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Full text of "Desengano dos peccadores, necessario a todo genero de pessoas, utilissimo aos missionarios, e aos prégadores desenganados, que só desejaõ a salvaçaõ das almas."

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Bnraiii  ISniíreriítlxr 


JOHN    CÁRTER   BROWN 
LIBRARY 


Purchased  from  the 

Trust  Fund  of 

Lathrop  Colgate  Harper 


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SDc^cendatitin  úzfcrnum  miLôntej  Ne  desccndantmoricntcô-  s.Bnm. 


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DESENGANO 


D  Q  S 


PECCADORES, 

nfcessario  a  todo  género  de  pessoas, 
utilíssimo  aos  missionários-, 

t  aos  Predadores  de/enganados,  que  fá  defeja»  a 

faJvaçaÕ  das  Almas, 

DEDICADO 

AO  sereníssimo  senhor 

D.  MANOEL, 

INFANTE  DE  PORTUGAL. 

ESCRITO    P£LO 

R.P.  ALEXANDRE  PERIER 

Da  Companhia  de  Jefus ,  e  MiíTionario  da  Pro- 
víncia do  Brafíl, 

ACCRESCENTADO   COM  HVMA  ADDIÇAM 

àe  hrnn  café  horrível  nefia  terceira  Iml^rejfao , 

Por  LOURENÇO  MO RG ANTI, 


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"t>>3-cr  >'i^«». 


M.  DCC.  XKXV. 

Csm  .-?/  licenças  necepirias,  s  Privilegio  Red. 


%^\ 


Bibliothccario  do  Illuftriffimo,  e  Reverendiffimo  Senhor 

Patriarcha  L  de  Lisboa  Oecidental.  %^ 


LISBOA  OCCIDENTAL, 

NaOfficmade  ANTÓNIO  PEDR020  GALRAM,  1] 


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JOTA  cm^^^míiH 


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SENHOR. 


tiiUíri 


'   \ 


E  nao  fora  notória  a  todas 
aquellas  Nafoes  ^que  V.  ALTEZA  quizj 
honrar  com  a  fua  Real  prefença  ^  a  bondade 

§  ij  de 


ÉÍÍÍtiT>ÉiirMflli^BinirTi T— iM  I  mu  —  I i.i.iii...ri ■.»!.»■■ -    -     ..^^ÊÊmtiÊtí/SÊ-l 


^e  que  lÓeô$  fof  ferviâo  adornar  O  elda 
)efpmto  de  V.  ALTEZA^eu  me nao  atreve^ 
'&^a  5  fendo  Efir angeir a  em  Portugal  \  a  ta^ 
^m  M M^erdade  ^^  que  agora  tomo^  ^  ée  cMf 
J agrar  a  FI  ALTEZA  a  prefente  ohra  ^  a 
qual  ajfim  peta  importante  matéria  que  con- 
tem y  como  pelo  de^voto  ^  e  religiofo  Author 
que  a  compoz^  y  fefaZj,  digna  ^  nao  fó  do  feu 
foherano  patroçinio^mas  de  Poda  a  fua  Real 
attençaÕi 

Todos  os  difcurfos  que  fe  lem  nejla  ohra 
fe  dirigem'  a  defenganar  hum  peccador  das 
^vaidades  do  mundo  ^  e  a  con^vencer  os  en^ 
ganos  de  nojfa  miferia  3,  com  a  verdade  das 
mais  f o  lidas  doutrinas^  E  como  nao  e/p  era-- 
rey  eu  de  V.  ALTEZA  a  effícacia  da  Jua 
Real  protecção  para  huma  ohta  y  que  fe  en- 
caminha a  tao  útil  e  fanto  fim.  ISlellà  ^er^ 
V^  ALTEZA  lowvadas  as  'virtudes  que 
praticaS  os  jufos  e  arguidos  òíS^^icios  ^  qm 
precipitao  a  todos  aquelles  y  c^  t-em  a  ^oir- 
tude  o  me f mo  ódio  y  que  fá  deivèraS  ter -av 


K 


f  ':V.AL^TpZA  unjehuma  eUuéaçao  muy 
çhrifiãa  para  deixar  de  faber  3  que  a  mefr 
ma  foberania  f  que  o  exalta  ^  o  expõem  a 
grandes  perigos  y  e  que  faÕ  majores  as  obri- 
gaççe^  dos  Frir^cepes  ^  que  as  de  to  dós  os  ou^ 
tros  homens^  Os  grandes  do  jMundo  fao  hum 
injirumèntos  de  que  Deos  fe  [er^ue  paraèXem 
€Utar  couz^as  grandes.  Quando  Deos  qutr 
fantificar  hum  Reyno  ^faz^nafcef  nelléhuM 
'<Princepe  cheyo  de  piedade  3  e  de  religião.  E 
quem  duvida  ^  que  V.  ALTEZA  fabe  d^ 
f empenhar  todas  as  obrigações  da  fuà  Real 
'Pejfon  y  como  Princepe  y  e  como  Chrijlao'^ 
E  que  nafceo  em  Portugal  para  o  fantificar 
-pelo  fxemplo  das  'virtudes  ,  que  pratica  5  e 
que  quando  falsio  da  Pátria  para  <jer  as 
"Cortes  de  Europa  ,  em  todas  Je  feZò  amar\ 
ie  ref peitar  y  nao  fé  pelo  feu  'alto  nafcimenr 
to  y^  fenaã  também  pelo  feu  z^elo  y  pela  fuç^ 
■modejlia  y  e  pela  fua  piedad.e. 

Por  todas  eflasi  circunfl anciãs  tao  amar 
méis  mereceo  V,  ALTEZA  em  todas  as  Cof^ 
teiúnde  affiftio  o  affeão  y  a  confiança  y  e  a 


%  ?■ 


ffiimaçao  dos  Princepes  com  quem  tratou  , 
t  a  merece  tamhem  do  Augufto  Monarca^ 
que  nos  go  verna^  o  qual  ama^  aV.  ALTEZA 
naÕ  fó  com  amor  de  bom  Irmão  y  mas  com 
amor  de  Princepe  prudente  ^  e  fahio  ^  por^ 
que  fó  elle  fahe,  dar  o  'ualor  ,  e  o  preço^ 
que  jujlamente  merecem  as^uirtudes  de  V. 
ALTEZA  as  quaes  fao  injinit ame nte mais 
ejtimaveis  y  que  todas  as^ventages  ,  que  a  V. 
ALTEZ A  communicou  a  naturez^a  ,  e  deu 
V  nafcimento. 

Qj^e  impref] ao  y  Senhor  y  nao  faZj  o  ex- 
emplo dam  da  de  V.  ALTEZA  tao  regula^ 
da  pela  Ley  de  Deos nefia  illujlre  Corte  y  onde 
todo  o  mundo  attento  ,  e  devoto  ejla  apren^ 
dendo  deV.  ALTEZA  aregular  osfem  cof- 
tumes  y  e  a  dirigir  a  fua  vida  ?  Poderá  fub/l- 
ftir  a  irreligião  a  vifia  do  profundo  refpeito  , 
que  V.  ALTEZA profefja  atodosos Myfle- 
rios  danojfa  Santa  Fe  >  Deixara  Jefe  conr 
fundir  a  indevoçao  a  vi  fia  da  reverencia  , 
dofervor  y  e  da  humiliafao  ^  que  fe  admira 
fmV.  ALTEZA  quando  chega  aos. no jf os 

Sa-' 


^SacrameMOs\  Camo  naotera  hum  a  cenfurà 
ou  condemnaçao  rigor of a  na  ajj-ahilidade  y-i^ 
^doçura  de  V.  ALT EZ A  e  na  fua  caridade^ 
incomparável^  adurez^a ^  e  infenfihilidade ^ 
ique  mojlrao  osricvs  aos  pobres  ^  e  aeleuaçaò^ 
pu  foherha  efcandalofa^  que  mofirao  os  Gran* 
des  aos  pequenos  \ 

O  certo  he  ^  Senhor^  que  fo  de^r^^^ 
-ALTEZA  podemos  diz^er  ^  que  he  hum 
'Frincepe  ^  que  geralmente  reyna  nos  corações 
de  todos  3  e  que  juflamente  merece  o  nome  de 
Delícias  da  fua  Pátria.  J\das  ainda  ^  que  o 
tenro^  e  refpeitofo  amor  ^  que  lhe  profejfa^ 
mos  ^  fe  funde  principalmente  nas  eminen- 
tes qualidades  que  V.  ALTEZA  pojJue"^'^& 
nas  raras  virtudes  que  pratica  5  com  tudo 
nao  poffo  deixar  de  diz^er  ^  que  efe  amor 
Jamhem  he  ejfeito  daquelle  ar  de  bondade 
daquelle  accejjofacil^  daquelle  modo  agra- 
dável com  que  V.  ALTEZA  recebe^  e  obri- 
ga a  todos  5  os  que  tem  a  inejfavel  honra  de 
chegpLr  aos  feos  Reaes  pès  ^  e  que  fo  V. 
ALTEZA  fabe  unir  f em  indecencia  dafo- 

berania 


>  /-\ 


I     \- 


éerania  o  amor  y  e  a  afabilidade  a  clrcunf* 
f€Cfao  dos  Princepes, 

Efias  admira^veis  qualidades  de  que  ff 
adorna  a  grande  alma  de  V.  JÍLTEZA  me 
^nfpirarao  o  deflgnio  ,  e  a  refoluçao  de  pedir 
humildemente  aV.  ALTEZA  me  permitia  :>y 
que  efia  obra  f aja  a  publico  debajxo  de  feuf 
%eaes  aufpicios^  e  que  eu  tenha  de  hoje  por 
dia^nte  o  honrofo  ^  e  eflima^el  titulo  de  cr  è  a- 
da  de  V.  ALTEZA  a  quem  deZjCJo  dar  re- 
fétidos,  tejlemunh os  públicos  da  grande  "ver 
meraçaS  ^  do  grande  amor  ^  .e  do  grande  ref 
-peito  y  que  confervo  ao,  feu  grande  m^ereci^ 
^mento  y  m  feu.  gr  ande  génio  ^ÀsfUas  grandes 
^irtudesv  DjospmÈde  a  F,  ALTEZA  mui-^ 
âo$  annos*       ^ 


,^.k. 


?1    .       ...     '   .  ^v'    ^  Lourenço  J^^rgaml. 
-í\  ^V.  rVvu*.  i':i'^\\Vit  ^^'^\  w^  ^4^'^  xx'íià.i\vb^ 


AO  PIO  LEYTOR. 

Anta  Catharina  de  Sena  ,  co- 
mo taõ  amante  de  N.  Senhor 
I  JefuChriftojdeiejavacomo 
grande  exceíTo  do  feu  zelo, 
porfe  na  boccadolnferno  5  c 
S  cõfoíFrerellafó  todos  aquel- 
les  tormentos ,  fechala  a  todas  as  Almas  remi- 
das com  o  precioíiíTimofanguedo  feu  dilefto 
Efpofo.  Eu,  que  naõ  tenho  o  efpiritO;  nem  o 
fervor  defta  taõ  grande  Santa,  defejo  ao  me- 
nos fechar  para  alguns  ,  com  eíle  meu  Livro 
aquella  bocca  infernal ,  que  fem  nunca  ter  ter- 
mo 5  fempre  eftá aberta  para  engulir  todos  os 
Peccadores  enganados :  Dilatavit  infernus  a- 
nimamjuam  ,  &  aperuit  os  futm  abfque  ullo  ^^*  ^* 
termino.  E  porque  entre  aquelies  poucos ,  que 
eu  intento  ,  e  efpéro  ,  mediante  a  graça  Divi- 
na ,  vos  (  oh  meu  caro,  e  pio  Leitor)  tendes  o 
primeiro  lugar ;  a  vòs  mefmo  prefento  efte 
pequeno  volume,  intitulado  DESENGANO 
DOS  PECCADORES,  c  nelle  achareis  oen^ 
gano  palpável,  em  que atègora tendes  vivido, 
e  juntamente  o  defengano  certo ,  com  o  re- 

*^*  me* 


médio  feguro  para  a  voíTa  falvaçao. 

Poi-  ifto  tenhodividyo  pfte  Livro  em  qi^. 
torzcdiíciMos ,  que  todos  alem  da  matéria  do 
inferno,  conte  vários  pontosde  doutrina  muy 
íonda,e  moral.  De  maneira  q  difficultofamen- 
te  fe  achará  vicio  ,ou  má  inclinação,  em  que  o 
peccador  vi  via  já  de  muitos  annos  habituado, 
que  naõ  fe  poffa  livrar  daquelle  pego ,  em  que 
efta  fubmergido  •  e  ainda  que  agora  ,  pela  re- 
beldia ,  e  violência  da  natureza  corrupta  lhe 
pareça  como  impoíEvel  o  refurgir ,  refolvaíTe 
a  ler  cada  dia  com  attençao  na  hora  mais  def- 
occupada  algum  ponto  do  difcurfo  da  eterni- 
dade, ou  da  pena  do  dano ,  ou  de  algum  outro 
que  trate  do  vicio ,  que  o  predomina,  e  in vo^ 
^-^^.-■5  T^  Fii^eiro  a  DeiDs ,  com  as  palavras  do  Pro- 
"  ^  íeta  Samuel :  Loguere  Domine,  quia  audit fer^ 
IMS  tuus.  Fallai  Senhor  que  efte  peccador  voit 
íoefcravo  vos  eíM  ouvindo.  E  como  a  graça 
de  Deos  nunca  falta  a  quem  o  bufca ,  conhe- 
cera  o  engano  em  que  vivia  3  e  defenganado 
íicara  mais  forte  para  reíiftír  as  tentações ,  e 
venceros  mãos  hábitos,  e  o  jugo  da  Icyde 
RoíTo  Senhor  JefuChriflo,  que  dantes  lhe  pa^- 
recia  taÕ  difficultofo ,  e  pefado ,  o  achará  de^ 
Manh.  P^^s^^y  f3cil,e  com  a  experiência  muy  leve, 
,  j.      e íuave  ijugum  meumfuave  efl,  &  onusmeum 
leve. 

Mim  íiiccedeo  aS.  Agoflinho,  como  elle 
meímo  refere  de  fi  nas  fuás  Conflífoes.  Eftava 

elle    . 


êjlc  emhíia  perpetua  batalha  da  carne  ,  com  o 
eípirito. Cometia  o  peccado,  e  logo  depois  lê^ 
brando-lhe  o  Inferno  merecido ,  o  aborrecia. 
Chamava-o  Deos  com  as  íiias  infpiraçoens  a 
mudar  vida ,  e  querendo-lhe  obedecer,  a  vio- 
Jeticia  do  amor  profano  em  que  eramalabi- 
tuado  3  vencia  ao  Divino.  Deí]:e  modo  com- 
batido de  dous  amores  totaluriente  oppoftos 
hum  ao  outro ,  foyfe  aíTentar  debaixo  de  hua 
arvGre,e  chorando  afua  miferia  brotou  neftas 
palavras:  U/que quo  Atigujline ufque  quò.  E  até 
quando  hey  de  continuar ,  nefta  mà  vida  [Sem- 
pre hey  de  defFerir  de  anno,  em  anno,  de  mez, 
cm  mez  ,  de  hoje  á  manha  a  minha  conver- 
íâõ  ?  Quandíu ,  eras  &  eras.  Se  ha  de  fer  húa 
vez  5  porque  naõ  agora ,  fe  ha  de  fer  á  manhã, 
porque  naõ  hoje ,  porque  naõ  nefta  hora ,  nef- 
te  momento  3  acabarey  de  por  íim  para  fem- 
pre  a  eftas  minhas  torpezas :  Quare  non  moão^ 
quarô  non  in  hac  hora  finis  turpitudinis  me<z.  f^f^ 
Affim  chorando  ,  e  fallando  comfigo  ,  ouvio  cap.u^ 
hua  beUiíTima  voz ,  que  lhe  cantava  tolk  lege^ 
tolle  legâj  e  naõ  vendo  Peffoa,  nem  lugar  don- 
de podeffe  fahir  taõ  linda  voz  ,  imaginou  fer 
Angélica.  Foyfe  logo  para  o  feu  apofento  ,  c 
pegando  nas  Epiftolas  de  S.Paulo,  as  quiz  abrir 
acafo  com  animo  refoluto  de  executar  quanto 
Deos  lhe  infinuaíTe  por  ellas.  E  achou  no  pri- .     ^ 
meiro  período  o  defengano,  e  juntamente  o 
tcmedioiNofk  incubiUhus^&  impudicitiis.Eh 


Rom.  1 5 


** 


ahi 


ahi  o  defengano,  e  vem  afer ,  que  quem  de- 
veras quer  falvarfe ,  convém  que  largue  as  de- 
licias do  corpo  ve  os  deleitesda  carne:  Sed  tn- 
didmini  Daminum  nofirum  Jefum  CkriJiunK 
Eis-aqui  o  remédio.  Quem  determina  vèffir  a 
Hbrè  de  noíTo  Senhor  JefuChrifto,eíle  o  pro- 
tege como  a  feu  fervo,  e  o  defende  com  a  fua 
gpça  5  como  fez  a  S.  Agoflinho,  que  dahi  por 
\  diante ,  de  hum  grande  pcccador  fahio  hum 

*   '  grandiíTimo  Santo. 

A  maõ  de  Deo&naõ  he  abreviada  :  Manus 
Bomininon  efl  abreviata ;  e  noíTo  Senhor  Je- 
Matth.  ^"  ^^"f^o  diffede  fua  própria  hocàvNon  enim 
5.        veni  vocarejuflos  yfedpeccatores.  Que  naõ  ve- 
yo  ao  Mundo  para  chamar  os  juffos ,  mas  os 
peccadores.  Pelo  que  tolk  lege ,  toUekge,  Be 
pode  fer ,  que  em  lendo  algum  ponto  deftc 
livro  ,  fiqueis  convencido,  conhecendo  que 
tudo  o  que  ha  neííe  Mundo ,  he  vaidade  ,  fin- 
gimento ,  e  hum  puro  engano»  E  que  de  pec- 
cador,  de  tantos  annos  enganado  ,  em  hií  inf- 
tante  vos  acheis  hu  verdadeiro  penitente  arre- 
pendido 5  que  he  hum  grande paífo ,  para  fer 
fanto.  Supponho,  que  nunca  vos  paífará  pela 
imaginação,  que  nos  difcurfos  deite  livro ,  cu- 
p  principal  matéria,  he  aterribilidade  dos  tor- 
mentos do  inferno ,  ppíía  haver  exageração? 
ou  encarecimento.  Mas  quando  por  acafo  vi- 
eíTe  eftepenfamento  lembrayvos  3  que  as  pe- 
nas do  Inferno  faõ  fobrcnaturacs  >  c  aíílm  de 

toda 


todo  incompreheníiveís  ao  entendimento ,  é 
inexplicáveis  á  noíTa  lingoa  5  porque  como  diz 
S.  Paulo  fallandoda  Bemaventurança;que  na5 
víraõ  os  olhos ,  nem  os  ouvidos  ouvirão,  nem 
pode  caber  nos  corações  dos  homés  a  immen- 
fidade  da  gloria  5  que  Deos  tem  preparado  pa- 
ra os  feus  efcolhidos :  Non  oculus  vidit^nec  au-  i.Cor^ 
ris  audivit ,  nec  in  cor  hominis  afcendii ,  quds. 
pr<eparavit  Deus  tis  qtd  diligmt  illum,  Affim 
havemos  de  difcorrer  do  Inferno.Qiie  naò  he 
perceptivel  ao  noífo  entendimento ,  nem  en- 
tre a  esfera  dos  noffos  fentidos ,  a  immeníida- 
de  dos  tormentos  que  Deos  tem  preparado 
para  os  réprobos  feus  inimigos.  Pois  confor- 
me a  mifericordia  Divina  he  immeníà  ,  e  in- 
finita para  premiar  os  juftos ;  do  mefmomodo- 
a  fua  juftiça  he  também  immenfa,  e  infinita 
para  eafiigar  com  jufto  rigor  os  peccadores. 

Os  bêsjcmafes  da  vidaílitura  excedem  fem 
proporção  5  e  medida  os  bês  5  e  males  da  vida 
prefente,  nao  fónaextençaõ,  mas  também  na 
intenção  5  e  como  elles  faõ,  e  feraõ  para  fem- 
pre  eternos ,  por  muito  que  fe  encareça,  por 
muito  que  fe  cuyde  ,  por  muito  ,  que  fe  diga, 
fempre  como  diz  S.  Agoftinho  fera  muito  me- 
nos, do  quehe  na  realidade  :  jQuid  quid  vis, 
dicas  de  dttermtate  quía  quid  quid  dixeris ,  mi~  p/fif^ 
mis  Seis.  Oh  Inferno !  Oh  eternidade;  Infer- 
no, que  encerra  em  fi  todo  género  de  tormê- 
tos  i  eternidade ,  que  fempre  começa,  e  nun- 


:x 


Ch 


í' 


.^pL^çabâv  Sempre ,  e  nuíica ;  e  nunca ,  e  {hm- 
pYQ.  Nunca  ter  húminimo  alívio ,  femprc  pa- 
decer todas  as  penas.  O  cuydarno  Inferno  ,  e 
na  eternidade  ,  chama  3-  Agoftinho,  aqueíie 
grande  penhmcmo^magna  cõgitatio^qne  bem 
dirigido  tem  feyto  refolver  a  tantos  Monar- 
:         cas ,  e  Príncipes ,  a  tantos  nobres ,  e  ricos ,  ^ 
tantas  donzellas  virgês,  a  darás  cofias  ao  Mun- 
do, deyxar  afua  liberdade,  e  encerrarfe  en- 
tre quatro  paredes  ,  para  fugir  das  occaíiões, 
para  fazer  penitencia  ,  e  chorar  os  feus  pec- 
cados ;  e  naõ  moverá  também  a  vòs ,  meu  a- 
mado  Leytor ,  a  mudar  vida,  a  deixar  hú  goflo 
momentâneo ,  para  evitar  hua  eternidade  de 
penas !  Eu  creyo,  e  efperoque  fim.Mas  quan^ 
dofe  achaíle  algum  peccador  taô  endureci- 
do 5  que  a  efte  trovaõ  do  Inferno,  a  efte  rayo 
da  eternidade  5  naoíe  defpertaíTe  do  letargo 
dos  feus  vicios  ,  já  pode  fechar  efte  livro ,  já 
para  elle  ,  naõ  ha  efperança  do  Paraifo ,  jà  he 
£^p[;^   morto  anticipadamente  para  o  Inferno  :  ^Í 
£^'í'  ad  h£c  tonúrua  non  expergifcitur  ,  mm  mor^i 


INTRO- 


■^ 


INTRODUCÇAM 

ao  Livro. 


Andou  EIRey  Nabuco- 
donofor  fabricar  huma 
eftatua  de  ouro  ,  e  no 
mefmo  tempo  convo- 
cou as  Relações ,  e  Tri- 
bunaes,  os  Príncipes  ,  e 

Magnates  com  todos  os 

Povosdofeuímperio,  para  que  a  adoraffem. 
A  penas  tocava  o  final,  com  o  fom  das  trombe*- 
tas,  tambores ,  e  mais  inftrumentos,  que  logoi 
todos  proftrados,  de  joelhos ,  obedeciaõ  ado- 
rando a  eftatua.  Pois  como !  Naõ  fabiaõ  todos 
elles  y  que  efte  limulacro  naõ  era  o  verdadeyro 
Deos  vivente ,  mas  hu  ídolo  falfo  ,  hum  pou. 
CO  de  ouro  fundido  pelo  qual  concorreriaõ  tal 
vez,j:ambem  elles ,  como  oslfraelitas  na  fun- 
dição do  bezerro.  Sim  fabiaõ ;  Simidacra  gejt- 
tium,  argentum  ,&  aurum  ,  opera  7nanuim  ^'^''^'^^ 
hominum^  E  juntamente  viaõ ,  que  efte  era  híi 
ídolo,  que  tinha  boca,  mas  naõfallava  ;  tinha, 
ouvido^,  mas  naõ  ouvia  ,  tinha  mãos ,  e  pcs,. 
mas  naõ  obrava,  nem  fe  podia  mover  :  Os  ha-  ^^^^''5 
bem ,  &  mn  hquentur ,  manus  habent,  &  non  ^^' 
]M^pabunt ,  pedes  habent ,  &  mn  ambulaUinU 
t.  com  tudo  deixavaõ  a  Deos  todo  poderofo,.. 
para  idolatrar  efte  fimulacro.  Naõ  vos  efpan- 

teis>, 


\ 


im 


teis  ,Biz  S..Joa5Chryfoftomo :  NolkemirarL 
Porque  tinhao  adiante  dos  olhos  acefa  huma 
grande  fornalha  de  fogo ,  com  hum  Arefto  ir- 
revogável delRey,  que  ,  quem  naõ  fe  ajoe- 
Dan.^,  íhaffé  logo  ,  e  não  adoraffe  o  fimulacro ,  fof- 
fe  no  mefmo  inftante  lançado  nella  :  Si  quis 
autemmn  projlratus  adoraverit ,  eadefn  hora 
mitietur  incaminumignis  ardentis.  Tanto  po- 
de hum  Rey  5  para  fer  logo  obedecido  ,  com 
pôr  fomente  à  vifta  huma  fornalha  de  fogo  !  c 
que  feria  fe  foíTe  experimentada. 

Eu  também  nefte  meu  livro  ,  prefento  aos 
peccadores  enganados ,  não  a  fornalha  de  Ba- 
bilónia 5  não  o  incêndio  de  Troya  ,  naõ  as  la- 
varedasdoVefuvio,  mas  a  medonha,  e  hor- 
rorofa  fornalha  do  Inferno.  Será  grande  mife- 
ria,  que  de  tantos  Súbditos  delRey  Nabu- 
00,  fó  os  três  Mancebos,  defprezando  gene- 
rofos  o  feu  falfo ídolo ,  quizeíTem  antes  ferem 
lançados  na  fornalha  ,  que  deixar  a  adoração 
devida  ao  verdadeiro  Deos ,  todo  poderofo, 
que  no  mefmo  inftante  ,  lhes  trocou  o  ardor 
do  fogo ,  em  hum  brando  zéfiro  ,  e  em  hum 
2)^^  .^  rocio  celefte  :  Etfecit  ?nediumfornacis  ,  quafi 
i8.    '  vmtumroris  flãfítem.  E  que  o  noíTo  Rey,  e 
Redemptor  Jefu  Chrifto,  de  hum  numero  in- 
numerável  de  Chriftãos,tenha  taõ  poucos,que 
lhe  obedeçaõ ,  com  lhes  prometter  o  Paraifo, 
e  que  a  mayor  parte  queira  antes  feguir  ofalfo 
Idolodas  fuaspaixóes^e  nao  tema  a  fornalha  do 
Inferno.  ^^" 


^  Dkth  y  que  o  fogo  c}^  fornalha  de  Babiíd- 
nia,  era  fogo  real,  e  verdadeiro,  e  que  o  fogo  q 
prefento  nas  efianipss  defte  meu  livro ,  hc  fo- 
go pintado !  AíEm  he  ?  Mas  com©  effes  meus 
Difcurfos  faõ  dirigidos  aos  Cathoiicos,  que 
por^^randespeGcadores  q^e  fejaõ  3  tem  ainda 
a  fé ,  e  efperao  com  mudar  de  vida  de  fe  falva- 
rem ,  íupponbo  y  que  efta  mefma  fé  3  os  fará 
também  crer ,  que  ha  tal  diííerença  entre  eíie 
noffo  fogo  fublunar,  e  o  fogo  do  Inferno  ,  que 
fe  Deospermittira,  que  hum  condenado  paf- 
faífe  da  fornalha  do  Inferno  a  fornalha  mais 
terrivel  defte  Munda ,  efla  lhe  pareceria  hum 
jardim  de  flores,os  carvões  acefos,  rofas  deje- 
ricô,  eo  ardor  do  fogo ,  o  mefma  fogo  pinta- 
do, que  vedes  nas  imagês  defte  livro. 

Bogòre  Rey  dos  Búlgaros  5  era  P^a5> 
c  de  génio  guerreiro. Por  muitos  annos  conti- 
nuou a  guerra  contra  Teófilo  Em perador  do 
Oriente-  Feitas  finalmente  as  pazes  ,  mais  á 
forças,  que  de  vontadeyierido  de  natural  feroj 
occupavaíTô em  icaçar  nos  matos,  as  feras,. 
mais  brabas  ,  e  monftruofas.  Soube  ,  que 
em  Roma ,  haviahum  Monge  por  nome  Me- 
todio  5  Pintor  celeberrimo'.  Mmàov  o  loç^o 
bufcar,  e  a  perias  chegado- ,  ordeno?   .he ,  qíie 
delineaíle  em  hum  painel  os  mc..in\.:  mais 
horridos,eas  figuras  mais  medonhas ,  que  lhes 
vieíTemá; imaginação.  Como  nos  Poetas,  e 
Pintores  he  licito,  dequimerizaír  todo  género 

'^'^^  de 


r 


deiatfevimeiitos  cjii^aa  fátitafia  ÇQiidu^^     a 

perfeição  da íba arte.         -  ^mo-^m-i  ^-ã. 
Mor.  PiãoribusatquePoetis-,  ^r;  v»'>i^ 

^f^^t-    ■   Quiâlibíitaudendifemperfíiitx^quíipoteflas, 
AíTim  Metodio  5  íendoinaõ-  menos  pTsrfeyto 
Religíofo  5  que  Pintor  aíFàeiado;,riaõaehoii 
afiia  fantafía  ,  poder  forjar  painel  ^  itiais  itie- 
donho,  que  o  da  juftiça  final  dos  Réprobos 
para  o  ínferno;  Via  Bogòreno  alto  do  painel 
o  vulto  refplandeeente,  e  falminante,  de  huii^ 
Dcos  irado ,  e  irritado;  via  debaixo  húa  gran- 
de fornalha  de  fogo,  donde,  fahiaÔ  innu- 
Bieraveis  demónios  em  figuras  taÒ    horro* 
rofas ,  que  em  as  vendo  os  precitos  5  Gorriaq 
por  medo  a  fepultarem-fe  naqueile  abifnío 
de  fogo.  Confiderava  ElRey  o  painel ,  já  at- 
tento  5  já  cuydadoío  ,  já  tímido  na  confcien- 
Hift.in  cia  5  e  já  mudando  de  cores;  Entaõ  Metodioj 
Bmore-  conhecendolhe  O  coração  já  difpoíia.,  expii' 
coulhe  o  myfterio  do  paioeljC  com  elle  os  mais 
myfterios  da  noíTa  Santa fé^e  em  breve  tempo 
inftruido  neiia ,  mandou  a  Emperatriz  fua  pri». 
ma  hum  Bifpo  ,  que  o;  bautizou.  Eis-  aqui, 
como  o  fogo  pintado  em  hum  painel  bailou 
para  reduzir  hum  Pagaõ  a  fazerfe  CatholicO; 
e  de  Leaõ  íuriofoa  trocarfe  em  hum  Cordeiro 
manfo.  E  como  na5' poderá  fazer  o  mefm0»> 
em  hum  peccador  por  grande  que  feja  ,  pois 
alem  de  fer  baiuizado ,  tem  o  lume  da  fé  ,^e  a 
luz  do  Evangelho,  que  o  guiaõ ,  eorefreao.  i 

?;.,>;  Mas 


^  Mãs^  porque  refiro;  ewexemplosLHos^ífew 
los  paífados ,  qirando  ia  mim  meímò-  em  /trin- 
ta, e  mais  annos ,  qne  eftive  MiffiDnario  i\9 
Brafil,  líiefuccederaõ  muitos  cafos  femelhan- 
tes.  Tinha  eu  húa  deftas  imagens ,  ilkiminada 
com  a  mefma  cor  do  fogo.Naõ  he  crivei  a  imr 
preíTaõ  do  Inferno,  que  fazia  nos  índios;  tanto 
^ííim  y  que  algús  vinhaõ,  jáaltanoite  a  confef- 
faremfcje  perguntandolhes  eujporque  náô  ef- 
peravaõ  pela  manhã,  refpondiaõ,  ter  medo  de 
morrer  aquella noite ,  com  fe  lhes  repreíentar 
íia  imaginação  aqueile  condenado  5  que  efíava 
ardendo  com  os  Demónios  no  Inferno.  Direy 
mais,  que  nas  Miffoes  ,  que  eu  fazia  nas  Villás, 
e  nòs  engenhos ,  por  muito  ,  que  eu  efiudaíTe 
de  reprefentar ao  vivo  os  infoíFriveis  tormen- 
tos  eternos ;  bem  poucos ,  e  raros  fe.moviaõ. 
Porém  em  moftrando  do  púlpito  a  imagem 
de  hum  condenado  ,  logo  todo  o  auditório, 
fe  desfazia  em  lagrimas,  e  gemidos.  Tanto  he 
verdade ,  que  a  vifla  faz  fé  ,  ainda  qtie  feja  de 
fogo  pintado  em  hum  papel ;  muyto  mais, 
quando  eíla  fé  he  de  Deos,  com  crer,e  ter  por 
infallivel  o  fogo  do  Inferno.  - 

j  Efte  foy  o  principal  motivo ,  que  me  indu- 
'mo  a  unireftaseftampas,  com  efletivrodode- 
fengano  dos  peccadores ,  para  que  depois  de 
viííasje  coníideradas,  fuprao  o  pouco  efpirito, 
e  zelo  3  com  que  em  tantos  annos  de  M  iíEona-* 
rio  5  trabalhei  taõ  froxamepte  na  falvaçaõ  das 
'^■"■^  '  ^^^^  2  -AI- 


1 


r 


jftMFnfciif  I  II     «■ni—nMMiiiiiii  • 


Almas.  Oh  íe  quizera  Deos ,  que  alguiriaS  fb 
j^^^^    convertelTem ,  e  eu  pudeffe  reddere  animam 
% i .      pro  anima  erii  defcoiito  dos  meus  peccados ,  e 
das  minhas  tibiezas  nx)  feu  ferviço;  Tenho  ra^ 
zaõ  de  crer ,  e  éfperar  affini ;  pois  diz  S.  Pau- 
io,qae  Deos  coftiima  eleger  para  femelhantes 
emp rezas  da  fua  gloria  os  fogeitos  mais  viz  ,  e 
^1^^*  defpreíiveis :  Ignobilia  Mundi'i&  contempúbi- 
lia  elegit  Deus.  Q\\q  fe  pois ,  nem  a  viftá  do  fo- 
go pintado  neftas  imagens,  nem  a  confidera- 
çaõ  do  Inferno ,  faõ  baftantes  para  defenganar 
a  algum  peccador  endurecidor;  faiba,que  toda 
a  Sagrada  Efcritura  ,  e  o  mefmo  Filho  de 
Déos  no  feu  Evangelho^  naõ  achou  remédio 
mais  eíficaz  para  reduzir  os  peecadores  à  pe- 
nitencia, quç o  tormento  do  fogo  eterno:  Ite 
jf^Mth.  fnaledtãi  in  ignem  Mernim..  E  bem  pode  apli- 
^^*      car  a  íi  aquella  formidável  fentença ,  que  pro- 
nunciou Deos  por  boca  do  Profeta  Ifaias;  Hm: 
dicit  Dominus ,  infanahilis  fraãura  tuapeiji- 
J^rem.  -fyi^  plaga  tua^  A  chaga  da  tua  maldade,  he  jà 
tam  apodrecida  ,  e  corrupta  ,  que  be  incurá- 
vel, efem  remédio  ,  verificando-fe  delia  a- 
quelle  celebre  aforifmo  da  Medicina  :  Quod 
Fern.de  fionfãfmt  jnedicamentum  fanat  ferrum  y  quod 
nonfanat  fernm  fanat  ignis  j  quodnonfmat 
ignis^ftinf^mihik. 


LICEN. 


mo 

Cftr. 


LICENÇA  DOS.OFFICIO. 

POde-fetormr  3  imprimir  o  Livro  dequcfetra- 
ta,e  depois  dí  imprcíTo ,  tornará  para  fc  confe- 
rir, c  dar  licença  que  corra  ,fem  a  qual  nao  correrá. 
Lisbja  Occidental  o  priméyro  de  Fevcreyrode  1755. 

Fr.  Rodrigo  Lmcajlre.     Teyxeyra.    Sylva.     Soares, 

Abreu. 

LICENÇA  DO  ORDINÁRIO. 

POde-fetornir  a  imprimir  o  Livro  de  que  fe  tra- 
ta ,  e  depois  de  ímpreíTo  tornará  para  íc  confe- 
rir ,e  dar  licença  para  que  corra.  Lisboa  Occidental 
/.dcFcvereyrodc  1735. 

Gouvea. 

LICENÇA  DO  PAÇO. 

Cenf/iradô  P.  M,  Fr  Felippe  da  Conceyçao  ^^ialifi' 
cador  do  Santo  Qfficto,  &c. 

SENHOR. 

O  Livro  mencionsdo  nefta  petição  retro,  ha  muy- 
to  tempo  que  o  li  com  muyto  gofto  ;  porque  ale 
de  conter  doutrinas  muy  importantes  para  afalva- 
çaõ  dís  almas,  naõ  tem  coufa  aigu3, que  feja  diíTonan- 
te  aos  DecretoSjC  Reaes  politicas  deV.Magcftade  pelo 
que  me  parece  digno ,  c  digniífimo  ds  íc  reimprimir 

mui- 


,^,^(^i^ia,fiiiag^ 


itiuitás  vczès.  S.  Fr ânòifco  dá  Cidade  de  Lisboa  Ô^ 
cí  dèntâ  1 1  ò.  de  Fe ycrey ro  de  j  7 3  5 .  • 

¥r.  Felippeda  Conceyfc^, 

Ue  íe  poíTa  imprimir  vifías  as  licenças  do  Santo 
^OíBcio,  e.Oi"dinario ,  e  depois  de  impreífo  tor- 
nará a  eOa  Meza  para  íc  coníerir,e  taxar  ,.è  dar  licen- 
ça para  correr ,  c  íem  iíTo  naõ  correrá.  Lisboa  Occi- 
dental 10,  de  Março  de  17  35/ 


Teyxeyra,       Bonich^» 


'4?;'-í  r^^l , 


■'«IO*  \^ 


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•®f  i.^3Í*  ,^i^^i^^  >íi^l^  ..y^s^ 

«ô? /:i::r^..,:íL*-  4.,~.r-!.v.^5*jr  L^r^-f^^-s-  ty5=5f^*/í5«.>i 


r>,tt  >.,Oí^>t     ijV^íS-^  ■-■^"--'^   ,r-<K,<u-»  --í-í;'-^    y-.-r-í'^»  — -^-"í>'5.      J^-1Í>»  *-;-5SÍÍ^  g  q^ 

5r>rf'í«i5=í<r  v^^^í-v;^*?*"  kssít^-t-ri^^  >?::^í?^*'^-^    v~^n:*m??/' fi^ 

•w4i     '^teaÇí*-  ^t?s?t»  «P^^.ei  a.ÇÍ^^*!  <*Ir^'«       ^í^ 


J^     &Mi!^J-S  SAL^«J^^  «-■'vjfci'^  ^v^->^',  ^^Ks'^'^^      ísQ» 

:''\  L  I  C  E  NC,  AS. 

1)  OMe  correr.  Lisboa  Occidental  19.  de 
Agoftodei735. 

Fr^Uoãrígo  Lencajln,      Teixeira.      Sylva, 
Cabedo.     Soares^     Abreu. 

Ifto  eftar  conforme  com  o  original  po- 
de correr.  Lisboa  Occidental  19.  de 

AgQftodei735. 

Gouvea, 

T"  Aíxao  elíe' tí^^ro  èm  hlitlè  quatroc 
equatenta  reis  em  papel.  Lisboa  Occi- 
dental  22.  de  Agofto  1735. 


Pereira, 


Teixeira. 


índice 

DOS  DISCURSOS* 

IfciiríbL  Tormentel.  do  Cárcere  do  In- 
^^^^  ferno.  P^g-  ^ 

Difcurfo  11.  Do  twmentoda  vifta  entre  as  tre- 

vas  do  Inferno,  ^7 

Difcurfo  III.  Do  tormento  dos  Ouvidos.  5  5 
Difcurfo  IV.  Do  tormento  do  infofrivel fedor 

do  Inferno.  .  ^í 

Difcurfo  V.  Do  tormento  do  Goflar,  105 

Difcurío  il.Do  tormento,  do  Taão.  1 33 

Difcurfo. VIL  Do.  tormento  dos  Soberbos  ,-  e 

Prejumidos,  ^  2:65 

DifcorfoVlILDo  tormento  dos  Avarentos. 20^^ 
Difcurfo IX. Do  tormento  dos  Luxwrmfos.i^J^ 
Difcurfo  X..Doiormento  ãosTyrannos  y  eVin- 

gativos,  ,  ^75 

Difcurfo  XL  Dq    tormento  do   Sitio  immo- 
veL  309 

DifciarfoXlL  De  tormento  da  pena  do  Da- 
no. 34^ 
Difcurfo  XIV.    Do  tormento  da  Defefperar 

çaõ.  373' 

Difcurfo  ultimo.  Do  tormento  da   Etermda^ 

de.  405 

Aúic^zí).  De  bum  cafo  horrendo  de  hum  joga- 
dor ^quefoyfovertido  vivo  na  Inferno.  441  • 


âj> 


DISCURSO  I. 

TORMENTO    PRIMEYRO 
Do  Cárcere  do  Inferno, 

Claudentur  ihiin  Cárcere AíàU  c.  24. 


Ntreaspenas,queasleys  huma- 
nas tem  decretado  para  punir 
os  delinquentes,  as  mais  ufiiaís 
faô  a priíaò, e  o  degredo;  e .lin- 
da que  cRas,  por  ferem  mais  c5- 
muas,naõ  fazem  ao  Povo  aquei- 
le  terror,que  comíigo  trazem  os 
fionies  dos  tratos  ,  dos  equleos, 
das  rodas,e  dosTouros  de  F-ilia- 
ris,  e  outros  gcnerosde  tormencos,quca  juíliça  huniana 
julgou  porporcionados  para  caftigar  os  delidos  mais 
atrozes  dos  Malfeytores,  ou  a  barbaridade  dosTyranoi 
íoube inventar,  para  vencer  a  infuperavel  conilancia 
dos  Martyres ;  com  tudofe  a  priíaò  for  apertada  ,  e  por 
toda  â  vida,  he  muyto  mais  cruel  que  todos  eftes  tormê- 
tos ,  e  que  a  mefma  morte ,  poys ;  EJipge  martyrium, 

A  hc 


<     I 


2  Difcúvfo  L 

hehum  martyrio  continuado.  Por  ifio  viíítando  hum 
diap  Emperador  Tibério  as  priíces  ,  hum  Fidalgo, 
^  qu-jàdemuytos  annos  vivia naquelle  tormento,  lhe 
pedio ,  naõ,  que  o  fokaíTe ,  pois  bem  íabia  ,  que  jà  cíia- 
va  como  eíquecido,  mas  que  ao  menos  \hx  déííe  a 
S^et.m  morte.  Refpondco-lhe  Tibério:  Nond^Hm  m  Pratiam 
^^'^-     mectmreàiftt.  Ifichc  ,  o  que  vôs  deíc.aes ,  e  quereis, 
mas  ainda  naõ  fois  tornado  na  minha  graça  ,  julgan- 
do  que  a  morte  por  cruel ,  que  fcíTe  ,  lhe  fer viria  de 
ahv:o,emuyto  maisíuave,  que  a  pena  da  prifaò.  E 
m  verdade,  íe  o  cárcere  he  com  aperto,  c  o  delin- 
quente eítá  em  algum  calabouço,  aonde  naõ  o  deyxem 
ver,  nem  fallar  com  Alma  viva,jà  a  penado  cárcere 
he  mays  fenílvel  por  lhe  eflar  anexa  aquella  do  degre- 
do, poys  vive  na  fua  Pátria,  ou  em  húa  Cidade,  como 
íecflivcíTe  longe  mil  legoas  emhumdeferto,  Eis-aqui 
dibuxada  por  alto  foda  a  matéria,  que  hey  de  tratar 
nefte  primeyro  diícurfo  do  Cárcere  do  Inferno.  Mo- 
ilrarey  cm  primeyro  lugar ,  quam  terrivcl  he  cfíe  cár- 
cere infernal,  naô  tendo  comparação  com  os  mays  me- 
donhos, e  cruéis  do  Mundo  ;'em  fegundolugar  vere- 
mos como  a  Jufíiça  Divina  tem  encerrado  neíkprifaQ 
todos  os  géneros  de  tormentos  aífim  na  quantidade, 
como  na  qualidade  ao  noíío  entendimento  imperceptí- 
veis para  caftigar  os  Peccadores,que  deyxaõ  ao  feu 
Crcador  pelas  creaturas. 

Mas  quanto  mais  terrível ,  e  penofa  fera  a  \^ú{m 
à(ò  Inferno ,  das  que  ínvenráraô  os  Tiranos ,  ou  imagi- 
narão os  Poetas,  e  quanto  mais  ícníivcl  fera  o  degre- 
do ,  depois  que  a  Alma  defpida  do  corpo  ,  conhece- 
ra claramente  que  a  íua  Pátria ,  para  a  qual  foy  creada, 
era  o  Paraifo  IO  labirinto  de  Creta,  como  refere  Ce- 
iiojfoy  húa  prifaô  condecorada  com  cík  nome  ,  para 
moftrar ,  que  era  muy  fácil  a  entrada ,  mas  fcm  à  cfpe  • 
rança  de  achar  afaida.  Chaniava-fc  Lahyrintus  qmfi 

labor 


Celiiu 

itb.  7. 


Tormento  L  do  cárcere  do  Inferm.        j 

labor  intuSi  porque  quem  lá  hua  vez  entra \ra,naò  acha- 
va íenaò  trabalhos,  c  penas.  Dionizio  Rey,  ou  pa-        . 
ra  melhor  dizer,  Tirano  de  Siracuía  ,  mandou  fabri.,/  ^^^ 
car  híi  j  prifaô  ,  que  por  fora  parecia  hum  palácio  mag-  cèuut 
niíico  de  eftruilrura  Regia  ,  ainda  mais  viítofo  ,  cfo-M,  17, 
bsrbo, que  o  Pa^o  do  mcímo  Rey,  mas  quem  por  fua 
dcfgraça  encrava  dentro ,  o  achava  melancólico ,  cícu- 
ro,  tétrico,  com  as  paredes  Zaq  ruilicas ,  c  horroro- 
ias,  que  em  breve  tempo  ác  pura  melancolia  acaba- 
va os  ícus  dias.  No  tempo  de  Vertes  ,  os  Romanos 
lhe  piizcrâò  o  nome  GcOrhíídomicilium  pelos  muytos 
que  làentravaõ  ,  c  nunca  mavs  fahiaô.  Os  MelTenios  .  'Hf!',' 
labricarao  hum  cárcere  horrendiíim^o  ,e  tao  mal  ar-,^^ 
chite(flado,quc  parecia  hum  monfíro  ,  cíiava  debayxo 
da  terra  ,  ícmprc  cm  hua  perpetua  obícuridade ,  naõ 
tinha  portas,  nem  janellas,  por  onde  cntraíTe  a  luz, 
nem  tranípiraíTc  o  ar.  Sô  tinha  hum  buracQ  i  por  onde 
cntravaõ  os  Réos ,  e  lo^o  íe  fechava  com  huma  erandc 
pedra  a  modo  de  íepultura  :  Monílrum  horrenditm  ^^eiti, 
informe  mgens y  cuí  Iwmsn  ademptiim,  EaciiccarcereA^.Ó. 
para  lhe  diminuir  a  horribilidade  com  huin  bellifiimo 
nome ,  lhe  chamarão  o  ihefouro.  Pelo  contrario  a 
Republica  de  Athcnas  poznomc  de  báratro  a  hCia  Aia 
priíac  f.ibricadaa  modo  de  poço,  era  por  dentro  to-  ^^''^^ 
da  de  pedra  mármore,  mas  no  fundo  cílava  hum  cn-  '  ''^* 
xarcode  immundicias,  nas  quaes  logo  q:ie  hnç?.vaõ 
dentro  do  dito  poço  algum  delinquente  morria  affo- 
gado.  Os  Romanos,  alem  do  cárcere  Tulliano,  ti- 
nhaõ  por  prifaô  a  rupcTarpcya  ,  cavada  em  hiii  penha  ^''«'•'^^' 
altiíTima  perto  do  Capitólio,  mas  muyto  peores  craõ 
os  dcgraos  gemonios ,  calabouço  feyco  a  modo  de  e iça- 
da no  Monte  Aventino ,  c  fe  chamava  o  lugar  dos  ge- 
midos, c  eíiancia  das  calamidades;  Locíís  gemiUim^ 
cala  calamitatmn.  Galeacio  Vifconti,  Duque  de  Mi- 
lão fez  fabricar  hua  priíaô  em  forma  redonda,  ccom. 

A  2  a  abo- 


4  Difcurfo  }. 

^^.^"^^aabobcda  taõbayxa,  que  lhe  chamavão  o  fornoi  c 
m  vttíi,  p^,35  cj-2  po/fj vei  c(^3j.  }^yj^  Homem  em  pè  ,  por  peque- 
no que  foííc  ,  nem  havia  outra  luz  ,  que  a  da  bocca  do 
forno  ,  quando  fe  abria.  Porém  ninguém  íuperou  na 
crueldade  ferina  s  Ezeiino  Romano /depoy^  KegulOjC 
Tirano  de  Pádua.  Efte  fez  fabricar  hum  cárcere ,  a 
que  cllc,e  os  Povos  puzeraõ  o  nome  de  priíaô  infer- 
nal, na  qual  quem  hua  vez  entrava ,  nunca  mais  fahiaj 
de  nenbúa  parte  entrava  nelia  luz,  ou  ar:  os  mortos 
matavaôaos  vivos.  Cada  dia  entravaonella  quantida- 
de de  peíToas  a  borboutaõ  como  ovelhas.    Morriaò 
íem  numero  ,  c  aífim  innumcraveis  eraô  aquelles ,  que 
todos  os  dias  entravaó  ,  pois  já  ninguém  tomava  o 
etldT  ^^'^^^^^^"^  P^^''^  grande  confufaõ  de  os  contar.  A  prifaõ 
fàt,       P°^'  ^  ^"^^  obícuriíTima,  c  naô  fc  ouvia  nella  outra  cou- 
ía  ,  que  gemidos ,  gritos ,  e  alaridos.  O  tormento  naõ 
ícy  íc  mcdigaincreivcl,  ou  inexplicável.  Cada  hum 
padecia  fome,  fede,  calma,  com  a  penúria  de  todas 
aquelías  couías,  que  faóá  humana  mifcria  neceíTariaSi 
oícdor  era  intolerável  ,  co  que  mais  os  molefeva, 
craô  certas  ícvandijas,  que  denrro  daqucllas  fedo- 
rentas immundicias  íe  criavaõ,  c  Icm  dar  hum  momen- 
to de  deícanço ,  hiaô  roendo  de  dia ,  e  de  noy  te  aquel- 
les corpos  dos  miícraveis  prcíos.Naò  fe  choravaõ  na- 
quclia  prifaõ  os  defuntos ,  antes  os  que  morriaõ  ,  eraô 
cítiíiiados  fcliccs,e  bcmafortunados ,  poys  ficavaô  li- 
vres de  tanta  infelicidade,  e  miíeria.  Eftas  em  com- 
pendio íaô^s prifccs  mais  horrendas,  c pcnofas ,  que 
foubcraõ  inventar  os  Tiranos  mais  deshumanos,  e  por 
muyto  que  fe  enfurcceííe  o  íeu  ódio  ,  e  íe  deshumanaf- 
íe  a  fua  natureza,  todas  cftas  prifocs  faõ  jardins  de 
flores ,  c  camas  de  rofas ,  à  vifla  do  cárcere  do  Infer- 
no ,  que  alem  de  íer  de  fogo ,  encerra  em  íi ,  como  vc* 
Cipr,     ^^"'^os ,  todo  género  de  tormentos. 
tt)m  %,        S.  Cipriano  repara  j  oue  Dcos  na  crcaçaô  do  Mun 

do 


Tormento  h  do  cárcere  ào  Ínfimo,        f 

âõ  tem  pofto  emoCeo  no  alto  fobre  as  noíTass  cabeças, 
creando  o  Homem  dircyto ,  a  fim  de  que  coníiderando 
es  reíplandores  do  Sol,  e  a  fermofura  das  eftrellas ,  nos 
íerviíTem  como  dedegraos  para  contemplarmos  a  íua 
Divindade, eeaamorarmo-nos  do  Paraiíb.  Omcfmo 
conhcoéraô  os  Poetas  gentios.  ., 

Fronaque  cum  teneant  ammdia  deterá  fronte^  ^^^^^' 

OsHominifubUmededit  coelumquetíiert,  ^       Metar» 

Pelo  contrario,  tem  eícondido  a  horrorofa  prifaô  in- 
fernai no  lugar  mais  profundo  debayxo  dos  noíTos  pès, 
para  dar-nos  a  entender ,  que  ofeu  fim  principal  naò 
era,  que  o  amemos,  cfirvamos  obrigados  como  eícra- 
vos,  por  medo  |C  rigor  dosfuplicios,  mas  por  amor, 
como  Filhos  aoPay,  e  como  feus  herdeyros.  Porem 
vendo  Deos  a  ingratidão  dos  Homes,que  íe  haviaô  de 
render  fempre  mais  inícnfiveis  aos  íeus  bencficios, 
multiplicando  culpas ,  e  amontoando  delidos  íobre 
delidos ,  fe  vio  para  a  íua  emenda  obrigado  a  defcu- 
brirlhes  o  grande  abilmo  de  tormentos ,  que  eftá  para 
clles  preparado  nefta  prifaò  do  Inferno. 

Que  haja  eflc  cárcere  do  Inferno ,  he  verdade  taõ 
certa,  como  he  certo,  que  ha  Deos,  eíc  Deos  hejufto 
cverdadeyro,  enaô  pôde  mentir,  feguefcique  aju- 
ftiç^  por  fer  reda  ,  ha  de  dar  o  premio  aos  bons ,  e  o 
caâigo  aos  màos.  O  Paraifo  aos  efcoihidos ,  que  obra- 
rão bem,  e  o  amarão,  e  íerviraõ.  O  Inferno  aos  Preci- 
tos,que  obráraõ  mal,  por  fazerem  a  íua  perverfa  von- 
tade ,  enaõ  lhe  obedecerão.  Publicou  pois  Deos  efta 
verdade  do  cárcere  do  inferno  na  ley  antiga,  em  to- 
dos os  livros  do  teftamento  velho  por  bocca  de  rodos 
os  Profetas  i  ena  Ley  nova  começou  a  publicalla  o 
Prodromo  S.  Joaõ  Bautifla;  Praàícanshapifmum  pw-  -^^^^^^^ 
niteriti^m  remijjtomm  feccatorum  ;  ameaçando  o  fogo  ^^^  ^  ' 
do  Inferno,  que  nunca  fe  apaga,  edura  íemprej^^ 


mteriti^mremijfltonem  feccatorum;  ameaçando  ofego 
do  Inferno,  que  nunca  fe  apaga,  edura  íemprej^^ 
ícas  autemcombuntigni  inexunguibilí.  Pepois  o  mef- 

A  3  "^^ 


jítC.Ç' 


5>^ 


D,  Bem 
Sen.  o- 
pfís  i  .6 


D,  An, 

ton.  Sã' 
maThe- 


JfaU.v. 


^  Dtfimfi  h 

moChrifto  tantas  vezes  deíua  própria  bõccajcpoí 
bõCca  dos  íeus  Apoítolas ,  que  como  trombetas  da  \ç,j 
Evangélica  annunciàraô  efte  cárcere  do  fogo  do  Infer- 
no a  todo  o  Mundo;  Inomnem  Urram  extvit  fonmeú' 
rum,  e^  m  finem  orbis  terra  verba  eorum. 

De  qualquer  maneyra,  que  nôs  conílderarmos  cfla 
prifaõ  do  Inferno ,  e  6s  diáerentes  ítiplicios ,  que  nel- 
la  fe  padecem,  nada  acharemos,  quenaô  íeja  dcfti- 
nádo  pela  divina  juftiça,  para  dar  mayor  pena,  e  tor- 
mento aos  Condenados.  O  itio  he  o  maystrifíe,  o 
mays  tctriòe ,  e  hediondo,  que  fe  poíTa imaginar ,  o  cli- 
ma o  mays  peftifero,o  lugar  o  mays  infamejO  mays  bay- 
X:0,  e  profundo,  poys  heomeímo  centro  da  terra, o 
fangradouro  de  todas  as  fezes  do  Mundo.  Porque,  co- 
mo bem  diz  S.  Bernardino  de  Sena ,  a  morada  da  Cafa 
ha  de  ter  proporção  com  os  moradores ,  que  a  abitaõ, 
eaffim  como  ofírio  mais  elevado, que  heo  Ceo  Em- 
pireo,  fe  deve  aos  corpos  glorioíos ,  que  faõ  os  Santos, 
affim  o  lugar  mays  bayxo,  e  inficionado  •,.  que  he  o 
Inferno,  tocca,  e  fe  deve  aos  corpos  mais  infames,  c 
vis ,  como  faõ  os  dos  peccadores.  Outra  razaõ  dá  San- 
to Antonino  Areebifpo  de  Florença  ,  c  argumenta  af» 
fím.  O  lugar  mays  proprioaos  corpos  mnys  peíanres  he 
a  terra ,  e  da  mefma terra  o  mays  profundo,  e  bayxo  hc 
o  que  mays  pefa ,  pois  dos  corpos  que  mays  peíaõ  ,  íao 
os  que  contem  em  fi  a  mayor  carga  doi  peccados,íc- 
gue-fe  logo  i  que  o  centro  da  terra,  como  mayspefado^ 
íeja  o  lugar  mays  próprio ,  e  proporcionado  aos  Pecca- 
dores Precitos  f  que  faõ  os  mays  pefados ,  pela  grande 
carga  das  culpas ,  que carregaô  comíigo. 

Se  pois  Gonfídcrarmos  a  grandeza,  e  capacidade 
dó  inferno.  O  Eípirito  Santo  ,pelo  Profeta  Ifaias  nos 
faz  faber ,  que  o  Inferno  tem  dilatado  o  feu  vc.ntre  de 
modo,  que  naõ  tem  medida  ;  Dilatavit  Infernus  ani* 
mamfiiam,  e  tem  aberta  auia  bocca,  que  naõ  ici» 

ter- 


Tormento  h  do  cárcere  do  Inferno.  % 
termo .-  Et  aperuit  osfuum  akfque  ullo  termm.Cotnçn** 
ta  efte  texto  Cornelio  Alapide,  e  diz  que  o  Profeta 
falia  mccaforicamente ,  dando  ao  Inferno  corpo ,  e  al- 
ma, e  fazendo  olemelhante  a  húa  grande  bcih  infacia- 
vel,quefempre tem fome,e tudo  devora:  Inferus  infa- 
tUbtUter  cava  gtitura  pandit.  Domefmo  modo  Salo- 
mão nos  íeus  Provérbios ,  entre  as  caufas^  que  elie 
chama  infaciaveisjpoem  em  primeyro  lugar  o  Inferno, 
e  no  ultimo  o  mefmo  fogo  do  Inferno ,  que  nunca  diz 
bana,e  nunca  deyxará  de  arder,  e  atormentar  :  Trtá 
funt  inJaturabiUa  Infernns^  os  vulva ^&  ignís  qui  nun* 
quamdicit ,  Jufficit,  Quer  dizer  o  Sagrado  Texto, que 
naò  íe  conlolem  ,  nem  fe  allucinem  os  Peccadores, 
por  ferem  muytos ,  porque  ainda  que  íejaõ  innumera- 
veis,  na  priíaò  do  Inferno  haverá  lugar  para  todos,  e 
quantos  forem  todos  caberão ,  mas  fortemente  aperta- 
dos, como  agora  veremos. 

Os  Matemáticos  mays  peritos ,  que  muytas  vezes 
tem  tomado  as  medidas  defte  globo  terráqueo  ,  que 
íoa  o  meímo ,  que  efte  noíTo  Mundo  fublunar ,  provaõ 
com  nummence;  como  diz  o  P.  Menochio  ,  que  em  to- 
do o  íeu  circuito,  e  grandeza  ,  he  pouco  mays  ,  ou  me- 
nos de  íeis  mil  legojs.  Conforme  efta  dimençaò  fizem 
o  computo, que  o  Cárcere  do  Inferno,  aquella  cava- 
medonha  ,  aquella  bocca  fedorenta  ,  aquelle  chãos 
de  confufaó  naò  chega  a  ter  mays  de  largura ,  de  pro- 
fundidade, de  extensão ,  e  de  circuito  que  efcaçamcn-. 
te  duas  legoas ,  pois  a  groíTura  das  paredes  fera  em  tor 
da  a  parte,  e  circunferência  defti  prifaõ,ou  cava  infer- 
nal de  mil  e  quinhentas  legoas.  Nem  pareça  efte  eípa- 
cio  do  cárcere  do  Inferno  increivel  ao  pio  Ley  tor ,  por 
pequeno ,  e  muyto  limitado ,  para  caberem  tantos  mi- 
lliôes de  Condenados,  que  deídeo  principio  do  Muni- 
do faô  entrados,  e  haô  de  entrar  ,  até  íe  acabar  o. 
Muiado ,  fcm  ícrcm  entrç  íí  pÊjietrgdo.s :  ppys  hc  cer- 
o.       ^  "        A4  tií: 


lap  ^^ - 
faUlfiè 


Prev] 
cap  ^o^ 


Steph. 

Menae, 


Mèclef, 
1.15. 


Matth 


8  Úifeuvfo  h 

dífiiTio ,  c  de  fé  ,  que  no  ultimo  dia  do'  juízo  haô  di 
refuícitâF  todos  os  corpos ,  a  ffim  dosjuftos,  cómodos. 
Peccadorcs, e todos affim  cfcolhidos , como  Precitosy 
íe  haô  de  arruinar  ,,  e  caber  no  Valle  de  Jofaf^t,  para 
ouvirem  a  fua  íentença ,  e  haõ  também  de  ferem  diviw 
didos,e  feparados.Os  Santos  ámaõdirey ta,  como  ove- 
lhas, que  ouvirão  a  voz ,  e  íeguiraô  o  caminho  do  fea 
Paftor.  Oi  Réprobos  à  maô  eíquerda ,  comp  Cabri- 
tos,qiie  íahiraõ  do  rebanho  de  Chrifto,e  fe  aliíiàraô  de 
bayxQ  da  bandep-a  do  Demónio ,  pára  depois  entrar 
comeíles  no chiqueyro do  Inferno:  fe  no  Valle  de  Jo- 
íafat  haô  de  caber  apartados,  e  divididos  gs  Predcf- 
tinados  dos  Precitos  ,  quem  poderá  logo  duvidar ,  que 
no  Inferno  caibaô  fó^  os  Réprobos ,  íendo  efte  muyta 
mayor  que  o  Valle  de  Jakfac ,  ainda  que  o  numero  fera 
quaíí  infinito,  como  diz  Salomão :  Sttdtornm  injinitus 
eji  numerus ;  epor  innumeraveisque  íejaõ,  o  grande 
aperto,  em  queeflaráó ,  como  veremos ,  íempie  lhes. 
dará  lugar. 

Será  pois  efla  prizaó  do  Inferno  taô  apertada,  que 
os  miferos  Condenados  ficaráõ  neila  como  Sardinhas 
€m  hum  barri  1  ,  ou  como  huns  cachos  de  uvas  efpre- 
jnidos  no  lagar.  Mas  deftc  apertofallarey  mais  por  cx- 
tenío  nodifcurfodotormentodofítio  immovcl.  Ago- 
ra digo  focom  o  Profeta  1  faias,  que  os  Réprobos  fe- 
raõ  todos  congregados  em  hum  montaô,  e  depois 
atados  como  feyxesdè  le/rna  ,  &  lançados  na  fornalha 
do  Inferno  :  Congregabmtnr  in  cofigregaíivne  tinhisfa^ 
Jcis  -i  ó^claudentm  ibim  cárcere:  Feyxes  de  lenha  fc 
chamaõ  vários  paos  atados ,  grandes ,  e  pequenos  fcm'- 
maysdiftiriçaô,ourefguardo.Lenha  para  o  fogo  iab  os 
Peccadorcs,  como  diz  Chrifto  no  Evangelho  ;  Omnis^ 
ârbor  ^quanon  facitfruõium  bonum^excidetur^  &  in 
ígnemmittetur.  Toda  a  arvore,  que  não  derbomf.u- 
U),;feja  cortada  para  o  fogo, e  comparando,  os  bons- 


iQvniefftoh  do  tmmtéo  Jnferm.        f 

ao  trigo ,  c  os  màos  á  zlzania  ,  ordenou  ,  que  a  zizânia 
foíFe  atada  em  fey xcs ,  e  eftes  lançados  no  fogo.jdoijin- 
ferno:  AlUgate  in  fnfciculos  ad  cotiburendum.  S.Grc-Matth. 
goriohe  de  parecer,  que  eftes  feyxes  fcraó  de  varias<^'«^l^ 
taflas  de  Peecadores ,  como  as  lenhas  faõ  de  varias  caf- 
tas  de  paos.  Soberbos  com  Soberbos  ,  Avarenios  com 
Avarentos ,  Laícivos  com  Lafcivos ,  Zizanarios  com  j^  ^^^^;_ 
Zizanarios;  Congregabuntur  ihi  congregattone  Mírnsfa-  tiom  in 
fcis^  nt  quiparesfunt  in  cnlpú^  àamnentur pariter ,  &  m  Evang. 
foenÍ6;  Síipethi  cum  Super  bis ,  Avartcum  Avarú ;  Lu-  Mmh,. 
Kurtofi  cum  L  uxnrio/iS'. 

Mas  Gomo  pôde  fer,  qnc  os  Réprobos  fiquem  atai 
dcs  a  modo  de  feyxes  iJllígaie  infajciculos.  Com  pri- 
mcyro  íer  apriíionado  cada  hum  por  íi,  e  carregado  de 
algemas  nas  mãos,  e  de  grilhões  nos  pés ,  para  depoys 
congregados  cm  feixes  ícrem  lançados  n^quelle  efcuro 
calabouço ;  Ltgatií  manibus ,  é'  pedtbtís  mittíte  in  tem-  ^atth, 
bras  exteriores.  QuandoChriíio  no  ultimo  dia  dojui-  ^.12  15; 
zo  pronunciada  a  fentença  lhes  ordenará , que  fe apar- 
tem delie^ecorraõaprecipitar-fe  no  fogo  eterno:  Di- 
fcedite  ame  Malediài  inignem  ater  num.  Declarando, 
quecfta  priíaò  infernal  foy  preparada  deíde  oprimey- 
ro  dia  dacrcaçaõ  do  Mundo  para  os  Demónios ,  e  naó 
para  o  Homem,  que  foy  creado  no  feptimo  ,  nem  para 
os  ícus  íueeeíTores ,  íenaõ  em  caio ,  que  pelo  peccado 
mortal  íe  trasformaffem  elles  também  em  DcmonioSi  Mmhl 
como  feusíequazes  \Difcedite  ame Maleàiãí  inignem^^P-^^S^ 
afernnm,qmparatuseft  a  conflitntione  tSdundi,Dia- 
bolo^Ó' Angeluejus.  Diz  mais  o  Evangelifta  Saõ  Ma- 
thcuà ,  que  os  Precitos  j^  naõ  mandados  ,  nem  roga- 
dos ,  naõ  obrigados,,  nem  arraiados  ,  mas  corno  de 
íuff  própria  vontade,  como  de  feu  raeímo  pè/  fem 
detença  ,  fcmmaiis  demora  ,  antes  com  precipitação, 
iráó  bufcar  o  feu  íupplicio  ,  e  penar  eternamente  no  Matth, 
Inicvno ilbuntinfuf^liciumaternum.  Mas  qual.  he  o^-^J-^^ 

Rêo, 


Râo, ou  Mdfe^torjcm  qualquer  parte  ,  quefeja  dd 
Mnido  ,  que  ouvindo  o  arrefto  irrevogável  da  fua  fcti- 

.. .  .  .^  teaça  de  morte,  vá  cUemeicno  efpontaneameDte ,  e  de 

•^  -<l»^'  íeu  pè  buícar  o  patíbulo?  Muytos  Belegins  armados,^ 
ò  kvaó  cora  as  mãos  algemadas ,  com  huma  groíTa  cor^* 
renEe  ,  que  vá'  arraflara^  oospès,  e  com  o  laço  ao 
peícoço  i  por  raayor  íegurança  ,  o  tem^  por  detraz  o 
Verdugo  nas  próprias  mãos.  Nada  difíiotcm  mifíer 
os  Condemdos  no  Inferno :  Uum  in  fuppUcium  at^k 
ntim,  IburU  -f  iráõ  acompanhados  com  o  Aigoz  mais 
cruel  da  lua  rèa  confciencia,  que  lhes  repreíencará 
fempre  á  memoria  as  fuás  maldades  ,  atados  com 
buas  corrêtes  compridas  de  tantos  fuzis ,  quantos  íaõ 
os  feus  pcccados :  e  da  mefma  maneyra ,  que  hua  gran- 
de pedra  de  moinho,  atada,  e  cercada  de  barras  de 
ferro ,  e  levantada  no  ar,  epoíla  em  equilíbrio,  ella 
fem  mais  morulas  fedeyxarácahir  a  precipício,  átc 

,  chegar  ao  íeu  centro ,  e  o  pefo  do  ferro  ,  e  das  4tadu^ 

ras ,  naõ  íó  naò  impedirá ,  nem  retardará  o  íeu  cur^ 
íOi  mas  antes  o  facilitará  ,c  dará  mayor  impulío  no 
feu  movimento. ;  AíTim  do  mefmo  modo ,  os  infames 
corpos  dos  Precitos ,  ainda  que  fejaô  atados  cada  hum 
por  íi  de  pès,  e  mãos  com  os  terríveis  grilhões  dos  feus 
delidos,  e  reiigados  em  feyxes  com  a  forte  corren- 
te das  culpas ,  entre  elles  commuas  ,e  da  mefma  eípe^ 
cie ,  re5fa  via  pelo  caminho  mais  direyto  ,  e  breve  fem 

\  ■  ■  torcerderta,  ou  daquella  parte,  fem  divertir  de  huma, 
ou  da  outra  banda:  Mole  fua  ruent  in  infernum  com 
a  carga  fobrada  ,  e  pefo  immenío  dos  feus  pcccados 
feprecipitaráôforçofamente  no  centro  da  terra  mais 
pefada  ,  que  he  o  Infetno,  Ibunt.  Iraõ  envergo- 
nhados das  íuas  torpezas  ,  enganos  ,  embuftias  ,50 
calumnias,  vendo-fe  entre  tanosjuflos,  que  delles 
mefmos  atribulados  ,  íoffrendo-os  com  paciência 
fouberaõ  ganhar  o  Cco,  íbunU  Irlôõ  t^iíles »  e.  coa- 

funf 


Túrmentõ  Id&mvaredo  Infernei       ^t 

fíindidos,  por  t€t  oíf(ín<lido,  c  dcíprezâdo  a  Dco«  9 
por  naõ  ter  recorrido  á  Virgem  NoíTa  Senhora,  quc^ 
como  Mãy  dos  Peccadores  ,  podia  com  o  ícu  patro- 
cinio  impetrar-ihes  do  fcu  bendito  Filho  o  pcrdaô  das 
funs culpas, e  fazeiosherdcyros  do  Paraifo.  Agora  íi 
que  ibunt  iraõ  j  e  naô  fó  iraô ,  mas  correràõ  cm 
precipício  como  dcfeíperados ,  a  cnterrarfe  naqueilc 
profundo  abifmo  de  tormentos;  e  naõ  contentes  do 
aperto  da  prilaõ  ,eftando  já  tahtos  milhares,  e  mi- 
lhões de  condenados,  hunsíbbrc  os  outros , pedirão, 
como  diz  o  Evangelho  aos  montes,  que  cayaõ  fobre  ,  'c 
€\\cs :  Inapient  dícere ,  tunç  àicent  montibm  cadite  fU'  capXxf 
fer  nos  ,  e  rogaràõ  os  mefmos  colles ,  que  lhes  fechem 
a  bocca  daquellc  eterno  calabouço  ,  íervindo-lhes  de, 
pedra  fepulcral ,  para  nunca  mais  ícrem  viílos  ,  nem 
ouvidosj  nem  lembrados ;  Et  collibus  operite  nos, 

Efcaçamente  fe  achou  oRicco  Avarento  fepulta- 
do  nefta  prifaô  do  Inferno^  quelogofcyto  MiíTionario 
zelofopedio  ao  Padre  Abrahaó  que  mandaíTe  algum 
dos  já  defuntos  para  converter  os  fcus  cinco  Irmãos, 
queeflavaõ  rcgalando-fe  no  Mundo  com  asriquezas}  ^    , 
que  lhes  tinha  dcyxado  :  Sed  fiqvU  exmorínú  ierit  ad  ^^p  \c, 
€os  ,  píenitentiam  ãgent.  Era  coufa  natural ,  que  para 
fizer  crtas  converções  mandaíTe  a  elle,  como  Irmaõ 
mais  velho,  e  porque  o  aperto  úo  cárcere  lhe  era  iníof- 
frivel ,  imaginava  teria  algum  alivio,ou  mayor  largue- 
za com  íair  do  cárcere  naquelles  breves   inflantes, 
que  fazia  a  fua  embayxada.  Naõ  lho  cõcedeo  Abrahaõ, 
porque  aos  condenados,  que  naô  quizeraò  fazer  ne- 
fle  Mundo  a  vontade  de  Deos  ,  alem  de  nunca  mais  te- 
rem no  Inferno  o  minimo  alivio  nas  fuás  penos,  para 
mayor  íeu  tormento  fe  lhe  fará  íempre  o  contrario  do 
que  apetecer  a  íua  vontade.  Com  tudo  tem  pf  rmcti* 
do  Deos  rnras  vezes  para  noíTa  emenda  certos  caíos, 
qucaicu  lugar  referiremos:  «m  que  algum  Precito 
í   J  por 


QQ 


it  Difcurfo  h 

porbreyc  efpâcio  de  tempo  tem  fahido  da  prizaS  B^ 

Inferno  j  mas  ifl:o  foy  para  declaramos  as  penas  atro- 
zes ,  que  lápadeciaô,  c  muito  mais  para  convencei:, 
c  confundir  aquciles  Peccadores  inveterados ,  que 
immerlos  nos  vicios  vivem  titubantcs  na  fé  ,  e  faría- 
mcntc  enganados  fe  allucinaô  como  Athciftas ,  e  di- 
zem, que  naô  tem  viflo  até  agora ,  de  tantos,  que  mor- 
rem ,  quem  feja tornado,  e  nos  déíTe  diílinca  noticia 
do  que  íe  paffa  naquclla  região  taô  medonha ,  e  decan- 
tada do  Inferno :  "Dixertmt  enim  cogitanies  apud  fe  non 
Sapimt..  Ye^e ,  non  eft  qui  agnitus  fit  rever fus  ab  inferis. 
^^■P'2"  Nem  por  ifto o miferavcl Condenado ,  para  qual- 

quer parte  do  Mundo  ,quc  a  Juftiça  Divina  o  mande, 
ou  em  qualquer  lugar  lhe  ordene  ,  que  efteja ,  deyxai  á 
de  trazer  comíigo  o  mefmo  aperto  da  prifaõ,  e  tole- 
rar todos  aquelles  tormentos,  que  fofFria  eftando  aper- 
tado, c  amontoado  com  os  outros  no  Inferno.  Ba- 
Ía:^etcs  primeyro  Emperador  dos  Turcos ,  que  pela 
Dí^.  facilidade,e'  preikza,  que  tinha  em  conquiftar  Provin- 
hi/ijit.  cias,  e  Reynos ,  o  chama vaõ  por  alcunha  Gilderin  ^  que 
^*  cm  lingoaTurqueíca  foa  o  mefmo  que  na  noíTa  Por- 
tugueza  rayo.  Começarão  as  íuas  conquiftas  no  an- 
no  1 392.  e  fubjugou  a  Bulgária  ,  Macedónia  ,  Armé- 
nia, Teíralia,e  durando  pelo  efpacio  de  dez  annos 
â  fua  fortuni  fenhoreou  húi  porção  da  Europa,  c  hua 
grande  parte  da  Aíia.  Atemorizados  os  Príncipes  con- 
finantes' de  tantas  viílorias  i  cconhecida  a  ambição, 
c  tirania  de  Baj  izetes  ,  fe  unirão ,  e  recorrerão  ao  graõ 
Tamborlam  dos  Tártaros  Rey  porentiííimo ;  eQe,  pre- 
parado em  breve  tempo  hum  formidável  exercito ,  ve- 
yo,  vio  ,  vencco,  e  o  preíionou  na  primeyra  bata- 
lha. Fevto  captivo  o  íoberbo  Bajazetes  no  1 402.  man- 
dou o  Tamborlam  fazer  huma  forte  gayola  com  varas 
de  ferro,  e  ahi  imprefionado  ,  para  o  humilhar,  tra- 
zia-o  comfigo  em  toda  a  parte  fcyto  trofco  da  vaida- 
de, 


Tormento  h  do  cãYcere  ão  Inferno,       -i^ 

dè,  baículhoda  fortuna,  e  opróbrios  de  toda  â  Aíía>. 
Em  tanta  deígraça  ,  e  mi  feria  nunca  afrouxou  o  oigUr 
Iho de Bajazctes,  nem  quiz pedir  graça,  ou  favor  ao 
Tamboriam ,  nem  reconhcccio ,  e  rcfpcytalo  como  vi- 
dorioío.  Finalmente  enfadado  de  hum  cárcere  taõ 
pcnofo ,  naô  achando  quem  lhe  déíTe  veneno  ,  ou  al- 
gum iníirumento  para  íc  matar  dcíefperado ,  deu  tan.- 
tas  vezes  ,  c  com  tanta  força  com  a  cabeça  naqucl- 
las barras  de  ferro,  quc  derramando  os  miolos,  tro- 
cou com  a  morte  apriíaõ  temporal  dcfla  vida  coma 
eterna  do  Inferno.  Eis-aqui  ,  como  Bajazetcs  fcm 
lahir  do  aperto  da  fuapriíaõ  corria  todas  as  Provín- 
cias da  Afia  com  mayor  ignominia  ,  e  tormento,  que  fc 
foíTc  fechado  em  hum  eícuro  calabouço. 

Tenho  referido  eík  fucceíTo  para  mayor  intelligcn- 
cia  de  hum  Texto  da  Sagrada  Efcritura  ,  que  confirma 
quanto  atê  agora  temos  dito.  O  Profeta  David  fem- 
pre  maiszelofo  contra  os  Pcccadorcs  ,  diz  que  Deos 
meterá  os  Peccadores  cm  hum  forno  de  fogo,  c  que 
ahi  a  ira  de  Deos  os  conturbará  \  e  o  fogo  os  devorará;  /y^/ jç 
Tones  eos ,  ut  clibanum  ignís  m  tempore  'vtíltns  tui ,  Do-  ^z.  lo. 
minus  in  trafua  conUirbdnt  eos ,  cf  deojorabit  eos  igníí, 
Naõ  ha  peyor  priíaò,como  diífemosno  principio,  que 
aqueila  de  hum  forno,  ou  fornalha,  e  muyto  peyor 
fe  qualquer  defles  eOá  accfo  por  dentro  com  fogo. 
S.Matheus  faltando  dos  Peccadores  eícandaloíosdiz, 
que  íeraõ  atormentados  cm  huma  fornalha  de  foge, 
aííim  chama  o  Inferno  aonde  íicharàô  Ligvimas,  ge- 
midos, c  efiridores  ác  dentes :  CHittent  cos  in  caminum  ^^'^' 
igníâ,  íbi  erttjletíis ,  érfiridor  dentiv.m.  E  que  diíTercn-  '  ^'  ^* 
ça  vay  entre  o  forno  ,  e  a  fornalha  ?  naò  ha  outra^ 
íenaõ  que  o  forno  he  mais  pequeno,  e  fc  cozenelle 
o  pnõ ;  e  a  fornalha  he  mayor ,  c  íe  cozem  nella  os  la- 
drilhos. Os  pães  íe  metem  no  forno  com  aítençsõ, 
e.diftiridos  com  alguma  largueza  cRc  daquellc,  mas 

os 


iMMÍi^BB^^i^Haa 


14  Difcmfo  t. 

os  ladrilhos  faõ  lançados  fem  refguardo  j  em  confu- 
íaõ, ficando  apertados, e  amontoados  huns  íobrc  os 
outros.  Ainda  mais  pequeno  he  o  forno  ,  de  que 
falia  o  Profeta  David;  CM^Utes  eos  in  cUbanum  ignis. 
»  Clibano  hc  huma  palavra  grccolatina  ,  que  íijnifícj 

p  hum  fornofinlio  mancyro ,  e  portátil ,  ufaõ  muyto  del- 

les  os  navegantes  ,  eípecialmcntc  nas  noíTas  nàos  de 
guerra,  e  da  índia.  Ha  cfta  diíFercnça  entre  o  clí- 
bcíno.c  as  fornalhas,  e  os  outros  fornos  ,  que  eíies 
íaõ fabricados  de  pedra, e  cal ,  tem  alicerícs ,  c  íaõ 
fixos, cimmovcis, CO  clibano  he  fcyto  de  cobre,  e 
vulgarmente  de  ferro  ^  c  ferve  como  hum  movei  di 
cozinha,  ou  de cafa  ,  que  fe  tranfporta  de  hum  lugar 
a  outro.  Nem  por  fer  mais  pequeno ,  c  portátil ,  fe- 
ra menos  horrível,  e  penoío  ,  nem  o  Precito  que  cítiver 
reclufo  nelle,  eftará  menos  apertado  dos  outros ,  que 
cftaô  como  tijolos  embirrilados  na  grande  fornalha 
do  Inferno.  Porque  o  ambiente  daquclle  clibano  to- 
do ardendo  em  fogo  fe  ajuftará,  c  adatarà  ao  individuo 
;"  daquelle  condenado  , apertando  o,  como  fe  eftiveíTc 

cm  hum  lagar  de  fogo.  Daqui  nafce ,  que  ,  fe  aparecef- 
íe  algum  condenado  com  o  íeu  clibano  de  ferro  ru- 
bente, quemotocaíTecoii  fó  a  extremidade  de  hum 
dedo  ainda  levemente, e  por  hum  único  inílante  íen- 
tiria  humadoriníoffrivel.Oh  mifcravel  Pcccador,  que 
porabuíoda  tua  liberdade  corres  á  rcdea  folta  a  pre- 
cipitarte  nefta  priíaõ  do  Inferno  ,  coníídera,  que  o 
aperto  delia  ,  que  agora  te  parece  taõ  horroroío,  hc 
o  menor  dos  innumeraveis  tormentos ,  que  foffre  ,  e  ha 
de  íoíFier  p-ira  fempre  quem  morrer  em  peccado ,  co- 
mo o  veremos  no  ponto  feguinte.e  muyto  mais  nos  dií- 
curfos,  que  a  poz  deflc  íe  íeguem. 

Muyr  s  vezes  tenho  confiderado,quecoufa  fcjaefla 
prifaõ  do  inferno,  e  dcfpois  de  ter  lido  muytos  San- 
tos Padres,  e  Expoficorcsíagrados ,  que  a  defcrevcm ,  a 

ne- 


lai 


Tormefíto  1.  cio  cárcere  do  Inferno.        t^ 

nenhum  tenho  achado  ,  que  me  céífe  a  íiia  defini- 
ção adequada  ,  c  aífim  havia  de  fer  j  porque  para  hum 
Filofofo ,  ou  Teólogo  definir  bem  hua  cc  uía ,  deve  co- 
nhccer ,  c  penetrar  a  effencia  delia ;  e  que  conhecimen- 
to ,  ou  experiência  pode  ter,  quem  nunca  avio,  nem 
a  tratou  ,  e  menos  a  experimentou.  Seja  para  fempre 
bendito ,  e  louvado  NoíTo  Senhor  JESU  Chriíto ,  que 
no  feu  Evangelho  fez  fallar  a  hum  condenado ,  o  qual 
achando-fe  fcpultado  no  Inferno  ,  logo  que  vio ,  o 
que  era ,  e  o  como  lá  fc  paíTava  cum  effet  m  tormentis 
provando  as  dores  dcfatinadas ,  que  padecia,  em  duas 
palavras  o  definio  admiravelmente  ,  chamando  ao  In- 
ferno lugar  de  tormentos  locum  tormentorum^cnvo  de 
agonias,  miíerias  ,  centro  de  todos  os  males.  Adc- 
mittem  concordcmente   as    Eícolas  a    definição  de 
Boecio  íobre  a  bemaventu rança  do  Paraifo  :  Beatitu-  ^°'^* 
do  ejl  Jiatus  bononim  omnium  aggregattom  ferfeãns,  ^^'^^ 
Qiier  dizer ,  que  o  Paraiío  he  huma  cltancia  ,  aonde  os 
eícolhidosgozaôperfeytamenre,e  para  fempre  todos 
os  bens  unidos;  aílim  o  Inferno  he  huma  priíaô,  aonde 
os  Precitos  padecem  perpetuamente  congregados ,  c 
3  untos  todos  os  males  j  mais  breve  ,  o  Paraifo  he  hum 
lugar  aonde  fe  achaò  todos  os  bens ,  e  nunca  fe  expe- 
rimenta mal  algum.  Pelo  contrario  o  Inferno  he  hum 
lugar,  aonde  íe  achaô  todos  os  mâlcs ,  c  nunca  fe  goza 
de  algum  bcm.e  aílim  íe  pôde  definir  tnalorwn  cmnmm  T>etiter. 
tdtmmUrmims.Víc  de  advertir, que  o  Efpirito  Santo,  32.23, 
naõ  íó  diz ,  que  no  Inferno  congregará  todos  os  males, 
mas  também,  que  íefcrvirá  de  todas  as  íuasarmas,para 
e^iíiigar  os  condcmnados,  atè  dar  complemento  ac 
rjgor  da  íua  ju^iça ;  Corígrfgabofiiper  mm  ala  ,&  fa- 
ginasmeas  compkbo  m  eis.  Por  iílo  o  rico  avarento 
naô  fó  íe  queyxa  da  priíaõ,  mas  também  do  fogo  iníof- 
frivel do  Inferno,  naô  diz  fomente  cracior  eíloo  pe- 
nando ncfíc  lotai  aperto  da  minha  liberdade  ,  mas 

cru- 


^^  .  Difcurfo  /. 

^rucior  in  hacflamma ,  cftou  afíligido ,  c  atormentada 
neítc  cai  fogo.  E  dcfte  tal  fogo ,  que  encerra  em  íi  todo 
o  gcnero  dos  mais  tormentos,  faiiaremos  agora  oofe- 
Scgõdog""^^P^"t^o- 

ponco.         ^-  confultarmos  osTheoIogos  ,  acharemos,  que 
por  duas  couías  o  Peccador  fe  rende  culoavei  diante 
deDeos,  cporconíequcnciadignode  todoocaftígo. 
A  primcyra  he  o  abufo ,  que  tem  fcyto  da  fu  i  liberda- 
cie ;  a  fcgundao  gofto  iIíicito,e  vedado,  que  tom-i  com 
as  Creaturas  com  defprezo  do  feu  Creador ,  preferin- 
do hum  bem  temporal ,  e  caduco  ao  íeu  bem  fobsra- 
^..r.«,  no,  c eterno,  que  heDeos:  Confregiftí  jtigum  meum, 
dirupiftt  vmmla  mea  ,  &  àixijii  non  ferviam.  Pclo- 
que  Deos  juftamcnte  caftiga  no  outro  Mundo  o  abuío, 
que  o  Peccador  faz  da  íua  liberdade,  com  o  aperto 
da  priíaój  c  o  goRo  ,  ou   delcyte  prohibido  ,  com 
toda  a  dor,  c  tormento  univeríai  do  fogo  dolnfer- 
^ohcAp  "?  *  ^^^^^^or  hac  flamma.    Mas  porque  a  juftiça  Di- 
3^0,       vina,  para  juílo  ,  e  univerfal  caftigo  dos  Pcccado- 
res,  efcolhe  entre  os  mais  elementos  o  fogo  f  A  pri- 
meira razaó  tirada  da  Efcntura,e  dos  Santos  Padres 
Dente-  V'^ ,^  ^^*' '  P^^"^^^^  ^  pena  de\re  fer  proporcionada 
^''- a  culpa:  Pr  o  mmfiira  peccati^  ent  &  plagarummO' 
dus.  O  Peccado  mortal  ,  que  taô  facilmente  fe  com- 
niette,hchum  crime  de  primeyra  cabeça  ,  he  hum 
attentado  contra  a  Divina  Mageftade  iefa  ,  he  hum 
alevantamcnto  ,  hum  m^nifeflo  deíprczo  de  hum  vi- 
iifunio  eícravo  contra  o  íeu  fenhor  ,  e  Rej/  íoberano, 
de  huma  creatura  de  nada  ,  contra  o  Creador  íeu  ,  e 
de  rudo;  aíTm  para  reparar  a  defordem  dos  ag.^ra- 
vos,  c  affi-ontis ,  que  o  Peccador  rebelde  ,  e  atrevido 
fez  ao  feu  Deos  ,  foy  neceííario,  queajuaiça  Divina 
cicoIheíTc  o  tormento  do  fogo,  como  mais  propor- 
cionado ,  para  cafiigar,  como  merece,  a  fua  rebefdia, 
c  atrevimento.  A  fegunda  razaó,  porque  a  juíiiça  Di- 


vina 


Tormento  l  do  cãvcere  dó  Infevm»        17 

vida íe ferve  do  fogo,  como  inftrurnento  mays pró- 
prio para  atormentar  os  condenados  no  Inferno  i  he 
porqueaffimjáofez  nefte  Mundo ,  quando  os  crimes 
íaôtaô atrozes,  e  enormes ,  que  bradaõ  para  o  Ceo, 
pedindo  hum  caftigo  exemplar,  e  hua  prompta  fatisfa- 
çíiõ  de  Deos ;  Clamor  Sodomorum  multiflicatus  eft ,  & 
feccatum  eorum  aggravatum  eftnimis.  O  clamor,  e  o 
eícandalo  íe  vaô  dilatando,  eoj»  peccados  vaõ  crecen- 
do  com  circunílancias  íempre  mays  agravantes:  Igitur 
'Domimis  fhttfuíphur  &  igncm^&Jubvertit  Civitates-, 
&  omnes  hahitatores  Urbním.  Mandou  iogo  Deos  do 
Ceo  hua  chuva  de  fogo  ,  mifturada  com  enxofre  fedo- 
rento, e  abrazou  as  Cidades,  e  queymando  todos  os 
M  oradores ,  os  reduzio  em  cinza.  Eftando  gravemen- 
te enfermo  EíRey  Ochoíias  ,  em  lugar  de  recorrer  ao 
Profeta  Elias ,  pava  que  rogando  ao  verdadeyro  Rey 
de  Hrael  o  íaraítc  da  fua  doença, mandou  confaitar  ao 
Demónio  Belfebub.  Eík  peccado  irritou  de  qualida- 
de a  Deos ,  que  mandando  depoys  EUiey  por  duas 
vezes  hum  íeu  Miniftro  com  a  comitiva  de  cincoenta 
PeíToas  a  bufcar  o  Profeta  para  tratar  com  ellc  da  fua 
íaude :  Homo  Dei^  Rex  pracepit,  tit  de/tenderes.  Porém 
a  reporta,  que  lhes  deu  Elias  ambas  as  vezes ,  foy  man. 
dar  ao  fogo  do  Ceo,  que  os  coníumiíTe  a  todos :  Si  Ho- 
mo Deifíím ,  defcendat  ignis  de  Ceelo ,  &  devorei  te^  ér 
qvanquãgínta  mos.  Defcendit  ergo  ignis  de  Coslo ,  & 
àevoravit  illtim ,  <&  quinquóiginta  ejus.  A  terccyra  ra- 
zão, porque  a  julhça  Divina  le  ferve  deíie  fogo.he,  co- 
mo diz  Tertulliano,  porque  todos  os  condenados  íaó 
as  viítimas,e  os  holocauilos  das  fuás  vi ngãça?, No  anti- 
go teíhmêto  entre  as  vi<flimas,qúe  fe  offercciaô  aDeos, 
aviaõ  huas,que  fe  chamavaô  as  vi<ílimas  do  holociuífo; 
que  à  juQiça  Divina  fe  fazia  immoUx  \  Immolavit,  & 
holocaufli  viãimam.  E  efla  paíTava  toda  pelo  fogo, 
até  ficar  totalmente   deflruida,  Daqui   infere  Ter* 

B  tul- 


Genej. 


Gevef. 


Levit.ç". 
9.  II. 


i#  V   Bifeurfo  L 

tuiliano,  que  os  CondcDados,  fendo  as  viâimas  doho- 
iocauíio,qiieàjuíHça  Divina fe  faz  immolar,  hcne- 
ceí^ario,queeíiejaôíemp^e  ardendo  no  fogo  do  Infer- 
no, í  em  nunca  ficarem  deftruidas. 

Eíia  verdade  vem  admiravelmente  explicada  ,c 
confirmada  pela  mefma  bocca  de  NoíTo  Senhor  JESU 
Chriílo.  No  capitulo  nono  do  Evangelifla  S.  Marcos 
nos  intima  o  rigor  das  penas  do  Inferno,  daquelle  ver- 
me da  coníciencia,  que  fempre  roe,  e  nunca  morre,  da- 
quelle fogo  terrível ,  que  fempre  arde ,  e  nunca  fe 
Marc.  ^^ãg!^'.  íngehenam  ignps ,  ubivermps  eorum  nonmori' 
^•9'^^-tm\  &  ignis  non  extmguitur.  E  depoys  de  ter  repeti- 
do bem  três  vezes  efta  admoeíiaçaõ ,  para  que  a  tivef- 
femos  íemprc  viva  na  memoria  ,  e  firme  no  coraçaõy 
accreícenta  depoys  eftas  palavras ,  e  acaba  com  di- 
zer, que  todo  Peccador  fera  faigado  com  fogo  ,  c 
toda  3  viíflima  fera  íalgada  com  íal  :  OmnU  enim 
ignCs  falíetur ,  &  omnis  vitima  fale  falietur.  E  que 
enfático  faltar  he  efte  ,  falgar  os  corpos  humanos  de- 
poys de  rcfufcitados ,  e  as  meímas  Almas  com  fogOi 
a  modo  de  fal !  O  fogo  ,  e  o  íal ,  diz  S^h  Hilário,  faõ 
3S  propriedades  neceíTarias  para  os  Pcccadores,  que  íaa 
âs  vidimas  deholocaufto,qi]e  haõ  de  fer  eternamen- 
te immolâdas  á  juftiça  de  Deos :  Omnu  vitima  fah 
fahetur.  O  fal  tem  duas  propriedades ,  a  primcyra  he 
áz  confumir  tudo  aquillo ,  que  caufa  corrupçaõj  a  iz^ 
gunda  he  de  produzir  hiia  efpecie  de  incorruptibilida-> 
de  no  individuo,que  defeca.  Aííim  o  fogo  do  Inferno  tê 
efías  duns  propriedades ,  queymará  os  corpos  dos  Con- 
denados depoys  de  refuícitados ,  os  deíecará,  e  con- 
fervará  para  fempre  incorruptíveis.  Ainda  maisi  da' 
mefma  maneyra  ,  que  para  preíervarmos  algúa  carne 
da  corrupção»  afalgamos  de  forte,  e  com  tal  adver- 
tência ,  que  a  virtude,  c  acrimonia  do  fal  fe  iníinúô 
em  todas  as  paríes,  e  apenetre  toda  >  aíTim  o  divi- 

i  no 


^,9.50. 


Tormento  L  dó  cdrceré  ão  hferm.        19^ 
RO  Jufe  irritado,  como  Deos  das  vinganças :  Deus  tiU 
tionum.  Fará  ,  que  o  fogo  do  Inferno  le  iníiDÚe  em  to. 
dos  os  membros ,  e  penetre  todo  o  corpo  de  qualquer 
Gondenado.  A  alma  eíbrá  toda  empapada,  e  ember 
bida,como  em  hum  tanque  de  fogo,  tn  ftagnoigníí.  ^^^^. 
Q  corpo  achando-fe,  como  diíTemos ,  em  hua  fornalha  c,  lo. 
de  fogo ,  todos  os  feus  íentidos  exhaiaràô  também 
chammasdefogo.  Fogo  nos  olhos,  fogo  nos  ouvidos, 
fogo  nos  narizes,  fogo  na  bocca,  c  garganta,  fogo 
no  coração,  fogo  nos  miolos,  fogo  nos  tutanos  dos 
offos.  Naó  a  verá  nem  veyas,nem  nervos,  nem  ten- 
dões, nem  mufculos  ,  nem  junturas,  nem  cartila- 
gens, nem  parte  minima  de  hum  dedo  da  maô,  ou 
dope,  que  naò  fique  cuberta,  c  penetrada  do  fogo. 
Por  ifío  o  Profeta  Ifaias  fatiando  do  fogo  do  Inferno 
para  melhor  exprimir  a  íui  grande  adlividade  ,  o  cha-» 
ma  fogo  devorante  ;  ^Inis  poterit  hahitare  devo^ís^*-^- 
cum.  tgne  devorante.  E  o  Profeta  David  ameaçando  os-^^  ^^' 
Peccad  res  diz  ,  que  o  fogo  do  Inferno  os  devora- 
rá a  todos.  Devorabiteos  ignís.  Mas  naô  baftava  di- 
zer ,  que  cfte  fogo  infernal  os  queymará  eternamente  PC<zo 
com  hum.idor  iníoffrivel,  os  atormentará  com  hum  '** 
ardor  inexplicável!  Naõ.  Naõ  baftava;  quer  dizer, 
que  como  todo  o  maniar,que  íe  come,  ou  devora,  paf- 
lana  fubftíiocia  de  quem  o  recebe  ,aííim  o  corpo,  e 
a  Almadehumcondcnndo,  paíTarà  como  em  alimen- 
to ,  e  íubftancia  do  mefmo  fogo  ,  ficando   em  hum 
certo  modo  todo  o  compofto  hum.ano  traníubífan^ 
ciado  ncUe.  Oh  Peccador  enganado  ,  como  eíhràs 
bem  falgado  no  Inferno  !  Vidima  defgraçada  da  ju- 
fíiça  ds  Deos ,  infeliz  holocaurto  das  íuas  vinganças, 
como  eíhràs  bem    embalfamado  ,  com  busjn  fogo, 
que  íempre  arderá,  e  te  queymará ,  íem  nunca  te  con- 
íumir :  Omnis  Feccator  igne  falietttr ,  &  omnis  viãimã, 
falefalieturMcM Senhor J  ES  U  Chriao  ,  Salvador ,  e 
,.  ;:.  B  2  Rcr 


ii 


to  Di/cuy/b  L 

Redcmptor  meu.  E  que  cflranha  mctámorfoíís  he  cf- 
ta ,  que  em  mim  vejo,  c  que  mudança  para  íempre  em 
mim  taô  deploravc!  í  Vós  me  tendes  creado  ncfte 
Mundo  para  arder  em  cbammasde  voíío  amor,  eme 
vejo  condenado  para  arder  eternamente  no  fogo  da 
voíTa  ira.  Eu  fuy  deainado  para  íer  a  vidima  da  vofía. 
caridade  ,  para  vos  amar ,  para  vos  bendizer ,  para 
vos  adorar  erernamente.  e  fera  poíTivel,  que  eu  qucyra 
antes  íer  oholocaufto  da  voffa  indignação,  e  furor  í 
Oh  triíie  peccado  mortal  ( já  começo  a  cahir  no  ver- 
dadcyro  defengano )  quam  grande  deve  de  íer  atua 
malicia ,  pois  obrigas  a  hum  Deos  taõ  miíericordiofo,^ 
e  que  tanto  nas  ama  a  precipitamos  fto  Inferno,  pa- 
ra íoffrer  eternamente  tormentos ,  que  quanto  mays 
os  coníidéro,  fempre  mays  os  acho  incomprebenfi  veis^ 
e  inexplicáveis. 

Digo  incompreheníiveis, porque,  quem  não  per- 

cebc  bem  a  malicia  do  peccado  mortal ,  o  defprezoj 

c  afFronía ,  que  faz  a  Deos  ,  nunca  poderá  perceber  o 

rigor,  com  que  o  cafíigarà  na  priíaõ  do  Infernos  com 

peDas,e  tormentos  taõ  inexplicáveis,  e  inperceptiveis, 

quanto  inexplicável,  e  imperceptivel  heanòsomef- 

mo  Deos,  cujas  perfeyções,  e  attributos ,  faô  infinitos. 

Todos  os  Monarcas  da  terra  unidos ,  diz  S.  JoaõChry- 

fom  il  f^^^^^í.^^^^^^^^PO^c»' de  produzir  huma  moíca,oii 

^dPop    "^^  foí'™ga,  e  Deos  com  hua  íó  palavra  creou  o  Mun- 

^'  do  todo  de  nada,  ecom  elie  todas  asCreaturas:  Ipfe 

Pfnlm    ^^^^^  *  ^  f^^^^  fi^^^'  ^^^  ^^  ^^^  ^^^  ^^"3l  evidente 
148-     ^^  ^"^  Omnipotência  ?  Moíirou  o  feu  infinito  faber, 
na  fubftancia  ,e  uniaô  das  effencias ,  que  fendo  com- 
potas df  qualidades  entre /i  contrarias:  Frigida  ptfg" 
Metmí  nabunt  calídís ,  hnmentia  ficcis.  Em  lugar  defe  deí- 
Ub.u    truirem,  feconíervaõ,   e  fubíiftem.  O  attributo  da 
fua  miíericordia  íe  vê  manifefíamente  no  altiírinio  mi- 
fícrÍQ  da  Incarnação  3  e  aíTim  diícorrcndo  dos  mais. 
'•■  '^  4  ■■i  Com 


wm 


Tormento  l  do  cárcere  do  Inferno.       1 1 

Com  tudo  em  dous  1  ugares,  todas  as  luasperfeyções, 
c  atributos , obraò com  toda  a  força,  c  virtude.  No 
Paraíío  ,eno  Inferno.   No  Paraífo ;  por  íera  recom- 
pcníadosBemaventurados,  poys  os  Santos  o  tem  fer- 
vido ,  c  amado  com  todas  as  forças ,  com  todo  o  co- 
ração, ecom  todas  as  potencias  da  Alma  i  he  juftiíTimo, 
que  todas  as  perfcyçôes  Divinas  fejaò  occupadas,em 
lhes  procurar  todos' os  bens  imaginaveys  na  fua  bema- 
venturança.  O  fegundo  lugar  he  o  Inferno ,  aonde  to- 
dos os  attributos  íeraó  inceíTantemente  applicados 
no  caftigo  dos  Precitos  <  c  aíTim  os  caftigaráò  com  to- 
do rigor  da  íua  jurtiça ,  da  íua  omnipotência,  da  fua 
immeníidade,  da  fua  íantidade,  da  fua  infinidade, 
da  fua  eternidade  ,e  para  dizer  jComTertulliano  tudo  ^^^^^^^ 
cm  duas  palavras :  Inpknitudme  Divinitatvs  fuiC,  E    '^    ' 
quando  Deos  caftiga  hum  Condenado  com  rodo  o  feu 
ftr  ,  com  todo  o  feu  poder  ,  com  todo  o  feu  faber, 
que  penas ,  que  tormentos  poderá  a  mente  humana 
imaginar 3 que íejiô  adequados  aos  que  na  realidade 
padecem  ?  Senaó  confeíTar  com  S.  Paulo ,  que  confor- 
me á  mifcricordia  Divina ,  para  premiar  os  feus  cíco- 
Ihidos,  lhes  tem  preparado  no  Paraíío  hua  bemavcncu- 
rança,  que  os  olhos  humanos  nunca  viraõ  femdhan- 
te,  me  ocítlus  njiàit .  Oi  ouvidos  nunca  ouvirão  diícur- 
íos ,  que  a  igualem,  ou  a  expliquem  ,  nec  auris  auâivit. 
EonolTo  entendimento  nunca  poderá  fovmar  idéa, 
quecorrcfponda  a  hua  perfeyta  poíTeçaô  de  rodos  os 
bens  fem  a  mínima  miftura  de  mil ;  Nec  in  cor  Horai- 
nvs  afcmdit ,  qua  pr^paravit  Deus  tis  ,  qui  ddigunt  ^.Co^' 
illum,  Aííiin  por  hua  julia  ,  verdadeyra ,  e  infallivel  op-  f^^P''^'l 
pofijaô  podemos  dizer  o  meímo  da  priíaõ  do  Inferno, 
que  he  impoíTivel  a  todo  entendimento  humano  o  po- 
der comprehender,  e explicar  as  penas ,  que  Deos  tem 
preparadas  aos  Precitos  íeus  Inimigos :  Nsc  oculus  vi^ 
dit ,  nec  aurts  auàvií  nec  in  cor  Hominú  ajcendity  qu^e 

B  3  pr^' 


l 


2t  Bifcurfo  h 

fraparavit  Deus  Ht ,  qui  oàerunt  illim* 

Quero  concluir  efte  primeyro  difcurfo  ^  C  provar  / 
©  que-  atè  agora  tenho  ditio ,  eom  hum  reparo  dç 
Sé  Dionyíio  Areopagita.  Diz  eíi€  grande  San co,e  na©» 
menos  grande  Thcologo ,  cjue  querendo  Deos.  repre- 
íentaralgia imagem  da  fua  unidade  ,, encerra  muytas 
eou-fòs  na  fimplicidade de  hu.a  íófubftancia  , aílini  te- 
mos nà'Efcritur'afagrada5quenoítmpl€smaná  encer- 
rou Deos  todos  os  goflos,  c  todos  osfabores  para  o 
palladar  do  Povo  eícolhido :  Omne  àele^ammtum  infe- 
Sap.çap.  habertíem  j  &  omjmfaporis  fuavitaíem.  Daqui  fc  le- 
io, lo.  gue  ,quecomo  a  miíencordia  Divina  emprega  toda 
a  fuâ  Oínnipotencia  „  e  todos  os  íeus  attributos  obran- 
do milagres  no  Ceo ,.  c  na  Terra  a  favor  dos^feus  efco" 
Ihidos  j  para  que  no  íimples  lume  da  gloria  achem  (co^ 
mo  dizem  os  Theologos  %  todos  os  bcns:Omnebonumi 
Afllm  também  heforçofo ,  que  a  fiia  jufliça  íc  firva  da 
meíma  íuaOmnipotencia^jC  mais  attributos,  para  cafti^ 
gar  na  priiad  do  Inferno  os  Réprobos  ,  elevando  mi- 
iagroíamcnte  o  fogo^e  encerrando  na  fímples  fua  fub- 
íianciatodo  G  género  de  tormentos,  toda  efpeeie  de 
penas ,  e  comodiz  o  R-ofeta  Job ,. hum  extraélo  de  to- 
das as  dores  yque  podem  atormentar  a  Ahna  ,e  o  cor- 
oca r^p.  pode  hum  Conácnaào:  Omnú  dolor  irrmt  [ttper  eum» 
20.  Oh  prifaõ  ,,oh  inferno ,  oh  fogo !  quem  em  vos  fem- 
pre  cuydara ,  para  fugir  o  peccado  ,e  viver  fantamen- 
tc.  Oh  prifaõ  ,  quanto  es  medonha  l  Oh  Calabouço, 
quanto  es  horrivel  ?  Oh  fogo  quanto  es  tormentoío  /r 
_  .  Gom  razaõ  a  tua  lembrança  faizia  tremer  a  S.  Bernardo^ 

í^m!X  ^'^^^^'"P^^^^^^^^^P^'^^^^^  *  ^^  Regia  dura ,  &  ex^ 
qttirtqm  iiwefienda^mra  affUãíonm^  &  mifenarum, aCarcer 
Regionufugiendus  ^  htus  tor  mentor  um.    Sotas  tremo  ,.  at  que 
kiis.      howeo ,  aà^  mêmonamifins  regimúconctij^a  funtomma^. 
cjjitmea.  A  lembrança  dcfta  priiaõ,  com  a  íimpics  Gon- 
fidcra^aò  do  que  fepaííandlâ  3  me  faz  arrepiar  os  ca- 
be- 


Tormento  h  do  cárcere  ào  hferm.      1 3 

belos ,  tremer  as  carnes ,  e  gelar  o  íangue  nas  veyas. 
Oh  Pcecadorcs !  Se  hum  Santo ,  que  na  ílor  da  íua  mo- 
cidade,  primeyro  de  conhecer  o  Mundo,o  tinha  deita- 
do para  rccolherfe ,  e  viver  em  huma  Religião  auftera 
com  tanto  exemplo,  e  innocencia  da  vida  ,  que  fazia 
acadapaíTo  milagres,  atè  reíafcitar  mortos ,  teme, 
treme, c  deímaya  ao  nome  de  Inferno,  que  fera  4c 
tantos,  que  achando-fe  com  milhares  de  peccado* 
mortaes  ,  nâo  tem  feyto,  nemcuydaõ  fazer  taõ  cedo 
penitencia,  diíFerindo-a  enganados  para  a  hora  da  mor- 
te. Diífe ,  enganados ,  porque  nenhum  Peccador  Con- 
denado ellá  no  Inferno, íe  não  porque  nefti  vidanao 
quizcuydar  no  Inferno.  E  como  bem  diz  SJoaõChry- 
loíbmo.  Nenhum  daquelles,  que  vivendo  nefte  Mun- 
do, ou  naõ  cuida ,  ou  defpi eza,  ou  náo  f^z cafo ,  quaa- 
doouvefallar  das  penas  do  Inferno,  efcaparà  ^mcl- Chnf.^ 
mo  Inferno :  NuUus  ex  lís ,  qui  gehenam  dejpiciunt ,  ef-  J^'^  ^  • 

fugient  gehennm.  ,       -r    *»^7^^* 

Eis  aqui  (  Peccadores ;  o  jufto  fupplicio  da  prilaò 
eterna  do  Inferno  ,  que  Dcos  tem  preparado  para 
feafti<^aro  abufo  da  noíTa  Uberdade.  0\\  maldita  ,  oh 
execranda  liberdade  ,que  como  diz  o  Apoftolo,  S.  Pe-  j^p^^^ 
dro ,  he  o  vèo  de  todas  as  culpas ,  e  peccados :  Vela-  g^^^^ç^^ 
men  habentes  malitta  Ubertatem.    Vòs,  quereis  neíte 
Mundo  cuydarnosobjeaos  mais  viflofos  ,e  que  mais 
vos  dekitaò.  Vòs  quereis  dizer  mal  de  todos ,  e  fallar 
nas  honras  dcfíes,  ou  daquelles  como  mais  vos  agra- 
da. Vòs  quereis  fazer  o  que  vos  parece  melhor,  pa- 
ra contentar  o  voíTo  brutal  apetite,e  as  voíTaspayxôes 
deíordcnadas,  Defemganayvos,  que  náo  fera  fcmprc 
aíTim.Efesgora  por  brcviíTimo  tempo  gozais  mal,c 
individamcnte  da  voíTa. liberdade ,  no  inferno  naõ  fe- 
ra fó  impriíionada  a  liberdade  exteviot  ,  ficando  im- 
niovcis  todos  os  membros  do  corpo  ,  como  diíTemos 
no  primeyro  ponto  j  mas  também  a  liberdade  interior 

B  4  ^^s 


24  Difcurfo  L 

das  potencias  da  Alma  ,  memoria  ,  entendimento^ 
e  vontade.  Agora  não  tendes  hum  quarto  de  hora  de 
tempo ,  para  cuydar  em  Deos ,  e  meditar  as  verdades 
eternas,  Agora  naó  fazeis  caio  dos  Pregadores  quan- 
do reprchendem  os  voíTos  vicios ,  c  vos  admoeftaõ^ 
que  deyxeis  as  vaidades  no  Mundo,  para  tratares  da 
voíTa  íalvaçaõ.  No  Inferno  náo  vos  lembrará  outra 
couía,queo  tempo  perdido,  e  o  deíprezo  de  tantas 
infpiraçoens  Divinas  ,  e  de  tantas  occaíiões  de  vos  fal- 
var.  Agora  naô  podeis  ouvir  buma  Mi íía  ,  nem  rezar 
hum  terço  do  Rofario,  fcm  hum  continuo  fluxo,  c  re- 
,  fiuse^^e  diftracç5cs>No  Inferno  fereis  perfcytos  Con- 
templativos ,fem  nunca  ter  em  toda  a  eternidade  hí^a 
miriima  difiracção.  Ovoffo  entendimento  fera  íem- 
pre  fixo,  invariável ,  e  forçofamente  obrigado,  em  na6 
cuydar  outra  couía  ,  que  o  voíTo  deícuydo  em  deyxar 
a  Deos  noíTo  único ,  c  verdadeyro  bem  por  amar,  e  fer- 
vir  as  Creat  uras  ,e  fazer  vos  efcravos  do  Demónio.  E 
CamJn  ^^^  ^^^'^  ^  peníamento  fucceíUvo ,  e  confíderação  per- 
D.cho,  P|^f'^i'ii  cm  que  íe  occuparà  eternamente  o  Precito; De- 
imebitnr  intelk^Ms  aâ  confiàermàtim ,  &vohmtas  aã 
ditefiandum.  A  vontade  íerà  também  captivada  ,  e 
coníkangida  a  deteftarneceííariamentc  a  fua  eterna 
dcfgraça  para  femprc :  Detinebitur  vohmtcis  ad  dete^ 
ftandum.  Amaldiçoaràp  a  íi ,  e  a  hora ,  cm  que  nafce- 
raô  5  aos  pays ,  e  as  mãys ,  que  os  geràraò ,  c  criâraõ ,  e  a 
todos  aquelles,  que  foraô  cúmplices  das  culpas ,  &  de- 
lidlos  ,que  cometerão.  Eftas  íaô  as  lembranças  eflcs 
faõ  os  argumentos ,  e  difcuríos  ,  que  já  fazem' os  Con- 
denados,e  faraõ  para  íempreos  Peccadores  impeniten- 
tes no  Inferno;  DeUneíníur  intelleãusad  cenfidermz 
dum ,  ó"  vQluntas  ad  deteftandum, 
RoCm  t  Vivia  na  Cidade  de  Paris  hum  Doutor  celcberri- 
i.exep,  n^ocom  tam  grande  fama  de  íaber ,  que  todos  o  vene- 
%^,      ravaô  por  hum  poço  de  letras  ,  c  a  eiie  concorriam 

nas 


Tormento  L  do  cárcere  do  Inferno.       tf 

nàs  demandas  mays  embaraçadas.  Fez  cfle  hum  con- 
certo com  outro  Letrado  íeu  Amigo ,  queo  primeyro 
dí?lles  ,  que  morreffe,  tornalTea  dar  parte  do  cftado, 
cm  que  fe  achava  na  outra  vida,  como  là  fepaffava, 
CO  quelà  fe  fazia.  Em  menos  de  hum  anno  morreo 
oceiebre  Doutor, e  por  permifTaò  Divina  appareceo 
logo  ao  Letrado  fcu  Amigo  veftidode  húa  beca  com 
huma  gorra  na  cabeça ,  tudo  de  cor  purpúrea ,  porque 
tudo  era  fogo.  DiíTe ,  que  o  ícu  cfíado  era  de  Preci- 
to ,  a  ília  eSancia  ,  em  que  havia  de  morar  eternamen-  ^o^câp: 
te,  era  o  Inferno:  Inferms  domus  mea  ejl.  Epergun*  17.1^, 
tandpíhe  o  Letrado  fe  no  Inferno  o  leu  grande  ía- 
ber  lhe  fervia  de  algum  alivio^  refpondeo  ,  quede 
mayor  tormento ,  pois  toda  a  rezaõ ,  faber  ,  e  difcur-  eccI  c, 
lofe  lhe  era  barrido  da  memoria.  NecratiOyfiec  fclen-  9.10, 
cia-ifiec  fafientia  erunt  afud  inferos.  Que  no  Inferno 
íó.íc  rcpreíentava  naentcndimento  dos  Condenados, 
hu3  única,  e  breve  qucfíaõ  :  Gluid  non  fit fanal  Quer 
dizer,  fe  havia  alguma  coufa  naquella  piilaõ,quenão 
deíTe  tormento,  ou  naô  foíTepuro  penar;  c  que  to- 
iJospor  experiência  refolvem  ,  que  no  Inferno,  naõ 
ha ,  nem  haverá  por  toda  a  eternidade  iníiante  de  tem- 
po, cm  que  hum  Condenado  tenha  hum  pequeno  fo- 
cego,ou  hum  mínimo  alivio;  Porque  como  diíTemos,'- 
aprifaõ  do  Inferno  hc  hum  lugar  ,  aonde  o  Precito 
nunca  gozará  de  bem  algum  ,  c  para  fempre  padece- 
rá todos  os  males.  Pois  o  feu  eftado  affim  o^pede: 
Eft  fiattis  malartim  omnuim  tiggregatione perfeãiís.  Eu 
confcíío,  que  naò  tenlx)  palavras  para  exprimir  o  meu 
paÍJiio,  confidcrando  hum  Catholico ,  que  vive  em 
peccado  mortal,  e  naò  faz  reflexão  ,  nem  repara  ao  pe- 
rigo imminente  de  cair  para  fempre  no  inferno.  Os 
Navegantes,  que  eftaó  no  mar  alto,  eftaô  pouco  diftan- 
tesdo  naufrágio.  Aílim  a  vidadellcs,  como  a  morte 
coníiftç  em  húa  taboa  da  groíTura  de  dous  dedos.  Os 

Pcc- 


JÊÊÊÊÊêM 


mm 


^  Dí/cur/â  L 

Pcccadorcs,qiicn3vega5  no  mar  tempefluozo  defíc 
Mundo,  tena  fempre  debayxo  dos  pâs  hum  mar  de 
fogo,  c  tudo,  o  que  os  divide-,  hc  muy  to  menos ,  que 
a  groíTura  de  hua  taboa;  quero  dizer  hu  i  vida  frágil ,  e 
logeyta  a  mil  accidentes.Naõ  he  neccíTaria,  a  queda  de 
hum  Cavallojou  híía  efpinha  na  garganta,bafta  hui  reí- 
piraçaô  tomada,  ou  hum  ar  de  apoplexia,  para  deytarfe 
valente,e  amanhecer  morto,ou  ievantarfe  profpêro  ,,c 
anoytecer  para  fempre  no  Inferno.  Eu  para  mim  (  meu 
Deos)  naó  vos  íabercy  nunca  dar  as  devidas  gracas,por 
me  ver  livre  decantas  occafióes,e  perigos  do  Mundo; 
e  de  ter  humeftado  de  vida  .  em  que  deveria  cuydar  fó 
nefta  prjfaõ  do^Inferno,  para  aíTegurar  melhor  a  miniia 
íalvaçaõ.  Se  vos  naõ  podeys  deyxar  o  Mundo  de  todo, 
d«yxay-o  ao  menos  com  o  affeâro  ,  e  para  o  poder  dey- 
xar com  o  aííedo ,  deyxay  o  peccado  ,  e  fazey  peniten- 
cia} eeftejais  certos, que  nenhúa  coufa  vos  fará  experi- 
mentar a  penitencia  mais  fuave ,  e  mais  doce  ,  nem  vos 
fará  aborrecer  mais  o  peccado ,  que  ter  frequentemen- 
te no  fentido  a  intolerável  ,  c  horrorofa  priíaõ  do  In- 
ferno ;  porque ,  como  diz  SJoaó  Chryfoíiomo  j  naõ  he 
fíom.z.  poíTi  vel ,  que  quem  tem  medo ,  e  cuyda  na  eterna  du- 
^"íírM**^^^^^^^^^"^^  ^^  inferno  torne  cedo,  e  com  facih'- 
'  dade  a  peccar ;  Fieri nonpoteíi ,  ut  anima  degehena,foU 
'licita  aí â  pecceí. 


DIS- 


ç 

1»-* 


4 


TORMENTO  DA  VIS  TA 


■■ 


^. 


ISCURSOII. 


^^Do  tormento  da  villa  entre  as 
trevas  do  Inferno. 

/;/  (Ztemum  non  viâehit  lúmen.  Pfal.  48'.      Exordii 

Empre  julguey  por  verdadeyro 
aquelle  apGlogo,quc  no  mcímo 
thrononaô  Cabem  dous  aífen- 
tos,na  mefma  Monarquia  dous 
Príncipes ,  na    mefma   Igreja^; 
dous  Paí\oYQs  IJ^c  fedes  non  ca^-^ 
pit  tina  dnos.  Naõ  he  affim  neíie 
Mundo  pequeno  do  compofto 
humano  ;  aonde  reynaõ  dous 
Monarcas  entre  fitaóunidos5que  iguais  nos  movimen- 
tos,  íemelhantcs  na  rcprefenraçaô  dos  objcdos  ,  fen* 
pertençaô, ou  inveja, vivem  irmãmÊce  contentes  dp  ícii^ 
governo.  Eíks  dous  Monarcas  faô  os  olhos ,  que  goIIo- 
eados  em  fitio  eminente  dominao  as  mais  parces  do  cor- 
po, fenhoreaô  ,  ícm  íercm  Neptunos ,  todos  os  mares,    - 
medem  em  híi  iníiante  as  Cidades,  os  campos,  e  os  boi- 
^ues  i  e  fendo  pequenas  efireilas  da  terra ,  piíquizaõ ,  a 
devaçaó  as  eftrelias  da  primeyra  grandeza ,  c  os  mayo-         * 
res  Planetas  do  Ceo :  fao  logo  os  olhos  dous  Principcr^.. 
que,  defcidas  as  cortinas  das  peíianasenccrraô-fe  no 


JUAtth, 
cap.  8. 


Seru. 
Scr.i6, 
in  C4nt 


Betnar. 
Serm.%. 
in  Pfa/. 
Qui  ha* 
htat. 


Difcurfd  Ih 
fcurcal  gabinete  i  nefando  fua  prcfença  a  todos  j  c 
cto  levantadas ,  a  todos  íe  moftraõ,  prevem  os  pe- 
rigos ,  provem  as  ncccílidades  ,  brilhantes  alegrão; 
triftcs  deCconfolaõ  ,  agaílados  offendem  ,  piadoíôs 
movem,  eabrandaô  atê  ao  meímo  Deos  dando-Ihc 
huanova  cafta  de  pezames  pela  morte  da  Alma  com 
ospcccados,  derramando  aospès  do  Crucifixo  hum 
poder  de  pérolas.  Eftas  pérolas  íaò as  lagrimas,  que 
nacidisnomar  de  hum  coração  contrito,  faem  dos 
olhos^  como  das  fuás  conchas  ,  e  íobcm  logo  na  cfti- 
maçaõ  de  Deos  ataô  alto  preço,  que  qualquer  Mer- 
cador Evangélico  pôde  dar  por  bem  empregada  toda 
a  íua  fazenda ,  para  com  hua  delias  comprar  o  Reyno 
do  Ceo.  Oh  lagrimas  bem  afortunadas,  fenos  fazem 
defprczar  o  Mundo ,  enostiraô  do  Inferno  para  nos 
meter  no  Paraifo !  Saô  Mattheus  no  íeu  Evangelhoi| 
b^m  quatro  vezes  faz  menção ,  e  repete  os  choros ,  g 
lagrimis  continuadas  dos  réprobos  oaquelle  calabou- 
ço eterno  ;  Ibit  erit  flettts  ,  &  ftridor  dentmn.  E 
S.  Bernardo  coníiderando ,  e  meditando  efta  repitida 
íentença de noífo  Senhor Jeíu  Chrifto  lhe  pedia, que 
os  feus  olhos  foíTem  duas  fontes  perennes  nefta  vida, 
para  prevenir  as  lagrimas,  c  choros  eternos  na  outra; 
§uú  (inquit)  dabítoculismeisfontemUcrymãrum.ut 
praveniam  fletibus  fletum  aternum ,  &  ftridorem  den- 
tmm.  e  com  muyta  razaô  ;  e  efpirito  ;  povquc  (  como; 
diz  clle  ;  as  lagrimas  íaô  pelo  intolerável  tormento  do 
fogo,  que  fempre  arde  ,  e  queyfna,e  nunca  fe  apga; 
o  cftridírdos  dentes  pelo  verme  da  conferencia  ,  que 
{emprcrô:,e nunca  morre:  Fletus  quidem  (inquit; 
oh  igmm,  quinon  extin^mUir  ,  ftridor  vero  dentium 
eb  vermem,  qui  mnmoritur.  Sobre  o  fundamento  de, 
hui  doutrina  taõíolida  de  S-Bernardo^  e  taõ  útil,  e 
nrceíTiria  para  afalvaçaôde  noffas  Almas,  alevanta 
oaíTumpto  deftc  ícgundo  difcurfo,  que  divido  logo 

cm 


Do  tonnento  da  vifta.  29 

em  dous  pontos.  No  primeyro  veremos  o  horrível  tor- 
mento ,  que  padeccráô  os  olhos  no  Inferno  pela  cul- 
pa das  viíias  peccaminofas ;  e  no  fegundo,  que  íó  as 
lagrimas  dos  meímos  olhos  naícidas  da  dor ,  e  arre- 
pendimento de  tantas  culpas ,  nos  pòdcm  livrar  defta 
pena. 

He  coufa  digna  de  reparo ,  que  a  providencia  Di- 
vina déíTc  aos  olhos  dous  officios  ,  caos  mays  íenti- 
dos  do  corpo  àèí^c  hum  íó.  Ao  olfacflo  deu-ihe  o  chey- 
rar,  aos  ouvidos  o  ouvir ,  o  goftar  ao  gollo,  o  to- 
car ao  tadlo  i  porem  aos  olhos  dobrou  os  officios  dan- 
do-lhes  o  ver ,  c  o  chorar.  E  iíio  porque  ?  Porque, 
como  a  mayor  parte  dos  peccados  tem  ordinariamen- 
te o  íeu principio  nos  olhos,  era  conveniente,  que 
da  mefma  fonte  ,  em  que  rtíidia  a  doença  ,  íahiíTe 
prompto  o  remédio  ;  na  meíma  officina  ,  aonde  fe 
formava  o  veneno,  fe  fabricaíTe  também  o  antídoto. 
Aprimeyra  culpa,  que  houve  no  Mundo,  foy  a  de 
Adam,  e  Eva.  E  que  principio  teve.''    O  ver.  Fidit, 
E  parccendo-lhe  o  pomo  for  mofo  aos  olhos.  Ptíkhrum 
oculis  j  logo  comeo  ,  e  preíentou-o  a  Adam,  para 
que  também  comeíTc  dellc;  Comedit-i  dediíque  Firo  fio,  GeneÇe, 
Caftígou  Deos  efta  culpa  de  leia  Magcíiade  j  com  áú-  ^.v.  6. 
terrarlogo  a  ambos  os  Delinquentes  do  Paraiío  ter- 
real ,  para  com  eíTe  degredo  livialos  juntarrente  da 
occaíiaò  próxima  da  reincidência  ;  Et  omifit  eos  Detis  q^^  ^  ^ - 
âe  Paradifo  voltiptatís.  Ccufa  notável !  no  mefmo  tem.  .j,,  j . 
po,  que  íc  deu  á  execução  eíia  ícntença  ,  mandou 
Deos  hum  Cherubim  com  hua  eípnda  de  fogo  namaõ, 
c  que  cftiveííe  femprc  à  vifia  de  Adam ,  e  Eva  nas  por- 
tas do  Parai fo:  CGllocã'v'it anteVarãàifum  Chcnibim^Gemf.vl 
C^  flameum  gladiam  ,  atque  'verfattkm,  £  naõ  baftava  27. 
para  declarar  o cafligo  da  fua  Divina  juiliça  hua  cípada 
de  aço  com  hua  tempera  fínííli ma  ,comofoy  a  dejudit. 
que  degolou  a  Olofernes,  ou  a  de  David  j  que  de  hum 

ío 


I        1   ! 


5^  -     ^^Difcmfo  IL       '[ 

íó  golpe  cortou  a  cabeça  a  hum  Gigante  f  Na5.HâviaT) 
deícr  de  logo  , queihercpreíentaíTe  o  Inferno,  que 
iTiereciaò,  e  tambcm  efta  havia  de  íer  efpada  veríatil, 
que  quer  dizer  eígrimidora,  lançando  chammas  horro- 
rofas ,  e  fulminantes  para  atemorizar  a  vifia  de  Adam^ 
c  Eva ;  confiderando  o  tormento  ,  que  haviaõ  de  íof- 
freros  fcus  olhos  peccaminofos  no  báratro  Infernal, 
quando  humildes  }€  mortificados  naõ  continoaiTema 
fazer  penitcncia,que,aind.i  que  era  de  novecentos  an. 
nos,  lhes  pareceria  íuave ,  e  breve,  em  comparação 
da  eternidade. 

O  principal  tormento  da  vifta  no  Inferno  íerà  a 
.       falta  da  luz,  como  diz  o  Profeta  David:  In  aternum 

'^  "^  mn  videbit  lumen.Hum^  prizaõ  taô  apertada,  hum  cár- 
cere taô  eíireito,  he  forçofo  também,  que  feja  demafia" 
damente  efcuro.  Porque  a  meíma  multidão  de  tantos 
corpos  amontoados,  huns  fobre  os  outros  ,  e  aperta- 
dos como  as  uvas  no  Ligar,  ainda  que  o  Inferno  folTe 
claro  como  o  dia,  naõ  havendo  lugar  por  onde  poíTa 
paíTar  a  luz,  ou  outra  matéria  diafana,e  tranfparente, 
hc  neceíTario ,  que  fique  com  bui  cícuridaô  perpetua^ 

,>  como  huma  noyte  eterna.  Porém  efta  cícuridaõ  ,  e  efta 
noyre,  qulz  Deos  para  mayor  caftigo  dos  Condenados, 
quefoíTe  bua  qualidad:  própria  do  fogo  do  Inferno, 
chamada  na  efcritura  com  none  de  trevas.  O  Glo- 
riofo ApofíoioSaõTadeo,depoys  deter  eícri^o  com 

'7^^^  admiráveis  metáforas  a  atrevida  maldade  dos  Pecca^ 
dores,  nciba  dizendo:  ///  fimt  qtiibus  procellatene- 
hrarum  Jervãta  eft  in  aternum.  Eíks  laô  aquelles, 
para  quem  eftá  qu^irdid}  para  íempre  b.u.i  cempefí-íde 
de  trevas.  Procella  tenebrarum.  E  que  combinação 
tem  as  trevas  com  a  tempeflade  ?  Muyta.  Porque  aíHm 
c  mo  nas  tormentas  do  mar  fe  enche  o  cmisferio  de 
buas  nuvens  groíTas,  e  medonhas  j  eícurecc-fe  oSo!} 
levautaô-fc  as  ondas ,  enfurecem-íe  os  mares  jc  naô  fe 

ouve 


Do  fermento  da  xifla*  ^x 

ouve  mnys,quco  roncar  medonho  nefíe  furibundo  ele- 
mento; o  Zcnit  dos  Tuffbes  impetuofosjo  ranger  das 
cnxarças  ;  o  raígarfe  das  velas;  o  romperfe  dos  ca- 
bos i  o  abalarfe  dos  maflros  ;  aqui  gritos ,  e  alaridos 
dos  marinheyros;  acolá  lagrimas ,  e  arrependimento 
dos  navegantes  $  e  finalmente  ,  tudo  he  huma  confuíaô 
de  fazer ,  para  evitarem  o  perigo  da  morte,  e  íalva-. 
rem  as  vidas.  Da  mefma  maneyrano  mar  de  fogo  dp 
Inferno  fc  acharáôos  Condenados  entre  huas  trevas^ 
eelcuridõesjluins  blasfemando  contra  a  juíiiça  divi- 
na, que  os  lançou  naquelle  calabouço  infernal.  Ou- 
tros amaldiçoando  osPays,  e  as  Mãys,  que  os  ge- 
rarão ,  e  criàraõ.  Eftes  daiáõ  bramidos  ccmo  Leões, 
equereráõ  poder   defpedaçar  a  quem  os  incitou  ao 
peccadoj  e  aquelles  daráõ  em  fúrias  como  deíeípe- 
rados.  Ajunte-fe  a  ifto  os  efírondos ,  e  ruídos ,  que  fa- 
raó os  Demónios,  atormentando  os  corpos  dos  Ré- 
probos com  mil  genei  os  de  tormentos,  tomando  vi- 
fagens  medonhas,  dando  rifadas  , fingindo  pefquins, 
e  fazendo  eícarnio  das  culpas,  que  nefle  Mundo  come- 
terão ;  peio  q,uc  naquelle  cárcere  infernal  tudo  fera, 
como  diíTc  Job ,  hum  Cháos ,  huma  confufaô  ,  hua  ^^-ny^  , 
fordeiTi,e  a  vííia  hum  perpetuo  horror:  Vbi  nttllus  or-      ^*'^ 
do,  feáfempiurnus  honor  mhahitat. 

Entre  as  grandes  pragas,  que  Deos  mandou  aos 
Egypciospara  caí^igar  a  foberba  delRcy  Faraó,  ain- 
daque  todas  foraô  moleftas   ,  medonhas,  t:  aíquero- 
ías,  com  tudo ,  íó  a  praga  ,  e  caí^igo  das  trevas,  tem 
na  Sagrada  Eícritura,  o  epitcto,  ou  apeilido  de  hor-  ^-^oã, 
riveis:  FaBa  fmt  tenéra  horrihiks iniiniverfa terra  ^°*^' 
tyEgypti.  E  porque  íóaicntc  as  trevas  haõ  de  rer  eífe  ^^* 
lobrenome  de  horríveis  ,  e  as  outras  praoas  naõí  A 
rnayor  razaõ  dará  o  doutiíl^mo  Interprete 'Nicolao  de 
1-yra,  que  comentandoeíle  texto  repara,  que  era  tal 
â  efcuridaô ,  que  nenhum  Egypcio  via  áq  outro ,  nem. 

oufa- 


n 


31  Dtfctírfo  IL 

oufava  partir, ou  mudiríe  do  lugar  , em  que  eftava* 
Nem)  vtd'íí  Fratremfuum ,  nec  movit  fe  de  loco ,  m  quo 
^'>«^-  eraí.   A.ccreícenta  miys,  que  appareciaò  entre  eiies 
^'^'''^huasfincafmas  taô  efpantofos ,  huas  figuras  taò  me- 
donhas ,  huns  Monftros  taó  abomináveis ,  e  lhes  cau- 
íavaô  tal  horror  ,  qus  iádefejavaó  antes  mil  vezes  a 
morte  que  a  vida.  Do  mefmo  modo  glofa  efle  paíTo  o 
Cardeal  Hugo  ;  porè  n  com  hum  reparo  digno  do  íeu 
^^  ^    emtnentiai;iio  engenho,e  do  feu  grande  efpirito :  Hor- 
inT^od'^íbíks dicmtur  tenebra ,  qma  apfarebant  eis  quedam 
caf.^.  imagines  valde  eos  deterr entes.  Heu  Domine  Deus ,  qtud 
entm  Inferno.  Quer  dizer  ,>  íe  as  trevas  do  Egypto, 
fendo  como  cmpreftadas ,  daô  hum  tormento  taõxx-  í 
ccíTiVO;  íe  os  corpos  fantafticos,  que  viaó  entre  el- 
las,  ihes  faziaò  tal  aíTooibramcnto ,  que  íe  durara  mays 
tempo  efte  caftigo  ,  a  terra  do  Egypto  ficaria  mhabi- 
tavel.  Oh  bom  JESUS!  Qus  íerá  no  Inferno!   Aqui 
as  trevas  íaõ  como  fombrasvqiie  efpantaò.  No  Infer- 
no íaô  realidades ,  que    afiligem.  Neftc  Mundo  faó 
figuras  fantafticas,  que  apparecem  para  fazer  medo. 
No  Inferno  íaó  verdadeyros  Demónios,  que  com  a 
vifla  ,  c  com  todo  género  de  penas  atormentaò.  A 
Águia  dos  Doutores  S.  Agoriinho  com  o  Eminentiai- 
mo  Cardeal  Caetano  Interprete  Claííico  de  SantoTho- 
más  fcguindo  a  vcríaô  dos  Setenta  ,  íaô  de  parecer, 
que  eíVas  pragas  doEsypto  foraõ  antes  ameaços  aFa- 
2)  Aug  r?.ò ,  que  caíti^o  ;  Ad  fimilitudlnem  ilkdentú  ,  manife- 
é^C^rd.fiatDeus.  fefacere  h<ec  ftgna  ,  quãfinon  feno  .fedjoco 
C^et  tn  ^p^xerit  Deus  Pharaonem ,  &  (L/Egyptos.  A  modo  de 
^^'"^^""  quem  faz  zombaria  ,  mindou  Deos  cliis  trevas  ao 
'''^-      E,avpto  ,  como  íe  naÔ  de  veras ,  e  feriamente  .fedjoco^ 
contemptu  .mas  como  fe  com  defpreío  ridículo  quizcíle 
fjzcr  medo  a  Faraó  ^  e  mortificar  aos  íeus  VaíTailos. 

Noannode  1588.  eílando  Felippe  Prudente ,  Mo- 
narca de  Caftelia  cm  guerra  viva  com  Inglaterra ,  e 

Oian- 


DõtúYffientõdavifla*  35 

Olandczcs,  mandou  huma  potente,  cnumc^ofa  Ar- 
mada ,  que  com  vento  profpero,  e  bom  íucceíTo  en- 
trou cm  poucos  dias  no  canal  de  ínglaterrá.  Aviílou 
logo  as  fragatas  de  linha  dos  Inglezes ,  que  vinhaõ 
íaindode  Londres  ;e  da  banda  do  SudueOc  a  Armada 
de  Olanda  ,  que  dous  dias  antes  levantou  ferro  em 
Dunquerque ,  e  velefando  bufcava  cncorporarfecom 
a  Inglcza.  Achou-íe  de  repente  a  Armada  Catholica 
çojmo cercada  dwis  duas  Armadas  inimigas,  e  faltan- 
do totalmente  o  vento ,  todos  foraò  conítrangidos  a 
botar  ferro.  Ficou  depois   aquellc   inconftance    ele- 
mento taôconftante  na  bonança,  que  fendo  por  ra- 
zão do  clima  naturalmente  turbulento  ,  agora  qiic 
havia  de  fcr  temido ,  e  foberbo  por  carregar  no  feu 
curfomaritimoastres  mayores  Armadas  de  Europa, 
compendiadas  em  300.  Navios  de  guerra  í  como  hu- 
milde ,  e  rendido  a  tanto  pefo  parecia  o  mar  pacifico. 
Chegou  a  noyte ,  ecomo  eramuyto  efcura  ,  eo  mar 
taõ  quieto,  determinarão  os  Cabas  Olandezcs  de  dar 
hum  fobrefalto  aos   Caftelhanos  ,  lembrados  ,  que 
poucos  mezes  antes ,  com  huns  navios  de  fogo ,  eftan- 
dono  cerco  de  Amberts,  llies  tinhaõ  queymado  ai-' 
guns  pataxos  ,  e  embarcaçoens  meudas,  fahiraõ  de 
repente  com  oyto  chalupas  carregadas  de  gente,  que 
mais  hiajõ  para  folguedo,  que  para  a  peleja.  Levavaõ 
todos  bus  fachos  acefos  nas  mãos,  e  davaõ  taes  brados, 
e  vozerias, que  bem  moftravaõ  ,hiaô  mais   deprcííi 
a  fazer  medo,  que  a  intentar  alguma  grave  entrepreía. 
Com  tudo  a  Armada  Efpanhola  entre  as  trevas,  eef- 
curidaõda  noyte,  vendo  aquellas  luzes,  g  ouvindo 
o  eftrondo  daquellas  gritarias  ,  mò  podendo  diftin- 
guir,nem  atinar  o  que  era  ,  pareceram  lhes  as  oyto 
chalupas  oyto  navios  de  fogo,  que  hiaô  a  renovar  o 
írifte  fucceffo  de  Ambercs.Peioquefobrcfaltadosdc 
hum  teínor  bem  fundado ,  que  de  noyte  as  nãos  de- 

C  vem 


Càrd, 
Bent, 

Be/g.. 


■  |V 


PéUhaq. 

tomjh. 


n 


|4  bifcurfo  IL 

vêm  èftar  longe  do  fogo,  fem  eíperar  párâVcr  3c* 
mais  perto,  o  que  era,  cortarão  logo  as  amarras, e 
^  '     tratarão  depor-íe  ao  largo.  E  como  por  acafo  entrou 
o  vento  contrario  ,  que  íe  foy  defpertando ,  procu- 
rarão os  Cabos  de  declinar  todo  o  vento  noélurno, 
e  eíperar  a  luz  do  dia ,  parecendo-íhes ,  que ,  pegando 
o  fogo  com  a  força  do  vento ,  naô  íe  poderia  apagar» 
O  efcuix)  da  noy ta  foy  grande,mayor  porem  foy  a  con- 
fufaõ,  porque  naô  fe  viaô  os  navios  amigos,  nem 
íe  ouviaô  os  Comandantes,  nem  appareciaõ  íinaes  ,  c 
aííim  topando-fe  huns  com  os  outros  ,  muytos  íe  per- 
derão ,  e  os  mais  feparados  bufcàraô  os  feus  portos. 
Grande  laftimadehfva  Armada  Catholicataó  florente 
ficar  como  vencida ,  e  fem  effcyto  por  hum  folguedo, 
naò  ícy,  fe  fingido ,  ou  verdadeyro ,  ou  para  melhor 
dizer,  por  bum  rebate  falío  de  quatro  marinheyros. 
Ora  fe  os  fogos  de  noyíe,  que  reprefentados  em  muy- 
to  mayor  quantidade  cm  tempo ,  que  fe  celebraõ  as  pa- 
zes, ou  nafce  algum  Infante, ou  Princepe  foberana» 
faõ  matéria  de  tanta  alegria ,  e  diverfamente  repre- 
fentados em  tempo  de  guerra  faò  capazes  de  influir 
Glofin-vmtã  triííeza  ,  e  de  atemorizar,  e  deftruir  tantos 
terl.ifi   Alumnos  de  M-irteje  íe  as  trevas  do  Egypto  acom- 
Mxoíi.    paahadas  de  humas    figuras  fantafiicas  ,  que  Deos 
mandou  como  efpantalhos  de  meninos ,  para  humi- 
lhar a  íoberba  de  Faraó:  Uí  tllud€retz_yEgypúis.^à^ 
recèraó  aos  Egypcios  taô  horríveis  ,  e  iníoportaveis 
que  íe  duraíTem  mais  tempo ,  haviaõ  como  defeípera-- 
dos  de  buícar  a  morte.  Que  íerá  pois  das  trevas  do 
Inferno!  Qjk  horror  !  Que  tormento!   Que  terrí- 
veis repreíentaçoens  íe  acharão  naquella  mafmorra  ! 
Por  iíio  o  Profeta  Job  ,  confíderando  a  terribilídadc 
deftas  trevas  ,  pedia  a  Deos ,  que  fendo  a  íua  vida 
taô  breve ,  lha  dilata-íe  por  algum  cfpacio  detempoj, 
para  chorar,  cter  dor  das  íuas  culpas,  a  fim  de  naõ 

fer 


%iv 


Do  tormento  da  vlfia.  3j 

fcr  condenado  para  huma  terra  cheya  de  miferias ,  e 
de  trevas  (  affiíTí  chama  elle  ao  Inferno  )  aonde  quem 
entra  huma  vez,  he  para  nunca  mais  íair:  Nunquid 
paucitas  dieriim  meorum  finietur  hrevi.  Dimitte ergo 
me^  ut  piangam  fanluíum  dolorem  metim  ,  antequam 
'vaãam ,  &  mn  revertar  ad  terram  mifert^ ,  &  tem- 
br  ar  um. 

Também  Chriíio  no  feu  Evangelho  chama  ao  In- 
ferno com  nome  de  trevas  exteriores  •,  e  aíTim  naquel- 
lebanquetc  das  vodas ,  vendo  entrar  hum  Réprobo, 
quenaò  tinha  a  veííe  nuptiai  da  graça .  mandou  ,  que 
atado  de  pês  ,  emãos,  o  lançaíTem  nas  trevas  ç.^x.ç.~ 
nmt%\  Ligatumamhus^  &  pedibus.  Eis-ahi  os  aper- 
tos da  piiíaõ  ,  e  a  eitreytcza  do  cárcere,  de  que  fal- 
Iamos.no- diíçurfo antecedente;  CMittiteenm  in  tene- 
bras  exteriores.  Eis-aqui  as    trevas  d;)    Inferno  ,  de  Matth: 
que  agora  vamos  diícorrendo.  He  doutrina  do  ^n-cap.^^., 
geiico  Doutor  Santo  Thomás ,  que  o  fogo  do  Inferno 
terà/como  veremos  em  outro  difcurío  )  hum  ardor  ds 
qualidade  inteníiílima  ,  porem  fem  luz  alguma.-  Ibt  erit  D.Tho. 
ardor  fine  cUritate.  Arde,  e  arderá  fempre  com  huminoptífc, 
milagre  oppoíio,  e  totalmente  contrario  ao  fogo  de 
B-ibilonid.  Quando  os  três  mancebos  naõ  quizeraõ 
iíiolatrar  ácflatua  delRey  Nabucodonofor,  m:indou 
ofoberbo  Princepe,que  fe  acere fcen ta íTe  fete  vezes 
mais  o  fogo  nas  fornalhas,  de  modo,quecischammas 
fobiaô  quarenta  ç  nove  covados  mais  alto  que  as  meí- 
mas  fornalhas  :Pyvfí-^/>/í.  utfiiccenderettir  fornaxfep-  ^t^^ci 
tulum^  quam  accendi  confueverat  ,    &  efundebaturl- 
flamma  Juper  fornacem  ciihitU  qnãdragmta  novem.  E 
com  tudo  ncíTa  occaííaõ,  querendo  Deos  íalvar  aos 
três  mancebos,  fuípendeo  ao  fogo  toda  a  potencia  de 
arder,  equeymar,  e  deyxou-Ihc  íó  a  propriedade 
de  luzir.  No  Inferno  não  fera  aíBm  ,  porque  Deos  pa- 
ra  mayor  çaftigo  dos  Condenados,  náo  íó  dcyxarà 

C  2  ao 


3^  jD//:ôr7í^  //. 

ao  fogo  o  appetite  íDnat<rdc  queymar ,  c  confumki 
mas  lhe  elevará  á  potencia,  porque  arda,c  queymc  com 
mayor  a(n:ividade,eíufpenderá  toda  a  luz,  ficando 
húaeícuridaõ medonha, huis  trevas  horrendas.  Eftas 
trevas ,  affirmaõ  muy tos   Santos  Padres,  que  teraõ 
íeus  lúcidos  intcrvallos ,  quero  dizer ,  buns  como  va- 
pores Ígneos  ,  ou    cxhalaçoens   aceías   Da  meíma 
maneyra  que  em  huma  tcropeftade  ncâiurna ,  erítre  as 
nuvés  mais  denfas  apparecem  relâmpagos.  Eftes  po^ 
rèm  ,  he  tanto  pelo  contrario,  que  aliviem,  cu  rc- 
crcem  a  vifta  dos  navegantes ,  que  antes ,  os  atemo- 
rizaõ  mais ,  c  lhes  accrefcentaõ  nova  pena ,  por  ícrcm 
prenúncios  de  algum  rayo  ,  que  caindo  os  poderá 
conf umir.  Affim  entre  as  trevas  do  Inferno ,  apparc» 
cera  hua  nova  cafta  de  luz  íobrc  modo  pallida ,  c  me- 
donha, nafcida  daquelle  fogo,  cuja  matéria  fera  de 
cnxofre,pcz,e  outros  betumes  hediondos.  Efta  luK 
mifturada  com  huma  jnfofFrivel  fumaça  ,  que  encherá 
toda  aquella  gr utta  infernal ,  íerá  por  permiíTaô  divi- 
na baftante ,  para  fe  cnxergarein  as  borriveis  vifagens, 
os  aípcíílos  monfíruofos,  c  as  fantaímas  medonhas, 
que  em  corpos  fantafticos,e  como  quiméricos  toma- 
raõ  os  Demónios  para  mayor  tormento  dos  Pcccado- 
rcs»  Ob  viftas horrendas f  Oh  trevas  medonhas/  Oh 
noyte  eterna !   Confídere  o  Peccador  a  deíefperaça5 
de  hum  Réprobo ,  condenado  por  toda  a  eternidade 
.  i  emhuapriíaôtaôeícura, 

I  '1|  ^^^-  Mandou  EIRey  Dom  Fernando  de  Caííella ,  pren« 

^*/or.  jçj.  g  Pqj^  Diogo  Óíorio  >  e  ordenou  >que  levado  a  Si- 

'■^'     vilhajOaíTeguraífcm  emhumaeafa  de  fegredo,  que 

havia  nos  cárceres  daquclla  Cidade.  Entrou  na  pri- 

1  *  íaô  pelas  féis  horas  da  tarde,  e  foy  tal  ©horror  y  c 

?Mch.  t,  aíTombro  ,  que  teve  ,  çonfiderando-íe  fechado  na- 

2./.33.  qucllecalabouçotaôeícuro^foraõ  tantas  as  imagina- 

£ocns  y  que  lhe  pcrturbavaõ  o  juizo  naqucUa  noyte, 


Dô  Urmento  da  vi  fia,  j  f 

que  eftando  na  primavera  dos  annos  ^  arriranheceo  com 
o  inverno  da  velhice,  cendo  a  cabeça  taò  carregada 
de  brancas  ,que  parecia  cuberta  ds  neve.  Bem  íe  po- 
dia dizer  de  D.  Diogo ,  o  que  o  Princepc  das  agudez  is 
diíTe  de   outro    em    hum    caio  íemelhinte.    O  nox  ^-^^^^  L 
qtiam  longa  es ,  qi'ae  factã  una  fimm.  Meíhor  dilíera.  4-^^íí^* 
O  nox  qtíàm  longa  ejt ,  qua  cartt  una  die.  Que  nuncà 
mais  verá  a  luz  do  dia  ,  nem  a  aurora  ,  nem  quem 
eflivernelh  ,  nunca  íerá  velho,  mas  íempre  por  to- 
da a  eternidade  como  moço  ,  e  freíco  sos  tormentos 
eternos.  Oh  noyte  ,comiO  es  comprida  -,  poys  chegas 
afazer  hum  homem  de  moço  vellio  !   Ora  ,rc  huma  £,^^^^ 
noyte,  que  durou  bem  poucas  horas  fem  mais  tor- ^^^  inf, 
mento,  que  ficar  oRèocntre  as  eícuridòes  de  hum 
carccrc  ,  foy  baftante  para  obrar  hum  exccíTo  taó 
extraordinário,  de  trocar  repentinamente  a  mocida- 
de em  velhice.  Que  efFeyíos  naò  obraráò  as  trevas  do 
Inferno!  As  trevas  doEgypto  durarão  fó  três  dias, 
ccom  tudo  dalhfs  a  Soprada  Eícritura  o  fobrcnomc 
de  horriveis   :  Faã^  frnt  ienebríe  horrthiles  tnbns  Exod.c} 
diebus.  E   que  nome  dr/émos   nós  áquciias  trevas,  lo. 
que  depois  de  durarem  três  milhões  de  feculos,  du- 
raráò  por  toda  a  eternidade!  Oh  Peccador  deígraça- 
do,  que  vivei:ido  com  a  cegueyra  da  culpa  ,  defprezas 
agora  a  luz  da  graça  ,  para  ficar  fepultado  para  fem- 
pre  nas  trevas  do  Inferno  !   Oh  noyte  eterna  !  Hor-  fferêií[ 
rida  ,  líirida  ,  fqtiâlltda  ,  ietnca  ,  terrihtlis  nox.  Oh  ^^^í' 
noyte  efcura  !   Tiiik,dc  quem  cair  em  ti  ,  porque'^*^*'^ 
nunca  mais  verá  a  belia  luz  do  dia  :  In  aterniimnon 
*uidebit  himen. 

Obrigou  Chrifio  a  huma  legiaó  de  Demónios,  a         m 
que   largaíTem  o   corpo    de    hum  Endemoninhado.        % 
Obedecerão  elies  logo  ao  império  da  voz  Divina ;  he         % 
porem  de  reparar,  que  fendo  os  Demónios  os  Corti- 
ços da  íobcrba,  competição  humilde, o fuppiicàraõ, 

C  3  por 


^8  Difcmfo  11. 

por  compayxaõ  naô  os  deíierraíTe  notcncbrofo  abií-^ 
g  "  modo  Inferno  :  Rogabant  illum^  nt  imperarei  ilUs^ 
ut  in  Abifftimtrent.  hxcravagantenaõ  menos  que  im- 
plicada pctiçaõ !  Se  o  Inferno  foy  crcado  da  Omnipo- 
tência Óivina i  j^r/W^r/^  para  os  Demónios,  confor- 
_^    ,    me  fe  !é  no  Evangelho;  Giui  f aratus  efi  Diabolo  ,  à* 

céiB-zi   ^^é^^^  d^^-  ^   ^^^^s  ^^^"  íabcm  ,  que  lie,  e  ha  de 
'  fera  íua  própria  morada.  Mais,  fe  eiles  íâò  capitães 
inimigos  dos  mtferos  condenados ,  c  fe  deívclaôcom 
toda  a  anciã, para  os  atormentar  íempre  mais  J  co* 
mo  na5  correm  logo  para  aíua  negra  officina  de  tor- 
mentos ,  &:  com  o  triík  fogo ,  e  com  a  lúgubre  funria- 
ça  naô  dcfabafaò  contra  os  deígraçados  Réprobos  à 
íua  feriílima  tirania  ?  Mais,  fe  cfta  mefmalegiaô  de 
Demónios,  que  refedia  no  corpo  do  endemoninhado^ 
podendo  viver  em  hum  campo  aberto  ,  aíliflir  no  po- 
voado, habitar  em  palácios  j  diz  omefmo  Evangelho, 
,    quebuícava  as  efcuridôes  dos  ícpulchros ,  as  trevas 
8  *  dos  monumentos :  iW^íiíí  enimmanebat  in  domo,  fedin 
w,  âj.    rãonummtis.  Como  logo  pedem  a  Chriflo  com  tantas 
veras  ,  que  naô  os  obrigue ,  a  reíiituirem-íe  com  a 
fuareíidencianaquelie  tenebroío  fepulchro  do  Infer- 
no ?  Ne  imperar  et  illisy  ut  inahiffum  irent.  Ah  que 
muyta  difFcrença  vay  dos  monumentos  da  terra  ao 
abifmo   do  Inferno  ;   das  efcuridôes  dcfta   vida  às 
*'        trevas  eternas.  Eflas  íaô  taô  horríveis ,  e  iníopor- 
.,.         taveisj*quc  omefmo  Demónio,  com  fer  o  Anteíin- 
^*         hano  á^  foberba,  abate  a  bandeyra,  íó  pela  eíperança 
de  fc  ver  por  algum  tempo,  ainda  que  breve,  livre 
rmall  ^^^^3s  '^-^ft  locus tenebrcftts.  Saô palavras  deSaô  Cyril- 
exíttia-  lo  Alexandrino  :  ^em  ipfe  quoque  Diabolus  pertimef- 
mma.     cit.  E  f e  o  mefmo  Demónio  com  fer  o  Príncipe  das 
tY€Vã$  :Princeps  tenebrarnm.  Sendo  o  Inferno  ehcyo 
de  infinitos  tormentos,  íó  deflas  trevas  fe  qucyxa, 
€  pede  algum  alivioj  que  íerá  dos  miferaveis  Pcccado- 

rcs, 


^ 


Do  tmnmu  da  vi/l  a,  3.3 

r^,  quando  íe  vcraô  eternamente  condenados  na- 
quelle  báratro  eícuro  ,  aonde  eftaráò  todos  atadcs, 
como  diz  o  Erpirito  Santo,  com  a  meíma  corrente 
de  trevas  í  Una  catena  temhrarum  erunt  omncs  caWga-  ^ 
ti.    Eftranho  modo  de  faliar  ,  mas  porèin  entatico.  ,7    ^^'> 
Quer  dizer,  que  as  trevas  lhes  ícrviraò  de  priíaô, 
de  correntes  ,  de  algemas,  e  grilhões  ;  e  como  ce- 
gos naõíe  atreverão  dar  hum  paíTo,  nem  m.udar  íitio, 
nem  viraríe  a  outra  banda,  annellando  fempre  na- 
quella  noyte  cícuraaque  amanheça  alguma  luz;  mas 
nunca  apparecerà  a  cíirelía  da  alva,  nem  amanhecerá 
outra  aurora,  que  aquella  de  principiar  íempre  a  fua, 
pena ;  In aternum  non  vietebit  lúmen. 

Efle  tormento  das  trevas  naõ  fera  incompaíUvel 
com  o  tormento  da  virta;  porque  no  Inferno  os  tor- 
mentos fe  daô  de  maõ  ,  huns  aos  outros  ,  e  com  hum 
modo  admirável  fazem  liga  entre  íi  os  contrários  i  e 
aílimofogo  naõ  derreterá  o  gelo,  nem  a  agua  apa- 
gará o  fogo  ;  e  a  miyor  intenção  de  hum  calor  íum- 
rpo  nt  oBo  naõ  poderá   diminuir  o  minimo  grão  de 
frio  ut  unmn  :  ^iod  enim  mirahile  erat ,  ín  aqua^  qua 
omnia  extmgmt  .^pltfs  ignps  valebat.  N/x  autem ,  é-^f'^"*^' 
gelu  fiiftmebant  Vim  ignvs.   Da  mefma  maneyra  ,  os  |^'^^^ 
olhos  de  hum  Condenado  naquellas  trevas  do  Inkx-verf.xz. 
no  ,  entre  as  horri  veis  fumaças  de  tantos  corpos ,  que 
eternamente  íc  ertaô  aífando,  íeráõ  como  cegos  pa- 
ra ver  a  qualquer  objedojque  for  capaz  de  lhe  dar 
algum  alivio  ;  pelo  contrario  ,    pjra    ver    aqiielies 
monftros  horrendos,  informes,  c  agií:nntados ,  naõ 
fera ,  como  fabulava  Virgilio,fcm  v'é:\Monftnm  hor-  /^í''*''* 
r-endum,  informe,  vagens,  cm  lúmen  ademptum.  An-  '     ' 
Us ,  para  íua  mayor  pena  ,  fera  hum  Lince  ,  que  tres- 
paííarácomhãavitli  aguda,  e  penetrante  as  monta- 
i^has  de  corpos  precitos^quc  tem  amõtoados  fobre  elle. 
SM  iiiim  ArgQSj^e  cem  olhos  ^  para  ver  hua  multidão 
.<-■.'.  C  4  in^ 


4©  Dtfcuvfo  Ih 

inniimeravel  de  Demónios  encaretados  com  efpcíflros^ 
diabólicos,  reprefentando  figuras  taõ  extravagantes, 
'  e  cípantoíss ,  que  o  Profeta  Job ,  e  toda  a  Sagrada 

Efcritura  naõ  as  fabe  explicar ,  íenaó,  com  o  nome 
Vib  céip.  ^*^'  ^^c>rrí veis ;  Fadent ,  &  venient  fuper  eum  horribiles, 
j^.       Diga  agora  o  vulgo  ,  e  repita  muycas  vezes  ,  efte  íeu 
adagio.  O  Demónio  naõ  he  taô  feyo  ,  conio  íe  pinta. 
Oh  bocca  facrilega ,  que  tal  diíTeftc  !  Oh  lingua  dia- 
bólica ,  que  ditado  taô  perniciofo  para  as  Almas  pro- 
fcrifíe  !  Eu  bem  entendo,o  que  encerra  em  íi  íemeihan- 
te  propoíição.  Quer  dizer,  que  o  Peccado  naõ  hc  a- 
quellemonftro  taò  abominável,  como  o  deícrevem 
os  Pregadores,  afíirmando  trazer  comíigo  o  fel  amar- 
gofo  do  arrependimento  i  e  na  verdade  aíTimhe,  ao 
depois  que  a  deliquente  natureza  íe  fartou  da  doçu- 
ra ,  que  traz  comfígo  o  mel  do  dclcyte.  Oh  Pcccador, 
Deos  te  livre  ,  a  ti  ,  c  a  todo  Fiel  Chriftaô ,  de  ver, 
nem  por  hum  inflante  ao  Demónio.  Vio  o  o  ojoriofo 
Patriarca  S.  Francifco,  e  confeíTou  ao  venerável  Frey 
Gil  ícu  Companheyro,que  era  impofifivel ,  fem  auxilio 
eípecial  ác  Deos,  olhar  para  tal  monflro  ,   fem  fe 
5,^„^^  morrer  de  repente.  Refere  S,  Antonino  Arcebifpo  de 
DiW /r.  Fiorencia ,  que  tendo  viflohumReligiofoao  Demo- 
i.í.28.nio,  diíTe,  que  antes  de  tornar  avelo,  elegeria  an- 
tes entrar  para  fempreemhúa  fornalha  de  fogo.  Nar- 
D.  Ber-  ra  S.  Bernardo ,  que  aparecendo  o  Demónio  a  hum  feu 
nar.jHp.  Patrizio ,    dco-  tal  alarido  ,  que  acudirão  todos  os 
-^•^'*'^'9  •  veísnhos,  c  ficando  muyto  tempo  fem  falia,  tornan- 
do depois  em  íí,faziarigurofas  penitencias,  mas  fem- 
^/fjy^^j^pre  como  frenético,  e  furioío.  Finalmente  S.  Cate- 
^p/r.í-ri*,rina  de  Sena  por  permiíTaô  divina  por  hum  íóinftante 
.14.        vio  ao  Demónio  j  c  pelo  tempo  adiante  pedia  conti- 
nuamenre  a  Deos,  que  antes  a  fizeífe  caminhar  defcal- 
ça  por  hum  caminho  laftrado  de  fogo  athc  o  dia  do 
jiiizo,  que  tornar  a  ver  humobjedotaõhorrorofo. 

Dc- 


CroTé.p. 


