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Full text of "Dom João VI no Brazil, 1808-1821 Volume 2"

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OLIVEIRA  LIMA 

,  DA   ACADEMIA  BRAZILEIRA 


DOM  JOÃO  M 


NO  HllAZJL 


1808  -  1821 


SEGUNDO   VOLUME 


li  IO    DK    .lANKiKO 
Typ.  do  .1  ornai  dn  Com »K'/-í-íf>.  de  Rodrigues  &  C. 

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índice  dos  capítulos 


XV 

XVI 

XV[I 

XVIIÍ 

XIX 
XX 

xxr 

XXII 

XXIII 

XXIV 

XXV 

XXVI 

XXVI  í 

XXVII  l 

XXIX 

XXX 

Enumei 


I'A(;s. 
A  conciuista  da   Banda  Oriental  e  os  insur- 

gentes    de    Ruenos-Ayres 576 

A  corte  do  Rio.  o  gabinete  de  Madrid  e  as 

potencias  medianeiras  da  Europa 627 

A    diplomacia   de    Palmella   na    questão    de 

Montevideo     677 

Administração     e     justiça.      Os     interesses 

agrícolas    e    industriaes 733 

O  tratamento  dos   índios 773 

A  revolução   pernambucana   de    1817 785 

A  diplomacia  estrangeira  no  Rio.    Caleppi 

e    Balk    Poleff •.  .  .  .  829 

O  casamento  do  Príncipe  Real 871 

A  culminância  do  reinado 887 

El     Rei 929 

O   espectáculo    das   ruas 964 

As  solemnidades   da   Corte 983 

A  revolução  portugueza   de   1820........  1015 

Rei   ou    Príncipe?   Thomaz  António  e   Pal- 
mella   105  9 

O     movimento     constitucional     no     Brasil. 

O    ultimo    ministério 108  7 

A  desillusão  do  regresso 1115 

ação    das    fontes 1136 


índice  das  gravuras 


Conde  de  Palmella.  .  . 
Marquez  de  Marialva 
El-Rei     


67  5 
8  69 
927 


/ 


CAPITULO  XV 


A  CONQUISTA  DA  BANDA  ORIENTAL  E  OS  INSURGENTES  DE 
BUENOS  AYRES 


A  occupação  da  Banda  Oriental  foi  o  maior  desforço, 
e  desforço  tomado  pelo  Principe  Regente  e  seus  conselheiros 
em  opposição  a  toda  a  Europa,  mesmo  contra  o  alliado  in- 
glez,  do  que  Portugal  deixara  de  alcançar  em.  Vienna  e 
de  justiça  lhe  cabia.  Os  primeiros  desígnios  portuguezes  sobre 
a  margem  esquerda  do  Prata  tinham  sido  frustrados  pela 
intervenção  britannica  e  pelo  armistício  conchavado  com  a 
Junta  de  Buenos  Ayres,  á  qual  era  summamente  obnoxia  a 
alienação  de  Montevideo,  mas  a  encorporação  do  território 
secularmente  cobiçado  fez-se  por  fim  a  despeito  da  Inglaterra 
e  das  Províncias  Unidas. 

Havendo  'Artigas  proseguído  percorrendo  a  campanha 
com  seus  bandos  armados,  que  eventualmente  chocavam  nos 


57S  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

i 

destacamentos  portuguezes,  o  commandante  das  forças  ex- 
pedicionárias e  capitão  general  do  Rio  Grande  do  Sul 
D. "Diogo  de  Souza  firmara-se  n'este  proceder  irregular  e 
opposto  á  pacificação  —  é  mister  ter  presente  que  Artigas 
começou  sua  aventurosa  carreira  agindo  sob  as  inspirações 
e  batalhando  de  harmonia  com  a  Junta  de  Buenos  Ayres  — 
para  não  dar  cumprimento  ao  convénio  de  20  de  Outubro  de 
181 1  e  evacuar  o  território  hespanhol  do  Prata.  Promettera 
comtudo  em  carta  dirigida  á  Junta,  a  2  de  Janeiro  de  1812, 
deixal-o  definitivamente  si  fossem  acceitas  certas  requisições 
suas,  a  começar  pelo  reconhecimento  formal  da  parte  das  au- 
ctoridades  constituídas  em  Buenos  Ayres  e  Montevideo  do 
desinteresse,  dignidade  e  justiça  com  que  o  Principe  Re- 
gente de  Portugal  procedera  mandando  entrar  suas  tropas 
na  Banda  Oriental  com  o  fim  de  conseguir  uma  pacificação 
e  de  consolidal-a. 

Exigia  aiinda  D.  Diogo  dos  mesmos  governos  locaes 
o  compromisso  de  não  intentarem  de  facto  aggressão  alguma 
contra  os  dominios  port^iguezes,  salvo  por  ordem  expressa 
da  Regência  da  Hespanha,  ficando  as  questões  de  limites 
pendentes  para  serem  resolvidas  directamente  pelos  gabinetes 
do  Rio  e  de  Cadiz.   ( i ) 

Segundo  o  General  Mitre  (2),  a  razão  principal,  senão 
única,  da  demora  na  execução  do  armisticio  e  consequente 
desoccupação  do  território  uruguayo  pelas  tropas  portugue- 
zas,  foi  o  desejo  de  D.  Diogo  de  Souza,  creatura  de  Dona 
Carlota  Joaquina,  de  promover  os  interesses  de  sua  ama,  para 
isto  contando  com  a  cooperação  militar  de  Goj^eneche  e  a 
conjuração  de  Alzaga,  que  ambas  falharam.  Dos  documentos 


(1)  Correio  Bi-aziliense,  vol.  IX,  n.  50,  de  J-alho  de  1812. 

(2)  Histeria   de    Belgrano    y    de    la   Independência   Argentina, 
vol.  II. 


t)OM  JOÃO  VI  NO  BRAZiL  ô?9 

publicados  pelo  illustre  historiador  argentino  ( i )  não  consta 
que  fosse  D.  Diogo  partidário  conhecido  ou  occulto  da  Prin- 
ceza  do  Brazil,  constando,  entretanto,  que  esta,  contraria- 
dissima  com  a  pacificação,  a  23  de  Novembro  de  181 1  insti- 
gava Goyeneche  para  que  suffocasse  o  movimento  platino 
"  con  las  mismas  ejecuciones  que  praticaste  en  la  ciudad  de 
la  Paz  ". 

A  I  de  Dezembro  de  181 1  ordenara  o  conde  de  Linha- 
res ao  commandante  da  expedição  portugueza  que  se  reti- 
rasse, uma  vez  obtidas  "  as  justas  e  moderadas  reparações  ", 
pondo-se  para  tanto  de  accordo  com  Vigodet  e  Goyeneche  e 
"authorizando  S.  A.  R.  a  V.  S.  para  que  não  se  demore  se  os 
mesmos  generaes  assim  o  exigirem  ".  A  20  de  Fevereiro  de 
1812  ainda  D.  Diogo  de  Souza  offerecia,  porém,  ao  general 
hespanhol  o  seu  concurso  militar  (2),  a  ver  si  encontrava 
assim  geito  de  prolongar  e  extender  a  occupação  de  que  fora 
encarregado. 

Na  sua  resposta  de  19  de  Janeiro  (3)  o  governo  pro- 
visional de  Buenos  Ayres,  presidido  por  Sarratea,  de  que 
faziam  parte  Rivadavia  e  Pueyrredon  e  que  substituirá  a 
Junta,  recusara  com  muita  independência  reconhecer  a  um 
general  estrangeiro  o  direito  de  intrometter-se  no  ajuste  das 
differenças  puramente  domesticas  entre  dous  povos  da  nação 
hespanhola,  que  entre  si  tinham  celebrado  um  accordo,  cuja 
execução  só  podia  ser  legitimamente  reclamada  por  qualquer 
dos  contratantes.  Entrava,  comtudo,  o  governo  provisional 
na  apreciação  do  proceder  do  governo  de  Montevideo,  não 
dando  fiel  cumprimento  ao  ajustado  no  tocante  á  retirada  das 


(1)  App.  ao  vol.  11. 

(2)  Documentos  cit, 

(3)  Correio  Braziliense,  n.  e  vol.  cit. 


580  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

( 
forças  portuguezas,  cuja  chegada  determinara  a  approxima- 

ção  e  a  concórdia  dos  povos  divergentes.  Mai»  do  que  isto, 
censurava  abertamente  o  comportamento  hostil  das  tropas 
invasoras,  que,  no  seu  dizer,  retardavam  com  a  attitude  to- 
mada a  marcha  de  Artigas  para  além  do  Uruguay. 

N'egava-se  por  fim  o  governo  de  Buenos  Ayres  a  ac- 
quiescer  nas  proposições  portuguezas  emquanto  durasse  a  oc- 
cupação  estrangeira,  que  era  a  negação  viva  dos  generosos 
intuitos  proclamados  na  carta  de  D.  Diogo  de  Souza,  e 
também  a  reconhecer  de  qualquer  modo  a  auctoridade  da 
Regência  da  Hespanha,  promettendo  em  todo  caso  respeitar 
os  dominios  do  Principe  Regente  de  Portugal  si  este  obser- 
vasse para  com  as  Províncias  Unidas  uma  conducta  reci- 
proca. Quanto  ás  questões  de  limites,  uma  vez  evacuado  o 
território  nacional,  entendia  o  governo  provisional  poder 
tratal-as  pacificamente  sem  esperar  as  resoluções  da  metró- 
pole, oíferecendo  tamanhas  difficuldades  a  redempção  do 
monarcha  do  seu  captiveiro  e  "tendo-se  a  aucthoridade  devol- 
vido outra  vez  aos  povos  respectivamente,  achando-se  por 
consequência  refundida  n'este  governo,  relativamente  ao  ter- 
ritório da  sua  jurisdicção.  "   ( i ) 


(1)  "Os  americanos  consagravam  com  este  acto  uma  tiheoria 
nova,  theoria  que  comquanto  perfeitamente  de  accordo  com  o  espirito 
do  governo  monai^cliico  absoluto,  era  revolucionaria  em  sua  essência 
pelas  consequências  lógicas  que  d'ella  se  deduziam.  Sustentavam  elles 
que  A  America  não  dependia  da  Hespanha,  mas  sim  do  monai'eha  a 
quem  havia  jurado  ol>ediencia,  e  que  na  sua  ausência  caducavam  todas 
as  suas  delegações  na  metrópole.  Esta  theoria  do  governo  pessoal 
devia  conduzil-os  mais  tarde  a  desconhecerem  as  auctoridades  hespa- 
nho:las  na  America,  e  a  reassumirem  SvHis  direitos  e  preroga'tivas.  em 
virtude  da  soberania  absoluta  convertida  em  soberania  popular." 
(Mitre,  0.1).  cit.  vol.  I).  Solorzano,  o  expositor  da  constituição  colonial 
liespanhola  na  Ameri^ca.  deriva  os  dirt'i.íos  dos  Reis  d'Hespanha  ás 
índias  não  da  descoberta,  mas  da  bulia  paipal  que  as  concf^dera.  como 
feudo  pessoal. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  581 

Esta  correspondência  precedeu  de  pouco  a  evacuação 
portugueza  do  território  uruguayo.  O  armisticio  termi- 
nado, o  conflicto  não  recomeçou  logo  entre  Montevideo  e 
Buenos  Ayres  nem  se  travou  entre  Buenos  Ayres  e  o  Brazil, 
proseguindo,  porém,  a  situação  anarchica  na  Banda  Oriental 
e  além  do  rio,  e  até  tomando,  como  é  próprio  das  contendas 
civis,  um  caracter  selvagino.  O  partido  nacional  tinha  de  de- 
fender mais  do  que  a  independência  politica,  a  sua  própria 
existência  contra  o  partido  hespanhol,  e  ás  conspirações  en- 
traram a  responder  as  execuções.  Ao  tempo  que  começavam, 
em  virtude  da  missão  do  tenente-coronel  Rademaker  a 
Buenos  Ayres,  a  retirar-se  as  tropas  portuguezas,  principia- 
vam a  rugir  ferozes  as  paixões  no  Prata,  sendo  morto  entre 
outros  Alzaga,  o  chefe  do  partido  addicto  á  metrópole;  e 
Montevideo  cortava  suas  communicações  com  a  antiga  sede 
do  vice-reinado. 

Rompimento  não  significa  forçosamente  lucta  armada,  e 
Artigas,  que  aquém  do  Uruguay  continuara  a  alimentar  a 
desordem,  mostrava-se  tão  infenso  a  Montevideo  como  a 
Buenos  Ayres,  dando  vigor  á  resistência  das  outras  provin- 
cias  contra  o  governo  que  aspirava  a  central.  Para  o  cau- 
dilho, Hespanhoes,  Portenhos  e  Portuguezes  eram  em  grau 
igual  detestáveis.  Assim  caminharam  as  cousas  até  1816,  sem 
que  houvesse  propriamente  estado  de  guerra  declarada  ao 
governo  de  Buenos  Ayres,  onde  a  situação  se  tornara  tão 
critica  que  o  maior  numero  desesperava  do  êxito  da  inde- 
pendência, já  então  theoricamente  consT; grada  pelo  Congresso 
de  Tucuman ;  procurando  os  mais  optimistas  obter  o  con- 
curso diplomático  de  outras  nações,  julgando  outros  residir  a 
salvação  n'uma  monarchia  separada  da  da  Hespanha  e  mais 
facilmente  acceitavel  pela  Europa  entregue  á  Santa  AUiança, 


582  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZÍL 

preferindo  mesmo  certos  ao  alastramento  da  anarchia  o  do- 
mínio portuguez. 

Tampouco  se  apresentava,  longe  d'isso,  normal  e  regular 
a  condição  de  Montevideo,  si  bem  que  não  existindo  franca 
occasião  para  a  intervenção  portugueza,  a  qual  foi  grande- 
mente determinada,  depois  de  1815,  pela  situação  creada  á 
monarohia  de  Dom  João  VT  no  Congresso  de  Vienna,  servin- 
do então  a  circumstancia  de  ser  hostilizado  por  Artigas  e  estar 
ameaçado  de  succumbir  o  governo  legalista  de  Montevideo. 
O  facto  era  que  em  181 5  já  se  modificara  em  grau  sensivel 
o  precário  estado  militar  do  Brazii,  e,  sobretudo,  a  paz  geral 
da  Europa  permittia  a  vinda  de  Portugal  e  a  organização  em 
1816  de  uma  divisão  auxiliar  de  5.000  veteranos  da  campa- 
nha peninsular,  aguerridos  pelos  repetidos  combates  e  disci- 
plinados pela  mão  férrea  do  marechal  Beresford,  que,  desa- 
vindo com  a  Regência  do  Reino  e  querendo  explicar  a  seu 
geito  os  negócios  (resolução  que  lhe  surtio  pleno  effeito),  os 
acompanhou  ao  Brazii  e  assistio  ao  seu  embarque  para  Santa 
Catharina. 

Foi  com  esta  divisão,  composta  das  trez  armas,  que  se 
mandou  o  General  Lecor  (mais  tarde  visconde  da  Laguna) 
directamente  apoderar-se  de  Montevideo;  ao  passo  que  for- 
ças brazileiras,  entre  ellas  um  regimento  de  linha  e  outro 
de  negros  livres,  iam  crear  uma  diversão  ás  guerrilhas  sempre 
activas  de  Artigas,  penetrando  pela  fronteira  do  Rio  Grande, 
onde  a  cavallaria  irregular  do  caudilho  nunca  cessara  de 
cruzar  e  pelejar,  a  occuparem  o  território  até  o  rio  Uruguay, 
isto  é,  o  scenario  completo  das  façanhas  dos  rebeldes. 

Resurgiam  vivazes  as  pretenções  portuguezas,  afrou- 
xadas durante  alguns  annos  com  a  paralysação  da  primeira 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  583 

expedição,  a  má  vontade  da  Inglaterra  em  favonear  o  im- 
perialismo da  corte  do  Rio  e  as  muitas  peripécias  e  surprezas 
da  historia  da  independência  da  America  Hespanhola,  de- 
pois que  os  resultados,  inferiores  ás  esperanças,  colhidos 
por  Portugal  com  tanto  esforço  no  Congresso  de  Vienna,  e  a 
figura  menos  brilhante  do  que  a  almejada  que,  não  obstante 
os  talentos  e  serviços  de  Palmella  e  seus  companheiros,  alli 
lhe  coubera,  convenceram  a  velha  monarchia  de  que  só  na 
America,  graças  á  vastidão  e  importância  dos  seus  domrnios 
e  á  desaggregação  do  império  colonial  hespanhol,  poderia 
ella  aspirar  a  novamente  desempenhar  primeiros  papeis. 

A  morte  havendo  roubado  Galvêas,  a  limitação  de  hori- 
zontes d'este  conselheiro  da  coroa,  correspondente  ao  periodo 
de  apathia  exterior,  fora  substituida  nos  ministérios  politicos 
pelo  descortino  de  Barca,  como  é  sabido,  abertamente  favorá- 
vel, em  opposição  aos  alliados,  ao  collega  Aguiar  e  ao  par- 
tido dos  fidalgos  portu^ezes,  á  conservação  no  Brazil  da 
sede  da  monarchia.  O  gabinete  britannico  bem  sentia 
a  differença  da  orientação  a  vir  quando,  no  dizer  de  Maler 
( I ) ,  moveu  á  sua  nomeação  a  mais  violenta  opposição. 

Dom  João  e  Barca,  unidos  em  espirito,  resolveram 
procurar  no  Novo  Mundo  as  compensações  que  no  Velho 
lhes  eram  devidas  mas  negadas,  mesmo  a  justa  restituição 
de  Olivença,  motivo  aliás  excellente  para  um  desforço  ul- 
tramarino envolvendo  a  occupação  definitiva  da  Banda 
Oriental.  A  Hespanha,  longe  e  exhausta  de  sangue  e  de  re- 
cursos pelas  guerras  européas  e  coloniaes  que  a  dilaceravam, 
parecia  pouco  para  temer.  Em  Buenos  Ayres,  Pueyrredon 
tomava  conta,   como   director,   de   um   governo   fraco,   com- 


(1)   Officio  cifrado  de  14  de  Outubro  de  1815. 


584  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

batido  pelos  federalistas  partidários  do  isolamento  provin- 
cial, que  agitavam  ainda  mais  ruidosamente  o  problema  da 
independercia  sem  lhe  darem  uma  salução  definitiva,  e  até 
pelo  contrario  forneciam  ao  governo  do  Rio  para  qualquer 
acção  o  pretexto,  sempre  invocado,  de  precisar  garantir  a  paz 
das  suas  fronteiras  meridionaes. 

De  resto,  quando  Pueyrredon  assumiu  o  mando  dele- 
gado pelo  Congresso,  a  nova  expedição  portugueza  á  Banda 
Oriental  era  uma  realidade.  Tanto  foi  longamente  preme- 
ditado o  proceder  da  corte  do  Brazil,  só  se  esperando  a  in- 
teira pacificação  européa  para  poder  robustecer  o  poderio 
militar  portuguez  na  America  que,  dous  annos  antes,  escre- 
via Marrocos  (i):  ''Aqui  se  está  embarcando  o  corpo  de 
Artilherla  com  os  mais  petrechos  e  bagagens,  assim  como 
o  Marquez  de  Alegrete,  General  em  Chefe,  para  a  Ilha 
de  Santa  Catharina,  e  dalli  se  distribuírem  para  guarnece- 
rem as  Linhas  das  nossas  fronteiras,  defendendo-as  das  in- 
cursões dos  insurgentes  Americanos  Hespanhoes,  que  já 
ameação  o  nosso  território,  mas  a  nossa  força  he  considerável, 
e  he  mais  temivel  por  sua  disciplina.  O  Governador,  que  foi 
de  Montevideo,  o  Vigodet  aqui  se  acha  refugiado,  mas  não 
pinta  o  caso  tão  feio,  como  o  referem  politicarrões  das  Pra- 
ças, e  julgo  que  com  o  adjutorio,  que  se  espera  da  Hespa- 
nha  Europêa,  se  accommmodarão  depressa  estas  desordens." 

Em  vez  de  soccorros  hespanhoes,  foram  reforços  portu- 
guezes  os  que  foram  a  breve  trecho  chegando  em  successão, 
e  o  amor  próprio  portuguez  de  Marrocos,  cujas  preferencias 
paisanas  a  principio  se  tinham  escandalizado  da  arrogância 
d'esses  militares  feitos  não  só  nas  casernas  como  nos  campos 


(1)   Carta    ao   Pai,   de   4   de   Agosto  de   1814. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  5^ 

de  peleja,  cada  vez  se  foi  exaltando  mais  com  o  seu  garbo, 
que  tão  bem  impressionou  o  principe  Maximiliano  de  Wied- 
Neuwied  ( i ) . 

Por  muitos  motivos  não  foi  a  occasião  de  uma  inter- 
venção, conductiva  de  conquista,  mal  escolhida  por  Portu- 
gal. De  1814  a  1815,  ganhando  vigor  a  resistência  com  a 
restauração  bourbonica,  todas  as  revoluções  sul-americanas 
para  a  independência  viram-se  suffocadas,  excepção  feita  da 
das  Províncias  Unidas:  tempo  portanto  esse  de  desanimo 
e  de  espectativa.  Só  em  181 7  começaria  a  reacção  liberta- 
dora, "  movimento  excêntrico  da  revolução  argentina  ame- 
ricanizada,   em    marcha    para    a    emancipação    continental" 


(1)  "A  porção  de  troipa  que  tem  oheg£,do  de  Lisboa  he  man- 
dada desemlbai'car  da  banda  d"além  do  rio,  em  huns  sitios  ebamados 
a  Praia  Oraiule  e  a  Armação  das  talcas,  oníde  se  Liie  tem  preparado 
Quartéis  á  ligeira,  ou  pro  Ínterim  :  e  a  Artilheria  vai  para  a  ILha  das 
Cobras ;  e  para  em  tudo  estar  em  seipa ração  da  tropa  desta  cidade, 
se  está  preparando  o  seu  Hospital  na  Ilha  das  Enchadas,  onde  anti- 
gamente esteve  o  dos  Inglezes.  Apezar  de  não  terem  feito  desordens, 
são  bem  aipontados  pelas  bebedeiras,  e  certo  a,r  de  chibanteria ;  mas 
toda  a  gente  lhe  espera  pela  quarentena,  em  qrsinto  se  lhes  gastão 
alguns  vinténs,  que  trazem,  e  se  lhes  surrão  as  tardinhas  tafues,  com 
que  ora  apparecem ;  pois  como  já  succedeo  aos  primeiros,  hão  de 
ver-se  em  poucos  dias  com  as  caras  amarellas,  e  cabisibaixos."  (Carta 
ao  Pai  d 3  8  de  Novembro  de  1815). 

"  Aqui  tem  chegado  a  Tropa  mui  arrogante  e  valentona,  e  por 
isso  estão  em  separação  da  Tropa  daqui,  sendo  aquartelada  na  mar- 
gem d'.alem  do  rio  :  está  em  tudo  disciplinada  á  Ingleza,  e  dizem  que 
em  costumes  á  Franceza  ;  e  por  isso  toda.  a  gente  se  desvia  de  tomar 
conihecimento  com  elTès."   (Carta  á  ii-mã,  de  15  de  Novembro  de  181")). 

"  Os  corpos  de  Artilheria  e  Cavalleria,  que  chegarão  de  Lisboa, 
já  forão  enviados  para  o  Rio  Grande,  .com  escala  por  Santa  Catharina  : 
até  agora  se  tem  portado  muito  bem,  e  á  satisfação  geral ;  antes  pelo 
contrario  tem  sido  mal  correspondidos  da  Tropa  bravia  deste  Paiz  e 
mal  re-munerados  com  o  que  lhe  he  devido:  porem,  tirando  huma  ou 
outra  dissenção  particular,  em  que  elles  sempre  mostrão  que  são 
Portuguezes  valentes,  e  não  Brazileiros  cobardes,  o  geral  tem  sempre 
mostraido  prudência,  socego,  moderação,  e  até  boa  conducta.  Affinna-se 
que  o  corpo  de  caçadores,  que  está  a  chegar,  hé  composto  de  Trans- 
montanos esforçados  e  escolhidos  dos  que  mais  se  distinguii-ão  na  ba- 
talha de  Talavera."   (Carta  ao  Pai  de  23  de  Fevereiro  de  1816), 

■"Pelas  Gazetas  inclusas  verá  V.  Mce.  como  foi  a  enti-ada  e  re- 
cebimento  da  nossa   Tropa,   que    a    todos  os   Brazileií-os   fez   a    maior 


586  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZiL 

(i).  Não  admira  por  isso  que  fosse  opinião  sincera  do  en- 
viado confidencial  argentino  no  Rio  D.  Manuel  José  Gar- 
cia—  não  só  d'elle,  de  outros,  como  D.  Nicoláo  Herrera, 
monarchista  convicto  emigrado  no  Rio  —  que  a  salvação 
da  sua  pátria,  dividida  pelas  facções,  privada  de  reconheci- 
mento, ameaçada  pela  Hespanha,  que  dizia  preparar  contra 
ella  a  sua  grande  expedição  de  Cadiz,  só  podia  provir,  com 
a  independência  ou  a  annexação,  de  Portugal. 

A  Inglaterra  achava-se  impedida  de  dar  qualquer  passo 
em  favor  da  revolução  sul-americana  pelos  seus  compromis- 
sos com  a  Hespanha,  exarados  no  tratado  de  1814;  pelos 
seus  interesses  de  potencia  colonial,  incompativeis  com  eman- 

espectação,  por  nunca  terem  visto  caçadores,  nem  a  sua  differente  dis- 
ciplina. A  sua  viagem  foi  muito  feliz  e  so  perderão  3  homens,  isto  he 
dous  de  feibres,  e  hum  que  cahio  de  noute  bêbado  ao  mar;  o  que  mê 

foi  communicado  pelo  Aujditor  da  Divisão, Aohão-se  aquartelados 

no  mesmo  sitio  da  Praia  Grande,  onde  es.tLverão  alojados  os>  primei- 
ros, e  cre-se  que  aqui  persistirão  até  depois  da  Acclamação  de  Sua  Ma- 
jestade o  Sr.  D.  João  VI,  que  talvez  será  no  dia  24  de  Junho  ;  e  elles 
por  isso.  farão  o  dia  mais  brilhante.  Maudarão-se  preparar  com  brevi- 
dade algumas  embarcaç-ões  de  guerra,  que  devem  sahir  para  Lisboa, 
di/.em,  a  buscar  outra  Divisão  de  6  mil  homens,  que  são  aqui  neces- 
sários para  guarnição  de  alguns  Lugares  mais  importantes  deste 
Reino."    (Carta  ao  Pai  de  IS  de  Abril  de  1816). 

"Sua  Magestade  e  toda  a  Familia  Real  se  achão  ha  hum  mez 

no  sitio  de  S.  Domingos,  pouco  distante  do  sitio  da  Praia  Grande, ; 

tem  havido  repetidos  exercícios  dos  caçadores,  que  aqui  chegarão  do 
Exercito  de  Portugal,  representando-se  aquellas  batalhas,  em  que 
se  tem  feito  fumosos.  Tem  recebido  muitas  honras,  e  elles  se  tem 
portado  muito  bem,  de  sorte  que  tem  merecido  o  agasalho  de  todos. 
Esta  semana  tornão  a  embarcar  todos,  e  se  dirigem  a  desembarcar  em 
Maldonado,  afim  de  atacarem  com  vigor  aos  Hespanhoes  do  Rio  da 
Prata,  que  já  tem  passado  as  nossas  fronteiras,  e  tem  feito  estragos 
nos  nossos  primieiro»  postos  Militares.  Neste  Arsenal  se  tem  feito  huma 
infinidade  de  petrechos  de  guerra  para  elles  levarem,  como  são,  esca- 
das, machados,  forquilhas,  etc,  etc.  Ix)go  que  elles  saião,  sahe  tam- 
bém o  Maresohal  Beresford  para  Lisboa,  com  as  ordens  competentes 
para  ahi  organizar  outra  divisão  de  6.000  homens,  e  dizem  que  são 
d+>stinados  para  guarnição  das  duas  cidades  principaes  do  Rio  de  Ja- 
neiro e  Bahia,  pois  que  a  Tropa  daqui  he  Tropa  de  Theatro."  (Carta 
ao  Pai  de  28  de  Maio  de  1816). 

(1)  Mitre,  Historia  de  Srni  Martm  y  de  la  Enuinoi/pacioyi  8ud- 
Americana,  vol.   I. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  587 

cipações,  e  quando  se  avantajasse  a  elles  a  perspectiva  mer- 
cantil desafogada,  pela  attitude  decidida  tomada  na  questão 
pelo  autocrata  russo,  toda  favorável  ao  restabelecimento  das 
monarchias   legitimas   e   á   recolonização    das   possessões    re- 
belladas.  E'  facto  que  a  Inglaterra  foi  de  começo  bastante 
favorável   aos   independentes    (i)     mas   já   ia    diplomatica- 
mente  variando   de   rumo,   chegando  em    1818   a  pôr-se   ao 
lado   da   Hespanha  e   da   Santa  AUiança  na  questão  ameri- 
cana, só  visando  então  á  franquia  commercial  das  colónias. 
A.   mudança   politica   apenas   viria   com    Canning.    Por   esse 
lado  económico  o  momento  escolhido  por  Portugal  para  prati- 
car a  annexação  da  Banda  Oriental  não  era  propicio,  mas  a 
opportunidade  cessara  inteiramente.  As  colónias  que  durante 
trez  séculos  tinham  sido  cobiçadas  como  campos  de  explora- 
ção  exclusiva,    entravam    apoz   a   emancipação   das   colónias 
inglezas  da  America,  as  impressivas  publicações  dos  abbades 
Raynal  e  de  Pradt  e  a  evolução  theorica  e  pratica  da  eco- 
nomia politica,   a  ser  consideradas  como  mercados   interna- 
cionaes,  terrenos  de  concorrência  commercial.  O  tratado  de 
18 10,   de   Portugal  com   a  Grã   Bretanha,   bastante   denun- 
ciara  n'um   sentido   egoista   essa   orientação  que   a   obra   de 
Pradt — UEurope  et  ses  colonies — modela  na  perfeição  como 
these. 

A  França,  por  mais  que  lhe  conviesse  contrariar  a  po- 
litica mercantil  ingleza,  n'esse  momento  já  pouco  se  incli- 
nando de  facto  e  até  deixando  officialmente  de  inclinar-se 
cm  principio  á  libertação  das  colónias,  e  comquanto  entrasse 


(1)  "Ha  huma  entrou  axjui  de  Montevideo  hiiima  Fragata  Hes- 
panhola  s  pedir  soccorro  contra  os  de  Buenos  Ayres,  pois  que  estes 
tem  crescido  em  forças,  ajudados  dos  Negociantes  Inglezes,  que  os 
tem  fornecido  de  armas  e  provisões  de  guerra."  (€arta  de  Marroicos 
ao  Pai  de  IG  de  Novem-bro  de  1818). 


588  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

nos  seus  planos  fundar  uma  ou  varias  monarchias  sul-ame- 
ricanas  com  Bourbons  á  testa,  não  podia  nem  estava  em 
posição  moral  de  oppor-se  aos  designios  de  Fernando  VII,  re- 
passados de  legitimidade:  Lafayette,  todo  sympathico  aos  que 
aspiravam  a  liberdades,  não  protegia  ainda  a  realeza  de 
1830.  Entendera  assim  o  governo  de  Luiz  XVIII  ser  o 
mais  cauteloso  no  assumpto.  As  instrucções  que  levava  para 
o  Brazil  o  duque  de  Luxemburgo  ( i )  prescreviam  que 
elle  recebesse  com  circumspecção  qualquer  emissário  das  co- 
lónias revoltadas,  o  qual  se  abrisse  com  o  embaixador,  e  que, 
sem  fazer  promessas,  referisse  ao  governo  em  Pariz  quanto 
confidencialmente  lhe  relatasse  o  mesmo  emissário,  pro- 
curando simplesmente  "quaes  possam  ser  os  meios  indirectos 
de  animar  nosso  commercio  com  as  ditas  possessões,  já  que 
não  podemos,  na  sua  condição  actual,  nem  auctorizar,  nem 
confessar  com  ellas  relação  alguma." 

Os  próprios  Estados  Unidos  não  se  tinham  até  então 
pronunciado  sobre  a  tutela  européa  do  Novo  Mundo:  o 
acoordo  entre  Clay  e  Canning,  que  deu  em  resultado  a  dou- 
trina de  Monroe,  só  alguns  annos  depois  se  estabeleceria. 
Simultânea  com  a  reacção  no  sentimento  governamental 
britannico  ia-se  porém  a  politica  norte-americana  affirmando 
mais  ostensivamente  favorável  á  emancipação  das  posses- 
sões hespanholas,  fazendo  em  18 19  uma  declaração  n'esse 
sentido  por  motivo  do  Congresso  de  Aix-la-Chapelle,  em 
que  se  tratou  da  mediação  das  grandes  potencias  entre  as  co- 
lónias insurrectas  e  a  sua  metrópole. 

Ante  tal  colligação  de  interesses  melindrosos  e  força- 
das indifferencas  tinham  ido  esmorecer  em  Madrid,  e  iam 


(1)    Arcli.  do  Min.   dos  Xeg.   Est.  de  França. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  589 

fracassar  em  Paríz,  os  esforços  diplomáticos  do  enviado  ar- 
gentino Rivadavia.  Entretanto  no  Brazil  não  se  desmentia  a 
actividade  do  seu  collega  Garcia  no  sentido  de  uma  união 
luzo^platrna.  O  projecto  de  tratado  contemporâneo  da  sua 
chegada  ao  Rio  de  Janeiro  (Janeiro  de  1815)  sobre  que  Ma- 
ler  prestou  informações  ao  Ministério  francez  ( i ) ,  encerrava 
a  auctorização  para  o  Brazil  de  occupar  a  margem  oriental  do 
Prata,  abstendo-se  Buenos  Ayres  de  fornecer  soccorros  aos 
atacados  e  devendo,  depois  da  conquista,  o  Congresso  Nacio- 
nal de  Tucumam  solicitar  a  reunião  das  Províncias  Unidas 
ao  Reino  do  Brazil,  realizada  a  qual  tomaria  Dom  João  VI 
o  titulo  de  Imperador  da  America  do  Sul.  Os  funccionarios 
públicos  seriam  conservados  nos  seus  cargos  e  todos  os  postos 
ecclesiasticos,  civis  e  militares  reservados  sempre  para  os 
nascidos  no  paiz,  excepção  feita  de  trez  lugares  —  vice-rei, 
bispo  e  commandante  das  armas  — ,  de  livre  escolha  do 
novo  Imperador. 

Acreditava  Maler  que  fora  na  fé  de  tal  accordo  que  o 
Congresso  de  Tucumam  a  9  de  Julho  de  1816,  lobrigando 
já  em  marcha  a  expedição  portugueza  do  Sul  e  "ignorando 
o  estado  valetudinário  do  ministério  brazileiro",  proclamou 
a  independência  das  Provincias  Unidas,  primeiro  passo  para 
a  sua  encorporação.  A  suspeita  do  agente  francez  não  re- 
pousa sobre  um  fundamento  de  grande  solidez,  ainda  que 
communicava  elle  que,  pouco  antes,  havia  Pueyrredon  man- 
dado um  expresso  representar  a  necessidade  de  começar  as 
operações  effectivas.  Por  motivo  d'ellas,  ajuntava  Maler,  é 
que  Barca,  ludibriando  o  seu  collega  Aguiar,  —  "demasiado 
honesto  para  adherir  a  taes  conchavos  "  — determinou  subi- 


(1)   Officio  de  10  de  Junho  de  1817. 


590  DOM  JOÃO  VI  NO  BUAZIL 

tamente  a  partida  para  Hespanha  das  Infantas,  a  qual  se 
verificou  na  manhã  de  3  de  Julho,  começando  a  4  o  movi- 
mento de  sahida  da  expedição  acantonada  na  ilha  de  Santa 
Catharina,  para  que  fora  ordem."  Assim  é  que  o  Sr.  conde 
da  Barca  fez  marchar  a  par  o  penhor  da  união  mais  sagrada 
com  as  medidas  de  aggressão  mais  injusta"   (i). 

Ponderando  que  os  governos  americanos  reconhecidos 
ou  a  reconhecer  absorviam  todo  o  tempo  e  todas  as  contem- 
plações da  corte  do  Rio,  relatava  o  encarregado  de  negócios 
de  França  que  o  agente  Garcia  via  frequentemente  o  conde 
da  Barca  e  já  começava  a  usar  de  menos  disfarce  e  ceri- 
monia, entrando  no  despacho  com  uma  grande  pasta  de- 
baixo do  braço.  O  Rei,  de  propósito,  por  deferência  para  com 
os  representantes  estrangeiros,  o  não  recebia,  maj  Garcia 
andava  de  tal  modo  satisfeito  que  bem  parecia  que  só  tinha 
a  felicitar-se  pela  politica  da  corte  portugueza. 

O  historiador  Mitre  tece  os  mais  francos  elogios  á  in- 
telligencia,  elevação  moral,  senso  de  estadista  e  patriotismo 
de  D.  Manoel  José  Garcia,  apenas  formulando  restricções 
quanto  á  sua  tenacidade  e  combatividade.  A  idéa  completa  do 
enviado  argentino  consistia  em  aproveitar-se  da  ambição 
portugueza,  dos  seus  interesses  homogéneos,  da  sua  comniiini- 
dade  de  vistas,  para  supprimir  esse  fcco  de  anarchia  em  que 
se  convertera  Montevideo,  precaução  sem  a  qual  era  inú- 
til esperar  socego  nas  Provincias  Unidas,  contagiadas  por 
um  mal  cujos  effeitos  durariam  pelo  menos  emquanto  sub- 
sistisse a  causa;  e  em  acceitar  o  protectorado  portuguez  si 
mesmo  assim,  conforme  elle  acreditava  piamente,  proseguisse 


(1)  Off.  clt. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BlUZIL  591 

O  delírio  das  paixões  e  fosse  impossível  estabelecer  uma  si- 
tuação seria  e  calma  (i). 

Garcia  não  considerava  deshonrosa  a  intervenção  por- 
tugueza  porque  em  rigor  não  partia,  dizia  elle,  de  uma  po- 
tencia estrangeira,  sim  de  uma  nação  de  interesses  vincula- 
dos aos  destinos  do  continente,  para  cuja  emancipação  con- 
tribuíra efficazmente,  ahi  installando  a  sede  da  sua  monarohía 
muitas  vezes  secular.  A  irmandade  das  conveniências  só  se 
daria  verdadeiramente  porém  em  1822,  quando  a  separação 
determinasse  para  o  Brazil  uma  situação  análoga  á  das  coló- 
nias hespanholas  libertadas  pelo  movimento  que  irradiou  dos 
seus  dous  centros  de  propulsão,  em  Venezuela  e  no  Rio  da 
Prata,  e  o  tornasse  realmente  solidário  com  ellas  na  necessi- 
dade do  reconhecimento  da  sua  independência.  Entre  o  Im- 
pério e  a  Republica  Argentina,  além  do  regimen  politico 
diverso  que  cada  um  d 'estes  paizes  entrou  a  sj^mbolizar,  exis- 
tiria todavia  então  o  óbice  da  Cisplatina  que  sempre  acir- 
rara as  duas  metrópoles  e  continuaria  a  dividir  as  duas  novas 
nações  —  porquanto,  dos  arrazoados  de  Garcia  e  da  marcha 
de  Lecor,  o  que  ia  resultar  era  a  annexação  portugueza  da 
Banda  Oriental  sem  o  restabelecimento  da  ordem  e  segu- 
rança na  margem  occidental   do   Prata. 

Relata  um  escriptor  argentino  (2)  que  o  pai  de  D. 
Manuel  José   Garcia  escrevia  ao   filho   para  o   Rio   de  Ja- 


(1)  "  Estoy  persuadido,  y  la  experiência  parece  haborlo  demos- 
trado, que  necesitamos  la  fuerza  de  un  poder  estrano,  no  solo  para 
terminar  nuestra  contienda,  sino  para  f(  rmarmoss  un  centro  comun  de 
autoridad,  capaz  de  organizar  el  caos  en  que  estón  convertidas  nues- 
tras  províncias,  y  en  la  escala  de  las  necesidades  pdblicas  cuento  pri- 
mero  la  de  no  recaer  en  el  sistema  colonial.  En  tal  situacion  es  preciso 
renunciar  á  la  esi)eranza  de  cegar  por  niiestras  manos  la  fuente  de 
tantos  males."  Communicação  de  Garcia  a  Balcarce,  de  9  de  Junho  de 
1816,  na  Hist.  de  Belgramo,  vol.  II). 

(2)  D.  Miguel  Cané  no  estudo  sobre  a  diplomacia  da  Ilevoluçao, 
publicado  na  revista  La  BiWoteoa,  anno  de  1897. 


592  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

neíro  que,  si  elle  voltasse  a  Buenos  Ayres,  de  ódio  o  enfor- 
cariam n'um  ferro  de  lampeão,  tal  era  a  tendência  espon- 
tânea da  coUectividade  para  a  sua  autonomia.  Com  effeito 
o  enviado  argentino,  a  quem  o  espectáculo  da  pátria  desunida 
e  desordenada  apparecia  de  fora  tão  desanimador  e  lúgubre, 
não  calculava  bem  a  vitalidade  da  resistência  nacional  a  qual- 
quer plano  de  recolonização :  fosse  este  o  perdão  promettido 
por  Fernando  VII  aos  seus  súbditos  transviados  e  arrepen- 
didos, fosse  —  caso  ainda  peor  —  a  erecção  de  um  reino 
encorporado  no  império  de  Dom  João  VI  ou  tutelado  pela 
coroa  americana  de  Portugal;  como  seria  mesmo  a  absurda 
monarchia  do  descendente  dos  Incas  casado  com  uma  In- 
fanta portugueza,  filha  de  Bragança  e  Bourbon,  com  que 
sonhava  Belgrano  e  que  o  Congresso  de  Tucuman  aponta- 
ria pouco  depois  a  Pueyrredon  como  o  mais  sábio  desfecho 
para  as  difficuldades  com  a  Hespanha  e  com  Portugal. 

O  facto  é  que  o  povo  argentino,  estimulado  pela  recon- 
quista, com  foros  tradicionaes  e  já  agora  com  tradições  guer- 
reiras, formadas  no  episodio  da  expulsão  dos  Inglezes,  repel- 
liria  qualquer  plano  importando  em  sujeição  nacional,  por 
mais  paternal  e  culto  que  lhe  apregoassem  o  governo  dos 
Braganças  comparado  com  o  despotismo  de  Fernando  VII 
ou  com  o  bárbaro  caudilhismo.  A  sorte  estava  lançada,  a 
separação  consummada,  a  independência  realizada.  A  força 
moral  que  assegurava  esta  ultima  podia  ser  latente  mas  não 
existia  menos  por  isso,  e  não  tardaria  até  a  manifestar-se  com 
toda  a  pujança  própria  de  um  composto  solido  e  duradouro. 

Sentir  a  febre  da  autonomia  e  dispor  de  força  para  re- 
sistir ao  tratamento  que  lhe  queriam  impor,  eram  porém 
para  a  nacionalidade  nascente  cousas  differentes.  O  director 
Pueyrredon  não  pensava  como  Garcia,  mas  acreditava  n'uma 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  593 

boa  intelligencia  com  a  corte  do  Rio.  Si  não  applaudia  em 
absoluto  a  expedição  de  Lecor,  tampouco  a  poderia  guer- 
rear com  efficiencia.  Ignorava  até  si  Portugal  e  Hespanha 
não  estariam  de  accordo,  conforme  tendiam  a  fazer  crel-o 
as  declarações  do  gabinete  do  Rio  de  que,  indo  dar  um  golpe 
de  morte  na  anarchia  revolucionaria,  servia  os  interesses  da 
monarchia  catholica  ao  mesmo  tempo  que  os  próprios,  orgâ- 
nica e  fatalmente  conservadores.  Por  isso  Pueyrredon  addu- 
ziu  pretextos,  adiou  soluções,  contemporizou,  ganhou  tempo, 
não  respondendo  a  Garcia  (  cujas  communicações  con- 
tinuavam a  ser  dirigidas  a  Balcarce,  antecessor  do  di- 
rector, por  ser  desconhecida  no  Brazil  nas  datas  a  subida 
ao  poder  de  Pueyrredon  ),  mandando  um  commissionado 
militar  ao  encontro  do  general  portuguez  invasor  a  pedir 
explicações  e  reclamar  o  cumprimento  do  armisticio  de  i8i2, 
e  consultando  o  Congresso,  expressão  da  vontade  nacional. 

Em  face  das  chimeras  de  realeza  indigena  d'esta  assem- 
bléa  e  sem  meios  de  crear  um  novo  exercito,  como  lhe  indica- 
vam o  Cabildo  e  a  Junta  de  observação  ( i ) ,  Pueyrredon  ti- 
nha comtudo  suas  esperanças  postas  no  exercito  dos  Andes 
que  San  Martin  andava  disciplinando  em  Mendoza  para  a 
reconquista  do  Chile  e  a  libertação  do  Peru.  Entretanto,  até 
regressar  do  Pacifico  esse  exercito  robustecido  pela  victoria  e 
destinado  a  repellir  os  intentos  absorventes  da  metrópole, 
salvando  a  pátria  da  dissolução,  Lecor  tomaria  posse  de 
Montevideo,  que  Artigas  não  deixara  mesmo  ser  soccorrida, 
originando-se  uma  situação  mais  instável  e  mais  grave  do 
que  nunca. 

A  occupação  da  Banda  Oriental  era  pelo  enviado  Gar- 
cia considerada  um  bem  por  um  motivo  mais.  Faltando  este 


(1)    Mitre,   Hist.   de   BoJgrano,  yol   II. 


504  DOM  JOÃO  VI  ísO  BRAZIL 

ponto  de  apoio,  d'onde  em  1806  partira  a  expedição  da  re- 
conquista, á  fallada  expedição  de  Cadiz,  que  Rivadavia  em 
Londres  e  logo-  depois  José  Valentin  Gomez  em  Pariz  esta- 
vam encarregados  de  procurar  a  todo  transe  empatar,  nego- 
ciando qualquer  proposta  de  convenção  sobre  a  base  da  re- 
nuncia ao  ataque,  a  Hespanha  se  não  abalançaria  á  arriscada 
aventura.  Isto  quando  a  escandalosa  retenção  de  Olivença  e 
a  attitude  das  grandes  potencias  formando  o  cenáculo  da 
Santa  Alliança,  e  firmemente  dispostas  a  manter  a  paz  ob- 
tida apoz  um  longo  e  cruciante  periodo  de  guerras,  consen- 
tissem que  o  Rei  da  Hespanha  declarasse  guerra  ao  de  Por- 
tugal, não  obstante  as  suspeitas  que  os  distanciavam. 

A  posição  da  corte  do  Rio  entre  a  metrópole  hespa- 
nhola  e  a  colónia  revoltada  de  Buenos  Ayres,  ao  mesmo 
tempo  que  não  era  commoda  trazia  dupla  vantagem.  Como 
n'outros  casos  análogos,  a  sua  neutralidade  comportava  pro- 
veitos, buscando  as  duas  parcialidades  principaes  em  con- 
flicto  no  Prata  alistal-a  em  seu  beneficio  exclusivo,  já  que  a 
situação  geographica,  a  paz  interna,  a  alliança  ingleza,  a 
maior  copia  de  recursos  e  outras  circumstancias  davam  então 
a  Portugal  na  secção  oriental  da  America  do  Sul  papel  e  ca- 
pacidade de  arbitro  quasi  supremo. 

O  pedido  em  casamento  das  duas  Infantas  portuguezas 
para  o  monarcha  hespanhol  e  seu  irmão  e  herdeiro  pre- 
sumptivo  Dom  Carlos    (i),  sabemos  que  equivalera  a  uma 


(1)  o  portador  officioso  do  pedido  foi  o  secretario  da  legação 
portugiieza  em  Madrid  Toaquim  SeveríBo  Gomes,  embarcado  com  cai-ta 
de  prego  no  brigue  nacional  Lehre.  O  pedido  official  foi  porém  apre- 
sentado pelo  brigadeiro  general  D.  Gaspar  de  Vigod^^t,  a  quem  trouxe 
a  fragata  hespanhola  La  SoledM.  Depressa  ficou  Fernando  VII  viuvo. 
k  Infanta  era  de  precária  saúde.  N'uma  das  cartas  de  Man-ocos,  de 
11  de  Março  de  1814,  se  diz,  passando  em  revista  a  saúde  da  real  fa- 

inilia  :   " A  Sra.   Infanta  D.   Maria   Izabel   continua   nos  seus   ac- 

cidentes  ou  desmaios,  que  muito  a  incommodão  ;  e  tendo  ha  dlus  hum, 
cujo  desaccordo  lhe  durou  por  espaço  de  20  mJbautos." 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  595 

tentativa  para  obter  a  cooperação  portugueza  na  tarefa 
de  reduzir  os  insurgentes  platinos:  tão  ancioso  de  resultado 
esse  esforço,  que  se  compromettia  a  corte  de  Madrid  a  faci- 
litar a  demarcação  pendente  das  fronteiras  dos  dominios 
das  duas  coroas  no  Novo  Mundo. 

O  apoio  da  corte  do  Rio  parecia  pois  precioso  ao  go- 
verno  hespanhol   para   uma   politica   de   resistência,    de   que  j 
cogitava,  quando  a  outros,   de   fora,   apreciando   porventura 
melhor  a  situação,  mais  garantia  de  êxito  se  afigurava  offe- 
recer  uma  politica  de  composição.   O   representante  francez 
no  Brazil,  por  exemplo,  entendia  que  si  Fernando  VII  for-  ^ 
mulasse   concessões   e   as   mantivesse   em    energia,    não   seria 
cousa  impossivel  sujeitarem-se  as  províncias  rebeldes,  mesmo 
sem  derramamento  de  sangue,  porquanto  "a  má  administra- 
ção dos  governantes,   suas  continuadas   dissensões  e   insaciá- 
vel cobiça  teem  consideravelmente  fatigado  e  descontentado 
a  multidão ;  seis  annos  ha  que  aquellas  províncias  sacudiram 
a  auctoridade  da  metrópole  e  que  os  sentimentos  se  exalta- 
ram, e  homem  algum  de  cabeça  ainda  se  apresentou  que  haja 
sabido  dominar  os  espiritos,  dar  consistência  ás  suas  institui- 
ções nascentes  €  tirar  partido  das  disposições  favoráveis  que 
lhes  testemunham  os  agentes  de  uma  grande  potencia"   (i). 
Si  houvesse  surgido  um  semelhante  chefe,  já  a  Hespanha 
teria  perdido  para  todo  sempre  as  provincias  rebelladas,  opi- 
nava Maler,  sem  se  estabelecer  o  cançaço  mercê  da  incapaci- 
dade e  vícios  dos  que  se  achavam  á  frente  da  revolução.  A 
composição   ímpunha-se   dado  o   estado   de  inquietação  e   de 
anarchia  que  prevalecia,  gerado  pelo  espirito  faccioso  e  pai- 
xões odientas,  mas  tornavam-na  impossivel  os  próprios  chefes 
realistas,  os  quaes,  a  par  das  suas  crueldades,  apenas  exhibiam 


Kl)    QCfkio  de  12  de  Novembro  d<i  1815. 


596  DOM  JOÃO  VI  NO  BRA2IL 

fraqueza  e  insufficiencia  nos  meios  de  arcar  com  a  situa- 
ção  (i). 

Idênticas  foram  as  impressões  de  Luxemburgo,  quando 
chegou.  "A  desintelligencia  manifestou-se  entre  os  chefes 
apoz  os  últimos  acontecimentos  militares,  informava  o  em- 
baixador; o  congresso  de  Tucumam  dissolveu-se  antes  de 
conseguirem  pôr-se  de  accordo  os  deputados  das  provincias 
insurrectas.  Os  proprietários  não  aspiram  senão  a  submet- 
ter-se,  ou  melhor,  imploram  os  meios  de  se  desembaraça- 
rem do  furacão  revolucionário  que  se  agita  e  carrega  a  des- 
truição onde  qu'er  que  attinge"    (2). 

Em  verdade  já  era  tarde  para  uma  reconciliação.  A 
idéa  de  emancipação  caminhara  muito  para  poder  recuar,  e 
tão  geraes,  tão  concordes,  tão  decididas  estavam  sendo  suas 
manifestações  que  lhe  imprimiam,  junto  com  as  marcas  que 
ostentava  de  espontaneidade  e  de  solidariedade  moral,  e 
mau  grado  a  reacção  produzida,  o  cunho  da  irrevogabilidade. 
A's  próprias  colónias,  a  saber,  ao  seu  povo,  ficara  devolvida 
a  tarefa  de  preservar  sua  integridade  e  autonomia,  e  ellas 
assim  o  entenderam  e  acabaram  por  executar  á  risca. 

Em  Buenos  Ayres  Balcarce  foi  derribado  em  Junho 
de  18 16,  accusado  de  se  não  occupar  assaz  de  fazer  frente 
ás  emergências;  Pueyrredon,  uma  vez  passado  o  primeiro  en- 
thusiasmo  da  sua  elevação,  não  escapou  aos  commentarios 
de  traição:  todos  os  governantes,  sem  excepção,  seriam  com- 
pellidos  pela  opinião,  diga-se  antes  pelo  instlncto  publico, 
a  precaverem-se  e  garantirem  a  liberdade  e  com  ella  a  inde- 
pendência. Nada,  pode  affirmar-se,  fez  mais  do  que  esta 
anciã  popular  para  radicar  nos  espiritos  o  ideal  republicano 


(1)  Off.   cit. 

(2)  Arch.  do  Min.,  dos  <Neg.  Est.   de  França. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  597 

que,  recorda  Cané  com  razão,  os  excessos  da  Revolução  fran- 
ceza,  sem  esquecer  os  desatinos  domésticos,  tinham  desacre- 
ditado no  Prata,  emprestando  fascinação  entre  a  gente  culta 
ao  ideal  monarchico  liberal  de  modelo  inglez,  que  estava 
até  predominando  na  França  cartista  e  parlamentar,  e  que 
tinha  no  seu  modo  de  ser  a  grande  vantagem  de  não  dar  en- 
sanchas a  audaciosos  como  Alvear  e  a  caciques  regionaes 
como  Artigas. 

Fora  a  consciência  d'essa  maior  segurança  politica  que 
dera  os  seus  defensores  mais  decididos  á  causa  da  Princeza 
do  Brazil  e  estava  ainda  suggerindo  a  busca  de  outras  com- 
binações, si  bem  que  antipathicas  á  corrente  popular.  Pueyr- 
redon  achava-se  quasi  só,  entre  os  próceres  da  revolução 
argentina,  no  acreditar  que  a  republica  devia  acompanhar 
a  separação,  e  no  acceitar  a  monarchia  —  preconizada  tanto 
por  Belgrano,  o  soldado  e  gonhador  generoso,  como  pelo 
pensador  educado  e  recto  que  foi  Rivadavia* — somente  como 
o  melhor  modo  de  fazer  tolerar  a  independência  pelas  gran- 
des  potencias   reaccionárias   da   Europa. 

Para  estas,  quando  reunidas  em  1818  no  Congresso  de 
Aix-la-Chapelle,  ao  tempo  que  o  abbade  de  Pradt  escrevia 
suas  defezas  mais  pomposas  de  emancipação  colonial,  redi- 
giria o  enviado  Garcia  uma  justificação  da  occupação  portu- 
gueza  da  Banda  Oriental,  a  qual  o  governo  de  Dom  João  VI 
cohonestava  com  um  argumento  que  os  Estados  Unidos 
muito  depois  invocariam  com  relação  á  necessidade  da  inter- 
venção em  Cuba;  não  poder  o  Brazil,  paiz  reconhecidamente 
ordeiro,  supportar  sem  perigo  próprio  um  foco  de  pertur- 
bação tão  perto  das  suas  communidades  pacificas  e  laboriosas. 

A  occupação  tinha,  porém,  por  motivos  verdadeiros  fa- 
cultar ao  Brazil  sua  fronteira  natural  ao  sul  e  tornar  bem 


598  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZÍL 

irremediável  a  desaggregação  hespanhola  em  andamento. 
Uma  vez  consummada,  tal  desaggregação  reduziria  a  me- 
trópole, privada  de  seus  melhores  recursos,  a  potencia  muito 
subalterna,  e  collocaria  os  desunidos  e  débeis  fragmentos  do 
império  colonial  rival  á  mercê  da  compacta  e  disciplinada 
expansão  portugueza  no  futuro. 

O  commercio  era  uma  das  preoccupações  presentes  e 
por  conseguinte  um  dos  motivos  da  attitude  cautelosa  do 
governo  portuguez,  o  qual,  zelando  na  apparencia  a  sua 
neutralidade,  só  aguardava  occasião  propicia  de  exclusiva 
e  francamente  servir  os  seus  interesses.  Entretanto  favorecia 
quanto  podia  o  trafico  mercantil  estabelecido  entre  o  Rio, 
Montevideo  e  Buenos  Ayres. 

Qualquer  desvio  da  tão  apregoada  isenção  que  dissi- 
mulava o  real  egoismo  da  intervenção,  podia  de  resto  ser 
profundamente  ruinoso  á  corte  brazileira.  Si  desertasse  a 
causa  legal  da  Héspanha,  ficar-lhe-hia  a  descoberto  o  velho 
Reino,  exposto  ás  represálias  da  nação  visinha.  Si  a  abra- 
çasse com  sinceridade,  correria  o  risco  de  ver  accender-se  um 
conf|icto  armado  do  novo  Reino  com  as  ex-colonias  hespa- 
nholas,  já  praticamente  empossadas  na  sua  soberania.  Era 
portanto  de  prever  que  Portugal  apenas  favorecia  effecti- 
vamente  o  partido  da  metrópole  si  a  considerasse  ou  melhor 
a  verificasse  em  estado  de  reconquistar  as  suas  possessões:  do 
contrario,  abster-se-hia  de  pronunciar-se  abertamente  e  não 
perderia  até  ensejo  de  usar  de  benevolência  para  com  os 
insurgentes. 

Maler  cita  como  um  dos  exemplos  da  moderação  e  tole- 
rância de  Dom  João — poderia  accrescentar  do  seu  tino  —  o 
tratamento  dispensado  ao  general  Alvear,  ex-director  das  Pro- 
víncias do  Rio  da  Prata,  o  qual  se  refugiara  a  bordo  de  uma 


DOM  JOÃO  VI  NO^BRAZTL  599 

fragata  ingleza  e  d'ahi  passara  ao  Rio  de  Janeiro.  O  Prín- 
cipe não  só  o  poz  a  coberto  da  influencia  perseguidora  de  Vi- 
godet,  como  o  assegurou  da  sua  protecção  emquanto  proce- 
desse com   discernimento    (i). 

Também  é  mais  que  provável  que  Dom  João  consen- 
tiria em  ajudar  o  cunhado  (em  favor  de  quem  se  empenhava 
diligentemente  depois  da  restauração  a  Princeza  Dona  Car- 
lota, muito  amiga  de  Fernando  VI í,  muito  hespanhola  de 
coração  e  muito  trefega  de  génio),  caso  a  Hespanha  con- 
sentisse em  ceder-lhe  a  margem  oriental  do  Prata.  Nenhuma 
abertura  a  este  respeito  foi  porém  tentada,  segundo  decla- 
raram expressamente  a  Maler  tanto  o  general  Vigodet,  ao  re- 
gressar com  as  Infantas  que  viera  buscar,  como  o  encarre- 
gado de  negócios  da  Hespanha  Villalba  (2)  ;  entretanto  ia 
singrar  a  expedição  portugueza  contra  Montevideo,  verdade 
é  que  sob  o  maior  sigillo,  ignorando  os  representantes  es- 
trangeiros no  Rio  para  onde  ella  se  dirigia  exactamente. 

A  corte  do  Rio  affectava  aliás  todas  as  considerações 
para  com  o  legitimo  soberano  e  só  se  mostrava  disposta  a 
agir  parecendo  que  o  fazia  para  proteger  seus  súbditos,  no 
interesse  e  segurança  do  paiz  contra  visinhos  turbulentos.  A 
expedição  tão  antipathica  devia  comtudo  ser  á  corte  de  Ma- 
drid quanto  ao  governo  revolucionário  de  Buenos  Ayres.  A 
aversão  a  Portugal  era  grande  nas  terras  de  Castella,  mas 
não  menor  no  Rio  da  Prata,  cuja  população  porventura  ad- 
mittiria  mais  facilmente  a  tutela  brazileira  do  que  a  recolo- 
nização  hespanhola  com  o  domínio,  ao  velho  modo,  de  um 


(1)  Mais  tarde,  em  1818,  o  mesmo  encarregado  de  negocies  de 
França,  e  o  ministro  liespanhol  Casa-Flores  quizeram  debalde  impedir 
o  embapqne  de  Alvear  para  Buenos  Ayres.   (Corresp.  de  Maler). 

(2)  Officio  de  10  de  Julho  de  1816. 

D.  J.  —  '3S 


600  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

vice-rei  ou  capitão  general,  anhclando  porém  mais  que  tudo 
e  o  mais  fortemente  pela  independência. 

Os  jornaes  inglezes  da  epocha,  cujo  parecer  se  mani- 
festava unanimemente  muito  contrario  á  expedição  do  Sul 
—  quer  ella  viesse  a  ser  feita  de  connivencia  com  o  Rei 
d'Hespanha,  quer  fosse  intentada  unicamente  por  Portugal 
com  o  fim  de  castigar  um  visinho  importuno  como  Artigas 
e  assegurar  á  fronteira  brazileira  uma  mais  solida  protecção 
— punham  no  geral  em  relevo  ( i )  aquella  aversão  tradicional 
e  o  mal  que  para  os  Portuguezes  resultava  de  prestarem  ou- 
vidos ás  facções  decahidas  e  intrigantes  que,  lá  como  em  toda 
a  parte,  empregavam  os  melhores  esforços  para  venderem 
seu  paiz  a  estrangeiros. 

O  partido  portuguez  chegou  entretanto  a  ser  considerá- 
vel no  Rio  da  Prata  "em  contraposição  aos  principios  disso- 
lutos dos  Independentes,  que  constituiam  o  outro  partido 
forte"  (2)  ;  porquanto  no  que  não  havia  quasi  discrepâncias, 
em  que  pese  á  opinião  de  Luxemburgo  e  Maler,  imbuidos  de 
preconceitos  de  legitimidade  e  da  excellencia  das  soluções 
medias,  era  por  parte  da  população  nacional  com  relação 
ao  restabelecimento  da  auctoridade  da  mãi  pátria,  mesmo 
scfb  a  forma  de  união  com  previa  concessão  da  autonomia. 

Um  periódico  britannico  (3)  escrevia  até,  reconhe- 
cendo o  vigor  do  partido  affeiçoado  á  corte  do  Rio,  que  "as 
pessoas  mais  respeitáveis  das  provincias,  tanto  pela  fortuna 
como  pela  reputação,  eram  favoráveis  ao  governo  portuguez 
porque  o  julgavam  preferi vel  aos  principios  revolucionários 
e  irreligiosos  que  são  infelizmente  transmittidos  á  America 


(1)  Entre   ontvos   o  Moniing   Chronicle   de   19   de    Setembro   de 
1816. 

(2)  Corresp.   de  (Maler. 

(3)  Wcekly  Messeuffer  de  1.3  de  Outubro  de  181G. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL  601 

Meridional  como  a  toda  a  Europa  por  esses  patriotas  e  esses 
reformadores"    (i),  do  outro  partido. 

A  attitude  da  Inglaterra  foi  comtudo,  official  e  popu- 
larmente, hostil  de  modo  inequivoco  a  Portugal  e  á  sua 
politica  platina.  Para  a  Inglaterra  a  solução  mais  vantajosa 
era  a  da  independência  por  significar  liberdade  commercial 
nas  melhores  condições.  Uma  extensão  qualquer  de  mercados 
ciiegava  n'esse  momento  o  mais  a  propósito  para  compensar 
a  má  vontade  que  contra  as  industrias  britannicas  continuava 
a  ser  ciosamente  cultivada  no  continente.  *'A  independência 
d'esse  immenso  e  rico  paiz,  escrevia  um  dos  mais  conceitua- 
dos jornaes  (2),  desenvolveria  em  poucos  annos  os  seus 
recursos  ao  mesmo  tempo  que  as  suas  necessidades,  em  grau 
tal  que  se  produziria  um  justo  equivalente  de  todos  os  pre- 
juizos  que  possamos  experimentar  nos  outros  mercados  da 
Europa." 

Argumentava  a  imprensa  ingleza  com  o  perfeito  titulo 
das  colónias  hespanholas  á  independência  desde  o  dia  em 
que  Fernando  VII  abandonara  o  império  da  Velha  e  Nova 
Hespanha  a  José  Napoleão,  e  a  America  desconhecera  o 
monarcha  intruso.  Por  seu  lado,  uma  vez  restabelecido  no 
tlirono,  o  Rei  legitimo  convidara  os  seus  súbditos  ultramari- 
nos á  sujeição  sem  condescender  em  lhes  conceder  uma  só 
garantia  para  as  suas  liberdades  conquistadas.   Isto  no  em- 


(1)  Ajunta  o  m^smo  periódico  no  artigo  citsdo :  "O  governo 
li.i^spanliol,  não  satisíoiío  com  um  direito  Icgitimia  ao  S3U  despotismo. 
Tião  contente  de  mencionar  os  séculos  de  obscurantismo  da  sua  monar- 
vMn,  baseia-a  sobre  uma  parte  absurda  da  linguagi^m  empregada  na 
Kscriptnra,  publicando  recentemente  um  cathecismo  no  qnal  os  Após- 
tolos e  os  Evangelistas  r<^pet<'im  os  dizeres  do  D.  Pedro  Cevallos  e  dos 
syeophantas  tia  Corte  dMIespanha.  l'ara  refutar  esta  doutrina  o  suas 
ílciducções,  o  partido  opposto,  igualmente  insensato,  vai  ao  extremo  e 
•MU  vez  de  omittu-  duvidas  sobre  a  interpretação,  repelle  a  regra,  o 
iprinicipio  e  mesmo   a   fé." 

(2)  Mo'jMiiiig  Ch)'uniehe  de  14  de  Outubro   do  1S1<3. 


602  DOM  JOÃO  VI  KO  BRAZIL 

tanto  não  justificava  a  intervenção  portugueza.  "Não  alcan- 
çariamos  formar  uma  idéa  dos  direitos,  a  menos  que  os  es- 
tabeleçam a  fraude  e  a  violência,  que  possa  possuir  o  governo 
portuguez  para  interferir  n'uma  disputa  entre  a  Hespanha 
e  as  suas  colónias"   (i). 

Igual  maneira  de  ver  adoptava  o  gabinete  de  Saint- 
James  apezar  de,  no  intuito  de  lisonjear  os  sentimentos  prá- 
ticos da  Inglaterra  no  assumpto,  ter  o  general  commandante 
da  força  expedicionária  portugueza  levado  ordem  de  decla- 
rar abertos  ao  commercio  universal  todos  os  portos  de  que 
se  apoderasse,  assim  abolindo  formalmente  o  systema  colo- 
nial de  exclusivismo. 

De  resto  a  potencia  alguma  da  Europa,  cujos  agentes 
no  Brazil  denunciavam  os  altos  planos  da  corte  do  Rio, 
agradava  o  imperialismo  americano  de  Portugal.  "Monse- 
nhor, exclamava  Maler  (2),  esta  Corte  mau  grado  a  penú- 
ria das  suas  finanças,  a  fraqueza  do  seu  governo  e  o  estado 
da  sua  população,  nutre  idéas  ambiciosas;  imaginou  que 
chegara  para  ellas  o  momento  favorável  e  o  titulo  de  Reino 
Unido  havendo  exaltado  algumas  cabeças,  acredita  poder 
impunemente,  não  sacudir  a  mascara,  mas  levantar  o  véo." 

Verdade  é  que  a  residência  americana  dava  uma  inde- 
pendência á  corte  portugueza  como  ella  desde  longo  tempo 
ou  talvez  nunca  possuirá  na  Europa,  não  deixando  todas 
as  potencias  de  reconhecer  o  cabimento  da  preferencia  tes- 
temunhada pelo  Príncipe  Regente  ao  Brazil.  "Essa  espécie 
de  sujeição  tem  frequentemente  estorvado  a  corte  de  Lisboa, 
dizia-se  nas  instrucções  ao  coronel  Maler,  quando  nomeado 


(1)  Periódico  citado. 

(2)  Officio  de  31  de  Outubro  de  1816. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  608 

para  o  Rio  de  Janeiro  (i).  O  Principe  pode  desejar  for- 
rar-se  d'ella.  A  residência  no  Rio  faculta-lhe  mais  liberdade.'' 

O  governo  francez  enxergava  distinctamente,  pois,  um 
dos  principaes  motivos  que  por  vontade  do  seu  chefe  reti- 
nham  a  familia  real  além  mar.  Outro  motivo  capital  que 
nas  mesmas  instrucções  se  aponta  para  o  apego  de  Dom  João 
á  nova  sede  da  monarchia,  era  precisamente  a  emancipação 
em  via  de  firmar-se  das  colónias  hespanholas,  as  quaes  ten- 
diam a  estabelecer  com  o  Brazil  laços  politicos  e  commer- 
ciaes  que  o  Império  desmanchou,  no  querer  afastar  o  Reino 
da  attracção  republicana.  "O  Principe  Regente  tendo  a  es- 
colher entre  ser  ainda  por  muito  tempo  o  primeiro  poder  da 
America  Meridional  ou  voltar  a  occupar  um  dos  terceiros 
lugares  na  Europa,  abraçará  porventura  o  partido  que  lhe 
permitta  exercer  em  redor  de  si  maior  influencia"  (2) 

Tão  interessado  se  mostrava  o  Principe  Regente  pelo 
Novo  Mundo,  onde  se  asylara,  que  a  imprensa  ingleza  che- 
gara pouco  antes  da  expedição  do  Sul  a  dar  curso  ao  boato 
de  que  progredia  entre  as  coroas  hespanhola  e  portugueza 
uma  negociação  para  trocar  o  património  da  dynastia  de 
Bragança  na  Europa  por  territórios  mais  extensos  na  Ame- 
rica Meridional. 

O  boato  era  inexacto,  e  á  Hespanha  não  illudiam  os 
protestos  de  boa  fé  portugueza,  assim  como  não  illudiam 
os  insurgentes  de  Buenos  Ayres  as  seguranças  de  que  a 
expedição  platina  visava  meramente  a  repressão  da  anarchia 


(1)  L\rch.  do  Min.   dos  Nog.  Est.  do  França. 

(2)  InstmcQões  citadas.  Maler  compreliendeu  logo  ao  ohegar 
qup  a  corte  contava  permanecer  no  Brazil.  "Por  tudo  quanto  ouço  e  ob- 
servo, reza  se^u  officio  de  6  de  Setembro  de  1815.  sou  leivado  a  crer 
firmiemicnte  ique  de  todos  os  modos  se  encontra  S.  A.  R.  resolvido  a 
prolongar  sua  assistência  n'esta  região,  sendo  precisas  circurnstanciae 
muito  imperiosas  para  o  compellirem  a  mudar  de  resolução." 


604  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

local.  Na  grave  crise  de  1816  procedeu  Pueyrredon  com 
vigor  e  patriotismo,  ao  mesmo  tempo  que  com  discerni- 
mento. Elle  pretendeu  com  effeito  oppor  á  invasão  es- 
trangeira o  concurso  unido  de  Montevideo,  de  Artigas  e 
das  Provincias  Unidas,  quando  o  Congresso  de  Tucuman 
dava  ao  deputado  Irigoyen,  encarregado  de  uma  missão  no 
Rio  de  Janeiro,  instrucções  que  começavam  altivas  pela  solu- 
ção do  reconhecimento  da  independência  das  Provincias  Uni- 
das e  manutenção  da  inviolabilidade  do  seu  território,  para 
descerem,  passando  pelas  varias  hypotheses  monarchicas,  até 
a  recolonização  do  vice-reinado,  ignominiosamente  transfe- 
rido da  tyrannia  hespanhola  para  o  jugo  portuguez  (i). 

Em  nome  da  vontade  soberana  das  Provincias  Unidas 
da  America  do  Sul,  reunidas  em  assembléa  representativa,  e 
em  virtude  do  seu  mandato  ponderou  o  director,  em  carta 
dirigida  ao  general  em  chefe  portuguez,  que  considerava  a 
aggressão  uma  infracção  do  armisticio  de  1812,  o  qual  fora 
celebrado  especialmente  em  vista  da  Banda  Oriental.  O 
caudilho  uruguayo  a  ninguém  delegara  comtudo  o  cuidado 
de  formular  a  sua  repulsa.  De  facto  existia,  apezar  da  igual- 
dade de  interesses  em  frente  ao  inimigo  commum,  pro- 
funda antipathia  entre  os  insurgentes  das  duas  margens, 
acabando  mesmo  o  governo  de  Buenos  Ayres  de  aproveitar-se 
das  difficuldades  de  Artigas  para  mandar  occupar  a  cidade 
de  Santa  Fé,  de  que  este  se  achava  de  posse. 

Ao  emissário  adrede  mandado  por  Pueyrredon,  Nicoláo 
de  Vedia,  respondeu  o  caudilho  com  sobranceria  que  se  de- 
senvincilharia  desajudado;  que  o  governo  de  Buenos  Ayres 
estava  em  mãos  tão  fracas  e  incapazes  que  d'ahi  não  poderia 


(1)   Mitro,  Ili.sc.  (Ic  Bchjrano. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  605 

esperar  soccorro  ou  vantagem  alguma;  que,  pelo  contrario, 
iria  elle  dar-lhe  uma  licção  logo  que  houvesse  repellido  os 
Portuguezes,  e  que,  caso  fosse  batido  na  margem  esquerda, 
se  retiraria  para  a  margem  direita   ( i ) . 

Ainda  depois  de  assignada  uma  convenção  entre  as 
auctoridades  de  Buenos  Ayres  e  os  deputados  da  Banda 
Oriental,  escrevia  Maler  que  a  intelligencia  entre  as  duas 
margens  não  passava  de  macaquices  {sitnagrées)  (2).  E' 
mister  realmente  não  esquecer  que  a  ogeriza  de  Buenos  Ay- 
res contra  Artigas  foi  um  factor  relevantissimo  dos  successos 
que  occorreram  até  1821.  "Montevideo  n'a  reçu  et  ne  re- 
cevra  aucun  secours,  ajuntava  o  encarregado  de  negócios 
de  França,  et  les  coriphées  du  Gouvernement  des  Provinces 
Unies  désirent  avant  tout  la  destruction  d'Artigas,  de  son 
parti,  et  de  son  influence." 

Buenos  Ayres  não  se  prestava  a  soccorrer  efficazmente 
Montevideo  e  apoial-a  decididamente  em  grande  parte  por- 
que. Artigas,  desejando  por  fim  e  reclamando  soccorros,  con- 
servava sempre  ares  de  dictar  suas  condições.  O  auxilio  seria 
concedido  do  melhor  grado  si  Montevideo  annuisse  em  en- 
corporar-se  ao  organismo  politico  das  Províncias  Unidas; 
mas  perante  suas  velleidades  persistentes  de  separação,  Bue- 
nos Ayres  preferia  esquivar-se,  como  lhe  aconselhavam  ou- 
tras circumstancias,  mandando  todas  suas  forças  disponíveis 
para  os  lados  do  Chile  e  decidindo  a  invasão  capitaneada  por 
San  Martin.  O  desejo  era  grande  de  formar  com  Montevi- 
deo uma  ligação  baseada  sobre  a  autonomia  do  composto; 
porém  era  também  grande  o  resentimento  contra  o  caudi- 
lho intratável,  e  não  menor  a  timidez  em  precipitar,  sem 


(1)  CoiTesp.    de   Maler. 

(2)  Off.  de  20  de  Fevereiro  de  1817. 


006  DOM  JOÃO  VI  XO  BRAZIL 

recursos    adequados,    um    conflicto    com    Portugal,    perigoso 
para  a    emancipação  argentina. 

A  multidão  era  por  Montevideo,  o  sentimento  popular 
estava  com  a  resistência,  o  instincto  dos  governantes  denun- 
ciava a  ameaça  da  occupação  estrangeira  da  Banda  Oriental: 
força  era  comtudo  aos  responsáveis  pelos  negócios  públicos 
raciocinarem  com  mais  calculo  e  menos  sentimentalismo,  tanto 
mais  quanto  na  outra  margem  do  Prata  só  se  lhes  deparavam 
desconfiança  e  hostilidade.  ''II  faut  bien  selon  les  circonstan- 
ces  avoir  Tair  de  ceder  aux  cris  du  peuple, mais  Tarri-ère  pen- 
sée  est  constamment  la  même,  on  veut  toujours  à  tout  eve- 
nement  la  facilite  de  se  jetter  dans  les  bras  des  Portu- 
gais"  (i).' 

As  tropas  portuguezas,  aproveitando-se  d'estas  dissen- 
sões e  receios,  tinham  entretanto  ido  arvorando  o  pavilhão 
do  Reino  Unido  no  território  oriental.  O  plano  da  campanha 
era  assim  esboçado  por  Hippolyto  aos  seus  leitores  na  occa- 
sião  em  que  se  travava  a  lucta:  "As  tropas  portuguezas  do 
Rio  Grande,  entraram  já  por  Missoens,  passaram  o  Uru- 
guay,  e  iam  a  atacar  Corrientes,  que  he  o  principal  posto 
fortificado,  que  Artigas  tem  no  Paraná.  Depois,  vindo 
pôr  este  rio  abaixo,  não  terão  difficuldade  em  tomar  Santa 
Fé,  que  he  a  chave  da  passagem  para  a  margem  meridional 
do  Rio  da  Prata;  assim  ficará  inteiramente  cortada  a  reti- 
rada de  Artigas  para  o  interior  do  paiz;  ainda  que  elle  alli 
tivesse,  o  que  não  tem,  amigos  que  o  acolhessem,  e  proteges- 
sem. Se  Artigas  for  com  suas  tropas  de  Montevideo  a  op- 
pôr-sc  a  estes  planos  dos  portuguezes,  deixa  Montevideo, 
Colónia  do  Sacramento,  Maldonado,  e  toda  a  margem  do 
Rio   da   Prata  daquella   parte,   sem   forças   para   resistir   ao 


(1)   Off.  clt.  de  Maler  de  20  de  Fevereiro  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  607 

desembarque  de  cinco  mil  homens,  que  por  mar  alli  chegarão 
do  Rio  de  Janeiro;  e  apertado  entre  dous  exércitos,  cada 
um  delles  superior  ao  seo,  Artigas  não  tem  meio  algum  de 
resistir"  (i). 

Si  o  plano  não  foi  seguido  á  risca  e  não  esperava  o  re- 
sultado facilidade  igual  á  augurada,  é  que  a  invasão  de 
Corrientes  e  Entrerios  não  correspondeu  ao  projecto  táctico 
e  Artigas  não  ficou  afinal  entre  dous  fogos,  segundo  fora 
delineado.  Do  lado  do  mar,  a  marcha  dos  Portuguezes  entre 
o  littoral  e  a  capital  foi  comíudo  progressivamente  feliz,  to- 
mando o  exercito  conta  das  praças  em  nome  do  Rei  Fide- 
lissimo  como  si  se  tratasse  de  verdadeiras  conquistas,  que  de 
verdade  o  eram. 

Para  confirmar  tal  impressão,  basta  ler  a  convenção 
ajustada  a  22  de  Novembro  de  1816  entre  o  capitão  de  fra- 
gata conde  de  Vianna  e  D.  Francisco  de  Aguilar,  como 
representante  do  povo  de  Maldonado,  para  a  entrega  d'esta 
cidade.  Maldonado  manifestara  aliás  preferir  muito  dedi- 
car-se  tranquillamente  ao  commercio,  a  experimentar  o  con- 
tra-choque  das  luctas  armadas,  pelo  que  o  general  Barrera, 
creatura  de  Artigas,  tinha  feito  conduzir  ao  quartel  general 
do  chefe,  desarmados  e  sob  uma  escolta  toda  composta  de 
negros  perfeitamente  equipados,  os  milicianos  da  cidade  (2). 

Por  occasião  da  rendição  de  Montevideo,  um  dos  arti- 
gos da  convenção  assignada  estipulava,  em  absoluto  menos- 
prezo e  directa  offensiva  aos  direitos  do  Rei  Catholico,  os 
quaes  tanto  se  assegurava  salvaguardar,  que  o  general  Lecor 
se  compromettia  a  não  devolver  as  chaves  da  cidade  senão 
ás  mesmas  auctoridades  que  lh'as  tivessem  confiado. 


(1)  Correio  Braziliense,  n.  98,  Julho  de  1816. 

(2)  Corresp.   de  Maler. 


608  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

As  proclamações  de  Lecor  eram  redigidas  e  seus  actos 
pautados  na  intenção  de  conciliar  os  ânimos  e  ganhar  os 
corações,  e  para  que  pudesse  juntar  a  pratica  á  thcoria,  aper- 
feiçoando o  seu  sistema  de  seducção,  fornecera  o  governo 
do  Rio  ao  general  em  chefe  dinheiro  bastante  para  conceder 
pensões  e  extender  dadivas  a  indivíduos  de  todr.s  as  opiniões. 
"  Assim  é  que  ellc  outorgou  uma  pensão  mensal  de  8o  pias- 
tras á  viuva  de  um  capitão  morto  nas  fileiras  insurgentes  ao 
combater  valentemente  os  Portuguezes,  e  que  tinha  uma 
cabeça  muito  exaltada"   (i).  ' 

Não  deixa  de  encerrar  profunda  ironia  que  os  fernan- 
distas,  isto  é,  os  partidários  da  legalidade  fossem  a  um  tempo 
vaiados  em  Montevideo  e  perseguidos  pelos  Portuguezes,  ao 
passo  que  estivessem  os  revolucionários  no  favor  dos  inva- 
sores, mostrando-se  portanto  ahi  o  gabinete  do  Rio  em  ex- 
tremo liberal,  quando  no  Brazil  o  regimen  dominante  nas 
provincias  era,  na  essência,  o  mesmo  obsoleto  que  prevalecera 
nas  capitanias  e  em  tantos  casos  se  assignalara  pelo  arbitrio 
e  vexames.  O  jogo  era  pelo  menos  arriscado,  tratando-se  de 
experiências  novas  para  a  politica  portugueza  n'uma  pro- 
víncia limiitrophe,  donde  podia  irradiar  irresistível  o  conta- 
•gio  para  a  enorme  massa  que  ao  lado  dormitava  na  sua 
apathia. 

De  accordo  com  as  instrucções  que  levara,  Lecor,  no 
dizer  reiterado  de  Maler  (2),  prodigalizava  dinheiro  e  afa- 
gos com  marcada  predilecção  entre  todos  os  que  tinham  de- 
sempenhado papeis  salientes  nos  transes  da  revolução,   assl- 


(1)  Officio  de  Maler  de  13  de  Março  ãe  1817.  Informa  esto 
officio  que  os  Portuguezes  encontraram  soibre  as  deíezas  de  MontcTÍ- 
d6o  120  peças  ã'artillieiiia  cm  Iwm  estado  e  172  mais  ou  menos  dete- 
i-ioradas,  mas  nos  armazéns  muito  pouca  pólvora  e  maujições. 

(2)  Officio  de   20   de  Março   de   1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  609 

gnalando-se  pela  sua  immoralidade  —  segundo  taxavam  os 
realistas  as  opiniões  republicanas — ou  mesmo  pelo  exaggero 
das  suas  idéas  conservadoras,  transmudadas  em  vistas  menos 
legitimiistas.  O  fito  politico  de  Portugal  sobretudo  era,  para 
o  caso  de  chegar  uma  expedição  hespanhola  de  reconquista 
ou  de  Buenos  Ayres  declarar  guerra  aos  invasores,  ter  orga- 
nizado um  partido  de  annexação  ao  Brazil  com  gente  cuja 
defecção  fosse  menos  para  temer,  por  haver  justamente  es- 
tado antes  mais  compromettida,  quer  com  o  legitimo  sobe- 
rano, quer  com  os  revoltosos  da  margem  direita,  não  po- 
dendo d'est'arte  esperar  perdão  pela  traição  commettida. 
"Não  sei  ,  Monsenhor,  exclamava  JVíaler  no  referido  offi- 
cio,  qual  das  duas  cousas  é  a  mais  incrivel,  si  a  perversidade, 
a  iniquidade  do  projecto,  si  a  inepta  confiança  nos  meios  de 
execução,  em  miseráveis  traidores,  universalmente  despre- 
zados." 

Maler,  convém  não  esquecer,  era  um  espirito  mais  do 
que  conservador,  reaccionário,  ao  qual  apparecia  eminen- 
temente repulsiva,  fosse  a  subtracção  das  colónias  hespa- 
nholas  á  sua  tutela  legal,  fosse  a  encorporação  de  qualquer 
d'ellas  n'outra  metrópole  que  não  a  primitiva.  Seguindo  de 
perto  as  occorrencias  e  dispondo  de  excellentes  fontes  de  in- 
formação, porque  de  mais  a  mais  ccmprehendia  e  fallava 
bem  o  portuguez,  adquirido  nos  seus  longos  annos  de  emi- 
gração em  Lisboa,  elle  se  não  podia  certamente  illudir  no 
tocante  ao  desenvolvimento  das  idéas  portuguezas  de  manu- 
tenção da  conquista  platina,  isto  c,  de  occupação  permanente 
da  margem  esquerda  do  Prata. 

O  governo  portuguez  ia  até  gradualmente  abandonando 
algumas  das  suas  protestações,  que  eram  subterfúgios.  Inter- 
rogado por  Chamberlain  sobre  as  vistas  officiaes  n'este  as- 


610  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

sumpto,  Barca  ainda  pretextou  que  o  pavilhão  portuguez 
fora  içado  na  Banda  Oriental  porquanto  seria  impolitico  içar 
o  pavilhão  hespanhol,  tão  detestado  pelos  insurgentes ;  mas 
logo  declarou  que  no  caso  de  alcançar  aquellas  paragens  a 
expedição  que  a  corte  hespanhola  destinava  a  suffocar  a  in- 
surreição americana,  não  lhe  seria  facultado  desembarcar 
na  margem  oriental,  entrando  então  o  gabinete  do  Rio  em 
negociações  com  o  de  Madrid    (i). 

Esta  linguagem  bastante  descobria  o  propósito  formal 
de  levar  d*essa  vez  a  fronteira  portugueza  no  Brazil  até 
o  seu  almejado  limite  platino.  O  Rei  pessoalmente  tanto  em- 
penho punha  na  guerra  e  tão  pouco  o  occultava,  que  não 
perdia  occasião  de  mostrar  seus  enthusiasmos.  Passou,  como 
Debret  o  fixou  artisticamente,  revista  ás  tropas  que  embarca- 
vam para  o  Sul  e,  logo  depois  de  Barca  fallecer,  fez  uma 
grande  promoção  no  exercito,  nomeando  5  tenentes  gene- 
raes,  3  marechaes  de  campo  e  4  brigadeiros,  igualmente  fa- 
zendo promoções  na  armada  e  em  todos  os  corpos  de  mi- 
licia. 

A  gotta  e  outras  enfermidades  do  novo  secretario  d'Es- 
tado  Bezerra,  quasi  entrevado,  não  impediram  o  serviço 
das  assignaturas  de  effectuar-se  com  grande  zelo  e  desusada 
diligencia,  o  que  fazia  o  encarregado  de  negócios  de  França 
perguntar  si,  nada  executando  o  gabinete  do  Rio  para  satis- 
fazer as  potencias  medianeiras,  não  pretendia  ainda  por 
cima  affrontal-as  distribuindo  graças  e  mercês,  e  "na  sua 
impotente  fraqueza  activando  os  reforços  a  mandar  para  o 
theatro  da  guerra  ?   (2) 


(1)  Ofificio  cifrado  de  Maler  de  17  de  Março  de  1817. 

(2)  Offkio  de  6  de   Julho  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  fill 

Julgando  possível  uma  coUisão  com  a  Hespanha,  não 
acreditava  comtudo  Maler  na  probabilidade  de  uma  guerra 
com  as  Provincias  Unidas,  tendo  por  certa  a  existência  de 
uma  intelligencia  secreta  entre  a  corte  brazileira  e  os  mais 
altos  funccionarios  de  Buenos  Ayres.  Em  abono  da  sua 
convicção,  citava  por  um  lado  o  apoio  pelo  Congresso  de 
Tucuman  da  inacção  do  director  Pueyrredon  a  respeito  do 
soccorro  de  Montevideo  contra  os  Portuguezes,  e  por  outro 
lado  a  inserção  na  pallidissima,  anodissima  e  ultra-reservada 
Gazeta  do  Rio  de  Janeiro  de  documentos  traduzidos  da 
Gazeta  de  Buenos  Ayres,  em  que  aquella  assembléa  de  dís- 
colos se  appellidava  o  Soberano  Congresso  Nacional. 

O  objectivo  d'este,  em  todo  o  seu  proceder,  era  nas 
expressões  de  Maler  não  desagradar  ao  governo  do  Brazíl  e 
salvar  Pueyrredon  do  furor  popular,  pois  que  o  cercava 
um  partido  irritado  pela  approximação  dos  Portuguezes. 
"Congresso  e  Director  entendem-se  e  por  demais  convém 
aos  representantes  conservarem  o  Sr.  Pueyrredon  no  cargo 
para  não  fazerem  outrosim  alguns  sacrifícios,  assim  sendo 
que  uns  e  outros  entregaram  com  prazer  Montevideo  ao  es- 
trangeiro, mau  grado  o  compromisso  publico  e  solemne  que 
tinham  tomado  de  defendel-a"    (i). 

Iam  as  desconfianças  de  Maler  ao  extremo  de  consi- 
derar, e  em  cada  officio  para  Pariz  o  repetia  como  um  es- 
tribilho, Pueyrredon  um  traidor  á  causa  nacional,  um  ven- 
dido a  Portugal,  quando  de  facto  elle  tremia  justamente 
pela  preservação  da  liberdade  de  Buenos  Ayres.  Com  este 
receio  de  compromettel-a,  attrahindo  sobre  si  as  iras  portu- 
guezas,  e  tendo  a  consciência  de  achar-se  em  casa  sobre  um 
vulcão,  deixava  o  director  passar  mez  apoz  mez  da  occupa- 


(1)   Off.  clt.  de  13  de  Março  ^e  1817. 


612  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ção  sem  se  atrever  a  reclamar  no  Rio  de  Janeiro  contra  a 
quebra  flagrante  de  neutralidade,  e  sem  tampouco  dar  an- 
damento á  tarefa,  que  era  uma  obrigação,  de  soccorrer  es 
Orientaes,  na  forma  da  sua  notificação  official  ao  general 
Lecor. 

Nenhuma  duvida  parecia  haver  no  animo  do  represen- 
tante francez  de  que  um  simples  soccorro  de  400  infantes  e 
100  artilheiros,  juntando-se  ás  disposições  bellicosas  da  po- 
pulação da  campanha,  teria  bastado  para  destroçar  o  pe- 
queno exercito  portuguez  sitiante  da  praça  (i).  E  a  ver- 
dade era,  ao  ser  expressa  esta  convicção,  que  Lecor  estava 
senhor  de  Montevideo,  mas  não  da  campanha,  a  qual  conti- 
nuava percorrida,  dominada  e  assolada  pelos  rebeldes,  só 
podendo  os  Portuguezes  communicar-se  com  o  Brazil  por 
mar. 

Contava  Maler  para  Pariz,  em  apoio  das  suas  sus- 
peitas, que  Pueyrredon  supprimira  a  Crónica  Argentina,  cujo 
espirito  era  hostil  aos  Portuguezes  e  em  cujas  paginas  o  cen- 
suravam acremente  por  não  haver  soccorrido  Montevideo, 
escrevendo-se  que  Lecor  devia  ter  lealmente  mencionado 
aos  habitantes  da  cidade  sitiada  que  nada  tinham  a  esperar 
\l'aquelle  lado.  Pelo  contrario  o  Censor,  dirigido  por  um  clé- 
rigo que  era  o  testa  de  ferro  do  director,  fallava  ligeiraniente 
da  invasão  brazileira. 

Para  satisfazer  ao  sentimento  popular  de  patriotismo, 
publicou  comtudo  Pueyrredon  a  2  de  Março  de  181 7  um 
manifesto  contra  as  medidas  do  general  portuguez,  fazendo 
porém  simultaneamente  chegar  ás  mãos  d'este  (2),  junto 
com   o    documento   ostensivo,    uma    carta   confidencial    para 


(II   Off.  ciif.  cit.  d-   17  d-  :\I:irQi   d?  1817. 
(2)   Off.  de  Maler  de  18  de  Abril  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  013 

rogal-0  de  não  tomar  clexiiasiado  ao  serio  ou  se  não  melindrar 
com  essa  publicação  c  providencias  annunciadas,  pois  não 
passavam  de  phrases  que,  como  governante,  fora  compellido 
a  assignar  em  tal  conjunctura  e  lhe  não  deviam  causar  a 
menor  inquietação.  Com  effeito,  proseguia  Maler  para  pro- 
var quanto  os  factos  fallavam  mais  alto  que  as  palavras, 
continuavam  socegadamente  na  cidade  os  Portuguezes  que, 
segundo  as  ordens  de  Pueyrredon,  deviam  ser  presos  e  de- 
portados. 

Ao  passo  que  o  secretario  da  guerra,  que  pelo  seu 
relatório  forçara  por  assim  dizer  o  director  a  subscrever  o 
manifesto,  era  demittido  por  isso  e  por  haver  externado  com 
mais  vigor  sua  opinião  sobre  a  necessidade  de  oppor-se  ener- 
gicamente o  governo  de  Buenos  Ayres  ás  medidas  de  rigor 
proclamadas  pelo  general  Lecor  contra  as  partidas  cjue  in- 
festavam os  campos  uruguayos,  a  connivencia  occulta  appa- 
recia  palpável.  Com  o  assentimento  de  Pueyrredon  eram  ex- 
portadas de  Buenos  Ayres  fangas  de  milho  e  cargas  de  ou- 
tros viveres  para  Montevideo,  onde  os  comestiveis  estavam 
por  altissimos  preços  ( i )  pelas  circumstancias  da  af fluência 
de  tropas,  por  outro  lado  roubadas  pelo  recrutamento  á 
agricultura  instante,  e  da  posição  dominadora  na  campanha 
da  gente  de  Artigas. 

Assevera  Malcr  (2)  que,  quando  San  Martin  foi  a 
Buenos  Ayres  concertar  com  o  director  a  expedição  do  Pa- 
cifico, este  o  quiz  converter  ás  suas  vistas  de  harmonia  in- 
tima, quiçá  de  disfarçada  vassallagem  ao  Brazil,  mas  que  o 
denodado  guerreiro  e  honesto  politico  lhe  respondeu  com 
furibunda   indignação,   jurando    altivamente   que,   emquanto 


(1)  o  trigo  custava  20  piastras  fortes  a  faiiga ;  vciieliam-se  as 
100  li".)ras  cíp  bolacha  ])Ui-  2."»  i)iasíra<.  c  uni  boi  por  40  piastras. 

(2)  Ofificio  de  10  tle  Junho  do  1817. 


614  DOM  JOÃO  VI  NO  ÈRAZIL 

respirasse  e  tivesse  junto  a  si  um  soldado,  combateria  taes 
tramas  e  resistiria  á  ambição  portugueza. 

O  representante  francez  estava  todavia  persuadido  ( i ) 
de  que  não  obstante  as  machinações  &  secretos  designios  de 
Pueyrredon,  que  persistia  em  lobrigar,  o  partido  anti-portu- 
guez  ganharia  finalmente  a  ascendência  em  Buenos  Ayres 
e  declararia  a  guerra  aos  invasores  da  Banda  Oriental.  Não 
podiam  deixar  de  precipitar  esse  acontecimento  o  episodio 
subversivo  de  Pernambuco,  a  resistência  continuada  das  po- 
pulações uruguayas  e  a  debilidade  militar  dos  Portuguezes. 
O  general  Lecor  encontrava-se  quasi  fechado  em  Montevi- 
deo, pois  apenas  contava  uma  brigada  acampada  a  alguma 
distancia  da  cidade,  e  não  era  possivel  então,  com  a  insurrei- 
ção no  Norte,  enviar-lhe  reforços,  que  por  outro  lado  o 
velho  Reino  só  muito  constrangido  consentia  em  prestar. 
Também  a  expedição  custava  rios  de  dinheiro,  e  as  finan- 
ças estavam  longe  de  accusar  prosperidade.  Mais  tarde  in- 
formava Maler  (2)  que  o  soldo  dos  officiaes  do  exercito  an- 
dava atrazado  de  oito  mezes  e  o  dos  officiaes  da  esquadra  de 
onze  mezes. 

N'uma  cousa  Maler  enxergava  por  certo  claro,  e  era 
em  que  Artigas  constituia  o  verdadeiro  pomo  de  discórdia 
entre  as  duas  margens,  apezar  de  real  o  sentimento  autono- 
mista da  Banda  Oriental.  Si  o  caudilho  desapparecesse, 
Pueyrredon  e  os  Argentinos  não  teriam  mais  duvidas  em 
apresentar-se  e  disputar-lhe  a  successão  local,  appellando 
para  a  irmandade  de  raça  e  a  solidariedade  hispano-ameri- 
cana.  Esta  convicção,  que  imperava  no  Rio  de  Janeiro,  não 
permittia   adiantarem-se    as   vistas    e    intenções    do    gabinete 


(1)  Officio  de   18   de  Abril  de   1817. 

(2)  Oífldo  de  4  de   Abril  de  1818. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  615 

brazileiro,  tanto  quanto  ou  na  forma  por  que  este  o  dese- 
jaria. 

Entrava  no  interesse  de  Pueyrredon  que  os  Portu- 
guezes  supprimissem  a  opposição  de  Artigas,  visto  a  empreza 
parecer  em  extremo  arriscada  para  elle  só.  Em  1818  ainda 
o  caudilho  levava  decididamente  a  melhor  na  contenda  com 
os  portenhos,  destroçando  na  baixada  de  Santa  Fé  as  tropas 
commandadas  pelo  general  Balcarce,  e  como  sempre  promo- 
vendo em  seguida  a  devastação,  ao  ponto  de  faltar  carne  na 
capital  das  Provincias  Unidas.  "Não  se  pode  ler  sem  espanto 
e  pezar  os  editaes  que  a  necessidade  dieta  á  municipalidade 
de  Buenos  Ayres  sobre  a  falta  de  carne  n'uma  terra  onde 
outr'ora  se  matava  uma  rez  somente  para  aproveitar-lhe  o 
couro  !  "   (i) 

A  abstenção  portugueza  n'esse  momento  irritava  Pueyr- 
redon, tendo  o  general  Lecor  faltado  ao  seu  compromisso  de 
atacar  Artigas  simultaneamente:  os  revezes  incorridos  pelos 
destacamentos  de  Buenos  Ayres  teriam  assim  sido  motiva- 
dos pela  falta  de  correspondência  por  parte  dos  Portuguezes. 
O  general  Balcarce  viu-se  coagido  a  abandonar  suas  posi- 
ções e  retirar-se  para  a  outra  margem,  ficando  Artigas  senhor 
exclusivo  do  paiz,  com  o  seu  outro  adversário,  Lecor,  inactivo 
em  Montevideo  (2). 

O  enviado  Garcia  ia,  comtudo,  mantendo  o  mais  suave- 
mente a  boa  intelligencia  dos  dous  governos,  o  governo 
legitimo  do  soberano  absoluto  de  Portugal  e  Brazil  e  o  go- 
verno não  reconhecido  das  Provincias  sublevadas  e  democra- 
ticamente organizadas.  Si  em  Buenos  Ayres  a  contemplação 
com  os  occupantes  de  Montevideo  era  notória,  no  Rio  não 


(1)  Officio  de  Maler  de  30  de  Abril  de  1818. 

(2)  Officio  de  Maler  de  20  de  Maio  de  1818. 

D.  J.  —  39 


616  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

havia  menos  notória  contemplação  com  os  revolucionários 
platino:. 

Alvear,  expulso  de  Buenos  Ayres,  residio  trez  annos  no 
Rio  rem  ser  estorvado  no  minimo,  admittido  até  a  beijar  a 
mão  do  Rei,  e  quando  para  lá  quiz  voltar  (e  por  signal  que 
o  não  quizeram  acolher),  conseguindo  illudir  a  prohibição 
de  transportal-o  dada  por  Maler  ao  cr.pitão  da  goleta  fran- 
ceza  La  Celeste,  o  governo  portuguez  nem  deu  resposta  á 
nota  de  Casa  Flores,  ministro  da  Hespanha,  que  em  vão 
se  agitou  para  tolher  a  ida  do  rebelde.  Com.o  de  costume 
Dom  João  dissimulou,  ao  fazer-se  reverencia  ao  caso  na  con- 
versa que  teve  com  o  encarregado  de  negócios  de  França 
n'uma  das  numerosissimas  recepções  do  Paço,  onde  o  beija- 
mão  solemne  era  frequentíssimo,  a  propósito  de  tudo,  com 
grande  desespero  do  corpo  diplomático,  ao  qual  semelhan- 
tes festas  e  tão  repetidas  agradavam  pouco  pelo  calor,  pelo 
tédio  e  sobretudo  pelos  gastos  que  acarretavam. 

Dando  conta  d'estes  incidentes  ao  seu  governo,  Maler 
se  não  podia  conter  de  exclamar  com  trágica  emphase  ( i )  : 
"Não  hesito  em  avançar  bem  afoitamente  que  as  contempla- 
ções prodigalizadas  a  Buenos  Ayres  não  teem  limites,  que 
nada  me  surprehende  desde  que  se  trate  de  proteger  e  com- 
prazer aos  revolucionários  d'aquella  cidade,  e  por  fim  que  o 
accordo  reinante  entre  este  paiz  e  os  corypheus  da  America 
do  Sul  é  inconcebivel." 

A  situação  dos  Portuguezes  na  Banda  Oriental  de 
facto  não  resultava  tão  critica,  ou  tão  circumscripta  a  sua 
acção  militar,  quanto  o  queria  fazer  crer  a  insistência  dos 
agentes  diplomáticos  europeus  no  Brazil,  addictos  á  causa  da 
legitim.idade  ou  contrários  á  expansão  portugueza.  Em  fins 


(1)    Officio   cie   9   de   Ma-io   de   1818. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  617 

íle  1817  era  voz  correníc  em  Montevideo  e  no  Rio  que  Arti- 
gas  estava  doente,  ameaçado  de  hydropisia,  e  no  emtanto 
entregando-se  £en:pre  ás  bebidas  fortes,  o  que  mais  contribuia 
para  arruinar-lhe  a  sr.ude.  A  sua  popularidade  correlativa- 
mente baixava,  não  lhe  permittindo  a  enfermidade  a  mesma 
actividade  de  antes  e  não  podendo  as  suas  hordas  resignar-se 
á  inércia. 

Em  meiados  de  1S18,  r.íaler  próprio  confessa  (i)  que 
''o  pequenino  reforço  que  ora  se  envia  para  preencher  os 
lugares  va^^os  por  morte,  ou  outros  accidentes  nas  tropas 
portuguezes"  (2)  e  constava  de  nada  menos  de  trez  mil 
homens — mais  de  m.etade  do  effectivo  primitivo  ao  entrar  a 
força  em  ccmpanha — dominava  de  certo  modo  o  território 
cisplatino.  Tinham-se  os  Portuguezes  apoderado  da  antiga 
Colónia  e  de  Maldonado,  posto  guarnições  ou  pelo  menos 
destacamentos  em  todos  os  pontos  principaes  até  o  Uruguay, 
e  assenhoreado  do  curso  deste  rio  com  o  estabelecimento  de 
barcas  canhoneiras.  Na  foz  do  Uruguay  conservavam  elles 
estacionadas  duas  embarcações  ligeiras,  afora  25  velas  de 
todas  as  dimensões  que  cruzavam  no  Rio  da  Prata. 

Aquelles  destacamentos  defensivos  destinados  a  envol- 
ver Artigas  e  cortar-lhe  qualquer  communicação  com  Bue- 
nos Ayres  e  a  margem  occidental  do  Prata,  andavam  for- 
mados pela  divisão  de  veteranos  portuguezes  que  o  general 
Lecor  teria  tido  instrucções  de  poupar  quanto  possivel:  eram 
as  tropas  brazileiras  de  Minas,  São  Paulo  e  Rio  Grande  que, 
ao  mando  do  general  Curado,  batiam  a  campanha,  hosti- 
lizando e  perseguindo  o  caudilho.  A.ssim  o  informava  Lecor 
n'um   relatório   de  Junho   de    1818,   mandado   ao   conde   de 


(1)  Officio  de  30  do  Junho  do  1S18, 

(2)  Expressões  d;i   Nota   do   Secretario  d'Estado   Bezerra,   de  9 
de  Setembro  de  I^SIT,  aos  Agentes  das  cinco  potencias  medianeiras. 


618  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Vianna,  primeiro  camarista  de  Dom  João  e  ex-commandante 
da  estação  naval  do  Rio  da  Prata,  para  ser  apresentado  e  lido 
ao  Rei. 

Artigas,  ao  que  presumia  o  general  portuguez,  teria 
então  comsigo  uns  700  homens,  e  como  as  disposições  dos  ha- 
bitantes entravam  a  ser  mais  geralmente  sympathicas  aos 
occupadores  á  medida  que  se  restringia  a  auctoridade  do  cau- 
dilho, começava  Lecor  a  tisar  partido  da  mudança,  forne- 
cendo armas  áquelles  habitantes  e  organizando-os  cm  guerri- 
lhas. ''Não  nutro  mais  inquietações,  escrevia  textualmente 
o  commandante  em  chefe  da  expedição,  sobre  o  successo  das 
minhas  operações:  o  que  mais  me  preoccupa  neste  momento 
é  a  vigilância  dos  Hespanhoes".  ( i )  Suas  palavras  claramente 
significam  que  era  mais  difficil  de  vencer  na  Banda  Orien- 
tal o  sentimento  realista  e  metropolitano  do  que  o  revolucio- 
nário e  nacionalista. 

Durante  a  occupação  portugueza,  nos  annos  correspon- 
dentes ao  reinado  americano  de  Dom  João  VI,  esteve  Monte- 
video bem  longe  de  permanecer  tranquilla:  sua  situação  foi 
antes  de  uma  constante  agitação,  posto  que  mais  surda  do 
que  activa.  Fervilhavam  as  conspirações  de  militares  e  civis 
hespanhoes,  de  emigrados  e  agentes  clandestinos  de  Buenos 
Ayres  e  de  partidários  de  Artigas,  uns  para  restabelecerem  o 
antigo  dominio  castelhano,  outros  para  levarem  a  Banda 
Oriental  a  fazer  juncção  com  o  coro  de  independência 
progressivamente  entoado  por  toda  a  America  Hespanhola, 
outros  ainda  para  lhe  assegurarem  a  completa  autonomia. 

Existem  numerosas  representações  do  Cabildo  de  Mon- 
tevideo   (2)    insistindo  por  medidas  de  rigor,   propondo  de» 


(1)  Relat.  cit. 

(2)  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  619 

portações  e  justificando  repressões,  assim  como  existem  nume- 
rosas notas  do  conde  de  Casa  Flores  protestando  contra  o 
procedimento  do  general  Lecor  de  desterrar  Hespanhoes 
amigos  da  metrópole,  ''externando  favor  e  consideração  aos 
rebeldes,  desprezando  e  vexando  os  seguidores  fieis  do  Rei 
legitimo". 

Os  protestos  de  Casa  Flores  determinaram  até  a  re- 
união, a  31  de  Agosto  de  1820,  na  Secretaria  dos  Negócios 
Estrangeiros  e  da  Guerra  dos  desembargadores  do  Paço 
Monsenhor  Almeida,  Luiz  José  de  Carvalho  e  Mello  e  Paulo 
Fernandes  Vianna,  os  quaes  acharam  e  proclamaram  que 
Lecor  se  houvera  com  muita  moderação  e  prudência,  preten- 
dendo que  taes  perturbações  da  ordem  publica  se  extinguis- 
sem e  tratando  de  evitar  o  perigo  de  uma  explosão.   ( l ) 

Por  seu  lado  o  Cabildo  de  Montevideo  agachava-se 
diante  do  procônsul  portuguez,  exprimindo  votos  e  formu- 
lando supplicas  para  que  se  consummasse  a  encorporação  da 
Banda  Oriental  como  provincia  da  monarchia  portugueza, 
ao  que  o  Rei  não  quiz  acceder  em  18 19 — quando  as  tentati- 
vas para  semelhante  fim  se  tornaram  instantes — por  temor 
da  expedição  de  Cadiz,  que  era  o  que  d'outra  banda  estava 
fortalecendo  as  esperanças  e  animando  os  esforços  do  partido 
hespanhol. 

Dom  João  VI  estava  mesmo  resolvido  a  abandonar  a  sua 
conquista,  restituindo  a  praça  ao  Cabildo,  no  caso  de  sahir 
para  seu  destino  a  projectada  e  tão  annunciada  expedição. 
A  2  de  Dezembro  de  18 19  expressava  a  corporação  munici- 
pal de  Montevideo,  em  face  das  circuxnstancias,  o  seu  pezar 
"por  que  no  sea  dado  a  un  Rey  justo  e  benéfico  fixar  en 
estos  momentos  el  destino  de  un  pueblo  que  le  aclama  y  á 


(1)     Ibidem. 


620  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

quien  ha  salvado  de  los  furores  de  la  anarchia".  (i)  O  go- 
verno portuguez  pensava  comtudo,  mesmo  tendo  que  eva- 
cuar Montevideo,  em  aproveitar  o  ensejo  da  occupação  para 
propor  ás  auctoridades  Iccaes  a  conclusão  de  um  tratado  de 
limites,  indubitavelmente  no  intuito  de  obter  no  terreno 
aquillo  que  entretanto  não  lograva  alcançar  na  Europa  em 
prolongada  e  fadigosa  negociação  a  sua  diplomacia.    (2) 

A  progressão  das  armas  portuguezas  no  anno  de  181 8 
certamente  produzio  inquietação  em  Buenos  Ayres,  não  lhe 
podendo  ser  indifferente  a  posse  pelos  invasores  da  fronteira 
Colónia  do  Sacramento,  cuja  reivindicação  fora  objecto  de 
tanta  disputa  anterior.  Nada  mais  restava,  porém,  aos  inde- 
pendentes, dilacerados  como  andavam  pelas  discórdias  inter- 
nas e  ameaçados  pelos  armamentos  de  Cadiz,  do  que  dissi- 
mularem a  sua  impressão  e  manterem-se  quietos  na  expecta- 
tiva. Com  o  fim  de  se  darem  ares  de  cooperar  na  repressão 
da  anarchia  oriental  com  os  Portuguezes  e  animados  pelos 
successos  d'estes,  mandaram  entretanto  os  governantes  de 
Buenos  Ayres  um  reforço  de  700  homens  para  São  Pedro 
d'Entre-Rios,  porventura  para,  sem  quebra  da  boa  visi- 
nhança  apparente,  tirarem  ao  gabinete  do  Rio  o  pretexto  de 
mandar  as  forças  portuguezas  atravessarem  o  Uruguay  em 
perseguição  dos  rebeldes,  assim  alargando  sua  esphera  de 
acção  militar. 

De  facto  a  cordialidade  entre  visinhos  pareceu  até 
accentuar-se,  depois  que  as  proscripções  e  deportações  robus- 
teceram temporariamente  a  posição  de  Pueyrredcn  e  lhe  per- 
mittiram  menos  reserva  nos  seus  planos  de  conciliação  com 
a  corte  portugueza,  mais  chegada  ainda  do  que  a  existente. 


(1)  P.Kpeis  avulsos  do  Arch.  do  Hin.   das  F.^cl.   Bst, 

(2)  Vide  Caipitulo  XVII. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  621 

Também  no  Brazil  já  se  dissimulava  muito  menos  essa  intel- 
ligencia,  que  dava  origem  a  uma  correspondência  muito 
activa,  ao  ponto  de  perguntar  com  arrogância  a  Maler  um 
hcm.em  da  confiança  de  Barca  si  elle  ignorava  que  em  Bue- 
nos Ayres  existia  um  partido  portuguez  ?   ( i ) 

Indignado  com  que  o  director  nos  seus  bandos  procla- 
masse mandar  soccorros  ás  populações  subjugadas  da  Banda 
Oriental,  quando  na  verdade  estava  antes  sustentando  com 
suas  remessas  os  oppressores  d'essas  populações,  o  represen- 
tante da  França  citava  em  confirmação  da  intimidade  rei- 
nante o  facto  de,  querendo  mostrar-se  mais  ligado  ao  Rei 
de  Portugal  e  Brazil  do  que  aos  principios  de  independência 
que  pretendia  professar,  pronunciar-se  Pue^Tredon  aberta- 
mente contra  os  acontecimentos  de  Pernambuco.  Os  jornaes 
platines  guardaram  silencio  sobre  o  caso,  e  elle  o  classificou 
de  revolta  e  rebellião,  as  mesmas  expressões  empregadas 
pelas  pessoas  leaes  ao  regimen  monarchico. 

Até  ao  regresso  de  Dom  João  VI  para  a  Europa  os  suc- 
cessos  do  Rio  da  Prata  proseguiram  repetindo-se  com  san- 
grenta monotonia,  crescendo  a  sua  gravidade  com  o  alas- 
tramento continuo  da  desordem,  de  modo  a  justificarem  a 
occupação  portugueza,  corroborando  os  motivos  apregoados 
da  intervenção.  Em  1820  vem.os  o  auge  do  desvario  politico 
ri'essas  regiões.  A.s  montoneras  de  Santa  Fé  bateram  as  tro- 
pas de  Buenos  Ayres  que  Rondeau  commandava,  e  as  noti- 
cias chegadas  ao  Rio  de  Janeiro  por  esse  tempo  diziam  achar- 
se  Belgrano  á  frente  do  movimento  regional  e  ter-se  Pueyr- 
redon  refugiado  a  bordo  de  uma  corveta  americana,  estando  a 
caminho  da  capital  brazileira. 


(1)   0«i'cio  de  10  de  Junho  de  181' 


622  DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL 

De  positivo,  a  23  de  Fevereiro  de  1820  firmava-se  o 
r.rmisticio  domestico  n'uma  convenção  assignada  pelas  ulti- 
mas auctoridades  de  Buenos  Ayres  com  as  forços  da  campanha 
uruguaya  e  de  Santa  Fé  que  avançavam,  tendo  adherido 
á  causa  federalista  o  corpo  portenho  enviado,  de  accordo 
com  a  nova  orientação  poJitica  adoptada,  para  soccorrer  Ar- 
tigas  e  libertar  a  Banda  Oriental  do  dominio  portuguez. 
Foi  então  que  a  situação  em  Buenos  Ayres  se  tornou  extre- 
mamente confusa,  attingindo  a  peor  anarchia. 

Quando,  depois  das  festas  congratulatorias  da  reconci- 
liação, se  retiraram  os  troços  federaes,  entrou  Balcarce  na 
cidade  com  200  homens,  proclamando,  a  6  de  Março,  a 
contra-revolução.  Voltaram,  porém,  a  Buenos  Ayres  os  che- 
fes Ramirez  e  Lopez,  fugindo  Balcarce  e  reapparecendo 
Sarratea,  com  quem  Lecor  trocou  saudações.  Artigas,  aliás, 
na  sua  constante  intransigência,  não  approvara  a  convenção 
de  23  de  Fevereiro.  O  caudilho  foi  comtudo  obrigado  a 
passar  para  o  outro  lado  do  Uruguay  por  motivo  da  defecção 
de  Fructuoso  Rivera  com  seus  400  homens,  obra  da  corru- 
pção de  Lecor,  cuja  campanha  parece  haver  toda  sido  mais  ca- 
racterizada pelas  intrigas  politicas  do  que  pela  actividade  mi- 
litar. 

De  resto  Dom  João  VI  era  o  primeiro  a  preferir  os  enre- 
dos ás  pelejas,  comtanto  que  se  alcançasse  o  resultado  vi- 
sado. A  propósito  do  suborno  de  Fructuoso  Rivera  escrevia 
Maler:  "Le  Roi  en  m'entretenant  de  cet  événement  en 
parloit  d'un  air  triomphant  et  se  plaisoit  à  louer  la  conduite 
de  son  general  en  chef".  (i)  O  dinheiro  de  Lecor  não  só 
na  Banda  Oriental  se  derramava:  também  em  Buenos  Ayres 
se  fazia  ao  mesmo  tempo  sentir  sua  influencia. 

(1)    Officio  de  3  de  Maio  de   1820. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL  623 

Alvear,  sabido  de  Montevideo  com  dinheiro  portuguez, 
(i)  apoderou-se  do  commandante  das  forças  portenhas 
Soler,  que  prendeu  a  bordo  de  navio  surto  no  porto,  e  do 
commando  sábio  a  consolidar  a  sua  auctoridade  no  campo, 
congregando  em  redor  de  si  2000  bomens.  Soler  conseguio, 
todavia,  recobrar  o  seu  posto  e  incutir  coragem  em  Sarra- 
tea,  desertando  a  gente  de  Alvear  á  medida  que  se  foram 
esgotando  os  seus  fundos  e  retirando-se  afinal  elle  próprio 
protegido  pelo  cbefe  dos  bandos  d'Entre-Rios  Ramirez, 
que  assignara  a  convenção  de  23  de  Fevereiro  com  Buenos 
Ayres,  e  «por  seu  lado  estava  ameaçado  na  sua  provincia. 

O  vento  continuou  no  emtanto,  com  todo  este  descon- 
certo, a  soprar  decididamente  no  sentido  contrario  á  politica 
portugueza  de  Pueyrredon,  cuja  queda  Dom  João  VI  deplo- 
rava em  conversação  com  Maler,  confiando  em  todo  caso, 
mau  grado  a  pronunciada  bostilidade  ao  regresso  delle,  que 
o  director  voltaria  ao  poder.  O  enviado  Garcia  foi  retirado 
do  Rio  por  Sarratea,  denunciando-o  a  Gazeta  de  Buenos 
Ayres  como  suspeito  de  receber  uma  pensão  annual  de  30.000 
francos  do  governo  portuguez,  O  mesmo  órgão  official,  na 
sua  como  boje  a  cbamariamos  campanba  de  imprensa,  divul- 
gou entre  outras  peças  a  correspondência  do  cónego  D.  José 
Valentin  Gomez,  quando  enviado  confidencialmente  a 
França,  expondo  a  conducta  do  gabinete  do  Rio,  e  deu  curso 
30S  artigos  addicionaes  e  secretos  do  armisticio  de  181 1,  até 
\uspender-se  essa  publicação,  si  dermos  credito  a  Maler,  sob 
á acção  do  ouro  remettido  do  Rio  a  Sarratea.  (2) 

No  torvelinho  das  sedições,  desencadeado  pelas  facções 
eii  lucta,  não  tardou  também  Sarratea  em  ser  destituido  por 


(1)  Officio  de  Maler  de  24  de  Maio  de  1820. 

(2)  Officio  de  26  de  Maio  de  1820. 


624  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Anchcrena  e  acylar-se  a  bordo  do  Icarus,  emquanto  á  testa 
dos  montoneros  Alvear  e  o  refugiado  chileno  Carrera  amea- 
çavam a  cidade,  que  repellia  os  desígnios  de  mando  de  Alvear, 
tendo  a  municipalidade,  no  exercício  da  auctoridade  soberana, 
nomeado  commandante  provisório  o  coronel  Dorrego,  que 
estivera  no  Rio  proscrípto  por  Pueyrredon.  Alvear  era  auxi- 
liado pelas  hordas  de  Santa  Fé,  ao  m.esmo  tempo  que  em 
Entre-Rios  se  batiam  Artigas  e  Ramirez,  secundando  agora 
LecoT  o  primeiro,  ( i )  certamente  por  haver-se  o  outro  tor- 
nado m.aís  temível. 

Batido  em  San  Nicolas  por  Dorrego,  retirou-se  Alvear 
para  Montevideo,  mas  por  seu  turno  foi  aquelle,  comman- 
dante em  chefe  ainda  e  cobrindo  Buenos  Ayres  com  uma  nova 
posição,  surprehendido  em  Pavon,  a  i  de  Setembro,  por 
Lopez  e  Carrera  á  frente  dos  bandos  de  Santa  Fé.  Na  cidade, 
fácil  é  de  imaginar,  reinava  a  desordem  mais  triste  e  mais 
completa,  desavindo-se  e  depois  reconcílíando-se  Dorrego  e 
o  governador  Martin  Rodriguez,  (2)  succedendo-se  pri- 
sões, proscripções  e  fuzilamentos. 

Entretanto  chegava  ao  Rio  de  Janeiro,  a  16  de  Setem- 
bro de  1820,  o  brigue  de  guerra  hespanhol  Achilles,  trazendo 
a  bordo  três  commissarios  encarregados  de  estabelecer  uma 
composição  entre  a  metrópole  e  os  dissidentes  do  Rio  da 
Prata,  onde  o  ultimo  projecto  politico  em  germinação  era 
o  de  fundar-se  uma  monarchia  constitucional  em  favor  d» 
Príncipe  de  Lucca,  casando-o  com'  uma  das  Infantas  porti- 
guezas,  provavelmente  Dona  Isabel  Maria  (3),  de  quem  La- 


{ 1 )    Corresp.  de  Malei"; 

Cl)    Foi  Martin   Rodriguez   quem,   como   director,    celebrou   o  24 
de  Novembro  de  1824  a  paz   com  Santa   Fé. 
{'^}     NEscida  a  4  de  Julho  de  1'801. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  625 

xemburgo  escrevia  ser  "charmante  à  tous  égards  et  la  plus 
accomplie  de  la  famille  Royale".  A  Dom  João  VI  não  pare- 
cia agradar  muito  esta  segunda  suggestão,  certamente  porque 
nada  lhe  sorria  na  prim.eira  idéa,  preoccupando-o  saber  pelo 
marquez  de  Marialva  que  o  duque  de  Richelieu,  antici- 
pando-se  de  pouco  tempo  a  Chateaubriand,  approvava  a 
idéa  de  enthronizar  um  Bourbon  em  Buenos  Ayres. 

O  encargo  dos  commissarios  tampouco  era  de  natu- 
reza a  dar-lhe  satisfação.  "Tenho  algum.as  razões  para  crer, 
escrevia  Maler,  (i)  que  a  sua  missão  não  foi  lisonjeiramente 
encarada  pela  corte  do  Brazil,  pois  que  me  tendo  pergun- 
tado o  Rei,  alguns  dias  depois  da  chegada  delles,  si  os  havia 
visto,  respondi  que  não,  o  que  era  a  verdade,  replicando-me 
então  Sua  Majestade  que  por  si  não  tinha  o  menor  desejo 
de  vel-os  e  acompanhando  tal  declaração  de  demonstrações 
muito  expressivas". 

A  situação  assim  se  prolongou,  permanecendo  os  com- 
missarios no  Rio  de  Janeiro  ,até  sua  partida  a  8  de  Novem- 
bro, sem  que  os  recebesse  o  Rei.  Tão  infelizes  aliás  que 
nem  puderam,  desembarcar  em  Montevideo,  onde  dominavam 
os  Portuguezes,  nem  em  Buenos  Ayres  onde,  apezar  da  funda 
perturbação  social,  não  quizeram  tratr.r  com  quaesquer  agen 
tes  hes'panhoes,  antes  d'estes  terem  reconhecido  a  indepen- 
dência das  Provincias  Unidas.  A  própria  Hespanha  via-se 
então  sacudida  por  forte  estremecimento  politico,  alli  cam- 
peando outra  vez  a  revolução,  provocada  pelo  sinistro  abso- 
lutirm^o  real. 

O  levantamento  de  Riego ,  resultado  inesperado  da  de- 
cantada expedição  de  Cadiz,  que  transformou  a  ameaça  de 


(1»      Officio   do   20   do    S(>teni!)ro   do   1820, 


626  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 


recolonização  n'um  grito  de  liberdade  nacional,  para  abafar 
o  qual  foi  necessário  recorrer  aos  soldados  francezes,  produ- 
zira até  certo  effeito  em  Montevideo.  O  procônsul  portu- 
guez  já  não  encontrava  a  mesma  flexibilidade  na  submissa 
municipalidade  da  capital  da  Banda  Oriental,  cuja  occupa- 
ção  no  meio  de  tudo  isso  se  tornara  virtualmente  defini- 
tiva. 


CAPITULO  XVI 


A  CORTE  DO  RIO,  O  GABINETE  DE  MADRID  E  AS  POTENCIAS 
MEDIANEIRAS  DA  EUROPA 


E'  um  problema  a  resolver  até  que  ponto  a  Hespanha  e 
Portugal,  mesmo  independente  da  pressão  contraria  das  gran- 
des potencias,  anciosas  pela  manutenção  da  legitimidade  mas 
avessas  á  reabertura  dos  conflictos  internacionaes  armados, 
estariam  dispostos  a  levar  a  dissidência  ou  contenda  suscitada 
pela  usurpação  de  um  território  contiguo  aos  dominios  de 
uma  d'aquellas  nações,  e  que  as  circumstancias  tinham  con- 
vertido n'um  centro  perigoso  de  agitação,  d'onde  até  par- 
tiam ataques  contra  os  navios  do  paiz  visinho,  expostos  a 
suppostos  corsários  insurgentes. 

Em  muitos  casos  da  historia  politica  do  mundo  teem 
sido  menores  os  motivos  de  intervenção.  Em  condições  nor- 
maes  a  Hespanha  indubitavelmente  hostilizaria  a  expedição 
que  violava  a  sua  soberania,  mas  esta  não  mais  existia  alli  de 
facto.  Por  isso  parece  licito  perguntar  si  a  Hespanha  no 
fundo  não  estaria  de  accordo,  ou  si  era  com  indignação  sin- 
cera que  combatia  a  referida  invasão  portugueza;  si,  já  meio 


628  ])0M  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

descoroçoaàa  qc  recuperar  integro  o  seu  império  colonial  e 
por  um  movimento  que  não  estaria  por  certo  muito  no  ca- 
racter nacional,  não  abria  ella  mão  da  Banda  Oriental  cm 
troca  de  outras  vantagens,  a  posse  incontestada  de  Olivença 
e  a  alliança  para  suf focar  as  idéas  liberaes  na  Península; 
ou  também  si,  não  tendo  meios  para  se  oppor  além-mar 
áquella  intervenção  armada  da  corte  do  Rio,  não  esperava 
a  Hespanha  aproveitar-se  depois,  em  proveito  da  coroa  de 
Fernando  VII,  da  ordem  restabelecida  e  da  destruição  da  in- 
dependência de  Buenos  Ayres,  n'este  caso  afigurando-se-lhe 
dever  a  guerra  com  as  Provincias  do  Rio  da  Prata  ser  a  con- 
sequência fatal  da  expedição  contra  Artigas  ? 

O  matrimonio,  no  próprio  anno  de  1816,  de  Dona 
Maria  Isabel  e  Dona  Maria  Francisca  de  Assiz  com  o  Rei 
d'Hespanha  e  seu  irmão,  deveria  indicar  acharem-se  as 
duas  cortes  n'um  pé  de  intimidade.  Em  Londres  até  se  sup- 
puzera,  por  causa  d 'estes  enlaces,  ser  a  expedição  fructo  de 
um  ajuste  secreto,  mas  depressa  o  conde  de  Fernan  Nufiez, 
embaixador  d'Hespanha,  dissuadiu  d'isso  lord  Castlereagh,  o 
qual  recebeu  com  satisfacção  o  esclarecimento,  porquanto  a 
Inglaterra  não  considerava,  como  sabemos,  a  politica  por- 
tugueza  de  imperialismo  sul-americano  com  olhos  favorá- 
veis. 

Não  só  se  arreceiava  o  governo  britannico  de  que  o 
Reino  do  Brazil  adquirisse  influencia  excessiva  no  Novo 
Mundo  que  pudesse  de  futuro  vir  a  prejudicar  os  seus  in- 
teresses commerciaes,  como  antevia  a  estabilidade  que  a  an- 
nexação  da  margem  oriental,  senão  das  duas  margens  do 
Rio  da  Prata,  daria  á  corte  do  Rio  de  Janeiro  e  nutria  al- 
gum temor  da  absorpção  pela  Hespanha  da  parte  européa 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  629 

(la  monarchia  portu-ueza.  O  equilíbrio  da  Península  fica- 
ria assim  desmanchr.do  e  o  vigor  da  Hespanha  quiçá  renas- 
ceria, resultados  tão  contrários  á  politica  britannica,  essa 
união  e  este  fortalecimento  da  monarchia  castelhana,  que 
sempre  lhe  provocariam  os  ciúmes.  E'  sabido  conK),  para 
não  perder  sua  influencia  em  Madrid,  hostilizou  o  gabi- 
nete de  Saint  James  em  tempo  de  Luiz  Felippe  os  celebres 
casamentos  hespanhoes  que  ajudariam  a  expansão  franceza, 
económica  e  politica,  além  dos  Pyreneus,  e  consummariam 
a  intima  alliança  das  duas  nações  latinas  urdida  por 
Luiz  XIV. 

Os  acontecimentos  dynasticos  nem  sempre  actuam  e 
dirigem  porém  os  acontecimentos  políticos.  A  expedição 
portugueza  ao  Rio  da  Prata,  contra  a  qual  nada  poude 
a  nova  alliança  de  família,  lograria  porventura  ser  vanta- 
josa ás  pretenções  restauradoras  da  Hespanha  na  America  do 
Sul,  cooperando  para  a  primitiva  unidade  colonial  com  ex- 
tinguir o  fcco  de  anarchia  que  se  alastrava  por  Entre-Rios 
e  Corrientes  para  attingir  o  Paraná,  e  d'est'arte  alimentava 
não  pouco  o  espirito  de  desunião  predominante  em  Buenos 
Ayre3. 

A  expedição  não  era  todavia  em.prehendida  senão  em 
beneficio  das  velhas  ambições  portuguezas  de  integração  do 
Brazil  e,  mais  do  que  com  quaesquer  desígnios  que,  mesmo 
benévolos,  não  podiam  ser  duradouros,  da  Hespanha,  con- 
tava com  o  cançaço  no  próprio  Uruguay,  onde  não  pouca 
gente,  farta  de  vexames  oriundos  da  rebellião  de  contraban- 
distas e  patriotas  que  já  degenerara  em  razzias  de  bandidos, 
aspirava  e  de  antemão  estava  com  não  importa  que  solução 
que  trouxesse  a  pacificação.  E,  segundo  testemunhava  Luc- 
cock  em    1818,  a  acção  brazileira  foi  salutar  mesmo  sobre 


630  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

a  Índole  dos  habitantes,  determinando  maior  doçura,  posto 
que  elles  jamais  sentissem  inclinação  pelos  novos  dominado- 
res, de  outro  povo  e  de  outra  lingua. 

A  justificação  da  intervenção  adduzida  pela  corte  do 
Rio  era  precisamente  que  não  possuindo  a  Hespanha,  con- 
forme os  factos  estavam  de  sobejo  provando,  vigor  nem 
prestigio  para  restabelecer  a  paz  nas  suas  colónias  rebelladas, 
pelo  menos  emquanto  durasse  a  sua  crise  financeira  e  mi- 
litar, Portugal  tinha  forçosamente  que  assumir  esse  papel  no 
que  tocava  ao  Rio  da  Prata.  Não  lhe  era  permittido  em  boa 
politica  consentir  semelhante  estado  de  cousas,  vendo  prohi- 
bido  o  seu  commercio  de  fronteira  e  ameaçada  a  sua  segu- 
rança interna  pelas  tropas  indisciplinadas,  em  grande  parte 
formadas  de  foragidos  e  criminosos,  que  obedeciam  a  Arti- 
gas,  e  não  só  faziam  correrias  no  Rio  Grande  como  planeja- 
vam alli  excitar  a  revolta  contra  o  governo  de  Dom  João  VI. 

A  Hespanha  retirava,  pois,  da  repressão  portugueza  a 
mencionada  positiva  vantagem  de  ser  posto  cobro  á  anarchia 
quasi  irremediável  já  da  Banda  Oriental,  e  o  governo  pro- 
visório em  que  fallavam  as  proclamações  do  general  Lecor 
como  devendo  ser  installado  pelas  forças  da  occupação, 
tendia  a  fazer  geralmente  crer  que  a  intervenção  portugueza 
se  exercia  de  concerto  expresso  ou  tácito  com  o  gabinete  de 
Madrid.  Mais  tarde,  quando  ficasse  decidida  a  questão  entre 
a  Hespanha  e  suas  colónias,  era  idéa  da  corte  do  Rio  que  se 
verificaria  qual  o  governo  de  direito,  não  só  de  facto,  ao 
qual  se  devia  restituir  o  território  occupado  ou,  muito  mais 
provavelmente,  com  o  qual  cumpria  negociar  sua  acquisição, 
pois  que  o  Brazil  não  mais  abriria  mão,  podia  bem  con- 
jecturar-se,  da  posse  da  provincia  Cisplatina,  que  tantos  sa' 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  631 

críficíos,  dissabores  e  luctas  custara  ao  governo  de  Lisboa 
e  ia  custar  ao  do  Rio  de  Janeiro. 

Quando  não  partisse  mais  da  Hespanha,  a  opposição 
partiria  de  Buenos  Ayres.  O  governo  das  Provincias  Unidas 
detestava  no  intimo  a  occupação  estrangeira  tão  ao  pé  da 
porta  que  já  lhe  entrara  em  casa,  por  território  que  de  bom 
direito  julgava  pertencer  ao  seu  composto  orgânico.  Não 
se  reconciliava,  mau  grado  as  apparencias  impostas  pela  ne- 
cessidade, com  a  idéa  d'essa  invasão,  por  mais  que  o  certifi- 
cassem que  as  pretenções  portuguezas  á  annexação  de  boa  fé 
paravam  no  Uruguay  e  não  se  extendiam  até  o  Paraná,  e 
por  mais  que  se  desculpasse  a  corte  do  Rio  com  a  impreterível 
urgência  da  defeza  contra  a  propaganda  revolucionaria  e  a 
invasão  aleivosa,  sendo  tomados,  até  se  liquidar  a  situação  da 
região,  os  pontos  d'onde  Artigas  podia  molestar  o  Brazil. 

Nem  se  podia  ainda  Buenos  Ayres  resolver,  como  depois 
teve  de  fazel-o,  a  reconhecer  em  absoluto  a  independência 
d'aquelle  outro  fragmento  do  seu  prévio  vice-reinado.  Pun- 
gia o  seu  governo  a  recordação  do  que  succedera  cinco  annos 
antes,  quando  em  1811,  levantado  o  sitio  de  Montevideo 
diante  da  marcha  das  forças  portuguezas  de  D.  Diogo  de 
Souza  e  concluído  com  o  commando  da  praça  o  armistício 
que  paralysou  a  acção  do  auxilio  estrangeiro,  o  triumvirato 
executivo  (cessara,  com  esta  reducção  de  pessoal,  o  contrapeso 
incommodo  dos  deputados  provinciaes  que  tinham  formado 
a  Junta  conservadora)  encarregara  Belgrano  e  Echevarria 
de  concluírem  a  paz  com  o  Paraguay,  admittindo  sua  auto- 
nomia. Em  vão  esperara,  porém,  Buenos  Ayres  que  em  troca 
de  semelhante  concessão,  obtida  sem  condições  pela  summa 
habilidade  de  Francia,  vogal  da  junta  local,  o  novo  governo 
do  Paraguay  ajudasse  a  causa  commum,  atacando  de  flanco 

D.  J.  —  40 


632  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

os  domínios  de  Dom  João  VI,  ou  creando  pelo  menos  uma 
diversão  directa  á  attitude  das  tropas  portuguezas  que  ti- 
nham invadido  o  território  uruguayo  (i). 

Nada  consta  entretanto  de  intelligencias  entre  as  cortes 
de  Madrid  e  do  Rio  de  Janeiro,  segundo  as  insinuavam  as 
gazetas  inglezas  do  tempo,  as  suggeriam  as  proclamações 
instruidas  pelo  governo  portuguez  aos  seus  generaes  e  as 
enxerga  possíveis  a  critica  distante  dos  acontecimentos,  ao 
examinar  todos  os  aspectos  da  questão.  O  que  consta  são  os 
passos  offícíalmente  dados  pelo  gabinete  de  Fernando  VII, 
que  dizem  ter  estado  quasí  disposto  a  recambiar  por  desforço 
as  duas  Infantas  portuguezas,  junto  ás  cortes  das  cinco 
grandes  potencias  para  protestar  solemnemente  contra  a  oc- 
cupação  de  parte  das  suas  possessões  no  Rio  da  Prata  e  pedir 
o  apoio  d'ellas,  como  medianeiras,  contra  tão  immoral  ag- 
gressão. 

Foi  o  empenho  em  satisfazer  esta  exigência,  conside- 
rada justíssima,  da  Hespanha,  evitando  ao  mesmo  tempo  um 
rompimento  que  possivelmente  da  sua  repercussão  na  Pe- 
nínsula se  propagaria  a  outros  pontos  da  Europa  de  fácil 
conflagração,  que  determinou  a  nota  ao  marquez  de  Aguiar 
de  i6  de  Março  de  1817,  assignada  em  Pariz  por  Víncent, 
Ríchelíeu,  Stuart,  Goltz  e  Pozzo  di  Borgo.  As  potencias 
representadas  por  estes  homens  d'Estado  ou  diplomatas  — 
Áustria,  França,  Inglaterra,  Prússia  €  Rússia  — ,  acceitando 
o  papel  de  medianeiras,  pediam  explicações  ao  governo  por- 
tuguez sobre  suas  vistas  e  convidavam-no  a  tomar  as  medidas 
mais  promptas  e  próprias  para  desvanecer  as  justas  appre- 
hensões  que  a  invasão  em  questão  estava  causando  na  Eu* 
ropa. 


(1)   Mitre,  HM.  ãe  Bclgrano,  tomo  II. 


DOM  JOÃO  Ví  NO  BRAZIL  633 

Uma  recusa  não  deixaria  mais  duvida  sobre  as  inten- 
ções reaes  de  Portugal,  a  cujo  governo  seriam  imputados 
com  razão  os  desastrosos  effeitos  que  pudessem  advir  a  am- 
bos os  hemispherios.  *'A  Hespanha,  dizia  a  nota,  depois  de 
ter  visto  toda  a  Europa  applaudir  o  seu  sábio  e  moderado 
comportamento,  acharia  na  justiça  da  sua  causa,  e  no  apoio 
dos  seus  alliados,  meios  sufficientes  para  remediar  seus  ag- 
gravos." 

Também  para  a  corte  do  Rio  admittir  mais  explicita- 
mente, quando  possivel,  que  a  expedição  contra  Montevideo 
fora  de  algum  modo  e  até  certo  ponto  feita  de  connivencia 
com  o  governo  de  Madrid,  com  o  fim  de  atalhar  os  progres- 
sos da  revolução  ultramarina,  traria  como  resultado  con- 
citar contra  o  novo  Reino  americano  todas  as  colónias  hes- 
panholas  revoltadas,  justificando  as  prezas  de  navios  portu- 
guezes  que  já  entravam  a  ser  feitas  pelos  corsários  do  Rio 
da  Prata  e  podiam  ser  objecto  principal  de  corsários  das 
outras  possessões  belligerantes.  Outrosim  tornaria  mais  impo- 
pular a  guerrs^  cuja  desculpa  única  aos  olhos  dos  Brazilei- 
ros  residia  no  engrandecimento  territorial  que  proporcio- 
nava. 

Em  verdade  teve  o  gabinete  do  Rio  que  defender  di- 
plomaticamente, e  com  tenacidade  igual  á  do  ataque,  o  seu 
proceder  contra  a  Hespanha  e  os  alliados  naturaes  d'esta, 
fieis  á  causa  do  statu  quo  ante  bellum  com  as  variantes,  bem 
entendido,  introduzidas  pelo  Congresso  de  Vienna,  e  sym- 
pathicos  em  principio  á  recolonização  da  America  Hespa- 
nhola.  Na  Europa  se  escrevia  e  se  acreditava  que  o  repre- 
sentante russo  chegava  a  retirar-se  do  Brazil,  em  1817,  sem 
se  despedir  do  monarcha  e  seus  ministros  por  não  ter  querido 
o  governo  portuguez  attender  ás  suas  representações  adver- 


6â4  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

sas  á  invasão  da  Banda  Oriental,  onde  a  20  de  Janeiro  d'a- 
quelle  anno  o  general  Lecor  recebera  as  chaves  de  Montevi- 
deo,  processionalmente   trazidas  pelo   Cabildo. 

Assim  explicava  verosimilmente  o  Correio  Braziliensc  a 
retirada  do  ministro  Pedro  de  Balk  Poleff,  que  Dom 
João  VI  recebeu  a  13  de  Maio  de  181 7  no  seu  novo  caracter 
de  embaixador  determinado  pela  elevação  do  Principe  Re- 
gente ao  throno  dos  seus  antepassados  por  motivo  do  falle- 
cimento  da  Rainha  Dona  Maria  I.  A  segunda  phase  da 
missão  de  Balk  Poleff  foi,  por  outras  razões  (i),  mais  des- 
agradável e  mesmo  tempestuosa,  mas  é  facto  que  a  intimidade 
era  então  muito  grande  entre  os  gabinetes  de  São  Peters- 
burgo  e  de  Madrid,  contribuindo  porventura  esta  circum- 
stancia  para  levar  o  mau  humor  do  diplomata  aos  despropó- 
sitos que  commetteu. 

O  governo  hespanhol  persuadira  o  Czar  Alexandre  que 
a  causa  da  realeza  na  America  era  a  causa  de  toda  a  Eu- 
ropa monarchica  e  absolutista,  á  qual  tanto  menos  podia 
convir  a  independência  das  colónias  ibéricas  quanto  bem  de- 
pressa lograria  a  sua  separação-  transformar-se  em  supre- 
macia, favorecidas  como  eram  aquellas  possessões  peio 
cjima  e  pela  fertilidade  e  riqueza  do  solo,  ao  ponto  de  ser 
para  temer  que,  segundo  se  não  cançava  de  vaticinar  o  ab- 
bade  de  Pradt,  para  lá  emigrassem  da  Europa  a  industria  e 
as  artes.  A  intimidade  russo-hespanhola  tinha  todavia  fun- 
damentos, senão  mais  consistentes,  mais  práticos  do  que  uma 
mera  communidade  de  vistas  reaccionárias,  um  sentimento  de 
legitimidade  solidaria. 

A  Rússia  andava  por  esse  tempo  muito  interessada  na 
costa  Occidental  da  America  do  Norte  e  o  boato  correu  de 


(1)    Vide  Capitulo  XXI. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  635 

que,  a  troco  de  um  auxílio  fornecido  pelo  Império  para  redu- 
zir as  colónias  insurgentes,  estava  a  Hespanha  disposta  a 
ceder-lhe  Minorca  no  Mediterrâneo  e  as  duas  Californias, 
Alta  e  Baixa,  no  Novo  Mundo.  Não  é  possivel  deixar  de 
imaginar  que  si  isto  houvesse  occorrido,  a  face  da  terra  se 
apresentaria  hoje  de  algum  modo  differente:  a  Rússia  ha- 
ver-se-hia  tornado  uma  potencia  naval  do  Mediterrâneo,  com 
a  sua  Malta,  e  os  Estados  Unidos  não  teriam  provavelmente 
podido  adiantar-se  até  o  Pacifico,  pois  que  os  Russos,  em 
vez  de  lhes  venderem  Alaska,  se  esforçariam  desde  logo  por 
ligal-a  pelo  littoral  com  os  seus  novos  dominios  mais  ao  sul, 
que  são  uma  das  poucas  regiões  deliciosas  do  planeta. 

Por  seu  lado,  e  attendendo  mesmo  á  intimidade  russo- 
hespanhola,  não  queria  o  gabinete  de  Londres  passar 
aos  olhos  do  de  Madrid  por  um  governo  de  má  fé.  Já  sir 
Sidney  Smith  defendera  (i)  sua  attitude  em  promover  os 
interesses  platines  da  Princeza  do  Brazil  pela  necessidade 
politica  de  convencer  a  nação  hespanhola,  em  cujo  território 
se  ia  travar  o  duello  anglo-francez,  que  a  Inglaterra  não 
esposava  no  Velho  Mundo  os  direitos  de  Fernando  VII, 
para  intrigar  no  Novo  em  favor  das  pretenções  portugue- 
zas  ou  das  aspirações  independentes.  No  dizer  do  almirante, 
collocar  Dona  Carlota  Joaquina  na  Regência  era  equivalente 
a  respeitar  e  garantir  os  titulos  do  monarcha  legitimo  da 
Hespanha. 

Nem  era  crivei  que,  tendo  feito  as  pazes  com  a  Hes- 
panha e  cessado  até  de  promover  a  separação  de  Buenos  Ay- 
res em  proveito  próprio,  se  prestasse  o  governo  britannico  a 
fomental-a  em  beneficio  do  seu  velho  alliado  portuguez, 
contentando-se   n'um   justo   egoísmo   com   a   perspectiva   da 

(1)  Memorias  cit. 


636  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

liberdade  de  commercio  que  esperava  alcançar  como  uma 
das  recompensas,  porventura  a  melhor,  da  sua  efficaz  co- 
operação militar  contra  a  invasão  napoleonica. 

O  gabinete  de  Saint  James  reprovou  a  primeira  tenta- 
tiva de  intervenção  portugueza  no  Rio  da  Prata  em  l8ii, 
e  não  reprovou  menos  o  segundo  ensaio  de  1816.  Pelo  con- 
trario, apezar  de  desenhar-se  de  novo  claramente  a  espe- 
rança de  uma  final  libertação  das  colónias  sublevadas  e  dos 
interesses  do  commercio  britannico  já  se  irem  radicando  com 
a  franquia  mercantil  na  pratica,  a  tentativa  de  reacção  da 
metrópole  hespanhola  encontrava  em  181 7  um  certo  echo 
no  mundo  politico  britannico. 

A  volta  do  dominio  hespanhol,  com  todos  os  seus  ve- 
lhos processos,  significava  comtudo  o  restabelecimento  dos 
monopólios,  infenso  ao  trafico  auspiciosamente  encetado.  Po- 
dia não  se  ter  ainda  crystallizado  a  politica  ulterior  de  Can- 
ning,  opposta  á  ingerência  das  outras  nações  no  conflicto 
por  julgal-a  attentatoria  dos  interesses  politicos  nacionaes, 
mas  já  ella  se  esboçava  pela  força  dos  eventos,  superior  á 
dos  propósitos.  A  neutralidade  a  principio  affectada  termina- 
ria a  breve  trecho  pela  intervenção  franca  e  parcial  em 
prol  das  novas  nacionalidades,  bastando  para  isto  que  a  Grã 
Bretanha  se  separasse  da  Santa  Alliança. 

Os  Estados  Unidos  percebiam  perfeitamente  a  fatali- 
dade d'essa  evolução.  O  Secretario  d'Estado  John  Quincy 
Adams  assim  se  manifestava  ao  ministro  no  Brazil  Thomas 
Sumter  (i):  "Pouca  duvida  ha  de  que  a  verdadeira  po- 
litica da  Grã  Bretanha  esteja  em  promover  a  causa  dos  In- 
dependentes, e  si  bem  que  os  não  ajudará  por  meio  de  um 


(1)   Despmcho  de  27  de  Agosto  de  1818,  no  Arçh,  da  EmbaUada 
Americana  co  Brasil, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  637 

reconhecimento  publico,  nem  dará  outro  qualquer  passo  de 
que  a  Hespanha  possa  tomar  offensa,  vigiará  com  especial 
cuidado  que  a  alliança  européa  não  adopte  contra  elles  me- 
dida alguma  activa.  Os  agentes  de  Buenos  Ayres  e  da  Nova 
Granada  na  Inglaterra  endereçaram  ao  Governo  Britannico 
protestos  contra  a  interposição  dos  Alliados,  a  não  ser  sobre 
a  base  da  total  Independência  das  Colónias,  os  quaes  são 
irrespondiveis  tanto  pelos  argumentos  de  direito,  como  de 
facto;  e  as  vistas  da  Grã  Bretanha  e  da  Rússia  acerca  do 
que  se  deve  fazer  estão  por  forma  tal  distanciadas  (are  so 
widcly  apart),  havendo  tão  pouco  desejo  em  qualquer  dos 
lados  de  chegar  a  accordo  sobre  este  ponto,  que  nenhuma 
duvida  pode  existir  de  que  o  presente  appello  da  Hespanha 
aos  raios  e  coriscos  dos  Alliados  termine  em  outra  cousa  a 
não  ser  em  formal  desapontamento." 

A  idêntico  fim  estava  votado  o  appello  do  gabinete 
de  Madrid  concernente  á  occupação  portugueza  da  Banda 
Oriental,  ainda  que  lhe  não  houvesse  faltado  sj^mpathica 
correspondência  da  parte  das  grandes  potencias  européas. 
Castlereagh  respondeu  com  marcada  benevolência  á  nota  de 
Fernan  Nunez  de  17  de  Dezembro  de  1816  (i),  annuindo 
á  proposição  hespanhola  de  interporem  as  cortes  alliadas 
seus  bons  officios  afim  de  evitarem  que  estalasse  a  guerra, 
chamando  Portugal  á  razão.  Ao  mesmo  tempo  e  em  confir- 
mação d'esta  resposta,  expedia  o  Foreign  Office  ao  cônsul 
geral  encarregado  de  negócios  no  Rio  um  despacho  em  que 
se  dizia  esperar  a  Inglaterra  que  as  explicações  portuguezas 
tornassem  inútil  a  intervenção  da  Santa  Alliança,  eviden- 
ciando a  lizura  do  proceder  da  corte  brazileira. 


(1)     iCastlereagh's   Letters   and  Dcspatches,  vol.   XI. 


.638  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  que  a  Inglaterra  affectava  estranhar  mais  era  o  me- 
thodo  quasi  clandestino  adoptado  pelo  governo  de  Dom  João, 
decidindo  tão  seria  expedição  sem  publicar  sequer  um  mani- 
festo expondo  ao  mundo  os  seus  motivos  de  acção.  Com  ef- 
feito  a  corte  do  Rio  participara  apenas  muito  summaria- 
mente  ás  chancellarias  hespanhola  e  britannica,  em  Maio  e 
Junho  de  1815,  que  por  motivo  dos  progressos  assustadores 
do  espirito  revolucionário  nas  províncias  do  Rio  da  Prata, 
limitrophes  do  Brazil,  mandara  o  Príncipe  Regente  buscar 
uma  divisão  do  seu  exercito  de  Portugal  "para  ser  empre- 
gada na  defensa  dos  seus  Estados  na  America." 

Ajuntava  Castlereagh  (i)  que  si  o  proceder  do  governo 
portuguez  resultasse  contrario  aos  direitos  da  Hespanha  e 
ás  relações  existentes  entre  as  duas  coroas,  a  Grã  Bretanha 
retiraria  a  garantia  da  integridade  e  independência  do  Reino 
Unido  de  Portugal,  Brazil  e  Algarves,  contida  no  artigo  III 
do  tratado  assignado  em  Vienna  a  22  de  Janeiro  de  181 5. 
Sem  mesmo  esperar  a  explicação  alludida  dos  motivos  da 
expedição,  devia  o  agente  britannico  no  Rio  representar  com 
energia  *'sobre  a  impolitica  e  o  perigo  da  resolução  que  o  go- 
verno portuguez  parecia  ter  adoptado." 

