fc
diga , que huma mulher matou a Abimelec com bua
/W9. pedra.- Vocavit ato armigerum fuum^ & ait , eva-
ginaghdmm tuum^& mterfice me , ne forte âtcatur^
quod kfosmim iníerfectus/m , & míerfeat etim. kí-
íin o executou o pagem, e ficou morto Abime-
lec. Nem ElUey Saul teve melhor fim ; vcndo-íe
efte mortalmente ferido , em lugar de pronunciar
hum i^mavi , c pedir a Dcos mifericordia , pedio
também elle a hum dos íeus íoldsdos , que o aca-
bâíTe de matar ; teve horror o fiel VaíTallo de com-
mcttcr hum tal crime , por muytos rogos, que lhe
fizeffe. Entaô Saul , por fugir o opróbrio de ficar
prifioneyro dos feus inimigos , poz os punhos da
fuamefma eípada no chaô , e já defeíperado poz os
peytos fobre a ponta, e cahindó com força fobrc
ella ficou enfiado , e morto : Arripmt iiaqne Saul
gladiumfmm, & irruit fuper mm. Peyor luccedeo
aoEmp-rador Ju-lianoj cfte de bom Catholico , pre-
varicou em peíTimo Apoftata , c inimigo declara-
do de noffo Senhor J E S U Chrifto , períeguindo os
Chriflâos com tyrannias em todo o fcu Império. Ef-
tando hum dia paíTando mofíra ao ícíi exercito, vi-
rão todos partir do Ceo huma fetta , que ém direytu-
ra foy ferir os peytos do Emperador. Todos cuy-
divaó, qu3 à villa defte grave câftigo tornaria cm
fi; mas ellc mais obflinado, e endurecido, vendo-íe
eíaotar defanpue,tomou huma maô cheya delle, c
31-
lançando-a em alto , coma contra o Ceo
gritcii
blasfemando : Viciftí , GaliUz, victp. Me ten-
Bar^m, des vencido, ò Gililco ( aííim chamava elle a noí*
foSenhorJESU Chrifto; me tendes vencido. E fc
TuUano o conhece, econfeíTapor ícuDeos vitorio-
•* lo,
■' : ''
Do toftnentõ dos Soberbos. 19 1
fo , e triunfante ; porque naô fc lhe lança aos pês,
pcdindo»lhc pcrdaôdeo ter perfegwido, e cem hum
peccaví ganhar na hora da morte o Parai ío? Porque
f como diz Saô Gregório Magno J cfíe cafíigo , e eiia
vingança de Deos he rediflima $ pois pcrmitte , que
os peccadores , que na vida fe efqucceraó fempre
de Deos , na morte fe cfqueçaô de Deos , e de íi
m elmos : Hac ammadver/iõtie funitar ^eccater.
tit moriendo obltvtfcatur fui y qui vivendo obUtns (fi J^^'
Dei.
Sendo ifto a mcíma verdade ; como be poflivel,
que a falfa preíumpçaô de hum peccador o períua*
da , a que a mayor graça , que Deos pòdc fazer a
humjufto ícu Amigo, a deva conferir ao mayor dos
feus inimigos ? O mayor inimigo , que Deos tenha
tido, quem cuydais , que feja? Por ventura fera ]^^' „èsnm
das ? Será Mafoma f Ou Neraõ ? Ou Domicianof ^^ ^^ *
Nenhum deftes he ; mas outro muyto pcyor! Hc^mit.
cfte maldito , chamado peccavi. Naõ ha feyticey"
ro ( diz o grande MiíTionario ; naõ ha Turco , naõ
ha tyranno , naô ha Antichrifto, ou Demónio en-
carnado, que tenha feyto tanto damno à Igreja ) ou
mayor cftrago nrs Almas j e que tenha induzido
os Chriflãos a commetter defcaradamente tantos pec-
cados, como efíe falfo, maligno, e detefíavcl fee-
íavL Elle heoCompIice, o Zeloío, o Soilicitador,
o Procurador, o Advogado, o Patrono, e o Gua-
rante de todos os peccadores. Elle lie o que os eíli-
mula. o que os incita , e o que os anima , a ofíender a
Deos. Elle he, o que lhes tira -o pejo natural, que de-
fende as Almas innocentes dele entregar aos vicios;
e o que lhes fuffoca o rcmorío da confcicncia ; pois íe
naõhouveffe cfle traydor enganoío do fercavi^ que
lhes ferve de afilo , para toda a maldade, ninguém
fe acharia taõ falto de juizo^ que quizeíTc airífcar-
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191 Difcmfo Vlh \
fe, de trocar hum breve gafto defta vida com a eteÊ^
nidadc das penas no inferno. Q mayor mimo, o
dom maU preciofo , que Dcos poíTa íazer a bua Al-
ma eícolhida , hé o concedcr-ihe hum perfeyto ar-
rependimento das fuás culpas, hum verdadeyro /?rí^-
cavi na hora da morte. Efte feccavi com ^ períeve-
rança final íaò as arras mais certas; íaô os penho-
res mais feguros da gloria celeftej c faô a diípofiçaó
mais próxima para a bemaventurança. Já he ter fu-
bido ao ultimo degrao , c já hc ter hum pe no Pa-
raifo. E que razaõ tendes vòs deprcfumir, que Deos
dará efte dom gratuito , cfta graça preveniente , e ían-
tiíicante, ao mayor dos ícus inimigos , qual he eík fal^
fo, e ád%x^zÁofeccavi>. quando as Sagradas letras ,-os
Concílios , e os Santos Padres, com a meíma experiên-
cia de quantos morrem malcada dia , nos provaó todo
©contrario. . r r
ElRey Faraó não podendo já mais lofrcr as rc-
Exa pctidas pragas do Egypto, arrependido recorrco a
^^^lo. Moyíés,confeffando,quco Reyde Ifraelera o Rey,
eDeosverdadevro.vPíí-r^-yr/w Domimm iJcum -ue^
ftrum. ElRey Saul , vendo , que o Profeta Samuel
oadvertio, que Deos eftava irritado, e lhe tinha
dividido o Rcyno em varias partes , logo moíirou
''^'^' o íeu arrependimento : Feccavt.qnm p^avartcatus
'^' fum. EIRev Antioco , depois que delcfperado dq^
Médicos vio impoffibilitada a fua cura , humiham
adterramhimúác.c contrito fez grandes prometias,
e votos de reftaurar o templo, de prover com gran-
des emolumentos o Clero, e de reftituir em treido-
bro as riquezas , que tinha tomado do theiouro:
porem Deos naô quiz aceytar os ícus offerccimen-
tos , nem ouviras íuas orações, nem admittir o leu
^:M^-Míopeccam,p^ra uíar com elle da fua bondade, c
eh. 9. miícricordia : Oral^at autem hc fceleftus Domimm,
i<«i' ■ ri
Dõ mmentô dos Soberbos. Hj
k qtio mn effet mifericordiam confecuturm. Tambcm
o traydor Judas , arrependido de ter vendido a
Chrifto, fez primeyro a rcftituiçaô do preço da
venda; Posnitentia duãus retulit tnginta a-ígenteos,
eonfcíTou o íeu crime de leia Divina , e humana Ma-
geftadc publicamente, e em prcfcnça dos mcfmos
Príncipes, e Miniftros da Sinagoga com dizer , qus
pcccou vendendo hum Deosjulto: Peccavi tradem
fiinguinemjujlum. Parece, que naó podia efle fazei*
mais! E com todo efte peccavi^ buícou deíefpcrad»
hum laço para íe precipitar mais de preíTa com os
mais peccadores obftinados no Inferno: Ahims laque»
fifujpendit. Ide agora a fiarvos das confiffoés , e do fec-,
cavt na hora da morte ,com a voíTa falia prcíumpçao,
de que haveis de morrer como hum Santo Hilariaô
arrependidos.
Bemfcy, que muytos malviventcs, que ainda
naô íc íentem com a deliberação de largar os Teus yt-
cios, admittcm eftes cafos por verdadeyros -, porém
dizem , que também tem ouvido, e vifto exemplos cm
contrario de alguns , que viverão mal , c morrerão
bem. FuUano, c Sicrano ( dizem clles ) parcciaô mais
Sardanapalos, em bufcar todo o género de goftos,
para o íeu corpo , que Catholicos , em cuydar na
íalvaçaôdafua Alma ;,c com tudo leváraòboa vida,^
efizeraôhumabelliíTima morte. Creyo tambcm cu,'
queeíTcs fariaôhuma bella morte; mas naôfeíeguc,
que foíTe boa. A mcíma differença, que vay entre
huma bella morte, ehuma boa morte , he a mcfma,
qtic vay entre o bello tempo , e o bom tempo.Qiian-
do o Cco eftà fereno, o dia claro , c fem nuvens,
o tcmpobebeHiíTimOi porém íe a terra ctlà árida,
as hortas murchas, c as plantas fe vaô defecando ; en-
tão as nuvens bem eíeuras , e prenhes , faô defcjadas,
para que fc dcícarregucm cm chuvasj c as mefmas
N ~ iro-
ftBV:9^dfs,.quc daõ muyta agoa , faô obom íem^
po/ O Demónio hémuy to mais afiuto, e fagaz de
nôs,,edo,.qucnôaCuydamos,i porque quando tem hum
m9xij;>Ando^íc^uro, Qa po^rq^ eOe fez a cx^nfiííaõ
^^Â4!i^^^ ^^^<^°^ f^^^-as circunftancias^
te^,,ou as çppfeqaencias de alguns pcccados, qucp§^
dem publica reílituiçaô da fama , da honra, e de jura-'
meotosfalíos, emdano do próximo,- ou porque no
teftarnentO/JDãp. declarou todas as dividas, os lucros
c^ffanm^ e dfnos emergentes com reter a fazenda;
aíhea,ou alguma demanda injuíia, para deyxar mais
ríços os filhos : então o Demónio o ajuda a repe-
tir, todos aquelles ados , que lhe vay fuggerindo
o SciçerdotejcUe meímo lhe mete em bocca opec^
íf^íV/V e lhe faz beyjar muytas vezes o Crucifixo,
que tem na mão. E que couía pretende com ifío O;
Demomo f Pretende , que os Religiofos , que' lhe
aíiiftlraõ, digão , que tomarão ter clles bua morte^
femelhante. E, que fe divulgue em toda a Cidade a
grandeza da miíericordia Divina ; pois fuilano , que
era ã.ptra fcanâali do Povo , morreo como hum
S.Paulo. Oh aftucia diabólica ! Oh eípirito arcima-
ligno/ Eu bem conheço o teu engano. Naõ dey-
xafle morrer aqucUe bomem com finais de Precito,
como era j porque conhecefíe , que muytos , que
visViaô mal , comoclle, íe ouviíTem dizer , que mor-
rera como Precito , que era Jogo íe diíporiaô a fa-
zer huma verdadeyra confiííaoje mudariam vidajc-
agora com efla enganofa apparencia os incitas a con-
tinuar no pcccado , com a preíumpçaô , de que na
ultima doença fe confcíTaráó, e morreràó prcdefti-
nados; e então lhes metes tantas vezes era bocca
efte peccav-i-i e o nome de JESUS j porque íabes , que
Deos não golia , nem agradece , que louvem , e hon-:
rem o feu nome com a lingpa, gij^ni^o, p .eoracaó
■ "" ' eílá
rtwh
Do tormento iotSohrbos. ' ijry
'«Mniay' loíjge deíle : Popilus hic laUis mehcniPntt, Matih.
•€&r autemillomm longe eji à me, ^S'
.- . Naõ hs crivei , quanto noíTo Senhor JESU Ckú-
íloeftimaíTe aconfiiraò cie S.Pedro, quando pergun-
tando aos Apoi^olos , quem diziáo , que eiie foi-
íc? Refpoodérãof huns, que o BauCiik j outrxDSi
•que Eiias , ou- Jeremias. Porém quando perguntou a
cilesmefmos ,quem era; Fos aurtemqtiem metjfedt^
<ííí4^. E vôi Ra verdade quem dizeis, que eu íquí*
Heípondeo logo Pedro ; Tu es Chriftus' Filius Dei
í;/z;/, Vos íois noíTo Senhor JESU Chrifto, Filho do
verd.idc7ro Deos. E tanto lhe agradou efta confíí-
íàõ, que o declarou jà Bemaventurado em vida, e
o fez feu-Vigayro íia terra ,coníignando- lhe as chaves ^^''^«
doParaifo, c do Inferno.- Beatus es Simon Barjo. '■
na,.,, tibi dabo claves Regni Calúrum, Pelo con-
trario lemos em S. Marcos, ecm S. Lucas , que eíiando
o Demónio no corpo de hum in vaia do fez ameíma ,.,
confiiTaô; Jefu Nazarene , fcw te qiiísfis , Sanãits '
'Del. Lhe chama JESUS , e o conhe<:e , e kbe muítõ
bem quem he, e lhe chama Santo ^ cairida que os
attributos Divinos faõ todos infinitamente perfeitosi
todavia o da Santidades excede a todos , e com
tudo , Chriflo o reprehende : Et tncrepãvit iJlum
JESUS. E Saó Marcas acere fcen ta , que Chriilo o
ameaçou , obrigando-o a callarfe , que riaô queria
ouvir na fua bocea os ícus louvores , nem que pro-
nunciaíTe o feu nome : Et commmatns efteijefm , dl-
eensrOhmutefcê'. Entra aqui a agudeza do juízo dé-'^^>'^'t
S. Agol^inho,e examinadas ambas de duas-clLiseon4 ^•
ítíTcés, argumenta alfim. Se a^ palavras íaò as mef^
mas, e tem o mefmo fentido , e ílgnific^eão , dò
conhecer, e dar louvores a Dcos; coríio as' obrái^
e os effey tos faõ tão diverfos ? Pedro premiado, c á,
Demónio reprehendido ! IMl-fyal^tímm' ifite -^i-^
N z con'
ti
1^5 Dtfcurfo Vlh
Attgufl.confejfi0nes. Um v»x y & fa^a diverfa : PttrusUít^
Serm i, ^atur ^ & Dcsmõn compefcitur. Sabeis porque (dtz
^^^^^' o mcfmo Santo Agoíiinho ) porque os louvores, que
Pedro dava aChriftocom abocça,íahiaó-lhe do co-
ração > que eftava abrazado do fogo do amor, que
tinha ao íeu Mcftre ; e o Demónio o louvava íupcr-
ficialmcntc, e bem contra a fua vontade , par te»
mor , que o fizeíTe fahir à força , como fez , da-
qucile corpo , que elle meímo tinha invafado : Ir$
Fetr&Uudatur amor ; in Doemom damnatur timor»
A mcfma difFerença fucccde às vezes na hora da
morte entre as Almas efcolhidas, e prcckas» Tod^
dizem bcHiíRmas palavras y e repitcm muytas vezes
o peccaví. E bem pôde fucceder , que alguas Almas
reprovadas bcyiem mais vezes o Crucifixo , e chorem
mais lagrimas , que as cfcolhidas ; mas nem por ifío
Peos olhará muyta para cHas ; porque conhece,
que as nâo derrama pela contrição , c dor dos fcus
peccados 5 mas porque tem pena de deyxar eík
Mundo, aonde vivia à fua vontade jbeyja o Cruct-
íixo, nâo porque o ame j mas porque , tcndo-odef-
prczado tantas vezes , tem medo delle , que como
Juiz lhe de a fentença , que merece , com conde-
nallo ao Inferno. Se recomenda ás oraçoens âo
todos ,naô para a íua Alma, pois clíe não quereria
morrer ; mas porque eípcra com ellas farar da doen-
ça, G íe lhe prolonguem os dias da vida.
Luís Undécimo Rey de França, defejofo de vi-
ver muy to tempo, affirana mefa,como em outras
partes, onde fe achava , tinha íempre o Medico pre-
fcntc, para que em caio de doença acerta íTe lo-
go na cura, O cffipsndio pois do Medico quanta
mais grandiofo , tanto roais era extravagante , c
differente dos outros ; porque fhc dava cincocnta
cruzada* cada dia , cm que ElRcy le achava de pè , e
€om:
Oo tormento dosSoberhs. ^97
,côm íaudc ; porem em todos aquelles dias , que caj-
...veffe doente, ou com algum achaque nacama ,ceí-
'.fava o cftipendio , c nada lhe dava. £ com tudo,
quefoíTe decompieyçaò forte, e robuík, a Tua vi-
da eftragada o reduzio a huma doença perigoía, que
idepois de uíar todos os remédios , íe defcubiio
incurável. Náo fe achando remédio na terra, ^ov ^^^^jj;*
■ ncceíTario buícalo do Ceo j c aíTim aviíaraô a Elíley,
que em Nápoles eftavaSaô Francifco dePauU,quc
era o Taumaturgo daquelle feculo, e que dcUe ío
■ podia eíperar a íaude. Mandou logo ElRey em buí-
ca do Santo , que com toda a diligencia chegou a
fua preícnça j c lhe perguntou , íe o queria íarar da-
quel la doença. O Santo , para encubrir a fua vnTude,
reípondeo. Eu irey fazer oraçaô ; porém he ne-
ccíTario, que fe façao oraçoens publicas , porque a
oraçaõdemuytoshemais poderofa para com Deos.
Ordenou ElRey, que fe expozeíTe o Venerável Sa-
cramento daEucariftia em todas as Igrejas; porem
vendo elle, que a ordem do Santo dizia , que to-
dos rogaííem a Deos pela Alma ,e faude de E^Rey,
diíTe logo afilm. Náo convém pedir tantas éouías
juntas a Deos i bafta, que o Povo rogue a Deos fo-
mente pcU faude do feu Rey. Foy repreíentado por
Deos tudo ifto ao Santo na Oraçaòjoqual foy log^
ao Paço , e diíTe , que bem podiaò avifar a ElRcy.
que trataíle da fua Alma ; pois Deos naò queria
darlhe a íaude do corpo. Naó lhe deraÔ credito , c ^^-^^J^^
aíHm morreo , como viveo ( como diz S. Bernardo;: ^^^
,Clualí4 vita., mors, & ita. AíTim ordinariamente
íaóos propoíicos,e o peccavi dos moribundos , que
viverão mal; porque todo o íentido do coração deíks
he a íaude do corpo, para ficarem com as creaturas
no Mundoí e para ir com o Creador para o Ceo , pro-
íiunciaó opeccavi fomente com o exterior da boeca.
N 5 Suc:
i \\,
12.
Succedé a efícs , que pre fumem , c fe fazem fò'ip2
X^^ ^covíi o pccãvi da bocca, c naõ decoração, o
que íuccedeo ao exercito de Ephraim , gente cori-
fíada , e prefumida , que injunamentc intimou a
M?>.3 guerra a Jephte, ameaçando-o de q^ueymalio vivo,
e a toda fua família : Incendemus te , & demum
tuam. Ouvindo Jephte eíla temerária preíumpçaõ,
rcípondco prudente : Glnid commerm , ut adverfum
me cõnfurgatis in praltum ? E que mal vos tenho
fcyto , para me obrigares a pelejar com vofco ?
Mas vendo, que ifto hia de veras , eíquadronou a
fua gente deGalaad, entrou em campo, prefentosj
a batalha, e Epraim ficou derrotado cm numera
de quarenta e dous mil , entre mortos , e fugidos.
Mandou logo Jephte huns Regimentos ao cíireyt6
do fiio Jordaõ , por onde forçofamente haviaõ de
pa{rar,para tornarem à fua terra. Encontraram- fe
ncHe paffo huns com os outros ; os de Ephraim
cheyos de temor, porque fugitivos da batalha, que
tinhaõ perdido 5 e os de Galaad animofos , como
vencedores i e porque efles intentavaõ tirara vida
aos de Ephraim , lhe pergunravão. Vôs íois da
Tribu de Ephraim f Naõ (refponderaõ elles ) mas
fomos de Galaad. E para melhor os reconíiecer»
lhes repreguntavaõ os de Galaad : Die ergo , Schibb&^
ht? Mas como os de Ephraim naõ eraõ cuttumados
a pronunciar cfta palavra , Schibheht ^ que he toda
gutural, efaz força , como fe lahiííe do fundo áo
eftamago, diziaô SMet ^ com a ponta da lingoa,
que jà naó tem a mefma íigniíicaçaõ , e fentido j c
aílim conhecidos logo os degoIavaô,e lançavaô no
Jordaõ. Nâô he acafo , o permittir Deos, que nas
Mom ^^^''■^^^s letras fe regiíirafTe eftc Texto ; §uaci{mque
j^, ' entm fcrifta funt -i ad noftram dô0rmamfertptafrnt*>
( Nos eníma Saõ Paulo ) E Chrifto exhorta a todos^
, naõ
Dõ tormehtdàés Soberbos. 199
Oaõfóakras Efcíífeuras, mas a perfcrutalas , e pe-
a^traros lentidos , que nos períuadcm , e conduzem
4íalv^|fi5: Scrutamini /criaturas. Ifto íuppoao; a
'.^aíTagefli do Kiojordaò lie oeftreyto da morte , já
que ocuríodejje riovay acabar no mar morto i co-
mo também o curío da noíTa vida acaba com a
iBorte. A palavra Jordaô , na lingoa fanta íigni-
Ifiça Euvws JudíCit , e por ifto efta paíTagem he raò
perigoía , e faz tanto medo , porque depois dii
morte íegue-íe logo o juizo. Os noíTos inimigos, que
faô os Demónios ,no3eíperaô nelle eftreyto, e neí-
ta paíTagem. Todos^ aííim bons, como mãos con-
feííaõ, que faô peccadorcs , implorando a Divina
ipifcricordia pedem perdaô a Dcos ,e dizem peuam,
peccavi. Porem vay entre ellcs hua grande diferen-
ça. Osjuftos eftaõ cuftumados a pronunciar o pec-
cavi , como palavra que fahe do fundo ào feu co-
ração arrependido , c que defeja veríc livre deite
Mando por medo de tornar a peccar. Os Réprobos
pronunciaò o peccavi naôfahido do coração, occu-
pado com os deíejos das delicias do Mundo ; mas
exteriormente , com a ponta da lingoa por medo da
morte , que já lhes efíâ na garganta. Por iflo lhes
fuccederá o mefmo, que íuccedeo aos quepronun-
ciavaó fócdm ahoccâ SMet, com íerem lançados
para fempre no Jordaô do inferno.
Hum Mariícal de França Governador de Lingua-
doca era o Tyrannodaquella Província , pelas muytas
injuftiças,e oppreíTocs, com que dellruhia pobres,
e ricos. Veyo a morte appreíTada, que a penas
lhe deo tempo, de lhe por na bocea o peccavhq^^^
nunca teve no coração; e de ordenar , para encu-
brir o eícandalo , com que tinha vivido , que amor-
talhaíTem o feu corpo em hum habito de Saõ Fran-
ciíco, íem cuydâr de reílituir a fama, a honra, e
r„. N 4 afa-
il í!
20Ò Dlfcurfò Vlh
a fazenda. Hum Villaõ, que tinha íí do arruinado- pe^'
la fua ambição ,.vendo-o naquelle íacco de peníten^.
eia diíTc^Marircal ^ Marifcâi^ desfarça aqui quan-
to quizeres r que tu vás para hum paiz, aonde te ti-
rarão Togo eíTa maícara ,, e o teu desfarce nada te ha
de valer. E que rifadas da^raó os Demónios a huma
Alma, quando entra no inferno , que em quanto vi-
veo n^ftc Mando tratou o fcu corpo eom Eodos os^
mimos ,e delicias da fen fua lida de , c,,depois de mor-
to, ordena, que feja veftido com o cilicio de hum bu-
rel Santo .'Daqui tome cada hum o verdad^yrodeíen-
gano , confirmado por Santo AgoRinh© , o qual diz,.
"^AuT-ds que qtiera referva o dizer js>^í'í-í2'ci,e fazer penitencia
Civ. na hora da morte, fô por milagre íe poderá íalvarrs
Deu Foemtentia [era , raro ver^. '
Quero acabar eíle difcurfo ,porondeo come-
cey. C^eyxa-feo SantoJob,q,ue a peccador, dan-
MzA ^*^*^^"'^ Dsos lugar ,c tempo , para fazer penitencia,
«bufa delle por íbbtrba: Dêàit ei Deaslocíímfsem^
tentí£ , ó" tile eo ahuútur in fu^erbiam* E que cafía
de foberba he efta, que abula do tempo, que Deos
lhe deu para íe arrepender , fenaõ a prefumpçaô
dáquelle traydor, e lalfo feteum^i na hora da mor-
te. Oh engano diabólico ! E íe cu vos provar , que
naquellahora vôs mefraosnaõ haveis de querer dizer
o peccãvi , nem arr.ependervos ; ficareis então de-
A^Qc.^ Í€nganados ? Ouvi a Saô Joaô : Dedi eitemfus ^up
fcsnitentiam ageret , & mn utãt píenitere. Reparay
naquelle non vult , naõ quer. Naò falta Dcos com;
lhe dar tempo ! "Dedi et tetnpiis, Naõ falta o Confcí-
íor , que o cxhor.ts á peniteneia : Vt fcenitcntiam
ãgereS. Ecom tudo diz, que naô quer;. Nanvult,
E porque naô quer f Porque nunca quiz , quando
efíava faõ jtTiuyto mais agora , que eítá moribundo.)
Qiiantas vezes metem íucccdido noBrafil,e íucce-
de.
■^
Do tormento dos Soherhos. 20 1
áe muytas vezes cm toda a aparte •, que chamado a
confeffarhum doente de perigo , rcfpondc elle,que
torne cm outro tempo, que ainda naõ cflá taõ mal,
ou, que ainda não cfíà preparado, e depois tornan-
do, eftá o doente como deíefperado da faudc, cm
que íó cuyda , aílim como dcíeípcrado da íalvaçaô , na
qual nunca cuydou. E deftes taes cflá o inferno che^
yo. Mas porque atê agora vos tenho moftrado o en-
gano, edefengano àcí\c peccaví i acabo cem vos dar
o remédio , para que eík peccavi aílim cm vida , co-
mo na hora da morte vos aíTegure infallivelmentea
Paraiío. >
Meu Senhor JESU Chrifío, cis-squi proílrada
aos voíTos facratiíTimos pès>a mais indigna, e vil
creatura doUniverfo. Naõ me atrevo, comooPu-
blicano , levantar os olhos para o Ceo j porque a
grande multidão dos meus peccados me deíaníma,
me perturba , e me confunde. Sey , que tenho me-
recido milhões de vezes o inferno, e jà não mereço
o perdaô ; mas fey também , que fé não me quizcífes
perdoar, e não dcfcjaíTes íalvarme, já a cfta hora,
a minha Alma eftaria ardendo naquelle calabouço
de fogo : Nijiquia DomintíS adjuvajfet me , paulo mi- Pf.^^^i
nusinmfernohabitâjfet anima mea. Por tanto , meu
Deos , meu Senhor, meu Salvador , e Rcdempror
meu , feccavi , pequey .^e pezame de tcdo o meu cora-
ção de vos ter ofFendido , não por algym intcreíTe
meu, nem por medo da morte, ou terror do infer-
no, que tenho merecido; mas por ícres aquelíe,
quefois, digno de fer infinitamente amado. To-
mara eu agora ter o fervor da penitencia dos Nmi-
vitas j o arrependimento de David; 3 dor da Magda-
lena , e as lagrimas de Saô Pedro , para com elles de-
íeflar , aborrecer , c chorar os meus peccados , e
amarvos com amais fina compunção da Alma. Pro-
i '1
i|
102 ^ Dlfcurfõ VIL
ponho firmemente de nunca mais peccar, c atHiuaí-,
mente deyxar toda a occafiaó , quemepjíTa induzira,
perder a voíTa fanta graça. Eftou rcíolutiíTimo de per- ■
der tudo, antes que perder avós; porque tudo he^
nada fenn vôs , e vôs fois todo o bem infinitamco- ,
PUlm te bom. Senhor falvaymej porque fou todo vcíTo,- ^
128.^* Tuusfum ego,falvumme fac. Fazey efte Adto de Con-
trição todoi os dias peia manha logo depois de levan-
tado da cama i e á noyte antes de vos dey tar ; c cu vos
promctto , que o voffo feccavi na hora da morte fera .
o mcf mo, que tantas vezes tendes repetido em vida,;
e paíT-ireis a gozar de Deos com os mais Bemaventu-
rados na Gloria ; ^lalis vita, morsy & ita.
Dis.
n
/
TORMEIVJ TODOS AVAREJSTTOS
DISCURSO VIII.
Do Tormento dos Avarentos.
Nolite errare , neque fures , 7^eque Avari
Regnum Dei pojjidehunt.
Corinth. i. c. 6.
E verdade , que Deos no feti-
mo Mandamento do íeu De-
cálogo prohibe immediata-
mentc o í\ino:Nonfuraherii,
Naô furtarás. Mas he cambem
certo, e por confequencia in-
fallivel,que prohibe,e conde-
na também a Avareza ,como
diípoíiçaò,e occafíaõ próxima»
para furtar,e reter o alheyo. Apenas entrou Ghriflo
noíTo bem no Templo , que armado de zelo lançou fo-
ra com o açoute na mão todos , os que compra vaõ , e
vendiaô , e desbaratou as meias , fazendas , e dinhey-
ros :Et enm wtroijfet m Temfhniy c^epit ejicere ven- Mar cl
dentes, & ementeSy&menfasnummuíariorum^& eathe- » i- »^?
dvas-vendentmm everttt. Perguntaõ os Santos Padres^
qual podia íer a caufa de tanta ira, e zelo do Salvador?
Tendo cllc hum natural taõ knigno,e íuave ; porque
ánal-
#1^
'***i"*;-
204 Dtfcurfo VIU.
finalmente , que mal faziaó aquelles Mercadores , que
vcodiaô.ecompravaò no átrio do Templo ovelhas,
e pombas , que também lervião para o Sacriíicic/
Saô Joaõ Chryfoftomo he de parecer , que a avareza,
e o iníaciavel dcíejo , que tinhaó aquelles negociantes
de enriquecer , foy o fogo , que accodeo a juíta ira de
Clirifto; pelo que os lançou torado templo i para nos
enfmar , que os Avarentos , e os que furtaô , ou retém
a fazenda alheajeraõ para femprc excluídos do cc-
leílial Templo do Paraifo ; Nolite errar e , neque fu^^
Cor A. ^^í ) »^f «^ Avari , Regmm Dei pojfidebtmt. E etk lerá
ííí^.16. o argumento defte difcurfo, em que moftraremos
com as Efcrituras , com os Santos Padres , c com a ex-
periência , que he moralmente impoífivci , que hum
Avarento íefalve, e eile íerà o primeyro ponto :e no
fegundo viremos , que o deter , ou o naô querer
rcftituir a fazenda alhea , he hum dos íínaes mais cer-
to, e infaliivel , de viver , e morrer , nefta vida antici-
padamente reprovado.
He moralmente impoífivel , que íe íalve o Ava-
rento, por dous princípios; hum da parte de fi meí-
mo, o outro da parte da graça de NoíTo Senhor Je-
íu Chriílo. Da parte do Avarento; porque tendo
todo o feu coração nas riquezas , quanto mais lucra,
ou furta , tanto mais defcja ; e aflim naô ceíTara mais;
porque naô mudará mais a vontade de lucrar , e o
deíejo depoíTuir. Da parte de JESUChrifto he mo-
ralmente impoífivel, que afua graça mude a vonta-
de do Avarento, cm quanto a mefma graça depende
da íua cooperação J porque lendo o ouro , o dinhey-
ro , e as riquezas o feu ídolo , c o feu Dcos , para que
entre abraça de JefuChrifto naíuaAlma^, deve pri-
meyro quebrantar efte ídolo i com deípufe da del-
ordenada aíFeyçaô às riquezas , reftituir logo o
aiheyo, e amar' a pobreza do eípirito, para gozar
Do tormento ào$ Avarentos. s o 5
da Berna vcnturança dos Filhos de Deos : Beaíi ^y^^^ij^
panperes J^iritu , quoniam Filii Det locabuntnr. A .
€xperiencia moíira cada dia o contrario , verifican-
do-fc o que diz o Efpirito Santo, que os olhos do £ccUf.
Avarento faõ infaciaveis; Infatiabtlís oculus cfípidi. c;.i4.
Perguntas. Bafilioj qual feja aqueile,que com ver-
dade íe pode chamar Avarento? ^M, quafo^eft BalíLho:
Avarus ? E rcfpondc com elle também S. Ambroíio, zdeDi^
que no Texto Sagrado todos aquelles fe chamaò '2'^'*^/
Avarentos, que tendo bens baftantes , para paffar ^'*'''''
a vida , conforme ao fcu cftado , nâo eíiaô conten-
tes; mas defejaõ , c cobiçaõ íempre mais fazenda:
Ille eft Avarus , qm ea^ quod fatú ejje debet^non
eji contentus, E Santo Agcíiinho diz , que não fó íe ^^^g ^
deve chamar Avarento, quem furta, ou retcm o
alheyo ; mas também aquelle, que com demaíiada ^
aíFeyçaõ, c cubica guarda o fcu; Non foJum Avarus ^^^j^
$Ji t qm raptt aliena , fed qm cnfide fervat fita. E dívw.
prova cfta verdade com dous cafos referidos por yí»íer.
boccadomefmo noffo Senhor JESU Chrifío no feu
Evangelho.
O Rico Avarento não era Ladraô , naõ tinha co-
mércios injuflos, era pontuai em pagar os falarios
aos ferves, cas obras, que mandava fa;zcr aos cífi
ciaesre hc certo, que não tinha vicios ; pois o
ter boa mcfa , e vcflir bem , convinha ao eftado de
grande Fidalgo , comodie era-, e íe tivcííe fcyto al-
guma injuíHça , ou crime , Chrifío ( como diz S.Ago-
flinho ) ohaveria publicado no fcu Evangelho: Si . „
'vis feire crimen diviiis , nohahiéd quarere , quàm qnod ^^^^^
audis à ver it ate, E qual foy logo a ca ufa da iua per- 1^,4»
dijaó? Foy o fcr Avarento. Tudo paraíí,cnacla psi- verbis
ra os pobres ; Epíihbaítir quotidie f^Jendide , ifidue-^^"^'
^atur purpura , & byJÍ^* E por iíío foy fepultado no
Inferno: EtfipuUm efi in Inferna. Mais me admiro ^«tf.i;^
da
1 1
ijn ''ífrii
Mattk
Mm th.
19.23.
Lhc.i^
Marc.
10.
Ecelef.
10-
Ecclef.
iO.2.0.
to6 Difciírfo ¥111.
daqiielle moço., que » íencio naícido mujr rícô v prb-
guntou a Chriíto, o que havia de fízer para nlcaneáy
oParaifoí' Magiflerhmn-.quiâ bini fauarn^ ut hã"
beam vitam ee temam ? Reípondendo-lhe Chrirto,
que guardaíle os Mandamentos: Servd mandata.
Eiks ( replicou o Minccbo) tenho eu íempre guarda-
do jdsíde a minhi mocidade. Muyto beni, diíTe o
Senhor. Pois íe quereis íer perf^yto, vendey quan..
to tendes , e diy aos pobres ; vinds comigo , e íegui-
mè , por o-nde vou ; St vis perfe^us ejfé , 'vende qtice ha-
bes \ ó* da Pauperibus , é^fequere me, Qaimdo o moço
■ouvio faiiar em defpropriarfe de quanto tinha , cal-
Jouíe, deyxou 3 Chriilo, e foyfe malencolico: Et abitt
irijhis. Eis-aqui dous ricos , qus nada furtáraõi
nem rcciveraõ o aiheyo , e ambos de dous íe perde-
rão , íem terem mais outro vicio, que amarem def-
ordeQidamcnte as fuás riquezas , e terem muyta
fazend-í .• Habebant mm multas fojjeffiones. E íin-
remfe mais no feuouro, e dinheyro ,que no mefmo
Deos ; e por iíio pronunciou ChriBo aquella íentcn-
ça , que moftra como impoQivcl o fal varem- íe os ri-
cos, dizendo, que era maisfaçilypaíTar hum Came-
lo pelofundo dehumi agulha, que entrar hum ticõ
noReynodo Ceo. E o repetio duas vezes: Et tte-
rum dico tobí^ ^fãcãiuseft Camelum fer foramcn açus
tra?ifire ^ quàm divitem intrare in Regnum C(ehriim.
E em S. Marcos : Gitíàm dífficiU , quipecumas habent sm
RegmímDetintro.bmit. ^ '
Ja muytosannos antes di vinda de Ghriíío Te liaó
no certamento velho inveâivas contra os Avarento?.*'
Avaro niBil e[t fcelejlms. Que naô havia'^Coufa no
Mundo mais perigoía para o ma!, emuyto abominá-
vel, que o Avarento. Eaccrcfcenta também, qtie
nâo havia maldide mais iníqua , que amar o dinheyro:
Nihil efi míquius, qmm ^misire femm0f^' Reparoj
que
<*...l
Dotúvmefifõ iosAv&mitos. 107
quicdaô diz, qukmfurari-i que o furtar? más é'\%
amare pecuniam , amar o dinheyroj e dá o Sagrado
Texto a razaô 5 porque quem ama com demaíiada
affeyçaõ o dinheyro , venderá com muyta facilidade
a ftia Alma : Hk mim & animam fuam vendem ha '^-i^cUj',
btt. E o Profeta Jeremias chora a maldade , e ruinéi '°•^^•
do género humano ; pois em todos os cfíados raro
he, o que vive izento defte vicio da Avareza: Ami-^'^^*^-
norétifque ad maior em emnes avayiúa fiuâent ^ & à^^^
Propheta ufque ad Sacer dotem. Acham- íe homens j
que vivem na opinião de bons Catholicos , fe conr
fcíTam , e commungaô todos os mczes ; não ouvireis
deiieshuj palavra, que ofFendaj trcquentaô as Con-
frarias} íaõ Juizes, e Mordomos delias; cicompanhaõ o
Venerável aos enfermos , e faô de edifícacao a todos,
.orem, Ic os tocais no intereííe, os achareis taõ pega-
dos na fua fazenda , que açoutarão os efcravos como
tyrannos , íó porque quebrarão hum vidro, ou hum
púcaro de barro, ou porque não acabarão a íua ta-
refa ; Omnes avaritiaftttdent a minore nfque ad ma^
iorem,
E que diremos das mulheres ^ Não fazem cilas,
peyor , efpecialmente neíia noíTa terra doSraíll ? To-
do o feu cuydado , e íentido , como he fexo mais de-
voto, heiris Igrçjas fazer as fuás devoções, alliiiir
ás Novenas .coafefTarem-fe.e commungarem muy-
tas vezes. Tudo ifío me parece muyto bem; mas
também delias fc pôde dizer com o Profeta,; Om-
nes avaritiaftudent. E que efíranha , e fordida
avareza tem alguas delias , e permitta Deos, que não-
íejaõ muytas! Toda a íua grandeza coníifle era ter.
h;u3 quantidade de efcravas ao redor do feu efírado, .
humas cuíhircyras , outras rendeyras ; eíbs ao
ganho', aquellas a vender as mefmss rendas , que
•fazem^-ofuflento dcljâs, jà fe fabe,hebuma pouca
■de
I !
' # 1
„. ! »
io8 Difcurfo VIU.
de farinha de páó , com algumas bananas , ou alg5is
ervas cozidas, ou legume* ; quando os ha , ou lhos
diõ. Aquellas , que fazem rendas , ou cufturas,
aindaquc ícjaô occupadas entre dia em algum ferviço
dacafa^ íempre hão de acabar afua conta, ícnaõ
poderfer dedi:i,fejadenoyte, com lhe tirar o deí-
cançoneccíTariodo íono. As que vão ao ganho, ou
vendem, íenáoachâo a vendera renda pelo preço,
que quer a Senhora, para não íerem açoutadas ven-
dem o íeu corpo i e aquellas do ganho não achnndo,
que ganhar de dia com o ícuíerviço, fazem fervir
o feu corpo de noyte para ganhar com menos tra-
balho. Oh que avareza íuja, e enorme he efta ! Oh
que pcccado hediondo ! Oh que delido execran-
do, ainda peyor do que o abomina o Efpirito Santo /
Pois tal mulher por amor do dinheyro vende aíua
Alma ao Demónio; Animam [uam vendem habet.
Mas pelo intereíTe de poucos vinténs , obriga as luas
cícravas ,a pòr cm Icyiaô o feu corpo ,c vender as
íuas Almas , que não cuftárâo menos , que a morte,
c Pâyxâo de N. Senhor JESU Chrifto ; e depois de ref-
gatadas com o íeu prccioíiíTimoíangue obrigalas a pa-
decer eternamente no Inferno.
Efte vicio da Avareza nefta noffa era reynarà
também cm alguns Ecclefiafticos , como nos tem-
pírí«?6pos de Jeremias? A' Trombeta ufqtie ad Sacerdotem,
Oxalá, que aíTim não fora: porque pelo modo com
que vemos viverem agora alguns Sacerdotes daLcy
da graçi , faô ainda mais Avarentos , do que foraõ
os da Ley cfcrita. Comecemos pelos Vigayros , e
Párocos. Vaga huma Fregucfia , ou Paroquia , que
rende quinhentos, ou feiscentos mil reis. Oh quantos
Clérigos ao concurfo ! Sabem muy bem todos , que o
Bifpo não deve, nem a pôde dar dejuftiça, fcnão ao
mais douto , e mais digno : e fc naõ tendes cíludado,
em
DõtômefitóMÃi3arentos. 109
ou fe fabeis fomente quatro caíos lidos em algum
livro vulgar, como aveis de reíponder em latim no
exame, efoltaros argumentos? Rcípondcráô, que
tem Amigos ricos , que fallaráò , c peytaráò aos
Examinadores , e que para ajuftar a coníciencia ba-
ila ter hum bom Coadjutor, que faça tudo. Má dou-
trina , c peyor coníciencia, por naó dizer peílima íi-
monia. E para que ferve huma Igreja tão opulenta,
encarregando todo o trabalho a outrem, com guar-
dar íó para fi orendimcnto com as funções, que lu-
craô,ou daõ honra? Bem íey,quc diz Saô Paulo;
Çlui altar i deferviunt , ci4m altar iparúcipant. Aquel- ^ ^^^ ^
Ics, que fervem ao altar, devem participar das fen- '
das do altar; e por ifto os Sagrados Cânones expli-
caô efta participação com dizer : Qnidtari jerviunt^
de altar i vívant. N^ò dizem ditejtanty que enriquc-
çâo 5 mas que das rendas do altar fe lhe dê hua côn-
grua fufficientc ao feu eftado , para viverem j fendo
claro , que os bens Eccleíiaftieos , por ferem patri-
mónio de Chrifío , tirando aquelle tanto, quanto for
prcciío para o puro fuftento , Rão fe podem gaíiar em
outro ufo , nem com os mefmos parentes , fe naô fo-
rem neceííitados, quando de boa razão ( como dizem
os Santos Padres ) fe deve aos pobres. Muytos Sa-
cerdotes pois, naõ he crivei , quanto commum-
mente íejaõ dominados da Avareza comprando , c
vendendo , fem pejo , nem cfcrupulo como nego-
ciantes , que fó trataô do bem das Almas , quando
cfperaõ algúa conveniência. Apenas cac doente al-
gum mercador rico , ou algum Miniflro, ou peíToa
capaz de dependência , logo os Párocos , os Coadju-
tores, e Capelláes correm para a íua caía , para
lhe aíTiílir com os Sacramentos , e fe a doença crefce,
mofeafafiaôdo arredor do leyto. Sabe-íe que ha de
tomar o Viatico j oh que concurío de Capelláes , c
O Cie^
Qlcfi^mmtcrVQml Nunca o Venerável he tãp viâne*
rado! No nieiíno tempo entraô os Regulares, eíie
com o manto deN. Senhora da Saúde ; outro como
Menino j E S U S; efte com alguma relíquia de algum
Santo da íua ordem 5 aquclle com fazerlhc fazer voto
de alguma Novena , ou romaria j e defta mancyra fica
a cafo. cheai de Sacerdotes, c Regulares. Admiro,
c louvo o grande zelo de falvar elkAlmaj porem
reparo, que no mefmo dia cfláo na Cidade muytos
doeniics de perigo tão pobres , que apenas achaò al-
gum veíinho , que por caridade vàavifar o Vigayro,
ou o Coadjutor para os Sacramentos) e lhe reípon-
dem^quenodiafeguinte. Efiaô muytos Negros , e
Negras, huns forros, e outros capcivos deytados
íobrc hu3 eíleyrâ em çaíebres deíemparados de todo,
€ conhecendo , que íeihe chega a hora da morte , não
cuydão em remédios, ou alívios docorpo, mas íó
pedem confiíTaô para íalvarcm as fuás Almas. Vay
algum Caritativo àFregucfia , acha, que o Pároco
cííà mal diípofto , eque o Coadjutor efíà íóra ; cfpc-
r^ por eliç , e lhe refponde , quç vá bufcar Confeííor
a. algum Convento, que elle não pôde ir, por ter
huaoccupaçâoprecifa. Vayao Convento, efe he de
noytc, acha acorda da campainha amarrada, e na5
pôde tocar, porque os Religiofos repouíaó; íe vay
de dia, lhe reíponde o Porteyro,que os Religioíos
tem fuás occupaçóes da Ordem , que torne ao íeu Pá-
roco, a quem toca por razão do officio,ede jufli-
ça , pois he eíiipendiado. Entretanto o pobre jà
perdida a falia , e o eícravo jà efpirando , ambos
morrem fem confiíTaõ. Mas como pôde íer iíio.? Se
foíTc em outras terras, me calaria 5 porém nas noífas
Conquiíias, é Monarquia Portuguezi , aonde a Fé
Catholica , e o Zelo de íalvar as Almas fobrepuja
as mais Nações ! Naó parece crivei, E com tudo
aíTim
Doíoréêntò dos ^Bentos. ^^^
aíTim fuccede. Pois com tanto zelo,, e fervor, párai
falvara Alma de hum Rico, correm Ecckfíaaicosjf
c Regulares à ftia caía fem ferem chamados , e para^
o miíeravel eícravo ,ou para algum pobre ninguém :
íe move ; todos íaô occupadòs ? fím ! Porque ^ como-
diz Jeremias : Omnes avaríttaftudéht k Frofheta\_
ufque ad Sacerdotem. O Rico tem que dcyxar, ha
de fazer teikmento, dífporá ao menos da íua terça
em obras pias , lhe farão hum encerro íumptuolo;
cada hum procura , que fc enterre na íua igreja; oií--
íroaigutiCapellàdeMiíías; outro algum dote P^râ" ^^
algúa ParcntaOrfaâ , ou Pobre : Omms avarttiíefiu- ^^ '
dent.
Quero dar fim a eftc paragrafo com hum calo,
que íuccedeo , ha mais de trinta anoos , em hum en-
genho do mato do recôncavo da Cidade da Bahia.
ConfeíTo, que quando mo contarão, e moUràraô o
•lugar , na primeyra MiíTaô , que fiz naquella para-
gem i me ficou de tal forte impreíTo na memoria,
,.quc me obrigou aefcrevelo, para que íc conheça,
quanto pôdc''eík vicio da Avareza, ainda cm hum
•Ecclefiaílico, quando de pobre, e faminto quer cn-
•thefourar dinhcyros. Chegou na frota dos Navios
do Porto hum Sacerdote mal veflido , e peyor trajado^
t logo buícou de íer Capellâo em hum engenho. Fof
provido ; e o Senhor do engenho vendo-o tão pobre',
e humilde lhe deu hum Negro , para o íervir , c hum
■cavalio, para acudir àsConfiOToês dos applicados à
fua Capella, além do cRipendio de quarenta mi4
tós,e outros tantos dos feus applicados, e a MííTa
■quotidiana de dous toftocns cada diai que nunca
lhe faltava, pois fupria o Senhor do engenho, pard
que a diceííe pelas Almas dos feus Defuntos. Ganhou
vémdous, ou três annos, para comprar quatro , oti
rcincoeíicravos í eo Senhor do engenho lhe deu hum
J
.'J ti
I I
ii^ . Dl/cuvjò VUh
pedaço da tcrira, para plantar canas /rendia o Cana:
veal felizmente, e fazendo bom acucar comprou mais
eícravos com bois, e carro. Vcndo-fe cile com fa-
zenda, náo tratava jà das ConfiíToês , nem dobem
das Almas j naõ falíava fc naô de intereffc , e de ren-
dimentos. Toda a fua occupação era aífiftir no Ca-
naved ; elle fazia de Feytor , e juntamente de eícra^
vo, trabalhando com a enxada na maõ entre ellcsj
porem o íurtentocra taõ limitado, que naôpodiaõ
aturar o fer viço j nem elle paíFava melhor; porque
vendo os feus Frcguezes. que já tinha fazenda, naõ
lhe mandavaõ mimos , e elle como Avarento paíTa-
varaiferavelmentepornão gaftar dinheyro. Chegou
finalmente o tempo de gozar do feu trabalho j c
foyocaío , que carregando o feu açúcar nos carros^
para o conduzir ao porto da mar , como o caminho
era cheyo de lamas, fuccedco ficar o carro metido
em hum atoleyro, íem que os bois podcíFem arran-
cai© ; e cora a diligencia hum dos bois ficou também
atolado. Quem^ diíTe , que os Avarentos íaõ cegos,
diíTe bem. Oh cegueyra inaudita! O Sacerdote por
mb perder o boy , refolveo-fe a entrar no lamey-
ro i c pondo os hombros dcbayxo do jugo , di^
zia cora voz alta ao cfcravo , que tinha a aguilhada
na mão f deyxa eftar o boy ; pica-me a mim ; c
pica-mc bem. O efcravo pafraado da cegueyra de
feu Senhor, e pela veneração , que tinha ao caradler
Sacerdotal, picou o boy eom tal violência, que fa-
zendo hum esforço para fejcvantar ,dea comhuma
ponta nas coftelas do Sacerdote ^ que lhe eílava à
ilharga puxando debayxo do jugo , que não pode di-
zer outra palavra fenâo cila. Ah , que o meu boy
me matou \ E efle foy o nome de JESUS, que invocou,
c foy o Acflo de Contrição , que fez j c arrancando-fc
o boy vivo, ficou o Sacerdote no alolcyro morto.
i I
'^««:cu«st«aa.>J^&2!ik^i^s<C«
«..M
DõtôvmentoãõSÂvàventosl ^^3
Úmms avarltU ftudent i Propheta ufque ad Sacerd@z
tem,h(^im vaò a acabar os Avarentos.
V Virto, que a mayor parte dos homens faõ domi-
mdos por efte vicio da avareza , continuemos agora
a dizer as razões, c provas , porque he moralmente
impoílivel^que os Avarentos fe íalvem. Para poderem
falvaríe, devem (como diíTemos no principio) mudar
de vontade, ediípirfe do amor demafiado , que tem
às fu3s riquezas ; mas de tal forte eftaõ arreygados
cm accrefcentar a fazenda, que defejaô ter lemprc
fnais ; c por muyto mais , que tenhaô jfempre co-
mo hidropicos do ouro , eda prata nunca cflá farto
o kudelc]o, cubicando as riquezas com mayor fede:
Cnfcit mdtilgens fibi dirus hydrops. giuoplus fmt po-
ta , phsfiúuntur aqu£. Coníiderando S, ^go^^i^^^^/r^^-^ g-
as palavras do Profeta Ifaias; Repleta eji terra ar-^
gento^& auro-, que aterra eíkva chea de ouro, c,
prata, repara , que não difíe o Profeta, que ficaíTe
também cheyo,c farto o coração do homem ! Terra Au^
ímpleri poteft , cor non poteft. Poderàô as minas áotbt»
Brafil dar mais ouro cmpò, que não daô áreas meu-
das as prayasdo mar j poderá o Peru ,eo Potoíi dar
tanta prata, que nâoa poíTaô carregar todos os na-
vios mercantes , e do regiftro , com tudo para a cubi-
ca do coração do homem fera pouca couía,e defe-
jará íempre mais. As cargas das nãos tem lua medi-
da , cfla chea , não tomaõ mais carga. O coração
dos homens avarentos não tem medida ; quanta
mais carga tem, tanta mais deícjaõ, até fc afunda-
rem na rnorte , irem improvifamente a pique ao la-
ícxno:T€rr a impleri poteft ■yVdrmnpoteji.
Todos os vícios, cpayxôes humanas ordinaria-
mente íe vencem com hum deftes três remédios ge-
racs. Ou por hum feliz fucceíTo, ou por humcafo
deiaflradojOU por fraqueza, e impotência danatu-
O j 3feza.
1:1. .;•
^
I í ■
;f I
ií4 Bifeurfo Vlll.
reza. Apparcçâ hum vingativo, com a eorâçaõ todd
fogo, traz a honra na ponta da efpada, náo cuydíi
fc nâo em vingança, etodo a feu kntido de vin-
garfe ^ cora matar aa inimigo : fuccede humaocca-
ôaõ de íaiff com mayor brio , c luflre do empenho,
ou por htima infpiraçâo Divina de fazer hum adio he-
róico, e ganhar o Paraiíode hum golpe ,com defpre»
zar â honra fantaíiica , que conílíle naquelie penía*
mento. Que dirá o Mundo L No mcfmo Lnlknte de
Leaô fe faz Cordcyro y torna a embainhar a cípada^
abraça o inimigo, e em lugar da morre, lhe dá a
mái. AífimfezSaôJoa5Gualbcrto,que de peccador
íoy hum grande Santo , e Fundador da Ordem dos
Vailombrafíanos. Hum ambicioío de honras náa
deícança ^ atè alcançar aquellc pofto , tâo defcja-r
do. Depois que o pefiTue, não fe contenta , mas faz
o poífivel para chegar a torto, ou dircyto àqueila
dignidade \ e eftando já no cume das f«as grandezas,,
entra a emulação dos competidores , c a enveja dos
pretendentes j vira aroda da fortuna ; cahe na def»
graça do Príncipe j todos o deyxão , e todos fogeni'
dellc. Efte mao fucceíTo lhe faz conhecera vaidade
do Mundo, quejà lhe aborrece, como ieconfíante^'
c como traydor , e virando-lhe as coíbas , entra
em hua Religião obfervaíite , para fervir a hum Rey^
que nunca falta , nem. lhe pode faltar , com darlhe a
paz, e quietação neft^a vida, ena outra a bcmaven*
íurança, Aílim íuccedeo a Saó Pedro Gonçalves»
PaíFeava cfte veftido^ de belliííima gala fobre hum
Cavallo ginete , com os arreyos bordados de ouro^
c prata , que parecia hum Sol brilhante , fazenda
pompa das fuás luzes. Hum improvifo íalto dò
Cavallo com hum contratempo não elperado ba*;
fíou para hum total ecclipfe defle luzido Planeta;
porque cahindo vcrgonhofamentc cflendido no lodo,
de
n
Do tõMèktô dôs Avârentõf. 1*5
<fè cfpelho da vaidade, ficou cípedaculo de riío.
Levantou íe , e vendo-íe tão deforme j c eícarnecido
mo quiz mais Cavalioi mas aíTim envergonhado,
com os olhos bayxos foy aportaria deS. Domingos,
^dcípindo-fe das galas, defpcdio os criados, dizen-
do} daqui nâo fahirey mais fenão Religioío. Eis-
aqui como hum mao fucceffo íerve de defenganoj
abre os olhos da Alma, € troca hum moço, devaõ,
efoberbo cm hum Santo humilde. A íraqucza , a
doença, e a impotência naõ tem menos força, para
áararhum luxuriofo, ainda , quefeja habituado de
«luytos annos nas íuas torpezas. Dcíenganem-íc
todos aquclles, que dizem não lhes fer poflivel paf-
íarnefta vidaíem os delcytes da carne, que fenaó
deyxarem efíc vicio , virá hum dia , em que o vicio
deyxarà a elks, Lembrem-íe , que a velhice , a na-
tureza cançada , os marbos gallicos , e outros acha-
ques , os fará incapazes de ufar mal do fcu corpo,
que foy creado , para fer Templo de Deos. Sey,
que muytos debayxo das cinzas da inipotencia da
corpo tem na imaginação , e peníamento, confcr-
vando fempre aceío eík fogo dcshonefto , Icvando-o
comíigo atè á fepultura. Mas , que digo , ate á
fepultura! O levará com(igo atè o Inferno; elhc
durará por toda a eternidade $ porque morrendo etn
peccado mortal com aíFedlo defordenado aos deley«
tes da carne , aquella íua fantafia , c imaginação de-
pravada lhe ficará como huaefpccie imprcíTa fempre
£xa , fem nunca poder dar hum momento de goíio
ao íeu deíejo j mas pouco importaria o íer para íem»
pre privado deíle gofto , com mu m atè aos brutos,
íenãotiveíTe outra cípedeirapreíTas quehade to-
lerar tormentos iníoffrivcis eternamente. Oh que
deíeíperaçaô ! Oh que batalha cruel da própria von-
tade, contra apropria vontadç. Nunca ter, o quG
■ ■ 'í' - 1
,) i^'!
h I
ti^ Bifcm/o VI ti
^uer ^ c femprc ter, o que naô quer ; fcmprc def^
j^r , e querer deleytc& momentâneos y e nunca telos»
nçm par hum inftante i nâo querer , c aborrecer
tormentos ^ e penas , e íempre telas eternamente!
Eíla coníidcraçâo bem digerida no entendimento^
£ confervada cada dia na memoria ,, fey , que impri-
mio GÍpecies de tal modo differentesem vários meus.
GonfeíTados , que nâo quizeraa mais cuydar , nen*
ver, nem ouvir fallar em; tarpezas. Fizeraõ dane^
çeííidade virtude , e quanto mais hediondos eraã os
achaques ^ tanto mais debilitada era a natureza , e
íerviam-lhes de remédios mais eíEcazes <, para a falva-
ça5 da Alma. Seguiaõ adoutrinade Saò Paulo : Hu^
Rem.e,manum dico propter tnfirmitstemcarnúvefiraficutk
€a% enim exhihuifti^membraveftra^ ftrvm: immundttia!,
& miquitatt > ad imqmíatem^ , ita num exhibete
membrâvejlrafervire^jullitiain fanãificatiomm. Do
íobreditolc infere fer verdade j que todos os vicios^
epayxôes,tem íeu remédio^ ou era hum feliz fuc-
ceíToj ou em hum caía deíeí^rado^ ou na im poten-
cia, ou enfermidade do corpo.. Porem na Avareza
mohe aílim; antes eíks três remédios , que deííroera
todos os mais vícios , lhe fervem de oleojc enxofre^,
que mais lhe acende o fogo infaciavel da íua co-
biça*
Quanto mais feliz he hum Avarento, tanto mais
. íe augmenta afua payxaô.. Santo Agoftinho diz , que
"Asigtiít. ^ Avareza he femelhante ao inferno , que nunca diz
Serm^ad^^^^ .• AvãTiúdefi abyffminfatiãbilh , qua nunquam
fr.d» dicitfuffidt. O^ eiemcntos> tem- íeus 1 imites y e todas
Er^m, as cotíías. tem íeu tçrpo ^ e £m. Sô a Avareza não
tem limite, nâo tem termo , nem tem fim.» Omnia
r .,../?'^' termina clàuduntm ^fohavafítianullo dauditun
^í*^'fine.. 0| bonsv ou mãos íucceffos^ de nada fervem
gara a çmenda de hum A.vareato j, íe tem perdas no
. ; " Hiar,
/
n
J)o tormento ão$ Avaventou i^7
mãr^ ou deígtaças na terra, entra emtriftezas, c
para reparar os danos, e recuperar o perdido, naô
ha violências , que naô faça , não ha injuíiiças , a
que não íe atreva i porque não paga as dividas, op-
•prime as viuvas, e engana os orfaõs, e deíie mo-
V do diz Saõ Jeronymo, que a Avareza he hum mal
lem remédio, que nunca fc fará , nem com a indi- .,
gcncii , nem com a abundância ; Semper jivarus ^^^l^r
eget , cvjus avantia neque inópia, , neque copia minui- cad.^í
tur. Por ventura a infermidade , a fraqueza , ou
outro achaque incurável curará eíle vicio , e ícráo
único antídoto defta pefte da Avareza ? De nenhúa
íortc. Poderá por ventura ler , que a neve da vc»
Ihicc esfrie o ardor, e cubica de fempre ter mais fa-
zenda ? Menos o fará ; pois a Avareza he hum fo-
go laô induflriofo ; que para fe confervar ; Scit (co-
mo diz o Poeta ) nivibus fervare Jidem. Ao menos
na idade já decrépita , quando a morte lhe cfiarà ^
diante dos olhos, então o Avarento fe refolverà a
deyxar tudo ? E fcnao tudo , ao menos o que lhe
não for precifamente neceíTario ? Tudo ao contra-
rio fcrá; porque então a Avareza augmenta mais as
forças , quando adverte , que a natureza já proflra-
da vay diminuindo as fuás. E ( como diz Santo Anto-
nino) quandoo Homem vay envelhecendo, fempre
vay defeaindo , porque perde as forças, e íc rende
mais fraco j porém a Avareza, quanto mais velha
fe faz , tanto mais íe remonta , c fe rende mais for- ^ '^«^•
te , e potente .* Catera vitia homtne inveterafcente fe- P^^^-"^'.
tíeftiifít ^fola avantiajuvenejcit. Fica logo certo dele»^ ^* '
geerdinaria fer moralmente impoílivel) que hum Ava-
rento mude aíua vontade de peíTuir, e accreícentar
fazenda 5 pois nenhum dos remédios a diminuem ,,anf-
tcs todos a augmentaô.
E Í£ todos os remédios humanos não tem eíS^
caci^
' ,1
I\
íh.6.
itr8 mfcttvfo VIU.
'cacia f^ra mudar a vontade de hum Avarentoi ée
modo que defapegue a fua afFeyção deíordenada^
que tem ao dínheyro , que hc o íeu idolo ; a graça
de noíTo Senhor J £ S U Chriao , que tudo pôde , naõ
poderá moFcr a vontade de kum Avarento , e tro-
carihc o coração dcmodoqucqueyra antes fer hum
Lazaro pobre , e entrar no Paraiío , que ficar hum
Rico Avarento j e íer íepultado no inferno ? Naô r
attendendo à cooperação , que da fua parte deve
pôr o me f mo Avarento , e fem a qual nunca o fará
noíTo Senhor J E S U Chrifto , íem fazer hum miiagrc
prodigioío , que não íe deve preíumir , ncmefpe*
car íem húa grande temeridade. Hc belliflimo o rc^
paro , que a eííc propofito faz Saô Joaò Chryfoftomo.
Quando Deos quer farar os pcccadores dos outros
vicios , acha íó a dificuldade no mao habito daquel-
Ic vicio. Mais claro. Quer Deos introduzira virtu-
de ^a humildade em huma Alma, achaíóa dificul-
dade da parte do vicio contrario , que he a foberba.
Quer cftabclccer a caridade, e a pureza^ e fó lhe
faz refíííencia a luxuria. Quer introduzir a paz, a
quietação, e o amor do inimigo , e fó experimeo^
ta contrarias, â ira , a çokra,e a vingança; mas
quando íe trata de eíiabelecer o defprezo das rique-
zas , não íó acha refiílencia da parte da Avareza;
mas de todas as mais payxõeSíC vicios, que todos
unidosXe oppocm como ramos dependentes da fua
arvore ; porque fcomo diz Saõ Paulo ) fendo a Ava-
reza a raiz de todos os males, e de todos os pecca-
' dos : Radíx omnium maior um efl cupiditas ^ arrancan?
do-fecfta , fícaõ íecos, e arrancados todos os mais
vicios. Quem tem dinheyro, e pcíTuemuyta fazen-
da , tem honras , tem dignidades , tem boa meia,
temos deleytes, que quer, tem dependências, tem
Amigos , e tem criados j todos o bufcaô , todos
o íer-?
tiTniiariíinainti r^i-t-í^r iH^KN
Do mmentúdóí Avarentos. 2 1 9
© fervem , todos lhe obedecem, atè os mefmos vicies: Eceíef,^
Pecunia obedíunt <?»^/^ ^ e finalmente quemdinbeyro ^^t
tiver, fará o que quizer» Ora vcjaó que reíiftencia a«
charà a graça de noffo Senhor j E SU Chrifto , para
mudar o coração de bum Avarento» quando paraari
rança ribe a Avareza , ha de pelejar , c vencer no mef-^
mo tempo , unidos entre fi» c conjurados , todos os
vicios.
Acho no Texto Sagrado hua prova concludente
de quanto temos dito. Jofuè tendo vencido cm huma
batalha os inimigos do Povo efcolbido , e queren-
do defíruilos todos ^ e apriítonar os cinco Reys , que
tinbáo cercada a Cidade de Gabaon , mandou ao _^
Sol , que na velocidade do íeu curío paraíTe : Sdi^r*'' ,
eontra Gabaon ne mavearpí. E efíando aquclle Prin- ^^'
cipe dos Planetas no meyoda íua carreyra parou lo-
go ,e peloefpacio de vinte e quatro horas naõ con-
timiou o feu cuxio: S.tetit itaque Sol in medto Cali^
Ú^nonfefimavit occumbexí f^atio uniusàieu E o que
mais fajt admirar he , que o mcímo Deos obedeceo
logo â voz ác]oítíè: Obediente Deo voei hominií» Pe-
lo contrario manda Jofuèíobpena de norte ao exer-
cito, que nenhum le atreva tomar couía alguma dos
defpojos, vencidos que foííem os inimigos; e que
cfla era a vontade , e preceyto de Deos ; Vosautem ?^^^^
iavete ne de his , qua pracepta fnnt , quidpiam con- ^^P-^' ,.
pngatis. Giuidquid autem asm^ & argenti fmrity * '^^^
Domino canjecretur. E com tudo acbou-íe hum íol-.
dado por nome Acham , que vendo humas moedinhas
de prata, e hum pequeno de ouro, cego da ava*
reza quebrou logo o mandamento. Exclama aqui
atónito Santo Ambroíio, e faz eíle reparo. Ordena^
Joíuê ao Sol , que pire no meyo do feu curío, e
iicou immovel / manda a hum homem avarento^
que não íe aproveyte dos dcípojos , c naõ quiz obe-
decer.
J9'
tio . Dtfcuvfo Vllh
D^^r^^^^^^"^ ' §í3^fo^em fectt Jiftere ^ avaritiam Jiftere nmpê^
kof. ^^*^^' OmelmoDcos obeckceajoíuè, ehum mifera^
rei foldado lhe ixíiík \ Daqui claramente fe infere fer
moralmente impoíTivel 5 que a graça de noíTo Senhor
JESU Chriíio mude o coração de hu Avarento, quan-
do jà cftá empedernido, e conrtante.
*- Efta verdade fica autenticada por infallivel no
Evangelho napeíToa de Judas. Chriflo o tinha eley-
to 5 e admittido entre os íeus Difcipuloi^, e inftrui-
donodefprezo das riquezas com a fua doutrina, e
comofeu exemplo. Os Apoftolos àíuavifta tinhaõ
deyxado , quanto poíTuhiaõ para íeguir a Chrifto.* Ec-
ce nos reli qu mus omnia , & fecuti fumus te. E com
tudo a Avareza o fez refolver a ler traydor ao feu
Meftre , c vendclo por viliífimo preço. NoíTo Se-
nhor JESU Chrifto íe valeo de todos os modos ima-
gináveis para o converter; cm todas as occaíioens
lhe moftrava hum amor exceffivoj feio Thefourey-
ro do CoUegio Apoftolico , polo á fua mefa , e lhe
deu atè o feu mefmo corpo a comer, Ah , Ju-
das, Judas ! Ah defgraçado ! Por avarento que
f o íTe o teu coração, naò devia eflar }á latisfeyto, e
farto, tendo encerrado em teu peytoJeíuChrifto,
que vai mais, que todos os thefouros do Mandof
« gNo Horto todos os Soldados, que buícavaõ a Jefu,
\ ^'^ para o prenderem, dizendo Chrifto Ego J um: Eu íou/
todos cahiraô por terra, ecom tudo Judas com o
íeu coração empedernido naó íe abalou > antes le-
vantando que foy em pè, vendo, queChriílo, co-
mo manco Cordcyro, dellc recebera o abraço, e
\ ofculo de paz, como Amigo, a nada fe moveo , e
nada difto fez impreíTaô alguma no coração infacia-
vel dcíle avarento j antes a íua avareza fez, que pre-
ferifíe trinta dinheyros ao íeu Divino Meftre ; à fua
ialvaçaô, e ao íeu Deos. S. Pedro em poucas ho-
ras
1
<«iu;fti!g£l
Do fermento dos Av eventos* 1 1 1
fâs negou três vezes a Chrifto j mas logo , que vio
os olhos amoroíos doícuMeftre, lhe arrebentou o
coração de dor, efe desfez cm lagrimas de peniten-
cia: fkvit amare. S^òThomè foy infiel, foy incre- '^'*'^*'í
duloi mas logo que tocou o coftado de Chriíloj fe
confirmou na fé , amando-o com mais ternura. A
Magdalena era peffuida de fete Demónios ; porem
logo que chegou aos pès de Chrifío , trocou tão de
veras o amor profano no amor a J E S U , que dihxit
muUum , c por iílo de grande Peccadora ficou húa
gr mde Santa. Saõ Paulo embebido na Ley de Moy-
fés , íc fez perfeguidor da Ley de Chrifío ; mas com „ ,
dizer lhe íó; Saule SauJe quid me ferfeqneris^.Vox- ^ n.
que me perlegues Paulo? Baíiou,para de períegui- 12,.
dor , fer hum grande Apoftoio. Sò ao defgraçsido
Judas naô valêraõ» nem a fua vifla amoroía , nem
as íuas palavras de vida , nem a fua doutrina do Cco,
nem os feus milagres , c prodígios, nem a fua hu-
manidade facroíanta , nem a fua divindade j por-
que o Avarento ^^como diz Saô Boaventura ) ^"^^^ s.Botiav
antes a fua fazenda , que o Paraifo i mais ama o di- ah.i.c,
nheyro, que he o feu ídolo, que o mefmo Deos; 5.
Avarus "Deus conttmmt , quia flus àiligit , fecuniamy
quàm Deum. Quero concluir efte primeyro ponto
com dizer , qiie íc a graça , e mifericordia Divina não
obrou couía alguma em Judas , obrou muyto a fua
re<5la juftiça , e vingança ; porque primeyro que
morreíTe Chrifto na Cruz, morreu clle defefpcra-
do, precipitando a fua Alma no inferno. Todos os
Avarentos (diz S. Joaó Chryíoftomo ) tem o mefmo
achaque ; e faò femelhantes a Judas , e aííjm podem
temer juftamentc , que fendo dominados da mefma
payxaô , faraó o mefmo fim; fazendo lhe compa»
nhia por toda a eternidade no Inferno ; e le he mo-
ralmente impoflivcl , que os Avarentas fe falvemi
I ■ i
II'
tit DifcuvfQ VIU.
que íerá daquelíes , que furtaò , e refcm o alheyo
íem o reftituir l Eíia he a matéria , que propuzemos
tratar no fegundo ponto, que agora íe íegue.
Seeun- Quando S. Bernardo cíiava na Cidade dcMilaó
do Pó- i^SQi-íslic grande conceito de Santo, que atè mor-
to, tos reíufcitava , lhe trouxeraô hum Endemoninha^
do ; para que o efconjuraíTe atè expelir os Demó-
nios daquelle corpo. Perguntou-íhe logo o Sonto.