Do  tormento  da  vi  ff  a.  4 1 

Deftes  todos  fe  verificou ,  o  que  diíTe  o  Profgtci  Jt)b  fi- 
gurado na  PeíToa  de  hum  Peccador  ;  fíofiísmemíer-  n  t  . 
rihlibus  oculis  me  intuitus  ejl.  Torne  a  dizer  agora  o  l^''^^^' 
vulgo  ignorante ,  que  o  Demónio  naõ  he  taô  feyo, 
como  fe  pinta.  Sirva  de  remate  a  efte  primeyro  ponto 
hua  prova  do  Angélico S.Thomàs,ademitida  comu- 
m^nte  de  todos  os  Theologos  j  c  vem  a  íer,  que  aíTim 
como  no  Paraifo  ha  o  lume  da  gloria ,  que  conforta, 
e eleva  a  potencia  ;  captiva  fuavemcnte os  Santos,  e 
os  une  à  viftâ  de  Deos,  obrigando  neccífariamente  a 
fua  vontade  a  amalo  ,  CO  íeu  entendimento  a  ver  as 
fuás  perfeyçóes  ,  c  os  olhos  a  ver  a  humanidade  de 
Chrifío  com  aquelle  gofto  immenfo ,  que  refulta  da 
vifaõ  beatifica:  aíTim  no  Inferno  o  fogo  encerra  emfi 
hum  lume  de  pena,  humaluz  de  infâmia  ,  que  ainda, 
ao  entendimento  ,  c  vontade  dos  condenados,  os  fará 
conhecer  a  íua  íumma  mifcria ,  c  obrigará  osfcuso- 
Ihos  a  ver  neccífariamente  todos  os  rronflros^cefpc-^ 
dros,que  temos  dito,  c  fouberem  inventar  os  De- 
mónios, com  todas  as  mais  figuras  medonhas,  emais 
terríveis,  que  forem  capazes  de  excitar  nos  Precitos 
o  aífombramcnto,  o  furor,  e  a  deíefperrçaô;  e  ven- 
do tudo  iflo  forçadamente,  cftaraôfemprefepultados 
nastrcvasjfem  nunca  ver  hum  rayo  de  luz,que  os  ali- 
vie, ou  conlole :  In  aternnm  non  videbit  Uimen.  Pfaf»\ 

Rcíia  agora  o  vermos  no  fegundo  ponto,  como  os  48. 
olhos  faõ  a  caufa  principal  dcfíe  tormento  das  tre- 
vas 5  e  aííim  a  elles  toca  com  as  lagrimas  continuadas 
apagar  o  fogo  de  tantas  culpas ,  que  o  acenderão.  An- 
da celebre  entre  os  Jurifías  hum  ponto  de  direy  to  muy- 
tas  vezes  dcfc  icido  ,  e  vem  a  fer  5  fe  bafta  ,  para  to* 
mar  poífe  de  algua  herdade,  ou  fazendas,  velas  íó  com 
os  olhos,  ouíe  íeja  neceíTario  ir  coma  prefença  lo- 
cai também  tocallas  ?  eíle  tomar  pcíTc  dos  bens  do 
Mundo  fó  com  a  viíla ,  fem  mais  nada ,  tem  grandes 

con- 


4^^  'Difêurf&  Ih       ■ 

controveríí  ís  nas  íevs  i  e  achaQ.fc  muytos  juf  ifpcritosy 
.   que  íegueií)  o  'contrario.  Porém  nos  bens  da   Alma» 
e  nas  matérias  de  efpirito  hedeciíaõ  já  firmejc  jurídica, 
de  todos  os  Santos  Padres ,  que  no  meímo  iníiante, 
que  03  olhos  viraô  a  algum  objedo  ,  logo  toaiáraõ. 
a  poíTe  compieti  deíle.  E  eíia  decifaó  he  infeilivel, 
poríerfundadiem  vários  arêftos  publicados  por  bo-.. 
ca  do  meímo  Deos,c  dos  fcus  Profetas. Santo  Ambr(  íío 
chama  aos  olhos  redes  ,  e  laços,  com  que  prendem, 
ecaptivaô  as  Almasmais   innoçentes  :  Ratio  qubus 
"f^.fp^^^ofas  Jiivemim  animas  capiunt,  Saõ  Bernardo ,  c 
j^y^^  ^Teoíiiâto    os   chamaõ  eorreyos  ,   c  traydorcs,  que 
.      '  'entregaô  á  morte  as  próprias  Almas,  que  lhes  diô  a 
vidai  Nmtii  lathales  anim^  proditores.  O  Profeta 
^"^^'    Hieremias  chorava  a  íua  deígraça,  em  ver  ,  que  os 
Jp°'  ísus  olhos câptivàraô  aíua  Alma;  Or/^/í/í  meusdepra^ 
■  áatusejl  ammammeam.  E  Chrifto  no  íeu  Ev..ngciho 
7Ãr.c.5  nos  adverte,  que  qualquer,  que  lançou  os  olhos,  e 
vio  a  hui  mulher  por  mào  fim,  vçm  a  íer  o  meímo, 
qne  \k  ter  tomado  poíTc  delia  no  feu  coração  :  §lni 
viderit  mtiUerem  adconcupifcenâum^eamjammechatm 
efi  tn  cordefído.    Grande  liga  ,  ainda  que  oculta  ,  de- 
vem de  ter  entre  íi  os  olhos,  e  o  coração.  Parece- 
nie ,  que.  entre  elles  paíTa  aquella  íecreta  correípon- 
dencia  ,  que  tem  entre   fí  certos  montes  ,   que  de 
.     quando   em    quando   lançaõ  fogo.     Obícrváraô  os 
curioÍQs,  como  no  meímo  tempo  que    o  Vcfuvio 
em  Nápoles ,  e  o  monte  Etna  em  Sicilia  lançavaó  em 
Flor.ven  ítalin  tantas  lavaredas  de  fogo  ,que  parecia  hiim-.in- 
inir  ti.  cendio;  no  meímo  tempo  por  canos  íubterrsneosj 
dsreh.    e  por  vias  ocuitas  outros  montes  áo  Chile, e  do  Po- 
^^'*^'       wú  na   America  Meridional  íe  enfureciaó  ,  lançando 
chammis ,  como  fe  paíTaíTe  entre  elles  huma  recipro- 
ca inteliigencia.  E  he  ccrtilfimo  , que  no  anno  1672. 
quando  houverâQ  aquclles  grandes  terremotos ,  que 

af- 


Do  tormento  da  vifta,  43 

aíTóIáraô  Arimino,  emuytas  outras  Cidades  do  efía- 
do  Pontifício ,  e  do  Reyno  de  Nápoles ,  correndo  a 
cofta  do  mar  Adriático  ,no  mcfmo  tempo  houveraõ 
femelhantes  terremotos  na  Cidade  de  Lima  no  Peru, 
correndo  a  corta  toda  do  mar  do  Sul  ,  que  chamao 
Pacifico.   Eíla  mutua  intelligencia ,  e  efte  comercio 
ocultof  entre  os  olhos  ,  e  o  coração,  hetaõ  infallivel, 
que  paralivrarmo-nos  no  martcmpcfluofo  dcfla  vida 
das  cruéis  tormentas  das  tentaçoens ,  naõ  ha  melhor 
remédio,  que  fer  bom  Piloto  dos  olhos  ,  vedando-lhes 
todo  o  rumo ,  que  com  viftas  incautas  vay  dar  nos 
abrolhos  dos  objecílos  profanos.  E  bem  fe  confirma 
com  o  noíTo  ditado  Portugucz.  O  que  os  olhos  naõ 
vem,  o  coração  naõ defcja.  Tanto  aííim  que  o  Pro- 
feta Job  naõ  achou  mayor  argumento, cem  que  pro- 
var a  innocencia  da  fua  vida  inculpável ,  como  ale- 
gar a  Deos,  que  nunca  o  feu  coração  tinha  íeguido  os 
íeus  olhos,  quando  na  variedade  dos  objedos  tinhaó 
fido  pouco  acautelados  .•  Si  fecutum  eji  óculos  meos  corfçhc.'^! 
menm, 

Cuyda  o  vulgo  pouco  intelligente  nas  matérias  de 
cfp!riro,que  os  olhos  faõ  noíTos  amigos  j  pelos  muy- 
tos  divertimentos  ,  que  nos  daõ  íempre  intentos  a 
nos  fornecer  de  novas  efpecies ,  recreando-nos  com 
variedade  de  cores  em  milhares  de  objídos  ,   como^^^y^, 
já  diíTeoPoeta  amante  do  arco  íris:  CHílle  trahit ,i^éú.z 
vários  adverfo  Sole  colores.  Muyto  mais, que  Chiiíio 
diz  no  feu  Evangelho,  que  os  olhos  faô  como  noffns 
guias,fazendooiicio  de  pagens  ,que  carregaò  as  to- 
chas para  diante,  livrando  nos  de  rnil  quèdas,e  tro- 
peços :  Ltícerna  corforis  Uiiociihs  ínns.  Ainda  níílm 
digo,  que  os  olhos  íaô  os  peores  inimigos,  que  \.t- Matth, 
mos ,  aííim  o    ffirma  por  experiência  o  gnn-idc  Meflre '^'^PS- 
da  milícia  eípiritual  ,  que  jà  não  íe  atrevendo  com 
tantas  batalhas  a  bom  livrar,  tratou  de  padear  trcgoas 


com 


44  Blfcurfo  tf. 

^olfcap,  com  elles :  Fepigi  f^edus  cum  oculis  méis.  He  ceftiííi- 
l^'  mo  ,  que  as  uegojs  na 5  fc  fazem  com  os  amigos,; 
mas  cem  os  inimigos  intendos  a  pelejar.  E  prouvera 
a  Deos ,,  foíTem  íò  inimigos  como  os  mais ,  capazes 
ao  menos  de  alcançar  humapaz  íírme;  mas  nunca  íe 
podem  vencer  na  batalha  de  qualidade,  que  naò  fi- 
quem no  campo,  fenaó  mcyo  rendidos  ,  e  femprc 
capazes  de  nos  acometer  tantas  vezes ,  quantos  íaõ 
os  novos,  ou  antigos  objedos  ,cjue  nos  rcprefentaõ 
na  Alma:  Pepigi  faâus  cum  ociílú  méis  ,  ut  ne cogita- 
rem quidem  de  Fírgim.  Eftranho  mod  j  de  ta  liar! 
Os  olhos  naô  foraò  creados  para  cuydar,  mas  para 
ver.  Mais!  Na  guerra,  que  move  opeccado  à  Alma, 
os  olhos  naõ  faò  os  Capitães ,  nem  os  foldados ,  mas 
íaõ  íímples exploradores, cnaõ  fazem  outro  officio, 
que  de  efpias,  relatando  tudo  ao  penfamento  ,  com 
a  repreíentaçaô  fiel  à  Alma  do  modo  ,queoobjedo 
na  aparência  exiftc.  As  tregoas  não  íe  trataò  com  as 
:  eípias ;(  nem  íe  ajurtaõ  com  os  exploradores,  mas  com 

os  Generaes,  e  Plenipotenciários,  que  para  ifto  faq 
deputados.  AíTim  hz  meCmo.  Porém  confiderava  o 
Santo  Profeta  ,  como  perito  na  arte  ,  o  grave  dano, 
ea  rota  total  do  exercito  ,  queíe  avia  de  feguir,  íe 
déíTeentrad-iaeíks  exploradores.  Via  no  olhar,  que 
o  penfamento  curiofo  o  íeguia  i  no  penfamento  via 
lllj  '  odeleyrc;nodcleyteocon{enío;noconfenfoaobra^ 

f  i  na  obra  o  habito  i  no  habito  a  dcfcíperaçaõ  5  na  àtkí- 

peraçiõ  a  impenitencia  final,   na  impcnitencia  final 
a    condenaçsô;  na  condeniçaô  o  Inferno.  E  aífim 
prevendo  eilc  total  extermínio  da  fua  Ahiia ,  queria 
j  padear  a  tempo  com  as  eípias ,  que  íaõ  os  olhos ,  por- 

querendo  d  elles  obedientes,  c  pacíficos,  efcufava 
de  experimentar  a  força  das  tentaçocns  i  a  violência 
dos  aíTaltos  com  rifo  evidente  de  ficar  vencido  ,  c 
roto  na  batalha.  Sabia,  que  nas  praças  fortificadas, 

cm 


Dõtormentodavifta.  4r. 

em  nenhúa  parte  fc  ufa  de  mayor  prevcnçaõ,c  cautela,;^ 
que  cm  gwardar  >  c  defender  bem  as  portas^  Affim 
na  fortaleza  da  Alma  achaõ-fe  cinco  portas ,  que  íaõ 
os  cinco  fentidos.  Porem ,  nenhuma  he  mais  fácil  a  fer 
conquiRada  que  a  da  vifía;  por  ifío  todos  os  Santos 
Padres,  feguindo  a  doutrina  de  Chrifío  ,  tanto  en- 
comendaõ  a  vigilante  cautela  dos  olhos.  E  cfía  hca 
porta  contra  a  qual  o  Demónio  levanta  logo  a  pri- 
meyra  bataria  ,  affegurando-fe  com   a  experiência, 
que,  cfta  vencida,  fica  a  nobre  praça  da  Alma  con- 
quiftada.  Affim  foy  vencido  David  olhando  para  Ber- 
fabè  em  hum  cyrado;  Viâit  mulierem  fe  hvantem  in  ^-^'f' 
folario.  AiTim  fepcrdeo  Dina  com  o  Príncipe  de  Si-*^'*^'*'^ 
chem  ,porcuriofa  em  querer  ver  o  trajo  das  rrulhe- 
res  eftranhas :  Egrejja  eft  Dina  ,  nt  videret  muliercs.  ^*"^C' 
Aííim  oconfeflade  fio  Poeta  amante,  que  o  nicfmo*^'^*^^* 
foy  o  ver,  que  cair  no  laço  de  mil  erros  ,e morrer; 
Ut  vidiy  ut  perti  ^  uí  me  mdus  abftnUt  error.  Refe- 
re Tcituiliano  de  hum  certo  Filoíofo, que defeípe- Ot//^í/^ 
rado  de  poder  olhar  para  as  mulheres,  fem  as  cubi- ^r/. 
çar ,  arrancou  de  fi  gcnerofamente  ambos  os  olhos: 
Giuõà  mvlitre  fim  concupij gentia  ajpicere  Tion  poffet ,  é-  Teri„, 
Meretfi  mn   ejjet  potttm  ,  excaijit  fe,  Eíie  Filofo-  in^pd, 
fo  ,  com  íer  Pagaò  ,,lcm  ter  luz  algíia  do  Evangelho,  ^^p'^6. 
interpretou  ao  pè  da  letra ,  c  com  todo  rigor  o  con- 
ícihode  Chriíio:  St  ocuhs  tuus  fcandahzat  te ,  eme  ^^tt^^ 
eiim^& pTõjict  abs  te.k  IcyDi vina  naõ  requer  tanto  nos  '^'^P*  *  ^í 
ícus  preccytos.  Baíia  que  tenhamos  tregoas  com  eU 
les,  enaô  lhes  larguemos  o  campo  na  batalha,  e  íc 
por  acafo  nos  vencerem,  os  obriguemos  com  as  la- 
grimas areflaurar  o  dano,  que  nos  tem  fcyto,  Aííim 
o  enfinou  S  AmbrQÍio  a  huma  Donzela ,  que  pouco  a- 
cautelada  tinha  caído  como  frágil  em  huma  míferia 
humana. Saya  o  remédio  (diz ellei  da?  meímas  fon- 
tes, por  onde  íe  diftillou  a  culjpa : O culilacrymis de- 

Jluauti 


tAm, 


m. 


i: 


1       í 


ir 


■SEB 


flmnPy^^MimaJculumi  ímpliciter  nom  afiexerúfitrE  ji- 
que  oéoilííòí»  pçrdèndb  à  íirtiplicidade  innoGcrjievCom^ 
faiícas  arnoroías  acenderão  o  incêndio  daf  culpa^^  hc 
bem  jtifto,qLiecom  continuados  rios  de  lagrimas  o a-^ 
paguem.    '  ■áOiJai  oiíi  -  lí^d^s  oyp  ;■  03 

Succ^de  ifíúytâs"Vézcs  nefte>àlQndo ,  que  as  lagri- 
liiâs,  ainda  que  naícidas  da  trifleza  ,  ou  de  aigum< 
^j,^-^^^^ eftranho  accidsnte,que  nos  afílige  ,  emolcfia  ,  íoce-v 
arte.      guern  ,  OU  aliviem  a  dor  da  noíTa  pena :  Sedatur  la- 
crymii  ,  egeriturqm  dolor.     No  Inferno  ,  naò  íerà 
^         aíFiín  ,  antes  tudo  ao  contrario.  O  chorar  fera  íem- 
'};      pre  continuado  ,c  eterno;   porque  o  ardor  do  fogo, 
e  a  atrocidade  dos  mais  tormentos  obrigarão  à  força 
Matth,  osmíferos  condenados  a  deplorar  a  fua  mifcria ;  Ibl 
^lx^:^eritfletus.    iVías  quando  virem ,  que  efle  choro  naô 
*^'''"    modera,  nem  move  a  compayxaõ^  antes  irrita  os  Dck 
moBÍos ,  a  ferem  mais  cruéis  ,  c  provoca  os  conipa- 
nheyros  ,e  os  cúmplices  na  culpa" ,~  a  infultar  ,'  c  pi'0-t 
.  ferie  miyores  blasfémias,  cotaõ  o  choro  paíTa  em 

, -"..furor,  em  fayva>  c  em  defeíperaçaô  ,  que  os  incita  ^^ 
Bermr.  c  obriga  ao  eílridor  dos  dentes:  Stridor  dentium.  Como 
5.Í/.8.Í»  bem  o  explica  S.  Bernardo?  Plane  vero  fletus  ex  dolo- 
pfaim^  re^ftridúr  dtntíumex furor e,  Verificando-feaíenterí- 
Qjttha- ^^  do  Profeta  Rcy   contra  os  Peccadore^    Precitos: 
^'^'*''     Peccator  videbit ,  &  irafcetnr^  dentihus  fuis  fremet, 
p)d%.^&ta^jefcet.  0\\  íeos  Pcccadores  coníideraffcm  os  ge- 
midos defefperados  ,e  os  choros  inúteis  dos  Precitos 
no  inferna, quinto  aborreceriaô  as  âpparencias enga- 
nofas  dàlc  Mundo,  cujos  deleytes ,  e  deiiciaí;  paíUiô 
em  hum  momento  ?  Momentãtieum  qtiod  deieãaf,  ater- 
num  qtiod  cniciât.  Oh  íe  cxperiment-aíTcm  ,  quam  do- 
ces, equam  íuaves  Ía5  as   lagrimas  derramad-js  por 
hum  coração  contrito  ,  e  peíarofo  de  ter  oflendido 
.  a  Deos ,  toda  a  pena  lhe  pareceria  delicia  ,  e  todo  o 
trabalho  levefVefitava  Saõjoaõ  Climaco  os  Mofíey- 

ros 


Do  tormento  ia  vi  (la.  ^, 

ros  da  fua  Ordem ,  e  achou  erítre  os  mais  Rcligioios 
a  hum  Leygo  cofinheyro,  que  fempre  chorava  ,e  fa- 
zia acoíinha  com  humildade  ,c  paciência  ,  amais  de 
duzentos  Monges.   Quiz  íaber  dcile  ,  como   Supe-. 
rior  ,   o   principio  ,  e  fundamento  de  tantas  lagrir^ 
mas.   Relpondeo  o  Leygo  ,  que  t\\ç>  fe  imaginava 
de  fervir  a  noíTo  Senhor  Jcíu  Chriíio,  e  aos  feus Diíèi- 
pulos,  e  como  para  coíínhar  com  attençaô  ,  lhe  era 
neceítario  eftar  fem^pre  ao  fogo ,  coníiderava  a  graça, 
que  Dcos  lhe  tinha  feyto ,  de  o  livrar  do  fogo  do  In- 
ferno, que  elle  muytas  vezes  tinha  merecido  ,  por  tan- 
tos peccados  cometidos  no  íeculo. 
•    Nos  dcíertos  da  Sitia  efíava  o  Abbade  Macário  em 
conceyto  de  grande  virtude,  eíantídade  pelos  muy- 
tos  milagres  ,  que  obrava.  Determinarão  os  outros. 
Monges  em  hum  Capitulo  geral ,  que  íízeraõ,  man« 
dalo  chamar  ,  para  que  os  dirigiíTe  na  vi.da  Monafli- 
ca,  e  lhes  déííe  algíías  regras  ,  ou  breve  infíruiçaô ,  pa- 
ra a  reforma  dos  íeus  Moíieyros.  Apenas  que  chegou 
Saõ  Macário, logo  todoaquelle  íagrado  congrcíTo  fe 
lançou  de geolhos  5  e  admirados  da  fua  humildade,  ti 
modcflia,  quizeraõ  á  força  beyjarlhe  os  pês,  pedin- 
do'lhe ,  que  quizeíTe  coníolar  a  todos  com  alguma  pr3= 
rica  efpiri tua l ,  com  que  renovsíTem  o  fervor,  c  eí- 
piritoda  antiga pbíervancia.  Entaò  Saa  Macário  de- 
pois de  hum  breve  efpacio  de  orsçaõ  feyta  a  Deos, 
deu  principio  à  fua  pratica  com  cíias  palavras  mal 
pronunciadas ,  pelo  interrompimcnro  dns  lagrimas ,  e 
íoluços,  com  que  as  dizia  iPloremus  (  mqmt)  &  Fr  a- 
três ,  &  lacrymas  noftri  ocuh  prodmant  ,  anteqiiam^^f*'  , 
bine  eo  migremus^^  ubi  lacrjma   comhurunt  corpora,  '   ^'^ 
Choremos ,  Irmãos  cariíTimos  ,  e  os  noííos  olhos  íe der- 
retaõ  em  lagrimas  de  dor,  e  arrependimento,  para 
evi-tarmosdeiráquelle  Itigar,  aonde  as  lagrimas  fí- 
earáô  inúteis,  e  qucymaráè  para  íempre  os  jaoífos  cor- 
pos. 


I  .\y 


!       ' 


48  Bifcurfú  U.-^^ 

pos.  Efte  foy  o  exórdio  ,  cíks  fofao  os  diícurfosí 
citas  foraò  as  provas ,  efta  foy  a  peroraça6 ,  e  epilogo 
de  todo  o  Sermão ;  e  ai  naô  diíTe ;  deyxando  a  rodos 
os  Mbnges  penfativos ,  echorofos,  ecom  propoíito 
firme  de  lavar  dahi  por  diante  com  lagrimas  os  ícus 
defFey tos,  e  de  íeguir  a  mais  regida  obíervancia. 

PaíTava  Chrifto  com  a  Cruz  às  coftas  peias  ruas 
de  Jcruíalem, quando  ouvio  os  gemidos,  e  higrimas 
de  humas  devotas  mulheres  ,  que  laílimando  a  fua 
eruel  morte ,  íe  rendiaõ  inconíolaveis.  Cuydava  cu, 
^.ííí^.  que  Chriíloasconfolaria  com  a  íua  doutrina  ;  Beati 
c.s>      quilugent,qmaipficonfolabuntur.  Porem  acho  ,  que 
asexhortaa  continuar  com  as  lagrimas, c que  dcrra- 
!  mando-as, não  tenhaô  laftima  delle , mas  lafíimem  a íi, 

jF^^^jjCaos  feus  íiíhos;  Filia  Hierufalemy  nolite  flere  fuper 
V.  ^9.  ^^-yfid fuper  vos,  &  fuper  Fdios  vefiros.  Pois,  continua 
a  fua  cxhortaçaõ  derte  modo.  Porque  virá  tempo,  em 
que  diraó.  Bsmaventuradas  as  mulheres  ,  que  naó 
parirão,  e  as  paridas, que  naô\ vingarão  os  Filhos,  e 
pediráo  aos  montes,  caos  valles,  qus  os  fepultem. 
Porque  fe  aífim  íe  acccnde  o  fogo  dos  tormentos  no 
lenho  verde ,  como  íou  eu ;  que  fará  na  lenha  feca ,  c 
Llío.^lêí\fyo\^^ das Peccadorcs ?  ^luomam ecce  venient  dtes  , in 
qnibus  âícent :  Beat£fteriles  ^  qua  non  genuertmt  ^  ò*> 
nhera  qu£  mn  latíaverunt,  §luia  fiin  viridi  ligno  hoc 
facnmt.in  ando  qtúdfiet?  Muito  cuidado  dava  a  Chri- 
fto  o  fogo,  que  le  havia  deaccender  na  lenha  feca,  c 
diípofta  dos  Peccadores ,  quando  naquellc  extremo 
desfalecimento  ciufadoda  grande  carga  da  Cruz  ,  ain- 
da fc  lembrava  dellc.  Diz  Tcrtulliano ,  que  o  fazer 
Chnfto  msnçaõ  do  ufo  matrimonial  nafrafe  de  parir, 
e  criar  os  filhos ,  foy  declarar  com  honeftas  palavras 
as  torpezas ,  e  deleytes  illicitos  ,  que  fàõ  como  a  le- 
nha jà  alcatroada,  para  arder  no  fogo  dolnfern'^.  E 
ainda  qus  Tcofilato  hc  de  parecer ,  que  Chrifto  nc- 

ftc 


V.  1. 


hítnc  loG 


Do  têvmefito  da  vi/!a.  49 

fte  paíTo  fallaíTc  metaforicamente,  daado  a  entender, 
que  na  dèftruiçaô  de  Jeruíalem,  muytas  máys  com 
;  horror  inaudito  haviaô  de  aíTar  ao  fogo  os  íeiís  Rihos^ 
e  comelos  :  Erant  immma  crudeltter  fuos  íilios  affd'  '^'°J- 
tura^&  comejiur^.  líTo  íerá  huma  incerprctaçaò  tac- 
(Comodaticiaaopê  da  letra;  mas  em  fentido  tropoio- 
gicoda  Igreja  Militante  naô  ha  duvida,  que  muyto 
mayor  cuydado  davaó  a  Chriíio  as  fornalhas  aceías 
do  Inferno  ,  a  cujo  fogo  lento  haõ  de  íer  aliados  vi- 
úvos os  Peccadores  para  fempre.  Confirma  efta  myíli- 
ca  ,  e  importante  doutrina  o  Venerável  Beda  ,  expli- 
cando as  citadas  palavras  de  QX\ú{\q'.  giuiaji  in  vir i- Beda 
diligno  hoc  facííint  ^  in  árido  qiiidfietf  5ecuCordey-í^í. 
ro  jnnocente,  ícndo  por  natureza  impeccavel,  par- 
to deík  Mundo  cercado  do  fogo  de  tantos  tormentos^ 
feeu,  ícndo  a  verdadeyra  arvore  da  vida, florente, c 
;vcrdejante,  pelas  maldades  do  meu  Povo  íou  deíii- 
nado  ao    íacrificio  ,  como  a  mais  cruel  vicflima  da 
morte:  Propter  fcelera  Populi  mei prcujjl  etm,  Qúc/faicap: 
penas,  que  tormentos  cítaò  preparados,  para  as  ar-55,« 
vores  ítcas  dos  homens,  para  as  fígueyras  eíiereis 
dos  Peccadores  !  Coníidercmos  attcntos  cftis   pala- 
vras de  Chrifto  já  agonizante,  para  que  excitem  em 
nôs  hum  verdadeyro  arrependimento  das  noíTas  cul- 
pas. Profundemo-nos  com  a  imaginação  neile  incên- 
dio, que  á  vidada  luz  medonha  defte  fogo  infernal 
(dizTertulliano  )  fe  deíiillará  pelos  alambiques  dos 
noíTos  olhos  a  mais  fubida  quinta  eíTencia  de  lagrimas, 
íacadaspcranriperiflaíis  de  hum  verdadeyro  arrepen- 
dimento das  meímas  rofas  de  Vénus ,  e  das  mais  flores 
de  Cupido  ;  Oculi  lacrymis  defluant-,  qiú  cupídmt  in-Tei^M 
fiammatt  invemrtum  amor  em  arfertmt. 

He  opinião  dos  Santos  Padres  ,  que  entre  eí^as 
cievotas  filhas  de  Jerufalem  ,  a  qucu)  Chrifto  deu 
por  coníelho  ,  choráíTem  a  fi  ,  c  náo  a  cUc  ;  Noltte 

D  fe^ 


■n 


ofô  Dífcurfo  Ih 

.  flere  fuper  mê ,  fed.  fttfer  vosipfasflete.  Efta va  tambcfe 
a  Mcigdalena  ^  que^  penetrando  o  íentido^as  palavra? 
do  Redemptor ,  aplicou*as  a  fí  ,  c  confíderando  a  íua 

'  ^  ercandalofâ  vida ,  parecia-ihe  fer  elia  o  pao  íeco ,  qde 

^  íó  fervia  para  qiieymar  no  Inferno ;  Mtdier  in  Civita- 

tePeccatrix,  E,  como  diz  S,  Joaõ  Chry  íoílomo,  naô  fó 

íe  julgava  peccadora  ,  mas  o  mefmo  peccado  de  toda 

a  Cidide ;  Non  peccaírix  fblum  ^fed  totius  Ctvitatpsfa- 

k^'  ^^ipfi precatam.  Conheceo  elia,  que  na  pouca  cau- 

yjj^^^'  relia  dos  íeus  olhos,  íe  rematava  o  compendio  de 
todas  as  fuás  maldades :  c  que  a  fonte  dos  íeus  vicios 
tsVA  manava  dos  mcfmos  olhos  igualmente  culpados,  (  co- 
mo diz  S.  Ambroíio  )  tanto  porcuriofos  cm  ver,quan- 
to  que  por  libidinofos em  ferem  vií^os :  Invicem\  fe ea- 
âtm  oculorum  gratia  âeftderant  ,  ejufdem  hbtdtnis  tfi 
i}iâm^  ó*  videre,  Rcíolveo-íe  logo  a  Magdalena  a 
íepararíe  de  feus  Irmãos  Lazaro  ^  c  Maria  5  e  porque 
já  lhe  aborrecia  o  nome  de  Cidade,  que  lhe  deu  oti'- 

Ambr,  tulo  de  í^cccaàoYâ :  In  Cívitate  peccatrix.  Largou  Ig- 

inEfampoQ  Marcella,  c  foy  bufcar  a  gruta  mais  efcondida 
dos  Alpes ,  para  não  ver  mais  ,e  nunca  mais  fer  vifta. 
Mas  que  importa » que  cila  ccrraífc  os  olhos  a  todo 
obje^ílo  humano  aíFaíiando-fedeiudo,  o  que  chama- 
mos Mundo  viíivel ,  íe  o  Demónio  na  imaginação ,  e 
fantaíiacom  a  lembrança  do  paffado ,  lhe  armava  húa 
guerra  invifivcL Naô  Magdalena,  (dizia  o  Demónio) 
naô  he  poííivel  paliar  cm  taô  breve  tempo  de  hum 
cíiremo  a  outro ;  Nemo  repente fit  fummus,  PaíTar  da 
Cidade  ao  dcferto  ,  da  converíaçaô  á  íoiidaõ  ,  fera 
converíaô  de  pouca  dura.  Quem  fc  acoflumou  a  ter 
por  fua  morada  hum  palácio ,  pouco  poderá  durar  em 
huma  cova  Alpcí^re.  Nunca  peccoude  ingrato ,  quem 
teve  íangue  fidalgo  nas  veas  >  muyto  mais  quando  a 
peíToa  he  amorofa  de  génio,  e  branda  por  natureza; 
entaõ  virar  as  coíias  y  a  ^uem  idolatrava  aos  voíTos 

V*  olhos 


Do  toYineHto  da  nAfla,  $  i 

olhos,  lifi  liua  eípccie  de  tyrànnia, que  nunca  teV«  jazi^ 
go  na  Corte.  Quantos  choraõ  agora  em  Betania  ,  por- 
que naò  vos  vem  chorar  ncíTa  gruta ,  c  fe  agora  poclef- 
ícm  enxugar  as  voíTas  lagrimas ,  logo  paranaõ  as  fuás. 
Quantos  luípiraó  ,  por  naõ  poder  ouvir  hunn  dos 
voíTos  fufpiros :  que ,  íe  os  ecos  deílaefpelunca  là  re- 
tumbaíTem  ,como  cáretumbaô  os  voíTos  ays  ,jáBe' 
tania  ,  já  a  Palcrtina  ,  jâ  a  Judea  toda- formaria  a  íua 
Corte  neftc  deíerto.  Bem  íey  que  o  voíTo  Divino  Me- 
Ore  vos  inculcou  a  penitencia  j  e  que  cníina  no  feu 
Evangelho, que  naôhadefer  no  inverno  da  velhice: 
Orate  neftigavefirajiat  in  hyeme.  Mas  também  vòs  ^^'í^. 
naõ  deveis  tazela  na  primavera  dos  annos;  pois  com^^-^i' 
a  flor  da  mocidade,  corre  rifco  evidente  de  naõ  fe  vin- 
garem os  frutos  delia.  Seja  logo  no  vcraõ  da  vida, 
quando  a  idade  já  vay  para  madura ;  e  aíTim  vingando 
Os  defcjados  frutos  da  penitencia ,  fe  lograráó  fafo- 
nados:  Facite  vobis  fruãus  dignos  pcenitenti/e.    Arê    **'*  ^' 
aqui  o  Demónio,  para  enganar  a  Magdalena  , a  fiirt 
de  que  ceifando  com  as  lagrimas ,  difFcriífe  a  peniten- 
cia. Mas  ella  como  quem  fe  defpcrta  de  hum  leve  fo- 
no,  abrio  os  olhos  da  Alma  ,  e  conhecendo  o  enga- 
no ,  começou  a  fligellaríe.  Dobrava  os  fufpiros, c 
redobrava  os  açoutes  ,c  entre  as  lagrimas,  e  faluçns, 
dizia.  Chora  Peccadora  ,  chora.  Chorou  Ezcchias, 
c  chegando  ás  portas  do  Inferno  ,com  as  lagrimas  apa- 
gou aquelle  incêndio.  Peccou  David  huma  fóvez  ,  e 
com  tudo  as  lagrimas  foraõ  taõ  abundantes,  que  de 
dia  lhe  íerviaõ  de  bebida  ,e  de  noyce  lhe  alaga  vão  o 
jey  ro ,  em  que  íe  recoftava;  Potum  cumfletu  mfcebam,  Pf^l  6. 
Ó'lacrymi6  Jiratum  meum  rigaham.  Poucos  inttanrcs  ^/^''».  \ 
duráraõ  as  negações  de  Pedro,  quando  por  medo  fe  ^°^*  v 
moflrou  vacillante  no  amor  de  feu  Meiire;  e  com  - 

Xudodeíçeqhaya-fe  de  dia ,  c  de  noytfi  çm  hyiua  ror^ 
r^-:  à  D  2  rcn- 


li! 


tente  de  lagrimas,  qac  fulcando  as  faces , 'deyxiraa 
formados dous regos,  por  onde  continuamente  cor- 
riaô;  Petrm  auíem  amar)  flebat.  Cliora  Peccadorai 
'^'^^^^^  chora  Magdaiena  ,Da5por  temor  do  eterno  tormen- 
^^^  ^  '  to  das  trevas,  merecendo  os  teus  alhos  dever  nunca 
mais  a  luz  Divina :  In  aternum  nm  videbit  lúmen.  Cho- 
ra Magdalcua ,  e  refina  as  tuas  lagrimas  »  chorando  as 
aufencias  do  teu  Amante  JESUS ,  que  para  íer  teu  ef- 
pofo  ,  te  perdoou  tantas  culpas,  para  depois  dotar 
paraíempre  a  tua  Alma  com  o  lume  da  gloria.  Atè 
aqui  Magdalena  eníinando-nos  com  o  fcu  fervor  o 
modo ,  com  que  havemos  de  rebater  as  tentações  do 
Demónio,  e  da  carne.  Diz  SaõCypriano,  que  todas 
.     as  vezes  que  a  Magdalena  íe  lembrava  dos  feus  pecca- 
'^^'  dos,  logo  chorando  fe  rebaptizava  nas  fuás  lagrimas.» 
fttporM.  Cumfe  fordídam  agnofceret ,  jietibusfe  abhút ,  &  Ia- 
Aíagd.  crymis  fe baptizãL  Muyros  fe  alegrão,  e  coníolaô  em 
ler,  ou  ouvir  a  converfaõ  da  Magdalena ,  c  argumen-. 
tão  aíBm.  A   Magdalena  foy  publica  Peccadora  ,  c 
naôfófe  falvou,  mas  foy  huma  grande  Santa:  Ioga 
me  falvarcy  também  eu.  E0a  coníequencia  fdizSan- 
J>  Amb  ^^  ÀíTitíroíio  ;  be  falfa ,  e  iunt.^mente  cnganofa.  Por- 
éuLCaf.  9'-*^  ^  Magdalena  naô  íe  falvou  porque  foy  Peccadora; 
masporque foy  penitente,  €  derramou  muytas  lagri- 
mas. O  meímo  haveis  de  fazer  vós  j  íe  quereis  falvar- 
vos  :Sífeeutus€s  ^JMagdalenam  errantem ,  fequerepce^' 
mtentem.  Larguem  daqui  por  diante  os  voíTos  olhos 
o  oíficio  ydc  ver  a  qualquer  objed;o  incentivo  da  cuU 
p2,e  tomem  por  ofacio,  como  diz  o  Profeta  Biere- 
'jf        mias,  de  derretcrfe  de  dia,  e  de  noyte  em  lagrimas 
capZ^T  de  arrependimento:  Deducant  ocnli  meilacrymas  fer 
uimbr.   diemy&noãem.  Oh  doces,  e  mil  vezes  felices  lagri- 
"in  £fam.  mssy  pois  delias  emana  aredempçaô  dos  noííos  pee- 
cados :  Felices  lacryma  j  píhs  eft  redempia  pec- 


Do  tormento  da  vi  fia.  yj 

catorum.  Eílas  lagrimas ,  diz  Saõ  Gregório  Papa ,  fa5 
como  hum  novo  bautiímo  ,  que  apura  a  vifta  do  noí-  £)  Qyg.^ 
ío  entendimento :  Mens  lacrymis  bapúzata  vidi  Im-  ji4or, 
pidíus.  Produzem  na  Alma  hua  nova  regeneração  da 
graça,  para  fugirmos  das  trevas  do  Inferno,  e  alcan- 
çarmos o  lume  da  gloria ,  que  he  a  eterna  bcmaventu- 
r^nça. 


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TORMENTO  DOS  OVVWOS 


DISCURSO  III. 

Do  Tormento  dos  Ouvidos. 


Vox  Citharedorujn ,  &  Mujicorum  non  audie- 
tur  amplius.  Apoc.  i8. 


Muíica , arte  admirável ,  pedra 
ImandoscoraçoCxHS  humanos, 
ainda  que  a  façaõ  naícida  na 
obíciíra  oííicina  de  Tubalca  n, 
quando  com  os  armonioloi 
golpes  dos  três  martellos  ,  com 
uni  fona  diíTonancia  reCLimbin- 
do,fez  obedecer, e  íervir  o  fer- 
ro, aobom, ou  mao  ufodeíla 
Irilis  vida-,  com  tudo,  naô faltaõ  Authores, que  digaó, 
íer  divina  a  fua  origem,  trazendo  os  feus  princípios  da 
íciencia  infufa  cm  Adaò.  Arifloielcs  chamo  à  Muíicm, 
alivio,  c  refrigério  das  noíTas  penas.  Piataó  bin  doce, 
-ainda  que  eííi;nera,fGpultura  dosnoffos  cuvdíidos.Os 
^Gregos  conravaõ  a  Muíica  nonumcro  das  íciencias  ,x 
faziaõ  as  meímas  honras  aos  Mulicos  ^  que  aos  Poetas, 
-coroando-os  com  coroas  de  louro.  S,  Agoflinho^que  cô 
a  agudeza  da  íua  pcnna,  efcrcveo  íeis  iivi-o^  eríi  louvm' 
'da  Muíica  ^prodUm^  â  Sdl&  pór  uxú  Divitm  |  g^isq^- 

D  4  xan- 


for.  Eh 
l.GÀt 


Lth.  8. 
pol. 

Uh.  4. 
àe  Rep. 


l.C 


Pah. 


56  Dtfcuvfo  III 

xando-fc,  que  a  fua  nobrezi  naõ  feja  conhecida,  antes 
deípreíada  na  cerra :  §lnoniatn  vilefcitin  terris.  Amca- 
'-^«^  //^  ça  ao  Mundo  j  com  dizer  ,  que  cornará  a  recolhcvíe 
'•■^^     noCeo.  E  julga,  que  ofer  alguém  amante  da  Muíi- 
^^■^     ca  jhéhuni  final,  ou  huma  tâi  qual  congruência  de  íer 
predeilinado.  Canonizou  pois  Dcos  a  Muíica  como 
fanta ,  quando  ordenou  ,  que  no  feu  Templo  hou- 
veíTem  quatro  mil  Muíicos  ,  com  largos  eftipendios 
Parai,  ^3(^3  anno ,  para  cantarem  de  dia ,  e  de  noyte  os  feus 
^S-  louvores;  Úniverfi  ad  cantandumm  Templo  Domim, 
díftribtiú  erant ,  in  cymbalis ,  pjdteriis ,  &  citharis, 
.  Por  iilo  S.  Gregório  Papa  naò  cteyxou  de  fcr  grande, 
^y^'^*^'"^  por  enfinar  ellc  meímo  aos  moços  do  coro  o  canlo 
chaô  ,  que  do  íeu  nome  fe  chama  o  Gregoriano ,  nem 
S.  Luís  Rey  de  França  abatco  daíua  Mageftade,  nem 
Carlos  Magno  poz em  menos  preço  a  coroa  imperial, 
Ij  porque  ambos  honrarão  as  íolcmnidadcs  da  Igreja, 

11  com  cantarem  publicamente  neila.  Pois  íe  a  Mufi- 

{'  ca  he  hua  arte  ,  que  os  meímos  Anjos  exercitaõ  ,  co- 

í j  I,ue.     mo  íc  ouvio  em  Belcm  no  naícimento  de  Cbrifíc  ;  G/ie- 

j!  9sf.i.    m /w  ^ífíí//í>  í)íí?.  SehehúenfayodaBemaventuran- 

il  çaj  íche  hum  raígo  da  gloriado  P.raiíb;como  lo- 

1  jjl  go  tanta  gente  por  caufa  delia  fe  perde  í'  E  quanto 

til!  mais   fuave  ,  e  deliciofa  parece  aos  ouvintes  ,  com 

i  tanto  mayorcs  penas  lhes  atormentará  os  ouvidos  no 

inferno.  E  efta  ícrá  a  total  matéria  defie  difcurío  ,em 
,(  que  moftraremos  os  grandes  males  ,  e  danos  ,  que 

i  I  caufaô  as  cantigas  deshonefías ,  e  os  baylcs ,  e  danças 

indecentes  ,  ate  fazerem  eítràgo  total  nos  Povos, 
e  Republicas;  e  no  fim  veremos  a  tcrribilidade  dos  tor- 
1  mentos,  que  foffreraó  cflcs  muficos  ,  e  tangcdorcs, 

que  povoaráó  o  inferno  de  tantas  Almas  ,que  com 
a  fua  innocencia ,  c  cantigas  devotas  efíariaô  no  Pa- 
ra ifo.  Ou  fo  bom  ,  ou  mao  da  muíica:  o  ouvir,  ou 
cantar  cantigas  licitas  j  ou  illicitas  >  he  o  que  merece  a 

prc- 


Do  tormento  dos  Ouvidos.  S7 

premio ,  ou  a  pena  j  he  o  que  dá  a  vida ,  ou  a  moric, 

IDoutamcnte  advertio  Platão  a  todos  os  Magif- 
trados,  que  por  nenhum  caio  coníintaô  na  fua  Re- 
publica mudanças  de  Muíicas  }  porque  cfías  nunca  íe 
fazem f em  mortaes  pai oci imos  no  governo ,  c  íem  no-  ^^^^ 
tavel  prejuízo  das  Leys :  Ntmquam  enim  Mujici  moài  m^L^è. 
mutanttír  ^  abfque  máxima  legum  civilium  miitatione,  deRefp, 
E  tenho  reparado^  íer  iflo  aíTim ,  porque  ncfíe  Vixo^-apud 
íil  depois  que  íe  inventarão  certos  géneros  de  bayles,  Stob, 
c  cantigas,  no  efpaço  dç  quinze,  ou  vinte  annos, 
vaõ  íerpando  os  vicios,  e  dcpravando-íe  os  coftumcs, 
com  mayor  licença ,  e  publicidade  j  e  ainda  que  o 
Prelado  ,  como  Ercules  Eccicílaflico  ,  com  a  clava 
do  feu  báculo  paftorai ,  faz  o  poíTivel  para  extinguir 
efta  Hydra  corcandolhe  com  a  efpada  da  Igreja  a  ca- 
beça; o  efpirito  infernal  do  Afmodeos  faz  nalccr  logo 
outras  mais  peiores,que  os  fete  demónios, de  que  Chri- 
í^o  falia  no  íeu  Evangelho:C//«?  immundusj^iritus  exie^ 
rit  ->  tunc  vaàety  &  afftimet fipem  altos  Ipititus  nequio-  Lue.i  i 
resfe ,  &fiiint  novíffimapejoraprioribus.  E  que  aMu- 
fica  com  húa  doce  violência  prenda  os  corações,  tro- 
que os  afre(flos,e  mude  os  coflumesi  he  couía  taõ  certa, 
como  a  experiência  em  tantos  caíos  o  tem  moflrado,  c 
nôs  o  moftrarcmos,  com  o  que  fe  fcguc  mais  adiante. 

Alexandre  Magno  foy  defde   Infante  inclinado 
a  ouvir  ,  c  tocar  inArumentos  j  atê  que  o  íeu  rígido 
Pedagogo  lhe  diíTe,  que  a  fua  maõreal  fora  talhada 
para  o  ícetro  ,  e  naõ  para  o  plcdro :  Non  ad  plecínimt*^iiàn1 
fed  adfceptrnm.  Guardou  porém  fcmprc  eípecial  amor  ^A-i^ff. 
o  Timóteo,  celebre  Citarcdo,  e  iuntamente  Muíico'^''^^';^^ 
taõ  iníigne ,  que  fe  aíimilhava  a  Orfeo ,  naõ  o  fabuloío     '  '  ' 
daquelles  tempos.  Eíie  como  fido  Achates ,  o  acompa- 
nhava ainda  no  exercito ,  aonde  reparando  hú  dia ,  que 
elle  eíiava  com  os  feus  Aulicos  fobre  otrifle,ecomo 
fpnolcnto ,  armou  de  repente  na  viola  huma  batalha, 

co- 


'!h 


h   I, 


58  Difcurfo  11  f. 

eomeçou  a  correr  as  cordas,  prirney  roas  folas,  de- 
pois todas  juncas,  como  quem  vay  bufcando,  e  af- 
íegurando,a  confonancia ,  aperrando  depois  a  pri- 
ma ,  a  modo  de  guem  toca  Ivum  clarim  ,  carrega  iogo 
como  de  falto  no  bardaõ,  econtraprima  ,  parecendo 
hum  tambor  batente  com  pífaros,  eíaindo  no  meímo 
tempo  com  a  fua  voz  angeliea  começou  a  cantar, 
Guerra ,  Guerra  ,  Alexandre  ;  Alexandre ,  Guerra. 
Plm.  in  Mudou  femblante  o  valerofo  Príncipe  ,  com  íubirihe 
vita.     o  fogo  de  Marte  ao  coração ,  c  já  com  os  olhos  em 
chammas^ao  modo, que  Turno  ,Jnfl:igado  por  Juno 
contra  os  Troyanos.  gritou :  FerUcitifernm ,  date  te- 
VirgJ,  la Jcandíte muros.  AlTim  Alcxandre,dcíembainhandoa 
g.        efpada  ,e  já  veftido  do  furor  bcllico  ,  levantou  a  voz, 
edicc.  Armas  ;  armas  j  toquem  depreíTi  as  cayxas; 
em  fileyra  todos  j  cadahum  ao  ícu  pofto.  Então  Ti- 
motheo,  tocando  com  fom  mais  leve  a  retirada ,  e  mu- 
dando com  a  viola  totalmente  a  fena  ,  com  voz  entre 
amorofa,  e  languente  cantava.  Paz,  Alexandre, paz. 
Ao  teu  valor  já  todo  o  Mundo  cede.  Parou  o  invido 
Heroe,  e  já  com  o  vulto  fereno  ,  já  defpindo  as  armas, 
moftrava  nos  olhos  o  fogo  marcial  apagado.  Continu- 
ando pois  Timotheo  os  feus  Vilaníicos,  e  defc:mtes, 
com  a  fineza  da  arte ,  e  com  o  languido  do  íom  ,  fazia 
acabar  a  voz  em  delíquios  i  e  Alexandre  paliando  com 
fuavc  metísmorfcíis  de  Leaô  a  Cordeyi  o ,  experimen- 
tou em  íi  a  volubilidade  dos  íeus  afFeâas ;  que  quando 
os  imaginava  mais  terríveis ,  como  íoidado  valente,  20 

fom  de  húa  viola  fe  deyxou  cair  deímayado, como  hu 
amante. 

EQa  he  a  fuíive  violência  ,  com  que  o  obje  ão  pre- 
íente  di  Muíica  atrahe  a  fi  a  potencia  fenfitivra  dos  ou- 
vidos;  e  ainda  que  nunca  poderá  predeterminala  fifí- 
cimente,  com  tudo  com  fuavidade  ,  c  doçura  a  obri- 
gará a  privaricar  ,e  feguir ,  o  que  por  via  do  íom  ,  e 

do 


Do  tormento  âosOuvidos.  f9 

do  cafifo,  íe  reprcfenta  nã  Alma, como íe  vcrà  cia- 
ramenre  neftc  íucccíTo.    Foy  cercada  a  Cidade  de- 
Groninga  em  Olanda  por  Alexandre  Farncfío ,  no  an-: 
Bo  1568.  Tem  o  torríaõ  da  Cidadela  féis  columbrinas 
de  bronze  ,  fabricadas  pelo  Artífice  comtal  indufíria, 
que  pelas  vozes  fuaves  ,  que  lhes  fahiaõ  da  bocca, 
quando  o  fogo  as  animava  na  pólvora  ,  lhes  deraô 
os  nomes  das  fcis  celebres  fyllabas  :  Do  Re  Mi  Fa^"^^'/^". 
SoILà,  queíaôos  elementos,  com  que fe  compõem  ^*7jf^* 
toda  a  Solfa ,  c  a  efcada ,  por  onde  íe  fobe  ao  mais   ^    ' 
íublime  da  arte  do  canto ,  ou  doce  encanto  da  Mufica. 
Eu  me  perfuado ,  a  que  feria  hua  delicia  ,  quando  apli- 
cando eícaçamente  ,  a  modo  de  relâmpago,  o  fogo  no 
ouvido  do  bellico  inftrumento ,  como  íe  déffe  a  Alma 
ao  férreo  parto ,  que  encerrava  nas  entranhas,  o  vo- 
mitava pela  bocca  com  tal  ímpeto,  que  aballando 
com  oíonoro  eí^rondo  a  terra  ,  emulava  os  mais  me- 
donhos trovões  do  Ceo.  Começava  com  a  fyllaba  Do^ 
fcguia-fe  o  7^^ ,  depois  o  M;  eíte  afinando  a  tiple,  a- 
qucllc  imitando  o  contralto.  Continuava  o  Fá  ^  Soly 
Là.  Hum  fazendo  o  papel  de  tenor,  ooutro  deoytai. 
vabayxa,  e  todos  de  falfetes ,  conforme  a  mayor ,  ou 
menor  medida  da  pólvora,  que  lhes  dava  oefpirito, 
c  alento ,  para  íairem  as  vozes ,  entre  íi  enlaçadas ,  c 
ajuíladasao  metro,  que  a  íimetria  do  perito  Artífice 
inventara.  Couía   prodigiofa  !  que  fcis  canudos  de 
bronze ,  que  cm  latim  fe  chamaõ  tormentos  da  guerra. 
Tormenta  bellica :  Mais  aptos  aíaciar  o  furor  de  Mar- 
te ,  que  a  mover  a  manfidaõ ,  ou   piedade  compu- 
nhaó  huma  nova  cafta  de  orgaô ,  cujas  vozes  taô  com- 
paíTadas  fem  compaíTo  j  agora  triftes ,  c  querulss  j  de- 
pois alegres,  feíiivas  ,  e  paufadas,  fem   paufas,  fe 
desfazem  em  gargantejos  trémulos,  em  cadencias  fof- 
tenídas  ,em  paíTagcs  volantes,  e  em  fugas  aceleradasj 
€  aífim   difcordemente  concordes  ^  retumbando  os 


W 


* 


,      ;iL. 


qua- 


6o  Drfcurfo  ///. 

quatro  elementos  com  o  éco ,  como  íc  lhes  deffcm  os 
eiiges  ,  recreavaõ  os  ouvidos  humanos  com  hum 
íom  táo  fuavc  ,  e  mageftoío ,  que  parecia  a  armo- 
nia  do  Mundo,  ou  a  melodia  Pitagoricadas  esferas, 
r^orém  os  efteytos  foraõ  taô  differcnces  das  vozes, 
que  faindo  impetuoíos ,  a  modo  de  corifcos ,  os  globos 
de  ferro,  aonde  cahiraò ,  oubatèraô  ,  fizcraô  tal  eftra^ 
go  no  exercito,  que  incendiando  ,c  deftruindo,  naô 
rcípeytando  ,  nem  aos  quartos  dos  Generaes  ,  que 
mandaô,  nem  aos  quartéis  dos  foldados  ,  que  obe- 
decem ,  tudo  arruinarão ,  c  a  todos  derrotarão ,  até 
o  mefmo  campo  ficar  todo  alTolado.  AíTim  acabou 
a  fuavc,  e juntamente  horroroía  melodia  das  vozes 
deftes  canudos  de  bronze ,  que  ,  como  íe  foffem  finos, 
ao  mefmo  tom  ,  e  tempo  ,em  que  alegres  os  cerca- 
dos fcftejavão  com  repiques  a  vitoria  i  oíficiofos, 
c  triftes  fc  dobravaô  para  os  funerais  dos  ficiado- 
res. 

Nunca  li ,  nem  ouvi  inftrumentos  da  Muíica,  nem 
taó  pefados,  c  graves,  nem  taõ  curiofos,  e  terri- 
i  veis.  Sey  eu,  andarem  celebres  entre  os  Poetas  Or- 

í  feo,  e  Anfion  ;  efte  inventor  da  Solfa  ,  e  filho  de 

.    j  Mercúrio  ;  aquellc  Filho  de  Apolo  ,  Deos  da   Mufi- 

1 1  caj  porèín  ambos  na  perícia  de  tocar  inftrumentos 

craó  M-ftres  tsò  eminentes  , que  fenhoreavaò  os  fen- 
tidos,náo  íó  dos  racionaes  ,  mas  também  dos  bru- 
I  tos,  e  de  todo  o  Creado.  O  Racional  elevado  ficava 

1 1  attonito.O  feníicivo  dos  Brutos  na  fancafia  ,  e  apren- 

'  ' !  íaô  parava  fuípenío.  Os  paíTaros ,  cm  ouvindo  tocar 

j  os  inftrumentos,  como  fe  foíTcm  capazes  de  Solfa, 

j   :  lavgavaô  os  pomares ,  e  ao  fom  da  Cithara  cantando, 

'   I  c dobrando,  fe  desfaziaò  em  cantos,  c  gargantejos. 

í  Coiifa  maravílhoÍ3,  fcnâo  foíTe fabula  inventada  pelos 

Poetas;  pois  ainda  as  meímas  pedras  infenfiveis  ,  co- 
mo puxadas  dáhua  força  magnética,  do  meímo  mo- 

dO) 


Do  tormento  dos  Ouvidos.  e^i 

ão  ,  que  a  pedra  Iman  âtrahe  o  ferro ,  fcguiaô  a  doce 
melodia  decanto,  e  daCithara,  cem  tanta  quanti- 
dade, que  fazendo  como  corte  a  Anfion,  c  Orfeo,  a- 
montoando-fe  cm  toda  huma  íobre  a  outra,  deu  ma- 
téria a  fingirem  ,  que  com  ellasaflím  arrumadas  fc  fa- 
bricarão os  muros  da  famofa  Cidade  de  Thebas;  I/orJâ 
Fertur  ,  ó'  Aufion  Thúana  conàitor  areis.              arf.paet. 
Saxa  mover e  fonn  teftudmps ;  é^  prece  blanda            Onid, 
'Dticere^  qnovellet.                                                Metam: 
Keparemos  nas  palavras :  Ducere ,  quo  velkt.Qucx  ^'^  ^^' 
'dizer,  que  o  objedto  dos  ouvidos  nos  levará,  por  on- 
de quizer.  Bem  íabiaó  Ovidio,e  Horácio,  Varoens 
taõ  doutos,  e  entendidos , que  nem  as  arvores  fe  ar- 
rancarão do  lugar,  em  que  cflavaõ  plantadas ,  para  ou- 
virem a  Orfeo  ,  nem  as  pedras  íaíraõ  das  fuás  torren- 
tes, movidas  da  cithara  de  Anfion.  Porque ,  íe  eraõ  in- 
feníiveis  por  natureza.como  podiaõ  ouvir,que  hehum 
dos  cinco  fcntidos?  Fallavao  logo  metaforicamente, 
dando  nos  a  entender,  que  buma  voz  cantadora  paíTa/^/^i? 
logo  a  encantadora ,  e  feyra  huma  Circcs ,  transforma  ^^^f^^Jf^ 
o  racional  em  bruto  ,  e  o  feníivel  no  infenfível ,  co-"^*^''"? 
mo  Hefiodo,  c  Natal  Comité  expiicão  as  íuas  notas.   ^"* 

Temos  a  prova  evidente  ,  na  fagrada  Eícritura 
no  mais  fabio ,  e  entendido  homem  do  Mundo.  Ef- 
cafamenteouvio  Salomão  as  cantarrices  cftrangeyras, 
asMoabitas,eSidonias,  que  de  racional  o  mais  per- 
feyto  ,  le  transformou  em  bruto  ,  o  mais  efíólido: 
Depravattm  eft  cor  rjus ,  nt  fequeretnr  Veos  aUems.x.Reg: 
Comenta  Cornelio  Alapide  :  Depravatum  eft  cor  ejtiscap.i  i. 
fer  mulíeres,  ha  enim  Sidónia  (  que  faô  as  Cantarri- 
ces (quadementavertmt  eum,F\zcvâò-no  louco,  pri •  CorMeh 
varaôno  do  juízo,  dementaverunt.  Pois  quem  hc^^^p* 
louco,  e  já  naõ  tem  ouío  da  razão,  que  he  o  racio-^^'* 
nal ,  fíca-Ihe  íó  o  íeniitivo ,  que  he  o  coníiitarivo  dos 
brutos.  Ora  fatal  maga,  c  terrível  Cirçes,  he  aMu- 

íicaj 


iii 


'< 

i 

í 

j 

] 

ii 

ú^  Difcurfo  III. 

fica ,  que  fem  fer  fabula  ,  mas  com  toda  a  verdade  da 
racionais  nos  iransfocma  em  brutos.  Mas,  oh  gran^ 
de  miícria  dos  noílos  ouvidos!  Ainda  as  Cantaratrices 
fizeraô  a  Salomão  peyor  que  bruto.  Obrigàráo-o  a 
adorar  a  Aftarcher ,  Deofa  dos  Sidonios ,  que  era  entre 
os  H;breos  a  Deoía  Vénus  de  Grécia  ,  obrigáraô-o  a 
darincenfo  aMoloch  ídolo  dos  Moabitas  ,  chamado 
o  Deos  da  luxuriarJ"^^  colehat  Salomon  Aftarthen  Deam 

keg.r.  Sidomorumi&  Moloch  idolum  Ammonitartm.   Eain- 

cap.ii,  da  o  obrigarão  a  mayor  exceíTo,  que  naò  fora  crivei 
em  hum  homem  ,  que  por  antonomaíia  fe  chama 
ameímafabsdoria,  íe  naõ  fora  de  fé »  e  foy  ,  que 
kvantou  hum  fumptuoío  Templo  a  Chamos  ídolo 

Uiti  ^^^  Moabitas ,  que  era  entre  elles  o  Deos  das  Bebe^ 
**'"''  '*dices,como  Bacco  entre  es  Gregos  .-  Tunc  aàifica* 
vit Salomon fanum  Chamos^  erat  autem  Chamos  Deus 
temukntia  ,  ficut  ,  &  Baccus,  Expofiçaõ  do  grande 
Interprete  CornelioAlapide.  A  tanto  naõ  íe  atreve- 
rão com  ás  fuás  poeíias ,  nem  os  inventos  de  Homero, 

^  nem  as  fantafus  de  Horácio,  nem  as  transformaçoens 
de  O  vidio ;  pois  cftes ,  quando  muy  to  differaô ,  que  a 
cithara  de  Orfeo  ,  c  de  Aníion  faziaô  coma  íua me- 
lodia as  arvores,  eas  pedras  de  iníeníiveis  íeníiveis. 
Porem  as  Circes  Moabiticas,e  asSereas  fiioniascom 
o  íeu  doce  canto  ,encantavaò  de  maneyra  os  ouvidos 
de  Salomão ,  que  chegou  a  dar  ás  arvores ,  e  às  pedras, 
naõ  íó  o  fcnfitivo,  mas  também  o  mcionaí,  e  o  Divino; 
pois  bem  íabia  Salomão,  que  nem  oldolode  Mo|och., 
nem  o  de  Chamos  podiaõ  íer  Deos  ,  pois  eraô  por 
eííencia  huma  arvore  talhada,  e  entalhada  cm  hum 
fiava  lacro  de  cedro  i  ou  húa  pedra  dibuxada  ,  e  eícu'pi- 
da  en  hu  i  eftatua  de  mármore. 

Tornemos  agora  ao  orgaô  das  bombardas  de  Grc- 
ninga ,  )à  que  ellas ,  a  modo  das  trombetas  de  J:ricô,  no 
mefiTio  tempo ,  que  as  tocavaõ  ,  deftruhiaô,  e  lançavaõ 

por 


Ai 


met. 


Do  mfnem^  dos  Ouvidos.  6^ 

'pdr  terra  os  muros :  Et  dangtntihus  .tubis  ^  muri  illicofof-^' 
(omterímt.  E  vejamos ,  fc  as  podemos  moralizar  com 
hum  texto  do  S  Job,  cuja  explicação  naó  lie  taõ  fácil.      '  .'^ 
Defcrevejobahum  pcccador ,  em  figura  deBehemot, 
palavra  Hebraica ,  que  na  noíTa  lingua  íignifíca  jumen- 
to i  ediz,  que  os  feus  oíTos  tem  a  forma  dcfrautas, 
ou  canudos  de  bronze:  Ojja  ejus  njtlut  fiftula aris,  v^j^.q; 
Ariíloteles  diz  na  íua  Mctafifica ,  que  o  compoflo  hu- 
mano he   como  hum  orgaõ,  e  a  Alma  he  a  forma, 
que  o  informa  ,e  oefpirito,  que  o  anima,  e  lhe  dá  a 
vida  ;  Anima  eft  aãus  corporu  organis  ,  potmtia  vi- 
iam  habentis.  Efe  o  corpo  humano  he  hum  orgaô, 
quem  duvida,  que  falia  admiravelmente  oSantoJob, 
chamando  aosoíTos,  canudos,  ou  frautas:  0£a  ejus 
-.fjitda.  Reparo  ,  porque  caufa  eftas  frautas  haviaõ 
de  fer  de  bronze  f  Fíjiula  aris.  Se  faô  frautas  os  oíTos, 
diga  antes ,  que  faò  de  marfim  ,  ou  de  ouro ,  ou  de  pra- 
ta ,  ou  de  cobre,  ou  de  ferro.  Mas  naô ;  porque  todas 
cftas  couías  cada  hua  por  íi  faó  de  húa  fó  efpccie.  Haó 
bem  fim  de  fer  de  bronze ;  Fiftula  ^w,  que  he  metal 
compoflo  de  diverfos   metais.     Mais.  E  porque  o 
peccador  fcaviadc  fer  figurado  em  Behemot,  c  naó 
cm  Afmodeos  ,  ou  Belfebub  ?  Porque  Behemot  me- 
lhor reprefenta  a  hum  Pcccador  ,  pois  fígnifica  hum 
jumento,  qiiche  o  animal  mais  vil,  cefíolido  de  to- 
dos, íem  brios,  fempre  pigro,  c  por  ifto  maltrata- 
do, e  obrigado  a  toda  a  carga  ,  e  a  todo  género  de 
trabalho  :  íem  eftimaçaõ ,  ou cuydado  deile  ,  antes  deí- 
prezado  como  hum  jumento. 

EqueeftcfejiofentidojaíTimmyftico,  como  tro« 
pologico  defte  texto.  O  Profeta  Rcy,  que  na  ma- 
téria da  Muíica  , entre  os  mais  Profetas,  he  o  melhor 
contrapontifla  ,  já  que  Job  leu  na  cadey ra  do  feu  mu- 
ladarafualiçaõdeponto,  David,  não  jà  com  a  fua 
arpa,  mas  com  o  orgaô  do  íeu  corpo,  explicará  o  con- 
tra- 


riMMMkÉite^aiii«HriMM 


i  I 


w 


64  Di/cíir/o  III. 

traponto,  Queyxa-fc  pois  o  Real  Profeta,  que  nâõ 
pôde  firmar  as  pazes  com  os  íeus  oíTos:  Non  efi  pax 
^Í^^'l5  Bjfibus  mm.  E  que  guerra  íerá  efía ,  que  tem  David 
nos  íeus  oíTos,  que  naô  admitte ,  nem  tregoi  ,  nem 
quietação,  nem  pazes?  Non  eftpax  Gjjibus  meà.  Saô 
as  frautas  de  bronze  dos  íeus  oíTos  :  OJJa  cjusfifttiU 
aris.  Que ,  aíTopradas  pelo  Demónio  ,  tazem  rinir  o 
íom  de  codos  os  mctaes ,  agora  juntos ,  jà  dividido^; 
conforme  a  diípofíçaò  da  noffa  natureza  corrupta. 
Huma  vez  com  o  fom  do  ouro  ,  e  da  prata,  que, 
como  gerados  do  Sol,  c  da  Lua,  faõ  os  dous  Pla- 
nej:as  mais  rutilantes  ,  e  nos  infíigaô  á  foberba  ,  e 
vaidade  ,  para  luzirmos  melhor  que  os  outros.  O 
ouro ,  e  a  prata  fe  falfiflcaõ  com  o  cobre  ,  e  como 
cfte metal  tem  o  influxo  de  Mercúrio,  nos  inílnua  q 
roubo,  o  engano,  a  trapaffa,  e  todo  género  de  fal- 
ftdades.  O  Planeta  de  Mírrte  favorece  muyto  o  fer- 
ro, e,  como  efte  metal  he  o  ordinário  inílrumento  pa- 
ra as  guerras ,  aíTopra  o  fogo  da  ira ,  fufcita  os  cfpi- 
ritos  bsllicozos,  reprefenta  à imaginação  injurias,  e 
afrontas  ,^  e  alterando  o  coração  com  hum  yefuyio 
de  cólera  ,  o  faz  arrojar  em  vinganças  ,  precipícios, 
e  mortes.  O  Planeta  de  Vénus,  tem  eíFeytos  total- 
mente contrários  a  Marte.  Chama-fe  cík  Planeta  do 
vulgo  a  eftrella  di  Alva ,  e  dos  Mathcmaticos  o  Plane- 
ta de  Vénus.  He  beneficio  ao  corpo  humano,  etem 
íuas  icíluencicns  benignas,  e domina  nos  naturaesbran- 
dos  ,  amigos  de  ouvirem  inftrumentos  ,  e  Muíí^as, 
que' fe  forem  profanas,  e  amorofas  ,  afFeminando  íe 
o  coração  ,  acha-fe  depois  com  huma  íuave  violência 
engolfado  em  deley  tes,  que  do  nome  dcfte  Planeta  cha- 
maõ  venéreos. 

ConfeíTa  agora  David,  como  Mcfírc  da  Capella 
taõ exercitado  no  fom  deftas  frautas,  o  que  experi- 
mentou emfi.  Checou  David  do  cajado  ao  fceptro  ,c 

de 


DoteMento  doiOuvidoi.  íj 

iJcPaílpr,  a  fer  Rcy.  Confiderava-fc  como  o  Sol  ái 
Judea  ,  coroado  de  tantas  luzes ,  quantas  craó  as  pe- 
dras precioías ,  e  peças  de  ouro  guardadas  no  fcu  the- 
fouro;  cortejado  de  tantos  Planetas,  quantos  eraõ 
m  Pr incepes,  c  Grandes  da  íua  Corte.  A'  vifta  de  tan- 
to poder,  e  grandeza  tocou  o  cfpirito  maligno  a  frau* 
ta  da  vangloria,  c  jrendido  logo  ao  íom  delia,  man- 
dou aliítar  porjoab  ,  noeípaço  de  nove  mezes ,  hum 
milhaó,  c  trezentos  mil  homens  de  armas  •,  often-i.^í-^; 
taça5„de  que  Dcos  ficou  muy  irritado.  Fez  a  peniten-  cap.i^^ 
cia,  que  Dcos  pelo  Profeta  Gadlhc  mandou  efc^lher. 
Mas  que  importa,  íe  cllc  da  galaria  do  feu  paço  ,  ou- 
vindo outro  fom  mais  íuave  de  outra  frauta  ,  que 
nefta  occafiaô  lhe  íervio  também  de  canudo  de  oculo, 
de  verão  longe ,  para  alcançar  a  Beríabè  ,  que  fc  efta-         \\ 
va  lavando:  Vidit muUerem  fe  lavantem.  Foy-lhe  re-  ^'    *^' 
cado,  vey  o  ao  paço ,  e  do  mcfmo  modo ,  que  Dl  na  com 
o  Princepc  de  Sichem ,  aíTim  Berfabè  tornou  indigna 
para  fua  cafa :  Et  rever/a  e/Í  tn  domum  fuam  concep 
to  fatu.  Entrou  depois  outra  frauta  de  ferro  ,  que 
tocando  em  tom  de  guerra  a  batalha,  naquâl  ficou 
vencedor  Behcmot  ,  dcftruíndo  ,  e  aniquilando  ao 
pobre  Urías  ,  marido  de  Berfabè  ,  que  teve,  com 
lhe  tirarem  a  íua  conforte ,  taô  pouca  lorte  i  porque 
pcrdeo  a  honra ,  o  credito,  e  a  vida. 

Coma  defconccrtada melodia  defte  orgaô  gaQou 
David  mais  de  hum  anno  ,  atè  que  alumeado  pelo 
Profeta  Natan,  conhcceo  ,  que  as  faltas  defta  íolfa 
não  crão  minimas,  nem  feminimas  ;  mas  graves, 
c  agudas ,  e  todas  corridas ,  procedendo  naó  tanto  da 
roim  matéria  das  frautas  ,  quando  do  efpirito  ,  que 
com  maliciofo  aíTopro  as  animava.  Oh  luz  Divina, 
quanto  es  poderofa ,  quando  entras  em  huma  Aln^a! 
Cpnhccco  David  ,  que  o  concerto  das  frautas  dsfte 
-   ^      '  E  noíTo 


\    f 


Gev.l;^ 


06  v^DifcurfíiIlhAfi 

jãoíTo  orgaõ  corpóreo  coaíiOe  na  srítioiiia  dgs  payxôcs 
ajuíiadas  á  razaó,  e  que  os  deíeaníes  verdadcyros  Íai5 
as  frequentes  jacuiatorias  em  Deosje  aífim  trocando 
asdeiicias  da  folfa,  que  recrça  os  Mentidos  ,eom  a 
penitcneia,  que  conforta  ,^7  i\lm^^;eoiite^u ,,  qu€; 
todo  o  fom  ,,e  canto  profano  era  bu^nn;  encanto  vicio^ 
']  lo;  OJjfamea  velut fifiula  ark.  Que  com  efte  nunca  re- 

/  I  riaõ  pazes  os  íeus  oiros;  A7(?«^jí?á  a:  offlhmmek.Eq\HÈ 

,  i  final  mente ,  eiie  eca  o  y  er  dadey  «o  Pcccador  figura  do 

j  I  em  Behem o t ,  que  fe  ti nl|a  rransforimidov,  e  fiey to  }U* 

i  í^cmo:U£jumentMmfaãusfum4pfidte'^. :         ...:.' 

Para  ficar  amuíica  deíia  doucrina  mais  concorde^^ 
e  per fey ta  ;  a t raz  dos  i níh'umcntos  do  Pay ,  f egucm-lc 
os%ancares  do  Filho.  Diz  pois  Salomão  no  capitulo- 
'  '^' íetimo:  ^ud vldebitinSunamitenift choros caflrvrttnii 
Que  fe  pôde  jà  ver  na  Sunamite ,  icnaõ  arraays ,  ten^ 
|Í||t  das,  e  eíquadrões  armados  !  Difficultoío  texto^-r© 

naô  menos  duro ,  que  ode  Job ,  com  os  oÍTí*  de  hroh-^ 
ze.  Se  a  Suoamitíshe  figura  de  huma  Alma  i  elevada 
aDeos  com  huTn  extais  gozando  as  muíicasdo  Pa-» 
raízo  ,  como  diz )  que  feoaõ  achanella,  fe  naõ  cl3# 
rins  ,  c  tambores  da  terra  f  Se  ella  eflà  íõlitaria  ,  er 
pacifica  na  contemplação  ,  como  afaz  entre  os  excr- 
fiios ,  e  tumultos  de  guerra  ?  e  íc  finalmente  Suna- 
mitis  no  original  Hebreo  fignifica  ,  í)<?r;»/>wí,  Eftà  re- 
pou fando  no  fcyo  do feu  Dikdlo  '.Dikãm  meus mibi, 
é^egoilli.  Como  quer ,  que  fejafentinella ,. com  con- 
tinuadas vigias  contra  os  fcus  inimigos  ?  Reparou  Sa-^ 
lomaõ  5  que  ícu  Pay  David  ,  bem  ícte  vezes  no  dia^í 
JBfAlm.  pegando  na  íua  arpa,  cantava  louvores  a  Dcos :  Se-^i 
li 8.  pttes  m  die  ,,  laudem  dixi  tihh  Reparou  também,, 
que  de  dia,  e  de  noyte  eíiava  meditando  o  modo* 
Pfilm.  mais  feguro ,  para  guardar  pcrfey  tamentc  a  Eey  do  íeu;' 
1:23.  ^^^hov  rXôta  die lex  tua  meditatiâmea  efi.  Reparou?* 
'  ■  .  ^  finai-- 


■Dosnmento  dos  Ònvldáié  &7 

inalmcnte,  ^uc  defíes  cânticos^  repetidos,  c  defta 
flieditaçaò  continuada  tirava  David  por  coníequen- 
ciar  Perfequar  inimicos  meos ,  ^  comprehendam  illos. 
Farcy  guerra  aos  meus  inimigos ,  e  os  reduzirey  á  mi- 
nha obediência ,  atè  eu  ficar  Senhor  abfoluto  delies. 
Entendeoentaõ ,que  eíVes  inimigos  eraõ  as  frautas  do 
OTgaõ  do  ícu  corpo  defordeaadãs  ,que  íaõ  as  payxôes 
da  ira  ,  do  amor,  e  do  ódio  >  e  efcrevco  entaò  nos  Can- 
tares ;  Q^id  vídebis  m  Sunamitt.  Eis-aqiii  a  Alrna 
«levadaem  hum  extafis  com  afuave  Miaíica  da  con- 
templação :  Nifi  choros  Cafirorum.  Eis-ahi  o  períe-^ 
guiu  os  inimigos  ,  que  faô  o  Demónio ,  o  Mundo ,  e  a  Thenà, 
Garne.  Admiravelmente  a  cfte  propoíito  Theodoreto,'«^'í«ff 
fobre  efte  mefmo  textOvapprová,e  confirma  quan.^''^^'»' 
to  temos  dito:D««/  apudAltiJJímum preces funâit,& 
Mu  fiei  officiumfacit ,  &  mtlítis }  (JMuJici  quidem  dum 
placat  iram  Dèi  }  CM^íUtis  dum  vincit  fetpfum.  Eftas 
iaõ  as  Muficas ,  ás  quacs  nefta  vida  havemos  de  aplicar 
osnoíTos  íentidos,  com  cantar,  e  ouvir  os  louvores 
deDeos,c no  mefmo  tempo  pelejar  com  osnoíTos  ví- 
cios, o  vencer  as  noffas  payxões:  CMufici  officiumfa'  ^■^^•'•3' 
cit  i  &  tMtlitís.  '^'^'^' 

Foy  reparo  de  Marco  Tullio ,  que  nas  Cidades  da 
Grécia,  com  as  mudanças  das  Muficas,  fe  mudarão 
também  os  coftumes  dos  Povos  ,  tornando-íe  de 
guerreyros  em  effeminados ,  atè  ficar  a  Grécia  ,  que 
eraotheatrodc  tod^as  as  Sciencias,  comohuma  cloa- 
ca de  immundicias*  Sò  os  Lacedemonios,  como  ain- 
da eRavaô  freícas  na  fua  Metropoli  de  Eí parta  askys 
doíeu  Legislador  Licurgo ,  viviaô  mais  comedidos, 
porque  com  a  infaliivei  execução  das  penas,  naô  con- 
íentia  o  Senado,  que  paíTieaírcm  defcaradas  as  culpas.  ^|.^^' 
Naõ  foraò  aífim  os  Povos  Sibàritas ,  que  cfquecidos  da 
deftruíçaõ  ,  e  incêndio  de  Troya  fua  Pátria ,  entrega n- 
do-ie  a  coda  género  de  delicias  >  íoitàraõ  as  rédeas 

£   2  SiOS 


P/ut.  iê 


^!fc.^' 


1      í 


í:  i\ 


éS  Dtfcttvfo  11 L    3 

aos  viciosj  c,  como  fc fcftejaírem  a  fua  Ekna;nâ8ícorí: 
tentes  das  fuás  Muíicas,  c  danças,  eníinàraô  tambcm  ao 
íofn  íaftenido,  c  grave  de  humas  fiautas,  a  baylar 
com  arte  os  fcus  meímos  cavallos.  Oh  quanto  me- 
lhor fora  ,  qúc  os  cavallos,  em  lugar  deíe  adeftra-i 
remcom  o  fom  madioío  das  frautas  para  obayle,  íc 
cnfayaífem  com  o  tinnir  afinado  das  trombetas,  e  com» 
o  marcial  eftrondo  dos  tambores,  que  lhes  fufcitaf- 
fem  os  brios  para  a  peleja.  Succcdeo  depois  entrar 
o  pomo  da  diícordia  ,  entre  os  Lacedemonios ,  e  Si- 
baritas,  ainda  que  os  Authorcs  Gregos, oaõcfpeci- 
fiquem  qual  foy  o  Paris, que  o  lançou.  Sò  convém- 
todos,  queosSibaritas  prepararão  hum  exercito nusí 
meroíiilimoíCuja  notícia  certa  deu  taõ  grande  aba- 
lo á  aepubh"ca  de  Eíparta ,  que ,  chamados  a  concelho 
os  Senadores,  todos  votarão  concordemente ,  que  o 
numero  de  trezentos  mil  combatentes ,  poflo  em  para-tí 
leio  com  a  limitação  da  gente  de  Efparta,  que  com 
grande  trabalho  poderia  ajuntar  trinta  mil,  era  que- 
rer húa  formiga ,  pelejar  com  hum  Elefante.  Porém 
que,  fe  fcmediíTe  adcfigualdade  do  numero  dos  íol- 
dados  com  o  difFerente  valor  das  duas  nações;  no 
calor  do  combate  fe  achariaõ  trinta  mil  Elefantes  con- 
tra trezentas  mil  formigas.  Acordarão  mais ,  que  o  gé- 
nio dos  Sibaritas,  mais  era  inclinado  a  ouvir  concenros 
Muficos,que  inflrumentos  bcllicosi  cque  mais  depreífa 
arsmavaõ  com  os  pês  húa  dança ,  que  nas  mãos  hua  lan- ' 
ça^  Mas  porque  o  valor  fó  naõ  bafta ,  quando  as  forças 
faõdemaíiadamente inferiores,  determinarão  valerfc 
de  hum  cfíratagema ,  com  que  aíTcguraífem  a  vito- 
ria. Efcolhèraô  a  huns    poucos    de  íoldados  ,  dos 
mais  fieis  da  Republica,  c  mandàraõ-os,  como  fugi- í 
dos,  e  queyxofos  ,  paffar  para  o  exercito  inimigo  com 
inftruiçaó  fcoreta  ,  de  comprarem  as  frautas  de  me- 
tal, e  aprenderem  as  peças,  a  cujo  íom  cuflujnava5 
<^''^'->  dan- 


Dâ  tõVf^ientQ  dos  Ouvidos.  6^ 

dançar  os  Cavalios.  Chegarão  ao  exercito ;  e ,  fíngin- 
do-íe  traydorcs ,  pedirão,  que  os  aliftaíTem  debayxo 
dasbandeyras  inimigas,  Naóforaõ  admittidos  a  íer^ 
vir  no  exercito  j  porque  eraô  fugitivos ,  conforme  eníl- 
na  o  Meíire  da  Arte  Militar  Vegccio :  Transfug^e  nuU  .^.  . 
lo  modo  m  exercitu  admittendi,  Buícàraò  logo  aos^'^'J^/* 
Tangedores,  e  tratando  amigavelmente  com  çW^^^Milit. 
porfiavaõ ,  que  naô  era  poílivel ,  que  huns  brutos, 
como  faô  os  Cavalios,  aprendeíTem  bayles,  e  dan- 
çar a  ponto.  Da  porfia  paíTáraó  à  apoíta  -,  da  apof- 
ta  á  execução  dobayle,  cdobayleao  enfmo  jcaíTim 
cnfinados  ,  compraraõ-lhes  os  Cavalios  ,  e  junta- 
mente as  frautasi  depois  induzidos  os  mefmos  Tan- 
gedores com  hum  desfarcc  notável  paíTáraõ  outra 
vez  para  Eíparta,  aonde  os  cftavãoeíperando  já  pre- 
parados para  a  guerra.  Viraô  ,  c  ouvirão  aííim  as 
frautas,  como  os  bayles  ,  e  Cavalios;  e  certificados, 
como  o  eftratagema  havia  de  íortir  o  íeu  eíFeyto ,  af- 
íentáraõ  de  acometer  ao  inimÍ£»o.  Checarão  à  vifta 
os  dous  exércitos,  c  acometendo  os  Lacedemonio? 
com  Ímpeto  ,  fizeraó  forte  reíiliencia  os  Sibaritas 
com  a  Cavallaria  ,  mas  durou  pouco  j  porque  tocan- 
do as  frautas  a  coíiumada  melodia  ,  e  applicando  os 
Cavalios  os  ouvidos,  paráraõ  logo  de  repente  }  c  o  ini- 
migo >  entrando  dentro  das  fiicyras  com  íoccgo ,  fazia 
grande  eftrago.  Feridos  os  Sibiritas ,  feriaõ  com  as  ef- 
poras  os  Cavalios  ,  porém  eftcs  obedecendo  ao  fom  das 
frautas,  fem  d  ar  paíTo  adiante,  baylavaõ  com  mayor 
força;  e  o  inimigo  ,  jâ  entrado  no  exercito,  dego- 
lando, profeguia  no  eftrago.  Conhecendo  os  Sibaritas, 
queperdiaõ  a  batalha,  por  terem  Cavalios  dançan- 
tes ,  tocàraõ  a  retirada  ,  por  não  ficarem  de  todo  der- 
rotados. Porem  os  Tangedores  aífinavaó  as  frautas, 
eos  Cavalios ,  tomando  mayores  brios  ,  levantavaõ 
as  mãos ,  e  com  faltos  compaffados  piíavaõ  o  meímo 
< .:  E  3  ter- 


\i 


\ 


.  :''V' 


terreno  no  fcu  poíio.  Galharda  viíía  ,  c.  tia  verdade 
alegre, fe com  huma  peripécia  íimultanea não obraíFe 
cfFeytos  encontrados  ,  pois  no  meímo  tempo,  que 
osCavallos  eraô  a  recreação  dos  olhos,  os  Cavalley- 

Tosforaô  o  objeâo  da  mais  laíiimofa  magoa.  Porque 
os  Lacedemonios  ,  vendo  a  invenção  da  eíiratacema 
Gorrercom  toda  a  felicidade,  foraó  ferindo^  e  degolan* 
doj  atê  ter  completa  a  vitoria. 

Eíle  eftratagema  y  que  a  muy tos  parecerá  no^ 
voí^  íeos  que  lerem  eftc  livro,  tiverem  com  o  lume 
da  fé  abertos  os  olhos  da  Alma  ?  acharáô  fer  muy  an- 
tigo j  e  que ,  primeyro  que  os  Lacedemonios,  íe  fer* 
viraõ  fempre  dclleos  Demónios.  Suponhamos,  qué" 
hum  moço,  inclinado  deíde  a  primavera  dos  feus an- 
ãos a  ouvir  Mufrcas  lafcivas  ,  aprende  a  tocar  huma 
viola  /  as  primeyras  peças  baõ  de  fer  de  danças ,  e  bay* 
lesj  os  primeyros  defcantes  haõ  de  acompanhar  can- 
tigas amoroías.  E  que  importa,  que  a  voz  fahinda 
do  laringe,  como  por  hum  cano  de  prata,  feja  an- 
gélica, fe  no^  repercutir   doar  ,  forma  taes  palavras, 
que  fe  faz  diabólica.  Eíia  voz,  que  parece  taõ  doce 
unida  com  oíom  taô  agradável,  entrando  pela  por^ 
fa^  dos  ouvidos ,  infunde  iníeníivelmente  no  coração 
hín-  caíla  de  veneno,  que  quanto  maisíuave,e ami-^ 
go  do  corpo,  tanto  mais  mortífero,  e  inimigo  da? 
Alma.  xALÍfim  inficionado  paíFa   o  Moço  ,  mezes,  ç: 
annos,  ncfle  cxercicio,  fempre  em  muíicas , fempre 
em  cantigas ,.  c   bayles»  Chega  depois  huma  doençaj, 
c^eícem  os  fimptomas  ,  o  corpo  enfraquece,  e  a  po- 
tm'i    ^^^  ^'"^^5  fenaô  eflà  immerfa ,  como  a  Alma  dos 
•  ^  brutos,  na  matéria r  Luten  váfa  poriam.  Viveío- 
mergida  no   viíeofo  lodo  dos  vicios.    Ghega  íinali 
mente  a  morte  ; e  quero, queamifericordia  Divina 
permitta,  naõ  fer   apreíTada ,  nem  repentina  ;  mag. 
tue,,dèpois  de  alguns  dias  de perigoía  doença.,  de  cer- 
to 


Do  tormento  dosOuvldos.  7' 

ão  final  ao  Medico ,  que  he  tempo  de  tocâr  o  reba- 
te, para  tomar  as  armas  dos  Sacramentos,  e  prepa- 
;rar-ie  para  a  agonia  (palavra,  que  íign'fica ;  Certa- 
mm  ultimum.  )  A  ultima  batalha  canipal  ;  ou  para 
vencer  para  íempre,  ou  para  íempre  ficar  vencido, 
A  ConfííTaõ  geral  já  naô  he  a  tempo  ,  porque  os  dias 
•antecedentes,  em  que  havia  de  cuydar,  e  diíporfc 
^paraella,  íe  gafláraõ  ,  em  tocar  inftrumentos  pava 
aliviar  ao  doento.  A  penas  íe  confeíTa ,  (\o  que  fc  iem- 
■branaquelle  inftante,  que  logo  vem  o  Pároco  com  o 
•Santiíiimo  Viatico  ,e  pouco  depois  o  Coadjutor  com 
os  Santos  Óleos, para coníolar,c  confortar  o  enfer- 
«10  nefte  ultimo  tranfe,paraa  outra  vida.  íQo  alfim 
admiravelmente  diípofto  ,  vejamos  agora  a  traça 
.occulta,com  queefte  miferavel  peccador ,com  hum 
íucceíTo  taõ  proípero  fica  enganado.  Entra  já  na  ago- 
nia; já  ofirro  lhe  aperta  a  garganta  j  já  perde  afalla, 
•c  a  vifta;  e  já  não  ouve.  Poem-íe  de  geolhos  o  Sa- 
•eerdote , com  os  mais  circundantes,  echorofos  rc- 
zaò  as  Ladainhas,  comas  mais  orações  da  Igreji,  pa- 
ra que  com  a  fun  interceíTaõ  acudjô  propicias ,  coiii  a 
■Virgem  NoíTa  Senhora,  o  Santo  do  feunome  ,  e 
rSaôJofcph,  com  os  mais  fcus  Advogadas  ,  e  Pró- 
<florcs.  No  mcfmo  tempo  ajuda-fe  inviíivelmente 
■huma  Jegiaò  de  Demónios ,  que  com  as  violas ,  e  mais 
iníirumentosna  maô ,  defperta5,e  avivaô  na  fantá- 
■fía  do  moribundo  os  bayles,  e  laraos ,  com  as  mais 
inuficas  deshoneíias.  Repitem  com'  fom  im  iginarib, 
c  com  vozes  fjntaíticas,  asmefmas  palavras  d  iscan- 
tigas ,  com  os  mefmos  dcfcantcs  ,  que  as  acompa- 
nhavaô.  Eo  pobre  do  enfermo,  ainda  que  proíiraio 
<le  forças,  acuílumado  como  Sibarita  a  viver  entre 
as  fonòras  delicias  ,  firma- íe  voluntariíimente  na  lem- 
•brança  dos  goftos  paíTados;  e  o  coração ,  que  ainda 
vive  como  bruto  ,  torna  a  deíejar,  e  recrcarfe  no 

E  4  que 


?i         ;  Dtfcurfo  III 

que  em  vida  fempre  amou  j  e  a  vontade  ,  que  pelo 
cfpa^o  de  tantos  annos,  nunca  íoube,  nem  quiz  ré- 
íiiiir ,  ou  vencerle ,  em  violência  fe  rende  ,  e  inclinada 
pelo  mao  habito  fc  dà  por  vencida. 

Finalmente,  vendo  já  oSacerdate  os  íinaes  certos 
da  morte,  cque  por  inflantcs,  íc  fepàra  a  Alma  do 

/M^rí-^'.  corpo ,  começa  a  rezar  em  voz  alta;  Profifcere  Ani* 

^°^-  ma  Chriftiana  de  hoc  mundo-,  in  nomtm  Dei  Patrps  omm- 
potentíí  ^  quite  creavit.  ISlo  mefmo  tempo  o  Demo* 
nio  Aímodeos  levanta  o  compaíTo,  e  os  feus  com-^ 
panheyros  tocaô  os  mefmos  dcícantcsj  cantaô  as  meí- 
mas  cantigas,  a  que  foy  íempre  inclinado  ,  e  com 
o  engano  de  hua  falfa  cíperança  lhe  dizem ;  Dumjpi' 
TO  ,j}er&.  Em  quanto  dura  a  refpiraçaó  no  corpo ,  ha 
vidij  em  quanto  ha  vida  ,  íe  pôde  eíperar  a  íaude; 
Dum  f£iro ,  r^ero.  E  affim  cm  quanto  a  Alma  refpi^ 
rando  eípera  ,  deíefperada  efpira.  Adverte  o  Sa- 
cerdote, que  jà  a  Alma  fe  feparou  do  corpo;  e,  co- 
mo cuyda  dos  antecedentes ,  que  terá  lugar  na  Bema- 
venturança  ,  reza  logo :  Subvenite  SanBiDet,  accttr^ 
nu  Angeli  Domim  tjufcipentes  animam  ejm,  offerentes 
eaminconj^eêíu  Altífflmi.  Chama  aos  Santos  da  Corre 
do  Cco  ,  que  a  acompanhem  ,  e  aos  Anjos,  qiic 
a  levem  á  prefcnça  do  feu  Creador,clha  offereçaô 
como  fua.  Porém  como  a  Alma  no  mefmo  lugar ,  aon- 
de íe  apartou  do  corpo ,  ahi  ficou  julgada ,  cm  quanto 
os  parentes  prcparaô  o  enterro  ao  feu  corpa,  arra- 
ftada  da  cometiva  dos  Demónios ,  que  a  tentavaã, 
]á  vitoriofos  ,  c  triunfantes  a  levàraõ  como  íua  para 

faríU,  ^  ^"^  íepultiira ,  que  he  o  Inferno :  Sepelierunt  iam  in 

z5.      lepukrofm. 

Finalmente  efle  he  o  eftratagcma ,  de  que  fe  fer- 
ve o  Demónio ,  para  enganar  os  peccadores,  que  ncfla 
vida  recreaô  os  feus  ouvidos,  com  Muficas,e  can- 
tos lafcivos.  Oh  triac  ,  e  defgraçada  alma,  como 

fica- 


■ 


Do  toYjmntodos  Ouvidos.  7} 

ficaria  defenganada ,  naquella  ultima  hora  ,  quan- 
do íe  vio  entregue  a  Lúcifer  i  aquelle  infernal  monf- 
tro,  olhando  para  ella  com  vulto  medonho.  Vôsfois 
(lhe  diíTe  )  aquelle ,  que  no  Mundo  gaftaftes  a  melhor 
parte  da  voíTa  vida,  com  fom  madiofo  em  cantigas  dcs- 
honeftasí*  0\k  meus  Collegas,  fazeylhe  ouvir  para  íem- 
pre  as  muíicas  do  Inferno,  E  que  diverfos  inftrumen- 
tos  ouviria ,  c  ouvirá  eternamente !  Que  gritos  impor- 
tunos !  que  alaridos  iníofFrivcis !  que  efírondos  medo- 
nhos !  e  que  ays  defefperados ! 

Dionyíio  Rey  ,  e  juntamente  Tyranno  de  Sicília 
mandou  em  Siracuía  fabricar  hum  ouvido  de  pedra 
mármore  do  meímo  modo  ,  e  architedura  dos  ou- 
vidos humanos  ;  e  o  fez  coUocar  no  meyo  da  abo- 
beda  da  prifaô  ,  que  eftava  debayxo  de  íeu  palá- 
cio ,  com  o  beneficio  de  hum  canudo  de  bronze, 
que  começava  da  fummidade  do  ouvido  artificio- 
fo ,  e  hia  acabar  no  gabinete  do  cruel  Príncipe  ,  aon- 
de eftava  ouvindo  todas  as  qucyxas,  e  fuípiros  dos 
miferaveis  prefos  ;  como  fe  na  mefma  priíaò  mo- 
raíTe  com  cUes.  Porém  ,  ou  as  queyxas ,  que  fa- 
zíaô  ,  craõ  juftas  pela  tyrannia  ,  que  íem  culpa 
cxperimentavaô ,  ou  as  palavras  foíTem  encómios, 
ou  vitupérios,  que  delle  diziaó,  fempre  lhe  davao 
goflo  i  porque  Dionyíio,  como  tyranno,  íatisfazia 
a  huma  curioíidade  própria ,  e  voluntária ,  de  os  ouvir 
queyxoíos,e  defefperados.  Na  priíaó  porém  do  infer- ^^^^^ 
tio  naòhcattími  Foxciíharedortimy&MíiJlcormn  non  18. 
audietur  ampUus.  Nunca  mais  ouvirá  aquella  viola 
tocada  por  pontos ,  que  tanto  lhe  agradava  ;  nem 
aquella  bella  voz,  a  que  chamava  o  íeu  feytiço, 
nem  aquellas  comedias  ,  que  craõ  o  íeu  encanto^ 
antes  ouvirá  tudo  ao  contrario.  Naõfe  ouvirá  gemi- 
do ,  que  não  de  pena  ;  nem  voz ,  que  não  moleíicj 
«em  blasfémia ,  que  náo  irrite.  As  meímas  cantigas, 

que 


(  ') 


^jí0lltMÊÊÊaiÈÊÉltíSÊÊÊ^ÊÊm 


Bifèurfi  Uh   '"^ 

que  nefté  Mundo  íoraòo  noíTo  fcytiço,  cantadas  no 
Inferno,  com  vozes  deíencodas  ,  e  fantaílicas,  to- 
cadas com  bozínas  de  corno,  c  outros  inílrumentos 
medonhos,  c  horroroíos,  accrefcentaràô  particular 
tormento  j  veriíícando-fc  o  que  diz  o  Eípirito  Santo, 
que  pelos  mefmos  íentidos  ,  com  que  peccamos,  íe- 
Jíi^.21  rem3s  punidos:  Per  qua  quis  peccat  i  per  h£C ^  & 
fumeíur. 

•''  Nem  ícrà  làneceíTaria  âinduílria  do  ouvido  de 
pedra,  nem  do  canudo  de  bronze  >  porque  ,  fe  Gu- 
glierme  ,  Duque  de  Mantua  ,  no  palácio 'da  fua 
quinta ,  que  íe  chama  a  Virgiliana  ,  tem  huma  lala  de 
notável  grandeza  ,  fabricada  pela  groíTura  das  pare- 
des com  tal  artificio  ,  que  qualquer  palavrinha  dita 
em  voz  fecreta ,  ou  ténue  refpiraçaô  em  hum  canto, 
houve-íediftintamente  no  outro;  que  fera  pois  da  pri- 
íaó  do  inferno !  (iae,  eftando  neceíTariamente  no  cen- 
tro da  terrj,  tem  forma  concava,  porque  he  como  hum 
globo  redondo,  cujas  paredes  faô  da  largura  de  mil, 
c  quinhentas  legoas.  Aquella  horrenda  gritaria  dos 
Demónios  ,  aquella  confufaõ  de  vozes  defentoadas 
dos  condenados  ,  aquellas  blasfémias  horendasi 
naícidas  de  coraçoens  defeíperados  ,  aqucUes  ays 
knçados  da  bocca  ,  naõ  para  mover  os  circunítan- 
fés'a  compaixão  da  fua  mifetia,  mas  por  hum  odip 
éíitranhavel ,  de  fe  comerem ,  fe  pudeíTem ,  huns  aos 
outros  ;  em  qualquer  parte,  que  efleja  botado  o 
mifcravel  Precito  ,  amigo  de  bayles  ,  e  cantigas^ 
tudo  ouvirá  taó  clara ,  c  difliniamente  ,  como  íe 
qualquer  Voz  deíunida  das  outras  eflivcíTe  tinindo 
nos  íeus  ouvidos:  Omnis  qni  aitdiet  ^  tinnient  âtres 
9eyem.  ^j^^^-  E  que  lerá  ,  ouvir  codas  eftas  vozes  juntas, 
J9.  *  como  íe  foffem  feparadas  ?  Será  ,  como  efcreve  o  San- 
to Monge  Dionyfio  Cartufiano,  accrefcentar  as  do- 
res ,  multiplicar   as   magoas ,    comerem-íc  eterna* 


men- 


Al 


Do  tormento  dos  Otíviâos.  7  j 

mente  cm  defeíperaçôes,-  e  rayvas:  Suisquoqtte  da? 
tnoribus  augebunt  mi  feriam  mutuam.  Oh  torniento  in- 
íoportavel!  Oh  pena  iníoffrivel  /  Que,  bemconfider 
rada,  baftará  para  a  emenda,  e  para  tomar  horror  a 
todo  género  de  muficas  deshonefías. 

C^ero  tratar  do  fim  defte  difcurfo,  começando 
porhumafentença  de  S.  Bernardo,  a  qual,  cifrando 
em  duas  palavras  quanto  atègora  temos  dito  9 
e  íe  poderá  dizer  do  penoío  tormento  dos  ouvidos, 
bem  ponderada,  c  com  vagar ,  ao  lume  da  fé  Ca- 
tholíca,  fervirá  de  defengano  a  todo  o  Peccador,que 
nas  delicias  do  canto  acha  o  íeu  encanto:  Damnatus 
in  inferno  femper  audiet  ,  qtíod  nollet  J  minqtiam 
ãíiàtet  i  quoà  veUt.  Terrível  f cntença  para  huma  al- 
ma condenada  !  Sempre  ha  de  ouvir ,  o  que  não  quer;  ^^mM 
nunca  ha  de  ouvir,  o  que  quer;  Semper  attdiet^  qtiõd  !^ 
nollet  ,  nunquam  audiet  ,  quod  veUt.  Sempre  ha  de  - 
ouvir  vozes  ,  que  o  atormentem  j  nunca  ha  de  ou- 
vir huma  voz  ,  que  o  confole.  Sempre  ha  de  ouvir 
gritos  dos  Demónios,  que  o  atemorizem  ;  nunca  ha 
de  ouvir  hum  fuípiro,  que  delle  fe  compadeça.  Sem- 
pre ha  de  ouvir  rumores  ^e  bulhas,  que  o  pertur- 
bem 5  nunca  ha  de  experimentar  hum  filencio ,  que 
ofoceguc.  Sempre  ha  de  ouvir  alaridos,  que  odef- 
pertem ;  nunca  ha  de  ouvir  hum  dei  cante  ,  cm  que 
defcance.  Sempre  ha  de  ouvir  toadas  íem  tom, que 
o  entriiieçaô  ;  nunca  ha  de  ouvir  hum  tom  entoado, 
que  o  recree.  Sempre  ha  de  ouvir  huns  ays  medo- 
nhos ,  que  o  deíefperem  ;  nunca  ha  de  ouvir  hum  ay 
eompaílivo,  que  o  alivie  :tS'é';^p^r  audiet  ^  quod  nollet; 
nunquam  audiet -^  quod  -velit.  Oh  Alma  dcfgraçada! 
Oh  Peccador  infeliz!  Quanto  melhor  ,^  te  fora  ap- 
plicar  os  teus  ouvidos,  cm  ouvir  a  palavra  de  Deosf 
que  confola,e  promette  a  vida  eterna:  D amíne ver- ^^^'^'^ 
êavita  aíern^  babes.  A  diferença,  q^càf^ieiiita^e  os- 


a- 


fiil  ilfVriin  M I II  iiiiJBJfcaiiinr 


lai 


'    \  J^ 


'éc,^. 


Spec. 
£xemp. 

Poli.  D  o 

Dejp 
Chri[}. 


7<S  Difcurfò  llt. 

Predeftinados ,  e  Precitos ,  vem  a  fer ,  que  os  Predc- 
ílinados  k  anticipaô,  para  ouvirem  as  muficas  do 
Paraizo,  com  ouvirem  a  palavra  de  Deos,  c  canta- 
rem louvores  Divinos  :  giui  ex  Deo  eft^  verba  Dei 
audit,  E  os  Precitos  ouvem  ,  e  cantaó  as  cantigas 
deshoneftas  ,  que  íaò  os  prelúdios  das  muíicas  do  De- 
mónio ;  Proptereavos  non  auditis ,  quia  ex  Patre  Dia- 
bolo  eftis.  Como  veremos  no  exemplo  feguinte  ,  refe- 
rido, e  citado  por  vários  Authorcs  fidedignos ;  e  efte 
efpaptoío  cafo  íervirà  de  deíengano ,  e  fim  defleter- 
ccyro  difcurfò. 

Morreo  improvifamente  hum  defles  Sardanapo- 
los,  cuja  vida  fòy  empregada  cm  bayles,  e  cantigas; 
e,  com  eíbs  provocando  a  outros  ,  dava  mayor  fartu- 
ra á  fu3  deshonsftidade.  Para  noffo  enfino,  quiz  Deo?, 
que  hum  Santo  feu  fervo,  que  eftava  em  contcmpU- 
ça5,viífc  a  entrada,  e  recebimento,  que  lhe  fízerap 
os  Demónios  no  Inferno.  Sairaó  em  grande  numero 
a  encontralo;  e,  aconapanhando-o  em  ala  ,  diziaõ 
em  voz  alta  :  Date  locum.  Lugar,  lugar,  que  aqui 
vem  hum  grande  noíTo  Amigo  j  e  o  levarão  com 
grande  fefta  em  prefetiça  de  Lúcifer ,  que  o  recebeo 
com  os  braços  abertos;  e  depois  apertando-o  com 
hum  abraço ,  ficou  o  miferavel  todo  trefpaífado  de 
fogo,coTi3  hum  ferro  ardente  ,  que  íay  da  fornalha; 
eíhe  diiTe.  Scjí  V.  M.  muyto  bem  vindo  a  efte  feu 
palácio ,  aonde  provará  as  delicias  ,  que  lhe  tenho  pre- 
paradas O'  lá ,  diíTc  Lúcifer  aos  Demónios  y  todos 
abracem  a  cfte  noífo  fiel  amigo  ,  como  noíTo  bem- 
feltor, que  nos  tem  aqui  mandados  muytos,  e  deyxa 
amuycos  outros  inficionados  com  o  íeu  mao  exem- 
plo, que  cedo  viraó  cá  acabar  ,  e  fazer-lhe  compa^ 
nhia.  Vejaõ  ,  que  virá  cançado  do  caminho i  levay-o 
aomeubanho,  para  que  fe  regale.  No  mefmo  tem- 
po., o  lançarão  em  hum  tanque  de  fogo  de  enxofre, 
...  cm 


n 


Dõ  terkJètJiô  dos  OUvidos^  fT 

Im  que   ahdavaõ  nadando  muytos  Diabos  cm  for- 
ma  de  krpentes,  c  bafiliícos,  que  lhe  accrcfccnta? 
vaô  o  tormento.  Depois  replicou  Lúcifer.  Levem-o 
depreíTa  ao  feu  leyto ,  para  que  defcance  na  cama. 
Era  cíia  cama  húa  grade  de  ferro ,  jà  afogueada ,  com 
Irrazas  ardentes  debayxo.  Então  Lúcifer.  Tragaô-lhc 
agora  parafeus  deleytes,  de  que  tanto  goflava,  hua 
moça  muyto  fermofa.  Appareceo-lhe  logo  bum  Dra- 
gão muyto  eípantofo  ,  que  lançava  rayos  pelos  olhos, 
c  chammas  pela  bocca ;  c  abraçando-fe  com  o  miíera- 
vel , lhe diffe.  Eftcs  íaô  osgoftos,  c deleytes,  que  tu 
deves  gozar  aqui  por  toda  a  eternidade  5  mas  agora 
começaó  ,  cjpcre  pelos  outros.  Entaô  Lúcifer  diíTe.- 
Dem-lhc  agora  hum  púcaro  de  agoa  para  o  refrefcar. 
Trouxeraò-lhe  logo  huma  caldeyra  de  chumbo  derre- 
tido à bocca,  eo  infeliz,  que  atê  entaó  linha  cala-: 
do,  pafmado  da  novidade  do  lugar  ,  e  de  íeverdc 
repente  cm  tantos  tormentos,  exclamou,  bradando' 
em  voz  alta.  Ay  miferavel,  e  defgraçado   de  mim] 
Entaó diíTe  Lúcifer.  Eya ,  meu  amigo,  já  V.  M.  eíla- 
rá  deícançado.  Venha  agora  cantamos  alguma  letri-i 
nha.  Ouçaô  todos,  que  cantava  muyto  bem,  e  com' 
grande  garbo  lá  no  Mundo.  Cante  V.  M.  meu  ami-- 
go  ,  que  recreará  a  todos.  Porem  ellc  callava  ,  en-! 
fadado  ,  e  trifte  ,  pelos  tormentos  ,   que  padecia. 
Ora  cante,  replica  Lúcifer, que  todos  deíejSmos,  c; 
o  queremos  ouvir.  O  miferavel  deu  hum    fuípiro,  ^ 
c  gritou  em  voz  alta.  ginid  cantíih^  Que  tenho  eu/)^^^^^ 
que  cantar  f  Senaô  que  feja  maldito  o  dia  ,  e  a  hora,  chnjí. 
cmquecunaíci.  Muyto  bem  -,  proííáia  para  diante.  ífr.59 
â^/i  cantabo?  Que  cantarey  eu?  Malditos  ícjaõ  os 
pays,   que  me   gcráraô  }  malditos  fcjaô  os  goílosj  - 
malditos  fejaô  os  amigos  ,  e  amigas  ,  que  aqui  me 
arrafíàraô  no  ii:iferno.  Oh  como  canta  bem.  Và  ou- 
tra 


I 


tÉKSfiGCKMi 


;í  í  11 


r  n 


l^a  letmha.  g|//^:r4Ȓ4^o  f  Que  quereis  ,  qne  ca 
c^hte?  Cantarey^  malditos  fejaõ:  os  SâT3tos  do Ceòj 
'malditos  ícjaô  os  Anjos  do  Paráizo  j  maldito  ícja 
também  cu,  que  podendo  ,  com  mortifiGarme  ,  e 
fà2€r  penitctida  ,  i&ftir  na?  gloria]  com  ellcs  $  agoia 
me  acho ,  e  mè  achare^r par  toda  a  eternidade  e©mi 
vôs outros  Demónios  no' infcrEO..  0b  quiebcHat  can- 
tiga foy  cfti.  Vá  ainda  outra.  Eya ,  que  não  baila. 
§luid  cmtaho  '^.  Ainda  querem  mais  ?  Maldita  fcja 
(  pio ,  e  devoto  Leytor ,  me  treme  a  maô  emícfcrever 
blasfémias taõ  execrandas ,  mas  melhor  he  ifábelas  pa- 
ra o  noíTo  remédio ,  para  naó  dizelas  de  veras ,  quando 
jà deíeíperadòs  nò  inferno.)  Maldita  fejai a  Saníiílima 
Trindade.  Maldito  feja  o  Creador»  que  me  creou,i 
Maidit3Íeja  o  Redemptor ,  que  me  remio.  Aqui  o 
interromperão  os  Demónios,  fazendo^  huma  grande 
algazarra , eo  levkaõ  aaíeu  lugar  deftinando4ihc  .no 
inferno ;  aonde  eftá  ,  e  eftará  eternamente,  cm  quan- 
to Deos  for  Deos.  Nem  pareça  a  quem  ler  efte  exem- 
plo, que  a  viíao  do  Santo  Anacoreta  foíTe  hum  fo- 
nho,  ou ialgum a  invenção, para  terror  dos  Peccador es. 
Efíehe  o  manifefto  engano  do  Demónio vque,  quan- 
do naôpòdc  barremos  do  fentido  os  tormentos  do 
Inferno,  os  diminue ,  ou  procura ,  que  duvidemos: 
delles.  Efte  exemplo  he  hum  tofco  rafcunho  ao  nof- 
fo  modo  de  perceber  ,  he  como  hum  mappa  em  pon- 
to pequeno;  que  lá  no  Inferno  he  muyto  peyor,  co- 
tno  vimos  no  primeyro  diícurfo,  e  veremos  nos  ou- 
tros qiic  íe  íegucm-  O  ponto  he ,  que  nôs  nos  de/en- 
ganemos ,  Gom  eVitdrmos  todas  as  occaíiocns  de 
baylcs,^  comedias  ,  e  cantigas  deshonefías;  eemiu-, 
gár  delias,  cantarmos  as  Ladainhas  de  NoíTa  Senhora; 
íczarmos  cada  dia  o  feu  Rofario,  que  he  hum  gran- 
de me/o,  e  final  mais  certo  ,  para  affegurarmo*  a  íal- 

va- 


Do  tormetito  dos  Ouvldoh  yp 

vaçaõ  }  pois  cila  como  Mây  dos  Peccadores ,  ro- 
gará por  nôs  agora,  ena  hora  da  noíTamortc, aoícu 
bendito  Filho, que  nos  livre  do  Interno,  e  nos  leve 
comfígo ,  a  louvalo  para  fempre  na  íua  conapanhia  no 
Paraiío^ 


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TORMENTO  DO  OLFACTO 


8i 


DISCURSO  IV. 

Do  Tormento  do  íníoiEfrivcl  fedor 
do  Inferno^ 

Erit  pro  fuavi  odorifator.  Ifai.  Cé  3. 

Unca  cuidcy,quc  o  fedor  doln- 
fcrno  foíTe  tormento  taô  infof- 
frivel ,  que  bem  coníivlerado,  fe 
naõ  vence  a  qualquer  das  penas, 
que  haô  de  íofrer  os  raais  fcnti- 
dos ,  pelo  menos  naô  cede ,  nem 
he  menor  daquelias,que  mais  fe 
podem  cxcogitar.  E  fe  hum  fó 
fedor ,  que  he  intenfo  ynaõ  ha, 
quem  o  poíTa {oportar  por  muy to  tempo.  Quem  duvi- 
da, que ,  íe  os  fedores  forem  muy  tos,  e  todos  unidos  no 
meímo  lugar,  e com  a  mefma  intenção,  naõ  fcinô  capa- 
zes de  tirar  milhares  de  vidas  no  primeyro  inilante!  Se- 
rá logo  o  fedor  do  Inferno  inteníiíTimo  ,e  totalmente 
intolleravcl  por  trcs  razões.  A  primeyra  cmrazaô  do 
lugar ,  e  do  íitio ;  a  fegunda  cm  razaõ  da  quantida- 
de innumeravel  dos  corpos  dos  condenados  j  a  ter- 
ccyra  cm  razaõ  da  continuada  aíTiílcnci^  dos  De-. 
moaioi^Ho  tocaate  ao  lugar ,  diz  o  Doítpr  An- 
'  ~     -  "  F  gcli- 


JÍÍ}!^^m-MMã.}ÊSÍ^. 


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-Jà 


Difcmfo  íV. 

^•'^^!''g^\'icoSm\.o  Thomás  r  que ,  depois  de  eftar  a  terra  bcift 
m  ^.difl  puiigadà  i^ela  viòíencia;  6  axílividad^  do  %a  do  ul- 
^^-f-^^'  Eiíí)0dià<ibjuizoi  depois  de  reduzida  em  cinza  cílá 
upt¥erfar  máquina  do  Orbe  j  depois  de  eâár  purife- 
cadj)  o  Mundo  de  todas  as  immundiçias  dos  peccadojsf 
tod.isas  fezes,  que  reítarem,  ajuntadas  entre  íí  iraô 
por  can?os  fubterraneos  a  Icpultarcm-fe  na  intoUera^; 
yelíentina  do  Inferno.  Mais  o  alGatraãj  o  ênxofrÇí| 
o  breu,  e  outras  matérias  bctuminofas,  que  fervèni 
de  .aiimeíffo  àqu^Ue  fogo  ,.  accrefcentaráó ,  e  lev3íç•• 
í  at*a  5  é  m  grão  riiàí  s  í  úbi  do  éfte  ma  o  chcy  ro.  E ,  í e  ò  ar^, 
por  puro  que  íejay  fechado  por  muytos  annos  cm^ 
qualquer  morada ,  íe  corrompe  de  qualidade ,  que  fica 
iníoportavel  5  e  peílilçnte  ,  julguemos  agora  ,  que 
taes  fícarâã  os  ares  do  Inferno  fechados  ,  ha  tantos^^ 
íeculos  y  em  hum  hediondo  veduélo  de  tantas  im- 
mundiçias ,  fem  nunca  ter  por  onde  exhalar^  ou  pur^- 
gaitfcí.  CLue  peftc  refinada  na©  cauíará !  E  quem  a  ve- 
rá,  que  imagine  ,  o  poderá  íofrer  I  quando  aqui  ne-^ 
ftc  Mundo  o,  fumo  de.  huatcandca  mai  apagada ,  que 
ia  no  Inferno  pareceria  híí  cheyro  mtiy  fuave ,  fe  rcn- 
derâ^o  noíTo  oífato  tdiò  moleflo ,  eomo  fe  foíTe  hum 
jfaúc.i  fedorviníoportavel  tiM^it  fro  fuavi  odore  fàtonZ^s^ 
24.  hc  a  íuíiancia  rciumida  ^  de  quanto  h^j.  de  trataiP: 
neftedrfcurfo;  no. qual  veremos  em  primeyro  lugar, 
quam.  penofo  ieja  c^e  tormento  do  fedor  do  Infernoi  & 
nofc^undo  o  defengano , de  qvic  fc  valèraô  muytos 
Santos  para  k  livrar  dtlle.. 

Menos  licdionda,  e  fedorenta  feria  a  cloaca  do 
inferno^  Gom  encerrar  emíi  todas  as  fezes  do  Mun-i 
do,  íc;  os  corpos  dos  Condenados  naõcxhaiaíTem 
deíi  hum  fedor  muy to  mais  abominável  ^èaíqucro* 
fo.  Tcirivtl ,  c  deshumano  foy  o  tormento,  que ^ 
inventou  a  tyrannia  de  Mczcncio  Rcy  dos  Tirenosí 
Eâc  tyrauno  jConfórmc  cfcreve , €  o ~ dcícrcve  Virgl* 

laoj 


•  4p' 


B$  tevmeniMofeMr  éò  Inferno,        S  3 

Mó^com\\umà  inaudita  baibiridâde  mandava  atar 
hum  corpo  vivo  a  Ivum  cadáver  já  corrupto,é  fedoren- 
rto  r  ajuntando ,  e  unindo  tnâos  com  mãos ,  pés  com  pêS} 
-C^bpGca  com  bocca. 

í    tMortua  quin  ttiamjungebat  corpora  víviSy 
-  Compomns  manihufque-manus^  atque  oribus  ora 
(Tormenti genus)  ,,  &famei  t aboque  flttení es 
Complexu  in  mijero  longa,  fic  morte  necabat. 


rirgit. 
Itb.S, 


Naõ  ii  âtègora 


nas  Hiltorias ,  nem    Divmas 


nem 
jun- 


pro  ia  nas,  gene  rode  tormento  mais  terrível  i  c 
camente  aíquerofo.  Acho  porem  nos  livros  dos  Ma- 
cabeos,  que  por  caftigo  manifefto  deDeos  fahia  do 
corpo  delRey  Antioco  hua  efpecic  de  bichos  taõ  abo- 
mináveis,c  hum  fedor  taô  intolerável,  que  inficio- 
nava ao  exercito:  Itaut  tllius  fatore  exercttus grava- 
retur.  E  nenhum  dos  íeus  criados  fe  atrevia  chegar  a 
elle ,  para  o  mudar  de  hum  lugar-  a  outro  j  c,  íer  villo: 
Eum  nemo  poterat  propter  intolerantiamfatorís  por  ta- 
re. Omeímo  íbccedeo  a  ElRey  Herodes ,  e  a  vários 
Emperadores  do  Oriente  ,  todos  comidos  vivos  dos 
pi-oprios  guzanos,  que  íe  geráraô  nos  íeus  mefmos 
corpos ,  exhalando  hum  fedor  taõ  infoportavel ,  qiíc 
osmeímosíervos,como  deferpérados,  largavaó  por 
hua  vez  o  fazerlhes  aíTiftencia  nas  ítias  neceílidades. 
Mayor  pena,  fem  comparação)  he  ,  o  eílar  pegada 
a  bocca  de  hum  vivo  á  bocca  de  hum  defuntoí  eo 
vivo  naõ  ter  outra  rcípiraçaô,quc  asexhaiaçôes  pef- 
tiíentes,  que  vaô  emanando  da  podridão  do  Gada- 
yer  já  corrupto;  nem  outro  fuftenco,  que  os  guxít- 
nos,  osquaes  fahindo  da  bocca,  c  narizes  do  De- 
funto, entaõ na  bocCá ,  nos  olhos,  c  nas  ventas  do 
vivo.  Oh  tormento  deshumano  I  Oh  fedor  pêíli lente! 
Que fóconíideradofazaÍGo,c horror  à natureza  kci- 
mana.  Também  efíc  tormento  naõ  faltará  tio  Infer- 
UQf  pois.,  cpmõ  diz  0  Profeta  líâifts  ,  íalkado  dos 
*.Qí  F  %  con« 


Maeh, 
Jbid.io 


/Aí.  54 
3 


Dyèx, 

Eh(. 

Jiterem 

D.Bon. 
eit.aP. 


■í  i 


condenados  j  delles  fshtrà  hum  fedor  inexplicável  t2>#' 
Cadavevibus  afcendet  fator,  Ghama  o  Profeta  aos  Rc^ 
probos,  Cadáveres  ,  e  corposímartos ,  ainda  qiie  íejxiò 
vivos )  porque  íerao  íó  vivoi  para  os  toriivento^,,  que 
haô  de  íofrer ,  e  líiorÈos  pelo  fedor  iníoportavei ,  que 
agudo  ,e  penetrante  íahirá  de  ta,ntos  milhões  de  cor- 
pos amontoados  naqivelle  calabouço. 

He  notável  o  reparo,  qiie  faz  o- Doutor  Serafíco 
S.  Boaventura  neRa  maceria,afíirmando ,  que ,  íc  Deos 
permittira^  que  bum  fé  condenado  faliiíFe  daqucUa 
gruta  infernal  para  eíla  vida  ^  largaria  deíi  hum  fedop 
taó  horrendo  y  que  feria  baftante  paraapeftar  o  Mun- 
do ,  e  matar  logo  a  todas  as  creaturas  :  e  deftc  pare- 
cer íaô  todos  os  Santos  Padres  ,  que  tratarão  efla 
matgria  do  Inferno:  Si  velunins D amn^tt  Cadáver  in 
Orbe  hocmjirojit ,  Orbem  totumãb  eo  inficiendum.  No 
.  anno  de  i  óB6.  cliegou  úsl  cofta  de  Africa ,  que  chama- 
mos de  Guine,  ou  Mina  ,  hum  Navio  a  Pernambu^ 
■Co,  que,,  cncontrando-íe no  mar  com  hum  pataxo 
Olandez  ,  reccbeo  delíc  huns  barris  de   carnes  de 
Olanda,  que  deviaõ  de  íer  já  de  alguns  annos;  por- 
que abrtndo-fe  depois  hum  defíes  barris  no  Porto  áo 
RccifFe  ^  foy  tal  o  fedor  peiliienciai  ,   que  exhalouy 
que  nomeímo  infla nte ^ quem  o  abria,  cahio  morto 
logo  >  e  oâ  circuníiantes  dahi  a-  algúas  horas ;  depoii 
cftes  fétidos  vapores  foraô  dilatando-fe  aos  poucos ,  e 
ínfíeionàraÕGs  aresi  e  dcOemodo  íe  formou  apefte 
em  Pernambuco  com  tanta  força,  que  já  não  havia 
quem  enterraíTe  os  infeélos  do  contagio;  Nem  paroii 
aqui  a  exhorbitanciadeíic  fedorj  porque,  continuando. 
acorrupçâãdosares,.paífou  à  Bahia ,  aonde  fez  hum. 
total   cftrago  da  melhor  gente  aíTim  naturaes ,.  co- 
mo Europeos.*  e  correndo  as  maisCidadcs^,e  luga- 
res ,  inficionou  toda  acofta  doBraírl  ,naõ  perdoando 
iajem afcxo ,- nem  a  condijaõ  de pcíiloas j  caíFolou  a 


Do  tormento  do  fedor  do  Inferno.  i  f 

todos  com  igual  extermínio.  Ifto  fuppofto  como  cer- 
to, c  evidente ,  argumentemos  agora  allim.  Se  o  fedor 
de  hum  barril  de  carnes,  que,  para  naô  apodrecerem, 
foy  em  hú  certo  modo  embalíamado  com  íal ,  corrom- 
pendo» fe  depois  de  algum  tempo  ,  foy  fufficicntc,  par« 
apeftar ,  e  deftruir  hum  Reyno  taô  dilatado ,  que  tem 
porcoila  mais  defeisccntas  legoas,comoheo  eftado 
do  Brafil.Qual  ícrá  logo  o  fedor  do  corpo  de  hum  coa- 
dcnado,que  ha  tantos  feculos  vive,  e  vi  virá  morrendo 
naquelle  hediondo  calabouço!  Tanta  difFercnça  vay  do 
fedor  defta  terra  ao  fedor  do  Inferno  ;  que  o  corpo 
de  hum  fó  condenado  federá  em  grão  taõ  fublimado, 
c  íupcrior ,  que  vencerá  todos  os  fedores  das  lagoas, 
Eí^igias ,  das  paludes  Lerneas  ,  e  de  todos  os  Cadá- 
veres juntos  do  Univerío.  E  que  fera  com  tantos 
milhões  de  condenados  ,  apertados  em  huma  gruta 
fubterranea  taòeftreyta,e  taò  fechada,  que  naò terá 
dcfabafíb  nenhum  por  toda  a  eternidade  !  Por  certo 
que  íe  qualquer  condenado  tornaífe  ao  Mundo  ,  lhe 
pareceria  eíle  noíTo  fedor  da  terra,  hum  jardim  de 
flores ,  com  hum  cheyro  muy to  íuave :  Eritpro  fuavi  /faic.% 
odore  fíBtor, 

Segue-fe  agora  em  terceyro  lugar  o  faltarmos  do 
fedor  inenarrável ,  que  de  íi  lançaráõ  os  Demónios. 
Parece  coufa  impoflivel  ,  que  os  Demónios,  fendo 
Efpiritos ,  poíTaõ  cfpirar   roins   cheyros.  Naô  tem 
duvida,  que  em  quanto  faõ  puros,  e  fímplices  efpiritos 
por  natureza  i  nem  podem  feder,  nem  chcyrar.  Com  ^•'^•^ 
tudohe  fentença  commua ,  e  opinião  mais  ^^^,^^^^  [^yg^eL 
dos  Thcologo^;,  que  Deos  com  a  fua  Omnipotência  y,£^^;* 
fez,  que  os  Demónios  cm  penada  fua  deíobediencia  Mí  ^ 
íejaõ  forçadamente  atados  a  huns  corpos  igneos,  fui-  a/UDoSl 
fureos  ,  alcatroados  ,  e  betuminoíos  ;  e  vendo-fc 
cfles  efpiritos  malignos  eternamente  obrigados  a  eíta 
pena ,  pelo  ódio  cntr anhavel  ,  que  tem  aos  Repro- 

F  3  ^^h 


tjcurjõ  IV^ 

,  fc  moverão  com  tal  fúria ,  c  atormentarão  âí 
Almas  com  jcai  vehemcncia,  que,  desfazendo-le  em 
fuores  pcfíiferos  ,  exhalaráõ  fedores  de  todo  o  géne- 
ro, e  todos  muito  peyores ,  que  os  dos  condemnadosj 
ppfe  déféjaô  com  elles  dar-lhes  fempre  novos ,  q 
mais  horriyeis  tormentos.  Appareceo  huma  vez  o  De- 
mónio ao  glorioío  S.  Martinho,  em  hum  traje  muyr 
galante  ,  ycftido  de  ouro,  e  de  purpura ,  com  huma 
coroaengafíada  de  pedras  preciofas  na  cabeça;  c  fa^ 
lou-lhe  nefta  maneyra.  Eu  íou  Chrifto,  teu  Senhor, 
adora-mc ,  como  mereço ,  pois  fou  o  Filho  de  Deos. 
Porem  o  Santo  illuíirado  com  a  luz  Divina,  e  conhe- 
cendo o  engano  do  Pay  das  mentiras ,  refpondeo-lhe 
dçfte  modo.  Meu  Senhor  Jeíu  Chrifto  tem  na  fua  cabe- 
ça hiia  coroa  deefpinhos  ,e  a  purpura,  de  que  o  vejo 
veftido ,  he  eftar  o  feu  corpo  pelos  meus  peccados  to- 
Lanr.  cio  flagelado,  eenfanguentadó:  DomimsmeusJESUS^ 
S»r,in  geritin  capi:fecoronamfpm€am^  ó'  corpus  fro  peccatis 
vita  D  meti  dtris  flageUts  anentaium,  E  neíTc  habito  das  vai- 
dades do  mundo ,  que  tu  trajas,  naÔ  o  conheço.  ODe- 
íbonio  vendo  fe  defcuberto  defapareceo.  Deyxoupo* 
rêm  hú  tal  fedor  no  apofento  do  Santo ,  que  bem  deil 
a  entender  a  toda  a  vizinhança,  quem  era;  poispare- 
cia-lhcs  a  todos, que  eíiavaô  no  Inferno;  e  taô inficio- 
nado íicou  aquelle  lugar  que  por  muytos  annos  naã 
foy  habitável.  A'  vifta  defte  fucccíFo  argumento  a- 
gora  aíTim  j  fc  o  báratro  infernal ,  conforme  a  dou- 
trina de  Santo  Thomás ,  he  a  fentina  ,  aonde  haó 
de  ir  aparar  todos  os  conduflos  das  mais  hediondas 
fezes  da  terra ;  e,  fe  o  corpo  de  hum  íó  Precito  fe- 
derá mais ,  que  a  meíma  fentina  de  todas  as  immun- 
dicias  do  Mundo;  e,fe  havendo  milhões,  emilhoens 
de  condenados ,  hum  fó  Demónio  lerá  fem  compara- 
ção mais  fedorento  ,  que  todos  elles  i  e  íendo  os  De-' 
monios  em  taô  grande  npmcro  ,  como  cada  hum; 


Mart. 


DotôrmenfodofedoY  dé  Inferno.        ff 

Ic  excôgitáf  i  quc  penna  poderá  defere Vèr^  oú 
^uelingua  íe  atreverá  a  explicar  a  effencia ,  a  quali- 
dade ,  a  quantidade ,  e  a  intenfaõ  de  hu  fedor  taõ  inex- 
plicável, e  imperceptivei.  Sò  o  EminentiíTimo  Car- 
deal Baronio,  que, parece  ,  eftavâ  na  profunda  coníide-  l, 
yâçaõ  dos  fedores  do  Inferno  bsm  radicado  ^  era  M 
primavera  dos  íeus  annos  naturalmente  inclinado  á 
toda  a  forte  de  cheyros.  Entrando  depois  no  caírit- 
hho  mais  apertado  da  falvaçaô  ,  procurou  de  íer  alum- 
no,  e  imitar  a  S.Filippe  Neri,para  íer  a  íegunda  cotum- 
na  da  íua  Congregação  do  Oratório.  Naquellc  cftadd 
já  mais  pèrfeyto  ,  ainda  prevalecia  nelle  o  antigo 
aborrecimento,  que  tinha  a  tudo ,  o  que  era  aíqueroíó, 
ou  naô  lhe  cheyrava  bem  ,  e  para  vencer  os  melindres 
da  natureza  corrupta,  obrigou  a  íua  imaginação  á 
profundarfe  nos  feàores  do  Inferno, que  tantas  ve- 
zes (  dizia  elle  )  tinha  merecido.  E ,  como  diz  o  Pro- 
feta David ,  que  In  meditatiom  mea  exardefcit  ignis,  Pftlm: 
Aííim  eile  nefta  meditação  acendeo-íe  com  tal  fogo  de  *8  4. 
penitencia ,  e  de  amor  Divino  o  feu  efpirito ,  quebuf- 
cando  hua  maõ  chea  de  perccvelhos ,  cujo  fedor  era 
o  que  mais  aborrecia ,  generoíamente  os  poz  na  bocca, 
comco-os,  eos  cngulio.  Acçaô  foy  efta  muyto  mais^"^'^' 
{ieroyca  de  tantas,  que  a  trombeta  da  fama  tem  di-  ^'''  '*'' 
Vulgado  do  Emperador  Augufto  Cefar  ;  porque  fc 
Cefar  Augufto  vencco  com  o  valor  das  fuás  armasPro- 
vincias  ,  e  Reynos  dilatados  no  Mundo  ;  Ceíar  Ba- 
ronio venceoa  íimefmo  ;  que,  comfodiz  Plataô ,  hc 
o  homem  hum  microcofmo  ,  que  quer  dizer  hum 
Mundo  pequeno  ,  pois  no  entendimento,  ena  von- 
tade he  capaz  de  milhares  de  mundos.  E  que  bem  re- 
munerou Deos  a  Baronio  por  efta  acção  heróica  ,  ain- 
da nefta  vida  j  porque  além  do  dom  da  fciencia,  quç 
teve ,  foy  honrado  com  a  purpura  Cardinalícia  j  e ,  íe  Raimd. 
p  feu  nome  aaô  entra  ainda*  como  Heroe  nos  íeus  Qt^.an. &ecl. 

F  4  nais 


!'•     j 


8f  Difcurfo  IV. 

nais  Eccicfíafíicos ,  cííá  porem  para  íemprc  rcgiftrís^ 
do  peios  fcus  fucccíTi^rcs  no  glorioío  Catalogo  dos 
YarõesIHuftreSjC  bem  fe  pôde  dizer dellcj que  neftc 
Mundo  :  lllt  erat  profuavi  odore  foetor, 
Averjn  > .  He  axioma  filolofofico,  que ;  Contrariorum  eadem 
eft  difcíplinaXiilcv  dizer  ,  que  da  eíTcncia  de  hum  con- 


com. 


jirifiJ.  trato  facilmente  íc  infere  a  cíTcncia  do  outro.  Ifto  fup- 
Iferqicr.  pofto.  Crcou  Dcos  neftc  Mundo  huma  grande  quanti- 
dade deflores.  Creou  a  Rofa  de  Alexandria  ,  o  Cra- 
vo da  Rochela ,  as  Boninas  de  Portugal ,  os  Junqui-> 
lhos  de  Caftclla,  o  Jaímim  de  Itália,  a  Violeta,  a  An- 
gélica ,  o  Narçifo,  a  Açucena  j  com  outras   tantas 
variedades  deflores,  entre  íi  taõ  difcrepantes  na  fi- 
gura, como  diverfas  no  chcyro.  Todas  eíías  flores  di- 
i^iliadas  em  hum  lambique ,  e  largando  com  a  força 
do  fogo ,  cada  huma  por  íi ,  o  íeu  cheyro }  conforme 
da  roía  fahirâ  agua  rofada,  aílimde  todas  as  flores, 
cde  todos  os  cheyros  unidos  em  hum  fó  lambique, 
íahirá  húa  agua  taõ  delicioía ,  e  agradável  ao  fcntido, 
de  que  tratamos  ,e  taô  confortativa  do  cérebro ,  que 
naò  tendo  os  Diftilladores  nome  próprio  na  terra,  para 
explicar  a  fua  fragrância,  foraõ-o  buícar  no  Ceo ,  cha- 
r         mando- lhe  agua  d* Angeles.  Crcou  o  Author  da  na- 
tureza vários  animaes ,   cujos  cfcrcmentos  ,  quem 
os  peíTue,  vive  na  fua  caía,  como  fefoíTe morador 
na  Arábia  feliz  ,  poys  naô  faõ  menos ,  qi^e  o  ambar^ 
que  a  algalia ,  e  que  o  almiícar :  Creou  os  aromas  da 
Afia,  os  bejuins  da  Africa  ,  os  balfamos  do  Brafíl,' 
com  as  mais  drogas  cheyroías  da  índia,  e  da  Sabèa, 
Se  hum  perito  na  Química  ,  ou  Efpargirica ,  quizeí- 
fc  agora  apurar  eí^es  miílos}  fublimando-os ,  íubtili- 
zando-os,  e  fazendo-os  volatizar  :  Depois  de  fub- 
tjlizâdos,  fublimados,  e  volatizados  ,  íahiria  huma 
quinta  eíTencia  taô  admirável^  c  hum  cxtrado  taõ  íua- 
ye»  que  havia  de  fero  alivio  da  cabeça  ,  o  conforto 

do 


Do  tormento  dofedordò  Inferno»         \9 

âoGoraçaô ,  e  a  maravilha  dos  cheyros,  epara  ònão 
chamar  Paraiío  do  olfado,  lhe  daremos  oíeu  nome 
próprio  dos  Químicos,  que  cliamaõ  a  cfta  quinta  effcn- 
cia  de  tantas  cíTencias  o  EUxir  vita. 

Do  mefmo modo,  que  temos  difcorrido do  chcy-i 
ro,  ha  vemos  agora  de  difcorrer  do  fedor.  Naõ  che- 
garão as  fantafías  dos  Poetas,  para  explicar  os  he- 
diondos ,  e  inenarráveis  fedores  do  Inferno ,  nem  a 
voar  mais  alto  ,  que  a  referir  os  mãos  cheyros  dos 
Rios  Letes ,  e  Acheronte ,  da  palude  Eftigia ,  dos  Tan- 
ques de  Cocito,  e  finalmente  da  lagoa  do  Averno,  tan- 
tas vezes  de  Virgilio  repetida.  ^fV 
Grave  olentisAvernu  ''**^5 
Cocytt  ftagna  alta  vides^ftygiamque  paludem, 
Efta  palavra  Avermshc Grega,  comporta  de  J priva- 
tivo, e  de  rerntís  ,  que  íígnifica  primavera  ,  donde 
o  mcímo  he  dizer  Àvernus ,  como  já  diíTeem  ou- 
tro difcurfo  ,  que  íem  primavera.  E  como  na  pri- 
mavera naíccm ,  e  brotaô  todas  as  flores ,  bem  fe  dey- 
xa  entender  o  Poeta ,  dizendo  ,  que  nunca  haverá 
odor  ,  que  coníole  ,  ou  rccrce  ;  mas  fedor  ,  que 
fempre  molefte  ,e  mate :  Grave  olentú  Jverni.  Tan- 
to aíTim  que  Santo  Ifidoro  refere ,  que  o  fedor ,  que  fay 
dcfle  lago  do  Averno  ,  he  taó  agudo  ,  e  pcftilcnte, 
que  todas  as  Aves  ,  que  voando  por  alto  paíTavaõ  ^  y^^^^^ 
por  elle,logo  namefma  lagoa  cahiaô  mortas:  ■^^'«^^/^ij. 
(faô  fuás  palavras  ;  exhaUns  inde  fator  gravijjimus  gf^^y 
fuper  volantes  Aves  halitu  fubnecaret.  Continuemos 
agora  o  noíTo  difcurfo ,  argumentando  do  meímo  mo- 
do ,  que  do  cheyro.  Ora  fe  diflillaíTemos  todas  as 
aguas  defla  lagoa  do  Averno  ,  e  dos  mais  Rios  fingi- 
dos ou  imaginados  Letcs,  Cocitis ,  Efligios ,  c  dé  to- 
das as  íentina^,  Paludes,  e  Tanques  fedorentos,  c 
depois  de  diíli liadas  ,  c  reftilladas  ,  fe  tornaffem  a 
diíiiilar  até  fair,  naô  digo  a  quinta  cíFcqdaj  mas  a 


\H 


m 


Dijcmfo  IV. 

tíltimacflTçncia.  Que  agoa  feria  efla?  Por  certo  que 
fahiria  huma  agoa  com  hum  fedor  taõ  fublimado,  e 
operativo,  que  não  íó  íeria  agoa  forte,  mas  agoa 
de  morte.  E  íe  ajutKarmos  aos  fedores  da  agoa  os  fe- 
dores dá  terra ,  como  faô  íentinas, monturos , cloa- 
cas, canos,  redudos,  com  todos  os  mais  mifto^ 
fedorentos ,  c  aiílm  congregados,  c  unidos ,  foíTem 
por  virtude  da  arte  química  apurados ,  elevados ,  íu- 
biimados,  e  fubtilizados  atê  fair  o  íai  volátil,  por 
certo  que  íubiria  cftc  fedor  a  taes  quilates,  que  fó  os 
Vapores  dellc  baílariaô ,  para  apeftar  a  todo  o  géne- 
ro humano ,  c  caufar  a  mil  mundos  miihoens  de  mor* 
tes.  Oh  fedor  eterno/  Oh  fedor  imperceptível ,  que 
quanto  menos  coníiderado  nefta  vida ,  tanto  mais  in- 
tolerável ficará  para  fempre  na  outra ,  aonde ;  Eritpté 
Juavi  odore  fator. 

Quando  o  inferno  naõ  foíTe  bum  calabouço  eícu» 
ro,mas  hum  Paiz  ameno,  huma regiaô  clara,  e  naõ 
houveffe  o  tormento  do  fogo ,  nem  outra  pena ,  que 
fofFrcr  ,  mais  que  efta  quinta  eíFencia  de  todos  os  fe* 
dores ,  fcrá  hum  íuplicio  taõ  violento  ,  c  iníoporta^ 
vcl ,  qu2  nefta  vida  ^como  já  diffemos )  daria  no  pri^ 
meyroinftmte  a  morte.  Porem,  íc  a  efta  quinta  eí-* 
fencia  de  fedores ,  fe  ajuntaíTem  todas  as  outras  quin- 
tas cíTencias  de  cada  género  de  tormentos ,  entaò  os 
condenados  naõ  padeceriaõ  hum  inferno,  mas  mil  in- 
fernos. Parece  ,  que  o  Efpirito  Santo  faz  menção 
defle  penfamenro,  no  Texto  Sagrado  ,  que  diz  aílim: 
Eccie.  Sunt.fpiritus  ^  qui  aàvlnàiãam  creaúfunt-,  in  tempo» 
^g,^^,re  confummaUoms  effhnden£  virtutem.  Perguntaõ  os 
Expoíitores ,  co;ti  os  Santos  Padres.  Quem  íaò  efles 
Bfpiritos ,  que  Deos  creoui,  para  cafligar  ,  e  vingaríe 
d©3,Peccadores?  Muitos  íaô  de  parecer  ,  que  íejaô  os 
Demónios  V  porém  efta  opinião  envolve  íuas  difficul-' 
dadssi,  pois  os.  Demónios  naõ  foraõ  creados  {rima'-» 


Do  tormento  ào  fedor  do  Inferno,       f  i 

Tio  pata  íerem  Demónios,  inimigos  de  Deosi  roas 
•para  Anjos  > e  Miniftros,  que  haviaò  de  aíTifíir  ao  íea 
throno,  c  gozar  da  íua  gloria-  Nemcfla  opinião  cfíl 
âopè  da  terra  ,  porque  o  facro  Códice  naõ  nomea 
por  Miniftros  dcfta  vingança  os  Demónios  ,masofoT 
ga,  a  farayva,  a  fome,  e  outras  couías  capazes  de 
atormentar :  Ignis  ygr ando yf ames  ^  romfhea ,  &C'  omnia  EccUf, 
hacadvindiãamcreatafunt.  Pois  fc  o  fogo,  a  fomc/''P35> 
c  a  íaraiva ,  íaõ  coufas  materiaes  ,  como  as  chamaô  34^* 
Spritus»  Reípondem  os  Interpretes,  c  dizem :  Qge 
da  mefma  maneyra  ,  que  os  Qtiimicos  ,  e  Eípargiri-» 
cos,  occupadosem  apurar  no. fogo  os  miilos,cavaã 
os  extrados ,  e  quintas  cíTencias ,  que    faõ  como  a 
flor  das  íubfíancias ,  e  a  tudo  iíio  chamaócom  o  no- 
me de  Sptritus,  AíTim  também  de  todas  as  febres  agu- 
das,  e  malignas  ardentes ,  íahirá  hum  Efpirito  de  fc-: 
bre  }  de  todas  as  fomes  caninas,  c  rayvofas ,  hum, 
efphrito  de  fome ;  de  todas  as  dores  de  gotta,  de  fcia-^ 
tica,  de  reumatiímo,  como  também  de  pedra,  re- 
nela ,  cálculos ,  e  de  todos  os  mais  géneros  de  ma-^ 
les,  ou  tormentos  ,  que  podem  vir,  ou  fe  podem 
dar  no  corpo  humano  ,  cftes  todos ,  reíumida  a  íua 
força,  e  virtude  em  huma  quinta  cíTencia,  ou  eípirito 
mais  apurado ,  in  tempore  confnmmattonis  (  como  diz  o  ^'^^^* 
meímo  texto  )  effnndetvirtutem.  No  inferno  por  toda  ^^^Z^' 
a  eternidade  atormentarão  osmiíeraveís  condenados. 
Oh  grande  rigor  da  Juftiça  Divina  !  ecom  tudo^oPec- 
cador  íabendo  ifto ,  nem  treme ,  nem  teme ,  ou  naõ 
Grej  mas  naõ  paíTarà  muyto  tempo,  que  a  feu  grsín-  Eufeh: 
de  pezar ,  e  fem  remédio  conhecerá  ,  c  experimen-  Emif.  ^ 
tara  a  força  deftas  verdades  :Va  qmhus  hac  {rius  lu-j^^^M 
gendajunt ,  qukm  credenda,  ^^"* 

Nem  pareça  difficultofo,  que  no  inferno  fe  congre- 
guem em  hum  condenado  todos  os  extrados,  ecf-> 
piri  tos ,  de  quantos  géneros  de  males  ha ,  e  pode  haver ; 

no 


!■!■(•■]' 


jt      ,-  -       Bifem foíV^  1 

ío  Mundo;  porque  cftes  cftaráô todos  encerrados ;e 
tinidos  na  quinta  effencia  do  fogo.  Quando  Dcos 
quizconfolar  oPoYocfcolhido,  que  fc  qucyxava  da 
fome ,  fez  logo  chover  do  Cco  o  Maná ,  c  no  Maná 
encerrou  todos  os  goftos  dos  gutzados ,  c  comeres, 
e  todos  os  faborcs  de  todos  os  frutos  da  terra :  Omne 
^  âthUammtum  inft  habtnum ,  &  omnis  J apor  is  fttavi- 
i6iT  ^^^^^'  ^^  meímo  modo  ( eníinaô  os  Thcologos )  que 
' ^'  Dcos  no  Parai fo  encerra  no  lume  da  gloria  todos  os 
bens:  Omnia  pna.  Que  agora  ( como  diz  S.  Pau!  o> 
naô  podemos  comprehender ,  nem  imaginar  :  N€C  in 
corhominis  ajcenderunt,  E,lc  a  mifericordia  Divina 
emprega  a  lua  Omnipotcnciat  cm  fazer  milagres  na 
Ceo ,  e  na  terra  a  favor  dos  feus  cícolhidos,  quer  tam- 
bém a  razaõ  ,  que  a  fua  juftiça  ,  por  ícr  reâa  ,  empre- 
gue a  Aia  Omnipotência  com  tormentos  milagrofosj 
que  encerrem :  Omma  mala^  todos  os  males,  para  cafli, 
gar  os  ícus  inimigos,  e  reprovados. 

Sirva  de  prova    concludente  o  Rico  Avarento 
com  as  mefmas  fuás  palavras  \  pois  falia  como  expe- 
rimentado. Apenas  fe  achou  cfte  fepultado  no  in- 
ferno,  que  logo  íe  vio  cercado  de  todo  o  género  de 
tormentos :  Cum  efet  in  tormentií.  Que  logo  pcdio 
■        mifericordia  ao  Pay  Abraham ,  par^  que  o  livraíTe  da- 
quellc  fogo  -.Pater  Abraham  miferere  mei.quia  cru- 
'    cior  in  hac  flamma.  Mas  fe  o  Rico  Avarento  define, 
c  chama  ao  inferno  lugar  de  todos  os  tormentos  :  In 
hcum  tormmtorum.  Como  íe  queyxa  íó  do  fogo?  A 
razaô  he ;  porque  aquclle  fogo  encerrava  em  fi  todos 
Ltic  \6  ^^  "^^'^  tormentos ;  pelo  que  naõ  diíTe  abfolutamente: 
>A. *    'Crucíorin flamma^ nem Crucior in igne  Mas Crucior m 
•     hac  flamma,  Nefta  tal  chama ,  ncftc  tal  fogo ,  miiy  di- 
verío  dos  outros ,  que  encerra,  e  contém  cm  fi  eminen- 
temente todos  os  mais  tormentos.  Efe  iflo  he  afllm; 
Pí)rqu6  cauía  p  Rico  Avarento  naô  pede  alivio  dos 

ou- 


Dô  tormento  ãifeáor  âo  hferm,       P3 

outros  fupplicios ,  que  pâdccc  ,  rras  íó  peck  algum  re- 
fnigerio  para  a  íua  língua  f  Ut  nfrigerer  linguâm.- 
mam.  Refpondcm  os  Santos  Padres ,  queDcos  com- 
municou  a  efíe  tal  fogo, como  a  Miniliro  das  fuás  vin- 
ganças, huma  virtude  difcernitiva,  para  caftigar  os 
Réprobos.  E  bem  íe  prova  ifta  (diz  S.  Joaõ  Chryíoftc- 
fno}na  fornalha  de  Babilónia  ,  que  eílando  dentro 
os  três  Mancebos  innocentes ,  o  fogo  naò  lhes  tocou 
hum  cabeUo ,  c  faindo  a  chama  íóra  da  fornalha  quey- 
fwou  vivos  aos  verdugos,  que  a  todos  os  tinhaô  lan- 
çados dentro  ;  Porro  íllos,  qtú  miferaní,  interfecitDAn.cJ^ 
ftamma  ígnii,  Cafliano  chama  a  eík  fogo  Inquifidor  25. 
dos  crimes:  Ignem  dehíhrum  Inquifiterem.E  S.  Ago- 
ftinho  o  chama  fogo  íapiente,  que  caUiga  conforme        ^ 
os  delidos  de  cada  hum  :  giiiantum  ftulta  miquítas  fu-  Jll'°  j^ 
geffit  y  tantum  fapiens  ignU  âtfevtret.  Vancos  agora 
ao  Rico  Avarento,  cujo  crime  principal  era  a  golodi-? 
CC)  porque  vivia  comacpulaõfemprc  çm  banquetes, 
fera  nunca  dar  huma  efmola  ao  pobre  Lazaro  ,  que 
morria  de  fome  :    Epulabatur   qtiottàie  Jpkndide.  E 
por  ifto  o  fogo  como  favio,  e  intdiigcnte ,  carrega- 
va mais  o  tormento  na  Hngoa,  que  era  o  inílrumen- 
to  ,com  que  fatisfazia  ao  goflo ,  no  comer  bons  boca- 
dos.  Domcfmo  modo  íe  adatarà  por  cafíigo  oícdor 
dolnferno.  Aquclles  que  ufaõ  dos  cheyroS|por  vai- 
dade ,  para  parecer  galantes ,  ou  por  delicia  lafciva,  ou 
por  mao  íím,fe  lhes  apurará  o  fedor  do  inferno  de  qua- 
lidade,  que  todos  os  fedores  mais  hediondos  do  Mun-/ 
do  unido  na  quinta  eííencia  lhes  pareccriaõ  íuaves::; 
Erit  profnaviodorefí^tor. 

Tomara  eu  agora  perguntar  a  certas  moças  de. 
poueo  cizo^  criadas  com  tanto  melindre ,  que  a  tu- 
do tem  aíco  ,  de  tudo  cem  horror.  A  cercas  Matro- 
nas, e  Fidalgas  da  Corte  taô  mimoías,  que  paíTan- 
éto  nos íeus.  coches.,  Gujitey.ra^  por  algiía  rua.,  aí>n-, 


m 


Luc. 

37. 


7 


94  'Difcuvfo  IV.  '^^'  r^-XS 

^á^  corrupção  de  aigiim  animal  morto  cxhalaí  a^- 
giimniao  cheyro;  no  me  imo  inftante  pocm  o  icnço 
borriííadòdeagoa  de  Córdova  na  boca  ^e  torcendo  o 
roflo  )  gritaô  em  voz  alta;  tange  Cocheyro-,  anda 
depreíTâ ,  parece  ,  que  os  teus  narizes  faô  de  bronzCi 
pois  naô  te  fede  eíia  pelle.  Tomara  ,  digo  ,  per- 
guntarlhes,  íc  cftaõ  defenganadas,  que  todos  os  fe- 
dores da  terra  ,  reduzidos  em  ci^radlo ,  naõ  faõ  mais, 
que  hum  a  garraffade  agoa  de  flor,  em  comparação 
dos  fedores  do  Inferno.  E  que  direy  eu  de  hua  im- 
meníídadcde  outras  mulheres,  que  pertendendo  de 
ferem  as  Helenas  dos  noffos  tempos  ,  feytas  Difcipu- 
las  de  Vénus,  íervcmfe  dos  cheyros  por  mao  fimj 
ufando  delles,  naõ  por  recreação  do  olfado  ,  mas 
para  mayof  incitamento  ao  peccado,  e  para  laço,  e 
deftruiçaô  das  Almas*  Oh  que  trifte  forte !  Com  que 
ímpeto,  e  com  qual  vehcmencia  de  fedores  atormen- 
taráô  os  Demónios  a  ta5  perniciola  cafta  de  mulhe- 
res, em  recompenfa  de  taõ  depravados  cheyros*,  Tc 
naó  fe  defenganarem  ncfta  vida  com  tempo  :  procu- 
rem de  imitar  a  Magdalena.  Foy  efta  Santa  Matrona 
muyto  illuftre  de  íanguc,  c  íenhota  de  Villas,  e 
Gaádlos ,  mas  foy  também  mulher  Peccadora :  cJ^«- 
lierm  Chitatepsccatrtsc  Porém  logo  ,  que  conhecco 
a  Chrifto^  dclenganou-íe  das  vaidades  do  Mundo.- 
A  primeyra  prova  dofeu  dcfengano  foy  defpirfc  das 
galas  ,  e  de  todo  o  ornato ,  e  quebrados  os  alaba^ 
fíros,  em  que  guardava  os  aromas,  e  cheyros  pré-» 
oiofos,  lançados  aos  pès  dó  mefmo  Chriílo:  Marta 
hahens  alabafirum  ungnenti  nardi  piftici  pretloft  unxit 
fedes  Jefú,  Nfaò  ufou ,  em  todo  o  tempo  da  fua  vida, 
de  outras  agoasodoriferas,  que  as  das  fuás  próprias 
íagrimas,  com  que  lavava  as  maculas  da  íua  Alma  ,  co- 
metidas na  primavera  dos  fcus  annos :  Lacrymú  ccepit 
rígare:ped€stjii$.  Como  temo?  dito  cm  outro  diícurlo. 

Tam? 


Dot&rmenh  dúfedÒftíõ  Iffferm. 
Também  devem  procurar  cfíc  dcíengano ,  hufls 
certos  Paraninfos ,  que  aípiraõ  a  tcda&  as  vedas ,  c 
pcrtendcm  os  melhores  cafamcntos:  huns  certos  Nar- 
cifos ,  que  contemplam  a  cada  paíTo  no  clpclho  a  fua 
fermofiira,  efícaõ  Idolatras  de  fi  mcfmos.  Huns  Ga-         ?' 
nimcdes  aereoá  ,  que  andaô  femprc  com  polvilhos 
noscabcllos,  c  cabellcyras ,  e  nunca  fe  lembraõ  da 
morte  -,  coníiderem  ,  que  o  Príncipe  das  agudezas^ 
com  fer  Poeta  gentio  ,  cflranhava  no  feu  tempo  ,  a- 
quelles  Fidalgotes  de  Roma  ,  que,  eomo  cfíemina^ 
dos,  hiaõ  fempre,  com  luvas  ambreadas  nas  mãos, 
carregados  de  chcyros  ^  dizendo  com  lutileza ,  que 
naô  deyxa   de  cheyrar  miiyto    mal  ,  quem    cheyra 
íempre  bem  :  Non  bene  ftmfer  olet  i  qui  bene  fen.pr  w^^^' 
olet,  l>lcm  o  fedor  dos  peccados  fe  tira  com  ^sdcli-^^^^ 
cias  dos  eheyros  >  mas  com  a  penitencia ,  e  com  a 
mortificação  do  olfa(flo  ,  c  dos  mais  fentidos.   Imi- 
tema  S.  Arfenio,aquclle  grande  exemplar  dos  Ana- 
coretas ^  que,  fendo  Valido  do  Empcrador  Theodo» 
fio,  trocou  a  Corte  com  hum  defeito  jeopaludamçn- 
ta  na  Cuculla,  largando  as  grandezas  do  paço ,  com  a 
pobreza  de  hum  tugúrio.  Acoflomou-fe  com  os  mais. 
Monges  cm  certas  horas  do  dia,  dedicadas  ao  cxer* 
cicio  exterior,  a  tecer  cfleyras,  e  ceftos  j  e  porque 
era  neceíTario  a  fim,  de  que  os  juncos ,  e  eí partos  ,  corn 
qtie  fe  teciaô  ,  eftiveíFem  íempre  na  agoa,  para  fe 
manterem  verdes »  e  brandos ,  nunca  mudava  a  agoa^ 
que  tinha  no  vaio ;  mas  aílim  fedorenca  ,  como  era^ 
the  accrefcentava  outra ,  para  que  le  eonfervaíTc  fem^ 
pre  com  o  mefmofcdor.  Hiaô  das  outras  Ermidas  ^ 
vifelo  os  Monges  mais   anciãos  ,.  e  não  podendo 
tolerar  aquelle  mao  cheyro,  pcrguntavaô-ibe,  ^^'^^f^'^\ 
mo  oaô  lançava  fora  aquella  agoa  itaô  cotrupta,.  c  ^^{J'"' 
taô  nociva?  que  erabaflante  para  apeíiar  a  íua  ceUa:.,^y.y^^,, 
K.efpondca  Arfeni(^.  >  CojifçrvO'a::por  -  amor  do  regai  o 
■■■'''  •  do- 


I  f 


I  '     í 

I       t 


'96  ,^u-rv\iti  Vifcmfò ■•Í^;-^X'^\ ^ 

do  âmbar ,  e  àlmifcar ,  que  lempre  trouxe  comigo; 
quando  eu  vivia  no  íeculo  no  paço  de  Geíir ,  e  me  lis 
neccíTaFio,  que  agora  íofracfte  fedor  a  fim,  de  que 
no  dia  do  juízo  me  livre  Deos  dos  fed  )rcs  do  Inferno: 
TheM.  Utindiejtidícií  de  íUúgehen^e  imenarrahili  fatore  li- 
wu      beretme  Dominus,  Oh  icmbrança  do  Inferno ,  quan- 
to es  efficaz  para  aliviar  os  Gatholicos  das  mokliias, 
ç  afflicções  defta  vida!  Pelo  contrario,  quampeno- 
íocaftjgoeftà preparado,  para  aquelles,  que  vivem 
defcuydados  dcfía  lembrança ;  porque ,  como  diz  a 
Eterna Sspicncia  por  bocca de  Salomão;  enganando- 
S^p.e.  ^c  aÍ4i^efmos,difcurfaômuytomal:  Cogit antes apud 
2.  I.  &íenonreãe  exigmm,  é^cum  tadioeftttmpis  vitorio- 
6.&^>Jira.  Vemte  coronemus  ms  rojis  antequam  marcefcant, 
A  noíTa  vida  além  de  fcr  breve  ,  fe  naó  buícârmoi  ai- 
gum  modo  de  alegria  ,  naturalmente  he  trifte.  De- 
prcíTa  coroemo-nos  com  capelias  de  rofas  ,  primey- 
ro  que  murchem  :  Nullum  fit pratum  ,  quod  nonper- 
tranfeàt  luxnrta  nojira.  Naõ  haja  nos  prados,  c  jar- 
dins defte  Mundo  flor  algua  de  fermoíura ,  que  a  nofr 
fa  luxuria  naò  apeteça  ,  e  naõ  alcance.  Eíiesfaõ  os 
axiomas  Epicureos,  que  reynaõ  nos  corações  moUes ,  e 
cfFeminados ,  íem  reparar  que  todas  as  flores  de   de- 
licias ,  ou  chèyros ,  ícmorc  nefta  vida  laõ  efli meras: 
ípfadiesaperit  .conficit  ipfa  dies.  E  durando  taó  pou- 
co, vay  depois  parar  para  fcmprc  nos   eternos:f(^* 
dores  do  Inferno.  rr 

Entre  os  Emperadores  Romanos ,  nenhum  houve, 
nem  mais  dado  aos  rcgdos,  nem  mais  amante  do$ 
cheyros,  que  fe  iguaiaíTc  a  Eiliogabalo,  Convido» 
pois  efte  aflor  da  Fidalguia  de  Roma  a  hum  galhardo 
banquete,  que  com  profufo  difpendio  tinha  prepa- 
rado na  mayor  fala  d3  feu  real  palácio.  Naõ  f alio 
na  extravigancia  das  viandas ,  na  preciofiJade  dos 
comeres;  porque ,  cpmo  fe  a  Europa  toda  naô  foíTç 
'  ca- 


DotormentQ  ào  fedor  do  Inferno]  fT 

Capaz ,  de  íatisfazer  ao  apetite,  para  fartar  a  intcra- 
^erança ,  de  Africa ,  e  de  Aíia  mandava  conduzir  a 
RoíTiaomaisíeleto.  No  melhor  do  banquete  ,quan- 
jdojá  asMalvafias,eas  Candias  com  osíeus  cípirito^ 
alegres  avivavaõ  a  fantaíia,  de  repente  começou  8 
cair  do  tedo  da  Aula  hum  chuveyro  taô  copioío  de 
flores  íobre  os  convidados ,  que  parecia  y  q\ic  Hibla, 
c  Flora  para  lifongear  a  Cefar ,  concorriaô  a  folemni- 
zaro  banquete.  De  grande  feftejo  foy  efta  novi<ladcr 
Ver  cm  hum  inílante  a  mefa  marchetada  de  cravos ,  ç 
alcatifada  de  rofas.  Mudavaò-fe  as  iguarias,  e  aílim 
0s  que  entravaô ,  como  as  que  fahiaõ  ,  logo  ficavão 
cubertas  de  flores.  Brindavaô-fe  huns  aos  outroSi 
c  elíando  com  os  falemos  mais  fubidos  nas  mãos ,  en- 
tre a  alvura  dos  alabaftros,  e  porcellanas,  por  onde 
bebiaô^  mifturava-fe  no  meímo  tempo  o  purpúreo 
das  roías,  que  do  forro  eftavaõ  cahindo,  Emfim tu- 
do rofas ,  tudo  flores  ,  tudo  cheyros  ,  tudo  delicias. 
Porem,  como  diz  o  Efpirito  Santo,  domayor  da  ale- 
gria paíTáraó  ao  mayor  extremo  da  trifteza:  Extre-  ^^*  , 
ma  gaudit  luãus  occupat,  E  quanto  melhor  fora  para  ^  '^' 
elies  ,  entrarem  triíks ,  para  dar  os  peíamesna  caía  ' 

do  luto  ,  que  irem  alegres  ao  paço ,  para  receber  os  .  ^;; 
parabéns  de  ferem  convidados  ao  banquete;  Meltks  ^^ ''' 
ejl  ire  adDõmum  lu5íus »  quàm  ad  Domum  Convivii, 
jporquc  continuando  com  igual  copia  a  chover  flores, 
o  que  primeyro  era  delicia ,  já  paíTava  a  tédio  dos 
convidados,  Sahitído  depois  da  íala  Elliogabalo, 
mandou  fechar  as  portas;  e,  fubindo  elle  meímo  aq 
tcdlo  ,  fez  lançar  em  mayor  abundância  flores  ,  e 
j?ia is  flores ,  a-té  que  osinfclices  convidados  btidosf 
c combatidos  de  hua  tempeíiade  odorífera  ,  eftjndo 
i  mefa  de  flores,  e  entre  a  fragrância  djschcyros 
pifando  purpuras ,  fícàraõ  todos  miíeravelínente  afo- 
gados, encontran,do  cm  cama  de  roías  a  íepultura. 

G  De- 


75- 


'I.  ■ 


Mn.  de 

re^,nat. 


Mtrtm 


màt- 
JBapt.. 


DteíeíigaiiGmríe  tçios  aquelles  ^  que  por  ímuy to  m^ 
^>€ia)clitid):efaõ  mais  amantes  da  feyta  de  Epjcur% 
^tQâf\hf  ^  Ghrifta  Porque  he  traça  antiquiffimt 
4p^  Ikmo0io  procti^rar,  que  nefte  Mundo  vivamos 
edtrçâs  delicias  mímofas  (feschcfras,  para  queaffim 
dfiÍG^ydàdosy  viodo  de  improvifo  a  morte,  'voamos- 
aíparar  com  clle  entre  o&  tormentos  ^c  fedores  d<> 
laíernov 

i  Foy  opinião  nntiga  dos  Pitagoricos ,  giie  ochej^* 
150 bailava  para  a  nutrição»  e  íuftento,  aMm^  da  vid* 
Ijiiíiaatia ,  como  de  qualquer  oytro  individuo.   Ale- 
gaõporfi,  que  Ariftotelcs,  eftando  em  huma^rave 
doença  com  faftio  mortal ,  e  íem  poder  levar  couí^ 
alguma  pela  bocca  y  com  cheyros  conforta  ti  vos  ,  e 
íufia^ciaes^  lhe  foraõ  prolongando^  a  vida,  ate  ter 
alguma  melhora  da  fua  íaudeje  ,  que  Plucarco  efere* 
ve ,  como  na  Aíia  vive  hum  Paítara,  cujo  aliment^y 
naô  hc  outra  coufa ,.  que  puramente  o  cheyro  :  dç> 
meímo  modo  ,  que  o  Camaleão  iuíien ta  ávida  com 
fartarfe  de  ár  ,  e  do   vento.  Eí^a  mefma  íentença 
íegue  ofecretario  d^hnatureza  ,  Plinio  r  o  qual  affirr^ 
•  ma,  como  nas  naícentes  do  Ganges  y  eftaô  íítuados 
certos  Povos  ,  cujo  veftido  íaô    folhas  de  arvores^ 
qm-i  tendo  buin  nariz  de  grandes  ventas^  e  aíFazcom^ 
pridoynao  tem  bocca  para  comer»  chama6«íe  Aftô-^ 
mos ,  que  he  palavra  Grega  ^  que  íignifica  o  mermoi 
que  fem  bocca*  Eíks  y  qi^ando  he  tempo  de  alimen* 
tar^corpocom  o  íuíknto,  vaõ  com  toda  a  fua  fa-^ 
miliaabufcar  asarvoresfrudliferas  ^  e  a{Fentando-% 
dcbayxo  delias ,  colhem  as  frutas,  e  tomando-as  na» 
npaô  „  as  eftaô  cheyrandio  y  até  ,  matar  a  fome  com^ 
o  íini pies  cheyro..  Efla  opinião  dos Pitagoricos ,  ain- 
da que  tem  vários  Authores,hcmuy  duvidofa,  e   ÓQ 
muy  poucos  admitida.  Mais  depreffa  provarey  eu? 
'  com aexperiencia „x  com fucccíTos  evidentes ,,que o 
.:'tM  '■  '  -  chey:- 


Dd  tõYtneètõ  iêfedõf  ào  Inferno.  $9 
*^}icyn>,  quanto  he  mais precioío para  o  corpo,  tah- 
■:to  Hg  mais  p^rtiícioíb  para  a  Alma ,  e  continuando  o 
'iífo  dclle ,  em  lugar  de  acrcfcentar  a  vida ,  prccipitaas 

inais  das  vezes  para  a  morte. 

;  1  Refere  Saõ  Pedro  Damião  ,  como  o  Emperador  ^ j,^^^; 

ftho  Terccyro,  prefo  dos  naturaes  encantos  da  fer^^^^^^^ 
ofura,  egraça  deD.Joanna,  Nobilifliitia  Matrona wí«  l[» 
Romana ,  mandou  matar  ao  Marquez  Creíècnci^,  feu  Rom^ 
maridò,dandGlhc  efperanças ,  que  pelo  tempo  adiatttc 
havia  de cafaríe  com  ella^  e  coroala  Emperatriz.  Eftan- 
do  depois  Otho  ,  com  grave  eícrupulò ,  e  remorfo 
da  confcicncia ,  foy  para  Ravena  a  confeffarfe  com 
Saò  Romualdo,  que  naqiielle  fccuio  cftava  no  ma- 
yoraugc  da  veneração  ,  e  fantidade.  Fez  propoííto 
de  mudar  vida,  e  com  fazeríe  Religiofo ,  trocar  a 
purpura  com  a  coguUa*  Mandou  com  grande  magni- 
ficência fabricar  o  Mofteyro  à  íua  cufta  ,  e  no  em  tan- 
To  foy  para  a  Cidade  de  Pavia ,  a  dar  ordem  para  a 
renuncia  do  Império.  Tornou  depois  para  Ravenaí 
clogo  Saõ  Romualdo  foylhc  lembrar  a  promcíTa  de 
íer  Religiofo.  Porque  lhe  tinha  revelado  o  Efpirito 
Santo  5  que  antes  de  hum  anno  havia  de  dar  conta  a 
Deos,  naô  fó  dos  fcus  pcccados  ,  mas  também  do 
mao  exemplo ,  que  no  diícurío  da  fua  vida  deu  a  tan- 
tos feus  vaíTallos.  Refpondeo  Geíar,  que  cftava  de 
acordo ,  mas  que  naò  podia  fêr  logo:  porque  lhe  era 
forçofo  dar  primeyro  iúa  chegada  a  Roma  ,  para  dey- 
xarconcluíos  certos  negócios » equc  na  volta  guar- 
daria íem  falta  o  feu  propoíito.  Porém  o  Sanio,  en- 
ternecido pela  perdição  diquelia  Alma  ,  lhe  profe- 
tizou claramente ,  que ,  fe  hia  a  Roma  ^  niô  tornaria     _ 
nunca  mais  a  Ravena;  St  Romam  thk  ^  R^'^^^^^'^  f^^'J^ 
nmpUasnonredibis.  Ê  afllmfoy:  porque  renovando  ^^^^^ 
como  por  deípcdida  a  antiga  amizade  com  D.Joanna, 
ícUa,  coníiderandQ-fe  como  burliida ,  e  pi^vendo ,  que 

G  2  uaõ 


i 


i  f 


4m>0th 
Cf. 


^0ò  Dífcuvfo  ÍV. 

naõ  havia  de  íer  Eíppcratriz,  armou  a  vingança ,  tau? 
to.  mais  atrevida ,  quanto  nas  mulheres  o  fogo  da  im 
hcmais  accfo.  Sabia  a  Marqueza,quc  o  Emperadoí: 
era  naturalmente  inclinado  a  iodo  género  de  cheyros» 
c  por  ifto  com  huma  traça  atreiçoa4a  ,  mandou-lhedc 
prtfentc  hum  par  de  luvas,  para  que  chcyrando.l^ 
íe  lembraíTe ,  que  era  a  ultima  prenda  do  íeu  affedo» 
Como  a  fragrância  era  fuavc  ,  e  peregrina ,  aflim  tam» 
bem  a  compofiçaô  dos  cheyros  era  medicada  com 
hum  veneno  taõ  agudo,  e  penetrante ,  que .fubiní- 
do  logo  ao  cérebro  ,  e  do  cérebro  ao  coração ,  co^ 
mo  fe  foíTe  ferido  de  huma  apoplexia  jfemconfiíTaõ,. 
ciem  poder  dizer  JESUS,  cahio  fubitamemc  morto. 
Oh  caio  terrível !  Oh  íucceffo  laftiraoío  \  Cujas  con- 
fcquendasíaô  dignas  de  hum  ferio  reparo,  para  to^ 
tal  defenganodospeccadores.  E  quam  diverfos  chey- 
ros acharia  o  Emperador  Otho  naquclle  meímo  in- 
ftante ,  que  das  delicias  do  Paço ,  paf  ou  para  o  fe- 
dorento calabouço  do  Inferno  \  Ahi  fím ,  que  expe- 
rimentaria à  fua cufta  íer  verdade, que:  Eritprojua^ 
m  oàoref/etor, 

He  confideraçaô  minha ,  que  fallando  tantas  ve- 
zes a  Efcrituraíobre  as  penas  refcrvadas  aos  Pecca- 
dorcs  no  inferno,  femprc  que  nomea  o  fogo  a  acreí- 
centa  também  o  enxofre.  O  Profeta  David  no  Píal^ 
4  modecimo  diz  ,  que  naqueUa  gruta  infernal  chove- 
Tfdm,  rà  feire  oa  condenados  fogo, c  enxofre:  Pketfuper 
^o-7-   pccateres  ignis ,  &  fulphnr^  O  Profeta   Ifaias  diz, 
que  o  alimento ,  e  nutrição  dos  Réprobos  fcrà  o  fo- 
Jfai  e.  go ,  e  a  bebida  huma  torrente  de  enxofre  :  Nuírmen- 
5°  53'  ta  ejiisignis\&  torrens  fuTpm.  SJoaõno  feu  Apo- 
"^^'''^■^'  ealypfe  muytas  vezes  falia  delle  :  Crmiabmtur  tgnt 
ctq^íoà-fulJure.Qpcos  Prefeitos  feraõ  atormentados  cora 
c.  10.9.  fc^o,  e  enxofre :  tMiffifmt m  fiagmm  ignis  arden^ 
í.âi.8.  mfnWure.  tj^éus  efi  m  fiagmm  ignis  ^  'áfulfum. 


Do  tormento  âo  fedor  do  hífevm»  foi 
Brit  in  ftagné  ardenti  igne ,  &  fulfure.  Que  íeraõ 
fcntcnciadoa ,  a  fotrer  para  íemprç  o  tormento  exccí* 
Civo  de  hum  fogo  íulfureo.  E  que  combinação  tem  o  ; 

enxofre  com  o  fogo  do  Inferno  ?  Para  reíponder  com 
acerto  a  cfte  qucíito ,  he-me  ncceffario  explicar  pri- 
mcyro  as  qualidades,   e  os  effey tos  do  enxofre,  Q'^»^- 
celebre  André  de  Laguna,  Protomedico  do  Summo^*^^'* 
Pontifíçe  Júlio  Terceyro,  e  depois  delRey  Filippe  o  V  ' 
Prudente  de  Caiiella ,  diz  >  que  o  enxofre  tem  huma 
Jiga  iníeparaveí  com  o  elemento  do  fogo,  e  proya  fc 
com  a  experiência,  porque  aproximando-fe  o  enxofre 
ao  fogo  ,  no  mefmo  inílante  inflamma-fe,  acende-fe,^^.^'*^^' 
carde  :  e  por  ifto  os  Químicos  o  chamaõ  fogo  vir-^^;!  y^^ 
tuai,  ou  virtualmente  fogo.  Refere  Dioícorides,  que 
feachaó  agoas  íulfureas  ,  que  paíTando  por  minas  de 
enxofre,  brotaó,  e  lahem  fervendo  j  o  que  denot», 
fer  ofeu  calpr  cxceflivo.  Os  mefmos  rayos,qae  fc 
formão,  c  compõem   de  vários  vapores,  a  mayor 
parte  delles  faõ  fulfureos ,  pois  por  onde  paffaô ,  dcy- 
xaó  hum  fedor  manifefto  de  enxofre.   Lembra-me, 
que  na  Cidade  de  Mantua ,  em  tempo  dos  canicula-i 
reSí  armou-íe  huma  trovoada  taõ  eícura ,  c  medonha, 
que  fazia  horror.   Desfechando   depois   às   três  da 
tarde  ,  deíarmou-fe  com  vários  rayos.  Cahio  hum 
delles  em  huma  cafa,  e  de  dezafete  peíToas  ,   que 
moravaõ  nella ,  matou  logo  a  quinze,  íem  achar  nos 
cadáveres  lezaõ  alguma  ;  e  as  duas  mais ,  que  fic^raõ 
como  femivivas ,  refpirayaõ  com  difficuldadc;  por-, 
que  o  fedor  do  enxofre,  quedsyxou  orayo,  era  taõ 
agudo,  e  maligno  ,  que  penetrava  o  cérebro,  c  afo- 
gava o  coração.  Para  fer   outra  vez  habitável  efta 
caía  foy  neceíTario  lavala  com  vinagres  fortes,  ede- 
fumala  com  fogo  de  alecrins, e  outros  aromas  con- 
fortativos.  Prova-fe  tudo  iilo  com  a  experiência  dos 
mefmos  ,  que  tem  por  officio  de  cavar  enxofre  das 

G  3  mi- 


li   .: 


Jn  Cútn 
ment. 

Dioíc,  • 


!  ■:  I-: 


II 


ímiôaSi  Eftes  .mincyrDs  ,  como  já  deftros  ttâ  arlê^ 
altríj  de  teTem  perto  de  íi  algaas  cbeyros  contrários, 
'pròduéâô  fempre  de  ça^ar  o  enxofre  em  lugares  nvíijr 
clarosv  edefcubertos}  parque  fe  trabalhaífem  íem 
.cfle  reíguardo  ,?e icm  lugar  fechado  ,]afaUivelmenté 
^  ;^'^  Êâhím^  mortos^  Eftèsiaõ  ós  effbftos,  eas^tKilidaí. 
'       des  '^  ^6   eflxoíre»  Agora  reípondo  ao  quefíco  i  que 
cotribinaíçaô  tem  o  enxofre ,  com  o  fogo  do  Inferno.? 
E  digo ;,  que  tem  a  mefma ,  que  tem  o  fogo  com  o  en- 
Icofre-na  terra.  Ê  porque  Deos  para  caftigar  aos  pcc- 
'  \.    ,  èàdoVBs  nainferno  ^  eritrjs  os  .tormentos  do  taiflo  ,  ef- 
;  " '.   colliéo  ao  fogo  camôlínaiso^perativoje  violento,  aílim 
para  punir  os melindroíos,  ecíFemiriados  nos  chcy- 
ifos  V  eatre  os  tormentos  do  olfadto  efcollieo  ao  cn» 
:Rofr6^>  porque  tem^o  íeu  fedor  mais  acflivo  ,  e  pene- 
trante :  Miffl  fiínt  in  fiagnum  tghís  afàentè-fníftire'^ 
E  conforme  ã^crcaturà  do  fogo^^eíèvada  peia  Omni» 
potencia  Divina ,  obra  com  muy to  mayor  ^dli  vidatley 
c  violência,  de  tal  forte ,  que efte  noíFò  fogo  natu- 
ral pareceria  aos  condenados ,  íem  efía  de vaça5 ,  \mm 
foigiá  'pintado  >  affim  também  o  enxofre^  elevado  da 
meiíma  virtude^Divina ,  largara  de  fi  dum  fedor  muy- 
tò  mais  vehemente,   eScaz  ,  e  perietrâtivõ  ^  tanto 
áíEm,  que  todos  os  fedores  do  Mundo  congregados^ 
parèceràõ  aos  Repfoboshuma  fuave  fragrância:  Erit 
fUií  pra  fuavi  odore  faton        :       1^ 

Foy  coftume  da  aatiguid3de,purgarcm-fe  as  cafas, 

habitadas  dos  Demónios ,  com  o  fogo  do  enxofre.  Eile 

iiío  foy  rambem  admettido  na  Grécia  entre  os  Saccr- 

Sioman  ^ótes  Gentiosf^que  expeíliíiõ  com  ofeufumo  os  ma- 

Odíff,    ^gnos  cfptritos  dos  corpos   dós  Invafados ;  e  aíTim 

Homero  refere ,  que  UlyíTes  defumou  a  fua  ca  f  a  com 

■^í^y^-'»  Q  fedor  do  enxofre  ,  para  expellir  as  Almas  infedas, 

^^^^^,^  qucaaírombravaõ.  Será  tudo  ifto  fabiila,  ou  inven- 

farl      í  0  poética,  ainda  que  naô  faltem  Authorcs  >  que  o  di- 


'Apoc.c. 