A  annullação  da  garantia,  intimada  para  o  caso  de  se 
suscitar  na  Europa  uma  guerra  entre  Portugal  e  Hespanha, 
justificava-a  o  Foreign  Office  com  o  fundamento  de  que 
"nunca  se  poderia  exigir  que  huma  semelhante  garantia  se 
aplicasse  ás  eventualidades  de  huma  guerra  injustamente 
'emprehendida  pelo  governo  portuguez"   (2). 

Embora  tivesse  Palmella  espirituosamente  ponderado 
em  Londres  de  antemão  que  "as  garantias  virião  a  ser  inu- 

(1)  Dpspadio  de  19  de  Dezembro  de  1816,  iUãcm. 

(2)  Officio  reservado  do  conde  de  PaJmella  de  1  de  Janeiro  de 
1817,  no  Arcb.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  639 

teis  se  fosse  licito  retiral-as  todas  as  vezes  que  assim  pare- 
cesse convir"  ( I ) ,  as  instrucções  mandadas  a  Chamberlain 
eram  de  "fazer  officialmente  a  sobredita  declaração"  a  menos 
que  não  houvesse  razão  para  crer  que  tudo  se  arranjaria  ami- 
gavelmente, caso  em  que  deixaria  de  ser  transmittida  a  amea- 
ça, celebre  na  historia  das  relações  diplomáticas  anglo-por- 
tuguezas. 

Tão  seria  pretendia  a  ameaça  ser  que  a  Hespanha 
d'('lhi  recebia  simultaneamente  aviso,  ficando  prevenida  (2) 
de  que  a  Grã  Bretanha  renunciaria  eventualmente  á  sua 
protecção  de  Portugal.  Era  o  mesmo  que  conceder  ao  gabi- 
nete de  Madrid  liberdade  de  acção,  escancarar-lhe  o  campo 
na  parte  occidental  da  Península,  convidar  praticamente  o 
cobiçoso  de  sempre  á  annexação  do  visinho,  si  apenas  fosse 
sincera  a  permissão.  De  facto  a  Inglaterra  não  podia  con- 
sentir em  tal  conquista,  por  opposta  diametralmente  aos  seus 
interesses,  e  tanto  que  as  reservas  se  seguiam  ímmediata- 
mente:  "Ao  mesmo  tempo  S.  Ex.  D.  José  Pizarro  não 
pode  deixar  de  comprehender  que  os  direitos  assegurados  a 
Portugal  pelos  seus  tratados  com  as  Potencias  alliadas  exis- 
tirão em  toda  sua  força  emquanto  durarem  as  negociações, 
ou  até  que  o  governo  portuguez  haja  formalmente  recusado 
acceder  ás  justas  reclamações  de  S.  M.  C.  E'  de  esperar  que 
as  diligencias  da  Grã  Bretanha  determinarão  S.  M.  C.  a 
não  s€  arredar  da  politica  moderada  que  até  aqui  a  guiou,  e 
a  aguardar  a  solução  da  mediação,  antes  de  recorrer  a  medi- 
das ameaçadoras  e  hostis." 

O  encarregado  de  negócios  britannico  no  Rio  foi  quem 
não  aguardou  instrucções  para  tomar  acertadamente  posição 


(1)  Off.    cit. 

(2)  Nota  do  marquei  de  Wollesley  a  D.  José  Pizarro,  ministro 
de  estrangeiros  de  Fernando  VII,  de  5  de  Janeiro  de  1817. 


éiO  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

definida  contra  a  expedição  do  Sul.  ''De  seu  próprio  impulso 
e  sem  instrucções,  informava  Maler  ( i ) ,  protestou  contra  a 
invasão  actual,  recebendo  uma  resposta  evasiva  e  insignifi- 
cante." A  I  de  Abril  de  1817,  dessatisfeito  com  a-  respostas 
explicativas  dadas  sobre  a  occupação  da  margem  oriental  do 
Prata,  Chamberlain  levava  a  effeito  a  formal  declaração  de 
que  o  governo  britannico  renunciava  á  garantia  dos  dominios 
e  estados  sobre  que  reinava  a  Casa  de  Bragança. 

A  garantia  em  questão  era  sem  duvida  preciosa,  mas  a 
sua  applicação  não  era  tão  simples  quanto  á  primeira  vista 
parece.  No  velho  Reino  a  animadversão  aos  Inglezes  andava 
tão  marcada  que,  no  dizer  das  informações  reservadas  do 
cônsul  geral  Lesseps  (2),  o  povo,  apezar  da  calma  e  indiffe- 
rença  que  distinguem  essencialmente  o  moral  portuguez, 
veria  com  maus  olhos  qualquer  ensaio  de  desembarque  de 
forças  britannicas,  mesmo  sob  pretexto  e  na  intenção  de 
defender  o  paiz  contra  aggressivos  designios  hespanhoes.  Os 
Inglezes  tinham  occupado  Portugal  por  longo  tempo  ao 
sabor  das  ultimas  occorrencias,  e  os  inconvenientes  de  muitos 
géneros  que  de  tal  occupação  resultaram,  estavam  ainda 
demasiado  frescos  na  memoria  nacional  para  poderem  dei- 
xar de  produzir  qualquer  movimento  reagente  como  o  que 
já  fermentava,  e  só  esperava  o  contacto  da  fagulha  incendia- 
ria para  fazer  explosão. 

A  tendência  anti-ingleza  tanto  se  destacava  que,  mesmo 
no  Rio,  se  tornara  perceptivel.  Escrevia  Maler  (3)  que  no 
animo  da  corte  brazileira  havia  uma  disposição  para  lançar 
sobre  os  Inglezes  a  culpa  de  quanto  succedia,  sendo  uma 
espécie  de  moda  queixar-se  do  gabinete  de  Londres.   "Tal 


(1)  Officio  de  31  de  Outubro  de  1816. 

(2)  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 

(3)  Officio  de  23  de  Dezembro  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  641 

é  o  espirito  ou  impulsão  do  momento :  os  Portuguezes  podem 
impunemente  descurar  ou  mesmo  estragar  seus  próprios 
negócios:  os  Inglezes  deveriam  arranjar  e  concertar  tudo  a 
contento  delles." 

Si  a  Inglaterra  se  mostrava  infensa  a  Portugal  na 
questão  de  Montevideo,  não  espanta  que  muito  mais  assim 
se  mostrasse  o  resto  da  Santa  Alliança,  que  não  andava 
unido  a  elle  por  idênticos  laços.  Fiel  ao  systema  adoptado 
de  appellar  para  as  potencias  antes  de  appellar  para  a  força,  o 
governo  hespanhol  mandou  o  seu  embaixador  em  Pariz, 
conde  de  Peralada,  entregar  ao  duque  de  Richelieu,  a  25  de 
Novembro  de  1816,  logo  que  a  expedição  foi  divulgada  em 
Madrid,  um  longo  memorandum  sobre  o  comportamento 
iniquo  do  gabinete  do  Rio.  N'elle  se  denunciava  o  constante 
imperialismo  de  Portugal  no  Novo  Mundo  e  se  apontava 
para  a  sua  recusa  de  associar  seus  esforços  com  os  da  Hes- 
panha  afim  de  impedirem  a  constituição  de  um  estado  inde- 
pendente e  republicano  paredes  meias  com  a  monarchia  por- 
tugueza,  preferindo  esta  executar  sósinha  a  repressão. 

A'  habilidade  de  Brito,  que  era  grande,  competia  de- 
fender cabalmente  em  Pariz  a  attitude  da  sua  corte,  e  não 
se  pode  senão  considerar  valiosa  a  sua  defeza.  Na  nota  a 
Richelieu  de  30  de  Janeiro  de  181 7  (i)  tratou  elle  de  ex- 
plicar a  impossibilidade  moral  em  que  se  encontrava  o  go- 
verno portuguez  de  não  reagir  contra  uma  propaganda  anar- 
chista  feita  nas  suas  portas  e  que  ameaçava  provocar  os  ha- 
bitantes á  revolta  e  emancipar  os  escravos.  Eram  afinal  puras 
medidas  defensivas  as  empregadas,  e  a  corte  do  Rio  ver-se- 
hia  perdida  diante  do  rancor  dos  insurgentes,  sobretudo 
por  julgarem-na  coluiada  com  a  de  Madrid,  si  não  houvesse 


(1)  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


642  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

congregado  em  redor  de  si  os  recwrsos  precisos  para  extin- 
guir o  incêndio  desmoralizador  da  revolução.  ''Taes  são 
as  circumstancias  em  que  a  lei  suprema  da  salvação  do  Es- 
tado forçou  o  Rei  Fidelissimo  a  agir  promptamente  e  com 
energia  contra  o  inimigo  das  duas  coroas,  afim  de  que 
aquelle  paiz  entregue  á  anarchia  e  á  destruição,  abandonado 
seis  annos  ha  pela  metrópole,  se  não  converta  n'um  visinho 
ainda  mais  perigoso,  consolidando  seus  meios  de  ataque  e 
renovando  no  Brazil  as  scenas  sanguinolentas  de  São  Do- 
mingos"   (i). 

Havia  d'ahi  que  concluir  que  o  proceder  do  governo 
portuguez  não  era  prejudicial,  antes  vantajoso,  aos  interes- 
ses do  Rei  Catholico,  ao  mesmo  tempo  que  mantinha  e  as- 
segurava a  existência  social  e  politica  do  Brazil.  Occupar 
território  subtrahído  ao  dominio  effectivo  da  Hespanha,  as- 
senhoreado pelo  inimigo  commum  das  duas  coroas,  não  po- 
dia nem  devia  ser  considerado  acto  hostil  contra  aquella 
metrópole.  Ao  Brazil  mesmo  era  impraticável  realizar  a 
occupação  militar  da  margem  esquerda  do  Rio  da  Prata  em 
nome  de  Fernando  VII,  sem  attrahir  contra  si  uma  guerra 
geral  da  parte  dos  insurgentes  de  raça  hespanhola  que  ao 
longo  de  uma  enorme  fronteira,  desde  o  Paraguay  até  a 
Guyana  Hespanhola,  envolviam  a  monarchia  portugueza. 

Terminava  Brito  a  sua  nota  com  esta  bem  cabida, 
quasi  irreplicavel  referencia  á  actividade  da  Santa  Alliança: 
"O  soberano  portuguez  no  cumprir  um  dever  que  lhe  im- 
punha o  interesse  dos  seus  Estados,  e  que  era  o  de  levantar 
uma  barreira  entre  a  anarchia  dos  paizes  limitrophes  e  a 
tranquillidade   do   Brazil,   exerceu   o   mesmo  direito   de   que 

(1)  Nota  cit.  Artigas  detlarara  effoctivamonto.  com  sua  iisual 
o  aggressiva  jactância,  que  o  seu  plano  incluía  produzir  a  revolta  dos 
negros  do  Braz^il. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  643 

se  teem  valido  em  casos  análogos  as  grandes  potencias.  Con- 
siderando mais  que  por  effeito  da  ultima  alliança  essas  po- 
tencias são  com  elle  solidarias  na  extirpação  dos  principios 
revolucionários,  que  infelizmente  depois  de  percorrerem  o 
hemispherio  americano  podem  regressar  á  Europa,  o  referido 
soberano  deve  nutrir  a  esperança  de  achar  nos  seus  Altos 
Alliados  outros  tantos  fiadores  das  suas  intenções  pacificas  e 
da  necessidade  politica  da  expedição  do  Prata.  A  corte  de 
França,  tendo  presente  a  insurreição  das  colónias  inglezas  e 
suas  fataes  consequências,  será  sem  duvida  a  primeira  a  jus- 
tificar a  politica  do  gabinete  portuguez  e  a  persuadir  o  de 
Madrid  de  adoptar  as  medidas  mais  convenientes  para  re- 
cuperar o  completo  dominio  das  suas  colónias." 

N'outra  nota  de  data  posterior  ( i )  voltava  o  repre- 
sentante portuguez  a  explicar  que  os  sublevados  orientaes 
tinham  querido  açular  os  Índios  e  negros  brazileiros  á  re- 
volta, ao  mesmo  tempo  que  especuladores  estrangeiros  in- 
troduziam armas  e  munições  de  guerra  nos  portos  do  Rio 
da  Prata.  N'esta  nota  Brito  —  o  incommodo  Brito,  que 
Richelicu  achava  insupportavel  pelas  teimosas  exigências 
e  Maler  execravel  pelas  informações  pessimistas  que  minis- 
trava —  apontava  para  a  circumstancia  da  expedição  Mo- 
rillo  não  ter  por  fim  tido  por  destino  o  Rio  da  Prata,  como 
uma  prova  mais  da  inconstância  do  governo  hespanhol  e  uma 
nova  razão  da  pouca  confiança  que  ao  governo  portuguez 
podia  offereccr  essa  intervenção  da  metrópole,  que  a  atti- 
tude  irreconciliável  e  as  correrias  de  Artigas  tornavam  o 
mais  urgente. 

O  encarregado  de  negócios  inglez  no  Rio,  observava 
Brito,  protestara  contra  a  expedição  allegando   que   S.   M. 


(1)   9  de  JuDlio  de  1S17,  ihid&m. 


644  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Britannica  fora  mediador  e  garante  do  armisticio  de  i8i2 
(i)  com  o  governo  de  Buenos  Ayres;  mas  Portugal  não 
podia  admittir  semelhante  protesto  baseado  sobre  uma  ga- 
rantia que  nunca  existira,  tanto  mais  quanto  todos  os  ou- 
tros motivos  allegados  na  nota  mencionada  de  Chamberlain 
em  caso  algum  deveriam  prevalecer  sobre  o  direito  mais  sa- 
grado que  havia,  que  era  o  da  defeza  dos  próprios  Estados. 
Deixando  esta  tarefa  a  Portugal,  a  Hespanha  pouparia  es- 
forços e  despezas  em  subjugar  o  território  rebellado,  cuja 
independência  Buenos  Ayres  reconhecera,  hostilizando-o  ape- 
nas porque  Artigas,  sem  titulo  nem  eleição,  alli  se  apode- 
rara ou  tentava  apoderar-se  do  mando  supremo. 

No  proseguimento  da  sua  politica,  que  repudiava  como 
sendo  de  conquista  e  somente  consentia  em  que  fosse  qua- 
lificada de  resistência  dictada  pelo  instincto  da  conservação 
e  horror  á  anarchia,  o  governo  do  Rio  assegurava  official- 
mente  uma  vez  mais  pela  penna  de  Brito  que,  ao  fazer  oc- 
cupar  por  suas  trojpas  o  paiz  situa'do  á  esquerda  do  Uruguay, 
o  Rei  não  tinha  tido  outro  fim  senão  o  de  abafar  o  espirito 
revolucionário  n'uma  região  limitrophe  do  Brazil.  Tomava 
uma  linha  natural  de  preservação  para  conserval-a  até  o  dia 
em  que  a  lucta  entre  as  colónias  hespanholas  e  a  mãi  pátria 
estivesse  terminada. 

Só  então,  restabelecido  o  socego,  reclamaria  S.  M.  Fí- 
delissima  indemnização  pelos  prejuizos  soff ridos  pelos  seus 
súbditos  e  compensação  pelas  despezas  occasionadas  por  uma 
guerra   determinada  pela   aggressão   dos   insurgentes   e   pela 


(1)  Os  armisticios  foram  dous :  o  de  20  de  Outubro  de  1811, 
ontre  Buenos  Ayres*  e  Montevideo,  pretendendo  esta  obrigar  o  Brazil, 
e  o  de  2  de  Junho  de  1812,  pelo  qual  concordou  Portugal  na  retirada 
das  suas  trapas. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BEAZIL  645 

incúria  do  ministério  hespanhol,  pois  que  os  próprios  des- 
agradáveis ifâcheux)  successos  de  Pernambuco  se  teriam 
evitado  si  a  corte  de  Madrid  houvesse  agido  de  combinação 
com  a  do  Rio  para  a  pacificação  das  provincias  rebeldes  da 
America.  Apezar  das  justas  reclamações  que  lhe  seria  licito 
apresentar  contra  a  Hespanha,  sobretudo  por  motivo  da 
villa  e  termo  de  Olivença,  que  essa  potencia  retinha  contra 
o  voto  solemne  emittido  no  Congresso  de  Vienna  por  todos  os 
soberanos,  Portugal  não  visava  comtudo  a  adquirir  um  pe- 
nhor de  tal  restituição,  e  o  Rei  Fidelissimo  nunca  se  recusa- 
ria a  entrar  em  accordo  com  o  Rei  Catholico  para  ajustar 
as  differenças  levantadas  e  convir  definitivamente  n'uma 
linha  de  limites,  que  para  o  futuro  evitasse  entre  as  duas 
coroas,  tão  estreitamente  ligadas,  as  continuadas  dissensões 
que  desde  longo  tempo  se  tinham  creado  ( i ) . 

E'  interessante  ouvir  a  outra  parte,  como  os  mesmos 
factos  serviam  a  argumentação  contraria.  Na  circular  diri- 
gida pela  mesma  data  quasi  (2)  aos  ministros  das  poten- 
cias medianeiras,  insistia  Fernan  Nunez  no  perigo  que  havia 
em  transigir  com  o  espirito  revolucionário  que  a  Europa  ta- 
manho trabalho  tivera  para  debellar.  Ora,  a  attitude  de 
Portugal  no  Rio  da  Prata  apenas  servia  de  dar  alento  ao 
partido  rebelde  de  Montevideo,  "que  já  se  achava  myuito 
enfraquecido  e  prestes  a  abrandar  inteiramente.  A  invasão 
torncu-se  o  melhor  meio,  mais  poderoso,  de  despertar  o  es- 
pirito dos  sediciosos,  e  o  povo  que  se  achava  fatigado,  oppres- 
so  e  debilitado,  de  novo  se  exacerbou  vendo  arvorar  n'esses 
paizes  pavilhões  que  lhe  são  extranhos  e  que  tinha  em  horror, 


íl)   Nota  cit.  de  í)  de  Junho  de  1817. 
(2)   2  de  Julho  de  1817. 


646  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

entregando-se  por  esse  mesmo  motivo  e  com  novo  ardor  aos 
mesmos  excessos." 

Sciente  d'esta  execração,  que  não  pedia  licença  para  ma- 
nifestar-se,  e  no  intuito  de  se  sustentar  é  que  o  governo  por- 
tuguez  poupava  o  governo  rebelde  de  Buenos  Ayres,  usando 
com  elle,  no  dizer  do  embaixador  d'Hespanha,  de  considera- 
ções que  são  somente  devidas  á  auctoridade  legitima.  Em 
verdade  a  corte  do  Rio  conhecia  já  a  tendência  dos  senti- 
mentos coloniaes  e  não  procedia  mais  ás  cegas,  como  D.  Ro- 
drigo de  Souza  Coutinho  com  suas  intimativas  feitas  ao 
desembarcar  e  que  só  serviram  para  provocar  o  vivo  orgulho 
da  raça  hespanhola. 

Em  Março  de  1817  dera-se  a  insurreição  de  Pernam- 
buco e  tanto  o  gabinete  de  Madrid  como  as  potencias  media- 
neiras a  quizeram  á  fina  força  relacionar  com  a  occupação 
da  Banda  Oriental,  attribuindo  a  possibilidade  da  sedição 
á  escassez  no  Brazil  de  tropas  regulares  produzida  pela 
applicação  no  Sul  da  politica  imperialista  de  Dom  João  VI. 
A  sedição  pernambucana  proporcinou,  na  sua  explicação,  en- 
sejo a  Fernan  Nufiez  para  um  rasgo  de  emphase  castelhana 
que  fosse  pautada  por  uma  subtileza  italiana.  "O  estado 
de  perturbação  em  que  presentemente  se  encontra  uma  parte 
do  Brazil  e  cujas  consequências  podem  resultar  as  mais 
funestas,  serve  para  provar  altamente  a  grandeza  d'alma  do 
Rei  meu  Senhor  e  demonstrar  toda  a  generosidade  de  que 
elle  faz  uso  nas  suas  deliberações:  S.  M.  Catholica  tem 
pressa  de  fazer  conhecidos  seus  desejos  de  que  as  Potencias 
alliadas  queiram  conjunctamente  occupar-se  da  urgente  ne- 
cessidade que  ha  de  destruir  esse  espirito  revolucionário,  o 
qual  compromette  a  segurança  do  Brazil  e  a  do  throno  de 
S.  M.  Fidelíssima,  como  igualmente  se  oppõe  á  felicidade  de 


DOM  JOÃO  VI  NO  ERAZIL  647 

todas   essas   bellas   possessões    pertencentes     aos    dous     Sobe- 
ranos" (i). 

Tal  devia  ser,  a  saber,  castigar  o  espirito  de  rebeldia, 
o  verdadeiro  fim  da  grande  confederação  européa  que  pre- 
tendia reger  os  destinos  do  mundo,  e  como  o  episodio  per- 
nambucano viera  bem  a  propósito  revelar  que  aquelle  espi- 
rito grassava  em  toda  a  parte,  tanto  mais  urgindo  anni- 
quilal-o,  Fernan  Nuilez  astutamente  fez  menção  de  voltar 
contra  Portugal  o  argumento  de  intervenção  por  pavor  do 
contagio,  para  rematar  sua  circular:  "O  Rei  meu  amo,  viva- 
mente commovido  pelas  desagradáveis  noticias  que  lhe  che- 
garam ultimamente  e  que  permittem  enxergar-se  o  perigo 
imminente  em  que  se  acha  no  Novo  Mundo  a  monarchia 
portugueza,  encarrega-me  de  fazer  esta  communicação  ás 
Potencias  alliadas  para  provocal-as  a  se  concertarem  entre  si 
relativamente  á  necessidade  e  meios  de  conter  essas  desgra- 
ças que  tendem  decididamente  á  destruição  dos  governos  e 
ruina  dos  Estados." 

Como  a  Santa  AUiança  tinha  por  fito  conhecido  e  razão 
de  ser  ostensiva  o  acabar  no  mundo  com  o  virus  republicano, 
é  claro  que  a  Hespanha  por  todos  os  meios  se  servia  do  es- 
pantalho revolucionário  para  enraizar  mais  fundo  as  sym- 
pathias  da  Europa  pela  sua  causa,  a  causa  por  exceller].cia 
da  legitimidade  e  da  reacção.  No  dizer  n'este  ponto  algum 
tanto  cxaggerado  de  Maler  (2),  cedo  não  se  poderia  mais 
respirar  o  ar  do  hemispherio  austral  sem  ao  mesmo  tempo 
se  respirar  os  miasmas  da  revolta,  sendo  o  grande  foco- 
pestilencial  a  cidade  'de  Buenos  Ayres,  prazo-dado  dos  sedi- 
ciosos aventureiros  do  mundo  inteiro. 


(1)  Circular  oit.  no  Arcb,   do  Min.  dos  Neg.   Est.   de   França 

(2)  Officio  de  30  de  Junho  de  1818. 

D.  J.  —  41 


648  DOM  JOÁO  VI  NO  BRAZIL 

O  que  tinha  o  condão  de  levar  ao  auge  a  irritação  do 
velho  militar  realista  que  a  Restauração  galardoara  com  um 
posto  diplomático,  era  que  entre  os  emigrados  no  Rio  da 
Prata  se  contavam  não  poucos  d'aquelles  officiaes  do  grande 
exercito  napoleónico,  pelo  novo  regimen  reduzidos  ao  meio 
soldo  ou  privados  de  todo  soldo,  que  Balzac  tão  vigorosa- 
mente desenhou  em  romances  seus,  saudosos  do  passado,  des- 
contentes do  presente,  esperançosos  do  porvir,  promptos  a 
batalharem  sempre  que  se  fallasse  nos  immortaes  principios 
que  o  seu  Imperador  immortal  symbolizara,  absorvendo-os. 
Iam  esses  militares  para  o  Rio  da  Prata,  ao  que  diziam  en- 
tregar-se  a  explorações  agrícolas,  de  facto  alistar-se  a  com- 
baterem pela  liberdade  de  terras  opprimidas. 

Os  desertores  eram  ainda  mais  numerosos.  "Penso  já 
ter  feito  observar  a  V.  Ex.-  que  os  navios  que  vão  ao  Rio  da 
Prata  perdem  alli  suas  tripolações  por  effeito  da  deserção. 
As  embarcações  francezas  que  entram  n'este  porto,  proce- 
dentes do  Rio  da  Prata,  trazem  todas  novas  folhas  de  tripo- 
lação  firmadas  pelas  auctoridades  portuguezas  de  Montevi- 
deo, e  outro  tanto  acontece  com  os  navios  inglezes.  Cada  dia 
um  novo  enxame  de  mal  intencionados  vai  pois  avolumar  a 
agglomeração,  e  o  espirito  de  moderação  do  actual  director 
Pueyrredon  constitue  uma  fraca  garantia  contra  as  consequên- 
cias possiveis  do  mal  de  que  elle  poderá  bem  vir  a  ser  uma 
pas  primeiras  victimas"   ( i ) . 

Pelos  diplomatas  acreditados  no  Rio  de  Janeiro  a  me- 
diação das  grandes  potencias  era  considerada  preciosa  não 
só  para  chamar  á  ordem  o  discolo  governo  portuguez,  como 
também  para  remendar  o  laço  que  unira  á  metrópole  hes- 
panhola  as  suas  colónias,   o  Rio  da    Prata  e   Chile    tanto 


(1)  Officio  cit.  de  Maler  de  30  de  Junho  de  1818. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRASIL  649 

quanto  Nova  Granada  e  Venezuela.  Quando  se  fallava  em 
restabelecer  a  aucíoridade  real  no  disperso  e  revolto  império, 
logo  se  ajuntava,  porém,  que  com  algumas  modificações 
indispensáveis.  Fernando  VII  e  Alexandre  I  eram  porven- 
tura as  únicas  pessoas  a  julgarem  possivel  a  recolonização 
pura  e  simples.  As  reflexões  de  Maler  são  interessantes 
n'este  ponto  e  dignas  de  divulgação,  por  trazerem  estam- 
pada a  imagem  d'aquella  opinião  do  mundo  diplomático  do 
Rio  de  Janeiro  —  o  único  então  da  America  do  Sul  — que, 
sendo   conservadora,   não   o  era   em   extremo. 

''  Não  existe  a  menor  duvida.  Monsenhor,  que  mais  se 
tardará  em  offerecer  qualquer  barreira  ao  espirito  de  inde- 
pendência e  a  todas  as  illusões  de  que  o  sabem  engalanar, 
tanto  mais  difficil  e  depressa  impossivel  se  tornará  arrancar 
as  raízes  profundas  que  lhe  terão  permittido  desenvolver  e 
firmar.  Bastantes  circumstancias  e  considerações  existem 
que  reuniriam  uma  parte  da  população  d'estas  províncias  ao 
seu  Rei  si  fossem  ostensiva  e  sabiamente  apoiadas  pelas  Po- 
tencias da  Europa;  acontece  com  as  revoluções  no  Novo 
Mundo  o  mesmo  que  com  as  do  Velho  Mundo,  é  sempre 
uma  minoria  facciosa  que  se  guinda  e  arrasta  e  dirige  a  mul- 
tidão; ora  a  immoralidade,  a  versatilidade  dos  corypheus 
de  Buenos  Ayres,  suas  tramas  e  secretos  conluios  com  a 
pequena  corte  do  Brazil,  tudo  emfim  deve  levar-nos  a 
crer  que,  com  auxilio,  uma  mão  hábil  saberia  facilmente 
fazer  vacillar  as  opiniões  d'esses  chefes  ávidos  e  tirar  van- 
tajoso partido  da  sua  cobiça  e  ambição;  por  outro  lado  se 
está  extremamente  fatigado  de  tantas  inquietações,  agitações 
e  convulsões;  propostas  conciliatórias  sustentadas  pela  me- 
diação das  grandes  Potencias  européas  promptamente  da- 
riam  animo   e   energia   ao   partido   certamente   mais    nume- 


650  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

^^^0 ^^-feu   coração   encerra   todas   as   disposições   para 

sentir  vivamente  as  scenas  que  por  assim  dizer  me  cercam, 
para  deplorar  a  incapacidade  dos  generaes  que  tão  mal  ser- 
vem o  Rei  d'Hespanha  e  o  desatino  dos  seus  súbditos  que  o 
atraiçoam.  Não  posso  também  ver  sem  a  mais  forte  indigna- 
ção que  a  Corte  do  Brazil  tão  ternamente  unida  ao  Rei  Fer- 
nando pelos  laços  mais  sagrados,  esquecendo  sua  própria 
dignidade  e  mesmo  seus  verdadeiros  interesses,  queira  apro- 
veitar-se  de  um  momento  calamitoso ;  é  o  cumulo  da  loucura 
d'uma  ambição  injusta  e  irreflectida"   (i). 

A  mediação  das  grandes  potencias,  exercendo-se  mesmo 
no  sentido  de  uma  reconciliação  entre  a  Hespanha  e  suas 
colónias  em  via  de  emancipação,  não  podia  ser  unanime  por- 
que não  era  generosa:  dictavam-na,  apressando  ou  retar- 
dando sua  acção,  interesses  diversos.  Si  á  Inglaterra  não 
sorria  a  extensão  do  poderio  portuguez  na  America,  tam- 
pouco lhe  havia  de  por  idêntico  motivo  agradar  a  pacificação 
das  possessões  hespanholas  mediante  o  restabelecimento  da 
auctoridade  da  metrópole.  Tanto  assim  pensavam  as  demais 
potencias  mediadoras,  que  aconselhavam  o  gabinete  de  Madrid 
de,  no  caso  de  Montevideo,  accelerar  as  negociações  directas 
com  a  corte  do  Rio  sob  a  égide  da  Santa  Alliança,  pois  de 
outra  forma  daria  talvez  ensejo  ao  governo  britannico  de 
entravar  essa  composição. 

A  Inglaterra,  sob  a  capa  da  neutralidade,  tinha  esta- 
belecido relações  com  todas  as  colónias  revoltadas,  e  si  taes 
relações  não  eram  ainda  politicas,' de  facto  acarretavam  as 
mesmas  vantagens.  Os  commandantes  dos  navios  de  guerra 


(1)  Officio  de  19  de  Abril  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  651 

estacionados  nos  principaes  portos  da  America  Hespanhola  e 
dependentes  todos  do  mesmo  commodoro,  faziam  as  vezes  de 
cônsules,  intervindo  para  arranjar  as  questões  entre  nego- 
ciantes inglezes  e  auctoridades  locaes,  e  regulando  as  rela- 
ções entre  si  dos  súbditos  britannicos  (i). 

Exactamente  por  comprehender  que  o  irresistível  inte- 
resse da  Grã  Bretanha  corria  em  contrario  da  recolonização, 
e  por  perceber  que  o  restabelecimento  da  união  colonial  pela 
influencia  das  potencias  alliadas  não  poderia  deixar  de  im- 
portar na  perda  segura  da  opportunidade  de  reconstituir 
as  mesmas  ligações,  politicas  e  administrativas,  de  outrora, 
mcluido  o  primitivo  monopólio  da  exploração  económica,  é 
que  a  Hespanha  estava  privada  de  entrar  em  quaesquer  nego- 
ciações com  decisão  e  franqueza,  antes  se  sentia  inclinada  a 
usar  de  demoras,  tergiversações,  resistências  e  reticen- 
cias, todos  os  expedientes  n'uma  palavra  de  um  sj^s- 
tema  de  dilação.  Por  isso,  tardando  a  Hespanha  em  declarar 
sua  adhesão  ao  projecto  de  pacificação  das  potencias  media- 
neiras (2),  aventou  o  governo  francez  a  solução  de  uma  mo- 
narchia  constitucional  em  Buenos  Ayres,  como  o  melhor 
meio  de  repor  a  ordem  nas  Províncias  Unidas  e  fazer  viável 
uma  conciliação. 

Offerece  por  todos  os  motivos  curiosidade  acompanhar 
na  correspondência  diplomática,  espelho  das  opiniões  dos 
círculos  officiaes,  o  reflexo  na  America  da  marcha  das  ne- 
gociações na  Europa,  e  verificar  a  forma  por  que  no  Rio 
de  Janeiro   ia   sendo    dada   a   pontuação   aos   despachos   dos 


(1)  Ca,ptaiin  Basll  Hall,  Extracts  from  a  Journal  written  on  the 
coasts  of  CMli,  Peru,  and  México,  in  the  years  1820,  1821  1822  Edin- 
burgih,  1824,  vol.  I.  '  ' 

(2)  Officio  de  Montmorency  Lavai  a  Richelieu,  de  9  de  Novem- 
bro de  1818,  no  Aroh.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


652  DOM  JOÃO  VI  NO  BEAZIL 

gabinetes  do  Velho  Mundo.  Aliás  não  era  a  corte  portu- 
gueza  a  que  menos  se  esforçava  por  prolongar  a  questão  do 
Rio  da  Prata;  o  barão  Pasquier  até  a  accusava  de  ser  a  mais 
empenhada  em  trdner  raffaire  en  longueur  (i). 

O  encarregado  de  negócios  d'Hespanha,  pelo  que  lhe 
tocava,  seguira  protestando  sempre  que  a  propósito  vinha, 
contra  a  deslealdade  de  ser  levantado  nas  cidades  e  praças 
occupadas  na  Banda  Oriental  o  pavilhão  portuguez,  e  contra 
a  impropriedade  da  recepção  dispensada  no  Rio  aos  depu- 
tados de  Montevideo,  que  tinham  vindo  apresentar  seus  votos 
e  seguranças  de  fidelidade  ao  Rei,  e  aos  quaes  o  conde  da 
Barca  não  hesitou  em  conceder  uma  audiência. 

No  dizer  de  Maler  (2),  o  seu  coUega  hespanhol  du- 
vidava no  decorrer  da  sua  nota  sobre  este  particular  assum- 
pto, "affirmar  o  que  lhe  parecia  mais  offensivo  e  desarra- 
zoado, si  a  ousadia  dos  pretensos  deputados,  si  o  proceder  do 
Ministro  que  sem  consideração  pela  sua  própria  elevada  po- 
sição, se  permittia  receber  e  distinguir  súbditos  rebeldes, 
facciosos,  insultando  com  esta  attitude  a  legação  de  S.  M. 
Catholica." 

Dom  João  VI  foi  acclamado  Rei  em  Montevideo  no 
dia  7  de  Abril  de  181 7,  como  o  foi  em  todas  as  villas  dos 
seus  dominios,  excepção  feita  do  Rio  de  Janeiro  e  de  Per- 
nambuco, por  causa  da  revolução  que  ahi,  na  corte  e  na  pro- 
vincia  rebelde,  teve  por  effeito  adiar  a  cerimonia.  Maler,  in- 
dignado d'aquelle  desplante  de  uma  acclamação  em  terra  es- 
trangeira, assim  convertida  em  terra  conquistada,  mais  se 
enojava  de  encontrar  no  Paço,  como  vira  com  os  seus  pro- 


(1)  Despacho  a  Maler  de  2Õ  de  Novembro  de  1819,  ibidem. 

(2)  Officio  de  7  de  Abril  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  653 

prios  olhos,  os  dous  deputados  de  Montevideo  gosando  da 
entrada  na  única  antecâmara  destinada  ás  pessoas  notáveis 
pelo  seu  nascimento  e  condição.  "Cest  ainsi,  exclamava  elle 
( I )  transido  de  horror  ante  essa  quebra  do  tradicional  privi- 
legio, qu'on  voit  accueillir  avec  distinction  des  infames 
traitres   dans  le  palais  des  Róis." 

Na  phrase  do  representante  francez  (2)  as  muitas 
notas  de  reclamação  do  encarregado  de  negócios  Villalba 
eram  bem  redigidas  porque  se  escreve  sempre  impressiva- 
mente quando  se  tem  a  justiça  do  seu  lado,  e  tanto  a  tinha  o 
diplomata  em  questão  que  Palmella  opinava  —  communi- 
cava  Maler  sabel-o  mui  positivamente  —  ser  impossivel  res- 
ponder victoriosamente  ás  queixas  da  Hespanha.  E'  facto 
que  Palmella  e  Saldanha  da  Gama,  longe  da  influencia  do 
imiperialismo  de  que  se  abrazara  a  corte  do  Rio,  sem  amor 
pessoal  pelas  gentes  e  cousas  do  Novo  Mundo,  só  enxer- 
gando os  inconvenientes  politicos  da  situação  do  ponto  de  vista 
europeu,  pensavam  sinceramente,  si  bem  que  se  esforçando 
por  cumprirem  do  melhor  modo  suas  instrucções,  ser  mais 
prudente  evacuar  Portugal  a  Banda  Oriental  do  que  correr 
os  riscos  de  complicações  de  que  elles  sentiam  de  perto  a 
ameaça. 

Tal  não  era  porém  o  juizo  de  Dom  João  VI,  tanto 
que  experimentou  o  velho  João  Paulo  Bezerra  contestar  por 
negação  os  articulados  de  Villalba.  Na  nota  de  27  de 
Agosto  de  18 17  (3)  repete  o  successor  de  Barca  que  o  exer- 
cito portuguez  occupava  território  que  encontrara  em  estado 
de  guerra  e  abandonado  pelos  Hespanhoes  aos  insurgentes 
na  capitulação   de   Montevideo.   As   potencias   alliadas   não 


íl)   Officio  de  25   de  Maio  de  1817. 
>(2)  Officio  de   1   de  Agosto   de   1817. 
(3)   Arch.  do  Min.  das   Rei.   Ext. 


654  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tinhanv  em  1814  pedido  permissão  a  Luiz  XV III,  o  sobe- 
rano legitimo,  para  invadirem  a  França,  nem  a  pedira  em 
1815  Fernado  VII  quando,  por  occasião  do  regresso  da  ilha 
d 'Elba,  fez  suas  tropíis  marcharem  sobre  o  território  fran- 
cez.  Em  qualquer  d'esses  casos  o  território  fora  sempre  con- 
siderado inimigo. 

Além  d 'isso,  assaz  se  proclamara  temporária  e  provi- 
sória a  occupação  da  Banda  (oriental  pelas  tropas  portu- 
guezas.  Somente  á  sombra  do  seu  pavilhcão  poderiam  estas 
tropas  alli  haver  penetrado,  pois  que  não  iam  no  caracter 
de  alliadas  ou  auxiliares  do  Rei  Catholico.  As  intenções  do 
Rei  Fidelíssimo  eram  de  pacificar  o  alludido  território,  de 
accordo  com  a  publicação  do  general  em  chefe  e  as  condições 
de  entrega  da  praça  de  Montevideo,  d'est'arte  provendo  á 
segurança  do  Reino  Unido,  sem  absolutamente  pretender  in- 
gerir-se  na  disputa  entre  a  Hespanha  e  suas  colónias. 

A  liberdade  de  acção  do  monarcha  brazileiro  era  com- 
pleta no  entender  de  Bezerra,  pois  que  fora  violada  em  1801 
a  alliança  defensiva  de  1778,  e  o  tratado  de  Basiléa  de  1795 
já  anteriormente  provara  de  sobejo  a  pouca  conta  em  que  em 
Madrid  eram  tidos  os  soccorros  efficazes  e  generosos  de  Por- 
tugal; como  igualmente  provavam  depois  essa  falta  de  con- 
sideração a  escandalosa  retenção  de  Olivença  com  seu  termo 
e  a  convenção  do  general  Elio  em  181 1  com  a  Junta  de 
Buenos  Ayres. 

O  encarregado  de  negócios  d'Hespanha  não  replicou 
ao  Secretario  d'Estado  com  novos  ou  repizados  argumentos 
porque  muito  provavelmente  sabia  que  "estava  para  chegiir 
um  ministro  e  nko  teria  empenho  em  que  a  discussão  se 
azedasse  comsigo   mesmo:    declarou    apenas   aguardar   o   ef- 


■)é^ 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  655 

feito  da  carta  autographa  do  soberano  portuguez  ao  sobe- 
rano hespanhol  sobre  a  questão,  estando  também  informado 
de  achar-se  ella  affecta  ao  mais  alto  e  imparcial  tribunal, 
como  era  o  das  potencias  medianeiras,  e  julgando  não  valer 
entretanto  a  pena,  longe  da  mediação  e  perto  do  conflicto, 
acirrar  e  desnaturar  o  debate. 

Levantou  não  obstante  uma  contradicção,  fazendo  no- 
tar a  circumstancia  extraordinária  do  monarcha  porruguez 
conceder  amnistias  a  vassallos  estrangeiros,  como  a  q'ie  fúia 
prochimnda  pelo  general  Lecor ;  e  para  não  ficar  atraz  em 
matéria  de  allusões  históricas,  ao  mesmo  tempo  indicanclo  a 
aggravantc  da  premeditação  na  parte  contraria,  relembrou 
que  fora  o  acto  de  projectada  aggressão  da  corte  do  Rio  de 
Janeiro  contra  as  possessões  hespanholas  do  Rio  da  Prata 
que,  com  determinar  a  vinda  da  divisão  auxiliar,  impedira 
o  contingente  portuguez  de  tomar  parte  "nos  últimos  glo- 
riosos acontecimentos  pelos  quaes  se  deu  a  paz  á  Europa'*, 
a  saber,  na  curta  campanha  culminada  em  Waterloo. 

Os  representantes  das  cinco  potencias  mediadoras  pro- 
testaram porem  poucos  dias  depois  d'esta  troca  de  notas,  a 
ó  de  Setembro  de  1817  (i),  contra  a  remessa  de  novos  re- 
forços (2)  para  Montevideo,  emquanto  estivesse  pendente  a 
mediação.  Respondeu-lhes  coUectivamente  Bezerra,  pergun- 
tando si  os  reclamantes  se  achavam  especial  e  expressamente 


(1)  N'esta  data  o  corpo  diplomático  estrangeiro  no  Brazil  se 
achava  mais  reduzido  em  numero  e  cathegorla.  Comprohendia  o  mi- 
nistro da  Prússia,  Flemming,  o  encarregado  de  negócios  d'Austria, 
Neven,  o  da  Hespanha,  Villalba,  e  trez  cônsules  geraes  encarregados 
de  negócios  da  França,  Inglaterra  e  Rússia,  Maler,  Ctiamberlain  e  von 
Langsdorff.  O  ministro  hespanhol  Casa  Flores  chegou  ao  Rio,  a  boiído 
do  paquete  inglez,  a  17  de  Setembro  de  1817  e  o  núncio  Marefoschi  a 
27  de  Outuhro. 

(2)  Trstav.a-se  do  embarque  de  800  homens  compromettidos 
s  na  revolução  de  Pernambuco,  400  negros  livres,  50  artilheiros  e  1.000 
p   milicianos  a  cavallo  da  província  de   São  Paulo. 


656  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

auctorizados  para  exercerem  semelhantes  funcções  de  me- 
diadores junto  ao  governo  portuguez?   (i) 

Não  tiveram  os  agentes  estrangeiros  outro  remédio  se- 
não responderem  no  dia  immediato  que  não  exigiam  explica- 
ções, conforme  parecera  ao  ministro:  apenas  tinham  mani- 
festado que  ficariam  muito  lisonjeados  de  receberem  as  que 
o  gabinete  do  Rio  julgasse  conveniente  dar  e  elles  pudessem 
transmittir ;  que  não  pensavam  prevalecer-se  do  caracter  de 
medianeiros,  o  qual  só  cabia  aos  seus  soberanos  respectivos, 
e  não  tinham  feito  mais  na  nota  mencionada  do  que  con- 
sultarem o  dever  imposto  pela  natureza  mesma  das  suas 
funcções  publicas  e  pelo  espirito  das  suas  instrucções;  que 
estavam  muito  longe  de  suppor  que  a  observação  apresen- 
tada fosse  de  Índole  a  affectar  mesmo  indirectamente  a 
Augusta  Pessoa  de  S.  Magestade,  e  se  abstinham  de  res- 
ponder ao  convite  de  declaração  da  chancellaria  portugueza 
por  já  lhes  haver  anteriormente  sido  dado  o  ensejo  de  res- 
ponderem a  tal  pergunta. 

E'  o  que  em  boa  linguagem  se  pode  chamar  bater  em 
retirada,  e  a  resolução  era  acertada  visto  que,  por  traz  de 
Bezerra,  facilmente  se  adivinhava  que  estava  o  Rei  com  sua 
maliciosa  e  obstinada  bonhomia.  Bezerra  andava  pelo  estado 
physico  reduzido  a  uma  nullidade,  com  que  se  não  devia 
contar.  Justamente  por  esse  tempo  escrevia  Maler  para  Pariz 
(2)  que  a  saúde  do  ministro  de  estrangeiros  continuava 
sempre  no  estado  mais  lastimoso  (pitoyable)  e  que,  tendo-o 


(1)  A  resposta  de  Bezerra  começava  da  seguinte  forma:  "Sua 
Magestade  vio  com  a  mayor  estraiiheza  e  vivo  desgosto  a  Nota  rece- 
bida, e  ainda  que  não  admitte  a  latitude  e  generalidade  que  S.  S.  e 
S.  S.  M.  Mces.  pretendem  dar  á  referida  mediação..."  (Arch.  do 
Min.    dos  Neg.    Est.    de  França). 

{•2)   Officio  de  1  de  Agosto   de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  657 

procurado  cinco  vezes,  mesmo  porque  não  podia  louvar-se 
de  algumas  respostas  que  recebera,  ainda  o  não  conseguira 
ver. 

Pelo  contrario  o  representante  francez  via  com  fre- 
quência Dom  João  VI,  que  sempre  o  acolhia  com  muita  bon- 
dade e  que,  mostrando  invariavelmente  nas  suas  conversa- 
ções desconfiar  do  gabinete  de  Madrid,  dos  soldados  hespa- 
nhoes  e  da  possibilidade  de  Fernando  VII  recobrar  suas 
possessões,  não  menos  invariavelmente  se  mostrava  incli- 
nado a  não  abrir  mão  da  Banda  Oriental,  mostrando  tão 
somente  receio  de  ter  que  vir  a  brigar  com  Buenos  Ayres, 
com  cujo  governo  queria  viver  em  perfeita  paz  (i). 

Tanto  menos  devia  o  governo  portuguez  fraquear 
diante  das  ameaças  de  mediação,  local  ou  distante,  quanto  a 
attitude  assumida  apelas  grandes  potencias  da  Europa  na 
questão  do  Rio  da  Prata  causara  grande  sensação  em  Buenos 
Ayres.  Director,  Congresso  e  funccionarios  públicos  no  geral 
tinham  recebido  a  noticia,  ao  que  se  dizia  com  pezar;  com 
sentimento  hostil  o  povo,  pois  que  mediação  em  taes  condi- 
ções quasi  equivalia  a  intervenção.  Aliás  á  chegada  das 
novas  do  promettido  auxilio  russo  á  Hespanha,  mandou  o 
director  que  toda  a  população  se  exercesse  o  mais  activa- 
mente no  manejo  das  armas  e  se  entregasse  a  evoluções  mi- 
litares, de  sorte  que  a  cidade  se  converteu  n'um  acampamento. 

Uma  humilhação  imposta  a  Portugal  podia  outrosim 
dar  occasião  a  uma  mudança  nas  disposições  que  para  com 
o  gabinete  do  Rio  mostrava  Pueyrredon,  "cuja  auctoridade 
então  se  firmava  e  consolidava,  tornando-se  cada  dia  mais 
difficil  derrubal-o  e  supplantal-o,  trabalhando  elle  muito  e 


(1)    CcTesp.   de   Maler,    no   Arch.   do    Min.   dos   Neg.    Est.    de 
Franca. 


6Õ8  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

só  podendo  sua  popularidade  crescente  intimidar  seus  ad- 
versários"   (i). 

Até  ahi  verdade  é  que  continuara  a  reinar  a  boa  intelli- 
gencia  constantemente  observada  pelo  director  e  correspon- 
dida por  Dom  João  VI.  Tudo  comprova  esta  harmonia  sem 
discrepância,  podendo  exemplifical-a  um  pequeno  facto  entre 
outros,  vulgar  occorrencia  de  guerra  (2).  Trez  officiaes  e 
trinta  e  um  officiaes  subalternos,  prisioneiros  de  Artigas,  con- 
seguiram apoderar-se  de  uma  goleta  ancorada  perto  da  mar- 
gem do  Uruguay,  com  armas  e  munições  do  ca.udilho,  e  esca- 
param-sc.  Navegando  com  rumo  a  Montevideo,  foi  a  goleta 
detida  em  caminho  por  um  corsário  portenho  que  carregou 
os  prisioneiros  para  Buenos  Ayres,  onde  o  director  os  acolheu 
favoravelmente,  soccorrendo-os  e  mandando  trímsportal-os 
n'um  dos  seus  navios  para  a  praça  oocupada  pelos  Portugue- 
zes,  com  designios  tão  assentes  de  permanência  que  a  estavam 
até  fortificando.  Chegou  o  director,  pela  reclamação  do  ge- 
neral Lecor,  a  fazer  entrega  da  carga  como  justa  preza  dos 
evadidos,  conservando  apenas  a  goleta,  por  ser  propriedade 
de  um  individuo  de  Buenos  Ayres.  "  Mr.  Pueyrredon,  não 
deixava  Maler  a  opportunidade  de  commentar  (3),  fait  tout 
ce  qui  depend  de  lui  pour  être  considere  comme  un  voisin 
commode,  d'humeur  douce  et  conciliante." 

Por  seu  lado  não  afagava  a  corte  do  Rio  mais  dilecto 
intento  do  que  vir  a  celebrar  uma  alliança  com  Buenos  Ay- 
res, desistindo  o  governo  portenho  das  suas  pretenções  sobre  a 
margem  oriental  do  Prata  e  promettendo  Portugal  unir-se  ás 
Províncias  Unidas  afim  de  combater  qualquer  expedição 
hespanhola  que  se  afoutasse  até  essas  paragens.  Os  partidários 


(1)  Officio  de  Maler  úe  2S  de  Agosto  de  1817. 

(2)  GazeUi  do  líio  de  Janeiro,  Agasto  de  1817. 

(3)  Officio  de  30  de  Agosto  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  659 

da  legitimidade  eram  pelas  circumstancias  considerados  os 
peores  inimigos  do  soberano  legitimo  de  Portugal  e  Brazil. 
Uma  carta  recebida  de  Montevideo  por  Maler  e  annexada  á 
sua  correspondência  official  denunciava  por  esse  tempo  as 
muitas  arbitrariedades,  violências  e  mesmo  aggressões,  com- 
mettidas  pelos  Portuguezes  contra  os  Fernandistas.  Para  ar- 
raigar a  occupação,  as  terras  da  coroa  hespanhola  eram,  ao 
contrario,  livremente  distribuidas  pelos  uruguaj^os  que  re- 
negavam o  partido  de  Artigas,  e  pelos  soldados  portuguezes 
e  súbditos  brazileiros  que  tinham  ido  no  encalço  da  inva- 
são  ( I ) . 

Não  admira  que  em  condições  taes  fossem  constantes 
as  trocas  de  cortezias  entre  o  Rio  e  B-uenos  Ayres,  sendo 
até  pelo  governo  portuguez  mandados  admittir  em  Monte- 
video os  navios  portenhos  ostentando  o  pavilhão  rebelde. 
Este  estado  de  equilibrio  affectivo  era  no  emtanto  instável  e 
com  muita  razão  observava  Maler  que  a  morte  mesma  de 
Artigas,  ainda  que  livrando  o  Brazil  de  um  inimigo  poderoso, 
não  simplificaria  a  situação,  antes  a  dificultaria,  approxi- 
mando  as  populações  irmãs  das  duas  margens  do  Prata,  que 
um  mal  entendido  politico  separava  sem  ser  ainda  definitiva  a 
scisão,  e  dando  origem  a  uma  perigosa  rivalidade  internacio- 
nal que,  entre  outras  razões,  a  anarchia  produzida  pelo  cau- 
dilho sustava   naquella   occasião   e   impedia   de   aggravar-se. 

Os  acontecimentos  vieram  a  provar  que  o  encarregado 
de  negócios  de  França  se  não  enganava  nas  suas  apreciações: 
depois  de  desapparecido  o  óbice  de  Artigas  e  de  consolidada  a 
independência  argentina,  foi  que  a  questão  de  Montevideo  se 
envenenou,  conduzindo  á  guerra  de  1825.  Nem  sequer  tar- 
dou multo  que  as  boas  disposições  argentinas,  tão  apregoadas, 


(1)  líantlelmaDa,  Oeschichte  von  BraaiUen. 


660  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

fossem  sendo  praticamente  desmentidas  por  factos  e  de  outra 
banda  mal  correspondidas,  tornando-se  menos  e  menos  fra- 
ternaes  as  relações. 

A  corte  do  Rio  queixava-se  de  que  em  Buenos  Ayres 
entrasse  a  circular  um  periódico  contendo  diatribes  contra  o 
governo  do  Brazil,  a  par  do  elogio  dos  martyres  da  liberdade 
pernambucana.  Queixava-se  Pueyrredon  directamente  ao  ge- 
neral Lecor,  dando  simultaneamente  curso  a  esta  queixa 
nos  seus  jornaes,  que  fosse  dada  permissão  de  residência 
e  de  conspiração  em  Montevideo  a  discolos  e  adversários  dos 
governos  de  facto  da  America  Hespanhola,  norma  de  pro- 
ceder tanto  mais  irritante  quanto  em  Buenos  Ayres  a  opinião 
tendia  cada  vez  mais  accentuadamente  para  a  emancipação 
irreductivel. 

A'  ordem  de  Pueyrredon  foi  o  agente  portuguez  Bar- 
roso preso  em  Buenos  Ayres  sob  a  accusação  de  .entreter  e  pro- 
teger a  correspondência  dos  facciosos  congregados  em  Mon- 
tevideo com  os  seus  cúmplices  da  outra  margem.  Uns  e  ou- 
tros agitavam  a  já  de  si  desassocegada  vida  politica  das  Pro- 
víncias Unidas,  intrigando,  conspirando,  espalhando  pam- 
phletos  incendiários  impressos  em  Montevideo,  provocando 
dissensões  sangrentas,  para  tudo  isto  se  aproveitando  de 
andar  entre  as  tropas  de  Buenos  Ayres  o  soldo  sempre  atra- 
zado  por  defrontarem  com  o  governo  os  cofres  públicos 
vasios. 

Protestou  Lecor  contra  esta,  como  a  chamou,  quebra 
do  direito  das  gentes  e  obteve  a  soltura  de  Barroso,  com  or- 
dem, porém,  de  sahir  de  Buenos  Ayres,  pelo  que  se  recolheu 
o  agente  secreto  a  Montevideo,  onde  lhe  deram  o  commando 
da  flotilha  do  Uruguay  (i).  A  expedição  de  Cadiz  tolhia  de 


(1)  Corresp.  de  Maler  no  Arch.  do  Min.  .dos  Neg.  Est.  de  Franga. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  661 

certo  modo  os  movimentos  dos  elementos  em  presença,  impe- 
dindo a  desconfiança  de  degenerar  no  Rio  da  Prata  em  con- 
flicto  agudo  entre  Portugal  e  Buenos  Ayres. 

Estes  famosos  armamentos  militares  e  navaes  desem- 
penharam um  papel  notabilissimo  na  historia  psychologica 
do  tempo:  infundiram  tantos  ou  mais  receios  do  que  a  In- 
vencível Armada.  Em  Portugal  e  ilhas  adjacentes  chegou  a 
haver  quasi  pânico.  Varias  familias  da  Madeira  foram,  as- 
sustadas, refugiar-se  em  Lisboa  ao  expedir  a  Regência  do 
Reino  ordem  de  apromptar-se  a  defeza  d'essa  ilha  e  bem 
assim  das  dos  Açores  e  Cabo  Verde,  transportando-se  para  o 
interior  das  terras  tudo  quanto  fosse  mercadoria  depositada 
na  Alfandega  ou  objecto  precioso  existente  nas  habita- 
ções   ( I ) . 

Também  no  Rio,  quando  a  gente  do  paquete  inglez  en- 
trado a  6  de  Julho  de  1818  contou  ter  avistado  na  bahia  de 
Teneriffe  uma  esquadra  hespanhola  que  transportava  quatro 
a  cinco  mil  homens  de  desembarque,  reinou  grande  susto 
entre  o  povo,  chegando  a  commoção  ao  Rei  e  seus  Ministros, 
que  ficaram  anciosos.  Convocaram-se  a  conselho  os  officiaes 
gencraes  mais  experimentados;  interrogou-se  o  ministro  da 
Hespanha,  que  disse  nada  saber  e  muito  provavelmente  igno- 
rava tudo;  expediram-se  navios  para  Santa  Catharina  e  para 
Montevideo  com  soldados  e  munições  de  guerra  (2).  De 
resto,  Angeja  —  um  mavórcio  marquez  a  quem  Marrocos 
com.para  n'uma  de  suas  cartas  (3)  ao  homem  de  ferro  da 
procissão  de  Corpus  Christi  "  ou  o  Centurio  convertido  na 
do  Enterro,  pois  nelle  tudo  era  metal,  e  até  trazia  a  banda 


(1)  Officio  do  cônsul  geral   Lesseps,  de  14  de  Junho  de  1818, 
ihúlrm. 

(2)  Officio  de  Maler  de  19  de  Julho  de  1818. 
(.".j  íCarta  ao  Pai  de  10  de  Maio  de  1813. 


662  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

c  o  boldrié  muito  abaixo  das  verilhas"  —  e  Barbacena  esta- 
vam a  esse  tempo  de  viagem  assentada  para  Europa,  sob 
pretexto  de  irem  tomar  aguas,  na  realidade,  como  era  voz 
pública,  para  buscarem  mais  regimentos  portuguezes,  uns 
três  a  quatro  mil  homens  que  o  velho  Reino  cedia  de  mau 
grado  ao  imperialismo  brazileiro  em  acção. 

Tanto,  porém,  se  fallou  nos  armamentos  de  Cadiz  que 
por  fim  já  a  ninguém  infundiam  medo.  Em  Portugal, 
quando  com  mais  calma  os  reputaram  de  verdade  destinados 
á  America  Hespanhola,  e  entrou  em  jogo  o  affectado  menos- 
prezo do  Portuguez  pelo  visinho,  deixou  de  lavrar  o  receio  de 
qualquer  ataque  castelhano.  "  Os  armamentos  de  Cadiz, 
escrevia  Lesseps  para  Pariz  ( i ) ,  não  fazem  agora  aqui  maior 
impressão  do  que  si  fossem  intentados  para  atacar  os  Chins." 

No  Rio  de  Janeiro,  si  não  havia  tanta,  simulava-se 
uma  quanta  tranquillidade.  Conversando  com  Maler  (2),  o 
Rei  taxou  os  armamentos  de  exaggerados  pelos  jornaes  in- 
glezes,  mas  o  governo  não  abrandava  de  facto  sua  actividade 
militar,  mandando  recrutar  novos  corpos  de  milicias,  fazer 
reconhecimentos,  guarnecer  as  fortalezas  da  costa  e  prover 
a  outros  urgências  defensivas.  A  maior  difficuldade  estava  na 
marinha,  pela  falta  de  pessoal,  tornando-se  até  por  este  mo- 
tivo impossível  equipar  vários  navios  a  um  tempo.  O  serviço 
marítimo,  mal  remunerado,  era  muito  pouco  procurado,  me- 
lhor dito  evitado,  e,  como  se  não  contavam  numerosos,  antes 
escassos  os  navios  mercantes,  faltava  então  como  hoje  o  na- 
tural viveiro  dos  marinheiros  para  os  navios  de  guerra.  As 
embarcações  de  cabotagem  empregavam  escravos  como  tri- 
polantes. 


(1)  Officlo   cifrado   de  3   de  Março  de  1819. 

(2)  Officio  de  IG  de  Julho  de  1819. 


DÒM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  C6:í 

Em  Portugal  o  pagamento  não  era  melhor  nem  muito 
maior  a  inclinação  pelo  serviço,  sendo  forçado  o  recruta- 
mento, mas  ainda  assim  apparecia  menor  a  mingua  de  gente, 
posto  que  fosse  tão  grande  a  miséria  naval  alli  que,  segundo 
as  informações  mandadas  por  Lesseps  (i),  um  corsário  de 
Artigas,  mais  precisamente  um  corsário  americano  com  pa- 
vilhão oriental,  armado  de  24  canhões  e  tripolado  por  200 
homens,  fundeara  durante  dias  consecutivos  na  barra  de 
Lisboa  quasi  sob  o  fogo  do  forte  de  São  Julião  da  Barra,  ao 
passo  que  outro  cruzava  ao  largo  e  trez  mais  estacionavam 
no  cabo  de  São  Vicente,  entregando-se  todos  á  commoda  e 
lucrativa  pilhagem  dos  navios  que  iam  do  Brazil. 

Maler  duvidava  comtudo  da  sinceridade  dos  esforços 
bellicos  da  corte  do  Rio  no  sentido  da  defeza  contra  um 
ataque  hespanhol.  *'  Tudo  quanto  até  aqui  se  fez,  escrevia 
elle  ao  marquez  DessoUes  (2),  só  pode  ser  considerado  como 
uma  apparencia  de  querer  fazer  alguma  cousa,  e  eu,  em- 
quanto  não  vir  armar  os  navios  todos  e  construir  barcas  ca- 
nhoneiras, persisto  em  pensar  que  o  governo  brazileiro  julga 
impossivel  a  chegada  a  estas  paragens  da  expedição  de 
Cadiz.  " 

A  irresolução  tinha  de  facto  mais  poder  do  que  o  re- 
ceio, mas  neste  caso  a  razão  principal  residia  em  que  na  pró- 
pria Hespanha  os  armamentos  de  Cadiz  já  quasi  tinham  dei- 
xado de  interessar  a  opinião.  Por  isso  mesmo  mais  curioso  é 
de  observar  que  de  repente  entraram  elles  a  inspirar  novos 
temores  no  Brazil  e  no  Rio  da  Prata.  Em  Outubro  de  18 19 
confessava  Dom  João  VI  acreditar  na  vinda  próxima  da  ex- 
pedição, generalizando-se  sua  inquietação  ao  ponto  de  Maler 


(1)  Officio  cifrado  de  3  de  -Fevereiro  de  1819. 

(2)  Officio  de  25   de  Julho  de  1819. 

D,  J.  —  42 


664  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

entrar  igualmente  a  acreditar  na  realidade  das  apprehensõe:, 
officiaes.  Em  Buenos  Ayres  faziam-se,  entretanto,  maiores 
preparativos  de  defeza  e  grassava  irritação  contra  a  França, 
a  Inglaterra  e  a  Hollanda  por  haver  constado  que  a  Hes- 
panha  fretara  d'essas  nações  navios  para  transporte  das  tropas 
da  famosa  por  nunca  realizada  expedição. 

O  mais  interessante  é  que,  ao  passo  que  com  seus  protes- 
tos movia  a  Europa  contra  a  occupação  da  Banda  Oriental 
pelas  forças  portuguezas  e  ostentava  seus  preparos  de  re- 
conquista da  America  Platina,  a  Hespanha,  pela  voz  do  seu 
ministro  no  Rio,  protestava  também  contra  a  evacuação  do 
território.  Casa  Flores  implorava  quasi  que  o  exercito  de 
Lecor  não  abandonasse  Montevideo,  entregando-a  inerme 
aos  revoltosos  e  facciosos  que  alli  puUulavam  e  andavam 
contidos  por  aquellas  forças  disciplinadas,  que  os  impediam 
de  manifestarem  seus  instinctos  sanguinários. 

Os  partidários  locaes  de  Fernando  VII  eram  os  primei- 
ros a  supplicar  isso  com  fervor.  De  Montevideo  dirigiam-se 
ao  representante  no  Brazil  da  sua  metrópole  não  esquecida, 
jurando  que  a  anarchia  attingiria  na  cidade  uruguaya  os 
últimos  limites  si  a  retirada  das  tropas  portuguezas  tivesse 
lugar  antes  da  chegada  da  expedição  de  Cadiz.  Os  boatos 
eram,  com  eííeito,  tão  espalhados  e  tão  repetidos  de  que  a 
praça  seria  despejada  á  noticia  da  approximacão  da  armada 
hespanhola,  que  deviam  em  toda  probabilidade  repousar 
sobre  alguma  cousa  de  real.  Contava-se  que  parte  da  artilhe- 
ria  pesada  da  defeza  já  fora  remettida  para  o  Rio,  e  Maler, 
ao  fazer-se  para  Pariz  echo  dos  rumores,  informava  que  estes 
lhe  chegavam  pelas  cartas  que  recebia  de  Montevideo 
mesmo   ( i ) . 


(1)   Offieio  de  14  de  Novembro  de  1819. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  665 

O  plano  constava  ser,  quando  estivesse  a  expedição  para 
chegar,  entregar  o  general  Lecor  a  cidade  que  occupava  ao 
seu  Cabildo,  onde  vingavam  os  elementos  revolucionários, 
e  deixar  a  Hespanha  arranjar-se  sósinha  com  a  colónia  re- 
voltada, a  qual  estaria  d'essa  forma  praticamente  gosando 
da  independência  por  que  suspirava.  A  expedição  ficaria 
assim  privada  —  visto  não  ser  crivei  que  Montevideo  se  lhe 
rendesse  graciosamente  —  de  um  ponto  de  apoio,  um  porto 
de  aguada  e  refresco,  e  uma  praça  situada  na  entrada  do  es- 
tuário cujo  dominio  ia  a  metrópole  reivindicar. 

A  Buenos  Ayres  não  podia,  pois,  ser  senão  agradável 
o  alvitre,  desmentindo  as  desconfianças  anti-brazileiras  que 
tratavam  de  disseminar  os  elementos  mais  exaltados.  Para 
Portugal  é  evidente  que  as  vantagens  resultavam  obvias 
e  muitas:  poupava-se  a  um  conflicto  armado  com  a  Hespa- 
nha, antipathico  ao  concerto  europeu  e  que  podia  determinar 
na  Peninsula  amargas  consequências;  inutilizava  a  tão  pre- 
parada intervenção  para  reconquista,  á  qual  faltaria  uma 
base  de  operações;  impunha-se  á  confiança  das  Provincias 
Unidas  e  conquistava  a  gratidão  de  Montevideo,  facultando- 
Ihe  uma  autonomia  radical  que  a  diplomacia  suasória  da 
corte  do  Rio  trataria  mais  tarde  de  converter  n'uma  reen- 
corporação,  denunciando  e  especulando  com  o  perigo  de  uma 
absorpção  da  parte  de  Buenos  Ayres. 

A'  Hespanha  era  que  não  podia  convir  o  jogo  e  por 
isso  intimava  Casa  Flores  ao  gabinete  portuguez  (i),  que 
a  este  incumbia  a  policia  do  território  occupado.  *'Cabe  a  Sua 
Magestade  Fidelíssima  manter  e  conservar  a  tranquillidade 
e  segurança  das  pessoas  e  bens   d 'esses   habitantes   até  que. 


(1)   Notas  cie  1  e  de  5  do  Novembro  de  1819,  no  Arch.  do  Min. 
das  Rei.  Ext. 


666  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

estando  ajustadas  as  desavenças  entre  as  duas  cortes  de 
Hespanha  e  de  Portugal,  se  proceda  a  executar  o  que  houver 
sido  combinado.  "  A  advertência  do  diplomata  hespanhol 
dava  d'este  modo  completa  razão  á  argumentação  dos  plenipo- 
tenciários portuguezes  na  Europa,  sobretudo  depois  que 
Palmella  collocara  a  questão  sobre  os  fundamentos  de  uma 
mais  hábil  dialéctica,  conseguindo  transformar  por  inteiro  a 
attitude  dos  representantes  das  potencias  medianeiras  inves- 
tidos das  suas  funcções  quasi  arbitraes,  a  qual  passou  de  sym- 
pathica  á  Hespanha  a  ser  sympathica  a  Portugal. 

Como  Casa  Flores  reclamasse  uma  resposta  decisiva  e 
satisfactoria,  Thomaz  António,  que  geria  a  pasta  dos  Ne- 
gócios Estrangeiros,  a  deu  muito  geitosa  ( i ) ,  pondo  em 
relevo  aquella  justiça  que  por  fim  se  via  assistir  a  diplomacia 
portugueza,  e  no  mais  taxando  de  imaginários  os  temores 
manifestados  nas  duas  notas  hespanholas.  Os  próprios  legiti- 
mistas  da  Banda  Oriental  eram  que  espalhavam  boatos  ater- 
radores e,  naturalmente  envaidados  com  a  próxima  chegada 
da  real  expedição,  chegavam  a  provocar  os  soldados  portu- 
guezes, que  por  esse  tempo  estavam  ligando  seus  movimentos 
para  atacarem  o  acampamento  de  Artigas  em  Passo  de 
Arenas  e  a  villa  do  Coelho    (2). 

A  actividade  bellica  das  duas  parcialidades  permanecera 
bastante  adormecida  até  então  n'esse  anno  de  1819,  conser- 
vando-se  es  Portuguezes  como  que  entorpecidos  nas  suas  po- 
sições e  acantonamentos  (3)  e  Artigas  parado  no  mesmo 
quartel-general  de  Ervidero  (onde  se  encontrava  quando 
Lecor  abrio  a  campanha  de  181 6),  depois  de  se  ter  sangrado 
para  fomentar  a  rebellião  e  pelejar  em  Santa  Fé  contra  Bue- 


(1)  Nota  de  8  de  Xovembro  de  1819,  ibidem. 

(2)  Corresp.  de  Maler,  no   Arch.  do  Min.dosNeg.Est.de   França. 
{3)  Officio  de  Maler  de  30  de  Março  de  1819. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  66? 

nos  Ayres,  n'um  apoio  systematico  do  espirito  provincial  em 
rebelde   desafio   ao   centralismo   unitário. 

A  approximação  de  Artigas  produzio  todavia  o  resul- 
tado contrario  da  celebração  de  um  armisticio  entre  a  ca- 
pital das  Provincias  Unidas  e  os  insurgentes  de  Santa  Fé 
como  preliminar  da  pacificação  geral,  para  tratar  da  qual  se 
aguardavam  os  deputados  que  o  caudilho  se  compromettera 
a  mandar.  A  publicação  simultânea  em  Buenos  Ayres  da 
Constituição  das  Provincias  Unidas  arredava  de  vez  o  pro- 
jecto de  Garcia  de  sujeição  ao  Brazil,  e  até  a  politica  de  boa 
visinhança  cara  a  Pueyrredon  recebia  um  duro  golpe  com  a 
resignação  do  director,  a  quem  substituio  Rondeau,  nascido 
em  Montevideo  e  filho  de  Francez    ( i ) . 

Contra  Rondeau  logo  entrou  a  intrigar  Sarratea, 
mesmo  a  meio  dos  preparativos  de  defeza  contra  a  decan- 
tada expedição  de  Cadiz.  Entretanto,  pelo  fim  do  anno,  de- 
vorado pelo  ciúme  autonomista,  o  caudilho  uruguayo  termi- 
nava o  simulacro  das  suas  negociações  de  São  Lourenço,  se- 
questrando todas  as  mercadorias  e  propriedades  de  cidadãos 
de  Buenos  Ayres  que  se  encontravam  na  margem  oriental  do 
Prata,  e  congregando  na  baixada  de  Santa  Fé,  por  um  no- 
tável esforço,  dous  mil  e  quatrocentos  homens  sob  as  ordens 
do  seu  immediato  Ramirez,  afim  de  recomeçar  a  guerra  con- 
tra o  governo  das  Provincias  Unidas   (2). 

Desde  1818,  comtudo,  que  Maler  dava  como  critica  a 
situação  de  Artigas,  a  qual  teria  sido  desesperada,  segundo 
a  opinião   do   Correio   Braziliense,  si   não   fosse   a   falta   de 


(1)  A  mudança  no  alto  pessoal  governativo  de  Buenos  Ayi-es 
foi  commuBicada  a  Lecor  por  mensageiro  especial,  um  tenente-corònel 
de  artilheria,  e  transmittida  a  Dom  João  VI  em  cartas  que  lerou  um 
navio  adrede  despachado  para  o  Rio. 

(2)  Con-esp.  de  Maler,  no  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


668  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

postos  ao  longo  do  Rio  da  Prata  até  a  foz  do  Uruguay  e 
pela  margem  d'este  rio  acima  até  ás  Missões,  quando  não  pelo 
Paraná;  tanto  para  obstarem  ás  irrupções  das  pequenas  par- 
tidas de  rebeldes,  como  para  forçarem  Artigas,  sob  pena  de 
se  ver  cortado  em  suas  communicações,  a  retirar-se  para  a 
outra  banda  do  rio. 

A  partir  de  certo  tempo,  porém,  estava  de  preferencia  o 
interesse  com  a  discussão  diplomática  do  que  com  as  opera- 
ções militares.  Fizera-se  evidente  que,  coin  os  factores  em 
acção,  estas  já  não  alterariam  mais  o  resultado  alcançado:  a 
Banda  Oriental  prestes  passaria  a  ser  a  Provincia  Cisplatina 
da  monarcbia  portugueza.  O  debate  politico  offerecia  no 
emtanto  ensejo  para  raras  virtuosidades  de  argumentação 
que,  si  não  conseguia  ser  decisiva,  offerecia,  pelo  menos, 
muito  maior  seducção. 

A  lógica  do  desembargador  Thomaz  António  espraia- 
va-se,  já  com  um  tom  festivo,  na  sua  referida  nota  ao  minis- 
tro d'Hespanha:  "Sendo  singular  que  de  Buenos  Ayres  pro- 
testão  que  S.  M.  F.  não  deixe  a  Praça:  os  do  Cabildo  e  vi- 
sinhos  instão  pelo  mesmo:  e  S.  S.-  agora  também  declara 
os  sentimentos  dos  Espanhoes;  tendo  todos  o  temor,  de  que 
as  Tropas  Portuguezas  se  retirem;  e  vem  a  ser  só  na  Europa 
por  fatalidade  onde  se  suppõe,  que  a  occupação  he  huma  vio- 
lência, e  não  hum  beneficio " 

Respondendo  directamente  á  increpação  de  acalentar  a 
corte  do  Rio  designios  de  formal  annexação  do  território 
occupado,  ajuntava  o  ministro  de  Dom  João  VI:  ''Entre- 
tanto pode  o  abaixo  assignado  asseverar  a  S.  S.-  que  S.  M.  F. 
não  tem  nenhum  Tratado  secreto,  nem  jamais  o  tem  per- 
mittido  aos  seus  Ministros,  Que  tendo  procurado  com  a  sua 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  669 

occupação  o  fim  de  socegar  aquelles  Habitantes,  não  os  ha 
de  desamparar,  nem  deixar  em  anarchia"   (i). 

A  replica  de  Casa  Flores  é  de  i8  do  mesmo  mez  de 
Novembro  (2)  e  coUoca  a  questão  nos  seus  verdadeiros  ter- 
mos para  o  governo  hespanhol:  "O  geral  dos  habitantes 
d'essa  digna  cidade  (Montevideo),  cujos  sentimentos  de  fi- 
delidade ao  seu  soberano  legitimo  são  bem  conhecidos,  mesmo 
quando  se  acham  reprimidos  pela  facção  sediciosa,  solicita 
que  as  forças  portuguezas  os  não  abandonem  sem  defesa  ao 
furor  e  ás  intrigas  dos  revolucionários;  mas  não  deseja  e  não 
pede  que  a  praça  não  seja  restituida  ás  auctoridades  que  o 
seu  Augusto  Soberano  destinar  para  tal  fim.  Por  idêntica 
razão  esse  é  igualmente  o  desejo  dos  Hespanhoes  como  S.  Ex.- 
os  denomina,  sem  que  seja  possível  perceber  por  todo  o  se- 
guimento da  Nota  de  que  classe  de  Hespanhoes  se  trata,  pois 
que  todos  seus  habitantes  são  hespanhoes,  excepção  feita  dos 
forasteiros  que  alli  residem." 

A  contenção  hespanhola  fora  aliás  constante  para  que  a 
corte  do  Rio  conviesse  em  que  lhe  competia  devolver  a  coló- 
nia dominada  pelas  armas  portuguezas,  logo  que  o  exigisse 
o  monarcha  que  tradicionalmente  sobre  ella  exercia  sua  ju- 
risdicção.  A  nota  de  D.  José  Pizarro,  ministro  dos  negócios 
estrangeiros  de  Fernando  VH,  ás  cinco  potencias  medianei- 
ras, em  data  de  20  de  Novembro  de  181 7  (3),  tratara  ex- 
plicita e  demoradamente  d'este  ponto,  por  elle  qualificado 
de  eixo  da  questão.  Eram  as  seguintes  suas  palavras:  "A 
entrega  ou  não  entrega  do  território  pode  bem  ser  um  facto, 
mas  a  faculdade  de  occupal-o  e  a  prompta  annuencia  no  de- 
volvel-o  são  verdadeiros  direitos,   ou  então   um   facto   legal 


(1)  Nota  cit.  de  8  de  Novenubro  de  1819. 

(2)  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 

(3)  (Papeis  avulsos,  no  Arcti.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


670  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

e  indivisível.  O  gabinete  hespanhol  não  lograria  comprehen- 
der  o  valor  de  uma  propriedade  e  de  uma  soberania,  cujo 
exercido  pudesse  ser  tornado  condicional Uma  devolu- 
ção de  território  sem  a  declaração  de  soberania  seria  na  ver- 
dade alguma  cousa  de  effectivo  :  deixaria  porém  a  posse 
n'um  vago,  n'uma  ince-rteza  penosa  e  perigosa  aos  olhos  da 
justiça,  e  da  mesma  forma  uma  soberania  sem  a  previa  se- 
gurança da  devolução  ou  da  posse  por  effeito  da  reclama- 
ção do  legitimo  soberano,  uma  soberania  cuja  funcção  fosse 
ainda  objecto  de  duvida,  em  que  restaria  o  que  discutir  e 
estivesse  dependente  da  acceitação  ou  recusa  das  condições 
apresentadas  da  parte  de  quem  não  é  o  soberano  e  a  quem 
cabe  devolver  o  território,  seria,  para  começar,  um  contra- 
senso  incompatível  com  a  essência  da  própria  soberania:  não 
condiria  com  a  linha  de  dignidade  das  duas  Altas  Partes, 
e  deixaria  o  fundo  da  questão  n'uma  situação  ainda  mais 
intricada  e  arriscada  do  que  o  estava  antes." 

Desde  1817  no  emtanto,  tinham  as  cousas  mudado  bas- 
tante de  aspecto,  e  a  questão  de  Montevideo,  resolvida  de 
facto  pela  invasão  portugueza,  estava  em  fins  de  1819  ago- 
nisante  para  o  gabinete  de  Madrid,  quando  mesmo  elle  a 
quizesse  disputar  á  morte,  e  agonisante  também  para  os  legi- 
timistas  e  nacionalistas  do  Uruguay,  quando  mesmo  uns  e 
outros  lhe  quizessem  insufflar  nova  vida. 

A  atmosphera  diplomática  na  corte  portugueza  tinha-se 
visivelmente  desannuviado  com  a  chegada  ao  Rio,  a  24  de 
Outubro  de  181 9,  do  ministro  Thornton,  com  caracter  pro- 
visório  de  embaixador    (i).    O   Inglez   como   que   trouxera 


(1)  No  mesmo  anno,  a  23  de  Setembro,  chegara  de  Falmoutli, 
no  paquete  inglez,  o  novo  encarregado  de  negócios  da  Áustria  Ma- 
reschall,  para  substituir  o  barão  de  Neven,  fallecido  de  uma  pleuresia 
e  enterrado  a  2G  de  Fevereiro  d'esse  anno  de  1819. 


r 

DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  671 

comsígo  o  reflexo  do  magnetismo  exercido  por  Palmella 
sobre  o  gabinete  britannico.  Em  Londres  e  no  continente  tra- 
tara o  plenipotenciário  portuguez  de  fazer  descarregar  sem 
estrépito  nem  estragos  a  electricidade  accumulada  no  hori- 
zonte politico,  felizmente  mais  circumscripto  do  que  o  hori- 
zonte cósmico,  e  magicamente  alcançara  que  no  firmamento 
europeu  se  desenhasse  para  o  seu  paiz  o  arco-iris  da  concórdia 
in*ternacional. 

Os  representantes  estrangeiros  no  Brazil,  que  todos 
andavam  beliscando  o  gabinete  do  Rio,  tiveram  que  mudar 
correlativamente  de  m^odo,  e  a  transição  determinou-a  o  novo 
ministro  inglez  com  a  decisão  própria  da  diplomacia  britan- 
nica.  Quando  os  demais  ministros  e  encarregados  de  negócios 
trataram  de  se  agrupar  em  redor  de  Casa  Flores  para  intima- 
rem, no  sentido  das  conveniências  hespanholas,  que  a  eva- 
cuação de  Montevideo  antes  da  chegada  da  expedição  de 
Cadiz  constituiria  uma  anticipação  dos  resultados  das  nego- 
ciações em  andamento  na  Europa  e  portanto  envolvia  uma 
falta  de  consideração  ás  potencias  medianeiras,  recusou 
Thornton  associar-se  á  manifestação  collectiva. 

Não  fazendo  de  resto  mais  do  que  applicar  as  máximas 
anteriores  da  politica  do  seu  governo,  avessa  a  annexações 
portuguezas  e  sympathica  á  libertação  colonial  do  trafico 
commercial,  elle  declarou  não  comprehender  porque  havia 
de  ser  o  acto  da  evacuação  mal  interpretado  pelas  referidas 
potencias,  tanto  mais  quanto  as  negociações  na  Europa  com- 
portavam tantas  delongas,  não  parecendo  razoável  que 
delias  ficasse  inteiramente  dependente  o  andamento  lo- 
cal dos  negócios.  Além  de  que  qualquer  acção  diplomá- 
tica collectiva,  concertada  no  Rio,  presuppunha  de  facto 
e    com  certeza  a  maneira  pela  qual    as  potencias    maiores 


672  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

encarariam  afinal  e  definitivamente  a  questão,  nenhuma  ra- 
zão existia  que  devesse  impedir  os  Portuguezes  de  reporem 
as  cousas  no  primitivo  estado,  si  tal  era  sua  vontade.  O  Bra- 
zil,  observava  ainda  o  ministro  britannico,  estava  na  obriga- 
ção de  ter  com  a  republica  de  Buenos  Ayres  as  contempla- 
ções que  lhe  suggerisse  a  politica,  e  o  plenipotenciário  portu- 
guez  em  Pariz  reconhecera  os  erros  commettidos  pelo  seu 
governo  em  todo  esse  negocio:  nada  mais  justo  do  que  per- 
mittir  a  occasião  de  serem  elles  reparados. 

O  ministro  russo  Thuyll  ponderou  na  reunião  que  en- 
tregar a  praça  occupada  aos  inimigos  de  S.  M.  Catholica  em 
vez  de  entregal-a  ás  forças  de  S.  M.  Catholica,  era  post  jul- 
gar, não  prejulgar  as  cousas,  mas  Thornton  se  não  deixou 
convencer  e  persistiu  na  sua  attitude,  o  que  levou  seu  collega 
a  dizer  depois  que  o  embaixador  de  S.  M.  Britannica  pare- 
cia ter  em  mente  que  uma  guarnição  ingleza  poderia  perfei- 
tamente substituir  em  Montevideo  a  guarnição  portugueza 
até  a  chegada  das  forças  hespanholas.  E  não  estava  com  isto 
Thuyll  muito  longe  de  acertar,  si  bem  que  não  fosse  de  na- 
tureza a  enganar  potencia  alguma  a  razão,  aventada  para 
tal  caso  eventualmente,  de  mais  depressa  dever  uma  guarni- 
ção ingleza  entregar  a  praça  occupada  ao  seu  legitimo  sobe- 
rano, mantendo  entrementes  a  ordem,  motivo  de  todas  as 
preoccupações. 

Os  partidários  da  antiga  metrópole  continuavam  a  agi- 
tar-se  na  Banda  Oriental,  pois  que  informava  então  Maler 
( I )  que  Lecor  fizera  entrar  em  Montevideo  trez  regimentos 
e  prender  iio  realistas,  entre  elles  officiaes  superiores,  con- 
duzindo-os  para  bordo  de  um  transporte  portuguez  que  os 
levou  para  Santa  Catharina.  A  violência  tinha  de  certo  poí 


(1)   Oíficio  de  18  de  Dezembro  de  1819. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  673 

fim  ceder,  no  caso  de  evacuação  do  território  pelas  tropas 
portuguezas,  o  campo  livre  aos  rebeldes  afim  de  se  installa- 
rem  no  poder  sem  receios.  Lecor  era  o  primeiro  mesmo  a 
mandar  dizer  que  a  lista  dos  presos  fora  organizada  pelo 
Cabildo,  de  parcialidade  revoltosa. 

A'  nota  de  queixa  de  Casa  Flores  respondeu  Thomaz 
António  que  o  Rei  dera  ordem  de  carregar  de  novo  os  ac- 
cusados  para  Montevideo,  no  intuito  de  serem  ouvidos  e  jul- 
gados por  um  conselho  de  guerra,  ficando  sujeita  ao  monar- 
cha  a  deliberação  do  tribunal  militar  e  dando-se  ao  governa- 
dor de  Santa  Catharina  faculdade  para  conceder  áquelles 
que  o  desejassem,  permissão  de  virem  para  o  Rio  de  Janeiro. 

O  manifesto  é  que,  quando  as  grandes  potencias  tives- 
sem continuado  a  sustentar  a  Hespanha,  o  gabinete  de  Ma- 
drid pouca  vontade  exhibia  de  entrar  n'uma  lucta  armada 
com  Portugal,  que  elle  bem  sabia  ser  mais  forte  na  Ame- 
rica, onde  assentara  permanência  a  monarchia.  Tampouco 
ignorava  o  governo  hespanhol  que  a  corte  do  Rio  podia  van- 
tajosamente responder  no  Novo  Mundo  a  qualquer  ataque 
castelhano  na  Peninsula:  bastava-lhe  favorecer  material- 
mente a  emancipação  de  todas  as  colónias  sublevadas,  pen- 
dente ainda  o  desenlace  do  conflicto. 

Comprehendia  no  emtanto  o  gabinete  de  Madrid  que 
este  desforço  não  estaria  no  interesse  do  regimen  monar- 
chico,  que  a  corte  do  Rio  era  única  a  encarnar  na  America 
( I )  ;  por  conseguinte  que  a  vingança  corria  o  risco  de  redun- 
dar no  próprio  prejuizo  de  quem  assim  a  exercesse.  Tão 
bem  presentia  aliás  Dom  João  VI  o  perigo  do  contagio  que. 


íl)  "Por  meio  dVllc  ÍEl-Hei  do  Brazil),  escrevia  o  abl^ade  de 
Prcdt,  preservou  a  Realeza  na  America  um  ponto  de  apoio,  com  um 
representante  ;  e  os  thronos  da  Europa  lhe  devem,  o  não  haverem  ali 
pei-dido  toda  a  similhança  de  suas  institulçoens." 


674  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mesmo  antes  da  revolução  de  1817  lhe  dar  o  rebate  e  de- 
monstrar que  sua  presença  no  paiz  não  constituía  sufficiente 
obstáculo  á  explosão  de  idéas  subversivas  e  separatistas,  deli- 
berara não  sahir  do  grande  theatro  de  agitação  revolucio- 
naria, a  qual,  com  o  despotismo  de  Bonaparte  primeiramente 
e  depois  com  a  colligação  das  monarchias  de  direito  divino, 
parecia  ter  emigrado  da  Europa  para  a  America. 

Na  Europa  havia  sido  ao  Rei  de  Portugal  útil  e  avisado 
escapar  á  tormenta  estrangeira;  na  America  era  indispensável 
ao  Rei  de  Portugal  e  Brazil  affrontar  de  pé  a  borrasca  na- 
cional pois  que,  conforme  prophetizava  em  181 7  o  abbade 
de  Pradt:  "A  presença  d'El-Rey  no  Brazil  é  a  verdadeira 
segurança  que  tem  a  Casa  de  Bragança  n'aquellas  regioens, 
e  a  sua  mudança  seria  a  sua  terminação.  El  Rey  sahindo  dali, 
deixaria  a  independência  na  sua  capital  desertada." 


CAPITULO  XVII 


A  DIPLOMACIA  DE  PALMELLA  NA  QUESTÃO  DE  MONTEVIDEO 


A  melhor  parte  da  primeira  missão  diplomática  de  Pal- 
mella  em  Londres  foi  dedicada  á  questão  de  Montevideo, 
da  qual  entretanto  tratava  em  Madrid  o  seu  antigo  compa- 
nheiro do  Congresso  de  Vienna  Saldanha  da  Gama  (i), 
alli  acreditado  a  partir  de  1817.  Em  Outubro  de  18 16  as- 
sumiu elle  o  seu  posto  na  corte  de  Saint  James  (2),  en- 
tregando credencial  de  ministro  á  espera  de  saber  que  cara- 
cter teria  de  futuro  o  representante  britannico  na  corte  do 
Rio,  isto  é,  si  haveria  reciprocidade  para  a  sua  credencial 
de  embaixador,  que  guardava  de  previsão.  Em  fins  de  181 7 
foi  Palmella  nomeado  ministro  dos  negócios  estrangeiros  no 
Brazil,  com  ordem  porém  de  permanecer  na  Europa  até  se 
ajustarem  as  desavenças  entre  os  governos  portuguez  t  hes- 
panhol  por  motivo  da  occupação  da  Banda  Oriental. 


(1)  o  coade  de  Porto  Santo  foi  mais  tarde,  em  Lisboa,  ministro 
de  estrangeiros  de  Dom  João  VI,  pouco  antes  do  falIecimeTito  do  mo- 
marclia. 

(2)  Cypriano  Ribeiro  Freire  teve  suas  audiências  de  despedida 
em  fins  de  181G. 


678  DOM  JOÃO  VI  NO  BllAZIL 

Sob  a  direcção  do  atilado  estadista,  a  legação  de  Lon- 
dres logo  tomou  um  aspecto  diverso  no  que  tocava  á  gerência 
dos  negócios:  tornou-se  interessante  ao  mesmo  tempo  que 
pratica.  Palmella  era  o  que  os  Inglezes  chamam  a  bom  di 
plomatist,  tendo  a  visão  clara  das  cousas,  occupando-se  si- 
multaneamente das  mais  variadas  questões,  nenhuma  jul- 
gando inferior  á  sua  capacidade  e  pouco  merecedora  do  seu 
desvelo,  sabendo  tomar  sem  hesitar  as  providencias  urgentes 
sem  deixar  de  consultar  o  governo  remoto  quando  fosse 
caso  para  tanto,  acudindo  a  todas  as  reclamações  sem  per^ 
der  a  fleugma  fidalga,  trazendo  o  serviço  completamente  em 
dia  e  sabendo  expor  os  acontecimentos  e  offerecer  os  argu- 
mentos n'um  estylo  simples,  fluente,  lúcido  e  directo,  sem 
elegância  litteraria  mas  com  uma  nota  inconfundivel  de  dis- 
tincção,  e  geralmente  com  um  sabor  agradável  de  verna- 
culidade  que  de  quando  em  vez  adulteravam  estrangeirismos 
flagrantes  (i),  originados  na  educação  e  longa  residência 
fora  de  terras  portuguezas. 

Palmella  encontrou  a  questão  posta  nos  seguintes  ter- 
mos: a  Hespanha  protestava  fortemente  contra  a  expedição 
portugueza  ao  Rio  da  Prata,  que  tampouco  merecia  o  apoio 
sequer  condescendente  da  Grã  Bretanha,  o  que  não  signi- 
ficava, no  dizer  de  um  dos  officios  reservados  do  repre- 
sentante de  Dom  João  VI  em  Londres,  que  o  governo  in- 
glez  se  não  mostrasse  depois  da  guerra  de  1 8 12-14  com  os 
Estados  Unidos  muito  menos  propenso  a  favorecer  a  causa 
dos  Hispano-Americanos. 

Lord  Castlereagh  puzera-se  mesmo  de  franco  accordo 
com  Fernan  Nufiez,  n'este  sentido  dera  suas  instrucções  ao 

(1)    Assim  encontra-se   na   sua   corresponcleiKiia   oíficial   majori- 
(l(ulc  por  mnioria,  ajornar  por  adiar,  cifra  por  raonogramma,   etc. 


DOM  JOÃO  VI  XO  BRA2IL  679 

encarregado  de  negccios  no  Rio  e  fallara  até  em  fazer  in- 
tervir as  potencias  maiores  afim  de  obrigarem  a  serem  man- 
tidos os  tratados  existentes.  Secundava  pois  inteiramente  o 
gabinete  britannico  os  esforços  da  chancellaria  madrilena, 
que  tendiam  ao  resultado  de  tornar  arbitras  da  situação 
as  potencias  quasi  todas  que  formavam  a  Santa  AUiança,  não 
este  conjuncto  federativo  da  reacção. 

Palmella,  comtudo,  não  desanimou.  Como  bom  diplo- 
mata, que  nunca  perde  a  esperança  de  achar  uma  solução  e 
possue  uma  natural  inclinação  para  ver  ou  pelo  menos  para 
descrever  as  cousas  mais  complicadas  sob  um  disfarce  côr 
de  rosa,  escrevia  elle  a  Aguiar  ( i )  que  se  poderia  experi- 
mentar fazer  pender  a  balança  para  o  outro  lado  e  manifes- 
tar-se  ainda  a  favor  de  Portugal  alguma  potencia,  "alegando 
por  exemplo  o  perigo  que  se  segue  para  o  Brazil  da  declara- 
ção da  independência  e  principios  jacobinicos  das  Provindas 
limitrophes  Espanholas;  a  injustiça  com  que  a  Hespanha, 
que  as  não  domina  nem  as  pode  sujeitar,  exige  de  nós  que  as 
respeitemos;  as  pretenções  mais  justas,  que  podemos  fazer 
valer,  para  arranjos  de  limites;  os  sacrifícios  em  que,  a  esse 
respeito,  poderíamos  consentir  para  indemnizar  a  Espanha  ao 
norte  do  Amazonas;  a  escandaloza  retenção  de  Olivença 
pela  Espanha;  e  a  injustiça  de  quererem  intervir,  para  nos 
obrigar  forçadamente  a  huma  restituição,  aquelas  mesmas 
Potencias  que  se  contentaram  só  de  boas  Palavras  quando 
se  tratou  da  nossa  reclamação  de  Olivença." 

O  essencial,  n'um  caso  de  arbitramento,  parecia  a  Pal- 
mella ser  —  porquanto  na  espécie  era  vantajoso  a  Portugal 
—  não  circumscrever  o  seu  objecto,  mas  amplial-o  para  diri- 


(1)   Officio  reservado  de  20  de  Novembro  de  181G,  no  Arch.  do 
Min.  das  ReJ.  Ext. 


680  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mir  de  uma  feita  as  questões  de  fronteiras  entre  as  duas  co- 
roas: "Tratar  não  só  o  fundo  da  questão  da  occupação  de 
todo  o  território  do  Rio  da  Prata  por  Portugal  ou  por  Es- 
panha, pois  essa  he  huma  questão  de  justiça  em  que  não  te- 
riamos  bom  partido,  mas  a  questão  subsequente  de  hum  ar- 
ranjo futuro  e  estável  de  h*mites  que  seria  de  dezejar  que  pu- 
déssemos levar  até  á  linha  do  Rio  da  Prata." 

Nem  esquecia  o  ministro  de  Portugal  um  lado  mais 
geral  ou  pelo  menos  mais  europeu,  em  todo  o  caso  mais  po- 
litico da  questão,  que  era  o  dos  inconvenientes  contidos  em 
possiveis  futuras  intervenções  da  Santa  Alliança,  exercendo 
uma  influencia  irresistivel  sobre  todo  o  mundo:  **Hum 
escrúpulo  que,  com  justiça,  poderia  occorrer,  he  o  de  reco- 
nhecer a  espécie  de  Dictadura  assumida  pelas  cinco  Poten- 
cias, esse  escrúpulo  porem  pareceme  menor  seguindo  o  plano 
da  Espanha  de  as  pedirmos  voluntariamente  por  arbitras,  do 
que  esperando,  como  o  propoz  a  Inglaterra,  que  Elas  mesmas, 
sem  serem  chamadas,  se  metam  em  nos  dictar  a  Ley." 

A  Hespanha  de  resto,  ainda  que  solicitando  sua  media- 
ção, não  tinha  vontade  de  admittir  a  referida  dictadura. 
Intencionalmente  o  gabinete  de  Madrid  reclamara  a  arbi- 
tragem de  quatro  somente  das  cinco  potencias  maiores;  ex- 
ceptuara de  propósito  a  Prússia  "para  não  reconhecer  o  Tri- 
bunal Supremo  que  estas  Potencias  parecião  ter  querido  es- 
tabelecer depois  da  primeira  Paz  de  Paris"  (i). 

Na  sua  primeira  entrevista  com  lord  Castlereagh,  rea- 
lizada nos  últimos  dias  de  1816,  apoz  a  entrega  da  creden- 
cial, por  haver  o  ministro  dos  negócios  estrangeiros  estado 
algum  tempo  fora  —  em  Mount  Steward,  na  Irlanda  — 
Palmella  apontara  o  absurdo  de  querer  a  Hespanha  obstar  á 


(1)   Officlo  reservado  de  4  de  De^zembro  de  1S16,  ihidemi. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  681 

intervenção  portugueza  em  territórios  sobre  que  não  pos- 
suía auctoridade  senão  de  nome,  sem  meios  de  obrigar  os 
insurgentes  a  respeitarem  o  território  brazileiro.  "Supondo, 
disse  eu,  que  os  Insurgentes  tenhão  como  creio  commettido 
hostilidades  no  Rio  Grande,  não  tem  o  Governo  do  Brazil 
senão  a  escolha  de  as  sofrer  com  paciência,  o  que  não  pode 
exigir-se,  ou  de  tratar  com  os  mesmos  Insurgentes,  o  que 
ofenderia  ainda  mais  a  El-Rey  de  Espanha,  ou  finalmente 
de  assegurar  pela  força  das  armas  a  tranquilidade  das  nossas 
fronteiras"    (i). 

Portugal  atravessava  porém  em  Inglaterra  uma  má 
quadra  de  opinião.  Wellington,  cuja  influencia  era  poderosís- 
sima então  nos  conselhos  da  coroa  britannica,  também  se 
mostrava  muito  infenso  á  expedição  brazileira  do  Rio  da 
Prata.  A'  má  vontade  do  general  victorioso  não  seria  cer- 
tamente alheio  algum  resentimento  pela  insistência  com  que 
a  Regência  do  Reino  —  n'este  ponto  ajudada  pelo  marechal 
Beresford,  marquez  de  Campo  Maior  —  reclamava  por  in- 
termédio de  Palmella  para  o  exercito  portuguez,  que  tão 
corajosamente  se  batera  sob  as  ordens  supremas  do  marquez 
de  Torres  Vedras  (2),  a  parte  que  lhe  competia  nos  despojos 
da  guerra.  Estes  tinham  sido  pelo  Parlamento  britannico 
convertidos  em  moeda  corrente,  mandando-se  abonar  ao 
exercito  nacional  inglez  uma  somma  julgada  equivalente 
áquelles  despojos:  d'essa  somma  uma  boa  parte  coubera  a 
Wellington,  que  d'ella  não  estava  disposto  a  desprender-se. 

A  causa  de  Portugal  andava  por  esse  tempo  quasi  jul- 
gada, ou  melhor  condemnada  de  antemão.  A  nota  de  Har- 
denberg  a  Pozzo  di  Borgo,  em  resposta  ás  informações  pres- 


(1)  Officio  reservado  de  1  de  Janeiro  de  1817,  ibidem. 

(2)  Titulo  portuguez  com  que  fôra  agraciado  Wellington. 

D.  J.  —  43 


V 


682  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tadas  pelo  diplomata  russo  á  chancellaria  prussiana  —  que  a 
Hespanha  não  deixara  afinal  de  convidar  igualmente  para 
intervir  como  mediadora,  pensando  judiciosamente  melin- 
dral-a  com  a  exclusão — assim  se  expressava  a  31  de  Janeiro 
de  1817  (i):  "Si  le  Portugal  croyait  devoir  cette  mesure 
à  sa  súreté  afin  d'empêcher  la  contagion  des  maximes  et  des 
principes  révolutionaires,  il  devait  avant  toutes  choses  de- 
mander  Tacquiescement  de  TEspagne,  et  s'il  voulait,  en 
occupant  provisionnellement  la  Province  de  Buenos  Ayres, 
rendre  service  à  TEspagne,  il  devait  le  lui  déclarer  d'une 
manière  positive,  et  Tengager  á  y  consentir,  car  aucun  Etat 
n'a  le  droít  de  rendre  service  à  un  autre  malgré  lui  et  au 
détriment  de  ses  droits." 

Hardenberg  accrescentava  que  era  todavia  preciso  ou- 
vir as  explicações  portuguezas  a  respeito,  pedindo  as  po- 
tencias medianeiras  ao  governo  de  Dom  João  VI  uma  jus- 
tificação franca  e  amigável  do  seu  acto.  Por  isso  Palmella, 
na  falta  de  instrucções  do  Rio  para  o  caso,  preparou  um  ma- 
nifesto provisório  de  que  dá  conta  no  seu  officio  reservado 
de  9  de  Abril  (2). 

Dos  esforços  da  Hespanha  e  da  benevolência  para  com 
ella  da  Santa  Alliança  nasceu  a  nota  conjuncta  ao  marquez 
de  Aguiar  (3)  de  16  de  Março  de  181 7,  já  uma  vez  men- 
cionada, approvando  a  attitude  moderada  e  prudente  do  ga- 
binete de  Madrid  em  não  recorrer  á  força  como  lhe  seria 


(1)  Corresp.  de  Palmella,  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 

(li)  Despachos  c  Correspondência  do  Duque  da  Palmella,  I-ishoa, 
1851.  Tomo  I. 

(3)  Barca  era  o  ministro  de  estrangeiros  deside  começos  de 
1816,  mas  a  correspondência  da  legação  em  Londres  continuara  diri- 
gida a  Agui£:r,  so  principiando  a  ser  endereçada  a  Barca  pouco  antes 
d>lle  falleeer  em  Junho  de  1817.  .já  fallecido  também  Aguiar.  A  nota 
conjuncta  acha-se  no  primeiro  dos  quatro  tomos  dos  Despachos  e  Cor- 
respondendo. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  683 

de  razão  e  de  justiça,  e  acceitando  o  encargo  da  mediação  por 
esse  governo  pedida  para  evitar  o  rompimento  que  estava 
no  interesse  de  todas  as  potencias  européas  arredar.  Castle- 
reagh  informou  Falmella  de  que  a  alludida  nota  fora  muito 
modificada  por  influencia  da  Inglaterra:  *'pois  que  a  idéa 
de  algumas  das  potencias  fora  de  nos  ameaçar,  em  termos 
claros,  com  a  guerra,  e  de  encarregar  os  seus  Ministros  no 
Rio  de  Janeiro  de  exigirem  do  nosso  Governo  cathegorica- 
mente  a  evacuação  do  território  hespanhoL" 

Ainda  assim  reputou  Palmella  descabidos  os  termos  da 
nota  collectiva  em  questão,  sobre  ella  escrevendo  a  Ester- 
hazy,  embaixador  d'Austria  em  Londres,  que  "os  plenipo- 
tenciários alli  prejudicam  a  questão  antes  de  terem  recebido 
as  explicações  que  pedem  e  copiam  inteiramente  as  phrases 
de  que  usam  os  Ministros  hespanhoes  nos  manifestos  que 
apresentaram  ás  potencias  alliadas; "   ( i ) 

A'  medida  que  se  aquecia  o  zelo  apparatoso  da  Rússia 
—  do  Czar  partiu  até,  ao  que  se  diz,  o  primeiro  conselho 
do  recurso  á  mediação  da  Santa  Alliança  —  pelos  interesses 
hespanhoes,  era  natural  que  abatesse  o  ardor  anti-portuguez 
e  bastante  postiço  do  gabinete  britannico  e  que  arrefecessem 
as  relações  entre  as  cortes  de  Londres  e  de  Madrid,  tornadas 
pelas  circumstancias  mais  calorosas.  Por  outro  lado  o  enlace 
imminente  do  Principe  Real  Dom  Pedro  com  a  filha  do 
Imperador  dAustria  não  deixava  de  ir  exercendo  seu  ef- 
feito  sobre  o  modo  por  que  o  Império  do  Danúbio  encarava  a 
situação   portugueza.   As   instrucções   mandadas   ao   principe 


(1)  Despaclios  e  Correspondência,  Tomo  I.  São.  convom  notnr, 
muito  escESsos  os  documentos  officiaes  que  n'est;i  collecção  se  encon- 
tram sobre  a  primeira  missão  de  Palmella  em  Londres,  avolumando  os 
particulares  sob  a  forma  de  cartas  ao  conde  de  Porto  Santo,  com  refe- 
rencias miudss  aos  acontecimentos  que  se  iam  desenvolvendo. 


684  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL 

Esterhazy  e  por  este  confidencialmente  mostradas  -x  Pal- 
mella  — que  naturalmente  se  apressou  em  relaLar  tudo  ao 
seu  governo  ( i )  —  rezavam  claramente  'que  o  gabinete  de 
Vienna  não  considerava  a  reclamação  do  de  Madrid  senão 
como  hum  convite  para  intervir  como  mediador  nas  suas 
dezavenças  com  o  nosso  e  que  em  caso  nenhum  pretende  as- 
sumir o  caracter  de  alliado  da  Espanha  se  a  contenda  se  não 
terminar  amigavelmente." 

Demais,  a  retrocessão  de  Olivença  era  indirectamente 
favorecida  pela  Áustria  porque,  por  motivo  de  ter  a  Rainha 
da  Etruria  ficado  no  Congresso  de  Vienna  sem  compensa- 
ções territoriaes  para  os  dominios  de  que  fora  despojada  por 
Napoleão,  a  Hespanha  não  assignara  até  então  o  tratado  ge- 
ral alli  accordado.  Agora,  segundo  communicava  Metternich 
a  Esterhazy,  pensava  a  Áustria  ceder  em  favor  d'aquella 
Princeza  sem  reino,  e  de!  séu  filho,  a  reversibilidade  do  du- 
cado de  Parma  depois  da  morte  da  archiduqueza  Maria 
Luiza,  "devendo  entretanto  o  Estado  de  Luca  pertencer  á 
Raynha  da  Etruria  e  ser  reunido  á  Toscana  quando  se  ve- 
rificasse a  reversibilidade  acima  annunciada." 

Uma  vez  que  a  Hespanha  adherisse  ás  decisões  do  Acto 
Geral  de  Vienna,  Olivença  volveria  a  ser  portugueza  e,  rea- 
lizado o  ajuste  dynastico  lembrado  pela  Áustria,  ficava  Pal- 
mella  livre  do  seu  receio  de  que,  no  caso  de  ataque  da  Hes- 
panha contra  Portugal  por  causa  da  conquista  de  Montevi- 
deo, lograsse  a  Rainha  da  Etruria  realizar  mais  do  que  lhe 
promettera  Napoleão  por  occasião  do  tratado  de  Fontaine- 
bleau.  Nem  se  importaria  a  Inglaterra  em  extremo  com  a 
transferencia  da  coroa  portugueza,  dos  Braganças  para  esse 

(1)    Officio   reservado   de    14   de  Março   de   1S17,   ao   Arch.   do 
Min.   (las   Rei.   Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  685 

ramo  dos  Bourbons,  porque  para  os  políticos  britannicos  o 
essencial  era  contarem  uma  monarchia  em  Portugal  e  não 
uma  ficção  de  governo  representativo,  sob  a  forma  então  exis- 
tente de  uma  delegação  muito  limitada  da  soberania  absoluta. 

Preferiria  o  gabinete  de  Saint  James,  é  evidente,  que 
continuasse  a  antiga,  tradicional  dynastia,  mas  comtanto  que 
estivesse  directamente  representada,  quando  não  pelo  pró- 
prio monarcha,  pelo  Príncipe  herdeiro.  O  regresso  de  Dom 
João  VI,  confessava-o  Castlereagh,  era  cousa  difficil,  at- 
tento  o  descontentamento  que  necessariamente  se  seguiria  no 
Brazil  a  esse  acto,  o  qual  pareceria  mesmo  desairoso  em  face 
da  recente  revolução  em  Pernambuco:  nada  porém  obstava 
a  que  Dom  Pedro  fosse  governar  Portugal. 

Foi  em  Junho  de  1817  que  Palmella  ouviu  da  bocca  do 
Secretario  d'Estado  dos  Negócios  Estrangeiros  ( i )  a  expres- 
são d 'esse  desejo,  cuja  realização  a  conspiração  de  Gomes 
Freire  marcava  com  o  rotulo  de  urgente  e  indispensável.  A 
ausência  do  soberano  ou  do  seu  lugar-tenente  significava  a 
paralysia  de  um  membro  da  "republica  européa".  A  presença 
do  Principe  Real,  como  presidente  do  conselho  de  regência 
do  velho  Reino,  dispensaria  o  tedioso  recurso  para  o  Rio  de 
Janeiro  nas  negociações  diplomáticas  relativas  a  Portugal  e 
não  mais  ficariam  as  rodas  da  administração  interior  impe- 
cicias  (expressão  textual  de  Palmella)  em  razão  da  distancia 
a  que  se  achavam  da  mola  real. 

Na  conferencia  que  a  semelhante  respeito  teve  com 
lord  Castlereagh,  Palmella  aproveitou  habilmente  o  ensejo 
para  ponderar  que  a  providencia  suggerida  não  seria  suffi- 
ciente  para  levantar  Portugal  do  seu  profundo  abatimento, 
mais  accentuado  apoz  as  ultimas  sangrias,  e  que,  si  inadia- 


(1)   Ofíicio  secretíssimo  de  9  de  Jimho  de  1817,  ibidem. 


686  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

vel  se  tornava  curar  as  feridas  portuguezas  e  animar  o  com- 
mercio  decadente  e  a  industria  moribunda,  nada  de  melhor  se 
poderia  experimentar  do  que  alliviar  o  paiz  dos  males  do 
tratado  de  1810,  reconhecendo  a  Grã  Bretanha  quanto 
"convém  aos  seus  próprios  interesses  não  descontentar  o 
povo  portuguez  com  o  peso  da  sua  alliança." 

Em  Junho  de  18 17  a  situação  de  facto  se  aclarara  para 
a  corte  do  Rio.  Tinham  chegado  á  Europa  as  explicações  do 
governo  portuguez,  ahi  produzindo  favorável  impressão  no 
conceito  ordinariamente  frio  do  seu  ministro  em  Londres; 
a  boa  impressão  devendo  sobretudo  ter  sido  causada  pelas 
noticias  dos  successos  militares  dos  Portuguezes,  culminados 
na  occupação  de  Montevideo.  O  caso  é  que  a  Inglaterra  aca- 
bara por  desistir  de  querer  impor  a  mediação  e  que  a  Áustria 
se  prestara  a  seguil-a.  Já  a  9  de  Abril  Palmella  reconhecera, 
atravez  de  todas  as  recriminações  de  Castlereagh,  a  natu- 
reza indissolúvel  do  laço  que  prendia  a  Portugal  a  Grã  Bre- 
tanha: "Julgo  poder  mesmo  assegurar  a  V.  Ex.-,  que,  no 
caso  de  uma  aggressão  por  parte  da  Hespanha,  haveria  toda 
a  probabilidade  de  obtermos  do  Governo  Britannico  soc- 
corros  indirectos,  como  armas  e  dinheiro;  mas,  certamente, 
a  menos  de  apparecerem  novas  combinações,  incalculáveis 
por  agora,  nas  relações  politicas  das  potencias  da  Europa, 
não  devemos  esperar  que  a  Grã  Bretanha  abrace  directa  e 
abertamente  a  nossa  defeza"   (i). 

Pouco  depois,  em  Junho,  mais  se  accentuavam  ainda 
suas  disposições  optimistas,  de  um  optimismo  que  nunca  dei- 
xava de  ter  fundamento  solido.  "Como  quer  que  seja,  a 
questão  poderá  de  ora  em  diante  tratar-se  e  concluir-se  mais 
brandamente  do  que  começou.  A  Rússia  mesmo,  que  tanto 


(1)   Off.  cit.  nos  Despachos  e  Corrcsponãcnciu,  Tomo  I. 


t)OM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  687 

fogo  pareceu  tomar  ao  principio,  tem  agora,  se  pode  julgar-se 
pela  linguagem  dos  seus  Ministros,  deitado,  para  uzar  de 
huma  expressão  vulgar,  bastante  agua  na  fervura,  e  pare- 
ce-me  n'huma  palavra,  que  mediante  alguma  moderada  con- 
descendência da  nossa  parte,  não  devemos  recear  que  nos 
obriguem,  ou  a  evacuar  desairosamente  o  território  que  as 
nossas  tropas  tem  occupado,  ou  a  entregallo  á  Hespanha,  a 
não  ser  em  consequência  de  algum  ajuste  reciprocamente 
vantajozo  com  essa  Potencia"    (i). 

Sabendo  perfeitamente  que  se  achava  n'um  paiz  de 
opinião  publica,  Palmella  ao  mesmo  tempo  que  tratava  de 
serenar  o  governo  britannico,  occupava-se  de  explicar  á  na- 
ção britannica  as  razões  de  proceder  do  governo  portuguez, 
para  isto  valendo-se  do  excellente  conducto  do  Times.  Nas 
expressões  de  um  dos  seus  communicados  á  grande  folha, 
aquelle  proceder  era  singelamente  o  do  varão  cauteloso  que 
vendo  a  casa  do  visinho  presa  das  labaredas,  tratasse  de  de- 
molir a  parte  d'ella  que  pudesse  communicar  o  incêndio  á 
sua  própria  casa,  coUocando  da  banda  de  fora  sentinellas 
para  resguardarem  a  propriedade  illesa  do  progresso  das 
chammas.  Poder-se-hia  em  caso  tal  censurar  com  justiça  o 
seu  modo  de  agir  ?  Teria  o  dono  da  casa  incendiada  direito 
de  offender-se,  achando-se  ou  demasiado  longe  ou  demasiado 
atarefado  para  apagar  o  fogo  ? 

Si  a  revolução  de  Pernambuco  se  prendia  ou  tinha  re- 
lações com  a  do  Rio  da  Prata,  como  era  voz  em  Londres, 
isto  só  dava  razão  aos  que  applaudiam  a  prudência  do  mo- 
narcha  portuguez  em  assim  extinguir  o  foco  de  anar- 
chia  que  se   abrazava  ao   pé   da  sua  porta.   Ninguém   aliás 


(1)   Officio  reservado  de  8  de  Junho  de  1817,  no  Arch.  do  Min. 
das  Rei.  Ext. 


688  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Ignorava  que  Artigas,  o  qual  sem  eleição  se  apoderara  na 
Banda  Oriental  do  poder  supremo,  praticara  depredações 
na  fronteira  brazileira,  alistara  tropas  para  invadir  a  provín- 
cia de  São  Pedro  e  espalhara  proclamações  destinadas  a 
excitar  os  habitantes  das  Sete  Missões  á  revolta. 

O  proceder  da  corte  do  Rio  não  significava  apoio  á 
separação  de  colónias  hespanholas,  nem  envolvia  propósitos 
de  permanente  annexação  de  qualquer  d'ellas.  Quando  se 
annunciou  que  a  expedição  do  general  Morillo,  a  qual  de 
repente  mudou  de  destino,  se  dirigiria  para  Buenos  Ayres, 
o  governo  portuguez  dera  ordens  para  lhe  serem  abertos 
os  portos  brazileiros  e  abastecida  a  mesma  expedição :  mais 
do  que  isso,  foi  precisamente  para  auxiliar  os  Hespanhoes 
nessa  occasião,  que  se  mandaram  vir  de  Portugal  os  4  a 
5.000  veteranos. 

O  caso  era  porém  de  todo  diverso  no  que  dizia  respeito 
á  própria  defeza.  Si  ao  ministério  hespanhol  agradava  deixar 
a  insurreição  enraizar-se  nas  suas  colónias,  não  lhe  assistia 
por  isso  o  direito  de  impedir  um  Estado  estrangeiro  de  tomar 
medidas  de  anteparo  contra  esses  mesmos  insurgentes,  que 
elle  não  queria  ou  não  podia  sujeitar.  O  gabinete  de  Madrid 
não  tivera  paciência  bastante  para  esperar  as  explicações — 
que  só  pela  distancia  se  demoraram  —  justificando  tamanha 
pureza  de  intenções  do  Rei  Fidelissimo,  e  levara  sua  precipi- 
tação, reza  um  dos  communicados  (  i  )  de  Palmella,  ao 
ponto  de  haver  pretendido  por  vingança  metter  n'um  con- 
vento ou  recambiar  para  o  Brazil  as  duas  Infantas  portu- 
guezas,  "  sendo  porém  esta  proposta  indigna  repellida  com 
desprezo  pela  sabedoria  de  S.  M.  Catholica."  Igualmente 
diligenciara  o  governo  hespanhol  acclimar  entre  as  grandes 


(1)  Times  de  7  e  9  fle  Junho  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  680 

potencias  alliadas  a  idéa  de  invasão  e  occupação  de  Portugal, 
como  .compensação  da  perda  americana  soffrida  pela  Hes- 
panha. 

A  resposta  da  embaixada  hespanhola  á  legação  portu- 
gueza  não  se  fez  esperar  muito,  dada  pelo  mesmo  conducto 
da  imprensa  ( i ) ,  á  qual  assim  prestavam  homenagem  go- 
vernos dos  menos  liberaes:  é  claro  que  os  altos  articulistas 
se  soccorriam  de  pseudonymos,  Palmella  do  de  Um  Bra- 
zileiro. 

A  resposta  de  Fernan  Nuíiez  deve  ser  reconhecida 
como  destra.  N'ella  se  explicava  que  Artigas  não  inspirava 
ao  Brazil  verdadeiro  terror  —  o  que  era  talvez  exacto;  e 
que  os  insurgentes  estavam  em  demasia  occupados  com  dis- 
sensões entre  si  e  a  guerra  cruel  empenhada  contra  os  rea- 
listas para  pensarem  em  atacar  os  dominios  portuguezes  — 
o  que  com  certeza  era  menos  exacto. 

Si  perturbações  populares,  opinava  o  correspondente 
officioso,  si  o  espirito  de  sedição  ao  qual  estivesse  porven- 
tura entregue  um  Estado  visinho,  podesse  alterar  os  direitos 
do  legitimo  proprietário,  o  systema  politico  ver-se-hia  ex- 
posto a  continuas  revoluções  e  ver-se-hia  volverem  os  tem- 
pos em  que  as  nações  não  conheciam  outras  leis  que  não  a  da 
força.  Que  garantia  haveria  então  contra  as  tentativas  do 
poder  ? 

Que  um  individuo,  vendo  a  casa  do  visinho  entregue  ás 
chammas,  empregue  todos  seus  esforços  para  impedir  que 
o  incêndio  attinja  sua  propriedade,  nada  de  mais  justo; 
mas  que,  quando  o  proprietário  da  casa  abrazada  corre  a 
buscar  agua  ou  qualquer  outra  espécie  de  soccorro,  elle  se 
aproveite  de  tão  triste  occasião  para  se  apoderar  da  sua  for- 


(1)     Courier  de  27  de  Junho  de  1817. 


690  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tuna  e  bens  antes  que  o  possuidor  os  haja  inteiramente  aban- 
donado, é  nada  menos  do  que  uma  perfídia.  Seu  dever  é  apres- 
sar-se  em  fornecer-lhe  todos  os  auxilios  que  se  acharem  ao 
seu  alcance,  nunca  despojal-o  dos  seus  pertences,  sob  pretexto 
de  salval-os  ou  de  assegurar  a  conservação  das  suas  proprie- 
dades. 

"Além  d'isso,  escrevia  com  emphase  o  articulista  do 
Courier,  as  considerações  de  utilidade  e  de  interesse  parti- 
cular não  podem  supplantar  os  principios  da  razão  e  da  jus- 
tiça. Nem  poderia  Portugal,  apenas  baseando-se  no  estado 
anarchico  em  que  se  encontram  as  colónias  hespanholas, 
saber,  muito  menos  affirmar  que  o  gabinete  de  Madrid  as 
não  quer  reduzir  ou  não  possue  elementos  para  tanto." 

Aquelle  estado  era  antes  de  lucta  que  de  anarchia,  e  de 
resto  a  occupação  portugueza  fora  emprehendida  sem  d'ella 
ser  mandado  aviso  expresso  e  exacto  ao  legitimo  soberano 
do  território,  sem  estar  pois  provado  que  este  o  houvesse 
abandonado.  Constituía  um  principio  perigoso  o  avançar 
que  uma  rebellião  transforma  os  súbditos  em  inimigos  e  que, 
em  tal  caso,  o  soberano  perde  seus  direitos  de  mando  sobre 
os  habitantes,  tornando-se  elles  virtualmente  independentes, 
responsáveis  e  susceptíveis  de  aggressão  por  parte  de  tercei- 
ras potencias.  Prevalecendo  semelhante  principio,  a  qual- 
quer governo  seria  licito  ir  tomar  conta  de  Pernambuco,  e 
mesmo  de  Portugal  si  a  conspiração  de  Gomes  Freire  não 
tivesse  sido  abafada  á  nascença.  Teriam  os  infiéis  portugue- 
zes  perdido  sua  qualidade  de  súbditos,  para  se  converterem 
em  inimigos  do  seu  monarcha. 

O  peor  porém  consistia  em  que  o  gabinete  portuguez 
nunca  dera  a  segurança  de  que  devolveria  a  colónia:  guar- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  691 

dará  a  respeito  um  silencio  equivoco  ou  somente  transmittira 
respostas  evasivas  e  mysteriosas.  A  única,  magra,  tardia 
explicação  que  existia  só  fora  manifestada  porque  a  corte 
do  Rio  previu  ou  antes  viu  imminente  a  mediação  das  poten- 
cias alliadas  em  favor  da  Hespanha. 

Também  se  não  devia  confundir  ou  equiparar  a  oc- 
cupação  de  Montevideo  com  a  de  Olivença,  porque  a  d'esta 
occorrera  em  guerra  justa,  sendo  sua  acquisição  sanccio- 
nada  por  um  tratado  solemne:  tanto  assim  que  os  soberanos 
representados  em  Vienna  não  tinham  julgado  poderem  des- 
pojar a  Hespanha  da  praça  para  restituil-a  a  Portugal,  con- 
tentando-se  com  offerecerem  para  semelhante  fim  os  seus 
bons  officios  nas  negociações  amigáveis  que  se  abrissem 
entre  as  duas  nações.  E  disposições  amigáveis  sempre  as  nu- 
trira a  Hespanha,  visto  que  não  pensara  em  invadir  e  con- 
quistar Portugal  valendo-se  da  occasião  suggerida,  ao 
mesmo  tempo  que  temida  por  Portugal;  pelo  contrario,  so- 
mente tratara  de  fomentar  ou  activar  uma  sabia  mediação. 

Tinha  razão  o  embaixador  Fernan  Nunez  em  se  não 
deixar  illudir  pelas  vagas  promessas  do  governo  portuguez, 
e  em  ficar  convencido  de  que  os  argumentos  cavillosos  da 
corte  do  Rio  só  tendiam  a  disfarçar  que  ella  aproveitava 
a  distancia  a  que  se  achava  para  dar  ensanchas  aos  seus  pla- 
nos e  proceder  de  accordo  com  seus  Íntimos  designios,  o  que 
na  Europa  lhe  era  vedado.  A  verdade  saltava  aos  olhos 
de  todos,  e  ninguém  desconhecia  que  tudo  havia  sido  uma 
comedia  posta  em  scena  para  a  realização  de  uma  tradicional 
e  legitima  ambição;  a  partir  do  convite  inicial  de  Dom 
João  VI  a  Fernando  VH  para  uma  acção  repressiva  conjuncta 
no  Rio  da  Prata,  até  onde  o  monarcha  portuguez  queria  ex- 
tender  o  seu  império  brazileiro. 


692  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  duque  de  Richelieu  tão  bem  observava  a  liberdade  de 
movimentos  que  se  arrogava  o  governo  portuguez,  que  es- 
crevia por  esse  tempo  ao  seu  agente  Maler  as  palavras  se- 
guintes: "A  corte  do  Brazil  parece  em  demasia  persua- 
dida de  que  a  sua  politica  poude  mudar  completamente 
com  o  lugar  da  sua  residência.  EUa  deveria  reflectir  que 
continua  presa  á  Europa  pelos  seus  dominios  territoriaes, 
interesses,  commercio  e  allianças  de  família;  que  não  se  for- 
talece buscando  dotar  de  maior  extensão  ainda  um  novo 
Reino  ao  qual  faltam  população,  industria  e  todas  as  artes 
geradas  pela  civilização,  e  que  na  sua  actual  condição  de- 
veria seu  interesse  primordial  ser  o  de  conservar  a  paz,  ou 
por  n'ella  se  lhe  deparar  uma  garantia  das  suas  possessões 
na  Europa,  ou  para  sem  perturbação  se  occupar  dos  pro- 
gressos de  que  o  Brazil  carece"   (i). 

Não  era  comtudo  menos  visivel  que  a  Hespanha  perdia 
terreno.  Quando  logo  depois  da  sua  tarefa  official  e  officiosa 
em  Londres,  Fernan  Nuííez,  removido  para  Pariz  —  para 
Londres  foi  nomeado  embaixador  e  ahi  chegou  em  Outubro 
de  1817  o  duque  de  São  Carlos  (2) — pretendeu  que  as 
potencias  alliadas  interviessem  entre  a  Hespanha  e  suas 
colónias  para  supprimir  de  vez  o  espirito  insurreccional,  não 
o  escutaram  e  mandaram  a  chancellaria  madrilena  dirigir-se 
ás  próprias  potencias  directamente,  em  vez  dos  seus  repre- 
sentantes  acreditados   na    França. 

Também,  depois  de  assumir  o  seu  novo  posto,  mandou 
Fernan  Nunez  aos  ministros  das  cinco  potencias  alliadas 
uma  nota  tão  destemperada  sobre  a  occupação  de  Montevideo, 


(1)  Arch.   do   Min.    dos   Neg.   Est.    de   França. 

(2)  "  Parece,  escrevia  Palmella  a  Bezerra  a  8  de  Outubro,  hum 
homem  moderado  e  de  hum  caracter  muito  mais  conciliador  e  sensato 
do  que  o  seu  Predecessor,  conde  de  Fenian  Nufiez."  (Axch.  do  Min.  das 
Rei.  Ext.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  693 

que  mereceu  que  lord  Castlereagh  mandasse  ordem  ao  em- 
baixador Sir  Charles  Stuart  para  responder-lhe  que  aquelle 
documento  não  podia  ser  tomado  em  consideração.  E'  justo 
observar  que,  por  occasião  d 'esse  desabrimento  do  embaixador 
d'Hespanha,  não  era  ainda  conhecida  a  deliberação  da  corte 
do  Rio  de  nomear  Palmella  para  tratar  de  compor  a  disputa, 
sendo  essa  nomeação  simultânea  com  a  resposta  do  governo 
portuguez  á  nota  collectiva  das  potencias  medianeiras. 

Ignorando  ainda  o  rápido  desfecho  da  revolução  de  Per- 
nambuco, Fernan  Nunez  mettera  no  jogo  o  Brazil,  expres- 
sando o  desejo  da  corte  hespanhola  de  prestar  seus  bons  offi- 
cios  para  que  Sua  Magestade  Fidelíssima  gosasse  para  a 
pacificação  do  Reino  americano  da  mesma  vantagem  da 
intervenção  dos  alliados.  O  governo  de  Fernando  VII, 
anticipando  de  alguns  annos  o  sonho  de  Chateaubriand, 
visava  pois  a  nada  menos  do  que  a  uma  extensão  do  mecha- 
nismo  da  Santa  Alliança  á  America  Latina,  á  garantia  por 
parte  das  grandes  potencias  dos  dominios  portuguezes  e  hes- 
panhoes  no  Novo  Mundo,  "ligando  por  esse  modo,  nas 
expressões  do  officio  de  Palmella  para  o  Rio,  o  systema 
americano  ainda  novo  e  vacillante  ao  systema  já  estabelecido 
da  federação  européa". 

Em  Setembro  de  1817,  ao  mesmo  tempo  que  a  com- 
municação  da  sua  escolha  para  a  pasta  dos  negócios  estran- 
geiros e  da  guerra,  chegavam  ás  mãos  de  Palmella  os  plenos 
poderes  para  entabolar  a  negociação  do  Rio  da  Prata  com  a 
corte  de  Madrid,  com  mira  de  encerrar  todas  as  discussões 
pendentes;  entendendo-se  previamente  com  lord  Castlereagh 
para  concertar  "as  bazes  do  systema  liberal  de  commercio 
que  devemos  pretender  que  a  Hespanha  adopte  para  as  suas 
colónias". 


694  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  empenho  da  corte  do  Rio  era  que  o  seu  plenipoten- 
ciário tratasse  directamente  com  um  plenipotenciário  hespa- 
nhol  adrede  designado,  quando  muito  debaixo  do  influxo  da 
mediação  única  da  Áustria  ou  da  Grã  Bretanha.  A  D.  José 
Luiz  de  Souza,  sobrinho  de  Funchal  e  predecessor  de  Sal- 
danha da  Gama  em  Madrid,  escrevia  Palmella  sem  demora: 
"A  declaração  do  reconhecimento  seja  implicito  seja  expli- 
cito que  V.  Ex.^  está  auctorizado  a  fazer,  dos  Direitos  €  Sobe- 
rania de  Sua  Magestade  Catholica  sobre  o  território  em  que 
entraram  as  tropas  portuguezas,  aplanará  talvez  a  maior 
difficuldade  que  até  agora  se  oppunha  á  negociação  directa 
entre  as  duas  cortes;  pelo  menos  foi  esse  o  primeiro  pretexto 
que  o  Governo  Hespanhol,  creio  eu,  allegou  para  recorrer 
á  intervenção  das  cortes  estrangeiras.  Parece-me  também  que 
V.  Ex."  se  poderá  servir  com  grande  vantagem  do  argumento 
que  rezulta  da  dignidade  e  decoro  de  ambas  as  corpas,  que 
certamente  perdem  algum  tanto  abaixando-se  a  reconhecer 
quasi  como  arbitras  natas  das  suas  contendas  as  cinco  po- 
tencias preponderantes  da  Europa,  e  ajudando-as  assim,  na 
tendência  que  ellas  mesmas  de  per  si  já  não  dissimulão,  de 
erigir  a  conferencia  dos  seus  ministros  em  Pariz  n'huma  espé- 
cie de  Supremo  Directório  Europeu",  (i) 

A  Inglaterra  favorecia  a  negociação  directa  no  intuito 
de  arredar  a  influencia  tussa,  a  qual  ameaçava  absorver  a 
questão,  tendo-se  tornado  predominante  em  Madrid  graças 
aos  esforços  pacientes  do  conde  Tatischeff.  Palmella,  nave- 
gando nas  aguas  inglezas,  queria  por  seu  turno  mais  que 
a  negociação  com  a  Hespanha,  de  que  o  encarregara  a  con- 
fiança de  Dom  João  VI — o  qual  não  se  enganava  muito  em 
julgar    competências,    só    quando    as    circumstancias  podiam 


(1)    Arch.  do  Min.  das  Rol.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZlL  695 

mais  para  determinar  a  selecção  do  que  a  sua  perspicácia  —  , 
se  effectuasse  em  Londres,  onde  parecia  também  dever  ter 
lugar  a  negociação  entre  a  Hespanha  e  suas  colónias,  ainda 
mais  complicada  e  difficil. 

O  pessoal  diplomático  agitava-se  de  todos  lados  no  sen- 
tido da  composição  de  divergências  que,  em  vez  de  abran- 
darem com  o  estado  chronico  que  já  era  o  seu,  promettiam 
tornar-se  mais  agudas  e  perigosas  do  que  nunca.  O  trabalho 
das  chancellarias  verificava-se  aquém  e  além-mar.  Para  acti- 
val-o  no  Rio  de  Janeiro  partira  em  meiados  de  1817  o  novo 
ministro  hespanhol  conde  de  Casa  Flores,  no  dizer  de 
Palmella  "homem  de  bem,  de  um  caracter  conciliador  e  de 
maneiras  agradáveis  e  serias,  porém  de  engenho  não  agudo 
e  de  luzes  medíocres".  ( i )  Só  se  demorava  em  seguir  o  suc- 
cessor  de  Strangford,  Thornton,  porque  o  Ministério  de 
estrangeiros  britannico,  segundo  informava  Palmella,  "  lhe 
indicou,  que  não  dezejava  que  sua  mulher  (  cujo  caracter 
altivo  e  extravagante  lhe  cauzou  desgostos  sérios  em  Suécia) 
o  acompanhasse  ao  Brazil.  Depois  de  alguma  hesitação 
consta-me  que  se  sujeitará  á  condição  que  se  lhe  im- 
põem". (2) 

Como  entretanto  a  Hespanha  concentrasse  muitas  tro- 
pas na  fronteira  da  Extremadura  com  o  fim  de  intimidar 
mais  do  que  ameaçar  de  verdade  Portugal  que,  pelo  que  con- 
fessavam seus  Governadores,  não  estava  então  em  estado  de 
resistir-lhe,  desfalcadas  suas  forças  com  as  embarcadas  para  o 
Brazil  e  muito  desorganizado  no  pé  de  paz  o  commissariado, 
logrou  Palmella  afinal  obter  de  lord  Castlereagh  a  promessa 
positiva  de  escrever  ao  embaixador  britannico  em   Madrid, 


(1)  Offioio  s?croíis.simo   de   Kl  de  Jir.ho  de   1817,   no   Arch.   do 
Min.  das  Rei.  Ext. 

(2)  Off.  cit. 


696  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

dando-lhe  ínstrucções  claras  e  explícitas  para  declarar  á 
corte  d'Hespanha  *que  a  garantia  de  Portugal  pela  Grã  Bre- 
tanha subsistia  completamente  intacta,  no  momento  em  que 
elle  visse  que  hera  necessária  tal  declaração  para  prevenir  as 
hostilidades  contra  Portugal". 

Ficava  assim,  graças  á  hábil  tenacidade  do  diplomata 
portuguez,  revogada  a  declaração,  que  lord  Castlereagh  con- 
veio  em  denominar  apressada  ou  ultrapassando  a  exacta 
interpretação  das  instrucções  expedidas,  feita  pelo  encarre- 
gado de  negócios  Chamberlain  no  Rio  de  Janeiro.  Tal  decla- 
ração, de  que  não  era  inalterável  a  garantia  dos  tratados, 
o  Foreign  Office  a  havia  mandado,  conforme  admittia 
agora,  para  o  caso  do  Rei  se  não  prestar  a  dar  explicações 
satisfactorias  sobre  a  entrada  das  suas  tropas  em  Montevi- 
deo, nem  a  abrir  a  esse  respeito  negociação  na  forma  reque- 
rida pelas  potencias  alliadas. 

Não  tinham  estas  entrementes  abdicado  a  sua  tarefa, 
acabando  por  ajustar  em  Pariz  um  projecto  de  tratado  entre 
as  duas  potencias  peninsulares,  sobre  a  base  da  desoccupação 
da  margem  oriental  hespanhola  do  Prata,  ao  qual  os  dous 
plenipotenciários  portuguezes — a  Palmella  fora  aggregado 
n'esta  negociação  o  marquez  de  Marialva  —  adheriram  a  7 
de  Outubro  de  1818,  por  lhes  parecer  o  único  meio  de  evita- 
rem um  rompimento,  considerado  com  sympathia  pelos  me- 
diadores, de  preferencia  inclinados  em  maioria  ao  lado  hes- 
panhol.  Quando  isto  se  passou,  achava-se  já  reunido  o  novo 
Congresso,  de  Aix-la-Chapelle,  onde  o  proceder  portuguez 
no  assumpto  da  conquista  americana  provocou  subida  satis- 
facção,  n'elk  reconhecendo  o  Directório  europeu  um  acto  de 
deferência  e  um  propósito  de  paz. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  697 

De  Madrid  é  que  desde  logo  entrou  a  partir  a  resistên- 
cia, não  julgando  o  governo  hespanhol  bastantemente  se 
guras  as  garantias  offerecidas  nem  as  desistências  promet- 
tidas.  Os  representantes  na  Hespanha  das  cortes  alliadas 
tiveram  que  receber  ordens  para  decidirem  o  gabinete  de 
Fernando  VII  a  abandonar  sua  posição  e  harmonizar-se  com 
as  vistas  dos  mediadores  e  a  boa  vontade  da  parte  contraria. 
Esta  era  aliás  em  grande  parte  dictada  pelas  circumstancias 
da  occupação  mesma,  porquanto  a  posição  de  Lecor  em  Mon- 
tevideo, com  a  campanha  sempre  assolada  pelos  bandos 
armados  de  Artigas,  que  só  em  1820  teve  que  se  refugiar 
vencido  no  Paraguay  de  Francia,  e  sua  inacção  em  frente  ás 
partidas  de  contrabandistas  e  guerrilheiros  estavam  desmora- 
lizando as  tropas  reaes  e  animando  a  prosecução  da  lucta, 
accrescendo  para  isto  os  boatos,  baseados  na  intriga  diplomá- 
tica de  Pariz,  de  restituição  á  Hespanha  da  Banda  Orien- 
tal. 

Pelo  acto  dos  diplomatas  portuguezes,  em  termos  mais 
pessoaes  pelo  raro  talento  profissional  de  Palmella,  que  mais 
do  que  ninguém  contribuio  desde  Cadiz  até  Londres,  du- 
rante dez  annos,  para  aplanar  ao  governo  do  seu  soberano 
todas  as  difficuldades  que  lhe  foram  suscitadas  no  tablado 
politico  europeu,  collocou-se  Portugal  no  bom  terreno.  Com 
sua  adhesão  calculada,  pois  que  o  projecto  de  tratado  pro- 
posto foi  objecto  de  muitas  explicações,  muitas  modificações 
e  muitos  retoques,  foi  essa  nação  que  passou  a  solicitar  a 
mediação  que  de  primeiro  extranhara  e  repugnara,  e  a  pedir 
ás  grandes  potencias  que  obtivessem  para  aquella  sua  solu- 
ção o  assentimento  hespanhol.  E  tanto  lhes  conquistou  Portu- 
gal as  boas  graças  com  sua  condescendência  não  isenta  de 
dignidade,  que  Metternich  escrevia  a  Palmella  n'uma  carta 

D,  J.  —  44 


698  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

muito  cordial  de  21  de  Outubro  de  1818:  "La  folie  de  vos 
adversaires  a  servi  la  cause  du  droit  que  vous  avez  sçu  vous 
ménager  mieux  que  n'eut  pu  le  faire  Tintervention  d'une 
cour  amie,  quelque  bienveillante  qu'elle  puisse  être";  e  mais 
adiante:  "Votre  attitude  politique  en  attendant  est  bonne, 
et  c'est  tout  ce  qu'il  faut".  (i) 

Palmella  e  Marialva,  não  tendo  sido  Portugal  convi- 
dado para  tomar  parte  no  Congresso,  como  de  resto  o  não 
havia  sido  a  Hespanha,  abstiveram-se  naturalmente  de  com- 
parecer em  Aix-la-Chapelle.  Saldanha  da  Gama  fora  mesmo 
escolhido  para,  com  Palmella,  tomarem  assento  como  pleni- 
potenciários de  Portugal,  caso  a  reunião  se  extendesse  além 
do  circulo  restricto  do  Directório  europeu.  Não  chegou, 
comtudo,  Saldanha  a  partir  da  Madeira,  onde  se  encontrava 
e  para  onde  Palmella  lhe  communicou  em  carta  (2)  que 
estava  disposto  a  só  tentar  fazer  uso  do  S€u  pleno  poder  si 
fosse  a  Hespanha  admittida  á  representação  no  Congresso. 

Ficaram,  portanto,  os  diplomatas  portuguezes  privados 
do  ensejo  de  assistirem  á  iniciação  solemne  na  Santa  Alliança 
da  França  expurgada,  sóbria,  e  já  libertada  da  occupação 
estrangeira,  "para  concorrer  de  accôrdo  com  as  cortes  allia- 
das  á  conservação  e  consolidação  do  systema  que  restituio 
a  paz  á  Europa,  e  que  he  só  capaz  de  assegurar  a  sua  dura- 
ção". Palmella  e  Marialva  foram,  porém,  até  B-ruxellas  en- 
contrar-se  na  passagem  com  os  representantes  que  regressa- 
vam de  Aix-la-Chapelle,  especialmente  com  Metternich,  que 
não  ia  parar  em  Pariz,  tomando  rumo  diverso  na  volta  para  a 


(1)  'Maço  das  n(^gociaçõps  Palniplla-iMarialv.;!,  no  Arch.  do  Min. 
das  Rei.  Ext. 

(2)  DespacJwê  e  Correspondência,  Toxao  I. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  699 

Áustria,  e  exprimira  a  Palmella  o  desejo  de  com  elle  discor- 
rer n 'algum  ponto  do  trajecto  mais  ao  alcance  do  seu  amigo 
portuguez. 

Valeu  a  pena  a  viagem  porque  Palmella  poude  ouvir 
do  chanceller  austriaco  a  informação  de  que,  segundo  era  de 
prever,  França  e  Rússia  tinham  no  Congresso  mostrado  ten- 
dência a  favorecerem  a  Hespanha — Capo  d'Istria,  dizia  Met- 
ternich,  odeia  a  Inglaterra  e  Portugal — ,  Inglaterra  e  Áustria 
a  favorecerem  Portugal;  ao  ponto  de  Castlereagh  annunciar 
officialmente  que,  em  presença  da  annuencia  portugueza  á 
politica  de  mediação  das  potencias  congregadas,  subsistia  em 
plena  força  a  garantia  britannica  em  prol  do  Reino  Unido  de 
Portugal  e  Brazil,  a  qual  assegurava  sua  independência  e 
integridade,   (i)  -  % 

O  Czar,  que  timbrava  muito  em  ser  ou  pelo  menos 
parecer  leal  e  escrupuloso  em  politica,  quando  chamada  sua 
attenção  por  Metternich  e  Castlereagh  para  as  intrigas  de 
Pozzo  di  Borgo  em  Pariz  e  Aix-la-Chapelle  e  de  Tatischeff 
em  Madrid,  affirmara  todavia  "que  não  se  devia  dar  credito 
a  nada  do  que  se  referia  haver  sido  proposto  em  seu  nome 
á  corte  de  Madrid  acerca  de  hum  projecto  de  alliança  sepa- 
rada, e  que  elle  declarava  traidor  (felon)  qualquer  dos 
cinco  soberanos  alliados  que  formasse  relações  com  outras 
Potencias  sem  o  consentimento  e  conhecimento  das  cinco  Po- 
tencias, e  que  intentasse  mudar  as  relaçoens  que  se  achavão 
estabelecidas  actualmente  entre  elles.  Em  prova  do  que,  an- 
nunciou  que  ordenaria  ao  seu  ministro  em  Madrid  que  em- 
pregasse todos  os  seus  esforços  para  persuadir  áquelle  Gabi- 


(1)    Aroh.  do  Mm.  das  Rei.  Ext. 


700  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

nete  a  confiar-se  inteiramente  nos  conselhos  do  Gabinete  bri- 
tannico,  ao  qual  pela  sua  posição  só  convinha  exercer  huma 
influencia  directa  sobre  a  Hespanha".    ( i ) 

Apezar  da  renuncia  do  Imperador  Alexandre  a  diri- 
gir o  gabinete  de  Madrid,  não  se  podia  por  certo  esperar 
que  as  potencias  alliadas  se  transformariam  de  medianeiras 
em  arbitras,  recorrendo  á  intervenção  e  empregando  os  meios 
da  força  ou  da  comminação  afim  de  obrigarem  a  Hespanha 
a  acceitar  o  projecto  por  ellas  elaborado.  Resultava,  porém, 
para  qualquer  que  acompanhasse  a  partida,  como  o  mais 
claro  da  situação,  qu€  "Portugal  ficara  só  em  campo  contra 
a  Hespanha,  livre  do  Perigo  de  que  os  mediadores  nos  amea- 
çavão  no  principio  da  negociação",  e  nada  tinha  mais  a  re- 
ceiar,  de  grave  pelo  menos,  contando  na  Europa  com  a 
garantia  da  Grã  Bretanha,  e  na  America  com  as  vantagens 
da  posição  adquirida  e  superioridade  local  dos  seus  recursos. 

Deviam  ter  sido  estas  derradeiras  considerações  as  que 
principalmente  determinaram  a  corte  do  Rio  de  Janeiro  a 
recusar  referendar  a  acceitação  por  Palmella  e  Marialva  do 
projecto  de  accordo.  Não  era  comtudo  unanime,  nem  talvez 
geral  no  Brazil,  a  persuasão  de  que  o  novo  Reino  consegui- 
ria afinal  ficar  na  posse  definitiva  da  sua  almejada  e  natural 
fronteira  meridional.  O  parecer  do  conde  dos  Arcos,  já 
membro  do  gabinete  e  muito  experiente  em  assumptos  brazi- 
leiros  pela  sua  longa  estada  em  postos  de  alta  administração 
da  colónia,  opinava,  por  exemplo,  apezar  da  occupação  da 
Banda  Oriental,  pela  fronteira  do  Jaguarão  ao  Ibicuhy,  ga- 
nha em  1801,  por  occasião  do  conflicto  luzo-hespanhol. 


(1)    Offido   de   Piílinolla    e   do   Mci-quez    Estribeiro-mor,    datado 
de  liruxfllas  aos  L'7  do  Novembro  (\e  1818,  no  maço  cit.,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  701 

Palmella,  fácil  era  de  descobrir,  olhava  tanto  ou  mais 
para  a  situação  de  Portugal  na  Europa  que  na  America, 
não  querendo  sacrificar  a  esta  aquella,  antes  preferindo  im- 
molar  á  outra  a  segunda.  Portugal  era  pequeno  e  tinha  suas 
fronteiras  seculares:  Olivença  devia  inquestionavelmente 
voltar  a  pertencer-lhe.  O  Brazil  era  enorme  e  tinha  umas 
fronteiras  vagas:  as  compensações  podiam  estabelecer-se  sem 
difficuldade,  nada  havendo  que  não  possa  a  diplomacia 
alcançar. 

Do  especial  agrado  do  diplomata  portuguez  nunca 
foi  o  imperialismo  armado  de  Dom  João  VI,  antepondo  elle 
á  solução  violenta,  ainda  que  victoriosa,  a  combinação  que 
vinha  preconizando  de  troca  de  territórios  ao  sul  por  terri- 
tórios ao  norte,  a  qual  tinha  para  mais  a  vantagem  de  fazer 
comprar  pela  Hespanha  a  questão  da  fronteira  da  Guyana, 
que  Palmella  sabia  não  estar  liquidada,  apezar  de  ganho  o 
ponto  essencial,  e  antevia  dilatada  e  espinhosa.  Além  d'isso, 
alguma  cousa  que  não  era  para  desdenhar:  com  a  facilidade 
facultada  á  reoccupação  hespanhola  de  Montevideo,  dava-se 
um  golpe  de  morte  no  governo  revolucionário  de  Buenos 
AjTes,  cuja  visinhança  não  encerrava  ao  ver  de  Palmella 
menos  perigos  que  a  de  Artigas,  e  não  obstante  a  cordiali- 
dade existente  algum  tempo  entre  a  corte  de  D.  João  VI  e 
o  governo  das  Provincias  Unidas,  nunca  lhe  logrou  mere- 
cer a  sympathia,  propensa  aos  aspectos  sociaes  aristocráticos. 

Sem  a  cooperação  de  Portugal  para  a  restauração  da 
auctoridade  hespanhola  no  Rio  da  Prata,  qualquer  tentativa 
da  metrópole  ficaria,  porém,  frustrada,  ou  pelo  menos  seria 
cem  vezes  mais  difficil.  No  geral  a  tarefa  em  si  da  recon- 
quista era  das  mais  escabrosas.  No  Congresso  de  Aix-la-Cha- 
pelle,  no  tocante  á  mediação,  primeiro  pedida  e  depois  re- 


702  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

jeitada  pela  Hespanha,  com  relação  a  suas  colónias  suble- 
vadas, não  se  passou  de  uma  discussão  platónica  de  interven- 
ção of fíciosa  e  na  pratica  vã.  ( i ) 

Ainda  assim,  tão  arriscado  parecia  á  corte  do  Rio  o 
problema,  que  ella  própria  não  fallava  claramente  em  anne- 
xação,  nem  mesmo  nas  instrucções  reservadas  dos  seus  envia- 
dos, pretendendo  preferir  que  as  Provincias  Unidas  do 
Prata,  Montevideo  inclusive,  fossem  erigidas  em  beneficio 
de  um  Infante  hespanhol  n'uma  realeza,  a  qual  seria  um  meio 
termo  entre  a  reconquista  pela  metrópole  e  a  independência 
democrática.  A  idéa  partiria  muito  provavelmente  do  agente 
argentino  Manoel  José  Garcia,  e  na  roda  de  Dom  João  VI 
contava-se  de  seguro  com  uma  espécie  de  monarchia  tribu- 
taria ou  satellite  como  as  que  Napoleão  repuzera  em  moda, 
aliás  com  tão  notável  infelicidade,  porque  das  quatro  que 
creou,  a  Hollanda  de  Luiz  teve  que  ser  encorporada,  as 
Duas  Sicilias  de  Murat  acabaram  por  bandear-se  contra  o 
Imperador,  a  Hespanha  de  José  cavou  a  ruina  dos  Bona- 
parte, e  a  Westphalia  de  Jeronymo  não  passou  de  uma  ex- 
pressão geographica  emprestando  a  dignidade  real  a  um 
amável  libertino.  (2) 

Palmella  e  Marialva  reputavam  inexequível  a  pro- 
posta d'aquella  realeza,  sempre  que  não  proviesse  directa  e 
espontaneamente  da  Hespanha.  Bastava  que  fosse  lembrança 
de  Portugal  para  não  ser  acolhida  com  favor  pela  outra 
parte,  que  logo  lhe  adivinharia  o  interesse.  Castlereagh 
igualmente,  a  quem  os  dous  plenipotenciários,  depois  de 
ouvidos  os  Portuguezes  conspicuos  na  diplomacia  que  se 
achavam  na  occasião  reunidos  em   Pariz — o  conde  do  Fun- 


(1)  Corrosp.  de  ralmella,  no  Arch.  do  Mm.  das  Rei.  Ext. 

(2)  F.   Masson,   Napolcon   et  sa  Famille,  passíw. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  703 

chal,  Brito,  o  morgado  de  Matheus,  Gameiro,  Reys,  etc. — 
consultaram  confidencialmente  bem  como  a  Wellington,  foi 
de  opinião  que,  para  ser  viável,  a  suggestão  não  devia  ema- 
nar do  Brazil:  a  iniciativa  da  monarchia  independente  do 
Prata  cabia  aos  insurgentes,  melhor  dito  ao  governo  de 
Buenos  Ayres. 