Quantos fois vôs ? E como vos chamais ? Refponi
deo-ihc logo o Endemoninhado : Nôs naô fomos
tantos , como aquelies dos Gerafenos no Evange-
lho, que íe chamava hgio , que quer dizer huma le-
gião inteira de mais de quinhentos. Somos fomen-
te três, que valemos, e podemos por mais de mil}
c nos chamamos , hum fecha corações ^ o outro fe-
chi bocas ; e o terceiro fecha bolfas : O primeyrò
impede , que os homens abraô o íeu coração a Deos,
que naô confíntaõ às fuás infpirações , que naõ ou-
çaõ a fua palavra , e íobre tudo, que naõ creaò a
terribiiidade das penas do Inferno. O fcgundo fe-
cha as bocas aos penitentes , quando íe rcíolvem
de íe confcííarem , engrandeccndo-lhes a culpa , pa»-
ra que tenhaõ vergonha de dizer as fuás torpezasi
que o ConfeíTor perderão Goncey to, e boa opinião,
que tinha deíles } que lhe negará a abíolviçaõ, ou
gritará , e lhe dará grande penitencia. O teres vro
Demónio hc o fecha bolías. Efic he o mais atradli-
vo,e pod;rofo de todos , pois eflfeytua as mais das
vezes , o que os outros dous não pudèraõ alcanç.ir;
pois não lhe prohibe o confefíarem-íe antes o eíli-
mula , procurando , que a ConfiOTaô cão fcja valida,
eospcccados não ícjaô perdoados , e fique de mais
a mais com hum facrilegio , por nâò fazer a reftitui-
çaõ, ou por não fizela a íeu tempo. '
E que íç}a abfoiutamcnte neceíTario rfiftituir o
alheyo,
Do tormento do^s Mar entes. 1x3
glheyo , fobp^na ds íer eternamente condenado ao
ínferno,íeria hum perder tempo em ajuntar Textos
da Sagrada E^ritura , citar Concílios, alegar San-
tos Padres , trazer Doutrinas Theologicas , pois
ijunca íe achou , nem Doutor , nem Cafoifta , nem
Theologo , ou Canonirta , que falle o contrario,
ou o ponha em duvida. O mefmo furto prega em
voz alta efta verdade: Res clamat Domino fro. Gri-
ta continuamente no coração , que reítitu.iò a feu
dono. A confcicncia não pára } nunca íe aquieta;
4à picadas ferozes com remorfos inevitáveis. S.Me-
dardo, Abbade , tinha huma junta de bois , que
íerviaó para trazer agua , e lenha , ao feu Moíicy-
ro. Hum deftes bois tinha huma campainha depen-
durada ao peícoço , para o acharem mais facilmen-
te, quando íeafaftava do pafto. P^íTou hum ladrão,
e , defatada a campainha , a meteu na algibeyra,
c levou comíigo o boy para fua cafaj porém a cam-
painha femprc por fi elbva tinnindo. Fechou-a lo-
go o iadraõ em huma cayxa , cubrindo-a bem de rou-
pa; mas ainda aíllm não ccíTava de tinnir. Fez en-
tão híía cova bem funda no chaó , c enterrou-a , di-
zendo; oratinne quanto quizeres.-e íe foy deytar.
Apenas quiz pegar no fono , quando a campainha
afinou mais o Tom , tinnindo, c mais tinnindo. Paí-
madodcfteíucceíToo iadraõ, entrou em fi, difcor-
rendo defíe modo. Eíie fom da campainha tão agu-
do , que me não deyxa dormir , niõ he natural j mas
he a voz de Deos , que me defperra , já qt e naõ
queroouvira voz da confciencin, que com tantas
picadas me remorde pelo furto áo boy. Pobres
Monges, que além da perda do boy, tem também
O dano dep.igar a quem lhes acarretar agua, e le-
nha. Com eííe psníamcnto íe levantou da cama,
c , poílo de gcolhos , pedio perdaõ a Deos do fur-
to,
I 1
/
': i:
f
I íff
Co , com propoííto de ir cm peíToa, ao amanhecer,'
reílituir o boy ao Mofíeyro. Coufa prociigioía ! Lo-
go a campainha nâo cinnio mais. E clle , tornan-
cío-fe a deytar , dormio foccgadamcnte ate alto
dia. Defpertado do fono, foy logo a ver o boy,
que íhcpareceobeilo,c bem gordo > e.reparou cam-
bem, que a campainha não tinnia como de princi-
pio. Efquecido pois do propoííto , que na noyte
antecedente tinha feyto , mudou de parecer , di-
zendo comíigo. Oh como he forte a imaginação do
homem! Parecia-mc hontcm , que a campainha
citava tinnindo; mas foy fonho, e fe não foy fo-
aho , eraò por certo os ouvidos ; que me zuniaó a
modo de campainha? Aonde levarey eu agora eftc
boy, para o fazer logo em dinheyro ? Apenas con-
feotio nefta determinação , quando logo a campai^
nha tornou a tinnir de novo , c taô forte, como íe
aquelIecaíebrefoíTehúa Capella, na qual tangendo
ehamaíTe a gente á Miffa. Defenterrou logo o la-
drão a campainha , e a levou com o boy a Saõ Medar-
do , que jà o eftava eíperando á portaria ; e lhe
diíTe : Sejíis bem vindo com trazer o noíTo boy,
que já fazia grande falta ao Mofteyro. Oh , íe to-
das as vezes , que íe faz algum furto , permittira
Deos íemelhantes campainhas ; em quantas caías fc
ouviria efte tinnido dedia , e de noyte / Equecon-
fuíaô averia nas Cidades com tantos , que andaô pe-
las ruas, não íe podendo já deflinguir, qual foííe a
campainha da Mifericordia ; qual do Hoípital ;qual
da irmandade dosTcrceyros; qual das de mais con-
frarias ! Tudo feria tinnir fem atinar no tinnido.
Mas deíengane-fe, quem não reftituc a fazenda a-
Ihci, que fe agora não ouve a campainha de fora,
ouvirá em quanto viver a campainha por dentro
muyto mais moleíia , que hc a coníciencia , que
feni'»
; I
Vo tormento ãos Avarentos. 1 2 J
fempre bradará com efíe fom ; Res clamai Dommé
fuo. E com tais rcmoríos^ c picadas naAlma,quç
Q mais doce mel dasdelicias lhe parecerá hu fel amar*
gozo. Naô falio por agora no tormento , que dará
£30 Inferno efte remorib , que he o verme da con-
fciencia, que fempre rôe, e nunca moxxc \ Fermis
enim non morittir. Tormento taõ deíefperado, que
me obrigou a hú diícurfoá parte, que he o penúlti-
mo. Tornemos agora ao Demónio fecha holfas , e
vejamos a íua aftucia , c maldade. Elle naõ cuftu-
ma pcrfuadir a hum Catholico , que naõ reftitua,
porque bem conhece, que perderia o tempo, co
feu trabalho ; pois todo o Catholico cré , e teme
o inferno, e íabe, que fe náo reftitue, ha de pe-
nar eternamente. Mas fim reprefcnta-lhe razoens
•aparentes , porque não reílitua logo , aíTegurando-
Ihe, que balia fazer reílituiçaôi em tempo, que
tiver mayor cómodo , ou achar melhor conveniên-
cia. Que fe adoecer , fará teftamento , e dcyxará
cfta com iíTaô com clareza aos íeus herdeyros. Oh
aílucia diabólica! Oh iqfernal engano ! Primeyra-
mente prevê o Demónio; que vos podereis morrer
repentinamente, ou terhuatal enfermidade (como
fuccede amuytosj que naõ poíTais fazer teíiamen-
to, e ainda que tenhais o juizo livre , e vontade
de o fazer ; os que vos herdaõ abinteflato , por me-
do dos legadospios, que podeis teftar, vos diraõj
que a morte eflá bem longe , e dado cafo, que por
reíoluçaô firme façais o telíamento , poderá ler , que
o Eícrivão induzido pelos Parentes , com mudar lua
fó palavra, ou accrefcentar huma pequena formalida^
de, fará , que a voíTa boa intenção naõ tenha efFey-
to depois de morto, ou pelo menos íeja hum feroi-
nario de contendas , e demandas , que , íabe Deos,
quando fe lhe verá o fim. O que mais faz tremer
P hum
-.'í
StsAr.
%i6 DifcurfoVilh ^3
foiím Gatholíco na inateria da reftituiça5, he;:qiífe
differindo-a , fe commette hnm numero quaíi innu*
meravel de peccados •, pois efíe preceyto . de naã
furtar hc negativo, que obriga em todo o tempos
e , como dizem os Santos Padres , e Doutores da
tsm, de Igreja ? femfer , & pro femper ; para fempre. Go-
refi mcçarey as provas deíia verdade pelo grande lume
da Igreja , o Doutor Santo Agofíinho , o qual efcre-
vendo a Macedónio diz ailim : Si res aJiqua prapter
"Adf.ep. ^íi^f'^ psccattím ejf^ & non reddítur y psenitmtia non
54 ad^ê.^t'^^^ í fedjimulatur. Quando alguém pôde refti-
Jí^ffí^. tuir a coufa alhca,enaõa refíitue logOj erte naõ
quer fazer penitencia j mas finge de a fazer , para
naõ reíliruir. O Doutor Angélico Santo Thomàs diz,
que conforme o furtar behum peccado contra jufti-
ça , aíSm também hc o mefmo peccado o reter o fur-
to contra a vontade de íeu donoj porque hc pri va-
lo do uíov c dos fruytos, c rendimentos dos ícu§
bens, c naõ he licito períeverar ncfte peccado , nem
por breve tempo: Suut aceipere tem alienam efi peC"
catum centra jtiftitiam ^ita etiam detmere eam , iniii^
jyjk.z fQ ]jiQjr^jf2(y ; qfiia fic eum impedit ab uju rei fua : ma*
2.f. 62. ^if(,jij^j^ ^ji autem y qmd nec per modicum tempusUcet
m peccato morari. OPiiíEmo Religioío Frey Luis dé
Granada , que toda a Igreja Catholica pela fua gran-
de virtude, c letras^ venera como Oráculo da ver-
dade , exhoria a todo o fiel Chrifíaõ » que peíTuc
fazenda albea , a reíl^tuila logo , e fem dctença>
enaô baila, que tenha intenção refoluta, de o fa-
zerem outro tempo mais próprio para elie , ou rnais
proporcionado aos feus intereffes. E o P. Gregório»
de¥aiencia da Companhia de JESUS taô cíclareci-
do^pcbsfuas doutrinas Theologicas, prova, que a
prompta reíittuiçaô he neceíTaria por preceyto nc-
gativo,e que naõ o fazendo logo., fe commette omeí-
. i \i mo
1
«^
iiiMiiMAattÉi ■■i~-rM*iiiinM rm-tii'^' m
mÊÊiÈÊ^
Do tivriiento dos Avarentos. %^7
mo pcccado , como íc de novo tiveíTe flif tado a mú^
macoufa: Rejiitutid eft neceffarta ex pracepo negé^
$ivo t & omiffio íllíus aqtiwakt injufta acceptioni.
Fundaò-íe todos eftes Santos Padres , e Doutores
Sagrados , na juftiça, na razaò, e no preccyto di-
vino, que manda , que o íalario devido aos cria-
dos, e obreyros , naòíe guarde para o dia ícguín-
te ; Norí remanehit mercês ufque mane , e que naõ íc*-
famos devedores de couía alguma ao noíTo próximo:
'Nemlní qmdquam deheatis. E por ifto no Concilio
geral Laterancnfe eOá definido , que o furtar coufa
alhea , ou retela injuítamcnte, e contra a vontade
de ÍCQ Dono he o meímo peccado : Non multum in-
iereft^ quoad periculum anim^ ^injufte detinere, ac in-
vaderealienum.
E a fim de que naõ pareça efte prcceyto de naô
reter o allieyorigurofo, vejamos o que Deos orde-
onava na ky velha ao feu Povo. Se alguém (á\z o Tex-
to^ tiver furtado hua ovelha ao feu Próximo, ou t
tiver comido, ou vendido, íerá obrigado por huma,
íícftituirqu-ítro: Si quií furatus fuerit ovem^ & oc-
ciderit , vel vendiderit , quatuor oves pro una ove n-
j^/rf/^/. Comentando Santo Thomáseftas palavras per-
gunta ; fe a ovelha furtada he huma íó , como a Lcy
ordena , que fe rei^ituaõ quatro? E refpondc , que pa^
raimpedir o furto, c reparar o reter o alheyo , com
o lucro ceííante , e dano emergente. A ovelha fur-
tada dava a feu Dono quatro emolumentos; o ley-
te,para qucyjoSj a laã , para fe veftir; o cordey-
<|»0,que nafce; e a carne da mefma ovelha ; deve
ireftituir ao Dono os danos, que lhe faz,e os' inte-
reíTes , que podia lucrar. Oh quantos , e quantos
.,vi vem enganados em todo o Mundo, efpeciclmert"
'fe nefte Brafil ; e depois vão ao inferno com lhes
"aparecer de ter pagas as dividas, dizendo rouy con:^
• . p z fola-
Greg> Á
Deut,
Conçit,
Lm cdp
dercfi, j
tit.
t
1
1
1
Cl \
i:
fokdos ; que nada devem ! Tenho conhecida muf-
tos Senhores de engenho , e outros lavradores, que
fazendo h uma boa la fra deaçucar, ou de tabacos^
correm logo os acredores muy contentes , pela
promeffâ , que na frota fícariaõ íem falta todos fa-
tisfeytos. E que fazem os tais devedores .? Entra
nelles o Demónio fecha boJfas , com acenderihes
odefejo de íer mais ricos ; e diícorrem affim. Sc cii
pago aos meus acredores nefía frota , fico íem hum
Yiotem; pelo contrario , Ic eu lhes pagar para a
frota , que vem , poíTo com cfic dinheyro comprar
mais dez Negros, e eftcs metidos a trabalhar notai
canaveal,quc,eíiá devoluto por falta delles, dacà
canas prodigioías , e faré açucres como diamantes,
e com o rendimento íatisfaço aos meus acredores^
c fico fem diminuição, antes com augmento do meu
eabedal , cobrando nome de bom pagador ,, e fama
de homem verdadeyro ., e rico. Os Mercadores^
,e putros cuI:>içofos , fazem o mefmo negocio coiii
reter o alheyo diícorrendo do meímo modo. Naõ
convém a hum homem de negocio ficar com a cayxa
íem dinheyro f pois o, dinheyro he à alma do nego*
cio. Se eo. pago agora eftas dividas, fica a cayxa
vafiaj c fe' detenho por eíie anno o pagamentOj,
x;om o dinheyro, que me ficar , poíío em hum Icy-
,laõ comprar hum lote de Negros, ou huma partida
•de fazendas fecas , c vendendo depois parte delias,
com o ganho de trinta , ou quarenta por cento ,, ter*;
no a prover a eayxa 5 e com as que ficaõ mais fome*
nos accomodarey os meus acredores, dizendo-lhes,
que nao ha ver dinheyro , que ouro he , o que ouro
valeje por tanto não deyxe de remedear cada hum
a íua ncceílidade , com as fazendas, que cllc peíTuc,
que todas cftaò á íua ordem. O pobre acredor , quç
iera Qs filho^.jiotosj edefpidos; os efcravos como
i^tflMpiMÉrfilIÉtfÉiMiilfefeii^.
Doforwenfõéos Avaremes. xijj
ilus,cneceflíta de outro par dcefcravos, para o aju-
darem no feii trabalho , e para ihc carregarem hum
pflte de agua ; eftima por favor receber o que lhe
dá o Mercador ao preço, que quer; e por naó en-
trar em huma demanda , perder o tempo , c gaíiar
quântotem, torna afua caía amaldiçoando tal ho-
mem , e dizá mulher ,c filhos. Paciência I De mao pa-
gador em palhas , melhor he alguma coufa , que na-
da: ( aílim diz o ditado } mas eu naò lhe perdo-o o
meu fuor , e o engano , e roubo , que me faz. Eis-aqui,
como affim aquelles, que pagaô, como aquellesi que
retém os pagamentos , a maiori tífqne ad minorem, a^^^^
omnes avarttiaftudent. Todos eftudáo como Avaren- ^^«5.*
tos de enriquecer com enganar o íeu próximo , e atè
dos Eccleíiaiiicos Te achaò alguns, que naõ faô menos
intercíTados , que os Seculares, e prouvera a Dcos j ^enm:
que aílim náo fora. El a Propbeta ufque ad Saccr- 6.
dotem,
Eftes faô os diícurfos , que o Demónio Fecka
kolfas \nÇ\n\iã aos que com anxiedade procurarão as
riquezv-ís; cíias íaò as induftrias , que lhes aponta;
cíles faõ os enganos iifongeyros, com que os atra-
beà perdição ;c finalmente eíks faò os hços encu-
bertos,comque os affegura no mítrno: Gluíi/olunt ç^p'^'
divHesjierty mcidunt in laquenm Diaboli. h que la-
ço hc eík, diz Saó Paulo , que o Demónio tem
armado aos que deíejaô ajuntar, para ferem ricos.**
Quem arnu hum laço, o arma ao largo, e de qua-
lidade, que a C9ça entre facilmente, e fem fofpey-
t^ de engano. Entrada a caça ^ aperta-íe o laço , e
quanta niayor violência faz , para fe defembaraçar
do laço , tanto mais o laço fe aperta, atè morrer
afogada. Do mefmo modo , o Demónio arma o feu
laço ao largo; não diz , que furteis-, que não pa*
gueis as divida^ i mas que naõ reftituais logo , c
P3 ■ que
qae riB& Mtarà tempo para íatisfazer a todos^onf
cómodo voíTo, e c&m agrado das partes^ Eis-aqui
armado: so largo o laço do Demónio. V^por de-;
fejar mais fazeií da entrais no laço com a, mira nó-
voffo lucro , le iem ciiydar no dano alhcyo, nem
nas.coníequencias de retardar os pagamentos: ^j
võlunt àivites fien yinádunt in laquumDiaboli. As
confequencbs íaô y que quem detiver o alheyo, ç
naõ oreftititir aíeus donos,, hc obrigado f^como jâ
diíTemos J a rcfticuir codos os frutos ^ emolumen-
tos , e proveytos grangeados ,. e fatis fazer todos^
os danos padecidos por culpada voíTa injuíla reten-
ção; ecreícendo conforme a medida do tempo , que
íevay difFerindoa reftituiçaô , começa o* Demónio^
Fechahifasa. apertar o laço, e afaz parecer com©
impoíTi vel. Peyor ainda , quando o Devedor fe de-
clara 5 que não quer pagar , fenão for citado ,. e
ifto ,, naò porque folgue , que o citem , fendo ifto
hum deícredito, ou defdoaro feu $ mas porque o
acrcdor he hum pobre » que não pede deyxar a íua
lavoura , perdendo o ferviço dos que o ajudaô na
írabaiho , nem abandonar a íoa pobre família , pa*
rá acudir á demanda na Cidade , nem tem dinbcy-
ro, para pagar a Letrados j e Procuradores> e a
Devedor vay prolongando a demanda com trapaf?-
ias , pedindo viflas, e revidas, íópara o molcÔar^
e vingarfe de o ter eirado. Terrível laço he eíle^,
e Gorao agora íe vay fcmprc mais apertando , ten^
dõ^o ao principio armado o Demónio tanto ao lar-
go I E quem ha de pagar cflas perdas ,- e danos?
Imagina- íe o Devedor de ficar livre, c eoníola-íe
Gom dizer. E que mal lhe tenho eu feyto com re-
correr ájuíliça r^ Os Letrados , e Pirocuradores , que
aceytáraô a demanda , íabendo , quecra injufta^ e b5a
pmra tr^apaíTa, para dilatar o pagamento , dizem : Ihc^
'■. ^' £a-
'VH
1
:r?\:
Do fàtmeniâJêS Avarentos. ^s *
-áieisfaçlo cíles , edcllcs fe qucyxe. 'Ainda ma] ,quc
os Letrados , c ProGiiradores ^ faò os primeyros, ?.
íijue pela cubica de ganhar mais dinheyro , cahem ^ i
-ncftc laço armado aa largo, com dizer , eu alego
cazôes , ou boas , ou màs , cito Textos , ou verdadey-
•«osjouapparentes; làíe avenhaô os Juizes, a quem
toca diícutir,e ler o meu arrezoado, decidir a cau-
fa , c dar a íentença , e aífim todos enlaçados*
jíara ferem mais ricos, váo enganados ao Inferno;
^i volunt divttes fieri^ incidunt in laqueum Dia* 7-^^. u
Mi, caf. 6» .
Vifta a cegueyra , c moílrado o engano dos
Avarentos ,^ue lhes rende impoífivel o rellituir o
•alheyo, já he tempo, que íe lhes abraô os olhos;
efe lhes aponte o deíengano. Nenhum peccador
|)or inveterado que íeja nos vicios , por arreygado
que tenha o coração nofeu ídolo das riquezas deve
dcfcfperarfe. Em quanto vive, tem ainda tempo
de ganhar o Ceo , fequizcr ; Hipocrate, e Galend
dizem , que nas doenças do corpo , a cura miis
Aifual, e mais certa, he acudirlhe logo com os rc-
M
médios contrários : Contraria contrariis curantnr.
z6.
A mefma cura íe ha de ufar ( como dizem os Santos
Padres ) com os vicios, e payxcens da Alma. Corri
rcíolveríe de veras, e fazer logo humado genero-
ío , c heróico , reftituindo não còm novas promcí-
fáSj mas com effeyto , como o fez Zacheo, que,
apenas Chrifto olhou para elle,c o chamou: Za-
chea fejlinans dejcende: logo o ícguio, e diíTeieií*
aqui , meu Senhor , ametade dos meus bens para
repartir aos pobres; c de quanto renho roubido^
rcftituo em quatro dobros: Ecce dimiáium bomrum
weorum. Domine^ dopauperibus^&JtquidaUquem^'*^^'^'
defraudaví , reddo quadruplum: Efta reítituiçaõ taô
prompta grangeou tanto o coração de Chrifta, que
2JX Difcurfõ Pin:
alem de lhe perdoar os peccados ,Ihe aíTcgurpií tanli
Z«tf.i9 bemafalvaçaô; Hoâiefalus hm domuifaãaefi. Fa.-
lo:; zcy também hiima reioluçaõ ícmelhanie , c vereis»
que qiianto tendes roubado ao voffo Próximo em taa-
tos anãos, podeis em hum inftante roubar a Dcoso
Paráifo ;epara efta reíoluçâo fer irme,bafta coníl-
derar, queas voffas riquezas,. fazendas, e ouro, as
haveis de deyxar na hora da morte ,.e naõ- haveis de
le valas com vofco á cova , nem vos liaô de acompa*
fihar para ferem queymadas eternamente eom voíco
no Inferno ; e que os voíFos herdcyros as confumiràô
. cm jogos , e pompas , íem ter a mínima lembrança das
voíTa Alma;
Fle?e» Para prova dcfte defeogano referirey hum exem!»
nèserm^ plo,que O P. Joaô le Jeune Varaè Apoftolieo , qiic
z2.de por antonomaíia íe chama o grande Miflionarioj
rfi/íí. traz muy a. propofíto cm hum Sermaõ- contra os
Avarentos^. Em França na Cidade de Bbrdeos ^ Me-
tropoli da Província de Aquitania , havia hum Velho-
jà quaíi decrépito , que tinha gaílado o melhor da
íua idade cm uteas publicas, e em enganos mani«
feílosj; e por ifto aborrecido, e defprezado de to*
dos, ainda dos mefmos filhos, que eraô fete, quat-
iro machos, e três fêmeas > que quanto mais ricos
os deyxaVa , tanto mais llie defejavão o fim da vida,,
para ficar cada hum abfoluto com oícu quinhão da
muyta fazenda. Chegou finalmente a hora da mor-
re, e logo foy chamado o ConfeíFor, o qual logo
lhe intimou que naó o queria confeíFar , e menos a b»
foívelo, íc primcyro naó fazia reflituiçâ© inteyra
de todo o alheyoj que poíFuhia.. Reftituir, meu Par
dre, f reípondeo o Velho ):em todas as minhas Con*
^ filToês íempre o tenho promettido, c nunca o tenho «
feyto, ecpmo opoderey fazer agora ! Poucos íaõ»
©s. bcnsj. que fejaô meus; c íe eu os rcflituir, là
Dó tormento dõS Avaremos. ijj
vay tudo , c os meus filhos ao Hoípital. Por ilfb
ineímo, ( diíTe oConfeíFor ) fccu vos abíolvo, c a
rcílituiçáonâòfe faz, ambos vamos para o Inferno»
e aíTim bufque outro Confeffor , que eu naô queio
la k. Entretanto , como a doença era unida com a
Velhice , os Médicos a dcraô por defeíperada , e
nada cuydavaò da Alma. Naõ affim o bom Sacer-
dote , que a deíejava íalvar. Tornou ao Moribun-
do com liuma belliííima traça , fallando-lhe aíFim ;
Senhor , feDeos por fua grande mifcricordia vos
quizeffe ainda dar como a ElRey Ezechias quinze
ou vinte anoos de vida : Ecce Janavi te , addam dÍ0' ^^ ,
km tuvs quindecim anni4. Então vos reíolvcreis a ^-2,0!
reftituir com eíFcyto a cada hum o feu? Com muy-
to boa vontade ( reípoodeo clle ) diíporia totalmen^
te os meus negócios, facisfaria a todo^, e não fica-
ria devendo hum vintém. Pois os Mcdicos ( repli-
cou o Co nfeíTor }: dizem- i que a raÍ2 deíia voíía mor-
tal doença coníilic na falta do húmido radical , g
que para refazer èflc , he neccíFario tomalo de aU
gucm^ aquemvôs o tenhais eommunicado, por ter
mais virtude pela íímpatia , que tem com o voíTo.
Pelo que faõ neecífarias três, ou quatro gottas da
grayxa de hum dos voíFos filhos. Induzido deftc
K médio o Velho ehamou> logo o Primogénito j e
Ihediffe. Meu Filho ; quereis rcíuícirar voíTo Pay,
que, como vedes ^ cftá morrendo? De muyto boa
vontade (diííc o fiho ) ainda que me cuflàra amcta-
de do íangue das veas. Pois bem , replicou o pay',
faõ neceíFarias daas gotinhas- da voíTa fubftanciaj
que, como homogénea, dará mayor vigor á^xtrc-
ma fraqueza dç voíTo pay. Accendeu-fe logo buma
veia , c poz o filho hum dedo fobre a chama , e logo
retirou a mão, e protelou, que nem por dbus^^, ou
.^ucs inftantcs queria íoportar aquelie tormento, p^
í li
ra elICi infofFpy.c). Chamoti-íc o ícguoâa Ifilho j .c
lhe di|rc i .qiíerçis xiatr a vida a voíTq Pay , que can,-
to vos quer? De muyto boa vontade ( refpondeo
elle} fe efliver na. minha maõ. Aqui eilou para
tudo o que puder. Apenas poz o dedo febre a vela,
que, íencido o ardor do fogo , começou a dâr tais
alaridos , que movia à compayxaõ. Acudirão os
mais irmãos , e irmãs; e ouvindo , que para dar a
vida ao pay algum delles, havia de íofrerpelo breve
cfpaço de poucos inftantes aqucUe tormento, to-
dos fc efcuzàraõi com dizer , que fendo jà 'o pay
velho, para que queria viver mais, dando tanta
moleftia , c trabalho a todos. Entaó o prudente
ConfcíTor i voltando- íc para o moribundo , lhe dif-^
fe j que vos parece o amor , e agradecimento dos
voíTos filhos ? Nenhum delles quer , para proloni
g^r a voíTa vida , íofrcc por poucos momentos o
fogo na ponta de hum dedo. E vos para dcyxalos
ricos com a fazenda alhca quereis meter no infer*
no os dedos , as mãos , a cabeça , os braços , e todo o
corpo, e Alma, para arder eternamente ? Iftoheíer
doudo , ou Atheo , que naô teme a Deos , ou naò
cre, que hiJ3 Inferno. O mefmo digo eu , para
defengano de quem ler cfte difcurfo. Nem cuydc
algum , que por fervir as Confrarias , e Congrega-
ções, buícar indulgências , jubilcos , ConfiíToês, e
communhocns , lhe valerá coufa alguma^ quando não
reftituir o alheyo i antes a mefma abíolvlçaó do
ConfeíTor lhe íervirà de condenação , e de padecer
mayores tormentos ; pelos muytos íacriíegios co-
metidos; pois cego da Avareza , nunca tevepropo-
ííço de reftituir, podendo , a fazenda, c perdas,c danos
do ícu Próximo.
Temo , e tremo , todas as vezes , que me lem*
bra hum caio fuccedido cmbuma Cidade de Itália,
■n
Dotof mento dos Âmvtfitpf. fj^
i|iic os Authores fidedignos naô nomearão i pòr di^^
nos rcfpeytos. Havia hijmhofncm nobre cm con*-
ceyto de virtuofo , porque fe confeffava muytas
vezes com hum Confcfíbr douto , e de grande repu-
tação- Mas vendo cfte , que depois de tantos pro-
pofítos , c promeílas , naõ fc refolvia a reRituir o
alhcyo, refoiuto lhe ncgouaabfolvrçaõyeque buf-
eaíTe outro ConfeíFor ; que íe elle queria ir ao in-
ferno , naõ queria fer ícú Companheyro. Buícou
elie vários ConfcíTores, qucyxando-íe com cllesdo
rigor do primcyro j porem os achou todos correntes,
€ coherentes em naõ o quererem abfolver. Final-
mente a íua defgraça o fez encontrar com hum Con-
feíFor de fcu genío , e do modo , que elle dcfejava..
Elle Religiofo condenou logo os outros de eícru-
polofos, c também de pouco fabcr, com doutrinas^
apertacks , que enlaçãa as Almas j e franco , como
fe foíFe o Meftrc das fcntenças lhe deu a abfolvi-
çaô. Ficou taõ fatisfeyto, e pago o Penitente , que
naó íó o elegeo por íeu Confeífor eftavel , mas tam-
bém por Amigo fiel , que muytas vezes lhe mandava
prefentesda fua meíâ, fazendo-Ihe outros mimos,
e favores ,convidando-o também a comer nas íuas
feflas, e banquetes. Hum dia, depois deter am-
bos comido,, o Religiofo fc foypara o feu Conven-
to, e o Cavalheyro apenas começando a repoufar
lobre o íeu leyto lhe deu hum furiofo golpe de
apoplexia , que improviíamenre lhe tirou a vida..
No mcímo inftante dous Demónios tomàraô a fi-
gura com corpo fantaftíco dos dous fcus criados ,6
foraó logo ao Convento a buícar o Religiofo, que
jà eftava recoftado. Depreífa , diíFeraô ao Fortey-
rò , chamay o Padre Confeffor , que noíFo Amo eflâ
morrendo. Levantou-fc logo o Religiofo â efíc^
íaviío,e dom diligencia foyícguindo os dous cria*
/
'. i ( »
ILJ^ Dífcur/o FilL sdi
idos /líigidos , echçgouà caía do Amo. Ko fubirdas
efcâdas , o vio no topo dcila ycftido de hum quimaõ
preto , que o vinha receber. Cuydoij o Rehgiofo , que
era zombaria , e queyxou-íe com elie, porque lhe
fazii eiias peças ? Quando, o Penitente refpondeo.
Que zombarias! que peças! Os dous Demónios,
que tomàraò afigurados meus criados, e ahi eftaô,
íaliaráõ a verdade ; como também hc verdade , que
cu naõ ferey fó no padecer o caftigo , e a peqa , aííim
como nãj fuy íó cm cometer a culpa. Vôs^ que
tantas vezes me tendes abfolvido injuftamcnte com
fer caufa de novos íacrilegios (vos digo agord )
fok condenado também da Divina Jufíiça comigo,
com a meíma íentcnça , por teres fido fautor , e cum-
pliceyde eunaò ter reftituido o aiheyo. Apenas di-
to iílo , os dous criados , tomando a figura , que
melhor reprefcntava os dous Demónios, que eraõ;
hum pegou no Confeffor,c o outro no confeííado,
c carregando-os fobre os hombros , com hum cfiron-
do medonho , a modo de hum terrível terremoto, le-
varão a ambos de dous, para o Inferno , deyxmdo no
palácio hum fedor taõ horrendo , que por alguns an-
nos naõ foy habitável. Efte cafo entre outras teftemu-
L6r & "^-^^ ^^^^ o R , P. M. Joaô de Lorino , varaô taõ efcla-
Segn. p. recido nos celebres comentários íobre a Efcritura Sa-
^.S^rm. grada , que aífirma ter conhecido a ambos de dous ef-
15'. tes deígraçados , c precitos.
Defenganem-íe todos aquelles , que não reíh-
tuiraô com tempo a fazenda alhea , que o mayor
tor mento, que tcraô no Inferno, feia o tela deyxa-
daaos filhos , ou hcrdcyros, e melhor fora , que
a tiveíTcm difílpada, ou qucymada. O Rico Ava-
rento pedia no inferno ao Padre Abraham , que man-.;
daíTe algum condenado ao Mundo, para advertir
aos íeus cinco Irmãos, que naõ foíTcm também cl-;
les
Dô fârmèntõ dôs Avarentos* 137
iès parar naquellc lugar de tormentos; Ne\^ ^ffi^^c'^*
veniant in hunc locum tormentorum. Como pôde ler * *
ilio ! Oá precitos podem ter caridade , e defej^rj
;:quc os outros fe faivem ? Certo , que naõ ! Antes
pelo contrario os condenados laó como os demó-
nios, edefcjáo, que todos vaõpara o inferno. Pe-
dia ifto por amor próprio , e por medo ; porque
tendo deyxada a fua fazenda aos Irmãos, com o feii
máo exemplo, que lhes tinha dado, a gaflavão em
luxos, e banquetes, fem íe lembrarem dos pobres.
•E aíTim indo também elles ao Inferno , lhe accrefcen-
:tariaô as penas, amaldiçoando-o , e carregando-o
de blasfémias ; e com tudo as riquezas naô erao
aiheas. E que fera daquelles , que deyxaõ a fazenda
,aos filhos, e duvidaô, c (abem , que não he fuaf
,Que fera daquelles Juizes, que por intereíTederaõ
fentenças injuftas f Daquelles letr.idos , que por pey-
tas enganarão as partes ? Dos Teftamenteyros , qus
roubarão os pupiilosf Dos que com trapaíTas arrui-
narão famílias em hum tribunal também inftituido,
como o dos defuntos, e auzentes ? Oh que penas/
,Oh que tormentos! Oh que inferno dos infernos!
Ver humpayjá condenado; os filhos condenados;
os Netos condenados i os Bifnetos, e Teteranetos,
todos efles amaldiçoaram o Pay, o Avo, o Viíavo,
Tetcravo ! porque todos efles conhecendo , que a
fazenda era alhea, fc fiavaõ , com dizer j tcnho-a
herdado de meus Pays , e pouco me importa , que
clles eftejaô no inferno , íe aílim o Guizeraò. E
quantas viuvas, c quantas Orfaãs, e quantos po-
bres , que por verem roubado o feu , fc deraò ao
Mundo, como defefperados , cumulando peccados
,e peccados! Outros blasfemando atê da Divina Pro-
videncia , porque permitte, que hum Avarento pela
|íuâ cubica í lhe tonje ó fuftento Í.E quantas pragas
L.; naô
li
À
im
tgS Bífiurfò VIU. \
'-■- " naô lhe rógaõ ! E quantos ódios mortais naô Ihè
Goriíervaô nas entranhas! E ifto pela cubica ds hum^
pequena íazcnda , que , deyxando-a na hora da
aporte, cauía todas eftas maldades. Ora qual he
aquelle , que ainda que reftitua , fe confeíTc deíías
coníequencias ? ElRey David comettco dous pecca-
dos , hum homicídio , c hum adultério j c lábia
de certo por bocca do Profeta Natan , que Deos
j^iy^^ lhos tinha perdoado; Ddminus quoque tranjitíht fec*
Reg,c[ catum tmm, non mmem. E com tudo diz a; De-
i^'i^'Mã quis mtelligit ? Quem he que poíía perceber
as terríveis coníequencias dos peccados contra os
iy^/.i 8 feus próximos i efpeGiaimente dos furtos, e do re-
ter o alheyo? Ahoccultis méis munda me,& ab ahe-
nis pane Servo tuo. Os peccados occulcos faô , os
que temos dito aeima i murmuraçoens , rayvas,
ódios, blasfémias , atè defeíperaçoens , por fe ve-
rem por cauía dos fcus devedores cm extrema mifc-
ria. Eftes peccados íaô occultos a nôs , porque
os fazem em fuás cafas , fem nôs ouvirmos , oa
vermos coufa alguma. Saô alheyos, porque faõ dos
noíTos acredores, que efcandalizados , e nritadoy,
.por fe verem faltos do neceíTario, prorrompem^ em
fúrias, amaldiçoando o dia , cm que nafcèraô, e
pedindo ao Ceo i que confuma com íeus rayos ^a
quem taô injuftimente lhe tira o íuftento á^ vida.
Acabemos eífe diícurfo , com as mefmis palavras
i-^''''- do thema, com que o começamos: Nolíte errarei
^'^' neque Fures, neque Avari Regnum Dei pojfidebmt.
Deíenganem-fe todos ( diz o grande Apoíiolo S.^Pau-
lo) nem os Avarentos, nem quem furta, e nao re-
fiitue o aiheyo , nunca , nunca dos nuncas poderá en-
trar no Reyno do Ceo. Efta verdade hc taõ certa,
quehedefé^ he tao clara, que naó admittc com-
mentos, nem interpretaçoens ; nem ha íentcnça;
ou
; I
Dõ tormento dos Avãhntos, 239
ou Doutor , que diga o contrario , fallando po''' £, ^
boccâ de todos S. Agofíinho .* Non rtmittitur pecca^^'^^^]
tum , mfi reftítuatiír ahlatum. Por itlo mb diz S. Pau-
lo j naô vos enganeis , ou naó vos deyxeis enga-
nar i mas ; Nolite errare. Naõ queyrais vós mef»
mos cnganarvos , pois he tal cfíe vicio da cubica,
e da avareza , que muytos bufcaõ traças , pretextos,
c razões falfas, e apparentes para naô reftituirem o
alheyo. Refere Saò Gregório Papa, que na Cidade
de Roma havia hum çapateyro por nome Deiís dcJtt ^f'^^'
Deos o deu. Pobre dos bens defte Mundo , mas '^^ *
muyto rico de virtudes. Hum Santo Anacoreta =
vio muytas vezes cm extafis } que íe lhe efíava fa-
bricando no Ceo humPalacio,equenodia de Sab-
bado, fe multiplicavaô os cbreyros , accreícentân-
do novas cafas. Cuydava o Santo Anacoreta , que
ifto erâ por contrapoííção aos Judeos , que efíaõ
em Roma , que guardaõ o Sabbadoccm tanto rigor,
que nem o comer fazem 5 porém loube depois,
que S.Deus àedit , tirando o ícu limitado íoilen-
to , dava aos Pobres , quanto naquella femana
com o íeu trabalho tinha ganhado. Efle Santo,
fim, que vivia defenganadoj e foube fabricar para
fi com a fua pobreza hum grandioío Palácio ho
Paraifo. E que Palácio fabricão os que furtaõ , ou
nâo reftituem ?
Oh infelices Ricos ! Oh defgraçados Avaren-
tos , que com as fuás ufuras > e furtos deyxando
por força na hora da morte as fuás riquezas , e
fazendas, acharáõ,que tem fabricado para íi huma
prifaô apertadiíTima no eterno calabouço do In-
ferno. Deíenganem-fe , que fe naô rcftituircnn
com tempo , c todos , quantos danos fízerão aos
feus Próximos , aquella prifaô eterna íerá o ícu
palácio , fcrá a íua quinta , fcrá o feu ^rdim , íc-
L fá
rr
^^^SÊÊÊHÊmm
WÊm
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n
Í40 Difcurfo VUL
tà a Gafa de converíação , lerá a íu a, morada para
toda a eternidade: Nolíte errare^ neque Fures , ne*
que Jvari Regnum Dei pjjidehunt»
T
^
1 n
TORMENTO D05 LVXVRI0S05
^
fíis^Èiíia
lídimú f.i,flQm d):.úr" ■ ■ "
3i. '^íii
DISCURSO IX.
ÍDo Tormento dos Luxuriofos.
Dilatavit Infernus animam fuam •, aperuit os
fuum abfque ulh termino,
Ifai. cap. 5,
fu
E o Inferno he hua prizaS taô
apertada , como diffemos no
primeyrodiícurfo, aonde os
condenados naô tcraõ largue-
za algu3i antes eftaraô atados
como a Icnhà em fcyxcs , para ^
arder eternamente; Congrega- ■^*'^^^'
bimtur in congregatione unius ' ^'
fafcis in lacum , & claudentnr
Bíin cárcere Como agora diz o Profeca.que clle he taô
dilatad ^ ; e que abre hua bocea , que não tehi têripof
jDilatavit Infernus animam fuam , aperuito^fuumaiff'
^ueullo termino, falhâqiú metaforicamente oProfc-
ta,e delcreve o vicio da luxuria , fazcndo-o femelhan-
te a hi^ma befta iníaciavel , qus quanto mais comcv
! 'âkm^^msj^í^^^MÉi
huj
tan»
w/k
\ I
f^ Di/curfo IX
tanto mais íc moftra faminta. Imagem verdadeyra
daquelLe .Triceí'bero ^ que íÍBgiraò-os P9ftjs.:^ilar
em cuftodía das portas do inferno 5 nao para qrie
nãoentr.iííem os malfeytores , mas para que nunóa
mais fahiíTe , quem huma vez là entrava : Iràferus infd^
UabiUter cava guttnra fandit^ He certiffimo , que
'•'.. ò retrata raaisVivo,e. natural de hum laxuriofo hc
aquclle de hum condenado no Inferno. O Texta
Sagrado [exprknè o miferavel eftado dos réprobos
npjnferínoeoíç quatro difFercntes penas. A primey^
ra he huma efcuridaò j como huma tempeftade no-
£lur^^kmqtte^todosgrita6,e blasfemaô, íem ve-
rem, ou íaberem outra coufa , íe nâo , que para
Judiei íempreferaõ atormentados: Hi funt j quil/us pro»
s^ap.i^.cdla fènebrartm fervata eji m áeternnrd, A íegundà
he húa dcíordém perpetua , e huma confuíaõ horro-
rofa : Ntãlus orda^ f{d fempiternus horror inhaUtaf,
fobcn^A Écrceyra he hum cativcyro crueliíTimo, não íó>
,0. do corpo, mas da Alma, atè perderem o íeu livre
_ alvedrio .• Tlmt fuper peccatares laqueos^ ignu : Liga-^
Marl^ Ml »s?^»^^»í V & f^dibus. A qUàrta. hc O remorç<|
í^p.9. ^^ coníciencia^ mais terrivei que o mefma Infere
no , pois he bum bielio intrinfeco , que nunca dor-
me, e íç^my^xtxòziyermútorum non mõritnry qni'
fol^cap.f^^ (^omedumymndarmmit'E^e$ íeraó os quatro
go, pontosido me.ti:difcíurfQ » era que moíírarcy , como
•**'';' ;v;©5v4u!?tudo^^^ anttcipadamente neíía vida
' * eítosvquartro tormentos , para paíFar depois de mortos
de hutn Inferno-a outro.
: Todos OS pcceados faô cegueyra ; porem na 5
liapcGcado, que mais conduza á. total cegueyra do»
entendimento, como a luxuria. Dá arazáo Saõjoaõ
Ghryfoftomo; porque efte peccado fogcyta oracio;»
n^l ao íeníitivo , obriga o eípirito a obedecer á caie-»
m iX^táuz fioaimente a Alma a ler cfcra va pcrpcri
mJ
P
tua
I
Do tormenta dòs Luxurio fos. .^43
l^a do feu corpo. Por iíTo S. Paulo fallando de Jiun?
'deshoncfto naó o chama fomente 'homem ; mas con)
o addito de homem carnal. Animalis homononper-
€tpit ta, qua fmt fpmtus Dei. Pelo que qucni
'4)ertcndcffc que hum homçm c^rnalmçnte obrando
,fc governaf e como com olumedarjazap,feriaq^c-
;l•€r» que a carne foíTe ^ por modo de dizer i.efpir
rko. Prova-fe ifto com hum bdiíTimo reparo dô
S. Bernardo , que diz affim. Quando o homem íc
^deyxa predominar da foberba , pecca, mas pe^ca
!como Anjo, pois a foberba ioy o peccado dos An-
jos. Quando fc deyxa vencer da ambição , &: ava-
reza , pecca, mas como homem, pois a avareza
>he hum peccado, que íó convém ao homem. Mas
■quando hc vencido da luxuria, efe entrega aos
appetites da carne , pecca, como íe jáfoíTe hum Bru-
fíQ, porque obedece , c íeguc íem reparo os movi-
mentos de huma payxaô, que he predominante nos
-Brutos. Logo fe cí^e pecca como bruto, naô pare-
'(Ce gozar daquelleclaro lume da razão, e daquel-
las luzes de eípirito, que o conflituem differentç
dos Brutos, e o fazem obrar como homem. Eftà
Jogo reduzido hum deshoncfto ao opprobrio, e
ignominia de hum Nabuco, e quaíi di meíma con-
dição dos Brutos, com efta íó diffcrença, que os
Brutos naõ peççaõ na íua feníualidade, por lhes,
faltar p luuie da razaõ , e o homem luxurio fopep-
jCa, quaíi perdendo o lume darazaò, para fe fazer
como Bruto.
- Confirmou efta vqrdadc o Profeta David, quan-
.dodiíTe: C$mparatus eft jumenús infiftentihis. ^ é^
fimils faàíis ejf illis. O homem eíquccido da honra,
que lhe fez Deos em o erear conforme à fua ima-
gem, fe aviltou com os Brutos, tomando vOs feus
cuíiumçs, e fc fez femelhante a elles.;íailaYa :comf
Q z " aex-
D. Pau!,
ep,c.
•a^
pfâi^
^3-
fOH,
ia c^íp^mneia^; etóhhecco cêá verdade depbiálíte
taliir iiò pc<Scado de adultério com Ber íabé ; e por if-
fô çahido tK) erro, e detefíando a íua culpa, naÔ
fc chamava mais homem, quando orava na preíen*
'^^^a de Dcos , mas hum Bruto : €Jt jumentum faãut
fum apud te. Efte he o difcuffó de S.- Bernardo ,^c
a cxperfenciâ affim o declara. Yemos eftes homctí^
^ícravos dá fua fenfualidade , que no tempo , cnfi
que a fua payxaõ os tenta , fe perturbaõ de modo,
que fechaõ os olhos^ a qualquer coníideraçaõ divina,
c humana , naô approvândo o bem da virtude, naÕ
temendo o que dantes temiaõ, obrando comoícm
juízo, eíquecidos da honra, da íaude, do mcímo
Deòs, e do Inferno. Tanta be a força defle vicio
•da luxuria , cegar de tal íorre o entendimento de
■hum luxQrioío , que como enfeytiçâdo do delcytc
■perde o conhecimento de Deos, do íeu pcccado ^ c
'deíimefmo.
' Accrefccnta mais Santo AgoftinHo , que os luxií-
iriofos perdem também o conhecimento do que íaõí
'poifque na efcravidaõ daquelle vicio deyxaò de íer
« que eraô', e dà por prova o fucceíTo de Danieí:
í^or onde ( diz elle ) começou o atrevimento eícanda-
ioío dos dous Velhos, que a commetèrâõ acaftaSu-
lannaf E refponde por eíftas palavra? : ExarferuM
j'3^m imcupífcenúafn ejus , évwterum fen/um ftiutk
9 ■& dedman}erunt ocmos fuos, m vtderent C/ekm. Jà
ardendo no fogo da concupiícencia , já cegos âa
payxaõ perderão o entendimento , e abayxàraó os
olhos para iiaÔ ver o Ceo:, c com razaô ? porque
fc tivcffem os olhos alçados aoCeo, como fez Su»
*"5 íanna , ^uie fietís fufpexH >aâ€Aim- Sc íe lembraf-
íem dcDcòs^, cj2ò teriaõ animo, para tentar hum
crime tam execrando. Quem naõ quer olhar para
O Çco^ menos qUçrerà olhar para fi , como fizer a5
-'}:3 G ' ' i i) cite s
Do urmefíte dosLiixnriofos. M5
cUcs dolis velhos 5 que nem attendèraò à im idade taò
adulta , nem ao cargo de Juizes, que exercitavãona
Republic 3 , cm razão do qual eraô obrigados a punir
hum femelhante exceíTo.
Mas oque mais fazpaímar nefte calo he, que
homens julgadores , que em raz^i do cargo devem
fermais ajuftados,e redes, em t^m breve tempo,
quanto os ollios correm em aviftar hum objceto,
prevaricaíTem . efquecidos totalmente do refpcyto
devido a Deos, e a fi mcímos. Refponde a efte re-
paro S.JoaõChryfoftomo:que aíTim como cm hum
inftante íe cftende a luz pela immenfidade do ar,
dííTipando todas as trevas nodurnas , aíTim também
cm hum momento o vicio da luxuria parece, que
cícurece a alma , offurcando o lume dafè,e da ra-
7.aQ. Obíerva Clemente Alexandrino, como os
]?oétas 5 que no gentiliímo faziaò o papel , e figu-
ra de Doutores , quando deícreviaô os adultérios,
e infames comércios dos feus Deofes , nunca os re-
prcfenravâo nas fuás próprias figuras, como de Jú-
piter, Mercúrio , ou Juno ; mns os disfarçavao,
e exprimiaô com o nome de Animais. Nòs os vi-
tuperamos ( diz efte Padre ) por terem aflim infama- ^^^^,
do afua Religião, cfalfas Divindades imas fc bem ^,^^'-^
o coníiderarmos , muyto melhor obravão , do que opujc.^
nòs, nefte modo de dizer, que nâo era impruden-
te. Queriaô com ifto fignifícar, que nunca os feus
falfos Deofes cometeriaõ íemelhantes exceííos, fem
dey xarem o íer, que tinhaô , e tomarem o fer , e con-
dição de brutos. Tanto he certo, que os mefmos Gen-
tios, fem a luz do Evangelho , conheciaó claramente,
que a fenfualidade , e luxuria era hum appetite tanto
próprio de brutos , que fe podia clifear bruto aquclle
homem , no qual predominaíTe efte appetite.
O noíFo bcmavcnturado S. António Portiíguez
mmmmimÊÊmiÊm
4'V
Mccief.
246 ^t^B^ãrfo IX,
M\mê> dacegue5^i-a,à qual efte vicio da íeníualí:
dadc reduz hum homem luxuriofo, para melhora
explicar , bufca a etymologia da meíma pala-
vxa fornicação : Formeatm átciiur quaft fwma neca*
íw, idejty anima âd fimílituátmm D u formata m*
catia. Quer dizer, que a fornicação exprime ,cfia-
iiifíca a morte da Alma, que he a forma do Corpo
humano; que vem afer o niefmo» que dizer, que
a luxuria faz hum grande eftrago na Alma,quaíf
privando-a dobomufo das íuas potencias, Memo-
ria, Entendimento , e Vontade. Offuíca a Me-
moria, porque o deshonefío immerío nos deleytes
da carne vive em hum perpetuo, cfquecimento dos
benefícios, c ameaças de Deos , que faô os dou?
motivos mais efficazes para íe converter : Non da»
hunt cogitaúoms fms , ut revertantur ad Detm^
quiaffiritus formcatianisin medweorum. Diz oPro*^
ícra Ofeas. Quer dizer.- nunca levantarão open-
íamento a Deos , porqus o eípirito da fornicação
rcyna no intimo dos íeus coraçoens. E fem a lem-
brança dos benefícios, como poderá hum peccador
cerpezar de ter offendido ao íeu Bemfeytor, quan^
do a Sagrada Efcritura, os Concílios , Santos Pa-
dres , e Doutores põem por hum dos motivos do
arrependimento a lembrança dos grandes benefí-
cios, que temos recebido de Deos? Digo mais. Com^
luim total eíquecimento das ameaças, e caíiigos de
Deos, como poderá hum coração lafcivo compun-
girfe com reíoluçaô de deyxar as fuás torpezas, c
fazer ao menos hum Ado de Attriçaô , quando le rc
folveíFe a confeíFar , fe totalmente fe eíquece das
penas do Inferno, que lhe deviaõ picar a confcien-
cia para o arrependimento ? §hu fim timore ejí ^ diz
o Efpirito Santo , nm ptefi jujlifçari. Quem
perder o temor de Deos , e dos íeus cafligos fe
rcn-
Do torfJfmtõ dos Luxurio fos. 147
fêndcquâíi iníenfivelxi quereríe iuftificar.
, Depois de offuícar a Memoria, paíTaefle vicio
da luxuria quaíi a cegar o entendimento de modo,
que,- parece, perde de vifi:a as verdades eternas',
porque os deleytes feníuaes á femelhança daquel-
les vapores groíTos, que exbalaô de algumas lagoas,
e lugares paiudofos , que encobrem o ar, aífim en-
cobrem , e cícurecem o lume da razaó. Osoutros
peccados , como diz Santo Thomàs , perturbaõ o en-
tendimento; perturbant rattonem ínentis : mas 2 o.Th,_
luxuria perturba, e apaga totalmente ojaizo: Lu- 2. 2. f.
xnria toíaliter extmguit rattonem mentis \ e aíTim 5l'<*rt''
naó íe contenta de lhe chamar, como Ariftoteles, ^'
huma efpecie de bebedice , mas diz, que hehum ramo
de loucura: Stultttta maxime nafcitur ex luxuria.
A razaò he, porque os motivos da virtude já nao
penetraò o coração de hum impudico i e as inipi-
raçoens divinas alumeaô o íeu entendimento, aífjm
como os rayosdo Solaiumeaõ a hum cego.
A prova íc vè no infeliz fucceíTo de Sanfaô, o
qual , lendo dotado de huma rara prudência , e invi-
èt^ fortaleza , depois de entregue aos amores de
Dalida, de tal forte perdeo o juizOjqueexperimen-
lando-a por três vezes traydora , ainda aífim entre-
gue de novo aos feusenganofos amores, Ihcdefco-
brio finalmente o fcgrcdo, que, fe lhe cortaíTem
os cabellos , perderia a fortaleza , de que era do-
tado; Si rajum fiient caput metim ^ recedet à mefot- n ,. ,
tittido mea, O meímo íuccedeo a Salomão, fendo ^^ '*
hum dos entendimentos mais illuftradocomolumc
das fciencias: a cega payxaô, em que ardia a rcf.
peyto das luas concubinas : bis copulatus efl Salomon
ardentijjimo amore^ de tal forte o privou do juizo, ^'u/'
que, o fez cair nos cxceíTos , que temos relatado
cm outro diícurfo. Naõ baítáraô os repetidos avi-
0^4 zos
í i :
, )
^f8 Dlfcuvfo IX.
zos de Dcos, naô baftàraõ todos aquclles ^fmcU
pios , c hábitos de taõ alta fciencia , de que era
dotado, para impedirem as nuvens groíTas, coní
que o vido da luxuria o cegava , obrigando-o nos
annos da velhice , onde o defengano deveria íer
mayor, a fazer-fe Idolatra, e a fabrircar Templos,
cfacrificar aos Demónios nos íeus falíbs Deofes , íó
afim de naô defcontentar as Concubinas, com que
tratava : Cumque effet fenex depravatum efi cor ejus
pr mulieresi utfequeretur Deos alienos.
Da cegueyra áo Entendimento naíce o defcon-
certo da Vontade, que, como naô be guiada da
ipazaô, íe immerge, c profunda toda nos deleytes
Pstr. 2. rfa carne , como faz hum animal immundo : Sus
• • lota tnvolutabro luti. Oh Vontade do homem, que
íendo a raai& nobre potencia da fuaalma, comtudo
pelo vicio da lumiria íe faz vil , e abatida mais
que todas! He a vontade a mais nobre das poten*
cias , porque he entre ellas como Rainha , c Senho-
ra, que tudo difpocmj mais viciada , c aviltada
com o vicio da Luxuria, naô fabeefcolher, íenaô
âquillo, a que inclina o appetitc brutal dos deley^^'
íes immundos. Se a Memoria em alguma occaíiaa
lhe propõem a repentina, e terrível morte de tan-
tos Luxuriofos, a Vontade vknada procura logo^
que prevaleça contra efta lembrança aviva lembran*
ça dos deleytes, que ama. Se o Entendimento quer
drícorrer fbbre o rigor dos tormentos preparados
para os luxurrofos no Inferno, eoniderando como
faõ eternos, e fcm fim, por ferem para humâ eter-
í> âm. "^^^^® ' ? ^^^ penfamcnto da Eternidade , a que
il j[S. Agoftinho chama grande; Magna cogitaúo ater*
nttãs y que he hum firme aliceríe,, e funda mento-
para a íegurança da noíTa íalvaçaô, refiftc logo a
yontade Igxitfioíá eontrapondo^lhc outros penía-;
iih.
Do tormento ãos Luxurio fos. í 4 9
mentos de novos goftos , de novos deleytcs , de
novos objedos , com os quaes poíTa fatisfazer ao
íeu brutal appetite, fazendo por íe eíqiiccer total-
mente daquclla máxima infalível , que he momen-
tâneo o que deleyta , e eterno o que ha de atormen-
tar no Inferno : Momentaneum , quod deleãat ; ater'^
num , quod cruàat. Ninguém fc admire de obrar aí-
íim húa vontade toda immería nos deleytcs da car-
ne 5 porque he caftigo , que Deos permitte venha
aos Luxuriofos, que por muyto tempo perfevercm
nas íuas torpezas.
Para prova mais clara referirey o cafo foccedido
a hua celebre Concubina da Cidade de Eípoleto cm
ltalia,a qual tinha vivido muytos annos em pecca-
do ,e fido cauía da perdição de muytos. Finalmen-
te mandoulhc Deos humatcrrivel doença, que logo
os Médicos julgarão fer mortal; e depois de appli-
cados vários remédios', vendo que o mal precipi-
tava para a morte , íe defpediraõ da cura , dizcn-
do-lhe , que trataílc da íua Alma , porque fó por
milagre poderia efcapar. Tomou abem o avizoefla
mulher , c com edificação de todos mandou logo
expor o Venerável em varias Igrejas, e dizer muy-
tas MiíTas pelos Conventos , rogando a Deos pela
íaude do corpo, e promettendo, fe vivia , de fer ou-
tra Magdalena penitente. No dia kguintc entrou
o Pároco com outros Miniílros para a diípor.e aju-
dar naquelias ultimas horas da vida. Perguntou^
lhe a mulher, porque razão lhe não concedia Deos
ávida, cfaude, que com tantas veras lhe tinha
pedido ? Refpondco-lhe o Pároco , que Deos que-
ria lalvar a fua Alma , e que não era fervido darlhc
mais tempo nefla vida chea de miferias, c pecca-
dos ; mas darlhc huma vida muyto melhor , que
çra a Eterna. Entaô ella enfurecida, c chea de
rayva
í ,
Maith
Z^Q /- Difcmfo :IX, 1
rayva diíTe. On bem .! Jà que Deos naõ me queir
dar goílo em prolbngarme a vida do corpo , que
lhe tenho pedido, eu também naõ ihequeiio dar o
goílo dedarihe a minha Alma; e proteíio em pre»
íençadc todos, que a dou ao Diabo íeu inimigo , e
aííim dito , efpírou logo. Ficáraô os circuníiantes
paímados a tal cafo, e a tal blasfemea nunca mais
ouvida! E muyto mais atónitos, c amedrentados
fícáraõ, quando viraô naquelle apoíento dous Dct
Oionios em figura de Drago.ens com azas, que pe-
gando naquelie corpo íahiraõ com elle para fora
por huma janella , c o Icváraõ , como fe crê , a unir-
fe com a Alma já julgada , e íenténciada a arder éter*?
namente no inferno. Efte he o fim , onde vay pa-
rar anoíTa vontade cega, quando o entendimento,
que havia de fer a luz, que a guia, eílá também ellc
envolto nas trevas da luxuria: ambos correm como
defeíperados ao precipicio , e a fepultaríe no Ca-
labouço eterno do Inferno : Cacus autemfiC£CO dma-
tum praftat, ambo inf&veam cadnnt.
Finalmente eftas trevas do vicio da luxuria íaõ
tam grandes , e dilatadas , que o homem impudico
chega a naõ conheceríe a fi meímo , nem a enor-
midade dos íeus crimes j e entaô íe eílima mais livre,
qunidoeflá maisfepultado no abifmo das fuás tor-
pezas. No vicio da luxuria naõ foccede como nas
outras coufas. A experieneia de ordinário hc a que
caufa o conhecimento das coufas. AíTim o vemos
nas artes liberais, e mecânicas. Aqucile he melhor
muííco,quetem gaflo maisannos na folfa. Aqueile
melhor ofâcial , que tem mais tempo do oííicio. Af-
fím he também nas fciencias: aqueile he mais adian?
tado nofaber, que he mais verfado nas letras. Fi-
nalmente nas Republicas Militares, Políticas, e Ecr
clefiaílicas, os Poíios ,os Governos, e as Dignidades
fe
D 9 tòv mento âos L uxuriofos, ^^ i
fé daõ àquelics j que fe conhecem de mayor cxpe^
riencia. A razaô he , porque nòs naõ conhecemos
bem as coiiías, fe naõ quando as temos experimen-
tadas.
Nâ matéria porem do vicio da luxuria he tudo
cm contrario. Quanta maypr experiência tem hum
lafcivo defte infame vicio , tanto menos o conhece.
Hum mancebo innocente em quanto na fua moci-
dade com a boa educação naõ experimentou os de-
leytes da carne, efe retirava das occaltoens, aborre-
cia notavelmente efte vicio: qualquer tocamento
impuro lhe fazia efcrupulo , e perturbava a confcien-
cia: a fornicação lhe parecia hum monftro j o nome
de adultério lhe cauíava horror ; mas depois que
começou a goftar dos deleytes, fe engolfa de ma-
neyra no vicio, que perde totalmente aquelle hor-
ror, e medo , que dantes tinha, fazendo gala, e
prefando-fe de andar amancebado , gaflando rios
de ouroem veftidos, e ornatos da concubina, para
que feja de todos reípeytada , e conhecida como íua,
cuydando, que nifto adquire a efiimaçaô do povo.
Efta he a cegueyra de todas as potencias de hum
homem lafcivo. Eftas faó as trevas , que lhe eícu^
recém a alma , muyto mais medonhas , que aquel-
las dos Egypcios, a q.ue a Efcritura Sagrada chama
horríveis: Fa5ía ftmt tenebr^ horribihs: niuyto £^^^
mais peiores , que aqueilas do mefmo inferno , por- ,o. 22,;
que aqueilas íaô exteriores: in tenebras exteriores^
mas ertas da luxuria faó internas, e penctraô toda a '^'''^t
alma athe reduzir o miferavel impudico à expcri- * *
mentar anticipadamcnte o Inferno, vivendo em huma
continua defordem, e em hua perpetua confufaô , que
he a matéria do fegundo ponto.
Nciô ha menor deíordem na vida, qivc faz hom í-P«»í^.
deshonefto nefíe Mundo, que aquella, que faz hum
con-
ayi Difcurfo IX.
condenado no Inferno i onde igualmente fc pôde
D.Chri- áizcr aíTim de hum, como de outro: F^i mllus
faflbom.ordõ^i fed fempítemus horror inhabttat, PoriíTo af-
^9' '"' firma í>. Joaõ Chryíoftimo , que naò acha diffcrcnça
"'• entre hum endemoninhado furioío, c hum homem
feyto efcravo da luxuria. Luxuria corruptus ^ &
cbfeffus à Demomacononâtfert. He coufa digna de
reparo o nome , que na Sagrada Efcritura íedáao
Demónio, quepreíide, e dilata o vicio da luxuria,
chamando-fe Jjmodeus , que na lingoa Hebraica
fígnifíca ahmàanúa feccatorum ^ abundância de pec
cados. E na verdade quem poderá explicar a abun-
dância, c multidão depeccados, que comette hum
peccador habituado nas torpezas ? parece, quenaõ
cuyda em outra couía.- ospenfamentos, osdeíejos,
e as palavras todas faô dirigidas à fenfualidade , ma-
quinando fempre em novos deleytcs da carne. Atd
os fonhos faõ íolicitados dos fantafmas impu-
ros , impreíTos na imaginação pelo mào habito,
e aíoprados pelo efpirito de fornicação , a fim de que
comece logo , quando íe efperta , a confenlir nas
tcntaçoens. O menor numero de peccados faô muy-
tas vezes as obras, e com tudo faô tpm continuadas,
que poucos dias paíTaó, que naò Vtnhaô a peccar
por obra. Saõ os luxurioíos como certas lebres fe-
cundas, das quaes conta Arifíoteles, quenomeímo
dia , em que pirem, fícaô prenhes. Voftqtiam aliquos
yínfl:. pepererint , rurfus alios in útero gernnt. E com ferem
lib' V tantos os pe eados de obra , parecem pouco à vifta
////^. í^. (Jq5 que contem com os penfamentos , com as pa-
53* lavras equivocas , deshoneftast e provocativas dnigi-
das toJasapeccfir. Atheosoihos, diz S. Pedro A po-
flolo, lhe fervem de inftrumentos para peccar:
Habentes óculos plenoradulteriis , & incejfabilts deJi-^
Bi. Todo o objedo viíloío os recrea, c em todos
achajò
Dõ mmntõão^tiBmiofes. ^^fi
àchao , que appetecer , não rcfpcyTandò efíad<í,
nem condição , nem a íexo , fem reparar fe he hon-
Tada , ou , como dizem , do Mundo , fe folteyra , fc
Caiada: antes aquelles peccados , dos qiiaes íe pôde
íeguir mayor ruína , c deíordens , como he do adul-
tério, e outros fá efíes íê aplicaõ com mayor cflu-
^do ,como íe foíTem proezas de mayor luflre : Hakn- ^^^^'^P%
tes ocídos plenos adu^teriis , & inceffabilis deliBt.
Grande he a perturbação , e deíordem , que fe
origina de hum cftupro. Perturbaô-fe os delinquen-
tes; ella , porque le coníidera com a honra perdi-
da , que era a parte mais preciofa do feu dote : ellc,
porque esfriado o ardor da payxão , que o cegava,
conhece, ainda que tarde , as trifíes confequencias
«do ícu brutal attentado, o fogo da vingança, que
-tem accefo entre os parentes , que coníidcrando íc
afirontados ufaõ de todas as traiças, para lhe tirarem
a vida ,• e finalmente toda a parentella de ambas
as familias alterada ,« talvez com as armas nas . ^
'tnãos , tudo he h^a defordem , confuzão , e horror:
<Ubt nullus ordo , Jed [empiíernus horror inhabitat:
Temos a prova evidente no Texto Sagrado. Era
Dina filha de Jacob , enamorando-íe delia pela fuâ
•fermofura o íslho do Príncipe de Sichem, teve traça
•para a furtar , e fatisfazer o íeu appctite. Cabido no
erro cuydou de o remediar tomando«a por mulher.
Foy o delinquente juntamente com íeu pay bufcar
a Jacob, para tratarem do caíamento tíííerecendo mil
partidos , de naô acey tar dot^ , de lhe darem terras
'para viveremtodos uftidos,obrigando-íeaírim elles,
•como todos os ínais homens do feu Efiado a íe ciir-
•cuncidarcm , e aíTimo cumprirão :Gra^»r{//í ^ynrih Qe^er
'èm maríbws. Parece, fe naô podia dar mayor fstis- ^^p g^;
façaô , è que o dèfcrcdito thiha já paíTado a credito,
« a deshonra á honra^j c aom^tudo não foy ^ílim^
f^í> po.r-
i \
I :
ft'
^H Dtfçuvfo IX^ - ^
.porque Jacob , e ícus filhos diflimulando a afroi^a,
lhe deraó boas palavras , para íerem mais fcguros
na vingança , que intentavaõ : Rejponderunt fiUi
Geutf. Jacob y & Pater ejusin dolo ftevientes ob Jtrufrnm f(h-
'*^(^f^^rori4.Í^Q terceyro dia , quando a ferida da cirçun-
^^' ciíaõ cuíiuma ícr mais molefta , entrarão os dous ii^
V mãos de Dina Simeaò , e Levi na Cidade fazendo o
papel de amigos j e com as armas cfçondidas, fubi-
raõ ao Paço, e degolarão o Principe, e o filho, e
conduzirão outra vez comfigo a Dina fua irmã.
No meímo tempo entrarão armados os outros ir-
mãos na Cidade com tropas de gente armada , c ma-
tarão quantos homens 3cháraô,<ieraõ íaque, quey-
màraõ as cafas , fizerâo prefa de todo o gado, e ca-
vallos, levando também comfigo captivas todas as
mulheres, e meninos : Párvulos quoque eorum , & uxo»
res duxerunt captivas. Eis-aqui aúeíordem,ecoD:fu-
Genef. ^^^ ^^ famiiias , a deíolaçáo de huma Cidade , o horror
r^py^ ' de tantâs mortes , que (c feguiraó pelo eftuoro de ima
íó virgem: Saviêntes ob flrupram Sororú. Nullusordo
fedfimptternus horror wh^bitat.
Mas fe o eíiupro de huma virgem , que as mais
das vezes íepôJe remediar com o matrimonio fub-
fequente , traz comfigo tantas defordens , e ruí-
nas , que fará o aduitcrio ! He o adultério hum pee,-
çado taiTj grande, que por fi , e pelas coníequen-
cias, que o feguem , faz tal horror , e he hum
monftro tarn cruel , que em qualquer cafa , onde
cUe entra , traz comfigo a confuíaõ, a guerra, o
pdio , e deíeíperaçaô , e finalmente fica fendo a tal
ciía hun Inferno anticipado ncQa vida, não lo pa-
x_. ra os compíices , mas para todos os parentes, ar-
deu jo no fogo da vingança, e em huma defordcm,
que naõ tem vetDtálo : UbrnuUus Ordo , fed fempi-
$exmis horror mb abiut. Todas as Naçocns dpMyn?
Ceiiut
Do tormento dos Luxurio/os. -155
do, ainda as Barbaras, aborrecerão cm todos os
Scculos o adultério.; c as que.tinhaô ajgummodo
de Republica fizeraó Icys, em que davaõpcna de
morte aos Adúlteros.
Os Judcos coftumavaõqueymar vivos ambos os Cen^i^,
Adúlteros i mas depois mandou Deos no Lcvíti-
co, que morreíTem apedrejados. A mefma pena ^'^''•'^?
de fogo davaõ os Egípcios. Os Romanos davaõ a ^°' -
cícolha de dar a morte, que quizeíTc , ou o mari-
do, ou a nnilherdo complice, que cahiíTe em adul-
tério. Os Medos, e os osParthosna Aíiaanenhum
crime cafíigavaó com morte mais penofa : Nulla ^^y ^
deliãa adultério gravius vendtcabétnt. Godos, Vi- ' '^^^
logodos, e toda a Germânia punia com tal rigor
cfíe crime, que cfcreve Tácito efins palavras: Fau-
cijfíma m tam numerofa gente aduheria ; Que era '^^^- ^f
coufa rariffima acharíe hum culpado nefía matéria. '"^''^
E o que mais admira , he , que entre os Eípartanos ^fj'"'*'
nem ainda o nome de adultério fe fabia , como cou- '
fa totalmente inaudita; c aíTim. perguntado hum
dos Juizes daquella Republica, par hum Embayxa-
dor efírangeyro , que pena fe dava pelas fuasLeys
aos Adúlteros? Refpondeo ,que nenhuma ; porque
hum crime tam execrando ainda naô tinha íuccedt-
do, nem paíTava pela imaginação. Athe qui che-
garão os Gentios fem o conhecimento do verdadey- ■P^^''*^-
ro Deos, íem outra luz mais , que a do lume da'"^'^"-?^
razaõ, que dita, quod tibi nonvis ^ alterinef actas;,
O que naõ quereis vos façaõ a vôs, naô o façais
a outro. Confídére cada hum em íl, fe tiveííeoef-
tado de caiado, vendo-fevil, e affrontado, afig-
nalado com o dedo por todos, c diga, e confcf-
íc , que defordem , c confufaô íe íeguiria na fua vida,
c íe não feria hum verdadey ro Inferno nefla vida.