Í9.20. 


gao. 


\ 


Do  tormeníMópáwíSé  hfevno\        loj 

g3Ôé  He  porém  verdade  de  fé ,  o  que  narra  o  Evan^- 
gciiflaS.  Lucas, qúc  cftando  Chrifto  lançando  huma 
legião  de  OemòniôS,  pediraô-lhe  eftes ,  que  naô  Os 
obrigaíTca  tornar  para  o  Inferno ,  que  antes  entrariaô 
cmhumlote  deanimaes  immundos,  queeftavaõ  paí- 
l-ando  no  montCé  Deípachou-llies  Ghrifto  â  pcciçaõr 
Pe^mifit  illís:  E  íca ça  mente  e n t ro u  a  legião  dos  Dc^  Lhc.c,% 
nvonios  no  lote  immundo ,  que  cfte  preeipitando-íc  do  3*- 
monte  abaixo  íoy  buícar  hú  lago  de  agoa  onde  íe  afo- 
gou :  Abiitgnxfer  praceps  tn  Jiagnum ,  &  Çuffocatus  iyii'%\ 
eft.  Reparaõ  ob  Santcs  Padres  íobre cíle  Texto  ,  que, 
ícndo  cftcs  anímaes  naõ  fó  por  nome,  mas  também 
por  natureza  immundos  ,  criados  em  monturos  ,  e 
quanto  mais  fe  deytaô  em  lamarões,  e fedores, mais 
crefccm  ,eengordaõ,  agora  eftranhaíTem  de  qualida- 
de o  fedor  dos  Demónios  ,  que  para  o  naõ  fofrer  huoi 
fó  iaílance,  elegerão  todos  juntos  morrerem  afogados. 
Aífim  itc,  reípondc  Saõ  Pedro  Cryfologo.  E  iÚo  prova 
a  diffcrença  que  vay  do  fedor  do  Inferno  aos  rtoíTos  fe-  s.Petr'^ 
dores ;  Siceftodor  ejus  tartareus ,  &  crudeíís ,  ut  eum  chryC. 
nec  parcorum  natura fufficeret  ftifiinere.  Deniquè  de-^^^-^J* 
wergt  in  mari ,  ó-  fluBtbus  maluit  deperire-,  quà m  ejus 
ímmundiuam  &  putredimm  toUerare.  Oh  fedor  Tar- 
tareo/  Qli  fedor  do  Inferno  !  que  ,  co.nodiz  Saõ  Ber- 
nardo ,  íic  taô  iníoportavel ,  que  naõ  ha  linaóà  ,i  que 
o|íayba  explicar ,  nem  ha  penna ,  que  o  poíTa  deícre-  D.Berní 
ver  ;  Fator  ifitollerabilCs  ,  Fator  innenarrabilis.  De  Ser.  ad 
íenganem-íe os  peccadores, quea  fuavidadé  dos  chey-  fr. 
ros ,  que  havemos  de  procurar  neíia  vida ,  he  a  virtu- 
de ,  c  íantidadè  ;  e  fobre  tudo  o  bom  exemplo  da 
noíTa  vida,  com  que  havemos  de  edificar  os  noíTos  pro-  2.  Cor. 
ximos,  para  podermos  dizer  com  o  Apoíf  olo  :  Chri-z^S* 
ftibonusodor  fumus.  Pelo  contrario],  regalar  o  palato 
com  chey  ros  ,  c  aíFcdlar  fragrâncias  nos  veílidos ,  diz 
SrJoaõChryíoftomo ,  que  denota  hum  animo  effcmi- 

G  4  na- 


yp4  Dtfcúrfi  IV' 

Bâdo,  c laítivõ ;  que  procura  com  eftcs  cheyros  cn- 
Chryfod  ^^^^. ^  ^  ^g^^ j.  (jog  (-çys  vícios:  Of /í^rííí  í«/«2,^c  veftmm 

tTi"  /}'^£^«^/^ ,'  ^^^^'^  i^i^^  ^^^^^^  ""^'"^^'^  graveskníem 

tmt  &mmundnm\Uz^  nunca  poderá  por  toda  a  ctcrnida^ 

de  encobrir  os  fedores  do  Inferno ,  aonde  cites ,  de  que 

tanto  agora  foge ,  là  lhe  haverão  de  parecer  íuavcs; 

Erit  [liií  í^^fi^'^'  ^J^^  f^^^^*'  ^"  ' 


.i.c  ;■ 


íjíioii-í' 


DIS 


-^iP$ÃmB5- 


TORMElSrTO  DO  GOSTAR. 


lOjf 


DISCURSO  V. 

Do  Tormento  do  Goftar. 


r' 


Epulahatur  quotídfefplenãide ,  &  fepulUiS  eji 
in  hferno.  Luc.  i6. 


Nvcjando  o  infernal  inimigo  â 
dignidade  humana  ,  pouco  in- 
ferior à  fu  •:  Mtnmjli  etím-pafí- 
lo  mims  ah  Ângelú,  E  vcndo-a  p^^^^. 
collocada  no  Paraifo  terreal,  ^J^^  * 
para  depois  ir  gozar  da  bcm^- 
vcnturança,  valeo-fede  todas 
jl  ás  traças  J  para  que  rebellando- 
■^  fc  como  elle  ao  leu  Creador^ 
fartaffe  defte  modo  a  íua  inveja ,  ficando  o  género  hu- 
mano como  íçu  íubdito  no  inferno.  He  dereparar,  co- 
mo,© Efpirito  Santo  ,  que  dirigio  a  pcnna  de  Moyíis, 
primcyrohiíloriador  da  Sagrada  Eícritura,antcs  de  re- 
latar a  kric  da  ruina  dos  noíTos  primeyros  pays ,  deu 
principio  ao  tcrceyro  Gapitulo  ,  fcr vindo- íe  como  de  ^ 

prologo  da  aftueiamaliciofa  do  Demónio  iv^z/^r^^wí^^^^-^^^^ 
erát   edliáiõr  omnéus  animantibus  terra.  Procede 
depoia  s  narração  do  infaufta  fucccffo  Q9^Q  total 


loá  Difcurfo  V. 

cxtermipio  de  Adam,  eEva  ,e  de  toda  a  íu*  pofíeri- 
éade,  He  Lúcifer  o  Proteo  infernal,  que  para  en^ 
laçar  as  Almas,  veíie  todos  os  trajes  ViCõma  todas  as 
figuras ,  buíca  todjis   as-fórmas  ,  inventa  todos  os 
artifícios  ,  e  cftratagemas  4  porem  coí^  çudo  ifío, 
conhecia  claramente  ,  que  Adam  i    e  Eva   eftavaô 
guardados  da  juftiça  original ,  como  cm  hum  forre 
rocli^edo ,  com  abundante  preíidip  de  auxílios »  e  for- 
talecidos de  todas  as  bandas  com  a  graça  fantificante, 
epor  ifto  capazes ,  naò  íó  de  rcíiftir a  todos  os  aíTaítos, 
mas  de  envergonhaio  ,  vencelo,c  çonfumilo  emhua 
batalha  muy  arrifcada.  Que  íorte  de  armas  efcolhc- 
ria  Lúcifer  ,   para  alcançar  a  vitoria  ?  Por  certo, 
que  a  malicia  de  Lúcifer  naó  achou  ma  quina  mais  ter- 
rível ,  para  derrubar  as  duas  columnas^  fundamentaès 
de  todo  o  género  humana ,  que  o  ÍCntido  do  goíbr. 
Oh  trifte  pcccado  da  gula ,  que  com  a  doçura  mo- 
mentânea do  teu  mel ,  tivefte  poder  de  enlaçar  aos 
noíTos  Protoparentes  com  toda  á  íua  pÒRcridade  !  E 
por  ifto  bem  mereces  o  nome  ,  com  que  te  chama 
SJoaó  Climaco,  de  cruel  tyranna  de  todo  o  género 
\\\xm^no :  Totius  generis  hurnani  crudeUs  Dorhimtrix.  ^ 
'^f^'     Efte  quarto  ícntído  do  goftar  tem  moyto  mayor  car 
,  '  ''^'^'dcncia,  para  quebrantar  a  Ley  de  Dèos  ,  que  os  ou^ 
tros  três  i  porque  além  de  íer  natural ,  hc  forçofaj- 
mente  necGÍTario  valerfe  dei le  cada  dia  ,  para  viver;  ; 
Naô  he   aílim  dos  outros  fcntidos.  Porque  íendo  a 
vifta  hum  grande  adjutorio  para  a  vida,  muytos  ce- 
gos ,  com  naô  ver ,  vivem  com  íaude ,  e  livraô  íe  da-s 
occaíiôes  dos  objccílos  atradivos  ,  e  a  cegueyra  do 
corpo  lhes  abre  os  olhos  da  Alma.  Huma  Muíica  de 
ricas  vozes,  huns  inftrumentos  bem  tocados  ,  rçi 
creáõ  os  ouvidos  i  mas  quantos  íurdos  vivem  meJhor^ 
porque  naó  ouvem  cantigas  deshoncftas ,  nem  murmu-» 
rajõcs  defijOU  dos  xíutrps!  A  íuavjdadcidos^chey^ 

ros 


Do  tormento  âõGop av.  i©7 

fòs  co'nfola,écotifortaos  cfpiritos , mas  quantos  fo- 
gem dclies  como  nocivos!  Equem  naô  tem  olfsiflo» 
quando  naõ  fe  rccree  das  delicias  dos  cbeyros  ,  naò 
padecerá  a  pena  dós  fedores.  Pelo  contrario,  como 
naõ  ha  viver,  íem  comer,  aíTim  naô  ha  paladar  fem 
'goftar.  E  ícndo  iíio  aflim  ,  Deos  naõ  prohibe  o  co- 
mer neceffârio , para  oluftcnto,  mas  oíupcrfíuo,c 
dcmaíiado  da  golodice.  Naô  veda  oufo  das' bebidas; 
mas  ò  abufo  da  bebedice,  E  eíla  fera  toda  a  matéria 
deftc  difcurfo  ,  que  dividirey  em  dous  pontos.  No 
primeyro  veremos,  quam  gravemente  Deos  caftiga 
os  comilões  ,  e  bebedores  ,  ainda  neíla  vida  com 
mortes  impròvifás.  Nó  íegundo  moftraremos  ,  que 
aquelles,  que  ávifta  dcftes  cafíigos  perfeveraô  no  le- 
targo defte  vicio  da  gula,  íem  duvida  morreráõ  im- 
penitentes ^  eferaô  fepultados  por  toda  a  eternidade 
cofli  o  Epulaõ  no  inferno :  Sepultas  efl  in  inferno, 
"•  Grande  vicio  de Vé  de  ler  o  da  gula  ,  pois  abor- 
recendo Deos  a  todo  género  de  peccados,  fofre  os 
peccadores,  ccompadecs-íe  delles,  ufando  mais  da 
miícricordia,  que  dâ  juftiçá  j  porém  na  intemperan* 
ça  da  gula  ,  e  na  crápula  ,  abomina  Deos  a  qualquer 
exceíTb.  Muyto  mais  ,  fe  chegar  a  fartaríe  fobre 
proffe,  ou  á  perturbar  fe  dojuizo ;  entaõ  irritafe  Deos, 
ca  modo  de  enfurecido,  íem  mais  efpera,  defcarre- 
^a  o  furor  fobre  os  intemperantes,caftigando-os  em 
todo  o  tempo  ;neQa  vida  apreíTando  lhes  a  morte,  e 
na  outra  fepultando-os  no  inferno.  Tudo  confia  do  Sa- 
grado Texto.  Fallando  tantas  vezes  o  EípiritoSanto 
por  bo.cca  d)s  Profetas,  acharemos , que  todos  uni-^» 
formes  ameaçaõ  os  peccadores  com  o  terror  do  in-  < 
ferno.  Porem  naô  fe  apontará  texto  nenhum  do  Tef- 
tamento  velho  ,  em  que  fe  lea  ,  que  Deos  nomeada- 
mente mindaíTe  alguém  vivo  ao  inferno,  exceptuan- 
do a  Core  ,  Natan ,  c  Abiron.  Ajuntaraõ-fc  cíles  três 

Pre- 


26 

33 


i    I     f: 


Nftmc. 


io8  Difcuvfo  V. 

Precitos  ,"  e  conílituindo-fc  cabeça  de  motim   ,   le- 
vantarão ao  Povo  contra  Moyíés ,  e  Araõ  j  eíte  Sum- 
mo Sacerdote}  aquclle  Liigartenente  de  Deos  nater^ 
ra.  Naó  tardou  Deos    com  o  cafíigo.     De  repente 
íc  lhes  abrio  a  terra  debayxo  dos  pês  ,  cforaõ  buir 
car o  feu  centro ,  eaílim  vivos  ficàraõ  íepultadps  no 
i^^w.r;  inferno :  Confefiim  igitur  difruptaeftterrafub  pedihs 
eoríf/n ,  &  aperiens  osfuum  devoravit  illos  ,  defcende' 
rtmtqueviviininfernum.  Equal  foy  ocrimetaò  exer 
crando,  e  cfcandaloío  ,  que  mereceo  taô  terrivel  ca- 
fíigo? Sc  bufcarmos  o  principio  ,  donde  emanou  a 
deíobediencia , e  pouco  refpeyto , que  tiveraõ  a  Moy, 
fés,  acharemos,  que  foy  o  defordenado  appetite  d| 
gula  ,  que  os  precipitou  na  fua  ultima  perdição,  quey- 
xando-íe ,  que  os  tinha  tirado  de  huma  terra  abundanr 
te  de  todo  género  de  ladtieinios  ,  para  os, ir  matar  á 
jg  ^    fome  no  deferto:  Non  venimus.  Naô  queremos  vir,neni 
j^2.      obedecertc .-  Nunquid  parum eft  tihí-,  quod  duceres  nos 
de  terra ,  qua  lacie  ,  &  melle  mmabat  ^  ut  occidires  m 
deferto. 

Do  meímo  modo  fallou  Chriílo  muytas  vezes  do 
inferno,  declarando  por  bocca  dos  Icus  Apofíolos ,  ç 
Evangeliíias ,  a  diverfidade  ,  c  terribilidadc  daqueU 
les  tormentos ,  que  devem  fofrer  os  condenados. 
Com  tudo,  náo  fe  achará  cm  todo  o  novoTeflamento, 
texto  algum  ,  que  falle  clara  ,c  deílintamente  ,  de 
outro  fogcyto,  que  fcja  fepultado  vivo  cm  corpo, 
cAlmano  inferno ,  como  defíe  infeliz  Epulaõ,  que 
cfqiiecido  de  Deos,  banquetcava-fe  todos  os  dias ,  com 
ocíplendor,  c  migníficencia  de  todas  as  delicias,  c 
re.oalq? :  Epulabatur  qtiotidie  fplendide ,  e  por  iíio ,  /(?* 
pultuseft  m  inferno.  Etie  hc  o  parecer  de  S.Pedro  Cii- 
fologo ,  que  confiderando  a  fatal  mudança  do  eílado 
do  pobre  Lazaro,  e  do  rico  EpuUô,  acha,  que  La- 
zaro depois  de  fofrer  tantos  males  nefía  vida ,  Laza» 

TUS 


Dõtorínentõ  âoGo[lar.  - 109 

Yus  àutemmala.  Os  Anjos  o  leváraô ,  como  cm  triun- 
foparao  Seyode  Abraham,  cos  Demónios  abrirão  a 
terra  ,  para  que  cnguliíTe  ao  Epulaõ,  para  ficar  para  ^  ^^jr 
íemprc  fcpultado   no  inferno  :  EnFratreSsquam  re-  ub^str. 
rum  lamentanda  mutatio  ^  pauperem  fortant  Angeh  in  m. 
finum  Abraba  ^  divitfmdeglutttinfernus.  Oh  quanto 
he  melhor  naícer  ncfta  vida  pobre,  que  rico;  viver 
faminto,  que  farto.  O  pobre  com  pouco  íe  contcn- 
ta  i  ao  faminto  qualquer  legume  lhe  fabs  ,  todo  o 
comer  I  he  fatisfaz }  e  pór  ifío  dà  graças  a  Deos ,  quan- 
do acha  o  neceffario  ,  para  o  fuflento.  Pelo  contra- 
rio ,  o  rico ,  e  goloío  ,  quanto  mais  nada  na  fartu* 
ra,  tanto  mayor  naufrágio  padece  na  indigcftaój  â 
multidão  das  iguarias ,  a  variedade  dos  comeres ,  lhe 
deprava  o  íentido  do  gofto  i  com  o  mefmo  cuydado, 
que  tem  de  lifongear  o  palato,  com  tantas  caflas  de 
viandas,  concertadas  com  drogas  de  hum  ,  e  outro 
pòlo>  eftaslhe  corrompem  o  eíiamago,  e  lhe  cau- 
faô  nauka  a  todo  o  comer  íimpks  ,  e  ordinário ;  de- 
pois nafcc  hum  faftio  mortal ,  que  o  obriga  a  vivei? 
na  fua  muyta  fartura  faminto ,  e  infeliz  na  íua  mef- 
ma  felicidade.  Ecom  naõ  conhecer  nsfla  vida  outro 
Deos ,  que  o  feu  ventre ,  ( como  diz  Saó  Paulo  )  §}no'  pi^^if^ 
rum  Dem  venUr  tfi:  acha  a  morte ,  c  o  inferno,  aon-  ,,/  '^V 
de  poz  a  lua  bemaventurança. 

Reparou  o  Profeta  líaías  ,  que  eflando  a  bocca 
do  Inferno  femprc  aberta  ,  para  cngulir  as  Almas, íc 
hia  fcmpre  mais  alargando',  dilatando-fc  de  modo, 
que  já  naõ  trnhancm  medida,  nem  termp  :  Prepte- /íai.c.f} 
reàdilatavit  infermis  animam  fitam  ,  aperuit  os  funm 
e^Jqne  ulk  termim,  E  qual  íeria  a  razaò  defla  voraci- 
dade interminável  doinfcrnof  Eíie  adverbio prfl/>/írfi, 
que  a  Profeta  antepõem  ao  feu  período  j  dcnôia  cor- 
relação ,.e  certa  a  ca  ufa,  porque  aquelle  báratro  ín^ 
fernal alargue  com  tanta  aucia  as  fuás  garras,  para 

és» 


t,  À' 


jio  Difcmfd  V.      1 

dcvotaír  o  género  humano.  Ouçamos  ao  mefmo  Ifaíaj, 
ljfài.Cs^,p^ra  que  melhor  fique  íolta  cfta  duvida:  F£ ,  quifur* 
gttis  mane  adpotandum  in  cowviviitvtfiris.  Eíia  parti- 
cuta^  aífim  no  novo,  como  no  velho  Teftâmenco, 
íemprefoy  comi  nativa  das  penas  do  inferno.  Per  iilo 
o  Profeta,  depois  de  ameaçar  a -todos  eíles  Sardana- 
palos,  embebidos  nas  delicias  da  gula,  c  que  vaõ 
ajuntando  companheyros  áíua  crápula  nos  banque- 
tes, fem  terem  o  minimo   cuydado  da  cutra  vida; 
Jfaiásc  ^f>^^àamus ,  &èibamus  ,  eras  mim  mortemur,  Osad- 
zz,       verte  feriamente  ,  que  nem  por  ferem  muytos,  por 
ifto  haõ  de  evitar  o  eterno  caftigo  ,  que  merecem ,  an- 
tes por  efta  mefma  caufa ,  infere  efta  confequenciai 
que  irritado  fempre  mais  o  furor  Divino  ,  dilatará  as 
boccas  do  inferno  ,    para  que  todos  juntos  fiquem 
eternamente  fepultados  naqueíle  calabouço  de  fogo. 
Eefta  interpretação  do  Profeta  Ifaias  he  taõ  genuina, 
que  naô  duvidaò  os  Ejcpofítores,  glozando  eíle  meí- 
mo  texto ,  de  affirmar  por  confequencia  certa  ,  que 
todos  aqueiles,  que  vivem  immeríos  nefte  vicio  da 
gula ,  fervem  de  lenha ,  que  o  Demónio  vay  guardan-* 
Mauf.  ^^  P^*^^  cevar  o  fogo  do  inferno  :  Proptenà  inferreU' 
trat.%  I .  cet^  quõdquigul£y^  crápula  àediúfunt^  Ugnafint  qiii- 
de  gtil(i,bustgnis  mfernalps  nutritur. 

Terrivcl  fentençi  foy  aquella  (  como  refere  Saô  Lu- 
casj  ,que  pronunciou  Ciirifto  contra  os  Peccadores, 
privandoos  do  Reyno  do  Ceo,  deínaturalizando-os 
de  feus  filhos  adoptivos,  e degradando  os  para  o  in- 
ferno ;  e  com  tal  circunftancia  de  sborrecimem-oj 
que  moftrava  ,  que  naõ  os  conhecia  ,.  nem  a  pátria^ 
aonde  nafceraô  :  Ne  feio  'V  os  unde  fitis.  Dtfcedíte  k 
we  omnes  operar  ti  iniquitatis  ,  tbi  erit  fletus  ^  &  Jiri^ 
dor  àenimm.  E  qual  íerà  a  caufa ,  que  moveo  a  Chi  i- 
ftca  taõ  grande  rigor, e  fentsmento  ?  O  mefmo  S.  Lu- 
'  casa  infmua  no  meímo  Capitulo,  Pregando  Chriíio 

às 


1 


Do  tormentê  do  Go/lar,  1 1 1 

fs  Turbas  fobre  o  Reyno  do  Cco,  toraõ  huns  curiòfos, 
que  lhe  perguntarão,  fe  eraõ  poucos,  os  que  fe  haviaõ 
<ie  íalvar:  Domine  y  ji  panei  Jtmt ,  qm  falvavtur,  k 
eflenomede  íálvaçaò  requintou  Chriflo  aíUadoutrt- 
exhortando  os  à  mortificação  das  íuas  payxôes> 


Luci^ 


fazendo  violência  a  íí ,  para  eiitrar  na  porta  do  Cco, 
que  era  muy  eftreyta  :  Contendite  intran  per  angufiam 
fartam.  Porque  muy  tos  bufcaráó  outros  caminhos, 
para  entrar,  e  naõ  entraráõ  :  Glnia  mulú  ,  qu^erent 
intrare  ,&  nm  poterunt.  E  quaes  íeraõ  eftes  cami- 
nhos diveríos ,  que  tanto  defagradaò,  irrita õ a  JESU 
Çhrifto  ?  Elle  mefmo  no  íeu  Evangelho  os  aponta. 
Entre  as  Turbas,  que  feguiraô  a  Chriíio  no  deferto, 
aonde  com  cinco  pães ,  e  cinco  peyxcs  fartou  a  mais 
de  cinca  mil  homens?  havia  muytos ,  que  lhes  pare- 
cia ter  merecimento  bafíaríte  para  entrar  no  Cto, 
Gom  ter  ouvido  a  lua  doutrina  ,  e  ter  comido ,  e  be- 
bido na  fua  prefença:  Tunc  incipietís  dmre^  mandu- 
eavimus  coram  te ,  éf  hibimus  ,  c^  inplateu  noftrU  do^ 
mijli.  Ha  mayor  atrevimento ,  que  efle !  alegar  por 
grande  ferviço  a  efmola  ,  e  caridade  ,  que  Chriflo 
lhes  fez ,  matando-lhes  a  fome  em  hum  deferto !  Vio-fò 
algum  dia  entre  gentes  brutalidade  mais  disforme! 
Frèga-ihes  Chrifto  o  defprezo  do  Mundo ,  o  jejum ,  e 
a  penitencia,  que  faõ  o  único  meyo  para  cntrarno- 
Paraifo  ,  e  efperando  nelles  o  arrependimento  ,  a 
compunção  ,  e  o  aborrecimento  às  delicias  do  corpo5> 
©fruyto,  que  tira  delles  ,  he  refponderem-lhe  com 
eom.eres  „  e  bebidas  Mandti eavimus^  &  bihimtis.  Ora* 
claro  eíiá  ,  que  osgoloíos  embebidos  na  crápula,  naa 
conhecem  a  outro  Deos  j  que  aofeu  ventre,  e,  co- 
mo a  fua  bemaventurânça  na  terra  he  fnrtaríe,  íatis-- 
fazem  a  fua  golodfce  ,  coma,  fe  o  Rcyno  do  Ceo' 
foíFe  Efiaéfpotm,  Por  ifto  oEvangelifta  conhccen- 
<fo,.quccfí€  vkia  taõ  abominável  naõ  ti»ha  nelles» 

emcn-r 


Lttc.  I  g 
24. 


'i  ,  .- 


itt  Dífcí/r/ò  V. 

emenda  ,  lhes  intimou  immediatamcnfe  tm  nome  de 
Chrifto  ,que  jà  naô  os  conhecia  por  feus  DifcipulosvC 
comoobreyros  da  maldade  ,  c  Precitos ,  fc  foffem  íe- 
pultar  no  Inferno; T«»í*  dicet^  nefciovos^  unâefitu.  DiJ- 
çediíe  à  me  omnes  Operarti  iniqmtatís ,  ibi  eritjletus^  & 
firtdor  âmttum, 

Suppofto  o  aborrecimento  ,  que  Deos  tem  aos 
goloíos ,  he  provada  ,  como  infallivel  a  fua  conde- 
narão i  faltâ-nos  faber,  que    tormentos    padccctàõ 
no  inferno,  e  íc  tem  alguma  penadininta  ,  proporcio- 
nada ,  e  devida   a  efíe  vicio.  Perguntaó  os  Santos 
Padres ,  como  o  inferno ,  fendo  huma  congerie  de  pe- 
lias,  hum  aggregado  de  todos  os  tormentos,  fal- 
lando  Chriftodeile  ,  faz  fomente  mençaõ  do  pranto,  c 
do  ranger  dos  dentes :  Ibteritfletus^  érfirlàor  dentium, 
JLea-íe  o  Evangelho  todo  deSaõ  Mattheus,  e  achare- 
mos ,  que  ameaçando  Chrifto  com  o  fogo  eterno  aos 
peccadores ,  naô  huma  fó  vcss  i  mas  íim  oyto  vezes,  re- 
duz ,  c  recopila  a  infinidade  das  penas ,  que  padecem, 
c padecerão  para  fempre  os  condenados,  ao  choro, 
e  ao  eílridor  dos  dentes :  Ibi  tritfleBus ,  &ftndor  den- 
ttum.  Refpondem ,  que  a  mayor  razaô  he ,  porque  cn^ 
trca  multidão  depeccados,quehano  MundOíachaô- 
fe  dous géneros, que  íempre  triunfaõ  ,  e  fubminiflraô 
continuadamente  a  lenha,  com  que  íc  accende  íem- 
pre mais  aquelle  infernal  incêndio.  Hum  dcfles  gé- 
neros tema  fua  raiz  nadeíenfreada  licença  dos  olhos^ 
que  depois  brota  cm  muytas  elpecies  de  torpezas, 
çomodiíTcmos  no  íegundo  difcurfo.  A  cíias  correí- 
pondc  a  pena  do  choro  inconfolavel ,  e  dos  gemidos 
íem  remédio  Jbierit  fletus.  O  outro  gcnero  he  o  vicio 
da  gula,  que  foy,  cíerá  íempre  origem  de  tantos  ma- 
les no  Mando ,  e  porque  a  gula  tem  huma  natural  cor-  . 
relação  com  os  dentes,  tem  também  por  pena  efpecial, 
p. ranger dps mcíroos. ^'i\xx,ç,%\  Stridor  dcntium*  Vcrifi-r.i 

can- 


■'^f 


Do  tortnénto  doGollar.  115 

eatido-fe ,  o  que  diz  o  Efpirito  Sanro  por  bocca  de  Sa- 
kmaõ :  Per  qua  qupspeccat^per  hac  &  torquetur.Con-Sáp: 
firma  claramente  a  ferie ^  de  quanto  temos  dito ,  o  dou-*''*^-  >  '• 
tiílimo  Hugo ;  Fkbunt  ocuh ,  quia invagt^fuerunt  va- 
guftrlâtbímt  dentes ,  quia  fuerunt  edaccs.  PerJí^c  duo 
mtantur  díio  ger^era  culpanim ,  pro  qmhiispuràuntnr; 
fctlicet  concupifcenUa  oculoram ,  qu£  perfletum  >  &gtilO' 
fitas,  qu^  ptrfiridorem  dentiiím  deJJgnatur,  Choiaráõ 
os  olhos  peia  lua  pouca  cautela  ,  cm  ver  objcdlos  ,  que 
provocaõ  á  deshoneftidade.  Rangeràó  os  dentes ,  por- 
que foraô  comilões  ,e  vorazes.  Eeftesíaõos  dous  gé- 
neros de  cul  pas  merecedoras  dos  dous  tormentos :  I&i 
eritjlettis ,  &Jlrtdor  dentium. 

'     Quero  moltrar  mais  claramente  as  grandes  penas, 
que  padeceráõ  os  golofos  no  inferno,  com  o  meímo 
texto  do  Epulaôi  e  advirto,  que  o  Evangelina  S.Lu- 
cas, que  relata  eíla  hiftoria  taò  fuccintamente,  naõ 
ecm  palavra ,  qac  nao  encerre  em  fi  muytos  myíkrios. 
PrimeyramentcS.  Joaõ  Chryfofíomo  repara  com  agu- 
deza ,  íobre  aqaclia  palavra:  Ctim  ejjet  intormeníis. 
E diz, que  cfte  fjllar  taõ  myfterioío  do  Evangclilia 
iíníinua  hum  cumulo  innumeravel  de  íbplicíos ,  e  to- 
dos cxceíli  vos  i  pelo  qiic  parece  ao  dito  Santo,  que 
cíle  rico  avarento  encerrava  em  fi ,  e  tinha  ao  re- 
dor de  íi  innumeraveis  tormentos,  e  por  iíTo  naõ 
diííe:   Cnmejjet  tn  tormmto.  Sed  m  tormentús.  Por- 
que todoaqueiie  individuo  era  hua  infinidade  de  pe- 
cas: Ijfum  mjinita    tormenta  pojfidebtínt.  Uri  de  nof^CrifoIM 
dicit ,  ctim  effet  in  tormento^  fid  cum  ejfet  m  tormentis.  cat.aur, 
Totus  enim  m  tormentis  erat.  Agora  cae  bem,  e  {zctt.aS. 
conhecerá  a  força  daquella  palavra  enfática  do  Evan-  ^«'^'"'* 
geiiflír  ó'  fepuUus  ejirninferno.  Foy  fepultadono  in-*'*      ' 
ícrno,com  que  explica  o  mnplks  ultra  dos  cormen- 
tos  defti nados  para  os  íequazes  da  gula,  e  para  os^ 
imitadores  do  Epulaô.   Todas  as  vezes ,  que  vemos' 
-.     .  H  a  bum 


! 


lih.zÂe 
Civ,  ^., 


ahuiB  malvadov  jogar  de  dia  ,  e  de  noy te,  perdeu^ 
do  o  tempo  ^  o  dinhcf ra y  a  fazenda ^  a  honrará 
conÍGiencia.  a  Alma  ,.€  a  tudo  quanto  tem,  e  naa 
tem  de  íi.  Logo  dizemos  ;  efte  homem  cOâ  fepulta- 
do  no;  jogo  ate  a  gargaata;  O^meím^x  praticamos  de 
humluxurioÍQyquc  tudogaík  em  mais  occafíões  j  eftc 
hòmemeflá  perdida  na  íua  deshonefíidade  j  fcpultan* 
do-fe  cada  vez  mais  do  Iodo  da  íua  lafcivia  .•  Sèpultu& 
sftin  eomtw  tífyuè  aifmm.  E  com  eíla  fraze  ie  arre- 
mara,  quanto  le  podia  dizer ,  e  inventar  ,^  para  cn^ 
carecer  a  maldade  defte  jogador ,  ou  deshonefto^  Dei. 
ta  meínia  figura  feierve  neík  occafíaô  Saõ  Lucas,  por* 
quequiz  compendiar  oimmenfa  Cataloga  das  ínnii^ 
iiicravcis  penas  do  noífo  EpulaÕ  ,  e  naô  contente  de 
dizer  muy£o  em  potico,  dide  tudo,  c  quanto  íc  po- 
dia, e  poderá  dizer  com  eftas  duas  palavras:  Stpnlim 
ejiin  mferno'.  Admirado  Santo  Agoflinho  do  tremcn* 
do  enfaíis  deíle  íemiperiodo ,  lhe  fez  huma  glofa ,  que 
bem  moara  o  feu  grande  engenho  ,  e  diz  affim  ;  S^pu^, 
tUTã  infertú ,  fanar  um  prõfunditas  efl.  Que  a  íepul- 
tora  do  inferno  he  como  hum  poço  profundiírimo  de 
penas.  Como  fediíTeííe.  Quanto  mais  fundo  he  hum 
poço,  tanto  mais  perto  cftáda  mãy  da  agoa,  que  he 
Gomahuma  fonte  indeficiente,  que  íempre  brota,© 
Buncâ  íéca.  A  fcpulrura  do  inferno  he  hum  poço  che» 
yo  de  hua  infinidade  de  tormentos ,  que  tem  avcain» 
deficiente  do  fiifor  Divino ,  que  dura ,  e  durará  eter- 
namente. Conidere  agora-  o  gol of o  com  vagar  á 
profundidade  defte  poço,  que  ha  de  íer  a  íua  íepuU 
tura  5  cançará  o  íeu  entendimento  em  excogirar ,  eim 
que  chãos  ,e  preeipicio  alevaaíua  golodiee  y  e ,  fe 
for  cpm  os  olhos  cm  Dcos ,  e  com  verdadbyro  arre^ 
pendimento,  poderá  iivrarfe  delle  ^ecom  o  jejum. 
e  penitencia  ,  paífar  ao  banquete  da,  gJoria  y  c  poi* 
jEq  torno  a  dizer í  conTidcre  „  c  medite  compaufav 

cre- 


Do  torWeèto  âoGoflar.  i  í  y 

[II .ifeflexaô;,  cachará,  que  nunca  poderá  eígotar  eftc 
poço  do  a  by  Imo ,  nem  na,  qualidade  das  penas,  ncrn 
:iia quantidade  dos  tormentos:  Sepdtura  inferni  ^een^^ 
^fjimp^ofm  ditas  tft, 

[  '^  O  Beato  Alberto  Magno,  eFr.  Diogo  Stella,amT 
.bos  Varões  eíclarcçidos ,  aflim  na  fantidade  ,  come 
;nas  letras,  cík  da  Religião  Seráfica ,  aquellede  S.  Do- 
mingos, eícre  vem  íobreelk  Texto,  que  he  colluinc 
ufuâi  de  todo  oMundo ,  que  cada  freguez  fc  catcrf 
"i%t,  na  íua  Parroquia ,  aonde  eíU  de  reíidencia ,  e  que  nà 
morte  lhe  aílifta  o  ieu    Pároco  ,  e  depois  o   acom» 
panhe  com  os  feus  Coadjurores  ,  e  Clérigos  rczan* 
<lG-liie  peia  Alma  ,  até  o  lançarem  na  Tua  íepuitu* 
ira.  Gomo  Luciferhe  o  Supremo  Paíior  de  todos  os 
golofos  ,  repavtio  o  Mundo  em  varias  Fregucíiís.c 
as  provede  Párocos  vigilantes,  de  Vigayros  diligen- 
tes, fieis,  e  tão  zcloíos  ,  que  tomaò  por  feus  Mi- 
uiflrGs,  e  Coadjutores  ,  aos  mefmos  comiloens,  c 
bebedores  í  para  que  vaõ  fazendo  gente,  e  convidan- 
do a  outros  companhcyros  ,  para  as  fuás  crápulas,  c 
aíTim  multiplicar-lhe   os  freguezcs.   PeíTimo   oíficio 
he  fazerfc    hum   homem  Miílionario  do  Diabo,  c 
íer  feu  ad vogado, como  diz S.Ambroíio: /Íí?w<?Z)/<í- 
Mí  Advocátusy  e  irtopara  grangear-lhe  Almas  para  "T""-^^ 
o  inferno.  Quero ,  que  hum  terribiliílimo  íucceíTo 
íirvacomo  de  principio,  e  fundamento  das  provas,  _  .  _. 
do  que  vamos  dizendo.  O  Padre  Martinho  dei  Rio,  da  /,^  .  J^ 
coíTâ  Companhia ,  e  outros  Aurhores  claíTicos  o  refe   Man. 
rem  ,  e  na  verdade,  bem  confíderado,  he  cipaz  de 
atemorizar  os  mefmos  Anacoretas  no  deferto,  quan- 
to mais  aos  golofos  cntempcrantes  na  Corte.  No  Con- 
dado de  Flandes  ha  hum  certo  Priorado  ,  farto,  e 
de  boas  rendas,  aonde  aíTifliaô  três  Sacerdotes,  que 
todos  intentos  a  impinguar  o  corpo,  fartavaò-fe  de 
bebidas  >  c  bons.  boccados  ^  c  aada  trata  vaõ  da  fust 
-:  :„a.  Hz  Al- 


Amb.i» 


■'ií 


i;  i« 


I  I  h 


ii6  Difcurfh  V. 

Afma.  Huma  noyte  ,  depois  de  íc  ter  lautamente 
,.,.  p  banqueteado,;  diíTc  hum  dellês  i  affaz  temos  hoje 
5^i  fervido  a- Bacco  ,  e a  Vénus  ( e o  peyor  he,que  aílím 
era  )  demos  graças  a  Deos:  Sat  Baechoy  hhidimqm 
d^tum:  Deo  grMias  agamus.  Reípondco  hum  deiics. 
Eli  antes  darey  graças  ao  Diabo,  e  parece,  que  to- 
dos as  aviamos  de  dar  j  pois  clle  a  nòs ,  e  nos  a  elíé 
lhe  fazemos  n  n  to  a  von  ta  de  :  Ego  B&mini  gratias  aga^ 
&agen(lum  teí^o  t  ctijus  apus  agmtn,  líio  affim  ditp^ 
levantáraõ-fe  da  meza  ^  e  cada  hum  íe  foy  para  o  fea 
apòíento,  para  ir  à  cama.  Eftavaô-fc  defpindo', 
quando  ouvem  hum  grande  efírondo  na  porta,  a 
qual  aberta  logo  por  íí  ,  entrou ,  e  appareceo  hum  Ef- 
peclro  agigantado  com  hum  femblante  horrorofo  (era 
efíc  o  Demónio )  e  trazia  a  poz  de  i  dous  criados 
de  menor  efíat ura,  negros,  e  feyos,  queparcciaô  fer 
coíinheyf os  ;  pois  hum  levava  hum  grande  cfpeta 
na  maô,e  o  outro  nas  coíbas  hum  feyxe  de  lenha  ,  e 
botando  os  olhos ,  que  knçavaõchammas,  íobre  os  três 
delinquentes,  diíTe  em  voz  alta  ,  e  medonha:  Ubi 
efi  »  qtii  mihi  gr atm  egií?  Aonâc  çMaqucUcquo 
medeo  as  graças  ?  Rcipondeo  o  deígraçado  ,  mais 
por  lifonja  ,  c  medo,  que  por  vontade,  já  remor- 
deiido-lhe  a  eònfciencia ,  e  já  adcvinhando-lhe  o  co» 
raçaõ  a  íua  ultima  mmz:  Adfumy  ac  iterum  refe^ 
tâm.  Aqui  eíbuj  e  as  tornarey  outra, vez  a  dar,  íe 
affim  qiiizer»Enraô  o  Demónio,  pegando  nellc,  raf- 
gou-ihe  com  violência  osvcfíidos,  e  affim  nu  ,  o^n- 
tregou  aos  dous  Miniílros  ,  dizendo.  E§c  homem^ 
foy  fempre  noífo  freguez ,  chegou-lhe  a  hora  peremp>^ 
toria  da  fua  morre,  he  força  affifíir-lhe,  e  fazer-lha 
as  exéquias  eofiumadas.  Saitáraõ  nelle  os  dous  Mi- 
Hifíios,  e  trefpaífando-o  com  o  cfpcto.,  já  reduzida 
a  lentia  em  hum  brazeyro  ardente  ,  o  fòraô  aíTando 
vive,  e  ao  fogo,  lento.  A  Ychcmencia  das  dores  por 

cftaitr 


Dotõvmênto  dõGòflãv.  117 

cfíar  aquellc  corpo  aíTim  trefpaíTado  daquellc  cruel 
ferro,  como tambcm  o  ardor, e  adividade  extraor- 
dinária do fogo,  anticiparao-lhc  a  morte.  A  penas  eí- 
piroLi;  diíTc  o  Demónio  aos  outros  dous.  A  Alma 
defte  voíío  companheyro  jà  eíiá  íepuliada  no  inferno, 
no  lugar  dcttinado aos  Epuiões,  eihes  eftaò  fazenda 
as  exéquias  merccidss.  Naò  levo  comigo  agora  eíle 
cadavcr,paralhe  fazer  omeímo,  porque  me  man- 
ílaôodcyxe  por  exemplo,  e  emenda  volfa ,  e  de  muy- 
tos  outros.  Todos  trcs  eftavcis  condenados  ao  mef- 
mo  fuplicio,  nem  a  mim  falta  o  dcfejo,  nem  a  von- 
tade ,  mas  huma  força  íuperior  mo  impede  ;  voume 
confrangido,  e  obrigado  J  c  advirto-vos,  que  là  fí- 
caô  eternos  tormentos ,  que  íaò  muyto  peore?,  e  mais 
atrozes  dos  qu£  íofreo  o  voíTo  companheyro,  c  naô 
tem  comparação  alguma,  porque  cíies  faô  como  pin- 
tados, duraô  pouco,  e  logo  acabaô  .*  Dignivos  etiam  sibl 
fjlis  pari  fnppUcio ,  nec  deeft  voluntas  mihi.  Vetor  vi  M>in($, 
maiort ,  mviãtís  abeo ,  &  momo.  Refcipifcite  aitt  ma-v-Gnl» 
nent  ternbilíora.  Ficou  aquelle  cadáver  medonho, 
como  áz  hum  condenado,  e  denegrido  como  hum  car- 
vão ;  os  pingos  da  gordura  ,  que  cahiaõ  nas  brafas, 
levantarão  tal  cfcuridaõ,  e fumaça, que  lo  pela  fil- 
ia íe  diftinguiaõ,  hum  do  outro ,  e  deyxaraõ  hum  fe- 
dor taô  infoportavcl , que  foy  neccíTario  mudarem  ca^ 
fas,  cíitio,  ficando  aquellaspor  muyto  tempo  inha* 
bitaveis. 

Tornemos  agora  ao  Beato  Alberto  Magno ,  e  com 
as  fuás  mefmas  palavras  fechemos  o  noíTo  diícurío, 
ç  demos  também  fím  a  cfte  primcyro  ponto  :  Ecce 
exeqtiiarum  officium  a  Demonibus ,  Presbyteris impen- 
Çtim  1  inhoc  enim  pr/e'cipue  verum  eJi^Dimitte ,  mor- 
tuosfepellire  mortnos  Juos,  Eftehe  oofficio,  eiias  íaò 
as  exéquias,  com  que  os  Demónios  honraô  aos  fcus 
Frcguezes  j  quando  os  levaô  para  a  fepultura  do  in- 
,  H  I  ferno* 


Manh 


ili 


ii8  :^mfcurf(y¥^ 

ferno.  E  qi]€  belíâ  interpretação  apontou  cftc  SanM 
Doutor,  fobreíuim  Texto  taô  difficultoío  ,  como 
efíe  do  Evangelho.  Defejou  hum  Mancebo  deyxar 
o  Mundo,  feguir  os:coníeIhos  de  Chriao  com  toda 
a  perfeyçaô  ,  e  para  o  executar  logo ,  pedio-lhc  íó  ií- 
eença  de  ir  aííifíir  às  exéquias,  e  enterro  de  feu  pay^ 
que  de  pouco  era  morto:  Dcmine ^permitte^me pri^ 
mumtre,  &  fepelire  Patrem  mmm.  Parece  ,  que  naô 
podia  pedir  eíie  Mancebo  couía  maisjuíb,  que- que- 
rer konrar  aíeupay,  efazerlhe  aquelle  ultimo  obíe^ 
qiiio  ,  que  era  devido  depais  de  morto.  Com  tuda 
negou-lheGhriííoaJicença,  e  refpondeo-Ihc  aípera* 
mente ;  que  o  fegulíTej  e  q,ue  deyxaíTe^  que  os  mortos 
cnterraíFem  aos  feus  mortos  .•  Jit  iUit  ^fequereme^,  é* 
âimim  mortmsfepellire  mortuosfuos.  E  quem  vio  nun- 
ca defuntos  enterrar  a  outros  defuntos !  Sabia  Chriíí 
fío,  que  o  pay  dcfle  Mancebo  morrera  em  peccadoi 
c  quejá  os  Demónios  tinhaó  fepultada  aíua  Alma  no 
inferno.  Gomo  os  Demónios  pelo  peccado  faõ  verda- 
deyramente  mortos  á  graça  para  íempre  ,,  e  efta  hê 
a  morte,    que  Chriíio  encommenda  tanto,  que  fa 
havemos  de  temer..  Pois  bem  ;  já  que  efles  tem  fepuí* 
tada  a  Alma  de  voíFo  pay  no  inferno  ,  dey  xay-os  tâ  m^ 
bem  fcpultar  o  corpo  ^  Dimitte  mortms  fepelliremòr-» 
tms  fms.  Vejamos  agora  apro^ja  tirada  donoíTothc- 
ma.    O  Epiilaô  (  diz  o  Evangclifta )  que  depois  de 
morto,  foy  íepultado  no  inferno  :  Sepultas eji  in  tn* 
ferm.  E  quem  o  acompanhou!  Cultura jc  o  lan- 
çou dentro  delia!  Por  ventura'  ói^ Parentes  z'  Claro 
eíiá  que  naõ.  Quem  foy  logof  Era  êlle  Epulaõ  da- 
lnc.i6^^<^  às  crápulas:  EpiiMatíir  qíwtidie  fpkndide.  Lo- 
go era  fregucz  do  Demónio.    Logo  "o  mcímo  De* 
íuonio  ,  que  era  o  feu  Pároco  ,  o  mandou  lançar 
em  corpo  ,  e  Alma  na  fepultura  do  Inferno,  que 
tem   preparada  para  os  Comilões  jC  Bcbedoiesy 

%  -^ '  íeus. 


^ 


Do  tõfifienu  do  Goftar,  1 19 

,^ei^  Fíeguçzcs ;  Seimltus  ejim  wftrno. 
/  He  obíeryaçaò  dos  Santos  PádiKS  ,  que  tntrc 
os  peccadores  de  qualquer  gcncro  de  vícios  ;  os 
^oloíos  íaô  ,  os  que  mais  diííicukoísmente  (e  dif- 
poem  a  bem  morrer.  E  por  ifto  foccede,  que  morrem 
de  improvifo ,  e  km  conôííaÔ  •,  e  íe  tem  tempo ,  para 
conícíTaríe,  o  vaô  prolongando  até  morrerem  impe- 
nitentes, ícm  dar  ílnal  algum  de  arrependimento, 
ou  da  íua  íalvaçaô  ,  que  he  o  fegundo  ponto  delle 
diícurío.  Vendo  Moyíés,  que  Deos  eivava  irritado, 
contra  o  íeu  Povo ,  pela  reincidência  na  idolatria, 
ador.indo  o  bezerro ,  começou  logo  a  pedirlhe  cffi- 
çazmente  ,  que  lhe  perdoaíTe  ^  mas  quando  vio,  que 
os feus rogos  eraõ, baldados,  reforçou  com  rcfoluçaó 
as  inftancias,  atè  padear  com  DcosiJut  dimitteil- 
lis hanc noxam y  autâele  mtde  libro  í//í?.  Pelo  contra- 
rio apetecendo  cík  mefmo  Povo  as  carnes ,  e  cebo- 
Jas.do-Egy  ptOjdçícubrio  a  Moyíés  a  fua  golodicc;  GhtCs 
dabit  nobis carnes  admfimdum^in  mentem  nojtram  've- 
Minnt  cepe,  &  dita.  Vendo  Moyíés  a  extravagância 
deí^c  Povo,  quiz  renunciar  ogoverno  delle, e quan- 
do, naõ  v  pedia  a  Deos,  que  Ibe  tiraíie  ávida:  Non 
pffumfolus  fufiinere  hum  Põpulum ,  qniagravis  ejimi- 
.hi  %  fm  aliter  obfecro-,  ut  mterficias  me.  Niô  lemos 
porem,  que  Moyíés pediíTe  a  Deos  por  cUe,  e  mais 
fabendo,  que  eivava  altamente  irritado  ^  e  que  o  havia 
áç,  caftigar ,  como  fez  com  todo  o  rigor.  Qual  íerá  a 
cauía,  porque  Moyíés intercedeo  pelo  Povo,  quan- 
do eivava-  idolatrando  ,  e  naò  agora,  que  o  via  golo- 
lo,  e  intemperante  ?  Por  ventura  4'  idolatria  fcrá  pec- 
cado  inferior  ao  da  gula  ?  Abfit.  Por  neohurn  c  do,  O 
pcccado  da  idolatria  em  todo  rigor  Theologico  exce- 
de a  todos  os  mais  géneros  de  peccados,  E  naô  h€ 
menos,  que  tirar  a  Deos  a  Divindade ,  pondo-a  em 
bum  mármore,  cm  hum  metal.,  ou  em  hum  madeyro. 

H  4  Sen- 


Segun- 
do PÒ'i 


ca. 


ni 


mmsmíÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊiÊf^ 


no  ■     Difcuffo  V. 

Sendo  íago  íílò  affim  5  porque  Moyfés  fe  cmpedhott 
tanto  para  impetrar  o  perdão  de  idolatrar  ao  bezerro, 
e  pnra  o  peccado  da  gula naô diíTe  Ima  íópalavra,  an- 
tes peno  eximiríe  daquellePovo,  deyxando-o  expo- 
rta aa  fiiror  Divino  ?E  que  bem  obroti  Moyfés  co- 
mo  iIIumiBado  de  Deos I  Sabia,  qi^e  o  peccado  da 
idolatri^  rinha  emenda  i  porque  dando-ihes  a  beber 
os  pos  do  meímo  bezerra  ,  vendo  que  íe  reduziaÕ 
era  nada  y  era  notório  ,  e  palpável  o  deíei^ano  ,  que 
o  bezerra  mo  a,a  Deos.  Porém  o  vicio  da  gula  fen- 
.do  caa  conatural  aos  homens  ,  os  faz  como  iucor^ 
rigiveis.  Aííi;n  explica  eae  texto  o  Caetano  ,  CoJ 
mencador  de  Santo  Thomh  iFeccat um  mUquafi  eÊ 
mcorrigikle.  Conhecia  também  Moyfèst  qucos  feus 
rogosnaohaviao.de  tcrvaliapara  com  Deos  ^  porque 
no  peccado  da  gula  Deos  ordinariamente  he ,  ou  fe  faz 
mexoravei:  Cognominfuper Moyfés., preces  faas  inhoe 
^^Jiimmmeexaudmãasfore,(^mafciebat,Deumcúnt^^^^^ 
kocpeccatumgmnmoinexorahikmeffe. 

^  PaíTemos.  agora  de  Moyfés  a  Noè ,  tambcm  Va* 
rao.querido  de  Deos ,  c  de  virtude  Gonhedda ,.  c  ej&í 
perimentada  pelo  eípacio  de  féis  centos  annos;.  que 
tantos  tinha,  quando  Deos  lhe  confiou,  a  fupcrintètt^ 
dencia  da  Arca.  Reveiou-lhe  Deos  ,  que  o  gencra 
humano  havia  de  iicar  dcBruJdo  ,  pois  o  via  perfeve- 
rar  na  maldade ,  fem  eíperançaalgua  de  emenda ::  Dià. 
satãdNoc:  Fmúumverfa carnk^enit  cotam mi-.r^. 
peta  efi  terra  imquitaU.  Começou  logo-  Noè  a  tra^ 
balhar  na  Arca,  efoy  gaflando  hum  feculo  inteyro 
na^coflfirucçaõ  delia,  Eípalhou-íe  afamaideíla  nova 
íabrica,,  ordenada  por  Deos  a  Noè;  e  como.  já  fe  hia- 
encorporando,  e fazendo  vulto,  dò  que  haviade  íer, 
eoncorriaô  não  íó^  os  naturacs  da  terras,  mas  também 
de  outras  Províncias,,  c  Rcynos  ,  para  ver  a  cftru.. 
^ura  ,^  e  forma  de.  taô  grandioía  obra.  Noè  feyt<fc 


\ 


Dofome^toéôGoftar.  rtt 

Pregador  íncanfavcl  ,  a  todos  admoeOava,  que  lar- 
gaíTcm  os  vidos,  choraíTem  as  íuas  culpas,  e  cmen» 
daíTemavida  ;  porque  Deos  lhe  tinha  revelado,  que 
eftavàimíBirienteo  diluvio,  cm  que,  íem  remédio, 
haviaõ  de  morrer  todos  afogados.  Porém  elles  tam 
longe  cftiveraõ  da  emenda  ,  que  fe  fumcrgiaô  cada 
dia  mais  nas  fuás  crápulas ,  carregando  a.  Noê  de  af- 
f roncas  ,  chamando-lhc  homem  infeníato  ,  e  Velho 
tonto,  que  prodigamente  gaíhva  o  dinheyro,  e  o 
tempo  na  fabrica  de  hum  Caftello  nadante  porhum3 
louca  abuíaò ,  que  lhe  deu  na  cabeça  ;  e  que  clle  fô 
com  a  fua  família  fehaviao  de  íalvar  nellc,.em  hú  di- 
luvio imaginário.  Coufa  incrivel ,  fe  não  foíFe  de  fé. 
De  tantos  milhões  depeííoas,  que  no  cfpaço  de  cciii 
annos  ouvirão  pregar  a  Noé  o  diluvio  ,  ou  lhes  che- 
gou á  noticia  a  Arca  ,que  elle  por  cauíá  do  dito  di- 
luvio efta va  fabricando ,  naõ  houve  hum ,,  que  íe  con- 
verteffe. E  o  que  mai^  me  faz  palmar ,-he,  que  ain- 
da nos  últimos  períodos ,  c;m  que  elle ,  e  os  fcus  fi- 
lhos ,  íe  foraô  deípedir  dos  Amigos ,  que  o  acom- 
panharão atê  entrar  na  Arca ,  alem  de  huma  i  nfínida-^ 
de  de  gente  ^  que  por  curioíidade  foy  aíliflir  a  cfle 
embarque ,  por  ver  a  comitiva  de  toda  a  eípccie  de 
aoimacs  ,   que  obedientes  o  feguiaô  ;  naõ  houve 
hum  Í6,  que  creíFe,  ou  ao  menos  duvidaíTe  da  ver- 
dade defte  diluvio  >e,. para  aíTegurar  a  fua  vida,  lho       -m^ 
pediíFc ,  ou  como  parente,  ou  como  Amigo  de  ficar 
eomelic  na  Arca!  Naõ  fe  efpante  ópio  Icytorique 
©  EvangeliftaS.  Lucas  dá  arepoíla,  que  explica  com 
elareza,  admiravelmente  ,  quanto  temos  provado:  X/s^r-i^' 
■Ed'ehant^&  bibebant  i^fque  mSem ,  qua  intravit  Nce  v.i% 
in  arcam  yó-venit  diluvmm  ,  &  perdidit  omnes^,  Co- 
miaô,c  bebiaõ  atê  no  dia ,: que  Noè  entrou  na  Ar- 
^1  veyo  o  diluvio  ,  todos  morrerão  afogados.  De 
^c  ícr virão  as  pregações  de  Noè !  Qijc  importava 

o  íea- 


I    í 


,'  \ 


PÇálm, 


oíeu  bons  exemplo !  Eraò  elics  comilões ,  e  bebedores' : 
Eâáant  ^&.bibtbam,  Dokna  5  cem  que  fc  cançarcm' 
cm  eíperax  emenda  i  porque  naô  admittem,  nem  ar 
doraô  a  outro  Deos ,  que  o  feu  ventre  : §uonm  Deus 
^mter  £fi  y^ncm  tem  outro  fim  ,  qu:e  com  a  mort€ 
eterna*  ficarem  íe|mltados  no  Inferno  :  Eí.qmnmfi- 
nuinteritus.  ■  -.1.1^^ 

'  '    Gonheeeo  a  verdade  deílta  doutrina  ,  ainda  que 
tarde,e  áfua  cufta,  o  Epulaõ  do  Evangelho.  Nun- 
ca quiz  crer ,  emquanto  vjveo ,  que  na  outra  vida  fc 
Ihehayiaô  de  trocar  os  regalos  em  tormeníos.Por  mui- 
tos avifos,  que  Ihederaô  ,  para  que  íc  emendaíTe  da 
fuâ  crápula ;  por  muytas  razões  ,  que  lhe  alegaíTem, 
fcmpre  i<ij  íurdo  ,  c;^ incorr igivcl;  antes  (  como  diz 
SJoaõ  Chryíoftomo  5  era  taô  cego ,  que  aos  exemplos 
dafágrada.Efcritura  chamava  fabulas,  e  cxibilando 
aosProfetas,fâ!zia  efcarneo  do  zelo  ,  que  moflravaõ 
eomasfuasadiHO£Íkçôes,edocumentos.Einalmente  a 
fumaça  do  inferao,  aondede  repente  fc  vio  íepultado, 
lhe  apurou  a  viila  do  entendimento  ,  e  a  adividadc 
dofogocom  aforçt  dos  tormentos  íhc  fez  confeíTar 
afs  verdades,  que  neíla  vida  impugnava  ,  como  fabu- 
loías ;  c  invocou  logo  ao  grande  Pay  Abraham ,  para 
quemandjíTea  Lazaro  pregar  a  cinco  irmãos ,. que  ti- 
nha, e  os  deíenganaíTe ,  e  naõfoíTem  parar  com  eJlc 
?«p.  16 no  inferno  i  Habeoenim  quinquefiatres  ,  nt  teftaíur 
tllís  ,  ut  ò'  tpfi  vmlunt  m  hunc  locumJormentorum. 
Porem  Abraham  reípondeo-lhe  ,  que  tinhuó  a  Moy- 
íés ,  que  era  feu  Legislador  ^  e  aos    Profetas  ,  que 
'    -     craô  os  interpretes  da  Ley,  e  Pregadores,  que  os  cu- 
viíTsm,  e  fe  emendaíTem.  Naó  bafia  ,  replicou  o  E- 
pulaô;  porque  elles  tem  os  meímos  vícios ,  que  euj 
defprezaò o  Decálogo,  ereputaõ  as  fagradas  Efcritu- 
ras  por  fabulas.  Porèmríe  viíTem  a  Lazaro  rcfuícitado 
clhesdéíTeas  novas  dos  tormentos,  que  padecia  5  no 

in- 


A 


Do  tôféetífoioGoftar.  iij 

ièferno,í^ed?kô   poderiaô  rcduziríe   á  penitencia, 
©  emendarcm-fe.  Porém  Abraham  conhecendo ,  que 
os  Irmáos  craò  dados  aos  meímos  vicios  da  ^ula,  e 
por  ifto  incorregiveis,  rejpondco  ;  Si  Moyfen  ,  &  Lneàbi. 
Fr  of et  as  non  aiidmnt ,  neqtte  yfi  quis  ex  mortuis  refn-  D.chry 
rexenty  credenh  Como  íe  diffeíTe.  He  tal  a  oh^ma- fiH  iln* 
çaò  dos  golofos  ,  e  tal  a  cegueyra  ,  em- que  vivem 
embebidos  nas  íuas  crápulas  ,  que  naò  dando  fé  nem 
a  Pregadores,  nem  ás  Efcrituras,  fe  eu  lhes  mandar 
o  raefmo  Lazaro ,  queelles  conhecerão ,.  e  vifaõ  men- 
digo, echey  o  de  chagas,  já refuícitado , haò de  cuy- 
dar ,  e  dizer ,  que  he  huma  fantafma ,  hum  efpedro, 
e  huma  apparencia  cnganofa  ,  com  forma ,  e  fenibrante 
humano,  para  lhes  fazer  medo  ,  e  os  enganar.  Eíle 
he  o  fentido  de  S.  Joaô  Chry íoftomo ,  íobre  efíe Texto 
doEpulaò:  §tnaaudíendofcrifturas  contemnebat  y  &'D.Ber1 
fabulas  effe  ,  futabat.  Pelo  que  fica  claro, que  o  vi  '«^.4. 
cio  dá  gula  he  irremediável ;  e  como  diz  Saò  Bernar-  efiji.6^ 
úo-i  que  os  comilões,  e  golofos  íó  depois  de  mortos  mu- 
darão co^umt%'.§lui  gulofus  effeúns  €fty  vix  aliur^qíiam 
morte  mores  mutabit. 

Suppofta  a  impenitencia  final  dos  goloíos,  fegue-fc 
oabreviar-lhe  Deos  a  vida,  com  mortes efpantofas, 
e  precipitadas  i  eopeyor  he  que  fubitas  ,  e  impro- 
viías.  Ecomo  a  tempo,  e  com  beilo  modo,  o  noíTo 
fupiemoJuizJESU  Ghrifloadmoeftou  aos  feusDiíci- 
pulos ,  e  a  nôs  todos !  Guardayvos  (f  faõ  fuás  palavras) 
com  grande  cuydado  ,  e  artençaõ  ,  que  naô  fejais 
colhidos  na  crápula  ,  e  bebedice;  que  vos  virá  de 
repente  a  morte  a  modo  de  laço;  Âttendite vohís  ;ne'L^ç^^^ 
forte  graventur  corda  'veftra ,  in  crápula .  '&  ebrícta- 
íej  é^  fuperveniat in  vos  repentina  dies  lUa ,  tanqtiam 
laqueus  enim  fufervemet.  Deyxo  a  veríaó  deíia  íen- 
tença  ;  pois  ao  pé  da  letra  eonfirnia  ,  quanto  vamos 
dizendo.  Efó  'reparo  Gòm 'Saò  Boaventura  na  íeme*- 
^'  Ihan- 


11' 


D.Bm, 

Í.KC.S 

apnd 
Àianf. 


Kum.c 
II. 


Nnm. 

11.33. 


124  uix^ifcmfo  V* 

Ihança  ácy  laço ,  com  que  cahcm).os  paffaros  ^  quando 
famintos  bufcaín  a  comida;  que  naò  podia  ícr  mais 
accommodada,  par,a  explicar  a  morte  improviía  aos 
golofos.  Compara  Chriílo  os  comilões  aos  paffaros, 
GU  avesí  porque  como  eftes  ao  paílo  ,  por  comeri 
faõ  prefos  no  laço.  pela  garganta ,  e  pefcoço  ,  aflim 
também  p&golofos ,  pelo  vicio  da  gula ,  morrem  pe- 
la garganta:  Comparatur  avi»  namficut  avisper  coU 
'lumlaqueo  tenetur  ^  fíc  gnlofus  par  collum,  &  gutur 
capíturvíúo  guU.^Dcúc  modo  íuccedeo  aos  líraeli^ 
tas ,  {  c  reparem  nefte  íucceíTo  )  quando  cnfafíiados 
domaná  no  deferto  queyxando-íe  de  Moyíés  ,  com 
choros,  e  alaridos  lhe  pcdiaô  carnes,  para  comer: 
Da  nobis  carnes  ^  ut  comedamus.  Conhecida  a  ingrati- 
dão, e  rebeldia  dcfte  Povo,  que  queria  naò  íó  onç- 
eeíTario ,  para  píuftcnto,  mas  o  regalo  para  a  gula; 
mandau-lhcs  Dcos  huns  bandos  de  corurnizes  taóco- 
piofos  5  que  pareçiaõ  chuveyros ,  para  que  fartaíTem  a 
vontade  do  feu  appetite.  Acudirão  logo  a  cilas,  co- 
mendo ,  como  lobos  vorazes ;  mas  eivando  ainda  com 
aprcfa  nos  dentes,  cahiraô  no  laço  da  morte,  que  os 
afogou  a  todos  :  Adhuc  cernis  erant  m  âentibtís  ^  & 
eçce  furor  Domini  »cõncitatusin  Popuíum  ,  &percu£it 
eum  plaga  magna  nimis  ,  vocatufque  cli  hcus  illefe-, 
píãcra  co/ícnpi/centía,  A  úm  de  que  aonde  cometté- 
raó  o  delicfio  da  giila,ahi  achaíTcm  a  fepultura  da  golo- 
dice. 

Dcftas  mortes  repentinas  ,  e  defies  cafligos  im- 
mediatos  depois  da  culpa,  eílá  cheyo  o  fagrado  có- 
dice; e  lendo-o,  acharemos ,  que  o  furor  Divino  cay 
quafí  fempre  íobrc  os  golofos.  Morreo  àe  repcDíc 
o  noíTo  Epulaó.  A  razaò  a  ák  S.  Luca^:  Bpulahaítir 
qMotiãíè  fpkndide.  Era  comilão,  e  cada  dia  emban* 
quetcs.  tinha  convidado  EIRcy  Baltazar  os  Magna- 
Í6S  do  Reyno  a  hutna  grandioía  cea ,  e  aa  mcfma  noy- 


Do  tormento  do  Go[laY. 


125 


tefoy  morto  :  Eadem  no^e  interfe5ítís  eft,  E^^va-íe^^^r 
gloriando  aquelle -rico  do  Evangelho  ,  porque  ti-  ''^y' 
nh-i  os  celeyros,  c  as  adegas  cheasj  porém  a  penas 
coníolou-fe ,  dizendo :  Comede ,  bibe ,  efulare.  Come, 
bebe,  regâlate,que  logo  Deos  fulminou  afatalíen- 
tença  da  morte ,  que  íe  executou  na  mefma  noyte: 
Stniteihac  mãe  animam  tuamrepetent  k  te.  Tanto  he 
verdade ,  que  os  embebidos  na  crápula  fazem  ,  com 
que  Deos  para  com  elles  fe  naõ  mova  á  piedade.  E,  pa- 
ra que  os  exemplos  naô  fejaô  todos  antigos  reftrirey 
-hum  moderno  ,que  Thomàs  Cantipratcnfe,  Author 
celebre ,  e  fidedigno  ,  aííirma  fer  acontecido  no  fcu 
tempo.  Viviaõ    em  hum    Moíteyro    dous  Monges, 
mais  inclinados  a  comer  bonsboccados  no  Refeyto- 
rio,  que  a  rezar  devotamente  no  coro.  Cufíumavaõ 
cear  ambos  juntos,  em  bua  mefa  aparte,  eregajaríc 
eom  guizados,  que  lhes  vinhaô  de  fora,  com  pouca 
^dificaçaõ  dos  mais  Religioíos  ,  que  fe  contentavaô 
com  a  raçâô  da  Communidade,  Hum  delles,  ao  íé- 
gundo,  ou  rerceyro   boccado  ,  parece,  que  íe  lhe 
atraveífou  taõ  fortemente  na  garganta,  que  virandoí 
os  olhos,  nomefmo  inflante  efpirou.  Levantàraõ-íé 
da  meia  oAbbade,  com  os  mais  Religioíos,  eípan- 
tâdos  do  fúnebre  lueceíío.E  mandando  vir  o  eíquife, 
acompanharão    o  cadáver  para  a  Igreja.  E  que  tal 
áca ria  o  eompanheyro  Rco,  e  cúmplice  do  meíma 
delido!  ('Coufa  incrível ,  fe  naô  foííe  em  material 
do  vicio  da  gula ,  que  he  irremediável  )  tornoufe  a 
aíTentar  fana  meia ,  dizendo.  Quem  bem  cta ,  me-^ 
Ihor  dorme.  E  fartando-fe  y  are    naõ  poder  mais^ 
afiim  repleto  perdeo  os  fentrdos  ;  a  morte  foy,  ^r-'     ^^ 
rebentar  logo  como  hum  bruto  :  Et  enormi  ^^'^p^'  r^m  * 
repleíur,  qm(i  brutum  animal  exfiravit.  Vei  iican-  ;^^^  2,^; 
do.fe  defles  dous  comiloens  ,  o  coe  diíFí:  o  Profeta  12,, 
Eiavid,  que  efiando  ainda  com  a  vianda  na  bocca, 

aju- 


l  I  \ 


iiá  V  Wfcurfi)  V, 

^I^^'J7  aiuaavíngaeçâdeDeps  cahioíobrcelks :  A4hunfcte 
mrum  ermt  in  ore  ipimrum,  &  ira  D  et  ajcendit  fufer  ti- 
los.  Imanto  he  verdade ,  que  em  todo  tempo  ,  lempríe 
Deos  foy ,  e  íerà fempre  para  os  golofos,  c comilões, 
Juiz  riguroío,  e  íem  piedade. 

AdTnira.vçi  documento  he  aquellc  ,que  <ià  Salo- 
Ecclef.  niaõ  ,     quando  diz  ;  que  por  muyto  corner  muytos 
57.      morrerão  :    Propter  crapulum  multi  ohiermt,  Eúã 
fcntcnça  hequan  comoaqueila  deS.  Paulo  :  Síatutum 
eftomnibus  Hominibus  femel  mori,  Eftá   lançado  por 
Peos  o  areíio  irrevogável,  que  todos  havemos  de  mor- 
rer. Ainda  que  naõ  foíTe  de  fé ,  a  experiência  quotidia- 
na  nos  moííra  »  que  ninguém  fica  cá  j  mas  todos  vaõ, 
e  morrem.  Aílim  temos  por  evidente  experiência, 
que  a  crápula  matou  a  muytos  de  repente.  O  Em- 
perador  Alexandre  Severo  comeo  tanto  em  hum  jan- 
tar, que  dahi  a  duas  horas  arrebentou.  Se  fora  feve- 
ro  comíigo ,  como  o  era  cjom  os  outros ,  naõ  arrcbea- 
tara.  Peyor  he  a  crápula  ,  quando  vay  junta  com  a  be- 
bedice; porque  cntaô  comíó  o  achaque  do  vinho  fe 
abrevia  a  vida.    Miguel  Paleologo  >  o  terccyro  Em^ 
perador  do  Oriente  embcbcdou-fe^  como  coflumar 
va  cm  hum  banquete.  Deytourfe  cm  hum  leyto  dou^ 
rado,  como  Oioferncs;  porém  Bafilio  ,  que  gover- 
navaolmpsrio  ,  vendo,  que  eftava  em  hum  profun* 
do  Ict  argo,com  hum  alfange  lhe  cortou  a  cabeça.  O 
Emperador  Zeno  Ifaui'ico ,  tendo  o  meímo^  vicio  ási 
bebedice,    contrahio  o  achaque   de  gota  coral.  E^ 
como  cflc>,   quando  eílava  bêbado  ,   defcompunha 
muytas  vezes  a  Emperatriz  Ariadna  fua  mulher,  eft m- 
do  hum  dia  á  meia ,  lhe  dobrou  o  achaque  da  goia  co- 
ral com  o  do  vinho.  No  mefmo  tempo  aEmperatrizj 
fua  mulher  fez  publicar,  que  o,  Emperador.  era  mor- 
to ,  c  o  mandou  logo  enterrar  ;  e  também  guardar  por 
ÍCíJtipclaa a  ícpulturp,  DclpcrtouJe  2cno já  aliviado 
...-::.;;  de 


põ  iorfHento  áè  Golfar.  3  ^f 

de  iamboé  oi'  achaques  ,  c  por  muyto  que  GiamaíTe, 
e  bradaíTe,  para  que  lhe  levantaffein  a  pedrada  íe- 
pultura  ,com  dizer,  que  era  o  Empcrador  Zeno,  c 
Gue  faria  muytas  mercês  ;  lhe  rcfpondéraô ,  que  já 
outra  peíToa  governava  por  elle.  Naô  importa  ^re:* 
píicou  o  mif travei  Zeno)  levem-n:e  ao  menos  a  hum 
Convento ,  para  me  poder  confeíTar ,  e  làmeficarey 
fazendo  penitencia  dos  meus  grandes  peccados»  Mas 
íem  fruyto^e  fem  compayxaõfoy  o  miícravel  ouvi- 
do >  e  aílim  morreo  rayvofo,  comcndo-fe  pela  fome 
os  dedos ,  e  as  mãos.  He  tambcm  de  reparar  ,  o  que 
vay profeguindo  Salomão:  Inmultis  ejcis  infirmitas. 
Que  na  variedade  dos  comeres,e  noluperfluo  dosgui- 
zados  ,fempre  fe  geraô  doenças.  Falia  genérico  fem 
individuar  as  efpeciesj  porque,  parece  ,  que  inclue 
a  todas.  Pelo  que  he  certo  aquelle  adagio  j  quem 
come  muyto ,  come  pouco.  E  ,  quem  come  pouco, 
come muytó > porque  tem  muytos  mais  annos  devi- 
da ,  para  comer,  He  também  ditado  muy  antigoj 
que  na  mefa ,  ninguém  envelhece :  Inmenfa  nemo  cm- 
finefeit.  Será  aííim  pelo  fobrio,  é  moderudo  comer, 
€  beber  j  mas  muyto  mais  íe  verifica ,  dos  que  comem, 
eu  bebem  mais  do  neccíTariDj^^  porque  cíles,  ou  mor- 
rem moços,  ou  antes  do  tempo;  eaílim  nunca  che- 
gaó  a  envelhecer.  A  fazâô  he  de  Arifíotelcs;  por- 
que ;  Omne  figtns  ,  dgmdo  refaútur,  A íiim  vemos  „  , 
que  a  lima ,  limando  o  ferro ,  fe  confome  \  a  faca,  cor-  ^^  "** 
tando^  perde  o  fío.  Dó  mcfmo  modo,  o  calor  vi- 
talcozendo  o  alimento  no  eíiomago ,  fe  he  muyto ,  e 
dediverfas  igoarias ,  enfraquece ,  e  fe  diminuc;  c» 
,  affim  diminuído  ,  jâ  naô  tem  força ,  para  ajudar  a 
digefíaõ  í  c,  fuffocnndo-íe  fem pre  mais  pela  copi^ 
exorbitante  dos  comeres ,  abandona  o  ofíicio  viraf, 
efâlrnndvefie,  de  todo  falta  também  a  vkh  :  Inmul-^'''^^*' 

Jâ 


\  I 


if 


lii 


i  t 


Petr. 
Dam.l 


Pptlm. 
104. 

S.Ânt. 


JBelLjp. 


%%%  t)ifcurfa  V. 

Já  he  tempo  de  darmos  algum  remédio  J  para 
aqiielies  goloíos  ,  que  naõ  íâõ  totalmente  incorre- 
giveis,  e  precitos.  Depois  que  o  Efpirito  Santo  nos 
advertio,que  muytos  pelo  peccâdo  da  gula  íc  pre- 
cipitarão na  morte :  Propter  crãpulam  multiokerunt, 
Proferio immcdiatamente  aíenteoçade  larga,  e  dila- 
tada vida,  a  quem  foíTe  parco  ,  e  abfiinente  :  Eí  qtu 
abliinens  eft^adjiciet  vttam  Efta  verdade  he  taò  pa- 
tente ,  que  reparaõ  os  Santos  Padres,  que  deíde  o  prin- 
cipio do  Mundo  até  o  diluvio  ,  quefoy  na  idade  d^ 
Noè  de  féis  centos,  e  tresannos,  vivicJÕ  os  homens 
Qytoçentos ,  e  novecentos  annos ,  fem  nunca  adoece- 
rem ;  e  Saõ  Pedro  Damiaô  dà  a  razão  com  outros  muy- 
tos i  porque,  dizem,  não  bebiaó  vinho,  nem  comiaô 
carnes  ,  contentando-íe  das  ervas ,  e  fruytas  ,  que 
produzia  a  terra :  Afaculi  origtm  munâus ,  tifque  ad 
fexcmufmum  tertium  Noè  amum^prorfus  vinum  igno- 
rajje  çognojcitiir  y  ohiijfe  qmdem^  fed  nullus  agrctnjfe. 
Eiíto  confirma  o  Profeta  David  ,  quando  diire  tal- 
landodoPovoeícolhido,que  naô  havia  em  todas  as 
tribiis  hum  fó  enfermo :  Non  erat  in  tribubus  eorum 
injirmus.  Mas  naõ  he  íó ,  antes  do  diluvio  ,  que  a 
parfimonia  livrava  das  doenças ,  e  prolongava  os  dies 
da  vida.  Ds  Galeno  ,  Príncipe  da  Medicina  ,  eícrevc 
S.  Antonino  Arcebifpo  de  Florença,  que  viveo  cen- 
to e  vinte  annos,  e  que  nunca  tivçta  doenças ;  por- 
que fempre  aljominoti  a  variedade  dos  comeres ,  e 
íempre  fe  levantou  da  meia  com  fome.  E  o  Bel- 
lovaeeníecitahui  repoflados  Brâmanes  a  Alexandre 
Magno, defejofo  defabcr,  como  chega vaô  todos  a 
idade  decrépita ,  e  paíTavaõ  de  nonagenarios ,  e  cen- 
tenários, e  com  forças,  c  íem  achaques.  Reícreve- 
raõ  lhe  ,  que  a  fua  meia  era  muy  to  parca ,  e  elles  co- 
miaô muy  to  pouco,  e  por  iíTo  viviao  muyto ,  e  íem- 
brccora  faudejC  aunca  neccífitavaõ  de  purgas,  ou 
^  ían- 


Do  tõrmémú  dõ  Go/lar.     ^       129 

faogrias ,  ou  gucios  remédios  da  Mcdicma  ;  por- 
que nenhum  deílcs  gravava  o  eftamago  com  fuperfluir 
dades  :  Apud  ms  íllicita  eft  veníris  extenjio,  proinde Bellov) 
fumus  Jine  agritudine.  Diu  vivimus^  &  quandm  "^^'^f-  5* 
'vinrns^famjumus ;  medicinas  mllas  facimus^  quía  na-^^J^'  '- 
tnram  nojiram  nullís  fuperjltútatibus  gravamus,  E  íc 
a  parfimonia  tanto  obra  nos  Gentios  j  para  eíknder 
a  Vida  temporal  j  que  naô  obrará  o  jejum  entre  os 
Catholicos,para  íervir  a  Deos ,  e  ganliar  a  vida  eternal 
Santiago  o  Menor ,  quando  Herodes  Agripa  o  man- 
dou martyrizar,  tinha  noventa  e  leis  annos  de  ida- 
de j  e  qucmfabe,  quantos  viviria  mais,  no  feu  pet- 
pctuo  jejum  ,  e  penitencia  !  Era  taõ  Santo ,  que  íó  cl- 
ie  entre  os  Apofíolos  entrava  no  SanBa  SanHonim. 
S.  Hilariaõ  foy  bem  moço  para  o  deíerto  ,  aonde  vi- 
veo  oytenta  annos  ,  com  aquella  aufteridade  ,  que 
fe  lê  na  f ua  vida.  Santo  António  Abbade  viveo  cento  c 
vinte  ^  e  deites ,  como  eícrevc  Santo  Athanafio ,  cento 
é  três ,  em  hum  perpetuo  jejum ,  comendo  íó  ao  pôr 
do  Sol  humas  ervas  ícm  fal.  Saó  Paulo  primeyro  Eríiú- 
taô  viveo  cento  e  treze  annos  ,  íubminiftrando-ihe 
o  veftido ,  e  o luílento  huma  palmeyra, com  húa  fonte 
de  agoa  ,  que  eftava  perto.  Também  Saõ  Romualdo 
viveo  cento  e  vinte  annos,  e  foy  Fundador  dos  Ca- 
niaIdu!enfes,com  húa  vida  aufteriíTima.  E  Saò  Fran- 
tífco  de  Paula  deyxou  por  preceyto  indiípenfavel  aos 
íeus  Religiofos  ,  de  nunca  comer  carne  ,  nem  ovos 
nem  laticinios  ;  c  guardando  com  todo  rigor  elie, 
c  os  íeus  Religiofos  cflc preceyto,  conforme  viveo 
noventa  e  hum  annQs  ;  também  os  feus  Alumnos, 
íe  muytos  naõ  paíCaõ ,  ou  dhegaó  a  efta  idade  ,  naô 
vivem  porém  menos  de  muytos,  que  por  qualquer 
achaque ,  ou  verdadeyro ,  ou  imaginado  ,  tomaõ  pè 
Bà  Quarcíma  ,  para  ícrcm  diípenfados ,  naò  fó  dç 
Comer  ovgS|  e  laticínios,  mas  também  carncj  por*^ 


!W    I. 


6  Exmn 


:   '  CBlfcurfo  VI. 

^ue  dçfíe tiiodo  na  íua ientença podem  almoçar  ,€ ecal 
á  nóyr^i  pois  já  naô  faõ  obrigados  ao  jejum.  Nem  goi» 
todas eílas  CS utelas,e  pre=vençõGs  íe  vive  mais.  O^ 
jiim  moderado ,  c  o  fcr  abftinente  ,  he  ccrtiíiifflo ,  e  in- 
fjiiiveí ,  que  prolonga  a  vida  :^i  ahpnms  efi^aâm 
mtmitanky 

i :  Arrematamos  o  pri raej^ro  ponto  com  provar, que 
^  goloíos.  fáõ  íubditos,  c  frcguezes  do  Demónio j. 
que  exercita  nelles  oofficio  de  Pároco ,  ede  Senhor. 
Agora  arrèraatarej^  eíle  íegundo  „  com  moíii^ar,  què 
os  abítjnentes  predominaô,  c  íe  fazem  ícnhorcs  dos 
Demónios,  que  tremem  dellcsfc  os  feusicjuns  íaõo 
antidoto>ÍTrefragavel,que  cora  ,  e deílroc  toda  a  pe* 
fíc  do  vicio  da  guia,  Dis  Santo  Ambroíiojfcr  proprie^ 
dade  natural^  que^íe  a  ierpents  goffar  da fâliva  dá 
qualquer  peíToa  j  que  efíà  em  jeium,  logo  fmmedia^ 
tamente  morre.  £  com  i£io  quiz  Decs.  mcinífeílíarj; 
quam  mara.vilhf>íâ  íeja  a  virtude ,  e  força  do  jejum}; 
e  que  íe  íayba ,  que  .,  íe  o  homem  efíando  cm  jejum, 
mata  com  a  fua  íaliva  os  Dragões ,  e  íerpentcs  da  ter- 
ra; muyto  mais,  jejuando  por  amrjr  íeu ,  poílrarà, 
e  vencerá  os  Dragões ,  cíerpeoces  do  Inferno:  Jejii-^ 
m  hominii^  (ptitus  ^  fi  firpns  gnfhivtrit ,  moritnr.  Vi- 
dCf  quanta-'  v^s  jejmnjit ,  ut  &  Jputofm  homo  ter^ 
renum fermentem  inttrficmt^  quanto  magu  pritualtmM 
Eícreve  S.Pedro  Damiaô  „  que  a  ferpentc ,  envelhcs» 
cendo  ,  eM  quarenta  dias  fem  eomev  ,,  nem  bebei* 
çouía  algua;  e  afilm  debel irando- fe  ate  emniagreccr 
de  qualidade,  que  a  pellc  fica  como  defapegada  ío- 
bre  a  carne ,.  bufca  entaõ  a  abertura  de  duas  pedras 
contíguas,  ou  algum  Eui-aeo  aperudo  na  terra  dura/ 
c  entrando  com  violência ,  iargs ,  deípiíido-fe  da  an* 
tiga  pellei ,  a  velhice ;  e  fuprin^do  a  natureza  com  ou.- 
tra  nova ,  retorna  ao  priíiino  vigor  dafua  mocidada 
Oh.  quantos  lEpulôcs  ,  envelhecidos  na    crápula  íe 


Dâ  formhSddúoPâr.  f  }  i 

tIMára 5  totalmente  ,  perdendo  calor  do "^eípiricoí 
GreiTiedio  contra  ellc  grande  mal  hc  imitar,  como 
iíoscníina  noíTo  Senhor  |oíu  Chriftono  íeuSvange.  ^^'f^* 
lho ,  a  prudcncia  das  íerpences :  EJlote  prudentes  Jicut  ^^'J^ll 
ferj^ens.  Vã^ãv  pela  porta  etlreyca  do  jejuín;  Intra- ^^^p  ^  j 
te  per  angíiftam  poriam.  Largando  todo  o  regalo  ,e 
deipindo  íc  da  pelie  de  lobo  voraz  ;  de  homem  ve- 
jJho,  veftirfe  de  homem  novo ;  Inàuite  novum  homi^  Efh.c,^ 
nem,  Porém  ifio  íó  fe  aícança  (  como  bem  adv.rtcSaò 
Pedro  Damião  j  com  o  jejum.  Kepare  o  pio  leytor  nas 
fuás  palavras ;  Fís  adfèrpentú  exemplumnúvttsfieri]&  S.Petr^ 
languentem  ãnim£  feneButem ,  impubtjcentis  adolefcen-  ^<^^-^' 
tia  refiorere  decorem  ijejuna  4;um  ferpentc,  •  *  •^^* '  ^ 

.     Defenganem-íe  oá  peccadorcíi  gol  >fos  ,    que  íd 
naõ  imitarem  o  jejum  da  ferpente  neiU  vida,  experi* 
riientaráõ  huma  fome  canina,  c  rayvoía  na  outra  jO 
cm  lugar  das  delicias  dos  bons  comeres^  e  iguarias^ 
a  íerpente  infernal  lhes  dará  a  tragar  fel  de  Dragões,  Deut,\ 
t  venenos  de  viboras,  c  baííiifcos :  Fel  Vracomim,vh  cap.i^i, 
num  eorum  venenum  afpidum.  E  porque  a  fede  fera  fe- 
melhanre  àiqucíla   do  rico   ayarento  j  riaô  pedindo 
já  licor  feícdo,  mas  huma  gota  de  agoa,  pára  alivio 
daíua  garganta  abrazada  com  tanto  fogoi  o  fcu  re* 
frigcrio  fera, ^tomarem  os  Demónios  chumbo  desfey- 
to,  e  metal  derretido  ,  t  abrindo-lhcs  á  força  com 
ganchos  de  ferro  afogueado  a  bocca,  Lho  lançarão  den- 
tro das  goelas  5  e  lho  faraó  tragar,  para  encher, e 
fartar  aquelle  ventre, que  nèíie  Mundo  foy  o  feu  Dcos. 
§luorumDms  venter  eíl.  Óh  gula!  Oh  inferno!  Oh 
eternidade!  Hum  enfermo,  para  íc  livrar  de  huma 
febre,  que  tem  algum  gerigo, faz  dietas  continua- 
das ,  e  naô  fe  queyxa  ví^u^^  enfraquecem ;  tem  fe- 
des iníofriveis ,  e  naõ  íó  lhe  prohibem  o  vinho ,  mas 
também  lhe  negaõ  a  agoa;  e  tem  paciência;  daõ-ihe 
bebidas  amargofiíEmas ,  que  a  natureza  mefina  abor- 
■'Vi^-^j.  I  2  reccj 


^'^  I 


w 


)\m  > 


tp  Difcur/oFL 

tcccy  naô  repugna  j  íe  faz  violência  ,  obedece  j nada 
diz  ,  tudo  toma ,  tudo  íofrc.  E  porque  tanta  rcíigna- 
çaô ,  €  obediência  a  hum  Medico  taô  rigurofo ,  que  tal 
vez,  cnganando-fe  ,.  ordenará  o  eontrario  áíaudc? 
Naõ  he  por  outro  fim  ,.q.ue  por  fe  ver  livre  da  febre, 
que  lhe  ameaça  a  morte.  Oh  cegucyra  dos  homens!  Oh 
engano !  E  naô  faráò  os  comilões ,  e  bebedores  outro 
tanto  i  para  fe  verem  livi^es  da  febre  do  vicio  da  gula, 
que  o&  conduz  ahuma  morte  improviía,  preludio  da 
morte  eterna  fOb  vicio  da  gula!  Oh  inferno.'  Oh  eter- 
nidade !  Se  eftas  verdades  naô  movem  os  Epulôes^e 
goloíos  ahuma  refoluçaó firme  de  huma  total emea- 
da  ;  íerá  verdadeyro  onoíTo  affumpto ,  que  o  vicio  da 
gula  naõ  tem  rcmq^io;  e;  que  os  comilões  ,e  bebé^do- 
res ,  íaõ  freguczes  dos  Demónios,  que  já  lhes  tem  pre* 
parado  com  o  Epulaõ  a  {cpujtura  no  Inferno  : 
tm  eftininftrmk 


DIS' 


r 


TOl^MENTODO  TACTO 


Discurso  vi. 

f  -    ■  ■   ■  .  

Do  Tormento  do  Ta6to. 

'Pr^cepit  mb  is  Deus^  ne  taugeremus  illud* 
Gen.  c.  3.3. 

Oncordaô  todos  os  Santos  Pa- 
dres ,  que  entre  codos  os  íenti- 
dos  I  o  do  taíflo  he  o  mais  peiv 
niciofo,  ecmcoiifeqiiecia  o  de 
mayor  perigo  5  pois  mais  tacilf 
mente  faz  prevaricar  hua  Ah 
ma,e  com  qualquer  pequena 
detença  a  precipita  no-Inferno, 
Saõ  os  outros  íentiJos,como  as 
janelías  de  aigúa  fortaleza,que  íe  naõ  forem  bem  vigia- 
das, c  com  as  íentitieilas  alerta^  entra  o  inimigo,  faque- 
ando ,  e  denredando todas  as  virtudes ,  ate  dar  a  morte 
à  Alma :  Morsintrat  per  feneftras  noftras.  Porém  o  ta- 1'^^^- , 
iflojhecomohu  Capitão  General, qucdàlogooultimo^^'*  ^ 
aíTalto  à  porta  mayor  da  fortaleza^  fazendo-fc  com 
império  íenhor  delia.  Hebelliííimo  o  reparo  de  Saõ  Ba- 
íilio,  diícorrendo  fobre  o  vicio  do  taiflo  ,  e  diz ,  que 
çs  outros  fcntidos  lhe  fervem  como  os  cães  da  caça, 
para  lhes  entregarem  a  prefa.  Os  olhos  avem  ,  ea 
de fcobrç m )  os  ouvidos  a  fentcm }  o  olfa(flo  acheyra^ 
aimagiaaçaõ  adà  a  goftar ,  efaz  appeicccrj  e  fínal- 
,:, ;  I  y  ^'      menj 


l-líU 


S.Baftl, 
lib  da 


Dijcurfo  VI. 
mcataj  ^í?r£cc,  que  to4os  ellcs  no  excrcítat.  o  ím 
oííicía  Yaõ  eiti  buícadeJJa.  Poram  o  nicímo  tado  he 
o  próprio  caçador,  que  a  penas  viíia  ,  ou  deícubcr- 
ta  a  caça,  com  íó  rocala/ 


a  agarra  i 


«  -   '  »   -♦*&-»*«»€  quanto  mais 

brandamente  a  vay  apalpando  ,  com  tanto  mayor  era- 
cidadela  delpedaça ,  e  a  mata.  4^or  iRo  o  meímô 
Santo  Doutor  cxhorta  a  todos,  a  cftar  com  grande  cail. 
tela  ,  por  guardarfe  defte  íentido,   e   fu^ir  delle 
como  da  occaíiaô  próxima,  cliamando-o  íorrateyrd 
traydor,  que  traz  todos  apozde  fí,  e  obriga  coma 
^ca>randura  tirana  os  mais  fcntidos  à  fua  obediência: 
ifclumj,  inqmt )  ntommumfènfmmf^rmciommnm, 
O-Javipmehkndmtem,  quàm  maxmâ eurâíervabis. 
Eltehe  oraícunho  da  matéria,  que  avemos  detratar 
n^íte  Icxto  difcurfo  do  tormeíito  do  tado^  é  coma 
cfla matem  he  muyto ampla,  é  impor tantiííima,  pa^ 
laaTioíTafalvaçaõjprocurareyde  a  reduzir  cm  com- 
pendio, dividmdo-a  por  mayor  clareza  em  três  úni- 
cos pontos.  Nó  primtyro  veremos,  como  cfle  vicio 
dotaí^ohe  aquelie  ,  que  no  género  humano  faz  ma- 
yor  cflrago  nas  Almas.  No  fegundo,  moararemos 
ounico,  e  mais  íeguro  remédio,   para  emenda rfe. 
provado  com  asfagradas  letras,  eaprovack)s  dos  San- 
tos iadres.  No  terceyro  finalmente^  com  as  razSes» 
ccomos  exemplos  feíará  patente  o  defensa  no,  para 
quemeípera  emendarfc  na  hora  da  morte,  que  ofeii 
arrependimento  íerá  falío  ,eaíua  penitencia  £nPÍda. 
cnaolhe  ferviráô  de  ourra  coufa  ^quedclbc  accref- 
centar  mayor  pena,e  tormento  no  Inferno. 

S:  Agoílinho  faz  huma  cngenhofa  comparação  da 
taéto,  que  he  o  infímo  de  todos  os?ientidõS  ,  com 
a  terra ,  que ,  entre  os  quatro  elementos ,  he  tamben» 
^ultimo,  c  menos  nobre  j  porque  conforme  o  ar,  o 
fogf),ea  agoa,faõ  elementos  mais  poros ,  c de  ma- 
y or  perfeyçaõ  ^  com  tudo  obedecem ,  c  tmm  á  ter. 
"■ ra. 


Dotôfffienlo  dêJaBo,  ijy 

ra,  O  ar  com  a  fazer  habitável;  o  fogo  com  a  purificarj 
c-aagoacom  acender  fecunda.  Aífim os  outros  fen- 
tidos,  ainda  que  mais  apurados,  por  íerem  de  con- 
dição mais  exccliente,  fervem,  e  obsdecem  aos  go- 
ííos ,  e  delicias  do  taflo.  Porém  eík  he  hum  íenhor 
iníquo,  e  naturalmente  tyrânoo,  quequsndofemoí- 
tiamaisbrando,entaõ  he  mais  crucU  porque  o  pec- 
cado,  que  começa  ater  aíua  primeyra  entrada  pe- 
las janellas  dos  outros  fentidos  ,  em  chegando  ao  ea- 
(fto.,  cite  lhe  pocm  logo  de  par  em  par  as  portas ,  c 
depois  de  entrado  ,  elle  he  o  Algoz  ,  que  quanto 
m^ais  fe  detém  apalpando,  mais  dcpreíTa  lhe  dá  o  ul- 
timo complemento ,  e  confequentemcntc  a  morte 
eterna.  Bem  fe  eípeciíica  ifto  de  hum  Poeta  facro : 
Poft  vi/um  rifum  ,  poft  taãum  'uemt  ad  aHum.  As 
inais  das  vezes  o  ver ,  eo  ouvir  paíTa  por  hum  íimples 
CQmprimcnto  com  hum  lorrifo  agradável  ;  mortra  a 
peíToa  hum  génio  obrigante ,  hum  nstural  dócil,  e 
Capaz  de  toda  a  converfaçaõ :  Pofi  vifum  ,  rifum. 
Porem ,  fe  o  ver ,  e  o  rir ,  paíTa  ao  tocar ,  infalli vcl- 
mentcpela  grande  atradiva  defte  íentido ,  e  pela  oc- 
caíiaò  próxima  ,  e  proximifiima  ,  paífará  o  t^do  ao 
acflo  peccaminofo  i  e  fe  naõ  com  a  obra,  por  falta 
de  tempo,  ou  do  lugar,  íerá  com  o  con  fen  ío  :  Pofi 
taãum  vmit  aâãctum.  E  deíia  verdade  taó  certa ,  co- 
mo por  noíTa  o:iikria  tantas  vezes  experimentada  ,  fe 
fegue  logo  a  prova  evidente  tirada  das  palavras  do 
noíTo  thema:  Pracepií  nobís  Deus  ^  m  tãngeremusn, 
illuâ. 

■■  Envcjofo o  Demónio  da  felicidade  do^ánoíTos  pri- 
meyros  pays  ,  fe  refolveo  tentar  a  Eva  j  para  que 
eomelTe  cio  pomo  prohibido  ,  com  dizerlhe  :  Cur 
fracepit  vohú  Deus  ^  ut  non  cemenàeretis  ex  omm  hgm 
Paraâifi?  Porque  vos  tem  Deos  prohibido,  quenaô 
comais  de  toda  a  fruta ,  que  produz  o  Paraiío  ?  Ref- 

1  4,  pon-^ 


Oí?7.<r.5 


2..  17. 


Cen.  €. 


f^a^^.  m  comemos ,  e  nos  fuílemmoá  de 
todas .•  mfruBuhgnomm , ^«^ /?,«í  mParadtfo  vefl 
cmur.  Porem  íó  do    pamJdc/hu,na  arvore  ,Í 
Ocos  reíer vou,  nao  quer,  que  comamos  delie,  nem 
qiic  o  troquemos :  Tf^cepit  mhéi  Deus ,  me  comeâere^ 
fnus.  &  m  tangmmm  tlkd.  Mas, como  podia  Eva- 
inventar ,  e  dizer  hua  faifídade tam  craíFa ,  e  patcntej 
como  he^odizer, que  Deos  lhe  prohibira  de  tocar  a 
pomo?  Ne  tangeremusiUud.  Ella  não  ouvio  o  prc- 
ceytoi  poi-que  quando. Dcos  ofez  a  Adaõ,  Eva  ain- 
da  naoeíiava  creada  no  Mundo.  Nem  Adaô  lho  po.: 
dia  ter  dito^^  porque  quando  Deosíhe  intimou  o  prc, 
ceyto,probibio!beí6mentc  ocomer  do  pomo,  fob* 
pena  de  morte,  enaõo  tocaio:  De  Iigno  atitem  fcttn.. 
tí^  bom-  &  mdt  necomedas.m  ^mtmmi  diecme* 
áetu^mertemoriem.  Sendo  1^0  aífim^comolo^ofâí.: 
iouEvafaiío  ao Demomoi^inveDCândadefua cabeça 
^ue  o  prcceyío  divino  era  de  naõ  comer ,  e  de  naô  to! 
çar  o  pomo  :  Ne  tangeremus  tlluà.  Ah  que  naõfov 
invenção,  nem  faifídade  ,  nem  menos  engana j  foy- 
bemfecautela  neccíraria,.para  fugir  o  perigo  próxi- 
mo i  e  íoF  huma  prevenção  coníecutiva ,  conhecendo. 
muybem),comotínhafcierí€Ía  infuía,  que  o  mefmo 
era  tocaT  o  pomo,  que  comelo:  Pofl  tadhmvemtai 
&^um:.  E  qimndo  Dcos  prohibe  o.  peccar  ,  prohibc 
lamoem  rodo  o  perigo  evidente,  e  toda  a  difpoíirao, 
proxm^  ,  dí  quai  procede  iiifòlivelmentc  o  pcccad<í>. 
E  poriíio  faliou  Eva ,  como  prudente ,  e  acauteiada, 
quando  diíTc :  Fracepn  mhisDens,  ne  tm^erenm  iU 
Lud.  Prouvera  a  Deos,  que  cal  cautela  durara  ;  que 
nao  padeceríamos  agora  tantas  mifcrias ,  e  tentacoens, 
neos  tantos  cahiriam  nellas.  Mas  ptoíigamos  o^  mcí^ 
mo  ¥exto ,  e tocaremos  com  a  maô  a  díffcrença ,  que 
vay  entre  ©  fcntido  do  tado,  e  os  outros  ícntidos. 
i^pois  ^ue  o  Demónio  reípondco  a.Eva,  guc,  co- 


-^ 


Do  tormento  àoTa&o.  H7 

mtúào  á6  pomo  ,  naõ  marreriaõ ,  tnas  feriaô  como 
Deofes:  Nequaquam  moritmini  ,  Çtà  erituficut  Viu 
ÇoníidcrouEva,queopomohavia  de  ícr  mais  íabc-  Gmef- 
roío,  c  agradável  ao  pailadar  .•  Viáit  tgitur  mulier,  ca^-l-^ 
quodhmum  ejfeí  Ugnum  aâ  vefcendum.  Eis^aqiii  o  fcn- 
tido  do  goíUr,  c  com  tudo  mortificou- íe,  e  naô  p 
comeo.     Depois  vio  ,  que  era   fermofiíTimo :  P«/- 
ehrum  oculis.  Eis-aqui  o  íentido  da  vifta.  Venceo-fe 
cteve  paciência  J  mas  logo  que  dasjancllas  dos  olhos 
appareceo  a  áclcytã^ãò  :  JJpeãu que  deleÕiabile.  Ota- 
<lo,como  mais  atrevido,  c  violento  ,  arrombou  as 
portas  todas ,  e  pegou  no  pomo ,  e  o  tirou  da  arvo- 
re, c  no  meímo  inftante  o  comeo  ,  c  engulio,  tra- 
gando também  opeecado,  que  hea  morte  da  Alma; 
TuUtquedefrucíu  dlius ,  &  comedit.  Oh  vicio  de  ta- 
c^o,  quanto  es atradivo,  e  poderoío  /  Como  es  fey- 
ticeyro  entre  os  mais  fentidos!  Naò  contente  Eva  de 
ter  quebrado  opreceyto ,  foy  logo  pretentar  o  pomo 
aoííiarido  :  TíiUtqm  viro  ftia.  Dcfgraçado   íucccíTof 
A  penas  Adam  pegou  nelic  ,  que  inficionado  daquel-     ^ 
le contado,  e  eíquecendo  íe  deDcos,  do  preceyto, 
de  íi,  edc  toda  a  fua  pofieridade ;  o  mefmo  foy  re- 
ceber o  pomo  ,  e  tocaio  ,  que  correio;  Veditque. 
viro  fm ,  &  comedit.  Perdendo  a  fí  ,  e  deyxando  em 
total  ruína ,  c  perdição  o  género  humano :  Fofi  iaSítim 
venit  ad  aHum.  E  f e  o  laÔo  de  hua  fruyta  eterogcnea,, 
que  naô  teve  outra  vida ,  que  a  vegetavei ,  c  fem  al- 
guma corrcípondeneia  teve  tal  atraíliva  „  em  fuíeitar 
o  appetite  do  gofto  em  Adam  ,  e  Eva  ,  qne  baOcLv 
para  os  fazer  prevaricar  no  prcceytov  ainda  que  vi- 
veíTemno  efíado  da  innocencia  ,c  livres  áo  fomes fec- 
íãtL  Que  íerá  logo  do  tadlo  psrigoío  do  corpo  íui- 
niano  ,  qu-e  a'èm  de  ter  o  íeníiiívo,  qje  allucin.?,, 
temofer  homogéneo,  que  logo  íe  fcz  congeneo  re- 
ciproco 5;C  conreípondenitc  Com  tal  viveza  deafíedo,^, 
/v  ■  que 


13^  Difmrfo  Vh 

que  parece  hum  fcytíço  ?  Oh  trifte ,  e  maldito  vicio 
do  tado ,  como  es  atrevido ,  c  como  es  cego !   Atre- 
vido, porque  cc  atreves  a  todo  o  género  de  peffoas, 
e  em  todas  as  partes  do  corpo ;  cego  ,  porque  naõ 
fazes  difíinçaò ,  nem  de  lugar ,  nem  de  idade ,  nem  de 
grão,  ncmdc  íexo,  nem  de  eftadoj   e  do  teu  atrc-^ 
vimento,  e  cegueyra  namvés  ,nem  reparas  as  coníe- 
quencias,  que  nafcem  de  mil  enormidades,  eabfur- 
dos.  Do  teu  mao  habito  ,  e  inclinação  de  tocar  ,  c 
apalpar ,  íeguc-íe ,  que ,  fe  o  tado  for  com  peíToa  dcf- 
obrigada,  fera  fornicação }  fe  o  tadto  for  com  virgem, 
paíTará  iogo  a  eftupro  J  íe  com  parenta ,  paíTarà  ao 
Inceílo  ;  fe  com  cazada  ,  naícerá  o  Adultério  j  fc 
com  Peífoa  de  voto,  hum  facrilegio.  Nem  fe  con- 
tentará efte  torpe  vicio  do  tado,  de  íe  ter  feyto  como 
hum  infame  Proteo  , tomando  todas  as  formas,  e  re- 
prcfentandotodâs  as  figuras*   Que,  íenaô  for  detido 
comotemor  d;  Deos,  ou  refreado  com  o  lume  da 
razaô ,  chegará  com  a  fua  cegueyra  ,  a  ter  a  maldição, 
com  que  o  am.eaça  Deos  na  Sagrada  Efcrítura  .*  P<í/- 
É'.2S.2Q^^^  /«  meridie ,  (icut  falpâve  folet  c^ecus  in  tenehrú. 
C^uer  dizer,  que ,  eftando  hum  Chriftaõ  com  a  luz  do 
meyodiadâfé  Catholica, efte  enorme  vicio  de  tocar, 
e  apalpar  ,  o  fará  efquecer  do  feu  racional ,  e  humano, 
obrando  peyor ,  que  bruto  contra  a  mefma  natureza, 
atè  íe  transformar  com  nefandas  metamorfoíes  em 
outras  eípecias,  que  depois  acabaô  em  brutalidades, 
e  catafirofcs ,  mais  dignas  de  ferem  queymadas  com 
o  fogo,  qucinercem,  anticipadonefla  vida, que  def- 
critas  com  a  pena.  Tanto  pôde  a  torpe ,  e  cega  in- 
dinaçaô  ao  vicio  do  tacSloiPf^/?  taBttm  'venit  adaBum, 
Por  ifto  diíTe  bem  Eva :  Pracepit  nobis  Deusj  ne  tange- 
rennis  illud. 

Querendo  Deos  cafligar  ElRey  Joachim ,  e  aos 
fcus  Povos  de  Judàj  diz  o  Sagrado  Texto,  que  lhes 

mau- 


Do  tôMefifo  do  Taão.  J}f 

mandou  varias  cafías  de  Jadroeníinhos  de  pátria  ,  c 
cofíumcs  diverfos  j  huns  Caldeos  $  outros  da  Siria; 
cftes  Moabitas  ?  aquelles  defccndentcs  de  Airon: 
Mijif  Dominusin  terra  Jnda  latranculos  CeJdaoriím,  Lib^", 
éf  latrunculos  Siria,  latrunculos  Moab ,  &  latrun- ^'&'^' 
Cfílos  Jilionim  Amon*  Mas  vendo ,  que  cftes  naô  ba-  *4" 
flavaò  ,  para  os  reduzir  à  íua  obediência  ,  mandou 
a  Nabucodonoíor ,  Rey  de  Babylonia  ,  que  i  ouboU| 
efsqueoutoda  ajiidea,  e  levou  coinfígo  captivos  a 
ElReyJoachim,ea  todos  os  Príncipes  de  Judà :  Aâ 
extremum  mifit  Nabncodonofor  Regem  Babilotua ,  qtti 
depradattis  eft  terram  illam ,  qm  &Joachim  5  &  Frtn» 
cipes  captivitati  fuhjecit.  Deík  mcíVno  modo  faz  o 
Demónio,  para  vencer  ,  c  conquiíiar a  fermolâ  Ci* 
dade  de  Jeruíalcm  ,  que  lie  a  noíTa  Alma.  Serve-fc 
em  primeyro  lugar  dos  quatro  ladroenfinhos  ,  que 
cíiaô  em  diverfas  moradas  ,  e  fervem  a  differen- 
tes  Qfíicios  ,  e  uíosj  efles  íaõ  os  quatro  primcyros 
íentidosj  mas  íe  cftes,  ou  com  a  pouca  cautela  no 
ver,  ou  com  a  demíifiada  curioíidade  no  ouvir,  ou 
com  o  depravado  apetite  do  goftar  ,  naô  abrem  ío-^ 
gooa  brecha,  por  onde  poíTa  entrar  o  peccado  mortal, 
c  roubar,  eíaquear  a  Alma,  manda  logo  aofcntido 
do  tado ,  que  como  tyranno ,  e  atrevido ,  faquea  logo 
todas  as  virtudes  ,  entra  predominante  no  forte  áo 
coração ,  e  fc  faz  íenhor  dclle ;  cega  o  entendimen- 
to, que  he  como  Rey,  defenfordas  leys  da  razaô} 
apriíiona ,  e  faz  eícra  va  a  vontade  ,  que  llie  obedece 
cm  tudo, o  que  apetece,  ecaptiva  os  mais  fcntidos, 
que  lhes  fervem  como  de  vis  fenfais  para  os  tor- 
ces tocamentos  do  íeu  infame  gofto.  O  peyot  he  ,  quc 
àinda  fem  a  guia  doscbtros  íentidos  ,  o  todo  fó  por 
íi,  com  o  uníco  gofto  de  tocar,  e  apalpar,  vive, 
teynà,  e  triunfa  fcmpre  mais  cfeandaíofo  em  todo 
o  género  de  torpezas.  Tenho  conhecido  ncfte  Bra"-^ 


U  ,1 


H  l 


6enef. 


I  :ilÍ^- 


f4Ci  ^^DifiurfoVt* 

ííl. hum  cego  dcnaícimento,  taô  immerfo  no  infame 
lodo  da  luxuria  ,  que  era  o  efcandalo  dos  moradores 
daqtíeila  paragem  ,  aonde  elle  habitava.  Como  era 
ccgo,n3Ò  podia  ufar  daqucllas  advertências,  e  cau- 
telas,  de  qus  uíaô  ,  os  que  tem  vifta;  mas  era-Ihç 
forçofoferviríe  das  noticias,  de  quem  lhe  referia  de 
bacca  as  qualidades  das  peffoas  ,  que  deíejava  i  q 
como  era  rico, ,  valia-fe  com  o  dlnhcyro  ,  de  quem 
as  foíTe  bufcar  a  horas,  que  elle  ,  fiando-fe,  cuy-^ 
dava  foíTem  nod:íJirnas,  ou  cfcuras}  epodiaô  íer  pa- 
tentes ,  e  de  meyo  díâ.  Eftava  cu  fazendo  MiíTaô  na- 
queile  deftrido,  e  achey  ,  que  o  cícandalo  era  puj 
blico  ;  e  que  fenaô  fallava  em  outra  couía  ,  íenap 
do  engano,  e  miíeria  defte  pobre  cego.  Naò  falta- 
rão zcloíos ,  que  me  introduzirão  a  faliar  com  elle^ 
para  o  difpor  a  ganhar  o  jubileo  da  MiíTaô  ,  e  porfe 
bemcomDeos.  Odifcurío  começou  com  razões  hu- 
manas >  para  depois  acabar  com  as  verdades  eternas 
Perguntey-lhecu  ,  fendo  verdadeyro  aquellc  noíTc^ 
adagio  Portugucz:  o  que  os  olhos  naõ  vem  ,  o  coração 
naõ  defeja ;  como  podia  elle  deíejar,  e  cubicar  com 
tantas  veras, objedlos, que  nunca  vira  ?  Mais;  por. 
quehecommijm  odit^o,  que  a  vii^a  faz  fé;  c  quç 
fé  podia  ellti  dir  àz  hu  i  pcíToa ,  que  nunca  vio  ,  nem  a 
pode  ver  f  Refpondeo  logo  o  cego.  Oh  quanto  fe  en- 
gana. Padre,  oh  quanto  fe  engana!  A  mim  íupre  q 
tadlí  para  os  mais  fentidos.  Efte  com  o  apalpar  me 
faz  conhecer  as  idades,  e  fendo  correlativo,  e  reci- 
proco, conheço  o  génio ,  e  aíFeyçaô  das  peffoas  ,  mais 
que  das  mefmas  palavras.  Defte  mododiiíe  cu  te- 
reis vôs  mm  conhecimento  dequalq  u  cr  objcdo  ,jdo 
que  teve  o  cego  Ifaac  dos  feus  filhos,  que ,  com  naô  fer 
cego  k  mUvltaU  ,  conhíceo  a  voz  fer  de  Jacobj 
porque  Jacob  na5  a  íoube  contrafazer.?  Foiç  quidem 
Jacob  éfi.  Mas  fe  Ciiganou  ao  Uão ,  porque  tocan- 

àOy 


DotúrníeniodoTãfte.     ^  141 

dOyC  apalpando  as  mãos,    parecersõ-Ihe  as  mãos 
de  Efaú ;  Sedmams ,  mantis  fmt  Efiu.  Eu  naõ  íey  jíe 
teve  emenda;  íey ,  que  achcy  nelic  bem  pouca  dif- 
poíiçaõ  ,e  que  em  menos  de  hum  snno  morreo  im- 
provifamentc  ,  c  fem  eonfiffaò ,  c  Sacramentos.  Oh 
meu  Deos !:  Que  importa ,  que  hum  tenha  a  voz  de 
Jacob,  voz  do  Ceo ,  que  te  falia  ao  coração  ,  para 
^ue  deyxes  eftes  toques ;  voz  da  confeieneia  ,  que  te 
remorde  j  voz  do  Pregador  ,  que  te  chama  à  peniten- 
cia; voz  finalmente  deík  livro  ,  que  efiàs  lendo,  que 
te  eníina  a  fugir  o  perigo ,  para  íalyar  a  tua  Alma! 
Mas  que  importa ,  que  a  voz  íeja  de'  hum  Predefíina- 
do  como  Jacob ,  fe  tu  queres  ter ,  e  confcrvar  as  mãos 
de  Eíau  j  mãos  coflumadas  a  tocamentos  torpes  r  mãos 
precitas-,  que  em  tocando  pcceaô,  em  apalpando  fa- 
zem a  outros  pcccar ;  mãos  de  Inferno,  e  peyoies  ,  que 
o  Inferno !  Fox  quidem  ■,  vox  Jacob  ,fedmanus ,  mams 
funt  Efau^ 

Jà  he  tempo  que  demos  algum  remédio  ,  P^*s-2un3 
ra  livrarmonos  de  hum  vicio  tam  perniciofo  ,  co-  ^^  p^, 
mahe  o  dotado.  Eu  naô  acho  outro  mais  profícuo, to. 
nem  maisfeguro  y  que  aquelle  ,que  nos  dà  o  Eípiri^ 
to  Santo  jquando  noscxhorta  a  fugir  dos  peccados  co- 
mo da  preícnça  de  híáa  cobra  ,  ou  íerpente :  iv//,  ff^^J^ E^cl^r 
0  facie  cohbri  fuge  pccata.  Mas  porque  naô  diz  Ocap,%'ii 
Efpirito  Santo,  que  fujamos  dos  peccados ,  como  da 2. 
preíença  de  hum  Leaò  Í/^n>  Leonú.Ou  de  qualquer 
©utra  fera  cruel,  que  acomete  ,  morde,  c  devora? 
Porque  as  outras  feras- por  viciofas  ,  c  cruéis  ,  que; 
fcjaô,  naô  tem  peçonha i  c  aílim  ,  quando  mordem> 
em  hum  braço ,  ou  tragam  huma  maô ,  pôde  ainda  O' 
homem  viver  fem  algum  dcíles  membros ,  ficaedo  to- 
do o  reflante  do  corpO'faô ,  e  livre ,  como  vemos  cada. 
dia  i  porém  a  cobra,, como  he  deíl  peçcnhenca  ,  mor- 
dendo a  maõ^  ou;  hum  pà,.,ou  í^inda  picada  íó  a. 


■í    I 


í 


1142,  DifiuvJoVL    ■' 

CKtrcmi(fe33  de  hum  dedo ,  baila  para  caufar  a  mojí- 
te  ;  porque  diíFundmdo-íe  o  ícu  veneno  nas  veas ,  c 
correndo  com  a  circulação  do  íangue  todos  es  mcrrí- 
bros  ,  em  chegando  ao  coração,  fem  mais  remédio ,  he 
neccCario  morrer.  Toda erta  doutrina  fcgue  ,  e  con- 
£rraa  o  grande  S.  Baíiiio  ,  comparando  o  perigoío  kn- 
tido  do  taíflo  noGorpo  humano  á  venenoía  mordedií- 
ra  de  huma  cobra,  dizendo  aíTim :  Non  altter  fiobú  hum 
fenfum  mintme  cohibentibus  evemtêy  qtfàmji  caudam 
Jerpentps  tangeremus.  Da  mcfiiía  maneyra  íuccederà  a 
nôs,fe  formos  pouco  acautelados^  em  refrear  ofcn" 
tido  do  tado ,  que  íuccedc  àquelles ,  que  com   pouca 
adí^ertcncia  tocaó  ,  ou  manejaòalgua cobra,  ou  fer^ 
pcntCw  Eííi  ,  logo  que  fcntc  tocarfe  no  íeu  corpo, 
fc  rcvifa,  c  morde  com  taímaKgnidade,  aquém  a 
toCou  ,que  na  mefma  mordedura  deyxa  o  veneno,  c 
Ihedáa  morte.  Aílim  notadto.nao  ncceírarío  no  cor- 
po humano  he  taô  peftilentc,  que  logo  move  o  fari^ 
gue,  altera  os  cfpifitos,  ediffunde  eO:è  féu  contagio 
cm  todíís  os  outros^  membros  \  atè  que,  cegando-fé 
oenténdimento  ,  do  fèníó  paffaao  cdnfenío  ,e  dà  à 
Atmaamorte^ferhâ:  Ita  tâãus    minus  árcunffêBtis 

%hb\  f<>^^*^ tangente mfustnft-eonvmit t  &  4d  pavum 

^yirajonfènfumtrahit.  ^  .  ^ 

,  *  Nem  faltaõ  exemplos  na  Sagrada;  Ef  cri  tora  ,  que 
r  provaô ,  e  confírmaõ  eíla  doutrina  taô'  recomendada 
dosSíintos  Padres. Quando  aqueíla  fcnhora  do  Egyp- 
to ,  mulher  de  Putifar  ,  convidou  ao  cafto  Mance- 
bo Jofcph  ,quGeraícu  cfcraVo,  para  Violar  o  leyto 
conjugal  do  feu  marido  }  fcckuíou  eíle  com  moftrar 
horror  a  hum  crime ,  que  era  de  alta  trayçaô  contra 
íeu  Amo,  e  Senhor.  Mas  quando  vio,  que  às  paia* 
vras  brandas,  aos  mimos  ,  e  carinhos  ,  ajuntou  o 
trido  ,  deu-íeentaõlogo  por  perdido  ,  e  aífim  buícqu 
o  ultimo  ,  c  único  remédio  ,  que  era  o  fugir  5  pelo 

que 


D  Ba^ 


Do  tormento ãbTúâo.  :j4J 

que  logo  deu  hum  arranco  ,  e  fugio-lhc  ^  dfyxan- 
do-lhcacapanasmâos.  Naô  ha  duvida.,  que  Jofeph 
obrou  bem  i  masfc  poz  em  manifcfto  perigo  de  perder 
afua  reputação,  e  também  a  vida,  com  deyxar  a  ca- 
pa ,  que ,  poíla  cni  juizo ,  fazia  papei  de  corpo  do  de- 
íiélo,  e  fervia  de  prova  quaíi  concludente  do  negro 
attentado  ,.  contra  íua  Senhora  ,  e  íuccedeo  aíHm; 
porque  a  mulher  vendo-fe  como  afrontada  ,  c  def- 
prezada  ,  temendo  y  que  Jofeph  falIaíTe ,  o  accufou 
eom  grandes  queyxas  ao  marido ,  o  qual  demaíiada- 
mente  crédulo  „  vendo  a  capa  do  íervo  fobre  o  ícu 
kyto,  femmais  interrogação,  ou  proccíTo ,  naõ  lhe 
dando  a  ira  mais  lugar,,  o  mandou  meter  no  fundo  de 
hum  cárcere,  fem  nunca  mais  lembrarfe  delle,  co-^^^^f-^ 
tno  ícnaôíoíTeno  Mundo:  OJiendit  palihtm  marito,^^^^^' 
&  att :  Ingreffiis  eji  ad  me  fervas  heâr^tis ,  nt  illnde-  * 
retmihi,  Cnmque  audijfet  me  clamore ,  rel/qtiit  pallium, 
quõd  tembéim^  &  fugitjoras.  His  audttU  •^DomimiS', 
&  nirniitm  credulus  verbú  çonjvgú^  iratnsefi  valdu 
traditquejôlefh  in  car cerem.  Mas  como  he  poíTivel, 
quejoíeph,  lendo  tam  prudente,  naõ  previíTc  a  fua 
total  ruina  com  deyxar  a  eapa  na  maõ  da  fua  Senho- 
ra, podendo-lha  arrancar  por  força  ,.  fendo  elk  mo- 
ço valente  3,6  na  flor  da  idade  ,e  depois  fugir  com 
eila  ?  Bem  prévio  Jofeph  o  perigo ,  e  o  mal ,  que 
haviqde  virão  íeu  corpo  com  deyxar  a  fua  capa  nas 
mãos  de  hua  mulher  laíciva;  mas  fez  reílexaô,.  que 
muyto  mayor  perigo ,-  e  muyto  peyor  ruina  para  a  íua 
Almaícria  o  fícarfe  elle  com  a  capa,  jà  inficionada 
€om  o  taâo  daquella  mu-Iher  Quiz  „  como  comcn- 
taô  os  Santos  Padres  fobre  cíie  Texto.,  fugir  naõ  fó 
daoccaííiõ próxima,  mas  rarnbem  da  remota  ,  e  de 
toda  a  lembrança  delia..  Sabia,  quev  quando  nos  lem- 
bramos de  algum  eommodo ,  que  tivemos ,  para  fatis- 
íazer.aodoceenciínto  do  noífo  íeiííual  appctite ,  efta 
'■■^  km" 


ii.ij 

;: 

144  Difcmfo  VI 

lembrança  lifoDJeyra  entra  com  doçura  innocente  ar 
^níamento,  e  depois  íeiníinúa  na  imaginação ,  re- 
prefentando-íhe  vivamente  ofucccíTo  paíTâdo,  e  no 
mefmo  tempo  defperta  a  fenfualidade  com  oíogojá 
acceío  da  concupifcencia.  Deyxou    togo  prudente- 
mente a  capa  >  porque  fe  a  trouxcíTe  comfigo  ,  todas 
as  vezes,  que  pegaffe  nella,  lhe  poderia  infundir  o 
veneno  da  culpa  ,  com  a  lembrança  daquelle  tadlo, 
c  contado, e da  occafuô  de  oíFender  a  Deos.  E  co- 
mo bem  remunerou  Deos  cftaacçaò  generoía  de  Jo- 
fephl  Como  bem  lhe  desfez  à  calumnia  ,  eacudio  ao 
feu  credito !  Ds  feytor ,  que  era  da  caía  de  Putif ar ,  íu- 
bio  a  Mordomo  mordo  Paço  de  ElRcy  Faraó,  o  qual 
tanto  o  amava ,  e  fe  fiava  delis ,  que  além  de  o  CDnfti- 
tuir  feu  primeyro  Miniílro»  o  fez  publicar  a  fom  de 
trombetas  por  Viíorey  de  todo  oEgypto  ,  cque  to- 
dos tiveíTem  entendido  ,  que  clle  era  o  íupremo,  ç 
único  Commandante,  a  quem  todos  os  fcus  OEcaes, 
e  Povos  deviaõ  obedecer, ageolhando-íe  em  qualquer 
parte, que  elle  paílaíTe ;  e  que  foubeíTem  ,  que  entre 
ElRey,  e  clle  naô  havia  outra  differença  ,  que  Jofeph 
ter  o  mando  ,  e  Faraó  o  aíTento  no  throno  :  Tu  erisfu- 
Cemf,c.  p^r  domum  meam  y  &  aâtui  oris  mferium  cunBus  fo^ 
^^A^'pulus  obediet  ;  mo  tantum  regni  folio  te  fr acedam. 
Parece  ,  que  a  cafta ,  e  valerola  Judith  ,  tomou  a  li- 
ção de  Joíeph  ,  e  o  quiz  imitar  em  tudo ;  pois  os  San- 
tos íe  aoroveytaõ  huns  dos  outros  dos  bons  exem- 
plos. Depois  de  ter  Judith  cortada  a  cabeça  aogran- 
de  General  Oiofcrnes ,  e  ter  dado  a  vitoria  aos  feus 
Compatriotas ,  contra  os  Aflirios ,  tratarão  os  Go- 
vernantes, de  repartir  os  dcfpojos  dos  vencid^os,  pa- 
ra dar  a  cada  hum  dos  vencedores  o  quinhão  ,  que 
lhes  cabia  proporcionalmente,  coníórmeos  feus  mere- 
cimentos. Julgarão,    que  tudo  ,  o  qije  era  do  pc^ 
culiar  ferviço  da  peffoa  de  Oloferncs ,  ouro ,  prata, 


Do  tõYttíento  do  TaBô.  14T 

veílidoS)  íoupas,  e   camas,  com  as  mais  â!fayasi 
tudo  com  univerfa!  conícntimento  fc  entregaíTe  a  Ju-  n^^. 
dith:  Porro  atitem  univerfa  ^qu^  Olojernú  p^cuUarla[^^   '^ 
fmjfe probatã fnnt ^dederunt  Judith ,  in  auro^  &  ar- 1^^ 
gento  y  &  'veftihus  ,  &  gemmis ,  &  omnl  fttpeUèãílí, 
traditajunt  omnia  ílU  a  Popnlo.  Porém  Juuitíi  fez  taò 
pouco  calo  do  precioío  quinhaó  ,  que  ihe  tocou  ,  c 
dos  ricos  deípojos ,  que  lhe  trouxcraô,  que  não  Í6, 
não  os  quiz  receber,  mas  os  mindou  afaíkr  defí^e 
da  íua  cafa ,  por  nam  ter  occaíiaõ  de  velos ,  ou  to- 
caios, nem  ter  a  mínima  lembrança  deitas;  Porro  Ju-  n  .. 
dith  univerfa vafa  belltca  Olofernvs ,  qua  deditilli  po-[  \'^^ 
ptíhs,  é^cQHOp^eum  ^qmd ipfa fiifiuleraí de cubtlt ipfiuS)  i^^ 
obtuttt  inanathema  oblivmiis.  Mas  porque  Judithre- 
cuia, edeipreza  os  deípojos  de  huma  vitoria  tam  af- 
íinaiada  ?  Porque  não  os  toma,  e  oáo  os  tem  muy 
bem  guardadvos ,  para  fazer  illuftres  os  íeus  defccti- 
dentes  í  Como  naõ  os  mttt  entre  os  trofcos  dos  íeus 
Avôs  i  para  dar  a  conhecer  oíeu  valor  à  pofleridade, 
c  eternizar  a  fiía  memoriai  E  fe  cila  nâo  quiz  guardar 
a  eípada  ,  o  punhal ,  e  outros  géneros  de  armas  pró- 
prias de  hum  General  do  exercito ,  pois  não  ihe  crao 
ufuais,nem  convinhaõ  ahuma  mulher i  porque  náo 
guarda a^  outras  alfayas,  as  roupas,  c  alcatifas,  cf- 
pcci  ilmentc  o  icy  to ,  e  o  pavilhão ,  que  era  hum  mo- 
vei pxoprio  do  feu  fexo  ?  Muy  to  mais,  que  era  de 
Damafco  cremeíim  bordado  de  ouro  ,  c  guarnecido 
de  eímeraldas  ,  e  outras  gemmas  preeioías  :  ConO'  j^^^^ 
fattm ,  quod  êrat  ex  purpm  a ,  &  auro ,  &  fmaragào^  cap.  ló. 
&  lapidtbtispratiõfis  contextum.  E  lhe  podia  íervir  de  29. 
ornamento  na  fua  alcova, no  cempo,  que  as  outras 
Matronas  de  Betulia  a  hiaõ  viíitar,  e  dârlhcos  pa- 
rabéns. E  quando  naó  parcccffe  bem  â  fua  modeflia, 
c  cftado  viuvai ,  ter  hum  leyto  taó  preciofo  à  vifta  ,0 
podia r£cpliicr,çdeyxalo  a  algum  dos  fcus  parentes 

1^  fliâis 


Wfturfâ 
mais  chegados,  que  o  guardaria,  como  illufire  mò2 

nurnento  dâ Tua  familia.  Nada  diítoquizjudith.  Pre-. 
vio  prudentemente,  e  conííderou ,  que  codas  as  ve- 
zes, que  viíTe  o  íeyco,  íbe  tornaria  em  lembrança  a 
occaiíiaô,queelIa  teve  de  oíFender  aDeos  com  Olo. 
fcrnes,  fe  quando  eílava  no  ley to  naôíicaíTc  logopre- 
fo  do  fono.  E  que  eíia  lembrança  podia  íixarfe  na 
íua  imaginação ,  e  fazer  algum  movimento  na  íua 
fenrualidâdé}  por  ifío  lançou  longe  de  fi,  e  da  fua 
caía alfáyas yíeytos ,  pavilhões,  e  tudo  aquillo  ,  que 
podia  ter  tocado  Olofernes,  como  fe  tiveíTc  excom- 
munhaõ  o  tocaias;  eaíTim  poz  tudo  em  hum  perpetuo 
e íqueci  men to ;  Obtuíit  in  anathema  oblivionis. 

Dos  exemplos  do  Teftamento  velho ,  que  hc  a 
ley  êfcrita ,  paíTemosaos  doTeftamento  novo,  que 
he  a  ley  da  graça  ,  veremos  ,  quanto  Deos  concor- 
re com  ella,  para  todos  aquelíes,  que  naô  íó  fogem 
daoccaiiaò  próxima  deíle  vicio  do  tado,  mastam- 
berti  da  remota,  com  afaftaríe  delle.  Saô  Martinia- 
no  ,  para  fugir  de  toda  a  óccaíiaô  dcfte  vicio,  dey- 
xou'  a  Cidade  ,e  a  pátria,  e  foy  recolherfe  hum  lon- 
ge em  hum  deferto,  aonde  gozando  bua  i^ummapaz 
da  Alma,  fazia  penitencia.  Mâs  nem  sbi  fe  achou 
feguro, porque huma  mulher  do  Mundo,  com  pre- 
texto, ou  vcrdâdeyro,  ou  falfo  de  largar  a  mà  vida^ 
e  tratar  íóda  íua  falvação,  teve  modo  de  penetrar 
todos  aquelíes  boíques,  átè  achar  a  pobre  choupa- 
na de  Marciniaoo.  Ahi  entrou  dentro, e  naõ  vendo 
outra  couía  mais  que  cilícios  com  pontas  de  ferro ;  e; 
diíciplinaseníanguentadas,  fe  poz  logo  de  geolhos 
a  gemer,  e  chorar.  No  entanto  tornou  da  fonte 
Martiniano,couvio gemidos, efoluços na  íua  chou- 
pana. Ficou  palmado  de  tal  novidade  naô  cfperada, 
e  chegando  à  porta  delia  ,  vio  dentro  a  nova  hofpeda. 
Diííe  logo  comíigo.  Já  cíía  habitação  naô  me  ferve 

mais. 


Dõ  tormento  do  Taão.  1 47 

^aís..  Deyxou  o  pote  da  agoa  na  porta,  com  todos 
';/)s   ínfirumentos    da    penitencia  ,  que  là  eftavâo,  e 
-jícm:^erguntaránoYahoípcda,  aqueveyo,  nem  co- 
Wveyoi  tomando  outro  caminho,  e  por  rwmo  di- 
tvcrío,  caminhou  toda  anoyte,  e  todo  o  dia  fegum- 
^teVatê  que  toy  dar  na  prayra  do  mar.  Ahi  íoube, 
■qiie  havia  huma  Ilhota  ,  que  apparecia  ao  longe,c  cm^íi 
'tinha.húa  pequena  alagoa,  que  naó  produzia  fe  não 
jiiriCGS,  e  vimes.  Ajuftou-íe  com  hum  Marinheyro; 
paraqueláoIevaíTena  íuabarca,eque  cada  mez  lhe 
foíTe  levar  hum  pouco  de  bifcouto,  que  em  p^g^-pj^ji^: 
inepto  lhe  daria  os  ceílos ,  c  ceftinhos  de  junco,  quc^retom. 
cUehia  trabalhando.  Foy  íideliííimo  o  Marinhcyro,  i.w///: 
cm  lhe  levar  o  fuftentoj  e  Martiniano  vivia  na  íua 
Ilhota deferta como  em  hum  Paraiío terreal,  fora  de 
rodas  as  occaíiões  ,  e  perigos ,  íem  outro  cuydado, 
que  de  fazer  oraçaô,  e  os  Teus  certos.  Mas  quem  o 
cuydára  !   Porque  nem  ahi  ficou  de  todo  livre  onoíTo 
Santo  íolitario;  pois  os  perigos  do  mar  lhe  puzeraô 
asoccaíioensemterra.  Naufragou  caíualmente  huma 
caravela  em  hum  cachopo  junto  á  lihota  deferta.  E 
cm  quanto  os  Marinheyros  tratavaô  de  fazer  humí 
prancha,  para  íalvarem  as  vidas  ,  pois  naô  cabiaõ 
todos  nobatelinho,  húa  moça,  que  hia  de  paílagem 
na  mcfma  embarcação, com  o  benefício  de  humataboa 
alcançou  a  Ilhota,  Quando  íe  vio  com  o  pê  cm  ter- 
ra, naô  quiz  mais  n^ida  do  marj   e  os  Marinheyros 
no  feu batel  fizeraô  dalli  fua  viagem.  Foy  logo  a  moça 
a  buícar  S.  Mirtiniano ,  o  qual ,  em  vendo-a  ,  lhe  fal- 
Ipu  aílim.  Minha  fílha,  o  fogo,e  aeílopa  naô  eílaõ         '-^ 
bem,  eftando  juntos  -,    quero   antes    deixar-me  nas 
mãos  da  providencia  Divina  ,  e  ííarme  delia  ,  que 
da  fragilidade  da  minha  natureza;  aqui  tendes  hum 
pequeno  de  bifcouto ,  que  vos  baflará  ,  para  matar- 
a  fome  por  algum  tempo.  Nao  paffaráômuy tos  dias, 
,-  '  K  2  que 


PHiP 


■« 


Uí  fi       'f'" 


148  Di/ctir/o  VI 

que  chegará  a  efle  lugar  hum  Marinheiro  ,  qMc  cm 
o  meu  provedor  de  bifcouto ;  a  elle  entregareis  cftc» 
ceftos  jejuncos ,  edizeylhe ,  que  vos  dè  a  paíTageni 
na  fua  barca  ,  atè  a  terra,  que  eu  rogarey  a  DeoS| 
que  vos  leve  a  ambos  de  dous  em  paz ,  c  falvamenta. 
Naõ  he  crivei  as  lagrimas  ,  que  derramava  a  moça^ 
vendo,  que  a  deyxava  íó^e  defcmparada  emhuma 
Ilhota  »  que  melhor  íc  chamara  hum  penhafco.  Ma$ 
o  Santo  olhando  para  omar  diflíe  ,  quero  antes  fiar-mc 
da  inconftancia  dos  ventas ,  c  d^  inílabilidade  das  on- 
das, que  porme  emrtíeo, ou  em  occaítaó  de  comct- 
ter  hum  peccado  mortal.  Aflim  dito  ,.  levantou  os 
olhos  ao  Ceo ,- depois  fez  o  final  da  Cru^ ,  e  generofo 
fe  lançou  ao  mar.  Efcaçamente  começou  nadando  a 
lidar  com  as  ondas  ,  que  a  providencia  Divina  lhe 
mandou  hura  Delfim,,  que  pondo -íe  dcbayxo  dclle, 
lhe  foy  levantada  os  peytos  ,  atd  que  deu  geyto^ 
para  aíTcntaríe  nel]e,elhc  fervia  de  batel,  que  eru 
breve  efpaçadetempa  olevou  àquella  meímapraya, 
aonde  alguns  annos  antes  fe  tinha  embarcado.  Diraõ 
©s  peccadores  ^  que  efte  exemplo  de  Marriniano^ 
para  fugir  toda  a  perigo,  eoccaiaô  do  peccado  ,  he 
mais,,  para  fe  admirar,  que  para  íe  imitar.  Aííim' 
he ,  mas  cu  diga,  qtie  daqui  íc  infere ,  quanta -efti- 
nia,c  gofb  Deos„  que  nas  ©ccâ^oens  ,  €  perigos 
recorramos  logo  aelk  com  toda  a  coniança  ícguros^ 
qucfendij  reíJftirmos.  ao  noífo  appetite  rebelde  coin 
raffje^'^^^lr  Deos  não  nos  faltará  com  a  fua  graça:  Fa^ 
gratia-  ^^^^í  fuod  iufe  eft^  Deus^mndenegãtgratiam.Emny' 
kkz.  ta  mais  íe  vencermos  o  ardor  da  noíTa  concupiíccncia^ 
coma^promptafugado  objeífto  ,,qu€  nos  allucina  a^ 
peecadò  i,entâa  fe  obrigará  Dcos ,  até  a  fazer  miia- 
gresi,eomoaS.MartinÍQno,paraque  fiquemos  triun- 
fetes  de  toda  a  occafiaõ,  e  perigo; 

Onero  corroborar  ^ejílas  provas  da  obrigação ,  qm 


Bõ  tovmènto  do  Ta  fio.  1 49 

lemos  de  fugir  a  ocçafíaô  próxima,  comi  a  doutrina» 
que  eníinou  Chriao  no  feu  Evangelho  j  e  veremos 
claramente ,  que  Saô  Marriniano  ,  que  a  feguio  ,  naô 
devia,  nem  podia  obrar  diverfamente,  parafe  livrar 
do  pecccido ,  e  aíTegurar  a  lua  íalvaçaô.  He  neccíía- 
rio ,  que  huma  ordem ,  ou  Mandamento  ,  ícja  dç 
grande  coníequcneia  ,  para  a  vida  eterna,  e  aíHfií 
digno  de  fer  com  diligencia  guardado ,  quando  o 
meímoFiihodeDeos  o  inculca  com  ameaças,  e  o  re- 
pete bem  três  vezes }  duas  cm  Saõ  Matcheus ,  e outra, 
cm  Saô  Marcos/Contra  nenhum  vicio  fe  valeoChrif-. 
to  nas  íuas  pregações  de  mayores  invectivas ,  e  amea- 
ças mais  terriveis  ,  como  quando  pregava  contra  o 
cícandalo  :  r^  Mundo  k  fcandalii.  Fa  Homim  t^^^^íf^^^^^ 
per  quemfianáalu/p  vemt,  EÍU  partícula  ^^  na  Efcn-  ^^.^^  *  ^ 
lura  íempre  íigniíica  perdição  ,  reprovação  eterna, 
condenação  intáilivel  do  Inferno.  O  efcandalo  pois, 
como  dizem  os  Theologos  ,  naõ  he  outra  coufa ,  que 
Diãum,  vel  fartum  prabens  próximo  occafionem  peC' 
candí.  E  que  acçaò  lahirà  dos  noíTos  fencidos  ,  que 
tenha  mais  prompta  a  occaíiaõ  do  pcccado  ,  e  que 
lhe  abra  mais  deprcíTa  as  portas ,  e  que  enfcytice 
com  mais  íuave  violência  o  coração  do  proxim.o,  pa- 
ra cometelo,  como  o  vicio  do  tado,  que  lie^o  que 
temos  mais  acima  dito  ,e  provado  no  primeyro  pon- 
to! Sendo  pois  ifto  aíTim,  profigamos  a  doutrina, 
que  ChriPco  nos  dá  no  feu  Evangelho  ,e  acharemos 
huma  prova,  que  convence,  conclue,e  fera  o  remate 
defte  íegundo  ponto.  Apenas  os  Evangciifías  Saõ  Mat- 
theus,e  Saô  Marcos  acabaò  de  dizer  da  occafijò  de 
peccar  ,  que  dà  o  eícandalo ,  que  logo  immediata-^^"^- 
mente  dizem  :  Etfimcinus  íuafcândaUzavent  te  ,ak  ^^^'J^^' 
fcinde  tilam.  Que  fe  a  noíTa  maò  nos  efcandaliza,^^^^*^  ' 
com  ícr  occaíiaõ  de  peccar,  manda  ,  que  a  cortemos.  ^^^ 
Ò  mefmodiz  do  pd  ,e  dos  olhos  ,*  Si  pes  tmisfcan- 


i  i 


j 


m    §r 


àaUzã^érít  téyamfuta  illum ,  é'fi  oculm  tmsj 
Imat  te ,  erue  eum.  Com  mandar ,  que  cortemos  6 
pè,  arranquemos  os  olhos  ;  todas  as  vezes  ,  que 
aos  forerò,  occaíiaõ  de  ofFendermos  aDeos.  Mas  por- 
que ciõfa  os  Evangelizas  ,,  quando  íe  traça  de  remé- 
dios, c  cauceias,  para  evitar  as  occafíoens  de  perder 
a  Alma,  põem  em  primeyro  lugar  as  máos,  e  naõ 
os  outros  membros?  Que  as  mãosfejaõ  mais  nobres, 
que  os  pèsv  naõ  tem  duvida.  Mâs^queasmãosnaã 
precedam  aos  olhos,  qoe  íaó  os  dous  Monarchas  Iri- 
mãos, que  governa õ  eflenoíTo  Mundo,  pequeno  ,  ú^ 
fcm clles  nem  as  mãos  faberiaô,  no  que  pegaõ ,  nemi:^ 
os  pês  ^  por  onde  andaò  \  cambem  naõ  ha  duvida., 
Gom  tudo  põem  o  Sagrado  Texto  cm  primeyro  lugar 
'-'  ,  as  mãos  ;  porque  o  ícntido  do  tadobe-o^mais  atray-. 
coada,  c  tyranno,  que  attabc  os  outros  ícnttdos;  e 
com  hm  doce  violência  os  obriga  a  obedccerlhe.  Os 
olhos  lhe  íervem  de  efpias  ,  para  lhe  deícubrir  o» 
©bjedlos ,  que  elie  depois  cfcoihc  mais  proporciona- 
dos à  ítia  deieytaçaò  feníivel;  os  pês  o  acompanhaõ 
como  fâmulos  para  o  raeímo  fim.  Porém,  o  que  me 
faz  mais  temer  eíie  vicio  dotado,  hc  reparar,  que 
S. Mattheus  no  repetir  eRe  Texto,  accrcícenta  efta 
palavra  dêxtera.  Si  dextera  manns tua [candalizat  te^ 
Mattk.  ah/cinde  eam  ^  &  proiice  abs  te,  E  porque  naõ  diz  o 
1r.jr.50.  meímo  dos pès?  Etfifes  tuus.  dexter fcandâUzat  te^&i^ 
A  razaô  hcj  porque  *  quando  a  ncceffidade  obriga,. 
a  que  fe  corte  hum  p^éj  pouco  importa,  que  íeja  o 
direyto,  ou  o  eíqucrdo;  porque  ifemprc  com  fazer 
outro  de  pao,  igualmente  ícremedea  a  hum,  e ao  ou- 
tro. Naõ  he  porém  affim  das  máos;  porque  muyto 
vay  ,que  íecôrce  a  direyta ,  ou  a  efqucrda.  Sem  efía, 
pode  ainda  o  homemi  íerviríc,  porque  lhe  fupprc  a 
diréyta  nas  coufíjs  de  mayor  importância ;  como  de 
manejar  huaeípada  ,0Uí0Utra  arma  para  fua  defenfaói 

.  pô- 


Do  toMemo  do  Ta&ol  ^     '  Ç  * 

.pôde  pegar  na  pcrina ,  para  eícrever  i  ou  em  hú  pincel, 
(para  pintar j  e  fiaalmente  eUahe,a  que  faz  mdo^e 
acíqiierda  lhe  kr  vede  coadjutora,  que:  a  ajuda.  Paí- 
íemos  sgora  do  fiíico,  ao  moral  ,  c  veremos  mais 
claramente  a  genuína  intelligencia  defke  Texto,  Suc- 
cede  a  cada  paífo  confeírâilc  algum  pcccador  ,  que 
íem  tropeçado  em  huma  occafiaò>  logo  o  emenda  o 
^ConfeíTor,  com  obrigalo  a  deyxala  i  ecomo  cftaoc- 
Wiaó  he  caíual,paírageyro,  e  de  pouco  tempo,  o 
penitente  obedece,  e  fe  affaftadçlla.  Eis-aqui  cor- 
tada a  maô  eíquerda.  Vem  outro  peccador,  e  con- 
feíTa    também   a  lua    fragilidade,   c  miíeria  ,  com 
.o  tropeço  de  outra  occafiaô  demais  tempo,  c  o  peyor 
he ,  que  de  portas  a  dentro.  A*  vifta  do  que ,  ellá 
^orteoConfelTor  em  negarlhe  a  abíolviçaô  j  por  naò 
pcrderfe  a  fi ,  e  ao  penitente.  Efte  allega    em  razão, 
de  nnó  poder  lançar  fora  a  amiga,  íem  primcyro  ac- 
comodalaemhum  Convento,  ou  acharlhe  cafameu- 
to;  c    que  de  outro  modo  ,  defemparando-a ,  fcrá 
taõ  fomente  evitar  ,  que  peque  com  hum  íój  ínas 
que  peccarà,  a  cada  hora,  com  todos.  Outros  dif- 
iicultaó  ,  e  impoííibiiitaô  o  apartaríc  daquella  cria- 
da, daquella  ferva  j   daquella   eícrava  (  c  he  o  com- 
mum  neOe  noíTo  Brafii  )  com  dizer  ,  ou  que  naò  con- 
vem  ao  feu  credito  ■,  porque  fervindo  à  mulher  ,  oii 
aoirmaô,  fe  dcfcubreria  o  peccado,  o  qual  ciiydao 
íer  oculto ,  quando  os  de  caía,  e  os  vclinbos  mur- 
fiiuraõ,e  íe  efcandaiizaô;  e  com  dizclo  a  todos  em 
ícsjredo,  o  fazem  publico.  E  finalmente  quando  fc 
trata  de  lançar  fora  de  veras  a    occaíiaó   daquella 
moça,  ou  daquella  eícrava  ;  logo  naíce  a  ncceíTida* 
de  precifâ  ,  de  que  ella  he  ,  a  que  faz  o  comer  a  feU 
goáo,  e  paladar;  que  lhe  lava  a  roupa; que  tem  to- 
do o  governo  da  caía;  e  finalmente  ,  ella  he  a  fua 
maõ  direytai  e  que  fem  ella  mo  pòdc  viver.  Ora 

K4  de: 


Áíatth, 


•'  i 

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1 

■ 

1 

'Mmh. 

m  fupr. 

Tercei 

1                      roPon- 

ío. 

íl                     ç 

j>ípocal. 

sap,iS. 

m^  Dí/cur/õ  VI. 

deaa  maõdlrcyta  falia  o  Evangelho  ;  Si  dextra  mdi 
■ms  tuafcandaUzat.  E  naó  íóracnte  ordena  Cbriíloj 
que  íe  corte;  Abfcinàe  eam.  Mas  que fc lance  Jongc 
de  íi ;  para  nunca  mais  a  ver,  &  projice  abs  te.  Affim- 
o  fez  Jofepli  j  fugio  logo  eíie  da  occafiaõ  ,  largou- 
lhe  a  capa  j  para  naõ  íe  lembrar  mais  delia  j  naò  fc 
ih&  deudo  feu  credito,  nem  da  calumoia,  nem  da 
injufta  prifaò,  e  rifco  da  vida.  AíTim  fez  Judirh, 
que  lançou  dos  olhos, e  da  íua  cafa  as  precioías  al< 
iayas  de  Oiofernes  j  para  que  lhe  fícaíFe  em  hum  per- 
petuo efquecimento  a  occaííaõ  ,  que  teve  de  tratar 
comelle:  Inanathema  oblivionú.  ÁíTim  o  fez  Mar- 
ttniano,  que  para  eftar  longe  da  occaíiaô  fugio  do 
Mundo  í  fugio  do  deferto  i  fugio  de  fi  mefmo ;  e  naõ 
duvidou  de  querer  antes  encontrar  a  morte  do  corpo^ 
que  de  pôr  cm  perigo  a  vida  da  Alma.  Mas  naõ  cuy- 
dem  os  amancebados  fcr  rigurofo  efíe  pr ecey to  de 
Chríííojpois  muytomais  terrível  ,he  oquefe  legue 
110  Evangelho i com  dizer, que  melhor  he  entrar^^no 
Ceo  com  menos  a  maõ  direyta;  que  com  ambas  de 
duas  ícr  lançado  no  Inferno,  para  arder  eternamente: 
§luam  duas  manus  habentem  ire  m  gahenam ,  in  ignem 
inextinguMem.  Que  he  a  matéria  do  cerceyro  ponto. 

Como  ofcntido  dotado  hc  geral  para  todas  as 
crcaruras  ,  e  para  todas  as  partes  do  corpo  $  aíTim 
também  os  tormentos  ,  que  devem  reparar  a  defor- 
dem  de  ínnumeraveis  tados  libidinoíós  ,  fcraô  uni- 
vcrfais  em  todos  os  membros  do  meímo  corpo :  Fer 
qna  peccat  quú  y  fer  hac^&  torquetur,  E  quanto  ma- 
yores delicias,  e  goftos  terá  o  peccador  procurados 
com  os  toques  deshoncí^os,  e  npalpamentos  ilHeitos, 
tanto  mayor  pena  ,  e  cafíigo  experimentará  elle  no 
Inferno :  ^liantumgloríficaiit  fè,  &  deltciisfuit ,  tam- 
tim  date  tlli  tormentum ,  &  luãum.  Mas  quem  po- 
derá dizer  ocílrago,  que  faz  dâs  Almas  eíle  vicio  do 

ta- 


Do  tormento  âõlaâo.         ^  ^  ^fl 

tado!  E  quantas  creaturas,  que  craõ,  c  vlviaô  in- 
nocentes,apefíadas  com  o  íeu  contagio,  provoca- 
das como  feu  mao  exemplo,  eftaõ  agora,  e  eftaráô 
para  fcmprc  íofrendo  as  penas  eternas  !  Efte  era  o 
mayor  fentimento  ,  que  tinha  ElRey  penitente  Da- 
vid ,  o  naó  poder  conhecer  todas  aqucllas  culpas, 
de  queajuftiça  Divina  lhe  havia  de  fazer  cargo  na  ho- 
ra da  morte;  DeliÚaquis  intelUgit,  E  aqui  alagan- 
do-íe  em    hum  mar  de  lagrimas  i  todo  confuío ,  e 
contrito ,  recorre  á  miícricordia  de  Deos ,  e  diz  affim: 
Ab  eccultú  méis  munâa  me.   Senhor  alimpayme  ^^  pfai,i% 
todos  os  peccados  occultos  ,  que  tenho  fey to,  c  da- 
quelles,  que  naô  conheço  :  Et  ãbalmii  prcefewo 
tíw.  E  perdoayme  também  {  meu  Senhor  )  os  pec- 
cados alheyos.    Que   dizeis  David  !  Cada  hum  he 
obrigado  a  dar  conta  de  íi ,  e  levar  fó  a  carga  dos 
ícus  peccados ,  como  diz  o  Apoftolo  Saõ  Paulo :  Unuf- 
quifquQ  onns  juum  fortabit.  Logo  para  que  pedis  a  GaL6\ 
Deos  perdaõ  dos  peccados  alheyos .?  Ah ,  refponde 
David, que  conheço  aíevcridade  do  juizo,  que  me 
eípera,  e  ícy  ,  que  naò  íó,  hey  de  dar  conta  dos 
peccados  manifeftos ,  e  occultos ,  que  tenho  fcyto; 
mas  também  dos  que  outros  tem  cometido ,  por  caula, 
ou  occafiaó  minha  ,  ou  com  o  meu  mao  exemplo.  Mi- 
fericordia,  meu  Deos ,  pelos  peccados  alheyos :  Jb 
alimvs  parce  fervo  tno.  Sctlicet,  Como  diz  o  ác\.\ú{-  loM 
íimo  Interprete  Lorino:  Giu^e  alu  meo  exemplo  cofn- inPlali 
miferunt.  E  tanto  temor  tazia  a  David  eila  coníidera- 
çaò  dos  peccados  alheyos  ,  que  por  íua  culpa  ;  ou 
mao  exemplo  podiflô  nafcer ,  que  chegou  a  hfiimarrcy  p^/.^^ 
dizendo :  Círcumdederunt  me  mala  j  quorum  non  e[l  nu  ■  ,  ^ 
meras :  Cemprebenâerunt  me  miquitates  mea ,  &  non 
potuiut  viderem.  Mc  tem  cercado  tantos  males ,  que 
naô  os  porfo  numerar-,  achome  comprehendido  em 
lantas  maldades  ^  que  nem  as  poíTo  diílinguir  ,  eco- 

nhe* 


I  í 


mmmsmm 


í 


^if4     ,  '*mfcMrfo  VI: 

nhecer;'eo  peyorhe.que  fe  vam  multiplicando  em 
tam  grande  numero,  que  já  faõ  mais,  que  os  meus 
M/3«^^^-^^^°^  ^^  cabeça:  Multtplicata  funt  fuper  camllos 
^  ♦    '^^  Cãptis  meí\  Mas  íc  confta  do  Sagrado  Texto  ,  que 
os  peccados  de  David  foraô  fó  dous;  hum  adultenoj 
c  huma  morte  j  eeíies  pela  grande  contrição ,  que  te- 
ve ,  lhes  foraõ  logo  perdoados  j  como  o  aíFegurou  por 
parte  de  Deos  o  Profeta  Nathan  ;  Bominus  quoqm 
trmfiulit  peccatum  Uium.  Como  pôJc  ícr  ,  que  os 
2.;?^f.   ^^"^  peccados   fejaò  innumeraveis ;  e  as  íuas  mai>. 
^^/?.i2.^^^^^  "^^'^»  ^"^os  kus cabcllos ? LMtihipIicatafuní 
fuper  capillos  capitis  mel.    Ah ,  que  fabia    muy  bem 
cite  Santo  Rey  Penitente ,  que  os  íeus  pcccados ,  em 
quanto  e^iveraõ  fecretos  ,  craô  íó  dous  i  mas  de- 
pois, que  fahiraõao  publico,  c  começou  a  diiatarfe 
oefcandalo,eo  mao  exemplo,  que  deu  aosfeus  Po- 
vos i  entaó  foy  ,  que   começou  a   entriftecerfe  ,  c 
."       pedir  perdaõ  dos  peccados  alheyos ,  dos  quaes  na5 
íabia  o  numero :  Gluorum  non  ejl  numerus  ,  nem  po- 
dia velos,  ou  fabelos:  Non  potui  ^  ut  viderem   Por- 
que cada  dia  mais  muItip!icando-fe,  como  os  cabel- 
pfáijn  '^^^  ^^^  quanto  mais  fc  cortam ,  mais  crefcem :  Mui' 
jg^       tiphcatafuntfúpr  capillos  capitii  má.  A  meímacon- 
íideraçaò  ,  o  meímo  temor ,  e  o  meímo  arrependi- 
mento, que  ceve  Djvid ,  devem  ter  todos  aquelles, 
quetemdadooccaííaõ  depeccarao  feu  proximo,com 
o  vicio  d^tacfío,  e  com  mais  razaõ  ;  porque  o  mao 
exemplo  dado  a  B:rfabê  ,  como  cúmplice  do  adulte- 
rio,  naõp-iííoii  adiante,  remediando  David  o  peri- 
^         go  ,  com  a  declarar  Rainha  ,  e  fua  mulher.  Naó  he 
porem  aíTim  do  tadlo  ;    eíie  paíTa  adiante,  e  fendo 
naturalmente  contngioío  ,    por  onde  toca  ,  dcyxa 
iníícionnda  a  peíToa,  que  tocou.  A  pedra  de  Cevar  tem 
tal  Íi;np3tia  Q.o:n  o  ferro  ,  que  íem  o  tocar  ,  puflo  cm 
diíl^ncia  competente,  o  atrahe  a  íi,  para  abraçaríc 

com 


Do  tormento  àôTa&õ.  15  j 

com  elle.  Muyto  mais ,  fc  chega  a  tocaio  ;  entaò 
iincfe  logo  a  pedra  com  o  ferro  ,  naôobílante,quc 
fejaô  dediverfa  cípecia  :  e  eu  tenho  viílo,  que  hiima 
argolinha  de  ferro  tocada  de  pedra  de  Cevar,  tinha 
virtude  de  uniríc  com  outra  argolinha  y  efía  com 
outra,  ate  for  mar  hiHiiacadea;  tanta  he  a  força  íim- 
patica  ,  que  tem  a  pedra  de  Cevar  com  o  ferro.  Sen- 
do ifto  aâim ;  que  efírago  naõ  fará  o  vicio  apegadiça 
^o  tadio  ,  com  a  fua  meíma  eípccie !  A  quantas  pcf- 
foas  toca,  ou  apalpa  ,  logo  as  inficiona,  infundin^ 
do-lhes  o  doce  veneno  do  dcleyte,  com  privalas  da 
veftê  nupcial  da  innocencia.  Eíias ,  já  inficionadas, 
tocaô,  c  apegaó  a  outras  o  mefmo  veneno }  c  que 
duvida  faz ,  que  a  força  fimpatica  da  concupiícencia 
cm  homens  ,  c  mulheres  ,  que  naõ  íaô  de  pedra, 
nem  de  ferro  /  mas  de  carne  tragil ,  os  atrahe  ,  os 
une, como  tantas  argolas  , ate  formar  humas corren- 
tes compridas  ,  com  que  todos  atados  de  pès  ,  e  Mmth: 
mãos ,  vaò  para  femprc  a  penar  no  inferno :  Ligatis  ^^p-ia. 
manibus^  &peâíbiis  .mittite  tn  tenebr as  exteriores  y  ibi^^' 
eritjietidSi  &Jirídôr  dentium, 

E  que  grandes  tormentos  padecerão  no  inferno 
todos  aquelles}  que  inclinados  a  efte  vicio  peccami- 
noío  do  taélo ,  induzirão »  com  o  íeu  mao  exemplo 
a  outros ,  a  deleytarem-íe  na  meíma  torpeza ,  e  efles 
já  crecidos,  e  feytos  meftres  eníinaõ  a  outros  mais 
pequenos  ,  multiplicando-íe  as  culpas  ao  galarimf 
Também  ao  galarim  íe  multipiicaráõ  na  interno  os 
tormentos?  e  o  mayor  torm-ento  íerà  o  acharemfe 
todos  naqueiie  eterno  calabouço  ,  amaldiçoando-fe 
huns  aos  outros  ^  e  deípeçando-fe  ,  íe  naõ  com  a 
obra,  por  ferem  apertados,  e  ímmovcis,  no  menos 
com  a  rayva /rancor  ,  edeferperaçaõ  :  Feccator  vi- ' ''*'^' 
debtt ,  ó"  irafcetur  ,  dentibus  fuis  fremet^ò-  tabefcet, 
Ds  hua  tcrrivel  invetÍLVa  íc  ferve  o  Profeta  Jeremias,. 

Gon^ 


I    t   : 


Pfalml 


/ 


15^  Difcuvfo  VI. 

contra  cftes  pcccadorcs  ,quenaó  contentes  de  fc  per- 
derem a  íi ,  bufcaõ  traças ,  e  píaô  de  modos  laícivosí 
{>3ra  terem  companheyros  úeí  fua  maldade  ,    com  a 
Bierem  Perdição  de  infinitas  Álmas:  Tu  Domine^  ne  pro- 
eap.i2.  pitierisiniqiittate  eonm ,  & feccatum eorum à  facie  tua 
f  è.'       non  dekatur.  Vôs  (  meu  Deos  )  não  perdoeis  huma  taõ 
grande  maldade ,  c  huns  pcccados  taõ  enormes  ,  co- 
mo eftes  ,  nunca  íc  rifquem  do  voffo  livro,  c  fcmpre 
cílejjôáviíia  na  voíTa  prcfença.  Naõachona  Sagra- 
da Efcritura  imprecação  mais  horrenda  que  efta  j  mas 
o  que  me  rende  mais  attonito,  faô  as  palavras,  que 
immediatamente  fe  feguem ;  Et  in  tempore  fiirorCs  tui 
ãbutere  eis,  E  no  tempo  do  furor  davoíTa  maisrigu- 
ifwí»??  ^oí^â  juftiça  abufay  delles.  Eftranho  modo  de  fâllar  i 
mfapr,  Abutereeis   Quando  já  eftaraô  penando  no  calabou- 
ço áo  Inferno.  Oh  ,  tremendo  cafíigo/    Oh,  ter- 
riveí,  mas  porem  juíla  vingança  do  furor  Divino! 
Abutere  eis  Hoc  eft  (  diz  outra  verfaô  ;  creatura  ,  qtú- 
jé^om^speccatares  abufifunt  ad  peccandum ^nmc  ah  utan- 
íànhHstureii  ad  maius  fupplicimi  in  inferno.  Os  peccado-, 
^«í^.      res  íe  abufaõ  das    creacuras  ,  divertindo-as  do  íim, 
para  que  foraõ  creadas ,  que  he  honrar,  e  amar  a 
Deos ,  e  depois  gozalo  eternamente  no  Paraifo ;  c 
elies ,  por  íatisfazerem  ao  feu  torpe  appetitc  ,  com  os 
feus  toques  ,  e  apaipamentos  laícivos ,  as  precipltâo 
no  Inferno.    Ora  todo  o  abufo  peccaminoío ,  íabc 
muy  bem  o  Profeta ,  que  deve  ler  reparado  da  Divina 
Juftiça  icpor  iílo  pede  a  Deos,  que  as  meímas  crea- 
turas ,  que  »  por  íercm  induzidas  á  culpa,  faõ  inca- 
pazes da  gloria  eterna,  fejciô  ellas  mefmas  miniflros 
do  feu  furor,  para  vingar  eíle  abuío  :  Et  intempore 
fworistui  abutere  eis.  Os  pcccadores  íc  abularão  das 
creaturas,  para  os  feus  goftos:  Deos  íc  fervirá  del- 
'     las  para  os  feus  tormentos.  Oh  ,  que  blasfémias  hor- 
rendas /  Oh,  que  imprecações  execrandas ,  proferi- 
rão 


DoíormmôáõTaBo]  "»57 

raõ  os  compliccs ,  huns  aos  outros ,  os  tentadores, 
c  os  tentados  !  Tcraô  dous  Infernos  í  hum  de  fogo 
pelas  fuás  culpas  i  outro  de  ódio  ,  de  vingança,  c 
de  defeíperaçaõ ,  de  naõ  fe  poderem  aniquilar  entre 
iu  Oh  ,  maldito  peccado ,  que  obrigas  a  hum  Deos 
taôpiedofo,  a  darte  penas  taõ  riguroías,  c  eternas? 
0 1  ,  peccador  enganado  ,  íe  por  dcígraça  te  achas 
immerfo  no  viíco  pcgadiço  dcÔas  torpezas,  peeote» 
que  logo  mortifiques  atua  carne ,  fazendo  violência 
á  fragilidade  da  natureza  ,  para  arrancartc  delle.  E 
delcnganateem-naõ  deferir  a  emenda,  efpcrando  na 
hora  da  morte  defapegarte  dcfíe  brutal  vicio  do  ta- 
<n:Qi  porque  ainda,  que  Deos  te  conceda  tempo, 
para  te  confeíFares,  chorando  as  tuas  culpas  ^  fcrá 
tal  a  força  do  abito  continuado ,  que  eftando  para 
cfpirar  atua  alma,  te  repreíentará  o  Demónio  aquei- 
ks  toques ,  c  apalpamentos  deshoneíVos ,  e  coníentin- 
do  nelles  conforme  o  teu  roim  Gofíume,  dcyxará^^ 
de  cnrrarno  Ceo ,  eflando  já  as  portas  abertas ,  e  com 
aquelle  ultimo, e momentâneo  deleyte  te  precipitarás 
no  Inferno,  como  moilra  a  prova  do  eafo  feguinte. 

Paulo  Aringo  ,  Author  moderno,  porém  celebre 
pc!o  Irvro,  que  tem  dado  à  luz^  intitulado:  Movs 
Feccatarum  peffima.  Em  que  moflra  com  hum  longo 
catalogo  de  mortes  deígraçadas  ^  e  repencinvis ,  o 
grande  rigor  ^  com  queajufliça  Divina  cafliga  os  iu- 
xuriofos.  Eu  tenho  eícolliido  de  tantos  exemplos  hum 
fó,  por  fer  muyto  apropoíito  da  matéria,  que  tra- 
tamos. Em  hua  Cidade  de  Itaíia  havia  hu^i  moço  No- 
bre ,.  (,  diz  o  Autor ,  que  não  referia  o  nome,  por  fer  a? 
família  mmy  conhcGida  )  filho  de  hãa  Matrona  viuva,, 
com  grande  cuflodia  nos  bons  coftumss;  e  com  f re- 
quentar as  noff.isclaffes,  fazia  náo  menos  progreíFo» 
na  piedade,  que  nas  letras.  O  Demónio  inimigo  de 
tanu  ÍQnoccru:ia,,fez:quc  buana  moça  donzela,,  que 


Armg. 
tom.  I , 
lib,  i. 