Outrosim  hesitariam  necessariamente  as  potencias  allia- 
das  em  aconselhar  a  um  soberano  que  se  desprendesse  de 
parte  dos  seus  dominios  hereditários,  sem  primeiro  exhaurir 
todos  os  outros  meios  de  conservar  a  integridade  da  sua 
coroa.  O  contrario  seria  de  todo  ponto  avesso  ás  doutrinas 
da  legitimidade.  De  mais,  si  a  França  favorecia  o  plano, 
que  já  fora  de  Richelieu,  a  Áustria  e  a  Prússia  (a  Rússia,  já 
se  sabe,  era  toda  pela  Hespanha)  pelas  vozes  de  Vincent  e 
von  Goltz,  seus  representantes  em  Pariz,  encaravam  com 
desconfiança  o  apregoado  constitucionalismo  da  futura  mo- 
narchia, tendência  por  outro  lado  inevitável,  caso  ella  se 
tornasse  uma  realidade,  porque,  como  bem  ponderavam  Pal- 
mella  e  Marialva,  *'os  povos  do  Prata  já  se  tinham  acostu- 
mado a  um  governo   republicano,   posto  que   desordenado". 

Em  semelhantes  condições  de  receptividade  politica, 
é  evidente  que  a  implantação,  ou  antes  a  transplantação  do 
absolutismo  que  na  Europa  os  governos  estavam  animando 
tanto,  seria  um  impossível,  não  só  uma  perigosa  experiência. 
"Ora,  commentavam  os  plenipotenciários  portuguezes  no 
seu  officio  de  24  de  Dezembro  de  18 18,  (i)  se  isto  acon- 
tecer, no  estado  em  que  se  achão  aquelles  povos,  faltos  de 
instrucção  e  cheios  de  idéas  revolucionarias,  longe  de  ser 
então  a  projectada  Monarquia  hum  vehiculo  para  a  pacifica- 


(1)   Maço  cit.,  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


704  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ção,  sel-o-ha  para  a  progressão  da  desordem  e  da  anarchia,  e 
por  consequência  um  péssimo  exemplo  para  o  Brazil". 

Pesando  tudo  isso,  decidiram  os  dous  diplomatas  portu- 
guezes  não  tornar  publica,  até  nova  ordem,  a  determinação 
de  recusa  de  Dom  João  VI  do  projecto  de  tratado  das  poten- 
cias mediadoras.  Acontecia  que  não  só  estas  já  consideravam 
official  a  acquiescencia  da  corte  do  Rio,  pois  que  a  tinham 
dado  os  seus  plenipotenciários,  como  era  muito  provável  a 
renuncia  do  alvitre  por  parte  da  corte  de  Madrid.  Ganhava 
em  tal  caso  Portugal  o  beneficio  da  attitude  conciliadora 
adoptada,  não  dando  azo  a  romper-se  por  culpa  sua  a  nego- 
ciação, nem  a  especular-se  mais  com  a  má  fé  attribuida  geral- 
mente ao  seu  governo  n'esta  questão.  Afastava  portanto  Por- 
tugal de  si  a  odiosidade,  e  em  todo  o  caso  lhe  ficava  sempre 
restando  o  recurso  final  de  uma  não  ratificação  do  tratado 
quando  assignado,  pelo  commodo  motivo  de  terem  seus  repre- 
sentantes exhorbitado  das  instrucções  recebidas. 

N'um  longo  officio  em  que  expõe  com  a  clareza  do 
costume  as  suas  idéas  sobre  a  natureza  e  marcha  das  nego- 
ciações, Palmella  abandona  um  pouco  a  sua  constante  frieza, 
-mais  convencional  ainda  do  que  real,  para  acoimar  com  bran- 
dura a  corte  do  Rio  de  vacillação,  sem  querer  ver  que  si 
eram  vacillantes  na  forma,  não  o  eram  no  fundo  as  suas 
instrucções,  as  quaes  tendiam  todas  a  conservar  para  Portu- 
gal a  margem  oriental  do  Prata.  Essas  idéas  successivas  ou 
accumuladas,  contrariando-se  ou  confundindo-se,  de  grão 
ducado,  reino  autónomo,  fronteira  defensável,  etc,  não  pas- 
savam de  contemporizações,  continuando  a  corte  portu- 
gueza  invariavelmente  a  ligar  a  proposição  de  evacuação  da 
Banda  Oriental  com  a  idéa  da  sua  pacificação,  invocada 
como  razão  da  intervenção  e  que  o  governo  de  Dom  João  VI 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  705 

bem  sabia  ser  irrealizável  quasi  por  outrem  e  mesmo  para 
si  em  extremo  difficultosa. 

Palmella  aliás  não  acreditava  na  sinceridade  do  en- 
viado Garcia  ao  expor  á  corte  do  Rio  suas  idéas  monar- 
chistas  e  seus  planos  de  protectorado  portuguez  sobre  todo  o 
Rio  da  Prata.  Afigurava-se-lhe  um  meio  para  os  insurgentes 
de  Buenos  Ayres  de  ganharem  tempo  e  firmarem  sua  inde- 
pendência á  sombra  dessas  intrigas  palacianas,  próprias  a 
engodarem  as  cortes  do  Rio  e  de  Madrid.  Rivadavia,  que 
por  mais  de  uma  vez  procurou  Palmella  na  Europa  e  até 
certo  ponto  dizia  abundar  nas  idéas  de  Garcia,  concordava 
entretanto  e  não  occultava  que  o  Infante  de  Hespanha  que 
fosse  á  testa  da  expedição  de  Cadiz,  seria  com  certeza  me- 
lhor recebido  no  Chile  ou  no  Peru  do  que  em  Buenos  Ayres, 
onde  o  governo  não  podia,  segundo  Rivadavia,  responder 
pelo  acolhimento  geral,  "por  não  ter  influxo  sufficiente  nas 
Provincias  do  Rio  da  Prata":  o  que  era  rigorosamente 
exacto. 

Uma  cousa  era  porém  certa,  a  saber,  que  uma  vez  pas- 
sado, graças  muito  a  Palmella,  o  perigo  de  hostilidade  hes- 
panhola,  moralmente  senão  materialmente  apoiada  no  con^ 
certo  europeu,  contra  a  antiga  metrópole  portugueza,  a  ques- 
tão do  Rio  da  Prata  se  deslocara  por  completo  ou  quasi  para 
o  seu  t-heatro  natural  de  acção.  Passara  a  ser  infinitamente 
mais  com  Buenos  Ayres  do  que  com  a  Hespanha,  apezar 
d'esta  preparar-se  sempre  para  a  sua  expedição  de  recon- 
quista. 

Ora,  justamente  Palmella  não  confiava  absolutamente 
nos  revolucionários,  nem  com  elles  queria  intimidades,  opi- 
nando por  manter-se  o  Brazil  á  distancia  dos  mesmos,  pondo 
até  de  permeio  a  metrópole  hespanhola.  "Emquanto  a  mim, 


706  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

escrevia  elle  a  Thomaz  António,  ( i )  confesso  que  concorro 
inteiramente  com  a  opinião  que  V.  Ex.^  me  diz  ser  a  do 
Sr.  conde  dos  Arcos  i.  e.  que  mesmo  podendo-se  conseguir 
a  adopção  de  huma  Monarquia  constitucional,  he  esse  um  re- 
sultado cujas  vantagens  para  o  Brazil  podem  ser  muito  dispu- 
tadas. Estou  convencido  finalmente,  que  se  a  totalidade  da 
America  do  Sul  não  pode  já  agora  voltar  á  sujeição  da  Es- 
panha, o  que  seria  para  nós  o  resultado  mais  vantajoso,  he 
sem  duvida  que  a  restituição  de  Montevideo  á  Espanha, 
adquirindo  o  Reino  do  Brazil  bons  limites,  e  metendo  hum 
corpo  de  oito  ou  dez  mil  Espanhoes  entre  nós  e  Buenos 
Ayres  garante  mais  a  nossa  neutralidade  e  dá  mais  lugar  a 
combinações  futuras  que  nos  sejam  favoráveis  do  que  os  pla- 
nos aéreos  dos  agentes  de  Buenos  Ayres". 

N'esta  matéria  a  opinião  de  Palmella,  imbuida  de  euro- 
peismo,  no  sentido  de  se  não  deixar  convencer  da  importân- 
cia capital  para  Portugal  d'essa  sua  questão  americana,  e 
de  conservar  velhas  idéas  que  além  mar  já  se  tinham  trans- 
formado com  a  transformação  da  colónia,  discreparia  sem- 
pre na  essência  da  da  corte  do  Rio,  a  qual  visava  á  annexa- 
ção  da  Cisplatina,  sem  se  indispor,  caso  isto  fosse  possivel, 
luctando  mesmo,  si  não  houvesse  outro  remédio,  com  o  go- 
verno independente  de  Buenos  Ayres,  uma  vez  afugentado 
o  espantalho  hespanhol.  Começa  porque  Palmella,  que  estava 
do  lado  de  lá  do  oceano,  em  contacto  diário  com  os  mediado- 
res, vivendo  entre  as  intrigas  das  chancellarias,  entendia  que 
era  em  qualquer  caso  conveniente  a  conclusão  de  um  tratado 
com  a  Hespanha. 


íl)    Ofificio  de   16   de  Janeiro  de   1819,   Corresp   reserv.   da  Le- 
gação de  Londres,  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  707 

"Emquanto  poréai  negociamos  e  vamos  ganhando  tempo, 
sem  indispor  os  mediadores  —  escrevia  a  Thomaz  António 
(i),  querendo  elíe  próprio  ganhar  tempo  diante  da  soffre- 
guidão  do  seu  governo  —  poderá  ser  que  a  força  das  circum- 
stancias  induza  a  Espanha  a  adoptar  a  medida  de  enviar 
hum  Infante  (2)  e  os  inconvenientes  que  achamos  em  propor 
oficialmente  essa  medida  como  um  sine  qua  non  da  nossa 
parte  para  a  restituição  de  Montevideo  cessará  logo  que  se 
trate  de  a  promover  e  apoiar..." 

No  intuito  de  abonar  ainda  mais  perante  a  Europa  a 
boa  vontade  portugueza  e  de  dar  que  pensar  á  Hespanha, 
rebatendo-lhe  as  ameaças  que  continuavam  incorrigivelmente 
a  chispar  nas  notas  de  Fernan  Nunez  e  nos  despachos  de 
qualquer  dos  numerosos  ministros  de  estrangeiros  que  o  capri- 
cho de  Fernando  VII  elevava  para  sacudir  pouco  depois  do 
gabinete,  Palmella,  apoz  reassumir  a  gerência  da  legação 
de  Londres,  fez  solemne  e  directamente  renovar  pelo  Foreign 
Office  a  obrigação  britannica  de  garantia  que  andava  vir- 
tualmente negada  a  Portugal  por  causa  da  sua  primitiva 
attitude  nos  negócios  do  Rio  da  Prata. 

Tendo,  porém,  as  cousas  mudado  por  completo  com  a 
ulterior  acquiescencia  portugueza  no  projecto  de  mediação, 
era  natural  que  Castlereagh  declarasse  a  Palmella:  '*From 
that  period  His  Roj^al  Highness  has  felt  that  the  Guarantee, 
which  had  been  renewed  at  Vienna  in  18 14  was  again  in 
fuU  force,  and  as  long  as  the  Government  of  the  King  of 
Portugal  shall  continue  to  manifest  as  hitherto  an  anxious 


(1)  Offkio  cit.,  de  16     de  Janeiro  de  1819,  ibidem. 

(2)  O  Infante  Dom  Francisco  de  Paula  era  o  indicado  em  pri- 
meiro lugar  para  a  realeza  americana,  sendo  porém  o  candidato  de 
Dom  João  VI  seu  neto  o  Infante  Dom  Sebastião,  filho  de  Dom  Pedro 
Carlos. 


708  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

desire  to  terminate  her  differences  with  Spain  on  principies 
of  acknowledged  justice,  and  of  mutual  accommodation, 
80  long  will  this  Government  consider  that  Guarantee  as 
binding",  (i) 

Chegavam  entretanto  novas  ordens  do  Rio  de  Janeiro, 
de  serem  continuadas  sobre  as  bases,  propostas  pelos  mediado- 
res as  negociações  conducentes  ao  tratado  com  a  Hespanha, 
que  os  dous  diplomatas  portuguezes  tinham  estado  procras- 
tinando, á  espera  de  instrucções  positivas  para  as  accelerar,. 
retardar  ou  abandonar,  e  que  assim  tiveram  de  proseguir  em 
Pariz,  dirigindo-as  de  perto  Marialva  e  de  Londres  Pal- 
mella,  com  sua  dupla  auctoridade  de  provecto  profissional  e 
de  chefe  escolhido  da  corporação.  Outros  incidentes  tinham 
todavia  occorrido  n'esse  intervallo,  e  a  adhesão  de  Dom 
João  VI  já  veio  encontrar  modificada  a  situação. 

O  processo  havia  caminhado,  tomando  a  Hespanha  uma 
posição  definida.  Suas  objecções  ao  projecto  de  tratado  ela- 
borado pelos  mediadores  eram  copiosas  e,  do  seu  ponto  de 
vista,  fundadas.  Repugnavam-lhe,  a  liberdade  de  commercio 
para  os  portos  da  margem  esquerda  do  Prata,  para  não  pare- 
cer que  outras  nações  arrancavam  ao  seu  governo  concessões 
que  deviam  ser  espontâneas  sob  pena  de  desmoralizarem  a 
metrópole;  a  indemnização  pecuniária  a  Portugal  pelas  des- 
pezas  incorridas  com  a  expedição  e  occupação  de  Montevi- 
deo, por  assemelhar-se  muito  a  uma  reacquisição  de  território 
do  seu  próprio  património,  do  qual  tinha  aliás  o  exercito  por- 
tuguez  extorquido  fornecimentos  avultados,  sendo  preferível 
áquella  compensação  uma  cessão  territorial  que  não  fosse  em 
todo  o  caso  a  linha  de  observação  militar  indicada  no  pro- 


(1)    Nota   de   1   de   Fevereiro   de   1819,   no   Ar  eh.    do   Min.    das 
Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  709 

jecto,  parallela  ao  Rio  da  Prata  e  inadmissível  por  varias 
razões  de  estratégia  e  soberania;  o  aviso  prévio  da  partida 
da  expedição,  que  razão  alguma  justificava;  a  declaração  de 
neutralidade  da  corte  do  Rio  na  guerra  entre  a  Hespanha 
e  as  colónias  insurgentes;  a  restituição  de  Olivença  sem  com- 
pensação, conforme  fora  de  resto  estipulado  officialmente, 
mas  que  a  Hespanha  pretendia  nada  ter  a  ver  com  o  nego- 
cio platino  (i). 

Tudo  isto  se  continha  no  projecto  e  a  tudo  se  furtava 
o  governo  de  Madrid,  offerecendo  porém  a  3  de  Dezembro 
de  181 8,  para  provar  sua  boa  vontade,  um  contra-projecto 
que  incluia  uma  amnistia;  uma  rectificação  de  fronteira  de 
modo  a  respeitar  a  segurança  do  Brazil  e  para  ser  determi- 
nada dentro  do  prazo  de  um  anno;  a  conservação  de  um 
corpo  portuguez  de  2.000  homens  (  a  expedição  hespanhola 
contaria  pelos  menos  12.000)  no  território  hespanhol,  for- 
mando uma  linha  militar  de  observação  sem  postos  fortifi- 
cados, cuja  direita  se  apoiasse  sobre  o  Rio  Negro,  na  foz 
do  rio  Cordovés,  e  a  esquerda  em  Castillos  chicos:  isto  para 
o  caso  do  governo  portuguez  não  preferir  á  cessão  territorial 
a  indemnização  pecuniária  arbitrada  em  7  ^  milhões  de 
francos,  restabelecendo-se  então  em  toda  a  plenitude  a  fron- 
teira de  1808. 

Na  sua  resposta  de  11  de  Dezembro  tinham  os  pleni- 
potenciários portuguezes  insistido  comtudo  na  adhesão  já 
formulada  ao  projecto  dos  mediadores,  salvo  a  substituição, 
que  acceitavam,  da  outorga  do  dinheiro  pela  concessão  ter- 
ritorial. Logo  em  seguida,  em  Janeiro  de  1819,  tomavam 
Palmella  e  Marialva,  diante  da  calculada  hesitação  da  Hes- 


(1  t      Con-f^sp.    rcsorvada   do   Palmella.   no   Arch.    do   Min.    das 
«el.  Ext 


710  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

panha,  francamente  partido  pela  separação  das  províncias 
hespanholas  do  Rio  da  Prata.  Assim  mudando  de  táctica, 
transmittiram  ao  duque  de  Wellington,  encarregado  unani- 
memente pelo  concerto  europeu  de  proceder  á  pacificação 
diplomática  da  America  Hespanhola,  a  convicção  em  que  se 
achava  o  soberano  portuguez  da  impossibilidade  de  fazer 
volver  aquellas  provincias  quer  pela  persuasão,  quer  pelas 
armas,  á  sujeição  da  metrópole;  mostraram  a  conveniência 
geral  da  humanidade,  das  potencias  maritimas  em  particular 
e  sobretudo  da  "visinha  monarquia  portugueza",  no  pôr-se 
termo  á  guerra  de  desolação  que  estava  grassando  havia  tanto 
tempo,  e  suggeriram  a  utilidade,  já  pelo  lado  de  conservar  o 
elo  entre  a  Europa  e  a  America,  já  pelo  de  sopitar  a  febre 
de  jacobinismo  que  da  America  poderia  passar  para  a  Eu- 
ropa, da  installação  de  uma  ou  varias  monarchias  em  favor 
de  ramos  da  real  familia  hespanhola,  com  uma  organiza- 
ção liberal  bastante  para  lhes  assegurar  a  consolidação  ( i ) . 

Pelo  facto  de  approvar  mediocremente  estas  idéas  e  de 
somente  meio  constrangido  as  aventar,  não  deixava  pois 
Palmella  de  estribal-as  em  bons  argumentos,  o  resultado 
sendo  que  a  diplomacia  portugueza  ia  ganhando  terreno 
e  impondo-se  á  adversaria.  Em  Fevereiro  de  1819  annuia  a 
Hespanha  á  restituição  de  Olivença  e  reiterava  sua  inclina- 
ção de  trocar  por  uma  concessão  teritorial  a  somma  estipu- 
lada como  indemnização,  procedendo-se  logo  a  um  tratado 
de  limites.  Na  hypothese  de  insistir  Portugal  na  clausula 
da  indemnização  pecuniária  — o  que  para  a  Hespanha,  á 
vista  dos  seus  apuros  financeiros,  seria  uma  solução  espe- 
cialmente desagradável  —  esta  se  não  pagaria  por  completo 


(1)   Corresp.  reservada  de  Palmella,  iltidcm. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  711 

si  houvesse*  uma  linha  de  occupação  militar,  pois  que  assim 
se  não  verificava  o  caso  de  desoccupação  integral  do  terri- 
tório. A  occupação  era  calculada  para  findar  dentro  de  um 
anno,  da  mesma  forma  que  se  achava  fixada  a  retrocessão 
de  Olivença.   ( i ) 

Contradizendo  mais  uma  vez  a  argumentação  hespa- 
nhola,  empenhada  em  sophismar  e  protelar  nada  menos 
do  que  a  portugueza,  escreveu  Palmella  de  Londres  um  me- 
morandum  confidencial  que  não  foi  bem  recebido  em  Ma- 
drid, tratando  o  governo  de  Fernando  VII  de  activar  os 
armamentos  de  Cadiz  para  a  expedição  tão  postergada 
quanto  esta  chamada  por  Marialva  fastidiosa  e  por  Palmella 
teidiosa  negociação.  E'  sabido  como  afinal  se  mallogrou  a  ex- 
pedição, occorrendo  a  sublevação  de  Riego  que  provocou  a 
revolução  constitucional  de  Janeiro  de  1820,  a  qual  não 
mais  permittiu  ao  governo  hespanhol  occupar-se  da  nego- 
ciação de  Montevideo,  continuando  portanto  a  occupação 
portugueza  que  redundou  na  annexação. 

Até  ahi  duraram  as  delongas  e  tergiversações,  expressas 
ou  occultas  n'um  amontoado  de  notas  e  de  communicações 
que  faziam  cavalgar  constantes  correios  pelas  estradas  entre 
Madrid,  Pariz,  Londres  e  Itália  (onde  durante  certos  mezes 
de  18 19  se  encontrava  Metternich)  e  andar  continuos  ex- 
pressos embarcados  entre  o  Rio  de  Janeiro  e  Falmouth.  A 
Hespanha  apparentara  entretanto  formular  maiores  con- 
cessões. 

A  16  de  Abril  de  18 19  uma  memoria  do  embaixador 
duque  de  Fernan  Nunez,  em  resposta  ao  memorandum  por- 
tuguez,  mudava  o  ponto  terminal  da  consentida  linha  pro- 


(1)      Corrosp.    reservada   de   Palmella,   ihidcm. 


712  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

visoria  de  occupação  portugueza  da  bocca  do  rio  Cordovés 
para  o  Passo  do  Chileno,  ficando  esta  linha  de  fronteira  de- 
finitivamente pertencente  a  Portugal  dado  o  caso  de  se  não 
poder  ajustar  um  novo  tratado  de  limites  e  de  não  poder 
o  governo  de  Madrid  pagar  ao  do  Rio  de  Janeiro  a  indem- 
nização pecuniária  concordada.  Possuia  no  emtanto  a  Hes- 
panha,  tal  lhe  ficando  reservada,  a  liberdade  de  pagal-a 
no  fim  de  uns  poucos  de  annos  si  quizesse,  deste  modo  res- 
gatando a  hypotheca  concedida,  sem  verificar  a  cessão  terri- 
torial, que  era  a  alternativa  ( i ) . 

Continuava  assim  para  o  Brazil  a  mesma  incerteza 
no  tocante  á  fixação  e  segurança  da  sua  fronteira  meridional. 
Receiavam  além  d'isso  os  plenipotenciários  portuguezes,  pela 
declaração  hespanhola  que  o  novo  tratado  de  limites  só  se 
poderia  verificar  depois  de  um  minucioso  exame  das  locali- 
dades, bem  como  pela  falta  de  um  prazo  prefixo  para  ulti- 
mação  de  todos  os  ajustes,  que  por  parte  dos  contrários 
existisse  qualquer  segunda  intenção.  Por  este  motivo  sugge- 
riram  aos  governos  mediadores  a  i  de  Maio  de  1819  a  opção 
de  ser  intimada  ao  governo  hespanhol  a  fixação  immediata 
dos  pontos  cardeaes  da  cessão  territorial  permanente  ou  o 
pagamento  também  immediato  da  indemnização  estipulada, 
recolhendo-se  as  tropas  portuguezas  de  occupação  da  Banda 
Oriental  para  a  fronteira  de  181 5,  que  corria  pelo  Quaraim. 

Como  meio  termo  entre  as  duas  proposições  lembrou 
o  plenipotenciário  prussiano  von  Goltz  o  marcar-se  o  pe- 
riodo  de  um  anno,  no  fim  do  qual,  si  os  Hespanhoes  não 
resgatassem  o  território  hypothecado  ou  si  se  não  concluísse 
de  commum  accordo  entre  os  gabinetes  do  Rio  de  Janeiro 
e  de  Madrid  um  outro  ajuste,  ficaria  a  linha  temporaria- 


(1)      Corresp.    reservada  de  Palmella,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  713 

mente  occupada  pelas  tropas  portuguezas  pertencendo  em 
plena  soberania  a  Sua  Magestade  Fidelíssima. 

A  linha  provisória,  sem  a  determinação  dos  pontos  car- 
deaes  da  definitiva,  tinha  por  principaes  defeitos  impedir  o 
governo  portuguez  de  fortifical-a,  expondo-se  do  contrario  a 
gastos  porventura  inúteis;  arriscar  o  mesmo  governo  a 
disputas  desagradáveis  com  o  Estado  ou  Estados  visinhos, 
caso  a  Hespanha  perdesse  para  todo  sempre  as  provincias 
do  Rio  da  Prata,  ou  então  difficultar  a  futura  negociação 
entre  Portugal  e  Hespanha,  fazendo  surgir  novas  pretenções 
d'esta  potencia,  si  por  acaso  fosse  coroada  de  êxito  a  expe- 
dição de  Cadiz  (i).  A  singular  tardança  d'esta  expedição 
não  era  tanto  effeito  da  falta  de  recursos  pecuniários  da  me- 
trópole como  de  outras  circumstancias,  a  mencionar  entre 
ellas  as  recriminações  de  Palmella  janto  a  lord  Castlereagh. 

Em  virtude  de  taes  reclamações  mandou  o  ministro  dos 
negócios  estrangeiros  da  Grã  Bretanha  ao  embaixador  em 
Madrid  sir  Henry  Wellesley,  ordens  positivas  e  enérgicas 
afim  de  representar  ao  gabinete  hespanhol  que  "se  a  expedi- 
ção se  fizesse  á  vela  nas  actuaes  circumstancias,  toda  a  res- 
ponsabilidade do  mau  êxito  da  negociação  com  a  nossa  corte 
e  das  fataes  consequências  que  dahi  podião  resultar,  recahiria 
sobre  a  Hespanha,  e  que  as  Potencias  Mediadoras  reconhe- 
cião  que  S.  M.  F.  pela  sua  parte  tinha  feito  desde  o  mez 
d'Agosto  de  1818  tudo  quanto  se  podia  em  justiça  e  em 
equidade  desejar  para  terminar  pacificamente  esta  contenda." 
Ao  mesmo  tempo  communicava  a  Inglaterra  que  uma  sua 
esquadra  ia  partir  para  os  mares  da  America  do  Sul  no  in- 
tuito de  proteger  o  commercio  britannico,  "dando  a  enten- 


(1)    Corresp.    reservada    de    Palmella,    no    Arch.     do    Min.    das 
Rei.  Ext. 

D,  J.  —  45 


714  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

der  que  essa  mesma  protecção  se  extenderia  aos  seus  allia- 
dos"  (i). 

Além  d'estas  advertências  da  chancellaria  britannica 
e  simultaneamente  com  a  apparição  no  sul  da  Hespanha  da 
febre  amarella,  fazendo  considerável  devastação  sobretudo 
nos  acampamentos,  uma  grande  conspiração  se  descobria  em 
Cadiz,  que  obrigou  o  governo  hespanhol  a  desarmar  7.000 
dos  soldados  que  iam  embarcar:  com  os  4.000  encarregados 
de  compellir  os  insubordinados  a  deporem  as  armas,  se  com- 
promettia  o  general  conde  de  Abisbal  a  eximil-os  da  obrigação 
de  partirem  na  impopular  expedição. 

Ficava  assim  esta  desfalcada  de  1 1 .000  homens,  dos 
quaes  ainda  se  retirou  parte  para  seguir  para  Caracas  a 
pôr-se  debaixo  das  ordens  do  general  Morillo,  reduzindo-se 
portanto  os  celebrados  armamentos,  mesmo  conseguindo  sin- 
grar a  armada,  a  uma  cousa  destituida  da  primitiva  impor- 
tância. Aliás  á  vista  de  todos  os  contratempos  sobrevindos 
resolveu  o  gabinete  de  Madrid,  ao  que  declarou,  acceder  ao 
ajuste  em  discussão  pelos  bons  officios  dos  mediadores,  pa- 
gando a  somma  convencionada  pela  entrega  de  Montevideo 
em  duas  prestações:  a  primeira  metade  no  acto  da  restitui- 
ção da  praça  e  a  segunda  logo  que  as  tropas  portuguezas 
tornassem  ás  posições  que  occupavam  antes  da  invasão  de 
1816. 

Semelhante  súbita  declaração,  trahindo  nova  delibera- 
ção, collocava  os  plenipotenciários  portuguezes  n'uma  certa 
perplexidade,  bem  legitima  pois  que  lhes  tinha  entretanto 
chegado  do  Rio,  inequivocamente  expresso,  o  desejo  já  por 
vezes  anteriormente  manifestado  pelo  gabinete  portuguez  de 


(1)      Officio  de  Talmella  e  Marialva  a  Thomaz  António  de  Villa 
Nova  Portugal,  datado  de  Pariz  aos  10  de  Agosto  de  1819,  ibidem. 


DÕM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  llÒ 

se  não  concluir  tratado  algum  com  a  Hespanha  sem  a  condi- 
ção da  vinda  de  uma  pessoa  real  para  a  America  do  Sul.  Foi 
a  vez  de  Palmella  e  Marialva  esforçarem-se  por  ganhar 
tempo,  chicanando  sobre  o  modo  de  se  effectuarem  os  paga- 
mentos. 

Com  encetarem  a  negociação  directa  proposta  por 
Fernan  Nunez,  encontraram  elles  o  m^elhor  meio  de  prote- 
lar o  debate  de  accordo  com  as  vistas  da  sua  corte,  a  qual 
invocava  que  ficaria  em  má  postura  perante  as  populações 
platinas  si  devolvesse  Montevideo  sem  ser  em  presença 
d'uma  força  armada  hespanhola  incumbida  da  reivindicação; 
ou  então  pela  acção  dos  mediadores,  os  quaes,  ficara  assen- 
tado, seriam  representados  na  cccasião  por  commissarios 
especiaes ;  ou,  melhor  que  tudo,  pela  presença  no  Rio  da 
Prata  de  um  representante  de  sangue  da  dynastia  hespa- 
nhola  (i). 

Não  existindo,  ora  por  uma  razão  ora  por  outra,  grande 
empenho  de  qualquer  dos  lados  em  ultimarem-se  as  negocia- 
ções, não  admira  que  seguissem  ellas  por  tal  modo  posterga- 
das ou  antes  arrastadas.  Da  conferencia  directa  entre  Fer- 
nan Nunez,  Marialva  e  Palmella,  vindo  a  este  fim  a  Pariz, 
resultou  que  o  embaixador  d'Hespanha  se  não  achava  aucto- 
rizado  para  combinar  a  entrega  de  Olivença,  nem  o  meio 
de  se  fixarem  para  o  futuro  os  limites  geraes  americanos, 
nem  a  concessão  do  commercio  livre  a  Montevideo,  em  que 
insistia  a  corte  do  Rio.  Era  com  effeito  mostrar  pouca  von- 
tade de  tratar.  Romperam  portanto  os  plenipotenciários  por- 
tuguezes  a  conferencia  e  dirigiram  ás  potencias  medianeiras, 
em  resposta  ao  pedido  por  estas  feito  ás  duas  partes  litigantes 


(1)     Con-esp.    1'esei'vada  de  Palmella,  ibidem.' 


716  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

dos  seus  respectivos  definitivos  projectos  de  accordo,  um  ul- 
timatum  destinado  a  angariar-lhes  mais  ainda  a  benevolência. 

Declaravam-se  ahi  os  representantes  de  Dom  João  VI 
invariavelmente  decididos  a  não  desistirem  jamais  de  parte 
alguma  essencial  das  contidas  no  projecto  inicial  dos  media- 
dores, formulado  no  anno  anterior,  com  as  modificações 
apenas  a  que  o  governo  portuguez  accedera  para  testemunhar 
ao  da  Hespanha  seu  espirito  nimiamente  conciliador.  Espe- 
ravam com  isto  Palmella  e  Marialva  que  a  conferencia  dos 
mediadores  decidisse  agir  com  vigor  sobre  a  "versatilidade" 
do  gabinete  de  Madrid,  fazendo  pressão  com  o  fim  de  ser 
acceito  o  projecto  portuguez,  por  aquelles  lavrado.  Pozzo  di 
Borgo,  porém,  trabalhou  no  sentido  das  intrigas  russas,  sem- 
pre favoráveis  a  Fernando  VII,  e  levou  os  coUegas  a  con- 
vocarem nova  conferencia  dos  plenipotenciários  interessados, 
a  saber,  o  hespanhol  e  os  portuguezes  para,  sob  a  inspiração 
continuada  dos  representantes  em  Pariz  das  grandes  poten- 
cias, se  harmonizarem  as  differenças  notadas  entre  os  dous 
projectos  apresentados  pelas  partes  adversas  (i). 

Não  sendo  aos  portuguezes  licito  mais  do  que  defende- 
rem sua  posição  e  se  radicarem  em  sua  resolução  de  se  não 
afastarem  de  um  só  ponto  essencial  do  tratado  cujo  pro- 
jecto tinham  perfilhado,  pareciam  as  cousas  assim  se  enca- 
minhar para  que  se  suspendessem  por  completo  as  negocia- 
ções entaboladas.  Equivalia  isto  a  verificar-se  todo  o  objecti- 
vo da  corte  do  Rio,  que  outro  não  era  senão  deixar  de  con- 
cluir-se  qualquer  tratado  com  a  Hespanha,  ficando  as  tropas 
portuguezas  de  posse  da  margem  oriental  do  Rio  da  Prata, 
sem  que  o  pudessem  levar  a  mal  as  potencias  medianeiras, 


(1)    Maço  cit.  das  negociações  Palmella-.Marialva,  no  Arch.   do 
Mia.  das  Rei.   ExX. 


•   DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  717 

antes  carregando  a  Hespanha  com  a  responsabilidade  do 
mallogro  de  um  ajuste  que  estaria  effectuado  si  o  seu  gabi- 
nete também  mostrasse  empenho  em  adherir  ás  vistas  pro- 
postas. 

Palmella  e  Marialva  não  pensavam  exactamente  sobre 
o  assumpto  como  o  monarcha  e  seus  conselheiros,  preferindo 
um  tratado  á  suspensão  das  negociações,  cujo  effeito  se  lhes 
affigurava  poder  ser  a  guerra.  Recommendavam  consequente- 
mente que  se  apparelhasse  o  general  Lecor  com  os  meios 
precisos  de  resistir  á  expedição  de  Cadiz,  porque  "hum  dezar 
que  as  nossas  armas  experimentem  em  Montevideo  seria 
tanto  mais  sensivel  quanto  a  Europa  toda  estará  disposta  a 
julgar  do  acerto  da  nossa  actual  conducta  pelo  rezultado  que 
tiver  aquella  contenda"  (i). 

Os  plenipotenciários  portuguezes  n'essa  occasião  per- 
sistiam ou  apparentavam  de  firmes  na  crença  de  que  a  expe- 
dição estava  prestes  a  seguir,  apezar  dos  sérios  embaraços 
que  tanto  a  tinham  feito  demorar,  e  para  de  todas  as  formas 
estorval-a,  affirmaram  ao  ministro  dos  negócios  estrangei- 
ros da  Grã  Bretanha  que  a  corte  brazileira,  no  intuito  de 
diminuir  seus  perigos,  caso  a  expedição  partisse  sem  aviso 
prévio,  se  veria  forçada  a  reconhecer  a  independência  de 
Buenos  Ayres. 

Portugal  proseguira  mantendo  sua  postura,  como  lh'a 
ageitara  Palmella,  e  a  sem  razão  continuava  segundo  todas 
as  verosimilhanças  a  estar  com  a  Hespanha,  cuja  má  fé  re- 
sumava  sem  disfarce  nas  notas  prolixas,  irritadas  e  aggressi- 


(1)  Officio  de  Palmella  e  Marialva  a  Thomaz  António  de  4 
de  Setembro  de  1819,  no  maço  cit.  ibidem.  Este  officio,  bem  como  a 
nota  dos  mesmos  aos  representantes  das  potencias  medianeiras,  de  15 
de  Agosto  de  1819,  e  a  memoria  histórica  de  26  de  Agosto,  com  a  nota 
da  mesma  data  e  os  projectos  de  tratado  annexos,  acham-se  publi- 
cados no  vol.  I  dos  Despachos  e  Corrcspoudcncia  do  duque  de  Palmella. 


718  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

vas  do  duque  de  Fernan  Nunez  e  nas  declarações  altaneiras 
dos  abundantes  ministros  de  estrangeiros  que  o  Rei  Fer- 
nando VII  ia  consumindo,  fazendo  prestemente  succeder  á 
elevação  o  exilio. 

A  ultima  pretenção  do  gabinete  de  Madrid  fora  cir- 
cumscrever  á  indemnização  pecuniária  ou  cessão  territorial 
que  a  substituiria  todo  o  campo  da  negociação,  julgando 
prejudicados  com  a  nova  eventual  combinação  os  demais 
pontos  —  fixação  permanente  dos  limites,  devolução  de  Oli- 
vença e  franquia  mercantil  para  Montevideo  —  que  os  ple- 
nipotenciários portuguezes  tinham  posto  de  lado,  não  como 
annullados  mas  como  accordados,  não  mais  lhes  parecendo 
necessário  voltar  a  discutil-os.  Era  opinião  porém  do  plenipo- 
tenciário hespanhol  que  n'um  projecto  de  tratado  se  não 
podia  conservar  umas  certas  cl-ausulas,  approvando-as,  e  re- 
tirar outras  por  desagradáveis  ou  inexequiveis:  cumpria  ac- 
ceitar  ou  rejeitar  o  conjuncto. 

Com  felicidade  respondiam  Palmella  e  Marialva  (i) 
a  uma  tão  estranha  theoria  diplomática,  que  offerecia  sua 
contradicção  viva  no  processo  hespanhol  de  ir  restringindo 
as  concessões  a  principio  promettidas:  *'Si  dans  le  cours  d'une 
négociation  par  le  moj^en  de  laquelle  deux  Parties  cherchent 
à  se  rapprocher,  Tune  d'elles  se  juge  autorisée  à  retracter 
à  volonté  les  concessions  qu'elle  a  officiellement  accordées, 
comment  pourra-t-on  jamais  parvenir  à  s'entendre,  et  sur 
quelles  bases  Tautre  pourra-t-elle  s'appuyer,  pour  faire  de 
son  côté  les  concessions  nécessaires  afin  d'arriver  à  la  con- 
clusion  d'un  arrangement  ?  " 


(1)     Nota  de  21  de  Setembro  de  1819  aos  Representantes  das 
Potenciais  mediadoras,   no   Areh.   do   Min.  das   Kel.   Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  719 

A  4  de  Outubro,  fazendo  assim  realçar  a  boa  vontade 
do  seu  governo  —  para  o  qual  entrara  o  duque  de  São  Fer- 
nando, reputado  pelo  seu  espirito  de  moderação  e  cordura, 
formando  contraste  com  o  dos  predecessores  — ,  declarou 
Fernan  Nuííez  que  o  gabinete  de  Madrid  acceitaria  ti  atar 
separada  e  isoladamente  da  restituição  de  Olivença,  comtanto 
que  esta  negociação  nada  tivesse  a  ver  com  a  reoccupação 
pela  Hespanha  da  Banda  Oriental.  Marialva  julgou  todavia 
inútil  e  inadmissivel  essa  concessão,  porquanto  o  Rei  Catho- 
lico  contrahira  pelo  Acto  Geral  do  Congresso  de  Vienna  a 
obrigação  implícita  de  effectuar  sem  condições  a  retrocessão 
d'aquella  cidade  portugueza. 

Por  esse  tempo  já  Palmella,  apoz  demorar-se  em  Pariz 
de  Abril  a  fins  de  Setembro  de  1819,  se  havia  de  novo  re- 
tirado para  Londres,  onde  o  chamavam  affazeres  politicos 
connexos  com  a  questão  de  Montevideo,  e  relativos  a  outros 
negócios  pendentes.  Foi  por  isso  Marialva  só  outra  vez  quem, 
a  10  de  Outubro,  propoz  desistir  Portugal  da  indemnização 
pecuniária  —  "único  ajuste  profícuo  á  Coroa  portugueza 
que  se  achava  oneroso  á  Hespanha  no  projecto  de  tratado" 
■ —  si  á  testa  da  expedição  de  Cadiz  partisse  na  qualidade 
mesmo  de  vice-rei  um  Infante  d'Hespanha. 

Explicito  estava  comtudo  que  tal  indemnização  pecuniá- 
ria seria  facultada  pela  Hespanha,  não  a  guisa  de  compensa- 
ção da  evacuação  do  território  pelas  tropas  de  Dom  João  VI, 
porque  isso  equivaleria  a  admittir  ou  reconhecer  sobre  elle 
direitos  que  Portugal  aliás  não  pretendia  possuir,  sim  como 
uma  compensação  da  vantagem  derivada  para  a  Hespanha 
do  facto  de  receber  pacificada  pelas  armas  portuguezas  sua 
colónia  rebellada.  Convém  de  resto  nunca  perder  de  vista 
n'esta  questão  que  a  rebellião  tinha  sido  a  causa  determinante 


720  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

da  intervenção  da  corte  do  Rio,  sob  pretexto  de  existir  o 
perigo  da  insurreição  de  Artigas  contagiar  o  Brazil  do  morbo 
revolucionário  e  depois  de  ter-se  a  Hespanha  recusado  a  col- 
laborar  com  Portugal  na  extincção  do  fcco  incendiário. 

Não  annuindo  outrosim  a  Hespanha  ás  repetidas  de- 
monstrações do  empenho  portuguez  em  concluir-se  um  tra- 
tado que  puzesse  cobro  á  desconfiança  e  incerteza  da  situação 
geral  creada  por  aquellas  circumstancias  entre  os  dous  paizes, 
e  de  que  Portugal  entendia  tirar  diplomaticamente  vanta- 
gem, depois  de  a  ter  militarmente  alcançado,  annunciou  o 
marquez  estribeiro-mór  que,  na  ausência  de  uma  resposta 
formal  do  monarcha  hespanhol,  o  seu  soberano  recobrava  a 
liberdade  de  acção. 

Era  no  emtanto,  no  dizer  de  Marialva,  sincero  e  bem 
sincero  o  desejo  da  corte  portugueza  no  tocante  á  ida  de  um 
Infante  como  vice-rei,  preludio  certo  de  uma  outra  realeza 
americana.  Dada  a  grande  probabilidade  da  separação  defi- 
nitiva das  colónias  hespanholas  —  cuja  reunião  á  mãi  pátria 
constituiria  ainda  para  o  Brazil  a  melhor  solução  ao  entender 
dos  dous  plenipotenciários  portuguezes  —  parecia  preferivel 
achar-se  então  o  Reino  do  Brazil  "rodeado  de  monarquias 
legitimas  que  sopeassem  a  tendência  ao  republicanismo  que 
se  observa  na  maior  parte  das  colónias  hespanholas  da  Ame- 
rica, e  que  o  governo  dos  Estados  Unidos  não  deixa  de  pro- 
mover"   (i). 

Esta  perspectiva,  que  Marialva  appellidava  "luminosa 
idéa  provinda  da  alta  mente  do  nosso  Augusto  Amo",  con- 
tava com  o  decidido  apoio  do  duque  de  Richelieu  e  também 
do   novo   ministro  dos   negócios   estrangeiros   da    Hespanha 


(1)    Officio   de   Marialva   a  Thomaz   António   de   6   de   Maio   de 
1820,  maço  cit.  no  Arch.  do  Min.  dae  Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  721 

constitucional,  Evaristo  Perez  de  Castro,  conhecido  antigo 
do  marquez  estribeiro-mór.  Com  Richelieu  e  seu  substituto, 
o  marquez  Dessolles,  tinham  conferenciado  e  tratado  os  en- 
viados confidenciaes  argentinos  Rivadavia  e  cónego  Gomez, 
valendo-se  do  intermédio  de  Lafayette,  a  quem  Marialva 
alcunhava  de  "apostolo  do  republicanismo."  A  França, 
apoiando  o  projecto  de  uma  monarchia  portenha,  apenas  ma- 
nobrava clandestinamente  para  que  o  throno  coubesse  ao 
Duque  de  Lucca  e  não,  como  queria  a  corte  do  Rio  na  impos- 
sibilidade do  seu  Dom  Sebastião,  a  um  dos  Infantes  irmãos 
do  Rei  Catholico. 

Para  o  marquez  estribeiro-mór,  em  seguida  á  revolu- 
ção constitucional  hespanhola  de  1820,  a  principal  preoccupa- 
ção  passara  porém  a  ser,  não  mais  Montevideo  e  o  limite  do 
Rio  da  Prata,  si  é  que  alguma  vez  o  fora,  sim  o  próprio,  o 
velho  Portugal.  Via  este  exposto  a  um  dos  dous  perigos:  o 
ataque  armado  pelos  Hespanhoes  no  intuito  de  reannexar  á 
monarchia  liberal  peninsular  a  conquista  de  Felippe  II,  ou 
o  effeito  da  seducção  exercida  sobre  o  Reino  angustiado  e 
menosprezado  pela  visinha  mudança  politica  no  sentido  re- 
presentativo. 

As  intrigas  hespanholas  trabalhavam  com  effeito  em 
Lisboa  para  fomentar  o  espirito  de  desunião  nacional  por 
meio  da  exploração  do  descontentamento  resultante  do  afas- 
tamento, já  systematico,  da  corte  de  Dom  João, VI,  e  os  li- 
beraes  hespanhoes  —  que,  mancommunados  com  os  liberaes 
francezes  e  entendendo-se  graças  ás  sociedades  secretas 
e  serviço  dos  contrabandistas  da  fronteira,  tinham  be- 
bido suas  inspirações  além  dos  Pyreneus  e  realizado  a  re- 
volução de  Cadiz  —  correspondiam-se  com  os  espiritos 
adiantados  de  Portugal,  ante  os  quaes  faziam  brilhar  a  es- 


722  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

perança  risonha  de  uma  Lisboa,  a  abandonada,  capital  da 
grande  união  ibérica. 

Marialva  por  si  via  tudo  negro:  submergidas  a  coroa, 
a  aristocracia  e  a  religião  no  turbilhão  anarchico  contra  que 
deviam  reagir,  e  luctar  por  salvarem  aquellas  naufragas,  todas 
as  potencias  conservadoras.  Foi  1820,  é  mister  não  esquecer, 
o  anno  também  das  sangrentas  insurreições  de  Nápoles  e  da 
Sicilia,  da  intromissão  mais  activa  e  mais  oppressiva  da 
Áustria  na  Itália,  de  uma  das  crises  geraes  agudas  na  con- 
tenda européa  da  liberdade  politica  contra  o  despotismo.  Por 
isso  mais  se  agitava  o  embaixador  portuguez  em  Pariz  junto 
aos  governos  da  Santa  Alliança,  para  que  interviessem  contra 
a  disseminação  de  tão  perigosas  doutrinas,  organizando  a 
resistência  legitimista  n'um  novo  Congresso,  o  qual  decla- 
rasse que  os  actos  de  Vienna  e  de  Aix-la-Chapelle  continham 
virtualmente  uma  garantia  total  e  reciproca,  por  parte  das 
potencias  signatárias,  dos  seus  respectivos  territórios  e  formas 
de  governo,  salvo  as  modificações  que  cada  um  dos  sobera- 
nos julgasse  conveniente  outorgar,  de  accordo  com  os  outros, 
em  beneficio  dos  seus  vassallos  ( i ) . 

O  que  Marialva  pretendia  era  que,  reforçando-se  a 
garantia  proveniente  dos  referidos  tratados  e  que  aquellas 
nações  se  deviam  mutuamente,  ficasse  particularmente  asse- 
gurada a  ameaçada  integridade  da  monarchia  portugueza. 
Fazia  n'este  designio  observar  que,  no  caso  de  perder  a 
djmastia  de  Bragança  o  seu  dominio  tradicional,  a  realeza 
de  Dom  João  VI  se  tornaria  puramente  americana  "e  de 
mãos  dadas  com  os  Estados  Unidos  consummarião  a  obra  já 
muito  adiantada  da  separação  geral  do  Novo  Mundo,  o  que 


(1)      Corresp.    de  Marialva,  no   Arch.    do  Min.    das  Rei.   Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  723 

não  podia  deixar  de  ser  huma  calamidade  para  a  Eu- 
ropa', (i) 

A  Hespanha  liberal  julgava  entretanto  posto  que  erra- 
damente, pois  que  bastaria  lembrar-se  que  ao  tempo  das  pri- 
meiras tentativas  de  separação  envergara  justamente  a  me- 
trópole vestes  constitucionaes,  ser  a  transformação  politica 
operada  no  seu  seio  motivo  sufficiente  para  attrahir  as  co- 
lónias rebelladas  e  refazer-se  a  ligação  despedaçada.  Ao  tão 
protelado  projecto  de  reconquista  tinha  ella  mesmo  de  re- 
nunciar por  completo,  considerando  suas  novas  esperanças, 
sua  nova  orientação,  suas  novas  preoccupações  e,  muito  par- 
ticularmente, a  impopularidade  da  expedição  ultramarina 
entre  os  militares. 

O  perigo  não  cessava  comtudo  para  o  Brazil  de  um 
rechasso,  subsistindo  até  maior  com  a  união  federativa  de 
Buenos  Ayres,  Santa  Fé  e  Entre-Rios,  ao  que  se  suppunha 
ou  suppunha  pelo  menos  a  diplomacia  portugueza  com  an- 
nuencia  e  apoio  de  Artigas  —  ''capitão  general  da  Banda 
Oriental"  —  que  para  semelhante  fim  teria  delegado  seus 
poderes  e  instrucções  ao  governador  de  Entre-Rios.  Para 
mais  a  tal  resultado  parecia  não  haver  sido  estranho,  senão 
o  governo  britannico,  o  commodoro  Hardy,  chefe  da  es- 
quadra ingleza  estacionada  no  Rio  da  Prata  e,  pelo  que 
n'aquelle  tempo  se  disse,  despachado  no  intuito  de  auxiliar  a 
tramada  deposição  de  Pueyrredon  e  o  estabelecimento  da 
concórdia  entre  as  Provincias  pouco  unidas. 

Favorecendo  a  conspiração  de  Sarratea,  que  por  longo 
tempo  vivera  na  Inglaterra,  contra  o  Director  inclinado  á 
solução   monarchica   por    falta   d'outra   melhor   ou   de   mais 


(1)   Officio  cit.  de  G  de  Maio  Uo  1S20,  ibulem. 


724  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

fácil  execução,  a  Grã  Bretanha  favorecia  é  bem  de  ver  os 
seus  próprios  interesses,  que  a  França  procurava  contrariar 
no  espirito  do  antagonisõmo  reinante  entre  as  duas  nações,  ao 
mesmo  tempo  que  buscava  implantar  no  Prata  a  sua  supre- 
macia moral,  protectora  de  proveitos  positivos. 

A  solução  monarchica  não  era  realmente  acolhida  no 
Rio  da  Prata  senão  como  uma  cousa  preferivel  á  recoloni- 
zação,  em  todo  caso  muito  inferior  á  completa  emancipa- 
ção. Abonaria  a  perspicácia  de  Palmella  —  si  outros  tantos 
factos  a  não  comprovassem  de  sobejo  —  o  não  haver  desde 
principio  acreditado  na  sinceridade  realista  de  D.  Valentin 
Gomez  e  de  Rivadavia,  os  quaes,  ao  que  se  propalara,  anda- 
vam trabalhando  na  Europa  por  aquella  solução;  de  facto 
pugnando  principalmente  pelo  reconhecimento  da  indepcn- 
dencia  da  republica  organizada  em  Buenos  Ayres.  Uma 
prova  está  em  que  o  cónego  Gomez,  quando  conferenciou 
em  Junho  de  1819  com  Palmella  e  Marialva  acerca  da  fun- 
dação da  monarchia  portenha,  recusou  tomar  a  iniciativa  da 
proposição  respectiva,  quer  junto  do  governo  hespanhol, 
quer  mesmo  junto  das  potencias  alliadas:  o  que  pode  não  ex- 
cluir sua  lealdade,  mas  certamente  não  traduz  o  seu  afan 
pela  missão  de  que  vinha  apparentemente  encarregado  (i). 

Outras  circumstancias  mais  pelejavam  contra  o  plano 
de  creação  de  monarchias  hispano-americanas,  afagado  pela 
corte  do  Rio  no  intento  mais  que  tudo  de  extinguir  em  redor 
do  Brazil  o  espirito  republicano  que  se  antevia  nocivo  ao 
Reino  brazileiro.  A  Hespanha  rejeitara  na  sua  contenda 
com  as  colónias  revoltadas  a  intervenção  amigável  de  Wel- 
lington, mediador  para  esse  fim  escolhido  pelas  grandes 
potencias.  Achava-se  portanto,  em  conformidade  dos  ajustes 


(1)     Corrijsp.   reservada  de  Palmella,   i1)idem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  725 

de  Aix-la-Chapelle,  ipso  facto  terminada  a  tentativa  de  me- 
diação, ficando  as  nações  alliadas  em  posição  de  não  pode- 
rem dignamente  suggerir  quaesquer  outros  alvitres,  quando 
era  formalmente  recusado  o  medianeiro  por  ellas  proposto 
para  esboçar  uma  composição.  Uma  mudança  na  forma  re- 
publicana das  Províncias  Unidas  não  era  por  outro  lado  de 
natureza  a  eliminar  a  ameaça  do  reconhecimento  immediato 
da  sua  independência  da  parte  dos  Estados  Unidos,  demo- 
rado apenas  por  causa  da  cessão  das  Floridas,  cujo  tratado 
se  achava  dependente  da  ratificação  do  Rei  Catholico,  n'esse 
ajuste  pondo  o  governo  americano  o  maior  empenho. 

Já  sabemos  que  Palmella  nunca  morreu  de  amores  pela 
lembrança,  considerando  preferível  á  monarchia  própria  ou 
á  democracia  a  reposição  da  auctoridade  da  metrópole,  com 
limites  definitivos  estipulados  de  fresco  entre  a  America 
Hespanhola  e  a  America  Portugueza,  emendando-se  o  que 
a  linha  de  1777  podia  ter  de  absurda,  respeitando-se  a  con- 
quista portugueza  de  1801,  das  missões  do  Uruguay,  e  até 
consolidando-se  a  avançada  das  tropas  d'El-Rei  Dom 
João  VI  em  território  oriental. 

Desde  então  a  corte  do  Rio  de  Janeiro  queria  dar  por 
nullo  o  tratado  de  1777,  em  vista  da  guerra  peninsular  de 
1801  e  dos  tratados  subsequentes  de  Badajoz  e  Madrid  que 
teriam  virtualmente  invalidado  o  convénio  de  San  Ildefonso. 
Palmella  porém  não  pensava  exactamente  da  mesma  forma, 
ponderando  a  Thomaz  António  ( i )  :  *'...  procuraremos  sus- 
tentar que  o  Tratado  de  1777  nunca  se  executou  por  não 
ser  intelligivel.^t  que  portanto  he  nullo  de  si  mesmo;  pois 
a  não  ser  assim  difficilmente  poderiamos  sustentar  perante 
os  Mediadores  a  these  da  nuUidade  do  sobredito  Tratado 


(1)   Offkio  reservado  de  9  de  Março  de  1819,  ihid&tn. 


726  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

por  motivo  das  guerras  subsequentes  que  occorreram,  e 
mesmo  do  Tratado  de  Fontainebleau,  visto  que  o  estado  de 
guerra  suspende  só  e  não  annuUa  os  Tratados  de  limites 
existentes,  os  quaes  se  devem  julgar  revalidados,  logo  que  se 
não  faz  menção  d'elles  nos  Tratados  de  paz."  Si  os  insurgen- 
tes  vencessem  e  se  puzessem  independentes,  então  sim,  era 
opinião  de  Palmella  que  se  não  devia  o  governo  portuguez 
julgar  obrigado  para  com  elles,  representantes  de  novas 
soberanias,  pelas  convenções  que  tivesse  concluido  com  a 
Hespanha  —  *'e  si  elles  tal  pretendem,  dão  desde  já  a  co- 
nhecer a  sua  arrogância  e  vistas  ulteriores,  das  quaes  eu 
nunca  duvidei",   (i) 

A  retenção  de  Montevideo  não  se  lhe  afigurava  por 
outro  lado  corrente  nem  fácil.  A  permanência  de  Palmella 
em  Londres,  combinada  com  as  circumstancias  do  momento 
na  politica  geral,  tinham  levado  Castlereagh  a  sustentar  o 
mais  resolutamente  possivel  a  corte  do  Rio  na  questão  da 
occupação  da  Banda  Oriental,  exercendo  n'este  sentido  em 
Madrid  a  maior  pressão  compativel  com  a  dignidade,  que 
por  muito  pouco  se  julgava  ultrajada,  da  corte  hespanhola  e 
com  o  decoro  mesmo  das  relações  internacionaes.  Não  le- 
vava comtudo  a  Inglaterra  o  altruismo  ao  ponto  de  abando- 
nar pelos  Portuguezes  seus  interesses  americanos,  que  eram 
os  do  seu  commjercio  e  da  sua  influencia,  e  se  adaptariam  tão 
bem  ou   até  melhor  a  outras  condições. 

O  governo  britannico  nutria  aliás  a  certeza  de  que  o 
imperialismo  de  Dom  João  VI  não  tinha  fôlego  para  chegar 
além  do  Prata,  confessando  o  próprio  Thoma^:  António  tex- 
tualmente a  Palmella  n'um  dos  seus  despachos  (2)  que  nem 


(1)  Officio  roseryado  de  8  de  Maio  de  1811),  ibidem. 

(2)  Ai-ch.  do  Min.  das  Rei.  Rxt, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  727 

se  terminara  a  tranquilla  occupação  de  toda  a  Banda  Orien- 
tal, campo  relativamente  pequeno  onde  a  revolta  campeava 
ainda,  nem.  existia  "a  certeza  de  conservarem-se  o  affecto  e 
fidelidade  daquelles  Povos." 

Por  isso,  emquanto  brandia  a  ameaça  da  expedição 
de  Cadiz,  mais  mesmo  do  que  os  seus  organizadores,  con- 
servava Palmella  em  mira  um  duplo  fim :  induzir  n'uma 
intenção  patriótica  a  corte  do  Rio  a  se  não  deixar  emba- 
hir  pelas  tergiversações  do  gabinete  de  Madrid,  o  qual,  no 
seu  parecer,  procrastinava  sobretudo  a  negociação  para  dar 
tempo  á  expedição  de  singrar  sem  que  o  governo  portu- 
guez  tivesse  tomado  no  Brazil  as  precauções  devidas,  e  con- 
vencel-o  de  que  tampouco  se  abstivesse  ''por  excesso  de  mo- 
deração e  de  confiança  na  intervenção  dos  mediadores"  de 
preparar-se  para  todas  as  eventualidades,  inclusive  qualquer 
affronta  naval  á  capital  brazileira  ou  a  occupação,  que  prom- 
ptamente  acudia,  da  ilha  de  Santa  Catharina. 

Três  eram  as  razões  que  instigavam  o  plenipotenciário 
de  Dom  João  VI  a  fazer  adoptar,  caso  fosse  possivel  contar 
com  a  final  adhesão  da  Hespanha,  o  tratado  ajustado  com 
as  potencias  medianeiras,  o  qual  lhe  parecia  a  melhor  solução 
de  todas  as  propostas.  Tratar  com  a  Hespanha,  mau  grado 
seus  destemperos  de  linguagem  e  suas  pretenções  chronica- 
mente  desarrazoadas,  sempre  era  preferível  a  tratar  com  as 
novas  democracias  que  d'ella  queriam  separar-se  e  viver  vida 
independente,  ainda  que  penosa. 

A  confederação  argentina  especialmente,  uma  vez  des- 
embaraçada da  guerra  do  Peru  e  reconhecido  o  seu  governo 
por  uma  ou  mais  potencias  estrangeiras,  appareceria  nas  suas 
ambições  mais  intratável  ainda  do  que  a  metrópole,  si  bem 
que  esta,  conseguindo  reconquistar  suas  colónias,  não  cessa- 


728  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ria  de  mostrar-se  a  visinha  altamente  incommoda  de  sempre, 
no  tocante  á  exclusão  portugueza  da  bacia  do  Prata.  Ainda 
com  as  Províncias  Unidas,  Palmella  o  esquecia,  havia  a 
esperança,  a  quasi  certeza  n'aquelle  tempo  de  obstar-lhes 
ás  aggressões,  dominando-as  a  monarchia  luzo-brazileira 
pela  extensão  dos  seus  recursos  e  condição  politica  homogé- 
nea e  disciplinada,  bem  differente  da  de  uma  democracia 
anarchizada.  N'este  sentido  a  restauração  hespanhola  seria 
de  mais  problemática  vantagem. 

Em  futuras  intelligencias  com  o  governo  reconhecido  de 
Buenos  Ayres  Palmella  se  não  fiava  absolutamente,  partindo 
de  que  a  qualidade  de  republicano  o  tornaria  instinctiva- 
mente  incompatível  com  o  governo  monarchico  do  Brazil; 
outrosim  alimentando  elle  infallivelmente  "o  intento  bem 
natural  de  recuperar  a  Banda  Oriental,  sendo  que  a  boa 
harmonia  comnosco  só  subsistirá  emquanto  julgar  que  lhe 
servimos  de  escudo  para  o  guardar  de  huma  invazão  dos 
Hespanhoes,  e  emquanto  não  tiver  adquirido  forças  suffi- 
cientes  para  acommetternos"  (i). 

O  ajuste  entre  Portugal  e  Hespanha,  facilitando  o 
complemento  da  invasão  de  i8ió,  poderia  com  ef feito  des- 
agradar tanto  ao  governo  de  Buenos  Ayres  que  apressasse 
o  rompimento  com  o  Brazil,  um  desfecho  que  Palmella 
julgava  com  acerto  impossível  de  evitar  no  futuro.  Entre- 
tanto, dando-se  mesmo  o  rompimento  com  Buenos  Ayres, 
melhor  lhe  parecia  ter  a  questão  serenada  pelo  que  dizia 
respeito  á  Hespanha;  tanto  mais  quanto  se  não  desoccuparia 
gratuitamente  um  território  pelo  qual  se  ia  vantajosamente 
obter  compensação    pecuniária  ou  territorial,    consistindo  o 


(1)   Officio  reservado  d«  11  de  Julho  de  1819,  ibidem. 
\ 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  729 

lucro  maior,  porém,  em  se  terem  evitado  os  males  de  uma 
guerra. 

O  que  o  tratado  offerecia  especialmente  de  bom,  se- 
gundo Palmella,  era  não  hypothecar  o  futuro.  Não  seguindo 
por  fim  de  contas  a  expedição  de  Cadiz,  permanecia  neces- 
sariamente Portugal,  mau  grado  o  tratado  e  pela  própria 
força  das  circumstancias,  na  posse  pacifica  e  legal  do  ter- 
ritório occupado  pelas  suas  forças.  Seguindo  a  expedição  e  lo- 
grando reconquistar  as  provincias  do  Prata,  cessaria  para 
Portugal  o  perigo  da  visinhança  do  foco  revolucionário, 
sem  cessar  a  possibilidade  de  negociar  ulteriormente  com  a 
Hespanha  a  acquisição  de  todo  o  território  da  Banda  Orien- 
tal, até  e  sobretudo  no  caso  de  se  haver  forçadamente  limi- 
tado a  reconquista  a  essa  colónia. 

O  mais  agradável  comtudo  a  Dom  João  VI  era,  con- 
forme aconteceu,  não  se  ultimar  tratado  com  a  corte  de  Ma- 
drid, pois  que  lhe  repugnava  vivamente  a  idéa  de  entregar 
a  praça  de  Montevideo,  ''preferindo  manter  pelas  armas 
o  que  não  tivesse  perdido  pelas  negociações."  Verdade  é  que 
na  confissão  de  Palmella,  que  como  diplomata  e  como  cor- 
tezão  estava  duplamente  habilitado  para  sempre  descobrir 
o  proveito  de  qualquer  solução  aprazente  ao  seu  soberano, 
não  se  celebrando  convénio  algum  prévio  e  atacando  a  Hes- 
panha as  tropas  portuguezas  estacionadas  na  margem  orien- 
tal  do  Rio  da  Prata  (hypothese  que  se  não  verificou),  a 
repulsa  legitimaria  a  occupação.  "Adquiriremos  então,  além 
da  posse  de  facto,  huma  espécie  de  direito  para  conservar 
aquelle  território"  (i). 


(1)     Corresp.    wsorvada   de  Palmella,   no   Arch.    do  Min.    das 
Rei.    Ext. 

D.  J.  —  46 


730  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIE 

Palmella  nunca  se  perdera  no  dédalo  das  ínstrucções 
que  lhe  eram  transmittidas  para  darem  ao  gabinete  portu- 
guez  ares  de  muito  empenhado  na  solução  diplomática  da 
questão  —  não  admirando  por  isso  que  as  reputasse  o  des- 
tinatário "confusas  e  contradictorias"  (i)  —  porque  encon- 
trava invariavelmente  a  esclarecel-o  e  guial-o  nas  peores 
conjuncturas  o  seu  extraordinário  bom  senso.  Este,  ligando-se 
a  um  certo  opportunismo  que  IhíC  era  peculiar  por  tempera- 
mento e  por  dever  d'officio,  concordava  afinal  no  fundo  com 
a  ambição  da  corte  do  Rio,  achando  que  o  território  occupado 
"já  agora,  de  hum  modo  ou  de  outro,  deve  ficar  perma- 
nentemente pertencendo   ao  Reino   do   Brazil." 

A  annexação  seria  fatal,  não  só  certa,  na  eventualidade 
de  uma  guerra  na  Peninsula,  declarada,  quando  outro  não 
fosse  o  fundamento,  para  attribuir  emprego  profissional  ao 
exercito  revolucionário  hespanhol  afastando-o  mesmo  de  in- 
tervenções na  politica  domestica.  Uma  guerra  transatlân- 
tica, in  situ,  é  que  apparecia  cada  dia  menos  provável  e, 
prevenindo  o  caso  da  paz,  lembrara-se  Palmella  no  decorrer 
das  negociações  em  Pariz  de  estipular  que,  passado  o  prazo 
da  troca  de  Montevideo  por  uma  indemnização  territorial 
ou  pecuniária,  Portugal  exigiria  da  Hespanha  a  quantia  de 
400.000  francos  mensaes  a  titulo  de  compensação  dos  gastos 
que  acarretava  a  occupação.  E  como  a  transformação  politica 
da  Hespanha,  provocada  pela  revolução  de  Cadiz,  tornara 
problemática  a  mediação  e  adiara  sine  die  qualquer  desen- 
lace  por   accordo   directo,    d'outra    banda   pondo    embargos 


(Ij  Carta  a  Saldanha  da  Gama  no  tomo  I  dos  Despachos  e  Cor- 
respoiulencm,  onde  também  se  encontram  os  offlclos  de  8  de  Margo, 
12  de  Abril,  11  de  Maio  e  15  deJuniho  de  1820,  dirigidos  a  Thomaz 
António  immediatameBte  antes  do  embarque  de  Palmella  para  o  Rio 
de  Janeiro. 


DOM  JOÃO  VT  NO  BRAZTL    '  731 

a  uma  acção  no  ultramar,  as  mensalidades  a  pagar  subiriam 
depressa  a  uma  somma  muito  considerável  que  Portugal, 
como  concordava  a  Inglaterra,  teria  o  direito  de  reclamar 
a  todo  tempo  antes  de  evacuar  o  território. 

Nenhuma  d'estas  combinações  da  astúcia  do  plenipo- 
tenciário de  Dom  João  VI  teve  todavia  ensejo  de  se  veri- 
ficar, continuando  toda  solução  a  procrastinar-se.  Quando 
Palmella  chegou  ao  Rio  de  Janeiro,  a  occupar  os  seus  minis- 
térios, apenas  encontrou  directamente  regulada  para  a  emer- 
gência da  desoccupação  portugueza  e  autonomia  da  Banda 
Oriental,  a  delimitação  pendente  com  a  metrópole  e  que 
em  1819  fora  do  modo  mais  pratico  fixada  no  terreno  pelo 
conde  da  Figueira,  capitão  general  do  Rio  Grande  do  Sul 
e  delegado  para  tal  fim  nomeado  pelo  governo  portuguez,  e 
pelo  delegado  do  Cabildo  que  proclamava  representar  a 
suprema  auctoridade  da  Banda  Oriental,  D.  Prudencio 
Morguindo. 

A  fronteira  accordada  entre  o  Reino  do  Brazil  e  a  que 
seria  no  dia  seguinte  sua  provincia  demarcada  pelo  curso 
do  Uruguay  e  estuário  do  Prata,  precavia  qualquer  even- 
tualidade de  reconquista  hespanhola  ou  absorpção  platina, 
fazendo  correr  a  linha  divisória  da  foz  da  lagoa  de  Cas- 
tillos,  pelos  alagados  parallelos  á  costa,  até  a  lagoa  Mirim, 
d'ahi  torcendo  para  o  rio  Jaguarão,  attingindo  o  rio  Negro 
e  seguindo  as  cumiadas  dos  serros  até  as  nascentes  do  rio 
Arapehy,  cujo  curso  acompanhava  até  desemboccar  no  Uru- 
guay (i). 


(1)  Handelmann,  Geschichte  von  Brasilien.  Esita  foi  a  linlia  que 
veio  a  prevalecer  com  o  recoBliecimeiíto,  a  27  de  Agosto  de  1828,  da 
Rapublica  independente  do  Uruguay,  que  não  deixou  logo  depois  de 
roclamar  a   fronteira,   mais  fa-voímvel,   do  tratado  de   1777. 


CAPITULO  XVIII 


ADMINISTRAÇÃO  E  JUSTIÇA.   OS  INTERESSES  AGRÍCOLAS  E 
INDUSTRIAES 


Mercê  de  uma  critica  sentimental  mais  do  que  de  um 
são  discernimento,  exercido  como  é  o  critério  á  distancia  dos 
acontecimentos  históricos  analysados  e,  no  geral,  sem  exame 
judicioso  dos  factos  e  menos  ainda  dos  documentos,  tem-se 
ultimamente  crcado  uma  certa  lenda  de  que  foi  impeccavel  a 
administração  brazileira  do  tempo  de  Dom  João  VI.  Descre- 
vem-na  muitos  como  totalmente  differente  da  que  a  prece- 
deu, e  progressiva  e  moralizadora  ao  ponto  de  poder  servir 
de  modelo  perpetuo  para  as  administrações  subsequentes. 

A  verdade  está  em  que,  conforme  temos  ido  verificando, 
o  Brazil  lucrou  extraordinariamente  com  a  trasladação  da 
corte,  porque  adquiriu  o  que  lhe  escasseava  no  pleno  regi- 
men colonial  —  desafogo  para  a  sua  população,  no  domínio 
económico  e  politico,  e  consideração  por  parte  dos  poderes 
públicos,  de  que  não  andasse  excluída  a  deferência.  O  go- 


734  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

verno  porem,  segundo  já  ficou  igualmente  notado  ao  ser  con- 
tada a  acção  treffega  de  Linhares,  não  se  limpara  da  sua 
mancha  original. 

Escrevia  Hippolyto  com  sal  no  Correio  (i)  que  esse 
governo  novo  fora  arranjado  pelo  Almanack  de  Lisboa.  Es- 
tabeleceram-se  no  Rio  de  Janeiro  um  Desembargo  do  Paço, 
um  Conselho  de  Fazenda,  uma  Junta  de  Commercio,  sim- 
plesmente porque  existiam  em  Portugal:  não  se  indagou  ab- 
solutamente si  o  Brazil  carecia  muito  ou  dispensava  aquellas 
fundações.  "Precisava-se  porem  no  Brazil,  pela  natureza 
do  paiz,  um  conselho  de  minas,  uma  inspecção  para  aber- 
tura de  estradas,  uma  redacção  de  mappas,  um  exame  da 
navegação  dos  rios."  De  nada  d'isto  se  cuidou  logo  por  não 
constarem  taes  cousas  do  Almanack  de  Lisboa,  roteiro  da  luza 
administração. 

Accresce,  na  opinião  de  Hippolyto,  que  de  semelhantes 
instituições  judiciarias,  administrativas  ou  consultivas,  al- 
gumas eram  pesadas  mesmo  em  Portugal,  sobre  serem  quasi 
inúteis  no  Brazil.  EUe  citava  como  exemplos  o  Conselho  de 
Fazenda;  a  Meza  da  Consciência  e  Ordens,  que  possuia 
jurisdicção  no  eivei,  confiada  ao  clero  na  pessoa  do  vigário 
de  vara,  de  cujas  decisões  havia  recurso  para  o  vigário  geral, 
e  jque  servia  também  de  juiz  dos  casamentos,  sendo  o  seu 
consentimento  indispensável  ás  uniões,  e  o  Supremo  Conse- 
lho Militar,  cuja  auctorização  era  necessária  para  ser  um 
official,  mesmo  da  milicia,  processado  por  um  paisano,  da 
mesma  forma  que,  quando  era  um  padre  o  demandado,  ao 
juiz  ecclesiastico  cabia  julgar.  Este  ultimo  conselho  era  o 
que  decidia  sobre  as  prezas,  mas  o  estado  de  paz  do  Brazil 


(1)   N.  30,  Noyembro  de  1»10. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  735 

(a  guerra  de  Montevideo  não  começara  ainda)  e  a  insigni- 
ficância do  seu  poder  militar  tornavam  fútil  o  motivo  para  o 
dispendioso  e  dispensável  ornamento  burocrático. 

Entendia  Hippolyto  que  os  trabalhos  da  Meza  da 
Consciência  e  Ordens  bem  podiam  ser  despachados  uma  vez 
por  semana  pelo  capellão-mór,  e  os  do  Conselho  de  guerra 
pelo  general  em  chefe  com  dous  officiaes  da  secretaria.  Tâo 
geral  e  servil  apparecia  comtudo  a  imitação,  que  até  para  o 
regimento  da  alfandega  do  Rio  se  foi  buscar  por  modelo  o 
foral  da  alfandega  de  Lisboa,  creando-se,  com  o  fim  de  evitar 
o  escandaloso  contrabando,  as  mesmas  duas  classes  de  guar- 
das e  outras  disposições  em  tudo  idênticas  ás  que  na  capital 
do  Reino  tinham  sido  estabelecidas.  Nem  se  lembravam  os 
conselheiros  do  monarcha,  segundo-  apurava  o  periodista, 
que  o  Tejo  é,  até  defronte  da  cidade,  um  rio  estreito,  com- 
parado com  a  ampla  bahia  de  Guanabara,  n'esta  "desa- 
guando 14  rios  navegáveis  para  onde  se  podem  mandar 
lanchas  e  botes  a  toda  a  hora"  (i). 

O  Correio  Braziliense,  com  ser  o  único  periódico  por- 
tuguez  do  tempo  que  podia  manifestar  independência,  por- 
que se  editava  fora  dos  dominios  reaes  e  tinha  á  sua  frente 
um  homem  de  espirito  desassombrado  e  clarividente,  consti- 
tue  o  melhor,  senão  o  exclusivo  (2)  repositório  das  falhas 
da  administração  brazileira.  O  jornalista  catava-as  escru- 
pulosamente para  expol-as  á  luz  da  publicidade,  e  não  ces- 
sava sobretudo  de  verberar  os  famosos  capitães  generaes  do 
ultramar,  que  a  mudança  da  corte  não  afugentou,  no  maior 


(1)  Correio  BraMit^rHC,  n.  cit. 

(2)  Em  1813  fundou-se  em  Londres,  sob  a  direcção  do  Dr.  João 
Bernardo  da  Rocha,  outro  periódico — O  Português — do  mesmo  género  e 
orientação  do  Correio. 


736  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

numero  militares  analphabetos  de  boas  casas  que  se  pejavam 
de  mandar  seus  filhos  receberem  em  Coimbra  graus  aca- 
démicos e  ganharem  uns  vislumbres  de  illustração. 

Hippolyto,  si  não  foi  propriamente  venal,  no  sentido  de 
pôr  em  almoeda  a  sua  penna  de  pamphletario,  não  foi  toda- 
via incorruptivel,  pois  que  se  prestava  a  moderar  seus  ar- 
rancos de  linguagem  a  troco  de  considerações,  de  distinc- 
ções  e  mesmo  de  patrocinio  official.  "Eu  tenho-o  contido 
em  parte  até  qui  com  a  esperança  da  subscrição  que  pede,  es- 
crevia para  o  Rio  o  embaixador  D.  Domingos  de  Souza  Cou- 
tinho (i).  Eu  não  sei  outro  modo  de  o  fazer  calar.  Pago  o 
jornal  pode-se  dictar.  .  .  O  Redactor  tem  igual  talento  para 
o  bem  e  para  o  mal;  e  se  o  livro  se  fizer  de  todo  inocente, 
pode-se  fazer  útil  e  destribuil-o.  Em  todo  o  caso  eu  dezen- 
carrego  a  minha  consciência  para  o  futuro.  Disputar  he  es- 
cuzado  n'este  Paiz  —  já  se  vio  o  que  José  Anselmo  queria 
fazer  atacando-o.  As  respostas  que  sahem  em  Lisboa,  são 
peiores  que  a  moléstia.  S.  A.  R.  rezolverá  o  que  for  mais 
do  seu  Serviço." 

Hippolyto  incontestavelmente  tinha  coragem,  era  do- 
tado de  liberalismo,  lançava  vistas  sadias  e  adiantadas  sobre 
a  administração  publica  portugueza;  mas  o  seu  ódio  ao  em- 
baixador e  os  seus  ataques  virulentos  contra  os  Souzas  (Li- 
nhares, Funchal  e  o  Principal  Souza,  membro  do  Conselho 
de  Regência  do  Reino)  eram  filhos  mais  do  despeito  que 
da  sinceridade.  EMe  não  fizera  entretanto  da  opposição  uma 
mercancia,  isto  é,  descobrira  que  o  melhor  meio  de  ganhar 
dinheiro,  de  bem  espalhar  o  seu  periódico,  fosse  o  aggredir 


(1)      Officio   de    14   de   Abril   de    1810,   no   Arch.   do   Min.    das 
Eel.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  737 

a  torto  e  a  direito.  Nem  se  pode  dizer  que  o  interessasse 
tanto  o  auxilio  pecuniário,  visto  que  o  Correio  se  vendia 
muito  em  Londres  —  todos  os  Portuguezes  e  os  Inglezes  em 
relações  com  Portugal  e  Brazil  compravam-no  e  exporta- 
vam-no  — como  o  seduzia  o  facto  de  ser  tratado  como  uma 
potencia. 

Estava  por  isso  prompto  a  sopitar  os  seus  ardores  de 
censor  e  pôr  de  lado  discussões  irritantes  de  personalidades, 
si  chegassem  a  certos  accordos  com  elle.  Visava  comtudo 
mais  ainda  do  que  á  contribuição,  á  deferência,  desejando 
que  o  governo  impedisse  actos  como  o  do  governador  do 
Pará,  José  Narcizo  de  Magdhães,  que  contrariado  com  al- 
gumas reflexões  cáusticas  do  Correio,  mandara  confiscar  os 
exemplares  recebidos  e  entrarem  os  possuidores  para  o  Erá- 
rio com  a  importância  dos  mesmos.  ''Agora  com  muita  reni- 
tência, escrevia  D.  Domingos,  custou  a  alcançar  que  suppri- 
misse  hum  artigo  virulento,  que  tinha  já  impresso,  contra 
J.  Narcizo  de  Magalhães..."  Chegou  o  jornalista  a  compro- 
metter-se  algum  tempo,  na  phrase  do  embaixador,  "a  escre- 
ver para  utilidade  publica  e  não  para  fazer  ataques  pes- 
soaes".   (i) 

Funchal  preoccupava-se  mais  do  que  queria  confessar 
com  a  opposição  do  Correio.  Os  governadores  do  Reino 
então  e  o  Secretario  do  Governo,  Miguel  Pereira  For  jaz, 
especialmente,  esses  nem  dissimulavam  sua  irritação.  Hippo- 
lyto  naturalizara-se  Inglez:  não  podia  portanto  ser  expulso 
á  solicitação  da  embaixada,  segundo  acontecera  com  José 
Anselmo  Corrêa.  Depois,  gosava  da  amizade  do  Duque  de 
Sussex,  irmão  do  Principe  Regente  da  Grã  Bretanha,  que  o 


(1)  Offlcio  cit.,  ihi-dem. 


738  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

recommendara  com  calor  em  carta  autographa  ao  Príncipe 
Regente  de  Portugal,  (i)  Não  restava  pois  mais  do  quc 
entenderem-se  amigavelmente  o  potentado  da  imprensa  e  o 
da  diplomacia. 

A  correspondência  entre  Funchal  e  Vicente  Pedro  No- 
lasco  da  Cunha,  que  depois  foi  com  o  apoio  da  embaixada 
um  dos  fundadores  do  Investigador  Portugucz,  inventado 
para  servir  de  contrapeso  e  dar  o  troco  ás  invectivas  do 
Correio,  não  permitte  duvidas  sobre  o  ensaio  de  intelligen- 
cia  com  o  periodista.  "  Torno  bem  a  meu  pezar  a  impor- 
tunar a  V.  Ex.»  a  respeito  do  Correio  Braziliense,  cujo  Editor 
está  impaciente  de  ver  que  eu  não  me  resolvo  a  aceitar  a 
proposta  que  elle  me  fez,  e  com  a  maior  difficuldade  con- 
tinua a  prestar-se  aos  conselhos  que  por  via  do  Dr.  V.  P. 
Nolasco  da  Cunha  lhe  mando  continuamente,  para  que  não 
nomeie  individuos,  transformando  assim  o  seu  jornal  em 
hum  libello..."  (2)  Por  outro  lado  queixava-se  V.  P.  No- 
lasco da  Cunha  em  carta  ao  embaixador  da  falta  "dos  meios 
daquella  agencia  que  aplana  as  maiores  difficuldades". 

D.  Domingos  de  Souza  Coutinho  até  ahi  não  opinava 
mesmo  pela  fundação  de  outro  jornal  londrino,  preferindo 


(1)  Esta  missiva  era  acompanhada  de  uma  nota  a  Funclial 
coTiceibida  nos  seguintes  termos:  "Tlie  duke  of  Sussex,  is  extremely 
anxious  that  some  act  of  favour  may  be  conferred  on  IMr.  Hipólito 
da  Costa  in  order  to  do  awsy  the  unmerited  stigma,  which  the  intri- 
gues of  Monsicur  do  Lima  (1).  Lourenço  fie  Lima)  and  IMna  Manique 
havc  brought  upon  liim.  Porhaps  Mr.  de  Souza  might  find  liim  a  very 
usefui  person  to  be  employed  in  the  commission  relative  to  the  com- 
mercial  concems  with  the  Brazils.  The  duke  of  Sussex  can  answer  for 
his  zeal  and  cleavemess."  A  carta,  que  se  encontra  no  Arch.  do  Min. 
das  Rei.  Ext.,  é  datada  df  Ken.sington  Palace,  Saturday  morning,  sem 
menção    porém    de  mez  ou  anno. 

(2)  Officio  a  Linhares  de  9  -de  Maio  de  1810,  no  Arch.  do  Min. 
das  Rei.  Ext.  Funchal  ajunta :  "Eu  não  desespero  de  poder  vir  a 
saber  os  nomes  das  Pessoas  dessa  Corte  que  lhe  fizerão  grandes  offe- 
recimentos  para  escreYer  particularmente  contra  mim  a  V.   Ex " 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  739 

amaciar  Hippolyto  a  assistir  ao  espectáculo,  que  lhe  repu- 
gnava, de  luctas  de  imprensa.  O  digno  diplomata  era  de  pare- 
cer que  com  gazeteiros  o  melhor  é  não  se  ter  grandes  intimi- 
dades nem  grandes  discussões :  apenas  rebater  directamente, 
mas  pelo  suborno,  sem  alarido,  as  falsidades  que  elles  disse- 
rem. "Respostas  ao  dito  Editor,  a  julgar  pelas  que  J.  Anselmo 
Corrêa  aqui  publicou,  e  pelas  que  ahi  tem  sabido,  só  servem 
de  despertar  a  bile  do  Redactor ;  e  com  gazeteiros  geralmente 
não  convém  mais  correspondência  do  que  a  prova  de  alguma 
falsidade  que  elles  dizem".  ( i ) 

Funchal  e  Hippolyto  eram  de  resto  dous  caracteres  que, 
nas  circumstancias  em  que  se  achavam,  jamais  poderiam  con- 
ciliar-se  ou  manifestar  sympathia  um  pelo  outro.  O  embai- 
xador apparece-nos  um  exemplar  completo  do  diplomata 
muito  vulgar  então  como  hoje:  burocrata,  occupando-se  sem 
cessar  dos  pequenos  assumptos  tanto  quanto  ou  mesmo  mais 
do  que  dos  grandes,  pensando  no  remanso  da  sua  chancella- 
ria  que  ninguém  no  mundo  trabalhava  como  elle,  um  nada 
jactancioso  na  certeza  de  que  os  mais  graves  interesses  da 
monarchia  lhe  andavam  confiados,  ávido  bastante  de  honra- 
rias. (2) 


íl)  Carta  de  B\nichal  ao  Cardeal  Patriarcha  Eleito  de  Lisboa 
tíe   18  de  Abiil   de   1810. 

(2)  Vejam-se  estes  dous  trechos  de  ofificios  seus,  de  3  de  Ja- 
neiro de  1810,  para  o  irmão  no  Rio  :  "Agora  á  vista  de  todo  este  tra- 
hallio,  í^spero  que  V.  Ex.  (contra  o  seu  louvável  costume  aliaz)  falle 
ao  Augusto  Príncipe  Regente  N.  S.  a  favor  de  hum  irmão  de  V.  Ex. 
que  he  a  única  Pessoa  que  não  tem  sido  premiada,   e  que  parece  que 

he  a  única  qxie  não  merece  de  o  ser "  "Presumo  que  V.   Ex.  não 

adharíi  que  se  trabaliha  pouco  n'esta  Secretaria.  Eu  ao  menos  p.'la 
|)arte  que  me  toca,  partido  que  se.ia  o  paquete,  volto  para  Worthing 
a  renovar  com  o  ar  do  mar  a  minha  cabeça  que  com  tantos  alga  ri -í- 
mos  já  comega  a  andar  a  roda."   (Aroh.  do  Min.  das  Rei.  Ext.) 

Worthing  era  a  residência  preferida  do  embaixíidor.  a  quoai 
Hiippolyto  mais  taixJe  accusou  de  tel-a  mobilado  luxuosamea';e  A  casta 
do  Thesouro. 


740  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Funchal  não  era  todavia  o  imbecil  por  que  Hippolyto 
o  qurz  depois  fazer  passar,  perseguindo-o  com  suas  verrinas 
até  quando  transferido  para  Roma  o  embaixador.  Mallo- 
grara-se,  é  de  ver,  o  accordo  esboçado,  estando  rotas  desde 
algum  tempo  todas  as  negociações  nesse  sentido.  ''Não  estou 
bem  persuadido,  commentava  Funchal,  ( i )  que  deixo  de 
ganhar  pessoalmente  na  mudança,  porque  o  espirito  de 
Intriga,  e  de  Maldade  he  tão  geral,  que  em  vez  de  me  louva- 
rem pela  tentativa  secreta  de  moderar,  e  afinal  vir  a  annul- 
lar  os  perversos  fins  que  tem  dictado  este  Jornal,  parece-me 
evidente  que  me  querião  fazer  responsável  de  todos  os  des- 
varios deste  homem.  Agora  elle  por  si  responde". 

Dado  o  caracter  de  Hippolyto,  qualquer  accordo  era 
mesmo  difficil.  Não  se  tratava,  é  mister  conservar  presente, 
de  um  vil  pamphletario  mercenário,  sim  de  um  temperamento 
bilioso,  de  um  espirito  irrequieto  e  fogoso,  de  uma  intelli- 
gencia  illustrada  e  perfeit^^^mente  convencida  das  suas  prefe- 
rencias reformadoras.  Apenas  achava-se  o  escriptor  disposto 
a  temperar  a  rispidez  dos  seus  ataques.  Não  alienaria  a  con- 
sciência, somente  abrandaria  a  forma.  Deixar-se-hia  manejar, 
não  arrastar.  Attendia  a  considerações  pessoaes,  mas  de  or- 
dem moral  mais  do  que  material.  Tinha  a  obsessão  dos  car- 
gos officiaes,  a  am'bição  da  confiança  do  governo.  A  troco 
d'esta,  posto  não  abdicasse  suas  idéas  e  predilecções,  alteraria 
sua  maneira.  As  perseguições  soffridas  em  Portugal  tinham- 
Ihe  azedado  o  caracter,  dotando-o  de  uma  fácil  irritação.  (2) 


(1)  Corresjp.  da  Emteixada  em  Londres,  no  Arcih.  do  Mie.  das 
Rei.  Ext. 

(2^      D'elle  escrevia  a  Funchal  o  barão  de  Eben,  que  militai-ano 

exercito   portuguez   e   conhecia   o   publicista :    "Mr.   da   Costa   a   un   c.i- 

ractèe  três  ferme,   et  même  outré,   peut-être   aigri   par   ses   malheurs. 

II  a  du  talent,  et  serait  un  ami  utile,  aussi  qu'il  peut  être  un  ennemi 

dangereux."    (Arch.   do   Min.   das  Rei.   Ext.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL  741 

O  escriptor  carecia  a  seus  próprios  olhos  de  importância 
emprestada  pelo  poder:  seria  precisa  esta  rehabilitação  pu- 
blica para  tornal-o  ameno.  Foi  dest'arte  um  demolidor  em 
parte  á  força,  que  rejeitaria  porventura  gratificações,  mas 
não  engeitaria  de  certo  posições. 

Comtudo  observava  Palmella,  ao  tempo  da  sua  missão 
londrina,  que  o  Correio  Braziliense  tinha,  desde  certa  epocha, 
quasi  cessado  seus  ataques  á  legação  e  ao  governo,  * 'sendo 
voz  publica  em  Londres  entre  os  Portuguezes,  que  elle 
recebe  para  esse  fim  uma  pensão  da  nossa  Corte".  ( i ) 
E'  facto  que  a  linguagem  do  jornalista  se  modificou  sensi- 
velmente depois  da  partida  de  Funchal,  podendo  filiar-se  o 
caso  n'uma  antipathia  pessoal,  de  sobejo  conhecida.  Nem  Pal- 
mella adopta  a  imputação,  reproduzindo-a  somente  como 
supposição;  entretanto  não  lhe  deviam  faltar  meios  de  certi- 
ficar-se  da  realidade.  Hippolyto,  ajuntava  Palmella,  despi- 
cava-se  aliás  com  usura  no  Portuguez,  começado  e  conti- 
nuado debaixo  da  sua  influencia  e  protecção,  da  forçada  e 
calculada  moderação  applicada  ao  Correio. 

D'este  ou  d'aquelle  modo  é  no  Correio  que  devemos  ir 
buscar  o  mais  seguro  esteio  de  um  juizo  franco  sobre  a  admi- 
nistração e  a  justiça  no  Brazil  em  tempos  d'El-Rei  Dom 
João  VI.  Ha  na  sua  coUecção  copia  de  dados  curiosíssimos, 
mesmo  sem  querer  lançar  em  carga  o  clássico  desmazelo 
official,  de  que  dá  testemunho,  entre  outros  documentos 
alli  estampados,  uma  carta  do  Infante  Dom  Pedro  Car- 
los, (2)  a  quem  o  favor  do  tio  Príncipe  Re^^ente  fizera  al- 
mirante da  esquadra  portugueza. 


(1)  Offkio  reservado  de  5  de  Janeiro  de  1817,  versando  espe- 
cialmente sobre  a  imprensa  portugneaa  na  Inglaterra.  (Areh.  do  Min. 
das   Rei.   Ext.) 

(2)  Datada  de  29  de  Maio  de  1809. 


742  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL 

N'ella  se  queixava  o  Infante  hespanhol,  com  a  violên- 
cia própria  do  seu  temperamento  e  da  sua  falta  de  educação, 
ao  Presidente  do  Erário,  marquez  de  Aguiar,  do  atrazo  nos 
pagam.entos  da  repartição  da  marinha,  única  que  parecia  estar 
fora  da  geral  distribuição  de  favores  e  graças.  Chegava  a  de- 
verem-se  as  ferias  dos  operários  —  systema  com  que  se  lhe 
afigurava  impossivel  conservar  os  bons  artistas  de  constru- 
cções  navaes. 

Adduzia  Dom  Pedro  Carlos  a  propósito  considerações 
meio  descabelladas,  mas  cheias  de  razão,  sobre  o  papel  e 
importância  da  marinha  que  salvara  a  monarchia,  ligava 
suas  partes  integrantes,  protegia  sua  defeza,  amparava  o 
commercio  e  fazia  conseguintemente  viver  o  Estado.  No 
emtanto  era  de  tal  ordem  a  condição  das  cousas  navaes  que, 
tendo  partido  a  concertar  na  Inglaterra,  logo  apoz  a  che- 
gada da  familia  real  ao  Rio  de  Janeiro,  uma  nau,  uma 
fragata  e  um  brigue,  a  nau  perdeu-se  em  Cadiz,  a  fragata 
deu  á  costa  em  Cabo  Verde,  e  o  brigue,  com  a  primeira  tem- 
pestade que  apanhou,  deitou  a  artilheria  ao  mar  porque 
lhe  tinham  mettido  a  bordo  peças  de  calibre  mais  pesado  do 
que  o  devido. 

D'outra  feita,  mandaram  do  Rio  uma  nau  á  Bahia  e 
Pernambuco  buscar  o  dinheiro  recolhido  nos  seus  cofres, 
verificando-se,  no  regresso,  que  a  despeza  da  viagem  íôra 
superior  *  ás  sommas  transportadas.  Os  naufrágios  e  perdas 
por  capturas  occorriam  tão  frequentemente  que  Hippolyto 
escrevia  em  1810:  ''brevemente  nos  pouparão  o  trabalho  de 
noticiar  mais  percas  desta  natureza  porque  já  não  haverá 
esquadra  em  que  fallar".  Continuou,  porém,  tanta  a  desidia 


1 


DOM  JOÃO  VT  NO  BRAZIL  743 

que  em  1820  narrava  IVIaler  (i)  que  os  52  contos  men- 
saes  attribuidos  ao  IVIinisterio  da  Marinha  não  eram  pon- 
tualmente entregues,  antes  muitas  vezes  se  derivavam  para 
outras  applicações,  sendo  até  com  aquelle  dinheiro  pago  um 
picadeiro  que  o  Principe  Real  mandou  construir  perto  de 
São  Christovão. 

Peiores  do  que  o  desleixo  appareciam  os  abusos  not 'cia- 
dos pelos  correspondentes  do  Correio,  para  os  quaes  consti- 
tuia  este  uma  preciosa  válvula  de  desabafo.  Ora  são  dividas 
mandadas  pagar  entre  partes  por  execução  militar,  sem  pro- 
cesso  judicial;  ora  um  individuo  mandado  prender  por  ter 
movido  a  outro  um  pleito  em  justiça;  ora  uma  camará  mu- 
nicipal reprehendida  e  desauctorada  por  haver  representado 
contra  uma  nomeação  do  governador.  Para  os  crimes  dos 
governadores  militares,  d'aquelles  que  se  mostravam  verda- 
deiros régulos,  não  havia  de  facto  punição  nas  leis:  cha- 
mavam-se  excessos  de  jurisdicção  e  o  soberano  os  censurava 
"em  palavrosas  cartas  regias,  dando-se  como  mal  servido  por 
aquelles  desastrados  agentes,  aos  quaes  não  cabiam  todavia 
penalidades  pelos  delictos  commettidos.  A'  parte  prejudicada 
restava  intentar  acção  de  perdas  e  damnos,  o  que  era  sempre 
— então  mais  ainda  do  que  hoje — um  processo  difficil,  dis- 
pendioso e  de  resultados  problemáticos.  Não  se  deveriam 
entretanto  qualificar  de  crimes  privados,  antes  de  crimes 
públicos,  ''excessos  de  jurisdicção"  que  abrangiam  prisão, 
sequestro  e  quejandas  violências. 

Melhor  em  todo  caso  do  que  viver  reprimindo-os,  fora 
prevenir  taes  attentados  por  meio  de  uma  completa  mudança 

(1)  Aroh.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


744  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

no  systema  colonial  de  administração,  que  continuou  quasi 
o  mesmo  para  as  capitanias  depois  da  trasladação  da  corte, 
apenas  sendo  em  certa  medida,  sensivelmente,  porém,  alte- 
radas— até  a  Independência  que  veio  revolucionar  tudo — 
as  condições  do  governo  na  capital.  Justificava-se,  pois,  ple- 
namente o  que  dizia  em  sessão  um  membro  da  Camará  dos 
Communs,  que  o  apodrecido  governo  de  Portugal  passara 
para  o  Brazil,  afim  de  continuar  os  mesmos  prejuizos  e  igno- 
rância que  já  não  pudera  sustentar  na  Europa. 

E'  porém  de  justiça  registrar  que  o  alvará  de  lO  de 
Setembro  de  1811,  no  intuito  de  melhorar  esse  estado  de 
cousas  tradicional,  mandou  estabelecer  nas  capitães  dos  gover- 
nos e  capitanias  dos  dominios  ultramarinos,  juntas  cuja 
missão  era  resolver  aquelles  negócios  que  antes  se  expediam 
pelo  recurso  á  Meza  do  Desembargo  do  Paço,  localizando  se 
portanto  mais,  em  beneficio  das  partes,  a  distribuição  da 
justiça  e  contrastando-se  de  algum  modo  a  tyrannia  dos 
governadores. 

O  mal  era  comtudo  mais  fundo  e  o  não  podiam  curar 
meras  mudanças  de  expediente.  O  poder  continuava  absor- 
vente e  na  própria  corte  imperava  uma  baixa  cortezanice 
Para  formar  uma  idéa  do  grau  de  lisonja  de  que  apparecia 
indelevelmente  colorida  a  attitude  dos  vassallos  para  com  a 
coroa,  basta  attentar  na  linguagem  dithyrambica  dos  pane- 
gyricos  económicos  de  Silva  Lisboa,  em  que  cada  melhora- 
mento, por  mais  simples — a  installação  de  uma  typographia 
ou  a  creação  de  um  curso  commercial — se  descreve  como  uma 
graça  celeste,  e  no  exaggero  repugnante  de  certas  allocuções, 
como  a  dos  cavalleiros  de  Malta  delegados  para  agradece- 
rem a  Dom  João  um  elogio  publicamente  feito  aos  serviços 
prestados  pela  Ordem  durante  as  invasões  francezas,  na  qual 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  745 

O  Regente  foi  tratado  sem  pejo  de  "emanação  a  mais  pura 
da  essência  divina".  E  praticamente  assim  era,  pois  que  os 
avisos  expedidos  por  ordem  sua  tinham  força  de  lei  e  valia 
suprema. 

Si  por  parte  dos  agentes  da  auctoridade  havia  o  desco- 
nhecimento dos  direitos  e  bens  individuaes,  e,  nas  suas  rela- 
ções com  os  governados,  falta  de  responsabilidade  efficaz, 
pechas  que  ao  tempo  não  eram  somente  portuguezas,  appa- 
recendo  igualmente  communs  os  rigores  policiaes,  não  havia 
menos  falta  de  segurança  e  probidade  na  gestão  dos  dinhei- 
ros públicos.  Ao  cabo  de  dez  annos  de  residência  da  corte 
portugueza  no  Brazil  escrevia  Maler  para  França  ( i )  que 
as  finanças  do  novo  Reino  se  achavam  na  mais  desgraçada 
situação,  drenado  o  thesouro  e  esgotados  todos  os  expedientes 
e  as  meias  medidas.  O  encarregado  de  negócios  francez,  na 
sua  constante  opposição  á  expedição  de  Montevideo,  consi- 
derava o  custeio  do  exercito  de  Lecor  e  da  estação  naval  do 
Prata  as  razões  capitães  d'esse  atrazo  financeiro,  a  que  era 
difficil  fazer  frente;  mas  na  verdade  podiam-se-lhe  apontar 
causas  múltiplas. 

O  contrabando  era  muito  espalhado,  e  n'uma  escala 
tão  avultada,  que  chegava  Hippolyto  ao  ponto  de  escrever 
que  mais  proveitoso  seria  arrendar-se  a  administração  das 
alfandegas  do  que  cobrar  o  governo  directamente  as  taxas. 
D'essas  alfandegas  desfalcadas  pelos  roubos  dos  negociantes, 
dos  despachantes  e  dos  conferentes,  mandava  no  emtanto  o 
governo  do  Rio  consignar  em  1811  na  proporção  de  60,  40 
e  20.000  cruzados  para  as  alfandegas  da  Bahia,  Pernambuco 
e  Maranhão  respectivamente,  a  quantia  de   120.000  cruza- 


(1)    Oífkio  de  23  de  Dezeiubro  de  1817,  no  Arch.  do  Min.  dos 
Neg.    Est.    de  França. 

D.  J.  —  47 


746  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

dos  annuaes  como  garantia  do  serviço  de  juros  e  amortiza- 
ção de  um  empréstimo  de  dous  milhões  de  cruzados,  juro  de 
5  por  cento,  que  se  mandava  aos  Governadores  do  Reino 
diligenciassem  obter  no  paiz  para  soccorrer  a  miséria  parti- 
cular proveniente  da  occupação  estrangeira  e  acudir  ás  de- 
vastações causadas  pelas  incursões  francezas. 

Em  compensação,  ou  talvez  mais  como  prolongamento 
d'aquella  medida  protectora  dos  vassallos  europeus  da  monar- 
chia,  publicavam-se  editaes  convidando  artifices,  especial- 
mente de  certas  e  determinadas  profissões,  a  emigrarem  para 
o  Brazil  e  ahi  se  estabelecerem. 

Dir-se-hia  que  a  seriedade  timbrava  em  não  comparecer 
em  um  só  dominio  administrativo  e  em  mostrar-se  incompa- 
tível com  essa  politica  mesquinha,  de  pequenos  embaraços  e 
grandes  difficuldades  para  tudo,  que  era  a  dominante  e 
confundia  a  meticulosidade  com  a  fiscalização  e  a  oppressão 
com  a  gravidade.  Em  departamento  algum  eram,  porém, 
os  regulamentos  fiscaes  tão  draconianos  (i)  quanto  no  dis- 
tricto  dos  diamantes,  no  Serro  do  Frio,  e  ahi  mesmo  a  cada 
passo  se  illudiam. 

Conta  Mawe  (2)  que  lá  foi,  o  primeiro  d'crjtre  os 
estrangeiros,  com  permissão  muito  especial  de  Linhares, 
escoltado  por  dous  soldados,  que  pensava  não  poder  pôr  a 
vista  sobre  outros  diamantes  alem  dos  do  Thesouro,  por 
áerem  todos  monopólio  da  Coroa,  servindo  uma  parte  para 
fazer-se  com  o  producto  em  Londres  o  serviço  do  emprés- 
timo; mas  que  verificou  com  grande  surpreza  que  "se  troca- 


(1)  Aliás  na  própria  Inglaterra  existia  então  muita  severidade 
na  manutenção  do  segredo  das  suas  manufacturas  e  fabricas,  sendo 
mesmo  prohibid^  a  exportação  de  certas  machinas  agrícolas,  não  so 
industriaes . 

(2)  Traveis  in   the  interior  of  Brazil. 


I 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZtL  747 

vam  diamantes  por  todas  as  cousas  e  eram  mais  correntes  do 
que  a  moeda".  (  i  )  Os  navios  de  guerra  ingleses  sabia-se 
que  traziam  de  volta  mais  diamantes  por  conta  de  parti- 
culares do  que  por  conta  do  governo. 

O  mesmo  acontecia  com  os  outros  monopólios  da  Coroa. 
O  contrabando  do  pau-brazil  era  constante  pelo  Cabo  Frio 
e  praticava-se  em  avultada  escala  mesmo  dentro  dos  arrecifes 
de  Pernambuco.  A  frequência  e  insistência  com  que  nos  alva- 
rás e  leis  do  tempo  se  falia  da  escrupulosa  indagação  que 
devia  presidir  á  escolha  dos  funccionarios  encarregados  de 
executar  uns  e  outras,  e  se  trata  da  minuciosa  fiscalização 
que  era  necessário  exercer  sobre  as  extorsões  e  venalidades,  são 
a  melhor  prova  do  quanto  estas  abundavam. 

Por  isso,  por  as  não  favorecer  o  meio,  muitas  tentativas 
da  administração  falharam  e  pela  maior  parte  se  adultera- 
ram, mau  grado  a  iniciativa  de  Linhares,  cujo  principal  de- 
feito era  não  ser  correspondida,  nem  sequer  comprehendida, 
e  a  largueza  de  vistas  de  Barca,  que  em  outros  tempos  che- 
gara a  ser  apodada  de  traição,  não  lhe  havendo  faltado  vitu- 
périos porque  a  invasão  do  território  portuguez  pelos  Fran- 
cezes  se  deu  mais  promptamente  do  que  se  calculava,  e 
Araújo  era  conhecido  como  eivado  de  certo  liberalismo, 
necessariamente  francez. 


(1)  E'  curioso  o  que  conta  Ilippolyto  no  Correio  d'este  conhe- 
cido viajante,  cuja  obra  foi  muito  lida  e  traduzida  para  varias  línguas. 
Ao  que  parece,  não  passava  Mawe  de  um  joalheiro  de  Londres  que, 
fi  sombra  de  saher  fazer  manteiga,  teve  artes  de  conseguir  a  protecção 
de  lord  Strangford  e  do  conde  de  Linhares  e  logrou  visitar  -com  todas 
as  attenções  e  isenções  o  districto  diamantino,  sem  mesmo  se  lhe  exa- 
minar no  regresso  a  bagagem.  O  que  vinha  nos  alforjes  constou  mais 
tarde  dos  seus  annuncios  nas  gazetas  de  Londres  e  da  sua  montra 
no  Strand.  Em  todo  caso,  pelo  que  mesmo  se  deprehende  da  sua  cor- 
respondência com  Funohal,  era  Mawe  entendido  em  engenharia  e  â  sua 
obra,  a  primeira  das  publicadas  sobre  Minas  Geraes  fora  de  Portugal, 
offerece  muito  interesse. 


748  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZlf. 

Aquella  corrupção  na  applicação  das  idéas  era  um  mal 
que  vinha  de  traz  e  que  se  prolongaria  pelo  tempo  adiante. 
Esforços  individuaes,  isto  é,  a  resistência  poderosa  da  hones- 
tidade pessoal  de  certos  governantes  podia,  servindo  de 
dique,  contrarial-a,  impedil-a  momentaneamente  de  mani- 
festar sua  influencia  devastadora,  mas  a  onda  refluia  somente 
para  melhor  se  arremessar,  quando  não  carregava  no  reti- 
rar-se  boas  intenções  e  projectos  felizes. 

Entre  muitas  outras  cousas  excellentes,  tentou  o  go- 
verno de  Dom  João  VI  implantar  no  Brazil  a  immigração 
estrangeira  que  espiritos  desannuviados  como  o  de  Hippolyto 
preconizavam,  com  vista  em  adiantar  a  agricultura  e  as 
artes,  povoar  o  vastissimo  paiz  quasi  deserto,  melhorar  tanto 
no  physico  como  no  moral,  inoculando-lhe  sangue  europeu 
e  idéas  européas,  a  espécie  humana  que  n'elle  habitava,  e 
preparar  por  fim  a  abolição  da  escravatura. 

Linhares  tivera  um  projecto  de  colonização  chineza, 
com  o  fito  sobretudo  de  ir  substituindo  o  braço  servil  cuja 
fonte  a  Inglaterra  ameaçava  estancar  pela  suppressão  do 
trafico.  Talvez  o  objectivo  do  governo  do  Rio  fosse  — 
segundo  julgavam  as  instrucções  dadas  ao  coronel  Maler 
por  occasião  da  sua  nomeação  para  o  Brazil  (i) — nacionali- 
zar alguns  estabelecimentos  de  industria,  mais  mesmo  do  que 
adquirir  cultivadores. 

A  França  preferia  naturalmente  que  qualquer  corrente 
emigratoria  se  dirigisse  para  as  suas  colónias,  mas  não  dei- 
xava de  encarar  a  hypothese  da  escolha  recahir  de  prefe- 
rencia no  Brazil,  insinuando  que  o  governo  portuguez  devia 


(1)  Arch.  do  Min.  dos  N^g.  Eet.  de  Framca- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  749 

animar  por  meio  de  concessões  de  terras  ou  outras  vantagens 
a  colonização  européa.  E  tanto  parecia  esse  governo  dis- 
posto a  entrar  em  tal  ordem  de  idéas  que  fez  em  Cantagallo 
uma  experiência  de  colonização  suissa,  denominando-se  o 
lugar  Nova  Friburgo. 

Todos  sabem,  porém,  que  o  ensaio  foi  na  pratica  um 
fiasco.  Antes  mesmo  da  chegada,  pois  que,  devido  ás  ruins 
accommodações  a  bordo  e  falta  de  disposições  tomadas  em 
prol  dos  immigrantes  pelo  que  diz  respeito  á  hj^giene,  8o  ou 
perto  d 'isso  morreram  durante  a  travessia.  Friburgo  vingou 
como  aprazivel  estação  de  verão,  mas  agricola  e  economica- 
mente ficou  uma  colónia  nulla.  Debret  ( i )  particulariza  as 
razões  do  mallogro,  devido  no  seu  entender:  i°  a  que,  dos 
fundos  destinados  pelo  governo  para  o  conveniente  estabe- 
lecimento dos  immigrantes,  alguns  foram  distrahidos,  ape- 
zar  da  commissão  nomeada  especialmente  para  superinten- 
der sua  applicação;  2-  a  extravios  e  roubos  occorridos  por 
occasião  do  transporte  dos  objectos  de  propriedade  dos  colo- 
nos, entre  elles  utensilios  indispensáveis  de  lavoura,  que  ti- 
nham vindo  em  caixotes  demasiado  volumosos  para  serem 
carregados  ás  costas  de  mulas,  tornando-se  preciso  abril-os 
afim  de  dividir  os  fardos;  3^  á  falta  de  previsão  administra- 
tiva revelada  na  escolha  infeliz  do  local  comprado  por  bom 
preço  n'uma  difficil  região  montanhosa,  do  que  resultou  mais 
tarde  ficarem  os  colonos  privados,  por  falta  de  communica- 
ções  fáceis,  da  exportação  dos  seus  productos  agricolas, 
quando  havia  em  Minas  e  São  Paulo  tanta  extensão  des- 
occupada,  accessivel  e  de  clima  igualmente  sadio  e  agra- 
dável. 

(1)   Yoyage  pittoresque. 


750  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Além  de  tudo  havia  a  circumstancia,  referida  por  Pai- 
mella,  (i)  de  não  ser  a  composição  da  colónia  o  que  se 
devia  desejar,  apparecendo  o  numero  de  velhos,  de  crianças 
e  de  mulheres  excessivo  em  comparação  com  o  dos  adultos 
masculinos.  Aliás,  na  informação  de  Maler.  (2)  nem  sequer 
se  achavam  então  as  terras  promptas  para  a  distribuição  em 
lotes,  de  sorte  que  annos  depois  estavam  ainda  os  bemaven- 
turados  colonos  comendo  dos  viveres  que  o  governo  diaria- 
mente lhes  fornecia. 

Melhor,  ainda  assim,  aquella  inferioridade  numérica, 
de  homens  úteis  para  o  cultivo  dos  campos,  do  que  o  rebu- 
talho  das  galés  de  Nápoles,  cedido  á  corte  do  Rio  para  ser 
collocado  como  elemento  de  trabalho  no  Brazil  e  de  que  o 
cônsul  geral  Lesseps  (3)  menciona  a  passagem  por  Lisboa, 
em  duas  fragatas  napolitanas,  de  200,  dos  3.000  promettidos. 
Era  um  género  cuja  exportação  não  podia  prudentemente 
effectuar-se  por  atacado. 

Sorte  mais  prospera  do  que  os  Suissos  tiveram  os  nume- 
rosos immigrantes  da  mesma  raça  portugueza  que  affluiam, 
engajados  ou  mais  commummente  espontâneos,  entre  elles 
os  novos  casaes  de  Açorianos  mandados  expressamente  vir 
para  fomento  da  agricultura  e  espalhados  da  Bahia  para  o 


(1)  Corresjp.  da  Leg.  em  Londres,  bo  Arch.  do  Min.  das  Rei. 
Ext.  Este  officio  foi  escripto  quando  arribou  á  costa  ingleza  um  dos  na- 
vios que  transportavam  os  suissos  contratados  por  um  agente  de  nome 
Grasset. 

(2)  Officio  de  26  de  Janeiro  de  1820,  no  Arch.  do  Min.  dos 
Nog.  Est.  de  Franíja.  "II  se.rait  impossible.  escreve  o  encarregado  de 
negócios  de  França,  de  faire  plus  de  depense  pour  une  colonie  quel- 
conque,  ot  on  ne  peut  étre  plus  ingenieux   à  en  perdre  le  fruit." 

(3)  Officio  de  5  de  Abril  de  1820,  iUdem, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  751 

Sul,  fornecendo-se-lhes  instrumentos  de  lavoura,  sementes, 
casas  de  habitação,  gado  para  os  trabalhos  ruraes  e  subsidio 
pecuniário  para  sustento  dos  dous  primeiros  annos.  Favor 
superior  a  estes,  foi-lhes  outorgado  e  aos  filhos,  e  bem  assim 
aos  casaes  que  de  futuro  se  transportassem  dos  Açores  para 
o  Brazil,  isenção  do  recrutamento  para  a  tropa  de  linha  e  do 
serviço  nos  corpos  de  milicias.    ( i ) 

A  communidade  de  lingua,  religião  e  origem  constituia 
uma  grande  vantagem  para  semelhantes  colonos,  tornava-os 
nacionaes  n'outro  continente,  quando  não  fossem  súbditos  de 
um  mesmo  monarcha.  Si  a  administração  publica  apresen- 
tava maculas  e  se  exercia  em  parte  por  vexações,  eram  umas 
e  outras  as  que  existiam  na  terra  donde  elles  tinham  emi- 
grado. Não  havia  surprezas  desagradáveis.  O  pesado  systema 
tributário  —  a  forma  mais  palpável  e  inilludivel  da  acção  go- 
vernamental— era  idêntico  ou  quasi,  porque  dentro  mesmo 
dos  limites  do  Brazil,  os  impostos  cobrados  directamente 
pelas  auctoridades  ou  arrecadados  pelos  contratadores  diffe- 
riam  apenas  nas  verbas  menos  importantes  entre  as  diversas 
capitanias,  as  quaes  entretanto  possuiam,  como  as  provin- 
cías  da  China,  cada  uma  sua  administração  financeira  inde- 
pendente. 

Da  mesma  forma  que  na  China  o  likin,  lançava-se  no 
Brazil  novo  imposto,  que  variava  de  um  para  outro,  no  regis- 
tro de  fronteira  de  cada  capitania,  de  sorte  que  por  exemplo 
uma  mula  do  Rio  Grande  do  Sul,  cujo  preço  primitivo  or- 
çava entre   12  e   15  piastras,  pagando  uma  porção  de  vezes 


il)   Decreto  de  16  de  Fevereiro  de  1813. 


752  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

um  direito  de  1.200  a  2.000  réis,  chegava  á  Bahia  ou  Per- 
nambuco pelo  dobro  ou  triplo  do  seu  valor.  ( i )  Só  depois  da 
partida  de  Dom  João  VI  foram  abolidos  com  os  monopólios — 
certamente  para  crear  um  novo  laço  de  união  entre  as  pro- 
vincias  ^  estes  direitos  de  entrada,  muito  productivos. 

O  contribuinte  brazileiro  dos  começos  do  século  XIX 
não  podia  dizer  que  andava  ligeiramente  taxado,  e  não  era 
por  certo  culpa  d'elle  si  a  receita  do  Estado  não  chegava 
para  as  despezas.  Além  do  dizimo  tradicional  de  todos  os 
productos  agricolas,  pescarias  e  gado,  que  pertencia  ao  mo- 
narcha  como  grão-mestre  da  Ordem  de  Christo;  dos  direitos 
aduaneiros  de  exportação  sobre  todos  os  géneros  (2)  ;  dos 
-direitos  de  importação  sobre  quaesquer  mercadorias  segundo 
a  pauta  já   conhecida,    (3)    tinha   aqueile   contribuinte   que 


(1)  Os  direitos  muito  consideráveis  e  repetidos  em  cada  alfan- 
dega de  fronteira,  sobre  os  bens  e  géneros  exportadas  de  uma  para 
outra  capitania,  eram  cobrados  segundo  o  peso,  tanto  para  as  substan- 
cias pesadas  como  o  chumbo  e  o  ferro,  como  para  artigos  leves  como  a 
seda.  A  arroba  pagava  de  entrada  em  Minas"  720  réis,  com  excepção 
do  sal,  que  d'antes  havia  constituído  estanco  rendendo  48  contos  por 
anno  e  passara  a  pagar  450  róis  por  arroba,  vindo  em  grande  parte 
.do  Reino  porque  o  produzido  em  Pei-nambnco,  Cabo  Frio  e  Rio  Grande 

aipenas  dava  para  o  consumo  local.  Cada  negro  importado  em  Minas 
pa-gava  a  taxa  de  7$800  réis  no  registro  de  fronteira  da  capitania. 
Cada  cabeça  de  gado  vaccum,  muar  ou  cavallar  que  atravessava  o  Rio 
Paralhybuna  pagava  2  patacas  (640  réis)  ;  cada  pessoa  1  pataca  (320 
réis).  Cada  passaporte  visado  custava  2  patacas,  e  os  vistos  exigiam-se 
freiquenteimente. 

(2)  Os  direitos  de  exportação  não  eram  os  mesmos  nos  diffe- 
rentes  iporrtos.  O  algodão  pagava,  em  1812.  600  réis  por  arrdba.  O  as- 
sucar  branco  pagava  no  Recife  60  réis  por  arroba  e  o  mascavado 
.*?0  réis.  No  Rio  todos  os  productos  embarcados  soffriam  a  taxa  uni- 
forme de  2  por  cento.  Os  direitos  cobrados  em  Pernambuco  regulavam, 
com  os  preços  alli  correntes,  6  a  10  por  cento  sobre  o  valor  do  género 
exportado.   N'outros  casos   a  proporção  era  comtudo   menor. 

Í8)  A  alfandega  do  Rio  de  Janeiro,  segundo  a  informação  de 
Hendcrson  (ob.  cit.)  que  no  Bi*azil  exerceu  funcções  consulares  e  lidava 
portanto  com  estes  algarismos,  rendia  nos  últimos  tempos  da  estada 
de  Dom  João  VI  .''•OO  a  600  mil  libras  esterlinas  por  anno,  das  quacs 
o  cammercio  inglez  pagava  mais  de  metad«. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  753 

entrar  para  o  Erário  com  uma  porção  de  impostos  especiaes 
que  comprehendiam  nos  últimos  annos  do  reinado,  salvo 
algumas  pequenas  modificações  locaes : 

I"  —  o  subsidio  real  ou  nacional,  representado  por  di- 
reitos sobre  a  carne  verde,  os  couros  crus  ou  curtidos,  a 
aguardente  de  canna  e  as  lãs  grosseiras  manufacturadas  no 
paiz  ; 

2"  —  o  subsidio  litterario,  para  custeio  dos  mestres-es- 
cola,  percebido  sobre  cada  rez  abatida,  aguardente  distillada 
e,  n'algumas  provincias  como  o  Maranhão,  sobre  a  carne 
secca  no  interior,  á  razão  de  i  pataca  por  6  arrobas ; 

3^  —  o  imposto  em  beneficio  do  Banco  do  Brazil^  de 
12.800  réis,  recahindo  sobre  cada  negociante,  livreiro  e  boti- 
cário, loja  de  ouro,  prata,  estanho  e  artigos  de  cobre,  tabaco, 
etc,  isentas  somente  as  lojas  de  barbeiro  e  sapateiro; 

4°  —  a  taxa  sumptuária,  também  em  beneficio  do  Banco, 
sobre   cada  carruagem   de   quatro   e   de   duas   rodas;    (i) 

5°  —  a  taxa  sobre  engenhos  de  assucar  e  distillações, 
maior  ou  menor  segundo  a  provincia;   (2) 

(5-  —  a  decima  do  rendimento  annual  das  casas  e  quaes- 
qver  immoveis  urbanos,  taxa  somente  cobrada  no  littoral  e 
lugares  mais  populosos  do  interior  e  que  não  attingia  propria- 
mente o  sertão ; 

7"  —  a  siza,  que  era  um  imposto  de  10  por  cento  per- 
cebido sobre  a  venda  das  casas  e  outros  immoveis  urbanos; 

8"  —  a  meia  siza,  que  era  um  imposto  de  5  por  cento 
percebido  sobre  a  venda  <le  um  escravo  que  fosse  negro  la- 
dino, isto  é,  já  tendo  aprendido  officio; 


(1)  No  Maranlião  este  imposto  ora  de  12  e  10,000  réis  re- 
sprcti  vãmente. 

(2)  No  Maranhão  a  taxa  era  de  3.200  réis  sol)re  cada  engenho 
de  moer  canua,  e  na   Bahia  de  4.000  réis  por  cada  alambique. 


754  DOM  JOÃO  VI,  NO  ERAZIL 

9^  —  os  chamados  novos  direitos^  representados  por 
uma  taxa  de  lO  por  cento  cobrada  ou  antes  tirada  dos  salá- 
rios dos  empregados  nos  departamentos  da  Fazenda  e  Jus- 
tiça. 

Afora  estes  impostos  geraes  e  outros,  que  ainda  eram 
muitos,  abrangendo  sellos,  foros  de  patentes,  direitos  de 
chancellaria,  taxas  de  correio,  sal,  sesmarias,  ancoragens,  etc, 
pesavam  sobre  o  contribuinte  os  impostos  particulares  cobra- 
dos pelos  magistrados  em  dados  lugares  e  que  entravam  para 
o  thesouro  local,  figurando  de  taxas  municipaes.   ( i ) 

Si  os  rendimentos  não  mais  correspondiam  aos  gastos 
públicos,  como  nos  bons  tempos  em  que  o  Rio  de  Janeiro  e 
outras  capitanias  tinham  o  direito  de  taxar-se  segundo  suas 
necessidades,  a  falta  estava  entretanto  muito  mais  no  regi- 
men do  que  na  economia  publica.  O  equilibrio  só  podia 
dar-se  com  reformas  radicaes  que  privassem  os  nobres  das 
commendas,  pensões,  bens  da  coroa  e  inúteis  empregos  lucra- 
tivos que  desfructavam  e  açambarcavam,  ao  passo  que  os 
magistrados,  que  sommavam  de  mais  como  apparecia  exces- 
siva a  multiplicidade  dos  tribunaes  e  juntas,  dependiam  não 
menos  servilmente  do  governo  sem  ao  menos  disporem  de 
boas  remunerações,  abertos  por  conseguinte  ás  peitas. 

Não  eram  porém  somente  as  despezas  da  Real  Casa, 
as  pensões  dos  fidalgos  e  os  desperdicios  da  famosa  ucharia 
que  avolumavam  e  desconcertavam  o  orçamento  do  Estado: 
as  falcatruas  e  sobretudo  as  incurias  administrativas  deviam 
em  grande  parte  responder  pela  angustia  financeira.  Tam- 
bém foi  a  má  orientação  do  Erário,  sem  contabilidade  seria 
nem   sequer   escripturação   que   prestasse,   que   desnaturou   e 


íl  I  D"ostc  gonei-o  ora  o  diroito  do  320  réis  pago  por  cada  ca- 
hpQa  de  fiado  exportada  da  comarca  de  Paracatú,  ou  o  de  80  réis  sobre 
cada  carga  de  algodão  exportada  da  villa  de  Cayteté. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  753 

acabou  por  destruir  a  excellente  creação  do  Banco  do  Brazil, 
pondo-o  em  condição  de  fallencia. 

Segundo  referem  Spix  e  Martius,  ( i )  antes  mesmo  da 
chegada  da  corte  portugueza  funccionava  no  Rio  um  banco 
nascido  da  união  de  alguns  dos  principaes  negociantes  e  capi- 
talistas da  praça,  effectuada  com  o  fim  de  contribuirem  para 
um  fundo  commum  em  proporção  com  as  notas  por  elles 
emittidas  debaixo  da  sua  garantia  conjuncta,  visto  a  moeda 
de  ouro  e  prata  em  circulação  não  ser  sufficiente  para  repre- 
sentar o  grande  volume  de  capital  em  acção.  Este  banco  par- 
ticular chegou,  no  dizer  dos  mesmos  viajantes,  a  gosar  de 
tanta  confiança  que  muitos  funccionarios  públicos  alli  col- 
locavam  seus  salários  e  os  proprietários  do  interior,  em  cor- 
respondência com  a  praça,  alli  depositavam  suas  economias. 

Foi  elle  o  embryão  do  Banco  do  Brazil,  o  qual  se  esta- 
beleceu por  acções,  ficando  cada  subscriptor  obrigado  a  adian- 
tar a  somma  por  que  se  inscrevia,  afim  de  fazer  circular 
papel  pagável  á  vista,  e  com  o  capital  assim  levantado  des- 
contarem-se  letras  pagáveis  a  prazo.  Dos  lucros  das  opera- 
ções bancarias  dividiam-se  pelos  accionistas  no  fim  de  cada 
anno  cinco  sextos,  retendo-se  o  ultimo  sexto  como  capital 
permanente  ou  fundo  de  reserva.  Além  d'estas  especulações 
privadas,  era  o  Banco  agente  do  governo  para  vender  no 
estrangeiro  os  bens  de  monpolio  e  para  cobrar  e  receber  ta- 
xas no  paiz,  pelo  que  se  habilitou  com  os  meios  de  sacar 
sobre  lugares  distantes,  percebendo  premio. 

Em  1814,  (2)  augmentou-se  o  capital  por  meio  de  no- 
vas acções  e  deu-se  preferencia  legal  nas  fallencias  aos  cré- 
ditos do  Banco  sobre  a  massa  fallida.  Os  favores  do  governo 


(1)  Reisc    in    lirasilicii. 

(2)  O  Banco  fora  fundado  em  ISOS,  sanccioiíando  se  os  novo:? 
nstatutos  a  12  de  Outubro. 


7õfi  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

e  o  êxito  das  transacções  emprebendidar.  n'i!.ma  terra  de 
crescente  prosperidade  material,  em  que  esse  estabelecimento 
era  o  único  instrumento  de  credito  commercial,  tendo  aliás 
servido  de  muito  para  disseminar  o  movimento  e  as  novas 
idéas  mercantis,  foram  causa  de  que  o  Banco  distribuisse 
em  1815,  11.60  0/0  pelos  primitivos  accionistas  (os  que  ti- 
nham direito  á  ultima  sexta  parte  ou  ao  total,  depois  do 
augmento  do  capital)  e  11.35  0/0  pelos  novos.  Km  1816  o 
dividendo  foi  de  16.45  0/0  e  em  181 7  attingiu  a  22.75  0/0, 
baixando  no  anno  immediato  a  17.85  0/0,  motivo  pelo  qual 
resolveu  o  governo  augmentar  os  privilégios  do   Banco. 

Desde  então  se  desdenhavam  os  lucros  pequenos  e  va- 
garosos, lavrando  já  fundas  a  febre  e  a  ganância  que  são 
caracteristlcas  da  actual  vida  bolsista  em  todo  o  mundo. 
Pelos  artigos  da  sua  fundação,  destinando-se  a  offerecer 
maiores  facilidades  ao  commercio,  o  Banco  obrigara-se  a 
descontar  effeitos  mercantis  á  taxa  de  6  0/0,  mas  não  se 
restringiu  a  essa  modicidade  de  ganho,  logo  que  descobriu 
que,  por  certos  canaes  e  agentes  particulares,  lograva  obter 
10,  12  e  15  0/0  em  empréstimos  cujas  garantias  nem  sempre 
eram  das  mais  seguras. 

O  governo  em  tudo  apadrinhava  o  Banco,  que  de  resto 
tinha  perfeito  direito  a  todas  as  attenções  officiaes  por- 
quanto suppria  as  necessidades  do  Estado,  algumas  vezes 
emprestando  sobre  penhores  ou  sobre  hypothecas  de  receitas 
futuras.  Não  é  mesmo  exaggerado  dizer  que  o  Banco  estava 
á  mercê  do  governo  que,  por  não  haver  garantia  formal 
de  espécie  alguma  nem  de  cousa  alguma,  se  apropriaria 
quando  quizesse  dos  seus  fundos  ou  recursos,  tornando  assim 
entretanto  illusorio  ou  impossível  o  solido  credito  de  tal 
estabelecimento. 


DOM  JOÃO  VI  NO  líIlAZTL  757 

De  facto  em  1821,  quando  a  corte  regressou  para 
Portugal,  retiraram-se  inopinadamente,  sem  a  menor  pre- 
caução, importantes  sommas  depositadas  e  até  diamantes  da 
coroa  -que  serviam  de  caução  a  empréstimos  realizados,  o 
que,  junto  com  os  infalliveis  desfalques  e  a  corrida  dos 
depositantes  que  abandonavam  a  terra  e  dos  que,  á  vista 
do  ágio  da  prata,  queriam  trocar  as  notas  por  metal,  fez  es- 
tremecer o  Banco  nos  seus  próprios  alicerces. 

Pelas  criticas  constantes  de  Hippolyto  sabe-se  que  a 
legação  em  Londres  funccionava  como  a  verdadeira  agencia 
financial  do  governo  do  Rio  ( i ) ,  constando  d'outra  banda, 
pela  correspondência  de  Funchal,  que  o  Erário  sacava  a  cada 
momento  sobre  a  legação,  sem  saber  si  ahi  existiam  ou  não 
sobras  dos  fundos  realizados  com  a  venda  dos  bens  de  mono- 
pólio da  coroa. 

A  corte,  com  o  seu  mechanismo  obsoleto  de  producção 
de  riqueza  e  o  seu  apparelho  de  sucção  da  energia  nacional 
em  beneficio  das  classes  privilegiadas,  era  na  verdade  o 
cancro  roedor  da  vitalidade  económica  do  paiz.  EUa  patro- 
cinava os  abusos  ou  pelo  menos,  como  escrevia  um  viajante 
da  epocha,  extendia  sobre  o  que  se  passava  um  véo  tão  es- 
pesso e  impenetrável  que  a  voz  popular  tendia  naturalmente 
a  exaggerar  esses  abusos,  que  eram  reaes. 

Assim  a  corte  acudia  aos  seus  dependentes  immediatos 
não  só  com  mezadas  e  cargos  rendosos,  mas  até  com  rações 
diárias  de  viveres,  as  quaes  não  eram  desdenhadas  mesmo  por 
pessoas  bastante   ricas.    As   despezas   da    ucharia   de    Dom 


(1)  Fimehal  entendia  convir  uma  administração  dos  contractos 
reaes  puramente  portugueza.  que  o  Correio  BraziUcn^se  dizia  ironica- 
mente andar  por  isso  em  mãos  de  negociantes  e  judeus  amigos  e  co- 
nhecidos do  embaixador,  (nn  vez  de  s<?r  confiada  à  representação  do 
Banco  do  Brazil. 


758  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

João  VI  ficaram  impressas  na  tradição  popular  e  são  ainda 
hoje  citadas  como  symbolicas  da  imprevidência  e  prodiga- 
lidade da  administração  da  Real  Casa.  No  anno  de  1818  — 
o  pormenor  é  sufficiente  —  consumiam-se  diariamente  no 
Paço  620  aves,  muito  mais  n'aquellas  rações,  cujo  valor 
subia,  o  das  mais  importantes,  a  500  francos  por  mez,  do 
que  na  alimentação  da  gente  mesma  do  palácio.  Para  se 
fazer  uma  melhor  idéa  do  desperdício,  pode-se  referir  que 
a  ração  diária  da  aia  do  Infante  Dom  Sebastião,  filho  do 
fallecido  Dom  Pedro  Carlos,  abrangia  3  gallinhas,  10  libras 
de  carne  de  vacca,  meia  de  presunto,  2  chouriços,  6  libras  de 
porco,  5  de  pão,  meia  de  manteiga  (que  era  muito  escassa 
no  Rio),  2  garrafas  de  vinho,  i  libra  de  velas,  i  de  assucar, 
café,  fructas,  massas  e  folhados,  legumes,  azeite  e  outros 
temperos  (i).  Nas  cocheiras  de  São  Christovão  cncontra- 
vam-se  uns  300  cavallos  e  muares,  e  outros  tantos  nas  do 
Paço  da  cida'de,  servindo-se  d'elles  os  fidalgos  e  outras  pes- 
soas por  qualquer  titulo  dependentes  da  corte  mais  do  que 
os  membros  da  familia  real  (2).  E  não  eram  poucos  esses 
dependentes  por  sobre  os  quaes  se  despejavam  profusamente 
as  honrarias,  chegando  a  enchente  fora  do  Paço,  ás  lojas  e 
aos  armazéns. 

O  rendimento  publico,  subindo  consideravelmente  pelo 
aggravamento  dos  impostos  e  sobretudo  pelo  desenvolvimento 
dos  recursos  e  expansão  da  vida  económica,  favorecera  os  gas- 
tos. Em  1808,  no  anno  da  chegada  da  familia  real,  a  re- 
ceita era  de  2.258  :i72$499;  em  1820,  no  anno  anterior  ao 


(1)  Louis  de  Freyclnet,  Yoyage  autour  du  monde  entrepris  par 
ordre  du  Roi,  execute  8ur  Ics  corvcttes  de  S.  M.  VUranie  et  la  Phy- 
sicknne  pendant  les  années  1817,  1818,  1819  et  1820.  Paris,  1827, 
tomo  I,  parte  I. 

(2)  Henúerson,  ob.  cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 


75Í) 


do  regresso  da  corte,  era  ella   de  9.715 :628$699,   mais   do 
quádruplo  por  conseguinte.    ( i ) 

,Não  havia  comtudo  dinheiro  que  chegasse.  Quando 
o  Rei  partiu  em  Abril  de  1821,  não  existia  em  caixa  o  bas- 
tante para  se  aprestarem  as  embarcações  da  esquadra.  Ape- 
zar  dos  agentes  da  corte  retirarem  do  Thesouro  publico  todo 
o  dinheiro  amoedado  e  os  diamantes,  e  bem  assim  recolherem 


(1)  Eis  n'um  succinto  quadro  comparativo,  resumido  da  cons- 
cienciosa obra  de  Freycinetj  a  importíiicia  das  principaes  verbas  nos 
dous  orçamentos  de  receita  : 

Orçamento  de  1808 

Rs. 

Rendimento    aduaneiro    (importações,    exportações    e 

taxas  de  consumo) 785  :0r)6$:J.j2 

Mesa  de  insipecção  (estanco  do  tabaco,  imposto  sobre 

aguas  ardentes,  monopólio  do  sal,  donativo  etc.)  .  .  144  :110$õ43 

Diversos  rendimentos  reaes    (pólvora  de  guerra,   an- 
coragem,   aguadia,    madeiras   de   construcção) 1  :a30.$640 

Obancellaria  (dáreitos  sobre  cargos,  sello  real,  etc.)..  2'»  :7."39.$5õ9 

Cobranças  feitas  pelo  erário  régio    (propinas,  dizimos, 

etc.)     l,-;4  :228.f300 

Receitas   arrendadias   e   estancadas,    correio,    subsidio 

litterario,   etc 79  :700$;íG2 

Receitas  extraordinárias    585  :942$558 

Receitas  diversas   (amoedr-ção,  etc.) 401  :981$011 

Orçamento  de  1820 

Rendimento  das  alfandegas 1.719  :762$0S4 

Estancos  e   monopólios 202  :859$9'39 

Casa  da  Moeda   (amoedaçílo,  equiparação,  etc.) 148  :101$487 

Receitas  diversas    (  correio,    registro,    desconto    nas 

tenças,  ipapel   sellado,    etc.) 3G4  :701$G81 

Cara:*  verde,  subsidio  litterario,  etc 167  :096.$G05 

Caixas  dcs  provincias 3.551  :47õ$981 

Receitas  extraordinárias   (caixa  dos  defunctos  e  au- 
sentes. Banco  do  Brazil,  etc.) 1.544  •.977$S:"^0 

Cunhagem  das  piastras  hesipanholas,  etc 3.956  :65õ$083 

^'■esta  ultima  verba  devem  certamente  achar-se  incluídas  as 
parcellas  bem  consideráveis  do  dizimo  e  do  quinto  do  ouro.  Tollenrre, 
verdade  é  que  sem  garantir  a  exactidão  dos  seus  cálculos,  porque  dizia 
elle.  nada  se  publicava  sobre  receita  e  despeza,  orçara  em  1817  o 
rendimento  do  Estado  em  3  00  milhões  de  francos  ou  40  milhões  de 
cruzados. 


760  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

os  fundos  conservados  nos  cofres  de  soccorro  do  hospício 
da  Misericórdia  e  dos  órfãos,  foi  preciso  que  o  visconde  do 
Rio  Secco  supprisse  os  300  contos  necessários  para  as  des- 
pezas  absolutamente  indispensáveis  d'aqu€lles  aprestos. 

O  Erário  devia  ao  Banco  do  Brazil  de  8  a  10  milhões 
de  cruzados  e  outro  tanto  ou  quasi  lhe  deviam  particulares, 
a  prr.ça  do  commercio,  o  cofre  da  policia,  etc.  A  Young, 
Finnie  e  Samuel,  trez  casas  inglezas,  devia  o  Thesouro  pu- 
blico 1.200  contos,  não  obstante  haver  a  alfandega  rendido 
50  0/0  mais  no  anno  anterior,  sem  fallni*  nas  sobras  da  Bahia, 
Maranhão  e  Pernambuco  donde  entretanto,  segundo  um 
correspondente  do  tempo,  tinham  ultimamente  chegado  re- 
cambiadas letras  no  valor  de  cerca  de  500  contos  (1). 

A  despeza  crescera  de  facto  consideravelmente:  de 
1 808  para  1 820  mais  do  que  quadruplicara  no  papel ;  na 
realidade  muito  mais,  quando  não  a  proporção  se  teria  man- 
tido entre  receita  e  despeza.  Subia  esta  no  anno  da  che- 
gada a  2.297 :904$099  e  no  anno  anterior  á  partida  a 
9.771  :iio$875.  (2)  As  verbas  que  maior  augmento  soffre- 
ram  foram,  segundo  indica  o  quadro  de  Freycinet,  as  das 
despezas  da  Real  Casa  e  as  da  defeza  nacional,  activada  esta 
pela  guerra  de   Montevideo  e  insurreição  de  Pernambuco. 


(4)   Carta  de  Arêas  a  Funchal  em  10  de  Março  de  1821.  Lata 
10  da  collecção  Linhares,  na  Bibl.   Nac. 

(2)      Eis  discriminadas  as  verbas  principaos  : 

Orçamento  de  1808 

Rs. 
Casa  Real    (entrando  a  ucharla  por  124  contos  e  o 
serr^iço  do  porteiro  da  camará  e  giiartía-joias  Lo- 
bato por  114  contos) 456  :724$059 

Exercito    454  :038$115 

Armazéns  reaee  e  da  marinha 603  :854$176 

Thesouro  real  (pensões,  soldos,  administrações,  obras 

publicas,    etc.) 633  :470$818 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  761 

Nem  a  administração  publica,  nem  os  trabalhos  públicos 
augmentaram  em  análoga  proporção,  antes  pouca  diffe- 
rença  denotam  de  um  para  outro  orçamento,  apezar  do  im- 
pulso tomado  pelo  paiz.  Ha  mister  admittir  que  os  resul- 
tados alcançados  sob  o  governo  directo  e  paternal  de  Dom 
João  VI,  por  mais  importantes  que  appareçam  quando  co- 
tejaldos  com  a  esterilidade  de  algumas  administrações  ante- 
riores, foram  em  muitos  casos  insignificantes,  ou  pelo  menos 
não  merecem  todas  as  louvaminhas  de  que  é  modelo  a 
chronica  do  padre  Luiz  Gonçalves,  e  toda  a  farfalhada  dos 
informes  officiaes. 

Nem  os  meios  empregados  permittiam  superiores  resul- 
tados, nem  era  possivel,  como  muito  bem  observa  Handel- 
mann,  n'um  império  de  semelhante  extensão  (elle  o 
appellida  monstruoso)  conseguir-se  realizar  n'um  abrir  e 
fechar  de  olhos  tanto  como  o  apregoado.  As  razões  do  grande 
escarcéo  feito  pelo  governo  do  Rio  da  sua  obra  civilizadora 
—  não  seria  maior  si  tivesse  praticado  maravilhas — foram 
dadas  por  Eschwege,  o  distinctissimo  engenheiro  allemão 
que  serviu  de  intendente  das  minas  de  i8lO  a  1821  e 
deixou  sobre  o  Brazil  paginas  de  fina  observação  e  notáveis 

Orçamento  de  1820 

Casa  Real  (entrando  a  ucharia  por  436  contos,  as 
degpezas  4o  porteiro  por  167  contos  e  contando  in- 
tendências   e    concertos    dos    palácios    re«es,    ca- 

pella,    etc.)  . 1.706  :035$630 

Exercito    1-670  :730$616 

Marinha    1034  :õ81$746 

Tensões    148  •.■598$923 

Thesouro  real  (excluídas  as  pensões  e  contando-se 
administrações,     tribimaes,     juntas,     professores, 

correio,     etc.) 447  :777$180 

Expediente  das   cortes   de  justiça,   etc... 163  :774$869 

Obras   Puiblicas 81  :540$716 

De9i>ezas    extraordinárias 788  :145$2:i7 

(Preycinot,   ob.   cit.) 

D.  J.  —  48 


762  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

estudos  scientificos:  em  primeiro  lugar,  o  Brazileiro  gosta 
de  fallar  por  hyperboles,  devendo  em  sua  terra  tudo  ser 
mais  gigantesco  e  prodigioso  do  que  nas  terras  alheias,  e  em 
segundo  lugar,  convindo  ao  Rei  e  aos  seus  ministros,  por 
óbvios  motivos  politicos,  que  se  acreditasse  geralmente  nas 
patranhas  (Aufschneidereien)  dos  seus  subordinados,  aca- 
bavam elles  próprios  por  acreditar  n'aquillo  que  procla- 
mavam. 

Segundo  a  fama  espalhada,  de  tudo  se  havia  cuidado  no 
novo  Reino  com  um  surprehendente  ef feito :  de  fabricas,  arte, 
navegação  dos  rios,  civilização  dos  Índios.  A  cultura  dera  pois 
passos  gigantescos.  Eschwege  ( i )  reduz  porém  alguns  d 'estes 
passos  á  medida  abaixo  da  commum.  Assim,  no  seu  testemu- 
nho, a  estrada  para  Minas  Geraes  por  São  João  d'El-Rei, 
pela  qual,  nas  expressões  officiaes  do  intendente  de  policia 
do  Rio  de  Janeiro,  podiam  galopar  em  fileira  cinco  seges, 
não  passava  de  uma  picada  aberta  no  matto,  que  a  vegeta- 
ção já  estava  de  novo  obstruindo  e  dava  passagem  difficil 
a   um  cavallo. 

A  canalização  do  Rio  Doce  e  a  franquia  da  provincia 
de  Minas  Geraes  ao  commercio  universal  por  essa  via  fluvial, 
pomposamente  annunciadas  pelo  governador  do  Espirito 
Santo,  Eschwege  as  reduz  ao  seguinte:  o  governador  carre- 
gara de  sal  algumas  canoas  que  com  extrema  difficuldade 
subiram  o  rio,  sendo  as  canoas  e  a  carga  postas  em  terra 
vinte  e  trez  vezes  afim  de  contornar  as  cachoeiras,  e  sof- 
frendo  a  gente  da  expedição  os  ferozes  ataques  dos  boto- 
cudos.  Chegadas  as  canoas  a  Minas  apoz  mil  perigos,  ven- 
deu-se  o  sal,  carregou-se  algum  algodão  e  iniciou-se  a  jor- 


(1)  Journal  von  BraMHen. 


BOM  JOÃO  VI^NO  BRA2IL  763 

nada  de  regresso  com  os  mesmos  riscos,  ao  ponto  de  nin- 
guém mais  se  abalançar  a  semelhante  commettimento,  bapti- 
zado solemnemente  de  abertura  da  navegação  para  Minas 
Geraes. 

Civilizar  duzentos  Puris  em  linguagem  official,  equiva- 
lia, na  chã  linguagem  de  Eschwege,  a  attrahir  duzentos  Ín- 
dios fora  das  suas  mattas  e  distribuil-os  como  gado  pelos 
que  careciam  de  escravos:  ao  cabo  de  um  anno,  a  maioria 
tinha  morrido  de  maus  tratos.  Tollenare  igualmente  falia 
de  indigenas  sujeitos  por  abuso  á  servidão,  observando  com 
graça  que  os  suppunham  mulatos  e  em  todo  caso  se  achavam 
tão  distantes  de  qualquer  auctoridade  que  não  saberiam  fazer 
valer  seus  direitos  legaes. 

Tanto  se  não  illudiam  no  emtanto  o  monarcha  e  seur 
conselheiros  sobre  o  alcance  de  muitas  das  reformas,  ás  quaes 
não  faltava  boa  intenção,  apenas  possibilidade,  nas  condições 
existentes,  que  tendo  Eschwege  escripto  um  relatório  sobre  a 
navegação  do  Rio  Doce,  em  que  desmentia  a  versão  optimista, 
recebeu  do  ministro,  a  quem  o  governador  mandara  aviso, 
uma  carta  autographa  dispensando-o  de  remetter-lhe  o  seu  in- 
teressante informe,  porquanto  já  tivera  pelo  governador  co- 
nhecimento do  conteúdo  d'elle.  A  actividade  do  circulo  su- 
perior da  administração  encontrava  para  concretizar-se  ob- 
stáculos insuperáveis  nas  circumstancias  naturaes  do  paiz, 
enorme,  despovoado  e  hostil,  na  indolência  da  pouca  gente  e 
não  menos  na  instabilidade  do  pessoal  dos  cargos.  Pondera 
por  isso  judiciosamente  o  historiador  Handelmann  que,  com- 
quanto  se  lograsse  insufflar  na  costa  uma  vida  mais  desafo- 
gada graças  ao  trafico  universal,  a  situação  tradicional  do 
interior  permanecera  sem  a  menor  alteração. 


764  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Não  era  porque  escasseassem  planos.  D.  Rodrigo  os 
havia  externado  por  atacado,  e  um  dos  seus  predilectos  fora 
justamente  o  das  communicações  pelo  sertão  —  "do  Pará 
com  Matto  Grosso  pelas  cachoeiras  do  Rio  Madeira  (i),  e 
do  Pará  com  Goyazes  pelos  Tocantins  e  Tapajoz  "  —  em 
que  meditava  muito  antes  de  vir  para  o  Brazil,  quando 
aconselhava  o  Principe  Regente  que  guarnecesse  de  tropas 
o  Pará,  colonizasse  com  soldados  e  degradados  a  linha  de 
continuidade  pelo  interior  e  protegesse  a  costa  com  uma 
marinha  ligeira  e  activa,  ao  mesmo  tempo  que  se  propagavam 
novas  culturas  "furtadas  habilmente  ao  governo  de  Ca- 
yenna"   (2). 

Sa'bemos  como  chammejava  a  imaginação  do  conde  de 
Linhares,  da  qual  escrevia  o  cônsul  Maler  ser  "plus  propre 
à  enfanter  et  à  adopter  toute  espèce  de  projets  qu'A  créer 
€t  múrir  les  moyens  d'exécution."  Exceptuada  porém  esta 
energia  quasi  negativa  pela  sua  precipitação,  o  que  ficava 
só  se  distinguia  pela  sua  despreoccupação  marroquina. 

Ninguém  deixou  descripções  mais  cruéis  da  adminis- 
tração do  Reino  do  Brazil  do  que  Maler  na  sua  corres- 
pondência official.  Quando  falleceu  o  conde  da  Barca,  que 
já  havia  muito  mal  podia  trabalhar.  Dom  João,  como  quem 
tivesse  ficado  cançado  com  Linhares  de  ministros  diligentes 
e  com  Barca  de  ministros  illustrados,  e  quizesse  de  então 


(1)  Trata-se  da  rota  seguida  de  penetração  buscaBdo,  cana  a 
de  São  Paulo,  a  convergência  em  Cuyabâ,  ou  melhor,  no  planalto  dos 
I*arecis.  "exprrissivo  (livortium  aqwarum  no  bello  dizer  de  Eucl.vdes 
da  Cunha,  de  ande  irradiam  caudaes  para  todos  os  quadrantes,  e  que 
teve.  em  pleno  contraste  com  este  caracter  physico  dispersivo,  uma 
funcção  histórica  unificadora  que  so  será  bí^m  comprehendida  quando 
o  espirito  nacional  tiver  robustez  bastante  pai-a  escrever  a  epapéa 
maravilhosa  das  Motíções.'' 

(2)  Carta  cit.  de  29  de  Dezembro  de  1801,  no  Arch.  Publ.  do 
Jlio  de  Janeiro . 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  765 

em  diante  possuir  o  exclusivo  da  iniciativa  (  i  ),  chamou  na 
pessoa  de  Bezerra  outro  paralytico  e  gottoso,  mas  d'esta 
vez  sem  notável  talento.  Parece,  commentava  um  dos  officios 
f rancezes  ( 2 ) ,  que  o  systema  da  corte  brazileira  se  funda  na 
crença  de  que  os  ministros  mais  inválidos  são  os  mais  ca- 
pazes. 

Pois  n'este  terreno  ninguém  conseguiria  levar  a  palma 
ao  Sr.  Bezerra.  **Depuis  plusieurs  années  son  corps  est  pres- 
que  entiérement  perclus  des  suites  d'une  paralysie,  il  souffre 
habituellement  de  la  goutte,  et  le  13  de  ce  móis  une  hemor- 
ragie  avait  fait  desesperer  de  ses  jours.  Tel  est,  Monseigneur, 
en  abrégé,  le  nouveau  fantôme  qu'on  place  à  la  tête  des 
affaires." 

O  ataque  de  paralysia  soffrido  pelo  conde  da  Barca 
na  noite  de  13  para  14  de  Jun'ho  de  181 7  (3)  reflectiu-se 
em  toda  a  vida  publica,  sustando  o  expediente,  immobili- 
zando  os  negócios  correntes.  Ninguém  fora  auctorizado  a 
assignar,  a  titulo  mesmo  provisório,  as  ordens  indispensá- 
veis, de  sorte  que  havia  navios  promptos  a  fazerem-se  de 
vela  e  que  não  podiam  sahir  do  porto,  estrangeiros  detidos 
e  em  favor  dos  quaes   não   podiam   seus  cônsules  reclamar, 


(1)  Jfi  quando  fora  Barca  nomeado,  informava  o  encarregado 
do  negocies  de  França  (Officio  cifrado  de  14  do  Outubro-  de  1815)  que 
a  saúde  do  novo  ministro  estava  arruinada  e  que'elle  apenas  se  po- 
deria entregar  a  um  trabalho  muito  moderado.  O  ministério  entre- 
tanto se  comipuntia  n'essa  occasião  de  Bai-cn  e  de  Aguiar,  outro  vale- 
tudinário. O  Príncipe  Regente  assim  experimentava  de  voz  o  seu  go- 
verno independente  de  influxos  poderosos,  absolnto  e  paternal. 

(2)  Officio  de  23  de  Junho  de  1817,  no  Arch.  do  Min.  dos  Neg. 
Est.  de    Fi-^ança. 

Ci)  Barca  morreu  a  21  de  Junho  ás  8  horas  da  tarde,  enter- 
rando-se  na  noite  de  22.  Maler  assistiu  ao  funeral,  communic.mdo 
(Officio  citado  de  2H  de  .Tunho)  que  "do  corpo  diplomático  apenas 
.se  encontrara  no  sahimento  com  o  enviado  dos  Estados  Unidos,  o  qual 
durante  a  gerência  do  condj  uunca  Uie  cruzara  o  bateate." 