VbimJlus ordo , fèdfemfiterms horror tnhahitat.
WlJ
r
^
■ E íe todas as Naçoens do Mundo tanto abornS
cem o adultério :fe todas as teys Humanas o calti-
gáD-com pena de morte tam ngorola-, que tara
Deos? Como aborrecerá efte monftro taro abomi-
nável ao Ceo, e tam perniciofo à natureza huma-
na! Primeyramente a Sagrada Efcntura chama ao
,G«.xo.AHjUerio piccada gnnie: Muxiifii fm'- mi, &■ ■
5' Cuper Remam msumpeccamm grande. Jobnaoloo
chama peccado nefando , mas huma maldade em grão
^, fuperlativo grandiíTima: Nefas ejl , & miqmtas
^'■^'■maxma. O Profeta Ofeas naó fó ochama peccado
'■ máximo, mas profundo .• profundi feccavermt. De
0r«.*9 donde fe infere, que o Adultério he hum peccado
deímarcado , e que naó tem medida n^/1^"'^''= !«
que chega athe o mais profundo do Inferno^ Ato
. falia Deos por bacca dos feus Profetas do Adulté-
rio no tempo da \tf antiga, quando o matrimonio
não era mais, que hum Omplcs contrafto de fideli-
dade entre o homem , e a mulher Agora po>ern "»
ley da graça, em que eftà elevado a Sacramento,
de%u3la mayor malicia fera V'""''"'"Tm i»
fidelidade defte Sacramento ? Afllm como he mais
injuriofa huma aíFronta . que íe faz a hum S^e^dotc
dedicado a Deos, que a humeícravo, oupciloayil
do povo, alTin rambem he mayor a mj^f ' J"^=
fe faz pelo adultério ao Matrimonio , que ne^^cra-
iíáCpfe.mento, doque a injuria, que fe fazia, quando eia
f/íi-íómente conlr.to : Sacramefitum hu magmmefi
(diz S. Paulo) m Chrijii, & m Ecckfm.
Oh íe eu foubeffc explicar bem a todos . o» qu«
ierem eíte difcurfo de modo que P««b'ffern
quam grande he o Sacramento do Matnmomopa
rece-me oue nunca maisíecommeteriao adultenos.
rcte me, qu^ iiui' rhimafe crande huma
Sacrammtum hocmagnumefi. Chamaie gra
obra , ou pelo Author , que a fez , ou peU mataria.
D d tormento dos Luxumfou i í 7
de que feyca , ou pelo fim, porque fe fez, O Au-
thordefte Sacramento he Chrirto Senhor NoíTo,
que o inflituhio. Vede , íc íe pôde aehar , ou no Ceo,
ou na terra pcíToa mais authorizada, que a fegunda
peíToa da Trindade encarnada ! Por iíTo Saõ Paulo^
quando lhe chama grande, accrcfcenta logo inChrt^
Ho. A matéria dcfte Sacramento he das mais nobres,
que Deos crcou. A matéria de alguns outros Sacra-
mentos ordinariamente hecoufa íem vidai como a
agUa no Bautifmo , o Óleo na Chriíma , e Extrema-
Unção : porem a matéria do Sacramento do Ma-
trimonio íaô os corpos vivos dos conjugados , que
faô, e fe dizem membros de Chrifto , íantificados pela
bcnçaô Sacerdotal tantas vezes.
Também he grande pelo fim, que reprefenta,
queheauniaó do Verbo Eterno coma fua íantiíTi-
raa humanidade ; e quanto a efta repreíentaçâo ííg-
nifica huma íantidade fubftancial daquelle deípo-
forío entre a humanidade , e o Filho de Deos nas
puriíTimas entranhas da Virgem SantiíTima, quan-
do com admiração de todas as Hierarquias defeco
do fcyo do Eterno Padre a fazcrfe Homem : Def-
eendit de Calis , & homo fa&us eft. Repreíenta mais
eftc Sacramento os defpolorios de Chrifto com a
fua Igreja, eporiíToSaò Paulo lhe chama grande e^
ChriíTo , e na fua Igreja : Sâcramentum hoc magnum
eJiinChrifto y&inEcclefia. Daqui fe infere, quefc
Vos perguntarem, que coufa he hum homem caia-
do.'' Com verdade íe ppcie dizer , que he hum homem
confagrado com hum Sacramento; e o mefmo he
da mulher caiada. E fe de, ambos perguntarem,
que couía íaõ ? Com verdade podeis refponder,
que íaõ dous finais íagrados , que reprcfentaô á
Encarnação do Verbo Divino , e o Defpoforio de
Chriôo coma fua Igreja, De donde fc infere, quam
-:ji ^ " K ' ' gvave
grave peceado kjaiOíaçluIterio; ^ qucíe na^ Lcy :dt
M6yíés eorote ©ínkrimoíiiG hum; íimples contraí-
ílo ^ fe chamava o adalterioi pcccàdo grande, grani-
diffima , e profundòv,: como diíFemos atraz ;, na Lcy
^C: Ghríflo , cm qtíe he Sacramento , crefce. muy to>
mais a íua malijcia , e? por iíTo nas Leys Civ^is , c Ca*
nonicas fecha mão os Adúlteros com o nome de Saí-
e-rilegos do Matrimonio, Sacrílegos Nuptiarnm^ qué
vemu fer em realidadcf profanadores das Vôdas,e pot
ilb tãoibveramentG eaíligados^o ^ouúny^Q ou tt ;^
.íi.í Sendo iík)aíiim>,h€coaíaique faz pafmai?,© pouí
Go^^atoVquc fazem alguns do peccado do Adultcrioí
&ega6íalguj2S caiados à Confiííaô uíando dcftà'
fraze. Tenho commettido alguns furtofinhos a minha
muiheir.eomhyiua ferva ide cafa , a quem tenko af-
feyçãay porque me ífervc em ludi)* Outro dfe*
T:çnho GommcDtido aíguns^ peccados eom hua mulhet
cafada y mas Jetn èlcaíidalo V c fem deícredito da
marido „qjUC o nâõ pôde, fof pey ta r pelas razoens dè
parenteÍGa, que tenho com a dita mulher ,. e fer eile
meu< Compadre. Ha tal modo de confeíTaríe! De
mancyra>qu€ as raaoens do parcnteíco, e compas-
drado , que aggraváo o feu peccado , e fazem, que
Baõfé íej^ adultério ^ mas também inceBo ,q«ep
eíie malvado homem , que facão diminuir o Uxi
peccado nas orelhas do Confeífbr ! Oh íc íoubeíTem
os hom.cns caiados o grande mal, que fazem , co^
riíco, em que fe metem , quando deyxaó o leyto
conjugal por outra ©cGâfíaõ, etal vêíz de portas a
dentro 1 Explicarey ifío com hum caio das Chronicas
àcS. Domingos. Húa mulher maltratada de feu ma*^
ridòpoFcaufa dehua concubina^ não podendo íó^i
firer mais eôa injuria , achando fie na cama , come^
0u a cuydâr na vingança. Não faltou o Demónio
de rcigrpíentarlhe. hum moçq bem paíreçido , para^:
b'uni ' .M ' " íjsr-
D& tõVfnèmoáosLuMviúfoh M 9
(erviííe^^le , conro fazia o marido da Xjoacubinâ,
çeonfcntiado na tentação cfperatfa, que foíTc xib^í
para lhe mandar hum recado , c com efta tcnçátj
adormecco. Em fonho íe lhe reprcíentou fer levada
ao i Inferno^. para yer as diveríidades de penas dos
coadenados. Vio huma quantidade de fornos accc-
fos, e em cada hum delles hum adultero abraçado
com humdragaôtáo apertadamente, que fe não po-
dia mover , c da bocca lhe íahia fogo de enxofre^
e quando blasfemavâo bradando, lhes botavão por
çefrjgcrio chumbo derretido nos olhos . e ouvidos,
que penetrando atê os tutanos , davaó alaridos,
que caufavaô horror ao mefmo Inferno. Attonita
a mulhercom eftavifta, advertio,qa5 entre âquel-
ks fornos aeccíos , eftava hum devaíio , e pergun-
tando , para quem era , lhe reíponderaô , que era
p4,r,a íeu marido em pena dos defprezos, que lhe fa-
zia, e ao Sacramento do Matrimonio. Moveo-fe
á compayxaõ , c começou a chorar , e a foluçar com
tanta vehemencia, que le dcípertou do fonoj e ar-
líependida logo dvi fua depravada tenção , na manhã
fcguintefoybufcar a 5. Domingos, e lançada a feas
pés , confeífou o fcu peccado, e lhe contou tudo,
quanto paOTara. O Santo depois de a abfolver , a
coíifolou, e dando-lhe o íeq mefmo Roíario, lhe
diíTe o meteíTe debayxo da cabeceyra do marido,
quando dormiffCi Aflíim o fez a mulher; e o mari-
dti na Boyte fcguinte tcveamefma vifaó, em que
vio os tormentos, que lhe eftaváo aparelhados no
Inferno emcafligò dos adultérios, e injarias , que
fazia ao Sacramento do Matrimonio , e atemorifa-
do , fe foy na manhã feguinte lançar aos pês de Saõ
Domingos , chorando, e confeíTandò as fuás cul-
pasie foy til a emenda, da victa » que lançada fora
a occafiâo do peccado , viveo ao diante cora-tanta
>1310 ^ 2 paz.
? \
ifi
^60 r^# ^JS^r^ /X.
psiz,'c unMõ comia mulher , que merecerão de De<y^
o morrerem iio rmípo úia , na meíma hora, e ferem
enterrados na mefma cova. Oh í* os Confeffores ti-
veíiem hum Rofario íemclhante , quanto fi uyto fa--^
tia6,nâofónoBraíilymas em todo o Munllo t Mâs
para que hc neceíTario ver em íonhos as penas doâ
Adúlteros no Inferno. Naõ he melhor ^ íe temos fé>
confideralas aos pèa de hum Crucifixo, ecom ver*
dadeyro arrependimento pediflbeperdaò,eoin pro^
poíito firme de emenda / : i<i ^^jyVfcnKj;^? i^í obn^ijp í)
Muyeas vezes confíderona diflímulação dáfjufll-»
ça humana, para com os Adultérios , dando poç
livre o marido , que matou a mulher , provando^
que era adultera, c moftrando tam pouca attençãop
cm caíiigar os homens adúlteros , fendo que o crf-
me para com Deos he o mefmo,ou feja o adultério
\ commcttido pela mulher , ou pelo marido ; lendo queí
a. mtílher • por mais frágil , he mais deículpavel , c
por iíTa em algumas leys a mulher adultera he punida
fomente com a pena de infâmia , e degredo. Masí
que importa , que os Juizes humanos julguem affimí
quando fabemos , que Deos julgará igualmente aífim
a mulher adultera, como o homem adultero : -Jdui*
. terosjudkahit Deus , diz Saô Paulo / e o caftigo íerá
^ra^.6. a perdição da Alma : ^/ autem adttlter efi y fer-
det ammamfuam. E como f direis vôs > os outroí^
peccados naõ perdem também a Alma f Perdem^
he verdade > mas o adultério com alguma roayor for-
ça pela íua grande malícia. E por ilTo chegou a dizer
Terculianoy que era quaíi irremeflivel ; não porque
Deos niõ queyra , nem o poíFá perdoar ; mas porque:
tanto o aborrece, que permittirá , que os Adúlteros
{como fuccedc muytas vezes J fcjiô acometridos de
h5.a morte violenta,, c m^tovúscAdultenmudeme*
dkbmt dies^gs,.. . ,' ,. . ; ..>
O Ter-
Bútormentodos Lumvtofm^ i6i
o Tcrccyro tormento dos condena^dos no In- ^ - >
ferno he o cativcyro crueliífimo naõ íó da Alma, jj^p^j^;
mas também ^o corpo , depois do dia do juizorjç,
í^het Ju^er pccatores laq^deos, Sc os Profetas nos
advertem, que o fogo <lo Inferno íerve de cadeas
aos condenados , quem negará , que o fogo da lu-
xuria nãofaça o mcímo aos deshonefios ! Brava mi-
ieria he a de hum amancebado 5 íem libcrdsde mai?,
-quede cuydarnaoccaíiaó do íeu peccado, pEÍTando
-más noytes, e gaitando quanío tem 5 para conten^
tar amanceba, O feu fallar faô defpropoíitos , com
os quacs confeffa a iua prifaô, e cativcyro. Pôde
dizer hum deftes com aquelle precito , que bradava
no Inferno.* Crucior in hac Jiamma. Efíou padcccn-
do, c ardendo nefte fogo da luxuria , que me con- Ambr,
fome,, c atormenta íem ter hum íó mcrrento de^'^-i-^»
deícanço. Aílim o explicou Santo Ambroíio ; Libido ?*/^*
fiunquam mamre quiet um f atitar àffeSínnty noElefer^
njet^ die anhelat , de fomno excitat , à nego t to ahdu^
át , àratíom rei^ocat ; aufert conftlmm , mentem ift-
quietat , willus feccandi modm , é^ ineícplebtW fie"
ierumfitvs. Quer dizer : a fenfualidadenuncadey-
xa quieto o coração do homem • de noyte, c de dia
o perturba, diverte-^o dos negócios, priva-o da ra-
zão, e do confclho , inquieta o entendimento , não
tem termo em peccar > porque arde em huma fede in-
íaciavcl dos delcytes. Ncfíeeftadofe achava S. Agof*-
tinho antes da íua Converíaò , como affirma nas Fuás
ConfifToês , dizendo : Eu eOava penando , íem oco"
nhecer,prefo nas correntes de hum amor torpe cati-
vo de hua mulher , e tã© cego, que as mefmas pníocns
me pareciaõ fuavcs ,e doce o meu cativcyro , c íinal- j^^^j,^
mente mancifium concupifientia fcyto eícravo da mi- ç^f,
nha mefma luxuria.
Na Cidade de Pavia em Itália cftava hum man-
R 3 cebo
tmmplè
Difeurfú IIL
^^'^^«/..cebotam perdido do amor de huma mulher, que não
•3- focegava íenáo , quando fe via junto aella. Foy-lhç
necçífgrío aííiitir fora da Cidade por alguns dias.
Quando tornava a cavalio fe encontrou com cila
fobre a ponte celebre de Pavia fabricada pelos Reys
Longobardos.Apeou-fe,e começou a fignificarlhe
as grandes faudades , que padcceo naquella aufen-
cia. Refpondco ella contradizendo a ,cftc feu aíFedoo
Replicou eliéencarecendo-lho tanto , e aífirmando,
que fe ella o mandaíTc lânçar.da ponte ao Rio , o fa-
ria logo. Refpondeoella , que defejava ver aqueí-
iafioeza ; e. o mancebo fcm mais detença monta a
cavalio , e o picava para faltar ao Rio. Ocavailo
com as picadas íc detinha , e recuava , que , parece,
moftrava ter mais juízo , que o Ca valleyro.. Replicou
â mulher dizendo ^ picais a medo, Refpondco elie:
como a medo Senhora^ que por vos dar gpíio vç?
reis com efta picada o cavalio afogado no Rio , c
â minha Alma fepultada no Inferno. Precipitou-fe
no Rio 5 efilvando-fe o cavalio a nado , o defgra-i^
çado mancebo appareceox no dia feguinte cm huma
margem do Rio tam desfigurado , c medonho , que
fazia horror a quem o via como hum cadáver do in-
ferno» Peço ao pio Leytor faça comigo eflareflcc-
ção entre o amor de Ghriílo ,. e o amor profano.
O amor de Gbiifto pede,, quc: para fe livrar do ca-
tiveyro da luiítiria , façais, huma difciplina , hum je-
jum , , ou outia mortificação ,e logo refpondeis ao
ConfeíTor , que não podeis. Manda o amor pro-
fano por meyo de htima mulher fcm juízo i que para
nunca mais apparcccr na fua prefença fe precipite
em hum Rio , fe afogue , e íepulte no Inferno , e hum
defgraçado homem obedece com preíkza , e vay ao
Inferno padecendo huma morte tam violenta, qual he
a dos afogados, Eftâs íaô as priíocns , c cadeas do
vicio
vicio da luxuria , que chegaô a atar iortemente ain-
da olivtc alvedrio ,e entendimento de hiim homem.,
íE que confuíaõ íerá^ defte mtíera¥el nó dia dó^oizo, '
quando na preíença deDcos, e do Mundo todo, fe
vcrà condenado por caufa do arrojo da íua torpe af-
ileyçaô*
Confirma efta verdade o Efpiri to Santo , quando
diz : Fúmkus peccatorum fuorum conftringptur ptcc^- pr^v^i^
tor. G pcccador eíiá ligado eiirçy t amém c com as ix.
correntes dos léus peccados. Quereis íabei , quaes
iíaôos fuíis deftas correntes? Eu o dcclararcy com
-as palavras de Santo Agofíinho, que falia va como
experimentado: Sufpiraham ligai tis ^non ferro aJte- j^ttgj.
no, feâ mea jerrea voluntétte : qnippe ex 'voluntate ^•^'<"»/''
ferverfa faõta tft libido ; & dum fervitur lihidi-^^f'^'
ni , faíia tft confuetudo ,^ dumconfiíetudwt non reji^
ftitttr\faUa eft neceffitas, qmhus quafi anuíis jiht /«-
mxis tenebat me obftnãum dura fervitus. Eíiavâ
luípirando(dizeile) por me ver prelo não cm cor-
rentes de ícrro , mas da minha propi ia vontade,
■que era mais dura, que o ferro. Defla minha per«
verfa voiKadc fe originoti a concupiícencia . em que
ardia : por fatisfazer á concupifcencia adquiri o mao
iiabiro de peccar: do mao habito de peccar me naf*
•eeo huma neccílidade , q^ie nie vioieníava ao pecca-
dos e tudo iflo me ligava tanto , que me via em
hum êftreyio ca^iveyro do Inferno. Devemos pon-
derar bem aqueílas palavras ,* Fdãa èftvcor/fuetfido^
faSía eft neceffftas ; porque 6 mao habito, e cuBu-
Bienopeccar^ faz tanta forç^ ao coração humano,
que o faz como peccar por narin"e2;a, fcgundoáqucl-
k axioma : Conjnetuào eft attera Ttatura : que o habito
vem a fazeríe como natlneza.
Encarece maia cila verdade Jeremias, compa*
Mjido tjfte mao habito ào |)ccc^do ás qualidades
#Í0''' " K. 4 por
Í7:
1
i
!
f
2^4 Dtjcurjò Ia
por natureza inaltenraveis .' òtpôUfi ç^thkpsmutâ^
fere ^^P^^^^ ) ^«^ Pardmvarieíates^ fuás : & vos potmtik
(2 Ti bemfacm.chmâidicmtis maUtmX AíTim coiao naó
pôde hum negro mudar a cor da fua pclle, nem hum
Leopardo a variedade das fua&cores y aílim náo dey-
xarà o peccado hum peccador habituado. Toda a
agua dos rios, e fabaó de Europa > Lavando, hum
Ethiope , náo o faraó branco : donde n^fceo , o^
provérbio <:^thiõpêmlavat. Todos os avifos, rcj
prcheníbens , ameaças , e cafíigos , não acabiráó,
com hum peccador habituado na íeníualidade alar-
gar o íeu peccado. Mas porque fe íerve o Profeta
das duas comparaçoen« , do Ethiope >e do Lco*
pardo? Naô baftava a primeyra para explicar. a in^
tento f Naô: porque na íegunda íe contem humaí
boa doutrina. Às manchas do Leopardo íe podem,
tirar, cortando, e rapando.lhe todos, os cab€llos>
dâ pelic : raasxr^ícendo outr^ vez os . cabeUos , tor-
mõ outPâ vez as manchas. O mcfmo . fuccede emi
hum fenfual habituado. Vem. o tempo da Quaref-
ma ,^ procura cortar , e tirar eílas manchas por mc--
yo de liu ma confiíTaó ( cmcafo, que íe ja bem feyta>
mas como lhe ficão as raízes „ a íabcr o.mao habi-
£0, que tinha depecearvtomaoforça as raizes doS:
mãos hábitos ., cbrotaô , em. novos peccados,- e pôt-
de fer, que emUantos , ou. mais , que dantes. E
pôde chegaria tal excefc aduieza v e obftinação de
hum Luxurioíoporcauía da fua habituação no pec^
cadoi que não íeja baftante meyo algum daquel-
ks, de: que ufa hum fabio Pregador, ou hum dcf-
tfo ConfcíTor,. para o defatar deftas^tam fortes ca-
deasrcomaíuecedcoàquellc, de quem refere Drci»
xelioA^thorcclcbcrrimo, que dizia: dcyxay já, c
acabaydemc fazer medo com tam terríveis amea-
ças ,^ porque vos protcfto, qucfc me foscílcis aqut
X
Bõ mfffentõàos Luxuvkjesl %6f
aparecer à mão dircyta a morte com a fouce , para
me Gortar a vida , c à maô efquerda os Demónios^
para me levarem ao inferriQ, ainda queeuquizera,
r»áo poderia largar efle fadário de tornar aos meus
goflos ; porque com cUes ,, e por elles hey de mor-
ícr.
Não duvido da louca refolução, com que falia-
va cfíe malvado i pois lendo clle jà feyto cfcravo
da íua fcnfualidade , aehava-íe com faude, eainda
forte, e rcbuflo, para continuar nos leusdelcyte§».
Via a morte muyto ao longe, e coníidcrava o In-
ferno comoem pcrfpcíliva , onde aquclle fogo não
lhe fazia mais impreíraò , que como pintado. Naõ
porém alTim , íe eflivcífe na cama com huma doença
mortal dckfperado dos Médicos^ abatido de forças,
abandonado de todos, e já com ofirro nagargantaj,
que entâo>le pudeíTe fallar , diria por cxpcricncia
com o Profeta David ;. jà me cercarão as dores da
0)orte : Qircumdedervnt me dohres wortis: E que
jà preíentia as dores do Inferno, que tãohorroro-
ías,,c medonhas o efíavao cercando : Dolores infer-
m circumdederunt me^
O que mais me admira , e eípanta, he hum caíoi
que dircy ,. muyto a propofito , e íerviíá taiLbem
de prova concludente para remate defle terccyro
ponto. Vivia em Nápoles hum Mancebo nobre , que
morrendo-lhe os Pays , fendo pienino , ficou de-
bayxo da tutela de huns parentes, que mais tratar
rão de lhe confervar a fazenda , que de dar-lheboa-
educação dos cuflumes. Griou-íe bem mal, para
viver peyor ; e para com mais liberdade íaiisfazer
aos feus apetites, ccntava os diaíí, eashoras, que
lhe faltavão, para ficar emancipado. Jà livre ^^^ Luc^f
Tutores, c Senhor da fua fázfrda, cm breve tem- 13 ^
po como outro filho pródigo ; Diff^^favit fui ftantiam 50.
.r
\í\ IJ
fitam, vivendo luxurtefe. E naò fó a goftou , c
^iífipou., mas { comQ explica mais claro o Evangc-
liíta S. Lucas) a dcyfovoíVoJDevoravít mm meretrícia
ifus. Reduzido a huma extrema miferia , lhe era nc-
ceíTariè ir á caía de algum parente^ ou conhecido,
â pedir-ihe o neccflTario para o fuftcnto daqucUc
dia, que movidos da íua miferia, lhe não falta váo
com a caridade que pedia. O agradecimento,
com que pagava efte beneficio , era furtar.lhes al-
guíTia peça de prata , e logo le vala a cafa de huma mu-
lher, que aflim coíHO o obrigava impudica a desho-
neílos tratos , o impeliia também a femclhantes fur-
tos, fendo íéeftes a caufa dos carinhos fingidos da-
queila enganadora ^ que fe o recolhia rifonho, quan*
do lhe trazia dadivas, naõ o admitia, fc ícm ellas
a procurava. Fiay-vos agora no amor de femelhan-
tes mulheres, c perdey-vos poi: ellas! Bem perdi-
do andou efte miferavel moçO} pois para conti-
nuar na fua torpe amizade , vendo , que já nem pa-
rentes, nem amigos, o admitiam nas fuás caías,
de domeftico paOTou a ladraô de eftrada ; c íendo
grandes os indícios, foy enterrogada a Amiga, que,
como fe foOTe mortal inimiga, confílfou de plano
és furtos, com promeffa ( por não íer julgada com-
plice ) de entregar á juftiça o defgraçado amante,
Náo cardou eftc com outro furto a ir vifitar , epre-
íentàlo ao íeu Idok), de quem nunca foy também
recebido, cagafalhado, nem com mayorcs caricias,
nem com melhor cea. Acabada efta, mandou lo-
go^a fingida Amiga avifo à juftiça j que vindo com
diligencia cercarão toda a cafa , entrarão dentro,
c preíionàrâo o miferavel moço, o qual à vifía do
furto , que juntamente cahio nas mãos da juftiça
por induftria da fingida Amiga , como da outra Da-
Hla traydora , foy levado logo á cadea , onde con-
fcífou
Dõ tevmnto dos Luxuriofos. 2^7
IcíTou ícm diíficuldadc hunsy c outros roubos, quc^
tanto mais íízerãa prova concludente , paraíerfcn-
tcnciado à morte. Yendo pois, que cítà pelos cri-
mes lhe era irremiffivel, tratou de reConciliar-ío
coro Dcos por meyo da Penitencia, para poder ir
gozar de melhor vida na Geleflial Pátria. Jàdeíen-
ganado chorava, c obominava as miferias^^defía vi-
da, arrependido não íó dos roubos, edanno^, que
tinha feyto ao feu; próximo j mas também de ter
prodigamente dillipado toda a própria fazenda t;/-
vend» luxtinofí\. Conhecendo qunnto melhor fora,
íe a liyz^t gaíkda com os pobres , o que além de
fer hum aélo heróico , feria também caridade me-
ritória para com Deos, Com efta boa difpoíiçaõ
lahio da cadea , e caminhava para o patibulo no
n^eyo de dous Religiofos, levando o Crucifixa
diante dos oíhos, para poder contemplar, com
quanta paciência, c humildade, o mcfmo Senhor
fofrco ignominiofa morte, fendo innoccntc , por
nos íalvar, c fuGcedcndo paíTar pela mefma ruaj
onde cftavaõ as caías da Amiga, levantou os olhos'
para a janclla , ea vio roda alegre , e carinhoía ( caio
incrível , íc naõ íucccdcra cm prcfença àt tanta
gente, que o acompanhava ) ; e bailou cila viíla,
que teve o tal moço, para lhe perturbar o juizo, c
fazcr-lhc tal com moção dos eipiritos, que ca-
minhando elle naquclle ulíimo tranfc mais morto
que vivo,, tomou tal brio, e alento para pertendcr
com hum impctuofo arranco cfcapar das máosdo^
Algoz, c meter-íe em cafa da Amiga; mas como
clle hia algemado , a falta da liberdade o fczcahir
no chaô junto da porta da fua perdição. Acudirão
logo os Miniflros de juíiiça todos attonitos do íxiè^-
ceíTo, e levantando-o em pé, o impelliraô a ca-
minhar com mais preffa para a forca. Oh ccgcyra.
total
' i
DiJcuv/dlJl.
total do entendimento! Òh força predomídatJte
da natureza corrupta ! Eys-aqui a prova de S. Agó-
ííinho } Dum conjuettidini mnnfiftitwr -^ fa5íaeftne*
cejjítas. Quer dizer, que em razaò do mào habito
chega hum pcrvcrfo luxuriofo a íer quafi neceílita-
do apeccar, e perder-feí verifícando-íe neftccafo,
o que^à^deyxou efcrito hum Gentio de grande fa^
j^^^p^^ber: Maturam expilas furca^ tamen tpfa recur^
ret»
p Naô he de menor coníideraçaõ nos Condenados
o tormento do bicho da confciencia , do qual faz
menção Chrifto bem noífo por Saô Marcos , aíHr-
mando, que he hum tormento, que nunca acaba.*
Et ver mis eorum non moritur. Ora fe confíderarmos
ja li ^ ^^^ padece hum luxuriofo neíla vida , acharemos^
'^ **que ainda nefte mundo padece anticipadamente cíle
tormento. Tem o luxuriofo no leu coração huma
cafla de verme , que o defpedaça , hoje por fofpey-
tas inúteis^ à raanhaõ por defcjos violentos, já
por ciúmes, c zelos endiabrados, c algumas vezes
Ipor vinganças impofliveis } c ajuntando-fe algumas
vezes todas as payxoens no entendimento , e na
vontade^ padece hum tormento inexplicável. E
tião he menos o rcmorío, ou latidos, que femprc
lhe dà o coração , de que o caminho , que leva , hc
o da perdição , porque Deos como redo deve ca-
ftigar a fua depravada vida. Eftc remorío da con-
fciencia era a que atormentava ao infeliz Cain. He
digno de reparo o que diffe Cain depois de matar a
. Abel .• Omnis , qui invemrit me , occidet me. Que
toda a peíToa que o encontraíTe , o havia de matar.
E quem o havia de matar , íe clle ficou único filho
de Adaõ , e Eva , c naó havia outra pcffoa no Mun-
do , miis que elle , e feus Pays ? Ah que efte medo era
cg^íado do rcmprío da conícicncia > c quando as
1. ,:. ^ ' folhas
DoteMentbM&uxuvkfòs. t1%
foIhis-HafS^ ^í^i&rès triovidàs db irèiító^ftziaõftííftòrj
Híc pal^clâ^^t§eerèí^&l ^aè ^onrinhaô pfender, páf^
o niátar/ QyíÉtiíianoí damando em Roma diífc;
Oh tormenfis omnibtts gravior eenjcienfta \ Suetoníò ^*^'*^'
fâllándo de Tibério affirmou : JV^// ^ 'Mtfinus;^^^^ ^,^
qUam mala confúmúa ; e Scfleca cônVefti com todos, Tibl^it,
que a coníciencia hc o AIgo:2,qtie atormenta conti-^'"'^;
nuamente a quem obra : VtrV confcentiamns mala^^'*^
facinora confcientta flagellart. Finalmente concor-
dâo òs SS. Padres, fcr hiima das mayores penas de
litim pcccador : Inter multifUcniribulatmes\ó'
inmmerabíles amm méeftias^ mlla eft maior cm-
fctencia diliãòrum. AíTim Saõ. Gregório concordan-^'''^- '«
docomS^Agoftinho. .oi>dií2 í^milísq; i -'>^43
Mas como ( direi s vôs )naôdefpertaõ com eíle
i^morfo da coníciencia os Luxuriofos, para á
emenda? Rerpondo , que efía he a propriedade áo
vicio da carne, que quanto mais íe radica com a
continuação dos a<ftos tanto mais fe apaga o lume
da razaô, até fe' extinguir totalmente o remorfo.
Fazia viagem detioyte Luthero com hua Freyra , que
tinha tirado do íeu Convento, para íc cafar com
cila. O luar era clariíTímo ícm nuvem alguma , que
impediíTe a vifta das Efírellas. Acontecco dizer a
Freyra cftas palavras; Oh que bello Ceo alcatifada
de Eftrcllãs , e que íerà o Paraifo! He belliífimo
(reípondeo Luthero) mas não he para tíôs. P por-
que ( replicou a Freyra )? Entaõ Luthero ;Deos me
bateo à porta do coração por dezafete annos com^
hum remorfo de coníciencia, que menaõpernríttiâ
deícança; ate qu€ refiftíndo eti fempre, e fazendo
peyor, fiquey livre defte açoute, ejinaõcuydo no
i araiío , e menos no Inferno. Oh que defgraça' Oh
deíemparo da graça de Deos, quando deyxâ huma
alma entregue ao fippctite da carne , para viver brij*
tal-
^í^
câdo ! He, íi^iie diíTç Qhrifto aos Judtos : E^o vitm
''■' 49 \.&. tn feçmíovêfiia mmeminí, Ôefenganay- vos^
m \%u?;^^ '^^^ h^ tiííí#, cpmqwe; q Pemonio ç<)n<iuzsi
xVòsMy mais plfnaii ipua; ^jlofçrnt i> que ^ P^ fiiçicçada da iuxa^
lítd. lii. j. j^^ - Magis fiiyr-C4rnts luí^Ur^^^
**■ ^"^'éiUK Diâoby,quamfercàÇt€ràvtíia : ) diz S. Izída-
rQ^-j e dà ^ razdór j * porqme 0. Dçmianií) obra com
^ llhidfnoíos^í conÉioiO Gorvo (;Qfii íos. Cadáveres^
4i^e 9 pr4ín.^# eoufai^que I ti€s deVôra a . íaõ os oLhosi
aíIiiTi .elLfr íhçs ccg^ primeyro o l^mfi^da razaõ j qu0
l^y^^he ç£>,no os olhos da alma ^à fim que naò conhe-*
ll'^**^'v^çaõ o feu peífimo eftado. O me^ímo affii-ma S. AgQ,
ftinho, dizendo , que o Oicmòjiio çoírl os mHís vi-
eios peíca^ as -almas como com: Q anzolíj: mgs com
o vióiq da luxuria pefca como com rede, queapanhi
grande quantidade , fegundo o dito de Hâ-bâcuc,., &
H*b, c, í^í«^ çongrigat in reufuum: e por iílo Saõ Remigio
I. chegou a dizer :^ que fe exceptuarmos -ps meninosi
quês morrem innoccntes , dos adultos por caiifa dó
yicio da carne poucos íé hWaõ: Exceptis-parvitUsr
S. ^^f»' e^ adukis proptercarnis vitium faííCí falvmtur,
Gorre entre os luxurioíb» alguma opiniaq , que
jípolog.
21. o pccóado da. carne he o mais fácil -de perdoado
por Deos , e. com ifto íe faCiiitaõ .a pcçcar, e induzem
tambcm a muytos innoccntes a cabirem no pçcea-
do. Eu naô nego, que Deos pôde, e quer perdoar
cfte peccoido.a.quem verdadeyrarnenre;fe; arrepende
de Q hwer commettidp: mas fe lançarmos os olhos
aos eaftigosy cora que Deos punio cíie;pecc^do^^
5,7/;(?/» acharemos , que naò' ha eík faciiidackj^em Dcos,
/fr, 4. para o perdoar, qual nàa- imaginamos :; L//xwn^
facmus pra aUh atraciori vmdíãa pimttum kgtmfds,
(;ézSt0m Thomàs de ViUanovaO Quer dizer , que
ne-
lícnbnm '■ fctt^áo caâigou Deoá^còm' ntàf^Á kym-
dade, quero: peccadt) da luxuria. Os cxerryplos cla-
ra mente d provaó. Lembray-vos do rigor, comquic
caftígouios ífiKwsdorcs iijfaiíies das quatro; Cidades
de PcmâpoMs^;^ âbcafando tu^oxoji) hum fogo tam
voraz y 5que /ate asrl bate f e ( pedras re<iuzia a cinzas^
como ícioíFcm Rços de lefa Magcftade : e fe pergun-
tares a cauía de tam horrendo caílígo > achareys,
que fby -a^ ícnílialidadey em* qUc; vi viaô. Lembray-
vos do Diluvio immenío de ^goas , com queDeòs
foçobrouoMxindo todo ,' no qual perecerão todos
ò^^viventes da terra , falvos íómcnte os que efcapá*
íáp dentro da Arca : c íc examinares a caufa , vos
jrefponderáí a EíctitnrâiDfxit Deus ^ mn permam*
htt Spntús mtíi9 Í7i.húmm'^^la caf^o e/Í. Aknfus^
lídadíE depravada y dom que viviâo os-àomcns ío-
br€ a terra, foy^á cauía de caíligo tanto univcrfal,
po qual perecerão culpados , e annoeentcs* Ora
deflc rigor âc Deos , em Gáftigar cfle vicio, ppdereys^
íníérir legitimamente a facilid^ide em © perdoar,,
para GOíw-eík confiança coníinoarcs a peccai? ear*
ualmente? Certo hc, que tláo*J^ 13^ manl í-lnean m^m
Nlo?rqiiizera porem , que das verdaács dcflc
difcurfò,tomâi'e algum dos meus ouvintes habi'-
tuadoino vicio da fcnruajidade motivo, paradeíef-
perar. Day-mG attençaõ. He verdade, que o vicio
éa fenfualidade he difficilíffimoalargar-íe, princí.
palmentc de quem vive habituado nelle. He verda-
de, que -o mao habito ncfte vicio paíTa como a na-
târeza , fazendo como huma neceííidade aeontinuai?
Eo peecado : mas 'também he verdade, que ajudado
hum homem com á graça de Deos, que da parte-
fua não faltâ^ pode tomar huma reíblução de© iar-
1^ totalmente, é hvfar-íe âc tám eftreyra prizãp,:
mo vos qtiecoallegait outra (eK.emplo,íenaô.o.diel
S. Ago^
i, ' íl '\
Smtá Agqftinho Uô celebre ema Igreja Catholica. A-
gbflmbo, fendo Manicheo , yiveo tantos annos
perdido ncftc vicio com tantas raízes , que lhe pare-
cia quafi impjoíTivcl o lai^alo; com tudo fcyto Ca-
tholicf lachoà porcx|>eríenciai que fe podia^vencerj
€ dà o cemcdb cotn huma íbôielhançâ,/qucquandoà
propunha aos íeus ouvintes, lhe pediatoda ã atten-
;^' ; Eqàusj, it áiz^elk^). mt^fidotHaf , Blepbasnonje
Je'"vet J(f^tiLe& norkfi.Jomt^Ík é' Homo nan fe domai:
Ap. ' UrdammmnEqúus^Ele^hasr Leoy qmritur fíom9i
ergo quaratur Véus , ut domineturHomo. JDomuifti
Equum y qmm nonfecijii , &. non.âomabit te ^ quefe-
cJtcUf QB^t diz^r. if^^m Cavallo , huin Elefante,
c kmn Leão nâo fe doma a íi meímo > aíTim da
mefma maúeyra hum homem não fe.doma a fí mef-
mo. Para domar o Gavallo., o Elefante > e o Lcão}
he neccífario o homem, que he fupçri.or a todos,
emma pbjecijU jfiá fedibus, E para domar o ho^
mem, he ncceírario.' recorrer a Deos,, que heSupcr
rior ao homem. De. maneyra , q^e afílm .corno o ho*
mem amanfa humaféra, que naõ ereou, aíTim Deos
pôde amanfar o homem, que creou. Mas com efia
differcnça, que como Deos creou ao homem em li-
vrc aiv^idrio , a faber, com vontade livre , o quer çon-
iirrar efta liberdade ao homem i por iíTo ainda que
Dcós poíTa defotentia ^^/í>/«/^ amanfar o homem,
ifto he, fazer-lhe mudar a vontade, com tudo ^^
modo ordinário não lhe muda a vpntadc, fem. o ho-
mem confentir nefta mudança. E para haver eíta
mudança , que deve fazer o homem? O meímo San-
to o declara em humas palavras feguintcs : hi Ulo Jpes
efi., & nos fubdamury à-. míjericordiam pecamur.
Quer dizer; em Deos cftá toda a noíTa efperança,
bimilhemo^nos diaqte dclle, peíTamos inliante-
mente
Do tõrmetííú dos Luxurio/os. «73
ifiênte afua graça , c o feu favor, c a fua mifericordia^
c defte modo poderemos alcançar efta mudança , pode-
remos íahir defle atolcyro , em que nos tiver metido
o noíTo mao habito da íenfualidadc.
AíTim fazia David, quando dizia; Salvumme
fac Deus, quomamintraverunt aqua tifque ad ani- ^f^^'^
mam meam. Senhor , ajudayme a íalvar , porque
cu me vejo fubmcrgido nas correntes dos m«iâs pcc-^
cados. Chamava com inílancia a Deos \ no qual
punha toda a fua cfperança , e por iffo replicava:
Labor avi damans , dum Jpero in Deum meum. De-
vemos porem advertir , que o Santo Profeta no mcí-
mo tempo , em que eíperava de Deos o favor, de
fever livre das fuás culpas , trabalhava, e coope-
rava também da fua parte, para fe livrar. EíTa
força tem aquella palavra Laboravi, Recorria , c
pedia a Deos , que o livraífe , mas no mefmo tem-
po fazia diligencia para fe livrar : Laboravi damans,
Deos da fua parte eftá prompto a livrar o iuxuriofo
habituado no peccadodo habito vicioío,queo tem
ligado, e prelo j mas hc neceíTarip , que elJc da
íua parte faça diligencia , para romper eítas prifoens.
c vencer o feu mao coÁume. Para fazer efta dili-
gencia , fe deve ajudar do temor de Deos , temen-
do o íeu juízo, a íua ícntença , c os íeus caftigos,
que feraõ por toda a Eternidade; porque efte temor
fera baftante não fó a fazerlhc romper as prifoens
do leu deplorado eftado , mas também a cxtinguir-
Ihe todas as raizes do feu mao coílumej fazendo,
que em lugar do mao fucceda o bom habito, eco-
ftumc. O mefmo Santo AgoíVinho : Feternojijjíma
confuetudo ttmore franatnr , franata rcfiringitnr^
reftriBa hngutfát , lauguefcens emoritnr , & mala
(onfuetudim bona fuccedit. Quer dizer 5 hum mao
CQÍiun\çdcmuyto tempo com o temor fe refrca , rc-
'-C i'lí ' S ' - frea-
174 DífiÚYfo\
freadafcvay apertando, apertado címorcce/c cC*
morccido vem a acabar , c cm feu lugar fucccde
hum cofitime bom. AlTimíucccdco ao meímo San^
to Agoíiinho, e a outros tantos Santos , e pecca^
dores , dos quaes íe podia julgar diíBcilifíimo o li-;
vraríb das prifocns dos íeus depravados affcdlos.
Ó TOeímo vos fuccederá a vòs, e principalmente
fc vos yàlcres , e prevajeres da interceíFaõ daqueU
la Santiííima Mây, e amorofíflima Advogada dos pcc-
cadores^a quat aífim como mereceo ouvir da bocca
dí)An)0Saô Gabriel aquella íentença de não Ter im-
poíFivcl a Deos o fazer , que foíTe juntamente May, c
Virgem : Nori erit imfojjiblh apuà Denm omm Fer*
bum i affim também merecerá alcançar de Dcos a con-
verlaõ de hum Luxurioío, que pela muyta habitua*
çaô no fea peccado j pareceria talvez impoffivcl a fiia
convérfaô.
DIS.
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H h
I
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1
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^ 1
TORMENTO DOS TIRA2síOS 3 YmGATWOS
17?
DISCURSO X.
Do tormento dos Tyrannos,
e Vingativos.
Potentes potenter tormenta patientur.
Ssip. cap. 6.
A5 ha duvida , que a natureza
humana tem huma terrível in-
clinação á vingança. Corre »e
fe precipita a ella com tanta
fúria, que as mais das vezes naô
lhe dá tempo de confultar , e
íeguir a razão. Daqui nafcc
que em íemelhantes caies hum
homem afrontado fe eíqiiecc
de Deos , e de fi meímo, confcnte,e corre à vingança
ícm reparo ^ íem cautela, íem armas,c fem rcmorj def-
preza os mayores perigos , ou para dizer melhor , não
çuyda nelles , nem os prevê , nem os vè. Mão he fácil
explicar todos os movimentos , c perturbaçoens,
^iic a natureza humana offendida excita no cora-
ção jC na Aima de hum homem injiiftajucnte aggra.-
S 2 vadOí
g®
fonn.
176 Dtfcurfo X
Yâdo. Não ha tormenta no mar tam dcsfeyfa \ nlà
ha na terra iianundação de K.ios tam precipljc^ada,
naôhano ar vento, oit tuffaô tam impetuofor não
Sen. ha no Ceo Rayos , ou Corifcos tam penetrante^ ;^
^^^^'*'^ Ntilla vis Jlamma , tumtdique venú >qtíe cheguem
^' * a hum animo enfurecido, a hum coração ardente,
quando correndo a vingança, quer ferro, fogo, c
iangue,parao total exterminio de hum (eu inimi-;
Ardet, ér odh.
Ifto íoppofto , rcccyo muyto,qucfuc€edaagQ«
ra a mim , o que já aconrccco a Chrifto Senhor nof*
ío 5 quando pregava às Turbas naquella occaíiaõ^
em qae alguns dos ouvintes cílranhando a fua dou-
trina como difficultoía , e impraticável , o deyxà-
raõ , dizendo : D urus eft hic fermo , &qups peterif
enm aãSrel Funda fe cíie meu recçyo lobre huns
falfos dogmas , que eníinaõ os Políticos do Mun-
do. Primcyramentc pertendcm , que perdoar as^
injurias , e naò fc vingar delias , fcja bum precey-
ío novo eílabclecido contra os^príncipios da nature-
za. Scgundariamcnte , fuppofta a fraqueza humana,
fcja impofíivel o poderíc guardar cftc preceyto. È
cm terccyro lugar ícr de defcredito a huma família^
c indigno de hum homem briofo , e honrado. Por
tanto determino neftc difcuríb moftrar todo o con?f
trario , provando , qae o preceyto de fe não vin-
gar dos inimigos he natural, e tam antigo como a
creaçâo do Mundo. Que he faciliffimo, ainda que
pareça impofíivel. Que he gcnerofo y e louvável^,
ainda que muytos maldizentes, e mal intenciona-
dos, lhe chamem vil, bayxo, e de covardes. Ecfte
fera o primeyro ponto. Nb fegundo veremos os
grandes tormentos, que padeecráõ no Inferno eftes
Vingativos, eTyrannos, que não fouberaò uíar mi-
kricordia com os fcus próximos , cafligando-os
Deos:
:*'i
Dd tormento dosTyramoSy e Vingativos» ijy
Dcos com o mayor rigor , c furor da íua juftiça , ve-
rifieando^fe delles , que ; Potentes fotenter t^rmenta^
fatientur.
Seria hum erro muyto craíTo , c huma abufaõ dc^
grandes confequencias o.cuydar,ou imaginar, que
foy em algum tempo permittido a aiguem odiaro
feu inimigo , e tomar vingança dellc» Quando ChriíVa
bem noíTo diíTe de fua própria bocca aquellas pala-
VEáSi.* Audtjíis , qma diâíum eji antíquii. Dditges
froximum tumt , & oito habebU inimicum tuum;
fallava reprovando certos dogmas faiíos , que an-
davaõ erp tradição , para obrar a vingança jc câas
íaõastradiçoens, queSaó Paulo chama mentiras ,c
fabulas ; Inanem fallaciam fecundum tr adit tonem ho- Collep
mmum. ^ Santo Agoftinho aseenfura como delírios í<<jí.i.j^
àos ]uácos i Deliramenta Jud^orum. O preceyco
dê naò tomar vingança dos inimigos, c de amalos,
c fazerlhcs bem , he ram antigo como o mcímo
Mundo^ pois he fundado na ley natural , que nos
prohibe de fazer aos outros , o que nòs naô quere-
mos foíTe feyto a nôs .- Gluod tihimn ijpis , alter iirie
feceris. Ora he couía certa ,;c evidente , que qu3n^>
do nos temos , ou por defgraça , ou por malicia , of*;
fendido algum noíTo próximo, queremos, e procué
ramos , que não fe vingue , nem nos períiga , que
nos perdoe, e naò tenha mais ódio, que nos queyra
bem, e continue com osfeus favores. Logo confor-
Hiea ley da natureza, c do lume da razão, fomos
obrigados a fazer o mefmo com os noíFos Próxi-
mos, quando nos tem ofFendido, e aggravado ; ^iod
úbinonvís .alter i ne feceris.
Podemos confiderar a Deos , ou como ooíTo
Credor , ou como Redemptor noíTo. Sc o confi-
dcramos como Creador, e Author da Natureza,
a mandamento , quçjios obriga, a, não tomar via?
f
S 3
gan;
ganç^ iés noítos inimigos^ ej^mais a; mais amaí^-
los , e fkzerlhcs bem, , ^lòy: :é£5rtp; dèfde^ :a;trea|loM.
dos nofTos primeyros Pays Adam , e Eva. È íe o^
cooEderamos como- RcdempEor , ií-e tam. antigo
como a meírna Lcy Éva'ngelicai publicada pslo nief-;;
mo filho deOeos fey to homem. Deos como Author
,da' Natureza^ á-ScBhoí' Soberano<i de todas as^ Gi"ea4
turas íe decíaroo :, qiie nuncapermíctifía a vingança^
a peíToá algema ^ feguiidò a; intcUigencia daquellas
palavras* por boceade^^^M
^'^f S^Tfiáfccvp para mim -a vinga dça, e quero fer íó erti
fazer juâiçaye vtógarmea feu^ t^ E no Levii
tico deyxou efcrito : IsJ[on quafas lãtiomm-^ necffk^
LéviíT ^''^' ^^^ inp^va cmium tMorumJ^^^m busfqtieis a
tf/i;>. 16 vingança , e naô vós Icmbrers mak das iniiá"iav
que Ví)s íízeraô. E Saõ; ;Fàulo jfel kndô em ItigâE de-
AàRõm^^^^^r díz .• xíMM 'vmdiBam , ^^í? retfi&kâmi A
fi/sp.ia. mim íé^toca a vingança , edar ocaítigp , que mere-
cem os que ,vp& raaitrâtáo. De- tudo ito íe inferél
ck ràmánte j%ie M Dfeos^ tèro ^tíft^ poder pa^a viíic^
gar^ve câftigar^GS-íeus ,tie,diSí nc&á inimigos r e taiíii?;
bem fe iniere por legitima coníèquencia , qée fè
bouveíTealgum homem ofendido, ou aggravado d©
outFOí homem f que ífc perfuadiíTtí , ©u iulgaíTe ferlhô
licita ,íOupermittidaá vingança contra o íeu iaimi^
go, violaria o titulo de Cipeador, ufurparia o di^^
reyto fupremo de Deos ,e cometeria hum crime dc:
leia Mageftade Divina , com querer apoderarfè da?
foberania, que Deos tem íobre todas as Crca turas,
fendo efko brazao mais preciofo da íua Ómnipo-^
tencia.,/,' '■-^'>,J'-> ; 'í-^- - ;'^'; ■ ;n'íi:;!.
Naó ífe èontentou Deos di: gravar nos coraçocns
humanos cfte diíílame de naô fazer mat aos noíTosf
iftfâiigQSi. mas taabç/íi for huma Lcy pofitivanosi.
.^r-^: ';:■:! man--
DotormentQdosTyrànmSye Vingatmh 179
manda, que os amemos, e fopcorramos nas íuas
ncceflidadcs : Si efuríerit tmmicus ttius , áha illum. Provi
Naò hs logobaftanteonaõ lhes ter ódio, mas quer, ^^p-ijT
que os aniemos , e íoccorramos , como íe foíTeni
parentes, ou amigos. Temos raros exemplos na*
quelles grandes Varoens da Teflamento Vçiho.
Moyfés Legislador tam amoroío foy murmurado,
c maltratado de palavras do mefmo Povo de Ifrael,
que tinha recebido delle tam grandes benefícios j e
com tudo não íó perdoa de coração áquellcs ingra-
tos , e rebeldes , mas roga a Deos por elles com tal
fervor , que pede antes a morte, que ver o íeu Povo
caíligado; Aut dimitte eis hancnoxam^ aut fi non Exod.
faciSt dele me de Itbro tuo. Naõ he menos para itc^p-iz
admirar a paciência, c manfidáo de ElRey David,
quando fugindo de Abíalam,hum íoldado por no-
me Semey começou a infultalo , e infamalo com
impropérios, atirando-lhe com pedras, e chaman-
do-o homem indiabrado, amigo de fazer íanguc, e
complicc de muytas mortes.* Ita autem loquêbatur Reg,^^
Sentei^ cum malediceret Regi , egtedere , egreder ecj.z^.
f^ir fangmmm j f^ir Beliaí ; mittebatque lapides con-
tra David, A' viíta deftc atrevimento, e deíprezo
contra a peíToa Real, Abiíay Capitão da Guarda
pedio a David permiíTaõ de fazer em pedaços aquel-
le mal dizentc. Porem David o não perniittio, di-
zendo que o deyxaíTem continuar com aquellas
afrontas , e maldíçoens , pois executava niflo a
vontade de Deos: Dimitte eum\^ ut ^aledkat. Do-
mimss enim pr^cepit et , ut maledtceret David. Da
mcíma maneyra tez Jozeph , porque naõ fó perdoou
a íeus Irmãos a injuftiça de o quererem matar , e
de o venderem por cfcravo aos ITraelitas; masque
os abraçou com finacs de amor íincero , remedean-
doafua íome com abundmçia de mantimentos, e
S 4 dan-
^8o ^'^'^^:?^?^^^^i?//í-«f/& M'
dando-lhes terras, e gados, para viverem com lar-
gueza : Ego fum Jòfeph fratervejler^quem vendidif'
tis in ayEgyftum ^ mltte pavere j po falute entm ve^
fira mljit me Deus , ut efe as ad vtvmdum haberefoffi-
tis. Quem poderá agora dizer àviíia defíes exem-
plos, que o preceyto de perdoar, e fazer bem aos
inimigos íeja novo , quando era tanto em uío dcfdc
as primeyras idades do Mundo.
Vejamos agora como perdoar as injurias he
coufa fácil, ainda que a muytos pareça difficultoía>
ca alguns impoílivel. Primeyramente quem coníi-
fleraíTe com attençaõ as penas , os trabalhos, c as
diiíiculdades , que encontra quando arma, c tenta
huma vingança contra o feu inimigo, acharia, que
era mil vezes mais conveniente perdoarlbc , que
tirarihc a vida. Em quanto não fe vinga , vive
iempre perturbado íem paz,eíem quietação. Naô
euydâ cm ousra coufa, que no modo maisíeguro
de íe vingar. Sofpeytas , medos , pefquizas ^ e re-
eeyos , íaõ as occupaçoens continuadas do íeu en-
tendimento, Naô fallo nos gaftos das Eípias, Con-
fclheyros, c Executores, que o inquietaô,elhe faõ
cauía de grandes defpezas. Oh quanto mais fácil hc
© perdoar , para viver focegado , e contente ! Era
oEmperador Auguílo dehuma memoria fel iciílima^
tanto afíim que chamava por feu nome a quantos-
Soldados íe numcravaô no feu Exercito / e lem-
brarKlo-fe de quanto via, c lhe diziaô , dk; o Hiíío»
rico I que fó fe cíqiTecra logo das injurias, que lhe
faziaã ; Nihil eUiv^ifcebatm' prater injurias. Qiic
5í^5f.í» m ara v ilha, que rcynaffe tanto tempo , e gpvernaíTe,,
vit- com ter todo o Muncío em paz !' Julk) Cefar nas
guerras eiveis de Roma teve par feo competidor,
c inimigo a Pompco , que munido , e fiado cm huma
fac§aõoiimçroÍ3 ,e valente y que a íeguia , lhe fazia
hua
Do tormento dos Tyvnnoty e Vingativos, iSi
huma perpetua guerra. Finalmente Gefar cmhuma
bataiha campal ficou vidorioío , c nos dcfpojos do
campo fc achou hum pequeno Efcritòrio, aonde
Pompeo guardava todas as cartas, que lhe efcre-
vião de Roma tçdos esconjurados, c amigos. Náo
quiz Cefar , nem ver hua íó carta , e na íua prcfcnça
as mandou lançar todas no fogo, dizendo , que feria
mais agradável o perdão aos Traydores, e Inimigos
com ficarem encobertos, que depois de íerem^^^^ ,
conhcc/dos: Graújjlmum putavit genus venta ne- deir<%9,
feire quid quifque contra íllumpeccaffet. Sceftesdousij. *
Príncipes tiveífem génio para a vingança, Icmbrando-
fe hum das injurias, quelhefaziaõ, c querendo oou-
tro ler as cartas , e defcobrir os traydorcl ;, que
perturbaçoens , e rumores não haveria em Roma?
Que ódios , e temores nos que remiáo de ferem cul-
pados? Que murmuraçoens nos fcus Amigos, e
Parentes? Corria rifco de renovar huma nova guer-
ra no Império , fe logp no principio do íeu gover-
no procuraíTe d vfngança com o rigor da jufliça
contra os delinquentes : porem ufando da clemên-
cia , perdáo, até com os Inimigos ficou gozando
de paz, focego com ganhar os coraçocns de to-
dos. Logo claramente fe vê , que he muyto mais
fácil , e de mayor utilidade o perdoar as injurias,
que o vingarfe delias.
Efl:a prova poiêm ainda que ia t|sfazà razão, e
hc muy conforme à experiência , com tudo bem con-
íiderada, fe pôde achar nella muyto do politico,
ou do humano. Mais nobre motivo he fcm duvida
amar o inimigo , c fazer-lhe bem, não por conve-
niência própria, mas unicamente por dar goíío a
Deos, e fazer-lhc a íua vontade, poisaííimoquer,
c aíFim o manda.- DeVgite inimicos veflros^ kmfa- Muth^h
cite tis , . qm oderuntíVQSi c acharemos , que os Icus f-
mau'
í' 4 ií
I ■ '
I.
%^
-^ ^ r Dífcurfol.
iOTandamcntos naõ faõ diííicultofos, c pefados, cel^
mo os pinúo os malévolos: Mandata ejus gravia
mnfunt: Acharemos, que a fua Ley he muy fácil,
e o íeu jugo muy ligcyro, e íuave: Jugum meum
fuãve eft^ & ónus meum leve. Todas as creatur^s
íenfícivas nâo tem diííiculdade alguma de obedecer a
Oeos> c ate as iníeníiveis, fem moftrar repugnan-
W, íe címeráo em fazer-lhe a vontade .- Ignis^
'grande , nix , glacies , fptritm^ procellanm , qua
faciunt verbttm ejus. Só a creatura racional, que
he o homem, aonde com obedecer devia fentir ali-
vio, reíiae , e íente pena. Quando hum grande
Príncipe, ou Monarca da terra manda alguma couCa
diííicii, os Súbditos, para ferem beneméritos fa-
zem fáceis as mefmas diííiculdades , para allegar
mayorcs íerviços , e merecimentos. Pois Deos,
que he o Supremo Monarca do Ceo , e da terra,
náo terá o mefmo poder , declarandofe, que efta
he a íua vontade , que aíTim o quer, e affim o man-
da ? Ego autem dico vobis , diUgite mímicos veftros,
benefactte tis , qui oderunt vos.
Já houve certo Principe antigamente na Grécia,
•o qual juftamente irritado, e náo podendo mais ío-
frer as injurias, e dcípreíos, que recebia dos Athe-
nienfes, poz cerco à Cidade, e jà eômo rendida,
mandou íe lhe pnzcííe o fogo cm todos os cantos,
para a reduzir em cinzas. Foy-lhe dito , que na
Cidade havia hum payncl do famoío Apelles vene-
rado naquelle tempo como o deos da pintura. A
confiicraçaô defla- imagem , que reprefentava
a Júpiter faífo deos com os Rayos na maõ , esrnoti
de tal forte o coração do Principe, que perdoou ao
Magiftrado, e povo daquella iníigne Republica.
Bem fey, que no noíTo inimigo naò ha coi^fa alguma,
que naô pe^a vingança, qucjiáô accenda o fogo da
Do tormenio dos 7yramSjeVwgâtivõs. a Sj
nGÍTâ; ira. A iua lingoa vos tira a reputapõ ,':e:Èi
famaj as Tuas mãos tal vez manejaô, e guârdaõ
indevidamente a voíía fazenda j o feu coraçap hc
de hum rigre , que vos deípedaçaria , íe pudeíTe;
o íeu entendimento cuyda, e fomenta peníamenrl
tos, para vos fazer mal j c finalmente a fua voú4
tade intenta de vos defíruir, c aniquilar. Com- tu^
do fe nas payxoens de voííb inimigo confiderares
gravada a imagem de Deos , em quanto elíc hc
feyto à íua ícmelhança: Creavit Dtus hommm ad
imaginem , & fimiUtudinem fuam, Eíia" imagem,
que he eomo hum rafgo da íua bondade, efermo-
fura, faz cfquecer logo as affrontas, ciníuitos, que
íaò como fombras, que verdadeyramente desluí^
traô a imagem do fupremo Pintor digno de toda
a veneração, e refpcyto, pois he o meímo 0cos
íumma mente bom , e infínits mente agradável.
Daqui nafce, que fe movidos defía coníidera-
ção, e defle motivo, perdoamos, e fazemos bem
aos ncrR^os inimigos, amamos, e honramos a D^oá
com o mais eminente modo , com^ d?qúe pôde amaf
a creatura racional. A razaõhej porque como noil'
myíterios da Fé (dizem osTheoIogosja Authorida-?
de, e Veracidade de Deos, que lhe ferve de moti-
vo,; icmòí^ra tanto mais potente, qíjantrtô obje-
cto, tiu my^crio,. tem menos râ^òens evidentes^
que o façaõ crivei; afíim também quanto mayor
djfficuldade temos no perdoar ao inimigo , tanto
mais reluz a Authoridade de Deos íobre a noíTa li-
berdade , e fobre a noíía payxáo , que propende
naturalmente a fazer mal a hum inimigo indigpo^tal'
vez do perdaô. ReconBiecer a Déos em hum Rey,.
em hum Principe,, naõ he coufa mtiy diffici 1 j poi-que'
amda que a Authoridade Divina aílam mo ordenai/
eom tiído lie mmiáâ da metóia Magefladc tempo^àli
ds
ííítY
iil l:
^^.
"^smsBsmm
284. r Blfcurfo X
ds Pnnctpc; do íeu poder, cauthondade, emqiim-
« to Miniftro do meímo Deos: Gladium fortat , &
T'''Mmifter Dei efi. Confiderar a Deos em hum po-
^' bre, que cubcrto de chagas morre de fome , tam-
bém nao he diíficultoíoi porque a compayxaô na-
tttral nos move a ter piedade da fua miíeria , c a lua
pobreza naô faz obftaculo para crermos, que Deos
eflà nellc. Porém reconhecer a Deos em hum mi-
migo, honrar ^ e amar huma íua imagem cm hum
homem, que em o veodo diante me perturba natu-
ralmente a razão, me accende o langue, me irrita
a cólera , e com tudo para obedecer a Deos , reco-
nheço nelle a íua immagcm, venço toda a minha
repugnância, o abraço, e me declaro por íeu fiel
Amigo; efte íi, que he o amor mais puro, hcoaaei
mais heróico da maisperfeyta caridade de Deos , da
qual Uz mençaó S. João : Si dilexerimus invtcemi
i\ /^oan charitas Dei in nohís perfeãa eft,
a. He couía digna de reparo , que querendo De_os
fazeríe vifivel aos homens apparcceilc a Moyies
_ . no meyo de huma.çarça : Apparmtque ei Domimis m
r"" '''Jlamma ignis de medto Rubt, E rlaò era melhor qa^
^' para mayor oftencaçâo da íua grandeza appareccUe
na íummidade de hum cedro bem copado, ou de
hum loureyro como Deos viélorioío , e tnuntante/
. jà que fe intitula. Senhor dos Exércitos : Vomims
' Bxercituum ? Não : cfcolhe huma çarça , que he^hua
arvore de ef pinhos a mais defprczivel, e eíteril
de todas, c que nada tem dcactradivo , oudebe^
nefica aos homens, para defte modo realçar melhor
aMageftade, e fcrmoíura de Deos, cattrahir mais
heroicamente os coraçociis dos homens, os quaes,/^
parece affaftava de fi o horror dos mefmos^eípmhos.
da çarçí. Do meímo modo Deos nunca íemanite*
fta mais foberano , e glorioío ©as fuás creaturas.
e.7.
Do tormento dos TyYúnno% e Vingativos^ i 8y
^què quando os homens o reconhecem , venèraõ , e
ôdoraô cm hum Teu inimigo ^ que como huma çarça
efpinhQfa, naó ferve para outra coufa mais , que
para o cffcnder. Efta he a doutrina , que cnfínou
Cíirifto Redemptor noíTo , que pregarão, c prati-
carão os Apoflolos, aos quaes imitando os Chri-
fíâos da primitiva Igreja , com notável facilidade
perdoava© , e fe reconcilia vaô com os fcus inimigos;
íabendo, que era o facrificio mais grato, edema-
yor honra , que íe pudeffe fazer a Deos. Couía admi- ^^^'
ravel ( diz Tcrtuliano) era ufo corrente naquel-
le tempo o naô reynar entre elles inimizades, que
diziaõ; Chrijiiantis nulliiís efihofiisy c corria com o ^'^'"^*?í
em provérbio, que era virtude própria dos Chrif-
tãos amar o inimigo: Chriftiani inimicum deltgerep.^e
€fl'i tanto affim que os Idolatras veneraváoporar-/í»«^,
gumento da noíTa Fè efíe perdão das injurias , difeo-
rendo íer verdadtyro Deos o Deos dos Chriíiáos ,
pois tinha tanto poder fobre os íeus coraçocns>
quí; os obrigava não fó a perdoar, mas também a
amar os íeus inimigos , e foccorrelos nas íuas ncccf^
íidades.
Rcfta agora provar para conelufaõ dcííe prii
meyro ponto, que não he vileza, mas antes gene^
roíidade de hum coração nobre ^ o perdoar aosini^
wiígos. Deyxo por agora os argumentos forçofo»
dos Sábios antigos, que guiados com o lume da ra-
zão cnfínàiâo efla doutrina, c a praticar^ coma
exemplo. Mayor credita, c força tem o Texto Sa-
grado, que diz, que todos aqueíles , que faõ ami-
gos de Deos, vivendo na íua graça , nunea fazem
acçaõ Vil, nem bay^ra. A honra , c^^H gloria fe^nem ^M
as íuas obras: Nimis homrificaíijmt amiei Deu^J'^^
Deos naô quer ao íeu ferviço fenaõ ânimos género-
ios> e que cem kiow Por ifía diz, que o Reyno
^'ir'*^*
Afath,
C. II.
ii- ^ '
1
'..iá!!
A
t%6 Difcuvfo X.
do Ceo mo fe conquiílar fcnaócotnvalof , c iForça:
Regnum Ceelorum vim ptatitur , & violem rapiunt
illud. Logo quando Dcos. manda, que perdoemos
as injurias , íc deve entender fem duvida alguma , que
he acçaõ muy to honrada , e gloriofa , e Te naò fora
tâl,omeímo Dcos fey to homem a naõ faria , como
íabsmos a fez na Cruz, perdoando aos mefmos , que
o crucifica vaô ; Pater dimitte tllisynon enimfciunt^
quidfacimt. E SaUmaô com a íua Sapiência infuía
Adatth. jiaò deyxou de nOs advertir, que a Omnipotência
Divina cípccialmcnte confifteemtercompayxaô, e
perdoar as injurias dos que aoíFendcm: Mifereris
inMifl ^^«^«^ ^^^^ » ^«^^ emnia potes E a Santa Igreja
alumiada, c animada com o meímo Efpirito, diz
nas fuás Oraçoens , que nunca reluz melhor a glo"
ria de Deos, nem mais fe diiata a fua Omnipotên-
cia , que quando perdoa aos peccadores , que a of-
^'''"•, fendem: Deus, qul Omnipotentiam tmm farcendo
^^^^^^maximè^&miferanâomamfejias.
Mas porque razaõ Deos fe moftra mais fobera-
no-, c íe augment4 a fua gloria, e triunfa a íua
Omnipotência, não fe vingando das injurias, ;e
offenfas, que os homens lhe fazem ; A razaõ he;
forque efte he o mais potente, e gloriofo modo,
que a íua Sapiência Infinita toma, para ficar per-
feitamente dcfafrortado , fatisf-eyto , e triunfante
do atrevimento, e rebeldia dos fciis inimigos. Vin-
garfe nobremente , e perfey ta mente do feu inimigo,
hc deftruir o ódio . que elle tem arraygadonofcu
coração contra vôs ; he trocar efte feu odio em
amor, e fizer , que vos aire com todas as veras.
Quem mata o feu inimigo, naó mata o odio, que
' Vos tem; antes íucccde as mais das vezes, que
quando morre o tal inimigo , o íeu ultimo fuípiro,
hc de ordinário hum fiaal de mayor furor ,, e rayva
con-
Do termenio dei Tyrmm,'e Vingativos, i^j
contra Vós. Logo o matar o inimigo em rigor naÔ
he vingança; porque não deflroe a inimizade; an-
tes fc elle vay ao Inferno , a áugmenta em dobro
por toda a Eternidade. Nefta fuppoíiçaõ de pode-
res vos extinguir o ódio que vos Cem ovoffo Ini-
migo, nefta tal fuppoíiçaõ direy, que fazeis bem
flf P.^i^g"!';' CFocurar aniquilar o íeu ódio: mais
Mto lo fe pode fazer perdoando-lhe, e procurando
juntamente de o reconciliar com benefícios.
Quem he efte voffo inimigo .? Succede tal vez,
que he hum voffo parente, e certamente hc hum
voffo próximo. Bem eftá. He axioma dos Filofo-
tos, que liuma íubftancianunca pôde ícr contrariai
oiitra lubflancia : Subjlamta mhil eft contratmm. ^rifii
tiue coula vos he contraria ncfle voffo inimigo? Naô ^«- '
o leu corpo, naô a íua alma , naô a fua nobreza,
nw as íuas riquezas , e talentos , porque íuccede
S^'"'''''' '5'"' ^ft<= voffo inimigo he amado,
fnZtlf correfpondido de muytos outros.
Logo hc O feu V.C10, ou aíuapayxaõ, ofeuodio,
e a íua mveja, com a qual , e pela qual vos perfe-
fJrJ°%^T'^ '"' ^^ ^"= ^°* deveis armar, e
e iunV, ^V 9«^ deveis deflruir, eaniquiar,
do lhe !..''i "°"''g""-''^ . defejando-l he , ou fazen-
com .,r "■" «°""-"'o "Mca fe vence íenaô
ouL ?oI^ "'"'■''"°- ? ^"^^ "^° ^' "P^i' com
calor Si '„ r"'" "'^" ' ' ^' '"8"'"'^ ° <""»
fe exíinre H 'T'''° ^'^"^ ^ queheaagoa,
lanrf «f "" '^°'"^'' procedida -do calor fe
Óuem J '"'• ^° "''^'"° ">o'í° deícngancfe ««'^r
zad" r " "8o íe compõem com outras inimi!
roalQuirrn ""^ "[^■■decortczias, vencendo hu,.a
malquerença coro hum beneíicio, hum rigor cor»
i^í iMicum III
humabrandara, huma fúria com hum adto de pacico.
cia, bum ódio com hum amor, c finalmente, o
mal com o bem, He a vcrdadeyra doutrina de Chril-
to, como eníina S. Agoainho : i\r<?// vmci k maio,
fede vmce in bono malum: Non ores y ut mortantur
^'^'*^'^:^mtmici tui , fed ut corngantur, & morim erunt /«/^
- ^*'"' miei, iam enimcorreãinon erunt immicí.