VíXJl 


tj>}8  Dtfcurjò  VL 

cftava  retirada  ,e  corno  em  depoíito  na  inefina  fua 
cafa,  lhe  tomaffe  aíFeyçaô ,  e  de  quando  cm  quando 
lhe  tocava  a  mão  ,  lhe  apertava  os  dedos  ,  ou  lhe  da- 
va algum  beiircaô;mas  íemprc  aticulodepura  ami- 
zade, c  de  hum  áffedo  íincero  5  bem  depreíTa  efles 
'toques  de  pudicos  paíTáraô  a  impudicos.   Haõ  no  Bra- 
ríii  jccrtos  paos ,  que  os  Índios    nas  viagens  íempre 
,  trazem  comíigo,  que  roçando-fe  hum  com  o  outro, 
logo  ardem ,  fazem  fogo ,  e  fe  accendem  em  chammas. 
Do  mefmo  modo  íuccedeoaelles  com  os  toques  ,  c 
tanto  aíTim,  que  o  mop  ,  em  quem  ainda  reynava 
o  temor  deDeos,  picado  da  fynderiíi ,  e  combatido 
dos    efcrupulos  ,  não  podia  dormir  ,  nem   íocegar, 
ate  que  foy  ao  CoUegio  buícar  o  feu  ConfeíTor,  c 
poílradoaosfeus  pèslhefez  patente  o  mao  eftado  da 
iuaAlma  ,  pedindo-lhc  ,  que  o  tornaíTe  apor  outra 
^czna  graça  de  Deos.  Conhece-o  logo  o  ConfeíTor, 
^e  ihc  diíTe,  que  hum  taô  peíTimoprincipio^o  havia 
"de  guiar  a  algum  defgraçado  fim,  Deu-lhe  a  abfolvi- 
çâó ,  advertindo-o  ,  que  cortaffe  logo  tal  occaíiaô, 
fenaõ  que  iria  de  mal  em  peyor.  PrometteocUejmas 
naô  guardou  a  promeíTa  j  porque  tornou  logo  a  cahir, 
naôhuma^masmuytas  vezes}  e  quanto  mais  crcícia 
o  amor  á  creatura,  tanto  diminuhia  o  temor  .do  ícu 
Greador.  Com  tudo  nâo  podendo  mais  fofrer  o  rc- 
morço  daconícien:ia,  determinou  de  tornar  ao  feu 
ConfeíTor,  que  com  mayor  energia  lhe  expoz  operi. 
go  próximo ,  cm  que  cQava  de  morrer  em  peccado, 
e  Ihs  fez  fazer  hum  aâo  de  contrição  ,  com  propcíí- 
té  firme  de  apartaríe  totalmeníe,  e  da  occaíiaò ,  c 
do  vicio  ,  e  com  ií^o  o  abíoíveo.  Tornou  a  caía  o 
moço  codo  contrito,  e  por  algum  tempo,  cíleve for- 
te, em  rúi  cahir ,  refiftindo  com  penitencias ,  e  morj 
tificaçôes  aos  carinhos  di  moça  ,  que  quando  naõ 
podia  tocaio  com  a  maõ  ,  porque  fugia   dçlia ,  lhe 


Dõtêrmento  âõGoPúr,        ^   ^9 

plfcava  os  olhos,  que  faõ  as  guias  do  tadlo :  SI  mfcú,  q^,^^ 
ocuUfunt  in  amore  duces.  Mas ,  oh  força  encantadora  ca  ^^^^. 
laícivia!  Parece,  que  efte jejum  da  culpa  lhe  acccn* 
deu  mais  o  fogo  da  concupifcencia  ,  que  eflava  com 
acautela,  e  mortificaçáô,íenaô  apagado,  ao  menos 
adormecido,  e  lhe  accreícentou  a  íede  de  beber  no 
púcaro  da  maldade  com  mais  anciã  ;pois  a  modo  de 
huma  torrente  rcprefada  ,  derrubando  o  antcmural 
do  pejo  dos  homens ,  c  os  muros  da  ley,  c  temoi* 
de  Dcos,  tornou  á  mefma  pratica;  nâòjácomme^ 
do ,  e  ás  cícondidas ,  com.o  antes;  mas    defaforada- 
mente ,  ás  abertas,  c  publicadas;  fazendo  paffar  a 
moça ,  que  eftava  no  quarto  di  May  retirada ,  para 
huma  camera  contigua  áquella ,  aonde  elle  dormia, 
com  grande  íentimento  da  Mãy  ,  que  já  naõ  podia, 
porlhe  o  remédio.  Com  efta  viíinhança  das  cameras, 
todas  as  vezes  ,  que  queria  íatisfazcr  ao  feufenfual 
apetite  ,  dava  três  palmadas  na  parede,  e  aparecen- 
do a  Amiga,  íe  dcleytavâo  em  todo  o  género  de  to- 
ques, c  avfios  peccaminoíos ,  excepto  aquelles  (que 
ainda  he  peyor ) ,  os  qines  a  podiaô  render  pejada. 
Com  tudo  a  Mãy  deplorando  a  perdição  do  filho  re- 
correo  ao  ConfeíTor,  e  lhe  contou  tudo  ;  para  que 
vieífe  a  amoeftalo.  Veyo  o  ConfeíTor ,  e  achando  o 
pouco  bem  difpofío ,  para  a  emenda  ,  lhe  diíTe,  def- 
pedindo-fe  delle.    Qra  acabe  V.  M.  por  huma  vc2: 
cfla  ma  vida  ,  que  o  coração  me  diz  ,  que  a  ira  de 
Deos  lhe  efiá  jà  preparando algú grave  caíVigo.  Efoy 
aíTim  ;  porque  naõ  paíTárâo  dous  mezes ,  que  cilan^- 
do  elle  defcuydado  ,  no  meyo  dos  íeusdelcytes ,  lhe 
deuimprovifamente  hum  deímayo,  que  lhe  deyxoU' 
huma  pequena  febre.    Acudirão  logo  os  Médicos  i  e 
achando-o  n  -  flor  da  idide  ,  tam  proílrado  ds  forças, 
julgarão  a  febre  por  íurrateyra ,  e  naõ  fizergõ  bom 
pronoflico   da  doença.   Então  o  moço  mandou  com 

preí- 


lóo  Dtfcurfo  Vh 

preíTa  chamar  o  ConfeíTor,  e  diffe-ihe.  Pâdrc ,  as  vof- 
ías  ameaças  tem  fido  profecias  i  temo  da  minha  vida, 
€  da  minhi  falvaçaô.  Agora  fim ,  que  me  quero  con- 
verter de  veras  aDeos,  e  largar  toda  a  occaíiaò  de 
mais  oíFendcllo.  ConfcíTou-íe  com  finais  de  verda- 
deyro  arrependimento.  Chorava  o  ConfeíTor  de  can- 
íolaçáoj  chorava  o  confeffado  de  contrito.  Porem 
D  mal  não  abrandou ,  antes  de  carrcyra  o  levava ,  pa- 
ra a  morte,  Foy  o  Padre  a  defcançar ,  e  vicraõ  ou- 
tros dous  Rcligioíos  a  aíTiflirlhc  na  recomendação 
da  Alma ,  ecllç  rcfpondia  com  muyta  piedade  ,  beijan- 
do muytas  vezes  o  Crucifixo,  que  tinha  nas  mãos: 
Crefccndo  pois  a  agonia,  o  moribundo,  perdida  já 
a  falia,  com  a  outra  mâo  hia  apalpando,  e  pegando 
no  çubertor,  como  quem  o  queria  apertar;  quando 
de  repente  fez  hum  grande  esforço,  c  levantando-íe 
daçama,eahio-lhe  oCrucifiKo,edeu  três  punhadas 
na  parede;  mas   como  eíiava  jà  exhaufto  de  eípiri- 
tos  ,  não  íc  pode  reger  em  pèjcdeyxando  fc  cahir 
efpirou.  Forão  osRcligiofos  aconfolar  a  Mãy,  com 
dizerlhc ,  que  o  filho ,  tivera  huma  morte  de  fanto; 
G  que  dcyxara  as  miferias  defta  vida  ,  para  ir  gozar 
a  bsmaventurança.  Mas  que  íó  huma  couía  repararão, 
que  antes  de  morrer  fempre  hia  apalpando  o  çubertor, 
cqucievantando-ícdaçama  dera  três  punhadas  na  pa- 
rede; e  âhi ,  caindo,  morrera.  Então  a  Mây  cxclan  ou; 
Ah  deígraçada  de  mim  !  Meu  filho  morrco  precitoj 
meu  filho  ji  he  condenado;  já  eflá  no  inferno!  Co* 
mo,  fenhora,  pode  íer  iílo  (diíTcraó  os  Religiofos 
aílillentes )  f  Deos  nos  mande  a  nos  a  morte  ,  que  cllc 
teve.  Naô  digaó  tal ,  meus  Padres  í  Deos  nos  livre 
de  tal  morte;  meu  filho  eftá  no  inferno  !  Aquelle  pe- 
gar no  çubertor  era  omao  habito,  de  pegar  íempre 
nas  mãos ,  e  no  rofto  de  huma  moça  impudica ;  e  o  ba» 
tier  três  vezes  na  parece  foy  o  final,  quedava,  cftan^ 

do 


Dotèrfnentoàolaâo.  i^' 

idpella  ria  camcra  contigua ,  para  que  foflTe  ter  com 
cUc.Enraõos  dous  Reiigiõíos  íe  defpediraô  muyto 
triftcs ,  dizendo :  Oh  altos  ,'incomprehenfiveis  jui* 
zos  de  Deos!  Judicia  tua  abyjfus  multa,  E  muyto 
mais,  quando  íouberaò  ,  que  preparando- íe  o  Con- 
fcíTor  ,para  dizer  a  MiíTa  de  Requiem  pela  fua  Almai 
lhe  appareceo  o  Moço  envolto  em  hum  manto  de  tbgOj 
pedindo- lhe, que  naô  lhe  acere feentaíTc  os  tormen- 
tos com  celebrar  o  Santo  Sacrifício  j  porque  jâ  efíava 
no  inferno.  Paímado  o  ConfeíTor  diffe  ;  e  as  lagrimas, 
que  derramaftes  na  ConfiíTaõ.naô  vos  valéraõf  Sim  va- 
lérjõ  (  replicou  ellej  e  ainda  que  naõ  era  bem  contri- 
to i  a  attriçaõ  Com  a  íincera  confiffaò  foy  baftantCipara 
cu  tornar  em  graçaj  mas  áquelle  mao  abito ,  com  huma 
forte  reprefentaçaõ  do  Demónio  dos  deleytes  paíTa- 
dos, me  commoveo  os efpiritos , e  me  fez  conlcncír 
EO  peccado  i  e  levantando- me  para  efte  fim,  cahi 
morto,  eahimefmo  foy  logo  em  hum  inftante  a  mi- 
nha Alma  julgada  ,  convencida  ,  ícntcncÍ3da,e  juíla- 
mente  condenada ,  e  arraflada  por  toda  a  eternidade 
apenar  no  inferno.E  aílim  dito  defapparcceo.Eis-aqui 
aonde  vay  acabar  a  penitencia  differida  na  hora  da 
morte  ,  em  que  põem  tanta  confiança  os  peccadores, 
para  continuar  nas  fuás  culpas. 
'»  Defenganem-fe  os  pcccadorcs,  que  a  morte  hc 
da  cor  da  vida  j  equal  íerá  ávida,  tal  fera  a  morte; 
ailim  oaffirma  S.Bernardo,  c  o  confirma  a  experiên- 
cia :  6lualvs  vitafinis  ita.  E  Santo  Agoftinho  não  pode 
levar  em  paciências  queopcccadorqueyra  viver  nas 
fuás  torpezas  ,  com  a  efperança  de  fazer  penitencia 
na  hora  da  morte  ,  íendo  cafo  muy  contado  ,  que 
íe  converta  hum  peccador  abituado;  c  na  Sagrada 
Efcritura  naó  íe  acha  outro  fenaô  o  bom  Ladraõ; 
Pmitentia  ferararo  vera.  Pois  he  muyto  mayor  mi- 
iagrcrcíuícitar  hua  Alma  morta  pelo  peccado  abitual, 

L  àvi- 


p/4/,7. 


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(erm.l% 


D»Augt 

ferm, 
v.in 


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%6i  y"  Oi/cur/õ  Vi.    "^ 

à  vida  da  graça  ;  que  hum  defunto  de  muyco  tèm|^ 
ávida  do  corpo.  E  que  mais  podia  fazer  Deos ,  pu 
rafalvar  aquelle  moço .?  Entre  os  innumcraveis  tqríf 
mentos,  que  padecera  fio  Inferno,  parece,  que  íe* 
rá  o  mayor ,  o  abuío  y  que  teve  das  crcaturas,  prc* 
ferindo-as  por  hum  breve  deleyte  ao  íeu  Creadorj 
mas  muyto  mayor  tormento  fcrà  o  ter  abufado  da 
mifericordia  Divina  j  fervindo-íe  delia  como  media* 
neyra  ,  t  fiadora  ,  para  continuar  nos  feus  infames 
goflos.Os  precitos  no  inferno  íe  conhecerão  huns  aos 
outros;  os  pcccados  ,quefizera5na  vida  j  e  a  mor* 
te ,  que  tiveraõ.  Blasfemará  hum  j  dizendo }  oh  juf-^ 
tiça  de  Deos,  quanto  es  contraria  agora  á  fua  miíc* 
ricordia  /  Eu  tinha  determinado  de  confeífarme  pe* 
ia  Pafchoa  com  fazer  penitencia ,  e  mudar  vida  j  masl 
hum  golpe  de  apoplexia ,  que  me  deu  improvifamen* 
Ée  a  morte  ,  me  tirou  o  rempo.  E,  eu ,  dirá  outro, 
que  eíimdo  cm  hum  ícrtão longe  da  Igreja,  indo  a 
CGnfeffarme  ,  no  paíFar  de  hum  Rio  afogucymei  c 
t<)do  efludiofo  a  falvar  a  vida  do  corpo  ,  não  me 
lembrey  do  nome  de  JESUS,  nem  de  Maria ,  para  faU 
var  a  da  Alma»  Sahirà  outro  enfurecido,  bradando, 
çeu,  que  tinha  já  no  m&u  coração  perdoado  ao  meu 
inimigo  as  alFrontas,  qije  mefeZiC  cíperando-mc  ci-. 
k  em  hum  eaminho ,  com  hum  tiro  de  efpingarda  me 
tirou  a  vidaje  no  mefmo  tempo,odiando-o>  o  meu  cor- 
po cahio  no  cha6,e  a  minha  alma  foyfcpultada  nefle 
eterno  calabouço.  Ora  todos  cfíes ,  e  outros  fem  nu* 
mepo,que  cometerão  muyto  menos  pcccados ,  que 
nôs  >  que  blasfémias  execrandas  naô  iançao  contra 
Deos ,  por  naô  lhes  ter  concedido  hum  quarto  de  ho-» 
ra  de  tempo ,  para  arrependerfe  !  Deíefperados  amai* 
diçoaráõ  5 para  íemprc  ao  íeu  Anjo  da  guarda  i  aoí 
feus  Santos  Protedorcs  ,  a  me/ma  Virgem  Mãydè 
Peos  >  poíqiiG  mô  lhes  alcançou  daícufiibotamctaT 


^  j  óti  j)àrtc  dós  auxílios , q«c  deu  áquelle  moço ,  pa 
Ta  fe  íalvar.  Depois  dicy os  de  rayva  ,  defcarrcga- 
fáô  íobre  o  mefnío  moço  mrí  ignominias ,  pragas  ,  € 
ifnproperios ,  com  dizeriíie.  Tia ,  precito  infame  ,  ít, 
^ue  mereces  mil  iofcinos  i  pois  tivcftc  tempo  de  te 
confeíTares ,  c  receber  todos  os  Sacramentos,  ate  a  rc- 
-éòmendaçaõ  da  Almaj  e  tendo  já  hum  pè  nas  porcas  do 
faraiío ,  com  hum  momentâneo  conícnfo  aos  teus  dc- 
'^èytestç  prccipitaftc  no  inferno.  Sahirà  no  mefmó 
-céífipoh^atropa  de  Demónios  j  com  varas  de  ferro  a^ 
•fogueadas  nas  mãos,  dizendo.  Ah  ,  moço  malvado,  c 
traydor,cuydavas  tu  depois  de  nos  ter  fervido  tanto 
%empo,  com  as  tuas  torpczas,efcaparnos  das  unhas  por 
iiu  inftantede  penitencia  ,  nafcida  mais  por  medo  dós 
•ftoiTos  tormentos ,  que  por  amor,  que  tiveíTcs  a  DeoS 
noffo  inimigo  ?  Agora  he  tempo  de  gozar  o  fruito  dos 
teus  loques,  eapalpamentos  deshonefíosj  toca,  apal- 
pa i  e  abraçate  com  eíks  ferros  rubentes  j  e,  já  que 
eras  amigo  de  dar  ofculos  com  a  bocca ,  aííbguea 
eíTesteus  beyços,e  dalhes  a  beber  os  noíTos  íorvetes 
de  bronze  derretido,  para  Tctrcfco  daquellas  entra- 
nhas, que  íemprc  cÁavap  acceías^Com  ofego  da  lu- 
xuria. Oli ,  meu  bom  J  E  S  U  S ,  meu  Senhor  ,  e  Rc- 
dempfOrmeu!  E  que  caro  vos  Guftàráôeíías  noíTas 
torpéàjas  j  pois  quiz  o  voíTo  amor  iàtisfazcr  a  ellas, 
com  o  preeo  infinito  de  tantos  milhares  de  atoutes. 
Hum  fó  daquellcs  açoutes  ,  ofFcreGÍdo  por" vôs  ao 
voíTo  Eterno  Pay,  com  hum  vcrdadeyrp  arrependi- 
mento, e  hum  firme  propoíitopoíTo  de  fugir  toda  a 
occaíiaõ ,  baíb ,  para  de  efçravos  do  Demónio  ,  fa- 
zemos filhos  deDeos  ,  e  herdeyros  do  Ceo.  AíTim 
fera ,  fc  procurarmos  imitar  ao   glorioío  penitente 
Saô  Pedro  de  Alcântara ,  que  nem  na  hora  da  morte 
permittioao  Frade  infermeyro,  que  IhetocaíTe  hum 
P^J  cipy  taó  grande  inimigo  do  íeu  corpo ,  que  alem 
■       ;  L  2  de 


de  a  inakratar:  continuamente  com  penitencias  J  ^ 
nhafeyto  padto  com  elle ,  que  em  quanto  eRiveíTe  no- 
fía  vida ,  naõ  lhe  havia  de  dar  gofto  algum  ,  ainda  qiiq 
/„^^^^. liçiroj ç  por  illo  logo  depois  de  morto  appareeco  a 
iJ.Pííri  Ssnta  Tcreía  ,ve£íido  de  gloria ,  com  dízerihc;  0_í/é* 
/íleant.  lix  fmiíenúa -i  qua  mihi  tantam  y  gloriam  prmnermt» 
X3*  bemavcnturada  penitencia  ,  que  me  merecGotaiv. 
ta  gloria.  Meu  pio ,  c  devoto  Lcy tor  y  fe  naõ  te  atrcr 
-ives  aíanto,  lembrate  defte  dito  dos  Santos  Padres^ 
sd74ommt'àmumquoâ  deleõfat ,  aternum  quad  cruàali^ 
cOs  gollos  neíla  vida  faõ  momentâneos  j  os  tormen- 
tos n^  outra  fâó  eternos,  Coníidera  bem  efta  verda- 
de i  a  morte ,  que  pode  vir  repentina  y  e  as  penas  do 
^cclef.  inferno,  que  durâráõ  para  fempre  ;  e  ficarás  deíen- 
7.        ganado,  para  nunca  mais  peccar:  CHemeran  mvijff^^ 
ma  tim^  &  in  íeurnum  non^ 


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DISCURSO  VII. 

Do  Tormento  dos  Soberbos, 
e  Prefumidos. 

O  pr<zfiimptÍQ  pequijjima  unde  creata  es  ? 
Ecclef.  37. 


Hamou  Salomão  à  íoberba,a 
vcrdadeyra  origem  de  todas  as  £aUf. 
mãlmá-t^Jmtium omnispeccati  vz. 
ejifuperbm.  E  com  razaò  (  diz 
S,  Fulgcncio;  pois  deíla,^ co- 
mo dehú:i  raiz  gencraliíiima, 
vao  pulando,  e  prefilhando  to- 
das as  miis  eipecias  de  pecca-  £,  p^, 
dos ;  Ideo  fnperbia  âicitur  im-  ^p-i^  ad 
iium  omnís  pccaú ,  ut  omne  feccatum  de  ípfa ,  tanquani  Pr, 
deradice  pnllularemonftreturMh^  primogénita  da  fo^ 
berba  hc  a  prefumpção.E  íarito  mais  he  pcftilente,e  no- 
civ.i,qu3nto  mais  hc  oeciilta,e  desfarçada .  A  foberba  de 
aâoreconhecer  aDeos  por  íoberano  ,  e  íeu  Grcador> 
Oii  de  quersr  moftrarfc  independente  delle ,  todos  â 


|f|l1| 


ti  I  \ 


% 


I>Jhe. 

1.2. 


i66  pifem fo  Vil. 

fogem ,  e  abominao ;  ainda  nem  coní^çrando-fe  hum 
^ homem.,  por- grande  que  ícja,  foge/to  ás  miferias 
defla  vida,  lhe  ^^^^  pebpènfarnento.  Porém  preíumir 
de  falvarfe,  vivendo  mal ,  fiado  na  bondade ,  e  mi-- 
íericordia  de  Dcosj  e  querer  continuar  no  pcccadc^ 
com  huafalfa  confiança  »  de  que  Deos  nsô  lhe  faltará 
com  o  tempo  ,  de  íe  confeífar,  e  poder  iazer  peniten- 
cia» hehuma  prefumpçâo  diabólica  >e  humaíoberba 
liiciferina,  que  merece  fer  punida  com  os  raeímos 
tormentos,  que  o  mefmo  Lúcifer  padece,  e  pade^ 
cera  eternamente  no  inferno.  Por  ifto  Salomão  ,  co- 
-  mo  eíiatico  exclama  :  O' frafumfiwmquijjima],  mde 
íreata  es>  Oh  preíunçaò  maligna ,  e  iniquiíTima ,  aon- 
de nâfcenc ,  e  quem  te  creou  f'  Eis-aqui  { pio  Leitor  ) 
toda  a  matéria  rcfumida,  e  juntamente  todo  o  aíTum- 
pto  deiie  difcurfo  ,  já  dividido  em  dous  pontos.  Na 
primeiro  veremos  a  engano,  dos  que  peccaó  confia- 
dos na  bondade ,  e  mifcricordia  Divina.  No  fegun- 
do ,  o  engano  manifefto  ^  dc^  que  cometem  a  culpa 
perfoadindo-fe  por  certo  o  poder  fazer  verdadeyra 
ConfííTaõ  ,  e  penitencia.  O  dtíengano  deBes  doui 
enganos,  que  eu  irey  delineando  ,.  he  muy  útil,  e 
neceííario,  para  quem  defeja  falvar  a  íua  Alma  ,  e 
âíilm  requer  ioda  a  confideraçaõ  ,  e  reparo  y  pois 
be  certo,  oquc  diz  S. Bernardo,  que  por  falta  delle de- 
fengano,  efíá  o  i nferno  cheyo  de  enganados» 

He  íeatcnça^  quanto  mais  debatida  entre  osTheo- 
logos,  tanto  mais  ditíicultoía  derefolver,  aqucllaj, 
que  S.Thomàs  trata  na  primeyra  parte  da  íiia  Theolo- 
gia,fobre  a  qualidade,  ecircuníiancias  do  primeyra 
pCGcado  dos  Anjos.  He  certiílimo ;  e  f  conforme  fal- 
ia o  Texto  Sagrado  )  também  de  fé ,  que  Lúcifer ,  ca-' 


Ifii.  14 


mo  Primaz  y  e  todos  os  Anjos  rebeldes  ,  peccàraã 
de  fobevba  :  Jfcendam  fufer  aftra  "Dei  ,  exaltabo  Jo^ 
hum  meum ,  ^milú  ero  Miffimo.  Subírey  íobre  as 

Eftrel. 


Do  tormento  dos  Soberbos.  *6f 

Eflrellas  do  Empíreo ,  e  ahi  Icvantarcy  o  meu  throno, 
cfefcy  no  governo,  e  íoberania  ícmelhnnte  a  Deos 
AitiífiíDO.  A  ditíiculdade  coníifte,  cm  explicar,  co- 
mofoy  poíTivel,  quehumefpirito  Angelixío  ,  taõ  fu- 
blime,  dotada  de  cantos  dons  ,  e  de  todas  as  ícien- 
cias  naturaes,c  íobrenaturaesi  hiim  entendimento 
taô  claro,  tão  agudo  ,  e  perfeyto    enriquecido   de 
tantas  luzes,  que  por  antonomaíia  fc  chamava  Luci- ^ 
fer ,  fe  eníoberbeccíTe  ,  e  maquinaffc  húa  trayçáo  taô 
atroz, c mal  fundada-, com  fe  psríuadir,  que  podia 
chegar  a  fcr  Deos  ?  Ekvatum  ejl  cor  tuum  m  decore» 
Perdidifti  faptentiam.  Náo  fabia  Lúcifer, que  Deos 
he  hum  lo,  e  que  no  íeu  throno,  ainda  que  im- 
-menío,  não  podem  caber  dous  aíTenros  í  Num.nis 
hoec  fedes  non  capit  una  duos'.  Naõ  íabia  ,  que  a  lua 
Omnipotência  o  faz  independente  de  todds  as    crea- 
turas ,  c  que  eíias  todas  neceíTariamente  em  tudo  de- 
pendem cieile,  lendo  efíe  o  íloraõ,  mais  zeloío  da 
íua  coroa  ?  Ommfqtie  potefias  impatíens  confortís  erit. 
•Naò  íabia  finalmente  ,  que  Deos  he   infinitamente 
3ufto,eque  a  fua  jufliça  ohavia  de  obrigar,  a  punir 
hum  actentado ,  o  mais  horrendo  ;  hum  facrilegio, 
o  mais  execrando;  hum  crime  de  leia, e  Divina  Ma- 
•  ceíbde,  ò  mais  atrayçoado  ;  c  que  Deos  tudo  vè, 
•tudo  íabe,  e  que  atè  o  minimo  dcfejò  do  coração 
Ihecflà  claro,  e  patente  ?  EgoDominus  fcnttans cor.  Hierl 
Sim  lábia.  Por  iào,  osmeímos  Profetas,  q-ie  efcre- i/- 
vêraóefte  fucceíTo  a  modo  de  quem  não  percebe ,  co- 
mo ifto  podia  ler,  o  perguntão  ao  mefmo  Lúcifer: 
gitwmodocecidiítidecíBlo  Lúcifer  ?  §lí^i  dicehas  m  cor  de  //*«'.  14 
tuOy  afcendam  fuper  alitudtnem  nubmm.    Vertimtd' 
mem  a  d  mfernum  detraheris  m  profunâum  laci.  E  íe 
os  meímos  Profetas  pedem  a  ioluçaô  defla  duvida; 
como  a  podem  dar  os  Thcologos ,  cuja  fciencia  he  to- 
^jl  futtdada  nas    Profecias ,  e  na  Sagrada  Efcritura? 

L  4,  lâ 


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i68  DifcmfõVlL 

Já  que  a  Theologia  cfcolaíiica  nada  decide  de  Ver? 
to  lobre  cílc  ponto ,  me  valcrey  da  Theologia  myftica 
dcSaò  Bernardo  ,  naõ  aprendida  nas  claíTes^  mas  dir 
tada-lhe  pejo  Eípirito  Santo,  naqiielles ermos,  aon- 
de fe  recolhia  a  contemplar  os  myíkrios  Divinos.  Rc^- 
iplve  pois  o  Santo.  Qiie  Lúcifer  íabia  pcrícytamen-» 
tç  ,  quanto  temos  dito  acima ,  e  naõ  duvidava  da 
Omnipotência  de  Deos^e  dafua  íabedoria  infínitaj 
masqueconítderando-íe  ,  como  a  creaturamais  fer* 
mofa,  mais  nobre,  e  mais  perfcyra  de  todas,  fe 
deívaecèra  ,  formando  húa  idea  taõ  quimérica  da  bon^ 
dade ,  e  miíericordia  Divina  >  que  preíumio » fer  Dcos 
taõ  bom,c  mifcrieordiofo ,  que  antes  conlentiria  de 
telo  ,  como  igual  no  throno  }  que  odialo,  para  fcm- 
pre ,  e  velo  padecer  eternos  tormentos.  Eífca  prefump* 
çaõ  quimérica  foy  o  crime  enormiífimo  de  Lúcifer^, 
e  indigniííimo  de  todo  o  perdaô :  Inventa  eJUniquitaf 

D  Bem  ^^"^  *  ^^^  ^^  ^^^^  momentaneam ,  feâ  ad  admm ,  & 
^'^^  odium fempttermm.  O  peccâdo  deAdaõjC  ospecca- 
hnm.gr.  dos  dos  mais  homens  ,  merecerão ,  e  merecem  a  ira 
\^  de  Dcos.  Porem  ,  o  attentado  da  prefumpçaô  de 
Lúcifer,  mcreçeo  a  ódio  naõ  paíTageyro,  maseter* 
no  j  pois  foy  dircyta  ,  e  diamctrarmente  ,  mn  ad 
timfiis  y  fed  ffo  femptr  ,  contra  a  bondade  Divina» 
Ouvi  como  o  melmo  S,  Bernardo  doutamente  argu- 
menta contra  Lúcifer.  Naõ  he  huma  maldade  mftnf- 
truofa ,  e  hum  attentado  Diabólico  >  o  valeríe  da 
bondade  deDeos,paraoffenderaqiielIa  mefma  bon- 
dade  f  Naõ  he  híia  ingratidão  luciferina  o  íaber  ,  que 
Deos  te  pôde  aniquilar  ?  Pois  he  teu  Crcador ,  que 
te  pòds  punir  com:  huma  eternidade  de  penas  yhe  teu 
Senhor,  e  teu  Deos  ^  que  de  nada  te  ercou  efpirita, 
o  mais  perfeyto  ,  inteliigencia,  a  mais  fublimej  c 
formaík híi3 prefumpçaô  tcmerariiaj  rendendo  ©mal 
por  bem,  hum  ódio  entranhave! ,.  pela  mais- fina  ca- 

rida- 


Do  túvmento  ão$  Soberbos.       ^  c$é§ 

t\à2iàt\?ofmruní  adverfumme  malaproknis.&odiíím  Pf^^* 
prodiWione.E  que  htm  perguntou  Saicmaõ.quanap  lo» 
diffe :  Ohprafumptio  neqnijfma  mde  creaía  es  ?  Pois  bê 
fabia,quc  náo  teve  os  léus  princípios  na  terra  j  mâs^^'^^' 
nafceo  da  foberba  de  Lucifer,c  foy  creada  no  inferno.  ^7- 

Efta  prcfumpçaõ  da  bondade ,  e  miícricordia  Divi- 
na ,  foylogo  o  engano,  que  fez  precipitar  Lúcifer, 
com  os  mais  efpiritos  rebeldes  ícus  íequazes,do  Parai- 
fo  no  inferno  ,  tornando-k  de  Anjos  em  Demónios. 
Eíe  efía  preíumpçaô  foy  capaz  de  enganar,  e  perver- 
ter as  creaturas  Angélicas,  dotadas  de  cntcndime&. 
tos,  tão  claros,  e  penetrantes;  que  coufa  não  fará 
com  as  creaturas  humanas  í  Como  não  enganará  en- 
tendimentos rudes ,  c  pelos  vicios  ,  c  peccados  obf- 
cuiecldos  !  Muyto  mais ;  que    os  Demónios  põem 
todo  o  feu  mayor  defvelo ,  em  enganar  os  peccado- 
res  com  efta  preíumpçaô  temerária  da  bondade  ,  e 
mifericordia  de  Deos  ',  porque,  aífim  pelo  ódio  ,  que 
tem  a  Deos ,  como  pela  enveja,que  tem  aos  homens, 
não  podem  levar  em  paciência,  que  a  mefma  bonda- 
de,  e  mifericordia  íalve  a  efíes,  c  não  falvalTe  a  cl-, 
les.  He  logo  neccffario  ,  que  o  peceador  ,  quando 
confiado  na  bondade,  e  mifericordia  Divina,  fe  arro- 
ja a  peccar ,  confidere  com  attençaõ,  que  commettc 
hum  pcccado  ,  que  tem  muyto  de  lucifcríno ;  hum  cri- 
me como  diabólico,  e  da  mefma  cfpecic  daqucUe  dos 
Demónios ;  c,  que  não  íe  Mc  ,  nem  fe  arriíque  a  tal  ab- 
furdoj  porque  infallivelmeme  na  hora  da  morte  fe 
achará  enganado,  como  fe  acharão  ,  e  fe  aehão  ca- 
da dia  tantos  outros.  Mas  porque  efle  ponto  he  de 
grande  importância ,  darcy  logo  algumas  provas ,  que 
ferviraô  de  hum  total  defeogano  je  argumento  aiTini. 

Ou  vôs  pec^eador ,  que  dizeis ,  que  Deos  he  bori?^ 
ctão  mifericoídioío ,  efperaes ,  que  elic  perdoará  o 
VoíTo  peccadQ ,  depois  de  o  ter  oííendido  ?  Ou  naof 
.-.  , .  Sc.. 


•  *'<'.  .K* 


m 


sfò  lÀ..  Dí/cfír/o  VIL 

Sevòsnioeípcracs  o  perdaój  não  he  ifto  ter  perdi- 
do o  juízo  !  Querer  o  goíiode  hum  momèíito  ,  c 
fabcr  decerto,  que  depois  haveis  de  penar  eterna- 
mente no  inferno  !  E  ncfte  caio  ,  como  podeis  di- 
zer, que  Deos  he  bom,  pois  paravòs  íe  moitrataõ 
-juílo,  e  riguroío  ?  Se  pelo  contrario  y  cíperacs  ícr 
perdoado  j  e  que  mayor  moníiro  de  ingratidão  ,  e  que 
inimigo  mais  pérfido  podeis  íer  (como  diz  S.  Pedro 
Chrylologo),  que  ,  por  íer  Deos  bom,  e  mifcricor- 
dioíò,  fazer  vos  mais  cruel  tyranno !  Fteri  deDomim 
mifitaúòm  crudeles.  Vos  dizeis  ,  que  Deos  he  bom, 
t  itiifericordioío.  Aílim  he.  E  a  íua  mifericordia  he 
tnuyto  mayor ,  que  a  noíTa  maldade :   Maior  eji  mife- 
'yíu»/il,'^^^^^díà  tua  ,  quam  iniquitas  mea,  E  com  tudo  vôs 
rConf,  ciefmentis  efta  verdade,  com  querer  em  hum  certo 
modo,  igualar   a  íiia   mifericordia  infinita  com  a 
VoíTamalicia  infinita;  em  quanto  de  hum  bem  infini- 
to, qual  he  a  bondade  de  Deos,  tomais  ouzadia  de 
cometer  hum  mal  como  infinito  ,  qual  he  o  peccado 
totalmente  oppoflo  a  Deosj  e  ifto  nâohc,  em  huma 
certa  m  meyra ,  querer  igualar  a  voíTa  infinita  malícia 
f)or  relação  á  fua  infinita  bondade  1  -  j - 
•     Deos  he  bom;  Deos  he  mifcricordiofo.  Vôs  di- 
èéis  a  verdade;  mas  não  dizeis  tudo.  Deveis  também 
éi^çx  \  que  he  juntamente  jufto  >  e  com  quem  ufa  da 
fua  mifericordia;  e  com  quem  exercita  a  íua  juí^iça. 
Quereis  íaber,  com  quem  Deos  he  bom?  Oiiç.imos 
os  Profetas:  Quam  h ónus  es  Ifrãel  Deus  its  s  qmrcão 
funt  corde.  Oh  como  Deoshe  bom  para  todos  aquèl- 
les  ,que  tem  o  coração  recílo !  Benefac  Domine  bonis. 
Senhor  ufay  di  voíTa  miíericordia  com  aquelies  ,  que 
viv:m  bem ;  Bónus  ^  Dominus  anima  qiurenú ilkm. 
De  )shs  bom  àquellas  Almas,  queo  buícáo,  eoamac; 
mas  nunca  diíTsraô ,  nem  dizem ,  que  he  bom  para 
aqueilcs ,  que  o  oíFcndem ,  e  buícaô  o  Demónio  com 

o  pcc- 


PfdLjz 

Pptím. 
124. 


Do  tormenta  àes  Scberhos,  i7f 

lá  peccada.  Quereis  íaber ,  para  quem  he  jufío  ^  lOu- 
vi  o  oráculo  do   Efpirito  ,   que  não  pôde  mentir  , 
nem  enganar,  emlfaias:  Fa  imptim  in  malum  ^re- Jfai '^, 
tributio  enim  fet  ei.  Deígraçado  do  peccador  ;  pois 
receberá  a  íeu  teinpo  o  caíiigo  do  íeu  peccado.  Em 
Job ,   que  íempre  tremia  ,  íabendo   ,    que  nenhum 
peccado  ficaria  nefta  vida  impunido  :  Sciens  ,  qtiodfohq\ 
non  fárceres  delinquenú.  Em    Ezechiel.    Que    Deos 
dcícarrcgará  o  íeu  furor  contra  os  peccadores  cbfti^ 
nados,  eque  naõ  terá  compayxão  dellesj  nem  lhes 
perdoará  ,  e  conhecerão  todos ,  que  he  hum  Deos  ju- 
ib ,  que  caftiga,eíabe  caftigar  a  feú  tempo  os  ítus 
inimigos :  Immittam  fttrorem  mívm  ,  mn  mifirebor, 
&  non  parcet  oculus  meus  ,  &  fctetU\  quia  ego  Do-  Ez.ecbl 
mmuspercutiens.  E  o  Profeta  Naum  não  fâiia  fe  naõ  7- 
cm  hum  Deos  zelofo  da  fua  honra  ,  que  íc  vinga  dos 
peccadores,  e  armado  do  feu    furor  ,  naõ  ceíTa  de 
períeguir  os  íeus  inimigos:  Vens  amnlator -^  &  ^^l-  jsiahum 
cifeens  Dominus  ,  &  habens  furorem  ulcifcenslDominus  /,^.i. 
contra  hojtesfuos,  E  Saò  Paulo  diz  ,  que  a  ira ,  e  indig- 
nação de  Deos,  as  tribulações, e  angufíias,  cOejnô  íem- 
pre atormentando  aqucllas  Almas,  queobraõ  mal;  Irat 
&  indignatío^  tribuUtio  „  &  anguftia  in  omnem  animam  R^m.zl 
o^erantis  malum. 

Deos  he  bom;  Deos  hc  mifericordiofoi  e  euac- 
crefcento,  que  o  he  infinitamente  mais ,  do  que  vds 
dizeis  ,  oucuydais,  e  do  que  vôs  podeis  dizer,  e 
imaginar.  Porém  nunca  achareis  ,  que  tcriha  pro- 
mcttido  a  fua  mikricordia  a  nenhum  peccador  em 
particular.  A  concede  íó  aos  feus  cícolhidos ,  c  a 
quem  melhor  lhe  parece  ,  e  tende  bem  no  fentido 
cfia  verdade  taô  importante  ,  e  vos  íirva  de  deíenga- 
no,  e  vem  a  íer,que  por  grande  ,  e  infinita  que 
fe'}a  a  bondade  ,  e  miferieordia  Divina  ,  Deos  a  exer- 
cita^ para  com  os  peccadores  muyto  menos ,  do  qtic 

âíua 


f  ] 


sii 


«/i  Bifem  [o  VIL 

afuajuftiçai  não  porque  Ocos  não  fcja   mais  incíl^ 
nado  a  perdoar}  mas  porque  à  obíiínaçaó ,  c  mal- 
dids  dos  Réprobos,  aííim  o  pedem»  como  veremos. 
Lea  qualquer  ,  que  feja  ,  toda  a  EfcriCura  Sagrada, 
o  velho ,  c  novo  Teftamento }  e  cu  vos  aíTeguro  ,  que 
não  achará  hum  fó  Texto,  qi-is  prometia  a  miíericor- 
dia,  aos  que  offendem  a  Deos  obftinadamente 5  acha- 
rá bem  íim  ,  que  a  promstte ,  e  dà  ,  a  alguns  poucos, 
que  arrependidos  defejâo  ,  c    pedem  muy    de    ve- 
ras ,  ferem  reílituidos  na  fua  graça  ;  mas  efíes  (  diz  o 
Profeta  líaias )   que  faõ  taõ  poucos ,  como  iaó  ra- 
ros os  cachos  de  uvas  depois  da  vinha   vindimada: 
§luomodopauciracemi^cum  fmrit  finita  víndemia.  E 
/fm.%^,  Q  pnjiíeyro  Vigário  de  Chrifto ,  Saò  Pedro  ,  faz  o  nu- 
mero dos  cícolhidos ,  taõ  limitado ,  que  o  compa- 
ra às  oy to  Almas,  que  fe  íalvàraô  na  Arcaj  em  compa- 
ração das  muytas ,  que  perecerão  no  diluvio  :  ^rca 
,^^^^^'  inqua,  fauc^ ^ideft oão  anm<e ^fâlv£  fâBa  fmtper 
^\       aquam.  E  o  meímo  noíTo  Senhor  JESU  Chrifto  ,  per- 
guntado,fe  era  verdade, que  muy  poucos  íe  haviaõ 
dcfalvar  f  ílcípondeo  :  Contendi t  tntrare  per  angu- 
LncAiftam  portam,  quée   ducit  ad  vítam    Morcificayvos, 
,         "  e  fazey  o  poíTivel ,  para  çntrar  pela  porta  eftreyta  ,  que 
vos  leva  ao  Paraifo}  porém  íaõ  muv  poucos,  os  que 
Mm\i,  a  achaó aberta,  e  entraô  neila  :  Et  pauci  fiint,  qiã 
7.         invemunt  eam.  Argumentay  agora  ,  íb  vôs  íois  do 
numero   dos  poucos  efeolhidos  ,  pai4Ci  vero  ek^íh 
Ou  daquelles,  que  com  a  temerária  prefumpçaõ,  de 
queDeos    he  bom  ,  buícaô  o  caminho  largo,  que 
Conduza  porta  da  percliçaô,  por  onde  muytos  entraõ: 
Matth.  §u^  ducit  in  perditionem  ,  &  multt  fmt ,  qui  intrant 
7.13.  percam.  > 

Deos  naõ  he  íómente  bom ,  e  jufto ;  mas  he  to- 
do poderofo.; ,  immenfo  ,  infinitamente  grande  ,  fa. 
hio^  c  Santo ,  dotado  de  hmii  numero  infinito  de 

per- 


Do  Mmmodvs  Soberbos.        ,^i^ 

perfeyç6cs  l  é  aífím  quando  cometeis  algum  pçccadp, 
naõ  ha  duvida  que.a.todas  ofFcndeis,  c  todas  ficão  vof- 
fas  inimigas :  Manus  tua  contra  omnes,&  manas  omnip  Gmf.i 
contra  te.  Pois  todas  eftas  pcrfeyçócs  íaó  huma  mefma 
eoufa  entre  íi ,  como  também  faôhuma  meímacouía 
com  a  eíTencia  divina,  Ifío  íuppofto.  Que  prefumpçaò! 
Que  temeridade  execranda  feria  de  hum  Vaffallo, 
que  featreveíTe  afrontar  a  peíToa  Real  do  íeu  Prínci- 
pe, fiado  na  protecção  de  hum  fcu  Patrono,  que 
tem  por  íeu  Amigo  j  porque  fabe  ,  que  he  Valido, 
epòde  muyto  com  o  íeu  Rey  ^fcm  confiderar,  quç 
na  meíma  Corte  baviaõ  milhares  de  Cortezáos  com 
ameíma  graça  ,  favor,  e  valimento,  e  efles  como 
ofFendidos,  e  zelofos  da  honra  do  íeu  Rey,  logo  fe 
fdziaõ  voíFos  inimigos  declarados ,  e  lhe  pediaô  fc 
eíqueceíTc  da  fua  mifericordia  ,  e  triunfaíTe  aíua  jU' 
ítiça  com  punir  exemplarmente  lemelhante  prcíump- 
çaõ,  e  atrevimento.  Todas  as  perfeyções  de  Deos 
íaó  delle  igualmente  amadas,  fe  faz  a  meíma  eíiima- 
ção  de  humas,  como  das  outras  J^  pois  todas  íaô  do 
mefmo  modo  amáveis  ,  Divinas  ,  e  infinitas.  Vede 
logo,  quam  mal  fundada  he  a  voífa  preíumpçaô,  na 
ibondadc,  e  miíericordia  Divina,  com  querer  huma 
psrpctua  batalha  das  perfeyções  ,  contra  as  perfey- 
ções j  levantar  huris  atributos,  contra  outros  atri* 
butos ;  e  finalmente  armar  Dcos  contra  Deos.  Não 
he  ifto  procurar  a  fua  ira  ,  o  feu  c  dio,  e  a  íua  eterna 
vingança  (  como  diz  Saõ  Paulo  ) !  Ira^  &  indignatio  &  Rm.^l 
étngtiftia  in  omnem  animam  operantis  maUim, 

Deos  he  bom,  e  mifericordiofo.  E  fe  eu  agora 
vos  provaíFe,que  a  meíma  bondade,  e  mifericordia 
de  Deos  ,  que  vos  cuydais  fer  voíía  Protedora,  he 
a  voíla  mayor  inimiga  je  que  3quclla,que  vos  toma^ 
Bes  por  voíía  Advogada ,  íe  unio  com  as  partes  aggra- 
,  c  ke  vo€a  contraria  j  e  que  as  armas ,  que 

ti- 


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!;Íi 


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cfcoítisfíes  ^  para  aífcgurar  a  :vo€á  dcfcía  >  ícrTif- 

fcm  ,  para  pelejar  contra  vòs,  pondòvos  em  total 
rtiiíia, atê  vosdãr  nô  mefmo  tempo  âmoítfí  rempo- 
ral  ,  e  eterna.  Que   direis   emão  ?  Que    Deoshe 
fcfn ,  e  miícricoi-diofo  ?  Bonns  t  &  mifericois  Do- 
mintts,  Ou  que  lie  jufto,e  vingativo  ?  Deus  ultionum 
r    j    i'Dominus t  jujius,  ac  rectus.  Eu  bem   poderia  rra:2:ir 
22,  '   aqui  hlí  a  quantidade  grande  de  exemplos ,  e  todos  de 
Autlioies  graves,  e  de  fama  ,  com  que  prova íTe  efta 
verdade ;màs,  porque,  com  íerem  eíles  fidedignoá, 
^aõ  faõ  por  ifto  de  fé,  me  valcrey  nefta  occafiaò  por 
-prova  evidente  de  hum  exemplo  da  Sagrada  Efcritu- 
ira,  que  quanto  mais  he  fabido  de  muytos,  tanto  menos, 
Ijebímconíideradovainda  de  poucos.  -' 

Querendo  o  Texto  Sagrado  refumir  cm  compen- 
dio afunefta  hiftoria  do  delgraçado  Aman,  começa 
com  efla  fentença  ,que  foy  o  fundamento  da  fua  rui- 
Eíiher.  na :  Multi  bonltate  Primipum  abufi  funt  tn  fuperbiam. 
i^-       Que  muytos  abuíando-íe  da  graça,  e  favor  do  fcu 
Rey ,  prefumem  de  poder  tudo  ,  c  uíaõ  tyrannias  com 
òs  povos.  Efta  foy  a  culpa,  e  a  defgraça  de  Aman, 
que  chegou  a  tal  altura  de  valimento  com  ElRey  Aí- 
fiiero ,  que  ordenou ,  que  o  feu  aíTento  foíTe  fobrê 
todos  os  Grandes ,  e  Magnates  ào  fcu  Império ;  e  que 
todos  03 Teus  fubditos,  eav  o  vendo  ,  íe  lhe  ajoèlhaf- 
fem /Ihc^obedcceíTcm,  e  o  adoraíTem  :  Rex  Afftierus 
ÉJlhsr.  'exãítãvit  Aman^  & pofuit/olium  ejusfiper  i  mms  Prin- 
i>      ■'-  cipes  ^  cunãiqite  firvi  Regú  fieítebantgenua  ,  &  adô- 
rabant  Aman.  Sic  énhn  fraceperàt  eps  Imperator,  £'fíc 
éaò  alto  valimento  fez  cahir  cm  tal  prcíumpçaõ  a 
Am^n,  que  para  fe  vingar  de  Msrdoqueo,  que  nãõ 
íc  queria  ajoelhar,  quando  entrava,  ou  íahia  do  paço, 
determinou  de  d  ir  a  morte,  na5  fó  aelle  ,  mas  tam^ 
Be  Ti  a  toda  a  fua  naçaõ  Hebrea ,  paííando  edito  a  ro- 
as cento  e  viate   fcte  Províncias  do  Iijiperio; 


Do  têrménfô  âm  Súherhos.  i%  f 

pâfàquc  em  tal  dia  determinado,  foíFem  todos  cru- 
ciíicados.  Parece ,  que  a  fortuna  queria  exaltar  ain-       ^1 
ida  mais  a  Aman ,  pois  a  Rainha  Efíhtr,  convidando 
a  ÈiRey  AíTuero,  íeu  Conforte  ,  a  hum  grandiafo 
banquete, que  lhe  tinlia  preparado,  pedio  lhe  ,  que 
•Aman  reccbeííe  cfta  honra  ,  de  comer  com  as  duas 
peíToas  Reays  na  mefa  ,  e  logo  lho  concedeo ,  eo mefe- 
mo  Rey  o  trouxe  comíigo  :  Venerunt  itaqiie  Rex  ^  &  EJIher, 
Jlmanad convivitim  ,  qttod  eií  Regina  paraverat,  Naé  j. 
ha  mais  ,  que  fubir  no  valimento  ,  nem  ha  mais, 
que  efpcrar  de  hum  íimples  íubdito ,  que  náo  nafcco 
Príncipe  i  ou  naô  tinha  fangue  de  tefla  coroada;  Uw  E/iher: 
to  a  íTim,  que  tornando  elle  ao  íeu  palácio  leetus  y  &  ^^ 
.<?/í«fi?r,  alegre  ,  e  contente  ,  narrou  as  honras  ,e  glo^ 
^iasíj,  que  tinha  recebido  ,  eípeciaimente  da  Rainha 
Eflher ,  quede  tantos  Princepes,  e  Grandes,  íó  a 
ElRey,eaelle  convidou  ao  íeu  banquete,  convidan-^y?;^^;.; 
do-o  também   para  o  dia  feguinte  :  Regina  qfíoq^iéiT^. 
Efiher  ^  nulhm  aJium  vocavtt  ad  ccn^uivium  ip7'^ter 
me  apíid  quem  etiam  eraspranfiirtis  fum.  Aqui  chegou     *    T 
oçumedapreíumpçaõ,  e  foberba  de  Amanj  porque 
mandou  levantar  nofcu  jardim  Ima  grande  cruz :  ^uf^ 
fitex ceifam  fraparari  crticem.  Para  que  y  no  templo] 
qucelléeftava  jantando  com  a  Rainha  ,  Mafdoqueo 
foíTenella  crucificado.  'Eque  pouco  durou  eíla  feli- 
cidade! Oh  fortuna  potens  ^  qmm  variabilu  l  Nnòfa-o^íi^ 
bia  Aman  ,  que  a  Rainha  Eíiher  era  de  naçaõ  do  po^ 
yoefcolhido,que  elle  perfeguia  a  fogo  ,  c  íanguej 
eque  Mardoqueo  além  de  fer  íeu  Tio,  por  morte 
dos  parentes  lhe  foy  feu  pay  nutricice  a  tinha  adop- 
tada por  íua     filha  herdeyra    ,    e  ficou     pafmado,; 
quando  tornando  ao  banquete ,  ouvio  aEílhcr,  que] 
pedia  vingança  ao  Rey  da  Aia  preíuiTnpçaõ  ,  e  cruelda--^ 
de ;  -HofiM ,  &  inimkm  mfier  pejjmns ,  eft  ifte  Amam 
Epáraaplacar  a  ira  dcEÍRey  íoy  neccíTario  , -que; 
^i  do 


J 


I 


II 


'dô  banquete  paíTaíré  ao  meimo  patíbulo,  que  tíbhl 
ífih.  8.  prcparad0,para  Mardoqueo:  Sufpnftis  eft  itaque  Aman 
mpduhih^^uõJpdraverat  iMardocheo.  Et  ira  Regis 
^iíiwit^  ;.:-:-.■■  ■   -■ 

í  Efta  hc  ap  pè  da  letra  a  íuftancia  refumida  dá 
fatai  tragedia  do  deígraçado  Amani  que  fe  do  íen- 
tido  literal  defta  Sagrada  Hiftoria ,  paíTarmos  ,  con- 
forme a  doutrina  dos  Santos  Padres  ,  e  facvos  Expa- 
íitores,  ao  íentido  myftico.  c  tropologico,  acharei 
mos,  que  ella  he  hum  verdadeyro  retrato  de  todos 
aquelles  peccadorcs  ,  que  confiados  na  bondade  ,  c 
miíericordia  de  Deos  ,  o  offendem  ,  e  prefumem  te- 
mcrariamente  falvarem-fe.  Eno  inopinado  ,ehorro- 
rofo  caftigo  de  Aman ,  eftá  perfeytamcntc  delineado, 
que  quando  elles  cuydaõ  viverem  mais  deícançados, 
efeguros  na  culpa  ientaô  a  juftiça  Divina  mais  irrita- 
^  da  deícarrcgafobre  cUes  hua  morte  improviía  ,  que  do 
banquete  dos  feus  goftos  ,  os  faz  paífar  de  repente  ao 
penofo  patíbulo  do  inferno  ;  Cumdixerunt^  fax  &fi'- 
thcf^.  ctiritas ,  tmc  repentinus  eis/uperveniet  mteritus. 

Seymuy  bem  o  arrezoado  de  muytos,  quedil- 
Gorremafíim.  Eu  naô  fou  taõ  defcuydido  da  minha 
falvaçaô,  que  queyra  arriícar  a  rainha  Alma  ,  vivenda 
no  mar  tempeftuofo  ds  tantas  culpas.entre  os  abrolhos 
de  tantas  payxoens ,  em  hum  batel ,  que  tem  a  unica 
ancora  da  bondade  de  Deos ,  em  que  íe  affegure.  Te- 
mos  de  mais  amais,  hum  ancorote,  em  que  nos  fia- 
mos, e  nos  damos  por  íeguros.  Efle  he  a  devaçaò  à 
BeâtiíTima  Virgem.  Huns  dizem  ,  que  íaõ  daCon^ 
fraria  ds  noíTa  Senhora  do  Carmo ,  e  que  tuazcm  com- 
fiíToo  íeu  Bentinho  ,  e  nunca  comem  carne  nas  quar- 
tal  feyras.  Outros  ,  que  faò  Confrades  do  Roíario, 
que  olevaõ  femprc  comfi^o ,  c  orezaò  fcm  falta  to- 
dos os  dias.  Ha  também  alguns,  que  tomaô  o  titu- 
lo oncroío  de  Efcravos  da  Senhora ,  trazendo  nobra- 


Do  tovmmto  dos  Soberbos.  «  77 

cohuacadcínhapor  final  doíeii  cativeyro,  com  pa- 
gar-ihç  todos  osSabbadoso  tributo  de  hum  jejum  ri- 
^orofo.  Eíks  todos ,  muy  confiados  ,  pre fumem ,  e  di- 
zem aflin.  Efteancorote  da  dcvaçaõ  a  NoíTa  Senhora 
he  ,  o  que  tem  maó  na  ancora  da  bondade ,  e  mifcricor- 
dia  Divina;  pois  íendo  elia ,  como  canta  a  Igreja  ,  Máy 
de  miíericordia ,  c  refugio  dos  peccadores  ?  Mater  m- 
fmcordi^^Refngium  Peccatorum.  Nunca  permittirà, 
que  tantos  léus  tlevotos  padeçaò  para  fcmpre  no  infer- 
no hum  naufrágio  erer no. 

Oh  engano  dos  enganos ,  que  quanto  mais  cncuber- 
,to,  tanto  maispcrniciofo!  Nao  ha  pcyor  tentarão  do 
Demónio,  que  quando  elle,fendo  o  Príncipe  das  trevas, 
fe  transfigura  em  Anjo  de  iuz,emoftrando.fc  zelofo 
de  f  .Ivar  certas  Almas ,  ns  move,  e  as  incita,  a  algumas 
devaçõcs,  e  também  penitencias  exteriores  ,  que  na 
aparência  cobraõboa  opinião  no  Povo  ,  e  ihespro- 
metrccomcllasinfaUivelmente  oParaiío;  ena  reali- 
dade ,  continuando  com  mayor  confiança  a  peccar^ 
as  leva  á  rédea  foi  ta  ao  inferno,  E  quem  havia  de  cuy* 
dar ,  que  de  dous  ingredientes  taô  perfeytos ,  de  dous 
antidotos  taô  fantos ,  como  faô  a  mifericordia ,  c  bon- 
dade de  Deos,  e  adevaçaò  a  NoíTa  Senhora ,  pudeíTe 
fahirhui  compodçaò  taõ  diabólica,  hum  veneno taõ 
refinado ,  como  he  huma  prefumpçaõ  temerária  de  fal- 
varfe  com  multiplicar  peccados.  lílo  fuppoftoj  que 
diríeis  vÔ3,{e  eu  agora  vos  fizefTe  ver,  e  tocar  com 
.amâo,quceíkvoÀoancorote  da  devaçaõ  da  Senho- 
ra, em  que  pondes  toda  a  voíTa  confiança  ,  fera  q  pri- 
,nicyro,que  maisdepreffa  vos  puxara  a  vos  -,  e  ao  voíTo 
batei,  a  pique  no  profundo  do  inferno  f  Dayme  a t ten- 
ção, c  firva,  o  que  fc  legue,  de  hum  verdadey ro  deíen- 
gano  à  voíTa  temerária  prefumpçáo;  e  tornemos  àKair 
,nha  Efther ,  poisa  íua  hiftoria  he  cheya  de  grandes  my- 
íierios,  e  admiráveis  documentos. 

M  To- 


M 


/ 


Efther. 


178  Bifem ft>  Vil. 

Todos  íabem,  que  a  Rainha  Efíbcr  era  ào  Po- 
vo eícolhido,  e  também  afigura  da  Rainha  dosAo. 
jQS  ,  a,  Virgem  noíTa  Senhora  ;  tanto  íiílim  ,  que  os 
Expoíirores  Sagrados  entre  tantas  Profecias,  e Tex- 
tos do  Teftamcnío  Velho  ,  que  provaõ  a  Conceyçaô 
da  Senhora  ,  fcr  immaculada  ?  admiraô  as  palavras, 
que  EiRey  AíTuero  diffe  à  Rainha  Erther;  pois  cia- 
1'a,  c  diíiintamentc  publicaõ  o  privilegio,  que  re- 

futa.ç  annuUa  toda  a  duvida;  Efthtr nonm»- 

rieris,  non  enim  pro  te.fed proommbus  hac  lex  con- 
fittuta  eft.  Peio  que  aquella  \ty  univeríal ,  em  que  os 
dcícendtntes  át  Adaõ  omms  peccaverunt ,  ainda  que 

'«'"»-3»foyfeyta  para  todos  pro  ommhus,  naô  foy  feyta  pa- 
ra  a  Virgem  NoíTa  Senhora  non  pro  te  i  pois  no  pri- 
meyro  inftantc  da  íua  Conceyçaô  foy  prefervada.  Ar- 
gumcntay  agora  aífim.  Se  a  Rainha  Efíher,  por  fcr 
doPovoefcolhido,  foy  a  primcyra,  que  pcdio  vin- 
gança a  ElRey  AíTuero  ,  para  que  logo  mandaíTc 
executar  a  fentença  de  morte  contra  Aman  ;  porque 
perfeguia  ao  fcu  Povo.  A  Rainha  doCeo,  que  além 
de íer doPovoefcolhido,  hc  Filha  do  Padre  Eterno, 
Eípofado  Eípirito  Santo  ,  e  May  do  Verbo  Encarna- 
do j  que  juíliça  ,  c  que  vingança  naô  pedirá  ella  â 
juftiça  de  Deos ,  vendo ,  que  com  capa  de  íeres  feu 
devoto  ,  crucificais  dçnovo  com  novos  peccados  ao 
feu bemdiro Filho!  íternm  crucifigentesvobis  metipfis 
FiUtm  Dei  OíFend.eis  a  SantiíTima  Trindade ,  e  a  todas 

J^ebrS  as  pcrfeyções  divinas,  com  as  quaes  a  Senhora  tem  h«a 
correlação  taõ  tfíreyta. 

Finalmente  quero  acabar  efíe  primeyro  ponto 
com  hum  dilema  ,  que  tal  vez  vos  poderá  conven- 
cer. Ou  vòs  conheceis  a  bondade  ,c  mifericordia  de 
Deos  ?  Ou  naô  ?  St  vos  a  naô  conheceis  ;  porque 
pondes  todas  as  voíTas  efperanças  cm  hum  objcdlo, 
que  naõ  fabcis,  qual  he  !   Sc  vòs  a  conheceis  ,  g, 

fia- 


Do  tormento  dos  Sõberèou  «7? 

ííadôs   nclla  ,  cometeis    novos  peccadosi  prefumis 
tcnierariamentc  ,  que  a     bondade  ,  e  mirericordia 
de  Dcos  ,  por  íer  infinita, vos  perdoará.  Mâá  nii^o 
eicímo  coníifte  o  voffo  engano ,   porque  (como  diz 
5.Joa5;  vôsíois  Imm  mentiroío  ,  pois  dizeis,  que 
conheceis  a  Deos,  e  no  mefmo  tempo  o  ofFcndeisj 
ifto  henaòfallar  verdade  jhe  huicraíTa  ^epura  men-^^í^w.i: 
tira:  §ui  dicit ,  fe  nofe  De  um,  &  imndatãejtis  mn  ^• 
^MftoÀit ,  mendax  ejt  ,  &  ventas  m  eo  non  efi.   Eiía 
prcfumpçaõ  de  poder  enganar  a  Dccs ,  comdefpre- 
zar  a  lua' bondade  ,  e  abafar  da  fua  paciência  (diz 
S.Paulo)  que  he  hum  querer  viver  íempremais  en- A'tfw.4. 
ganindo:  An  dtvttiasbonitdtisejus^&  patienti£  con-^- 
temnis.  EOa  voíTa  dureza ,  e  obitinâçaò  ,  e  cite  voíTo 
coração  impenitente,  vaõ  cumulando ,  e  entheíou- 
rando  a  ira  de  Deos  contra  vôs ;  declarando-vos ,  e         ^ 
conftituindo-vos   anticipadamentc    por  precitos  no 
feu  re6ío  juizo:  Secimdum  âtttem  dtiritiam  ttiam  ,  &  Rom.z: 
ímp£mtens  cor  thefatinzas  tihi  iram  m  diem  ir^  juftt  5. 
judiei  Det.  Bem  fey ,  que  huma  grande  parte  dos  pec- 
cadorescoílumaò  dizer:  eu  nunca  experimente^  na 
minha  Alma  eRa  dureza  ,  eobílin^çâo,  c  muy  to  me-^ 
fíos  o  meu  cornçaò  he  inclinada  a  viver  ,  e  morrer 
impenitente.  ConfeíTo  ,    que  pecco   como    homem, 
•e  fou  rambcm  recidivo  í  porém  quando  me  refolvo 
a  peccar,  já  finto  em  mim  hum  principio  de  arrepen- 
dimento }  c  depois  de  cometido  o  peccado  huma  rcío- 
luçaô  firme  de  confeíTarme,  e  pormc  bem  outra  vez 
com  Deos.  EOa  he  a  matéria  ,  que  devemos  tratar 
no  íegundo  ponto.  E,íe  opeccar,  preíumindo  te- 
inerariamcntc  o  perdaõ  da  bondade  ,  e  miícricordia 
divina,  he  o  engano  dos  enganos  i  o  peccar  com  a  pre- 
íumpçaõ  de  confcíTarfc  logo ,  e  fazer  penitencia ,  he  o 
engano  dos  enganados  íem  remédio;  dos  quaes,  (como 
veremos)  lá  eftá,  e  cftará  íemprc  mais  cheyo  o  inferno. 
.  Ml  AqucU 


^ 

Fj 

1 

t 

;    í 

1 

Segun- 
do Pó- 

10  i 


Chryj. 

ep.  aà 
Cor-, 


D.Amb 
Serm  9. 


fíe  uf». 


iSo  tiffcmfo  P/A 

Aquelle  grande  Doutor  da  Igreja  Saô  Joaô  Chryi 
foftomo  ,  conliderando  a  divcríidade  dos  artifícios, 
de  que  fe  ferve  o  Demoob  ,  para  impedir  a  ia Iva- 
çaó  de  noíTâs  Almas  y  avança  huma  propofíçaô,  que 
á  primeyra^vifta  parece  humparadjxo/c,bctB  pon- 
derada, naõ  he,  íe  naõ  muy  importante,  e  verda- 
deira. E  diz  ,  que  o  Demónio  leva  a  muytos  ao  in- 
ferno pelaeíirada  larga  do  pcccadoj  c  a  muytos  ou- 
tros pelo  caminho  eflreyto  da  penitencia  :  AM03 
per  pccatum  ,  aliõs  per  panitentiam  áammu  Levar 
ao  inferna  pelo  caminho  cftrcy  to  da  penitencia  \  Efíc 
hehumeftratagema  nunea  ouvido  ^  huma  contramina 
nunca  vifta ,  ehuma  contrabataria  de  nava  invenção» 
he  baternas  ,  e  combatemos  com  as  noífas  pró- 
prias armas ;  be  levantarem  os  trofcos  com;  os  in- 
fírumentos  das  noífas  vitorias  i  e  finalmente  f  coma 
diz  Santo  Ambrofío  )  he  levamos  para  o  inferno  peio 
eami nho  do  Parai fo^  ficando  o  noíTo  único  remedia 
íendo>  o  íeu  mayo^r  triunfo :  Remtdmm  mfirum  fit 
BíahõU  triumphus.  E  aííim  he  ,  pois- hum  grande 
numero  de  Chriftâos,  dosCatholicos  amayorpartc» 
por  naõ  dizer  qiiafi  todos  aquelks,  que  vaã  ao  inv 
fcrna ,.  clles  mcímos  fc  eondcnaô  pela  peniíencia, 
ou  prefusiida;  ou  iilegitima  ,  ou  nãa  executada.. 
He  cGuía certa,  o  quedeyxou  efcritoo  grande Mií^ 
fionariô^,  que  falia  por  experiência ,  que  de  cem  Ca- 
tholicos ,  que  fe  atrevem  a  cemnictter  o  peccado ,  mais 
de  oytcnta  tomaõ  cíía  ouíadia  ,  peia  prefumpçaõ, 
que  tem  de  fazer  penitencia  ,  dizendo  comíígo, de- 
pois, que  nòs  tivermos  íatifeyCo  à  noíFa  piyxaõj 
c  contentado  o  nofíb  appetite  ,  nos  confcíTarcmos ,.  c 
faremos  penitencia  5  c  deíiesoy  tenta,  què  prefumem 
fazer  penitencia  ,  haverá  ao  menos feíTeota ,  que  con- 
tinuando  nos  peccados  nunea  a  faraó  f  porque  lhes 
ialtarâ  o  tempo  5  como  vercflios  adiante,  £  dos  viní- 


Dõtoyffíentõ  dos  Soberbos.  18 1 

te,  que  a  fazem,  a  fazem  illegitima ,  diminuta ,  ou  ícm 
o  verdidcyroarrepentiimento. 

Vòs  dizeis  ,  que  quereis  fâzer  o  voíTo  gofto  ,  e 
contentar  ovoílo  appetite  ,  fiados  naeíperança  de 
vos  arrepender.  Muy  boa  propoíiçáo  heclb,  para 
hum  homem,  que  tem  o  ufo  da  razaó  /  O  motivo 
hemuy  lindo  jC  o  fim  hc  muy  acertado,  por  hum 
Catholico,  que  defeja  lalvarfe !  Foy  convidado  hum 
Filofofo  anrigo ,  a  entrar  em  certa  caía  pouco  hone- 
fía,  que  pela  Helena  ,  que  morava  dentro,  era  a^^^^ 
perdição  da  mocidade  de  Aihenas.  Reípondeo  10;£>w^. 
go  reíoluto  ;  E^o  non  mo  tanti  pcemtere.  Eu  naò 
compro  por  preço  tão  caro  o  arrependerme.  A  rc- 
pofla  foy  verdadeyramentc  de  hum  Filofofo  ,que  dif- 
€01  rc  ,c  ainda  que  gentio  combinava  o  principio  da 
obra  >  que  pedia  hum  íemelhante  invite,  com  o  fin, 
que  era  depois  arrcpenderfe:  Ego  tanti  non  emopce" 
nitere.  E  vòs  com  o  lume  da  fé,  e  com  a  luz  do  E- 
vangelho  difcorreis  todo  o  contrario  ,  pois  o  arre- 
pendimento, que  ao  Filofofo  íervia  de  freyo  ,  para 
nãopeccar,  fazeis,  que  vos  íirva  de  elpora  ,  que 
incite  a  voíTa  prefumpção  temerária  a  commctter  mais 
depreíTa  o  peccado.  Quando  vòs  vedes,  que  algum 
VoíTo  parente,  ou  amigo,  quer  entrar  cm  alguma 
locicdadc  ,  ou  contrato,  fabeis  ,  que  provavel- 
mente vay  perdido ,  depois  de  lhe  ter  dadas  muy- 
tasrazoens,  c  clle  reíoluto  não  íe  rende,  coQumais 
dizer-Ihe  por  fim.  Entray  embora  no  contrato ,  que 
nãopaíTará  muy  to  tempo,  que  ficareis  arrependido. 
Para  diíTuadir  a  hum  voíTo  irma5,ou  a  outra  qual- 
quer peíToa  de  voíTa  obrigação,  de  alguma  obra,  que 
alémdefcrde  deícrcdito,traz  comfigo  toins  confe- 
qucncias  ,  depois  de  o  ter  convencido  com  03  mais 
fortes  argumentos  5  cellcpcrfíftc  íemprc  mais  duro, 
c  confiante  na  íua  rcfoluçáo ,  acabais  todo  o  voíTo 

Mj.  ^^z 


tn 


;  I 


Í.UI 


V^i  Dlfèurfo  vil 

difcurfo,  c  ô  fechais  com  eíias  palavras,  que  vòè 
fervem  como  de  conclufaô.  já  que  o  quereis  aífim, 
fazey  n  voíTí  vontade ^  mas  vos  aíT.guro,  que  logo 
vos  arrependereis.  Sendo  ifto  aífim  J  como  lie  pof- 
fivel ,  que  do  arrependimento  ,  de  que  vos  íervis^ 
para  diíTuadir  aos  outros  das  culpas  ,  vos  firvais 
também,  pira  commetteraos  mais  enormes  delicftos^ 
Gom^  dizer  ,  me  arrependerey ,  me  confeíTarey,  hvcf 
penitencia  \ 

Digo  n:ais  ,  que  efta  propofíçaô  ;  quero  fatisfa- 
zcr  ao  meu  appetite  :  quero  eommetterefte  peccadoi 
porque  depois  me  arrependerey ,  e  confeíFarey  ;  naf- 
cc  de  hum  entendimento  erróneo,  e  de  hum  juizo 
enganado,  pois  nem  ha  forma  de  dikurío  redo,nem 
tem  connexaõ  entre  as  partes  ,  porque  a  natureza 
corrupta  he  inclinada  ao  pcccado  ,  c  por  ifto  lhe 
quereis  dar  aquelle  gofto  5  e  porque  fabeis  ,  que  a 
pcccado  he  eíTencialmente  contrario  a  Dtos  ,  que 
não  o  pode  deyxar  impunido ,  e  vos  o  pagareis  com. 
fer  caíligado  eternamente  no  inferno  \  por  ifto  fempre 
vos  enganais  ,  dizendo  ,  que  vos  arrependereis.  E 
porque  naõ  dizeis  antes  affim ,  diícorrendo  com  a 
razaõ,  c  com  o  temor  de  Dcos,  como  diícorreraõ, 
ediícorrem  todos  aquelles ,  que  de  veras  querem 
íâivarfe.  Se  cu  faço  o  meu  goíio,  e  commetto  cfle 
peccado,  efte  me  ícrvirá  de  entroduçaõ ,  para  com 
mais  facilidade  commetter  outro  ,  e  depois  outro  ,  t 
ouírosTem  fim ,  como  me  tem  fuccedidojá  tantas  ve- 
zes, dizendo  fempre  ;  me  arrependerey  ,  me  con^ 
fcíFarey,  Quantos  forem  os  meus  peccados  ,  cantos 
Icraó  os  fuíis ,  que  formão  a  corrente  mais  compri- 
da, epezantc,  com  que  o  Demónio  me  tem  prefo^ 
Thr.i.  c  atado:  Aggfavavit  compedem  meum.  E  pela  força 
do  mao  abito,  e  appetite  brutal  predominante ,  já 
me  coníidcra,/e  traía  como€fcravoíeu,a  ellc  ven- 
dido 


.»<>'     BI 


Do  tormntõ  dos  Soberbos*  » 8  3 

dido  pelo  prcçQ  de  tantas  reínciJencias  peçeaminofas, 
íem  nunca  ter  dcile  efperança  do  refgacc  ,  ou  de  me  li- 
vrar d  s  Tuas  mãos :  Dedit  me  m  manam  ^  de  quanoup-  Thr.  f, 
terof-urgere.  Eíic  íi  r^que  hediícurío  formai, reClo, c  de  ^J. 
quem  vi ve  já  deícnganado ,  e  com  deíejo  íoUdo  da  íua 

íalvaçaõ. 

Irritado  Deos  contra  Achab  Rey  de  íírael ,  por 
ter    morto  a  Naboth,':  haverlhe    ufurpado   a  íua 
vinha  ,  ordena  ao  Profeta  Elias  ,  que  foíTc  intimar- 
ihc  a  íentença  de  morte.  Chega  Elias    á  audiência 
do  Key,  o  qual  lhe  à\^t\Num,  mvenifti  me  inimir 
cum  tibi?  Por  ventura  achaftes ,  que  eu  íou  voíTo  ini- 
migo  ?  Reparemos  na  repofla  de  Elias  :  hiveni ^  ^^  Rey\ 
quodvenmdatnsíis,  ut  [aceres malum ceram  Domino.  ^^^  ' 
Tenho  achado  ,  que  vôs  mcímo  vos  tendes  vendido, 
çfcytoefcravo,parapeccar,  c  offender  a  Deos  na 
fua  prcíença.  Eílranho   modo  de  faliar    he  cfte  do 
Profeta!  Se  Naboth  já  era  morto,  ea  fua  vinha  já 
cftava  ufurpada,  parece  ,  que  devia  dizer ,  que  £c 
tinha  vendido  por  cfcravo  dos  crimes ,  que  já  tinha 
feyto,  eoquodfecerii  malum;  e  naò  peios  peccados 
futuros ,  que  havia  de  fazer !  ut  f aceres  malum.  Pro- 
va-íeiíio  com  a  fcntença ,  que  Girino  diíTe  por  bo- 
ca deSaõToaò  Evangelina:  Amen  ,  amm  dica  vohis ,  „ 
omnú  qtufacitpeccatum  ..fervus  ejt  peccat/.  Diz  bsm 
o  Evangeliík  >  admoeflando  a   todos  ,  que    nsõ  fe 
arrifquem  a  peccar  ,  pois  o  peccado  he  por  fua  na^ 
tureza  hum  veneno  taó  maligno»  que  no  mefmo  in- 
fiantc  ,  que  fe  commctte,  caufa  a  morte  da  Alma: 
Peccatum^cum  confimatum fuent  ,  generat  mortem. 
E  conílituc  opcccador,  efcravo  do  íeu  pcccado  ,e/^^'W. 
do  Demónio.  Mais,  o  Profeta,  que  vay  a  converter    ^^' 
a  Achab,  Ihereprefentao  infelice  cftado  dofcu  ca- 
tiveyro  ;  que  hc     amontoar  peccados     íobre  ^tc-^ 
cados,p9Ísíeiidp-ÍÇ  VÇPíjido  aos  peiíiQfiios ,  c  fey- 


1^4  Dtfcurfò  Vil 

to  cícravo  dos  íeus  appetitcs,  íenaõ  recorrer  a  Dcos,  c 
não  fizer  violência  a  fi ;  lhe  fcrà  ncceíTario  obedecer  a 
clles^comoa  feusSefibores,  pelo  que  diíTebem  ;  E& 
quoâ vtmmâatm [is  yUt facetes  mahm. 

Quem  foffe  viíirar  as  galês  de  Nápoles,  ou  de 
Sardenha,  acharia  entre  aquella  chuíma  de  gente 
três  claíTes  de  cícravos,  huns  malfeytores  infígnes, 
que  a  juftiça ,  por  aderências ,  ou  algum  outro  mo- 
tivo, lhes  trocou  opatibulo  em  ficar  condenados  a 
hum  remo  perpetuo»  Outros  tem  a  íentença  por  dez 
annosi  q«e  pela  má  efíancia  ,  epeyor  mantimento, 
vem  reputado  o  meímo,  que  cm  toda  a  vida  •,  e  fe 
os  crimes  faõ  menores  ,  a  pena  também  hc  fó  de 
quatro,  ou  cinco  annos.  Aterceyra  forte  de  efcra- 
vos  faò  ,  os  que  chamaô  voluntários.  Achaò  íc 
moços  vadios  ,  que  por  naõ  trabalharem  ,  nunca 
quizeraô  aprender  officio.  Para  íervir ,  ninguém  os 
quer ;  porque  faô  conhecidos ,  e  inclinados  ,  hyns 
a  Bacco ,  outros  a  Vénus ,  e  como  lhes  falta  o  di- 
nheyro ,  para  comprazer  aos  íeus  vícios  ,  buícaô  o 
Capitão  de  huma  galè ,  pcdem-lhe  cinco  ,  ou  íeis 
moedas  de  ouro ,  e  fazem-lhe  obrigação  por  efcrito 
de  fervircm  deeícravos  na  dita  galé,  por  bum  ,  ots 
deus  annos,  conforme  o  contrato  entre  clles  eftipu- 
lado.  Parte  a  galè  ,  c  depois  de  alguns  mezcs  de 
corío ,  torna  ao  ícu  porto.  Quem  havia  de  cuydar, 
que  cfíes  forçados  voluntários  ,  tendo  experimenta- 
do o  fuíiento  de  bifcouto  negro , e  duro,  com  huma 
medida  de  agoa  com  bichos  ,  e  hum  fedor  intolerá- 
vel da  ícntina,  pediffem  de  novo  dinhcyro  ,  para 
íatisfâzer  a  íua  payxaõ  ,  que ,  devendo  cfíar  ,  fe 
não  morta,  ao  menos  mortificada  ,reíuícita  taó  fa- 
minta, que  obriga  os  miíeraveis  voluntários  a  per- 
peruarfe  no  caíiveyro  !  Se  mais  o  ConfeíTor  deffc 
pòr  psnitenciâ  a  qualquer  deOes  moços  vadios  em 

de- 


,h:' 


Do  mmente  àesSohevbos.  *  ^  5 

dcfconto  dosfcus  cnorrrcs  peccados,  qiie  foíle  ícr- 
virpor  dous  mezcs,  com  os  mais  forçados  na  ga  e, 
rcíponderia  logo,  que  cra   impoffivcl,  poder  cllc 
fazer  tal  penitencia  j  pois  a  galé  he  o  inferno  deita 
vida  ;  c  poRo  que  Dcos  ,   o  tinha  creado  liberto, 
não  era  feu  credito  ,  que  appareceffe  cativo  i  nerrl 
por  duas  horas.  Confideray  agora  com  cita  repolta 
9  tyrannia  de  hum  habito  viciofo ,  e  a  força ,  que  tem 
de  envolver  em  taicegueyra  o  entendimento  dos  ho- 
mens ,  que  todas  as  vezes ,  que  pcccaô  mortalmen- 
te ,  vendem  ,e  revendem  a  íua  Alma  ao  Capitão  in- 
fernal, c  feytos  cfcravosdo  fcu  apetite  quanto  mais 
osfartaô,  tanto  mais  fe  rendem  iníaciaveis,  e  com 
o  engano  de  íe  arrepender  ,  e  confeíTar ,  peccarào 
c  mais  peccarào  ,  e  tornaràó  a  pcccar ,  atè  que  do 
cativeyro ,  e  inferno  defta  vida  ,  paíTaràô  com  huma 
morte  improvifa  ao  inferno  eterno  da  outra:  Venunda- 
iusjís ,  ut  faceres  mahm. 

Não  ha  homem  no  Mundo  por  malvado ,  que  le- 
ia, que,  fendo  Catholico,  enaô  tenha  perdido  total- 
mente a  fé  ,  nâo  tema  a  morte,  e  muyto  mais  o 
Inferno.,  Pelo  que  todo  o  feu  dcívelo  he  querer  vi- 
ver mal ,  e  morrer  bem.  Conhecem  todos  os  pçc- 
cadores ,  que ,  continuando  no  peccado  ,  o  Demónio 
oscnganacm  vida  j  mas  prefumem  ,  que  Dcos  lhes 
dará  tempo  de  fe  confeíFarem  ,  e  arrependerem ,  e 
aflTimnahora  da  morte  o  Demónio  ficará  enganado. 
A  tal  engano,  e  a  tal  atrevimento  exclama  o  Profe- 
ta líaias  :  Audite  verbttm  Domint ,  Viríílhfires.  Vi-  jj-^i^^^ 
xiíiismim^prcuijjimusfadiíscum  morte,  &  cum  in- 
ferno fecimus faHam.  Chama  a  tftes  tais  homens^  //- 
h/ores^  enganadores  por  ironia,  pois  elles ,  faô  os 
enganados.  E  quem  ha  nefte  Mundo  ,  que  poífa  fa- 
zer   tregoas  com  a  morte  -,  pois  falia  taõ  claro  o 

Evan- 


1 1 
I    I  ^'1 


li! 


1^6  Dífcurfo  VU.     ' 

Evangelho,  c  â  experiência  ,  que  quanto  eila^fic 
mais  certa,  tanto  he  mais  incerto  o  lugar,  e  o  tem- 
po.   Virá  como  o  ladrão,  e  quando  menos    o  cui- 

j-^^y^  .darmos  :  Sicut  fur  in  m5fe  ita  'venkt.....  Çluabora 
non  puíatií.  E  que  padlo  fcrà  cfte  ,  que  tem  fcyto 

^^^,2,  com  o  inferno?  Et  cum  inferno  fecitmt^  paãttm.  O 
pado  coníifte ,  em  que  o  Demónio  lhes  promette,  que 
antes  de  morrerem,  teraó  tempo  de  fe  confcíTarem, 
c  arrependerem  ,c  quando  falte  oConfcíTor,  faraõ, 
como  Catholicos,hum  Adodc  Contrição  ,  que  fen- 
do perfeyto,  voará  immcdiatamentc  a  Alma  para  o 
Ceo   Pois  ,    fe  eftas  condiçoens  faô  de  taõ  grande 
ventagem  aos  homens  ,  e  de  tanto  prcjuizo  ao  De- 
mónio, que  fica  com  ellas  enganado  ,  como  naõ  fó 
as  confentc  o  Demónio »  que  he  taõ  íagaz ,  e  afiu- 
to ,  mas  as  quer ,  e  incita ,  e  tenta  os  homens  ,  pa- 
ra que  lhas  facão?  Porque  na  execução  delias,  elle 
fica  o  enganador,  e  os  homens,  que  pertendiaô  fer 
iilufores,ficaô  illuíos.  Coftuma  o  Demónio  nos  feus 
contratos,  negocear  íobre  o  fcguro.  Pedenos  o  pre- 
íenre ,  com  promclía  larga  de  nos  dar  ao  depois  o 
futuro.  Agora  opcccado,e  depois  o  arrependimen- 
to. E  como  o  prefentc  he  fácil,  e certo;  co  futuro 
he  contingente ,  e  difficultofo  ,  fegueíe,  que  agora, 
que  hl  tempo  de  íe  arrepender,  e  fazer  penitencia, 
peccaô  confiadamente  ,  e  quando  chegar  a  hora  da 
morte ,  em  pena  defta  confianç:3 ,  e  preíumpçaó  ,  muy 
poucos,  ou  nenhum  fará  vcrdadeyra  penitencia  jeaf- 
fi;rjcom  omefmopaâo  ,  com  que  cuydayão  enganar 
ao  Demónio ,  ficarão  elies  enganados :  Et  cum  inferno 
^*  *^*  fecimm  paãtim, 

Vay  taô  íeguro  o  Demónio  nefte  pacílo,  que, 
como  negociante  rico,  tem  banco  publico  no  Mun- 
do, offireccndo  riquezas  ,  dinheyros,  e  todo:  o  gé- 
nero de  delicias,  e  goftos,  com  promcflía  de  muy- 

tos 


Do  tormento  dos  Soberhou  187 

tos  annos  de  vida,  eflipula  contratos, faz  ,  e  rece- 
be cfcritos ,  c  o  que  mais  importa ,  com  obrigação 
de  lhes  dar  tempo  de  fc  arrependerem",  e  tornarem 
a  Deos  ;  contentando-fc  o  Demónio  dos  peccados, 
que  fizerem  ,  por  íeu  emolumento.  Bem  poderia  cu 
alegar  muytos  ,  c  muytos  cafos  ,  íuccedidos  em  va- 
rias partes  por  confirmação   defta  verdade  }  porem 
direy  hum  íó,  referido  pelo  Cardeal  Saô  Pedro  Da- p^/r. 
miaò.  Em  hua  grande  Cidade  de  Itália  havia  hummo- Dam.in 
ço  (  diz  o  Santo  ;  igualmente  nobre  por  naícimento,  ''Ç'*í^- 
que  bem  herdado  por  léus  pays;  porém  como  cflcs 
craõ  já  falecidos,  em  breve  tempo  gaílou  com  mu- 
lheres, c  jogos  toda  a  herança.  Vendo-fe  já  chegada 
á  extrema  miíeria  ,  e  pelos  fcus  vicios  também  de 
■todos  aborrecido  ,  em  lugar  de  recorrer   a  Deos, 
bufcou  ao  Demónio.  Eíle  apparecco-lhe  logo  muy 
galante,  e  aíFavel,  com  fe  lhe  ofFcrccer  atiralo  de 
todas  as  íuas  afflicçócs,etornarlbe  a  rcftituir  dobra- 
dos  os  goOos ,  que  dcfejava  ,  c  que  para  tudo  ifto 
naó  lhe  pedia  outra  couía  ,  fenaô  a  fua  Alma.  O 
moço, que,  tendo  perdido  a  graça  de  Deos  ,  naô  ti- 
nha ainda  perdido  totalmente  a  fé;  diífe  logo.  Eu 
-naô  quero  vender  a  minha  Alma.  E  porque  (  diz  o 
Demónio)  Porque   (  reíponde  o  moço)  depois  de 
vendida,  quem  ma  ha  de  refgatar  ?  Vòs  mefmo  (  re- 
plica o  Demónio  J  como  a  tendes  já  refgatada  tantas 
vezes,  confcíTando-vos,  E  quantos  me  tem  vendi- 
do a  fu3  Alma  por  toda  a  vida,  e  depois  na  hora  da 
morte  fiquey  eu  burlado  ,  reígatando-a   com  hum 
Adio  deContriçaô,  dizendo  arrependidos,  'como  Da» 
vid,  Feccavi.  Pequey  ;  e  baftou  iíio  para  rcíga tarem 
a  fua  Alma  ,  e  gozarem    logo  de  Deos:  Vay  bem, 
diíTe  o  moço ;  porém  cu  quero  aíTegurarme  ,  c  naô 
quero  piffar  efcrito  de  venda  ,  íenáo  com  a  condi- 
faõjquevôs  me  avlforeis  três  dias  antes  de  cu  mor- 
rer. 


'<:' 


fi 


III 


188  Dlfèurfo  VU. 

rer.  Parcçcmc  muyto  bem  ( diffc  o  Demónio  )  e  aííTm 
faz,  quem  tem  juízo,  e  eu  vos  prometto  deguardat 
á  condição,  e  ícm  cila ,  que  o  noíTo  contrato  em 
todo  o  tempo  ,  feja  nullo.  Firmarão  o  padto  ,  e 
aífináraô  o  efcrito ,  que  lhe  fez,  com  reciprcca  fatis- 
façâo  de  ambas  as  partes.  Ficou  muy  contente  o 
moço ,  c  fc  de  primeyro  vivia  mal ,  começou  a  vi- 
ver peyor.  Achava-fc  com  dinheyro  ,nem  lhe  faltayão 
occaíioens  de  csfogar  com  liberdade  os  íeus^  appctites 
cm  todo  o  género  de  vicios.  Durou  porém  pouco 
cila  falfa  felicidade  ,  baftava  vir  do  Demónio, 
para  íer  cffimera.  Eftando  cllc  cm  hum  fcftim  bem 
defcuydado ,  entrou  hum  Cavalheyro  de  muy  bom 
garbo,  que  acoftando-fe  aelle,  perguntou-lhe,  fc 
o  conhecÍA  f  Reípondeo ,  que  naô.  4Eu  íou  o  Demó- 
nio (diíTe  elle  )  e  ainda  que  cu  me  chamo ,  c  fou  o 
pay  da  mentira ,  com  tudo  quero  guardar  a  coadi- 
çaõ  do  noíTo  contradto,  c  aflim  vos  advirto  ,  que 
dcfta  hora  a  três  dias,^vôs  íereis  já  morto  i  c  eu 
livre  da  minha  promeífa.  E  àl  naô  diffc  •,  pois  logo 
defapareceo.  Com  cíie  aviío  ficou  o  moço  taó  per- 
turbado, que  naõ  podia  fallar.  Cuydando  os  cir- 
cunftantes  ,  que  foffe  algum  ar  de  apoplexia,  cha- 
marão os  Médicos ,  que  o  acháraõ  com  febre  ,  e 
hum  letargo  mortal.  Procurarão  vários  remédios, 
para  o  deípertarj  que  nada  aprovcytavaô  ,  e  fó 
dormindo  felhe  ouvirão  eflas  palavras.  Eu  fuy  en- 
ganado no  tempo  J  pois  ainda  naõ  tem  acabado 
hum  anno ,  depois  que  aífiney  o  contrato  no  efcrij' 
toj  que  depois  de  morto  fc  lhe  achou.  Cuydáraô 
os  Religioíos  ,  c  Médicos  ,  que  lhe  affiftiaõ  ,  que 
naõ  eftwa  em  íí  ,  c  por  ifto  faleceo  fcm  Sacramen- 
tos. Já  amortalhado  ,  e  preparando-íe  o  enterro, 
entrarão  dous  Negros  agigantados  com  o  feu  triden- 
te na  maõ  j  e  hum  dclles  diffc  com  voz  medonha. 

Quem 


Do  tormento  dos  Soberlos.         189 

Quem  compra  a  cfpada,  compra  também  a  bainha. 
Eílenos  vendeo  afua  Alma,  que  jà  cflá  no  iníernOj 
agora  vimos  bufcar  o  corpo,  porque,  como  foraô 
companheyros  nos  goftos ,  o  ícjaô  também  nos  tor- 
mentos i  e  fincando  o  tridente  nas  ilhargas  do  defunto, 
o  carregarão  nos  hombros  j  e  íahindo  por  huma  jancl- 
la  ,  deyxàraõ  aos  circunftantes  affim  pelo  medo,, co- 
mo pelo  fedor  intolerável ,  mais  mortos,  que  vivos. 
Aflim  vay  a  acabar  a  preíumpçaõ  de  íe  conteíTar, 
ou  de  fazer  hum  A£ko  de  Contrição  antes  da  mor- 
te. Efte  teve  três  dias  de  tempo ,  e  com  tudo ,  naõ  íe 
achou  capaz  de  dizer  arrependido,  pequey  :  PeC" 
cavi. 

Efte  cafíigo,  que  faz  horror  >  e  parece  rigoro- 
lo  i  naò  he  ( cTiz  S.  Gregório  Magno  )  fe  não  juAif- 
fímo,  e  intimado  pelo     Efpirito     Santo  naquellas 
formidáveis  palavras  :  Focavi,  &  renuijii ,  delfe- Pyo'0' 
xiftii  omm  confiltum  meum  ;  ego  quoque  in  tnteritu  ve-  <^^h^* 
ftro  rídebo  ,  &  fuhfanabo.  Vos  chamey  com  as  mi- 
nhas inípiraçoens  ,  e  naò  me  quizeftes^  ouvir  jnunca 
fizeftcs  cafa  dos    meus  coníclhos  ,  nem  dos  meus 
avifos  i  eu  também  na  hora  da  voffa  morte  me  rirey^ 
ridebo^  efarey  cfcarnio,  (de  que  notay  cfla  palavra 
Subfãnabo)    de  ver,  que  cuydaveis  com  hum  fal- 
iopeceavi  enganar  a  Deos  neíks  breves  dias  de  vida, 
€  ficaíks  enganados^  por  toda  a  eternidade  no  infer- 
no. Af^m  fuccedeo  a  ElRey  Abim.elec  r  que  vivco 
íempre  mal,  e  efnuecido  de  Deos  cm  todo  o  tempo  ^^'''"^ 
da  lua  vida  j  e  Deos  permittio  3  que  na  lua  morce^^^ 
naõ  fe  lembraíFe,  nem  de  Deos  ,nem  defí.  Foy  efle^^^^ 
itiar  a  Cidade    de  Tebas  ,     c  eft^ndo  já  vitoriofo, 
para  entrar  nas- portas ,    huma  fnulher,  que  eílava 
em  alto,  pegou*  cm  huma  grande  pedra,  g  deyxan- 
dolha  Cahir  fobrc  a  eabeça  ,  lha  partio'  peJo  mcyo.. 
Coniieçendo  í:illey  ,qaé  morria  j  que  AâodeCon- 

tri- 


ii 


\    /;" 


190  DtfciírfoVll 

triçió  fez  ?  De  que  feccãvi  fe  lembrou  ?  Chamou 
logo  hum  fcu  pagem  ,  e  lhe  diífe  ,  acaba  de  prcíTa 
de  matarmc  com  a  tua  eípada  ,  para  que  naõ  fc 
diga ,  que  huma  mulher  matou  a  Abimelec  com  bua 
/W9.  pedra.-  Vocavit  ato  armigerum  fuum^  &  ait  ,  eva- 
ginaghdmm  tuum^&  mterfice  me  ,  ne  forte  âtcatur^ 
quod  kfosmim  iníerfectus/m ,  &  míerfeat  etim.  kí- 
íin  o  executou  o  pagem,  e  ficou  morto  Abime- 
lec. Nem  ElUey  Saul  teve  melhor  fim ;  vcndo-íe 
efte  mortalmente  ferido  ,  em  lugar  de  pronunciar 
hum  i^mavi ,  c  pedir  a  Dcos  mifericordia  ,  pedio 
também  elle  a  hum  dos  íeus  íoldsdos  ,  que  o  aca- 
bâíTe  de  matar  ;  teve  horror  o  fiel  VaíTallo  de  com- 
mcttcr  hum  tal  crime  ,  por  muytos rogos,  que  lhe 
fizeffe.  Entaô  Saul  ,  por  fugir  o  opróbrio  de  ficar 
prifioneyro  dos  feus  inimigos  ,  poz  os  punhos  da 
fuamefma  eípada  no  chaô  ,  e  já  defeíperado  poz  os 
peytos  fobre  a  ponta,  e  cahindó  com  força  fobrc 
ella  ficou  enfiado  ,  e  morto  :  Arripmt  iiaqne  Saul 
gladiumfmm,  &  irruit  fuper  mm.  Peyor  luccedeo 
aoEmp-rador  Ju-lianoj  cfte  de  bom  Catholico ,  pre- 
varicou em  peíTimo  Apoftata  ,  c  inimigo  declara- 
do de  noffo  Senhor  J  E  S  U  Chrifto  ,  períeguindo  os 
Chriflâos  com  tyrannias  em  todo  o  fcu  Império.  Ef- 
tando  hum  dia  paíTando  mofíra  ao  ícíi  exercito,  vi- 
rão todos  partir  do  Ceo  huma  fetta  ,  que  ém  direytu- 
ra  foy  ferir  os  peytos  do  Emperador.  Todos  cuy- 
divaó,  qu3  à  villa  defte  grave  câftigo  tornaria  cm 
fi;  mas  ellc  mais  obflinado,  e  endurecido,  vendo-íe 
eíaotar  defanpue,tomou  huma  maô  cheya  delle,  c 


31- 


lançando-a  em  alto  ,  coma  contra  o  Ceo 


gritcii 


blasfemando  :  Viciftí  ,  GaliUz,  victp.  Me  ten- 
Bar^m,  des  vencido,  ò  Gililco  (  aííim  chamava  elle  a  noí* 
foSenhorJESU  Chrifto;  me  tendes  vencido.  E  fc 
TuUano  o  conhece,  econfeíTapor  ícuDeos  vitorio- 
•*  lo, 


■'  :  '' 


Do  toftnentõ  dos  Soberbos.  19 1 

fo ,  e  triunfante ;  porque  naô  fc  lhe  lança  aos  pês, 
pcdindo»lhc  pcrdaôdeo  ter  perfegwido,  e  cem  hum 
peccaví  ganhar  na  hora  da  morte  o  Parai ío?  Porque 
f  como  diz  Saô  Gregório  Magno  J  cfíe  cafíigo ,  e  eiia 
vingança  de  Deos  he  rediflima  $  pois  pcrmitte  ,  que 
os  peccadores  ,  que  na  vida  fe  efqucceraó  fempre 
de  Deos  ,  na  morte  fe  cfqueçaô  de  Deos  ,  e  de  íi 
m  elmos  :  Hac  ammadver/iõtie  funitar  ^eccater. 
tit  moriendo  obltvtfcatur  fui  y  qui  vivendo  obUtns  (fi  J^^' 
Dei. 

Sendo  ifto  a  mcíma  verdade  ;  como  be  poflivel, 
que  a  falfa  preíumpçaô  de  hum  peccador  o  períua* 
da  ,  a  que  a  mayor  graça  ,  que  Deos  pòdc  fazer  a 
humjufto  ícu  Amigo, a  deva  conferir  ao  mayor  dos 
feus  inimigos  ?  O  mayor  inimigo  ,  que  Deos  tenha 
tido,  quem  cuydais  ,  que  feja?  Por  ventura  fera  ]^^'  „èsnm 
das  ?  Será  Mafoma  f  Ou  Neraõ  ?  Ou  Domicianof  ^^  ^^  * 
Nenhum  deftes  he  ;  mas  outro  muyto  pcyor!  Hc^mit. 
cfte  maldito  ,  chamado  peccavi.   Naõ  ha  feyticey" 
ro  (  diz  o  grande  MiíTionario  ;  naõ  ha  Turco ,  naõ 
ha  tyranno  ,  naô  ha  Antichrifto,  ou  Demónio  en- 
carnado,  que  tenha  feyto  tanto  damno  à  Igreja )  ou 
mayor  cftrago  nrs   Almas  j     e  que  tenha  induzido 
os  Chriflãos  a  commetter  defcaradamente  tantos  pec- 
cados,  como  efíe  falfo,  maligno,  e  detefíavcl  fee- 
íavL  Elle  heoCompIice,  o  Zeloío,  o  Soilicitador, 
o  Procurador,  o  Advogado,   o  Patrono,  e  o  Gua- 
rante  de  todos  os  peccadores.  Elle  lie  o  que  os  eíli- 
mula.  o  que  os  incita  ,  e  o  que  os  anima ,  a  ofíender  a 
Deos.  Elle  he,  o  que  lhes  tira -o  pejo  natural,  que  de- 
fende as  Almas  innocentes  dele  entregar  aos  vicios; 
e  o  que  lhes  fuffoca  o  rcmorío  da  confcicncia  ;  pois  íe 
naõhouveffe  cfle  traydor  enganoío  do  fercavi^  que 
lhes  ferve  de  afilo  ,  para  toda  a  maldade,  ninguém 
fe  acharia  taõ  falto  de  juizo^  que  quizeíTc  airífcar- 


1 

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191  Difcmfo  Vlh  \ 

fe,  de  trocar  hum  breve  gafto  defta  vida  com  a  eteÊ^ 
nidadc  das  penas  no  inferno.  Q  mayor  mimo,  o 
dom  maU  preciofo ,  que  Dcos  poíTa  íazer  a  bua  Al- 
ma eícolhida  ,  hé  o  concedcr-ihe  hum  perfeyto  ar- 
rependimento das  fuás  culpas,  hum  verdadeyro /?rí^- 
cavi  na  hora  da  morte.  Efte  feccavi  com ^  períeve- 
rança  final  íaò  as  arras  mais  certas;  íaô  os  penho- 
res mais  feguros  da  gloria  celeftej  c  faô  a  diípofiçaó 
mais  próxima  para  a  bemaventurança.  Já  he  ter  fu- 
bido  ao  ultimo  degrao ,  c  já  hc  ter  hum  pe  no  Pa- 
raifo.  E  que  razaõ  tendes  vòs  deprcfumir,  que  Deos 
dará  efte  dom  gratuito ,  cfta  graça  preveniente ,  e  ían- 
tiíicante,  ao  mayor  dos  ícus  inimigos ,  qual  he  eík  fal^ 
fo,  e  ád%x^zÁofeccavi>.  quando  as  Sagradas  letras  ,-os 
Concílios ,  e  os  Santos  Padres,  com  a  meíma  experiên- 
cia de  quantos  morrem  malcada  dia ,  nos  provaó  todo 

©contrario.  .    r  r 

ElRey  Faraó  não  podendo  já  mais  lofrcr  as  rc- 

Exa     pctidas  pragas  do  Egypto,  arrependido  recorrco  a 

^^^lo.  Moyíés,confeffando,quco  Reyde  Ifraelera  o  Rey, 

eDeosverdadevro.vPíí-r^-yr/w  Domimm  iJcum  -ue^ 

ftrum.  ElRey  Saul  ,  vendo  ,  que  o  Profeta  Samuel 

oadvertio,   que  Deos  eftava  irritado,  e  lhe  tinha 

dividido  o  Rcyno  em  varias  partes  ,  logo  moíirou 

''^'^'   o  íeu  arrependimento  :  Feccavt.qnm  p^avartcatus 

'^'       fum.  EIRev  Antioco  ,  depois  que  delcfperado  dq^ 

Médicos  vio  impoffibilitada  a  fua  cura  ,  humiham 

adterramhimúác.c contrito  fez  grandes  prometias, 

e  votos  de  reftaurar  o  templo,  de  prover  com  gran- 

des emolumentos  o  Clero,  e  de  reftituir  em  treido- 

bro  as  riquezas  ,  que  tinha  tomado    do   theiouro: 

porem  Deos  naô   quiz  aceytar  os  ícus  offerccimen- 

tos , nem  ouviras  íuas  orações,  nem  admittir  o  leu 

^:M^-Míopeccam,p^ra  uíar  com  elle  da  fua  bondade,  c 

eh.  9.    miícricordia  :  Oral^at  autem  hc  fceleftus  Domimm, 


i<«i'  ■  ri 


Dõ  mmentô  dos  Soberbos.  Hj 

k  qtio  mn  effet  mifericordiam  confecuturm.  Tambcm 
o  traydor  Judas  ,  arrependido  de  ter  vendido  a 
Chrifto,  fez  primeyro  a  rcftituiçaô  do  preço  da 
venda;  Posnitentia  duãus  retulit  tnginta  a-ígenteos, 
eonfcíTou  o  íeu  crime  de  leia  Divina ,  e  humana  Ma- 
geftadc  publicamente,  e  em  prcfcnça  dos  mcfmos 
Príncipes,  e  Miniftros  da  Sinagoga  com  dizer ,  qus 
pcccou  vendendo  hum  Deosjulto:  Peccavi  tradem 
fiinguinemjujlum.  Parece,  que  naó  podia  efle  fazei* 
mais!  E  com  todo  efte  peccavi^  buícou  deíefpcrad» 
hum  laço  para  íe  precipitar  mais  de  preíTa  com  os 
mais  peccadores  obftinados  no  Inferno:  Ahims  laque» 
fifujpendit.  Ide  agora  a  fiarvos  das  confiffoés ,  e  do  fec-, 
cavt  na  hora  da  morte  ,com  a  voíTa  falia  prcíumpçao, 
de  que  haveis  de  morrer  como  hum  Santo  Hilariaô 
arrependidos. 

Bemfcy,  que  muytos  malviventcs,  que  ainda 
naô  íc  íentem  com  a  deliberação  de  largar  os  Teus  yt- 
cios,  admittcm  eftes  cafos  por  verdadeyros  -,  porém 
dizem  ,  que  também  tem  ouvido,  e  vifto  exemplos  cm 
contrario  de  alguns  ,  que  viverão  mal ,  c  morrerão 
bem.  FuUano,  c  Sicrano  (  dizem  clles  )  parcciaô  mais 
Sardanapalos,  em  bufcar  todo  o  género  de  goftos, 
para  o  íeu  corpo  ,  que  Catholicos ,  em  cuydar  na 
íalvaçaôdafua  Alma ;,c com  tudo  leváraòboa  vida,^ 
efizeraôhumabelliíTima  morte.  Creyo  tambcm  cu,' 
queeíTcs  fariaôhuma  bella morte;  mas  naôfeíeguc, 
que  foíTe  boa.  A  mcíma  differença,  que  vay  entre 
huma  bella  morte,  ehuma  boa  morte  ,  he  a  mcfma, 
qtic  vay  entre  o  bello  tempo  ,  e  o  bom  tempo.Qiian- 
do  o  Cco  eftà  fereno,  o  dia  claro  ,  c  fem  nuvens, 
o  tcmpobebeHiíTimOi  porém  íe  a  terra  ctlà  árida, 
as  hortas  murchas,  c  as  plantas  fe  vaô  defecando ;  en- 
tão as  nuvens  bem  eíeuras ,  e  prenhes ,  faô  defcjadas, 
para  que  fc  dcícarregucm  cm  chuvasj  c  as  mefmas 

N  ~         iro- 


ftBV:9^dfs,.quc  daõ  muyta  agoa  ,  faô  obom  íem^ 
po/ O  Demónio  hémuy to  mais  afiuto,  e  fagaz  de 
nôs,,edo,.qucnôaCuydamos,i  porque  quando  tem  hum 
m9xij;>Ando^íc^uro,  Qa  po^rq^  eOe  fez  a  cx^nfiííaõ 
^^Â4!i^^^  ^^^<^°^  f^^^-as  circunftancias^ 
te^,,ou  as  çppfeqaencias  de  alguns  pcccados,  qucp§^ 
dem  publica  reílituiçaô  da  fama ,  da  honra,  e  de  jura-' 
meotosfalíos,  emdano  do  próximo,-  ou  porque  no 
teftarnentO/JDãp.  declarou  todas  as  dividas,  os  lucros 
c^ffanm^  e  dfnos  emergentes  com  reter  a  fazenda; 
aíhea,ou  alguma  demanda  injuíia,  para  deyxar  mais 
ríços  os  filhos :  então  o  Demónio  o  ajuda  a  repe- 
tir, todos  aquelles  ados  ,  que  lhe  vay  fuggerindo 
o  SciçerdotejcUe  meímo  lhe  mete  em  bocca  opec^ 
íf^íV/V  e  lhe  faz  beyjar  muytas  vezes  o  Crucifixo, 
que  tem  na  mão.  E  que  couía  pretende  com  ifío  O; 
Demomo  f  Pretende  ,  que  os  Religiofos ,  que'  lhe 
aíiiftlraõ,  digão ,  que  tomarão  ter  clles  bua  morte^ 
femelhante.  E,  que  fe  divulgue  em  toda  a  Cidade  a 
grandeza  da  miíericordia  Divina  ;  pois  fuilano ,  que 
era  ã.ptra  fcanâali  do  Povo  ,  morreo  como  hum 
S.Paulo. Oh  aftucia  diabólica  !  Oh  eípirito  arcima- 
ligno/  Eu  bem  conheço  o  teu  engano.  Naõ  dey- 
xafle  morrer  aqucUe  bomem  com  finais  de  Precito, 
como  era  j  porque  conhecefíe  ,  que  muytos  ,  que 
visViaô  mal ,  comoclle,  íe  ouviíTem  dizer ,  que  mor- 
rera como  Precito ,  que  era  Jogo  íe  diíporiaô  a  fa- 
zer huma  verdadeyra  confiííaoje  mudariam  vidajc- 
agora  com  efla  enganofa  apparencia  os  incitas  a  con- 
tinuar no  pcccado  ,  com  a  preíumpçaô ,  de  que  na 
ultima  doença  fe  confcíTaráó,  e  morreràó  prcdefti- 
nados;  e  então  lhes  metes  tantas  vezes  era  bocca 
efte  peccav-i-i  e  o  nome  de  JESUS  j  porque  íabes ,  que 
Deos  não  golia ,  nem  agradece ,  que  louvem  ,  e  hon-: 
rem  o  feu  nome   com  a  lingpa,  gij^ni^o,  p  .eoracaó 

■      ""  '     eílá 


rtwh 


Do  tormento  iotSohrbos.         ' ijry 
'«Mniay' loíjge  deíle  :  Popilus  hic  laUis  mehcniPntt,  Matih. 

•€&r  autemillomm  longe  eji  à  me,  ^S' 

.-    .  Naõ  hs  crivei ,  quanto  noíTo  Senhor  JESU  Ckú- 
íloeftimaíTe  aconfiiraò  cie  S.Pedro,  quando  pergun- 
tando aos  Apoi^olos  ,  quem  diziáo ,  que  eiie  foi- 
íc?  Refpoodérãof  huns,   que  o  BauCiik  j  outrxDSi 
•que  Eiias ,  ou- Jeremias.  Porém  quando  perguntou  a 
cilesmefmos  ,quem  era;  Fos  aurtemqtiem  metjfedt^ 
<ííí4^.   E  vôi  Ra  verdade  quem  dizeis,  que  eu  íquí* 
Heípondeo  logo   Pedro  ;  Tu  es  Chriftus' Filius  Dei 
í;/z;/,  Vos  íois  noíTo  Senhor  JESU  Chrifto,  Filho  do 
verd.idc7ro  Deos.  E  tanto  lhe  agradou  efta  confíí- 
íàõ,  que  o  declarou  jà  Bemaventurado  em  vida,  e 
o  fez  feu-Vigayro  íia  terra  ,coníignando- lhe  as  chaves  ^^''^« 
doParaifo,  c  do  Inferno.-  Beatus  es  Simon  Barjo.       '■ 
na,.,,  tibi  dabo  claves  Regni  Calúrum,  Pelo  con- 
trario lemos  em  S.  Marcos,  ecm  S.  Lucas ,  que  eíiando 
o  Demónio  no  corpo  de  hum  in  vaia  do  fez  ameíma  ,., 
confiiTaô;  Jefu  Nazarene ,  fcw  te  qiiísfis  ,  Sanãits         ' 
'Del.   Lhe  chama  JESUS ,  e  o  conhe<:e ,  e  kbe  muítõ 
bem  quem  he,  e  lhe  chama  Santo  ^  cairida  que  os 
attributos  Divinos  faõ  todos  infinitamente  perfeitosi 
todavia  o  da    Santidades  excede  a  todos  ,    e  com 
tudo ,  Chriflo  o  reprehende  :  Et  tncrepãvit  iJlum 
JESUS.  E  Saó  Marcas  acere fcen ta  ,  que  Chriilo  o 
ameaçou  ,  obrigando-o  a  callarfe  ,  que  riaô  queria 
ouvir  na  fua  bocea  os  ícus  louvores  ,  nem  que  pro- 
nunciaíTe  o  feu  nome :  Et  commmatns  efteijefm ,  dl- 
eensrOhmutefcê'.  Entra  aqui  a  agudeza  do  juízo  dé-'^^>'^'t 
S.  Agol^inho,e examinadas  ambas  de  duas-clLiseon4  ^• 
ítíTcés,  argumenta  alfim.  Se  a^  palavras  íaò  as  mef^ 
mas,  e    tem  o  mefmo  fentido  ,  e  ílgnific^eão ,  dò 
conhecer,  e  dar  louvores  a  Dcos;  coríio  as' obrái^ 
e  os  effey tos  faõ  tão  diverfos  ?  Pedro  premiado,  c  á, 
Demónio  reprehendido !  IMl-fyal^tímm'  ifite  -^i-^ 

N  z  con' 


ti 


1^5  Dtfcurfo  Vlh 

Attgufl.confejfi0nes.  Um  v»x  y  &  fa^a  diverfa  :  PttrusUít^ 
Serm  i,  ^atur  ^  &  Dcsmõn  compefcitur.  Sabeis  porque  (dtz 
^^^^^'  o  mcfmo  Santo  Agoíiinho  )  porque  os  louvores,  que 
Pedro  dava  aChriftocom  abocça,íahiaó-lhe  do  co- 
ração >  que  eftava  abrazado  do  fogo  do  amor,  que 
tinha  ao  íeu  Mcftre ;  e  o  Demónio  o  louvava  íupcr- 
ficialmcntc,  e  bem  contra  a  fua  vontade  ,  par  te» 
mor  ,  que  o  fizeíTe  fahir  à  força  ,  como  fez  ,  da- 
qucile  corpo ,  que  elle  meímo  tinha  invafado :  Ir$ 
Fetr&Uudatur  amor ;  in  Doemom  damnatur  timor» 
A  mcfma  difFerença  fucccde  às  vezes  na  hora  da 
morte  entre  as  Almas  efcolhidas,  e  prcckas»  Tod^ 
dizem  bcHiíRmas  palavras  y  e  repitcm  muytas  vezes 
o  peccaví.  E  bem  pôde  fucceder ,  que  alguas  Almas 
reprovadas  bcyiem  mais  vezes  o  Crucifixo ,  e  chorem 
mais  lagrimas ,  que  as  cfcolhidas ;  mas  nem  por  ifío 
Peos  olhará  muyta  para  cHas  ;  porque  conhece, 
que  as  nâo  derrama  pela  contrição ,  c  dor  dos  fcus 
peccados  5  mas  porque  tem  pena  de  deyxar  eík 
Mundo, aonde  vivia à  fua  vontade jbeyja  o  Cruct- 
íixo,  nâo  porque  o  ame  j  mas  porque  ,  tcndo-odef- 
prczado  tantas  vezes ,  tem  medo  delle ,  que  como 
Juiz  lhe  de  a  fentença ,  que  merece ,  com  conde- 
nallo  ao  Inferno.  Se  recomenda  ás  oraçoens  âo 
todos ,naô  para  a íua  Alma,  pois  clíe  não  quereria 
morrer ;  mas  porque  eípcra  com  ellas  farar  da  doen- 
ça, G  íe  lhe  prolonguem  os  dias  da  vida. 

Luís  Undécimo  Rey  de  França,  defejofo  de  vi- 
ver muy  to  tempo,  affirana  mefa,como  em  outras 
partes,  onde  fe  achava ,  tinha  íempre  o  Medico  pre- 
fcntc,  para  que  em  caio  de  doença  acerta íTe  lo- 
go na  cura,  O  cffipsndio  pois  do  Medico  quanta 
mais  grandiofo  ,  tanto  roais  era  extravagante ,  c 
differente  dos  outros ;  porque  fhc  dava  cincocnta 
cruzada*  cada  dia ,  cm  que  ElRcy  le  achava  de  pè  ,  e 

€om: 


Oo  tormento  dosSoberhs.  ^97 

,côm  íaudc ;  porem  em  todos  aquelles  dias ,  que  caj- 
...veffe  doente,  ou  com  algum  achaque  nacama  ,ceí- 
'.fava  o  cftipendio  ,  c  nada  lhe  dava.  £  com  tudo, 
quefoíTe  decompieyçaò  forte,  e  robuík,  a  Tua  vi- 
da eftragada  o reduzio a  huma  doença  perigoía,  que 
idepois  de  uíar  todos  os  remédios  ,  íe  defcubiio 
incurável.  Náo  fe  achando  remédio  na  terra,  ^ov  ^^^^jj;* 

■  ncceíTario  buícalo  do  Ceo  j  c  aíTim  aviíaraô  a  Elíley, 
que  em  Nápoles eftavaSaô  Francifco  dePauU,quc 
era  o  Taumaturgo  daquelle  feculo,  e  que  dcUe  ío 

■  podia  eíperar  a  íaude.  Mandou  logo  ElRey  em  buí- 
ca  do  Santo  ,  que  com  toda  a  diligencia  chegou  a 
fua  preícnça  j  c  lhe  perguntou  ,  íe  o  queria  íarar  da- 
quel  la  doença.  O  Santo ,  para  encubrir  a  fua  vnTude, 
reípondeo.  Eu  irey  fazer  oraçaô  ;  porém  he  ne- 
ccíTario,  que  fe  façao  oraçoens  publicas ,  porque  a 
oraçaõdemuytoshemais  poderofa  para  com  Deos. 
Ordenou  ElRey,  que  fe  expozeíTe  o  Venerável  Sa- 
cramento daEucariftia  em  todas  as  Igrejas;  porem 
vendo  elle,  que  a  ordem  do  Santo  dizia  ,  que  to- 
dos rogaííem  a  Deos  pela  Alma  ,e  faude  de  E^Rey, 
diíTe  logo  afilm.  Náo  convém  pedir  tantas  éouías 
juntas  a  Deos  i  bafta,  que  o  Povo  rogue  a  Deos  fo- 
mente pcU  faude  do  feu  Rey.  Foy  repreíentado  por 
Deos  tudo  ifto  ao  Santo  na  Oraçaòjoqual  foy  log^ 
ao  Paço ,  e  diíTe  ,  que  bem  podiaò  avifar  a  ElRcy. 
que  trataíle  da  fua  Alma  ;  pois  Deos  naò  queria 
darlhe  a  íaude  do  corpo.  Naó  lhe  deraÔ  credito  ,  c  ^^-^^J^^ 
aíHm  morreo ,  como  viveo  (  como  diz  S.  Bernardo;:  ^^^ 
,Clualí4  vita.,  mors,  &  ita.  AíTim  ordinariamente 
íaóos  propoíicos,e  o  peccavi  dos  moribundos , que 
viverão  mal;  porque  todo  o  íentido  do  coração  deíks 

he  a  íaude  do  corpo,  para  ficarem  com  as  creaturas 
no  Mundoí  e  para  ir  com  o  Creador  para  o  Ceo ,  pro- 
íiunciaó  opeccavi  fomente  com  o  exterior  da  boeca. 

N  5  Suc: 


i  \\, 


12. 


Succedé  a  efícs ,  que  pre fumem ,  c  fe  fazem  fò'ip2 
X^^  ^covíi  o  pccãvi  da  bocca,  c  naõ  decoração,  o 
que  íuccedeo  ao  exercito  de  Ephraim ,  gente  cori- 
fíada ,  e   prefumida ,  que   injunamentc    intimou  a 
M?>.3  guerra  a  Jephte,  ameaçando-o  de  q^ueymalio  vivo, 
e  a  toda  fua  família :  Incendemus  te  ,    &   demum 
tuam.  Ouvindo  Jephte  eíla  temerária  preíumpçaõ, 
rcípondco  prudente  :  Glnid  commerm  ,  ut  adverfum 
me  cõnfurgatis  in  praltum  ?   E  que  mal  vos  tenho 
fcyto  ,  para  me  obrigares   a  pelejar  com  vofco  ? 
Mas  vendo,  que  ifto  hia  de  veras ,  eíquadronou  a 
fua  gente  deGalaad,  entrou  em  campo,  prefentosj 
a  batalha,  e  Epraim  ficou  derrotado  cm   numera 
de  quarenta  e  dous  mil  ,  entre  mortos  ,  e  fugidos. 
Mandou  logo  Jephte  huns  Regimentos  ao  cíireyt6 
do  fiio  Jordaõ  ,  por  onde  forçofamente  haviaõ  de 
pa{rar,para  tornarem  à  fua  terra.  Encontraram- fe 
ncHe  paffo  huns   com   os  outros  ;  os  de  Ephraim 
cheyos  de  temor,  porque  fugitivos  da  batalha, que 
tinhaõ  perdido  5  e  os  de  Galaad  animofos  ,  como 
vencedores i  e  porque  efles  intentavaõ  tirara  vida 
aos    de    Ephraim  ,  lhe  pergunravão.  Vôs  íois  da 
Tribu  de  Ephraim  f  Naõ  (refponderaõ  elles )  mas 
fomos  de  Galaad.    E    para    melhor  os   reconíiecer» 
lhes  repreguntavaõ  os  de  Galaad :  Die  ergo ,  Schibb&^ 
ht?  Mas  como  os  de  Ephraim  naõ  eraõ  cuttumados 
a  pronunciar  cfta  palavra  ,  Schibheht  ^  que  he  toda 
gutural,  efaz  força  ,  como  fe  lahiííe  do  fundo  áo 
eftamago,  diziaô  SMet ^  com  a  ponta  da  lingoa, 
que  jà  naó  tem  a  mefma  íigniíicaçaõ  ,  e  fentido  j  c 
aílim  conhecidos  logo  os  degoIavaô,e  lançavaô  no 
Jordaõ.  Nâô  he  acafo  ,  o  permittir  Deos,  que  nas 
Mom      ^^^''■^^^s  letras  fe  regiíirafTe  eftc  Texto ;  §uaci{mque 
j^,  '     entm  fcrifta  funt  -i  ad  noftram  dô0rmamfertptafrnt*> 
( Nos  eníma  Saõ  Paulo )  E  Chrifto  exhorta  a  todos^ 

,  naõ 


Dõ  tormehtdàés  Soberbos.  199 

Oaõfóakras  Efcíífeuras,  mas  a  perfcrutalas ,  e  pe- 
a^traros  lentidos ,  que  nos  períuadcm  ,  e  conduzem 
4íalv^|fi5:  Scrutamini /criaturas.  Ifto  íuppoao;  a 
'.^aíTagefli  do  Kiojordaò  lie  oeftreyto  da  morte  ,  já 
que  ocuríodejje  riovay  acabar  no  mar  morto  i  co- 
mo também  o  curío  da  noíTa   vida   acaba  com  a 
iBorte.  A  palavra  Jordaô  ,  na  lingoa    fanta  íigni- 
Ifiça  Euvws  JudíCit ,  e  por  ifto  efta  paíTagem  he  raò 
perigoía  ,  e     faz    tanto    medo ,  porque  depois  dii 
morte  íegue-íe  logo  o  juizo.  Os  noíTos  inimigos,  que 
faô  os  Demónios  ,no3eíperaô  nelle  eftreyto,  e  neí- 
ta  paíTagem.  Todos^  aííim  bons,  como  mãos  con- 
feííaõ,  que  faô  peccadorcs  ,  implorando  a  Divina 
ipifcricordia  pedem  perdaô  a  Dcos  ,e  dizem  peuam, 
peccavi.  Porem  vay  entre  ellcs  hua  grande  diferen- 
ça. Osjuftos  eftaõ  cuftumados  a  pronunciar  o  pec- 
cavi ,  como  palavra  que  fahe  do  fundo  ào  feu  co- 
ração arrependido  ,  c  que  defeja  veríc  livre   deite 
Mando  por  medo  de  tornar  a  peccar.  Os  Réprobos 
pronunciaò  o  peccavi  naôfahido  do  coração,  occu- 
pado  com  os  deíejos  das  delicias  do  Mundo  ;  mas 
exteriormente  ,  com  a  ponta  da  lingoa  por  medo  da 
morte  ,  que  já  lhes  efíâ  na  garganta.  Por  iflo  lhes 
fuccederá  o  mefmo,  que  íuccedeo  aos  quepronun- 
ciavaó  fócdm  ahoccâ SMet,  com  íerem  lançados 
para  fempre  no  Jordaô  do  inferno. 

Hum  Mariícal  de  França  Governador  de  Lingua- 
doca  era  o  Tyrannodaquella  Província ,  pelas  muytas 
injuftiças,e  oppreíTocs,  com  que  dellruhia  pobres, 
e  ricos.  Veyo  a  morte  appreíTada,  que  a  penas 
lhe  deo  tempo, de  lhe  por  na  bocea  o  peccavhq^^^ 
nunca  teve  no  coração;  e  de  ordenar  ,  para  encu- 
brir  o  eícandalo  ,  com  que  tinha  vivido  ,  que  amor- 
talhaíTem  o  feu  corpo  em  hum  habito  de  Saõ  Fran- 
ciíco,  íem  cuydâr  de  reílituir  a  fama,  a  honra,  e 
r„.  N  4  afa- 


il  í! 


20Ò  Dlfcurfò  Vlh 

a  fazenda.  Hum  Villaõ,  que  tinha  íí do  arruinado- pe^' 
la  fua  ambição  ,.vendo-o  naquelle  íacco  de  peníten^. 
eia  diíTc^Marircal  ^  Marifcâi^  desfarça  aqui  quan- 
to quizeres  r  que  tu  vás  para  hum  paiz,  aonde  te  ti- 
rarão Togo  eíTa  maícara  ,,  e  o  teu  desfarce  nada  te  ha 
de  valer.  E  que  rifadas  da^raó  os  Demónios  a  huma 
Alma,  quando  entra  no  inferno ,  que  em  quanto  vi- 
veo  n^ftc  Mando  tratou  o  fcu  corpo  eom  Eodos  os^ 
mimos  ,e  delicias  da  fen  fua  lida  de  ,  c,,depois  de  mor- 
to, ordena, que  feja  veftido  com  o  cilicio  de  hum  bu- 
rel Santo  .'Daqui  tome  cada  hum  o  verdad^yrodeíen- 
gano  ,  confirmado  por  Santo  AgoRinh©  ,  o  qual  diz,. 
"^AuT-ds  que  qtiera  referva  o  dizer  js>^í'í-í2'ci,e  fazer  penitencia 
Civ.      na  hora  da  morte,  fô  por  milagre  íe  poderá  íalvarrs 
Deu     Foemtentia  [era ,  raro  ver^.  ' 

Quero  acabar  eíle  difcurfo  ,porondeo  come- 
cey.  C^eyxa-feo  SantoJob,q,ue  a  peccador,  dan- 
MzA  ^*^*^^"'^  Dsos  lugar  ,c  tempo ,  para  fazer  penitencia, 
«bufa  delle  por  íbbtrba:  Dêàit  ei  Deaslocíímfsem^ 
tentí£ ,  ó"  tile  eo  ahuútur  in  fu^erbiam*  E  que  cafía 
de  foberba  he  efta,  que  abula  do  tempo,  que  Deos 
lhe  deu  para  íe  arrepender  ,    fenaõ  a  prefumpçaô 
dáquelle  traydor,  e  lalfo  feteum^i  na  hora  da  mor- 
te. Oh  engano  diabólico  !  E  íe  cu  vos  provar ,  que 
naquellahora  vôs  mefraosnaõ  haveis  de  querer  dizer 
o  peccãvi  ,  nem  arr.ependervos  ;  ficareis  então  de- 
A^Qc.^  Í€nganados  ?  Ouvi  a  Saô  Joaô :  Dedi  eitemfus  ^up 
fcsnitentiam  ageret  ,  &  mn  utãt  píenitere.  Reparay 
naquelle  non  vult ,  naõ  quer.  Naò  falta  Dcos  com; 
lhe  dar  tempo !   "Dedi  et  tetnpiis,  Naõ  falta  o  Confcí- 
íor ,  que  o  cxhor.ts  á  peniteneia  :  Vt  fcenitcntiam 
ãgereS.  Ecom  tudo  diz,  que  naô  quer;.  Nanvult, 
E  porque  naô  quer  f  Porque  nunca  quiz  ,  quando 
efíava  faõ  jtTiuyto  mais  agora  ,  que  eítá  moribundo.) 
Qiiantas  vezes  metem  íucccdido  noBrafil,e  íucce- 

de. 


■^ 


Do  tormento  dos  Soherhos.         20 1 

áe  muytas  vezes  cm  toda  a  aparte  •,  que  chamado  a 
confeffarhum  doente  de  perigo ,  rcfpondc  elle,que 
torne  cm  outro  tempo,  que  ainda  naõ  cflá  taõ  mal, 
ou,  que  ainda  não  cfíà  preparado,  e  depois  tornan- 
do, eftá  o  doente  como  deíefperado  da  faudc,  cm 
que  íó  cuyda ,  aílim  como  dcíeípcrado  da  íalvaçaô ,  na 
qual  nunca  cuydou.  E  deftes  taes  cflá  o  inferno  che^ 
yo.  Mas  porque  atê  agora  vos  tenho  moftrado  o  en- 
gano, edefengano  àcí\c  peccaví  i  acabo  cem  vos  dar 
o  remédio ,  para  que  eík  peccavi  aílim  cm  vida ,  co- 
mo na  hora  da  morte  vos  aíTegure  infallivelmentea 
Paraiío.  > 

Meu  Senhor  JESU  Chrifío,  cis-squi  proílrada 
aos  voíTos  facratiíTimos  pès>a  mais  indigna,  e  vil 
creatura  doUniverfo.  Naõ  me  atrevo,  comooPu- 
blicano ,  levantar  os  olhos  para  o  Ceo  j  porque  a 
grande  multidão  dos  meus  peccados  me  deíaníma, 
me  perturba ,  e  me  confunde.  Sey  ,  que  tenho  me- 
recido milhões  de  vezes  o  inferno,  e  jà  não  mereço 
o  perdaô  ;  mas  fey  também  ,  que  fé  não  me  quizcífes 
perdoar,  e  não  dcfcjaíTes  íalvarme,  já  a  cfta  hora, 
a  minha  Alma  eftaria  ardendo  naquelle  calabouço 
de  fogo :  Nijiquia  DomintíS  adjuvajfet  me ,  paulo  mi-  Pf.^^^i 
nusinmfernohabitâjfet  anima  mea.  Por  tanto  ,  meu 
Deos  ,  meu  Senhor,  meu  Salvador  ,  e  Rcdempror 
meu ,  feccavi ,  pequey  .^e  pezame  de  tcdo  o  meu  cora- 
ção de  vos  ter  ofFendido  ,  não  por  algym  intcreíTe 
meu,  nem  por  medo  da  morte,  ou  terror  do  infer- 
no, que  tenho  merecido;  mas  por  ícres  aquelíe, 
quefois,  digno  de  fer  infinitamente  amado.  To- 
mara eu  agora  ter  o  fervor  da  penitencia  dos  Nmi- 
vitas  j  o  arrependimento  de  David;  3  dor  da  Magda- 
lena  ,  e  as  lagrimas  de  Saô  Pedro  ,  para  com  elles  de- 
íeflar  ,  aborrecer ,  c  chorar  os  meus  peccados  ,  e 
amarvos  com  amais  fina  compunção  da  Alma.  Pro- 


i  '1 


i| 


102  ^     Dlfcurfõ  VIL 

ponho  firmemente  de  nunca  mais  peccar,  c  atHiuaí-, 
mente  deyxar  toda  a  occafiaó  ,  quemepjíTa  induzira, 
perder  a  voíTa  fanta  graça.  Eftou  rcíolutiíTimo  de  per-  ■ 
der  tudo,  antes  que  perder  avós;  porque  tudo  he^ 
nada  fenn  vôs ,  e  vôs  fois  todo  o  bem  infinitamco- , 
PUlm  te  bom.  Senhor  falvaymej  porque  fou  todo  vcíTo,- ^ 
128.^*  Tuusfum  ego,falvumme  fac.  Fazey  efte  Adto  de  Con- 
trição todoi  os  dias  peia  manha  logo  depois  de  levan- 
tado da  cama  i  e  á  noyte  antes  de  vos  dey tar ;  c  cu  vos 
promctto  ,  que  o  voffo  feccavi  na  hora  da  morte  fera . 
o  mcf mo,  que  tantas  vezes  tendes  repetido  em  vida,; 
e  paíT-ireis  a  gozar  de  Deos  com  os  mais  Bemaventu- 
rados  na  Gloria ;  ^lalis  vita,  morsy  &  ita. 


Dis. 


n 


/ 


TORMEIVJ  TODOS  AVAREJSTTOS 


DISCURSO  VIII. 


Do  Tormento  dos  Avarentos. 

Nolite  errare  ,  neque  fures  ,  7^eque  Avari 

Regnum  Dei  pojjidehunt. 

Corinth.  i.  c.  6. 


E  verdade  ,  que  Deos  no  feti- 
mo  Mandamento  do  íeu  De- 
cálogo prohibe  immediata- 
mentc  o  í\ino:Nonfuraherii, 
Naô  furtarás. Mas  he  cambem 
certo,  e  por  confequencia  in- 
fallivel,que  prohibe,e  conde- 
na também  a  Avareza  ,como 
diípoíiçaò,e  occafíaõ  próxima» 
para  furtar,e reter  o  alheyo.  Apenas  entrou  Ghriflo 
noíTo  bem  no  Templo ,  que  armado  de  zelo  lançou  fo- 
ra com  o  açoute  na  mão  todos ,  os  que  compra vaõ ,  e 
vendiaô ,  e  desbaratou  as  meias ,  fazendas ,  e  dinhey- 
ros  :Et  enm  wtroijfet  m  Temfhniy  c^epit  ejicere  ven-  Mar  cl 
dentes,  &  ementeSy&menfasnummuíariorum^&  eathe- » i-  »^? 
dvas-vendentmm  everttt.  Perguntaõ  os  Santos  Padres^ 
qual  podia  íer  a  caufa  de  tanta  ira,  e  zelo  do  Salvador? 
Tendo  cllc  hum  natural  taõ  knigno,e  íuave  ;  porque 

ánal- 


#1^ 

'***i"*;- 


204  Dtfcurfo  VIU. 

finalmente ,  que  mal  faziaó  aquelles  Mercadores ,  que 
vcodiaô.ecompravaò  no  átrio  do  Templo  ovelhas, 
e  pombas  ,  que  também  lervião  para  o  Sacriíicic/ 
Saô  Joaõ  Chryfoftomo  he  de  parecer  ,  que  a  avareza, 
e  o  iníaciavel  dcíejo ,  que  tinhaó  aquelles  negociantes 
de  enriquecer ,  foy  o  fogo ,  que  accodeo  a  juíta  ira  de 
Clirifto;  pelo  que  os  lançou  torado  templo  i  para  nos 
enfmar ,  que  os  Avarentos ,  e  os  que  furtaô  ,  ou  retém 
a  fazenda  alheajeraõ  para  femprc  excluídos  do  cc- 
leílial  Templo  do  Paraifo ;  Nolite  errar e ,  neque  fu^^ 
Cor  A.  ^^í )  »^f  «^  Avari ,  Regmm  Dei  pojfidebtmt.  E  etk  lerá 
ííí^.16.  o  argumento  defte  difcurfo,  em  que  moftraremos 
com  as  Efcrituras ,  com  os  Santos  Padres ,  c  com  a  ex- 
periência ,  que  he  moralmente  impoífivci ,  que  hum 
Avarento  íefalve,  e  eile  íerà  o  primeyro  ponto  :e  no 
fegundo  viremos  ,  que  o  deter  ,  ou  o  naô  querer 
rcftituir  a  fazenda  alhea  ,  he  hum  dos  íínaes  mais  cer- 
to, e  infaliivel ,  de  viver ,  e  morrer ,  nefta  vida  antici- 
padamente  reprovado. 

He  moralmente  impoífivel ,  que  íe  íalve  o  Ava- 
rento, por  dous  princípios;  hum  da  parte  de  fi  meí- 
mo, o  outro  da  parte  da  graça  de  NoíTo  Senhor  Je- 
íu  Chriílo.  Da  parte  do  Avarento;  porque  tendo 
todo  o  feu  coração  nas  riquezas  ,  quanto  mais  lucra, 
ou  furta  ,  tanto  mais  defcja ;  e  aflim  naô  ceíTara  mais; 
porque  naô  mudará  mais  a  vontade  de  lucrar  ,  e  o 
deíejo  depoíTuir.  Da  parte  de  JESUChrifto  he  mo- 
ralmente impoífivel,  que  afua  graça  mude  a  vonta- 
de do  Avarento,  cm  quanto  a  mefma  graça  depende 
da  íua  cooperação  J  porque  lendo  o  ouro  ,  o  dinhey- 
ro ,  e  as  riquezas  o  feu  ídolo ,  c  o  feu  Dcos  ,  para  que 
entre  abraça  de  JefuChrifto  naíuaAlma^,  deve  pri- 
meyro quebrantar  efte  ídolo  i  com  deípufe  da  del- 
ordenada  aíFeyçaô  às  riquezas  ,  reftituir  logo  o 
aiheyo,  e  amar' a  pobreza  do  eípirito,  para  gozar 


Do  tormento  ào$  Avarentos.  s  o  5 

da  Berna vcnturança  dos   Filhos    de   Deos  :   Beaíi  ^y^^^ij^ 
panperes  J^iritu  ,  quoniam  Filii  Det  locabuntnr.  A  . 
€xperiencia  moíira  cada  dia  o  contrario ,  verifican- 
do-fc  o  que  diz  o  Efpirito  Santo,  que  os  olhos  do  £ccUf. 
Avarento  faõ  infaciaveis;  Infatiabtlís  oculus  cfípidi.  c;.i4. 
Perguntas.  Bafilioj  qual  feja  aqueile,que  com  ver- 
dade íe  pode  chamar  Avarento?  ^M,  quafo^eft BalíLho: 
Avarus  ?  E  rcfpondc  com  elle  também  S.  Ambroíio,  zdeDi^ 
que  no  Texto  Sagrado  todos  aquelles  fe  chamaò '2'^'*^/ 
Avarentos,  que  tendo  bens  baftantes ,  para  paffar  ^'*''''' 
a  vida  ,  conforme  ao  fcu  cftado ,  nâo  eíiaô  conten- 
tes; mas  defejaõ  ,  c  cobiçaõ  íempre  mais  fazenda: 
Ille  eft  Avarus  ,  qm  ea^  quod  fatú  ejje  debet^non 
eji  contentus,  E  Santo  Agcíiinho  diz ,  que  não  fó  íe  ^^^g  ^ 
deve  chamar  Avarento,  quem  furta,  ou  retcm  o 
alheyo  ;  mas  também  aquelle,  que  com  demaíiada  ^ 
aíFeyçaõ,  c  cubica  guarda  o  fcu;  Non  foJum  Avarus  ^^^j^ 
$Ji  t  qm  raptt  aliena  ,  fed  qm  cnfide  fervat  fita.  E  dívw. 
prova  cfta  verdade  com  dous  cafos   referidos  por  yí»íer. 
boccadomefmo  noffo  Senhor  JESU  Chrifío  no  feu 
Evangelho. 

O  Rico  Avarento  não  era  Ladraô ,  naõ  tinha  co- 
mércios injuflos,  era  pontuai  em  pagar  os  falarios 
aos  ferves,  cas  obras,  que  mandava  fa;zcr  aos  cífi 
ciaesre  hc  certo,   que  não    tinha  vicios  ;  pois  o 
ter  boa  mcfa ,  e  vcflir  bem ,  convinha  ao  eftado  de 
grande  Fidalgo ,  comodie  era-,  e  íe  tivcííe  fcyto  al- 
guma injuíHça ,  ou  crime  ,  Chrifío  (  como  diz  S.Ago- 
flinho )  ohaveria  publicado  no  fcu  Evangelho:  Si  .      „ 
'vis  feire  crimen  diviiis ,  nohahiéd  quarere ,  quàm  qnod  ^^^^^ 
audis  à  ver it  ate,  E  qual  foy  logo  a  ca  ufa  da  iua  per-  1^,4» 
dijaó?  Foy  o  fcr  Avarento.  Tudo  paraíí,cnacla  psi- verbis 
ra  os  pobres  ;  Epíihbaítir  quotidie  f^Jendide  ,  ifidue-^^"^' 
^atur purpura  ,  &  byJÍ^*  E  por  iíío  foy  fepultado  no 
Inferno:  EtfipuUm  efi  in  Inferna.  Mais  me  admiro  ^«tf.i;^ 

da 


1 1 


ijn  ''ífrii 


Mattk 


Mm  th. 
19.23. 


Lhc.i^ 


Marc. 

10. 


Ecelef. 
10- 


Ecclef. 
iO.2.0. 


to6  Difciírfo  ¥111. 

daqiielle  moço.,  que » íencio  naícido  mujr  rícô  v  prb- 
guntou  a  Chriíto,  o  que  havia  de  fízer  para  nlcaneáy 
oParaifoí'  Magiflerhmn-.quiâ  bini  fauarn^  ut  hã" 
beam  vitam  ee temam   ?   Reípondendo-lhe  Chrirto, 
que  guardaíle  os  Mandamentos:    Servd  mandata. 
Eiks  (  replicou  o  Minccbo)  tenho  eu  íempre  guarda- 
do jdsíde  a  minhi  mocidade.  Muyto  beni,  diíTe  o 
Senhor.  Pois  íe  quereis  íer  perf^yto,  vendey  quan.. 
to  tendes ,  e  diy  aos  pobres ;  vinds  comigo ,  e  íegui- 
mè ,  por  o-nde  vou ;  St  vis  perfe^us  ejfé ,  'vende  qtice  ha- 
bes  \  ó*  da  Pauperibus  ,  é^fequere  me,  Qaimdo  o  moço 
■ouvio  faiiar  em  defpropriarfe  de  quanto  tinha  ,  cal- 
Jouíe,  deyxou  3  Chriilo,  e  foyfe  malencolico:  Et  abitt 
irijhis.     Eis-aqui    dous  ricos  ,  qus  nada    furtáraõi 
nem  rcciveraõ  o  aiheyo  ,  e  ambos  de  dous  íe  perde- 
rão ,  íem  terem  mais  outro  vicio,  que  amarem  def- 
ordeQidamcnte   as  fuás    riquezas  ,  e  terem  muyta 
fazend-í  .•  Habebant  mm  multas  fojjeffiones.  E  íin- 
remfe  mais  no  feuouro,  e  dinheyro  ,que  no  mefmo 
Deos ;  e  por  iíio  pronunciou  ChriBo  aquella  íentcn- 
ça  ,  que  moftra  como  impoQivcl  o  fal  varem- íe  os  ri- 
cos, dizendo,  que  era  maisfaçilypaíTar  hum  Came- 
lo pelofundo  dehumi  agulha,  que  entrar  hum ticõ 
noReynodo  Ceo.  E  o  repetio  duas  vezes:  Et tte- 
rum  dico  tobí^  ^fãcãiuseft  Camelum  fer  foramcn  açus 
tra?ifire  ^  quàm  divitem  intrare  in  Regnum  C(ehriim. 
E  em  S.  Marcos :  Gitíàm  dífficiU ,  quipecumas  habent  sm 
RegmímDetintro.bmit.  ^   ' 

Ja  muytosannos  antes  di  vinda  de  Ghriíío  Te  liaó 
no  certamento  velho  inveâivas  contra  os  Avarento?.*' 
Avaro  niBil  e[t  fcelejlms.  Que  naô  havia'^Coufa  no 
Mundo  mais  perigoía  para  o  ma!,  emuyto  abominá- 
vel, que  o  Avarento.  Eaccrcfcenta  também,  qtie 
nâo  havia  maldide  mais  iníqua  ,  que  amar  o  dinheyro: 
Nihil  efi  míquius,  qmm ^misire  femm0f^'  Reparoj 

que 


<*...l 


Dotúvmefifõ  iosAv&mitos.         107 

quicdaô  diz,  qukmfurari-i  que  o  furtar?  más  é'\% 
amare  pecuniam  ,  amar  o  dinheyroj  e  dá  o  Sagrado 
Texto  a  razaô  5  porque  quem  ama  com  demaíiada 
affeyçaõ  o  dinheyro  ,  venderá  com  muyta  facilidade 
a  ftia  Alma  :  Hk  mim  &  animam fuam  vendem  ha  '^-i^cUj', 
btt.  E  o  Profeta  Jeremias  chora  a  maldade ,  e  ruinéi  '°•^^• 
do  género  humano  ;  pois  em  todos  os  cfíados  raro 
he,  o  que  vive  izento  defte  vicio  da  Avareza:  Ami-^'^^*^- 
norétifque  ad  maior  em  emnes  avayiúa  fiuâent  ^  &  à^^^ 
Propheta  ufque  ad  Sacer dotem.  Acham- íe  homens j 
que  vivem  na  opinião  de  bons  Catholicos ,  fe  conr 
fcíTam  ,  e  commungaô  todos  os  mczes ;  não  ouvireis 
deiieshuj  palavra,  que  ofFendaj  trcquentaô  as  Con- 
frarias} íaõ  Juizes,  e  Mordomos  delias;  cicompanhaõ  o 
Venerável  aos  enfermos ,  e  faô  de  edifícacao  a  todos, 
.orem,  Ic  os  tocais  no  intereííe,  os  achareis  taõ  pega- 
dos na  fua  fazenda  ,  que  açoutarão  os  efcravos  como 
tyrannos ,  íó  porque  quebrarão  hum  vidro,  ou  hum 
púcaro  de  barro,  ou  porque  não  acabarão  a  íua  ta- 
refa ;  Omnes  avaritiaftttdent  a  minore  nfque  ad  ma^ 
iorem, 

E  que  diremos  das  mulheres  ^  Não  fazem  cilas, 
peyor  ,  efpecialmente  neíia  noíTa  terra  doSraíll  ?  To- 
do o  feu  cuydado ,  e  íentido ,  como  he  fexo  mais  de- 
voto,  heiris  Igrçjas  fazer  as  fuás  devoções,  alliiiir 
ás  Novenas  .coafefTarem-fe.e  commungarem  muy- 
tas  vezes.  Tudo  ifío  me  parece  muyto  bem;  mas 
também  delias  fc  pôde  dizer  com  o  Profeta,;  Om- 
nes avaritiaftudent.    E  que  efíranha   ,   e   fordida 
avareza  tem  alguas  delias  ,  e  permitta  Deos,  que  não- 
íejaõ  muytas!  Toda  a  íua  grandeza  coníifle  era  ter. 
h;u3  quantidade  de  efcravas  ao  redor  do  feu  efírado,    . 
humas  cuíhircyras  ,    outras    rendeyras  ;    eíbs  ao 
ganho',  aquellas  a  vender  as   mefmss  rendas  ,  que 
•fazem^-ofuflento  dcljâs,  jà  fe  fabe,hebuma  pouca 

■de 


I       ! 


'     #  1 


„.  !  » 


io8  Difcurfo  VIU. 

de  farinha  de  páó ,  com  algumas  bananas  ,  ou  alg5is 
ervas  cozidas,  ou  legume* ;  quando  os  ha ,  ou  lhos 
diõ.  Aquellas ,  que  fazem  rendas  ,  ou  cufturas, 
aindaquc  ícjaô  occupadas  entre  dia  em  algum  ferviço 
dacafa^  íempre  hão  de  acabar  afua  conta,  ícnaõ 
poderfer  dedi:i,fejadenoyte,  com  lhe  tirar  o  deí- 
cançoneccíTariodo  íono.  As  que  vão  ao  ganho, ou 
vendem,  íenáoachâo  a  vendera  renda  pelo  preço, 
que  quer  a  Senhora,  para  não  íerem  açoutadas  ven- 
dem o  íeu  corpo  i  e  aquellas  do  ganho  não  achnndo, 
que  ganhar  de  dia  com  o  ícuíerviço,  fazem  fervir 
o  feu  corpo  de  noyte  para  ganhar  com  menos  tra- 
balho. Oh  que  avareza  íuja,  e  enorme  he  efta  !  Oh 
que  pcccado  hediondo  !  Oh  que  delido  execran- 
do, ainda  peyor  do  que  o  abomina  o  Efpirito  Santo  / 
Pois  tal  mulher  por  amor  do  dinheyro  vende  aíua 
Alma  ao  Demónio;  Animam [uam  vendem  habet. 
Mas  pelo  intereíTe  de  poucos  vinténs ,  obriga  as  luas 
cícravas  ,a  pòr  cm  Icyiaô  o  feu  corpo  ,c  vender  as 
íuas  Almas ,  que  não  cuftárâo  menos ,  que  a  morte, 
c  Pâyxâo  de  N. Senhor  JESU  Chrifto ;  e  depois  de  ref- 
gatadas  com  o  íeu  prccioíiíTimoíangue  obrigalas  a  pa- 
decer eternamente  no  Inferno. 

Efte  vicio  da  Avareza  nefta  noffa  era  reynarà 
também  cm  alguns  Ecclefiafticos ,  como  nos  tem- 
pírí«?6pos  de  Jeremias?  A' Trombeta  ufqtie  ad Sacerdotem, 
Oxalá,  que  aíTim  não  fora:  porque  pelo  modo  com 
que  vemos  viverem  agora  alguns  Sacerdotes  daLcy 
da  graçi  ,  faô  ainda  mais  Avarentos ,  do  que  foraõ 
os  da  Ley  cfcrita.  Comecemos  pelos  Vigayros  ,  e 
Párocos.  Vaga  huma  Fregucfia ,  ou  Paroquia  ,  que 
rende  quinhentos,  ou  feiscentos  mil  reis.  Oh  quantos 
Clérigos  ao  concurfo !  Sabem  muy  bem  todos ,  que  o 
Bifpo  não  deve,  nem  a  pôde  dar  dejuftiça,  fcnão  ao 
mais  douto ,  e  mais  digno :  e  fc  naõ  tendes  cíludado, 

em 


DõtômefitóMÃi3arentos.         109 

ou  fe  fabeis  fomente  quatro  caíos  lidos  em  algum 
livro  vulgar,  como  aveis  de  reíponder  em  latim  no 
exame,  efoltaros  argumentos?  Rcípondcráô,  que 
tem  Amigos  ricos  ,  que  fallaráò  ,  c  peytaráò  aos 
Examinadores  ,  e  que  para  ajuftar  a  coníciencia  ba- 
ila ter  hum  bom  Coadjutor, que  faça  tudo.  Má  dou- 
trina ,  c  peyor  coníciencia,  por  naó  dizer  peílima  íi- 
monia.  E  para  que  ferve  huma  Igreja  tão  opulenta, 
encarregando  todo  o  trabalho  a  outrem,  com  guar- 
dar íó  para  fi  orendimcnto  com  as  funções, que  lu- 
craô,ou  daõ  honra?  Bem  íey,quc  diz  Saô  Paulo; 
Çlui  altar i  deferviunt , ci4m  altar iparúcipant.  Aquel-  ^  ^^^  ^ 
Ics,  que  fervem  ao  altar,  devem  participar  das  fen-   ' 
das  do  altar;  e  por  ifto  os  Sagrados  Cânones  expli- 
caô  efta  participação  com  dizer :  Qnidtari  jerviunt^ 
de  altar i  vívant.  N^ò  dizem  ditejtanty  que  enriquc- 
çâo  5  mas  que  das  rendas  do  altar  fe  lhe  dê  hua  côn- 
grua fufficientc  ao  feu  eftado ,  para  viverem  j  fendo 
claro ,  que  os  bens  Eccleíiaftieos  ,  por  ferem  patri- 
mónio de  Chrifío ,  tirando  aquelle  tanto, quanto  for 
prcciío  para  o  puro  fuftento ,  Rão  fe  podem  gaíiar  em 
outro  ufo ,  nem  com  os  mefmos  parentes ,  fe  naô  fo- 
rem neceííitados,  quando  de  boa  razão  (  como  dizem 
os  Santos  Padres )  fe  deve  aos  pobres.  Muytos  Sa- 
cerdotes pois,   naõ  he  crivei  ,  quanto  commum- 
mente  íejaõ  dominados  da  Avareza  comprando  ,  c 
vendendo ,  fem  pejo  ,  nem  cfcrupulo  como  nego- 
ciantes ,  que  fó  trataô  do  bem  das  Almas ,  quando 
cfperaõ  algúa  conveniência.  Apenas  cac  doente  al- 
gum mercador  rico ,  ou  algum  Miniflro,  ou  peíToa 
capaz  de  dependência  ,  logo  os  Párocos  ,  os  Coadju- 
tores, e  Capelláes  correm  para  a  íua  caía  ,  para 
lhe  aíTiílir  com  os  Sacramentos ,  e  fe  a  doença  crefce, 
mofeafafiaôdo  arredor  do  leyto.  Sabe-íe  que  ha  de 
tomar  o  Viatico  j  oh  que  concurío  de  Capelláes ,  c 

O  Cie^ 


Qlcfi^mmtcrVQml  Nunca  o  Venerável  he  tãp  viâne* 
rado!  No  nieiíno  tempo  entraô  os  Regulares,  eíie 
com  o  manto  deN.  Senhora  da  Saúde  ;  outro  como 
Menino  j  E  S  U  S;  efte com  alguma  relíquia  de  algum 
Santo  da  íua  ordem  5  aquclle  com  fazerlhc  fazer  voto 
de  alguma  Novena ,  ou  romaria  j  e  defta  mancyra  fica 
a  cafo.  cheai  de  Sacerdotes,  c  Regulares.  Admiro, 
c  louvo  o  grande  zelo  de  falvar  elkAlmaj  porem 
reparo,  que  no  mefmo  dia  cfláo  na  Cidade  muytos 
doeniics  de  perigo  tão  pobres  ,  que  apenas  achaò  al- 
gum veíinho ,  que  por  caridade  vàavifar  o  Vigayro, 
ou  o  Coadjutor  para  os  Sacramentos)  e  lhe  reípon- 
dem^quenodiafeguinte.  Efiaô  muytos  Negros ,  e 
Negras,  huns  forros,  e  outros  capcivos  deytados 
íobrc  hu3  eíleyrâ  em  çaíebres  deíemparados  de  todo, 
€  conhecendo  ,  que  íeihe  chega  a  hora  da  morte ,  não 
cuydão  em  remédios,  ou  alívios  docorpo,  mas  íó 
pedem  confiíTaô  para  íalvarcm  as  fuás  Almas.  Vay 
algum  Caritativo  àFregucfia  ,  acha,  que  o  Pároco 
cííà  mal  diípofto ,  eque  o  Coadjutor  efíà  íóra  ;  cfpc- 
r^  por  eliç ,  e  lhe  refponde ,  quç  vá  bufcar  Confeííor 
a.  algum  Convento,  que  elle  não  pôde  ir,  por  ter 
huaoccupaçâoprecifa.  Vayao  Convento, efe  he  de 
noytc, acha  acorda  da  campainha  amarrada,  e  na5 
pôde  tocar,  porque  os  Religiofos  repouíaó;  íe  vay 
de  dia,  lhe  reíponde  o  Porteyro,que  os  Religioíos 
tem  fuás  occupaçóes  da  Ordem ,  que  torne  ao  íeu  Pá- 
roco, a  quem  toca  por  razão  do  officio,ede  jufli- 
ça  ,  pois  he  eíiipendiado.  Entretanto  o  pobre  jà 
perdida  a  falia  ,  e  o  eícravo  jà  efpirando  ,  ambos 
morrem  fem  confiíTaõ.  Mas  como  pôde  íer  iíio.?  Se 
foíTc  em  outras  terras,  me  calaria  5  porém  nas  noífas 
Conquiíias,  é  Monarquia  Portuguezi ,  aonde  a  Fé 
Catholica  ,  e  o  Zelo  de  íalvar  as  Almas  fobrepuja 
as  mais  Nações  !   Naó  parece  crivei,  E  com  tudo 

aíTim 


Doíoréêntò  dos  ^Bentos.  ^^^ 

aíTim  fuccede.  Pois  com  tanto  zelo,,  e  fervor,  párai 
falvara  Alma  de  hum  Rico,  correm  Ecckfíaaicosjf 
c  Regulares  à  ftia  caía  fem  ferem  chamados ,  e  para^ 
o  miíeravel  eícravo  ,ou  para  algum  pobre  ninguém : 
íe  move ;  todos  íaô  occupadòs  ?  fím !  Porque  ^  como- 
diz  Jeremias  :  Omnes  avaríttaftudéht  k  Frofheta\_ 
ufque  ad  Sacerdotem.  O  Rico  tem  que  dcyxar,  ha 
de  fazer  teikmento,  dífporá  ao  menos  da  íua  terça 
em  obras  pias ,  lhe  farão  hum  encerro  íumptuolo; 
cada  hum  procura ,  que fc  enterre  na  íua  igreja;  oií-- 
íroaigutiCapellàdeMiíías;  outro  algum  dote  P^râ"      ^^ 
algúa  ParcntaOrfaâ ,  ou  Pobre  :  Omms  avarttiíefiu-  ^^     ' 

dent. 

Quero  dar  fim  a  eftc  paragrafo  com  hum  calo, 
que  íuccedeo ,  ha  mais  de  trinta  anoos ,  em  hum  en- 
genho do  mato  do  recôncavo  da  Cidade  da  Bahia. 
ConfeíTo,  que  quando  mo  contarão, e  moUràraô  o 
•lugar  ,  na  primeyra  MiíTaô  ,  que  fiz  naquella  para- 
gem i  me  ficou   de  tal  forte  impreíTo  na  memoria, 
,.quc  me  obrigou  aefcrevelo,  para  que  íc  conheça, 
quanto  pôdc''eík  vicio  da  Avareza,  ainda  cm  hum 
•Ecclefiaílico,  quando  de  pobre,  e  faminto  quer  cn- 
•thefourar  dinhcyros.  Chegou  na  frota  dos  Navios 
do  Porto  hum  Sacerdote  mal  veflido  ,  e  peyor  trajado^ 
t  logo  buícou  de  íer  Capellâo  em  hum  engenho.  Fof 
provido ;  e  o  Senhor  do  engenho  vendo-o  tão  pobre', 
e  humilde  lhe  deu  hum  Negro ,  para  o  íervir  ,  c  hum 
■cavalio,  para  acudir  àsConfiOToês  dos  applicados  à 
fua  Capella,  além  do  cRipendio  de  quarenta  mi4 
tós,e  outros  tantos  dos  feus  applicados,  e  a  MííTa 
■quotidiana   de  dous  toftocns  cada  diai  que  nunca 
lhe  faltava,  pois  fupria  o  Senhor  do  engenho,  pard 
que  a  diceííe  pelas  Almas  dos  feus  Defuntos.  Ganhou 
vémdous,  ou  três  annos,  para  comprar  quatro  ,  oti 
rcincoeíicravos í  eo  Senhor  do  engenho  lhe  deu  hum 


J 


.'J  ti 


I     I 


ii^  .       Dl/cuvjò  VUh 

pedaço  da  tcrira,  para  plantar  canas /rendia  o  Cana: 
veal  felizmente, e  fazendo  bom  acucar  comprou  mais 
eícravos  com  bois,  e  carro.  Vcndo-fe  cile  com  fa- 
zenda, náo  tratava  jà  das  ConfiíToês ,  nem  dobem 
das  Almas  j  naõ  falíava  fc  naô  de  intereffc ,  e  de  ren- 
dimentos. Toda  a  fua  occupação  era  aífiftir  no  Ca- 
naved ;  elle fazia  de  Feytor , e  juntamente  de  eícra^ 
vo,  trabalhando  com  a  enxada  na  maõ  entre  ellcsj 
porem  o  íurtentocra  taõ  limitado,  que  naôpodiaõ 
aturar  o  fer viço j  nem  elle  paíFava  melhor;  porque 
vendo  os  feus  Frcguezes.  que  já  tinha  fazenda,  naõ 
lhe  mandavaõ  mimos ,  e  elle  como  Avarento  paíTa- 
varaiferavelmentepornão  gaftar  dinheyro.  Chegou 
finalmente  o  tempo  de  gozar  do  feu  trabalho  j  c 
foyocaío  ,  que  carregando  o  feu  açúcar  nos  carros^ 
para  o  conduzir  ao  porto  da  mar ,  como  o  caminho 
era  cheyo  de  lamas,  fuccedco  ficar  o  carro  metido 
em  hum  atoleyro,  íem  que  os  bois  podcíFem  arran- 
cai© ;  e  cora  a  diligencia  hum  dos  bois  ficou  também 
atolado.  Quem^  diíTe  ,  que  os  Avarentos  íaõ  cegos, 
diíTe  bem.  Oh  cegueyra  inaudita!  O  Sacerdote  por 
mb  perder  o  boy  ,  refolveo-fe  a  entrar  no  lamey- 
ro  i  c  pondo  os  hombros  dcbayxo  do  jugo  ,  di^ 
zia  cora  voz  alta  ao  cfcravo ,  que  tinha  a  aguilhada 
na  mão  f  deyxa  eftar  o  boy  ;  pica-me  a  mim  ;  c 
pica-mc  bem.  O  efcravo  pafraado  da  cegueyra  de 
feu  Senhor, e  pela  veneração ,  que  tinha  ao  caradler 
Sacerdotal,  picou  o  boy  eom  tal  violência, que  fa- 
zendo hum  esforço  para  fejcvantar  ,dea  comhuma 
ponta  nas  coftelas  do  Sacerdote  ^  que  lhe  eílava  à 
ilharga  puxando  debayxo  do  jugo ,  que  não  pode  di- 
zer  outra  palavra  fenâo  cila.  Ah ,  que  o  meu  boy 
me  matou  \  E  efle  foy  o  nome  de  JESUS,  que  invocou, 
c  foy  o  Acflo  de  Contrição ,  que  fez  j  c  arrancando-fc 
o  boy  vivo,  ficou  o  Sacerdote  no  alolcyro  morto. 


i  I 


'^««:cu«st«aa.>J^&2!ik^i^s<C« 


«..M 


DõtôvmentoãõSÂvàventosl  ^^3 

Úmms  avarltU  ftudent  i  Propheta  ufque ad  Sacerd@z 
tem,h(^im  vaò  a  acabar  os  Avarentos. 

V   Virto,  que  a  mayor  parte  dos  homens  faõ  domi- 
mdos  por  efte  vicio  da  avareza ,  continuemos  agora 
a  dizer  as  razões,  c  provas ,  porque  he  moralmente 
impoílivel^que  os  Avarentos  fe  íalvem.  Para  poderem 
falvaríe,  devem  (como  diíTemos  no  principio)  mudar 
de  vontade,  ediípirfe  do  amor  demafiado  ,  que  tem 
às  fu3s  riquezas  ;  mas  de  tal  forte  eftaõ  arreygados 
cm  accrefcentar  a  fazenda,  que  defejaô  ter  lemprc 
fnais ;  c  por  muyto  mais  ,   que  tenhaô  jfempre  co- 
mo hidropicos  do  ouro  ,  eda  prata  nunca  cflá  farto 
o  kudelc]o,  cubicando  as  riquezas  com  mayor  fede: 
Cnfcit  mdtilgens  fibi  dirus  hydrops.  giuoplus  fmt  po- 
ta , phsfiúuntur  aqu£.  Coníiderando  S,  ^go^^i^^^^/r^^-^  g- 
as  palavras  do  Profeta  Ifaias;  Repleta  eji  terra  ar-^ 
gento^&  auro-,  que  aterra  eíkva  chea  de  ouro,  c, 
prata,  repara  ,  que  não  difíe  o  Profeta,  que  ficaíTe 
também  cheyo,c  farto  o  coração  do  homem  !  Terra  Au^ 
ímpleri  poteft  ,  cor  non  poteft.  Poderàô  as  minas  áotbt» 
Brafil  dar  mais  ouro  cmpò,  que  não  daô  áreas  meu- 
das  as  prayasdo  mar  j  poderá  o  Peru  ,eo  Potoíi  dar 
tanta  prata,  que  nâoa  poíTaô  carregar  todos  os  na- 
vios mercantes ,  e  do  regiftro ,  com  tudo  para  a  cubi- 
ca do  coração  do  homem  fera  pouca  couía,e  defe- 
jará  íempre  mais.  As  cargas  das  nãos  tem  lua  medi- 
da ,  cfla  chea  ,  não  tomaõ  mais  carga.  O  coração 
dos  homens  avarentos    não  tem   medida  ;  quanta 
mais  carga  tem,  tanta  mais  deícjaõ,  até  fc afunda- 
rem na  rnorte ,  irem  improvifamente  a  pique  ao  la- 
ícxno:T€rr  a  impleri  poteft  ■yVdrmnpoteji. 

Todos  os  vícios,  cpayxôes  humanas  ordinaria- 
mente íe  vencem  com  hum  deftes  três  remédios  ge- 
racs.  Ou  por  hum  feliz  fucceíTo,  ou  por  humcafo 
deiaflradojOU  por  fraqueza,  e impotência  danatu- 

O  j  3feza. 


1:1.  .;• 


^ 


I  í  ■ 


;f  I 


ií4  Bifeurfo  Vlll. 

reza.  Apparcçâ hum  vingativo,  com  a eorâçaõ todd 
fogo, traz  a  honra  na  ponta  da  efpada,  náo  cuydíi 
fc  nâo  em  vingança,  etodo  a  feu  kntido  de  vin- 
garfe  ^  cora  matar  aa  inimigo :  fuccede  humaocca- 
ôaõ  de  íaiff  com  mayor  brio ,  c  luflre  do  empenho, 
ou  por  htima  infpiraçâo  Divina  de  fazer  hum  adio  he- 
róico, e  ganhar  o  Paraiíode  hum  golpe  ,com  defpre» 
zar  â  honra  fantaíiica ,  que  conílíle  naquelie  penía* 
mento.  Que  dirá  o  Mundo  L  No  mcfmo  Lnlknte  de 
Leaô  fe  faz  Cordcyro  y  torna  a  embainhar  a  cípada^ 
abraça  o  inimigo,  e  em  lugar  da  morre,  lhe  dá  a 
mái.  AífimfezSaôJoa5Gualbcrto,que  de  peccador 
íoy  hum  grande  Santo ,  e  Fundador  da  Ordem  dos 
Vailombrafíanos.  Hum  ambicioío  de  honras  náa 
deícança  ^  atè  alcançar  aquellc  pofto  ,  tâo  defcja-r 
do.  Depois  que  o  pefiTue,  não  fe  contenta ,  mas  faz 
o  poífivel  para  chegar  a  torto,  ou  dircyto  àqueila 
dignidade  \  e  eftando  já  no  cume  das  f«as  grandezas,, 
entra  a  emulação  dos  competidores ,  c  a  enveja  dos 
pretendentes  j  vira  aroda  da  fortuna  ;  cahe  na  def» 
graça  do  Príncipe  j  todos  o  deyxão ,  e  todos  fogeni' 
dellc.  Efte  mao  fucceíTo  lhe  faz  conhecera  vaidade 
do  Mundo,  quejà  lhe  aborrece,  como  ieconfíante^' 
c  como  traydor  ,  e  virando-lhe  as  coíbas  ,  entra 
em  hua  Religião  obfervaíite  ,  para  fervir  a  hum  Rey^ 
que  nunca  falta  ,  nem.  lhe  pode  faltar ,  com  darlhe  a 
paz, e  quietação neft^a  vida,  ena  outra  a  bcmaven* 
íurança,  Aílim  íuccedeo  a  Saó  Pedro  Gonçalves» 
PaíFeava  cfte  veftido^  de  belliííima  gala  fobre  hum 
Cavallo  ginete ,  com  os  arreyos  bordados  de  ouro^ 
c  prata ,  que  parecia  hum  Sol  brilhante ,  fazenda 
pompa  das  fuás  luzes.  Hum  improvifo  íalto  dò 
Cavallo  com  hum  contratempo  não  elperado  ba*; 
fíou  para  hum  total  ecclipfe  defle  luzido  Planeta; 
porque  cahindo  vcrgonhofamentc  cflendido  no  lodo, 

de 


n 


Do  tõMèktô  dôs  Avârentõf.         1*5 

<fè  cfpelho  da  vaidade,  ficou  cípedaculo  de  riío. 
Levantou  íe ,  e  vendo-íe  tão  deforme  j  c  eícarnecido 
mo  quiz  mais  Cavalioi  mas  aíTim  envergonhado, 
com  os  olhos  bayxos  foy  aportaria  deS.  Domingos, 
^dcípindo-fe  das  galas,  defpcdio  os  criados,  dizen- 
do} daqui  nâo  fahirey  mais  fenão  Religioío.  Eis- 
aqui  como  hum  mao  fucceffo  íerve  de  defenganoj 
abre  os  olhos  da  Alma,  €  troca  hum  moço,  devaõ, 
efoberbo  cm  hum  Santo  humilde.  A  íraqucza  ,  a 
doença,  e  a  impotência  naõ  tem  menos  força,  para 
áararhum  luxuriofo,  ainda  ,  quefeja  habituado  de 
«luytos  annos  nas  íuas  torpezas.  Dcíenganem-íc 
todos  aquclles,  que  dizem  não  lhes  fer  poflivel  paf- 
íarnefta  vidaíem  os  delcytes  da  carne,  que  fenaó 
deyxarem  efíc  vicio ,  virá  hum  dia ,  em  que  o  vicio 
deyxarà  a  elks,  Lembrem-íe ,  que  a  velhice  ,  a  na- 
tureza cançada ,  os  marbos  gallicos ,  e  outros  acha- 
ques ,  os  fará  incapazes  de  ufar  mal  do  fcu  corpo, 
que  foy  creado  ,  para  fer  Templo  de  Deos.  Sey, 
que  muytos  debayxo  das  cinzas  da  inipotencia  da 
corpo  tem  na  imaginação  ,  e  peníamento,  confcr- 
vando  fempre  aceío  eík  fogo  dcshonefto ,  Icvando-o 
comíigo  atè  á  fepultura.  Mas ,  que  digo  ,  ate  á 
fepultura!  O  levará  com(igo  atè  o  Inferno;  elhc 
durará  por  toda  a  eternidade  $  porque  morrendo  etn 
peccado  mortal  com  aíFedlo  defordenado  aos  deley« 
tes  da  carne ,  aquella  íua  fantafia ,  c  imaginação  de- 
pravada lhe  ficará  como  huaefpccie  imprcíTa  fempre 
£xa  ,  fem  nunca  poder  dar  hum  momento  de  goíio 
ao  íeu  deíejo  j  mas  pouco  importaria  o  íer  para  íem» 
pre  privado  deíle  gofto ,  com  mu  m  atè  aos  brutos, 
íenãotiveíTe  outra  cípedeirapreíTas  quehade  to- 
lerar tormentos  iníoffrivcis  eternamente.  Oh  que 
deíeíperaçaô !  Oh  que  batalha  cruel  da  própria  von- 
tade,  contra  apropria  vontadç.  Nunca  ter,  o  quG 


■  ■  'í'  -  1 

,)  i^'! 

h  I 


ti^  Bifcm/o  VI ti 

^uer  ^  c  femprc  ter,  o  que  naô  quer ;  fcmprc  def^ 
j^r ,  e  querer  deleytc&  momentâneos  y  e  nunca  telos» 
nçm  par  hum  inftante  i  nâo  querer  ,  c  aborrecer 
tormentos  ^  e  penas  ,  e  íempre  telas  eternamente! 
Eíla  coníidcraçâo  bem  digerida  no  entendimento^ 
£  confervada  cada  dia  na  memoria ,,  fey  ,  que  impri- 
mio  GÍpecies  de  tal  modo differentesem  vários  meus. 
GonfeíTados ,  que  nâo  quizeraa  mais  cuydar  ,  nen* 
ver,  nem  ouvir  fallar  em;  tarpezas.  Fizeraõ  dane^ 
çeííidade  virtude ,  e  quanto  mais  hediondos  eraã  os 
achaques  ^  tanto  mais  debilitada  era  a  natureza ,  e 
íerviam-lhes  de  remédios  mais  eíEcazes  <,  para  a  falva- 
ça5  da  Alma.  Seguiaõ  adoutrinade  Saò  Paulo :  Hu^ 
Rem.e,manum  dico  propter  tnfirmitstemcarnúvefiraficutk 
€a%  enim  exhihuifti^membraveftra^  ftrvm:  immundttia!, 
&  miquitatt  >  ad  imqmíatem^  ,  ita  num  exhibete 
membrâvejlrafervire^jullitiain  fanãificatiomm.  Do 
íobreditolc  infere  fer  verdade  j que  todos  os  vicios^ 
epayxôes,tem  íeu  remédio^  ou  era  hum  feliz  fuc- 
ceíToj  ou  em  hum  caía  deíeí^rado^  ou  na  im poten- 
cia,  ou  enfermidade  do  corpo..  Porem  na  Avareza 
mohe  aílim;  antes eíks  três  remédios ,  que  deííroera 
todos  os  mais  vícios ,  lhe  fervem  de  oleojc  enxofre^, 
que  mais  lhe  acende  o  fogo  infaciavel  da  íua  co- 
biça* 

Quanto  mais  feliz  he  hum  Avarento,  tanto  mais 

.      íe  augmenta  afua  payxaô..  Santo Agoftinho  diz ,  que 

"Asigtiít.  ^  Avareza  he  femelhante  ao  inferno ,  que  nunca  diz 

Serm^ad^^^^  .•  AvãTiúdefi abyffminfatiãbilh ,  qua nunquam 

fr.d»     dicitfuffidt.  O^  eiemcntos>  tem-  íeus  1  imites  y e  todas 

Er^m,   as  cotíías.  tem  íeu  tçrpo  ^  e  £m.  Sô  a  Avareza  não 

tem  limite,  nâo  tem  termo  ,  nem  tem  fim.»  Omnia 

r      .,../?'^'  termina  clàuduntm  ^fohavafítianullo  dauditun 

^í*^'fine..  0|  bonsv  ou  mãos  íucceffos^  de  nada  fervem 

gara  a  çmenda  de  hum  A.vareato  j,  íe  tem  perdas  no 

.       ;  "  Hiar, 


/ 


n 


J)o  tormento  ão$  Avaventou         i^7 

mãr^  ou  deígtaças  na  terra,  entra  emtriftezas,  c 
para  reparar  os  danos,  e  recuperar  o  perdido,  naô 
ha  violências  ,  que  naô  faça ,  não  ha  injuíiiças ,  a 
que  não  íe  atreva  i  porque  não  paga  as  dividas,  op- 
•prime  as  viuvas,  e  engana  os  orfaõs,  e  deíie  mo- 
V    do  diz  Saõ  Jeronymo,  que  a  Avareza  he  hum  mal 

lem  remédio,  que  nunca  fc  fará  ,  nem  com  a  indi-         ., 
gcncii  ,  nem  com  a  abundância  ;  Semper  jivarus  ^^^l^r 
eget ,  cvjus  avantia  neque  inópia, ,  neque  copia  minui-  cad.^í 
tur.  Por    ventura  a  infermidade  ,  a  fraqueza ,  ou 
outro  achaque  incurável  curará  eíle  vicio ,  e  ícráo 
único  antídoto  defta  pefte  da  Avareza  ?  De  nenhúa 
íortc.  Poderá  por  ventura   ler  ,  que  a  neve  da  vc» 
Ihicc  esfrie  o  ardor,  e  cubica  de  fempre  ter  mais  fa- 
zenda ?   Menos  o  fará  ;  pois  a  Avareza  he  hum  fo- 
go laô  induflriofo ;  que  para  fe  confervar ;  Scit  (co- 
mo diz  o  Poeta  )  nivibus  fervare  Jidem.  Ao  menos 
na  idade   já  decrépita  ,  quando  a  morte  lhe  cfiarà         ^ 
diante  dos  olhos,  então  o  Avarento  fe  refolverà  a 
deyxar  tudo  ?  E  fcnao  tudo  ,  ao  menos  o  que  lhe 
não  for  precifamente  neceíTario  ?  Tudo  ao  contra- 
rio fcrá;  porque  então  a  Avareza  augmenta  mais  as 
forças ,  quando  adverte  ,  que  a  natureza  já  proflra- 
da  vay  diminuindo  as  fuás.  E  ( como  diz  Santo  Anto- 
nino) quandoo Homem  vay  envelhecendo,  fempre 
vay  defeaindo , porque  perde  as  forças,  e  íc  rende 
mais  fraco  j  porém  a  Avareza,  quanto  mais  velha 
fe  faz  ,  tanto  mais  íe  remonta  ,  c  fe  rende  mais  for-  ^  '^«^• 
te ,  e  potente  .*  Catera  vitia  homtne  inveterafcente  fe-  P^^^-"^'. 
tíeftiifít  ^fola  avantiajuvenejcit.  Fica  logo  certo  dele»^  ^*  ' 
geerdinaria  fer  moralmente  impoílivel)  que  hum  Ava- 
rento mude  aíua  vontade  de  peíTuir,  e  accreícentar 
fazenda  5  pois  nenhum  dos  remédios  a  diminuem  ,,anf- 
tcs  todos  a  augmentaô. 