766  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

passageiros  de  malas  feitas  sem  alcançarem  seus  passaportes, 
e  o  próprio  paquete  embargado  somente  pela  impossibilidade 
de  obter-se  uma  firma  ( i ) .  A'  voz,  ao  appello  de  confiança 
que  n'esse  momento  lhe  dirigiu  o  seu  Principe,  Mr.  Bezerra, 
escreve  Maler,  parece  reanimar-se,  levanta-se  e  começa  a 
assignar,  mas  á  quinta  assignatura  sobrevem-lhe  um  violent3 
ataque  de  gotta  e  Mr.  Bezerra  é  QÍ)rigado  a  metter-se  na 
cama. 

Não  admira,  em  taes  condições,  que  fizessem  nove 
mezes  que  se  não  rompiam  os  sellos  da  correspondência  com 
os  tribunaes  de  Lisboa  e  das  possessões,  e  não  sei  quanto 
tempo  que  se  não  verificavam  e  visavam  as  contas  do  Real 
Thesouro  (2).  Também  não  podia  ser  mais  embaraçada  a 
situação  do  Thesouro:  melhor  era  mesmo  não  tentar  esclare- 
cel-a.  As  suas  operações  faziam-se  difficilmente,  descontando- 
se  suas  letras  a  uma  taxa  menos  favorável  que  as  do  commer- 
cio,  e  pejando  a  praça,  sem  serem  satisfeitos,  os  saques  de 
Montevideo  para  sustento  do  exercito. 

Nem  cabia  a  culpa  exclusivamente  á  expedição  do  Rio 
da  Prata,  si  bem  que  custasse  perto  de  milhão  e  meio  de 
francos  por  mez,  porque  já  antes  da  aggressão  contra  os  do- 
minios  hespanhoes  não  era  prospero  o  estado  do  Erário.  A 
descripção  a  propósito  feita  por  Maler  corresponde  exacta- 
mente ás  conclusões  que  podemos  tirar  da  leitura  combinada 
dos  viajantes  estrangeiros  e  dos  publicistas  nacionaes,  e  tem 
o  cunho  de  official. 

Explica  o  consciencioso  funccionario  francez  (3)  : 
"Os  numerosos  vicios  da  administração  parecem-me  consti- 


(1)  Ofificio  de  18  de  Jiunho  de  1817.  Não  só  não  havia  desde 
12  de  Junho  o  mais  insignificante  despacho  de  paipeis,  como  Barca,  ao 
adoecer  de  morte,  já  não  via  o  Rei  desde  alguns  dias. 

(2)  Officio   cit.    de   2.3   de   .Junho   de    1817,   ibidem. 

(3)  Officio  de  13  de  Julho  de  1818,  ibidem. 


DOM  J^OlO  VI  NO  BRAZIL  767 

tuir  os  primeiros  motivos  da  penúria;  por  causa  de  uma 
infinidade  de  abusos  os  rendimentos  públicos  escoam-se  em 
parte  nos  bolsos  dos  que  os  percebem ;  a  fraude  outrosim 
provocada  pela  elevação  dos  direitos  aduaneiros  mais  pre- 
judica a  cobrança;  despezas  na  realidade  módicas  sobem  a 
sommas  consideráveis  graças  á  improbidade  dos  que  se 
acham  d'ellas  encarregados;  a  nobreza  que  acompanhou  o 
Principe  é  pobre  e  vive  do  thesouro,  que  a  chegada  da  Ar- 
chiduqueza,  o  casamento  do  Principe  Real  e  a  coroação  de 
S.  M.  acabaram  de  esgotar.  A  simplicidade  do  monarcha 
( I )  e  sua  familia,  traduzindo-se  em  gostos  e  hábitos  con- 
sentâneos, não  impede  que  sejam  muito  consideráveis  os 
gastos  da  sua  Casa  porque  a  desordem  e  má  fé  são  análogas 
nas  suas  despezas  particulares  ás  que  lavram  nas  despezas 
geraes  do  Estado.  Tudo  isto  explica  o  phenomeno  da  geral 
situação  folgada  dos  commerciantes  e  dos  empregados  do 
governo,  ao  lado  da  pobreza  do  Estado  e  dos  grandes.  De 
resto,  um  departamento  que  foi  dirigido  provisoriamente 
durante  annos  pelos  senhores  de  Aguiar,  de  Araújo  e  Be- 
zerra, não  pode  senão  resentir-se  longamente  do  langor  e 
enfermidades  d'esses  trez  ministros,  e  devo  ajuntar  que 
n'este  instante  os  fundos  se  acham  por  forma  tal  hauridos 
que  o  Thesouro  não  offerece  em  pagamento  mais  do  que 
letras  sobre  a  alfandega,  a  seis  mezes  de  prazo." 

São  as  mais  repetidas  na  correspondência  de  Maler  as 
referencias  ao  estado  de  anemia  do  erário  e  ao  desconcerto 
das  finanças.  Como  sempre  acontece,  o  governo  recorria  a 
medT9as  arbitrarias  e  apezar  d'isso  anodinas,  quando  o  se- 


(1)  Dom  .Toão  VI  era  até  muito  económico  e,  nos  seus  cofres 
particulares,  amontoavara-se  pilhas  de  moedas  de  ouro.  Também,  ao 
emigrar  para  o  Rio,  levara  a  corte  nas  suas  arcas  metade  do  numerá- 
rio em  circulação  no  Reino. 


768  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

gredo  -do  restabelecimento  do  credito  consiste  invariavel- 
mente na  economia  e  boa  ordem  na  fazenda.  Assim,  um  de- 
creto real  prohibiu  a  sabida  de  moeda  metallica  do  Rio 
para  as  outras  provincias,  sob  pena  de  confisco  e  mais  dis- 
posições da  lei  contra  os  desencaminhadores  de  fundos  pú- 
blicos, com  o  fim  de  valorizar  as  letras  e  notas  do  Banco 
do  Brazil,  cabido  em  depreciação  porque  o  governo  d'abi 
retirava  o  dinheiro  que  queria  {y  puisait  àpleines  mains) . 

Maler  assim  pbilosophava  sobre  o  caso  (i):  **Quando 
todo  o  ouro  e  toda  a  prata  em  moedas  da  America  Meri- 
dional se  concentrassem  no  Rio  de  Janeiro,  sem  boa  ordem 
poucas  entraria  no  Thesouro  Real,  e  sem  confiança  nenhumas 
na  caixa  do  Banco." 

O  decreto  real  sobre  o  Banco  do  Brazil,  expedido  por 
occasião  do  regresso  da  corte,  depunha  muito  contra  a  eco- 
nomia da  sua  administração,  mas  Maler  observa  sensata- 
mente (2)  que  os  rendimentos  do  Brazil  tinham  considera- 
velmente augmentado  e  que  tinham  sido  precisas  uma  de- 
sordem e  uma  prodigalidade  sem  limites  para  chegar  a  esse 
deficit  e  para  haver  ao  mesmo  tempo  arruinado  o  credito  do 
Banco.  "Nenhuma  grande  obra  publica  se  emprehendeu ; 
nenhuma  estrada  de  ligação  entre  as  províncias  do  interior 
se  abriu  (3)  ;  a  própria  capital  apenas  gosa  de  uma  illumina- 
ção  parcial.  Teriam  creado  uma  poderosa  marinha  ?  Não, 
deixaram  imperdoavelmente  apodrecer  os  8  navios  que  trans- 
portaram o  Rei  e  sua  familia  para  estas  regiões  e  de  ha  13 
annos  para  cá  só  se  construio  um  navio,  e  este  mesmo  em 
Lisboa  e  não  no  Brazil  (4).  N'uma  palavra  uma  única  em- 


(1)  Off.  de  6  de  Dezemíbro  de  1H18,  ihulem. 

(2)  Off.  de  31  de  Março  de  1821.  ibidem. 

(3)  Maler  refere-se,   é  claro,   a  commuBicações  regulafes  e   per- 
manentes. 

(4)  Esta  asserção  merece,  como  sabemos,  impugnação. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  769 

preza  dispendiosa  conheço  que  é  a  invasão  de  Montevideo  e 
sobre  ella  não  poderia  mudar  de  opinião  —  os  fructos  que 
os  aggressores  colherão,  serão  amargos." 

A  pintura  é  quiçá  exaggerada,  sem  que  deixe  porém  de 
ser  reconhecivel  o  seu  claro  fundo  de  verdade.  Descripção 
mais  cáustica,  si  possivel,  do  B-razil-Reino  é  a  legada  pelo 
f  rancez  Tollenare  ( i )  que,  como  negociante,  andou  todo 
o  tempo  mettido  com  a  gente  do  fisco.  A  alfandega,  no  seu 
dizer,  fazia  vergonha.  Metade  dos  direitos  se  perdia  em  bai- 
xas avaliações  criminosas.  A  venalidade  era  palmar.  Era 
publico  e  notório  que  os  negociantes  inglezes  pagavam  8  e 
IO  o/o  em  vez  de  i6  o/o.  As  fraudes  davam-se  muito  mais 
nas  importações  porque  os  direitos  sobre  géneros  exportados 
eram  menores  ou  se  calculavam  pelo  peso,  o  que  as  diffi- 
cultava. 

As  ordens  de  pagamento  expedidas  pela  Junta  de  Fa- 
zenda de  qualquer  provincia  (2)  ao  seu  thesoureiro  só  eram 
satisfeitas  ao  sabor  da  disposição  d'este  funccionario,  o  que 
permittia  a  florescência  de  intermediários  que  auferiam  lu- 
cros descontando  aquellas  ordens  com  20  e  30  0/0  de  pre- 
juizo  para  o  interessado. 

Na  Casa  da  Moeda  da  Bahia,  não  obstante  o  seu  juiz 
privativo,  como  havia  também  um  na  alfandega,  não  se 
apresentava  uma  barra  de  ouro  para  contrastar  e  fundir,  pa- 
gando o  respectivo  direito.  Grande  corrupção  reinava  entre 

(1)  Notais   dominicacs. 

(2)  Compiroha-se  esta  Junta  do  chanceller  (presidente)  da  Re- 
lação ou  do  diroctor  da  alfandega,  quando  não  existia  na  provincia 
a(iíiella  corte  de  justiça ;  do  thesoureiro ;  do  escrivão  da  fazenda 
real,  em  cujo  cartório  se  faziam  os  estancos — os  quaes  não  eram  dados 
em  concorrência — ,  se  pagavíim  os  registros  e  patentes,  se  recebiam 
as  contas  dos  collectores  da  receita  e  se  forçavam  á  discreção  os 
devedores,  recalcitrantes  ao  pagamento;  do  inspector  da  moeda  e  do 
ouvidor.  O  governador  ou  capitão  general  tinha  de  direito  dous  votos, 
c  de  facto  uma  aactoridadc  arbitraria  sobre  a  Junta. 


770  DOM  JO^O  VI  NO  BRxVZIL 

OS  magistrados  que  obedeciam  aos  empenhos  e  peitas,  quando 
a  vontade  do  governador  não  agia  soberanamente,  pois  a 
própria  policia  se  encarnava  n'elle,  que  ou  remettia  o  caso 
ao  ouvidor  do  crime,  assim  o  estipulando  as  Ordenações,  ou  o 
julgava  paternalmente. 

Nada  havia  de  mais  custoso  do  que  receber  judicial- 
mente uma  divida,  não  só  porque  as  exempções  eram  muitas, 
abrangendo  os  senhores  de  engenhos  nos  seus  apparelhos,  os 
concessionários  de  terras  nos  primeiros  tempos  das  suas  ro- 
çagens,  como  eram  onerosissimas  as  custas,  formidável  a 
papelada,  enormes  as  delongas.  E'  verdade  que  se  não  conhe- 
ciam no  foro  os  debates  oraes,  mas  os  advogados  escreviam 
nos  gabinetes  seus  arrazoados  que  o  juiz  communicava  a 
outra  parte  para  a  replica,  e  os  solicitadores  pejavam  os  car- 
tórios dos  escrivães. 

Estes  cartórios,  os  notariados,  secretariados,  inspectorias 
aduaneiras  nos  dominios  reaes  e  quaesquer  postos  administra- 
tivos eram  concedidos  por  mercês  do  soberano,  mas  arren- 
davam-se  ou  sublocavam-se,  pagando  o  alugador  ás  vezes 
mais  do  que  o  salário  integral  do  lugar,  signal  de  que  se  des- 
forrava de  outro  modo.  ToUenare  menciona  um  cargo  de 
fazenda  que  rendia  6.000  francos  por  lei  e  andava  arrendado 
por  40.000  ou  era  avaliado  n'este  alto  preço. 

Em  tudo  a  sensação  era  persistente  do  truncado,  afu- 
gentando a  de  um  seguido  e  completo  progresso  moral  e  ma- 
terial. Os  serviços  agricolas  continuavam,  entre  os  des- 
cendentes de  Europeus,  a  praticar-se  com  o  mesmo  empi- 
rismo, a  mesma  carência  de  instrumentos  aperfeiçoados,  o 
mesmo  feitio  antiquado.  E'  facto  que  a  febre  mineira  dis- 
trahira  poderosamente  as  attenções  da  lavoura,  raas  não  é 
menos  um  facto  que  era  considerável  e  ingenita  a  molleza 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  771 

da  população,  grassando  a  ociosidade  por  systema  ou  flo- 
rindo a  esperança  da  ociosidade,  mui  raramente  predomi- 
nando com  a  noção  o  prazer  da  actividade. 

Também,  na  justa  phrase  de  Jay,  que  prefaciou  a 
traducção  franceza  da  singela  e  honesta  relação  das  viagens 
de  Koster  pelo  Norte,  o  povo  soffria  ''todos  os  incommodos 
da  miséria,  tendo  todos  os  recursos  da  opulência."  As  in- 
gentes bellezas  naturaes,  o  esplendor  da  paizagem  e  os 
esparsos  enxertos  sociaes  de  civilização  emmolduravam  um 
profundo  atrazo.  Nas  minas  de  ouro  e  diamantes,  a  maior 
riqueza  do  paiz  no  século  XVIII,  os  processos  usados  nunca 
foram  outros  senão  o  da  lavagem,  e  esta  mesmo  operada  da 
maneira  menos  económica,  si  bem  que  a  mais  fácil  para 
quem  não  possuia  apparelhos  adequados  de  mineração,  nem 
meios  de  obtel-os,  nem  sequer,  na  maioria  dos  casos,  o  co- 
nhecimento d'elles. 

Pelo  menos,  porém,  o  regimen  monarchico  autonómico 
foi  em  seu  alvorecer  no  Brazil,  como  igualmente  o  foi  no 
seu  occaso,  brando  e  humano.  Tampouco  fez  este  governo 
gala  de  uma  Índole  retrograda  ou  mesmo  conservadora:  foi 
antes,  sem  duvida  alguma,  mais  intelligente  e  progressivo  do 
que  o  colonial,  até  porque  dispunha  de  toda  a  auctoridade, 
de  to-dos  os  meios  de  acção  e  de  todo  o  prestigio.  Esteve,  to- 
davia, longe  de  ser  uma  dictadura  enérgica  e  revolucionaria, 
como  em  muitos  sentidos  se  exerceu  a  do  marquez  de 
Pombal. 

Pombal  foi  violento,  porém  foi  um  reformador.  Repri- 
mia os  abusos,  em  muitas  occasiões  obedecendo  a  precon- 
ceitos e  antipathias  pessoaes,  mas  melhorava  a  valer  os  me- 
thodos  de  trabalho,  não  só  lavrando  alvarás  como  montando 
fabricas.    Policiava  com   rigor,   mas   estimulava  com   ardor. 


772  POM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Embaraçava  ou  favorecia  determinadas  producções  segundo 
um  critério  próprio  e  despótico,  mas  quando  extendia  sua 
protecção,  era  para  tornar  a  industria  mais  abundante  e  mais 
proveitosa  para  o  particular,  não  só  para  tornar  o  seu  ren- 
dimento mais  seguro  para  o   fisco. 

O  governo  de  Dom  João  VI  foi  igualmente  reforma- 
dor, posto  não  fizesse  tanto,  ou  antes  não  obrasse  com  tama- 
nho vigor  no  mom.ento,  o  que  não  impediu  os  seus  beneficios 
de  serem  mais  duradouros  porque,  si  era  menor  a  correspon- 
dência do  meio,  eram  incomparavelmente  superiores  as  suas 
reservas  e  possibilidades.  Faltavam  a  Dom  João  VI,  em  grau 
idêntico  a  Pombal,  resolução,  cynismo  e  disciplina  mental. 
Os  melhoramentos  que  introduziu  na  administração  brazi- 
leira-  foram  palpáveis,  numerosas  as  vantagens  que  para  o 
paiz  se  derivaram  da  presença  do  seu  soberano.  No  emtanto 
nunca  foram  as  desigualdades  mais  accentuadas,  nunca  foi 
mais  frizante  o  contraste  entre  o  que  se  realizava  e  o  que 
se  ideava,  o  que  era  e  o  que  devia  ser,  o  que  se  fazia  e  o  que 
se  descurava. 

O  caracter  nacional  offerecia  o  , mesmo  aspecto.  "Re- 
sulta d'essa  mistura  de  inacção  e  estupidez  com  orgulho  e 
ganância,  escrevia  Jay  (i),  uma  serie  de  contrastes;  activi- 
dade n'um  género  de  industria,  negligencia  profunda  em 
tudo  mais;  nudez  e  porcaria  no  interior  das  habitações,  es- 
plendor e  fausto  nos  vestidos;  amenidade,  ou  antes  fraqueza 
no  caracter,  e  cruel  indifferença  pela  sorte  dos  Índios.  Assim 
foi  o  governo  até  estes  últimos  tempos,  inflexível  no  que-  in- 
teressava o  fisco,  pouco  attento  ao  que  tocava  á  instrucção 
e  aos  costumes,  rico  de  diamantes  e  pobre  de  armas,  de  ca- 
naes  e  de  tudo  o  que  constitue  a  força  dos  Estados." 


(1)  Preíacio  cit.  da  ed.  franceza  das  Viagens  de  Koster. 


CAPITULO  XIX 


O  TRATAMENTO  DOS  ÍNDIOS 


N'este  ponto  pode  dizer-se  que  foi  deficiente  o  governo 
de  Dom  João  VI,  si  com  isto  se  quer  exprimir  que  não  teve 
resultados  permanentes  o  que  elle  fez  ou  tentou  fazer  pelos 
Índios  brazileiros.  Cumpre  todavia  notar  logo  que  lhe  não 
cabem  por  tal  motivo  remoques,  pois  o  effeito  de  quaesquer 
esforços,  mesmiO  mais  concretos  e  enérgicos,  teria  certa- 
mente sido  no  seu  conjuncto  negativo,  porquanto  aquelles 
Índios  —  como  todas  as  raças  inferiores,  postas  embora,  e 
sobretudo  quando  assim  acontece,  em  contacto  com  elemen- 
tos civilizadores  —  se  mostram  incapazes  de  outra  existência 
que  não  a  vegetativa,  dividida  entre  as  occupações  da  caça, 
da  lucta  com  outras  tribus,  das  bebedeiras  ruidosas  e  da  pre- 
paração rotineira  das  armas  de  combate,  dos  mantimentos  de 
conserva,  dos  espiritos,  das  redes  e,  quando  são  cultivadores, 
dos  seus  escassos  productos  agrícolas. 

Toda  a  catechese,  religiosa  ou  leiga,  tem  sido  inhabil  para 
elevar-lhes  marcadamente  o  nivel  moral.   Conforme  ponde- 


774  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

raram  Spix  e  Martius  depois  que  os  observaram  pessoal- 
mente, elles  mais  dependem,  quando  aldeiados,  da  actividade 
ou  industria  dos  forasteiros  do  que  da  própria,  sendo  por 
isso  mesmo  de  lamentar  que  não  vivessem  entre  gente  que 
lhes  pudesse  dar  uma  melhor  idéa  da  superioridade  moral 
da  cultura  estrangeira,  diversa  da  fornecida  pelo  egoismo, 
cobiça  e  deshumanidade  d'esses  occupadores  de  um  solo  es- 
tranho. 

"  A  civilização  dos  Índios  tem  igualmente  sido  até  aqui 
obstada  pelo  costume  de  empregar  uma  nação  para  combater 
outra,  como  foram  por  exemplo  empregados  os  Coroados 
contra  os  Puris,  e  pela  sanha  dos  destacamentos  militares, 
os  quaes  extenderam  aos  Puris  a  guerra  de  exterminio  que 
por  lei  lhes  foi  facultada  contra  os  Botocudos.  (i)"  O 
Correio  Braziliense  acremente  censurou  ao  conde  de  Linha- 
res essa  guerra  cruel,  vestigio  de  antigo  barbarismo,  que 
elle  decretara. 

Si  o  exterminio  não  foi  a  regra  para  os  selvagens  bra- 
vios, pelo  menos  foram  os  aborigenes  mansos  praticamente 
abandonados  nas  suas  aldeias  miseráveis,  sem  cultura  e  sem 
futuro,  quando  não  deixados  a  vaguear  pelas  mattas  e  cam- 
pos. A  matéria  prima  em  verdade  apparecia  refractária  e 
por  isso  talvez  nada  de  effectivo  lograria  jamais  constar, 
quando  muito  maior  fosse  o  seu  devotamento,  ao  activo  da 
Junta  creada  para  indagar  de  tudo  quanto  pudesse  promover 
a  civilização  dos  indigenas,  e  suggerir  os  meios  convenientes 
de  chegar  a  resultados  animadores. 

Alguns  se  obtiveram,  si  bem  que  de  natureza  provisória 
ou  limitada.  Spix  e  Martius,  que  foram  ao  interior  da  capi- 
tania de  Minas  Geraes  visitar  os  Coroados  aldeiados  no  pre- 


(1)   Spix  e  Martius,  gjj.  cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  775 

sidio  de  São  João  Baptista,  escrevem  que  os  princípios  por 
que  eram  administrados  os  Índios  faziam  honra  ao  governo, 
tratando  os  directores  de  conserval-os  agrupados  e  fazel-os 
cultivar  a  terra  que  lhes  era  dada  em  propriedade,  com 
isenção  de  taxas  por  dez  annos  e  fornecimento  gratuito  de 
farinha  de  milho  e  utensílios  agrícolas.  Ao  mesmo  tempo  que 
os  dirigiam,  aquellas  auctoridades  defendiam-n'os  contra 
quaesquer  tentativas  de  escravisação  por  parte  dos  colonos, 
concedendo-lhes  a  protecção  da  lei,  e  só  os  deixando  traba- 
lhar mediante  salários,  posto  que  reduzidos,  correlativos  com 
sua  inexperiência  e  carência  de  necessidades  como  as  dos 
civilizados. 

A  politica  de  adiantamentos  materiaes  e  moraes  com 
que  Dom  João  VI  pretendeu  assignalar  o  seu  governo  di- 
recto no  Brazil,  visava  —  é  justiça  admittir  —  originar  no 
tocante  á  civilização  dos  indígenas  resultados  mais  satisfacto- 
rios  do  que  meramente  uma  mais  activa  exploração  do  in- 
terior. Aliás  deve  lembrar-se  que  até  certo  ponto  foi  com 
semelhante  intuito  animada  a  melhoria  das  communicações 
terrestres  e  fluviaes  do  littoral  com  o  sertão.  A  Junta  insti- 
tuída adrede  denomínava-se,  conjunctamente,  da  conquista 
e  civilização  dos  índios  e  do  commercio  e  navegação  do  Rio 
Doce,  e  tinha  sua  sede  em  Villa  Rica:  a  região  dos  rios  Doce 
e  Jequitinhonha  foi  a  preferida  de  começo  para  taes  ensaios 
da  administração  com  relação  aos  aborígenes. 

E'  de  resto  obvio  que  todo  progresso  n'esse  sentido  de 
facilitar  a  navegabilidade  de  rios  ou  abrir  estradas  atravez 
de  mattas  espessas,  com  a  consequente  colonização  de  feição 
européa,  redundaria  em  proveito  do  elemento  indígena,  si 
elle  próprio  no  emtanto  fosse  susceptível  de  verdadeiro  pro- 
gresso, não  recuando  medroso  diante  da  cultura  como  lhe 


776  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

era  offerecida,  e  internando-se  cada  vez  mais  nas  solidões 
para  escapar  ao  jugo  das  forças  militares  com  que  ia  sendo 
legitimada  a  posse  da  terra  e  praticada  a  novissima  cate- 
chese.  D'ahi  vem  que  o  espectáculo  apresentado  pelos  habi- 
tantes primitivos  do  Brazil  na  epocha  de  Dom  João  VI  não 
encerrava  grande  alteração  do  que  se  nos  houvera  deparado 
em  pleno  século  XVI. 

Dividiam-n'os  official  e  litterariamente  em  Índios  selva- 
gens, semi-mansos  e  mansos,  sendo  na  realidade  minima 
a  differença  entre  as  trez  classes.  O  principe  Maximiliano 
de  Wied-Neuvi^ied  occupou-se  bastante  d'elles  e  deixou  a 
respeito  um  depoimento  insuspeito.  No  seu  tempo  existiam 
ainda  em  grande  numero  Índios  na  própria  provincia  do 
Rio  de  Janeiro,  apezar  da  referida  migração  e  da  constante 
fusão   com  o  elemento  conquistador. 

Os  pseudo-civilizados  ou  em  caminho  d'isso  viviam 
em  cabanas  de  taipa  com  tectos  de  folha  de  coqueiro,  dor- 
mindo nas  mesmas  redes,  servindo-se  das  mesmas  cabaças, 
cobrindo  o  chão  com  as  mesmas  esteiras,  empregando  as 
mesmas  armas  de  arremesso  que  os  outros.  Conservavam 
todos  os  seus  costumes  privados,  as  suas  comidas  e  bebidas, 
os  seus  folgares  e  tristezas,  todos  os  seus  usos  collectivos. 
Uma  espingarda,  um  espelho,  um  instrumento  agrícola  re- 
cordaria occasíonalmente  —  como  de  resto  acontecia  ao 
tempo  dos  primeiros  escambos  —  o  contacto  com  a  cultura 
européa,  que  se  trahía  também  mais  pela  adopção  da  língua 
portugueza  do  que  pela  da  religião  chrístã  imposta  á  sua 
credulidade  e  sobre  a  qual  a  sua  imaginação  infantil  lan- 
çara e  bordara  um  manto  de  superstições  tecido  pela  igno- 
rância. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  777 

Geitosos  e  capazes  de  bem  desempenhar  certos  mes- 
tres, dominava-os  comtudo  uma  invencível  preguiça,  de  que 
só  se  libertavam  para  a  caça  e  para  a  guerra,  quando  davam 
mostras  da  maior  diligencia  e  resistência.  Glotões  si  tinham 
comida  para  saciar-lhes  o  appetite,  logravam  não  obstante 
supportar  longo  tempo  a  fome  e  a  sede.  De  ordinário,  quando 
não  comiam,  ou  dormiam,  ou  perseguiam  animaes  de  caça 
ou  iam  no  encalço  de  inimigos,  acocoravam-se  silenciosos  em 
redor  do  fogo,  n'uma  taciturnidade  fundamental,  de  que  só 
os  despia  o  seu  gosto  immoderado  pelas  bebidas  espirituosas. 
A  inclinação  nómada  era  outro  traço  ingenito  e  caracterís- 
tico que  os  levava  a  facilmente  abandonarem  as  aldeias  em 
deserções  que  começavam  por  ser  cynegeticas  e  se  tornavam 
definitivas,  operando-se  com  extraordinária  presteza,  n'ellas 
carregando  os  homens  as  armas  e  as  mulheres  as  panellas, 
redes  e  provisões  de  bocca. 

A  desconfiança  continuava  no  século  XIX,  como  logo 
depois  da  descoberta,  a  ser  a  base  das  relações  entre  as  duas 
raças.  Eschwege  é  dos  que  dão  perfeita  razão  aos  indígenas, 
descrevendo  a  sua  situação  em  relação  aos  Europeus  com 
cores  diversas  das  escolhidas  por  Spix  e  Martius.  E  suas  in- 
formações devem  ser  mais  procuradas  e  mais  exactas,  porque 
Eschwege  residio  muito  mais  tempo  no  Brazil  do  que  aquel- 
les  dous  naturalistas  que  tão  somente  o  percorreram,  obser- 
vando-o  embora  com  summa  intelligencia  e  pondo  a  maior 
dose  de  probidade  nas  suas  apreciações. 

O  conhecido  mineralogista,  esse,  não  só  teve  ensejo  de 
tornar  mais  conhecido  o  paiz,  geológica  e  economicamente, 
publicando,  afora  seus  livros,  artigos  de  considerável  valor 
em  revistas  européas,  como  estabeleceu  em  Minas  Geraes 
diversas  fundições  de  ferro,  que  manufacturavam  boa  somma 

D.  J.  —  49 


778  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  artigos  —  foices,  machados,  ferraduras,  pregos,  picaretas, 
etc.  —  ;  não  vingando  mais  tão  promettedora  industria 
n'uma  região  em  que  a  matéria  prima  era  mais  do  que  co- 
piosa porque,  segundo  Eschwege  mesmo  explica  e  já  foi  no- 
tado, os  habitantes,  acostumados  á  vida  errante  e  aventu- 
rosa das  minerações,  desprezavam  as  occupações  fixas  e  re- 
gulares. 

Pois  tão  excellente  conhecedor  do  nosso  meio  physico  e 
moral  e  afoito  expositor  do  que  n'elle  se  lhe  deparava, 
transmittiu-nos  uma  pintura  de  impressionar  do  tratamento 
dos  Índios  brazileiros.  N'ella  se  revela  Eschwege  infinita- 
mente menos  benévolo  do  que  seus  compatriotas  Spix  e  Mar- 
tius  (que  aliás  discutiam  em  espécie,  baseando-se  sobre  um 
exemplo  isolado  que  por  acaso  fora  o  do  seu  conhecimento) 
para  com  os  directores  civis  que  substituiram  na  tutela  dos 
aborigenes  os  missionários,  e  que  denotando,  no  dizer  do  ci- 
tado escriptor  germânico,  a  maior  avareza  e  doblez  e  es- 
quecendo os  mais  elementares  deveres  de  humanidade  para 
com  a  gente  confiada  á  sua  guarda,  faziam-se  servir  pelos 
Índios  aldeiados  como  si  fossem  escravos,  espancavam-n'os, 
deixavam-n'os  espoliar,  quando  os  não  espoliavam  elles  pró- 
prios, pelos  colonos  visinhos  das  aldeias.  Estes,  despojando  os 
desgraçados  descendentes  dos  antigos  senhores  do  solo  das 
terras  que  lhes  tinham  sido  doadas  e  que  occupavam,  mal- 
tratavam-n'os,  roubavam-n'os  de  tudo  e  não  raro  até  os  tru- 
cidavam. 

Por  sua  vez  os  sacerdotes  que  ajudavam  os  directores 
leigos  na  tarefa  administrativa,  e  que  na  gestão  espiritual 
occupavam  a  successão  dos  Jesuitas,  estavam  longe  de  pos- 
suir o  tacto  e  a  mansuetude  dos  filhos  de  Santo  Ignacio,  exi- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  779 

gindo  de  tão  miseráveis  fieis  pagamento  adiantado  pelos 
seus  serviços  ecclesiasticos  e  assim  contribuindo,  com  suas 
vexações,  para  tornar  mais  aborrecida  dos  Índios  essa  reli- 
gião estranha  que  elles  não  logravam  sequer  comprehender. 

Os  soldados  dos  destacamentos  espingardeavam  sem 
tirte  nem  guarte  um  aldeiado  por  uma  espiga  de  milho  rou- 
bada de  uma  plantação  de  branco  e  commettiam  cem  bar- 
baridades, entre  outras  a  de  vender  crianças  das  tribus. 

Nada  se  praticava  com  doçura  e  vontade  de  acertar,  em 
contrario  a  todas  as  recommendações  officiaes,  cujo  theor 
era  invariavelmente  benévolo  para  com  os  índios  ( i ) .  Para 
forçar  os  Puris  a  hábitos  sedentários  e  a  um  cultivo  regular 
da  terra,  lembraram-se  de  trazel-os  em  parte  para  a  capital 
de  Minas  Geraes  e  ahi  distribuil-os  em  serviço  pelas  famílias, 
n'uma  quasí  resurreição  urbana  das  encomiendas  hespanho- 
las.  Dizimados  pelas  doenças,  vencidos  pela  melancholia, 
sujeitos  aos  ruins  tratos  ou  pelo  menos  forçados  a  um  trabalho 
seguido  que  não  estava  nos  seus  hábitos  tradicionaes  e  re- 
pugnava á  sua  natureza,  desappareceram  esses  servos  pela 
porta  da  morte  ou  refugiaram-se  de  novo  nas  suas  florestas, 
onde  os  perseguiram  os  soldados,  vingando-se  elles  por  fim 
com  massacrarem  o  director,  destruírem  plantações  e  ímmo- 
larem  uma  quantidade  de  ínnocentes.    (2) 

A  Dom  João  VI  não  eram  desconhecidos  os  abusos  es- 
candalosos que  se  passavam  e  magoava-o  um  tal  estado  de 


(1)  No    1'egimeTato,    tomado    ao    acaso,    relativo    ao    governador 
presidente  da  nova   Relação   do   Maranhão,    encontram-se   as   seguintes 

palavras: "e   mandará   proceder   com   rigor   conti-a   quem   os   mal- 

tractar,  ou  molestar,  dando  ordens,  e  providencias  para  que  se  possão 
sustentar,  e  viver  juncto  das  Povoações  'dos  Portuguezes,  ajudando-so 
delias  de  maneira  que,  os  que  habitão  no  Certão,  folguem  de  vir  para 
as  ditas  Povoações,   e  entendão  que   tenho  lembrança   delles." 

(2)  Eschwege,  Journal   von  Brazilicn.  . . 


780  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

cousas,  contra  o  qual  nada  podia  a  sua  acção  benigna,  n'uma 
tamanha  extensão  territorial,  com  as  circumstancias  predo- 
minantes que  iam  desde  a  distancia  até  a  carência  de  mora- 
lidade, e  sem  agentes  fieis  para  a  repressão  dos  que  deviam 
civilizar  e  para  a  educação  dos  que  havia  a  civilizar.  Tudo 
pelejava  em  contrario  ás  intenções  reaes:  a  má  vontade  dos 
Índios  em  submetterem-se,  tanto  quanto  a  má  vontade  das 
auctoridades  subalternas,  e  mesmo  das  que  lhes  eram  imme- 
diatamente  superiores,  em  defendel-os  e  eleval-os. 

Quando  houvesse  sympathia  e  energia  para  isso,  era 
a  obra  superior  aos  meios  de  pôl-a  em  execução.  A  Junta  de 
Villa  Rica,  funccionando  perto,  não  conseguio  reduzir,  ape- 
zar  da  guerra  movida,  o  paiz  dos  Botocudos  —  cerca  de 
I.200  léguas  quadradas,  cobertas  de  florestas  impenetrá- 
veis, que  permaneceram  mais  ou  menos  nas  primitivas  con- 
dições, sem  estradas  abertas,  nem  culturas,  nem  segurança, 
não  se  melhorando  sequer  a  navegação  do  Rio  Doce. 

A  colonização  do  interior  do  Brazil,  Dom  João  VI 
a  encontrou  e  a  deixou  sob  a  forma  de  um  desbravar  em- 
pirico,  exercido  a  ferro  e  a  fogo,  sem  o  apparelho  apropriado 
nem  sombra  de  fundamento  scientifico.  Traduzia-se,  como 
hoje  ainda,  pelas  derrubadas  e  queimadas  que,  a  pretexto  de 
alargarem  a  zona  de  cultivação,  extendiam,  com  a  suppres- 
são  das  mattas,  a  área  das  seccas  para  n'ella  vegetar,  sobre 
um  solo  que  de  fértil  passava  a  estéril,  ''e  decaida  pelo  im- 
paludismo, tão  característico  das  regiões  incultas,  uma  po- 
pulação de  mestiços  lamentáveis,  agitantes  n'um  quasi  de- 
serto"  (i). 


t 


(1)      Euclyd^s    da    Cunha,    Um    contraste,    artigo    pnblioado    no 
Paiz,  de  17  do  Julho  de  1904. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  781 

Essa  falta  de  todo  preparo  industrial,  junto  com  o  in- 
teiro desconhecimento  da  hygiene  e  da  prophylaxia,  palavras 
vasias  de  significação  em  semelhante  meio  mas  não  em  se- 
melhante epocha,  continuando  portanto  a  operar-se  o  antigo 
espraiar  de  bandeirantes  sobre  uma  terra  fecunda,  suscepti- 
vel  porém  de  deteriorar-se  em  sua  excellencia  e  tornar-se 
safara;  d'outro  lado  a  subsistência  dos  latifúndios,  dos  ter- 
renos doados,  das  sesmarias  da  conquista,  difficultando  a 
acquisição  da  propriedade  territorial  com  os  foros,  os  arren- 
damentos a  longo  prazo  com  limitação  de  cultivo  dependente 
do  valor  do  aluguel,  e  a  faculdade  para  o  senhor  da  terra  de 
recobrar  a  plena  propriedade  d'ella  pelo  pagamento  das  bem- 
feitorias  avaliadas  por  terceiros,  redundavam  no  aspecto  de- 
solador da  nossa  lavoura  mesquinha,  arrancada  aos  braços 
dos  escravos  sem  real  correspondência  entre  o  capital  e  os 
esforços  empregados,  e  os  resultados  obtidos. 

Accresce  que  o  Portuguez  é  por  temperamento  muito 
mais  um  explorador  do  que  um  colonizador.  A  sua  tendên- 
cia é  abrir  caminhos,  não  tanto  estabelecer  dominios  no  in- 
terior dos  continentes:  quando  muito,  fundar  feitorias  pelos 
littoraes.  "Não  era  de  esperar  que  fosse  cultivar  os  certoens 
da  America  quem  deixava  sem  cultura  as  férteis  campinas 
do  Alemtejo  e  as  colinas  da  Beira,  e  Trás  os  Montes"   (i). 

O  favor  official  para  tudo  era  preciso  n'essas  condi- 
ções, mesmo  para  fazer  florescer  a  industria  particular,  de- 
pendente, segundo  deveria  ser,  da  iniciativa  de  cada  um,  A 
intervenção  do  Estado  era  porém  tão  constante  e  vexatória 
que  força  era  que  ella  também  se  exercesse  pela  abstenção,  de 


(1)  Artigo  sobre  os  Abusos  e  erros  da  Administração,  em  o 
Brazil,  vol.  I  do  Portuguez;  ou  Mercúrio  Politico,  convmercial  e  lite- 
rário. Londres,  1814-19. 


782  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

geito  a  favorecer.  Assim,  o  cônsul  geral  russo  Langsdorff 
que,  além  de  colleccionar  1.600  variedades  de  borboletas, 
plantara  na  sua  fazenda  Maiidioca  20.000  cafezeiros  e  fabri- 
cava em  181 9  perto  de  i.ooo  saccos  de  farinha  por  anno, 
carecia  para  prosperar  nas  syas  lavouras  que,  não  fallando  dos 
seus  sessenta  escravos,  o  Rei  indirectamente  lhe  angariasse  tra- 
balhadores bastantes,  concedendo  isenção  do  serviço  de  milí- 
cias aos  moradores  da  visinhança  que  se  prestassem  aos  servi- 
ços agrícolas   da  referida  propriedade,    (i). 

Foi  comtudo  esse  cônsul  o  primeiro  da  sua  classe  de 
funccionarios  estrangeiros  a  desacreditarem  o  nosso  systema 
de  colonização  estipendiada,  assim  como  foi  o  conde  da  Barca 
o  nosso  primeiro  agente  de  emigração  na  Europa,  pródigo 
como  todos  os  mais  de  promessas  pomposas.  Langsdorff 
não  trepidou  em  mandar  relatar  em  gazetas  do  seu  paiz  e 
da  Allemanha  que,  dos  Europeus  transportados  para  o  Bra- 
zil,  alguns  tinham  expirado  de  miséria  e  outros  sido  recolhi- 
dos por  navios  americanos  e  levados  gratuitamente  para  os 
Estados  Unidos,  onde  o  Governo  Federal,  comquanto  não 
houvesse  mandado  abonar  as  passagens  d'esses  emigrantes 
que  lhe  chegavam  sempre  a  propósito,  os  abrigou,  alimentou 
e  proveu  de  terras  para  cultivar. 

O  Congresso  de  Vienna,  junto  ao  qual  se  quiz  fazer 
valer  a  conveniência  da  expansão  colonial  de  Portugal  como 
augmentando  as  vantagens  possiveis  para  a  immigração  euro- 
péa  nos  seus  territórios  brazileiros  dilatados  pelas  armas  da 
velha  metrópole,  não  era  infelizmente  assembléa  que  se  dei- 
xasse levar  pelas  visões  de  Barca  ou  pelas  blandicias  de  Pal- 
mella.  A  Santa  AUiança  foi  tratando  toda  ella  de  subtrahir 


(1)    HeBderson,   ob.   cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  783 

ao  Brazil  os  seus  ganhos  alcançados  pela  violência  e  a  que  a 
corte  do  Rio  dizia  haver-se  afoitado  para  maior  felicidade 
dos  futuros  emigrantes,  os  quaes  entretanto  persistiriam, 
nas  palavras  do  abbade  de  Pradt,  a  preferir  ás  immensas  e 
magestosas  solidões  da  America  do  Sul  as  solidões  igual- 
mente vastas  e  igualmente  imponentes  da  America  do  Norte, 
regidas  porém,  como  promettiam  de  seguro  ser  quaesquer 
íOciedades  que   n'elTas  se   fundassem,   por   uma  constituição 

dmiravel,   baseada   na  mais   estricta   igualdade   e   na  mais 

ompleta  liberdade  politica,  civil  e  religiosa. 


( 


CAPITULO  XX 


A   REVOLUÇÃO   PERNAMBUCANA  DE    1817 


As  primeiras  noticias  da  revolução  republicana  de  1817, 
em  Pernambuco,  alcançaram  Londres  por  via  das  Antilhas, 
a  uma  das  quaes  chegara  um  navio  rnglez,  Rowenãj  que  poude 
conseguir  auctorização  para  escapar  ao  rigoroso  embargo 
posto  pelos  rebeldes  sobre  todos  os  navios  ancorados  no 
porto,  e  que  mais  tarde  levantaram  para  as  embarcações  es- 
trangeiras. Diziam  aquellas  noticias  ter  o  movimento  tido 
por  motivos  determinantes  o  descontentamento  das  tropas 
por  não  receberem  desde  muito  seus  soldos,  nem  disporem 
de  outros  meios  de  subsistência,  e  o  descontentamento  do 
povo  "pelas  pesadas  contribuições  e  excessivas  conscripções" 
que  provocava  a  conquista  da  Banda  Oriental,  "na  que  o 
povo  do  Brazil  não  só  não  tem  parte,  mas  julga  contraria 
aos  seus  interesses"     (i). 

Hippolyto  escrevia  isto,  mas  Palmella  não  era  func- 
cionario  diplomático  que  julgasse  abaixo  da  sua  missão  res- 


(1)    Correio  BrazUicnsc,  n.  108,  Maio  de  1817,  vol.  XVIII. 


786  DOM  JOÃO  VI  NO  BIIAZIL 

tabelecer  a  verdade  dos  factos,  e  tanto  menos  deixaria  passar 
sem  a  devida  contestação  semelhantes  asserções,  quanto  lhe 
assistia  razão  bastante  em  qualquer  desmentido.  Os  abusos 
administrativos,  sobretudo  as  prepotências,  tinham  dimi- 
nuido  em  todo  o  novo  Reino  por  um  effeito  reflexo  do  pro- 
gresso dos  tempos,  e  em  Pernambuco  a  siiuação  se  apre- 
sentava até  privilegiada,  confiado  como  andava  o  governo 
havia  anncs  a  um  homem  pacato  e  bondoso. 

Com  sua  costumada  assignatura  —  Uin  Brazileiro  — 
defendeu  Palmella  em  communicados  ao  Times  o  governo 
do  Rio  das  pechas  de  suspicaz  e  tyrannico,  com  que  o  que- 
riam gratificar  os  que  defendiam  por  interesse  ou  por  prin- 
cipio a  revolução  pernambucana.  "Esse  governo  posto  que 
absoluto,  escrevia  o  futuro  embaixador,  não  é  para  melhor 
dizer  outra  cousa  mais  que  uma  auctoridade  doce  e  pater- 
nal. Terão  crimes  ficado  frequentes  vezes  impunes  no  Bra- 
zil,  mas  nunca,  e  desafio  qualquer  de  citar  um  exemplo 
em  contrario,  a  innocencia  poude  com  razão  queixar-se  da 
injustiça  do  soberano  da  terra.  Em  toda  a  extensão 
d'esta  é  antes  facultada  uma  liberdade  de  palavra  que  mais 
degenera  em  licença." 

Tratando  particularm.ente  da  referida  falta  de  paga- 
mento ás  tropas,  concordava  Palmella  em  que  era  possivel 
darem-se  factos  de  tal  natureza,  visto  a  administração  não 
estar  ainda  sujeita  a  regras  uniformes,  e  cada  provincia 
prover  separadamente  as  despezas  da  sua  guarnição.  "Posso 
todavia  assegurar  que  as  tropas  recebem  regularmente  seus 
soldos  na  mór  parte  dos  Estados  do  Brazil  e  que  seme- 
lhante falta  si  jamais  occoireu,  não  podia  passar  de  tem- 
porária e  em  escala  muito  inferior  á  que  mostram  suppor 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  787 

algumas  pessoas."  Em  Pernambuco,  poderia  ter  Palmella 
accrescentado  si  possuisse  um  conhecimento  intimo  de  todas 
as  capitanias,  não  faltavam  recursos  ao  Erário  graças  á 
conhecida  economia  de  Caetano  Pinto,  mas  esta  própria 
economia,  exacerbada  como  na  verdade  o  era  até  a  avareza, 
podia  justamente  ter  determinado  atrazos  no  pagamento 
das  tropas. 

E  tão  reaes  estes  atrazos,  que  o  motivo  c  apontado  no 
primeiro  dos  officios  de  Maler  sobre  "o  haver  a  hydra  re- 
volucionaria conseguido  erguer  uma  hedionda  cabeça  no 
Brazil"  (i).  E£creveu-o  elle  logo  depois  de  ter  entrado  ino- 
pinadamente no  porto  do  Rio  a  25  de  Março,  o  brigue  com 
bandeira  branca  que  conduzia,  bastante  constrangido.  Sua 
Excellencia  o  governador  general.  "Ha  mais  de  um  anno, 
reza  o  citado  officio,  que  a  guarnição  de  Pernambuco  era 
mal  paga  e  mal  alimentada  pelo  Governo;  o  território 
d'esta  cidade  e  dos  districtos  visinhos  extremamente  pro- 
ductivo  em  algodão,  é  estéril  em  comestiveis  e  géneros 
de  primeira  necessidade,  de  sorte  que  o  pão  para  os  ricos  e 
a  mandioca  para  a  classe  indigente  vinha  de  fora  e  era 
comprada  por  preços  muito  elevados.  Ávidos  especuladores 
monopolizavam  os  carregamentos  que  chegavam  e  os  reven- 
diam a  retalho  ao  publico  da  maneira  a  mais  arbitraria.  Os 
clamores  e  as  queixas  geraes  despertaram  emfim  o  indolente 
Montenegro,  que  encarregou  o  brigadeiro  do  exercito  Sala- 
zar de  tomar  algumas  medidas  para  conter  o  monopólio  e 
reprimir  a  desordem.  Mas,  este  official  general  não  tendo 
podido  satisfazer  a  esperança  e  os  votos  do  publico,  commet- 
teu-se  ainda  o  injusto  dislate  de  propor  ás  tropas  dar-lhes  as 


(1)   Officio  de  28  de  Março  de  1817. 


788  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rações  de  pão  em  espécie  e  de  lhes  abonar  i6  soldos  por  cada 
sacco  de  mandioca,  cujo  preço  no  mercado  era  de  50  sol- 
dos",  (i) 

A  razão  da  escassez  de  comestíveis  de  primeira  neces- 
sidade é  que  Míaler  falsamente  attribuia  á  improductividade 
do  terreno  áh  costa  e  mattas  para  essa  cultura.  Luccock 
acertadamente  a  fornece  ao  fallar  também  na  carestia  dos 
mantimentos,  da  farinha  nomeadamente,  porque  pagando  o 
algodão  melhor,  ma  província  se  não  cultivavam  bastante 
géneros  alimentícios,  como  mandioca  e  feijão.  Por  outro 
lado  a  capital  consumia  abundantes  provisões  de  bocca,  pro- 
vocando sua  importação,  e  a  guerra  do  Sul  com  seus  repe- 
tidos fornecimentos  estava  fazendo  encarecer  todos  os  géne- 
ros. Para  cumulo  a  estação  de  1816  fora  muito  secca  no 
Norte,  portanto  esoassas  as  safras. 

D'estas  circumstancias  combinadas  derivou-se  n'este 
ponto  o  soffrimento  do  povo  pernambucano,  quando  os  plan- 
tadores e  commissarios  andavam  em  maré  de  fortuna  com 
o  augmento,  que  chegou  a  500  por  cento,  do  preço  do  algo- 
dão por  motivo  da  guerra  recente,  de  1812  e  1813,  dos 
Estados  Unidos  contra  a  Inglaterra,  da  extincção  em  181 5 
do  bloqueio  continental  e  da  perspectiva  de  mais  largas 
exportações  de  tecidos  da  Inglaterra  para  os  velhos  merca- 
dos europeus  e  os  novos  mercados  latinos  do  Novo  Mundo, 
tornado-se  indispensável  a  matéria  prima,  para  cujo  suppri- 
mento  não  chegava  a  pro'ducção  norte-americana. 

Mais  fácil  tarefa  cabia  a  Palmella  ao  affirmar  nos 
seus  communicados  ser  a  exhorbitancia  das  taxas  uma  com- 


(1)  Traducção  na  Revista  do  Instituto  Archeologico  de  Per- 
nambuco dos  Officios  de  Maior  sobre  a  re^/^olução  de  1817,  fornecidos 
em  copia  franceza  por  Oliveira  Lima. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  789 

pleta  falsidade,  relativamente,  já  se  vê,  e  em  absoluto  o 
recrutamento  rigoroso  exercido  para  a  expedição  do  Rio  da 
Prata.  Nas  provincias  septentrionaes  do  Brazil,  focos  da  in- 
surreição que  estalara,  é  até  notório,  lembrava  o  representante 
de  Dom  João  VI,  que  se  não  recrutou  um  homem  nem  se 
impoz  um  soldo  de  contribuição  para  aquella  empreza  mili- 
tar. As  tropas  empregadas  no  Sul  tinham  vindo  de  Portu- 
gal e  eram  pagas  pelo  Erário  Publico  de  Lisboa,  excepção 
feita  das  tropas  regionaes  paulistas  e  rio-grandenses.  Podia 
o  Thesouro  do  Rio  de  Janeiro  ter  realizado  alguns  adianta- 
mentos, mas  a  occupação  de  Montevideo,  importando  a 
cobrança  das  receitas  aduaneiras  d'esse  considerável  porto, 
bastaria  dentro  em  breve  para  custear  as  despezas  da  expe- 
dição. 

As  únicas  queixas  que  no  atilado  dizer  dos  communi- 
cados,  destinados,  não  nos  esqueçamos,  a  um  periódico  lon- 
drino e  a  um  publico  britannico,  podiam  os  Brazileiros  nu- 
trir, seriam  os  favores  extraordinários  outorgados  no  terreno 
commercial  pelo  tratado  de  1810  e  as  concessões  a  que  no 
assumpto  do  trafico  fora  levado  o  governo  do  Rio.  Estas 
eram  expressões  de  resentimento  bem  mais  fundadas  do  que 
meras  questões  de  subvenção  por  este  ou  por  aquelle  Reino, 
emquanto  se  não  abria  a  risonha  perspectiva  financeira  do 
objecto  da  empreza  satisfazer  os  gastos  da  sua  operação. 
Muito  mais  impopular  devia  com  certeza  ser  em  Portugal 
a  ambiciosa  guerra  do  Sul,  porque  lhe  acarretava  despezas 
sem  proveito  privativo,  nem  prestigio  directo.  Verdade  é 
que  no  Brazil  faltava  igualmente,  afora  interesse  que 
justificasse  a  conquista,  a  não  ser  o  politico,  a  vaidade  nacio- 
nal que  só  pode  gerar  um  accordo  de  sentimentos.  E  o 
Brazil  ainda  era,  moral  como  organicamente,  fragmentário. 


790  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

A  revolução  de  1817  tem  que  ser  examinada  sobre- 
tudo pelo  seu  lado  theorico,  no  seu  aspecto  correlativo,  em 
sua  feição  proselytica.  Foi  um  signal  mais  dos  tempos,  a 
manifestação  de  uma  .combinação  de  impulsos  em  que  entra- 
vam o  amor  exaggerado,  litterario  si  quizerem,  philosophico 
mesmo,  mas  em  todo  caso  activo,  da  liberdade,  e  uma  noção 
jactanciosa  da  valia  americana  que  o  abbade  de  Pradt 
aponta  com  felicidade  quando  escreve  n'um  dos  seus  muitos 
livros  de  vulgarisação  da  emancipação  do  Novo  Mundo,  que 
"pela  primeira  vez,  tratando-^e  do  Brazil  com  relação  a 
Portugal,  uma  parte  da  America  aprendera  a  levantar  a 
cabeça  mais  alto  que  a  Europa  e  a  dar  leis  áquelles  de  quem 
tinha  por  habito  recebel-as." 

Aliás  estes  sentimentos  abstractos  e  geraes  assumiam 
traços  concretos  e  particulares  na  provincia  revoltada.  A 
ordem  do  dia  de  4  de  Março  de  181 7,  do  capitão  general 
Caetano  Pinto  de  Miranda  Montenegro,  ajuntava  ás  razões 
do  Correio  uma  terceira,  a  mencionada  e  que  estava  na  raiz 
do  descontentamento  popular:  a  sizania  levantada  "entre  os 
nascidos  no  Brazil  e  os  nascidos  em  Portugal",  accusados  de 
monopolizar  os  melhores  empregos  civis  e  militares,  os  maio- 
res proventos  e  tudo  mais  de  bom  na  terra.  Por  outras  pala- 
vras, eram  a  questão  nativista  e  a  affirmação  independente 
que  sob  as  vestes  democráticas,  tão  em  moda  na  epocha,  sur- 
giam incomparavelmente  mais  vehementes  do  que  em  Minas 
no  final  do  século  XVIII. 

"  Ha  presentemente,  proclamava  o  doutor  governador, 
alguns  partidos,  fomentados  talvez  por  homens  malvados, 
com  a  louca  esperança  de  tirarem  alguma  vantagem  das  des- 
graças alheias,  sem  se  lembrarem  de  que  todos  somos  Portu- 
guezes,   todos  vassallos   do  mesmo  soberano,   todos  concida- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  .    791 

dãos  do  mesmo  Reino  Unido,  e  que  nesta  feliz  união,  igua- 
lando e  ligando  com  os  mesmos  laços  sociaes  os  de  um  e 
outro  continente,  só  deve  dividir  e  separar  aos  que  fomentam 
tam  perniciosas  rivalidades". 

D'este  motivo  básico  apparecem  os  outros  como  flores- 
cência e,  cortados  do  pé,  não  significam  bastante  para  expli- 
carem a  sublevação,  convindo  notar  que  nos  ciúmes  nativis- 
tas, nem  todos  de  preponderância  politica,  que  a  tradição 
consagrava,  entravam  em  não  pequena  escala  zelos  alimen- 
tados pelos  nacionaes  dos  bens  alcançados  pela  actividade 
commercial  dos  Portuguezes. 

Caetano  Pinto,  que  era  homem  intelligente  e  se  gabava 
de  ser  homem  de  lei,  comprehendia  perfeitamente  quanto 
eram  inevitáveis  todos  esses  ciúmes  patrióticos  e  económicos 
que  em  torno  d'elle  se  agitavam,  e  philosophava  sobre  o  caso, 
desculpando-os,  em  vez  de  procurar  abafal-os  pela  violência, 
o  que  sabia  dever  ser  contraproducente.  A  philosophia  con- 
dizia admiravelmente  com  o  temperamento  pacifico  e  a 
calma  judicativa  do  futuro  marquez  da  Praia  Grande: 
com  a  própria  segurança  do  Recife  pouco  se  incommodava  a 
sua  suprema  autoridade,  sem  tentar  mantel-a*com  uma  me- 
lhor policia  que  cohibisse  os  frequentes  roubos,  assaltos  e 
assassinatos,  sendo  que  de  ataques  de  ladrões  o  governador 
em  pessoa  havia  sido  victima  resignada. 

Não  admira  que,  no  tocante  á  conspiração  que  toda  a 
gente  sabia  estar-se  forjando  nas  lojas  maçónicas  e  nos  con- 
ciliábulos patrióticos,  em  segredo  e  ás  escancaras,  Caetano 
Pinto  só  tarde  se  resolvesse  a  agir,  tão  tarde  que  o  movi- 
mento já  não  teve  summa  difficuldade  em  triumphar.  A  eco- 
nr.mia  excessiva  e  a  negligencia,  em  matérias  de  administra- 
ção,   do    governador    de    Pernambuco    podem    portanto    ser 


792  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

apontadas,  sem  receio  de  errar,  como  fazendo  parte  das  ra- 
zões próximas  da  sedição,  si  bem  que  resgatassem  aquelles 
defeitos  brandura  e  tolerância  que  não  eram  communs  aos 
capitães  generaes. 

De  como  andava  indisciplinada  a  soldadesca  e  não  me- 
nos a  officialidade,  o  que  mais  que  tudo  traduzia  o  mal 
estar,  physico  e  espiritual,  caracteristico  do  momento,  deu 
evidente  prova  o  crime  que  deu  o  signal  da  rebellião.  As 
prisões  dos  suspeitos,  ordenadas  á  ultima  hora  pelo  gover- 
nador, deram  com  effeito  origem  ao  conhecido  episodio  de 
quartel  em  que  o  capitão  José  de  Barros  Lima  (Leão 
Coroado)  assassinou  o  seu  superior,  provocando  com  tal  acto 
geral  insubordinação  nas  fileiras  do  regimento  de  artilheria, 
depois  agitação  na  cidade,  toques  de  rebate,  exaltação  dos 
ânimos,  libertação  dos  detidos  politicos  e  á  mistura  de  cri- 
minosos vulgares,  e  por  fim  a  mais  completa  perturbação  da 
ordem. 

"  Em  fim,  a  6  d'este  mez,  contava  Maler  para  Pariz, 
um  regimento  de  artilheria  excedendo-se  em  vociferações  e 
espirito  de  amotinação,  o  Governador,  avisado  do  tumulto, 
enviou  ao  quartel  o  Brigadeiro  Salazar  para  tratar  de  acal- 
mar a  desordem.  Quando  começava  a  exhortar  o  regimento, 
um  capitão,  talvez  receioso  do  effeito  das  suas  palavras, 
apressou-se  em  atravessal-o  com  a  espada  e  Salazar  ca'hio 
immediatamente  morto.   ( i )   Ao  saber  do  assassinato  o  Go- 


(1)  o  assassinado  Bão  foi  Salazar,  que  era  cliefe  do  regimenti 
flo  infantaria,  sim  o  brigadeiro  Manoel  .Toaquim  Barbosa,  chefe  do  re- 
gimento de  artilheria  e  portuguez,  diz  Miiniz  Tavares,  altivo  e  severo. 
quando  procedia  A  prisão  dos  officiaes  sus-peitos.  Salazar  fez  parte 
dos  officiaes  superiores  que,  em  conselho  na  fortaleza  do  Brum,  decidi- 
ram o  qne  o  goveraador  desejava,  a  saber,  a  capitulação  sem  derrama- 
mento de  sangue. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  793 

vernador  mandou  um  dos  seus  ajudantes  de  campo,  que  foi 
igualmente  victíma. 

Emquanto  que  isto  se  passava  nos  quartéis,  três  Brazí- 
leiros  percorriam  a  cidade,  reuniam  a  multidão  e  pregavam 
a  revolta,  vociferando  contra  o  Governo  e  contra  os  euro- 
peus. Estes  três  chefes  eram:  i^  um  negociante,  Domingos 
José  Martins,  recentemente  chegado  de  Londres,  onde  que- 
brara fraudulentamente;  2"  António  Carlos  de  Abreu,  (i) 
que  durante  vários  annos  fora  magistrado  em  Santos,  actual- 
mente ouvidor,  accusado  de  assassinato  e  vivendo  na  mais  pa- 
cifica, e  aqui  mais  vulgar,  impunidade;  3-  o  Vigário  de  uma 
parochia  (2)  ;  este  scejerado  para  melhor  se  impor  á  multidão 
teve  a  infâmia  de  se  revestir  do  sobrepeliz  e  da  estola.  São 
visivelmente  os  três  chefes  da  insurreição,  e  Domingos  José 
Martins  é  o  mais  influente  de  todos.  (3)  Ouviam-se  com 
frequência  gritos  de:  Viva  a  independência!  Viva  a  liber- 
dade dos  filhos  da  pátria  !  Morram  os  europeus  !"  (4) 

Os  successos  da  revolução  de  181 7  são  de  sobejo  conheci- 
dos. Os  factos  que  lhe  assignalaram  a  curta  duração,  encon- 
tram-se  miudamente  historiados  em  Muniz  Tavares  (5)  e 
syntheticamente,  quando  não  gongoricamente  romantizados 
em  discursos  e  paneg>TÍcos  sem  conta.  A  recentissima  publi- 
cação  das  Notas  Doininicaes    (6)    veio  ajuntar  outra  rela- 


(1)  António  Carlos  de  Andraãa,  ouvidor  em  Olinda. 

(2)  O  padi*e  .Toão  Ribeiro  não  era  vigário  de  parochia,  sim  ca- 
pellão  do  hospital   do  Paraíso. 

(3)  Para  ser  bem  exacto,  deveria  Maler  ter  dito  que  Domin- 
gos Martins  já  estava  recolhido  na  cadeia  donde  violentamente  o 
soltou  o  tenente  de  artilheria  António  Henriques.  Só  então  poude  elle 
entrar   a   exaltar   a   republica   com   o   seu   enthusiasmo   communicativo. 

(4)  Trad.    cit.    do   officio   de   28  de   Março  de   1817. 
(.'))   Historia  da  Revolução  de  1817. 

(6)  Edição  do  Instituto  Archeologico  de  Pernambuco,  em  tra- 
ducção  do   Sr.   Alfredo   de   Carvalho. 

D.  J.  —  50 


794  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ção  fidedigna  de  mais  uma  testemunha  presencial.  A  narra- 
ção do  sacerdote  liberal  e  os  pormenores  de  Tollenare 
acham-se  plenamente  confirmados  nas  informações,  neste 
caso  distantes  mas  sempre  bebidas  na  boa  fonte,  de  Maler, 
e,  o  que  aqui  mais  avulta  e  importa,  nas  declarações  pres- 
tadas em  França  pelos  capitães  de  embarcações  dessa  nacio- 
nalidade então  surtas  no  porto  do  Recife.  ( i ) 

Eram  em  numero  de  quatro  taes  embarcações.  Segundo 
Luiz  Vicente  Bourges  (Borges?),  Lisboeta  domiciliado  em 
Nantes,  immediato  e  sobrecarga  do  navio  do  mesmo  porto 
La  Felicite,  houve  vinte  pessoas  mortas  no  motim  de  6  de 
Março,  contando-se  no  numero  três  marinheiros  francezes 
que  não  responderam  ao  quem  vive  f  dos  patriotas.  Ava- 
liava elle  a  força  regular  dos  insurgenfes  (entrando  de  certo 
as  milicias,  porque  o  effectivo  dos  dous  regimentos  de  linha 
estava,  ao  tempo  do  movimento,  bastante  reduzido)  em 
2.500  a  3.000  homens.  Quando  La  Felicite  se  poz  ao  mar  a 
12  de  Março,  pois  que  a  circumstancia  da  revolta  lhe  per- 
mittio  reunir  uma  grande  carga,  sobretudo  de  algodão,  a 
preços  vis  por  continuar  o  embargo  sobre  os  navios  nacio- 
naes,  occupavam-se  os  rebeldes  de  manhã  á  noite  em  exerci- 
tar-se,  melhorar  a  defesa  das  fortalezas  e  outros  pontos 
principaes  de  resistência,  e  organizar  a  cavallaria. 

Outra  testemunha  do  mesmo  género,  o  capitão  do  navio 
La  Perle,  eleva  o  numero  dos  mortos  a  50  ou  60,  visto 
que,  como  sempre  acontece  em  semelhantes  occasiões,  apro- 
veitaram-se  os  que  de  repente  se  viram  com  as  armas  na  mão 
para  satisfazer  antigas  vinganças  ou  dar  simplesmente  curso 


I 


(1)  Estas  declarações,  tomadas  nos  portos  de  entrada,  foram 
remettldas  pelo  Ministério  da  Marinha  t»  Colónias  ao  de  Estrangeiros 
da  França,  em  cujo  aricliivo  9»  eoií^ontram. 


DOMVOAO  VI  NÔ  BRAZIL  795 

aos  seus  ínstinctos  bestiaes.  E'  mister  não  esquecer  que  d'a- 
quellas  mortes  no  bairro  de  Santo  António,  quasi  todas, 
foram  culpados  os  facinoras  libertados  da  cadeia  e  não  os 
soldados  e  milicianos,  tanto  que  a  ulterior  occupação,  pelos 
regulares  d'esta  revolução  em  summa  ordeira,  do  bairro  do 
Recife,  não  foi  manchada  por  igual  morticínio. 

Pensava  aliás  este  segundo  declarante  que,  não  se  offe- 
recendo  resistência  em  parte  alguma,  se  não  teria  dado  ma- 
tança si  não  fosse  o  boato  de  um  appello  feito  pelo  inten- 
dente da  marinha  (Cândido  José  de  Siqueira)  aos  tripolan- 
tes  das  embarcações  portuguezas  fundeadas  dentro  dos  arre- 
cifes, que  estimulou  a  violência  dos  rebeldes  e  chamou  a 
suspeição  e  a  ogeriza  contra  tudo  que  tivesse  apparencia  de 
maritimo.  Dos  quatro  homens  de  bordo  da  Perle  que,  com 
receio  da  pilhagem,  para  lá  carregavam  do  armazém  estabe- 
lecido pelo  seu  capitão  para  a  venda  a  retalho,  17  a  18.000 
francos  em  ouro,  trez  foram  summariamente  espingardeados 
e  ao  quarto  apunhalaram  nas  costas  e  partiram  um  braço, 
não  o  acabando  os  assassinos  de  matar  e  até  o  levando  para 
um  hospital  quando  verificaram  ser  um  Francez.  O  capitão 
assim  se  exprimio  textualmente:  "Os  negros  livres  e  escravos, 
bem  como  os  mulatos  armaram-se  de  picas,  machados,  etc, 
e  massacraram  todos  os  que  no  primeiro  momento  tenta- 
vam fugir,  particularmente  marinheiros ;  os  insurgentes  tendo 
sabido  que  o  filho  do  intendente  fora  a  bordo  das  embarca- 
ções portuguezas  surtas  no  porto,  afim  de  pedir  aos  tripo- 
lantes  que  acudissem  em  soccorro  dos  realistas". 

As  peripécias  essenciaes  são  uniformemente  relatadas, 
d'ellas  não  existindo,  a  bem  dizer,  duas  versões.  O  governa- 
dor continuou  até  a  ultima  a  ser  homem  de  paz,  sa- 
hindo  do  palácio  á  primeira  descarga  para  encerrar-se  na 


796  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

fortaleza  do  Brum  e  ahi  se  render,  desdenhando  os  elemen- 
tos de  resistência — bem  superiores  aliás  aos  dos  insurgentes 
que  no  bairro  de  Santo  António  ainda  operavam  com  fra- 
gmentos de  regimentos,  sem  organização  e  com  pouco  arma- 
mento— que  no  Recife  mesmo  se  agrupavam  e  viram-s€  dis- 
persos pela  ousadia  de  um  dos  officiaes  rebeldes.  Este  homem 
decidido  (i)  foi  quem  se  apoderou  da  ponte  do  Recife 
quando  os  Portuguezes  se  dispunham  a  cortal-a  para  me- 
lhor defenderem  sua  causa,  isolando-se,  de  facto  abdicando 
com  aquelle  gesto  a  intenção  de  recuperarem  a  posição  per- 
dida, da  qual  os  rebeldes  logo  se  assenhorearam  por  com- 
pleto, arvorando  sua  bandeira  improvisada  e  proclamando 
sua  creação  menos  improvisada. 

Seguio-se  entre  a  gente  boa  da  cidade,  do  commercio 
especialmente,  que  era  todo  portuguez,  a  infallivel  deban- 
dada, movida  pelo  terror.  Estes  primeiros  emigrados,  che- 
gando á  Bahia  n'uma  embarcação  que  logo  se  fez  de  vela  e 
informando  o  conde  dos  Arcos  do  occorrido,  p€rmittiram-lhe 
tomar  suas  precauções:  chamar  a  si  a  tropa,  redobrar  de 
vigilância,  prevenir  cada  um  dos  suspeitos  da  sorte  que  o 
esperava  si  se  atrevesse  a  pronunciar-se,  e  distribuir  procla- 
mações realistas  que  nos  parecem  hoje  ridiculas  na  sua  rhe- 
torica  empolada  e  affectada  vehemencia,  mas  que  foram 
efficientes,  suffocando  toda  velleidade  revolucionaria  e  pro- 


(1)  Mubíz  Tavares  attribue  o  feito  ao  tenente  António  Hen- 
riques, pelo  qual  mostra  grande  parcialidade :  Tollenare  ao  capitão 
Pedroso,  mestiço  de  certa  instrucção  e  valente,  que  de^u  voz  de  fogo 
contra  o  ajudante  de  ordens  Alexandre  Thomaz.  N'um  dos  seus  in- 
teressantes Estudos  Pernambucanos. — Os  motins  de  Fevereiro — o  Sr. 
Alfredo  de  Carvalho  descreve  com  exactidão  histórica  e  senso  do  pit- 
tx>re«co  as  ulteriores  façanhas,  em  luctas  civis,  do  Indisciplinado  of- 
ficial. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  797 

(luzindo  o  resultado  visado,  que  era  o  socego  fiel  da  provín- 
cia. Arcos  procedeu  em  summa  como  general  que  era: 
si  fosse  homem  de  toga,  teria  talvez  procedido  como  Cae- 
tano Pinto,  que  mesmo  as  denuncias  mais  fundadas  despre- 
zou, até  ser  tardio  o  tratamento  do  mal  ainda  que  violento. 

Pode  ter-se  como  certo  que  a  sedição  pernambucana 
tinha  a  sua  ramificação  bahiana,  e  é  possivel  que  á  rápida 
acção  do  conde  dos  Arcos,  que  tão  grande  desanimo  local  ge- 
rou, não  fosse  extranha  a  preoccupação  de  dissimular,  ou  antes 
fazer  desapparecer,  cahindo  no  vago  e  por  fim  no  esqueci- 
mento, uns  confusos  projectos  de  conspiração  aristocrática, 
tendente — si  vera  cst  fama — a  substituir  um  throno  por 
vários  thronos,  e  desconhecida  a  não  ser  pela  referencia 
indistincta  de  uma  proclamação  do  governo  provisório  do 
Recife  aos  Bahianos.   ( i ) 

Outro  tanto,  sem  quiçá  os  precedentes,  aconteceria  no 
Ceará,  onde  a  missão  do  sub-diacono  Alencar  veio  a  gorar 


(1)  o  theor  d'este  documeBto  differe  de  resto  em  Muniz  Ta- 
vares e  em  Mello  Moraes  {Historia  das  Constituições),  sendo  dVste  a 
versão  meio  sy^billíBa.  Ha  quem  diga,  e  houve  então  quem  pensasse, 
que  a  revolução  pernambucana  fora  gerada  em  Tiisboa — certamente 
nas  lojas  maçónicas — devendo  o  movimento  sedicioso  ser  simultâneo 
nos  dous  iReinos  e  ter  por  objectivo,  a  começo,  obrigar  Dom  João  VI 
a  voltar  paTa  Lisboa.  Os  Portuguezes  reclamavam  o  seu  Rei  e  as 
suas  regalias,  e  os  Brazileiros  (jue  já  sonhavam  com  republica,  ou 
pelo  menos  com  indnpondencia.  tinham  a  peito  afastar  o  obstáculo 
principal  <1  proclamação  dos  seus  princípios  democráticos  ou  Ilberaes, 
l'ode  também  suippor-.se  que  Arcos  estivesse  mettido  at^é  certo 
ponto  na  conspiração  no  intuito,  que  vingooi  mais  tarde,  de  ficar  como 
mentor  do  joven  Regente  Dom  Pedro,  ou  melhor  na  esperança  de  voltar 
a  ser  com  mais  esplendor  o  que  era  em  1808,  o  vlce-rei,  de  uma  nação 
porém  já  feita,  não  mais  de  uma  colónia.  Na  aitmosphera  particular 
de  Pernambuco,  em  cuja  composição  entravam  a  indiseiípUna  e  o  phi- 
losophismo,  e  tendo  occorrido  a  cireums-tancia  decisiva  do  essassinato 
dos  dous  officiaps  generaes.  a  solução  demagógica  irrompeu  brusca- 
mente, duplicàfido  o  furor  de  Arcos,  a  um  tempo  enganado  nas  suas 
cmbiçrifs  e  «avergonhado,  para  o  que  procurava  desabafo  na  irrita- 
ção, por  se  haver  associado  na  origem  a  semelhantes  conchavos  per- 
turbadores. 


798  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

como  a  do  padre  Roma  á  Bahia,  graças  á  teimosia  do  capi- 
tão-mór  do  Crato,  um  velho  malfeitor  que  para  o  crime  se 
valia  da  sua  auctoridade,  e  á  energia  do  governador.  Mau 
gra'do  quaesquer  sympathias  que  intimamente  despertasse 
n'essas  duas  capitanias,  não  conseguio  a  revolução  attrahir 
á  sua  orbita  subversiva  mais  do  que  a  Parahyba  e  o  Rio 
Grande  do  Norte. 

Este  era  o  maior  susto  da  corte,  que  o  movimento  se 
propagasse,  effeito  que  Maler  julgava  inevitável;  e  a  facili- 
dade com  que  nas  duas  provincias  satellites  foram  levadas  de 
vencida  as  poucas,  débeis  resistências  levantadas,  faz  suppor 
uma  corrente  occulta  de  solidariedade  cujo  circuito  já 
estivesse  estabelecido,  a  menos  que  não  implique  uma  matéria 
extremamente  amorpha  de  experiência  democrática.  Não 
podia,  porém,  ser  este  ultimo  tanto  o  caso,  porque  no  meio 
da  geral  apathia  ignorante  existia  um  núcleo  illustrado, 
elemento  directivo  que  então  exercia  mais  decidida  influencia 
do  que  hoje,  arrastando  as  vontades  irresolutas  e  determi- 
nando as  adhesões  inconscientes. 

Semelhante  elemento  estivera  sujeito  a  uma  verdadeira 
iniciação,  a  um  trabalho  de  illuminação  politica  de  que  ti- 
nham sido  conductores  os  sacerdotes  lidos  em  philosophia 
revolucionaria  que  foram  os  principaes  agentes,  propagado- 
res e  martyres  ^'essa  revolução  de  padres,  o  que  pelo  menos 
no  Brazil  d'aquella  epocha  significava  uma  revolta  da  intelli- 
gencia. 

Tanto  foi  a  insurreição  de  1817  um  movimento  muito 
mais  de  principios  que  de  interesses  que  Tollenare,  especta- 
dor e  chronista  insuspeito  d'elle,  não  aponta  sequer  entre  as 
suas  causas  razão  alguma  económica.  Apenas  lhe  descobrio 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  799 

razões  moraes :  a  ambição  positiva  de  uns  e  a  imaginosa  chi- 
mera  de  outros,  as  duas  bolindo  com  os  sentimentos  nativis- 
tas, aggravando  os  despeitos  e  humanamente  acirrando  a 
cupide::.  Teve  portanto  a  revolução  pernambucana,  e  bem 
saliente,  a  sua  formosa  feição,  pois  que  captiva  e  fascina 
quanto  representa  nobre  aspiração  de  liberdade,  a  qual  sabe- 
mos não  vicejara  no  Brazil,  nem  mesmo  depois  que  a  trans- 
plantação da  corte  determinara  uma  mudança  climatérica. 
O  governo  das  provincias  continuou  muito  a  ser  o  das  capita- 
nias: o  governo  do  bom  ou  do  mau  tyranno.  Feliz  a  terra 
quando,  como  a  Bahia,  se  lhe  deparava  um  governador  como 
Arcos  que  nos  seus  sete  annos  de  governo  (1810-1817),  si  não 
deu  ensanchas  ao  espirito  politico,  confundindo  o  civismo  com 
a  lealdade  dj^nastica  e  equiparando  o  patriotismo  á  dedica- 
ção monarchica — termos  que  se  não  excluem,  mas  que  po- 
dem viver  separados — pratica  e  efficazmente  protegeu  a  in- 
strucção  publica,  o  desenvolvimento  intellectual,  as  commu- 
nicações  fluviaes,  o  commercio  e  a  defeza  militar. 

A  revolução  apresentou-se  comtudo  com  suas  vestimen- 
tas usuaes  de  indisciplina,  desordem  e  violência.  Sua  estréa 
foi  o  homicidio  de  militares  de  graduação  por  officiaes  sub- 
alternos e,  para  sustentar-se,  si  bem  que  a  perfilhassem  e 
favoneassem  o  clero  nutrido  de  idéas  francezas  e  a  aristocra- 
cia territorial  túrgida  de  orgulho  de  nascimento  e  de  senti- 
mento bairrista,  tinha  ella  de  tornar-se  demagógica  e,  na 
falta  de  outro  povo,  appellar  para  a  plebe  de  cor.  A  carta  de 
um  Portuguez  a  seu  compadre,  descrevendo  a  cidade  depois 
do  levante,  diz  que  se  não  viam  mais  do  que  casas  fechadas, 
não  apparecendo  nas  ruas  a  gente  branca,  e  que  os  patriotas 
negros  e  mestiços  que  pejavam  as  calçadas,  em  vez  de  anda- 


soo  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rem  como  d'antes  pelo  meio  da  estrada,  tinham  modos  inso- 
lentes de  abordar  os  Europeus  e  pedir-lhes  fumo. 

O  commercio,  pelo  duplo  motivo  do  sentimento  nacio- 
nal e  da  desconfiança,  só  podia  ser  adverso  ao  movimento 
emancipador  e  republicano,  o  qual  não  dispondo  senão  limi- 
tadamente de  forças  regulares — as  que  se  rebellaram  fize- 
ram-no  por  espirito  de  imitação  muito  mais  do  que  por  cons- 
ciência patriótica  e  não  offereciam  plena  confiança  em  caso  de 
incertezas — ^e  tendo  que  luctar  contra  um  sentimento  monar- 
chico  que  provou  ser  ainda  fervoroso  em  muitos,  ou  pelo  me- 
nos com  o  temor  do  desconhecido  entre  a  população  de  certa 
condição,  (i)  carecia  de  apoiar-se  nas  camadas  baixas.  A  ralé 
é  que  afinal  podia  dotar  a  revolução  do  largo  fundamento  de 
que  esta  precisava  para  exhibir  vigor  material  de  que  não  dis- 
punha, e  manifestar  enthusiasmo  mais  geral,  ainda  que  não 
mais  ruidoso  e  consistente,  do  que  o  fornecido  pelos  vigários, 
democratas  que  foram  a  cabeça  e  o  coração  do  movimento,  os 
senhores  de  engenho  de  sangue  azul,  rivaes  natos  dos  mas- 
cates como  o  da  carta  ao  compadre  (2)  e  os  patriotas,  em 
diminuto  numero,  de  biblio-suggestão,  fructos  das  acade- 
mias do  Cabo  e  do  Paraiso. 

A  revolução  de  Pernambuco  seguio  a  marcha  de  todos 
os  pronunciamentos  militares:  começou  por  augmentar  no 
triplo  ou  quádruplo  o  soldo  das  tropas,  dos  defensores,  offi: 
ciaes  e  soldados,  da  pátria  e  da  liberdade,  o  que  facilitou  a 
circumstancia    de   acharem-se   no    Erário   cerca    de    800.000 


(1)  " sem  «e  lo-mbrai-pm    (o.?  prniamhiicav-os  que  fitaram 

o«  Estiulos  Unidos  e  almejavam  o  desenvolvimento  da  pátria)  que 
com  facilidade  podo-Ro  transplantar  a  Lei.  mas  não  o  espirito  da  Na- 
Qão  ;  não  pensavão  que  no  Brazil  existia  lium  tlii-ono,  e  oecmpado  por 
hum  Rei  naturalmente  lx)m,  circumstancia  qne  muito  diversificava  a 
posição  respectiva."   (Muniz  Tavares,  ob.  cit.) 

(2)  1'ublicada  por  IVIello  Moraes  no  Brazil-Rcino   e  Bvazil-Im- 
peno. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  801 

escudos,  sendo  200.000  em  bilhetes  do  Banco  do  Brazil.  (i) 
Depois,  para  angariar  o  favor  popular,  o  governo  provisó- 
rio (2)  abolio  vários  impostos,  entre  elles  o  de  subsidio  mili- 
tar, de  160  réis  por  arroba,  sobre  a  carne;  para  prover  a  sua 
segurança,  determinou  a  compra  de  armas  e  munições,  mon- 
tou em  guerra  um  brigue,  duas  canhoneiras  e  outra  embar- 
cação, fazendo  appello  a  marinheiros  estrangeiros  por  des- 
confiar dos  portuguezes,  e  permittio  o  levantarem  particula- 
res companhias  de  cavallaria;  para  dar  arrhas  do  seu  fervor 
democrático,  ordenou  o  tratamento  de  vós  entre  os  patriotas; 
para  conciliar  a  classe  agrícola,  já  que  a  mercantil  lhe  fugia, 
facilitou  o  pagamento  das  dividas  á  extincta  Companhia  de 
Pernambuco,  cuja  liquidação  ainda  durava,  e  dif ferio  a 
emancipação  dos  escravos,  proclamando  *'que  a  base  de  toda 
a  sociedade  regular,  é  a  inviolabilidade  de  qualquer  espé- 
cie de  propriedade." 

Pode  dizer-se  que  os  actos  da  joven  Republica  foram 
todos  impressos  de  moderação  e  até  de  espirito  conservador, 
o  que  não  é  para  admirar  si  a  encabeçavam  e  dirigiam  a 
gente  de  bens  e  a  gente  de  illustração.  Os  actos  propria- 
mente politicos  também  foram  repassados  de  moral  jacobina 
— a  revolução  foi  paradoxalmente  honesta — e  de  affectada 
confiança.  Affectada  e  igualmente  espontânea,  pois  que  o 
celebrado,  já  lendário  orgulho  dos  Pernambucanos  (os  de 
boa  família,  senão  de  boas  lettras,  pela  maior  parte  plantado- 


(1)  Offioio  cit.  de  MaU'i-  de  28  de  Mar<;o.  Miiniz  Tavares  falia, 
em  600  contos.  O  Erário  foi  guarde  do  p-elo  mare^chal  José  Roberto  com 
o  grosso  da  railicia  até  ser  obrigado  a  ceder  e  ver  confraternizarem 
seus  soldados  com  os  de  linlia. 

(2»  Formado  de  cinco  membros,  representantes  do  commercio 
ÍI>oiningos  .José  Marlinsi,  da  magistratura  (.José  Luiz  de  Alendonc.-a), 
do  clero  (padre  .João  líibeiro  Pessoa),  do  exercito  (Domingos  Theoto- 
nio  Jorge)   e  da  agricultura    (Manoel  Corrêa  de  Araújo) . 


80â  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

res)  augmentara  com  a  fortuna  dos  últimos  tempos,  os  bons 
preços  do  algodão  e  do  assucar,  e  reflectia-se  nos  papeis  ema- 
nados do  governo  provisório,  ( i )  agindo  esta  fartura  de 
accordo  com  a  miséria  da  plebe  ao  rebentar  o  motim. 

Apezar  da  basofia  presagiar  intransigência,  a  tolerância 
republicana  foi  tanta  que  os  empregados  foram  todos  con- 
servados nos  seus  officios,  mediante  uma  adhesão  não  em 
extremo  difficil  de  obter.  Apenas  destoaram  d'essa  norma 
legal,  e  não  sem  explicação  ou  justificação,  a  abertura  das 
cadeias,  logo  corrigida,  e  annullação  dos  processos  civis  e 
criminaes,  e  o  sequestro  nas  propriedades  dos  negociantes 
que  por  causa  da  revolução  se  ausentaram  da  terra.  "A  8  de 
Março,  escrevia  o  insuspeito  Maler,  a  ordem  e  a  tranquil- 
idade estavam  perfeitamente  restabelecidas;  li  uma  carta 
de  um  negociante  inglez,  escripta  daquella  cidade  {Recife) 
a  9,  que  dizia  não  se  perceber  mais  o  menor  vestigo  da  revo- 
lução, gosando-s€  da  mais  perfeita  calma  e  segurança." 

O  capitão  da  Perle,  que  permaneceu  em  Pernambuco 
trinta  e  dous  dias  depois  de  arvoradas  as  cores  da  revolução, 
escrevia  que  nem  a  sua  embarcação,  nem  as  outras  nove  ou 
dez,  estrangeiras,  ancoradas  diante  do  Recife,  foram  no 
minimo  molestadas:  "os  direitos  ficaram  na  mesma,  o  nego- 
cio livre  e  requisição  alguma  foi  lançada,  a  não  ser  de  muni- 
ções de  guerra  que  havia  ordem  de  arrecadar  contra  paga- 
mento, por  decisão  do  governo  provisório".  (2) 


(1)  "Que  culpa  tiveram  os  Brazileiros,  dizia  o  manifesto  aos 
habitantes  da  provincia,  de  que  o  Principe  de  Portugal  sacudido  da 
sua  Capital  pelos  ventos  impetuosos  de  uma  invazão  inimiga,  sahindo 
faminto  dVntre  os  seus  Luzitanos,  viesse  achar  o  abrigo  no  franco  e 
generoso  Continente  do  Brazil,  e  matar  a  fome  e  até  a  sede  na  altura 
de  Pernambuco,  e  pela  quasi  Divina  Providencia,  e  liberalidade  dos 
seus  habitantes  ?  " 

(2)  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  Franga. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  803 

Quando  a  Perle  singrou,  a  8  de  Abril,  os  escravos, 
armados  no  começo,  tinham  restituido  as  armas  e  retomado 
sua  canga.  "O  novo  governo  até  me  concedeu  trez  marinhei- 
ros portuguezes  em  substituição  dos  meus  trez  homens  de 
tripolação  mortos  no  tumulto  do  primeiro  dia,  testemu- 
nhando seu  vivo  pezar  pela  calamidade  que  me  assaltara." 

E'  mesmo  possivel  que  a  situação  houvesse  melhorado, 
sob  o  ponto  de  vista  da  segurança  e  do  direito,  depois  da 
insurreição,  pois  não  pode  restar  duvida  de  que  a  provincia 
se  achava,  antes,  n'uma  condição  quasi  anarchica,  existindo 
para  a  sublevação,  ainda  considerada  objectivamente,  causa 
mais  do  que  sufficiente.  Quando  encerrasse  exaggeração  o 
quadro  publicado  no  Correio  Braziliense  ( l )  por  uma  tes- 
temunha ocular,  confirma-se  nos  seus  dizeres  a  impressão  de 
quão  aleatória  era  a  segurança  individual;  quão  relaxado  o 
governo;  quão  venal  a  justiça;  quão  deshonesta  a  adminis- 
tração, tanto  na  Junta  de  Fazenda,  por  onde  corriam  do- 
cumentos falsificados,  como  na  Alfandega,  onde  florescia 
publico  e  notório  o  contrabando,  chegando  a  desfaçatez  ao 
ponto  de  possuirem  officiaes  d'ella  lojas  de  fazendas,  como 
na  Intendência  de  Marinha,  ninho  de  falcatruas. 

Remettendo  para  a  França  o  Preciso  de  José  Luiz  de 
Mendonça,  penhor  do  seu  republicanismo  violentado,  o  ca- 
pitão da  Perle  achava-o  razoável,  enumerando  as  queixas 
que  havia  da  corte,  a  começar  pela  aggravação  das  contri- 
buições. 

O  governador,  todos  concordavam  e  a  testemunha 
ocular  do  Correio  o  proclamava,  era  o  único  talvez  dos 
altos   funccionarios   limpo   de   mãos;   mas  si   a  sua   indiffe- 


(1)    N.  109  de  Junho  de  1817,  vol.  XTIII. 


804  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rença  optimista  rastejou  antes  do  levante  na  inconsciência, 
tomando  reuniões  de  conspiradores  por  assembléas  de  ma- 
ções, achando-lhes  até  graça  e  cerrando  os  olhos  a  factos 
inilludiveis,  ao  ponto  de  correrem  no  Rio  boatos  que  em 
Pernambuco  Caetano  Pinto  desconhecia  e  no  emtanto  diziam 
respeito  ao  seu  governo,  depois  do  levante  a  sua  cordura  foi 
quasi  cobardia   (i). 

Não  foi  certamente  seu  exemplo  que  inspirou  o  conde 
dos  Arcos,  o  qual,  sem  esperar  instrucções  da  corte,  tomou 
logo  na  Bahia  as  providencias  necessárias  para  a  prompta 
repressão  da  sedição  visinha,  adoptando  uma  attitude  mili- 
tante e  até  feroz,  despachando  a  bloquearem  o  Recife  o 
único  pequeno  navio  armado  que  tinha  á  sua  disposição  e 
dous  mais  que  obteve  ou  arrancou  de  particulares,  e  fazendo 
antes  de  decorrido  o  mez  de  Março  seguir  um  corpo,  dispo- 


(1)  "O  Governador  Montenegro,  logo  no  primeiro  dia,  refu- 
giou-so  em  um  dos  fortes,  cuja  ponte  levadiça  fez  levantar ;  á  vista 
de  uma  intimação  de  render-se,  esicripta  n'um  farrapo  de  .pa'pel  e  sem 
assignatura  (o  que  não  é  exacto,  pois  o  ultimatum  era  firmado  pelos 
cabeças),  mandou  abrir  a  porta,  e  foi  conduzido  directamente  e  sera 
o  menor  vexame  para  bordo  do  brigue  que  o  trouxe  aqui.  Tendo  re- 
clamado o  seu  dinheiro  e  roupas,  a  Junta  imonediatamente  tudo  man- 
dou-lhe  entregar,  dizendo  que  assim  procedia  attendendo  a  sua  inte- 
gridade pessoal,  e  que  tudo  teriam  retido  se  elle  houvesse  roubado 
como  os  outros;  o  seu  dinheiro  subia  a  6.000  cruza'dos."  (Trad,  eit. 
do  officio  de  Maler  de  28  de  Março  de  1817). 

"  O  capitão  Thibaut,  de  La  Loui^se,  desde  o  primeiro  momento  da 
insoirreição  teve  a  generosidade  de  espontaneamente  ir  procurar  o  Go- 
vernador e  de  lhe  offerecer  (>  canhões  que  tinha  a  bordo,  pólvora  e 
tolda  a  sua  tripolação  para  apoiar  o  partiido  real.  Tendo  este  offereci- 
mento  sido  acceito  fez  desembarcar  as  peças  e  alguns  barris  de  pól- 
vora ;  mas,  devido  á  covardia  e  pusillanimidade  do  Governador,  este 
movimento  que  poderia  ter  animado  os  portuguezes  foi  inútil;  o  ca- 
pitão Thibaut,  vendo-se  só  e  sem  o  menor  apoio,  teve-  que  voltar  para 
bordo,  e  durante  a  noite  seguinte  poude  apenas  reembarcar  parte  dos 
seus  canhões  e  munições."  (Officio  de  Maler  de  1  de  Maio  :  trad.  na 
Rev.  do  Inst.  Arch.  de  Peni.)  O  immediato  de  L'Androm,aquc  que  fi- 
cara por  do;ente,  offereceu  pelo  contrario  seus  serviços  aos  insurgon- 
tes,  que  o  nomearam  official  do  brigue  então  armado. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  805 

nivel  e  improvisado,  de  1.500  homens  para  a  comarca  das 
Alagoas  com  ordens  terminantes  de  levar  tudo  a  ferro  e  a 
fogo.  "Nenhuma  negociação  será  attendida,  sem  que  preceda 
como  preliminar  a  entrega  dos  chefes  da  revolta,  cu  a  cer- 
teza da  sua  morte;  ficando  na  intelligencia  de  que  a  todos 
he  licito  atirar-lhes  a  espingarda  como  a  lobos."  Era  d'estas 
proclamações  que  Maler  se  espantava  mau  grado  todo  seu 
espirito  reaccionário. 

A  perspectiva  não  se  offerecia  desannuviada  aos  olha- 
res anciosos  dos  patriotas.  Já  a  29  de  Março  de  181 7 
escrevendo  ao  seu  governo,  o  cônsul  britannico  John  Lam- 
priere  augurava  mal  do  movimento:  "I  think  to  perceive  that 
the  generality  of  the  inhabitants  become  daily  more  gloomy" 
(i).  Com  effeito  os  soldados  da  revolução  desertavam  em 
grande  numero,  apezar  do  tão  considerável  augmento  na 
sua  paga,  tendo  que  serem  alistados,  para  encher-lhes  os 
claros,  muitos  escravos  aos  quaes  por  este  motivo  se  con- 
cedia alforria,  dando-se  ou  promettendo-se  indemnização 
aos  senhores.  Sobretudo  não  chegavam  noticias,  as  almejadas 
noticias  da  Bahia,  onde  os  rebeldes  contavam  com  adhe- 
sões  seguras,  quando  ao  envez,  d'esse  mesmo  lado  do  qual 
no  século  XVII  viera  o  soccorro  definitivo  para  a  expul- 
são dos  HoUandezes  —  auxilio  tão  indispensável  quanto 
foi  no  século  XVIII  o  francez  para  a  libertação  das  coló- 
nias inglezas  —  partia  agora  a  reacção  contra  o  grito  per- 
nambucano de  independência. 

Também  a  pobre  insurreição  em  parte  alguma  depa- 
rava com  as  sympathias  a  que  tinha  ou  se  julgava  com  di- 
reito, ou  de  que  nutria  confiança.  Nas  capitanias  do  Norte 


(1)   Aroh.  do  Min.  das  Rei.  Ext.,  Cari^esp.  da  Leg.  em  Londres. 


806  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

por  onde  até  certo  pwnto  se  propagara  o  movimento,  mas 
que  eram  porções  do  littoral  pouco  favorecidas,  menos  po- 
voadas e  constituindo  a  secção  mais  desprovida  de  recursos 
do  paiz,  a  contra-revolução  lavrou  rápida:  no  Rio  Grande 
do  Norte,  logo  que  se  ausentou  o  contingente  parahybano 
de  José  Peregrino,  na  Parahyba  por  um  impulso  espontâ- 
neo do  velho  espirito  tradicional  que  produziu  uma  reacção 
fatalista,  originando  um  conflicto  de  principíos  em  que  o 
receio  representava  papel  secundário. 

A  comarca  das  Alagoas  conservara-se  pode  dizer-se  que 
fiel  á  causa  legal.  Nella  echoara  debilmente  o  clamor  sub- 
versivo e  estalou  quasi  sem  provocação  a  contra-revolução  no 
Penedo,  passando  de  prompto  a  Maceió  e  vindo  em  offen- 
siva  deter  a  marcha  do  reforço  de  José  Mariano  Cavalcanti, 
mandado  do  Recife  para  o  sul  da  provincia. 

Com  as  colónias  revoltadas  da  America  Hespanhola 
não  houve  tempo  nem  sobretudo  ensejo  de  firmar  solidarie- 
dade. Nos  Estados  Unidos  a  repercussão  foi  nulla.  O  emis- 
sário António  Gonçalves  da  Cruz,  o  Cabugá,  para  lá  despa- 
chado a  obter  o  reconhecimento  e  protecção,  só  alcançou  a 
tardia  remessa  por  especulação  particular  de  provisões  de 
guerra  e  também  de  bocca,  que  estas  andavam  caríssimas 
no  Recife,  chegando  um  alqueire  de  farinha,  que  custava 
d'antes  1.600  a  1.920  reis,  a  pagar-se  por  9.200,  sem  appare- 
cer  o  género  no  mercado. 

Contra  essa  infracção  de  neutralidade,  posto  que  não 
official,  merecendo  comtudo  a  fiscalização  official,  pro- 
testou aliás  sem  demora  o  ministro  Corrêa  da  Serra, 
sendo  attendido  pelo  governo  federal,  como  o  fora  na 
sua  reclamação  contra  os  navios  armados  nos  portos  ame- 
ricanos, com  bandeira  dos  insurgentes  hespanhoes,  para  ata- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  807 

car  as  embarcações  da  metrópole,  e  também  as  portuguezas, 
estando  em  lucta  o  governo  do  Rio  com  Artigas  e  podendo 
dar-se  a  todo  momento  o  rompimento  com  o  governo  de 
Buenos  Ayres  ( i ) . 

Outro  motivo  de  reclamação  por  parte  de  Corrêa  da 
Serra  seria,  apoz  suffocada  a  rebellião  de  6  de  Março,  o 
proceder  do  cônsul  americano  Joseph  Ray,  accusado  pelo 
próprio  juiz  relator  da  alçada,  entre  outros  feitos  de  natu- 
reza politica,  de  communicações  mais  que  suspeitas  com  os 
revoltosos   e   com   officiaes   estrangeiros   por   estes   alliciados 


(1)  A  nota  de  20  de  Dezembro  de  1816  de  Corrêa  da  Serra 
a  James  Monroe,  Secretario  d'iEstado,  citaiya  com  precisão  vários  casos 
escandalosos  de  navios  de  corso  ficticiamente  vemãidos  a  armadores 
platinos.  e  ajuntava  muito  diplomaticamente: 

"Taos  factos  não  precisão  de  eplthetos  para  serem  propriamente 
qualificados,  e  por  isso  julguei  supérfluo  usar  delles.  Mostram  logo 
à  primeira  vista  a  sua  natureza  immoral  e  criminosa,  e  a  sua  oppo- 
sição  ao  direito  das  gentes.  Eu  conheço  perfeitamente  os  honrados  sen- 
timentos deste  Governo  e  desta  Nação,  para  não  conceiber  a  menor 
suspeita  de  que  olham  para  elles  em  outro  ponto  de  vista.  A  falta 
está  inteiramente  na  insuíficienicia  das  Leys  actuaes,  e  nas  evasivas 
que  offerecem  aos  culpados,  particulsranente  quando  são  ajudados  pela 
trapassa  forense.  Provavelmente  os  passados  legisladores  Americanos 
providenciaram  tão  imiperfeitamente  para  taes  occufrencias,  poi-que 
as  julgaram  imipossiveis  ;  mas  uma  vez  que  chegam  a  acontecer,  nada 
pode  justificar  esta  nação  aos  olhos  do  mundo  civilizado  s^não  a 
promulgação  das  leys  sufficientes  para  este  caso. 

Se  os  cidadãos  dos  Estados  Unidos  não  forem  impedidos  pelas 
Leys  da  sua  pátria,  de  serem  em  massas,  partes  agentes  em  guerras, 
que  não  são  suas,  não  dará  isto  logo  aos  olhos  de  todas  as  Potencias 
estrangeiras  um  caracter  e  uma  cor  piratica  e  odiosa  a  esta  nação, 
indignos  delia  ?  A  sua  paz  e  tramquill idade  serão  também  postas  em 
perigo,  porque  todo  o  governo  assim  offendido,  tem  um  direito  na- 
tural de  ressentir  e  vingar  com  todas  as  suas  forças  injurias  por  este 
modo  recebidas  contra  os  usos  do  mundo  civilizado.  Deve  pois  a  honra 
e  a  paz  do  povo  americano,  de  nove  milhões  de  pessoas,  a  immensa 
pluralidade  das  quaes  tem,  a  meu  perfeito  conhecimento,  um  caracter 
justo,  honrado  c  paciífico.  serem  postas  em  perigo  imminente,  pela 
culpável  cobiça  de  uns  poucos  de  homens  de  um  ou  outro  porto  de 
mar,  que  para  adquirirem  riquezas  não  tem  duvida  de  so  tomarem 
ipiratas  ?  Porque  do  facto  não  he  outra  cousa  andar  em  corso  em 
guerras,  que  não  sejam  as  da  nação  de  cada  um. 

iRcipresento  por  conseguinte  a  este  Governo  na  occasião  actual, 
não  para  começar  altercações,   ou   pedir  satisfacções,   quo  a   Constitui- 


808  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

(os  trez  bonapartistas,  do  exercito  francez,  engajados  pelo 
Cabugá  nos  Estados  Unidos,  chegaram  tarde)  e  de  acoutar 
na  sua  residência  trez  chefes  do  movimento  sedicioso  na 
Parahyba,  que  d'ahi  foram  arrancados  pela  policia.  O  go- 
verno americano  houve  que  destituir  o  seu  cônsul. 

Na  Inglaterra,  onde  o  governo  provisório  sonhara  fazer 
de  Hippolyto  o  seu  ministro,  o  apoio  á  revolução  foi  igual- 
mente, e  com  maior  razão,  .negativo,  obtendo  pelo  -contra- 
rio Palmella  facilmente  do  governo  do  dia,  como  era  de 
prever,  quanto  pretendia  em  detrimento  da  republica.  Só 
não  conseguio,  porque  o  gabinete  britannico  invocou  a  pro- 
pósito a  neutralidade  adoptada  entre  a  Hespanha  e  suas  co- 


ção  dos  Estados  Unidos  talvez  o  nao  habilita  a  dar,  porque  eu  co- 
nheço que  o  Supremo  Executivo  doesta  nação,  todo  poderoso  quando 
fstribado  em  Leys,  he  constitucionalmente  sem  acção,  quando  ellas 
lhe  faltam.  O  que  eu  solicito  delle  he  que  proponha  ao  Congresso  que 
dê  taes  providencias  por  Ley,  que  previnam  taes  attentados  para  o 
futuro." 

,'A  resposta  de  ilonroe  foi  a  remessa  ao  Congresso,  pelo  Pre- 
sidente Madison,  de  uma  mensagem  urgindo  a  necessária  extensão  das 
disposições  legislativas,  executivas  e  penaes  para  manter-se  a  neutra- 
lidade rigorosa  dos  Estados  Unidos,  podendo  ser  detidas  as  embarca- 
ções suspeitas,  exigida  previa  e  forte  fiança  dos  donos  e  commandan- 
tes  de  navios  armados,  e  punidos  os  transgi-essores,  em  julgamento, 
com  multa  que  não  passasse  de  10.000  doilares  e  prisão  que  não  ex- 
cedesse  dez   annos. 

E'  interessante  notar  que  o  resipeito  aos  direitos  dos  neutros, 
invocado  pelo  representante  portugnez,  constituía  por  esse  teraipo, 
quando  o  desconhecia  ou  pretendia  desconhecer  a  Inglaterra,  uma  das 
maiores  preoccupações  dos  Estados  Unidos,  tendo  até  formado  o  melhor 
das  instrucções  dadas  ao  sou  primeiro  ministro  no  Rio,  sendo  .Tof- 
ferson  Presidente  e  Madison  Secretario  d'.Estado.  Oecorreram  mesmo 
attritos  durante  a  guerra  de  1812-14  porque  as  auctoridades  portugue- 
zas  por  mais  que  affectasseim  neutralidade,  não  logravam  deixar  de 
mostrar-se  parciaes  aos  Inglezes,  sempre  que  para  isto  sobrevinha 
enseio-  até  no  dizer  das  reclamações  americanas,  por  occasiao  de 
ataques  de  èmbarcEções  dos  Estados  Unidos  -pelos  corsários  britannicos 
em  aguas  territoriaes  portuguezas.  ^      _.^  h'.í^c 

-Nos  incidentes  das  .presas  pseudo-platmas,  o  Departamento  d. Es- 
tado agiu  com  correcção,  fazendo  perseguir  os  delinquentes  pelos  pro- 
curadores (aitonieys)  de  distrlcto,  segundo  se  pode  ver  da  correspon- 
dência original  no  Arch.  da  Emíbaixada  Ameri<;ana  no  Brazil. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  809 

lonias  sublevadas,  como  um  precedente  a  respeitar,  a  coad- 
juvação de  fragatas  de  guerra  que  suggerira,  ao  julgar  no 
primeiro  momento  mais  temerosa  a  insurreição  do  que  na 
realidade  se  revelou. 

Acontecera  que  as  noticias  mais  cedo  espalhadas  ti- 
nham sido  as  trazidas  pelo  negociante  inglez  do  Recife 
Bowen,  amigo  de  Domingos  José  Martins  e  o  mesmo  em 
favor  de  quem  os  rebeldes  abrandaram  o  decretado  embargo 
maritimo.  Bowen  não  só  disseminou  informações  muito  opti- 
mistas com  relação  ao  triumpho  dos  patriotas,  como  em  de- 
feza  d'elles  fez  insinuações  nos  Estados  Unidos,  para  onde 
se  dirigira,  e  ao  Foreign  Office,  por  intermédio  do  ministro 
britannico  em  Washington.  Lord  Castlereagh  desprezou 
porém  semelhantes  insinuações  e,  sob  pretexto  de  acatar  o 
governo  legal,  contrariou  quanto  poude  o  movimento  de 
Pernambuco  (i). 

O  Board  of  Trade  mandou  affixar  um  edital  aconse- 
lhando os  navios  ingkzes  que  pretendessem  commerciar  com 
a  praça  do  Recife,  a  dirigirem-se  primeiro  á  Bahia  afim  de 
colherem  informações  sobre  a  marcha  do  conflicto  e  estado 
do  bloqueio,  que  poderia  entretanto  haver  sido  levantado. 
O  governo  britannico  consideraria  boas  prezas  de  guerra,  e 
não  reclamaria  os  navios  seus  nacionaes  que  fizessem  signal 
de  querer  romper  esse  bloqueio  participado  e  admittido. 

O  correio  deixou  de  receber  cartas  para  Pernambuco, 
a  não  ser  via  Bahia.  Mandou-se  embargar  nas  alfandegas 
inglezas  as  cargas  de  pau-brazil  —  monopólio  da  coroa  — 
que  os  insurgentes  pudessem  ter  remettido  para  disporem 
de  fundos.  A  conducta  do  cônsul  Lampriére,  de  apresentar-se 


(1)   Offlcio  rosorvado  dp  ralmella,   do  IG  do  Julho  do   1S17,  no 
Arch.    do   Min.   das  Rei.    Ext. 

D.  J.  —  51 


810  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

a  receber  o  seu  reconhecimento  da  junta  revolucionaria  (l), 
foi  fortemente  desapprovada,  informando-se  d'isto  o  func- 
cionario  que  o  governo  britannico  acreditava  em  todo  caso 
ter  erroneamente  agido  por  zelo,  para  mais  efficazmente 
proteger  as  pessoas,  bens  e  commercio  dos  vassallos  inglezes, 
e  não  por  extemporânea  e  indevida  boa  vontade  para  com 
os  insurgentes. 

Foi  em  nota  de  17  de  Julho  que  Palmella  se  queixou 
do  acto  estranhavel  de  um  funccionario  estrangeiro  que  ac- 
ceitava  de  uma  junta  rebelde  (2)  a  confirmação  das  suas 
funcções,  auctorizadas  pelo  governo  legal.  Na  sua  resposta  de 
13  de  Agosto,  communicava  o  Principal  Secretario  de  Es- 
tado na  repartição  dos  Negócios  Estrangeiros,  que  ''rece- 
bera ordem  do  Principe  Regente,  para  declarar  ao  conde  de 
Palmella,  afim  de  que  o  participe  a  S.  M.  Fidelíssima,  que 
elle  fortemente  desapprovou  o  comportamento  d'aquelle  em- 
pregado publico,  e  que,  em  consequência  d'isto,  ao  mesmo  em- 
pregado publico  se  fez  saber,  que  elle  obrara  de  um  modo 
directamente  contrario  ao  theor  da  sua  commissão;  c  que 
não  devia  terse  apresentado  tam  cedo  perante  aquellas  au- 
thoridades  irregulares,  ou  fazer,  sem  positiva  compulsão, 
qualquer  acto  que  fosse,  pelo  qual  desse  a  entender  a  um 
governo  usurpador,  que  elle  era  reconhecido  por  um  func- 
cionario Britannico".  (3) 


(1)  "O  cônsul  inglt>z  om  reniambuco  foi  convidado  pela  Junta 
a  .comparecer  na  sua  sala  de  reuniões,  para  ouvir  a  asseveraçcão  de  qiie 
seria  re^speltado  e  secundado  no  cumprimeiíto  dos  deveres  do  «eu  cargo". 
(Officio  cit.  de  Maler,  de  28  de  Março  de  1817).  Lamprièrc  fora  porém 
quf^m  provocara  essa  entrevista  com  a  sua  formal  adliesão  aos  factos 
consummados  e  estabelecimento,  por  iniciativa  sua,  de  relações  offi- 
ciaes  com  o  governo  provisório. 

Í2)   Passou-se  isto  a  11  de  Março. 

(3)      Correio  Braziliense  n.  112,  de  Setembro  de  1817,  vol.  XIX. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  811 

Como  a  Inglaterra  segue  comtudo  invariavelmente 
a  norma  de  defender  quanto  possivel  os  seus  funccionarios 
no  exterior  e  nunca  os  deixar  a  descoberto,  lord  Castlereagh 
accrescentava :  "O  abaixo  assignado  roga  todavia  ao  conde 
de  Palmella  haja  de  certificar  ao  seu  governo,  que  o  go- 
verno de  S.  A.  R.  está  convencido,  de  que  tudo  o  que  o  côn- 
sul de  S.  M.  obrou  n'aquelle  caso,  foi  mero  effeito  de  um 
zelo  mal  entendido,  para  proteger  a  legitima  propriedade 
e  commercio  dos  vassallos  de  S.  M.  e  que  por  nenhuma 
forma  fora  em  razão  de  ser  affeiçoado  aos  insurgentes,  ou  de 
ter  má  vontade  ao  governo  de  S.  M.  Fidelissima,  o  que  am- 
plamente se  prova  pela  sua  correspondência  official." 

Chegou  Palmella  a  alcançar  ( i ) ,  com  sua  insistência 
amável  e  graciosa  persuasão,  que  os  capitães  dos  paquetes  in- 
glezcs  (2)  deixassem  de  admittir  a  bordo  e  transportar  para 
Lisboa,  exemplares  do  Correio  Braziliense  e  do  Portuguez 
que,  a  propósito  da  revolução  pernambucana,  inseriam  ar- 
tigos julgados  sediciosos  e  publicavam  verdadeiros  libellos 
contra  os  Governadores  do  Reino  de  Portugal  e  Algarves 
(3).  Assegurava  Palmella  na  sua  correspondência  official 
que  obteria  o  mesmo  com  relação  ao  Brazil,  caso  o  quizes- 


(1)  Nota  rerbal  d?  lord  Castlereagli  ao  conde  de  Palmella,  de 
11  do  Julho  de  1817,  na  Corresp.  de  Londres  (Arch.  do  Min.  das 
ítel.  Ext.) 

(2)  Estabelecida  a  linha  como  sabemos  (vide  Cap.  sobre  rela- 
(.'õos  commerciaes),  por  uma>.convonção  especial  entre  as  duas  coi'ôas, 
para  dosenvolvimento  das  suas  rauiuas  relações  politicas  e  mercantis. 

(.'i)  ralmolla  pedira,  como  um  processo  mais  pratico  c  expedito 
para  a  sua  legaqão.  a  faculdade  de  solicitar  com  êxito  a  expulsão  do  re- 
dactor do  Portuguc-,  em  voz  do  chamal-o  á  responsabilidade  perante 
os  tribunaes  por  diffama-ão.  T.ord  Castlereagh  respondeu-lhe  porém 
que,  consultados  os  .iurisconsultos  da  coroa,  tinham  estes  opinado  que 
as  leis  vigentes  não  auctorizavam  uma  tal  violência  administrai iva.  i 
qual  seria  vivamente  atacada  pela  opposição  e  aliás  inutilizada  pela 
collocação  de  um  súbdito  britannieo  fl  frente  da  publicação  como  editor 
ostensivo  ou  testa  de  ferro.  (Nota  de  11  de  Agosto  de  1S17,  v,\  Cor- 
resp. de  Londres,  no  Arch.  do  Min.  das  Kel.  Ext.) 


812  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

se  o  governo  do  Rio  como  o  tinha  querido  a  Regência  ^c 
Portugal.  A  pouca  vontade  da  corte  em  associar-se  a  essa 
attitude  de  Palmella  para  com  certa  imprensa  periódica,  con- 
firma porém  que  Hippolyto  era,  como  se  dizia  em  Londres, 
protegido  do  gabinete  senão  do  próprio  monarcha. 

Das  monarchias  européas  nunca  tinham  esperado  sym- 
pathia  os  rebeldes  pernambucanos,  sobretudo  das  continen- 
taes.  O  agente  consular  francez,  que  era  o  horticultor  Ger- 
main,  e  nem  recebera  ainda  o  exequatur  régio,  mostrou-se 
sem  rebuços  infenso  ao  movimento,  pelo  que  ficou  suspeito 
á  Junta  —  a  qual  aliás  o  destituirá  do  seu  cargo  botânico  em 
Olinda  —  e  teve  por  melhor  retirar-se  para  o  Rio  de  Ja- 
neiro, onde  falleceu  ao  chegar.  As  esperanças  de  reconheci- 
mento, concentravam-nas  os  revoltosos  nos  Estados  Unidos, 
era  Artigas  e  no  governo  de  Buenos  Ayres,  ao  que  contDíi 
na  corte  um  negociante  francez  de  Bordéus,  Mr.  Vigneaux, 
embarcado  no  Le  Mercure,  do  Havre,  que  a  caminho  do 
Rio  fizera  aguada  em  Pernambuco  no  dia  5  de  Abril,  ahi 
tomando  aquelle  passageiro    ( i ) . 

A  revolução  pernambucana,  si  não  fosse  a  atmosphera 
•glacial  que  lhe  tolheu  os  movimentos  (2),  tinha  condições 
em  si  para  vingar  e  expandir-se,  tornando-se  Pernambuco 
o  centro  de  attracção  do  Brazil  independente,  ou  mais  ve- 


(1)  Offlclo   de  Maler  de   1   de   Maio   de   1817. 

(2)  O  sobrecarga  Bourges  o\\  Borges,  na  declaração  c:t:ida,  •re- 
fere também  que  os  patriotas  ficaram  logo  muito  inquietos  com  a  tran- 
quillidade  da  Bahia  e  Maranhão,  elemeoitos  com  que  contavam.  Kepetiu 
clle  mais  o  que  com  relação  á  Bahia  ouvira  :  que  o  gen.'-ral  comman- 
dante  (Arcos  certamente),  informado  da  sedição  do  Rícife,  mandara 
formar  as  tix>pas  e  as  interrogara  sobre  as  reclamações  que  podcssi^m 
ter  a  fazer,  satisfazendo  immediatamente  as  relailvas  ao  atvaiío  dos 
soldos  e  insufficien-eia  das  rações,  e  facultando  aos  soldados  traba- 
lharem por  conta  própria,  mediante  o  deposito  das  s.ias  armas  e  o 
compromisso  de  responderem  ao  primeiro  appello  militar.  "Estas  dis- 
posições, ajunta  a  de<;laração,  foram  acolhidas  ao5  grilos  de  Viva  El- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  813 

rosimilmente  a  primeira  secção  independente  do  novo  Reino 
desaggregado.  O  exemplo  das  colónias  hespanholas  agia  em 
seu  favor,  e  o  governo  descurara  anteriormente  e  por  com- 
pleto o  perigo  d'esse  inevitável  contagio  emancipador.  O  ca- 
pitão Hareng,  do  La  Perle  de  Honfleur,  depoz  que  tendo 
partido  para  Pernambuco  em  Fevereiro  de  1816,  encontrara 
a  terra  socegada,  apenas  frio  o  negocio,  mas  nos  espiritos  tão 
grande  a  fermentação  que  tudo  annunciava  que  a  provincia 
não  tardaria  em  participar  no  movimento  revolucionário  que 
sacudia  a  America  Hespanhola.  "Seguia-se  com  particular 
empenho  os  progressos  dos  insurgentes  hespanhoes,  sabendo 
o  próprio  governo  que  existiam  com  elles  intelligencias  pela 
via  marítima.  Para  alterar-lhes  o  ef feito,  foi  que  o  capitão 
general  entendeu  fazer  proclamações  e  passar  revistas,  recor- 
dando aos  habitantes  e  ás  tropas  a  confiança  e  fidelid-ide 
para  com  o  soberano,  e  promettendo  prompta  distribuição  de 
viveres  pois  era  sobretudo  da  carência  de  alimentação  que  os 
perturbadores  tiravam  partido  para  açular  os  ânimos"   (i). 

Por  outro  lado,  chegada  a  occasião  do  perigo,  o  go- 
verno encontrava-se  na  situação  mais  critica  para  comba- 
tel-o  e  extirpar  o  mal:  a  braços  com  a  guerra  do  Sul  o 
exercito,  um  exercito  de  of ficiaes  e  para  mais  incapazes  — 


Roy !  e  com  os  mdicios  da  maior  fidelidade".  Tal  a  versão  pernam- 
Ibucana. 

A  versão  offlcial,  expressa  n'um  dos  oftlcios  cifrados  de  Los- 
sops,  em  Lisíboa,  era  que  Arcos,  tendo  recebido  par  um  correio  as 
primeiras  noticias  da  revolta,  as  conservou  í!'ícvotis  at«  proceder  ás 
prisões  dos  suspeitos,  baseando-se  nas  queixas  dos  officiaes  para  assim 
agir. 

A  correspondência  de  Lesseps  faz  menção  da  avidez  do  fisco,  da 
venalidade  dos  funccionarios,  de  todo  o  sajbido  estxdo  social  e  moral 
do  novo  Reino,  commentando :  "Telles  sont  les  causes  qul  paraissent 
avoir  inspire  de  profonds  ressentimens  à  un  Peaplci  beaucoiip  plu.-; 
instruit  qu'<m  ne  pense  •et  plus  généraleraent  éclarré  que  celui  de  Ia 
M^étropole."    (Arch.   do   Min.   dos  Neg.   Est.   de   Fran(;a.) 

(1)    Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


814  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

que  custam  muito  e  de  nada  servem,  d'elles  escrevia  Maler 
— ,  e  sem  recrutas;  a  administração  concentrada  nas  mãos 
"de  um  ancião  minado  pela  febre  e  pelas  convulsões"  como 
era  Barca;  "esgotadas  as  finanças  e  nullo  o  credito",   (i) 

Tanto  mais  louvável  e  admirável  foi  portanto  o  serio 
movimento  de  reacção  que  teve  lugar  na  capital  brazileira 
contra  a  implantação  da  desordem  no  paiz  e  que  compre- 
hendeu,  além  do  estabelecimento,  a  i6  de  Abril,  de  um  se- 
vero bloqueio  da  costa  pernambucana  e  parahjbana  pela  es- 
quadra legal  (2),  a  organização  de  um  solido  corpo  ex- 
pedicionário ás  ordens  de  Luiz  do  Rego,  que  Maler  appel- 
lida  de  militar  bravo  e  leal,  sem  qualidades  de  administrador, 
porém  geralmente  estimado  pelas  suas  excellentes  quali- 
dades. 

A  difficuldade  em  arranjar  soldados  era  igual  á  de  de- 
senvincilhar-se  o  governo  dos  muitos  officiaes,  uns  a  meio 
soldo,  outros  circumstancialmente  licenciados,  pertencentes 
ao  exercito  de  Portugal,  que  pediam  serviço.  "Os  officiaes 
portuguezes,  communicava  o  encarregado  de  negócios  de 
França,  serão  sem  duvida  preferidos,  e  é  para  receiar  que 
isto  produza  mau  effeito  entre  os  Brazileiros.  Em  occorren- 
cias  e  conjuncturas  como  as  presentes,  urge  não  se  deixar 
só  guiar  pelos  principios  militares." 

Com  effeito  o  movimento,  ao  mesmo  tempo  que  anti- 
dynastico,  era  anti-portuguez  e  d'esta  sua  cor  tiveram  ni- 
tida  impressão  a  fidalguia  e  o  commercio  do  Rio  ao  tomarem 


(1)  Officio  de  29   de   Março  de   1817. 

(2)  A  esquadra  do  Rodrigo  Lobo  nSo  deixava  do  facto  ontrar 
neim  satiir  navio  aljçum.  mesmo  noutro,  sendo  as  f.mbircaoõos  eslvan- 
goiras  que  tentaram  forçar  o  bloqueio,  capturadas  c  loud.i/das  sob 
bandeira  portugueza  para  a  Bahia. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  815 

a  dianteira  em  todas  as  manifestações  de  solidariedade  com 
Dom  João  VI,  affligido  mas  não  succumbido,  e  bem  dis- 
posto a  dar  um  desmentido  ás  previsões  pessimistas  de  Maler 
e  dos  seus  collegas  diplomáticos,  os  quaes  todos  não  enxerga- 
vam os  meios  de  immediata  repressão,  acreditavam  na  propa- 
gação do  mal  anarchico  e  até  já  viam  imminente  a  forçada 
deserção  de  Montevideo  perante  a  diminuição  do  effectivo 
de  cccupação  e  bloqueio  e  o  desanimo  dos  partidários  da  an- 
nexação. 

A  7  de  Abril  inform.ava  comtudo  Maler  para  Pariz  que 
o  erário  vasio  fora  supprido  pelos  muitos  dons  voluntários 
e  os  empréstimos  gratuitos.  "O  Banco  d'esta  capital  pôz  á 
disposição  do  governo  um  milhão  de  cruzados,  a  titulo  de 
empréstimo;  o  barão  do  Rio  Secco  deu  50.000  cruzados,  e 
outros  capitalistas  deram  igualmente  sommas  consideráveis; 
o  conde  de  Belmonte  offereceu  10.000  cruzados,  o  marquez 
d'Angeja  a  sua  baixella  para  ser  fundida,  que  era  obra  do 
ourives  de  Pariz  Germain,  e  toda  a  alta  nobreza  lhes  seguio 
o  exemplo." 

Em  Lisboa,  o  fervor  pela  suffocação  da  rebellião  colo- 
nial foi  muito  menor,  o  que  facilmente  se  comprehende  em 
vista  do  afastamento  e  do  descontentamvento  que  causava  a 
indefinida  ausência  da  corte.  A  Regência,  no  fundo  pouco 
commovida,  não  quiz  entretanto  deixar  de  patentear  sua 
lealdade  e  devotamento  ao  soberano,  logo  organizando  uma 
pequena  força  marítima  para  ir  bloquear  o  porto  rebelde  e 
redobrando  de  rigor  na  fiscalização  dos  navios  procedentes 
do  Brazil.  A  exhibição  de  energia  do  conde  dos  Arcos  na 
Bahia,  onde  os  primeiros  armamentos  navaes,  ajudados  es- 
pontânea ou  calculadamente  pela  gente  abastada  da  terra, 
se  fizeram  na  phrasc  de  Maler,  com  uma  presteza  que  não 


816  DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL 

era  de  esperar  da  índole  portugueza  (i),  instigou  tanta  acti- 
vidade entre  os  governadores  do  Reino  que  os  levou  a  ex- 
tremas violências  politicas. 

Segundo  o  cônsul  geral  Lesscps  (2),  foi  da  sedição 
pernambucana  que  nasceu  a  idéa  de  uma  conspiração  ''cuja 
existência  e  fito  não  posso  ainda  adivinhar,  mas  que  podia 
entretanto  fazer  temer  a  disposição  do  espirito  publico.  Con- 
vocou-se  adrede  uma  reunião  extraordinária  dos  membros  do 
governo,  com  assistência  do  marechal  (Beresford)  e  de  todos 
os  conselheiros  d'Estado,  guardando-se  sobre  ella  o  mais  ri- 
goroso sigillo,  até  que  hontem  se  soube,  com  grave  surpreza 
de  todos  os  habitantes,  que  muitas  prisões  tinham  sido  ef- 
fectuadas  na  noite  de  domingo  para  segunda-feira  de  Pente- 
costes, circulando  muitas  tropas  na  cidade,  e  estando  prom- 
pto  a  entrar  ao  primeiro  signal  um  reforço  de  alguns  regi- 
mentos congregados  nos  subúrbios  de  Lisboa  e  pelos  quaes 
se  distribuirá  cartuchame." 

Tão  de  molde  apparecia  essa  conspiração,  que  não  fal- 
tou quem  pensasse  e  ha  quem  pense  ainda  que  Beresford  se 
inspirou  em  Fouché  e  se  valeu  de  tal  meio  para  preparar  os 
resultados  de  um  plano  mais  vasto,  o  qual,  no  dizer  de  Lesseps, 
o  espirito  perspicaz  da  multidão  immediatamente  descobriu 
entre  os  refolhos  da  politica  ingleza:  quer  isto  dizer  que 
compartilhava  de  semelhante  opinião  o  cônsul  do  Rei  Chris- 
tianissimo. 


(1)  Doup  grandes  navios  de  trez  mastr>s  e  clous  brigiips  .iá,  a 
5  de  Abril,  se  fizer£m  de  vela,  e  não  devem  tardar  oin  s.?.:?irtI-os  um 
outro  navio  de  trez  mastros  e  duas  embarcações  ligeiras.'"  (Officio 
de  Maler  de  29  de  Abril).  Tollenare  falia  n'uma  grande  fragata  vinda 
do  Rio  n'nquella  occasião  e  que  deve  porventura  s.íi*  contada  entre  as 
quatro  primeiras  embarca(;ões. 

(2)  Officio  cifrado  de  27  de  Maio  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  817 

O  meio  de  facto  mais  seguro  para  o  governo  britannico 
de  obstar  á  tão  fallada  invasão  hespanhola  de  Portugal  em 
represália  da  occupação  de  Montevideo,  seria  prevenil-a 
por  meio  de  uma  occupação  ingleza  de  Lisboa,  assim  indi- 
rectamente provocada  pela  revolta  de  regimentos  nacionaes. 
Por  outro  lado  parecia  este  o  melhor  modo  de  dar  realidade 
ao  constante  desejo  da  corte  de  Saint  James  e  fazer  regressar 
para  o  velho  Reino  a  familia  real  portugueza. 

Gomes  Freire  foi  a  victima  illustre  que  na  occasião 
se  offereceu  e  cujo  supplicio  precedeu  de  trez  annos  a  ex- 
plosão do  rancor  popular.  Então  o  seu  patibulo  se  ergueu 
a  meio  do  espanto,  da  consternação  e  do  receio,  assim  como 
na  Bahia  o  trágico  episodio  do  fusilamento  do  padre  Roma, 
encarregado  de  activar  as  ligações  clandestinas,  se  passou 
rodeado  d'um  silencio  lúgubre  e  medroso.  O  anno  corria 
péssimo  para  as  idéas  liberaes. 

Quando  o  corpo  expedicionário  de  Luiz  do  Rego,  de 
quasi  3.000  homens  (i),  embarcou  a  30  de  Abril  (2)  jun- 
tamente com  muitos  voluntários  das  milicias,  formando  com 
a  gente  da  Bahia,  Sergipe  e  Alagoas  um  total  approximado 
de  8.000  homens,  no  calculo  de  Maler,  o  desanimo  reinava 
sem  partilha  na  provincia  rebelde.  No  Rio  no  emtanto  cons- 
tava e  causava  apprehensões  a  propalada  actividade  do  go- 
verno provisório  no  organizar  a  resistência,  confiada  em 
terra  a  4.000  ou  5.000  homens,  conforme  se  orçava  depois 
de  augmentados  os  regimentos,  e  no  mar  "a  um  brigue  com 


(1)  Compiraha-se  de  2  batalhões  de  infantari:"!.  1  da  gvanailoi- 
ros.  1  da  caçadores,  dous  esquEdrões  que  deviíra  receber  a  cavalhada 
na  Bahia  (e  d"ahi  regressaram  por  inúteis)  e  um  destaicxmento  de  ar- 
tilharia de  160  horaons  e  8  peças  de  campanha.  (Officio  de  Maler 
de   2   de   Maio   de    1817). 

(2)  Partiu  a  expedição  a  4  de  Maio  na  aau  Vasco  da  Cama, 
servjndo  de  transporte,  com  um  brigue  e  duas  suin.icas. 


818  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  • 

22  canhões,  uma  bella  escuna  americana  armada,  varias  gran- 
des chalupas  e  canhoneiras  promptas  a  sahir,  além  de  outros 
grandes  navios  mercantes  que  pretendem  armar  em 
guerra"  (i). 

Dizia-se,  com  o  mesmo  exaggero,  serem  permanentes 
os  trabalhos  no  arsenal  do  Recife,  como  com  verdade  o  es- 
tavam sendo  os  esforços  bellicos  do  governo  do  Rio,  sobre- 
sahindo  em  afan  o  monarcha  que  não  cessava  de  visitar  os 
arsenaes  de  guerra  e  marinha  e  em  pessoa  apressar  —  "com 
sua  presença,  seu  ardor  e  seus  cuidados"  — '■  os  preparativos 
de  repressão,  que  fazia  morosos  a  falta  de  trabalhadores  e  de 
materiaes. 

A  revolução  não  merecia  mais  tanto.  Ao  recrutamento 
em  terra  correspondia  no  Recife  a  emigração,  sequestrando 
a  Junta  os  bens  dos  que  assim  se  ausentavam,  como  seques- 
trara os  navios  portuguezes.  Não  menos  se  despovoava  a 
cidade  pelo  pavor  do  bombardeio  por  parte  da  esquadra 
legal,  cujo  apparecimento  originara  defecções  entre  os  ca- 
pitães portuguezes  —  os  únicos  possiveis  á  falta  de  nacionaes 
—  dos  navios  armados  em  guerra  pelos  rebeldes. 

Perdera-se  de  vista  o  lado  theorico;  sumira-se  o  idea- 
lismo da  revolução.  Ninguém  mais  cogitava  dos  principies 
liberaes,  das  leis  reform^adoras :  o  essencial  era  a  salvação 
de  cada  um.  Uns  poucos  — o  padre  João  Ribeiro,  Domin- 
gos Martins,  António  Carlos,  Domingos  Theotonio  — man- 
tinham-se  firmes,  si  já  lhes  não  era  licito  esperar.  Os  outros 
tão  desorientados  andavam  que  os  Portuguezes  ricos  se 
atreviam  a  offerecer  loo  contos  aos  membros  do  governo, 
para  que  renunciassem  á  lucta  e  se  evadissem.  O  povo,  por 
sua  vez,  tratava  todos  elles  de  aristocratas  e  não  mais  se 


(1)    Officio  cit.  de  2  de  Maio  do  1S17. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BiUZIL  SlO 

deixava  impressionar  pelas  suas  arengas.  Aliás  o  povo  con- 
servara-se,  como  o  observou  Tollenare,  sem  enthusiasmo 
pelo  ensaio  democrático  que  diante  d'elle  se  desenrolava, 
sem  mesmo  uma  comprehensão  nitida  do  que  se  estava  pas- 
sando: somente  percebia  com  clareza  que  a  sua  situação  não 
melhorara  effectivamente  como  lhe  haviam  annunciado,  e 
que  continuava  a  soffrer  as  mesmas  privações  que  d'antes. 
Quanto  ao  commercio,  escusado  é  referir,  andava  por  com- 
pleto paralysado,  irritando  a  gente  que  d'elle  vivia. 

A  revolução  pernambucana  foi  derrubada  pelos  próprios 
elementos  conservadores  e  até  populares  da  capitania,  antes 
de  se  dar  a  intervenção  de  fora,  da  mesma  forma  que  a  res- 
tauração portugueza  de  1654  foi  executada  pelos  elementos 
brazileiros  desajudados  mesmo  da  metrópole.  Antes  de  che- 
gadas as  forças  da  Bahia,  que  subiam  lentamente  ao  mando 
do  marechal  Cogominho  de  Lacerda  (i),  já  a  republica  es- 
tava militarmente  desmoralizada.  A  lucta  civil  abrira-se 
entre  realistas  e  patriotas,  os  senhores  de  engenho  fieis  com 
quem  dos  seus  navios  (2)  se  correspondia  o  almirante  Ro- 
drigo Lobo,  e  os  400  homens,  parte  sabidos  do  Recife,  onde 
havia  ao  todo,  entre  regulares  e  milicianos,  4.000  homens  ou 
mais,  e  parte  reunidos  no  Cabo,  sob  as  ordens  de  Francisco 
de  Paula  Cavalcanti  que  foi  o  peco  general  d'esse  simulacro 
de  republica. 

O  combate  de  Utinga,  um  assalto  de  engenho,  foi  um 
episodio  inteiramente  local  pela  composição  das  facções  que 
ahi  se  disputaram.  Entretanto,  na  capital.  Pedroso,  passando 


(1)  Muniz  Tavares  (ob.  cit.)  oi-qnva  estas  forças  em  800  ho- 
mens a  partida,  antes  de  se  lhes  aggregarem  as  milícias  de  Sorç.pe 
d'El-Roi  e  os  legalistts  de  Alagoas  que,  com  os  voluntários  do  sal  de 
Pernambuco,  as  elevaram   a   muito  mais  do  dobro   ou   ao  triplo. 

(2)  Uma  fragata  {Thetis) ,  duas  corvetas  e  uma  escuna. 


820  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

das  bravatas  aos  actos  de  que  era  um  dos  poucos  capazes,  as- 
signalava  o  inicio  da  anarchia  com  os  seus  fuzilamentos  sem 
processo  dos  desertores,  annunciando  com  taes  descargas  ha- 
ver cessado  a  legalidade  democrática. 

Uma  relativa  cordura  nunca  faltou  comtudo  á  rebellião 
de  6  de  Março  que,  antes  de  varrida  pelo  temporal  levan- 
tado do  Sul,  se  tinha  ido  desfazendo  com  as  manifestações 
separadas  de  reacção  provincial,  provocando  uma  geral  con- 
flagração graças  ás  tentativas  de  repressão  do  governo  pro- 
visório. A  estas  se  associara  em  pessoa  Domingos  Martins, 
indo  porém  estonteado  entregar-se,  sem  possibilidade  de  re- 
sistência, pela  dispersão  das  forças,  a  um  destacamento  de 
Cogominho,  o  qual  entrementes  alcançara  Serinhaem  e, 
subindo  até  Ipojuca,  a  13  de  Maio  (i)  destroçou  Francisco 
de  Paula,  obrigando-o  a  refugiar-se  no  Recife. 

A  causa  foi  então  considerada  perdida  e  tratou-se  da 
capitulação,  mas  tendo  Rodrigo  Lobo  recusado  acceital-a 
nos  termos  propostos  pelos  revoltosos  e  mostrado  mesmo 
desdenhar  as  ameaças  de  morticínio  de  todos  os  Europeus, 
formuladas  em  ultimiatum  por  Domingos  Theotonio  erigido 
em  dictador  —  tão  certo  estava  o  lobo  do  mar  da  doçura  do 
cordeiro  republicano  —  ,  assistiram  as  destinadas  victimas  da 
sanha  jacobina  ao  espectáculo  inesperado  da  evacuação  da 
capital,  sede  do  governo  rebelde. 

ToUenare  conta  com  mais  pormenores  do  que  Muniz 
Tavares  como  se  passou  a  contra-revolução.  De  ig  para  20 
de  Maio,  os  patriotas,  de  todo  descoroçoados,  retiraram-se 
para  Olinda  em  numero  de  6.000,  inclusive  os  escravos  e 
libertos,  levando  as  bagagens,  a  artilheria  e  o  cofre  militar. 


(í)    Cogominho    chegara    a    It?    de    Maio    á    margem    sergipana 
do  São   Francisco. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  821 

A  cidade  ficou  virtualmente  deserta,  do  que  um  padre  correu 
a  dar  aviso  aos  marinheiros  das  embarcações  surtas  dentro 
do  porto,  para  que  desembarcassem  de  madrugada  a  toma- 
rem conta  do  Recife,  arvorando  de  novo  o  pavilhão  real 
que  o  mesmo  sacerdote  ia  desfraldar  "por  sua  conta  e  risco". 
Ao  nascer  do  sol  uma  pequena  embarcação  portugueza  içou 
com  effeito  a  bandeira  legal,  outras  imitaram-na  e  seus 
canhões  salvaram,  sem  que  lhes  respondessem,  mudas,  as 
fortalezas  de  terra,  ainda  com  guarnições  insurgentes,  que 
constituíam  uma  reserva  á  disposição  de  Francisco  de  Paula 
Cavalcanti  para  proteger  a  retirada  do  grosso  das  forças. 

Nos  quartéis  abandonados  encontrou  a  marujada  por- 
tugueza, uma  vez  em  terra  firme,  armas  e  munições  bas- 
tantes, e  dos  fortes  se  apoderou  sem  opposição  porque  aos  seus 
defensores  já  lhes  faltava  por  completo  o  estimulo,  tendo-se 
o  chefe,  Francisco  de  Paula,  bandeado  com  a  multidão  que 
dava  vivas  ao  Rei,  e  á  frente  d'esta  corrido  elle  próprio  a 
libertar  os  presos  politicos  da  revolução,  entre  os  quaes  o  ma- 
rechal José  Roberto,  que  provisoriamente  se  encarregou  do 
governo    (i). 

Os  brigues  armados  pelos  patriotas  foram  igualmente 
desamparados  e  occupados  sem  combate.  A's  7  horas  a  muta- 
ção de  scena  era  perfeita,  agitando-se  de  novo  as  cores  por- 
tuguezas  á  viração  que  ia  passar  a  soprar  do  mar,  onde  se 
divisava  immovel  a  esquadra  do  bloqueio,  que  só  ás  8  ^, 
iníormad'a  por  mensageiro  dos  gratos  successos,  deu  signal 
de  si,  respondendo  ás  jubilosas  saudações  de  terra.  Passava 
de  4  horas  da  tarde  quando  Rodrigo  Lobo  desembarcou  com 
50  homens,  insufficientes  mesmo  para  guarnecer  as  fortale- 
zas e  sobretudo  para  conter  os  marinheiros  libertadores  que, 


(1)    Muniz    Tavai-os,    ob.    cit. 


822  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ébrios,  percorriam  as  ruas  dando  tiros,  perseguindo  os  pou- 
cos patriotas  que  se  afoitavam  a  sahir,  e  ao  acaso  matando 
também  neutros.  ( i ) 

Durou  esta  desordem  trez  dias,  porque  a  23  chegava 
do  sul,  com  os  louros  de  um  fácil  triumpho,  o  exercito  legal. 
O  exercito  patriota,  abandonado  á  sua  sorte  pelos  chefes 
que,  com  excepção  do  padre  João  Ribeiro,  fugiram  disfarça- 
damente, cada  um  pelo  seu  caminho,  debandara  a  trez  lé- 
guas do  Recife,  voltando  os  soldados  para  a  cidade  attrahidos 
pelo  perdão,  e  entregando-se  com  as  armas  na  mão  —  os 
que  ainda  as  conservavam  intactas,  pois  não  poucos  as  tinham 
quebrado  no  primeiro  momento  de  desespero.  Outros  muitos, 
os  constrangidos,  desertaram  em  massa,  como  o  deixava  pre- 
ver a  pouca  firmeza  com  que  tinham  marchado  á  sabida  da 
praça.  Nenhum  no  emtanto,  lembram  com  justo  orgulho  os 
panegyristas  da  revolução  pernambucana,  se  manchou  com 
assassinatos  e  pilhagem.  Os  que  retrocederam  e  se  renderam, 
carregaram  até  como  penhor  da  submissão  o  cofre  militar 
incólume.  (2) 

N'outras  disposições  de  espirito  a  resistência  teria  sido 
fácil  e  a  victoria  illustraria  a  bandeira  republicana  nos  pri- 
meiros encontros,  pois,  no  dizer  de  ToUenare,  as  forças 
da  Bahia  não  inspiravam  extraordinário  receio,  só  tendo  de 
soffrivel  a  cavallaria.  No  seu  numero  entravam  em  propor- 
ção não  despresivel  Índios  com  seus  arcos  e  flechas,  lavrado- 
res e  moradores  agarrados  sem  armas  e  quasi  sem  roupa  no 
caminho  da  fiel  comarca  das  Alagoas  para  o  norte  rebelde. 


(1)  Notas   Dominicaes. 

(2)  E'  sabido  que  estes  soldados  da  revolta,  calculadamento 
nnmistiados  no  primeivo  momento,  foram  cercados  pela  tropa  leal 
(uiando  assistiam  desarmados,  como  medida  de  correcção,  ao  sup- 
plicio  d'um  pj.triota,  e  transportados  para  Montevideo  mau  grado 
as  supplicas  de  suas  famílias,  pois  constituíam  forças  regiona^^s, 
radicadas  á   ttrra. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  823 

Os  bons  militares  disciplinados,  os  aguerridos  veteranos  por- 
tuguezes,  tropas  que  Tollenare  chama  excellentes,  só  depois, 
a  29  de  Junho,  chegaram  com  Luiz  do  Rego,  portador  de 
proclamações  e  instrucções  redigidas  na  corte  sob  o  influxo 
benigno  de  Dom  João  VI  e  a  tendência  que  nunca  deixara 
de  ser  liberal  do  conde  da  Barca,  e  destoando  singularmente 
das  emphaticas,  soffregas  e  cruéis  exhortações,  que  Maler  ap- 
pellidava  ães  boutades  irre  fie  chies,  de  Arcos. 

No  Rio  de  Janeiro  a  noticia  da  suffocação  do  movi- 
mento foi  acolhida  com  foguetes,  repiques  de  sinos  e  illu- 
minações  geraes,  escrevendo  Maler  que  nas  noites  de  15  e 
16  de  Junho  a  sua  modesta  casa  foi  o  sol  do  seu  bairro.  No 
momento  de  espalhar-se  o  feliz  boato,  d'essa  vez  verdadeiro, 
400  a  500  pessoas  da  corte  correram  a  felicitar  o  monarcha 
pelo  restabelecimento  da  sua  auctoridade,  pejando  os  salões 
de  São  Christovão.  Tão  satisfeito  ficou  também  o  Rei  com  a 
nova  da  rápida  desapparição  do  movimento  sedicioso,  de  que 
muito  se  temera  a  generalização,  quão  pezaroso  —  elle  pró- 
prio o  repetiu  varias  vezes  a  Maler  (i) — ^pela  dura  neces- 
sidade a  que  se  via  exposto  de  ter  que  mandar  executar  os 
cr.beças  da  revolução. 

O  sentimento  não  parece  destituido  de  sinceridade,  pois 
que  a  rigidez  com  que  procedeu  Luiz  do  Rego,  em  desaccordo 
com  o  espirito  das  ordens  que  recebera,  mais  tarde  descon- 
tentou o  soberano.  A  3  de  Novembro  de  181 7  escrevia  Maler 
que  a  conducta  do  governador  geral  de  Pernambuco,  a  sa- 
ber, a  severidade  excessiva  por  elle  empregada,  refreara  os 
ânimos  mas  revoltara  toda  a  gente  e  alienara  todos  os  cora- 
ções. Sabia  o  encarregado  de  negócios  de  França  estar  o  Rei 
muito    desgostado,    ainda    que    pela    natural    hesitação    que 


(1)    Officlo   de   20   de   Junho   de   181' 


824  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZlh 

o  distinguia  até  tomar  uma  deliberação  —  quando  a  vacilla- 
ção  se  convertia  em  obstinação  —  não  tivesse  ainda  cuidado 
de  dar-lhe  um  successor  mais  prudente  e  mais  adequado  ao 
estado  convulsionado  da  capitania,  que  assim  continuava,  no- 
tando ToUenare  como  custou  a  restabelecer-se  a  confiança, 
affluir  a  gente  do  matto  e  reanimar-se  o  commercio. 

O  espectáculo  que  a  Luiz  do  Rego  se  deparara  tinha 
entretanto  sido  de  Índole  a  abrandar  qualquer  furor,  de  tão 
triste  €  impressivo.  Da  Junta,  o  padre  João  Ribeiro,  frio  e 
intrépido  esse,  tivera  único  a  coherencia  de  morrer  como  ci- 
dadão livre,  suicidando-se,  e  a  sua  cabeça,  decepada  do  corpo 
mutilado  e  passeada  em  triumpho,  entre  motejos,  pelas  ruas 
da  cidade,  estava  exposta  descarnada  e  horrivel  no  Pelouri- 
nho. Corrêa  de  Araújo  já  antes  do  dia  20  trahira  a  causa 
que  nunca  de  coração  abraçou.  José  Luiz  de  Mendonça,  pre- 
ferindo não  ser  traidor,  entregara-se  á  prisão.  Domingos 
Martins,  preso,  espumava  de  raiva  impotente,  emquanto  o 
não  transportavam  com  António  Carlos  (recolhido  de  motu 
próprio  á  cadeia).  Pedroso,  José  Mariano  Cavalcanti  e  uma 
porção  mais  de  patriotas  amarrados  ou  acorrentados,  para 
os  cárceres  e  patibulos  da  Bahia.  Domingos  Theotonio,  o 
dictador,  que  faltara  ao  seu  destino  para  que  não  possuia  o 
talento  nem  o  vigor  das  resoluções  decisivas  e  salvadoras, 
era  atraiçoado  no  seu  esconderijo,  do  mesmo  modo  que  o 
Leão  Coroado,  o  vigário  Tenório  de  Itamaracá  e  António 
Henriques,  o  único  dos  quatro  que  escapou  á  forca  do 
Recife. 

O  elemento  portuguez,  novamente  preponderante  na 
orientação  politica,  reclamava  porém  severidade  na  reacção, 
consubstanciando  suas  idéas  de  governo  no  regimen  militar 
arbitrário  applicado  ao  Brazil,  inclinado  á  rebeldia,  e  muito 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  825 

especialmente  na  restauração  do  monopólio  commercial.  O 
corpo  d€  negociantes  do  Recife  expressara  seu  jubilo  fa- 
zendo um  dom  de  30  contos  ao  exercito  libertador  e  orga- 
nizando em  sua  honra  uma  festa  de  espavento  na  matriz  do 
Corpo  Santo,  com  trez  dias  de  lausperenne,  cânticos  sem 
fim,  dous  sermões  e  duas  bênçãos  do  Santissimo  por  dia. 

Os  pregadores  trovejavam  em  vernáculo  salpicado  de 
muito  latim  contra  a  impiedade  e  o  jacobinismo;  pregado- 
res d'além  mar  já  se  sabe,  visto  os  padres  do  novo  Reino 
quasi  todos  se  enfileirarem  entre  os  liberaes  ou  nutrirem 
sympathia  pela  revolução,  e  isto  por  duas  razões:  l-,  porque 
eram  das  poucas  pessoas  que  sabiam  ler  e  das  raras  instrui- 
das,  para  as  quaes  portanto  o  horizonte  se  abria  amplamente  ; 
2°,  porque  eram  muito  mal  remunerados,  embolsando  o  Rei 
o  dinheiro  do  dizimo  como  grão-mestre  de  Christo,  senhor 
do  padroado  e  sustentador  do  clero  e  fazendo,  do  que  perce- 
bia, uma  magra  distribuição  que  constituia  ainda  assim  o 
melhor  do  apanágio  ecclesiastico  (l). 

Nos  intervallos  dos  sermões  eivados  de  puro  luzita- 
nismo,  e  n'uma  deliciosa  combinação  de  sagrado  e  profano, 
serviam-se  iguarias,  doces  e  refrescos  nas  galerias  superio- 
res do  templo.  As  damas  em  trajes  de  gala,  carregadas  de 
jóias,  que  se  ajoelhavam  e  sentavam  sobre  os  tapetes  da  nave, 
iam  então  espairecer  com  os  officiaes  de  Luiz  do  Rego, 
gente  da  m'elhor,  rapazes  de  bonne  mise,  escrevia  ToUenare 
em  seu  canhenho,  instruidos  e  finos:  "ce  que  Téducation  du 
grand  monde  offre  de  plus   délicat,  se  presente  dans  leurs 


(1)  O  rendimento  do  arcebispado  da  Bahia  nunca  subio 
n'aquelles  tempos  a  mais  de  10  contos,  e  o  do  bispado  do  Rio  de 
Janeiro  a  mais  de  6  contos. 

D.  J.  —  02 


826  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Sua  entrada  fora  triumphal,  por  entre  as  acclamações 
do  povo  e  as  bênçãos  dos  mercadores  assomados  ás  janellas 
adornadas  de  alcatifas  e  colchas,  de  onde  as  senhoras  sa- 
cudiam flores  sobre  os  esbeltos  restauradores  da  Lei,  a  cujo 
som  longinquo  de  guerra  se  esvaíra  de  terror  a  segunda 
era  da  liberdade  pernambucana  —  como  a  contava  o  mal- 
dito governo  provisório,  ingenuamente  classificando  como  a 
primeira  a  do  dominio  hoUandez.  Combates,  lhes  não 
proporcionara  o  fado  na  província  que  tivera  a  ousadia  de 
pensar  e  a  loucura  de  tentar  a  sua  independência  democrá- 
tica: a  tarefa  estava  mesmo  abaixo  de  tão  nobres  e  experi- 
mentados guerreiros,  e  melhor  fora  que  a  tivessem  executado 
os  da  terra,  os  Brazíleiros  bisonhos. 

Ficara-ihes  o  presenciarem  as  execuções,  suavisando-as 
com  zombarias  aos  patriotas,  escutadas  pelas  damas  temero- 
sas, algumas  d'ellas  muito  vexadas  com  o  seu  cabello  cortado 
á  Tito,  para  condescenderem  com  Domingos  Martins  que 
reclamara  e  cuja  esposa  dera  o  exemplo  d 'esse  sacrifício  da 
vaidade  á  austeridade  republicana.  Como  entremez,  as  sur- 
ras nos  negros  alforriados  pela  revolução,  antes  de  restituí- 
dos aos  senhores.  Dos  açoites  públicos  quizera  até,  no  paro- 
xismo da  prepotência,  Rodrigo  Lobo  fazer  passível  um  capí- 
íão  americano  que  conseguira  escarnecer  do  bloqueio.  Os  pro- 
cessos de  castigo  eram  todos  summarios,  mas  exhaustivos. 

Por  fim  foi  a  justiça  militar  suspensa  por  ordem  do 
Rio  e  instituída  uma  alçada  composta  de  quatro  velhos  ma- 
gistiados  do  Desembargo  do  Paço  e  da  Casa  da  Supplícação, 
que  com  sua  meticulosidade  irritante  e  legal  impassibilidade 
rematou  a  obra  dos  carrascos  e  carcereiros  que  em  Pernam- 
buco e  na  Bahia  tinham  ceifado  vidas  honradas  ou  estavam 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  827 

cobrindo  de  opprobío  as  torturadas  existências  dos  patriotas 
agarrados,  agrilhoados  e  transportados  para  a  capitania  vi- 
sinha  quando  ainda  fallecia  na  rebelde  auctoridade  para  eri- 
gir tribunal,  que  não  possuia  o  almirante  nem  o  marechal 
Cogominho. 