Para concluíaô dcfte primeyro ponto refírirey
duas celebres hirtorias, com que Deos triunfou de
dous grandes ícus inimigos. Huma do Teftamento
yeiho , e outra do Novo. Vendo Deos a obíhna-
çaõ de ElRey Faraó, e o fcu coração fempremais
duro em perfeguir o povo efcolhidoi ordenou a
Moyfés , que batendo com a íua vara o mar vcr^
melho, o dividiíTei e logo íe fez hum cammhode
terra, íervindo as agoas como de muros de criltal
^^odc para franqueara paíTagem aos Ifraelitas ; htmgn^i
u ' Çmt Ifraelita mr médium (immarts, eratemmaqm
quafi mufus k dextra eorum . & U^va, Mandou Fa-
íaò ao Exercito, que foíTecm feguimento, para
os degolar a todos. Porem levantando Moyfcs á
vara , tornarão logo as agoas ao fcu lugar , e aflrm
coches, carros, ca vallcyros, e cavallos ficarão to-
£W. dos afogados íem efcapar hum ío: Nec unus qm-
% demfup^rfmtex e/x. Foy tam completa efta vido-
ria, e tam gloriofo efte triunfo aos lívaehtas , que em
acçaõ de graças cantarão aquelle famofo cant.coj
Cantemiis Domino, glorio// enim magnificAtus ejt
eqmm, & accenforem dejeat m maré. Saiilo n o
era menos furiolo contra os Cliriftaos, que Faraó
contra os Hebreos, deícjmdo , e H»"^? P^^^^^^^
para prender, e extinguir os Apoftolos, e leguâzcs
de Chrifto; Saulus adhuc fprans minar um , & c^-
dis in Difcipulos Domint, Foy neceffario , q^e Ch^^^^^^^^
to çy deírubaíTe do Çavallo, e proftado em teu a
Bõ tormento dosTjramõs^eVingatíms. i8^
«fíiveffe três dias eipantado , cego, e íem correr,*
depois tornando cm â, c conhecendo quam pode-
roía era a palavra de Chrilio , e bravo Leaõ le fez
manfo cordeyro j de perseguidor da Igreja 5 pro-
pagador da mcímai e de vaio de ira , vafo cie eley-
^aõ: f^as Ekãionií eft mihitfte. Efl:a he a vingan-
ça^', que Deos Redemptor nofíb quer tonieiiios dos
tJoffos inimigos: naõ como Faraó, que querendo
perfeguir,e matar, ficou comtodo o leu exercito
afogado, c morto no profundo abifmo do mar ver-
melho ; In profundam AhyJJL E vòs tanibcm , com
© coração duro em naõ querer perdoar j ficareis íe-
pultado no abifmo do Inferno, Peio contrario en-
chendo de graças , de cortezias , e de benefícios o
VoíTo inimigo , de vafo de ira , de ódio , e de rancor
contra vòs , o trocareis cm hum vafo de cleyçaò , de
amor , e de agradecimento.
Nem me digais, que fó Deos pôde fazer iflo,
e naõ hum peccador frágil, c fcníítivo , porque vos
aprefento o exemplo de hum gentio, o quai narra
Séneca Varaôtaoautho rizado no Mundo. A Augu-
fío Cefar, quando já em paz , e"t>riunfante , cm Fran«
ça teve noticia por cartas, que Cinna Fidalgo tur-
bulento lhe armava huma conjuração , para o depor
doTiirono,cpara mayor certeza hum das conjura-
dos, tomada a impunidade, lhe declarou o lugar,
e o como , e o quando fe havia de executar eíia
trayçaô. Perturba-íe Cefar , chama os grandes a
coníelho^ onde foraõ decretados os caftigos devi-
dos atai crime. Depois entrando Cefar cm confí-
deraçaõ de que jà Marco António tinha íido degra-
dado, c outros punidos com pena de morte , e
que efle novo iniinigo Cinna'era fobrinho dePom-
peo , e tinha grande facçaõ em Roma , difcorria
comfigohumas vezes fallando , e outras fufpirandoj
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jpo Hifcurjú H.
c dizia : He pôirivcl , que depois de f antâs batalíias
por mar^c porteira, tènha^ttcdnfeguido a paz, e qae
Cinna agora, a quem tenho feyto tantos favores , me
períi^ua com huma guerra inteftiaa , de que nunca
me poderey ver livre ! Para que lie maiíj viver , fe pa^
ra coníervar a vida , devo fazer morrer tantos ! Se-
rá ncceílario encher Roma de patíbulos , e fazer
correr pelas ruas rios de íangue. Ouvia efles ge-
midos a Emperatrlz Lívia íua mulher, matrona ía-
bia, e prudente j e entrando no Gabine&e lhe fal-^
lou deíle modo. Senhor , tome V. Magcftade Cefarea
o confelho de huma mulher , e faça , como fazem os,
Médicos peritos ,que quando curaõ huma doença ,6
vefTi , qiie o& remédios da arte naô fervem , e o
doente vay à peyor, aplicaõ logo os contrários»-
, ,., Fac , quod CMedici Jolenty qm uU uJvtMa remedm
^i^clf^ non frocedunt y. tentant contraria. Com o rigor da
/^,Q. ' juftiça atê agora nada tendes feyto , mas antes
crefcem os ódios , e inimizidades. Valey-vos ago-
ra da clemência , e brandura, £ qual lois inclina-
do. Perdoay a Cinna, e Vereis , que de inimigo
íe fará amigo tal , que íeri o voíFo mayor^ Elogia-
dòr, e Panegerifta ,
Parcceo bem eftc confelho ao Emperâdor,c
no dia figuinte mandando chamar a Cinna ao íeu
gabinete, fazendo-o tentar , e pedindolbe , que
o nxò interrompeífe, em quanto fallav-i , lhe fallou.
deftemodo. Vòi fabcis, ô Cinna, que foftes ren-
dido, e preío na primeyra batalha. Eu vos conce-
dia vida, e a liberdade, e todos os voíTos bens^ c
fazendas já coníiícadas , tanto aíTim, que diziaô os
Emu]os,que, fendo Cinna vencido, ficara depois
mais rico , e aproveytado , que os mefmos vence-
dores. O voíTo agradecimento depois de tantos be-
nefícios he ò maquinar de novo contra a minha vi-
maãm
jyo tormento dQsTyrmnàs^eVingativos. ipi
^a. Sty os Companhcyros da conjuração j íey o
lugar , íey o dia determinado para a trayçaõ , ç a
^uem cntregâílcso punhal, para executar a minha
ultima ruina. Naò íey , qual feja o intento , e o fim
defte voíTo arrojado animo. Sc pertenceis o Im-
pério ^ quando naô foíTe outro impedimento,
que o da minha parte, eu velo cedei ia eípcntsnca-
mente, íem cometeres a grande violência ,€oexe-
erando crime da minha mcrte. Mas naô íeiaó ta]-.
vez defíe acordo os Fabios Máximos com toda a
íua parentela , os Atilios , e muytos outros Cava-
Iheyros Romanos , que pelas íuas gcnerofas fa-
çanhas lograó a honra, e a gloria de verem as fuás
Eftatuas coUocadasno Capitólio. Ora, Cinna ,cude
novo vos perdo-o ávida; a primeyra vtz vola per-
doey como a inimigo , c agora como a Traydor,
^ Parricida. Comecemos defdc agora humanova, c
reciproca amizade , c toda a noíTa emulação deve
íer de procurarmos cada hum de nos de aventajar-
íc em amar. Eu quero íer o primeyro em dar efla
moftra; e porque íey, que dezcjais íummamente
o Confulado, eu vos faço, e coníhtuo Conlul, E
toma ndo-o pela maò , fahio juntamente com ellc
do gabinete , e diíTe aos Cortezaons , que efpera-
vao o fucceíTo de tam larga audiência: Day os pa-
rabéns a Cinna meu grande amigo , que o tenho
creado Coníul , e me ajudara a governar fielmiCnte o
Império.
Ficàraô attòriitos os circunftarites , e pafmoii
ioda Roma, quando fc íoube , que Cinna era Con-
íuí, ç elle nairòu a todos , quanto tinha psíTado
comb Émpetador Áuguíío. Foy tal o amor do Se-
nado, c b aplaufo dó Ppv.o , qiic pãp contentes de
o chamarem pay da Pátria» ò collocàraôno nume-
ío dos Deofes çom o titulo de Ckmcntillimo , que
msk
mam
il
li
depois tomátâô os mais Empcradorcs^ Depeís
Cinna itie: foy taiato fiel, e primorofo , que a
deyxou poí ícu ynico herdcyto .* Nullií ampJiu^
iib^iÀe injldiis ab iM(^ pemus amieiffimum t fideltfftmumqiie
ilem^s. habuit y hares falus illi fuit. Digaõ agora os Sábios
^®* do Mundo, que efle preceyto de perdoar as inju-
rias henovo, eftabciecido coticra os principios da
natureza, Digaõ , que ,^ vifta a fraqueza humana,
he iiiipoíEvet podcríe giiardar. Digaô finalmente,,
que he de defcredito a hucaa família y e indigno de
hum homem br iofo^ e valente. Auguflo eia da fa-
mília dos Ceíares, tam brioío ,. e valente ^ que no*
eoncurío de tantos emiilos », que naõ epaô inferio-
res na nobreza , e valor ^ chegou a força de bata-
lhas vencidas a^ íer Emperador. E o» que maisic;
deve advertir , he y que era Gentio adorador dos
ídolos , íem o lume da^ Fé , e íem a* nova obriga-
ção do tal preceyto, em quanto intimado por Chrií»
^'*'''y- to , que naquelle tempo ainda naõ era nafcidoje quan-
^* '^^ dona fce o y como nota o Cardeal Baronio no Marty-
^mh, ^ rologio Romano^, craiAuguílo triunfante , governan-
do com a fua clemência todo- oMundo em paz.
Refta agora ver os horríveis tormentos, que
2.?tf»íff. padecerão no Inferno efte* Vingativos ,, e líyran-
Bos ,, que Gom o« coração endurecido naõ querem
perdoap aos íeus próximos. Quando Deas creou o
7im 1 ^'^^^'''"0 y nao ocreou propriamente para os homens,
mp.ii' poi^quc eíks todos defeja Deos falvar : Veusvult
ommséomínes^falijosfori: mas o creou propriamen-
te para os Demónios , como íe colhe da fcntença
de condenação , que dará aos réprobos : Difcedite
Mítíth, l mt malediõíi in ignem ^emum ., qui f^ratus e/t
eap'i^.Diabolo^, Ór Angdis- eJM^, Perguntaô agora os Dou-
tores , porque Deos pam caftigar os Dcmonioi fe
krvc particularraentc do fogo i e o nomca como
i I
Do tormento âósTyram&íleVmgatíVos. 29 j
priricipaP iriftrumcnto , para os atormentar? Por-
que opeccado de Lúcifer, c dos íeusfequazes,cra
hum crime de primcyra cabeça , que acommettia di-
rcytamentc á Divindade , e pertendia levantar o feu
Throno íobre as Eftrellas , c fazerfe femelhante a
Deos : In Cahm confcendam , ftiper aftra exahabo Ifai.
foltum mtum , fimii{4 ero Aíttffimo \ e aílim era jufto «"^/.H'
houveíTe proporção entre a culpa , e a pena ; e por-
que entre todos os elementos o fogo he o mais a<fli-
vo, CO mais violento , era neceffario , fc ícrviíTe
ddle, para cafíigar os Demónios. Ora todos os
pcccados mortaes faô peccados de rebeldia contra
Deos Senhor noíTo , e juramente merecem pena
eterna; porém opeccado da Tyrannia , e vingança,
he peccado diabólico , he de huma malicia luciíerina,
he hum crime , que fe oppoem immediatamente
a Deos, c pertende defpojalo da foberania , que
tem fobre todas as creaturas , da qual he tam ze-
lofo , que fó para íi como Senhor Supremo refer- fjgyr,
va a vingança : Mthi vindica ^ & ^go retribuam: c(tf,\c^,
c he de advertir , que Siò Paulo immediatamente
accrefccnta : Horrendum eft mcideré tn manus Dei
viventis: comofediíTeíTe : he couía horrenda cahír
nas mãos de hum Deos , que fendo morto , para
íalvar os peccadorcs, fera fempre vivo, para ator-
mentar com todo o vigor da fua Omnipotência a
potencia injuftamente ufurpada dos Tyrannos, c
Vingativos: Pútentesfotenter tormenta patientur. Sap.c.6
Para explicar a aòtividâde,e terríbilidadedefte
fogo, que ha de atormentar os Vingativos, me va-
l^erey de outro Texto deS. Paulo, quanto mais pro-
fundo, paraic entender, tanto mais expreffivo, P^- //^^^;
ta o noífo intento ; Terribilts quedam expeãatio ju- ^ ^q'-
dicii , & ignis amulatio , qua confumptura eft ad-z-j.
verfarios, E como pôde íer , que o fogo tenha emu-
T 3 Uz
í I
S.CiriL
. 1
Ãi»tth
faím.
laçaõ, ou eompetcncia ^ Ignií <emuíatk f Q fo^,
naô tem Alma , nem ainda vegetativa , como as ar*
vores , nera feníltivâ como os brutos,, nem paGio*
nal como- os homens ;. como logo pede ter emula*
çoens , e competências ?' Logo matéria lment?G ator*^
mentará os vingativos como os mais^peccadores ini-
migos de Deos. AíEm. hc , diz Alberto Magno , íe
fallarmosdefle noíTò fogo, -que he muyto differen-s
te do fogo; do Inferno , que os Santos Padres, chai
maô: tgnis fãpiem\ porque he obediente cm exc»
cutaiE â vontade de Deos j e eorao os Emperadorcs-
Roíxianospâra mayor divertimento do Povo incita-
vaô as feras bravas , para que no Ampbiteatro fahif*
{em com mayor impcto a defpcdaçar ,. e dcvorap
aqueííes miícros Ghriftâos condenados á morre, af-
£m a Juftiça Divina irritará- em hum certo modo a
fogo do Inferno , clevando-o inflrumentalmentc,
para abrazar com mayor violência ©s vingativos,
>e ficar alobcrania de Deos giorioíâ,, e triunfantes^
IgnÍ4 íemulàtm
Eucuydo de mais, que efla emulação do fogo
fep eoniurãda naô íé com os mais elementos , ma^
Gom todas ÃS ercaturas,qu€ fe ofFerecem: para vin-^
gar os vingativos,, como fc oíFerecèraõ os íérvos
do Evangelho a extirpar a cizânia, elançala no fo-
go .* Servi, auiem dixemní , vu , imns, QuereÍF,.
qufi Vârnos. O ar para os afogar y a terra para os
íobvertei*; o mar para^ os íubmergir como aos Egyp-
cios ; e finalmente as Feras , as Pedras, o Gt\Oj
a Neve, as Tempeftades , os Rayos, e tudo o mai?^,
ertaôí á competência , para executar a vontade de:
Deos contra os vingativos: Igms\ gr ando ^ mx,.
glacies i ^ ffmtus> p^&ceUhmmy qua faciunt ver--
Immejus^í Hfc porem de advertir , que o Profeta^
aomeaémgrimcjjro lugar «fogo comia mais a pro-
pGÍÍr
Do tormento áosTyvamos^eVing&iivos. ipj
ípofito para ícr Miniltro da Juftiça Divina j e cotn
Frazão, diz Saô Gregório, tem o fogo cfta emula-
çaôi porque como ospcccadores em roda a íua vi-
da nâo honrarão aofcu Deos verdadcyro por fatis-
• fazer ao fogo das fuás payxoens , c vinganças , o fo-
go do Inferno deputado por Deos a reparar a íua
■■ honra, íe veítc como de hum zelo , que quer moftrar,
,quc he hum fogo de tal natural, que tem mais ar-
'dor, mais força, e mais poder, que o fogo da tua
tolera , e da tiia ira , a quem obedeceres para exe-
cutar a vingança contra o teu próximo ; Ignem tuum
igm validiori fuperabit te , & cructabtt íe. Quizc-
4te moltrarte mais poderofo , que o teu inimigo,
•quizeíle tomar vingança dellc : ora o fogo do In-
•fcrno íerá mais poderofo , e por toda aEternidadc
te abrazarà , e te coníumirá , fem nunca mais fi-
car coníumido : Potentes potenter tormenta patien-
tur.
Sendo o fogo preferido aos outros elementos , c
;a todas as creaturas , para atormentar os réprobos,
he quafi certo , que das penas exteriores , que fof-
freráó os vingativos, a mais fenfivel , e violenta
fera 3 do fogo. Eu bem fey , que a violen-cia, c
«ílividadedefte fogo he inexplicável j e aíTim nun-
ca podercy explicar bcmadolorofa imprelTaò , que
fará aos condenados; e por iíTo Santo Agoilinho diz,
quefaô atormentados com modos admiráveis, mas
porém verdadeyros : Torquentnr mirtí , fed yeris
modis, Primeyramente cíie fogo , diz Terculiano,
leprefenta a indignação , e furor de Deos , e be co-
iDo principal Miniftro da íua Divina Juftiça , para
-executar com o mayor rigor as íuas ordens.* fíahet
ignisilk divinam fubminifirationem ; ellies fará fcn-
tircmfummo grão todo o género de tormentos. E
que diíFerciKa fcrá defte fogo do Inferno ao noíTo
* ' T j. fublu-
D.Creg,
V"
Sap.6,
ete Civ.
Dei.
Ter t til
in ylpoL
!«H«i
tgS Di/cur/o Z
Jubiunarf O noíío fogo antes de, entrar nas partes
interiores, fe pega ás exteriores. O fogo dolnfer-
>no entra no mefmo inftante na pelle , na carne, nas
vcas, nos nervos, e tutanos dos oíTos : todo o cor-
po ficará fogo , como hum ferro ardente , e can-
dente; ou como o vidro , quando fahe liquido , e
♦ranfparentc da fornalha. EftenoíTo fogo queyman.
do o corpo , o vay enfraquecendo, e diminuindo,
c a dcmaiiada violência Jhe tira os fentidos, fican-
do aquclla primeyra vivacidade quafi amortecidaj
O fogo do Inferno conferva os fentidos femprc
'^'' iguahnente vivos ,e delicados. Depois de cem mil
.annos hum vingativo condenado íentirá as dor<^
taô vivas » e agudas , como na primeyra hora , que en-
trou no Inferno > porque Deos , como dizem os San-
tor Padres , dará tal virtude , e propriedade a eflc fo-
. : go, que íempre queymarà. , e nunca confumirá , repa-
randofempre quanto qUeyma .♦ Nan ahfumit quoi
"^f^^^ exurit yfedquoderodít reparai,
•^^^ ' Olipeccador vingativo , quando confiderares
eííe fogo do Inferno, peçote , que não cuydes íeí
exageraçàõ minha. Te aíTeguro , que hc rouytó
mais terrivel , c tormentofo , do que referem os
meímos Doutores, e Santos Padres, país confeí-
faõ , que o Entendimento humano o não pode pe-
netrar, eexplicar^e aífim quando ouvires, que a
noíTo fogo a reípcy to do fogo do Inferno hc como
pintado , dalhe fé , c naõ duvides J porque íc
Deos permit tira, que hum Réprobo fahiífe do íéti
calabouço do Infer«o, e paíFaíFe logo a huma forna^
lha das noíías a mais acfliva , calii odeyxaíTem por
algum tempo, e depois tirado fora pdcytaíFcm ío»
bre hiim grande payncl pintado , que rcprefentaíFe
hum incêndio yhc certo, que o fogo pintado defle
payncl oaõ ihe.pareccria taõ fiiavc a reípeyto.do fo*
■*...iii , ,> ■* • ..go
Do tormento doi Tyramos^ e Vingativos. H ^y
gp da íornalha, quaato o fogo da fornalha Ihepa^
reccQ doce, e fuave a rcípeyto do fogo do Inferno;
c com razaõ , porque o fogo do Inferno, ainda que
he material como o noíTo, naõ obra naturalmente
com o feu calor , mas he armado com o braço om-
nipotente de Deos, que com o zelo da fua hora
quer caíligar os vingativos, c vingaríc delles , co-
mo de íeus inimigos ; Armdbit creaturam ad ultio- ^^t-^-St
nem mimicorum. Pelo qual, diz SaõJoaõChriíofío-
mo, que Deos mais exceífi vãmente queyma, c
atormenta os condenados, que eflaó naquelle fo-
ge, do que o mefmo fogo: Magts urit ^ & cru-
ےat Deus in tilo igne ^ quam tpfe tgms. Pois clle hc
o que o anima, lhe dà força, irrita, accendc, ^jr' -
o aíopra, como diz o Profeta: Flatus Vominijicut ^q*'^'
torrem /ulfuris fuccendens, E íc o aíopro de Deos
hc como huma torrente dcenxofrej que horrivel mif-
tura fera com o tal fogo poderoío , e devorante para
atormentar eternamente a tyrannia dos Vingativos!
Potentes potenter tormenta patienttir.
Eu aqui movido de compayxâo , e zelo, me
finto inípirado a advertir algumas couías fobre a ty-
rannia , e mào tratamento , que no Brafil , c cm
outras Conquiflas do Reyno de Portugal íe ufa
com os Efcravos. Oh quantos Senhores de Enge-
nho, Feytores Mores, e Lavradores de fazendas
cíiaõ no Inferno pela crueldade, c mào trato , que
tem dado aos íeus Efcravos I Primeyramcnte naõ
Jhes dão outro veflido , mais que aquelie , que lem
Chrifío crucificado na Cruz, nem modo, nem tempo
para o ganhar. Querem cada dia delle o íerviço
completo, e ás vezes fabre as forças, e em faltan-
do, aíToutes fobre aífoutes , e naô lhes daô oíuf-
tento, para terem forças, para trabalharem. Di-
zem que lhes dap o Domingo livre, para plantarem
'! /Ti oíeu
"í'
w
^98 Difíurfo IX.
o ííeu mifbo^ para fcJuftcntarem j g em quanto o
milho fe phntj, nafcey e crcfce, que haõ elles
de comer ? E fe Deos ordena, que o Domingo íe
-guarde, e naõ fe trabalhe , com que coníciencia
■fois cauía de que elles trabalhem. Mais o Domin-
go he dado para Deos para o dcfcaaço, e elle meímo
deícançou em o tal dia, o abençoou ,efaH ti ficou,
c por iíTo fe chama o dia Santo , ou o dia do Scniior.-
^^^'^-'^'Benedixit diei [eftimo , & fanttficavit illum. Os Ef-
cravos, que trabalhão toda a femana com tanto ri-
gor, quando haô de defcançar ? Os Eícravos tra-
•balhaodov para íc íuftentar, no Domingo , naõ
peccaó \ porque naõ podem de outro modo rcme-
dear a fua neceíTidade: mas os Senhores, que pelo
intcreíTe de mais açúcar , e tabaco , os metem ncíia
«eceíTidadc, darão eftreyta conta a Deos, e íeraô
rigurofamente caftigados, como diz S. Paulo : Ple-
nas dabunt in interttu aternas. Muyto mais he cafíi-
garem os Efcravos, c as Efcravas ; efías, porque
nâo querem confentir nopeccado; eaquelies, por-
que naõ querem levar taes recados , ou porque naõ
querem, ou naõ podem induzir ao peccado. Meu
Deos, quam grande hc a voíTa paciência! Bifta,
ique a pobrezinha de huma Efcrava , porque vos te-
me, ha de padecer, e chorar a fua miferia; e o
Senhor, que injuftamente a cafíiga , ha de rir, c
folgar, porque naò vos teme, nem os voíTos ca^
fíigos! Ah qjs Deos naõ dorme, nem permitte, que
femclhintes tyrannias durem por muyto tempo.
Coníidcra, ò peccador vingativo, c cruel ,0 que
í-«p.í.6. ^}Í2 o Eípinro Santo: Horrende , & cito apparekt.
quoniam judicium dunjfmum m his , ^tá profímtj
fiet. Log) fcrài Chamado a dar eílreyta conra a
Deos, e o Juiz íerà tirrivel, c horrendo, e com
i todo o riaor da íua íuftiça, e muyto mais os ror-
^ mcn-
Do iormeíttoâos Tyvmnos^eVingativm. tç^
mentos, que padecerás eternamente: Fàtentts f^^
tenter tormenta patientur.
Bem íey, que os que aifimrnaltrataôosEfcra-
vos, daô por efcufa o feu natural colérico, que
por qualquer coufa fe accendc em fogo, porem di-
zem , que he fogo de palha , que tudo he chama^
que naõ dura nada , e logo fe apaga. Frívola cfcu^
ia na verdade» Todas as vinganças^ e as maispay-
xocns aííim íaõ. Depois de fatisfeytas parão lo-
go, e focegaõi porém no dia feguin te rornaoa fa-
zer peyor. Quereis faber onde ha de ir apararefie
yoíTo fogo de palha,, pois aíílm chamais à voíTa
ira , e vingança. Ouvi y o que dizem Saõ Mathcus,
e S^. Lucas no feu Evangelho, fallandodos Efcolhi-
dos, e Precitos: Congregabit trittcum m ^^0^^^^*^"^ jifatò 9.
fuum\ paJeas autem comburet igni i?iextinguibíUiiXHc,'
que o Supremo Juiz feparará o trigo das palhas, tf. 3.
.Aos predeíiinados chama com o nome de trigo, e
cfíes congregados, os porá no Celeyro do Paraifo»
Chama aos réprobos palhas, naõ fó porque fcraõ
atados cm feyxes, para arder eternamente n©- In-
ferno. AVÀgate m fafcicules ad cemburendum : mas ,^^/j^;
também porque aquellc fogo emulador: igms íemwca^, \zl
tatio ^ enveílirà com tal ardor as almas ^ c corpos
dos Vingativos , que em hum inA^nte , íem achar
rcfífteneia alguma, arderão cm chamas como palhas^
Conííderay agora a diffcrençay que vay do fogo da
vo(ía ira, e rayva,- que chamays de palha, com:
a voracidade,- e rigor, com que ícrá cafligadono
Inferno. O fogo do ínferut) fempre arderá , qoey-
mara a palha do voíFo corpo com o meímo vigor
por toda a Eternidade ,. como fe foíFe o primeyro
díâ , a primeyra hora ,. e o primeyro infiar>te y fem
RUnca parar, nem dcíeançari e a voíTa alma, e
© Yoffo corpo diípoilos como palha íemprc ar--
de^
\\ í!
i :
/>M38
i . í!
IO.
'MAth,c.
5-
Aíaíh»
Dífcw/à IX»
Paleas autemcomburet igneinextinguibllL
O Profeta Rey diz , que os peccadores faò po*
ftos no Inferno como as Ovelhas^ e que a morte
'jhes íubminiftrará íemprc o fuftcnto : Sicut Oves in
Inferno pojlti funt ^ mors depafcet eos. Grande, e
fnyílerioío texto he efte. Se as Ovelhas f:iõ nomea-
das no Evangelho, como Simbolo dos Efcolhidos,
como agora faõ exemplos* dos Condenados i Ora
concorda muyta bem o Texto com aíua inteliigen-
cia. As Ovelhas, que íaõ do rebanho de Cbrifto
ouvem a fua voz: Oves mea vocem meam audnmt^
e feguem o íeu paftor, & Jequuntur me , imitando
a fua paz, e manfidaôi c a eftas taes ovelhas man-
fas, e pacificas , he prometido o Reyno do Cco,
e peffucm a Bemaventurança, ainda nefta vida na
'paz, de qu: gozaõ: Beaú pacificí ^ Beati mitesy
quonlam ipfi poffidebunt /^rr^z». Porem Ovelhas^
que náo tem mais que a apparencia, c po^ dentro
nó coração faô lobos carniccyras : Intrinfectís autem
funt lupí rapaceí , que devorão os ícus contrários,
tiranizaô os feus Eícravosi eftas taes ovelhas ap^
parentes tem no Inferno o feu lugar :.*ywí avesin
Inferno pojiu/mt, aonde a\'ácYkcntcvmmcntc*
Náo faò menos myfteriofas as palavras, que.
fe fegusm, e citey a cima, é- mors depafcet eos;-
que a morre lhes dará íuftento , que vem a ícr o meí-
mo , que dizer; a morte lhes confervarà a vida.
E como pôde a morte confervar a vida, fe ávida
nunca pòie acabar, íe naó quando chega a morte,
vão fendo outra couía a morte , que a pvivição da
vida, e a vida a cxcluíaõ da morte f Ainda mal;.
quer dizer o Profeta, que eftes dous contrários,
morte, c vida fe uniráó no Inferno, e cada hum
terá o íeu effeyto, pois os Réprobos fempre mor-
reráó vivendo, e íemprc viviráò monendo : Ho?no
ítí
Do mníemáosTyrmfoi.e Fwgâtkõ} 301
inlnferno {à\zSsò^oa\(inturs) fempermorítur , & jy^ ^^^
ut JemPer morifojjít , aà vitam conúmo reparatur, nav,
Pofío hum rebanho de Ovelhas em hum valle,s«r«>.i,
quanta hcrve comem de dia , tanta torna a brotar ^^í-^.
a terra , c creíce de noyte, c no dia íeguinte ÍG^^»^t
achão as Ovelhas com omefmo íuflento. Do mef-
mo modo naquelle valle de miferias, naquella ter-
ra tenebrofa ; Teiram mi feria ^ & tmelraram,
õpertam mortis calígtnei produzirá ícmpre hum fo-^*^'*^
go infernai, que atormentará eternamente os con-
denados, reduzindo- os adores de morte, c na
mefmo tempo íerá o feu pafío, e alimento, que
©s conícrvará com vida para q^uevivaõ, cmcrraõ,
€ padeçaõ por toda a Eternidade, cm quanto Deos^^ ^.
for Dcos: Ignis ivfernahsfc abjamtt ^ fit fervét y fie - ^*
lervat^ ut cmaeU Pio Leytor, confidéra com at-
tenção, que íe Deos naõ tivcfle ufado cem nofco
da fua Mifericordia , jâ cfíariamos ardendo no In-
ferno, Ufemos^ agora oc piedade cem osnoffosCa-
ptivos,, e Servos. Tratemolos com compayxaõ,
já que elles faõ também noíTos Irrráos, para evi-
tarmos na hora da morte de fermos arguidos, e
condenados com a ira, e furor da fua juíliça : T>o- pj-^i^ ^^
mtne m in furor e tuo arguas mey neque mira tua cor» -
ripias me.
Não baila, nâo ufar detyrannias, e crueldades
com os Servos , e Eíeravos , mas hc também nc-
ceffario não maltratalos de palavra, cem injuriss,
e nomes execrandos. He jâ inveterado o deíprezo*
deftes pobres eaptivosj e não íó o Senhor mas,
qualquer vil Feytor quando chama hum cferavo,
€ eltc naô acode logo, prorompe cm huma torrente
de nomes , e vocábulos afroniolos , e injurioíosj
c ainda que os pobres Efcravos nÍo rcípcnoem pa-
kvra para evitarem talvez huma tempcíiade deaf-
lou-^
laai
i
Tf©! DilcmplX.
ipuíes, fenÉem com tudo , e deploraõ a íua infeliz
forte de fe vcrcín mais aperreados entre a nação
Portugueza, que he a flor da Chriftandâdc, do
que feria entre os Mouros de Berbéria. E heeerto,
: ív... que JJ3 Berbéria fe ufa talvez de mayor caridade
aífim no fúftento, eoitio nas enfermidades dos Ef-
craV0s,ao menos pelo iatersiTc dorefgate, guan-
do faita a compayxâo natural, ou outro motivo
divino. E o peyor he, que raro fera o Senhor, que
fcconfeíTe deííis injurias ditas aos feusEícravos? ç
fe algum o fará como por efcrupulo , he íem animo
de íe emendar, lançando íempre a culpa aos mef-
mos Eícravos , a cuja malignidade attribuem as íuas
iras, c rayvas. E íe Deos permittiíTe , que vos fof-
feys os Eferavos, e elles os Senhores , e vos caftigat
fem, e injuriaíTem com o meímo rigor , com que
vòs o fazeis , podereis entaô dizer , que fe reque-
ria da voíTa parte a paciência de hum Job, parafo-
frer ? Mas ainda mal , que efta troca fe pôde fazer,
fe náo nefta vida temporal, ao menos na Eterna,
onde talvez o voíTo Eí cravo fera glorificado ,c
vos atormentado , e injuriado pela mão dos Demó-
nios com mayor potencia, porque fotetiíes fâtenter
t&rmenta^atientur,
O exemplo do Rico Avarento he tam abundan-
te de boas doutrinas, que alem de confirmar quanto
temos dito , he hum deíengano, para os peccado-
res emendarem as fuás tyrannias , c crueldades , ou
a pouca compayxaô, que tem dos miícraveis. Sen-
tio o Rico Avarento no Inferno a vchemencia do fo-
go, e começou a gritar defla forte: Crucior mhac
I^ttc* c.famma.i Eú padeço ncíie fogo. Reparem ,, que '
^6. nâo diz no fogo , mas neftetal fogo, in hacjlamma,
para raoftrar a grande diíFerença daqualle fogo do
Inferno , c do noíTo fogo , que comojádiffemos aci-
n
Do tormento dos TyrmmSy e Vwgattvos. goj
hía , hc como pintado. No mtyo defíc fogo ievan-
tou os olhos cm alto , c vio de longe a Lazaro nd
Scyo de Abrabaõ. Exclamou logo eom huma voz ma-
vioía.- Miíericordia , Padre Abrabaõ, miíericordia,
â refpeyto defíe mifc^avel condenado, e manday-
me a Lazaro: rater Jbrahammifereremei^ mim
Lazarum. E porque, ou para que pedia, ou que-
ria a Lazaro no Inferno, quando íabia, que onaÔ
podia livrar, cu aliviar daquellas penas ? Dircyr
Lembra va-fe, que lio Mundo vcília galas, e a íua
meia era hum continuo banquete: Inàmhatur pur-
pura-^ & byf o I & epuUbatur quotidte fpkndi'
de. E que Lazarp peio contrario efíava defpido,
cuberto mais de chagas, que de panno, aportado
feu Palácio, efperando algumas migalhas que cahiaô
da fua mefa, para íe íuíicntar; c vendo, que cfle -^'
tal miíeravel Lazaro no cutro Mundo era em deli-
cias eternas , e elle pelo contrario em eternos tor-
mentos, efía confideraçaõ lhe caulava tal furor, e
ira, que , moOrando de humilhar- fe, pedio , lhe trou-
xeíTç na ponta dos dedos huma pouca de agoa, naô
porque efperaíTe o mínimo refrigério, mas porque
o queria agairar com os dentes , e obrigalo a pade-
cer as mefmas penas , que elle padeci;». Tsnto pô-
de em hum condenado , que foy tyranno,o furor,
e emulação, quando vê o íeu contrario, que dcí-
prezou, c maltratou, falVo , e predcflinado em
gloria, e elle pelo contrario réprobo em penas } e
efta coníideraçaô lhe cauía tal furor, que nella,
como diz S. Joaõ Chryfoíiomo, padece hum infer-
no peyor que o mefmo Inferno : Flus zelo cri4ciattír, ri' p^-
quAmgehena. , - ^. • ■ .^ , ,« M/.
Eíic exemplo do Rico Avarento referido pela ^^^^
boca do mefmo Chriflo, hehumtffica2,eioHdod€-
fengano contra os homens cruéis , c de&humanoísj
^
iP"
iFiiinririrwrT-j
S^
Difcarfú JL
para aprcnderein â compadecer-fe dos feus proxi«
mos miícràv€is, e neceílitados. Quando confidd-
ro na Providencia Divina , CíTi pcrmittir, e querer
ncftc Mundo ricos, c pjbrcs, poderofos , c miíe-
raveis, captivos, e livres , ponderando junta-
mente, que na hora da morte, e do juizo. Ía6
i!í»^. i.%i^es, quanto à natureza j porque^ a^nd Deum
non eft accepio perfinarum ] mais me inclino á infe-
liz forte dos pobres , e miferaveis , que dos Ricos,
e Senhores, íabcndo, que potentes potenter tormen-
ta patientur. Oh que tormento, e confufaõ de
hum Senhor, e de hum Oiiicial, em ver o feu ef-
cravo , ou eícrava , que ultrajou , c perfeguio , no
dia do juizo à maõ direyta de Deos entre os Bema-
venturados , gozando de huma alegria inexplicável,
Fetr. iJ^títta ineaarrabilí ; vendoíe a íi colocado á maõ
c. I. eíquerda, feyo.e aborrecido de todos como vafo
de abominação, efperando a íua final fentençadc
Math* condenação : Ite mdediãi in ingnem aternum. En-
tão íabereis , qual íeja mais potente , fe o fogo das
voíTas payxoens , e da voíTa crueldade , a que^ vôs
chamáveis fogo de palha , ou o fogo emulador do
Inferno affoprado pelo furor de Deos, que nunca íc
apagará, c tanto mais intenfo íerà, quanta foy
mayor a crueldade uíada com os voíTos Efcravos,
S«/»x6« e a ira , c vingança comos voíTos Inimigos.* Fortio-
réus fertior erit cruciatie ^ Petentes potenter tormen-
ta patientur.
A conclufaõ defte difcurfo íerá o perfuadirmo-
nos , que Deos de nenhuma couíahe tam zelofo, co-
mo de naõ perdoar aos noíTos Inimigos, e naó amar
o noíTo próximo. Todas as Efcrituras do novo, c
velho Teftamento , tratao efte ponto repetidamente^
Chrifto bem noíTo no feu Evangelho , e S. João nas
ÍUas £plíioU$ iienhuma coufa encomendaõ com mais
T)ô tormento dosTyranmSje Vingativos. 30 y
empenho fenaõ a caridade , e amor do próximo,
porque fem cllc naô pôde haver amor de Deos , nem
falvaçaô ; e para que ifto nos lembraíTe cada dia,
quiz Chrifto , que na Oração do Padre noíTo íhe
pcdiíTemos, que nos perdoe as noíTas dividas, aí-
íim como nos perdoamos aos noíTos devedores. O
engano grande he, que muytos differem o perdoar
ao feu inimigo , dizendo , que lhe naõ querem mal,
e que naô morreráó fem fe reconciliarem com elle.
Nefte cafo me occorre aquelle funeílo íucceíTo de
Sapricio , taô celebre , e fabido nas Hiflorias Eccle-
fiafticas. Tinha Sapricio íofrido atrociíTimos tor-
mentos com grande valor pela Fé de Chrifto. Fí-
íialmente fentenciado à morte , foy levado ao lu-
gar do íuplicio , para fer degolado. Corre Nice-
foro, que o tinha oíFendido, e venerando-o jà co-
jno a Santo Marcyr, íe lhe lança aos pês , lhos beija,
c lhe pede perdão. Cafo horrível ! Naõ teve o brio-
ío coração de Sapricio taò admirado pela geoeroíi-
dade, e conftancia fobrenatural de refiftir a tantos
tormentos, naô teve , digo , animo , e força , pa-
ra perdoar a Niceforo. Oh deíemparo da graça de
Deos ! Efla dureza de coração fez , que Deos lhe
fubtrahiíTe o auxilio efíicaz da fua graça, e aíTim tí-
mido da morte , perdeo a coroa do Martyrío , c
renegando depois a fé, de gloriofo Martyr fe tor-
nou em hum vil Apoftata. E que bem remunerou
Deos o perdão, que pedio Nicefor3, porque acu-
íado depois de alguns annos de íer Câtholico , mere-
ceo fer degolado pela Fé de Chrifto. A' vifta defte
ÍucceíTo temo , e tremo , confiderando , que nem
o Martyrio , que he o mayor íacrifício de amor,
quefepoffi ofFerecer a Deos; tJMaiôremdile5íionem 9_^
mmo hdbet ; nifi qws fomt animam fnam pro ami-cap.^
€ís ftíis; he agradável a Deos , fe primeyro naõ
Aí At th ^
LfíC rl^
ii
íe íaeri fica a payxaô da vingança com perdoar arf
feu pro-x imo ; Vade prihs reconciliari fraíri tuo y &
Ume vemens offeres múnus tutim ante ah are. Aífim
o fez^ e nos deu Q exemplo o meímo Chrifto ná
Cruz, pedindo ao Eterno Padre perdoaíFe aos qué
o cíuciíícavaõ : Pater dmitte illà^ nm enim fciímt^
^aciunt. Aílim o devemos fazer nôs , devemos
as injurias, que nos fazem , rogando a.
Dços poraquelles , que noscalumniaô , c períeguem,,
e fercmos defle modo verdadeyros filhos de DeoSj
com a fegurança infallivel de gozar eternamente
'AUnh. <íaíua gloria no Paraífo : Orate pro ferfequentibuS'^
j. & cdlummantibus vos , nt (itisfiin Patrà vefiri , quí
indelíi eft.VtXo contrario íe nò^ formos de cora-
ção duro 5 e infíexivel, em. não querer perdoar aos
noíTos inimigos ; nos íuccederá o meímo, que íuc-
eedeò â cílâtuâ de ElRey Nabucodonofor.. Tinha ci-
ta a cabeça de ouro, os peytos , e os braços dè
prata , ventre de bronze , as entranhas , c mais
partes do corpo de ferro. Sò os dedos dos pês eraõ
miílurados , paite com ferro , parte com barro*
Dm,%. ^^ dígitos peâumex parte férreos^ &ex parte JiãtJes.
24, Defceo huma pedrinha do monte , fem movimento
da terra, ou obra alguma de mãos : Abfc/ffuseft
Dân.x . lápis de monte fine' mambus. Que da ndo prcci pitoí a-
34. mente nos pês da Eftatua , a lançou por terra, e.
reduzio em pô , e cinza,, que em hum inflante fo-
raõ levadas do vento , ícm mais apparecerem , nem
Da •ífi^^^^^^ O lugar , aonde foraô parar : g^á? rapta-'
' funí Aventa ., nullufqutlocusinventusefi eis. E qiiz
couía fignifíca , e repreíenta efla Eflatu;) , íe naò a.
íigurade hum Tyranno , ou Vingativo ,,que , íen-
do Catholico , tem a cabeça de ouro , pois. tem ò-
leu entendimento illuminado com a luz do Evan-
geíiioj-e com o leme da fé; tem os braços de pra-
HBE
Do tormento doiTyranmSyeVingatms. 307
ta, pois peíTue as riquezas , que Deos lhe deu,
pom que íe faz mais temido , e podcrofo. E , íe
bum Chriílaõ , havendo recebido de Deos os dous
lalentos dç otiro , e. prata, que iam os roais pre-
ciolos , para negocear com elles a íua íalvaçaò, tem,
econferva hum coração de bronze , com humas en-
tranhas de ferro, para íe vingar de íeus inimigos,
e com a íua potencia arruinar os feus próximos;
que eípera? Senaó que prccipitofamente do monte
altiílimo da Divina Jufíiça venha aquella pedrinha
de huma morte improvifa : Abfcijfus efi lápis de mon-
te: fem.íe faber como cahio , ou donde veyo fem
prévio achaque , e íem principio de doença; fine
manibus : pois fe achava com perfeyta diípoíiçaò,
efaude , que podia na firmeza , c duraçsô compe-
tir com o mefmo ferro , e bronze > e com tudo ape-
nas lhe toca a pedrinha nos pès de barro, logo íc
derroca aquella torre de carne, elogo fe profterna
aquelle ColoíTo animado, e a modo de rayo tudo
fe confumirà , naó apparecendo mais , nem ouro,
nem prata , nem ferro , nem bronze, nem com-
pleyçaõ , nem íaude ; tudo fe reduzirá em pò , c
cinza ; ou , para melhor dizer, cm hum vivo car-
vão de fogo , que como vidlima do furor, Divino
ha de arder para íempreno efcuro calabouço do In-
ferno. Oh vidima deígraçada , para que nafcefte
forte, rica, robufta, e potente, fe efte teu po-
der, c robufteza , efla tua riqueza, e fortaleza,
te haviaô de fazer cruel , c Tyranno para com os
teus próximos? Quanto mais cruel foíie com elles;
agora tanto mais cruel , c iníofrivel heo teu to^^-^^^g^
mento : Fortioribus fortior trit criiciatio, Dcfen-
gane-íe op£ccador,que todas as valentias, e pon-
denores, em naó querer perdoar aos inimigos, que
Q-pffen^craô , toda a prepotência , e dureza do co-
■•i;. V 2 ra-
3© 8 Difcuvfo X.
raçaó , cm naõ compadecer a miferia , c fraqueza èoi
feus próximos j faõ de pouca dura ncfta vida , e logo
com huma morte improviía vaó a parar para íempre
em hua eternidade de penas no Inferno : Fekntes po^
tenter tormenta patlentun ^
TORMEKTO DO SITIO IMM OVE L
I >:
309
'
DISCURSO XI.
Do tormento do Sitio
immovel.
Fiant immobiles qua/i lápis.
Exod. c. 15. i6.
Providencia Divina tem pof-
cohum tal temperamento $8
dores deíla vida,que íe íaó íc-
vcs,ainda que íejaõ continua-
das por muyto tempo , íe po-
dem tolerar^e íe faô iníopor-
taveis , ordinariamente duraõ
pouco, pois com a morte logo
J acabaô: DolorlevUeft, ft fer-^^^''^'
repoJfumus;Ji ferre nonpojfumus , brevií. AlTim o def-
^crcve Séneca. Naò he ilio aflim das dores do Inferno:
cilas faô agudiílimas ,intenfas ,c iníoffríveis, e tantas,
que qualquer delias experimentada neí^a vida ,caufa-
xíaa^mortenoprimcyroiní}antea qualquer homem.
Naô qijero fallar ncíle difcurfo da multidão innu-
meravel das dores , que padece qualquer condena-
do no Inferno , porque já tratey deíie ponto cm
iM V i ou-
W I
'i^^ i
■•iâBiviap
"^t^o-
outros difcuríoj. Fallarey íómcnte do torment©
j do Sitb immovel , que á |)rime^ra vifl^ na& parc-
; ^ ccndo- tanr grave , com tudo éoníídtrââd bem , e
;; mijyta mass experimçfltâdo , ajnda ncíia vida por
^am fé dia , dá a conhecer clarsmerite, que ícrá
• hum cormeçiíEo iníbíírivel;,^ cruel , e inexpíie^vel
' para Òs' triftes , c defgraçádos Condenados. Efla
hc a fufíancia reíumida , e toda a matéria dcílc
diícurío , que diyidirey em dous pontos. No pri-
mey.ro veremos y quam penoío íeja efíe tormento
do Sitio immovel no Inferno , fazendo argumento
do quanto, he. moleíio i c do quanto atormenta ain-
da nefta vidão tal fício immovel. No fegundo
con lideraremos , qíiãntomais ihfoffrivel íeja no In-
ferno cfta immobilidadc em rodas as potencias da
Aima,obifígãâ\je forçada a naó poder imaginar,
nemcuydar outra coufa , que a duração eterna de-
fíe tormento 5 cpm buma coníideraçaô taô firme,
e -£xa, que o pcibre condenado padecerá em cada
. infeme , do qiii^ deve padecer por toda a Eterni-
dade-, A, immobilidadc do eorpo para ícmprc > a
immobilidadc da Alma eternamente. Efícs faô 05
.dous poios , em qm íe eíiribará toda a maquina
deíie noíTo diícuríb do cruel tormento d<J Sitio
\mmo'^t\ lii^iantmmobães-iqnafi lápis.
Que o íitio feja immovel para ó condenado
DO Inferno , he çoufa tam certa , que he de Fê.
' ÇhrifíobcmnoíTo , que tantas vezes fallou do In-
ferno, fallou também exprcíTamente da immobi-
lidadc , que haviaô de íofFrcr eRes defgraçádos. Na
parábola do convite fallando da condenação da-
tíuelic miferavel , que ft arrojou a entrar no ban^
quete íem a vefte nupcial , . que íignifiea a g^aç^i
Matth. profere a ícntcnça nefta forma ; Ligatps mantbus ^ &
Z2" ÈpJiímSi mhtite eum in tmekras exteriores. Quer
di-
DõtormemòdoSitUimmúveL 311
dtócf í que ligado db pès , c mãos, o lançaffem nas
trevas. Pelas trevas íe entende o Inferno : e pela
ligadura de pês , e mãos íe entende o Sitio immO"^
vcl ; Ligatís manibus , & fedibi^s ; porque hum
homem ligado de pês , c máos, hc certo , que fc
naò pôde mtíver , para mudar lugar. Gom mais
(CxpreíTâÔ o declarou cEípirito S^nco , quando dif-
Ic ; Si ceciderit lignum ad Aujirnm , velad Aaitdo' Ecclffi^
nenttín qmatnque loco ceciderit , ihi ertt. E)q)lica »»•
a propriedade dcfte íirio immovel dos condenados
pela femelhança da Arvore cortada, c talhada pelo
pê,aqual para qualquer parte, e em qualquer iu-c
gar, que caya,ahi fica parada fem fe poder mo^
ver. Por eftas arvores fe entendem os homens , co^
mo pareceo aocego do Evangelho : Video homines
ianquam arheres ambulantes^ os quaes eíkô em pè, •
^m quanto vivem : mas cortandolhes Deos o fio da
vida,cahem j e cahin^do, íe cahem para a maõ direi?-
;ta,ifto he, para aparte dos eícolhidos > cahiráó pa\
ra fe levantarem gloriofos , para fcmpre, con^
voar logo as fuás Almas para o Ceo; e depois dò
juizo univerfal também os íeus corpos ; porem fc
câhem com a morte para a maô cfquerda, que^ hc
dos Precitos , de qualquer modo , c em qualquer
íitio, quecahiaô , ahi eííaráó immoveis , fem fe pode-
rem mover : In qtiocunque loco ceciderit ^ihi èrit. E por
toda a eternidade : hent immobiks , qtiaji lápis. jí"
Mas ainda que hum precito naõ foífe atado de
pès , e mãos , como ouvimos do Evangelho , hs-
ftàva , ebaíia o cahir, e eflar naqueila* priíaô erer*
na, para íer , e ficar immovel , íem íe poder bo*-
lir. Coníideray comigo attenta , e miudamente
o caio do deígraçado Rico Avarento, do qual di2 ^^^.ig
o Evangelho: CMúTtuus e/t dives^ & fepultns eft
in Inferna, Mamais de m\& fetecentos ^nos , que
y 4 o Ri;
) ;|.i'iíir
ji2; :m BifcurfoXL \
o Rico Avarento morrco , c foy fcpultado no lofcr^
no. Donde podemos inferir, que o Inferno be a
fcpulchro dos condenados , e que efte fepulchrd
tem huma fó porta , ou hua abertura , por onde fc
entra, e quepor efta abertura haô de entrar os ré-
probos todos no dia do juizo univeríai, depois de
ouvida aquella terrível fentença ; Ite makdiãi m
'Matth\ ignem atermim : c taô envergonhados de íerem deí-
cubertâs as luas maldades , que correrão cm tro-
pas a precipitarem-íe naquelle efcuro calabouço
pedindo aos montes, que cay^õ fobre ellcs , c os
Aíatíh ^^P^^f^'^ ' ^2'^»^' dicení ntontAs , cadite fufer »%
' & colks opertte nos. Sendo ifto affim , como ver-
dade do Evangelho, tiray comigo efta illaçaô, naõ
menos certa, e infalUvcl , que fácil para fc perce*
,v->:ò jjg^^ Tanta multidão de réprobos entrando por
iiuafó abertura , amontoados huns fobre os outros^
^ todos elles naò fó peíados, mas pefadiílimos pe-
io pefa quaíi immenfo das culpas , carregados , e
opprimidos de hCía innumcravel multidão de cor-
pos, c todos cftcs precipitados naquclla priíaô
cílrey ta 5 e alli cabidos huns lobre os outros , naõ
he por ventura baftante razaô, para os confiderar-
mos immoveis affim nas peífoas , como no fitio?
Certo he que fím. Corrobora cila verdade da iní-
mobilidade dos condenados , o que diz Santo Ambro-
fío com outros Santos Padres , a fabcr , que affim co-
mo hum Bemaventurado em razaõ dos dotes glo-
riofos terá tanta força , que com hum íó dedo po-
deria mover todo o Globo da terra ; affim também
lium condenado íerà tam débil , fraco , c defíituido
de forças , qi*c , ainda quando foífe íolto, e livre»
naò poderia nem ainda levantar hua maô, nem hum
íó dedo , para afaftar de fí o minimo bichinho da
terra , que o molcfíaíile. E fobre toda efta fraquc-
Z3|
DotormeiftodoSitiómfmveL 315
za , etkbil idade extrema , que baftava , para o^-
zer extremamente immovcl^ eflando de mais ? a
mais carregado de ferros, correntes, e algemas,
que o ataõ , e prendem de pès, c de mãos ; Ligatis
manibus ^ & fedtbusy que immobilidade neccíTa-^
riamente não lerá , e das mayores , que fe podem
immaginar í
Tornando agora ao Rico Avarento , que no In-
ferno eftavi ligado, e immovel nos íeus tormen-
tos, cum ejfet intormentis^ abraíado, c confumi-
do daquelíe fogo voraz , c intcnfo , cr tutor tnhac
jlamma\ entenderemos a razão, pela qual gritoui
c pedio a Abrabaõ lhe acodiffe, mandando a Lazaro,
que com hum dedo banhado em agoa lhe tocaíTe a
lingoa ; Tatzr Abraham mttte Lazariim^ nt íntin- . - ^
gat extremum dtgitifm in aquam^ ut refrigeret l/n- *^*'
guam meam. Efíranho defejo na verdade, e peque-
na coníolação para hum condenado, fe foíTe capaz
de a ter! E que fazia huma gotta de agoa cm hum in-
cêndio de chammas , que o cercavão de fora , que
o confumião pordentro com tanta aâividade , que
lhe abrafavão as medullas, as entranhas, e cora-
ção, quando nem todas as agoas do Tejo , nem
.ainda as do Gram Pâráferiaô bafíantes a refrigerar-
lhe parte de tam grande incêndio? Ora fabiamuy-
to bem efte condenado, que naõ receberia rcfrigc-
rio algum defta gotta de agoa, que pedia j mas pe-
dio, ou fez cfta petição neíle modo, pata moftrar,
que era tal, e tanta a immobilidade, que padecia
nos feus tormentos , que nem ainda tocar a fua pró-
pria lingoa podia de algum modo: por iíTo pedia,
que Lazaro lha tocaíTc , não para o refrigerar no in-
cêndio , que não era poífivel com huma gotta de agoa;
-mas para ao menos ter efle pequeno moto, ainda
que foffe ah extrinfeco , cm huma tam minima parte
do
w
.-*\
j%4 r^^n^^-^i/car/ôXl^-i
áo corpo ^ qual he a iingoa. Oh fe os pcccadoresi
qm tanto amão a variedade nas íuas delicias, è
goílos , provaíTem a eílar huma hora fomente fem
movimento algum, diriaõ logo, que he impoífii
vd! Pois faybâo, que tanto he pcnofo, einíoífrí-
'^^l eíle tormento cio fitio immovel, que ainda ex-
perimentado ncfta vid V he baftante , para Gonvcrtet
qualquer peçcador obftinado , e reduzi lo a ferhum
lánto penitente, como veremos no exemplo fc-
guinte.. ■ , -ví^-ii^-. ;%^^-^'i''
Vivia no anno mil e quinhentos e trinta, em
Olanda huma Saríta Virgem por nome Liduiria, cer
rlcbre na Hiftoria Eccieíiaftica pela fua grande vir-
tude, mas muyío mais celebrada pelos grandes mi-
lagres , que fazia ainda em vida. Corriaô de todas
âs partes muytas peffóas ricas, e pobres, para al-
cançarem por fua interccíTaô o remédio aflim dás
infermidades do corpo , como da alma , conceden-
do Deos a fcus rogos muytas graças , cobrando
innumeravcis prodigios. Havia naquelle tempo
hum Mancebo, que, fendo eftimado pela nobreza
do íeu Sangue , era juntamente aborrecido pela foí-
tuva da vida, e publicas torpezas , em que vivíâ.
-Os parentes, e amigos compadecidos da fua deígra-
ça , e vendo havia muytos annos, que íe naô tinha
confeíTado, lhe rogáraô encarecidamente, que aò
menos fe foíTe aconíelhar com Santa Liduina,c
lhe narraíTe as fuás miferias, principalmente a fiè-
pugnancia invencivel de fe confeíTar, porque fem
duvida lhe alcançaria de Deos algum remédio. Re-
ííftia fortemente o Moço a íemelhante coníelho,
com dizer, que as Mulheres nálo eraõ, nem po-
•dião íer ConfeíTorcs; e replicando-lhe, quepcdiíTe
á Santa fó remédio para tantos peccados, que
tinha; clíe finalmente veacido da importunação
dos
Dõ fêfnfffí/âd» Shh mmcreL ^y^
^s Parentes, e Afriígos., foy bufcara Sánfa fci.
duina , e íe animou a CQntarlhe os feus innumcra-
. veis pecccaáos , e talveiz com a meíma vangloria,
tom que os dizia. aos feus ruins coínpanheyros. A
Santa não podendo tapar o$ ouvidos por ter â$
mãos , e braços aleyjados, lhe rogava pela morte,
e Payxaõ de noíTo Senhor Jeíu Chrifto, fe calaíTc,
porque naõ podia mais ouvir tam horríveis culpas:
iBas o Mancebo continuava íem vergonha , dizen*
do, queria confeíTar tudo, para ver, que remédio
lhe dava, fegundo lhe tinhao aíTcgurado os í eus
Amigos, c Parentes. Conformou- íe a Santa a ou-
vir tudo com paciência, e depois infpirada por
'©eos lhe diíTe; já que tendes tanta repugnância à
vos confeíTar } íereis contente , que cu diga todos
cites peccados aTHum ConfeíTor douto, e prudente
Jda voíía parte, e que vos íírva de interprete ? Ret
pendendo elle , ^uc fim , replicou a Santa, que
lhe tornaíTe a fallârdalli a três dias. Ncfleeípaciò
de tempo a Santa rogava a Deos , chorando os pec-
cados daquelle diíToluto Mancebo como próprio^,
•pedindo inftantemente quizeffe como bom paíJor
chamar aquella ovelha perdida ao feu rebanho, bf-
fcrecendofe a fazer penitencia daqudles tam enor-
mes peccados. Depois dos três dias tornou o Man-
cebo todo alegre, e diíTc àSanta. Tenho, Senho-
vJ*a, guardado a minha palavra, e torno pontual,
por íaber, fe tendes feyto a minha confiíTaóf E
•que penitencia me tem impofto ? Por ventura (re-
plicou a Santa ) fareis vôs a penitencia , que vos di-
yty? Sim, farey (diffe o .Víancebo) quando fcja
.ecóufa ligeyra-j porque íe forem jéjurí^^ ci+ièitfs,
diíciplinas, ou éòúfas femelhàntes f naõ alqííefò
fazer, e me vou embora. Nada diffohei' replicou
^ Santa} hc fim huma penitencia icviífia , que po-
■' ■. deis
y
j_ í
31 d Difcurfo\Xi^ ^^'^ í/\
deis fazer cm voíf rcafa, e na voíTa cama^ em pr ^
íença de todos , íem ninguém o íabsr , ou adver?
X\x, Se aífim he( replicou ô Mancebo; dou palavra
4e Gavalhevro , q^ç a farey com pontualidade. A
|içnitçncia (refpondco^ Santa) lie cfta: que vos dcy-
^eis- na voíT-t cama aíTim mole, c branda, comQ
}ic, e depois de deytado muyto à VoíTa vontadej
e commodo , naõ vos volteis , nem vireis mais^
nem de huma, nem âe outra parte , atè amanhe-
cer. Fazey fomente ifto, e deyxayme o refto com
toda a grande carga dos voíTos peccados. Efta he
toda a penitencia, que devo fazer (replicou o Man-
jpebo) dos meus peccados , e nada mais! Pois cu
|i vou iogo fazer cfta noyte, e daqui por diante vos
mandarcy quantos pcccadorcs conheço, para íc-
jrem convertidos; e íercy daqui por diante dePeç^
ij^dor o Peícador das Almas defta Cidade. Chegou
â ^ Mora de fe dey tar , c entrando na cama , foy buf-
çando o íirio do corpo , que lhe parecia melhor, c
^achou que deytando Je de coftas lhe era mais com-
m^odo, c íuave. Porém, a penas paíTada meya
hora, como impaciente queria virarfe de bum lado,
c naõ,fe refolvia a fazelo,' porque queria comprira
penitencia, e guardar a palavra dada. Nunca lhe
pareceo a cama dura, fe não naqucllaoccafiàò, c
o náo poder- fe virar de hum lado lhe parecia hum
tormento infoffrivel. Começou a diícorrer comíigo
iiefte modo. Que heifto/ Que coufa me falta! Eu
cftoLi faô , c valente : tenho ceado muyto bem:
cftou cm hum leyto muyto bem preparado , e para
deíempenhar a minha palavra cfemprindo a peni-
tencia , náo tenho mais , que paÇar huma noyte ncfla
Jpoíiura, caíDo fe me reprefenta impoíTivel ! Que
íerii de mim íe deveffe ficar aíTim por hum mcz , ou
por hum anno! Ahqucnecio, queíoucu! Efe em
lugar
DõUrmento do Sitio Immovel, 317
lugar do colchão brando, cm que cflou deytado,
cftiveíTe em humastaboas duras, como fazem tantos
Rcligioíos de vida auflera, ou eflivcíTe deytadono
chão com huma dura pedra por cabcccyra, como fa-
zem, e tem feyto tantos penitentes! E quanto
peyor fora, fc efta cama fora de carvoens accíos,
nâo íó por huma noytc , mas por annos , c não fó por
annos, mas por feculos , c não fóporíeculos,mas
por milhocns de feculos, e nâo íópor mijhocnsde
ícculos, mas por toda a Eternidade, co«mo eflâo, e
cílarâo tantos milhoens de condenados no Inferno,
c cftaria eu também fcm duvida , fe Deos não tiveíTc
ulado comigo da íua miíericordia ! Nifi quiaDo- Pf^^-9%
minus adjuvit me , fanh minus in inferno habitajfet
anima mea / Efía coníideração originada da immo-
bilidade daqueile fitio íuave , porque era em huma
cama branda, c por pouco tempo, caufou tanta
impreffaõ no entendimento daqueile nobre Mance-
bo , que íe reíolvco a entrar logo cm huma Religião
das mais aufteras, vivendo nella com grande exem-
plo ; e todas as vezes , que fe via tentado , o remcí-
dio era deytaríe, e poríe immovel no lugar, em
que fe achava, como íc efíiveíTe ligado de pês, c
mãos no Inferno , e dcfíe modo ficava vitorioío da
tentação. Tanto he de temer cfíc tormenta ainda
neftâvida?
Sempre reparey na quantidade de infirumento?;
que os Tyrannos inventarão, para atormentares
Santos Martyres, nos quaes fe continha também ò
tormento do Siri© immovel. Para vermos iftofem
recorrer aos tempos tanto atrazados, lancemos os
olhos da coníideração a alguns tormentos, que íc
ainda entre os Catholicos, quando a jufliça,
ufaõ
íuppofíos os índicios vehcmentc , os quer fazer
confcíFar o erimé, porque hão íolpey tas vehemeo-^
te-5
W!
■■-**'»i"*ap»>íc--
í--»^'*'; w:::: >" T~-jm^
iTTTiiií'i'ilwiir'infr'''"-
! i
í^í^ Difcurfo XL
tes , de que o cometerão. Coníideray a hum pobre
íleo deytado fobrc huma catada, a que no Portu-
guez chamaó vulgarmente potro , com as máos , c
pês , náo fomente algemados , mas tam ligados ag
potro, e tam carregados de ferros, quenaòhepoí-
íivel fazer delles o minimo movimento: o corpo
também tam fortemente ligado, e unido ao mefmo
porto, quede nenhuma íorte fe pode voltar , nem
mover. Ora fe preguntares a hum dcfíes mifera.
Ycis depois de paíTado o tormento, do qual muy-
tos fícaõ cftropeados para toda a vida , qual foy o
mayor tormento , que padeceo naquclles trato?,
vos reíponderà, que o tormento do Sitio immo-
vel , quero dizef , o não le poder mover , e efíar fír^
me no padecimento daquellas dores de braços,
pés, ecoftas, hc o que lhe accrefcentava a pe-
na. E a razaô aífim o perfuade, dayme attençâo,
Huma dor em hum braço, cm huma mão , ou em qual^
quer parte do corpo, íe deyxa liberdade ao mefmo
corpo para íe poder mover , voltar, e tomar diver-
íos fitios , naô he tanto infoportavel ; porque no
mefmo movimento fente a natureza qualquer ali-
vio. E íe naõ coníideray vôs o que faz hum deíies
Juizes, que condena os Rèos a eftcs tratos ^ (o que
eu não pretendo condenar, por íer couía permiti-
da pelas Leys para fe defcobrirem , e caííigarem os
malfeytores ) que coufa faz, digo , hum deftes,
Ijuando fe ve acometido da tyranna dor de huma pe-
flra, que as mais das vezes naõ chega á grandeza de
huma avelam? He certo, que padece muy to, eque
naô baflaõ , para o aliviar nem a rica cama , cm que
«ftá deytado, nem a cadeyra de veludo, ou de bro-
cado, em que muytas vezes fe faz lentar , nem as
fexquiíitas viandas, e delicados ffuytos, que le faz
^prefentar, nem finalmente qualquer das outras de-
licias,
^^
Do tormento ào Sitio ifnmoveL 31^
rícks , que fc lhe podem ofFerecer, ou á vifta,ou
aos ouvidos, e íó vereis, que todo inquieto , e
deíaíocegado naô faz outra coufa , que movcr-íe}
fe na cama , de huma parte para a outra ? íe na cadcy-
ra, de hum braço para o outro; e fe pôdeeftarem
pé, de hum lugar para a outro. Ora fe perguntares
a efte homem dolorido , porque razaô faz eftes mo-
vimentos? Dirài porque com elles delabafa a fua
natureza , e que íeria mayor a íua dor , fe naô tiveífe
cftc dcfafogo de fe mover , voltar-íe ; c andar de
hum lugar para outro. Dotide íe collige j que a
impotência de íe poder mover hum homem ator-
mentado de qualquer dor he o que mais lhe aug-
menta o feu tormento 5 he oquemais o affligejCan-
guíiía.
Quereis íaber a razaô, porque he tam terrível»
ciníofírivcl neíte Mundo aquella doença , que vul-
garmente fechama de gotta? Eu vola direy» Padecem
muytos homens neííe Mundo a doença de gotta,
doença verdadeyramente , para a qual atè agora
le naô tem achado remédio algum certo, que total-
mente a cure , que por iíTo íe diz com muy ta razaôr^^^^-^v
Solver e nodofam nefcit medicina podagram. Na 5 ha- ^j/ped
vendo nem ingrediente nas Boticas , nem agua, ou
quinta EíTencia entre os mayorcs Quimieos, que a
poíTà perfeytamente curar. Ora íe perguntares a
hum, que padece de gotta, que coufa he o que
mais o afflige neí^a doença ? Reíponderá com ver-
dade ,.que he o Sitio immovel da parte, ou mem-
bro afíedo com a gotta } e que o naô poder mover
©u feja o pê, ou o braço, ou a maô , ojide fcnte eíla
dor , ifto he para elle o mayor tormento , e a mayor
afffiçaò, que padece. AíTim he, e aíllm fuccedc.
^Ora fazey aqui comigo hua digreífaô morai, , e dou-
trinaL E que coufa he cíle mal de gotta irrcmedia»
veL
WT
ismuipi
P.le
fenne
tom. 7.
l«^' 37
Apoc.
m-n
510 Difcttrfo Xt.
ycl neftc Mundo l Fiíicamcnte eu naõ voío pòflb
dcfcrever, porque naõ faço profiíTâô cie Medico:
mas moralmente eu, vos direy o que he , feguindo
o juizo de hum grande Pregador , e zelance Miífio-
aario. A doença degottahehuma gotta das doenças
et€rnas,hehum eníayo do modo, com que íc pa-
decem as dores eternas no Inferno. Noray. A
idordagotta fe padece nefta vida com a circunftan-
cia da immobilidade , porque a parte affcdla com
agotta naõ permicte, nem coníente, que fe mova/
e ifto he o que fe padece no Inferno , dores , e tor-
mentos immoveis ; immoveis , porque nunca di-
minuem i c immoveis , porque naõ deyxaõ mo-
ver de nenhum modo a quem as padece. Tiray agora
aillaçaõ.E fehumador de gotca neftc Mundo fe faz
mais iníofírivel pela circunftancia da immobilida-
de í como naõ fera miis que iníofFrivel a dor de hum
condenado deytado , c metido em hum tanque de fo-
go de enxofre abrazador, íem nelle poder ter omi-
nimo movimento f Pars tllorum in ftagno ardentis
ignis , & Julphuris in jacula f^culorum , como íc
diz noApocalipfc. Se efte tormento dagotta expe-
rimentada nefta vida , em razaõ da circunftancia
ponderada; he tanto para temer , edcu tanto , que
padecer, juntamente , que merecer -a alguns eí co-
lhidos de D :os, como a Saô Leandro, e outros San-
tos , os quies, permettio Deos, foportaíTem nefta
vida efte, quediíTemos enfayo do Inferno, porque
onaôhaviaõdefoportar na outra vida » que couía
fera realmente no Inferno as dores de hum precito
acompanhadas com a immobilidade total do Sitio em
razaôdaquelle infinito furor, com que Deosos caf-
tiga; e do qual temia tanto o Santo Rey David , quan-
do di7ia : Vomine ne infurore tu0 arguas rm , m^nz tfh
iratuacorriptasme, ^ ,
Fon-
T)o tormento do Sítio immovel. 321
Pondera Saô Gregório adiffercnça entre as deli-
cias efpirituaes , e ícnfuaes , e affirma , que as ef-
pirituacs, quanto mais ícgozàô, tanto mais fede-
zcjnõ, fem nunca enfaíiiarem ; as ícnfuaes pelo
contracio , quando naô fe gozaô, fe deícjaõ, po-
rem depois de confeguidas , c alcançadas , ordina*
riamentc naô íaõ eftimadas: antes, fegundo a expe-
riência noseníina , fc laò continuadas íem varieda-
de, coíiumaõ enfaftiar, e vem a fer aborrecidas.
Em hum banquete grandiofo, e dilatado . fe todos
os pratos, que íe aprefentaíTem na meia . foffem
da meíma vianda, e do mefmo modo guizados, hc
certo , que caufariaõ hum notável faftio aos con-
vidados. Afiim (fe lèno fagrado Texto) íuccedcoaos
Hebrcos , quando Deos para os livrar da fome, que
padeciaò, lhes acodiocom oMannà, que lhes ca- ^^.
hia doCeo : Etphíit ãlis Manna ad manducandum. J ^JJ
Como o viaó , e colhiaô íempre da meíma forma,
com a meíma cor , c da raefma grandeza , ainda
que úwç,{[t cm íl o gofto , e íabor de todos os man-
jares, o aborreciaô, c naô podiaô comer : Anima jsiunt,
nojlra naufeat fuper ctbo ifto levijjlmo. E dezejavaõii.
mais comer os comeres groffos do Egypto , quaes
craõ os alhos , c cebolas , que o delicado Manná.