E  Í£  todos  os  remédios  humanos  não  tem  eíS^ 

caci^ 


'  ,1 


I\ 


íh.6. 


itr8  mfcttvfo  VIU. 

'cacia  f^ra  mudar  a  vontade  de  hum  Avarentoi  ée 
modo  que  defapegue  a  fua  afFeyção   deíordenada^ 
que  tem  ao  dínheyro  ,  que  hc  o  íeu  idolo ;  a  graça 
de  noíTo  Senhor  J  £  S  U  Chriao ,  que  tudo  pôde ,  naõ 
poderá  moFcr  a  vontade  de  kum  Avarento ,  e  tro- 
carihc  o  coração  dcmodoqucqueyra  antes  fer  hum 
Lazaro  pobre ,  e  entrar  no  Paraiío  ,  que  ficar  hum 
Rico  Avarento  j  e  íer  íepultado  no  inferno  ?  Naô  r 
attendendo  à  cooperação  ,  que  da  fua  parte  deve 
pôr  o  me f mo  Avarento ,  e  fem  a  qual  nunca  o  fará 
noíTo  Senhor  J  E  S  U  Chrifto ,  íem  fazer  hum  miiagrc 
prodigioío  ,  que  não  íe  deve  preíumir  ,  ncmefpe* 
car  íem  húa  grande  temeridade.  Hc  belliflimo  o  rc^ 
paro ,  que  a  eííc  propofito  faz  Saô  Joaò  Chryfoftomo. 
Quando  Deos  quer  farar  os  pcccadores  dos  outros 
vicios  ,  acha  íó  a  dificuldade  no  mao  habito  daquel- 
Ic  vicio.  Mais  claro.  Quer  Deos  introduzira  virtu- 
de ^a  humildade  em  huma  Alma,  achaíóa  dificul- 
dade da  parte  do  vicio  contrario ,  que  he  a  foberba. 
Quer  cftabclccer  a  caridade,  e  a  pureza^  e  fó  lhe 
faz  refíííencia  a  luxuria.  Quer  introduzir  a  paz,  a 
quietação,  e  o  amor  do  inimigo  ,  e  fó  experimeo^ 
ta  contrarias,  â  ira  ,  a  çokra,e  a  vingança;  mas 
quando  íe  trata  de  eíiabelecer  o  defprezo  das  rique- 
zas ,  não  íó  acha  refiílencia  da  parte  da  Avareza; 
mas  de  todas  as  mais  payxõeSíC  vicios,  que  todos 
unidosXe  oppocm  como  ramos  dependentes  da  fua 
arvore  ;  porque  fcomo  diz  Saõ  Paulo )  fendo  a  Ava- 
reza a  raiz  de  todos  os  males,  e  de  todos  os  pecca- 
'  dos :  Radíx  omnium  maior  um  efl  cupiditas  ^  arrancan? 
do-fecfta  ,  fícaõ  íecos,  e  arrancados  todos  os  mais 
vicios.  Quem  tem  dinheyro,  e  pcíTuemuyta  fazen- 
da ,  tem  honras ,  tem  dignidades  ,  tem  boa  meia, 
temos  deleytes,  que  quer,  tem  dependências,  tem 
Amigos  ,  e  tem  criados  j  todos  o  bufcaô ,  todos 

o  íer-? 


tiTniiariíinainti  r^i-t-í^r  iH^KN 


Do  mmentúdóí  Avarentos.  2 1 9 

©  fervem ,  todos  lhe  obedecem,  atè  os  mefmos  vicies:  Eceíef,^ 
Pecunia  obedíunt  <?»^/^  ^  e finalmente  quemdinbeyro  ^^t 
tiver,  fará  o  que  quizer»  Ora  vcjaó  que  reíiftencia  a« 
charà  a  graça  de  noffo  Senhor  j  E SU  Chrifto , para 
mudar  o  coração  de  bum  Avarento»  quando  paraari 
rança ribe  a  Avareza  ,  ha  de  pelejar ,  c  vencer  no  mef-^ 
mo  tempo ,  unidos  entre  fi»  c  conjurados ,  todos  os 
vicios. 

Acho  no  Texto  Sagrado  hua  prova  concludente 
de  quanto  temos  dito.  Jofuè  tendo  vencido  cm  huma 
batalha  os  inimigos  do  Povo  efcolbido ,  e  queren- 
do defíruilos  todos  ^  e  apriítonar  os  cinco  Reys ,  que 
tinbáo  cercada  a  Cidade  de  Gabaon  ,  mandou  ao       _^ 
Sol  ,  que  na  velocidade  do  íeu  curío  paraíTe  :  Sdi^r*''  , 
eontra  Gabaon  ne  mavearpí.  E  efíando  aquclle  Prin-  ^^' 
cipe  dos  Planetas  no  meyoda  íua  carreyra  parou  lo- 
go ,e  peloefpacio  de  vinte  e  quatro  horas  naõ  con- 
timiou  o  feu  cuxio:  S.tetit  itaque  Sol  in  medto  Cali^ 
Ú^nonfefimavit  occumbexí  f^atio  uniusàieu  E  o  que 
mais  fajt  admirar  he ,  que  o  mcímo  Deos  obedeceo 
logo  â  voz  ác]oítíè:  Obediente  Deo  voei  hominií»  Pe- 
lo contrario  manda  Jofuèíobpena  de  norte  ao  exer- 
cito, que  nenhum  le  atreva  tomar  couía  alguma  dos 
defpojos,  vencidos  que  foííem  os  inimigos;  e  que 
cfla  era  a  vontade  ,  e  preceyto  de  Deos ;  Vosautem  ?^^^^ 
iavete  ne  de  his ,  qua  pracepta  fnnt ,  quidpiam  con-  ^^P-^' ,. 
pngatis.  Giuidquid  autem   asm^  &  argenti  fmrity  *   '^^^ 
Domino  canjecretur.  E  com  tudo  acbou-íe  hum  íol-. 
dado  por  nome  Acham  ,  que  vendo  humas moedinhas 
de  prata,  e  hum  pequeno  de  ouro,  cego  da  ava* 
reza  quebrou  logo  o  mandamento.    Exclama  aqui 
atónito  Santo  Ambroíio,  e  faz  eíle  reparo.  Ordena^ 
Joíuê  ao  Sol  ,  que  pire  no  meyo  do  feu  curío,  e 
iicou  immovel  /  manda  a  hum  homem    avarento^ 
que  não  íe  aproveyte  dos  dcípojos ,  c  naõ  quiz  obe- 
decer. 


J9' 


tio       .        Dtfcuvfo  Vllh 

D^^r^^^^^^"^ ' §í3^fo^em  fectt Jiftere ^  avaritiam Jiftere  nmpê^ 
kof.  ^^*^^'  OmelmoDcos  obeckceajoíuè,  ehum  mifera^ 
rei  foldado  lhe  ixíiík  \  Daqui  claramente  fe  infere  fer 
moralmente  impoíTivel  5  que  a  graça  de  noíTo  Senhor 
JESU  Chriíio  mude  o  coração  de  hu  Avarento,  quan- 
do jà  cftá  empedernido,  e  conrtante. 
*-  Efta  verdade  fica  autenticada  por  infallivel  no 
Evangelho  napeíToa  de  Judas.  Chriflo  o  tinha  eley- 
to  5  e  admittido  entre  os  íeus  Difcipuloi^,  e  inftrui- 
donodefprezo  das  riquezas  com  a  fua  doutrina,  e 
comofeu  exemplo.  Os  Apoftolos  àíuavifta  tinhaõ 
deyxado ,  quanto  poíTuhiaõ  para  íeguir  a  Chrifto.*  Ec- 
ce  nos  reli qu mus  omnia ,  &  fecuti  fumus  te.  E  com 
tudo  a  Avareza  o  fez  refolver  a  ler  traydor  ao  feu 
Meftre ,  c  vendclo  por  viliífimo  preço.  NoíTo  Se- 
nhor JESU  Chrifto  íe  valeo  de  todos  os  modos  ima- 
gináveis para  o  converter;  cm  todas  as  occaíioens 
lhe  moftrava  hum  amor  exceffivoj  feio  Thefourey- 
ro  do  CoUegio  Apoftolico ,  polo  á  fua  mefa ,  e  lhe 
deu  atè  o  feu  mefmo  corpo  a  comer,  Ah  ,  Ju- 
das,  Judas  !  Ah  defgraçado  !  Por  avarento  que 
f o  íTe  o  teu  coração,  naò  devia  eflar  }á  latisfeyto,  e 
farto,  tendo  encerrado  em  teu  peytoJeíuChrifto, 
que  vai  mais,  que  todos  os  thefouros  do  Mandof 
«  gNo  Horto  todos  os  Soldados,  que  buícavaõ  a Jefu, 
\  ^'^  para  o  prenderem,  dizendo  Chrifto  Ego J um:  Eu  íou/ 
todos  cahiraô  por  terra,  ecom  tudo  Judas  com  o 
íeu  coração  empedernido  naó  íe  abalou  >  antes  le- 
vantando que  foy  em  pè,  vendo,  queChriílo,  co- 
mo manco  Cordcyro,  dellc  recebera  o  abraço,  e 
\  ofculo  de  paz,  como  Amigo,  a  nada  fe  moveo  ,  e 
nada  difto  fez  impreíTaô  alguma  no  coração  infacia- 
vel  dcíle  avarento  j  antes  a  íua  avareza  fez,  que  pre- 
ferifíe  trinta  dinheyros  ao  íeu  Divino  Meftre  ;  à  fua 
ialvaçaô,  e  ao  íeu  Deos.  S.  Pedro  em  poucas  ho- 
ras 


1 


<«iu;fti!g£l 


Do  fermento  dos  Av eventos*         1 1 1 

fâs  negou  três  vezes  a  Chrifto  j  mas  logo ,  que  vio 
os  olhos  amoroíos  doícuMeftre,  lhe  arrebentou  o 
coração  de  dor,  efe  desfez  cm  lagrimas  de  peniten- 
cia: fkvit amare.  S^òThomè  foy  infiel,  foy  incre- '^'*'^*'í 
duloi  mas  logo  que  tocou  o  coftado  de  Chriíloj  fe 
confirmou  na  fé ,  amando-o  com  mais  ternura.  A 
Magdalena  era  peffuida  de  fete  Demónios  ;  porem 
logo  que  chegou  aos  pès  de  Chrifío ,  trocou  tão  de 
veras  o  amor  profano  no  amor  a  J  E  S  U ,  que  dihxit 
muUum  ,  c  por  iílo  de  grande  Peccadora  ficou  húa 
gr  mde  Santa.   Saõ  Paulo  embebido  na  Ley  de  Moy- 
fés ,  íc  fez  perfeguidor  da  Ley  de  Chrifío ;  mas  com     „  , 
dizer  lhe  íó;  Saule  SauJe  quid  me  ferfeqneris^.Vox-  ^  n. 
que  me  perlegues  Paulo?  Baíiou,para  de  períegui-  12,. 
dor  ,  fer  hum  grande  Apoftoio.  Sò  ao  defgraçsido 
Judas  naô  valêraõ»  nem  a  fua  vifla  amoroía  ,  nem 
as  íuas  palavras  de  vida ,  nem  a  fua  doutrina  do  Cco, 
nem  os  feus  milagres ,  c  prodígios,  nem  a  fua  hu- 
manidade facroíanta  ,  nem  a  fua  divindade  j  por- 
que o  Avarento  ^^como  diz  Saô  Boaventura  )  ^"^^^  s.Botiav 
antes  a  fua  fazenda  ,  que  o  Paraifo  i  mais  ama  o  di-  ah.i.c, 
nheyro,  que  he  o  feu  ídolo,  que  o  mefmo  Deos;  5. 
Avarus  "Deus  conttmmt ,  quia  flus  àiligit ,  fecuniamy 
quàm  Deum.  Quero  concluir  efte  primeyro  ponto 
com  dizer ,  qiie  íc  a  graça  ,  e  mifericordia  Divina  não 
obrou  couía  alguma  em  Judas ,  obrou  muyto  a  fua 
re<5la  juftiça  ,  e  vingança  ;  porque  primeyro  que 
morreíTe  Chrifto  na  Cruz,  morreu  clle  defefpcra- 
do,  precipitando  a  fua  Alma  no  inferno.  Todos  os 
Avarentos  (diz  S.  Joaó  Chryíoftomo  )  tem  o  mefmo 
achaque  ;  e  faò  femelhantes  a  Judas ,  e  aííjm  podem 
temer  juftamentc ,  que  fendo  dominados  da  mefma 
payxaô  ,  faraó  o  mefmo  fim;  fazendo  lhe  compa» 
nhia  por  toda  a  eternidade  no  Inferno ;  e  le  he  mo- 
ralmente impoflivcl ,  que  os  Avarentas  fe  falvemi 


I    ■  i 


II' 


tit  DifcuvfQ  VIU. 

que  íerá  daquelíes ,  que  furtaò  ,  e  refcm  o  alheyo 
íem  o  reftituir  l  Eíia  he  a  matéria ,  que  propuzemos 
tratar  no  fegundo  ponto,  que  agora  íe  íegue. 
Seeun-  Quando  S.  Bernardo  cíiava  na  Cidade  dcMilaó 
do  Pó- i^SQi-íslic  grande  conceito  de  Santo,  que  atè  mor- 
to, tos  reíufcitava  ,  lhe  trouxeraô  hum  Endemoninha^ 
do  ;  para  que  o  efconjuraíTe  atè  expelir  os  Demó- 
nios daquelle  corpo.  Perguntou-íhe  logo  o  Sonto. 
Quantos  fois  vôs  ?  E  como  vos  chamais  ?  Refponi 
deo-ihc  logo  o  Endemoninhado  :  Nôs  naô  fomos 
tantos  ,  como  aquelies  dos  Gerafenos  no  Evange- 
lho, que  íe  chamava  hgio  ,  que  quer  dizer  huma  le- 
gião inteira  de  mais  de  quinhentos.  Somos  fomen- 
te três,  que  valemos,  e  podemos  por  mais  de  mil} 
c  nos  chamamos ,  hum  fecha  corações  ^  o  outro  fe- 
chi  bocas  ;  e  o  terceiro  fecha  bolfas :  O  primeyrò 
impede ,  que  os  homens  abraô  o  íeu  coração  a  Deos, 
que  naô  confíntaõ  às  fuás  infpirações  ,  que  naõ  ou- 
çaõ  a  fua  palavra ,  e  íobre  tudo,  que  naõ  creaò  a 
terribiiidade  das  penas  do  Inferno.  O  fcgundo  fe- 
cha as  bocas  aos  penitentes  ,  quando  íe  rcíolvem 
de  íe  confcííarem  ,  engrandeccndo-lhes  a  culpa ,  pa»- 
ra  que  tenhaõ  vergonha  de  dizer  as  fuás  torpezasi 
que  o ConfeíTor  perderão  Goncey to,  e boa  opinião, 
que  tinha  deíles  }  que  lhe  negará  a  abíolviçaõ,  ou 
gritará  ,  e  lhe  dará  grande  penitencia.  O  teres vro 
Demónio  hc  o  fecha  bolías.  Efic  he  o  mais  atradli- 
vo,e  pod;rofo  de  todos  ,  pois  eflfeytua  as  mais  das 
vezes ,  o  que  os  outros  dous  não  pudèraõ  alcanç.ir; 
pois  não  lhe  prohibe  o  confefíarem-íe  antes  o  eíli- 
mula  ,  procurando  ,  que  a  ConfiOTaô  cão  fcja  valida, 
eospcccados  não  ícjaô  perdoados  ,  e  fique  de  mais 
a  mais  com  hum  facrilegio  ,  por  nâò  fazer  a  reftitui- 
çaõ,  ou  por  não  fizela  a  íeu  tempo.  ' 

E  que  íç}a  abfoiutamcnte  neceíTario  rfiftituir  o 

alheyo, 


Do  tormento  do^s  Mar  entes.  1x3 
glheyo ,  fobp^na  ds  íer  eternamente  condenado  ao 
ínferno,íeria  hum  perder  tempo  em  ajuntar  Textos 
da  Sagrada  E^ritura  ,  citar  Concílios,  alegar  San- 
tos Padres ,  trazer  Doutrinas  Theologicas  ,  pois 
ijunca  íe  achou  ,  nem  Doutor  ,  nem  Cafoifta  ,  nem 
Theologo  ,  ou  Canonirta  ,  que  falle  o  contrario, 
ou  o  ponha  em  duvida.  O  mefmo  furto  prega  em 
voz  alta  efta  verdade:  Res  clamat  Domino  fro.  Gri- 
ta continuamente  no  coração ,  que  reítitu.iò  a  feu 
dono.  A  confcicncia  não  pára }  nunca  íe  aquieta; 
4à  picadas  ferozes  com  remorfos  inevitáveis.  S.Me- 
dardo,  Abbade  ,  tinha  huma  junta  de  bois  ,  que 
íerviaó  para  trazer  agua ,  e  lenha  ,  ao  feu  Moíicy- 
ro.  Hum  deftes  bois  tinha  huma  campainha  depen- 
durada ao  peícoço  ,  para  o  acharem  mais  facilmen- 
te, quando  íeafaftava  do  pafto.  P^íTou  hum  ladrão, 
e ,  defatada  a  campainha  ,  a  meteu  na  algibeyra, 
c  levou  comíigo  o  boy  para  fua  cafaj  porém  a  cam- 
painha femprc  por  fi  elbva  tinnindo.  Fechou-a  lo- 
go o  iadraõ  em  huma  cayxa  ,  cubrindo-a  bem  de  rou- 
pa; mas  ainda  aíllm  não  ccíTava  de  tinnir.  Fez  en- 
tão híía  cova  bem  funda  no  chaó  ,  c  enterrou-a  ,  di- 
zendo; oratinne  quanto  quizeres.-e  íe  foy  deytar. 
Apenas  quiz  pegar  no  fono  ,  quando  a  campainha 
afinou  mais  o  Tom  ,  tinnindo,  c  mais  tinnindo.  Paí- 
madodcfteíucceíToo  iadraõ,  entrou  em  fi,  difcor- 
rendo  defíe  modo.  Eíie  fom  da  campainha  tão  agu- 
do ,  que  me  não  deyxa  dormir  ,  niõ  he  natural  j  mas 
he  a  voz  de  Deos ,  que  me  defperra ,  já  qt  e  naõ 
queroouvira  voz  da  confciencin,  que  com  tantas 
picadas  me  remorde  pelo  furto  áo  boy.  Pobres 
Monges,  que  além  da  perda  do  boy,  tem  também 
O  dano  dep.igar  a  quem  lhes  acarretar  agua,  e  le- 
nha. Com  eííe  psníamcnto  íe  levantou  da  cama, 
c ,  poílo  de  gcolhos ,  pedio  perdaõ  a  Deos  do  fur- 
to, 


I  1 


/ 


':     i: 


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I        íff 


Co ,  com  propoííto  de  ir  cm  peíToa,  ao  amanhecer,' 
reílituir  o  boy  ao  Mofíeyro.  Coufa  prociigioía  !  Lo- 
go a  campainha  nâo  cinnio  mais.  E  clle  ,  tornan- 
cío-fe  a    deytar  ,    dormio  foccgadamcnte  ate  alto 
dia.  Defpertado  do  fono,  foy  logo   a  ver  o  boy, 
que  íhcpareceobeilo,c  bem  gordo >  e.reparou  cam- 
bem, que  a  campainha  não  tinnia  como  de  princi- 
pio. Efquecido  pois    do   propoííto  ,  que  na  noyte 
antecedente  tinha  feyto  ,  mudou  de  parecer  ,  di- 
zendo comíigo.  Oh  como  he  forte  a  imaginação  do 
homem!   Parecia-mc    hontcm  ,    que  a  campainha 
citava  tinnindo;  mas  foy  fonho,  e  fe  não  foy  fo- 
aho ,  eraò  por  certo  os  ouvidos ;  que  me  zuniaó  a 
modo  de  campainha?  Aonde  levarey  eu  agora  eftc 
boy,  para  o  fazer  logo  em  dinheyro  ?  Apenas  con- 
feotio  nefta  determinação ,  quando  logo  a  campai^ 
nha  tornou  a  tinnir  de  novo  ,  c  taô  forte,  como  íe 
aquelIecaíebrefoíTehúa  Capella,  na  qual  tangendo 
ehamaíTe  a  gente  á  Miffa.  Defenterrou  logo  o  la- 
drão a  campainha ,  e  a  levou  com  o  boy  a  Saõ  Medar- 
do ,  que  jà  o  eftava  eíperando   á  portaria  ;  e  lhe 
diíTe  :  Sejíis  bem  vindo  com  trazer  o  noíTo  boy, 
que  já  fazia  grande  falta  ao  Mofteyro.  Oh ,  íe  to- 
das as  vezes  ,  que  íe  faz  algum  furto  ,  permittira 
Deos  íemelhantes  campainhas ;  em  quantas  caías  fc 
ouviria  efte  tinnido  dedia  ,  e  de  noyte  /  Equecon- 
fuíaô  averia  nas  Cidades  com  tantos ,  que  andaô  pe- 
las ruas,  não  íe  podendo  já  deflinguir,  qual  foííe  a 
campainha  da  Mifericordia  ;  qual  do  Hoípital  ;qual 
da  irmandade  dosTcrceyros;  qual  das  de  mais  con- 
frarias !  Tudo  feria    tinnir  fem  atinar  no  tinnido. 
Mas  deíengane-fe,  quem  não  reftituc  a  fazenda  a- 
Ihci,  que  fe  agora  não  ouve  a  campainha  de  fora, 
ouvirá  em  quanto  viver  a  campainha  por  dentro 
muyto  mais   moleíia  ,  que  hc  a  coníciencia ,  que 

feni'» 


;  I 


Vo  tormento  ãos  Avarentos.  1 2 J 
fempre  bradará  com  efíe  fom ;  Res  clamai  Dommé 
fuo.  E  com  tais  rcmoríos^  c  picadas  naAlma,quç 
Q  mais  doce  mel  dasdelicias  lhe  parecerá  hu  fel  amar* 
gozo.  Naô  falio  por  agora  no  tormento  ,  que  dará 
£30  Inferno  efte  remorib ,  que  he  o  verme  da  con- 
fciencia,  que  fempre  rôe,  e  nunca  moxxc  \  Fermis 
enim  non  morittir.  Tormento  taõ  deíefperado,  que 
me  obrigou  a  hú  diícurfoá  parte,  que  he  o  penúlti- 
mo. Tornemos  agora  ao  Demónio  fecha  holfas ,  e 
vejamos  a  íua  aftucia  ,  c  maldade.  Elle  naõ  cuftu- 
ma  pcrfuadir  a  hum  Catholico  ,  que  naõ  reftitua, 
porque  bem  conhece,  que  perderia  o  tempo,  co 
feu  trabalho  ;  pois  todo  o  Catholico  cré ,  e  teme 
o  inferno,  e  íabe,  que  fe  náo  reftitue,  ha  de  pe- 
nar eternamente.  Mas  fim  reprefcnta-lhe  razoens 
•aparentes ,  porque  não  reílitua  logo ,  aíTegurando- 
Ihe,  que  balia  fazer  reílituiçaôi  em  tempo,  que 
tiver  mayor  cómodo ,  ou  achar  melhor  conveniên- 
cia. Que  fe  adoecer  ,  fará  teftamento  ,  e  dcyxará 
cfta  com iíTaô  com  clareza  aos  íeus  herdeyros.  Oh 
aílucia  diabólica!  Oh  iqfernal  engano  !  Primeyra- 
mente  prevê  o  Demónio;  que  vos  podereis  morrer 
repentinamente,  ou  terhuatal  enfermidade  (como 
fuccede  amuytosj  que  naõ  poíTais  fazer  teíiamen- 
to,  e  ainda  que  tenhais  o  juizo  livre  ,  e  vontade 
de  o  fazer ;  os  que  vos  herdaõ  abinteflato ,  por  me- 
do dos  legadospios,  que  podeis  teftar,  vos  diraõj 
que  a  morte  eflá  bem  longe ,  e dado  cafo,  que  por 
reíoluçaô  firme  façais  o  telíamento ,  poderá  ler ,  que 
o  Eícrivão  induzido  pelos  Parentes ,  com  mudar  lua 
fó palavra,  ou accrefcentar  huma  pequena  formalida^ 
de, fará  , que  a  voíTa  boa  intenção  naõ  tenha  efFey- 
to  depois  de  morto,  ou  pelo  menos  íeja  hum  feroi- 
nario  de  contendas ,  e  demandas ,  que ,  íabe  Deos, 
quando  fe  lhe  verá  o  fim.  O  que  mais  faz  tremer 

P  hum 


-.'í 


StsAr. 


%i6  DifcurfoVilh     ^3 

foiím  Gatholíco  na  inateria  da  reftituiça5,  he;:qiífe 
differindo-a  ,  fe  commette  hnm  numero  quaíi  innu* 
meravel  de  peccados  •,  pois  efíe  preceyto .  de  naã 
furtar  hc  negativo,  que  obriga  em  todo  o  tempos 
e ,  como  dizem  os  Santos  Padres  ,  e  Doutores  da 
tsm,  de  Igreja  ?  femfer ,  &  pro  femper  ;  para  fempre.  Go- 
refi       mcçarey  as  provas  deíia  verdade  pelo  grande  lume 
da  Igreja ,  o  Doutor  Santo  Agofíinho ,  o  qual  efcre- 
vendo  a  Macedónio  diz  ailim :  Si  res  aJiqua prapter 
"Adf.ep.  ^íi^f'^  psccattím  ejf^  &  non  reddítur  y  psenitmtia  non 
54    ad^ê.^t'^^^  í  fedjimulatur.  Quando  alguém  pôde  refti- 
Jí^ffí^.  tuir  a  coufa  alhca,enaõa  refíitue  logOj  erte  naõ 
quer  fazer  penitencia  j  mas  finge  de  a  fazer ,  para 
naõ  reíliruir.  O  Doutor  Angélico  Santo  Thomàs  diz, 
que  conforme  o  furtar  behum  peccado  contra  jufti- 
ça ,  aíSm  também  hc  o  mefmo  peccado  o  reter  o  fur- 
to contra  a  vontade  de  íeu  donoj  porque  hc  pri va- 
lo do  uíov  c  dos  fruytos,  c  rendimentos  dos  ícu§ 
bens,  c  naõ  he  licito  períeverar  ncfte  peccado  ,  nem 
por  breve  tempo:  Suut  aceipere  tem  alienam  efi  peC" 
catum centra jtiftitiam  ^ita  etiam  detmere eam ,  iniii^ 
jyjk.z  fQ  ]jiQjr^jf2(y ;  qfiia  fic  eum  impedit  ab  uju  rei  fua :  ma* 
2.f.  62.  ^if(,jij^j^  ^ji  autem  y  qmd  nec  per  modicum  tempusUcet 
m peccato  morari.  OPiiíEmo  Religioío  Frey  Luis  dé 
Granada ,  que  toda  a  Igreja  Catholica  pela  fua  gran- 
de virtude,  c  letras^  venera  como  Oráculo  da  ver- 
dade ,  exhoria  a  todo  o  fiel  Chrifíaõ »  que  peíTuc 
fazenda  albea  ,  a  reíl^tuila  logo  ,   e  fem  dctença> 
enaô  baila,  que  tenha  intenção  refoluta,  de  o  fa- 
zerem outro  tempo  mais  próprio  para  elie  ,  ou  rnais 
proporcionado  aos  feus  intereffes.  E  o  P.  Gregório» 
de¥aiencia  da  Companhia  de  JESUS  taô  cíclareci- 
do^pcbsfuas  doutrinas  Theologicas,  prova,  que  a 
prompta  reíittuiçaô  he  neceíTaria  por  preceyto  nc- 
gativo,e  que  naõ  o  fazendo  logo.,  fe  commette  omeí- 
.  i  \i  mo 


1 


«^ 


iiiMiiMAattÉi  ■■i~-rM*iiiinM  rm-tii'^'  m 


mÊÊiÈÊ^ 


Do  tivriiento  dos  Avarentos.         %^7 

mo  pcccado ,  como  íc  de  novo  tiveíTe  flif tado  a  mú^ 
macoufa:  Rejiitutid  eft  neceffarta  ex  pracepo  negé^ 
$ivo  t  &  omiffio  íllíus  aqtiwakt  injufta  acceptioni. 
Fundaò-íe  todos  eftes  Santos  Padres  ,  e  Doutores 
Sagrados  ,  na  juftiça,  na  razaò,  e  no  preccyto  di- 
vino, que  manda  ,  que  o  íalario  devido  aos  cria- 
dos, e  obreyros ,  naòíe  guarde  para  o  dia  ícguín- 
te  ;  Norí  remanehit  mercês  ufque  mane ,  e  que  naõ  íc*- 
famos  devedores  de  couía  alguma  ao  noíTo  próximo: 
'Nemlní  qmdquam  deheatis.  E  por  ifto  no  Concilio 
geral  Laterancnfe  eOá  definido  ,  que  o  furtar  coufa 
alhea  ,  ou  retela  injuítamcnte,  e  contra  a  vontade 
de  ÍCQ  Dono  he  o  meímo  peccado :  Non  multum  in- 
iereft^  quoad periculum  anim^  ^injufte  detinere,  ac  in- 
vaderealienum. 

E  a  fim  de  que  naõ  pareça  efte  prcceyto  de  naô 
reter  o  allieyorigurofo,  vejamos  o  que  Deos  orde- 
onava  na  ky  velha  ao  feu  Povo.  Se  alguém  (á\z  o  Tex- 
to^ tiver  furtado  hua  ovelha  ao  feu  Próximo,  ou  t 
tiver  comido,  ou  vendido,  íerá  obrigado  por  huma, 
íícftituirqu-ítro:  Si  quií  furatus  fuerit  ovem^  &  oc- 
ciderit ,  vel  vendiderit ,  quatuor  oves  pro  una  ove  n- 
j^/rf/^/. Comentando  Santo  Thomáseftas  palavras  per- 
gunta ;  fe  a  ovelha  furtada  he  huma  íó  ,  como  a  Lcy 
ordena ,  que  fe  rei^ituaõ  quatro?  E  refpondc , que  pa^ 
raimpedir  o  furto, c  reparar  o  reter  o  alheyo  ,  com 
o  lucro  ceííante  ,  e  dano  emergente.  A  ovelha  fur- 
tada dava  a  feu  Dono  quatro  emolumentos;  o  ley- 
te,para  qucyjoSj  a  laã  ,  para  fe  veftir;  o  cordey- 
<|»0,que  nafce;  e  a  carne  da  mefma  ovelha ;  deve 
ireftituir  ao  Dono  os  danos,  que  lhe  faz,e  os'  inte- 
reíTes  ,  que  podia  lucrar.  Oh  quantos  ,  e  quantos 
.,vi vem  enganados  em  todo  o  Mundo,  efpeciclmert" 
'fe  nefte  Brafil ;  e  depois  vão  ao  inferno  com  lhes 
"aparecer  de  ter  pagas  as  dividas,  dizendo  rouy  con:^ 
•    .  p  z  fola- 


Greg>  Á 


Deut, 

Conçit, 
Lm  cdp 
dercfi,  j 
tit. 


t 


1 

1 

1 

Cl  \ 


i: 


fokdos ;  que  nada  devem !  Tenho  conhecida  muf- 
tos  Senhores  de  engenho ,  e  outros  lavradores,  que 
fazendo  h uma  boa  la fra  deaçucar,  ou  de  tabacos^ 
correm  logo  os  acredores  muy  contentes  ,  pela 
promeffâ  ,  que  na  frota  fícariaõ  íem  falta  todos  fa- 
tisfeytos.  E  que  fazem  os  tais  devedores  .?  Entra 
nelles  o  Demónio  fecha  boJfas  ,  com  acenderihes 
odefejo  de  íer  mais  ricos  ;  e  diícorrem  affim.  Sc  cii 
pago  aos  meus  acredores  nefía  frota ,  fico  íem  hum 
Yiotem;  pelo  contrario  ,  Ic  eu  lhes  pagar  para  a 
frota ,  que  vem ,  poíTo  com  cfic  dinheyro  comprar 
mais  dez  Negros,  e  eftcs  metidos  a  trabalhar  notai 
canaveal,quc,eíiá  devoluto  por  falta  delles,  dacà 
canas  prodigioías ,  e  faré  açucres  como  diamantes, 
e  com  o  rendimento  íatisfaço  aos  meus  acredores^ 
c  fico  fem  diminuição, antes  com  augmento  do  meu 
eabedal ,  cobrando  nome  de  bom  pagador  ,,  e  fama 
de  homem  verdadeyro  .,  e  rico.  Os  Mercadores^ 
,e  putros  cuI:>içofos ,  fazem  o  mefmo  negocio  coiii 
reter  o  alheyo  diícorrendo  do  meímo  modo.  Naõ 
convém  a  hum  homem  de  negocio  ficar  com  a  cayxa 
íem  dinheyro f  pois  o, dinheyro  he  à  alma  do  nego* 
cio.  Se  eo.  pago  agora  eftas  dividas,  fica  a  cayxa 
vafiaj  c  fe' detenho  por  eíie  anno  o  pagamentOj, 
x;om  o  dinheyro,  que  me  ficar ,  poíío  em  hum  Icy- 
,laõ  comprar  hum  lote  de  Negros,  ou  huma  partida 
•de  fazendas  fecas ,  c  vendendo  depois  parte  delias, 
com  o  ganho  de  trinta ,  ou  quarenta  por  cento ,,  ter*; 
no  a  prover  a  eayxa  5  e  com  as  que  ficaõ  mais  fome* 
nos  accomodarey  os  meus  acredores,  dizendo-lhes, 
que  nao  ha  ver  dinheyro ,  que  ouro  he  ,  o  que  ouro 
valeje  por  tanto  não  deyxe  de  remedear  cada  hum 
a  íua  ncceílidade  ,  com  as  fazendas,  que  cllc  peíTuc, 
que  todas  cftaò  á  íua  ordem.  O  pobre  acredor ,  quç 
iera  Qs  filho^.jiotosj  edefpidos;  os  efcravos  como 


i^tflMpiMÉrfilIÉtfÉiMiilfefeii^. 


Doforwenfõéos  Avaremes.  xijj 

ilus,cneceflíta  de  outro  par  dcefcravos,  para  o  aju- 
darem no  feii  trabalho ,  e  para  ihc  carregarem  hum 
pflte  de  agua  ;  eftima  por  favor  receber  o  que  lhe 
dá  o  Mercador  ao  preço,  que  quer;  e  por  naó  en- 
trar em  huma  demanda  ,  perder  o  tempo ,  c  gaíiar 
quântotem,  torna  afua  caía  amaldiçoando  tal  ho- 
mem ,  e  dizá  mulher  ,c  filhos.  Paciência  I  De  mao  pa- 
gador em  palhas ,  melhor  he  alguma  coufa ,  que  na- 
da: (  aílim  diz  o  ditado  }  mas  eu  naò  lhe  perdo-o  o 
meu  fuor ,  e  o  engano ,  e  roubo ,  que  me  faz.  Eis-aqui, 
como  affim  aquelles, que pagaô, como aquellesi que 
retém  os  pagamentos ,  a  maiori  tífqne  ad  minorem,  a^^^^ 
omnes  avarttiaftudent.  Todos  eftudáo  como  Avaren-  ^^«5.* 
tos  de  enriquecer  com  enganar  o  íeu  próximo ,  e  atè 
dos  Eccleíiaiiicos Te  achaò  alguns, que  naõ  faô  menos 
intercíTados  , que  os  Seculares,  e prouvera  a  Dcos j  ^enm: 
que  aílim  náo  fora.  El  a  Propbeta  ufque  ad  Saccr-  6. 
dotem, 

Eftes  faô  os  diícurfos  ,  que  o  Demónio  Fecka 
kolfas  \nÇ\n\iã  aos  que  com  anxiedade  procurarão  as 
riquezv-ís;  cíias  íaò  as  induftrias  ,  que  lhes  aponta; 
cíles  faõ  os  enganos  iifongeyros,  com  que  os  atra- 
beà  perdição  ;c  finalmente  eíks  faò  os  hços  encu- 
bertos,comque  os  affegura  no  mítrno:  Gluíi/olunt  ç^p'^' 
divHesjierty  mcidunt  in  laquenm  Diaboli.  h  que  la- 
ço hc  eík,  diz  Saó  Paulo  ,  que  o  Demónio  tem 
armado  aos  que  deíejaô  ajuntar,  para  ferem  ricos.** 
Quem  arnu  hum  laço,  o  arma  ao  largo,  e  de  qua- 
lidade, que  a  C9ça  entre  facilmente,  e  fem  fofpey- 
t^  de  engano.  Entrada  a  caça  ^  aperta-íe  o  laço  ,  e 
quanta  niayor  violência  faz  ,  para  fe  defembaraçar 
do  laço  ,  tanto  mais  o  laço  fe  aperta,  atè  morrer 
afogada.  Do  mefmo  modo ,  o  Demónio  arma  o  feu 
laço  ao  largo;  não  diz  ,  que  furteis-,  que  não  pa* 
gueis  as  divida^  i  mas  que  naõ  reftituais  logo  ,  c 

P3  ■  que 


qae  riB&  Mtarà  tempo  para  íatisfazer  a  todos^onf 
cómodo  voíTo,  e  c&m  agrado  das  partes^    Eis-aqui 
armado:  so  largo  o  laço  do  Demónio.  V^por  de-; 
fejar  mais  fazeií da  entrais  no  laço  com  a,  mira  nó- 
voffo  lucro  ,  le  iem  ciiydar  no  dano  alhcyo,  nem 
nas.coníequencias  de  retardar  os  pagamentos:  ^j 
võlunt  àivites  fien  yinádunt  in  laquumDiaboli.  As 
confequencbs  íaô  y  que  quem  detiver  o  alheyo,  ç 
naõ  oreftititir  aíeus  donos,,  hc  obrigado  f^como  jâ 
diíTemos  J  a  rcfticuir  codos  os  frutos  ^  emolumen- 
tos ,  e  proveytos   grangeados  ,.   e  fatis  fazer  todos^ 
os  danos  padecidos  por  culpada  voíTa  injuíla  reten- 
ção; ecreícendo  conforme  a  medida  do  tempo ,  que 
íevay  difFerindoa  reftituiçaô  ,  começa  o*  Demónio^ 
Fechahifasa.  apertar  o  laço,  e  afaz  parecer  com© 
impoíTi  vel.  Peyor  ainda ,  quando  o  Devedor  fe  de- 
clara 5  que  não  quer  pagar  ,  fenão  for  citado  ,.  e 
ifto ,,  naò  porque  folgue  ,  que  o  citem ,  fendo  ifto 
hum  deícredito,  ou  defdoaro  feu  $  mas  porque  o 
acrcdor  he  hum  pobre »  que  não  pede  deyxar  a  íua 
lavoura  ,  perdendo  o  ferviço  dos  que  o  ajudaô  na 
írabaiho  ,  nem  abandonar  a  íoa  pobre  família ,  pa* 
rá  acudir  á  demanda  na  Cidade  ,  nem  tem  dinbcy- 
ro,  para  pagar  a  Letrados  j  e  Procuradores>  e  a 
Devedor  vay  prolongando  a  demanda  com  trapaf?- 
ias ,  pedindo  viflas,  e  revidas,  íópara  o  molcÔar^ 
e  vingarfe  de  o  ter  eirado.  Terrível  laço  he  eíle^, 
e  Gorao  agora  íe  vay  fcmprc  mais  apertando ,  ten^ 
dõ^o  ao  principio  armado  o  Demónio  tanto  ao  lar- 
go I  E  quem   ha  de  pagar  cflas  perdas  ,-  e  danos? 
Imagina- íe  o  Devedor  de  ficar  livre,  c  eoníola-íe 
Gom  dizer.  E  que  mal  lhe  tenho  eu  feyto  com  re- 
correr ájuíliça  r^  Os  Letrados ,  e  Pirocuradores  ,  que 
aceytáraô  a  demanda  ,  íabendo ,  quecra  injufta^  e  b5a 
pmra  tr^apaíTa,  para  dilatar  o  pagamento ,  dizem :  Ihc^ 

'■.  ^'  £a- 


'VH 


1 


:r?\: 


Do  fàtmeniâJêS  Avarentos.         ^s  * 

-áieisfaçlo  cíles , edcllcs  fe  qucyxe.  'Ainda  ma]  ,quc 
os  Letrados  ,   c  ProGiiradores  ^  faò  os   primeyros,         ?. 
íijue  pela  cubica  de  ganhar  mais  dinheyro  ,  cahem        ^  i 
-ncftc  laço  armado  aa  largo,  com  dizer  ,  eu  alego 
cazôes ,  ou  boas ,  ou  màs ,  cito  Textos ,  ou  verdadey- 
•«osjouapparentes;  làíe  avenhaô  os  Juizes,  a  quem 
toca  diícutir,e  ler  o  meu  arrezoado,  decidir  a  cau- 
fa  ,  c  dar   a  íentença ,   e  aífim    todos  enlaçados* 
jíara ferem  mais  ricos,  váo  enganados  ao  Inferno; 
^i  volunt  divttes  fieri^  incidunt  in  laqueum  Dia*  7-^^.  u 
Mi,  caf.  6»  . 

Vifta  a  cegueyra  ,  c  moílrado  o  engano  dos 
Avarentos  ,^ue  lhes  rende  impoífivel  o  rellituir  o 
•alheyo,  já  he  tempo,  que  íe  lhes  abraô  os  olhos; 
efe  lhes  aponte  o  deíengano.  Nenhum  peccador 
|)or  inveterado  que  íeja  nos  vicios  ,  por  arreygado 
que  tenha  o  coração  nofeu  ídolo  das  riquezas  deve 
dcfcfperarfe.  Em  quanto  vive,  tem  ainda  tempo 
de  ganhar  o  Ceo  ,  fequizcr  ;  Hipocrate,  e  Galend 
dizem ,  que  nas  doenças  do  corpo  ,  a  cura  miis 
Aifual,  e  mais  certa,  he  acudirlhe  logo  com  os  rc- 


M 


médios  contrários  :  Contraria  contrariis  curantnr. 


z6. 


A  mefma  cura  íe  ha  de  ufar  (  como  dizem  os  Santos 
Padres )  com  os  vicios,  e  payxcens  da  Alma.  Corri 
rcíolveríe  de  veras,  e  fazer  logo  humado  genero- 
ío ,  c  heróico  ,  reftituindo  não  còm  novas  promcí- 
fáSj  mas  com  effeyto  ,  como  o  fez  Zacheo,  que, 
apenas  Chrifto  olhou  para  elle,c  o  chamou:  Za- 
chea  fejlinans  dejcende:  logo  o  ícguio,  e  diíTeieií* 
aqui ,  meu  Senhor  ,  ametade  dos  meus  bens  para 
repartir  aos  pobres;  c  de  quanto  renho  roubido^ 
rcftituo  em  quatro  dobros:  Ecce  dimiáium  bomrum 
weorum.  Domine^  dopauperibus^&JtquidaUquem^'*^^'^' 
defraudaví ,  reddo  quadruplum:  Efta  reítituiçaõ  taô 
prompta  grangeou  tanto  o  coração  de  Chrifta,  que 


2JX  Difcurfõ  Pin: 

alem  de  lhe  perdoar  os  peccados  ,Ihe  aíTcgurpií  tanli 
Z«tf.i9  bemafalvaçaô;  Hoâiefalus  hm  domuifaãaefi.  Fa.- 
lo:;      zcy  também  hiima  reioluçaõ  ícmelhanie  ,  c  vereis» 
que  qiianto  tendes  roubado  ao  voffo  Próximo  em  taa- 
tos  anãos,  podeis  em  hum  inftante  roubar  a  Dcoso 
Paráifo  ;epara  efta  reíoluçâo  fer  irme,bafta  coníl- 
derar,  queas  voffas  riquezas,. fazendas, e  ouro,  as 
haveis  de  deyxar  na  hora  da  morte  ,.e  naõ-  haveis  de 
le valas  com  vofco  á  cova ,  nem  vos  liaô  de  acompa* 
fihar  para  ferem  queymadas  eternamente  eom  voíco 
no  Inferno ;  e  que  os  voíFos  herdcyros  as  confumiràô 
.  cm  jogos ,  e  pompas ,  íem  ter  a  mínima  lembrança  das 
voíTa  Alma; 
Fle?e»       Para  prova  dcfte  defeogano  referirey  hum  exem!» 
nèserm^  plo,que  O  P.  Joaô  le  Jeune  Varaè  Apoftolieo ,  qiic 
z2.de   por  antonomaíia  íe  chama  o  grande   Miflionarioj 
rfi/íí.    traz  muy  a.  propofíto  cm  hum  Sermaõ-  contra  os 
Avarentos^.  Em  França  na  Cidade  de  Bbrdeos  ^  Me- 
tropoli  da  Província  de  Aquitania ,  havia  hum  Velho- 
jà  quaíi  decrépito ,  que  tinha  gaílado  o  melhor  da 
íua  idade  cm  uteas  publicas,  e  em  enganos  mani« 
feílosj;  e  por  ifto  aborrecido,  e  defprezado  de  to* 
dos, ainda  dos  mefmos  filhos,  que  eraô  fete,  quat- 
iro  machos,  e  três  fêmeas  >  que  quanto  mais  ricos 
os  deyxaVa ,  tanto  mais  llie  defejavão  o  fim  da  vida,, 
para  ficar  cada  hum  abfoluto  com  oícu  quinhão  da 
muyta  fazenda.  Chegou  finalmente  a  hora  da  mor- 
re, e  logo  foy  chamado  o  ConfeíFor,  o  qual  logo 
lhe  intimou  que  naó  o  queria  confeíFar  ,  e  menos  a b» 
foívelo,  íc  primcyro  naó  fazia  reflituiçâ©  inteyra 
de  todo  o  alheyoj  que  poíFuhia..  Reftituir,  meu  Par 
dre,  f  reípondeo  o  Velho  ):em  todas  as  minhas  Con* 
^  filToês  íempre  o  tenho  promettido,  c  nunca  o  tenho « 

feyto,  ecpmo  opoderey  fazer  agora  !  Poucos  íaõ» 
©s.  bcnsj.  que  fejaô  meus;  c  íe  eu  os  rcflituir,  là 


Dó  tormento  dõS  Avaremos.         ijj 

vay  tudo ,  c  os  meus  filhos  ao  Hoípital.  Por  ilfb 
ineímo,  (  diíTe  oConfeíFor  )  fccu  vos  abíolvo,  c  a 
rcílituiçáonâòfe  faz,  ambos  vamos  para  o  Inferno» 
e  aíTim  bufque  outro  Confeffor  ,  que  eu  naô  queio 
la  k.  Entretanto ,  como  a  doença  era  unida  com  a 
Velhice  ,  os  Médicos  a  dcraô  por  defeíperada  ,  e 
nada  cuydavaò  da  Alma.  Naõ  affim  o  bom  Sacer- 
dote ,  que  a  deíejava  íalvar.  Tornou  ao  Moribun- 
do com  liuma  belliííima  traça  ,  fallando-lhe  aíFim ; 
Senhor  ,  feDeos  por  fua  grande  mifcricordia  vos 
quizeffe  ainda  dar  como  a  ElRey  Ezechias  quinze 
ou  vinte  anoos  de  vida :  Ecce  Janavi  te ,  addam  dÍ0'  ^^  , 
km  tuvs  quindecim  anni4.  Então  vos  reíolvcreis  a  ^-2,0! 
reftituir  com  eíFcyto  a  cada  hum  o  feu?  Com  muy- 
to  boa  vontade  (  reípoodeo  clle  )  diíporia  totalmen^ 
te  os  meus  negócios,  facisfaria  a  todo^,  e  não  fica- 
ria devendo  hum  vintém.  Pois  os  Mcdicos  ( repli- 
cou o  Co nfeíTor  }:  dizem- i  que  a  raÍ2  deíia  voíía  mor- 
tal doença  coníilic  na  falta  do  húmido  radical  ,  g 
que  para  refazer  èflc  ,  he  neccíFario  tomalo  de  aU 
gucm^  aquemvôs  o  tenhais  eommunicado,  por  ter 
mais  virtude  pela  íímpatia ,  que  tem  com  o  voíTo. 
Pelo  que  faõ  neecífarias  três,  ou  quatro  gottas  da 
grayxa  de  hum  dos  voíFos  filhos.  Induzido  deftc 
K médio  o  Velho  ehamou>  logo  o  Primogénito  j  e 
Ihediffe.  Meu  Filho  ;  quereis  rcíuícirar  voíTo  Pay, 
que,  como  vedes ^  cftá  morrendo?  De  muyto  boa 
vontade  (diííc  o  fiho  )  ainda  que  me  cuflàra  amcta- 
de  do  íangue  das  veas.  Pois  bem  ,  replicou  o  pay', 
faõ  neceíFarias  daas  gotinhas-  da  voíTa  fubftanciaj 
que,  como  homogénea,  dará  mayor  vigor  á^xtrc- 
ma  fraqueza  dç  voíTo  pay.  Accendeu-fe  logo  buma 
veia  ,  c  poz  o  filho  hum  dedo  fobre  a  chama  ,  e  logo 
retirou  a  mão,  e  protelou,  que  nem  por  dbus^^,  ou 
.^ucs inftantcs  queria  íoportar aquelie  tormento,  p^ 


í    li 


ra  elICi  infofFpy.c).  Chamoti-íc  o  ícguoâa  Ifilho  j  .c 
lhe  di|rc  i  .qiíerçis  xiatr  a  vida  a  voíTq  Pay ,  que  can,- 
to  vos  quer?  De  muyto  boa  vontade  (  refpondeo 
elle}  fe  efliver  na.  minha  maõ.  Aqui  eilou  para 
tudo  o  que  puder.  Apenas  poz  o  dedo  febre  a  vela, 
que,  íencido  o  ardor  do  fogo  ,  começou  a  dâr  tais 
alaridos  ,  que  movia  à  compayxaõ.  Acudirão  os 
mais  irmãos ,  e  irmãs;  e  ouvindo  ,  que  para  dar  a 
vida  ao pay algum delles, havia  de  íofrerpelo  breve 
cfpaço  de  poucos  inftantes  aqucUe  tormento,  to- 
dos fc  efcuzàraõi  com  dizer  ,  que  fendo  jà  'o  pay 
velho,  para  que  queria  viver  mais,  dando  tanta 
moleftia ,  c  trabalho  a  todos.  Entaó  o  prudente 
ConfcíTor  i  voltando- íc  para  o  moribundo  ,  lhe  dif-^ 
fe  j  que  vos  parece  o  amor  ,  e  agradecimento  dos 
voíTos  filhos  ?  Nenhum  delles  quer  ,  para  proloni 
g^r  a  voíTa  vida  ,  íofrcc  por  poucos  momentos  o 
fogo  na  ponta  de  hum  dedo.  E  vos  para  dcyxalos 
ricos  com  a  fazenda  alhca  quereis  meter  no  infer* 
no  os  dedos ,  as  mãos ,  a  cabeça ,  os  braços  ,  e  todo  o 
corpo,  e  Alma,  para  arder  eternamente  ?  Iftoheíer 
doudo  ,  ou  Atheo  ,  que  naô  teme  a  Deos ,  ou  naò 
cre,  que  hiJ3  Inferno.  O  mefmo  digo  eu  ,  para 
defengano  de  quem  ler  cfte  difcurfo.  Nem  cuydc 
algum  ,  que  por  fervir  as  Confrarias  ,  e  Congrega- 
ções, buícar  indulgências  ,  jubilcos ,  ConfiíToês,  e 
communhocns ,  lhe  valerá  coufa  alguma^  quando  não 
reftituir  o  alheyo  i  antes  a  mefma  abíolvlçaó  do 
ConfeíTor  lhe  íervirà  de  condenação  ,  e  de  padecer 
mayores  tormentos  ;  pelos  muytos  íacriíegios  co- 
metidos; pois  cego  da  Avareza  ,  nunca  tevepropo- 
ííço  de  reftituir,  podendo ,  a  fazenda,  c  perdas,c  danos 
do  ícu  Próximo. 

Temo  ,  e  tremo ,  todas  as  vezes ,  que  me  lem* 
bra  hum  caio  fuccedido  cmbuma  Cidade  de  Itália, 


■n 


Dotof mento  dos  Âmvtfitpf.  fj^ 

i|iic  os  Authores  fidedignos  naô  nomearão  i  pòr  di^^ 
nos  rcfpeytos.  Havia  hijmhofncm  nobre  cm  con*- 
ceyto  de  virtuofo  ,  porque    fe  confeffava  muytas 
vezes  com  hum  Confcfíbr  douto ,  e  de  grande  repu- 
tação- Mas  vendo  cfte  ,  que  depois  de  tantos  pro- 
pofítos ,  c  promeílas ,  naõ  fc  refolvia  a  reRituir  o 
alhcyo,  refoiuto  lhe  ncgouaabfolvrçaõyeque  buf- 
eaíTe  outro  ConfeíFor  ;  que  íe  elle  queria  ir  ao  in- 
ferno ,  naõ  queria  fer  ícú  Companheyro.  Buícou 
elie  vários  ConfcíTores,  qucyxando-íe  com  cllesdo 
rigor  do  primcyro  j  porem  os  achou  todos  correntes, 
€  coherentes  em  naõ  o  quererem  abfolver.  Final- 
mente a  íua  defgraça  o  fez  encontrar  com  hum  Con- 
feíFor de  fcu  genío ,  e  do  modo  ,  que  elle  dcfejava.. 
Elle  Religiofo  condenou  logo  os  outros  de  eícru- 
polofos,  c  também  de  pouco  fabcr,  com  doutrinas^ 
apertacks  ,  que  enlaçãa  as  Almas  j  e  franco ,  como 
fe  foíFe  o  Meftrc  das  fcntenças  lhe  deu  a  abfolvi- 
çaô.  Ficou  taõ  fatisfeyto,  e  pago  o  Penitente ,  que 
naó  íó  o  elegeo  por  íeu  Confeífor  eftavel ,  mas  tam- 
bém por  Amigo  fiel ,  que  muytas  vezes  lhe  mandava 
prefentesda  fua  meíâ,  fazendo-Ihe  outros  mimos, 
e  favores  ,convidando-o  também  a  comer  nas  íuas 
feflas,   e  banquetes.  Hum  dia,  depois  deter  am- 
bos comido,,  o  Religiofo  fc  foypara  o  feu  Conven- 
to,  e  o  Cavalheyro  apenas  começando  a  repoufar 
lobre  o  íeu    leyto  lhe  deu  hum  furiofo  golpe  de 
apoplexia  ,  que  improviíamenre  lhe   tirou  a  vida.. 
No  mcímo  inftante  dous  Demónios  tomàraô  a  fi- 
gura com  corpo  fantaftíco  dos  dous  fcus  criados  ,6 
foraó  logo  ao  Convento  a  buícar  o  Religiofo,  que 
jà  eftava  recoftado.  Depreífa  ,  diíFeraô  ao  Fortey- 
rò ,  chamay  o  Padre  Confeffor ,  que  noíFo  Amo  eflâ 
morrendo.    Levantou-fc   logo    o  Religiofo    â  efíc^ 
íaviío,e  dom  diligencia  foyícguindo  os  dous   cria* 


/ 


'.  i  ( » 


ILJ^  Dífcur/o  FilL  sdi 

idos /líigidos ,  echçgouà  caía  do  Amo.  Ko  fubirdas 
efcâdas ,  o  vio  no  topo  dcila  ycftido  de  hum  quimaõ 
preto  ,  que  o  vinha  receber.  Cuydoij  o  Rehgiofo ,  que 
era  zombaria  ,  e  queyxou-íe  com  elie,  porque  lhe 
fazii  eiias  peças  ?  Quando,  o  Penitente  refpondeo. 
Que  zombarias!  que  peças!  Os  dous  Demónios, 
que  tomàraò  afigurados  meus  criados,  e  ahi  eftaô, 
íaliaráõ  a  verdade  ;  como  também  hc  verdade  ,  que 
cu  naõ  ferey  fó  no  padecer  o  caftigo ,  e  a  peqa ,  aííim 
como  nãj  fuy  íó  cm  cometer  a  culpa.  Vôs^  que 
tantas  vezes  me  tendes  abfolvido  injuftamcnte  com 
fer  caufa  de  novos  íacrilegios  (vos  digo  agord ) 
fok  condenado  também  da  Divina  Jufíiça  comigo, 
com  a  meíma  íentcnça ,  por  teres  fido  fautor  ,  e  cum- 
pliceyde  eunaò  ter  reftituido  o aiheyo.  Apenas  di- 
to iílo ,  os  dous  criados  ,  tomando  a  figura ,  que 
melhor  reprefcntava  os  dous  Demónios,  que  eraõ; 
hum  pegou  no  Confeffor,c  o  outro  no  confeííado, 
c  carregando-os  fobre  os  hombros ,  com  hum  cfiron- 
do  medonho  ,  a  modo  de  hum  terrível  terremoto,  le- 
varão a  ambos  de  dous,  para  o  Inferno ,  deyxmdo  no 
palácio  hum  fedor  taõ  horrendo ,  que  por  alguns  an- 
nos  naõ  foy  habitável.  Efte  cafo  entre  outras  teftemu- 
L6r  &  "^-^^  ^^^^  o  R ,  P.  M.  Joaô  de  Lorino  ,  varaô  taõ  efcla- 
Segn.  p.  recido  nos  celebres  comentários  íobre  a  Efcritura  Sa- 
^.S^rm.  grada ,  que  aífirma  ter  conhecido  a  ambos  de  dous  ef- 
15'.        tes  deígraçados ,  c  precitos. 

Defenganem-íe  todos  aquelles ,  que  não  reíh- 
tuiraô  com  tempo  a  fazenda  alhea  ,  que  o  mayor 
tor  mento,  que  tcraô  no  Inferno,  feia  o  tela  deyxa- 
daaos  filhos  ,  ou  hcrdcyros,  e  melhor  fora ,  que 
a  tiveíTcm  difílpada,  ou  qucymada.  O  Rico  Ava- 
rento pedia  no  inferno  ao  Padre  Abraham  ,  que  man-.; 
daíTe  algum  condenado  ao  Mundo,  para  advertir 
aos  íeus  cinco  Irmãos, que  naõ  foíTcm  também  cl-; 

les 


Dô  fârmèntõ  dôs  Avarentos*         137 

iès  parar  naquellc  lugar  de  tormentos;  Ne\^  ^ffi^^c'^* 
veniant  in  hunc  locum  tormentorum.  Como  pôde  ler  *  * 
ilio  !  Oá  precitos  podem  ter  caridade  ,  e  defej^rj 
;:quc  os  outros  fe  faivem  ?  Certo ,  que  naõ  !  Antes 
pelo  contrario  os  condenados  laó  como  os  demó- 
nios,  edefcjáo,  que  todos  vaõpara  o  inferno.  Pe- 
dia ifto  por  amor  próprio  ,  e  por  medo  ;  porque 
tendo  deyxada  a  fua  fazenda  aos  Irmãos,  com  o  feii 
máo  exemplo,  que  lhes  tinha  dado,  a  gaflavão  em 
luxos,  e  banquetes,  fem  íe  lembrarem  dos  pobres. 
•E  aíTim  indo  também  elles  ao  Inferno  ,  lhe  accrefcen- 
:tariaô  as  penas,    amaldiçoando-o  ,  e   carregando-o 
de  blasfémias  ;    e  com  tudo  as  riquezas  naô  erao 
aiheas.  E  que  fera  daquelles  ,  que  deyxaõ  a  fazenda 
,aos  filhos,  e  duvidaô,  c  (abem  ,  que  não  he  fuaf 
,Que  fera  daquelles  Juizes,  que  por  intereíTederaõ 
fentenças  injuftas  f  Daquelles  letr.idos ,  que  por  pey- 
tas  enganarão  as  partes  ?  Dos  Teftamenteyros ,  qus 
roubarão  os  pupiilosf  Dos  que  com  trapaíTas  arrui- 
narão famílias  em  hum  tribunal  também  inftituido, 
como  o  dos  defuntos,  e  auzentes  ?  Oh  que  penas/ 
,Oh  que  tormentos!  Oh  que  inferno  dos  infernos! 
Ver  humpayjá  condenado;  os  filhos  condenados; 
os  Netos  condenados  i  os  Bifnetos,  e  Teteranetos, 
todos  efles  amaldiçoaram  o  Pay,  o  Avo,  o  Viíavo, 
Tetcravo  !  porque  todos  efles  conhecendo  ,  que  a 
fazenda  era  alhea,  fc  fiavaõ  ,  com  dizer  j  tcnho-a 
herdado  de  meus  Pays  ,  e  pouco  me  importa ,  que 
clles   eftejaô  no    inferno  ,  íe  aílim  o  Guizeraò.  E 
quantas  viuvas,  c  quantas  Orfaãs,  e  quantos  po- 
bres ,  que  por  verem  roubado  o  feu  ,  fc  deraò  ao 
Mundo,  como  defefperados ,  cumulando  peccados 
,e  peccados!  Outros  blasfemando  atê  da  Divina  Pro- 
videncia ,  porque  permitte,  que  hum  Avarento  pela 
|íuâ  cubica  í  lhe  tonje  ó  fuftento  Í.E  quantas  pragas 
L.;  naô 


li 


À 


im 


tgS  Bífiurfò  VIU.    \ 

'-■-  "  naô  lhe  rógaõ  !  E  quantos  ódios  mortais  naô  Ihè 
Goriíervaô  nas  entranhas!  E  ifto  pela  cubica  ds  hum^ 
pequena   íazcnda  ,  que  ,  deyxando-a  na   hora  da 
aporte,  cauía  todas  eftas    maldades.   Ora  qual  he 
aquelle  ,  que  ainda  que  reftitua  ,  fe  confeíTc  deíías 
coníequencias  ?  ElRey  David  comettco  dous  pecca- 
dos  ,  hum  homicídio  ,  c  hum  adultério  j  c  lábia 
de  certo  por  bocca  do  Profeta  Natan  ,   que  Deos 
j^iy^^  lhos  tinha  perdoado;  Ddminus  quoque  tranjitíht fec* 
Reg,c[  catum  tmm,  non  mmem.  E  com  tudo  diz  a;  De- 
i^'i^'Mã  quis  mtelligit  ?  Quem  he  que  poíía  perceber 
as  terríveis  coníequencias  dos  peccados  contra  os 
iy^/.i  8  feus  próximos  i  efpeGiaimente  dos  furtos,  e  do  re- 
ter o  alheyo?  Ahoccultis  méis  munda  me,&  ab ahe- 
nis  pane  Servo  tuo.  Os  peccados  occulcos  faô ,  os 
que   temos    dito  aeima  i  murmuraçoens  ,  rayvas, 
ódios,  blasfémias  ,  atè  defeíperaçoens ,  por  fe  ve- 
rem por  cauía  dos  fcus  devedores  cm  extrema  mifc- 
ria.  Eftes  peccados     íaô  occultos  a  nôs  ,   porque 
os  fazem  em  fuás  cafas  ,  fem  nôs  ouvirmos  ,  oa 
vermos  coufa  alguma.  Saô  alheyos,  porque  faõ  dos 
noíTos  acredores,  que  efcandalizados ,  e  nritadoy, 
.por  fe  verem  faltos  do  neceíTario,  prorrompem^  em 
fúrias,  amaldiçoando  o  dia  ,  cm  que  nafcèraô,  e 
pedindo  ao  Ceo  i  que  confuma  com  íeus  rayos  ^a 
quem  taô  injuftimente  lhe  tira  o  íuftento  á^  vida. 
Acabemos  eífe  diícurfo  ,  com  as  mefmis    palavras 
i-^''''-  do  thema,  com  que  o   começamos:  Nolíte  errarei 
^'^'     neque  Fures,  neque  Avari  Regnum  Dei  pojfidebmt. 
Deíenganem-fe  todos  (  diz  o  grande  Apoíiolo  S.^Pau- 
lo)  nem  os  Avarentos,  nem  quem  furta,  e  nao  re- 
fiitue  o  aiheyo  ,  nunca ,  nunca  dos  nuncas  poderá  en- 
trar no  Reyno  do  Ceo.    Efta  verdade  hc  taõ  certa, 
quehedefé^  he  tao  clara,  que  naó  admittc  com- 
mentos,  nem  interpretaçoens  ;  nem  ha  íentcnça; 

ou 


;  I 


Dõ  tormento  dos  Avãhntos,  239 

ou  Doutor  ,  que  diga  o  contrario  ,  fallando  po''' £,  ^ 
boccâ  de  todos  S.  Agofíinho  .*  Non  rtmittitur  pecca^^'^^^] 
tum ,  mfi  reftítuatiír  ahlatum.  Por  itlo  mb  diz  S.  Pau- 
lo j  naô  vos  enganeis  ,  ou  naó  vos   deyxeis  enga- 
nar i  mas  ;  Nolite  errare.  Naõ    queyrais  vós  mef» 
mos  cnganarvos ,  pois  he  tal  cfíe  vicio  da  cubica, 
e  da  avareza  ,  que  muytos  bufcaõ  traças ,  pretextos, 
c  razões  falfas,  e  apparentes  para  naô  reftituirem  o 
alheyo.  Refere  Saò  Gregório  Papa,  que  na  Cidade 
de  Roma  havia  hum  çapateyro  por  nome  Deiís  dcJtt  ^f'^^' 
Deos  o  deu.    Pobre  dos   bens  defte  Mundo  ,  mas  '^^  * 
muyto  rico    de   virtudes.    Hum  Santo   Anacoreta      = 
vio  muytas  vezes  cm  extafis }  que  íe  lhe  efíava  fa- 
bricando no  Ceo  humPalacio,equenodia  de  Sab- 
bado,  fe  multiplicavaô  os  cbreyros ,  accreícentân- 
do  novas  cafas.  Cuydava  o  Santo  Anacoreta  ,  que 
ifto  erâ    por  contrapoííção  aos  Judeos  ,  que  efíaõ 
em  Roma  ,  que  guardaõ  o  Sabbadoccm  tanto  rigor, 
que  nem  o  comer     fazem  5  porém     loube  depois, 
que  S.Deus  àedit  ,  tirando  o  ícu  limitado  íoilen- 
to  ,  dava  aos  Pobres  ,     quanto     naquella  femana 
com  o    íeu     trabalho  tinha  ganhado.  Efle   Santo, 
fim,  que  vivia  defenganadoj  e  foube  fabricar  para 
fi  com  a  fua  pobreza  hum  grandioío    Palácio  ho 
Paraifo.  E  que  Palácio  fabricão  os  que  furtaõ  ,  ou 
nâo  reftituem  ? 

Oh  infelices  Ricos  !  Oh  defgraçados  Avaren- 
tos ,  que  com  as  fuás  ufuras  >  e  furtos  deyxando 
por  força  na  hora  da  morte  as  fuás  riquezas  ,  e 
fazendas,  acharáõ,que  tem  fabricado  para  íi  huma 
prifaô  apertadiíTima  no  eterno  calabouço  do  In- 
ferno. Deíenganem-fe  ,  que  fe  naô  rcftituircnn 
com  tempo  ,  c  todos  ,  quantos  danos  fízerão  aos 
feus  Próximos  ,  aquella  prifaô  eterna  íerá  o  ícu 
palácio ,  fcrá  a  íua  quinta  ,  fcrá  o  feu  ^rdim ,  íc- 
L  fá 


rr 


^^^SÊÊÊHÊmm 


WÊm 


íí 


l!  í 


lív  I 


n 


Í40  Difcurfo  VUL 

tà  a  Gafa  de  converíação ,  lerá  a  íu a,  morada  para 
toda  a  eternidade:  Nolíte  errare^  neque  Fures ,  ne* 
que  Jvari  Regnum  Dei  pjjidehunt» 


T 


^ 


1        n 


TORMENTO  D05  LVXVRI0S05 


^ 


fíis^Èiíia 


lídimú  f.i,flQm  d):.úr"     ■  ■   " 


3i.  '^íii 


DISCURSO  IX. 

ÍDo  Tormento  dos  Luxuriofos. 


Dilatavit  Infernus  animam  fuam  •,  aperuit  os 

fuum  abfque  ulh  termino, 

Ifai.  cap.  5, 


fu 


E  o  Inferno  he  hua  prizaS  taô 
apertada  ,  como  diffemos  no 
primeyrodiícurfo,  aonde  os 
condenados  naô  tcraõ  largue- 
za algu3i  antes  eftaraô  atados 
como  a  Icnhà  em  fcyxcs ,  para         ^ 
arder  eternamente;  Congrega-  ■^*'^^^' 
bimtur  in  congregatione  unius     '  ^' 
fafcis  in  lacum ,  &  claudentnr 
Bíin  cárcere  Como  agora  diz  o  Profeca.que  clle  he  taô 
dilatad ^ ;  e  que  abre  hua  bocea  ,  que  não  tehi  têripof 
jDilatavit  Infernus  animam  fuam ,  aperuito^fuumaiff' 
^ueullo  termino,  falhâqiú  metaforicamente  oProfc- 
ta,e  delcreve  o  vicio  da  luxuria ,  fazcndo-o  femelhan- 
te  a  hi^ma  befta  iníaciavel ,  qus  quanto  mais  comcv 


!  'âkm^^msj^í^^^MÉi 


huj 


tan» 


w/k 


\     I 


f^  Di/curfo  IX 

tanto  mais  íc  moftra  faminta.  Imagem  verdadeyra 
daquelLe  .Triceí'bero  ^  que  íÍBgiraò-os  P9ftjs.:^ilar 
em  cuftodía  das  portas  do  inferno  5  nao  para  qrie 
nãoentr.iííem  os  malfeytores  ,  mas  para  que  nunóa 
mais  fahiíTe ,  quem  huma  vez  là entrava  :  Iràferus infd^ 
UabiUter  cava  guttnra  fandit^   He  certiffimo  ,  que 
'•'..  ò  retrata raaisVivo,e.  natural  de  hum laxuriofo  hc 
aquclle  de  hum  condenado  no  Inferno.  O  Texta 
Sagrado  [exprknè  o  miferavel  eftado  dos  réprobos 
npjnferínoeoíç  quatro  difFercntes  penas.  A  primey^ 
ra  he  huma  efcuridaò  j  como  huma  tempeftade  no- 
£lur^^kmqtte^todosgrita6,e  blasfemaô,  íem  ve- 
rem,  ou  íaberem  outra  coufa  ,  íe  nâo  ,  que  para 
Judiei  íempreferaõ  atormentados:  Hi  funt  j  quil/us pro» 
s^ap.i^.cdla  fènebrartm  fervata  eji  m  áeternnrd,  A  íegundà 
he  húa  dcíordém  perpetua ,  e  huma  confuíaõ  horro- 
rofa  :  Ntãlus  orda^  f{d  fempiternus  horror  inhaUtaf, 
fobcn^A  Écrceyra  he  hum  cativcyro  crueliíTimo,  não  íó> 
,0.       do  corpo,  mas  da  Alma,  atè  perderem  o  íeu  livre 
_       alvedrio  .•  Tlmt  fuper peccatares  laqueos^  ignu :  Liga-^ 
Marl^  Ml  »s?^»^^»í  V  &  f^dibus.     A  qUàrta.  hc  O  remorç<| 
í^p.9.   ^^  coníciencia^  mais    terrivei  que  o  mefma  Infere 
no ,  pois  he  bum  bielio  intrinfeco ,  que  nunca  dor- 
me, e  íç^my^xtxòziyermútorum  non  mõritnry  qni' 
fol^cap.f^^  (^omedumymndarmmit'E^e$  íeraó  os  quatro 
go,       pontosido  me.ti:difcíurfQ  »  era  que  moíírarcy ,  como 
•**'';' ;v;©5v4u!?tudo^^^  anttcipadamente  neíía  vida 

'  *       eítosvquartro  tormentos ,  para  paíFar  depois  de  mortos 
de  hutn  Inferno-a  outro. 

:  Todos  OS  pcceados  faô  cegueyra  ;  porem  na 5 
liapcGcado,  que  mais  conduza  á.  total  cegueyra  do» 
entendimento,  como  a  luxuria.  Dá  arazáo  Saõjoaõ 
Ghryfoftomo;  porque  efte  peccado  fogcyta  oracio;» 
n^l  ao  íeníitivo ,  obriga  o  eípirito  a  obedecer  á  caie-» 
m  iX^táuz  fioaimente  a  Alma  a  ler  cfcra  va  pcrpcri 


mJ 


P 


tua 


I 


Do  tormenta  dòs  Luxurio fos.         .^43 

l^a  do  feu  corpo.  Por  iíTo  S.  Paulo  fallando  de Jiun? 
'deshoncfto  naó  o  chama  fomente 'homem ;  mas  con) 
o  addito  de  homem  carnal.   Animalis  homononper- 
€tpit  ta,    qua  fmt  fpmtus  Dei.  Pelo    que   qucni 
'4)ertcndcffc  que  hum  homçm  c^rnalmçnte  obrando 
,fc  governaf e  como  com  olumedarjazap,feriaq^c- 
;l•€r»    que  a  carne  foíTe  ^  por  modo  de  dizer  i.efpir 
rko.  Prova-fe   ifto  com  hum  bdiíTimo   reparo  dô 
S.    Bernardo  ,  que  diz  affim.  Quando  o  homem  íc 
^deyxa  predominar  da  foberba ,    pecca,   mas  pe^ca 
!como  Anjo,  pois  a  foberba  ioy  o  peccado dos  An- 
jos. Quando  fc  deyxa  vencer  da  ambição ,  &:  ava- 
reza ,  pecca,  mas  como  homem,    pois   a  avareza 
>he  hum  peccado,   que  íó  convém  ao  homem.  Mas 
■quando   hc    vencido    da  luxuria,  efe  entrega  aos 
appetites  da  carne ,  pecca,  como  íe  jáfoíTe  hum  Bru- 
fíQ,  porque  obedece  ,  c  íeguc  íem  reparo  os  movi- 
mentos de  huma  payxaô,  que  he  predominante  nos 
-Brutos.  Logo  fe  cí^e  pecca  como  bruto,  naô  pare- 
'(Ce  gozar  daquelleclaro  lume  da  razão,  e  daquel- 
las  luzes  de  eípirito,  que  o  conflituem  differentç 
dos  Brutos,   e  o  fazem  obrar  como  homem.    Eftà 
Jogo   reduzido  hum  deshoncfto  ao   opprobrio,  e 
ignominia  de  hum  Nabuco,  e  quaíi  di  meíma  con- 
dição dos  Brutos,  com  efta  íó  diffcrença,    que  os 
Brutos    naõ  peççaõ  na  íua  feníualidade,   por  lhes, 
faltar  p  luuie  da  razaõ  ,  e  o  homem  luxurio fopep- 
jCa,  quaíi  perdendo  o  lume  darazaò,  para  fe  fazer 
como  Bruto. 

-        Confirmou  efta  vqrdadc  o  Profeta  David,  quan- 
.dodiíTe:   C$mparatus  eft  jumenús  infiftentihis.  ^   é^ 
fimils  faàíis  ejf  illis.  O  homem  eíquccido  da  honra, 
que  lhe  fez  Deos  em  o  erear  conforme  à  fua  ima- 
gem, fe  aviltou  com  os  Brutos,  tomando  vOs  feus 
cuíiumçs,  e  fc  fez  femelhante  a  elles.;íailaYa  :comf 

Q  z        "  aex- 


D.  Pau!, 

ep,c. 


•a^ 


pfâi^ 


^3- 


fOH, 


ia  c^íp^mneia^;  etóhhecco  cêá  verdade  depbiálíte 
taliir  iiò  pc<Scado  de  adultério  com  Ber íabé  ;  e  por  if- 
fô  çahido  tK)  erro,  e  detefíando  a  íua  culpa,  naÔ 
fc  chamava  mais  homem,  quando  orava  na  preíen* 

'^^^a  de  Dcos ,  mas  hum  Bruto :  €Jt  jumentum  faãut 
fum  apud  te.  Efte  he  o  difcuffó  de  S.-  Bernardo  ,^c 
a  cxperfenciâ  affim  o  declara.  Yemos  eftes  homctí^ 
^ícravos  dá  fua  fenfualidade ,  que  no  tempo ,  cnfi 
que  a  fua  payxaõ  os  tenta ,  fe  perturbaõ  de  modo, 
que  fechaõ  os  olhos^  a  qualquer  coníideraçaõ  divina, 
c  humana  ,  naô  approvândo  o  bem  da  virtude,  naÕ 
temendo  o  que  dantes  temiaõ,  obrando  comoícm 
juízo,  eíquecidos  da  honra,  da  íaude,  do  mcímo 
Deòs,  e  do  Inferno.  Tanta  be  a  força  defle  vicio 
•da  luxuria ,  cegar  de  tal  íorre  o  entendimento  de 
■hum  luxQrioío ,  que  como  enfeytiçâdo  do  delcytc 
■perde  o  conhecimento  de  Deos,  do  íeu  pcccado  ^  c 
'deíimefmo. 

'  Accrefccnta  mais  Santo  AgoftinHo ,  que  os  luxií- 
iriofos  perdem  também  o  conhecimento  do  que  íaõí 
'poifque  na  efcravidaõ  daquelle  vicio  deyxaò  de  íer 
«  que  eraô',  e  dà  por  prova  o  fucceíTo  de  Danieí: 
í^or  onde  (  diz  elle  )  começou  o  atrevimento  eícanda- 
ioío  dos  dous  Velhos,  que  a  commetèrâõ  acaftaSu- 
lannaf   E  refponde  por  eíftas  palavra?  :  ExarferuM 

j'3^m  imcupífcenúafn   ejus ,    évwterum  fen/um  ftiutk 

9  ■&  dedman}erunt  ocmos  fuos,  m  vtderent  C/ekm.  Jà 
ardendo  no  fogo  da  concupiícencia ,  já  cegos  âa 
payxaõ  perderão  o  entendimento ,  e  abayxàraó  os 
olhos  para  iiaÔ  ver  o  Ceo:,  c  com  razaô  ?  porque 
fc  tivcffem  os  olhos  alçados  aoCeo,  como  fez  Su» 

*"5 íanna  ,  ^uie  fietís  fufpexH  >aâ€Aim-  Sc  íe  lembraf- 
íem  dcDcòs^,  cj2ò  teriaõ  animo,  para  tentar  hum 
crime  tam  execrando.  Quem  naõ  quer  olhar  para 
O  Çco^  menos  qUçrerà  olhar  para  fi  ,  como  fizer a5 
-'}:3  G        '  '     i  i)  cite  s 


Do  urmefíte  dosLiixnriofos.         M5 

cUcs  dolis  velhos  5  que  nem  attendèraò  à  im  idade  taò 
adulta ,  nem  ao  cargo  de  Juizes,  que  exercitavãona 
Republic  3 ,  cm  razão  do  qual  eraô  obrigados  a  punir 
hum  femelhante  exceíTo. 

Mas  oque  mais  fazpaímar  nefte  calo  he,  que 
homens  julgadores ,  que  em  raz^i  do  cargo  devem 
fermais  ajuftados,e  redes,  em  t^m  breve  tempo, 
quanto  os  ollios  correm  em   aviftar  hum  objceto, 
prevaricaíTem  .  efquecidos  totalmente  do  refpcyto 
devido  a  Deos,  e  a  fi  mcímos.  Refponde  a  efte  re- 
paro S.JoaõChryfoftomo:que  aíTim  como  cm  hum 
inftante  íe  cftende  a  luz  pela    immenfidade  do  ar, 
dííTipando  todas  as  trevas  nodurnas ,  aíTim  também 
cm  hum  momento  o  vicio  da  luxuria  parece,  que 
cícurece  a  alma ,  offurcando  o  lume  dafè,e  da  ra- 
7.aQ.  Obíerva   Clemente    Alexandrino,  como   os 
]?oétas  5  que  no  gentiliímo  faziaò  o  papel ,  e  figu- 
ra de  Doutores  ,  quando  deícreviaô  os  adultérios, 
e  infames  comércios  dos  feus  Deofes ,  nunca  os  re- 
prcfenravâo  nas  fuás  próprias  figuras,  como  de  Jú- 
piter,  Mercúrio  ,  ou  Juno  ;  mns  os  disfarçavao, 
e  exprimiaô  com  o  nome  de  Animais.  Nòs  os  vi- 
tuperamos (  diz  efte  Padre  )  por  terem  aflim  infama-  ^^^^, 
do  afua  Religião,  cfalfas  Divindades  imas  fc  bem  ^,^^'-^ 
o  coníiderarmos ,  muyto  melhor  obravão  ,  do  que  opujc.^ 
nòs,  nefte  modo  de  dizer, que  nâo  era  impruden- 
te. Queriaô  com  ifto  fignifícar,  que  nunca  os  feus 
falfos  Deofes  cometeriaõ  íemelhantes  exceííos,  fem 
dey xarem  o  íer,  que  tinhaô ,  e  tomarem  o  fer  ,  e  con- 
dição de  brutos.  Tanto  he  certo,  que  os  mefmos  Gen- 
tios, fem  a  luz  do  Evangelho ,  conheciaó  claramente, 
que  a  fenfualidade ,  e  luxuria  era  hum  appetite  tanto 
próprio  de  brutos ,  que  fe  podia  clifear  bruto  aquclle 
homem ,  no  qual  predominaíTe  efte  appetite. 

O  noíFo  bcmavcnturado  S.  António  Portiíguez 


mmmmimÊÊmiÊm 


4'V 


Mccief. 


246  ^t^B^ãrfo  IX, 

M\mê>  dacegue5^i-a,à  qual efte  vicio  da  íeníualí: 
dadc reduz  hum  homem  luxuriofo,  para  melhora 
explicar  ,    bufca    a      etymologia  da  meíma  pala- 
vxa  fornicação  :  Formeatm  átciiur  quaft  fwma  neca* 
íw,  idejty  anima  âd  fimílituátmm  D u  formata  m* 
catia.  Quer  dizer,  que  a  fornicação  exprime  ,cfia- 
iiifíca  a  morte  da  Alma,  que  he  a  forma  do  Corpo 
humano;  que  vem  afer  o  niefmo»  que  dizer,  que 
a  luxuria  faz  hum  grande  eftrago  na  Alma,quaíf 
privando-a  dobomufo  das  íuas  potencias,  Memo- 
ria,  Entendimento  ,  e  Vontade.     Offuíca   a    Me- 
moria,  porque  o  deshonefío  immerío  nos  deleytes 
da  carne  vive  em  hum  perpetuo,  cfquecimento  dos 
benefícios,  c  ameaças  de  Deos  ,  que  faô   os  dou? 
motivos  mais  efficazes  para  íe  converter :  Non  da» 
hunt   cogitaúoms  fms ,  ut   revertantur  ad  Detm^ 
quiaffiritus  formcatianisin  medweorum.  Diz  oPro*^ 
ícra  Ofeas.  Quer  dizer.-  nunca   levantarão  open- 
íamento  a  Deos ,  porqus  o  eípirito  da  fornicação 
rcyna  no  intimo  dos  íeus  coraçoens.  E  fem  a  lem- 
brança dos  benefícios,  como  poderá  hum  peccador 
cerpezar  de  ter  offendido  ao  íeu  Bemfeytor,  quan^ 
do  a  Sagrada  Efcritura,  os  Concílios  ,  Santos  Pa- 
dres ,  e  Doutores  põem  por  hum  dos  motivos  do 
arrependimento  a  lembrança    dos    grandes    benefí- 
cios, que  temos  recebido  de  Deos?  Digo  mais.  Com^ 
luim  total  eíquecimento  das  ameaças,  e  caíiigos  de 
Deos,  como  poderá  hum  coração lafcivo  compun- 
girfe  com  reíoluçaô  de  deyxar  as  fuás  torpezas,  c 
fazer  ao  menos  hum  Ado  de  Attriçaô ,  quando  le  rc 
folveíFe  a  confeíFar  ,  fe  totalmente  fe  eíquece  das 
penas  do  Inferno,  que  lhe  deviaõ  picar  a  confcien- 
cia  para  o  arrependimento  ?  §hu  fim  timore  ejí  ^  diz 
o  Efpirito    Santo  ,     nm  ptefi  jujlifçari.     Quem 
perder  o  temor  de  Deos  ,  e  dos  íeus  cafligos  fe 

rcn- 


Do  torfJfmtõ  dos  Luxurio fos.        147 

fêndcquâíi  iníenfivelxi  quereríe  iuftificar. 
,       Depois  de  offuícar  a  Memoria,  paíTaefle  vicio 
da  luxuria  quaíi  a  cegar  o  entendimento  de  modo, 
que,-  parece,    perde  de  vifi:a  as  verdades  eternas', 
porque  os  deleytes  feníuaes    á  femelhança  daquel- 
les  vapores  groíTos,  que  exbalaô  de  algumas  lagoas, 
e  lugares  paiudofos ,  que  encobrem  o  ar,  aífim  en- 
cobrem ,  e  cícurecem  o  lume  da  razaó.  Osoutros 
peccados ,  como  diz  Santo  Thomàs ,  perturbaõ  o  en- 
tendimento;   perturbant    rattonem   ínentis :  mas   2  o.Th,_ 
luxuria  perturba,  e  apaga  totalmente  ojaizo:  Lu-  2.  2.  f. 
xnria  toíaliter  extmguit  rattonem   mentis \  e  aíTim  5l'<*rt'' 
naó  íe  contenta  de  lhe  chamar,  como  Ariftoteles,  ^' 
huma  efpecie  de  bebedice ,  mas  diz,  que  hehum  ramo 
de  loucura:   Stultttta  maxime  nafcitur  ex  luxuria. 
A  razaò  he,  porque  os  motivos  da  virtude  já  nao 
penetraò  o  coração  de  hum  impudico  i  e  as  inipi- 
raçoens  divinas  alumeaô  o  íeu entendimento,  aífjm 
como  os  rayosdo  Solaiumeaõ  a  hum  cego. 

A  prova  íc  vè  no  infeliz  fucceíTo  de  Sanfaô,  o 
qual ,  lendo  dotado  de  huma  rara  prudência ,  e  invi- 
èt^  fortaleza ,  depois  de  entregue  aos  amores  de 
Dalida,  de  tal  forte  perdeo  o  juizOjqueexperimen- 
lando-a  por  três  vezes  traydora  ,  ainda  aífim  entre- 
gue de  novo  aos  feusenganofos amores,  Ihcdefco- 
brio  finalmente  o  fcgrcdo,  que,  fe  lhe  cortaíTem 
os  cabellos ,  perderia  a  fortaleza ,  de  que  era  do- 
tado; Si  rajum  fiient caput metim  ^  recedet  à  mefot-  n  ,.  , 
tittido  mea,  O  meímo  íuccedeo  a  Salomão,  fendo ^^  '* 
hum  dos  entendimentos  mais  illuftradocomolumc 
das  fciencias:  a  cega  payxaô,  em  que  ardia  a  rcf. 
peyto  das  luas  concubinas :  bis  copulatus efl  Salomon 
ardentijjimo  amore^  de  tal  forte  o  privou  do  juizo,  ^'u/' 
que,  o  fez  cair  nos  cxceíTos ,  que  temos  relatado 
cm  outro  diícurfo.  Naõ  baítáraô  os  repetidos  avi- 

0^4  zos 


í  i      : 


,   ) 


^f8  Dlfcuvfo  IX. 

zos  de  Dcos,  naô  baftàraõ  todos  aquclles  ^fmcU 
pios ,  c  hábitos  de  taõ  alta  fciencia ,  de  que  era 
dotado,  para  impedirem  as  nuvens  groíTas,  coní 
que  o  vido  da  luxuria  o  cegava ,  obrigando-o  nos 
annos  da  velhice  ,  onde  o  defengano  deveria  íer 
mayor,  a  fazer-fe  Idolatra,  e  a  fabrircar Templos, 
cfacrificar  aos  Demónios  nos  íeus  falíbs  Deofes ,  íó 
afim  de  naô  defcontentar  as  Concubinas,  com  que 
tratava :  Cumque  effet  fenex  depravatum  efi  cor  ejus 
pr  mulieresi  utfequeretur  Deos  alienos. 

Da  cegueyra  áo  Entendimento  naíce  o  defcon- 
certo  da  Vontade,  que,  como  naô  be  guiada  da 
ipazaô,  íe  immerge,  c  profunda  toda  nos  deleytes 
Pstr.  2.  rfa  carne  ,  como  faz  hum  animal  immundo :  Sus 
•  •  lota  tnvolutabro  luti.  Oh  Vontade  do  homem,  que 
íendo  a  raai&  nobre  potencia  da  fuaalma,  comtudo 
pelo  vicio  da  lumiria  íe  faz  vil  ,  e  abatida  mais 
que  todas!  He  a  vontade  a  mais  nobre  das  poten* 
cias  ,  porque  he  entre  ellas  como  Rainha  ,  c  Senho- 
ra, que  tudo  difpocmj  mais  viciada ,  c  aviltada 
com  o  vicio  da  Luxuria,  naô  fabeefcolher,  íenaô 
âquillo,  a  que  inclina  o  appetitc  brutal  dos  deley^^' 
íes  immundos.  Se  a  Memoria  em  alguma  occaíiaa 
lhe  propõem  a  repentina,  e  terrível  morte  de  tan- 
tos Luxuriofos,  a  Vontade  vknada  procura  logo^ 
que  prevaleça  contra  efta  lembrança  aviva  lembran* 
ça  dos  deleytes,  que  ama.  Se  o  Entendimento  quer 
drícorrer  fbbre  o  rigor  dos  tormentos  preparados 
para  os  luxurrofos  no  Inferno,  eoniderando  como 
faõ  eternos,  e  fcm  fim,  por  ferem  para  humâ eter- 
í>  âm.  "^^^^® '  ?  ^^^  penfamcnto  da  Eternidade ,  a  que 
il  j[S.  Agoftinho  chama  grande;  Magna  cogitaúo ater* 
nttãs  y  que  he  hum  firme  aliceríe,,  e  funda  mento- 
para  a  íegurança  da  noíTa  íalvaçaô,  refiftc  logo  a 
yontade  Igxitfioíá  eontrapondo^lhc  outros  penía-; 


iih. 


Do  tormento  ãos  Luxurio fos.  í  4  9 

mentos  de  novos  goftos  ,  de  novos  deleytcs  ,  de 
novos  objedos ,  com  os  quaes  poíTa  fatisfazer  ao 
íeu  brutal  appetite,  fazendo  por  íe  eíqiiccer  total- 
mente daquclla  máxima  infalível  ,  que  he  momen- 
tâneo o  que  deleyta  ,  e  eterno  o  que  ha  de  atormen- 
tar no  Inferno :  Momentaneum ,  quod  deleãat ;  ater'^ 
num ,  quod  cruàat.  Ninguém  fc  admire  de  obrar  aí- 
íim  húa  vontade  toda  immería  nos  deleytcs  da  car- 
ne 5  porque  he  caftigo ,  que  Deos  permitte  venha 
aos  Luxuriofos,  que  por  muyto  tempo  perfevercm 
nas  íuas  torpezas. 

Para  prova  mais  clara  referirey  o  cafo  foccedido 
a  hua  celebre  Concubina  da  Cidade  de  Eípoleto  cm 
ltalia,a  qual  tinha  vivido  muytos  annos  em  pecca- 
do  ,e  fido  cauía  da  perdição  de  muytos.  Finalmen- 
te mandoulhc  Deos  humatcrrivel  doença,  que  logo 
os  Médicos  julgarão  fer  mortal;  e  depois  de  appli- 
cados  vários  remédios',  vendo  que  o  mal  precipi- 
tava para  a  morte ,  íe  defpediraõ  da  cura ,  dizcn- 
do-lhe ,  que  trataílc  da  íua  Alma  ,  porque  fó  por 
milagre  poderia  efcapar.  Tomou  abem  o  avizoefla 
mulher ,  c  com  edificação  de  todos  mandou  logo 
expor  o  Venerável  em  varias  Igrejas,  e  dizer  muy- 
tas  MiíTas  pelos  Conventos ,  rogando  a  Deos  pela 
íaude  do  corpo,  e  promettendo,  fe  vivia  ,  de  fer  ou- 
tra Magdalena   penitente.  No  dia   kguintc  entrou 
o  Pároco  com  outros  Miniílros  para  a  diípor.e  aju- 
dar naquelias   ultimas  horas  da    vida.  Perguntou^ 
lhe  a  mulher,  porque  razão  lhe  não  concedia  Deos 
ávida,  cfaude,   que  com  tantas  veras  lhe  tinha 
pedido  ?  Refpondco-lhe  o  Pároco  ,  que  Deos  que- 
ria lalvar  a  fua  Alma ,  e  que  não  era  fervido  darlhc 
mais  tempo  nefla  vida  chea  de  miferias,  c  pecca- 
dos ;  mas  darlhc  huma  vida  muyto  melhor  ,   que 
çra  a  Eterna.    Entaô  ella  enfurecida,  c  chea  de 

rayva 


í  , 


Maith 


Z^Q  /-       Difcmfo  :IX,         1 

rayva  diíTe.  On  bem  .!  Jà  que  Deos  naõ  me  queir 
dar  goílo     em  prolbngarme  a  vida  do  corpo  ,  que 
lhe  tenho  pedido,  eu  também  naõ  ihequeiio  dar  o 
goílo  dedarihe  a  minha  Alma;  e  proteíio  em  pre» 
íençadc  todos,  que  a  dou  ao  Diabo  íeu  inimigo  ,  e 
aííim  dito  ,  efpírou  logo.  Ficáraô  os  circuníiantes 
paímados  a  tal  cafo,   e  a  tal  blasfemea  nunca  mais 
ouvida!     E  muyto  mais  atónitos,  c  amedrentados 
fícáraõ,  quando  viraô  naquelle  apoíento  dous  Dct 
Oionios  em  figura  de  Drago.ens  com  azas,  que  pe- 
gando naquelie  corpo  íahiraõ  com  elle  para  fora 
por  huma  janella ,  c  o  Icváraõ  ,  como  fe  crê ,  a  unir- 
fe  com  a  Alma  já  julgada ,  e  íenténciada  a  arder  éter*? 
namente  no  inferno.  Efte  he  o  fim  ,  onde   vay  pa- 
rar anoíTa  vontade  cega,  quando  o  entendimento, 
que  havia  de  fer  a  luz,  que  a  guia,  eílá  também  ellc 
envolto  nas  trevas  da  luxuria:  ambos  correm  como 
defeíperados  ao  precipicio  ,  e  a  fepultaríe  no  Ca- 
labouço eterno  do  Inferno  :  Cacus  autemfiC£CO  dma- 
tum  praftat,  ambo  inf&veam  cadnnt. 

Finalmente  eftas  trevas  do  vicio  da  luxuria  íaõ 
tam  grandes ,  e  dilatadas ,  que  o  homem  impudico 
chega  a  naõ  conheceríe  a  fi  meímo  ,  nem  a  enor- 
midade dos  íeus  crimes  j  e  entaô  íe  eílima  mais  livre, 
qunidoeflá  maisfepultado  no  abifmo  das  fuás  tor- 
pezas. No  vicio  da  luxuria  naõ  foccede  como  nas 
outras  coufas.   A  experieneia  de  ordinário  hc  a  que 
caufa  o  conhecimento  das  coufas.  AíTim  o  vemos 
nas  artes  liberais,  e  mecânicas.   Aqucile  he  melhor 
muííco,quetem  gaflo  maisannos  na  folfa.  Aqueile 
melhor  ofâcial ,  que  tem  mais  tempo  do  oííicio.  Af- 
fím  he  também  nas  fciencias:  aqueile  he  mais  adian? 
tado  nofaber,  que  he  mais  verfado  nas  letras.  Fi- 
nalmente nas  Republicas  Militares,  Políticas,  e  Ecr 
clefiaílicas,  os  Poíios  ,os  Governos,  e  as  Dignidades 

fe 


D  9  tòv  mento  âos  L  uxuriofos,        ^^  i 

fé  daõ  àquelics  j  que  fe  conhecem  de  mayor  cxpe^ 
riencia.  A  razaô  he ,  porque  nòs  naõ  conhecemos 
bem  as  coiiías,  fe  naõ  quando  as  temos  experimen- 
tadas. 

Nâ  matéria  porem  do  vicio  da  luxuria  he  tudo 
cm  contrario.  Quanta  maypr  experiência  tem  hum 
lafcivo  defte  infame  vicio ,  tanto  menos  o  conhece. 
Hum  mancebo  innocente  em  quanto  na  fua  moci- 
dade com  a  boa  educação  naõ  experimentou  os  de- 
leytes  da  carne,  efe  retirava  das  occaltoens,  aborre- 
cia notavelmente  efte  vicio:  qualquer  tocamento 
impuro  lhe  fazia  efcrupulo ,  e  perturbava  a  confcien- 
cia:  a  fornicação  lhe  parecia  hum  monftro  j  o  nome 
de  adultério  lhe  cauíava  horror ;  mas  depois  que 
começou  a  goftar  dos  deleytes,  fe  engolfa  de  ma- 
neyra  no  vicio,  que  perde  totalmente  aquelle  hor- 
ror, e  medo  ,  que  dantes  tinha,  fazendo  gala,  e 
prefando-fe  de  andar  amancebado  ,  gaflando  rios 
de  ouroem  veftidos,  e  ornatos  da  concubina,  para 
que  feja  de  todos  reípeytada  ,  e  conhecida  como  íua, 
cuydando,  que  nifto  adquire  a  efiimaçaô  do  povo. 
Efta  he  a  cegueyra  de  todas  as  potencias  de  hum 
homem  lafcivo.  Eftas  faó  as  trevas  ,  que  lhe  eícu^ 
recém  a  alma ,  muyto  mais  medonhas ,  que  aquel- 
las  dos  Egypcios,  a  q.ue  a  Efcritura  Sagrada  chama 
horríveis:  Fa5ía  ftmt  tenebr^  horribihs:  niuyto  £^^^ 
mais  peiores ,  que  aqueilas  do  mefmo  inferno ,  por-  ,o.  22,; 
que  aqueilas  íaô  exteriores:  in  tenebras  exteriores^ 
mas  ertas  da  luxuria  faó  internas,  e  penctraô  toda  a '^'''^t 
alma  athe  reduzir  o  miferavel  impudico  à  expcri-  *  * 
mentar  anticipadamcnte  o  Inferno,  vivendo  em  huma 
continua  defordem,  e  em  hua  perpetua  confufaô ,  que 
he  a  matéria  do  fegundo  ponto. 

Nciô  ha  menor  deíordem  na  vida,  qivc  faz  hom  í-P«»í^. 
deshonefto  nefíe  Mundo,  que  aquella,  que  faz  hum 

con- 


ayi  Difcurfo  IX. 

condenado  no  Inferno  i   onde   igualmente  fc  pôde 
D.Chri- áizcr  aíTim    de  hum,   como  de  outro:  F^i  mllus 
faflbom.ordõ^i  fed  fempítemus  horror  inhabttat,  PoriíTo  af- 
^9'  '"'  firma  í>.  Joaõ  Chryíoftimo ,    que  naò  acha  diffcrcnça 
"'•    entre  hum  endemoninhado  furioío,  c  hum  homem 
feyto   efcravo  da  luxuria.    Luxuria  corruptus  ^  & 
cbfeffus  à  Demomacononâtfert.   He  coufa  digna  de 
reparo  o  nome ,  que  na  Sagrada  Efcritura  íedáao 
Demónio,  quepreíide,  e  dilata  o  vicio  da  luxuria, 
chamando-fe   Jjmodeus ,  que  na    lingoa    Hebraica 
fígnifíca  ahmàanúa  feccatorum  ^  abundância  de  pec 
cados.   E  na  verdade  quem  poderá  explicar  a  abun- 
dância,  c  multidão  depeccados,  que  comette  hum 
peccador  habituado  nas  torpezas  ?  parece,  quenaõ 
cuyda  em  outra couía.-  ospenfamentos,  osdeíejos, 
e  as  palavras  todas  faô  dirigidas  à  fenfualidade ,  ma- 
quinando fempre  em  novos  deleytcs  da  carne.  Atd 
os    fonhos    faõ   íolicitados   dos    fantafmas    impu- 
ros ,    impreíTos    na  imaginação    pelo  mào    habito, 
e  aíoprados  pelo  efpirito  de  fornicação ,  a  fim  de  que 
comece  logo ,  quando  íe  efperta ,    a  confenlir  nas 
tcntaçoens.  O  menor  numero  de  peccados  faô  muy- 
tas  vezes  as  obras,  e  com  tudo  faô  tpm  continuadas, 
que  poucos  dias  paíTaó,  que  naò  Vtnhaô  a  peccar 
por  obra.  Saõ  os  luxurioíos  como  certas  lebres  fe- 
cundas, das  quaes  conta  Arifíoteles,  quenomeímo 
dia  ,  em  que  pirem,  fícaô  prenhes.  Voftqtiam  aliquos 
yínfl:.   pepererint ,  rurfus  alios  in  útero gernnt.  E  com  ferem 
lib'  V   tantos  os  pe  eados  de  obra  ,  parecem  pouco  à  vifta 
////^.  í^.  (Jq5  que  contem  com  os  penfamentos  ,  com  as  pa- 
53*       lavras  equivocas  ,  deshoneftast  e  provocativas  dnigi- 
das  toJasapeccfir.  Atheosoihos,  diz  S.  Pedro  A  po- 
flolo,    lhe    fervem    de  inftrumentos    para   peccar: 
Habentes  óculos  plenoradulteriis ,   &  incejfabilts  deJi-^ 
Bi.   Todo  o  objedo  viíloío  os  recrea,  c  em  todos 

achajò 


Dõ  mmntõão^tiBmiofes.         ^^fi 

àchao  ,  que  appetecer  ,  não  rcfpcyTandò  efíad<í, 
nem  condição  ,  nem  a  íexo ,  fem  reparar  fe  he  hon- 
Tada ,  ou ,  como  dizem ,  do  Mundo  ,  fe  folteyra  ,  fc 
Caiada:  antes  aquelles  peccados ,  dos  qiiaes  íe  pôde 
íeguir  mayor  ruína ,  c  deíordens ,  como  he  do  adul- 
tério, e  outros  fá  efíes  íê  aplicaõ  com  mayor  cflu- 
^do  ,como  íe  foíTem  proezas  de  mayor  luflre :  Hakn-  ^^^^'^P% 
tes  ocídos  plenos  adu^teriis ,  &  inceffabilis  deliBt. 

Grande  he  a  perturbação ,  e  deíordem  ,  que  fe 
origina  de  hum  cftupro.  Perturbaô-fe  os  delinquen- 
tes; ella  ,  porque  le  coníidera  com  a  honra  perdi- 
da ,  que  era  a  parte  mais  preciofa  do  feu  dote  :  ellc, 
porque  esfriado  o  ardor  da  payxão ,  que  o  cegava, 
conhece,  ainda  que  tarde ,  as  trifíes  confequencias 
«do  ícu  brutal  attentado,  o  fogo  da  vingança,  que 
-tem  accefo  entre  os  parentes ,  que  coníidcrando  íc 
afirontados  ufaõ  de  todas  as  traiças,  para  lhe  tirarem 
a  vida  ,•  e  finalmente  toda  a  parentella  de  ambas 
as  familias  alterada  ,«  talvez  com  as  armas  nas  .  ^ 
'tnãos ,  tudo  he  h^a  defordem  ,  confuzão  ,  e  horror: 
<Ubt  nullus  ordo  ,  Jed  [empiíernus  horror  inhabitat: 
Temos  a  prova  evidente  no  Texto  Sagrado.  Era 
Dina  filha  de  Jacob ,  enamorando-íe  delia  pela  fuâ 
•fermofura  o  íslho  do  Príncipe  de Sichem, teve  traça 
•para  a  furtar  ,  e  fatisfazer  o  íeu  appctite.  Cabido  no 
erro  cuydou  de  o  remediar  tomando«a  por  mulher. 
Foy  o  delinquente  juntamente  com  íeu  pay  bufcar 
a  Jacob,  para  tratarem  do  caíamento  tíííerecendo  mil 
partidos ,  de  naô  acey  tar  dot^  ,  de  lhe  darem  terras 
'para  viveremtodos  uftidos,obrigando-íeaírim  elles, 
•como  todos  os  ínais  homens  do  feu  Efiado  a  íe  ciir- 
•cuncidarcm  ,  e  aíTimo  cumprirão  :Gra^»r{//í  ^ynrih  Qe^er 
'èm  maríbws.  Parece, fe  naô  podia  dar  mayor  fstis- ^^p  g^; 
façaô ,  è  que  o  dèfcrcdito  thiha  já  paíTado  a  credito, 
«  a  deshonra  á  honra^j  c  aom^tudo  não  foy  ^ílim^ 
f^í>  po.r- 


i  \ 


I    : 


ft' 


^H  Dtfçuvfo  IX^    -  ^ 

.porque  Jacob  ,  e  ícus  filhos  diflimulando  a  afroi^a, 
lhe  deraó  boas  palavras  ,  para  íerem  mais  fcguros 
na  vingança  ,   que    intentavaõ  :  Rejponderunt  fiUi 
Geutf.    Jacob  y  &  Pater  ejusin  dolo  ftevientes  ob  Jtrufrnm  f(h- 
'*^(^f^^rori4.Í^Q  terceyro  dia ,  quando  a  ferida  da  cirçun- 
^^'       ciíaõ  cuíiuma  ícr  mais  molefta ,  entrarão  os  dous  ii^ 
V         mãos  de  Dina  Simeaò ,  e  Levi  na  Cidade  fazendo  o 
papel  de  amigos  j  e  com  as  armas  cfçondidas,  fubi- 
raõ  ao  Paço,  e  degolarão  o  Principe,  e  o  filho,  e 
conduzirão  outra  vez  comfigo  a  Dina  fua  irmã. 
No  meímo  tempo  entrarão  armados  os  outros  ir- 
mãos na  Cidade  com  tropas  de  gente  armada  ,  c  ma- 
tarão quantos  homens  3cháraô,<ieraõ  íaque,  quey- 
màraõ  as  cafas  ,  fizerâo  prefa  de  todo  o  gado,  e  ca- 
vallos,  levando  também  comfigo  captivas  todas  as 
mulheres,  e  meninos : Párvulos  quoque  eorum ,  & uxo» 
res duxerunt  captivas.  Eis-aqui  aúeíordem,ecoD:fu- 
Genef.   ^^^  ^^  famiiias ,  a  deíolaçáo  de  huma  Cidade ,  o  horror 
r^py^ '  de  tantâs  mortes  ,  que  (c  feguiraó  pelo  eftuoro  de  ima 
íó  virgem:  Saviêntes  ob  flrupram  Sororú.  Nullusordo 
fedfimptternus  horror  wh^bitat. 

Mas  fe  o  eíiupro  de  huma  virgem  ,  que  as  mais 
das  vezes  íepôJe  remediar  com  o  matrimonio  fub- 
fequente  ,  traz  comfigo  tantas  defordens  ,  e  ruí- 
nas ,  que  fará  o  aduitcrio !  He  o  adultério  hum  pee,- 
çado  taiTj  grande,  que  por  fi  ,  e  pelas  coníequen- 
cias,  que  o  feguem  ,  faz  tal  horror  ,  e  he  hum 
monftro  tarn  cruel  ,  que  em  qualquer  cafa  ,  onde 
cUe  entra  ,  traz  comfigo  a  confuíaõ,  a  guerra, o 
pdio  ,  e  deíeíperaçaô ,  e  finalmente  fica  fendo  a  tal 
ciía hun  Inferno  anticipado  ncQa  vida,  não  lo  pa- 
x_.  ra  os  compíices  ,  mas  para  todos  os  parentes,  ar- 
deu jo  no  fogo  da  vingança,  e  em  huma  defordcm, 
que  naõ  tem  vetDtálo : UbrnuUus  Ordo ,  fed  fempi- 
$exmis  horror  mb abiut.  Todas  as  Naçocns  dpMyn? 


Ceiiut 


Do  tormento  dos  Luxurio/os.        -155 

do,  ainda  as  Barbaras,  aborrecerão  cm  todos  os 
Scculos  o  adultério.;  c  as  que.tinhaô  ajgummodo 
de  Republica  fizeraó  Icys,  em  que  davaõpcna  de 
morte  aos  Adúlteros. 

Os  Judcos  coftumavaõqueymar  vivos  ambos  os  Cen^i^, 
Adúlteros  i    mas  depois   mandou  Deos  no  Lcvíti- 
co,  que    morreíTem   apedrejados.    A    mefma  pena  ^'^''•'^? 
de  fogo  davaõ  os  Egípcios.  Os  Romanos  davaõ  a  ^°'    - 
cícolha  de  dar  a  morte,  que  quizeíTc ,  ou  o  mari- 
do, ou  a  nnilherdo  complice,  que  cahiíTe  em  adul- 
tério. Os  Medos,  e  os  osParthosna  Aíiaanenhum 
crime   cafíigavaó  com  morte  mais  penofa :   Nulla  ^^y  ^ 
deliãa  adultério  gravius  vendtcabétnt.   Godos,    Vi-  '  '^^^ 
logodos,   e  toda  a  Germânia  punia  com  tal  rigor 
cfíe  crime,  que  cfcreve  Tácito efins  palavras:  Fau- 
cijfíma  m  tam  numerofa  gente  aduheria ;   Que  era  '^^^-  ^f 
coufa   rariffima  acharíe  hum  culpado  nefía  matéria. '"^''^ 
E  o  que  mais  admira  ,  he  ,  que  entre  os  Eípartanos  ^fj'"'*' 
nem  ainda  o  nome  de  adultério  fe  fabia  ,   como  cou-      ' 
fa   totalmente  inaudita;  c  aíTim.  perguntado   hum 
dos  Juizes  daquella  Republica,  par  hum  Embayxa- 
dor  efírangeyro ,  que  pena  fe  dava  pelas  fuasLeys 
aos  Adúlteros?  Refpondeo  ,que  nenhuma ;  porque 
hum  crime  tam  execrando  ainda  naô  tinha  íuccedt- 
do,   nem  paíTava  pela  imaginação.  Athe  qui  che- 
garão os  Gentios  fem  o  conhecimento  do  verdadey-  ■P^^''*^- 
ro  Deos,  íem  outra  luz  mais ,  que  a  do  lume  da'"^'^"-?^ 
razaõ,  que  dita,  quod  tibi  nonvis ^  alterinef actas;, 
O  que  naõ  quereis  vos  façaõ  a   vôs,  naô  o  façais 
a  outro.  Confídére  cada  hum  em  íl,  fe  tiveííeoef- 
tado  de  caiado,   vendo-fevil,  e  affrontado,  afig- 
nalado  com  o  dedo  por  todos,  c  diga,  e  confcf- 
íc ,  que  defordem  ,  c  confufaô  íe  íeguiria  na  fua  vida, 
c  íe  não  feria  hum  verdadey  ro  Inferno  nefla  vida. 
VbimJlus  ordo ,  fèdfemfiterms horror  tnhahitat. 


WlJ 


r 


^ 


■        E  íe  todas  as  Naçoens  do  Mundo  tanto  abornS 
cem  o  adultério  :fe  todas  as  teys  Humanas  o  calti- 
gáD-com  pena   de  morte  tam  ngorola-,    que  tara 
Deos?  Como  aborrecerá  efte  monftro  taro  abomi- 
nável ao  Ceo,  e  tam  perniciofo  à  natureza  huma- 
na! Primeyramente  a  Sagrada  Efcntura  chama  ao 
,G«.xo.AHjUerio  piccada  gnnie:  Muxiifii  fm'- mi,    &■  ■ 
5'        Cuper  Remam  msumpeccamm  grande.  Jobnaoloo 
chama  peccado  nefando ,  mas  huma  maldade  em  grão 
^,       fuperlativo    grandiíTima:    Nefas  ejl ,    &   miqmtas 
^'■^'■maxma.  O  Profeta  Ofeas  naó  fó  ochama  peccado 
'■       máximo,  mas  profundo  .•  profundi  feccavermt.  De 
0r«.*9 donde  fe  infere,  que  o  Adultério  he  hum  peccado 
deímarcado ,  e  que  naó  tem  medida  n^/1^"'^''=  !« 
que  chega  athe  o  mais  profundo  do  Inferno^  Ato 
.  falia  Deos  por  bacca  dos  feus  Profetas  do  Adulté- 

rio no  tempo  da  \tf  antiga,  quando  o  matrimonio 
não  era  mais,  que  hum  Omplcs  contrafto  de  fideli- 
dade entre  o  homem ,  e  a  mulher    Agora  po>ern  "» 
ley  da  graça,   em  que  eftà  elevado  a  Sacramento, 
de%u3la  mayor  malicia  fera  V'""''"'"Tm  i» 
fidelidade  defte  Sacramento  ?    Afllm  como  he  mais 
injuriofa  huma    aíFronta  .  que  íe  faz  a  hum  S^e^dotc 
dedicado  a  Deos,  que  a  humeícravo,  oupciloayil 
do  povo,  alTin  rambem  he  mayor  a  mj^f  ' J"^= 
fe  faz  pelo  adultério  ao  Matrimonio  ,  que  ne^^cra- 
iíáCpfe.mento,  doque  a  injuria,  que  fe  fazia,  quando  eia 
f/íi-íómente  conlr.to :   Sacramefitum  hu  magmmefi 
(diz  S.  Paulo)  m  Chrijii,  &  m  Ecckfm. 

Oh  íe  eu  foubeffc  explicar  bem  a  todos .  o»  qu« 
ierem    eíte  difcurfo  de  modo     que   P««b'ffern 
quam  grande  he  o  Sacramento  do  Matnmomopa 
rece-me    oue  nunca  maisíecommeteriao  adultenos. 
rcte  me,  qu^  iiui'  rhimafe crande huma 

Sacrammtum  hocmagnumefi.  Chamaie  gra 
obra ,  ou  pelo  Author ,  que  a  fez ,  ou  peU  mataria. 


D  d  tormento  dos  Luxumfou  i  í  7 

de  que feyca ,  ou  pelo  fim,  porque  fe  fez,  O  Au- 
thordefte  Sacramento  he  Chrirto  Senhor  NoíTo, 
que  o  inflituhio.  Vede ,  íc  íe  pôde  aehar  ,  ou  no  Ceo, 
ou  na  terra  pcíToa  mais  authorizada,  que  a  fegunda 
peíToa  da  Trindade  encarnada !  Por  iíTo  Saõ  Paulo^ 
quando  lhe  chama  grande,  accrcfcenta  logo  inChrt^ 
Ho.  A  matéria  dcfte  Sacramento  he  das  mais  nobres, 
que  Deos  crcou.  A  matéria  de  alguns  outros  Sacra- 
mentos ordinariamente  hecoufa  íem vidai  como  a 
agUa  no  Bautifmo ,  o  Óleo  na  Chriíma ,  e  Extrema- 
Unção  :  porem  a  matéria  do  Sacramento  do  Ma- 
trimonio íaô  os  corpos  vivos  dos  conjugados ,  que 
faô,  e  fe  dizem  membros  de  Chrifto ,  íantificados  pela 
bcnçaô  Sacerdotal  tantas  vezes. 

Também  he  grande  pelo  fim,  que  reprefenta, 
queheauniaó  do  Verbo  Eterno  coma  fua  íantiíTi- 
raa  humanidade ;  e  quanto  a  efta  repreíentaçâo  ííg- 
nifica  huma  íantidade  fubftancial  daquelle  deípo- 
forío  entre  a  humanidade  ,  e  o  Filho  de  Deos  nas 
puriíTimas  entranhas  da  Virgem  SantiíTima,  quan- 
do com  admiração  de  todas  as  Hierarquias  defeco 
do  fcyo  do  Eterno  Padre  a  fazcrfe  Homem  :  Def- 
eendit  de  Calis ,  &  homo  fa&us  eft.  Repreíenta  mais 
eftc  Sacramento  os  defpolorios  de  Chrifto  com  a 
fua  Igreja,  eporiíToSaò  Paulo  lhe  chama  grande  e^ 
ChriíTo ,  e  na  fua  Igreja :  Sâcramentum  hoc  magnum 
eJiinChrifto  y&inEcclefia.  Daqui  fe  infere,  quefc 
Vos  perguntarem,  que  coufa  he  hum  homem  caia- 
do.'' Com  verdade  íe  ppcie  dizer ,  que  he  hum  homem 
confagrado  com  hum  Sacramento;  e  o  mefmo  he 
da  mulher  caiada.  E  fe  de,  ambos  perguntarem, 
que  couía  íaõ  ?  Com  verdade  podeis  refponder, 
que  íaõ  dous  finais  íagrados  ,  que  reprcfentaô  á 
Encarnação  do  Verbo  Divino  ,  e  o  Defpoforio  de 
Chriôo  coma  fua  Igreja,  De  donde  fc  infere,  quam 
-:ji    ^       "  K  '     '  gvave 


grave  peceado  kjaiOíaçluIterio;  ^  qucíe  na^  Lcy  :dt 
M6yíés  eorote  ©ínkrimoíiiG  hum;  íimples  contraí- 
ílo ^ fe chamava  o adalterioi  pcccàdo  grande,  grani- 
diffima ,  e  profundòv,:  como  diíFemos  atraz ;,  na  Lcy 
^C:  Ghríflo ,  cm  qtíe  he  Sacramento ,  crefce.  muy to> 
mais  a  íua  malijcia ,  e?  por  iíTo  nas  Leys  Civ^is ,  c  Ca* 
nonicas  fecha  mão  os  Adúlteros  com  o  nome  de  Saí- 
e-rilegos  do  Matrimonio,  Sacrílegos  Nuptiarnm^ qué 
vemu  fer  em  realidadcf  profanadores  das  Vôdas,e  pot 
ilb  tãoibveramentG eaíligados^o ^ouúny^Q  ou  tt  ;^ 
.íi.í  Sendo  iík)aíiim>,h€coaíaique  faz  pafmai?,©  pouí 
Go^^atoVquc  fazem  alguns  do  peccado  do  Adultcrioí 
&ega6íalguj2S  caiados   à  Confiííaô    uíando  dcftà' 
fraze.  Tenho  commettido  alguns  furtofinhos  a  minha 
muiheir.eomhyiua  ferva  ide  cafa ,  a  quem  tenko  af- 
feyçãay  porque  me  ífervc  em  ludi)*     Outro  dfe* 
T:çnho  GommcDtido  aíguns^  peccados  eom  hua  mulhet 
cafada  y  mas  Jetn  èlcaíidalo  V  c  fem   deícredito  da 
marido „qjUC  o  nâõ  pôde, fof pey ta r pelas  razoens  dè 
parenteÍGa,  que  tenho  com  a  dita  mulher ,.  e  fer  eile 
meu<  Compadre.  Ha  tal  modo  de  confeíTaríe!  De 
mancyra>qu€  as  raaoens  do  parcnteíco,  e  compas- 
drado  ,  que  aggraváo  o  feu  peccado  ,  e  fazem, que 
Baõfé  íej^  adultério  ^  mas  também  inceBo  ,q«ep 
eíie  malvado  homem  ,  que  facão  diminuir  o  Uxi 
peccado  nas  orelhas  do  Confeífbr !  Oh  íc  íoubeíTem 
os  hom.cns  caiados  o  grande  mal,  que  fazem ,  co^ 
riíco,  em  que  fe  metem  ,  quando  deyxaó  o  leyto 
conjugal  por  outra  ©cGâfíaõ,  etal  vêíz  de  portas  a 
dentro  1  Explicarey  ifío  com  hum  caio  das  Chronicas 
àcS.  Domingos.  Húa  mulher  maltratada  de  feu  ma*^ 
ridòpoFcaufa  dehua  concubina^  não  podendo  íó^i 
firer  mais  eôa  injuria ,  achando  fie  na  cama ,  come^ 
0u  a  cuydâr  na  vingança.  Não  faltou  o  Demónio 
de  rcigrpíentarlhe.  hum  moçq  bem  paíreçido  ,  para^: 
b'uni  '  .M   '  "  íjsr- 


D&  tõVfnèmoáosLuMviúfoh       M  9 

(erviííe^^le ,  conro  fazia  o  marido  da  Xjoacubinâ, 

çeonfcntiado  na  tentação  cfperatfa,  que  foíTc  xib^í 
para  lhe  mandar  hum  recado  ,  c  com  efta  tcnçátj 
adormecco.  Em  fonho  íe  lhe  reprcíentou  fer  levada 
ao i Inferno^. para  yer  as  diveríidades  de  penas  dos 
coadenados.  Vio  huma  quantidade  de  fornos  accc- 
fos,  e  em  cada  hum  delles  hum  adultero  abraçado 
com  humdragaôtáo  apertadamente,  que  fe  não  po- 
dia mover  ,  c  da  bocca  lhe  íahia  fogo  de  enxofre^ 
e  quando  blasfemavâo  bradando,  lhes  botavão  por 
çefrjgcrio  chumbo  derretido  nos  olhos  .  e  ouvidos, 
que  penetrando  atê  os  tutanos  ,  davaó  alaridos, 
que  caufavaô  horror  ao  mefmo  Inferno.  Attonita 
a  mulhercom  eftavifta,  advertio,qa5  entre  âquel- 
ks  fornos  aeccíos  ,  eftava  hum  devaíio ,  e  pergun- 
tando ,  para  quem  era  ,  lhe  reíponderaô ,  que  era 
p4,r,a  íeu  marido  em  pena  dos  defprezos,  que  lhe  fa- 
zia, e  ao  Sacramento  do  Matrimonio.  Moveo-fe 
á  compayxaõ ,  c  começou  a  chorar  ,  e  a  foluçar  com 
tanta  vehemencia,  que  le  dcípertou  do  fonoj  e  ar- 
líependida  logo  dvi  fua  depravada  tenção  ,  na  manhã 
fcguintefoybufcar  a 5. Domingos,  e  lançada  a  feas 
pés ,  confeífou  o  fcu  peccado,  e  lhe  contou  tudo, 
quanto  paOTara.  O  Santo  depois  de  a  abfolver  ,  a 
coíifolou,  e  dando-lhe  o  íeq  mefmo  Roíario,  lhe 
diíTe  o  meteíTe  debayxo  da  cabeceyra  do  marido, 
quando dormiffCi  Aflíim  o  fez  a  mulher;  e  o  mari- 
dti  na  Boyte  fcguinte  tcveamefma  vifaó,  em  que 
vio  os  tormentos,  que  lhe  eftaváo  aparelhados  no 
Inferno  emcafligò  dos  adultérios,  e  injarias  ,  que 
fazia  ao  Sacramento  do  Matrimonio  ,  e  atemorifa- 
do ,  fe  foy  na  manhã  feguinte  lançar  aos  pês  de  Saõ 
Domingos  ,  chorando,  e  confeíTandò  as  fuás  cul- 
pasie  foy  til  a  emenda,  da  victa »  que  lançada  fora 
a  occafiâo  do  peccado  ,  viveo  ao  diante  cora-tanta 
>1310  ^  2  paz. 


?  \ 


ifi 


^60        r^#  ^JS^r^  /X. 
psiz,'c  unMõ  comia  mulher ,  que  merecerão  de  De<y^ 
o  morrerem iio  rmípo  úia ,  na  meíma  hora,  e  ferem 
enterrados  na  mefma  cova.  Oh  í*  os  Confeffores  ti- 
veíiem  hum  Rofario  íemclhante ,  quanto  fi  uyto  fa--^ 
tia6,nâofónoBraíilymas  em  todo  o  Munllo  t  Mâs 
para  que  hc  neceíTario  ver  em  íonhos  as  penas  doâ 
Adúlteros  no  Inferno.  Naõ  he  melhor  ^  íe  temos  fé> 
confideralas aos pèa  de  hum  Crucifixo,  ecom  ver* 
dadeyro  arrependimento  pediflbeperdaò,eoin  pro^ 
poíito  firme  de  emenda  /  :    i<i  ^^jyVfcnKj;^?  i^í  obn^ijp  í) 
Muyeas  vezes  confíderona  diflímulação  dáfjufll-» 
ça  humana,  para  com  os  Adultérios  ,  dando  poç 
livre  o  marido  ,  que  matou  a  mulher  ,  provando^ 
que  era  adultera,  c  moftrando  tam  pouca  attençãop 
cm  caíiigar  os  homens  adúlteros  ,  fendo  que  o  crf- 
me  para  com  Deos  he  o  mefmo,ou  feja  o  adultério 
\ commcttido  pela  mulher ,  ou  pelo  marido ;  lendo  queí 
a.  mtílher  •  por  mais  frágil ,  he  mais  deículpavel ,  c 
por  iíTa  em  algumas  leys  a  mulher  adultera  he  punida 
fomente  com  a  pena  de  infâmia  ,  e  degredo.  Masí 
que  importa  ,  que  os  Juizes  humanos  julguem  affimí 
quando  fabemos ,  que  Deos  julgará  igualmente  aífim 
a  mulher  adultera,  como  o  homem  adultero  :  -Jdui* 
.     terosjudkahit  Deus  ,  diz  Saô  Paulo  /  e  o  caftigo  íerá 
^ra^.6.  a  perdição  da  Alma  :  ^/  autem  adttlter  efi  y  fer- 
det  ammamfuam.  E  como  f  direis  vôs  >  os  outroí^ 
peccados  naõ  perdem  também  a  Alma  f  Perdem^ 
he  verdade  >  mas  o  adultério  com  alguma  roayor  for- 
ça pela  íua  grande  malícia.  E  por  ilTo  chegou  a  dizer 
Terculianoy  que  era  quaíi  irremeflivel ;  não  porque 
Deos niõ  queyra , nem  o  poíFá  perdoar ;  mas  porque: 
tanto  o  aborrece,  que  permittirá ,  que  os  Adúlteros 
{como  fuccedc  muytas  vezes  J  fcjiô  acometridos  de 
h5.a  morte  violenta,,  c  m^tovúscAdultenmudeme* 
dkbmt dies^gs,..  .       ,'     ,.     .  ;  ..> 

O  Ter- 


Bútormentodos  Lumvtofm^        i6i 

o  Tcrccyro  tormento  dos  condena^dos  no  In-  ^  -   > 
ferno  he  o  cativcyro  crueliífimo  naõ  íó  da  Alma,  jj^p^j^; 
mas  também   ^o  corpo  ,  depois  do  dia  do  juizorjç, 
í^het  Ju^er  pccatores   laq^deos,  Sc  os  Profetas  nos 
advertem,  que  o  fogo  <lo  Inferno  íerve  de  cadeas 
aos  condenados ,  quem  negará  ,  que  o  fogo  da  lu- 
xuria nãofaça  o  mcímo  aos  deshonefios !  Brava  mi- 
ieria  he  a  de  hum  amancebado  5  íem  libcrdsde  mai?, 
-quede  cuydarnaoccaíiaó  do  íeu  peccado,  pEÍTando 
-más  noytes,  e  gaitando  quanío  tem  5  para  conten^ 
tar  amanceba,  O  feu  fallar  faô  defpropoíitos ,  com 
os  quacs  confeffa  a  iua  prifaô,  e  cativcyro.  Pôde 
dizer  hum  deftes  com  aquelle  precito  ,  que  bradava 
no  Inferno.*  Crucior  in  hac  Jiamma.  Efíou  padcccn- 
do,  c  ardendo  nefte  fogo  da  luxuria ,  que  me  con-  Ambr, 
fome,,  c  atormenta  íem  ter  hum  íó    mcrrento  de^'^-i-^» 
deícanço.  Aílim  o  explicou  Santo  Ambroíio  ;  Libido  ?*/^* 
fiunquam  mamre  quiet um  f  atitar  àffeSínnty  noElefer^ 
njet^  die  anhelat ,  de  fomno  excitat ,  à  nego t to  ahdu^ 
át ,  àratíom  rei^ocat ;  aufert  conftlmm  ,  mentem  ift- 
quietat ,  willus  feccandi  modm  ,  é^  ineícplebtW  fie" 
ierumfitvs.  Quer  dizer  :  a  fenfualidadenuncadey- 
xa  quieto  o  coração  do  homem  •  de  noyte,  c  de  dia 
o  perturba,  diverte-^o  dos  negócios,  priva-o  da  ra- 
zão, e  do  confclho ,  inquieta  o  entendimento  ,  não 
tem  termo  em  peccar  >  porque  arde  em  huma  fede  in- 
íaciavcl  dos delcytes.  Ncfíeeftadofe  achava  S.  Agof*- 
tinho  antes  da  íua  Converíaò ,  como  affirma  nas  Fuás 
ConfifToês ,  dizendo :  Eu  eOava  penando ,  íem  oco" 
nhecer,prefo  nas  correntes  de  hum  amor  torpe  cati- 
vo de  hua  mulher ,  e  tã©  cego,  que  as  mefmas  pníocns 
me  pareciaõ  fuavcs  ,e  doce  o  meu  cativcyro ,  c  íinal-  j^^^j,^ 
mente  mancifium  concupifientia  fcyto  eícravo  da  mi-  ç^f, 
nha  mefma  luxuria. 

Na  Cidade  de  Pavia  em  Itália  cftava  hum  man- 
R  3  cebo 


tmmplè 


Difeurfú  IIL 

^^'^^«/..cebotam  perdido  do  amor  de  huma  mulher,  que  não 
•3-     focegava  íenáo ,  quando  fe  via  junto  aella.  Foy-lhç 
necçífgrío  aííiitir  fora   da  Cidade  por  alguns  dias. 
Quando  tornava  a  cavalio  fe  encontrou  com  cila 
fobre  a  ponte  celebre  de  Pavia  fabricada  pelos  Reys 
Longobardos.Apeou-fe,e começou  a  fignificarlhe 
as  grandes  faudades  ,  que  padcceo  naquella  aufen- 
cia.  Refpondco  ella  contradizendo  a  ,cftc  feu  aíFedoo 
Replicou  eliéencarecendo-lho  tanto ,  e  aífirmando, 
que  fe  ella  o  mandaíTc  lânçar.da  ponte  ao  Rio  ,  o  fa- 
ria logo.  Refpondeoella  ,  que  defejava  ver  aqueí- 
iafioeza  ;  e.  o  mancebo  fcm  mais  detença  monta  a 
cavalio  ,  e  o  picava  para  faltar  ao  Rio.  Ocavailo 
com  as  picadas  íc  detinha  ,  e  recuava  ,  que ,  parece, 
moftrava  ter  mais  juízo ,  que  o  Ca valleyro..  Replicou 
â  mulher  dizendo  ^  picais  a  medo,  Refpondco  elie: 
como  a  medo  Senhora^  que  por  vos  dar  gpíio  vç? 
reis  com  efta  picada  o  cavalio  afogado  no  Rio  ,  c 
â  minha  Alma  fepultada  no  Inferno.  Precipitou-fe 
no  Rio  5  efilvando-fe  o  cavalio  a  nado ,  o  defgra-i^ 
çado  mancebo  appareceox  no  dia  feguinte  cm  huma 
margem  do  Rio  tam  desfigurado ,  c  medonho ,  que 
fazia  horror  a  quem  o  via  como  hum  cadáver  do  in- 
ferno» Peço  ao  pio  Leytor  faça  comigo  eflareflcc- 
ção  entre  o  amor  de  Ghriílo  ,.  e  o  amor  profano. 
O  amor  de  Gbiifto  pede,,  quc: para  fe  livrar  do  ca- 
tiveyro  da  luiítiria ,  façais,  huma  difciplina ,  hum  je- 
jum , ,  ou  outia  mortificação  ,e  logo  refpondeis  ao 
ConfeíTor  ,    que  não  podeis.  Manda  o  amor  pro- 
fano por  meyo  de  htima  mulher  fcm  juízo  i  que  para 
nunca  mais  apparcccr  na  fua  prefença  fe  precipite 
em  hum  Rio ,  fe  afogue ,  e  íepulte  no  Inferno ,  e  hum 
defgraçado  homem  obedece  com  preíkza ,  e  vay  ao 
Inferno  padecendo  huma  morte  tam  violenta,  qual  he 
a  dos  afogados,  Eftâs  íaô  as  priíocns ,  c  cadeas  do 

vicio 


vicio  da luxuria ,  que  chegaô  a  atar iortemente  ain- 
da olivtc  alvedrio  ,e  entendimento  de  hiim  homem., 
íE  que  confuíaõ  íerá^  defte  mtíera¥el  nó  dia  dó^oizo, ' 
quando  na  preíença  deDcos, e  do  Mundo  todo,  fe 
vcrà  condenado  por  caufa  do  arrojo  da  íua  torpe  af- 
ileyçaô* 

Confirma efta  verdade  o  Efpiri to  Santo ,  quando 
diz :  Fúmkus  peccatorum  fuorum  conftringptur  ptcc^-  pr^v^i^ 
tor.  G  pcccador  eíiá  ligado  eiirçy  t amém c  com  as  ix. 
correntes  dos  léus  peccados.  Quereis  íabei  ,  quaes 
iíaôos  fuíis  deftas  correntes?  Eu  o  dcclararcy  com 
-as  palavras  de  Santo  Agofíinho,  que  falia va  como 
experimentado:  Sufpiraham  ligai  tis  ^non  ferro  aJte- j^ttgj. 
no,  feâ  mea  jerrea  voluntétte :  qnippe  ex  'voluntate  ^•^'<"»/'' 
ferverfa  faõta  tft  libido  ;  &  dum  fervitur  lihidi-^^f'^' 
ni ,  faíia  tft  confuetudo  ,^  dumconfiíetudwt  non  reji^ 
ftitttr\faUa  eft  neceffitas,  qmhus  quafi  anuíis  jiht  /«- 
mxis  tenebat  me  obftnãum  dura  fervitus.  Eíiavâ 
luípirando(dizeile)  por  me  ver  prelo  não  cm  cor- 
rentes de  ícrro  ,  mas  da  minha  propi  ia  vontade, 
■que  era  mais  dura,  que  o  ferro.  Defla  minha  per« 
verfa  voiKadc  fe  originoti  a  concupiícencia  .  em  que 
ardia :  por  fatisfazer  á  concupifcencia  adquiri  o  mao 
iiabiro  de  peccar:  do  mao  habito  de  peccar  me  naf* 
•eeo  huma  neccílidade ,  q^ie  nie  vioieníava  ao  pecca- 
dos e  tudo  iflo  me  ligava  tanto  ,  que  me  via  em 
hum  êftreyio  ca^iveyro  do  Inferno.  Devemos  pon- 
derar bem  aqueílas  palavras  ,*  Fdãa  èftvcor/fuetfido^ 
faSía eft  neceffftas ;  porque  6  mao  habito,  e  cuBu- 
Bienopeccar^  faz  tanta  forç^  ao  coração  humano, 
que  o  faz  como  peccar  por  narin"e2;a,  fcgundoáqucl- 
k axioma :  Conjnetuào  eft  attera  Ttatura :  que  o  habito 
vem  a  fazeríe  como  natlneza. 

Encarece  maia  cila  verdade  Jeremias,  compa* 
Mjido  tjfte  mao  habito  ào  |)ccc^do  ás  qualidades 
#Í0'''  "  K.  4  por 


Í7: 


1 

i 

! 

f 

2^4  Dtjcurjò  Ia 

por  natureza  inaltenraveis .'  òtpôUfi  ç^thkpsmutâ^ 
fere      ^^P^^^^ )  ^«^  Pardmvarieíates^  fuás :  &  vos  potmtik 
(2 Ti  bemfacm.chmâidicmtis  maUtmX  AíTim  coiao  naó 
pôde  hum  negro  mudar  a  cor  da  fua  pclle,  nem  hum 
Leopardo  a  variedade  das  fua&cores  y  aílim  náo  dey- 
xarà  o  peccado  hum  peccador  habituado.  Toda  a 
agua  dos  rios,  e  fabaó  de  Europa  >  Lavando,  hum 
Ethiope  ,  náo  o  faraó  branco  :  donde  n^fceo  ,  o^ 
provérbio  <:^thiõpêmlavat.  Todos  os  avifos,  rcj 
prcheníbens ,  ameaças  ,  e  cafíigos  ,  não  acabiráó, 
com  hum  peccador  habituado  na  íeníualidade  alar- 
gar o  íeu  peccado.  Mas  porque  fe  íerve  o  Profeta 
das  duas   comparaçoen« ,   do  Ethiope  >e  do  Lco* 
pardo?  Naô  baftava  a  primeyra  para  explicar. a in^ 
tento f  Naô:  porque  na  íegunda  íe  contem  humaí 
boa  doutrina.  Às  manchas  do  Leopardo  íe  podem, 
tirar,  cortando,  e  rapando.lhe  todos,  os  cab€llos> 
dâ  pelic :  raasxr^ícendo  outr^  vez  os . cabeUos ,  tor- 
mõ  outPâ  vez  as  manchas.  O  mcfmo .  fuccede  emi 
hum  fenfual  habituado.    Vem. o  tempo  da  Quaref- 
ma  ,^  procura  cortar ,  e  tirar  eílas  manchas  por  mc-- 
yo  de liu ma confiíTaó (  cmcafo,  que  íe ja  bem  feyta> 
mas  como  lhe  ficão  as  raízes  „ a  íabcr  o.mao  habi- 
£0,  que  tinha  depecearvtomaoforça  as  raizes  doS: 
mãos  hábitos .,  cbrotaô ,  em.  novos  peccados,-  e  pôt- 
de  fer,  que   emUantos  ,  ou.  mais  ,  que  dantes.  E 
pôde  chegaria  tal  excefc  aduieza  v  e  obftinação  de 
hum  Luxurioíoporcauía  da  fua  habituação  no  pec^ 
cadoi  que  não  íeja   baftante  meyo  algum  daquel- 
ks,  de:  que  ufa  hum  fabio  Pregador,  ou  hum  dcf- 
tfo  ConfcíTor,.  para  o  defatar  deftas^tam  fortes  ca- 
deasrcomaíuecedcoàquellc,  de  quem  refere  Drci» 
xelioA^thorcclcbcrrimo,  que  dizia:  dcyxay  já,  c 
acabaydemc  fazer  medo  com  tam  terríveis  amea- 
ças ,^  porque  vos  protcfto,  qucfc  me  foscílcis  aqut 


X 


Bõ  mfffentõàos  Luxuvkjesl       %6f 

aparecer  à  mão  dircyta  a  morte  com  a  fouce ,  para 
me  Gortar  a  vida ,  c  à  maô  efquerda  os  Demónios^ 
para  me  levarem  ao  inferriQ,  ainda  queeuquizera, 
r»áo  poderia  largar  efle  fadário  de  tornar  aos  meus 
goflos ;  porque  com  cUes ,,  e  por  elles  hey  de  mor- 

ícr. 

Não  duvido  da  louca  refolução,  com  que  falia- 
va  cfíe  malvado  i  pois  lendo  clle  jà  feyto  cfcravo 
da  íua  fcnfualidade ,  aehava-íe  com  faude,  eainda 
forte,  e  rcbuflo,  para  continuar  nos  leusdelcyte§». 
Via  a  morte  muyto  ao  longe,  e  coníidcrava  o  In- 
ferno comoem  pcrfpcíliva ,  onde  aquclle  fogo  não 
lhe  fazia  mais  impreíraò ,  que  como  pintado.  Naõ 
porém  alTim  ,  íe  eflivcífe  na  cama  com  huma  doença 
mortal  dckfperado  dos  Médicos^  abatido  de  forças, 
abandonado  de  todos,  e  já  com  ofirro  nagargantaj, 
que  entâo>le  pudeíTe  fallar ,  diria  por  cxpcricncia 
com  o  Profeta  David  ;.  jà  me  cercarão  as  dores  da 
0)orte :  Qircumdedervnt  me  dohres  wortis:  E  que 
jà  preíentia  as  dores  do  Inferno,  que  tãohorroro- 
ías,,c  medonhas  o  efíavao  cercando  :  Dolores infer- 
m  circumdederunt  me^ 

O  que  mais  me  admira  ,  e  eípanta,  he  hum  caíoi 
que  dircy ,.  muyto  a  propofito  ,   e  íerviíá  taiLbem 
de    prova  concludente    para  remate  defle  terccyro 
ponto.  Vivia  em  Nápoles  hum  Mancebo  nobre  ,  que 
morrendo-lhe  os  Pays  ,    fendo  pienino  ,    ficou  de- 
bayxo  da  tutela  de  huns  parentes,  que  mais  tratar 
rão  de  lhe  confervar  a  fazenda  ,  que  de  dar-lheboa- 
educação   dos  cuflumes.    Griou-íe   bem  mal,  para 
viver  peyor ;  e  para  com  mais  liberdade  íaiisfazer 
aos  feus  apetites,  ccntava  os  diaíí,  eashoras,  que 
lhe  faltavão,    para  ficar  emancipado.  Jà  livre  ^^^  Luc^f 
Tutores,  c  Senhor  da  fua  fázfrda,  cm  breve  tem-  13    ^ 
po  como  outro  filho  pródigo ;   Diff^^favit  fui  ftantiam  50. 


.r 


\í\  IJ 


fitam,  vivendo  luxurtefe.  E  naò  fó  a  goftou ,  c 
^iífipou.,  mas  {  comQ  explica  mais  claro  o  Evangc- 
liíta  S.  Lucas)  a  dcyfovoíVoJDevoravít mm  meretrícia 
ifus.  Reduzido  a  huma  extrema  miferia  ,  lhe  era  nc- 
ceíTariè  ir  á  caía  de  algum  parente^  ou  conhecido, 
â  pedir-ihe  o  neccflTario  para  o  fuftcnto  daqucUc 
dia,  que  movidos  da  íua  miferia,  lhe  não  falta váo 
com  a  caridade  que  pedia.  O  agradecimento, 
com  que  pagava  efte  beneficio ,  era  furtar.lhes  al- 
guíTia  peça  de  prata ,  e  logo  le vala  a  cafa  de  huma  mu- 
lher, que  aflim  coíHO  o  obrigava  impudica  a  desho- 
neílos  tratos ,  o  impeliia  também  a  femclhantes  fur- 
tos, fendo  íéeftes  a  caufa  dos  carinhos  fingidos  da- 
queila  enganadora  ^  que  fe  o  recolhia  rifonho,  quan* 
do  lhe  trazia  dadivas,  naõ  o  admitia,  fc  ícm  ellas 
a  procurava.  Fiay-vos  agora  no  amor  de  femelhan- 
tes  mulheres,  c  perdey-vos  poi:  ellas!  Bem  perdi- 
do andou  efte  miferavel  moçO}  pois  para  conti- 
nuar na  fua  torpe  amizade ,  vendo ,  que  já  nem  pa- 
rentes, nem  amigos,  o  admitiam  nas  fuás  caías, 
de  domeftico  paOTou  a  ladraô  de  eftrada  ;  c  íendo 
grandes  os  indícios,  foy  enterrogada  a  Amiga,  que, 
como  fe  foOTe  mortal  inimiga,  confílfou  de  plano 
és  furtos,  com  promeffa  (  por  não íer julgada com- 
plice  )  de  entregar  á  juftiça  o  defgraçado  amante, 
Náo  cardou  eftc  com  outro  furto  a  ir  vifitar ,  epre- 
íentàlo  ao  íeu  Idok),  de  quem  nunca  foy  também 
recebido,  cagafalhado,  nem  com  mayorcs caricias, 
nem  com  melhor  cea.  Acabada  efta,  mandou  lo- 
go^a  fingida  Amiga  avifo  à  juftiça  j  que  vindo  com 
diligencia  cercarão  toda  a  cafa ,  entrarão  dentro, 
c  preíionàrâo  o  miferavel  moço,  o  qual  à  vifía  do 
furto ,  que  juntamente  cahio  nas  mãos  da  juftiça 
por  induftria  da  fingida  Amiga  ,  como  da  outra  Da- 
Hla  traydora ,  foy  levado  logo  á  cadea ,  onde  con- 

fcífou 


Dõ  tevmnto  dos  Luxuriofos.       2^7 

IcíTou  ícm  diíficuldadc  hunsy  c  outros  roubos,  quc^ 
tanto  mais  íízerãa  prova  concludente ,  paraíerfcn- 
tcnciado  à  morte.  Yendo  pois,   que  cítà  pelos  cri- 
mes  lhe  era  irremiffivel,  tratou  de  reConciliar-ío 
coro  Dcos  por  meyo  da  Penitencia,  para  poder  ir 
gozar  de  melhor  vida  na  Geleflial  Pátria.  Jàdeíen- 
ganado  chorava,  c  obominava  as  miferias^^defía  vi- 
da, arrependido  não  íó  dos  roubos,  edanno^,  que 
tinha   feyto  ao  feu;  próximo  j    mas  também  de  ter 
prodigamente  dillipado  toda  a  própria  fazenda  t;/- 
vend»  luxtinofí\.   Conhecendo  qunnto  melhor  fora, 
íe  a  liyz^t  gaíkda  com  os  pobres ,  o  que  além  de 
fer  hum  aélo  heróico ,  feria  também  caridade  me- 
ritória   para  com    Deos,  Com  efta  boa  difpoíiçaõ 
lahio  da  cadea ,   e  caminhava  para  o  patibulo  no 
n^eyo  de    dous  Religiofos,    levando  o   Crucifixa 
diante    dos   oíhos,  para   poder    contemplar,    com 
quanta  paciência,   c  humildade,  o  mcfmo  Senhor 
fofrco  ignominiofa  morte,  fendo  innoccntc ,  por 
nos  íalvar,  c  fuGcedcndo  paíTar    pela  mefma  ruaj 
onde  cftavaõ  as  caías  da  Amiga,  levantou  os  olhos' 
para  a  janclla  ,  ea  vio  roda  alegre ,  e  carinhoía  (  caio 
incrível ,  íc  naõ  íucccdcra  cm  prcfença  àt  tanta 
gente,  que  o  acompanhava  )    ;  e  bailou  cila  viíla, 
que  teve  o  tal  moço,  para  lhe  perturbar  o  juizo,  c 
fazcr-lhc     tal   com  moção   dos   eipiritos,    que  ca- 
minhando elle  naquclle  ulíimo  tranfc  mais  morto 
que  vivo,,  tomou  tal  brio,  e  alento  para  pertendcr 
com  hum  impctuofo  arranco  cfcapar  das  máosdo^ 
Algoz,  c  meter-íe  em  cafa  da  Amiga;  mas  como 
clle  hia  algemado ,  a  falta  da  liberdade  o  fczcahir 
no  chaô  junto  da  porta  da  fua  perdição.  Acudirão 
logo  os  Miniflros  de  juíiiça  todos  attonitos  do  íxiè^- 
ceíTo,   e   levantando-o  em  pé,  o  impelliraô  a  ca- 
minhar com  mais  preffa  para  a  forca.  Oh  ccgcyra. 

total 


'  i 


DiJcuv/dlJl. 

total  do  entendimento!  Òh  força  predomídatJte 
da  natureza  corrupta !  Eys-aqui  a  prova  de  S.  Agó- 
ííinho  }  Dum  conjuettidini  mnnfiftitwr  -^  fa5íaeftne* 
cejjítas.  Quer  dizer,  que  em  razaò  do  mào  habito 
chega  hum  pcrvcrfo  luxuriofo  a  íer  quafi  neceílita- 
do  apeccar,  e  perder-feí  verifícando-íe  neftccafo, 
o  que^à^deyxou  efcrito  hum  Gentio  de  grande  fa^ 
j^^^p^^ber:  Maturam  expilas  furca^  tamen  tpfa  recur^ 
ret» 
p  Naô  he  de  menor  coníideraçaõ  nos  Condenados 

o  tormento  do  bicho  da  confciencia  ,  do  qual  faz 
menção  Chrifto  bem  noífo  por  Saô  Marcos ,    aíHr- 
mando,   que  he  hum  tormento,  que  nunca  acaba.* 
Et  ver  mis  eorum  non  moritur.  Ora  fe  confíderarmos 
ja  li  ^  ^^^  padece  hum  luxuriofo  neíla  vida ,  acharemos^ 
'^    **que  ainda  nefte  mundo  padece  anticipadamente  cíle 
tormento.   Tem  o  luxuriofo  no  leu  coração  huma 
cafla  de  verme ,  que  o  defpedaça ,  hoje  por  fofpey- 
tas  inúteis^   à  raanhaõ  por  defcjos  violentos,   já 
por  ciúmes,  c  zelos  endiabrados,  c  algumas  vezes 
Ipor  vinganças  impofliveis  }  c  ajuntando-fe  algumas 
vezes  todas  as  payxoens  no  entendimento ,  e  na 
vontade^  padece  hum  tormento    inexplicável.  E 
tião  he  menos  o  rcmorío,  ou  latidos,     que  femprc 
lhe  dà  o  coração ,  de  que  o  caminho ,  que  leva  ,  hc 
o  da  perdição ,   porque  Deos  como  redo  deve  ca- 
ftigar   a  fua  depravada  vida.  Eftc  remorío  da  con- 
fciencia era  a  que  atormentava  ao  infeliz  Cain.  He 
digno  de  reparo  o  que  diffe  Cain  depois  de  matar  a 
.  Abel  .•    Omnis ,    qui  invemrit  me ,  occidet  me.  Que 
toda  a  peíToa  que  o  encontraíTe  ,  o  havia  de  matar. 
E  quem  o  havia  de  matar ,  íe  clle  ficou  único  filho 
de  Adaõ ,  e  Eva ,  c  naó  havia  outra  pcffoa  no  Mun- 
do ,  miis  que  elle ,  e  feus  Pays  ?  Ah  que  efte  medo  era 
cg^íado   do  rcmprío  da  conícicncia  >  c  quando  as 
1.  ,:.        ^  '  folhas 


DoteMentbM&uxuvkfòs.       t1% 

foIhis-HafS^  ^í^i&rès  triovidàs  db  irèiító^ftziaõftííftòrj 
Híc  pal^clâ^^t§eerèí^&l  ^aè  ^onrinhaô  pfender,  páf^ 
o   niátar/ QyíÉtiíianoí  damando   em  Roma   diífc; 
Oh  tormenfis  omnibtts  gravior  eenjcienfta  \    Suetoníò  ^*^'*^' 
fâllándo    de  Tibério  affirmou  :  JV^// ^   'Mtfinus;^^^^  ^,^ 
qUam  mala  confúmúa  ;  e  Scfleca  cônVefti  com  todos,  Tibl^it, 
que  a  coníciencia  hc  o  AIgo:2,qtie  atormenta  conti-^'"'^; 
nuamente  a  quem   obra  :  VtrV  confcentiamns  mala^^'*^ 
facinora  confcientta  flagellart.   Finalmente    concor- 
dâo  òs  SS.  Padres,    fcr  hiima  das  mayores penas  de 
litim  pcccador :  Inter  multifUcniribulatmes\ó' 
inmmerabíles  amm   méeftias^    mlla  eft  maior  cm- 
fctencia  diliãòrum.  AíTim  Saõ.  Gregório  concordan-^'''^- '« 
docomS^Agoftinho.  .oi>dií2  í^milísq;  i  -'>^43 

Mas  como  (  direi  s  vôs  )naôdefpertaõ  com  eíle 
i^morfo  da  coníciencia  os  Luxuriofos,  para  á 
emenda?  Rerpondo ,  que  efía  he  a  propriedade  áo 
vicio  da  carne,  que  quanto  mais  íe  radica  com  a 
continuação  dos  a<ftos  tanto  mais  fe  apaga  o  lume 
da  razaô,  até  fe' extinguir  totalmente  o  remorfo. 
Fazia  viagem  detioyte  Luthero  com  hua  Freyra ,  que 
tinha  tirado  do  íeu  Convento,  para  íc  cafar  com 
cila.  O  luar  era  clariíTímo  ícm  nuvem  alguma  ,  que 
impediíTe  a  vifta  das  Efírellas.  Acontecco  dizer  a 
Freyra  cftas  palavras;  Oh  que  bello  Ceo  alcatifada 
de  Eftrcllãs  ,  e  que  íerà  o  Paraifo!  He  belliífimo 
(reípondeo  Luthero)  mas  não  he  para  tíôs.  P  por- 
que  (  replicou  a  Freyra )?  Entaõ  Luthero  ;Deos  me 
bateo  à  porta  do  coração  por  dezafete  annos  com^ 
hum  remorfo  de  coníciencia,  que  menaõpernríttiâ 
deícança;  ate  qu€  refiftíndo  eti  fempre,  e  fazendo 
peyor,  fiquey  livre  defte  açoute,  ejinaõcuydo no 
i  araiío  ,  e  menos  no  Inferno.  Oh  que  defgraça'  Oh 
deíemparo  da  graça  de  Deos,  quando  deyxâ  huma 
alma  entregue  ao  fippctite  da  carne ,  para  viver  brij* 

tal- 


^í^ 


câdo !   He,  íi^iie  diíTç  Qhrifto  aos  Judtos :  E^o  vitm 
''■'     49 \.&.  tn  feçmíovêfiia mmeminí,   Ôefenganay- vos^ 

m  \%u?;^^ '^^^  h^  tiííí#,  cpmqwe;  q  Pemonio  ç<)n<iuzsi 
xVòsMy  mais  plfnaii  ipua;  ^jlofçrnt  i>  que  ^  P^  fiiçicçada  da  iuxa^ 
lítd.  lii.  j. j^^  -  Magis  fiiyr-C4rnts  luí^Ur^^^ 
**■  ^"^'éiUK  Diâoby,quamfercàÇt€ràvtíia :  )  diz  S.  Izída- 
rQ^-j  e  dà  ^  razdór  j  *  porqme  0.  Dçmianií)  obra  com 
^  llhidfnoíos^í  conÉioiO  Gorvo  (;Qfii  íos.  Cadáveres^ 
4i^e  9  pr4ín.^#  eoufai^que  I ti€s  deVôra  a .  íaõ  os  oLhosi 
aíIiiTi  .elLfr  íhçs  ccg^  primeyro  o  l^mfi^da  razaõ  j  qu0 
l^y^^he  ç£>,no  os  olhos  da  alma  ^à  fim  que  naò  conhe-* 
ll'^**^'v^çaõ  o  feu  peífimo  eftado.  O  me^ímo  affii-ma  S.  AgQ, 
ftinho,  dizendo ,  que  o  Oicmòjiio  çoírl  os  mHís  vi- 
eios  peíca^  as -almas  como  com:  Q  anzolíj:  mgs  com 
o  vióiq  da  luxuria  pefca  como  com  rede,  queapanhi 
grande  quantidade ,  fegundo  o  dito  de  Hâ-bâcuc,.,  & 
H*b,  c,  í^í«^  çongrigat  in  reufuum:  e  por  iílo  Saõ  Remigio 
I.  chegou  a  dizer  :^  que  fe  exceptuarmos  -ps  meninosi 
quês  morrem  innoccntes ,  dos  adultos  por  caiifa  dó 
yicio  da  carne  poucos  íé  hWaõ:  Exceptis-parvitUsr 
S.  ^^f»'  e^  adukis proptercarnis  vitium  faííCí  falvmtur, 

Gorre  entre  os  luxurioíb» alguma  opiniaq  ,  que 


jípolog. 


21.  o  pccóado  da.  carne  he  o  mais  fácil -de  perdoado 
por  Deos ,  e.  com  ifto  íe  faCiiitaõ  .a  pcçcar,  e  induzem 
tambcm  a  muytos  innoccntes  a  cabirem  no  pçcea- 
do.  Eu  naô  nego,  que  Deos  pôde,  e  quer  perdoar 
cfte  peccoido.a.quem  verdadeyrarnenre;fe; arrepende 
de  Q  hwer  commettidp:  mas  fe  lançarmos  os  olhos 
aos  eaftigosy  cora  que  Deos  punio  cíie;pecc^do^^ 
5,7/;(?/»  acharemos ,  que  naò'  ha  eík  faciiidackj^em  Dcos, 
/fr,  4.  para  o  perdoar,  qual  nàa-  imaginamos  :;  L//xwn^ 
facmus  pra  aUh  atraciori  vmdíãa  pimttum  kgtmfds, 
(;ézSt0m  Thomàs  de  ViUanovaO  Quer  dizer ,  que 

ne- 


lícnbnm  '■  fctt^áo  caâigou  Deoá^còm'  ntàf^Á kym- 
dade,  quero:  peccadt)  da  luxuria.  Os  cxerryplos  cla- 
ra mente  d  provaó.  Lembray-vos  do  rigor,  comquic 
caftígouios  ífiKwsdorcs  iijfaiíies  das  quatro;  Cidades 
de  PcmâpoMs^;^  âbcafando  tu^oxoji)  hum  fogo  tam 
voraz  y  5que  /ate  asrl  bate  f  e  ( pedras  re<iuzia  a  cinzas^ 
como  ícioíFcm  Rços  de  lefa  Magcftade :  e  fe  pergun- 
tares a  cauía  de  tam  horrendo  caílígo  >   achareys, 
que  fby  -a^  ícnílialidadey  em*  qUc;  vi viaô.  Lembray- 
vos   do  Diluvio  immenío  de ^goas ,  com queDeòs 
foçobrouoMxindo  todo ,'  no  qual  perecerão  todos 
ò^^viventes  da  terra ,  falvos  íómcnte  os  que  efcapá* 
íáp  dentro  da  Arca :  c  íc  examinares  a  caufa ,  vos 
jrefponderáí  a  EíctitnrâiDfxit  Deus  ^  mn  permam* 
htt  Spntús  mtíi9 Í7i.húmm'^^la  caf^o  e/Í.  Aknfus^ 
lídadíE  depravada y   dom  que  viviâo  os-àomcns  ío- 
br€  a  terra,  foy^á  cauía  de  caíligo  tanto univcrfal, 
po  qual    perecerão  culpados ,  e  annoeentcs*  Ora 
deflc  rigor  âc  Deos ,  em  Gáftigar cfle  vicio,  ppdereys^ 
íníérir   legitimamente  a  facilid^ide  em   ©  perdoar,, 
para  GOíw-eík  confiança  coníinoarcs  a  peccai?  ear* 
ualmente? Certo hc, que tláo*J^  13^  manl  í-lnean  m^m 
Nlo?rqiiizera  porem ,  que  das  verdaács  dcflc 
difcurfò,tomâi'e  algum  dos  meus  ouvintes  habi'- 
tuadoino  vicio  da  fcnruajidade  motivo,  paradeíef- 
perar.   Day-mG  attençaõ.  He  verdade,  que  o  vicio 
éa  fenfualidade  he  difficilíffimoalargar-íe,   princí. 
palmentc  de  quem  vive  habituado  nelle.  He  verda- 
de, que  -o  mao  habito  ncfte  vicio  paíTa  como  a  na- 
târeza ,  fazendo  como  huma  neceííidade  aeontinuai? 
Eo  peecado :  mas  'também  he  verdade,  que  ajudado 
hum  homem  com   á  graça  de  Deos,  que  da  parte- 
fua  não  faltâ^  pode  tomar  huma  reíblução  de©  iar- 
1^  totalmente,   é  hvfar-íe  âc  tám eftreyra  prizãp,: 
mo  vos  qtiecoallegait  outra  (eK.emplo,íenaô.o.diel 

S.  Ago^ 


i, '  íl  '\ 


Smtá  Agqftinho  Uô  celebre  ema  Igreja  Catholica.  A- 
gbflmbo,  fendo  Manicheo  ,  yiveo  tantos  annos 
perdido  ncftc  vicio  com  tantas  raízes ,  que  lhe  pare- 
cia quafi  impjoíTivcl  o  lai^alo;  com  tudo  fcyto  Ca- 
tholicf  lachoà  porcx|>eríenciai  que  fe  podia^vencerj 
€  dà  o  cemcdb  cotn  huma  íbôielhançâ,/qucquandoà 
propunha  aos  íeus  ouvintes,  lhe  pediatoda  ã atten- 

;^'       ;    Eqàusj,  it áiz^elk^).  mt^fidotHaf ,  Blepbasnonje 
Je'"vet  J(f^tiLe&  norkfi.Jomt^Ík  é'  Homo  nan  fe  domai: 
Ap.    ' UrdammmnEqúus^Ele^hasr  Leoy qmritur fíom9i 
ergo  quaratur  Véus ,  ut  domineturHomo.  JDomuifti 
Equum  y  qmm  nonfecijii ,  &.  non.âomabit  te  ^  quefe- 
cJtcUf  QB^t  diz^r.  if^^m  Cavallo ,  huin  Elefante, 
c  kmn   Leão  nâo  fe  doma  a  íi  meímo  >    aíTim  da 
mefma  maúeyra  hum  homem  não  fe.doma  a  fí  mef- 
mo.  Para  domar  o  Gavallo.,  o  Elefante  >  e  o  Lcão} 
he  neccífario   o  homem,  que  he  fupçri.or  a  todos, 
emma  pbjecijU  jfiá  fedibus,   E  para  domar  o  ho^ 
mem,  he  ncceírario.' recorrer  a  Deos,,  que  heSupcr 
rior  ao  homem.  De.  maneyra ,  q^e  afílm  .corno  o  ho* 
mem  amanfa  humaféra,  que  naõ  ereou,  aíTim  Deos 
pôde  amanfar  o  homem,  que  creou.  Mas  com  efia 
differcnça,  que  como  Deos  creou  ao  homem  em  li- 
vrc  aiv^idrio ,  a  faber,  com  vontade  livre ,  o  quer  çon- 
iirrar  efta  liberdade  ao  homem  i  por  iíTo  ainda  que 
Dcós  poíTa  defotentia  ^^/í>/«/^  amanfar  o  homem, 
ifto  he,  fazer-lhe  mudar  a  vontade,  com  tudo  ^^ 
modo  ordinário  não  lhe  muda  a  vpntadc,  fem.  o  ho- 
mem confentir   nefta  mudança.  E  para  haver  eíta 
mudança ,  que  deve  fazer  o  homem?   O  meímo  San- 
to o  declara  em  humas  palavras  feguintcs :  hi  Ulo  Jpes 
efi.,  &  nos  fubdamury  à-.  míjericordiam  pecamur. 
Quer  dizer;  em  Deos  cftá  toda  a  noíTa  efperança, 
bimilhemo^nos  diaqte   dclle,  peíTamos    inliante- 

mente 


Do  tõrmetííú  dos  Luxurio/os.  «73 

ifiênte  afua  graça ,  c  o  feu  favor,  c  a  fua  mifericordia^ 
c  defte  modo  poderemos  alcançar  efta  mudança ,  pode- 
remos íahir  defle  atolcyro ,  em  que  nos  tiver  metido 
o  noíTo  mao  habito  da  íenfualidadc. 

AíTim  fazia  David,  quando  dizia;  Salvumme 
fac  Deus,  quomamintraverunt  aqua  tifque  ad  ani- ^f^^'^ 
mam  meam.  Senhor ,  ajudayme  a  íalvar  ,  porque 
cu  me  vejo  fubmcrgido  nas  correntes  dos  m«iâs  pcc-^ 
cados.  Chamava  com  inílancia  a  Deos  \  no  qual 
punha  toda  a  fua  cfperança ,  e  por  iffo  replicava: 
Labor avi  damans ,  dum  Jpero  in  Deum  meum.  De- 
vemos porem  advertir ,  que  o  Santo  Profeta  no  mcí- 
mo  tempo  ,  em  que  eíperava  de  Deos  o  favor,  de 
fever  livre  das  fuás  culpas  ,  trabalhava,  e  coope- 
rava também  da  fua  parte,  para  fe  livrar.  EíTa 
força  tem  aquella  palavra  Laboravi,  Recorria  ,  c 
pedia  a  Deos ,  que  o  livraífe ,  mas  no  mefmo  tem- 
po fazia  diligencia  para  fe  livrar :  Laboravi  damans, 
Deos  da  fua  parte  eftá  prompto  a  livrar  o  iuxuriofo 
habituado  no  peccadodo  habito  vicioío,queo  tem 
ligado,  e  prelo j  mas  hc  neceíTarip  ,  que  elJc  da 
íua  parte  faça  diligencia ,  para  romper  eítas  prifoens. 
c  vencer  o  feu  mao  coÁume.  Para  fazer  efta  dili- 
gencia ,  fe  deve  ajudar  do  temor  de  Deos  ,  temen- 
do o  íeu  juízo,  a  íua  ícntença ,  c  os  íeus  caftigos, 
que  feraõ  por  toda  a  Eternidade;  porque  efte  temor 
fera  baftante  não  fó  a  fazerlhc  romper  as  prifoens 
do  leu  deplorado  eftado  ,  mas  também  a  cxtinguir- 
Ihe  todas  as  raizes  do  feu  mao  coílumej  fazendo, 
que  em  lugar  do  mao  fucceda  o  bom  habito,  eco- 
ftumc.  O  mefmo  Santo  AgoíVinho  :  Feternojijjíma 
confuetudo  ttmore  franatnr  ,  franata  rcfiringitnr^ 
reftriBa  hngutfát ,  lauguefcens  emoritnr  ,  &  mala 
(onfuetudim  bona  fuccedit.  Quer  dizer  5  hum  mao 
CQÍiun\çdcmuyto  tempo  com  o  temor  fe  refrca ,  rc- 
'-C  i'lí  '  S  '  -  frea- 


174  DífiÚYfo\ 

freadafcvay  apertando,  apertado  címorcce/c  cC* 
morccido  vem  a  acabar ,  c  cm  feu  lugar  fucccde 
hum  cofitime  bom.  AlTimíucccdco  ao  meímo  San^ 
to  Agoíiinho,  e  a  outros  tantos  Santos  ,  e  pecca^ 
dores  ,  dos  quaes  íe  podia  julgar  diíBcilifíimo  o  li-; 
vraríb  das  prifocns  dos  íeus  depravados  affcdlos. 
Ó  TOeímo  vos  fuccederá  a  vòs,  e  principalmente 
fc  vos  yàlcres ,  e  prevajeres  da  interceíFaõ  daqueU 
la  Santiííima  Mây,  e  amorofíflima  Advogada  dos  pcc- 
cadores^a  quat  aífim  como  mereceo  ouvir  da  bocca 
dí)An)0Saô  Gabriel  aquella  íentença  de  não  Ter  im- 
poíFivcl  a  Deos  o  fazer ,  que  foíTe  juntamente  May,  c 
Virgem :  Nori  erit  imfojjiblh  apuà  Denm  omm  Fer* 
bum  i  affim  também  merecerá  alcançar  de  Dcos  a  con- 
verlaõ  de  hum  Luxurioío,  que  pela  muyta  habitua* 
çaô  no  fea  peccado  j pareceria  talvez  impoffivcl  a  fiia 
convérfaô. 


DIS. 


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^  1 

TORMENTO  DOS  TIRA2síOS    3  YmGATWOS 


17? 


DISCURSO  X. 

Do  tormento  dos  Tyrannos, 
e  Vingativos. 

Potentes  potenter  tormenta  patientur. 
Ssip.  cap.  6. 


A5  ha  duvida ,  que  a  natureza 
humana  tem  huma  terrível  in- 
clinação á  vingança.  Corre  »e 
fe  precipita  a  ella  com  tanta 
fúria, que  as  mais  das  vezes  naô 
lhe  dá  tempo  de  confultar  ,  e 
íeguir  a  razão.  Daqui  nafcc 
que  em  íemelhantes  caies  hum 
homem  afrontado  fe  eíqiiecc 
de  Deos ,  e  de  fi  meímo,  confcnte,e  corre  à  vingança 
ícm  reparo  ^  íem  cautela,  íem  armas,c  fem  rcmorj  def- 
preza  os  mayores  perigos ,  ou  para  dizer  melhor ,  não 
çuyda  nelles ,  nem  os  prevê ,  nem  os  vè.  Mão  he  fácil 
explicar  todos  os  movimentos  ,  c  perturbaçoens, 
^iic  a  natureza  humana  offendida  excita  no  cora- 
ção jC  na  Aima  de  hum  homem  injiiftajucnte  aggra.- 

S  2  vadOí 


g® 


fonn. 


176  Dtfcurfo  X 

Yâdo.  Não  ha  tormenta  no  mar  tam  dcsfeyfa  \  nlà 

ha  na  terra  iianundação  de  K.ios  tam   precipljc^ada, 

naôhano  ar  vento,  oit  tuffaô  tam  impetuofor  não 

Sen.      ha  no  Ceo  Rayos  ,  ou  Corifcos  tam  penetrante^  ;^ 

^^^^'*'^  Ntilla  vis  Jlamma  ,  tumtdique  venú  >qtíe  cheguem 

^'  *     a  hum  animo  enfurecido,  a  hum  coração  ardente, 

quando  correndo  a  vingança,  quer  ferro,  fogo,  c 

iangue,parao  total  exterminio  de  hum  (eu  inimi-; 

Ardet,  ér  odh. 

Ifto  íoppofto , rcccyo  muyto,qucfuc€edaagQ« 
ra  a  mim  ,  o  que  já  aconrccco  a  Chrifto  Senhor  nof* 
ío  5  quando  pregava  às  Turbas  naquella  occaíiaõ^ 
em  qae  alguns  dos  ouvintes  cílranhando  a  fua  dou- 
trina como  difficultoía ,  e  impraticável  ,  o  deyxà- 
raõ ,  dizendo  :  D  urus  eft  hic  fermo ,  &qups  peterif 
enm  aãSrel  Funda  fe  cíie  meu  recçyo  lobre  huns 
falfos  dogmas ,  que  eníinaõ  os  Políticos  do  Mun- 
do. Primcyramentc  pertendcm  ,  que  perdoar  as^ 
injurias ,  e  naò  fc  vingar  delias ,  fcja  bum  precey- 
ío  novo  eílabclecido  contra  os^príncipios  da  nature- 
za. Scgundariamcnte ,  fuppofta  a  fraqueza  humana, 
fcja  impofíivel  o  poderíc  guardar  cftc  preceyto.  È 
cm  terccyro  lugar  ícr  de  defcredito  a  huma  família^ 
c  indigno  de  hum  homem  briofo  ,  e  honrado.  Por 
tanto  determino  neftc  difcuríb  moftrar  todo  o  con?f 
trario  ,  provando  ,  qae  o  preceyto  de  fe  não  vin- 
gar dos  inimigos  he  natural,  e  tam  antigo  como  a 
creaçâo  do  Mundo.  Que  he  faciliffimo,  ainda  que 
pareça  impofíivel.  Que  he  gcnerofo  y  e  louvável^, 
ainda  que  muytos  maldizentes,  e  mal  intenciona- 
dos, lhe  chamem  vil,  bayxo,  e  de  covardes.  Ecfte 
fera  o  primeyro  ponto.  Nb  fegundo  veremos  os 
grandes  tormentos,  que  padeecráõ  no  Inferno  eftes 
Vingativos,  eTyrannos,  que  não  fouberaò  uíar  mi- 
kricordia  com  os  fcus  próximos  ,  cafligando-os 

Deos: 


:*'i 


Dd  tormento  dosTyramoSy  e  Vingativos»  ijy 

Dcos  com  o  mayor  rigor ,  c  furor  da  íua  juftiça ,  ve- 
rifieando^fe  delles ,  que ;  Potentes  fotenter  t^rmenta^ 
fatientur. 