Foi  esse  o  reinado  menos  violento,  mas  não  menos  pe- 
rigoso da  delação  e  da  denuncia,  e  pareceu  eternizar-se. 
Dous  annos  depois,  não  tinham  terminado  os  trabalhos 
judiciaes  da  corte  especial.  Removeram-na  para  a  Bahia  a 
exigências  do  capitão  general,  enciumado  na  sua  auctoridade 
e  também  não  enxergando  mais  utilidade  n'um  custoso  ap- 
parelho  de  justiça  que,  para  justificar  sua  funcção,  ameaçava 
taxar  de  cumplicidade  na  revolta  todos  os  pernambucanos  ou 
melhor  todos  os  Brazileiros  das  capitanias  compromettidas, 
por  onde  se  extendia  a  sua  jurisdicção. 

A  alçada  de  1817  foi  brutalmente  abolida  pelos  acon- 
tecimentos que  responderam  no  Brazil  á  revolução  liberal  do 
Porto,  de  Agosto  de  1820,  sendo  a  sua  devassa  substituída 
pela  acção  regular  da  justiça  que,  pela  voz  da  Relação  de 
São  Salvador,  pronunciou  a  nullidade  do  processo,  inquinado 
de  vicios,  e  mandou  soltar  os  presos,  com  excepção  de  Pe- 
droso e  José  Mariano,  accusados  de  homicidio  e  condemnaJos 
a  degredo  perpetuo  —  perpetuo,  n'um  momento  em  que  nadi 
havia  senão  temporário  — para  "íi  Ásia.  Descia  o  panno 
sobre  este  clemente  epilogo  de  um  drama  de  sangue  sobre  o 
qual,  politicamente,  Malcr,  bom  contemporâneo  de  Mar- 
montel,  assim  condensava  sentenciosamente  o  seu  juizo: 
"  L'histoire,  Monstigneur,  conservera  le  souvenir  de  peu 
d'événements  aussi  dangereux  par  les  conséquences  qu'il  pou- 
vait  avoir,  et  aussi  promptement  aussi  facilernent  même  pré- 
venu  dans  ses  effets." 


828  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZlL 

Com  menos  concisão  e  um  nada  mais  de  pretenção  lit- 
teraria,  versejava  sobre  o  caso  lealmente,  dythirambicamente, 
pomposamente,  com  todos  os  advérbios  em  mente  que  dizia 
haver  proscripto  seguindo  **o  immortal  Filinto  Elysio", 
n'um  canto  épico  á  acclamação  faustissima  do  liberalissimo 
Rei  Dom  João  VI,  o  vate  e  vassallo  fiel  Estanislau  Vieira 
Cardozo,  "Segundo  Escripturario  do  Banco  do  Brazil,  e  Se- 
cretario do  I"  Regimento  de  Cavallaria  de  milicias  da 
Corte"  : 

Mas  não  Te  penes,  Principe  !  Um  momento 

De  perfidia,  e  desdouro  não  faz  vulto 

No  quociente  de  séculos  de  Gloria. 

Troveja  o  Claro  Ceo;  benigno  é  sempre. 

Cumpre  porem   Olhar  attento   a   Esphera: 

São  das  exhalações  os  raios  prole. 

Enunciada  esta  insólita  ousadia, 

Tua  Alma  nobre  por  extremo  afflicta. 

Mais  pelo  que  urge  o  Nacional  Decoro 

Que  pelo  que  é  de  Ti,  que  em  fim  E's  Grande, 

Ha  de  nadar  de  jubilo  em  torrentes, 

Quando  á  porfia  em  turmas  accorrêrem 

Povos  fieis  ingénuos  a  offrecer-Te 

Os    mais    prezados    bens  —  Fortunas  —  Vidas  — . 

Assim  f aliava  a  Dom  João  VI  espavorido,  o  gigante 
Amazonas,  "de  gotejante  longa  melena,  e  barba  denegrida,  e 
cor  tostada",  ao  sahir-lhe  ao  encontro,  novo  Adamastor, 
quando  "do  Pinhal  undivago  alvejavam  inchadas  velas"  a 
caminho  do  Brazil  onde 

constante  querer-Te  hão  os  Povos. 


CAPITULO  XXI 


A  DIPLOMACIA   ESTRANGEIRA   NO   RIO -CALEPPI  E   BALK-POLEFF 


A  mudança  da  corte  portugueza  para  o  Rio  de  Janeiro 
implicara  naturalmente  a  mudança  do  corpo  diplomático 
acreditado  junto  á  mesma  em  Lisboa,  e  quando  viessem  mais 
tarde  agentes  para  junto  da  Regência,  como  esteve  algum 
tempo  Canning,  para  o  Brazil  se  trasladara  o  melhor  do  in- 
teresse das  questões  agitadas  e  tratadas  no  meio  particular 
e  suggestivo  da  politica  internacional. 

Com  a  França  e  a  Hespanha  as  relações  estavam  de 
começo  cortadas,  e  ao  se  restabelecerem  muito  promptamente 
com  a  segunda  d'essas  nações  por  motivo  da  usurpação  na- 
poleonica  em  Madrid,  logo  partiu  para  o  ultramar  o  re- 
presentante do  monarcha  legitimo,  ou  pelo  menos  da  Junta 
que  no  seu  nome  pretendia  agir.  O  representante  britannico 
se  não  demorara  em  acompanhar  em  pessoa  a  trasladação,  da 


830  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

qual  pars  magna  fuit  ( i ) .  Si  de  resto  tivesse  o  Imperador 
Napoleão  conseguido  transformar  o  reino  de  Portugal  em 
departamentos  francezes,  aprisionando  Dom  João  e  a  fa- 
milia  de  Bragança,  ao  Brazil  aportaria  em  vez  de  um  mi- 
nistro um  pro-consul,  porque  o  governo  britannico  occuparia 
sem  hesitar  a  America  Portugueza  invocando  a  sua  própria 
segurança  a  zelar  (2),  segundo  havia  mesmo  declarado. 

O  núncio,  Monsenhor  Caleppi,  tampouco  tardou,  e 
como  cardeal  veio  a  morrer  no  Rio.  (3)  O  ministro  russo, 
conde  de  San  Pahlen,  é  que  só  em  181 2  chegou  de  Phila- 
delphia  na  galera  americana  Bingham :  tinha  sido  transferido 
dos  Estados  Unidos.  A  estes  havia  que  ajuntar  os  represen- 
tantes officiosos  (já  não  f aliando  nos  emissários  secretos) 
dos  governos  não  reconhecidos  de  Buenos  Ayres  e  de  Monte- 
video, e  depois  os  representantes  officiaes  da  França,  Prús- 
sia, Áustria,  Paizes  Baixos  e  Sardenha. 

O  Brazil  passara  a  encerrar  a  razão  de  ser  da  monar- 
chia,  e  como  tal  tinha  jus  á  primazia  nas  preoccupações  do 


(1)  Sir  Sidney  Sraitli  acotupanbníi  a  esquadra  porttigueza  alt'' 
lat.  .37fl  47'  N.  e  long.  14fi  17'  O.,  doixando-a  ahi  seguir  viagem  sol» 
a  protecção  dos  navios  Malhmongh,  London,  Monarch  e  BeâfouL 
(2)  Mrs.  Graham,  Journal  of  a  royage  to  Brasil,  and  rcfti- 
dence  there  ávring  part  of  lhe  ymrs  J821,  18Z2  1823.  London,  1824. 
Diz  esta  bem  informada  auctora  que  foi  na  previsão  perfeitamente 
nitida  d'esses  desastrosos  eventos  nacionaes,  que  o  Frlncipe  Re- 
gente cliamou  seus  confidentes — visconde  do  Rio  Secco,  camarista 
marquez  de  Vagos,  despenseiro  conde  de  Redondo,  almirante  da 
esquadra  Manoel  da  Cunlui  e  padre  José  Eloy,  tliesoureiro  da  Pa- 
triarchal — e  mandou  preparar  em  segredo  quanto  faltava  para  a 
partida  para  a  noit^e  depois  da  iramediata  (newt  night  hut  onc). 
Escreve  ainda  Mrs.  Graham  que  foi  o  Rio  preferido  A  Baliia  para 
residência  real  por  ser  de  defesa  mais  fácil  do  que  esta  vasta  eri- 
»eaJda  com  sua  entrada  escancarada,  e  melhor  abastecida  a  ci- 
dade pela  visinhança  de  Minas  Geraes  e  São  Paulo,  donde  lhe  vi- 
nham   rezes,    cereaes,    etc. 

(8)   Foi  enterrado  na  egi-eja  do  convento  da  Ajuda. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  831 

pessoal  directivo.  No  Congresso  de  Vienna,  dos  trez  assum- 
ptos ventilados  com  respeito  a  Portugal,  dous,  os  essenciaes 
—  o  trafico  negro  e  o  limite  das  Guyanas  ou  o  dominio  ex- 
clusivo do  Amazonas  —  interessavam  o  novo  Reino,  e  só  a 
menos  importante  posse  de  Olivença  se  relacionava  com  o 
Reino  velho.  A  mais  importante  questão  diplomática  do  rei- 
nado de  Dom  João  VI  —  a  encorporação  da  Cisplatina  — 
foi  exclusivamente  uma  questão  brazileira  originada  no  tra- 
dicional anhelo  pelo  limite  meridional  do  Prata. 

O  primeiro  ensaio  de  solução  d'este  problema  de  velha 
data,  o  qual  era  mais  complexo  do  que  podia  á  primeira 
vista  parecer  a  um  estadista  recemchegaído  da  Europa,  apres- 
sado nas  suas  deliberações  e  fraco  julgador  por  inexperiência 
dos  sentimentos  coloniaes,  coubera,  como  sabemos,  ao  génio 
irrequieto  de  D.  Rodrigo  de  Souza  Coutinho,  que,  logo  ao 
desembarcar  e  como  si  fosse  a  cousa  mais  simples  do  mundo, 
mandou  propor  ás  Provincias  do  Rio  da  Prata  —  suppon- 
do-as  justamente  avessas  na  sua  orphandade  á  tutela  fran- 
ceza  —  collocal-as  debaixo  do  protectorado  portuguez,  com 
a  guarda  dos  seus  foros,  a  garantia  do  seu  commercio  e  o 
abandono,  por  parte  dos  Inglezes,  das  passadas  e  todavia  re- 
centes pretenções  de  conquista. 

No  caso  de  uma  negativa,  ameaçava  o  ministro  do  Prin- 
cipe  Regente  que  Portugal,  de  parceria  com  a  Inglaterra, 
recorreria  á  guerra  para  liquidar  a  situação,  que  no  mais 
alto  grau  lhe  interessava  pela  extensão  e  natureza  a  dar 
á  sua  fronteira  do  Sul,  e  pelas  consequências  que  do  statu 
quo  poderiam  advir  com  a  transformação  do  Brazil  em  ca- 
beça   da    monarchia.    A    Inglaterra,    convém    não    esquecer, 


832  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ainda  se  não  reconciliara  com  a  Hespanha  diante  do  inimigo 
commum.  Na  divisão  do  Rio  da  Prata,  Buenos  Ayres  lhe 
pertenceria  e  Portugal  ficaria  com  a  Banda  Oriental,  objecto 
das  suas  seculares  e  justas  ambições. 

Quando  a  Inglaterra  mudou  de  posição  na  Europa  e 
concomitantemente  alterou  seus  planos  ultramarinos,  teve 
o  gabinete  do  Rio  que  reduzir  suas  cobiças  ao  essencial.  Foi 
então,  por  occasião  da  missão  Curado  a  Buenos  Ayres,  que 
Linhares  propoz  abertamente  a  protecção  portugueza  sobre 
a  margem  oriental  do  Rio  da  Prata  tão  somente,  provocando 
ainda  assim  os  protestos  de  Liniers  junto  á  Princeza  do  Bra- 
zil,  a  qual  lhe  respondeu  transmittindo  palavras  amigáveis  do 
Regente,  a  quem  ella  e  o  Infante  Dom  Pedro  Carlos,  como 
representantes  dos  Bourbons  d'Hespanha,  fizeram  appello 
n'um  memorial  publico. 

Ficou  já  indicado  ser  bem  possível  que,  intrigante  e  la- 
dina como  era,  tivesse  Dona  Carlota  entrado  n'um  conchavo, 
a  principio,  com  D.  Rodrigo,  promettendo  ceder  Montevfdéo 
ao  marido,  caso  obtivesse  a  realeza  ou  pelo  menos  a  regência 
dos  vice-reinados  hespanhoes,  posto  que  se  reservando  men- 
talmente o  direito  de  não  cumprir  o  accordo.  Sua  principal 
esperança  estava  então  posta  em  sir  Sidney  Smith,  seu.  re- 
curso mesmo  único  emquanto  se  lhe  não  offereceu  o  apoio 
mais  seguro  do  próprio  partido  patriota  que  nos  seus  iní- 
cios a  considerou  a  hypothese  emancipadora  de  mais  fácil  rea- 
lização. 

N 'estas  negociações  platinas,  as  da  primeira  phase,  o  Rio 
figurou  de  principal  scenario,  não  sendo  comtudo  de  ordiná- 
rio mais  do  que  o  reflector  dos  successos  que  decorriam  em 
mais  grandioso  palco.  As  questões  externas,  ou  antes  de  re- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  833 

percussão  externa,  mais  graves  e  complicadas  em  que  se  achou 
então  empenhado  o  governo  portuguez — as  do  trafico,  de  Ca- 
yenna  e  de  Montevideo — trataram-se  pode  dizer-se  que  intei- 
ramente na  Europa,  devendo  aliás  ser  julgadas  tão  européas 
quanto  americanas. 

Não  era  por  isso  nullo  o  papel  do  corpo  diplomático 
acreditado  no  Brazil,  onde  Chamberlain,  o  cônsul  geral 
que  exerceu  funcções  de  encarregado  de  negócios  entre  a 
partida  de  lord  Strangford  em  1816  e  a  chegada  de  Thorn- 
ton  em  1819,  assim  como  depois  da  partida  d'este  para  Lisboa, 
chegou  a  exercer  certa  influencia  sobre  o  espirito  do  Rei, 
o  que  queria  dizer  auctoridade  sobre  o  ministério,  a  esse 
tempo  quasi  que  reduzido  a  Thomaz  António  Villanova  Por- 
tugal. Os  fios  da  politica  internacional  andavam  ligados  por 
forma  que  passavam  por  todas  as  cortes,  n'uma  já  palpável 
solidariedade  dos  interesses  de  cultura  sob  os  ciúmes  egoístas 
e  as  desavenças  particulares. 

Para  jogar  em  segurança  de  causa,  era  preciso  possuir 
as  chaves  da  rede  e  assim  dominar  o  mechanismo  completo: 
de  contrario  ficava-se  a  meio  do  caminho  e  attrahia-se  sobre 
si  o  ridiculo.  Quando  por  exemplo,  o  governo  portuguez 
recorreu  á  venda  de  bens  da  coroa  e  de  conventos  a  suppri- 
mir,  vexado  como  andava  com  os  atrazados  devidos  ao 
exercito  em  operações  contra  os  Francezes,  o  conde  do 
Funchal  teve  uma  das  suas:  precisamente  acabava  elle  de 
ser  nomeado  ministro  dos  negócios  estrangeiros  e  da  guerra 
em  substituição  do  irmão  fallecido,  devendo  todavia  permane- 
cer algum  tempo  mais  na  Inglaterra  com  o  fim  de  ultimar 
os  negócios  pendentes  da  sua  gestão.  O  êxito  pouco  feliz  da 
sua  indubitável  actividade  acabou  por  comprometter  a  sua  es- 
colha para  o  gabinete. 


834  DOM  J07V0  VI  NO  BRAZlL 

Com  relação  á  questão  dos  bens  ecclesiasticos,  não  va- 
cillou  Funchal  em  dirigir-se  de  Londres  ao  núncio  Caleppi, 
no  Rio  de  Janeiro,  para  que  a  Santa  Sé  consentisse  na  pre- 
tendida alienação  e  forçada  secularização,  promettendo  em 
troca,  com  toda  a  leviandade  usual  dos  seus  planos  a  dis- 
tancia, a  demonstração  do  interesse  britannico  pela  situação 
do  Papado  e  pela  causa  dos  catholicos  na  Irlanda  e  na  Ingla- 
terra, onde  ainda  não  estavam  emancipados,  sendo  seu  prin- 
cipal adversário  o  duque  de  Wellington,  então  em  pleno  pres- 
tigio militar  e  politico   ( i ) . 

Funchal  não  era  homem  com  quem  Caleppi  se  enganasse 
ao  ponto  sobretudo  de  acreditar  cegamente  nas  suas  promes- 
sas, imaginosas  mais  do  que  cavillosas.  Havia  entre  os  dous 
toda  a  distancia  que  vai  de  um  homem  de  muito  espirito  a 
um  homem  de  pouco  espirito.  O  italiano  —  un  madre  com- 
pére  como  o  chamava  o  Inrperador  Napoleão  —  fez  sobre  a 
duqueza  de  Abrantes,  que  era  pessoalmente  uma  mulher  de 


(1)  Papeis  avulsos  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext.  A  venda 
dos  bens  ecclesiasticos,  destinada  sobretudo  a  supprir  a  suspensão 
do  subsidio  britannico  de  dous  milhões  esterlinos,  em  que  se  fal- 
lara,  não  se  effectuou  sobretudo  porque  monsenhor  Macchi,  delegado 
apostólico  junto  á  Regência  do  Reino,  a  quem  o  núncio  Caleppi 
fez  attribuir  a  questão,  convenceu  lord  Charles  Stuart,  representante 
inglez  era  Lisl)oa  e  membro  da  Regência,  da  sua  desvantagem  pra- 
tica ou  mesmo  inexequibilidade.  A  modida  era  aliás  impopular,  e 
sua  appli(ía(.ão  quiçá  faria  augmentar  os  gastos  do  governo  inglez, 
porquanto  diminuiria  a  copia  e  aggravaria  os  preços  dos  alimentos 
indispensáveis,  sendo  as  propriedades  monásticas  as  melhores  senão 
as  únicas  bem  cultivadas  do  paiz.  e  atravessando  Portugal  uma 
crise  económica  e  politica  d(>masiado  grave  para  «pie  se  apresen- 
tassem concorrentes  bastantes,  nacionaes  ou  estrangeiros,  a  esses 
bens  postos  em  licitação.  A  reducção  do  clero  á  miséria  ou  pelo 
menos  a  grande  baixa  nos  seus  rendimentos  esfriaria,  por  outro  lado, 
seu  ardor  patriótico,  posto  em  evidencia  nas  campanhas  contra  os 
Francezes,  reflectindo-se  desastrosamente  tal  tibieza  no  enthusias- 
mo  das  tropas  portuguezas,  ás  quaes  lord  Wellington  attribuia  em 
grande  parte  e  com  justa  razão  o  êxito  brilhante  da  resistência  e 
que,  no  dizer  de  Macchi  a  Stuart,  accusavam  muito  o  influxo  dos 
seus  directores  de  consciência. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL  835 

espirito  e  na  corte  das  Tulherias  tinha  visto  desfilar  o  que 
de  mais  culto  e  intellectual  contava  a  Europa,  a  maior  im- 
pressão pela  sua  subtileza  e  instrucção. 

E'  verdade  que  monsenhor  Calcppi,  apezar  dos  seus 
70  annos,  se  constituíra  o  cavaliere  servente  da  embaixatriz 
de  França  (i),  cujo  testemunho  poderia  portanto  ser  ta- 
xado de  suspeito.  Junot  porém,  escrevendo  de  Lisboa  á  mu- 
lher dous  annos  depois,  por  occasião  da  invasão,  dizia  elle 
próprio  do  representante  pontificio  que  era  com  effeito  um 
homem  de  summo  espirito,  ainda  que  o  seu  estado  habitual 
de  finura  e  de  astúcia  acabasse  por  ser  enfadonho.  O  duque 
de  Abrantes  não  sabia  entretanto  n'aquella  data  de  quanto 
era  capaz  esse  mestre  de  ironia. 

O  núncio  estivera  para  embarcar  na  esquadra  que  trans- 
portou a  corte  para  o  Brazil,  tendo  chegado  Anadia,  minis- 
tro da  marinha,  a  expedir  ordem  para  o  receberem  e  ac- 
commodarem  a  bordo  de  uma  das  naus.  Não  podendo,  com- 
tudo,  no  ultimo  momento  seguir  viagem  por  doença,  verda- 
deira ou  simulada,  conservou-se  em  Lisboa  durante  boa  parte 
do  curto^proconsulado  de  Junot,  de  quem  não  lograva  obter 
o  passaporte  indispensável  para  embarcar  com  destino  ao  seu 
posto  junto  ao  Regente  de  Portugal,  O  general  só  lhe  queria 
facultar  sabida  por  terra,  atravessando  Portugal  já  percorrido 
pelos  regimentos  inglezes  e  a  Hespanha  em  sangue,  devastada 
pelos  soldados  de  Napoleão  e  anarcliizada  pelos  voluntários 
patriotas. 

Caleppi  esperou  algum  tempo  uma  opportunidade  e 
achou   por   fim   meio   de   se   escapar,    conta   a   duqueza    de 


(1)    Mémoires   de   la  duchcssc   d'Abrantes. 


836  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Abrantes  que  disfarçado  em  marujo.  Seja  ou  não  exacto  este 
pormenor,  o  facto  é  que  a  i8  de  Abril  de  1808  recebia  Junot 
do  núncio  uma  carta  que  o  enchia  de  espanto  e  que  termi- 
nava pelas  seguintes  zombeteiras  palavras:  (i)  "Ainsi  donc 
contrarie  par  mer;  effrayé  par  terre;  agite  par  les  cris  de 
ma  conscience  qui  me  represente  sans  cesse  le  Brésil  comme 
le  but  de  mes  devoirs  sacrés  (et  quel  autre  pourrai-je  en 
avoir  a  soixante-dix  ans,  infirme,  et  casse  ?  )  je  n'ai  plus 
qu'un  seul  parti  a  prendre,  et  V.  E.  n'en  será  pas  surprise. 
Pénétré  cependant    jusqu'au   dernier    moment   par   tous   les 

(1)  Papeis  particulares  do  conde  do  Funchal,  dos  annos  de 
1807  até  1809.  Lata  11  ua  coU.  Linhares,  na  Bibl.  Nac.  do  Rio  de 
Janeiro.  A  carta  acha-se  aliás  impi-K^ssa  na  obra  Memorie  intorno 
alia  rita  (Jrl  Oarkl.  Lorcnso  Caleppi  e  ad  oicuni  avvevAúnenti  che  lo 
rUjuardnno  seritte  dal  commendatore  Camillo  Lnigi  de  Rossi,  Roma, 
1843,    Tip.    díí^lle    S.    Congregazione    di    Propaganda    Fide. 

O  pormenor  do  disfarce  6  imaginário,  a  darmos  credito, 
como  devemos  de  preferencia,  íi  narrativa  da  evasão  feita  por  este 
auctor,  que  foi  segundo  secretario  da  nunciatura,  como  tal  tendo 
servido  em  Lisboa  e  depois  no  Rio.  Elle  fornece  informações  minu- 
ciosas da  missão  do  seu  chefe,  da  proclamacla  dedicação  de  Ca- 
leppi ao  Príncipe  Regente,  das  difficuldades  que  isto  lhe  ti-ouxe 
com  Junot,  do  receio  que  o  núncio  tinha  de  um  sequestro  caso 
acceitassc  a  escolta  franceza  para  a  viagem  por  terra  pela  Hes- 
panha. 

Monsenhor  Caleppi  e  sua  pequena  comitiva  embarcaram  em 
Pedrouços,  pela  calada  da  noite,  n"uma  catraia,  achando-se  fora  da 
barra  a  embarcação  Estrella  do  Norte,  que  mediante  o  pagamento 
de  3.000  cruzados  se  compromettera  a  transportar  a  missão  ao 
Brazil,  viagem  para  que  recebera  passaporte  das  novas  auctorida- 
des.  O  mar  estava  encapellado  e  não  foi  sem  grandes  sustos  e  riscos 
que  o  núncio  chegou  a  bordo  depois  de  vir  á  falia  com  um  dos  na- 
vios da  esquadra  ingleza  que  bloqueava  o  portão  de  Lisboa.  O  al- 
mirante brilannico  Cotton,  em  commando,  usou  das  maiores  atten- 
ções  para  com  o  representante  pontifício,  o  qual,  A  vista  do  estado 
da  sua  embarcação,  que  até  fazia  agua,  e  da  continuada  fúria  do 
oceano,  se  passou  para  a  fragata  de  guerra  Medinlor,  que  o  estava 
acompanhando  rumo  sul,  e  o  conduziu  para  Plymoutli,  rebocando 
a  Estrella   do  Xorte  para  não  ir  A   matroca. 

Recebido  com  as  maioi-es  demonstrações  de  respeito  e  p-stima 
na  Tnglatn-ra,  onde  aproveitou  a  curta  estada  para  occupar-se  da 
emancipação  dos  catholicos  e  da  segurança  do  Santo  Padre,  violen- 
tado segundo  officialmente  se  dizia  por  não  ter  querido  fazer 
guerra  aos  Inglezes  nos  seus  estados,  monsenhor  Caleppi  partiu 
afinal  para  o  Brazil,  a  10  de  Julho  de  1808,  n'um  navio  de  guerra  — 
The  Stork  —  para  este  fim  posto  As  suas  ordens  pelo  governo  bri- 
tannico.  Sua  evasão  tivera  lugar  a  18  de  Abril. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  837 

sentiments  de  delicatesse  que  je  me  suis  imposé  dans  ma  po- 
sition  bien  épineuse,  ce  ne  será  pas  a  TEscadre  anglaise  que 
je  m'en  irai.  J'ai  prefere  un  petit  Batiment  muni  par  V.  E. 
de  ses  Passeports,  sur  lequel  j 'espere  enfin  pouvoir  passer  a 
ma  destination,  et  meriter  par  la  cet  eloge  si  flatteur  dont 
V.  E.  même  a  honoré  quelquefois  mon  attachement  à  la  Re- 
ligion  et  au  Saint-Pere." 

No  Rio  de  Janeiro  moveu  Caleppi  forte  opposição  á 
clausula  do  tratado  de  1810  pelo  qual  ficava  a  Inquisição 
supprimida  no  Brazil  e  se  dava  á  Inglaterra  o  direito  de 
construirem  os  seus  súbditos  templos  reformistas,  compro- 
mettendo-se  o  governo  portuguez  a  proteger  a  liberdade 
desse  culto  e  a  independência  dos  cemitérios  protestantes,  e 
compromettendo-se,  por  sua  vez,  os  súbditos  britannicos  a 
não  atacarem  a  religião  do  Estado  que  os  acolhia,  nem  a  fa- 
zerem obra  de  propaganda  evangélica  ( i ) . 

Comquanto  estimadissimo  pelo  Principe  Regente,  nada 
poude  o  núncio   arrancar,   em   contrario   áquella   tolerância, 


(li  .1.  C.  Rodi-iguos,  Rclif/iõcs  acatholicas.  Memoria  escripta 
para  o  Livro  do  Quarto  Contenario.  A  intransigência  de  Caleppi 
era  constante  e  tediosa,  resumbrando  de  todos  os  seus  actos.  No 
Funclial,  na  passagem  para  o  Brazil,  elle  insurgiu-se,  obtendo  ra- 
zão, contra  a  cessão  feita  pelo  governador  a  Beresiford  e  suas  tro- 
pas de  occupação  de  um  seminário  e  <^greja  catholicíi  para  exer- 
cício do  culto  protestante,  a  que  o  governo  portuguez  era  pelos 
triítados  obrigado  a  prover  no  caso  de  estar?m  os  soldados  inglezes 
ao  sou  servi(.'o.  Alli,  na  Madeira,  estavam  elles  de  facto  occupados 
na    defesa    eventual    de    uma    possessão    portugueza. 

I*ara  abrandar  o  austero  catbolico,  que  era  o  núncio,  offe- 
receu  o  Principie  Regente  no  decorrer  da  discussão  do  tratado  o 
seu  valimento  junto  íi  corte  britannica  em  favor  do  Papa,  do  Sacro 
Collegio  e  de  Roma  occupada  por  Napoleão.  Caleppi  agradeceu  vi- 
vauKnite,  sem  deixar  comtudo  de  protestar  contra  as  dispositjões  de 
tibieza  religiosa,  no  seu  ent(índer,  do  tratado,  antes  travando  com 
Unhares  uma  altercação  tão  irritada  que,  por  ordem  de  Dom  João, 
Aguiar  interveio  para  serenar  a  desavença.  Cora  sua  habitual,  ex- 
cellente  tolerância,  o  Principe  Regente  opinava  aliás  que  Caleppi 
estava  no  seu  papel  de  núncio  pugnando  pela^  intangibilidade  da 
doutrina  catholica.    ORossi,  Memoria.) 


838  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

da  bonacheirona  tenacidade  de  Dom  João  ( l ) ,  o  qual  era 
sustentado  na  sua  liberal  recusa  pelo  bispo  do  Rio  de  Janeiro, 
D.  José  Caetano  de  Souza  Coutinho  (2).  Já  temos  verifi- 
cado no  decorrer  d'esta  historia  do  seu  reinado  americano, 
que  era  Dom  João  VI  homem  para  teimas,  mais  ainda  quan- 
do se  sentia  bem  arrimado,  porque  a  firmeza  na  applicação 
é  que  não  correspondia  n'elle  á  firmeza  na  opinião. 

Um  episodio  diplomático  d'esses  tempos,  altamente 
curioso  e  quasi  desconhecido,  cómico  por  uns  lados  e  violento 
n'outros,  foi  o  da  virtual  entrega  dos  passaportes,  pelo  go- 
verno de  Dom  João  VI,  a  Balk-Poleff,  ministro  russo  acre- 
ditado junto  á  corte  do  Rio  e  especialmente  investido  do  ca- 
racter de  embaixador  extraordinário  para  a  coroação  do  mo- 
narcha  portuguez. 


(1)  Si  nada  logrou  era  1810,  outro  tanto  lhe  não  aconteceu 
em  1816,  por  oecasião  da  elevagão  do  BrazU  a  Reino,  quando,  no 
dizer  de  Rossi,  o  partido  philosophico,  antonomásia  frequente  de 
Barca,  suspeito,  com  sabemos,  de  jacobinismo,  pensou,  de  certo  para 
attrahir  ao  Brazil  a  immigração  estrangeira  de  toda  a  nacionali- 
dade e  credo,  em  decretar  a  tolerância  de  todas  as  seitas  religiosas 
dentro   do   domínio   americano. 

(2)  Com  o  bispo  fluminense  teve  o  núncio  outra  discordân- 
cia, em  180í>,  (juando  o  l'aipa  concedeu  .iubil'eo  nos  domínios  poj-tu- 
guezes  afim  de  celebrar  a  feliz  chegada  ao  Brazil  da  família  real. 
D.  José  Caetano,  na  sua  qualidade  de  capellão-môr  e  de  accordo 
com  as  prei-ogatlvas  que  como  tal  cabiam  em  Lisboa  ao  patriarcha, 
quando  alli  residia  a  corte,  reclamou  o  direito  de  communicar 
aos  outros  prelados  bi'azileiros  a  graga  pontifícia.  Por  seu  lado 
exigia  o  ministério  que  a  pastoral  recebesse  primeiro,  como  os  l)re- 
vt'S,    o    beneplácito   régio. 

Caleppi  levou  n'este  ponto  a  melhor,  suscitando  aliás  pelo 
seu  uitramontanismo  irreconciliável  outros  conflictos  no  decorrer 
da  sua  missão.  Rossi  menciona  a  queixa  pela  publicação  na  Gazeta 
(lo  Rio  de  Janeiro  de  um  artigo  sobre  a  lOgreja  gallicana  e  a  Con- 
cordata da  Franga  com  a  Santa  Sé,  que  o  núncio  considerou  atten- 
tatorio  da  doutrina  romana.  O  Príncipe  Regente  abafou  essa  con- 
trovérsia mais,  com  uma  nota  calorosa  posto  que  um"  tanto  vaga  de 
^Ddhesão  á  Egreja.  E'  mister  ter  presente  que  Dom  João  pi'ofes- 
^ava  pelo  núncio  reconhecida  estima  e  n'elle  depositava  grande 
confiança,  tendo-se  até  valido  da  sua  influencia  para  abrandar  a 
ppposição  feita  por  Dona  Carlota  Joaquina  ao  casamento  de  sua 
filha  mais  velha,  a  Princeza  Dona  Maria  Thereza,  com  o  Infante 
d'He9panha  Dom  Pedro  Carlos. 


^     DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZiL  839 

Segundo  consta  dos  papeis  of ficiaes  ( i ) ,  a  questão  teve 
sua  origem  nas  susceptibilidades  da  chancellaria  brazileira, 
justamente  melindrada  pela  pouca  pressa  —  aliás  intencio- 
nalmente correspondida  por  occasião  da  resposta  —  com 
que,  sob  os  pretextos  de  fazer  muito  calor  e  de  estar  prepa- 
iando  as  carruagens  para  a  festa,  o  diplomata  communicou 
sua  missão  temporária  e  pediu  a  audiência  do  estylo;  e  tam- 
bém pela  forma  descortez  com  que  o  mesmo  diplomata  recla- 
mou a  prisão  do  seu  cozinheiro  e  de  um  sapateiro,  franceses 
ambos,  de  quem  tinha  queixas  e  que  queria  textualmente 
pôr  a  pão  e  a  agua. 

O  conde  da  Barca  deixou  até  por  inteiro  de  acquiescer 
a  esse  estranho  pedido  official  e  não  só  formulou,  como  exe- 
cutou a  propósito  a  ameaça  de  devolver  qualquer  nota  menos 
correcta,  o  que  sobremodo  contrariou  Balk-Poleff  que,  em 
despique  d'isso  e  da  falta  de  prompta  concessão  da  sua  au- 
diência, deixou  de  comparecer  (com  o  seu  collega  hollandez 
Mollerus  que  lhe  esposou  o  resentimento,  por  motivo  dos 
laços  de  familia  que  estreitamente  uniam  as  respectivas  cor- 
tes) ás  recepções  de  grande  gahi  de  7  e  25  de  Abril,  nas 
quaes,  de  pé  sobre  o  throno  e  rodeado  da  familia  real  e  dos 
grandes  da  corte,  o  Rei  recebia  primeiro  os  cumprimentos 
dos  representantes  estrangeiros  em  corpo  e  dava  em  seguida 
beija  mão  a  todas  as  classes  distinctas  do  Estado. 

Para  bem  accentuarem  sua  ausência,  que  não  justifi- 
cavam, como  o  ministro  americano  a  sua,  por  motivos  de 
saúde,  os  representantes  russo  e  hollandez  assistiram  n'aquel- 
las  datas  a  todo  o  espectáculo,  até  meia  noite,  no  theatro  de 
São  João,  proceder  que  assim  lhes  era  exprobado  pelo  encar- 


(J)    Corresp,    de    Maler,    no   Arch.    do    Min.    dos    Neg.    Est.    de 
França. 


840  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

regado  de  negócios  de  França:  (i)  "Enfin,  Monseigneur, 
quoique  le  séjour  a  Rio  de  Janeiro  ne  puisse  être  agréable 
a  aucun  Ministre  Etranger,  quoique  même  la  Cour  ne  fasse 
pas  de  son  côté  la  moindre  des  démarches  auxquelles  se  prê- 
tent  naturellement  les  Cours  d'Europe  pour  accueillir  les 
agents  diplomatiques,  je  le  repete  ingénuement  et  sans  la 
moindre  prévention  ces  deux  Messieurs  ont  commis  une 
faute,  ils  ont  manque  de  bienséance  et  de  délicatesse  dans 
le  choix  du  temps  et  des  moyens  qu'ils  ont  employé  pour 
marquer  leur  froideur." 

Balk-Poleff,  chegado  ao  Rio  de  Janeiro  em  Outubro 
de  1816,  era  um  diplomata  do  género  desagradável.  Maler, 
que  sempre  usava  de  muita  considerações  pelos  collegas,  expu- 
nha sem  rebuço  ao  seu  governo  o  que  denominava  "as  incon- 
sequencias  e  a  irregularidade  do  comportamento  official  e 
privado"  daquelle  agente,  que  a  todo  o  momento  se  salien- 
tava pelos  seus  sarcasmos  e  inconvenientes  diatribes  contra  a 
terra  e  contra  a  gente,  e  que  tinha  o  sestro  de  não  pagar  aos 
criados  nem  aos  fornecedores. 

Foi  este  mau  veso  que  lhe  attrahio  o  indecente  desagui- 
zado  —  dissimulado  por  Makr  na  sua  correspondência,  por 
julgal-o  "si  fort  au  dessous  de  la  dignité  diplomatique" — com 
o  seu  artista  culinário  e  com  o  seu  artista  sapateiro,  remate  de 
uma  longa  serie  de  discussões,  que  subiam  até  a  real  pre- 
sença, entre  credores  que  exigiam  pagamentos  da  legação 
russa  e  o  ministro  que  solicitava  a  detenção  dos  que  ousa- 
vam manifestar  tal  pretenção. 

O  Intendente  da  Policia  e  o  Ministro  de  Estrangeiros 
'a  principio   quizeram  satisfazer  quanto   possível   o   irascivel 


U)    Officio  de  8  de  Abril   de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  841 

diplomata,  mas  cançaram-se  de  atural-o,  e  como  tanto  mais 
furioso  se  punha  Balk-Poleff  quanto  menos  o  escutavam, 
vio-se  Dom  João  VI  obrigado  a  queixar-se  em  São  Peters- 
burgo,  por  intermédio  do  seu  ministro  Saldanha  da  Gama,  do 
proceder  excessivamente  indiscreto  do  enviado  imperial,  cujas 
notas  originaes  para  lá  foram  remettidas  como  prova  da 
accusação.  (i) 

(1)  Eis  em  amostras  o  estylo  official  do  enviado  russo,  cujo 
francez  deixava  a  desejar :  *'L'Envoyé  Extraordinaire  etc.  doit  faire 
Observer  a  Monsieur'- Tloitendant  de  Palice,  quMl  es.t  .de  toute  ri- 
gueur,  même  dans  les  simples  rapports  de  bienséance,  de  repondre 
aux  lettres  recues,  a  plus  forte  raison  entre  une  personne  en  charge 
et  un  Ministre  d'une  Puissance  étrangere.  ,  .  .  .  .  Cy  annexée  se  trouve 
une  plainte  au  nom  du  même  Envoyé, .  .  .  ,  dont  il  est  absolument 
essentiel  pour  l'Envoyé  de  Kussie,  d'avoir  pleine  et  prompte  satis- 
faction,  ce  dernier  ne  voulant  pas  être  insulte  dans  son  liôtel,  asyle 
sacré   pour   le   droit   des   gens,    par   tous    les    mauvais     sujets     de    la 

capitale, Exigeant    ce    qui    est    d'un    droit    incontestable,    l'En- 

voyé  de  Russie  aime  a  croire  que  Monsieur  1'Intendant  de  Police 
prendra  des  mesures  telles,  que  les  désagrements  d'une  si  déplai- 
sattite  ©spece,  ces,Sfent  a  jamais,  ce  qui  ne  peut  être  effectué  que 
pai-  une  punition  exemplaire  des  ooupables."  (tNota  de  24  de  Feve- 
nnro    (9   de   Março)    de   1817.) 

"Le  soussigné,  Chambellan  actuei  de  iSa  Majestê  TEmpereur 
de  toutes  les  Russies,  du  .rang  de  Conseiller  d'E'tat  actuei,  son 
Envoyé  Extraordinaire  et  Ministre  Plénipctentiaire,  ne  voulant 
pas  d"un  cote  importuner  Soai  Excellence  Mansieur  le  Conseiller 
d'(E'ta.t,  Ministre  de  la  Marine  et  des  Colonies  ayant  ad  Ínterim  le 
Portefeuille  des  Affaires  E'trangeres  et  de  la  Guerre  etc,  etc,  pour 
des  transactions  du  ressort  de  la  Police,  et  de  l'autre,  ne  pouvant 
plus  supporter  le  brigandage  de  certains  individus,  ou  trop  assurés 
de  1'impunit'é,  ou  trop  effrontés  dans  um  pays  qu'ils  supposent  être 
trop  insolite  pour  se  permettre  envers  le  Ministre  d'une  Puissance 
étrangere  tout  ce  qui  serait  puni  avec  rigueur,  même  envers  un 
Rimple  particulier,  s'est  adressé  directement  a  Mr.  l'Intendant  de 
Police,.  .1.  .,.  .  Le  soussigné  dcnc  pour  suivre  en  tout  les  formes  prépo- 
sées  et  pour  son  particulier,  au  plus  grand  regret,  prie  S.  E.  de 
voTiLoir  bien  donner  des  ordres  peremptoiros  afin  qne  satisfaction 
pleine    et    entiere    soit    donnée    au    soussigné    suivant    le    contenu    et 

dans   les   termes   prescripts   de   la   plainte "    (Nota   ao   conde   da 

Barca  de  26  ãc  Fevereiro   (10  de  Março)   de  1817.) 

Estas  notas,  assim  como  a  resposta,  foram  ali&s  restituídas, 
ou  melhor,  as  notas  do  enviado  russo  foram  devolvidas,  d'onde  se 
seguia  a  restituição  da  resposta.  A  resposta  de  Barca  era  no  seu 
género    um    modelo,    que    vale    muito    a    pena    publicar    integi-almente : 

■"O  abaixo  assignado.  Conselheiro  de  Estado,  Ministro  e  Se- 
cretario de  Estado  dos  Negócios  da  Marinha  e  Domínios  Ultrama- 
rinos, encarregado  interinamente  da  Repartição  dos  Negócios  Es- 
trangeiros  e   da   Guerra,    accusa   a    recepção   da   Nota    official    que   o 

D.  J.  —  53 


842  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Com  um  dos  seus  coUegas  pelo  menos,  tornaram-se 
igualmente  tensas,  em  tão  curto  espaço  de  tempo,  as  relações 
de  Balk-Poleff,  o  qual  já  nem  fallava  com  o  encarregado  de 
negócios  da  Inglaterra,  Chamberlain.  Com  Maler,  a  sua  ci- 
vilidade parece  ter  sido  no  emtanto  constante,  apezar  das  dif- 
ferenças  que  tiveram. 

O  rompimento  formal  entre  Balk-Poleff  e  a  corte  do 
Rio  deu-se  a  breve  trecho  depois  dos  incidentes,  mais  ridi- 

Sr.  Pedro  de  Balk-Poleff,  Enviado  Extraordinário  e  Ministro  Ple- 
nipotenciário de  S.  M.  o  Imperador  de  todas  as  Russias,  lhe  passou 
em  data  de  10  do  corrente,  pedindo  inteira  satisfacção  ás  queixas 
que  iS.  S.  directamente  havia  feito  ao  Intendente  Geral  da  Policia 
em   officio  que   lhe   dirigira   em   9   do   sobredito   mez. 

Pela  leitura  d'este  officio  de  C5.  S.  que  o  dito  Magistrado  não 
tardou  em  transmittir  a  esta  Secretaria  de  Estado,  com  a  qual  se 
devem  unicamente  corresponder  os  Ministros  Estrangeiros,  segundo 
o  estilo  de  todas  as  Cortes,  soube  o  abaixo  assignado  que  S.  S.  se 
queixara   conti-a   as   pessoas    seguintes : 

l.e  contra  o  sapateiro  francez  Pillet,  por  haver  pretendido 
cobrar  de  S.  S.  cento  e  vinte  francos,  quando  apenas  se  lhe  restava 
a  metade  d'essa  quantia  pelas  obras  que  tinha  feito ;  e  bem  assim 
por    ter    dito    alguns    impropérios    ao    Secretario    particular    de    S.    S. 

2.9  contra  o  cozinheiro  Pharó,  o  mesmo  que  S.  S.  trouxe  com- 
sigo  da  Europa,  pelo  facto  de  haver  recusado  hum  dia  fazer  o  jan- 
tar, e  de  ter  penetrado  até  o  gabinete  de  S.  S.  (e  contra  a  sua  or- 
dem) com  o  pretexto  de  pedir  o  pagamento  do  que  se  lhe  estava 
de  dever.  Exigindo  S.  S.  que  por  estes  factos  fizesse  o  Intendente 
Geral  da  Policia  impor  aos  aitos  sapateiro  e  cozinheiro  huma  pena 
arbitrada  por  S.  S.  e  desconhecida  no  código  criminal  Portuguez, 
qual  a  de  mandar  prendel-os  e  pol-os  ao  pão  e  agua,  até  segunda 
requisição  de  S.  S. 

Além  do  conhecimento  que  teve  o  abaixo  assignado  da  maté- 
ria das  queixas  de  S.  S.,  teve  mais  a  surpreza  e  o  desgosto  de  re- 
conhecer que  as  mencionadas  peças  officiaes  estavão  escritas  em 
hum  estilo  indecoroso  e  offensivo ;  e  que ;  não  podendo  por  isso  le- 
val-as  á  Augusta  Presença  de  S.  M.  lhe  não  resiava  senão  hum  mui 
desagradável,  porém  necessário,  expediente,  qual  he  o  de  restituil-as, 
como  effectivamente  restitue  a  S.  S.  para  que  se  sirva,  de  escrevel-as 
em  es*tilo  decoroso  e  digno  assim  do  Augusto  Soberano,  que  S.  S.  tem 
a  hcfnra  de  represenlar,  como  d'aquelle  perante  Quem  s.e  acha  acre- 
ditado,   e   por    Quem    tem    sido    tão    distinctamente    acolhido. 

E  para  evitar  o  progresso  de  huma  correspondência  tão 
alheia  da  decência  diplomática,  previne  o  abaixo  assignado  a  S.  S. 
de  que  não  aceitará  jamais  officios  de  S.  S.  que  não  sejão  escritos 
com  o  Decoro  devido  á  Dignidade  de  ambos  os  Soberanos,  e  aos 
laços  de  especial  amizade  que  os  unem. 

Por  esta  occasião  renova  o  abaixo  assignado  a  S.  S.  as  ex- 
pressoens   da  sua  distincta  consideração. 

Palácio  do  Rio   de  Janeiro  em   18   de  Março  de   1817." 


DOM  JOÃO  Ví  NO  BRAZIL  843 

culos  que  graves,  que  deixavam  prever  esse  resultado.  No 
dia  immediato  ao  da  nota  cáustica  de  Barca,  solicitava  o  re- 
presentante russo  audiência  para  a  entrega  da  sua  credencial 
de  embaixador.  ( i )  A  resposta,  propositalmente  retardada, 
foi  de  5  de  Abril,  (2)  quando  a  25  de  Março  chegara  ao 
Rio  a  noticia  do  movimento  revolucionário  pernambucano; 
o  qual  fez  adiar  a  acclamação  real  (que  só  no  anno  imme- 
diato se  effectuaria)  e  forneceu  a  Barca  um  excellente  pre- 


(1)  "L'Ambassadeur  Extraordinaire  et  Ministre  Plénipoten- 
tiaire  de  S.  M.  TEmpereur  de  toutes  les  Russies,  pour  remplir  en 
cette  qualité  d'apres  les  ordres  suprêmes  de  son  Augusta  Maitre, 
une  mission  temporaire,  prie  Son  Excellence  Mr.  le  Conseiller  d'Etat, 
etc,  etc,  de  vouloir  bien  solliciter  de  Sa  Majesté  Três  Fidelle  la 
faveur  d'une  audience  telle  qu'il  pdaira  au  Roi  de  raccorder  pour 
que  le  soussigné  puisse  y  remettre  les  lettres  de  créance  d'apres 
les   formes   requises. 

,E"taint,  seJon  les  instructions  recues  de  sa  'Cour,  autorisé  a 
se  conformer  en  tout  a  Tétiquette  établie  p-res  celle  du  R-oi  Três  Fi- 
delle, pour  la  rôception  des  Ambassadeurs  Extraordinaires,  le  soussi- 
igné  désire  être  instruit  par  écrit  et  en  détalL  sur  ce  qui  concerne  Tob- 
jet  des  formes  usitées  em  pareil  cas,  ainsi  que  du  lieu  qui  será  des- 
tine pour  Taudience  sollicitée. 

Três  flatté  de  pouvoir  en  la  presente  conjoncture  offrir  de 
Ia  part  de  iSa  Majesté  TEmpereur,  son  Três  Auguste  IMaitre,  un  té- 
moignage  nouveau  de  cette  haute  estime  et  amitié  dont  Sa  Majesté 
Três  Fidelle  a  eu  des  preuves  constantes  et  de  manifester  en 
même  temps  le  desir  empressé  d'un  Souverain  aux  Immortelles 
actions  et  aux  grandes  vertus  duquel  TEurope  est  redevable  de  la 
paix  dout  elle  jouit,  et  comiplaire  en  tout  a  un  Monarque,  son  Ami 
et  Allié,  le  soussigné  se  fait  un  devoir  de  transmettre  ci-joint  la 
copie  de  la  lettre  de  créance  qui  constate  son  titre  d'Ambassa<3eur 
Extraordinaire,  et  de  réitérer  de  nouveau  a  Son  Excellence  Mon- 
sieur  le  Comte  de  Barca,  les  sentimens  de  sa  conslderation  três  dis- 
tinguée. 

Pieirre  de  Balk-Poleifí  —  Pr.aya  do  Flamengo  ce  7  — 19  Mars 
I-S1I7.1 — lV.    S.   E.   Monsieur   le   Comte  de  Barca  etc." 

(2)  (Traducção).  "Monsieur.  J'ay  reçu  la  note  que  Votre 
Seigneurie  m'a  adre&sée  a  la  date  du  7 — ^19  Mars  dernier,  avec  la  copie 
de  la  lettre  de  créance  par  laquelle  Sa  Majesté  TEmpereur  de  toutes 
les  Russies  le  nomme  son  Ambassadeur  Extraordinaire  et  Plénipo- 
tentialre,  pour  en  cette  qualité  remplir  la  mission  temporaire  de 
complimenter  le  Roi  mon  Maitre,  sur  son  oxaltation  au  trCme ;  je 
Tay  mise  sous  les  yeux  du  même  Auguste  'Seigneur ;  mais  Sa  Ma- 
jesté ayant  différé  le  jour  destine  pour  son  acciamation,  et  étant 
survenu  dans  oette  occasion  des  circonstances  auxquelles  on  doit 
faire  face,  et  qui  exige  des  mesures  immédlates,  Sa  Majesté  a  jugé 
convenable  de  retarder  pour  quelques  jours  Taudience  publique  pour 


844  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

texto  fT^a  demorar  a  audiência  solemne  do  embaixador.  Tão 
leviano  este  que,  para  obtel-a,  commetteu  a  imprudência  e 
não  recuou  ante  a  humilhação  de  valer-se  confidencialmente 
junto  a  Dom  João  do  encarregado  de  negócios  Villalba,  que 
elle  sabia  ser  desaffecto  do  Ministro  de  Estrangeiros. 

A  recepção  foi  afinal  marcada  para  13  de  Maio,  anni- 
versario  do  monarcha,  quasi  dous  mezes  portanto  depois  de 
pedida,  e  recebendo  Balk-Poleff  o  respectivo  aviso  official 
na  véspera,  ás  2  horas  da  tarde.  A's  3  dirigia  elle  uma  nota 
ao  conde  da  Barca,  pondo  em  relevo  a  coincidência  da 
audiência  e  da  festa  de  grande  gala  somente  "como  um 
desejo  de  Sua  Magestade  de  emprestar  maior  realce  a  essa 
nova  prova  de  amizade  escolhida  por  Sua  Magestade  meu 
Augustissimo  Amo  para  comprazer-lhe,"  e  de  novo  pedindo 
communicação  por  escripto  do  cerimonial  e  pragmática  em 
uso  na  corte  portugueza  para  as  recepções  dos  embaixadores 
extraordinários,  que  bem  anticipadamente  reclamara.  "Auto- 
risé  par  les  ordres  de  ma  Cour  de  mV  conformer,  je  ne  pour- 
rai  me  rendre  á  Taudience  fixée  qu'apres  avoir  obtenu  Tobjet 
de  ma  demande." 

Satisf acção  lhe  foi  n'este  ponto  dada  pelo  conde  da 
Barca,   recebendo  elle  ,0  cerimonial  ás   12  %   da  noite.   Na 

la  p'1'ésentation  de  Votre  Seigneurie  en  la  suadite  qualité  d'Anibassa- 
deur,  et  la  remissve  de  la  Lettre  de  créance  ci-dessus  mentionée. 

Des  que  je  recevrai  de  nouveaux  ordres  de  Sa  Majesté  sur 
cet  objet,  je  les  comniuniquerai  promptement  a  Votre  'Seigneurie. 

Je  profite  de  cette  occasion  pour  répeter  a  Votre  Seigneurie 
les  témoignages  de  mon  désir  de  lui  être  agréable  et  de  ma  consi- 
deration  distlnguée. 

Que  Dieu  garde  a  V.  S.  nombre  d'années.  Pala  is  du  Rio  de 
Janeiro  ^n  H  Avril  18!]  7.  De  V.  S.  le  plus  grand  et  le  plus  fidelle 
serviteur,  Comte  da  Barca.  Mr.  Pierre  de  Balk-Poleff  etc."  (Le- 
galisada  a  copia  por  Camillo  Martins  Lages,  official  maior  da  Se- 
cretaria de  Estrangeiros.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  845 

occasião,  porém,  de  dirigir-se  para  a  audiência,  que  devia  ter 
lugar  á  I  hora  da  tarde  no  Paço  da  cidade,  vio-se  o  embai- 
xador constrangido  a  permanecer  durante  uma  hora  quasi 
defronte  do  palácio,  sem  poder  o  seu  coche  romper  a  tropa 
que  formara  no  largo  '*e  sem  que  pessoa  alguma,  escreve 
Maler,  se  occupasse  de  facilitar-lhe  uma  passagem  para  que 
comparecesse  a  um  tão  solemne  convite." 

Furioso  com  tudo  isto  e  achando  na  maneira  adoptada 
para  a  sua  apresentação  de  credencial  pretextos  bastantes  de 
recriminação,  endereçou  Balk-Poleff,  no  dia  i8,  um  protesto 
ao  governo  portuguez  concebido  em  termos  indignados   (i) 


(1)  "Le  soussigné  Ambassddeur  etc.  croit  de  son  devoir  d'a- 
dresser  a  S.  E.  etc,  la  protestation  énoneée  dans  les  articles  sui- 
vajits,  afin  de  constater  qu'im  pareil  exemple  ne  puisse  tirer  a  con- 
séquence,  ni  servir  de  régie  a  ravonir. 

il"  11  est  de  toute  notariété  qu'aucune  c(>mniunicatio.n  verbale 
du  Ministre  a  un  Représentant  d'iine  Puissance  Etrangere  ne  sau- 
rait  être  regardée  comme  avenue  que  lorsque  remployé  est  Torgane 
de  son  Cheí,  et  c^pendant  le  Ministre  de  Sa  Majestê  sVst  adressé  et  a 
voulu  se  servir  pour  cette  fois  du  Conseiller  de  Légation. 

2°  Loin  de  prendre  aucune  mesure  áe  convenance  générale- 
ment  pratiquée  prés  des  Cours  Euix)péennes,  au  moins  pour  une 
marge  de  temps  suffisante  entre  le  jour  de  Tannonce  et  celui  de 
Taudience,  la  Note  transmise  pour  cet  objet  datée  du  29  Avril  (11  Mai) 
n'est  parvenue  que  le  lundi  80  Avril  (12  Mai)  a  une  lieure  apres  midi. 
I>e  même  la  copie  du  cérémo-nial  demiandée  en  même  temps  que  Tau- 
dlence  par  la  Note  du  6 — 18  Mars  n'a  été  recue  que  la  vieille  du  1 — 13 
Mal  apres  minuit. 

3í!  Mais  surtout  le  soussigné  doit  manifester  son  extreme  sur- 
prise  qu'en  sens  inverse  des  usages  reçus,  Ton  a  voulu  faire  de 
rAudienee  d'un  Ambassadeur  Taccessoirè  d'un  jour  de  Grand  Gala, 
comme  si  une  pareille  Audidnce  n'êtait  pas  elle  même  Tobjet  prin- 
cipal d'une  assemblée  solennelle.  Une  premiere  Ambassade  de  la  Cour 
dn  Russie  créée  nommiément  par  iSa  Maje<sté  UiEmipereur,  en  vue 
et  dans  le  but  d'obtempérer  aux  désirs  de  son  Ami  e  Allié,  Sa  Ma- 
jesté    Três    Fidelle,    méritait    d'autant    plus    d'être    distinguée. 

Pi'ofondémente  pénétré  de  cette  intention  de  son  Três  Auguste 
Maitre,  le  soussigné  prie  Mr.  le  Comte  da  Barca  de  vouloir  bien 
porter  a  la  connaissance  du  Rol,  que  si  dans  une  semblable  con- 
jfmcture,  le  soussigné  a  bien  voulu  se  prêter  a  passer  outre,  sur 
plusleurs  formes  reconnues  partout  comme  inherentes  a  la  dignité 
iíoprésentative,  et  d'autres  qu'll  n'a  pas  cite,  ce  n'est  pas  par  aueun 


846  POM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

e  que  motivou  da  parte  de  Barca  uma  resposta  cortante  e 
violenta,  a  qual  traz  a  data  de  21  de  Maio.  (i) 

E'  mister  attentar  nas  datas.  O  protesto  de  18  foi,  ao 
que  diz  o  ministro,  entregue  na  noite  de  20,  justamente 
quando  Balk-Poleff  era  recebido  pelo  monarcha  n'uma  nova 
audiência,  particular  esta,  que  obtivera  por  surpreza,  compa- 
recendo em  São  Christovão  a  pretexto  de  apresentar  felici- 
tações pela  noticia  que  se  espalhara  da  conclusão  da  revolu- 
ção pernambucana,  de  facto  para  tentar  alcançar  de  Dom 
João  VI  satisfacção  das  affrontas  que  recebera  do  conde  da 
Barca  —  assim  as  qualificava  n'uma  longa  circular  mandada 


autre  motif  que  poiír  montrer  son  emprpssement  zélê  de  présenter 
a  Sa  Majesté  les  félicitations  et  les  voeux  de  son  Três  Auguste 
Maitre  et  d'offnr  par  eette  conduite  a  Sa  Majesté  elle  même  la 
preuve   evidente   de   son   désir  de   Lui   complaire. 

En  offrant  ce  tribut  de  justice  et  d'hommage  a  un  Souve- 
rain  Allié  et  Ami  de  son  Três  Auguste  Maitre,  le  soussigné  prle 
S.  E.  Mr.  le  Comte  da  Barca  d'agréer  le  témoignage  renouvelié  de 
sa   haute   consideration. 

Praia  do^  Flamengo  le  6 — 18  CNIai  1817. — ^Pierre  de  Balk-Pcleff. 
— A  S.  E.  Monsieur  le  Comte  da  Barca." 

(1)  'O  abaixo  assignado,  Conselheiro  de  Estado  etc.  levou  á 
•Augusta  Presença  d'El-Rey  seu  Amo  a  nota  official  que  S.  Ex.  o 
Sr.  Pcidro  de  Balk-Poleff  Embaixador  Extraordinaiúo  e  Plenipoten- 
ciário de  S.  M.  o  Imperador  de  todas  as  Russias  lhe  dirigio  na  data 
de  18  do  corrente  (e  que  lhe  foi  entregue  somente  em  a  Noite  de 
hontem)  contendo  hum  protesto  tão  insólito,  quanto  offenslvo  e 
inesperado,  depois  da  maneira  obsequiosa  e  distincta  porque  S.  Ex. 
foi  recebido  no  faustosíssimo  dia  13  do  corrente. 

Foi  tal  a  surpreza,  e  o  resentimento  ue  S.  M.  á  vista  do 
theor  da  referiua  Nota,  que  mui  expressamente  ordenou  ao  abaixo 
fissiignado  que  a  transmittisise  sem  perda  de  temjpo,  e  por  hum  ex- 
presso, ao  seu  Ministro,  residente  na  corte  de  Petersburgo,  para 
leval-a  quanto  antes  ao  conhecimento  de  S.  M.  I.  a  Quem  sem  duvida 
ella  ha   de  ser  tão  desagradável   quanto  o  foi  a   S.   M.   F. 

A  participação  d'esta  Real  Determinação  he  a  única  resposta 
que  o  abaixo  assignado  deve  por  emquanto  dar  á  Nota  que  recebeu 
de   S.   Ex». 

O  abaixo  assignado  tem  a  honra  de  reiterar  a  S.  Ex? .  o  Sr. 
Pedro  de  BalkwPoleff  as  expressocns  da  sua  distincta  consideração. 
Palácio  do  Rio  de  Janeiro  em  21  de  Maio  de  1817.  Conde  da  Barca." 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  847 

no  dia  19  de  Maio  ás  legações  estrangeiras  no  Rio  de  Ja- 
neiro,  (i) 

A  resposta  de  Barca  é  do  dia  immediato,  21,  qualifi- 
cando o  protesto  de  "tão  insólito,  quanto  offensivo  e  ines- 
perado", sem  qualquer  allusão  á  entrevista  de    20.  A  22, 


(1)  "Monsieur.  En  réclamant  votre  attention  sur  l€s  piéces 
cy  jointes,  je  vous  épargnerai  tout  commentaire  sur  les  griefs 
développés  en    détail   dans   ma   Note   de   protestation. 

La  lecture  de  ces  docuraents  a.ioutera  un  nouveau  poids  a 
IVxpérience  que  vous  avez  aoquise  de  la  façon  dont  le  Corps  Di- 
plomatique  est  traité  prés  de  cette  Cour,  puisqu'une  Ambassade 
toute  solennelle  et  toute  faite  qu'elle  est  pour  complaire  au  Roi,  n"a 
pas  été  exempte  de  Tirrégularité  dans  les  procedes,  devenus  a  ce 
qui  semble  systématlique  pour  le  Mlnistere  de  Rio  de  Janeiro.  De 
même  les  faits  parlent  dans  les  piéces.  Je  ne  me  permettrai  donc, 
Monsieur,   que  de   vous  arrêter   sur  quelques   réflexions   essentielles. 

Le  renvoi  d"une  Note  ministerielle,  lorsqu'aucun  acte  qui  put 
exciter  par  représaille  une  pareille  -violence  n'a  eu  lieu,  est-ce  un 
affront  ?  Je  ne  crois  pas  qu'il  y  ait  deux  reponses  a  faire. 

Sans  vouloir  citer  des  exemples  de  la  Diplomatie  Euro- 
péenne,  qui  passerait  condaranation  sur  celle  de  Rio  de  Janeiro, 
se  refusant  d'ailleurs  jusques  ici  de  devenir  indigéne  dans  ce  pays, 
il  est  notoire,  qu'avant  de  se  porter  aux  extrêmités,  l'on  prcvient 
TEnvoyé  d'une  Puissance  Etrangere,  que  le  contenu  ou  le  style 
de  la  Note  n'est  pas  convenable ;  s'il  vient  a  une  recidive  en  termes 
plus  forts.  <m  rinvite'  a  retirer  sia  Note ;  s''il  s'y  relfus?,  ce  n'est 
quValors  qu'on  est  arme  du  Droit  de  lui  restituer. 

Pour  Tétrange  mouvement  des  facultes  de  Mr.  le  Comte  de 
Barca  Ton  diraiL  que  cette  marche  mesurée  et  tardive  est  trop  com- 
mune  ou  trop  dans  les  prejugés'  d'un  Ordre  de  choses  que  ses  pen- 
chans  intimes  Tempeclient  d^admiirer.  II  lui  faut  des  Co^ups  de  Maitre. 
Cest  ainsi  quMl  commence  par  ou  Ton  finit  dans  les  pays  civilisés, 
par  me  renvoyer  ma  Note  en  Taccompagnant  d'une  de  sa  part  ré- 
digée  dans  un  langage  qui  sent  une  E'oole.  dont  oti  croirait  Mr.  le 
.  Comtie  da  Barca  jusques  ici  encore  le  dis-ciple  ziélé. 

iLes  deux  notes  sont  en  présence.  II  n'y  a  qu'a  les  oomparer 
entre  elles  po^ur  savoir  au  jusite  de  qu»el  côté  appartient  rapplication 
juste  et  réeaie  des  épithetes  dont  se  sert  Mr.  le  Comte  da  Barca, 
qui  non  content  de  s'être  oublié  au  point  que  de  faire  un  affront 
a  un  Ministre  Etranger ;  mais  encore,  et  c'est  un  oubli  bien  plus 
remarquable  de  rejetter  tout  son  courroux  sur  le  Ministre  en  lui  im- 
primant  une  leçon.  Ce  n'est  pas  sans  doute  a  Messieurs  les  membres 
du  Corps  Diplomatique  que  j'en  appellerai  pour  caractériser  en  traits 
frappants  l'engeance  des  valets  et  des  ouvriers  dans  cette  Capitale, 
lorsque  les  indigènes  momo,  qui  ne  sont  pas  cólons  s'en  plaignent 
sans  cesse.  II  est  évident  aussi  que  le  soin  de  peupler  Rio  de  Ja- 
neiro   et    d'y    introduire    les    commodités    de    la    vie    sociale   lui    font 


848  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 


porém,  apoz  terem  soberano  e  ministro  conversado  sobre  o 
Decorrido,  que  Barca  desconhecia  ao  expedir  a  sua  rispida 
admoestação,  uma  nova  nota  punha  inteira  e  abruptamente 


une  necessite  de  tolérer  toiít  ce  rebut  des  demieres  classes  de  la  so- 
ciété  repoussé  du  sein  de  l'Europe.  Tel  est  a  peu  prés  le  seus  des 
conjectures  vagues  par  lesquelles  jessaye  de  trouver  la  source  du 
brigandage  auquel  on  n'est  que  trop  souvent  exposé  ici.  Par  quel 
effort  de  logique  Mr.  le  comte  da  Barca  y  a-t-il  découvert  un  ou- 
trage  contre  le  Ministere  de  S.  M.?  Cest  un  secret  qui  semble  ne 
pa<s  valoir  la  peiíne  d"être  deviné.  Certes  dans  les  pays  constitués, 
les  loix  reprlment  la  lioence  et  dan«  la  plus  grande  partie  de  TlBu- 
rope  continentale,  11  y  a  des  mesures  réglementaires  qui  veillent  a  la 
ccnduite  de  la  Domes.tici.té  et  des  ouvrie^rs.  N'e9t-ilr'pas  au  surplus 
suffisant  qu'i:n  Envoyé  d'une  Puissance  Etrangere  fasse  abnéga- 
ticn  en  arriviant  ici  áe  teus  les  agriémens  de  la  vie  civilisée  et  so- 
ciale,  pour  avodr  encore  a  endurer  les  suites  de  Timpunlté  et  d'une 
Police  mal  organisée  ?  Et  n'ai  je  pas  eu  rexpériencei  que  pour  avoir 
négligé  de  faire  punir  un  de  ces  miserables,  d'autres  sont  devenus 
plus   hardis   par   la   suite  ? 

Dans  les  capitales  d'Europe,  les  recours  pour  flagrans  delits 
se  déeident  par  un  Commissaire  de  Police  et  sont  rares  par  l'inté- 
rêt  même  de  la  basse  classe  de  se  maintenir  en  bonne  réputation. 
Mr.  le  Comte  da  Barca  lui  même,  ne  m'a-t-il  pas  fait  la  distinction 
des  cas  dont  les  plaintes  se  rapportent  au  Ministere  et  de  ceux  qui 
déipendent  directement  de  la  Police  ?  Ees  flagrans  déLits  étant  de 
cette  derniere  classe,  je  m'étais  adressé  a  rintendant  pour  demander 
satisfaction  eiu  lui  ra;pellant  un  devoir  iqu'il  ni'avait  pas  rempli 
envers  moi.  Ce  demier  me  repondit  negativement.  Alors  seulement 
je  passais  une  Note  Ministerielle,  avec  Texpression  de  mes  regrets 
et  de  mes  excuses.  Sont-ce  les  excuses  que  ont  remuné  la  Bile  de 
•Mr.  le  Comte  da  Barca  ?  Mais  un  trait  de  génie  do  ce  dernier,  qui 
n'aura  pas  échappé  a  votre  sagacité,  c"est  la  naiveté  de  dire  que 
la  peàne  oorrectioinnelle  du  pain  et  Feau  infLigiée  aux  enfants  danS 
les  E'coles,  ne  se  trouve  pas  dans  le  code  criminei  du  Poi-tugal  et 
du  Brésil,  comme  s'il  voulait  peindre  en  peu  de  m'0'ts,  la  douceur 
et   rhumanité   de   ce   dernier. 

IChacun  de  nous  ne  doit-il-pas  avouer,  que  graces  aux  triom- 
phes  des  Souverains  et  des  Nations  combines,  la  Republique  Euro- 
péenne  ne  compte  plus  dans  son  sein,  aucune  Puissance  qui  ait 
beso.in  de  tenir  nn  langage  indécent  et  populacier.  pour  rehausser 
d'un  ton  de  Maitre  la  prépondérance  qui  lui  est  dévolue.  cependant 
le  procede  de  Mr.  le  Comte  aa  Barca,  le  style  de  sa  Note  mentio- 
née,  semblent  rappeller  des  systemes,  si  ce  n'est  des  époques,  qui 
en  Europe  ne  pourraient  plus  être  a  Tabri  du  ridicule  ou  de  mépris. 
Faudrait-il  attribuer  par  hazard  ce  ton  insolite  a  un  nouveau  sys- 
teme  de  uiplomatie  inventée  par  Mr.  le  Comte  de  Barca  pour  cé- 
lébrer  TEre  Caprieornienne  ?  Malgré  toutes  ces  suppositions  aucun 
de  Messieurs  les  membres  du  Corps  Diplomatique  ne  será  loin  de  con- 
Yenir    avec    moi    que    les    sentjments    de    bonté    et    les    príncipes    reli- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  849 

termo  á  missão  de  Balk-Poleff,  negando-lhe  de  então  em 
diante  e  por  motivo  do  desacato  commettido  admissão  á 
regia  presença,  ( i ) 


gieux  de  S.  M.  T.  F.  sont  tout  a  fait  en  contradiction  avec  les  airs 
d'aiTogance,  si  ce  n'est  pas  quelque  chose  de  pliis,  adoptes  par  son 
[Ministre.  Sá  néanmoin.s  le  Ministre  de  la  Puissance  laupres  ãe  laiquelle 
cn  reside,  v'oulait  sans  poser  des  bornes  fixes  et  Convenues  par  la 
civillsation  pour "  entenure  les  mots,  interprêter  a  sa  guise  et  juger 
en  demier  ressort  arbitrairement  de  la  façon  dont  une  Note  dolt 
être  rédigée,  pour  ne  pas  lui  déplaire,  ou  en  serait  le  Coips  Diploma- 
tique,  <ybligé  de  s'iniformer  au  therniometre  des  caprices,  de  Tinfir- 
mité  et  des  vapeurs  paralytiques,  la  dos?,  et  la  raes-ure  <iu'l1  faut 
donner  aux  termes  et  expressions  des  Notes  ministerielles?  Enfin 
Monsieur,  pour  ne  plus  vous  retenir  sur  un  sujet  aussi  mesquin 
par  le  fonds,  que  déplacé  et  indécent  par  les  formes  et  procedes  de 
Mr.  le  Comte  da  Barca,  .i'aural  llionneur  de  vous  assur-er  que  le, 
seul  respect  pour  le  devoir  d'Ambassadeur  rempli  et  les  égards  dus 
a  la  personne  de  Sa  Majesté,  m'.ont  retenu  dans  les  bornes  d'un  si- 
lence  respectueux.  J'ose  dono  roe  flatter  qu'en  approuvant  la  mo- 
dération  et  lo  calmie  dont  j,e  me  .suis  fait  jusqu'a  présent  une  LoI,, 
vous  n'e  pourriez,  envisiageant  la  dignité  du  Oaractera  DipLomatique, 
que  désaprouver,  si  je  me  fusse  renfermé  aesormais  dans  une  abné- 
gation  totale  des  droits  et  prérogatives  qui  appartiennement  a  cha- 
cun  de  nous.  Ainsi  pour  ne  laisser  rien  iguorer  de  ma  résolution, 
je  vais  Monsieur,  apres  avoir  proteste  par  ma  Note  a  Mr.  le  Comte 
da  Barca,  solliciter  de  S.  M.  T.  F.  une  satisfaction  complete  de 
Taflfront  exerce  contre  mol  pa.r  son  Ministre.  Quant  a  sa  note  du  6 — 18 
Mars  que  je  n'ai  reçu  par  rhabitude  invétérée  de  desordre  que  le 
8^ — 128  du  même  móis  a  minuit  et  demi  en  maison  tieroe,  apres  avoir 
envoyé  de  mon  côté  celle  ou  je  sollicitais  du  Rol  Taudience  en  qua- 
lité  d'Ambassadeur,  je  n'ai  pas  besoin  d'ajouter,  que  ne  pouvant 
trouver  place  dans  aucune  Archive  Diplomatique,  elle  será  ren- 
voyée  a  celui  qui  Ta  dictée  et  sans  le  moindre  commentaire.  Venil- 
lez  donc  bien,  Monsieur,  en  répondant  a  Tempressement  que  j'al 
de  communiquer  le  systeme  de  procedes  suivi  contre  moi,  et  le 
caractere  de  mes  demarclies,  transmettre  a  votre  Cour  par  le  pa- 
quebot  de  ce  móis  ou  par  la  premiere  occasion  opportune,  les  pieces 
justificatives  ainsi  que  la  lettre  que  j'ai  Thonneur  de  vous  adresser. 

En  ambitionnant  votre  suffrage,  dans  une  cause  ou  Tin- 
fraction  des  Droits  ot  prérogatives  d'un  Membre  du  Corps  Diploma- 
tique touche  tie  prés  son  ensemble,  permettez  de  vous  offrir  Tassu- 
rance  de  la   consideration   la   plus  distinguée,   etc. 

(1)  O  abaixo  assignado  etc.  dirige-se  a  S.  Ex.  o  Sr.  Tedro  de 
Balk-Poleff,  Embaixador  etc.  para  lho  fazer  constante  que  S.  M.  F. 
vivamente  offendido  do  desacato  que  V.  Ex.  lhe  fez  na  audiência 
particular  quo  lhe  concedeu  em  a  Noite  do  dia  20  do  corrente,  tomou 
huma  resoku.-ão  (proporcionada  a  gravidade  da  offensa  o  todavia 
modificada  pelos  sentimentos  de  especial  consideração  e  amizade 
que  tem  por  S.  M.  o  Imperador)   qual  he  a  de  não  admittir  a  S.  Ex. 


850  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Nada  mais  restava  ao  impetuoso  e  irreverente  diplo- 
mata do  que  pedir  seus  passaportes,  que  lhe  foram  sem  tar- 
dança concedidos.  A  24  o  conde  da  Barca  transmittia  em 
circular  ao  corpo  diplomático  acreditado  no  Rio  copia  de 
toda  a  correspondência  trocada. 

O  desacato  em  questão  consta  circumstanciadamente 
do  curioso  officio  de  Balk-Poleff  ao  seu  chefe  Capo  dlstria, 
reproduzindo  em  forma  dialogada  a  audiência  real  de  20  de 
Maio.  Qualquer  narração  que  d'esta  entrevista  se  quizesse 
tentar,  se  não  poderia  approximar  em  verdade  e  chiste  d'essa 
conversação  por  assim  dizer  tachygraphada  e  na  qual  se 
sente  de  um  lado  toda  a  ira,  contida  pelo  respeito  á  magestade, 
do  diplomata  escarnecido  e  raivoso,  e  do  outro  lado  toda  a 
bonhomia  velhaca  do  Rei,  esquivando-se,  encolhendo-se,  ter- 
giversando, contemporisando,  para  no  fim,  com  uma  só 
phrase,  assumir  inesperadamente  a  responsabilidade  da  situa- 
ção e  tornar  impossivel  o  prolongamento  da  conversa,  dei- 
xando o  interlocutor  perplexo  e  a  descoberto. 

Começa  Balk-Poleff  por  informar  que  expressou  ao 
monarcha  a  satisfacção  que  seu  Amo  sem  duvida  experimen- 
taria ao  saber  do  restabelecimento  da  tranquillidade  nos  Es- 
tados portuguezes. 

''El-Rei  —  Não  duvido  do  interesse  que  toma  vosso 
Imperador  por  quanto  me  diz  respeito,  mas  o  boato  que  correu 
é  falso.  O  encarregado  de  annunciar  qualquer  boa  nova 
segundo  um  signal  convencionado,  enganou-se  tomando  um 


de  hoje  em  diante  a  sua  Augusta  Presença  até  que  haja  de  constar 
n'esta  Corte  a  decisão  de  o.  M.  1.  sobre  o  mencionado  desacato,  e 
sua   devida    satisfação. 

O  abaixo  assignado  havendo  assim  cumprido  as  ordens  ex- 
pressas de  El  Rey  seu  Amo  tem  a  honra  de  repetir  a  S.  Ex.  o  Sr. 
Pedro  de  Balk-Poleff  os  protestos  da  sua  mui  distincta  considera- 
ção. Palácio  do  Rio  de  Janeiro  em  22  de  Maio  de  1817. — Conde  da 
Barca. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  851 

navio  inglez  pelo  que  se  espera  de  Pernambuco;  mas  é  um 
bom  homem.  Saòeis  que  a  revolta  dos  meus  súbditos  me 
causou  grande  pezar  ? 

Eu  —  Acredito,  Senhor.  E'  mister,  porém,  esperar  que 
breve  estará  apaziguada  a  rebellião,  comtanto  que  Vossa  Ma- 
gestade  ao  lado  do  gladio  da  justiça  haja  por  bem  empregar 
a  clemência  que  o  caracteriza. 

El-Rei  —  Sim,  sim,  mas  é  preciso  castigar.  Como  ides 
de  saúde? 

Eu  —  Graças  á  bella  estação  que  presentemente  atra- 
vessa a  capital  de  Vossa  Magestade,  até  os  enfermos  pas- 
sariam bem. 

El-Rei  —  No  emtanto  o  clima  da  Europa  vale  mais 
que  o  da  America,  hem!  hem! 

Eu  —  Sem  duvida.  Senhor,  é  mais  próprio  para  Euro- 
peus, mas  no  meio  de  uma  natureza  como  a  do  Brazil,  com 
melhoramentos  a  capital  de  Vossa  Magestade,  que  descança 
sobre  um  terreno  húmido,  tornar-se-hia  saudável.  Senhor, 
eu  penso  que  seria  necessário  resolver-se  Vossa  Magestade 
a  tomar  medidas  para  povoar  seus  vastos  Estados  com  colonos 
europeus,  em  lugar  d  estes  negros  que  são  obstáculos  mais  do 
que  meio  de  civilização.  Ousei  dar  expressão  em  termos  ge- 
raes  a  semelhante  voto  no  meu  discurso. 

El-Rei  (sorrindo)  — Ainda  hoje  entrou  um  navio  tra- 
zendo 400  escravos.  (Depois  de  uma  pausa)  Sabeis  que  duas 
embarcações  inglezas  se  dirigiam  para  Pernambuco  com 
armas  e  pólvora  ?  Que  pensais  d'isso?  uma  delias  foi  levada 
para  a  Bahia,  hem!  hem! 

Eu  —  N'um  paiz  livre  e  constitucional  como  a  Ingla- 
terra, é  impossivel  impedir  as  especulações  dos  particulares 
de  qualquer  género  que  sejam. 


852  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Apoz  um  momento  de  silencio,  roguei  a  Sua  Magestade 
quizesse  ouvir-me  em  particular,  pelo  que  foi  despedido  o 
criado  e  assim  comecei: 

Senhor,  Vossa  Magestade  teve  a  prova  da  satisf acção 
que  experimentei  em  cumprir  um  dever  que  só  Lhe  poderia 
ser  agradável,  pois  que  meu  Augustissimo  Amo  só  m'o  dictou 
para  comprazer  a  Vossa  Magestade,  que  porventura  ignora, 
porém,  que  se  esqueceram  com  relação  a  mim  de  muitas  das 
formas  usadas  n'essas  espécies  de  embaixadas. 

El-Rci  —  Sim,  fiquei  muito  contente  com  a  embaixada 
e  com  o  vosso  discurso.  Escrevei  ao  meu  Ministro. 

Eu  —  Foi  precisamente  o  que  fiz,  mas  com  um  vivís- 
simo pezar  de  ter  sido  forçado  a  protestar,  sabendo  bem  que 
as  intenções  de  Vossa  Magestade  não  eram  de  que  eu  tivesse 
razão  de  queixar-me;  tanto  mais  quanto  Vossa  Magestade 
em  pessoa,  fallando  com  o  cavalheiro  Villalba,  manifestou 
que  seria  inconveniente  reunir  a  audiência  ao  embaixador  e 
a  funcção  de  grande  gala. 

El-Rei  —  Oh!  sim,  o  cavalheiro  Villalba  fallou-me 
muito  de  vós.  Escrevei  ao  meu  Ministro,  bem!  bem! 

Eu  —  Não  deixei  de  protestar,  como  era  do  meu  dever: 
além  de  que  nenhumas  precauções  tinham  sido  tomadas  para 
que  eu  pudesse  chegar  ao  Palácio;  fui  assim  obrigado  a  espe- 
rar uma  hora  no  sol  e  no  pó. 

El-Rei  —  Estavam  as  tropas,  bem !  bem ! 

Eu  —  Precisamente,  Senhor. 

El-Rei  —  Lord  Strangf ord  passava  pelo  meio  d'ellas ; 
(sorrindo)  eu  tinha-lhe  dado  permissão  para  isso. 

Eu  —  O  respeito  que  se  tem  na  Europa  a  tropas  forma- 
das diante  das  janellas  do  seu  soberano  ter-me-hia  vedado 
romper  a  fileira  dos  soldados  de  Vossa  Magestade. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  853 

EI-Rei  —  l-lcrAl  hem!   (i) 

Eu  —  E'  também  com  profundo  sentimento  de  magoa 
que  me  vejo  compellido  a  solicitar  de  Vossa  Magestade  uma 
reparação  como  a  pode  e  deve  desejar  aquelle  que  tem  a 
honra  de  representar  seu  Augusto  Alliado  e  Amigo.  O  Mi- 
nistério de  Vossa  Magestade  fez-me  uma  offensa  que  cara- 
cter representativo  algum  saberia  supportar,  não  somente 
devolvendo-me  uma  Nota  por  mim  dirigida,  como  escreven- 
do-me  uma  em  resposta  cujo  theor  não  me  é  dado  soffrer 
(je  ne  suis  pas  fait  pour  entendre).  Si  Vossa  Magestade 
me  dá  licença,  atrever-me-hia  a  ler-lhe  a  nota  que  me  foi 
restituida. 

El-Rei  —  Lede. 

E  com  ef feito  li  a  nota  cuja  copia  transmitti  ao  Sr. 
Conde  de  Nesselrode,  ajuntando:  Quanto  á  do  Ministro  de 
Vossa  Magestade  aqui  a  tenho  sellada  para  ser-lhe  restituida 
como  documento  que  não  acharia  lugar  em  archivo  diplo- 
mático algum. 

El-Rei — Oh!  mas  tendes  tanta  facilidade  para  as 
línguas?  Comprehendeis  o  portuguez. 

Eu  —  Já  tive  a  honra  de  assegurar  a  Vossa  Magestade 
que  não  sou  feito  para  comprehender  o  estylo  da  nota  do 
seu  Ministro,  ainda  que  comprehendesse  a  linguagem. 


(1)  "Os  item,  hem  tâo  repetidos  sao  um  habito  muito  fami- 
liar a  S.  M.,  que  o  emprega  com  a  maior  frequência,  le  por  sestix) 
mesmo,  e  2^-,  ou  para  confirmar  o  que  acaba  de  dizer,  ou  para  es- 
timular o  >a9sentimento  das  pessiaas  com  quem  conversa."  (Oflficio 
de  Maler  a  Riclielieu  de  24  de  Maio  de  1817).  NVste  officio  teve  o 
encarregado  de  negócios  da  Fran(.'a  ensejo  de  escrever,  a  pi'oposito 
da  referencia  de  Dom  João  ás  embarcações  inglezas  que  tentaram 
ajudar  a  revolução  pernamDucana  com  armas  e  provisões,  não  ser 
o  monarcha  "três  porte  pour  TAngleterre  en  general."  Outro.s  muitos 
accusaram  i>elo  contrario  o  Rei  de  grande  parcialidade  pela  Grã 
Bretanha,  provando  apenas  esta  divergência  de  opiniões  ou  teste- 
munhos que  o  esperto  soberano  seguia  uma  politica  sua  ou  nacional 
e,  quando  acompanhava  a  politica  ingleza,  o  fazia  por  ser  a  que 
n'esse  caso  mais  convinha  fi  dynastia  e  ao  paiz. 


854  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZlL 

El-Rei — Escrevei  a  respeito  ao  meu  Ministro. 

Eu  —  Nada  tenho  que  lhe  escrever  sobre  o  assumpto, 
e  é  sem  commentario  algum  que  lhe  restituo  sua  nota  para 
não  imital-o  De  resto  ella  não  seria  digna  de  ser  posta  entre 
as  mãos  de  um  soberano:  quando  muito  pode  ser  deposta  a 
seus  pés.  (Ao  dizer  isto,  effectivamente  depuz  o  envolucro 
aos  pés  do  Rei,  e  prosegui).  Ella  ahi  permanecerá  até  que 
eu  tenha  a  honra  de  despedir-me  de  Vossa  Magestade.  Ouso, 
ao  mesmo  tempo,  affirmar-vos.  Senhor,  que  é  com  verda- 
deiro desgosto  que  me  vejo  forçado  a  implorar  de  Vossa 
Magestade  satisfacção  contra  o  seu  Ministro,  pois  que  injuria 
tal  não  a  poderia  mesmo  tragar  um  gentilhomcm  russo,  com 
maioria  de  razão  um  Ministro. 

El-Rei  sorria  e  repetia:  hem!  hem! 

Eu  —  E'  com  tanto  mais  dôr  que  me  acho  reduzido  a 
semelhante  extremidade,  quanto  não  me  seria  licito  desempe- 
nhar o  encargo  ulterior  de  apresentar  outra  credencial  senão 
depois  de  Vossa  Magestade  me  haver  concedido  a  justa  repa- 
ração que  lhe  peço. 

Passo  aqui  sob  silencio  duas  ou  trez  referencias  que  se 
intercalaram  de  modo  imprevisto  no  thema  capital  da  con- 
versa: a  questão  de  um  tratado  de  commercio  para  substituir 
o  caduco,  ao  que  respondi  negativamente;  a  gravidez  da 
Rainha  da  Hespanha  e  a  continuação  da  sua  epilepsia,  pelo 
que  exprimi  esperança  de  que  talvez  o  parto  de  Sua  Mages- 
tade fizesse  cessar  a  epilepsia  (haut-mal) ;  finalmente  a  bel- 
leza  da  Infanta  menor,  sobre  que  me  havendo  interpellado  o 
Rei  entendi  dever  responder-lhe  que  a  Infanta  era  mais  um 
anjo  que  uma  mortal,  etc,  etc. 

Fallando  de  sua  filha  a  Rainha  da  Hespanha,  disse-me 
El-Rei  que  esperava  uma  Princeza  da  Europa,  mas  receiava 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  855 

muito  que  os  acontecimentos  de  Pernambuco  se  convertessem 
n'um  obstáculo  á  partida  da  Archiduqueza,  caso  lá  chegas- 
sem noticias  dos  mesmos  antes  do  embarque.  Apenas  podia 
responder  lisonjeando  as  esperanças  de  Sua  Magestade. 
Quando  de  novo  solicitei  satisfacção  contra  o  Conde  da  Barca, 
El-Rei  disse-me  sorrindo:  Sabeis,  porém,  que  os  Ministros 
não  são  mais  do  que  os  executores  da  minha  vontade. 

Nunca  duvidei  d'isso.  Senhor,  repliquei.  E'  assim  que  os 
deseja  o  Corpo  Diplomático  residente  junto  a  Vossa  Mages- 
tade, o  qual  entretanto  não  cessa  de  louvar  Vossa  Magestade 
e  abençoar  seu  destino  por  ter  a  dita  de  approximar-se  da  sua 
pessoa,  mas  só  pode  queixar-se  do  seu  Ministro  com  perfeita 
unanimidade.  Eu  próprio  que  presto  tributo  ás  virtudes  de 
moderação,  de  equidade  e  de  clemência  de  Vossa  Magestade, 
traços  que  me  trazem  á  lembrança  os  do  meu  Augusto  Amo, 
não  posso  suppor  que  em  qualquer  dos  actos  do  seu  Ministro 
de  que  me  queixo,  exista  parcella  alguma  da  vontade  de 
Vossa  Magestade,  aliás  incompativel  com  o  que  se  assemelha 
a  um  systema  que  não  poderia  ser  o  de  Vossa  Magestade. 
Eis  o  titulo  que  mais  me  auctoriza  a  solicitar  uma  satisfacção 
contra  o  seu  Ministro. 

El-Rei  —  Já  vos  disse  que  a  tereis. 

Retomando  o  envolucro  deposto  aos  pés  do  Rei,  retirei- 
me  saudando  segundo  a  etiqueta." 

Refere  em  seguida  Balk-Poleff  que  o  "suffragio  una- 
nime" por  elle  obtido  sobre  o  objecto  e  estylo  do  seu  protesto 
comparado  com  a  nota  do  conde  da  Barca,  mostra  sufficien- 
temente  "de  quel  côté  est  la  justice  de  la  cause  et  la  regu- 
larité  des  formes  et  convenances,"  ao  mesmo  tempo  que 
convence  pelo  que  toca  á  maneira  usada  na  corte  do  Rio 
com  o  corpo  diplomático. 


856  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Vale  a  pena,  para  complemento  do  incidente  e  melhor 
comprehensão  do  meio  diplomático  do  momento,  buscar  na 
correspondência  de  Maler  o  effeito  produzido  entre  os  agen- 
tes estrangeiros  no  Brazil  pelo  extraordinário  episodio.  Ma- 
ler, concordando  com  o  processo  progressivo,  indo  da  adver- 
tência á  devolução  da  nota,  que  Balk-Poleff  dizia  ser  para 
casos  taes  o  diplomático,  não  se  furta  a  applaudir  o  primeiro 
protesto  do  representante  russo,  contra  a  restituição  da  nota 
relativa  ás  suas  reclamações  particulares,  considerando-o  "re- 
dige dans  le  vrai  esprit  qui  doit  guider  tout  individu  appellé 
a  remplir  de  si  hautes  fonctions",  e  como  um  testemunho 
authentico  de  que  o  embaixador  soubera  perfeitamente  *'con- 
cilier  les  égards  qui  sont  dus  á  S.  M.  T.  F.  avec  la  dignité 
du  caractere  réprésentatif  dont  il  ctait  investi  par  S.  M. 
TEmpereur  Alexandre",   (i) 

A  22  de  Maio  transmittio  o  encarregado  de  negócios 
francez  ao  duque  de  Richelieu  o  resumo  de  uma  entrevista 
solicitada  por  Balk-Poleff  e  na  qual  este  lhe  narrou  miuda- 
mente todas  as  suas  queixas  do  conde  da  Barca,  para  que 
d'ellas  pudesse  ser  informada  a  corte  franceza.  Foi  ahi  que 
Maler,  pretextando  não  querer  fiar-se  tão  completamente 
em  sua  memoria — "quand  d'apres  la  nature  de  ces  Communi- 
cations, un  seul  mot  changé,  ajouté  ou  omis  devait  occasion- 
ner  une  erreur  sensible  et  une  faute  grave" — lhe  suggerio  a 
idéa  de  uma  circular  que  Balk-Poleff  disse  de  resto  estar 
já  redigindo.  A  resposta  a  essa  circular,  quando  para  ella 
houve  ensejo,  não  satisfez  no  emtanto  muito  o  embaixador 
russo  que  a  desejaria  ainda  mais  formal  e  abundante,  ao  que 
Maler  se   excusou   comquanto   reconhecesse   serem-lhe   com- 


(1)   Resposta  a  Balk-roleff  de  20  dp  Maio  de  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  857 

muns  as  recriminações  contra  o  modo  por  que  a  chancella- 
ria  do  Rio  tratava  os  diplomatas  estrangeiros.  ( i ) 

Nas  ulteriores  informações  que  prestou  ao  seu  governo, 
censurou  asperamente  o  agente  francez  a  demora  soffrida 
por  Balk-Poleff  em  plena  rua  no  dia  da  entrega  da  creden- 
cial, e  quanto  á  resposta  de  Barca  ao  protesto  a  tal  respeito, 
achava  injustos  os  qualificativos  empregados  pelo  Ministro, 
quer  applicados  ao  caso,  quer  considerados  em  geral.   (2) 


(1)  "Voici,  iMonseigneur,  daiig  quel  sems  j'ay  cru  devolr  rê- 
potidre.  !La  conduite  de  Mr.  Balk  avait  été  irreguLiere,  et  Ini  layalt 
nttiré  dea  scenes  désagrt^ables,  cependant  la  ICour  du  Portugal  ayaiit 
j)aru  avcir  oublln  le  passe,  le  vpçoit,  on  sa  nouvelle  qualité  d'Ambassa- 
deur  :  qu'il  ait  ou  iion  raison  dn  protester  contra  le  jonr  et  la  maniere 
dont.  11  a  été  reçu,  le  style  de  cette  piece  est  noble  et  eonvenable, 
je  n'hesite  pas  a  ravouer  et  a  applaudir  aux  sentimenu  qu'il  a  ma- 
nifeste alors,  car  il  a  obél  pour  plaire  a  S.  M.  T.  F  et  il  proteste 
apres  avec  dlgnite  pour  conserver  intactes  le.s  usages  et  les  dis- 
linctions   attachées   a   ee   haut   caractere 

Le  Ministre  des  I*ays  Ba.s  et  le  chargé  d'AffaJres  d'Espagne 
ont  donné  leurs  réponses  telles  que  Mr.  Balk  aurait  i>u  les  désirer  ; 
il  est  également  três  satisfait  de  celle  du  chargé  d'Affaires  d'An 
gleterre,  au  reste  j'ay  la  celle  ci  et  la  trouve  assez  adroite.  J.e  Mi- 
nistre des  Etats  Unis  n'a  point  encore  répondu  mais  d'apres  ce 
tiu'il  m'a  dit  sur  les  pieces  de  ce  demelé,  je  suis  fondé  a  croire  (|u'il 
:ij)puyera  Mr.   Balk 

Mr.  Balk  a  de  1%'sprit  mais  il  manque  de  bon  sens  et  <m 
resume  le  Cori^s  Diplomai ique  naus  ce  pays  ne  peut  être  satisfait 
de  la  manifre  dont  il  est  traité  et  beaucoup  moins  de  la  difficulté 
que  nous  épr(i.uvons  a  recevoir  des  répons«es  aux  demaudes  les  plus 
justes  et  qui  devraient  ré<'lamer  quelque  activité  de  la  part  du  Mi- 
nLstere.  Individuellement  si  je  n'ay  pas  a  me  louer  sous  ce  rapport. 
j'ay  peut  être  moins  a  me  plaindre  que  mes  collegues  ;  le  chargé 
d'Affaires  (VAngleterre  me  disait  il  y  a  três  peu  de  jours  que  son 
(íouvemement  trouverait  s'il  pouvait  le  désirer  assez  de  griefs  pour 
déclarer  la  guerre  ;  p^ut  être,  (MonseLgneur,  cet  état  des  choses 
participe  uii  peu  de  la  composition  pr(%ente  du  Ministere,  mais  je 
crois  pouvoir  encore  rai)peller  ce  que  j'ay  donné  a  entendre  il  ya 
longtemps,  et  c'est  que  la  polititiue  de  cette  Cour  était  peu  analogue 
a  ses  forces,  a  sa  puissance  réelle  et  a  sa  position."  (Officio  de  22 
de  Maio  de  1817). 

(2)  Sobre  o  desacato  as  reflexões  de  Maler  são  bastante  ju- 
diciosas :  "Je  respecte  trop  cordialement,  trop  scrupuleusement  les 
Riois  legitimes',  je  me  fais  trop  naturelLement  un  devoLr  de  rendre 
hom'mage  a  la  bonté  persontnelle  de  \S.  M.  le  Roi  de  Portugal,  pour 
avoir  le  moindre  doute  pour  me  permettre  la  plus  légei^e  hésitation 
sur   Tincartade   dcnt    il    se    plaint ;. . .   Cependant,    comme    iS.    M.    ne 

D.  J.  —  54 


858  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

De  facto  todos  os  diplomatas,  Maler  e  Chamberlain 
como  o  ministro  russo,  nutriam  disposições  pouco  benévolas 
para  com  o  governo  portuguez,  antes  o  aborrecendo  sem 
excepção,  no  que  traduziam  fielmente  os  sentimentos  dos 
seus  respectivos  governos.  Assim  apreciado,  o  incidente 
Balk-Poleff  recebe  a  expressão  do  mau  humor  reflexo,  la- 
tente e  geral  d'esse  meio  todo  especial,  sentimento  devido  a 
uma  multiplicidade  de  causas.  A  occupação  de  Montevideo 
sobretudo  indispuzera  com  a  corte  do  Rio  os  gabinetes  euro- 
peus que  não  queriam,  apoz  tão  longo  periodo  de  guerras 
quanto  o  napoleónico,  abrir  ou  ver  abrirem-se  novas  luctas 
como  a  que  se  ensaiava  entre  Portugal  e  Hespanha;  se  ti- 
nham desgostado  todos  com  a  recusa  de  Dom  João  de  trans- 
portar-se  novamente  para  a  Europa,  e  se  mostravam  assim 
já  ligeiramente  ciumentos  da  importância  que  poderia  alcan- 
çar o  Novo  Mundo,  com  suas  novas  nacionalidades  e  dynas- 
tias  tradicionaes,  seu  progresso  importado  e  seus  recursos 
naturaes.  As  metaphoras  do  abbade  de  Pradt  são  o  symptoma 
litterario  d'esse  estado  d 'alma  em    que    pouco  inclinados  se 


dósigne  ni  n'iindiqne  Tincartade,  je  me  pei-mettrai  un  petit  commen- 
taire,  ou  quelques  reflexions.  Je  ne  puis  concevoii"  quel  a  été  le  imt 
de  IMr.  iBalk  .fOi  dépasant  une  note  aux  pieds  du  Roi  !  Tout  au  plus 
si  pareillo  n-iaisorie  serait  recue  et  adimise  pour  les  Rols  let  pour 
les  Ambassadeurs  que  nos  bisayeux  pouvalent  mettre  sur  le  Theatre ; 
et  apparemmont  que  Mr.  de  Balk  aura  mis  trop  de  vivacité  dans  le 
mouvement  déja  si  singulier  par  lui  même  de  mettre  aux  pieds  de 
S.  M.  cette  note.  Mais  je  n'hésite  pas  a  publier  que  ce  n'etait  pas 
du  tout  IMntention  de  eelui-ci  de  manquer  au  Souverain,  de  le  cho- 
qu.er  cu  de  lui  faire  de  la  peine  ;  .j'ay  préoédemment  fait  cooinaitre 
avec  Impartiallté  la  malheureuse,  1' inconsequente  facilite  de  Mr.  de 
Balk  a  se  permettre  des  sarcasmes  et  des  diatribes ;  mais  je  dois 
a  la  verité  d"ajouter  qu'il  a  toujours  été  respectueux  envers  le  Roi, 
et  même  qu'il  s'en  était  forme  une  opinion  juste  et  favorable.  Je 
declare  do.nc  que  Mr.  de  Balk  n^a  été  a  la  campagne  du  'Roi  le  20,  que 
dans  rintention  de  lui  faire  des  oomplimens  de  íelicitatioo,  et  qu'as- 
.sez  mal  avisié  pcur  ifaire  ses  complimens  sur  un  événement  dont  la 
fausseté  était  deja  reconnue  par  les  personnes  serisées,  11  a  été 
assez  maladroit  contre  son  gré,  contre  sa  volonté  pour  offenser  le 
Kol.    tUfficio  de  1'5   de  Maio   de   3  817.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  859 

deveriam  os  governos  fortes  manifestar  para  favorecerem 
aspirações  imperialistas  de  potencias  menores  e  particular- 
mente de  potencias  americanas. 

As  questões  de  etiqueta,  que  tão  grande  papel  desempe- 
nham na  vida  diplomática,  contribuiam  também  muito  para 
o  mau  humor  dos  agentes  acreditados  no  Rio  de  Janeiro, 
que  uniformemente  se  queixavam  das  faltas  de  attenção  de 
que  eram  victimas  da  parte  do  governo,  sem  se  recordarem 
das  suas  próprias  culpas,  porventura  mais  graves  e  de  que 
era  responsável  o  seu  commum  snobismo.  O  embaixador 
extraordinário  da  Áustria,  conde  de  Eltz,  esse  a  quem  o 
Rei,  aliás  sem  enthusiasmo  algum  e  apoz  exigir  d'elle  uma 
memoria  sobre  o  assumpto,  emprestou  6o  contos  com  que 
prover  aos  seus  gastos  e  aos  das  duas  fragatas  do  acompanha- 
mento da  Princeza  Real  e  salvar-se  das  garras  dos  agiotas, 
nem  uma  só  festa  dera  em  honra  da  corte  onde  fora  espe- 
cialmente acreditado  n'uma  tão  faustosa  occasião.  Nas  expres- 
sões de  Maler,  o  embaixador  Eltz  vivia  incógnito,  dei- 
tando-se  com  as  gallinhas,  não  visitando  nem  recebendo  pes- 
soa alguma,  de  sorte  que  a  sua  comitiva  era  convidada  para 
as  reuniões  e  que  ao  chefe  o  punham  de  lado,  como  si  não 
existisse.    ( i ) 

Por  vezes  mesmo  as  desattenções  officiaes  contra  que 
clamavam  os  diplomatas,  não  passavam  de  meras  ninharias. 


(1)  o  conde  de  Eltz,  o  barão  de  Hugel  e  o  príncipe  Frede- 
rico de  la  Tour  e  Taxis  partiram  a  òi  de  Maio  de  1818  em  navios 
austríacos,  seguindo  ao  mesmo  tempo  na  nau  portugueza  São  8e- 
hastião  as  damas  da  corte  de  Vienna  que  tinham  acompanhado  ao 
Rio  a  Archiduqueza.  A  bordo  d'esta  nau  achava-se  como  aspirante 
D.  Luiz  Maria  da  Camará,  mancebo  de  27  annos,  da  casa  dos  con- 
des da  Ribeira  Grande,  nomeado  conselheiro  da  embaixada  em  Pa- 
riz  e  áe  quem  Maler  escrevia  (Officio  de  6  de  Dezembro  de  18.1  S) 
ser  destituído  de  conhecimentos  e  não  parecer  muito  desejoso  de 
adquiril-os,  podendo-se  adiantar  que  seguirá  machinalmente  sua 
nova  carreira  como  seguia  o  movimento  que  outros  impriuiiam  á 
navegação  do  seu  navio. 


860  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Maler  fazia  para  Pariz  quasi  um  negocio  de  Estado  do 
facto  de  Bezerra  assignar  a  24  de  Junho  uma  circular  rela- 
tiva ao  adiamento  da  funcção  de  grande  gala  pelo  santo  do 
nome  do  Rei,  quando  só  a  25  foi  feita  a  communicação  offi- 
cial  da  sua  entrada  para  o  gabinete.  Un  homme  inconnu 
chama-o  indignado  o  consul-encarregado  de  negócios,  ajun- 
tando: *'Je  trouve,  Monseigneur,  que  le  debut  de  Mr.  Be- 
zerra dans  son  lit  n'est  pas  brillant,  mais  comme  je  ne  con- 
nais  la  politique  chinoise  moderne  que  par  Tambassade  de 
lord  Amherst,  je  trouve  toujours  la  copie  bien  au  dessous 
de  Toriginal". 

O  juizo  que,  pessoalmente,  Maler  e  sem  duvida  os  seus 
coUegas  formavam  de  Balk-Poleff  era  comtudo  de  natureza 
a  contrariar  toda  a  sua  intencional  parcialidade  na  defeza 
das  regalias  e  vaidades  diplomáticas,  (i)  "Je  n'ay  jamais 
voulu  me  lier  avcc  Mr.  de  Balk  malgré  ses  avances,  escrevia 
Maler.  J'ay  cru  devoir  m'en  tenir  avec  lui  a  de  simples  de- 
voirs  de  politesse  car  je  voyais  dans  nos  caracteres  trop  peu 
d'analogic."  E  n'outra  occasião  admitte  sem  ambages  que 
"Mr.  de  Balk  n'avait  rien  fait  personellement  qui  put  lui 
mériter  un  accueil  empressé,  il  avait  debute  avec  imprudence, 
avec  légereté  et  avec  beaucoup  d'indiscretion." 

O  incidente  —  affaire  désagréable  en  toiít  sens,  segundo 
o  caracteriza  a  linguagem  diplomática  do  tempo — deriva  sua 
gravidade  e  interesse  da  forma  que  assumio,  pois  que  no 
fundo  todo  elle  se  cifra  n'uma  rixa  entre  o  Ministro  de  Es- 


(1)     je    ne    puis    m'    empêcher    de    demandor    ce    que    de- 

viendraiejit  et  la  nature  respectable  par  elle  mênie  des  fonctions  di 
plomatiques  et  tout  ce  qui  se  rattaclie  a  la  dignité  Representativo 
des  Souverains  dans  une  Cour  étrangere,  s*il  n'était  point  permis  de 
protester  avec  modération,  avec  noblesse  contre  ce  qu'ils  pensent 
avoir  été  négligé  a  leur  egard,  afin  de  constatar  qu'un  parei!  exemple 
ne  puisse  tii*er  a  consequence  et  ne  puisse  servir  de  regle  a  ravccJ"."' 
(Officio  de   20   de  Maio  de  1817). 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  861 

trangeiros,  contra  quem  Balk-Poleff,  Villalba  e  Mollerus 
tinham  organizado  um  triumvirato,  e  o  representante  russo. 
A'  desavença  conservou-se  alheio  o  Rei  até  o  momento  em 
que  o  diplomata  quiz  inhabilmente  insistir  em  lançar  as 
culpas  todas  sobre  o  Ministro  e  destacar  a  pessoa  do  sobe- 
rano, declaradamente  para  exaltal-a,  n'uma  irresponsabi- 
lidade quasi  insultuosa  pois  que  implicava  da  parte  do  mo- 
narcha  ignorância  dos  negócios  públicos  em  andamento,  e 
a  admissão  de  abusos  de  grave  caracter  internacional  a  que 
se  não  extendia  plenamente  sua  auctoridade,  da  qual  era  elle 
muito  cioso.  Apenas  n'um  regimen  constitucional  é  licito 
responsabilizar  o  ministro  e  isolar  o  Rei.  Contra  Balk- 
Polcff  pesoalmentc,  Dom  João  nada  tinha  até  então  ou  nada 
queria  apparentar,  tanto  que  acolheu  perfeitamente  a  inter- 
venção bastante  descabida  e  desgraciosa  do  encarregado  de 
negócios  da  Hespanha  na  questão,  e  não  se  mostrou  resentido 
com  as  primeiras  incorrecções  do  embaixador  extraordinário, 
que  as  foi,  porém,  accumulando. 

**Le  Roi  naturellement  bon,  escrevia  Maler  a  Riche- 
lieu,  se  preta  sans  violence  á  accorder  ce  quon  lui  deman- 
dait,  (i)  il  a  avoué  même  qu'il  était  venu  cn  ville  un  jour 
dans  la  croyance  que  les  ordres  avait  été  données  en  consé- 
quence,  mais  que  le  Comte  da  Barca  avait  oublié  de  les 
faire  expédier;  et  c'est  que  la  tactique  de  celui-ci  était  moins 
conciliante;  il  a  cherché  a  retarder  la  réception  de  Mr.  de 
Balk  pour  se  donner  le  temps  de  recevoir  une  réponse  aux 
plaintes  que  dés  le  móis  d'Octobre  il  avait  adressées  á  Pe- 
tcrsbourg,  et  pour  peu  qu'il  eút  vu  le  moindre  jour  au  bon 
accueil  de  ses  plaintes,  il  se  croyait  assez  en  force  pour  ne-  le 


(1)  Refere-so  Maler  íl  domorada  audiência  para  entrega  da 
credencial  de  embaixador,  peia  qual  se  empenhou  confidencialmente 
Villalba. 


■362  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

point  admettre.  Cependant  le  ii  Mai  ayant  reçu  les  ordres 
du  Roi,  Mr.  da  Barca  envoya  chercher  Mr.  Swertchkoff, 
Conseiller  de  légatíon  russe,  jeune  homme  que  frequentait 
três  intimement  sa  maison,  et  qui  par  cela  même  n'est  pas 
bien  vu  de  Mr.  de  Balk,  et  il  le  chargea  de  demander 
a  celui-ci  si  Taudience  pouvait  lui  convenir  dans  la  journée 
du  13.  Mr.  de  Balk  reçut  aussi  mal  le  messager  que  le 
message,  crut  le  regarder  comme  non  avenu,  et  en  a  fait 
plus  tard  un  des  articles  de  sa  protestation."  ( i ) 

Barca  queria  visivelmente  desenvincilhar-se  de  um  per- 
sonagem antipathico  e  importuno  e  tratou-o  em  varias  oc- 
casiões  com  menos  caso,  quando,  por  exemplo,  só  á  ultima 
hora  e  á  instancia  reiterada  do  diplomata,  lhe  remetteu  o 
indispensável  ceremonial  solicitado  quasi  dous  mezes  antes. 
Na  occorrencia  do  faustissimo  13  de  Maio  lhe  não  cabe, 
entretanto,  ao  Ministro  de  Estrangeiros,  culpa  proposital, 
delia  o  ísentanido  o  próprio  Maler  (2).  A'  recepção  do 
embaixador,  que  se  seguio  á  audiência  real  —  na  qual  se 
refere  que  Balk-Poleff  fallou  muito  respeitosamente  á  Rainha, 
de  cabeça  descoberta — é  que  nenhuma  das  pessoas  gradas  da 
corte  compareceu,  nem  mandou  sequer  um  cartão. 

Esta  circumstancia  indica  assaz  a  hostilidade  que  contra 
o  diplomata  havia,  acirrada  de  certo  pelo  conde  da  Barca 
e  a  que  ainda  então  continuava  naturalmente  de  algum  modo 
alheio  o  Rei.  A  prova  d'isto  está  em  que  na  audiência  parti- 
cular de  São  Christovão,  na  noite  de  20,  o  monarcha  não  fez 


(1)    Ofíicio  cit.  de   29  de  Maio  de   1817. 

(.2)  "€ela  s'est  passe  sous  m'es  yeux,  nie  trouvant  dans  Tan- 
tichambre  du  Roi,  avec  S.  M.,  la  famille  royale  et  leur  Cour.  Je 
crois  devoir  faire  sentir  que  ce  n'est  point  du  tout  une  pieoe  qu'on 
ait  voulu  faire  a  Mr.  de  Balis,  ce  n'a  été  que  la  conséquence  natu- 
relle  de  rinsouciance,  'du  peu  d'êgard  c|u'ion  a  'généralement  pour 
oui  Que  ce  soit."    (Officio  cit.  de  29  de  Maio  de  1817). 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  g63 

allusão  ao  forte  desagrado  de  que  foi  expressão  a  nota  de  21 
(o  que  ainda  se  pode  explicar  por  não  haver  tido  até  áquella 
hora  conhecimento  do  protesto  de  Balk-Poleff  dirigido  a  18  e 
recebido,  pelo  que  se  disse,  no  próprio  dia  20,  á  noite)  e  não 
tomou  mesmo  a  principio  muito  ao  trágico  o  famoso  desacato 
de  que  Barca  tirou  tão  grande  partido.  O  positivo  é  que  o 
Rei  Dom  João  recebeu,  logo  em  seguida  ao  embaixador,  uma 
pessoa  tão  de  sua  privança  como  João  Paulo  Bezerra,  "  et 
Mr.  Bezerra  dit  que  d'aprés  ce  que  le  Roi  lui  a  témoigçié  il 
ne  paraissait  pas  être  três  satisfait  de  Mr.  Balk,  mais  qu'il 
ne  paraissait  pas  non  plus  aussi  ofEensé  qu'il  Ta  manifeste  ". 
Si  Bezerra  não  falkva  assim  por  opposição  a  Barca, 
teve  este,  ao  que  se  vê,  artes  para  persuadir  o  monarcha  de 
que  a  opportunidade  era  excellente  de  livrar-se  a  corte  do 
Rio  do  incommodo  e  atrevido  diplomata,  por  um  modus  fa- 
ciendi  corrente,  mas  que  Maler  entendeu  todavia  assim  cri- 
ticar: **  Qu'il  me  soit  permis  en  terminant  ce  rapport  d'avan- 
cer  mon  opinion  particuliére.  La  Cour  de  Russie  avait  fait  un 
três  mauvais  choix,  en  nommant  Mr.  de  Balk  a  des  fonctions 
pour  lesquelles  il  n'a  pas  la  moindre  bonne  disposition.  En 
voulant  patienter  et  y  mettre  Tesprit  de  conciliation  toujours 
convenable  rien  n'était  plus  aisé  que  de  le  faire  rappeller,  et 
três  certainement  S.  M.  I.  n'aurait  pu  sV  refuser;  au  lieu 
de  cela  Mr.  le  Comte  de  la  Barca  s'est  emporté  mal  a  propôs 
et  a  encore  eu  la  maladresse  de  présenter  lui  même  ce  démélé 
par  ses  Communications,  sous  la  face  la  moins  favorable,  de 
maniére  qu'ayant  raison  dans  le  fond,  S.  M.  I.  et  les  autres 
Cours  pourront  bien  n'avoir  pas  a  se  louer  des  formes,  et 
certes  je  le  repete,  c'est  être  assez  maladroit  avec  un  adver- 
saire  tel  que  Mr.  de  Balk."   (i)  ■ 


(1)    Officio  cit.  de  29  de  Maio  de  1817. 


S64  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  que  mais  notável  parece  é  que  Barca,  um  mez  antes 
de  morrer,  doente  como  já  estava  (i ),  tivesse  tido  ainda  ener- 
gia para  tanto.  Da  questão  nada  resultou ;  a  corte  russa  apre- 
ciou no  seu  justo  valor  o  conflicto  levantado  pelo  seu  agente  e 
bem  correspondido  pelo  Ministro  portuguez.  O  ultimo  echo 
do  incidente  encontra-se  no  officio  de  Maler  de  24  de  Junho, 
em  que  communica  ter-se  Balk-Poleff  decidido  a  partir  por 
aquelle  paquete,  o  que  quer  dizer  que  teve  de  esperar  um 
mez  no  Rio  de  Janeiro.  Ao  pedido  que  fez  ao  encarregado 
de  negócios  da  França  de  um  passaporte  para  si  e  sua 
comitiva,  respondeu  Maler  com  a  remessa  do  passaporte  para 
elle  só,  por  haver  sabido  que  o  desastrado  diplomata  ia  partir 
acompanhado  de  um  homem  "  perdu  de  reputation  et  criblé 
de  dettes  ". 

Mal  se  houve  pois  com  esse  embaixador  e  todavia  Dom 
João  VI,  como  era  natural,  tomava  muito  ao  serio  a  cathego- 
ria  da  representação  diplomática  na  sua  corte  e  folgava  em 
extremo  com  ver  embaixadores  ao  seu  lado.  A  Inglaterra  não 
lhe  queria  dar  esse  gosto  emquanto  a  corte  não  regressasse 
para  Lisboa,  mas  á  França,  depois  da  volta  de  Luxemburgo, 
tanto  empenho  mostrou  o  Rei  que  a  9  de  Novembro  de  18 19 
era  nomeado  embaixador  no  Brazil  o  general  marquez  de 
Saint-Simon,  o  qual,  segundo  o  ministro  de  estrangeiros 
Dessolles  participava  ao  seu  collega  da  marinha  barão  Portal, 
devia  seguir  em  navio  de  guerra. 

Uma  das  razões,  e  não  a  menor,  da  deliberação  fran- 
ceza  foi  que,  devendo-se  renovar  em  1820  o  tratado  anglo- 


(1)  Em  1815,  dous  annos  antes  d'este  episodio,  uma  das  car- 
tas de  Marrocos  dava  Barca  sem  voz  e  sacramentado,  informando : 
"A  sua  moléstia  he  antiga,  e  está  muito  aggravada :  dizem  ser  mo- 
léstia das  entranhas  :  eu  nelle  não  vejo  senão  inchação  e  tremulen- 
cia ;  e  S.  A.  11.  disse  a  minha  vista  que  elle  já  não  podia  assignar..." 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  865 

luzo  de  i8io,  que  os  Estados  Unidos  guerreavam  de  fora 
e  dentro  da  praça  Palmella  atacava,  o  ensejo  parecia  asado 
para  obterem  outras  nações  algumas  das  vantagens  com- 
merciaes    exclusivamente    attribuidas    aos    Inglezes. 

Outra  razão  importante  foi  que,  parecendo  destinada 
a  vencer  a  rebellião  das  colónias  hespanholas,  não  seria  de- 
sarrazoado ir  tomando  posição  e,  sem  dar  propriamente 
mostras  d'isto  muito  evidentes,  estabelecer  um  posto  de  ob- 
servação donde  eventualmente  se  pudesse  entrar  em  relações 
com  aquelles  paizes  emancipados.  Em  casos  taes  é  mister 
madrugar.  Saint-Simon  escreveu  a  propósito  um  memoran- 
dum  ( I )  em  que  lembrava  que  por  se  não  haver  prestado  no 
Occidente  a  attenção  devida  ás  primeiras  aggressões  contra 
a  Polónia,  ficara  irremediavelmente  compromettido  o  equili- 
brio  da  Europa,  tão  laboriosamente  preparado  no  tratado 
de  Westphalia. 

A  America  Hispano-Portugueza  constituía  para  a  Fran- 
ça, que  estava  sendo  tão  manufactureira  quanto  agricola,  um 
mercado  de  muito  futuro,  mas  força  era,  na  opinião 
do  embaixador  nomeado,  começar  por  luctar  contra  a  pre- 
ponderância assumida  pelos  Inglezes,  cuja  interesseira  ami- 
zade não  parecia  natural  que  Dom  João  VI  pensasse  em  sup- 
portar  indefinidamente,  uma  vez  exhauridas  pelos  próprios 
Inglezes  as  provincias  europcas  da  monarchia  e  assente  o 
throno  no  Novo  Mundo,  virgem  de  semelhantes  tutelas, 
outras  que  as  das  suas  metrópoles  no  regimen  colonial,  e  po- 
dendo dispensar-lhes  a  utilidade.  Saint-Simon  não  compar- 
tilhava n'este  ponto  da  idéa  do  ministro  americano  Sumter, 
de  uma  diplomacia  menos  complicada,  que  tinha  o  Rei  por 
amigo  cordialíssimo  da  politica  britannica. 


(1)    Arch.   do   Min.   dos  Neg.   Est.   de   França. 


866  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Em  tudo  isto  era  a  idéa  intima  de  Saint-Simon  mostrar 
a  necessidade  de  rivalizar  em  brilho  a  sua  embaixada  com  a 
legação  ingleza  e  assim  obter  maior  ajuda  de  custo.  Pen- 
sava elle,  segundo  manifestava,  em  levar  moveis  de  luxo 
para  assim  expor  ao  commercio  brazileiro  o  estado  da  in- 
dustria franceza,  e  fazer-se  acompanhar  de  officiaes  práti- 
cos e  inteliigentes  do  antigo  exercito  que  percorressem  o 
Brazil  e  organizassem  uma  sua  relação  topographica,  geo- 
désica, zoológica,  botânica,  etc. 

Pondo  de  lado  as  illusões  d'estes  planos,  Saint-Simon 
enganava-se  de  longe  no  tocante  ás  possibilidades  do  se- 
gundo por  parte  do  governo  do  Rio,  que  lhe  opporia  a  mais 
formal  recusa.  Mais  ou  menos  por  esse  tempo,  a  17  de  Ju- 
nho de  181 8,  respondia  Thomaz  António  á  reiterada  soli- 
citação de  Maler,  de  uma  nova  portaria  auctorizando  o  na- 
turalista Saint-Hilaire  a  viajar  mais  no  interior  do  Brazil, 
que  apezar  das  prohibições  estabelecidas  por  inconvenientes 
occorridos  e  derivados  da  communicação  estrangeira  com 
as  capitanias  do  Pará,  Rio  Negro  e  Matto-Grosso,  permis- 
são era  concedida,  attendendo-se  ao  bom  comportamento 
anterior  de  Saint-Hilaire,  para  percorrer  as  províncias  do 
Espirito  Santo,  São  Paulo,  Goyaz  e  São  Pedro  do  Sul,  mas 
não  a  de  Matto  Grosso  ( i ) . 

Com  grande  pezar  de  Dom  João  VI,  Saint-Simon  não 
chegou  afinal  na  divisão  naval  franceza  entrada  a  18  de 
Agosto  de  1820,  que  o  devia  transportar,  nem  veio  jamais 
ao  Brazil,  mercê  das  suas  exigências  de  dinheiro,  comquanto 


(1)  Tão  pouco  liberal  ora  do  facto  a  franquia  do  Brazil  quo, 
tondo  o  ministro  prussiano,  conde  de  Flemming,  pedido  liconqa 
para  visitar  Minas  Geraes,  com  um  secretario  e  um  botânico,  a  per- 
missão só  a  elle  individualmente  foi  dada  para  o  Districto  Dia- 
mantino, com  exclusão  da  sua  comitiva,  pelo  que,  despeitado,  o  di- 
plomata i-enunciou  á  projecteida  viagem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  867 

tivesse  até  mandado  tomar  casa  no  Rio  pelo  conde  de  Ges- 
tas, que  devia  ter  sido  o  seu  secretario  e  ficara  no  Rio, 
avulso,  desde  o  tempo  da  primeira  embaixada.  Tampouco 
alcançou  a  capital  brazileira  o  embaixador  nomeado  em 
lugar  de  Saint-Simon,  Hyde  de  Neuville  ;  este  porém  por 
motivo  do  regresso  da  corte  para  Lisboa,  onde  foi  residir  e 
onde  desempenhou  papel  conspícuo  nos  r^contecimentos  polí- 
ticos que  amarguraram  os  últimos  annos  de  Dom  João  VI. 


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CAPITULO  XXII 


O  CASAMENTO   DO  PRÍNCIPE   REAL 


Entre  as  negociações  diplomáticas  do  reinado  americano 
de  Dom  João  VI  figura,  e  avulta  entre  os  seus  successos 
notáveis,  o  casamento  do  Príncipe  herdeiro  Dom  Pedro. 
Não,  entretanto,  que  fosse  difficil  n'essa  parte  matrimonial 
a  missão  do  marquez  de  Marialva  em  Vienna.  Quando  o 
embaixador  portuguez  chegou  á  capital  do  Império,  os 
obstáculos  que  tinham  parecido  contrariar  o  enlace  estavam 
derrubados,  e  feito  em  Novembro  de  1816  o  ajuste  pelo 
encarregado  de  negócios,  commendador  R.  Navarro  de 
Andrade,  persona  gratissima  á  corte  austriaca.  Não  se  tra- 
tava mais  do  que  pedir  solemnemente  a  mão  da  Archidu- 
queza  Carolina  Josepha  Leopoldina,  redigir  o  tratado  de 
despcsorio,  celebrar  os  esponsaes  por  procuração  e  receber  a 
futura  soberana  do  Reino  Unido  de  Portugal,  Hrazil  e 
Algarves  a  bordo  da  esquadra  portugueza  que  a  devi» 
transportar  para  a  sua   nova  pátria. 

Essa  união  era  mesmo  o  fruto  de  uma  velha  combina- 
ção dynastica,  que  apenas  razões  pessoaes  ameaçaram  um 
instante  comprom^tter,  e  a  sua  realização  causou  no  dizer — 


872  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

que  nunca  seria  outro — dos  officios  de  Marialva,  grande 
satisfacção  á  casa  de  Habsburgo-Lorena,  na  qual  abundavam 
as  Archiduquezas.  A  nobreza  da  casa  de  Bragança,  a  vasti- 
dão e  apregoada  riqueza  do  Império  Portuguez,  a  própria 
garbosa  pessoa  do  noivo,  que  já  em  1803  dizia  a  duqueza 
de  Abrantes  ser  a  única  cara  bonita  n'um  concurso  monstro 
de  fealdades  em  que  cabiam  os  primeiros  prémios  ao  Principe 
Regente  e  a  Dona  Carlota,  faziam  pelo  prisma  palaciano  o 
consorcio  parecer  particularmente  auspicioso. 

Ficou  viva  entre  nós  a  tradição  da  extraordinária  do- 
çura da  Imperatriz  Leopoldina:  sua  intelligencia  e  instru- 
cção  constam  das  memorias  do  tempo.  Assim  que  ficou 
decidido  seu  casamento  entrou,  com  toda  a  consciência  de 
uma  boa  allemã  que  toma  ao  serio  suas  obrigações,  a  estudar 
não  só  a  lingua  portugueza,  como  a  historia,  geographia, 
producções,  etc,  do  paiz  que  ia  adoptar.  Especialmente  affei- 
çoada  á  mineralogia  e  á  botânica,  logo  fallou  em  carregar 
para  o  Rio  uma  collecção  mineralógica  e  acclimar  no  Brazil 
differentes  plantas  européas,  exultando  com  a  certeza  que, 
na  sua  mendacidade  cortezã,  lhe  deu  sem  titubear  Marialva, 
de  que  o  Principe  Dom  Pedro  também  se  dedicava  com 
fervor  a  semelhantes  estudos. 

Dos  estudos  amáveis  a  que  de  preferencia  se  entregava 
o  fogoso  mancebo  não  disse  palavra  o  cauteloso  embaixador 
e  foram  esses  que  entristeceram  e  consumiram  a  vida  da 
excellente  Archiduqueza  que,  para  afastal-os,  nem  em  si 
possuía  o  recurso  da  formosura.  O  próprio  Marialva,  com 
todo  o  seu  cavalheirismo,  não  ousava  referir-se  á  sua  belleza : 
limitava-se  a  escrever  que  "  em  sua  presença  resplandece  a 
soberania  a  par  da  mais  rara  bondade"  (i). 


(1)    Archivo   do  Ministério   das   Relações   Exteriores. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  873 

Esta  foi,  aliás,  a  impressão  geral  no  Rio,  estampada 
n'uma  das  cartas  de  Marrocos:  (i)  *'A  Serenissima  Senhora 
D.  Carolina  Icm  agradado  em  extremo  a  todos ;  mui  discreta,^ 
desembaraçada  e  communicavel ;  falia,  além  de  sua  lingua 
pátria,  o  Francez,  Inglez  e  Italiano;  alguns  conhecimentos 
de  Bellas  .Lettras,  e  não  menos  de  botânica,  alem  daquellas 
prendas  que  já  são  próprias  em  huma  Senhora,  em  que  dizem 
ser  eminente:  mui  fértil  na  conversação,  e  mui  aguda  em  res- 
postas: mestra  na  arte  de  agradar  e  fazer-se  estimável;  e 
para  ser  mais  notável,  até  tem  medo  de  trovoadas.  Na  Ilha 
da  Madeira  demorou-se  trez  dias  donde  trouxe  grande  quan- 
tidade de  macacos,  papagaios,  etc.  .  ." 

Outros  encargos  trazia,  comtudo,  para  Vienna,  o  em- 
baixador de  Portugal.  Trazia  a  missão  de  promover  outros 
enlaces  entre  as  duas  casas  reinantes,  casando-se  o  Principe 
Imperial  d'Austria  cem  a  Infanta  Isabel  Maria,  e  o  Grão 
Duque  da  Toscana,  irmão  do  Imperador  e  que  em  proveito 
d 'este  se  privara  da  sua  noiva,  uma  Princeza  da  Baviera, 
com  a  Princeza  Maria  Thereza.  A  corte  portugueza  pro- 
curava desforra  do  mallogro  do  projecto  matrimonial  com  a 
Casa  de  P>ança,  que  tanto  a  magoara  que  Luxemburgo  at- 
tribue  á  má  vontade  d'ahi  proveniente  o  nenhum  êxito  da 
sua  missão.  "On  a  montré  beaucoup  de  jalousie  et  même  un 
peu  d'humeur  en  apprenant  Talliance  que  vient  de  former 
Mgr.  le  Duc  de  Berry.  J'ai  eu  beaucoup  de  peine  a  adoucir 
ces  regrets,  et  j'en  retrouve  souvent  les  traces  dans  mes 
discussions"  (2). 

Da  segunda  das  uniões  confiadas  á  diplomacia  de  Ma- 
rialva parece  quasi  se  não  haver  tratado.  A  primeira,  porém, 


(1)  Carta  ao  Pai  do  12  ele  Novembro  de  1817. 

(2)  Officio  de  30  de  Julho  de  181G. 


874  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

acha-se  repetidamente  mencionada  na  correspondência  offi- 
cial  do  marquez  estribeiro-mór.  Frustrou-se  afinal,  segundo 
a  versão  dada,  porque  o  physico  rachitico  e  mentalidade 
apoucada  do  Príncipe  dissuadiram  o  Imperador  de  apres- 
sar qualquer  consorcio,  para  decidir  do  qual  precisaria 
também  receber  as  informações  que  sobre  a  Infanta  lhe 
devia  mandar  sua  filha,  ou  o  novo  representante  austriaco, 
ou  mais  provavelmente  alguém  da  comitiva  da  Archidu- 
queza,  mais  chegado  ao  circulo  intimo  da  corte  e  officiosa- 
mente  incumbido  d'essa  missãosinha  confidencial  e  deli- 
cada. 

Espalhou-se  depois  o  boato  do  consorcio  de  Dona  Isa- 
bel Maria  com  o  irmão  do  herdeiro  da  coroa  austriaca,  mas 
o  barão  de  Neveu,  encarregado  de  negócios  d'Austria,  disse 
a  Maler  (i)  estar  persuadido  de  que  "pour  le  moment  ce 
ne  pouvait  être  qu'un  désir  manifeste  par  la  Princesse  Léo- 
poldine  et  rien  de  plus"   (2). 

Os  encargos  essencialmente  políticos  dados  a  Marialva, 
esses  eram  dos  mais  importantes  para  a  monarchia  portu- 
gueza.  Foi  1816  o  anno  das  mais  espinhosas  negociações  re- 
lativas a  JVIontevidéo,  o  período  agudo  nas  relações  entre 
as  cortes  de  Madrid  e  do  Rio  de  Janeiro  por  motivo  da 
occupação  militar  da  margem  oriental  do  Rio  da  Prata.  Sa- 


(1)  Officio  de  10  d(í  Novembro  de  1817. 

(2)  Neveu,  prematuramente  falleeido,  foi  quem  esteve  para 
oasai'  no  Rio  de  .Janeiro,  segundo  inToi-ma  Marroeos  na  sua  carta 
de  1.'4  de  Fevereiro  de  1818  :  "Consta  n'esta  Corte  estar  justo  o 
casamento  da  filiia  do  Visconde  do  Rio  'Secco  com  o  Barrão  de  iNeveu, 
Austriaco,  e  Consellieiro  de  Eml)aixada,  que  veio  na  occasião  do 
transpox-te  de  S.  A.  R.  a  'Sereníssima  Sna.  D.  Carolina.  O  Visconde  ao 
principio  repugnou  fiquelle  ajuste  :  mas  S.  Magestade  llie  mostrou 
quanto  lhe  deveria  ser  homroso  aiquelle  e-nlace  >de  sua  íilba  Com  o 
dito  fidalgo,  Primo  do  Príncipe  de  Metternich.  Ignoro  se  o  negocio 
virá  a  effectuar-se,  mas  sei  que  o  .dito  iBarão  todos  os  dias  se  apre- 
senta com  o  maior  explendor  e  apparato  em  casa  do  Visconde,  para 
fazer  corte  íi   menina." 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  875 

bemos  que  a  Inglaterra  quasi  abandonara  seu  antigo  alliado, 
proclamando  retirar-lhe  a  garantia  da  integridade  territorial, 
sobretudo  porque  Dom  João  VI  se  obstinava  em  não  deixar 
o  Brazil.  Fazia-se  sobretudo  mister  achar  um  contrapeso 
para  o  auxilio  que  a  Rússia  estava  prestando  á  Hespanha, 
ameaçando  transformal-o  de  moral  em  material:  o  que  pa- 
recia tanto  mais  provável  quanto  não  era  tal  apoio  desinte- 
ressado, dictado  apenas  pelos  principios  da  legitimidade  e  da 
indissolubilidade  dos  laços  que  prendem  os  povos  aos  seus 
Soberanos. 

Affirma-se  —  e  Marialva  reproduz  o  consta  —  que  a 
Hespanha  promettera  á  Rússia  consentir  na  occupação  mi- 
litar, pelo  Império,  de  parte  da  ilha  de  Minorca.  Em  vista 
dos  designios  constantes  nutridos  pelo  governo  de  São  Pe- 
tersburgo  contra  a  Porta,  não  deixava  de  ser  valioso  o  dispor 
assim  a  Rússia  de  um  porto  no  Mediterrâneo,  onde  lhe 
fosse  dado  reunir  livremente  as  suas  esquadras  e  possuir 
um  ponto  de  refugio,  senão  uma  base  de  operações.  O  re- 
ceio de  Marialva,  de  que  a  expedição  hespanhola  de  recon- 
quista do  Prata  levasse  um  forte  contingente  russo,  basea- 
va-se  não  só  n'esta  consideração  como  nas  inclinações  belli- 
cas  do  Czar,  a  quem,  mau  grado  o  mysticismo,  facilmente 
seduzia  quanto  se  referisse  a  guerras,  e  também  no  facto  de 
existir  um  numerosissimo  e  experimentado  exercito  russo, 
desoccupado  com  a  paz  da  Europa  e  naturalmente  ancioso 
de  ir  pelejar  e  pilhar  "em  hum  paiz  cujo  clima  e  riqueza  são 
tão  exaltados  na  Europa"   (i). 

Não  se  havendo  ainda  por  esse  tempo  verificado  a  al- 
teração nas  disposições  britannicas  que  o   talento   diploma- 


(1)  Officio  de  Marialva  a  Aguiar  do  8  de  Pevereiro  de  1.S17. 
Maço  de  papeis  referentes  ao  casamento  do  Principo  Real,  no  Arch. 
do  Min.  das  liei.  Ext. 

D.  J.  —  55 


876  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tico  de  Palmella,  ageitando  as  circumstancias,  logrou  obter, 
a  mediação  austriaca  no  caso  de  Montevideo  afigurava-se 
á  corte  portugueza  mais  favorável  do  que  a  ingleza,  julgada 
até  n'esse  momento  parcial  á  Hespanha.  Metternich  não  se 
dispunha  (nem  lh'o  seria  consentido)  a  intervir  só  na  con- 
tenda aberta  entre  as  duas  cortes  ibero-americanas :  a  Europa 
não  desistira  dos  seus  direitos  de  tutela  sobre  o  Novo  Mundo. 
Entretanto  dava  o  Chanceller  arrhas  da  sua  dedicação  á 
dynastia  de  Bragança  informando  o  embaixador  portuguez 
de  quanto  occorria  e  chegava  ao  seu  conhecimento  sobre  o 
assumpto,  e  não  hesitou  mesmo,  antes  da  partida  de  Marialva 
para  Pariz,  onde  conjunctamente  com  Palmella  ia  proseguir 
outras  negociações,  em  expedir  ao  representante  austriaco 
na  França,  barão  de  Vincent,  ordens  muito  positivas  para 
proteger  Portugal. 

Logrou  assim  o  marquez  estribeiro-mór  cumprir  suas 
instrucções  politicas,  agindo  aliás  de  perfeita  conformidade 
com  as  vistas  claras  e  seguras  do  seu  amigo  e  collega  de 
Londres,  de  quem  Metternich  formava  o  mais  elevado  con- 
ceito (i),  declarando  ao  embaixador  de  Dom  João  VI  não 


(1)  Também  o  governo  americano,  segundo  se  collige  dos 
despachos  de  "Washington,  especialmente  dos  de  John  Quincy  Adams, 
que  em  1814  fora  a  Gand  negociar  a  paz  com  a  Inglaterra  e  culti- 
vava suas  amizades  européas,  tinlia  grande  confiança  no  caracter 
e  habilitações  de  Palmella,  almejando  pela  vinda  d'elle  para  o  Rio 
a  occupar  sua  pasta,  afim  de  ter  o  representante  dos  Estados  Unidos 
uma  pessoa  ãe  intelligencia  desassombrada  e  vontade  firme  com 
quem  tratar  e  encaminhar  os  negócios  de  mutuo  interesse,  taes  como 
relações  commerciaes,  ligação  continental  americana  etc.  Em  1819 
foi  nomeado  para  substituir  Sumter  um  antigo  funccionario  do  De- 
partamento d'Estado,  John  Graham,  que  na  qualidade  de  commissa- 
rio  americano  tinha  anteriormente  viajado  na  Argentina  e  no  Chile 
para  verificar  o  estado  das  cousas  e  lormular  representações  contra 
as  praticas  de  pirataria,  das  quaes  não  eram  de  resto  os  Estados 
Tnidos  muito  menos  culpados.  Graham  pouco  poude  demorar-se  no 
Rio.  Obtendo  licença  por  doente  em  Maio  de  1820,  falleceu  na  sua 
pátria  aos  31  de  Julho  do  mesmo  anno.  A  legação  ficara  a  cargo 
do   secretario   John    J.   Appleton. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BR\ZIL  877 

duvidar  do  feliz  resultado  das  negociações  de  Pariz  relati- 
vas ao  Prata:  "pois  que  por  huma  parte  a  nossa  causa,  além 
de  ser  justa,  era  manejada  por  huma  pessoa  tão  hábil,  como 
sem  duvida  o  era  o  Conde  de  Palmella;  e  que  por  outra 
parte  tinhamos  também  a  nosso  favor  a  impericia  e  o  orgu- 
lho do  Plenipotenciário  Hespanhol,  que  indispunha  o  animo 
de  alguns  dos  medianeiros  a  ser-lhe  propicio  em  pretençoens 
já  por  si  «mesmas  tão  pouco  acertadas"    (i). 

O  futuro  de  Portugal,  cuja  conquista  a  Hespanha  ru- 
minava emprehender  —  pelo  menos  esta  era  a  impressão 
geral  —  ficaria  pois,  á  falta  da  garantia  britannica,  repou- 
sando sobre  o  prestigio  da  chancellaria  e  da  dynastia  aus- 
tríacas, empenhadas  na  preservação  de  uma  casa  real,  tão 
proximamente  parente  quanto  era  a  de  Bragança,  em  sua 
completa  auctoridade. 

Outra  prova  de  como  se  achavam  entrelaçados  os  fios 
da  diplomacia,  é  que  mesmo  na  sua  agradável  embaixada  de 
Vienna,  teve  o  marquez  estribeiro-mór  que  se  occupar,  como 
vimos,  da  questão  da  Guyana,  cuja  devolução  o  duque  de 
Richelieu  queria  a  todo  o  transe  apressar,  influindo  sobre 
o  negociador  portuguez  em  Pariz  por  intermédio  de  Ma- 
rialva ou  mesmo  deslocando  as  negociações  para  a  capital 
austríaca. 

Desde  começo  comprehendera  o  governo  francez  perfei- 
tamente que  a  inclusão  um  tanto  arbitraria  da  restituição 
da  Guyana  no  tratado  de  paz  de  30  de  Maio  de  1814  era 
apenas  o  pretexto  para  não  querer  ratifical-o  o  Principe  Re- 
gente, pois  que  estando  accordada  a  restituição  entre  Portu- 
gal e  sua  alliada,  tal  inclusão  não  podia  na  verdade  ferir  nem 
humilhar  o  governo  do  Rio.   Depois,  em  face  dos  compro- 


(1)   Officio  do  Marialva  a  liozorra,  do  21  do  Fovereiro  do  1S18. 


878  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

missos  tomados,  outro  não  poude  ser  o  desenlace  da  ques- 
tão senão  a  restituição  d'aquella  conquista  das  armas  por- 
tuguezas  (i),  que  a  indrfferença  da  Inglaterra  em  1814 
e  o  constrangimento  dos  plenipotenciários  portuguezes  ao 
Congresso  de  Vienna  em  181 5  assim  tornaram  ephemera, 
mas  que  a  previsão  de  Palmella  e  a  tenacidade  de  Brito 
souberam  converter  pelo  menos  n'um  ganho  positivo  qual 
o  da  delimitação  ao  sabor  das  aspirações  portuguezas. 

As  satisfacções  de  vaidade,  pessoal  e  patriótica  ou  mais 
precisamente  dynastica,  teriam  amplamente  consolado  o  em- 
baixador portuguez  de  quaesquer  semsaborias  politicas  e  di- 
plomáticas, quando  por  acaso  as  houvesse  contado  a  sua  mis- 
são. As  ordens  do  Rio  mandavam  fazer  figura,  gastar  muito 
para  parecer  bem,  e  a  Marialva  seria  licito  escrever  com 
justo    desvanecimento    que    "ainda   se   não    havia   visto   em 


(1)  Hippolyto  não  deixava,  entretanto,  em  numero  apoz  nu- 
mero do  Correio  Braziliensc,  de  censurar  a  entrega  incondicional  de 
Cayenna,  considerando-a  um  erro  por  todos  os  motivos  e  especial- 
mente : 

l.í?  porque  a  colónia  constituía  a  melhor  garantia  das  reclama- 
ções particulares  que  á  França  apresentava  Tortugal,  subindo  a  12 
milhões  de  trancos,  independentes  das  despezas  de  conquista  e  con- 
servação da  referida  possessão  ; 

2.9  porque  a  contiguidade  territorial  do  Brazil  a  fazia  peri- 
gosa por  causa  dos  corsários  que  facilmente  d'alli  velejavam  a  in- 
terceptar o  commercio  portuguez  e  contra  os  quaes  o  tratado  de  de- 
volução nenhuma   providencia  estipulou  ; 

3.9  porque  estando  o  governo  da  Restauração  ■empenhado  em 
afastar  da  França  os  officiaes  affeiçoados  ao  bonapartismo,  pode- 
inam  quaesquer  d'elles,  por  tal  motivo  nomea-dos  para  a  Guyana,  de- 
clarar independente  a  colónia,  repetindo-se  no  Extremo  Norte  as 
agitações,  violências  e  perigos  que  se  estavam  dando  no  Extremo 
Sul,  com  a  ameaça  implícita  a  mais  de  se  ligarem  esses  insurgentes 
com  os  revoltosos  hespanhoes  e,  juntos,  apertarem  o  Brazil  n'um 
circulo  demagógico. 

iSi  par  causa  da  sua  condição  turbulenta,  a  iFrança  ficara  de- 
pois da  paz  occupada  por  um  exercito  internacional,  o  que  justificava 
não  haver  preponderado  a  mesma  consideração  com  relação  à  colónia 
da  Guyana  ? 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  879 

Víenna  huma  tão  apparatosa  embaixada,  como  aquella  que 
S.  M.  me  confiou". 

Os  gastos  d'ella,  comprehendida  a  distribuição  de  jóias 
e  até  de  barras  de  ouro  pelo  pessoal  da  corte  e  do  Minis- 
tério de  Estrangeiros,  inclusive  o  principe  de  Metternich, 
subiram  a  mais  de  milhão  e  meio  de  francos  —  exactamente 
a  francos  1.573.443,80  cêntimos — ,  despendendo  o  embai- 
xador da  sua  fazenda,  segundo  elle  próprio  referia  sem  c»m- 
tudo  solicitar  o  reembolso,  mais  de  106  contos.  A  principal 
despeza  fora  feita  com  a  esplendorosa  festa  dada  no  jardim 
imperial  de  Augarten,  onde  o  marquez  de  Marialva  mandou 
expressamente  construir  um  salão  que  depois  serviu  para 
varias  festas  de  caridade  e  offereceu,  apoz  as  danças,  uma 
ceia  a  mais  de  400  convidados:  os  diamantes  remettiam-se 
naturalmente  do  Brazil,  não  entrando  nos  gastos  da  em- 
baixada senão  a  sua  montagem. 

E  tão  escolhidas  e  magnificas  eram  as  pedras  que,  no 
dizer  da  correspondência  de  Marialva,  fizeram  pasmar  a 
corte  de  Vienna,  communicando-lhe  um  estremecimento  o 
contacto  de  toda  essa  riqueza  digna  dos  contos  orientaes. 
Eis  como  n'um  bello  desenvolvimento  de  estylo  cortezão,  des- 
creve o  embaixador  ( i )  a  apresentação  á  Archiduqueza  do 
retrato  de  Dom  Pedro,  n'um  medalhão  cercado  de  diamantes 

da  mais  pura  agua:  " Ser-me-hia  diffícil  expressar  a 

V.  Ex.  o  jubilo  de  S.  A.  I.  vendo  o  Retrato  de  Seu  Augusto 
Futuro  Espozo:  immediatamente  o  poz  ao  peito,  e  nessa 
occasião  lhe  ouvi  as  mais  lisongeiras  expressões  sobre  a  feli- 


(1)  Officio  a  Barca  de  8  de  Abril  de  1817. 


88Q  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

cidade  que  tão  alto  e  bem  acertado  consorcio  lhe  fazia  es- 
perar.  Por  extremo  agradou  á  Serenissima   Senhora  Archi- 
duqueza  a  physionomia  de  S.  A.  o  Principe  Real,  dizendo- 
me  a  mesma  Senhora  que  muito  coincidião  as  feiçoens  que 
observava  naquelle  Retrato  com  a  Idéa  que  ella  formava  das 
virtudes  moraes  possuidas  pelo  Augusto  original  delias.  Sem 
duvida  foy  grande  a  impressão  que  fez  no  animo  de  S.  A.  I. 
a   magnificência  da  cercadura  que   guarnecia  o   Retrato;   e 
ainda  que   a   Serenissima  Senhora  Archiduqueza   mais  atten- 
desse,  e  sem  affectação,  á  imagem  do  seu  Real  futuro  espozo, 
do  que  ao  riquissimo  ornato  que  a  adornava,  não  deichou 
comtudo  de  me  expressar  o  quanto  a  enchia  de  satisfacção  e 
reconhecimento  hum  tão  magnifico  presente;  porem  a  cama- 
reira-mór  da  mesma  Senhora  e  o  seu  mordomo-mór,  que  se 
achavão  prezentes,  estavão  como  surprendidos  de  ver  a  bel- 
leza  daquella  jóia,  asseverando-me  que  jamais  se  tinha  visto 
aqui,  nem  mesmo  se  havia  formado  idéa  de  tal  riqueza.  O 
Principe  de  Metternich  a  quem  depois  mostrei  aquelle  pre- 
cioso donativo,  me  observava  que  só  nas  fabulozas  chronicas 
orientaes  he  que  se  poderia  encontrar  a  descripção  de  algum 
objecto  análogo,  que  lhe  fosse  comparado." 

No  acto  do  casamento,  que  se  celebrou  com  a  ostenta- 
ção habitual  ás  cerimonias  da  corte  austriaca  no  dia  13  de 
Maio,  natalicio  de  Dom  João  VI,  representou  o  noivo  o 
Archiduque  Carlos,  irmão  do  Imperador,  a  quem  o  embai- 
xador portuguez  entregara  dous  dias  antes,  com  toda  a  so- 
lemnidade,  a  procuração  do  Principe  Dom  Pedro.  A  2  de 
Junho  partiam  a  noiva  e  sua  comitiva  para  Florença,  onde 
chegaram  a  14,  afim  de  aguardarem  junto  ao  Grão  Duque 
da  Toscana  a  chegada  a  Liorne  da  esquadra  portugueza  que, 


à 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  881 

vinda  de  Lisboa,  devia  transportar  ao  Brazil  a  sua  nova 
Princeza  ( i ) .  No  caminho  tiveram  a  noticia  do  levanta- 
mento de  Pernambuco,  a  qual,  segundo  communicava  Ma- 
rialva, só  f€Z  augmentar  a  anciã  da  Princeza  de  reunir-se  á 
familia  de  adopção  para  compartilhar  das  amarguras  e  pro- 
vações do  momento  revolucionário.  Nem  o  espectro  de  Maria 
Antonieta,  sua  tia,  demoveu  um  instante  a  Archiduqueza 
Leopoldina  do  cumprimento  d'esse  régio  dever,  só  involunta- 
riamente adiado. 

Escrevia  o  marquez  estribeiro-mór  para  o  Rio  de  Ja- 
neiro que  a  ter  de  dar-se,  por  motivo  da  rebellião,  maior 
tardança  do  que  a  já  occasionada  pela  chegada  das  naus,  pre- 
feria muito  ver  a  Princeza  em  Florença,  corte  aliás  austriaca 
e  onde  se  achavam,  com  o  fim  de  acompanhal-a  nos  últimos 
dias  de  residência  européa,  suas  duas  irmãs,  a  Duqueza 
de  Parma  (  Imperatriz  Maria  Luiza  )  e  a  Princeza  de 
Salerno.  Em  Vienna  havia  o  grave  inconveniente  de  estar 
o  governo  britannico  —  empenhado  sempre  em  trazer  a 
corte  portugueza  de  novo  para  Lisboa  e  singularmente 
ajudado  no  seu  intento  pela  sedição  de  Pernambuco  e 
pela  conspiração  de  Gomes  Freire,  ambas  em  1817  —  in- 
trigando para  que  a  Princeza  Leopoldina  permanecesse  na 
Áustria  ou  pelo  menos,  em  vez  de  dirigir-se  para  o  Brazil, 
se  dirigisse  para  Portugal  afim  de  a'hi  esperar  o  regresso  in- 
evitável da  familia  real  em  cujo  seio  entrara. 


íl)  As  naus  Dom  João  VI  o  São  Sebastião  partiram  do  Lis- 
boa a  O  de  uTulTio  t«  clipgaram  a  Liorne  a  2G.  lA  12  ide  Agosto  verifi- 
cou-se  a  entrega  e  a  lo  o  embarque,  singrando  a  frota  a  15.  A  de- 
mora foi  devida  á  difficuldade  que  experimentara  a  Regência  por- 
tugueza em  reunir  navios  adequados  a  esse  propósito,  tendo  tido 
que  distraliir  naus  para  defender  a  costa  luzitana  e  as  aguas  dos 
a  reli  i  pélagos  africanos  dos  insultos  dos»  corsários  americanos  com 
bandeira  de  Artigas,  o  mandar  reforços  marítimos  para  o  bloqueio 
de  Peraambuco. 


882  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

As  razões  sentimentaes  eram  obvias  e  bastantes  para  o 
coração  paternal  do  Imperador  Francisco.  Junto  a  Metter- 
nich,  cujas  boas  disposições  para  com  o  governo  portuguez 
o  consorcio  da  Archiduqueza  activara,  passando  o  poderoso 
Chanceller,  segundo  refere  Marialva,  a  achar  muito  justas 
as  razões  da  occupação  de  Montevideo,  e  injustificáveis  as 
desconfianças  do  Rei  Catholico  (i)  era  necessário  ao  em- 
baixador britannico  fazer  valer  as  razões  politicas.  Adduzia 
por  isso  que  o  estado  de  agitação  demagógica  do  Brazil,  e  a 
demagogia  era  o  terror  constante  de  Metternich,  não  acon- 
selhava a  ida  de  uma  Archiduqueza  educada  na  mais  aristo- 
crática das  cortes;  sendo  que,  pelo  contrario,  sua  apparição 
em  Lisboa  teria  o  condão  de  contentar  os  Portuguezes,  ancio- 
sos  por  abrigarem  outra  vez  a  sua  velha  corte,  e  de  desvane- 
cer os  enredos  hespanhoes  tendentes  á  encorporação  do  Reino 
e  consequente  unificação  peninsular. 