O meímo fuccede nos outros regalos, e delicias
defíe Mundo. A confonancia de huma armonia , ain-
da que feja comporta de boas vozes , e fonoros inf-
trumentos caufaria fem duvida fatiio , fe ícmprc
foaíTe no meímo tom, e com o mefmo defcante.
Hu3 Comedia, que he o divertimento dos mais ape-
tecidos entre os mundanos, caufaria enfado, e afu-
gentaria os ouvintes, íenella rcprefentaíTe huma fó
figura, e íempre o mefmo papel. Hum jardim,
por grande que foíTe , naô incitaria á curioíidadc,
mas antes pouco dcíejo de íer vifto^ íc nelle naô
X bou-
^'
5t^ ; - >'J}Ípur/ií'Jít "^
íiauveíTemais, que huma cafta deflores. Finalmcni
vc hui2 cama ,5 por mais rica^ branda, e fuave , que fo£i
íc, feria de tormento, fe por obrigação íe houvef*
fe de efiir dÊÍtado neíla,. km a liberdade de íe Ic-
vancar. £ a razaô diffco lie ; porque a continuação
das couíasncíla vida mortal as faz faí^idiofas , c a
fneÍHia eòUifa continuada k faz aborrecida ,. e pe*
mofa ,. moftraado niílo mefmoa natuneza , que nas-
Gouías , e- das coufas defte Mundo< naô pôde o ho-
mem ter {«tisfaçaò jC oícu ultimo deícanço. E pe-^
Lo contrario o que nefti vida hz os males mais to-
leráveis, e mitiga de algum modo as amarguras,:
he a interrupção. Logo, que ba algema pauía, al-
gum de fcanço, alguma tregoa y ou alguma mudança,
ou variedade no noíío mai , ícntimos algum alivio,
^, ,,.oualgua efpe rança de remédio^ Quando as deíg.ra-
'I/-Ç^s»;c os dcfgoííos nos moieftaô alternativamente;
huns depois dos outros , entaõ fe fentcm menos.-
A mudança, e alternativa diverte e noíFo entendi-
mento, e vontade y qnc naturalmente ama, c de-
fcjir'^âi variedade, e pjr iíFo qiiandb naô defcobre
eíía variedade nas coufas defle Mundo , ainda que
em (í as tass coufas fejaô deliciofas , comovera o
Manná , com tudo aborrecem , e enfadaô- Ainda
que o iMan.nà encerraíFe em íí todos os íabores dos
mais comeres : Omnvs faponsfuavitatem- ; com tudo
pela continuação cauíava faíiio ao Povo: Nihil
aliíid rej^idtmt oculi mftri ,. nifí CManna; Que he
ifto , naõ ham de ver outra Goufa os noíTos olhos,,
ícnaõ Manná! Vede que cíFe Mannàhehuraa comi-
da regalada. Naõ importa , porque tanto agrada
porfer regalada, quanto dcíagradá por continuada^
Finalmente Goncluamos , que íe nas coufas , que
faô^donoíTo génio, e 'de regalo para a noíFa vonta-
de ,,€ talvez para a coifa fcnfualidade , a.continur.-
Num.
II.
Do fermento do Sitio hmmvel 3^3
çaõ às -faz faflidioías ^ que íerá nas penas, c tor-
Inentos do Inferno , onde a continuação naô íómen-
íe fera dos tormentos, penas , dores, e angiiftias
inteníiíTimas , e inexplicáveis » n">as cm hum firio
Continuado, e immovei, para toda a erernidade,
âíTimcomooíitiodehumapeíada pedra , que ^^nde ^^^^^
« íazem cahir , naô fe pode mais mover ! Fimt immo- ^^^ ^y^
Mies qttafilapís.
- O mayor horror, que me caufa o confiderar ^^ ^^^
f>auí:'idamente , e com íeria reflexão efte terrível ^^^p^^*
tormento do Sitio immbvel , hc a duração eterna f^^.
do meímo Sitio. Nunca ter variedade , nunca di-
minuição, nunca hum intervallo , nunca mudan-
ça; mas antes íempre do mefmo modo, íem hum
íó momento de quietação, ou de alivio, e eterna-
mente "na mefma poftura violenta , e violentiílima !
Oh tormento dos tormentos , oh defefperaçaõ dos
tormentos! Nefte Mundo naõ fuccede aíTim em ne-
nhum tormento , ou moleftia , ou trabalho , por
grande, que feji; porque ou aoba , e fe concluc
com ávida y,ouíe remitte , e tem mudança. Sc o
frióhe exceííivo, tem o homem, por defemparado
quefeja , qualquer modo de fe reparar, ou ao me-
nos ainíençad do frio abranda , e remitte o feu ri-
gor .^ por aguda, e ardente, que feja huma febre,
lá tem íuas horas de remiíTaô , em que naô dura na
meíma intenção , para conceder algum alivio ao
Inferno. Por grande, e intenfa, que feja huma dor,
qualheade cólica legitima; ao menos no voltar-
íc o paciente de hua parte para a outra lá experi-
menta qualquer alivio. Mas , oh Deos I Eftar^
hum condenado immõVel de pès , emaos, e todos'
os membros do corpo , íem fe poder voltar , nem
fazer o mínimo movimento, finalmente como huma
pedra entre os tormentos incxpHcâveis do Inferno.-
zj X 2 Fiant
^4. DlfcurfoXl/
Fiant mmoUles quafi Japis. Oh que dcfcfpcraçaõ !
O grande AriÍToceies querendo definir o tempo
Ariliot. diíTc; Numerns mouis fecundum prm^& pofienus.
fhif. Querdjzer, que o tempo íe deve medir pelo quç
foy antes , e íerá depois. Efta definição abraçada
de todos os Filoíofos naò compete à Eternidade,
nem confeguintemente ao tormento do Sitio immo-
vel , de que falíamos. Sc o numero do movimen-
to he o que faz o tempo, hum condenado no Infer-
no naô tem movimento , porque cftá immovcl nos
íeustormenios, c confeguintemente íe pôde dizer,
que naõ tem tempo nefle tormento , porque fem
tempo , eternamente , o padecerá. Nem o tem-
po pôde ler medida do íeu tormento > porque
a Eternidade , pela qual padecerá aquelle tormen-
to , naô tem tempo. Hum feculo contém cem an-
nos. rium anno doze mezes. Hum mez trinta , ou
trinta e hum dia. Hum dia vinte quatro horas. Hua
hora quatro quartos. Hum quarto quinze minutos.
Hum minuto finalmente confla de infíantes , ou
momentos , ou pontos indiviziveis. A Eternida-
de porém naô he aíTimi naô tem annos ,nem me-
zes, nem dias , nem quartos , nem inííantesj por-
que naô confla de partes , mas he hum todo im-
menío fem fim , fem medida, e fem termo, e tu-
cjo fe cifra nefta palavra. Eternidade , Eternidade.
PoriíTo o Príncipe dos Apoflolos como melhor Fi-
loíofodefinio a Eternidade por eftas. palavras .* Unus^
ãies apud Dominumficut mille anni , & mille ami fi^
cut dies mus. Quer dizer , que mil annos em pre^
fença de Deos , que he Eterno, he como hum dia,
e hum dia he como mil annos. Que vem a fer o
meímo , que na Eternidade tnnto vai hum dia co-
mo mil annos , e mil annos como hum diaj por-
que na Eternidade naô ha tempo áe annos , nem
de'
Bôiõrmetítú do Sitio ifnmoveh 31 y
^C dias, porque he fem tempo. O que explica ma-
raviihoíamente neftas palavras íeguintes S. Agofti-
nho.
Ami Uiificut diesumis^& mes mmnon V^ott- j^^^^^
éie^fid hodie j qiiia hodiernus tmis ncque ceda cra-^,,j}^^^[
fiim^neqtiejuccedtt hefterno. Os voíTos annos , meu/r/,.^,
Deos, laò corro hum lo dia, e efíe fódianaò he
cada dia, mas hoje; e efte hoje voíTo naõ íucccdc
ao dia de hontem , nem eípera o dia deamanhaá;
pois toda a Eternidade em Deos he hum perpetuo
dia de hoje fem tempo , que haja de paíTar, por-
que naó tem fim ; afíim como fera também hum
perpetuo dia para os Bemaventurados no Paraifo,
ehuma perpetua, e eterna noytc para os condena-
dos nolnferno. Oh quem percebera bem eí^es ter-
mos das palavras de S. Agofíinho , porque íó entaõ
fizera algum pequeno conceito da Eternidade ! De
maneyraquea Eternidade, que a reípeyto de Deos
he hua couía ícm tempo , porque o ícr de Deos nem --^
teve principio, nem terá fimi a mcfma Eternidade
a refpeyto dos Bemaventurados , ainda que tenhi
principio, porque começa a fua Eternidade de glo-
ria doiníiante da fua morte, fe primeyro naò for
ao Purgatório , quanto para as fuás Almas , t co-
meçará para os íeus corpos do ponto da fua reíur-
reyjçaôj e cm quanto á duração íeiá fem fim, co-
mo he fem fim a Eternidade de Deos; eifto fera
com tal jubilo , e contentamento , que mil annos
paíTados na Eternidade da Gloria lhes parecerá hu
fó dia, como aíiirmouo Profeta Rcy ; CMtlleanm^f*^'^^..
in conjpeúu tuo y tanquam dies hejierna , qíi£ pr^te--^'^'
riit. Pelo contrario os Réprobos , como aliir-
maó os Santos Padres, e fe fegue por boa coníe-
quencia, nos feus tormentos o dia de hontem lhes
parecerá mil annos de padecimento; efe lhes pare-
X 3 cera
ii: I
$i4 A Bí/çurfo 2h
cera aifim çai raízaõ das crutis penas ] que pscJé^
cem ,quecoiifa fera pâ<l;eccr eOas penas em hiua
Sitio immovel y que de ít fó baftava paca os, atormea*
Ut\Fimímmohiks qtiají^la^is-»
Expliquemosmais aterribilidade dcfíe exceífi^
vo tormento do Sitio immovel pel^ circunftancia d^
Eternidade , quero dizer de fcr Eterno. A Eterni-
dade k parte pofte^^ como explicaõ os Theologos^
começa , ou para os Berna venturãdos na gloria^
ou para os Réprobos no Inferno, cm hum inilante,
que iqnaô pode medir nem por annos, nem por fc*
cLiloá-, nem por miihocns de íeculos , porque naõ
tem Hm, Donde naíce ^^que fe fe goza algum bem,,
ou gofío para toda a Eternidade , por pequeno,,
que foíTe » íeria hum bem infínito y quanto a dura-
ção. O mefmo he do mal, que por pequeno, que
foííe , fuppoíloque fcja para a Eternidade ,fc fazin?
finito quanto á duração. Eifio por duas razoens. A^
primeyra ^ porque a daraçaõ eterna confere ao bem,
ou ao mal , de fua natureza pequeno , hum pefo inex*
piicavel , que he o naô ter fim, e coníeguin temente
Ma exiílencia interminável, e infinita. Aífim como o
gofto de hum dia he hum bem , o de dous dias hum
bem duas vezes mayor ,e o de. dez dias dez vezes
mayor, aíSm o gofto, que durar eternamente fem
.fím por annos infínitos , fera infinitamente mayor»
A fegunda razaô , porque a Eternidade , da qual
falíamos, a íaber à parte pofi.el^ contem em íi to-
dos os dias , eíeculos futuros; porque ajunta em ÍI
ioda a duração , porque fenaõ^pode diâinguir , nem
dividir por íèculos , ou tempos alguns je confc-»
guintjcmente une, e ajunta em íi toda aquellacom-
modidade, que hum pequeno bem podia ter , fen*
do logrado por dias , ou íeculos , reduzindo-o
G-omo a hum compendio de todos. aquelksbensj
Do túftnentõào Sitio immoveL 327
que podia ter , íe f uíTe dividido por dias , ou por lecu-
los i c defte modo vem a fer em hum momento, cm
razaõde íer eterno hum bem como infinito quanto
à duração, que hehúacoufa ,que naõ fçpò^e expli-
car bem com palavras humanas. lAo , que he em hum
pequenobem,ou goíto , que fera eterno , como fer m
em hum grão de gloria, que comparativamente íc pô-
de chamar pequeno , fe deve entender também de hu
pequeno mal experimentado no Inferno de hum con-
denado; que, ainda que padeceíTe poucos tormentos
quanto ápena do íenrido, baftaria,que efíe pouco
foíTc eterno, para íer hum tormento exceíTivoje in-
finito quanto á duração. Ora vede agora , fe a immo-
biiidade,ouoSitio immovel de hum condenado nas
ÍU3S penas para toda a Eternidade, he pequeno tor-
mento!
Oh Deos Eterno , e amoroío Rcdemptor das
almas! E que tyrannia grande commette aquelle de-
pravado homem, que hecaufa, que huma creatura
voíTa venha a experimentar a crueldade deíle tor-
mento do Sitio immovel no Inferno ! Solicitais a
pobre, e innocente donzella, períuadindo-lhe naõ
fer nada o confentir com o voíTo apetite ,• defen-
quictais a honrada caiada, ou a recolhida viuva,
pondo em rifco naõ fó o feu credito , e a fua vida
temporal , mas também a fua Alma i obrigais , tal-
vez com ameaços , e caftigos , a voíTa Eícra va , que ,
fuccede muytas vezes depois decommettido o pec-
cado, naó ter animo, para fe arrepender, e con-
feíTar ; e talvez continuando na culpa com os vof-
íos incitamentos, e niaos exemplos , virá a mor-"
çer impenitente , para eftar padecendo immovel-
mente no Inferno, por toda a Eternidade , íendo
vôsoccaíiaô de tanto dano. Oh barbaridade inhu-
mana , vcrdadeyramente LuciFerina ! Sabey , que
X 4. ^^-
■n
5^8 Difcurfo m.
tazeisniao o Procurador , ou , como diz SaS Joaa
Chryfçji Chxyioúomo, fazeis o Advogado do Diabo: Homa
BomtL Diaboh advocatus: procurando tirar as Almas do Pa-
\vam ^'^^^'^\V^^'^ 3s entregar ao Demónio a padecer tormea-
^' tos eternos immovelmente.
He coufa labida aquelle grande dano , c malcfi.
cio , que fazem no Mundo quafí cm todas as na»
çpens aquellas depravadas mulheres, a que vòs chai
mais vulgarmente fcyticcyras , ou bruxas. Eftas
deígraçadis^comotem arrenegado da Fé pelo con-
tiâílo fcy to com o Demónio , a quem tem vendido
aiua A!ma,ficaõ conícguintemente inimigas do gc«í
ncro humano, principalmente Catholico, cpor if~
ío proeuraó fazerlhe o mal, que podem, humas ve-
z^s às crianças depois de bautizadas i naô fazendo,
que percaõavida, porque naõ querem, que íc íal*
vem, mas que fiquem eílropeadas, e com owtros
^efeytos por toda a vida. Outras vezes ainda ás
peíToas mayores com feytiços , os quaes lentamen-
te caufaô a morte, tomando para fazerem eíks ma-
lefícios por arte do Diabo varias formas aparentes^
traníportando-as o mefmo Diabo a vários Reynos>v
e lugares fummamcnte diftantcs , introduzindo-as
cm lugares recônditos, e fechados fem íe fabera
como entrarão , porque o Diabo como cfpiritOy
que be forçoío, lhes facilita todos os meyos , pa-
ra çftas crueldades. Deftas crueldades pois , c
malefícios , que cauíaò eftas bruxas ( que nem to-
dos , quantos ellas defejaó fazer , fazem porque
Deos por Tua Miíericordia o naô permitte ) fuppo-
nhamos,quehuavez cm hua Cidade fizeííem mor-
rer mil peílbas. Oh que horror, oh que confuíaõ,
oh que lamcntaçocns íeriaõ naquella Cidade! Co*
roo procurariaô todos , e fariaô diligencia , para
dcfcobrir aquellas malfcy toras , para que morrcírem
todas
Do tOYífíento do Sitiommovel. 329
todas a fogo lento! Ora pois fabey , que naô leria
tam detefíavel o crime deftas depravadas mulhe-
res , como he dcteftavel o crime daquelle , que hc
caufa , ou occâfiaô de fe perder huma Alma , que an-
tes vivia ínnocente , para fe condenar eterna , e im-
movelmente no Inferno. Dizeyme , qual he mayor
tyrannia j fazer padecer mil peíToas temporalmente
ncíla vida , ainda que foffe por cem annos , ou fa-
zer penar com tormentos mais atrozes mil vezes
huma íó pelToa, naõ íó por cem mi! milhoens de an-
nos, mas por toda a Eternidade? Oraíabey, que
ha mais milhoens de annos na Eternidade , do que
houve ate agora no Mundo de milhoens de infan-
tes , e haverá atè o fim do mefmo Mundo , c vôs
lereis a occaíiaó, quehúatal Alma efícja para toda
a Eternidade blasfemando , e arrenegando de Deos, e
padecendo tormentos inexplicáveis no Inferno liga-
da, e atada fem fe mover.
Oh fe foubeffemos bem comprehender, que cou-
ía íeja a Eternidade, nada deyxariamos de obrar,
para cooperar a íalvaçaô de huma Alma ! Oh meu
Redemptor , e Salvador amorofo , quando coníi-
dero, quanto ha de padecer huma Alma condenada
por hum gofto de poucos momentos , concebo
grande eípanto ! Mas mayor he o meu eípanto,
quando confídero, que quizcfles padecer a morte, c
íierramar o voíTo precioío Sangue a fim de íalvar
as Almas, e que o derramarieis de boa vontade, fó
por livrar do Inferno, quando naô foíTe mais, que
a Alma do Bom Ladraõ , dando por bem em-
pregados todos Voííos tormentos ! E , que fendo
iftoaíTim, haja homens no Mundo, que procurem
perder as Almasinduzindo-asa peccar! Oh ccgucyra,
oh tyrannia grande / Chrifío como bom Pafíor pro-
curando reduzir todas as Almas ao feu rebanho.
w
350
l- !
Luc.
ijr.7
/ "* V
^^ - ; Difcurjo XI
que he a gloria., e vòs como lobo carniceyro revef-;
tido do cfpiriro de Satanás procurando dcfenqa-í
tíiiaharhúi Aima para áconduztres ao precipício do,;
Iníerno! Ghriilo p,ira á reduzir , a torna aos feiís
hombrps .• Et c.um tnvmútt , tmponit in. humeros
fuos , e vòi , para a pcrder,.a procurais dilacerar,
e corromper ! Chrifto com tanto gofto, quando a;
tem lucrado : Imponit in httmeros fuos gaudens. E
vos talvez vangioriando-vos , quando a tendes
perdida! He íinguiar o reparo do Doutor Angéli-
co de naô fazer Chrifto mençaó, quando achou a
ovelha perdida , do muyto , que lhe cuftàra em a
Z>.7Ãff.Grcar , c remir com o feu próprio fangus : Cur non
âíxtt ^inveni ovem meam ^quam emi caro preúo , éf,
fanguine meo redemi ? Mis íó fe lembra de íe ale-;
grar, edequelhedem os parabéns de ater achado.*
Gôngratulamíni mihí ^ quia inveni ovem meam^ qua
psrierat. Ora a razaò he •, porque era tal , e tanto
ogoíio , e alegria do bom Paftor Chriíio em def-
cobrir , e recuperar efta ovelha perdida , que á vifta.
deíl:egoíl:o,,c contentamento > parece^ fe naô lem-
brava, mas antes fe efquecia de todos os trabalhos
paliados, e que lhe tinha cuftado a- tal ovelha em
aremir com o feu próprio fangue. Ora confideray
agora, qud fe he tam grande o gofio do noííb ver-
djdeyroPaíiorem ganhar huma Alma perdida, qual
íeráofaror contra aquslle Lobo carniceyro , que
procura deígarrar do feu rebanho huma das fuás ove-,
lhas ! E vòs talvez imaginais, que naô fazeis na-
da, ou que caufais pouco dano^ quando fois cau-
fa,dequehiia innoccnte Alma caya no peccado com
vofco ? Ora attendcy áquella admirável íentcnça
D.Bertj' ^^ S. Bernardo ; Si non ejjent hac ad mortemlempiter-^
nam-i nunquampro eísfilitis Deifmjfet inortuns.
Finalmente eíie tormento do Sitio immovcl hç
taò
Do totmífite âo SitkimmoveL 351
taõ 'hofrendõ , e pcnoío , que naô faltarão alguns,
^ue fe períiiadiraò , que o fogo do Inferno ator-
mentava mais aos Demónios .com os ter atados, c
ligados, do que com o feu ardor, antes que todo
o tormento eftava neíla retenção , para íe nsõ pode-
rem mover : Fr^/^r ã^wí^ alkgationem ,. qmàam Dõ-Cdv.l\
iiores nan videntur agnofceré almd fuppUatim ahígne. ^'^of
Eík íentença porém neíies termos com razaò he
refutada de S. Gregório , Santo Agoíiinho , e mais Pa-
dres. He verdade , que o fogo do Inferno fervirá
aos condenados de correntes , de algemas , e la-
ços apertadiílimos , para os ter immoveis : riíiet Pl^-^^
juper feccateres hqueos , ignís^ como diz o Profeta
Rey ; da meíma forte y com que Dcos encarcerou
aos Egypcios com as trevas , ficando como immo-
ve'sno meyo delias : Finculis tenelrarum ^ & hm-
ga mõiís compedití ;. mas nem por iíTo íjeyxará o tal
fogo t mbem de queymar , c abrazar os meímos^
condenados.- Ex dicíU EvãngúicU colligere poJ]u^ i,b gS
mus^ , quia incendium anima non folum vidmdo , fed Mor. c^
ttiam e-xperiendo patiamr : diz Saõ Gregório. E San- lo^
to Agoflinho explicando ifío mcfmo diíTc aquella
maravilhoía íentença , e digna do feu engenho;
tMiru , & inefabilibus , pd vem modvs , fanam An^ufii
feu dolorem ah tgne accipiet. Quer dizer , que o fo- A^.tt/
godo Inferno terá adividnde ,. para queymar, cdeCivi^
abrazar as Almas com hum modo verdadeyro, mas ^^^•'^'^»'
admirável, e inexplicável. Que vem a kr , como^'*^*®*'
cxplicaô os Theologos , elevado pela Diviísa Omni-
potência , para poder cauíar efíe ardor exceflivo
fías Almas dos^ condenados. E por iífo o Rico Ava-
rento» quando pedia a AbrahaÕ refrigério nas fuás
penas,, fez expreífa mençaò do fogo , e incêndio,,
em que ardia : Crucior in hac flawma ;p?íY^ moíirar,-
que juntamente com. o tormento de eíiar ligado, ©:■
/ !
331 Difcítrfo XI.
immovcl dentro do fogo , padecia o tormento de fcr
Aíattk ' abrazado do mefmo fogo : Crucior inhacflamma: miu
te Lazarum , ut refrigeret Itnguam mzam. Donde ve-
nhainos a concluir , que hum , e outro tormento cau*
íará nos condenados aqueile fogo abrazador do Infer-
^ • noj a faber, o queymn* , e abrazar, e ter ligados, c im-
nioveisosmeímos condenados.
Efte tormento pois do Sitio immovel , tam ter*
rivel para os condenados , he huma pena , e hum caf-
tigo juílamente devido a todos os precitos , para
caftigar o abufo da íua liberdade, da qual íe íervi-
e raõ para oíFénder a Deos em todo género devicios.
Eílâ liberdade, que por outra parte he o melhor
. predicado do homem , e pelo qual fe diíVmgue dos
brutos, hehumas vezes @ vèo, com o qual perten-
dem os homens defculpar as fuás maldades , como
^^^r- diz o Apoftolo Siô Pedro: G^iiafi velamen habeníes
«P'fi''^-mditÍ4; libertawn. Quereis obrar o que vos dita
*- a voíTi piyxaò , e o que vos incita o voíTo appetitc
defenfreado , c depois voí quereis eicufar com a
liberd ide , que Deos vos deu , dizendo ^ que de
outra maneyra naò fereis livre, mas antes vivireis
cm hum continuo aperto , e eftrciteza , fazendo
naô de Senhor, que fois, e livre, mas de fervo,
c ligada ; que he o que diíTe Jere.nias fallando de
íemelhinres homens depravados em nome de Deo?:
ftrem, Confregifti jugum meum , dirupifti vincula mea , &
^t \. dixifii, mn ferviam. Ora fabcy , que cíie he hum
delírio_^ que naò pôde entrar , fcnaô no entendi-
mento, ou de hum mentecipto , ou de hum fotaU
mente depravado. O jugo , que Deos vos poz , hc
fuave. AfuaLey como tam jufta, e conforme à ra-
zão, naõ he deftrudliva di voíTa liberdade i por-
que a podeis exercitar em evitar livremente o mal,
e cm eícolher entre as couías licitas aquclla , que
me-
Do tormento âoSUioinmíyveL 313
melhor vos parecer, c aflim a voffa liberdade naõ
vos pôde ícrvir de vèo , ou de capa , para . oícuíare»
os voíTos vicios. Por outra parte íabey, que Deos
Senhor noíTo hc zclcfíílimo do fcu domínio , que
tem íobre todas as crcaturas ; porque cflè domi*
nio he como a melhor joya da íua Coroa, e co-
mo o timbre do império univerfal , que tem fo-
bre todas as couías creadas j e aíiim naô coníenti-
rà mais , que as crcaturas racionaes por abufo do
livre alvedrio , com que as creou para íua mayor
perfeyçaô , e merecimento , queyraõ com cfte pre*-
texo zombar , abuzar , e dcfprezar as íuas Leys,
e os feus preceytos 5 e por iflb caflígará com todo
o furor da fua juíiiça efta arrogância dos peccado»
res, com o tormento do Sitio immovel .• Eant mmo*
hiks quafi lapCs,
A liberdade do homem fe explica de deus mo-
dos. Humahe exterior, que íe diz liberdade de mo-
vimento, com a qual nos podemos mover , e dif-
correr, por onde quizermos. A liberdade interior
confíík em humadifpoíiçaô livre da noíTa vontade,
dos noíTos penfamcntos , c fentidos , dos quaes
Deos deixa o governo ao noíTo livre alvedrio. Eflas
duas liberdades , aíTim exterior , como interior ,
quando íaó peccaminofas , caíiiga Deos com o fup-
plicio da^ immobilidade ; Ftant immobihs quafi la-^^^^
pis. Da immobilidade exterior, temos já fa liado, ^^«.,1..
e mofírado , qual íeja , da maneyra , que íe pôde
explicar por íentimcntos humanos. Da interior,
que he,a das potencias da Alma, devemos íabcr,
quehe ainda rnsis penoía. He pofíivcl ( dirá hum
condenado ) que além da immobilidade dcfíe infa-
me corpo j que naô fez outra coufa ao Mundo,
que caminhar pela eíirada larga dos íeus appetites^
c torpezas ^ haja também cila minha Alma , que
hc
}\ !i fl r
;!* ]
, -i^íiff
irii
II
he efpínf^éfcâdo áíemeliiança de Oeos i Aâ intép-^
Genef, 'gif^^fn y ór Jímilimd^^ padecer o tor-
cap.%. iocnto do ^itio immovel em C\ , e em todas as Aias
poccneias , quaes faô a Memoria , Entendimento,
fi Vonrade ií Oh dçfgraça grande ! i Oh tormento
acerbo jíCíioexpíicavèl l Queijo co^po ^shum con,
denado fique immovel para íemprc no Inferno , tor^
mento he exceíllvo , como temos viíio.- mâs que
a Memoria fique immovel , o Entendimento iiTmo-
yei , e a; Vontade immovel, parece agora ao noíío
mefmò entendi.mento CGufa imperccptivel ! Nefte
Mundo naô íuceede aíllm \ íuccedc tal vez por cau^
ia de hum reumatifiiio/ou debuma gotta artetica,
fickr: hum homem privado do ufo de pés j e mãos \
etde todos os membros do corpo , c íó ter a lingoa
expedita para prorromper em ais fentidos, e deíeí--
peradosjmas £em. íe poder mover em parte alguma
do corpo por caufà das duplicadas dores , que íen-
te neftes movimentos. Porem com ifto fer afiirri
f como su notey alguma vez ) lhe fica a memoria li-
vre,parâ fe poder lembrar , ao menos em algun^as
. horas, de algumas coufas , qu2 0 alegrão ; e o en-
tendimento ^ também expedito, para de algum mo-
do difeorrer; e muyto maiS' a vontade, para íe po-
der confirmar com a vontade de Deos , moíirar
paciência no feu padecimento, e efcolher, ou acey^'
tar aqiielles remédios, que lhe parecerem mais con-;,
venientes ; e finalmente períuadido o entendimen-
to, que o mal , ou bem defte Mundo , pôde durar
pouco , íe ani;i;a o doente com eíla confideraçaõ
a fófrer com paciência as íuas dores, c a oíFerece-
las a noíTo Senhor J£SU Chriíb.
í Aííi Tl o fez hum S. Lourenço abrazado , e aíTa*
do fobrc hunas grelhas deferro.com fogo lento por-
líayxo. AíTim -o fizeraò hum Saô Clemente , hum '
- . S.Vc-
Dõ tormenta do Sifk immõveh 935
S. Venâncio , t outros innumexaveis Mártyres,
que padecendo pela ,-F*é rigoroíiffimos tormentos
louvavaõ a Deos., conhecendo, que todas as mo*
íeí^ias ào íeu martyrio haviaô de acabar brevemen«
te com huma Coroa de gloria, Epara que naò aie-
gtieis , que íó as mayores Santos com o luiiie da .,.
fé podiaò moíirar efla generoíidade de animo , letn-
brayvos do valor , com que alguns ainda gentios,^
guiados íómeHtc com o lume da razaõ iofréraõ
intrepidamente as tormentos? porque fe pcrfua»
diao, que todos as tormentos , e moleflias deíla
vida duravaõ pouco, Aqueíle iníigne Varaò Ana-
xarcojmuyto favorecido de Alexandre Magno, foy
fempre contraria aos pcíTimos coftumcs de Ana-
creonte tyranno de Chipre., Morto Alexandre Mag-
no , tratou o tyranna de vrngarfe deile com huma
sr.orte barbara ^ e deshumana. Fez meter em hum
Hiortcyro grande de bronze a Anaxarco bem liga-
do, e depois pilalo em fua prefcnça com dous pi-
ioens de ferro. Anaxarco porém fem dar hum ío
gcniido , nem lançar huma fó lagrima , lhe fdliou,
deRc^modo ; Ttmde , tiinde ,. Tyranne , hoc mmm^^^^^^^^l
vasfiãik^ Amxarcum nm ttindes. FiU ^ pila , ò^/^!|jf
Tyranno ,, eíie vazo frágil da meu carpo r porem
defenganate, que íiaõ poderás pilar o animo, e al-
ma de Anaxarco. Tanto he verdade , que a Alma com.
ás fuás potencias he livre, para mandar, e fer íuperior
nos mayores apertos do eorpo.
No inferno porem naò íerá aíTim. Sc acondé-
mào rivcire a vontade , e o entendimento livre-/
parad:ifcorrer,eíqueccndo fe aiguas vezes dosfeus-'
peccados ^ para eonfídera^^ em algumas coiaías ale-'
grés, e goíicHis^aánd* que qéim eriça s , naõ íeria'^
talvez o íeu iiiferno tam pcnofo. Mas mo heaílim;;
porque na candenado tanto a libcidade do feu li«
vre:
^
Caiet.
art.i.
t l ! >,
I I i>
r
^5^ Difcurfo XL
vre alvedrio^ como o diícurfo do entendimento,
tudo fera fixo» ligado, e immoveli principalmen>
te para tudo aqui lio, que for de gofto , e recrea-
ção : Detmbiutr intelle6íus ad conjiderandum , &
mlmtas ad deteftandum. ( dizem os Santos Padres)
O entendimento eihrá fempre ligado , para poder
coníiderar coufa alguma fora daquelie objcdlo con-
trario ao íeu génio, de pena , c aborrecimento à
fua inclinação, e a vontade também ligada, ainda
para detefíar, e arrepsnderfe, em modo, que lhe
feja de alivio , & voluntas ad deteíiandum. De ma-
neyra que aífim como no Paraiío he o lume da glo-
ria , o que corrobora o entendimento dos Bema-
venturados para verem a Deos , e defla vifía lhes
procede , que neceífariamente o amaò com a von-
tade; aífim também no Inferno ha hum certo lu-
me de pena, e de infâmia , que liga o entendimen-
to dos condenados , e obriga a vontade, e todos
os feus íentidos , e potencias , para naô cuydaf,
nem attender a outra couía , que áquelles objedlos,
que lhes podem caufar pena , affliçao , c defefpera-
Ç3Ó : Teccator videbit , & irafcetur , dentibtts fuU
fremet, & tabefcet. Quer dizer: o peccador verá,
c conhecerá; mas conhecerá , e verá íómente, pa-
ra íe infurecer, para íe morder, e para ranger com
os dentes, epara pafmar de confuíaó,e vergonhaj
bradando, e amaldiçoando odia,e ahora,emquc
naíceo.
Oh Eternidade do Sitio immovel , que todas as
vezes, que te coníidero, me faz tremer de medo,
e pafmar deefpanto! He poíTivel que aífim o cor-
po, como a Alma de hum condenada , com todas
as íuas potencias ha de cftar fempre , e eternamen-
te fixa, para coníiJerar fomente o que for delwr-
ror, c efpanto! Oh deígraçado de mim , fe vi-
' vendo
Do formem âõWwimmovel 3$7
Venda em huma Religião tam fanta, occapo oníeu
entendimento, € vontade, em cuydar oatra couía
ióra da minha falvaçaõ, e dos meus próximos! Oh
deígraçados todos aquelles peccadores, que occu-
pados cm cuydar fomente nas vaidades, e torpezas
do Mundo, rcípondcm , quando faõ admoeflados,e
Teprchendidosypara cuydar em Oeos ^ ou na Éter-
iiidade , refpondem , digo , que naõ tem tempOj
para ofazer ! Ora fabey , que no calabouço do In-
ferno, de queDcos vos livre -, tereis menos tempo,
antes nenhum inftantc , e nenhum liigar , para euy-
daresem eoufa alguma , que vos pofía dar alivio. Sen-
do o tempo tanto, e taô largo, quanto íerá huma
Eternidade , naõ tereis tempo , para coníidcrar em
Coufa^ que vos pofTa confolar , ou dar o minimo go- ^
í^o : Detinebitur intelleãus ad conjiderandum. Sô- 4^
mente tereis na memoria , para vos lembrares ^ e
no entendimento para conííderares , a fealdade das
voffas culpas , e a enormidade das voíTas torpezas;
mas nao , para vos arrependeres , nem para as de-
tcftares em modo, quevos aproveyte: Et voluntas
ãd deteftandum. Nefta vida naô achaftes hum quar-
to de tempo, para vos afafíar dos homens^ e cuy-
dar cm Ocos , ena voffa ialvaçaõ .• là no Inferno j4
compungidos fereis pcrfcytos contemplativos fcm a
menor difíracçaò^ mas contemplativos meramente
da voffa defgraça, e da voíTa eterna miferia. Nefla vi-
da não pudeíks ouvir híía Miffa, nem rezar hú Ro-
zario íem inííràtasdiílracçõesí làíio inferno fem dií-
tracçaõ alguma , que vos poCa aliviar , considerareis
íemprena voíTa grande defgraça de fer condenado a
folFrer eternamente o tormento do Sitio immovcb
Ftant immobtles quafi lafis,
Compáraò alguns a Eternidade á Roda de hum
Relógio , a qual , girando fcmpíe , ,cílá com tudo fí-
Y ' xa
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xa qa^ntoí a© ey^ío ^ ;Qtu poDto do mcj^o. Masí firt
comparo com. o Profeta Ezcchiela duas rodas hmano*
mcyo da outra; Rota m médio Rota. à roda de fó-
iw^io. Mheaquella EterQidade de petias^quc gka íobre o
corpo condenado y teade-o ferapre fixo» e immo-
ircl no mefmo Siíio. A roda de dentro he aquella
Eternidade de penas , ,e confuíaõ » que lhe gira den*-
itro da Alma, tendoa ligada com todas as íuas poten*^
cias, para aaô cuydar » nem fe íembrâr de outra
coufa , íenãada fua roiferia , confuíaõ ^ e defgraça^
Besiter Hc como hum moinho de duas pedras molares.': In-
^P.ia] feriorem-y & fuferiorem moíam , que eftando a pe-
■dra molar , que fica debayxo , fempre immovel no
meímo Sitio , a de (ima a vay moendo ícmpre ,. e cal^
cando fem nunca parar. O condenado pois com o
^orpo,e Alma ^fempre immovel DO mefmo iitio , e
no meímo ponto 5 e a Eternidade de penas , e de tor-
mentos , ícmpre girando fobrc elle^ íem mais ccf-
far. Efte he pois do modo, que fc pódc explicar
por alguma maneyra^ o t^ rmento do Sitio immovel,^
que padecerào os condenados no Inferno f e por
muytoque gemaô^ gritem, e chorem debayxo da^
[• quellapÊzadiíTima pedra molar da Eternidade, naô
ícraô ouvidos -/^í^vy moU ncn: audittur amplws. A-
quiíe íegug agora O' deíengsno defíe diícurío , que
Goníiíts na reíohiçaõ , que devemos tomar -^ eonB-
derando r, que naõ be ainda dada a fentença da noíTa
condenação ^e que aioda temos tem pode fugir o In-
ferno, e ganharoParaiío. Oh infeliz de quem len-
do ,6 ouvindo eflas verdades, naô fe reíolvc adey-
vxar para íempre o peceado! Oh defgraçado daqucU
'ie, que para fatisfazer a huma payxaô deícnfrcada,
a hum goíio momentâneo ,deyxa a Deos pela crea-
Uirâ , renunciando a Bcmavcnturánça C como diz
S, Bernardo > para íe fepultíyí.paraÍ€mpre cro^bumia
COfl-
Dú tormento do Sifioimmovel 3 3 ^
continua miícria: Pofi tanttilamvoluptatem éUrna J^-Btrni
mtfma, A qual confiíie cm grande parte, como atè'^^''^
agora temos vifto , no rigovoío tormento da immo-
bilidadc , aííim do corpo, como da Alma,* Hant imme'^
éíles quafila^ps, á"^.
li i
]
w>
mmmmim
TORMENTO DA PEISTADO UANNO
DISCURSO XII.
r -
Do tormento da pena do Dano.
, ^ Vos nonfopulus meus , & ego non
erovejier» OÍQXT*
Hifltr:
Endco Henrique Conde de
Bcrgh â importante praça de
Bolduc em Flandres aos Olan-
dczes, fem ter fey to no cerco
a devida reíiftencia , que ^'e-^T'^^
querem as leys da guerra . Foy: ^^ ^' ""
depois o Gondc á Corte de
BruíTeilas, para dar fatisfaçaô
á Archíduqueza de Auftria D.
I'fabcl,que em nome deElRey Filippe Segundo gover-
nava aquellcs eftados; porém efcaçamente appareceo,
na audiência , qite logo a Archiduqneza , dcícend o
parte do vèo , que tinha na cabeça , cobrio o rofto , e
diffc. Nem vôs, Conde, ícreis nunca mais noffo folda-
do , nem nds a YoíTa Princeza. E aíTim dito , foyfe vi»
Y 3 ran4
34* Difcurfo XI L
rando-lhe as cofias. Quem o cuydàra ! Perturbou cf.
,j_. te fuccçílp ÚQt^ 1 íorte ao Co.o"de,.que tiem jy^ia ^s^fírta
/■'.■ da antCGàfiní^ra , netótiíkva a íáíiir , por ondt tartt^s
? vezes eotrou , e levado depois no cpche para íua càfa,
';?, .antes defcehar cres dias morreo. Julguem agora os
peccadores , que perturbação íerá aquella de íucpri-
"';■: dcnado , a qiícm Dcds efconderá para femprc õfcu
Divino rofto , face caô fermoía , que quanto mais os
Efpirité^s Angélicos , e os Beaiavcnturados a eftaõ
vendo , fempre mais a deíejaõver : In quemdeJiM''
rant.Angehfr&Jpicere.EouvixB.Q^qnt\\^%íoni\iád^*
^^' ' veis palavras ; f^QS mn fapuhs metis^ é' ego non ero
*ucfter. Vòs nsõ fereis mais meu povo, c eu nunca
mais íerey voífo Deos ^^ para vos fazer àiguni bem.
Eftas palavras bem confíderadas hb o ultimo rayo
do furor Divino, que rediíz a hum condenado no
abifmo mais fundo da dcfeíperaçaô. Que Deos efíeja
fem mim , poiico importa. EUe baí^a a fí mefmo;
nem cti , nem as creatiiras todas , fazemos falta al-
guma àa íer Divino ,á fua gloria intrinfeca,c á íua
Bem?.venturança ; mas que cu para íempre haja de
fer privada da viíia de Deos , ter por titulo , por no-
me , e na realidade o naô íer nunca mais fua creatu-
ra • N072 Túptdus meus. Efta he a mais horrível de
iodas as penas, lie o tormento dos tormentos, hc<s
^ inferno (direyaííjm, e digo bem) he o Inferno do
meímo Inferno. E eíla he, a que os Thcologoscha-
maõ pena do dano; que ( como diz S. Dionyfio Areo'*
pagita ) coníifte em dons termos. Em huma apetência
violenta , c fátua de peffuii' a Deos : Ctifiditas amem-,
c em hum ódio implacável, que lhe tem , de que
brota hum furor inUtil, que o traníporta no mefmo
inftante em o querer deftruir, e aniquilar: F/zr^r
inutilu. Como a alma de hum condenado tem no In-
fernOj além de huma relação reciproca , huma total
-j> - de-
DotõYffJento da pena dv Dãfw. 343
^pendência de peos ; e cntaò melhor o conhece
porfcu Summo Bem, dcíeja em extreino unirfevi
clle;e como por outra parte pelo peccado elU ne-
ceíTariamente ícparado delle ,e otem por feu inimi-
go mortal, quizera loucamente defíruilo , e aniqui»
lalo. A pena impcrceptivei ^ e a dor inexplicável,
que nafce da rcuaiaõ quimérica deites dous extremos
incompatíveis. Defejarcom anxiedade,o que nun-
ca ha de ter , c odiar ncceíTariamente, o que íempre
ha de defejar: Cupiditas améns :^ furor inutilís : ef-
tes dous pontos íaõ as duascolumnas de Hercules,
quencftctaô difficultoíodiícuríodcnotaõo nonpltts
ultra do inexplicável tormento da pena do dano. De-
íèjar Com anxiedade, oquenunea peíTuirà, e odiar
neceíTariamente , o que íempre deíejarà. Quem per-
ceber bem atèonde chegaõ eftes dous movimentos
contrariosda Alma de hum condenado íóentaô fará
conceyto cabal , e adequado , do que he a pena do da-
no.Eemquanto eu com hunslonges avou delinean-
do^ peço ao pio Leytor , que de quando , em quando
pare, e feche os olhos do corpo, e abrindo os da Alma
a coníidere devagar, e com attençaò.
He coiíía horrível, o perder a Deos , ainda que
agoranaõ íabcm os peecadores, o que perdem. Nc-
rte Mundo fóconhecemos a Deos como por enigma, i.Corl
como diz Saô Paulo: Vtdtnms num per j}ectilum /«^"PriJ?
enigmate Quer dizer, com hum conhecim.ento cí-
curo ,eabíh'adivo, em tudo dependente dos íenti-
dos, e aíTim a modo de meninos, mais nos move
qualquer objeclo material. Elle mefmo aí31m o ex-
perimentou , e cm nome de todos aflim o confeíTa:
Cum ejfemparvulus^ loquebar ut parvulus ^fapiebam '•^'^'^s
iit parvtãus ^ cogitdbam ut parvulus. Daqui nafce, ,
que o ouvirmos fallar de gozar, ou perder a Deos
naô faz na noíla Alma , e ao noíTo coração , mais que
Y 4 híia
,.
I
344 Dtfcurfo XÍL
húa leve imprcffaô de doçura , c íuavidade de huni
bem infinito , ou do immenlo pélago do Inferno, em
que íe afunda , quem o perde. Mellior me explica^
reydizendo^aííim. rSe huma mây tendo filhos de me-
ntir idade , lhes fallaíTe defte modo , voíio pay era
Fidalgo muy illuftre, grande titular, c abundante
de riquezas /porem por hum crime delefa Magefta-
de , e de primeyra cabeça confifcàraõ-lbe todos os
bens para a coroa , deraõ o titulo a outrem , e depois
de lhe tirarem a vida, declarai aò- opor infame, ti-
raEido-lhe,e a toda noffa geração a nobreza \ c por
iRo vivemos pobres, e deíprezados nefía extrema
miferia. Que impreffaó ( pergunto) faria eíle dikui>
fo naquelles meninos? Taô pouca faria , que maisi
íentiriaô tirarem-lhes hum fruto , que íiveffcm na
maõ , declarando logo a fua pena com choros , c
alaridos , que naõ toda a dei graça de feu pay, e tam^
bem própria» Que a Igreja Catholica chore a mor-
te de noíFo Senhor JESUGbrifto, íeu amado Efpoío,
vendo , que os feus filhos , o tornaõ a crucificar com
Heh, o&feus peccados.- Rurfus Crucifigentes FíUumDeh
Mf. 6. e que mande intimar pelos Pregadores nos púlpitos Q
muyto,que perderão, perdendo a graça de Deos,
G o fogo do Inferno , que merecerão , c para íemprc
haõ de foffrer , fe naô fe emendarem , he coflumc
jiuílo , util , e ncceííario ; mas com tudo vemos , que
toda efta perda, e dano irremediável , faz taô leve im-
preíFaõ nos ouvintes,por fer objcdo diflante,e efpiri-
tual, que mais fentem ordinariamente os pcecadores
qualquer perda temporal, eprefen^te. Mas naõ ha de
fer fempre aíl5m. No mcímo inftante ,qu€ a Alma
de humpcccador íahedo eorpo, a modo de quem
fe deípcrca de hum grave foflo : §luiijl tvigtlans de
gravifomno.^^; fua entrada- ^©Inferno, o primey-
ro objcdo ^q^uefc lhe rcprcfciitarà íerà Deos. Affini
ÍUCGCi-
Genef.
4f.
Do tormento da p^naêúf Daf^» 34Í
fiicccdeo ao Rico Avarento. Em quanto clieve
nefte Mundo, naô tratou mais que do leucorpo,ve-
Íiind0'0 de purpuras, olandas , c galas , c regalandd^p
em banquetes com prcciofos manjares ; Induebaiit
fnrpura , & byffo ,. & epíflabatur quotidiejpkndide, E
logo i que fe viono Inferno, oprimcyro movimen-
to ) que fez , £oy levantar ps olhos para o Çeo ; Cum
ejfet in tormentú , kvavit óculos. ]k conhece a felice
íorte ,que tocou a Lazaro. Jà fc lembra de Deos , c
por ifto recorre ao pay Abrahaô : Pater Abraham mi' Lhí^
fereremeij mitte Lazarum. Jà fc contenta para feu
alivio , que Lazaro lhe leve hua gotta de agoa na ex«
tremidadc de hum dedo. Que Freneíís he efíef E
que tem que fazer hua gotta de agoa com hum incên-
dio de fogo? Ah, que a fede, que abraza ao Rico
Avarento, he o apetite innâto de ver a Deos, como
bem o diíTc David : Sitivit anima mea ad te Deum
f ontem vivum , quando venUm , & apparebo ante f a- ^P*''^ ^
ciem Dei, E como conhecia já claramente , que a
fonte viva da graça já naõ era para cllc y pois o cami-
nho único para íá chegar, era o ter vivido nefte Mun-
do como Lazaro y c como Abrahaó , e vendo , que já
na5 cftava in via , para o poder fazer , por iíto cfta-
va lacerando- íc intrinfccamente com hum defejo fá-
tuo, c com hua anxiedadc frenética : Cupditas amem^
mitte Lazarum.
Será Ic^o poífivel , que a lembrança de Deos, c
do Parai fofírva de inferno mais pcnofo aos condena-
dos. Aílim he íem duvida, e a perda» que tem fcy-
to de Deos, he o mais cruel dos íeus tormento? í pois
fe ellespK>dcírem efqueccrfede Deos, e do Paraifoj
naõferiaôemhom certo modo Precitos. Diz o Pro-
feta David, que o peccador verá, c fe enchera de
raiva, fremirá com os dentes , e pafmarà de pena:
Feccater vídebít y & irafcetiir y dentihus fuis fremet^
à-t^z
I í
Sifp.^.
AftgJ,
Z.Conf.
& Mhfiêt. Eis- aqd i os t re&^ôbjeélòís da fua vífta-^ «
dá ília contém piaÇáõ. Qac tem perdido a Dcos ; que
ò tem perdido pòr íuâ culpa , e vontade ; e que o tem^
perdido por cotifas^ de pouco miais de nada. Seria
«eGeíTariò Goiíhecet idtiiitíVamente as infinitas per-
feições de Dedsvp^ra comprchcEider a perda inex-
^lÍGàVel do Paràiío/Eriíiijiíaftto vivemos íiefte Mun-
do , naõ fentimoi â lídiaô natural , que ha entre
Dcos,e as nofe- limais; ca correía^aò neceííaria,
que ha entre o Gtàdó¥^ V e a^ círeaturâs. ■ O peíb de-
âc noffo corpo aííaÉa domírgb a ^Inia^ a eflas-couías
dã terra: Corpus^ qmdtoffêinpUur^ àggravat-am'
mam. Eeomo naò conhecemos a Deos ic naó abílra-
(flivamente pelascreãturas, fazemos pouco caio de
o perder, par eaufa delias. Porém no Inferno na&
heaífim. A Alma defa pegada dos noíTbs íentidos, cd^
nhecè cntaô claramente, que lhe he mVpoíIivel i bern
Deos > gozar da Bemaventurançâ vrépátà no grande
bem, que tem perdido ,e no miíeravel eftado , em
que fe acha. Aqui exclama Santo Agoftinho. Ah , que
torinento inexplicável fera' Gónhecer a Deos , d^poia
de o ter perdido ! §uam hornndum efiviâlre Dèuú^
^ pgydcfc f •' í^"fÊ''< * ^VU' 4íí*i íí »' cj íj oi íí
Ss o Inferno foíTe capaz 3c'*árgiima cortfôlaçfíô^
aquelles Gentios, aquellès Megrosbuçâis > aquellcs
índios , Idiotas , e Bárbaros , que eftaô nolnfêrnoii
poderiaõ dizer. Efta mos penando. E que penas ! E
que dores/ E que tormentos , taes e tantos , que
íó quem eftá aqui, eos padece, pôde dar conta del-
ks ! E com tudo naõ tivemos o lume da fé , nem to-
da a facilidade ,6 commodo,para íalvarmos as noí-
fâs Almas. Tenho perdido a Deos (diria algum dc\^
les ) mas poíTo aííirmar, que quafi naò o conhecia,
íenaócomo remorfo da findereíi, que me fazia di-
fíinguirobem domai. Ah,quefe eu o tivera bem
CO-
. Do HtMéntéik^ffflu do Dano. §47
conhecido', como os Çhr jflâos ', t^aô/ cRarra líeftes
tormentos! ConfeíTo na verdade , qiie tive a graça
fuiiicientc , para obrar bem , Ceíalvarme j jms que
cffey to podia fazer cfta graça íufficiente vivendo eu
entre íaivíigens , quGfiHais parcciaõ beíias, que ho-
mens. Devia ícguir a luz da rãzaô, aflim hc; mas
que luzes podia ter hum entendimento rude, íem dif*
eurfo ; huma razaô inculta, lem efíUdo,íem letras,
íéminftrucçaô! Ah, quefe Dcos tiveíTe permittido,
q^evieíTc hum Miífionario , c me alumeaíTe coma
doutrina do Evangelho , naô eftaria agora penando
no inferno. Coníidcre agora o pio Lcytor , que tor-
mento fera para hum Chrifláo condenado, para hum
Catholico , que tem vivido no grémio da Igreja;
muyto mais , fc efle Gatholico foy nafcido, c cria-
do em Portugal, que hc o Rcyno pela piedade, e
pureza da fé mais amado de Deos; Bde purp,m^ à" ryn ^
fictate dileãtim. E íe Deos quiz; que ocaradcr dof^/Ji
Bautifmo foífe indelcbil até no Inferno , para que
o Chrifíaô precito tivcífe fempre prefente,quc cllé
meímo fc condenou , e naõ ve , nem verá nunca
mais a Deos, porque aííim quiz. Domefmomodo
o fernaícidoPortuguez lhe accreíccntará a pena do
dano , tendo fempre fixo na memoria , que foy cria^
do entre clles, c que íeus pays àcíúz menino ihe di- *"'
ziaô íempre , amarás a Deos , íobre todas as coufas ■
e fugirás opeccado, que fó nos pôde impedir, de
ver, c gozar a Deos no Paraiío j e agora , que conhe-
ce todo o feu bem na execução detles documentos,
quer amar 3 Deos, e naõ pôde; porque no mefmo tem-
po lhe tem hum ódio entranhavel j eímerafe , para
chegar a cWt , c Deos o lança , e lançará para' íempre
àzÇwCnpidit as améns, DThi.
Vh doutrina de S. ThQmàs,e dos SS/Padres , co- 2.6W
mo todos fahcmos, que Deos he hum bém infíniro,^*^»^*;
''' ■ ■ ' e in-
m p - ;
ônm
mmm
c iofiaítamcntc pcrfcytò ,naò fó na {\m eírencia,mas
cm tQdas as íuas perfeyçôes. A fua fcrmoíura he in..
finita, e infinitamente pcrfeyta a fua íapiencia hc
infinita, einífnitamcnte pcrfeyta.; a fua Santidade
4c:infinita ,e infinitamente Santa. O mefmo fe en-
tende dos mais attributos. Daqui , fe feguc , que
quem perde a Deos, naô íó perde hum bem infini-
to, mas hua infinidade de bens infinitos, que todos
fe reúnem na Divindade , como no fcu centro. Eic
devemos medir no exceífo defta pena , com o exccíTo
do gáudio , que havia de gozar $ confidere , quai íc-
rá o exceífo da pena do Dano , e com que anxiedadc
deíejará recuperar efta perda , que naô contem me-
nos, que huma infinidade de bens infinitos : Cuptdttas
améns. Perdi a Deos ( dirá entaõ hum condenado j
c em o perdendo , perdi o Reyno da gloria , aonde eu
havia de reynar eternamente. Oh beila Pátria! Oh
Clima Bcmaventurado ! Oh Beata Eft anciã ! Tam-
bém eu là tinha o meu lugar , que como a Filho, c
herdeyro me eftava preparado. E íempre me fuy li-
fongcando , que no fim da vida là haveria de ler a mi-
nha morada. Mas (oh trifte peccado )! Sempre te
vercyprefente na minha memoria, na minha imagi-
nação, no meu dcfejo;mis para nunca entrar ncl-
T>m. ia: Kidehu eam ,fed non intraht ad mam, lerdi a
34- Deos , c em o perdendo perdi o lume da gloria , por
meyo do qual os Santos o eftaô vendo facie ad fa^
ctem-j e contempiando-oaíTi m mefmo , como he*
Sícuíi efi. Perdi a Deos , e em o perdendo , perdi a
companhia da Virgem May de Deos , que tanto me
favorecia; do m^u Anjo da guarda , que tanto me
queria, c de tantos outros quefe íalvárao, meus co^
nhecidos, Parente^ , c Amigos. Oh que confoUçao
teria cu de converíarcom elles, e como abriríamos,
com fidelidade , e amor huns aos outros os nollos co-
taçocsik
I .Cor.
Do tommedapenado Dano. 149
façôcs. Mas como as minhas culpas iíaõ totalmente
©ppoflas á graça fantificante , que cllcs peíTuem , me
hao de aborrecei , e lançar de fi, como a hum Demó-
nio, Gue euíou. Finalmente em perder a Deos, perdi
amim mefmo,e tendo perdido a Deos „e a mimmeí-
mo, tenho perdido tudo. E fe tudo eflá perdido. Que
me refla ? Que me fica ? Ficamc unicamente o íer. E eh-
te íer de que me íervii à ? Sò para fcntir , e íofírer ef-
ta pena da dano taõ iníoffrivel J para me afíligir para
íemprc , c me fazer delejar ,. o que nunca hcy de ter,,
ncmvcriCup ditas améns.
Quando foy intimado a Ovidio o areflo de Geíar,
com o degredo para a Província de Ponto, naõ hc
creivel a pena , que naquelle apartamento íentiraô,,
aflim clle como a fua cara coniorte,. e os feus ama-
dosillhos. Foraô taRtas a$ lagrimas, taes os alaridos, e
tal a confuíaô naqucUa noyte ,que naô a foube o Poc-
tadcícrever melhor , que dizendo , pareecrlhe a fua
cala naqueIJas ultimas deípcdidas, hum Mappa,em
que cflava epilogado em ponto piqucno a confuíaô
do incendia de Troya. OvidJ^
SíMcet in parvÍ4 exemplií grandl^síitL FmiK
HacfaciesTroíie^dumcapretur^erat.
Fraca fcmclhança hc a do ícntimcnto de Ovidio, que
tanto encarece ,. o viver em hum degredo auzcnte
da conforte ,.e dos. filhes. E que tem para fc queyxar,
quando na fua maõcftava o poder, aliviaras iuas fau-
dades. Finalmente o feu degredo era de húa parte do
Mundo para outra,, de Europa, para a A fia } e íe as au-
fencias dos filhos foíTcm dilatadas, e as faudades ex- ^
tremas ,ie era prohibidoao pay o tornar aRoma , po-
*dia remedia las, com mandar aos filhos , que de Itália^ ]
íoíTem para a Grécia..
Melhor reprefentaçaôdcfía pena do Dano, acho
eiLnaXagrada Elcritura laa pcffoadamãy de Tobias
ili
/ , ■*
li.
T»k.ç.^
IO.
oMôça M^ádau o V^eiho Tobias a íeu filba^tiô^
Píiízesda Media , vaiara cobmr dez talentos , que
por bum credito corrente lhe devia hum certo Gai»
bêio. Porém ainda que a diíiancia do Paiz era graa-
de, inuyto mayor pareceo à mãy a diftancia do tem-
po l que não podendo^ jà mâis^ foffrer as auíencias do
"áMio , começou a laftímarfeáífim , em p^refença do
marido. Ab meu caro Tobias , meu filho amado,
íi lho do meu coração. Aonde eftás f Por onde an-
tdas ? Què nos fof^mosrtaô cegos , de vos mandar
para hiia cobrança, que taõ pouco importava ! Mal-
dito dinheyroi nunca fòíTes noíTo ; pois fofte caufa
dè huiiia taô grande perda : Nunquam fuiffet fecmia^
fro qua mififii eum. Baila vanos a noíTa pobreza, c
-agora , para fermós mais ricos em perder ao noíTo <l-
31 hti temos per^dido tudo. Temos perdido a luz dos
^õiffos oíhòs^, o noíFo bem f a noíTa coníolaçaô, o
4?ordaô da noffa velhice; a coluiiina da noílacaía , o
iuíire da noíTa família , o gofto da noíla vida, e a
icfperança da noffa pallcridade. Tudo ifto perdemos,
; porque iílo tudoeftava encerrado no meu único fi-
lho ://^« ^ heu me, FtUm,Ut qmd te mtfimúl pe^
regrinari , lúmen ocuhmm nojlrorum , bacuhim fe»
ne^utíS noftra^ foUUum vita mjira ijpem fojien-
tatis nojira. Omnia fimul in te uno hahentes ^tenon
debumUs dimittere a Hobà* E dizia ilio com lagri-
mas de fentimcnto taõ inconfolaveis , com foluçoS)
e ays taõ altifonantes , que os montes circumvcfi-
dhos, feCoíTem animados, diriamos, que acompa-
líhavaocom o eco afua pena por compayxaõ. Tal
ihe a dor de huma mãy na perda de hum filho, que
'amaiecuyda, naòhadever mais; lhe parece huma
dor íem remédio ; pois perdco nelle todo o íeu bem :
Omnla in teumfimulhabêntesytenBn debuimus di'
^ittére* ■ -. :■■' ■ \ - ■' ■ --^ . ..'. . -< ■ ■ '^-^
Do mmeniõdapena MDano^ '^f%
^rr "^zmhtmt^^htlxúmíL dcbil figura dá noíTapeiíá'
docianopara exprimir a dor imperceptivcl de hum
íniferavcl condenado , que perdèo a Deos. Se a
mây de Tobias chorava huma breve atifencia de feu.
filho com lagrimas , qtje o mcfino Texto Sagrado
chafíia inconfolaveis , pois naõ cfpeTavadellaâ fe-
fnedio.- Lacrymis irnmedíabilibus i porque achava na
preíença do filho tudo o que dcíejava ,e nafua aii»
iencia , fentia a falta de todo o leu gofío. Quedef-
gíOÍto^que pena , que dor , que trifícza , que rayva,
que deícfpcraçaõ de hum réprobo , quando ficará
com evidencia perfuadido , que perdendo a Deos, « ^
tem perdido tudo ? Quando verá , que naõ o perdeo /^
por alguns mezes, como a n:'ãy de Tobias a ícu fiiho,
mas por annos, c fcculos, epor huma eternidade»,
que durará para fcmpre ; entaò fi , que o infíinto
natural , jádcfempedido do pcfo do corpo, a moda
de fogo , quando vcnceo as difpofiçôes da matéria
çombuflivel , com mayor Ímpeto fe lançará abufcar
a fua esfera , que hc Deos > e no mefmo tempo , vejl-
dofe oprimido pelo pefo do peccado^ que a modo de
hua pedra de moinho , o obriga aparar no Inferno,
quehe© ícu centro j entaõ convencido por expe- ;, ^ ;v
neocia da íua infinita defgraça , prorromperá em gri- :\x\%, «^
tos,eays^ dizendo aflim. Aytrifte Alma ,37 Alma
infeliz , que ha de fer de ti ! Tenho perdido a Deos,
€ cm o perder, perdi a mim mefmo, e tenho per-
dido tudo. Chora defgraçada , chora ; dcbraastuas
lagrimas ,e redobra os^eusíuípiros. Maldito feja o
dinheyro; maldita feja a fazenda , que me cauiou taõ
grande perda. Maldito icja o gcfíoj. maldito ítja o
dcleytc,queme cufíáraõtaõ grande tormento. Mal-
dito feja o amor ás creaturas , que me neceíTita ago-
íaahum ódio implacável ao meu Creador , c fendo
elic mcit inimigo 1, .mo tcabo mais ^ que eíperari
^ ' >i tenho
WÊÊÊÊ&M
f'!
í: ;
/lf'Sfl
3^:^ Bf/cur/b M. -^n
tcníio perdido tudo. Perdi a Deos i perdi ao ineuLeiíí}
perdi a mim mefmo. Acaboií-fej tenho perdido tudo,
eíetudoeftá perdido, que merefta» Se naõ dizer*
Gíiora miferavel -; chora defgraçado j grita; geme,
fofre, c peaa para penar para fempre , e gemer, e cho-
rar eternamc nte ; Cupi ditas amem.
Ainda fará íubir mais de ponto efte tormento da
pena do Dano a feria confideraçaô defta verdade,
que agora direyj evem a fer^ que a Alma de qual-
quer condenado no Inferno tem hua capacidadç co-
roo infinita, a qual nunca podefer chea, nemíatis-
'A if / ^^^i^ naõ for occupada por Deos $ c aílim como
#<í*// ^ ii^ture25a naõ admitte o vácuo.: Non datur vacuum
wrerum natura f porque eftaria como violentada,
Ceando o Mundo em húaperpetua guerra batalhando
entre fi os elementos com hum dcfconcerto notável;
aíSm por efte principio, a pena do Dano he hua pena
infinita ; porque deyxa como vazia a capacidade da
Alma, privando-a de Deos, que he hum bem infinito.
Que a capacidade da Alma feja infinita, prova-fecom
dous princípios indubitáveis,! e ambos fundados na
Efcriturafagrada, Oprimeyro, que he Theolx)gico,
0 T-^gíerà para os Doutos , o outro ^ que he fiíieo moral,
é^alti.' fervirá para todos. Maõ ha coufa mais fallada na
Theologia , que ferem as creaturas correlativas ao
íeu Creador i nem fe pôde pronunciar, ou entender
efti palavra creatura, fcm ficar nella incluída a re-
lação 'tranfcendental , que tem com o íeu Creador.
Além defta.e miiytas mais relações, tem qualquer
Alma hurna relação de íemelhança , por fer imagem
de Deos : Fadam us homimm ad imaginem i & Jim>
úene[, i lltudmsm noflram. Em ordem á natureza , he a Alma
^^' imagem de Deos, por participação do feu fer. Em
ordem á graça , he imagem de Deos por partici-
pação da fua fantidade. Em ordem a gloria he ima-
gcm
Do tormento da pena ào Dano. 353
gcm de Deos por participação da fua bemaventu-
ranç3. E ifío he canto aíTun , que diz Santo Agoftinho,
que confórriK Deos naõ pode cihr contente, nem
latisfcyto , íe não gozando de íi mefmo , allim a
Alma como fua imagem, naòpôde eíbr contente,
nem fatisfeyta, fe naõ gozando de Deos; Domine .^^J*^
ftcifti nos adte^ & ine[uietum ejl cor nofirwn , àomc ''
requiefcat in te.
O outro principio , por onde íe prova a capaci-
dade da Alma fer infinita , he a infaciabilidade das
payxões humanas. Coufa tão certa , que qualquer
peccador o pô.ie experimentar em fi nos vícios, a
que he inclinado. Vio-fe algum dia hum Avarento ^^.^^
íatisíeyto das ÍU3S riquezas, por muyto, que peírua?,^^
tomara clle ainda mais, e nunca dirá bafta; Num-
quamdicit fuffiat. Por muyto dinheyro, ^juc tenha, ^^j^^.
diz o Efpirito Santo , que o íeu deíejo nunca ficará j.^.
cheyo : Avarns non im^lebitur pecunta. Ainda que,
com violências ,e ufuras grangce todo efte Mundo,
não ha de eftar contente. Se naõ diga-o Alexandre
Magno, que ouvindo dizer loucamente como no /'/«/.r»
concavo da Lua haviaõ outros Mundos, ainda naõ'^^'/'»*
tinha acabado de conquiftar huma pequena parte def»
te, que logo começou a chorar, e entrifleceríe,
annellando com anxiedade para a conquilla dos ou-
tros. E ifto porque? porque a payxaô da cobiça he
iníaciavel. Vio-fe algum dia hum íbberbo íaiisfeyto
das honras, e eítimaçaô , que fazem delle ? Parece,
que o havia de fer Aman; pois era valido de ElRcy
Aííuero, que dominava atè a Índia cento e vinte
íete Províncias. Era Amana íegunda peíToa da Mo-
narquia ^ fecundusa Rege. Tinha immcnías rique-
zas, e tantas honras, que íó clle com a Rainha fe
aíTentavaõ na meia com EiRey ; e com tudo confeíía-
va ellc meímo j que lhe parecia não ter nada , porque
Z ao
Ij
Prsv.
i)
3J4 Di/cur/o XI L
ao entrar do paço naõ fe levantava Mardoquco em
pé, para o faudar ; Et cum hae amnia hãbeam nihil me
hãberepiíto^ qmaudiu videro tJHardachêum fedentem
ante fores Regias, Mas que vos íalta AmaDrdcque
vos qucyxais í Porque fazeis eafo das corieíias de
hum foidadinho de taóbayxa esfera ? Porque!' porque
apayxaõ da foberba be infaciavel. Vio-fe algum dia
hum impudico farto da fua luxuria? Ciaro eíiá, que
não, Quanto mai&fe uivolve no lodo da fua impudi-
ci.cia,t^nto maisdeícia enlodarfe^ pedindo como as
fangui fugas de Salomão fempre mais deleytes; Di-
centes^ affer-^ ^ffer. E ifto porque. Porque apayxaa
da luxuria he inlaciavel. Logo he evidente,, a iníacia-
bi lida de das pay xões hum anãs..
Iflo fuppofto 5 eontinuemos agora o noíTo difcur*
fo , e argumentemos affim. Se toda a payxaõ humana
he infaciavel , e no coração per ver ío de hum repro-
bo^encerraô-fe tantas payxôes , ea mayor partedellas
entre íl efpeeiíicamente diverfas. Julguem agora, qual
he a capacidade da Alma.E fe a Alma foy creada ,p3ra
íómente fervir, e smar a Dcos , com quem tem huma
total dependência 56 huma inanidade de relações , co-
mo temos viílo acima ; quem duvida fer ncecíFa rio,'
que a íua capacidade íeja como infinita ; pois íó
Dcos pôde encher aquelk vácuo tão immenfo , que
ellacontem em íi. E conhecendo claramente a Alma-
de hum condenado y que íó poííuindo a Deos poderá
chamarfe fatisfcyta ficando íocegada , e quieta no
íeucentro , como o fogo na fiia esfera ; e vendo, pois.
que Deos pelo peccado , de que ella eftà rea , a jnnça
com forordeíi, e foge fempre delia ; coníííJere o^
peccador, que violência, que tormento , que dor
que triíicza , que defefperaçaò ! Defejar fempre , e
querer , o que nunca lia de alcsnçar , nem poíTuir..
E efte defejo aOim violento ,, e fruílraneo, eOa an-
■ * - xie-
Do tormento da pena do Dano, 35?
xicdade aíTim fatuâ , e deíeíperada, cham3-fc,ehc
na realidade a verdadeyra pena do dano: Cupditas
améns.
O que accreícentará cm trefdobro efta pena do
Dano, c apurará mais a anxiedade, e dcíejude vera
Dcos, , e unirfe com ellc , fera o lembrarem-íe os con-
denados , que perderão a Dcos , naô fó , porque qui-
zeraõ) mais por contentar huíT» apetite, por dar
goftoahum Amigo, eporcaufasde pouco mais de
nada. Narcifo vendo a fua imagem nas agoas crií*
talinas de huma fonte bem limpa, todo o feu defvelo
craouniríe mais de perto comella, porém todo o
íeu trabalho íempre era de balde, e a íua mais ex-
a<fla diligencia inútil ; porque logo , que chegava a
tocarcom a maò a agoa, cila turbava-íe, cdefapa-
recia a íua imagem. Aqui era a íua pena iníoffrivel,a
íua doríem remédio, que o obrigava a laftimarfc.
Utque magis doleam^ nen nos marefeparat mgens.
Non viay non montes , non cUufis mama portis. Ovid,
i Extgna prohibemnr aqtia.
Eparamayor tormento das minhas íaudades , o que
me impede a uni aõ como objcdlo amado da minha
imagem, naò he hua navegação perigofa do mar Atlá-
lico; naó montes alpeRres , naò caminhos dilatados;
Exignaprohibemur àqua. Bem fey que efta madiofa
narração de Narcifo he hum invento poético, fahido
do fecundo engenho de Ovidio. Mas fey também, e
naô he fabula , mas verdade de fé , que a Alma de
qualquer precito foy feyta, ecreada ,como diííemos, Genef,t
conforme a imagem de Deos , aã imaginem Dei crea- 2.7.
vit tilam. E conhecendo o mel mo precito , que Deos
he a fonte de todos os bens 5 e que pela fua immeníi*
dadeeftà em toda aparte, e raõ perto delle, que o
circumda, e eíU nelle. Entaõ Cupiditas améns aquelle
dcfejo fátuo o obrigará a gritar, a> bradar^ e-lafti-
Z 2 mar-
u
356 . Dtfcmfo Xll
maríe, dizendo!; qae divi|e, quem fcpára , quciH
impede a uniaô da creaítírá com o fcu Creador, a
copia com o íeu original, a imagem com o fcu Proto*
tipo : Exígua frohibemur aqua. O impede , o prohi-
be hu3 pequena de agoa do bautifmo defprezada ; de
agoada graça trocada por hum pondonor. por hum
gofto , que durou hum momento j por huma pequena
de fazenda naô reíiituida.