Seria  hum  erro  muyto  craíTo ,  c  huma  abufaõ  dc^ 
grandes  confequencias  o.cuydar,ou  imaginar,  que 
foy  em  algum  tempo  permittido  a  aiguem  odiaro 
feu  inimigo ,  e  tomar  vingança  dellc»  Quando  ChriíVa 
bem  noíTo  diíTe  de  fua  própria  bocca  aquellas  pala- 
VEáSi.*  Audtjíis  ,  qma  diâíum  eji  antíquii.  Dditges 
froximum  tumt ,  &   oito  habebU  inimicum  tuum; 
fallava  reprovando  certos  dogmas  faiíos  ,  que  an- 
davaõ  erp  tradição ,  para  obrar  a  vingança  jc  câas 
íaõastradiçoens,  queSaó  Paulo  chama  mentiras  ,c 
fabulas  ;  Inanem  fallaciam  fecundum  tr adit tonem  ho-  Collep 
mmum.  ^  Santo  Agoftinho  aseenfura  como  delírios  í<<jí.i.j^ 
àos  ]uácos  i  Deliramenta  Jud^orum.  O  preceyco 
dê naò  tomar  vingança  dos  inimigos,  c  de  amalos, 
c  fazerlhcs  bem  ,  he  ram  antigo  como  o  mcímo 
Mundo^  pois  he  fundado  na  ley  natural ,  que  nos 
prohibe  de  fazer  aos  outros  ,  o  que  nòs  naô  quere- 
mos foíTe  feyto  a  nôs .-  Gluod  tihimn  ijpis  ,  alter iirie 
feceris.  Ora  he  couía  certa  ,;c  evidente ,  que  qu3n^> 
do  nos  temos ,  ou  por  defgraça  ,  ou  por  malicia ,  of*; 
fendido  algum  noíTo  próximo,  queremos,  e  procué 
ramos ,  que  não  fe  vingue ,   nem  nos  períiga ,  que 
nos  perdoe,  e  naò  tenha  mais  ódio,  que  nos  queyra 
bem,  e continue  com  osfeus  favores.  Logo  confor- 
Hiea  ley  da  natureza,  c  do  lume  da  razão,  fomos 
obrigados  a  fazer  o  mefmo  com  os  noíFos  Próxi- 
mos, quando  nos  tem  ofFendido, e  aggravado ;  ^iod 
úbinonvís .alter i  ne feceris. 

Podemos  confiderar  a  Deos  ,  ou  como  ooíTo 
Credor  ,  ou  como  Redemptor  noíTo.  Sc  o  confi- 
dcramos  como  Creador,  e  Author  da  Natureza, 
a  mandamento  ,  quçjios  obriga,  a,  não  tomar  via? 


f 


S  3 


gan; 


ganç^  iés  noítos  inimigos^  ej^mais  a;  mais  amaí^- 
los  ,  e  fkzerlhcs  bem, ,  ^lòy:  :é£5rtp;  dèfde^  :a;trea|loM. 
dos  nofTos  primeyros  Pays  Adam  ,  e  Eva.  È  íe  o^ 
cooEderamos  como-  RcdempEor  ,  ií-e  tam.  antigo 
como  a  meírna  Lcy  Éva'ngelicai  publicada  pslo  nief-;; 
mo  filho  deOeos  fey to  homem.  Deos  como  Author 
,da' Natureza^  á-ScBhoí'  Soberano<i de  todas  as^  Gi"ea4 
turas  íe  decíaroo :,  qiie  nuncapermíctifía  a  vingança^ 
a  peíToá  algema  ^  feguiidò  a;  intcUigencia  daquellas 
palavras*  por  boceade^^^M 

^'^f  S^Tfiáfccvp  para  mim  -a  vinga dça,  e  quero  fer  íó  erti 
fazer  juâiçaye  vtógarmea  feu^  t^  E  no  Levii 

tico  deyxou  efcrito :  IsJ[on  quafas  lãtiomm-^  necffk^ 
LéviíT  ^''^'  ^^^  inp^va  cmium  tMorumJ^^^m  busfqtieis  a 
tf/i;>.  16  vingança  ,  e  naô  vós  Icmbrers  mak  das  iniiá"iav 
que  Ví)s  íízeraô.  E  Saõ;  ;Fàulo  jfel  kndô  em  ItigâE  de- 
AàRõm^^^^^r  díz  .•  xíMM  'vmdiBam  ,  ^^í?  retfi&kâmi  A 
fi/sp.ia.  mim  íé^toca  a  vingança  ,  edar  ocaítigp ,  que  mere- 
cem os  que  ,vp&  raaitrâtáo.  De-  tudo  ito  íe  inferél 
ck  ràmánte  j%ie  M  Dfeos^  tèro  ^tíft^  poder  pa^a  viíic^ 
gar^ve  câftigar^GS-íeus  ,tie,diSí  nc&á  inimigos  r  e  taiíii?; 
bem  fe   iniere   por  legitima  coníèquencia ,  qée  fè 
bouveíTealgum  homem  ofendido,  ou  aggravado  d© 
outFOí  homem  f que ífc  perfuadiíTtí ,  ©u  iulgaíTe  ferlhô 
licita  ,íOupermittidaá  vingança  contra  o  íeu  iaimi^ 
go,  violaria  o  titulo  de  Cipeador,  ufurparia  o  di^^ 
reyto  fupremo  de  Deos  ,e  cometeria  hum  crime  dc: 
leia  Mageftade  Divina  ,  com  querer  apoderarfè  da? 
foberania,  que  Deos  tem  íobre  todas  as  Crca  turas, 
fendo  efko  brazao  mais  preciofo  da  íua  Ómnipo-^ 
tencia.,/,' '■-^'>,J'->  ; 'í-^-  -  ;'^';  ■   ;n'íi:;!. 

Naó  ífe  èontentou  Deos  di:  gravar  nos  coraçocns 

humanos  cfte  diíílame  de  naô  fazer  mat  aos  noíTosf 

iftfâiigQSi.  mas  taabç/íi  for  huma  Lcy  pofitivanosi. 

.^r-^:  ';:■:!  man-- 


DotormentQdosTyrànmSye  Vingatmh  179 

manda,  que  os  amemos,  e   fopcorramos  nas  íuas 
ncceflidadcs :  Si  efuríerit  tmmicus  ttius  ,  áha  illum.  Provi 
Naò  hs  logobaftanteonaõ  lhes  ter  ódio,  mas  quer,  ^^p-ijT 
que  os  aniemos ,  e  íoccorramos  ,  como  íe  foíTeni 
parentes,  ou   amigos.   Temos  raros  exemplos  na* 
quelles  grandes  Varoens     da   Teflamento    Vçiho. 
Moyfés  Legislador  tam  amoroío   foy  murmurado, 
c  maltratado  de  palavras  do  mefmo  Povo  de  Ifrael, 
que  tinha  recebido  delle  tam  grandes  benefícios  j  e 
com  tudo  não  íó  perdoa  de  coração  áquellcs  ingra- 
tos ,  e  rebeldes ,  mas  roga  a  Deos  por  elles  com  tal 
fervor  , que  pede  antes  a  morte,  que  ver  o  íeu  Povo 
caíligado;  Aut  dimitte  eis  hancnoxam^  aut  fi  non  Exod. 
faciSt  dele  me  de  Itbro  tuo.  Naõ  he  menos  para  itc^p-iz 
admirar  a  paciência,  c  manfidáo  de  ElRey  David, 
quando  fugindo  de  Abíalam,hum  íoldado  por  no- 
me Semey  começou  a  infultalo  ,  e  infamalo  com 
impropérios,  atirando-lhe  com  pedras,  e  chaman- 
do-o  homem  indiabrado,  amigo  de  fazer  íanguc,  e 
complicc  de  muytas  mortes.*  Ita  autem  loquêbatur  Reg,^^ 
Sentei^  cum  malediceret  Regi  ,  egtedere  ,   egreder ecj.z^. 
f^ir  fangmmm  j  f^ir  Beliaí  ;  mittebatque  lapides  con- 
tra David,  A'  viíta  deftc  atrevimento,  e  deíprezo 
contra  a  peíToa  Real,  Abiíay  Capitão  da  Guarda 
pedio  a  David  permiíTaõ  de  fazer  em  pedaços  aquel- 
le  mal  dizentc.  Porem  David  o  não  perniittio,  di- 
zendo que   o  deyxaíTem     continuar  com  aquellas 
afrontas  ,  e    maldíçoens  ,  pois    executava  niflo  a 
vontade  de  Deos:  Dimitte eum\^  ut  ^aledkat.  Do- 
mimss  enim  pr^cepit  et  ,  ut  maledtceret  David.  Da 
mcíma  maneyra  tez  Jozeph  ,  porque  naõ  fó  perdoou 
a  íeus  Irmãos  a  injuftiça  de  o  quererem  matar  ,  e 
de  o  venderem  por  cfcravo  aos  ITraelitas;  masque 
os  abraçou  com  finacs  de  amor  íincero  ,  remedean- 
doafua  íome  com  abundmçia  de  mantimentos,  e 

S  4  dan- 


^8o     ^'^'^^:?^?^^^^i?//í-«f/&  M' 

dando-lhes terras,  e gados,  para  viverem  com  lar- 
gueza :  Ego  fum  Jòfeph  fratervejler^quem  vendidif' 
tis  in  ayEgyftum  ^  mltte  pavere  j  po  falute  entm  ve^ 
fira  mljit  me  Deus ,  ut  efe  as  ad  vtvmdum  haberefoffi- 
tis.  Quem  poderá  agora  dizer  àviíia  defíes  exem- 
plos, que  o  preceyto  de  perdoar,  e fazer  bem  aos 
inimigos  íeja  novo ,  quando  era  tanto  em  uío  dcfdc 
as  primeyras  idades  do  Mundo. 

Vejamos  agora  como   perdoar  as  injurias  he 
coufa  fácil,  ainda  que  a  muytos  pareça  difficultoía> 
ca  alguns  impoílivel.  Primeyramente  quem  coníi- 
fleraíTe  com  attençaõ  as  penas ,  os  trabalhos,  c  as 
diiíiculdades  ,  que  encontra  quando  arma,  c  tenta 
huma  vingança  contra  o  feu  inimigo,  acharia,  que 
era  mil  vezes  mais  conveniente  perdoarlbc  ,  que 
tirarihc  a  vida.    Em  quanto  não  fe   vinga  ,   vive 
iempre  perturbado  íem  paz,eíem  quietação. Naô 
euydâ  cm  ousra  coufa,  que  no  modo  maisíeguro 
de  íe  vingar.  Sofpeytas  ,  medos ,  pefquizas  ^  e  re- 
eeyos ,  íaõ  as  occupaçoens  continuadas  do  íeu  en- 
tendimento, Naô  fallo  nos  gaftos  das  Eípias,  Con- 
fclheyros,  c Executores,  que  o  inquietaô,elhe  faõ 
cauía  de  grandes  defpezas.  Oh  quanto  mais  fácil  hc 
©  perdoar ,  para  viver  focegado ,  e  contente !  Era 
oEmperador  Auguílo  dehuma  memoria  fel iciílima^ 
tanto  afíim  que  chamava  por  feu  nome  a  quantos- 
Soldados  íe  numcravaô  no  feu  Exercito  /  e  lem- 
brarKlo-fe  de  quanto  via, c  lhe  diziaô  ,  dk;  o  Hiíío» 
rico I que  fó  fe  cíqiTecra  logo  das  injurias,  que  lhe 
faziaã  ;  Nihil  eUiv^ifcebatm'  prater  injurias.  Qiic 
5í^5f.í»  m  ara  v  ilha,  que  rcynaffe  tanto  tempo ,  e  gpvernaíTe,, 
vit-      com  ter  todo  o  Muncío  em  paz !'  Julk)  Cefar  nas 
guerras  eiveis  de  Roma  teve  par  feo  competidor, 
c  inimigo  a  Pompco ,  que  munido ,  e  fiado  cm  huma 
fac§aõoiimçroÍ3  ,e  valente  y  que  a  íeguia ,  lhe  fazia 

hua 


Do  tormento  dos  Tyvnnoty  e  Vingativos,  iSi 

huma  perpetua  guerra.  Finalmente  Gefar  cmhuma 
bataiha  campal  ficou  vidorioío ,  c  nos  dcfpojos  do 
campo  fc  achou  hum  pequeno  Efcritòrio,  aonde 
Pompeo  guardava  todas  as  cartas,  que  lhe  efcre- 
vião  de  Roma  tçdos  esconjurados,  c amigos.  Náo 
quiz  Cefar ,  nem  ver  hua  íó  carta ,  e  na  íua  prcfcnça 
as  mandou  lançar  todas  no  fogo,  dizendo  ,  que  feria 
mais  agradável  o  perdão  aos  Traydores,  e  Inimigos 
com  ficarem  encobertos,  que  depois  de  íerem^^^^  , 
conhcc/dos:  Graújjlmum  putavit  genus  venta  ne-  deir<%9, 
feire  quid  quifque  contra  íllumpeccaffet.  Sceftesdousij.  * 
Príncipes  tiveífem  génio  para  a  vingança,  Icmbrando- 
fe  hum  das  injurias,  quelhefaziaõ,  c  querendo  oou- 
tro  ler  as  cartas  ,  e  defcobrir  os  traydorcl  ;,  que 
perturbaçoens ,  e  rumores  não  haveria  em  Roma? 
Que  ódios ,  e  temores  nos  que  remiáo  de  ferem  cul- 
pados? Que  murmuraçoens  nos  fcus  Amigos,  e 
Parentes?  Corria  rifco  de  renovar  huma  nova  guer- 
ra no  Império  ,  fe  logp  no  principio  do  íeu  gover- 
no procuraíTe  d  vfngança  com  o  rigor  da  jufliça 
contra  os  delinquentes :  porem  ufando  da  clemên- 
cia ,  perdáo,  até  com  os  Inimigos  ficou  gozando 
de  paz,  focego  com  ganhar  os  coraçocns  de  to- 
dos. Logo  claramente  fe  vê ,  que  he  muyto  mais 
fácil ,  e  de  mayor  utilidade  o  perdoar  as  injurias, 
que  o  vingarfe  delias. 

Efl:a  prova  poiêm  ainda  que  ia  t|sfazà  razão,  e 
hc  muy  conforme  à  experiência ,  com  tudo  bem  con- 
íiderada,  fe  pôde  achar  nella  muyto  do  politico, 
ou  do  humano.  Mais  nobre  motivo  he  fcm  duvida 
amar  o  inimigo  ,  c  fazer-lhe  bem,  não  por  conve- 
niência própria,  mas  unicamente  por  dar  goíío  a 
Deos,  e  fazer-lhc  a  íua  vontade,  poisaííimoquer, 
c  aíFim  o  manda.-  DeVgite  inimicos  veflros^  kmfa- Muth^h 
cite  tis , .  qm  oderuntíVQSi  c  acharemos ,  que  os  Icus  f- 

mau' 


í'    4  ií 


I      ■ ' 


I. 


%^ 


-^  ^  r  Dífcurfol. 
iOTandamcntos  naõ  faõ  diííicultofos,  c  pefados,  cel^ 
mo  os  pinúo  os  malévolos:  Mandata  ejus gravia 
mnfunt:  Acharemos,  que  a  fua  Ley  he muy  fácil, 
e  o  íeu  jugo  muy  ligcyro,  e  íuave:  Jugum  meum 
fuãve  eft^  &  ónus  meum  leve.  Todas  as  creatur^s 
íenfícivas  nâo  tem  diííiculdade  alguma  de  obedecer  a 
Oeos>  c  ate  as  iníeníiveis,  fem  moftrar  repugnan- 
W,  íe  címeráo  em  fazer-lhe  a  vontade  .-  Ignis^ 
'grande  ,  nix ,  glacies  ,  fptritm^  procellanm  ,  qua 
faciunt  verbttm  ejus.  Só  a  creatura  racional,  que 
he  o  homem,  aonde  com  obedecer  devia  fentir  ali- 
vio, reíiae  ,  e  íente  pena.  Quando  hum  grande 
Príncipe,  ou  Monarca  da  terra  manda  alguma  couCa 
diííicii,  os  Súbditos,  para  ferem  beneméritos  fa- 
zem fáceis  as  mefmas  diííiculdades ,  para  allegar 
mayorcs  íerviços ,  e  merecimentos.  Pois  Deos, 
que  he  o  Supremo  Monarca  do  Ceo  ,  e  da  terra, 
náo  terá  o  mefmo  poder ,  declarandofe,  que  efta 
he  a  íua  vontade  ,  que  aíTim  o  quer,  e  affim  o  man- 
da ?  Ego  autem  dico  vobis  ,  diUgite  mímicos  veftros, 
benefactte  tis ,  qui  oderunt  vos. 

Já  houve  certo  Principe  antigamente  na  Grécia, 
•o  qual  juftamente  irritado,  e  náo  podendo  mais ío- 
frer  as  injurias,  e  dcípreíos,  que  recebia  dos  Athe- 
nienfes,  poz  cerco  à  Cidade,  e  jà  eômo  rendida, 
mandou  íe  lhe  pnzcííe  o  fogo  cm  todos  os  cantos, 
para  a  reduzir  em  cinzas.  Foy-lhe  dito  ,  que  na 
Cidade  havia  hum  payncl  do  famoío  Apelles  vene- 
rado naquelle  tempo  como  o  deos  da  pintura.  A 
confiicraçaô  defla-  imagem  ,  que  reprefentava 
a  Júpiter  faífo  deos  com  os  Rayos  na  maõ  ,  esrnoti 
de  tal  forte  o  coração  do  Principe,  que  perdoou  ao 
Magiftrado,  e  povo  daquella  iníigne  Republica. 
Bem  fey,  que  no  noíTo  inimigo naò  ha  coi^fa  alguma, 
que  naô  pe^a  vingança,  qucjiáô  accenda o  fogo  da 


Do  tormenio  dos  7yramSjeVwgâtivõs.  a  Sj 

nGÍTâ;  ira.  A  iua  lingoa  vos  tira  a  reputapõ  ,':e:Èi 
famaj  as  Tuas  mãos  tal  vez  manejaô,  e  guârdaõ 
indevidamente  a  voíía  fazenda  j  o  feu  coraçap  hc 
de  hum  rigre ,  que  vos  deípedaçaria ,  íe  pudeíTe; 
o  íeu  entendimento  cuyda,  e  fomenta  peníamenrl 
tos,  para  vos  fazer  mal  j  c  finalmente  a  fua  voú4 
tade  intenta  de  vos  defíruir,  c  aniquilar.  Com- tu^ 
do  fe  nas  payxoens  de  voííb  inimigo  confiderares 
gravada  a  imagem  de  Deos  ,  em  quanto  elíc  hc 
feyto  à  íua  ícmelhança:  Creavit  Dtus  hommm  ad 
imaginem  ,  &  fimiUtudinem  fuam,  Eíia"  imagem, 
que  he  eomo  hum  rafgo  da  íua  bondade,  efermo- 
fura,  faz  cfquecer  logo  as  affrontas,  ciníuitos,  que 
íaò  como  fombras,  que  verdadeyramente  desluí^ 
traô  a  imagem  do  fupremo  Pintor  digno  de  toda 
a  veneração,  e  refpcyto,  pois  he  o  meímo  0cos 
íumma mente  bom  ,  e  infínits mente  agradável. 

Daqui  nafce,  que  fe  movidos  defía  coníidera- 
ção,  e  defle  motivo,  perdoamos,  e  fazemos  bem 
aos  ncrR^os  inimigos,  amamos,  e  honramos  a D^oá 
com  o  mais  eminente  modo  ,  com^  d?qúe  pôde  amaf 
a  creatura  racional.  A  razaõhej  porque  como  noil' 
myíterios  da  Fé  (dizem  osTheoIogosja  Authorida-? 
de,  e  Veracidade  de  Deos,  que  lhe  ferve  de  moti- 
vo,; icmòí^ra  tanto  mais  potente,  qíjantrtô obje- 
cto, tiu  my^crio,.  tem  menos  râ^òens  evidentes^ 
que  o  façaõ  crivei;  afíim  também  quanto  mayor 
djfficuldade  temos  no  perdoar  ao  inimigo  ,  tanto 
mais  reluz  a  Authoridade  de  Deos  íobre  a  noíTa  li- 
berdade ,  e  fobre  a  noíía  payxáo ,  que  propende 
naturalmente  a  fazer  mal  a  hum  inimigo  indigpo^tal' 
vez  do  perdaô.  ReconBiecer  a  Déos  em  hum  Rey,. 
em  hum  Principe,,  naõ  he  coufa  mtiy  diffici  1  j  poi-que' 
amda  que  a  Authoridade  Divina  aílam  mo  ordenai/ 
eom  tiído  lie  mmiáâ  da  metóia  Magefladc  tempo^àli 

ds 


ííítY 


iil  l: 


^^. 


"^smsBsmm 


284.       r  Blfcurfo  X 

ds  Pnnctpc;  do íeu poder, cauthondade,  emqiim- 
«        to  Miniftro  do  meímo  Deos:  Gladium  fortat ,  & 
T'''Mmifter  Dei  efi.   Confiderar   a  Deos  em  hum  po- 
^'      bre,  que  cubcrto  de  chagas  morre  de  fome  ,  tam- 
bém nao  he  diíficultoíoi  porque  a  compayxaô  na- 
tttral  nos  move  a  ter  piedade  da  fua  miíeria ,  c  a  lua 
pobreza  naô  faz  obftaculo  para  crermos,  que  Deos 
eflà  nellc.  Porém  reconhecer  a  Deos  em  hum  mi- 
migo,  honrar  ^  e  amar  huma  íua  imagem  cm  hum 
homem,  que  em  o  veodo  diante  me  perturba  natu- 
ralmente a  razão,  me  accende  o  langue,  me  irrita 
a  cólera ,  e  com  tudo  para  obedecer  a  Deos ,  reco- 
nheço nelle  a  íua  immagcm,  venço  toda  a  minha 
repugnância,  o  abraço,  e  me  declaro  por  íeu  fiel 
Amigo;  efte  íi,  que  he  o  amor  mais  puro,  hcoaaei 
mais  heróico  da  maisperfeyta  caridade  de  Deos ,  da 
qual  Uz  mençaó  S.  João  :   Si  dilexerimus  invtcemi 
i\ /^oan  charitas  Dei  in  nohís perfeãa  eft, 
a.  He  couía  digna  de  reparo ,  que  querendo  De_os 

fazeríe   vifivel  aos  homens  apparcceilc  a  Moyies 
_    .    no  meyo  de  huma.çarça :  Apparmtque  ei  Domimis  m 
r""  '''Jlamma  ignis  de  medto  Rubt,  E  rlaò  era  melhor  qa^ 
^'        para  mayor  oftencaçâo  da  íua  grandeza  appareccUe 
na  íummidade  de  hum  cedro  bem  copado,   ou  de 
hum  loureyro  como  Deos  viélorioío ,  e  tnuntante/ 
.  jà  que  fe  intitula. Senhor  dos  Exércitos :   Vomims 
'  Bxercituum  ?  Não  :  cfcolhe  huma  çarça  ,  que  he^hua 
arvore    de  ef pinhos  a  mais  defprczivel,  e   eíteril 
de  todas,  c  que  nada  tem  dcactradivo  ,  oudebe^ 
nefica  aos  homens,  para  defte  modo  realçar  melhor 
aMageftade,  e  fcrmoíura  de  Deos,  cattrahir mais 
heroicamente  os  coraçociis  dos  homens,  os  quaes,/^ 
parece  affaftava  de  fi  o  horror  dos  mefmos^eípmhos. 
da  çarçí.  Do  meímo  modo  Deos  nunca  íemanite* 
fta  mais  foberano  ,  e  glorioío  ©as  fuás  creaturas. 


e.7. 


Do  tormento  dos  TyYúnno%  e  Vingativos^  i  8y 
^què  quando  os  homens  o  reconhecem ,  venèraõ ,  e 
ôdoraô  cm  hum  Teu  inimigo  ^  que  como  huma  çarça 
efpinhQfa,  naó  ferve  para  outra  coufa  mais ,  que 
para  o  cffcnder.  Efta  he  a  doutrina ,  que  cnfínou 
Cíirifto  Redemptor  noíTo ,  que  pregarão,  c  prati- 
carão os  Apoflolos,  aos  quaes  imitando  os  Chri- 
fíâos  da  primitiva  Igreja ,  com  notável  facilidade 
perdoava©  ,  e  fe  reconcilia vaô  com  os  fcus  inimigos; 
íabendo,  que  era  o  facrificio  mais  grato,  edema- 
yor  honra  ,  que  íe  pudeffe  fazer  a  Deos.  Couía  admi-  ^^^' 
ravel  (  diz  Tcrtuliano)  era  ufo  corrente  naquel- 
le  tempo  o  naô  reynar  entre  elles  inimizades,  que 
diziaõ;  Chrijiiantis  nulliiís  efihofiisy  c  corria  com  o  ^'^'"^*?í 
em  provérbio,  que  era  virtude  própria  dos  Chrif- 
tãos  amar  o  inimigo:  Chriftiani  inimicum  deltgerep.^e 
€fl'i  tanto  affim  que  os  Idolatras  veneraváoporar-/í»«^, 
gumento  da  noíTa  Fè  efíe  perdão  das  injurias ,  difeo- 
rendo  íer  verdadtyro  Deos  o  Deos  dos  Chriíiáos , 
pois  tinha  tanto  poder  fobre  os  íeus  coraçocns> 
quí;  os  obrigava  não  fó  a  perdoar,  mas  também  a 
amar  os  íeus  inimigos ,  e  foccorrelos  nas  íuas  ncccf^ 
íidades. 

Rcfta  agora   provar  para  conelufaõ  dcííe  prii 
meyro  ponto,  que  não  he  vileza,  mas  antes  gene^ 
roíidade  de  hum  coração  nobre  ^  o  perdoar  aosini^ 
wiígos.   Deyxo   por  agora  os  argumentos   forçofo» 
dos  Sábios  antigos,  que  guiados  com  o  lume  da  ra- 
zão cnfínàiâo  efla  doutrina,  c  a  praticar^  coma 
exemplo.  Mayor  credita,  c  força  tem  o  Texto Sa- 
grado,  que  diz,  que  todos  aqueíles ,  que  faõ  ami- 
gos de  Deos,  vivendo  na  íua  graça  ,  nunea fazem 
acçaõ  Vil,  nem  bay^ra.  A  honra  ,  c^^H  gloria  fe^nem  ^M 
as  íuas  obras:   Nimis  homrificaíijmt  amiei  Deu^J'^^ 
Deos  naô  quer  ao  íeu  ferviço  fenaõ  ânimos  género- 
ios>  e  que  cem  kiow  Por  ifía  diz,  que  o  Reyno 


^'ir'*^* 


Afath, 

C.   II. 


ii-  ^ ' 

1 

'..iá!! 

A 

t%6  Difcuvfo  X. 

do  Ceo  mo  fe  conquiílar  fcnaócotnvalof ,  c  iForça: 
Regnum  Ceelorum  vim  ptatitur ,  &  violem  rapiunt 
illud.  Logo  quando  Dcos.  manda,  que  perdoemos 
as  injurias ,  íc  deve  entender  fem  duvida  alguma ,  que 
he  acçaõ  muy to  honrada  ,  e  gloriofa ,  e  Te  naò  fora 
tâl,omeímo  Dcos  fey  to  homem  a  naõ  faria ,  como 
íabsmos  a  fez  na  Cruz,  perdoando  aos  mefmos ,  que 
o  crucifica vaô ;  Pater  dimitte  tllisynon  enimfciunt^ 
quidfacimt.  E  SaUmaô  com  a  íua  Sapiência  infuía 

Adatth.  jiaò  deyxou  de  nOs  advertir,  que  a  Omnipotência 
Divina  cípccialmcnte  confifteemtercompayxaô,  e 
perdoar  as  injurias  dos  que  aoíFendcm:   Mifereris 

inMifl  ^^«^«^  ^^^^ »  ^«^^  emnia  potes  E  a  Santa  Igreja 
alumiada,  c  animada  com  o  meímo  Efpirito,  diz 
nas  fuás  Oraçoens ,  que  nunca  reluz  melhor  a  glo" 
ria  de  Deos,  nem  mais  fe  diiata  a  fua  Omnipotên- 
cia ,  que  quando  perdoa  aos  peccadores ,  que  a  of- 
^'''"•,  fendem:  Deus,  qul  Omnipotentiam  tmm  farcendo 
^^^^^^maximè^&miferanâomamfejias. 

Mas  porque  razaõ  Deos  fe  moftra  mais  fobera- 
no-,  c  íe  augment4  a  fua  gloria,  e  triunfa  a  íua 
Omnipotência,  não  fe  vingando  das  injurias,  ;e 
offenfas,  que  os  homens  lhe  fazem ;  A  razaõ  he; 
forque  efte  he  o  mais  potente,  e  gloriofo  modo, 
que  a  íua  Sapiência  Infinita  toma,  para  ficar  per- 
feitamente dcfafrortado  ,  fatisf-eyto  ,  e  triunfante 
do  atrevimento,  e  rebeldia  dos  fciis  inimigos.  Vin- 
garfe  nobremente  ,  e  perfey  ta  mente  do  feu  inimigo, 
hc  deftruir  o  ódio  .  que  elle  tem  arraygadonofcu 
coração  contra  vôs  ;  he  trocar  efte  feu  odio  em 
amor,  e  fizer  ,  que  vos  aire  com  todas  as  veras. 
Quem  mata  o  feu  inimigo,  naó  mata  o  odio,  que 
'  Vos  tem;  antes  íucccde  as  mais  das  vezes,  que 
quando  morre  o  tal  inimigo ,  o  íeu  ultimo  fuípiro, 
hc  de  ordinário  hum  fiaal  de  mayor  furor ,,  e  rayva 

con- 


Do  termenio  dei  Tyrmm,'e  Vingativos,  i^j 

contra  Vós.  Logo  o  matar  o  inimigo  em  rigor  naÔ 
he  vingança;  porque  não  deflroe  a  inimizade;  an- 
tes  fc  elle  vay  ao  Inferno ,  a  áugmenta  em  dobro 
por  toda  a  Eternidade.  Nefta  fuppoíiçaõ  de  pode- 
res vos  extinguir  o  ódio  que  vos  Cem  ovoffo  Ini- 
migo, nefta  tal  fuppoíiçaõ  direy,  que  fazeis  bem 
flf  P.^i^g"!';'  CFocurar  aniquilar  o  íeu  ódio:  mais 
Mto  lo  fe  pode  fazer  perdoando-lhe,  e  procurando 
juntamente  de  o  reconciliar  com  benefícios. 

Quem  he  efte  voffo  inimigo .?  Succede  tal  vez, 
que  he  hum  voffo  parente,  e  certamente  hc  hum 
voffo  próximo.  Bem  eftá.  He  axioma  dos  Filofo- 
tos,  que  liuma  íubftancianunca  pôde ícr contrariai 
oiitra  lubflancia  :  Subjlamta  mhil  eft  contratmm.  ^rifii 
tiue  coula  vos  he  contraria  ncfle  voffo  inimigo?  Naô  ^«- ' 
o  leu  corpo,  naô  a  íua  alma  ,  naô  a  fua  nobreza, 
nw  as  íuas  riquezas  ,  e  talentos ,  porque  íuccede 
S^'"''''''  '5'"'  ^ft<=  voffo  inimigo  he  amado, 
fnZtlf  correfpondido  de  muytos  outros. 
Logo  hc  O  feu  V.C10,  ou  aíuapayxaõ,  ofeuodio, 
e  a  íua  mveja,  com  a  qual ,  e  pela  qual  vos  perfe- 

fJrJ°%^T'^  '"'  ^^  ^"=  ^°*  deveis  armar,  e 
e  iunV,  ^V  9«^  deveis  deflruir,  eaniquiar, 
do  lhe  !..''i  "°"''g""-''^ .  defejando-l  he ,  ou  fazen- 
com  .,r  "■"  «°""-"'o  "Mca  fe  vence  íenaô 
ouL  ?oI^  "'"'■''"°-  ?  ^"^^  "^°  ^'  "P^i'  com 
calor  Si  '„  r"'"  "'^" '  '  ^'  '"8"'"'^  °  <""» 
fe  exíinre  H  'T'''°  ^'^"^  ^  queheaagoa, 
lanrf  «f  ""  '^°'"^''  procedida -do  calor  fe 

Óuem    J         '"'•   ^°   "''^'"°    ">o'í°   deícngancfe  ««'^r 

zad"  r  "  "8o  íe  compõem  com  outras inimi! 
roalQuirrn  ""^  "[^■■decortczias,  vencendo  hu,.a 
malquerença  coro  hum  beneíicio,  hum  rigor  cor» 


i^í    iMicum  III 


humabrandara,  huma  fúria  com  hum  adto  de  pacico. 
cia,  bum  ódio  com  hum  amor,  c  finalmente,  o 
mal  com  o  bem,  He  a  vcrdadeyra  doutrina  de  Chril- 
to,  como  eníina  S.  Agoainho :  i\r<?//  vmci  k  maio, 
fede  vmce  in  bono  malum:  Non  ores  y  ut  mortantur 
^'^'*^'^:^mtmici  tui ,  fed  ut  corngantur,  &  morim  erunt  /«/^ 
-  ^*'"'  miei,  iam enimcorreãinon erunt immicí. 

Para  concluíaô  dcfte  primeyro  ponto  refírirey 
duas  celebres  hirtorias,  com  que  Deos  triunfou  de 
dous  grandes  ícus  inimigos.  Huma  do  Teftamento 
yeiho ,  e  outra  do  Novo.  Vendo  Deos  a  obíhna- 
çaõ  de  ElRey  Faraó,  e  o  fcu  coração  fempremais 
duro  em  perfeguir  o  povo  efcolhidoi   ordenou  a 
Moyfés ,  que  batendo  com  a  íua  vara  o  mar  vcr^ 
melho,  o  dividiíTei  e  logo  íe  fez  hum  cammhode 
terra,  íervindo  as  agoas  como  de  muros  de  criltal 
^^odc  para  franqueara  paíTagem aos Ifraelitas ;  htmgn^i 
u      '  Çmt  Ifraelita  mr  médium  (immarts,  eratemmaqm 
quafi  mufus  k  dextra  eorum .  &  U^va,  Mandou  Fa- 
íaò  ao  Exercito,  que  foíTecm  feguimento,   para 
os    degolar  a  todos.   Porem  levantando  Moyfcs  á 
vara ,  tornarão  logo  as  agoas  ao  fcu  lugar ,  e  aflrm 
coches,  carros,  ca vallcyros,  e  cavallos    ficarão  to- 
£W.  dos  afogados   íem  efcapar  hum  ío:  Nec  unus  qm- 
%        demfup^rfmtex  e/x.  Foy  tam  completa  efta  vido- 
ria,  e  tam  gloriofo  efte  triunfo  aos  lívaehtas  ,  que  em 
acçaõ   de  graças  cantarão  aquelle  famofo  cant.coj 
Cantemiis   Domino,  glorio//  enim  magnificAtus   ejt 
eqmm,   &  accenforem  dejeat  m  maré.    Saiilo  n  o 
era   menos  furiolo  contra  os  Cliriftaos,  que  Faraó 
contra  os  Hebreos,  deícjmdo  ,   e  H»"^?  P^^^^^^^ 
para  prender,  e extinguir  os  Apoftolos,  e  leguâzcs 
de  Chrifto;  Saulus  adhuc  fprans  minar  um  ,  &  c^- 
dis  in  Difcipulos  Domint,  Foy  neceffario ,  q^e  Ch^^^^^^^^ 
to  çy  deírubaíTe  do  Çavallo,  e  proftado  em  teu  a 


Bõ tormento  dosTjramõs^eVingatíms.  i8^ 

«fíiveffe  três  dias  eipantado  ,  cego,  e  íem  correr,* 
depois  tornando  cm  â,  c  conhecendo  quam  pode- 
roía  era  a  palavra  de  Chrilio ,  e  bravo  Leaõ  le  fez 
manfo  cordeyro  j  de  perseguidor  da  Igreja  5  pro- 
pagador da  mcímai  e  de  vaio  de  ira  ,  vafo  cie  eley- 
^aõ:  f^as  Ekãionií  eft  mihitfte.  Efl:a  he  a  vingan- 
ça^',  que  Deos  Redemptor  nofíb  quer  tonieiiios  dos 
tJoffos  inimigos:  naõ  como  Faraó,  que  querendo 
perfeguir,e  matar,  ficou  comtodo  o  leu  exercito 
afogado,  c  morto  no  profundo  abifmo  do  mar  ver- 
melho ;  In  profundam  AhyJJL  E  vòs  tanibcm  ,  com 
©  coração  duro  em  naõ  querer  perdoar  j  ficareis  íe- 
pultado  no  abifmo  do  Inferno,  Peio  contrario  en- 
chendo de  graças ,  de  cortezias  ,  e  de  benefícios  o 
VoíTo  inimigo ,  de  vafo  de  ira ,  de  ódio ,  e  de  rancor 
contra  vòs ,  o  trocareis  cm  hum  vafo  de  cleyçaò ,  de 
amor ,  e  de  agradecimento. 

Nem  me  digais,  que  fó  Deos  pôde  fazer  iflo, 
e  naõ  hum  peccador  frágil,  c  fcníítivo ,  porque  vos 
aprefento  o  exemplo  de  hum  gentio,  o  quai  narra 
Séneca  Varaôtaoautho rizado  no  Mundo.  A  Augu- 
fío  Cefar,  quando  já  em  paz ,  e"t>riunfante ,  cm  Fran« 
ça  teve  noticia  por  cartas,  que Cinna  Fidalgo  tur- 
bulento lhe  armava  huma  conjuração ,  para  o  depor 
doTiirono,cpara  mayor  certeza  hum  das  conjura- 
dos,  tomada  a  impunidade,  lhe  declarou  o  lugar, 
e  o  como  ,  e  o  quando  fe  havia  de  executar  eíia 
trayçaô.  Perturba-íe  Cefar  ,  chama  os  grandes  a 
coníelho^  onde  foraõ  decretados  os  caftigos  devi- 
dos atai  crime.  Depois  entrando   Cefar  cm  confí- 
deraçaõ  de  que  jà  Marco  António  tinha  íido  degra- 
dado, c  outros  punidos  com  pena  de  morte  ,   e 
que  efle  novo  iniinigo  Cinna'era  fobrinho  dePom- 
peo  ,  e  tinha  grande  facçaõ  em  Roma  ,   difcorria 
comfigohumas  vezes  fallando ,  e  outras  fufpirandoj 
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jpo  Hifcurjú  H. 

c  dizia :  He  pôirivcl ,  que  depois  de  f antâs  batalíias 
por  mar^c  porteira,  tènha^ttcdnfeguido  a  paz,  e  qae 
Cinna  agora,  a  quem  tenho  feyto  tantos  favores ,  me 
períi^ua  com  huma  guerra  inteftiaa  ,  de  que  nunca 
me  poderey  ver  livre !  Para  que  lie  maiíj  viver ,  fe  pa^ 
ra  coníervar  a  vida ,  devo  fazer  morrer  tantos !  Se- 
rá ncceílario  encher  Roma  de  patíbulos  ,  e  fazer 
correr  pelas  ruas  rios  de  íangue.  Ouvia  efles  ge- 
midos a  Emperatrlz  Lívia íua  mulher,  matrona  ía- 
bia,  e  prudente  j  e  entrando  no  Gabine&e  lhe  fal-^ 
lou  deíle  modo.  Senhor ,  tome  V.  Magcftade  Cefarea 
o  confelho  de  huma  mulher ,  e  faça  ,  como  fazem  os, 
Médicos  peritos  ,que  quando  curaõ  huma  doença  ,6 
vefTi  ,  qiie  o&  remédios  da  arte  naô  fervem  ,  e  o 
doente  vay  à  peyor,  aplicaõ  logo  os  contrários»- 
,  ,.,  Fac ,  quod  CMedici  Jolenty  qm  uU  uJvtMa  remedm 
^i^clf^  non  frocedunt  y.  tentant  contraria.  Com  o  rigor  da 
/^,Q. '  juftiça  atê  agora  nada  tendes  feyto  ,  mas  antes 
crefcem  os  ódios  ,  e  inimizidades.  Valey-vos  ago- 
ra da  clemência  ,  e  brandura,  £  qual  lois  inclina- 
do.  Perdoay  a  Cinna,  e  Vereis  ,  que  de  inimigo 
íe  fará  amigo  tal ,  que  íeri  o  voíFo  mayor^  Elogia- 
dòr,  e  Panegerifta , 

Parcceo  bem  eftc  confelho  ao  Emperâdor,c 
no  dia  figuinte  mandando  chamar  a  Cinna  ao  íeu 
gabinete,  fazendo-o  tentar  ,  e  pedindolbe  ,  que 
o  nxò  interrompeífe, em  quanto  fallav-i  ,  lhe  fallou. 
deftemodo.  Vòi  fabcis,  ô  Cinna,  que  foftes  ren- 
dido, e  preío  na  primeyra  batalha.  Eu  vos  conce- 
dia vida,  e  a  liberdade,  e  todos  os  voíTos  bens^  c 
fazendas  já  coníiícadas ,  tanto  aíTim,  que  diziaô  os 
Emu]os,que,  fendo  Cinna  vencido,  ficara  depois 
mais  rico ,  e  aproveytado  ,  que  os  mefmos  vence- 
dores. O  voíTo  agradecimento  depois  de  tantos  be- 
nefícios he  ò  maquinar  de  novo  contra  a  minha  vi- 


maãm 


jyo  tormento dQsTyrmnàs^eVingativos.  ipi 

^a.  Sty  os  Companhcyros  da  conjuração  j  íey  o 
lugar ,  íey  o  dia  determinado  para  a  trayçaõ  ,  ç  a 
^uem  cntregâílcso  punhal,  para  executar  a  minha 
ultima  ruina.  Naò  íey ,  qual  feja  o  intento ,  e  o  fim 
defte  voíTo  arrojado  animo.  Sc  pertenceis  o  Im- 
pério ^  quando  naô  foíTe  outro  impedimento, 
que  o  da  minha  parte,  eu  velo  cedei  ia  eípcntsnca- 
mente,  íem  cometeres  a  grande  violência  ,€oexe- 
erando  crime  da  minha  mcrte.  Mas  naô  íeiaó  ta]-. 
vez  defíe  acordo  os  Fabios  Máximos  com  toda  a 
íua  parentela  ,  os  Atilios ,  e  muytos  outros  Cava- 
Iheyros  Romanos  ,  que  pelas  íuas  gcnerofas  fa- 
çanhas lograó  a  honra,  e  a  gloria  de  verem  as  fuás 
Eftatuas  coUocadasno  Capitólio.  Ora,  Cinna  ,cude 
novo  vos  perdo-o  ávida;  a  primeyra  vtz  vola  per- 
doey  como  a  inimigo  ,  c  agora  como  a  Traydor, 
^  Parricida.  Comecemos  defdc  agora  humanova,  c 
reciproca  amizade ,  c  toda  a  noíTa  emulação  deve 
íer  de  procurarmos  cada  hum  de  nos  de  aventajar- 
íc  em  amar.  Eu  quero  íer  o  primeyro  em  dar  efla 
moftra;  e  porque  íey,  que  dezcjais  íummamente 
o  Confulado,  eu  vos  faço,  e  coníhtuo  Conlul,  E 
toma ndo-o  pela  maò  ,  fahio  juntamente  com  ellc 
do  gabinete ,  e  diíTe  aos  Cortezaons ,  que  efpera- 
vao  o  fucceíTo  de  tam  larga  audiência:  Day  os  pa- 
rabéns a  Cinna  meu  grande  amigo ,  que  o  tenho 
creado  Coníul ,  e  me  ajudara  a  governar  fielmiCnte  o 
Império. 

Ficàraô  attòriitos  os  circunftarites  ,  e  pafmoii 
ioda  Roma,  quando  fc  íoube  , que  Cinna  era  Con- 
íuí,  ç  elle  nairòu  a  todos  ,  quanto  tinha  psíTado 
comb  Émpetador  Áuguíío.  Foy  tal  o  amor  do  Se- 
nado, c  b  aplaufo  dó  Ppv.o ,  qiic  pãp  contentes  de 
o  chamarem  pay  da  Pátria»  ò  collocàraôno  nume- 
ío  dos  Deofes  çom  o  titulo  de  Ckmcntillimo  ,  que 


msk 


mam 


il 


li 


depois  tomátâô    os  mais    Empcradorcs^    Depeís 
Cinna  itie:  foy  taiato  fiel,    e  primorofo  ,   que  a 
deyxou  poí  ícu  ynico  herdcyto  .*  Nullií  ampJiu^ 
iib^iÀe  injldiis  ab  iM(^  pemus  amieiffimum  t  fideltfftmumqiie 
ilem^s.  habuit  y  hares  falus  illi  fuit.  Digaõ  agora  os  Sábios 
^®*      do  Mundo,  que  efle  preceyto  de  perdoar  as  inju- 
rias henovo,  eftabciecido  coticra  os  principios  da 
natureza,  Digaõ  ,  que  ,^  vifta  a  fraqueza  humana, 
he  iiiipoíEvet  podcríe  giiardar.    Digaô  finalmente,, 
que  he  de  defcredito  a  hucaa  família  y  e  indigno  de 
hum  homem  br iofo^  e  valente.  Auguflo  eia  da  fa- 
mília dos  Ceíares,  tam  brioío ,.  e  valente  ^  que  no* 
eoncurío  de  tantos  emiilos  »,  que  naõ  epaô  inferio- 
res na  nobreza  ,  e  valor  ^  chegou  a  força  de  bata- 
lhas vencidas  a^  íer  Emperador.     E  o» que  maisic; 
deve  advertir ,  he  y  que  era  Gentio  adorador  dos 
ídolos  ,   íem  o  lume  da^  Fé  ,  e  íem  a*  nova  obriga- 
ção do  tal  preceyto,  em  quanto  intimado  por  Chrií» 
^'*'''y-  to  ,  que  naquelle  tempo  ainda  naõ  era  nafcidoje  quan- 
^* '^^  dona fce o y como  nota  o  Cardeal  Baronio  no  Marty- 
^mh,  ^  rologio  Romano^,  craiAuguílo  triunfante ,  governan- 
do com  a  fua  clemência  todo-  oMundo  em  paz. 

Refta  agora  ver  os  horríveis  tormentos,  que 
2.?tf»íff.  padecerão  no  Inferno  efte*  Vingativos  ,,  e  líyran- 
Bos ,,  que  Gom  o«  coração  endurecido    naõ  querem 
perdoap  aos  íeus  próximos.  Quando  Deas  creou  o 
7im  1   ^'^^^'''"0  y  nao  ocreou  propriamente  para  os  homens, 
mp.ii'  poi^quc  eíks  todos  defeja  Deos  falvar  :  Veusvult 
ommséomínes^falijosfori:  mas  o  creou  propriamen- 
te para  os  Demónios ,    como  íe  colhe  da  fcntença 
de  condenação  ,  que  dará  aos  réprobos  :  Difcedite 
Mítíth,  l  mt  malediõíi  in  ignem  ^emum  .,  qui  f^ratus  e/t 
eap'i^.Diabolo^,  Ór  Angdis- eJM^,  Perguntaô  agora  os  Dou- 
tores ,  porque  Deos  pam  caftigar  os  Dcmonioi  fe 
krvc  particularraentc  do  fogo  i  e  o  nomca  como 


i  I 


Do  tormento âósTyram&íleVmgatíVos.  29 j 

priricipaP  iriftrumcnto  ,  para  os  atormentar?  Por- 
que opeccado  de  Lúcifer,  c  dos  íeusfequazes,cra 
hum  crime  de  primcyra  cabeça ,  que  acommettia  di- 
rcytamentc  á  Divindade ,  e  pertendia  levantar  o  feu 
Throno  íobre  as  Eftrellas  ,  c  fazerfe  femelhante  a 
Deos :  In  Cahm  confcendam  ,  ftiper  aftra  exahabo  Ifai. 
foltum  mtum  ,  fimii{4  ero  Aíttffimo  \  e  aílim  era  jufto  «"^/.H' 
houveíTe  proporção  entre  a  culpa  ,  e  a  pena  ;  e  por- 
que entre  todos  os  elementos  o  fogo  he  o  mais  a<fli- 
vo,  CO  mais  violento  ,  era  neceffario  ,  fc  ícrviíTe 
ddle,  para  cafíigar  os  Demónios.  Ora  todos  os 
pcccados  mortaes  faô  peccados  de  rebeldia  contra 
Deos  Senhor  noíTo  ,  e  juramente  merecem  pena 
eterna;  porém  opeccado  da  Tyrannia , e  vingança, 
he  peccado  diabólico ,  he  de  huma  malicia  luciíerina, 
he  hum  crime  ,  que  fe  oppoem  immediatamente 
a  Deos,  c  pertende  defpojalo  da  foberania  ,  que 
tem  fobre  todas  as  creaturas  ,  da  qual  he  tam  ze- 
lofo ,  que  fó  para  íi  como  Senhor  Supremo  refer-  fjgyr, 
va  a  vingança  :  Mthi  vindica  ^  &  ^go  retribuam:  c(tf,\c^, 
c  he  de  advertir  ,  que  Siò  Paulo  immediatamente 
accrefccnta  :  Horrendum  eft  mcideré  tn  manus  Dei 
viventis:  comofediíTeíTe  :  he  couía  horrenda  cahír 
nas  mãos  de  hum  Deos  ,  que  fendo  morto  ,  para 
íalvar  os  peccadorcs,  fera  fempre  vivo,  para  ator- 
mentar com  todo  o  vigor  da  fua  Omnipotência  a 
potencia  injuftamente  ufurpada  dos  Tyrannos,  c 
Vingativos:  Pútentesfotenter tormenta patientur.        Sap.c.6 

Para  explicar  a  aòtividâde,e  terríbilidadedefte 
fogo,  que  ha  de  atormentar  os  Vingativos,  me  va- 
l^erey  de  outro  Texto  deS.  Paulo,  quanto  mais  pro- 
fundo, paraic  entender,  tanto  mais  expreffivo,  P^-  //^^^; 
ta  o  noífo  intento ;  Terribilts  quedam  expeãatio  ju-  ^  ^q'- 
dicii ,  &  ignis  amulatio ,  qua  confumptura  eft  ad-z-j. 
verfarios,  E  como  pôde  íer ,  que  o  fogo  tenha  emu- 

T  3  Uz 


í  I 


S.CiriL 


.  1 


Ãi»tth 


faím. 


laçaõ,  ou  eompetcncia  ^  Ignií  <emuíatk  f  Q  fo^, 
naô  tem  Alma  ,  nem  ainda  vegetativa ,  como  as  ar* 
vores  ,  nera  feníltivâ  como  os  brutos,,  nem  paGio* 
nal  como-  os  homens  ;.  como  logo  pede  ter  emula* 
çoens ,  e  competências  ?'  Logo  matéria lment?G  ator*^ 
mentará  os  vingativos  como  os  mais^peccadores  ini- 
migos de  Deos.  AíEm.  hc  ,  diz  Alberto  Magno ,  íe 
fallarmosdefle  noíTò  fogo, -que  he  muyto  differen-s 
te  do  fogo;  do  Inferno ,  que  os  Santos  Padres,  chai 
maô:  tgnis  fãpiem\  porque  he  obediente  cm  exc» 
cutaiE  â  vontade  de  Deos  j  e  eorao  os  Emperadorcs- 
Roíxianospâra  mayor  divertimento  do  Povo  incita- 
vaô  as  feras  bravas ,  para  que  no  Ampbiteatro  fahif* 
{em  com  mayor  impcto  a  defpcdaçar  ,.  e  dcvorap 
aqueííes  miícros  Ghriftâos condenados  á morre,  af- 
£m  a  Juftiça  Divina  irritará-  em  hum  certo  modo  a 
fogo  do  Inferno ,  clevando-o  inflrumentalmentc, 
para  abrazar  com  mayor  violência  ©s  vingativos, 
>e  ficar  alobcrania  de  Deos  giorioíâ,,  e  triunfantes^ 
IgnÍ4  íemulàtm 

Eucuydo  de  mais,  que  efla  emulação  do  fogo 
fep  eoniurãda  naô  íé  com  os  mais  elementos  ,  ma^ 
Gom  todas  ÃS  ercaturas,qu€  fe  ofFerecem:  para  vin-^ 
gar  os  vingativos,,  como  fc  oíFerecèraõ  os  íérvos 
do  Evangelho  a  extirpar  a  cizânia,  elançala  no  fo- 
go .*  Servi,  auiem  dixemní  ,  vu  ,  imns,  QuereÍF,. 
qufi  Vârnos.  O  ar  para  os  afogar  y  a  terra  para  os 
íobvertei*;  o  mar  para^  os  íubmergir  como  aos  Egyp- 
cios  ;  e  finalmente  as  Feras  ,  as  Pedras,  o  Gt\Oj 
a  Neve,  as  Tempeftades ,  os  Rayos,  e  tudo  o  mai?^, 
ertaôí  á  competência  ,  para  executar  a  vontade  de: 
Deos  contra  os  vingativos:  Igms\  gr  ando  ^  mx,. 
glacies  i  ^  ffmtus>  p^&ceUhmmy  qua  faciunt  ver-- 
Immejus^í  Hfc  porem  de  advertir  ,  que  o  Profeta^ 
aomeaémgrimcjjro  lugar  «fogo  comia  mais  a  pro- 

pGÍÍr 


Do  tormento  áosTyvamos^eVing&iivos.  ipj 

ípofito  para  ícr  Miniltro  da  Juftiça  Divina  j  e  cotn 
Frazão,  diz  Saô  Gregório,  tem  o  fogo  cfta  emula- 
çaôi  porque  como  ospcccadores  em  roda  a  íua  vi- 
da nâo  honrarão  aofcu  Deos  verdadcyro  por  fatis- 
•  fazer  ao  fogo  das  fuás  payxoens  ,  c  vinganças ,  o  fo- 
go do  Inferno  deputado  por  Deos  a  reparar  a  íua 
■■  honra,  íe  veítc  como  de  hum  zelo ,  que  quer  moftrar, 
,quc  he  hum  fogo  de  tal  natural,  que  tem  mais  ar- 
'dor,  mais  força,  e  mais  poder,  que  o  fogo  da  tua 
tolera ,  e  da  tiia  ira ,  a  quem  obedeceres  para  exe- 
cutar a  vingança  contra  o  teu  próximo ;  Ignem  tuum 
igm  validiori  fuperabit  te  ,  &  cructabtt  íe.  Quizc- 
4te  moltrarte  mais  poderofo  ,  que  o  teu  inimigo, 
•quizeíle  tomar  vingança  dellc :  ora  o  fogo  do  In- 
•fcrno  íerá  mais  poderofo  ,  e  por  toda  aEternidadc 
te  abrazarà  ,  e  te  coníumirá ,  fem  nunca  mais  fi- 
car coníumido  :  Potentes  potenter  tormenta  patien- 

tur. 

Sendo  o  fogo  preferido  aos  outros  elementos ,  c 
;a  todas  as  creaturas ,  para  atormentar  os  réprobos, 
he  quafi  certo ,  que  das  penas  exteriores ,  que  fof- 
freráó  os  vingativos,  a  mais  fenfivel  ,  e  violenta 
fera  3  do  fogo.  Eu  bem    fey  ,  que  a  violen-cia,  c 
«ílividadedefte  fogo  he  inexplicável  j  e  aíTim  nun- 
ca podercy  explicar  bcmadolorofa  imprelTaò  ,  que 
fará  aos  condenados;  e  por  iíTo  Santo  Agoilinho  diz, 
quefaô  atormentados  com  modos  admiráveis,  mas 
porém  verdadeyros  :  Torquentnr  mirtí  ,  fed  yeris 
modis,  Primeyramente  cíie  fogo  ,  diz  Terculiano, 
leprefenta  a  indignação ,  e  furor  de  Deos ,  e  be  co- 
iDo  principal  Miniftro  da  íua  Divina  Juftiça  ,  para 
-executar  com  o  mayor  rigor  as  íuas  ordens.*  fíahet 
ignisilk  divinam  fubminifirationem  ;  ellies  fará  fcn- 
tircmfummo  grão  todo  o  género  de  tormentos.  E 
que  diíFerciKa  fcrá  defte  fogo  do  Inferno  ao  noíTo 
*         '  T  j.  fublu- 


D.Creg, 


V" 


Sap.6, 


ete  Civ. 
Dei. 

Ter  t  til 
in  ylpoL 


!«H«i 


tgS  Di/cur/o  Z 

Jubiunarf  O  noíío  fogo  antes  de, entrar  nas  partes 
interiores,  fe  pega  ás  exteriores.  O  fogo  dolnfer- 
>no  entra  no  mefmo  inftante  na  pelle ,  na  carne,  nas 
vcas,  nos  nervos,  e  tutanos  dos  oíTos :  todo  o  cor- 
po ficará  fogo ,  como  hum  ferro  ardente  ,  e  can- 
dente; ou  como  o  vidro  ,  quando  fahe  liquido  ,  e 
♦ranfparentc  da  fornalha.  EftenoíTo  fogo  queyman. 
do  o  corpo  ,  o  vay  enfraquecendo,  e  diminuindo, 
c  a  dcmaiiada  violência  Jhe  tira  os  fentidos,  fican- 
do aquclla  primeyra  vivacidade  quafi  amortecidaj 
O  fogo  do  Inferno   conferva   os  fentidos    femprc 

'^''  iguahnente  vivos  ,e  delicados.  Depois  de  cem  mil 
.annos  hum  vingativo  condenado  íentirá  as  dor<^ 
taô  vivas »  e  agudas ,  como  na  primeyra  hora  ,  que  en- 
trou no  Inferno  >  porque  Deos ,  como  dizem  os  San- 
tor  Padres ,  dará  tal  virtude ,  e  propriedade  a  eflc  fo- 

. :  go,  que  íempre  queymarà. ,  e  nunca  confumirá  ,  repa- 
randofempre  quanto  qUeyma  .♦  Nan  ahfumit  quoi 

"^f^^^  exurit  yfedquoderodít  reparai, 

•^^^  '  Olipeccador  vingativo  ,  quando  confiderares 

eííe  fogo  do  Inferno,  peçote  ,  que  não  cuydes  íeí 
exageraçàõ  minha.  Te  aíTeguro  ,  que  hc  rouytó 
mais  terrivel  ,  c  tormentofo  ,  do  que  referem  os 
meímos  Doutores,  e  Santos  Padres,  país  confeí- 
faõ  ,  que  o  Entendimento  humano  o  não  pode  pe- 
netrar, eexplicar^e  aífim  quando  ouvires,  que  a 
noíTo  fogo  a  reípcy  to  do  fogo  do  Inferno  hc  como 
pintado  ,  dalhe  fé ,  c  naõ  duvides  J  porque  íc 
Deos  permit tira,  que  hum  Réprobo  fahiífe  do  íéti 
calabouço  do  Infer«o,  e  paíFaíFe  logo  a  huma  forna^ 
lha  das  noíías  a  mais  acfliva ,  calii  odeyxaíTem  por 
algum  tempo,  e  depois  tirado  fora  pdcytaíFcm  ío» 
bre  hiim  grande  payncl  pintado ,  que  rcprefentaíFe 
hum  incêndio  yhc  certo,  que  o  fogo  pintado  defle 
payncl  oaõ  ihe.pareccria  taõ  fiiavc  a  reípeyto.do  fo* 
■*...iii  ,        ,>  ■*  •  ..go 


Do  tormento  doi  Tyramos^  e Vingativos.  H  ^y 

gp  da  íornalha,  quaato  o  fogo  da  fornalha  Ihepa^ 
reccQ  doce,  e  fuave  a  rcípeyto  do  fogo  do  Inferno; 
c  com  razaõ  ,  porque  o  fogo  do  Inferno,  ainda  que 
he   material  como  o  noíTo,  naõ  obra  naturalmente 
com  o  feu  calor ,  mas  he  armado  com  o  braço  om- 
nipotente de  Deos,    que  com  o  zelo  da  fua  hora 
quer  caíligar  os  vingativos,  c  vingaríc  delles ,  co- 
mo de  íeus  inimigos ;  Armdbit  creaturam  ad  ultio-  ^^t-^-St 
nem  mimicorum.  Pelo  qual,  diz  SaõJoaõChriíofío- 
mo,    que    Deos  mais  exceífi vãmente  queyma,    c 
atormenta   os  condenados,   que  eflaó  naquelle  fo- 
ge, do  que   o  mefmo  fogo:  Magts  urit ^  &  cru- 
ےat  Deus  in  tilo  igne  ^  quam  tpfe  tgms.    Pois  clle  hc 
o  que  o  anima,  lhe  dà  força,  irrita,   accendc,  ^jr'  - 
o  aíopra,  como  diz  o  Profeta:  Flatus  Vominijicut  ^q*'^' 
torrem  /ulfuris  fuccendens,  E  íc  o  aíopro  de  Deos 
hc  como  huma  torrente  dcenxofrej  que  horrivel  mif- 
tura  fera  com  o  tal  fogo  poderoío ,  e  devorante  para 
atormentar  eternamente  a  tyrannia  dos  Vingativos! 
Potentes  potenter  tormenta  patienttir. 

Eu  aqui  movido  de  compayxâo  ,  e  zelo,  me 
finto  inípirado  a  advertir  algumas  couías  fobre  a  ty- 
rannia  ,  e  mào  tratamento ,  que  no  Brafil ,  c  cm 
outras  Conquiflas  do  Reyno  de  Portugal  íe  ufa 
com  os  Efcravos.  Oh  quantos  Senhores  de  Enge- 
nho, Feytores  Mores,  e  Lavradores  de  fazendas 
cíiaõ  no  Inferno  pela  crueldade,  c  mào  trato ,  que 
tem  dado  aos  íeus  Efcravos  I  Primeyramcnte  naõ 
Jhes  dão  outro  veflido ,  mais  que  aquelie  ,  que  lem 
Chrifío  crucificado  na  Cruz,  nem  modo,  nem  tempo 
para  o  ganhar.  Querem  cada  dia  delle  o  íerviço 
completo,  e  ás  vezes  fabre  as  forças,  e em  faltan- 
do,  aíToutes  fobre  aífoutes ,  e  naô  lhes  daô  oíuf- 
tento,  para  terem  forças,  para  trabalharem.  Di- 
zem que  lhes  dap  o  Domingo  livre,  para  plantarem 
'!  /Ti  oíeu 


"í' 


w 


^98  Difíurfo  IX. 

o  ííeu  mifbo^  para  fcJuftcntarem  j  g  em  quanto  o 
milho  fe  phntj,  nafcey  e  crcfce,  que  haõ  elles 
de  comer  ?  E  fe  Deos  ordena,  que  o  Domingo  íe 
-guarde,  e  naõ  fe  trabalhe  ,  com  que  coníciencia 
■fois  cauía  de  que  elles  trabalhem.  Mais  o  Domin- 
go he  dado  para  Deos  para  o  dcfcaaço,  e  elle  meímo 
deícançou  em  o  tal  dia,  o  abençoou  ,efaH  ti  ficou, 
c  por  iíTo  fe  chama  o  dia  Santo ,  ou  o  dia  do  Scniior.- 

^^^'^-'^'Benedixit  diei  [eftimo ,  &  fanttficavit  illum.  Os  Ef- 
cravos,  que  trabalhão  toda  a  femana  com  tanto  ri- 
gor, quando  haô  de  defcançar  ?  Os  Eícravos  tra- 
•balhaodov  para  íc  íuftentar,  no  Domingo  ,  naõ 
peccaó  \  porque  naõ  podem  de  outro  modo  rcme- 
dear  a  fua  neceíTidade:  mas  os  Senhores,  que  pelo 
intcreíTe  de  mais  açúcar ,  e  tabaco ,  os  metem  ncíia 
«eceíTidadc,  darão  eftreyta  conta  a  Deos,  e  íeraô 
rigurofamente  caftigados,  como  diz  S.  Paulo  :  Ple- 
nas dabunt  in  interttu  aternas.  Muyto  mais  he  cafíi- 
garem  os  Efcravos,  c  as  Efcravas ;  efías,  porque 
nâo  querem  confentir  nopeccado;  eaquelies,  por- 
que naõ  querem  levar  taes  recados ,  ou  porque  naõ 
querem,  ou  naõ  podem  induzir  ao  peccado.  Meu 
Deos,  quam  grande  hc  a  voíTa  paciência!  Bifta, 
ique  a  pobrezinha  de  huma  Efcrava ,  porque  vos  te- 
me, ha  de  padecer,  e  chorar  a  fua  miferia;  e  o 
Senhor,  que  injuftamente  a  cafíiga  ,  ha  de  rir,  c 
folgar,  porque  naò  vos  teme,  nem  os  voíTos  ca^ 
fíigos!  Ah  qjs  Deos  naõ  dorme,  nem  permitte,  que 
femclhintes  tyrannias  durem  por  muyto  tempo. 
Coníidcra,  ò    peccador  vingativo,  c  cruel  ,0  que 

í-«p.í.6.  ^}Í2  o  Eípinro  Santo:  Horrende  ,  &  cito  apparekt. 

quoniam  judicium  dunjfmum  m  his ,  ^tá  profímtj 

fiet.   Log)  fcrài  Chamado  a   dar    eílreyta  conra  a 

Deos,  e  o  Juiz  íerà  tirrivel,  c  horrendo,  e  com 

i   todo  o  riaor  da  íua  íuftiça,  e  muyto  mais  os  ror- 

^  mcn- 


Do  iormeíttoâos  Tyvmnos^eVingativm.  tç^ 

mentos,    que  padecerás  eternamente:  Fàtentts  f^^ 
tenter  tormenta  patientur. 

Bem  íey,  que  os  que  aifimrnaltrataôosEfcra- 
vos,  daô  por  efcufa  o  feu  natural  colérico,  que 
por  qualquer  coufa  fe  accendc  em  fogo,  porem  di- 
zem ,  que  he  fogo  de  palha  ,  que  tudo  he  chama^ 
que  naõ  dura  nada ,  e  logo  fe  apaga.  Frívola  cfcu^ 
ia  na  verdade»  Todas  as  vinganças^  e  as  maispay- 
xocns  aííim  íaõ.  Depois  de  fatisfeytas  parão  lo- 
go, e  focegaõi  porém  no  dia  feguin te  rornaoa  fa- 
zer peyor.  Quereis  faber  onde  ha  de  ir  apararefie 
yoíTo  fogo  de  palha,,  pois  aíílm  chamais  à  voíTa 
ira  ,  e  vingança.  Ouvi  y  o  que  dizem  Saõ  Mathcus, 
e  S^.  Lucas  no  feu  Evangelho,  fallandodos  Efcolhi- 
dos,  e  Precitos:  Congregabit  trittcum  m  ^^0^^^^*^"^ jifatò 9. 
fuum\  paJeas  autem  comburet  igni  i?iextinguibíUiiXHc,' 
que  o  Supremo  Juiz  feparará  o  trigo  das  palhas,  tf.  3. 
.Aos  predeíiinados  chama  com  o  nome  de  trigo,  e 
cfíes  congregados,  os  porá  no  Celeyro  do  Paraifo» 
Chama  aos  réprobos  palhas,  naõ  fó  porque  fcraõ 
atados  cm  feyxes,  para  arder  eternamente  n©- In- 
ferno. AVÀgate  m  fafcicules  ad  cemburendum :  mas  ,^^/j^; 
também  porque  aquellc  fogo  emulador:  igms  íemwca^,  \zl 
tatio  ^  enveílirà  com  tal  ardor  as  almas  ^  c  corpos 
dos  Vingativos ,  que  em  hum  inA^nte  ,  íem  achar 
rcfífteneia  alguma,  arderão  cm  chamas  como  palhas^ 
Conííderay  agora  a  diffcrençay  que  vay  do  fogo  da 
vo(ía  ira,  e  rayva,-  que  chamays  de  palha,  com: 
a  voracidade,-  e  rigor,  com  que  ícrá  cafligadono 
Inferno.  O  fogo  do  ínferut)  fempre  arderá ,  qoey- 
mara  a  palha  do  voíFo  corpo  com  o  meímo  vigor 
por  toda  a  Eternidade  ,.  como  fe  foíFe  o  primeyro 
díâ ,  a  primeyra  hora ,.  e  o  primeyro  infiar>te  y  fem 
RUnca  parar,  nem  dcíeançari  e  a  voíTa  alma,  e 
©   Yoffo   corpo   diípoilos  como   palha  íemprc  ar-- 

de^ 


\\  í! 


i     : 


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i    .  í! 


IO. 


'MAth,c. 

5- 
Aíaíh» 


Dífcw/à  IX» 
Paleas  autemcomburet  igneinextinguibllL 

O  Profeta  Rey  diz ,  que  os  peccadores  faò  po* 
ftos  no  Inferno  como  as  Ovelhas^  e  que  a  morte 
'jhes  íubminiftrará  íemprc  o  fuftcnto :  Sicut  Oves  in 
Inferno  pojlti  funt ^  mors  depafcet  eos.  Grande,  e 
fnyílerioío  texto  he  efte.  Se  as  Ovelhas  f:iõ  nomea- 
das no  Evangelho,  como  Simbolo  dos  Efcolhidos, 
como  agora  faõ  exemplos*  dos  Condenados  i  Ora 
concorda  muyta  bem  o  Texto  com  aíua  inteliigen- 
cia.  As  Ovelhas,  que  íaõ  do  rebanho  de  Cbrifto 
ouvem  a  fua  voz:  Oves  mea  vocem  meam  audnmt^ 
e  feguem  o  íeu  paftor,  &  Jequuntur  me ,  imitando 
a  fua  paz,  e  manfidaôi  c  a  eftas  taes ovelhas  man- 
fas,  e  pacificas  ,  he  prometido  o  Reyno  do  Cco, 
e  peffucm  a  Bemaventurança,  ainda  nefta  vida  na 
'paz,  de  qu:  gozaõ:  Beaú  pacificí ^  Beati  mitesy 
quonlam  ipfi  poffidebunt  /^rr^z».  Porem  Ovelhas^ 
que  náo  tem  mais  que  a  apparencia,  c  po^  dentro 
nó  coração  faô  lobos  carniccyras :  Intrinfectís  autem 
funt  lupí  rapaceí ,  que  devorão  os  ícus  contrários, 
tiranizaô  os  feus  Eícravosi  eftas  taes  ovelhas  ap^ 
parentes  tem  no  Inferno  o  feu  lugar  :.*ywí  avesin 
Inferno pojiu/mt,  aonde a\'ácYkcntcvmmcntc* 

Náo  faò  menos  myfteriofas  as  palavras,  que. 
fe  fegusm,  e  citey  a  cima,  é-  mors  depafcet  eos;- 
que  a  morre  lhes  dará  íuftento  ,  que  vem  a  ícr  o  meí- 
mo  ,  que  dizer;  a  morte  lhes  confervarà  a  vida. 
E  como  pôde  a  morte  confervar  a  vida,  fe  ávida 
nunca  pòie  acabar,  íe  naó  quando  chega  a  morte, 
vão  fendo  outra  couía  a  morte  ,  que  a  pvivição  da 
vida,  e  a  vida  a  cxcluíaõ  da  morte  f  Ainda  mal;. 
quer  dizer  o  Profeta,  que  eftes  dous  contrários, 
morte,  c  vida  fe  uniráó  no  Inferno,  e  cada  hum 
terá  o  íeu  effeyto,  pois  os  Réprobos  fempre  mor- 
reráó  vivendo,  e íemprc  viviráò monendo :  Ho?no 

ítí 


Do  mníemáosTyrmfoi.e  Fwgâtkõ}  301 

inlnferno  {à\zSsò^oa\(inturs) fempermorítur ,  & jy^  ^^^ 
ut  JemPer  morifojjít ,  aà  vitam  conúmo  reparatur,  nav, 
Pofío    hum    rebanho  de   Ovelhas   em   hum  valle,s«r«>.i, 
quanta  hcrve  comem  de  dia  ,  tanta  torna  a  brotar  ^^í-^. 
a  terra  ,    c  creíce  de  noyte,  c  no  dia  íeguinte  ÍG^^»^t 
achão  as  Ovelhas  com  omefmo  íuflento.  Do  mef- 
mo  modo  naquelle  valle  de  miferias,  naquella  ter- 
ra tenebrofa  ;      Teiram    mi  feria  ^    &  tmelraram, 
õpertam  mortis  calígtnei  produzirá  ícmpre  hum  fo-^*^'*^ 
go  infernai,  que  atormentará  eternamente  os  con- 
denados,  reduzindo- os    adores   de    morte,  c   na 
mefmo   tempo  íerá  o  feu  pafío,   e  alimento,   que 
©s  conícrvará  com  vida  para  q^uevivaõ,  cmcrraõ, 
€  padeçaõ  por  toda  a  Eternidade,  cm  quanto  Deos^^  ^. 
for  Dcos:  Ignis  ivfernahsfc  abjamtt  ^  fit fervét  y  fie  -  ^* 
lervat^  ut  cmaeU   Pio  Leytor,  confidéra  com  at- 
tenção,  que  íe  Deos  naõ  tivcfle  ufado  cem  nofco 
da  fua  Mifericordia ,  jâ  cfíariamos  ardendo  no  In- 
ferno, Ufemos^  agora  oc  piedade  cem  osnoffosCa- 
ptivos,,    e  Servos.    Tratemolos    com  compayxaõ, 
já  que  elles  faõ  também  noíTos  Irrráos,  para  evi- 
tarmos na  hora  da    morte  de  fermos  arguidos,   e 
condenados  com  a  ira,  e  furor  da  fua  juíliça  :  T>o- pj-^i^  ^^ 
mtne  m  in  furor e  tuo  arguas  mey  neque mira  tua  cor»      - 
ripias  me. 

Não  baila, nâo  ufar  detyrannias,  e crueldades 
com  os  Servos  ,  e  Eíeravos ,  mas  hc  também  nc- 
ceffario  não  maltratalos  de  palavra,  cem  injuriss, 
e  nomes  execrandos.  He  jâ  inveterado  o  deíprezo* 
deftes  pobres  eaptivosj  e  não  íó  o  Senhor  mas, 
qualquer  vil  Feytor  quando  chama  hum  cferavo, 
€  eltc  naô  acode  logo,  prorompe  cm  huma  torrente 
de  nomes ,  e  vocábulos  afroniolos ,  e  injurioíosj 
c  ainda  que  os  pobres  Efcravos  nÍo  rcípcnoem  pa- 
kvra  para  evitarem  talvez  huma  tempcíiade  deaf- 

lou-^ 


laai 


i 


Tf©!  DilcmplX. 

ipuíes,  fenÉem  com  tudo ,  e  deploraõ  a  íua  infeliz 
forte  de  fe  vcrcín  mais  aperreados  entre  a  nação 
Portugueza,  que  he  a  flor  da  Chriftandâdc,  do 
que  feria  entre  os  Mouros  de  Berbéria.  E  heeerto, 
:  ív...  que  JJ3  Berbéria  fe  ufa  talvez  de  mayor  caridade 
aífim  no  fúftento,  eoitio  nas  enfermidades  dos  Ef- 
craV0s,ao  menos  pelo  iatersiTc  dorefgate,  guan- 
do faita  a  compayxâo  natural,  ou  outro  motivo 
divino.  E  o  peyor  he,  que  raro  fera  o  Senhor,  que 
fcconfeíTe  deííis  injurias  ditas  aos  feusEícravos?  ç 
fe  algum  o  fará  como  por  efcrupulo ,  he  íem  animo 
de  íe  emendar,  lançando  íempre  a  culpa  aos  mef- 
mos  Eícravos ,  a  cuja  malignidade  attribuem  as  íuas 
iras,  c  rayvas.  E  íe  Deos  permittiíTe  ,  que  vos  fof- 
feys  os  Eferavos,  e  elles  os  Senhores ,  e  vos  caftigat 
fem,  e  injuriaíTem  com  o  meímo  rigor ,  com  que 
vòs  o  fazeis ,  podereis  entaô  dizer ,  que  fe  reque- 
ria da  voíTa  parte  a  paciência  de  hum  Job,  parafo- 
frer  ?  Mas  ainda  mal ,  que  efta  troca  fe  pôde  fazer, 
fe  náo  nefta  vida  temporal,  ao  menos  na  Eterna, 
onde  talvez  o  voíTo  Eí cravo  fera  glorificado  ,c 
vos  atormentado ,  e  injuriado  pela  mão  dos  Demó- 
nios com  mayor  potencia,  porque  fotetiíes  fâtenter 
t&rmenta^atientur, 

O  exemplo  do  Rico  Avarento  he  tam  abundan- 
te de  boas  doutrinas,  que  alem  de  confirmar  quanto 
temos  dito ,  he  hum  deíengano,  para  os  peccado- 
res  emendarem  as  fuás  tyrannias ,  c  crueldades ,  ou 
a  pouca  compayxaô,  que  tem  dos  miícraveis.  Sen- 
tio  o  Rico  Avarento  no  Inferno  a  vchemencia  do  fo- 
go, e  começou  a  gritar  defla  forte:  Crucior  mhac 
I^ttc*  c.famma.i  Eú    padeço   ncíie    fogo.    Reparem  ,, que  ' 
^6.       nâo  diz  no  fogo ,  mas  neftetal  fogo,  in  hacjlamma, 
para  raoftrar  a  grande  diíFerença  daqualle  fogo  do 
Inferno ,  c  do  noíTo  fogo ,  que  comojádiffemos  aci- 


n 


Do  tormento  dos  TyrmmSy  e  Vwgattvos.  goj 

hía ,  hc  como  pintado.  No  mtyo  defíc  fogo  ievan- 
tou  os  olhos  cm  alto ,  c  vio  de  longe  a  Lazaro nd 
Scyo  de  Abrabaõ.  Exclamou  logo  eom  huma  voz  ma- 
vioía.-  Miíericordia ,  Padre  Abrabaõ,  miíericordia, 
â  refpeyto  defíe  mifc^avel  condenado,  e  manday- 
me  a  Lazaro:  rater  Jbrahammifereremei^  mim 
Lazarum.  E  porque,  ou  para  que  pedia,  ou  que- 
ria a  Lazaro  no  Inferno,  quando  íabia,  que  onaÔ 
podia  livrar,  cu  aliviar  daquellas  penas ?  Dircyr 
Lembra va-fe,  que  lio  Mundo  vcília  galas,  e  a  íua 
meia  era  hum  continuo  banquete:  Inàmhatur pur- 
pura-^  &  byf  o  I  &  epuUbatur  quotidte  fpkndi' 
de.  E  que  Lazarp  peio  contrario  efíava  defpido, 
cuberto  mais  de  chagas,  que  de  panno,  aportado 
feu  Palácio,  efperando  algumas  migalhas  que  cahiaô 
da  fua  mefa,  para  íe  íuíicntar;  c  vendo,  que  cfle  -^' 
tal  miíeravel  Lazaro  no  cutro  Mundo  era  em  deli- 
cias eternas ,  e  elle  pelo  contrario  em  eternos  tor- 
mentos, efía  confideraçaõ  lhe  caulava  tal  furor,  e 
ira,  que  ,  moOrando  de  humilhar- fe,  pedio ,  lhe  trou- 
xeíTç  na  ponta  dos  dedos  huma  pouca  de  agoa,  naô 
porque  efperaíTe  o  mínimo  refrigério,  mas  porque 
o  queria  agairar  com  os  dentes  ,  e  obrigalo  a  pade- 
cer as  mefmas  penas ,  que  elle  padeci;».  Tsnto  pô- 
de em  hum  condenado , que  foy  tyranno,o  furor, 
e  emulação,  quando  vê  o  íeu  contrario,  que  dcí- 
prezou,  c  maltratou,  falVo ,  e  predcflinado  em 
gloria,  e  elle  pelo  contrario  réprobo  em  penas }  e 
efta  coníideraçaô  lhe  cauía  tal  furor,  que  nella, 
como  diz  S.  Joaõ  Chryfoíiomo,  padece  hum  infer- 
no peyor  que  o  mefmo  Inferno  :  Flus  zelo  cri4ciattír,  ri'  p^- 

quAmgehena.        ,  -       ^.     •  ■       .^        ,  ,« M/. 

Eíic  exemplo  do  Rico  Avarento  referido  pela  ^^^^ 
boca  do  mefmo  Chriflo,  hehumtffica2,eioHdod€- 
fengano    contra  os  homens  cruéis ,  c  de&humanoísj 


^ 


iP" 


iFiiinririrwrT-j 


S^ 


Difcarfú  JL 
para  aprcnderein  â  compadecer-fe  dos  feus  proxi« 
mos  miícràv€is,  e  neceílitados.    Quando  confidd- 
ro  na  Providencia  Divina ,  CíTi  pcrmittir,  e  querer 
ncftc  Mundo  ricos,  c  pjbrcs,  poderofos ,  c  miíe- 
raveis,   captivos,    e   livres  ,   ponderando    junta- 
mente,  que  na  hora  da    morte,  e  do  juizo.    Ía6 
i!í»^.  i.%i^es,  quanto   à  natureza j    porque^  a^nd  Deum 
non  eft  accepio  perfinarum  ]  mais  me  inclino  á  infe- 
liz forte  dos  pobres ,  e  miferaveis ,  que  dos  Ricos, 
e  Senhores,  íabcndo,  que  potentes  potenter  tormen- 
ta patientur.  Oh   que  tormento,   e   confufaõ  de 
hum  Senhor,  e  de  hum  Oiiicial,  em  ver  o  feu  ef- 
cravo ,  ou  eícrava ,  que  ultrajou ,  c  perfeguio ,  no 
dia  do  juizo  à  maõ  direyta  de  Deos  entre  os  Bema- 
venturados ,  gozando  de  huma  alegria  inexplicável, 
Fetr.  iJ^títta  ineaarrabilí ;  vendoíe  a  íi  colocado  á  maõ 
c.  I.       eíquerda,  feyo.e  aborrecido  de  todos  como  vafo 
de  abominação,  efperando  a  íua  final  fentençadc 
Math*  condenação :  Ite  mdediãi  in  ingnem  aternum.    En- 
tão íabereis ,  qual  íeja  mais  potente ,  fe  o  fogo  das 
voíTas  payxoens ,   e  da  voíTa  crueldade ,  a  que^  vôs 
chamáveis  fogo  de  palha ,  ou  o  fogo  emulador  do 
Inferno  affoprado  pelo  furor  de  Deos,  que  nunca  íc 
apagará,   c    tanto    mais  intenfo  íerà,  quanta  foy 
mayor   a  crueldade  uíada  com  os  voíTos  Efcravos, 
S«/»x6« e  a  ira ,  c  vingança  comos  voíTos  Inimigos.*  Fortio- 
réus  fertior  erit  cruciatie  ^  Petentes potenter  tormen- 
ta patientur. 

A  conclufaõ  defte  difcurfo  íerá  o  perfuadirmo- 
nos ,  que  Deos  de  nenhuma  couíahe  tam  zelofo,  co- 
mo de  naõ  perdoar  aos  noíTos  Inimigos,  e  naó  amar 
o  noíTo  próximo.  Todas  as  Efcrituras  do  novo,  c 
velho  Teftamento ,  tratao  efte  ponto  repetidamente^ 
Chrifto  bem  noíTo  no  feu  Evangelho ,  e  S.  João  nas 
ÍUas  £plíioU$  iienhuma  coufa  encomendaõ  com  mais 


T)ô tormento  dosTyranmSje  Vingativos.  30  y 

empenho  fenaõ  a  caridade ,  e  amor  do  próximo, 
porque  fem  cllc  naô  pôde  haver  amor  de  Deos ,  nem 
falvaçaô  ;  e  para  que  ifto  nos  lembraíTe  cada  dia, 
quiz  Chrifto  ,  que  na  Oração  do  Padre  noíTo  íhe 
pcdiíTemos,  que  nos  perdoe  as  noíTas  dividas,  aí- 
íim  como  nos  perdoamos  aos  noíTos  devedores.  O 
engano  grande  he,  que  muytos  differem  o  perdoar 
ao  feu  inimigo ,  dizendo ,  que  lhe  naõ  querem  mal, 
e  que  naô  morreráó  fem  fe  reconciliarem  com  elle. 
Nefte  cafo  me  occorre  aquelle  funeílo  íucceíTo  de 
Sapricio ,  taô  celebre ,  e  fabido  nas  Hiflorias  Eccle- 
fiafticas.  Tinha  Sapricio  íofrido  atrociíTimos  tor- 
mentos com  grande  valor  pela  Fé  de  Chrifto.  Fí- 
íialmente  fentenciado  à  morte ,  foy  levado  ao  lu- 
gar do  íuplicio  ,  para  fer  degolado.  Corre  Nice- 
foro,  que  o  tinha  oíFendido,  e  venerando-o  jà  co- 
jno  a  Santo  Marcyr,  íe  lhe  lança  aos  pês ,  lhos  beija, 
c  lhe  pede  perdão.  Cafo  horrível !  Naõ  teve  o  brio- 
ío  coração  de  Sapricio  taò  admirado  pela  geoeroíi- 
dade,  e  conftancia  fobrenatural  de  refiftir  a  tantos 
tormentos,  naô  teve  ,  digo  ,  animo  ,  e  força  ,  pa- 
ra perdoar  a  Niceforo.  Oh  deíemparo  da  graça  de 
Deos !  Efla  dureza  de  coração  fez  ,  que  Deos  lhe 
fubtrahiíTe o  auxilio  efíicaz  da  fua  graça,  e  aíTim  tí- 
mido da  morte  ,  perdeo  a  coroa  do  Martyrío  ,  c 
renegando  depois  a  fé,  de  gloriofo  Martyr  fe  tor- 
nou em  hum  vil  Apoftata.  E  que  bem  remunerou 
Deos  o  perdão,  que  pedio  Nicefor3,  porque  acu- 
íado  depois  de  alguns  annos  de  íer  Câtholico ,  mere- 
ceo  fer  degolado  pela  Fé  de  Chrifto.  A'  vifta  defte 
ÍucceíTo  temo  ,  e  tremo  ,  confiderando  ,  que  nem 
o  Martyrio  ,  que  he  o  mayor  íacrifício  de  amor, 
quefepoffi  ofFerecer  a  Deos;  tJMaiôremdile5íionem  9_^ 
mmo  hdbet ;  nifi  qws  fomt  animam  fnam  pro  ami-cap.^ 
€ís  ftíis;     he  agradável  a  Deos  ,  fe  primeyro  naõ 


Aí  At  th  ^ 


LfíC  rl^ 


ii 


íe  íaeri fica  a  payxaô  da  vingança  com  perdoar  arf 
feu  pro-x imo ;  Vade  prihs  reconciliari  fraíri  tuo  y  & 
Ume  vemens  offeres  múnus  tutim  ante  ah  are.  Aífim 
o  fez^  e  nos  deu  Q  exemplo  o  meímo  Chrifto  ná 
Cruz,  pedindo  ao  Eterno  Padre  perdoaíFe  aos  qué 
o  cíuciíícavaõ :  Pater  dmitte  illà^  nm  enim  fciímt^ 
^aciunt.  Aílim  o  devemos  fazer  nôs ,  devemos 
as  injurias,   que  nos  fazem  ,  rogando  a. 
Dços  poraquelles ,  que  noscalumniaô  ,  c  períeguem,, 
e  fercmos  defle  modo  verdadeyros  filhos  de  DeoSj 
com  a  fegurança  infallivel    de  gozar  eternamente 
'AUnh.  <íaíua  gloria  no  Paraífo  :  Orate  pro  ferfequentibuS'^ 
j.         &  cdlummantibus  vos ,  nt  (itisfiin  Patrà  vefiri ,  quí 
indelíi  eft.VtXo  contrario  íe  nò^  formos  de  cora- 
ção duro  5  e  infíexivel,  em.  não  querer  perdoar  aos 
noíTos inimigos ;  nos  íuccederá  o  meímo, que  íuc- 
eedeò  â  cílâtuâ  de  ElRey  Nabucodonofor..  Tinha  ci- 
ta a  cabeça  de   ouro,  os  peytos  ,  e  os  braços  dè 
prata ,    ventre  de  bronze  ,  as   entranhas ,   c  mais 
partes  do  corpo  de  ferro.  Sò  os  dedos  dos  pês  eraõ 
miílurados  ,   paite   com  ferro  ,  parte  com  barro* 
Dm,%.  ^^  dígitos  peâumex  parte  férreos^  &ex  parte  JiãtJes. 
24,       Defceo  huma  pedrinha  do  monte  ,  fem  movimento 
da  terra,  ou   obra  alguma  de  mãos :  Abfc/ffuseft 
Dân.x .  lápis  de  monte  fine'  mambus.   Que  da ndo  prcci pitoí  a- 
34.       mente  nos  pês  da  Eftatua  ,  a  lançou  por  terra,  e. 
reduzio  em  pô ,  e  cinza,, que  em  hum  inflante  fo- 
raõ  levadas  do  vento ,  ícm  mais  apparecerem ,  nem 
Da   •ífi^^^^^^  O  lugar  ,  aonde  foraô  parar  :  g^á?  rapta-' 
'  funí  Aventa  .,  nullufqutlocusinventusefi  eis.  E  qiiz 
couía  fignifíca  ,  e  repreíenta  efla  Eflatu;) ,  íe  naò  a. 
íigurade  hum  Tyranno ,  ou  Vingativo  ,,que  ,  íen- 
do  Catholico  ,  tem  a  cabeça  de  ouro ,  pois.  tem  ò- 
leu  entendimento  illuminado  com  a  luz  do  Evan- 
geíiioj-e  com  o  leme  da  fé;  tem  os  braços  de  pra- 


HBE 


Do  tormento  doiTyranmSyeVingatms.  307 

ta,  pois  peíTue  as  riquezas  ,  que  Deos  lhe  deu, 
pom  que  íe  faz  mais  temido  ,  e  podcrofo.  E  ,  íe 
bum  Chriílaõ  ,  havendo  recebido  de  Deos  os  dous 
lalentos  dç  otiro  ,  e. prata,  que  iam  os  roais  pre- 
ciolos  ,  para  negocear  com  elles  a  íua  íalvaçaò,  tem, 
econferva  hum  coração  de  bronze  ,  com  humas  en- 
tranhas de  ferro,  para  íe  vingar  de  íeus  inimigos, 
e  com  a  íua  potencia  arruinar  os  feus  próximos; 
que  eípera?  Senaó  que  prccipitofamente  do  monte 
altiílimo  da  Divina  Jufíiça  venha  aquella  pedrinha 
de  huma  morte  improvifa :  Abfcijfus  efi  lápis  de  mon- 
te: fem.íe  faber  como  cahio ,  ou  donde  veyo  fem 
prévio  achaque  ,  e  íem  principio  de  doença;  fine 
manibus  :  pois  fe  achava  com  perfeyta  diípoíiçaò, 
efaude  ,  que  podia  na  firmeza  ,  c  duraçsô  compe- 
tir  com  o  mefmo  ferro ,  e  bronze  >  e  com  tudo  ape- 
nas lhe  toca  a  pedrinha  nos  pès  de  barro,  logo  íc 
derroca  aquella  torre  de  carne,  elogo  fe  profterna 
aquelle  ColoíTo  animado,  e  a  modo  de  rayo  tudo 
fe  confumirà  ,  naó  apparecendo  mais  ,  nem  ouro, 
nem  prata  ,  nem  ferro  ,  nem  bronze,  nem  com- 
pleyçaõ  ,  nem  íaude  ;  tudo  fe  reduzirá  em  pò  ,  c 
cinza ;  ou ,  para  melhor  dizer,  cm  hum  vivo  car- 
vão de  fogo  ,  que  como  vidlima  do  furor, Divino 
ha  de  arder  para  íempreno  efcuro  calabouço  do  In- 
ferno. Oh  vidima  deígraçada  ,  para  que  nafcefte 
forte,  rica,  robufta,  e  potente,  fe  efte  teu  po- 
der, c  robufteza  ,  efla  tua  riqueza,  e  fortaleza, 
te  haviaô  de  fazer  cruel  ,  c  Tyranno  para  com  os 
teus  próximos?  Quanto  mais  cruel  foíie  com  elles; 
agora  tanto  mais  cruel  ,  c  iníofrivel  heo  teu  to^^-^^^g^ 
mento  :  Fortioribus  fortior  trit  criiciatio,  Dcfen- 
gane-íe  op£ccador,que  todas  as  valentias,  e  pon- 
denores,  em  naó  querer  perdoar  aos  inimigos,  que 
Q-pffen^craô ,  toda  a  prepotência ,  e  dureza  do  co- 
■•i;.  V  2  ra- 


3©  8  Difcuvfo  X. 

raçaó ,  cm  naõ  compadecer  a  miferia  ,  c  fraqueza  èoi 
feus  próximos  j  faõ  de  pouca  dura  ncfta  vida ,  e  logo 
com  huma  morte  improviía  vaó  a  parar  para  íempre 
em  hua  eternidade  de  penas  no  Inferno :  Fekntes  po^ 
tenter  tormenta  patlentun  ^ 


TORMEKTO  DO  SITIO  IMM OVE L 


I    >: 


309 


' 


DISCURSO  XI. 

Do  tormento  do  Sitio 
immovel. 

Fiant  immobiles  qua/i  lápis. 
Exod.  c.  15.  i6. 

Providencia  Divina  tem  pof- 
cohum  tal  temperamento  $8 
dores  deíla  vida,que  íe  íaó  íc- 
vcs,ainda  que  íejaõ  continua- 
das por  muyto  tempo ,  íe  po- 
dem tolerar^e  íe  faô  iníopor- 
taveis ,  ordinariamente  duraõ 
pouco,  pois  com  a  morte  logo 
J  acabaô:  DolorlevUeft,  ft fer-^^^''^' 
repoJfumus;Ji  ferre  nonpojfumus ,  brevií.  AlTim  o  def- 
^crcve  Séneca.  Naò  he  ilio  aflim  das  dores  do  Inferno: 
cilas  faô  agudiílimas  ,intenfas  ,c  iníoffríveis,  e  tantas, 
que  qualquer  delias  experimentada neí^a  vida  ,caufa- 
xíaa^mortenoprimcyroiní}antea  qualquer  homem. 
Naô  qijero  fallar  ncíle  difcurfo  da  multidão  innu- 
meravel  das  dores ,  que  padece  qualquer  condena- 
do no  Inferno  ,  porque  já  tratey  deíie  ponto  cm 
iM  V  i  ou- 


W  I 


'i^^  i 


■•iâBiviap 


"^t^o- 


outros  difcuríoj.     Fallarey  íómcnte  do  torment© 
j     do  Sitb  immovel  ,  que  á  |)rime^ra  vifl^  na&  parc- 
;    ^  ccndo-  tanr  grave  ,  com  tudo  éoníídtrââd  bem  ,  e 
;;        mijyta  mass  experimçfltâdo  ,  ajnda  ncíia  vida  por 
^am  fé  dia  ,  dá  a  conhecer  clarsmerite,  que  ícrá 
•  hum   cormeçiíEo  iníbíírivel;,^  cruel ,  e  inexpíie^vel 
'     para  Òs'  triftes  ,   c    defgraçádos  Condenados.  Efla 
hc  a  fufíancia  reíumida  ,    e  toda  a  matéria  dcílc 
diícurío  ,  que  diyidirey  em  dous  pontos.  No  pri- 
mey.ro  veremos  y  quam  penoío  íeja  efíe  tormento 
do  Sitio  immovel  no  Inferno  ,  fazendo  argumento 
do  quanto,  he.  moleíio  i  c  do  quanto  atormenta  ain- 
da nefta  vidão  tal  fício    immovel.     No  fegundo 
con lideraremos  ,  qíiãntomais  ihfoffrivel  íeja  no  In- 
ferno cfta  immobilidadc  em  rodas  as  potencias  da 
Aima,obifígãâ\je  forçada  a  naó  poder  imaginar, 
nemcuydar  outra  coufa ,  que  a  duração  eterna  de- 
fíe  tormento  5  cpm  buma  coníideraçaô  taô   firme, 
e  -£xa,  que  o  pcibre  condenado  padecerá  em  cada 
.  infeme  ,  do  qiii^  deve  padecer  por  toda  a  Eterni- 
dade-, A,  immobilidadc  do  eorpo  para  ícmprc  >  a 
immobilidadc  da  Alma  eternamente.  Efícs  faô  05 
.dous  poios  ,  em  qm  íe  eíiribará  toda  a  maquina 
deíie  noíTo  diícuríb  do  cruel  tormento  d<J  Sitio 
\mmo'^t\  lii^iantmmobães-iqnafi lápis. 

Que  o  íitio  feja  immovel  para  ó  condenado 
DO  Inferno  ,  he  çoufa  tam  certa  ,  que  he  de  Fê. 
'  ÇhrifíobcmnoíTo  ,  que  tantas  vezes  fallou  do  In- 
ferno, fallou  também  exprcíTamente  da  immobi- 
lidadc ,  que  haviaô  de  íofFrcr  eRes  defgraçádos.  Na 
parábola  do  convite  fallando  da  condenação  da- 
tíuelic  miferavel  ,  que  ft  arrojou  a  entrar  no  ban^ 
quete  íem  a  vefte  nupcial , .  que  íignifiea  a  g^aç^i 
Matth.  profere  a  ícntcnça  nefta  forma  ;  Ligatps  mantbus ^  & 
Z2"      ÈpJiímSi  mhtite  eum  in  tmekras  exteriores.  Quer 

di- 


DõtormemòdoSitUimmúveL        311 

dtócf  í  que  ligado  db  pès ,  c  mãos, o  lançaffem  nas 
trevas.  Pelas  trevas  íe  entende  o  Inferno  :  e  pela 
ligadura  de  pês ,  e  mãos  íe  entende  o  Sitio  immO"^ 
vcl ;  Ligatís  manibus  ,  &  fedibi^s  ;  porque  hum 
homem  ligado  de  pês  ,  c  máos,  hc  certo  ,  que  fc 
naò  pôde  mtíver  ,  para  mudar  lugar.  Gom  mais 
(CxpreíTâÔ  o  declarou  cEípirito  S^nco  ,  quando  dif- 
Ic ;  Si  ceciderit  lignum  ad  Aujirnm ,  velad  Aaitdo'  Ecclffi^ 
nenttín  qmatnque  loco  ceciderit  ,  ihi  ertt.  E)q)lica  »»• 
a  propriedade  dcfte  íirio  immovel  dos  condenados 
pela  femelhança  da  Arvore  cortada,  c  talhada  pelo 
pê,aqual  para  qualquer  parte,  e  em  qualquer  iu-c 
gar,  que  caya,ahi  fica  parada  fem  fe  poder  mo^ 
ver.  Por  eftas  arvores  fe  entendem  os  homens  ,  co^ 
mo  pareceo  aocego  do  Evangelho  :  Video  homines 
ianquam arheres  ambulantes^  os  quaes  eíkô  em  pè,  • 
^m  quanto  vivem :  mas  cortandolhes  Deos  o  fio  da 
vida,cahem  j  e  cahin^do,  íe  cahem  para  a  maõ  direi?- 
;ta,ifto  he,  para  aparte  dos  eícolhidos  >  cahiráó  pa\ 
ra  fe  levantarem  gloriofos  ,  para  fcmpre,  con^ 
voar  logo  as  fuás  Almas  para  o  Ceo;  e  depois  dò 
juizo  univerfal  também  os  íeus  corpos  ;  porem  fc 
câhem  com  a  morte  para  a  maô  cfquerda,  que^  hc 
dos  Precitos ,  de  qualquer  modo  ,  c  em  qualquer 
íitio,  quecahiaô ,  ahi  eííaráó  immoveis ,  fem  fe  pode- 
rem mover :  In  qtiocunque loco  ceciderit  ^ihi  èrit.  E  por 
toda  a  eternidade :  hent  immobiks ,  qtiaji lápis.  jí" 

Mas  ainda  que  hum  precito  naõ  foífe  atado  de 
pès ,  e  mãos  ,  como  ouvimos  do  Evangelho  ,  hs- 
ftàva ,  ebaíia  o  cahir,  e  eflar  naqueila*  priíaô  erer* 
na,  para  íer  ,  e  ficar  immovel  ,  íem  íe  poder  bo*- 
lir.  Coníideray  comigo  attenta  ,  e  miudamente 
o  caio  do  deígraçado  Rico  Avarento,  do  qual  di2  ^^^.ig 
o  Evangelho:  CMúTtuus  e/t  dives^  &  fepultns  eft 
in  Inferna,  Mamais  de  m\&  fetecentos  ^nos ,  que 

y   4  o  Ri; 


)  ;|.i'iíir 


ji2;  :m  BifcurfoXL  \ 

o  Rico  Avarento  morrco ,  c  foy  fcpultado  no  lofcr^ 
no.  Donde  podemos  inferir,  que  o  Inferno  be  a 
fcpulchro  dos  condenados  ,  e  que  efte  fepulchrd 
tem  huma  fó  porta  ,  ou  hua  abertura ,  por  onde  fc 
entra, e  quepor  efta  abertura  haô  de  entrar  os  ré- 
probos todos  no  dia  do  juizo  univeríai,  depois  de 
ouvida  aquella  terrível  fentença  ;  Ite  makdiãi  m 

'Matth\  ignem  atermim :  c  taô  envergonhados  de  íerem  deí- 
cubertâs  as  luas  maldades  ,  que  correrão  cm  tro- 
pas a  precipitarem-íe  naquelle  efcuro  calabouço 
pedindo  aos  montes,  que  cay^õ  fobre  ellcs  ,  c  os 

Aíatíh  ^^P^^f^'^ '  ^2'^»^'  dicení  ntontAs  ,  cadite  fufer  »% 
'  &  colks  opertte  nos.  Sendo  ifto  affim  ,  como  ver- 
dade do  Evangelho,  tiray  comigo  efta  illaçaô,  naõ 
menos  certa,  e  infalUvcl ,  que  fácil  para  fc  perce* 
,v->:ò  jjg^^     Tanta   multidão  de  réprobos  entrando  por 
iiuafó  abertura ,  amontoados  huns  fobre  os  outros^ 
^  todos  elles  naò  fó  peíados,  mas  pefadiílimos  pe- 
io pefa  quaíi  immenfo  das  culpas  ,  carregados  ,  e 
opprimidos  de  hCía  innumcravel  multidão  de  cor- 
pos,  c     todos     cftcs  precipitados  naquclla  priíaô 
cílrey ta  5  e  alli  cabidos  huns  lobre  os  outros ,  naõ 
he  por  ventura  baftante  razaô,  para  os  confiderar- 
mos  immoveis  affim  nas  peífoas  ,  como   no  fitio? 
Certo  he  que  fím.   Corrobora  cila  verdade  da  iní- 
mobilidade  dos  condenados ,  o  que  diz  Santo  Ambro- 
fío  com  outros  Santos  Padres ,  a  fabcr ,  que  affim  co- 
mo hum  Bemaventurado  em  razaõ  dos  dotes  glo- 
riofos  terá  tanta  força  ,  que  com  hum  íó  dedo  po- 
deria mover  todo  o  Globo  da  terra  ;  affim  também 
lium  condenado  íerà  tam  débil ,  fraco ,  c  defíituido 
de  forças ,  qi*c  ,  ainda  quando  foífe  íolto,  e  livre» 
naò  poderia  nem  ainda  levantar  hua  maô,  nem  hum 
íó  dedo ,  para  afaftar  de  fí  o  minimo  bichinho  da 
terra ,  que  o  molcfíaíile.  E  fobre  toda  efta  fraquc- 

Z3| 


DotormeiftodoSitiómfmveL       315 

za  ,  etkbil idade  extrema  ,  que  baftava ,  para  o^- 
zer  extremamente  immovcl^  eflando  de  mais  ? a 
mais  carregado  de  ferros,  correntes,  e  algemas, 
que  o  ataõ ,  e  prendem  de  pès,  c  de  mãos ;  Ligatis 
manibus  ^  &  fedtbusy  que  immobilidade  neccíTa-^ 
riamente  não  lerá ,  e  das  mayores ,  que  fe  podem 
immaginar  í 

Tornando  agora  ao  Rico  Avarento ,  que  no  In- 
ferno eftavi  ligado,  e  immovel  nos  íeus  tormen- 
tos, cum  ejfet  intormentis^  abraíado,  c  confumi- 
do  daquelíe  fogo  voraz  ,  c  intcnfo  ,  cr  tutor  tnhac 
jlamma\  entenderemos  a  razão,  pela  qual  gritoui 
c  pedio  a  Abrabaõ  lhe  acodiffe,  mandando  a  Lazaro, 
que  com  hum  dedo  banhado  em  agoa  lhe  tocaíTe  a 
lingoa  ;  Tatzr  Abraham  mttte  Lazariim^  nt  íntin-  .  -  ^ 
gat  extremum  dtgitifm  in  aquam^  ut  refrigeret  l/n-  *^*' 
guam  meam.  Efíranho  defejo  na  verdade,  e  peque- 
na coníolação  para  hum  condenado,  fe  foíTe capaz 
de  a  ter!  E  que  fazia  huma  gotta  de  agoa  cm  hum  in- 
cêndio de  chammas  ,  que  o  cercavão  de  fora  ,  que 
o  confumião  pordentro  com  tanta  aâividade ,  que 
lhe  abrafavão  as  medullas,  as  entranhas,  e  cora- 
ção, quando  nem  todas  as  agoas  do  Tejo  ,  nem 
.ainda  as  do  Gram  Pâráferiaô  bafíantes  a  refrigerar- 
lhe  parte  de  tam  grande  incêndio?  Ora  fabiamuy- 
to  bem  efte  condenado,  que  naõ  receberia  rcfrigc- 
rio  algum  defta  gotta  de  agoa,  que  pedia  j  mas  pe- 
dio, ou  fez  cfta  petição  neíle  modo,  pata  moftrar, 
que  era  tal,  e  tanta  a  immobilidade,  que  padecia 
nos  feus  tormentos ,  que  nem  ainda  tocar  a  fua  pró- 
pria lingoa  podia  de  algum  modo:  por  iíTo  pedia, 
que  Lazaro  lha  tocaíTc ,  não  para  o  refrigerar  no  in- 
cêndio ,  que  não  era  poífivel  com  huma  gotta  de  agoa; 
-mas  para  ao  menos  ter  efle  pequeno  moto,  ainda 
que  foffe  ah  extrinfeco ,  cm  huma  tam  minima  parte 

do 


w 


.-*\ 


j%4         r^^n^^-^i/car/ôXl^-i 

áo  corpo  ^  qual  he  a  iingoa.  Oh  fe  os  pcccadoresi 

qm  tanto  amão  a  variedade  nas  íuas  delicias,  è 
goílos ,  provaíTem  a  eílar  huma  hora  fomente  fem 
movimento  algum,  diriaõ  logo,  que  he  impoífii 
vd!  Pois  faybâo,  que  tanto  he  pcnofo,  einíoífrí- 
'^^l  eíle  tormento  cio  fitio  immovel,  que  ainda  ex- 
perimentado ncfta  vid  V  he  baftante ,  para  Gonvcrtet 
qualquer  peçcador  obftinado  ,  e  reduzi  lo  a  ferhum 
lánto  penitente,  como  veremos  no  exemplo  fc- 
guinte..  ■  , -ví^-ii^-.  ;%^^-^'i'' 

Vivia  no  anno  mil  e  quinhentos  e  trinta,  em 
Olanda  huma  Saríta  Virgem  por  nome  Liduiria,  cer 
rlcbre  na  Hiftoria  Eccieíiaftica  pela  fua  grande  vir- 
tude, mas  muyío  mais  celebrada  pelos  grandes  mi- 
lagres ,  que  fazia  ainda  em  vida.   Corriaô  de  todas 
âs  partes  muytas  peffóas  ricas,  e  pobres,  para  al- 
cançarem por  fua  interccíTaô  o  remédio  aflim  dás 
infermidades  do  corpo ,  como  da  alma ,  conceden- 
do  Deos  a  fcus  rogos  muytas  graças ,  cobrando 
innumeravcis   prodigios.    Havia    naquelle    tempo 
hum  Mancebo,  que,  fendo  eftimado  pela  nobreza 
do  íeu  Sangue ,  era  juntamente  aborrecido  pela  foí- 
tuva  da  vida,   e  publicas  torpezas ,  em  que  vivíâ. 
-Os  parentes,  e  amigos  compadecidos  da  fua  deígra- 
ça  ,  e  vendo  havia  muytos  annos,  que  íe  naô tinha 
confeíTado,  lhe  rogáraô  encarecidamente,  que  aò 
menos  fe  foíTe  aconíelhar  com  Santa  Liduina,c 
lhe  narraíTe  as  fuás  miferias,   principalmente  a  fiè- 
pugnancia  invencivel  de  fe  confeíTar,  porque  fem 
duvida  lhe  alcançaria  de  Deos  algum  remédio.  Re- 
ííftia  fortemente  o  Moço    a  íemelhante  coníelho, 
com  dizer,  que  as  Mulheres  nálo  eraõ,  nem  po- 
•dião  íer  ConfeíTorcs;  e  replicando-lhe,  quepcdiíTe 
á    Santa   fó  remédio   para  tantos  peccados,    que 
tinha;  clíe  finalmente  veacido  da  importunação 

dos 


Dõ  fêfnfffí/âd»  Shh  mmcreL       ^y^ 

^s  Parentes,  e  Afriígos.,  foy  bufcara  Sánfa  fci. 
duina  ,  e  íe  animou  a  CQntarlhe  os  feus  innumcra- 
.  veis  pecccaáos  ,  e  talveiz  com  a  meíma  vangloria, 
tom  que  os  dizia. aos  feus  ruins  coínpanheyros.  A 
Santa  não  podendo  tapar  o$  ouvidos  por  ter  â$ 
mãos  ,  e  braços  aleyjados,  lhe  rogava  pela  morte, 
e  Payxaõ  de  noíTo  Senhor  Jeíu  Chrifto,  fe  calaíTc, 
porque  naõ  podia  mais  ouvir  tam  horríveis  culpas: 
iBas  o  Mancebo  continuava  íem  vergonha ,  dizen* 
do,  queria  confeíTar  tudo,  para  ver,  que  remédio 
lhe  dava,  fegundo  lhe  tinhao  aíTcgurado  os  í eus 
Amigos,  c  Parentes.  Conformou- íe  a  Santa  a  ou- 
vir tudo  com  paciência,  e  depois  infpirada  por 
'©eos  lhe  diíTe;  já  que  tendes  tanta  repugnância  à 
vos  confeíTar  }  íereis  contente ,  que  cu  diga  todos 
cites  peccados  aTHum  ConfeíTor  douto,  e  prudente 

Jda  voíía  parte,  e  que  vos  íírva  de  interprete  ?  Ret 
pendendo  elle  ,  ^uc  fim ,  replicou  a  Santa,  que 
lhe  tornaíTe  a  fallârdalli  a  três  dias.  Ncfleeípaciò 
de  tempo  a  Santa  rogava  a  Deos ,  chorando  os  pec- 
cados  daquelle  diíToluto  Mancebo  como  próprio^, 
•pedindo  inftantemente  quizeffe  como  bom  paíJor 
chamar  aquella  ovelha  perdida  ao  feu rebanho,  bf- 
fcrecendofe  a  fazer  penitencia  daqudles  tam  enor- 
mes peccados.  Depois  dos  três  dias  tornou  o  Man- 
cebo todo  alegre,  e  diíTc  àSanta.  Tenho,  Senho- 
vJ*a,  guardado  a  minha  palavra,  e  torno  pontual, 
por  íaber,  fe  tendes  feyto  a  minha  confiíTaóf  E 
•que  penitencia  me  tem  impofto  ?  Por  ventura  (re- 
plicou a  Santa  )  fareis  vôs  a  penitencia  ,  que  vos di- 
yty?  Sim,  farey  (diffe  o  .Víancebo)    quando  fcja 

.ecóufa  ligeyra-j  porque  íe  forem  jéjurí^^  ci+ièitfs, 
diíciplinas,  ou  éòúfas  femelhàntes  f  naõ  alqííefò 
fazer,  e  me  vou  embora.  Nada  diffohei' replicou 
^  Santa}  hc  fim  huma  penitencia  icviífia ,  que  po- 

■' ■.  deis 


y 


j_  í 


31  d  Difcurfo\Xi^  ^^'^  í/\ 

deis  fazer  cm  voíf  rcafa,  e  na  voíTa  cama^  em  pr ^ 
íença  de  todos ,  íem  ninguém  o  íabsr ,  ou  adver? 
X\x,  Se  aífim  he(  replicou ô  Mancebo;  dou  palavra 
4e  Gavalhevro ,  q^ç  a  farey  com  pontualidade.    A 
|içnitçncia  (refpondco^  Santa)  lie  cfta:  que  vos  dcy- 
^eis- na  voíT-t   cama  aíTim  mole,  c  branda,   comQ 
}ic,    e  depois  de  deytado  muyto  à  VoíTa  vontadej 
e  commodo  ,   naõ  vos  volteis ,  nem  vireis    mais^ 
nem  de  huma,  nem  âe  outra  parte  ,  atè  amanhe- 
cer.  Fazey  fomente  ifto,  e  deyxayme  o  refto  com 
toda  a  grande  carga  dos  voíTos  peccados.    Efta  he 
toda  a  penitencia,  que  devo  fazer  (replicou  o  Man- 
jpebo)  dos  meus  peccados ,    e  nada  mais!  Pois  cu 
|i  vou  iogo  fazer  cfta  noyte,  e  daqui  por  diante  vos 
mandarcy  quantos  pcccadorcs    conheço,  para  íc- 
jrem  convertidos;  e  íercy  daqui  por  diante  dePeç^ 
ij^dor  o  Peícador  das  Almas  defta  Cidade.  Chegou 
â  ^  Mora  de  fe  dey  tar ,  c  entrando  na  cama ,  foy  buf- 
çando  o  íirio  do  corpo ,  que  lhe  parecia  melhor,  c 
^achou  que  deytando  Je  de  coftas  lhe  era  mais  com- 
m^odo,  c    íuave.   Porém,  a    penas    paíTada   meya 
hora,  como  impaciente  queria  virarfe  de  bum  lado, 
c  naõ,fe  refolvia  a  fazelo,' porque  queria  comprira 
penitencia,  e guardar   a  palavra   dada.  Nunca  lhe 
pareceo  a  cama  dura,  fe  não  naqucllaoccafiàò,   c 
o  náo  poder- fe  virar  de  hum  lado  lhe  parecia  hum 
tormento  infoffrivel.  Começou  a  diícorrer  comíigo 
iiefte  modo.  Que  heifto/  Que  coufa  me  falta!  Eu 
cftoLi    faô  ,   c    valente :   tenho  ceado  muyto  bem: 
cftou  cm  hum  leyto  muyto  bem  preparado ,  e  para 
deíempenhar    a  minha  palavra  cfemprindo  a  peni- 
tencia ,  náo  tenho  mais ,  que  paÇar  huma  noyte  ncfla 
Jpoíiura,  caíDo  fe  me  reprefenta  impoíTivel !  Que 
íerii  de  mim  íe  deveffe  ficar  aíTim  por  hum  mcz ,  ou 
por  hum  anno!  Ahqucnecio,  queíoucu!  Efe  em 

lugar 


DõUrmento  do  Sitio  Immovel,       317 

lugar  do  colchão  brando,  cm  que  cflou  deytado, 
cftiveíTe  em  humastaboas duras,  como  fazem  tantos 
Rcligioíos  de  vida  auflera,  ou  eflivcíTe  deytadono 
chão  com  huma  dura  pedra  por  cabcccyra,  como  fa- 
zem, e  tem  feyto  tantos  penitentes!  E  quanto 
peyor  fora,  fc  efta  cama  fora  de  carvoens accíos, 
nâo  íó  por  huma  noytc ,  mas  por  annos ,  c  não  fó  por 
annos,  mas  por  feculos  ,  c  não  fóporíeculos,mas 
por  milhocns  de  feculos,  e  nâo  íópor  mijhocnsde 
ícculos,  mas  por  toda  a  Eternidade,  co«mo  eflâo,  e 
cílarâo  tantos  milhoens  de  condenados  no  Inferno, 
c  cftaria  eu  também  fcm  duvida  ,  fe  Deos  não  tiveíTc 
ulado  comigo  da  íua  miíericordia  !  Nifi  quiaDo-  Pf^^-9% 
minus  adjuvit  me ,  fanh  minus  in  inferno  habitajfet 
anima  mea  /  Efía  coníideração  originada  da  immo- 
bilidade  daqueile  fitio  íuave ,  porque  era  em  huma 
cama  branda,  c  por  pouco  tempo,  caufou  tanta 
impreffaõ  no  entendimento  daqueile  nobre  Mance- 
bo ,  que  íe  reíolvco  a  entrar  logo  cm  huma  Religião 
das  mais  aufteras,  vivendo  nella  com  grande  exem- 
plo ;  e  todas  as  vezes ,  que  fe  via  tentado ,  o  remcí- 
dio  era  deytaríe,  e  poríe  immovel  no  lugar,  em 
que  fe  achava,  como  íc  efíiveíTe  ligado  de  pês,  c 
mãos  no  Inferno ,  e  dcfíe  modo  ficava  vitorioío  da 
tentação.  Tanto  he  de  temer  cfíc  tormenta  ainda 
neftâvida? 

Sempre  reparey  na  quantidade  de  infirumento?; 
que  os  Tyrannos  inventarão,  para  atormentares 
Santos  Martyres,  nos  quaes  fe  continha  também  ò 
tormento  do  Siri©  immovel.  Para  vermos  iftofem 
recorrer  aos  tempos  tanto  atrazados,  lancemos  os 
olhos  da  coníideração  a  alguns  tormentos,    que  íc 

ainda  entre  os  Catholicos,    quando  a  jufliça, 


ufaõ 


íuppofíos  os  índicios  vehcmentc  ,  os  quer  fazer 
confcíFar  o  erimé,  porque  hão  íolpey tas  vehemeo-^ 


te-5 


W! 


■■-**'»i"*ap»>íc-- 


í--»^'*';  w::::  >"  T~-jm^ 


iTTTiiií'i'ilwiir'infr'''"- 


!      i 


í^í^  Difcurfo  XL 

tes ,  de  que  o  cometerão.  Coníideray  a  hum  pobre 
íleo  deytado  fobrc  huma  catada,  a  que  no  Portu- 
guez  chamaó  vulgarmente  potro  ,  com  as  máos ,  c 
pês ,  náo  fomente  algemados ,  mas  tam  ligados  ag 
potro,  e  tam  carregados  de  ferros,  quenaòhepoí- 
íivel  fazer  delles  o  minimo  movimento:  o  corpo 
também  tam  fortemente  ligado,  e  unido  ao  mefmo 
porto,  quede  nenhuma  íorte  fe  pode  voltar ,  nem 
mover.  Ora  fe  preguntares  a  hum  dcfíes  mifera. 
Ycis  depois  de  paíTado  o  tormento,  do  qual  muy- 
tos  fícaõ  cftropeados  para  toda  a  vida ,  qual  foy  o 
mayor  tormento  ,  que  padeceo  naquclles  trato?, 
vos  reíponderà,  que  o  tormento  do  Sitio  immo- 
vel ,  quero  dizef ,  o  não  le  poder  mover ,  e  efíar  fír^ 
me  no  padecimento  daquellas  dores  de  braços, 
pés,  ecoftas,  hc  o  que  lhe  accrefcentava  a  pe- 
na. E  a  razaô  aífim  o  perfuade,  dayme  attençâo, 
Huma  dor  em  hum  braço,  cm  huma  mão ,  ou  em  qual^ 
quer  parte  do  corpo,  íe  deyxa  liberdade  ao  mefmo 
corpo  para  íe  poder  mover  ,  voltar,  e  tomar  diver- 
íos  fitios ,  naô  he  tanto  infoportavel  ;  porque  no 
mefmo  movimento  fente  a  natureza  qualquer  ali- 
vio. E  íe  naõ  coníideray  vôs  o  que  faz  hum  deíies 
Juizes,  que  condena  os  Rèos  a  eftcs tratos  ^  (o que 
eu  não  pretendo  condenar,  por  íer  couía  permiti- 
da pelas  Leys  para  fe  defcobrirem ,  e  caííigarem  os 
malfeytores  )  que  coufa  faz,  digo  ,  hum  deftes, 
Ijuando  fe  ve  acometido  da  tyranna  dor  de  huma  pe- 
flra,  que  as  mais  das  vezes  naõ  chega  á  grandeza  de 
huma  avelam?  He  certo,  que  padece  muy  to,  eque 
naô  baflaõ  ,  para  o  aliviar  nem  a  rica  cama  ,  cm  que 
«ftá  deytado,  nem  a  cadeyra  de  veludo,  ou  de  bro- 
cado, em  que  muytas  vezes  fe  faz  lentar  ,  nem  as 
fexquiíitas  viandas,  e  delicados  ffuytos,  que  le  faz 
^prefentar,  nem  finalmente  qualquer  das  outras  de- 
licias, 


^^ 


Do  tormento  ào  Sitio  ifnmoveL      31^ 

rícks  ,  que  fc  lhe  podem  ofFerecer,  ou  á  vifta,ou 
aos  ouvidos,  e  íó  vereis,  que  todo  inquieto ,  e 
deíaíocegado  naô  faz  outra  coufa ,  que  movcr-íe} 
fe  na  cama  ,  de  huma  parte  para  a  outra  ?  íe  na  cadcy- 
ra,  de  hum  braço  para  o  outro;  e  fe  pôdeeftarem 
pé,  de  hum  lugar  para  a  outro.  Ora  fe  perguntares 
a  efte  homem  dolorido  ,  porque  razaô  faz  eftes  mo- 
vimentos? Dirài  porque  com  elles  delabafa  a  fua 
natureza ,  e  que  íeria  mayor  a  íua  dor ,  fe  naô  tiveífe 
cftc  dcfafogo  de  fe  mover  ,  voltar-íe  ;  c  andar  de 
hum  lugar  para  outro.  Dotide  íe  collige  j  que  a 
impotência  de  íe  poder  mover  hum  homem  ator- 
mentado de  qualquer  dor  he  o  que  mais  lhe  aug- 
menta o  feu tormento 5 he  oquemais  o  affligejCan- 
guíiía. 

Quereis íaber  a  razaô, porque  he  tam  terrível» 
ciníofírivcl  neíte  Mundo  aquella  doença  ,  que  vul- 
garmente fechama  de  gotta?  Eu  vola  direy»  Padecem 
muytos  homens  neííe  Mundo  a  doença  de  gotta, 
doença  verdadeyramente  ,  para  a  qual  atè  agora 
le  naô  tem  achado  remédio  algum  certo,  que  total- 
mente a  cure ,  que  por  iíTo  íe  diz  com  muy  ta  razaôr^^^^-^v 
Solver e  nodofam  nefcit  medicina  podagram.  Na 5  ha-  ^j/ped 
vendo  nem  ingrediente  nas  Boticas ,  nem  agua,  ou 
quinta  EíTencia  entre  os  mayorcs  Quimieos,  que  a 
poíTà  perfeytamente  curar.  Ora  íe  perguntares  a 
hum,  que  padece  de  gotta,  que  coufa  he  o  que 
mais  o  afflige  neí^a  doença  ?  Reíponderá  com  ver- 
dade ,.que  he  o  Sitio  immovel  da  parte,  ou  mem- 
bro afíedo  com  a  gotta }  e  que  o  naô  poder  mover 
©u  feja  o  pê,  ou  o  braço,  ou  a  maô ,  ojide  fcnte  eíla 
dor ,  ifto  he  para  elle  o  mayor  tormento ,  e  a  mayor 
afffiçaò,  que  padece.  AíTim  he,  e  aíllm  fuccedc. 
^Ora  fazey  aqui  comigo  hua  digreífaô  morai, ,  e  dou- 
trinaL  E  que  coufa  he  cíle  mal  de  gotta  irrcmedia» 

veL 


WT 


ismuipi 


P.le 
fenne 
tom.  7. 

l«^'  37 


Apoc. 


m-n 


510  Difcttrfo  Xt. 

ycl  neftc  Mundo  l  Fiíicamcnte  eu  naõ  voío  pòflb 
dcfcrever,  porque  naõ  faço  profiíTâô  cie  Medico: 
mas  moralmente  eu, vos  direy  o  que  he  ,  feguindo 
o  juizo  de  hum  grande  Pregador  ,  e  zelance  Miífio- 
aario.  A  doença  degottahehuma  gotta  das  doenças 
et€rnas,hehum  eníayo  do  modo,  com  que  íc  pa- 
decem as  dores  eternas  no  Inferno.  Noray.  A 
idordagotta  fe  padece  nefta  vida  com  a  circunftan- 
cia  da  immobilidade  ,  porque  a  parte  affcdla  com 
agotta  naõ  permicte,  nem  coníente,  que  fe  mova/ 
e  ifto  he  o  que  fe  padece  no  Inferno ,  dores ,  e  tor- 
mentos immoveis  ;  immoveis  ,  porque  nunca  di- 
minuem i  c  immoveis  ,  porque  naõ  deyxaõ  mo- 
ver de  nenhum  modo  a  quem  as  padece.  Tiray  agora 
aillaçaõ.E  fehumador  de  gotca  neftc  Mundo  fe  faz 
mais  iníofírivel  pela  circunftancia  da  immobilida- 
de í  como  naõ  fera  miis  que  iníofFrivel  a  dor  de  hum 
condenado  deytado ,  c  metido  em  hum  tanque  de  fo- 
go de  enxofre  abrazador,  íem  nelle  poder  ter  omi- 
nimo  movimento  f  Pars  tllorum  in  ftagno  ardentis 
ignis  ,  &  Julphuris  in  jacula  f^culorum  ,  como  íc 
diz  noApocalipfc.  Se  efte  tormento  dagotta  expe- 
rimentada nefta  vida  ,  em  razaõ  da  circunftancia 
ponderada;  he  tanto  para  temer  ,  edcu  tanto  ,  que 
padecer,  juntamente  ,  que  merecer -a  alguns  eí  co- 
lhidos de  D  :os,  como  a  Saô  Leandro,  e  outros  San- 
tos ,  os  quies,  permettio  Deos,  foportaíTem  nefta 
vida  efte,  quediíTemos  enfayo  do  Inferno,  porque 
onaôhaviaõdefoportar  na  outra  vida  »  que  couía 
fera  realmente  no  Inferno  as  dores  de  hum  precito 
acompanhadas  com  a  immobilidade  total  do  Sitio  em 
razaôdaquelle  infinito  furor,  com  que  Deosos  caf- 
tiga;  e  do  qual  temia  tanto  o  Santo  Rey  David ,  quan- 
do di7ia :  Vomine  ne  infurore  tu0  arguas  rm  ,  m^nz  tfh 

iratuacorriptasme,  ^     , 

Fon- 


T)o  tormento  do  Sítio  immovel.         321 

Pondera  Saô  Gregório  adiffercnça  entre  as  deli- 
cias efpirituaes ,  e  ícnfuaes  ,  e  affirma ,  que  as  ef- 
pirituacs,  quanto  mais  ícgozàô,  tanto  mais  fede- 
zcjnõ,  fem  nunca  enfaíiiarem  ;  as  ícnfuaes  pelo 
contracio  ,  quando  naô  fe  gozaô,  fe  deícjaõ,  po- 
rem depois  de  confeguidas ,  c  alcançadas  ,  ordina* 
riamentc  naô  íaõ  eftimadas:  antes,  fegundo  a  expe- 
riência noseníina  ,  fc  laò  continuadas  íem  varieda- 
de, coíiumaõ  enfaftiar,  e  vem  a  fer  aborrecidas. 
Em  hum  banquete  grandiofo,  e  dilatado  .  fe  todos 
os  pratos,  que  íe  aprefentaíTem  na  meia  .  foffem 
da  meíma  vianda,  e  do  mefmo  modo  guizados,  hc 
certo  ,  que  caufariaõ  hum  notável  faftio  aos  con- 
vidados. Afiim  (fe  lèno  fagrado Texto)  íuccedcoaos 
Hebrcos  ,  quando  Deos  para  os  livrar  da  fome,  que 
padeciaò,  lhes  acodiocom  oMannà,  que  lhes  ca- ^^. 
hia  doCeo  :  Etphíit  ãlis  Manna  ad  manducandum.  J ^JJ 
Como  o  viaó ,  e  colhiaô  íempre  da  meíma  forma, 
com  a  meíma  cor  ,  c  da  raefma  grandeza  ,  ainda 
que  úwç,{[t  cm  íl  o  gofto ,  e  íabor  de  todos  os  man- 
jares, o  aborreciaô,  c  naô  podiaô  comer  :  Anima  jsiunt, 
nojlra  naufeat  fuper  ctbo  ifto  levijjlmo.  E  dezejavaõii. 
mais  comer  os  comeres  groffos  do  Egypto ,  quaes 
craõ  os  alhos ,  c  cebolas ,  que  o  delicado  Manná. 

O  meímo  fuccede  nos  outros  regalos,  e  delicias 
defíe  Mundo.  A  confonancia  de  huma  armonia ,  ain- 
da que  feja  comporta  de  boas  vozes ,  e  fonoros  inf- 
trumentos  caufaria  fem  duvida  fatiio  ,  fe  ícmprc 
foaíTe  no  meímo  tom,  e  com  o  mefmo  defcante. 
Hu3  Comedia,  que  he  o  divertimento  dos  mais  ape- 
tecidos entre  os  mundanos, caufaria  enfado, e  afu- 
gentaria os  ouvintes,  íenella  rcprefentaíTe  huma  fó 
figura,  e  íempre  o  mefmo  papel.  Hum  jardim, 
por  grande  que  foíTe ,  naô  incitaria  á  curioíidadc, 
mas  antes  pouco  dcíejo  de  íer  vifto^  íc  nelle  naô 

X  bou- 


^' 


5t^         ;     -    >'J}Ípur/ií'Jít    "^ 

íiauveíTemais,  que  huma  cafta  deflores.  Finalmcni 
vc  hui2  cama ,5  por  mais  rica^  branda, e  fuave ,  que  fo£i 
íc,  feria  de  tormento,  fe  por  obrigação  íe  houvef* 
fe  de  efiir  dÊÍtado  neíla,.  km  a  liberdade  de  íe  Ic- 
vancar.  £  a  razaô  diffco  lie  ;  porque  a  continuação 
das  couíasncíla  vida  mortal  as  faz  faí^idiofas  ,  c  a 
fneÍHia  eòUifa  continuada  k  faz  aborrecida ,.  e  pe* 
mofa  ,.  moftraado  niílo  mefmoa  natuneza  ,  que  nas- 
Gouías ,  e-  das  coufas  defte  Mundo<  naô  pôde  o  ho- 
mem ter  {«tisfaçaò  jC  oícu  ultimo  deícanço.  E  pe-^ 
Lo  contrario  o  que  nefti  vida  hz  os  males  mais  to- 
leráveis, e  mitiga  de  algum  modo  as  amarguras,: 
he  a  interrupção.  Logo,  que  ba  algema  pauía,  al- 
gum de  fcanço,  alguma  tregoa  y  ou  alguma  mudança, 
ou  variedade  no  noíío  mai ,  ícntimos  algum  alivio, 
^,  ,,.oualgua  efpe rança  de  remédio^  Quando  as  deíg.ra- 
'I/-Ç^s»;c  os  dcfgoííos  nos  moieftaô  alternativamente; 
huns  depois  dos  outros  ,  entaõ  fe  fentcm  menos.- 
A  mudança,  e  alternativa  diverte  e  noíFo  entendi- 
mento, e  vontade  y  qnc  naturalmente  ama,  c  de- 
fcjir'^âi  variedade,  e  pjr  iíFo  qiiandb  naô  defcobre 
eíía  variedade  nas  coufas  defle  Mundo  ,  ainda  que 
em  (í  as  tass  coufas  fejaô  deliciofas  ,  comovera  o 
Manná  ,  com  tudo  aborrecem  ,  e  enfadaô-  Ainda 
que  o  iMan.nà  encerraíFe  em  íí  todos  os  íabores  dos 
mais  comeres :  Omnvs  faponsfuavitatem-  ;  com  tudo 
pela  continuação  cauíava  faíiio  ao  Povo:  Nihil 
aliíid  rej^idtmt  oculi  mftri  ,.  nifí  CManna;  Que  he 
ifto ,  naõ  ham  de  ver  outra  Goufa  os  noíTos  olhos,, 
ícnaõ Manná!  Vede  que  cíFe  Mannàhehuraa comi- 
da regalada.  Naõ  importa  ,  porque  tanto  agrada 
porfer  regalada,  quanto dcíagradá  por  continuada^ 
Finalmente  Goncluamos  ,  que  íe  nas  coufas  ,  que 
faô^donoíTo  génio,  e 'de  regalo  para  a  noíFa  vonta- 
de ,,€  talvez  para  a  coifa  fcnfualidade  ,  a.continur.- 


Num. 
II. 


Do  fermento  do  Sitio  hmmvel  3^3 

çaõ  às -faz  faflidioías  ^  que  íerá  nas  penas,  c  tor- 
Inentos  do  Inferno ,  onde  a  continuação  naô  íómen- 
íe  fera  dos  tormentos,  penas  ,  dores,  e  angiiftias 
inteníiíTimas  ,  e  inexplicáveis  »  n">as  cm  hum  firio 
Continuado,  e  immovei,  para  toda  a  erernidade, 
âíTimcomooíitiodehumapeíada  pedra  ,  que  ^^nde  ^^^^^ 
«  íazem  cahir ,  naô  fe  pode  mais  mover !  Fimt  immo-  ^^^  ^y^ 
Mies  qttafilapís. 

-  O  mayor  horror,  que  me  caufa  o  confiderar  ^^  ^^^ 
f>auí:'idamente  ,  e  com  íeria  reflexão  efte  terrível  ^^^p^^* 
tormento  do  Sitio  immbvel  ,  hc  a  duração  eterna  f^^. 
do  meímo  Sitio.  Nunca  ter  variedade  ,  nunca  di- 
minuição, nunca  hum  intervallo  ,  nunca  mudan- 
ça; mas  antes  íempre  do  mefmo  modo,  íem  hum 
íó  momento  de  quietação,  ou  de  alivio,  e  eterna- 
mente "na  mefma  poftura  violenta  ,  e  violentiílima ! 
Oh  tormento  dos  tormentos  ,  oh  defefperaçaõ  dos 
tormentos!  Nefte  Mundo  naõ  fuccede  aíTim  em  ne- 
nhum tormento  ,  ou  moleftia  ,  ou  trabalho  ,  por 
grande,  que  feji;  porque  ou  aoba  ,  e  fe  concluc 
com  ávida  y,ouíe  remitte  ,  e  tem  mudança.  Sc  o 
frióhe  exceííivo,  tem  o  homem,  por  defemparado 
quefeja  ,  qualquer  modo  de  fe  reparar,  ou  ao  me- 
nos ainíençad  do  frio  abranda  ,  e  remitte  o  feu  ri- 
gor .^  por  aguda,  e  ardente,  que  feja  huma  febre, 
lá  tem  íuas  horas  de  remiíTaô ,  em  que  naô  dura  na 
meíma  intenção  ,  para  conceder  algum  alivio  ao 
Inferno.  Por  grande,  e  intenfa,  que  feja  huma  dor, 
qualheade  cólica  legitima;  ao  menos  no  voltar- 
íc  o  paciente  de  hua  parte  para  a  outra  lá  experi- 
menta qualquer  alivio.  Mas ,  oh  Deos  I  Eftar^ 
hum  condenado  immõVel  de  pès ,  emaos,  e  todos' 
os  membros  do  corpo  ,  íem  fe  poder  voltar  ,  nem 
fazer  o  mínimo  movimento,  finalmente  como  huma 
pedra  entre  os  tormentos  incxpHcâveis  do  Inferno.- 
zj  X  2  Fiant 


^4.  DlfcurfoXl/ 

Fiant  mmoUles  quafi  Japis.  Oh  que  dcfcfpcraçaõ ! 

O  grande  AriÍToceies  querendo  definir  o  tempo 

Ariliot.  diíTc;  Numerns  mouis  fecundum  prm^&  pofienus. 

fhif.  Querdjzer,  que  o  tempo  íe  deve  medir  pelo  quç 
foy  antes  ,  e  íerá  depois.  Efta  definição  abraçada 
de  todos  os  Filoíofos  naò  compete  à  Eternidade, 
nem  confeguintemente  ao  tormento  do  Sitio  immo- 
vel ,  de  que  falíamos.  Sc  o  numero  do  movimen- 
to he  o  que  faz  o  tempo,  hum  condenado  no  Infer- 
no naô  tem  movimento  ,  porque  cftá  immovcl  nos 
íeustormenios,  c  confeguintemente  íe  pôde  dizer, 
que  naõ  tem  tempo  nefle  tormento ,  porque  fem 
tempo  ,  eternamente  ,  o  padecerá.  Nem  o  tem- 
po pôde  ler  medida  do  íeu  tormento  >  porque 
a  Eternidade  ,  pela  qual  padecerá  aquelle  tormen- 
to ,  naô  tem  tempo.  Hum  feculo  contém  cem  an- 
nos.  rium  anno  doze  mezes.  Hum  mez  trinta ,  ou 
trinta  e  hum  dia.  Hum  dia  vinte  quatro  horas.  Hua 
hora  quatro  quartos.  Hum  quarto  quinze  minutos. 
Hum  minuto  finalmente  confla  de  infíantes ,  ou 
momentos ,  ou  pontos  indiviziveis.  A  Eternida- 
de porém  naô  he  aíTimi  naô  tem  annos  ,nem  me- 
zes, nem  dias ,  nem  quartos  ,  nem  inííantesj  por- 
que naô  confla  de  partes  ,  mas  he  hum  todo  im- 
menío  fem  fim ,  fem  medida,  e  fem  termo,  e  tu- 
cjo  fe  cifra  nefta  palavra.  Eternidade ,  Eternidade. 
PoriíTo  o  Príncipe  dos  Apoflolos  como  melhor  Fi- 
loíofodefinio  a  Eternidade  por  eftas.  palavras  .*  Unus^ 
ãies  apud  Dominumficut  mille  anni ,  &  mille  ami  fi^ 
cut  dies  mus.  Quer  dizer ,  que  mil  annos  em  pre^ 
fença  de  Deos  ,  que  he  Eterno,  he  como  hum  dia, 
e  hum  dia  he  como  mil  annos.  Que  vem  a  fer  o 
meímo ,  que  na  Eternidade  tnnto  vai  hum  dia  co- 
mo mil  annos  ,  e  mil  annos  como  hum  diaj  por- 
que na  Eternidade  naô  ha  tempo  áe  annos ,  nem 

de' 


Bôiõrmetítú  do  Sitio  ifnmoveh        31  y 

^C  dias,  porque  he  fem  tempo.  O  que  explica  ma- 

raviihoíamente  neftas  palavras  íeguintes  S.  Agofti- 

nho. 

Ami  Uiificut  diesumis^&  mes  mmnon  V^ott-  j^^^^^ 
éie^fid  hodie  j  qiiia  hodiernus  tmis  ncque  ceda  cra-^,,j}^^^[ 
fiim^neqtiejuccedtt  hefterno.  Os  voíTos  annos  ,  meu/r/,.^, 
Deos,  laò  corro  hum  lo  dia,  e  efíe  fódianaò  he 
cada  dia,  mas  hoje;  e  efte  hoje  voíTo  naõ  íucccdc 
ao  dia  de  hontem  ,  nem  eípera  o  dia  deamanhaá; 
pois  toda  a  Eternidade  em    Deos  he  hum  perpetuo 
dia  de  hoje  fem  tempo  ,  que  haja  de  paíTar,  por- 
que naó  tem  fim  ;  afíim  como  fera  também  hum 
perpetuo  dia  para  os  Bemaventurados  no  Paraifo, 
ehuma  perpetua,  e  eterna  noytc  para  os  condena- 
dos nolnferno.  Oh  quem  percebera  bem  eí^es  ter- 
mos das  palavras  de  S.  Agofíinho ,  porque  íó  entaõ 
fizera  algum  pequeno  conceito  da  Eternidade  !  De 
maneyraquea  Eternidade, que  a  reípeyto  de  Deos 
he  hua  couía  ícm  tempo ,  porque  o  ícr  de  Deos  nem  --^ 
teve  principio,  nem  terá  fimi  a  mcfma  Eternidade 
a  refpeyto  dos  Bemaventurados  ,  ainda  que  tenhi 
principio,  porque  começa  a  fua  Eternidade  de  glo- 
ria doiníiante  da  fua  morte,  fe  primeyro  naò  for 
ao  Purgatório ,  quanto  para  as  fuás  Almas  ,  t  co- 
meçará para  os  íeus  corpos  do  ponto  da  fua  reíur- 
reyjçaôj  e  cm  quanto  á  duração  íeiá  fem  fim,  co- 
mo he  fem  fim  a  Eternidade  de  Deos;  eifto  fera 
com  tal  jubilo ,  e  contentamento  ,  que  mil  annos 
paíTados  na  Eternidade  da  Gloria  lhes  parecerá  hu 
fó  dia,  como  aíiirmouo  Profeta  Rcy  ;  CMtlleanm^f*^'^^.. 
in  conjpeúu tuo y  tanquam  dies  hejierna  ,  qíi£  pr^te--^'^' 
riit.     Pelo    contrario  os  Réprobos  ,    como  aliir- 
maó  os  Santos  Padres,  e  fe  fegue  por  boa  coníe- 
quencia,  nos  feus  tormentos  o  dia  de  hontem  lhes 
parecerá  mil  annos  de  padecimento;  efe  lhes  pare- 

X  3  cera 


ii:  I 


$i4        A        Bí/çurfo  2h 

cera  aifim  çai  raízaõ  das  crutis  penas  ]  que  pscJé^ 
cem  ,quecoiifa  fera  pâ<l;eccr  eOas  penas  em  hiua 
Sitio  immovel  y que  de  ít  fó  baftava  paca  os,  atormea* 
Ut\Fimímmohiks  qtiají^la^is-» 

Expliquemosmais  aterribilidade  dcfíe  exceífi^ 
vo  tormento  do  Sitio  immovel  pel^  circunftancia  d^ 
Eternidade ,  quero  dizer  de  fcr  Eterno.  A  Eterni- 
dade k  parte  pofte^^  como  explicaõ  os  Theologos^ 
começa  ,  ou  para  os  Berna venturãdos  na  gloria^ 
ou  para  os  Réprobos  no  Inferno,  cm  hum  inilante, 
que iqnaô  pode  medir  nem  por  annos,  nem  por  fc* 
cLiloá-,  nem  por  miihocns  de  íeculos  ,  porque  naõ 
tem  Hm,  Donde  naíce  ^^que  fe  fe  goza  algum  bem,, 
ou  gofío  para  toda  a  Eternidade ,  por  pequeno,, 
que  foíTe  »  íeria  hum  bem  infínito  y  quanto  a  dura- 
ção. O  mefmo  he  do  mal,  que  por  pequeno,  que 
foííe ,  fuppoíloque  fcja  para  a  Eternidade  ,fc  fazin? 
finito  quanto  á duração.  Eifio  por  duas  razoens.  A^ 
primeyra  ^  porque  a  daraçaõ  eterna  confere  ao  bem, 
ou  ao  mal ,  de  fua  natureza  pequeno ,  hum  pefo  inex* 
piicavel , que  he  o naô  ter  fim,  e  coníeguin temente 
Ma  exiílencia  interminável,  e  infinita.  Aífim  como  o 
gofto  de  hum  dia  he  hum  bem ,  o  de  dous  dias  hum 
bem  duas  vezes  mayor  ,e  o  de.  dez  dias  dez  vezes 
mayor,  aíSm  o  gofto,  que  durar  eternamente  fem 
.fím  por  annos  infínitos ,  fera  infinitamente  mayor» 
A  fegunda  razaô  ,  porque  a  Eternidade  ,  da  qual 
falíamos,  a  íaber  à  parte pofi.el^  contem  em  íi  to- 
dos os  dias  ,  eíeculos  futuros;  porque  ajunta  em  ÍI 
ioda  a  duração ,  porque  fenaõ^pode  diâinguir ,  nem 
dividir  por  íèculos  ,  ou  tempos  alguns je  confc-» 
guintjcmente  une,  e  ajunta  em  íi  toda  aquellacom- 
modidade,  que  hum  pequeno  bem  podia  ter ,  fen* 
do  logrado  por  dias  ,  ou  íeculos  ,  reduzindo-o 
G-omo  a  hum  compendio  de   todos. aquelksbensj 


Do  túftnentõào  Sitio  immoveL         327 

que  podia  ter ,  íe  f uíTe  dividido  por  dias ,  ou  por  lecu- 
los  i  c  defte  modo  vem  a  fer  em  hum  momento,  cm 
razaõde  íer  eterno  hum  bem  como  infinito  quanto 
à  duração,  que  hehúacoufa  ,que  naõ  fçpò^e  expli- 
car bem  com  palavras  humanas.  lAo ,  que  he  em  hum 
pequenobem,ou  goíto  ,  que  fera  eterno ,  como  fer  m 
em  hum  grão  de  gloria,  que  comparativamente  íc  pô- 
de chamar  pequeno ,  fe  deve  entender  também  de  hu 
pequeno  mal  experimentado  no  Inferno  de  hum  con- 
denado; que, ainda  que  padeceíTe  poucos  tormentos 
quanto  ápena  do  íenrido,  baftaria,que  efíe  pouco 
foíTc  eterno,  para  íer  hum  tormento  exceíTivoje  in- 
finito quanto  á  duração.  Ora  vede  agora  ,  fe  a  immo- 
biiidade,ouoSitio  immovel  de  hum  condenado  nas 
ÍU3S  penas  para  toda  a  Eternidade,  he  pequeno  tor- 
mento! 

Oh  Deos  Eterno  ,  e  amoroío  Rcdemptor  das 
almas!  E  que  tyrannia grande commette  aquelle de- 
pravado homem, que  hecaufa,  que  huma  creatura 
voíTa  venha  a  experimentar  a  crueldade  deíle  tor- 
mento do  Sitio  immovel  no  Inferno  !  Solicitais  a 
pobre,  e  innocente  donzella,  períuadindo-lhe  naõ 
fer  nada  o  confentir  com  o  voíTo  apetite  ,•  defen- 
quictais  a  honrada  caiada,  ou  a  recolhida  viuva, 
pondo  em  rifco  naõ  fó  o  feu  credito ,  e  a  fua  vida 
temporal ,  mas  também  a  fua  Alma  i  obrigais  ,  tal- 
vez com  ameaços  ,  e  caftigos ,  a  voíTa  Eícra va  ,  que , 
fuccede  muytas  vezes  depois  decommettido  o  pec- 
cado,  naó  ter  animo,  para  fe  arrepender,  e  con- 
feíTar ;  e  talvez  continuando  na  culpa  com  os  vof- 
íos  incitamentos,  e  niaos  exemplos  ,  virá  a  mor-" 
çer  impenitente  ,  para  eftar  padecendo  immovel- 
mente  no  Inferno,  por  toda  a  Eternidade  ,  íendo 
vôsoccaíiaô  de  tanto  dano.  Oh  barbaridade  inhu- 
mana  ,  vcrdadeyramente  LuciFerina  !  Sabey ,  que 

X  4.  ^^- 


■n 


5^8  Difcurfo  m. 

tazeisniao  o  Procurador ,  ou ,  como  diz  SaS  Joaa 

Chryfçji  Chxyioúomo,  fazeis  o  Advogado  do  Diabo:  Homa 

BomtL   Diaboh  advocatus:  procurando  tirar  as  Almas  do  Pa- 

\vam   ^'^^^'^\V^^'^  3s  entregar  ao  Demónio  a  padecer  tormea- 

^'  tos  eternos  immovelmente. 

He  coufa  labida  aquelle  grande  dano ,  c  malcfi. 
cio ,  que  fazem  no  Mundo  quafí  cm  todas  as  na» 
çpens  aquellas  depravadas  mulheres,  a  que  vòs  chai 
mais  vulgarmente  fcyticcyras  ,  ou  bruxas.  Eftas 
deígraçadis^comotem  arrenegado  da  Fé  pelo  con- 
tiâílo  fcy  to  com  o  Demónio ,  a  quem  tem  vendido 
aiua  A!ma,ficaõ  conícguintemente  inimigas  do  gc«í 
ncro  humano,  principalmente  Catholico,  cpor  if~ 
ío  proeuraó  fazerlhe  o  mal,  que  podem,  humas  ve- 
z^s  às  crianças  depois  de  bautizadas  i  naô  fazendo, 
que  percaõavida,  porque  naõ  querem, que  íc  íal* 
vem,  mas  que  fiquem  eílropeadas,  e  com  owtros 
^efeytos  por  toda  a  vida.  Outras  vezes  ainda  ás 
peíToas  mayores  com  feytiços  ,  os  quaes  lentamen- 
te caufaô  a  morte,  tomando  para  fazerem  eíks  ma- 
lefícios por  arte  do  Diabo  varias  formas  aparentes^ 
traníportando-as  o  mefmo  Diabo  a  vários  Reynos>v 
e  lugares  fummamcnte  diftantcs  ,  introduzindo-as 
cm  lugares  recônditos,  e  fechados  fem  íe  fabera 
como  entrarão ,  porque  o  Diabo  como  cfpiritOy 
que  be  forçoío,  lhes  facilita  todos  os  meyos  ,  pa- 
ra  çftas  crueldades.  Deftas  crueldades  pois  ,  c 
malefícios ,  que  cauíaò  eftas  bruxas  (  que  nem  to- 
dos ,  quantos  ellas  defejaó  fazer  ,  fazem  porque 
Deos  por  Tua  Miíericordia  o  naô  permitte  )  fuppo- 
nhamos,quehuavez  cm  hua  Cidade  fizeííem  mor- 
rer mil  peílbas.  Oh  que  horror,  oh  que  confuíaõ, 
oh  que  lamcntaçocns  íeriaõ  naquella  Cidade!  Co* 
roo  procurariaô  todos  ,  e  fariaô  diligencia  ,  para 
dcfcobrir  aquellas  malfcy toras ,  para  que  morrcírem 

todas 


Do  tOYífíento  do  Sitiommovel.         329 

todas  a  fogo  lento!  Ora  pois  fabey ,  que  naô  leria 
tam  detefíavel  o  crime  deftas  depravadas  mulhe- 
res ,  como  he  dcteftavel  o  crime  daquelle  ,  que  hc 
caufa  ,  ou  occâfiaô  de  fe  perder  huma  Alma ,  que  an- 
tes vivia  ínnocente ,  para  fe  condenar  eterna ,  e  im- 
movelmente  no  Inferno.  Dizeyme ,  qual  he  mayor 
tyrannia  j  fazer  padecer  mil  peíToas  temporalmente 
ncíla  vida  ,  ainda  que  foffe  por  cem  annos ,  ou  fa- 
zer penar  com  tormentos  mais  atrozes  mil  vezes 
huma  íó  pelToa,  naõ  íó  por  cem  mi!  milhoens  de  an- 
nos, mas  por  toda  a  Eternidade?  Oraíabey,  que 
ha  mais  milhoens  de  annos  na  Eternidade  ,  do  que 
houve  ate  agora  no  Mundo  de  milhoens  de  infan- 
tes ,  e  haverá  atè  o  fim  do  mefmo  Mundo ,  c  vôs 
lereis  a  occaíiaó,  quehúatal  Alma  efícja  para  toda 
a  Eternidade  blasfemando  ,  e  arrenegando  de  Deos,  e 
padecendo  tormentos  inexplicáveis  no  Inferno  liga- 
da,  e  atada  fem  fe  mover. 

Oh  fe  foubeffemos  bem  comprehender,  que  cou- 
ía  íeja  a  Eternidade,  nada  deyxariamos  de  obrar, 
para  cooperar  a  íalvaçaô  de  huma  Alma !  Oh  meu 
Redemptor  ,  e  Salvador  amorofo  ,  quando  coníi- 
dero,  quanto  ha  de  padecer  huma  Alma  condenada 
por  hum  gofto  de  poucos  momentos  ,  concebo 
grande  eípanto  !  Mas  mayor  he  o  meu  eípanto, 
quando confídero,  que  quizcfles  padecer  a  morte, c 
íierramar  o  voíTo  precioío  Sangue  a  fim  de  íalvar 
as  Almas,  e  que  o  derramarieis  de  boa  vontade,  fó 
por  livrar  do  Inferno,  quando  naô  foíTe  mais,  que 
a  Alma  do  Bom  Ladraõ  ,  dando  por  bem  em- 
pregados todos  Voííos  tormentos  !  E ,  que  fendo 
iftoaíTim,  haja  homens  no  Mundo,  que  procurem 
perder  as  Almasinduzindo-asa  peccar!  Oh  ccgucyra, 
oh  tyrannia  grande  /  Chrifío  como  bom  Pafíor  pro- 
curando reduzir  todas  as  Almas  ao  feu   rebanho. 


w 


350 


l-    ! 


Luc. 

ijr.7 


/  "*  V 


^^         -  ;  Difcurjo  XI 

que  he  a  gloria.,  e  vòs  como  lobo  carniceyro  revef-; 
tido  do  cfpiriro  de  Satanás  procurando  dcfenqa-í 
tíiiaharhúi  Aima  para  áconduztres  ao  precipício  do,; 
Iníerno!  Ghriilo  p,ira  á  reduzir  ,  a  torna  aos  feiís 
hombrps  .•  Et  c.um  tnvmútt  ,  tmponit  in.  humeros 
fuos  ,  e  vòi ,  para  a  pcrder,.a  procurais  dilacerar, 
e  corromper  !  Chrifto  com  tanto  gofto,  quando  a; 
tem  lucrado  :  Imponit  in  httmeros  fuos  gaudens.  E 
vos  talvez  vangioriando-vos  ,  quando  a  tendes 
perdida!  He  íinguiar  o  reparo  do  Doutor  Angéli- 
co de  naô  fazer  Chrifto  mençaó,  quando  achou  a 
ovelha  perdida  ,  do  muyto  ,  que  lhe  cuftàra  em  a 

Z>.7Ãff.Grcar ,  c  remir  com  o  feu  próprio  fangus  :  Cur  non 
âíxtt  ^inveni  ovem  meam  ^quam  emi  caro  preúo  ,  éf, 
fanguine  meo  redemi  ?  Mis  íó  fe  lembra  de  íe  ale-; 
grar,  edequelhedem  os  parabéns  de  ater  achado.* 
Gôngratulamíni  mihí  ^  quia  inveni  ovem  meam^  qua 
psrierat.  Ora  a  razaò  he  •,  porque  era  tal  ,  e  tanto 
ogoíio  ,  e  alegria  do  bom  Paftor  Chriíio  em  def- 
cobrir  ,  e  recuperar  efta  ovelha  perdida  ,  que  á  vifta. 
deíl:egoíl:o,,c  contentamento >  parece^  fe  naô  lem- 
brava, mas  antes  fe  efquecia  de  todos  os  trabalhos 
paliados,  e  que  lhe  tinha  cuftado  a-  tal  ovelha  em 
aremir  com  o  feu  próprio  fangue.  Ora  confideray 
agora,  qud  fe  he  tam  grande  o  gofio  do  noííb  ver- 
djdeyroPaíiorem  ganhar  huma  Alma  perdida,  qual 
íeráofaror  contra  aquslle  Lobo  carniceyro  ,  que 
procura  deígarrar  do  feu  rebanho  huma  das  fuás  ove-, 
lhas  !  E  vòs  talvez  imaginais,  que  naô  fazeis  na- 
da, ou  que  caufais  pouco  dano^  quando  fois  cau- 
fa,dequehiia  innoccnte  Alma  caya  no  peccado  com 
vofco  ?  Ora  attendcy  áquella   admirável  íentcnça 

D.Bertj'  ^^  S.  Bernardo  ;  Si  non  ejjent  hac  ad  mortemlempiter-^ 
nam-i  nunquampro  eísfilitis  Deifmjfet  inortuns. 

Finalmente  eíie  tormento  do  Sitio  immovcl  hç 

taò 


Do  totmífite  âo  SitkimmoveL         351 

taõ  'hofrendõ  ,  e  pcnoío ,  que  naô  faltarão  alguns, 
^ue  fe  períiiadiraò ,  que  o  fogo  do   Inferno  ator- 
mentava mais  aos  Demónios  .com  os  ter  atados,  c 
ligados,  do  que  com  o  feu  ardor,  antes  que  todo 
o  tormento  eftava  neíla  retenção ,  para  íe  nsõ  pode- 
rem mover :  Fr^/^r  ã^wí^  alkgationem ,.  qmàam  Dõ-Cdv.l\ 
iiores  nan  videntur  agnofceré  almd  fuppUatim  ahígne.  ^'^of 
Eík  íentença  porém  neíies  termos  com  razaò  he 
refutada  de  S.  Gregório ,  Santo  Agoíiinho  ,  e  mais  Pa- 
dres. He  verdade  ,  que  o  fogo  do  Inferno  fervirá 
aos  condenados  de  correntes  ,    de  algemas  ,  e  la- 
ços apertadiílimos  ,  para  os  ter  immoveis  :    riíiet  Pl^-^^ 
juper  feccateres  hqueos ,  ignís^  como  diz  o  Profeta 
Rey ;  da  meíma  forte  y  com    que  Dcos  encarcerou 
aos  Egypcios  com  as  trevas ,  ficando  como  immo- 
ve'sno  meyo  delias :  Finculis  tenelrarum  ^  &  hm- 
ga  mõiís  compedití ;.  mas  nem  por  iíTo  íjeyxará  o  tal 
fogo  t  mbem  de  queymar  ,  c  abrazar  os  meímos^ 
condenados.-  Ex  dicíU    EvãngúicU  colligere  poJ]u^ i,b  gS 
mus^ ,  quia  incendium  anima  non  folum  vidmdo ,  fed  Mor.  c^ 
ttiam  e-xperiendo  patiamr :  diz  Saõ  Gregório.  E  San-  lo^ 
to  Agoflinho  explicando  ifío  mcfmo  diíTc  aquella 
maravilhoía    íentença  ,   e  digna  do  feu    engenho; 
tMiru ,  &  inefabilibus  ,  pd  vem  modvs  ,  fanam  An^ufii 
feu  dolorem  ah  tgne  accipiet.  Quer  dizer ,  que  o  fo-  A^.tt/ 
godo  Inferno  terá    adividnde  ,.   para  queymar,  cdeCivi^ 
abrazar  as  Almas  com  hum  modo  verdadeyro,  mas  ^^^•'^'^»' 
admirável,  e  inexplicável.  Que  vem  a  kr  ,  como^'*^*®*' 
cxplicaô  os  Theologos  , elevado  pela  Diviísa  Omni- 
potência ,  para  poder    cauíar  efíe   ardor  exceflivo 
fías  Almas  dos^  condenados.  E  por  iífo  o  Rico  Ava- 
rento»  quando  pedia  a  AbrahaÕ  refrigério  nas  fuás 
penas,,  fez  expreífa  mençaò  do  fogo  ,  e  incêndio,, 
em  que  ardia  :  Crucior  in  hac  flawma  ;p?íY^  moíirar,- 
que  juntamente  com.  o  tormento  de  eíiar  ligado,  ©:■ 


/      ! 


331  Difcítrfo  XI. 

immovcl  dentro  do  fogo ,  padecia  o  tormento  de  fcr 
Aíattk '  abrazado  do  mefmo fogo :  Crucior  inhacflamma:  miu 
te  Lazarum ,  ut  refrigeret  Itnguam  mzam.  Donde  ve- 
nhainos  a  concluir ,  que  hum  ,  e  outro  tormento  cau* 
íará  nos  condenados  aqueile  fogo  abrazador  do  Infer- 
^  •  noj  a  faber,  o  queymn* ,  e  abrazar,  e  ter  ligados,  c  im- 
nioveisosmeímos  condenados. 

Efte  tormento  pois  do  Sitio  immovel ,  tam  ter* 
rivel  para  os  condenados ,  he  huma  pena ,  e  hum  caf- 
tigo  juílamente  devido  a  todos  os  precitos  ,  para 
caftigar  o abufo  da  íua  liberdade,  da  qual  íe  íervi- 
e         raõ  para  oíFénder  a  Deos  em  todo  género  devicios. 
Eílâ  liberdade,  que  por  outra  parte  he  o  melhor 
.  predicado  do  homem  ,  e  pelo  qual  fe  diíVmgue  dos 
brutos,  hehumas  vezes  @  vèo,  com  o  qual  perten- 
dem  os  homens  defculpar  as  fuás  maldades ,  como 
^^^r-    diz  o  Apoftolo  Siô  Pedro:  G^iiafi  velamen  habeníes 
«P'fi''^-mditÍ4;  libertawn.  Quereis  obrar  o  que  vos  dita 
*-        a  voíTi  piyxaò ,  e  o  que  vos  incita  o  voíTo  appetitc 
defenfreado  ,  c  depois  voí  quereis   eicufar  com  a 
liberd  ide ,  que  Deos  vos    deu  ,  dizendo  ^   que  de 
outra  maneyra  naò  fereis  livre,  mas  antes  vivireis 
cm  hum  continuo   aperto ,   e  eftrciteza ,  fazendo 
naô  de    Senhor,  que  fois,  e  livre,  mas  de  fervo, 
c  ligada  ;  que  he  o  que  diíTe  Jere.nias  fallando  de 
íemelhinres  homens  depravados  em  nome  de  Deo?: 
ftrem,  Confregifti  jugum  meum  ,  dirupifti  vincula  mea  ,  & 
^t  \.     dixifii,  mn  ferviam.    Ora  fabcy  ,  que  cíie  he  hum 
delírio_^  que  naò  pôde  entrar ,  fcnaô  no  entendi- 
mento, ou  de  hum  mentecipto  ,  ou  de  hum  fotaU 
mente  depravado.  O  jugo  ,  que  Deos  vos  poz ,  hc 
fuave.  AfuaLey  como  tam  jufta,  e  conforme  à  ra- 
zão, naõ  he  deftrudliva  di  voíTa  liberdade  i   por- 
que a  podeis  exercitar  em  evitar  livremente  o  mal, 
e  cm  eícolher  entre  as  couías  licitas  aquclla ,  que 

me- 


Do  tormento  âoSUioinmíyveL        313 

melhor  vos  parecer,  c  aflim  a  voffa  liberdade  naõ 
vos  pôde  ícrvir  de  vèo ,  ou  de  capa ,  para .  oícuíare» 
os  voíTos  vicios.  Por  outra  parte  íabey,  que  Deos 
Senhor  noíTo  hc  zclcfíílimo  do  fcu  domínio  ,  que 
tem  íobre  todas  as  crcaturas  ;  porque  cflè  domi* 
nio  he  como  a  melhor  joya  da  íua  Coroa,  e  co- 
mo o  timbre  do  império  univerfal  ,  que  tem  fo- 
bre  todas  as  couías  creadas  j  e  aíiim  naô  coníenti- 
rà  mais  ,  que  as  crcaturas  racionaes  por  abufo  do 
livre  alvedrio  ,  com  que  as  creou  para  íua  mayor 
perfeyçaô ,  e  merecimento ,  queyraõ  com  cfte  pre*- 
texo  zombar  ,  abuzar  ,  e  dcfprezar  as  íuas  Leys, 
e  os  feus  preceytos  5  e  por  iflb  caflígará  com  todo 
o  furor  da  fua  juíiiça  efta  arrogância  dos  peccado» 
res,  com  o  tormento  do  Sitio  immovel  .•  Eant  mmo* 
hiks  quafi  lapCs, 

A  liberdade  do  homem  fe  explica  de  deus  mo- 
dos. Humahe  exterior,  que  íe diz  liberdade  de  mo- 
vimento, com  a  qual  nos  podemos  mover  ,  e  dif- 
correr,  por  onde  quizermos.  A  liberdade  interior 
confíík  em  humadifpoíiçaô  livre  da  noíTa  vontade, 
dos  noíTos  penfamcntos  ,  c  fentidos  ,  dos  quaes 
Deos  deixa  o  governo  ao  noíTo  livre  alvedrio.  Eflas 
duas  liberdades  ,  aíTim  exterior  ,  como  interior , 
quando  íaó  peccaminofas ,  caíiiga  Deos  com  o  fup- 
plicio  da^  immobilidade  ;  Ftant  immobihs  quafi  la-^^^^ 
pis.  Da  immobilidade  exterior,  temos  já  fa liado, ^^«.,1.. 
e  mofírado  ,  qual  íeja  ,  da  maneyra ,  que  íe  pôde 
explicar  por  íentimcntos  humanos.  Da  interior, 
que  he,a  das  potencias  da  Alma,  devemos  íabcr, 
quehe  ainda  rnsis  penoía.  He  pofíivcl  (  dirá  hum 
condenado  )  que  além  da  immobilidade  dcfíe  infa- 
me corpo  j  que  naô  fez  outra  coufa  ao  Mundo, 
que  caminhar  pela  eíirada  larga  dos  íeus  appetites^ 
c  torpezas  ^  haja  também  cila  minha  Alma  ,  que 

hc 


}\    !i   fl  r 


;!*  ] 


,  -i^íiff 


irii 


II 


he  efpínf^éfcâdo  áíemeliiança  de  Oeos  i  Aâ  intép-^ 
Genef,    'gif^^fn  y  ór  Jímilimd^^  padecer  o  tor- 

cap.%.  iocnto  do  ^itio  immovel  em  C\ ,  e  em  todas  as  Aias 
poccneias  ,  quaes  faô  a  Memoria  ,  Entendimento, 
fi  Vonrade  ií  Oh  dçfgraça  grande  !  i  Oh  tormento 
acerbo  jíCíioexpíicavèl  l  Queijo  co^po  ^shum  con, 
denado  fique  immovel  para  íemprc  no  Inferno  ,  tor^ 
mento  he  exceíllvo  ,  como  temos  viíio.-  mâs  que 
a  Memoria  fique  immovel ,  o  Entendimento  iiTmo- 
yei ,  e  a;  Vontade  immovel,  parece  agora  ao  noíío 
mefmò  entendi.mento  CGufa  imperccptivel  !  Nefte 
Mundo  naô  íuceede  aíllm  \  íuccedc  tal  vez  por  cau^ 
ia  de  hum  reumatifiiio/ou  debuma  gotta  artetica, 
fickr:  hum  homem  privado  do  ufo  de  pés  j  e  mãos  \ 
etde  todos  os  membros  do  corpo ,  c  íó  ter  a  lingoa 
expedita  para  prorromper  em  ais  fentidos,  e  deíeí-- 
peradosjmas  £em.  íe  poder  mover  em  parte  alguma 
do  corpo  por  caufà  das  duplicadas  dores  ,  que  íen- 
te  neftes  movimentos.  Porem  com  ifto  fer  afiirri 
f  como  su  notey  alguma  vez  )  lhe  fica  a  memoria  li- 
vre,parâ  fe  poder  lembrar ,  ao  menos  em  algun^as 
.  horas,  de  algumas  coufas ,  qu2  0  alegrão  ;  e  o  en- 
tendimento ^  também  expedito, para  de  algum  mo- 
do difeorrer;  e  muyto  maiS' a  vontade,  para  íe  po- 
der confirmar  com  a  vontade  de  Deos  ,  moíirar 
paciência  no  feu  padecimento,  e  efcolher,  ou  acey^' 
tar  aqiielles  remédios,  que  lhe  parecerem  mais  con-;, 
venientes  ;  e  finalmente  períuadido  o  entendimen- 
to,  que  o  mal ,  ou  bem  defte  Mundo  ,  pôde  durar 
pouco  ,  íe  ani;i;a  o  doente  com  eíla  confideraçaõ 
a  fófrer  com  paciência  as  íuas  dores, c  a  oíFerece- 
las  a  noíTo  Senhor  J£SU  Chriíb. 
í  Aííi  Tl  o  fez  hum  S.  Lourenço  abrazado  ,  e  aíTa* 
do  fobrc  hunas  grelhas  deferro.com  fogo  lento  por- 
líayxo.  AíTim  -o  fizeraò  hum  Saô  Clemente  ,  hum ' 
-  .  S.Vc- 


Dõ  tormenta  do  Sifk  immõveh       935 

S.  Venâncio  ,     t  outros  innumexaveis     Mártyres, 
que  padecendo  pela  ,-F*é    rigoroíiffimos     tormentos 
louvavaõ  a  Deos.,  conhecendo,     que  todas  as  mo* 
íeí^ias  ào  íeu  martyrio  haviaô  de  acabar  brevemen« 
te  com  huma  Coroa  de  gloria,  Epara  que  naò  aie- 
gtieis  ,  que  íó  as   mayores  Santos  com  o  luiiie  da         .,. 
fé  podiaò  moíirar  efla  generoíidade  de  animo ,  letn- 
brayvos  do  valor  ,  com  que  alguns  ainda  gentios,^ 
guiados   íómeHtc  com  o  lume  da   razaõ   iofréraõ 
intrepidamente  as  tormentos?  porque   fe    pcrfua» 
diao,  que  todos  as     tormentos  ,  e  moleflias  deíla 
vida  duravaõ  pouco,  Aqueíle  iníigne  Varaò  Ana- 
xarcojmuyto  favorecido  de  Alexandre  Magno,  foy 
fempre   contraria  aos  pcíTimos  coftumcs  de  Ana- 
creonte  tyranno  de  Chipre.,  Morto  Alexandre  Mag- 
no ,  tratou  o  tyranna  de  vrngarfe  deile  com  huma 
sr.orte  barbara  ^  e  deshumana.  Fez  meter  em  hum 
Hiortcyro  grande  de  bronze  a  Anaxarco  bem  liga- 
do, e  depois  pilalo  em  fua  prefcnça  com  dous  pi- 
ioens  de  ferro.  Anaxarco  porém  fem  dar  hum  ío 
gcniido  ,  nem  lançar   huma  fó  lagrima  ,  lhe  fdliou, 
deRc^modo  ;     Ttmde  ,  tiinde ,.  Tyranne ,  hoc  mmm^^^^^^^^l 
vasfiãik^  Amxarcum  nm  ttindes.  FiU  ^  pila  ,  ò^/^!|jf 
Tyranno  ,,  eíie  vazo  frágil  da  meu  carpo  r  porem 
defenganate,  que  íiaõ  poderás  pilar  o  animo,  e  al- 
ma de  Anaxarco.  Tanto  he  verdade , que  a  Alma  com. 
ás  fuás  potencias  he  livre, para  mandar,  e  fer  íuperior 
nos  mayores  apertos  do  eorpo. 