Metternich  mostrou-se  meio  abalado  com  as  razões 
invocadas,  mas  finalmente  recusou  a  Áustria  entrar  no  jogo 
da  Inglaterra,  e  o  próprio  Chanceller  foi  a  Liorne  effectuar 
a  entrega  da  Archiduqueza  ao  marquez  de  Castello  Melhor, 
commissario  especial  de  Dom  João  VI  —  que  para  tal  fim 
embarcara  na    resumida    esquadra    da    Regência  juntamente 


(1)  Opinava  o  publicista  Gentz,  confidente  de  Metternicli  e  a 
soldo  muito  provavelmente  do  governo  portuguez,  que  as  tropas 
portuguezas  tinham  avançado  até  a  fronteira  natural  e  lógica  do 
Brazil  quando  o  território  oriental  se  achava  verdadeira  res  imlUus, 
presa  apenas  da  desordem  e  da  anarchia.  as  boas  disposições  aus- 
tríacas fizeram  naturalmente  recrudescer  a  mA  vontade  russa  para 
com  Portugal.  Jíi  a  esse  tempo  existia  o  conflicto  latente  nos  Bal- 
kans   entre    Áustria   e   Rússia,    escrevendo   A.    de    Saldanha    da    Gama 

de    São    Petersburgo :    " Estes     dous     govemos     medem-se     e     se 

cbservão  mutuamente  debaixo  das  formas  da  mais  estreita  amizade  : 
porem  logo  que  huma  occasião  se  offereça,  pareceme  impossível  que 
a  política  os  não  obrigue  a  seguir  differeaites  interesses."  (Carta  de 
26  de  Maio  —  7  de  Junho  de  1817) . 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZXL  883 

com  o  conde  da  Louzã,  mordomo-mór  da  Princeza,  e  o 
conde  de  Penafiel,  seu  veador. 

Na  serenata  do  palácio  de  São  Christovão,  por  occasião 
do  casamento  no  Rio,  o  próprio  Rei  referiu  a  Maler  (i) 
quanto  trabalhara  o  embaixador  britannico  em  Vienna  para 
impedir  a  vinda  da  Archiduqueza  até  ao  Brazil;  mas  que, 
instado  a  respeito,  o  Imperador  d'Austria  respondera  que 
sua  filha  passara  a  ser  filha  do  Rei  de  Portugal,  cabendo 
pwrtanto  a  S.  M.  F.  designar-lhe  a  residência.  "Devo  ajun- 
tar, commentava  o  agente  francez,  que  o  monarcha,  apezar 
da  sua  profunda  dissimulação,  não  pode  occultar  os  senti- 
mentos de  opposiçãò  que  nutre  contra  as  vistas  do  gabinete 
inglez;  tenho  frequente  ensejo  de  fazer  esta  observação." 
A  continua  pressão  exercida  pelo  governo  britannico  para 
que  se  realizasse  uma  viagem  que  a  Dom  João  era  antipa- 
thica,  ao  corpo  e  ao  espirito,  não  podia  menos  do  que  exacer- 
bar o  mau  humor  régio  ao  ventilar-se  esta  questão. 

Tinham  surgido  duvidas  sobre  a  nacionalidade  a  que 
devia  pertencer  a  comitiva  da  Princeza,  preferindo  o  Im- 
perador d'Austria,  segundo  a  pragmática  por  elle  seguida, 
que  a  compuzesse  gente  portugueza.  Havia  porém  para 
isto,  entre  outras  .difficuldades,  a  da  enorme  distancia  que 
separava  as  duas  cortes,  uma  européa  e  outra  sul-americana, 
obstando  á  rápida  deslocação  do  seu  pessoal.  Chegou-se 
por  fim  á  combinação  de  ser  desde  logo  portugueza,  como 
vimos,  a  parte  masculina  da  casa  official  da  Princeza,  e  aus- 
triaca,  até  o  Rio  de  Janeiro,  a  parte  feminina,  formando-a  as 
condessas  de  Kunburg,  Sarentheim  e  Lodron,  a  primeira 
como  camareira-mór  e  as  duas  outras  como  damas. 


(1)    Officio  de  10  do  Novembro  de   1817. 


884  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  •embaixador  especial,  conde  de  Eltz,  incumbido  de 
apresentar  as  felicitações  do  soberano  austriaco  pela  elevação 
de  Dom  João  VI  ao  throno  e  que,  na  phrase  por  vezes  cáus- 
tica de  M.aler,  nem  encontrou  com  quem  fallar  francez  no 
gabinete  do  monarcha,  que  então  se  compunha  do  portugue- 
zissimo  Thomaz  António  (i),  uma  vez  fallecido  Bezerra, 
seguio  também  na  São  Sebastião,  tendo-o  precedido  a  mis- 
são ordinária,  composta  do  encarregado  de  negócios  Neveu 
(2)   com  dous  secretários  e  dous  camaristas  do  Imperador. 

Além  das  damas  de  honor,  outras  damas  do  serviço  par- 
ticular da  Princeza,  retretas,  açafatas,  criadas,  um  capellão, 
um  bibliothecario,  vários  serviçaes  de  libré  aboletaram-se  nas 
naus,  todos  de  nacionalidade  austriaca.  Os  médicos  eram 
portuguezes,  porque  a  Regência  de  Lisboa  para  este  fim  des- 
pachara o  scientista  Francisco  de  Mello  Franco  e  o  aba- 
lizado clinico  Bernardino  António  Gomes.  O  chefe  de  co- 
sinha,  esse  exigiu  Marialva,  com  o  seu  apurado  senso  de 
gastronomo,  que  fosse  austriaco,  explicando  n'um  dos  seus 
officios  que  "os  cozinheiros  que  vierão  de  Lisboa  talvez 
sejão  bons,  porem  hum  jantar  feito  por  elles  que  me  derão 
a  bordo,  tinha  péssima  cara  e  peor  gosto."  E  rematava  en- 
fastiado: ''enfim  tenho  passado  por  algumas  vergonhas..." 


(1)  "Ce  qu'il  y  a  de  cortain,  Monscignour,  c'ost  qiio  pavmi 
toiítes  les  plaintes  que  le  Gouvernement  Espagnol  pourra  produire 
contre  les  mesures  du  Cabinet  Brésilien,  il  ne  saurait  lui  reprochei- 
pas  méme  rintention  d'  avoir  cherché  a  cajoler  les  agens  des  Puis- 
sanccs  Etrangeres,  car  il  est  remarquable  qu'un  Ambassadeur  Ex- 
traordinaire  d'Autriche  vienne  au  dela  de«  mers  avec  une  suite  aussi 
nombreuse  qu'  éclatante  et  qu'il  ne  trouve  pas  a  qui  parler  d'affai- 
res."  Felicitava-se  por  isso  Maler  (officio  de  2  de  Janeiro  de  Í818) 
que  Arcos  tivesse  sido  nomeado  interinamente  para  os  Negócios 
Estrangeiros. 

(2)  Dom  .Toão  VI  gostou  muito  <le  Neveu  e  nada  de  Eltz,  o 
qual  de  resto  já  sabemos  de  que  modo  entendeu  e  praticou  sua  em- 
baixada. Seus  secretários,  "degoutés  de  la  capitale — diz  Maler.  c 
mais   ainda    d'o  Tiver   mesquinho  do  chefe   —   ont   été  promener   leur 

ennui  dans  la  capitainerie  de  Saint-Paul." 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  885 

A  embaixada  austríaca  foi  recebida  no  Rio,  ao  que  reza 
a  chronica  de  Maler,  com  distincções  especiaes  que  não  tive- 
ram outras  missões  da  mesma  cathegoria  —  a  de  Luxem- 
burgo e  muito  menos  ainda  a  de  Balk-Poleff  —  sendo  o  em- 
baixador cumprimentado  a  bordo  pelo  official  maior  da 
Secretaria  de  Estrangeiros,  e  transportado  para  a  sua  au- 
diência, a  qual  teve  lugar  immediatamente  no  Paço  da  ci- 
dade, n'um  coche  da  Real  Casa,  com  o  introductor  ao  lado  e 
acompanhando  o  cortejo  os  coches  de  todos  os  grandes  da 
corte.  No  baile  dado  em  honra  de  Eltz  pelo  invalido  e 
quasi  agonisante  Bezerra,  na  sua  fazenda  de  Maracanã, 
forças  de  infanteria  estavam  postadas  desde  a  grade  do 
parque  até  a  porta  de  entrada,  e  piquetes  de  cavallaria  for- 
mados pelo  caminho. 

Foi  um  periodo  de  festas  consecutivas,  que  correspon- 
deram aos  "immensos  preparativos"  de  que  fallava  Marrocos 
nas  suas  cartas  para  Lisboa,  e  em  que  cada  um  tinha  seu 
papel.  Na  serenata  de  São  Christovão,  a  7  de  Novembro, 
em  celebração  dos  esponsaes,  e  para  a  qual  refere  Marrocos 
que  se  fizeram  os  ensaios  nas  salas  da  Real  Bibliotheca,  o 
Principe  Dom  Pedro,  a  Princeza  Maria  Thereza  e  a  In- 
fanta Isabel  Maria  cantaram  successivamente  uma  arieta,  e 
os  músicos  da  Real  Camará  com  os  da  Real  Capella  exe- 
cutaram uma  peça  dramática  composta  para  a  occasião  e  que 
se  prolongou  até  duas  horas  da  manhã.  No  mesmo  mez 
offerecia  a  Rainha  Dona  Carlota  a  sua  nora  um  ''esplen- 
didissimo  e  mui  delicado  jantar",  entrando  os  noivos  a  ap- 
parecer  em  passeio,  "e  com  estado  separado"   (i). 

Pouco  depois  (2)  communicava  ao  pai  esse  assiduo 
correspondente  filial  que  "a  Serenissima  Senhora  D.   Caro- 


(1)  ('arta  de  Marrocos  do  25  de  Novembro  de   1817. 

(2)  Carta  de  31  de  Janeiro  de  1818. 


886  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

lina  tem  disfructado  muito  boa  saúde,  sem  estranhar  o  clima, 
nem  o  seu  novo  estado,  em  que  com  satisfação  se  sabe  ter 
já  dado  a  conhecer  a  sua  fecundidade";  ajuntando  que  "pas- 
sêa  muito  e  com  aproveitamento,  mostrando  nestes  recreios 
não  só  hum  methodo  singular,  nascido  de  huma  regular 
educação,  mas  o  estudo  que  tem  tido  em  Sciencias  Naturaes." 
Nas  cartas  para  a  familia  parece  que  se  mostrava  a  Ar- 
chiduqueza  menos  ditosa  do  que  a  enxergava  Marrocos.  Sup- 
portava  mal  o  clima,  tendo  com  este  travado  conhecimento 
nos  começos  do  verão,  e  o  meio  social  e  sobretudo  palaciano 
não  podia  corresponder  ao  que  ella  ingenuamente  imagi- 
nara, mesmo  dando  desconto  á  differença  de  continente.  Em 
todo  caso  as  illusões  conjugaes  da  Princeza  Real  ainda  du- 
ravam quando  já  tinham  soffrido  o  primeiro  e  rude  golpe 
as  illusões  politicas  do  seu  sogro  e  Rei,  que  era  na  corte 
o  seu  melhor,  talvez  o  seu  único  amigo. 


CAPITULO  XXIII 


A  CULMINÂNCIA  DO  REINADO 


Nenhum  resumo  mais  enthusiastico  nem  redigido  em 
mais  bella  linguagem  se  poderia  tentar  da  obra  de  Dom 
João  VI  no  Brazil  do  que  a  elogiaca  oração  do  académico 
Garção  Stockler  (i),  delegado  pela  Academia  Real  das 
Sciencias  de  Lisboa  para  fallar  em  nome  da  deputação  encar- 
regada de  felicitar  o  Principe  por  occasião  da  sua  exaltação 
ao  throno.  Pronunciou-a  Stockler  na  presença  real  aos  12  de 
Maio  de  181 8,  no  anno  das  mais  pomposas  festas  de  corte 
que  jamais  se  fizeram  entre  nós,  anno  da  culminância  do 
reinado,  quando  o  fácil  esmagamento  da  revolução  pernam- 
bucana de  181 7  parecia  assegurar  para  sempre  o  prestigio  da 
coroa  portugueza  na  America,  e  não  soprava  ainda  do  velho 
Reino  abandonado  o  vento  impetuoso  da  rebeldia  de  1820. 

Vimos  que  o  movimento  republicano  do  Recife  provo- 
cara no  centro  uma  espontânea  e  considerável  manifestação 
de  dedicação  dynastica  e  lealdade  monarchica,  offerecendo-se 


(1)    Hist.  e  Memorias  da  Acad.  Real  das   Sciencias,   Tomo  VI, 
Parte  I. 


888  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

numerosos  milicianos  para  irem  combater  os  revoltosos,  e 
concorrendo  no  mesmo  fim  avultadas  contribuições  pecuniá- 
rias. Somente  na  cidade  do  Rio  ter-se-hiam  apresentado 
7.000  voluntários  e  apurado  200  contos,  n'um  calculo  de 
Mello  Moraes  que,  á  vista  da  realidade  de  outras  informa- 
ções, se  me  afigura  encerrar  gente  a  mais  e  dinheiro  a 
menos. 

O  positivo  é  que  a  exhibição,  n'aquelle  momento,  de 
amor  pelo  soberano  foi  mais  do  que  calorosa,  foi  delirante. 
No  theatro,  que  já  começava  a  ser  o  lugar  capital  das  de- 
monstrações politicas  fluminenses,  como  acontecia  em  Pariz 
durante  a  Revolução,  agitavam-se  lenços  com  o  perfil  do 
Rei  e  motes  de  devoção  á  sua  pessoa  e  ás  instituições,  dos 
quaes  se  havia  fabricado  dez  mil;  cantava-se  o  hymno  es- 
cripto  e  composto  para  a  occasião;  acclamava-se  estrepito- 
samente o  governante  sagaz  que  tudo  aliás  puzera  em  jogo 
para  encarecer  sua  popularidade,  apparecendo,  mostrando- 
se,  agitando-se,  fazendo  gala  da  sua  actividade,  elle  tão 
sedentário,  e  da  sua  bonhomia,  armando  ao  effeito  com  afa- 
digar-se  muito  ao  serio  para  conseguir  aquillo  que  foi  quiçá, 
nos  preparativos  pois  que  a  execução  lhe  escapou,  a  mais 
fina  amostra,  a  mais  forte  expressão,  o  mais  serio  esforço 
da  nossa  moderna  historia  militar,  somente  comparável  ao 
que  succedeu  ao  tempo  da  guerra  do  Paraguay. 

O  próprio  Dom  João  VI  devia  ter  sido  o  primeiro  a  sur- 
prehender-se  do  arranco,  visto  que  finamente  penetrara 
a  antipathia  dos  seus  súbditos  americanos  aos  serviços  de 
guerra :  tanto  assim  que,  em  conversação  com  Maler  ( i ) , 
manifestou  um  dia  o  desejo  —  que  o  filho  mais  tarde  con- 
verteu   em   realidade  —  de   mandar   vir,    para   encorporal-os 


(,1)    Officio  do   22   de   Setembro   do   ISlfl. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  889 

ao  exercito,  dous  regimentos  estrangeiros.  Era  em  merce- 
nários suissos,  os  fieis  Suissos  do  i o  de  Agosto,  que  pensava  o 
Rei,  em  razão  da  grande  difficuldade  que  no  Brazil  offere- 
cia  o  preenchimento   dos  effectivos  militares. 

Apezar  de  moribundo,  foi  Barca,  o  suspeito  jacobino, 
o  braço  da  reacção  de  que  era  o  monarcha  a  cabeça;  dando 
impulso  a  tudo,  ao  mesmo  tempo  que  simulava  indifferença 
pela  sublevação  e  apparentava  confiança  extrema  na  esta- 
bilidade do  throno.  "O  conde,  escrevia  Maler,  tudo  disfarça, 
affectando  tratar  a  cousa  como  um  acto  de  loucura." 

Tinha  pois  sobeja  razão  o  eloquente  académico  de  Por- 
tugal quando  exclamava  no  Paço  da  cidade,  reflectindo  o 
pensar  de  tantos  e  alludindo  á  abertura  dos  pertos,  á  ele- 
vação do  Brazil  a  Reino,  á  exclusão  da  Inquisição,  á  poli- 
tica liberal  para  com  os  exploradores  scientificos,  os  artistas 
e  os  colonos,  á  conquista  da  Cisplatina  e  ás  promessas  offi- 
ciaes  de  abolição  do  trafico  de  escravos:  "As  gerações  futuras 
admirarão  a  sabia  e  liberal  politica,  com  que  V.  M.  fran- 
queando o  commercio  d'esta  riquissima  porção  do  Novo 
Mundo  a  todos  os  povos  civilizados,  abriu  para  os  seus 
habitantes  a  fonte  mais  caudal  de  riqueza  e  prosperidade:  a 
justiça  com  que  egualando  em  tudo  e  por  tudo  a  sorte  de 
seus  vassallos,  nas  quatro  partes  do  globo  que  habitamos,  e 
elevando  o  Brazil  a  dignidade  de  reino,  poz  termo  á  fu- 
nesta rivalidade  que  existia  entre  os  portuguezes  america- 
nos, e  os  portuguezes  europeus :  a  prudência  com  que  cerrou 
a  entrada  do  novo  e  ainda  mal  povoado  reino  a  uma  antiga 
instituição,  que  a  piedade  de  um  dos  seus  augustos  pre- 
decessores havia  admittido  nos  seus  dominios  da  Europa 
e  da  Ásia;  mas  que  sendo  olhada  com  horror  pela  maior 
parte  dos  governos,  e  dos  homens  alumiados,  seria  um  gravis- 


890  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

simo  obstáculo  ao  augmento  da  população,  e  aos  progressos 

das  luzes  e  da  industria  no  Brazil Elias  admirarão  não 

menos  a  bem  entendida  e  generosa  liberalidade,  com  que 
V.  M.  tem  pretendido  atrair  para  este  vastissimo  continente 
agricultores  e  artistas  de  todas  as  partes  do  mundo:  a  pru- 
dência e  o  vigor  com  que  afugentando  de  nossas  fronteiras 
visinhos  turbulentos  e  agitadores,  animados  de  principios  in- 
compativeis  com  a  tranquillidade  interna,  procura  encerrar 
os  seus  dominios  americanos  em  barreiras  naturaes,  que  jun- 
ctamente  facilitem  a  sua  defesa,  e  segurem  aos  seus  vassallos 
a   fruição  socegada   dos   bens   que  a   natureza   liberalizou   a 

estes  fertilissimos  paizes  : a  humanidade  e  a  circum- 

specção  com  que  pela  gradual  e  progressiva  abolição  do  com- 
mercio  da  escravatura,  vai  suavemente  substituindo  a  servos 
destituidos  de  todo  o  estimulo  de  emulação  e  brio,  homens 
que  reconhecendo  a  vantagem  que  deve  resultar-lhes  do 
aperfeiçoamento  de  seus  talentos,  e  do  augmento  de  sua  peri- 
cia  nas  artes  e  mesteres  que  exercitam,  se  esforcem  por  me- 
lhorar a  sua  condição,  por  meio  da  applicação  e  assiduidade 
ao  trabalho,  e  concorram  assim  efficazmente  para  a  publica 
felicidade." 

Foi  este  mesmo  erudito  a  pessoa  encarregada  pelo 
conde  da  Barca  de  elaborar  um  projecto  de  organização  da 
instrucção  publica  no  Brazil,  "quando  pareceu  necessário 
dar-lhe  um  plano  systematico,  em  virtude  do  qual  os  estabe- 
lecimentos litterarios  e  scientificos  creados  estivessem  liga- 
dos entre  si,  dependentes  uns  dos  outros,  e  subordinados 
todos  a  um  só  pensamento,  a  um  centro  de  direcção.  Sob  a 
influencia  d'este  modo  de  ver  as  cousas,  propunha  Stockler 
que  uma  Sociedade  Real  das  Sciencias  e  Artes  fosse  no  Rio 


I 


r)OM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  891 

de  Janeiro  o  centro  único  de  toda  a  instrucção  publica  bra- 
zileira"    (i). 

O  Instituto  Académico,  por  alguns  denominado  Uni- 
versidade, que  Dom  João  VI  deliberara  fundar  no  Rio  com 
o  donativo  do  commercio  da  capital,  feito  para  commemorar 
sua  acclamação  e  cujo  rendimento  devia  s€r  perpetuamente 
applicado  a  estabelecimentos  que  promovessem  a  instrucção 
nacional,  obedecia  ao  mesmo  ideal  de  unidade  ou  centrali- 
zação pedagógica  (2). 

"  Todos  os  descobrimentos  novos  que  á  Sociedade  ideada 
por  Stockler  fossem  devidos,  ou  para  os  quaes  contribuisse 
de  algum  modo,  bem  depressa  seriam  transmittidos  aos  pro- 
fessores respectivos;  e  o  mesmo  succederia  em  quanto  aos 
descobrimentos  feitos  em  outros  paizes,  pois  que,  por  hypo- 
these,  estaria  a  sociedade  em  correspondência  activa  com  elles, 
e  transmittiria  depois  o  que  chegasse  ao  seu  conhecimento. 
Para  a  constituição  da  Sociedade  Real,  seria  possivel  attrahir 
alguns  estrangeiros  sábios,  que  o  estado  publico  da  França  e 
da  AUemanha  obrigava  a  expatriarem-se.  A  instrucção  pu- 
blica seria  dividida  em  4  grãos,  sendo  as  respectivas  escolas 
denominadas  pedagogias,  institutoSj  lyceus  e  academias  e 
abrangendo,  as  primeiras,  os  conhecimentos  que  a  todos  são 
necessários,  qualquer  que  seja  o  seu  estado  e  profissão;  as 
segundas,  o  desenvolvimento  da  maior  parte  d'estas  noções 
e  os  conhecimentos  essenciaes  aos  agricultores,  artistas  e  com- 
merciantes;   as   terceiras,   os   conhecimentos   scientificos   que 


(1)  José  Silvestre  Ribeiro,  Historia  dos  Estabelecimentos 
scientificos   etc.    Lisboa,    1871-93. 

(2)  Resava  o  Aviso  respectivo  que  o  Rei  mandaria  unir  fls 
cadeiras  das  sciencias  que  já  existiam  na  corte  "aquellas»  que  de  mais 
se  houverem  de  crear,  em  ordem  a  completar  hum  Instituto  Acadé- 
mico que  comprehenda,  não  s6  o  ensino  das  Sciencias.  mas  também  o 
das  Bellas  Artes,  e  o  da  sua  appllcação  â   Industria.'" 

D.  J.  —  56 


892  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

devem  servir  de  introducção  ao  estudo  profundo  das  scien- 
cias  e  de  todo  o  género  de  erudição;  as  quartas,  finalmente, 
o  ensino  das  sciencias,  tanto  abstractas,  como  de  applicação, 
consideradas  na  sua  maior  extensão  e  em  todas  as  suas  di- 
versas relações  com  a  ordem  social,  e  o  estudo  das  sciencias 
moraes  e  politicas,  designadas  com  a  denominação  de  scien- 
cias sociaes"    (i). 

Diz  Ferdinand  Denis,  o  qual  esteve  no  Brazil  muito 
poucos  annos  depois  do  regresso  da  corte  para  Lisboa,  que  o 
bello  plano  pedagógico  de  Garção  Stockler,  expressão  do 
afan  reformador  e  das  intenções  levantadas  que  distingui- 
ram entre  nós  esse  momento  histórico,  foi  rejeitado  pela  in- 
fluencia das  pessoas  que  pretendiam  conservar  o  Brazil  no 
estado  moral,  já  que  não  mais  politico,  de  colónia  portugueza, 
e  ás  quaes  não  convinha  tão  completa  emancipação  intelle- 
ctual.  O  Rei  não  podia  arcar  em  tudo  e  por  tudo  co^n  o 
elemento  reaccionário  que  o  cercava:  era-lhe  mister  fazer  al- 
gumas concessões. 

O  grau  de  progresso  attingido  pelo  novo  _ Reino  sob  o 
governo  de  Dom  João  VI,  seu  creador,  tem  que  ser,  para  me- 
lhor avaliação,  comparativamente  calculado  e  descripto,  por- 
que não  é  tanto  absoluto  como  relativo.  Confrontado  com 
o  que  era  dez  annos  atraz,  quando  ao  Rio  de  Janeiro  chegou 
a  corte  portugueza,  o  paiz  em  1818  offerecia  sem  a  menor 
duvida  um  notável  desenvolvimento.  A  população  crescera 
com  as  entradas  de  fora,  além  do  resultado  da  natural  pro- 
gressão. 


(1)  .T.  S.  Ribeiro,  oh.  cit.  Nos  institutos  (25  grfio)  ensina- 
vam-se  princípios  de  historia  natural,  chimica,  meclianica,  agricul- 
tura, economia  politica,  commercio  e  moral;  nos  lyceus  (39  gráo) 
estudavam-se  rhetorica,  línguas,  historia,  geographia  e  hermenêutica. 
O  condicional  seria  melhor  appl içado  aos  dous  verbos,  porque  o 
plano  nunca  teve  execução. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  893 

Calculava-a  o  conselheiro  Velloso  de  Oliveira  na  sua 
informação  de  1819  (i),  que  devia  servir  de  base  á  pro- 
jectada divisão  dos  bispados  e  na  qual  se  propunham  sete 
provincias  ecclesiasticas  ou  dioceses  archiepiscopaes,  em 
2.697.099  habitantes,  excluidos  os  Índios  bravos.  Accrescen- 
tando-se,  como  querem,  um  terço  por  causa  da  inexactidão  e 
deficiência  dos  mappas  coUigidos,  sem  excessiva  diligencia, 
n'um  tão  vasto  território,  com  núcleos  de  população  muito 
disseminados  e  muito  refractários  a  qualquer  estatistica, 
chega-se  ao  algarismo  de  3.596.132  habitantes  civilizados, 
e  com  800.000  Índios  bravos,  conta  redonda  e  imaginativa, 
se  perfaz  um  total   de  4.396.132   habitantes. 

Para  o  Rio  somente  dava  Henderson  no  mesmo  anno 
o  algarismo  de  150.000  habitantes,  dous  terços  dos  quaes  de 
côr,  ou  melhor  de  cores  (exhibiting  every  variety  of  co?n- 
plexion).  Os  brancos  contavam  entretanto  na  af fluência  da 
Europa  um  contingente  fixo,  mesmo  de  Francezes,  que  são 
reconhecidamente  os  Europeus  que  menos  emigram.  N'um 
dos  seus  officios  de  181 7  participava  Maler  a  chegada  nos 
dous  últimos  navios  de  54  súbditos  do  Rei  Christianissimo, 
na  maioria  artifices.  A  capital  tendia  assim  a  embranque- 
cer-se. 

A  immigração  em  geral  cada  anno  se  fazia  maior,  e 
não  se  cifrava  somente  nos  Suissos  relegados  á  sua  colónia 
de  Nova-Friburgo  e  nos  Ilhéos  distribuídos  pelo  paiz  com 
provisão  de  instrumentos  agrícolas,  ou  enraizados  nas  imme- 
diações  da  capital,  supprindo  o  seu  mercado  cada  vez  mais 
exigente  porque,  crescendo  o  conforto  e  surgindo  o  luxo,  a 
meza  tinha  fatalmente  que  se  tornar  mais  variada  e  esme- 


(1)    Revista   Trimensal,   Tomo   XXIX,   Parte   in. 


SU  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rada.  Abrangia  ella  crescido  numero  de  outros  portuguezes 
do  Reino  e  estrangeiros,  entre  os  quaes  elementos  pouco 
desejáveis  que  a  policia  arbitraria,  quando  não  abusiva  (i), 
de  Paulo  Fernandes  Vianna  e  Vidigal  trazia  sob  a  sua  ri- 
gorosa fiscalização,  sobretudo  depois  do  inesperado  si  bem 
que  explicável  rebentar  da  revolução  de  1817  e  da  descoberta 
de  numerosas  sociedades  secretas   (2). 

A  vida  fluminense  offerecia  toda  ella  uma  apparencia 
mais  animada  e  attrahente,  tendo  perdido  bastante  do  seu 
aspecto  quasi  vegetativo  para  assumir  um  caracter  intelli- 
gente.  Luccock,  que  chegou  ao  Brazil  em  1808  e  se  retirou 
justamente  em   181 8,  escrevia  que  deixava  a  sociedade  com 


(1)  Hippolyto,  cujos  duendes  eram  o  governo  militar  das 
capitanias  e  a  policia,  reprovou  em  termos  acres  no  Correio  o  de- 
creto de  7  de  Novembro  de  1812,  aliás  logo  revogado,  que  man- 
dava que  nenhum  preso  por  ordem  do  Intendente  Geral  podesse  ser 
solto  por  qualquer  auctoridade :  "por  mandados,  sentenças,  ou  as- 
sentos de  visita  (como  as  visitas  ás  prisões  do  Regedor  das  justiças) 
sem  que  antes  o  mesmo  Intendente  seja  sciente,  e  o  dê  por  corrente." 

Um  correspondente  anonymo  do  Correio  escrevia  porém  a  este 
propósito  que  o  redactor  se  agitava  sem  grande  motivo,  pois  que  o 
decreto  não  era  extraordinário,  atroz  e  cruel  como  elle  acreditava. 
Nem  podia  deixar  de  ser  razoável  que  se  ouvisse  a  policia  sobre  a 
culpabilidade  de  um  preso  íi  sua  ordem :  o  contrario  seria  a  anar- 
chia  da  justiça,  mandando  uma  auctoridade  prender  e  outra  soltar 
a  esmo,  sem  se  entenderem.  E  o  corresponaente  accrescentava  que 
no  Brazil  havia  muita  liberdade  de  expi*essão,  até  nos  cafés  e  bo- 
tequins, sem  receio  de  delações,  havia  mesmo  falta  de  respeito  nas 
ceremonias  religiosas,  e  âs  claras  agiam  clubs  e  ajuntamentos,  o  que 
seria  incompatível  com  um  regimen  de  terror.  Não  tira  isto  a  razão 
ao  publicista  no  reclamar  legislação  mais  consentânea  na  theoria 
com   os   velhos   privilégios   e   as   novas   aspirações   populares. 

(2)  Funccionavam  no  Brazil,  dependendo  porém  do  Oriente 
Luzitano  até  que  José  Bonifácio  reorganizou  a  maçonaria  nacional, 
creando-se  o  Oriente  Brazileiro,  tão  conspícuo  nos  tempos  da  Inde- 
pendência. Em  Pernambuco  havia  loja  desde  1S09,  e  no  Rio  e  Bahia 
desde  a  mesma  data  approximadamente.  A  loja  de  Nitherohj-  con- 
tava como  membro  influente  José  Mariano  Cavalcanti,  cujo  papel 
na  revolução  de  1817,  si  não  foi  brilhante  ou  sympathico,  foi  era 
todo  caso  saliente.  Para  o  juizo  de  Inconfidência  estabelecido  para 
taes  sociedades  secretas  depois  da  sedição  pernambucana,  escolheu- 
se  o  desembargador  José  Albano  Fragoso.  (Mello  Moraes,  iirazil- 
Beino  e   Brazil-Imperio). 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  895 

que  tratara  dotada  de  muito  mais  energia  individual,  de 
muito  mais  espirito  de  trabalho,  de  muito  mais  iniciativa 
(pushing).  Os  interesses  particulares  obravam  e  impelliam, 
tornando  aguda  e  instante  a  lucta  económica  e  social  onde 
d'antes  havia  apathia. 

A  paixão  pela  agricultura,  pela  industria,  pela  mine- 
ração, por  tudo  quanto  representasse  progresso  material  e 
servisse  de  base  á  riqueza  privada  e  publica,  accendera-se 
por  forma  tal  que  perdera  a  noção  do  meio  e  chegava  pela 
ambição  a  tingir-se  de  ingenuidade.  Assim  em  1816,  a  pro- 
pósito do  Instituto  Académico  planejado,  se  entendia  e  de- 
clarava que  os  jovens  destinados  á  religião  e  á  magistratura 
deveriam  possuir  "conhecimentos  de  historia  natural,  agri- 
cultura e  artes  de  que  ella  depende",  sendo  os  curas  obriga- 
dos, antes  de  admittidos  aos  beneficios,  a  demonstrar,  como 
acontecia  na  Suécia  com  os  pastores  lutheranos,  sciencia  agro- 
nómica applicavel  ao  ensino  e  aproveitamento  dos  seus  fieis. 

Não  existia  ainda  casa  regular  de  instrucção  d'essas 
matérias  agronómicas,  mas  já  alguns  conhecimentos  techni- 
cos  se  poderiam  alcançar  na  aula  de  agricultura  e  botânica 
que,  a  cargo  do  competente  frei  Leandro  do  Sacramento, 
começou  a  funccionar  a  13  de  Março  de  1815.  Tinha  lugar 
o  curso,  para  o  qual  entravam  alumnos  ordinários  e  volun- 
tários, que  estes  não  eram  obrigados  a  exames  nem  a  matri- 
culas, no  Passeio  Publico:  "e  em  muitas  tardes  far-se-hão 
digressões  pelos  montes  para  estudal-os",  dizia  o  edital  que 
estabelecia  esse  "ensino  de  anatomia,  physiologia  e  classifi- 
cação das  plantas,  princípios  e  pratica  da  agricultura  para 
instrucção  dos  proprietários  de  engenhos  e  fazendas." 


896  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Pelo  que  respeita  á  protecção  em  si  dos  interesses  agri- 
colas,  desde  21  de  Janeiro  de  1809  um  alvará  concedera  aos 
habitantes  do  Brazil  o  privilegio  de  não  serem  executados  na 
propriedade  dos  seus  engenhos,  fabrica  e  lavoura  e  somente 
em  uma  parte  dos  seus  rendimentos. 

Para  levantar  a  mineração,  muito  abandonada  desde 
que  as  minas  escassearam  ou  entraram  a  produzir  menos,  fez 
o  governo  de  Dom  João  VI  administrativamente  o  possivel. 
A  carta  regia  de  12  de  Agosto  de  181 7  ao  governador  e  ca- 
pitão general  de  Minas  Geraes,  D.  Manoel  de  Portugal  e 
Castro,  occupava-se,  ultima  em  data  de  uma  serie  de  provi- 
dencias, da  formação  de  sociedades  destinadas  a  promover  a 
lavra  das  minas  de  ouro:  "empregando-se  os  fundos  dessas 
sociedades,  por  conta  das  mesmas,  no  estabelecimento  de 
lavras  regulares  e  methodicas,  mas  debaixo  da  direcção  de 
um  inspector  geral  versado  em  sciencia  montanistica  e  me- 
tallurgica,  nomeado  pelo  soberano.  As  referidas  lavras  ser- 
viriam ao  mesmo  tempo  para  instrucção  publica,  patenteando- 
se  aos  habitantes  as  grandes  vantagens  que  resultam  do  me- 
thodo  scientifico  dos  trabalhos  montanisticos,  aproveitando- 
se  os  terrenos  inutilizados  e  melhorando-se  os  methodos  de 
mineração." 

Si  resultou  platónica  a  recommendação  e  a  mineração 
continuou  em  repouso,  a  culpa  foi  da  falta  de  capitães,  mais 
mesmo  do  que  de  actividade  industrial.  Os  capitães  parti- 
culares eram,  n'este  sentido  de  disponiveis,  á  busca  de  coUo- 
cação,  nullos  no  Brazil.  Na  falta  de  um  commercio  extenso 
e  proveitoso  á  economia  nacional,  que  estava  ainda  e  con- 
tinua em  formação,  constavam  de  terras  que  davam  na  me- 
lhor hypothese  um  rendimento  absorvido  pelas  escravarias. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  897 

sempre  a  renovarem-se,  e  pelas  exigências  crescentes  da  vida 
social  n'um  meio  em  transformação. 

O  governo,  por  seu  lado,  não  tinha  dinheiro  supérfluo 
( I )  para  crear  ou  fomentar  industrias,  por  mais  remunera- 
doras que  as  anticipasse.  Suas  únicas  tentativas  n'este  campo 
foram  a  fabrica  ou  fundição  do  Serro  do  Frio,  mandada 
construir  á  custa  da  real  fazenda  pelo  intendente  geral  do 
Districto  Diamantino,  e  a  fabrica  de  ferro  de  Ipanema, 
igualmente  de  iniciativa  do  conde  de  Linhares,  o  qual  em 
1810,  tendo  noticia  das  extraordinárias  quantidades  de  mi- 
nério existentes  n'aquella  localidade  paulista,  mandou  alli 
estabelecer  mineiros  e  fundidores  suecos. 

A  manufactura  de  Ipanema  produzia  em  181 7  quatro 
mil  arrobas  de  ferro  annuaes,  havendo  comtudo  a  fahrica 
soffrido  extensões  e  passado  por  alterações  e  modificações 
importantes  depois  de  confiada  sua  gerência  ao  tenente  coro- 
nel allemão  Varnhagen,  que  levantou  uma  fundição  pelo 
custo  de  300.000  cruzados  e  mandou  vir  da  Allemanha 
fundidores  para  a  execução  de  trabalhos  mais  delicados. 

Spix  e  Martius,  que  visitaram  São  Paulo  exactamente 
quando  estavam  terminadas  as  novas  construcções  e  dado  o 
novo  impulso,  relatam  que  a  fabrica  nunca  rendera  quanto 
se  calculara  a  principio,  opinando  uns  que  não  era  boa  a 
qualidade  do  ferro  depois  de  refinado  e  fundido,  attribuindo 
outros  o  relativo  mallogro  em  parte  talvez  ás  communicações 
difficeis  e  certamente  muito  á  concorrência  dos  productos 
inglezes,  tão  favorecidos  pelo  tratado  de   18 10. 


M)  \o  Reino  de  Portugal  a  falta  de  recursos  chegai\a  a 
ponfo  tal  e  tanto  se  avolumara  o  deficit  que,  era  Í812,  para  fazer 
face  As  despezas  militares,  mandava  o  Principe  Regente,  entro  outras 
medidas  e  vendas  que  recommendava  aos  Governadores,  alienar  bens 
livres  da  Coroa.  No  Brazil  a  situação  financeira  era  menos  angus- 
tiosa    mas   em   extremo   acanhada. 


898  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Em  Minas  Geraes  pequenas  fabricas  particulares,  le- 
vantadas sob  a  direcção  do  barão  de  Eschwege,  testemunha- 
vam entretanto  o  custoso  despertar  industrial  do  Brazil, 
também  revelado  no  melhoramento  de  estradas,  no  lança- 
mento de  pontes,  na  conducção  d'agua  potável  para  os  cen- 
tros de  população,  no  augmento  da  tecelagem  na  mesma 
considerável  provincia  de  Minas. 

Uma  carta  regia  de  1 6  de  Janeiro  de  1817  approvava  o 
estabelecimento  da  companhia  de  mineração  de  ferro  de 
Cuyabá,  dando  estatutos  para  sua  regulação,  e  insinuava 
a  conveniência  de  mandar  pessoas  aprenderem  a  arte  de 
fundir  nas  fabricas  de  São  Paulo  e  Minas;  outrosim  recom- 
mendava  que  se  perscrutasse  a  existência  de  minas  de  sal  na 
capitania  de  Matto  Grosso. 

Outro  assumpto  que  como  sabemos  mereceu  bastante  3 
attenção  do  governo,  foram  as  communicações  fluviaes,  as 
mais  indicadas,  as  únicas  indicadas  mesmo  n'um  paiz  de 
tão  exaggeradas  proporções,  com  um  systema  hydrographico 
perfeito,  e  quando  se  não  achavam  previstas  na  pratica  as  es- 
tradas de  ferro.  Procurou-se  com  empenho  ligar  por  esse  meio, 
o  mais  possivel,  a  costa  com  o  interior,  isto  é  com  Goyaz  e 
Matto  Grosso,  quer  pelo  Amazonas  e  seus  af fluentes  e  sub- 
affluentes,  quer  pelo  Tietê  e  Paraná  e  d'ahi  por  differentes 
rios  mais  ou  menos  navegáveis  indo  dar  no  São  Lourenço  e 
Cuyabá. 

A  carta  regia  de  5  de  Setembro  de  181 1,  expedida  ao 
governador  e  capitão  general  de  Goyaz,  sanccionava  o 
plano  de  organização  de  uma  sociedade  de  commercio  entre 
a  referida  capitania  e  a  do  Pará,  e  concedia  privilégios  aos 
accionistas.    Reportando-se    com    louvores    a    tal    tentativa, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  899 

Hippoh^to  propugnava  no  Correio  a  idéa  de  uma  capital  cen- 
tral, perto  das  cabeceiras  dos  grandes  rios,  que  se  deviam 
tornar  inteiramente  navegáveis,  e  clamava  uma  vez  mais 
por  legislação  liberal  que  attrahisse  uma  immigração  es- 
trangeira mais  proficua  e  estável  do  que  a  meramente  com- 
posta de  negociantes  —  "cuja  pátria  são  a  carteira  e  o  es- 
criptorio"    (i). 

Com  vista  n'estes  resultados  práticos  arranjaram-se 
explorações  nacionaes  que  o  governo  muito  animava,  como 
animava  até  certo  ponto  as  missões  estrangeiras  que  acudiam 
seduzidas  pela  novidade  e  captivadas  pelo  interesse  do  paiz. 
Algumas  das  ultimas  deixaram  nome  illustre  nos  fastos 
scientificos :  a  austríaca  e  a  bavara  entre  outras,  que  acom- 
panharam a  Archiduqueza  Leopoldina  em  1817,  composta 
a  segunda  dos  celebres  naturalistas  Spix  e  Martius,  abran- 
gendo a  primeira,  preparada  por  Van  Schreibers,  director  do 
Museu  imperial  de  historia  natural  de  Vienna,  o  professor 
Mikan,  de  Praga,  encarregado  da  parte  botânica  e  da  en- 
tomologia; Pohl,  da  mineralogia;  Natterer,  da  zoologia; 
Ender,  pintor  paisagista;  Buckberger,  pintor  botânico,  e 
Schost,  horticultor. 

Por  conta  própria  mesmo  o  governo  de  Dom  João  VI, 
intolerante  n'este  assumpto  só  quando  se  lhe  despertava  a 
desconfiança,  subvencionava  explorações  feitas  por  estran- 
geiros distinctos  ou  competentes.  Assim,  por  decreto  de  i  de 
Julho    de    181 5,   mandou   pensionar    dous   naturalistas    alle- 


íl)  L  ma  (las  primeiras  abertas  foi  a  navegação  do  Rio  Grande 
desde  Belmonte,  que  facilitava  a  communicac;ão  da  capitania  de 
Porto  Seguro  com  as  do  centro,  "fazendo-se  uma  estrada  de  55  lé- 
guas para  diminuir  algumas  dlfficuldades  restantes  da  navegação", 
a  qual  era  custosa  por  causa  das  cachoeiras  e  andava  prohibida  por 
causa    dos    diamantes    de    Jequitinhonha. 


900  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mães,  Freyzen  e  Sellow,  com  400.000  réis  annuaes  para 
estimular  seus  trabalhos,  "com  obrigação  de  apresentarem 
n'esta  corte  no  fim  de  cada  uma  de  suas  viagens,  não  so- 
mente a  memoria  descriptiva  d'ellas,  mas  os  exemplares  de 
todos  os  objectos  que  tiverem  analysado  e  colligido,  os  quaes 
serão  recebidos  no  real  gabinete,  que  para  este  fim  me  pro- 
ponho mandar  estabelecer."  Assim  annunciava  o  Rei  a  fun- 
dação no  Rio  de  Janeiro  do  Museu  Nacional,  que  veio  a 
prestar  serviços  tão  inquestionáveis  á  nossa  historia  natural, 
anthropologia  e  ethnographia. 

O  Jardim  Botânico  (a  principio  Real  Horto),  plan- 
tado originariamente  para  introduzir  no  Brazil  a  cultura 
de  especiarias  das  índias  Orientaes,  no  lugar  do  engenho 
de  Rodrigo  de  Freitas  onde  também  se  montara  a  fabrica 
de  pólvora,  foi  outra  creação  de  Dom  João  VI  cujos  resul- 
tados scientificos  teem  sido  consideráveis  e  são  inesgotáveis. 
Esse  jardim  que  interessava  o  seu  fundador  ao  ponto  de, 
segundo  se  conta,  ahi  passar  dias  inteiros,  abrigou  numero- 
sas plantas  exóticas  e  acclimou  varias  que  hoje  admiramos 
e  usufruimos,  tendo-se  outras  perdido  por  abandono.  No  nu- 
mero, das  aproveitadas  e  das  desamparadas,  entram  a  canna 
de  Cayenna,  o  chá,  a  palmeira  real  —  assim  chamada  por 
haver  sido  plantada  pelas  regias  mãos  —  o  abacate,  o  olho 
de  boi  e  o  litchi  da  China,  a  camphorelra,  o  cravo  da  índia, 
a  fructa-pão,  a  noz  moscada,  o  cajá-manga,  a  fructa  do 
conde,  a  pimenta  do  reino,  a  carambola,  a  amoreira,  etc  (i). 

Filiaes  do  Jardim  foram  mandadas  dispor  em  Pernam- 
buco, Bahia,  Minas  Geraes  e  São  Paulo,  dirigidas,  a  primeira 


(1)  Hortiis  Fluwinensis,  ou  Brcre  noiicia  sohre  as  plantas 
cultivadas  vn  Jardim  Botânico  do  Rio  de  Janeiro,  por  J.  Barbosa 
Rodrigues.    Rio,    1805. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  901 

pelo  agrónomo  francez  Paulo  Germain,  vindo  de  Cayenna 
( I ) ,  e  a  ultima  pelo  suisso  João  Baptista  Badaró. 

E'  natural  que  explorações  geographicas,  cultivo  de 
sciencias  naturaes,  experiências  agricolas,  leituras  mais  ex- 
tensas e  folgadas  e  um  feitio  de  vida  mais  pratico  e  des- 
afogado redundassem  n'uma  producção  intellectual  mais  ca- 
racteristica  e  proveitosa  do  que  exclusivamente  a  de  sermões, 
paneg>TÍcos,  dithyrambos,  elegias  e  discursos  académicos. 
De  facto,  si  percorrermos  o  rol  das  edições  da  Tj^pographia 
Regia  de  1808  a  1821,  encontraremos,  afora  as  dulcificas, 
todavia  esclarecidas  e  progressivas  observações  commerciaes  e 
económicas  de  José  da  Silva  Lisboa  (1808-10)  e  além  de 
traducções  de  Voltaire,  Bernardin  de  Saint  Pierre  e  Delille 
(1811)    auctores  muito  ao  gosto  do  tempo,   dos  infalliveis 


(1)  Por  causa  do  mau  estado  em  que,  devido  íi  longa  viagem, 
chegaram  do  Cayenna,  plantaram-se  em  Pernambuco,  além  das  des- 
tinadas especialmente  á  capitania,  a  mór  parte  das  arvores  que  iam 
para  o  jardim  da  corte,  no  intuito  de  mais  facilmente  depois  se  re- 
moverem,   com   menos   perigo   de   não   vingarem. 

Paulo  Germain  era,  no  dizer  do  governador  Caetano  Pinto 
que  as  Notas  de  Tollenare  corroboram,  um  francez  volúvel  e  sem 
grande  respeitabilidade  para  chefe ;  ''livre  porém  do  contagio  jaco- 
binieo  e  aborrecendo  no  seu  coração  o  governo  de  Buonaparte" 
O  professor  de  desenho  do  seminário  de  Olinda  e  corypheu  da  futura 
revolução  de  1817 — "ecclosiastico  de  muita  probidade  e  com  bas- 
tantes luzes  de  historia  natural,  que  estudou  com  o  Dr.  Manoel  Ar- 
ruda da  Camará" — foi  pelo  governador  de  Pernambuco  encarregado 
do  dirigir  o  viveiro  das  plantas,  trabalhando  Germain  sob  suas  or- 
dens (Officio  de  Caetano  Pinto  ao  condo  do  Linhares,  de  21  de 
Junho  do  1811,  nos  Documentos  sobre  o  Jdrditn  Botânico  de  Olinda, 
181Í,  12  e  JG,  na  Rov.  do  Inst.  Arch.  e  Geog.  Pem.  n.  S7). 

Tndo  comtudo  Germain  ao  Rio  de  Janeiro  proceder  ao  plantio 
do  rosto  das  arvores  para  alli  do^stinadas,  regressou  em  1812  a  Per- 
nambuco, encarregado  polo  governo  da  direcção  mesmo  do  horto 
croado  onde,  no  dizer  de  Galvéas  (Officio  de  11  do  Março  de  1812) 
"semelhante  ctiltura  deve  prosperar  por  sor  sou  clima  muito  análogo 
ao  de  ('ayenna."  Do  horto  tinha  entretanto  ficado  cuidando  o  padre 
João  Ril>oiro.  que  lh'o  entregou  a  25  de  Setembro,  constando  da  sua 
rolação  existirem  no  referido  Jardim,  transplantados  ou  em  viveiro, 
300  pés  de  girofeiro  ( cario phi/lhis  aromntic),  17  de  canelleira  (Efifí- 
rits  cinamomum),  11  arvores  de  fructa  do  Conde  (anona  squamoza), 
14  nogueiras  de  Bencul   {artocarpus  incisa),  xO  arvores  do  pão,  etc. 


902  DOM  JOÃO  VI  NO  BRÂZIL 

elogios  históricos  e  orações  fiinebres,  e  do  poema  Assumpção 
da  Virgem  de  frei  Francisco  de  São  Carlos  (1819),  mixto 
de  religiosidade  e  pompa  rhetorica  promissivo  do  palavroso 
romantismo  christão:  roteiros  como  o  de  Silva  Belfort,  do 
Maranhão  ao  Rio  (1810),  e  o  de  Oliveira  Bastos,  de  Santa 
Maria  de  Belém  pelo  rio  Tocantins  (1811);  os  escriptos 
profissionaes  de  Vicente  Navarro  de  Andrade  ( i )  e  Correia 
Picanço   (2);  a  íraducção  da  Álgebra  de  Lacroix   (1812); 


(1)  Plano  de  orqanização  de  uma  escola  medico-cirurgica 
(1812). 

(2)  Ensaios  sohre  os  perigos  das  sepulturas  dentro  das  cida- 
des e  nos  seus  contornos  (1812).  Não  obstante  esta  publicação  de 
uma  auctoridade  scientifica  da  côi-te  e  em  posição  official,  os  en- 
téricos nas  egrejas  continuaram  até  1830,  quando  foi  formalmente 
prohibido  inhumar  a  não  ser  nos  cemitérios,  que  no  emtanto  não 
foram  abertos  a  grandes  distancias  da  cidade.  No  tempo  de  Dom 
João  VI"  havia  já  cemitério  mas  para  os  pobres  e  os  negros,  cujos 
corpos  eram  levados  aos  dous  e  trez  numa  rede  e  sepultados  de  mis- 
tura, altemanao-se  na  pilha  pés  e  cabeça.  Os  corpos  dos  ricos  eram 
carregados  ás  pressas,  sem  grande  respeito,  para  as  egrejas,  e  sa- 
cudidos com  cal  viva  nas  covas  das  naves,  socando-se  por  cima  a 
terra  com  macetes  (Luccok,  oh.  cit.)  Ao  cabo  de  um  anno  exhuma- 
vam-se,  para  abrir  nas  sepulturas  vagas  a  que  não  faltavam  candi- 
datos, os  ossos  dos  enterrados,  que  se  conservavam  amontoados  n'um 
deposito  ou  pateo  da  egreja.  Depois  de  1816  generalizou-se  muito  o 
costume  de  construir  o  que  se  chamou  catacumbas  o  eram  galerias 
abertas  contíguas  aos  templos,  a  exemplo  das  que  então  existiam  no 
Carmo  e  São  Francisco  de  Paula,  exclusivas  dos  ii-mãos.  Igual- 
mente era  ahi  costume  tirar  no  fim  do  anno  a  ossada  do  seu  buraco 
ou  oco  murado  de  tijolo  e  cal,  passando  para  outra  dependência 
sagrada  dentro  de  uma  urna.  A  ostentação  invadiu  este  terreno  da 
morte  como  invadira  os  da  vida,  subindo  as  urnas  de  modestas  a 
sumptuosas  e  exhibindo  na  sua  piedade  pelo  morto  a  abastança  da 
família. 

Os  enterros  realizavam-se  sempre  ao  lusco-fusco,  sendo  o 
coi-po  transportado  n'uma  padiola  forrada  de  velludo  preto  reca- 
mado de  renda  de  ouro.  O  cadáver  ia  descoberto  ;  diz  Debret  que  com 
a  cara  pintada,  o  cabello  empoado  e  a  testa  ornada  de  flores  ou 
cinta  por  uma  coroa  de  metal,  o  que  nem  ajudava  a  emoção  nem  a 
deferência,   emprestando  ao  acto  ares  de  carnaval. 

A  estada  da  corte,  com  suas  conhecidas  consequências  de 
desenvolvimento  mental,  fez  melhorar  muito  isto  como  tudo  mais, 
passando  a  haver,  segundo  o  mesmo  Debret,  testemunha  presen- 
cial da  transformação,  melhor  arranjo  nos  cemitérios,  maior  decên- 
cia nos  acompanhamentos  fúnebres  e  respeito  mais  accentuado  pelos 
mortos  e  seus  lugares  de  repouso.  Ainda  assim,  Henderson  nas  suas 
impressões  mostrou-se  muito  escandalizado  por  ter  ouvido  proferir, 
ou  constar-lhe  que  foram  proferidas  palavras  obscenas  n'uma  ceri- 
monia fúnebre,  pelo  pai  da  moça  que  se  baixava  á  sepultura. 


DOM  JOÃO  VI  NO  ERAZIL  903 

* 

a  da  Mechanica  de  Francoeur  por  J.  Saturnino  da  Costa 
Pereira  (1813)  ;  a  da  Physica  de  Hauy  (1813)  ;  a  da  Eco- 
nomia politica  moderna  de  Herrenschwand ;  as  elevadas  pre- 
lecções philosophicas  de  Silvestre  Pinheiro  Ferreira  (181 3) 
(i)  ;  a  Chorographia  do  padre  Ayres  do  Casal  sobre  que  se 
basearam  tantas  obras  estrangeiras  em  matéria  de  geogra- 
phia  brazileira,  e  as  Memorias  históricas  do  Rio  de  Janeiro 
de  Monsenhor  Pizarro,  áridas  no  estylo  mas  fecundas  com 
respeito  a  documentos  e  informações   (2). 

(1)  Marrocos,  como  era  veso  seu,  desfazia  das  lucubrações  do 
í^minente    ensaísta   e   tratadista,   nos   termos   seguintes  da   sua   carta 

ao  pai,  de  19  de  Maio  de  1813  :  " aqui  também  se  prega  muito, 

produzindo-se  Planos  e  Projectos  Litterarios,  mas  ex  tanto  nihil. 
Silvestre  Pinlieiro  está  mottido  a  Projectista  e  as  suas  lições  redu- 
zem-se  a  huma  mezela  scientifioa,  que  se  não  sabe  o  que  lie :  esta- 
mos no  tempo  das  Grammaticas  Filosóficas,  e  o  sistema  de  todas 
as  Linguas  reduzido  a  huma  sô  praxe."  Tempos  depois,  em  cai-ta 
de  23  de  Fevereiro  de  1816,  voltava  a  occupar-se  do  assumpto  nos 
mesmos  termos  displicentes  para  o  philosopho  publicista :  "Silvestre 
IMnheiro,  no  tempo  em  que  esteve  suspenso  de  seus  Lugares,  occupou- 
se  em  ensinar  Filosofia  por  hum  methodo  mui  amplo  e  genérico, 
que  abrangia  todos  os  seus  ram.os  :  julgo  que  suas  intensões  Lhe  sahi- 
rão  mais  difficeis  na  pratica,  do  que  havia  concebido,  porque 
são      Proposições      á      Franceza.     Tem      publicado      alguns      folhetos 

de   suas   Prelecções e   na   introducção   se   conhece   a   verdade   do 

que  digo  acima.  Não  sei  se  será  erro  meu  em  dizer  que  Silvestre  Pi- 
nlieiro lie  daíqufilles  homiens,  que  tem  a  habilidade  de  infundir  vene- 
ração scientifica  ;  e  inculcando-se  corifèo  encyclopedico,  grangêa  hum 
l)artido,  que  ouvem  suas  palavras  soltas,  como  vozes  de  oráculo. 
Poucas  vezes  o  tenho  ouvido  fallar,  porque  até  nisso  se  quer  miste- 
rizar  ;  porém  na  roda,  que  o  segue,  quando  vem  á  Livraria,  considero 
quão  fracos  somos,  quando  nos  arrasta  a  opinião!  O  Padre  Joaquim 
Damazo  (por  elle  ser  seu  co-llega  Congregado)  mo  inculca  sempre 
por  superior  a  todos,  nos  tempos  actuaes,  em  luzes  e  conhecimentos  ; 
e  eu,  ao  contrario  vejo  nas  suas  Prelecções  impressas  Definições  e 
Theoremas,  que  por  sua  ostentação  de  novidade  só  me  cauzão  riso, 
ou  nojo  ;  apezar  da  illustrada  Analise,  que  lhes  fazem  os  Redactores 
do  Investigador  Portuguez,  elevando-as  ás  nuvens " 

(2)  iNas  capitanias  foi  graduai  mas  moroso  o  apparecimento 
da  imprensa.  Em  Pernambuco,  o  primeiro  uso  d'ella  (excepção  feita 
de  um  modestissimo  ensaio,  em  170G,  logo  abafado  pela  metrópole) 
foi  feito  pelos  revolucionários  de  1817  com  os  typos  e  prelo  que,  com 
intuitos  commerciaes,  tinliam  sido  mandados  tir  da  Inglaterra  em 
181G  pelo  negociante  do  Recife  Ricardo  Fernandes  Catanho,  o  qual 
se  aprestava  a  usar  dos  mesmos  apoz  auctorização,  dada  aos  9  de 
Novembro  de  1816,  pelo  marquez  de  Aguiar  com  as  competentes  re- 
saivas  de  licença,  revisão  e  censura.  \  demora  em  funccionar  a 
iaiprensa  fura  causa^aa  por  não  haver  ainda  offielaes  de  typoigrapliia. 


904  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Lítterariamente,  porém,  nada  melhor  reflecte  essa  epo- 
cha  de  remodelação  politica  e  mais  ainda  social,  e  de  inno- 
vação  intellectual  que,  consciente  ou  instinctiva,  representa 
para  o  Brazil  e  sobretudo  para  a  sua  capital  a  transferencia 
da  sede  da  monarchia,  do  que  O  Patriota,  revista  precur- 
sora do  Panorama  de  Lisboa,  cuja  publicação  se  encetou 
em  1813  e  onde  se  encontram  conhecimentos  úteis,  varieda- 
des históricas,  notas  de  explorações  e  trabalhos  profissionacs 
de  botânica,  medicina  e  outras  sciencias.  O  Patriota  foi  a 
revista  adequada  á  sociedade  e  ao  momento  histórico  de  Don\ 
João  VI  no  seu  reinado  americano.  Correspondeu  precisa- 
mente á  curiosidade  de  saber  que  por  esse  tempo  se  desdobrou 
mercê  do  levantamento  do  nivel  nacional,  e  á  expansão  que 
no  Brazil  tomaram  os  estudos  agricolas,  industriaes,  hygie- 
nicos,  chimicos,  geographicos  e  outros  d'antes  descurados, 
como  si,  na  phrase  do  editor,  "a  posição  physica  retardasse  a 
luz  a  chegar  ao  nosso  horizonte"  (i). 


Em  Março  de  1817  improvisaram-se  compositores  dous  fi-a<ies,  um  in- 
glez  e  um  marujo  francez  sob  a  direcção  do  padre  João  Ribeiro,  sendo 
o  primeiro  trabalho  sabido  á  luz  o  Preciso  dos  suvcessos  elaborado 
pelo  Dr.  José  Luiz  de  Mendonça. 

'Quando  triumpliante  a  restauração,  cassQU-se  a  primitiva  licença 
pelo  infame  ahuso  commettido  com  a  officina,  cujo  material  se  man- 
dava fechar  e  remetter  para  o  Rio.  Recolhido  todo  este  mateiúal  ao 
Trem  Real  (Arsenal  de  Guerra),  apenas  parte  foi  enviado  para  a  ca- 
pital, dous  annos  depois  da  rebelliãoi,  em  virtude  de  reclamação  do  ou- 
vidor geral  da  comarca.  Com  o  que  ficou,  e  um  prelo  de  madeira  fabri- 
cado no  próprio  Trem,  montou  Luiz  do  Rego  mais  tarde,  em  ]Março  de 
1821,  uma  typographia  para  vulgarização,  exigida  pelas  novas  cir- 
cumstancias  politicas,  de  frequentes  documentos  officiaes,  e  publica- 
ção da  Aurora  Fernamhucana,  folha  redigida  por  seu  genro,  o  depois 
famoso  estadista  portuguez  Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães  (Pereira 
da  Costa,  Estabelecimento  e  Desoicolvimento  da  Imprensa  em  Pernam- 
hiico,  na  Rev.  do  Inst.  Arch.  e  Geog.  Pern.  n.  39). 

(1)    Introducção  ao   le  numero,   Janeiro  de  1813. 

Entre  as  contribuições  ã  revista  fluminense,  originaes  ou  tradu- 
zidas de  publicações  inglezas  e  francezas  e  todas  ellas  mais  de  cara- 
cter pratico  do  que  de  índole  puramente  litterai'ia,  encontram-se  me- 
morias sobre  o  plantio  do  café,  o  tratamento  do  anil  e  da  cochonilha, 
a  cultura  do  algodoeii'o    (da  lavra  de  Arruda   Camará),   o  fabrico  do 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  905 

A  secção  restrictamente  lítteraria  abrangia  máximas 
do  futuro  marquez  de  Maricá,  poesias  novas  ou  conserva- 
das inéditas  de  Bocage,  Filinto  Elysio,  Diniz,  António  Ri- 
beiro dos  Santos,  Silva  Alvarenga,  Borges  de  Barros  (Pedra 
Branca).  Si  bem  que  nos  pareça  assaz  repleta  do  mau  gosto 
da  epocha,  com  todas  suas  amplificações  rhetoricas  e  exagge- 
ros  cortezãos,  essa  secção  era  comtudo  em  demasia  reduzida 
para  o  que  costuma  ser  a  exigência  do  publico  n'uma  terra  de 
ingenita  verbosidade  e  de  intoxicação  sentimental. 

Seria  por  isso  que  durou  pouco  a  publicação,  anno  e 
meio  apenas  ?  O  tom  geral  da  revista  não  podia  entretanto 
deixar  de  ser  sympathico,  pois  traduzia,  antes  a  preoccupa- 
ção,  que  com  effeito  apparecia  geral  e  aguda,  de  dilatar  a 
producção  e  commercio  domestico  do  Brazil,  extendendo  o 
seu  povoamento  pelo  interior,  cuja  descripção  se  intentava  e 
executava  de  accordo  com  explorações  então  recentes.  As 
capitanias   de   Goyaz,   Matto   Grosso,   Piauhy  e   Pará    ( í ) 


urucíi,  o  modo  de  refinar  o  assucar,  as  plantas  medicinaes  e  as  madei- 
ras a  empregar  nas  artes,  as  novas  furnallias  para  coser  o  assucar 
com  l)aga(;o  inventadas  pelo  Dr.  Manoel  Jacintlio  de  Almeida,  o  me- 
thodo  imaginado  e  praticado  no  laboratório  de  António  de  Araújo 
(Barca)  para  a  extracção  do  óleo  de  mamona;  a  descripção  de  um 
alambique  existente  no  mesmo  laboratório  ;  soluções  de  problemas  de 
matbematica ;  ensaios  hydraulicos  e  hydrographicos ;  interessantes 
pareceres  em  resposta  a  quesitos  do  Senado  da  Camará,  propostos 
aesde  1798,  sobre  doenças  endémicas  e  epidemicas  da  capital,  razões 
que  as  determinavam  e  meios  de  corrigil-as ;  papeis  que  "apodreciam 
no  esquecimento"  como  a  pratica  ou  discurso  de  recepção  de  Alexan- 
dre de  Gusmão  ao  entrar  a  i;>  de  Março  de  1782  para  a  Academia  de 
Historia  de  Lisboa,  praticas  de  Duarte  Ribeiro  de  Macedo,  e  a  memo- 
ria histórica  e  geographica  da  descoberta  das  minas  de  Cláudio  Ma- 
noel da  Costa  ;  narrações  de  viagens  como  a  de  São  Paulo  a  Cuyabá  ; 
derrotas  marítimas  e  roteiros  terrestres ;  dados  topograpliicos  e  es- 
tatísticos sobre  as  diversas  capitanias ;  informações  sobre  povoações 
e  nações  de  Índios ;  considerações  grammaticaes,  chimicas  e  philoso- 
phicas  de  Silvestre  Pinheiro  Ferreira,  e  uma  longa  dissertação  minera- 
lógica  de  José  Bonifácio   de  /Vndrada  e   Silva. 

(1)  Por  Pará  entende-se  n'este  sentido  o  enorme  hinterland 
amazonico  que  da  mesma  capitania  fazia  parte,  só  multo  mais  tarde 
so  organizando  como  província  separada. 


906  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

attrahiam  n'aquelle  tempo  mais  a  attenção  do  que  as  do  lit- 
toral,  e  não  tanto  pelo  ouro  que  as  duas  primeiras  produ- 
ziam em  pequena  escala,  como  pelo  gado  que  n'ellas  todas 
se  poderia  criar,  pelas  lavouras  que  se  poderiam  propagar  nas 
suas  extensões,  pelas  culturas  que  se  poderiam  ensaiar  nos 
seus  climas. 

Dir-se-hia  que  recuamos  d'esta  posição,  porque  é  sempre 
recuar  menosprezar  o  desenvolvimento  dos  possiveis  recur- 
sos nacionaes.  A  navegação  a  vapor  e  o  telegrapho  eléctrico 
approximaram-nos  demais  da  Europa  e  distanciaram-nos 
do  nosso  próprio  sertão.  Nos  começos  do  século  XIX  ainda 
se  procurava,  porém,  com  afan  utilizar  as  vias  fluviaes  e 
desbravar  vias  terrestres  em  toda  a  superficie  do  paiz  (i), 
com  o  fito  de  formar  do  Brazil  um  todo  uno,  compacto, 
forte,  poderoso  e  aggressivo. 

O  simples  titulo  da  revista  —  O  Patriota  —  é  também 
uma  indicação  inequivoca  do  quanto  politicamente  tinham 
mudado  os  tempos:  já  não  arripiava  as  carnes  esse  termo 
de  cunho  revolucionário,  d'antes  proscripto  sem  remissão.  E 
tão  pouco  escapava  a  observação  aos  contemporâneos  que  por 
este  motivo  escrevia  Hippolyto  (2)  com  muita  razão:  "Por 
mais  insignificante  que  pareça  a  circumstancia  de  se  deixar 
correr  um  jornal  com  o  nome  de  Patriota,  ou  permittir-se 
uma  traducção  da  Henriada,  nós  julgamos  isto  matéria  de 
importância;  porque  he  seguro  indicio,  de  que  o  terror  inspi- 
rado pela  Revolução  franceza,  que  fazia  desattender  a  toda 
a  proposição  de  reformas,  principia  a  abater-se,  e  já  se  não 


(1)  Yeja-se  como  exemplo  no  volume  III  d'0  Patriota,  o  Dis- 
curso sobre  a  necessidade  de  uma  povoação  na  cachoeira  do  Salto  do 
Rio  Madeira  para  facilitar  o  commercio  que  pela  carreira  do  Pará  se 
deve  fomentar  para  Matto  Grosso. 

(2)  Correio  Bra^iUense,  n.  67,  de  Dezembro  de  I8I0. 


i 


t)OM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  907 

olha  para  as  idéas  de  melhoramento  das  instituíçoens  publicas, 
como  tendentes  á  anarchia,  em  vez  de  servirem  á  firmeza  do 
Governo." 

A  divulgação  das  noções  scientificas  e  de  economia  so- 
cial não  ficou  de  resto  sem  resultados  palpáveis.  Assim,  in- 
troduzio-se  e  applicou-se  no  Brazil  a  vaccina,  contra  a  qual 
existiam  as  mais  fortes  prevenções,  sobretudo  na  Inglaterra, 
onde  até  protestavam  violentamente  contra  a  inoculação 
os  reaes  collegios  de  cirurgiões  de  Londres  e  Dublim,  e  se 
manifestava  a  própria  repugnância  pessoal  de  Dom  João  VI, 
que  pelo  menos  em  1807,  antes  de  se  mudar  para  o  Brazil, 
chegou  a  mandar  imprimir  á  sua  custa  um  folheto  des- 
acreditando semelhante  pratica  preventiva. 

Outro  tanto  aconteceu  no  dominio  da  caridade  publica. 
A  Santa  Casa  da  Misericórdia  installou  uma  enfermaria  es- 
pecial para  loucos,  outra  para  inuiheies.  Separou-se  a  secção 
dos  orphãos,  fundou-se  um  recolhimento  para  os  do  sexo 
feminino  e  abriu-se  um  lazareto,  onde  em  181 8  existiam 
84  leprosos  pobres.  A  Casa  dos  Expostos,  em  que  as  amas 
eram  negras  alugadas,  cujos  senhores  percebiam  os  salários, 
offerecia  mais  do  que  limpeza,  certo  capricho  no  conforto. 
Aliás  a  Santa  Casa  e  suas  dependências  produziam  sempre 
o  melhor  effeito  sobre  os  visitantes  estrangeiros  pela  sua 
cuidada  conservação.  Debret,  entre  outros,  elogia  sem  re- 
servas os  hospitaes  brazileiros  do  tempo. 

Em  dominio  algum  todavra  como  no  militar  se  apre- 
sentava mais  vivo  o  contraste  entre  o  que  era  o  Brazil  em 
1808  e  o  que  passava  a  ser  em  181 8.  O  apoucado  dos  recur- 
sos de  defeza  e  a  inferioridade  dos  instrumentos  de  ataque, 
vimos  que  foram  os  motivos  principaes  da  politica  vacillante 

D.  J.  —  57 


90«  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

do  Príncipe  Regente  com  relação  á  encorporação  da  Banda 
Oriental,  até  que  poude  dispor  em  1816  dos  seus  veteranos 
das  campanhas  continentaes  contra  Napoleão.  Só  então  ihe 
foi  dado  reforçar  a  expressão  do  seu  feliz  ensaio  de  impe- 
rialismo, que  deu  ao  novo  Reino  sua  fronteira  necessária, 
para  isto  affrontando  o  ciúme  dos  regulares  brazileiros,  cujos 
regimentos  no  emtanto  só  conseguiam  encher  seus  claros  me- 
diante levas  forçadas. 

O  espectáculo  militar  differia  não  obstante  muito  do 
colonial,  e  Linhares,  si  estivesse  vivo,  de  certo  exultaria  de 
ver  que  não  ficara  perdido  ou  inútil  seu  primeiro  impulso  com 
vista  na  fundação  do  poderio  militar  que  devia  servir  de 
base  á  grandeza  do  Brazil,  fornecido  com  a  creação  da  Aca- 
demia Militar  e  outras  providencias  tomadas  no  seu  minis- 
tério, e  que  se  foram  ligando  e  fortalecendo  e  fructificando, 
não  descurando  sequer  o  solicito  estadista  a  condição  das 
familias  dos  soldados. 

Também  a  melhoria  fora  prompta  e  sensivel,  tanto 
pelo  lado  da  administração,  que  se  tornou  mais  zelosa  e  effi- 
ciente,  posto  na  guerra  de  Montevideo  occorresse  ainda  o 
facto,  narrado  por  Luccock,  de  remetterem-se  balas  e  car- 
tuchos desproporcionados  aos  fuzis;  como  pelo  lado  profissio- 
nal, para  o  que  vieram  contribuir  muito,  immediatamente 
antes  da  campanha  contra  Artigas,  o  desvelo  e  competência 
de  Beresford,  o  qual  tendo  ido  em  pessoa  ao  Rio  de  Janeiro 
solicitar  do  Rei  recompensas  para  as  forças  portuguezas 
victoriosas  na  guerra  peninsular,  disciplinou  e  remodelou 
quanto  poude  no  curto  prazo  da  sua  estada  o  pequeno  exer- 
cito brazileiro,  tentando  incutir-lhe  o  essencial  espirito  m.i- 
litar  que  lhe  faltava. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  909 

Ao  visitar  o  Rio  em  1813,  no  anno  seguinte  ao  da  morte 
de  Linhares,  a  fragata  Nisus^  achara  Prior  ( i ) ,  que  não 
fazia  cerimonia  em  pôr  defeitos  no  que  via,  a  guarnição,  além 
de  considerável  na  apparencia,  bem  uniformizada  e  discipli- 
nada. O  principe  Maximiliano  de  Wied-Neuwied,  que  era 
da  profissão  e  combatera  contra  os  exércitos  napoleónicos, 
comparava,  porém,  ainda  desfavoravelmente  poucos  annos 
depois  o  aspecto,  que  achou  soberbo,  dos  regimentos  vindos 
de  Lisboa  —  os  aguerridos  voluntários  reaes  —  com  o  dos 
regimentos  brazileiros,  no  seu  dizer  "effeminado  e  impo- 
tente". Em  1819  von  Leithold  (2),  official  prussiano, 
cunhado  de  Silvestre  Pinheiro  Ferreira,  apenas  se  mostrou 
impressionado,  em  matéria  militar,  pelo  brilho  exaggerado 
de  alguns  dos  fardamentos,  repetindo  o  que  ouvira  no  tocante 
á  valia  do  estado  maior,  que  se  dividia  em  duas  partes,  uma 
que  dormia  e  outra  que  velava. 

Para  quem  tivesse  acompanhado  as  cousas  desde  o  co- 
meço, a  transformação  appareceria  apreciável  em  todos  os 
departamentos  militares,  e  si  é  facto  que  a  vida  dos  quartéis 
e  acampamentos  continuava  a  mostrar  não  possuir  seducção 
para  a  gente  da  terra,  a  não  lhe  fallar  absolutamente  á 
alma,  também  é  verdade  que  a  vida  de  soldado  não  encer- 
rava entre  nós  compensações,  nem  offerecia  garantias  de 
espécie  alguma. 

Os  voluntários  faziam  seus  contractos  por  seis  e  oito 
annos:  os  recrutados,  que  serviam  indefinidamente,  quando 
obtinham  baixa  por  enfermidade  ou  velhice,  viam-se  reduzi- 
dos a  mendigar  pelas  ruas.   E'  quasi  inútil  ajuntar  que  a 


{l)Vojfagc   aloiifj   the   costcni  coaftt   of  Arica, to   Rio    de 

Janeiro,  Bahia  and  Pcrnamhuco.   London,   1819. 

(2)   Mcinc  Aiisflncht  nach  Brasilien.  Berlin,   1820. 


910  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

lei  de  recrutameato  se  não  applicava  com  severidade,  nem 
mesmo  com  exactidão.  Os  commandantes  de  districtos,  in- 
cumbidos d'esse  serviço  publico,  por  interesse  ou  condescen- 
dência isentavam  individuos  sãos  e  capazes  para  alistarem 
individuos  débeis  e  mal  conformados,  somente  porque  não 
tinham  dinheiro  nem  contavam  com  protecções.  E,  com- 
quanto  semelhantes  abusos  fossem  bem  patentes,  continuava 
a  situação  no  mesmo  pé  porque,  na  phrase  mordaz  do  via- 
jante L.  de  Freycinet  (i),  o  defeito  da  administração  por- 
tugueza,  transmittido  á  brazileira,  consistia  em  seguir  á 
risca  a  máxima  de  "evitar  todo  escândalo  e  não  compromet- 
ter  pessoa  alguma  (eviter  tout  ce  qui  peut  faire  de  Véclat  et 
ne    compromettre   personne).  '' 

O  essencial  parecia  residir  em  não  fazer  novidade.  Por 
isso  os  quadros  nunca  se  encontravam  completos,  e  aliás  era 
de  toda  conveniência  para  a  boa  economia  dos  regimentos 
conservarem-se  os  effectivos  —  que  deviam  compor-se  em 
cada  caso  de  1.557  homens  —  muito  abaixo  do  limite  nor- 
mal, não  excedendo  frequentemente  de  400  soldados,  visto  o 
Estado  pagar  os  20  réis  diários  para  fardamento,  além  dos 
70  réis  do  soldo,  sobre  a  base  de  600  homens  em  regimento. 

D.  João  VI  melhorou  muitas  d'essas  faltas  capitães  da 
organização  militar,  assegurando  aos  soldados,  com  a  baixa, 
reformas  e  pensões  e  creando  estabelecimentos  de  inválidos. 
No  que  diz  respeito  ao  velho  Reino,  o  commando  estran- 
geiro —  tradicional  recurso  de  que  se  valera  Pombal  com  o 
conde  de   Lippe,   em   que   pensara  o   Principe  Regente  com 


(1)  Ob.  cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  911 

Waldeck  e  que  apj)licou  com  Beresford  —  foi  indubitavel- 
mente um  bem,  porquanto  sob  elle,  que  era  a  theoria,  e  ajun- 
tando-se  a  pratica  da  guerra,  o  soldado  portuguez,  sem  nada 
perder  do  seu  denodo,  aperfeiçoou  o  seu  garbo  militar  e 
aprendeu  a  manobrar  com  mais  precisão,  assim  lucrando 
também  debaixo  do  ponto  de  vista  technico. 

Pondera  todavia  Freycinet,  dos  mais  conscienciosos  e 
bem  informados  visitantes  do  Brazil  de  Dom  João  VI,  que 
o  soldado  portuguez  cujos  predicados  principaes  eram,  além 
da  bravura,  a  subordinação  e  a  sobriedade,  perdera  justa- 
mente em  relação  a  estes  aspectos,  tornando-se  menos  tem- 
perante,  exigente  e  muitas  vezes  indisciplinado  (  7nutin  ), 
por  haverem-no  os  chpfes  estrangeiros,  o  interesse  dos  quaes 
estava  em  captar  a  confiança  e  a  estima  da  força  da  nação, 
afeito  a  continuas  reclamações  e  d'este  modo  levado  a  despir 
se  da  antiga  e  illimitada  docilidade  (i). 

O  importante  porém  era  que  o  Reino  Unido  de  Por- 
tugal e  Brazil  contava  agora  com  um  exercito  moldado  por 
uma  composição  militar.  Vimos  como  foi  especialmente  sa- 
tisfactoria  a  exhibição  bellica  por  occasião  da  revolução  per- 
nambucana; como  foram  os  seus  arranjos  executados  de  um 
modo  firme  e  decidido,  desenvolvendo  o  próprio  Rei,  contra 
seus    hábitos    commodistas,    notável    actividade    physica    nas 


(1)  Acaba  de  ser  recordado  que  Beresford  foi  de  propósito  ao 
Brazil  á  cata  de  prémios  para  os  seus  subordinados.  Palmolla  com 
muita  razão  igualmente  se  occupou,  em  Londres,  da  compensação  pe- 
cuniária que  ás  forças  portuguezas  competia  pelos  despojos  da  cam- 
panha peninsular,  tendo-a  o  Parlamento  Britannico  exclusivamente 
votado  pai-a  as  forças  inglezas.  Cora  sua  habitual  felicidade  arrancou  o 
diplomata  essa  justa  indemnização,  já  quasi  ao  deixar  a  missão  com 
destino  ao  Rio. 


912  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

visitas  seguidas  aos  quartéis  e  aos  armfzens.  Não  deixa  de 
ser  curioso  e  suggestivo  que  do  mesmo  Rio  de  Janeiro  onde, 
por  occasião  da  chegada  da  corte,  parecia  até  difficil  man- 
ter-se  uma  guarnição  insignificante  por  falta  da  matéria 
prima  elementar  sahissem,  em  1816  uma  considerável  ex- 
pedição militar  e  naval  contra  os  rebeldes  estrangeiros  do 
Uruguay  e  em  181 7  outra  quasi  tão  considerável  contra  os 
rebeldes  nacionaes  de  Pernambuco;  logrando  a  primeira 
cumprir  seu  programma,  que  era  de  annexar  ao  Brazil  a 
cobiçada  Banda  Oriental  ( i ) ,  e  só  não  cabendo  á  segunda 
a  honra  de  repor  a  auctoridade  real  nas  capitanias  revolta- 
das, por  já  estar  completa  a  tarefa  com  os  elementos  lo- 
caes. 

Ambas  as  expedições  forneceram  comtudo  testemunho 
positivo  do  vigor  militar,  natural  ou  artificialmente,  adqui- 
rido pelo  Reino  americano,  e  que  com  o  Império  se  extenuou 
sem  maiores  esforços.  Nem  por  isso  ficara  o  Rio  de  Ja- 
neiro desprotegido:  a  sua  guarnição,  segundo  Luccock,  pas- 
sou a  ser  supprida,  afora  alguns  corpos  regulares  que  ainda 
permaneceram,  por  milicias  do  interior,  rendidas  todos  os 
'mezes,  e  cuja  apparencia  e  disciplina  igualmente  se  tinham 
reformado,  regressando  outrosim  os  milicianos,  da  capital 
para  seus  sertões  ou  campos,  com  hábitos  menos  atrazados 
e  idéas  progressivas. 

Esta  reflexão  do  citado  auctor  inglez  é  feliz:  precisa- 
mente uma  das  vantagens  da  residência  da  corte  no  Rio  de 
Janeiro  foi  essa,  de  permittir  uma  influencia  mais  directa, 
mais  suggestiva  e  mais  efficaz  sobre  os  costumes  e  o  pensar 
da  totalidade  do  Brazil.  A  transferencia  da  sede  da  monar- 
chia  podia  ter  produzido  o  effeito,  de  certo  modo  contrario  ao 


(1)    Lecor   entrou   om   Montevideo   a   20   de   Janeiro   de   181' 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  913 

progresso  nacional,  de  desviar  a  attenção  da  peripheria  para 
o  centro,  acabando  com  as  ligações  independentes  das  capi- 
tanias com  a  metrópole  portugueza  e  retardando  portanto 
o  seu  desenvolvimento  parallelo  e  autónomo,  além  de  one- 
ral-as  com  encargos  supplementares,  quando  as  vantagens  da 
permanência  da  corte  eram  auferidas  pela  nova  metrópole, 
a  brazileira. 

Por  outro  lado  porém,  a  trasladação  veio  emprestar  ao 
paiz  aquillo  que  lhe  faltava  para  entrar  n'essa  cathegoria, 
uma  capital  convergente  e  propulsora  que  enfeixasse  as  as- 
pirações e  as  tornasse  harmónicas.  Os  deputados  das  cama- 
rás municipaes  das  provincias  que  concorreram  ao  Rio  de 
Janeiro  para  agradecer  a  Dom  João  a  elevação  do  Brazil 
a  Reino,  eram  os  portadores  na  grande  maioria  inconscientes 
d'estes  votos  de  unidade  politica  sob  que  se  aninhavam  e  me- 
dravam ambições  de  perfeita  soberania,  quando  o  monarcha 
julgava  ter-lhes  ido  ao  encontro,  fazendo  do  Brazil  a  parte 
preponderante  do  Império  luzitano. 

Ponto  central  do  Circulo  que  abrange 

As  Plagas  quatro  em  que  Teu  Sólio  firmas, 

Divergerás  fulgor  almo  e  Divino, 

E  a  Ti  convergerá  do  espaço  immenso 

Espontânea  homenage  igual  aos  Evos  ( i ) . 

E'  fácil  prever  o  resultado  que  teria  tido  a  crise  de  fe- 
deralismo, si  não  fosse  a  robustez  do  sentimento  unitário  e 
patriótico  crystallizado  com  a  mudança  do  throno  portu- 
guez  para  a  America.  Um  dos  poetastros  que  perpetuavam  a 
tradição   dos  vates  palacianos   no  meio   fluminense,  sempre 


(1)   Estanislau  Vieira  Cardozo,  Canto  épico  clt. 


914  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZII. 

indifferente  quando  não  hostil  aos  seus  encómios  cortezãos, 
feria  entretanto  a  justa  tecla,  quando  exclamava  no  ápice  do 
seu  curto  estro: 

Três  Séculos  havia 

Fora  a  planta  lançada 
Do  Brasilico  novo  vasto  Império; 
Mas,  arvore  deixada  á  Natureza, 

Crescia  vagarosa: 

Benigna  sobra  lh'era 
Mais  que  tudo  precisa:  eis  chegas,   toma 
Novo  viço  e  vigor,  e  já  robusta 
Não  receia  tufões  de  bravos  Euros: 

Tens  de  grandes  destinos 

Nobre   porção   cumprido  ! 
Que  Monarca  Europeo  transpoz  o  Oceano, 
E  á  Quarta  Parte  nova  ha  dado  a  gloria 

De  possuir  hum  Throno  ? 

Tu  Primeiro  te  acclamas 
Entre  Povos  que  nem  pensallo  ousavão!.  .  . 
Mas  a  Lysia  rezervas  mor  ventura: 
Hum  dia.  .  .  Aqui  silencio  m'impõe  Febo  !   (i) 

Não  esqueçamos  porém  que  não  só  do  baptismo  militar 
do  Brazil-Reino  foi  padrinho  o  exercito  das  campanhas  pe- 
ninsulares, como  que  de  1816  a  1820  foi  continuo,  por 
instrucções  da  corte,  o  affluxo  de  tropas  portuguezas  ao 
Brazil,  inspirando  confiança  aos  Portuguezes  que  já  se  ar- 


(1)  Joaquim  José  Pedro  Lopes,  Ode  ã  acclamação  de  Sua  Mn- 
f/rstndc  Fidelissima  o  ScnTior  D.  João  VI  etc.  Rio  de  Janeiro,  anno 
1817. 


i 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  915 

receiavam  das  idéas  separatistas,  e  instillando  despeito  nos 
Brazileiros  que  enxergavam  nas  forças  transplantadas  um 
precioso  instrumento  de  jugo  e  oppressão   (i). 

Refere  Luccock  que  a  esquadra  cm  i8i8  se  achava 
muito  augmentada,  pois  desde  o  anno  de  1813  se  lhe  tinham 
aggregado,  em  que  pese  ás  informações  o'fficiaes  de  Maler, 
importantes  unidades,  construídas  as  mais  d'ellas  no  Rio  e 
na  Bahia,  onde  já  nos  tempos  coloniaes  se  fabricavam  navios. 
Luccock  porventura  força  n'este  ponto  a  nota  optimista,  mas 
é  facto  que  Turnbull,  o  qual  fez  de  1800  a  1804  uma  via- 
gem em  redor  do  mundo,  estando  no  Brazil,  falia  com 
muitos  elogios  do  arsenal  da  Bahia,  em  cujo  estaleiro  en- 
controu uma  nau  de  64  chamada  Príncipe  do  Brazil,  admi- 
ravelmente construida  com  madeira  do  paiz.  ''Concebo  que 
he  de  justiça  accrescentar,  escrevia  elle  (2),  que  este  navio 
me  pareceu  huma  completíssima,  e  bem  acabada  peça  de  mão 
d'obra;  e  junctamente  com  a  sua  elegância,  combinava  for- 
taleza €  substancia,  que  se  não  podem  exceder,  e  commum- 
mente  não  se  igualam  nos  estaleiros  da  Europa." 

Em  1818,  além  de  novos  navios  lançados  ao  mar,  ti- 
nham sido  reparados  os  velhos,  remodelado  o  almirantado, 
restauradas  as  fortalezas  de  Santa  Cruz  e  Villegaignon,  ar- 


(1)  A  21   de  Outubro  do  1817  escrevia  Marrocos  ao  Pai:  "Os 

Navios  da  Tropa   vão   entrando ;   vindo   a   ser   todos    (ou   os   que 

puderem)  aquartelados  no  famoso  edifício  do  Lazareto,  no  sitio  de 
S.  Cliristovão,  e  próximo  il  Real  Quinta  da  Boa  Vista.  Todos  aqui 
suspirão  pelos  nossos  valorosos  Soldados  Portuguezes ;  e  por  toda  a 
part<»  reina  humia  aiffeição  íuo  seu  lieroismo  e  hum  desejoi  de  .0§  re- 
ceber e  agasalhar."  A  1  de  Novembi"o  ajuntava  n'outra  carta  :  ".  ... ;  o 
S.  Magestade  tem  dado  a  toda  a  tropa  bom  convite  de  comer  e  dinheiro 
no  aia  do  seu  desembarque,  ú  proporção  que  tom  entrado  e  desembar- 
cado, de  sorte  que  he  para  elles  hum  dia  de  S.  Martinho.  O  serviço  do 
Palácio  de  S.  Christovão,  onde  S.  Magestade  reside  effectivam;^nte,  he 
feito  por  elles  exclusivamente  ;  e  em  geral  todo  o  Povo  está  cheio  de 
prazer  com  a  sua  chegada,  pelas  i<Jéas  vantajosas  que  tem  do  seu 
valor  e  disciplina." 

(2)  Traducção  publicada  no  Correio  Braziliense  n.  93,  de  Fe- 
vereiro de  1816,   vol.  XVI. 


916  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mazenada  a  artilheria  pesada  na  ilha  das  Cobras,  levantadas 
novas  baterias  de  defeza  em  posições  estratégicas,  edificados 
quartéis,  artilhadas  as  praias.  Assim  nos  informa  Luccock, 
e  a  sua  informação  discordante  da  de  Maler  e  mais  fide- 
digna por  ser  a  de  um  homem  do  mundo  commercial  indiffe- 
rente  a  questões  exclusivamente  politicas,  indica  que  o  agente 
diplomático  via  e  julgava  a  expansão  portugueza  na  Ame- 
rica, muito  melhor  apparelhada  como  estava  sendo,  pelo 
prisma  deturpador  do  seu  legitimismo  e  do  seu  europeanismo, 
igualmente  infensos  á  libertação  da  America  Hespanhola 
e  ao  engrandecimento  no  Novo  Mundo  de  uma  potencia  que 
já  não  era  colónia,  mas  sim  a  metade  melhor  da  monarchia 
portugueza. 

Accresce  que  a  França  da  Restauração,  esquecida  de 
que  sob  os  Bourbons  se  tinham  deixado  perder  o  Canadá, 
a  Acadia  e  a  Louisiana,  afora  no  Oriente  a  índia,  não  per- 
doava a  Buonaparte  a  venda  aos  Estados  Unidos  do  immenso 
território  d'além  Mississipi,  que  o  Imperador  não  podia  man- 
ter francez  sem  esquadras,  e  que  sobretudo  desejou  resguar- 
dar de  uma  conquista  ingleza,  a  qual  seria  inevitável,  alar- 
gando-se  então  extraordinariamente  a  esphera  do  dominio 
britannico  na  America  Septentrional,  em  detrimento  das  suas 
ex-colonias,  cuja  doutrina  fundamental  externa  ainda  lhes 
não  fora  dado  condensar,  nem  o  seria  até  Monroe,  vinte 
annos  depois  da  compra  da  Louisiana. 

Uma  das  illustrações  da  marinha  nacional,  o  Sr.  almi- 
rante Jaceguay,  observa  com  muita  intelligencia  no  seu  es- 
tudo sobre  a  formação  da  armada  brazileira  (i),  que  ''de 
todas  as  colónias  americanas  a  única  que,   por  occasião   de 


(1)   De  Aspirante  a  Almirante,  1860  a  1002,  Minha  fé  de  of fi- 
do  documentada.    Mendes,    1906. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  917 

emancipar-se,  possuía  elementos  para  luctar  contra  o  poder 
naval  da  metrópole  foi  o  Brazil,  circumstancia  esta  ainda  não 
notada  explicitamente  por  nenhum  historiador,  mas  que  tal- 
vez tenha  sido  a  que  influio  mais  poderosamente  para  abre- 
viar a  nossa  completa  independência  politica." 

Aquelles  elementos  foram  os  deixados  pelo  governo  de 
Dom  João  VI  n'esse  Rio  de  Janeiro  que  se  tornara  o  centro 
dos  recursos  navaes  da  nação,  mesmo  porque  era  a  verda- 
deira capital  do  Reino  Unido  e  porque  se  dissolvera  o  es- 
tabelecimento maritimo  de  Portugal.  Trouxera  comsigo  o 
Principe  Regente  todos  os  bons  elementos  da  armada,  navios 
e  pessoal,  —  lembra  ainda  o  Sr.  Jaceguay  —  só  deixando 
as  embarcações  imprestáveis.  Quando  porém  regressou,  le- 
vava o  Rei  apenas  uma  fracção  da  armada  luzo-brazileira:  o 
que  ficava  ( i )  constituio  o  núcleo  da  marinha  imperial, 
sendo  já  nacional  pelo  espirito  quando  não  pelo  nascimento. 
Essa  marinha  de  guerra,  herdada  do  Reino  do  Brazil,  foi 
na  crise  da  Independência  o  instrumento  mais  adequado  e 
mais  opportuno  da  unidade  politica  quando  ainda  o  com- 
posto offerecia  o  perigo  de  desaggregar-se. 

Na  administração  da  justiça  foram  menos  sensíveis  as 
reformas  porque  o  mal  jazia  na  natureza  mesma  das  cousas, 
e  só  o  tratamento  mais  enérgico,  mais  radical,  o  poderia 
debellar.  Com  sua  habitual  mordacidade  de  funccionario 
mal  pago  e  que,  consoante  suas  queixas,  ainda  recebia  com 
difficuldade  seus  parcos  vencimentos  (2),  escrevia  Maler 
por   esse  tempo    (3)    que   no   Brazil   por   toda  parte   havia 


(1)  Uma  nau,  tvoz  fragatas,  duas  corvotas  e  troz  borgantins, 
quasl  todos  os  navios  carecendo  todavia  de  grandes  reparações  1  Al- 
mirante Jaceguay,  06  cit.) 

(2)  Corresp.,  jxissini. 

(3)  Relatório  commercial  de  1818. 


918  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

juizes  sem  haver  tribunaes,  por  toda  a  parte  havia  admi- 
nistradores sem  haver  administração.  Nas  cidades  princi- 
paes  existiam  uns  fantasmas  de  corporações  municipaes  cha- 
madas Senados,  cujas  funcções  mais  importantes  consistiam 
porém  em  votar  fundos  para  cerimonias  publicas. 

Logo,  dando  a  mão  á  sua  critica,  ponderava  o  consul- 
encarregado  de  negócios  ser  assim  sem  apoio,  sem  ligações, 
que  o  governo  do  Rio  caminhava  ou  melhor  se  arrastava, 
esquecido  do  passado  e  destemoroso  do  presente:  **Já  olvidou 
as  causas  que  revolucionaram  a  Europa  e  o  forçaram  a  re- 
fugiar-se  sob  o  trópico,  e  sem  inquietação  vê  estas  mesmas 
causas  agitarem  tudo  quanto  o  cerca." 

Nos  tribunaes  superiores  do  Reino  do  Brazil  encon- 
trava-se  commummente  espirito  de  equidade,  no  sentido  que 
seus  membros  não  eram  no  geral  accessiveis  ao  suborno  e  se 
contentavam,  na  peor  hj^pothese,  com  serem  subservientes 
ao  governo  do  qual  dependiam  por  completo.  Nos  juizos  in- 
feriores, entretanto,  a  venalidade  não  era  cousa  rara,  decla- 
rando alguns  dos  magistrados  sem  rebuço  que  os  seus  lugares 
constavam  como  vencimentos  de  emolumentos  que  as  partes 
deviam  pagar,  visto  os  ordenados  serem  ridiculos  para  os  gas- 
tos que  a  corte  reclamava  dos  distribuidores  da  real  justiça. 

Comtudo  n'este  terreno  também  se  conheceram  vanta- 
gens. Muitos  juizes  de  fora  foram  creados  para  uma  mais 
prompta  e  acertada  distribuição  dos  julgamentos;  novas 
comarcas  fundadas  com  partes  das  antigas  divisões  judiciaes, 
por  serem  estas  em  demasia  extensas  e  impossibilitarem  as 
correições  dos  ouvidores;  os  processos  tornados  mais  sum- 
marios  e  menos  demoradas  as  demandas,  apenas  chegando 
á  capital  as  de  maior  monta  e  sendo  as  outras  resolvidas  pelos 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  91Ô 

ouvidores  das  comarcas  e  governadores  das  capitanias,  depo'3 
províncias  ( i ) . 

A  criminalidade  era  grande,  porque  somente  de 
vinganças  havia  abundância,  e  pareciam  ellas  até  naturaes 
n'uma  sociedade  como  essa,  mais  desorganizada  que  pritui- 
tiva,  porque  os  moldes  rigidos  da  legislação  não  asseguravam 
sós  a  solidez  do  composto.  Primitiva  também  até  certo  ponto 
se  a  poderia  chamar,  pois  que  era  o  sopro  poderoso  da  livre 
natureza  que  sacudia  a  dureza  da  administração,  mitigando- 
Ihe  a  acção,  e  era  a  sua  alma  em  boa  parte  feita  de  paixões 
mal  reprimidas,  para  corrigir  as  quaes  só  dispunha  o  Estado 
de  uma  justiça  morosa,  não  em  absoluto  respeitável,  e  dis- 
persa na  vastidão  territorial  da  ex-colonia. 

A  policia  agia  entretanto  com  rigor  na  forma  por  que 
a    concebera    e    organizara    a    monarchia  portugueza,  esfor- 


(1)  A  organização  judiciaria  da  velha  monarchia  comprehondia 
na  primeira  instancia  os  juizes  ordinários,  eleitos,  o  os  juizes  do  fora, 
de  nomeação  regia,  que  também  executavam  as  decisões  das  camarás 
municipaes,  absorvendo-lhos  cm  grande  parte  a  importância.  Os  ou- 
vidores de  comarca  nas  suas  correições  julgavam  os  pleitos,  e  os  tri- 
Ijurres  de  relação  constituíam  a  segunda  instancia,  da  qual  havia  re- 
curso e  final  appellação  para  a  Casa  da  Supplicação,  composta  de  um 
presidente  ou  regedor  das  justiças,  um  chanceller,  o.Uo  desembarga- 
dores aggravistas,  um  corregedor  do  crime  da  côi"te  ■?  casa,  am  juiz 
dos  feitos  da  corOa  e  fazenda,  um  corregedor  do  eivei  da  corte,  um  juiz 
da  chancellaria,  um  ouvidor  do  crime,  um  promotor  da  justiça  o  mais 
seis  dezembargadores  extravagantes. 

A  Casa  da  Supplicação  exercia  funcções  judiciarias  de  caracter 
mais  criminal  do  que  eivei,  conhecendo  dos  recursos  hiterpostos  nas 
sentenças  proferidas  pela  Relação  da  Bahia  e  outros  tribunaes.  A 
Meza  do  Dezembargo  do  Paço,  que  era  a  mais  alta  instituição  judi- 
ciaria, deliberava  sobre  assumptos  de  competência  mais  civil  do  que 
criminal.  Segundo  um  jurisconsulto  portuguez,  esto  tribunal  Gxpi?dia 
as  graças,  privilégios  e  franquias  de  outorga  real ;  homologava  os 
actos  de  legitimação  de  filhos  bastardos,  as  adopções  e  adrogagões  e  as 
doações ;  pronunciava  a  rehabilitação  dos  sentenciados  a  penas  infa- 
mantes, estatuía  sobre  maniitenções  de  posse  e  restituições  aos  des- 
pojados dos  seus  l>ens ;  emancipava  menores;  concedia  dispensas  de 
idade,  perdões  em  certas  causas  criminaes  e  liaheas-corpus  sob  fiança ; 
facultava  revisões  de  processos  e  auctorizava  trocas  de  bens  vincula- 


920  DOM  JOÃO  VI  NO  BRA2IL 

çando-se  por  manter  a  segurança  publica  e  também  a  mora- 
lidade, visto  que  se  empenhava  particularmente  em  repri- 
mir o  jogo.  O  próprio  governo  porém,  invocando  motivos 
financeiros,  estabeleceu  com  suas  loterias  mensaes  uma  de- 
testável forma  de  jogo  que  criou  as  mais  fortes  raizes. 

Os  crimes  eram  de  ordinário  mais  de  natureza  senti- 
mental do  que  de  interesse.  Nos  campos,  afora  gado,  não 
havia  mesmo  muito  que  roubar,  e  as  questões  de  terras  não 
eram  vulgares,  não  só  porque  sobrava  espaço,  como  porque 
se  respeitavam  as  propriedades  quando  óffereciam  6o  annos 
de  occupação  continua  e  indisputada  na  familia,  sendo  consi- 
derado tal  periodo  titulo  sufficiente  de  posse.  Nem  se  pode 


dos  e  dotaes.  No  caso  de  appellação  de  uma  sentença  capital,  bastava 
o  voto  de  um  dezembargador  para  a  commutação  da  pena  ter  lugar. 

Os  tribunaes  administrativos  abrangiam  o  Erário  Régio,  o  Con- 
selho de  Fazenda,  a  que  cabiam  a  gestão  dos  bens  da  Coroa  e  a  apu- 
ração das  dividas,  e  a  Junta  de  Commercio,  Agricultura,  Fabricas  e 
Navegação.  O  Erário  Régio  comprehendia  G  repartições :  a  19  de  co- 
brança dos  imiposrtos  da  provinda  do  Rio  de  Janeiro  ;  a  28  de  cobrança 
das  rendas  da  Acfrica  Orientai,  Aisia  e  capitanias  do  sul  e  do  centro 
do  Brazil ;  a  3s  de  cobrança  das  i-ejidas  da  Africa  Occidental,  capita- 
nias do  norte  do  Brazil  e  ilhas  adjacentes  ao  Reino  de  Portugal ;  a 
49,  chamada  directoria  geral  dos  diamantes,  que  cuidava  d'este  mo- 
nopólio real  ;  a  59,  que  superintendia  os  novos  impostos,  e  a  O»,  pela 
qual  corriam  os  imgamentos  das  tropas  da  guarnição  do  Rio  de  Ja- 
neiro. As  duas  secções  do  Conselho  de  Fazenda  ei*am  a  do  expediente 
do  tribunal  e  a  do  assentamento,  que  tinha  a  seu  cargo  a  contabilidade 
Gos  salários  e  pensões.  O  Conselho  examinava  os  títulos  dos  requeren- 
tes de  pagamentos  e  occupava-se  dos  estancos.  Sobre  os  bens  da  Coroa 
velava  especialmente  o  procurador  da  fazenda.  A  Junta  de  Commercio, 
Agricultura  etc.  fazia  verdadeiramente  as  vezes  de  tribunal  do  com- 
mercio e  industria,  esclarecendo  o  governo  snbre  quanto  podesse  servir 
pai^  melhorar  esses  dous  ramos  da  actividade  nacional,  e  percebendo 
certas  taxas  para  manter  seus  deputados,  installar  machinas,  concer- 
tar estradas  e  outras  despezas.  Incluía  um  juiz  conservador,  um  fiscal 
dos  contrabandos  e  um  juiz  das  fallencias. 

Os  tribunaies  wclesiasticcis  eram  a  Meza  da  Consciência  e  Or- 
dens e  a  Junta  da  Bulia  da  Cruzada,  que  percebia  as  dispensas. 

O  Conselho  Supremo  Militar  occupava-se  de  todo  o  relativo 
ao  exercito,  armada  e  prezas,  propondo  reformas,  expedindo  patentes 
e  contornando  as  decisões  dos  conselhos  de  guerra.  Quando  deliberava 
sobre  negócios  do  contencioso  ou  prezas,  aggregava  trez  magistrados 
civis  aos  oito  conselheiros  militares. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  921 

dizer  que  fosse  ligeira  a  garantia  n'um  paiz  de  exploração 
progressiva,  occupação  indisciplinada  e  falta  de  tradições 
locaes. 

Avesso  o  Rei  a  assignar  sentenças  capitães  ( i )  e  não 
existindo  ainda  a  prisão  cellular,  a  punição  exercia-se  pela 
prisão  commum,  a  degradação  e  o  degredo. 

Nas  cidades  o  crescimento  da  população  pela  affluencia 
do  interior  e  de  fora,  trazendo  na  enxurrada  os  melhores 
elementos  e  igualmente  os  peores,  determinara  um  augmento 
positivo  da  criminalidade.  A  proporção  devia  ter  ficado  sem 
alteração  nos  campos,  cuja  vida  seguira  praticamente  a 
mesma,  no  seu  acanhamento  de  produzir  pouco  e  consumir 
pouco.  Já  por  este  motivo,  já  pelo  facto  de  mais  emigrar 
então  a  gente  urbana  que  a  rural,  muito  apegada  á  terra, 
era  a  tendência  toda  para  a  agglomeração  nas  cidades  dos 
immigrantes,  na  grande  maioria  artesanos. 

Por  mais  que  isto  prejudicasse  a  agricultura  e  que  fosse 
mister  ir  saldando  as  importações  crescentes  do  luxo  dos 
centros  com  o  excesso  da  producção  do  solo,  o  governo  nada 
podia  contra  esse  defeito  de  distribuição  originado  na  pró- 
pria natureza  da  colonização  e  no  maior  attractivo  exercido 
pelas  cidades,  n'um  paiz  sobretudo  tão  despovoado,  inculto 
e  atrazado  como  o  Brazil. 

Nem  corria  risco  d'aquelles  artífices,  conforme  mos- 
trava Maler  receiar,  prejudicarem-se  uns  aos  outros  e  lo- 


(1)  As  í-xociKjõcs  foram  sobretudo  raríssimas  depois  da  exal- 
tação de  Dom  João  ao  llirono.  Antes  não  eram  tão  espaçadas,  pois 
que  na  carta  de  25  de  Outubro  de  1813  escrevia  Marrocos  ao  pai  que 
a  8  tinham  sido  enforcados  5  pretos  criminosos,  e  havia  "40  e  tantos 
quo  hão  de  seguir  o  mesmo  destino."  Depois  de  1810  menciona-se,  a 
22  de  .Julho  de  1810,  o  supplicio  de  um  criminoso  que  esfaqueara  G 
pessoas,    entre    ellas    uma    mullier   gravida. 


922  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

grarem  apenas  vegetar,  quando  se  lhes  depararia  tanta  oc- 
cupação  n'uma  terra  até  ahi  fechada  e  agora  em  franco  pro- 
gresso. Os  immigrantes  de  alguns  cabedaes,  collocavam-n'os 
logo  em  especulações  no  commercio,  e  aos  desprovidos  de 
recursos  pecuniários,  mas  não  de  um  mester,  bastariam  as 
obras  particulares,  sem  fallar  nas  publicas. 

Não  é  de  surprehender  que,  no  balanço  dado  a  um 
tão  geral  adiantamento,  a  cidade  mesma  do  Rio  de  Janeiro, 
a  capital  do  novo  Reino,  se  apresente  com  um  largo  credito 
ao  seu  activo.  A  transformação  de  então  foi,  para  o  tempo 
e  dado  o  desconto  devido  á  differença  das  idéas  e  dos  meios, 
tão  considerável  como  a  que  acabamos  de  presenciar.  Remo- 
çara e  arrebiçara-se  a  cidade  que  Prior  descrevia  em  1813 
formada  de  edificios  sujos,  fortes  desmantelados,  habitações 
arruinadas  e  paredes  nuas,  horrorizando-se  sobretudo  da 
parte  commercial,  retrato  da  devastação,  visto  os  Portugue- 
zes,  no  seu  dizer,  fazerem  da  mercancia  e  da  porcaria  com- 
panheiras inseparáveis. 

Marrocos  repetidas  vezes  falia  nas  suas  cartas  de  tra- 
balhos de  aformoseamento  intentados  pela  corte:  "...  sempre 
aqui  se  projecta  em  obras,  e  obras  grandes:  o  Palácio  de 
S.  Christovão  está  muito  adiantado:  o  de  Santa  Cruz  vai 
a  reformar-se  e  augmentar-se :  ha  Plano  prompto  para  hum 
Palácio  novo  no  sitio  chamado  a  Ponta  do  Cajií,  orçando-se 

a  obra  em  17  milhões.  A  capella  R.  vai  a  dourar-se  toda, 

A  Sra.  D.  Carlota  vai  para  o  Palácio,  em  que  habitou  o 
conde  das  Galvêas,  no  sitio  de  Mata  Porcos,  que  se  está 
preparando,  como  foi  o  de  Andarah}^ "    ( i ) 

(1)    Carta  de  29  do   Junho  de  1815. 


1 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  923 

Muitas  vezes,  como  é  veso  nosso,  as  obras  não  passa- 
vam do  projecto,  ou  os  projectos  não  passavam  da  metade 
(i),  mas  n'outros  casos  o  planejado  se  executava  e  a  corte 
ia  sempre  ganhando  em  exterioridade  e  decência.  Nem  po- 
diam desapparecer  como  por  encanto  os  defeitos  essenciaes 
da  edificação  fluminense:  a  agglomeração  das  habitações, 
egrejas  e  o  mais  nas  depressões  formadas  entre  os  morros 
donde,  por  occasião  das  grandes  chuvas,  descia  a  agua  aos 
borbotões,  carregando  as  impurezas  da  cidade  e  algumas 
vezes  também  as  casas  antigas  e  estragadas  (2),  e  a  falta 
de  gosto  architectonico,  reflexo  do  temperamento  pouco  ar- 
tístico e  da  nenhuma  educação  artística,  parecendo  até,  na 
phrase  cáustica  de  Prior,  que  fosse  impiedade  a  elegância 
e  o  aceio  peccado. 

Mais  depressa  se  corrigiriam  as  faltas  si  não  fosse  que, 
dos  fidalgos  da  corte,  pouquíssimos  se  interessavam  pelos 
melhoramentos  do  Rio  de  Janeiro,  pois  lhes  tardava  sobre- 
modo voltarem  para  Lisboa,  donde  se  diria  que  tinham  im- 
portado, para  piedosamente  zelal-o,  algum  do  lixo  metro- 
politano (3).  Ainda  assim,  no  periodo  embora  de  espectativa 


(1)  "Ilum  I'icadoiro  novo  e  huma  Cadêa  são  últimos  planos, 
que  se  vao  pôr  em  c::ecuç;ão :  o  l'-'  he  reputado  em  50  mil  cruzados, 
que  se  farão  logo  promptos ;  e  para  o  2!!  foi  destinação  o  producto 
de  hum  dia  de  beneficio  no  Thoatro  desta  corte,  para  servir  de  prin- 
cipio de  clespezas  : Entretanto  a  .obra  noiva  do  R.  Tlicscuro  ficou 

no  esqueleto,  liavendo-se  alli  consumido  para  cima  de  700  mil  cruza- 
zados  :  e  parou  porque  claramente  se  via  que  a  dcspeza  crescia,  e  a 
obra  não  subia."    (Carta  de  23  de  Fevereiro  de  181G). 

(2)  Em  razão  de  successivas  desgraças  acontecidas  com  casas 
velhas  que  desabavam  c  tendo  chegado  a  cahir  no  I*aço  parte  de  uma 
parede  e  abobada,  projectou-sio  uma  vistoria  geral  da  qual  se»  poideria 
haver  derivado  grande  beneficio  para  o  aspecto  geral  da  cidade,  si  a 
não  tivesse  annullado  o  suDomo  dos  inspectores  das  propriedades. 
(Carta  cit.  de  Marrocos). 

(3j   Prior,   oh.  cit. 

D.  J.  —  5S 


Ô24  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  regresso,  alguns,  mui  raros,  contribuíram  por  este  ou 
aquelle  motivo,  por  vontade  ou  por  necessidade,  para  o  embel- 
lezamento  da  sede  ultramarina  da  monarchia  (i). 

Não  se  podia,  é  bem  de  ver,  passar  a  vida  inteira  em  re- 
cordações saudosas  do  passado  ou  mesmo  risonhas  esperanças 
do  porvir.  O  presente  tinha  suas  exigências,  e  era  mister  ir 
tratando  de  fazel-o  agradável  ahi  mesmo,  n'esse  desterro 
colonial  que  podia  ainda  durar  annos.  A  mocidade  sobretudo, 
que  não  tinha  as  mesmas  razões  para  tristezas  e  decepções 
adrede  exaggeradas,  reclamava  seus  folgares  e  suas  distrac- 
ções. Por  isso  escrevia  Marrocos  (2)  que  ''a  toda  a  pressa 
se  está  apromptando  huma  casa  de  Opera  particular  no  sitio 
de  Botafogo,  para  divertimento  de  SS.  AA.  as  Meninas;  e 
das  Fidalgas  suas  criadas:  os  Representantes  são  os  mesmos 
Fidalgos  rapazes,  que  fazem  figuras  utriusque  sexus;  e  he 
muito  natural  que  as  Fidalgas  moças  os  vistão,  ornem  e  en- 
feitem, tudo  grátis.  Já  se  repartirão  as  partes;  e  me  parece 
cousa  muito  digna  que  elles  se  occupem  n'hum  exercicio,  que 
no  tempo  presente  lhes  he  bem  análogo,  visto  que  vão  já  a 
sahir  os  Francezes  da  Peninsula:  e  alguns  dahi  vierão  mui 
fatigados  com  o  peso  das  armas." 

Pondo  de  lado  as  maldades  do  correspondente,  vê-se 
que  a  vida  de  corte  assim  espontaneamente  renascera,  pois 
que  a  praia  de  Botafogo,  onde  d'antes  apenas  viviam  nas 
suas  cabanas  ciganos  e  pescadores,  já  era  lugar  de  tão  aris- 
tocráticos folguedos.  E  foros  taes  de  largueza  foi  ganhando  a 
convivência  que,  poucos  annos  depois,  mandava  o  mesmo  iro- 


(1)  "Está-se  edificando  hum  grande  Palácio  para  a  Duqueza 
de  Cadaval  aqui  no  sitio  das  Laranjeiras.  Ella  €  seus  filhos  lançaram 
as  primeiras  pedras  nos  alicerces.  O  Architecto  he  Francez,  e  affir- 
mão-me  que  todos  os  Mestres  também  o  são."  (Carta  de  21  de  Setem- 
bro de  181G.) 

(2)  Carta    de   28    de    Setembro    de    1813. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZÍL  925 

nico  chronista  ( i )  esta  relação  de  uma  festa  brilhante  offe- 
recida  á  Princeza  Dona  Carlota:  "S.  A.  R.  a  Sra.  Princeza 
D.  Carlota  com  suas  Filhas  e  as  competentes  criadas  forão 
passar  hum  dia  inteiro  ao  Palácio  novo  do  Visconde  de 
V"  N"  da  Rainha,  no  sitio  de  Botafogo,  por  convite  do  mesmo 
Visconde;  e  foi  a  maior  pompa  que  se  tem  observado,  pelo 

que  pertence  a  meza  e  recreio,  para  obsequiar  a  SS.  AA 

Excellente  orchestra  vocal  e  instrumental.  Dança,  refrescos, 
e  tudo  o  mais  que  deveria  solemnizar  aquelle  dia,  de  tudo  o 
Visconde  lançou  mão,  para  se  distinguir  mais  do  conde  da 
Louzã,  e  findou  o  divertimento  pelas  trez  horas  da  madru- 
gada do  dia  seguinte.  S.  A.  R.  se  dignou  conferir-lhe  a  Nova 
Ordem  Hespanhola  de  Santa  Izabel  Americana:  e  passados 
poucos  dias  renovou  a  sua  visita,  com  a  differença  de  não 
levar  criadas,  e  foi  igualmente  servida  com  a  mesma  magni- 
ficência." 

Si  o  Principe  Regente  fosse,  por  seu  lado,  mais  amigo  de 
ostentação,  a  corte  retomaria  certamente  todo  o  seu  relativo 
esplendor  lisboeta,  esse  aspecto  de  grandeza  e  decadência  que 
lhe  era  peculiar  e  a  que  um  observador  inglez  do  tempo  appli- 
cava  com  felicidade  a  denominação  composta  e  contradictoria 
de  sJiabby-gentcel  (mesquinho-garboso).  Dom  João  era, 
porém,  pessoalmente  pouco  inclinado  a  pompas,  que  só  tole- 
rava —  e  então  até  as  estimulava  e  apreciava  —  em  occa- 
siões  excepcionaes  como  as  da  sua  acclamação  e  do  casamento 
do  herdeiro  e  filho  predilecto.  No  diário  dispensava  as  magni- 
ficências posto  que  não  as  etiquetas,  e  bastantes  vezes  bus- 
cava até  na  simplicidade,  que  o  tornava  tão  accessivel,  refu- 
gio e  distracção  das  fadigas,  convenções  e  tédios  da  sua  exis- 
tência official. 

(1)  Carta  de  23  de  Fevereiro  de  1816. 


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'.r-.-c.      VI 


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CAPITULO  XXIV 


EL-REI 


Paia  bem  se  aquilatar  da  parte  preponderante  que  de 
facto  pertencia  a  Dom  João  VI  no  governo,  do  quanto  pe- 
sava sobre  a  administração  sua  influencia  pessoal,  é  mister 
salientar  a  circumstancia  de  que,  exactamente  ao  transpor 
a  culminância  do  seu  reinado  americano,  o  monarcha  dirigia 
só  os  negócios  públicos.  Só,  quer  dizer  com  seu  valido  Tho- 
maz  António  Villa  Nova  Portugal,  valido  pouco  ambicioso 
e  nada  ganancioso,  que  se  contentava  com  possuir  a  con- 
fiança do  seu  Principe  sem  pretender  exercer  acção  directa  e 
pessoal  no  Estado.  Confidente  e  intimo  o  foi  porém,  quasi  sem 
interrupção,  desde  o  tempo  em  que  o  conhecera  o  Regente  de 
corregedor  em  Villa  Viçosa  e  o  passara  logo  para  a  Casa  da 
Supplicação  de  Lisboa  e  depois  para  o  Desembargo  do  Paço, 
afim  de  ter  sempre  ao  alcance,  quando  lhe  convinha,  um  pa- 
recer judicioso  e  desinteressado  sobre  assumptos  diff iceis. 

Barca  e  Aguiar  tinham  fallecido  ambos  em  1817,  Pal- 
mella  continuava  occupado  na  Europa,  Bezerra  desappare- 
cera  do  rol  dos  inválidos  apoz  poucos  mezes  de  governo; 
Thomaz  António,  apezar  dos  seus  63  Janeiros,  era  quem, 
por  menos  que  se  fizesse  na  opinião  dos  diplomatas  estran- 
geiros, acudia  a  tudo  nos  fins  do  anno  da  revolução  de  Per- 
nambuco e  da  occupação  de  Montevideo.  E  o  processo  tão 


930  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

bom  pareceu  a  El-Rei  que  n'elle  persistiu,  apenas  chamando 
da  Bahia,  em  Fevereiro  de  1818,  para  a  pasta  da  marinha 
o  conde  dos  Arcos,  novato  nos  conselhos  régios,  si  bem  que 
veterano  da  administração  colonial  por  própria  conta. 

Relata  Palmella  (i)  que  á  sua  chegada  ao  Rio  em 
1820,  encontrou  o  governo  nas  mãos  d'esses  dous  homens: 
**um  (Thomaz  António)  cheio  de  puras  intenções,  mas  não 
tinha  a  menor  idéa  do  estado  de  cousas  na  Europa  nem 
de  forma  alguma  de  governo  diverso  do  que  existia  entre 
nós  desde  o  ministério  do  marquez  de  Pombal  (2)  ;  o  outro 
(Arcos)  dominado  de  sentimentos  cavalheirescos,  e  também 
de  boas  intenções,  posto  que  assaz  vagas  e  indefinidas,  não 
gozava  da  confiança  d'El-Rei." 

Thomaz  António  ficara  conri  ef feito  sendo,  n'esse  ministé- 
rio anormal  em  que  lhe  cabiam  as  pastas  do  reino,  erário,  ne- 
gócios estrangeiros  e  guerra,  o  homem  de  confiança  de  Dom 
João  VI:  tão  arredado  o  collega  da  privança  real  e  tão 
alheio  aos  segredos  do  gabinete  (o  que  reforça  a  crença  de 
que  os  seus  serviços  estrénuos  da  B^ahia  resgatavam  um  pen- 
samento, pelo  menos,  de  deslealdade)  que  se  não  pejava  de 
perguntar  a  Maler  (3),  e  isto  sem  ironia,  muito  candida- 
mente ao  que  quiz  parecer  ao  encarregado  de  negócios  de 
Sua  Magestade  Christianissima :  "Expliquez-moi,  s'il  vous 
plait,  ce  que  c'€St  que  la  guerre  du  Rio  de  la  Plata,  dont 
la  politique  et  le  but  sont  aussi  enigmatiques  pour  moi  que 
les  mouvemens  du  general   Lecor  ?  "   E,   depois  de  repetir 


(1)  Introducção  aof?  Despachos  c  Cartas  publicados  em  1851 
pelo   Sr.   Reis   e   Vasconcellos. 

(2)  Palmella  era,  como  provou  no  seguimento  da  sua  vida  agi- 
tada, partidário  do  regimen  repres-eintativo,  de  uma  Carta  tcdavia  ou- 
torgada pelo  soberano  e  não  elaborada  pelo  Tovo,  ao  qual  somente  com- 
petia o  uso  de  uma  liberdade  modemda. 

(8)  Officio  de  13  de  Julho  de  1818,  no  Arch.  do  Min.  dos  Neg 
Est.  de  França. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  931 

na  sua  correspondência  esta  estranha  pergunta  ajuntava  o 
agente  francez:  "Que  Votre  Excellence  n'aille  pas  croire 
qu'il  plaisantait  lui  même,  je  sais  três  bien  qu'il  n'était  pas 
initié  dans  ces  mystéres." 

Maler  forçava  certamente  a  nota  da  ingenuidade,  pois 
não  é  crivei  que  acreditasse  em  Arcos  ignorar  o  que  para 
ninguém  era  segredo:  que  a  campanha  do  Sul  tinha  por  ob- 
jectivo a  conquista  da  margem  oriental  do  Rio  da  Prata. 
No  que  elle  tinha  razão  era  em  commentar  para  Pariz  que 
'Tun  de  ces  ministres  est  beaucoup  trop  ministre,  et  Tautre 
trop  peu",  e  teria  também  acertado  si  prognosticasse  que  uma 
pronunciada  desintelligencia  surgiria  d'esta  situação  desigual 
e  humilhante  para  Arcos. 

N'um  sentimento  entretanto  pareciam  combinar  os  dous 
ministros,  na  antipathia  ás  idéas  liberaes,  distanciando-se 
ambos  de  Barca,  como  jubilosamente  recordava  Maler  (i), 
pondo  em  relevo  "os  predicados  sociaes  e  amáveis"  do  antigo 
vice-rei  do  Brazil  e  observando  que,  com  sua  escolha  para  o 
ministério,  o  Rei  não  só  tinha  querido  recompensar-lhe  os 
inestimáveis  esforços  em  prol  da  restauração  da  auctoridade 
legitima  em  Pernambuco,  como  agradar  aos  nacionaes,  que 
por  certo  estimariam  ver  elevado  ao  poder  um  antigo  resi- 
dente e  perfeito  conhecedor  do  Reino  americano  e  suas  ne- 
cessidades. Além  d'isto  reaccendia  no  governo  a  tradição,  já 
um  tanto  apagada,  da  facção  anti-ingleza  (2)  dos  tempos 
lisboetas,  assim  dando  arrhas  á  corte  britannica,  com  Tho- 
maz  António,  da  velha  amizade,  e  com  Arcos  fazendo-lhe 
negaças. 

Confirmando  o  sabido,  que  Dom  João  VI  consultava 
Thomaz  António  sobre  todo  assumpto  de  importância  e  que 

(1)  Officio  ae  29  de  Junho  de  1817,  ibidem. 

(2)  Officio  de  Desseps  de  30  de  Agosto  de   1817. 


932  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

a  este  não  faltava  intelligencia  nem  sobretudo  um  grande 
conhecimento  de  minúcias  administrativas,  ponderava  Maler 
que  em  desprendimento  e  patriotismo  era  o  novo  ministro 
assistente  ao  despacho  digno  de  succeder  ao  virtuoso  Aguiar. 

Era  na  verdade  Thomaz  António  honesto  até  a  alma, 
complacente  para  com  seu  Senhor,  resingueiro  com  os  am- 
biciosos, confiado  ás  vezes  em  excesso  com  os  aduladores, 
cheio  de  gravidade  e  de  formalismos.  Dir-se-hia  a  imagem 
do  velho  Portugal,  de  calções,  capote  e  chapéo  redondo, 
recuando  diante  do  novo  Brazil  que  avançava  de  botas  de 
montaria  e  chicote,  encarnado,  com  os  defeitos  da  juvenili- 
dade,  no  Principe  exhuberante  de  vida  como  a  mãi  e  como 
ella  malcriado  —  um  ill-educated  and  hoisterous  young  rnan 
na  phrase  de  Luccock. 

A  influencia  do  digno  magistrado  sobre  o  soberano  e 
portanto  indirectamente  sobre  a  marcha  da  administração 
foi,  quanto  lh'o  permittia  o  ciúme  governativo  de  Dom 
João  VI,  avultada  e  pôde  em  summa  dizer-se  que  benéfica 
porquanto,  si  se  não  distinguia  por  uma  ampla  visão  politica, 
recommendava-se  Thomaz  António  pelo  seu  raro  escrúpulo. 
Em  Portugal,  quando  deputado  á  Junta  do  Commercio,  fa- 
zia todo  o  trabalho  official  para  o  conde  de  Villa  Verde, 
que  não  passava  de  um  lazzarone  obeso  e  comilão,  e  desem- 
penhara com  efficiencia  o  cargo  de  fiscal  do  Real  Erário, 
conseguindo  avolumar  a  arrecadação  da  receita  e  diminuir  a 
despeza,  o  que  é  um  resultado  colossal  n'um  paiz  de  invete- 
rados abusos  e  inveterados  desperdicios. 

No  Brazil  aonde  acompanhou  a  corte,  cuja  traslada- 
ção fortemente  aconselhara,  foi  nomeado  chanceller-mór  do 
Estado  e  tornou-se,  cada  dia  mais  ostensivamente,  o  conse- 
lheiro privado  de  Dom  João  VI,  constituindo  elle  sósinho  o 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  933 

kttchen  cabinet  de  São  Christovão.  O  seu  parecer  era  cote- 
jado com  os  dos  ministros  e  frequentemente  seguido  de  pre- 
ferencia. Correspondia-se  de  Santa  Cruz  com  os  membros  do 
gabinete,  transmittindo-lhes  as  ordens  reaes  que  elle  próprio 
muitas  vezes  determinara  ou  pelo  menos  suggerira.  D'estas 
foram,  no  dizer  de  Mello  Moraes  (i),  a  vinda  da  divisão 
auxiliar  portugueza  que  fez  a  campanha  da  Cisplatina;  a 
distribuição  de  titulos  de  nobreza  e  cargos  politicos  pelos 
Brazileiros  natos  com  o  fim  de  extirpar  prejuízos  nativistas 
e  que  somente  redundou  em  accrescimo  de  intrigas  e  ciúmes 
entre  os  filhos  dos  dous  reinos,  e  a  franca  entrada  no  cami- 
nho da  abolição  da  escravatura,  começando-se  pela  limita- 
ção do  trafico,  cujo  primeiro  ensaio,  no  Congresso  de  Vienna, 
teria  merecido  o  apoio  de  Thomaz  António. 

Como  não  pedia,  nem  enredava,  nem  roubava,  das  suas 
poucas  necessidades  dando  testemunho  a  modestíssima  casa 
de  Catumby  onde  residia  mesmo  quando  primeiro  ministro, 
o  seu  conceito  junto  ao  soberano  creara  raizes  fortíssimas  e 
contra  elle  não  podiam  prevalecer  os  zelos  que  do  burguez 
jurista,  filho  de  um  pequeno  advogado  de  província,  nutriam 
os  fidalgos  da  corte. 

Como  ministro  (2)  tratou  de  fazer  economias  e 
manter    em    equilíbrio    o    orçamento.     Pessoalmente   pouco 


(1)  Bni^il-Rchw  e  Brazil-Impci-io.  António  de  Drummoind,  cujo 
archivo  forneceu  todo  o  attractivo  e  interesse  aos  trabalhos  apressados 
e  indigestos  de  Mello  Moraes,  foi  secretario  do  gabin<?t<;  de  Thomaz  An- 
tónio e,  quando  representante  do  Império  em  Lisboa,  ainda  conviveu 
com  seu  antigo  chefe  que  apenas  falleceu  em  1839,  com  84  annos,  e  na 
maior  indigência  e   ind-ependencia  como  sempre  vivera. 

(2)  Tliomaz  António  dirigiu  os  negocies  da  marinha  e  ultra- 
mar de  Junho  de  1817  a  Fevereiro  de  1818,  quando  os  entregou  a 
Arcos  ;  csi  n<^g.oci.oiS  estrangcãros  e  da  guerra  de  fins  de  1817  a  fins  <le 
1820,  quando  chegou  I'almella,  e  os  do  reino  e  fazenda,  com  a  assis- 
tência ao  despacho,  d^  1817,  depois  de  fallecer  Bezerra,  até  pou(X) 
antes  da  retirada  da  corte  em  1821. 


934  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mais  fez,  que  conste.  O  seu  conselho  valia  mais  do  que  a 
sua  acção,  e  a  sua  iniciativa  era  sobrepujada  pela  sua  ten- 
dência conservadora.  Timorato  sempre,  faltando-lhe  o  ha- 
bito da  responsabilidade,  habituado  como  andava  a  agir  por 
traz  dos  reposteiros  do  despacho  régio,  nem  mais  soube  na 
velhice  mostrar-se  enérgico  com  relação  aos  desvios  communs 
entre  o  funccionalismo  brazileiro  e,  em  especial,  as  irregu- 
laridades de  que  era  notoriamente  culpado  o  thesoureiro- 
mór  Targini  (visconde  de  São  Lourenço),  cuja  preponde- 
rância continuou  a  vingar  em  matéria  de  fazenda  como  no 
tempo  do  probo  Aguiar. 

O  renome  de  Targini  chegara  a  tanto  que  as  denuncias, 
que  em  1817  choveram  nas  secretarias  do  Rio  para  serem 
apresentadas  a  El-Rei,  accusando  todo  o  mundo  brazileiro, 
politico  e  social,  de  ser  composto  de  pedreiros  livres  (os 
quaes  até  então  se  não  tinham  visto  molestados,  fechando  o 
governo  os  olhos  á  sua  tibieza  religiosa  por  julgal-a  com- 
pativel  com  o  fervor  dynastico  ( i )  )  sobretudo  abocca- 
nhavam  o  thesoureiro-mór  —  "que  por  todos  os  principios 
engrossa  a  maledicência  e  traição  contra  a  pessoa  de  Vossa 

Magestade    e   seus    direitos, extorquindo    os    cabedaes 

régios  de  V.  M.,  não  só  aqui,  como  pela  sua  autoridade  es- 


(1)  iPricr  (oh.  cit.)  ãvz  eonstar-llie  a  existência  no  interior  de 
uma  das  melhores  egrejas  da  Bahia  de  um  retrato  de  corpo  inteiro  do 
Príncipe  Regente  da  Inglaterra  com  suas  insígnias  maçónicas  de  grão- 
mestre,  ajuntando  ser  a  maçonaria  muito  admirada  e  seguida.  Entre 
os  irmãos  das  trez  lojas  de  São  Salvador  contavam-se,  posto  que  o  não 
confessassem  abertamente,  o  governador,  o  arcebispo  e  as  pessoas  prin- 
cipaes  da  cidade,  af6ra  bastantes  clérigos.  "Os  estrangeiros  conhecidos 
como  maç^ões,  recebem  dos  iniciadas  .attenções  e  carinhos  que  outros 
ambicionarão  em  vão." 

Mal  informado,  porque  sua  demora  no  Rio  foi  de  dias,  pensava 
Prior  que  o  Príncipe  Regente,  n'este  ponto  acompanhado  por  alguns 
ministros  e  pelas  baixas  camadas,  enxergava  a  traição  e  o  jacobinismo 
unidos  íi  maçonaria,  quando  de  facto  a  tolerância  emanava  d'eille  ou 
se  não  daria. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  935 

gotando  os  das  capitanias, O  vulcão  rebenta  e  estoura, 

e  talvez  sem  remédio;  a  convenção  ou  partido  da  assembléa 
engrossa " 

Esta  denuncia  ( i )  especificava  mantas  compradas  a 
um  compadre  inglez  por  i.ooo  réis  para  o  arsenal  do  exer- 
cito, cortadas  ao  meio  e  pagas  pelo  governo  a  2.000  réis, 
ganhando  a  sociedade  cinco  contos  para  mais;  vinte  e  dois 
praticantes  do  erário  nomeados  a  negocio  para  poderem  es- 
capar ao  recrutamento  forçado;  os  criados  do  serviço  par- 
ticular do  traidor  retribuidos  sob  o  titulo  de  continuos  do 
erário,  sem  ahi  terem  jamais  apparecido  para  exercicio;  sua 
casa  de  moradia  construida  á  sombra  da  edificação  do  mesmo 
erário. 

Uma  outra  denuncia,  dirigida  a  Dona  Carlota  Joa- 
quina, de  quem  se  reclamava  o  "valor  heróico"  da  sua  com- 
patriota Dona  Luiza  de  Guzmán,  visava  não  só  Targini 
como  todos  os  conselheiros  do  monarcha.  O  delator  ano- 
nymo,  querendo  no  fundo  impedir  a  remessa  de  soccorros 
legalistas  para  a  Bahia  e  Pernambuco  e  acabar  com  o  exercito 
pois  aconselhava  a  prisão  de  todos  os  officiaes  por  desleaes 
(2),  pretendia  desvendar  a  ameaça  de  uma  revolta  de  ne- 
gros no  caso  de  lavrar  discórdia  mais  seria  entre  os  brancos, 
e  simulava  revelar  um  assombroso  plano  de  ''pôr  em  desor- 
dem este  contingente  afim  de  introduzirem  para  o  governo 
destes  Estados  os  irmãos  de  Bonaparte,  que  se  achão  nas 
Américas  Inglezas,  e  ao  depois  tudo  ser  entregue  a  Bonaparte, 
arrancado  pela  força  de  Santa  Helena." 


(1)  rublicada  por  Mello  Moraes  na  06.  cit. 

(2)  Ordenaria  ousadamente   esta   prisão   o   Príncipe   Real,   "que 
no  futuro  virá  a  ser  acclamado  Imperador",  reza  a  denuncia. 


936  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

E'  curioso  que  o  senso  popular  tão  bem  discriminava 
entre  thesoureiro-mór  e  ministro,  que  não  pedia  para  elles 
igual  punição:  um  era  culpado  de  malversações,  o  outro  só 
o  seria  de  fraqueza.  O  pasquim,  fructo  da  effervescencia 
politica  de  1821,  assim  dizia: 

Excelso  Rei, 

Se  queres  viver  em  paz 

Enforca  Targine 

E  degrada  Thomaz. 

O  ministro  tinha  as  melhores  preoccupações  de  admi- 
nistração, quando  o  thesoureiro-mór  só  tinha,  na  voz  do 
povo,  os  peores  instinctos  de  corrupção.  Assim,  foi  Thomaz 
António  partidário  decidido  da  colonização  estrangeira,  pro- 
jectando outros  núcleos  suissos  e  allemães  como  o  de  Fri- 
burgo,  e  não  os  levando  a  effeito  provavelmente  pela  oppo- 
sição  real.  Dom  João  VI  achara  muito  dispendiosa  aquella 
experiência,  na  qual  veio  a  sahir  cada  immigrante  por 
1.500  francos,  e  opinava,  segundo  mesmo  disse  a  Maler  (i), 
que  melhor  houvera  sido  facilitar  aos  colonos  a  entrada  á 
for?n{ga  do  que  concluir  para  sua  introducção  negócios 
onerosos,  de  que  sobretudo  se  aproveitavam  os  empreiteiros, 
sem  que  a  qualidade  ou  sequer  o  numero  compensasse  a  avul- 
tada despeza. 

O  peior  effeito  do  ensaio  de  Friburgo  fora  na  verdade 
o  de  ser  immigração  subsidiada,  recolhidos  os  emigrantes  á 
matroca  entre  gente  pouco  apta  para  tal  fim  e  enganada  por 
promessas  miríficas.   Diz  von   Leithold    (2)    que  muitos  dos 


(1)  Officlo  de  28  de  Setembro  de  1819. 

(2)  06.   cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  937 

colonos  vieram  na  ídéa  de  serem  senhores  de  terras  e  de 
negros,  e  outros  tantos  na  esperança  de  reconstituírem  suas 
fortunas  e  voltarem  em  pouco  tempo,  todos  elles,  como  rica- 
ços para  suas  terras.  O  desapontamento  foi  grande  quando 
se  encontraram  sem  escravos  e  com  a  terra  em  frente  para 
cultival-a  com  seus  próprios  braços.  Desanimados,  não  pou- 
cos, os  allemães — ^pois  que  esses  immigrantes  suissos  e  catho- 
licos  eram  em  boa  parte  Allemães  do  Sul  e  protestantes — 
fizeram-se  soldados. 

Da  immigração  portugueza  também  foi  Thomaz  Antó- 
nio protector,  fundando  em  Santa  Catharina  uma  colónia 
de  pescadores  da  Ericeira  e  outras  colónias  em  diversos  pon- 
tos, para  as  quaes  se  sérvio  dos  soldados  portuguezes  a  que 
ia  dando  baixa,  substituindo-os  por  praças  destacadas  das 
forças  que  as  guerras  tinham  acabado  por  accumular  cm 
Portugal  e  que  o  governo  do  Rio  canalizara  para  o  Brazil 
e  para  Montevideo. 

O  conselheiro  de  Dom  João  VI  não  possuio  entretanto 
resolução,  ou  mesmo  percepção  intellectual  bastante  aguda 
para  chegar  até  as  medidas  superiores  e  effectivas,  de  poli- 
tica domestica,  que  melhor  poderiam  attrahir  e  desenvolver 
a  apreciada  colonização  européa,  de  tão  fecundos  resultados 
si  hábil  e  intelligentemente  encaminhada  desde  então. 

Mais  respeitador  das  formas  do  que  o  seria  qualquer 
outro  ministro  da  coroa,  graças  á  sua  educação  jurídica, 
desapprovou  de  modo  discreto  a  conducta  do  conde  dos 
Arcos  na  Bahia,  mandando  executar  sem  garantias  e  até  sem 
processo  os  revolucionários  pernambucanos  desgarrados  ou 
arrastados;  substituio  o  secretario  do  novo  governador  Luiz 
do  Rego,  culpado  de  violências;  ordenou,  de  preferencia  á 
summaria  justiça  militar,  a  alçada  que  funccionou  na  pro- 


938  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

vincia  rebelde,  e  também  a  inconfidência  que  se  exerceu  no 
Rio  contra  os  pedreiros  livres,  valendo-se  dos  meios  de  denun- 
cia, espionagem  e  inquéritos  sob  sigillo  porque  eram  os  que 
lhe  facultavam  a  legislação  e  os  costumes  da  epocha ;  por  fim, 
não  julgando  ser  uma  sedição  local  motivo  sufficiente  para 
retirar  o  Rei  ao  Brazil  sua  benevolência  e  transformal-a  em 
odienta  perseguição,  propoz  a  Dom  João  VI,  por  occasião  da 
sua  acclamação  em  1818,  conceder  uma  amnistia  geral  e 
completa  que  no  ultimo  momento  foi,  ao  que  anda  relatado 
em  Mello  Moraes,  ( i )  trocada  por  uma  ordem,  mal  obede- 
cida que  veio  a  ser,  de  suspensão  das  prisões  e  outras  perse- 
guições ainda  em  andamento  por  motivo  da  revolta  de  6  de 
Março  de  181 7. 

Acompanhando  o  movimento  imperialista  peculiar  ao 
momento,  defendeu  Thomaz  António  a  politica  de  prolonga- 
mento meridional  da  costa  brazileira  até  o  Rio  da  Prata, 
sendo  n'este  ponto  o  seu  ardor  igualado  pela  indifferença 
com  que  encarou  a  restituição  de  Cayenna — terras,  dizia 
elle,  de  que  não  precisava  o  Brazil,  para  o  qual,  não  obstante, 
architectava  em  sua  mente  um  glorioso  porvir,  repetindo,  e 
de  certo  mais  sinceramente,  com  o  poeta: 

Povos  !  Se  os  Luzos,  com  o  invencivel  Gama 

Ao  mando  do  seu  Rei  debelão  Reinos, 

Hoje  o  que  farão  por  seu  Rei  guiados  !   (2) 

Feitas  as  contas,  sommados  os  proveitos  e  descontadas  as 
desvantagens,  o  Brazil  lucrara,  assaz  o  temos  visto,  com  a 


(1)  05.  cit. 

(2)  Discurso   offerecido   aos  Bahianos   no    dia   da   abertura   do 
seu  novo  theatro,  aos  13  de  Maio  de  1812. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  939 

mudança  da  corte  para  o  Rio  de  Janeiro,  uma  profunda 
alteração  nas  suas  condições  mercantis,  económicas,  intelle- 
tuaes,  sociaes  e  politicas.  De  facto  ganhara  a  independência 
que  seria  consummada  em  1822,  mas  que  já  antes  se  fizera 
sobremodo  clara  e  evidente. 

D'aquella  alteração  foram  vários  os  instrumentos,  vários 
mesmo  os  agentes,  mas  fautor  constante  foi  o  monarcha  que 
alli,  na  sua  colónia  americana,  se  acolhera  n'um  momento 
dramático,  alli  gosara  bem  estar  physico  ( i ) ,  satisf  acções  mo- 
raes  e  até  triumphos  bellicos,  alli  desejaria  ter  descançado  para 
sempre,  e  pelo  menos  alli  fundou  e  deixou  uma  dynastia 
para  guiar  os  destinos  da  nova  nacionalidade  no  encalço  das 
suas  honrosas  tradições. 

Dom  João  VI  não  foi  o  que  se  pode  chamar  um  grande 
soberano,  de  quem  seja  licito  referir  brilhantes  proezas  mili- 
tares ou  golpes  audaciosos  de  administração :  não  foi  um  Fre- 
derico II  da  Prússia  nem  um  Pedro  I  da  Rússia.  O  que  fez, 
o  que  conseguio,  e  não  foi  afinal  pouco,  fel-o  e  conseguio-o 
no  emtanto  pelo  exercicio  combinado  de  dous  predicados  que 
cada  um  d'elles  denota  superioridade:  um  de  caracter,  a  bon- 
dade, o  outro  de  intelligencia,  o  senso  pratico  ou  de  governo. 
Foi  brando  e  sagaz,  insinuante  e  precavido,  affavel  e 
pertinaz. 

Da  sua  amabilidade  contam-se  traços  de  captivar.  Quan- 
do a  Archiduqueza  Leopoldina,  apoz  a  cerimonia  do  casa- 
mento, chegou  a  São  Christovão,  que  tinha  sido  preparado 
para  receber  os  nubentes,  encontrou  nos  seus  aposentos  parti- 


(1)  A  nao  ser  a  conhecida  moléstia  da  perna,  que  alguns  dizem 
ter  sido  uma  ulcera  rebelde,  e  provavelmente  não  passava  das  lymplia- 
tites  de  que  depois,  em  Lisboa,  o  Rei  continuou  com  frequência  acha- 
cado, o  estado  de  saúde  de  Dom  João  no  Brazil  foi  sempre  o  mais  sa- 
tisfactorio. 


940  DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL 

culares  o  busto  do  Imperador  da  Áustria,  seu  pai,  e  o  Rei 
fez-lhe  entrega,  para  que  lesse  e  se  distrahisse,  de  um  livro 
que,  ao  abrir  e  folhear,  verificou  ella  commovida  conter  os 
retratos  de  toda  a  sua  f amilia  ausente.  ( i ) 

Para  avaliar  sua  esclarecida  equidade,  basta  referir  o 
que  observou  o  cônsul  Henderson:  que  os  Inglezes  residen- 
tes no  Rio,  quando  lhes  occorriam  difficuldades  serias  com 
a  administração,  preferiam  muito  dirigir-se  directamente  ao 
monarcha,  sempre  disposto  a  fazer  justiça,  a  entender-se 
com  seus  ministros.  Frequentes  vezes  na  sua  obra,  (2)  o 
auctor  britannico  elogia  a  cordura,  a  benignidade  e  o  libe- 
ralismo de  Dom  João  VI,  que  um  escriptor  dos  nossos 
dias,  (3)  confundindo  a  miragem  com  a  perspectiva,  intitu- 
la com  mais  espirito  do  que  verdade  histórica  um  "real 
fantoche." 

Também  o  ministro  americano  Sumter  dizia  gostar 
incomtparavelmente  mais  de  tratar  com  o  Rei,  cuja  bondade 
reconhecia  e  proclamava,  do  que  de  tratar  com  seus  conse- 
lheiros, sobre  quem  lançava  a  culpa  de  quanto  pudesse  sue- 
ceder  de  mau.  "  Falia  em  termos  favoráveis  do  Rei,  mas 
julga  péssima  a  condição  da  sociedade  e  altamente  desap- 
prova  os  mil  vexames  e  abusos  praticados  com  o  povo  em 
nome  do  Governo."  (4)  Tão  longe  estava  aquelle  diplomata 
de  considerar  o  Rei  uma  nuUidade,  que  n'elle  admittia  von- 
tade sincera  de  cultivar  boa  intelligencia  e  amizade  com  os 


(1)  L>ebret,  Voynfje  Pitiorcsque,  vol    III. 

(2)  A  History  of  the  Brazil. 

(3)  Paul  Groussac,  no  est.  cit.  sobre  S.  Liniers. 

(4)  Braekenridge,  Yoyaye  lo  South  America,  performcd  6/y  ar- 
der of  the  Atneriean  Government  in  the  years  1817  and  1818,  in  the 
Friffâ^te  Congress.  Baltimore  1819.  O  auctor  m  comoi  secretario  d'essa 
missão  politica  ao  Rio  da  Prata,  mandada  inquirir  da  situação  das 
Províncias   Unidas. 


i 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  941 

« 
Estados  Unidos,  reputando-o  em  tal  assumpto  muito  mais 

adiantado  do  que  os  seus  cortezãos. 

São  traços  todos  esses  mai^  authentlcos  e  fidedignos  na 
sua  sympathica  nobreza  do  que  as  anecdotas  picarescas  que 
valeram  a  Dom  João  VI  um  renome — talvez  não  usurpado  si 
contido  nos  limites  do  desenho  e  não  puxado  até  a  caricatura 
—  de  desmazelo  bonacheirão  e  de  esperteza  saloia,  uma 
aureola  barata  de  bonhomme  Richard  coroado,  uma  fama 
de  rei  philosopho,  que  apimentavam  suas  desventuras  con- 
jugaes  e  a  que  emprestava  verosimilhança  o  seu  physico  in- 
grato,  honiely  como   bruscamente  o  qualificou   Prior. 

Baixo,  gordo,  sanguineo,  tinha  de  aristocrático  as  mãos 
e  pés  muito  pequenos,  mas  de  vulgar  as  coxas  e  pernas  muito 
grossas  mesmo  em  relação  á  corpulência,  e  sobretudo  um 
rosto  redondo  sem  magestade  nem  sequer  distincção,  no  qual 
avultava  o  lábio  inferior  espesso  e  pendente  dos  Habsburgos, 
sem  porém  a  maxilla  protuberante  e  o  queixo  pontudo  de 
alguns  dos  príncipes  austriacos,  cujos  retratos  nos  foram  lega- 
dos por  celebres  artistas — que  de  certo  não  aninhariam  tal 
propósito  maldoso — como  exemplares  indiscutiveis  de  dege-^ 
nerescencia. 

Em  Dom  João  VI  as  imperfeições  de  todo  ser  humano 
não  chegavam  para  que  desmerecessem  as  solidas  qualidades. 
Si  era  timido,  pusillanime  mesmo,  como  tal  egoista,  resen- 
tido,  ciumento  de  attenções,  amigo  de  monopolizar  as  defe- 
rências e  inimigo  de  perdoar  os  aggravos  menores,  também 
era  clemente,  misericordioso  nas  grandes  occasiões  quando  se 
fazia  appello  directo  ao  seu  coração,  arguto  em  qualquer 
emergência,  raramente  ou  nunca  perdendo  o  equilibrio  mo- 
ral, tão  generoso  para  com  seus  fâmulos  e  validos  quanto 
económico  comsigo,  estudioso  aferrado  dos  negócios  públicos 

D.  j.  —  59 


942  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

e  governante  invariavelmente  bem  intencionado.  Eram  aquel- 
les  em  summa  pequenos  defeitos  a  contrapor  a  um  bello 
conjuncto  de  virtudes,  raro  n'um  monarcha  despótico. 

Seu  senso  politico  revelou-se  em  muita  occasião.  Um  dos 
mais  fracos  soberanos  da  Europa,  vimos  ter  sido  o  único  que 
escapou  ás  humilhações  pessoaes  por  que  fez  Napoleão  passar 
os  representantes  do  direito  divino:  os  Bourbons  da  Hespa- 
nha  e  da  Itália,  ludibriados,  depostos,  vagabundos  ou  capti- 
vos;  o  Rei  da  Prússia,  expulso  dos  seus  Estados;  o  César 
austríaco,  compellido  a  implorar  a  paz  e  conceder  ao  aven- 
tureiro corso  a  mão  de  sua  filha;  o  próprio  Czar,  ora  tendo 
que  acceitar  intimidades  em  entrevistas  memoráveis,  ora  que 
rebater  a  invasão  devastando  provincias  do  seu  Império. 

E  não  ha  dizer  que  Dom  João  VI  seguia  impulsos  de  mo- 
mento, fazia  politica  só  de  opportunismo.  '*A  medida  da  emi- 
gração, escreve  Prior,  em  tempo  nos  pareceu  a  todos  tão 
extranha  quanto  desusada,  e  tem  sido  abusivamente  commen- 
tada,  um  aipoz  outro,  por  quasi  todos  os  politicos  da  Europa; 
mas  quer  se  haja  originado  na  timidez  ou  na  fraqueza,  pro- 
vou ser  da  mais  profunda  sabedoria  politica." 

Calando  a  circumstancia  de  que  para  a  trasladação  da 
corte  portugu^za  contribuíram  em  dose  apreciável  os  ciú- 
mes do  Príncipe  Regente  pela  sua  mais  valiosa  colónia,  des- 
pertados pelo  conhecimento  em  que  estava  dos  esforços  em- 
pregados pela  Inglaterra  desde  1790  para  emancipar  a  Ame- 
rica Hespanhola,  (i)  Prior  faz  justamente  sobresahir  o  facto 
de  ter  o  Rei  de  Portugal  ficado  illeso  dos  maus  tratos  de  Bona- 
parte e  haver  preservado  a  união  com  sua  importantíssima 
possessão — "onde  o  desejo  de  independência  era  geral  entre 


(1)    Lyman,   History  oj   lhe   Diplomacy   of   the   United   States, 
vol.    II.   Boston. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  943 

o  povo  e  fraco  o  poder  do  governo  local,"  ponderava  elle 
com  mais  presciência  do  que  exactidão. 