Que queyxas j que fuípiros, que lagrimas, naõ bro-
tava Lifimaco Rcy de Thracia ! Foy cfte bloqueado
côtodo o feu Exercito por Dromicheres Rey de Ma-
ce Jonia em hu íicio apercadiííimo 5 onde a penúria de
agoa o neceíTitou a renderfe à diícripçaô , reftando el-
le , e todo o feu Exercito priííoneyros de guerra , fem
^|- liberdade, fem Reyno , c fem mando. Chegou depois
^'^^' a íaciaríede agoa; e apagada jà a fede, cahio em
íi ; e coníiderando-fe íem Reyno ; fem íubditos,
fem mando, cfem governo j qual outro Efau, que
vendendo a Jacob a Primogenitura por húa eícudella
C'H' de Lentilhas: Irrugiit clamor e magno : do me imo
^7- modo começou Lifimaeo a chorar , a gemer , c a bra-
dar, dizendo de íí pafmado ; Que feja poílivel , que
hum Reyram potente, hum Reyno tam dilatado, e
hum povo tam numerofo , tenhamos hoje todos jun-
tos feyto naufrágio em hum púcaro de agoa ! Párvula
, nau fr ágio fnfícit anda meo\ Coníidere o peccador com
attençaò. Quantos eflaó agora no inferno , voffos co-i
nhecidosj voíTos Parentes, voííos Amigos, e por ven-
tura complices dos mefmos peccados , que ambos de
dous cometeíles. Sentem os meímos tormentos , pa-
decem a meíma pena do Dano. E porque ( como diíTc
o S. Job ) por dar gofto aquelle /\mígo , por íatisfazcr
ao fcu apetite , beberão , e tragarão o peccado mor-
fob c. tal; como fefoíTe hum púcaro de agoa: Bibit quafi
'5io- aquam imqwtaUm. E de que fervem agora as lagri-
."'í*'^»' maS|
Dõ tormento da peifaáõ Dam, 3J7
ínas í os pezares , as queyxas , e os fufpiros , íc jà naô
ha remédio, tudo he de balde, e íó fica hum dcfejo
fátuo : Cupditas amem.
Quero dar fim aeíieprimeyroponto, comhum
reparo de grande conícqucncia,edefcjo,que bem
coníiderado fique imprcíTo no noíTo entendimento.
E vem a fer, que pelo appetite innato,que tem a Alma
para com Dcos como a íeu ultimo fim , qualquer pec-
çador depravado, ainda neík Mundo, quanto mais
fe immcrge nos íeus vícios, tanto mais buíca nelles
( íc bem erradamente ) ao feu Deos. Etk reparo,
queáprimcyra vifta , parece incluir emfi dous ter-
mos oppoftos , íahio do grande , e agudo engenho
de Santoj\goáinho, que diícorre aííim.Oh Alma pec-
cadora enganada , pecca quanto quizeres ! Na tua
mayor deíbrdem ( ainda que naóqueyras) buícaràs
a melhor ordem, que tu tens com Deos. Cuydas,
tgue bufcas as riquezas, mas tu te enganas, porque
o que buícas he a abundância , e efta náo fe acha íe-
naô cm Deos , que tu bufcas , fem o íaber, Cuydas,
^ucbuícasosgoftos,eo deícanço , mas como o ver-
dadeyrogofl:o,eo deícanço, íó cíià em Deos, go-
zando deile, buícas a Deos, íem o querer buícar.-^^^^^y^;
Cogitas , te CõHgerere divitias 1 fed ahundanttam qUfS-Ub.-ip,
ris , qua infolo Deo eft , &c. De modo , que a Alma ^' Ctv,
cm todo o tempo , e cm qualquer efta lo , fempre ^"t
aneila ,com uniríe a Deos 5 com efta diffèrença , que
o feu dcfejo nefta vida , fica como fufpenfo , e retar-
dado por duas razões: Primcyra , porque o pcfo do
corpoY como já temos dito J hecomohui carga pe- . _^
zada, que oopprime; Corpus quod corrumpitur ag- ^^f'^'-
gravat animam. Segunda razaô he; porque eftando
ainda /V^^/^naó fica cm eirado de ver a Deos, epor
iflofelheatraveíTaó nos íentidos milhares de obje-
^os, que â oceupaò,e a divertem, Mas quando a
...:,,_ 2 ^ ■ Al:,
1
l '1
358 Bifem fp Xll.
Alma fe achará na outra vida já ( como dizem oé
Theologos)/»íír«í/«<? aliviada do peíb deíle corpo
mortal , e defpida de todos os objedos , que a podiaô
divertir ,jà fem demoras , íem íurpenfaõ^e fcm diver-
timentos, que ihe empediaô o conhecimento dofeu
único, e Summo Bem,que he Deos; entaô rim,quc def-
velando-fe claramente a pena do Dano , faz fentir a
hum condenado o tormento inexplicável , que he
huaijdeíejo fátuo j pois he defejar húa quimera , e húa
uniaóimpoíTivel: Cupiditas améns. Sc pois ajuntar-
mos na Alma os dous movimentos violentiíTimos,
hum he o inftinto natural, que vendo-fc defempedi^
do do,çorpo, quer impetuofo unirfc ao feuSummo
bem. O outro he hum dcíejo vehementiíTimov que
temdeveríe livre dos tormentos horríveis do infer-
no , que tomara foíTem jà acabados. E como pelo
rigor deftcs tormentos jfè ha de medir o deíejo de
fc ver livre dellesjíendo os tormentos, fem termo,
c fem medida; aílim também o deíejo, de íe unira
Deos, hefem medida. E comove, e fabe , que ci-
ta uniaõnaòfe faz, nem fe pode fazer , por caufa
do irrevogável arcfto .• Fos non foptãus mem ^ & ego
non ero vejier.' Aqui cM ocíTenciai da pena do Dano
com o íeu dcíèjo fátuo: Ctípiditas amcns. O qual
defejo vcndo-fe fruflrado , de louco paíTa a frenético^
e íe faz a modo de híía fúria bacante no Inferno : Fu*^
forinutiJts] que he o ícgundo ponto, que propu-
zcmosneíie taõ importante diícurfo.
He reflexão beliiífima de S. Agoflinho , que cm
do Pon qualquer combate de algua payxaô predominante,
í^' quando naô íe pôde alcançar oquefe intenta , ou ío
perde forçadamente algum bem , que muyto fe eí^i-
^l*g' maj a violência deíie deíejo ordinariamente degcnê-
deChi ^'^^"^^^^^^P^^^Ç^õ , ou furor ; huftrata cupiditaSy
,DeiJ^'^^ «^« .^^ri;^»/W<? , quò tendebatyfive amtttend&^
-- quQ
Q[s£
Segu
ut
Do tormento ãapenà âoDano. 3 ^p
t) pervemrat , vertiiur in furorem. Mandou El-
Kcy Nabucodonoíor paíTar hum edid;o,em que orde-
nava,que todo íeu Vaffallo de qualquer condição,
que foíTe, em ouvindo tocar certos ifilirumencos, fe
proíiraíTe de joelhos, e adoraíTe aíua Eíb.tua de ou-
ro. Três mancebos Hebreos inimigos da idolatria,
recuíáraô adorar a<3uella falfa Deidade. Que faria
ncfte caio hum Key offendido? Os mandaria pren-
der; que lhes formaíTem jurídico oproceíío, edan-
dp-Viítaás partes, quediíTeííem de íua juftiça,e os
fentenciaffem conforme o direy to f A nada dirto deu
lugar a payxaó » pois íubindo o fogo da cólera
cícurecco ama^efiade, c perturbou-fe o íereno da ^^^
íua fronte: Aj}eãus faciei ilUus tmmiitatus eft , CcapAo.
degenerando a ira em furor : Repletus e/í furor e : man-
dou acender fete vezes mais a fornalha , para que
todos três foíTem qucymados vivos nella. E porque
jfto ? Porque a payxaô da ira degenerou em furor , e
fúria fem proveyto : Furor inuúlis. Em hum con- ofeãi
denado naõ he aíTim; porque o objcdlo do fcu furor
naóhe períegiiir , o que elle aborrece; mas querer
o meímo , que elle com anxiedade buíca ; naõ he
querer deftruir o que aborrece , mas querer o que
elle deícj^, e defejarà ícmpre. Naó he querer ani-
quiilar a quem dellefempre fe aífafta , mas intentar
com todas as forças de eíiar fcmpre unido , com quem
femprc o lança de íl. Furor na verdade inútil, que
naõ tem alivio algum o deíabafFo , como hum furiofo
neíiavida;e coníeguintemente, naò ferve demais
a hum mifcro condenado, que accrefcentar o feu tor-
mento, e render mais cruel a pena do Dano, que
agora conhece íer a privação , e defgraca (\q feu-
Deos , que o lan^a doii fora para fempre : Furor ínu->
tilú.
Explica eítc furor Saõ Vicente Ferreyracoma
' . Z 4» íc-
2. .^eg.
18.5.
2
§9
Reff
o-
160 . Di/çurf&Xli.
fcmelhança do Falcaõ , ave de rapina , que cm qiian*
to naõ vè , ou naô íeguc a preza , fofre a prifaò , c
naô faz caio da corrente com que cfíá atado nos pés,
porêin deícobrindoíe-lhe aos olhos a vifla da pre-
za, lhe faz tal impreffaõ , que ufa de todas as traças , c
fax todos os esforços, ate ver,, fe o caçador o fol-
ta.' e em o naõ foltando dobra as violências , redo*
bra os esforços , debate-fe, e fere-fe,atè que defe-
rido, e cançado morre. Aílim meímo fuccederá aa
réprobo no Inferno, vendo , que Deos foy tanto tem-
po caçador da fua Alma nefta vida , e naõ o quer
mais ver, nem já fer íua preza, voltará todo o feu fu-
ror contra fi ; Furor inutilid i c para fe ver folto da-
quetla prifaõ de fogo, deíejará, que deílrua a fua
própria íubftancia \ e dirá. Já que Deos , naô me
quer mais por íua creatura ; Non popuhs meus : e
naô quer fer nunca mais meu Deos; Eí ego mn ero
vefter. Sc ha de lembrar f empre dos meus pcccadosy
que põem hum eterno divorcio entre mim, e elle.
Parta me ao menos eam hum rayo; mate-me cmbo»
ra: deflrua-mej e aniquile- me tlnterfiáat me , inmki-»
lumredígat me,
Eíle era o penfamcnto de Abfalaô j efíe era o di f-
Gurfo, que fazia com Joab. Era Abfalaô filho de
EiRey David , pay taõ amorofo , que não fó enco*
mendou íempre a todos a vida do filho ; Servate mi'
hi fuerum Abfalon; mas nas occaíióes, e perigos
deíejava , e pedia a Deos a morte com tanto que Ab-
falaô ficaíTe vivo : Abfdon fili ml , quis mihi tribvah
nt ego moriar fro te. Com tudo o filho foy taô in-
grato , que armou huma trayçaõ, enganando aícu
pay , pedindo lhe levar a íeuirmaô Amon a hua fe-
fí-a,c no melhor delia, lhe mandou tirar ávida. E
quecaftigo lhe daria David por hum crime taô cxc-
CEanda j c de primeyra cabeça l Filippe Prudente
- por
Dõtormeniodapènadú Dano, j^f
fot liurna foTpeyta fundada ide ter íéii filho intellH
gencia com coroas cfírangcyras , o mandou ^leter^^^^^^
em huma prifaô , c naõ fahio delia fenão depois de cajffh
morto. Naõ aíTim ElRey David. Deu toda a liber-
dade ao filho rebelde , que vieffe, e aííiíiiííe na
Gorte de Hierufalcm; porém , que nunca mais o
havia de ver , nemadmittir no paço á fua prefença;
I\fon videbit faciem meam. Triftc pena , e privação ^jç^*^
faudofa ,que obrigou a Abfalaò,apedirmuytas vc- i^,
zes a morte. Naò! Eu naõ poíTo viver aíTim. Ha-
fe de revogar eíle aretto, ou mitigar eíia íentença.
Sey , que vivi ingrato a meu pay. Fuy traydor ao
meu Rey 5 eu o confcíTo , e tenho grande pezar. Po-
rem fe elleíeha de lembrar da minha maldade, c
privarmc da fua preíença ; quero antes a morte, e
faça-fc embora juíriça , e mandeme tirar a vida : St
memor efi iniqtiitatú me<e inter fictat mi. Jà que naõ i.R^r
acho na íagrada Efcritura modelo, com que melhor
poíTa moftrar a imagem , que tenho delineado na
minha imaginação , paíTcmos da figura ao figurado,
trocandoo nome de Abíalaõ em qualquer precito do
Inferno, e ellenos relatará eom expericnGra apena,
que fente da privação de Deos. Aílim he (exclama
logo bradando kum daquelles condenados) ainda
mal que aíiim he. Confeífo , que fuy traydor ao
meu Deos; fuy rebelde ahum pay caritativo, que
para me livrar milhares de vezes do Inferno fofreo
infinitas afFrontas , que eu lhe fiz. Quantas vezes
folicitey as crcaturas ,. para que fe rebellaíTem con-
tra cile , para me fazerem, o meu gofío. Emíim jà
não tem remcdiov Eftà pronunciada afentençaj nao
pordousannos , como a Abfalaõ, mas por toda a
eternidade jnaô para tornar cm graça, mas para fí-
car fcmprcdcígraçado. Se nunca mais hey de ícr fi-
llio de Deos \ íe nunca mais h-ey de gozar delle .• íe
l \
i
f .1'
Ofeai.
HAinc* «lais hey de ver a íua faciç iNenvidebisfmem
meam, E convencido çoin certeza infaliivei dclU
verdade, entrará em hum furor inútil furor imitilis^
defejando , e procurando á íua deftruiçaó : Si me-
mor eji iniquitãtis in£^ inter fictat me. 5e; Dcos he
para mim inexorável ylclebâ de lembrar perpetua-
tnente dos meus peccados j tendo-os íemprc preíen-
tcs, para me privar dafua preíença; porque não me
deliroe ? Porque náo me confome? Porque naó mç
redu^ em nada ? Se diz, que jà não hc meu Deos,
e qiie eu jà naõ fou , nem nunca mais íerey feu : yos
non põpulus msus , é^ ego non ero vtfier. Como me
aiílgecom tantas dores , e como meafíbga em hum
mar de tormentos? Mas fe cUe ainda affim , he o
meu Deos, c cu naõ poílo cftar hum momento fem
c]le,c ícm cuydar neile; e ainda qué não queyra,
heydecftaí fcmpreunido aclie. Como nefte penfa*
mcnt© , e nefta união , naô provo algum alivio , an-
tes experimento mayor pcua ? Ah privação de Deos!
Ah pena do Dano! Agora jà te conheço, Ah dor
defefperada/ Ah defgraçado' precito (dirá cada hum
delics ) que ha de fer de mim ! Chora miíeravel,
chora, geme, íoffre, c pena. E jà que a pena he
infoífrivel, dcíefperatç, mata-te , deípcdaça as tuas
carnes , defentranha-re , e arranca o teu coração. Vol-
ta o teu furor, c toda atua rayva contra ti meímoi
contra a tua própria íubftancia , e pede , naô ao teu
Deo.s , pois jà o perdeíte , por hum gofío, de nadaj mas "
ao teu Juiz, que por eompayxaô te acabe, te mate, è
te ãmqúik : Iníerficiat te.
Ah réprobo infeliz , e defgr?çado ! Ifio hc, o
que pedes-, ii^o he o que defejas ? verte livre dos
teus tormentos? Mas ifto nunca o poderás alcançar.
Náoheo amor, o que te move, mas he a dor, que
te aperta. Naô he a iuz,a.quc te infinua a pedir
pie-
Detorment&da pena ió Dam. 3%
piedade , màs* o teu furor cego , que de- cançado,
parece que abranda, para íe enfurecer íemprc mais.
O teu Juiz , que lie Deos i eftarà perto de ti , ao re-
dor de ti , e mefmo dentro de ti , eom a íua formi-
dável juriiça, a fim de accrefccntar a tua pena, c
apurar fempre mais a tua defeípeíaçaõ. Naõ lómen- ' "'
te a tua Alma fera immortal , mas também o teu cor-
po vivirà morrendo eternamente i e ambos íeraõ
fempre mortos para naõ gozarem de Deos no Parail
fõ , e feraô fempre vivos para ícntirem fempre mais,
c padecerem para fempre a pena do Dano no Infer-
no. Nenhum tormento (dizSaô Bernardo ) he mais
atroz j nenhuma pena he mais infoportavel , c deíef-
parada, que defejar com anxiedade, e querer fem-
pre, o que nunca ha de alcançar; e icv obug^áo^ernÀè
^4tr y G poíTuir , o que nudca ha de querer : Semper^'°"f-
hahre , quodnolkt , nunquam pojjidere , qmd W-^'*^*^^-'
ht. Tal he o cftado miíeravel , em que fe acha hum
triftc condenado ;eefte he oíegundo objcdo doícur
ftiror inútil, vendo que naõ pôde deítruiríe a fi, de^
íejar i e querer deflruir ao mefmo Deos: Furor tm-
tilíí. Vifíes algum dia hum bayxel de alto bordo
combatido no meyo do Oceano de húa horrível tem-
pcftade ? Huma onda o bota para Levante 5 outra on-
da o leva para Poente } hum vento forte o leva para
ocammhodoSui;nomeímo tempo hum TufFaõ mais
furioío o faz dobrar para o Norte J agora o elevaõ
lobrehumss montanhas de agoas, parece, que vay
buícar as Eftrellas : Fkõfufque ad fydera tolimt.^^^^i^.
pahiapouco huns mares cavados parecem, que o^'^'h
íepultaõ no abyímo. Deflc mefmo rr.odo ( àtz Hu^o
deSaó Viíftor) he a Alma de hum condenado , qtie
tem perdido ao íeu Deos. As ondas das íuas laari-
mas, ainda que infruauofas naquelle abyfmo lem-
brao.lhe,qqeeraõpôdérGÍ^sneíta vida /para con- ,
quiftat
ú
rn
Dan.
■^i
3^^ -a DifcurfoW.wi
iquiilarâBemaventurança. Porem lhe fahe logo com
.vehemeheiaorio de fogodajuftiça Divina , que ab-
forbe o.iingimento das lagrimas, eoaíFogaò na fua
per verfa obítin çaô: JF/í/v/í/í , igneus , rapidufqm egre-
dietur àrfacie gu^. O vento dos km íulpuos , ç
foiuçDS, eng inaado a imaginação do precito , hfon-
gca d vontade pervería , com huma eíperança quimé-
rica , de chegar ao menos por hum iníUntc a ver ao
íeuDeos. Aqui íe lhe atraveíTa logo o contravento
da indignação Divina r^^^f/r/í Dommus ventum
^ urentem ; que flagellando impetuoío a rebelde von-
tade obíHnada na culpa , deyxa o miíeravel conde-
nado, batido, rebatido , epara fempre combatido,
de milhares de movimentos contrários , e perleve,
rando, neceíTariamente na fua confufaò, e malda-
de , dà nos últimos exceffos do feu furor inútil; Fu.^
rorinutilis, .
Eíia imperceptível diverfidade de movimentos
contrários, que acompanhaô a privação ^^e Deos;
dizemos Santos Padres, que nafce, dos mãos habx-
tos, que fícaô radicados na Alma, quando ie lepa-
ra do corpo, e que fempre dUraõ principalmente no
Inferno. Todos aquelles amores deshoneftos jaquel-
laambiçaò de honras, e fazendas, com .que o pec-
cador fe achava nefta vida , taô fortemente prelo , e
unido com as creaturas , faÕ ao depois no Interno
outros tantos grilhões, que o prendem , c dcíunep
^. do feu Creador. Efta Alma deíaventurada , ( diz
f^^S. Jeronymo ) naô pôde maispeccar;^^^/./^ i^^^-
inMlremquitM^^ ainda que a morte a ^^J^'"'' pj?['-
po,naõafeparou dos feus torpes affedos. Conler-
valopo para fempre os íeus mãos hábitos, as luas in-
clinações defordenadas , os íeus vicies f "«^"!^^;^
como eftesfaõ totalmente oppoftos ao deíejo vioien.
to,áanxiedade inaata,quc tem de ver ao feu Deos,
' e unir-
DõtornjemoífapenaítôDam. g5y
C uniríe com elle i cila batalha intrinfeea hc a genuí-
na pena do Dano, que dobra a lua ray va , redobra
o feu furor inútil, e o faz prorromper em milhões de
blasfémias, amaldiçoando a íi , e aos pays , que o
geráraó fantafiando quimeras, imaginando impoíTi-
veis,edefejando, que não houve (Te nem Anjos no
Ceo,nem Santos na terra j quer, que fc defírua,
eaniquilletudo, com acabar por huma vez elle, o
Mundo, o Creador,.e as crcaturas. Mas conhe-
cendo depois, que tudo iftofaõ delírios , e frencíis
cauíados da intenção da pena intrinfeea denaô vera
Deos,enfurece-fe outra vez com mayor dcfefpera-
çaó, provocando aos Demónios , que fe vinguem
contra elle, c que o atormentem; cfcyto de fimef-
mo Algoz mais cruel , que os Demónios , roe-fe,
mordc-íe, e defpedaça-íe ; porém íempre fem utili-
dade, ou proveyto, pois nunca ali via, ou diminuo
a dor, antes aggrava , c accrefcenta fempre mais a
lua pena ; Furor imitais.
HeccrtiífimojqueJefuChrifto Senhor ncíTo an-
tes de pronunciar o fatal arefto da condenação áos ji^^tth'
réprobos; Itt maJediãi tn igmm aternum^ fará fa-
hir hum certo refplandor dos feus olhos com que
vejao tanquam mpculo a fermofura de fua face , c c ,
como diz o Venerai Bifpo de Agen , imprimirá huma VsT
cognição abftradiva da gloria do Paraifo nos feus cn de?fidi.
rendimentos , para que a deíejem eternamente ; pelo
queíeíenriraô eoníirangidos , a amalo, e deícjalo,
com todaaextenção da íua vontade. TriOe neceffi-
dade de hum Réprobo, de amar, e odiar no meímo
tempo a Deosj que nunca poderão gozar ! O Pro-
teta Job, fallando em pcíToa de hum precito , fe
queyxa com Dcos como a íeu inimigo , que fe op-
poem, e combate as íuasaffeyçóes, contrariando a
todos os deíejos da fua vontade.- giuare pffmfii me
íon»
■■
■1
j/if ■ Dtfeurfa Xll.
íoniramm tiU.^ 4 primeyra oppoííçaõ jic , que
Dc^osheçífcneialmenteoppofto ao peccadoic o re^
probo tem íempreocorâçaô , a memoria, e a vou*
|ade no deícja dos peccados, em que morreo. Pa-
ira prova difto , vejamos qual he a vontade de hum
réprobo, e conhecerçíBOs , como Deos lhes hc ef-
fencialmente oppofto. Q defejo do réprobo feria
D.Gregtoxmt ao Mundo para continuar no íeii peccado.-
l.l.mor. yelktjinefmvivere^utpjfet fine fine pecrare. Que-
reria , que Deos-naô uMc da íua juftiça , e que naô
houveíTe inferno, mm menos que acabaffe o feu tor-
mento com a morte. Deos íe oppoem a todas citas in-
ciinaçôes neccíTariamentc ; pois he a meíma fanti-
dadc, e quer, que a fua jufíiça dure eternamente,
eque fe execute com todo o rigor contra o réprobo,
endurecido na culpa totalmente coitaria a Deos:
fobç.y. giuare fofmfti me çontrarium //^i. N^m. fe conten-
ta o Profeta Job de rcprcíentar a fumma contrarie-
dade, e total oppoíiçaô, que tem Deos com o pre-
cito, é o precito com Deos: giuarefofmp me con.
trarium.tibi. Mas accreícenta a oppoíiçaõ' v:e Con-
trariedade, que terá o mcfmo precito comíigo meí.
mocomeftas palavras: Et fa5ím fim miht metipfi
araví4. A minha defgraça he taõ funeíia ( dir.a o ré-
probo ) que íou chegado eu o mcfmo a íer o mayoj?
inimigo de mim mefmo. Muy leve , e fraca expref-
Ía5 do feu tormento parece efta, mas bem confíde-
rada he o cxtrado mais fublimado , e a qumta eílen-
eia mais apurada da pena do dano. Que hum répro-
bo íeiaconftranoido aíoíírer eternamente bua reci-
proca contrariedade, e formal oppoíiçaô de íi com
Deos. e de Deos coníígo, he fumma miferia: ^/^.
repofmfti m contrmtm tihi. Mas que o réprobo
feia formalmente oppofto , e contrario a fi meímo»
que as fuás âffeyções, o feu amor J o ícu odio -, os íeus
Do tormèko da penando Dam, §Sf
dtfejòs 5 imaginaçôens , e pen fa me n tos ,'bàtaIÍ3 arreio
entre íi, lhe íaçaõ huma guerra perpetua, e que clic
meímo poffa dizer com verdade , que he o tyranno
mais fero, c o mais cruel verdugo do leu luplicio,
fervindo de irjftrumento ájufíiça Divina para au^y-
mentaras íuas dores, c oslcus tormentos ! Naó he
ifto o mnflus ultra de todas as penas » e miferias ; Et
ja5íi4s fíim mihi metipfigravu, n r
Oh defgraça das delgraças em hum Reprovado, ^''^'
ter perdido a Deos ! íer perfuadido com evidencia
infallivci,quc não ha, nem pôde haver couía mais
amável que Deos ; nada mais lindo , e fermoío , que
JefuÇhriflo Senhor noiTòi nada mais preciofo que o
Paraiío ; nada mais rico, e dcfejavei que a gloria.
Ncfte comenos a vontade convencida , de que efte
bem infinito he infinitamente amável, terá huma pro-
penfaô ionatâ , e hia inclinação vehementiílima de
poíTuilo, egozalò, e no micfmo tempo o aborrece-
rá , o odiara , o deteftarà confíderando-o corro obje-
âodafuaaveríaõ, como caufados feus tormentos, '
ccomo inimiga infuperavcl , c omnipotente, blaf-
femando-o , com ódio írreconGiliavcl j,e aíllm ama-
ra, e odiará tudo junto, quererá a íua coníervaçaõ,
c buícará o íeu exterminio, dcfejarà a morte; e a
morte fugirá dfelle : T>efiàerahmt mori ^ é- mors fu-
gtet abeis. Oh vontade! Oh penfamento ! Oh de- ^P^^^K
Icjos contrários a vôs mefmos ! Qire pena , e que tor- 9-
mento, eatifarcis a hum» Alma combatida das íuas-
próprias payxôes , que íerâ o teatro funefío de huma
guerra implacwelrSufpirarà; gemerá, pritarà,. í^
deíeíperarà.fe defpedaça^àÂEde que íervira tudo
ií)oportodaaerernidad€,fenaóaveriguarfe por ex-
periência, e confcíTarparaficmpre, que he hum de-
iejo fátuo , huma efperàoça Ibuca, e hiim furor , que
to acercíccma a pena^^^cè Éem: ^xmt^tQ\€vpàitas^
li
■f%^
H
^^. Difturf^ Xlí.
amem r furor imtílis. Deos contrario à vont^ic
delh AU^a?deígraçadai eUa contraria à vontadcí de
Deos , e ella mefma contraria a íi mcfma. Depois
atormentada com o ardor do fogo , atormentada pe-
los Dcmo:nios , atormentada pelas fuaspayxôes , pe-
los compíices dos feiís pcccados , e por todas as crea-
turas 4o Inferno , lem compayxão , fem foccorro,
ícm eíperança , fem confolaçaó , ícm repoufo , e íem
aminimointervallo de defcanço. Efte he hum leve
abufoda pena do Dano. Deos tem demetida de fí
cfta Alma pcccadora , e impenitente. Ella nunca
0/?tf c I mais fcrà de Deos , nem Deos por toda a eternidade,
* e em quanto foff Deos , o fera delia : Fos mnppulus
meusj&egononerovejler*
Q^iero dar fim a efte di fcur ío , com moltrar , que
quanto atè agora tenho difcorrido à cerca da pena
do Dano, he como hum rude dibuxo a refpeyto da
íua Idea , huma tofca copia rcípcyto ao ícu ori-
ginal. E efta pena do Dano (dizem osTheologos)
D.Ber. hehuipena infinita, pois fe refere a ordem Divina,
^'''- ^- cm qualidade de fuplieio: £/. & turpinm pana Véus
''"^^'' ( diz a efte propofito S.Brnardo) dando a entender,
que conforme Deos hc, e fera fempre a luprema bcm-
aventurança dos eícolhidos no Paraiío ; affim tam-
bém a pena do Dano he , e fera a ultiii^a , e íuprema
dos réprobos no inferno. E Santo Thomas affirma,
que efta pena hc o Inferno do mtfmo Inferno i pois
nella confifte eíTcncialmcnte a condenação de hum
precito- Dãmnãtwnltma canfiftit mhoc , quod tn-
telham hommu.totahter Divmo lumnine prtyetur,
& -i Dei lomíate elftinate averHtur. E Sao loao
Chryfofi Gh.yfoftonio confeíla ,quc íe Deos crcaíTe ^^d Intcr-
£ 8^ nos.e os ajuntaíTe todos cm humló,e dobraíTe mt-
m^^Mbarés de vezes o ardor daquellc fogo devorante,
naõ igualaria a pena defte tprmcnto.' St mtlk quis
Do tormento da pena do Dano. B^9
fômi gehema-s , nihtUah di^urtts eft , quale s kat£ il-
hus gloria lumine repellt Dx mefma maneyra , íe Te do-
braílcm milhares de vezes todas as delicias do ParaU
ío , naô igualariaô o gofto de ver a Deos , em que con-
fifte o Summo da Bemaventurança (conforme dizS.^^
Agoftinho; pois íe pôde adquirir , mas naôexpíicar, ^^.^^
nem comprchender : Acqmripotefi^ expUcari mnpO"
7^, por Ter infinita. HecertiirimooaxiomafiloíoH-
co , que : Contrariortm eadem eft âifcipUna, ÂflTim de-*
vemos dífcorrer da pena do Dano , como Santo Ago-
íiinho da gloria. Poderá o peccador ( de que Deos o lí«
vre) experimentala , mas naô comprehendela, por fec
bua pena infinita, pois o priva do. ícu Deos ^que helm
bem infinito. ' * -
Eu cípcro algum fruto defte difcurfo,naò pe-
las palavras, com que o efcrevo , mas pela graça
do Efpirito Santo, que concorrerá no pio Leytoc
na confidcraçaó de quam grave perda he o perder
ao feu Deos. Ah peccador enganado, íe ainda no
voíTo coração ha algum lume da fé , com alguma
faiíca do Amor Divino, peçovos , que cada dia,
por meyo quarto de hora , confidereis , quam ter-
rível pena he , o fer defmembrado de Deos , nunca
mais fer feu , nem cUe nunca mais fer voíTo. Sc
daqui por diante vos perguntarem, que couía heo
Inferno, reípondey-lhcs , que leaó aquella funefta
iíifcripçaó, que elià gravada fobre as portas da-
quellcabifmo de tormentos: Fosnon Popiilus meus^
i^ ego non'erõ vefter. Todos os peccadores , que
cílaõ encerrados naquelle Ergaftuio de fogo , jà
Ba^ pertencem a Deos , para receberem delle aU
^úagraçajjà naô íaô feu Povo , para lhes fazer al-
gum bem, mas lançados de fi para íempre , e en-
tregues aos Demónios , para ferem caíiigados eter-
namente ^ como merecem. Em algum tempo de.
, Aa fua
O [64 I.
wsm
WÊímtmmm
êi
'
- ; Btfcuvjú Xll
íua vida, o foraô , mas agora, jà mb o faã, nem
o haõ de fcr nunca mais ; e nunca mais íe lembrará
Dcosdclles em eterno: Fos nm Fefulus meus , ^
ego non ers vefier. E quantos eftaô jà là naqucllc
trifte eftado ! Pd4e fer -, que eíieja voffo pay , voffa
irraaó, ovoífo Amigo mais intimo, ou (o que fe-
ra mais certo ) algum cúmplice dos voíTos pecca»
dos, E quantas vezes mereceftes vòs a mefma pe-
na, pois foftes compiice,e âuthor das me imas cul-
pas? Pcccador, Amigo do coração , defejo todo
o bem à voíTa Alma. Agora ainda ha tempo para
o defengano. Porque quereis ^ que Deos , que
condenou a tantos , que fízeraô menos peceados>
perdoe a vòs , que cometcftes tantos mais , e muy-
to mayores. Fazey avos mefmo ajuftiça, que me-
receis; bem vedes , que Deos n ao ha de fazer por
vòs huma regra particular , nem bum novo Decálo-
go/ porque o meímo, que fuccedeo àquelles , ha
de fuccedera vòs , fe naô fizerdes logo penitencia^
3 qual confíííe em largar o amor das crcaturas ,. c
convertelo todo em ímarao voílo Deos; Non tar-
des convtvti aã DêminurUy & ne ãiffevas de d te iw
dkm. Na© queyraes tardar a convcrtervos , nem-
deyxeis paflíar hum dia depois da outro X Subiw
emm vemet ira Mus; parque a fua mikricordia fe
trocará logo em ira. Naõ vos fieis na mocidade^
nem na boa faude. Reparay naquellc Súbito ve^
niet. Virá logo j e improvifamente como Juiz fe»
vero, e vingativo,, que tendo condenado a fanto»
milhões de milhões no Inferno, naõ dcyxa por iRa
de fer infinitamente mifericordiolo. E quanto tem-
po-ha ^ que como Pay smorofonos eflá efperando?
E fea fua miíerrcordia naõ foílc taô immenfa , que:
leria feyta de nos , e de tantos peccadòres , que
tantas vezes a temos ofFcndido f Naõ > Senhor^
naã
Do tormento da pena do Dano* 371
naô pcrmittais 5 que quem compõem efle livro, e
todos aquelles, que o lerem , fcjaô privados di
voíTa vifta, c naò ícjaõ voíTo Povo: Fos mnPopii-
///í«/í»í ;pois eftamos refolutos de dar logo dciuaó
a todas as occafióes das çreaturas , c naò querenios da-
qui por diante íervir , e amar mais que a vôs noíTo
Creador, e Redemptor nefta vida , para depois na ou-
tra ver a voíTa face , e gozar de vòs eternamente na
Gloria.
Aa 2
DIS.
Ij
TORMElSrTO DADEvSE5PERAÇAM
XIII.
Do tormento da Defeípcraçaõ.
Vermis eorum non morietúty ó* ig^^s
eorum non extinguetur.
Ifaias 66.
Om eftas terríveis palavras,
comcfta terrível ícntençaa-
caba o Profeta ííaiasolivro
facrofanto de todas as fuaj
profecias : Vermit eorum mn
morietur ^ & ignis eorum non
extingnetur, O guzano , o
verme fcmpre vivo, para roer
as entranhas r^os peccadorcs,
nunca morrerá, e o fogo , para os atormentar íemprc
a ceio , nunca fe apagava. Repara Santo Agoflinho,
que JESU Chrifto Senhor noíTo íc ferve defta mcfma
fentença , e a repete três vezes em hum íó Capitulo de '^^c?*/?.
Saõ Marcos com as meímas palavras; Non entm p- j/^^'
gíiit inuno loco eaàem verba ter dicere.Sc avoffamaô i>^,/^'
hc ca ufa de algum efcandalo , cor taya. Melhor hc cn-
Aa 3 trar
3^
■ rr..- T t''
Am. L
^M Ci
'if
"^74 Difcuvfo XllL
trar no Cco com húi fó maô ^ que com ambas no In2
Mar^cj. ferno; §lukm duasmanus habtdtem ire in geherfnam^
ííbi vermis eorttm nonmorítm\, ó" tgnis non extingui-
tur. O múmoàiz áos pês, e dos olhos qUe melhor
fec entrar na vida eterna coxo, e com hum dos olhos
%: menos, que com ambos os pès^ e olhos fer lançan-
do no Inferno , repetindo íempre , aonde o verme
nunca morre, e o fogo íempre atormenta, e nun-
ca fe apaga.- Ubívermu somm mn morittir \ & tgnis
noflê^tinguitttr. Logo he herdade (conclue S. Ago-
flinho) que ha,effa dé haver cftc verme por juA»
caftigo dos peccadores por toda a eternidade no
Inferno. E quem tiaó temerá , e tremerá à vifla
defta ameaça, três vezes repetido por própria boc-
ca domefmo Deos: §luem non terreât iftarefetíti^
Ò' iUmsp£en/e cominatio tam vehemens oreDivímMas
que coufa he efle guzano, eftê verme, que íempre
roe 5 íempre atormenta , nunca pára , nunca ean-
fa. Efte , conforme o genuíno ícntido de todos os
Santos Padres 5 e íagrados Interpretes , he ò remof>f
fo da coníciencia , que à maneyra de hum Juiz fe-
vero , de htim Algoz inexorável ^ defpedaça a Al-
ma , com taes reprehenfoens , e remorfos , atè
reduzilâ à ultima^ e total defeíperaçaò y que íerá
a matéria , e o argumento defíe difcurío , que di-
videremosem três pontos. No primcyro veremos,
como eí^e verme daconfciencia nake com nofco,
no mcfmo iníiante , que temos oufo da razaô , e
Gomo Ceníbr redo nos admocfla, nos reprchcnde,
ç nos acompanha ate â morte, No íegundo pon-
deraremos , quam terrível, e cruel Verdugo ícrà
cBe verme da confciencia no Inferno J redtizinda
os precitos a tormentos para fempre defefperadosi^
No terceyro moftrarcmos, que por enormes, c
inciiinicraveis , que fejap íís peccados commettidos^
i- nun-
Do tormento da Def-efperaçaõ* ^75
nunca deve o peccador Catholico deíefperair^ çmstçí-
tepeccado feria peyor peccado dô^odos os quetem ,^^
commcttido ; e depois de morro entrará e m hm defeí-
pcraçaõ fcm remédio, que he o tormento dos tormen-
íps, o Inferno dos Internosi-i^íiíaU^íXí íiví'
n: Para bem entender , que tormento íeja o do ver-
me da confeiencia j e porque cauía Deos o tem eí-
colhido por hum dos principaes inílrumcntos da
/uaira, para fe vingar com mais furor dos feus ini-
,inJgos, convém, faber, quenaô ha homem no Mun-
do, que naÔ tenha alguma luz da Divindade > e af-
iim por bárbaro , e ignorante , que íeja hum índio,
ou Tapuia do Braíilj por bucal, ou ialvage , que
íeja hum Negro Mina > ou de Angola , íempre te-
rá algum barlumc , ou alguma inclinação de venerar,
ç temeroíeu Tupàn o feuZambí,que nas duas iin-
goas Braíis , e Caffres íoa o mefmo que Deos, veri-^^ . ,
fícando-íeo que diz o Profeta Kcy : Signatum efl fu- '^*
per nos , lúmen vultus íui Domine. Eíie lume da razaó
creadocom anoíTa mefma Alma, nos faz conhecer
a virtude por boa, eo vicio por mà0)C que naõ hc
bem fazermos aos outros , o que naô queremos , que
os outros fjçaõ a nòs. Para percebermos eftas ver-
dades naõ he neceffario ter eftudado , nem ter ouvi-
do o Evangelho. Bafta fer homem racional, e
logo experimentará em íi huma certa complacência,
quando faz alguma obra boa , ou algúa proeza digna
de louvor j alegrando-fe comíigo , dando parte aos
Parentes , e Amigos, e defejando, que fe publi-
que em todo o Mundo. Pelo contrario obrando
mal , ou commettendo algum crime , logo fica triíie,
€Íconde-fe,áfílíge-re ,derconfiaj rem medo , e ate
aborrece o mal, que tem feytoa íi meírnoj e ifto
he o mefmo , a que o Texto Sagrado , os Santos
Padres, e ainda os^mcímos Gentios chamaô con-
Aa 4 ícien-
Ovid.
fafiJ. I
Par. l
m
376 Difcurfú MIL "
fciencU; como admira vcímentc explicou o Poeta/ '^
Cõnfcia mens ^Mtcmque fua ejl , ita concipit intra,
Peãoraprofa£toyJpemqut^metttmqueJuo. ^
Muyto melhor Guilherme Parifienfc > chama à con-
íciencia, hum rcfplandor, ou hum raígo da luz
Di viria ,que alumca as trevas do noffo entendimen-
to} hum ecco da fua voz , ou para melhor dizer,
amcfmavoz de Deos, que falia dentro de nos, e
hum Evasgelhodo coração: Radius Divint hminis^
iilumtnans mentem mfiramyVoxDei intra nosloquens^
ó" Evangelíum cêrdu.
Definem osTheologos a conícícncia ^ o» a deÊj
crcvem , chamando-a hum didlame da razaõ j hum
juizo pradlico > por meyo do qual o homem dií-
cerne o bem do maU c conhece o que deve feguir^
Tè.wí-covi fugir r Judicium i *vel diãamen rationú praãb-
hnm. V. cum-^ quo homo difcernit , quid re£le an per per am
^^ fiat y qmdve ampkãendum , vel fugiendum ; c como
(repara Santo ÂmbrGÍio > em hum tribunal re «fio de
húa Republica bem governada^ vemos juizes^ Advo-
gados , Notários j Procuradores , Cenfores , Mcy-
rinhss ^ e Algozes aíBra também no tribunal da
noíia Alma aconfciencia faz todos e^es oâScios, c
como diz o mefmo Santa ^ ellahe o mcfmo tribu-»^
nal T ella a Teftcmunha irrcfraigavei ^ eMa nos ae-
cufa, nos reprehende r ^0% con-vence , nos abíol-
^'•^^^ vey ou condena : §^õi emm in Republica kne con-^
^^^"'f'j2ítutavídemm Júdice^-, Scrib^Sy Notários y Cattf^
dieosy Cenfores j Tortores-, idin tribunali mima nO'*,
fira y praftat una eonjeientta. Hac enim JudesCy
Codexy Cenfor , Jceufat&r y Tefiis , lof-tor. Ifnh
tribunal' mfir um eHy fiium cuique- eonfcientia Tefit-
momim. E que iíb affim ícja ,, bem fe vê nos nof»
íbs primeyros pays Adam , e Eva. Comerão a
fruta da arvore^ c a penas engulicaò o prinieyro
bo-
Do tormento da De federação. 377
bocado , íe lhe abriíaõ os olhos , conhecerão , que
eflavaò dcfpidos , c procurarão logo folha^ de Fi-
gueyra, para fe cubrirem. Chamou Deos a Adam,
que conhecendo , naô podia fugir dclie , refpon-
dco , que tivera medo de apparecer , porque efíava
nu, c poriftofe efcondèra : Ttmui^ to qnod nudus ^^'^'
ejjem , & abfcondi me, E porque a Adam fobrevc-
yo efte medo , e eftc pejo de fer vifto nu? Porque
logo , que peccou com quebrantar o preccyto , o
verme da confcicncia o começou a roer > e vendo-
íe defpido da graça , temia j e tremia , conhecen-
do , que de creaiura de Deos fe tinha feyto pelo
pcccado clcravo do Demónio. Aílim meímo fucce-
deo a Caim , logo que matou a Abei , íeu irmaò.
O verme da conícicncia o rohia , vivendo inquieto,
e perturbado , pela lembrança continua do fratri-
cídio, e conheccndo-íeRèo no tribunal da íua con-
íciencia , que jà fazia o oííicio de Juiz inflcxivel,
imagínava-íc , que quantos o schaffem i o matariaõ :
Ontnis igitur , qm invenertí me , occidet me. Mas ^*».4»
quem o havia de matar , fe no Mundo naõ havia
mais , que íeus pays , Adam , c Eva ? Era o ver-
me da confcicncia , que obrando como algoz , o
hia matando, reprcfcntando-lhe de dia , e de noy-
tc o feu crime , fabendo , que naõ havia de ficar impu-
nido : Vermis eorum non moritur»
Também os Gentios fcm ter luz alguma do Evan-
gelho, conhecerão, fentíraõ , e experfmentàra&,
quam grave tormento foííe aquelíe áo remorfo da
coníciencia,cham3ndo ohum ilagclloocculto, bumPy
f^na , vebemente, a mris cruel, c defefperada de
toda.ç. '
Fcena autem vehemms^ ac multo favior illpfy jsvl
Occultum quatiente mima tort&rejldgdhtm. Sae.^^^l
O grande Alexandre , demafiadamcnte alegre em
bum>
I,
I I
j;^8 ; DifcmfúXlU.
hum comitc ^ íem coníídcrar o que fazia , matou
a Clytp íeiv intimo Corifidente. Logo o verme da
, CO níciencia , o fez cahir n<r mal , que fez , repr.efen-
V ' tando-íhc a atrocidade do crime , o credito perdi-
do ia fami denegrida í e naò podendo mais íoffrer
cfte remorío continuo , que o atormentava ,naõ
queria nem cjmer , nem beber, mas antes deíeja-
va o veneno. Finalmente o verme da confciencia
lhe dava picadas taô agudas na Alma, que o redu-
zirão a delefperaríe ; c affim para íe livrar delias,
pedio muytas vezes a raeíma arma , com que tiniia
morto a Ciyto , para matarfe a.fimefmo, e naô .a
podendo confeguir , rogava a alguns criados mais
^^^^g Íntimos, que lhe deffem à morte juftamente mere-
^//i<^*cida. Do mcfmomodooverme da confciencia rohia
^íex,' oEmperador Nero, depois de ter dado a morte a
AgripinafuaMây, que lhe deu a vida. Para íoce-
gar efts remorfo , que fem intermiíTaõ o tiraniza-
va ,fo/ o Senado Romano i foraô os Cabos da Mi-
licia, c todos juntos, com huma barbara lifonja,
lhe deraõ os parabéns do matricidio , como conve-
niente ao bem commum j e com tudo confeffjva
elle, que todis as vezes , que ouvia tocar trom-
betas, ou tambores , lhe parecia que era algum
exercito, que vinha contra elle vingar a morte de
fua Miy A^ripina. Fugia de paíTir por onde eftava
oftruíepulchro; mu hva pilacio; fahia de Roma,
a-nedrontado vivia fempre com a mefma inquieta-
ção. E mò fe dando por íeguro em parte nlguma
querii defefperado mataríe : Interdiu perterrefa
ciebant mm úhiáms auàiri belUcum camre cum ma-
$cimo tnmultu.ojuo inloco Agripma ojja Jepulta eranK
Diónin ginamobrem alio mígrabat , cumque idipfim ei aca-
Ner, deret , pertmitm alto projícifcebatur , mdlibife tuium
pntans, .
, Peyor
DotúvmèfitoâaDefef^efaçad^ $79
Peyor fuccedeo a Thecdorico Rcy dos Godos.
Efle depois de ter conquifíada toda a Itália. Si-
inaco , e Boecio hum primeyro Mininro, o outrp^^^^'
Secretario do Eíiado , naõ aprovava© as cxtorfoens, fítíijt,
c -tyrannias , que intentava fazer } pelo que enfureci-
do os mandou logo degolar. A injufla vingança foy
de poucos momentos j porém o cafíigo foy bem
^dilatado, e penofo. Apenas teve aviío de fe ter
executada a iniqua íentença dos dous innocentes
Varões , que logCKo verme da coníciencia , como
Juiz redló , lhe fez conhecer a enormidade do feu
dcliâoi e como Verdugo incançavcl começou em
todos os infíantes atormentalo em todo género de
torturas. Quem o diíTera ? Aquclle Thcodorico,
terror de Itália , que na guerra era hum rsyo , no
pelejar hum Marte , que de ninguém tinha medo,
fíeou mais timido , que hum Coelho , parecendo-
lhe , que em todos os cantos efíava eícondidoSi-
macojquc o vinha matar j e a fua imaginação pe-
lo remorío da confciencia era de tal íorte lefa , e
perturbada , que efíando à mefa , trouxeraò-lhe a
cabeça de hum grande peyxc , reprcfentcufe-lhe,
que era a cabeça de Simaco , que vinha tomar vin-
gança delle. Levantou-íe logo da meia , e fugindo
gritava , acudaô-me, acudaô-mc, que Simsco me
veyo matar; e o medo foy taõ exceílivo , que fo-
brepujando aos eípiritos vitaes , eahio em tal fra-
queza , que em poucas horas morreo desfalecido.
Daqui íe infere íer verdadeyra aquella íentença de
Séneca , que o mayor cafligo , que poíTa ter 'hum'
Rèo do feu crime , he o telo coramettido ; CMaxima Sen epif
fiena crmtnts efi ^futffe. O que vem confirmado, e<3í/Z,»f,
mais claramente explicado pelo grande Doutor da
Igrejas. Gregório, cujas palavras faô ; que entre
os mais cruéis tormentos , que foubcraô inve^ta^f
os
3i'*s^i5i5?sfjs:afraísi.^
"''^^S-i£^'rj '.sta^j^jouaa^ ■
ISBPBi!
j8o
Difctirfo XI tt.
Grei i oá Tyrannos , nenhum chega a deíefperada pena do
i.mor. verme cia confciencia: Inter omnia panarumgenera
nulk ejl mator confaentia deliciorumVermis eot um non
moutur,
He porém verdade, que o verme di conícien-
cia neftd vida, naó faz igual impreffaõ em todos,
aíFim peia diveríidadc dos temperamentos mais , ou
menos apreheníivos como também pela força das
payxoens, que Ihs refiftem J c muyto mais , fe cí-
tas payxóes eíhõ já fortificadas com algum habito
viciofodemuytos annos. Entaò a continuação dos
adlos , tantas vezes repetidos , f^z , que o pccca-
dor pouco , ou nada fi ata o remorío da conícien-
çiaie as Tuas picidas faô o mefmo, que dadas em
huma pedra; pois o coração he já empedernido, c
òmao habito o fez mudar natureza: Confuetuâo eft
altera natura. AíTiip fuccedeo ao infame Hereíiar-
ca Lutero, que tendo apoftatado das Religioens,
cm que tinhi entrado, fez apoftatar huma Freyra,
furtando-a do Convento , e cafouíe com cila. Fa-
ziaõ ambos viagem em hum caleíTe certa noyte de
luar CO TIO de dia. DiíTe a Freyra a Lutero. Oh que
bello Cco , e como eftá bem alcatifado de eftrciias!
Eque íerà oParaifo! Hi bello ,_eíerá fempre bel-
líírimo (refpondeo Lutero ) mas nào he para nòs.
E porque ( replicou a Freyrâ ? ) Deos naô nos tem
creados, para irmos lá ? A elU lembrança , que
peos nos tem pofto no Mundo , para gozarmos dei-
kno Paraifo , com hum grande íuípiro refpondeo
Lutero alTim. Pelo eípacio de dezafete annos con-
tinuos, me tem fempre Deos chamado com o re-
morío da confciencia , que me flagellava de dia , e
de noyte, íemmedar algum defcanço ; c às vezes
me dava picadas de morte , que me caufavaõ gran-
des melancolias ; porem eu naó dandO' ouvidos à
/ voz
DotõrfHentodàDefejpevúçaõ. 38 c
Voz de Deos, me fazia furdo, com bufcar diverti*
mentos de meu goílo, e aííim venci cftc verme da
eonfciencia i que fempre me rohia, c fiz paz com
clle,e elle comigo. Agora gozemos dcfte Mundo,
e das fuás delicias , em quanto vivermos j e naô
cuydemos no outro , aonde paíTaremos com os mais,
que viverão, c vivem como nôs. Oh ultimo deí-í
amparo da graça Divina nefta vida! Oh defefpera-
Ç3Õ final de hum Precito ! E quantos Precitos ain-^
da viventes entre os Catholicos, que para gozar al-
guns dias , e cfles incertos , de boa vida, e para
íatisfazcr aos apetites , combatem com o remorfo
da eonfciencia , anticipando o inferno neíla vida/
porem Vermis eorumnon moritur ; e fc nefíe Mun- /l/<t»'«gr
do, he hum Algoz taõ tyranno i que ícrà no infer-
no ? e efla, ]à he a matéria do fegundo ponto dcíle
difcurfo.
Acho nas letras fagrada> , com a commua inter- «,
pretaçaõ dos Santos Padres , que efte verme da ^j^Pon'
eonfciencia atormentará os peccadores no inferno, to.
aplicando. lhe a vifta dos feiís peccados , que lhes
cftaraó íemprc prefentes. Mas que viftaborroroía,
€ que aplicação tyranna fera efta ? Será huma a pplica- ,
çaô neceíTaria ; huma aplicação univerfalj huma apli-
cação continua. Aplicação neceíTaria , porque
nunca podcràõ impedir de ter os fcus peccados pre-
fentes , nem o remorfo da eonfciencia nafcido del-
ks , deyxará de roer. Aplicação univeríal , por-
que os veraó todos , e naõ haverá algum , que o ver-
me da eonfciencia naõdcfcubra, c não traga com-
fígo ofeu tormento. Aplicação continua , porque
Gs vcraõ íempre , c fem algum intervallo ^ ou inter-
rompimento. E fc na eternidade haõ feculos ; fc n^s
feculoshaôannos; fenos annos haô mczes/ fe nos
mezes haô femanas j fenasfemaoas haõ horas jíe nas;
'- ■' ■' - , .^ _ h€ti
,11
3^^ ' Difcurfo Xlll. a
horas Hm minutos, e inikntes, ou momentoSi em to»
dos eíles minutos ,inftnntes, ou momentos , em todas
ciiís horas, cdiís, em Codas eftas íemanss , e mezes,
cm todos eftes annos.c feculos , e em toda a eter-
nidide, em quanto Deos for Deos , íempre efíe
verme da conícicncia roerá , c atormentará os pec-
cadores no inferno : Fermis eorum non monetur, E
arazaò he, porque efte verme da confciencia, co-
íbo he gerado nas Almâs dos peccadores , por con-
fequenciâ a aplicação , que teraò aos íeus peccados,
fera huma aplicação neceffaria. Trabalhem os pec-
cadores, quanto puderem, para divertir eftas pi-
cadas ; inventem , quanto quizerem , para lançar
fora efte remorío , tudo ficará baldado •, ufem de
todas as traças, para aquietar a voz da íua con-
fciencia; ella gritará íempre mais alto a cada hum
dos condenados, e lhes dirá : Tu es prceito; Tu
tens perdido a Deos, e o perdefte, porque aíTim o
quizeBe , querendo antes a fealdade do teju pecca-
do, que a fermoíura de Deos, ca gloria do Paraiío:
Fermps eorum non monetur.
BiYn de Chama S. Bernardo a cfte verme da confciencia
w«./ií^e/ buina porçaô da íubftancia da Alma , ou a meíma
sap^^. Alma, que íe irrita contra fi meíma , íe affligc,
fc atormenta , fe defpedaça , e íe deíefpera. E co-
mo he impoílivel à Alma fepararíc de fí meíma,
pois he indiviíivel j aíTim também hc impofiivel,
que não íinta eíie verme da confciencia ,e que poí-
ía impedir a aplicação , e lembrança dos íeus pec-
cados, Eíle verme gerafe na Alma dos peccadores,
como a traça nos vc?C\áo% : Si ctit veJUmentím^ qucd
foi, 12, c^meditnr à tinea. Quem quizcr arrancar eíia tra-
ça, arrancará parte do panno, que tem roido; po-
rém o verme da confciencia hc fem comparação
mais fortemente pegado na Alma de hum precitoj
cfen-
Do tormento da Defefperaçad. 583
c fendo dia immortal , íegue-íe , que o verme da
confciencia , como porção delia , o íeja tambemj
eaílim íempre aròe, e íemprc a pica, fem íe po-
der confLiaiir, ou deftruir bum a outro. Efta ver-
dade a conhecerão também os Gentios com o lume da
fagrada Eícritura, cjue elles liaô.
— - - Ro/lroque immanis Vultnr obiinco^
Immortalejeeur tmdens^ faeundaqnepanis
Vifcera, rímaturque eptilis^ habitatque fub alio
PeèJore, necfibris reqnies daíur tala renatts,
AíTimdcícrevc Virgílio ao miíeravei Titio conde-
nado no Inferno/ e dcbayxo da alegoria de hum
Abutre , Ave a mais voraz , que nunca íe farta de
roer as carnes mais podres , e fedorentas , repre-
ícnta o verme da confciencia , que envolto no fe-
dor , e podridão dos peccados do precito , o obri-
ga a tclos femprc prèíentes i e efla repreícntaçaõ
neceíTaria , he a que come, e roe as entranhas , já
Gheas de fogo , e de todo o género de penas ; JFa-
cmdaque peenii Fifiera rmatnrque epuJis, E por
muyto que roa , e coma, íempre aquclla podri-
daô dos peccados renaícerá, comofe foíTem come-
tidos de novo iC aíTim o precito nunca terá em to-
da a Eternidade o mínimo repoufo , ou defeanço -
Necfibris reqnies datar ulla renatis. Ver mis eornm rwf^
tfáorietttr.
O Profeta Jeremias defcreve muyto melhor o
triíte eilado de huma Aíma roida do verme da con-
fciencia , relatando o cruel eííado, e a total dcfo-
laçaõ da Odade de Jerufalem. E íe convém os
Expoíitores , que a Cidade de Jerufalem he fimm
dchua Alma peccadora, aíTim taiii^bem o verme da
confciencia heo figurado , como veremos das mef-
mas palavras, de que o Profeta fe ferve para expli-
car a íumma miferia > c defefpcrspô, de hum corí-
dem-
lib. á.
«■■
3Í4 '^ tíifcmfoWl
denado ;^ofuh me defolatam tota die mar ore confia
i^ier- Uam 5 dedit me Dminus in manum , de qna non ptei
Um.c,i f,fj eruen. Mentem potto no extremo das anguliias,
ícin nunca ter, nem de dia, nem de noytc algum
intervallo de alivio, ou hum momento de coníola-
ça^^eoquc mais íincohs terme dado nas mãos dê
hum inimigo, que feyto Juiz íevero , c Algoz inla-
;,. ' : ciavel , nunca pára , íempre me atormenta i c nunca
; podcrey fugir delle, por cftar comigo fcmprc prc-
Thr.i. icatc.-Fígtlavítjuguminipiitaíummearím^ in ma-
"4- mejus convoluUfunt, & impofita collo meo.i:^m
tomado conta meuda de todas as minhas maldades,
c quiz^, que o numero delias paíTaffe pellas íuas
mãos, e refumidas em hám Catalogo , mo depen-
durou ao pefcoço , para que cftiveíTem fempre
adiante dos meus olhos , para me envergonhar, c
encher de confufaô , & mpfiu collo meo > e eítc he
ooíficío, efte he o eflfeyto verdadeyro do verme da
Gonfdeacia. Oh verme cruel ! Oh virta deíefperâ.
da! 0;v peccado. Oh remorfo , quanto es agora
penoío ! Vayte de mim ! Naô te poíTo ver mais!
Naó ( refpondefà o verme da confciencia : ) 1 u
Quizcacs aquelle delcyte, aquella vingança^ a-
queile goík) , aqudla fazenda alhea j agora C0n .
tra tua vontade, e para mayor teu tormento , e
confufaô . hiôde eftar tod )s os teus pcccados
por toda a eternidade \ fsmpre debayxo dos teus
olhos vc dependurados ao teu pcícoço , para que te
fartes bem delles: £íi/;^p^//^ collo meo. Fermis eorum
non morietur. ^ . r / ^ .r^f:
Depois da aplicação necefrana , fcgue-íe a apli-
caçaô univerfal , que augmenta muyro a pena , c
defefperaçaô de hum preíciro. Naó haverá peccado
nenhum, por grande, ou pequeno, que leja que
, paô lhe fique prcíente,e com mayor luz, c clareza^
Do tormento àa Dejej^eraçao* ^ Sf
do dia, c da hora, em que o cometteo. E cntaô o
verme daconíciencia íahirá a modo de hum formi-
gucyro, edará ao miferavel condenado tantas pi-
cadas , quantos íaõ os peccados. Oh que tormento
iníoportavel ! Oh que dcfcíperaçaò ! E conforme
naô haverá parte alguma do corpo , que as penas ex-
tcriotes do fogo naò atormentem ; nem peccado.
algum, que naò íeja punido; aílim também inte-
riormente lhe fera íempre fixo na memoria, c terá
fempreprefcnte, e nem por hum momento poderá
cíqueceríe delle. O verme da confciencia lhe rc-
preíentarà com todas as circunftancias, mais , ou
menos agravantes , que tem. Aqui nefta Tida a
confciencia craíTa , ou errónea , efcufa , encobre,
ou diminuemuytos peccados, com os fabcr desfar-
çar.O amor impudico fe desfarça aqui, como huma
íimples , c innoccnte galantaria. Huma liberdade
natural de gente moça , que tem as payxoens vivas,
fedeípacha por hum temperamento de fogo. A ava-
re:?a fe efcufa com o nome de economia , ou bom
governo , c também le bautiza com o titulo de fa-
zcndeyro , que íabe confervar , e augmentar a fua
cafa. A foberba, c o luxo, fe defende, com o pre-
texto da nobreza, dopofto, ou cargo, que temos,
e convém fazeríe diftinguir , para que os outros nos
tcnhaô o devido refpeyto. Oh peccador agora a
tua conícicncia larga te cega o entendimento, O
teu coração femprc mais fc cndurerece; e perdido
Ras vaidades , e dcleytes dcftc Mundo , nao cuydas
na outra vida j mas deíenganate , que cedo chega-
rá a morte , e no Inferno não cuydaràs em outra
coufa ,' que nos teus peccados , neceíTariamentc , c
univeríalmente; os terás íempre prefentes , todos
juntos, c a hum por hum , fará o verme da con-
fciencia, que dè a fua picada. Oh tormento! Oh
Bb de-
/ . '
-m^íy Bi/curfo Xlll.
deíerpcraçaõ ! Òh verme da coníciencia , horrendô,è
cruel !' Fermt^s eorum non mor i et ur ,
Mais , já que a âppiicaçaô dcíie verme da con»
fciencia he neceíFaria , eiiniverfal, íe pelo menos
mofoíTe continaa, e déíTc algum deÍGanço,,ou re-
pouío ao miferavel precito , ou íe íia de íer conti-
nua ,^ foíTe ao menos , como huma febre , c^iic íèndo
continua tem a íua declinação , ou creícimento;
foíTecomoa more ,queíe nunca pára, tem eíia va-
riedade y. que feís horas enche, tkh horas vaía^
m'3S que em todo o circulo infinito da eternidade,
. naõ poíTa ter a Aíma^ do preíeito hum interrompi-
mentoyhuma variação, hum lúcido intervallo, que
divirca o penfamento , que traíiorne a imaginação'
deftes meus peccados .? Naõ .? O verme da conícien-
eia nunca concedera , nem ao seu corpo o minimo
Mc.Q.^^^^' "^"^ ^ ^^^ ^'"^^ algum inílante de quieta-
çaô: Nen concedit re<fuiefcere ^^íritrm meum ^ tm^
pkt ms amaretudimbus. Mas porque tanto rigor , e
.tanta vingança f Com mu^ta razaõ,e jiifliça j por-
que, conforme Deos comhiim concurfo continua-
do, infiue nas Almas dos Berna ventorados , a fím
de que participem da fuaBcmaventurança, e gozem
da fua gloria f aíEm a Divina juftiça , por hum cfFey-
to da fua jufta vingança, influirá nos Réprobos
hum tal conhecimento, e vifía da enoriiiidade dos
íeus peccados , que para nao os ver j fe preeipita-
raõ no mais profundo do Inferno, e pediráõ aos mon-
tes, que eay-aô íobre eiles,c aos outeyros , que os en-
cubraõ jc lhes íirvaô de pedra repylchral , para ahi fi-
carem para íemprc fepuitados : Tnnc álcimtrãontihv^
Etícz'^ caditejuper nos -^ & colUhtís operití nos. Vermis éorum
nonmovktur, .. . . ; .^
Tudo iOo bemconííderado por Santo Ambroíio,
íâz ,, que eíic Doutor tao grande naõ duvide de
pro^
Dú iõ rm Mú ia' Defcfpcraçad,
pronunciar eíta : ícn te nça ; que ci^s" 'íiifiUitteíè^cí^
íup] icios 5 que os condenados íõfTrem bo ; fof<£i'r]b|f
omayorde rodos hco verme da confcicricia ;'e dà
logo'a razaõ. Primeyramente , he maj^or tormen-
to , que 3 pena do fetifo , porque €Í\a vem por fo-
ra , e de hum agente exterior o qual hc o fogo ; c o
verme da coníciencia he interior-, he como huitva
porçaõ , que íe acha no fundo da íybíiancia de hunv
prcfcito, c tanta diíFerença ha entre hum fuplicio,
«outro , quanto ha entre o corpo, e a Alma. He
também mayor tormento , que â pena do Dano';-
naô íó porque o verme da confciencia iriclue em íi||
cft 1 pena ; mas tambcm , porque a privação de*
Deo3 he íó precifamente fcníivel a húa Alma , quan-
do cfta conhece , e íe accufa , que tem feyto ou
commettido peccadosjque lhe merecem efta priva-
ção , pois o verme da canfciencia he , que lhe dá
cfíe conhecimento , e a reprehende. Tu perdeile
ao teu Deos,c o pcrdefle por tua culpa j porque
aílim o quizefte. Coníidèra , e vè às graças , qué^
Deos, te tem feyto, em tal idade, em tal tempoí-"^
em tal lugar, cm tal OGcaíiaó , cm tal dia, em tal-
hora , para falvartc , c darte o Paraifo. Vc gs
bem agora, e confídera o 2h\xÍ<>y<\ViC tivefle del-
ias. Quizeíie o vicio , aborrecendo a virtude;
quizelie o peccado , fugindo à penitencia ; quizefte
dargoflo aó Demónio, e ofFender a Deos , dcfpre-
irando a eterna Bsmaventurança para padecer no
Inferno a mais tyranna miferia : affim o quizefles;
pois chora , geme, padece , arrayvare , deípeda-
çateye defcrperatc, que bem larga he a Eternidadepa-
raefta tua deíefperaçaó ; pois eu nunca deyxareyde
te atormentar , ]á que nunca hey de morrer : Ver mis
eorum non morietur.
Digo mais , fazendo hua fuppofíçaô impoíTivel,
í. Bb 2 que
.m^
1 í
p8 Difcur/o Xin.
que íe hum coadenado no inferno pode- íc dizer. Eli
çftouncfías chammas injuftsmente detido } e ator-
mentado. Deos , fem outra razaõ , que fer todo
poderoío , e Senhor abfoluto de todas as creaturas,
me quiz perder , e condenar nefle fogo , porque
allim hc o íeu gofío , c a íua vontade > que em
quanto a mim , naò me remorde a confciencla,
nem me lembra algum peccado, com que o tenha
oíFcndido, e mereça taô iníoportavel cafíigo. Di.
go, que cm tal cafo o Inferno , por tormentoío,
que feja, naõ feria para elíe Inferno } os Demónios
por cruéis verdugos, que foíTem, e monílros hor-
roroíos , naõ lhe fariaõ medo , nem lhe pareccriaô
Demónios. Mas quando o verme da coníciencia
como teftemunha irrefragavcl , lhe reprefenta à vif-
ta todo o contrario ; dizendo-lhe continuamente»
c fem interpolação alguma .* Eis-ahi , o que tu tens
feyto: Eis-ahi o que tu mereces : Eis-ahi a innu-
meravei multidão dos teus peccados ; como tam-
bém os tormentos fem numero , que por elles pa-
deces. Lembra-te , quanto trabaihafte ; de quan-
tas traças, c induftrias te íerviíie, para chegar a
ter entrada com aquella mulher cafada , que te pa-
xeceo bem na Igreja. Que rifcos , que perigos naã
tivefte para alcançar o teu peffimo fim ! Quantas
vezes te admoeftcy , que largaílcs aquella communi-
caçaô de eícritos amoroíos, que podtaõ Yir interce-
ptos do marido , com a ultima ruína , e ^fgraça
de ambos. Quantas inípiraçoens te conferi y para
que deyxaíTes aquella occaãaõ, e para que te afaí-
taíTes daquella cafa. Nunca te deyxey viver cmi
paz j e para que o rcmorfo da coníciencia , com
que de dia, e de noyte te molcflava, tiveíFe efFey*
to , cu te dava picadas agudiífimâs , para te def-
pcrtar do letargo dos teus viçios ,huma& vezes ago-
ando
Do toyníefjtodaDefeJperúçàõ. 389
ando os teus goftos com mayores dcfgoftos, c ou-
tras mifturando o mel doce dos teus deleytes , com
o fel amargofo, de crimes , trayçocns , e inimiza^
dcs : c tu fcmpre mais duro na tua maldade. Ago-
ra pena , geme , grita , blasfema , defpedaçatc , dcfef-
perate , para íempre , jà que aílim o quizcítc : Fermú
eorum non morkttir,
Finaimenre procurey darte picadas de morte,
çomrepreíentarte ao vivo a morte improvifa de al-
gum peccador teu veíinho,fazendote medo, e hor-
roi*ij com a lembrança do Inferno , c da eternidade*
Aqui no Inferno efíaõ as pcíToas , que tanto amafíc,
c adoraftcj as creaturas mefmai, peias quacs ido-
latrando-as, deyxaftc o Creador. Ve-as bem , rc-
galate com ellas fe podes. Eis-ahi o dinheyro , que
roubafte aos pobres , para lhes dar; as fazendas
que naõ pagafte , para parecer bemi ao Mundo , c
fcr rico; pega nellas, confolatCj e recreatc , que
faõ lindas, pois parecem todas huma purpura, cot
realidade tem a propriedade , e a cor viva do fogo»
Oh verme da confçiencia, mais cruel, mais tyran-
no, que todos os Demónios do Inferno ( dirá en-
tão o Prefeito ) deyxame , e vayte dos meus olhos,
para que naõ te veja mais \ e já que por meu mayor
tormento ,eefcarnio, me rcpre Tentas, que me far-
te das minhas torpezas, e peccados, fartate tam-
bém tu, de darmc eftas penas, rocme o corpo to-
do, deíentranhame , arrancame o coração , c a-
caba por huma vez, a mim de te ver, e penar; e a
ti de fartarte. Ah infame prcícito ( replicará o ver-
me da coníciencia ) agora defejis a morte , agora
cuydas nella , para que acabem os tormentos,
quando tanto procuravas a vida , para continuar
nàstuas maldades! Naõ íabcs, que os prefeitos no
Infernobufcaràó amojrte,cnaQaâcharáQi faraó o
Bb 3 poí-
^
JÍfOS.l .
9^
BttfèB.
Eoíif.