No  inferno  porem  naò  íerá  aíTim.  Sc  acondé- 
mào  rivcire  a  vontade  ,  e  o  entendimento  livre-/ 
parad:ifcorrer,eíqueccndo  fe  aiguas  vezes  dosfeus-' 
peccados  ^  para  eonfídera^^  em  algumas  coiaías  ale-' 
grés,  e  goíicHis^aánd*  que  qéim eriça s ,  naõ  íeria'^ 
talvez  o  íeu  iiiferno  tam  pcnofo.  Mas  mo  heaílim;; 
porque  na  candenado  tanto   a  libcidade  do  feu  li« 

vre: 


^ 


Caiet. 
art.i. 


t  l  !  >, 


I  I  i> 


r 


^5^  Difcurfo  XL 

vre  alvedrio^  como  o  diícurfo  do  entendimento, 
tudo  fera  fixo»  ligado,  e  immoveli  principalmen> 
te  para  tudo  aqui  lio,  que  for  de  gofto  ,  e  recrea- 
ção :  Detmbiutr  intelle6íus  ad  conjiderandum  ,  & 
mlmtas  ad  deteftandum.  (  dizem  os  Santos  Padres) 
O  entendimento  eihrá  fempre  ligado  ,  para  poder 
coníiderar  coufa  alguma  fora  daquelie  objcdlo  con- 
trario ao  íeu  génio,  de  pena  ,  c  aborrecimento  à 
fua inclinação,  e  a  vontade  também  ligada,  ainda 
para  detefíar,  e  arrepsnderfe,  em  modo,  que  lhe 
feja  de  alivio  ,  &  voluntas  ad  deteíiandum.  De  ma- 
neyra  que  aífim  como  no  Paraiío  he  o  lume  da  glo- 
ria ,  o  que  corrobora  o  entendimento  dos  Bema- 
venturados  para  verem  a  Deos ,  e  defla  vifía  lhes 
procede ,  que  neceífariamente  o  amaò  com  a  von- 
tade; aífim  também  no  Inferno  ha  hum  certo  lu- 
me de  pena,  e  de  infâmia  ,  que  liga  o  entendimen- 
to dos  condenados  ,  e  obriga  a  vontade,  e  todos 
os  feus  íentidos  ,  e  potencias  ,  para  naô  cuydaf, 
nem  attender  a  outra  couía  ,  que  áquelles  objedlos, 
que  lhes  podem  caufar  pena  ,  affliçao  ,  c  defefpera- 
Ç3Ó :  Teccator  videbit  ,  &  irafcetur  ,  dentibtts  fuU 
fremet,  &  tabefcet.  Quer  dizer:  o  peccador  verá, 
c  conhecerá;  mas  conhecerá  ,  e  verá  íómente,  pa- 
ra íe  infurecer,  para  íe  morder,  e  para  ranger  com 
os  dentes,  epara  pafmar  de  confuíaó,e  vergonhaj 
bradando,  e  amaldiçoando  odia,e  ahora,emquc 

naíceo. 

Oh  Eternidade  do  Sitio  immovel ,  que  todas  as 
vezes,  que  te  coníidero,  me  faz  tremer  de  medo, 
e  pafmar  deefpanto!  He  poíTivel  que  aífim  o  cor- 
po, como  a  Alma  de  hum  condenada  ,  com  todas 
as  íuas  potencias  ha  de  cftar  fempre  ,  e  eternamen- 
te fixa,  para  coníiJerar  fomente  o  que  for  delwr- 
ror,  c  efpanto!  Oh  deígraçado  de  mim  ,  fe  vi- 
'  vendo 


Do  formem  âõWwimmovel         3$7 

Venda  em  huma  Religião  tam  fanta,  occapo  oníeu 
entendimento, €  vontade,  em  cuydar  oatra  couía 
ióra  da  minha  falvaçaõ,  e  dos  meus  próximos!  Oh 
deígraçados  todos  aquelles  peccadores,  que  occu- 
pados  cm  cuydar  fomente  nas  vaidades,  e  torpezas 
do  Mundo,  rcípondcm ,  quando  faõ  admoeflados,e 
Teprchendidosypara  cuydar  em  Oeos  ^  ou  na  Éter- 
iiidade  ,  refpondem  ,  digo ,  que    naõ  tem  tempOj 
para  ofazer !  Ora  fabey ,  que  no  calabouço  do  In- 
ferno, de  queDcos  vos  livre  -,  tereis  menos  tempo, 
antes  nenhum  inftantc  ,  e  nenhum  liigar  ,  para  euy- 
daresem  eoufa  alguma ,  que  vos  pofía  dar  alivio.  Sen- 
do o  tempo  tanto,  e  taô  largo,  quanto  íerá  huma 
Eternidade  ,  naõ  tereis  tempo ,  para  coníidcrar  em 
Coufa^  que  vos  pofTa  confolar ,  ou  dar  o  minimo  go-    ^ 
í^o :  Detinebitur   intelleãus   ad  conjiderandum.  Sô-  4^ 
mente  tereis  na  memoria  ,  para   vos  lembrares  ^  e 
no  entendimento  para  conííderares ,  a  fealdade  das 
voffas  culpas  ,  e  a  enormidade  das  voíTas  torpezas; 
mas  nao  ,  para  vos  arrependeres ,  nem  para  as  de- 
tcftares  em  modo,  quevos  aproveyte:  Et  voluntas 
ãd  deteftandum.  Nefta  vida  naô  achaftes  hum  quar- 
to de  tempo,  para  vos  afafíar  dos  homens^  e  cuy- 
dar cm  Ocos ,  ena  voffa  ialvaçaõ  .•  là  no  Inferno  j4 
compungidos  fereis  pcrfcytos  contemplativos  fcm  a 
menor  difíracçaò^  mas  contemplativos  meramente 
da  voffa  defgraça,  e  da  voíTa  eterna  miferia.  Nefla  vi- 
da não  pudeíks  ouvir  híía  Miffa,  nem  rezar  hú  Ro- 
zario  íem  inííràtasdiílracçõesí  làíio  inferno  fem  dií- 
tracçaõ  alguma ,  que  vos  poCa  aliviar  ,  considerareis 
íemprena  voíTa  grande  defgraça  de  fer  condenado  a 
folFrer  eternamente  o  tormento  do  Sitio  immovcb 
Ftant  immobtles  quafi  lafis, 

Compáraò  alguns  a  Eternidade  á  Roda  de  hum 
Relógio ,  a  qual ,  girando  fcmpíe ,  ,cílá  com  tudo  fí- 

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xa  qa^ntoí  a©  ey^ío  ^  ;Qtu  poDto  do  mcj^o.  Masí  firt 
comparo  com. o  Profeta  Ezcchiela  duas  rodas  hmano* 
mcyo da  outra;  Rota  m  médio  Rota.  à  roda  de  fó- 
iw^io.  Mheaquella  EterQidade  de  petias^quc  gka  íobre  o 
corpo  condenado  y  teade-o  ferapre  fixo»  e  immo- 
ircl  no  mefmo  Siíio.  A  roda  de  dentro  he  aquella 
Eternidade  de  penas ,  ,e  confuíaõ »  que  lhe  gira  den*- 
itro  da  Alma,  tendoa  ligada  com  todas  as  íuas  poten*^ 
cias,  para  aaô  cuydar  » nem  fe  íembrâr  de  outra 
coufa  ,  íenãada  fua  roiferia  ,  confuíaõ  ^  e  defgraça^ 
Besiter  Hc  como  hum  moinho  de  duas  pedras  molares.':  In- 
^P.ia]  feriorem-y  &  fuferiorem  moíam  ,  que  eftando  a  pe- 
■dra  molar  ,  que  fica  debayxo  ,  fempre  immovel  no 
meímo  Sitio  ,  a  de  (ima  a  vay  moendo  ícmpre ,.  e  cal^ 
cando  fem  nunca  parar.  O  condenado  pois  com  o 
^orpo,e  Alma ^fempre  immovel  DO  mefmo  iitio  ,  e 
no  meímo  ponto  5  e  a  Eternidade  de  penas ,  e  de  tor- 
mentos ,  ícmpre  girando  fobrc  elle^  íem  mais  ccf- 
far.  Efte  he  pois  do  modo,  que  fc  pódc  explicar 
por  alguma  maneyra^  o  t^  rmento  do  Sitio  immovel,^ 
que  padecerào  os  condenados  no  Inferno  f  e  por 
muytoque  gemaô^  gritem, e  chorem  debayxo  da^ 
[•  quellapÊzadiíTima  pedra  molar  da  Eternidade,  naô 
ícraô  ouvidos -/^í^vy  moU  ncn:  audittur  amplws.  A- 
quiíe  íegug  agora  O' deíengsno  defíe  diícurío ,  que 
Goníiíts  na  reíohiçaõ  ,  que  devemos  tomar  -^  eonB- 
derando r,  que  naõ  be  ainda  dada  a  fentença  da  noíTa 
condenação  ^e  que  aioda  temos  tem  pode  fugir  o  In- 
ferno, e  ganharoParaiío.  Oh  infeliz  de  quem  len- 
do ,6  ouvindo  eflas  verdades,  naô  fe  reíolvc  adey- 
vxar  para  íempre  o  peceado!  Oh  defgraçado  daqucU 
'ie,  que  para  fatisfazer  a  huma  payxaô  deícnfrcada, 
a  hum  goíio  momentâneo  ,deyxa  a  Deos  pela  crea- 
Uirâ ,  renunciando  a  Bcmavcnturánça  C  como  diz 
S,  Bernardo  >  para  íe  fepultíyí.paraÍ€mpre  cro^bumia 

COfl- 


Dú  tormento  do  Sifioimmovel         3 3 ^ 
continua  miícria:  Pofi  tanttilamvoluptatem  éUrna  J^-Btrni 
mtfma,  A  qual  confiíie  cm  grande  parte,  como  atè'^^''^ 
agora  temos  vifto ,  no  rigovoío  tormento  da  immo- 
bilidadc ,  aííim  do  corpo, como  da  Alma,*  Hant imme'^ 
éíles  quafila^ps,  á"^. 


li  i 


] 


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mmmmim 


TORMENTO  DA  PEISTADO  UANNO 


DISCURSO  XII. 

r  - 

Do  tormento  da  pena  do  Dano. 

,  ^      Vos  nonfopulus  meus  ,  &  ego  non 
erovejier»  OÍQXT* 


Hifltr: 


Endco  Henrique  Conde  de 
Bcrgh  â  importante  praça  de 
Bolduc  em  Flandres  aos  Olan- 
dczes,  fem  ter  fey  to  no  cerco 
a  devida  reíiftencia  ,  que  ^'e-^T'^^ 
querem  as  leys  da  guerra .  Foy:  ^^  ^'  "" 
depois  o  Gondc  á  Corte  de 
BruíTeilas, para  dar  fatisfaçaô 
á  Archíduqueza  de  Auftria  D. 
I'fabcl,que  em  nome  deElRey  Filippe  Segundo  gover- 
nava aquellcs  eftados;  porém  efcaçamente  appareceo, 
na  audiência ,  qite  logo  a  Archiduqneza  ,  dcícend  o 
parte  do  vèo ,  que  tinha  na  cabeça  ,  cobrio  o  rofto  ,  e 
diffc.  Nem  vôs,  Conde,  ícreis  nunca  mais  noffo  folda- 
do ,  nem  nds  a  YoíTa  Princeza.  E  aíTim  dito ,  foyfe  vi» 

Y  3  ran4 


34*  Difcurfo  XI L 

rando-lhe  as  cofias.  Quem  o  cuydàra !  Perturbou  cf. 
,j_.  te  fuccçílp  ÚQt^  1  íorte  ao  Co.o"de,.que  tiem  jy^ia  ^s^fírta 
/■'.■  da  antCGàfiní^ra  ,  netótiíkva  a  íáíiir  ,  por  ondt  tartt^s 
?  vezes  eotrou ,  e  levado  depois  no  cpche  para  íua  càfa, 
';?,  .antes  defcehar  cres  dias  morreo.  Julguem  agora  os 
peccadores ,  que  perturbação  íerá  aquella  de  íucpri- 
"';■:  dcnado  ,  a qiícm  Dcds  efconderá  para  femprc  õfcu 
Divino  rofto ,  face  caô  fermoía ,  que  quanto  mais  os 
Efpirité^s  Angélicos  ,  e  os  Beaiavcnturados  a  eftaõ 
vendo ,  fempre  mais  a  deíejaõver  :  In  quemdeJiM'' 
rant.Angehfr&Jpicere.EouvixB.Q^qnt\\^%íoni\iád^* 
^^'  '  veis  palavras ;  f^QS  mn  fapuhs  metis^  é'  ego  non  ero 
*ucfter.  Vòs  nsõ  fereis  mais  meu  povo,  c  eu  nunca 
mais  íerey  voífo  Deos  ^^  para  vos  fazer  àiguni  bem. 
Eftas  palavras  bem  confíderadas  hb  o  ultimo  rayo 
do  furor  Divino,  que  rediíz  a  hum  condenado  no 
abifmo  mais  fundo  da  dcfeíperaçaô.  Que  Deos  efíeja 
fem  mim  ,  poiico  importa.  EUe  baí^a  a  fí  mefmo; 
nem  cti ,  nem  as  creatiiras  todas  ,  fazemos  falta  al- 
guma àa  íer  Divino  ,á  fua  gloria  intrinfeca,c  á  íua 
Bem?.venturança  ;  mas  que  cu  para  íempre  haja  de 
fer  privada  da  viíia  de  Deos ,  ter  por  titulo ,  por  no- 
me ,  e  na  realidade  o  naô  íer  nunca  mais  fua  creatu- 
ra  •  N072  Túptdus  meus.  Efta  he  a  mais  horrível  de 
iodas  as  penas, lie  o  tormento  dos  tormentos,  hc<s 
^  inferno  (direyaííjm,  e  digo  bem)  he  o  Inferno  do 
meímo  Inferno.  E  eíla  he,  a  que  os  Thcologoscha- 
maõ  pena  do  dano;  que  (  como  diz  S.  Dionyfio  Areo'* 
pagita  )  coníifte  em  dons  termos.  Em  huma  apetência 
violenta ,  c  fátua  de  peffuii'  a  Deos :  Ctifiditas amem-, 
c  em  hum  ódio  implacável,  que  lhe  tem  ,  de  que 
brota  hum  furor  inUtil,  que  o  traníporta  no  mefmo 
inftante  em  o  querer  deftruir,  e  aniquilar:  F/zr^r 
inutilu.  Como  a  alma  de  hum  condenado  tem  no  In- 
fernOj  além  de  huma  relação  reciproca ,  huma  total 

-j>   -  de- 


DotõYffJento  da  pena  dv  Dãfw.         343 

^pendência  de  peos ;  e  cntaò  melhor  o  conhece 
porfcu  Summo  Bem,  dcíeja  em  extreino   unirfevi 
clle;e  como  por  outra  parte  pelo  peccado  elU  ne- 
ceíTariamente  ícparado  delle  ,e  otem  por  feu  inimi- 
go mortal,  quizera  loucamente  defíruilo  ,  e  aniqui» 
lalo.  A  pena  impcrceptivei  ^  e  a  dor  inexplicável, 
que  nafce  da  rcuaiaõ  quimérica  deites  dous  extremos 
incompatíveis.  Defejarcom  anxiedade,o  que  nun- 
ca ha  de  ter ,  c  odiar  ncceíTariamente,  o  que  íempre 
ha  de  defejar:  Cupiditas  améns  :^  furor  inutilís :  ef- 
tes  dous  pontos  íaõ  as  duascolumnas  de  Hercules, 
quencftctaô  difficultoíodiícuríodcnotaõo  nonpltts 
ultra  do  inexplicável  tormento  da  pena  do  dano.  De- 
íèjar  Com  anxiedade,  oquenunea  peíTuirà,  e  odiar 
neceíTariamente ,  o  que  íempre  deíejarà.  Quem  per- 
ceber bem  atèonde  chegaõ  eftes  dous  movimentos 
contrariosda  Alma  de  hum  condenado  íóentaô  fará 
conceyto  cabal ,  e  adequado  ,  do  que  he  a  pena  do  da- 
no.Eemquanto  eu  com  hunslonges  avou  delinean- 
do^ peço  ao  pio  Leytor ,  que  de  quando  ,  em  quando 
pare,  e  feche  os  olhos  do  corpo,  e  abrindo  os  da  Alma 
a  coníidere  devagar,  e  com  attençaò. 

He  coiíía  horrível,  o  perder  a  Deos ,  ainda  que 
agoranaõ  íabcm  os  peecadores,  o  que  perdem.  Nc- 
rte  Mundo  fóconhecemos  a  Deos  como  por  enigma,  i.Corl 
como  diz  Saô  Paulo:  Vtdtnms  num  per  j}ectilum  /«^"PriJ? 
enigmate    Quer  dizer,  com  hum  conhecim.ento  cí- 
curo  ,eabíh'adivo,  em  tudo  dependente  dos  íenti- 
dos,  e  aíTim  a  modo  de  meninos,  mais   nos  move 
qualquer  objeclo  material.  Elle  mefmo  aí31m  o  ex- 
perimentou ,  e  cm  nome  de  todos  aflim  o  confeíTa: 
Cum  ejfemparvulus^  loquebar  ut  parvulus  ^fapiebam  '•^'^'^s 
iit  parvtãus  ^  cogitdbam  ut  parvulus.  Daqui  nafce,  , 

que  o  ouvirmos  fallar  de  gozar,  ou  perder  a  Deos 
naô  faz  na  noíla  Alma  ,  e  ao  noíTo  coração ,  mais  que 

Y  4  híia 


,. 


I 


344  Dtfcurfo  XÍL 

húa  leve  imprcffaô  de  doçura ,  c  íuavidade  de  huni 
bem  infinito  ,  ou  do  immenlo  pélago  do  Inferno,  em 
que  íe  afunda ,  quem  o  perde.  Mellior  me  explica^ 
reydizendo^aííim.  rSe  huma  mây  tendo  filhos  de  me- 
ntir idade ,  lhes  fallaíTe  defte  modo  ,  voíio  pay  era 
Fidalgo  muy  illuftre,  grande  titular,  c  abundante 
de  riquezas /porem  por  hum  crime  delefa  Magefta- 
de ,  e  de  primeyra  cabeça  confifcàraõ-lbe  todos  os 
bens  para  a  coroa ,  deraõ  o  titulo  a  outrem ,  e  depois 
de  lhe  tirarem  a  vida,  declarai  aò- opor  infame,  ti- 
raEido-lhe,e  a  toda  noffa  geração  a  nobreza  \  c  por 
iRo  vivemos  pobres,  e  deíprezados  nefía  extrema 
miferia.  Que  impreffaó  (  pergunto)  faria  eíle  dikui> 
fo  naquelles  meninos?  Taô  pouca  faria  ,  que  maisi 
íentiriaô  tirarem-lhes  hum  fruto ,  que  íiveffcm  na 
maõ ,  declarando  logo  a  fua  pena  com  choros  ,  c 
alaridos ,  que  naõ  toda  a  dei  graça  de  feu  pay,  e  tam^ 
bem  própria»  Que  a  Igreja  Catholica  chore  a  mor- 
te de  noíFo  Senhor  JESUGbrifto,  íeu  amado  Efpoío, 
vendo  ,  que  os  feus  filhos ,  o  tornaõ  a  crucificar  com 
Heh,    o&feus  peccados.-  Rurfus  Crucifigentes  FíUumDeh 
Mf.  6.   e  que  mande  intimar  pelos  Pregadores  nos  púlpitos  Q 
muyto,que  perderão,  perdendo  a  graça  de  Deos, 
G  o  fogo  do  Inferno ,  que  merecerão ,  c  para  íemprc 
haõ  de  foffrer  ,  fe  naô  fe  emendarem ,  he  coflumc 
jiuílo  ,  util ,  e  ncceííario  ;  mas  com  tudo  vemos ,  que 
toda  efta  perda,  e  dano  irremediável ,  faz  taô  leve  im- 
preíFaõ  nos  ouvintes,por  fer  objcdo  diflante,e  efpiri- 
tual, que  mais fentem ordinariamente  os  pcecadores 
qualquer  perda  temporal,  eprefen^te.  Mas  naõ  ha  de 
fer  fempre  aíl5m.  No  mcímo  inftante  ,qu€  a  Alma 
de  humpcccador  íahedo  eorpo,  a  modo  de  quem 
fe  deípcrca  de  hum  grave  foflo :  §luiijl  tvigtlans  de 
gravifomno.^^;  fua  entrada-  ^©Inferno,  o  primey- 
ro  objcdo  ^q^uefc  lhe  rcprcfciitarà  íerà  Deos.  Affini 

ÍUCGCi- 


Genef. 
4f. 


Do  tormento  da  p^naêúf  Daf^»        34Í 

fiicccdeo  ao  Rico  Avarento.  Em  quanto  clieve 
nefte Mundo,  naô  tratou  mais  que  do  leucorpo,ve- 
Íiind0'0  de  purpuras,  olandas ,  c  galas ,  c  regalandd^p 
em  banquetes  com  prcciofos  manjares  ;  Induebaiit 
fnrpura ,  &  byffo ,.  &  epíflabatur  quotidiejpkndide,  E 
logo i que  fe  viono  Inferno,  oprimcyro  movimen- 
to )  que  fez ,  £oy  levantar  ps  olhos  para  o  Çeo  ;  Cum 
ejfet  in  tormentú ,  kvavit  óculos.  ]k  conhece  a  felice 
íorte  ,que  tocou  a  Lazaro.  Jà  fc  lembra  de  Deos ,  c 
por  ifto  recorre  ao  pay  Abrahaô :  Pater  Abraham  mi'  Lhí^ 
fereremeij  mitte  Lazarum.  Jà  fc  contenta  para  feu 
alivio ,  que  Lazaro  lhe  leve  hua  gotta  de  agoa  na  ex« 
tremidadc  de  hum  dedo.  Que  Freneíís  he  efíef  E 
que  tem  que  fazer  hua  gotta  de  agoa  com  hum  incên- 
dio de  fogo?  Ah,  que  a  fede,  que  abraza  ao  Rico 
Avarento,  he  o  apetite  innâto  de  ver  a  Deos, como 
bem  o  diíTc  David :  Sitivit  anima  mea  ad  te  Deum 
f ontem  vivum ,  quando  venUm ,  &  apparebo  ante  f a-  ^P*''^  ^ 
ciem  Dei,  E  como  conhecia  já  claramente  ,  que  a 
fonte  viva  da  graça  já  naõ  era  para  cllc  y  pois  o  cami- 
nho único  para  íá  chegar,  era  o  ter  vivido  nefte  Mun- 
do como  Lazaro  y  c  como  Abrahaó ,  e  vendo ,  que  já 
na5  cftava  in  via ,  para  o  poder  fazer ,  por  iíto  cfta- 
va  lacerando- íc  intrinfccamente  com  hum  defejo  fá- 
tuo, c  com  hua  anxiedadc  frenética :  Cupditas  amem^ 
mitte  Lazarum. 

Será Ic^o poífivel , que  a  lembrança  de  Deos,  c 
do  Parai  fofírva  de  inferno  mais  pcnofo  aos  condena- 
dos. Aílim  he  íem  duvida,  e  a  perda»  que  tem  fcy- 
to  de  Deos,  he  o  mais  cruel  dos  íeus  tormento?  í  pois 
fe  ellespK>dcírem  efqueccrfede  Deos,  e  do  Paraifoj 
naõferiaôemhom  certo  modo  Precitos.  Diz  o  Pro- 
feta David,  que  o  peccador  verá,  c  fe  enchera  de 
raiva,  fremirá  com  os  dentes  ,  e  pafmarà  de  pena: 
Feccater  vídebít  y  &  irafcetiir  y  dentihus  fuis  fremet^ 

à-t^z 


I  í 


Sifp.^. 


AftgJ, 

Z.Conf. 


& Mhfiêt.  Eis- aqd i  os  t re&^ôbjeélòís  da  fua  vífta-^  « 
dá  ília  contém piaÇáõ.  Qac  tem  perdido  a  Dcos ;  que 
ò  tem  perdido  pòr  íuâ  culpa ,  e  vontade ;  e  que  o  tem^ 
perdido  por  cotifas^  de  pouco  miais  de  nada.  Seria 
«eGeíTariò  Goiíhecet  idtiiitíVamente  as  infinitas  per- 
feições de  Dedsvp^ra  comprchcEider  a  perda  inex- 
^lÍGàVel  do  Paràiío/Eriíiijiíaftto  vivemos  íiefte  Mun- 
do ,  naõ  fentimoi  â  lídiaô  natural  ,  que  ha  entre 
Dcos,e  as  nofe- limais;  ca  correía^aò  neceííaria, 
que  ha  entre  o  Gtàdó¥^  V  e  a^  círeaturâs.  ■  O  peíb  de- 
âc  noffo  corpo  aííaÉa  domírgb  a  ^Inia^  a  eflas-couías 
dã terra:  Corpus^  qmdtoffêinpUur^  àggravat-am' 
mam.  Eeomo  naò  conhecemos  a  Deos  ic  naó  abílra- 
(flivamente  pelascreãturas,  fazemos  pouco  caio  de 
o  perder,  par  eaufa  delias.  Porém  no  Inferno  na& 
heaífim.  A  Alma  defa pegada  dos  noíTbs  íentidos,  cd^ 
nhecè  cntaô  claramente,  que  lhe  he  mVpoíIivel  i  bern 
Deos  >  gozar  da  Bemaventurançâ  vrépátà  no  grande 
bem, que  tem  perdido  ,e  no  miíeravel  eftado  ,  em 
que  fe  acha.  Aqui  exclama  Santo  Agoftinho.  Ah  ,  que 
torinento  inexplicável  fera'  Gónhecer  a  Deos ,  d^poia 
de  o  ter  perdido !  §uam  hornndum  efiviâlre  Dèuú^ 
^  pgydcfc  f  •'  í^"fÊ''<  *  ^VU' 4íí*i  íí »' cj  íj  oi  íí 

Ss  o  Inferno  foíTe  capaz  3c'*árgiima  cortfôlaçfíô^ 
aquelles  Gentios,  aquellès  Megrosbuçâis  >  aquellcs 
índios ,  Idiotas  ,  e  Bárbaros ,  que  eftaô  nolnfêrnoii 
poderiaõ  dizer.  Efta mos  penando.  E  que  penas !  E 
que  dores/  E  que  tormentos  ,  taes  e  tantos  ,  que 
íó  quem  eftá  aqui,  eos  padece,  pôde  dar  conta  del- 
ks !  E  com  tudo  naõ  tivemos  o  lume  da  fé ,  nem  to- 
da a  facilidade  ,6  commodo,para  íalvarmos  as  noí- 
fâs  Almas.  Tenho  perdido  a  Deos  (diria algum  dc\^ 
les  )  mas  poíTo  aííirmar,  que  quafi  naò  o  conhecia, 
íenaócomo  remorfo  da  findereíi,  que  me  fazia  di- 
fíinguirobem  domai.  Ah,quefe  eu  o  tivera  bem 

CO- 


.    Do  HtMéntéik^ffflu  do  Dano.       §47 

conhecido',  como  os  Çhr jflâos  ',  t^aô/  cRarra  líeftes 
tormentos!  ConfeíTo  na  verdade ,  qiie  tive  a  graça 
fuiiicientc ,  para  obrar  bem  ,  Ceíalvarme  j  jms  que 
cffey to  podia  fazer  cfta  graça  íufficiente  vivendo  eu 
entre  íaivíigens ,  quGfiHais  parcciaõ  beíias,  que  ho- 
mens. Devia  ícguir  a  luz  da  rãzaô,  aflim  hc;  mas 
que  luzes  podia  ter  hum  entendimento  rude,  íem  dif* 
eurfo ;  huma  razaô  inculta, lem  efíUdo,íem  letras, 
íéminftrucçaô!  Ah,  quefe  Dcos  tiveíTe  permittido, 
q^evieíTc  hum  Miífionario ,  c  me  alumeaíTe  coma 
doutrina  do  Evangelho ,  naô  eftaria  agora  penando 
no  inferno.  Coníidcre  agora  o  pio  Lcytor ,  que  tor- 
mento fera  para  hum  Chrifláo  condenado,  para  hum 
Catholico  ,  que  tem  vivido  no  grémio  da  Igreja; 
muyto  mais ,  fc  efle  Gatholico  foy  nafcido,  c  cria- 
do em  Portugal,  que  hc  o  Rcyno  pela  piedade,  e 
pureza  da  fé  mais  amado  de  Deos;  Bde  purp,m^  à"  ryn   ^ 
fictate  dileãtim.  E  íe  Deos  quiz;  que  ocaradcr  dof^/Ji 
Bautifmo  foífe  indelcbil  até  no  Inferno  ,  para  que 
o  Chrifíaô  precito  tivcífe fempre  prefente,quc  cllé 
meímo  fc  condenou  ,  e  naõ  ve  ,  nem  verá  nunca 
mais  a  Deos,  porque  aííim  quiz.  Domefmomodo 
o  fernaícidoPortuguez  lhe  accreíccntará  a  pena  do 
dano  ,  tendo  fempre  fixo  na  memoria  ,  que  foy  cria^ 
do  entre  clles,  c  que  íeus  pays  àcíúz  menino  ihe  di-         *"' 
ziaô  íempre  ,  amarás  a  Deos  ,  íobre  todas  as  coufas  ■ 
e  fugirás  opeccado,  que  fó  nos  pôde  impedir,  de 
ver,  c  gozar  a  Deos  no  Paraiío  j  e  agora ,  que  conhe- 
ce todo  o  feu  bem  na  execução  detles  documentos, 
quer  amar  3  Deos,  e  naõ  pôde;  porque  no  mefmo  tem- 
po  lhe  tem  hum  ódio  entranhavel  j  eímerafe  ,  para 
chegar  a  cWt ,  c  Deos  o  lança ,  e  lançará  para'  íempre 
àzÇwCnpidit as  améns,  DThi. 

Vh  doutrina  de  S.  ThQmàs,e  dos  SS/Padres ,  co-  2.6W 
mo  todos fahcmos,  que  Deos  he  hum  bém  infíniro,^*^»^*; 
'''  ■      ■ '  e  in- 


m  p  -  ; 


ônm 


mmm 


c  iofiaítamcntc  pcrfcytò  ,naò  fó  na  {\m  eírencia,mas 
cm  tQdas  as  íuas  perfeyçôes.  A  fua  fcrmoíura  he  in.. 
finita,  e  infinitamente  pcrfeyta  a  fua  íapiencia  hc 
infinita,  einífnitamcnte  pcrfeyta.;  a  fua  Santidade 
4c:infinita  ,e  infinitamente  Santa.  O  mefmo  fe  en- 
tende dos  mais  attributos.  Daqui  ,  fe  feguc ,  que 
quem  perde  a  Deos,  naô  íó  perde  hum  bem  infini- 
to, mas  hua  infinidade  de  bens  infinitos,  que  todos 
fe  reúnem  na  Divindade ,  como  no  fcu  centro.  Eic 
devemos  medir  no  exceífo  defta  pena ,  com  o  exccíTo 
do  gáudio ,  que  havia  de  gozar  $  confidere  ,  quai  íc- 
rá  o  exceífo  da  pena  do  Dano  ,  e  com  que  anxiedadc 
deíejará  recuperar  efta  perda  ,  que  naô  contem  me- 
nos, que  huma  infinidade  de  bens  infinitos :  Cuptdttas 
améns.  Perdi  a  Deos  (  dirá  entaõ  hum  condenado j 
c  em  o  perdendo ,  perdi  o  Reyno  da  gloria ,  aonde  eu 
havia  de  reynar  eternamente.  Oh  beila  Pátria!  Oh 
Clima  Bcmaventurado !  Oh  Beata  Eft anciã  !  Tam- 
bém eu  là  tinha  o  meu  lugar ,  que  como  a  Filho,  c 
herdeyro  me  eftava  preparado.  E  íempre  me  fuy  li- 
fongcando ,  que  no  fim  da  vida  là  haveria  de  ler  a  mi- 
nha morada.  Mas  (oh  trifte  peccado  )!  Sempre  te 
vercyprefente na  minha  memoria,  na  minha  imagi- 
nação, no  meu  dcfejo;mis  para  nunca  entrar  ncl- 
T>m.  ia:  Kidehu  eam  ,fed  non  intraht  ad  mam,  lerdi  a 
34-  Deos ,  c  em  o  perdendo  perdi  o  lume  da  gloria  ,  por 
meyo  do  qual  os  Santos  o  eftaô  vendo  facie  ad  fa^ 
ctem-j  e  contempiando-oaíTi  m  mefmo  ,  como  he* 
Sícuíi  efi.  Perdi  a  Deos  ,  e  em  o  perdendo ,  perdi  a 
companhia  da  Virgem  May  de  Deos ,  que  tanto  me 
favorecia;  do  m^u  Anjo  da  guarda ,  que  tanto  me 
queria,  c  de  tantos  outros  quefe  íalvárao,  meus  co^ 
nhecidos,  Parente^  ,  c  Amigos.  Oh  que  confoUçao 
teria  cu  de  converíarcom  elles,  e  como  abriríamos, 
com  fidelidade ,  e  amor  huns  aos  outros  os  nollos  co- 

taçocsik 


I  .Cor. 


Do  tommedapenado  Dano.        149 

façôcs.  Mas  como  as  minhas  culpas  iíaõ  totalmente 
©ppoflas  á  graça  fantificante ,  que  cllcs  peíTuem ,  me 
hao  de  aborrecei ,  e  lançar  de  fi,  como  a  hum  Demó- 
nio, Gue  euíou.  Finalmente  em  perder  a  Deos,  perdi 
amim  mefmo,e  tendo  perdido  a  Deos  „e  a  mimmeí- 
mo,  tenho  perdido  tudo.  E  fe  tudo  eflá  perdido.  Que 
me  refla  ?  Que  me  fica  ?  Ficamc  unicamente  o  íer.  E  eh- 
te  íer  de  que  me  íervii  à  ?  Sò  para  fcntir ,  e  íofírer  ef- 
ta  pena  da  dano  taõ  iníoffrivel  J  para  me  afíligir  para 
íemprc  ,  c  me  fazer  delejar ,.  o  que  nunca  hcy  de  ter,, 
ncmvcriCup ditas  améns. 

Quando  foy  intimado  a  Ovidio  o  areflo  de  Geíar, 
com  o  degredo  para  a  Província  de  Ponto,  naõ  hc 
creivel  a  pena ,  que  naquelle  apartamento  íentiraô,, 
aflim  clle  como  a  fua  cara  coniorte,.  e  os  feus  ama- 
dosillhos.  Foraô  taRtas  a$  lagrimas,  taes  os  alaridos,  e 
tal  a  confuíaô  naqucUa  noyte  ,que  naô  a  foube  o  Poc- 
tadcícrever  melhor ,  que  dizendo  ,  pareecrlhe  a  fua 
cala naqueIJas  ultimas  deípcdidas,  hum  Mappa,em 
que  cflava  epilogado  em  ponto  piqucno  a  confuíaô 
do  incendia  de  Troya.  OvidJ^ 

SíMcet  in  parvÍ4  exemplií  grandl^síitL  FmiK 

HacfaciesTroíie^dumcapretur^erat. 
Fraca  fcmclhança  hc  a  do  ícntimcnto  de  Ovidio,  que 
tanto  encarece  ,.  o  viver  em  hum  degredo  auzcnte 
da  conforte ,.e  dos.  filhes.  E  que  tem  para  fc  queyxar, 
quando  na  fua  maõcftava  o  poder,  aliviaras  iuas  fau- 
dades.  Finalmente  o  feu  degredo  era  de  húa  parte  do 
Mundo  para  outra,,  de  Europa,  para  a  A  fia }  e  íe  as  au- 
fencias dos  filhos  foíTcm  dilatadas,  e  as  faudades  ex-    ^ 
tremas  ,ie  era  prohibidoao  pay  o  tornar  aRoma ,  po- 
*dia  remedia  las,  com  mandar  aos  filhos ,  que  de  Itália^  ] 
íoíTem  para  a  Grécia.. 

Melhor  reprefentaçaôdcfía  pena  do  Dano,  acho 
eiLnaXagrada  Elcritura  laa  pcffoadamãy  de  Tobias 


ili 


/  ,  ■* 


li. 


T»k.ç.^ 


IO. 


oMôça  M^ádau  o  V^eiho  Tobias  a  íeu  filba^tiô^ 
Píiízesda  Media  , vaiara  cobmr  dez  talentos  ,  que 
por  bum  credito  corrente  lhe  devia  hum  certo  Gai» 
bêio.  Porém  ainda  que  a  diíiancia  do  Paiz  era  graa- 
de,  inuyto  mayor  pareceo  à  mãy  a  diftancia  do  tem- 
po l  que  não  podendo^  jà  mâis^  foffrer  as  auíencias  do 
"áMio ,  começou  a  laftímarfeáífim  ,  em  p^refença  do 
marido.  Ab  meu  caro  Tobias  ,  meu  filho  amado, 
íi lho  do  meu  coração.  Aonde  eftás  f  Por  onde  an- 
tdas  ?  Què  nos  fof^mosrtaô  cegos  ,  de  vos  mandar 
para hiia cobrança,  que  taõ pouco  importava !  Mal- 
dito dinheyroi  nunca  fòíTes  noíTo  ;  pois  fofte  caufa 
dè  huiiia  taô  grande  perda :  Nunquam  fuiffet  fecmia^ 
fro  qua  mififii  eum.  Baila vanos  a  noíTa  pobreza,  c 
-agora ,  para  fermós  mais  ricos  em  perder  ao  noíTo  <l- 
31  hti  temos  per^dido  tudo.  Temos  perdido  a  luz  dos 
^õiffos  oíhòs^,  o  noíFo  bem  f  a  noíTa  coníolaçaô,  o 
4?ordaô da  noffa  velhice;  a coluiiina da  noílacaía ,  o 
iuíire  da  noíTa  família  ,  o  gofto  da  noíla  vida,  e  a 
icfperança  da  noffa  pallcridade.  Tudo  ifto  perdemos, 
;  porque  iílo  tudoeftava  encerrado  no  meu  único  fi- 
lho ://^«  ^  heu  me,  FtUm,Ut  qmd  te  mtfimúl  pe^ 
regrinari ,  lúmen  ocuhmm  nojlrorum  ,  bacuhim  fe» 
ne^utíS  noftra^  foUUum  vita  mjira  ijpem  fojien- 
tatis  nojira.  Omnia  fimul  in  te  uno  hahentes  ^tenon 
debumUs  dimittere  a  Hobà*  E  dizia    ilio  com   lagri- 
mas de  fentimcnto  taõ  inconfolaveis ,  com  foluçoS) 
e  ays  taõ  altifonantes ,  que  os  montes  circumvcfi- 
dhos,  feCoíTem  animados,  diriamos,   que  acompa- 
líhavaocom  o  eco  afua  pena  por  compayxaõ.  Tal 
ihe  a  dor  de  huma  mãy  na  perda  de  hum  filho,  que 
'amaiecuyda,  naòhadever  mais;  lhe  parece  huma 
dor  íem  remédio  ;  pois  perdco  nelle  todo  o  íeu  bem  : 
Omnla  in  teumfimulhabêntesytenBn  debuimus  di' 
^ittére*  ■   -.  :■■'  ■  \  -  ■'    ■    --^  .    ..'.  .  -<  ■  ■  '^-^ 


Do  mmeniõdapena  MDano^        '^f% 

^rr   "^zmhtmt^^htlxúmíL  dcbil  figura  dá  noíTapeiíá' 
docianopara  exprimir  a  dor  imperceptivcl  de  hum 
íniferavcl   condenado  ,  que  perdèo    a  Deos.  Se  a 
mây  de  Tobias  chorava  huma  breve  atifencia  de  feu. 
filho  com  lagrimas  ,  qtje  o  mcfino  Texto  Sagrado 
chafíia  inconfolaveis ,  pois  naõ  cfpeTavadellaâ  fe- 
fnedio.-  Lacrymis  irnmedíabilibus  i  porque  achava  na 
preíença  do  filho  tudo  o  que  dcíejava  ,e  nafua  aii» 
iencia  ,  fentia  a  falta  de  todo  o  leu  gofío.  Quedef- 
gíOÍto^que  pena  ,  que  dor  ,  que  trifícza  ,  que  rayva, 
que  deícfpcraçaõ  de  hum  réprobo  ,  quando  ficará 
com  evidencia  perfuadido  ,  que  perdendo  a  Deos,     «    ^ 
tem  perdido  tudo  ?  Quando  verá  ,  que  naõ  o  perdeo         /^ 
por  alguns  mezes,  como  a  n:'ãy  de  Tobias  a  ícu  fiiho, 
mas  por  annos,  c  fcculos,  epor  huma  eternidade», 
que  durará  para  fcmpre  ;  entaò  fi ,  que  o  infíinto 
natural ,  jádcfempedido  do  pcfo  do  corpo,  a  moda 
de  fogo ,  quando  vcnceo  as  difpofiçôes  da  matéria 
çombuflivel ,  com  mayor  Ímpeto  fe  lançará  abufcar 
a  fua  esfera  ,  que  hc  Deos  >  e  no  mefmo  tempo ,  vejl- 
dofe  oprimido  pelo  pefo  do  peccado^  que  a  modo  de 
hua pedra  de  moinho  ,  o  obriga  aparar  no  Inferno, 
quehe©  ícu  centro  j  entaõ  convencido  por  expe-  ;,  ^  ;v 
neocia  da  íua  infinita  defgraça  ,  prorromperá  em  gri-  :\x\%,  «^ 
tos,eays^  dizendo  aflim.  Aytrifte  Alma  ,37  Alma 
infeliz ,  que  ha  de  fer  de  ti !  Tenho  perdido  a  Deos, 
€  cm  o  perder,  perdi  a  mim  mefmo,  e  tenho  per- 
dido tudo.  Chora  defgraçada ,  chora ;   dcbraastuas 
lagrimas  ,e  redobra  os^eusíuípiros.  Maldito  feja  o 
dinheyro;  maldita  feja  a  fazenda  ,  que  me  cauiou  taõ 
grande  perda.  Maldito  icja  o  gcfíoj.  maldito  ítja  o 
dcleytc,queme  cufíáraõtaõ  grande  tormento.  Mal- 
dito feja  o  amor  ás  creaturas ,  que  me  neceíTita  ago- 
íaahum  ódio  implacável  ao  meu  Creador ,  c  fendo 
elic  mcit  inimigo  1,  .mo  tcabo  mais  ^  que  eíperari 
^  '  >i  tenho 


WÊÊÊÊ&M 


f'! 


í:   ; 


/lf'Sfl 


3^:^  Bf/cur/b  M.  -^n 

tcníio  perdido  tudo.  Perdi  a  Deos  i  perdi  ao  ineuLeiíí} 
perdi  a  mim  mefmo.  Acaboií-fej  tenho  perdido  tudo, 
eíetudoeftá  perdido,  que  merefta»  Se  naõ dizer* 
Gíiora  miferavel -;  chora  defgraçado  j  grita;  geme, 
fofre,  c  peaa  para  penar  para  fempre ,  e  gemer,  e  cho- 
rar eternamc  nte ;  Cupi ditas  amem. 

Ainda  fará  íubir  mais  de  ponto  efte  tormento  da 
pena  do  Dano  a  feria  confideraçaô  defta    verdade, 
que  agora  direyj  evem  a  fer^  que  a  Alma  de  qual- 
quer condenado  no  Inferno  tem  hua  capacidadç  co- 
roo infinita,  a  qual  nunca  podefer  chea,  nemíatis- 
'A  if  /  ^^^i^  naõ  for  occupada  por  Deos  $  c  aílim  como 
#<í*//   ^  ii^ture25a  naõ  admitte  o  vácuo.:  Non  datur  vacuum 
wrerum  natura  f  porque  eftaria  como  violentada, 
Ceando  o  Mundo  em  húaperpetua  guerra  batalhando 
entre  fi  os  elementos  com  hum  dcfconcerto  notável; 
aíSm  por  efte  principio,  a  pena  do  Dano  he  hua  pena 
infinita ;  porque  deyxa  como  vazia  a  capacidade  da 
Alma,  privando-a  de  Deos,  que  he  hum  bem  infinito. 
Que  a  capacidade  da  Alma  feja  infinita,  prova-fecom 
dous  princípios  indubitáveis,!  e  ambos  fundados  na 
Efcriturafagrada,  Oprimeyro,  que  he  Theolx)gico, 
0  T-^gíerà  para  os  Doutos ,  o  outro  ^  que  he  fiíieo  moral, 
é^alti.'  fervirá  para  todos.  Maõ  ha  coufa  mais  fallada  na 
Theologia  ,  que  ferem  as  creaturas  correlativas  ao 
íeu  Creador  i  nem  fe  pôde  pronunciar,  ou  entender 
efti  palavra  creatura,  fcm  ficar  nella  incluída  a  re- 
lação 'tranfcendental ,  que  tem  com  o  íeu  Creador. 
Além  defta.e  miiytas  mais  relações,  tem  qualquer 
Alma  hurna  relação  de  íemelhança ,  por  fer  imagem 
de  Deos :  Fadam us  homimm  ad  imaginem  i  &  Jim> 
úene[,  i  lltudmsm  noflram.  Em  ordem  á  natureza ,  he  a  Alma 
^^'      imagem  de  Deos,   por  participação  do  feu  fer.  Em 
ordem  á  graça  ,  he  imagem  de  Deos  por  partici- 
pação da  fua  fantidade.  Em  ordem  a  gloria  he  ima- 

gcm 


Do  tormento  da  pena  ào  Dano.        353 

gcm  de  Deos  por  participação  da  fua  bemaventu- 

ranç3.  E  ifío  he  canto  aíTun  ,  que  diz  Santo  Agoftinho, 
que  confórriK  Deos  naõ  pode  cihr  contente,  nem 
latisfcyto  ,  íe  não  gozando  de  íi  mefmo  ,  allim  a 
Alma  como  fua  imagem,  naòpôde  eíbr  contente, 
nem  fatisfeyta,  fe  naõ  gozando  de  Deos;  Domine  .^^J*^ 
ftcifti  nos  adte^  &  ine[uietum  ejl  cor  nofirwn ,  àomc  '' 
requiefcat  in  te. 

O  outro  principio ,  por  onde  íe  prova  a  capaci- 
dade da  Alma  fer  infinita ,  he  a  infaciabilidade  das 
payxões  humanas.  Coufa  tão  certa  ,  que  qualquer 
peccador  o  pô.ie  experimentar  em  fi  nos  vícios,  a 
que  he  inclinado.  Vio-fe  algum  dia  hum  Avarento ^^.^^ 
íatisíeyto  das ÍU3S  riquezas, por muyto, que  peírua?,^^ 
tomara clle  ainda  mais,  e nunca  dirá  bafta;  Num- 
quamdicit  fuffiat.  Por  muyto  dinheyro,  ^juc  tenha,  ^^j^^. 
diz  o  Efpirito  Santo ,  que  o  íeu  deíejo  nunca  ficará  j.^. 
cheyo  :  Avarns  non  im^lebitur  pecunta.  Ainda  que, 
com  violências  ,e  ufuras  grangce  todo  efte  Mundo, 
não  ha  de  eftar  contente.  Se  naõ  diga-o  Alexandre 
Magno,  que  ouvindo  dizer  loucamente  como  no /'/«/.r» 
concavo  da  Lua  haviaõ  outros  Mundos, ainda naõ'^^'/'»* 
tinha  acabado  de  conquiftar  huma  pequena  parte  def» 
te,  que    logo   começou   a  chorar,  e  entrifleceríe, 
annellando  com  anxiedade  para  a  conquilla  dos  ou- 
tros. E  ifto  porque?  porque  a  payxaô  da  cobiça  he 
iníaciavel.  Vio-fe  algum  dia  hum  íbberbo  íaiisfeyto 
das  honras,  e  eítimaçaô  ,  que  fazem  delle  ?  Parece, 
que  o  havia  de  fer  Aman;  pois  era  valido  de  ElRcy 
Aííuero,  que  dominava  atè  a  Índia  cento  e  vinte 
íete  Províncias.  Era  Amana  íegunda  peíToa  da  Mo- 
narquia ^  fecundusa  Rege.  Tinha  immcnías  rique- 
zas, e  tantas  honras,  que  íó  clle  com  a  Rainha  fe 
aíTentavaõ  na  meia  com  EiRey  ;  e  com  tudo  confeíía- 
va  ellc  meímo  j  que  lhe  parecia  não  ter  nada  ,  porque 

Z  ao 


Ij 


Prsv. 


i) 


3J4  Di/cur/o  XI L 

ao  entrar  do  paço  naõ  fe  levantava  Mardoquco  em 
pé,  para  o  faudar ;  Et  cum  hae  amnia  hãbeam  nihil  me 
hãberepiíto^  qmaudiu  videro  tJHardachêum  fedentem 
ante  fores  Regias,  Mas  que  vos  íalta  AmaDrdcque 
vos  qucyxais  í  Porque  fazeis  eafo  das  corieíias  de 
hum  foidadinho  de  taóbayxa  esfera  ?  Porque!'  porque 
apayxaõ  da  foberba  be  infaciavel.  Vio-fe  algum  dia 
hum  impudico  farto  da  fua  luxuria?  Ciaro  eíiá,  que 
não,  Quanto  mai&fe  uivolve  no  lodo  da  fua  impudi- 
ci.cia,t^nto  maisdeícia  enlodarfe^ pedindo  como  as 
fangui fugas  de  Salomão  fempre  mais  deleytes;  Di- 
centes^  affer-^  ^ffer.  E  ifto  porque.  Porque  apayxaa 
da  luxuria  he  inlaciavel.  Logo  he  evidente,,  a  iníacia- 
bi  lida  de  das  pay  xões  hum  anãs.. 

Iflo  fuppofto  5  eontinuemos  agora  o  noíTo  difcur* 
fo ,  e  argumentemos  affim.  Se  toda  a  payxaõ  humana 
he  infaciavel ,  e  no  coração  per  ver  ío  de  hum  repro- 
bo^encerraô-fe tantas payxôes , ea  mayor  partedellas 
entre  íl  efpeeiíicamente  diverfas.  Julguem  agora,  qual 
he  a  capacidade  da  Alma.E  fe  a  Alma  foy  creada  ,p3ra 
íómente  fervir,  e  smar  a  Dcos ,  com  quem  tem  huma 
total  dependência  56  huma  inanidade  de  relações ,  co- 
mo temos  viílo  acima ;  quem  duvida  fer  ncecíFa  rio,' 
que  a  íua  capacidade  íeja  como  infinita  ;  pois  íó 
Dcos  pôde  encher  aquelk  vácuo  tão  immenfo  ,  que 
ellacontem  em  íi.  E conhecendo  claramente  a  Alma- 
de  hum  condenado  y  que  íó  poííuindo  a  Deos  poderá 
chamarfe  fatisfcyta  ficando  íocegada ,  e  quieta  no 
íeucentro  ,  como  o  fogo  na  fiia  esfera  ;  e  vendo,  pois. 
que  Deos  pelo  peccado  ,  de  que  ella  eftà  rea  ,  a  jnnça 
com  forordeíi,  e  foge  fempre  delia  ;  coníííJere  o^ 
peccador,  que  violência,  que  tormento  ,  que  dor 
que  triíicza  ,  que  defefperaçaò  !  Defejar  fempre  ,  e 
querer ,  o  que  nunca  lia  de  alcsnçar  ,  nem  poíTuir.. 
E  efte  defejo  aOim  violento ,,  e  fruílraneo,  eOa  an- 
■  *  -  xie- 


Do  tormento  da  pena  do  Dano,       35? 

xicdade  aíTim  fatuâ ,  e  deíeíperada,  cham3-fc,ehc 
na  realidade  a  verdadeyra  pena  do  dano:   Cupditas 

améns. 

O  que  accreícentará  cm  trefdobro  efta  pena  do 
Dano,  c  apurará  mais  a  anxiedade,  e  dcíejude  vera 
Dcos, ,  e  unirfe  com  ellc ,  fera  o  lembrarem-íe  os  con- 
denados ,  que  perderão  a  Dcos ,  naô  fó ,  porque  qui- 
zeraõ)  mais  por  contentar  huíT»  apetite,  por  dar 
goftoahum  Amigo,  eporcaufasde  pouco  mais  de 
nada.  Narcifo  vendo  a  fua  imagem  nas  agoas  crií* 
talinas  de  huma  fonte  bem  limpa,  todo  o  feu  defvelo 
craouniríe  mais  de  perto  comella,  porém  todo  o 
íeu trabalho íempre era  de  balde,  e  a  íua  mais  ex- 
a<fla  diligencia  inútil  ;  porque  logo ,  que  chegava  a 
tocarcom  a  maò  a  agoa,  cila  turbava-íe,  cdefapa- 
recia  a  íua  imagem.  Aqui  era  a  íua  pena  iníoffrivel,a 
íua  doríem  remédio,  que  o  obrigava  a  laftimarfc. 

Utque  magis  doleam^  nen  nos  marefeparat  mgens. 

Non  viay  non  montes ,  non  cUufis  mama  portis.      Ovid, 
i  Extgna prohibemnr  aqtia. 
Eparamayor  tormento  das  minhas  íaudades  ,  o  que 
me  impede  a  uni aõ  como  objcdlo  amado  da  minha 
imagem,  naò  he  hua  navegação  perigofa  do  mar  Atlá- 
lico;  naó  montes  alpeRres ,  naò  caminhos  dilatados; 
Exignaprohibemur  àqua.  Bem  fey  que  efta  madiofa 
narração  de  Narcifo  he  hum  invento  poético,  fahido 
do  fecundo  engenho  de  Ovidio.  Mas  fey  também,  e 
naô  he  fabula  ,  mas  verdade  de  fé  ,  que  a  Alma  de 
qualquer  precito  foy  feyta,  ecreada  ,como  diííemos,  Genef,t 
conforme  a  imagem  de  Deos  ,  aã  imaginem  Dei  crea-  2.7. 
vit  tilam.  E  conhecendo  o  mel  mo  precito  ,  que  Deos 
he  a  fonte  de  todos  os  bens  5  e  que  pela  fua  immeníi* 
dadeeftà  em  toda  aparte,  e  raõ  perto  delle,  que  o 
circumda,  e  eíU  nelle.  Entaõ  Cupiditas  améns  aquelle 
dcfejo fátuo  o  obrigará  a  gritar,  a>  bradar^  e-lafti- 

Z  2  mar- 


u 


356       .         Dtfcmfo  Xll 

maríe,  dizendo!;  qae  divi|e,  quem  fcpára  ,  quciH 
impede  a  uniaô  da  creaítírá  com  o  fcu  Creador,  a 
copia  com  o  íeu  original,  a  imagem  com  o  fcu  Proto* 
tipo  :  Exígua  frohibemur  aqua.  O  impede  ,  o  prohi- 
be  hu3  pequena  de  agoa  do  bautifmo  defprezada  ;  de 
agoada  graça  trocada  por  hum  pondonor.  por  hum 
gofto ,  que  durou  hum  momento  j  por  huma  pequena 
de  fazenda  naô  reíiituida. 

Que  queyxas  j  que  fuípiros,  que  lagrimas,  naõ  bro- 
tava Lifimaco  Rcy  de  Thracia !  Foy  cfte  bloqueado 
côtodo  o  feu  Exercito  por  Dromicheres  Rey  de  Ma- 
ce Jonia  em  hu  íicio  apercadiííimo  5  onde  a  penúria  de 
agoa  o  neceíTitou  a  renderfe  à  diícripçaô ,  reftando  el- 
le ,  e  todo  o  feu  Exercito  priííoneyros  de  guerra ,  fem 
^|-     liberdade,  fem  Reyno ,  c  fem  mando.  Chegou  depois 
^'^^'     a  íaciaríede  agoa;  e  apagada  jà  a  fede,  cahio  em 
íi  ;  e  coníiderando-fe  íem    Reyno  ;  fem  íubditos, 
fem  mando,  cfem  governo  j  qual  outro  Efau,  que 
vendendo  a  Jacob  a  Primogenitura  por  húa  eícudella 
C'H'    de  Lentilhas:  Irrugiit  clamor  e  magno  :   do  me  imo 
^7-       modo  começou  Lifimaeo  a  chorar  ,  a  gemer ,  c  a  bra- 
dar, dizendo  de  íí  pafmado  ;  Que  feja  poílivel ,  que 
hum  Reyram potente, hum  Reyno  tam  dilatado,  e 
hum  povo  tam  numerofo ,  tenhamos  hoje  todos  jun- 
tos  feyto  naufrágio  em  hum  púcaro  de  agoa  !  Párvula 
,     nau fr  ágio fnfícit  anda  meo\  Coníidere  o  peccador  com 
attençaò.  Quantos eflaó  agora  no  inferno ,  voffos  co-i 
nhecidosj  voíTos  Parentes,  voííos  Amigos,  e  por  ven- 
tura complices  dos  mefmos  peccados ,  que  ambos  de 
dous  cometeíles.  Sentem  os  meímos  tormentos ,  pa- 
decem a  meíma  pena  do  Dano.  E  porque  (  como  diíTc 
o  S.  Job )  por  dar  gofto  aquelle  /\mígo ,  por  íatisfazcr 
ao  fcu  apetite ,  beberão ,  e  tragarão  o  peccado  mor- 
fob  c.    tal;  como  fefoíTe  hum  púcaro  de  agoa:  Bibit  quafi 
'5io-  aquam  imqwtaUm.  E  de  que  fervem  agora  as  lagri- 
."'í*'^»'  maS| 


Dõ  tormento  da peifaáõ  Dam,        3J7 

ínas  í  os  pezares ,  as  queyxas ,  e  os  fufpiros ,  íc  jà  naô 
ha  remédio,  tudo  he  de  balde,  e  íó  fica  hum  dcfejo 
fátuo :  Cupditas  amem. 

Quero  dar  fim  aeíieprimeyroponto,  comhum 
reparo  de  grande  conícqucncia,edefcjo,que  bem 
coníiderado  fique  imprcíTo  no  noíTo  entendimento. 
E  vem  a  fer,  que  pelo  appetite  innato,que  tem  a  Alma 
para  com  Dcos  como  a  íeu  ultimo  fim  ,  qualquer  pec- 
çador depravado,  ainda  neík  Mundo,  quanto  mais 
fe immcrge  nos íeus  vícios,  tanto  mais  buíca  nelles 
(  íc  bem  erradamente  )  ao  feu  Deos.  Etk  reparo, 
queáprimcyra  vifta  ,  parece  incluir  emfi  dous  ter- 
mos oppoftos  ,  íahio  do  grande  ,  e  agudo  engenho 
de  Santoj\goáinho,  que  diícorre  aííim.Oh  Alma  pec- 
cadora  enganada  ,  pecca  quanto  quizeres !  Na  tua 
mayor  deíbrdem  (  ainda  que  naóqueyras)  buícaràs 
a  melhor  ordem,  que  tu  tens  com  Deos.  Cuydas, 
tgue  bufcas  as  riquezas,  mas  tu  te  enganas,  porque 
o  que  buícas  he  a  abundância  ,  e  efta  náo  fe  acha  íe- 
naô  cm  Deos ,  que  tu  bufcas ,  fem  o  íaber,  Cuydas, 
^ucbuícasosgoftos,eo  deícanço  ,  mas  como  o  ver- 
dadeyrogofl:o,eo  deícanço,  íó  cíià  em  Deos,  go- 
zando deile,  buícas  a  Deos,  íem  o  querer  buícar.-^^^^^y^; 
Cogitas ,  te  CõHgerere  divitias  1  fed  ahundanttam  qUfS-Ub.-ip, 
ris ,  qua  infolo  Deo  eft ,  &c.  De  modo ,  que  a  Alma  ^'  Ctv, 
cm  todo  o  tempo  ,  e  cm  qualquer  efta  lo  ,  fempre  ^"t 
aneila  ,com  uniríe  a  Deos  5  com  efta  diffèrença ,  que 
o  feu  dcfejo  nefta  vida ,  fica  como  fufpenfo  ,  e  retar- 
dado por  duas  razões:  Primcyra  ,  porque  o  pcfo  do 
corpoY  como  já  temos  dito  J  hecomohui  carga  pe-     .    _^ 
zada,  que  oopprime;  Corpus  quod  corrumpitur  ag-  ^^f'^'- 
gravat animam.  Segunda  razaô  he;  porque  eftando 
ainda /V^^/^naó fica  cm  eirado  de  ver  a  Deos,  epor 
iflofelheatraveíTaó  nos  íentidos  milhares  de  obje- 
^os,  que  â  oceupaò,e  a  divertem,  Mas  quando  a 
...:,,_  2  ^     ■  Al:, 


1 


l  '1 


358  Bifem fp  Xll. 

Alma  fe  achará  na  outra  vida  já  (  como  dizem  oé 
Theologos)/»íír«í/«<?  aliviada  do  peíb  deíle  corpo 
mortal ,  e  defpida  de  todos  os  objedos ,  que  a  podiaô 
divertir  ,jà  fem  demoras ,  íem  íurpenfaõ^e  fcm  diver- 
timentos, que  ihe  empediaô  o  conhecimento  dofeu 
único,  e  Summo  Bem,que  he  Deos;  entaô  rim,quc  def- 
velando-fe  claramente  a  pena  do  Dano ,  faz  fentir  a 
hum  condenado  o  tormento  inexplicável  ,  que  he 
huaijdeíejo  fátuo  j  pois  he  defejar  húa  quimera  ,  e  húa 
uniaóimpoíTivel:  Cupiditas  améns.  Sc  pois  ajuntar- 
mos na  Alma  os  dous  movimentos  violentiíTimos, 
hum  he  o  inftinto  natural,  que  vendo-fc  defempedi^ 
do  do,çorpo,  quer  impetuofo  unirfc  ao  feuSummo 
bem.  O  outro  he  hum  dcíejo  vehementiíTimov  que 
temdeveríe  livre  dos  tormentos  horríveis  do  infer- 
no ,  que  tomara  foíTem  jà  acabados.  E  como  pelo 
rigor  deftcs  tormentos  jfè  ha  de  medir  o  deíejo  de 
fc  ver  livre dellesjíendo  os  tormentos,  fem  termo, 
c  fem  medida;  aílim  também  o  deíejo,  de  íe  unira 
Deos,  hefem  medida.  E  comove,  e  fabe  ,  que  ci- 
ta uniaõnaòfe  faz,  nem  fe  pode  fazer  ,  por  caufa 
do  irrevogável  arcfto  .•  Fos  non  foptãus  mem ^  &  ego 
non  ero  vejier.' Aqui  cM  ocíTenciai  da  pena  do  Dano 
com  o  íeu  dcíèjo  fátuo:  Ctípiditas  amcns.  O  qual 
defejo  vcndo-fe  fruflrado ,  de  louco  paíTa  a  frenético^ 
e  íe  faz  a  modo  de  híía  fúria  bacante  no  Inferno :  Fu*^ 
forinutiJts]  que  he  o  ícgundo  ponto,  que  propu- 
zcmosneíie  taõ  importante  diícurfo. 

He  reflexão  beliiífima  de  S.  Agoflinho ,  que  cm 

do  Pon  qualquer  combate  de  algua  payxaô  predominante, 

í^'        quando  naô  íe  pôde  alcançar  oquefe  intenta  ,  ou  ío 

perde  forçadamente  algum  bem  ,  que  muyto  fe  eí^i- 

^l*g'     maj  a  violência  deíie  deíejo  ordinariamente  degcnê- 

deChi  ^'^^"^^^^^^P^^^Ç^õ  ,  ou  furor  ;  huftrata  cupiditaSy 

,DeiJ^'^^  «^«  .^^ri;^»/W<? ,  quò  tendebatyfive  amtttend&^ 

--  quQ 


Q[s£ 


Segu 


ut 


Do  tormento  ãapenà  âoDano.         3  ^p 

t)  pervemrat  ,  vertiiur  in  furorem.  Mandou  El- 
Kcy  Nabucodonoíor  paíTar  hum  edid;o,em  que  orde- 
nava,que  todo  íeu  Vaffallo  de  qualquer  condição, 
que  foíTe,  em  ouvindo  tocar  certos  ifilirumencos,  fe 
proíiraíTe  de  joelhos,  e  adoraíTe  aíua  Eíb.tua  de  ou- 
ro. Três  mancebos  Hebreos  inimigos  da  idolatria, 
recuíáraô  adorar  a<3uella  falfa  Deidade.  Que  faria 
ncfte  caio  hum  Key  offendido?  Os  mandaria  pren- 
der; que  lhes  formaíTem  jurídico  oproceíío,  edan- 
dp-Viítaás  partes,  quediíTeííem  de  íua  juftiça,e  os 
fentenciaffem  conforme  o  direy  to  f  A  nada  dirto  deu 
lugar  a  payxaó  »    pois  íubindo  o  fogo  da  cólera 
cícurecco  ama^efiade,  c  perturbou-fe  o  íereno  da  ^^^ 
íua  fronte:  Aj}eãus  faciei  ilUus  tmmiitatus  eft ,  CcapAo. 
degenerando  a  ira  em  furor :  Repletus  e/í  furor  e :  man- 
dou acender  fete  vezes  mais  a  fornalha ,  para  que 
todos  três  foíTem  qucymados  vivos  nella.  E  porque 
jfto  ?  Porque  a  payxaô  da  ira  degenerou  em  furor  ,  e 
fúria  fem  proveyto  :  Furor  inuúlis.  Em  hum  con- ofeãi 
denado  naõ  he  aíTim;  porque  o  objcdlo  do  fcu  furor 
naóhe  períegiiir ,  o  que  elle  aborrece;  mas  querer 
o  meímo  ,  que  elle  com  anxiedade  buíca  ;  naõ  he 
querer  deftruir  o  que  aborrece  ,  mas  querer  o  que 
elle  deícj^,  e  defejarà  ícmpre.  Naó  he  querer  ani- 
quiilar  a  quem  dellefempre  fe  aífafta  ,  mas  intentar 
com  todas  as  forças  de  eíiar  fcmpre  unido ,  com  quem 
femprc  o  lança  de  íl.  Furor  na  verdade  inútil,  que 
naõ  tem  alivio  algum  o  deíabafFo ,  como  hum  furiofo 
neíiavida;e  coníeguintemente,  naò  ferve  demais 
a  hum  mifcro  condenado,  que  accrefcentar  o  feu  tor- 
mento, e  render  mais  cruel  a  pena  do  Dano,  que 
agora  conhece  íer  a  privação  ,  e  defgraca  (\q  feu- 
Deos ,  que  o  lan^a  doii  fora  para  fempre :  Furor  ínu-> 
tilú. 

Explica  eítc  furor  Saõ  Vicente  Ferreyracoma 

'  .  Z  4»  íc- 


2.  .^eg. 
18.5. 


2 
§9 


Reff 

o- 


160  .        Di/çurf&Xli. 

fcmelhança  do  Falcaõ ,  ave  de  rapina ,  que  cm  qiian* 
to  naõ  vè ,  ou  naô  íeguc  a  preza ,  fofre  a  prifaò  ,  c 
naô  faz  caio  da  corrente  com  que  cfíá  atado  nos  pés, 
porêin  deícobrindoíe-lhe  aos  olhos  a  vifla  da  pre- 
za, lhe  faz  tal  impreffaõ ,  que  ufa  de  todas  as  traças  ,  c 
fax  todos  os  esforços,  ate  ver,,  fe  o  caçador  o  fol- 
ta.'  e  em  o  naõ  foltando  dobra  as  violências ,  redo* 
bra  os  esforços ,  debate-fe,  e  fere-fe,atè  que  defe- 
rido, e  cançado  morre.  Aílim  meímo  fuccederá  aa 
réprobo  no  Inferno,  vendo ,  que  Deos  foy  tanto  tem- 
po caçador  da  fua  Alma  nefta  vida ,  e  naõ  o  quer 
mais  ver,  nem  já  fer  íua  preza,  voltará  todo  o  feu  fu- 
ror contra  fi ;  Furor  inutilid  i  c  para  fe  ver  folto  da- 
quetla  prifaõ  de  fogo,  deíejará,  que  deílrua  a  fua 
própria  íubftancia  \  e  dirá.  Já  que  Deos  ,  naô  me 
quer  mais  por  íua  creatura  ;  Non  popuhs  meus :  e 
naô  quer  fer  nunca  mais  meu  Deos;  Eí  ego  mn  ero 
vefter.  Sc  ha  de  lembrar  f  empre  dos  meus  pcccadosy 
que  põem  hum  eterno  divorcio  entre  mim,  e  elle. 
Parta  me  ao  menos  eam  hum  rayo;  mate-me  cmbo» 
ra:  deflrua-mej e aniquile- me  tlnterfiáat me , inmki-» 
lumredígat  me, 

Eíle  era  o  penfamcnto  de  Abfalaô  j  efíe  era  o  di f- 
Gurfo,  que  fazia  com  Joab.  Era  Abfalaô  filho  de 
EiRey  David  ,  pay  taõ  amorofo ,  que  não  fó  enco* 
mendou  íempre  a  todos  a  vida  do  filho  ;  Servate  mi' 
hi  fuerum  Abfalon;  mas  nas  occaíióes,  e  perigos 
deíejava  ,  e  pedia  a  Deos  a  morte  com  tanto  que  Ab- 
falaô ficaíTe  vivo  :  Abfdon fili  ml ,  quis  mihi  tribvah 
nt  ego  moriar  fro  te.  Com  tudo  o  filho  foy  taô  in- 
grato ,  que  armou  huma  trayçaõ,  enganando  aícu 
pay ,  pedindo  lhe  levar  a  íeuirmaô  Amon  a  hua  fe- 
fí-a,c no  melhor  delia,  lhe  mandou  tirar  ávida.  E 
quecaftigo  lhe  daria  David  por  hum  crime  taô  cxc- 
CEanda  j  c  de  primeyra  cabeça  l  Filippe  Prudente 
-  por 


Dõtormeniodapènadú  Dano,         j^f 

fot  liurna  foTpeyta  fundada  ide  ter  íéii filho  intellH 
gencia  com  coroas  cfírangcyras  ,  o  mandou  ^leter^^^^^^ 
em  huma  prifaô ,  c  naõ  fahio  delia  fenão  depois  de  cajffh 
morto.  Naõ  aíTim  ElRey  David.  Deu  toda  a  liber- 
dade ao  filho  rebelde  ,  que  vieffe,  e  aííiíiiííe  na 
Gorte  de  Hierufalcm;   porém ,  que  nunca  mais  o 
havia  de  ver ,  nemadmittir  no  paço  á  fua  prefença; 
I\fon  videbit  faciem  meam.  Triftc  pena  ,  e  privação  ^jç^*^ 
faudofa  ,que  obrigou  a  Abfalaò,apedirmuytas  vc-  i^, 
zes  a  morte.  Naò!  Eu  naõ  poíTo  viver  aíTim.  Ha- 
fe  de  revogar  eíle  aretto,  ou  mitigar  eíia  íentença. 
Sey ,  que  vivi  ingrato  a  meu  pay.  Fuy  traydor  ao 
meu  Rey  5  eu  o  confcíTo ,  e  tenho  grande  pezar.  Po- 
rem fe  elleíeha  de  lembrar  da  minha  maldade,  c 
privarmc  da  fua  preíença  ;  quero  antes  a  morte,  e 
faça-fc  embora  juíriça ,  e  mandeme  tirar  a  vida  :  St 
memor  efi  iniqtiitatú  me<e  inter fictat  mi.  Jà  que  naõ  i.R^r 
acho  na  íagrada  Efcritura  modelo,  com  que  melhor 
poíTa  moftrar  a  imagem  ,  que  tenho  delineado  na 
minha  imaginação ,  paíTcmos  da  figura  ao  figurado, 
trocandoo  nome  de  Abíalaõ  em  qualquer  precito  do 
Inferno,  e  ellenos  relatará  eom  expericnGra  apena, 
que  fente  da  privação  de  Deos.  Aílim  he  (exclama 
logo   bradando  kum    daquelles  condenados)  ainda 
mal  que  aíiim  he.  Confeífo  ,  que  fuy  traydor  ao 
meu  Deos;  fuy  rebelde  ahum  pay  caritativo,  que 
para  me  livrar  milhares  de  vezes  do  Inferno  fofreo 
infinitas  afFrontas  ,  que  eu  lhe  fiz.  Quantas  vezes 
folicitey  as crcaturas ,. para  que  fe  rebellaíTem  con- 
tra cile  ,  para  me  fazerem,  o  meu  gofío.  Emíim  jà 
não  tem  remcdiov  Eftà  pronunciada  afentençaj  nao 
pordousannos  ,  como  a  Abfalaõ,  mas  por  toda  a 
eternidade  jnaô  para  tornar  cm  graça,  mas  para  fí- 
car  fcmprcdcígraçado.  Se  nunca  mais  hey  de  ícr  fi- 
llio  de  Deos  \  íe  nunca  mais  h-ey  de  gozar  delle  .•  íe 


l  \ 


i 


f     .1' 


Ofeai. 


HAinc*  «lais  hey  de  ver  a  íua  faciç  iNenvidebisfmem 
meam,  E  convencido  çoin  certeza  infaliivei  dclU 
verdade,  entrará  em  hum  furor  inútil  furor  imitilis^ 
defejando ,  e  procurando  á  íua  deftruiçaó :  Si  me- 
mor  eji  iniquitãtis  in£^  inter fictat  me.  5e;  Dcos  he 
para  mim  inexorável  ylclebâ  de  lembrar  perpetua- 
tnente  dos  meus  peccados  j  tendo-os  íemprc  preíen- 
tcs,  para  me  privar  dafua  preíença;  porque  não  me 
deliroe  ?  Porque  náo  me  confome?  Porque  naó  mç 
redu^  em  nada  ?  Se  diz,  que  jà  não  hc  meu  Deos, 
e  qiie  eu  jà  naõ  fou  ,  nem  nunca  mais  íerey  feu  :  yos 
non  põpulus  msus ,  é^  ego  non  ero  vtfier.  Como  me 
aiílgecom  tantas  dores ,  e  como  meafíbga  em  hum 
mar  de  tormentos?  Mas  fe  cUe  ainda  affim  ,  he  o 
meu  Deos,  c  cu  naõ  poílo  cftar  hum  momento  fem 
c]le,c  ícm  cuydar  neile;  e  ainda qué  não  queyra, 
heydecftaí  fcmpreunido  aclie.  Como  nefte  penfa* 
mcnt© ,  e  nefta  união  ,  naô  provo  algum  alivio ,  an- 
tes experimento  mayor  pcua  ?  Ah  privação  de  Deos! 
Ah  pena  do  Dano!  Agora  jà  te  conheço,  Ah  dor 
defefperada/ Ah defgraçado' precito  (dirá  cada  hum 
delics  )  que  ha  de  fer  de  mim  !  Chora  miíeravel, 
chora,  geme,  íoffre,  c  pena.  E  jà  que  a  pena  he 
infoífrivel,  dcíefperatç,  mata-te  ,  deípcdaça  as  tuas 
carnes ,  defentranha-re ,  e  arranca  o  teu  coração.  Vol- 
ta o  teu  furor,  c  toda  atua  rayva  contra  ti  meímoi 
contra  a  tua  própria  íubftancia  ,  e  pede ,  naô  ao  teu 
Deo.s ,  pois  jà  o  perdeíte ,  por  hum  gofío,  de  nadaj  mas " 
ao  teu  Juiz,  que  por  eompayxaô  te  acabe,  te  mate,  è 
te  ãmqúik :  Iníerficiat  te. 

Ah  réprobo  infeliz  ,  e  defgr?çado  !  Ifio  hc,  o 
que  pedes-,  ii^o  he  o  que  defejas  ?  verte  livre  dos 
teus  tormentos?  Mas  ifto  nunca  o  poderás  alcançar. 
Náoheo  amor, o  que  te  move,  mas  he  a  dor,  que 
te  aperta.  Naô  he  a  iuz,a.quc  te  infinua  a  pedir 

pie- 


Detorment&da  pena  ió  Dam.        3% 

piedade ,  màs* o  teu    furor  cego  ,  que  de-  cançado, 
parece  que  abranda,  para  íe  enfurecer  íemprc  mais. 
O  teu  Juiz  ,  que  lie  Deos  i  eftarà  perto  de  ti ,  ao  re- 
dor de  ti ,  e  mefmo  dentro  de  ti ,  eom  a  íua  formi- 
dável juriiça,  a  fim  de  accrefccntar  a  tua  pena,  c 
apurar  fempre  mais  a  tua  defeípeíaçaõ.  Naõ  lómen-       '  "' 
te  a  tua  Alma  fera  immortal ,  mas  também  o  teu  cor- 
po vivirà  morrendo  eternamente  i  e  ambos  íeraõ 
fempre  mortos  para  naõ  gozarem  de  Deos  no  Parail 
fõ ,  e  feraô  fempre  vivos  para  ícntirem  fempre  mais, 
c  padecerem  para  fempre  a  pena  do  Dano  no  Infer- 
no. Nenhum  tormento  (dizSaô  Bernardo  )  he  mais 
atroz  j  nenhuma  pena  he  mais  infoportavel ,  c  deíef- 
parada,  que  defejar  com  anxiedade,  e  querer  fem- 
pre, o  que  nunca  ha  de  alcançar;  e  icv  obug^áo^ernÀè 
^4tr  y  G  poíTuir ,  o  que  nudca  ha  de  querer :  Semper^'°"f- 
hahre  ,  quodnolkt  ,  nunquam  pojjidere  ,  qmd  W-^'*^*^^-' 
ht.  Tal  he  o  cftado  miíeravel ,  em  que  fe  acha  hum 
triftc  condenado  ;eefte  he  oíegundo  objcdo  doícur 
ftiror  inútil,  vendo  que  naõ  pôde  deítruiríe  a  fi,  de^ 
íejar  i  e  querer  deflruir  ao  mefmo  Deos:  Furor  tm- 
tilíí.  Vifíes  algum  dia  hum  bayxel  de  alto  bordo 
combatido  no  meyo  do  Oceano  de  húa  horrível  tem- 
pcftade  ?  Huma  onda  o  bota  para  Levante  5  outra  on- 
da o  leva  para  Poente  }  hum  vento  forte  o  leva  para 
ocammhodoSui;nomeímo  tempo  hum  TufFaõ  mais 
furioío  o  faz  dobrar  para  o  Norte  J  agora  o  elevaõ 
lobrehumss  montanhas  de agoas,  parece,  que  vay 
buícar  as  Eftrellas    :  Fkõfufque  ad  fydera  tolimt.^^^^i^. 
pahiapouco  huns  mares  cavados  parecem,   que  o^'^'h 
íepultaõ  no  abyímo.  Deflc  mefmo  rr.odo  (  àtz  Hu^o 
deSaó  Viíftor)  he  a  Alma  de  hum  condenado  ,  qtie 
tem  perdido  ao  íeu  Deos.  As  ondas  das  íuas  laari- 
mas,  ainda  que  infruauofas  naquelle  abyfmo  lem- 
brao.lhe,qqeeraõpôdérGÍ^sneíta  vida /para  con-  , 

quiftat 


ú 


rn 


Dan. 


■^i 


3^^  -a  DifcurfoW.wi 

iquiilarâBemaventurança.  Porem  lhe  fahe  logo  com 
.vehemeheiaorio  de  fogodajuftiça  Divina  ,  que  ab- 
forbe  o.iingimento  das  lagrimas,  eoaíFogaò  na  fua 
per verfa  obítin  çaô: JF/í/v/í/í  ,  igneus ,  rapidufqm  egre- 
dietur  àrfacie  gu^.  O  vento  dos  km  íulpuos  ,  ç 
foiuçDS,  eng inaado  a  imaginação  do  precito ,  hfon- 
gca  d  vontade  pervería ,  com  huma  eíperança  quimé- 
rica ,  de  chegar  ao  menos  por  hum  iníUntc  a  ver  ao 
íeuDeos.  Aqui  íe  lhe  atraveíTa  logo  o  contravento 
da  indignação  Divina  r^^^f/r/í  Dommus  ventum 
^  urentem  ;  que  flagellando  impetuoío  a  rebelde  von- 
tade obíHnada  na  culpa ,  deyxa  o  miíeravel  conde- 
nado, batido,  rebatido  ,  epara  fempre  combatido, 
de  milhares  de  movimentos  contrários  ,  e  perleve, 
rando,  neceíTariamente  na  fua  confufaò,  e  malda- 
de , dà  nos  últimos  exceffos  do  feu  furor  inútil;  Fu.^ 
rorinutilis,  . 

Eíia  imperceptível  diverfidade  de  movimentos 
contrários,  que  acompanhaô  a  privação  ^^e  Deos; 
dizemos  Santos  Padres,  que  nafce,  dos  mãos  habx- 
tos,  que  fícaô  radicados  na  Alma,  quando  ie  lepa- 
ra  do  corpo,  e  que  fempre  dUraõ  principalmente  no 
Inferno.  Todos  aquelles  amores  deshoneftos  jaquel- 
laambiçaò  de  honras,  e  fazendas,  com  .que  o  pec- 
cador  fe  achava  nefta  vida  ,  taô  fortemente  prelo  ,  e 
unido  com  as  creaturas ,  faÕ  ao  depois  no  Interno 
outros  tantos  grilhões, que  o  prendem  ,  c  dcíunep 
^.       do  feu  Creador.  Efta  Alma    deíaventurada  ,  (  diz 
f^^S.  Jeronymo  )  naô  pôde  maispeccar;^^^/./^  i^^^- 
inMlremquitM^^  ainda  que  a  morte  a  ^^J^'"'' pj?['- 
po,naõafeparou  dos  feus  torpes  affedos.  Conler- 
valopo  para  fempre  os  íeus  mãos  hábitos,  as  luas  in- 
clinações defordenadas  ,  os  íeus  vicies  f  "«^"!^^;^ 
como  eftesfaõ  totalmente  oppoftos  ao  deíejo  vioien. 

to,áanxiedade  inaata,quc  tem  de  ver  ao  feu  Deos, 
'  e  unir- 


DõtornjemoífapenaítôDam.        g5y 

C  uniríe  com  elle  i  cila  batalha  intrinfeea  hc  a  genuí- 
na pena  do  Dano,  que  dobra  a  lua  ray va ,  redobra 
o  feu  furor  inútil,  e  o  faz  prorromper  em  milhões  de 
blasfémias,  amaldiçoando  a  íi ,  e  aos  pays ,  que  o 
geráraó  fantafiando  quimeras,  imaginando  impoíTi- 
veis,edefejando,  que  não  houve  (Te  nem  Anjos  no 
Ceo,nem  Santos  na  terra j  quer,  que  fc  defírua, 
eaniquilletudo,  com  acabar  por  huma  vez  elle,  o 
Mundo,  o  Creador,.e  as  crcaturas.  Mas  conhe- 
cendo depois,  que  tudo  iftofaõ  delírios  ,  e  frencíis 
cauíados  da  intenção  da  pena  intrinfeea  denaô  vera 
Deos,enfurece-fe  outra  vez  com  mayor  dcfefpera- 
çaó,  provocando  aos  Demónios  ,  que  fe  vinguem 
contra  elle,  c  que  o  atormentem;  cfcyto  de  fimef- 
mo  Algoz  mais  cruel ,  que  os  Demónios  ,  roe-fe, 
mordc-íe,  e  defpedaça-íe ;  porém  íempre  fem  utili- 
dade, ou  proveyto,  pois  nunca  ali  via,  ou  diminuo 
a  dor,  antes  aggrava  ,  c  accrefcenta  fempre  mais  a 
lua  pena ;  Furor  imitais. 

HeccrtiífimojqueJefuChrifto  Senhor ncíTo  an- 
tes de  pronunciar  o  fatal  arefto  da  condenação  áos  ji^^tth' 
réprobos;  Itt  maJediãi  tn  igmm  aternum^  fará  fa- 
hir  hum  certo  refplandor  dos  feus  olhos  com  que 
vejao  tanquam  mpculo  a  fermofura  de  fua  face ,  c  c , 
como  diz  o  Venerai  Bifpo  de  Agen  ,  imprimirá  huma  VsT 
cognição  abftradiva  da  gloria  do  Paraifo  nos  feus  cn  de?fidi. 
rendimentos ,  para  que  a  deíejem  eternamente  ;  pelo 
queíeíenriraô  eoníirangidos ,  a  amalo,  e  deícjalo, 
com  todaaextenção  da  íua  vontade.  TriOe  neceffi- 
dade de  hum  Réprobo,  de  amar,  e  odiar  no  meímo 
tempo  a  Deosj  que  nunca  poderão  gozar  !  O  Pro- 
teta  Job,  fallando  em  pcíToa  de  hum   precito  ,  fe 
queyxa  com  Dcos  como  a  íeu  inimigo  ,  que  fe  op- 
poem,  e  combate  as  íuasaffeyçóes,  contrariando  a 
todos  os  deíejos  da  fua  vontade.-  giuare  pffmfii  me 

íon» 


■■ 


■1 


j/if  ■  Dtfeurfa  Xll. 

íoniramm  tiU.^  4   primeyra  oppoííçaõ  jic  ,  que 
Dc^osheçífcneialmenteoppofto  ao  peccadoic  o  re^ 
probo  tem  íempreocorâçaô  ,  a  memoria,  e  a  vou* 
|ade  no  deícja  dos  peccados,  em  que  morreo.  Pa- 
ira prova  difto ,  vejamos  qual  he  a  vontade  de  hum 
réprobo,  e  conhecerçíBOs ,  como  Deos  lhes  hc  ef- 
fencialmente  oppofto.  Q  defejo   do  réprobo    feria 
D.Gregtoxmt  ao  Mundo  para  continuar  no  íeii  peccado.- 
l.l.mor.  yelktjinefmvivere^utpjfet  fine  fine  pecrare.  Que- 
reria ,  que  Deos-naô  uMc  da  íua  juftiça ,  e  que  naô 
houveíTe  inferno,  mm  menos  que  acabaffe  o  feu  tor- 
mento com  a  morte.  Deos  íe  oppoem  a  todas  citas  in- 
ciinaçôes  neccíTariamentc  ;  pois  he  a  meíma  fanti- 
dadc,  e  quer,  que  a  fua  jufíiça  dure  eternamente, 
eque  fe  execute  com  todo  o  rigor  contra  o  réprobo, 
endurecido  na  culpa  totalmente  coitaria  a  Deos: 
fobç.y.  giuare  fofmfti  me  çontrarium  //^i.  N^m.  fe  conten- 
ta o  Profeta  Job  de  rcprcíentar  a  fumma  contrarie- 
dade, e  total  oppoíiçaô,  que  tem  Deos  com  o  pre- 
cito, é  o  precito  com  Deos:  giuarefofmp  me   con. 
trarium.tibi.  Mas  accreícenta  a  oppoíiçaõ' v:e  Con- 
trariedade,  que  terá  o  mcfmo  precito  comíigo  meí. 
mocomeftas  palavras:   Et  fa5ím  fim  miht  metipfi 
araví4.  A  minha  defgraça  he  taõ  funeíia  (  dir.a  o  ré- 
probo )  que  íou  chegado  eu  o  mcfmo  a  íer  o  mayoj? 
inimigo  de  mim  mefmo.  Muy  leve  ,  e  fraca  expref- 
Ía5  do  feu  tormento  parece  efta,  mas  bem  confíde- 
rada  he  o  cxtrado  mais  fublimado ,  e  a  qumta  eílen- 
eia  mais  apurada  da  pena  do  dano.  Que  hum  répro- 
bo íeiaconftranoido  aíoíírer  eternamente  bua  reci- 
proca contrariedade,  e  formal  oppoíiçaô  de  íi  com 
Deos.  e  de  Deos  coníígo,  he  fumma  miferia:  ^/^. 
repofmfti  m  contrmtm  tihi.  Mas  que  o  réprobo 
feia  formalmente  oppofto ,  e  contrario  a  fi  meímo» 
que  as  fuás  âffeyções,  o  feu  amor  J  o  ícu  odio  -,  os  íeus 


Do  tormèko  da  penando  Dam,  §Sf 

dtfejòs  5  imaginaçôens  ,  e  pen fa me n tos  ,'bàtaIÍ3 arreio 
entre íi, lhe  íaçaõ  huma guerra  perpetua,  e que  clic 
meímo  poffa  dizer  com  verdade ,  que  he  o  tyranno 
mais  fero,  c  o  mais  cruel  verdugo  do  leu  luplicio, 
fervindo  de  irjftrumento  ájufíiça  Divina  para  au^y- 
mentaras  íuas  dores,  c  oslcus  tormentos  !  Naó  he 
ifto  o  mnflus  ultra  de  todas  as  penas » e  miferias ;  Et 
ja5íi4s  fíim  mihi  metipfigravu,  n  r 

Oh  defgraça  das  delgraças  em  hum  Reprovado,       ^''^' 
ter  perdido  a  Deos !  íer  perfuadido  com  evidencia 
infallivci,quc  não  ha,  nem  pôde  haver  couía  mais 
amável  que  Deos  ;  nada  mais  lindo  ,  e  fermoío ,  que 
JefuÇhriflo  Senhor  noiTòi  nada  mais  preciofo  que  o 
Paraiío  ;  nada  mais  rico,  e  dcfejavei  que  a  gloria. 
Ncfte  comenos  a  vontade  convencida  ,  de  que  efte 
bem  infinito  he  infinitamente  amável,  terá  huma  pro- 
penfaô  ionatâ ,  e  hia  inclinação  vehementiílima  de 
poíTuilo,  egozalò,  e  no  micfmo  tempo  o  aborrece- 
rá ,  o  odiara  ,  o  deteftarà  confíderando-o  corro  obje- 
âodafuaaveríaõ,  como  caufados  feus  tormentos,    ' 
ccomo  inimiga  infuperavcl  , c  omnipotente,  blaf- 
femando-o ,  com  ódio  írreconGiliavcl  j,e  aíllm  ama- 
ra, e  odiará  tudo  junto,  quererá  a  íua  coníervaçaõ, 
c  buícará  o  íeu  exterminio,  dcfejarà  a  morte;  e  a 
morte  fugirá  dfelle  :  T>efiàerahmt  mori  ^  é-  mors  fu- 
gtet  abeis.  Oh  vontade!  Oh  penfamento  !  Oh  de-  ^P^^^K 
Icjos  contrários  a  vôs  mefmos !  Qire  pena ,  e  que  tor-  9- 
mento, eatifarcis  a  hum»  Alma  combatida  das  íuas- 
próprias  payxôes ,  que  íerâ  o  teatro  funefío  de  huma 
guerra  implacwelrSufpirarà;  gemerá,  pritarà,.  í^ 
deíeíperarà.fe  defpedaça^àÂEde  que  íervira  tudo 
ií)oportodaaerernidad€,fenaóaveriguarfe  por  ex- 
periência, e  confcíTarparaficmpre,  que  he  hum  de- 
iejo fátuo ,  huma efperàoça Ibuca,  e  hiim furor  ,  que 
to  acercíccma  a  pena^^^cè  Éem:  ^xmt^tQ\€vpàitas^ 


li 


■f%^ 


H 


^^.  Difturf^  Xlí. 

amem  r  furor  imtílis.  Deos  contrario  à  vont^ic 
delh  AU^a?deígraçadai  eUa  contraria  à  vontadcí  de 
Deos ,  e  ella  mefma  contraria  a  íi  mcfma.  Depois 
atormentada  com  o  ardor  do  fogo ,  atormentada  pe- 
los Dcmo:nios ,  atormentada  pelas  fuaspayxôes ,  pe- 
los compíices  dos  feiís  pcccados ,  e  por  todas  as  crea- 
turas  4o  Inferno ,  lem  compayxão  ,  fem  foccorro, 
ícm  eíperança ,  fem  confolaçaó ,  ícm  repoufo ,  e  íem 
aminimointervallo  de  defcanço.  Efte  he  hum  leve 
abufoda  pena  do  Dano.  Deos  tem  demetida  de  fí 
cfta  Alma  pcccadora  ,  e  impenitente.  Ella  nunca 
0/?tf  c  I  mais  fcrà  de  Deos ,  nem  Deos  por  toda  a  eternidade, 
*  e  em  quanto  foff  Deos ,  o  fera  delia :  Fos  mnppulus 
meusj&egononerovejler* 

Q^iero  dar  fim  a  efte  di  fcur ío ,  com  moltrar ,  que 
quanto  atè  agora  tenho  difcorrido  à  cerca  da  pena 
do  Dano,  he  como  hum  rude  dibuxo  a  refpeyto  da 
íua  Idea ,  huma  tofca  copia  rcípcyto  ao  ícu  ori- 
ginal. E  efta  pena  do  Dano  (dizem  osTheologos) 
D.Ber.  hehuipena  infinita, pois  fe  refere  a  ordem  Divina, 
^'''-  ^-  cm  qualidade  de  fuplieio:  £/.  &  turpinm  pana  Véus 
''"^^''    (  diz  a  efte  propofito  S.Brnardo)  dando  a  entender, 
que  conforme  Deos  hc,  e  fera  fempre  a  luprema  bcm- 
aventurança  dos  eícolhidos  no  Paraiío ;  affim  tam- 
bém a  pena  do  Dano  he ,  e  fera  a  ultiii^a  ,  e  íuprema 
dos  réprobos  no  inferno.  E  Santo  Thomas  affirma, 
que  efta  pena  hc  o  Inferno  do  mtfmo  Inferno  i  pois 
nella  confifte  eíTcncialmcnte  a  condenação  de  hum 
precito-  Dãmnãtwnltma  canfiftit  mhoc  ,  quod  tn- 
telham  hommu.totahter  Divmo  lumnine  prtyetur, 
&  -i  Dei  lomíate  elftinate  averHtur.  E  Sao  loao 
Chryfofi  Gh.yfoftonio  confeíla  ,quc  íe  Deos  crcaíTe  ^^d  Intcr- 
£  8^  nos.e  os  ajuntaíTe  todos  cm  humló,e  dobraíTe  mt- 
m^^Mbarés  de   vezes  o  ardor  daquellc  fogo  devorante, 
naõ  igualaria  a  pena  defte  tprmcnto.'  St  mtlk  quis 


Do  tormento  da  pena  do  Dano.       B^9 

fômi  gehema-s ,  nihtUah  di^urtts  eft ,  quale  s  kat£  il- 
hus  gloria  lumine  repellt  Dx  mefma  maneyra ,  íe  Te  do- 
braílcm  milhares  de  vezes  todas  as  delicias  do  ParaU 
ío ,  naô  igualariaô  o  gofto  de  ver  a  Deos ,  em  que  con- 
fifte o Summo  da  Bemaventurança  (conforme  dizS.^^ 
Agoftinho;  pois  íe  pôde  adquirir  ,  mas  naôexpíicar,  ^^.^^ 
nem comprchender :  Acqmripotefi^  expUcari  mnpO" 
7^,  por  Ter  infinita.  HecertiirimooaxiomafiloíoH- 
co ,  que :  Contrariortm  eadem  eft  âifcipUna,  ÂflTim  de-* 
vemos  dífcorrer  da  pena  do  Dano ,  como  Santo  Ago- 
íiinho  da  gloria.  Poderá  o  peccador  (  de  que  Deos  o  lí« 
vre)  experimentala ,  mas  naô  comprehendela,  por  fec 
bua  pena  infinita,  pois  o  priva  do. ícu  Deos  ^que  helm 

bem  infinito.  '  *  - 

Eu  cípcro  algum  fruto defte  difcurfo,naò  pe- 
las palavras,  com  que  o  efcrevo  ,  mas  pela  graça 
do  Efpirito  Santo,  que  concorrerá  no  pio  Leytoc 
na  confidcraçaó  de  quam  grave  perda  he  o  perder 
ao  feu  Deos.  Ah  peccador  enganado,  íe  ainda  no 
voíTo  coração  ha  algum  lume  da  fé  ,  com  alguma 
faiíca  do  Amor  Divino,  peçovos ,  que  cada  dia, 
por  meyo  quarto  de  hora  ,  confidereis ,  quam  ter- 
rível pena  he ,  o  fer  defmembrado  de  Deos ,  nunca 
mais  fer  feu  ,  nem  cUe  nunca  mais  fer  voíTo.  Sc 
daqui  por  diante  vos  perguntarem,  que  couía  heo 
Inferno,  reípondey-lhcs  ,  que  leaó  aquella  funefta 
iíifcripçaó,  que  elià  gravada  fobre  as  portas  da- 
quellcabifmo  de  tormentos:  Fosnon  Popiilus meus^ 
i^  ego  non'erõ  vefter.  Todos  os  peccadores  ,  que 
cílaõ  encerrados  naquelle  Ergaftuio  de  fogo  ,  jà 
Ba^  pertencem  a  Deos ,  para  receberem  delle  aU 
^úagraçajjà  naô  íaô  feu  Povo  ,  para  lhes  fazer  al- 
gum bem,  mas  lançados  de  fi  para  íempre  ,  e  en- 
tregues aos  Demónios ,  para  ferem  caíiigados  eter- 
namente ^  como  merecem.  Em  algum  tempo  de. 
,  Aa  fua 


O [64  I. 


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WÊímtmmm 


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' 


-  ;  Btfcuvjú  Xll 
íua  vida,  o  foraô ,  mas  agora,  jà  mb  o  faã,  nem 
o  haõ  de  fcr  nunca  mais  ;  e  nunca  mais  íe  lembrará 
Dcosdclles  em  eterno:  Fos  nm  Fefulus  meus  ,  ^ 
ego  non  ers  vefier.  E  quantos  eftaô  jà  là  naqucllc 
trifte  eftado  !  Pd4e  fer  -,  que  eíieja  voffo  pay  ,  voffa 
irraaó,  ovoífo  Amigo  mais  intimo,  ou  (o que  fe- 
ra mais  certo  )  algum  cúmplice  dos  voíTos  pecca» 
dos,  E  quantas  vezes  mereceftes  vòs  a  mefma  pe- 
na, pois  foftes  compiice,e  âuthor  das  me  imas  cul- 
pas? Pcccador,  Amigo  do  coração  ,  defejo  todo 
o  bem  à  voíTa  Alma.  Agora  ainda  ha  tempo  para 
o  defengano.  Porque  quereis  ^  que  Deos  ,  que 
condenou  a  tantos  ,  que  fízeraô  menos  peceados> 
perdoe  a  vòs ,  que  cometcftes  tantos  mais ,  e  muy- 
to  mayores.  Fazey  avos  mefmo  ajuftiça,  que  me- 
receis;  bem  vedes  ,  que  Deos  n ao  ha  de  fazer  por 
vòs  huma  regra  particular ,  nem  bum  novo  Decálo- 
go/ porque  o  meímo,  que  fuccedeo  àquelles  ,  ha 
de  fuccedera  vòs ,  fe  naô  fizerdes  logo  penitencia^ 
3  qual  confíííe  em  largar  o  amor  das  crcaturas ,.  c 
convertelo  todo  em  ímarao  voílo  Deos;  Non  tar- 
des convtvti  aã  DêminurUy  &  ne  ãiffevas  de  d  te  iw 
dkm.  Na©  queyraes  tardar  a  convcrtervos  ,  nem- 
deyxeis  paflíar  hum  dia  depois  da  outro  X  Subiw 
emm  vemet  ira  Mus;  parque  a  fua  mikricordia  fe 
trocará  logo  em  ira.  Naõ  vos  fieis  na  mocidade^ 
nem  na  boa  faude.  Reparay  naquellc  Súbito  ve^ 
niet.  Virá  logo  j  e  improvifamente  como  Juiz  fe» 
vero,  e vingativo,,  que  tendo  condenado  a  fanto» 
milhões  de  milhões  no  Inferno,  naõ  dcyxa  por  iRa 
de  fer  infinitamente  mifericordiolo.  E  quanto  tem- 
po-ha  ^  que  como  Pay  smorofonos  eflá  efperando? 
E  fea  fua  miíerrcordia  naõ  foílc  taô  immenfa  ,  que: 
leria  feyta  de  nos ,  e  de  tantos  peccadòres  ,  que 
tantas  vezes   a  temos  ofFcndido  f  Naõ  >  Senhor^ 

naã 


Do  tormento  da  pena  do  Dano*         371 

naô  pcrmittais  5  que  quem  compõem  efle  livro,  e 
todos  aquelles,  que  o  lerem  ,  fcjaô  privados  di 
voíTa  vifta,  c  naò  ícjaõ  voíTo  Povo:  Fos  mnPopii- 
///í«/í»í  ;pois  eftamos  refolutos  de  dar  logo  dciuaó 
a  todas  as  occafióes  das  çreaturas ,  c  naò  querenios  da- 
qui  por  diante  íervir ,  e  amar  mais  que  a  vôs  noíTo 
Creador,  e  Redemptor  nefta  vida ,  para  depois  na  ou- 
tra ver  a  voíTa  face ,  e  gozar  de  vòs  eternamente  na 
Gloria. 


Aa  2 


DIS. 


Ij 


TORMElSrTO  DADEvSE5PERAÇAM 


XIII. 


Do  tormento  da  Defeípcraçaõ. 

Vermis  eorum  non  morietúty  ó*  ig^^s 
eorum  non  extinguetur. 
Ifaias  66. 


Om  eftas  terríveis  palavras, 
comcfta  terrível  ícntençaa- 
caba  o  Profeta  ííaiasolivro 
facrofanto  de  todas  as  fuaj 
profecias :  Vermit  eorum  mn 
morietur  ^  &  ignis  eorum  non 
extingnetur,  O  guzano  ,  o 
verme  fcmpre  vivo,  para  roer 
as  entranhas  r^os  peccadorcs, 
nunca  morrerá,  e  o  fogo ,  para  os  atormentar  íemprc 
a  ceio  ,  nunca  fe  apagava.  Repara  Santo  Agoflinho, 
que  JESU  Chrifto  Senhor  noíTo  íc  ferve  defta  mcfma 
fentença ,  e  a  repete  três  vezes  em  hum  íó  Capitulo  de  '^^c?*/?. 
Saõ  Marcos  com  as  meímas  palavras;  Non  entm  p-  j/^^' 
gíiit  inuno  loco  eaàem  verba  ter  dicere.Sc  avoffamaô  i>^,/^' 
hc  ca  ufa  de  algum  efcandalo  ,  cor  taya.  Melhor  hc  cn- 

Aa  3  trar 


3^ 


■  rr..-         T      t'' 


Am.  L 
^M  Ci 


'if 


"^74  Difcuvfo  XllL 

trar  no  Cco  com  húi  fó  maô  ^  que  com  ambas  no  In2 
Mar^cj.  ferno;  §lukm  duasmanus  habtdtem  ire  in  geherfnam^ 
ííbi  vermis  eorttm  nonmorítm\,  ó"  tgnis  non  extingui- 
tur.  O múmoàiz  áos  pês, e  dos  olhos  qUe  melhor 
fec entrar  na  vida  eterna  coxo,  e com  hum  dos  olhos 
%:  menos,  que  com  ambos  os  pès^  e  olhos  fer  lançan- 
do no  Inferno  ,  repetindo  íempre ,  aonde  o  verme 
nunca  morre, e  o  fogo  íempre  atormenta,  e  nun- 
ca fe  apaga.-  Ubívermu  somm  mn  morittir  \  &  tgnis 
noflê^tinguitttr.  Logo  he  herdade  (conclue  S.  Ago- 
flinho)  que  ha,effa  dé haver  cftc verme  por  juA» 
caftigo  dos  peccadores  por   toda  a   eternidade  no 
Inferno.  E  quem  tiaó  temerá  ,   e    tremerá  à  vifla 
defta  ameaça,  três  vezes  repetido  por  própria  boc- 
ca  domefmo  Deos:  §luem  non  terreât  iftarefetíti^ 
Ò'  iUmsp£en/e  cominatio  tam  vehemens  oreDivímMas 
que  coufa he  efle  guzano,  eftê  verme,  que  íempre 
roe  5  íempre  atormenta  ,  nunca  pára  ,  nunca  ean- 
fa.  Efte  ,  conforme  o  genuíno  ícntido  de  todos  os 
Santos  Padres  5  e  íagrados  Interpretes ,  he  ò  remof>f 
fo  da  coníciencia ,  que  à  maneyra  de  hum  Juiz  fe- 
vero ,  de  htim  Algoz  inexorável  ^  defpedaça  a  Al- 
ma ,  com    taes  reprehenfoens  ,  e  remorfos  ,  atè 
reduzilâ  à  ultima^  e  total  defeíperaçaò  y  que  íerá 
a  matéria ,  e  o  argumento  defíe  difcurío ,  que  di- 
videremosem  três  pontos.  No  primcyro  veremos, 
como  eí^e  verme  daconfciencia  nake  com  nofco, 
no  mcfmo  iníiante  ,  que  temos  oufo  da  razaô ,  e 
Gomo  Ceníbr  redo  nos  admocfla,  nos  reprchcnde, 
ç  nos  acompanha  ate  â  morte,   No   íegundo  pon- 
deraremos ,  quam  terrível,  e  cruel  Verdugo  ícrà 
cBe  verme  da  confciencia  no  Inferno  J  redtizinda 
os  precitos  a  tormentos  para  fempre  defefperadosi^ 
No   terceyro   moftrarcmos,   que  por  enormes,  c 
inciiinicraveis ,  que  fejap  íís  peccados  commettidos^ 

i-  nun- 


Do  tormento  da  Def-efperaçaõ*       ^75 

nunca  deve  o  peccador  Catholico  deíefperair^  çmstçí- 
tepeccado feria  peyor  peccado  dô^odos  os quetem     ,^^ 
commcttido  ;  e  depois  de  morro  entrará  e  m  hm  defeí- 
pcraçaõ  fcm  remédio,  que  he  o  tormento  dos  tormen- 
íps, o  Inferno  dos  Internosi-i^íiíaU^íXí  íiví' 
n:    Para  bem  entender ,  que  tormento  íeja  o  do  ver- 
me da  confeiencia  j  e  porque  cauía  Deos  o  tem  eí- 
colhido  por    hum  dos  principaes    inílrumcntos  da 
/uaira,  para  fe  vingar  com  mais  furor  dos  feus  ini- 
,inJgos,  convém,  faber,  quenaô  ha  homem  no  Mun- 
do, que  naÔ  tenha  alguma  luz  da  Divindade  >  e  af- 
iim  por  bárbaro ,  e  ignorante ,  que  íeja  hum  índio, 
ou  Tapuia  do  Braíilj  por  bucal,  ou  ialvage  ,  que 
íeja  hum  Negro  Mina  >  ou  de  Angola ,  íempre  te- 
rá algum  barlumc ,  ou  alguma  inclinação  de  venerar, 
ç temeroíeu Tupàn  o  feuZambí,que  nas  duas  iin- 
goas  Braíis , e Caffres íoa  o  mefmo  que  Deos,  veri-^^  .   , 
fícando-íeo  que  diz  o  Profeta  Kcy :  Signatum  efl  fu-       '^* 
per  nos ,  lúmen  vultus  íui Domine.  Eíie  lume  da  razaó 
creadocom  anoíTa  mefma  Alma,  nos  faz  conhecer 
a  virtude  por  boa,  eo  vicio  por  mà0)C  que  naõ  hc 
bem  fazermos  aos  outros ,  o  que  naô  queremos ,  que 
os  outros  fjçaõ  a  nòs.  Para  percebermos  eftas  ver- 
dades naõ  he  neceffario  ter  eftudado ,  nem  ter  ouvi- 
do o   Evangelho.    Bafta    fer   homem   racional,  e 
logo  experimentará  em  íi  huma  certa  complacência, 
quando  faz  alguma  obra  boa  ,  ou  algúa  proeza  digna 
de  louvor  j  alegrando-fe  comíigo  ,  dando  parte  aos 
Parentes  ,  e  Amigos,   e  defejando,  que  fe  publi- 
que em  todo  o  Mundo.     Pelo   contrario  obrando 
mal ,  ou  commettendo  algum  crime  ,  logo  fica  triíie, 
€Íconde-fe,áfílíge-re  ,derconfiaj  rem  medo  ,  e  ate 
aborrece  o  mal,  que  tem  feytoa  íi  meírnoj  e  ifto 
he  o  mefmo  ,  a  que  o  Texto  Sagrado  ,  os  Santos 
Padres,  e ainda  os^mcímos    Gentios  chamaô  con- 

Aa  4  ícien- 


Ovid. 
fafiJ.  I 


Par.  l 


m 


376  Difcurfú  MIL     " 

fciencU;  como  admira vcímentc explicou  o  Poeta/ '^ 
Cõnfcia  mens  ^Mtcmque  fua  ejl ,  ita  concipit  intra, 
Peãoraprofa£toyJpemqut^metttmqueJuo.  ^ 

Muyto  melhor  Guilherme  Parifienfc  >  chama  à  con- 
íciencia,  hum  rcfplandor,  ou  hum  raígo  da  luz 
Di viria  ,que  alumca  as  trevas  do  noffo  entendimen- 
to} hum  ecco  da  fua  voz ,  ou  para  melhor  dizer, 
amcfmavoz  de  Deos,  que  falia  dentro  de  nos,  e 
hum  Evasgelhodo  coração:  Radius  Divint  hminis^ 
iilumtnans  mentem  mfiramyVoxDei  intra  nosloquens^ 
ó"  Evangelíum  cêrdu. 

Definem  osTheologos  a  conícícncia  ^  o»  a  deÊj 
crcvem ,  chamando-a  hum  didlame  da  razaõ  j  hum 
juizo  pradlico  >  por  meyo  do  qual  o  homem  dií- 
cerne  o  bem  do  maU  c  conhece  o  que  deve  feguir^ 
Tè.wí-covi  fugir  r  Judicium  i  *vel  diãamen  rationú  praãb- 
hnm.  V.  cum-^  quo  homo  difcernit  ,  quid  re£le  an  per  per  am 
^^        fiat  y  qmdve  ampkãendum ,  vel  fugiendum ;  c  como 
(repara  Santo  ÂmbrGÍio  >  em  hum  tribunal  re «fio  de 
húa  Republica  bem  governada^  vemos  juizes^  Advo- 
gados ,  Notários  j  Procuradores  ,  Cenfores ,  Mcy- 
rinhss  ^  e  Algozes  aíBra  também  no   tribunal  da 
noíia  Alma  aconfciencia  faz  todos  e^es  oâScios,  c 
como  diz  o  mefmo  Santa  ^  ellahe  o  mcfmo  tribu-»^ 
nal  T  ella  a  Teftcmunha  irrcfraigavei  ^  eMa  nos  ae- 
cufa,  nos  reprehende  r  ^0%  con-vence  ,  nos  abíol- 
^'•^^^  vey  ou  condena  :  §^õi  emm  in  Republica  kne  con-^ 
^^^"'f'j2ítutavídemm  Júdice^-,  Scrib^Sy  Notários  y  Cattf^ 
dieosy  Cenfores  j  Tortores-,  idin  tribunali  mima  nO'*, 
fira  y  praftat  una  eonjeientta.   Hac  enim  JudesCy 
Codexy  Cenfor  ,  Jceufat&r  y  Tefiis  ,   lof-tor.   Ifnh 
tribunal' mfir um  eHy  fiium  cuique-  eonfcientia  Tefit- 
momim.  E  que  iíb  affim  ícja ,,  bem  fe  vê  nos  nof» 
íbs   primeyros    pays  Adam  ,  e  Eva.    Comerão  a 
fruta  da  arvore^  c  a  penas  engulicaò  o  prinieyro 

bo- 


Do  tormento  da  De  federação.        377 

bocado ,  íe  lhe  abriíaõ  os  olhos ,  conhecerão ,  que 
eflavaò  dcfpidos  ,  c  procurarão  logo  folha^  de  Fi- 
gueyra,  para  fe  cubrirem.  Chamou  Deos  a  Adam, 
que  conhecendo  ,  naô  podia  fugir  dclie  ,  refpon- 
dco ,  que  tivera  medo  de  apparecer ,  porque  efíava 
nu,  c  poriftofe  efcondèra :  Ttmui^  to  qnod  nudus  ^^'^' 
ejjem  ,  &  abfcondi  me,  E  porque  a  Adam  fobrevc- 
yo  efte  medo  ,  e  eftc  pejo  de  fer  vifto  nu?  Porque 
logo  ,  que  peccou  com  quebrantar  o  preccyto  ,  o 
verme  da  confcicncia  o  começou  a  roer  >  e  vendo- 
íe  defpido  da  graça  ,  temia  j  e  tremia  ,  conhecen- 
do ,  que  de  creaiura  de  Deos  fe  tinha  feyto  pelo 
pcccado  clcravo  do  Demónio.  Aílim  meímo  fucce- 
deo  a  Caim ,  logo  que  matou  a  Abei  ,  íeu  irmaò. 
O  verme  da  conícicncia  o  rohia ,  vivendo  inquieto, 
e  perturbado  ,  pela  lembrança  continua  do  fratri- 
cídio, e  conheccndo-íeRèo  no  tribunal  da íua  con- 
íciencia  ,  que  jà  fazia  o  oííicio  de  Juiz  inflcxivel, 
imagínava-íc ,  que  quantos  o  schaffem  i  o  matariaõ  : 
Ontnis  igitur  ,  qm  invenertí  me  ,  occidet  me.  Mas  ^*».4» 
quem  o  havia  de  matar  ,  fe  no  Mundo  naõ  havia 
mais ,  que  íeus  pays ,  Adam  ,  c  Eva  ?  Era  o  ver- 
me da  confcicncia  ,  que  obrando  como  algoz  ,  o 
hia  matando,  reprcfcntando-lhe  de  dia  ,  e  de  noy- 
tc  o  feu  crime ,  fabendo ,  que  naõ  havia  de  ficar  impu- 
nido :  Vermis  eorum  non  moritur» 

Também  os  Gentios  fcm  ter  luz  alguma  do  Evan- 
gelho, conhecerão,  fentíraõ  ,  e  experfmentàra&, 
quam  grave  tormento  foííe  aquelíe  áo  remorfo  da 
coníciencia,cham3ndo  ohum  ilagclloocculto,  bumPy 
f^na  ,  vebemente,  a  mris  cruel,  c  defefperada  de 
toda.ç.  ' 

Fcena  autem  vehemms^  ac  multo  favior  illpfy  jsvl 

Occultum  quatiente  mima  tort&rejldgdhtm.  Sae.^^^l 

O  grande  Alexandre  ,  demafiadamcnte   alegre  em 

bum> 


I, 


I  I 


j;^8        ;         DifcmfúXlU. 

hum  comitc  ^  íem  coníídcrar  o  que  fazia  ,  matou 
a  Clytp  íeiv  intimo  Corifidente.  Logo  o  verme  da 
,  CO níciencia  ,  o  fez  cahir  n<r mal ,  que  fez  ,  repr.efen- 
V        '    tando-íhc  a  atrocidade  do  crime  ,  o  credito  perdi- 
do ia  fami  denegrida  í  e  naò  podendo  mais  íoffrer 
cfte  remorío  continuo  ,  que  o  atormentava  ,naõ 
queria  nem  cjmer  ,  nem  beber,  mas  antes  deíeja- 
va  o  veneno.    Finalmente  o  verme  da  confciencia 
lhe  dava  picadas  taô  agudas  na  Alma,  que  o  redu- 
zirão a  delefperaríe  ;  c  affim  para  íe  livrar  delias, 
pedio  muytas  vezes  a  raeíma  arma ,  com  que  tiniia 
morto  a  Ciyto ,  para  matarfe  a.fimefmo,  e  naô  .a 
podendo  confeguir ,  rogava  a  alguns  criados  mais 
^^^^g  Íntimos,  que  lhe  deffem  à morte  juftamente  mere- 
^//i<^*cida.  Do  mcfmomodooverme  da  confciencia  rohia 
^íex,'  oEmperador  Nero,  depois  de  ter  dado  a  morte  a 
AgripinafuaMây,  que  lhe  deu  a  vida.  Para  íoce- 
gar  efts  remorfo  ,  que  fem  intermiíTaõ  o  tiraniza- 
va  ,fo/  o  Senado  Romano  i  foraô  os  Cabos  da   Mi- 
licia,  c  todos  juntos,  com  huma  barbara  lifonja, 
lhe  deraõ  os  parabéns  do  matricidio  ,  como  conve- 
niente ao  bem  commum  j  e  com  tudo  confeffjva 
elle,  que  todis  as  vezes  ,  que  ouvia  tocar  trom- 
betas, ou  tambores  ,    lhe  parecia  que    era  algum 
exercito,  que  vinha  contra  elle  vingar  a  morte  de 
fua  Miy  A^ripina.  Fugia  de  paíTir  por  onde  eftava 
oftruíepulchro;  mu  hva  pilacio;   fahia  de  Roma, 
a-nedrontado  vivia  fempre  com  a  mefma  inquieta- 
ção. E  mò  fe  dando  por  íeguro  em  parte  nlguma 
querii   defefperado   mataríe    :    Interdiu   perterrefa 
ciebant  mm  úhiáms  auàiri  belUcum  camre  cum  ma- 
$cimo tnmultu.ojuo inloco  Agripma  ojja Jepulta  eranK 
Diónin  ginamobrem  alio  mígrabat  ,  cumque  idipfim  ei  aca- 
Ner,     deret ,  pertmitm  alto projícifcebatur ,  mdlibife  tuium 

pntans,  . 

,  Peyor 


DotúvmèfitoâaDefef^efaçad^         $79 

Peyor  fuccedeo  a  Thecdorico  Rcy  dos  Godos. 
Efle  depois   de  ter   conquifíada  toda  a  Itália.  Si- 
inaco ,  e  Boecio  hum  primeyro  Mininro,  o  outrp^^^^' 
Secretario  do  Eíiado  ,  naõ  aprovava©  as  cxtorfoens,  fítíijt, 
c  -tyrannias ,  que  intentava  fazer }  pelo  que  enfureci- 
do os  mandou  logo  degolar.  A  injufla  vingança  foy 
de    poucos  momentos  j  porém  o  cafíigo  foy  bem 
^dilatado,  e  penofo.  Apenas  teve  aviío   de  fe  ter 
executada  a  iniqua    íentença  dos  dous  innocentes 
Varões ,  que  logCKo  verme  da  coníciencia  ,  como 
Juiz  redló ,  lhe  fez  conhecer  a  enormidade  do  feu 
dcliâoi  e  como  Verdugo  incançavcl  começou  em 
todos  os  infíantes  atormentalo  em  todo  género  de 
torturas.  Quem  o    diíTera  ?   Aquclle  Thcodorico, 
terror  de  Itália  ,  que  na  guerra  era  hum  rsyo ,  no 
pelejar  hum  Marte  ,  que  de  ninguém  tinha  medo, 
fíeou  mais  timido  ,  que  hum  Coelho ,  parecendo- 
lhe  ,   que  em  todos  os  cantos  efíava  eícondidoSi- 
macojquc  o  vinha  matar  j  e  a  fua  imaginação  pe- 
lo remorío  da  confciencia  era  de  tal  íorte  lefa  ,  e 
perturbada ,  que  efíando  à  mefa  ,  trouxeraò-lhe  a 
cabeça  de  hum   grande  peyxc  ,  reprcfentcufe-lhe, 
que  era   a  cabeça  de  Simaco  ,  que  vinha  tomar  vin- 
gança delle.  Levantou-íe  logo  da  meia ,  e  fugindo 
gritava  ,  acudaô-me,  acudaô-mc,  que  Simsco  me 
veyo  matar;  e  o  medo  foy  taõ  exceílivo ,  que  fo- 
brepujando  aos  eípiritos  vitaes  ,  eahio  em  tal  fra- 
queza ,  que  em  poucas  horas  morreo  desfalecido. 
Daqui  íe  infere  íer  verdadeyra  aquella  íentença  de 
Séneca ,  que  o  mayor  cafligo ,  que  poíTa  ter  'hum' 
Rèo  do  feu  crime ,  he  o  telo  coramettido ;  CMaxima  Sen  epif 
fiena  crmtnts  efi ^futffe.  O  que  vem  confirmado, e<3í/Z,»f, 
mais  claramente  explicado  pelo  grande  Doutor  da 
Igrejas.  Gregório,  cujas  palavras  faô ;  que  entre 
os  mais  cruéis  tormentos  ,  que  foubcraô  inve^ta^f 

os 


3i'*s^i5i5?sfjs:afraísi.^ 


"''^^S-i£^'rj  '.sta^j^jouaa^  ■ 


ISBPBi! 


j8o 


Difctirfo  XI tt. 


Grei  i  oá  Tyrannos ,  nenhum  chega  a  deíefperada  pena  do 
i.mor.  verme  cia  confciencia:  Inter  omnia  panarumgenera 
nulk  ejl  mator  confaentia  deliciorumVermis  eot  um  non 

moutur, 

He  porém  verdade,  que  o  verme  di  conícien- 
cia  neftd  vida,  naó  faz  igual  impreffaõ  em  todos, 
aíFim  peia  diveríidadc  dos  temperamentos  mais ,  ou 
menos  apreheníivos  como  também  pela  força  das 
payxoens,  que  Ihs  refiftem  J  c  muyto  mais ,  fe  cí- 
tas  payxóes  eíhõ  já  fortificadas  com  algum  habito 
viciofodemuytos  annos.   Entaò  a  continuação  dos 
adlos ,  tantas  vezes  repetidos  ,  f^z  ,  que  o  pccca- 
dor  pouco  ,  ou  nada  fi ata  o  remorío  da   conícien- 
çiaie  as  Tuas  picidas  faô  o  mefmo,  que  dadas  em 
huma  pedra;  pois  o  coração  he  já  empedernido,  c 
òmao  habito  o  fez  mudar  natureza:  Confuetuâo  eft 
altera  natura.  AíTiip  fuccedeo  ao  infame  Hereíiar- 
ca  Lutero,  que  tendo  apoftatado  das  Religioens, 
cm  que  tinhi  entrado,  fez  apoftatar  huma  Freyra, 
furtando-a  do  Convento  ,  e  cafouíe  com  cila.  Fa- 
ziaõ  ambos  viagem  em  hum  caleíTe  certa  noyte  de 
luar  CO  TIO  de  dia.  DiíTe  a  Freyra  a  Lutero.  Oh  que 
bello  Cco  ,  e  como  eftá  bem  alcatifado  de  eftrciias! 
Eque  íerà  oParaifo!  Hi  bello ,_eíerá  fempre  bel- 
líírimo  (refpondeo  Lutero  )  mas  nào  he  para  nòs. 
E  porque  ( replicou  a  Freyrâ  ?  )  Deos  naô  nos  tem 
creados,  para  irmos  lá  ?    A    elU  lembrança  ,  que 
peos  nos  tem  pofto  no  Mundo ,  para  gozarmos  dei- 
kno  Paraifo  ,  com  hum  grande  íuípiro  refpondeo 
Lutero  alTim.  Pelo  eípacio  de  dezafete  annos  con- 
tinuos,  me  tem  fempre  Deos  chamado  com  o  re- 
morío da  confciencia ,  que  me  flagellava  de  dia ,  e 
de  noyte,  íemmedar  algum  defcanço  ;  c  às  vezes 
me  dava  picadas  de  morte ,  que  me  caufavaõ  gran- 
des melancolias  ;  porem  eu  naó  dandO' ouvidos  à 

/  voz 


DotõrfHentodàDefejpevúçaõ.  38  c 
Voz  de  Deos,  me  fazia  furdo,  com  bufcar  diverti* 
mentos  de  meu  goílo,  e  aííim  venci  cftc  verme  da 
eonfciencia  i  que  fempre  me  rohia,  c  fiz  paz  com 
clle,e  elle  comigo.  Agora  gozemos  dcfte  Mundo, 
e  das  fuás  delicias ,  em  quanto  vivermos  j  e  naô 
cuydemos  no  outro ,  aonde  paíTaremos  com  os  mais, 
que  viverão,  c  vivem  como  nôs.  Oh  ultimo  deí-í 
amparo  da  graça  Divina  nefta  vida!  Oh  defefpera- 
Ç3Õ  final  de  hum  Precito  !  E  quantos  Precitos  ain-^ 
da  viventes  entre  os  Catholicos,  que  para  gozar  al- 
guns dias  ,  e  cfles  incertos  ,  de  boa  vida,  e  para 
íatisfazcr  aos  apetites  ,  combatem  com  o  remorfo 
da  eonfciencia  ,  anticipando  o  inferno  neíla  vida/ 
porem  Vermis  eorumnon  moritur  ;  e  fc  nefíe  Mun- /l/<t»'«gr 
do,  he  hum  Algoz  taõ tyranno i  que  ícrà  no  infer- 
no ?  e  efla,  ]à  he  a  matéria  do  fegundo  ponto  dcíle 
difcurfo. 

Acho  nas  letras  fagrada> ,  com  a  commua  inter- «, 
pretaçaõ  dos   Santos   Padres ,  que   efte  verme   da  ^j^Pon' 
eonfciencia  atormentará  os  peccadores  no  inferno,  to. 
aplicando. lhe  a  vifta  dos  feiís  peccados  ,  que  lhes 
cftaraó  íemprc  prefentes.  Mas  que  viftaborroroía, 
€  que  aplicação  tyranna  fera  efta  ?  Será  huma  a  pplica-  , 

çaô  neceíTaria  ;  huma  aplicação  univerfalj  huma  apli- 
cação continua.  Aplicação  neceíTaria  ,  porque 
nunca  podcràõ  impedir  de  ter  os  fcus  peccados  pre- 
fentes ,  nem  o  remorfo  da  eonfciencia  nafcido  del- 
ks  ,  deyxará  de  roer.  Aplicação  univeríal  ,  por- 
que os  veraó  todos ,  e  naõ  haverá  algum ,  que  o  ver- 
me da  eonfciencia  naõdcfcubra,  c  não  traga  com- 
fígo  ofeu  tormento.  Aplicação  continua  ,  porque 
Gs  vcraõ  íempre ,  c  fem  algum  intervallo  ^  ou  inter- 
rompimento.  E  fc  na  eternidade  haõ  feculos  ;  fc  n^s 
feculoshaôannos;  fenos  annos  haô  mczes/ fe  nos 
mezes  haô  femanas  j  fenasfemaoas  haõ  horas  jíe  nas; 
'-  ■'  ■'  -      ,      .^  _  h€ti 


,11 


3^^  '         Difcurfo  Xlll.       a 

horas  Hm  minutos,  e  inikntes,  ou  momentoSi  em  to» 
dos  eíles  minutos  ,inftnntes,  ou  momentos ,  em  todas 
ciiís  horas,  cdiís,  em  Codas  eftas  íemanss ,  e  mezes, 
cm  todos  eftes  annos.c  feculos ,  e  em  toda  a  eter- 
nidide,  em  quanto  Deos  for  Deos  ,  íempre  efíe 
verme  da  conícicncia  roerá  ,  c  atormentará  os  pec- 
cadores  no  inferno :  Fermis  eorum  non  monetur,  E 
arazaò  he,  porque  efte  verme  da  confciencia,  co- 
íbo he  gerado  nas  Almâs  dos  peccadores ,  por  con- 
fequenciâ  a  aplicação  ,  que  teraò  aos  íeus  peccados, 
fera  huma  aplicação  neceffaria.  Trabalhem  os  pec- 
cadores,  quanto  puderem,  para  divertir  eftas  pi- 
cadas ;  inventem  ,  quanto  quizerem  ,  para  lançar 
fora  efte  remorío  ,  tudo  ficará  baldado  •,  ufem  de 
todas  as  traças,  para  aquietar  a  voz  da  íua  con- 
fciencia; ella  gritará  íempre  mais  alto  a  cada  hum 
dos  condenados,  e  lhes  dirá  :  Tu  es  prceito;  Tu 
tens  perdido  a  Deos,  e  o  perdefte,  porque  aíTim  o 
quizeBe ,  querendo  antes  a  fealdade  do  teju  pecca- 
do,  que  a  fermoíura  de  Deos,  ca  gloria  do  Paraiío: 
Fermps  eorum  non  monetur. 
BiYn  de  Chama  S.  Bernardo  a  cfte  verme  da  confciencia 
w«./ií^e/ buina  porçaô  da  íubftancia  da  Alma  ,  ou  a  meíma 
sap^^.  Alma,  que  íe  irrita  contra  fi  meíma  ,  íe  affligc, 
fc  atormenta  ,  fe  defpedaça ,  e  íe  deíefpera.  E  co- 
mo he  impoílivel  à  Alma  fepararíc  de  fí  meíma, 
pois  he  indiviíivel  j  aíTim  também  hc  impofiivel, 
que  não  íinta  eíie  verme  da  confciencia  ,e  que  poí- 
ía  impedir  a  aplicação ,  e  lembrança  dos  íeus  pec- 
cados, Eíle  verme  gerafe  na  Alma  dos  peccadores, 
como  a  traça  nos  vc?C\áo% :  Si ctit  veJUmentím^  qucd 
foi,  12,  c^meditnr  à  tinea.  Quem  quizcr  arrancar  eíia  tra- 
ça, arrancará  parte  do  panno,  que  tem  roido;  po- 
rém o  verme  da  confciencia  hc  fem  comparação 
mais  fortemente  pegado  na  Alma  de  hum  precitoj 

cfen- 


Do  tormento  da  Defefperaçad.         583 

c  fendo  dia  immortal  ,  íegue-íe  ,  que  o  verme  da 
confciencia  ,  como  porção  delia  ,  o  íeja  tambemj 
eaílim  íempre  aròe,  e  íemprc  a  pica,  fem  íe  po- 
der confLiaiir,  ou  deftruir  bum  a  outro.  Efta  ver- 
dade a  conhecerão  também  os  Gentios  com  o  lume  da 
fagrada  Eícritura,  cjue  elles  liaô. 

— -  -  Ro/lroque  immanis  Vultnr  obiinco^ 
Immortalejeeur  tmdens^  faeundaqnepanis 
Vifcera,  rímaturque  eptilis^  habitatque  fub  alio 
PeèJore,  necfibris  reqnies  daíur  tala  renatts, 
AíTimdcícrevc  Virgílio  ao  miíeravei  Titio  conde- 
nado no  Inferno/  e  dcbayxo  da  alegoria  de  hum 
Abutre ,  Ave  a  mais  voraz ,  que  nunca  íe  farta  de 
roer  as  carnes  mais  podres  ,  e  fedorentas  ,  repre- 
ícnta  o  verme  da  confciencia ,  que  envolto  no  fe- 
dor ,  e  podridão  dos  peccados  do  precito  ,  o  obri- 
ga a  tclos  femprc  prèíentes  i  e  efla  repreícntaçaõ 
neceíTaria ,  he  a  que  come,  e  roe  as  entranhas  ,  já 
Gheas  de  fogo ,  e  de  todo  o  género  de  penas  ;  JFa- 
cmdaque  peenii  Fifiera  rmatnrque  epuJis,  E  por 
muyto  que  roa  ,  e    coma,    íempre    aquclla   podri- 
daô  dos  peccados  renaícerá,  comofe  foíTem  come- 
tidos de  novo  iC  aíTim  o  precito  nunca  terá  em  to- 
da a  Eternidade  o  mínimo  repoufo  ,  ou  defeanço - 
Necfibris  reqnies  datar  ulla  renatis.  Ver  mis  eornm  rwf^ 
tfáorietttr. 

O  Profeta  Jeremias  defcreve  muyto  melhor  o 
triíte  eilado  de  huma  Aíma  roida  do  verme  da  con- 
fciencia ,  relatando  o  cruel  eííado,  e  a  total  dcfo- 
laçaõ  da  Odade  de  Jerufalem.  E  íe  convém  os 
Expoíitores  ,  que  a  Cidade  de  Jerufalem  he  fimm 
dchua  Alma  peccadora,  aíTim  taiii^bem  o  verme  da 
confciencia  heo  figurado ,  como  veremos  das  mef- 
mas  palavras,  de  que  o  Profeta  fe  ferve  para  expli- 
car a  íumma  miferia  >  c  defefpcrspô,  de  hum  corí- 

dem- 


lib.  á. 


«■■ 


3Í4  '^       tíifcmfoWl 

denado  ;^ofuh  me  defolatam  tota  die  mar  ore  confia 

i^ier-    Uam  5  dedit  me  Dminus  in  manum ,  de  qna  non  ptei 

Um.c,i  f,fj  eruen.  Mentem  potto  no  extremo  das  anguliias, 

ícin  nunca  ter,  nem  de  dia,  nem  de  noytc  algum 

intervallo  de  alivio,  ou  hum  momento  de  coníola- 

ça^^eoquc  mais  íincohs  terme  dado  nas  mãos  dê 

hum  inimigo, que  feyto  Juiz  íevero  ,  c  Algoz  inla- 

;,.    '  :  ciavel ,  nunca  pára ,  íempre  me  atormenta  i  c  nunca 

;        podcrey  fugir  delle,  por  cftar  comigo  fcmprc  prc- 

Thr.i.  icatc.-Fígtlavítjuguminipiitaíummearím^  in  ma- 

"4-       mejus  convoluUfunt,  &  impofita  collo  meo.i:^m 

tomado  conta  meuda  de  todas  as  minhas  maldades, 

c  quiz^,  que  o  numero   delias  paíTaffe   pellas  íuas 

mãos,  e  refumidas  em  hám  Catalogo  ,  mo  depen- 

durou  ao   pefcoço  ,   para  que    cftiveíTem    fempre 

adiante  dos  meus  olhos  ,  para  me  envergonhar,  c 

encher  de  confufaô ,  &  mpfiu  collo  meo  >  e  eítc  he 

ooíficío,  efte  he  o  eflfeyto  verdadeyro  do  verme  da 

Gonfdeacia.  Oh  verme  cruel !  Oh  virta  deíefperâ. 

da!  0;v  peccado.   Oh  remorfo  ,   quanto  es  agora 

penoío  !  Vayte  de  mim  !  Naô  te  poíTo  ver  mais! 

Naó    (  refpondefà  o  verme  da  confciencia  :  )  1  u 

Quizcacs  aquelle  delcyte,    aquella     vingança^  a- 

queile    goík)  ,  aqudla  fazenda  alhea  j  agora  C0n . 

tra  tua  vontade,   e  para  mayor  teu    tormento  ,  e 

confufaô  .   hiôde   eftar  tod  )s    os  teus    pcccados 

por  toda  a  eternidade  \  fsmpre  debayxo    dos  teus 

olhos  vc  dependurados  ao  teu  pcícoço  ,  para  que  te 

fartes  bem  delles:  £íi/;^p^//^  collo  meo.  Fermis  eorum 

non  morietur.  ^   .      r         /    ^  .r^f: 

Depois  da  aplicação  necefrana  ,  fcgue-íe  a  apli- 

caçaô  univerfal  ,  que  augmenta  muyro  a   pena  ,  c 

defefperaçaô  de  hum  preíciro.  Naó  haverá  peccado 

nenhum,  por  grande,  ou  pequeno,  que  leja     que 

,   paô  lhe  fique  prcíente,e  com  mayor  luz,  c  clareza^ 


Do  tormento  àa  Dejej^eraçao*        ^  Sf 

do  dia,  c  da  hora,  em  que  o  cometteo.  E  cntaô  o 
verme  daconíciencia  íahirá  a  modo  de  hum  formi- 
gucyro,  edará  ao  miferavel  condenado  tantas  pi- 
cadas ,  quantos  íaõ  os  peccados.  Oh  que  tormento 
iníoportavel !  Oh  que  dcfcíperaçaò  !  E  conforme 
naô  haverá  parte  alguma  do  corpo ,  que  as  penas  ex- 
tcriotes  do  fogo   naò  atormentem  ;    nem  peccado. 
algum,  que  naò  íeja  punido;  aílim  também  inte- 
riormente lhe  fera  íempre  fixo  na  memoria,  c  terá 
fempreprefcnte,  e  nem  por  hum  momento  poderá 
cíqueceríe  delle.  O  verme  da  confciencia  lhe  rc- 
preíentarà  com  todas  as  circunftancias,  mais  ,  ou 
menos   agravantes  ,  que   tem.     Aqui  nefta  Tida  a 
confciencia  craíTa  ,  ou  errónea  ,  efcufa ,  encobre, 
ou  diminuemuytos  peccados,  com  os  fabcr  desfar- 
çar.O  amor  impudico  fe  desfarça  aqui,  como  huma 
íimples  ,  c    innoccnte  galantaria.  Huma  liberdade 
natural  de  gente  moça ,  que  tem  as  payxoens  vivas, 
fedeípacha  por  hum  temperamento  de  fogo.  A  ava- 
re:?a  fe  efcufa  com  o  nome  de  economia ,  ou  bom 
governo ,  c  também  le  bautiza  com  o  titulo  de  fa- 
zcndeyro  ,  que  íabe  confervar ,  e  augmentar  a  fua 
cafa.  A  foberba,  c  o  luxo,  fe  defende,  com  o  pre- 
texto da  nobreza,  dopofto,  ou  cargo,  que  temos, 
e  convém  fazeríe  diftinguir ,  para  que  os  outros  nos 
tcnhaô  o  devido  refpeyto.  Oh    peccador  agora  a 
tua  conícicncia  larga    te  cega  o   entendimento,  O 
teu  coração  femprc  mais  fc  cndurerece;  e  perdido 
Ras  vaidades ,  e  dcleytes  dcftc  Mundo ,  nao  cuydas 
na  outra  vida  j  mas  deíenganate ,  que  cedo  chega- 
rá a  morte ,  e  no  Inferno  não  cuydaràs  em  outra 
coufa  ,'  que  nos  teus  peccados ,  neceíTariamentc ,  c 
univeríalmente;  os  terás  íempre  prefentes ,  todos 
juntos,  c  a  hum  por  hum ,  fará  o  verme  da  con- 
fciencia, que  dè  a  fua  picada.  Oh  tormento!  Oh 

Bb  de- 


/  .  ' 


-m^íy  Bi/curfo  Xlll. 
deíerpcraçaõ !  Òh  verme  da  coníciencia ,  horrendô,è 
cruel !'  Fermt^s  eorum  non  mor i et ur , 

Mais ,  já  que  a  âppiicaçaô  dcíie  verme  da  con» 
fciencia  he  neceíFaria ,  eiiniverfal,  íe  pelo  menos 
mofoíTe  continaa,  e  déíTc  algum  deÍGanço,,ou  re- 
pouío  ao  miferavel  precito  ,  ou  íe  íia  de  íer  conti- 
nua ,^  foíTe  ao  menos  ,  como  huma  febre ,  c^iic  íèndo 
continua  tem  a  íua  declinação  ,  ou  creícimento; 
foíTecomoa  more  ,queíe  nunca  pára,  tem  eíia  va- 
riedade y.  que  feís  horas  enche,  tkh  horas  vaía^ 
m'3S  que  em  todo  o  circulo  infinito  da  eternidade, 
.  naõ  poíTa  ter  a  Aíma^  do  preíeito  hum  interrompi- 
mentoyhuma  variação, hum  lúcido  intervallo,  que 
divirca  o  penfamento  ,  que  traíiorne  a  imaginação' 
deftes  meus  peccados .?  Naõ  .?  O  verme  da  conícien- 
eia  nunca  concedera ,   nem  ao  seu  corpo  o  minimo 

Mc.Q.^^^^'  "^"^  ^  ^^^  ^'"^^  algum  inílante  de  quieta- 
çaô:  Nen  concedit  re<fuiefcere  ^^íritrm  meum  ^  tm^ 
pkt  ms  amaretudimbus.  Mas  porque  tanto  rigor  ,  e 
.tanta  vingança f  Com  mu^ta  razaõ,e  jiifliça  j  por- 
que, conforme  Deos  comhiim  concurfo  continua- 
do, infiue  nas  Almas  dos  Berna ventorados  ,  a  fím 
de  que  participem  da  fuaBcmaventurança,  e  gozem 
da  fua  gloria  f  aíEm  a  Divina  juftiça ,  por  hum  cfFey- 
to  da  fua  jufta  vingança,  influirá  nos  Réprobos 
hum  tal  conhecimento,  e  vifía  da  enoriiiidade  dos 
íeus  peccados  ,  que  para  nao  os  ver  j  fe  preeipita- 
raõ  no  mais  profundo  do  Inferno,  e  pediráõ  aos  mon- 
tes, que  eay-aô  íobre  eiles,c  aos  outeyros ,  que  os  en- 
cubraõ  jc  lhes  íirvaô  de  pedra  repylchral ,  para  ahi  fi- 
carem para  íemprc  fepuitados :  Tnnc  álcimtrãontihv^ 

Etícz'^  caditejuper  nos  -^  &  colUhtís  operití  nos.  Vermis  éorum 
nonmovktur,  ..  . . ;  .^ 

Tudo  iOo  bemconííderado  por  Santo  Ambroíio, 
íâz  ,,  que  eíic  Doutor  tao  grande  naõ  duvide  de 

pro^ 


Dú  iõ  rm  Mú  ia'  Defcfpcraçad, 

pronunciar   eíta :  ícn te nça  ;    que  ci^s"  'íiifiUitteíè^cí^ 
íup] icios  5  que  os  condenados    íõfTrem  bo  ; fof<£i'r]b|f 
omayorde  rodos  hco  verme  da  confcicricia  ;'e  dà 
logo'a  razaõ.  Primeyramente  ,  he  maj^or  tormen- 
to ,  que  3  pena  do  fetifo  ,  porque  €Í\a  vem  por  fo- 
ra ,  e  de  hum  agente  exterior  o  qual  hc  o  fogo ;  c  o 
verme  da  coníciencia  he  interior-,  he  como  huitva 
porçaõ  ,  que  íe  acha  no  fundo  da  íybíiancia  de  hunv 
prcfcito,  c  tanta  diíFerença  ha  entre  hum  fuplicio, 
«outro  ,  quanto  ha  entre  o  corpo,  e  a  Alma.  He 
também  mayor  tormento  ,  que  â  pena  do  Dano';- 
naô  íó  porque  o  verme  da  confciencia  iriclue  em  íi|| 
cft  1    pena  ;    mas  tambcm  ,  porque  a  privação  de* 
Deo3  he  íó  precifamente  fcníivel  a  húa  Alma ,  quan- 
do cfta  conhece  ,  e  íe  accufa ,  que  tem  feyto  ou 
commettido  peccadosjque  lhe  merecem  efta  priva- 
ção ,  pois  o  verme  da  canfciencia  he ,  que  lhe  dá 
cfíe  conhecimento  ,  e  a  reprehende.  Tu   perdeile 
ao  teu  Deos,c  o  pcrdefle  por  tua  culpa  j  porque 
aílim  o  quizefte.  Coníidèra  ,  e  vè  às  graças ,  qué^ 
Deos,  te  tem  feyto,  em  tal  idade,  em  tal  tempoí-"^ 
em  tal  lugar,  cm  tal  OGcaíiaó ,  cm  tal  dia,  em  tal- 
hora  ,  para  falvartc  ,    c  darte  o    Paraifo.  Vc  gs 
bem  agora,  e  confídera  o  2h\xÍ<>y<\ViC  tivefle  del- 
ias. Quizeíie  o    vicio  ,     aborrecendo     a  virtude; 
quizelie  o  peccado  ,  fugindo  à  penitencia  ;  quizefte 
dargoflo  aó  Demónio,  e  ofFender  a  Deos  ,  dcfpre- 
irando  a  eterna   Bsmaventurança  para  padecer  no 
Inferno  a  mais  tyranna  miferia  :  affim  o  quizefles; 
pois  chora ,  geme,  padece  ,   arrayvare  ,    deípeda- 
çateye  defcrperatc,  que  bem  larga  he  a  Eternidadepa- 
raefta  tua  deíefperaçaó ;  pois  eu  nunca  deyxareyde 
te  atormentar ,  ]á  que  nunca  hey  de  morrer :  Ver  mis 
eorum  non  morietur. 

Digo  mais ,  fazendo  hua  fuppofíçaô  impoíTivel, 
í.  Bb  2  que 


.m^ 


1      í 


p8  Difcur/o  Xin. 

que  íe  hum  coadenado  no  inferno  pode- íc  dizer. Eli 
çftouncfías  chammas  injuftsmente  detido }  e  ator- 
mentado. Deos  ,  fem  outra  razaõ  ,  que  fer  todo 
poderoío  ,  e  Senhor  abfoluto  de  todas  as  creaturas, 
me  quiz  perder ,  e  condenar  nefle  fogo  ,  porque 
allim  hc  o  íeu  gofío  ,  c  a  íua  vontade  >  que  em 
quanto  a  mim  ,  naò  me  remorde  a  confciencla, 
nem  me  lembra  algum  peccado,  com  que  o  tenha 
oíFcndido,  e  mereça  taô  iníoportavel  cafíigo.  Di. 
go,  que  cm  tal  cafo  o  Inferno  ,  por  tormentoío, 
que  feja,  naõ  feria  para  elíe  Inferno }  os  Demónios 
por  cruéis  verdugos,  que  foíTem,  e  monílros  hor- 
roroíos ,  naõ  lhe  fariaõ  medo ,  nem  lhe  pareccriaô 
Demónios.  Mas  quando  o  verme  da  coníciencia 
como  teftemunha  irrefragavcl ,  lhe  reprefenta  à  vif- 
ta  todo  o  contrario  ;  dizendo-lhe  continuamente» 
c  fem  interpolação  alguma  .*  Eis-ahi ,  o  que  tu  tens 
feyto:  Eis-ahi  o  que  tu  mereces  :  Eis-ahi  a  innu- 
meravei  multidão  dos  teus  peccados  ;  como  tam- 
bém os  tormentos  fem  numero  ,  que  por  elles  pa- 
deces. Lembra-te  ,  quanto  trabaihafte  ;  de  quan- 
tas traças,  c  induftrias  te  íerviíie,  para  chegar  a 
ter  entrada  com  aquella  mulher  cafada  ,  que  te  pa- 
xeceo  bem  na  Igreja.  Que  rifcos ,  que  perigos  naã 
tivefte  para  alcançar  o  teu  peffimo  fim !  Quantas 
vezes  te  admoeftcy  ,  que  largaílcs  aquella  communi- 
caçaô  de  eícritos  amoroíos,  que  podtaõ  Yir  interce- 
ptos  do  marido ,  com  a  ultima  ruína  ,  e  ^fgraça 
de  ambos.  Quantas  inípiraçoens  te  conferi  y  para 
que  deyxaíTes  aquella  occaãaõ,  e  para  que  te  afaí- 
taíTes  daquella  cafa.  Nunca  te  deyxey  viver  cmi 
paz  j  e  para  que  o  rcmorfo  da  coníciencia  ,  com 
que  de  dia, e  de  noyte  te  molcflava,  tiveíFe  efFey* 
to ,  cu  te  dava  picadas  agudiífimâs  ,  para  te  def- 
pcrtar  do  letargo  dos  teus  viçios  ,huma&  vezes  ago- 

ando 


Do  toyníefjtodaDefeJperúçàõ.        389 

ando  os  teus  goftos  com  mayores  dcfgoftos,  c  ou- 
tras mifturando  o  mel  doce  dos  teus  deleytes ,  com 
o  fel  amargofo,  de  crimes  ,  trayçocns ,  e  inimiza^ 
dcs :  c  tu  fcmpre  mais  duro  na  tua  maldade.  Ago- 
ra pena  ,  geme ,  grita  ,  blasfema  ,  defpedaçatc  ,  dcfef- 
perate ,  para  íempre ,  jà  que  aílim  o  quizcítc :  Fermú 
eorum  non  morkttir, 

Finaimenre  procurey  darte  picadas  de  morte, 
çomrepreíentarte  ao  vivo  a  morte  improvifa  de  al- 
gum peccador  teu  veíinho,fazendote  medo,  e  hor- 
roi*ij  com  a  lembrança  do  Inferno  ,  c  da  eternidade* 
Aqui  no  Inferno  efíaõ  as  pcíToas ,  que  tanto  amafíc, 
c  adoraftcj  as  creaturas  mefmai,  peias  quacs  ido- 
latrando-as,  deyxaftc  o  Creador.  Ve-as  bem  ,  rc- 
galate  com  ellas  fe  podes.  Eis-ahi  o  dinheyro ,  que 
roubafte  aos  pobres  ,  para  lhes  dar;  as  fazendas 
que  naõ  pagafte ,  para  parecer  bemi  ao  Mundo  ,  c 
fcr  rico;  pega  nellas,  confolatCj  e  recreatc , que 
faõ  lindas,  pois  parecem  todas  huma  purpura,  cot 
realidade  tem  a  propriedade  ,  e  a  cor  viva  do  fogo» 
Oh  verme  da  confçiencia,  mais  cruel,  mais  tyran- 
no, que  todos  os  Demónios  do  Inferno  (  dirá  en- 
tão o  Prefeito  )  deyxame ,  e  vayte  dos  meus  olhos, 
para  que  naõ  te  veja  mais  \  e  já  que  por  meu  mayor 
tormento  ,eefcarnio,  me  rcpre Tentas,  que  me  far- 
te das  minhas  torpezas,  e  peccados,  fartate  tam- 
bém tu,  de  darmc  eftas  penas,  rocme  o  corpo  to- 
do, deíentranhame  ,  arrancame  o  coração  ,  c  a- 
caba  por  huma  vez,  a  mim  de  te  ver,  e  penar;  e  a 
ti  de  fartarte.  Ah  infame  prcícito  (  replicará  o  ver- 
me da  coníciencia  )  agora  defejis  a  morte  ,  agora 
cuydas  nella  ,  para  que  acabem  os  tormentos, 
quando  tanto  procuravas  a  vida  ,  para  continuar 
nàstuas  maldades!  Naõ  íabcs,  que  os  prefeitos  no 
Infernobufcaràó  amojrte,cnaQaâcharáQi  faraó  o 

Bb  3  poí- 


^ 


JÍfOS.l . 

9^ 


BttfèB. 
Eoíif. 


Caffiod. 
m  P(aL 
%6o 


Thr.z, 


lil 


390         .'$      Difiur/o  Xtlt.         \ 

pQílivd ,  para  morrer ,  e  a  morte  fugirá  dcílcs :  ^4rí 
renf  mortem  ,  &  nòn  invenient  eam.  Defiderabunf 
m&ri ,  &  mors  fugi  et  ab  m.  Ora  eu  da  minha  parto 
te  tratarey  de  mancyra  ,  que  íempre  morras,  e  te 
fárey  morrer  de  qttalrdade,  qtte  íempre  vivas  com 
©..rcmorfo  .r  Ita  mmnntuv  ^  ut  femper  vivam  ^  ita 
vivuntt  ut  femper  m&ríantur.  Defdperate  ,  quanto 
quizeres  %  a  tua  defefperaçaô  fera  inútil ;  porque  a 
verme  da  çonícicnçia  rC  o  fogo  ck)  inferno  tem  cada 
hum  dellea  eíía  qualidade ,  que  no  mefmo  tempo, 
que  coníome  ,  c  afflige  hum  condenado ,  o  repara, 
ç  eoníerva  .."  Sis  abfumit ,  ut  fervet :.  fie  fervat ,  nt 
cmciet.  Efta  bc  a  de íefperaçaõ  formai  de  hum  Ré- 
proba. O  verme  da  confcicncia ,  que  lhe  reprc* 
íentarà  £emprc,eíem  intervallo algum ,  os  crimes,, 
que  fez-,  e  os  grandes  bens,  que  perdeo  ,  porque 
qmz^FefmMeõritffffwnmõnetur. 

Dayme  licença ,  pio  Lcy  tor ,  que  vos  pergunte^ 
quaes  íaó  os  vVoííbs  penfamentos ,  e  que  cancey ta 
tendes  formado  ,  ou  que  tendes  re foi  vida  ,  depois 
de  ler  com  attençaõ  as  verdades  ,  dcfte  remorío  dà 
Goníciencia»  Haverá  tyranuia  ,  ou  carnificina  em 
qualquer  género  de  tormentos ,  que  íe  poUao  in- 
ventar neííe  Mundo  ,,  que  loaó  pareçaõ  de  rofas, 
à  vifta  dos  agudos  ,  e  picantes  eípinhos  deíle  re- 
morío. Oh  Alma  devota  »  que  no  breve  difcurío 
deftamiíeravel  vidate  fentcs  continuamente  marti» 
rizada  das  agudas  molcftias  dos  eferupulõs  r  €uè 
comparabo  te^  cui  ãjpmilab&  te  flia  Sim,  Com  quem 
te  igualarey,.  ou  a  quem  te  farcy  íemelhante  ncfías 
tuas  penas.*  Magna  eíiveluti  maré  cêntritia  tua.  O 
teu  arrependimento,  atua  contrição  v  P^J^^*^^  ^^^^ 
mar  banzeira,  c  perturbado  ,,  pelos  ventos  contra^ 
rros  que  nunca  paraõ ,  batida ,  e  rebatida  das  ondas 
das  tentações ,  que  nunca  faltaõ  :  ^is  medebitttr 

tmi 


Do  mmnto  da  Deféiperaçao.        391 

tm?  Quert  acudirá  a  cfía  tormenta  desfcy ta.  Que 
Piloto  levará  a  íalvamcnto  cfta  Alma  ,  que  tantas 
vezes  eftcve  arriícada ,  e  perdida  no  mar  immenfo 
das  fuis  maldades  :     Iniquitates  mt£  ,  fu^ergrejj^^(*^'}7 
futtt  caput  meum.  E  depois  de  ter  obedecido  a  voz 
-de  Deos  ,  que  a  eftimulava  a  penitencia  com  as  pi- 
cadas fortes  do  remorfo  da  coníciencia ,  jà  conver- 
tida, e  penitente  ,  acha-íe  em  hui  nova  batalha  com- 
batida de  hum  exercito  de  eícrupiilos.  Oh  Alma  fc- 
lice,  eftas  punturas  dos  efcrupulos ,  hc o  íinal  mais 
certo  que  já  vay  para  predeftinada ,  pois  hc  a  pena 
que  Deos  lhe  dà  nefta  vida ,  porque  em  algum  tem- 
po dcíprezou  as  picadas  do  remorío  da  coníciencia. 
Quem  acudirá.    O  mefmo   verme  da  confciencia, 
que  dantes  era  hum  Cenior  rigorofo ,  hum  fifcal  fc- 
vero,para  te  aíFaftar  dopeccado,  na  hora^da  morte 
fera  hum  Juiz  fiel ,  redo ,  e  benigno ,  hum  Advoga- 
do amorofo  i  hum     patrono  confiante  que  ame-^ 
droncará  o  Demónio,  dcícubrirà  os  íeus  cnganosj 
defenderá  a  voíTa  caufa,  e  a  patrocinará  com  alegar 
a  paciência  que  tivcflcs  ,  vos  confolarà  com  rcpre- 
fentar  a  coroa  da  gloria ,  que  mercceftes  pelas  ba- 
talhas vencidas  contra  o  Demónio,  Mundo,  e  Carne. 
Aílim  coníolava  ,     c  confortava   os  íeus  Monges 
Saõ  Bernardo  com  as  praticas ,  que  lhes  fazia  ,  dizen- 
do.  Que   o  remorío  da  coníciencia  hc  a  voz  de 
Deos,  que  os  deíapegava  do  Mundo  para  os  confer- _ 
var  na    Religião  que  as  picadas  defie  verme  era õ 5^^^' 
cfporas,  que  os  eítimulavaò  a  caminhar  direytos^^fy^í* 
pelacítrada  da  virtude  ,  com  a  certa  efperança  do  £><;«». 
Paraifo.  Pelo  contrario ,  quem  defpreza   cflc   ver- 
me da  confciencia.  Quem  reíifte  as  fuás  picadas. 
Quem  naô faz  caio, ou  jànaô  fente  os  íeus  remor-  • 

fos  eíte jàanticipadamente  vive ,  e  fe  proítitue  como 
precito ,  e  fe  naô  recorre  a  Deos  com  tempo ,  tenha, 

Bb  4  por 


Tercei 
roPon- 

to. 


D.Tb. 


39t       ^-^xr^)ifcuYfò  Xllh 

por  iafallivcl  a  dcfcfperaçaô  de  falvarfe  da  qual  V>zm 
nos  livre  a  todos;  que  heamateria  mais  importaritc, 
que  devemos  tratar  no  tcrceyro  ponto  defíe  dif- 
curfo. 

h  defeípcraçaô  diz  S.  Thomás  hc  hum  pcccado 
graviílimo,  eenormiffimo  ,  que  no  mcímo  tempo, 
e  immediatamentc  oflFende  t)s  dous  attributos  da  om- 
nipotência, c  mifericordia  Divina,  parecendolhc, 
que  Deos  naô  poderá  ,.  ou  naõ  quererá  perdoarlhe 
tantos,  e  taô  graves  pcccados.  O  pcccador  defeí- 
pcrando-íe,  faz,  e  rende  íem  remédio  a  fua  falva- 
çaó  impoíTivel ,  pois  elle  mefmo  dà  anticipadamcn- 
le  contra  íi  a  fentença  da  fua  condenação :  Eo  quod 

remedium  fu£  converfionis  ,  velut  impoffihik  Jtatuat^ 

z.a.ç.  jamque  fèííteníiam  fiiée  ãamnatíonis »  de  fi  defperam 
zi.m.anticipit,  O  que  reduz  os  peccadores  a  defelperar- 
3'        íe,  hc  o  conhecimento  ,  c  lembrança  deinnumera- 
veis  peccados  ,  cuja   multidão  ,  e  enormidade  os 
cípanta ,  e  confunde.  Coníideraô-íe  como  indignos 
de  olhar  para  o  Ceo ,  quanto  mais  de  gozalo  ,  e 
poíTuilo.  Imaginaõ-fe  ,   que  Deos  he  íeu  inimiga 
irreconciliável,  e  dizem  como  o  primcyro  deíefpera- 
do,  que  veyo  ao  Mundo,  e  foy  Cain :  {Maior  eft  im- 
Gen^.é^  quitas  mea ,  quam  ut  veniam  merear.  O  meu  pecca- 
do,  he  demaíiadamente  grande,  c  affim  nunca  po- 
derey  alcançar  o  per^aô.   Efte  mefmo  diícurfo  fa- 
zia S.  Agoftinho,  quando  fe  confiderava  immerfo, 
c  perdido  tK)  lodo  da  íua  luxuria.  Confcffo  (  dizia 
elle  )  que  a  vifta  das  minhas  culpas ,  tenho   alguín 
fundamento,  ou  razão  aparente ,  para  me  defefp«rar, 
mas  feno  mefmo  tempo,  confidero  o  Filho  de  Deos, 
omeu  bom  JESUS,  derramando  fanguc  ,  cravadso 
emhuma  Cruz  por  íatisfaçaô  deftes  mcfmos  meus 
pcccados ,  o  meu  coração  fica  incapaz  de  ter  o  mini- 
tífAt,  ^^  movimento  de  dcfefperaçaô;  Dej}erare  utique 


Do  torm  ento  da  Defej^eraçav.  393 
fotuiffem  propter  nimia  feccata  mea  nifl  ver  bum  tmm 
Deus  meus  '^  caro  fieret ,  &  habitar  et  tn  nobis.  He 
certo  que  à  rcprcfcntaçaò  das  minhas  maldades  me 
efpanta  ,e  dcfanima  o  meu  efpinto,  efe  ponho  os 
olhos  na  vida  paíTada ,  fcguindoos  meus  apetites, 
entrareyfem  duvida  na  defconfiança  da  miíericor- 
dia  Divina ,  mas  fe  dcfpois  levanto  os  olhos  em 
Chrifto  crucificado ,  cfta  vifta  diíTipa  logo  todos  os 
meus  temores ,  e  o  ícu  fanguc  conforta  o  meu  co- 
ração. Quem  duvida  ,  que  lembrando-mc  de  ter 
vivido  tantos  annos  cfcravos  do  Demónio  ,  atado 
€om  tantas  correntes,  quantos  eraõ  os  fuíis  dos 
meus  peccados  ,  que  as  formavaò ,  naô  podia  cf- 
perar  outro  lugar ,  que  o  calabouço  do  Inferno;  po- 
rem fazendo  agora  reflexão ,  que  fou  membro  de 
JESU  Chrifto ,  e  que  o  feu  mefmo  fangue  corre  por 
entre  as  minhas  veyas ,  he  impoíTivel ,  que  eu  me 
dcfefpere,  equc  naô  tenha  huma  confiança  certa, 
na  fua  íanta  mifericordia :  EJlin  te  Veo^&  Domino  , 
nojiro  JESU  Chrijio  uniu fcujuf que  mjirum ,  fortto  &  ^^' 
fanguis^  ér  caro^  ubi  ergo poriio  mea  ,  regnat , ibi  regna-  ^^ 
re  me  credo ,  ubi  fanguu  meus  dominatur ,  íbt  dommari 
confido, 

O  peccador  naõ  pode  ter  outro  fundamento, 
nem  outra  razaõ  para  deíefpcrarfe  ,  que   o  temor 
de  naó  poder  pacificar  a  juftiça  Divina  contra  elia 
irritada  ,  mas  cfíe  fundamento  nsô  fuííifte  ,  e  to- 
da a  razaõ  he  imaginaria  ,  enulla,  pois  diz  S.Paulo, 
que  noíTo  Senhor  J  E  S  U  Chrifto  dcfcja  ,  e  quer  ,  que 
todos  íe  íal vem ;  Clui  omnes  homines  vult  falvos  fe-Tim. 
ri,  Eque  íe  alguém  tiver  offendido  a  Deos  ,  c  vive  z. 
períuadido  ,  que  não  fe  ha  de  íalvar ,  naó  fe  deícf- 
perc ,  mas  recorra  a  clle ,  pois  he  o  Advogado ,  c 
Medianeyro    entre  Deos,  e  os  peccadores  :  Umis^'^' 
ffíif»  DeuSy  unus ,  ^  mediator  Dei ,  &  hominum  Chri-^' 

ftus 


^c. 


i: 


I  il 


3  j>4  Difcuvfó  XllL 

ftusjESUS^  qmdedtt  tn  redempífommfemettpftímprif 
ammbus.  E  taí  Mcdianeyro ,  eRedcmptor,  que  nos 
rcmio  com  o  próprio  Sangue.  O  ApoUolo  Sa5  Joaõ 
falia  nefta  matéria  com  mais  energia  ,  çom  dizer, 
o       que  noffo  Senhor  JESU  Cíirifto  he  a  viâima  de  pro- 
**''^^*^  piciaçaò  pelos  noíTos  peccados  :  Ipfe  ^ft  propittatio 
fro  peccatismfiris,  Naò  íe  contenta  com  Saò  Paulo 
de  ciiamar  Advogado  ,  e  Medianeyro ,  mas  vidlima, 
para  que  entendamos,  que  conforme  a  vidima  to- 
da inteyra  íe  facrifica;  a  Deos ,  affim  todo  JESUS  fe 
tem  íacrificado  por  todos  os  peccadores  do  Mundo; 
iSoae.  Nonpronojlris  tantum,fed  etiam  pro  totms  Mundi, 
%:    '  'Eaflim  a  juftiça  Divina  fica  rcdintegrada ,  ç  fuper- 
abundantemente  íatisfeyta.  O  fundamento  Theolo- 
gico  de  toda  cfta   doutrina,  que  deve  animar,  e 
coníolar  os  peccadores  mais  deíefperados  he;,  que 
JESU  Chrifto,  fendo  Deos,  e  Homem  tem.  dado  fa- 
tisfaçòes  infinitas,  mais  poderofas ,  para  aplacar  a 
ira  de  Deos  ,   do  que  todos  os  peccados  pofliveis 
dos  homens  o   podeíTeni  offender  ^  c   irritar.  Por- 
que ainda  que  o  peccado  encerre  em  fíhúa  malícia 
infiaita ,  terminativt  ,    qualquer   mínima    pena  dé 
Chrifto,  teu  também  merecimento  infinito,  fuper.- 
^bundante,  e  capacíílimo  para  fatisfazer  ,  e  remir 
mil  Mii:.idos,  Ha  parem  differença  entre  eftas  duas 
5^^^,^^infinidades,  que  a  malícia  do  peccado,  he  fó  infí- 
l>íK«.D.  nita  ratione  objeãL  Porque  Déos  que  he  íeu    obje- 
Th.      do  heiníiniro,  mas  quando  a  PeíToa  do  Verbo  pa- 
dece na  íua  hu;nanidade   qualquer  dor  ,   ou  pena 
he  abfolutamente  infinita,  e    capaz  de  fatisfazer  a 
milhões  de  peccados ,  de  milhares  de  Mundos. 

PdíTemos  agora  da  fciencia  Theologlca  á  moral 
dos  Santos  Padres  ,  e  veremos  o  que  tem  eícrito 
neíVi  mucria  para  confolaçaô  dos  peccadores  ,  e 
anima  los,  anaô  deíeípçrarfe,  mas  pàr  toda  a  ím 

Gon- 


bo  tomenfo  da  Defejperaçad^         JS^  J 

confiança  na  miÍÊricordia  Divma.  Saò^Bafilio  argu- 
menta afíim.    Os  voíTos  pcccados,  por  grandes,  e 
enormes  que  íejaõ ,  fe  podem  numerar,  etem  termo 
finito,  mas  he  impoflivel   achar  numero,  medida, 
termo ,  ou  fi;n  à  miícricordia  Divina ;  iogo  opecca- 
dor  naõ  fc  ha  de  defcíperar,  mas  chorar  os  feus 
pcccados ,  pois  com  hum  propofíto  firme  ,  já  lhes 
poz  termo,  jà  tem  fim ,  e  confiar  na  mifericordia  Di- 
vina ,  que  nunca  acaba  .*  Si  feccata  ,  &  magnitudi-  ^-^^^'^ 
ne ,  &  numero  po^unt  definiri  ,  mtferatwnes  autem  ?    '^' 
Dei  neqtie  magmUidme ,  neqne  numero  foffunt  cireum-       ' 
fcrtbi.    Sme    dúbio  non  eft  cur  dejieratto    adhibenda 
fit^  fed  agnofeenda  mifericordia  Dei  ,  &  comwijfd 
feccata  deteftanda.  Quando   hum   peccador    (  diz 
S.  Joaõ  Chryfoftomo  )  fe  achar  carregado  com  o  peia 
infoportavel  de  innumeraveis  peccados ,  íe  quizer 
arrependcríe  de  coração  ,  e  fdzer  penitencia  ,  a  gra- 
ça de  Deos  alimpará  a  fua  Alma  como  hum  criftal, 
c  de  qualidade,  que  nunca  mais  apparccerà  finai  al- 
gum; Si  quii  innumeris  peccatisfit  faueiattis  ^  fi  eo- 
rumpamterevellit ,  tta  Dem  emma  abolet ,  nt  nulkm  ^^^yf^,^ 
eorum  vejiigium  appflreat.  EDeos  failandopcla  ^0C'*jJ^'^ 
ca  do  Profeta  líaias  ,  aíTegura  ,  que  fe  a  Alma  do 
peccador  for  vermelha  ,  como  huma  brafa ,  ficará 
com  o  arrependimento  mais  alva  que  a  mefma  neve; 
Sifnerintpeí:catavefita  ut  eoccinum  qnafmix  deaíbú'  ifai.c. 
btintur.  Ponde  os  olhos  (diz  Saõ  Bernardo  )  aos  pec-  » %' 
cadores  todoá  cm  tantos  cafos  ,  que  a  cada  paífo 
fuccedem  ,  em  tantos  exemplos  ,  que  cada  dia  fe 
vem  ,  e  vos  dcknganareis  ,  que  tendes  ofFendido 
a  hum  Deos  inclinado  a  vos  perdoar  ,  e  que  mai^ 
defeja  a  voíta  íalvaçaõ  ,  que   vòs  meímos  a^podeb 
defejar.  Lede  o  Evangelho  ,  e  confideray ,  íè  ten- 
des offendido    a    Decs  ,  mais   que  a  Samaritana, 
mais  qic  a  Magdalcna  ,mais  que  S.  Pedro,,  e  Sa©  Pau;- 

lo,> 


Bem. 


1^6  éifcurfo  XllL 

lo,  c  o  bom  Ladríiô,  c  todos  cftcs  arrependidos ,  nâõ  fó 

alcançarão  o  perdaò ,  mas  eftaõ  agora  gozando  a  Dcos 

collocados  entre  os  mayorcs Santos  do  Paraiío:  Num- 

quid  amplius  Magdakm  peccafti^  numquid  amplim 

Serm"^,Paf^^0^  numqutd  amplius  tetro.  ÀttammúU  ^  m  íota 

SSrPct,  cordepcenitentiam  agentes^  non  modofalutem-Jed  &  fan- 

I.         Bitudinemconfecutifunt. 

Poderá  ainda  acharíc  algumj  pecçador  taõ  en- 
durecido, que  à  vifía  de  tantas  provas,  authorida. 
des ,  e  infabillidadc    do  Evangelho  ,   ainda  duvi* 
de,  ou  tema,  que  os  noíTos  pccçados  fejaõ  mayo- 
res  da  miferícordia  Divina  ,  ou  dos  merecimentos 
de  Noílo  Senhor  JESU  Chrifto?  Diraô  ,  que  a  fre- 
quência do  peccar  ,  degenerou  cm  habito  raao,  c  o 
mao  habito,  que  paíTou  em  natureza,  e  efta  jâ  tao 
depravada  ,  faz  hum   obftaculo  infuperavel  a,  noffa 
^"^«i  falvaçaõ;    Abftt  hoc   k  [enfibus  peccatorum,  Dcos 
ConT  ^^^^^  (  diz  Santo  Agoftinho  a  qualquer  pecçador  que 
íejade  tal  fentimento.  Diga  antes  comigo  :  tMulti 
funt  Imguores  mei  &  magnl  ^  fed  maior  eft  medicina 
tua.  Saõ  muytas  ,   c  grandes  as  minhas  maldades, 
tantoaílim,  que  a  minha  Alma  vaylangucndo,  vay 
cfpirando,  masmuyto  mayor  he  a  voíTa  mifericor- 
dia.A  voífa  graça  iie  hum  elixir  viU  ^  que  confor- 
ta, confola,  e    rcíufcita  cm    vida,  c  na  verdade, 
parece  coufamonftruoía(  diz  Saõ  Salviano  Bifpode 
.    Marfelhi)  ver,  que  os  p:ccadores ,  fefiiô  dos  ho- 
mens, todas  as  vezes,  que  de  palavra*, ou  por  cí- 
crito,  ou  juramento,  lhes  prometem  alguma  coufa, 
cque  naô  íe  fiem  de  Deos,  quando  nos  promettc, 
e  de  palavra  ,  c  por  efcrito   nas  fagradas  letras  ,  c 
com  j-mmento  ^    que    fendo    elles    arrependidos, 
SalvMh  jiies  pcr.loiiá  os  feus  peccados :  Oh  tniferia .  oh  pre* 
2  ad     ^^r fitas.  Homím  ah  homine  credittir  ,  &  non  credi- 
^'''      tfirDeo.    Hommis  promiJJJonibus^  fpes  commodauir^ 

Cat.  J)^Q 


Dotormentoâa  Defej^eroçãú.  197 
Veo  negatur.  Oh  quam  feliccs ,  c  cjue  bemaventu- 
rados(dizjrertuliano  )que  íomos.  Pois  Dcos  ,  fe 
temempehhado.,  com  palavra  jurada  de  ufar  com 
.mofco  da  fua  infinita  miícricordia ,  e  íalvarnos ,  fe 
deyxando  os  vicios  fizermos  penitencia.  Pelo  con- 
trario, quam  dcfgraçados  precitos  ,  feremos,  fe 
conhecendo  infallivelmente  ,  que  naô  nos  pode  cm- 
ganar  nem  mentir  naô  quizermos  fiarmonos  delkj 
para  continuar  como  defefperados  nas  noíTas  ^'^^' Ycrtul, 
pczas,  e  vicios:  Oh  nos  Beatos^  quorum  caufaDeus  ijy^^g* 
jurat.  Oh  nos  mi fef  rimos  ^fi  necjuranti  Deo  credtmus.    pan. 