A  America  do  Norte  verdade  é  que  offerecia  um  exem- 
plo feliz,  "de  ha  muito  admirado,  e  que  de  certo  teria  sido 
imitado  desde  logo  si  os  Brazileiros  possuissem  vigor  de  cara- 
cter igual  ao  d'a'quelle  povo  turbulento.  Faltava  também  um 
ensejo  para  servir  de  pretexto  plausivel  á  renuncia  da  metró- 
pole, mas  esse  o  forneceria  á  colónia  a  invasão  franceza,  não 
havendo  sombra  de  duvida  entre  os  que  melhor  conhecem 
o  paiz  que,  a  não  ser  pela  chegada  opportuna  do  governo, 
o  Brazil  teria  seguido,  senão  precedido  os  esforços  das  coló- 
nias hespanholas  em  prol  da  sua  independência."   ( i ) 

A  unidade  de  vistas  provinha  para  a  administração  por- 
tugueza  de  que,  governando  com  estes  ou  com  aquelles  minis- 
tros, de  differentes  opiniões,  Dom  João  VI  nos  problemas 
essenciaes  impunha  sempre  sua  orientação.  Assim,  emquanto 
permaneceu  no  Velho  Mundo,  nunca  deixou  de  pôr  sua 
confiança  e  fiar  seu  salvamento  da  alliança  ingleza.  Uma 
vez,  porém,  que  percebeu  quanto  se  esquivava  no  Novo 
Mundo,  não  só  á  coacção  das  outras  potencias  como  á 
pressão  da  nação  amiga,  não  quiz  mais  sahir  da  America  e 
decidio  ahi  permanecer,  mau  grado  todas  as  instancias  feitas 
em  1814  e  181 5  pela  Santa  Alliança  e  nos  annos  subsequen- 
tes reiteradas  pela  Grã  Bretanha.  Dom  João  VI  avaliara  cona 
justeza  quão  difficil  tornavam  os  recursos  incompletos  de 
então  qualquer  efficaz  demonstração  armada  a  tão  grande 
distancia. 

Sabemos  que  o  êxodo  de  1807  só  foi  precipitado  na  occa- 
sião,  no  instante,  não  se  calculando  tão  prompta  a  invasão 
e  querendo  o  Principe  aguardar  a  suprema  injuria  e  o  paro- 


(1)    Prior,  06.  cit. 


944  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

xismo  da  crise,  que  justificariam  sua  attitude.  Pois  da  mesma 
forma  que  resolveu  e  preparou  com  tempo  sua  partida  para 
o  Brazil  para  o  caso  que  s€  verificou,  e  que  só  os  irresponsá- 
veis podiam  deixar  de  prever  dada  a  marcha  dos  aconteci- 
mentos politicos  e  perante  o  proceder  de  Napoleão  com  rela- 
ção ás  velhas  monarchias  da  Europa,  reflectio  Dom  João 
maduramente  na  questão  do  regresso  com  a  paz  geral. 

Pesou  elle  perfeitamente  que  a  residência  prolongada 
no  Brazil  até  constituia  uma  melhor  garantia  da  indepen- 
dência de  Portugal  do  que  o  apoio  interesseiro  da  Grã 
Bretanha,  porquanto  as  colónias  hespanholas,  luctando  ainda 
desesperadamente  pela  emancipação,  serviam  de  excellente 
penhor  do  recolhimento  da  metrópole,  a  qual  bem  compre- 
hendia  que  Portugal  tentaria  engrandecer-se  na  America 
do  Sul  do  que  perdesse  na  Peninsula. 

Era  Dom  João  VI  por  demais  intelligente  para  não  des- 
cobrir que  a  integridade  portugueza,  uma  vez  reposta  a  nor- 
malidade na  Europa,  era  do  interesse  de  todos,  não  só  do 
gabinete  de  Saint  James:  o  que  provou  mais  tarde  quando 
procurou  que,  em  Laybach,  as  grandes  potencias  conjuncta- 
mente  garantissem  a  inviolabilidade  do  seu  velho  Reino 
amotinado  e  inçado  de  iberismo  democrático.  Os  alliados  por- 
tuguezes  quasi  não  precisavam  ser  solicitados  nesse  ponto. 
Eram  espontâneos  e  naturaes,  não  podendo  qualquer  dos 
factores  europeus  de  importância  aspirar  a  destruir  o  equi- 
librio  de  fronteiras  e  de  idéas  restabelecido  em  Vienna. 

Já  no  século  XVIII  escrevia  o  abbade  Raynal  que 
nunca  a  politica  previdente,  inquieta  e  suspicaz  d'aquelle 
século  supportaria  que  todos  os  thesouros  do  Novo  Mundo 
cahissem  nas  mesmas  mãos,  ou  que  uma  casa  reinante,  vindo 
a  dominar  só  na  America,  ameaçasse  a  liberdade  da  Europa. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  945 

A  Portugal  e  Brazil  não  era  licito  levar  tão  longe  seu  deva- 
neio de  dominio  americano :  a  Hespanha  é  que  se  não  confes- 
sava, longe  d 'isso,  vencida  nas  suas  colónias,  e  até  jurava  tirar 
estrondosa  desforra  da  perfidia  portugueza  em  se  aprovei- 
tar das  suas  difficuldades. 

Por  todas  estas  razões  politicas,  e  porque  sua  natureza 
era  amiga  das  commodidades,  sobretudo  aos  50  annos,  (i) 
e  se  sentia  bem  no  Brazil,  resistio  o  Rei  ao  desejo  expresso, 
ao  ciúme  manifesto,  ás  reclamações  da  antiga  metrópole,  tão 
desgostosa  com  a  perda  da  sua  posição  de  auctoridade  e  de 
exclusivo  económico,  que  chegou  a  correr  no  Rio  de  Janeiro 
com  grande  insistência  que  os  Portuguezes,  renovando  os 
episódios  nacionaes  do  Mestre  d'Aviz  e  do  Duque  de  Bra- 
gança, iam  acclamar  soberano  o  joven  Duque  de  Cadaval, 
descendente,  como  os  Braganças,  do  Condestavel  Nunalvares. 

Fora  Cadaval,  filho  do  duque  fallecido  na  Bahia  á 
vmda  de  Lisboa,  o  primeiro  fidalgo  de  nota  a  desertar  a 
corte  americana  de  Dom  João  VI,  regressando  para  Lisboa, 
a  pretexto  de  tomar  estado,  com  a  duqueza  sua  mãi,  na 
companhia  de  seu  tio  materno  o  duque  de  Luxemburgo, 
quando  voltava  de  reatar  as  relações  entre  a  França  de 
Luiz  XVIII  c  o  governo  portuguez.    (2) 

Radicava-se  também  o  boato  da  usurpação  no  facto 
relatado  por  Debret,  bem  informado  nestes  assumptos,  de 
andar  o  joven  Cadaval  mal  visto  na  corte,  porque,  muito 
vanglorioso  da  sua  estirpe  e  tendo  a  atiçal-o  o  orgulho  da 

10  do,Ma!o  oHsíu'"  '''  "'■'''"  ^  '■'  ^'  '^''''^  '''  '""''  "  '■«"^'^^"  ^ 
(21  Mello  Moraes  {Brazil- Reino  o  ItrazU-Tinimin)  cita  oslo 
incKlonte  histórico  com  Cadaval,  (nie  confirmam  umas  rcforoncias  muito 
viMadas  de  Luccock  <^  corroborai  a  correspondência  diplomática  do  tompo 
A  constniccao  planeada  de  iim  solar  no  Rio,  nas  Laranjeiras,  tinha  pro- 
vavelmente por  motivo  distrahir  as  attenções  da  ausência  e  fazel-a 
passar  por  temporária. 


946  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

velha  fidalga  franceza,  contrariada  no  Brazil,  onde  per- 
dera o  esposo  e  levava  uma  vida  acanhada,  nunca  quiz  accei- 
tar  emprego  do  seu  real  primo,  afim  de  conservar  o  distincto 
e  raro  privilegio  de  trocar  visitas  com  o  monarcha  e  não 
passar  á  obrigação  de  comparecer  ao  beija-mão.  (i) 

Aliás  era,  n'esse  tempo  de  súbitas  mudanças  dynastlcas, 
postas  em  moda  pela  Revolução  e  suggeridas  pelo  extraordi- 
nário destino  de  Bonaparte,  o  nome  do  duque  de  Cadaval 
com  frequência  citado  como  o  de  um  rei  eventual  de  Portu- 
gal. A  duqueza  d'Abrantes,  ao  mencionar  nas  Memorias 
a  sua  compatriota  duqueza  de  Cadaval,  cuja  belleza,  en- 
canto, dignidade  e  génio  administrativo — revelado  na  re- 
construcção  financeira  da  casa  ducal — exalta  como  é  natural, 
escrevia,  e  isto  em  epocha  posterior,  depois  da  lucta  entre 
Dom  Pedro  e  Dom  Miguel,  que  Cadaval,  o  qual  de  resto  to- 
mara franco  partido  pelo  rei  legitimo,  e,  finda  a  contenda,  se 
expatriou,  podia  vir  ainda  a  sentar-se  no  throno  portuguez. 

Não  seriam  porventura  extranhas  mesmo  a  essa  expa- 
triação  da  casa  de  Cadaval,  que  ainda  perdura,  semelhantes 
intrigas  de  successão,  comparáveis  com  as  que  em  França 
então  se  agitavam  em  redor  do  Duque  de  Orléans  e  acaba- 
ram coUocando  a  coroa  sobre  sua  cabeça.  Que  uma  conspira- 
ção existio,  formal  ou  incipiente,  seguida  ou  interrupta,  no 
intuito  de  substituir  Cadaval  a  Bragança,  ou  pelo  menos  que 
foi  uma  realidade  o  pensamento  de  tal  mudança,  não  pode 
soffrer  duvida. 

De  Lisboa  escrevia  para  Pariz  o  cônsul  geral  Les- 
seps    (2)    que,  na  crise  moral  portugueza,   dous  partidos  se 


íl)  Debret,  06.  cii.  Uma  litbographia  colorida  da  serie  publi- 
cada na  obra  anonyraa  Sketches  of  Portuf/al  conservou-nos,  com  in- 
tengão  ridícula,  a  lembrança  d*este  cortejo  em  tempo  de  Dom  João  Ví. 

(2)  Officio  oifra.do  de  31  de  Maio  de  1&17,  na  ArcQi.  do  Min. 
dos  Neg.  Est.  de  1^  rança. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  947 

avantajavam  e  ganhavam  terreno  :  o  dos  intellectuaes,  dis- 
pondo de  menos  força  porque  nem  possuía  o  consentimento 
tácito  do  povo,  mas  podendo  vir  a  ter  o  apoio  da  tropa,  e  era 
o  que  pensava  em  republica ;  e  o  de  grande  parte  da  nobreza, 
descontente  do  seu  papel  nullo,  longe  da  corte,  e  estribada 
nas  classes  populares.  Desejava  esta  facção  uma  mudança  de 
dynastia,  sem  se  derrubar  a  instituição  monarchica,  e  tinha 
os  olhos  postos  em  Cadaval. 

Era  este  o  partido  que  se  poderia  denominar,  fazendo 
recuar  o  appellido  transplantado,  do  Greater  Portugal,  vi- 
sando a  recolonização  do  Brazil.  O  da  republica  podia  pas- 
sar pelo  do  Little  Portugal,  já  que  não  descobria  inconve- 
niente em  ficar  o  Reino  reduzido  ás  suas  proporções  européas, 
''suffisant  a  ses  besoins  par  les  seules  ressources  de  son  terri- 
toire  et  de  son  industrie",  (i) 

Nem  se  pode  ter  por  menos  certo  o  facto,  quando  o 
marquez  de  Marialva  (  2  )  fazia  julgar  pelo  tribunal  do 
Sena  e  condemnar  a  dous  annos  de  prisão  e  4.000  francos  de 
multa  o  Cônsul  Sodré  Pereira  como  auctor  do  folheto  im- 
presso em  Pariz  e  intitulado  Pieces  Politiques.  (3)  Incluia 
este  folheto  uma  carta  de  Lisboa  em  que  se  alludia  franca- 
mente á  conspiração  em  favor  do  duque  de  Cadaval,  e  quem 


(1)  Tanto  se  espalihara  o  boato  concernente  a  Cadaval  que, 
ao  regressar  de  Franqa  um  medico  francez  domiciliado  em  Lisboa  e 
muito  ligado  com  a  fa,mil,ia  ducal,  o.  Dr.  Gavrelle,  foi  visitado  a  bordo 
por  um  corregedor  que  lhe  pediu  todos  os  papeis  para  examinar  (€or- 
rcsip.  de  Lesseps,  ihkloii). 

(2)'  Corr-isp.  da  Embaixada  Portugueza  em  Pariz  em  1820.  no 
Arch.  do  Min.  das  Kel.  Ext. 

í'3)  ,S.O'di'é  homd'SÍara-se  na  Inglaterra  logo  que  a  Embaixada  re- 
quereu da  justiça  franceza  um  inonerito  nolicial  sobre  a  auctoria  da 
referida  publicarão,  para  servir  de  fundament<o  á  projectada,  acção 
criminal  :  ao  mesmo  tempo  que  o  cônsul  gorai  Bernardo  Daupias  pro- 
cedia por  seu  lado  a  uma  inquirição  que  podesse  servir  de  base  ao  pro- 
cesso a  ser  iniciado  era  Portugal  contra  o  incriminado  escriptor  da  bro- 
chura e  seus  cúmplices,  culpados  do  crime  de  lesa-magestade  (Cor- 
resp.  cit.  de  Marialva). 


948  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

em  Pariz  a  recebera  devia  forçosamente  pertencer  ao  grupo 
de  Portuguezes  ahi  residentes,  em  contacto  com  os  elemen- 
tos jacobinos  francezes  e  em  correspondência  com  os  liberaes 
hespanhoes,  que  tão  activa  parte  tomou  no  preparo  da  revo- 
lução constitucional  do  Porto,  e  depois  de  Lisboa,  que  assi- 
gnalou  o  anno  de  1820. 

O  afan  de  Marialva  em  perseguir  os  delinquentes, 
assim  patenteando  sua  devoção  á  dynastia,  devia  ser  tanto 
maior  quanto  sua  alliança  com  a  casa  de  Cadaval  era  de 
familia  e  interesses,  e  por  motivo  d'ella  o  tinham  até  querido 
tornar  de  novo  suspeito  aos  olhos  de  Dom  João  VI,  esquecido 
já  de  -passadas  tibiezas.  Com  ef feito  uma  das  trez  irmãs  do 
marquez  estribeiro-mór  desposara,  muito  nova,  o  velho  du- 
que de  Lafões,  cuja  casa,  ao  extinguir-se  por  falta  de  suc- 
cessão  masculina  immediata,  se  vinculara  por  matrimonio 
na  de  Cadaval. 

De  181 5  a  1820  discutio-se  constante  e  acaloradamente 
em  Portugal  a  volta  da  familia  real  para  a  velha  sede  da 
monarchia.  A  partida  de  Dom  João  VI  para  Portugal  seria 
no  emtanto  o  signal  certo  da  separação  imminente,  assim  como 
a  revolução  pernambucana  de  1817  fora  o  symptoma  inilludi- 
vel  da  fermentação  geral  dos  espirites.  Ninguém  prévio  me- 
lhor esta  scisão  e  tão  bem  definio  os  acontecimentos  como  o 
abbade  de  Pradt,  ao  escrever  sobre  a  mudança  da  corte :  ( i ) 
"Formaram-se  immediatamente  duas  novas  combinações  en- 
tre Portugal,  reduzido  agora  a  colónia,  e  o  Brazil  vindo  a 
ser  metrópole;  entre  o  Brazil  aspirando  a  conservar  o  Rei, 
e  Portugal  de  sua  parte  aspirando  a  recuperal-o ;  entre  o 
Brazil  vivificado  e  enriquecido  pela  presença  do  Soberano, 


(i)    Les    trois   dcrnicrs   móis   de   VAmcrique   Mcrulionalc   et   du 
Brésil.  Paris,  1817. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  949 

e  Portugal  humilhado  e  empobrecido  pela  sua  ausência,  e 
affligido  pela  distancia."    (i) 

No  velho  Reino  o  descontentamento  não  fizera  mais  do 
que  ir  crescendo  até  que  se  manifestou  tumultuario  e  sub- 
versivo. No  próprio  officioso  Investigador  Portuguez  em 
Inglaterra,  que  deixou  de  receber  a  subvençcio  e  por  isso 
teve  de  suspender  a  publicação  (2),  citavam-se  em  1818  as 
Cortes  de  Coimbra,  nas  quaes  foi  acclamado  Rei  o  Mestre 
d'Aviz,  em  abono  da  these  de  que  aos  Portuguezes  cabia  o 


(í)  Versão  publicada  no  Correio  Brazilicnse.  Na  sua  obra  sobre 
o  Congresso  de  Vienna — ^de  facto  cm  todas  suas  publicações — manifes- 
tava-se  de  forma  ainda  mais  cathegorlca  a  opinião  do  antigo  capellão  de 
Napoleão  e  ex-arcebispo  de  Malines :  "El-Rey  não  pode  conservar  o 
seu  dominio  em  Portugal  e  no  Brazil,  e  deve  escolher  ou  ser  Key  de 
Portugal,  e  abandonar  o  Brazil,  ou  ser  Rey  do  Brazil,  e  abandonar 
Portugal." 

(2)  A  subvenção  de  que  gosava  o  Investigador  foi  retirada  em 
liSlO  pelos  çixcessos  e  erros  commiettLdos,  no  juizoi  do  governo,  pelo 
collaborador  José  Liberato  Freire  de  Carvalho,  o  traductor  de  Tá- 
cito ;  mandando  comtudo  logo  depois  a  corte  do  Rio  ordem  ao  conde 
de  l*almella  para  agir  no  caso  como  melhor  entendesse  e.  quorendo,  con- 
tinuar a  subvencionar  o  periódico.  Palraella,  porém,  não  quiz  valer-se 
da  faculdade  concedida  porque,  dos  redactores  prinoipaes  d^  Invcsii- 
gador,  um,  o  Dr.  Vicente  Pedro  Nolasco,  estava  muito  doente  em  Pariz, 
e  o  outro,  o  Dr.  INIiguel  Caetano  de  Castro,  diplomado  pela  Univer- 
sidade de  Edimburgo,  deliberara  ir  clinicar  em  Lisboa.  Fazia-se  mister 
procurar  e  encontrar  novos  redactores  habilitados.  Sendo  os  A  iinors 
das  Sciteiicias,  Artes  e  Lettras  de  Pariz  uma  publicação  muito  «siJaçada 
(era  trimensal)  para  poder  ser  aproveitada  com  vantagem  para  fins 
políticos,  inserindo-se  n'ella  artigos  officio.sos — quando  mesmo  fossem 
para  tanto  competentes  os  seus  directores,  cujas  habilitações  e  pre- 
dilecções eram  diversas — achava  Palmella  preferível,  para  responder 
fis  verrinas  ú'0  Portuguez  e  do  Correio  Braziliense,  "publicarem-so  no 
Rio  do  Janeiro  e  em  Liisboia  jornaes  que  defendessiem  a  cauza  do  Go- 
verno com  talento  e  conhecimento."  (Corresp.  de  Londres,  no  Arch. 
do  Min.  das  líel.  Ext.) 

Palmella  não  se  vexava  com  esses  Jornaes  da  mesma  fornia  que 
Funchal,  também  porque  elles  o  mall ratavam  incomparavelmenti»  me- 
nos, e  o  seu  alvitre  tinha  a  dupla  vantagem  de  evitar  A  Legação  em 
Londres  o  contacto  pouco  agradável  de  uma  impiiensa  assalariada,  que 
entre  os  Inglezes  pouco  significava  o  aos  Portuguezes  nenhum  serviço 
l)res'tava  .de  valor,  e  vulgarizar  nas  duas  capitães  do  Reino  Unido 
de  Portugal  e  Brazil  o  uso  da  imprensa  politica  com  os  benefícios  que 
d'elle   se   derivavam. 

Os  Annaes  obtiveram  todavia  um  subsidiai  para  manterem-.-:e 
posto  que  permanecendo  a  politica  fora  da  orbita  das  suas  prooc- 
cupaicões. 


950  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

pleno  direito  de  escolherem  um  Soberano,  estando  vago  o 
throno:  e  o  throno  devia  considerar-se  vago  pois  não  era 
admissivel,  e  segundo  o  abbade  de  Pradt  depunha  até  contra 
a  honra  da  Europa,  que  uma  corte  da  America  tivesse  pos- 
sessões européas. 

Aliás  o  incançavel  publicista  encontrava  as  maiores  van- 
tagens em  fazer-se  o  Rei  de  Portugal  de  todo  Braziliano, 
apenas  lamentando  que  a  nova  corte  tivesse  sido  dominada 
por  velha  gente,  os  novos  negócios  manejados  por  homens 
antigos,  os  novos  objectos  regulados  por  instrumentos  anti-^ 
quados.  Por  isso  se  não  vira  inventar  uma  só  medida,  dizia 
elle,  das  de  grande  momento,  afora  a  liberdade  de  commer- 
cio,  decretada  em  circumstancias  especiaes,  applicavel  ás  con- 
dições do  Brazil,  onde  tudo  continuara  a  ser  regido  pelo  sys- 
tema  portuguez,  quando  não  colonial.  O  meio,  as  necessi- 
dades,  tudo  entretanto  era  differente. 

"Vassallo  ou  inferior  de  todos  na  Europa,  El-Rey  do 
Brazil,  ipizando  a  terra  da  America,  adquiriu  um  campo  im- 
menso ;  entrou  na  politica  do  universo,  em  que  lhe  cabia  tam 
pequena  partilha,  pelos  seus  territórios  Europeus.  Súbdito, 
em  sua  antiga  habitação;  na  nova,  he  de  todo  independente; 
e  participa  no  systema  de  emancipação,  que  he  a  nova  vida 
dos  paizes,  q«e  o  cercam."  ( i )  O  que  poderia  vir  a  ser  o 
Reino  Americano  creado  pelo  monarcha  portuguez,  deva- 
neav^-o  a  imaginação  do  abbade,  alimentada  n'essa  epocha  de 
soffreguidão  mental  por  todas  as  chimeras  liberaes  herdadas 
da  transformação  de  idéas  do  século  XVIII. 

Única  voz  discordante  aquém  do  Atlântico  de  que  nos 
haja  chegado  a  repercussão  além  da  de  Pradt,  Hippolyto 
era  de  parecer  que,  no  estado  de  agitação  e  incerteza  no  qual 


(1)    Versão  cit.   do   Correio  Brasiliense. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  951 

se  encontrava  a  America  Hespanhola,  caso  o  Rei  estivesse 
em  Lisboa,  se  lhe  devia  aconselhar  que  embarcasse  para  o 
Brazil  a  cuidar  dos  seus  interesses,  visto  representar  o  dominio 
ultramarino  o  melhor  apanágio  da  coroa. 

Assim  o  entendia  Dom  João  VI,  sem  querer  todavia  ferir 
muito  fundo  o  ciúme  dos  seus  vassallos  portuguezes,  antes 
affectando  pelas  formas  um  respeito  meticuloso.  Sua  accla- 
mação  foi  adiada  de  1817  para  1818  por  motivo  da  rebel- 
lião  de  Pernambuco,  mas  já  fora  transferida  de  1816  para 
181 7,  não  tanto  pela  consternação  causada  pelo  fallecimento 
da  Rainha  quanto  pela  razão  apontada  por  Marrocos  (i) 
como  lhe  havendo  sido  communicada:  *'Dizem-me  que  a 
acclamação  não  se  faz  ainda,  sem  chegarem  as  Deputações 
dos  Reinos  de  Portugal  e  Algarves,  em  razão  de  não  haver 
Junta  dos  Tres-Estados :  não  sei  se  isto  he  supprimento  de 
Cortes,  mas  parece-me  hum  passo  muito  acertado,  para  não 
haverem  depois  questões,  por  não  ser  feita  a  acclamação  na 
sede  da  Monarquia:  E  por  que  não  se  fará  lá  ?  Dicant  Pa- 
duani." 

D.  Maria  I  expirara  a  20  de  Março  de  1816:  findara 
aos  82  annos  o  seu  longo  vegetar.  A  23  de  Fevereiro,  na  sua 
minuciosa  chronica  á  familia  dos  acontecimentos  da  corte  do 
Rio,  dava  Marrocos  noticia  da  gravidade  da  sua  condição 
havia  mais  de  um  mez.  **De  dia  em  dia  a  sua  moléstia  se 
tem  aggravado  muito,  principiando  por  huma  dysenteria,  fe- 
bre, fastio;  e  daqui  tem  proseguido  a  huma  insensibilidade 
notável  da  cintura  para  baixo,  inchação  de  pés  e  mãos,  e 
olhos  quasi  sempre  fechados.  Tem  tido  algumas  occasiões 
de  allivio;  porém,  passado  este,  carrega-lhe  novo  ataque 
destes  simptomas  com  mais  força;  e  apezar  das  diligencias  e 


(1)  íCarta  ao  Pai  de  28  de  Maio  de  1816. 


052  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

disvelos  dos  facultativos  com  os  soccorros  da  Medicina,  nada 
até  hoje  nos  tem  dado  motivos  de  alguma  esperança  de  sua 
perfeita  cura.  Todavia  não  deixam  de  a  levantar  sempre  da 
cama,  e  dentro  de  uma  cadeirinha  é  conduzida  todos  os  dias 
por  dentro  do  Paço  em  forma  de  passeio,  o  que  sem  duvida 
lhe  é  muito  proveitoso:  e  por  ultimo  ha  idéas  e  votos  de  a 
fazerem  tomar  novos  ares  em  um  sitio  pouco  distante  daqui, 
a  que  chamão  Mata^Porcos,  onde  foi  a  residência  do  falle- 
cido  conde  das  Galvêas." 

Quando  no  seu  estado,  por  tantos  annos  normal,  de 
bem  estar  idiota,  dava  a  Rainha  diariamente  o  seu  passeio  de 
carro  pelas  ruas  da  sua  nova  capital,  ( i )  que  ella  nunca  che- 
gou a  conhecer  e  differençar  com  os  olhos  do  espirito.  No 
Rio  de  Janeiro  entretanto  lhe  foram  prestadas  as  impressi- 
vas honras  fúnebres  devidas  á  sua  jerarchia. 

Assim  que  peorou  extremamente  a  enferma  e  se  decla- 
rou o  artigo  de  morte,  a  19  de  Março,  sahiram  á  rua  confra- 
rias e  clero,  secular  c  regular,  com  a  cruz  alçada  e  entoando 
ladainhas  e  preces,  indo  todos  rojar-se  na  Real  Capella 
ante  o  Santissimo  Sacramento  e  recitar  as  antiphonas,  versos 
e  orações  litúrgicas  da  occasião.  No  palácio  o  officio  da  ago- 
nia e  os  psalmos  ipenitenciaes  eram  simultaneamente  rezados 
pelo  bispo  capellão-mór,  pelo  núncio  e  por  frei  Joaquim  Dâ- 
maso, da  Congregação  do  Oratório   (2). 

Uma  vez  dado  pela  pobre  demente  o  ultimo  alento,  ves- 
tiram-lhe  o  cadáver  de  negro  com  a  banda  das  trez  ordens 


(1)  Padro  1aú7j  (íon(;a.Ivi»s  dos  Sanctos,  06.  cit. 

(2)  rapellão  da  Infanta  Dona  Marianna,  irmã  da  líainha,  fal- 
locida  no  Rio  om  ISiri,  o  liihliolhecario  real.  Não  querendo  ficar  no 
Brazil  cm  1821,  foi  oUe  (lucm  do  novo  levou  para  IJsboin  os  manus- 
criptos  da  Coroa.  Marrocos  descrevia  o  padrcsinJio  como  tão  valido  de 
Aguiar,  "que  tem  toda  a  liberdade  de  ver,  mexer,  e  remexer  todos  os 
Papeis  da  dito  Conde,  e  ■est«  o  consulta  em  muitos  Etespachos  .... 
(Carta  de  19  de  Maio  de  1812). 


DOM  JOÃO  VI  KO  BRAZIL  953 

militares  e  da  Torre  e  Espada,  cobriram-lhe  os  hombros  com 
o  manto  das  mesmas  ordens  e  passaram-lhe  o  ijianto  real 
de  velludo  carmezim  bordado  de  estrellas  d'ouro  e  forrado 
de  setim  branco.  N 'estas  galas  mortuárias  celebrou-se  o  beija- 
mão  da  defuncta  na  presença  do  novo  Rei  —  "o  qual  está 
na  maior  desolação  possivel  de  magoa  e  de  saudade,  perdeu  o 
comer  e  ainda  persiste  em  continuo  pranto"   (i). 

Mettido  o  corpo  n'um  caixão  forrado  de  fina  Ihama 
branca  e  por  fora  de  velludo  negro,  com  drogas  aromáticas 
seccas  e  moidas  dentro  (2),  celebrou-se  o  funeral  com  as 
mesmas  solemnidades,  em  maior  escala,  observadas  por  oc- 
casião  do  enterro  do  Infante  Dom  Pedro  Carlos :  idênticos 
responsos  e  outros  actos  religiosos  do  ritual  e  da  pragmática 
e  uma  importante  exhibição  militar.  Nas  decorações  luctuosas 
da  egreja  predominavam  os  tons  roxos  da  viuvez,  e  a  pompa 
da  realeza  ainda  se  affirmava  na  construcção  de  columnas 
de  capiteis  corinthios  e  cúpula  de  velludo  preto  com  galões 
de  ouro  e  prata  sob  que  respousava  a  eça,  em  redor  da  qual 
se  succediam  em  todos  os  altares  missas  encommendando  a 
alma  da  soberana. 

O  officio  fúnebre  foi  presidido  pelo  núncio  do  Papa, 
que  rezou  o  responso  final,  seguindo  até  a  porta  o  cortejo  em 
que  figuravam  a  familia  real,  a  camareira-mór  e  as  damas 
'Vestidas  de  donaire",  todos  os  circumstantes  segurando  to- 
chas. No  préstito  formaram  os  cónegos  e  os  nobres,  de  capas 
pretas,  nas  suas  montarias  também  cobertas  de  mantas  de 
lucto,  alumiados  pelos  criados  de  libré  ostentando  nos  teli- 
zes  do  braço  os  brazões  das  casas  fidalgas  que  serviam. 


(1)  íCarta  de  Marrocos  ao  Pai,  ãe  30  de  Março  de  ISltí. 
(2»    Paidre   Luiz   Oonralvcs   dos    Sanctos,   ob.   cit. 


954  DOMfJOAO  VI  NO  BRAZIL 

Puxavam  o  coche  oito  machos  e  escoltavam-no  os  re- 
gimentos de  linha  e  de  milicias  "com  os  tambores  cobertos 
de  baetas  negras,  as  bandeiras  de  rasto,  e  enlutadas  com 
fumo,  e  com  marchas  muito  maviosas."  (i)  A'  porta  da 
cgreja  da  Ajuda  desceu-se  o  caixão,  que  primeiro  foi  levado 
sobre  o  esquife  da  Misericórdia,  aos  hombros  de  irmãos  po- 
bres, n'um  bello  symbolo  da  igualdade  humana  perante  a 
morte,  e  então  carregado  para  o  interior  pelos  grandes 
do  Reino  e  reposteiros  do  Paço,  emquanto  os  officiaes  da  Real 
Casa  quebravam  suas  insígnias  em  publico. 

Oito  dias  depois  os  vereadores  da  Camará  em  sombria 
procissão,  precedida  por  um  cidadão  de  capa  negra,  com 
bandeira  negra  e  o  fumo  arrastando  do  chapéu  de  largas 
abas,  também  quebrariam  os  escudos  nos  tablados  adrede 
levantados  na  praça  do  Capim,  no  largo  de  Santa  Rita,  no 
Rocio  €  diante  da  Lapa  do  Desterro,  concitando  o  povo  a 
chorar  a  morte  da  sua  Rainha  (2),  cujo  lucto  de  um  anno 
já  o  bando  do  Senado  sahira  a  annunciar. 

Contemplações  pela  saúde  de  Dom  João  fizeram  redu- 
zir o  nojo  a  oito  dias  (  3  ),  decorridos  os  quaes  a  família 
real  recebeu  pezames  e  sahiu  a  ouvir  missa  e  aspergir  o  cai- 
xão, sendo  recebida  dentro  do  coro  pela  communidade  do 
convento,  com  a  abbadessa  á  frente,  de  pluvial  negro. 

As  exéquias  realizaram-se  a  23  de  Abril,  na  Real  Ca- 
pejla,  forrada  de  alto  a  baixo  de  negro  avivado  de  ouro  que 
se  casava  com  os  entalhamentos  dos  altares,  as  franjas  dos 


(1)  Padre   Luiz    Gonçalves   dos   Sanctos,   oh.   cit. 

(2)  Em  Lisboa,  onkle  se  achava  em  1816,  Toillenare  presenciou 
ipspeetaculo  análogo  promovido  pelo  Senado  da  Camará  (Parte  ms.  e 
ined.    das   Notas   Dominicaes) . 

(3)  "El  Rey  N.  Senhor  em  razão  do  clima  dispensou  as  meias 
de  seda  em  luto  rigoroso  :  e  logo  ao  principio  havia  dispensado  o  rigor 
da  Pragmática  de  1746,  quajito  a  pessoas  pobres".  ((Carta  de  Marrocos 
ao   Pai   de  30  de  Março  de   1816). 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  955 

dóceis  e  o  espaldar  do  sólio  episcopal.  Na  véspera,  mergu- 
lhado nas  trevas  o  mausoléu  octogono  com  emblemas  ma- 
gestaticos  e  inscripções  latinas,  tinha  tido  lugar  o  officio 
de  canto-chão  entoando  os  capellães  e  cónegos  as  lições, 
e  os  responsorios  os  músicos  dirigidos  pelo  grave  e  pomposo 
Marcos  Portugal.  A  cerimonia  no  próprio  dia  prolongou-se 
das  IO  Yj.  da  manhã  ás  4  da  tarde,  executando-se  a  missa  de 
pontifical  e  as  absolvições  do  mesmo  maestro  Fortogallo  e 
proferindo  o  sermão  o  deão  de  Braga. 

A  cidade  inteira  como  que  carregara  o  lucto  em  acom- 
panhamento ao  da  dynastia,  echoando  nas  ruas  e  praças  os 
cânticos  de  saudade  que,  no  interior  da  maioria  dos  templos 
e  conventos,  provocava  a  real  memoria  evocada  nos  sermões 
e  jaculatórias,  de  encommenda  dos  regimentos,  das  irman- 
dades, de  todas  as  corporações  militares,  civis  e  religiosas,  até 
da  Ordem  de  Malta.  Os  bardos  de  nenias,  os  escrevinhadores 
de  elogios  históricos,  os  latinistas  de  epigraphes,  os  músicos 
de  voz  e  de  instrumentos,  os  armadores  de  egreja  e  artífices 
em  qualquer  género,  os  oradores  sagrados  em  ferias,  todas 
estas  classes  passaram  um  anno  regalado,  rivalizando  em 
perícia  e  sinceridade,  como  rivalizavam  na  ostentação  os  que 
lhes  pagavam  a  melancholia  e  o  primor.  Marrocos  escrevia 
(i)  que  começou  a  fazer  collecção  das  inscripções  sepul- 
chraes,  suspendendo-a  *  por  não  ter  proporções,  para  obtel-as 
de  toda  a  parte,  nem  também  merecião  essa  fadiga." 

Diz  o  chronísta  Padre  Luiz  Gonçalves  que  nenhuma 
demonstração  do  pezar  fluminense  excedeu  porém  em  ma- 
gnificência as  exéquias  mandadas  celebrar  na  própria  egreja 
da  Ajuda,  com  assistência  do  Rei,  pelo  Senado  da  Camará. 
A  imaginação  macabra  dos  decoradores    dera-se   largas  na 

(n  (Caii-ta  ao  T'ai  do  10  do  .Talha  do  181 G. 


956  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

estatuária  symbolica:  umas  figuras  de  anjos  com  caveiras  na 
mão,  como  Hamlets  de  cemitério,  equilibrando-se  sobre  as 
pontas  dos  obeliscos  carregados  de  tropheos  nas  bases,  onde 
vinham  prender-se  as  grandes  cortinas  de  velludo  negro  que 
desciam  do  sobrecéo,  em  forma  de  coroa,  do  cenotaphio  guar- 
dado pela  Sabedoria,  exhibindo  esta  inscripção  lisonjeira  a  um 
tempo  da  Rainha  morta  e  do  seu  herdeiro: 

Se  abrigo  o  Filho  Excelso  me  não  fora, 
Ao   Ceo,   donde  baixei,   volvera  agora. 

O  fallecimento  de  Dona  Maria  I  suspendera  um  com- 
plemento de  separação  de  que  resultaria  para  o  filho  um  ac- 
crescimo  d 'essa  segurança  pela  qual  lhe  foi  tão  cara  a  terra 
brazileira.  Dona  Carlota  Joaquina  pretendia  acompanhar  a 
Hespanha,  donde  muito  provavelmente  não  regressaria  á 
America,  as  duas  Infantas  que  alli  iam  consorciar-se  e  cujo 
embarque  foi  retardado  pela  repentina  gravidade  do  estado 
da  avó.  "Muito  gosto  fazia  de  ser  EUa  Mesma  a  Con- 
ductora  de  suas  filhas,  e  de  as  entregar  aos  seus  dous  Ir- 
mãos, fazendo  com  a  sua  Real  Presença  ainda  mais  festivas 
e  solemnes  as  ceremonias  dos  Reaes  Consórcios"  (i). 

Menos  de  um  mez  antes  do  óbito  da  soberana,  precisa- 
mente no  dia  para  o  qual  fora  marcada  a  partida  das  In- 
fantas (2),  escrevia  Marrocos  ao  Pai:  "A  partida  de 
S.  A.  R.  (Dona  Carlota  Joaquina)  para  Hespanha,  ou 
para  Lisboa,  não  he  já  objecto  de  duvida:  os  preparos  são 
decisivos  em  todos  os  ramos  relativos  a  este  ponto:  toda  a 
Familia,  assim  das  Senhoras,  como  de  criados,  está  prompta : 
deram-se  a  todos  as  competentes  ajudas  de  custo;  i  :ooo$ooo 


(1)  Padre  Luiz  Gonçalves  dos  »anctos,  oh.  cit. 

(2)  2.3  âe  Fevei-eiíTO  de  1816. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  957 

á  Camareira-Mór,  400$ooo  ás  Açafatas,  e  assim  os  mais  em 
proporção,  vindo  a  terminar  com  as  de  8o$ooo  a  Varredores 
e  Moços  de  Quarto:  Ha  tenção  de  ser  a  sahida  a  20  de 
Março,  e  em  Quarta-feira  será  a  Desobriga  geral.  Não 
posso  explicar  a  V.  Mcê.  o  fervor  e  a  pressa,  com  que  se 
está  embarcando  o  trem  pelas  respectivas  Repartições;  e 
vejo  caixões  que  custão  a  carregar-se  por  20  negros:  a  Nao 
S.  Sebastião  está  mui  linda,  sendo  renovada  e  pintada,  assim 
como  a  Fragata  Hespanhola  do  Vigodet:  e  SS.  AA.  tem  ido 
jantar  a  bordo  muitas  vezes:  aff irmão  que  as  mais  Embar- 
cações de  Guerra  que  forão  conduzir  a  tropa  a  Santa  Ca- 
tharina,  devem  acompanhar,  assim  como  certos  Navios  mer- 
cantes, creio,  de  refrescos  ou  mantimentos.  Apezar  de  todos 
estes  preparos  públicos  e  indubitáveis,  ha  muitas  apostas  e 
questões  particulares  sobre  a  concluzão  desta  empreza;  mas 
de  certo  nenhum  fundamento  ha  para  estas  duvidas  senão 
as  reflexões  politicas,  que  faz  suggerir  a  actual  moléstia  de 
S.  Magestade,  não  podendo  combinar-se  politicamente,  no 
meio  deste  inconveniente,  a  retirada  daquellas  Senhoras, 
quando  mesmo  S.  A.  R.  por  este  motivo,  não  effeituou  agora 
a  sua  costumada  Jornada  de  Santa  Cruz  neste  mez,  a  que 
nunca  tem  faltado,  por  sua  saúde,  obrigando-sie  por  isto, 
a  huma  continua  e  vigilante  attenção  da  moléstia  de  S.  Ma- 
gestade. Mas  o  tempo  perde-se  nestas  reflexões,  que,  sem  ser 
Sebastianista,  ouso  affirmar  sahirão  goradas  aos  duvidosos." 
As  Infantas  foram  sós:  Dona  Carlota  tinha  agora  de- 
veres de  Rainha  a  cumprir,  e  ficou,  sem  que  no  emtanto 
mais  esta  contrariedade  lhe  abatesse  o  espirito  forte,  como 
não  deu  mostras  de  enternecel-a  em  demasia  a  separação  das 
filhas,  a  quem  muito  prezava.  Por  occasião  do  bota-fóra  o 
Rei  demorou-se  apenas  um  quarto  de  hora  a  bordo  e  rcti- 

D.J.  —  GU 


958  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rou-se  aos  soluços:  a  Rainha  não  chorou,  attendeu  aos  úl- 
timos preparativos  da  viagem  antes  de  descer,  e  foi,  com  os 
olhos  seccos  e  brilhantes,  acompanhar  por  terra  os  navios  em 
direcção  á  barra,  até  perdel-os  de  vista  na  Praia  Vermelha, 
donde   lhes   dirigiu  o   ultimo   adeus    (i). 

Não  é  que  fosse  destituida  de  coração  Dona  Carlota; 
pelo  contrario  o  seu  humor  caridoso  era  tão  vivo  quanto  a  sua 
Índole  vingativa.  Marrocos  conta  a  esse  respeito  uma  ane- 
cdota  tj^pica  (2).  Um  servente  mettera  sem  razão  alguma 
plausivel,  antes  diffamando-a  vergonhosamente,  a  mulher 
n'um  recolhimento,  onde  a  deixou  ao  abandono  e  ao  soffri- 
mento.  Justificando-se  judicialmente  e  conseguindo  recobrar 
a  liberdade,  a  pobre  poz-se  a  servir  para  se  manter  e  valer 
ás  duas  filhinhas,  obtendo  por  fim  ser  criada  de  uma  das 


(1)  "No  dia  2  do  corrente  raez  as  Sras.  D.  Maria  Izabel,  Uainlia 
de  Ilespanlia,  e  D.  Maria  Francisca  embarcarão-  logo  de  manliã  na 
Nao  8.  Seboslião,  e  suas  criadas,  3  Açafatas,  as  criadas  destas,  2  Ro- 
tretas,  2  moças  de  Quarto,  e  2  pretas,  para  ficarem  em  Ilespanha  ao 
seu  s.eiiviço  ;  e  acompanhadas  pelo  Mai-quez  de  Vallada,  a  Marqueza  sua 
mullier,  liuma  filha  delle  ainda  solteira,  a  Condeça  de  Linhares  (Ca- 
mareira-Mor)  e  a  Condeça  do  Barreiro,  Viuvas.  Os  criados  não  tinháo 
destino  de  ficarem  em  Hespanha,  menos  aquelles  que  as  ditas  Senhoras 
quizerem  que  alli  fiquem,  para  o  que  levão  licença  somente  nesse  caso  : 
foi  eguslmente  o  Medico  Azevedo,  irmão  do  Barão  do  Kio  Secco.  D"- 
pois  de  hir  o  Bispo  a  hordo  benzer  a  Nao,  e  haver  Beija-Mão  publico 
de  despedida,  ao  qual  foi  immenso  Povo,  a  que  se  dava  entrada  na  Nao 
sem  excepção  de  pessoa,  sahirão  no  dia  seguinte  3  pela  manhã  com  boui 
vento  :  foi-ão  acompanhadas  da  Fragata  Principe  D.  Pedro,  em  que  hia 
o  Marechal  Beresford,  que  se  offereceu  para  acompanhal-as,  e  da  Fi-a- 
'^ata  Ilespanhola,  em  que  hia  o  Tenente-íGeneral  Vigodet,  Encarregado 
da  rommissão.  Parece  que  o  rumo  he  para  Cadiz,  e  dalli  para  Lisboa. 

V  sua  sahida  foi  muito  vistosa,  mas  pranteada.  A  Rainha,  havendo  es- 
tado no  dia  antecedente  sempre  a  bordo  até  As  10  horas  da  noute,  toi 
também  ao  bota-fóra,  não  levando  nunca  as  outras  Sras.  Infantas  com- 
sigo.  BURey  c-steve  a  bordo  só  hum  quarto  de  ho-ra,  e  retiroai-se  logo 
para  o  Paço.  _  ^  ,,„^„ 

O  acto  da  separação  foi  terníssimo  para  com  seu  Pay,  nem  pode 
descrever-se,  assim  como  o  animo  varonil  de  sua  ."Mãy,  que  sem  lagrimas 
exteriores  mostrou  o  seu  disvelo  em  seus  preparos  ;..._.  . 

Nos  primeiros  dias  depois  de  sua  sahida  receberão  ,S.  Magestades 
cartas  de  suas  Filhas  por  Navios.-  que  encontravão  no  «lar,  o  que  se  (fi- 
rigião  para  este  Porto."   (Carta  de  Marrocos  ao  Pai  de  10  de  Julho  de 

(2)  Carta  ao  Pai  de  28  de  Setembro  de  1813. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  959 

retretas  da  Princeza  Real.  Levada  de  sege  para  Botafogo, 
foi  admittida  a  beijar  a  mão  de  Dona  Carlota,  e  tão  con- 
doida  ficou  esta  da  penúria  da  rapariga,  que  para  mais 
andava  enferma,  e  ao  mesmo  tempo  tão  agradada  d'ella, 
que  lhe  fez  preparar  logo  roupa  e  pessoalmente  ordenou  ao 
medico  da  real  camará  que  a  attendesse  com  fodo  o  carinho, 
correndo  os  remédios  por  conta  do  seu  bolsinho.  *'Foi  S.  A. 
tão  estremosa  neste  ponto,  que  hia  lembrar  á  doente  as  horas, 
em  que  todos  os  dias  havia  de  tomar  os  remédios,  assistindo 
alli  nessas  occasiões.  Sabendo  ao  depois  que  ella  tinha  duas 
filhas  pequenas  e  em  desamparo,  mandou  logo  buscal-as, 
vestiu-as  nobre  e  magnificamente  com  hum  primoroso  enxo- 
val,, e  pol-as  a  educar  e  aprender  em  hum  Colkgio  de  meni- 
nas, pagando  mensalmente  por  sua  educação  36$ooo." 

Dom  João  era  menos  expansivo  talvez  nos  seus  impul- 
sos generosos,  mas  em  compensação  não  era  tão  rancoroso. 
Perdoava  com  muito  mais  facilidade.  Na  atmosphera  sus- 
picaz  de  Lisboa,  inficionada  de  idéas  jacobinas,  um  tempo 
houve  em  que  o  Principe  Regente  facilmente  viu  conspira- 
ções e  attentados  què  lhe  descobria  a  cada  passo  —  e  até  os 
inventava  —  o  Intendente  de  policia  Pina  Manique:  (i) 
nem  assim,  porem,  se  tornou  um  tyranno.  Apenas  descon- 
fiava dos  homens  intelligentes  e  illustrados  que  lhe  não  des- 
sem prova  particular  do  seu  devotamento,  aborrecendo  mes- 
mo a  sciencia  por  julgal-a  madrinha  de  reformas  politicas. 


(1)  Pina  Manique  ficou  na  fama  como  o  prototypo  do  adminis- 
trador rígido  o  arbitrário :  deportava  a  seu  talante  para  o  ultramar 
e  envolvera  a  vida  social  portiigueza  n'ura  systema  de  espionagem  o  de- 
lação. No  dizer  do  auctor  'anonymo  da  Uistoirc  de  Jcan  VI,  sua  activi- 
dade era  muito  maior  em  fomentar  os  próprios  interesses  do  que  em 
zelar  o  aceio  e  segurança  da  capital,  devendo-se  a  I).  Rodrigo  de  Sou>;a 
Coutinho  tanto  a  illuminação  permanente  de  LisI)oa,  como  a  creação  da 
policiíi  a  pó  e  a  cavallo.  E'  justo  comtudo  lembrar  que  Pina  Manique 
cuidou  da  instrucção,  fundando  uma  casa  de  correcção  para  os  doug 
sexos,  escolas  de  desenho  o  coUegios  etc. 


960  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

No  Brazil  mudara  sua  situação  de  espirito.  Longe  da 
Frainça  e  reposto  dos  seus  terrores  demagógicos,  enxergava 
as  cousas  com  mais  calma,  abordava-as  com  mais  discerni- 
mento, resolvia-as  com  mais  longanimidade  ainda,  e  tão 
accentuada  e  pessoal  lhe  ficou  a  feição  que  d'ella  se  não 
despojou  quando,  de  novo  em  Lisboa,  se  viu  a  braços  com  a 
agitação  constitucional  e  a  reacção  absolutista. 

São  abundantes  os  exemplos  da  tolerância  de  Dom 
João.  O  general  bonapartista  Hogendorp,  antigo  comman- 
dante  em  chefe  de  Wilna  e  fervente  admirador  de  Napo- 
leão, viveu  tranquillo  e  isolado  n'uma  fazenda  nos  arredores 
do  Rio,  cultivando  seus  20.000  pés  de  café,  sem  que  jamais 
o  incommodasse  a  policia  ou  deixasse  o  Rei  de  usar  para  com 
elle  de  toda  a  contemplação.  O  velho  militar,  que  era  uma 
das  curiosidades  da  capital  fluminense,  costumava  até  rece- 
ber frequentes  visitas  de  diplomatas  e  outros  estrangeiros, 
que  o  procuravam  como  a  um  homem  de  reputação  e  valor. 

O  episodio  com  o  marquez  de  Loulé  é  o  mais  signifi- 
cativo. A'  revelia  condemnado  á  pena  ultima  por  sentença 
dada  em  Lisboa  a  21  de  Novembro  de  181 1,  dictada  pelo 
crime  de  lesa-patria  pois  que  pegara  em  armas  com  os  Fran- 
cezes  e  servira  ás  ordens  de  Massena,  apezar  de  haver  sido 
um  mimoso  do  Regente,  Loulé  alguns  annos  depois,  em 
181 7,  decidiu-se  a  ir  ao  Rio  implorar  o  perdão  real.  Reco- 
lhido á  prisão  como  contumaz,  ahi  permaneceu  treze  mezes, 
mas  foi  em  seguida  solto,  dando-se-lhe  o  novo  Reino  por 
menagem,  e  successivamente  indultado,  rehabilitado  e  resta- 
belecido nas  suas  honras,  mercês  e  bens,  ficando  em  esque- 
cimento o  facto  capital  e  sem  effeito  algum  a  sentença  pri- 
mitiva. Mais  do  que  isto,  readmittiu  o  Rei  o  fidalgo  no  seu 
serviço,  dizendo  ao  seu  séquito  quando  o  ergueu  do  chão, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  961 

onde  elle  se  prosternara:  Foi  o  primeiro  que  se  fiou  no  meu 
coração  e  se  entregou  nas  minhas  mãos.  ( i )  Marrocos, 
espantado,  communicava  ao  Pai  (2)  que  o  réo  de  alta  trai- 
ção fora  convidado  para  o  Paço  e  já  entrara  de  semana  como 
camarista. 

O  académico  Stockler,  de  cuja  bocca  ouvira  o  Rei  o  ex- 
celso elogio  official  da  sua  politica  americana,  era  outro  trai- 
dor perdoado.  Chegara  inesperadamente  ao  Rio  uns  seis 
annos  antes,  em  1812,  dizia  ironicamente  Marrocos  (3) 
que  "para  servir  onde  S.  A.  R.  houvesse  por  bem  empre- 
gal-o",  não  o  vendo  elle  comtudo  ir  ao  Paço  e  não  tendo 
ainda  beijado  a  mão  do  Principe.  "Elle  vive  como  em  retiro 
fora  da  cidade,  inculca  muito  de  sua  conducta  exemplar  no 
tempo  do  intruso  Governo,  e  publicou  huma  Obra — Cartas 
ao  Auctor  da  Historia  Geral  da  Invasão  dos  Francezes  e?n 
Portugal,  e  da  Restauração  deste  Reino.  Rio  de  Janeiro 
18 13.  4° — em  que  pertende  justificar-se  com  muita  palavra 
ou  parolada,  assim  como  o  seu  Plano  de  Campanha  com  o 
Duque  de  Lafões,  porem  he  tão  infeliz  que  cada  vez  se  con- 
demna  mais,  e  se  atola  no  lodo." 

A  bondade  proverbial  de  Dom  João  VI,  a  sua  allgemein 
bekannte  Herzensgute  como  a  chamava  von  Leithold  (4), 
era  tanto  mais  espontânea  quanto  nem  se  podia  dizer  fosse 


(1)  von  LeithoM,  oh.  cit.,  onde  se  encontra  narrado  o  caso  com 
todos  os  pormenores. 

(2)  Carta   de  8   de  Setembro  de  1818. 

(3)  íCarita  ao  Pai  de  28  de  Setembro  de  1813. 

(4)  von  Leithold  lião  alcançou  todavia  que  o  Kei  Ibe  conce- 
desse terras  para  um>a  faz-enda  ;  mas  conta  que  a  um  conde  d'0mervail 
que  veio  pela  primeira  vez  ao  Rio,  especular  por  conta  própria  e  alheia, 
n"um  navio  que  ?e  incendiou  com  toida  a  carga,  salvando-«e  a  custo  3 
apoz  muitos  perigos  a  tripclação,  fez  o  Rei  presente  de  18  comtós,  nSo 
tendo  sido  possivel  conceder-lhe  como  projectava  livre  franquia  adua- 
neira das  mercadorias,  trazidas  em  1810,  quando  pela  segunda  voz  veio 
tentar  fortuna.  Os  es*criptores  estrangoivos  são  absolutamente  unanimes 
em  celebrar  a  natureza  indulgente  de  Dom  João  VI. 


962  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

estimulada  por  um  cálido  sentimento  religioso.  Dona  Car- 
lota era  devota,  mas  a  Dom  João  pouco  faltava  de  facto 
para  ser  no  intimo  voltairiano.  Basta  citar  em  abono  do  seu 
aborrecimento  ao  fanatismo  o  despacho  do  marquez  de 
Aguiar  ao  ministro  portuguez  em  Roma  José  Manoel  Pinto, 
declarando  que  o  governo  do  Principe  Regente  de  Portugal 
não  adheria  absolutamente  ao  restabelecimento  da  Compa- 
nhia de  Jesus  feita  pelo  Papa  Pio  VII  por  meio  da  bulia 
SoUicitudo  omnium,  ^'porquanto  a  corte  do  Rio  de  Janeiro 
não  fora  prevenida  dessa  deliberação  pontifical  e  muito  tinha 
a  queixar-se  das  offensas  da  Companhia  de  Jesus,  contra  a 
qual  Portugal  tinha  tido  que  adoptar  medidas  muito  enér- 
gicas." Propunha-se  o  Principe  Regente  conservar  em  pleno 
vigor  o  alvará  de  3  de  Setembro  de  1759,  que  expulsara  a 
Ordem,  e  as  instrucções  expedidas  ao  seu  representante  diplo- 
mático junto  á  Santa  Sé  eram  de  não  acceitar  discussão,  nem 
escripta  nem  verbal,  sobre  o  assumpto   (i). 

Não  se  é  impunemente  do  seu  tempo,  tempo  de  duvida 
e  de  negação,  ainda  que  Dom  João  VI  tivesse  crescido 
n'uma  corte  de  exterioridades  beatas  e  sob  a  auctoridade 
de  uma  Mãi  e  Rainha  que  a  devoção  levou  á  insânia.  Por 
outro  lado,  porém,  era  neto  pelo  pai  de  Dom  João  V,  que 
fazia  dos  conventos  de  freiras  o  retiro  dos  seus  atrevidos 
galanteios,  e  pela  mãi  neto  do  Rei  que  sustentara  o  anticle- 
ricalismo  de  Pombal  (2),  certo  de  que  lhe  aproveitava  ao 
regalismo. 


(1)  iDespacho  de  1  de  Abril  de  1815,  no  Arch.  do  Min.  das  Rei. 
■¥.^\. 

Í2)  O  Sr.  Zephyrino  Brandão  acaba  de  publicar  um  livro  em  que 
protimde  provar  ter  sido  Pombal  um  espirito  sinceramente  religioso,  o 
que  todavia  não  exclue  que,  em  holocausto  ao  Estado,  houvesse  despe- 
dido núncio,  expulsado  jesuítas  e  até  queimado  o  padre  Malagrida. 


DOM  JOÃO  VI  í>0  13UAZIL  963 

O  filho  primogénito  de  Dona  Maria,  o  pranteado 
Príncipe  do  Brazil  Dom  José,  criado  ao  influxo  de  Pom- 
bal, Seabra  e  outros  bons  filhos  do  século  XVIII,  deixou 
lembrança  das  suas  idéas  adiantadas:  Beckford  d'ellas  se 
espantou  n'uma  conversação  privada  que  tiveram  nos  jardins 
de  Queluz.  Dom  João  era  menos  illustrado  mas  não  seria 
menos  intelligente  que  o  irmão,  e  dava  seu  exacto  valor  á 
expressão  tradicional  de  uma  sociedade  que  era  supersticiosa 
muito  mais  do  que  religiosa,  sem  esquecer  que  na  França, 
igualmente  povoada  de  templos  e  de  mosteiros,  congregados 
do  Oratório  e  seminaristas  se  tinham  transformado  da  noite 
para  o  dia  em  convencionaes  regicidas  e  desapiedados.  Não 
havia  que  fiar  tudo  do  freio  religioso. 

Dom  João  comprehendia  no  emtanto  que  a  Egreja,  com 
seu  corpo  de  tradições  e  sua  disciplina  moral,  só  lhe  podia  ser 
útil  para  o  bom  governo,  a  seu  modo,  paternal  e  exclusivo, 
de  populações  cujo  dominio  herdara  com  o  sceptro.  Por  isso 
foi  repetidamente  hospede  de  frades  e  Mecenas  de  compo- 
sitores sacros,  sem  que  n'essas  manifestações  epicuristas  ou 
artisticas  se  compromettesse  seu  livre  pensar  ou  se  desna- 
turasse sua  tolerância  sceptica. 

Aprazia-lhe  o  refeitório  mais  do  que  o  capitulo  do 
mosteiro,  porque  n'este  se  tratava  de  observância  e  n'aquelle 
se  cogitava  de  gastronomia,  e  para  observância  lhe  bastava 
a  da  pragmática.  Na  Capella  Real  mais  gosava  com  os  sen- 
tidos do  que  rezava  com  o  espirito:  os  andantes  substituíam 
as  meditações.  Era  o  seu  grande  prazer  a  musica;  como  a 
gulodice  o  seu  peccadilho,  e  si  uma  e  outra  revestiam  a  forma 
ecclesiastica,  a  razão  estava  em  que  as  fazia  forçadamente 
assumir  tal. aspecto  o  caracter  dominante  da  sociedade  portu- 
gueza  do  tempo,  freiratica  e  voluptuosa. 


964  DOM  JOÃO  TI  NO  BRAZIL 

Aos  monarchas  tíbios  de  fé  catholica  e  convencidos 
das  excellencias  do  despotismo  esclarecido  e  magnânimo, 
como  Carlos  III  d'Hespanha  e  José  II  d'Austria,  tinha 
Dom  João  por  modelos,  e  nenhum  d'esses,  affeiçoados  como 
eram  aos  progressos  materiaes  e  despidos  de  preconceitos  ul- 
tramontanos,  perdia  seu  tempo  com  ladainhas  ou  se  entre- 
gava ingénuo  nas  mãos  de  um  confessor  astuto,  que  assim 
vinha  a  possuir  a  realidade  do  poder.  Para  mandar,  El-Rei 
bastava;  para  executar  e  mesmo  aconselhar,  uns  poucos  de 
competentes;  para  obedecer,  a  grande  massa  que  se  fazia 
necessário  trazer  satisfeita,  interessando-se  por  ella,  activan- 
do-lhe  o  bem  estar,  proporcionando-lhe  até  vaidades  para  não 
ter  que  lhe  supportar  caprichos. 

E  quando  estes  pela  força  das  cousas  surgissem  e  não 
bastassem  para  contental-os  as  commendas,  os  titulos,  as 
promoções,  as  honrarias,  os  benefícios  e  as  festas,  que  remédio 
senão  contemporizar,  acceder,  afagar,  para  não  perder  tudo, 
para  conservar  o  essencial  ?  Monarcha  que  assistira  a  tantas 
provações  de  outros  e  vira  até  rolar  do  cadafalso  a  cabeça 
de  um,  devia,  si  fosse  sensato,  dar-se  por  satisfeito  com  pre- 
servar a  sua  coroa  ainda  que  mareada.  O  manto  sobre  os 
hombros  agasalhava  sempre  e  parecia  sempre  decorativo, 
quando  mesmo  o  arminho  fosse  falso  e  o  velludo  de  algodão. 


CAPITULO  XXV 


O  ESPECTÁCULO  DAS  RUAS 


Nunca,  como  em  tempo  de  Dom  João  VI,  foi  a  corte 
do  Rio  de  Janeiro  tão  animada,  nem  as  suas  ruas  tão  pit- 
torescas.  Formigavam  nellas  typos  hoje  desapparecidos  e 
que  eram  representativos  de  outros  costumes  e  de  outras 
idéas,  os  andadores  das  almas  e  pedintes  de  irmandades  por 
exemplo,  com  suas  opas  verdes,  escarlates  e  azues,  exten- 
dendo  aos  transeuntes  e  abrindo  debaixo  das  janellas  os 
largos  saccos  vermelhos  que  traziam  cozida  a  imagem  do 
Santo  ou  da  Virgem,  gravada  n'uma  pesada  chapa  de  prata; 
ou  os  cumpridores  de  promessas  devotas,  tirando  por  humil- 
dade christã  e  não  por  necessidade  esmolas  para  uma  missa 
em  acção  de  graças. 

As  superstições  continuam  a  florescer  na  nossa  capital 
fluminense  —  um  recente  e  curioso  inquérito  sobre  as  reli- 
giões do  Rio  o  demonstrou,  exhibindo  nomeadamente  em 
toda  sua  crueza  as  grotescas  e  terriveis  superstições  negras 
— mas  não  mais  se  ostentam  como  quando  percorriam  a  ci- 
dade os  vendedores  de  arruda,  que  todas  as  negras  compra- 
vam para  se  preservarem  de  feitiçarias;  ou  se  dava  em  cheio 


906  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

com  um  ruidoso  funeral  de  filho  de  rei  africano  (o  qual 
continuara  na  escravidão  a  exercer  prestigio  e  auctoridade 
sobre  os  ex-vassallos  de  seu  pai),  cujo  cadáver  fora  velado 
por  deputações  das  differentes  nações  da  Costa,  e  se  trans- 
portava n'uma  rede,  precedida  de  um  negro  atirando  fo- 
guetes e  bombas  e  de  outros  executando  em  todo  o  percurso 
cabriolas  pelo  chão,  e  seguida  de  uma  multidão  côr  "de 
ébano,  em  parte  silenciosa,  lúgubre  e  burlesca  a  um  tempo, 
em  parte  tangendo  instrumentos  exquisitos  e  entoando  can- 
tigas estridentes. 

Era  sobretudo  a  população  de  côr  que  emprestava  á 
capital  do  Reino  Unido  de  Portugal,  Brazil  e  Algarves  o 
seu  aspecto  estranho  e  único  na  monarchia,  compartilhado 
é  claro  pelas  outras  cidades  do  littoral  brazileiro.  Em  Lisboa, 
não  obstante  o  forte  contingente  africano,  predominavam 
os  brancos;  nas  possessões  d'Africa  os  negros  estavam  quasi 
sós;  no  Rio  de  Janeiro  era  que  se  equilibravam  em  numero 
descendentes  de  Europeus  e  de  Africanos,  avolumando-se 
constante  e  simultaneamente  ambas  as  correntes  com  a  en- 
xurrada de  reinóes  attrahidos  pela  corte  *e  as  levas  de  escra- 
vos arrebanhados  pelos  negreiros. 

As  numerosas  e  impressivas  lithographias  que  acompa- 
nham o  texto  das  obras  de  Debret  e  de  Chamberlain,  e  que 
são  a  mais  completa  e  interessante  documentação  artistica  da 
residência  americana  de  Dom  João  VI,  fornecem  uma  idéa 
bastante  precisa  do  que  era  o  carnaval  perpetuo  d'essa  cidade 
sob  muitos  aspectos  ainda  colonial,  sob  outros,  não  menos 
abundantes,  exótica,  e  apenas  cortezã  por  algumas,  mais  raras, 
feições.    ' 

Daria  occasionalmente  esta  ultima  nota  uma  traquitana 
de   desembargador   da  Casa   da  Supplicação,   com  sua  beca 


DOM  JOÃO  VI  NO  BUAZIL  967 

de  seda  negra  e  ao  pescoço  o  collar  carmezim  de  Christo, 
ou  a  sege  de  um  ministro  d'Estado,  escoltada  pelos  correios 
a  cavallo,  de  farda  azul  com  gola  e  punhos  vermelhos  aga- 
loados de  ouro,  botas  altas  e  chapéu  armado  de  oleado. 
Muito  mais  frequentes  appareciam  no  emtanto  outros  es- 
pectáculos, menos  aristocráticos.  Ora  seria  um  baptizado 
de  negros  novos,  com  seus  padrinho  e  madrinha  de  cor,  es- 
paventosamente vestidos ;  ora  um  casamento  de  mucama  e  co- 
peiro de  casa  de  tratamento;  ora  um  enterro  de  anjinho 
preto,  cujo  corpinho,  quando  o  permittiam  as  posses  dos  pais, 
era  levado  n'uma  vistosa  cadeirinha  adrede  alugada,  ou  pelo 
menos  carregado  sem  acompanhamento  n'um  singelo  tabo- 
leiro,  com  flores  artificiaes  espetadas  nos  quatro  cantos. 

Aos  enterros  dos  negros  adultos  concorriam  sempre  um 
mestre  de  cerimonias  de  vara  na  mão  e  transudando  impor- 
tância, um  rufador  de  caixa-tambor  e  algumas  carpideiras 
que  psalmodiavam  e  batiam  palmas  para  acompanharem  o 
rhythmo  do  pranto.  Si  de  todo  era  destituida  de  bens  a 
gente  do  morto,  o  corpo*  expunha-se  na  rua  dentro  da  rede 
mortuária,  afim  de  recolher  os  obulos  dos  viandantes  que 
permittissem  a  inhumação,  a  qual  sempre  custava  alguma 
cousa.  Não  havia  risco  de  ficar  um  cadáver  insepulto,  porque 
a  caridade  dos  próprios  negros  se  manifestava  infallivelmente 
para  com  os  fallecidos  irmãos  desvalidos. 

Semelhantes  cortejos,  festivos  ou  fúnebres,  de  continuo 
os  offerecia  a  cidade  no  seu  ar  pronunciadamente  africano, 
que  foi  perdendo  depois  da  abolição  do  trafico,  da  progressiva 
extincção  dos  negros  da  Costa,  do  augmento  da  immigração 
européa  e  da  diluição  dos  mestiços  na  população  branca,  ga- 
nhando de  todo,  senão  a  cor,  os  modos  e  o  aspecto  geral  e 
uniforme  do  resto  da  gente.  N'outros  tempos,  porém,  dcscm- 


968  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

penhavam  os  pretos  papel  muito  considerável  na  vida  quoti- 
diana da  cidade,  na  sua  existência  económica  e  na  sua  exis- 
tência domestica,  e  si  por  um  lado  se  achavam  então  mais 
perto,  pela  constante  importação  dos  seus  contingentes,  da 
primitiva  selvajaria,  por  outro  tinham  basto  ensejo  de  dar 
largas  a  todas  suas  qualidades  de  dedicação  e  affectividade. 

Como,  sem  faltar  á  verdade  de  uma  reconstrucção  lit- 
teraria,  expulsar  do  tablado  fluminense  da  epocha  esse 
mundo  animado  de  barbeiros  ambulantes  armados  de  medo- 
nhas navalhas,  cesteiros  vendendo  os  samburás  que  teciam, 
mercantes  de  gallinhas,  de  caça,  de  palmitos,  de  leite,  de 
capim  para  forragem,  de  milho,  de  carvão,  de  cebollas  e 
alhos,  de  sapé  para  colchões,  quitandeiras  de  angu  e  café, 
carregadores,  conductores  de  carros  de  bois  que  chiavam  de- 
sesperadamente pelas  ruas  sem  calçamento  ou  guarnecidas 
de  lages,  puxadores  de  carretas  com  fardos,  quatro  adiante 
e  dous  atraz  empurrando,  á  moda  japoneza  ?  Na  própria 
rua  do  Ouvidor,  que  já  armava  pretenções  a  elegante,  abun- 
daram os  barbeiros  pretos  até  algum  tempo  depois  da  che- 
gada da  familia  real,  quando  alli  se  estabeleceu,  com  suas 
pomadas  e  loções  perfum.adas,  o  cabelleireiro  da  corte  Mon- 
sieur  Catilino,  e  abriu  loja  a  costureira  da  moda.  Madame 
Josephine. 

Assim  perpassava  o  incessante  movimento  popular  de 
negra  algazarra  e  negra  alegria,  que  variavam  raras  car- 
ruagens e  menos  raras  cadeirinhas,  particulares  ou  de  aluguel, 
de  que  costumavam  utilizar-se  com  muito  garbo  as  mulatas 
da  vida  airada,  inculcando-se  a  si  e  ao  seu  luxo.  Os  palan- 
quins em  que  se  pavoneavam  estas  sacerdotizas  do  amor 
fusco  tinham,  muitos  d'elles,  a  coberta  toda  enfeitada  de  es- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  969 

culpturas  douradas  e  fechavam-se  dos  lados  com  pesadas 
cortinas  de  velludo  e  seda,  bem  agaloadas  ( i ) . 

Afora  esse  bulício  normal,  as  ruas  do  Rio  de  Janeiro 
mais  vida  ainda  tomavam  amiúdo  com  as  funcções  do  culto, 
entre  as  quaes  primavam  as  procissões,  que  eram  repetidas, 
fornecendo  occasião  e  pretexto  para  as  elegâncias  femininas 
e  as  pompas  das  irmandades.  Debret  enumera  e  descreve  sete 
principaes:  a  de  São  Sebastião,  a  28  de  Janeiro,  oito  dias 
depois  da  festa  do  padroeiro  da  cidade;  a  de  Santo  António 
na  quarta-feira  de  Cinzas;  a  do  Senhor  dos  Passos,  na  se- 
gunda sexta-feira  da  quaresma ;  a  do  Triumpho,  na  sexta- 
feira  que  precede  o  domingo  de  Ramos;  a  do  Enterro,  na 
sexta-feira  santa;  a  do  Corpo  de  Deus,  e  a  da  Visitação,  a 
2  de  Julho,  todas  com  o  seu  infallivel  cortejo  de  soldados 
de  barretina  dependurada  do  ante-braço,  estandartes  e  guiões 
religiosos,  congregações  sacras  e  leigas,  músicos  e  cantores 
da  Real  Capella,  camaristas  e  outras  pessoas  gradas,  inclu- 
sive os  mais  elevados  figurões  da  corte,  nos  seus  uniformes 
bordados. 

Passavam  os  préstitos  ao  som  das  musicas,  dos  cânticos 
e  dos  foguetes  por  entre  multidões  compactas  que  acudiam 
por  devoção  e  por  prazer,  havendo  sempre  n'esses  dias  um 
farto  negocio  de  doces  e  bolos  com  que  lucravam  as  negras 
quitandeiras,  e  um  grande  commercio  de  balas,  cuja  lojinha 
mais  reputada  e  afreguezada  ficava  á  rua  da  Ajuda. 

Na  procissão  de  São  Sebastião  o  orago  ostentava  a 
fita  e  placa  em  diamantes  de  commendador  de  Christo,  cuja 
patente  recebera  e  cuja  tença  era  applicada  ao  custeio  da 
sua  capella.  Mais  brilhante  e  vistosa  desfilava  porem  a  de 


íl)   Dobret,  ob.  cit.  von  Leithold  cala  de  que  côr  eram  as  Frcu- 
úcnmmT^chcn  d?  primeira  classe  na  sua  expressão,  de  que  díi  noticia. 


970  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Santo  António,  que  sahia  do  convento  dos  franciscanos,  com 
um  sem  numero  de  imagens  e  grupos  resplendentes  no 
meio  das  gazes  de  ouro  e  prata  simulando  nuvens  illuminadas 
pelos  raios  do  sol,  donde  espreitavam  curiosamente  o  mundo 
rostinhos  de  cherubins. 

Tudo  no  cortejo  era  rico  e  apparatoso,  contrastando 
com  a  pobreza  regulamentar  da  Ordem:  os  anjinhos  de  saias 
tufadas  de  bailarinas,  carregados  com  os  adereços  de  fami- 
lia;  os  andores  recobertos  de  velludo  carmezim  franjado  de 
ouro;  as  velas,  obras  primas  dos  cerieiros,  com  flores  de  mil 
cores,  aves  fantásticas  e  cabecinhas  aladas;  as  enormes  esta- 
tuas vestidas  de  sedas  claras  e  paramentadas  de  jóias.  Com  os 
santos  populares,  que  eram  muitos,  incluindo  o  preto  São 
Benedicto,  alternavam  um  rei,  uma  rainha,  um  papa  com 
seu  sacro  collegio  de  cardeaes  e  São  Luiz  Rei  de  França 
transportando  os  trez  cravos  e  a  coroa  de.  espinhos,  mas,  sem 
respeito  algum  pelas  tradições  dos  alfaiates  medievaes,  re- 
gressando da  cruzada  com  um  fato  do  século  XVII,  cabel- 
leira  de  medico  de  Moliere  e  mantéo  estrelado  de  magico. 

A  procissão  dos  Passos  era  toda  de  uma  tonalidade 
roxa.  A  imagem  carregava-se  na  véspera  á  noite  para  o 
templo  donde  tinha  de  sahir  o  préstito  afim  de  voltar  á  pri- 
mitiva egreja,  e  alli  affluia  a  população  inteira  a  beijar  o  pé 
machucado  e  ferido  do  Senhor.  Cada  anno  repetia-se  com  a 
mesma  concorrência  a  cerimonia  devota,  que  offerecia  um 
ponto  de  reunião  e  ensejo  para  exhibição  de  vestuários  e 
exercicios  de  namoro. 

As  procissões  constituiam,  com  as  noitadas  já  tradi- 
cionaes  e  um  tanto  abandonadas  do  Passeio  Publico  e  as  re- 
presentações no  theatro,  as  grandes  para  não  dizer  únicas 
distracções  fluminenses  no  tempo  d'El-K.ei  Dom  João  VI, 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  971 

mas  nada  se  comparava,  pelo  encanto  na  união  do  mystico 
e  do  profano,  áquelle  beija-pé  da  segunda  sexta-feira  da  qua- 
resma. Sobresahiam  na  multidão  as  mulheres.  Velhas  e  mo- 
ças, fidalgas,  burguezas,  mucamas  e  prostitutas,  todas  cor- 
riam a  prosternar-se  na  capella  e  todas  faziam  alarde  de 
garridice  igual:  as  prostitutas  de  corpetes  de  sedas  vivas, 
saias  de  cambraia  da  índia  ou  de  renda  sobre  um  fundo  de 
seda,  meias  de  seda  branca  e  sapatos  de  cores  variadas.  Ao 
sahir  para  refazer  em  sentido  inverso  o  trajecto  da  noite  an- 
terior, ia  o  andor  rodeado  de  lanternas  de  metal  dourado  na 
ponta  de  longas  hastes,  levadas  por  pessoas  de  distincção,  e 
guardado  por  archeiros  do  Paço  com  suas  alabardas  e  no  seu 
uniforme  peculiar,  ainda  hoje  usado  pelos  de  Portugal. 

Na  procissão  do  Triumpho  figuravam  todos  os  passos 
da  Paixão  de  Christo,  e  Nossa  Senhora  das  Dores  com  o  co- 
ração golpeado  por  sete  espadas  gottej antes  de  sangue.  Na 
do  Enterro  misturavam-se  penitentes  sombrios,  de  capuz 
cobrindo  toda  a  cara,  apenas  com  orificios  nos  lugares  dos 
olhos,  e  soldados  romanos  armados  de  ponto  em  branco,  sob 
o  commando  de  um  centurião  de  capacete  descommunal.  O 
corpo  de  Jesus,  coberto  por  um  lençol  franjado  de  ouro,  era 
seguido  de  uma  Magdalena  de  carne  e  osso,  representada, 
em  homenagem  por  certo  á  moral,  por  um  mancebo  vestido 
de  mulher. 

A  procissão  do  Corpo  de  Deus,  bem  viva  ainda  na  lem- 
brança popular,  assemelhava-se  sem  tirar  nem  pôr  a  uma 
mascarada,  comprehendendo  São  Jorge  a  cavallo,  o  homem 
de  ferro,  picadores  e  cavallos  ricamente  ajaezados  da  Real 
Casa,  músicos  negros  de  vestes  escarlates,  atiradores  de  fo- 
guetes: uma  palheta  de  cores  oppostas  nas  pelles  e  nos  esto- 
fos, uma  galeria  de  trajos  de  estylos  e  feitios  os  mais  diversos, 


972  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

uma  combinação  espaventosa  de  setins  e  velludos,  ornatos  de 
ouro  e  prata,  brocados  raros  e  fitas  garridas. 

O  ultimo  dos  préstitos  religiosos  sahia  da  Capella  Real 
levando  a  imagem  da  Virgem  e  encontrava-se  a  meio  cami- 
nho com  a  irmandade  da  Misericórdia  transportando  Santa 
Isabel,  mãi  de  São  João  Baptista.  Dava-se  então  na  rua  e 
ao  natural  a  scena  da  Visitação :  as  duas  imagens  tocavam-se 
e  beijavam-se,  seguindo  juntas  para  a  Misericórdia  onde, 
reunida  no  interior  da  egreja  a  directoria  d'esta  instituição 
pia,  cuja  opulência  e  extensiva  caridade  acreditariam,  qual- 
quer sociedade,  prestava  conta  publica  da  sua  gerência  an- 
nual. 

Esta  procissão  da  Visitação  era  a  festa  municipal  por 
excellencia,  empunhando  os  camaristas  o  pallio,  precedidos 
dos  vereadores,  maceiros  e  outros  officiaes  do  Senado.  Qual- 
quer das  festas,  porém,  significava  o  templo  da  sua  celebra- 
ção todo  enfeitado  pelos  armadores  com  pannos  de  damasco 
carmezim,  galões  de  ouro  c  prata  e  guarnições  de  gaze  pra- 
teada; illuminado  pelos  cirios  dos  castiçaes  e  velas  dos  can- 
delabros, que  faziam  brilhar  os  vasos  dourados,  as  cercadu- 
ras trabalhadas  dos  altares  e  os  resplandores  dos  santos;  per- 
fumado pelas  hervas  e  ramagens  espargidas  sobre  os  tapetes 
ou  sobre  as  lages,  e  pizadas  pelos  magotes  de  fieis  que  se  api- 
nhavam presos  de  curiosidade,  ávidos  de  distracção  ou  sa- 
cudidos de  fervor  religioso. 

Fora  das  egrejas,  as  festas  do  culto  traduziam-sc  por 
outras  muitas  manifestações,  invariavelmente  ruidosas  e  jo- 
viaes.  Eram  o  foguetorio  caracteristico  dos  préstitos  e  arraiaes 
portuguezes;  os  animados  leilões  de  prendas  em  beneficio 
do  padroeiro;  as  cantigas  e  danças  variadas  de  gentes  de 
variadas  origens,  casando-se  o  fandango  com  o  batuque.  Das 


I 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  973 

janellas,  nas  ruas  percorridas  pelo  cortejo,  pendiam  as  col- 
chas de  damasco  da  Índia  e  de  seda  da  China  e  os  pannos 
de  velludo  debruados  de  ouro  sobre  que  se  debruçavam  prin- 
cezas  e  damas  da  corte  com  turbantes  de  gaze,  diademas  de 
brilhantes  e  grandes  plumas  no  toucado,  e  senhoras  abasta- 
das enfarpeladas  de  seda,  decotadas  á  luz  do  dia  e  pesadas  de 
jóias.  As  ruas  juncavam-se  de  palmas  e  folhagens  e,  depois 
do  sol  posto,  aclaravam-se  com  as  velas  de  sebo  colgadas 
pelas  armações  de  latão  nas  fachadas  das  casas,  com  espelhos 
por  traz  para  lhes  reflectir  a  fraca  chamma.  Por  essas  ruas, 
decoradas  e  clareadas,  se  escoava  n'um  rumor  prazenteiro  a 
assistência  congregada  de  longe  para  a  funcção. 

Para  as  mulheres  essas  festas,  então,  tinham  o  melhor 
dos  attractivos.  Para  as  fluminenses  tafulas  da  epocha  as 
procissões  equivaliam  ao  que  para  as  parisienses  de  hoje 
são  as  corridas  de  Longchamips:  o  lugar  e  o  momento  de 
estrearem  novos  vestidos  e  arvorarem  novas  galas.  Para  as 
que  não  eram  secias,  sempre  havia  o  encanto  de  um  luxosinho 
a  mais,  quando  nã©  de  um  namorico.  O  espectáculo  mesmo 
em  si  era  tão  apurado  e  decorativo  que,  com  todos  seus 
preconceitos  britannicos  e  protestantes,  não  poude  Hender- 
son  deixar  de  observar  que  o  effeito  attingido  devia  quali- 
ficar-se  de  imponente  (the  general  cffect  of  the  wJiole  was 
very  imposing). 

Uma  procissão  diária  nas  ruas  do  Rio  de  Janeiro  ou  de 
qualquer  outra  das  nossas  cidades  coloniaes,  era  a  do  Via- 
tico,  o  conhecido  Nosso  Pai,  levado  aos  moribundos  e  doentes 
debaixo  do  pallio  ou  da  umbella,  segundo  o  acompanha- 
mento ia  mais  ou  menos  luxuoso.  Ladeavam  o  sacerdote  os 
irmãos  do  Santissimo,  de  opa  vermelha,  um  tangendo  a  cam.- 
painha  sem  parar,  outros  alçando  a  cruz  c  os  castiçaes.  A 

p.  J.  —  61 


974  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

estes  se  aggregava  um  sem  numero  de  devotos  entoando  a 
ladainha  e  assim  fazendo  acompanhamento  vocal  á  musica 
militar,  de  trombetas  ou  de  tambor  e  pifano  segundo  a  arma, 
que  precedia  a  guarda  chamada  do  posto  mais  próximo,  e 
marchando  com  as  espingardas  em  funeral  e  a  barretina  na 
mão  ou  segura  ao  braço  pela  correia  do  queixo. 

Todas  as  egrejas  repicavam  á  passagem  do  cortejo  sa- 
grado, o  qual,  no  caso  de  chuva,  se  reduzia  occasionalmente 
a  uma  sege  a  passo,  conduzindo  o  sacerdote  o  cibório  e  o 
sachristão  a  cruz  e  uma  lanterna  de  prata,  e  indo  ao  lado  do 
carro  um  negro  a  pé,  tocando  a  sineta.  No  caso  de  ser  o  en« 
fermo  que  esperava  o  sacramento  membro  da  familia  real  ou 
empregado  da  real  casa,  o  padre  era  transportado  n'um  co- 
che do  Paço  com  criados  de  libré,  a  cavallo,  para  carrega- 
rem os  tocheiros  e  tangerem  a  campainha  que  provocava  as 
orações  e  evocava  no  espirito  dos  transeuntes  ajoelhados  uma 
sympathia  dolorida. 

Menos  frequentemente  do  que  os  séquitos  religiosos, 
percorria  as  ruas  da  cidade  o  bando  municipal  proclamando 
aos  habitantes  algum  acontecimento,  auspicioso  ou  luctuoso, 
occorrido  na  corte.  Formavam-no  os  meirinhos  a  cavallo,  os 
almotacés  (i),  os  vereadores  vestidos  de  negro  com  gola  e 
punhos  de  renda  branca  e  chapéo  preto  de  plumas  brancas, 
montados  em  animaes  ajaezados,  empunhando  o  estandarte 
desfraldado,  e  varias  pessoas  de  posição  em  grande  uniforme, 
nas  suas  carruagens,  precedendo  o  préstito  a  cavallaria  da 
policia  e  seguindo-o  a  musica  de  um  regimento  da  milícia. 

Outros  muitos  espectáculos  curiosos  offereciam  ainda 
as  ruas  do  Rio  de  Janeiro,  muito  concorridas  não  só  de  ne- 
gros e  mulatos,  como  de  grande  numero  de  ciganos,  vindos 


(1)  Juizes  vevificadorofi  dos  pe«os  c  medidas. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  975 

não  se  sabe  bem  donde,  de  Hespanhoes  do  Prata,  fugidos  á 
guerra  civil,  e  de  marinheiros  estrangeiros,  inglezes  sobre- 
tudo, desembarcados  dos  numerosos  vasos  de  guerra  e  navios 
mercantes.  Entre  os  nacionaes  da  melhor  classe  a  vista  era 
interessante  da  variedade  de  modas,  espelho  da  variedade  de 
opiniões,  trajando  uns  á  antiga,  de  chapéo  armado  e  espadim, 
outros  á  ingleza,  sem  cabelleira,  de  meias  botas,  longa  sobre- 
casaca e  chapéo  de  castor. 

A  nota  popular  era  entretanto  a  mais  divertida  sempre. 
Um  dos  folguedos  mais  animados  dos  tempos  coloniaes  costu- 
mava ser,  no  sabbado  santo,  a  queima  do  Judas,  representado 
por  uma  figura  grotesca,  cavalgada  pelo  diabo  em  pessoa  e 
que,  recheada  de  bombas,  se  fazia  explodir  e  se  despedaçava  ao 
romper  da  alleluia,  por  entre  o  enthusiasmo  da  multidão. 

Depois  da  chegada  da  corte,  este  divertimento  ruidoso 
foi  prohibido  para  evitar  ajuntamentos  que  por  muita  jovia- 
lidade se  podiam  facilmente  tornar  desordeiros.  E  bem  avi- 
sado andou  o  Intendente  geral  da  policia,  pois  que  no  sab- 
bado santo  de  1821,  trez  dias  antes  do  embarque  da  corte 
para  Lisboa,  um  magote  compacto  de  arruaceiros  enforcou 
e  queimou  em  effigie  a  céo  descoberto,  em  vez  do  Judas  tra- 
dicional, alguns  personagens  conspicuos  da  administração, 
entre  elles  o  próprio  Intendente  geral  e  o  commandante  mi- 
litar da  policia.  Com  esta  variante  nos  traidores  immolados, 
recomeçou  aliás  o  divertimento  sem  nada  perder  da  sua  po- 
pularidade. 

Continuara  porém  a  effectuar-se  sob  Dom  João  VI  a 
conhecida  mascarada  do  imperador  do  Espirito  Santo,  com 
que  contrastava  a  tocante  cerimonia  do  bodo  aos  presos, 
que  não  eram  então  sustentados  pelo  Estado  mas  tão  so- 
mente pela  caridade  publica,  atirando-lhes  esmolns  os  tran- 


970  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

seuntes  e  mandando-lhes  diariamente  a  irmandade  da  Mise- 
ricórdia, pelos  calcetas  destacados  para  esse  serviço  de  abas- 
tecimento, sopa  e  farinha.  O  grande  jantar  da  festa  de  Pen- 
tecostes era  comtudo  levado  processionalmente  de  véspera 
á  prisão,  em  carroças  atochadas  de  comestiveis,  pelas  irman- 
dades do  Santissimo  com  seus  estandartes  erguidos,  musica 
e  grande  acompanhamento. 

A  clemência  do  Rei,  denotando-se  pelas  constantes  com- 
mutações  de  penas  ultimas,  raramente  permittiu  ao  contrario 
que  durante  sua  estada  no  Brazil  cruzasse  as  ruas  da  capital 
o  sinistro  préstito  dos  condemnados  á  morte.  Refere  Debret 
que  em  quinze  annos  de  residência  no  Rio  apenas  assistiu 
a  duas  execuções,  uma  d'ellas  já  sob  o  Império  e  politica, 
tendo  sido  preciso  que  se  desencadeiassem  as  ferozes  paixões 
partidárias  para  que  uma  outra  revolução  pernambucana,  a 
de  1824,  offerecesse  pretexto  a  Dom  Pedro  I  para  fazer 
por  assim  dizer  reviver,  com  o  cortejo  dos  sentenciados  d'Es- 
tado,  um  espectáculo  quasi  desapparecido  do  theatro  flu- 
minense. 

Bem  lúgubre  aliás  a  scena.  Caminhava  o  réo  de  alva, 
os  pés  descalços,  o  crucifixo  nas  mãos  ligadas  e  a  corda  no 
pescoço,  com  as  duas  pontas  para  traz  seguras,  assim  como 
a  cauda  da  alva,  por  um  dos  dous  carrascos,  negros  acorren- 
tados. Sustentavam  o  misero  seus  confessores  e  guardava-o  a 
irmandade  da  Misericórdia,  que  tomava  conta  do  cadáver, 
para  lhe  dar  sepultura,  depois  que  o  atiravam  abaixo  da  forca, 
onde  elle  se  balouçara  espectral,  de  capuz  puxado  sobre  o 
rosto,  cavalgado  nos  hombros  por  um  dos  algozes,  para  fazer 
peso,  no  momento  em  que  a  corda  se  enrolava  e  o  nó  se 
apertava.  .  .  . 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  977 

Quando  o  corpo  era  de  um  condemnado  pelo  crime  de 
parricidio,  cortavam-se-lhe  a  cabeça  e  mãos  para  ficarem 
expostas  ás  vistas  do  publico  aterrado  e  á  voracidade  dos 
urubus. 

A  falta  de  segurança,  effeito  da  alteração  da  vida  col- 
lectiva,  não  da  commiseração  regia,  convertera-se  n'uma  das 
feições  peores  da  existência  fluminense.  Os  escriptores  es- 
trangeiros do  começo  do  reinado  americano  de  Dom  João  VI 
a  não  mencionam,  ao  passo  que  os  do  fim  a  relatam  demora- 
damente. Os  assaltos  nocturnos  tinham-se  tornado  communs. 
Conta  von  Leithold  —  a  quem  d'outra  vez,  quando  ausente, 
arrombaram  os  ladrões  a  porta  e  carregaram  toda  a  baga- 
gem, inclusive  o  seu  uniforme  de  capitão  de  hussards  —  que 
regressando  uma  noite  a  pé  do  theatro,  foi  perseguido  por 
uma  quadrilha  de  negros  armados,  devendo  a  salvação  á 
pusillanimidade  dos  atacantes  mais  do  que  ao  próprio  san- 
gue frio,  pois  que,  embora  mostrando  disposição  de  defen- 
der-se,  deixara  dominar-se  pelo  terror. 

Queixando-se  elle  no  dia  immediato  do  occorrido  ao 
cunhado,  Silvestre  Pinheiro  Ferreira  informou-o  de  que  nas 
noites  precedentes  a  policia  recolhera  á  cadeia  não  menos  de 
300  individuos  de  côr,  cada  um  dos  quaes  tinha  sua  faca  e 
que  facilmente  passariam  de  vagabundos  a  aggressores.  Seis 
annos  antes  de  von  Leithold,  já  Marrocos  escrevia  ao  pai 
(i)  que  cidade  e  subúrbios  andavam  infestados  de  ladrões, 
cujas  proezas  começavam  logo  á  bocca  da  noite,  accommet- 
tendo  transeuntes,  pilhando  casas  e  muitas  vezes  comple- 
tando o  roubo  pelo  assassinato   (2). 


(1)   Carta  de  28  de  iS^tembro  de  1813. 
cultos  22  aSslniosT'''  '"  '"""■"'°''  <'°»'"«»-«''  =■»  P«l"™o  clr- 


978  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

"Tem  sido  tal  o  seu  descaramento  que  até  avanção  a 
pessoas  mais  distinctas  e  conhecidas,  como  foi  o  próprio 
Chefe  da  Policia;  »  chefe  de  Divisão  José  Maria  Dantas 
recebeu  por  grande  favor  duas  tremendíssimas  bofetadas  por 
cahir  no  erro  de  trazer  pouco  dinheiro,  depois  de  lhe  rou- 
barem o  relógio,  etc.  Alem  d'isto  tem  degolado  varias  mu- 
lheres, depois  de  soffrerem  outros  insultos;  o  que  tudo  tem 
dado  que  fazer  ao  Corpo  da  Policia,  e  não  sendo  este  suffi- 
ciente  para  as  rondas  e  patrulhas,  multiplicadas  em  todas  as 
ruas,  o  Intendente  mandou  armar  e  apontar  todas  as  Jus- 
tiças de  paisanos  para  ajudarem  as  da  Policia;  mas  os  po- 
bres Aguazis  até  já  forão  accommettidos  e  insultados  pelas 
grandes  quadrilhas  de  ladrões,  que  lhes  tem  dado  coças. 
Com  effeito  grande  numero  d'elles  forão  já  presos,  e  estão 
bastantes  sentenciados  a  pena  ultima,  dos  quaes  vão  amanhã 
3  para  o  Oratório.  Faz-se  agora  hum  novo  recrutamento 
mui  rigoroso  em  consequência  daquelles  successos,  e  para  se 
augmentar  o  Corpo  de  Policia  e  os  outros  Regimentos;  pois 
o  caso  está  muito  serio,  por  não  poder-se  andar  na  rua  muito 
tarde.  Eu  recolho-me  ás  oito  horas  da  noute  e  nunca  as  mi- 
nhas digressões  se  extendem  para  longe,  mas  só  se  limitão 
a  casa  de  Feliciano  palestrar  com  o  meu  Velho  Padre  Maz- 
zoni." 

Na  carta  de  8  de  Junho  de  i8i8  referia  Marrocos  con- 
tinuar a  perseguição  aos  ladrões  e  assassinos,  tendo  havido  em 
Abril  28  mortes  violentas:  o  que  mostra  que  de  pouco  ou 
nada  valeram  as  providencias  tomadas  e  que  o  mal  era  grave. 
Maler  confirma  ( i )  que  os  assassinatos  na  cidade  e  arredo- 
res se  tinham  tornado  frequentissimos  e  muitos  com  circum- 
stancias  barbaras.  A  policia  chegava  a  prometter  recompensas 


(1)    OfficiQ  de  24   de  JuIhQ  de  1813. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  979 

a  quem  descobrisse  os  malfeitores,  não  surtindo  as  mais  das 
vezes  effeito  o  recurso.  Comtudo,  á  data  do  officio  de  Maler, 
havia  83  individuos  presos  e  condemnados  á  pena  capital 
por  homicidio,  alguns  até  reincidentes,  sem  que  se  lhes  appli- 
casse  a  sentença  por  falta  de  assentimento  real. 

Em  condições  taes  de  inseguridade,  não  é  de  admirar 
que  reinasse  na  capital,  senão  um  terror  negro,  uma  appre- 
hensão  bastante  forte  de  um  levante  da  gente,  de  cor.  Os 
atrozes  feitos  de  São  Domingos  estavam  ainda  frescos 
nas  memorias  e  no  próprio  Brazil,  na  Bahia,  se  dera  "um 
grande  tumulto  de  negros"  que  causou  grande  susto  e  teve 
sua  importância.  Dos  historiadores  penso  ser  Handelmann  o 
único  que  lhe  faz  referencia,  mas  a  correspondência  de  Mar- 
rocos ( I )  suppre  uma  vez  mais  a  falta  e  indica  que  o  Rio 
ouviu  com  temor  a  relação  do  occorrido  em  São  Salvador. 

" :  elles  matarão  muitos  brancos,  e  alguns  erão 

Negociantes;  alguns  soldados  também  forão  mortos,  assim 
como  outros  Negros,  que  não  querião  associar-se  ao 
tumulto.  Lançarão  fogo  a  muitos  Engenhos,  aos  Armazéns 
da  pesca  da  Balêa,  e  a  mil  outras  partes,  de  maneira  que  se 
affirma  que  só  a  Fazenda  Real  perdera  mais  de  300$  cru- 
zados. He  muito  para  se  temerem  alli  estes  acontecimentos; 
porque  tem  os  Negros  a  boa  circumstancia  de  não  se  unirem 
nas  suas  senzalas  e  ranchos,  senão  os  filhos  da  sua  mesma 
terra,  e  não  acompanhão,  nem  contrahem  amizade  com  ou- 
tros; e  como  he  immensa  a  variedade  de  Nações  delles  (2), 
não  se  unindo  ellas,  vem  a  ser  os  ranchos  de  cada  huma 
pouco  numerosos;  isto  succede  aqui  no  Rio  de  Janeiro,  onde 
entrão  Negros  de  todas  as  Nações,  e  por  isso  inimigos  huns 


(1)  Carta  ao  Pai  de  15  de  Março  de  1814. 

(2)  íE'   precizo   ter  presente  que  nas  escravarias  de  entào  tão 
numerosos  eram  os  negros  creoulos  quanto  os  africanos. 


980  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

dos  outros.  Porem  na  Bahia  por  huma  inclinaçcão  natural 
dos  habitantes,  entrão  só  Negros  da  Costa  da  Mina,  e  mui 
poucos  de  alguma  outra  Nação,  sendo  por  esse  motivo  todos 
elles  Patricios,  companheiros  e  amigos;  e  em  qualquer  desor- 
dem, ou  tumulto,  todos  são  unanimes,  como  neste  se  acha- 
rão, e  só  matarão  os  que  não  erão  seus  Patricios.  A  muita 
liberdade,  que  o  Governador  lhes  tem  dado,  e  o  pouco  caso 
que  faz  das  suas  desordens,  julgando-os  incapazes  de  empre- 
zas  grandes,  produzirão  talvez  esta  explosão,  que  ha  de 
ficar  em  lembrança:  com  effeito  conseguio-se  prender  lO 
Negros  e  os  mais,  que  erão  em  grande  numero,  fugirão  para 
o  matto,  e  alli  se  embrenharão." 

Si  á  noite  inspiravam  pavor,  de  dia  recobravam  as  ruas 
do  Rio  de  Janeiro  a  sua  alacridade,  pois  que  de  todo  tempo 
e  n'aquelle  especialmente  foram,  ao  que  parece,  concorridas, 
alvoroçadas  e  barulhentas.  Pelo  calçamento  de  pedra  extra- 
hida  dos  grandes  morros  de  granito  que  expõem  ao  sol  corus- 
cante  os  seus  flancos  nus,  e  pela  estreiteza  das  bitesgas  que, 
apoz  semanas  de  secca,  se  cobrem  de  um  pó  fino,  que  acin- 
zenta a  atmosphera,  como  que  n'aquellas  ruas  resoam  do- 
brado todos  os  ruidos.  Alarido  maior  do  que  as  recuas  de 
mulas  ariscas  galopando  atraz  da  madrinha  e  tangidas  dos 
lados  da  cidade  nova  pelos  tropeiros  paulistas  armados  de 
chicote,  ou  do  que  os  bandos  de  negros  ganhadores  transpor- 
tando fardos  e  sempre  entoando  cantigas  que  só  interrom- 
piam para  se  persignarem  diante  de  cada  retábulo  de  santo 
ou  das  almas  do  purgatório,  faziam  porém  pelas  raras  praças 
e  numerosas  viellas  ou  estradas,  os  batedores  e  cadetes  que 
precediam  e  rodeavam  as  carruagens  reaes,  compellindo  os 
estrangeiros  —  os  nacionaes  não  ousariam  esquivar-se  á  usan- 
ça —  a  desmontarem   das  suas   cavalgaduras  ou   apearem-se 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  981 

dos  seus  carros  para  saudar,  de  chapéo  na  mão  e  dorso  cur- 
vado, o  augusto  passeante. 

A  residência  da  família  real  tivera  também  por  effeito 
addicionar  um  elemento  novo  e  precioso  ás  antigas  diversões 
e  folganças  da  colónia,  e  vinha  a  ser  o  espectáculo  das  festas 
de  corte,  das  quaes  o  anterior  viver  dos  vice-reis  mal  podia 
dar  uma  idéa.  Não  eram  tanto  as  paradas  militares,  as  pro- 
cissões religiosas,  os  Te-Deums  e  requiems  nas  egrejas,  as 
luminárias  e  fogos  de  artificio  agora  empregados  para  cele- 
brar os  anniversarios  das  pessoas  reaes  ou  festejar  a  chegada 
de  novas  felizes  da  guerra  peninsular,  o  que  excitava  a  curio- 
sidade e  despertava  a  admiração,  como  eram  as  cerimonias 
peculiares  á  monarchia.  A  população  do  Rio  de  Janeiro  nem 
podia  bem  imaginar  o  que  deviam  ser  os  cortejos  esplendidos 
da  realeza  em  toda  sua  pompa  legendaria.  Entretanto  en- 
traram taes  cortejos  de  súbito  a  surgir  para  sacudir  o  torpor 
da  pacata  cidade  ao  mesmo  tempo  que  lhe  emprestavam  fei- 
ções bem  accentuadas  de  elegância,  de  distincção  e  de  luxo. 


CAPITULO  XXVI 


AS  80LEMNIDADES  DA   CORTE 


Aos  poucos  fora  a  corte  emigrada  refazendo  seu  am- 
biente de  etiquetas.  O  desembarque  em  1808  tinha  sido  jubi- 
loso e  cordial  na  sua  feição  antes  popular  do  que  nobre,  mas 
relativamente  modesto  nas  suas  galas.  Em  181 7,  porém,  já 
a  Archiduqueza  Leopoldina  veio  da  nau  para  terra  na  ga- 
leota  esculpida  e  dourada,  remada  por  cem  homens,  e  foi 
transportada  com  os  sogros  e  o  noivo,  do  Arsenal  de  Mari- 
nha ( I )  para  a  Capella  Real  onde  se  celebrou  o  consorcio, 
n'um  coche  de  gala,  como  os  de  D.  João  V,  pomposo  e 
puxado  a  quatro  parelhas  de  cavallos  morzellos,  de  penna- 
chos  vermelhos  e  mantas  de  velludo  bordado  a  ouro.  Dous 
outros  coches  eram  destinados  ás  Altezas  Reaes  e  uma  porção 
mais,  vindos  quasi  todos  de  Portugal,   (2)   aos  dignitários  e 


(1)  Para  o  desembarque  no  Arsenal  mandaram  os  officiaes  da 
armada  erguer  na  ponte  um  enorme  arco  de  triumpho  com  pilastras 
esguias,  grinaldas  e  allegorias,  o  qual  se  pode  ver  reproduzido  n'um 
dos  quadros  de  Debret  conservados  na  Escola  de  Bellas  Artes. 

(2)  Em  1811.  para  a  inauguração  do  novo  templo  da  Candelá- 
ria, serviu-se  o  Príncipe  Regente  pela  primeira  vez,  segundo  diz  o 
Padre  Luiz  Gonçalves  dos  Sanctos,  do  coche  que  mandara  vir  de 
Lisboa,  o  que  leva  a  crer  que  até  ahi  usou  as  modestas  carruagens 
(iue  IJie  podia  haver  fornecido  a  colónia.  Escreve  o  padre  que  até  por 
esse  motivo  concorreu  muita  gente  a  presenciar  a  passagem  do  real 
cortejo.  Nas  contas  da  legação  em  Londres  figuram  todavia  em  1810 


984  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

fidalgos  da  corte  que  assim  passara  a  reviver  no  fausto  de 
Lisboa. 

As  festas  do  casamento  do  Principe  Real  foram,  dentro 
dos  recursos  de  grandeza  do  novo  Reino,  á  altura  do  aconte- 
cimento e  dos  nubentes.  Para  dar  brilho  ao  enlace  da  Infanta 
Maria  Theresa,  em  1810,  já  havia  a  Corte  envidado  o  me- 
lhor dos  seus  esforços,  ordenando  touradas  e  cavalhadas — 
que  não  importavam  comtudo  em  novidade  para  a  colónia, 
onde  pelo  menos  as  cavalhadas  constituiam  um  folguedo 
nacional — n'uma  praça  ( i )  adrede  construida  no  Campo  de 
Sant'Anna  com  348  camarotes,  recita  de  gala,  decorações 
publicas  e  illuminações.  Os  artistas  nacionaes  eram  ainda 
insufficientes  em  pericia  para  o  gosto  das  ornamentações, 
para  as  quaes  começariam  em  181 7  a  ser  postos  em  contri- 
buição os  talentos  dos  artistas  mandados  vir  de  França  para 


dtnisí  coches  e  arreios  reni?tti(los  para  o  Rio,  que  custaram  8o5  libras 
t\sterlinas.  Era  a  legação^  que  occasionalniente  satisfazia  as  encoinmcn- 
das  da  corte,  quer  fossem  livros  de  m.ineralogia  para  J.inhares.  quer 
fossem  lenços  de  seda  para  o  pescoço  do  Regente,  aos  quaes  Funchal 
mandava  carinhosamente  applicar  almofadinhas  de  cambraia  de  linho 
em  vez  de  algodão,  por  causa  do  clima,  escrevia  elle.  As  contas  trimen- 
Raesi  appareciam  avultadas,  geralmente  cntr?.  1.000  e  2.000  libras  afora 
salários  ;  não  tanto  por  aquellas  encommendas,  que  eram  raras,  como 
pelas  muitas  despezas  extraordinárias  da  missão.  Uma  funcção  na 
legação,  por  exemplo,  custou  120  libras  ;  o  Te-Deum  pela  chegada  da 
família  real  á  Bahia  importou  em  1(53  libras  ;  as  luminárias  pela  che- 
gada ao  Rio  170  libras.  A  capella  da  legação  constituía  uma  despeza 
permanente,  com  seu  capellào  e  a  musica,  a  que  se  pagava  umas  160 
libras  por  anno.  As  repetidas  viagens  de  Funchal  a  Worthing,  Ply- 
mouth,  etc,  figuravam  como  outra  parcella  importante  dos  gastos, 
nunca  sendo  inieriores  as  despezas  a  100  libras  e  passando  frequen- 
temente de  200  uma  excursão   maior   ou   mais  demorada. 

Os  coches  de  gala  de  Dom  João  VI  foram  restaurados  em  1817 
pelo  pintor  portuguez  Manoel  da  Costa  o  Dom  Pedro  lhos  addicionou 
um  mais,  fabricado  cm  Tariz  para  o  Rei  José  Napoleão  e  que  não 
chegara  a  ser  usado  nem  soquer  remettido  para  Madrid. 

(1)  íí<:s  últimos  tempos  da  estada  no  Rio  da  corte  de  Dora 
João  VI,  esta  arena  preparada  para  touradas  ã  portugueza  servia  de 
circo  onde  trabalhava  com  grande  successio  uma  companhia  de  acro- 
batas e  funambulc-s  ingleses,  acudindo  a  população  a  rir  estrepitosa- 
mente com  os  tregeitos  dos  palhaços,  applaudir  os  maravilhosos  exer- 
cícios equestres  de  Mr.  Southby  e  extasiar-se  deante  da  corda  bamba 
e  dos  equilibrios  de  Mrs.  Southby. 


I^OM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  985 

a  projectada  Academia.  Não  obstante,  no  dizer  do  minucioso 
e  indulgente  chronista  Padre  Luiz  Gonçalves  dos  Sanctos, 
correram  soberbas  as  festas  organizadas  com  os  meios  de  que 
dispunha  o  senso  esthetico  da  colónia,  antes  de  que  os  es- 
trangeiros introduzissem  no  Brazil  o  sentimento  artístico 
de  que  careciam  mesmo,  para  lhes  dar  relevo  á  uncção  reli- 
giosa, os  pintores  de  telas  para  egrejas  que,  com  a  animação  a 
tudo  emprestada  pela  corte,  deram  em  descobrir  suas  voca- 
ções, achando-lhes  destino  nas  decorações  de  novos  templos  e 
no  embellezamento  dos  já  existentes. 

E'  verdade  que  Luccock,  mais  viajado  e  mais  desabu- 
sado que  o  padre,  considerou  pueris  e  absurdas  as  festas  de 
1810,  o  que  parece  mais  exacto.  Nenhum  ridiculo  haveria, 
pôde  crer-se,  no  bando  que  sahio  a  ler  á  população  o  edital 
da  Camará  contendo  a  nova  do  consorcio  e  o  convite  ao 
jubilo  nacional,  com  a  comitiva  dos  officiaes  do  Senado, 
montados  e  deixando  fluctuar  suas  capas  bandadas  de  seda 
branca  e  seus  chapéos  de  plumas  brancas,  e  o  séquito  dos 
criados  do  Paço  conduzindo  pela  rédea  ginetes  ornados  de 
fitas  e  pennachos,  e  três  azemolas  carregando  fogos  de  ar. 
Tampouco  seria  ridiculo,  pizando  as  ricas  alcatifas  da  Pérsia 
que  cobriam  o  estrado  dando  passagem  do  Palácio  para  a 
Capella,  o  cortejo  nupcial,  o  primeiro  da  realeza  brazileira, 
formado  nas  salas  forradas  de  damasco,  sob  os  lustres  de 
crystal,  e  desfeito  á  porta  onde  o  aguardavam  bispo  e  cabido 
paramentados  de  branco,  para  de  novo  se  constituir  á  luz 
das  tochas  empunhadas  pelos  moços  da  camará  e  ao  som  das 
salvas  e  descargas  que  abafavam  os  instrumentos  de  sopro 
das  musicas  regimentaes. 

Onde  resumbrava  o  mau  gosto  era  na  fachada  de  archi- 
tectura  erigida  fronteira  ao  mar  e  representando  um  fundo 


986  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  jardim,  com  um  grande  e  bem  moldurado  painel  encer- 
rando os  retratos  de  Dom  João  e  de  Dona  Carlota  encimados 
por  um  génio — o  da  concórdia  provavelmente — e  mais  abaixo, 
sob  a  protecção  do  hymeneu  coroado  de  rosas,  outro  painel 
com  os  retratos  dos  noivos.  Descreve  miudamente  o  chro- 
nista  os  pedestaes  de  bem  fingida  pedra  dos  medalhões,  os 
emblemas,  os  escudos,  os  versos  allegoricos,  os  golphinhos, 
os  vasos  de  flores  postos  no  alto  da  estructura,  e  a  impressão 
que  nos  fica  de  todo  esse  complicado  vergel  architectonico  é 
a  de  uma  balaustrada  "com  bambolinas  de  velludo  carmezim 
com  forro  de  arminho." 

Do  drama  Triumpho  da  America  dado  na  recita  de 
gala,  nada  nos  permitte  hoje  julgar,  mas  as  danças  de  Afri- 
canos no  terreiro  do  Paço  "com  estampidos  de  gyrandolas  e 
fogos  imitando  salvas  de  artilheria  e  fogos  rolantes  de  mos- 
quetaria",  misturados  de  rodas  e  valverdes  de  São  João,  e  as 
cavalhadas  de  mascarados  em  quatorze  pares  com  divisas 
encarnadas  e  azues  sob  forma  de  listões  pendentes  do  hom- 
bro,  precedidos  de  trombeteiros  montados,  e  trotando,  galo- 
pando, caracolando,  com  tochas  na  mão,  depois  esgrimindo  e 
descarregando  pistolas,  deviam  produzir  uma  sensação  mixta 
de  quadrilha  de  circo  e  marcha  nupcial  allemã. 

O  cumulo  do  burlesco  attingiram,  porém,  as  festas, 
commemorativas  ainda  da  boda,  celebradas  mezes  depois,  e 
que  de  certo  procrearam  o  carnaval  fluminense.  Duraram 
sete  dias  na  praça  do  Campo  de  Sant'Anna  e,  para  amostra 
do  que  foi  o  desfilar  de  carros  allegoricos,  basta  referir  que  o 
primeiro,  o  dos  mercadores,  figurava  um  monte  coroado 
pela  estatua  da  America  de  arco,  aljava,  cocar  e  saiote  de 
plumas,  cercada  de  índios,  quadrúpedes  e  pássaros  assomando 
dentre  as  hervas  e  flores,  donde  também  brotavam  esguichos 


I 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  987 

que  aguavam  a  praça.  Havia  nos  outros  carros,  offerecidos 
pelos  ourives,  negociantes  de  molhados,  latoeiros,  carpintei- 
ros e  outros  como  os  denominariamos  hoje  syndicatos  profis- 
sionaes,  uma  dança  de  Chins,  uma  ilha  do  Pacifico  com  seus 
indígenas,  um  castello  donde  emergia  uma  dança  militar, 
um  escaler  de  marujos  remando  e  cantando  antes  de  desem- 
barcarem e  bailarem,  um  grupo  de  ciganos  com  as  mulheres 
nas  garupas  dos  cavallos,  até  uma  dança  de  homens  disfar- 
çados em  macacos,  dando  saltos,  fazendo  caretas,  executando 
cabriolas,  até  formarem  a  pyramide  humana — nil  novi  sub 
sole — e  o  macaquinho  do  tope  desenrolar  diante  da  tribuna 
real...  os  retratos  dos  sereníssimos  consortes. 

Parecendo  pequeno  o  recinto  onde,  depois  d'essas  danças 
zoológicas  e  mavórcias,  correram  justas,  escaramuçaram,  per- 
fizeram cortezias  em  ginetes  da  real  casa  cavalleiros  vestidos 
de  "casacas  de  fino  belbute  e  acompanhados  de  serventes  ves- 
tidos de  setim  das  mesmas  cores",  e  correram  touros  cam- 
peões e  capinhas  de  melhor  intenção  do  que  experiência,  o 
carnaval  trasbordou  e  numa  gargalhada  abraçou  toda  a  ci- 
dade. Foram  umas  saturnaes  decentes.  Sahiram  as  allegorias, 
reboaram  os  cantares  e  desdobraram-se  as  danças  pelas  ruas, 
pelas  quaes  rodava  um  carro  mais,  engenhoso  e  monumental, 
figurando  um  brigue  de  guerra  illuminado  e  salvando. 

No  Campo  improvisara-se  um  passeio  de  palmeiras,  en- 
gradando  ramas  entrelaçadas  de  plantas  aromáticas  as  alame- 
das terminadas  por  arcadas  de  madeira,  e  levantando-se  no 
centro  uma  peça  de  architectura  onde  se  armara  o  fogo  de 
artificio  que  dignamente  rematou  a  serie  de  festas. 

Por  occasião  do  consorcio  do  Príncipe  Real  já  não 
houve  discrepâncias  na  critica.  Os  estrangeiros,  von  Leithold 
no  numero,  recordam  com  louvor  a  bella  ordenação  do  cor- 


988  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tejo  nupcial,  que  ao  som  dos  sinos  e  dos  canhões  percorreu  a 
distancia  do  Arsenal  á  Capella  sobre  as  ruas  juncadas  de 
flores  e  entre  janellas  adornadas  de  colchas.  A'  frente  um 
destacamento  de  cavallaria,  a  que  se  seguiam  os  lacaios  e 
palafreneiros  do  Paço  em  cavallos  ricamente  ajaezados, 
transportando  dous  d'elles  os  escabellos  forrados  de  damasco 
vermelho  para  os  noivos;  atraz  a  musica  da  cavallaria;  logo 
oito  maceiros,  os  reis  d'armas  e  arautos,  montados  todos  e 
trajando  de  grande  gala.  Vinham  depois  a  carro  os  conselhei- 
ros reaes,  o  mordomo-mór,  os  camaristas,  acompanhados,  co- 
ches e  berlindas,  de  lacaios  a  pé.  O  estribeiro-mór,  ou  antes 
quem  suas  vezes  fazia,  precedia  immediatamente  o  coche  real, 
que  escoltava  o  capitão  da  real  guarda  de  archeiros  e  ladea- 
vam os  moços  da  camará,  de  cabeça  descoberta. 

Durante  todo  o  dia  resoaram  as  acclamações  populares 
em  frente  ao  Paço,  onde,  depois  da  cerimonia  religiosa,  se 
realizou  o  jantar  de  apparato,  €  á  noite,  por  entre  tochas 
accesas,  sob  arcos  triumphaes  e  com  geraes  luminárias,  reto- 
mou o  cortejo  o  caminho  do  Arsenal  para  alcançar  São  Chris- 
tovão  por  mar,  n'uma  flotilha  caprichosamente  illuminada  a 
copinhos  de  cores. 

Na  véspera  tinha  ido  o  Conde  de  Vianna  a  bordo  sau- 
dar a  Archiduqueza,  e  mais  tarde  alli  a  visitaram  todos  os 
membros  da  real  familia,  já  então  sendo  descripto  como  im- 
pressivo o  espectáculo  das  embarcações  empavezadas,  com  os 
marinheiros  nss  vergas  dando  vivas,  emquanto  batiam  com- 
passadamente a  agua  os  remadores  mettidos  nas  suas  bellas 
roupas.  A'  noite,  relata-se  como  feérico  o  aspecto  de  con- 
juncto  das  luzes  do  Arsenal,  das  pontes  de  desembarque  e 
dos  muitos  navios,  reflectindo-se  nas  aguas  quietas  da  bahia. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  989 

Logo  em  Janeiro  passou  o  anniversario  da  Princeza 
Real,  sendo  a  data  ruidosamente  festejada  com  touradas,  (i) 
danças  de  mouros  e  selvagens  organizadas  pelo  mestre  de 
bailados  Lacombe  no  salão  do  theatro  e  fogos  de  artificio  no 
jardim  de  São  Christovão  e  no  Campo  de  Sant'Anna.  (2) 
Os  Índios  eram  parte  obrigada  e  ainda  seriam  parte  essencial 
do  symbolismo  nacional,  mas  no  fogo  de  artificio  por  occa- 
sião  da  elevação  do  Brazil  a  Reino,  vira-se  o  paiz  depor  o 
cocar  e  saiote  de  pennas  e  assumir  a  coroa  e  manto  com  que 
o  brindara  o  Principe  Regente. 

De  todas  as  festas  reaes  celebradas  no  Rio  de  Janeiro 
as  mais  solemnes  e  deslumbrantes  foram,  porém,  as  da  accla- 
mação  de  Dom  João  VI,  em  Fevereiro  de  181 8,  com  o  seu 
seguimento  em  Outubro  do  mesmo  anno.  Para  a  funcção  da 
acclamação  foi  que  se  levantou  no  largo  do  Paço,  entre  o 
Palácio  e  a  Capella,  a  famosa  varanda  ou  galeria  que  Debret 
desenhou  na  sua  famosa  obra,  com  as  dezoito  arcadas,  os  tro- 
phéos  e  as  estatuas  da  decoração,  e  ao  centro  a  tribuna  em 
projecção  destinada  á  cerimonia,  de  forma  a  nada  perderem 
d'ella  a  família  real,  a  corte  e  o  corpo  diplomático  esparsos 
em  tribunas  ligadas  ao  Paço. 

O  que  a  lithographia  não  podia  porém  reproduzir,  era 
o  luxo  interior  da  galeria,  toda  revestida  de  velludo  carme- 
zim  e  com  pinturas  allegoricas  nos  tectos,  lembrando  as  vir- 
tudes do  monarcha  que  subia  ao  throno  de  seus  avós  longe 
da  pátria  tradicional,  mas  no  coração  de  uma  nova  pátria 
por  elle  fundada. 


(1)  Refere  von  Leithold  que  as  touradas,  fi  portugueza,  com 
cortezias  e  moços  de  forcado,  foram  indecentes  porque  se  correram 
animaes  magros  e  mansos  e  formavam  as  quadrilhas  bandarilheiros 
ineptos. 

(2)  Padre  Luiz  Gonçalves  dos  Sanctos,  o&.  eit.;  Freyelnet,  ob. 
cit.;  e  Cartas  de  Marrocos,  passim. 


D.  J.  —  6 


990  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Recebeu  então  o  Rio  de  Janeiro  o  seu  baptismo  de  capi- 
tal da  monarchia.  O  espectáculo  tanto  foi  militar  como  civil 
e  foi  parallelamente  grandioso.  O  dia  escolhido  foi  o  de  6  de 
Fevereiro.  Pela  manhã  teve  lugar  a  missa  do  Espirito-Santo 
e  á  tarde  a  acclamação  com  todas  as  formalidades  costuma- 
rias. Encaminhou-se  o  cortejo  do  Paço — ao  qual  por  um  lado 
e  pelo  outro  á  Capella  se  achava  a  galeria  ligada  por  um 
largo  estrado  descoberto  e  alcatifado — formado  pelos  portei- 
ros da  canna  com  maças  de  prata  ao  hombro,  reis  d'armas, 
arautos,  passavantes,  archeiros,  reposteiros,  gentis  homens  da 
camará,  nobres  e  titulares,  bispos  e  prelados,  of f iciaes  da  Real 
Casa  e  grandes  do  Reino.  O  Infante  servia  de  Condestavel, 
o  conde  de  Vianna  de  reposteiro-mór,  o  marquez  de  Bellas 
de  capitão  da  guarda,  e  o  conde  de  Barbacena,  como  alferes- 
mór,  empunhava  o  estandarte  real  enrolado.  Por  baixo  da 
varanda  central  tocava  a  orchestra  de  músicos  allemães  que 
tinha  acompanhado  da  Europa  a  Archiduqueza  Leopoldina. 

O  Rei  ostentava,  preso  no  peito  por  um  atacador  de 
diamantes,  um  manto  carmezim  com  as  armas  admiravel- 
mente bordadas  de  Portugal,  Brazil  e  Algarves,  o  escudo 
com  as  cinco  quinas,  a  esphera  armillar  e  os  sete  castellos. 
Segurando  na  sinistra  o  sceptro,  de  ouro  macisso  bem  como  a 
coroa  —  obra,  uma  e  outra  insignia,  de  um  mulato  brazileiro 
empregado  pelo  joalheiro  da  coroa — Dom  João  com  a  dextra 
sobre  o  Evangelho  prestou  ao  bispo-capellão  o  juramento 
do  estylo.  Sobre  o  mesmo  missal  lhe  prestaram  os  Principes 
de  sangue  o  juramento  de  obediência.  Desenrolando  então 
o  estandarte,  acclamou  o  alferes-mór  o  soberano,  e  adian- 
tando-se  até  o  parapeito  da  varanda,  repetio  o  seu  brado  que  o 
povo  recebeu  com  applausos  estrondosos. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  991 

Entre  a  massa  compacta  agglomerada  diante  da  galeria, 
destacavam-se  os  pelotões  de  infanteria  e  os  esquadrões  de 
cavallaria  postados  com  receio  de  alguma  manifestação  de  des- 
contentamento da  parte  do  elemento  portuguez  pelo  facto 
de  ter  lugar  a  acclamação  no  Brazil.  Pela  primeira  e  ultima 
vez  no  Reino  americano  desempenhou  o  seu  papel  o  Juiz  do 
Povo  da  antiga  monarchia,  o  tradicional  tribuno  popular  que 
em  Lisboa  era  eleito  pela  Casa  dos  24  e  que  no  Brazil  ainda 
exercia  uma  auctoridade  que  se  não  podia  chamar  um  simu- 
lacro, pois  que  dispunha  para  sua  affirmação  da  sancção 
penal.  No  cumprimento  da  sua  missão  de  defender  o  povo 
contra  as  arbitrariedades  do  poder,  fez  o  já  em  todo  caso 
archaico  magistrado  de  depositário  da  real  promessa  de  res- 
peitar a  religião,  as  leis  e  os  privilégios  populares. 

Satisfeita  esta  pequenina  deferência,  que  era  antes  uma 
formalidade,  ao  Terceiro  Estado,  na  mesma  ordem  se  diri- 
gio  o  cortejo  para  a  Capella  Real,  onde  se  realizaram  o 
Te-Deum  e  a  triplice  benção  dada  com  um  pedaço  do  Santo 
Lenho  na  custodia. 

O  largo  do  Paço  offerecia  todo  elle  um  aspecto  festivo. 
A'  beira  do  cães  mandara  o  Senado  da  Camará  levantar  por 
Grandjean  de  Montigny  um  templo  de  Minerva  (i)  em 
que  se  viam  a  estatua  da  deusa  protegendo  o  Rei  e  na  en- 
trada, em  relevo,  as  figuras  da  Poesia,  da  Historia  e  da 
Fama  e  bem  assim  os  rios  principaes  das  quatro  partes  do 
mundo  no  acto  de  tributarem  os  productos  do  seu  trafico. 
Ern  frente  ao  chafariz  colonial,  um  arco  de  triumpho,  obra 


(1)  Ileproduzklo  no  reverso  da  medalha  commemorativa  conhe- 
cida par  Setwtus  Fliiminenais,  em  cujo  verso  Zepherino  Ferrez  gravou 
a  effigie  de  Dom  João  VI.  A  gravura  de  templo  é  por  outro  artista 
francez,  que  enlouqueceu^ 


992  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  Debret,  erguido  pela  Junta  Real  de  Commercio,  osten- 
tava suas  figuras,  allegorias  e  baixos  relevos,  tendo  pintadas 
sobre  transparentes  scenas  allusivas  a  Dom  João  VI :  o  seu 
desembarque  no  Rio  e  a  protecção  por  elle  dispensada  ás  artes 
e  ao  commercio.  No  meio  da  praça  elevava-se  um  obelisco, 
imitação  de  granito  vermelho,  fructo  do  estatuário  Taunay. 

O  arranjo  da  praça  fora  confiado  aos  artistas  francezes, 
que  assim  quizeram  evocar,  no  templo  o  estylo  grego,  no 
arco  o  romano  e  no  obelisco  o  egypcio,  transplantando  para 
o  Rio  a  moda  das  decorações  napoleónicas.  Por  uma  ironia 
do  destino,  ao  tempo  que  o  conquistador  penava  em  Santa 
Helena,  artistas  dos  seus,  dos  que  em  Pariz  tinham  visto, 
quando  não  preparado  e  executado  suas  apotheoses,  trabalha- 
vam no  Brazil  para  o  monarcha  emigrado,  cuja  acclamação, 
no  gosto  das  festas  delineadas  para  a  glorificação  do  seu  pode- 
roso inimigo,  se  verificava  no  seio  de  um  outro  continente, 
grande  parte  do  qual  obedecia  ao  Rei  foragido  e  onde  este 
havia  até  alargado  seus  extensos  dominios  á  custa  dos  adver- 
sários de   1807. 

Já  em  Pariz  o  clássico  estylo  napoleónico,  de  um  classi- 
sismo  meio  bárbaro,  se  tpuzera  ao  serviço  dos  Bourbons.  Por 
isso  escrevia  Maler  ( i )  que  a  decoração  do  largo  do  Paço 
recordava  aos  Francezes  o  regresso  de  Luiz  XVIII  á  sua 
capital,  não  tendo  Grandjean  feito  mais  do  que  reeditar  o 
templo  construído  ad  hoc  no  Pont-Neuf. 

Obelisco,  arco  e  templo  accendiam-se  á  noite  clareando 
a  bahia  escura  onde  se  destacavam,  do  outro  lado,  as  foguei- 
ras ardendo  sobre  os  morros  da  Praia  Grande.  As  illumina- 
ções  mais  brilhantes  foram  comtudo  as  do  Campo  de  Santa 


(1)   Offlcio  de  7  de  Fevereiro  de  ÍSÍS. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  993 

Anna,  (i)  transformado  em  jardim,  com  um  palacete  cen- 
tral de  madeira,  cujos  terraços  serviam  á  família  real  de  tri- 
buna, e  com  fortins  fingidos,  nos  quatro  cantos,  em  cujas 
esplanadas  tocavam  musicas  e  em  cujas  salas  d'armas  se  ser- 
viam café  e  refrescos.  A'  noite  o  improvisado  jardim  aclara- 
va-se  como  si  fosse  dia:  circumdavam  o  tanque  central  com 
repuxo  i6  estatuas  illuminadas  e,  nas  alamedas  que  alli  con- 
vergiam, deparavam-se  102  pyramides  luminosas.  Escrevia 
Malcr  (2) — e  o  elogio  não  é  fraco  —  que  o  Campo  de 
Sant'Anna  exhibia  brilho  e  gosto  sufficientes  para  fazer  pen- 
sar nas  Tulherias  e  nos  Campos  Elyseos,  quando  illuminados. 

Ahi  teve  lugar  no  dia  immediato,  7  de  Fevereiro,  a 
parte  popular  das  festas  reaes.  No  vasto  recinto  da  praça  de 
touros  effectuaram-se  evoluções  militares,  deram-se  danças 
e  funccionou  um  theatro  onde,  em  presença  da  corte,  se 
representou  uma  magica,  se  executou  um  bailado  allegorico 
e  durante  perto  de  uma  hora  se  recitaram  poesias  allusivas, 
se  pronunciaram  allocuções  patrióticas  e  se  cantou  o  hymno 
nacional. 

O  Elofrio  tle  Dom  João  rematava  no  palco  pela  sua  exal- 
tação mythologíca.  Fizera-se  appello  a  Vénus  e  ás  Trez  Gra- 
ças, que  gentilmente  compareceram  não  obstante  a  pouca 
belleza  do  hcroe,  e  emquanto  se  esperava  que  descessem  do 
Olympo,  laborava  sobre  o  altar  do  hymeneu  o  fogo  sagrado 
da  união  mystica  do  Rei  e  do  seu  povo.  Representantes  dos 
trez  Reinos  unidos  e  guerreiros  de  toda  a  espécie  entravam 


(1)  lEra  então  um  areal  entremeado  do  mangues,  ahi  fazendo 
s'nis  exercicios  a  tropa  de  linha  e  a  milici;)  e  occon-endo  os  festejos 
do  Espirito  Santo.  Algumas  casas  separadas  por  muras  d«  jardins  e 
quintaes,  fechavam  troz  lados  do  campo,  correndoí  pelo  septentrional 
uma  cerca  de  espinhos  que  terminava  em  frente  á  capella  de  Santa 
Anna. 

(2)  Officio  cit.  de  7   de  Fevereiro  de  1818. 


994  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

como  comparsas  d'esse  final  nephelibata,  em  que  se  destaca- 
vam animados,  pairando  entre  as  nuvens,  os  génios  das  na- 
ções componentes  da  dilatada  monarchia. 

No  dia  8,  depois  do  beija-mão,  renovaram-se  no  Campo 
de  Sant'Anna  as  diversões  da  véspera  e  queimou-se  um  es- 
plendido fogo  de  artificio  á  noite,  quando  a  corte  sahio  a 
visitar  as  illuminações,  que  emprestavam  uma  apparencia 
fantástica,  a  toda  a  cidade,  pois  não  se  limitavam  ás  dispos- 
tas pela  Intendência  de  Policia,  Senado  da  Camará  e  Junta 
do  Commercio.  Particulares  rivalizavam  em  grandeza  com 
estas  corporações  e  repartições  officiaes:  só  uma  casa  se 
enfeitara  com  6.000  lampeões  de  cor. 

Os  artistas  francezes  tinham  prestado  seu  concurso 
com  a  maior  liberalidade,  dando  uma  neta  distincta  ás  orna- 
mentações, redigindo  inscripções,  forjando  emblemas,  exca- 
vando  allegorias  a  fixar  sobre  os  transparentes,  distribuindo 
desenhos,  ideando  construcções  architecturaes,  delineando 
templos  com  bustos  reaes  coroados  do  louro  guerreiro  ou  da 
pacifica  oliveira.  As  armas  dos  trez  Reinos,  o  génio  do  Brazil 
e  as  homenagens  de  figuras  symbolicas  eram  os  motivos  do- 
minantes nas  decorações,  que  todas  traduziam,  sob  a  expan- 
são do  affecto  dynastico,  o  orgulho  particularista  atiçando 
as  rivalidades  que  de  regionaes  passavam  a  nacionaes. 

O  resto  das  festas  realizou-se  oito  mezes  depois,  effe- 
ctuando-se  no  circo  do  Campo  de  Sant'Anna  as  cavalhadas, 
touradas  e  danças  a  caracter  promovidas  pelas  corporações 
profissionaes.  Os  desportos  equestres  e  tauromachicos  de- 
viam ter  sido  os  mais  apurados  da  epocha  a  julgar  pelos  lon- 
gos e  cuidados  preparativos.  Marrocos,  que  não  alimentava 
muita  ternura  pelo  Brazil  e  estava  sempre  prompto  a  desfa- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  995 

zer  nas  festas  fluminenses,  assim  escrevia  ao  Pai :  ( i )  "Tra- 
ta-se  aqui  agora  dos  arranjos  relativos  ás  próximas  festas 
reaes,  em  que  se  vê  o  firme  ardor,  empenho,  e  concorrência 
notável  do  Senado  da  Camará.  De  algumas  das  Capitanias 
confinantes  tem  chegado  a  esta  Corte  grande  numero  de  pes- 
soas, insignes  cavalheiros,  para  figurarem  e  brilharem  nas 
cavalhadas,  de  que  já  começaram  os  ensaios,  a  que  tem  ido 
assistir  immenso  povo,  menos  eu:  assim  como  se  mandarão 
vir  grossas  manadas  de  touros  escolhidos  em  força  e  bra- 
veza, com  que  se  pretende  dar  boas  tardes  a  huns,  e  boas  nou- 
tes  a  outros.  Ouvirei  contar,  se  entretanto  puder  chegar  a 
essa  época  memorável." 

A  funcção  foi  de  facto  completa.  Carros  com  musicas 
transportavam  á  arena  os  bailarinos  que  ahi,  apeando-se, 
executavam  quadrilhas  e  solos:  um  grupo  disfarçado  em 
guerreiros  hespanhoes  antigos,  outro  em  habitantes  da  Cur- 
landia,  precedidos  ambos  pelo  carro  de  Neptuno  e  pela  infal- 
livel  dança  de  caboclos.  Aos  exercicios  choreographicos  segui- 
ram-se  os  torneios.  Entrando  de  lança  em  riste,  os  cavallei- 
ros  faziam  suas  cortezias  e  procediam  ás  variadas  exhibições 
de  equitação  e  destreza:  cannas,  argolinhas,  estafermo,  alcan- 
zias,  etc.  Por  fim,  pondo-se  em  contribuição  a  nova  conquista, 
celebraram-se  as  touradas  com  artistas  vindos  de  Montevideo, 
os  cavalleiros  comtudo  á  antiga  portugueza,  de  casaco  de 
velludo  bordado  com  bofes  de  renda  e  chapéo  tricorne,  mon- 
tados nos  estribos  de  caixa  sobre  cavallos  de  boa  raça  e  visto- 
samente ajaezados. 

O  Campo  de  Sant'Anna  era  o  local  para  semelhantes 
divertimentos,  mas  o  largo  do  Paço  constituia  o  centro  da 


(1)  íCarta  de  17  de  Junho  de  1818. 


996  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

vida  cortezã,  popular,  militar  e  até  mercantil  da  cidade.  Ahi 
vemos  que  se  realizavam  as  augustas  cerimonias  da  realeza; 
ahi  se  davam  largas  os  júbilos  da  plebe  emquanto  não  che- 
gavam seus  desvarios;  por  ahi  desfilavam  ao  som  das  bandas 
marciaes  os  regimentos  que  iam  ou  vinham  da  campanha  do 
Sul;  ahi  se  reuniam  á  hora  da  fresca  os  mercadores  tempe- 
rantes,  sorvendo  a  largos  tragos  os  moringues  de  agua  fresca, 
e  se  congregavam  cm  turbulenta  agglomeração  as  tripola- 
çõcs  ébrias  dos  navios  surtos  no  porto. 

O  Palácio  com  suas  dependências  dominava  o  espaçoso 
quadrilátero.  Nas  janellas  de  sacada  do  edifício  principal 
costumavam  apparecer  figuras  aristocráticas  quando  n'elle 
assistia  a  família  real,  assim  como  do  segundo  andar  do  con- 
vento annexado  (onde  hoje  funcciona  o  Instituto  Histórico) 
se  viam  espreitar  o  movimento  da  praça  os  officiaes  da  corte 
que  alli  tinham  seus  aposentos.  No  andar  térreo  e  nos  pateos, 
onde  ficavam  as  cozinhas  e  a  ucharia,  era  um  fervilhar  de 
criadagem. 

As  cavallariças  tinham  ido  para  o  largo  do  Moura  e  as 
cocheiras  para  a  praia  de  D.  Manoel,  de  sorte  que  nas  imme- 
diações  da  mansão  colonial  se  tinha  formado  um  acampamento 
completo  em  que  se  agitava  uma  verdadeira  população  pala- 
ciana, desde  os  fidalgos  altaneiros  de  Lisboa  até  a  arraia 
miúda  dos  serviçaes  brancos,  negros  e  mestiços:  tão*  nume- 
rosos apezar  das  reducções  que  soffreu  o  seu  exercito,  tão 
pouco  disciplinados  e  tão  velhacos  que  um  dia,  ao  que  refere 
a  chronica  epistolar  de  Marrocos,  ( i )  foi  preciso  metter  na 
cadeia  toda  a  cambada  dos  empregados  na  cozinha  e  copa 
de  Dona  Carlota,   "por  haverem  gramanteado  a  Merenda 


(Ij    Cai-ta  ao  Tai  de  29  de  Abril  de  1815. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  997 

destinada  para  Suas  Altezas."  Nos  dias  de  funcção  de  gala, 
com  o  beija-mão  indispensável,  tornava-se  enorme  a  azáfama, 
concorrendo  coches,  berlindas,  seges,  traquitanas,  gôndolas, 
carros  inglezes,  toda  a  espécie  de  vehiculos  a  transportarem  o 
pessoal  obrigado  e  facultativo  d'essas  cerimonias. 

Do  lado  esquerdo  do  largo  do  Paço  levantavam-se  casas 
uniformes  que  foram  primeiro  occupadas  por  fornecedores  e 
empregados  da  Real  Casa,  mas  em  1818,  tendo-se  deslocado 
o  grosso  da  corte  para  São  Christovão,  já  o  eram,  nas  lojas 
por  vários  cafés,  e  nos  andares  superiores  por  bilhares  e  ho- 
téis á  franceza.  Por  traz  d'este  quarteirão,  no  dedalosinho 
de  ruas  que  subsistem,  encontrava-se  bem  repetido  o  typo 
clássico  da  hospedaria  portugueza,  annunciada  por  grandes 
taboletas  e  lanternas  de  folhas  de  Flandres,  e  com  armazéns 
para  deposito  das  mercadorias  dos  viajores,  na  maior  parte 
de  commercio. 

Na  fachada  do  quarteirão  da  banda  da  praia  as  lojas  de 
variados  fornecimentos  formavam  uma  espécie  de  mercado 
que  nunca  se  levantava,  e  da  banda  opposta,  as  casas  volta- 
das para  terra  constituíam  o  começo  da  rua  Direita  com  suas 
boas  lojas  de  negociantes  abastados.  Encostado  mesmo  ao 
mar  fazia-se  -o  mercado  do  peixe,  a  que  se  seguiam  os  trapi- 
ches da  Alfandega  e  depois  a  praia  dos  Mineiros,  onde  se 
vendiam  bananas,  lenha,  louças  e  outros  artigos.    ( i ) 

Si  nem  toda  ella  podia  haver-se  esmerado  e  adoptado  o 
bom  tom,  que  se  derivava  de  um  arremedo  que  fosse  do  legi- 
timo esplendor  das  realezas,  a  vida  fluminense  no  geral  ga- 
nhara tanto  com  a  fartura  proveniente  de  um  commercio  di- 
recto e  extenso,   e  com  a  convivência  estrangeira,  que  em 


(1)   Dcbret,  ob.  cit. 


998  DOM  JOÃO  VI  NO  13RAZIL 

1817,  no  dizer  de  Debret,  offerecia  mesmo  recursos  aos  gas- 
tronomos.  A  meza  civilizara-se  entre  certos;  educara-se  o 
paladar  de  muitos,  d'antes  embotado  pela  monotonia  da  carne 
secca  com  feijão  e  do  cozido  com  farinha,  conhecendo  como 
delicia  suprema  a  franga  assada;  o  jantar  convertera-se  para 
os  educados  no  que  era  na  Europa:  uma  reunião  agradável 
para  o  corpo  e  para  o  espirito,  prazer  dos  sentidos  e  recreio 
da    intelligencia.    ( i ) 

O  palácio  de  São  Christovão  onde  o  Rei  residia  mais 
frequentemente  do  que  em  qualquer  outro,  passou  por  diffe- 
rentes  arranjos  e  soffreu  algumas  addições  durante  a  estada 
no  Brazil  de  Dom  João  VI.  Logo  depois  da  doação,  em  1808, 
o  architecto-engenheiro  portuguez  José  Domingos  Monteiro 
f ez-lhe  o  portão  e  Manoel  da  Costa  pintou  as  decorações  inte- 
riores. A  primitiva  casa  da  chácara  do  negociante  Elias  tinha 
por  mimo  uma  varanda  ou  galeria,  muito  commum  nas 
construcções  tropicaes.  Em  1816  chamavam,  porém,  a  atten- 
ção  a  grade,  o  pateo  de  honra  e  a  fachada  lateral  gothica, 
obra  de  um  architecto  inglez — como  o  intitula  Debret  (2)  — 
que  foi  quem  preparou  os  aposentos  para  o  Principe  Real 
na  occasião  do  casamento  e  proseguio  nesse  mesmo  anno  de 


(1)  Debret  falia  de  uma  exceWente  casa  de  pasto  dirigida  por 
ura  italiano,  e  de  varias  casas  de  comestiveis  na  rua  do  Rosário,  cen- 
tro da  colónia  italiana,  onde  se  vendiam  bons  azeites,  massas,  conser- 
vas fructas  seccas  ^e  outros  géneros  finos  de  alimentação.  Tinham^se 
montado  padarias  francezas,  allemãs  e  italianas,  importando  um  fran- 
cez  excellent>  farinha  de  trigo  do  seu  paiz.  Outro  francez,  borticultor, 
memorara  consideravelmente  o  cultivo  dos  legumes,  fazendo  vir  da 
Europa  e  acclimando  no  Brazil  variedades  desconhecidas. 

(2)  Esse  architecto,  um  Mr.  Johnson,  era  ant<^s  um  mestre  de 
obras  que  viera  ao  Rio  especialmente  para  collocar  a  grade  do  portão 
idêntica  A  de  Sion  House.  mandada  de  presente  ao  Rei  pelo  duque  de 
Northumberland  e  aproveitada  na  frente  de  São  Christovam. 

O  estylo  gothico  foi  supprimido  e  substituído  pelo  anterior  es- 
tylo  portuguez  quando,  no  anno  da  Independência,  se  confiaram  a 
Manoel  da  Costa  os  trabalhos  e  restaurações  de  urgência  para  accom- 
modagão  da  nova  corte  imperial. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  999 

1817  a  construcção  de  um  dos  quatro  pavilhões  com  arcaria 
ogival  imaginados  para  os  ângulos. 

N'este  palácio  dava  o  Rei,  ao  som  de  uma  banda  de 
musica,  o  que  se  pode  denominar  beija-mão  commum  todas 
as  noites  das  8  ás  9,  excepção  feita  dos  domingos  e  dias  santi- 
ficados. Concorria  á  cerimonia  crescido  numero  de  pessoas 
a  pé,  a  cavallo,  de  sege  ou  em  cabriolet,  pejando  os  caminhos 
da  Cidade  Nova,  Catumby,  e  Mata-porcos.  N  essas  recepções 
ordinárias  um  mulato  pisava  os  calcanhares  de  um  general, 
na  phrase  expressiva  de  Henderson.  Dom  João  VI  gostava 
muito  que  os  seus  súbditos  frequentassem  o  beija-mão  e  fazia 
por  isso  lá  voltarem  reipetidas  vezes  os  pretendentes,  parti- 
cularmente os  que  vinham  da  Europa  com  algum  desejo.  A 
estes  maliciosamente  os  demorava  no  Rio,  como  que  para  lhes 
ensinar  a  apreciarem  sua  capital  de  eleição.  Dotado  da  prodi- 
giosa memoria  dos  Braganças,  nunca  confundia  as  physiono- 
mias  nem  as  supplicas,  e  maravilhava  os  requerentes  com  o  co- 
nhecimento que  denotava  das  suas  vidas,  das  suas  familias,  até 
de  pequenos  incidentes  occorridos  em  tempos  passados  e  que 
elles  mal  podiam  acreditar  terem  subido  á  sciencia  d'El-Rei. 

Ao  beija-mão  de  gala  compareciam  não  só  os  persona- 
gens em  evidencia  como  quantos  ambicionassem  approxi- 
mar-se  da  realeza  e  tivessem  meios  de  envergar  um  trajo  de 
casaca  preta,  collete  branco,  calções  e  meias  negras  e  chapéo 
de  pasta.  Os  de  nascimento  nobre  aggregavam  um  espadim. 
Ao  lado  da  poltrona  real,  para  cá  dos  dous  enormes  anjos 
de  azas  e  armadura  prateadas  que  sustentavam  o  docel  do 
throno,  uma  mesinha  com  dous  castiçaes  em  cima  servia 
para  accumular  as  petições  e  permittia  ao  monarcha  lançar- 
Ihes  uma  vista  de  olhos.  O  desfilar  não  obedecia  a  preceden- 


1000  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

cia  alguma  e  todos  sem  distincção  fincavam  um  joelho  no 
chão  ou  se  ajoelhavam  com  os  dous  diante  do  Rei  (i ). 

Na  casa  de  campo  de  Santa  Cruz  passava  Dom 
João  VI  todos  os  annos  algumas  semanas,  e  a  essa  residên- 
cia de  fazenda  affeiçoaram-se  muito  Dom  Pedro  e  Dona 
Leopoldina,  ahi  se  demorando  por  vezes  bastante  tempo. 
Foi  de  resto  por  occasião  do  seu  consorcio,  exercendo  o  cargo 
de  intendente  geral  dos  edificios  da  coroa  o  visconde  do  Rio 
Secco,  que  se  arranjou  convenientemente  a  vivenda,  des- 
manchando-se  as  cellas  da  antiga  casa  da  Ordem,  onde  con- 
tinuara a  alojar-se  o  Rei,  para  se  fazerem  divisões  mais 
amplas. 

Não  eram  mais  frequentes  as  viagens  da  corte  porque 
cada  uma  custava  rios  de  dinheiro,  roubando  os  fornecedores 
escandalosamente  de  combinação  com  os  mordomos.  Também 
fora  a  fazenda  um  desastre  completo  pelo  lado  financeiro. 
Mal  cultivada  depois  que  pela  força  a  desertaram  os  padres 
jesuitas,  nenhum  proveito  se  tirava  dos  milhares  de  cabeças 
de  gado  que  por  suas  pastagens  erravam,  nem  dos  escravos 
negros,  quasi  mil  em  numero,  que  nas  suas  senzalas  se  jun- 
tavam. Mawe,  que  esteve  feito  administrador  da  fazenda 
para  pôr  em  execução  sua  famosa  receita  de  fabricar  man- 
teiga, escreve  que  era  lamentável  a  condição  da  propriedade 
e  deploráveis  os  abusos.  Nas  terras  amanhadas  cresciam  as 
hervas;  as  plantações  de  café  pareciam  capoeiras,  com  ar- 
bustos bravios  mais  altos  do  que  os  cafezeiros;  o  gado  andava 
tão  maltratado  que  não  se  encontrava  um  só  cavallo  que 
prestasse  para  montaria. 

Linhares,  que  em  tudo  pensava  e  de  tudo  se  occupava, 
installou  em  Santa  Cruz  colonos  chins,  dos  que  mandara  vir 


(1)   von  Leithold,  ob.  cit. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1001 

de  Macau.  Não  medraram  todavia:  voltaram  uns  para  a  ci- 
dade a  venderem  foguinhos  e  outros  artigos  da  sua  producção 
exótica,  e  desappareceram  outros,  ou  porque  tivessem  morrido 
de  pura  nostalgia,  ou  porque  se  internassem  a  esmo,  rondando 
muitos  dessatisfeitos  á  aventura.  Poucos  foram  os  que  fica- 
ram na  fazenda,  sem  alip-^;  se  importarem  de  forma  apre- 
ciável quer  com  a  agricultura,  quer  com  a  horticultura. 

Tal  foi  o  aspecto  material  da  realeza  brazileira.  Pelo 
que  toca  ao  moral,  fácil  é  imaginar  o  tom  predominante  na 
corte  do  Rio  de  Janeiro,  nos  tempos  'do  Reino  Unido,  para 
quem  conserva  presente  na  memoria  ou  conhece  de  tradição 
a  feição  geral  da  fidalguia  portugueza  antes  que  o  cosmopo- 
litismo e  a  educação  correlativa,  transformando  a  apparencia 
do  paiz,  a  fossem  também  muito  recentemente  transfor- 
mando, 

D'essa  nobreza  caracteristicamente  nacional,  inculta,  il- 
letrada,  toureira,  fadista,  dissipada,  arruaceira,  foram  Dom 
Pedro,  até  a  lucta  e  o  infortúnio  o  depurarem,  e  Dom  Mi- 
guel, até  o  exilio  e  a  pobreza  o  ennobrecerem,  dous  repre- 
sentantes genuinos  e  completos.  Não  desmentiam,  um  e  ou- 
tro, nem  a  filiação  materna,  nem  o  meio  aristocrático  a  que 
pertenciam,  na  pouca  elevação  das  inclinações,  na  grosseria 
das  maneiras,  na  curteza  das  vistas,  na  sensualidade  dos  ap- 
petites,  na  animalidade  dos  gostos. 

Conta  Henderson  que,  tendo  alcançado  um  dia  em 
seu  passeio  as  terras  de  São  Christovão,  deparou  com  o 
Principe  Real  amansando  com  um  enorme  chicote,  que  fazia 
estalar  com  o  frenesi  d'um  postilhão,  animaes  de  tiro  para  as 
cocheiras  do  palácio,  já  tendo  n'aquella  manhã  esfalfado 
quatro  parelhas.  Não  longe  o  Infante,  de  botas  altas,  cha- 
péo  armado  e  placa  ao  peito,  munido  de  um  longo  aguilhão 


1002  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

e  ajudado  por  alguns  negros  e  pelo  feitor,  lavrava  o  campo 
com  um  arado  puxado  por  trez  juntas  de  bois. 

Assim  se  preparavam  para  o  governo  da  monarchia  os 
filhos  de  Dom  João  VI,  rijos  de  músculos  mas  alheios  a 
todas  as  questões  publicas,  cheios  de  actividade  mas  estra- 
nhos a  qualquer  preoccupação  intellectual,  supprindo  sua 
palmar  ignorância  por  uma  grande  vivacidade  natural  e  sua 
odiosa  vulgaridade  pelos  rasgos  de  um  cavalheirismo  espon- 
tâneo, de  raça  ou  de  Índole,  que  fazia  as  vezes  de  contrapeso 
moral. 

Com  elles  faziam  coro  os  jovens  rebentos  das  casas 
fidalgas  transplantadas  em  1808,  criados  nas  tradições  da 
ociosidade  mental  e  com  o  fetichismo  da  Lisboa  devassa  e 
desordeira  ( i ) ,  cujos  palácios  cheios  do  rumor  dos  depen- 
dentes tão  pouco  se  pareciam  com  as  quintas  mais  tranquillas 
na  sua  exhuberancia  tropical  dos  arrabaldes  fluminenses,  onde 
por  fim  se  aninhara  muita  gente  principal  da  corte,  acompa- 
nhando os  Inglezes  que  primeiro  invadiram  os  subúrbios  á 
cata  de  residências  frescas  e  agradáveis. 