Caffiod.
m P(aL
%6o
Thr.z,
lil
390 .'$ Difiur/o Xtlt. \
pQílivd , para morrer , e a morte fugirá dcílcs : ^4rí
renf mortem , & nòn invenient eam. Defiderabunf
m&ri , & mors fugi et ab m. Ora eu da minha parto
te tratarey de mancyra , que íempre morras, e te
fárey morrer de qttalrdade, qtte íempre vivas com
©..rcmorfo .r Ita mmnntuv ^ ut femper vivam ^ ita
vivuntt ut femper m&ríantur. Defdperate , quanto
quizeres % a tua defefperaçaô fera inútil ; porque a
verme da çonícicnçia rC o fogo ck) inferno tem cada
hum dellea eíía qualidade , que no mefmo tempo,
que coníome , c afflige hum condenado , o repara,
ç eoníerva .." Sis abfumit , ut fervet :. fie fervat , nt
cmciet. Efta bc a de íefperaçaõ formai de hum Ré-
proba. O verme da confcicncia , que lhe reprc*
íentarà £emprc,eíem intervallo algum , os crimes,,
que fez-, e os grandes bens, que perdeo , porque
qmz^FefmMeõritffffwnmõnetur.
Dayme licença , pio Lcy tor , que vos pergunte^
quaes íaó os vVoííbs penfamentos , e que cancey ta
tendes formado , ou que tendes re foi vida , depois
de ler com attençaõ as verdades , dcfte remorío dà
Goníciencia» Haverá tyranuia , ou carnificina em
qualquer género de tormentos , que íe poUao in-
ventar neííe Mundo ,, que loaó pareçaõ de rofas,
à vifta dos agudos , e picantes eípinhos deíle re-
morío. Oh Alma devota » que no breve difcurío
deftamiíeravel vidate fentcs continuamente marti»
rizada das agudas molcftias dos eferupulõs r €uè
comparabo te^ cui ãjpmilab& te flia Sim, Com quem
te igualarey,. ou a quem te farcy íemelhante ncfías
tuas penas.* Magna eíiveluti maré cêntritia tua. O
teu arrependimento, atua contrição v P^J^^*^^ ^^^^
mar banzeira, c perturbado ,, pelos ventos contra^
rros que nunca paraõ , batida , e rebatida das ondas
das tentações , que nunca faltaõ : ^is medebitttr
tmi
Do mmnto da Deféiperaçao. 391
tm? Quert acudirá a cfía tormenta desfcy ta. Que
Piloto levará a íalvamcnto cfta Alma , que tantas
vezes eftcve arriícada , e perdida no mar immenfo
das fuis maldades : Iniquitates mt£ , fu^ergrejj^^(*^'}7
futtt caput meum. E depois de ter obedecido a voz
-de Deos , que a eftimulava a penitencia com as pi-
cadas fortes do remorfo da coníciencia , jà conver-
tida, e penitente , acha-íe em hui nova batalha com-
batida de hum exercito de eícrupiilos. Oh Alma fc-
lice, eftas punturas dos efcrupulos , hc o íinal mais
certo que já vay para predeftinada , pois hc a pena
que Deos lhe dà nefta vida , porque em algum tem-
po dcíprezou as picadas do remorío da coníciencia.
Quem acudirá. O mefmo verme da confciencia,
que dantes era hum Cenior rigorofo , hum fifcal fc-
vero,para te aíFaftar dopeccado, na hora^da morte
fera hum Juiz fiel , redo , e benigno , hum Advoga-
do amorofo i hum patrono confiante que ame-^
droncará o Demónio, dcícubrirà os íeus cnganosj
defenderá a voíTa caufa, e a patrocinará com alegar
a paciência que tivcflcs , vos confolarà com rcpre-
fentar a coroa da gloria , que mercceftes pelas ba-
talhas vencidas contra o Demónio, Mundo, e Carne.
Aílim coníolava , c confortava os íeus Monges
Saõ Bernardo com as praticas , que lhes fazia , dizen-
do. Que o remorío da coníciencia hc a voz de
Deos, que os deíapegava do Mundo para os confer- _
var na Religião que as picadas defie verme era õ 5^^^'
cfporas, que os eítimulavaò a caminhar direytos^^fy^í*
pelacítrada da virtude , com a certa efperança do £><;«».
Paraifo. Pelo contrario , quem defpreza cflc ver-
me da confciencia. Quem reíifte as fuás picadas.
Quem naô faz caio, ou jànaô fente os íeus remor- •
fos eíte jàanticipadamente vive , e fe proítitue como
precito , e fe naô recorre a Deos com tempo , tenha,
Bb 4 por
Tercei
roPon-
to.
D.Tb.
39t ^-^xr^)ifcuYfò Xllh
por iafallivcl a dcfcfperaçaô de falvarfe da qual V>zm
nos livre a todos; que heamateria mais importaritc,
que devemos tratar no tcrceyro ponto defíe dif-
curfo.
h defeípcraçaô diz S. Thomás hc hum pcccado
graviílimo, eenormiffimo , que no mcímo tempo,
e immediatamentc oflFende t)s dous attributos da om-
nipotência, c mifericordia Divina, parecendolhc,
que Deos naô poderá ,. ou naõ quererá perdoarlhe
tantos, e taô graves pcccados. O pcccador defeí-
pcrando-íe, faz, e rende íem remédio a fua falva-
çaó impoíTivel , pois elle mefmo dà anticipadamcn-
le contra íi a fentença da fua condenação : Eo quod
remedium fu£ converfionis , velut impoffihik Jtatuat^
z.a.ç. jamque fèííteníiam fiiée ãamnatíonis » de fi defperam
zi.m.anticipit, O que reduz os peccadores a defelperar-
3' íe, hc o conhecimento , c lembrança deinnumera-
veis peccados , cuja multidão , e enormidade os
cípanta , e confunde. Coníideraô-íe como indignos
de olhar para o Ceo , quanto mais de gozalo , e
poíTuilo. Imaginaõ-fe , que Deos he íeu inimiga
irreconciliável, e dizem como o primcyro deíefpera-
do, que veyo ao Mundo, e foy Cain : {Maior eft im-
Gen^.é^ quitas mea , quam ut veniam merear. O meu pecca-
do, he demaíiadamente grande, c affim nunca po-
derey alcançar o per^aô. Efte mefmo diícurfo fa-
zia S. Agoftinho, quando fe confiderava immerfo,
c perdido tK) lodo da íua luxuria. Confcffo ( dizia
elle ) que a vifta das minhas culpas , tenho alguín
fundamento, ou razão aparente , para me defefp«rar,
mas feno mefmo tempo, confidero o Filho de Deos,
omeu bom JESUS, derramando fanguc , cravadso
emhuma Cruz por íatisfaçaô deftes mcfmos meus
pcccados , o meu coração fica incapaz de ter o mini-
tífAt, ^^ movimento de dcfefperaçaô; Dej}erare utique
Do torm ento da Defej^eraçav. 393
fotuiffem propter nimia feccata mea nifl ver bum tmm
Deus meus '^ caro fieret , & habitar et tn nobis. He
certo que à rcprcfcntaçaò das minhas maldades me
efpanta ,e dcfanima o meu efpinto, efe ponho os
olhos na vida paíTada , fcguindoos meus apetites,
entrareyfem duvida na defconfiança da miíericor-
dia Divina , mas fe dcfpois levanto os olhos em
Chrifto crucificado , cfta vifta diíTipa logo todos os
meus temores , e o ícu fanguc conforta o meu co-
ração. Quem duvida , que lembrando-mc de ter
vivido tantos annos cfcravos do Demónio , atado
€om tantas correntes, quantos eraõ os fuíis dos
meus peccados , que as formavaò , naô podia cf-
perar outro lugar , que o calabouço do Inferno; po-
rem fazendo agora reflexão , que fou membro de
JESU Chrifto , e que o feu mefmo fangue corre por
entre as minhas veyas , he impoíTivel , que eu me
dcfefpere, equc naô tenha huma confiança certa,
na fua íanta mifericordia : EJlin te Veo^& Domino ,
nojiro JESU Chrijio uniu fcujuf que mjirum , fortto & ^^'
fanguis^ ér caro^ ubi ergo poriio mea , regnat , ibi regna- ^^
re me credo , ubi fanguu meus dominatur , íbt dommari
confido,
O peccador naõ pode ter outro fundamento,
nem outra razaõ para deíefpcrarfe , que o temor
de naó poder pacificar a juftiça Divina contra elia
irritada , mas cfíe fundamento nsô fuííifte , e to-
da a razaõ he imaginaria , enulla, pois diz S.Paulo,
que noíTo Senhor J E S U Chrifto dcfcja , e quer , que
todos íe íal vem ; Clui omnes homines vult falvos fe-Tim.
ri, Eque íe alguém tiver offendido a Deos , c vive z.
períuadido , que não fe ha de íalvar , naó fe deícf-
perc , mas recorra a clle , pois he o Advogado , c
Medianeyro entre Deos, e os peccadores : Umis^'^'
ffíif» DeuSy unus , ^ mediator Dei , & hominum Chri-^'
ftus
^c.
i:
I il
3 j>4 Difcuvfó XllL
ftusjESUS^ qmdedtt tn redempífommfemettpftímprif
ammbus. E taí Mcdianeyro , eRedcmptor, que nos
rcmio com o próprio Sangue. O ApoUolo Sa5 Joaõ
falia nefta matéria com mais energia , çom dizer,
o que noffo Senhor JESU Cíirifto he a viâima de pro-
**''^^*^ piciaçaò pelos noíTos peccados : Ipfe ^ft propittatio
fro peccatismfiris, Naò íe contenta com Saò Paulo
de ciiamar Advogado , e Medianeyro , mas vidlima,
para que entendamos, que conforme a vidima to-
da inteyra íe facrifica; a Deos , affim todo JESUS fe
tem íacrificado por todos os peccadores do Mundo;
iSoae. Nonpronojlris tantum,fed etiam pro totms Mundi,
%: ' 'Eaflim a juftiça Divina fica rcdintegrada , ç fuper-
abundantemente íatisfeyta. O fundamento Theolo-
gico de toda cfta doutrina, que deve animar, e
coníolar os peccadores mais deíefperados he;, que
JESU Chrifto, fendo Deos, e Homem tem. dado fa-
tisfaçòes infinitas, mais poderofas , para aplacar a
ira de Deos , do que todos os peccados pofliveis
dos homens o podeíTeni offender ^ c irritar. Por-
que ainda que o peccado encerre em fíhúa malícia
infiaita , terminativt , qualquer mínima pena dé
Chrifto, teu também merecimento infinito, fuper.-
^bundante, e capacíílimo para fatisfazer , e remir
mil Mii:.idos, Ha parem differença entre eftas duas
5^^^,^^infinidades, que a malícia do peccado, he fó infí-
l>íK«.D. nita ratione objeãL Porque Déos que he íeu obje-
Th. do heiníiniro, mas quando a PeíToa do Verbo pa-
dece na íua hu;nanidade qualquer dor , ou pena
he abfolutamente infinita, e capaz de fatisfazer a
milhões de peccados , de milhares de Mundos.
PdíTemos agora da fciencia Theologlca á moral
dos Santos Padres , e veremos o que tem eícrito
neíVi mucria para confolaçaô dos peccadores , e
anima los, anaô deíeípçrarfe, mas pàr toda a ím
Gon-
bo tomenfo da Defejperaçad^ JS^ J
confiança na miÍÊricordia Divma. Saò^Bafilio argu-
menta afíim. Os voíTos pcccados, por grandes, e
enormes que íejaõ , fe podem numerar, etem termo
finito, mas he impoflivel achar numero, medida,
termo , ou fi;n à miícricordia Divina ; iogo opecca-
dor naõ fc ha de defcíperar, mas chorar os feus
pcccados , pois com hum propofíto firme , já lhes
poz termo, jà tem fim , e confiar na mifericordia Di-
vina , que nunca acaba .* Si feccata , & magnitudi- ^-^^^'^
ne , & numero po^unt definiri , mtferatwnes autem ? '^'
Dei neqtie magmUidme , neqne numero foffunt cireum- '
fcrtbi. Sme dúbio non eft cur dejieratto adhibenda
fit^ fed agnofeenda mifericordia Dei , & comwijfd
feccata deteftanda. Quando hum peccador ( diz
S. Joaõ Chryfoftomo ) fe achar carregado com o peia
infoportavel de innumeraveis peccados , íe quizer
arrependcríe de coração , e fdzer penitencia , a gra-
ça de Deos alimpará a fua Alma como hum criftal,
c de qualidade, que nunca mais apparccerà finai al-
gum; Si quii innumeris peccatisfit faueiattis ^ fi eo-
rumpamterevellit , tta Dem emma abolet , nt nulkm ^^^yf^,^
eorum vejiigium appflreat. EDeos failandopcla ^0C'*jJ^'^
ca do Profeta líaias , aíTegura , que fe a Alma do
peccador for vermelha , como huma brafa , ficará
com o arrependimento mais alva que a mefma neve;
Sifnerintpeí:catavefita ut eoccinum qnafmix deaíbú' ifai.c.
btintur. Ponde os olhos (diz Saõ Bernardo ) aos pec- » %'
cadores todoá cm tantos cafos , que a cada paífo
fuccedem , em tantos exemplos , que cada dia fe
vem , e vos dcknganareis , que tendes ofFendido
a hum Deos inclinado a vos perdoar , e que mai^
defeja a voíta íalvaçaõ , que vòs meímos a^podeb
defejar. Lede o Evangelho , e confideray , íè ten-
des offendido a Decs , mais que a Samaritana,
mais qic a Magdalcna ,mais que S. Pedro,, e Sa© Pau;-
lo,>
Bem.
1^6 éifcurfo XllL
lo, c o bom Ladríiô, c todos cftcs arrependidos , nâõ fó
alcançarão o perdaò , mas eftaõ agora gozando a Dcos
collocados entre os mayorcs Santos do Paraiío: Num-
quid amplius Magdakm peccafti^ numquid amplim
Serm"^,Paf^^0^ numqutd amplius tetro. ÀttammúU ^ m íota
SSrPct, cordepcenitentiam agentes^ non modofalutem-Jed & fan-
I. Bitudinemconfecutifunt.
Poderá ainda acharíc algumj pecçador taõ en-
durecido, que à vifía de tantas provas, authorida.
des , e infabillidadc do Evangelho , ainda duvi*
de, ou tema, que os noíTos pccçados fejaõ mayo-
res da miferícordia Divina , ou dos merecimentos
de Noílo Senhor JESU Chrifto? Diraô , que a fre-
quência do peccar , degenerou cm habito raao, c o
mao habito, que paíTou em natureza, e efta jâ tao
depravada , faz hum obftaculo infuperavel a, noffa
^"^«i falvaçaõ; Abftt hoc k [enfibus peccatorum, Dcos
ConT ^^^^^ ( diz Santo Agoftinho a qualquer pecçador que
íejade tal fentimento. Diga antes comigo : tMulti
funt Imguores mei & magnl ^ fed maior eft medicina
tua. Saõ muytas , c grandes as minhas maldades,
tantoaílim, que a minha Alma vaylangucndo, vay
cfpirando, masmuyto mayor he a voíTa mifericor-
dia.A voífa graça iie hum elixir viU ^ que confor-
ta, confola, e rcíufcita cm vida, c na verdade,
parece coufamonftruoía( diz Saõ Salviano Bifpode
. Marfelhi) ver, que os p:ccadores , fefiiô dos ho-
mens, todas as vezes, que de palavra*, ou por cí-
crito, ou juramento, lhes prometem alguma coufa,
cque naô íe fiem de Deos, quando nos promettc,
e de palavra , c por efcrito nas fagradas letras , c
com j-mmento ^ que fendo elles arrependidos,
SalvMh jiies pcr.loiiá os feus peccados : Oh tniferia . oh pre*
2 ad ^^r fitas. Homím ah homine credittir , & non credi-
^''' tfirDeo. Hommis promiJJJonibus^ fpes commodauir^
Cat. J)^Q
Dotormentoâa Defej^eroçãú. 197
Veo negatur. Oh quam feliccs , c cjue bemaventu-
rados(dizjrertuliano )que íomos. Pois Dcos , fe
temempehhado., com palavra jurada de ufar com
.mofco da fua infinita miícricordia , e íalvarnos , fe
deyxando os vicios fizermos penitencia. Pelo con-
trario, quam dcfgraçados precitos , feremos, fe
conhecendo infallivelmente , que naô nos pode cm-
ganar nem mentir naô quizermos fiarmonos delkj
para continuar como defefperados nas noíTas ^'^^' Ycrtul,
pczas, e vicios: Oh nos Beatos^ quorum caufaDeus ijy^^g*
jurat. Oh nos mi fef rimos ^fi necjuranti Deo credtmus. pan.
Precitos, e defefperados lejaõ para fcmpre to-
dos aquelles, que por jufío caftigo, do abuío , c
defprezo , quetiveraô da miíericordia Divina; mor-
rerão de morte íupita , e improviía , fcm ter tempo
de arrcpenderfc das fuás culpas, e converterem-fe a
Deos. Pordm nos, a quem Deos por fua efpecial
mifericordia, nos conferva ainda vivos i por acha-
cado, que íeja o noíTo corpo , por decrépita, e ca-
duca, que fique anoíTa velhice, bafíaõ poucos mo-
mentos para alcançar o perdaó de todas as noíTas
maldades. Por tarde que íeja a noíTa penitencia,
fempre ( diz Saô Jeronymo ) fera bem aceyta , íe ella
for de coração fincero ; e coníiante : Ntmquam eji
ferd eotvverjio , e pelo caminho mais breve, o bom La- Uyer ep
draôdo tormento da cruz , foy para oParaifo : La^y-^dU»^
tro de cruce tranfit inParadiJtim. Nao he a ira , e^^^»'.
furor de Deos , femelhante a ira , e furor dos ho-
mens. Eftes aggravados de alguíií defprezo , ou a-
fronta , faô neceífarios mezes , e annos para os pa-
cificar , e raras vezes tornaõ na meíma graça , e
amizade. Naò he aífimDeos, por muyto offendido,
€ irritado quefeja, bafla hum momento, paia tor-
nar na fua graça, c na primeyra , e fiel amizade^
antes eilc he o meímo que nos buíca com as íuas
iní^
^
Petr.z
398 ^ titfmfo XUl
inípiraçõcs , e como diz Sâô Pedro, naõ íarda coth
as fuás proiTjeíras,noseípcra , tem paciência , que^
rendo faívarnos com tornarmos a, elle arrependi-
dos : Nontardat Domimts promiffionem fiiam , Jícu^
quidãm exijiimant , feà patmiter agit propter vosy
nolens aUquem perire -, Jed ad ^(snitentiam reverti:
Eque iítoíeja aífim coníidcre eada hii a , quantos
peceados tem feyto, quantas vezes depois de con-
feíTado, tem recahido nas meímas cuipas^e poden-
do Deosprecipitallo no Inferno por milhares de re-
cabidas como ingrato , como fdlfo, como traydor,
oaõ o tem feyto } e he certo, que tantos outros com
menor numero de peceados , e menos graves , ià
lá cftaõ ardendo, e arderão eternamente: In igntrrt
tuciz f^ittet^& ardeu / -
Confirma quanto temos dito nefta matéria , o
grande Doutor da Igreja S.Ambrofío com humâ be*
liífima íentença digna de fer impreíTa nos corações
detodos; e v^m a íer , que nenhum peccador íe de-
fefpere , ainda que o Demónio, e a confcienciarca,!
lhe reprerentemuytos,e grandes crimes cometidos
m fua vida paíTada , e como feu eícravo o tenha já
aliftado no feu livro dos precitos ; naô íe deíanime,
riem fe perturbe , mas trate de defpiríe do amor as
creaturas , e amar unicamente o íeu Creador ; lar*
gueo vicio 5 c liga a virtude, centaô eíperc, e pre-
tenda , como qualquer outro Santo , o premio da
bemavcnturança. E tenha por certo , que fe mudará
vida , e coflumes , Deos mudará a fentcnça dada
de prefeito para o Inferno , regiílrando o feu no-
yí^^r. me no livro dos Predcftinados para o Paraifo : iVí-
Jei>.i. mo diffidat , nemo veterum confcks delíâorím-, fra'
fixam, miadmna de (per et. Novit Dominus mutare fenteri'
tiãm^fitu mver is emendar e deliãam. Oh bondade
infinita do Padre Eteruo. Oh amor immenfo do
Efpi-
Do tormento da Defejf)evãçaõ, g ^^
Eípirito Santo. Oh miíericordia ,fcrn termo , e ícm
medida denoíTo SenhorJESU Chriflo, hiima con-
íiíTaó bem feyta , huma reíoluçaõ confiante, de fugir
do peccado , e querer íó a Deos , bafla para ficar logo
hum grande Santo, c merecer paia íempre a bema-
venturança. Longe logo do coração dos peccado-
res qualquer minimo movimento de defcfperaríe.
Mas muito mais longe, ebem longe eíieja o enga-
no de eíperar mal , como jà diííemos em outro dif-
curío. Aquelle fc deíeípere , que dcíconfiando da
mifericordia Divina , faz a Deos hum tyranno cruel,
que naô quer pcrdoarlhe os fcus crimes , ficando
ellc perdido. Aquelle pcrèm eíperc mal, que con-
fiando loucamente nos merecimentos de noíFo Senhor
JESU Chrífto , íe abuía da fua paciência , fervindofe
da fua miíericordia , como de carta deícguro para
continuar nos mefmos vícios diiFerindo a peniten-
cia em tempo , que naõ terá lugar para a fazer : Ne-
mo de(peret , Jed nemo male jferet. Dcjperat qui credit^
quúàetiãmfifcenitmtiam agat. divina mifertcerdia non
indulgeat ^maTe autemjperat ^ qmpofi mtãta temfõra^
ad pízmtentia medicamenta refirvat. Devemos eípe-
rar ,c termos grande confiança na miíericordia Divi-
na , eno mefmo tempo y vivermos de mancyra , que
naõ merecam.os com as noíTas rccahidas , cahir na im-
penitencia finai , q.ye he o mefmo que a deíeíperaçaõ
de íalvãrfc.
Quero dar fim a efle taõ importante difcurfa
eom húa refiexaõ de Saõ Bernardo, e vem a fcr que
de mil prefeitos , que çÚab penando no Inferno,,
nâôha dez , que morreíFcna dcfeípcrados. A dema-
fíada coofí,inça na miíericordia Divina ^foy o enc^a-
no, com que o Demónio^ induzindo-os a perfcvc-
rar n-i enlpa , os ^íTegurou , para que nunca mais
lhes fugiíTem das mãos : Bioòolns ,^ qumú ditithis-
€■■■
409 Dtfcurfo XIII.
pojfeditj tanto difficilms dimmittiu Ah que fc Ocos
peniiitnra -, que os peccadores habituados , eftandoás
portas do Inferno , perguntaíTem a cad-i hum daqucl-
Ics condenados. Que deíefpcraçaõ foy a voíía,
de ir acabar naquclle eterno calabouço. Reípon-
deriaó elles. Ah defgraçados que fomos todos.
Nem por fo-mbra tivemos penfamento de nos dcfef-
perar. Huma prefumpçaò cega , huma confiança mal
fundada, huma eíperança enganoía nos poz nefte
trifte, e horrorpfo cftado. E vòs,meu Amigo, co-
mo cftais ardendo naquellas chammas, naõ foftcs
cm tal anno Mordomo comigo do SantiíTnnp Sa-
cramento. Sim , fui ( refponderia ellc ) mas cu fiado
naquella efmoía , e obfequio que lhe fazia , nunca
qulzreftituir oalheyo, imaginandome,que o faria
antes de morrer , mas húa dor improvif^ de eftama-
go , que CLiydey paffaria logo , me caufou a morte
íem me poder confeíTar. Evos noíTos pays , e
Avôs. Como vos achais nefte lugar de tormentos.
Naoífizeftes o voíTo teftamento ^ naõ dcixaftcs os vof^
íos legados pios. Oh malditos Filhos, e Netos ! (reí-
ponderiaõ elles) naõfabcis que o Inferno he cheyo
de Juriftas , que foy a noíTa profiíTaõ , de Letrados
Advogados , Defembirgadores, Corregedores, Juizes,
Procuradores , Efcrivâes. Quantas demandas injuí^
tas, quintas teaemunhas falias , embargos , deten-
fas , trapaíTjs , viftas , e reviftas , enganos , falfídades,
tudo para prolongar mais a demanda , e ganhar
mais dinheyro, eno fi.Ti ate ,a íentença contn o
que temarazaõ,e juíliçapor fi,com a total ruína de
orf^ôs, pupillos, e Viuvas que fícaò cm huí extre-
ma miferia, e defefpcraçaõ ; ora naõ podendo refazer
eftes danos, fem diminuir notavehnentc a fazenda
aos Filhos, eNct®s, deyxaô algum legado pio , ou
capelladeMiíTaspara morrerem aflim com credito,
cuy-
Dofõrímntoãànefe^eraçaõ' A^l
GUÍdando qiie como engaoao aos homens enganarão
tambcm a Deos por íer bom ^ e miícricordiofo.
Ha mayor cegucyra em homês de tratos , c contratos,
pedira Deos que uíecom elies miíericordia, para com
elia ufar tyrannia com os pobres.
Que fe depois perguntaíTemos a todos eítes
condenados, qual he a mayor pena que padecem
no Inferno, qual he o tormento íobre os mais tor-
mentos , que mais os afílige , que os defpediça,
qucihes trefpaíTa o coração, e a Alma, e os induz
apronuneíar blasfémias, a rayvarfe , como^Lobos
famintos mordcndo.íe,defpedaçando-íe em hua per-
petua defcíperaçaô iem proveyto. Efte tormento
( rcrponderiaõ elles ) he o verme d.i coníciencia.
que como temos vifto reprefentará fempre ao pre-
cito todos os crimes, que tem commettidoem todo
' o tempo da íua vida : Arguam te , & ftatim contra ^
faciemtuam. Quefe opeccado de David , lhe fazia
tanto horror, e lhe dava tanta pena , ainda depois
do feguro do Profeta Natan , que Deos lho tinha
perdoado; Vommus quoqm tranftultt peccatum'^^^^1'
ttium. E cc<n tudo o chorava de dia, e de noite,
nciíi podia efquecerfe delle , tendo-o fempre preíen-
te na lembrança , peccaíum meum contra me ejl fim-
per Que ícrà dos mifcraveis condenados^ no in-
ierno , aonde a remorfo da conícieBcia naò lhe re-
prsíentarà outra couía,e cm todos os momentos, o
ícu entendimento, a fua imaginação naò cuidará,
nem fixará, íenaó na quantidade., e qualidade dos
ícus crimes': Vermis eorimnonmorietar.
Ò Emperador FedericoTerceyro , eftando cm
guerra viva com Mathias Rey de Ungria , pcrdeo
duas batalhas , c vendo que na derradeyra tinha
-feytodo refto, perdendo a bagagem, ficando lem^^
íbldados i e íem algúa cíperança de recuperar as ter.
Çc ias
■ (■
DiSi.
led.
40* . Bifem fó KUh
ras perdidas, fugindo com toda a preíTa pata Ale-
manha , em rodos os lugares aonde poufav^ , efcrc^
via nas paredes cflav palavras : Rerum irrecuperan^
darum obliviôfumma felicitas efi. He fumma ícIígí-
dade, poderfe eíquecerdas coufas perdidas, quan^
do jánaôcem remédio. No inferno, nem he, nem
íerà , nem nunca poderá íer aílim. Ah que fe os
prefeitos podeíTem efquccerfc dos feus peceados,
e do Paraifo perdido por caufa deiles , o Inferno naó
íena para elles inferno. Defenganc-íe o peccador,
quefenaõ cuidar agora nos feus peccados, confeí-
lando-os i e deteflando-os , por toda a Eternidade,
cuydarà fempre nelles j íem lhe vir ao penfamcnto
óu imaginação outro objeilo. Oh cegueyra. OIi
confuíaô. Oh total defamparo de huma Alma. Nas
Coniiíroês de féis, ou féis mczes, ou de anno em
anno , accufando-fc alguns confeíTados , ou Peni-
tentes, de ter alguma mà occ^^íiaò, ou de viver ha-
bituados em algum vicio , perguntando- J-hes o Con.
feíTor do numero dos peccados, reípondcraô muy
enxutos. Nunca fiz tal lembrança ; e outros nun^
caíiz tal conta, nem cuydejnííTo. Provera a Deos,
queaíTimnaõ o tiveíTe experimentado, naô íó fa-
zendo MiíToês nas Villas , mas também nas Cida-
des, c com peíToas, que em negócios de fazendas,
faô taô meudos , que parecem Linces , e no único,
e mais importante negocio da íua falvaçaô parecem
brutos. Em quanto pois aos peníamenros , e cir-
ciinftancias do tempo, do lugar , da pcíToa , coir.o
naô foy por obra, naô fe põem em outra conta, naô íe
faz caio nem reflexão, como íe naô foraõ pecca-
dos, ou pelo menos muy leves. Defenganc-fe, que
6 mayor tormento , que padecerão no Inferno os
peccadores fera eí^a dcíatençaô , e defcuydo \ Lí-
ber fcriftus froferetur tn quo Utum continetur. O
De-
iií^jf
Do mm^ntõ cia Def elevação ^ 403
Dcmofíio lhes porá ícmpre adiante dos olhos o li-
vro da ÍUa vida , c leraò ainda que naò qucyraô ZQ^
dos osí^eus peccados , porque o verme da consciên-
cia ilies explicará todas as circunftancias , mais ou^
menos aggravantes ; e como temos já dito em outro
difcurfo , na fua falia eftimaçaó efta viíta , e efte re-
morío de ter perdido oParaiíopor couías de pouco
jmais de nada, e ganhado o Inferno porque afíim o qui-
zcraòhe a formal defeíperaçaõ dos condenados.
Finalmente, depois de convencidos , e dcíen-
ganados os peccadores , que os precitos , que mor-
rem defeíperados , faõ muy poucos , e muytos os que
cípcrando mal , vaô ao Inferno ; para que cfte defcn-
gano, feja com algum fruto , he neceíTario ter íempre
DO íentido, o documento íahidoda própria bocca de
noíTo Senhor JESUChrifto: Regmm Cahrum vimpa- ji^^tth.
thm\ & violenú rapiunt tllud O Reyno do Ceo , quer n,
reroluçaõ,e valor, e íó aquelles , que com animo ge-
pcrolo combatem as íuaspayxões, mortificando os
icus apetites , o conquiftaô. Aquella mulher Evangé-
lica de dez drachmas que tinha, perdeo húa; e logo rc- ^^^^ ^^
volveo toda a cafa para a achar. Tanto dcfvelo para ij,
hua drachma,que he húa moedinha de vintém. Direis,
que naquellas dez drachmas,íe entendem os dez Man*
damentos , c que tanto vay a Alma ao Inferno por
naò guardar a hum íó Mandamento, como para naô
guardar a todos ; ^iicumque totam Icgem ferva-ve-
rit j offendát autem in uno fafíus eft ommum nus.
Allim be, e por il^o dobrou as diligencias , fechou
as portas > cjinellas, accendeo huma candea , ac- pic.iú
cendit lucernãm^ e buícando-a , logo a achou, fa-
zendo grande feíh , c convidando aos Amigos , e
vefinhos a darlhe os parabéns: Congratulaminl^ qtiia
in^veni drachmam , quamperdideram.Qnc myfterio íe- ^««^ » S
rácfie? He certo que as portas, e janelas abertas em °-
Ge 2 hui
S«P
:^^
;'■ ti
l.uacâfa?daraõ mayor luz, que •cineoentíi tochâS' aê^^
cefas^ quanto mais de bua candea , que he hua !uz!taô
Íirn'kâda. Ah que eíia drachma perdida he figura de hu
Í')eecadoí rneyo deíefperado, por conhecer , q immer*
^Ido nos feus vícíof, tem perdidaa Deos , a íí , e o Pa*
raiío. Com tudo naô íc dcleípere. Eis-aqui naô me-
tios fcguro , que infailivcl o remédio. Feche logo as
janelas dcs ítus fentidos , as vaidades dcí^e Mundo^
feche aá portas , a todas as occaíiocns , que tem a fuâ
perdição) e tomeacandea acefa na maô, que he a lem-
brança do fogo do Inferno , que merece pelos feus
peccados. Em fazendo-o aíTim tornará logo em vôsa
graça de Deos , achareis a drachma perdida da voíTa
Alma, pela quaí faraó grande fe fia , os Santos todo%,
eosmeímos Anjos no Paraifo. Efte he o vcrdadcyTa,
e legitimo íentid.o de^à parábola, com a. qual noífo
i Senhor] E S U Chrifto como Pay amcrofo , raoflra ô
goíto que tem , que vos convertais , e façais peniten-
Lac, 1 f . ^^^ ' ^^^^^^^ '^^^^ ^gauãmm trit , eorum AngdH Dê^
io. ' fuper um feccatore ^foemtentíam agente. Pelo contra-
rio, quem quizer continuar nos léus vícios , e feguir
as fuás payxôes deforáenadas , tenha por certo , que
o vermcda coníciencia nunca deixará de roer nef-
íâ vida , e na outra de lhe deípedaçar eternamente as
entranhas , com lhe fíxar na memoria fem alguma in-
terrupção todas as íuas maldades que he hum infer-j
no mais cruel do mefmo fogo do Inferno. E efía hc a
verdadeyra defcípcraçaõ fem remédio, da qual Dca«
livre ao pio Ley tor , a mim , c a quantos que como cu
Ifai fó'. ^^^^ merecido : Vermis eorum non morieíur , & igms
earnmmnextingttetíír.
i
DISCUR-
TORMENTO DAETERMDADE
DISCURSO
ULTIMO.
Do tormento da Eternidade.
Ibit homo in domum aternitatis fu^^
Ecclef. 12.
Emprco Mundo abominou a
crueldade dcshumana do Em-
perador Nero, que depois de
ter inventado 'todo género de
fuplicios para atormentar os
Chriflâos , finalmente com ty-
rannía , e barbaridade inaudi-
ta, os fazia meter em hum fa-
ço, todo breado de pez, e al-
catrão , c depois à bocca da noite, poftos nos cruzei-
ros, e cantos das ruas ,mandavalhe pôr fogo para íer-
virem de lenrernas viventes com alumearem os que
paííavaô : Ut in ufum no^iurnl luminís urerentur. Ter- ji^emch
rivcl cfpedlaculo , ver a hús homens , feytos como ci- tom. i.
•rios ardentes, tochas vivas, brandões acefos , e aílim cem. 67
brcados, confumirem^c em chammas, e fumaças,
Ce 3 bra-
I
'N
Difcurfõ Ultimo.
bradando ,e gemendo, e dando alaridos? e ays^quc
iBOveriao çompayxaô is pedras viem ninguém tf r
animo, coração, ou poder , de lhes acudir jcoríi
tu ido, como ofogo be adivo, em menos de iiorà
acabava-lecfta trágica ícena , c com amorte,tani^
bem os tormentos, cantes de amanhecer o dia, tíí-
do cftava reduzido em cinzas. Efpedaculo , muyta
mais terrível, e horrorofo , he vera hum Deos toda
pqderofo, profundar jhum at)]fmo ço centro, 4|i
terra ,e ahi ocuparfe, em encher de fogo a huma
grande fornalha , dar toda faculdade aos Demó-
nios para aíTopraloj ci como íe cftcs efpiritos infer-
naes,n3Ò tiveíTem baftante virtude,© meímo efpi-
rito de D!:os g modo de' hum torrente de enxofre,
com hum aíTopro , a accende , e forma em hum in-
cêndio : Mattis D&mini ^ ficut -torrem fulf uris , fue-
cendenf-eàmM ifto porque para atormentar álÀimas
miferaveis creaturas, areadas por elie mefmo a fua
imagem , e íemelhança : Creavit Deus hominem aà
imaginem r & fmiTitudmem fuam. E por quanto
tempoí' Naôpor hum dia, naô por huma hora, mas
por os ícculos dos feculos , em quanto Deos for
Deos : Fumns mmentonm e&rum afcenàet irt ja^
enJa peeulorum. Eíla he amorada , que Deo§ tein
preparado para aqucUes peceadorcs , que engana-
dos da vaidade àtú^t breve vida , por nunca cuidair
na Eternidade , correm á rédea folta para a fua rnor
/^•^^ rada do Inferno; Ihit homo^ in àomum atermtdtià
fu^. Oh Eternidade, Eternidade ! Grande penía-
mento diz Santo Agoíiinhoheo cuidarna Eternida*
de : Mãgm cogitam ater mt as. ^.'à^i Eternidade das pc^
nas faz tremer aos Santos , que aconííderaô ,. quan-
to mú% aos peccadores k a corJderaíTem. Aflim
; tremia David perturbando-fe todo: atè perder a falr-
^Í^^J^h: lurhatusfum y& nonjum.lm^m.^ iíàç^pmr
Ifaf. 50.
Gen. I.
14.
" l^' ■
Do tormetitõ da Eternidade. ^t^7
íÇuef píbírquc confrontava os dias paffados da íua
vida , com a Eternidade das penas, que merccinõ
CS feus peccados: Cogitavi dies antiquos^ & anrws ^f*^'*^''
ieíernos m mente habnt. Eíia Eternid de das penas
fcrà a matéria dcfte ultimo diícurfo , que dividirey
.cm três pontos. No primeyro veremos a verdade
intallivel dcík Eternidade do Inferno, Porque Dcqs
pôde , c a quer aíTim. No fegundo porque afíim Dcos
por fcr jijfto, a quer , e a de ve fazer. No tcrccyro por?
águe dopenfamento , cconíideraçaõ defta Eternidade,
(depende roda a noíTa falvaçaõ : Ibit homoin âomum Sof.iz,
^etemiiatis fna.
*■ Híía das rnayores, mais difíiceis>c mais imporv
jantes verdades da noffa Reiigiaõ Catholica , hc a
Eternidade das penas , que Deos tem preparado no In-
ferno para punir os peccadores. Todas as mais ver-
dades Evangélicas cem as íuas dífficuldades , porém 'a
pftas íaõ as divididas, enaõ acometem o homem to*
do em clicyo. O crer os Myftcrios da SantilTima Tria-
dade , da Incarnação do Verbo Divino , e outros fc-
melhantes , aindaque as razocns humanas naõ os
provem claramente % com tudo a vontade bem \n*
clinada,com o lume da fé, facilmente fupre ao qus
falta ao entendimencoi Daqui nafce , que todos
crem facilmente a gloria eterna, que Deos tem pro- , -
mettido aosjuílos no Paraifoj porque como a von-
tade ^í-W/í in boquim. Qi^tanto mais , em hum obje- '
(fto, que he hum bem infinito. Sô a Eternidade das '
penas do Inferno he mais diíficultofa a crer , porqtié
inveíle o homciti todoj na memoria, no cntendij
mento , na vontade , e em todos os íentidos , qtíe a a-í
borrecem. E na verdade , que pôde hâvcr de mais Con-
trario i a hum homem frágil , que dizerlhe , que íendo
Deos tam bom , queyra punir hupecca do de hu mo»^
mentOjXSomhuaEternidadedeipenasicque a fgvi juU
Ce 4
tjça,
i|oS . ^ Dlfcurfo vitimo.
dça, proporcione hum breve penfa mento, hua àdçâiõ
peecaminofa , que durou hum infíante, a hum fo-
go, ^ue atormentava para íempre. Equal aparên-
cia que hum Deos, taõ miíericordioío em fí mef-
mo , e que tem tanto amor aos homens , poíTa re-
folveríe a velos padecer eternamente , ícm que a
vifta de tantos fuppJicios lhe cauíe hum minimo
movimento de piedade, darlhe algum deícançOjOu di-
zerlhe hua vez bafta.
Eftas razões aíFim aparentes , foraô os principio»
,; dos enganos, dos erros, c das herefias do grande
Origenes do qual diíTe Saò Jcronymo , que em quan«
toa fua pena fe conformou em explanar os dog-
mas da Igreja ninguém efcrevco melhor, que elle,
más quando o mar alto do íeu grande engenho
quiz transbordar o pé da letra do Evangelho , nin-
iSfíVrô». gucm delle peyor : Ubt bene ^ mmo melius^ ubi ma-
ep6,4d ig^ ^2mo pejus. Creia elle, e affirmava muytobem,
Fitoí, ç^^Q Q peccador havia de íer caftigado no Inferno , e
íoffrer terríveis tormentos por hum fó peccado
mortal , porém defpois imaginavaíe , e tinha co-
mo por certo, que paíTados muytos íeculos , Deo^
fe moveria a compayxaô , e o livraria daquellas
penas eternas. Engano, e hereíia craffa , que S. Agof-
l/^ôf^«/?. íinho com os maisConcilios refuta no livro da Ci-
iih.z. dade de Deos. Sempre o Demónio bufcoii íequa*
^Civ. zes, que publicaffem doutrina , c dogmas falíos,
^" contra efía verdade da Eternidade das penas do In-
ferno, e naô podendo extirpala , inventa mil tra^
ças para diminuilí?. Calvino confeffa , que os pec^
cadores, feraõ condenados por toda a Eternidade
no Inferno , porém para diminuir efta pena , in-
ventou que cfle fogo naô os queymará, mas queo
ic» tormento coníffte,cm fe verem atados, c obri-
gados y a câarem eteroamente na prefenca deílc
"' fo-
J>tf'
Dotàrfnentoêãttemdúâe. 4^9
ÍOPÒ. outros , naõ fc querem perfuadir , que os
corpos dos condenados depois da rcíurreyçaô eftc-
jaô no Inferno íeeulos ,e feculos, íoffrendo fem-
pre as mcímas dores * parecendo-lhcs, que o fogo
os havia de coníumir , e reduzir cm cinzas. Outros
coníiderando , que a Alma he immortal , e que em
quanto eftá unida ao corpo, efte , naô morre, nem
pôde morrer , imaginaô , e fe coníolaô que os conde-
nados, depois de foffrerem , por muyto tempo , o tor-
mento do fogo, pouco a pouco, pelo habito continua-
do , fará o corpo como hum callo ^ ou fiíiará empeder- ■- >
nido , mirrado , c como infenfiveh Todos eftes pen-
famentos , e imaginações , nafcem do Demónio , pay
da mentira que vay liíongcando o noíTo amor pró-
prio , c enganando o noíTo apetite , que para conti-
nuar nas íuas torpezas, e vicios, aborrece tudo o que
he Eternidade do Inferno.
Mas he neceíTario , que a verdade defta Eterni^
^ade triunfe , pois Deos , aíTim o quer , e o pôde
fazer ; c o querer , e poder em Deos he o mefmo.»
Omma quacumqtie 'vohit fecit. Primeyramente j a pfalm.
natureza, e o íer de qualquer coufa , que ha nonj.
Mundo diz Platão, c depois delle Santo Agoftinho,
he o que Deos quer .• Tanú ntique Cónditoru võhntas Augufil
rei cujufque natura eíi. Ariftotclcs, ePiinio contaõ, j^^*: ,
como na Ilha de Chipre ha huma certa cafla de Moí- p^^'*"'*
quitos, que vivem , voaõ, e comem nas chammas.
E accrefcenta Santo Agoftinho, que em certa parte do
Mundo , hâ huma fonte , que brota agua taõ ferven-
te , que ninguém a pôde , naô digo beber , mas nem
tocar, fem ficar muy bem queimado, c com tudo
vivem, nadaô , e comem naquelia agoa huns bi-
chinhos, e naô fó naô morrem , mas naô podeiji
viver cm outra parte i fe vos dizeis que aqttellcs , ; v
Moíquitps , e cílcs bichinhos vivem ní^uelias cham^^
mas.
Angh
eo ffítat.
.■masj e fâaquclíc ardor ào fogo , porque aquclíl
hn a fua natureza , e na& padecem , e naõ íenterii
-doí^alguma. Replica logo Santo Agoíiinho. Grandô
ílijaravilha he j que os réprobos cltejaõ kmprc pçf
í.nando, e morrendo de d^res no Inferno , e nunca
racabem de morrer ; porem hç muyto mayor marar
mHha,quc aquelles bichinhos , e fRofquicos cflejaõ
íemprc ardendo nas ehammas , c vivendo no fogp
ícm íentir algum tormento, ou padecer a minima
. pena : CHirabik ejl dolere in ignibus , & tamen^ vive^^
re-f fed mirabilius eft vivere m ignibus ^ nec 4okre,
Diz mais o meímo Santo , que nas montanha^, dç
Arcádia, fe acha a pedra ^ que chamaõ arbeftosi
^qual hurRa vez que eftà aceía nunca mais íe pode
apagar, c fcmpre ar Jendo queyma fem nunca fe eonT
íumir , ou padecer diminuição. Mas para que aní-
dar taõ longe. O monte Veíuvio, perto de Napo?
Iés,coníorite Etna no Reyno de Sicília, ha mais
de dous mil annos , que as íuas entranhas ardem
continuamente cheyas de fogo,fem nunca mingoar^
^.{: OU coníumirfe como fe o fogo reproduzi íTc cada-dia
1 a matéria combuftivel , que lhe ferve de alimentOi
Saõ cheminès do Inferno, diz Tertuliáno com oU-
' tros Santos Padres , porque íe Dcos naõ tiveíFc
maõ naquellas ehammas,. já h"» muitos íecuíos, que
^ ^ t^áÔ incendiado, e confiimido ambos aquellcs Rcyj
nos, e anenas fe íaberia o nome de Nápoles ^ e Sb
çiiiâ : tMontes unmtur , & durant : §hiid nocentesy
& J)eí hçftes. As montanhas ardem , e duraòj Icm
€> fogo poielas coníumir , e porque naõ p>odçrà
Deos fazer oméímo comos corpos dos peccadores
fciís inimigos ; confirma a vcrd-uk defía doutrina
dos Santos Padres o Profeta David quando diíTe.^
pçai^^SíiíUt flamma comburens montes ita perfequerCs eos in
UmpefiaH tua. Naquclle ultima dia: tcmpeliuoíai
•■:;.., ~ " ' na»
Tert.
apol. cAp
48.
DotoYffíenfodaEttfhidade. 4i;i
fiaqúella tormenta desfeyta do. juizo , qu^ymarà Q
fogo do Ififerno os peccadores*, como os montei,
que vomitando chammas fenipre. ardem, e nunca £e
Goníbmem. 1 ;o
He de reparar , que todas as vezes , que o ft-i
grado Texto, e o Evangelho fallaõ do fogo , e pena«
do Inferno, fempreacerefeentaô a palavra atermnh
Ibit homo in domum aternitatis fua. Se o pecçadqr^'^.!*»
morreo em peccado, elaro efià que a fúa morada ..^-,^.
no Inferno fera eterna. Clama o Profeta Ifaiás : ^nis ''^J^XÍ
exvobú habitare foterit cum igne devorante •t\ & cum /^'.jjZ
ardonbus fempiternCs. Confidere ,, que naó falia fó
no fogo que devora , mas também no fuplicio dcí
ardor que fcmpre dura ; Dahis Detís igmm^ & ver-
mes m/arnes eorum , ut urantur , ó- fenttant tn fem-ftfdithl
ptermim. Efla palavra fempiternum vai o meímo'^^/'-i^«
que lemper aternum. Logo íempre eternamente os ,- r«
corpos dos precitos íeraõ queymados , fcfFrendo r í
as penas inexplicáveis do fogo do Inferno. O Pro-.
feta Ifaias fallando dos réprobos , acaba os feíTen-
ta íeis capitules das fuás profecias com efía fentcn-,
fa; Vermii eorum non morietur ^ér ignis eorum mnifMM,
Mmguetur, Se o verm.c , que fempre lhes roQ a
conlciencia , nunca ha de morrer , fc; o fogo , que p&
atormenta, fempre queyma, e nunca fe apaga ,cor-í
re i-nfaílivel a conícquencia , que os tormçntos ng
Inferno para os réprobos íap eternos. Deyxp tan-
tos outros textos', de que hc cheyo o tcftamentcí
velho, efpecialmente dos Profetas, queeraò os Pre-
gadores, e MiíTronarios daquellcs tempos j/e todos;
concernentes á Eternidade da GÍoria para .ps efço-
Ihidos,e a Erernidade das penas para, os' precitos,
Qtíc feja poílivel , que efíes , ,e outros rex^tos da
Sagrada Eícritura, lidos , e coníídçrados pelos
Gent«>s,» Ç0Í3Í olunje d2 r^a^j^j^o^; ^-jin^^
tll
11
que Deos inftilou nos corações 'humanos , lhes fizef-
,fcm tal imprcíTaõ para conhecer , c crer o Infcrnov ca
Eternidade das penas, que fe faziaõ violência para tu-
i gir o vicio , c feguir a virtude. E que melhor íe podia
l dèfcrevcr o eterno tormento do verme da confcien-
i' cià.queroerá para fempre as entranhas dos pcccado-
res; Vermii eorum nonmorietur j que com cites vcríbs
, I 1 .í dcVirgilionapeííoddomiferâvelTicio;
tv\ I Ij£ d Roftroque immanis vultur obunco
' l^^ Q * Immortalejecurtundens^fcecundaqnepmnis
Bji ^ I -S! ' , Vifcera^rimatur que epulií, habitat que fíéúlta^
*| I í "^ Peãorenecfibrisreqmesdaturullarenatis,^
\ Nomca cm lugar do verme , o Abutre , ave de rapina,
i I c carnívora , que íempre hirá roendo os fígados dos
-? malfey tores, c chama eftss immortaes , porque quanta
*^ ■ devora tanto torna logo a rcnafcer
Q^j^ Semferqmrenafcens ^^
f/irj.4. UtpqffftfemperpJJeperirejecun ^
Nomea também jecur , porque elie como dizem os
Santos Padres e7? vekti fedes amorps , & hbtdmts. He
como o centro da iibidinc , e o trono do amor pro^
fano. Naô fallo nos tormentos diverfos y que t^P™
excogicado, para explicar a Eternidade das penas^
como a roda deixion ,cheya de íerpentes , que lem-
pre virando , quando parecia no fim então começa-
vainosvaíos das Danaides, que naô tendo fundo*
quanto mais os enchiaõ, tanto mais vaíavao. Bsm
fey,queme poderão dizer , que cftes fao fingimentos
poetkos ,ou fabulas. A que rcfpondo com Santo Am-
brofio, que eftas ficçoens ainda que em fi "^^ con-
tem a força da verdade; ex^licaò porem ^fj^^^l
verdade agente rude: Fabula etftvim ^^^^f^^
An.hr, habet tamen mtomm habet, utjuxta //^f//-f -f^'^ ;
rU..,.Ue tasmamfeftarl. E efte modo de «^^^^^^^^^^^^ ^^j^^^;
0#V. ramcnte 4 verdade ao Povo ignorante por via de
Do tõV^nmílSâ^Etefêiêaàe, ;^4*3
apojogos, erde parábolas, que he muy uíado na Sagra*
dâ^ Eicritlira ,> como quando fazendo concelho ás
arvores i pediráô a olivcyra , a vide , e a íigucyra
paraqUfe alguma delias aceytaiíc de fer o feu Rey: /«^«V-p
& dixerunt imp-era nobis : Círecufando , aceytou-o
efpinheyro. E a Profeta Natan, íe valco da íeme-
Ihança de hum rico , que tinha furtado, a única o-
vclha que poíTuhia hum pobre , para reprehendera
Oavid do adultério com Berfabè , explicando-lhe,
«que era eiie n?efmo : Tu es tlk vir. E noíTo Scil^hor ^^^.*.
jESU Chrillo, quando pregava ás Turbas , ordinária- ^^P'^9'
jnente era a íua pregação por via de parábolas , e
fem parábolas , rara vez cnfínava a fua celcfte dou- Mauh',
trina ; Et loctitus ejt eis milita in par abolis , & fine xy
f ar abolis mn loquehatuyr eú. E ilio bafie para mo-,': ?*.
íítrar, que antes, da vinda dcChrifío , os Gentios ti- , -:
vcraôfufficiente noticia do inferno, eda Eternidade
dás penas.
i- QnefcosGcntiosahuma ítmples reprefcntaçaõ
-do Inferno, a hum confuío conhecimento da Eterni-
dadcdas penas, fugiaó o vicio, e feguiaô a virtude,
como he poíTivei , que alguns Caiholicos , com o lu-
me da fè, com a luz do Evangelho > para continuar
na fua maldade , íe imaginem , que Deos olhando pa-
ra a noíTa fragilidade^ movido deeompayxaõ,não
quererá, que as íuas creaturas, cfíeiâo eternamente
penando no Inferno. Oh quantos por fe terem aliu-
cinados , com efta imaginação cfíaò agora ardendo
no Inferno. Primcyrameníei todas as vezes , que o
Sagrado Texto faila no fogo do Inferno > quaíi íem-
pre ajunta a palavra eterno 5 finai evidente , que
naõ faila com exageração, ou metáfora. Segundo,
quando íe trata em matérias da derradeyra jmpoír*
tancia, aonde a genuína inteiligencia heabfoluta-
mente neceíTaria para a íalvaçaò , nunca fcíervem
.-■ ■■. ^ de
■■■1
de palavras mctafpr iças , ambíguas , ou btci^fc*
tacivas , como nos teftamentos , nos areftos , • nas
fentenças^, que devem fcr entendidas , q executa*
das ao pé da letra, e aífim noíTo Senhor JESUChri-
ftb, que como diíTcmos quando pregava ás Turbas
fcmpre era por via de parábolas, trâtando-le de fa-
zer o arefto ,e dar afentença de condenação, diíTe;
Dijcedítê ãmemakdiõtl inignem atermijn. Ide amal-
diçoados no fogo eterno , c para que naò venha ao
peníamento , que o fogo íerá eterno, mas naò a
acçaô dofogo, e ferem algum dia os réprobos li-
vres daquelle tormento , reparou Santo Agoíiinho,
que logo no mefmo capitulo confirma o arcfto»
com dizer, que iraõ os precitos no fuplicio etcr*
Mmh. no : Ibunt in Juplicium aternum : Jufti autem in vi-
xj. tam a temam : como tambcm os Prcdeftinados na
gloria eterna.
Concluo efte primeyro ponto , com hua belliífi-
ma reflexão que faz Saó Gregório fobre efta meíma
fentença , e prova quanto ate agora ternos dito ar-
gumentando aílim. O Filho de Deos naô pôde fer
verdadeyrô em hum texto, ementirofo no outro.
5^/^,^^ Senos d a mos fé às fuás promeíTas , devemos tam-
Prov. bem dar fé ás ÍUas ameaças : Cur eredls qiiod Deus di-
^it ^ & non Umes quod lyeus mimtur, O mefmo
noíTo Senhor JESU Chriílo,dizquc os juílos hiraõ
M I ' na vida eterna , diz também no meímo lugar que os
<Heg l' prefci tos hiraô no fuplicio eterno : Ihunt m [uppliciím
^^' ietermm^ Se a pena dos precitos ha de acabar cm
Mor-Ci aigyn, tempo; a bemaventurança dos eícoihidos;a-
*°' cabarà também algum dia. Couía que nunca poderá
fer, poiso mefmo Chritlo diíTe ; Gandium vejirum
/tftf.iô nemotoUet à 'Vohis, E jà naò íerá bemaventurança
perfeyca, porque o Bemaventurado , teria íemprc
no icntido que aquellc íummo Bcjn que gozava,
havia
\
LõmmtmiatÚYmhde. 415
havia huave? de ter fím , c ifío bãftava para ter na- '■ ■
quelle imiíienío gáudio hiima fumma trifíeza. Daqui
íe intere , quam enganados andaõ os peccadorcs,
quando euydaô , ou íe imaginaõ , queDcos como
taõ miferiçordiofo , depois de huma longa ferie de
feculos, terá compayxaõ delles, livrando os finai-
mente das penas do Inferno. Horrivel, e tremen-
da blasfémia ( fegue a dizer Saõ Gregório) querer fa'
zer a Deos mentirofo , com o publicar mifcricor- (7r/^è>'.
diofo: Dúim dum mifericordem ajferere volumus^men- Dial.^.
dacemCquoânefaseft ) pradicamus.
Temos viilo á verdade infallivel das penas do Scgun-
Inferno ^ e como Deos decretou , e ordenou que <ic Pon
foííem para íempre eternas. Agora nos convém ^°-
provar a juftiça , e equidade deílc decreto, e que
neceíFariamente o havia de fazer, allim pela íua glo-
ria, como pelo bem publico, e particular de todos
os homens. Deos faz mais caio da fua gloria, e de
qualquer das fuás perfeyçóes , que de todas as crea-
turas,e de quanto tem creado no Ceo, ena terra.
Hum dos íeus attributos ^ he de íer fumma verdar
de: Ego-fnm peritas. E eíla íua verdade , e fideli-
dade nas palavras , dura , e durará para femprcí
Etveritas Dominimamt inaternum. Ora tendo c\\^ ^f^^"*»
tantas vezes dito, e repetido , que as penas do In- ^ *^*
ferno para os réprobos, faô, e feraò eternas , que
fundamento, ou probabilidade tem, quefe queyra
deídizer , e moíirarfe mentirofo. Deos quer ma-
niFcAar a todos a fua bondade , c íantidade ,-- que
fendo infinita , deve detcftar infinitamente o pecca-
do , que lhe he eíTencialmente , e diametralmente
oppofto; e como pódc elle mofirar, que infinita-
mente o abomina , e. detean , íe naô caftigando-o,
com pena mfínita na duração , pois o peccado fub-
fiUc,e durará eternamente. Todos íabem que Deos
' ' " ■ he
^
'í
Mald.^};\ç.\mmut^vc\Kií£^o entm Dominus ^ non MtcrX
^ íQuC; as iiias íentenças naò teni appellaçaõ , os íeiís
areííos irrevagaveis , as fuás refoluçoensjrmes , e
eonftantes > a fua palavra naq fó de Rey, mas de DeoSi
.que infalliveimente fe hade executar : //>/í ârnit. , é?
fa5íafimt.Dcosmò lie variável como ps homens ,^
poríftonaôhepoírivel, que fc mude: Non eft J)em
^^^^^ Jicut homo ut mui etur.
} Finalmentedeve,equerDeos moftrar a fuain-
dependência ; que os Gregos chamaõ autarchiay
c quer dizer , que elle Í6 bafta a fi meímo , c que
cm nada neceflita das fuás crea tufas y e efte hc o
í^ florão mais gelofo com que remata a coroa das
íuas infinitasperfeyçôes. Ora fe Deos quizcffe por
compiyxaõ , chamar a todos os já condenados no
Inferno, e livralos daquellas penas eternas , pare-
ceria, que as culpas ,naÔ as mereciao , ou que
naô podia eftar fem clles . ou que lhes erao neceíla-
rios para augmentar a fua gloria accidental , que
tudo he contra o que diz o Profeta David : Detis
rfal.iswetís es tu , qmniam bonorum meomm non eges,V.
éLwnda Deos queyra mayor Corte no Cco , pode
crcar milhares demundos, e milhões de crejituras,
' queoíirva5,e amem, e naô o offendao , e delpie..
zem , como tem feyto os precitos. Oeíengancm-^fe
os peccadores , que Deos naò fica menos glonfica,
do com caftig^r os mãos, que com P^'^»^^^;;;^^;. f^^"^
e os feus attributos com a f tia gloria contribuem
h)uyto,a execução da Eternidade das P^^^^J^ P^^^ ^
fua reaa iuftiça naò he n^^nos neccííaria ( como ve-
remos ) para o bom governo do Mundo .^^^ ^^^^
mifericordia. Efta ainda nos pode valer ^ ^^^^^^^^^^
to íomos vivos , que depois de mortos , no Ii.terno,
- nU h^redempçlò : h ínfimo nulla ed redmpm.O
Ur^eo remédio que nos íefta he ,, arrependerfe logo
Bo toffnenio ãa Eternidade, 417
muy de veras dos Icus pcccados, e mudar vida , e íó
defte modo, diz S.Gixgorio, mudará Deos a fentença,
e de precitos deftinados para o Inferno , nos tara pre^ GtegM
deíiinados para o Paraifo: NoverítVeusmutarefen-^Mor,
tentiam ,fi tu noveris emendar e deli£ia.
Baftaria para convencer o noíTo cntendiment»^
c tirar toda a duvida concernente á Eternidade do
Inferno, íaber que hehum artigo da fé, equc Deos
affim o quer , e aífim o tem ordenado. A todas ef-
tas quefíóescurioías, porque Deos caftigue com pe-
^a eterna hum peccado , que durou hum íó mo-
mento , fe refponde com o Santo" Bifpo de Marfe-
Iha Salviano: H&mo pm^fecreta Dei non intelligo^Salvl.^
inveftigarenon audeo. Eu fou homem, e coníeguin-^í/^ra^.
temente ignorante, para comprehcnder os íecretos
de hum Deos, e naó me atrevo invcftigalo. Como
Deos hc a fumma verdade , c a vcrdadeyra equida*
-de , fico mais certo , e convencido com íaber , que
«He pronunciou eíie areíío,e tem ordenado eíias
penas eternas , que fe com razões humanas , cu com-
prehendeíle todas as caufas , e todos os motivos
deite Divitio juizo : Plus eft Deus , quam omnUhth^
mma ratio ^ quod k Deo agi ctmUa cognefco. Corii
cila humilde proteftaçaõ , c total refpeyto , e vene-
ração a hum artigo da fé , taô importante para a
:noíra falvaçaô , quero agora íeguindo a doutrina
dos Santos Padres , provar com razoens humanas,
com axiomas , e textos juridicos da^ noíTas Icys,
que Deos para o bom governo do Mundo , e para
o bem publico, e particular de cada hum , deve dar
-penas eternas no Inferno aos tranígreíTores dos íeus
-Mandamentos, quehc a baliza deííe Segundo Pofi-
.to.
i- He com mu m íentimento de todos os Povos,
que os PrÍDCÍpes,ç Republicas, que tém-loberania
Dd ítí-
(mT
II
11
CiviMt.
M)re QS.Í£u$r¥âil^líos, e Súbditos ^ podem piiblí^
car as ikys, que julgarem neceíTariasv para o bem
dos íeus çftadps , e no meímo tempo eftabeleccr as
penas, para caíiigar, os -que as quebrarem. Eflas
penas porém, nuqca tíveraô proporção , na duração
do tempo, eom o tempo que durou o crime, por-
que os Legisladores ,fó rcparavaô odamno que vU
nha á Republica com a infracção das Leys. A ler
condena á morte hum ladraô de efírada, ou íaltear
dor de caminhos j ainda que o furto fcja bem Icve^
o fcyto em menos de hum. quarto. Hum homem
enfurecido mata a outrem. A fua culpa foy de hum
inftante , em que naõ attentou para refrear a fua
pay xaó , com tudo fe pelas circunftancias efcapar
da forca, tem a galé, ou degredo por todaâvidaf
logo as leys ,cnmo diz Santo Agoftinho , não guardai
proporção, entre a culpa, e a pena na dtiraçaò do
tempo .• ^afi ttlla iâ mque feges attendãnt^ ut tam-
tafit mora temporis , qua quis puniattir .yqttanta mon^
temporu , mãe pmatur aàmiffum. E quem naô fa*
be , que condenar a hum malfeytorá morte ,,he
darí-hehua pena qmntum eft âefe eterna : pois bem
fabcm os Juizes , que naõ ha remédio natural, *quG
©poíTareftituir emvlda. Digo mais; em huma íu-
poíiçãopoffivdjque os homens naô pudeíTcm mor^
yer ( como já no eftado da innocencia / íè mo de
mor te violenta ,.não deyxariaõros Juizes y de execu-
ut a juftiça com privar a efte malfeytor da vida,
ainda que e^a foííe eterna /e accrefcento mais , que
eík temeridade da vida feria, hum motivo eíficaciíS-
mo^para o fazer morrer mais dcpreffa, porque di»
riaô aílrm. Efte malfeytor pôde viver eternaínen-
íc„ e poderá ícr eternamente ladraô turbulento^
©ícandalofo , c buríearà novos eompsnheyros com
grave dano da Republica ^Ipgo, he bem que mor-
ra
Dê tôrfâeMõ daEíevmdade. %tp
rà para ficarmos quietos y e livres dcHc. Eisvaqui
provado, como á juíliça humana ; fe attribtic o po-
der, de caftigar os dclinqucnccs de hum a pen^^ que
fe.pôdc chamar eterna, para confervaçaô do bem
Agora deveíc advertir ,7qU€tbdoi os ediélési
eleysque fazem os Principes, e Republicas , com
todas as penas taõ rigoroías decretadas a quem as
quebranta ,naõ faõ , que huma participação da au-
thoridade , e poder que Deos lhes: dá ; e com tudo,;
os povos as admittem , obedecem , nem examinaó,
ou pifquizaõ, íe a fentença he jufta, fe a pena hc
demaíiada , porque íabem muy bem , que o quey-
xaríc , naò íervede nada , pois a ley manda f c
naô diíputa ; Lex.non dt/jj^utat feâ fracipU. E os pj^^i^
fuhditos , c criminoíos, h^ô deetlar íogeicos á ju- Ebr,
fliça , e ao que fentenceaõ os Tribunaes. Ifto íu-
poílo } e porque Deos , que por neceílidade do feu
íer íyc por todos qs direytos , c razões imagináveis,
he o Monarca foberano de todos os homens ^ naô
poderá publicar leys ,e decretar penas eternas fe
as julgar proporcionadas á importância dós deli-
dos, e neceffarias para obrigar as fuas creaturas
a guardalas ? Deos conhece muytò bem , que da
obferv^ncia da ley que tem feyto , depende a íua
gloria accidental , que he o único bem > que pôde
tirar daproducçaò das íuas creaturas. A honra de
Deos naò cpníifte íó , em lhe dedicar Templos, C'
Altares , e tftatuas como alguns íe imaginaô , mas
cm amalo , feiyilo , c reconhecelo , como feu So-
berano, e Crcador , e que em tudo , e por tudo
depende delle. Efta verdade , ate os Gentios a co-
nhecerão. ;, ;; -^
í ■ §ui fingitf acros a uro vel mármore vuhus\ * ^ ^ Man.
Noiífacií iIkDeíis-).qm regai iUefacif^ ^'^
Pd 2 Da
li
^^i1;^.
410 ^^yãi'hDifc'Sr/9'UMmm^f-Oi.
Pa^'tíaícèí^qucos peccadorcsmoflraõa fua Cfgtid-
Fa, quando dizeml Que mal faço eu a Deos , quando
fatibfaçQ ao meu apetite ? Vos lhe fazefsomayormaí^
que padeis. Pois vos fazeis independentes, e naô que-l
reis conhecelo, por voíTo Deos y e Senhor quebrando^:
edcíprezandoaíua^iey. : >o
Digo mais , Deos conhece , que o bem particii^
lar de qualquer peíFoa , confííle em refrear as íiiasi
payxões, e íogeytalas á razaõ, conhece também-^
qUíSt da obfervancia. d^ fuâ ley depende o bem publi-^
çovéa boa ordem da íoeiedade humanai e que
naõ fe guardando a fua ley, o mundo feria como
huâ mata bravâ clieya de ladrões , e malfeytores. Co-
nhece inalmente» c íabe , a violenta inclinação > que
. íem â iiacurcza humtana de quebrar efla ley, que
\ Haícida com= nofco , fempre nos incita ao mal > e
litMiCá nos deyxá» Nem ha penas, por rigurofas,
€ terríveis que fejaô y que a poffa vencer , e refrear,
fenaõ forem eternas» Saõ Paulo, chama à Etcroi*
dade da Glwta hum pefo : ç^tcrmm ghria fondusi
Para advertir os Catbolicos , que quando cítaõ cm
piocinto de cometer algum peccado devem tomar
a balança, c por buma banck o goíto momentâ-
neo do pcGcado, e da outra , a gloria eterna que
fe perde. Sem duvida, que a Eternidade da Gloria
pefârà mais, e prevalecerá ao gofto inHantaneo do
pcceado. Porem fendo os homens taô pouco fen^
íiveis , a quanto nos promette afénaBemavcnturan-
çavDeosaeçreíccnta hum fegundo pefo ; c^urmis
Cm', j^f^naruw pnâiis , que fae a Eternidade das pcnasy
a fim de que todos aquellesque naô fe movem a dey-
xar © pcceado pela efperança do> premio eterno do^
Paraifo, íe movaõ ao menos pelo temer da cter*
■ *'^;^ nidadb dâs penas 00 Infernov Pois poflo em huma
'^'- balança, o géíto; jmomentaneo j de huina parte , e oj
í^U :u-ii^ tor--
Do tornièntõ da Eternidade. ^ ^ii
tormertto eterno da outra > quem fcrá WÔ louco,
que queyra penar eternamente , para gozar hum inf-
tante. E com tudo a mayor parte dos peccadorcs,
fabendo , e crendo a Eternidade das penas , que
merecem continuaò a viver nos fcus peccados , c ^^y j^.
bebem a maldade como a agoa da fonte : Btbtmt
íniquitatem quafi aquam. Oh meu Deos. Oh meu
bom fESUb. Queíeria fenaôhouveífe Inferno, e
as penas naò foíTem eternas? Que defordens, na^
haveria no Mundo? Que roubos f Que adultério^/»
Que mortes ? Logo fica bem claro , que a Eterni-
dade das penas , he jufta , e he neceíTaria , aíTim pela
gloria de Deos, como para o bem publico , c particu-
lar dos homens.
Ficará efta razaõ mais convincente, le conft-
derarmos, que cada hum conhece, que ha de íer
eterno , pois íabe , que a fun Alma he immortal,
e reparando ter em fi hum fundo de immortalidade,
tudo, o que acaba , ou tem fim naó o efpanta,
mm lhe faz grande medo. Vive fcmelhante ahum
homem , que tendo hum fundo , ou terras, que
lhe rendem certos, cem mil cruzados cada anno,
de renda; todas as perdas, e defpezas , que pode-
ria fazer , nunca lhe fariaõ temer a pobreza , em
quanto ficaffc inteyro, c feguro o fundo, ou o ca-
pitai : aíTim rodas as penas , que naò faõ eternas,
naõ o amedrontaô , confiderando-as como paíTa-
geyras, e que depois com o tempo , ficará livre
delias, e Senhor de fi, por toda a Eternidade. E
que iftofeja aííim; bafta confiderar , quam pouco
cafo fazem muytosCatholicos do fogo do Purgató-
rio, ainda que muytos Santos Padres digaõ , que
naõ haja tormento nefta vida, que fe poíía igualar
com elie. E Santo Agoftinho accrefcenta , que naõ he
menos aíílivo , c rigurofo que o do Inferno, pois fe
Dd I naõ
'V
Aug Mb
de Civ.
Dei,
ChryJ.
hom. ^,
m Ev.
Creg.l.
4^'*^ T^ifctiY [o Ultimo
naõ heomefmo , he da mcíma dpzáz : Eodem ignè
quo^ terqmur âamnatus , pirgatur ekãns, E de
que oaíce , eíte pouco caio das penas do Puraato-
rioí, fe naõ porque fabemos de certo , que ellas^haõ
de acabar r logo íe o decreto de Decs, foíTc íó de
huma pena temporal , por comprida , e riguroía,
que foíTe , teríamos o mefmo medo do Inferno, que
do Purgatório , cometeríamos o peccado mortal
eom a mefma facilidade , que o venial , os adulté-
rios, e homicidios , que as mentiras leves , e pa-
lavras ocioías. Defengancmo-nos fí^is, que a Eter-
nidade das penas do Inferno, he jufía, e henccef-
faria aíTim pela gloria de Dcos, como para o bom
governo do Mundo, c bem particular dos homens
E concluamos com S. Joaõ Chryfoflomo que naõ lie
menos a juRiça de Deos , que afua Divina mifcri-
cordia , que tem fabricado o Inferno, e que bem
longe de queyxarmonos do íeu rigor, devemos ren-
derlhe as graças, de ter ordenado a Eternidade das
peírs: Imo ptius pro ipfa gehena , gratias agere
debemus. Pois fó deftc modo com huma doce vio»
lencia, nos obriga a deyxar , e fugir o peccado,c
ganhar para ícmpreo Paraifo, como bem o confir-
ma Saô Gregório : Idcirco ^ panarnm , aUrmtatem
conjiituit^ nt nos à feccatornm perfetratione compri»
mèret.