Precitos,  e defefperados  lejaõ  para  fcmpre  to- 
dos aquelles,  que  por  jufío  caftigo,  do  abuío  ,  c 
defprezo ,  quetiveraô  da  miíericordia  Divina;  mor- 
rerão de  morte  íupita ,  e  improviía ,  fcm  ter  tempo 
de  arrcpenderfc  das  fuás  culpas, e  converterem-fe a 
Deos.  Pordm  nos,  a  quem  Deos  por  fua  efpecial 
mifericordia,  nos  conferva ainda  vivos i  por  acha- 
cado, que  íeja  o noíTo corpo ,  por  decrépita,  e  ca- 
duca, que  fique  anoíTa  velhice,  bafíaõ  poucos  mo- 
mentos para  alcançar  o  perdaó  de  todas  as  noíTas 
maldades.  Por  tarde  que  íeja  a  noíTa  penitencia, 
fempre  (  diz  Saô  Jeronymo  )  fera  bem  aceyta  ,  íe  ella 
for  de  coração  fincero ;  e  coníiante :  Ntmquam  eji 
ferd  eotvverjio ,  e  pelo  caminho  mais  breve,  o  bom  La-  Uyer  ep 
draôdo  tormento  da  cruz  ,  foy  para  oParaifo  :  La^y-^dU»^ 
tro  de  cruce  tranfit  inParadiJtim.  Nao  he  a  ira  ,  e^^^»'. 
furor  de  Deos ,  femelhante  a  ira ,  e  furor  dos  ho- 
mens. Eftes  aggravados  de  alguíií  defprezo  ,  ou  a- 
fronta ,  faô  neceífarios  mezes ,  e  annos  para  os  pa- 
cificar ,  e  raras  vezes  tornaõ  na  meíma  graça  ,  e 
amizade.  Naò  he  aífimDeos,  por  muyto  offendido, 
€  irritado  quefeja,  bafla  hum  momento,  paia  tor- 
nar na  fua  graça,  c  na  primeyra  ,  e  fiel  amizade^ 
antes  eilc  he  o  meímo  que  nos  buíca  com  as  íuas 

iní^ 


^ 


Petr.z 


398         ^      titfmfo  XUl 

inípiraçõcs ,  e  como  diz  Sâô  Pedro,  naõ  íarda  coth 
as  fuás  proiTjeíras,noseípcra  ,  tem  paciência  ,  que^ 
rendo  faívarnos  com  tornarmos  a,  elle  arrependi- 
dos :  Nontardat  Domimts  promiffionem  fiiam ,  Jícu^ 
quidãm  exijiimant  ,  feà  patmiter  agit  propter  vosy 
nolens  aUquem  perire  -,  Jed  ad  ^(snitentiam  reverti: 
Eque  iítoíeja  aífim  coníidcre  eada  hii  a  ,  quantos 
peceados  tem  feyto,  quantas  vezes  depois  de  con- 
feíTado,  tem  recahido  nas  meímas  cuipas^e  poden- 
do Deosprecipitallo  no  Inferno  por  milhares  de  re- 
cabidas  como  ingrato  ,  como  fdlfo,  como  traydor, 
oaõ  o  tem  feyto  }  e  he  certo,  que  tantos  outros  com 
menor  numero  de  peceados ,  e  menos  graves  ,  ià 
lá  cftaõ ardendo,  e  arderão  eternamente:  In  igntrrt 
tuciz  f^ittet^&  ardeu  /     - 

Confirma  quanto  temos  dito  nefta  matéria ,  o 
grande  Doutor  da  Igreja  S.Ambrofío  com  humâ  be* 
liífima  íentença  digna  de  fer  impreíTa  nos  corações 
detodos;  e  v^m  a  íer ,  que  nenhum  peccador  íe  de- 
fefpere ,  ainda  que  o  Demónio,  e  a  confcienciarca,! 
lhe reprerentemuytos,e grandes  crimes  cometidos 
m  fua  vida  paíTada ,  e  como  feu  eícravo  o  tenha  já 
aliftado  no  feu  livro  dos  precitos ;  naô  íe  deíanime, 
riem  fe  perturbe  ,  mas  trate  de  defpiríe  do  amor  as 
creaturas ,  e  amar  unicamente  o  íeu  Creador ;  lar* 
gueo  vicio 5 c  liga  a  virtude,  centaô  eíperc,  e  pre- 
tenda ,  como  qualquer  outro  Santo ,  o  premio  da 
bemavcnturança.  E  tenha  por  certo ,  que  fe  mudará 
vida  ,  e  coflumes  ,  Deos  mudará  a  fentcnça  dada 
de  prefeito  para  o  Inferno  ,  regiílrando  o  feu  no- 
yí^^r.  me  no  livro  dos  Predcftinados  para  o  Paraifo  :  iVí- 
Jei>.i.  mo  diffidat ,  nemo  veterum  confcks  delíâorím-,  fra' 
fixam,  miadmna  de  (per  et.  Novit  Dominus  mutare  fenteri' 
tiãm^fitu  mver is  emendar e  deliãam.  Oh  bondade 
infinita  do  Padre    Eteruo.  Oh  amor  immenfo  do 

Efpi- 


Do  tormento  da  Defejf)evãçaõ,  g  ^^ 

Eípirito  Santo.  Oh  miíericordia  ,fcrn  termo ,  e  ícm 
medida  denoíTo  SenhorJESU  Chriflo,  hiima  con- 
íiíTaó  bem  feyta ,  huma  reíoluçaõ  confiante,  de  fugir 
do  peccado ,  e  querer  íó  a  Deos ,  bafla  para  ficar  logo 
hum  grande  Santo,  c merecer  paia  íempre  a  bema- 
venturança.  Longe  logo  do  coração  dos  peccado- 
res  qualquer  minimo  movimento  de  defcfperaríe. 
Mas  muito  mais  longe,  ebem  longe  eíieja  o  enga- 
no de  eíperar  mal ,  como  jà  diííemos  em  outro  dif- 
curío.  Aquelle  fc  deíeípere  ,  que  dcíconfiando  da 
mifericordia  Divina  ,  faz  a  Deos  hum  tyranno  cruel, 
que  naô  quer  pcrdoarlhe  os  fcus  crimes  ,  ficando 
ellc  perdido.  Aquelle  pcrèm  eíperc  mal,  que  con- 
fiando loucamente  nos  merecimentos  de  noíFo  Senhor 
JESU  Chrífto  ,  íe  abuía  da  fua  paciência  ,  fervindofe 
da  fua  miíericordia  ,  como  de  carta  deícguro  para 
continuar  nos  mefmos  vícios  diiFerindo  a  peniten- 
cia em  tempo ,  que  naõ  terá  lugar  para  a  fazer  :  Ne- 
mo  de(peret ,  Jed  nemo  male  jferet.  Dcjperat  qui  credit^ 
quúàetiãmfifcenitmtiam  agat.  divina  mifertcerdia  non 
indulgeat  ^maTe  autemjperat  ^  qmpofi  mtãta  temfõra^ 
ad pízmtentia  medicamenta  refirvat.  Devemos  eípe- 
rar ,c  termos  grande  confiança  na  miíericordia  Divi- 
na ,  eno  mefmo  tempo  y  vivermos  de  mancyra  ,  que 
naõ  merecam.os  com  as  noíTas  rccahidas ,  cahir  na  im- 
penitencia  finai ,  q.ye  he  o  mefmo  que  a  deíeíperaçaõ 
de  íalvãrfc. 

Quero  dar  fim  a  efle  taõ  importante  difcurfa 
eom  húa  refiexaõ  de Saõ Bernardo,  e  vem  a  fcr  que 
de  mil  prefeitos  ,  que  çÚab  penando  no  Inferno,, 
nâôha  dez  ,  que  morreíFcna  dcfeípcrados.  A  dema- 
fíada  coofí,inça  na  miíericordia  Divina  ^foy  o  enc^a- 
no,  com  que  o  Demónio^  induzindo-os  a  perfcvc- 
rar  n-i  enlpa  ,  os  ^íTegurou  ,  para  que  nunca  mais 
lhes  fugiíTem  das  mãos  :  Bioòolns  ,^  qumú  ditithis- 


€■■■ 


409  Dtfcurfo  XIII. 

pojfeditj  tanto  difficilms  dimmittiu  Ah  que  fc  Ocos 
peniiitnra  -,  que  os  peccadores  habituados ,  eftandoás 
portas  do  Inferno ,  perguntaíTem  a  cad-i  hum  daqucl- 
Ics  condenados.     Que  deíefpcraçaõ   foy    a    voíía, 
de  ir  acabar  naquclle  eterno  calabouço.    Reípon- 
deriaó  elles.     Ah  defgraçados  que    fomos    todos. 
Nem  por  fo-mbra  tivemos  penfamento  de  nos  dcfef- 
perar.  Huma  prefumpçaò  cega ,  huma  confiança  mal 
fundada,  huma  eíperança  enganoía  nos  poz  nefte 
trifte,  e  horrorpfo  cftado.  E  vòs,meu  Amigo,  co- 
mo cftais  ardendo  naquellas  chammas,  naõ  foftcs 
cm  tal  anno  Mordomo  comigo  do   SantiíTnnp  Sa- 
cramento. Sim ,  fui  ( refponderia  ellc  )  mas  cu  fiado 
naquella  efmoía ,  e  obfequio  que  lhe  fazia  ,  nunca 
qulzreftituir  oalheyo,  imaginandome,que  o  faria 
antes  de  morrer ,  mas  húa  dor  improvif^  de  eftama- 
go ,  que  CLiydey  paffaria  logo  ,  me  caufou  a  morte 
íem   me  poder   confeíTar.  Evos   noíTos  pays  ,   e 
Avôs.  Como  vos  achais  nefte  lugar  de  tormentos. 
Naoífizeftes  o  voíTo  teftamento  ^  naõ  dcixaftcs  os  vof^ 
íos  legados  pios.  Oh  malditos  Filhos,  e  Netos !  (reí- 
ponderiaõ  elles)  naõfabcis  que  o  Inferno  he  cheyo 
de  Juriftas ,  que  foy  a  noíTa  profiíTaõ ,  de  Letrados 
Advogados ,  Defembirgadores,  Corregedores,  Juizes, 
Procuradores  ,  Efcrivâes.  Quantas  demandas  injuí^ 
tas,  quintas  teaemunhas  falias  ,  embargos ,  deten- 
fas ,  trapaíTjs ,  viftas ,  e  reviftas ,  enganos ,  falfídades, 
tudo  para   prolongar  mais  a  demanda  ,  e  ganhar 
mais  dinheyro,  eno  fi.Ti  ate  ,a  íentença  contn  o 
que  temarazaõ,e  juíliçapor  fi,com  a  total  ruína  de 
orf^ôs,  pupillos,  e  Viuvas  que  fícaò  cm  huí  extre- 
ma miferia,  e  defefpcraçaõ  ;  ora  naõ  podendo  refazer 
eftes  danos,  fem  diminuir  notavehnentc  a  fazenda 
aos  Filhos,  eNct®s,  deyxaô  algum  legado  pio  ,  ou 
capelladeMiíTaspara  morrerem  aflim  com  credito, 

cuy- 


Dofõrímntoãànefe^eraçaõ'         A^l 

GUÍdando  qiie  como  engaoao  aos  homens  enganarão 
tambcm  a  Deos  por  íer  bom  ^  e  miícricordiofo. 
Ha  mayor  cegucyra  em  homês  de  tratos  ,  c  contratos, 
pedira  Deos  que  uíecom  elies  miíericordia,  para  com 
elia  ufar  tyrannia  com  os  pobres. 

Que  fe  depois  perguntaíTemos  a  todos  eítes 
condenados,  qual  he  a  mayor  pena  que  padecem 
no  Inferno,  qual  he  o  tormento  íobre  os  mais  tor- 
mentos ,  que  mais  os  afílige  ,  que  os  defpediça, 
qucihes  trefpaíTa  o  coração,  e  a  Alma,  e  os  induz 
apronuneíar  blasfémias,  a  rayvarfe  ,  como^Lobos 
famintos mordcndo.íe,defpedaçando-íe  em  hua per- 
petua defcíperaçaô  iem  proveyto.  Efte  tormento 
(  rcrponderiaõ  elles  )  he  o  verme  d.i  coníciencia. 
que  como  temos  vifto  reprefentará  fempre  ao  pre- 
cito todos  os  crimes,  que  tem  commettidoem  todo 
'  o  tempo  da  íua  vida :  Arguam  te  ,  &  ftatim  contra  ^ 
faciemtuam.  Quefe  opeccado  de  David ,  lhe  fazia 
tanto  horror,  e  lhe  dava  tanta  pena  ,  ainda  depois 
do  feguro  do  Profeta  Natan ,  que  Deos  lho  tinha 
perdoado;  Vommus  quoqm  tranftultt  peccatum'^^^^1' 
ttium.  E  cc<n  tudo  o  chorava  de  dia,  e  de  noite, 
nciíi  podia  efquecerfe  delle  ,  tendo-o  fempre  preíen- 
te  na  lembrança ,  peccaíum  meum  contra  me  ejl  fim- 
per  Que  ícrà  dos  mifcraveis  condenados^  no  in- 
ierno  ,  aonde  a  remorfo  da  conícieBcia  naò  lhe  re- 
prsíentarà  outra  couía,e  cm  todos  os  momentos,  o 
ícu  entendimento,  a  fua  imaginação  naò  cuidará, 
nem  fixará,  íenaó  na  quantidade.,  e  qualidade  dos 
ícus  crimes':  Vermis  eorimnonmorietar. 

Ò  Emperador  FedericoTerceyro ,  eftando  cm 
guerra  viva  com  Mathias  Rey  de  Ungria  ,  pcrdeo 
duas  batalhas  ,  c  vendo   que  na  derradeyra  tinha 
-feytodo  refto,  perdendo  a  bagagem,  ficando  lem^^ 
íbldados  i  e  íem  algúa  cíperança  de  recuperar  as  ter. 

Çc  ias 


■  (■ 


DiSi. 
led. 


40*    .  Bifem fó  KUh 

ras perdidas,  fugindo  com  toda  a  preíTa  pata  Ale- 
manha ,  em  rodos  os  lugares  aonde  poufav^  ,  efcrc^ 
via  nas  paredes  cflav  palavras  :  Rerum  irrecuperan^ 
darum  obliviôfumma  felicitas efi.  He  fumma  ícIígí- 
dade,  poderfe  eíquecerdas  coufas  perdidas,  quan^ 
do  jánaôcem  remédio.  No  inferno,  nem  he,  nem 
íerà  ,  nem  nunca  poderá  íer  aílim.  Ah  que  fe  os 
prefeitos  podeíTem  efquccerfc  dos  feus  peceados, 
e  do  Paraifo  perdido  por  caufa  deiles ,  o  Inferno  naó 
íena  para  elles  inferno.  Defenganc-íe  o  peccador, 
quefenaõ  cuidar  agora  nos  feus  peccados,  confeí- 
lando-os  i  e  deteflando-os ,  por  toda  a  Eternidade, 
cuydarà  fempre  nelles  j  íem  lhe  vir  ao  penfamcnto 
óu  imaginação  outro  objeilo.  Oh  cegueyra.  OIi 
confuíaô.  Oh  total  defamparo  de  huma  Alma.  Nas 
Coniiíroês  de  féis,  ou  féis  mczes,  ou  de  anno  em 
anno ,  accufando-fc  alguns  confeíTados  ,  ou  Peni- 
tentes,  de  ter  alguma  mà  occ^^íiaò,  ou  de  viver  ha- 
bituados em  algum  vicio  ,  perguntando- J-hes  o  Con. 
feíTor  do  numero  dos  peccados,  reípondcraô  muy 
enxutos.  Nunca  fiz  tal  lembrança  ;  e  outros  nun^ 
caíiz  tal  conta,  nem  cuydejnííTo.  Provera  a Deos, 
queaíTimnaõ  o  tiveíTe  experimentado,  naô  íó  fa- 
zendo MiíToês  nas  Villas  ,  mas  também  nas  Cida- 
des,  c  com  peíToas,  que  em  negócios  de  fazendas, 
faô  taô  meudos  ,  que  parecem  Linces  ,  e  no  único, 
e  mais  importante  negocio  da  íua  falvaçaô  parecem 
brutos.  Em  quanto  pois  aos  peníamenros  ,  e  cir- 
ciinftancias  do  tempo,  do  lugar  ,  da  pcíToa ,  coir.o 
naô  foy  por  obra,  naô  fe  põem  em  outra  conta,  naô  íe 
faz  caio  nem  reflexão,  como  íe  naô  foraõ  pecca- 
dos,  ou  pelo  menos  muy  leves.  Defenganc-fe,  que 
6  mayor  tormento  ,  que  padecerão  no  Inferno  os 
peccadores  fera  eí^a  dcíatençaô  ,  e  defcuydo  \  Lí- 
ber fcriftus  froferetur  tn  quo  Utum  continetur.  O 

De- 


iií^jf 


Do  mm^ntõ  cia  Def elevação  ^        403 

Dcmofíio  lhes  porá  ícmpre  adiante  dos  olhos  o  li- 
vro da  ÍUa  vida ,  c  leraò  ainda  que  naò  qucyraô  ZQ^ 
dos  osí^eus  peccados  ,  porque  o  verme  da  consciên- 
cia ilies  explicará  todas  as  circunftancias  ,  mais  ou^ 
menos aggravantes  ;  e  como  temos  já  dito  em  outro 
difcurfo  ,  na  fua  falia  eftimaçaó  efta  viíta  ,  e  efte  re- 
morío  de  ter  perdido  oParaiíopor  couías  de  pouco 
jmais  de  nada,  e  ganhado  o  Inferno  porque  afíim  o  qui- 
zcraòhe  a  formal  defeíperaçaõ  dos  condenados. 

Finalmente,  depois  de  convencidos ,  e  dcíen- 
ganados  os  peccadores  ,  que  os  precitos ,  que  mor- 
rem  defeíperados ,  faõ  muy  poucos ,  e  muytos  os  que 
cípcrando  mal ,  vaô  ao  Inferno  ;  para  que  cfte  defcn- 
gano,  feja  com  algum  fruto ,  he  neceíTario  ter  íempre 
DO íentido,  o  documento  íahidoda  própria  bocca  de 
noíTo Senhor  JESUChrifto:  Regmm  Cahrum  vimpa-  ji^^tth. 
thm\  &  violenú  rapiunt  tllud  O  Reyno  do  Ceo  ,  quer  n, 
reroluçaõ,e  valor,  e  íó  aquelles ,  que  com  animo  ge- 
pcrolo combatem  as  íuaspayxões,  mortificando  os 
icus  apetites ,  o  conquiftaô.  Aquella  mulher  Evangé- 
lica de  dez  drachmas  que  tinha,  perdeo  húa;  e  logo  rc-  ^^^^  ^^ 
volveo  toda  a  cafa  para  a  achar.  Tanto  dcfvelo  para  ij, 
hua  drachma,que  he  húa  moedinha  de  vintém.  Direis, 
que  naquellas  dez  drachmas,íe  entendem  os  dez  Man* 
damentos  ,  c  que  tanto  vay  a  Alma  ao  Inferno  por 
naò guardar  a  hum  íó Mandamento,  como  para  naô 
guardar  a  todos  ;   ^iicumque  totam  Icgem  ferva-ve- 
rit  j  offendát  autem  in  uno  fafíus  eft  ommum  nus. 
Allim  be,  e  por  il^o  dobrou  as  diligencias  ,  fechou 
as  portas  >  cjinellas,  accendeo  huma  candea ,  ac- pic.iú 
cendit  lucernãm^  e  buícando-a  ,  logo  a  achou,  fa- 
zendo grande  feíh ,  c  convidando  aos  Amigos  ,  e 
vefinhos  a  darlhe  os  parabéns:  Congratulaminl^  qtiia 
in^veni drachmam ,  quamperdideram.Qnc  myfterio  íe-  ^««^  » S 
rácfie?  He  certo  que  as  portas,  e  janelas  abertas  em  °- 

Ge  2  hui 


S«P 


:^^ 


;'■  ti 


l.uacâfa?daraõ  mayor  luz,  que  •cineoentíi  tochâS'  aê^^ 
cefas^  quanto  mais  de  bua  candea  ,  que  he  hua  !uz!taô 
Íirn'kâda.  Ah  que  eíia  drachma  perdida  he  figura  de  hu 
Í')eecadoí  rneyo  deíefperado,  por  conhecer ,  q  immer* 
^Ido  nos  feus  vícíof,  tem  perdidaa  Deos ,  a  íí ,  e  o  Pa* 
raiío.  Com  tudo  naô  íc  dcleípere.  Eis-aqui  naô  me- 
tios  fcguro ,  que  infailivcl  o  remédio.  Feche  logo  as 
janelas  dcs  ítus  fentidos ,  as  vaidades  dcí^e  Mundo^ 
feche  aá  portas  ,  a  todas  as  occaíiocns ,  que  tem  a  fuâ 
perdição)  e  tomeacandea  acefa  na  maô,  que  he  a  lem- 
brança do  fogo  do  Inferno  ,  que  merece  pelos  feus 
peccados.  Em  fazendo-o  aíTim  tornará  logo  em  vôsa 
graça  de  Deos  ,  achareis  a  drachma  perdida  da  voíTa 
Alma,  pela  quaí  faraó  grande fe fia  , os  Santos  todo%, 
eosmeímos  Anjos  no  Paraifo.  Efte  he  o  vcrdadcyTa, 
e  legitimo íentid.o  de^à  parábola,  com  a. qual  noífo 
i  Senhor]  E  S  U  Chrifto  como  Pay  amcrofo ,  raoflra  ô 
goíto  que  tem ,  que  vos  convertais ,  e  façais  peniten- 
Lac,  1  f .  ^^^ '  ^^^^^^^  '^^^^  ^gauãmm  trit ,  eorum  AngdH  Dê^ 
io.  '  fuper  um  feccatore  ^foemtentíam  agente.  Pelo  contra- 
rio,  quem  quizer  continuar  nos  léus  vícios ,  e  feguir 
as  fuás  payxôes  deforáenadas ,  tenha  por  certo  ,  que 
o  vermcda  coníciencia  nunca  deixará  de  roer  nef- 
íâ  vida ,  e  na  outra  de  lhe  deípedaçar  eternamente  as 
entranhas ,  com  lhe  fíxar  na  memoria  fem  alguma  in- 
terrupção todas  as  íuas  maldades  que  he  hum  infer-j 
no  mais  cruel  do  mefmo  fogo  do  Inferno.  E  efía  hc  a 
verdadeyra  defcípcraçaõ  fem  remédio,  da  qual  Dca« 
livre  ao  pio  Ley  tor ,  a  mim  ,  c  a  quantos  que  como  cu 
Ifai  fó'.  ^^^^  merecido :  Vermis  eorum  non  morieíur ,  &  igms 
earnmmnextingttetíír. 


i 


DISCUR- 


TORMENTO  DAETERMDADE 


DISCURSO 


ULTIMO. 

Do  tormento  da  Eternidade. 


Ibit  homo  in  domum  aternitatis  fu^^ 
Ecclef.  12. 


Emprco  Mundo  abominou  a 
crueldade  dcshumana  do  Em- 
perador  Nero,  que  depois  de 
ter  inventado 'todo  género  de 
fuplicios  para  atormentar  os 
Chriflâos ,  finalmente  com  ty- 
rannía  ,  e  barbaridade  inaudi- 
ta, os  fazia  meter  em  hum  fa- 
ço, todo  breado  de  pez,  e  al- 
catrão ,  c  depois  à bocca  da  noite,  poftos  nos  cruzei- 
ros, e  cantos  das  ruas  ,mandavalhe  pôr  fogo  para  íer- 
virem  de  lenrernas  viventes  com  alumearem  os  que 
paííavaô :  Ut  in  ufum  no^iurnl  luminís  urerentur.  Ter-  ji^emch 
rivcl  cfpedlaculo ,  ver  a  hús  homens ,  feytos  como  ci-  tom. i. 
•rios  ardentes,  tochas  vivas, brandões  acefos ,  e  aílim  cem. 67 
brcados,  confumirem^c  em  chammas,  e  fumaças, 

Ce  3  bra- 


I 


'N 


Difcurfõ  Ultimo. 
bradando  ,e gemendo,  e dando  alaridos?  e  ays^quc 
iBOveriao  çompayxaô  is  pedras  viem  ninguém  tf r 
animo,  coração,  ou  poder  ,  de  lhes  acudir jcoríi 
tu  ido,  como  ofogo  be  adivo,  em  menos  de  iiorà 
acabava-lecfta  trágica  ícena  ,  c  com  amorte,tani^ 
bem  os  tormentos,  cantes  de  amanhecer  o  dia,  tíí- 
do  cftava  reduzido  em  cinzas.  Efpedaculo ,  muyta 
mais  terrível,  e  horrorofo ,  he  vera  hum  Deos  toda 
pqderofo,  profundar  jhum  at)]fmo  ço  centro,  4|i 
terra  ,e  ahi  ocuparfe,  em  encher  de  fogo  a  huma 
grande  fornalha  ,  dar  toda  faculdade  aos  Demó- 
nios para  aíTopraloj  ci  como  íe  cftcs  efpiritos  infer- 
naes,n3Ò  tiveíTem  baftante  virtude,©  meímo  efpi- 
rito  de  D!:os  g  modo  de' hum  torrente  de  enxofre, 
com  hum  aíTopro  ,  a  accende  ,  e  forma  em  hum  in- 
cêndio :  Mattis  D&mini  ^  ficut  -torrem  fulf uris  ,  fue- 
cendenf-eàmM  ifto porque  para  atormentar  álÀimas 
miferaveis creaturas, areadas  por  elie  mefmo  a  fua 
imagem ,  e  íemelhança :  Creavit  Deus  hominem  aà 
imaginem  r  &  fmiTitudmem  fuam.  E  por  quanto 
tempoí'  Naôpor  hum  dia,  naô  por  huma  hora,  mas 
por  os  ícculos  dos  feculos  ,  em  quanto  Deos  for 
Deos  :  Fumns  mmentonm  e&rum  afcenàet  irt  ja^ 
enJa  peeulorum.  Eíla  he  amorada  ,  que  Deo§  tein 
preparado  para  aqucUes  peceadorcs  ,  que  engana- 
dos da  vaidade  àtú^t  breve  vida ,  por  nunca  cuidair 
na  Eternidade  ,  correm  á  rédea  folta  para  a  fua  rnor 
/^•^^  rada  do  Inferno;  Ihit  homo^  in  àomum  atermtdtià 
fu^.  Oh  Eternidade,  Eternidade  !  Grande  penía- 
mento  diz  Santo  Agoíiinhoheo  cuidarna  Eternida* 
de :  Mãgm  cogitam  ater  mt  as. ^.'à^i  Eternidade  das  pc^ 
nas  faz  tremer  aos  Santos ,  que  aconííderaô  ,.  quan- 
to mú%  aos  peccadores  k  a  corJderaíTem.  Aflim 
;  tremia  David  perturbando-fe  todo:  atè  perder  a  falr- 

^Í^^J^h:  lurhatusfum  y&  nonjum.lm^m.^  iíàç^pmr 


Ifaf.  50. 


Gen.  I. 


14. 


"  l^'  ■ 


Do  tormetitõ  da  Eternidade.  ^t^7 

íÇuef  píbírquc  confrontava    os  dias  paffados  da  íua 
vida ,  com  a  Eternidade  das  penas,  que  merccinõ 
CS  feus  peccados:  Cogitavi  dies  antiquos^  &  anrws  ^f*^'*^'' 
ieíernos  m  mente  habnt.  Eíia  Eternid  de  das  penas 
fcrà  a  matéria  dcfte  ultimo  diícurfo  ,  que  dividirey 
.cm  três  pontos.    No  primeyro  veremos  a  verdade 
intallivel  dcík  Eternidade  do  Inferno,  Porque  Dcqs 
pôde ,  c  a  quer  aíTim.  No  fegundo  porque  afíim  Dcos 
por  fcr  jijfto,  a  quer ,  e  a  de ve  fazer.  No  tcrccyro  por? 
águe  dopenfamento ,  cconíideraçaõ  defta  Eternidade, 
(depende  roda  a  noíTa  falvaçaõ :  Ibit  homoin  âomum  Sof.iz, 
^etemiiatis  fna. 

*■  Híía  das  rnayores, mais  difíiceis>c  mais  imporv 
jantes  verdades  da  noffa  Reiigiaõ  Catholica  ,  hc  a 
Eternidade  das  penas ,  que  Deos  tem  preparado  no  In- 
ferno para  punir  os  peccadores.  Todas  as  mais  ver- 
dades Evangélicas  cem  as  íuas  dífficuldades ,  porém  'a 
pftas  íaõ  as  divididas,  enaõ  acometem  o  homem  to* 
do  em  clicyo.  O  crer  os  Myftcrios  da  SantilTima  Tria- 
dade ,  da  Incarnação  do  Verbo  Divino ,  e  outros  fc- 
melhantes  ,  aindaque  as  razocns  humanas  naõ  os 
provem  claramente  %  com  tudo  a  vontade  bem  \n* 
clinada,com  o  lume  da  fé,  facilmente  fupre  ao  qus 
falta  ao  entendimencoi  Daqui  nafce  ,  que  todos 
crem facilmente  a  gloria  eterna,  que  Deos  tem  pro-  ,  - 
mettido  aosjuílos  no  Paraifoj  porque  como  a  von- 
tade ^í-W/í  in  boquim.  Qi^tanto  mais  ,  em  hum  obje-  ' 
(fto,  que  he  hum  bem  infinito.  Sô  a  Eternidade  das  ' 

penas  do  Inferno  he  mais  diíficultofa  a  crer ,  porqtié 
inveíle  o  homciti  todoj  na  memoria,  no  cntendij 
mento  ,  na  vontade ,  e  em  todos  os  íentidos ,  qtíe  a  a-í 
borrecem.  E  na  verdade ,  que  pôde  hâvcr  de  mais  Con- 
trario i  a  hum  homem  frágil  ,  que  dizerlhe ,  que  íendo 
Deos  tam  bom  ,  queyra  punir  hupecca do  de  hu  mo»^ 
mentOjXSomhuaEternidadedeipenasicque  a  fgvi  juU 


Ce  4 


tjça, 


i|oS  .    ^  Dlfcurfo  vitimo. 

dça,  proporcione  hum  breve  penfa mento, hua  àdçâiõ 
peecaminofa  ,  que  durou  hum  infíante,  a  hum  fo- 
go, ^ue  atormentava  para  íempre.  Equal  aparên- 
cia que  hum  Deos,  taõ  miíericordioío  em  fí  mef- 
mo ,  e  que  tem  tanto  amor  aos  homens ,  poíTa  re- 
folveríe  a  velos  padecer  eternamente  ,  ícm  que  a 
vifta  de  tantos  fuppJicios  lhe  cauíe  hum  minimo 
movimento  de  piedade,  darlhe  algum  deícançOjOu  di- 
zerlhe  hua  vez  bafta. 

Eftas  razões  aíFim  aparentes ,  foraô  os  principio» 
,;  dos  enganos,  dos  erros,  c  das  herefias  do  grande 
Origenes  do  qual  diíTe  Saò  Jcronymo ,  que  em  quan« 
toa  fua  pena  fe  conformou  em   explanar  os  dog- 
mas da  Igreja  ninguém  efcrevco  melhor,  que  elle, 
más  quando  o  mar  alto  do    íeu  grande  engenho 
quiz  transbordar  o  pé  da  letra  do  Evangelho  ,  nin- 
iSfíVrô».  gucm  delle  peyor :  Ubt  bene  ^  mmo  melius^  ubi  ma- 
ep6,4d  ig^  ^2mo  pejus.  Creia  elle,  e  affirmava  muytobem, 
Fitoí,    ç^^Q  Q  peccador  havia  de  íer  caftigado  no  Inferno ,  e 
íoffrer  terríveis   tormentos    por  hum  fó  peccado 
mortal ,  porém  defpois  imaginavaíe  ,  e  tinha  co- 
mo por  certo, que  paíTados  muytos  íeculos  ,  Deo^ 
fe  moveria    a  compayxaô  ,  e  o  livraria  daquellas 
penas  eternas.  Engano,  e  hereíia  craffa  ,  que  S.  Agof- 
l/^ôf^«/?.  íinho  com  os  maisConcilios  refuta  no  livro  da  Ci- 
iih.z.     dade  de  Deos.  Sempre  o  Demónio  bufcoii  íequa* 
^Civ.  zes,  que  publicaffem  doutrina  ,  c  dogmas  falíos, 
^"       contra  efía  verdade  da  Eternidade  das  penas  do  In- 
ferno, e  naô  podendo  extirpala  ,  inventa  mil  tra^ 
ças  para  diminuilí?.  Calvino  confeffa ,  que  os  pec^ 
cadores,  feraõ  condenados  por  toda  a  Eternidade 
no  Inferno  ,  porém  para  diminuir  efta  pena  ,  in- 
ventou que  cfle  fogo  naô  os  queymará,  mas  queo 
ic»  tormento  coníffte,cm  fe  verem  atados,  c  obri- 
gados y  a  câarem   eteroamente  na  prefenca  deílc 

"'  fo- 


J>tf' 


Dotàrfnentoêãttemdúâe.         4^9 

ÍOPÒ.  outros  ,  naõ  fc  querem  perfuadir ,  que  os 
corpos  dos  condenados  depois  da  rcíurreyçaô  eftc- 
jaô  no  Inferno  íeeulos  ,e  feculos,  íoffrendo  fem- 
pre  as  mcímas  dores  *  parecendo-lhcs,  que  o  fogo 
os  havia  de  coníumir ,  e  reduzir  cm  cinzas.  Outros 
coníiderando ,  que  a  Alma  he  immortal ,  e  que  em 
quanto  eftá  unida  ao  corpo,  efte  ,  naô  morre,  nem 
pôde  morrer  ,  imaginaô ,  e  fe  coníolaô  que  os  conde- 
nados, depois  de  foffrerem ,  por  muyto  tempo ,  o  tor- 
mento  do  fogo,  pouco  a  pouco,  pelo  habito  continua- 
do ,  fará  o  corpo  como  hum  callo  ^  ou  fiíiará  empeder-  ■-  > 
nido ,  mirrado ,  c  como  infenfiveh  Todos  eftes  pen- 
famentos ,  e  imaginações ,  nafcem  do  Demónio ,  pay 
da  mentira  que  vay  liíongcando  o  noíTo  amor  pró- 
prio ,  c  enganando  o  noíTo  apetite  ,  que  para  conti- 
nuar nas  íuas  torpezas,  e  vicios,  aborrece  tudo  o  que 
he  Eternidade  do  Inferno. 

Mas  he  neceíTario  ,  que  a  verdade  defta  Eterni^ 
^ade  triunfe  ,  pois  Deos ,   aíTim  o  quer ,  e  o  pôde 
fazer ;  c  o  querer  ,  e  poder  em  Deos  he  o  mefmo.» 
Omma  quacumqtie  'vohit  fecit.  Primeyramente  j  a  pfalm. 
natureza,  e  o  íer  de  qualquer  coufa  ,  que  ha  nonj. 
Mundo  diz  Platão,  c depois  delle  Santo  Agoftinho, 
he  o  que  Deos  quer  .•  Tanú  ntique  Cónditoru  võhntas  Augufil 
rei  cujufque  natura  eíi.  Ariftotclcs,  ePiinio  contaõ,  j^^*: , 
como  na  Ilha  de  Chipre  ha  huma  certa  cafla  de  Moí-  p^^'*"'* 
quitos, que  vivem  ,  voaõ,  e comem  nas  chammas. 
E  accrefcenta  Santo  Agoftinho,  que  em  certa  parte  do 
Mundo  ,  hâ  huma  fonte ,  que  brota  agua  taõ  ferven- 
te ,  que  ninguém  a  pôde ,  naô  digo  beber ,  mas  nem 
tocar,  fem  ficar  muy  bem  queimado,  c  com  tudo 
vivem,  nadaô  ,  e  comem  naquelia  agoa  huns  bi- 
chinhos,  e  naô  fó  naô  morrem  ,  mas    naô  podeiji 
viver  cm  outra   parte  i  fe  vos  dizeis  que  aqttellcs    ,  ;  v 
Moíquitps ,  e  cílcs  bichinhos  vivem  ní^uelias  cham^^ 

mas. 


Angh 
eo  ffítat. 


.■masj  e  fâaquclíc  ardor  ào  fogo  ,  porque  aquclíl 
hn  a  fua  natureza ,  e  na&  padecem ,  e  naõ  íenterii 
-doí^alguma.  Replica  logo  Santo  Agoíiinho.  Grandô 
ílijaravilha  he  j  que  os  réprobos  cltejaõ  kmprc  pçf 
í.nando,  e  morrendo  de  d^res  no  Inferno ,  e  nunca 
racabem  de  morrer  ;  porem  hç  muyto  mayor  marar 
mHha,quc  aquelles  bichinhos ,  e  fRofquicos  cflejaõ 
íemprc  ardendo  nas  ehammas  ,  c  vivendo  no  fogp 
ícm  íentir  algum  tormento,  ou  padecer  a  minima 
.  pena :  CHirabik  ejl  dolere  in  ignibus  ,  &  tamen^  vive^^ 
re-f  fed  mirabilius  eft  vivere  m  ignibus  ^  nec  4okre, 
Diz  mais  o  meímo  Santo ,  que  nas  montanha^,  dç 
Arcádia,  fe  acha  a  pedra  ^  que  chamaõ  arbeftosi 
^qual  hurRa  vez  que  eftà  aceía  nunca  mais  íe  pode 
apagar,  c  fcmpre  ar  Jendo  queyma  fem  nunca  fe  eonT 
íumir  ,  ou  padecer  diminuição.  Mas  para  que  aní- 
dar  taõ  longe.  O  monte  Veíuvio,  perto  de  Napo? 
Iés,coníorite  Etna  no  Reyno  de  Sicília,  ha  mais 
de  dous  mil  annos ,  que  as  íuas  entranhas  ardem 
continuamente  cheyas  de  fogo,fem  nunca  mingoar^ 

^.{:    OU  coníumirfe  como  fe  o  fogo  reproduzi íTc  cada-dia 

1     a  matéria  combuftivel ,  que  lhe  ferve  de  alimentOi 

Saõ  cheminès  do  Inferno,  diz  Tertuliáno  com  oU- 

'         tros  Santos  Padres  ,    porque  íe    Dcos  naõ  tiveíFc 
maõ  naquellas  ehammas,.  já  h"»  muitos  íecuíos,  que 

^ ^  t^áÔ  incendiado,  e  confiimido  ambos  aquellcs  Rcyj 
nos,  e  anenas  fe  íaberia  o  nome  de  Nápoles  ^  e  Sb 
çiiiâ :  tMontes  unmtur ,  &  durant :  §hiid  nocentesy 
&  J)eí  hçftes.  As  montanhas  ardem  ,  e  duraòj  Icm 
€>  fogo  poielas  coníumir  ,  e  porque  naõ  p>odçrà 
Deos  fazer  oméímo  comos  corpos  dos  peccadores 
fciís  inimigos  ;  confirma  a  vcrd-uk  defía  doutrina 
dos  Santos  Padres  o  Profeta  David  quando  diíTe.^ 
pçai^^SíiíUt  flamma  comburens  montes  ita  perfequerCs  eos  in 
UmpefiaH  tua.  Naquclle  ultima  dia:  tcmpeliuoíai 
•■:;..,  ~  "  '   na» 


Tert. 

apol.  cAp 

48. 


DotoYffíenfodaEttfhidade.        4i;i 

fiaqúella  tormenta  desfeyta  do.  juizo  ,  qu^ymarà  Q 
fogo  do  Ififerno  os  peccadores*,  como  os  montei, 
que  vomitando  chammas  fenipre. ardem,  e  nunca  £e 
Goníbmem.  1  ;o 

He  de  reparar  ,  que  todas  as  vezes ,  que  o  ft-i 
grado  Texto,  e  o  Evangelho  fallaõ  do  fogo  ,  e  pena« 
do  Inferno,  fempreacerefeentaô  a  palavra  atermnh 
Ibit  homo  in  domum  aternitatis  fua.  Se  o  pecçadqr^'^.!*» 
morreo  em  peccado,  elaro  efià  que  a  fúa  morada  ..^-,^. 
no  Inferno  fera  eterna.  Clama  o  Profeta  Ifaiás :  ^nis  ''^J^XÍ 
exvobú  habitare  foterit  cum  igne  devorante •t\  &  cum  /^'.jjZ 
ardonbus  fempiternCs.  Confidere  ,,  que  naó  falia  fó 
no  fogo  que  devora  ,  mas  também  no  fuplicio  dcí 
ardor  que  fcmpre  dura ;  Dahis  Detís  igmm^  &  ver- 
mes  m/arnes  eorum  ,  ut  urantur ,  ó-  fenttant  tn  fem-ftfdithl 
ptermim.    Efla  palavra  fempiternum  vai   o  meímo'^^/'-i^« 
que  lemper  aternum.   Logo  íempre  eternamente  os     ,-  r« 
corpos  dos  precitos  íeraõ   queymados  ,  fcfFrendo      r  í 
as  penas  inexplicáveis  do  fogo  do  Inferno.  O  Pro-. 
feta  Ifaias  fallando  dos  réprobos  ,  acaba  os  feíTen- 
ta  íeis  capitules  das  fuás  profecias  com  efía  fentcn-, 
fa;  Vermii  eorum  non  morietur ^ér  ignis  eorum  mnifMM, 
Mmguetur,  Se  o  verm.c  ,   que  fempre  lhes  roQ  a 
conlciencia ,  nunca  ha  de  morrer ,  fc;  o  fogo  ,  que  p& 
atormenta,  fempre  queyma,  e  nunca  fe  apaga  ,cor-í 
re  i-nfaílivel  a  conícquencia ,  que  os  tormçntos  ng 
Inferno  para  os  réprobos  íap  eternos.  Deyxp  tan- 
tos outros  textos',  de    que  hc  cheyo  o  tcftamentcí 
velho,  efpecialmente  dos  Profetas,  queeraò  os  Pre- 
gadores,  e  MiíTronarios  daquellcs  tempos  j/e  todos; 
concernentes  á  Eternidade  da  GÍoria  para  .ps  efço- 
Ihidos,e  a  Erernidade  das  penas  para, os' precitos, 
Qtíc  feja  poílivel  ,  que  efíes  ,  ,e  outros  rex^tos  da 
Sagrada  Eícritura,     lidos  ,   e  coníídçrados  pelos 
Gent«>s,»  Ç0Í3Í  olunje  d2  r^a^j^j^o^;  ^-jin^^ 


tll 


11 


que  Deos  inftilou  nos  corações  'humanos ,  lhes  fizef- 

,fcm  tal  imprcíTaõ  para  conhecer ,  c  crer  o  Infcrnov  ca 

Eternidade  das  penas,  que  fe  faziaõ  violência  para  tu- 

i  gir  o  vicio ,  c  feguir  a  virtude.  E  que  melhor  íe  podia 

l  dèfcrevcr  o  eterno  tormento  do  verme  da  confcien- 

i'  cià.queroerá  para  fempre  as  entranhas  dos  pcccado- 

res;  Vermii  eorum  nonmorietur  j  que  com  cites  vcríbs 

,  I   1  .í         dcVirgilionapeííoddomiferâvelTicio; 

tv\      I  Ij£    d  Roftroque  immanis  vultur obunco 

'  l^^  Q    *  Immortalejecurtundens^fcecundaqnepmnis 

Bji  ^      I  -S!  '  ,  Vifcera^rimatur  que  epulií,  habitat  que fíéúlta^ 

*|   I      í  "^  Peãorenecfibrisreqmesdaturullarenatis,^ 

\  Nomca  cm  lugar  do  verme ,  o  Abutre ,  ave  de  rapina, 

i      I  c  carnívora ,  que  íempre  hirá  roendo  os  fígados  dos 

-?        malfey  tores,  c  chama  eftss  immortaes ,  porque  quanta 
*^  ■       devora  tanto  torna  logo  a  rcnafcer 
Q^j^  Semferqmrenafcens  ^^ 

f/irj.4.  UtpqffftfemperpJJeperirejecun      ^ 

Nomea  também  jecur ,  porque  elie  como  dizem  os 
Santos  Padres  e7?  vekti  fedes  amorps ,  &  hbtdmts.  He 
como  o  centro  da  iibidinc  ,  e  o  trono  do  amor  pro^ 
fano.  Naô  fallo  nos  tormentos  diverfos  y  que  t^P™ 
excogicado,  para  explicar  a  Eternidade  das  penas^ 
como  a  roda  deixion  ,cheya  de  íerpentes ,  que  lem- 
pre  virando ,  quando  parecia  no  fim  então  começa- 
vainosvaíos  das  Danaides,  que  naô  tendo  fundo* 
quanto  mais  os  enchiaõ,  tanto  mais  vaíavao.  Bsm 
fey,queme  poderão  dizer  ,  que  cftes  fao  fingimentos 
poetkos  ,ou  fabulas.  A  que  rcfpondo  com  Santo  Am- 
brofio,  que  eftas  ficçoens  ainda  que  em  fi  "^^  con- 
tem a  força  da  verdade;  ex^licaò  porem  ^fj^^^l 
verdade  agente  rude:  Fabula  etftvim  ^^^^f^^ 
An.hr,  habet  tamen  mtomm  habet,  utjuxta  //^f//-f  -f^'^  ; 
rU..,.Ue  tasmamfeftarl.  E  efte  modo  de  «^^^^^^^^^^^^  ^^j^^^; 
0#V.     ramcnte  4  verdade  ao  Povo  ignorante  por  via  de 


Do  tõV^nmílSâ^Etefêiêaàe,  ;^4*3 

apojogos,  erde  parábolas,  que  he  muy  uíado  na  Sagra* 
dâ^  Eicritlira  ,>  como  quando  fazendo    concelho  ás 
arvores  i  pediráô  a  olivcyra ,  a  vide ,  e  a  íigucyra 
paraqUfe  alguma  delias  aceytaiíc  de  fer  o  feu  Rey:  /«^«V-p 
&  dixerunt  imp-era  nobis :  Círecufando  ,  aceytou-o 
efpinheyro.  E  a  Profeta  Natan,  íe  valco  da  íeme- 
Ihança  de  hum  rico  ,  que  tinha  furtado,  a  única  o- 
vclha  que  poíTuhia  hum  pobre  ,  para  reprehendera 
Oavid  do  adultério  com   Berfabè  ,  explicando-lhe, 
«que  era  eiie  n?efmo  :  Tu  es  tlk  vir.  E  noíTo  Scil^hor  ^^^.*. 
jESU  Chrillo,  quando  pregava  ás  Turbas ,  ordinária-  ^^P'^9' 
jnente  era  a  íua  pregação  por  via  de  parábolas ,  e 
fem  parábolas  ,  rara  vez  cnfínava  a  fua  celcfte  dou-  Mauh', 
trina  ;  Et  loctitus  ejt  eis  milita  in  par  abolis  ,  &  fine  xy 
f ar  abolis  mn  loquehatuyr  eú.    E  ilio  bafie  para  mo-,':   ?*. 
íítrar,  que  antes,  da  vinda  dcChrifío ,  os  Gentios  ti-      ,   -: 
vcraôfufficiente  noticia  do  inferno,  eda  Eternidade 
dás  penas. 

i-  QnefcosGcntiosahuma  ítmples  reprefcntaçaõ 
-do  Inferno,  a  hum  confuío  conhecimento  da  Eterni- 
dadcdas  penas,  fugiaó  o  vicio,  e  feguiaô  a  virtude, 
como  he  poíTivei ,  que  alguns  Caiholicos ,  com  o  lu- 
me da  fè,  com  a  luz  do  Evangelho  >  para  continuar 
na  fua  maldade ,  íe  imaginem  ,  que  Deos  olhando  pa- 
ra a  noíTa  fragilidade^  movido  deeompayxaõ,não 
quererá,  que  as  íuas  creaturas,  cfíeiâo  eternamente 
penando  no  Inferno.  Oh  quantos  por  fe  terem  aliu- 
cinados ,  com  efta  imaginação  cfíaò  agora  ardendo 
no  Inferno.  Primcyrameníei  todas  as  vezes ,  que  o 
Sagrado  Texto  faila  no  fogo  do  Inferno  >  quaíi  íem- 
pre  ajunta  a  palavra  eterno  5  finai  evidente  ,  que 
naõ  faila  com  exageração,  ou  metáfora.  Segundo, 
quando  íe  trata  em  matérias  da  derradeyra  jmpoír* 
tancia,  aonde  a  genuína  inteiligencia  heabfoluta- 
mente  neceíTaria  para  a  íalvaçaò  ,  nunca  fcíervem 
.-■   ■■.  ^  de 


■■■1 


de  palavras  mctafpr iças ,  ambíguas ,  ou  btci^fc* 
tacivas ,  como  nos  teftamentos  ,  nos  areftos  ,  •  nas 
fentenças^,  que  devem  fcr  entendidas  ,  q  executa* 
das  ao  pé  da  letra,  e  aífim  noíTo Senhor  JESUChri- 
ftb,  que  como  diíTcmos  quando  pregava  ás  Turbas 
fcmpre  era  por  via  de  parábolas,  trâtando-le  de  fa- 
zer o  arefto  ,e  dar  afentença  de  condenação,  diíTe; 
Dijcedítê  ãmemakdiõtl  inignem  atermijn.  Ide  amal- 
diçoados no  fogo  eterno  ,  c  para  que  naò  venha  ao 
peníamento ,  que  o  fogo  íerá  eterno,  mas  naò  a 
acçaô  dofogo,  e  ferem  algum  dia  os  réprobos  li- 
vres daquelle  tormento  ,  reparou  Santo  Agoíiinho, 
que  logo  no  mefmo  capitulo  confirma  o  arcfto» 
com  dizer,  que  iraõ  os  precitos  no  fuplicio  etcr* 
Mmh.  no :  Ibunt  in  Juplicium  aternum :  Jufti  autem  in  vi- 
xj.  tam  a  temam  :  como  tambcm  os  Prcdeftinados  na 
gloria  eterna. 

Concluo  efte  primeyro  ponto ,  com  hua  belliífi- 
ma  reflexão  que  faz Saó  Gregório  fobre  efta  meíma 
fentença ,  e  prova  quanto  ate  agora  ternos  dito  ar- 
gumentando aílim.  O  Filho  de  Deos  naô  pôde  fer 
verdadeyrô  em  hum  texto,  ementirofo  no  outro. 
5^/^,^^  Senos  d  a  mos  fé  às  fuás  promeíTas ,  devemos  tam- 
Prov.    bem  dar  fé  ás  ÍUas  ameaças  :  Cur  eredls  qiiod  Deus  di- 
^it  ^  &  non  Umes  quod  lyeus  mimtur,    O  mefmo 
noíTo Senhor  JESU  Chriílo,dizquc  os  juílos  hiraõ 
M      I   '  na  vida  eterna  ,  diz  também  no  meímo  lugar  que  os 

<Heg  l'  prefci tos  hiraô  no  fuplicio  eterno :  Ihunt  m  [uppliciím 
^^'       ietermm^  Se  a  pena  dos  precitos  ha  de  acabar  cm 
Mor-Ci  aigyn,  tempo;  a bemaventurança  dos  eícoihidos;a- 
*°'       cabarà  também  algum  dia.  Couía  que  nunca  poderá 
fer,  poiso  mefmo  Chritlo diíTe ;  Gandium  vejirum 
/tftf.iô  nemotoUet  à  'Vohis,  E   jà  naò  íerá  bemaventurança 
perfeyca,  porque  o  Bemaventurado ,  teria  íemprc 
no  icntido   que  aquellc  íummo  Bcjn  que  gozava, 

havia 


\ 


LõmmtmiatÚYmhde.         415 

havia  huave?  de  ter  fím  ,  c  ifío  bãftava  para  ter  na-  '■    ■ 
quelle  imiíienío  gáudio  hiima  fumma  trifíeza.  Daqui 
íe  intere  ,   quam  enganados    andaõ  os  peccadorcs, 
quando  euydaô  ,  ou  íe  imaginaõ  ,  queDcos  como 
taõ  miferiçordiofo ,  depois  de  huma  longa  ferie  de 
feculos,  terá  compayxaõ  delles,  livrando  os  finai- 
mente  das  penas  do  Inferno.  Horrivel,  e  tremen- 
da blasfémia  (  fegue  a  dizer  Saõ  Gregório)  querer  fa' 
zer  a  Deos  mentirofo  ,  com  o  publicar  mifcricor- (7r/^è>'. 
diofo:  Dúim  dum  mifericordem  ajferere  volumus^men-  Dial.^. 
dacemCquoânefaseft  )  pradicamus. 

Temos  viilo  á  verdade  infallivel  das  penas  do  Scgun- 
Inferno  ^  e  como  Deos  decretou  ,  e  ordenou  que  <ic  Pon 
foííem  para    íempre  eternas.  Agora    nos    convém  ^°- 
provar  a  juftiça  ,  e  equidade  deílc  decreto,  e  que 
neceíFariamente  o  havia  de  fazer,  allim  pela  íua  glo- 
ria, como  pelo  bem  publico, e  particular  de  todos 
os  homens.  Deos  faz  mais  caio  da  fua  gloria,  e  de 
qualquer  das  fuás  perfeyçóes  ,  que  de  todas  as  crea- 
turas,e  de  quanto  tem  creado  no  Ceo,  ena  terra. 
Hum  dos  íeus  attributos  ^  he  de  íer  fumma  verdar 
de:  Ego-fnm  peritas.  E  eíla  íua  verdade  ,  e  fideli- 
dade nas  palavras  ,  dura  ,  e  durará  para  femprcí 
Etveritas  Dominimamt  inaternum.  Ora  tendo  c\\^  ^f^^"*» 
tantas  vezes  dito,  e  repetido ,  que  as  penas  do  In-  ^  *^* 
ferno  para  os  réprobos,  faô,  e  feraò  eternas  ,  que 
fundamento, ou  probabilidade  tem,  quefe  queyra 
deídizer  ,  e  moíirarfe  mentirofo.   Deos    quer  ma- 
niFcAar  a  todos  a  fua  bondade  ,  c  íantidade ,-- que 
fendo  infinita ,  deve  detcftar  infinitamente  o  pecca- 
do  ,  que  lhe  he  eíTencialmente  ,  e  diametralmente 
oppofto;  e  como  pódc  elle  mofirar,  que  infinita- 
mente o  abomina  ,  e.  detean  ,  íe  naô  caftigando-o, 
com  pena  mfínita  na  duração  ,  pois  o  peccado  fub- 
fiUc,e  durará  eternamente.  Todos  íabem  que  Deos 

'  '    "      ■  he 


^ 


'í 


Mald.^};\ç.\mmut^vc\Kií£^o  entm  Dominus  ^   non  MtcrX 
^  íQuC;  as  iiias  íentenças  naò  teni  appellaçaõ  ,  os  íeiís 

areííos  irrevagaveis  ,  as  fuás  refoluçoensjrmes ,  e 
eonftantes  >  a  fua  palavra  naq  fó  de  Rey,  mas  de  DeoSi 
.que  infalliveimente fe  hade  executar : //>/í  ârnit. , é? 
fa5íafimt.Dcosmò  lie  variável  como  ps  homens  ,^ 
poríftonaôhepoírivel,  que  fc  mude:  Non  eft  J)em 

^^^^^  Jicut  homo  ut  mui  etur. 

}  Finalmentedeve,equerDeos  moftrar  a  fuain- 

dependência  ;  que  os  Gregos  chamaõ   autarchiay 

c  quer  dizer  ,  que  elle  Í6  bafta  a  fi  meímo  ,  c  que 

cm  nada  neceflita  das  fuás  crea tufas  y  e  efte  hc  o 

í^  florão  mais  gelofo  com  que  remata  a  coroa  das 
íuas  infinitasperfeyçôes.  Ora  fe  Deos  quizcffe  por 
compiyxaõ ,  chamar  a  todos  os  já  condenados  no 
Inferno,  e  livralos  daquellas  penas  eternas  ,  pare- 
ceria, que  as  culpas  ,naÔ  as  mereciao  ,  ou  que 
naô  podia  eftar  fem  clles .  ou  que  lhes  erao  neceíla- 
rios  para  augmentar  a  fua  gloria  accidental ,  que 
tudo  he  contra  o  que  diz  o  Profeta   David :  Detis 

rfal.iswetís  es  tu  ,  qmniam  bonorum  meomm  non  eges,V. 
éLwnda  Deos  queyra  mayor  Corte  no  Cco  ,  pode 
crcar milhares  demundos,  e  milhões  de  crejituras, 
'  queoíirva5,e  amem,  e  naô  o  offendao  ,  e  delpie.. 
zem  ,  como  tem  feyto  os  precitos.  Oeíengancm-^fe 
os  peccadores ,  que  Deos  naò  fica  menos  glonfica, 
do  com  caftig^r  os  mãos,  que  com  P^'^»^^^;;;^^;. f^^"^ 
e  os  feus  attributos  com  a  f tia  gloria  contribuem 
h)uyto,a  execução  da  Eternidade  das  P^^^^J^  P^^^  ^ 
fua  reaa  iuftiça  naò  he  n^^nos  neccííaria  (  como  ve- 
remos  )  para  o  bom  governo  do  Mundo  .^^^ ^^^^ 
mifericordia.  Efta  ainda  nos  pode  valer  ^ ^^^^^^^^^^ 
to  íomos  vivos  ,  que  depois  de  mortos  ,  no  Ii.terno, 
-  nU  h^redempçlò :  h  ínfimo  nulla  ed  redmpm.O 
Ur^eo  remédio  que  nos  íefta  he ,,  arrependerfe  logo 


Bo  toffnenio  ãa  Eternidade,         417 

muy  de  veras  dos  Icus  pcccados,  e  mudar  vida ,  e  íó 
defte  modo,  diz  S.Gixgorio,  mudará  Deos  a  fentença, 
e  de  precitos  deftinados  para  o  Inferno ,  nos  tara  pre^  GtegM 
deíiinados  para  o  Paraifo:  NoverítVeusmutarefen-^Mor, 
tentiam  ,fi  tu  noveris  emendar  e  deli£ia. 

Baftaria  para  convencer  o  noíTo  cntendiment»^ 
c  tirar  toda  a  duvida  concernente  á  Eternidade  do 
Inferno, íaber  que  hehum  artigo  da  fé,  equc  Deos 
affim  o  quer ,  e  aífim  o  tem  ordenado.  A  todas  ef- 
tas  quefíóescurioías,  porque  Deos  caftigue  com  pe- 
^a  eterna  hum  peccado  ,  que  durou  hum  íó  mo- 
mento ,  fe  refponde  com  o  Santo"  Bifpo  de  Marfe- 
Iha  Salviano:  H&mo  pm^fecreta  Dei  non  intelligo^Salvl.^ 
inveftigarenon  audeo.  Eu  fou  homem,  e  coníeguin-^í/^ra^. 
temente  ignorante,  para  comprehcnder  os  íecretos 
de  hum  Deos,  e  naó  me  atrevo  invcftigalo.  Como 
Deos  hc  a  fumma  verdade  ,  c  a  vcrdadeyra  equida* 
-de ,  fico  mais  certo  ,  e  convencido  com  íaber ,  que 
«He  pronunciou  eíie  areíío,e  tem  ordenado  eíias 
penas  eternas ,  que  fe  com  razões  humanas ,  cu  com- 
prehendeíle  todas  as  caufas ,  e  todos  os  motivos 
deite  Divitio  juizo  :  Plus  eft  Deus ,  quam  omnUhth^ 
mma  ratio  ^  quod  k  Deo  agi  ctmUa  cognefco.  Corii 
cila  humilde  proteftaçaõ  ,  c  total  refpeyto ,  e  vene- 
ração a  hum  artigo  da  fé  ,  taô  importante  para  a 
:noíra  falvaçaô  ,  quero  agora  íeguindo  a  doutrina 
dos  Santos  Padres  ,  provar  com  razoens  humanas, 
com  axiomas  ,  e  textos  juridicos  da^  noíTas  Icys, 
que  Deos  para  o  bom  governo  do  Mundo  ,  e  para 
o  bem  publico,  e  particular  de  cada  hum  ,  deve  dar 
-penas  eternas  no  Inferno  aos  tranígreíTores  dos  íeus 
-Mandamentos,  quehc  a  baliza  deííe  Segundo  Pofi- 

.to. 

i-       He  com  mu  m  íentimento  de  todos  os  Povos, 
que  os  PrÍDCÍpes,ç  Republicas,  que  tém-loberania 

Dd  ítí- 


(mT 


II 


11 


CiviMt. 


M)re  QS.Í£u$r¥âil^líos,  e  Súbditos  ^  podem  piiblí^ 
car  as ikys,  que  julgarem  neceíTariasv  para  o  bem 
dos  íeus  çftadps ,  e  no  meímo  tempo  eftabeleccr  as 
penas,  para  caíiigar,  os -que  as  quebrarem.  Eflas 
penas  porém,  nuqca  tíveraô  proporção  ,  na  duração 
do  tempo,  eom  o  tempo  que  durou  o  crime,  por- 
que os  Legisladores  ,fó  rcparavaô  odamno  que  vU 
nha  á  Republica  com  a  infracção  das  Leys.  A  ler 
condena  á  morte  hum  ladraô  de  efírada,  ou  íaltear 
dor  de  caminhos  j  ainda  que  o  furto  fcja  bem  Icve^ 
o  fcyto  em  menos  de  hum. quarto.  Hum  homem 
enfurecido  mata  a  outrem.  A  fua  culpa  foy  de  hum 
inftante  ,  em  que  naõ  attentou  para  refrear  a  fua 
pay xaó ,  com  tudo  fe  pelas  circunftancias  efcapar 
da  forca,  tem  a  galé,  ou  degredo  por  todaâvidaf 
logo  as  leys  ,cnmo  diz  Santo  Agoftinho ,  não  guardai 
proporção,  entre  a  culpa,  e  a  pena  na  dtiraçaò  do 
tempo  .•  ^afi  ttlla  iâ  mque  feges  attendãnt^  ut  tam- 
tafit mora  temporis ,  qua  quis puniattir .yqttanta  mon^ 
temporu ,  mãe  pmatur  aàmiffum.  E  quem  naô  fa* 
be  ,  que  condenar  a  hum  malfeytorá  morte  ,,he 
darí-hehua  pena  qmntum  eft  âefe  eterna  :  pois  bem 
fabcm  os  Juizes ,  que  naõ  ha  remédio  natural,  *quG 
©poíTareftituir  emvlda.  Digo  mais;  em  huma  íu- 
poíiçãopoffivdjque  os  homens  naô  pudeíTcm  mor^ 
yer  (  como  já  no  eftado  da  innocencia  /  íè  mo  de 
mor  te  violenta  ,.não  deyxariaõros  Juizes  y  de  execu- 
ut  a  juftiça  com  privar  a  efte  malfeytor  da  vida, 
ainda  que  e^a  foííe  eterna /e  accrefcento  mais ,  que 
eík  temeridade  da  vida  feria,  hum  motivo  eíficaciíS- 
mo^para  o  fazer  morrer  mais  dcpreffa,  porque  di» 
riaô  aílrm.  Efte  malfeytor  pôde  viver  eternaínen- 
íc„  e  poderá  ícr  eternamente  ladraô  turbulento^ 
©ícandalofo  ,  c  buríearà  novos  eompsnheyros  com 
grave  dano  da  Republica  ^Ipgo,  he  bem  que  mor- 
ra 


Dê  tôrfâeMõ  daEíevmdade.  %tp 

rà  para  ficarmos  quietos  y  e  livres  dcHc.  Eisvaqui 
provado, como  á  juíliça  humana ;  fe  attribtic  o  po- 
der, de  caftigar  os  dclinqucnccs  de  hum  a  pen^^  que 
fe.pôdc  chamar  eterna,  para  confervaçaô  do  bem 

Agora  deveíc  advertir  ,7qU€tbdoi  os  ediélési 
eleysque  fazem  os  Principes,  e  Republicas  ,  com 
todas  as  penas  taõ  rigoroías  decretadas  a  quem  as 
quebranta  ,naõ  faõ ,  que  huma  participação  da  au- 
thoridade  ,  e  poder  que  Deos  lhes:  dá ;  e  com  tudo,; 
os  povos  as  admittem ,  obedecem  ,  nem  examinaó, 
ou  pifquizaõ,  íe  a  fentença  he  jufta,  fe  a  pena  hc 
demaíiada ,  porque  íabem  muy  bem  ,  que  o  quey- 
xaríc  ,  naò  íervede  nada  ,  pois  a  ley  manda  f  c 
naô  diíputa  ;  Lex.non  dt/jj^utat  feâ  fracipU.  E  os  pj^^i^ 
fuhditos ,  c  criminoíos,  h^ô  deetlar  íogeicos  á  ju-  Ebr, 
fliça ,  e  ao  que  fentenceaõ  os  Tribunaes.  Ifto  íu- 
poílo }  e  porque  Deos ,  que  por  neceílidade  do  feu 
íer  íyc  por  todos  qs  direytos ,  c  razões  imagináveis, 
he  o  Monarca  foberano  de  todos  os  homens  ^  naô 
poderá  publicar  leys  ,e  decretar  penas  eternas  fe 
as  julgar  proporcionadas  á  importância  dós  deli- 
dos, e  neceffarias  para  obrigar  as  fuas  creaturas 
a  guardalas  ?  Deos  conhece  muytò  bem  ,  que  da 
obferv^ncia  da  ley  que  tem  feyto  ,  depende  a  íua 
gloria  accidental ,  que  he  o  único  bem  >  que  pôde 
tirar  daproducçaò  das  íuas  creaturas.  A  honra  de 
Deos  naò  cpníifte  íó  ,  em  lhe  dedicar  Templos,  C' 
Altares  ,  e  tftatuas  como  alguns  íe  imaginaô  ,  mas 
cm  amalo ,  feiyilo ,  c  reconhecelo ,  como  feu  So- 
berano,  e  Crcador ,  e  que  em  tudo  ,  e  por  tudo 
depende  delle.  Efta  verdade  ,  ate  os  Gentios  a  co- 
nhecerão. ;,  ;;  -^ 
í ■  §ui  fingitf acros  a uro  vel  mármore  vuhus\  * ^  ^  Man. 
Noiífacií  iIkDeíis-).qm  regai  iUefacif^  ^'^ 
Pd  2                           Da 


li 


^^i1;^. 


410  ^^yãi'hDifc'Sr/9'UMmm^f-Oi. 
Pa^'tíaícèí^qucos  peccadorcsmoflraõa  fua  Cfgtid- 
Fa,  quando  dizeml  Que  mal  faço  eu  a  Deos ,  quando 
fatibfaçQ  ao  meu  apetite  ?  Vos  lhe  fazefsomayormaí^ 
que  padeis.  Pois  vos  fazeis  independentes,  e  naô  que-l 
reis  conhecelo,  por  voíTo  Deos  y  e  Senhor  quebrando^: 
edcíprezandoaíua^iey.  :  >o 

Digo  mais ,  Deos  conhece ,  que  o  bem  particii^ 
lar  de  qualquer  peíFoa  ,  confííle  em  refrear  as  íiiasi 
payxões,  e  íogeytalas  á  razaõ,  conhece  também-^ 
qUíSt  da  obfervancia.  d^  fuâ  ley  depende  o  bem  publi-^ 
çovéa  boa  ordem  da  íoeiedade  humanai  e  que 
naõ  fe  guardando  a  fua  ley,  o  mundo  feria  como 
huâ  mata  bravâ  clieya  de  ladrões  ,  e  malfeytores.  Co- 
nhece inalmente»  c  íabe ,  a  violenta  inclinação  >  que 
.  íem  â  iiacurcza  humtana  de  quebrar  efla  ley,  que 
\  Haícida  com=  nofco  ,  fempre  nos  incita  ao  mal  >  e 
litMiCá  nos  deyxá»  Nem  ha  penas,  por  rigurofas, 
€  terríveis  que  fejaô  y  que  a  poffa  vencer ,  e  refrear, 
fenaõ  forem  eternas»  Saõ  Paulo,  chama  à  Etcroi* 
dade  da  Glwta  hum  pefo :  ç^tcrmm  ghria  fondusi 
Para  advertir  os  Catbolicos ,  que  quando  cítaõ  cm 
piocinto  de  cometer  algum  peccado  devem  tomar 
a  balança,  c  por  buma  banck  o  goíto  momentâ- 
neo do  pcGcado,  e  da  outra  ,  a  gloria  eterna  que 
fe  perde.  Sem  duvida,  que  a  Eternidade  da  Gloria 
pefârà  mais,  e prevalecerá  ao  gofto  inHantaneo  do 
pcceado.  Porem  fendo  os  homens  taô  pouco  fen^ 
íiveis ,  a  quanto  nos  promette  afénaBemavcnturan- 
çavDeosaeçreíccnta  hum  fegundo  pefo ;  c^urmis 

Cm',  j^f^naruw  pnâiis  ,  que  fae  a  Eternidade  das  pcnasy 
a  fim  de  que  todos  aquellesque  naô  fe  movem  a  dey- 
xar  ©  pcceado  pela  efperança  do>  premio  eterno  do^ 
Paraifo,  íe  movaõ  ao  menos  pelo  temer  da  cter* 

■  *'^;^  nidadb  dâs  penas  00  Infernov  Pois  poflo  em  huma 

'^'-  balança,  o  géíto;  jmomentaneo  j de  huina parte ,  e  oj 

í^U  :u-ii^  tor-- 


Do  tornièntõ  da  Eternidade.    ^     ^ii 

tormertto  eterno  da  outra  >  quem  fcrá  WÔ  louco, 
que  queyra  penar  eternamente  ,  para  gozar  hum  inf- 
tante.  E  com  tudo  a  mayor  parte  dos  peccadorcs, 
fabendo  ,  e  crendo  a  Eternidade  das  penas  ,  que 
merecem  continuaò  a  viver  nos  fcus  peccados  ,  c  ^^y  j^. 
bebem  a  maldade  como  a  agoa  da  fonte  :  Btbtmt 
íniquitatem  quafi  aquam.  Oh  meu  Deos.  Oh  meu 
bom  fESUb.  Queíeria  fenaôhouveífe  Inferno,  e 
as  penas  naò  foíTem  eternas?  Que  defordens,  na^ 
haveria  no  Mundo?  Que  roubos  f  Que  adultério^/» 
Que  mortes  ?  Logo  fica  bem  claro  ,  que  a  Eterni- 
dade das  penas ,  he  jufta  ,  e  he  neceíTaria  ,  aíTim  pela 
gloria  de  Deos,  como  para  o  bem  publico  ,  c  particu- 
lar dos  homens. 

Ficará  efta  razaõ  mais  convincente,  le  conft- 
derarmos,  que  cada  hum  conhece,  que  ha  de  íer 
eterno ,  pois  íabe ,  que  a  fun  Alma  he  immortal, 
e  reparando  ter  em  fi  hum  fundo  de  immortalidade, 
tudo,  o  que  acaba  ,  ou  tem  fim  naó  o  efpanta, 
mm  lhe  faz  grande  medo.  Vive  fcmelhante  ahum 
homem  ,  que  tendo  hum  fundo  ,  ou  terras,  que 
lhe  rendem  certos,  cem  mil  cruzados  cada  anno, 
de  renda;  todas  as  perdas,  e  defpezas  ,  que  pode- 
ria fazer ,  nunca  lhe  fariaõ  temer  a  pobreza  ,  em 
quanto  ficaffc  inteyro,  c  feguro  o  fundo,  ou  o  ca- 
pitai :  aíTim  rodas  as  penas  ,  que  naò  faõ  eternas, 
naõ  o  amedrontaô  ,  confiderando-as  como  paíTa- 
geyras,  e  que  depois  com  o  tempo  ,  ficará  livre 
delias,  e  Senhor  de  fi,  por  toda  a  Eternidade.  E 
que  iftofeja  aííim;  bafta  confiderar  ,  quam  pouco 
cafo  fazem  muytosCatholicos  do  fogo  do  Purgató- 
rio, ainda  que  muytos  Santos  Padres  digaõ  ,  que 
naõ  haja  tormento  nefta  vida,  que  fe  poíía  igualar 
com  elie.  E  Santo  Agoftinho  accrefcenta ,  que  naõ  he 
menos aíílivo , c rigurofo  que  o  do  Inferno,  pois  fe 

Dd  I  naõ 


'V 


Aug  Mb 
de  Civ. 
Dei, 


ChryJ. 
hom.  ^, 

m  Ev. 


Creg.l. 


4^'*^  T^ifctiY [o  Ultimo 

naõ  heomefmo  ,  he  da  mcíma  dpzáz :  Eodem ignè 
quo^  terqmur  âamnatus  ,  pirgatur  ekãns,  E  de 
que  oaíce  ,  eíte  pouco  caio  das  penas  do  Puraato- 
rioí,  fe  naõ  porque  fabemos  de  certo  ,  que  ellas^haõ 
de  acabar  r  logo  íe  o  decreto  de  Decs,  foíTc  íó  de 
huma  pena  temporal ,  por  comprida  ,  e  riguroía, 
que  foíTe  ,  teríamos  o  mefmo  medo  do  Inferno,  que 
do  Purgatório  ,  cometeríamos  o  peccado  mortal 
eom  a  mefma  facilidade ,  que  o  venial ,  os  adulté- 
rios,  e  homicidios ,  que  as  mentiras  leves  ,  e  pa- 
lavras ocioías.  Defengancmo-nos  fí^is,  que  a  Eter- 
nidade das  penas  do  Inferno,  he  jufía,  e  henccef- 
faria  aíTim  pela  gloria  de  Dcos,  como  para  o  bom 
governo  do  Mundo, c  bem  particular  dos  homens 
E  concluamos  com  S.  Joaõ  Chryfoflomo  que  naõ  lie 
menos  a  juRiça  de  Deos  ,  que  afua  Divina  mifcri- 
cordia  ,  que  tem  fabricado  o  Inferno,  e  que  bem 
longe  de  queyxarmonos  do  íeu  rigor,  devemos  ren- 
derlhe as  graças,  de  ter  ordenado  a  Eternidade  das 
peírs:  Imo  ptius  pro  ipfa  gehena  ,  gratias  agere 
debemus.  Pois  fó  deftc  modo  com  huma  doce  vio» 
lencia,  nos  obriga  a  deyxar  ,  e  fugir  o  peccado,c 
ganhar  para  ícmpreo  Paraifo,  como  bem  o  confir- 
ma  Saô  Gregório  :  Idcirco  ^  panarnm  ,  aUrmtatem 
conjiituit^  nt  nos  à  feccatornm  perfetratione  compri» 
mèret. 

Convém  todas  as  leys  fundadas  no  direyto  da 
natureza  humana,  fer  licita  a  jufta  defeza  contra 
o  injufto  AgreíTor.  Por  iílo  os  Príncipes  fazem  for^ 
talezas,  bem  munidas  de  canhões,  com  foífos  pro- 
fundos, e  cheyos  de  agoas,  e  quândo  efías  fahaõ, 
ou  íecaô,  tomaõ  arvores  de  carvalhos,  c  pinhos, 
e  cortadas  em  grandes  pedaços  as-  lançaô  nos  foi* 
fosYcomofizeraó  no  cerco  da  fortaleza  de  Turim) 
e  depois  dando.lhc  fogo  com  barris  de  alcatrão  ace- 

'  fosj 


^\- 


Do  tõvnmto  da  Eternidade.  4^3 

foSi  e  ifto  porqiie  ?  Para  impedir  o  aíTaito  do  ini- 
migo. Ê  íe  depois  de  eiiir  a  Cidadela  aífrii  rodea- 
da de  clnmmas,  o  Coromandante  íisbiííe  íobre  os 
muros,  e  advertiíTe  os  inimigos  ^  íc  rcriralTsin  do 
cerco  pois  nunca podcriaò fazer  o  ataque,  c  menos 
dar  o  aíTalto,  íem  cahir  naquelle  abyímo  de  fogo, 
ç  com  todo  eíieavifo,  o  inimigo ,  cheyo  de  rayva, 
fe  precipicaíTe ,  e  morrelTe  queymado.  De  quem  fe- 
ria a  culpa  ?  Da  jufta  defeza ,  ou  áx  fua  louca  teme- 
.ridade?  Que  íe  hum  homem  mortal  faz  tanto  para 
íe  livrar  do  íeu  contrario?  Quenaó  fará  Dcos  para 
áb  livrar  do  peccado  mortal,  qus  todas  as  horas,  o 
acomete,  e  heo  mayor  inimigo  ,  que  elle  tem.  Se 
declara ,  que  para  íe  defender  do  peccado  ,  tem 
poíto, entre  nòs,  e  elle  hum  abyfmo  de  fogo,  hum 
Inferno  eterno  ;  c  que  naò  poderemos  continuar 
o  acometimento  íem  cahirmos  nelle.  Nos  tem  avi- 
fado  pelas  fagradas  letras,  pelos  Profetas,  e  pelos 
Apoftoíos  ,  que  acabemos  de  fazerihe  a  guerra 
comosnoíTospeccados.  Quando  naò?  Será  obriga- 
do a  defender  íe  caí^igandonos  com  penas  eternas. 
Eítas  íaò  as  fuás  armas,  com  que  íe  defende  ,  ar- 
mas defeníivas  ,-naò  ofFeníivas  ,  pois  v.^ò  aco- 
mete ,  nem  aggrava  armas  próprias ,  e  convenientes 
aDeos,  que  como  o  feu  íer  he  infinito,  e  eterno, 
affim  também  as  fuás  armas  com  que  fe  defende  dos 
peccados,  faô  infinitas,  e eternas. 

Corroboremos  quanto  até  agora  temos  prova- 
do  com  provas  Theologicas.  Todo  o  mal ,  íeja  ou 
fifico,  ou  moral  ,  que  por  íua  natureza  he  irrepa- 
rável, he  hum  mal  eterno,   mas  o  mal  do  P^^^'"^"     ^^ 
dor  ,  que  morreo  em  peccado  (  diz  S.  Thomás  )  he  f^'  J^^^ 
irreparável,  logo  he  eterno.  Do  mefmo  modo,  hs '    ^J  ' 
na  ordem  èíica.  Quem    voluntariamente  fe  corta 
hum  braço ,  ou  fc  mata ,  dando-íe  com  hum  punhal 

Dd  4  no 


(II  t'l 


fl 


4^  4  Difcurfo  Vitimo 

£ri(l.    no  peyto,  fabendo  muyto  bcm,que  à prhatmê ad Ba: 
^M'     ktunnwndatur  regre£us.  Que  naò  ha  remédio  hu- 
mano  para  refazer  eíle  dano ;  ou  que  o  poffa  reíufci- 
tar  ,  moftra  que  confente ,  de  ficar  para  íemprc  priva^ 
do  da  vida  ,  ou  de  íoíFrer  a  pena  ,  que  lhe  podia  cau- 
far  a  falta  do  braço  5  aíTim  opcccador,  que  mata  a 
íua  Alma   denruindo  com  o  peccado  a  caridade, 
que  he a  raiz  de  todas  os  boas  obras,  confente-v^ 
lunlariamentc  a  todos  os  males ,  que  fe  fcgucm  ,  c 
fe  priva  de  todos  os  bens  da  vida  cfpiritual  que  de- 
flruhio  ^cíòk  pôde  queyxar  de  fí  mefmo ,  coroo  bem 
-f«^./.  o  confirma  S.  Agofíinho  :FaBmtJlmaU  dignm  ater- 
CivU     ^^'  ^^^'  primitinfe  bomm  quodpojfet  efe  aternum, 
*  O  Angélico  S.  Thomás  fortifica  eíia  razão  com 

outro  argumento  que  dizaífim.  Huma  culpa  eterna, 
merece  huma  pena  eterna ,  a  culpa  dos  condenados 
he  eterna  logo  merece  pena  eterna.  A  culpa  fera 
íemprc  eterna ,  porque  os  condenados ,  naõ  eftaõ 
maia  em  tempo  para  íe  valerem  dos  remédios  ^  que 
Deós  iníiituhio  para  a  compenfaçaô.  Nem  eâaõ  tn 
^ia  p^ra  poder  merecer  ^  nem  aplicaríe  os  infinitos 
merecimentos  do  pr eciofiílimo  íangue  que  noíTo  Sc- 
nhar  jESU  Cbriflo  derramou  para  os  peccadores ,  co- 
Fptl.yj^mo  diz  o  Profeta  David  .^  Bíòem  omnes  fíccatores 
terne.  Mas  naô  do  Inferno^glofa  Saò  Bernardo  .  por- 
que o  íangue  d€Chrifto,quedeceo  em  terra  naô  de- 
Bern,  ceo  no  Inferno .«  Non  defcenàit  aâ  injeros  fangnvs^ 
fr71^^^  ^#^>^  (fifiper  terram.  Reforça  o  argumenta 
l^ln  ®  "^^í;^'<^  Santo  Thomás  com  dizer»  A  jufíica  Divina 
tem  direy to ,  de  pi^nir  hum  peccado ,  ate  que  o  pcc- 
cadornaõ  der  cabal  fatisfaçaõ  delle.  Opeccador  no 
Inferno  ,^  nunca  ficará  capaz  de  íatisfazer  ,  logo 
Deos  o.pòdc,€  deve  punir  atè  q^ue  fique  fntisfeyto; 
como  bem  diz  Saõ  Bernardo  :  Smper.  pnniri  potefi 
««/)  *./,^^«^./i  çxpiarL  O  condenado  hç  como  hum 


Man, 

BSfhQ 

mi» 


Bem, 


Do  tormento  da  Eternidade.  4^_5 

hòracm,  que  he  obrigado  aos  juros  de  hum  grande 
cabedal,  cem  quanto,  naô  extinguir  o  cenfo,  i^íR- 
pre  correm  os  juros.  Os  peccados,  que  voluntária^ 
mente  commetteo ,  faõ  o  cenfo  que  fez  ,  os  juros  wo 
as  penas  que  padece  i  como  he  impoflivel  extinguir 
ocenío  porfer  incapaz  de  fatisfazcr  as  culpas,  con- 
tinuará femprc  a  pagar  o  juro  das  penas,  que  Santo 
Agofíinho  chdLm^foeBora  tni  quitai  is  ;  e  como  ^^^^^^'  ^^. 
pas  faõ  eternas ,  também  as  penas  ficaó ,  c  ficarão  P^-y^.^^ 
ra  fempre  eternas. 

Quero  acabar  efíe  fcgundo  ponto  com  dizer, 
que  a  pena  deve  fer  proporcionada  à  culpa,  e  que 
o  caftigo  deve  tomar  a  íua  medida  ,  da  malícia ,  e 
gravidade  do  crime  Âchaò  os  Theologos  no  pccca- 
do  mortal,  hua  maldade  infinita  na5emfi,mas  por 
relação  a  Deos ,  que  he  infinito  ;  merece  logo  huma 
pena  infinita ,  cíia  naô  pôde  o  peccador  fofFrcr  na 
qualidade  ,  convém  logo  que  leja  na  duração.  Ex- 
plicarey  efta  malícia  do  peccado  mortal  com  dizer 
aíTun.  Dar  huma  bofetada  a  hum  Villap ,  ou  a  ou- 
tra peíToa  humilde,  hemalfeyto.Dala  a  huma  peíioa 
nobre,  he  muytopcyor.  Dala  a  hum  Fidalgo  de  pri- 
meyro  rango,ou  a  hum  Grande  he  hum  attentado.  - 
Dala  a  hum  Príncipe,  a  hum  Rey  he  hum  crime  de 
icfa  Mageftade ,  Ade  primeyra  cabeça.  Supponbainas 
agora,  que  fe  íncarnaíTcm  todos  os  Anjos,  Cheru- 
bins ,  e  Serafins ,  c  que  todos  rccebeíTem  eíia  boffc-^ 
tada  de  huma  peíToa  baixa, e  vil.  Accrefcento  mais. 
Se  Deos  creaífe  creaturas  poffiveis  in  mfinitum  ,  e 
cflas  íempre  mais  perfeytas,  eefta  peííoa  vil  a  todas 
affrontâíTe  com  a  mefma  bofFetada  ,  he  evidente, 
que  quantos  mayores  grãos  de  malícia  contrahio^ 
quem  íe  atreveo  a  dar  eftas  boíFetadas,  merece  ou- 
tros tantos  grãos  de  augmento  de  penas.  Oh  meu 
bom  JE^SUS.  Oh  meu  Creador,  e  Rcdcmptor  meu* 


«I 


li 


ili 


''    ' 


_^  Dipitrfo  Ukkm  (\ 

lÊqiie ,  tem  que  fazer  todiselbs  affrontas  yfeytas  a  toí 
das  as  creacuras ,  creadas ,  e  poífiveis ,  íe  todas  iâòco- 
mo  nada  ,  rcrpeyta  ao  deíprezo ,  que  vos  faz  ,  c  a  bof- 
^fetada  ,  que  vos  dá  ,  qyem  commecte  hú  peccado  mor^ 
ífí^^-.ó.tai;, Que  digo  deípre-^o ,  ou  bofFetada,  vos  torna  a  crur 
cificnr ,  como  diz  Saô  Pauio  no  ícu  coração :  líeruffí 
crucifigentes  vobifmetipfisFiliumDei.  Oh  que  abiímo 
de  malícia  ,  e  de  ingratidões ,  que  merece  hum  abiímo 
defupliciosjC  penas  ,  que  eu  naô  poíTo  defcrever,  nem 
fcy  explicar. 

Sabemos  por  fé,  queDeos  he  infinito  ,€ contém 
cm  íi  infinitas  perfeyções.  Eftas  com  hum  fó  peccado 
mortal  ficaô  todas  dei  prezadas ,  e  juftamente  cííçn- 
didas.  Naò  quero  jà  que  para  íatisfaçaò  vos  dê  Dcos 
hum  feculo  de  penas  no  Inferno  ,  por  cada  perfcyçaó 
Divina  offendida.  Naô  hum  anno  ?  Naô  hummez? 
mas  hum  íó  dia;  pois  fe  he  de  fé ,  que  as  peifeyçoens 
Divinas  faô  infinitas  ,  logo  para  fatisfazer  a  ellas, 
por  voíTa  mefma  conta  os  dias  do  Inferno  haô  de  fer 
infinitos.  E  que  íaôdias  infinitos  de  penar  no  Infer- 
no ,  fenaô  a  meíma  eternidade  das  penas ,  que  nun- 
ca ha  deterfifn.  Ah  trifte  peccado  mortal.  Ah  me- 
donha eternidade  das  penas.  Eftas  duas  couías  uni- 
das, neccíTitarão  ao  Verbo  Divino  a  fazeríe  Ho- 
mem,  c  morrer  em huma Cruz,  para  livrar  os  ho- 
mens da  Eternidade  dis  penas  ,  que  tem  merecido 
pelo  peccado  mortal :  Nifih£C  ejfent  aâ  mortem  fem- 
Bern,  pit emam  (  áiz  Saô  Bernardo)  nunquam  Filius  Dei 
Ser,ad  ^^^  ^^  moreretuf.  0'(\  infinita  malícia  do  peccado 
^^^^''  mortal.  0'a  eípantofa ,  e  deteftavel  maldade  j  pois 
foy  neceíTario,  que  hum  Deos  derramaíTe  o  íeu  fan- 
gue,  até  morrer  em  hum  patíbulo,  pnra  fatisfazer 
ao  valor  da  noíTa  Redcmpçaó.  Pio  Leytor,  quando 
ouvireis  dizer  aos  peccadores,  que  fc  efpantáo ,  e 
não  entendem  ,  como  hum  Deos  tão  bom,  queyra 

dar 


Do  tormem  da  Ètermdade.         4 17 

dar  penas  eternas  por  hum  peccado  ,  que  dura  hum 
íó  momento.  Refpondey-lhes ,  que  também  vòs  nâq 
cntendeis,e  ficais  muyto  mais  efpantado  que  vendo 
a  hum  Deos  agonizante, e  morto  em  húa  Cruz  para 
lhes  dar  o  Paraifo  ,  elles  íaô  taô  ingratos ,  e  tão  cruéis 
contra  fi  ,  que  querem  antes  ir  ao  Inferiao ,  crucifican- 
do-o  de  novo  para  fatisfazer  a  hum  gofto  que  dura 
hum  breve  inftante.  )nLÍvl 

-     Depois  de  termos- vifto,  como  Deospôdc,  quer,  Teiceí 
e' deve  dar  efía  Eternidade  das  penas  aos  réprobos,  roPoí|- 
refta  agora  o  terceyro  ponto,  e  vem  a  íer ,  que  da  lem-  co- 
brança ,  c  coníideraçaô  deita  Eternidade  depende  a 
íalvaçaô  dos  homens :  Ibíthomoin  domum  atemitatis 
y//<í'.  Oh  feconíideraíTei-n  os  peccadores,  cadanoyte 
antes  de  fe  dey tarem  efta  verdade  indubitável ,  e  in- 
falli  vel  j  que  mais  tarde ,  ou  mais  cedo  ,  mais  hum  an- 
no,  menos  hum  anno  >  e  bem  poderá  íer  que  mais  hum 
dia  menos  hum  dia,  haõ  de  entrar  para  íemprc  na 
cafada  fua  Eternidade /'«  domtim  aternitatí4  fna.  Oh 
íe  ponderaíTem  efta  palavra/?/^.  A  íua  cafa  da  Eter- 
nidade. Pois  a  Eternidade  naõ  he  para  todos  huma, 
e  a  mefma.  Sim  na  duração?  mas  naó  na  morada. 
Cada  hum  quando  morre  vay  logo  morar  na  eílan- 
Cia  ,  que  aqui  nefta  vida  fe  fabricou  para  a  íua  eter- 
nidade.  Deyxa  tudo,  é  todos  o  deyxaô  ,  e  fó  o 
acompanhaó  ,  e  íeguem  as  obras  boa^ ,   ou  más  que 
ícz:  Opera  enim  illomm  Jeqí-imtur  ãlos.  Se  as  obras  .     , 
derradeyras  que  fez  o  puzeraô  em  graça  ,  vay  para  /í"^' 
morada  eterna    do  Paraiío  ,   fe  foraô  em  peccado    "* 
mortal,  vay  para  Icmpre  no  eterno  calabouço  do 
Inferno,  que  he  a  morada,  que  elle  me  fmo  fabricou 
para  íi ;  Ibit  homoin  domam  atemitatufu^» 

EHa  coníideraçaô  da  Eternidade  das  penas  hz  jy^.^ 
temer  ,  e  tremer  todos  os  Cat!u:>Hcos ;  ^^ternitas  dcctirn 
quatuor  fylahú  coníiatjed  tn  fe  fine  caret.  Eíia  pa- 
lavra 


M 


â\ 


)'■■  j 


mi. 


Ahfek 


418  y^  Difcuvfi  Vitimai ^ 

lavra  Eternidade  enccrraíe  cm  quatro  diabas»  c  to- 
dos os  livros  dos  Mundo  (dizS,  Hilário)  nunca  po- 
derão explicar  o  feu  fím.  O  Padre  Chriftovaò  Cianio 
da  Companhia  de  JESUS*  Matemático  taô  celebre  co- 
mo o  declaraô  os  feus  liv  ros  ,  quiz  huma  vez  íaber  o 
numero  de   quantos   granitos  meudinhos  de  area^ 
craõ  neceíTarios    para   encher  o  vaô  de  todo  cftc 
Mundo,  atè  o  Ceo  Empíreo,  efeyto  com  diligen- 
cia cxacíbi  o  computo  5. achou,  que  com  huma  uni- 
dade ,e  cincoenta  e  huriia  cifra  cftava  ajuftada  a  con- 
ta. E  que  tem  que  fazer  efta  conta  ,  com  a  eternida- 
de, quando,  fe  a  cada  milhaõ  de  íeculos ,  íe  m 
raffe  hum  fó  granito  para  diminuir  huma  daqucllas  ci^ 
fras,  que  multidão  de  milhões  de  feculos  era  neeeí- 
iaria.  Digo  mais  fe  Deos  creaíTe  huma  folha  de  papel , 
tdiò  extenfâ,  e  dilatada  como  laõ  todos  os  Ceos ,  e 
nella  fe  puzeffe  huma  unidade ,  c  depois  das  cincoen- 
tachuí  cifra,  fe  foíTem  continuando  as  cifras  ate 
que  foíTe  bem  cheya  a  immeníidade  daquella  folha. 
Qual  Euclides ,  que  Mathematicos ,  que  Computi- 
jftas  fe  atreveriaô  a  fazer  a  tal  conta  que  naõtem  con- 
tOi e naó  cibe , nem  pode  caber  no  entendimento  hu- 
mano, mas  fó  no  de  Deos,  por  fer  infinito,  e  en- 
tão diíTeíTe.   Or;i  eu  me  contento,  que    acabados 
todos  efles  granitos  ,  que  eftáo  da  terra  atê  oCeo 
Empíreo, e  cada  hum  encerra  em  fi  tantos  miihoens 
de  feculos  ,  quantos  cabem  como  temos  dito  na  fo- 
lha immenía  das  cifras  ,  me  contento  digo  ,   que 
os  condenados  fiquem  livres  das  penas  eternas  do 
Inferno.  Oh  que  alegria  ,  oh  que  fefta   ,   oh  que 
confoloçaô   dos    dcfgraçados    precitos.  Naô  cabe- 
riaõ  em  fi  de  contentes ,  já  o   fogo  lhes  pareceria 
mais  brando ,  as  penas  mais  íuavcs  ,  e  o  Inferno, 
já  para  clles  naô  feria  copfidcrado  como  Inferno, 
mas  como  hum  caftigo  temporal,  pela  grande  ma- 
lícia 


DotõrwèntoáaÉieVtíidade,  ■        4-5> 

liéiâ^os  ícus  pcceados  muy  Híiiitado.   Mâs  coUiO 
pode  fer  ifto,  íè  thes  fícaò  tantos  milhões  de  milhões 
deannos  ,c  íeculos,  para  cada  gfanito,  c  os  grani- 
tos incluídos  cm  tantas  cifras  laô  tantos  ,  que  fó 
D^os  os  pôde  numerar  ,  c  aehar  o  computo  de  ci- 
fras, e  granitos,  efeculos.  Aflim  he.  Mas  também 
os    condenados  ,  fenaõ    íabem  ,  nem   podem  per- 
ceber ameudo   cfía  conta  a  íabem  por  alto  ;  por^ 
Que  conhecem,  e percebem  o  axioma  filofoficoque 
finiti  aâ  ínfinitum  nulU  datnr  propertio^qucí:  dizer,  ^^,  , 
que  naõ  ha  ícmelhança,  nem  proporção  entre  os  tor-  ^^^pl^-^ 
mentos  eternos, e  aquelies  ,  que  huma  vez  haõ  de 
ter  fim  ,e  comprehendendo  já  por  experiência  a  Eter- 
nidade, íabem  que  tudo,  que  naò  he  eterno ,  e  ha  ^,^^  ^^ 
de  acabar,  he  como  nada:  G^od  aternum  eft ^  ^^' iufem. 
híleft. 

Efta  comprehenfáó  ,  que  tcraô  os  condenados 
da  Eternidade  do  Inferno,  he  o  ultimo  coníiitutivo, 
de  todas  as  penas  ,  e  de  todos  os   tormentos  j  he 
huma  fufíancia  rcfumída  de  todas  as  miferias,que 
padecem,  e  haõ  de  padecer  por  toda  a  Eternidade, 
que  os  Theologoschamaõ  Eternidade  formal  fonria- 
Ips  at emitas.     Que   fará   íoíFrer   aos    condenados, 
a  cada  momento  a  Eternidade   toda  inteyra,  Efta 
confíderaçaõ  he  digna  de  toda  a  reflexão,  e  aflim 
a  cxpliearey  maisclaramente  com  huma  femelhança. 
O  Sapiente  Boecio    define   a  bemaventurança    do 
Paraiíò:  Inierminabilís  vita  totafimtã  ^  &  p^^f*^^^  Boec.de 
fofijfw.  Huma  poffe  pcrfey ca  de  húa  vida  que  nunca  coniAn.j 
terá  termo  ,  nem  im  ►  toda   inreyra    a  cada  im- 
fíante  ,  porque  no  conl^ecimento  claro ,  verdadcyro,^ 
cfcguroyque  tcm^  os  Bemaventurados,  que  a  fua 
Berna venturan^a  fcrá  eterna  ,  fe  pòdé  dizer  ,  que 
g02:35  acadainflante,  o  que  gozarão  na  Etcrnida-     ' 
Se  toda  inteyra  peia  f egurança  infalH vel  que  tem 

delia*. 


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430  Difcurfo  mim  s,a 

delia.  Porém  axjiae  arítiiíericordia  Diviria  faz  «oPii^ 
raiío  com  os  Predeí^inados ;  a  juftiçâ  de  Deos ,  o 
faz  também  no  Inferno ,  com  os  precitos  í  c  aiíim 
podemos defíDÍr  a  condenação  dos  réprobos:  CH^* 
lartím  omnium  iota  fimul\  &  ftrfeBa  pojfeffio.  H  u  m a 
inteyra  ,  e  péifeyta  poffe  de  todos  os  maics,  e  mn 
ferias ,  que  os  precitos  foffreraõ  a  cada  moinento^ 
iquanto  deverão  íofFrer  por  toda  a  Eternidade  intey-s 
ra.  Iftoíuppofto,  quando  hua  Alma  entra  no  ínfcrníí^ 
a  juftiça  de  Deos  para  achar  modo  de  atormentar 
mais ,  fortifica  o  feu  efpirico ,  e  o  feu  entendimento 
para  que  oconheça,e  comprehenda  >  a  Eternidade 
cm  toda  a  fua  extenfaô ,  e  lhe  abre  aquella  vaíla  im^ 
menfidadc  de  fuplicios ,  com  lhe  fazer  huma  f unefta 
deícripfaõ  de  todos  os  tormentos ,  que  por  toda  a 
Eternidade,  ha  de  foffrer  no  Inferno  ,  com  huma 
taô  forte  impreffaõ  ,  no  entendimento  ^  que  fem 
nunca  o  poder  divertir  foffre  toda  inteyra  a  Eterni- 
dade a  cada  momento  dá  fua  duração.  > 
Os  Theologos  fe  fervem  de  hua  íemelhança  para 
dar  húa  rude  idéa  dcfte  tormento  dos  tormentos  ,  que 
íe  pôde  chamar  o  verdadeyro  Inferno  do  Inferno. 
Tomay  (  dizem  elles )  huma  bokde  ferro  v  ou  hum 
globo  de  bronze ,  que  íçja  porem  pcrfeytamcnte  re- 
dondo ,  e  deyxay-o  cahir  de  bem  alto  fobre  hum 
grande  efpelho  de  criftal ;  fem  duvida  ,  que  o  quebra- 
ra, e  o  fará  em  mil  pedaços  y  e  pedacinhos.  Como 
4^,^iíi,  pôdeferifto?  Efíe  globo  ,  quando  cahio ,  naô  to- 
cou que  em  huma  parte  minimajC  quafi  como  em 
hum  ponto  indiviiível  o  efpelho.  ,  He  verdade  .*  c 
sílim  he.  Mas  como  todas  as  partes  dcfte  efpelho.  íe 
unem  juntas  por  huma  uniaõ  univerfal ,  ainda  que  o 
globo  caya,  e  toque  huma  fó: parte  do  efpelho  ,  co- 
mo em  hum  ponto  iodivifívcl,  pelo  grande  pezoas 

e  mi» 


defunc  todas  ,  d^xando-as  cm  migalhas 


galii 


■n 


'    Do  tôrmenfõ  áaEíermdade,  4^1 

galinhas.  Do  fncfmomodo  ocondeoadò  no  Inferno, 
em  cada  morhenío  da  Eternidade  naô  he  tocado  dos 
tormentos'  que  loffre ,  que  por  aquellc  momento, 
mas  como  todos  cfles  momentos  da  Eternid?.de,  ef- 
taõ  unidos  no  leu  entendimento ,  e  como  arraigados, 
c  fixos  na  lua  imaginação,  acereícentaô  de  modo  o 
pezo  ,  e  fazem  hum  tal  contrapezo,  taô  cruel,  e  dolo- 
rofo ,  que  vem  a  ícntir ,  e  foffrer  todos  os  momentos 
juntos  da  Eternidade  toda  inteyra  em  cada  infan- 
te. 

Agora  entendo  aquelle  texto  taõ  diíficultoío  do 
Profeta  Ezechiel :  Rota  in  medío  rota.  Que  jà  to- 
camos no  difcurfo  do    íicio  ímmovel.  Duas  rodas,  ^^^^ij- 
huma  grande,  a  outra  pequena  ,  huma  dentro  ,  a  iq.    * 
outra ,  fora ,  huma  no  mcyo  da  outra.  Todos   k- 
bcm,  que  antigamente  ,  ate  nos  tempos  dos  Gen- 
tios ,  o  circulo,  e  a  roda  ícmpre  foraõ  ,  c  ainda 
íaõ  o  fímbolo  da  Eternidade,  A  roda  grande  ,  c  de 
fora ,  he  a  Eternidade  das  penas  ;  a  roda  pequena, 
e  de  dentro,  hc  o  claro  conhecimento  que  eflas  pe- 
nas durarão  para  fempre.  A  roda  no  meyo  da  outra 
roda  ,  he  a  duração  dos  fuplicios  eternos ,  que  íciá 
tão  fortemente  pegada  no  entendimento  ,  na  ima- 
ginação, efantafia  do  míferavel  precito,  que  nunca 
poderá  imaginarfc  ,  nem   cuydar  em    outra   coufa 
qúc   ncfta  Eternidade  das  penas.  Eí^as  duas  rodas, 
firaõ  blasfemar,  e  cahir  cm  mil  deíefperaçôes  os 
condemdos    ,   que    inceffantemente  defejaruõ  ,    e 
buícaraô  à  morte,  fem  nunca  a  poder  achar  :g^fí^-  " 
rent  mortem ,  à-  non  invement.  Eftando  os  precTtos  ^.^^  ^ 
neíle  Munda,    aborreciaò   a   morte  ,  como  inimí-         "^^ 
ga  dos  feus  goftos  ,  e  agora  a  pedem  como  único 
remédio  das  fuás  penas.  Quando  cil es  a  fugiaò,  ei-       ■  , 
la  os  perfeguia  ,  e  os  achou  com  o  peceado  ,  qiie  "^    ;J^ 
cara  o  idolo  que  nunca  quizeraõ  deyxar.  Agora  que    "'  ^^^^^ 

a  de- 


ê 


T^^^S^ 


í"™™«íésE5? 


^"^puiéiMhpvb — 


íil 


'^fOC.^ 


t,uc.6* 


de  Civ. 
Vei. 


S.Eftfe 

l?ÍHS  Co- 


Difcuvfõ  Wímo  -'^^ 

a  deíejàôyC  bi|fca5  por  todas  as  vias,  naõa  podcra 
achar, porque  el ia,  foge  dciles  ;  Vefiâerabunt  mo- 
ri  t  &  mors  fugiet  ah  eú.  Oh  Eternidade  ,  Eternii 
dade  do  Infcrbo.  Efta  heacafa  ^  que  tem  prepara- 
do para  fí  ,quem  vive  em  peccado  mortal  :  Ibit  ho* 
mí9  in  domum  aternitatis  Jua.  Como  he  pofíivel, 
que  o  peccador  ,  por  habituado  que  íeja ,  lendo, 
e coníiderandocfta eternidade,  naó  queyra  logo  mu- 
dar vida,  c  trocar  a  fua  cafa  da  Eternidade  do  In- 
ferno ,  com  a  Eternidade  do  Paraifo :  Ibi  homo  in 
4omum  aternitatis  fu£, 

BeHiíTima  he  a  reflexão  que  faz  Santo  Agoftinho 
íobrc  aquelias  palavras  do  Evangelho  :  Eadem  men- 
fura  ,  qua  menfi  fueritU ,  remetietur  vobis.  Qi?c 
com  a  mefma  medida  ,  que  nos  medirmos  a  gloria 
de  Deos ,  e  a  íua  Divina  bondade ,  elle  medirá  os 
merecimentos ,  e  as  noffas  culpas :  In  eadem  menfura 
quamvã  non  aterna  mala  Jeceris  ->  /eterna  fupplicia 
remetietur,  Gouía  prodigiofa  ?  Quando  Deos  or- 
dena huma  eternidade  de  penas  por  hum  peccado 
tnortal,  que  durou  hum  fó  momento  ,  mede  com  a 
imefma  medida ,  que  foy  medido.  Gomo  pode  fer. 
G  peccador  médio  a  Deos  por  hum  inftantc  degofto, 
€  Deos  mede  ao  peccador  por  huma  eternidade  de 
penas.  E  efti  he  medida  igual,  c  jufta  ?  Sim,  fim 
he  juftiiTima  ,  porque  a  vontade  no  peccador  na- 
quelle  inftantc  que  pecca  he  como  eterna:  Ut  cfiiia 
éeternam  voluntatem  hahet  in  peccatis  ferfeverare^ 
-aternajujiitia  hanc  voluntatem  punitura  efi.  Tinhk 
hua  vontade  eterna  para  o  peccado  ,  procurava  que 
aqueíle  gofto lhe  duraíTe  mnis  tempo,  deícj^va, co- 
mo dizS,  Euíebio,  viver  eternamente  para  íempre 
peccar  :  Fellet  fine  fine  vivere^ut  pojfet  fine  fine  pec- 
tare,  Muyto  mais  ,  que  morrendo  o  peccador  em 
peccado  lhe  fica  aquelladifpofiçiò  habituai  ,c  pcr- 

raa- 


DõtoyfnentoâaEtevnidade.         433 

m^anente ,  de  ficar  femp^e  em  peccado  fe  viveíTe  eter- 
namente: §iu  impoemtens  fuera ,  fifemper  viverei,  ^^^^^ 
femperpeccaret,  E  preíentando-fe  depois  de  morto  no  ^^^i^ 
juizo  de  Dcos  ,  com  efta  vontade  tacita ,  e  interpreta- 
tiva de  continuar  na  culpa  ,  pois  naò  a  tem  expiada, 
tocar  diz  Saõ  Gregório  Magno)  ájuftiça  de  Deos. 
caftigar  com  pena  eterna  ,  quem  queria  Víver  eterna- 
mente na  culpa ;  Ad  magnam  ergojudtcantisjUfiitíam  Gregor. 
pertmet,  ut  mmqiiam  hic  careant fupphcio ,  qm  hic  dum  oulj^. 
\jiverent,7timquamvolmrunt  caren  peccato.  Eterni- 
dade  por  Eternidade.  Eternidade  no  deíejo  dos  pecca- 
dores ,  de  fempre  peccar,  Eternidade  no  Inferno  de 
fempre  padecer. 

Pareceme  ,  que  poderá  dizer  alguém  eíla  dou- 
trina também  fundada  na  Theologia ,  e  confirmada 
pelos  Santos  Padres  naó  falia  comigo  ,  que  nunca 
tive  tenção  de  morrer  em  peccado  ,  menos  de  per- 
feverar  nellc.  Pecco  como  homem  frágil,  mas  co- 
mo Catholico  na  mcfma  refoluçaõ  de  peccar,  tenho 
nofentido  de  me  confeíícir  logo,  e  porme  bem  com 
Deos.  0'a  cegueyra  ,  oh  engano    dos  enganos.  E 
quem  vos  aíTegura  ,  que  naó  morraos  no  meímo  aCt a 
de  peccar,  como  morrerão  tantos  outros,  que  pec- 
caraõ  menos  vezes ,  que  vòs.  Por  ventura  lhes  fez 
DeosalgÚa  injuftiça.  O  Inferno  diz  Saõ  Bernardo, 
efíácheyodebons  propoíicos ,  que  naó  tiverao  exe- 
cução. Se  perguntarmos  a  todos  os  Réprobos ,  por*, 
que  eftaõ  no  Inferno.  Todos  diraò  como  fempre  ti- 
verão  tençaô  de  fe  falvarem  ,  mas  que  por  hum  mao^ 
fucceiTo,poif  huma  morte  improvifa  lhes  faltou  o 
tempo  i    mas   como   lhes  faltou  ,  íc  lhes    fobcjou 
tempo  para  peccar ,  e  perfeverar  atè  a  morte.  Nao 
fabiaô  elles  o  que  diz  noíTo  Senhor  jESU  Chri- 
fto  ,  que  a  morte  ha  de  vir  ás  efcondidas  como  o  ^^^ 
háíâò:  Femeí  tamquam  fur.  E  na  hora  ,  que  me- 

Ee  nos 


Cif 


jyifcuvfoVltiino 
nos  cuydarmos  .V  ^^  hora  non  putatis.  E  por  ijflo 
naõ  diz,  que  nos  preparemos,  masque  eftcjamos 

iLfôff. li  preparados.-  Et  vos  epte  parati.  Simhhb.õ,  Pois 
porque  naô  íe  prepararão;  porque  viviaõ  engana! 
dos ,  Como  vivem  ainda  hoje  os  peccadores ,  naó  íe 
reíolvem ,  diíFerem  a  outro  tempo  o  fazer  peniten- 
cia,  porque  em  lugar  de  fc  occupar  na  confíderaçaô 
da  eternidade  das  penas,  tem  fcmpre  no  fcntido 
o  momentâneo  dos  goftos.  Eternidade.  Eternidade  • 
Ibít  hormindomumaternitatisfua. 

Quero  dar  fim  ao  ultimo  difcurfo  defte  meu  Li- 
vro cora  hum  documento  de  noíTo  SenborJESU  Chri- 
fío,  que  íervirá  também  do  ultimo  deíengano. 
Chama  Saõ  Mattheus  opeccadohum  caminho  eípa- 
Cíofojehua  porta  larga j  que  conduz  em  direytura 

A/.-/.  ''^  Etxmidade  do  Inferno:  Lata  porta  ,  &íbattofa 
'  'vta  eft,qu£  àucit  aã  perditionem.  O'  chama  elkada, 
porque  por  ella  caminha  o  peccador ,  o  chama  cípa- 
cioía,  porque  ha  bua  infinidade  de  peifoas ,  que  an- 
daò  por  ella.  O'  chama  também  porta  ,  porque 
qualquer  que feja.qits  efiá  na  porta  y  tem  hum  pé 
dentro^  c  o  outro  fora  da  cafa  ,  e  para  entrar  de 
todo  dentro ,  naô  tem  ^  que  fazer  mais  de  hum  meyo 
paíTo.  Do  mefmo  modo  ,  quem  eílà  em  peccada 
mortal,  tem  humpè  noxVíundo,e  o  outro,  no  In- 
ferno,ebaãa  fazer  meyo  paíTo  para  entrar  na  fua 
cafa  da  Eternidade.  Diz  Santo  Aníeimo  ,  que  entre  o 
peccador ,  c  hum  condenado ,  entre  o  peccado ,  e 
o  Inferno,  naõ  ha  mais  intervallo,  que  de  hum  mo- 
mento, não  ha  mais  di Lancia  ,  que  de  hum  ponto. 
De  todas  as  couías  ,  que  ha  no  Mundo ,  nenhuma  !u 
mais  contigua,  que  o  peccador ,  e  o  Inferno  ;  pois 
íjualquer  coufa  ,  por  pequena  ,  e  contigua  ,  que  feia 
a  outra  ,  fempre  ha  de  ter  a  diílancia  de  hum  pon- 
to.  AíEm  o  diffe  o  Santo  Job  ,  fallando  dos  pec- 
cado* 


«s«aiÍÍI|lí 


m| 


Do  tormento  da  Etevàtdade.  43  5 

cadorcs ,  que  vivendo  defcuydados  nas  delicias  áo 
Mundo  ,  no  efpacio  de  hum  ponto  fe  achaò  noin-  , 
fcmo:Ducunt  inbonis  diesjuos^&m  punõío  ad  In-t^  ^^* 
ferna  defcendímt.  Mas  nem  de  hum  ponto ,  hc  dif- 
tante  o"  peccador  do  Inferno.  Pois ,  íó  fc  íepara 
com  a  morte,  e  como  a  morte,  naó  he  hum  ente, 
ou  íer  real ,  mas  hua  fíjnples  privação ,  fcgue-fc  ,  que 
ha  menos  diftancia  entre  o  peccador,  e  o  Inferno, 
que  de  hum  ponto.  Nem  fe  engane  alguém ,  com 
lhe  parecer  efte  fallaralguafutileza  de  engenho.  O 
Peccador ,  a  Morte ,  e  o  Inferno  ,  faõ  entre  íi  taõ 
veíinhos  ,e  contíguos  ,  que  naõ  ha  momento, in- 
ftante,ou  ponto  1  que  feja  mais  breve,  c  indiviíi- 
vel.  A  prova  naõ  fó  he  de  fé  ,  mas  a  vemos  todos 
os  dias.  Naõ  ha  momento,  em  que  o  peccador  naõ 
poíTa  morrer  improvifamentç,  logo  he  certa  a  con- 
íequencia  , que  nsõ  ha  momento,  em  que  naõ  pof- 
fa  aeharíe  no  Inferno,  quehea  cafa  da  fua  Eterni. 
dadc,  que  com  os  feus  pcccados  fe  tem  fabricado :  Ibtf 
homo  íH  domum  aternitatujua. 

Finalmente  para  confolaçaôdos  que  lerem  efte 
livro   ms   atrevo   afíirmar  ,   que  qualquer  homem 
por  grande  peccador  que  ícja  ,  iz  cada  dia  coníide- 
rar  com  reflexão  a  Eternidade,  he  quaíi  moralmente 
impoííivei,que  nao  fefalve  ,equevàao  inferno.  Pois 
a  Eternidade  bem  concebida  produz  no  eoríçao  do 
peccador  ,  hum    arrependimento  das  culpas  ,  que 
com  o  deíejo  de  fazer  penitencia,  lhe  ferve  como 
de  freyo  para  naô  peccar  mais;  e  como  diz  Saô  Gre- 
gório, lhe  faz  aborrecer  os  goílos    paíTageyros ,  c 
o  rende  forte  ,  e  conftantc  para  naõ  temer,  nem  dc- 
íejarcouía  alguma  do  Mundo:  Çitiijqim  ^  in  ^eterni- Creg.  l. 
tãíM  defiderio  fígituryneç  projperitate  attoUitur  ^  necio.Aío- 
adverfttate  quapítur  -,&  dum  mhil  habet  in  Mundo^^^- 
quodappetaí  j  mhil  eft  qued  ^.eríimefcaí,  Efta  hc  a 

Ee  2  doa- 


I 


â 


li* 

4 


4,^íía  Difcíirfo  Ultimo 

doutrina ,  que  pregava  Santo  Agoílínho  aos  feus  Fre- 

giiezcs  ;  IntelUgite  fratres  ^  non  iâeo  ChriftiamfU' 
miíSytiPdebactantummoàovitafilUcitifimus,  Meus 
Irmãos  ,  efíejamos  bem  attentos.  Náô  noscreoU 
Deos,para  tratarmos  íó  dos  bens  temporaes  dcíla 
'Aiíg.  vida  •  Sed-ideo  Chrtftianifumus^  ut  femper  de  futuro 
Ser.ii.façíil0-)&  áê  atermtate  cõgitemus.  Mas  quiz  coíb 
de  tem-  ^  fua  graça  fazemos  Chriítáos ,  porque  em  cada  dia, 
f*''*  era:. cíida  hora  ,  e  em  todo  lugar  y  tíveíTemos  fera* 
f)fe  o  penfameoto  na  Eternidade.  AíEm  faziaõ  os 
Chríllãos  da  primitiva  Igreja.  Naõ  tinhaô  ,  nera 
Ikò outro  livro  de  romances,  ou  comedias»  íenao 
os  Evangelhos  y  e  as  Epiftolas  de  Saô  Paulo  ,  qu6 
femprc  levavaõ  comfígo  :  Non  coníemplantihus  no^ 
bis  qu£  vukntur  ^fed  qu^  nm  vtàentur  ^qua:  enim 
vídentítr  temporaha  fimt  y  qn/è  non  videntur  eterna, 
Naò  pcrdiaò  o  tempo  em  coníiderar  as  riquezas  ,  as 
honras ,  e  as  mais  vaidades  ,  que  fe  vcíVí  no  Mun» 
do,  porque  eíias  íaõ  enganofas ,  pnííageyras ,  e  naõ' 
duraõ  ;  e  logo  acabaô  ,  mas  occupavaô  o  ícu  en- 
tendimento ,  e  memoria  na  coníideraçaõ  da  eterni- 
dade das  penas  do  Inferno  ,  que  nunca  ha  de  ter  íim.  E 
cPíe  iic  o  verdadeyro  deícngano  dos  peccadores ,  pois 
de  precitos,  os  faz  Predeftinados. 

S.  Cyriilo  Alexandrino  chamava  aos  Catholicos 

da  primitiva  Igreja  Tyrones  £tefnitatu  ,  os  Noviços 

TertÀth  àà    eternidade.  E  Tertuliiano ,  diz  que  eraò  Pre- 

ãejfeH.  tendentes  da  Eternidade  :    ç^yEtermtatii  candlddtL 

Ds  Noviços  procurao  de  aprender  ,  e  adefirarfe  no 

que  lhes  enlinaô  ,    para  depois    ficarem  membros 

da  Religião  ,  e  os  Pretendentes  ,  trabalhão  íe  cíi^ 

meraô,G  naõ  cuydaõ  em  outra  coufa,  que  chagar 

ao  poílo  que  éckpb:  Cí^t ores  feímus  Dei femperin^ 

TertM  diitt  fídbftaniia  ^etermíatu-,  Adoramos  o  verdadeyro 

Deosjfempre  veílidòs  Com  a  íubílancia  da  cterni- 


Do  iorinem  da  Eternidade.        4Í7 

tadè.  Hum  íoldado  na  guerra  ,  logo  P^lo  f^" J^^" 
tido ,  íe  conhece  a  que  Regimento  pertence    Huai 
criado  quetras  libre  publica  ,  l<>g«  P^'^  ^^^^  ™'' 
quem  he  feu  Amo.    AíTim  quem  fc  vefte  interna- 
mente  da  fubftancia  da  Eternidade ,  logo  apparecc 
por  fora  a  íua  libré  que  hc  a  modeftia,  a  humilda- 
de,  a  paciência  ,  o  deíapego  do  Muna^,  o  abor- 
recimento ao  pcccado ,  e  que  he  foldado  de  noíTo 
Senhor  TESU  Chrifto ,  e  íeu  fiel  fervo  ,  pois  o  imita, 
e  traz  a  fua  vcrdadeyra  libré.  Por  ifto  qUuSjdo  os 
Chriftâos  íe  encontravaÒ  (  era  ifto  nos  tempos ,  dos 
Neros,  c  Dioclecianos  )  perguntando-lhes  comoeU 
tavaõ 'reípondiaò  :  St9  ad  ofiium  atermt^tti,  Ef. 
tou  nas  portas  da  Eternidade  com  hum  pe  dentro, 
c  o  outro  fora.  Oh  íe  agora  me  vieíTe  o  avifo  (  di- 
ziaõelks)  de  ir  ao  Martyrio ,  como  foy  a  tantos 
outros  ,  por  cruéis  que  foffem  os  tormentos  ,  pal- 
lariaôlogo,  com  a  eíperança  em  Deos  ,  qf  /<>"^ 
cftes  me  fabricava  a  minha  caía  da  Eternidade  no 
Paraifo  •  Ibit  homo  m  domum  ^eUrnitatU  fua.  Sc  o 
peccador  coníideraCfe  C3da  dia  que  eftá  nas  portas 
da  Eternidade ,  e  que  a  cada  momento  pode  entrar 
nella,comohepomvel,qucquize{rc  ofFcndera  Deos, 
econdenaríe:  Oh  atermtas ,  qm  te  cogttat^nec pos-  Aug:iH 
■nitet    aut  arte  fidem  non  hahet ,  aut  fi  habet  m  non  Sohbq. 
kabet.  Oh  Eternidade  ,  Eternidade  •,  gritava  Santd 
Agoftinho,  confiderando-a.  Aquclle  que  cuida  em  ti, 
e  naô  fe  converte,  ou  tem  perdido  de  todo  a  fe;  ou 
ie  ainda  a  tem  ,  certamente  já  naó  tem  coração. 
Mas  quando  hum  peccador  naó  tiveíTe  coração  pa« 
ra  cuydar  na  Eternidade.  NemporuTofedeíeíperc, 
mas  recorra  á  Virgem  Máy  de  Deos ,  que  com  huma 
nova  invocação  íe  chama  noíTa  Senhora  dos  impof- 
íiveis;  porque  como  diz  Saõ  Lucas  no  Evangelho:  £,,^.,8 
mt£  fmt  im^opkiUa  apud  hommes-,  {ofMia  funt 

Ee  3  a£ud 


w^mmÊÊmm- 


II! 


Biftuv/o  Ultimo  "^ 

apud  I>èmiCSccrcícct)taS,  Bcmarào  ^&apud  Btéí 
tam  Ftrginm  Matrm  ejus.  Logo  a  ella  como  a  Mây 
de  Dcos  nada  he  impoílivcl  pdra  a  faiváçaô  dos  ho- 
inens,  muyto  mais  que  ella  he  com  o  ícu  bemdko 
Filho  Corredentofa  do   gcnero   humano.   E  como 
Máy  dos  peccadores  que  naò  poderá  ?  e  como  Mãy 
dcMifcrieordia  que  naô  fará  para  os  íeus  devotos? 
Recorra  logo  a  ella  qualquer  peccador  por  dcfem- 
parado  que  feja ,  e  humilde  implore  a  íua  protecçaã, 
pedmdo-lhe  ,  que  lhe  arranque  do  coração  o  aíFcdo, 
as  vaidades,  e  goftos,  que   logo  paíTaô,  e  lhe  po- 
nha no  penfamento  a  Eternidade  das  penas  do  Infer- 
no ,  que  íempre  duraõ  ,  c  deHe  modo  poderá  experi^ 
inentar  em  breve  tempo  o  que  agora  lhe  parece  im- 
poffivel,que  he  de  precito  paíTar  a  fer  Predeaina. 
do.  GuardaivGS   bem  de  perder,  ou  esfriar  na  de- 
voçaõ  da  Senhora ,  porque  como  diz  Santo  Anfelmo, 
allim  como  he  impoííivel,  que  hum  peccador,  que 
naõ  he  verdadeyro  devoto  da  Virgem  noíTa  Senho* 
ra  íe  falvejaíTim  também  he  impoflivel,  que  todos 
aqueílcs ,  que  vivem  debayxo  dg  fua  protecção  ,  e 
volve íobrc  clles,os  íeus  olhos  de  mifericordia ,  íc 
D.An.  cotadenem  ao  Inferno:  Sicut  mpoffibik  eft,quodíl' 
(dmode  U^  k  qmhm  Virgo  cMaria  õcuIos  fita  mifiricordU 
Lm  A,    auvertit  fdventur  ;  ita  impojjibih  eft,  ut  ht^dqms 
tonvertmt  ocuJes  fms  m  Inferno  dammntur.  Oh  Vir- 
gem immaculada,e  admirável  Máy  de  Deos,  Sc  agoi 
ra  me  fora  licito  narrar  quantas  vezes,  e  de  quantos 
perigos  do  corpo ,  e  da  Alma,  me  tendes  livrado,  c 
ainda  do  meímo  Inferno,  naõ  baftariaô  muytos  li- 
vros mayores,  que  efte  volume.  Attrevome  a  dizer, 
queeíie  livro  hcvoíFo  ,  pois  como  podia  hum  pec- 
cador taõ  enganado  como  eu,  compor  o  deícrgano 
dos  peccadores.  Quantas  vezes  achandome  cu  com 
o  entendimento  confufojC  obtencbrado  cmdifcuríos, 

c  ma- 


Ving, 


DotormentoiaEternidade.  43? 

e matérias  d.fficultofas ,  e  de  fé,  chamava pc  o  voffo 
Sa^rltirtimo  Nome  M ARI.  que  figm  ca  mumm.- 
dora  •  Min»  ilhmmatruc^íllumiM  mentem  meam  Al-  ^^ 
lumiay  também ,  Senhora, a  todos  aquelles ,  que  lerem 
ettelivro,afimdeque  deíenganados  das  vaidades,c 
delicias  do  Mundo,  fabriquem  neftavida  a  íua  mo- 
rada  eterna  no  Paraiío,  para  vermos,  e  gozarmos  pa- 
ra  fempre  da  vifta  de  Deos,  e  da  voffa  por  toda  a  Eter- 
nidade. Amen.  Bit  homt  in  domum  aternitatuju^. 


If 


li' 

li 


44» 


A  D  D  I  Ç  A  M. 


PArecep-mejuJio  accrefcentar  a  ejfe  Dezen* 
gano  ,  ofeguinte  cafo ,  ajfás  efficaciljimo 
pela  horribilidade  do  fuccejjo  )  a  advertir  o 
tnais  defcuydado  peccador  :  que  ajjirn  como 
Deos  he  o  Senhor  das  vinganças  ^  affim  muytas 
vez^es  permitte  que  o  caftigo  feja  evidente  a^ 
inda  nefia  vida^para  exemplo  da  ingratidão-^  e 
abominação  dos  vidos,  E  naõ  ha  mayor  nem 
mais  eficaz,  rmora  de  tudo  ijio ,  que  o  ex-* 
emplopropojlo.  Lede  ^  e  aproveytaivoSy  prin^ 
cipalmente  aquelles ,  que  occupaS  o  tempo ^  ou 
mais  depreça  o  perdem ,  quando  cuydaÔ  dega-* 
nharcom  a  cegatafuleria  do  jogo  $  porque  ve" 
jaôy  quam perto  efiaÒ  de  cahirem  em  tao  exe* 
crandoí  ahfurdõSyde  que  DeoSyefuaSanHffima 
Mãy  OS  livrem:  e fiquem  def enganados  de  que  o 
jogo  5  os  mais  vidos  naÔ  produz^em  outro  frw 
to  3  que  o  de  perder  bens  ^  eo  thefouro  mai$ 
preciofoi  que  he  a  Alma^ 


líM 


li-J^lii^i^-^^aH^^ifeií^Wi 


II  441  Defengmo 

pI    I  A        Altiífima  Providencia  dé  Dcos  i  cujos  fc- 

/%      cretos  faô  impoífiveis  inve^igaríe    com 
/    %    pi"ofundiíIimos,einexcruraveis  juízos  to- 
j  ;     ,  "^     ,^  dos  dirigidos  a  fua  mayor  gloria ,  permi- 

,   '  tty  que  fejaò  offendidas ,  maltratadas ,  e  dcfprezadas 

as  ímages  dos  feus  Santos.  Porém  a  mcfma  Divina 
Providencia  nas  fuás  difpofíções  infinitamente  per- 
fèyta,  nunca  deyxou  em  eíquecimcnto  os  nomes  dé 
algum  Santo,  porquanto  naõ  obftantc  as  tyrannicas 
perfecuções  a  immortalidade  da  Gloria  a  Igreja  lhe 
augmenta.  Defta  forte  fuccedeu  no  anno  de  750.  a 
fua  Santifíiina  Máy  ,  huma  Milagroíiífima  Imagem, 
que  ao  prefente  íc  vçnera  na  Igreja  dos  Padres  Ago- 
ftinianos  na  Cidade,  e  Republica  de  Lucca  ;  contra 
quem  íc  atreveo  impiamente  hum  foldado  a  ultrajai- 
la,  o  que  com  mayor  gloria  da  mefma  Senhora  ,teiÁ 
redundado  ao  Gca  pelos  Povos  mayor  obfcquio. 

Em  húa  çafa  contigua  ás  antigas  muralhas  de 
\^  Lucca^  corpo  da  guardados  foldados,  que  guarda-- 

,  yaõ  hu  í  vizinha  porta  ,  chamada  de  Saõ  Fredianq, 
fc  acharão  dous  entre  os  mais,  arrebatados  no  jogor 
qilanto  de  fortuna diverfos,  outro  tanto  femclhan- 
tes  nos  coftumes ;  porque  hum  teve  as  pedras  na  ma5 
contra  a  Virgem,  o  outro  contra  o  companheyro: 
h^l  mais  que  pcrtinás  cubica.  O  mais  pérfido  dos  jo- 
gadores, de  cujo  falta  onomeá  Hiftoria ,  depois  de 
ter  perdido  quanto  tinha ,  por  ultimo  tirou  do  cor^ 
po  os  vertidos ,  atè  a  mcíma  camiía ,  aífim  nu  ,  e  fo- 
mente de  vergo  nhofo  atrevimento  cuberto  renovou 
com  o  adveríario  o  jogo.  Porem  zombando  delle  a 
malignidade  da  forte,  fazendo  pouco  cafo  do  grande 
reíio  que  na  alma  lhe  ficava ,  poz  também  efta  íobre 
a  mefa :  indignando-fe  contra  o  Redemptor ,  que  di- 
ante dos  olhos  tinha  cm  os  braços  deíua  Santiílima 
Máy  ,, pintada  na  parede  dcbayxode  hua  abobeda  da 

mef- 


Defogadbrés. 

iiicfma  câfa.  E  mudado  de  repente  ò  dívcrtimcnta  ào 
jogo  cm  hum  efpcdaculo  de  horror,  começou  (co- 
rno hecoOumedos  dcíefperados  jogadores )  a  injuriar 
com  execrandas  blasfémias  o  Salvador,  culpando-0 
Gomo  Authorda  fua  perda.  E  ainda  pouco  conten- 
te pegou  cm  huma  grande  pedra ,  atrevcndo-íe  com 
íacrilega  temeridade ,  a  atirar  ao  Menino.  Naô  quiza 
Virgem  Mãy ,  que  a  pedra  offendeíTe  o  Innocente  feu 
Filho,  donde  logo  damaô  direyta  cm  que  o  tinha  o 
trafpaíTou  à  efquerda ;  Reccbeo  a  Virgem  nefteh om- 
bro o  golpe  da  pedra  com  tanta  força  defcarrcgado, 
que  amolando  a  pintura,  logo  da  ferida  íahiraô  pingas 
de  fangnc,  que  correrão  atè  a  extremidade  dalma- 
gem.OfFendida  de  taô  grande  delido,  a  terra  fe  abrio 
ao  infeliz  foldado;  mas  naô  ficou  de  todo  logofob- 
mergido,  c  detido  naquella  horrenda  cova  por  algum 
tempo  meyo  engolido ,  para  efíeyto  de  que  tiraíTe  fru- 
to de  tantos,  que  com  as  lagrimas  nos  olhos  o  exhor- 
tavaó  a  queíe  arrependeíTe  de  taô  execrando  facrile- 
gío,ouparaqucfoffe perpetua teftemunha  delm  taô 
grande  milagre  ao  Povo,  que  afama  daquella  marai 
vilha  concorrec>,ouparamoflrarfeamiíericordia  da 
Virgem,  que  tanto  fez  para  o  reíiituirà  graça,e  à  bon- 
dade de  Deos ,  em  Iheefpcrar  a  penitencia. Naô  laben- 
do  porém  aproveytarfe  de  huma  faiíca  do  Divino 
Amor  em  taô  grande  vizinhança  do  fogo  eterno  ( in- 
feliz exemplo  de  dcfeíperaçaô  ;  foy  vivo  íepultado 
no  Inferno  ,  cuja  bocca  por  tantos  feculos  nunca  mais 
fe  fechou ,  ecom  horrivel  vós ,  ainda  hoje  fe  ouve  os 
horrores  de  perpetua  de  naçaô  do  impio.  Por  hum  Sa- 
cerdote foy  recolhido  o  milagroío  Sangue,  e  pofio  em 
bú  i  redoma  de  chriflal,  a  qual  íc  conferva  em  reliqiia- 
rio  de  prata  dourada  fobre  o  altar  da  nieíma  Virgem. 
Algumas  pingas  de  Sangue  ainda  íe  vem  noJugarda 
ferida,  e  em  outras  partes  da  Imagem  ,  taô  fermoías  ,e 

vivas, 


1    i 


1 '/ 


De/engano 

vivas  como  fe  foíTcm  fahidas  dcfrefco.  Defte  prodi* 
gíofo  fangue  íe  faz  mençaò  nos  antigos  inventários 
dasPveliqiiiâsda  dita  Igreja  dcbayxo  do  titulo  de  S. 
Salvador  in  Muro,  no  anno  de  1402.  e  14:1 7.  E  fe  nu- 
mera entre  âs  mais  Relíquias  na  vifita  da  mefma  ígrc^ 
ija,  feyta  o  dia  18.  de  Março  de  1509.  fendo  Biípode 
Lucca  SiftoGara  da  Rovore  Cardeal ,  e  Sobrinho  de 
Júlio  XI.  com  as  feguintes  declarações. 

Item  ampullam  fanguinis  effuji  dtpercujjlone 

lapidis  ex^Míura  B.  Vtrgtnis  S.  Salvatorís  in 

Muro, 

E  na  viííta  de  Monfenhor  João  Bautifta  Cafielli  Biípo 

de  Rimini ,  e  Viíitador  Apoftolico  da  Cidade,  e  Dic- 

cefis  de  Lucca  o  dia  25.  de  Julho  de  1575. 

Ví/itavít  Altare  Cappellanta  B.  Virginis  à 
miraculis  quorum  inittumfuit.quoâ  unuspro 
jecit  lapidem  in  imaginem  B.  Maria  ibidem 
pi^am-tBxqua  exivit  Sanguinis,  qm  ferva- 
tur  in  Sacnfiia  diãa  Eccleji£ ,  &ftattm  a- 
ftrta  eft  terra,  &  deglutivit  eum ,  &  vide- 
tur  locus  apertus  cum  clatro  férreo  defuper , 
&  hoc  excedit  memoriam  hominum. 
Efteeftupendo  Milagre  íe  ie  brevemente  recupila- 
do  na  infcripçaõ  que  eftá  aos  pês  da  Imagem  da  Vir- 
gem impreíTa  em  Romi,  edeftribuida  em  a  occafíaõ 
dacjroiçaõ  d.í  Senhora,  e  hc  a  fes^uintc. 

lianc  Deipara  imaginem  in  Ecclefia  D.  Au- 
guíilm  Luc£  cultam.k  predito  aleatoreolim 
faxo  peraíffam  ,  mira  effufione fanguínis  tn- 
fignem  :  Elio  a  dexterain  lavam  translato 
mirabilem:  Ímpio ^  dehifcente  terra ,  tn  Infer- 
no Jepulto  terribilem  JlkJtrilJJmi  >  ac  Revê- 
rendiffimi  Sacro/anã  a  f^attcana  Bafilica 
Canonicis  trtplex  prodigium  venerati .  au^ 
rea  corona  redimir 6  curarunt  anno  falutis 
M.DC.LXXXX,  Faz 


De^ogúdoYes.     "■"''■  '44S 

Faz  menção dcfta  offerta  Hipólito  Maraccinotomo 
Frincipas  Mariani  cap.  i .  §.  1 6.  c  do  folemne  offercci- 
mento  das  duas  Coroas  de  ouro  feyto  pelo  roefmo  Ca- 
bido de  Saò  Pedro  á  Virgem  do  Sexo  de  Lucca  ,  e  ou- 
tros muytos  Authores,  que  defíe  caio  efcreveraõ, 
de  que  relato  alguns,  como  íaõ  Cefare  Frânciotti  delle 
Miracolofe  Imagini  ác  Lucca  y  Joatmes  Bonijachís 
Bagatta  aâmir anda  or bis  Chriftiam  tom.  i.  lib.  2. 
câp.5.  n.  i2.etom.  2.1ib.  5.  cap.  11.  n.  9.  ex  Tetra 
Santa  de Mtraculisperpet.  num.  5.  cap.  23.  p^g.  236. 
Guhelmo  Giimpemberg.yitlas  Marian.  Cenr.  2.1mag, 
278.  Vaniele  de  Nohih  Memorie  M.  S.  delle  Chieíe 
di  S.  AgoíVmo.  Aloyfitis  Juglaris.  Eío^.  p.  2.  Francif* 
cus  Mana  Ftorenttnt  mElog.  ad  SacelBV.a  Saxo.Lui' 
gíTorrelli  Secoli  Auguftinianitom.  5.  annodeChriíio 
ili^.DonatoDonatt  Notitie  delia  Madonna  dei  SaíTo. 
António  CHa/ini  Scuola  delCriíViano  cap.  i^.Mon- 
fegmorjo:  BaptíftadeDiecèYdço^w^  deBvugnatola 
Madona  dei  Sã^oJmbro/io  LandncdOYig.àcí  Tempr 
dedícato  alia  Vergine  íq  Roma  giornata<]uarta. 

Eaqv>i  naòíem  particular  rcílexáõie  obfcrva,qiie 
a  B. Virgem  appareceo  na  Milagrofa  pintura  c^}o  íc  , 
diíTe  aíTíma  em  o  anno  de  750.  quando  o  culto^das  Sa- 
cras Imagens  era  impiamente  impugnado  peloEmpe- 
rador  Leão  Izamico  tendo  no  anno  de  J26.  comri- 
guroío  Decreto  ordenado,  que  de  todas  as  partes  fe 
tiraíTem  as  Imagens  dos  Santos ,  e  particularmente  da 
Máy  de  Dcos,  fazcndo-as:  queymar  no  n.eyo  da  Cida- 
de ,  movendo  huma  crueUiíIima  guerra  aos  íeus  dcf- 
feníores  ,  a  qual  períeguiçaô  continuarão  os  íilhos 
até  o  anno  de  786.  c  depois  de  breve  tregoa  Leaó 
V.  chamado  o  Arménio  ,  perfcguidor  tambcm  do  no- 
me Chrillaô  a  renovou  no  anno  de  8ii.  d^que  of- 
fendida  a  Rainha  do  Ceo ,  por  'ateflaçaô  de  João  Rhff 
ao  Ex€iíip!o,59.  íc  queyxou  co.n  a  mãj  ào  mefmo 

Era- 


'''I 


Defengmo  de  Jugadoveu 

Emperador  cm  huma  horrível  vizaô,  e  porque  rc» 
prehendido  fc  naô  emendou,  depois  de  ter  queyma» 
do  em  Conftantinopla  os  Sagrados^ctratos  ,  naô  fó 
-rip  o  caftigo  nos  íubditos ,  que  em  numero  de  trin- 
ta mil  miferavelmente  morrerão  de  peíie  ,  mas  tam- 
bém cUe  morto  pelos  íeus  perdeo  com  a  vida  ,  o 
Império.  Pmh  Diac,  deGeftps  Reman,  lib.  iS.praj^e 
finem. 


FINÍS  LAUS  DEO. 


:   i 


'/ 


INDI- 


índice 

7)as  coufas  mais  notareis. 

ADulterio.  Todas  as  Naçoens  do  Mundo  ainda 
barbaras  daõ  pena  de  morte  aos  Adúlteros.  Dif- 
curí0  9.fol.  255.  Os  Profetas  o  chamaô  peccado 
grande,  máximo  ,  c  profundo  ,  muyto  mais  de- 
pois que  o  Matrimonio  he  Sacramento,  foi,  256. 
A  caía  aonde  reyna  o  adultério,  he  hum  Inferno 
anticipado.  foi.  254. 

Alexandre  Magno.  Ouvindo  a  Timotheo  celebre 
Citharedo ,  tocar  huma  batalha ,  enfureceo-fe  co- 
mo valente  j  mas  tocando  logo  a  retirada  ,  e  de- 
pois hum  deíeantc  maviofo  ,  cahio  defmayado 
como  hum  amante.  Diíc.  3.  foi.  58.  Conírdcran- 
do  o  credito  perdido  ,  por  ter  morto  a  Clyro, 
feu  intimo  confidente  ,pediomuytas  vezes  a  mef- 
maarma  paramataraiimeimo.Diic.13.fol.  578. 

Alexandre  SeveroEmperador.Comto  tanto  em  híi  jan- 
tar,que  depois  de  duas  horas  morreo.Diíc.f.foLi  16, 

Armada,  A  grande  Armada  de  Felippe  Prudente,  per- 
dida na  eícuridaõ  da  noytCjpor  cautela  de  evitar 
hús  fogos  de  folguedo  ,  que  faziaò  os  Olandezes. 
DiÍGurfo  2.  foi.  53. 

S.  Arfenio.  Trocou  os  cbeyros  íuaves  do  feculo ,  com 
hu  fedor  perpetuo  na  í\}a  cclla.  Diíc.  4.  foi .  95 , 

^i;^r^5i^.  He  hum  vicio,  que  abrange  a  todos.  Difc. 
8.  foi.  2  o /.Também  as  mulheres  cahcm  neík  vicioj 
c  ainda  os  Ecclefíaííico?. foi. 20S.  Todos  os  mais  ví- 
cios, ou  canfaô ,  ou  aborrecem  ,  ou  acabaõ  por  ve- 
lhos Sô,  o  Avarento ,  quanto  he  mais  velho  ,  tanto 
na  cobiça  he  mais  mo§o,e  robuíio.fol.21 7.He  mo- 
ral- 


índice 
ralmentc  imponfivel ,  que  o  Avarento  íe  íalvcDiíc, 
8.fblií04.pertot. 


B 


Aiazetes  Emperador  dos  Turcos.  Feytoi:ativo  do 
.  -'lande  Támborlaô  dos  Tártaros,  prefo  emhua 
gayola  de  ferro ,  corria  toda  a  Afia  eivando  fempre 
nomefmo  lug.^'.  Difc.  i.  foi.  12.  aíTim  o  condena- 
do quando  Deos  permitte  que  do  Inferno  apareça 
nefte  Mundo,  traz  comligo  o  meímo  aperto  da  pn- 
laõ,  e  tormento,  foi.  14.  ^    n        r 

Baronio  Cardeal  Grande  vitoria  que  teve  de  fi  meí- 
mo. Difc.  4.  foi.  87.  .    , 

Bruxas.  Os  danos  grandes,  que  fazem  ao  género  hu- 
manocomosfeusmaleíidos.  Difcurí.  10.  foi.  328. 
Muito  menor  mal  fazem  eftas  Bruxas  deteRaveis, 
do  que  fazem  aquelles ,  que  faô  cauía ,  ou  occaíiao 
de  íe  perder  hÚ3  Alma,  que  induzmdo-a  apeccar 
vay  para  o  Inferno,  foi .  3  25 . 


II 


c 


Atíveiro.  Quantos  Senhores  de  engenho ,  lavra- 
^  dores ,  e  Feytores  efiaò  no  Inferno  por  uiarem 
tvranniascomos  eícravos.  Difcurfo  10.  foi.  297. 
Otiejuizo  terrivel  íefarà  delles  ,e  que  tormentos 
cruéis  padecerão ,  por  naó  lhes  darem  o  neceílai  10, 
e  obr  ií^alos  a  trabalhai-em  para  fi,  no  dia  de  dela^- 
ço,  que  he o  Domingo,  foi.  298.^30  bafl^,tT30  uíar 
tyrannias,e  crueldades  com  os  cativos,  ruas  he  tam- 


Da^  cõufasma^notaveu.  449 

bem  ncceíTario  naõ  maltratalos  de  palavras  com 
injurias ,  c  nomes  execrandos,  foi.  3ÒJ  X)  prinieiro 
defcn^aao,  e  mayor  tormento ,  que  teve  o  Rico  A- 
varento  quando  entrou  no  Inferno  foy  ver  a  Laza- 
ro no  cevo  de  Abrahaó.  foi.  501.  AíTim  amayOK 
confuíaó ,  c  pena  dos  Senhores  que  maltratarão  os 
feuseícravos,ferà  no  dia  do  Juízo  velos  á  maòdi- 
reytajárerplandccentes  entre  os  Berna venturado», 

foi.  304.  /    j 

Cárcere  do  Inferno.  Uú^  horrível ,  e  pcnoío  dos  cár- 
ceres de  Dionyfio  fley  de  Siracuía,  de  Galeaci* 
.    Viíconti  Duque  de  Milaó ,  de  Ezelino  Tyranno  de 
,    Pádua, &C.DÍÍC.  i. foi. 5.  4.  Vide  Inferno. 
Coníaenaa.  He  hu  didame  da  razaô ,  hum  juizo  pra- 
tico  pormeyo  do  qual  o  homem  diícerne  o  bem 
do  mal,  c  conhece,  o  que  deve  feguir,ou  fugir.Diíc. 
12  foi  276.  Bafta  fer  homem  racionai  para  fentir 
cm  fi  complacência  em  obrando  bem ,  e  triae2a,G 
.   mcdo,em  tendo  obrado  mal.  fol.3 75. 


D 


DEos.Tcm  pofto  o  Ceo  no  alto,c  o  Inferno  eícon- 
dido  debayxo  da  terra ,  para  que  os  homesoa- 
mem  ,  e  o  fir vaõ ,  naõ  como  efcravos ,  por  medo  do 
caftioo,mas  como  alhos,  e  herdeyros  do  Paraiío. 
Difc  I.  foi.  ^.Sendobom.c  miíericordioío.  ne  tam- 
bém no  mefmo  tempo jufto,e  vingativo.  Difc.  ;• 

foi.  i74.efeq.  .      ,      , 

Vemonios  O  mayor  defvelo  dos  Demónios  he  dar  o 

fesuroaospeecadorescoma  preíumpçao  da  bon- 
,   dade,e  mifericordia  Divina  íer  infinita  para  que 

continuem  a  fazer  mayores  peccados.Difc.7.t.  1 69. 
J)efef$eraçao,  He  humpeccado  enormiíTimo ,  que  Qt- 


\' 


'  / 


li 


45^  ^ 

fende  os  dous  attributos  da  oronipotcttcía ,  c  mlfe^ 
ricordia Divina, parecendo  Ihe,queDeos  naõpoJ 
dera ,  ou naô quererá  perdoarlhe  tantos   e  taô  gra 
yespeccados.Diía  13.  foL  592.  Opeccador,que 
íedeieípera, rende impoíTivei  aíua  íalvacaõ.poís 

i    Gllc  meímo  dà  anticipadamcnte  contra  fia  fenten- 
<  ça  da  í ua  condenação,  ibi . 

0  Diogo  Oforia,  Veado-íe  na  eíburidáõ  de  hum  cala^ 
bouço,fendo  de  25. annos ,  amanheceo  todo  branco 
como  hum  velhodccrepito.Difc.2.fol.2é 

D-imyfioRey  de  Skilta.  Mandou  fabricar  li  um*  ouvido 

;  de  pedra  mármore  na  abobada  da  prifaõque  cík- 
va  debaixo  do  íeu  paço,  para  ouvir  asqueyxas  dos 

/:|)rcíos.Diíc.3.£ol.  73.. 


EiVj^^^.Fallandoa  Sagrada  Efcritura  do  foso  do 
iQterno  íempre  falia  no  enxofre,  e  porque'  Effey- 
tos,  e  qualidades  do  enxofre ,  e  combinação  com  o 
fogo  do  inferno.  Difc.  4,  foi.  loo.  c  íeq. 

Btermdade  das  penas  do  inferno  entre  as  coufas  da  fé, 
he  a  mais  diíHcukoÍ3acrer,e  porque.  Difcurf.  Ul- 
timo foi.  407.  A  tê  os  Gentios  tiveraó  noticia  del- 
ia,  a  temiaõ ,  e  obravaõ  bem ,  por  medo  delia.  foi. 
4Í5.  Engano  de  Origenes  fobre  a  eternidade  das 
penas.  foi.  408.  O  Demónio ,  e  os  Hereges  fazem  o 
poífivcl  para  diminuir  as  penas  do  Inferno.  Ibi:Sô 
a  eternidade  do  Inferno,,  pódc  refrear  o  homem  do 
peccado.  foi.  421.  De  que  modo  o  condenado  nO 
Inferno  fofFre  a  cada  momento ,  a  eternidade  das 

^  penas  toda  junta; foi.  42^.  Os  primitivos  Ghrifláos, 
íoxuydavaõna  eternidade,  e  por  ifto  íalvavaõ-fe 
todos.  foi.  435.  Quem  naô  pôdccuydai'  no  InfcrV 

no. 


"S 


Das  côfifas  mais  notáveis.        4JI 

r :  130 ,  c  na  eternidade ,  nao  íc  deícípere,  mas  recorra 
.    a  nóíTa  Senhora  ,.com  todas  as  vcrâs,  que  o  alumea- 
rá,cíalvará.  foi.  4^7-       ,       ,    „    .  . 

ExempUs.  Hum  Doutor  celebre  de  Paris  tornou  do 
Inferno,  a  dizer  o  que  lá  havia  acerca  deíaber  as 
íciencias.  Difc.  i.  foi.  2Ç.  De  hum  moço  amante 
dos  bayles ,  e  cantigas  dcshoncftas.  Difc.  5.  toj.  76. 
Do  Emperador  Otho  terceyro ,  que  faltando  ao 
.     propofico  dedeyxar  a  hua  Dama,  a  mefma  porca- 
ÍV120  de  Dcos  lhe  tirou  a  vida.Difc.4,fol.99.Uc  trcs 
Sacerdotes  inclinados  á  crápula,  e  vicio  da  gula. 
Difc.  5,  foi.  nó.  Dedous  Monges  que  morrerão 
afobados  do  comer  fartando -íe  em  hua  ceya.DifCc 
c  foi  125.  De  hum  moço  luxurioío,  que  cíhndo 
,    lá  em  graça  para  fe  querer  defpedir  na  hora  da  mor- 
'    te  da  Amiga  foy  ao  Inferno.  Diícurfo  6.  foi.  157, 
De  hum  moço  que  vendeo  a  fua  Alma  ao  Demo- 
.,  mo,com  pado  de  poder  refgatar  com  avifalo  três 
dias  antes  de  morrer;  e  oavifou.D.ílc.  7.  tol  i87- 
De  Luis  X.  Rey  de  França  que  morrco ,  como  vi. 
veo.  Diícuiío  7.  foi.  196.  De  hum  Sacerdote  que 
:     por  ambição  de  mais  fa^^cnda  morreo  peíTimamen- 
te,e  fcm  dizer  JESUS.  Diíc.  7.  foi.  212.  De  hum 
Ladnõ ,  que  furtou  hum  boy  a  hum  Moítcy ro.tol. 
225.  De  hum  velho  Avarento  quenaô  queria  rei- 
^     tituir ,  e  ir  ao  híferno  para  naò  dey xar  os  filhos  po- 
bres foi.  232.  DehumConfeíTor ,  e  hum  confcila- 
do  /levados  ambos  de  dous,  por  dous  Demónios 
-    em  corpo,  c  Alma  pira  o  Inferno,  foi.  2  35'^- ^^^^* 
^     famoía  Concubina ,  que  promctteodo  a  Deos  íe  lhe 
dava  ávida ,  de  íer  hua  Magdakna  penitentcj  avi- 
íada  para  morrer ,  proteftou  que  morria  com  dar  a 
íua  Alma  ao  Demónio,  e  logo  reípirou.  foi.  249.De 
Ff  1  ^^^^ 


.1 

li!  II' 


'1 


hum  GavaIl€yro,quc  encontrando-fc nã  ponte  da 
Cidade  de  Píivia  ,  com  huma  Dama  ,  para  lhe  dar 
gofío  fe  precipitou  elle  ,  com  o  cavallo  no  Rio. 
foi.  262.  De  hum  Meço, que  fendo  condenado  á 
morte ,  por  caufa  da  Amiga  ,  indo  para  a  forca 
vendo-a  na  janela ,  deu  hum  arranco  para  íe  irdef- 
pedir  delia.  foi.  266.  De  Santa  Liduioa,  que^con- 
vcrtco ,  hum  grande  pcccador,  com  ordenarlhe.que 
dormiíTe  na  fua  cama  molle ,  huma  noyte  fem  íe  vi- 
rar. Difc.  11.  foi.  3 14. 


FEdmco  terceiro  Emperador.  Seu  dito  memoravcí^ 
depois  de  ter  perdido  tudo  em  duas  batalhas.Dif- 
curfo  13.  foh4oi. 

feder.  O  fedor  do  Inferno  excede  todos  os  fedores  da 
Mundo  juntos.  Difc.4.fol.  1 86. 

fpge.  Porque  efcoihido  por  Deos ,  para  cafíigo  dos 

condenados.  Difc.  i.  foi.  15.  O  fogo  do  Inferno, 

he  muy  diííercntc  do  noíTo  ,  e  o  rico  avarento,  naõ 

íe  queyxava  do  fogo, mas  de  tal  cafía  de  fogo.  foi. 

16.  contem  cm  íi  todo  o  género  de  tormentos.  foL 

52.  Chama  Chrifío  ao  fogo  do  Inferno  fal ,  e  como 

tema  virtude,  c  propriedades  do  fal.  foi.  13.  Deos 

dará  tal  virtude  a  eíle  fogo ,  que  íempre  queymará» 

c  nunca  coníumirá.  Diíc.  10.  foi.  296.  Depois  de 

cem  mil  annos  hum  condenado  íentirà  as  dores  taã 

vivas,  c agudas,  como  na  primeyra  hora  queen^ 

trou  no  Inferno ,  reparando  fcmpre ,  quanto  quey- 

2na>ccoflíbmc.Ibi. 


Gotta 


Das  cottfas  mak  notáveis- 


4JJ 


GOlta.  A  doença  da^iotta  até  agora  naô  tevc  xc^ 
medio,|)pxqac  he  huagotta  das  dores  do  Infcr* 
nojpara  que  nos  lembremos  deIias.Difc.11.fol.520. 
AGromnga  emOlanda  tem  no  torriaô  da  Gidadella  íeis 
colubrinas  fabricadas   pelo  artífice  com  a  efcala 
da  Solfa  Ur ,  re  ,  mi ,  fa ,  íol ,  iá ,  o  eftrondo  delias 
era  íuave ,  o  eftrago  tcrrivei ,  com  fua  aplicação. 
Difc.  3.fol.  59. 
.Gnglierme  Duque  de  Mantua.  Mandou  fabricar  huma 
lala  com  abobeda  com  tal  architcdura  ,  que  ,  o  que 
íe  dizia  íecretamente  em  hum  canto  fe  ouvia  no 
outro.Diíc.  3.fol.  74. 
GuU.  Os  goiofos  padecerão  grandes  tormentos  no  In- 
:    ferno.  Difc.  5.  foi.  1 1 3.  Saõ  freguezes  do  Diabo, 
que  he  o  feu  Pároco  ,  e  os  fepult  i  no  Inferno.  1 1 8. 
Goloíos,e  Bebedores  faõ  incorregiveis.  foi.  121, 
Preíos  ao  laço  pela  garganta  como  as  Avcs.fol.  1 24. 
Ordinariamente  vivem  pouco,  e  Deos  os  caftiga 
com  morte  repentina.  125.6  feguinte. 


Enriqm  Conde  deBergkUonx  porque  a  Archi- 
ji_  duqueza  de  Auftria  D.  ífabeldandolhc  audiên- 
cia, com  parte  do  vèo  que  tinha  na  cabeça  cobno  o 
roáo.  Difc.  12.  foi.  341.  n-       '  ^ 

Bolocaup,  Os  condenados  haô  de  íer  as  vidimas  de 
Holocaufto,que  haô  de  ardcr,e  íer  eternamente  im- 

raoladas  á  iuftiça  de  Deos.  Difc.  1.  foL  i§. 

Ff  i  7'J^^^^ 


'7' 


u 


I 


Ejum  O  jejum  confere  muito  para  a  faude.  Difc.  f ; 
foi.  128.  É  os  que  mais  jejuaô  vivem  mais.  foi. 

igo.  Dcosde  nenhúa  couíahe  taõ  zeloío  como 
denaô  perdoar  aosnoíTos  inimigos.  Difc.  loAoU 
304.  O  mayor  inimigo  que  tem  Deos ,  bc  o  enga- 

V  noío  Feceavi ,  em  que  íe  fíaõ  os  peccadorcs  na  hora 
morte.  Difc.  7.  foi.  191. 

ínfeíma.  Que  haja  Inferno ,  he  verdade  taõ  certa  ,  cc*-' 
mohe  c&rto  que  ha  Dcos.  Diíc.  i.fol.  5.  A  largura, 
c  profundidade  do  Inferno  quanta  feja,  e  íendo  taô 
limitada  como  caberão  tantos  milhões  de  corpos 
iuelle.  foL  7. 0  cárcere  do  Inferno  he  hum  iDgarj 
aonde  o  condenada,  nunca» gozará  de  bem  algum  , 
c  padecera  para  íempre  todos  os  males.  foi.  25 . 

Jogo,  Cazo  execrando  de  hum  jogador ,  que  atirando 
com  hu3  pedra  a  híí a  imagem  de  noíFa  Senhora,, fo^ 
íovcr tido  no  Inferno,  pag.  44.  i , 


JL# 


LAceâemonios.  Sendo  tao  poucos  com  que  eí! ratai 
gema  vencerão  os  Sibaritas.  Difc.  3.  foi.  68. 
Laços.Ol^o  do  Dcmonto  com  que  mais  aperta  ©s 
peccadores,  he  aquelle  de  naô  reftituir  a  fazenda 
alheya.  foi.  229, 
Jj&grimãs.  Que  fahem  dos  olhos  y^z  hum  coração  ar* 
repcndido  faõ  bum  novo  bautifmo,  Diíc.  2.  foi.  ^ ?. 


Das  coufas  inm  notavek-  v4  >  í 

Lrfmàco  ^^úáoKty  da  Turquia,  apertado  mais  da 
ítác ,  que  do  inimigo,  entregou  a  fi,  e  ao  leu  Reyno 
por  hum  púcaro  de  agoa.  Diíc.  1 2.  foi.  255- 

Lutero.  Sò  depois  de  dezafete  annos  dezemparado  de 
Deos.perdco  o  remqrío  da  coníciencia.  Diíc.  13. 

foi.  380.  ...        _ 

Luxaria.  NaÕ  ha  peccado ,  que  mais  irrite  a  Ucos  ,.e 
ocaaiguecom  mayor  rigor,  como  he  a  Luxuria, 
foi.  270.  Naô  ha  peccado  que  mais  cegue  o  enten- 
dimento como  a  Luxuria.  Diíc.  9.  foi.  242.  Faz 
perder  o  conhecimento  de  Deos,  do  feu  peccado,  ac 
fí  mefmo,  e  do  que  íomos.  foi.  244.  e  feq  Hum  lu- 
xuriofo ,  he  o  mefmo ,  que  hum  endemoninhado. 
£01.252, 


M 


Miguel  PaMogoIIL  Emperador  do  Oriente,  ef- 
tando  bêbado,  Ihefoy  tirado  olmpcnoy  ea 
vida.  Difc.  5.  foi.  126. 

Morte  Differença ,  que  vay  ,  entre  húa  bella  morte ,  c' 
hua  boa  morte. Difc.  7.  foi.  193. 

iMnJher  Evangélica.  De  dez  drachmas  perdeo  huma: 
fecha  as  janelas ,  e  portas  ,  e  acende  a  candea ,  e  lo- 
go  aacha,t>iíc,  13.  fol.403,.  Morahzafe.ibi.^ 

iV/íz/í-^.Defcripçaõdamuíica.foL  55.  A  fua  origem 
Divina,  foi.  '55.  Canonizada  por  Deos  no  leu- 
Templo  com  quatro  mil  muíicGS ,  c  por  S.  Gregó- 
rio Magno.  foi.  56.  Santo  Agoftinho  diz  que  o  uio 
bom  da  mufica  he  íinal  de  predcfíinaçaò.  foi.  5  7.  O^ 
tífomao,  delia  faz  oshomês  precitos  ,e  atè  de  ra- 
eioaaes ,, brutos ,  e  idolatras.  Diíc.  3.  foi»  Gi,, Comi 

aS' 


'''4S^^ 


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ãg  mudanças  da  mufica  nas  Qdâdes  m^udaô  fe  osçõ- 
ltumcs.Dilc.3.  foi.  67. 


Abtico.  A  eílatua  de  Mabueo ,  hc  fígura  dos  Se- 
nhores de  Engenho,  e  de  todos  aqiielics  que 

uíaõ  ryrannias,e  crueldades  cora  os  feus  efe  ia  vos. 

Dife.  10.  foi.  306. 
jt^eroEmperador,  Depois  que  matou  a  íuaMãy  Agri- 

pina  ,  tugia  de  paíTar  por  onde  eftava  o  feu  fepul- 
-chro, mudava  palácio,  fthia  de  Roma,  e  naõ  fe 

dando  por  íeguro  cm  parte  alguma  queria  matar- 

fe.  Diíc.  13.  foi.  378. 
Ntceforo.  Por  pedir  pcrda5  a  Sapricio ,  que  depois  de 

muytos  tormentos  eftava  para  fer   degolado  pela 

fé  ,  f»cou  Martyr.  E  Sapricio ,  que  naõ  lhe  quiz 

perdoar  ,  renunciou  logo  a  f ê  ,  e  íicou  Apofíata. 

foi.  30 5:. 


o 


OCcafído.  S,  Martioiano  o  que  fez  para  fugir  da 
occafiió  ,  e  como  Deos  lhe  acudio  com  mila- 
gres. Difc  6,  foi.  147. 
0/»^í?í  Dcícripçâõ  dos  olhos, e  feus  elfeytos.  Difc.  2. 
foi.  27.  Tem  dous  officios  ,  os  outros  fentidos 
humfó.  Diíc.  2.  foi.  27.  Pelos  olhos  entra  ordi- 
nariamente o  peccado.  Affim  delles ,  deve  íshír 
comas  lagrimas  o  remédio,  foi.  29.  Os  olhos  tem 
liga  íecrcta  com  o  coração.  Difc.  2.  foi.  42.  Saó 
exploradores,  e  cfpias  com  as  quaes  ò  S.  Job  queria 

trc- 


Dãs  cõufai  mais  notáveis.  \%  7 

trcguas.  foi.  4^.  Os  olhos  querem  ver  para  fer^j» 
viftos.  Por  ifto  a  Magdalcna^por  naô  ver  fahio  ^^ 
Marcciha  ,  e  por  naõ  íer  vifta  buícou  huma  gruta 
nos  Alpes.  foi.  50. 
Ovelhas.  Como  pôde  fer,  que  as  ovelhas,  que  faô  íym- 
boio  dos  predeftinados ,  fejaõ  também  fy  mbolo  dos 
precitos.  Difc.  10.  foi.  300. 


p 


PEccador.  Naô  fó  deve  o  peccador  pedir  perdaõ  â 
Deos  dos  peccados  próprios ,  mas  também  dos 
alheyos,  e  porque.  Diíc.  6.  foi.  15  5. 

Por  depravado  que  íeja  , quanto  mais  fe  immerge  nos 
feus  vicios ,  tanto  mais  buíca  nelles  ( íebcm  erra- 
damente )  ao  feu  Deos.  Difc.  12.  foi.  357. 

i^ena  de  dano,  He  huma  pena  infinita,  como  dizem 
osTheologoSjpois,  fc  refere  a  ordem  Divina  em 
qualidade  de  fuplicío,  Difc.  12.  foi.  368.  He  o  In- 
ferno, do  meímo  Inferno  5  pois  nellaconíiíieeíTen- 
ciâlmcnte  a  condenação  de  hum  precito,  foi.  i(i<^' 

penitencia.  Saõ  Pedro  d'Al cantara  foy  taõ  rigoroío ,  e 
penitente  que  tinha  feyto  paclocom  o  íeu  corpo 
de  naô  lhe  dar  goíto  algum  nefta  vida.  Diíc.  6, 
foi.  164. 

Pitágoras.  Com  a  íua  efcola  dizem  que  os  cheyros  ba- 
ílaó  para  a  nutrição,  e  fuílento  da  vida.  Diícurí  .4» 
£01.98. 

Prefumfçao.  h  Preíumpcaõ  da  bondade,  e  miícri- 
cordia  Divina  precipitou  Lúcifer,  c  es  mais  De- 
mónios no  Inferno.  Diíc.  7.  fo).  167.  Do  mefmo 
engano  ufa  o  Demónio  com  noíco.  Diíc.  7.  pef 
totum» 

/  Memorfi 


I 


4f8  Inâm 

R 

REmorfo  da  Conj ciência.  Até  os  Gentios  çhaimô 
flagcilo  oculto,  humapena  a  mais  cruel ,  e  dcf- 
elperada  de  fodas.  Difc.  13.  foi.  i^jy,  O  Pcccador, 
que  em  peccando  naô  fente  o  rcmorfo  da  coníci* 
encia ,  hc  o  final  mais  certo ,  que  já  hc  precico.  foi. 
380. 

Rejittuiçao,  Abfolutamente  neceffaria  para  íalvarfe. 

■^    Difc.  8. foi.  222.  Reter  o  alheyo  contra  a  vontade 

^  da  dono,  he  o  meímo  peccado,  que  furtar,  foi. 
226.  Manda  Dcos  na  Ley  velha,  que  por  huma 
ovelha  furtada  fe  reftituaõ  quatro,  c  porque , foi. 
227. 

Rfifario.  S.  Domingos  com  o  feu  Rofario  livrou  a 
muitos  do  peccado  de  adultério.  Difc.  9.  foi.  259. 

s 

SJharitas.  Povos  dados  às  delicias  por  ter  cnítna- 
do  a  biilar  os  cavallos  fícaô  na  batalha  derrota- 
dos, e  perdidos.  Difc.  5.  fo).  68. 
Solja  Os  elementos  da  íolfa  Uc ,  re ,  mi ,  fá ,  foi ,  lá, 
iníiituido  pelo  Avtificc  nas  féis  celebres  colubrinas 
da  Cid-ide  dsGroningí?.  DiÍG.  3.  foL  59 
Sunamite.  Faz  os  oííicios  de  Soldado  ,  c  de  Mufíco. 
Contempla, c peleja.  Diíc.  3. foi.  66. 


^aêío 


Da$  cmfai  mis  notáveis,        4}  9 

T 

TJão.  Entre  os  mais  fcntidos  hc  o  mais  pcrní- 
cioío.  Diíc.  6,  foLi33.  Hum  cego  luxurioío 
conhecia  as  idades  pelo  taiíto.  Diíc  6.  foi.  140.  c 
dizia  íer  falfo  o  ditado  PoTtuguez.  O  que  os  olhos 
naõ  vem ,  coração  naõ  deíeja.  Ibid.  Remédios  pa- 
ra fe  livrar  do  pcrigoío  vicio  do  tado,  foi.  142. 
Judith  ,  e  Jofeph  para  íe  livrar  do  perigo  do  ta<ílo, 
fugirão  também  do  conta-lo  das  roupas.  Diíc.  6. 
foi.  i43.&feq. 
Tentação,  Naô  hapeyor  tentação  doE>cmnnio,que 
quando  fe  transfigura  em  Anjo  de  luz,  incita  o 
peccador  a  algumas  dévações,  ou  penitencias  ex- 
teriores  para  cobrar  boa  fama ,  e  aíTim  continue 
com  mayor  confiança  a  peccar ,  c  vá  à  rédea  folta 
para  o  Inferno.  Diící.  7.fol.  177.  ,  . 

Jheodorico  Rcy,  c  terror  de  Itália  fez  cortar  injulta- 
mente  a  Simaco  a  cabeça ,  c  logo  o  remorfo  da  con- 
fciencia  foy  tal ,  que  pondolhe  na  mefa  a  cabeça  de 
hum  grande  peixe,  reprefentou-íelhe ,  que  era  a 
cabeça  deSimaco,  que  vinha  tomar  vingança  ,  e 
morreo.  Difc.  13.fol.379. 

Tibério,  Emperador.  Aos  reos,  que  eftavaô  na  lua 
graça,  dava  logo  a  morte,  aos  que  tratava  como 
inimigos  a  prizaô  perpetua.  Difc.  i.  foi.  2. 

V 

VEr.  Vio  huma  vez  o  Patriarcha  S.  FranciTco  o 
Demónio,  econfeíTou,  que  era  impoíTivel  km 
auxilio  ef pecial  de  Dcos  olhar  para  aqueiic  moní- 

tro. 


^éo  Inãex 

tro,  c  naô  morrer  logo,  foi.  40.  Santa  Catharina 
de  Sena,  que  ovio  por  Imm  inílantc,  pedia  antes 
caminhar  por  hum  caminho  liftrado  ds  fogo ,  que 
tal  vifta  ,  foi.  40.. 

Ferme  da  confciencia.  Será  o  Cenfor  mais  íevero ,  o 
Juiz  maisterrive!,  o  algoz  mais  criíel,  que  ator- 
mentará 03  precitos  no  Inferno.  Diíc.  13.  foi.  386. 
He  mayor  tormento,  que  a  pena  do  íenío ,  porque 
efte  vem  de  hum  agente  exterior ,  que  he  o  fogo , 
fôl,  387.  He  também  mayor  tormento ,  quê  a  pena 
do  dano.  Ibid. 

z 

Em ,  Emperador  do  Oriente ,  perdeo  o  império, 
c  â  vida  pelo  vicio  da  bebedice.  Dirc.5.  foi. 1 26. 


F  I  M. 


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