Convém todas as leys fundadas no direyto da
natureza humana, fer licita a jufta defeza contra
o injufto AgreíTor. Por iílo os Príncipes fazem for^
talezas, bem munidas de canhões, com foífos pro-
fundos, e cheyos de agoas, e quândo efías fahaõ,
ou íecaô, tomaõ arvores de carvalhos, c pinhos,
e cortadas em grandes pedaços as- lançaô nos foi*
fosYcomofizeraó no cerco da fortaleza de Turim)
e depois dando.lhc fogo com barris de alcatrão ace-
' fosj
^\-
Do tõvnmto da Eternidade. 4^3
foSi e ifto porqiie ? Para impedir o aíTaito do ini-
migo. Ê íe depois de eiiir a Cidadela aífrii rodea-
da de clnmmas, o Coromandante íisbiííe íobre os
muros, e advertiíTe os inimigos ^ íc rcriralTsin do
cerco pois nunca podcriaò fazer o ataque, c menos
dar o aíTalto, íem cahir naquelle abyímo de fogo,
ç com todo eíieavifo, o inimigo , cheyo de rayva,
fe precipicaíTe , e morrelTe queymado. De quem fe-
ria a culpa ? Da jufta defeza , ou áx fua louca teme-
.ridade? Que íe hum homem mortal faz tanto para
íe livrar do íeu contrario? Quenaó fará Dcos para
áb livrar do peccado mortal, qus todas as horas, o
acomete, e heo mayor inimigo , que elle tem. Se
declara , que para íe defender do peccado , tem
poíto, entre nòs, e elle hum abyfmo de fogo, hum
Inferno eterno ; c que naò poderemos continuar
o acometimento íem cahirmos nelle. Nos tem avi-
fado pelas fagradas letras, pelos Profetas, e pelos
Apoftoíos , que acabemos de fazerihe a guerra
comosnoíTospeccados. Quando naò? Será obriga-
do a defender íe caí^igandonos com penas eternas.
Eítas íaò as fuás armas, com que íe defende , ar-
mas defeníivas ,-naò ofFeníivas , pois v.^ò aco-
mete , nem aggrava armas próprias , e convenientes
aDeos, que como o feu íer he infinito, e eterno,
affim também as fuás armas com que fe defende dos
peccados, faô infinitas, e eternas.
Corroboremos quanto até agora temos prova-
do com provas Theologicas. Todo o mal , íeja ou
fifico, ou moral , que por íua natureza he irrepa-
rável, he hum mal eterno, mas o mal do P^^^'"^" ^^
dor , que morreo em peccado ( diz S. Thomás ) he f^' J^^^
irreparável, logo he eterno. Do mefmo modo, hs ' ^J '
na ordem èíica. Quem voluntariamente fe corta
hum braço , ou fc mata , dando-íe com hum punhal
Dd 4 no
(II t'l
fl
4^ 4 Difcurfo Vitimo
£ri(l. no peyto, fabendo muyto bcm,que à prhatmê ad Ba:
^M' ktunnwndatur regre£us. Que naò ha remédio hu-
mano para refazer eíle dano ; ou que o poffa reíufci-
tar , moftra que confente , de ficar para íemprc priva^
do da vida , ou de íoíFrer a pena , que lhe podia cau-
far a falta do braço 5 aíTim opcccador, que mata a
íua Alma denruindo com o peccado a caridade,
que he a raiz de todas os boas obras, confente-v^
lunlariamentc a todos os males , que fe fcgucm , c
fe priva de todos os bens da vida cfpiritual que de-
flruhio ^cíòk pôde queyxar de fí mefmo , coroo bem
-f«^./. o confirma S. Agofíinho :FaBmtJlmaU dignm ater-
CivU ^^' ^^^' primitinfe bomm quodpojfet efe aternum,
* O Angélico S. Thomás fortifica eíia razão com
outro argumento que dizaífim. Huma culpa eterna,
merece huma pena eterna , a culpa dos condenados
he eterna logo merece pena eterna. A culpa fera
íemprc eterna , porque os condenados , naõ eftaõ
maia em tempo para íe valerem dos remédios ^ que
Deós iníiituhio para a compenfaçaô. Nem eâaõ tn
^ia p^ra poder merecer ^ nem aplicaríe os infinitos
merecimentos do pr eciofiílimo íangue que noíTo Sc-
nhar jESU Cbriflo derramou para os peccadores , co-
Fptl.yj^mo diz o Profeta David .^ Bíòem omnes fíccatores
terne. Mas naô do Inferno^glofa Saò Bernardo . por-
que o íangue d€Chrifto,quedeceo em terra naô de-
Bern, ceo no Inferno .« Non defcenàit aâ injeros fangnvs^
fr71^^^ ^#^>^ (fifiper terram. Reforça o argumenta
l^ln ® "^^í;^'<^ Santo Thomás com dizer» A jufíica Divina
tem direy to , de pi^nir hum peccado , ate que o pcc-
cadornaõ der cabal fatisfaçaõ delle. Opeccador no
Inferno ,^ nunca ficará capaz de íatisfazer , logo
Deos o.pòdc,€ deve punir atè q^ue fique fntisfeyto;
como bem diz Saõ Bernardo : Smper. pnniri potefi
««/) *./,^^«^./i çxpiarL O condenado hç como hum
Man,
BSfhQ
mi»
Bem,
Do tormento da Eternidade. 4^_5
hòracm, que he obrigado aos juros de hum grande
cabedal, cem quanto, naô extinguir o cenfo, i^íR-
pre correm os juros. Os peccados, que voluntária^
mente commetteo , faõ o cenfo que fez , os juros wo
as penas que padece i como he impoflivel extinguir
ocenío porfer incapaz de fatisfazcr as culpas, con-
tinuará femprc a pagar o juro das penas, que Santo
Agofíinho chdLm^foeBora tni quitai is ; e como ^^^^^^' ^^.
pas faõ eternas , também as penas ficaó , c ficarão P^-y^.^^
ra fempre eternas.
Quero acabar efíe fcgundo ponto com dizer,
que a pena deve fer proporcionada à culpa, e que
o caftigo deve tomar a íua medida , da malícia , e
gravidade do crime Âchaò os Theologos no pccca-
do mortal, hua maldade infinita na5emfi,mas por
relação a Deos , que he infinito ; merece logo huma
pena infinita , cíia naô pôde o peccador fofFrcr na
qualidade , convém logo que leja na duração. Ex-
plicarey efta malícia do peccado mortal com dizer
aíTun. Dar huma bofetada a hum Villap , ou a ou-
tra peíToa humilde, hemalfeyto.Dala a huma peíioa
nobre, he muytopcyor. Dala a hum Fidalgo de pri-
meyro rango,ou a hum Grande he hum attentado. -
Dala a hum Príncipe, a hum Rey he hum crime de
icfa Mageftade , Ade primeyra cabeça. Supponbainas
agora, que fe íncarnaíTcm todos os Anjos, Cheru-
bins , e Serafins , c que todos rccebeíTem eíia boffc-^
tada de huma peíToa baixa, e vil. Accrefcento mais.
Se Deos creaífe creaturas poffiveis in mfinitum , e
cflas íempre mais perfeytas, eefta peííoa vil a todas
affrontâíTe com a mefma bofFetada , he evidente,
que quantos mayores grãos de malícia contrahio^
quem íe atreveo a dar eftas boíFetadas, merece ou-
tros tantos grãos de augmento de penas. Oh meu
bom JE^SUS. Oh meu Creador, e Rcdcmptor meu*
«I
li
ili
'' '
_^ Dipitrfo Ukkm (\
lÊqiie , tem que fazer todiselbs affrontas yfeytas a toí
das as creacuras , creadas , e poífiveis , íe todas iâòco-
mo nada , rcrpeyta ao deíprezo , que vos faz , c a bof-
^fetada , que vos dá , qyem commecte hú peccado mor^
ífí^^-.ó.tai;, Que digo deípre-^o , ou bofFetada, vos torna a crur
cificnr , como diz Saô Pauio no ícu coração : líeruffí
crucifigentes vobifmetipfisFiliumDei. Oh que abiímo
de malícia , e de ingratidões , que merece hum abiímo
defupliciosjC penas , que eu naô poíTo defcrever, nem
fcy explicar.
Sabemos por fé, queDeos he infinito ,€ contém
cm íi infinitas perfeyções. Eftas com hum fó peccado
mortal ficaô todas dei prezadas , e juftamente cííçn-
didas. Naò quero jà que para íatisfaçaò vos dê Dcos
hum feculo de penas no Inferno , por cada perfcyçaó
Divina offendida. Naô hum anno ? Naô hummez?
mas hum íó dia; pois fe he de fé , que as peifeyçoens
Divinas faô infinitas , logo para fatisfazer a ellas,
por voíTa mefma conta os dias do Inferno haô de fer
infinitos. E que íaôdias infinitos de penar no Infer-
no , fenaô a meíma eternidade das penas , que nun-
ca ha deterfifn. Ah trifte peccado mortal. Ah me-
donha eternidade das penas. Eftas duas couías uni-
das, neccíTitarão ao Verbo Divino a fazeríe Ho-
mem, c morrer em huma Cruz, para livrar os ho-
mens da Eternidade dis penas , que tem merecido
pelo peccado mortal : Nifih£C ejfent aâ mortem fem-
Bern, pit emam ( áiz Saô Bernardo) nunquam Filius Dei
Ser,ad ^^^ ^^ moreretuf. 0'(\ infinita malícia do peccado
^^^^'' mortal. 0'a eípantofa , e deteftavel maldade j pois
foy neceíTario, que hum Deos derramaíTe o íeu fan-
gue, até morrer em hum patíbulo, pnra fatisfazer
ao valor da noíTa Redcmpçaó. Pio Leytor, quando
ouvireis dizer aos peccadores, que fc efpantáo , e
não entendem , como hum Deos tão bom, queyra
dar
Do tormem da Ètermdade. 4 17
dar penas eternas por hum peccado , que dura hum
íó momento. Refpondey-lhes , que também vòs nâq
cntendeis,e ficais muyto mais efpantado que vendo
a hum Deos agonizante, e morto em húa Cruz para
lhes dar o Paraifo , elles íaô taô ingratos , e tão cruéis
contra fi , que querem antes ir ao Inferiao , crucifican-
do-o de novo para fatisfazer a hum gofto que dura
hum breve inftante. )nLÍvl
- Depois de termos- vifto, como Deospôdc, quer, Teiceí
e' deve dar efía Eternidade das penas aos réprobos, roPoí|-
refta agora o terceyro ponto, e vem a íer , que da lem- co-
brança , c coníideraçaô deita Eternidade depende a
íalvaçaô dos homens : Ibíthomoin domum atemitatis
y//<í'. Oh feconíideraíTei-n os peccadores, cadanoyte
antes de fe dey tarem efta verdade indubitável , e in-
falli vel j que mais tarde , ou mais cedo , mais hum an-
no, menos hum anno > e bem poderá íer que mais hum
dia menos hum dia, haõ de entrar para íemprc na
cafada fua Eternidade /'« domtim aternitatí4 fna. Oh
íe ponderaíTem efta palavra/?/^. A íua cafa da Eter-
nidade. Pois a Eternidade naõ he para todos huma,
e a mefma. Sim na duração? mas naó na morada.
Cada hum quando morre vay logo morar na eílan-
Cia , que aqui nefta vida fe fabricou para a íua eter-
nidade. Deyxa tudo, é todos o deyxaô , e fó o
acompanhaó , e íeguem as obras boa^ , ou más que
ícz: Opera enim illomm Jeqí-imtur ãlos. Se as obras . ,
derradeyras que fez o puzeraô em graça , vay para /í"^'
morada eterna do Paraiío , fe foraô em peccado "*
mortal, vay para Icmpre no eterno calabouço do
Inferno, que he a morada, que elle me fmo fabricou
para íi ; Ibit homoin domam atemitatufu^»
EHa coníideraçaô da Eternidade das penas hz jy^.^
temer , e tremer todos os Cat!u:>Hcos ; ^^ternitas dcctirn
quatuor fylahú coníiatjed tn fe fine caret. Eíia pa-
lavra
M
â\
)'■■ j
mi.
Ahfek
418 y^ Difcuvfi Vitimai ^
lavra Eternidade enccrraíe cm quatro diabas» c to-
dos os livros dos Mundo (dizS, Hilário) nunca po-
derão explicar o feu fím. O Padre Chriftovaò Cianio
da Companhia de JESUS* Matemático taô celebre co-
mo o declaraô os feus liv ros , quiz huma vez íaber o
numero de quantos granitos meudinhos de area^
craõ neceíTarios para encher o vaô de todo cftc
Mundo, atè o Ceo Empíreo, efeyto com diligen-
cia cxacíbi o computo 5. achou, que com huma uni-
dade ,e cincoenta e huriia cifra cftava ajuftada a con-
ta. E que tem que fazer efta conta , com a eternida-
de, quando, fe a cada milhaõ de íeculos , íe m
raffe hum fó granito para diminuir huma daqucllas ci^
fras, que multidão de milhões de feculos era neeeí-
iaria. Digo mais fe Deos creaíTe huma folha de papel ,
tdiò extenfâ, e dilatada como laõ todos os Ceos , e
nella fe puzeffe huma unidade , c depois das cincoen-
tachuí cifra, fe foíTem continuando as cifras ate
que foíTe bem cheya a immeníidade daquella folha.
Qual Euclides , que Mathematicos , que Computi-
jftas fe atreveriaô a fazer a tal conta que naõtem con-
tOi e naó cibe , nem pode caber no entendimento hu-
mano, mas fó no de Deos, por fer infinito, e en-
tão diíTeíTe. Or;i eu me contento, que acabados
todos efles granitos , que eftáo da terra atê oCeo
Empíreo, e cada hum encerra em fi tantos miihoens
de feculos , quantos cabem como temos dito na fo-
lha immenía das cifras , me contento digo , que
os condenados fiquem livres das penas eternas do
Inferno. Oh que alegria , oh que fefta , oh que
confoloçaô dos dcfgraçados precitos. Naô cabe-
riaõ em fi de contentes , já o fogo lhes pareceria
mais brando , as penas mais íuavcs , e o Inferno,
já para clles naô feria copfidcrado como Inferno,
mas como hum caftigo temporal, pela grande ma-
lícia
DotõrwèntoáaÉieVtíidade, ■ 4-5>
liéiâ^os ícus pcceados muy Híiiitado. Mâs coUiO
pode fer ifto, íè thes fícaò tantos milhões de milhões
deannos ,c íeculos, para cada gfanito, c os grani-
tos incluídos cm tantas cifras laô tantos , que fó
D^os os pôde numerar , c aehar o computo de ci-
fras, e granitos, efeculos. Aflim he. Mas também
os condenados , fenaõ íabem , nem podem per-
ceber ameudo cfía conta a íabem por alto ; por^
Que conhecem, e percebem o axioma filofoficoque
finiti aâ ínfinitum nulU datnr propertio^qucí: dizer, ^^, ,
que naõ ha ícmelhança, nem proporção entre os tor- ^^^pl^-^
mentos eternos, e aquelies , que huma vez haõ de
ter fim ,e comprehendendo já por experiência a Eter-
nidade, íabem que tudo, que naò he eterno , e ha ^,^^ ^^
de acabar, he como nada: G^od aternum eft ^ ^^' iufem.
híleft.
Efta comprehenfáó , que tcraô os condenados
da Eternidade do Inferno, he o ultimo coníiitutivo,
de todas as penas , e de todos os tormentos j he
huma fufíancia rcfumída de todas as miferias,que
padecem, e haõ de padecer por toda a Eternidade,
que os Theologoschamaõ Eternidade formal fonria-
Ips at emitas. Que fará íoíFrer aos condenados,
a cada momento a Eternidade toda inteyra, Efta
confíderaçaõ he digna de toda a reflexão, e aflim
a cxpliearey maisclaramente com huma femelhança.
O Sapiente Boecio define a bemaventurança do
Paraiíò: Inierminabilís vita totafimtã ^ & p^^f*^^^ Boec.de
fofijfw. Huma poffe pcrfey ca de húa vida que nunca coniAn.j
terá termo , nem im ► toda inreyra a cada im-
fíante , porque no conl^ecimento claro , verdadcyro,^
cfcguroyque tcm^ os Bemaventurados, que a fua
Berna venturan^a fcrá eterna , fe pòdé dizer , que
g02:35 acadainflante, o que gozarão na Etcrnida- '
Se toda inteyra peia f egurança infalH vel que tem
delia*.
>Í!
1,
ri
i
1 j !
1
i
l
ii
/!
430 Difcurfo mim s,a
delia. Porém axjiae arítiiíericordia Diviria faz «oPii^
raiío com os Predeí^inados ; a juftiçâ de Deos , o
faz também no Inferno , com os precitos í c aiíim
podemos defíDÍr a condenação dos réprobos: CH^*
lartím omnium iota fimul\ & ftrfeBa pojfeffio. H u m a
inteyra , e péifeyta poffe de todos os maics, e mn
ferias , que os precitos foffreraõ a cada moinento^
iquanto deverão íofFrer por toda a Eternidade intey-s
ra. Iftoíuppofto, quando hua Alma entra no ínfcrníí^
a juftiça de Deos para achar modo de atormentar
mais , fortifica o feu efpirico , e o feu entendimento
para que oconheça,e comprehenda > a Eternidade
cm toda a fua extenfaô , e lhe abre aquella vaíla im^
menfidadc de fuplicios , com lhe fazer huma f unefta
deícripfaõ de todos os tormentos , que por toda a
Eternidade, ha de foffrer no Inferno , com huma
taô forte impreffaõ , no entendimento ^ que fem
nunca o poder divertir foffre toda inteyra a Eterni-
dade a cada momento dá fua duração. >
Os Theologos fe fervem de hua íemelhança para
dar húa rude idéa dcfte tormento dos tormentos , que
íe pôde chamar o verdadeyro Inferno do Inferno.
Tomay ( dizem elles ) huma bokde ferro v ou hum
globo de bronze , que íçja porem pcrfeytamcnte re-
dondo , e deyxay-o cahir de bem alto fobre hum
grande efpelho de criftal ; fem duvida , que o quebra-
ra, e o fará em mil pedaços y e pedacinhos. Como
4^,^iíi, pôdeferifto? Efíe globo , quando cahio , naô to-
cou que em huma parte minimajC quafi como em
hum ponto indiviiível o efpelho. , He verdade .* c
sílim he. Mas como todas as partes dcfte efpelho. íe
unem juntas por huma uniaõ univerfal , ainda que o
globo caya, e toque huma fó: parte do efpelho , co-
mo em hum ponto iodivifívcl, pelo grande pezoas
e mi»
defunc todas , d^xando-as cm migalhas
galii
■n
' Do tôrmenfõ áaEíermdade, 4^1
galinhas. Do fncfmomodo ocondeoadò no Inferno,
em cada morhenío da Eternidade naô he tocado dos
tormentos' que loffre , que por aquellc momento,
mas como todos cfles momentos da Eternid?.de, ef-
taõ unidos no leu entendimento , e como arraigados,
c fixos na lua imaginação, acereícentaô de modo o
pezo , e fazem hum tal contrapezo, taô cruel, e dolo-
rofo , que vem a ícntir , e foffrer todos os momentos
juntos da Eternidade toda inteyra em cada infan-
te.
Agora entendo aquelle texto taõ diíficultoío do
Profeta Ezechiel : Rota in medío rota. Que jà to-
camos no difcurfo do íicio ímmovel. Duas rodas, ^^^^ij-
huma grande, a outra pequena , huma dentro , a iq. *
outra , fora , huma no mcyo da outra. Todos k-
bcm, que antigamente , ate nos tempos dos Gen-
tios , o circulo, e a roda ícmpre foraõ , c ainda
íaõ o fímbolo da Eternidade, A roda grande , c de
fora , he a Eternidade das penas ; a roda pequena,
e de dentro, hc o claro conhecimento que eflas pe-
nas durarão para fempre. A roda no meyo da outra
roda , he a duração dos fuplicios eternos , que íciá
tão fortemente pegada no entendimento , na ima-
ginação, efantafia do míferavel precito, que nunca
poderá imaginarfc , nem cuydar em outra coufa
qúc ncfta Eternidade das penas. Eí^as duas rodas,
firaõ blasfemar, e cahir cm mil deíefperaçôes os
condemdos , que inceffantemente defejaruõ , e
buícaraô à morte, fem nunca a poder achar :g^fí^- "
rent mortem , à- non invement. Eftando os precTtos ^.^^ ^
neíle Munda, aborreciaò a morte , como inimí- "^^
ga dos feus goftos , e agora a pedem como único
remédio das fuás penas. Quando cil es a fugiaò, ei- ■ ,
la os perfeguia , e os achou com o peceado , qiie "^ ;J^
cara o idolo que nunca quizeraõ deyxar. Agora que "' ^^^^^
a de-
ê
T^^^S^
í"™™«íésE5?
^"^puiéiMhpvb —
íil
'^fOC.^
t,uc.6*
de Civ.
Vei.
S.Eftfe
l?ÍHS Co-
Difcuvfõ Wímo -'^^
a deíejàôyC bi|fca5 por todas as vias, naõa podcra
achar, porque el ia, foge dciles ; Vefiâerabunt mo-
ri t & mors fugiet ah eú. Oh Eternidade , Eternii
dade do Infcrbo. Efta heacafa ^ que tem prepara-
do para fí ,quem vive em peccado mortal : Ibit ho*
mí9 in domum aternitatis Jua. Como he pofíivel,
que o peccador , por habituado que íeja , lendo,
e coníiderandocfta eternidade, naó queyra logo mu-
dar vida, c trocar a fua cafa da Eternidade do In-
ferno , com a Eternidade do Paraifo : Ibi homo in
4omum aternitatis fu£,
BeHiíTima he a reflexão que faz Santo Agoftinho
íobrc aquelias palavras do Evangelho : Eadem men-
fura , qua menfi fueritU , remetietur vobis. Qi?c
com a mefma medida , que nos medirmos a gloria
de Deos , e a íua Divina bondade , elle medirá os
merecimentos , e as noffas culpas : In eadem menfura
quamvã non aterna mala Jeceris -> /eterna fupplicia
remetietur, Gouía prodigiofa ? Quando Deos or-
dena huma eternidade de penas por hum peccado
tnortal, que durou hum fó momento , mede com a
imefma medida , que foy medido. Gomo pode fer.
G peccador médio a Deos por hum inftantc degofto,
€ Deos mede ao peccador por huma eternidade de
penas. E efti he medida igual, c jufta ? Sim, fim
he juftiiTima , porque a vontade no peccador na-
quelle inftantc que pecca he como eterna: Ut cfiiia
éeternam voluntatem hahet in peccatis ferfeverare^
-aternajujiitia hanc voluntatem punitura efi. Tinhk
hua vontade eterna para o peccado , procurava que
aqueíle gofto lhe duraíTe mnis tempo, deícj^va, co-
mo dizS, Euíebio, viver eternamente para íempre
peccar : Fellet fine fine vivere^ut pojfet fine fine pec-
tare, Muyto mais , que morrendo o peccador em
peccado lhe fica aquelladifpofiçiò habituai ,c pcr-
raa-
DõtoyfnentoâaEtevnidade. 433
m^anente , de ficar femp^e em peccado fe viveíTe eter-
namente: §iu impoemtens fuera , fifemper viverei, ^^^^^
femperpeccaret, E preíentando-fe depois de morto no ^^^i^
juizo de Dcos , com efta vontade tacita , e interpreta-
tiva de continuar na culpa , pois naò a tem expiada,
tocar diz Saõ Gregório Magno) ájuftiça de Deos.
caftigar com pena eterna , quem queria Víver eterna-
mente na culpa ; Ad magnam ergojudtcantisjUfiitíam Gregor.
pertmet, ut mmqiiam hic careant fupphcio , qm hic dum oulj^.
\jiverent,7timquamvolmrunt caren peccato. Eterni-
dade por Eternidade. Eternidade no deíejo dos pecca-
dores , de fempre peccar, Eternidade no Inferno de
fempre padecer.
Pareceme , que poderá dizer alguém eíla dou-
trina também fundada na Theologia , e confirmada
pelos Santos Padres naó falia comigo , que nunca
tive tenção de morrer em peccado , menos de per-
feverar nellc. Pecco como homem frágil, mas co-
mo Catholico na mcfma refoluçaõ de peccar, tenho
nofentido de me confeíícir logo, e porme bem com
Deos. 0'a cegueyra , oh engano dos enganos. E
quem vos aíTegura , que naó morraos no meímo aCt a
de peccar, como morrerão tantos outros, que pec-
caraõ menos vezes , que vòs. Por ventura lhes fez
DeosalgÚa injuftiça. O Inferno diz Saõ Bernardo,
efíácheyodebons propoíicos , que naó tiverao exe-
cução. Se perguntarmos a todos os Réprobos , por*,
que eftaõ no Inferno. Todos diraò como fempre ti-
verão tençaô de fe falvarem , mas que por hum mao^
fucceiTo,poif huma morte improvifa lhes faltou o
tempo i mas como lhes faltou , íc lhes fobcjou
tempo para peccar , e perfeverar atè a morte. Nao
fabiaô elles o que diz noíTo Senhor jESU Chri-
fto , que a morte ha de vir ás efcondidas como o ^^^
háíâò: Femeí tamquam fur. E na hora , que me-
Ee nos
Cif
jyifcuvfoVltiino
nos cuydarmos .V ^^ hora non putatis. E por ijflo
naõ diz, que nos preparemos, masque eftcjamos
iLfôff. li preparados.- Et vos epte parati. Simhhb.õ, Pois
porque naô íe prepararão; porque viviaõ engana!
dos , Como vivem ainda hoje os peccadores , naó íe
reíolvem , diíFerem a outro tempo o fazer peniten-
cia, porque em lugar de fc occupar na confíderaçaô
da eternidade das penas, tem fcmpre no fcntido
o momentâneo dos goftos. Eternidade. Eternidade •
Ibít hormindomumaternitatisfua.
Quero dar fim ao ultimo difcurfo defte meu Li-
vro cora hum documento de noíTo SenborJESU Chri-
fío, que íervirá também do ultimo deíengano.
Chama Saõ Mattheus opeccadohum caminho eípa-
Cíofojehua porta larga j que conduz em direytura
A/.-/. ''^ Etxmidade do Inferno: Lata porta , &íbattofa
' 'vta eft,qu£ àucit aã perditionem. O' chama elkada,
porque por ella caminha o peccador , o chama cípa-
cioía, porque ha bua infinidade de peifoas , que an-
daò por ella. O' chama também porta , porque
qualquer que feja.qits efiá na porta y tem hum pé
dentro^ c o outro fora da cafa , e para entrar de
todo dentro , naô tem ^ que fazer mais de hum meyo
paíTo. Do mefmo modo , quem eílà em peccada
mortal, tem humpè noxVíundo,e o outro, no In-
ferno,ebaãa fazer meyo paíTo para entrar na fua
cafa da Eternidade. Diz Santo Aníeimo , que entre o
peccador , c hum condenado , entre o peccado , e
o Inferno, naõ ha mais intervallo, que de hum mo-
mento, não ha mais di Lancia , que de hum ponto.
De todas as couías , que ha no Mundo , nenhuma !u
mais contigua, que o peccador , e o Inferno ; pois
íjualquer coufa , por pequena , e contigua , que feia
a outra , fempre ha de ter a diílancia de hum pon-
to. AíEm o diffe o Santo Job , fallando dos pec-
cado*
«s«aiÍÍI|lí
m|
Do tormento da Etevàtdade. 43 5
cadorcs , que vivendo defcuydados nas delicias áo
Mundo , no efpacio de hum ponto fe achaò noin- ,
fcmo:Ducunt inbonis diesjuos^&m punõío ad In-t^ ^^*
ferna defcendímt. Mas nem de hum ponto , hc dif-
tante o" peccador do Inferno. Pois , íó fc íepara
com a morte, e como a morte, naó he hum ente,
ou íer real , mas hua fíjnples privação , fcgue-fc , que
ha menos diftancia entre o peccador, e o Inferno,
que de hum ponto. Nem fe engane alguém , com
lhe parecer efte fallaralguafutileza de engenho. O
Peccador , a Morte , e o Inferno , faõ entre íi taõ
veíinhos ,e contíguos , que naõ ha momento, in-
ftante,ou ponto 1 que feja mais breve, c indiviíi-
vel. A prova naõ fó he de fé , mas a vemos todos
os dias. Naõ ha momento, em que o peccador naõ
poíTa morrer improvifamentç, logo he certa a con-
íequencia , que nsõ ha momento, em que naõ pof-
fa aeharíe no Inferno, quehea cafa da fua Eterni.
dadc, que com os feus pcccados fe tem fabricado : Ibtf
homo íH domum aternitatujua.
Finalmente para confolaçaôdos que lerem efte
livro ms atrevo afíirmar , que qualquer homem
por grande peccador que ícja , iz cada dia coníide-
rar com reflexão a Eternidade, he quaíi moralmente
impoííivei,que nao fefalve ,equevàao inferno. Pois
a Eternidade bem concebida produz no eoríçao do
peccador , hum arrependimento das culpas , que
com o deíejo de fazer penitencia, lhe ferve como
de freyo para naô peccar mais; e como diz Saô Gre-
gório, lhe faz aborrecer os goílos paíTageyros , c
o rende forte , e conftantc para naõ temer, nem dc-
íejarcouía alguma do Mundo: Çitiijqim ^ in ^eterni- Creg. l.
tãíM defiderio fígituryneç projperitate attoUitur ^ necio.Aío-
adverfttate quapítur -,& dum mhil habet in Mundo^^^-
quodappetaí j mhil eft qued ^.eríimefcaí, Efta hc a
Ee 2 doa-
I
â
li*
4
4,^íía Difcíirfo Ultimo
doutrina , que pregava Santo Agoílínho aos feus Fre-
giiezcs ; IntelUgite fratres ^ non iâeo ChriftiamfU'
miíSytiPdebactantummoàovitafilUcitifimus, Meus
Irmãos , efíejamos bem attentos. Náô noscreoU
Deos,para tratarmos íó dos bens temporaes dcíla
'Aiíg. vida • Sed-ideo Chrtftianifumus^ ut femper de futuro
Ser.ii.façíil0-)& áê atermtate cõgitemus. Mas quiz coíb
de tem- ^ fua graça fazemos Chriítáos , porque em cada dia,
f*''* era:. cíida hora , e em todo lugar y tíveíTemos fera*
f)fe o penfameoto na Eternidade. AíEm faziaõ os
Chríllãos da primitiva Igreja. Naõ tinhaô , nera
Ikò outro livro de romances, ou comedias» íenao
os Evangelhos y e as Epiftolas de Saô Paulo , qu6
femprc levavaõ comfígo : Non coníemplantihus no^
bis qu£ vukntur ^fed qu^ nm vtàentur ^qua: enim
vídentítr temporaha fimt y qn/è non videntur eterna,
Naò pcrdiaò o tempo em coníiderar as riquezas , as
honras , e as mais vaidades , que fe vcíVí no Mun»
do, porque eíias íaõ enganofas , pnííageyras , e naõ'
duraõ ; e logo acabaô , mas occupavaô o ícu en-
tendimento , e memoria na coníideraçaõ da eterni-
dade das penas do Inferno , que nunca ha de ter íim. E
cPíe iic o verdadeyro deícngano dos peccadores , pois
de precitos, os faz Predeftinados.
S. Cyriilo Alexandrino chamava aos Catholicos
da primitiva Igreja Tyrones £tefnitatu , os Noviços
TertÀth àà eternidade. E Tertuliiano , diz que eraò Pre-
ãejfeH. tendentes da Eternidade : ç^yEtermtatii candlddtL
Ds Noviços procurao de aprender , e adefirarfe no
que lhes enlinaô , para depois ficarem membros
da Religião , e os Pretendentes , trabalhão íe cíi^
meraô,G naõ cuydaõ em outra coufa, que chagar
ao poílo que éckpb: Cí^t ores feímus Dei femperin^
TertM diitt fídbftaniia ^etermíatu-, Adoramos o verdadeyro
Deosjfempre veílidòs Com a íubílancia da cterni-
Do iorinem da Eternidade. 4Í7
tadè. Hum íoldado na guerra , logo P^lo f^" J^^"
tido , íe conhece a que Regimento pertence Huai
criado quetras libre publica , l<>g« P^'^ ^^^^ ™''
quem he feu Amo. AíTim quem fc vefte interna-
mente da fubftancia da Eternidade , logo apparecc
por fora a íua libré que hc a modeftia, a humilda-
de, a paciência , o deíapego do Muna^, o abor-
recimento ao pcccado , e que he foldado de noíTo
Senhor TESU Chrifto , e íeu fiel fervo , pois o imita,
e traz a fua vcrdadeyra libré. Por ifto qUuSjdo os
Chriftâos íe encontravaÒ ( era ifto nos tempos , dos
Neros, c Dioclecianos ) perguntando-lhes comoeU
tavaõ 'reípondiaò : St9 ad ofiium atermt^tti, Ef.
tou nas portas da Eternidade com hum pe dentro,
c o outro fora. Oh íe agora me vieíTe o avifo ( di-
ziaõelks) de ir ao Martyrio , como foy a tantos
outros , por cruéis que foffem os tormentos , pal-
lariaôlogo, com a eíperança em Deos , qf /<>"^
cftes me fabricava a minha caía da Eternidade no
Paraifo • Ibit homo m domum ^eUrnitatU fua. Sc o
peccador coníideraCfe C3da dia que eftá nas portas
da Eternidade , e que a cada momento pode entrar
nella,comohepomvel,qucquize{rc ofFcndera Deos,
econdenaríe: Oh atermtas , qm te cogttat^nec pos- Aug:iH
■nitet aut arte fidem non hahet , aut fi habet m non Sohbq.
kabet. Oh Eternidade , Eternidade •, gritava Santd
Agoftinho, confiderando-a. Aquclle que cuida em ti,
e naô fe converte, ou tem perdido de todo a fe; ou
ie ainda a tem , certamente já naó tem coração.
Mas quando hum peccador naó tiveíTe coração pa«
ra cuydar na Eternidade. NemporuTofedeíeíperc,
mas recorra á Virgem Máy de Deos , que com huma
nova invocação íe chama noíTa Senhora dos impof-
íiveis; porque como diz Saõ Lucas no Evangelho: £,,^.,8
mt£ fmt im^opkiUa apud hommes-, {ofMia funt
Ee 3 a£ud
w^mmÊÊmm-
II!
Biftuv/o Ultimo "^
apud I>èmiCSccrcícct)taS, Bcmarào ^&apud Btéí
tam Ftrginm Matrm ejus. Logo a ella como a Mây
de Dcos nada he impoílivcl pdra a faiváçaô dos ho-
inens, muyto mais que ella he com o ícu bemdko
Filho Corredentofa do gcnero humano. E como
Máy dos peccadores que naò poderá ? e como Mãy
dcMifcrieordia que naô fará para os íeus devotos?
Recorra logo a ella qualquer peccador por dcfem-
parado que feja , e humilde implore a íua protecçaã,
pedmdo-lhe , que lhe arranque do coração o aíFcdo,
as vaidades, e goftos, que logo paíTaô, e lhe po-
nha no penfamento a Eternidade das penas do Infer-
no , que íempre duraõ , c deHe modo poderá experi^
inentar em breve tempo o que agora lhe parece im-
poffivel,que he de precito paíTar a fer Predeaina.
do. GuardaivGS bem de perder, ou esfriar na de-
voçaõ da Senhora , porque como diz Santo Anfelmo,
allim como he impoííivel, que hum peccador, que
naõ he verdadeyro devoto da Virgem noíTa Senho*
ra íe falvejaíTim também he impoflivel, que todos
aqueílcs , que vivem debayxo dg fua protecção , e
volve íobrc clles,os íeus olhos de mifericordia , íc
D.An. cotadenem ao Inferno: Sicut mpoffibik eft,quodíl'
(dmode U^ k qmhm Virgo cMaria õcuIos fita mifiricordU
Lm A, auvertit fdventur ; ita impojjibih eft, ut ht^dqms
tonvertmt ocuJes fms m Inferno dammntur. Oh Vir-
gem immaculada,e admirável Máy de Deos, Sc agoi
ra me fora licito narrar quantas vezes, e de quantos
perigos do corpo , e da Alma, me tendes livrado, c
ainda do meímo Inferno, naõ baftariaô muytos li-
vros mayores, que efte volume. Attrevome a dizer,
queeíie livro hcvoíFo , pois como podia hum pec-
cador taõ enganado como eu, compor o deícrgano
dos peccadores. Quantas vezes achandome cu com
o entendimento confufojC obtencbrado cmdifcuríos,
c ma-
Ving,
DotormentoiaEternidade. 43?
e matérias d.fficultofas , e de fé, chamava pc o voffo
Sa^rltirtimo Nome M ARI. que figm ca mumm.-
dora • Min» ilhmmatruc^íllumiM mentem meam Al- ^^
lumiay também , Senhora, a todos aquelles , que lerem
ettelivro,afimdeque deíenganados das vaidades,c
delicias do Mundo, fabriquem neftavida a íua mo-
rada eterna no Paraiío, para vermos, e gozarmos pa-
ra fempre da vifta de Deos, e da voffa por toda a Eter-
nidade. Amen. Bit homt in domum aternitatuju^.
If
li'
li
44»
A D D I Ç A M.
PArecep-mejuJio accrefcentar a ejfe Dezen*
gano , ofeguinte cafo , ajfás efficaciljimo
pela horribilidade do fuccejjo ) a advertir o
tnais defcuydado peccador : que ajjirn como
Deos he o Senhor das vinganças ^ affim muytas
vez^es permitte que o caftigo feja evidente a^
inda nefia vida^para exemplo da ingratidão-^ e
abominação dos vidos, E naõ ha mayor nem
mais eficaz, rmora de tudo ijio , que o ex-*
emplopropojlo. Lede ^ e aproveytaivoSy prin^
cipalmente aquelles , que occupaS o tempo ^ ou
mais depreça o perdem , quando cuydaÔ dega-*
nharcom a cegatafuleria do jogo $ porque ve"
jaôy quam perto efiaÒ de cahirem em tao exe*
crandoí ahfurdõSyde que DeoSyefuaSanHffima
Mãy OS livrem: e fiquem def enganados de que o
jogo 5 os mais vidos naÔ produz^em outro frw
to 3 que o de perder bens ^ eo thefouro mai$
preciofoi que he a Alma^
líM
li-J^lii^i^-^^aH^^ifeií^Wi
II 441 Defengmo
pI I A Altiífima Providencia dé Dcos i cujos fc-
/% cretos faô impoífiveis inve^igaríe com
/ % pi"ofundiíIimos,einexcruraveis juízos to-
j ; , "^ ,^ dos dirigidos a fua mayor gloria , permi-
, ' tty que fejaò offendidas , maltratadas , e dcfprezadas
as ímages dos feus Santos. Porém a mcfma Divina
Providencia nas fuás difpofíções infinitamente per-
fèyta, nunca deyxou em eíquecimcnto os nomes dé
algum Santo, porquanto naõ obftantc as tyrannicas
perfecuções a immortalidade da Gloria a Igreja lhe
augmenta. Defta forte fuccedeu no anno de 750. a
fua Santifíiina Máy , huma Milagroíiífima Imagem,
que ao prefente íc vçnera na Igreja dos Padres Ago-
ftinianos na Cidade, e Republica de Lucca ; contra
quem íc atreveo impiamente hum foldado a ultrajai-
la, o que com mayor gloria da mefma Senhora ,teiÁ
redundado ao Gca pelos Povos mayor obfcquio.
Em húa çafa contigua ás antigas muralhas de
\^ Lucca^ corpo da guardados foldados, que guarda--
, yaõ hu í vizinha porta , chamada de Saõ Fredianq,
fc acharão dous entre os mais, arrebatados no jogor
qilanto de fortuna diverfos, outro tanto femclhan-
tes nos coftumes ; porque hum teve as pedras na ma5
contra a Virgem, o outro contra o companheyro:
h^l mais que pcrtinás cubica. O mais pérfido dos jo-
gadores, de cujo falta onomeá Hiftoria , depois de
ter perdido quanto tinha , por ultimo tirou do cor^
po os vertidos , atè a mcíma camiía , aífim nu , e fo-
mente de vergo nhofo atrevimento cuberto renovou
com o adveríario o jogo. Porem zombando delle a
malignidade da forte, fazendo pouco cafo do grande
reíio que na alma lhe ficava , poz também efta íobre
a mefa : indignando-fe contra o Redemptor , que di-
ante dos olhos tinha cm os braços deíua Santiílima
Máy ,, pintada na parede dcbayxode hua abobeda da
mef-
Defogadbrés.
iiicfma câfa. E mudado de repente ò dívcrtimcnta ào
jogo cm hum efpcdaculo de horror, começou (co-
rno hecoOumedos dcíefperados jogadores ) a injuriar
com execrandas blasfémias o Salvador, culpando-0
Gomo Authorda fua perda. E ainda pouco conten-
te pegou cm huma grande pedra , atrevcndo-íe com
íacrilega temeridade , a atirar ao Menino. Naô quiza
Virgem Mãy , que a pedra offendeíTe o Innocente feu
Filho, donde logo damaô direyta cm que o tinha o
trafpaíTou à efquerda ; Reccbeo a Virgem nefteh om-
bro o golpe da pedra com tanta força defcarrcgado,
que amolando a pintura, logo da ferida íahiraô pingas
de fangnc, que correrão atè a extremidade dalma-
gem.OfFendida de taô grande delido, a terra fe abrio
ao infeliz foldado; mas naô ficou de todo logofob-
mergido, c detido naquella horrenda cova por algum
tempo meyo engolido , para efíeyto de que tiraíTe fru-
to de tantos, que com as lagrimas nos olhos o exhor-
tavaó a queíe arrependeíTe de taô execrando facrile-
gío,ouparaqucfoffe perpetua teftemunha delm taô
grande milagre ao Povo, que afama daquella marai
vilha concorrec>,ouparamoflrarfeamiíericordia da
Virgem, que tanto fez para o reíiituirà graça,e à bon-
dade de Deos , em Iheefpcrar a penitencia. Naô laben-
do porém aproveytarfe de huma faiíca do Divino
Amor em taô grande vizinhança do fogo eterno ( in-
feliz exemplo de dcfeíperaçaô ; foy vivo íepultado
no Inferno , cuja bocca por tantos feculos nunca mais
fe fechou , ecom horrivel vós , ainda hoje fe ouve os
horrores de perpetua de naçaô do impio. Por hum Sa-
cerdote foy recolhido o milagroío Sangue, e pofio em
bú i redoma de chriflal, a qual íc conferva em reliqiia-
rio de prata dourada fobre o altar da nieíma Virgem.
Algumas pingas de Sangue ainda íe vem noJugarda
ferida, e em outras partes da Imagem , taô fermoías ,e
vivas,
1 i
1 '/
De/engano
vivas como fe foíTcm fahidas dcfrefco. Defte prodi*
gíofo fangue íe faz mençaò nos antigos inventários
dasPveliqiiiâsda dita Igreja dcbayxo do titulo de S.
Salvador in Muro, no anno de 1402. e 14:1 7. E fe nu-
mera entre âs mais Relíquias na vifita da mefma ígrc^
ija, feyta o dia 18. de Março de 1509. fendo Biípode
Lucca SiftoGara da Rovore Cardeal , e Sobrinho de
Júlio XI. com as feguintes declarações.
Item ampullam fanguinis effuji dtpercujjlone
lapidis ex^Míura B. Vtrgtnis S. Salvatorís in
Muro,
E na viííta de Monfenhor João Bautifta Cafielli Biípo
de Rimini , e Viíitador Apoftolico da Cidade, e Dic-
cefis de Lucca o dia 25. de Julho de 1575.
Ví/itavít Altare Cappellanta B. Virginis à
miraculis quorum inittumfuit.quoâ unuspro
jecit lapidem in imaginem B. Maria ibidem
pi^am-tBxqua exivit Sanguinis, qm ferva-
tur in Sacnfiia diãa Eccleji£ , &ftattm a-
ftrta eft terra, & deglutivit eum , & vide-
tur locus apertus cum clatro férreo defuper ,
& hoc excedit memoriam hominum.
Efteeftupendo Milagre íe ie brevemente recupila-
do na infcripçaõ que eftá aos pês da Imagem da Vir-
gem impreíTa em Romi, edeftribuida em a occafíaõ
dacjroiçaõ d.í Senhora, e hc a fes^uintc.
lianc Deipara imaginem in Ecclefia D. Au-
guíilm Luc£ cultam.k predito aleatoreolim
faxo peraíffam , mira effufione fanguínis tn-
fignem : Elio a dexterain lavam translato
mirabilem: Ímpio ^ dehifcente terra , tn Infer-
no Jepulto terribilem JlkJtrilJJmi > ac Revê-
rendiffimi Sacro/anã a f^attcana Bafilica
Canonicis trtplex prodigium venerati . au^
rea corona redimir 6 curarunt anno falutis
M.DC.LXXXX, Faz
De^ogúdoYes. "■"''■ '44S
Faz menção dcfta offerta Hipólito Maraccinotomo
Frincipas Mariani cap. i . §. 1 6. c do folemne offercci-
mento das duas Coroas de ouro feyto pelo roefmo Ca-
bido de Saò Pedro á Virgem do Sexo de Lucca , e ou-
tros muytos Authores, que defíe caio efcreveraõ,
de que relato alguns, como íaõ Cefare Frânciotti delle
Miracolofe Imagini ác Lucca y Joatmes Bonijachís
Bagatta aâmir anda or bis Chriftiam tom. i. lib. 2.
câp.5. n. i2.etom. 2.1ib. 5. cap. 11. n. 9. ex Tetra
Santa de Mtraculisperpet. num. 5. cap. 23. p^g. 236.
Guhelmo Giimpemberg.yitlas Marian. Cenr. 2.1mag,
278. Vaniele de Nohih Memorie M. S. delle Chieíe
di S. AgoíVmo. Aloyfitis Juglaris. Eío^. p. 2. Francif*
cus Mana Ftorenttnt mElog. ad SacelBV.a Saxo.Lui'
gíTorrelli Secoli Auguftinianitom. 5. annodeChriíio
ili^.DonatoDonatt Notitie delia Madonna dei SaíTo.
António CHa/ini Scuola delCriíViano cap. i^.Mon-
fegmorjo: BaptíftadeDiecèYdço^w^ deBvugnatola
Madona dei Sã^oJmbro/io LandncdOYig.àcí Tempr
dedícato alia Vergine íq Roma giornata<]uarta.
Eaqv>i naòíem particular rcílexáõie obfcrva,qiie
a B. Virgem appareceo na Milagrofa pintura c^}o íc ,
diíTe aíTíma em o anno de 750. quando o culto^das Sa-
cras Imagens era impiamente impugnado peloEmpe-
rador Leão Izamico tendo no anno de J26. comri-
guroío Decreto ordenado, que de todas as partes fe
tiraíTem as Imagens dos Santos , e particularmente da
Máy de Dcos, fazcndo-as: queymar no n.eyo da Cida-
de , movendo huma crueUiíIima guerra aos íeus dcf-
feníores , a qual períeguiçaô continuarão os íilhos
até o anno de 786. c depois de breve tregoa Leaó
V. chamado o Arménio , perfcguidor tambcm do no-
me Chrillaô a renovou no anno de 8ii. d^que of-
fendida a Rainha do Ceo , por 'ateflaçaô de João Rhff
ao Ex€iíip!o,59. íc queyxou co.n a mãj ào mefmo
Era-
'''I
Defengmo de Jugadoveu
Emperador cm huma horrível vizaô, e porque rc»
prehendido fc naô emendou, depois de ter queyma»
do em Conftantinopla os Sagrados^ctratos , naô fó
-rip o caftigo nos íubditos , que em numero de trin-
ta mil miferavelmente morrerão de peíie , mas tam-
bém cUe morto pelos íeus perdeo com a vida , o
Império. Pmh Diac, deGeftps Reman, lib. iS.praj^e
finem.
FINÍS LAUS DEO.
: i
'/
INDI-
índice
7)as coufas mais notareis.
ADulterio. Todas as Naçoens do Mundo ainda
barbaras daõ pena de morte aos Adúlteros. Dif-
curí0 9.fol. 255. Os Profetas o chamaô peccado
grande, máximo , c profundo , muyto mais de-
pois que o Matrimonio he Sacramento, foi, 256.
A caía aonde reyna o adultério, he hum Inferno
anticipado. foi. 254.
Alexandre Magno. Ouvindo a Timotheo celebre
Citharedo , tocar huma batalha , enfureceo-fe co-
mo valente j mas tocando logo a retirada , e de-
pois hum deíeantc maviofo , cahio defmayado
como hum amante. Diíc. 3. foi. 58. Conírdcran-
do o credito perdido , por ter morto a Clyro,
feu intimo confidente ,pediomuytas vezes a mef-
maarma paramataraiimeimo.Diic.13.fol. 578.
Alexandre SeveroEmperador.Comto tanto em híi jan-
tar,que depois de duas horas morreo.Diíc.f.foLi 16,
Armada, A grande Armada de Felippe Prudente, per-
dida na eícuridaõ da noytCjpor cautela de evitar
hús fogos de folguedo , que faziaò os Olandezes.
DiÍGurfo 2. foi. 53.
S. Arfenio. Trocou os cbeyros íuaves do feculo , com
hu fedor perpetuo na í\}a cclla. Diíc. 4. foi . 95 ,
^i;^r^5i^. He hum vicio, que abrange a todos. Difc.
8. foi. 2 o /.Também as mulheres cahcm neík vicioj
c ainda os Ecclefíaííico?. foi. 20S. Todos os mais ví-
cios, ou canfaô , ou aborrecem , ou acabaõ por ve-
lhos Sô, o Avarento , quanto he mais velho , tanto
na cobiça he mais mo§o,e robuíio.fol.21 7.He mo-
ral-
índice
ralmentc imponfivel , que o Avarento íe íalvcDiíc,
8.fblií04.pertot.
B
Aiazetes Emperador dos Turcos. Feytoi:ativo do
. -'lande Támborlaô dos Tártaros, prefo emhua
gayola de ferro , corria toda a Afia eivando fempre
nomefmo lug.^'. Difc. i. foi. 12. aíTim o condena-
do quando Deos permitte que do Inferno apareça
nefte Mundo, traz comligo o meímo aperto da pn-
laõ, e tormento, foi. 14. ^ n r
Baronio Cardeal Grande vitoria que teve de fi meí-
mo. Difc. 4. foi. 87. . ,
Bruxas. Os danos grandes, que fazem ao género hu-
manocomosfeusmaleíidos. Difcurí. 10. foi. 328.
Muito menor mal fazem eftas Bruxas deteRaveis,
do que fazem aquelles , que faô cauía , ou occaíiao
de íe perder hÚ3 Alma, que induzmdo-a apeccar
vay para o Inferno, foi . 3 25 .
II
c
Atíveiro. Quantos Senhores de engenho , lavra-
^ dores , e Feytores efiaò no Inferno por uiarem
tvranniascomos eícravos. Difcurfo 10. foi. 297.
Otiejuizo terrivel íefarà delles ,e que tormentos
cruéis padecerão , por naó lhes darem o neceílai 10,
e obr ií^alos a trabalhai-em para fi, no dia de dela^-
ço, que he o Domingo, foi. 298.^30 bafl^,tT30 uíar
tyrannias,e crueldades com os cativos, ruas he tam-
Da^ cõufasma^notaveu. 449
bem ncceíTario naõ maltratalos de palavras com
injurias , c nomes execrandos, foi. 3ÒJ X) prinieiro
defcn^aao, e mayor tormento , que teve o Rico A-
varento quando entrou no Inferno foy ver a Laza-
ro no cevo de Abrahaó. foi. 501. AíTim amayOK
confuíaó , c pena dos Senhores que maltratarão os
feuseícravos,ferà no dia do Juízo velos á maòdi-
reytajárerplandccentes entre os Berna venturado»,
foi. 304. / j
Cárcere do Inferno. Uú^ horrível , e pcnoío dos cár-
ceres de Dionyfio fley de Siracuía, de Galeaci*
. Viíconti Duque de Milaó , de Ezelino Tyranno de
, Pádua, &C.DÍÍC. i. foi. 5. 4. Vide Inferno.
Coníaenaa. He hu didame da razaô , hum juizo pra-
tico pormeyo do qual o homem diícerne o bem
do mal, c conhece, o que deve feguir,ou fugir.Diíc.
12 foi 276. Bafta fer homem racionai para fentir
cm fi complacência em obrando bem , e triae2a,G
. mcdo,em tendo obrado mal. fol.3 75.
D
DEos.Tcm pofto o Ceo no alto,c o Inferno eícon-
dido debayxo da terra , para que os homesoa-
mem , e o fir vaõ , naõ como efcravos , por medo do
caftioo,mas como alhos, e herdeyros do Paraiío.
Difc I. foi. ^.Sendobom.c miíericordioío. ne tam-
bém no mefmo tempo jufto,e vingativo. Difc. ;•
foi. i74.efeq. . , ,
Vemonios O mayor defvelo dos Demónios he dar o
fesuroaospeecadorescoma preíumpçao da bon-
, dade,e mifericordia Divina íer infinita para que
continuem a fazer mayores peccados.Difc.7.t. 1 69.
J)efef$eraçao, He humpeccado enormiíTimo , que Qt-
\'
' /
li
45^ ^
fende os dous attributos da oronipotcttcía , c mlfe^
ricordia Divina, parecendo Ihe,queDeos naõpoJ
dera , ou naô quererá perdoarlhe tantos e taô gra
yespeccados.Diía 13. foL 592. Opeccador,que
íedeieípera, rende impoíTivei aíua íalvacaõ.poís
i Gllc meímo dà anticipadamcnte contra fia fenten-
< ça da í ua condenação, ibi .
0 Diogo Oforia, Veado-íe na eíburidáõ de hum cala^
bouço,fendo de 25. annos , amanheceo todo branco
como hum velhodccrepito.Difc.2.fol.2é
D-imyfioRey de Skilta. Mandou fabricar li um* ouvido
; de pedra mármore na abobada da prifaõque cík-
va debaixo do íeu paço, para ouvir asqueyxas dos
/:|)rcíos.Diíc.3.£ol. 73..
EiVj^^^.Fallandoa Sagrada Efcritura do foso do
iQterno íempre falia no enxofre, e porque' Effey-
tos, e qualidades do enxofre , e combinação com o
fogo do inferno. Difc. 4, foi. loo. c íeq.
Btermdade das penas do inferno entre as coufas da fé,
he a mais diíHcukoÍ3acrer,e porque. Difcurf. Ul-
timo foi. 407. A tê os Gentios tiveraó noticia del-
ia, a temiaõ , e obravaõ bem , por medo delia. foi.
4Í5. Engano de Origenes fobre a eternidade das
penas. foi. 408. O Demónio , e os Hereges fazem o
poífivcl para diminuir as penas do Inferno. Ibi:Sô
a eternidade do Inferno,, pódc refrear o homem do
peccado. foi. 421. De que modo o condenado nO
Inferno fofFre a cada momento , a eternidade das
^ penas toda junta; foi. 42^. Os primitivos Ghrifláos,
íoxuydavaõna eternidade, e por ifto íalvavaõ-fe
todos. foi. 435. Quem naô pôdccuydai' no InfcrV
no.
"S
Das côfifas mais notáveis. 4JI
r : 130 , c na eternidade , nao íc deícípere, mas recorra
. a nóíTa Senhora ,.com todas as vcrâs, que o alumea-
rá,cíalvará. foi. 4^7- , , „ . .
ExempUs. Hum Doutor celebre de Paris tornou do
Inferno, a dizer o que lá havia acerca deíaber as
íciencias. Difc. i. foi. 2Ç. De hum moço amante
dos bayles , e cantigas dcshoncftas. Difc. 5. toj. 76.
Do Emperador Otho terceyro , que faltando ao
. propofico dedeyxar a hua Dama, a mefma porca-
ÍV120 de Dcos lhe tirou a vida.Difc.4,fol.99.Uc trcs
Sacerdotes inclinados á crápula, e vicio da gula.
Difc. 5, foi. nó. Dedous Monges que morrerão
afobados do comer fartando -íe em hua ceya.DifCc
c foi 125. De hum moço luxurioío, que cíhndo
, lá em graça para fe querer defpedir na hora da mor-
' te da Amiga foy ao Inferno. Diícurfo 6. foi. 157,
De hum moço que vendeo a fua Alma ao Demo-
., mo,com pado de poder refgatar com avifalo três
dias antes de morrer; e oavifou.D.ílc. 7. tol i87-
De Luis X. Rey de França que morrco , como vi.
veo. Diícuiío 7. foi. 196. De hum Sacerdote que
: por ambição de mais fa^^cnda morreo peíTimamen-
te,e fcm dizer JESUS. Diíc. 7. foi. 212. De hum
Ladnõ , que furtou hum boy a hum Moítcy ro.tol.
225. De hum velho Avarento quenaô queria rei-
^ tituir , e ir ao híferno para naò dey xar os filhos po-
bres foi. 232. DehumConfeíTor , e hum confcila-
do /levados ambos de dous, por dous Demónios
- em corpo, c Alma pira o Inferno, foi. 2 35'^- ^^^^*
^ famoía Concubina , que promctteodo a Deos íe lhe
dava ávida , de íer hua Magdakna penitentcj avi-
íada para morrer , proteftou que morria com dar a
íua Alma ao Demónio, e logo reípirou. foi. 249.De
Ff 1 ^^^^
.1
li! II'
'1
hum GavaIl€yro,quc encontrando-fc nã ponte da
Cidade de Píivia , com huma Dama , para lhe dar
gofío fe precipitou elle , com o cavallo no Rio.
foi. 262. De hum Meço, que fendo condenado á
morte , por caufa da Amiga , indo para a forca
vendo-a na janela , deu hum arranco para íe irdef-
pedir delia. foi. 266. De Santa Liduioa, que^con-
vcrtco , hum grande pcccador, com ordenarlhe.que
dormiíTe na fua cama molle , huma noyte fem íe vi-
rar. Difc. 11. foi. 3 14.
FEdmco terceiro Emperador. Seu dito memoravcí^
depois de ter perdido tudo em duas batalhas.Dif-
curfo 13. foh4oi.
feder. O fedor do Inferno excede todos os fedores da
Mundo juntos. Difc.4.fol. 1 86.
fpge. Porque efcoihido por Deos , para cafíigo dos
condenados. Difc. i. foi. 15. O fogo do Inferno,
he muy diííercntc do noíTo , e o rico avarento, naõ
íe queyxava do fogo, mas de tal cafía de fogo. foi.
16. contem cm íi todo o género de tormentos. foL
52. Chama Chrifío ao fogo do Inferno fal , e como
tema virtude, c propriedades do fal. foi. 13. Deos
dará tal virtude a eíle fogo , que íempre queymará»
c nunca coníumirá. Diíc. 10. foi. 296. Depois de
cem mil annos hum condenado íentirà as dores taã
vivas, c agudas, como na primeyra hora queen^
trou no Inferno , reparando fcmpre , quanto quey-
2na>ccoflíbmc.Ibi.
Gotta
Das cottfas mak notáveis-
4JJ
GOlta. A doença da^iotta até agora naô tevc xc^
medio,|)pxqac he huagotta das dores do Infcr*
nojpara que nos lembremos deIias.Difc.11.fol.520.
AGromnga emOlanda tem no torriaô da Gidadella íeis
colubrinas fabricadas pelo artífice com a efcala
da Solfa Ur , re , mi , fa , íol , iá , o eftrondo delias
era íuave , o eftrago tcrrivei , com fua aplicação.
Difc. 3.fol. 59.
.Gnglierme Duque de Mantua. Mandou fabricar huma
lala com abobeda com tal architcdura , que , o que
íe dizia íecretamente em hum canto fe ouvia no
outro.Diíc. 3.fol. 74.
GuU. Os goiofos padecerão grandes tormentos no In-
: ferno. Difc. 5. foi. 1 1 3. Saõ freguezes do Diabo,
que he o feu Pároco , e os fepult i no Inferno. 1 1 8.
Goloíos,e Bebedores faõ incorregiveis. foi. 121,
Preíos ao laço pela garganta como as Avcs.fol. 1 24.
Ordinariamente vivem pouco, e Deos os caftiga
com morte repentina. 125.6 feguinte.
Enriqm Conde deBergkUonx porque a Archi-
ji_ duqueza de Auftria D. ífabeldandolhc audiên-
cia, com parte do vèo que tinha na cabeça cobno o
roáo. Difc. 12. foi. 341. n- ' ^
Bolocaup, Os condenados haô de íer as vidimas de
Holocaufto,que haô de ardcr,e íer eternamente im-
raoladas á iuftiça de Deos. Difc. 1. foL i§.
Ff i 7'J^^^^
'7'
u
I
Ejum O jejum confere muito para a faude. Difc. f ;
foi. 128. É os que mais jejuaô vivem mais. foi.
igo. Dcosde nenhúa couíahe taõ zeloío como
denaô perdoar aosnoíTos inimigos. Difc. loAoU
304. O mayor inimigo que tem Deos , bc o enga-
V noío Feceavi , em que íe fíaõ os peccadorcs na hora
morte. Difc. 7. foi. 191.
ínfeíma. Que haja Inferno , he verdade taõ certa , cc*-'
mohe c&rto que ha Dcos. Diíc. i.fol. 5. A largura,
c profundidade do Inferno quanta feja, e íendo taô
limitada como caberão tantos milhões de corpos
iuelle. foL 7. 0 cárcere do Inferno he hum iDgarj
aonde o condenada, nunca» gozará de bem algum ,
c padecera para íempre todos os males. foi. 25 .
Jogo, Cazo execrando de hum jogador , que atirando
com hu3 pedra a híí a imagem de noíFa Senhora,, fo^
íovcr tido no Inferno, pag. 44. i ,
JL#
LAceâemonios. Sendo tao poucos com que eí! ratai
gema vencerão os Sibaritas. Difc. 3. foi. 68.
Laços.Ol^o do Dcmonto com que mais aperta ©s
peccadores, he aquelle de naô reftituir a fazenda
alheya. foi. 229,
Jj&grimãs. Que fahem dos olhos y^z hum coração ar*
repcndido faõ bum novo bautifmo, Diíc. 2. foi. ^ ?.
Das coufas inm notavek- v4 > í
Lrfmàco ^^úáoKty da Turquia, apertado mais da
ítác , que do inimigo, entregou a fi, e ao leu Reyno
por hum púcaro de agoa. Diíc. 1 2. foi. 255-
Lutero. Sò depois de dezafete annos dezemparado de
Deos.perdco o remqrío da coníciencia. Diíc. 13.
foi. 380. ... _
Luxaria. NaÕ ha peccado , que mais irrite a Ucos ,.e
ocaaiguecom mayor rigor, como he a Luxuria,
foi. 270. Naô ha peccado que mais cegue o enten-
dimento como a Luxuria. Diíc. 9. foi. 242. Faz
perder o conhecimento de Deos, do feu peccado, ac
fí mefmo, e do que íomos. foi. 244. e feq Hum lu-
xuriofo , he o mefmo , que hum endemoninhado.
£01.252,
M
Miguel PaMogoIIL Emperador do Oriente, ef-
tando bêbado, Ihefoy tirado olmpcnoy ea
vida. Difc. 5. foi. 126.
Morte Differença , que vay , entre húa bella morte , c'
hua boa morte. Difc. 7. foi. 193.
iMnJher Evangélica. De dez drachmas perdeo huma:
fecha as janelas , e portas , e acende a candea , e lo-
go aacha,t>iíc, 13. fol.403,. Morahzafe.ibi.^
iV/íz/í-^.Defcripçaõdamuíica.foL 55. A fua origem
Divina, foi. '55. Canonizada por Deos no leu-
Templo com quatro mil muíicGS , c por S. Gregó-
rio Magno. foi. 56. Santo Agoftinho diz que o uio
bom da mufica he íinal de predcfíinaçaò. foi. 5 7. O^
tífomao, delia faz oshomês precitos ,e atè de ra-
eioaaes ,, brutos , e idolatras. Diíc. 3. foi» Gi,, Comi
aS'
'''4S^^
'■/
li
ãg mudanças da mufica nas Qdâdes m^udaô fe osçõ-
ltumcs.Dilc.3. foi. 67.
Abtico. A eílatua de Mabueo , hc fígura dos Se-
nhores de Engenho, e de todos aqiielics que
uíaõ ryrannias,e crueldades cora os feus efe ia vos.
Dife. 10. foi. 306.
jt^eroEmperador, Depois que matou a íuaMãy Agri-
pina , tugia de paíTar por onde eftava o feu fepul-
-chro, mudava palácio, fthia de Roma, e naõ fe
dando por íeguro cm parte alguma queria matar-
fe. Diíc. 13. foi. 378.
Ntceforo. Por pedir pcrda5 a Sapricio , que depois de
muytos tormentos eftava para fer degolado pela
fé , f»cou Martyr. E Sapricio , que naõ lhe quiz
perdoar , renunciou logo a f ê , e íicou Apofíata.
foi. 30 5:.
o
OCcafído. S, Martioiano o que fez para fugir da
occafiió , e como Deos lhe acudio com mila-
gres. Difc 6, foi. 147.
0/»^í?í Dcícripçâõ dos olhos, e feus elfeytos. Difc. 2.
foi. 27. Tem dous officios , os outros fentidos
humfó. Diíc. 2. foi. 27. Pelos olhos entra ordi-
nariamente o peccado. Affim delles , deve íshír
comas lagrimas o remédio, foi. 29. Os olhos tem
liga íecrcta com o coração. Difc. 2. foi. 42. Saó
exploradores, e cfpias com as quaes ò S. Job queria
trc-
Dãs cõufai mais notáveis. \% 7
trcguas. foi. 4^. Os olhos querem ver para fer^j»
viftos. Por ifto a Magdalcna^por naô ver fahio ^^
Marcciha , e por naõ íer vifta buícou huma gruta
nos Alpes. foi. 50.
Ovelhas. Como pôde fer, que as ovelhas, que faô íym-
boio dos predeftinados , fejaõ também fy mbolo dos
precitos. Difc. 10. foi. 300.
p
PEccador. Naô fó deve o peccador pedir perdaõ â
Deos dos peccados próprios , mas também dos
alheyos, e porque. Diíc. 6. foi. 15 5.
Por depravado que íeja , quanto mais fe immerge nos
feus vicios , tanto mais buíca nelles ( íebcm erra-
damente ) ao feu Deos. Difc. 12. foi. 357.
i^ena de dano, He huma pena infinita, como dizem
osTheologoSjpois, fc refere a ordem Divina em
qualidade de fuplicío, Difc. 12. foi. 368. He o In-
ferno, do meímo Inferno 5 pois nellaconíiíieeíTen-
ciâlmcnte a condenação de hum precito, foi. i(i<^'
penitencia. Saõ Pedro d'Al cantara foy taõ rigoroío , e
penitente que tinha feyto paclocom o íeu corpo
de naô lhe dar goíto algum nefta vida. Diíc. 6,
foi. 164.
Pitágoras. Com a íua efcola dizem que os cheyros ba-
ílaó para a nutrição, e fuílento da vida. Diícurí .4»
£01.98.
Prefumfçao. h Preíumpcaõ da bondade, e miícri-
cordia Divina precipitou Lúcifer, c es mais De-
mónios no Inferno. Diíc. 7. fo). 167. Do mefmo
engano ufa o Demónio com noíco. Diíc. 7. pef
totum»
/ Memorfi
I
4f8 Inâm
R
REmorfo da Conj ciência. Até os Gentios çhaimô
flagcilo oculto, humapena a mais cruel , e dcf-
elperada de fodas. Difc. 13. foi. i^jy, O Pcccador,
que em peccando naô fente o rcmorfo da coníci*
encia , hc o final mais certo , que já hc precico. foi.
380.
Rejittuiçao, Abfolutamente neceffaria para íalvarfe.
■^ Difc. 8. foi. 222. Reter o alheyo contra a vontade
^ da dono, he o meímo peccado, que furtar, foi.
226. Manda Dcos na Ley velha, que por huma
ovelha furtada fe reftituaõ quatro, c porque , foi.
227.
Rfifario. S. Domingos com o feu Rofario livrou a
muitos do peccado de adultério. Difc. 9. foi. 259.
s
SJharitas. Povos dados às delicias por ter cnítna-
do a biilar os cavallos fícaô na batalha derrota-
dos, e perdidos. Difc. 5. fo). 68.
Solja Os elementos da íolfa Uc , re , mi , fá , foi , lá,
iníiituido pelo Avtificc nas féis celebres colubrinas
da Cid-ide dsGroningí?. DiÍG. 3. foL 59
Sunamite. Faz os oííicios de Soldado , c de Mufíco.
Contempla, c peleja. Diíc. 3. foi. 66.
^aêío
Da$ cmfai mis notáveis, 4} 9
T
TJão. Entre os mais fcntidos hc o mais pcrní-
cioío. Diíc. 6, foLi33. Hum cego luxurioío
conhecia as idades pelo taiíto. Diíc 6. foi. 140. c
dizia íer falfo o ditado PoTtuguez. O que os olhos
naõ vem , coração naõ deíeja. Ibid. Remédios pa-
ra fe livrar do pcrigoío vicio do tado, foi. 142.
Judith , e Jofeph para íe livrar do perigo do ta<ílo,
fugirão também do conta-lo das roupas. Diíc. 6.
foi. i43.&feq.
Tentação, Naô hapeyor tentação doE>cmnnio,que
quando fe transfigura em Anjo de luz, incita o
peccador a algumas dévações, ou penitencias ex-
teriores para cobrar boa fama , e aíTim continue
com mayor confiança a peccar , c vá à rédea folta
para o Inferno. Diící. 7.fol. 177. , .
Jheodorico Rcy, c terror de Itália fez cortar injulta-
mente a Simaco a cabeça , c logo o remorfo da con-
fciencia foy tal , que pondolhe na mefa a cabeça de
hum grande peixe, reprefentou-íelhe , que era a
cabeça deSimaco, que vinha tomar vingança , e
morreo. Difc. 13.fol.379.
Tibério, Emperador. Aos reos, que eftavaô na lua
graça, dava logo a morte, aos que tratava como
inimigos a prizaô perpetua. Difc. i. foi. 2.
V
VEr. Vio huma vez o Patriarcha S. FranciTco o
Demónio, econfeíTou, que era impoíTivel km
auxilio ef pecial de Dcos olhar para aqueiic moní-
tro.
^éo Inãex
tro, c naô morrer logo, foi. 40. Santa Catharina
de Sena, que ovio por Imm inílantc, pedia antes
caminhar por hum caminho liftrado ds fogo , que
tal vifta , foi. 40..
Ferme da confciencia. Será o Cenfor mais íevero , o
Juiz maisterrive!, o algoz mais criíel, que ator-
mentará 03 precitos no Inferno. Diíc. 13. foi. 386.
He mayor tormento, que a pena do íenío , porque
efte vem de hum agente exterior , que he o fogo ,
fôl, 387. He também mayor tormento , quê a pena
do dano. Ibid.
z
Em , Emperador do Oriente , perdeo o império,
c â vida pelo vicio da bebedice. Dirc.5. foi. 1 26.
F I M.
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I É-
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