Eram  na  verdade  estrangeiros  que  occupavam  os  melho- 
res pontos  da  praia  do  Flamengo,  onde  residiram  os  minis- 
tros Balk-Poleff  e  Thornton,  de  Catumby,  onde  foi  viver 
n'um  alto  o  ministro  Flemming,  e  de  Botafogo,  onde  sobre- 
tudo se  destacava  a  elegante  vivenda  do  negociante  Harrison. 


(1)  "Os  fidalgos  e  os  que  aqui  constituem  .as  classes  mais  altas 
•da  socLedade,  acliam-se  imfinitamiente  ,aquem  das  classes  corresiponden- 
t.es  nos  principaes  paizes  da  Europa,  tanto  no  conhecimento  como  na 
pratica  da  vida  civilizada.  Os  prazeres  e  requintes  do  intercurso  so- 
cial igualmente  lhes  são  estranhos  ;  ciosos  dos  estrangeiros,  sua  atti- 
tude  para  com  elles  não  é  caracterii.dda  por  aquella  attenção  e  hospi- 
talidade tão  conspícuas  n'outras  nações,  onde  prevalece  o  cultivo  de 
um  sj^stema  liberal  de  sociedade."    (Henderson,  oh.  cit.) 


DOM  JOÃO^VI  NO  BRAZIL  1003 

Os  arrabaldes  aformoseavam-se  d 'esse  modo  sem  que  porém 
melhorassem  muito  os  rudes  caminhos  que  a  elles  conduziam. 
O  Cattete  andava  como  outr'ora,  cheio  de  buracos  que, 
depois  de  qualquer  chuvada,  se  convertiam  em  vastas  poças 
d'agua.  A  única  estrada  cuidada  —  e  é  mister  não  exaggerar 
o  qualificativo,  —  era  a  de  São  Christovão,  a  mais  frequen- 
tada também  por  causa  da  assistência  real.  A  visinhança  da 
corte  determinara  aliás  a  fundação  de  apraziveis  chácaras 
por  toda  aquella  redondeza,  merecendo  favor  e  povoando-se 
gradualmente  o  Engenho  Velho,  o  Engen'ho  Novo,  a  Tijuca 
e  o  Andarahy. 

Em  todas  as  festas  da  corte,  avultavam  as  recitas  de 
gala.  N'essa  vida  fluminense  sem  conforto  mas  com  luxo, 
que  este  já  despontara  quando  aquelle  ainda  se  não  organi- 
zara; sem  distracções  intelligentes  mas  com  exhibições  faus- 
tosas; atrazada  e  vistosa  ao  mesmo  tempo,  ellas  se  assigna- 
lavam  por  darem-lhe  a  nota  mais  apparatosa.  As  modas  in- 
glezas  e  francezas  tinham-se  ido  introduzindo  e  apurando 
o  gosto,  e  as  fazendas  caras  eram  realçadas  pela  profusão 
de  joias.  Von  Leithold  diz  que  em  parte  alguma  se  podiam 
admirar  tantas  pedrarias  como  as  que  constellavam  as  damas 
brazileiras  que  assistiam  aos  espectáculos,  de  toucados  em- 
plumados, vestidos  carregados  de  passamanes  de  ouro  e  prata 
e  meneando  leques  decorados  de  pérolas  e  de  outras  pedras 
finas. 

Não  se  tornara  portanto  o  theatro  terreno  somente 
para  incipientes  manifestações  politicas;  entrara  cada  vez 
mais  a  ser  o  ponto  por  excellencia  de  reunião  social,  sobre- 
tudo  depois   que   a    12    de   Outubro   de    1813,    anniversario 


1004  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL 

natalício  do  Príncipe  da  Beira,  se  inaugurara  no  Rocio  com 
o  drama  lyrico  —  O  juramento  dos  Numes  —  e  a  peça  dra- 
mática e  patriótica — O  combate  de  Vuneiro  —  o  theatro 
de  São  João  (mais  tarde  de  São  Pedro  d'Alcantara)  mo- 
delado como  tudo  mais  no  Rio,  edifício  ou  instituição,  pelos 
figurinos  portuguezes,  imitação  reduzida  a  sua  fachada  da 
do  theatro  de  São  Carlos  de  Lisboa. 

No  desbravado  Campo  da  Lampadosa,  uma  vez  le- 
vantado o  theatro,  começaram  logo  particulares  a  construir 
casas  de  residência.  Ficava-lhes  assim  ao  pé  da  porta  o  diver- 
timento fino  da  cidade,  no  qual  estavam  directamente  interes- 
sados os  maiores  capitalistas  fluminenses,  pois  que  o  theatro 
fora  erguido  por  subscripção,  ficando  cada  subscriptor  pro- 
prietário de  um  camarote.  O  organizador-iemprezario,  José 
Fernandes  de  Almeida,  além  d'estas  facilidades  de  capital 
que  encontrou,  usou  á  discreção  de  material  transportado 
dos  visinhos  trabalhos  de  adaptação  da  Sc,  começada  no 
largo  de  São  Francisco  de  Paula,  á  Academia  Militar  fun- 
dada pelo  tempo:  mas  ainda  achou  meio  de  ficar  devendo  ao 
mestre  de  obras  a  madeira,  a  cal  e  as  telhas. 

Depois  de  começar  a  funccionar  a  nova  casa  de  espectá- 
culos, contribuía  o  Príncipe  Regente  com  largas  sommas 
para  as  despezas  das  representações  officiaes  nos  anniversa- 
rios  da  família  real,  celebrados  por  meio  de  bailados  ou  gru- 
pos históricos,  nos  quaes  veio  a  primar  o  talento  de  Debret, 
por  bastantes  annos  empregado  n'esse  serviço  artístico,  do 
que  resultou  ficarem  perpetuadas  em  suas  líthographías  al- 
gumas das  formosas  allegorías  choreographícas  por  elle  ima- 
ginadas, compostas  e  ensaiadas.  Nada  comtudo  lhe  chegando, 
solicitava  o  emprezario  empréstimo  sobre  empréstimo  dos 
accionistas  do  Banco  do  Brazil,  dando  em  hypotheca  o  edi- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  H)U5 

flcio,  que  em  1825  se  incendiou  e  foi  reconstruido  pelo 
mesmo  Almeida,  concedendo-se-lhe  para  tal  fim  loterias  ( i ) . 

A  inauguração  ficara  memorável.  O  auctor  da  peça 
symbolica,  bocado  de  resistência  do  espectáculo,  chamava-se 
D.  Gastão  Fausto  da  Camará  Coutinho  e  era  um  poeta  cor- 
tezão  do  género  dos  que  hoje  em  dia  regalam  o  Imperador 
AUemão  com  os  seus  panegyricos  dramatizados  dos  Hohen- 
zollerns.  Parece-nos  agora  o  seu  estylo  pretencioso,  empolado 
e  confuso,  ao  ponto  de  por  vezes  perder  não  somente  a  graça 
e-  a  limpidez,  que  estas  lhe  são  desconhecidas,  mas  até  a  in- 
telligibilidade.  Nenhum  todavia  podia  em  certo  aspecto  ex- 
pressar melhor  essa  epocha  nacional  de  vangloriosos  desâni- 
mos, de  encyclopedismo  afoito  e  de  arremettidas  disfarçadas. 
O  próprio  entrecho  não  é  fácil  de  resumir. 

O  primeiro  quadro  figura  a  sediça  forja  de  Vulcano. 
O  deus  incita  os  cyclopes  a  trabalharem  com  fervor  nas 
armaduras  dos  Portuguezes,  requeridas  pela  guerra.  Como 
nos  Luziadas,  modelo  eterno  de  talentos  e  de  mediocridades, 
Vénus  apparece  de  protectora  d'esss  amorosos  incorrigiveis, 
rogando  ao  complacente  marido  que  se  apresse  em  soccorrer 


(1)  Ao  lado  (lo  theatro  de  São  João,  trabalhava  antos  da  In- 
dependência um  theatvinlio  de  propriedade  de  uma  sociedade  de  nego- 
ciantes ricos,  onde  distinctos  curiosos  desempenhavam  peças  escolhi- 
das, compondo-se  a  orchestra  igualmente  de  curiosos.  A  sala  era  lin- 
damente decorada  :  a  sociedade  dissolveu-se  iiorém  em  1817,  diz-se 
que  por  invejas,  ciúmes  e  enredos.  O  abastado  negociante  Luiz  de 
Souza  Dias  mandou  construir  outro  theatro,  de  que  foi  architecto 
Grandjean  de  Montigny  e  onde  eram  também  amadores  que  represen- 
tavam (iDebre,t,  06.  cit.)  Não  nos  ficaram  tradições  litterarias  d'esses 
palcos,  cuja  acção  devia  ter  sido  muito  limitada,  como  era  exclusivo 
o  seu  circulo  de  actores  e  espectadoi*es. 

A  existência  das  referidas  salas  indica  poi*ém  como  era  vivo 
no  Brazil  o  gosto  pelo  theatro,  bem  como  era  vivo  o  gosto  pela  mu- 
sica. Ambos  aliás  eram  espalhados,  não  só  fluminenses. 

Na  Bahia  davam-se  regularmente  desde  ISIO  pacas  nacionaes 
e  italianas.  Em  Pernambuco  igualmente  havia  casa  de  espectáculos. 
Em  São  Luiz  do  Maranhão  abriu-se  uma  em  1820.  N'outros  tempos, 
■do  esplendor  de  Villa  Rica,  fora  o  seu  tlieatro  o  viveir  >  dos  actores 
do  Rio  de  .Janeiro. 

D  j.  -  g:j 


1006  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

a  gente  d'ella  na  crise  em  que  se  vê  ameaçada  pela  França. 
Vulcano  dá-lhe  porém  a  grata  nova  de  já  terem  os  Portu- 
guezes  lançado  o  inimigo  além  dos  Pyreneus,  o  que,  entre 
parenthesis,  não  vai  de  accordo  com  o  afan  pelo  próprio  pa- 
trão reccmmendado  á  faina  bellica  da  sua  officina.  Apoz 
uma  larga  explicação  musical  e  vocal  dos  motivos  da  sua 
perenne  e  suspeita  benevolência  para  com  os  Luzos,  retira-se 
Vénus,  promettendo  aos  cyclopes,  como  premio  da  diligen- 
cia que  revelarem,  as  quatorze  n5^mphas  que  a  servem.  As 
árias  que  se  seguem  ao  descarado  contrato  são  obrigadas  a 
compasso   de  martellos,   batendo  sobre   as  bigornas. 

No  segundo  quadro,  que  representa  um  bosque,  a  Paz 
vem  qu€Íxar-se  de  só  achar  guarida  "nos  brutos  animaes, 
a  que  o  Olimpo  previdente  nega  razão  aguçosa."  Surge  a 
consolal-a  o  Génio  lusitano,  com  a  esperança  de  que  os  mo- 
narchas  da  Britania  e  Lysia  hão  de  ^azer  levantar  o  seu  tem- 
plo sobre  unigos  sórdidos  cadáveres,  e  de  novo  a  adornando 
das  insignias  de  que  eila  se  despojara,  convida-a  a  entrar  no 
"sacrosanto  alcaçar  do  supremo  heroismo"  para  ver 

A  scintillante  effigie  portentosa 

Do  Monarca  maior,  que  hão  visto  as  eras. 

—  scilicet  Dom  João  VI.  A  rhetorica  é  capaz  de  tudo  e  me- 
rece ser  perdoada,  porque  carece  dos  seus  estratagemas  de 
tropos  e  hyperboles  para  ef feitos  scenicos  como  esse,  diff iceis 
de  preparar  e  sobretudo  de  tornar  impressivos. 

O  Génio  luzitano  conduz  de  passagem  a  Paz  á  forja 
de  Vulcano,  afim  de  admirarem  as  armaduras  dos  Portu- 
guezes,  que  transportam  para  o  templo  do  Heroismo,  no 
fundo  do  qual  se  desenha  o  régio  pacato  retrato.  AUi  encon- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1007 

tram  Vénus  com  seu  coro  de  Graças,  cantando  todos  ao 
desafio  e  fazendo  o  Génio  o  juramento  de  que  Portugal  ja- 
mais seria  vencido. 

Sob  a  direcção  Almeida  trabalharam  no  São  João,  du- 
rante a  estada  da  familia  real  no  Rio,  uma  companhia  de 
canto  dirigida  por  um  certo  Rascolli  (i),  a  companhia  dra- 
mática da  celebre  actriz  Marianna  Torres  e  a  de  dança  do 
famoso  Lacombe  (2).  O  corpo  de  baile  era  cosmopolita: 
n'elle  figuravam  francezas,  hespanholas  e  até  uma  mulata 
(3).  A  orchestra  deixava  um  tanto  a  desejar,  excepção  feita 
de  um  flautista  francez  e  de  um  excellente  violinista  (4). 
Empunhava  porém  a  batuta  o  celebre  Marcos  Portugal, 
que  em  Lisboa  regia  a  grande  orchestra  do  São  Carlos  e  go- 
sava  de  muita  reputação  nos  palcos  lyricos  italianos  pelas 
suas  operas  pomposas  e  alegres  que  tanto  agradavam  ao 
Principe,  pela  inspiração  -de  quem  ou  para  satisfazer  a  quem, 
refere  Debret,  introduziu  o  maestro  na  sua  musica  sacra  uma 
tonalidade  profana,  de  musica  jovial  e  saltitante,  mais  pró- 
pria do  género  buffo. 

Não  quer  isto  dizer  que  não  fosse  genuíno  em  Dom 
João  VI  o  gosto  musical,  que  é  apurado  e  tradicional  na  fa- 
milia de  Bragança.  Podia  o  real  amador  deleitar-se  com  a 
musica  mais  superficial  e  retumbante  de  Marcos  Portugal, 
mas  não  deixava  por  isso  de  sentir  profundamente  a  musica 


(1)  Era  1819  davam-se,  entre  outras  operas,  Tancredo  e  a  Ca- 
çada de  Henrique  IV,  razoavelmente  cantadas  pelas  damas  Faschiotti 
«  Sabini  e  por  um  tenor  magríssimo,  cujo  estylo  pareceu  a  von  Lei- 
thold  affectado,   mas  em  quem   reconheceu   vivacidade  scenica. 

(2)  Mr.  e  Mme.  Lacombe  eram  os  ensaiadores'  e  davam  tam- 
bém liQões  particulares  de  dança.  Os  emprezarios  da  companhia  eram 
Mr.   e  Mme.  Toussaint,   da  Porte   Saint-Martin. 

(3)  Os  bailados,  muito  apreciados  do  publico,  eram  em  geral 
bons,  tanto  os  cómicos,  como  os  dramáticos — Morte  de  Pyrrho,  Paulo 
c   Virgínia,  etc. 

(4)  von   Leithold,    oh.   cit. 


1008  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mais  suave  e  penetrante  do  padre  José  Maurício,  a  quem  con- 
decorara com  o  habito  de  Christo  desde  1810,  dando  im- 
mediatamente  e  só  por  si  o  valor  devido  á  maneira  fina- 
mente melodiosa,  sem  grandes  effeitos  orchestraes,  que  fa- 
ziam do  padre  um  Mozart,  comparando-o  com  o  génio  mar- 
cadamente italiano  do  seu  illustre  emulo. 

Os  dous  compositores,  si  personificavam  correntes  mu- 
sicaes  divergentes,  também  inconscientemente  symbolizavam 
correntes  politicas  oppostas,  anticipando-se  o  conflicto  ar- 
tístico ao  patriótico.  Era  José  Maurício  Nunes  Garcia  um 
producto  espontâneo  do  génio  nacional,  pois  tudo  quanto 
valia,  devia  tão  somente  á  sua  intuição  artística,  ao  contrario 
de  Marcos  Portugal  que  vivera  algum  tempo  e  aperfeiçoara 
sua  faculdade  na  terra  clássica  das  artes. 

O  brazileiro  nunca  sahira  com  effeito  do'  Rio,  onde  nas- 
ce^ em  1767  e  estudou  com  proveito  suas  humanidades,  co- 
nhecendo bem,  no  dizer  do  seu  biographo  Porto  Alegre,  geo- 
graphía,  historia,  philosophia,  francez,  italiano,  inglez,  latim, 
e  grego.  Preferiu  comtudo  a  ser  professor  de  philosophia, 
depois  de  ordenar-se,  o  entrar  como  mestre  de  capella  para  a 
.Sé,  dando  assim  a  melhor  applicação  d'aquelle  tempo  ao  seu 
talento  musical:  talento  completo,  porquanto  José  Maurício 
não  só  tocava  dous  instrumentos,  improvisava  melodias  e 
possuía  uma  prodigiosa  memoria  acústica,  como,  dotado  de 
uma  bellíssíma  voz,  cantava  admiravelmente  (i). 

Ao  chegar  em  1808,  a  família  real  encontrou  na  cathe- 
dral,  nas  funcções  de  organista,  o  compositor  que  desde 
1799  com  desvelo  se  esforçava  por  propagar  o  gosto  ingenito 
pela  musica  entre  os  seus  compatriotas,  sahindo  da  aula  es- 


(1)    Biographia   ci^ 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1009 

pecial  que  regia,  cantores,  Instrumentistas  e  até  compositores. 
Nomeou-o  o  Regente  inspector  de  musica  da  real  capella, 
onde  graças  á  augusta  influencia,  perfeitamente  correspon- 
dida, se  conseguiram  resultados  maravilhosos,  subindo  ainda 
de  esplendor  as  funcções  religiosas  da  nova  capital  quando, 
em  1810,  chegou  de  Lisboa  Marcos  Portugal  (i),  acompa- 
nhado de  vocalistas  e  concertistas. 

Em  181 5  possuia  a  Capella  Real  um  corpo  de  50  can- 
tores, entre  elles  magnificos  virtuosi  italianos,  dos  quaes  al- 
guns famosos  castrati,  e  de  100  executantes  excellentes,  diri- 
gidos por  dous  mestres  de  capella,  avaliando  Debret  os  gas- 
tos com  esses  artistas  em  300.000  francos  annuaes.  Tam- 
bém, no  dizer  dos  entendidos,  o  Miserere  de   Pergoletti  se 


(1)  Marcos  I'ortngal  foi  o  mestre  de  musica  das  filhos  de  Dom 
João  VI  e  ficou  vivendo  no  Rio  até  fallecer,  durante  a  Regência.  O 
iras.civel  Marrocos  não  podia  supportar  o  seu  afamado  patricio,  a  quem 
nas  cartas  trata  sempre  desdenhosamente  de  "rapsodista,  candidato 
na  Fidalguia  pela  escala  do  Do,  Ré,  Mi.  e  barão  de  Alamire."  O  teiró 
parece  ter  começado  no  dia  em  que  Marcos  Portugal,  "indo  ver  os 
Manuscriptos  por  faculdade  de  S.  A.  R.,  teve  a  insolentíssima  ousadia 
de  me  dizer  que  todos  elles  juntos  nada  valião,  e  que  S.  A.  R.  não 
fez  bem  em  es  mandar  vir,  ant^^s  deverião  ser  recolhidos  na  Torre  do 
TomI)o !  Logo  me  lembrei  o  dito  de  Horácio:  risum  teneatis,  a  miei; 
porém  mettendo  a  cousa  a  disfarce,  olhando  para  os  ares,  lhe  res- 
pondi :  que  o  tempo  estava  mudado  e  que  promettia  chuva.  Foi  tão 
besta,  que  não  entendeu ;  antes,  dando  quatro  fungadellas,  voltou 
costas,  e  poz-se  a  ler  os  versos  de  Thomaz  Pinto  Brandão.  Que  las- 
tima!..  .    (Carta   de   3   de   Julho   de   1812). 

N'outra  carta  de  7  de  Outubro  do  mesmo  anno,  escrevia  elle 
com  a  mi-^smia  prevenção  :  "Marcos  António  Portugal  esitS.  fsito  hum 
Lord  com  fumos  mui  subidos.  Por  certa  Ária,  que  elle  compoz  para 
cantarem  trez  Fidalgas  em  dia  d'annos  de  outra,  fez-lhe  o  Conselheiro 
.Toaquim  José  de  Azevedo  {Rio  f?ecco)  hum  magnifico  prezente,  que 
consistia  em  12  dúzias  de  garrafas  de  vinho  de  Champagne  (cada 
garrafa  do  valor  de  2$800  réis)  e  12  dúzias  ditas  de  vinho  do  Porto. 
Elle  jft  quer  ser  Commendador,  e  argumenta  com  Franzini,  e  Josô 
Monteiro  da  Rocha."  '■  '      I 

Aos  olhos  de  Marrocos  o  compositor  era  sobretudo  culpado  de 
ter  obtido  do  Príncipe  Regente  uma  sege  effectiva,  ração  de  guarda- 
roupa,  000$000  réis  de  ordenado,  "e  do  R.  Bolsinho  aquíllo  que 
S.  A.  R.  julgasse  lhe  era  próprio  e  conveniente",  além  de  ser  director 
geral  de  todas  as  funcções  publicas,  assim  de  igreja  como  de  theatro. 
Nem  lhe  excitava  a  sympathia  o  estupor  qiie  soffrera  Marcos  Portu- 
gal, "de  cujo  ataque  ficou  leso  de  hum  braço"    (Carta  de  20  dti  Qutu- 


1010  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

cantava  no  Rio,  por  occasião  da  Semana  Santa,  com  o  mesmo 
encanto  que  em  Roma,  na  Capella  Sixtina. 

A  inclinação  musical  não  era  só  poderosa  no  Brazil 
entre  a  gente  de  educação:  ella  denunciava-se,  sem  artifícios 
nem  preparos,  na  característica  e  espontânea  musica  popular. 
O  que  faltava  era  apenas  escola.  Ao  próprio  padre  José 
Mauricio  e  a  outros  talentos  brazileiros  do  género  foi  muito 
útil,  ao  que  se  af firma  ( i ) ,  o  influxo  da  banda  allemã  que 
ficou  com  a  Princeza  Real  e  ajudou  a  formar  entre  nós  o 
bom  gosto  e  o  estylo  musicaes,  determinando  a  pratica  intel- 
ligente  e  sabia  sem  a  qual  se  extraviam  numerosas  vocações 
profissionaes. 

Os  Jesuítas,  que  tão  grandes  disciplinadores  espirituaes 
e  temporaes  são,  tinham  fundado  na  fazenda  de  Santa  Cruz 


bro  de  1811)  :  antes,  oxtendendo  a  antipathia  á  familia  do  musico, 
assim  maltratava  o  irmão,  passando  depois  a  ensaiar  sobre  o  próprio 
novas  variações.  "Simão  Tortugal  é  organista  da  Capella  R.  com  os 
seus  300!?000  r(Ms  e  appendices,  ignoro  se  com  ração ;  porém  o  irmão 
tem-no  introduzido  com  os  seus  conhecimentos  do  sorte  que  tem  gran- 
geado  muitos  discípulos  e  discípulas,  que  lhe  mandão  suas  seges  a 
ca'sa  buseal-o  ;  eu  o  tenho  visto  mil  vezesi  nas  ditas  síiges,  entre 
ellas  a  da  Duqueza  de  Cadaval  :  por  isso  não  tem  razão  de  lamentar-se, 
porque  he  mui  natural  lhe  provenhão  grandes  interesses  de  seu  exer- 
cício. O  irmão  Marcos  tem  ganhado  a  aversão  de  todos  pela  sua  fan- 
farronice  ainda  maior  que  a  do  Pão  de  Ló  :  he  tão  grande  a  sua  im- 
postura e  soberba  por  estar  acolhido  A  graça  de  S.  A.  li.,  que  se  tora 
levantado  contra  si  a  maior  parte  dos  mesmos  que  o  obsequiavão  :  he 
notável  a  sua  circumspecção,  olhos  carregados,  cortejos  de  superiori- 
dade, emfim  apparencias  ridículas  e  do  charlatão  :  já  tem  desmerecido 
nas  suas  composições :  e  hum  grande  Musico  e  Compositor,  vindo  de 
Pernambuco  (?),  e  que  aqui  vivo.  he  hum  seu  Antagonista,  e  mostra 
a  todos,  os  que  quizerem  ver,  os  lugares,  (pio  Marcos  furta  de  outros 
A.  A.,  publicando-os  como  originaes.  Como  e^^tã  constituído  Director 
dos  Theatrog  o  Funcções,  quanto  a  Musica,  tem  formado  enormes  in- 
trigas entre  Músicos  e  Actores,  de  que  se  tem  originado  grandes  de- 
sordens.  Do   novo   theatro   que   vai   a    abrir-se queria    Marcos   ser 

despótico  Director  com  2  :000$000  além  de  Benefícios  e  o  melhor  ca- 
marote da  bocca  ;  porém  como  encontrasse  duvidas  no  seu  Emprezario, 
tem-se  empenhado  em  desviar  os  Actores,  e  para  isso  obrigando-os  a 
exigir  graoides  mezadas.  He  i'iso  vel-o  ã  janella,  e  em  publico,  todo 
empoado  e  emproado,  como  quem  está  governando  o  Mundo :  mas 
emfim  tem  hum  grande  l'adrinho,  e  por  este  o  ser,  he  affagado  por 
outros."  (Carta  ao  l'ai  ae  2S  de  Setembro  de  1813). 
(1)    Debret,   o&.   cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1011 

uma  espécie  de  conservatório  de  musica  para  ensino  dos 
pretos,  onde  methodizavam  suas  aptidões  naturaes.  Mesmo 
depois  de  expulsos  os  padres,  subsistiu  esta  tradição,  ao  ponto 
de  ficar  por  tal  forma  impressionado  o  Principe  Regente, 
quando  visitou  aquella  propriedade  confiscada  para  a  coroa, 
com  a  relativa  mestria  da  execução  vocal  e  instrumental  na 
egrejinha,  que  estabeleceu  na  fazenda  escolas  de  primeiras 
lettras,  composição  musical,  canto  e  diversos  instrumentos. 
Logrou  d'est'arte  Dom  João  que  d'alli  sahissem  boas 
figuras  para  o  pessoal  não  só  da  capella  real  de  Santa  Cruz 
como  da  do  Rio,  e  mesmo  que  alguns  dos  alumnos  chegas- 
sem a  tocar  e  cantar  primorosamente.  Dom  Pedro,  em  quem 
o  gosto  pela  musica  foi  paixão  e  paixão  cultivada  com  certo 
esmero,  protegeu  muito  a  fundação  paterna,  alcançando,  se- 
gundo se  conta  ( i ) ,  ter  operas,  adrede  compostas  pelos  dous 
irmãos  Portugal,  inteiramente  executadas  por  aquelles  afri- 
canos e  mestiços. 

Tanto  quanto  a  incomparável  musica,  abrilhantava  as 
festas  de  egreja  do  tempo  a  oratória  sagrada,  então  no  seu 
apogeo  no  Brazil.  Envaidava-se  Dom  João  VI  —  e  assim  o 
repetiu  frei  Francisco  de  Mont'Alverne  —  de  contar  no  Rio 
uma  plêiade  de  pregadores  que  lhe  não  permittia  nutrir 
saudades  dos  que  deixara  em  Portugal.  E  com  effeito  dif- 
ficil  pareceria  em  extremo,  d'outro  modo,  quem,  para  cantar 
os  louvores  da  religião  e  seus  prototypos,  celebrar  as  virtu- 
des evangélicas  e  exaltar  os  méritos  e  serviços  da  dynastia, 
possuia  em  redor  de  si,  para  não  citar  outras,  as  vozes  elo- 
quentes do  padre  Souza  Caldas  com  seus  resaibos  mysticos 


(1)   Balbi,  Essoi  statistique  aur  le  royaume  de  Portugal  et  sen 
colonics. 


1012  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

( I ) ,  de  frei  Francisco  de  São  Carlos  com  suas  galas  imagi- 
nosas, de  frei  Francisco  de  Sampaio  com  seu  verniz  acadé- 
mico (2),  de  Mont'Alverne  com  seu  brilho  de  forma  e  sua 
vibração  mais  humana. 

Tão  soberba  exhibição  de  oratória,  por  mais  orthodoxa 
que  fosse,  contribuia  muito  para  que  as  egrejas  representas- 
sem uma  distracção  de  sabor  quasi  profano,  a  par  das  festi- 
vidades da  corte  e  das  funcções  theatraes.  Qualquer  outra  a 
não  conseguiria  até  supplantar,  visto  se  exercer  o  seu  appello 
sobre  toda,  não  só  parte  da  população,  agglomerando-se  a 
multidão  nas  naves  estreitas  onde,  á  luz  sempre  mortiça  de 
centenares  de  velas,  se  divisavam  sobretudo  as  mulheres  de 
corpete  decotado,  cinto  e  saia  meio  curta  de  tulle  sobre  um 
fundo  de  seda,  todas  sem  chapéu,  com  a  mantilha  negra,  em 
vez  porém  de  usada  triangularmente  na  testa,  á  hespanhola, 
presa  por  flores  no  alto  ou  parte  posterior  do  penteado  que 
rematava  o  descommunal  pente  de  tartaruga. 

Os  viajantes  estrangeiros  da  epocha  notam  todos  á 
porfia  a  pouca  dignidade  das  nossas  cerimonias  religiosas;  á 
parte  a  pompa,  o  tom  era  menos  de  respeito  que  de  folia.  O 
culto  resentia-se  do  pouco  recato  dos  ecclesiasticos.  O  clima, 
a  distancia  dos  altos  censores  hierarchicos,  a  relaxação  que 
a  existência  da  escravidão  emprestava  aos  costumes,  a  au- 
sência de  uma  aguda  questão   religiosa  como  a  que  no  se- 


(1)  o  padre  Caldas,  cuja  traduajão  dos  rsalmos  de  David 
constitue  uma  das  poucas  jóias  da  nossa  poesia  christã.  era  um  sa- 
cerdote de  raro  desinteresse.  Recusou  herdar  uma  grande  fortuna  de 
um  amigo  e  recusou  dons  bispados,  s^ndo  ura  d'el.Ies  o  do  Rio  ás  Ja- 
neiro, e  também  uma  pingue  abbadia  que  lhe  foi  offerecida  por  seu 
amigo  Lafões.  Em  1807  acompanhou  a  corte,  fallecendo  no  Rio  a  i' 
de  Março  de  1814. 

(2)  De  Sampaio  também  falia  com  louvor  Preycinet,  citando 
sua  bella  bibliotheca  franceza  que  ia  dos  grandes  pregadores  do  sé- 
culo XVII — 'Bissuct,  Massillon.  Fléchier,  Bourdaloue— aos  reformado- 
res do  século  XVIII — Diderot  e  Jean  Jacques  Rousseau. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1013 

culo  XVI  dotara  de  tanto  valor  e  estimulara  tanta  virtude 
entre  a  combativa  milicia  jesuítica,  tudo  concorria  para  o 
desregramento  do  clero,  contra  o  qual  em  vão  reagia  tenaz- 
mente o  respeitável  bispo  do  Rio,  D.  José  Caetano  de  Souza 
Coutinho,  prelado  de  mérito  pela  conducta  exemplar  e  pelo 
zelo  apostólico,  e  homem  de  boas  lettras,  familiar  com  os 
clássicos  latinos  e  os  bons  auctores  francezes. 

Este  e  outros  perdiam  muito  o  seu  tempo,  é  caso  de 
dizer  o  seu  latim.  A  libertinagem  distinguiria  tanto  o  clero  da 
Independência  quanto  o  liberalismo.  Freycinet  refere  que 
muitos  dos  frades  nédios  e  bem  tratados  que  elle  via  de  dia 
mettidos  nos  seus  severos  hábitos  monásticos,  envergavam  á 
noite  trajes  seculares  para  sahirem  á  cata  de  aventuras  de 
amor,  e  que  no  seu  aspecto  mui  pouca  humildade  havia  em 
qualquer  occasião,  affectando  um  ar  antes  marcial  que  con- 
ventual e  primando  a  altaneria  a  piedade.  Elles  eram  en- 
tretanto um  elemento  necessário  da  população  porque,  si  já 
não  representavam  a  fé  em  toda  sua  pureza,  ainda  represen- 
tavam a  intelligencia  na  sua  suggestiva  expressão. 

As  ultimas  grandes  festas  da  realeza  brazileira  foram, 
em  1819,  as  do  baptizado  da  Princeza  Maria  da  Gloria. 
Um  cortejo  vistoso  como  os  anteriores  cruzou  o  mesmo  ta- 
blado do  largo  do  Paço  entre  o  palácio  e  a  capclla;  orches- 
tras  em  abundância  tocaram  as  mesmas  musicas  alegres  e 
vibrantes ;  illuminações  e  fogos  de  artificio  como  os  outros 
lançaram  os  mesmos  clarões  rubros  e  jubilosos.  Era  a  apo- 
theose  final.  Em  1820  a  revolução  estalava  em  Portugal  e 
vencia:  uma  revolução  que  era  anti-brazileira,  assim  como 
fora  uma  revolução  anti-portugueza  a  debellada  sedição 
pernambucana  de  181 7. 


CAPITULO  XXVII 


A  REVOLUÇÃO   PORTUGUEZA   DE    1820 


O  auctor  das  Notas  Dorninicaes  andou  por  Lisboa  em 
1816  e  das  suas  observações,  pontualmente  exaradas  cada 
semana,  resumbra  uma  V€Z  mais  que  a  questão  do  dia  em 
Portugal  era  a  situação  de  dependência  do  velho  Reino  com 
relação  ao  novo.  '*As  duas  partes  da  monarchia,  notava  o 
f  rancez  ( i ) ,  acham-se  mais  em  situação  de  inimizade  do 
que  de  fraternidade,  e  na  verdade  é  bem  difficil  administrar 
dous  paizes  que  quasi  não  experimentam  a  necessidade  mutua 
de  uma  alliajiça  e  qu€,  pelo  contrario,  possuem  interesses  op- 
postos." 

Para  Portugal  a  questão  era  principalmente  de  amor 
próprio,  antes  mesmo  que  de  conveniência.  O  antigo  Reino 
sentia-se  completamente  abandonado :  decahido  dos  seus  foros 
tradicionaes,  sem  mais  uma  politica  sua,  quasi  reduzido  a 
não  constituir  sequer  uma  expressão  geographica  européa, 
pois  se  acreditava  geralmente  (2)  que  Dom  João  VI  delibe- 


n  )    Parte   inédita   do   manuscripto   de   Tollonaro. 
Í2»    Correspondência    do    cônsul    geral    encarregado    de    negócios 
Lesseps,  no  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


1016  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

rnra  não  regressar  mais  e  nutria  a  intenção  de,  depois  de 
esgotar  Portugal,  já  tão  depauperado  em  homens  e  em  di- 
nheiro, trocal-o  por  uma  das  possessões  hespanholas  da  Ame- 
rica, convertendo-se  a  dynastia  bragantina  n'uma  realeza 
exclusivamente  americana  (i). 

O  thermometro  das  esperanças  regulava  pelos  traba- 
lhos do  palácio  da  Ajuda:  segundo  se  acceleravam  ou  esta- 
cionavam, tinha-se  a  volta  por  próxima  ou  indefinida  (2). 
€  todos  a  desejavam,  excepção  talvez  feita  de  certa  classe  de 
proprietários  que  temiam  novos  impostos,  portanto  um  ac- 
crescimo  de  encargos,  com  a  presença  da  corte  n'uma  capital 
arruinada,  não  só  empobrecida. 

Para  o  exercito  e  o  povo,  ahi  se  tratava  de  vaidade,  di- 
ga-se  mesmo  de  pundonor;  de  interesse  local  para  os  lojistas 
e  de  interesse  geral  para  os  armadores  e  vinhateiros,  que  estes 
sonhavam  com  o  restabelecimento  do  monopólio  mercantil 
brazileiro.  Devesse  muito  embora  a  abolição  do  exclusivo 
commercio  náutico  dos  Portuguezes  trazer  como  resultado, 
segundo  pensavam  alguns  economistas  da  terra,  desviar  os 
capitães  e  os  braços  para  a  agricultura  e  as  manufacturas, 
susceptiveis  de  grande  desenvolvimento.  Não  significava 
isto  menos  que  um  manancial  farto  e  fácil  de  lucros  havia 
sido  estancado  n'uma  occasião,  para  mais,  em  que  tudo  se 
conspirara  contra  a  riqueza  nacional,  até  a  recrudescência 
das  piratarias  argelinas  e  o  apparecimento  dos  corsários  pla- 
tinos,  acabando  de  esphacelar  o  compromettido  trafico  ma- 
ritimo. 

Portugal  expiava  só  as  velleidades  imperialistas  do 
Brazil,  e  as  compensações  que  do  Rio  lhe  vinham  chegavam 


(1)  Offlcio  de,  Lcsseps  de  28  de  Fevereiro  de  1818. 

(2)  Tollenai-e,  parte  inédita. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1017 

a  parecer  escarneo.  Não  se  lembrara  El-Rei,  em  testemunho 
de  benevolência  á  terra  do  seu  nascimento,  de  ordenar  que  nas 
vestimentas  dos  seus  criados  e  nos  uniformes  das  tropas  de 
terra  e  mar  somente  se  empregassem  productos  das  fabri- 
cas portuguezas  ?  ( i )  Entretanto  abrira  o  mercado  brazi- 
leiro,  quer  dizer  que  o  entregara  á  exportação  ingleza,  e 
quando  lhe  fallavam  no  remédio  essencial  aos  males  da  ex- 
metropole,  n'esse  regresso  que  até  lhe  curaria  as  lymphati- 
tes,  fazia  ouvidos  de  mercador.  Não  carecia  de  atravessar  o 
oceano  para  ter  ar  do  mar :  bastava-lhe  a  ilha  do  Governador, 
que  de  uma  caravella  até  tinha  a  forma  esguia.  Das  janellas 
do  convento  só  se  enxergavam  as  aguas  da  bahia,  salpicadas 
de  terras  que  lhes  quebravam  a  monotonia,  e  era  tão  gostoso 
o  peixe  de  mar  servido  no  refeitório.  .  . 

Insubordinação  por  insubordinação,  já  que  tanto  se  es- 
peculava com  a  de  Pernambuco  para  o  dissuadir  de  ficar, 
também  em  Portugal  se  cogitava  de  revoluções,  conforme 
andava  informado,  e  muito  peor  seria  qualquer  movimento 
n'uma  terra  esfomeada  do  que  n'uma  terra  abastada.  E  era 
facto  que  avisos  de  prevenção  tinham  subido  até  o  gabinete 
real,  desacreditando  a  fidelidade  portugueza. 

Depois,  como  de  bom  grado  renunciar  a  uma  posição 
preponderante  como  a  que  Dom  João  VI  na  verdade  occupa- 
va  e  mais  ainda  imaginava  occupar  na  America  ?  Maler  não 
se  enganava  quando  escrevia  (2)  que  o  gabinete  do  Rio,  fas- 
cinndo  talvez  pelos  hábeis  artificios  de  Barca,  parecia  mais 
interessado  no  papel  que  se  desvanecia  de  estar  desempe- 
nhando no  Novo  Mundo,  do  que  disposto  a  retomar  seu  lu- 
gar entre  as  potencias  do    Velho.   "Em  tempo  ouvi    a  este 


(1)  Officio  cit.   de   Lesseps. 

(2)  Officio  de  l.T   de  Julho   de  1818. 


1018  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

respeito  as  cousas  mais  espantosas  da  bocca  do  fallecido  Be- 
zerra. Este  coitado,  todo  entrevado,  não  trepidava  em  en- 
contrar um  novo  Frederico  Magno  e  40.000  homens  de 
guerra  no  Brazil  com  a  mesma  facilidade  com  que  o  Sr. 
conde  dos  Arcos  encontrou  depois  na  Bahia  um  exercito  de 
Scipiões"     (i). 

O  afastamento  do  Rei  afigurava-se  com  boa  razão  a 
Portugal  a  causa  capital  dos  seus  infortúnios,  que  mais  acer- 
bos se  tornavam  cada  dia.  A'  situação  critica  e  inquietadora, 
classe  alguma  da  sociedade  escapava.  Os  negócios  apodre- 
ciam e  a  corte,  quer  dizer  o  soberano,  notoriamente  affei- 
çoado  á  sua  ex-colonia,  accumulava  as  medidas  nocivas  aos 
interesses  luzitanos  e  acirrava  os  ciúmes  já  azedos,  collocando 
o  exercito  portuguez  em  pé  de  guerra  por  amor  ao  Brazil, 
restabelecendo  por  trez  annos  a  contribuição  de  guerra,  a 
saber  o  quinto  sobre  todos  os  rendimentos  e  em  todas  as  ci- 
dades, por  causa  do  Brazil,  dispondo  successivos  embarques 
de  forças  armadas  e  equipadas  para  serviço  no  Brazil  ou 
serviço   do   Brazil    (2). 

Em  181 7  tinham  seguido  6.000  homens  mais  para  a 
campanha  do  Sul  e  logo  se  pediram  mais  4.000,  quando,  ao 
tratar-se  de  ida  para  a  America,  era  necessário  proceder  a 
uma  escolha  individual  porque  nenhum  soldado  se  deixava 
convencer  de  alistar-se  voluntariamente,  correspondendo 
sempre  ao  convite,  cedo  transformado  em  intimativa,  um 
augmento  nas  deserções.  Fora  por  isso  mister  recorrer  ao 
recrutamento  forçado  nas  villas  e  campos,  a  principio  discreto 


(1)     Allusão    á    pi'imeira     prcelamação    aos     Pernambucanos  : 

" he   mpu   primoiro   devei-   assegnrar-vos   que   a   devisa   dos   Bahia- 

no55  he— fidelidade  ao   mais  querido  dos  Reis — e  que   cada   soldado   da 

Bahia   seríl  hum  Scipião  no  vosfto  ííwfio " 

'(2)   Officio  CiiÊrado  de  Lesseps  de  22  de  Abril  d.-  1S17. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1019 

para  não  excitar  reclamações  demasiado  vivas,  logo  exe- 
cutado com  gana,  tendo  sido  revogadas  as  isenções  concedidas 
por  privilégios  particulares.  Ainda  assim,  de  modo  algum 
se  puderam  arranjar  os  4.000  soldados:  apenas  foram,  a  14 
de  Agosto,  2.900  homens  de  infanteria  e  um  destacamento 
de  engenharia. 

Para  o  thesouro  todas  essas  despezas  —  expedição  a 
Liorne  para  buscar  a  Princeza,  bloqueio  de  Pernambuco, 
guerra  de  Montevideo  —  eram  umas  tantas  sangrias  dadas 
a  um  anemico  de  ultimo  grau,  que  só  á  força  de  expedientes 
se  mantinha  de  pé.  Para  o  empréstimo  de  quatro  milhões  de 
cruzados  a  que  em  181 7  houve  que  recorrer  com  urgência, 
só  se  encontraram  subscriptores  para  milhão  e  meio,  apezar 
do  juro  razoável  de  6  %,  de  uma  taxa  especial  de  garantia 
do  seu  serviço — 15  %  sobre  géneros  salgados,  queijos  e 
manteiga  de  importação  — e  das  instancias  da  Regência 
junto  aos  principaes  negociantes  e  capitalistas  de  Lisboa.  A 
operação  ultimou-se  porque  a  Regência  distribuio  á  força 
o  restante  do  empréstimo  por  aquelles  mesmos  tomadores, 
que  se  consolaram  da  violência  com  a  idéa  de  que  o  dinheiro 
serviria  também  para  se  armarem  fragatas  destinadas  a  pro- 
teger o  commercio  portuguez  contra  os  corsários  de  Artigas. 

Em  1819  recusou  porém  a  Regência  muito  respeitosa- 
mente obtemperar  a  outro  pedido  real,  de  mais  5.000  ho- 
mens, parecendo-lhe  impossivel  recrutar  mais  gente  para  um 
serviço  que  a  todos  repugnava  e  quando  no  paiz,  constante- 
mente sob  a  ameaça  da  Hespanha,  se  reduzia  o  effectivo 
armado  ao  estricto  necessário. 

Em  dinheiro  não  havia  mais  que  pensar ;  o  que  sobrava 
de  negociantes  ricos  da  capital  transferia  seus  fundos  para 
França,  para  livrarem-se  de  novas  exigências,  e  até  fallavam 


1020  DOM  JOÃO  VI  NO  BUAZIL 

em  mudança  para  lá  ( i ) ,  aggravando  com  esse  beato  de 
trasladação  —  depois  dos  fidalgos,  os  mercadores  —  a  acri- 
monia  popular.  O  povo,  ainda  que  pobre,  sente  como  si  sua 
fosse  a  emigração  da  fortuna.  Já  parecia  demais. 

Soldados  que  iam  para  o  Brazil,  lá  ficavam  como  colo- 
nos, si  escapavam  dos  combates;  navio  que  para  lá  fosse, 
também  ficava  para  guardar  e  alargar  o  dominio  pelo  qual 
se  perdera  de  amores  o  monarcha  fidelissimo,  cujo  proceder 
para  com  Portugal,  escrevia  de  Lisboa  Lesseps  (2),  pro- 
vava cada  vez  mais  que  lhe  importavam  pouco  seus  destinos  e 
que  somente  buscava  utilizar  todos  os  seus  recursos  para  di- 
latar os  estados  reaes  na  America.  Na  reali-dade  qualquer 
movimento  portuguez  tinha  que  ser  um  movimento  separa- 
tista e  justificado  pelo  brazileirismo,  de  sentimentos  e  de  in- 
teresses, da  corte  de  Dom  João  VI. 

Quando  um  dia  —  tão  patente  se  fazia  a  tendência  — 
Maler  quizera  carregar  a  fundo  sobre  Barca  a  propósito  da 
expedição  do  Rio  da  Prata  e  aventara  como  uma  consequên- 
cia provável  e  funesta  da  politica  do  gabinete  do  Rio — leur 
avant-poste  —  foi-lhe  friamente  respondido  que  o  governo 
se  achava  preparado  para  tal  eventualidade,  que  se  não  as- 
sustava com  ella  e  que  de  coração  leve  renunciaria  á  Eu- 
ropa, ficando  de  todo  americano   (3). 

Tão  deliberado  parecia  o  propósito  de  despovoar  de 
defensores  e  reduzir  á  miséria  extrema  os  antigos  estados  da 
monarchia,  em  vez  de  acudir-lhes  o  soberano  com  sua  pre- 
sença, que  chegou  a  correr  a  ter-se  por  verdadeiro  o  boato  de 
haver  Dom  João  VI  feito  appello  á  nobreza,  auctorizando-a  a 
alienar  seus  morgadios  europeus  e  transferir-lhes  o  producto 


(1)  Corresp.  de  Lesseps,  ibidem. 

(2)  Ofíicio  de  2  de  Maio  de  1817 
(S)    Corresp.   de  Maler,  ibUHcm. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1021 . 

para  o  Brazil.  Já  os  rendimentos  da  Real  Casa  e  das  casas 
nobres  passavam  regularmente  além-mar  e  lá  se  consumiam, 
indifferente  o  Rei  ás  representações  da  Regência  e  ás  suppli- 
cas  dos  negociantes  para  se  estabelecerem  em  Lisboa  um 
porto  franco  e  um  entreposto  com  os  favores  indispensáveis  á 
navegação  e  commercio  em  crise.  De  seu  lado  o  recrutamento 
não  só  irritava  os  ânimos,  como  rouibava  á  lavoura  braços 
numerosos,  quasi  se  tendo  já  por  preferivel,  em  muitos  casos, 
deixar  baldios  os  terrenos  do  que  cultival-os  com  tanto  ónus. 

O  agastamento  assumira  até  a  forma  de  cartas  anony- 
mas  dirigidas  ao  juiz  do  Povo,  em  que  se  lhe  declarava,  em 
nome  da  população,  que  esta  não  sanccionava  disposições  tão 
vexatórias  e  tão  adversas  ao  bem  estar  do  Reino  e  se  opporia 
a  ellas  com  toda  a  vehemencia  do  desespero.  ( i )  Vista  a 
esta  luz,  a  conspiração  de  Gomes  Freire  fora  uma  manifes- 
tação não  só  anti-estrangeira  ou  patriota  como  anti-dynas- 
tica  ou  democrática.  A  opinião  corrente  era  hostil  ao  Rei,  pro- 
testando-se  ás  claras  que  o  receberia  mal  o  paiz,  que  era  o  seu 
mas  que  elle  tratara  como  inimigOj  caso  a  juncção  do  governo 
rebelde  de  Buenos  Ayres  com  Artigas  desse  em  resultado  a 
invasão  do  Brazil  e  uma  nova  fuga  da  corte,  d'esta  vez  para 
Lisboa. 

As  incertezas  do  momento  traduziam-se  nos  boatos  mais 
desencontrados :  ora  que  a  Regência  ia  por  sua  própria  aucto- 
ridade  e  iniciativa  destituir  Beresford  e  avocar  as  responsabi- 
lidades do  mando,  ora  que  ia  pelo  contrario  resignar  seus 
poderes  nas  mãos  do  que  se  poderia  então  com  plena  justiça 
denominar  procônsul  britannico.  Na  phrase  expressiva  de 
Lesseps  (2),  a  força  de  inércia  e  o  risco  da  sua  destruição 


(1)  Officio  cifrado  cit.  de  22  d^  Abril  de  1817. 

(2)  Officio  cifrado  de  Lesseps  de  21   de  Fevereiro  de  1818. 

D.  J.  —  64 


1022  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

eram  os  únicos  eixos  sobre  que  se  movia  esse  desgraçado  pe- 
queno   estado. 

Em  certos  meios  já  se  ia  até  ao  extremo  de  despedir 
toda  susceptibilidade  de  independência  e  encarar  sem  relu- 
ctancia  a  união  ibérica,  de  ordinário  tão  antipathica.  Parecia 
mais  digno  este  casamento  de  conveniência  dos  dous  povos 
rivaes,  pondo  cobro  a  uma  tensão  sete  vezes  secular,  do  que 
o  prolongamento  da  subalternação  ao  Brazil.  No  fundo,  a 
impedir  qualquer  reconciliação  de  interesses,  senão  de  affe- 
ctos,  sobre  a  base  da  segunda  formula,  jazia  insistente  e 
irritante  o  problema  do  monopólio. 

A  idéa  ou  mesmo  proposta  de  restabelecel-o  indirecta- 
mente, fazendo  os  géneros  brazileiros  pagarem  á  sabida, 
para  qualquer  paiz  que  não  fosse  Portugal,  um  direito  espe- 
cial igual  ao  que  os  tributaria  si  como  antigamente  tivessem 
Lisboa  poT  escala,  não  tivera  acceitação.  ( i )  Seria  restituir  ao 
Tejo  a  perdida  primazia,  mas  ás  custas  da  colónia  elevada 
a   Reino. 

Tornava-se  preciso  vingar  a  revolução  liberal  para  que 
se  pensasse  a  serio  na  reconstrucção  do  derrubado  edificio 
económico,  invocando-se  o  principio  de  que  n'um  governo 
representativo  a  colónia  não  pode  ser  livremente  tratada 
ou  se  não  acha  exclusivamente  á  mercê  do  soberano,  consti- 
tuindo propriedade  commum  da  nação,  sobre  a  qual  exerce 
esta  direitos  e  possue  voz  activa:  mais  ainda,  pois,  como  era 
o  caso,  as  Cortes  personificavam  ellas  sós  a  soberania  nacio- 
nal. 

Seria  injusto  calar,  a  par  dos  aggravos  de  Portugal,  a 
difficuldade  da  tarefa  cabida  a  Dom  João  VI.  Tollenare  sem 


(1)    Tollenare,  parte  inédita. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1^3 

hesitar  lhe  reconhecia  tal  caracter,  afigurando-se-lhe  bem 
complicado  ser  a  um  tempo  Rei  de  Portugal  e  Rei  do  Brazil 
e  proceder  paternalmente  ipara  com  dous  povos  com  designios 
tão  antagónicos,  um  d'elles  só  podendo  viver  de  monopólio, 
o  outro  só  respirando  com  sua  suppressão.  Uma  vez  conhecido 
o  Brazil,  mais  se  lhe  radicou  então  esta  impressão. 

Entre  as  notas  tomadas  na  Bahia,  encontra-se  a  se- 
guinte: "Das  difficuldaídes  que  offerece  o  bello  thema  da 
prosperidade  possivel  do  Brazil,  uma  ha  que  sempre  me  ferio 
vivamente,  a  da  combinação  de  tal  prosperidade  com  a  do 
Reino  Unido  de  Portugal.  Todas  as  formulas  que  dizem 
respeito  a  semelhante  harmonia  apparecem-me  n'uma  confu- 
são tão  grande,  que  me  sinto  invariavelmente  succumbir 
diante  do  esforço  preciso  para  deslindar  a  verdadeira,  quando 
d'isso  cogito.  Existem  sem  duvida  principies  que  devem  servir 
a  levantar  o  edificio  da  união:  quereria  possuir  talento  e 
lazer  bastantes  para  pesquizal-os ;  mas  renuncio  a  tanto,  pelo 
menos  por  emquanto"  (i).  Ao  voltar  ao  assumpto,  já  encon- 
traria o  Francez  a  solução  do  seu  problema  prejudicada  pela 
separação.     • 

N'um  ponto  só  se  ajustavam  os  sentimentos  collectivos 
dos  dous  povos,  o  portuguez  e  o  brazileiro:  na  antipathia  á 
Inglaterra.  Os  Portuguezes  rangiam  os  dentes  por  ver  um 
general  inglez  occupando  de  facto  o  lugar  do  soberano  legi- 
timo, que  a  Regência  só  nominalmente  representava.  Para 
os  Brazileiros  constituia  a  Inglaterra  o  óbice  maior  á  conti- 
nuação do  trafico  negro,  que  interessava  quasi  toda  a  gente 
e  que  quasi  toda  a  gente — raríssimas  eram  as  excepções — 
desejava  cordialmente  ver  prolongar-se 


(1)    Tollenare,   parte  inédita. 


1024  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL 

"E'  como  se  fosse  sua  ultima  taboa  de  salvação,  escrevia 
um  sagaz  viajante,  (i)  Prima  qualquer  outra  consideração. 
Portugal  e  Hespanha,  Inglaterra  e  França,  Wellington, 
Bonaparte  e  o  Principe,  pode  tudo  ir  parar  nas  profundas, 
comtanto  que  se  não  toque  no  querido  trafico,  objecto  dos 
seus  devaneios  na  vigilia  e  dos  seus  sonhos  no  somno.  Argu- 
mento algum  tem  poder  para  romper  esta  ligação,  exce- 
ptuado o  da  força,  que  é  sempre  uma  medida  áspera  e  por- 
ventura pouco  justificável,  considerado  o  ciúme  alimentado 
da  nossa  influencia  nos  conselhos  nacionaes,  a  qual  todos, 
estadistas  e  mercadores,  ecclep-asticos  e  soldados,  anhelam 
por  ver  diminuida.  Nossa  popularidade  está  na  verdade  sus- 
p)€nsa  apenas  de  um  ténue  fio,  porque  a  peculiar  união  com- 
mercial  com  a  Grã  Bretanha  tem  sido  apodada  de  tão  preju- 
dicial por  alguns  dos  publicistas  da  terra  que,  si  o  governo 
fosse  de  indole  mais  popular,  sem  duvida  de  ha  muito  ella 
se  acharia  dissolvida." 

Da  Inglaterra  provinha  justamente  o  mais  forte  empe- 
nho para  que  se  não  desatasse  o  laço  que  unia  Portugal  ao 
Brazil.  Nas  suas  reflexões  diplomáticas  (2)  dizia  o  marquez 
de  Saint  Simon  ser  evidente  que  uma  monarchia  com  o 
oceano  de  permeio  entre  as  suas  metades,  se  achava  virtual- 
mente entregue  á  prepotência  da  Grã  Bretanha,  a  qual  do- 
minava suas  communicações.  Por  isso  instava  tanto  o  gabi- 
nete de  Londres,  para  que  se  não  desligasse  Portugal  do 
consorcio,  pelo  regresso  da  corte.  Que  futuro  independente 
teria,  porém,  o  velho  Reino  esgotado,  divorciado  da  sua 
dynastia  nacional?  A  Hespanha  nem  tempo  lhe  daria  para 
qualquer  tentativa.  Ainda  o  Brazil  tinha  por  si  um  desenvol- 


(1)  Prior,  oh.  cit. 

(2)  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  Í025 

vimento  que  cada  anno  mais  se  accentuava,  e  melhor  base  se 
não  poderia  offcrecer  a  uma  forma  autónoma  de  governo. 

O  embaixador  em  perspectiva  de  Luiz  XVIII  pensava 
que  á  França  pelo  contrario,  já  que  não  visava  a  dominar 
politicamente,  mais  conviria  a  desaggregação  do  Reino  Unido, 
pois  assim  se  lhe  antojava  no  Brazil  o  ensejo  de  conquistar 
uma  posição  económica  ao  mesmo  tempo  que  se  lhe  abria 
em  Portugal  a  opportunidade  de  recobrar,  em  beneficio  mer- 
cantil, a  influencia  de  antes  do  tratado  de  Methuen,  que  já 
fora  dictado  sobretudo  pela  preoccupação  portugueza  de  pro- 
teger as  possessões  transatlânticas. 

Por  meio  de  uma  alliança  com  a  corte  de  Lisboa,  logra- 
ria alem  do  mais  a  de  Pariz  pesar  sobre  a  Hespanha  e  recupe- 
rar os  meios  de  acção  que,  segundo  Saint-Simon,  ''a  situação 
actual  torna  mais  necessários."  Menos  de  quatro  annos  depois 
a  França  intervinha  com  effeito  além  dos  Pyreneus,  co- 
lhendo o  Duque  d'Angoulême  os  fáceis  louros  do  Trocadero. 

França  e  Inglaterra  concordavam  no  emtanto  em  con- 
siderar infensa  aos  seus  interesses  a  união  ibérica,  que  a  ambas 
reduziria  de  metade  as  possiveis  vantagens  politicas  e  com- 
merciaes.  Em  Portugal  era  esta  também  a  solução  temida 
pelo  maior  numero  e  que  o  rancor  nacional  attribuia  igual- 
mente ao  Brazil,  pois  mercê  da  Banda  Oriental  fora  que 
chegara  a  concentrar-se  na  fronteira  um  exercito  hespanhol 
contra  o  qual  o  velho  Reino,  para  garantir  a  sua  autonomia, 
só  enxergava  armas,  desproporcionadas  na  quantidade  mas 
talvez  superiores  na  qualidade,  no  valor  disciplinado  do  seu 
exercito  reduzido  e  no  desespero  patriótico  da  sua  população. 

A  Hespanha  tinha  comtudo  um  objectivo  mais  remoto 
e  menos  singelo  do  que  a  annexação  portugueza,  a  qual  seria 
um  alimento  demasiado  forte  em  seu  estado  de  debilidade.  A 


10?.6  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

idéa  do  seu  governo  era  sem  duvida  em  primeiro  lugar  ro- 
bustecer as  reclamações  feitas  no  Rio  sobre  a  occupação  do 
território  platino,  mas  não  era  menos  levar  a  Regência  portu- 
gueza  a  reter  na  Europa  algumas,  quando  não  muitas  das 
tropas  que  poderiam  ir  reforçar  o  exercito  em  operações  na  fu" 
tura  Cisplatina. 

Entre  os  liberaes  hespanhoes,  n'aquelle  momento  sub- 
jugados mas  sempre  alerta  e  conspirando,  o  ideal  ibérico  era 
o  da  associação  voluntária.  Si  intrigavam  em  Lisboa,  era 
para  que  ahi  se  comprehendesse  a  utilidade  de  resistirem 
juntos  os  dous  paizes  aos  muitos  que  combatiam  os  novos 
principies.  Uma  vez  de  posse  da  administração  os  liberaes, 
no  anno  mesmo  de  1820,  a  conveniência  era  grande  de  evitar 
que  na  capital  do  Reino  visinho,  continuando  apegada  ás  ve- 
lhas instituições,  se  fundasse  um  centro  de  reacção  contra 
o  regimen  constitucional,  quasi  republicano,  de  Cadiz. 

Eis  porque  foram  conspicuas  n'essa  occasião  as  cnzo- 
nas  urdidas  pelo  encarregado  de  negócios  Pando,  devendo-se- 
Ihes  em  boa  parte  attribuir  a  revolução  portugueza  de  Agosto 
(i).  A  federação  ibérica  é  de  resto  uma  miragem  politica 
que  surge  sempre  distincta  ao  vingarem  na  Hespanha  pre- 
ferencias ultra-liberaes  c  de  outro  lado  avolumar-se  em  Por- 
tugal o  movimento  democrático.  Moralmente  é  quasi  uma 
crise  do  instincto  de  conservação,  pois  que  com  essa  miragem 
é  infallivelmente  concomitante  o  afastamento  nas  duas  nações 
da  influencia  ingleza,  de  ordinário  activa  na  Península  e 
preponderante  em  Portugal. 

A  par  do  surdo  trabalho  hespanhol  de  solidariedade 
liberal,  crescia  a  olhos  vistos  a  rivalidade  entre  as  duas 
secções  da  monarchia  de  Dom  João  VI.  A  correspondência  de 


(1)    Corresp.    de  L&ssejps,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1027 

Lesseps  accusa  em  Portugal  uma  tendência  progressiva  para 
a  impaciência  e  o  desassocego.  Já  os  soldados  destinados  ao 
Brazil  recusavam  embarcar  sem  que  lhes  fosse  pago  o  soldo 
devido  de  mezes,  e  a  indisciplina  dos  militares  animava  a  ex- 
acerbação dos  civis.  Crescia  entre  estes  a  audácia.  Nas  esqui- 
nas appareciam  pregados  cartazes  sediciosos  e  ameaçadores, 
que  denunciavam  claros  intentos  subversivos. 

Beresford,  que  era  quiçá  o  único  com  caracter  e  firmeza 
para  conter  a  rebellião,  si  pudesse  ter  completa  liberdade  de 
acção,  e  que  na  previsão  dos  acontecimentos  bem  próximos, 
tinha  em  vão  urgido  a  Regência  a  fornecer  ao  governo  de 
Fernando  VII  os  6.000  homens  pedidos  para  ajudal-o  a 
debellar  a  revolução  de  Março,  dispv.z-se  a  partir  de  novo 
para  o  Rio  (i).  Não  só  não  podia  levar  á  paciência  que  o 
soldo  das  suas  tropas  andasse  tão  indecorosamente  atrazado, 
como,  movido  talvez  pelo  governo  britannico,  quiz  expor 
pessoalmente  ao  Rei  a  situação  angustiosa  e  decidil-o  a  vir 
impedir  o  estalar  de  uma  insurreição  (2).  Ausente  o  mare- 
chal— que  em  qualquer  caso  estava  prestes  a  retirar-se,  pois 
já  fora  nomeado  governador  de  Jersey  —  desapparecia  a 
garantia  maxim.a  da  disciplina  portugueza. 

No  Brazil  ia  Beresford  descobrir  uma  corrente  parecida 
de  discórdia.  Havia  mais  de  dous  annos  que  Maler  annun- 
ciava  pára  Pariz  (3)  que  uma  marcada  antipathia  se  mani- 
festava a  cada  passo  entre  os  batalhões  brazileiros  de  regresso 
da  expedição  de  Pernambuco  e  os  regimentos  portuguezes 
chegados  com  o  marquez  de  Angeja,  e  que  tinham  ficado  de 
guarnição  á  capital.  Não  tendo  o  duello  entrado  nos  hábitos 
luzo-brazileiros,    as    rixas  tomavam    a    forma  frequente  do 


(1)  Segnio  a  4  dp  Abril  de  1820  na  fnagiata  de  guerra  Spartan. 

(2)  Corresp.  de  Lesseps,  ihiâem. 

(3)  OMcio   de  22   de  Margo  de   1818. 


1028  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

assassinato  e  a  forma  diária  do  espancamento,  ambas  muito 
ao  salbor  da  tradição  nacional. 

Começaram  os  superiores  por  tomar  meias  medidas,  dis- 
cursando ás  tropas,  appellando  para  sua  cordura,  publicando 
sentenciosas  ordens  do  dia.  Como  nada  d'isto  fosse  bastante  e 
o  mal  continuasse  e  até  se  aggravasse,  o  governador  comman- 
dante  das  armas,  na  impossibilidade  de  arredar  permanente- 
mente os  combatentes,  tomou  a  resolução  extrema  de  mandar 
apoderar-se  e  queimar  os  porretes,  instrumentos  das  aggres- 
sões,  sacudindo-se  suas  cinzas  no  mar   (i). 

;0  mais  intelligente  historiador  do  Brazil  (2)  attribue 
pela  maior  parte  os  attritos  á  basofia  portugueza,  do  seu 
renome  militar  e  da  sua  sciencia  profissional,  com  a  qual 
mal  se  accommoidavam  a  inexperiência  e  a  desconfiança  bra- 
zileiras.  Os  officiaes  do  velho  Reino  desdenhavam  dos  do 
novo,  negando-lhes  foros  de  camaradas,  e  o  general  Vicente 
Arbués  de  Oliveira  insistia  até  de  continuo  na  corte  para 
que  o  accesso  aos  Brazileiros  só  fosse  concedido  até  o  posto 
de  capitão,  sendo  todos  os  lugares  do  estado-maior  occupados 
por  Portuguezes  natos.  As  cousas  chegaram  a  ponto  de  haver 
que  adiar  indefinidamente  as  manobras  para  se  não  accom- 
metterem  de  verdade  e  com  vontade  heroes  de  Talavera  e 
heroes  de  Pernambuco,  para  não  brigarem  pés  de  chumbo  e 
pés  de  cabra.   (3) 

As  i'déas  liberaes  estimulavam  instinctivamente  os  senti- 
mentos nativistas,  que  tinham  por  força  que  acabar  pela  sepa- 
ração dos  dous  Reinos,  mas  eram  sem  comparação  muito 
menos  hostis  á  realeza  no  Brazil  do  que  em  Portugal.  Pes- 


(1)  Qfficio  de  (Mal-or  de  4  de  Abril  de  1818. 

(2)  Handelmann,  oh.   cit. 
(o)    Handelmann,  oh.  cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1029 

soalmente  Dom  João  VI  nunca  deixou  de  ser  popular  (i),  si 
bem  que  se  não  possa  conceber  que  o  Brazil  permanecesse 
regido  pelo  absolutismo  ao  lado  de  Portugal  constitucional. 

Verdade  é  que  para  tal  resultado  politico  no  velho  Reino 
contribuiria  mais  do  que  a  corrente  idealista  que  agitava  a 
Europa  em  anciãs  de  reforma,  o  despeito,  o  ódio  mesmo  da 
colónia  emancipada.  A  subsequente  popularidade  de  Dom  Mi- 
guel prova  como  o  velho  Reino  era  apegado  ao  seu  tradicio- 
nal regimen  politico,  de  que  o  pretendia  libertar  uma  mino- 
ria Ínfima  de  ideólogos.  Apoz  três  quartos  de  século  de  con- 
stitucionalismo, ainda  se  não  tornou  Dom  Pedro  popular  em 
Portugal:  em  vida,  então,  foi  alvo  de  um  concentrado  ran- 
cor que  exiplodia  até  depois  de  instajUado  o  governo  liberal. 

Mais  accessivel  estava  o  Brazil  por  todas  as  circum- 
stancias,  ás  blandicias  do  credo  novo.  Grande  resentimento 
produzia  entre  os  Brazileiros  a  situação  privilegiada  de  que 
viam  no  seu  meio  gosarem  os  Portuguezes,  senhores  do  com- 
mercio,  apezar  de  franqueado,  por  uma  norma  arraigada  e 
por  uma  disposição  ao  trabalho  mais  forte  em  emigrantes 
do  que  nos  da  terra,  e  senhores  sobretudo  dos  serviços  públi- 
cos que  constituiam  uma  inclinação  hereditária,  robustecida 
pela  presença  da  corte  com  sua  larga  e  ociosa  burocracia. 

Ameaçados  ou  pelo  menos  invejados,  os  Portuguezes 
cerravam  fileiras,  defendiam  suas  posições,  c  o  bando  dos 
assaltantes  tinha  de  recuar,  fallando  com  ira  em  preterição 
official  e  em  direitos  patrióticos  aos  lucros  c  ás  dignidades. 
Já  era  ousadia,  a  desses  reinóes,  de  virem  ao  Brazil  tomar 


(1)  "Todas  aqnellas  novidades  propirias  deviam  ser  gra<a- 
mente  attriíbuidas  á.  munificência  (freie  Gna>de)  do  monarcha,  e  lho 
são  com  effeito  referidas  no  geral  cora  o  mais  intimo  reconliecimento." 
'l'ão  grande  era  a  liberalidade  real,  que  na  sua  nHo  lotiga  (>slada  no 
Brazil  quasi  desbaratou  em  doações  as  terras  do  real  património  nas 
províncias  do  Rio,  São  Paulo  e  Minas  •Geraes.  (Ilandielmann,  06.  cit.). 


1030  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

desforra  do  que  lhes  arrebatara  com  tanta  justiça  a  trasla- 
dação da  corte,  seguida  da  elevação  do  Brazil  a  Reino...  Os 
proventos  e  os  cargos  deviam  d'ora  avante  ser  reservados  aos 
filhos  da  terra,  ou  a  graça  concedida  ficava  sem  significação, 
tornava-se  irrisória. 

Assim  raciocinavam  os  pretendentes,  que  eram  legião, 
e  suas  ambições  echoavam  n'um  ambiente  symipathico,  porque 
o  interesse  era  de  todos.  Nas  provincias — Handelmann  o 
recorda  com  justeza — aggravavam-se  estes  sentimentos  de 
crú  nativismo  com  outro,  que  era  o  do  bairrismo  ou  orgulho 
local  ferido  pelas  vantagens  colhidas  pelo  Rio  de  Janeiro, 
que  as  capitanias  estavam  tão  pouco  acostumadas  a  conside- 
rar capital  do  Estado  do  Brazil,  quanto  aquella  mesma  cidade 
a  julgar-se  corte,  ao  que  a  erguera  sua  nova  posição.  Algu- 
mas das  provincias  ou  muitos  nas  provincias  preferiam  ainda 
assim  ser  sua  terra  colónia  portugueza  a  ser  colónia  flumi- 
nense. 

A  esta  impressão  obedeceria  aliás  Dom  João  VI,  quando, 
na  imipossibilidade  de  permanecer  elle  próprio  a  tentar  fazer 
frente  ao  furacão  liberal,  desencadeado  no  Brazil,  com  suas 
meias  medidas  benévolas  €  astutas,  decidio  que  o  filho  fi- 
casse para  se  arvorar  em  centro  da  agitação  e  unificar  as 
velleidades  dispersivas  de  independência,  respigando  os  bene- 
ficios  da  separação  e  implantando  a  coroa  imperial  onde  sem 
elle  teria  brotado  o  barrete  phrygio.  A  intuição  do  Rei  foi 
profunda  e  não  lhe  cabe  duvida,  pois  que  consta  da  corres- 
pondência ulterior  entre  pai  e  filho,  gradualmente  apresen- 
tada ás  Cortes  installadas  em  Lisboa  pela  revolução  victo- 
riosa  de  Agosto-Setembro  de  1820. 

Dom  João  disse  ao  coronel  Maler  que  as  noticias  que  de 
Lisboa  lhe  trouxera  Beresford  tinham  sido  para  elle  uma 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1031 

cruz,  mas  não  se  resolveu  a  regressar,  que  era  o  que  em 
Portugal  se  esperava  resultasse  da  nova  viagem  do  marechal 
ao  Rio.  O  Rei  hesitava,  usava  de  subterfúgios  e  ensaiava 
uma  diversão — "três  possible  d'apres  le  caractere  de  Sa  Ma- 
jesté,"  commentava  Maler  para  Pariz — ao  objecto  da  missão 
accordada  com  a  Regência,  incumbindo  provisoriamente  o 
enviado  de  inspeccionar  e  reorganizar  o  exercito  brazileiro,  e 
os  estabelecimentos  militares  taes  como  hospitaes  e  armazéns. 

Para  Portugal  mandava-se  entretanto  algum  dinheiro, 
afim  de  se  ir  saldando  os  atrazados  do  exercito  portuguez, 
e  cogitava-se  de  uma  carta  regia  abrindo  no  Brazil  mais  fácil 
e  vantajoso  mercado  aos  productos  agricolas  e  industriaes 
de  Portugal  com  isentar-lhe  de  toda  taxa  as  fazendas  de 
própria  manufactura  e  sobrecarregar  de  imposto  os  vinhos 
estrangeiros.   ( i ) 

A  situação  tornara-se,  porém,  grave.  A  revolução  de 
Cadiz  propagara-se  moralmente;  a  agitação  nas  provincias 
era  ainda  maior  do  que  em  Lisboa ;  a  solução  Cadaval  apre- 
sentava-se  francamente,  não  parecendo  repugnar  á  duqueza 
mãi  o  papel  de  Luiza  de  Guzmán,  e  da  Hespanha  mais  e 
mais  se  atiçava,  por  meios  ostensivos  e  secretos,  a  rebellião, 
constitucional  muito  embora,  porque  ella  própria  continuara 
sendo  uma  monarchia  posto  que  ultra-liberal. 

Bcrcsford  —  ellc  mesmo  o  declarou  a  Maler  (2)  — 
viera  lealmente  prevenir  Dom  João  VI  de  tudo  isso  e  pôr 
debaixo  dos  seus  olhos  o  quadro  exacto  dos  soffrimentos  e 
queixumes  portuguezes,  no  intuito  de  que  o  Rei  lhes  valesse, 
começando  por  livrar  da  decadência  e  do  abandono  a  lavoura 
e  o  commercio  do  velho  Reino.  Si  ao  monarcha  contrariava 


(1)  Officio  de  Maler  de  20  de  Jnnho  de  1820. 

(2)  Officio  de  30  de  Julho  de  1820. 


1032  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

tanto  a  volta,  que  mandasse  em  seu  lugar  o  Príncipe  Real: 
a  salvação  podia  effectuar-se  sem  essa  condição,  mas  o  pe- 
nhor seria  precioso  das  boas  intenções  do  soberano. 

Esta  ultima  reflexão  foi  quanto  Beresford  manifestou  ao 
encarregado  de  negócios  de  França,  calando  que  se  occupava 
de  promover  a  realização  do  alvitre.  Nem  Maler  lhe  per- 
guntou por  mais  porque,  na  sua  phrase,  "le  marechal  n'est 
pas  un  homme  á  questionner,  il  faut  se  contenter  de  ce  qu'il 
veut  vous  dire." 

Dom  João  VI  negou-se  a  deixar  partir  Dom  Pedro,  si 
bem  que  fosse  conselho  instante  de  Wellington — e  nenhuma 
opinião  mais  auctorizada,  ou  que  maiores  probabilidades  ti- 
vesse de  ser  executada — ^que  o  marechal  devia  volver  sem  de- 
mora a  Lisboa  afim  de  parar  os  golpes  de  uma  revolução  que 
já  era  inevitável,  seguindo-o,  porém,  de  perto  o  herdeiro  da 
coroa  ( I ) .  Beresford  foi  o  único  a  partir  no  Vengeurj  um  dos 
navios  da  divisão  do  commodoro  Sir  Thomas  Hardy,  mas  para 
encontrar  consuminado  o  movimento. 

Soubera-se  em  Portugal  que  o  marechal  era  portador 
do  resto  da  divida  ás  tropas  e  a  informação  fez  apressar  o 
levante,  pois  receiavam  seus  promotores  que,  pelo  principio 
de  cessada  a  causa,  cessar  o  effeito,  o  pagamento  acalmasse  a 
effervescencia  entre  os  soldados  e  apagasse  o  descontenta- 
mento. A  Junta  liberal  nem  permittio  ao  marechal  des- 
embarcar. Na  barra  mudou  de  embarcação  e  singrou  para 
Inglaterra  no  Arabella,  deixando  porventura  uma  única 
pessoa  saudosa  entre  tantas  que  lhe  faziam  a  corte — "la  três 
jolie  et  fringante  épouse"  de  um  funccionario  portuguez,  da 
qual  era  Beresford  notoriamente  amante  (2). 


(1)  Officio  cifrado  de  Less.e.ps,  de  15  de  No-vembro  de  1820. 

(2)  Tollenare,  paa-te  inédita. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  10H3 

As  doações  e  dignidades  conferidas  pelo  monarcha  ao 
commandante  estrangeiro  do  exercito  nacional,  e  bem  assim 
as  graças  e  honrarias  dispensadas  aos  seus  partidários,  de 
quem  como  era  natural  se  occupara  exclusivamente  o  mare- 
chal, mais  tinham  acirrado  os  ódios  no  meio  indisciplinado  e 
apaixonado  do  Reino  em  rebellião. 

Dom  João  VI  ficara  comtudo  crente  de  que  a  presença 
de  Beresford,  provido  de  bom  metal  sonante,  conciliaria  a 
agitação,  de  que  lhe  tinham  chegado  as  primeiras  e  inequivo- 
cas  novas,  a  17  de  Outubro,  por  um  brigue  de  guerra  portu- 
guez,  cujas  communicações  com  a  cidade  foram  immediata- 
mente  vedadas.  Tão  esperançado  andava  o  Rei,  que  se  não 
affligio  nem  deu  mostras  de  maior  inquietação.  Da  ilha  do 
Governador,  onde  se  achava  e  onde  lhe  foram  parar  os  des- 
pachos, veio  no  dia  seguinte  para  São  Christovão,  nada  com- 
municando  do  occorrido  á  familia  e  guardando  segredo  para  a 
própria  gente  de  sua  privança.  As  noticias  espalhavam-se 
entretanto  na  capital  graças  á  correspondência  trazida  pelo 
navio  de  guerra  britannico  La  Créole,  entrado  na  tardinha 
de  18. 

Em  contradicção  com  sua  indole  moderada  €  clemente, 
o  Rei  tinha  aversão  aos  regimens  liberaes.  N'este  ponto,  como 
observava  Maler,  deixava  de  raciocinar  com  o  seu  bom 
senso  do  costume.  A  expressão  —  constitucional  —  soava 
odiosamente  aos  seus  ouvidos,  talvez  porque  *'imbuido  de 
certos  princípios,  quiçá  fortalecido  pela  sua  consciência"  ( i ) , 
não  formava  sequer  idéa  clara  e  precisa  de  uma  monarchia 
que. não  fosse  a  absoluta,  em  cujas  máximas  fora  educado. 

Maler  conta  que  mais  de  uma  vez  tentara,  desde  1815, 
insplrar-lhe  idéas  menos  desfavoráveis  com  relação  á  partici- 


(1)   Officlo  de  Maler  de  2íí  de  Maio  de  1820. 


1034  DOM  JOÃO  VI  NO  BIIAZIL 

pação  da  nação  no  governo,  expondo  com  geito  e  cautela  as 
noções  preliminares  da  essência  e  modalidades  de  um  regi- 
men pelo  qual  se  estava  dirigindo  a  França;  mas  que  Dom 
João  VI,  o  qual  sempre  o  escutava  com  extrema  bondade, 
repellia  logo  qualquer  insinuação  d'esse  género,  pelo  que  com 
muito  pezar  e  só  com  o  receio  de  tornar-se  importuno,  ces- 
sara havia  muito  o  agente  diplomático  de  discorrer  sobre 
essas  verdades   politicas. 

Acontecia  agora  que  chegava  a  occasião  decisiva  sem 
que  pudesse  ser  aproveitada  pelos  dous  elementos  que,  longe 
de  se  harmonizarem,  se  oppunham  irreconciliáveis.  O  sobe- 
rano— descortinava  Alaler  perfeitamente — sem  um  conse- 
lho d'Estado  ao  qual  recorrer,  privado  de  qualquer  entidade 
intermediaria  que  lhe  fosse  dado  consultar,  só  se  decidiria 
na  ultima  extremidade  a  dotar  Portugal  de  favores  que  lhe 
pareceriam  enormes,  na  realidade  palliativos  que  á  distancia  e 
nas  circumstancias  dominantes  produziriam  antes  mal  do  que 
bem :  sem  esquecer  que  uma  sedição  portugueza  daria  o  signal 
de  uma  perturbação  perigosa  no  Brazil. 

"  Pessoas  as  mais  distinctas  por  sua  cathegoria,  e  cargos 
affirmam-me  que  nas  provincias  do  Norte,  principalmente, 
existe  um  fermento  de  descontentamento  e  mal  estar  que  é 
para  temer-ses,"  ouvi  este  desabafo  melancholico  a  grandes  da 
corte,  officiaeè  generaes  e  altos  magistrados;  n'uma  palavra 
todas  as  pessoas  cujas  opiniões  são  de  valor,  acham-se  tran- 
sidas de  susto  e  julgam-se  n'uma  crise  pavorosa"  ( i ). 

Dom  João  VI  era  o  único  optimista,  e  do  género  volun- 
tário, que  é  o  mais  difficil  de  se  deixar  abalar.  Bastava 
ouvil-o  exclamar  com  alegria  ao  representante  da  França, 
quando  se  soube  que  o  Rei  da  Prússia  se  negava  a  outorgar 


(1)   Officlo  clt.  de  23  de  Maio  de  1820. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1035 

uma  constituição  ao  seu  povo:  "Les  journaux  et  les  amateurs 
de  changemens  diront  ce  qu'il  leur  plaira,  mes  nouvelles 
de  Berlin  sont  positives  et  les  choses  vont  três  bien"   (i). 

Para  ganhar  tempo,  e  também  porque  no  fundo  perce- 
bia que  a  questão  entrara  n'uma  phase  seria,  ainda  que  espe- 
rançosa do  desfecho  pela  acção  de  Beresford— appello  ao 
vigor  alheio  próprio  de  um  temperamento  pusillanime— o 
Rei  pedio  por  escripto  a  opinião  de  varias  pessoas:  fora  os 
dous  ministros,  onze,  no  numero  dous  fidalgos  da  sua  casa, 
quatro  magistrados,  o  bispo  e  o  intendente  de  policia. 

A  sua  finura  como  que  se  extraviara,  e  a  sua  prudência 
tanto  se  desaprumara  com  o  balanço,  que  degenerava  n'essa 
emergência  na  mais  improficua  vacillação.  Não  se  preparara 
bastante  para  o  golpe,  a  que  fechara  intencionalmente  os 
olhos;  o  seu  espirito  não  quizera  encarar  assaz  a  conjun- 
ctura  de  uma  desunião  da  sua  monarchia  pela  corrosão  de- 
magógica, como  noutros  temipos  encarara  a  partida  para  o 
Brazil,  a  que  promptamente  se  acostumara,  também  porque 
lhe  era  sympathica  a  hypothese.  Agora  perdia  dias  em  lamen- 
tar-se,  condemnar  a  ingratidão  dos  que  tinham  desnorteado 
o  povo  portuguez.  De  facto  procedia  como  um  nullo  quem 
tinha  perspicácia  para  traçar  sua  rota,  quem  levara  as  cou- 
sas do  Rio  da  Prata  até  o  desenlace  da  encorporação  da  Cis- 
platina,  com  a  legalização  da  qual  ia  rematar  seu  reinado 
americano.  D'esta  vez,  porém,  Maler  notava  com  acerto  que 
Dom  João  "experimentava  uma  sensação  penosa  e  uma  certa 
reluctancia  a  examinar  a  questão   na  sua  verdadeira  luz." 

Força  lhe  era  entretanto  acudir  ao  assumpto.  Dos  parece^ 
res  pedidos — treze  ao  todo — oito  opinavam  pela  partida  do 
Principe  Real,  solução  que  agradava  mediocremente  a  Dom 


(l)   Officio  (lo  Maior  do  17  de  Outiibro  do  1820. 


1036  .  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

João  VI,  posto  lhe  não  desagradasse  tanto  quanto  a  do  seu 
próprio  regresso.  Imaginou  porém  arcar  sósinho  com  a  tem- 
pestade. O  brigue  Providencia,  que  a  Regência  lhe  despa- 
chara, devia  singrar  de  volta  a  29  de  Outubro  (i).  O  Rei 
na  véspera  encerrou-se  na  sua  camará,  sem  ouvir  qualquer 
dos  conselheiros  habituaes,  nem  mesmo  Thomaz  António, 
e  redigio  sua  resposta  ás  communicações  de  Lisboa,  mandan- 
do-a  para  bordo  alta  noite  por  pessoa  da  sua  confiança  e 
velejando  a  embarcação  pela  madrugada  (2). 

Só  se  sabia  então  no  Rio  do  levante  do  Porto,  extenden- 
do-se  a  algumas  localidades  do  Minho.  A  gangrena  não  pare- 
cia ainda  geral.  Dom  João  declarava,  com  sua  natural  clemên- 
cia, conceder  amnistia  geral  aos  revoltosos  e,  com  sua  não 
menos  natural  argúcia,  auctorizar  as  cortes  convocadas  pela 
annuencia  dos  ex-governadores  do  Reino,  sem  comtudo  escon- 
der sua  surpreza  de  tal  convocação,  incompetente  sem  o  con- 
curso da  sua  real  grandeza. 

Julgando  poder  conter  e  dirigir  o  movimento — illusão 
commum  nos  governantes,  que  se  repete  em  cada  crise  consti- 
tucional —  ordenava  que,  terminadas  as  sessões  da  assem- 
bléa,  lhe  fossem  apresentadas  as  queixas  da  nação,  para  que 
as  remediasse,  e  as  propostas  formuladas,  para  que  as  sanc- 
cionasse  a  coroa.  Depois  partiria  elle,  ou  um  dos  seus  augus- 
tos filhos,  a  applicar  as  resoluções  adoptadas,  com  a  condição 
todavia  que  pelas  noticias  subsequentes  o  soberano  adqui- 
risse previamente  a  certeza  de  que  semelhante  deliberação 
não  exporia  a  perigos  a  dignidade  real. 

A  prevenção  era  prudente,  pois  acontecia  que  no  Rio 
mesmo  essa  dignidade  se  estava  desprestigiando  com  uma  ra- 


(1)  Chegou  a  Lisboa  a  16  de  Dezembro. 

(2)  Corresp.   de  Maler,   ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL  1037 

pidez  quasí  fulminante.  Conta  Maler  (i)  que  a  população, 
de  respeitosa  que  era  da  realeza  por  natureza  e  por  habito,  se 
tornara  insolente  e  turbulenta  desde  que  se  inteirara  dos 
primeiros  acontecimentos  de  Portugal.  Choviam  sarcarmos 
e  borbulhavam  pasquins  ridicularizando  a  confiança  mani- 
festada pelo  Rei  no  restabelecimento  da  ordem  e  das  formas. 

Manifestada,  melhor  se  diria  apparentada.  O  silencio 
real,  observado  para  com  o  próprio  Príncipe  Dom  Pedro, 
denunciava  vacillação  mais  do  que  astúcia.  Na  incerteza  das 
cousas.  Dom  João  refugiava-se  na  inacção,  fiava-se  na  Pro- 
videncia e  achava  ganho  nas  demoras.  Quando  a  I2  de  No- 
vembro o  alcançaram,  com  uma  travessia  de  44  dias,  no 
brigue  de  guerra  Infante  Dom  Sebastião,  as  novas  do  suc- 
cedido  em  Lisboa,  ficou  porém  succumbido.  A  fatalidade 
podia  mais  do  que  o  fatalismo.  Maler  participava  ao  seu 
chefe  em  Pariz  (2)  que  se  retirara  da  ultima  audiência  de- 
veras pezaroso,  porquanto  o  Rei  estava  por  forma  tal  im- 
pressionado e  abatido,  que  era  ponto  de  duvida  si  con- 
seguiria n'aquella  condição  deliberar  e  agir  de  modo  con- 
veniente. A  finura  ficara  annullada  pela  fraqueza. 

Não  querendo  imputar  ao  Rei  as  responsabilidades, 
culpava  Maler  o  seu  gabinete  —  uma  cousa  que  bem  sabia 
não  existir  —  de  ter  fechado  voluntariamente  os  olhos  ao 
dissabor  progressivo  da  nação  portugueza,  desprezado  o 
aviso  da  revolução  hespanhola,  permanecido  perplexo  ante 
a  revolução  portuense  e  de  todo  descoroçoado  com  a  noticia 
da  insurreição  lisbonense.  Tomar  um  expediente,  philoso- 
phava  o  encarregado  de  negócios  de  França,  é  sobremaneira 
difficil  quando  nada  está  preparado,  tudo  falta  e  se  reputa 


(1)  Officio   de   10   d«   Novembro   de   1S20. 

(2)  Offieio    de    15   de    Noveui/bro    de    1820. 


D.  J.  —  65 


1038  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

impossível  qualquer  tentativa,  e  esta  é  a  triste  situação  do 
governo. 

Tão  evidente  era,  que  d'ella  se  ia  apercebendo  perfeita- 
mente o  publico:  também  os  cartazes  e  as  diatribes  multipli- 
cavam-se  espantosamente.  Tudo  indicava  que  não  tardaria  a 
explosão  do  vulcão  sobre  que  se  repousava.  Medidas  tranquil- 
izadoras, ninguém  as  tomava  no  meio  do  torvelinho,  ao  Rei 
competindo  aliás  adoptal-as.  Nenhum  systema  se  procurava  se- 
guir no  Paço,  nem  se  organizava  um  governo  forte  para  con- 
jurar os  apuros.  O  espectáculo  era  lamentável,  de  uma  tão 
singular  apathia  que  não  logravam  sacudir  os  inimigos  já 
confessos  da  situação,  muito  menos  os  que  ainda  andavam  á 
espreita  de  um  ensejo  para  lançarem  o  repto.  Na  verdade 
porém  o  poder  só  exhibia  indeterminação,  sujeitando-se  a  ser 
dominado  pela  força  dos  acontecimentos.  Maler  surprehen- 
día-se  com  razão  de  que  nem  se  effectuassem  prisões  entre  os 
que  de  noite  affixavam  boletins  incendiários  ou  durante  o 
dia  parolavam  em  termos  sediciosos. 

Em  Lisboa  calculara-se  mais  reacção  por  parte  do 
throno.  Era  até  voz  geral  ( i )  que  Dom  João  VI  solicitara 
da  Inglaterra  o  auxilio  armado  estipulado  pelos  tratados  de 
alliança  e  de  garantia  para  as  graves  emergências  nacionaes. 
De  facto  a  politica  britannica  buscava,  como  está  nos  seus 
hábitos  intelligentes,  tirar  o  máximo  proveito  de  circum- 
stancias  que  não  favoneara,  antes  aborrecia. 

Si  a  diplomacia  franceza,  na  esperança  de  pôr  de  lado 
os  Inglezes  e  auferir  as  vantagens  de  que  estes  se  achavam 
na  posse,  mostrava  certa  sympathia  pela  evolução  liberal 
portugueza,  a  diplomacia  ingleza  por  sua  vez  desviou  do 
movimento  qualquer  ameaça.   Sacrificando  seus  resentimen- 


(1)    Officio  de  Lesseps,   de  27  de  Dezembro  de  1820. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1039 

tos,  ella  até  empregou  no  Rio  esforços  —  os  quaes  deixava 
que  se  divulgassem  em  Lisboa  —  para  o  Rei  approvar  a  at- 
titude  dos  liberaes,  que  assim  esperava  arregimentar  do  seu 
lado.  A  reunião  á  Hespanha  —  provável  no  caso  da  corte  re- 
sistir, ou  dos  constitucionaes  se  nãc  contentarem  com  meias 
reformas,  as  únicas  auctorizadas  pelo  príncipe  que  viesse 
representar  o  soberano,  ou  do  duque  de  Cadaval  não  alcan- 
çar subir  ao  throno  mau  grado  as  muitas  sympathias  de  que 
o  aureolavam  e  o  serio  partido  de  que  dispunha  —  era  o  des- 
fecho que  mais  temia  e  mais  desagradava  ao  governo  de 
Londres. 

Esta  perspectiva  s-e  foi  porém  dissipando  por  si  á  me- 
dida que  se  ia  affirmando  o  vigor  da  revolução,  apoiada 
como  estava  sendo  nas  classes  conservadoras  e  nas  illustra- 
das,  nos  proprietários,  nos  commerciantes,  nos  professores, 
no  clero  menor,  e  apenas  hostilizada  por  alguns  fidalgos, 
emquanto  o  povo  não  perdia  suas  illusões  a  respeito.  Em  vez 
da  juncção  á  Hespanha,  por  mais  que  a  decepção  custasse  aos 
que  com  tal  pensamento  ooculto  tinham,  sobretudo  para  lá 
da  raia,  instigado  o  movimento,  no  que  se  pensava  era  na 
reconciliação  com  o  Brazil,  uma  reconciliação  imposta  e 
pautada  pela  recolonização. 

A  diplomacia  portugueza  agitava-se  no  emtanto  por 
conta  própria,  sem  esperar  pela  distancia  instrucções  do  Rio, 
desde  que  fora  informada  dos  successos  revolucionários.  De- 
bellar  a  revolução  hespanhola  era  em  grande  parte  debellar 
a  revolução  portugueza,  e  para  debellar  ambas,  que  tinham 
operado  pode  dizer-se  de  concerto  e  se  disporiam  com  certeza 
a  resistir  alliadas,  era  indispensável  aos  partidários  do  velho 
regimen  recorrerem  á  intervenção  estrangeira.  Os  recursos 
nacionaes  appareciam  insufficientes  ou  fallazes. 


1040  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Marialva,  centralizando,  como  antes  delle,  com  a 
auctoridade  do  seu  talento  e  serviços,  costumava  proceder 
Palmella,  a  direcção  na  Europa  da  politica  externa  portu- 
gueza,  não  se  descuidou  de  enviar  sobre  o  assumpto  circular 
sobre  circular  ás  outras  missões  portuguezas,  e  em  pessoa 
procurou  em  Pariz  levar  o  governo  francez  a  iniciar  uma 
cruzada  legitimista,  mandando  para  Portugal  soldados  e  na- 
vios. Só  conseguio  todavia  o  despacho  de  um  navio  de  guerra 
para  Lisboa,  em  missão  expectante  ( i )  :  faltava  ainda  no  go- 
verno quem  quizesse  pôr  em  pratica  as  fantasias  reaccionárias 
de  Verona. 

O  ministro  em  Londres,  D.  José  Luiz  de  Souza  (so- 
brinho de  Linhares  e  Funchal,  mais  tarde  conde  de  Villa 
Real)  procurara  logo  lord  Castlereagh  (2)  para  obstar  ao 
reconhecimento  do  governo  constituido  em  seu  paiz,  antes 
de  sanccionada  a  legitimidade  d'elle  pelo  Rei  Fidelissimo: 
tal  respondeu  o  ministro  dos  negócios  estrangeiros  da  In- 
glaterra ser  a  firme  intenção  da  Europa  coUigada. 

Ponderou-lhe  mais  D.  José  de  Souza  a  necessidade  de 
ligar  o  governo  constitucional  de  Madrid  por  igual  decla- 
ração, que  teria  a  dupla  vantagem  de  fazer  esmorecer  certas 
esperanças  mais  vehementes  da  Junta  portugueza  e  limpar  a 
honra  da  Hespanha  compromettida  pelos  conluios  do  seu 
agente  diplomático  em  Lisboa.  A  esta  parte  replicou  Castle- 
reagh referindo  as  observações  que  a  respeito  transmittira 
por  intermédio  de  sir  Henry  Wellesley,  embaixador  junto  ao 
Rei  Catholico,  com  a  declaração  de  considerar  ataque  contra 
a  integridade  dos  domínios  portuguezes,  cuja  garantia  assu- 


(1)  Archivo  do  Mm.  das  Rei.  Ext. 

(2)  Officio    a    Tbomaz    António    de    .SI    de    Outubro    de    1820, 
Corresp.    de    LonidTes,   ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1041 

mira  a  Grã  Bretanha,  qualquer  excitação  á  rebellíão:  do 
que  entretanto  a  Hespanha  se  tentara  illibar  com  os  maiores 
protestos,  não  obstante  o  encarregado  de  negócios  Pando 
haver  participado  em  nota  á  Regência  do  Reino  a  marcha 
de  tropas  hespanholas  para  a  fronteira  portugueza  da  Galliza 
e  constar  tal  facto  da  proclamação  da  Junta  do  Porto  de  2  de 
Setembro. 

Não  annuio  comtudo  o  gabinete  britannico  á  sugges- 
tão,  que  seria  consequente  com  sua  negativa  de  reconhe- 
cimento, de  mandar  retirar  de  Lisboa  o  encarregado  de  ne- 
gócios Ward,  assim  cortando  todas  as  relações  com  os  rebel- 
des. O  caracter  diplomático  d'este  agente  fora  suspenso,  mas 
a  sua  partida  seria  inconveniente,  tornando  demasiado  pa- 
tente a  parcialidade  ingleza  pela  causa  do  soberano  portuguez 
e  justificando  de  antemão  qualquer  futura  accusação  de  pres- 
são estrangeira,  portanto  impopular. 

No  interesse  combinado  de  Dom  João  VI  e  da  nação 
aconselhava-se  uma  calculada  isenção,  a  começar  pela  absten- 
ção do  emprego  de  forças  militares  e  navaes  contra  os  re- 
voltosos, o  qual  redundaria  em  proveito  dos  partidários  da 
união  ibérica  e  adversários  da  auctoridade  real.  Tampouco 
deviam  as  relações  commerciaes  soffrer  com  as  alterações 
politicas.  A'  diplomacia  portugueza  fazia-se  mister  admittil-o, 
em  vez  de  se  estar  mexendo  no  continente,  a  reboque  de  Ma- 
rialva, para  provocar  uma  intervenção  armada  de  todo  ponto 
imprópria  e  inefficaz,  quando  factivel. 

Nem  podia  a  Inglaterra  tolerar  que,  na  sua  falta,  outros 
pensassem  cm  entremetter-se  na  sua  esphera  de  influencia. 
A  independência  da  coroa  portugueza  no  lidar  com  a  revolu- 
ção cumpria  que  fosse  escrupulosamente  respeitada,  e  Dom 
João  mesmo  provaria  que  entendia  tratar  do  caso  sem  inter- 


1042  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ferencias  estranhas.  De  resto,  para  qualquer  expedição,  de- 
pendia o  gabinete  da  votação  parlamentar  de  um  credito,  que 
seria  muito  difficil  obter  visto  o  seu  êxito  problemático  (i). 

Sob  o  pretexto,  que  em  breve  se  tornaria  um  principio 
politico  seu,  de  repugnar-lhe  o  processo  das  intervenções,  a 
Inglaterra  esquivava-se  pois  a  tudo,  a  fornecer  contingente 
militar  ou  naval,  ou  subsidio  pecuniário  contra  o  movimento 
constitucional  no"  velho  Reino. 

Souza  referiu  em  officio  a  Marialva  (2)  sua  entrevista 
com  Castlereagh,  fazendo  chegar  aos  ouvidos  do  marquez  es- 
tribeiro-mór,  todo  açodado  no  seu  absolutismo  proselytico,  a 
linguagem  do  bom  senso:  que  não  justificasse,  com  aggres- 
sões  anti-patrioticas,  quer  o  partido  dos  que  proclamavam 
querer  apenas  fazer  Portugal  independente  do  Brazil,  even- 
tualmente immolando  a  dynastia,  quer  o  partido  dos  que 
manobravam  para  a  reunião  á  Hespanha,  aconselhada  pela 
geographia  e  pela  politica. 

Era  preciso,  no  dizer  do  ministro  ao  embaixador  (3), 
não  exacerbar  os  ânimos  e  não  cercar  de  difficuldades  a 
acção  do  Rei  ou  do  seu  lugar  tenente,  que  viesse  repor  as 
cousas  em  ordem  na  secção  européa  da  monarchia,  e  cujas 
intenções  honestas  e  benévolas  se  deviam  ir  encarecendo.  A 
Inglaterra  iria  mesmo  além  d'aquella  politica  negativamente 
favorável  a  uma  intelligencia  directa  entre  soberano  e  súbdi- 
tos: desmancharia  o  ef feito  da  declaração  conjuncta,  vaga 
como  resultou,  de  Troppau,  e  em  Laybach  se  ingeriria,  para 
annuUal-os,  nos  planos  de  António  de  Saldanha  da  Gama, 
que  dos  trez  plenipotenciários  portuguezes  —  Marialva, 
Lobo   da   Silveira   e   elle  —  nomeados   para   o   que   desse   e 


(1)  Corrosp.  de  Londres,  1820-1821,  ihiãem. 

(2)  Corresp.   de   Londres,   1820-1821,  ibidem. 
(8)    Corresip.    de    Ijondres,    1820-1821,    ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1043 

viesse  em  matéria  de  congressos,  foi,  de  combinação  com  os 
outros  dous,  o  único  que  alli  se  apresentou. 

A  Inglaterra  usara  com  o  representante  portuguez  de 
uma  linguagem  sincera.  A  lord  Stewart,  embaixador  em 
Vienna,  que  recebera  ordem  de  achar-se  em  Troppau  quando 
alli  se  encontrassem  os  soberanos  alliados,  mandou  lord  Cas- 
tlereagh  instrucções  para  que  se  deixasse  alli  em  paz  a  re- 
volução portugueza,  no  próprio  beneficio  da  conservação  da 
auctoridade  de  Dom  João  VI,  cuja  presença  só  por  si  daria 
satisfacção  ás  queixas  e  collocaria  de  novo  a  nação  nos  seus 
eixos,  sem  que  se  avivassem  suspeitas  nativistas  e  se  abonasse 
a  opinião  dos  que  pretendiam  querer  a  Inglaterra  conser- 
var Portugal  n'uma  dependência  indecorosa  ( i ) .  Longe  do 
tumultuar  das  paixões  e  do  pugnar  dos  partidos,  mais  avi- 
sadas providencias  ainda  poderia  o  Rei  ir  entrementes  archi- 
tectando  para  defrontar  com  a  situação. 

A  opinião  publica  britannica  já  era  no  conjuncto  liberal 
bastante  para  festejar  as  mudanças  politicas  de  que  estava 
sendo  theatro  a  Peninsula  Ibérica,  e  ao  gabinete  conservador 
não  convinha  crear,  mormente  de  motu  próprio,  mais  tro- 
peços á  sua  gestão.  Em  Nápoles  também  o  constituciona- 
lismo obtivera  uma  victoria,  que  mais  ephemera  seria  que  as 
outras,  e  o  ministro  Acourt  não  fora  retirado,  si  bem  que 
lhe  não  tivessem  expedido  novas  credenciaes. 

Lord  Castlereagh  previa  acertadamente  que  Dom 
João  VI  se  adaptaria  á  ordem  de  cousas  dominante  em  Por- 
tugal e  tratava  de  contemporizar,  aconselhando  até  D. 
José  de  Souza  a  responder  á  circular  de  Hermano  Braam- 
camp, ministro  dos  negócios  estrangeiros  do  governo  liberal 


(1)    Despacho    de    lord    Castlereagh    a    lord    Stewart,    no    Arch. 
Min.  das  Rei.  Ext. 


1044  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  Lisboa,  ao  corpo  diplomático  portuguez,  nos  mesmos  ter- 
mos que  o  encarregado  de  negócios  britannico  havia  esco- 
lhido, para  que  se  desse  a  conhecer  a  harmonia  que  reinava 
entre  as  cortes  de  Saint  James  e  de  São  Christovão.  Souza 
não  julgou  todavia  dever  ir  além  de  uma  carta  particular,  de- 
clinando entrar  em  relações  com  a  Junta  antes  de  receber 
instrucções  do  Rio  de  Janeiro  ( i ) . 

Fora  D.  José  de  Souza  quem  havia  recebido  o  maço  de 
exemplares  da  circular  e  o  remettera  a  Marialva,  que  o 
devolveu  sem  lhe  querer  dar  destino.  O  marquez  estribei- 
ro-mór  não  se  ageitava  muito  com  essa  politica  de  concilia- 
ção e  não  só  se  recusava  a  responder  a  qualquer  communi- 
cação  de  Lisboa,  como  solicitava  por  nota  a  suspensão  das 
f uncções  do  encarregado  de  negócios  f rancez  em  Lisboa  —  o 
que  o  ministro  barão  Pasquier  verbalmente  lhe  prometteu  — 
e  não  cessava  de  insistir  na  intervenção.  Chegou  a  despa- 
char Navarro  de  Andrade  para  Troppau,  onde  os  soberanos 
alliados  iam  "  concertar  algumas  medidas  relativamente  aos 
successos  que  tem  tido  lugar  no  decurso  deste  anno  no  meio 
dia  da  Europa"    (2)  . 

Em  corte  alguma,  das  principaes  pelo  menos,  permane- 
cera inactiva  nessa  crise  a  diplomacia  portugueza.  Para 
evitar  a  união  ibérica  podia  bem  contar-se  com  a  Inglaterra, 
mas  o  concurso  da  Rússia  parecia  igualmente  precioso  pelo 
que  significava  por  si,  e  pela  preponderância  que  nos  annos 
de  181 5  a  1825  essa  potencia  exerceu  sobre  os  outros  paizes 
da  Europa.  Por  isso  logo  que  o  movimento  do  Porto  respon- 
deu ao  levante  hespanhol,  o  ministro  em   São  Petersburgo, 


(1)  Coiresp.  de  Londres,  1820-1821,  ibidem. 

(2)  Officio  de  Marialva  a  D.  José  de  Souza  de  21  de  Outubro 
de  1820,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1045 

visconde  da  Lapa,  tratou  de  induzir  o  governo  do  Czar  a 
assumir  o  compromisso  de  proteger  a  integridade  portugueza 
contra  qualquer  ameaça  de  dilaceração  por  parte  da  Hes- 
panha   revolucionaria    (i). 

Invocava  o  diplomata  portuguez  a  assignatura  collectiva 
dos  tratados  de  Vienna  que,  no  seu  dizer,  continham  implí- 
cita uma  garantia  geral  e  reciproca  dos  territórios  respecti- 
vos das  potencias  signatárias,  assim  como  da  legitimidade  e 
independência  dos  seus  governos.  Na  sua  resposta,  a  chan- 
cellaria  russa,  arredando  de  vez  os  ajustes  do  tratado  de 
1799  entre  o  Im,perio  e  Portugal  por  terem  sido  ipso  facto 
annuUados  em  1808  —  não  se  renovando  suas  estipulações  e 
dando  Portugal  as  mãos  á  Inglaterra,  então  no  campo  ad- 
verso á  Rússia  —  chamava  a  attenção  da  legação  portugueza 
para  a  theoria  eminentemente  conservadora  sustentada  nesta 
matéria  pelo  governo  de  São  Petersburgo. 

A  Rússia  propuzera  com  effeito  em  Aix-la-Chapelle 
uma  garantia  explicita,  universal  e  reciproca  afim  de  con- 
verter n'um  facto  material  e  incontestável  o  espirito  das  tran- 
sacções que  constituíam  o  direito  publico  europeu.  Esta  pro- 
posta não  estava  comtudo  ainda  acceita  e  a  chancellaria  de 
São  Petersburgo  rejeitou  ligar-se  por  um  accordo  cathego- 
rico,  mas  isolado.  O  despacho  mandado  em  Julho  de  1820, 
antes  da  revolta  do  Porto,  ao  barão  de  Thuyll,  ministro  no 
Rio  de  Janeiro,  rezava  que  a  Rússia  offerecia  a  Portugal,  no 
caso  de  aggressão  por  parte  da  Hespanha,  o  mesmo  apoio  mo- 
ral que  dera  a  esta  por  occasião  da  aggressão  portugueza  no 
Rio  da  Prata.  A  mal  disfarçada  ironia  da  resposta  cantida 


(1)  Corivsp.  do  visconde  da  liapa  e  do  encarregado  de  negócios 
Abreu  Lima  (futuro  conde  da  Carreira),  nos  Papeis  avulsos  no  Arcli. 
do  Min.  das  Rei  Ext. 


1046  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

em  substancia  n'esse  despacho,  indica  que  não  passara  até 
então  o  mau  humor  russo,  cultivado  por  Tatischeff  e  pelo 
governo  de  Fernando  VII. 

António  de  Saldanha  levaria  para  Laybach  o  seu  plano 
particular,  de  mais  vastas  proporções,  e  em  que  entrava  Ma- 
rialva. Consistia  em  mover  o  directório  europeu  a  agir  em 
nome  dos  seus  principios  no  beneficio  da  monarchia  portu- 
gueza,  oppondo-se  pela  força  ás  idéas  revolucionarias  propa- 
gadas no  velho  Reino  e  iniciando  por  Portugal  a  tarefa  sa- 
lutar da  repressão  e  restabelecimento  da  ordem  na  Penin- 
sula,  ''pois  que  daquelle  reino  he  que  se  devia  trabalhar  para 
o  socego  e  quietação  da  Hespanha"   (i). 

O  provecto  plenipotenciário  portuguez  conversara  com 
Capo  d'Istria  e  Metternich,  que  ambos  julgavam  o  mo- 
mento azado  para  medidas  geraes,  tendo  Metternich  ado- 
ptado este  modo  de  ver  do  ministro  de  estrangeiros  da  Rússia 
depois  da  revolução  de  Nápoles,  cujo  contagio  era  para  re- 
ceiar  nos  dominios  italianos  do  Império  austriaco.  Vienna 
accedera  já  a  que  coubesse  á  França  na  Hespanha  o  papel  que 
á  Áustria  cabia  na  Itália,  de  abafar  todo  movimento  sedi- 
cioso, surprehendendo-se  o  chanceller  de  que  a  essa  politica 
activa  preferisse  a  Inglaterra  a  inacção,  sobretudo  por  ser  de 
temer  a  reunião  de  Portugal  á  Hespanha. 

A  coadjuvação  da  Grã  Bretanha  era  necessária,  mas 
esta  potencia,  cujo  assentimento  as  outras  não  podiam  dis- 
pensar, esquivava-se  de  mostrar  hostilidade  a  movimentos 
que  não  fossem  puramente  republicanos.  Já  no  decorrer  de 
1820,  querendo  a  Rússia  arrastar  as  nações  alhadas  a  uma 
intervenção  anti-constitucional  na  Hespanha,  tendente  a  con- 


(1)  Officio  de  António  de  Saldanha  a  Thomaz  António  de  26 
de  Janeiro  de  1821.  Esta  correspondência  de  Laybacla  encontra-se 
entre  os  Papeis  avulsos  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1047 

solidar  a  paz  européa,  recusara  o  governo  de  que  Castle- 
reagh  fazia  parte,  terminantemente  associar-se  a  qualquer  de- 
monstração militar  ou  sequer  politica  n'aquelle  sentido,  a 
qual  só  poderia  originar  uma  nova  conflagração,  em  seu 
entender. 

A  Inglaterra,  que  argumentava  historicamente  com  os 
males  enormes  resultantes  da  interferência  estrangeira  nos 
negócios  da  França  em  1792,  achava-se  então  no  periodo  de 
voluntário  retrahimento,  de  intencional  isolação,  indecisa 
entre  a  combinação  autocrática  que  tutelava  o  continente  e 
a  inclinação  liberal  que  prevalecia  a  meio  do  seu  povo:  uma 
incerteza  de  que  em  breve  a  resgataria  o  génio  ousado  de 
Canning,  collocando-a  resolutamente  á  frente  do  movimento 
constitucional  e  offerecendo  combate  á  reacção  enthroni- 
zada  na  Euroipa  e  disposta  a  avassallar  de  novo  a  America. 
Tampouco  queria  a  França  n'aquell€  momento  envolver-se 
nos  negócios  da  Peninsular  não  era  chegado  o  instante  em 
que  Chateaubriand  julgaria  com  a  expedição  do  Duque  d'An- 
goulême  dar  lustre  imperecivel  ás  armas  bourbonicas. 

Outra  razão  pela  qual  a  Inglaterra  se  negava  a  inter- 
vir directa  e  activamente  n'esse  caso,  era  a  de  pretender 
por  tal  meio  compellir  Dom  João  VI  a  voltar  para  Portu- 
gal. Não  contando  o  Rei  com  auxilio  estrangeiro  para  esma- 
gar a  revolução,  força  lhe  era  esperar  acalmal-a  com  sua  pre- 
sença. Ora,  o  ensejo  apparecia  afinal  em  extremo  propicio 
á  realização  d'aquelle  designio  constante  da  politica  ingleza 
no  tocante  aos  negócios  portuguezes,  pelo  qual  se  sacri- 
ficara até  Strangford:  não  podiam  de  boa  mente  perdel-o 
em  Londres. 

Por  essa  circumstancia  especial,  e  também  pela  razão 
geral   de   que   o   verdadeiro   protectorado   exercido   sobre   o 


1048  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

velho  Reino  não  devia  comportar  co-participantes,  desconvi- 
nha  pois  á  Inglaterra  que  fossem  os  negócios  da  Peninsula 
tratados  no  Congresso,  ou  melhor  reunião  soberana  de  Lay- 
bach.  Chegou  mesmo  a  declarar  não  ter  alli  plenipotenciário, 
apezar  de  se  achar  presente  e  tomar  parte  nas  conferencias 
lord  Stewart,  e  a  aconselhar  António  de  Saldanha  a  reti- 
rar-se  para  Lorídres  e  lá  aguardar  o  desenrolar  dos  acon- 
tecimentos   ( I ) . 

De  outro  lado  Bernstorf  suggeria  ao  plenipotenciário 
portuguez  que  ficasse,  o  que  equivalia  a  dizer  continuasse  a 
trabalhar  no  sentido  da  intervenção  estrangeira.  Tratou  An- 
tónio de  Saldanha  effectivamente  de  alcançal-a  nas  audiên- 
cias em  que  foi  recebido  pelos  Imperadores  da  Áustria  e  da 
Rússia,  em  ambos  os  soberanos  encontrando  inequivoca  boa 
vontade  no  prestarem  apoio  á  causa  dos  thronos  contra  os 
povos.  Esbarrava  porém  com  a  frouxa  disposição  da  França, 
"que  se  desculpava  com  a  sua  situação  interior"  —  a  qual 
o  recente  assassinato  do  Duque  de  Berry  por  Louvei  paten- 
teara incerta  €  agitada  —  e  com  a  pouco  disfarçada  repu- 
gnância da  Inglaterra,  "que  não  só  não  queria  intervir, 
porem  que  quasi  protestava  contra  tudo  que  se  fazia  a  res- 
peito de  Nápoles." 

Escrevia  a  este  propósito  Lesseps  (2)  que  o  afasta- 
mento da  Inglaterra  das  cortes  reaccionárias  €  sua  adopção 
de  um  systema  de  neutralidade  tinham  ferido  o  espirito  dos 
liberaes  portuguezes,  insinuando  ao  mesmo  tem-po  que  a 
França  obrara  mal  em  acceder  em  these  á  repressão,  posto 
que  lhe  levantando  restricções  na  pratica.  Bastava  comtudo 
isto  para  desmanchar  o  concerto   das  nações  alliadas,  cuja 


(1)  Corrôsp.  de  Laybach  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext. 

(2)  Officio  cifrado  de  11   de  Março  de  1821. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BUAZIL  1049 

falta  de  união  ficaria  publicamente  demonstrada  no  verifi- 
car-se  uma  mediação  parcial  e  poderia  assim  causar,  nas  pró- 
prias palavras  do  Czar  Alexandre,  maior  mal  do  que  bem  á 
causa  geral  ( i ). 

Afim  de  não  acirrar  os  ciúmes  da  Inglaterra  e  na  falta 
de  instrucções  positivas  e  terminantes  da  corte  do  Rio,  reti- 
rou-se  no  emtanto  António  de  Saldanha  de  Laybach  sem 
lograr  que  as  trez  grandes  potencias  ultra-conservadoras  — 
Áustria,  Rússia  e  Prússia — ,  as  mais  empenhadas  em  sup- 
primir  todo  gérmen  demagógico,  "adoptassem  uma  resolu- 
ção peremptória  acerca  dos  negócios  de  Portugal." 

Sentiam-se  aquellas  outras  nações  tolhidas  sem  o  as- 
senso da  França  e  da  Inglaterra,  d'esta  sobretudo,  da  qual,  no 
dizer  do  plenipotenciário,  Portugal  era  considerado  um  sa- 
tellite.  Referia  António  de  Saldanha  que  se  não  afoitavam 
as  poderosas  cortes  do  Norte  a  "ingerir-se  nos  negócios  deste 
Reino,  com  o  receio  de  que  aquella  Potencia  julgue  huma  tal 
intervenção  como  hum  ataque  feito  a  sua  propriedade.  Tal 
he  a  triste  situação  a  que  nos  achamos  reduzidos"   (2). 

Tendo  ido  a  Pariz  ver  Marialva,  esteve  D.  José  de 
Souza  com  António  de  Saldanha  no  regresso  de  Laybach  e, 
procurando  saber  d'este  si  haveria  intervenção,  ficou  certo  de 
que  ella  se  não  daria,  não  tanto  pela  distancia  do  foco  sedi- 
cioso quanto  pela  impossibilidade  de  promover-se  contra 
Portugal  uma  liga  reaccionária  á  qual  faltasse  o  concurso 
britannico.  Resignaram-se  as  nações  alliadas  a  aguardar  em 
Portugal  o  tratamento  pela  suggestão  das  medidas  violentas 
tomadas  contra  Nápoles,  julgando  igualmente  mais  acertado 
não  proceder  desde  logo  contra  a  Hespanha  para  não  "au- 


(1)  Corresp.  de  Laybach  no  Arch.  do  Wm.  das  Rei.  Ext. 

(2)  Officio  datado  de  Pariz  aos  10  de  Margo  de  1821. 


1050  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

gmentar  os  males  que  alli  se  estão  soffrendo,  e  compromet- 
ter  mais  a  Pessoa  d'El-Rei  (i). 

O  governo  britannico,  assumindo  uma  attitude  que 
nada  tinha  de  ambígua,  declarou  em  despacho  circular  aos 
governos  estrangeiros  que  reputava  perigosa  a  ingerência  das 
potencias  colligadas  nas  transacções  interiores  dos  outros  Es- 
tados, protestando  que  não  adheriria  ás  medidas  que  a  tal 
respeito  se  pudesse  ter  em  vista.  Em  conversação  com  Souza, 
admittiu  lord  Castlereagh  sem  difficuldade  que  a  circular 
houvesse  inspirado  alguma  confiança  em  Lisboa  aos  chefes 
do  partido  revoltoso,  fortificando-os  na  justa  crença  de  que 
a  Inglaterra  só  se  julgaria  obrigada  pela  estipulação  dos 
tratados  quando  se  tratasse  de  livrar  Portugal  de  uma  ag- 
gressão  estrangeira,  não  para  rebater  um  levantamento  na- 
cional. 

Deplorou  o  ministro  de  estrangeiros  da  Grã  Bretanha 
na  alludida  entrevista  com  D.  José  de  Souza  (2),  que  a  pu- 
blicidade dada  á  declaração  das  intenções  dos  alliados  de  aba- 
farem as  revoluções  levadas  a  cabo  por  facções  armadas,  e 
a  referencia  feita  aos  sentimentos  do  governo  inglez  no  as- 
sumpto, tivessem  posto  este  na  necessidade  de  dirigir  a  cir- 
cular em  questão,  que  o  prendia  nas  suas  operações. 

O  soberano  de  Portugal  e  Brazil  tampouco  desejava, 
antes  repudiava  uma  intervenção  da  Santa  Alliança  no  seu 
reino  europeu.  O  monarcha  que  fúteis  compiladores  de  me- 
morias, como  a  doidivanas  duqueza  de  Abrantes,  expuzeram 
quasi  imbecil  aos  olhos  da  posteridade,  e  de  quem  escarneceu 
sem  dó,  glosando  anecdotas  postiças,  um  historiador  cheio  de 


(1)  ICorresp.   de    Loridres,    1820-1821,    no    Arch.    do    Min.    das 
Rei.    Ext. 

(2)  Oorresp.  de  Londres,  1820-1821,  ibidem. 


DOM  JOÃO  Vr  NO  BRAZIL  1051 

talento  e  também  de  prevenções  como  Oliveira  Martins, 
comprehendeu  o  que  muitos  políticos,  julgados  tanto  mais 
atilados,  do  tempo  não  quizeram  perceber,  o  que  escapou  a 
Metternich  como  a  Chateaubriand,  a  saber,  que  com  a  in- 
tervenção estrangeira  apenas  lucraria  a  causa  popular. 

António  de  Saldanha  andara  avisadamente  retirando-se 
de  Laybach.  A  circular  expedida  do  Rio  de  Janeiro  a  30  de 
Janeiro  de  1821,  concernente  á  revolução  portugueza,  dizia 
expressamente  aos  representantes  diplomáticos  na  Europa 
não  ter  Dom  João  VI  ''por  agora  a  intenção  de  empregar 
meios  de  coacção  nem  de  pedir  soccorros  militares  aos  seus 
alliados  para  sujeitar  os  seus  vassallos  extraviados."  A  In- 
glaterra não  ficava  excluida  d'essa  "resolução  final"  que 
Castlereagh  dizia  em  Londres  a  D.  José  de  Souza  não  haver 
ainda  sido  tomada  pelo  Rei  sobre  o  systema  que  se  propunha 
seguir. 

A  brandura  ingenita  e  o  claro  senso  politico  de  Dom 
João  VI  acham-se  estampados  n'aquellas  palavras.  Os  repre- 
sentantes diplomáticos.  Marialva  e  António  de  Saldanha, 
estavam  sendo  mais  realistas  do  que  o  Rei.  O  que  este  queria 
era  tão  somente  que  a  Inglaterra  mantivesse  com  relação  á 
Hespanha  a  sua  obrigação  de  garantia  da  integridade  da 
monarchia  portugueza,  e  a  isto  de  bom  grado  annuia  o  go- 
verno de  Londres.  Havendo-lhe  Souza  figurado  a  hypothese 
de  mandarem  os  Hespanhoes  tropas  contra  Portugal  como 
uma  em  que  cabia  a  Dom  João  reclamar  positivamente  o 
effeito  do  compromisso  britannico,  nada  objectara  lord  Cas- 
tlereagh, allegando  até  que  sobre  este  ponto  muito  tempo 
havia  que  sir  Henry  Wellesley  tinha  levado  uma  communica- 
ção  official  ao  governo  de  Madrid   (i). 


(1)   Corresp.  de  Londres,  1820-1821,  ibidem. 


1052  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Este  era  porém  um  caso  de  ameaça  á  independência 
portugu€za.  Com  respeito  aos  seus  súbditos,  sobre  que  se 
exercia  a  sua  soberania,  que  o  abbade  de  Pradt  desrespeitosa- 
mente  taxava  de  itinerante  (souveraineté  voyageuse),  achava 
o  Rei  de  Portugal  e  Brazil  preferivel,  mais  decoroso,  mais 
digno  .e  mais  hábil,  agir  livre  de  suggestões  e  de  soccorros  de 

fora:  '* S.  M.  se  não  determinará  a  recorrer  a  meios 

extremos  e  violentos  senão  quando  se  achem  esgotados  todos 
os  de  conciliação,  e  quartdo  se  vejão  frustradas  as  diligencias 
que  intenta  praticar  para  attrahir  por  concessoens  justas,  ra- 
soaveis  e  compativeis  com  o  decoro  e  segurança  da  sua  Real 
Coroa  os  ânimos  daquella  gente  extraviada,  não  sendo  de 
esperar  de  coraçoens  de  Portuguezes  hum  tal  excesso  de 
infidelidade  e  de  ingratidão"  (i).  Dom  João  VI  está  todo 
elle  n'estas  nobres  palavras,  de  estadista  e  de  homem  de 
coração. 

Elegendo  tal  norma  de  proceder,  o  Rei  ia  mesmo  de 
encontro  ás  idéas  do  seu  conselheiro  habitual  e  habitual- 
mente escutado,  Thomaz  António,  cujo  projecto  immediato, 
ao  chegarem  ao  Rio  as  noticias  da  revolução  portugueza, 
fora  obter  para  combatel-a  o  auxilio  maritimo  da  Rússia — 
que  elle  acreditava  não  lhe  seria  negado  pelo  Czar  Alexan- 
dre, o  pacificador  da  Europa  e  arbitro  dos  seus  destinos — no 
caso  de  se  mallograrem  em  Londres  os  esforços  de  D.  José 
Luiz  de  Souza   (2). 

.0  visconde  da  Lapa  destruio  porém  logo  essa  illusão, 
fazendo  ver  ao  seu  chefe  a  quasi  impossibilidade  de  alcan- 
çar o  que  se  almejava  da  parte  do  gabinete  de  São  Peters- 


(1)  Papei's  flvulfíos   no   Ardi.    do    Min.    das    Rei.    Ext. 

(2)  O  sabrinlio  de  Funchal  para  alili  (passara  de  Madrid,  como 
ministro,  n'uma  reaffirmação  do  favor  da  família  com  que  lucrou  o 
conde   de   Linhares,   filho   de   D.   Rodrigo,    d^^spachado  para   Turim. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1053 

burgo,  pouco  inclinado  a  entrar  n'esse  terreno  em  conflicto 
com  a  Inglaterra,  protectora  reconhecida  de  Portugal.  Tudo 
conspirava  contra:  além  das  continuas  ausências  do  Czar  da 
sua  capital,  difficultando  quaesquer  intelligencias,  os  negócios 
italianos,  mais  próximos  e  mais  prenhes  de  perigos  ainda, 
absorviam  a  attenção  geral  das  graníles  chancellarias,  as 
quaes,  sobretudo  por  causa  d'elles,  não  tinham  no  congresso 
de  Troppau,  em  1820,  dedicado  particular  cuidado  aos  ne- 
gócios portugueses,  limitando-se  a  declarações  theoricas  de 
resistência  ao  espirito  de  revolta  e  salvaguarda  dos  interes- 
ses da  legitimidade. 

Por  isso  e  por  intuição  politica  sua  escrevia,  com  muito 
acerto,  o  ministro  portuguez  na  Rússia  aquillo  mesmo  que 
com  differença  de  dias  mandava  no  Rio  Dom  João  IV  ex- 
primir ao  seu  corpo  diplomático  por  palavras  diversas:  "Cha- 
mar forças  externas  para  coadjuvar  a  expulsão  de  inimigos 
externos,  é  o  que  a  historia  apresenta  a  cada  passo;  porem 
para  socegar  as  desordens  internas  é  sempre  arriscado.  .  .  A 
massa  da  nação  é  ainda  sãa,  e  sendo  a  força  moral  a  que  se 
deve  procurar  encaminhar,  não  posso  occultar,  que  o  em- 
prego da  força  marítima  só  poderia  servir  para  a  irritar,  e 
conduzir  aos  desvarios  a  que  a  desesperação  pode  ar- 
rastar"   (i).  ,     < 

O  conselho  era  bom  e  tanto  mais  merece  ficar  assigna- 
lado,  quanto  em  Pariz  se  estavam  celebrando  aquelles  con- 
ciliábulos de  representantes  conspicuos  do  Reino  Unido,  Ma- 
rialva á  frente,  que  o  Correio  Braziliensc  verberava  com 
muita  acrimonia.  Hippolyto  bem  suppunha  o  plano  de  reac- 
ção desapprovado  na  corte  do  Rio,  mas  imaginava  mal  que 


(1)    Officio  de   24   do   .Tanoiro   de   1821,   nos   Papeis   avulsos   no 
Areh.   do   Min.   das   Rol.   Ext. 

D.   J.   -  60 


1054  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

o  directório  de  diplomatas  em  Pariz  estava  tomando  a  dian- 
teira á  chancellaria  fluminense  e  impondo  o  seu  modo  de 
pensar,  quando  na  verdade  a  inspiração  partira  simultanea- 
mente de  Marialva  e  de  Thomaz  António,  o  qual  era  inca- 
paz de  ir  de  encontro  nos  seus  actos  á  vontade  real.  Sustaria 
porém  tal  inspiração  a  benignidade  intelligente  de  Dom 
João  VI,  um  momento  empannada,  ao  recuperar  sua  lucidez 
e  pôr-se  em  harmonia  com  uma  melhor  comprehensão  das 
conveniências  do  momento  histórico. 

No  essencial  se  não  enganava  todavia  Hippolyto,  antes 
acertou  logo  em  julgar  o  Rei  pessoalmente  infenso  aos  ma- 
nejos do  chamado  partido  aristocrático  (i),  que  na  sua 
constante  ainda  que  mais  disfarçada  malevolencia  a  Palmella, 
o  publicista  acreditava  dirigidos  por  este  estadista,  de  facto 
empenhado   em  conciliar   as  cousas  muito  mais   do  que  em 

ajustal-as  pela  força  " Mas  parece-nos  que  não  será 

difficil  o  dar  algumas  provas,  de  que  não  he  El-Rey  quem 
obr«  contra  Portugal,  que  não  he  do  soberano  de  quem  se 
devem  temer  opposiçoens  a  um  systema  constitucional,  em 


(1)  o  Correio,  o  Português,  cujo  redactor  a  legação  pretendia 
ainda  fazer  expulsar  de  Londres,  e  o  Campeão,  de  José  Llberato,  es- 
tavam em  todo  caso  mais  no  diapasão  das  disposições  regias  do  que 
o  pessoal  diplomático  que  se  deixava  influenciar  pelo  marquez  es- 
trH>eiro-móT.  O  Portuf/iiez  alias  hlazonava  (Officio  secretíssimo  de 
Souza,  de  4  de  Fevereiro  de  1821,  no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext.)^ 
ter  no  Rio  de  Janeiro  pessoa  de  dentro  que  o  informava  do  que  alli 
òccorria,  apparoceoido  nas  isuas  paginas  contribudções  ã'es^e  correspon- 
dente que  bem  indicavam  não  serem  fingidas,  e  até  uocumentos  que 
só  podiam  ser  extrahidos  de  algum  dos  gabinetes  privados  do  go- 
verno :  "srado  hum  destes  documenitos  a  denuncia  da  cons,piração  de 
Portugal,  feitA  por  Pinto  e  Corvo,  e  publicada  no  Campeão,  papel  que 
deveria  ser  reservado  nos  esconderijos    mais   recônditos  do  Gabinete." 

Era  crença  geral  reproduzida  por  D.  José  de  Souza,  que  n'este 
ponto  íallava  como  bom  sobrinho  dos  tios,  ter  uma  das  auctoridades  do 
Rio  a  seu  soldo  o  Correio  Braziliense,  servindo-se  d'este  orgam  "para 
calumniar  e  injuriar  descamda,  e  impunemente  pessoas,  que  'occupão 
os  mais  altos  empregos,  e  oue  S.  M.  honra  com  a  sua  confiança." 
(Officio  cit.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1055 

que  os  empregados  públicos  sejam  responsáveis  por  sua  ge- 
rência, que  he,  em  duas  palavras,  tudo  quanto  a  voz  publica 
pede  e  exige;  El-Rey  não  tem  interesse  em  oppor-se  a  isso; 
porque  com  a  existência  dessa  responsabilidade  nada  perde, 
antes  muito  ganha.  Os  governantes,  que  são  os  que  verão 
suas  mãos  atadas  para  não  fazer  mal,  são  os  que  se  devem 
suspeitar  de  fazerem  essa  opposição  a  um  systema  para  lhes 
porem  freio.  .  .  E  he  de  esperar  que  as  Cortes  de  Portugal 
nunca  se  esqueçam  de  fazer  a  devida  distincção  entre  os  sen- 
timentos d'El-Rey,  e  os  de  um  partido  de  intrigantes,  cujos 
fins  são  manter  seus  interesses,  a  despeito  dos  da  nação,  e  da 
mesma  authoridade  do  Rey"   (i). 

Si  fosse  exacto  que  Palmella,  nomeado  havia  muito 
ministro  dos  negócios  estrangeiros  e  assumindo  afinal  a  pasta, 
inspirara  e  fomentara  o  denegrido  "  conciliábulo  aristo- 
crata" de  Pariz  —  no  intuito,  pouco  crivei  aliás,  de  desbravar 
para  si  o  terreno  e  permittir-lhe  n'um  campo  livre  o  cultivo 
das  regias  concessões  —  maior  merecimento  tocaria  ainda  á 
attitude  perspicaz  do  Rei  no  assumpto. 

Foi  bem  um  gesto  privativo  d'elle,  esse  que  tão  de  ac- 
cor'do  se  achava  com  o  pensar  do  gabinete  britannico  e  tão 
de  harmonia  estava  com  recentes  ensinamentos  da  historia, 
que  indicavam  haver  a  intervenção  estrangeira  custado  a  vida 
a  Luiz  XVI  e  a  Maria  Antonietta.  Além  d'isso  era  obvio  — 
obvio  para  quem  tivesse  bons  olhos  —  que  uma  intervenção 
estrangeira  podia  occorrer  em  Portugal  e  ahi  abafar  com 
relativa  facilidade  o  movimento  liberal,  mas  não  poderia  ir 
suffocal-o  no  Brazil,  onde  elle  repercutiria  mais  vivamente 
mercê  mesmo  da  reacção  creada  em  Portugal. 


(1)   Correio  Tirazilimsê  n.  153,  Fcvoreiro  do  1.S21,  vol.  XXVI. 


1056  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Para  isto  seria  indifferente  ficar  o  Rei  no  novo  Reino 
ou  voltar  para  o  velho.  A  questão  não  era  tanto  essa:  era 
sobretudo,  como  muito  bem  a  coUocava  Hippolyto,  o  resistir 
ou  entrar  a  realeza  no  caminho  das  reformas  constitucionaes, 
o  governar  arbitrariamente  ou  com  um  ministério  responsá- 
vel e  popular,  cujos  interesses  não  estivessem  vinculados  aos 
das  classes  privilegiadas.  Somente  assim  ficaria  garantida, 
dado  o  progresso  dos  tempos,  a  integridade  da  monarchia. 
De  outro  modo  a  revolução  caminharia  impávida  em  Portu- 
gal, annullando  a  coroa,  e  se  propagaria  ao  Brazil. 

Pernambuco,  apezar  da  residência  da  corte  no  Rio,  suble- 
vara-se  antes  de  Portugal,  e  si  a  tentativa  fora  mal  succe- 
dida  —  como  também  o  fora  pelo  mesmo  tempo  em  Lisboa 
o  ensaio  de  Gomes  Freire  —  depunha  isto  apenas  contra  as 
circumstancias  do  momento.  O  facto  provava  que  o  gérmen 
do  governo  constitucional  existia  no  Brazil  independente 
de  Portugal,  tendo  bastado  para  a  fecundação  o  contacto 
da  America  Hespanhola,  depois  do  exemplo  dos  Estados  Uni- 
dos. Não  alcançaria  constituir  empecilho  sufficiente  contra  a 
corrente  a  popularidade  pessoal  do  Rei,  que  o  periodista  do 
Correio  carinhosamente  descreve  "brando,  pacifico,  soffre- 
dor,  indulgente;  sem  ambição  nem  avareza,  nem  crueldade'*; 
porquanto  ao  lado  de  Dom  João  VI  existia  um  ministério 
de  gente  corrupta  —  Hippolyto  poderia  ter  escripto,  com 
mais  verdade,  de  gente  eivada  de  preconceitos — que  com  sua 
presença  excitava  contra  o  throno  e  contra  o  velho  regimen 
as  novas  paixões  populares. 

Essa  era  com  effeito  a  questão,  posta  nos  seus  termos 
geraes  e  politicos;  no  caso  particular  de  que  se  trata,  havia 
porém  que  contar  com  um  elemento  a  mais,  fornecido  pela 
discórdia  creada  entre  as  duas  metades  da  monarchia,   das 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1057 

quaes  uma  reclamava  a  sua  dynastia,  sob  pena  de  fazer  voar 
o  throno  em  estilhaços,  e  a  outra  timbrava  em  conservar  a 
investidura  recdbida  de  cabeça  do  império. 

Em  Londres  descortinava-se  claro,  e  era  de  Londres 
que  Souza  aconselhava  (i)  e  reputava  mesmo  inadiável  a 
vinda  do  Principe  Real  para  o  velho  Reino,  ficando  em- 
bora na  America  Dom  João  VI  para  prevenir  qualquer  re- 
volta análoga  á  das  colónias  hespanholas;  por  outra,  "resta- 
belecendo-se  a  authoridade  de  S.  M.  em  Portugal  sem  a  pôr 
em  perigo  no  Reino  do  Brazil."  Uma  situação  forte  nasce- 
ria de  tal  combinação  e  seria  igualmente  vantajosa  ás  duas 
partes,  preparando  a  futura  consolidação  da  união  por  "hum 
systema  de  governo  ad justado  ao  espirito  do  século"  e  re- 
pousando sobre  uma  reciprocidade  de  interesses.  A  beneficio 
da  sua  própria  conservação,  a  dynastia  teria  comtudo  que  se 
dividir. 


(1)    Officio  a  Thomaz  António  de   8  do  Dezembro  de   1820  no 
Arch.   do   Min.   das  Rei.   Ext. 


CAPITULO  XXVIII 


REI  OU   príncipe  ?-THOMÂZ  ANTÓNIO  E   PALMELLA 


Os  acontecimentos  de  Portugal,  uma  vez  divulgados, 
produziram  no  Brazil,  juntamente  com  a  effervescencia 
liberal,  consequência  d'aquelle  movimento  constitucional, 
um  alastramento  da  tendência  emancipadora  e  separatista. 
Como  é  natural,  deu  este  conflicto  de  idéas  origem  a  uma 
quantidade  de  alvitres,  planos  e  soluções  para  regular  a  si- 
tuação, que  se  agitavam  em  cheio  quando  a  23  de  Dezembro 
chegou  ao  Rio,  tendo  deixado  Lisboa  nos  primeiros  dias  de 
Novemhro,  uma  testemunha  ocular  da  revolução,  pessoa 
dotada  de  bastante  experiência  do  mundo,  moderação  de 
animo  e  superioridade  de  intelligencia  para  julgal-a  com 
frieza  e  lucidez.  Era  esta  pessoa  o  conde  de  Palmella,  com 
cuja  altiva  indifferença  e  fleugmatico  charuto  nos  familiari- 
zou o  auctor  do  Portugal  Contemporâneo^  e  que  coube  a  uma 
illustre  escriptora  portugueza  primeiro  evocar  n'uma  excel- 
lente  obra  com  aquellas  feições,  e  os  seus  traços  alli  olvida- 
dos de  sympathia,  ternura,  dedicação  e  gravidade. 

Viera  Palmella  da  Europa  acalentando  um  projecto  de 
monarchia  cartista,  cm  que  fosse  a  nobreza  o  elemento  pre- 


1060  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ponderahte  como  na  Inglaterra,  e  machinando  com  insistên- 
cia a  restituição  do  Rei  á  sede  da  velha  corte  portugueza, 
emquanto  permanecia  o  herdeiro  da  coroa  no  Brazil  e  ahi 
proseguia  o  regimen  em  vigor,  com  algumas  variantes  mais 
de  forma  que  de  fundo. 

Thomaz  António  pensava,  e  não  mal,  o  opposto:  que 
Dom  João  VI  é  quem  devia  ficar  no  Brazil  e  Dom  Pedro 
ir  para  Portugal,  porque,  uma  vez  desunido,  o  Reino  ameri- 
cano não  mais  se  tornaria  a  ligar  ao  europeu,  ao  passo  que 
este,  si  por  acaso  levasse  o  desvario  ao  ponto  de  proclamar-se 
republicano,  depressa  volveria  á  sã  razão,  não  só  coagido 
pela  Santa  Alliança,  cuja  intervenção  então  se  imporia,  como 
principalmente  movido  pelo  receio  da  sua  annexação  pela 
Hespanha,  faltando-lhe  a  melhor  garantia  da  própria  inde- 
pendência com  o  inevitável  repudio  pela  Inglaterra  de  uma 
demagogia. 

Já  lhe  não  merecia,  a  Thomaz  António,  particular 
preoccupação  a  hypothese,  tão  aventada  antes,  da  substitui- 
ção da  famâlia  de  Bragança  pela  de  Cadaval,  apezar  de  em 
tempo  ter  o  governo  do  Rio  feito  pelo  marquez  de  Marialva 
obstar  á  ida  do  duque  de  Luxemburgo  a  Portugal,  para  assis- 
tir com  grande  espavento  ao  casamento  do  sobrinho,  e  d'est'e, 
quando  se  deu  a  revolução  de  1820,  alardear  muito  constitu- 
cionalismo e  dar  mostras  de  querer  representar  em  Lisboa  o 
papel  que  em  Pariz  estava  desempenhando  com  rara  habili- 
dade o  Duque  d'Orléans. 

Arcos,  com  suas  pretenções  a  valido  do  joven  Principe 
herdeiro,  ia  no  encalço  de  Palmella  e  aconselhava  a  regência 
no  Rio  de  Janeiro,  da  qual  elle  se  constituia  em  mente  a 
principal  figura  porque  não  previa  que  já  representaria  o 
personagem  um  nacional,  cujo  valor,  pelo  menos  de  scien- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL  1061 

tista  e  de  homem  de  caracter  (i),  não  escapara  a  Thomaz 
António,  que  o  quizera  ligar  á  alta  administração  do  novo 
Reino. 

Qualquer  que  fosse  a  combinação,  as  circumstancias 
estavam  todas  convergindo  para  a  scisão  do  Estado  elevado 
á  dignidade  de  parte  integrante,  por  direito  próprio,  da  mo- 
narchia,  quando  foi  preciso  dar  a  Portugal,  afim  de  que  hom- 
breasse  em  Vienna  com  as  potencias  maiores,  o  status  corres- 
pondente, pelo  menos  territorial.  Não  as  enxergava  comtudo 
Palmella  com  sua  habitual  agudeza,  quando  desembarcava 
no  Rio  no  firme  propósito  de  reconduzir  o  Rei  para  Lisboa. 

Dous  motivos  o  impelliam  para  isso.  Primeiramente, 
estava  capacitado,  e  não  se  pode  dizer  que  sem  justeza,  de 
que  no  estado  de  confusão  material  e  moral  na  qual  deixara  o 
Portugal  revolucionário  de  1820  —  confusão  mais  real 
mesmo  do  que  apparente,  porque  na  superficie  contrastava 
até  a  serenidade  portugueza  com  a  agitação  hespanhola  — 
somente  a  presença  do  Rei  em  pessoa  teria  prestigio  suffi- 
ciente  para  impor  ao  movimento  a  precisa  orientação,  a  um 
tempo  liberal  e  conservadora. 

Depois,  Palmella  nutria  a  justificada  ambição  de  assu- 
mir com  a  nova  ordem  de  cousas  uma  importância  politica 
mais  saliente  ainda:  tinha  para  tanto  a  consciência  de  ver 
longe  'n'uma  sociedade  de  myopes,  de  possuir  sangue  frio  n*um 
meio  em  que  geralmente  se  andava  ás  tontas.  Semelhante  im- 


(i)  o  encarrogado  de  nofíocios  norto-amoricano  Condy  Raguot, 
cuja  correspondoncia  e  actividado  indicam  ter  sido  um  diplomata  sagaz 
e  trefego,  escrevendo  para  Washington  em  1H22  sobre  José  Bonifácio, 
fazia  plena  justiça  ao  seu  merecimento  intellectual.  mas  negava-lhe 
dotes  de  estadista  e  sobretudo  capacidade  de  administrador.  No  dizer  do 
liaguet,  o  Patriarcha  da  Independência,  sendo  um  mineralogista  no- 
tável, não  estava  politicamence  á  altura  dos  eventos  a  que  por  assim 
dizer    presidiu.    (Arch.    da    Emb.    Americ.   no   Brazil) . 


1062  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

portancia,  não  a  desejava  elle  porém  revestir  no  tablado  do 
Rio  de  Janeiro:  aspirava  ao  scenario  da  velha  Europa,  onde 
deixara  sua  família,  suas  amizades,  suas  relações,  seus  hábitos, 
tudo  quanto  reclamava  sua  natureza  acostumada  á  boa  con- 
vivência cosmopolita,  a  circulos  polidos  em  que  era  conhecido 
e  bemquisto,  e  sem  os  quaes  não  comprehendia  sequer  a 
existência. 

Era  o  caso  de  dizer-se  de  Palmella  o  que  sobre  os  ou- 
tros fidalgos  elle  escrevia  á  esposa:  "Todos  choram  as  ce- 
bolas do  Egypto,  e  voltam  a  cara  para  o  Oriente"  (i).  Só 
Dom  João  VI,  verdade  seja,  não  tinha  saudade  alguma  das 
cebolas.  Entendia  que  o  passado,  passado;  á  Terra  da  Pro- 
missão chegara  quando  puzera  o  pé  na  exótica  Bahia,  e  a 
nada  de  melhor  voava  sua  ambição  do  que  ao  ramerrão  na 
quinta  da  Boa  Vista. 

Também  Palmella,  malleavel  como  sempre  se  mostrou, 
sabendo  ageitar  as  idéas  ás  circumstancias,  logo  mudou  de 
plano  para  não  perder  tempo  com  o  que  se  lhe  afigurou 
summamente  improvável,  e,  tomando  ares  de  bom  cortezão, 
adheriu  ao  parecer  dos  que  suggeriam  ser  preferivel  a  con- 
tinuação do  Rei  no  Brazil  e  a  mudança  para  Portugal  do 
Principe  Real.  A  ida  de  um  ou  de  outro  era  todavia  for- 
çosa e  inadiável,  e  o  ministro  dos  negócios  estrangeiros  a 
instigava  no  sincero  intento  de  poder  organizar-se  e  mode- 
lar-se  o  movimento  constitucional:  não  a  aconselhava  como 
Thomaz  António — nas  suas  palavras  o  mais  inepto  e  o  mais. 
lisonjeiro  de  todos  os  homens  (2) — para  ser  apenas  levada  a 
effeito,  como  recompensa,  depois  de  garantida  a  manutenção 


(1)  D.   Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho,  Vida  do  Duque  de  Pal- 
mella   {Documentos) . 

(2)  D.     Maria    Amália,    06.    cit.     [Documentos.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1063 

das  regalias  reaes.  Como  si  fosse  possivel  prescrever  a  preser- 
vação da  essência  do  absolutismo  por  meio  de  negaças  ás  ar- 
degas  Cortes  de  Lisboa  ! 

O  projecto  de  Thomaz  António,  desenvolvido  ou  an- 
tes embuça'do  na  carta  ao  Rei  de  28  de  Outubro  de  1820 
(i),  dia  em  que  o  Rei  se  fechou  para  redigir  sua  primeira 
resposta  á  revolução,  na  qual  seguio  ponto  por  ponto  o  pare- 
cer de  Thomaz  António  ou  quiçá  o  seu  próprio  parecer 
echoado  em  Thomaz  António  —  o  que  explica  que  não  fosse 
preciso  convidal-o  a  repetir  verbalmente  o  que  já  escrevera 
—  era  de  uma  doblez  singela :  consistia  em  equilibrar-se  na 
maromba,  nada  decidir  de  definitivo  até  ver  no  que  davam 
os  acontecimentos. 

As  Cortes  podiam  ir  funccionando  á  moda  antiga,  como 
cortes  consultivas,  ratificando  a  coroa  o  que  bem  lhe  approu- 
vesse  e  deixando  repousar  o  resto,  em  estado  de  aspiração 


(1)  E]-a  o,sita  carta  resposta  a  uma  apostilla  do  27  ao  parecer 
do  mesmo  Thomaz  António  de  26.  pei-gimtando  o  Rei  si  deveria  ac- 
crescentar  na  sua  communicação  ás  palavras  "hir  hum  dos  Senhores" 
estas:    "he   porém   o   mais   provável   o   hir   o   Príncipe   Real".   Escrevia 

Thomaz  António:  " As  cortes  são  illegaes,  e  he  necessário  dizer 

que  o  sao,  para  que  ellas  não  digão  aos  Povos  que  tem  autoridade  de 
dar  leis  ao  Trono.  Porém  estão  convocadas,  e  faria  maior  mal  o  dis- 
solvellas,  logo  he  necessário  tãobem  autorizai  las,  para  representarem 
tudo  o  que  for  bom,  e  para  ser  sancionado  o  que  não  for  contrario 
aos  costumes  e  Leis  do  Reino.  Não  ha  outro  modo  de  fazer  bom,  este 
meio  perigoso  a  que  se  recorreo  pelos  (Governadores.  Ora  o  grande 
ponto  he  a  sede  da  Monarchia  se  hade  estar  em  l'ortugal  ou  no  Brazil. 
Não  ha  ncinhum  meio  senão  estar  huma  Pessoa  Real  em  ca^da  hum 
destes  Continentes.  E  na  Carta  Regia  se  lhe  diz  que  terminadas  as 
contes  com  Dignidade,  hade  V.  M.  fazello  assim.  Ksta  Promessa  em 
geral  vai  dirigida  a  concluir  cortes  em  l)em  :  mas  se  fosse  explicada 
de  hir  V.  M.,  ou  o  Sucessor  do  Reino,  não  terminava  nada.  poi-que 
obtulo  esse  grande  isento,  tratavão  logo  do  segun'do,  isto  he,  nova 
Constituição.  E  V.  M.  perderia  o  penhor  que  tem  na  sua  Mão',  para 
que  elles  não  intentem  mudar;  que  he— se  vos  conservaes  a  mesma 
Obediência  ao  Rey,  hirei  então  estar  entre  vos.  E  para  que  elles  en- 
tendão  que  esta  promessa  se  verifica  com  vantagem  ;   he  que  he   útil 


1064  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

latente,  até  fermentar.  Si  as  Cortes  procedessem  bem,  isto  é, 
si  se  mantivessem  dentro  d'essa  digna  reserva,  o  Rei  as  pre- 
miaria com  um  ar  de  sua  graça.  Quando  não.  .  .  a  corte 
quedar-se-hia  no  Rio  de  Janeiro,  e  o  velho  Reino  que  con- 
tinuasse a  aguentar  a  interdicção,  como  um  pai  pródigo  que 
fez  grandes  loucuras  e  está  afinal  debaixo  da  tutela  do  filho 
mais  sensato.  Para  Lisboa  iria  em  segundo  caso  o  Principe 
Real,  rapaz  impetuoso,  mais  fácil  de  infundir  respeito  do 
que  o  velho  Rei  manso  de  São  Christovão;  em  terceira  hy-' 
pothese  o  Infante,  uma  criança  estouvada,  e  em  ultimo  caso 
ninguém.  O  projecto  do  desembargador-ministro  era  infan- 
til, e  bem  o  presentia  Dom  João  VI  ao  querer  ser  mais  pre- 
ciso, elle  que  era  tão  minucioso  e  meticuloso  no  exame  dos 
negócios  públicos,  e  que  comprehendia  a  utilidade  de  satis- 
fazer o  povo  portuguez  com  a  segurança  da  ida  próxima 
de  alguém  da  familia  real,  mesmo  para  que  se  não   fosse 


dizerlhe — mas  sempre  estará  tãobem  liuma  Pessoa  Real  no  Brazil — 
pois  bem  vem  que  o  Brazil  não  hade  já  agora  ser  Colónia  ;  e  descon- 
fiarão sempre  que  se  deixará  o  menos  pelo  mais  :  e  pai-a  socegarem  lie 
precizo  que  contem  com  a  imião  do  Reino  do  Brazil. 

V.  M.  vê  a  variedade  de  votos,  huns  que  seja  V.  M.  vá  ;  outros 
o  Sereníssimo  Sr.  Principe  Real ;  outros  o  Senhor  Infante  :  porém  esta 
jornada  não  he  tratando  da  sede  da  Monarchia,  para  o  fim  das  cortes, 
como  trata  a  Carta  Regia  :  he  uma  jornada  para  acudir  ao  incêndio, 
e  dirigir  o  progresso  das  cortes.  Escrevendo  o  officio  (á  Regência  do 
Reino)  pareceo  me  que  uno  a  variedade  de  votos  em  dizer  que  huma 
das  Pessoas  Reaes  vai  agora,  e  se  manda  aprontar  a  Esquadra.  Po- 
rém como  não  he  prudente  hir  para  huma  Casa  que  está  incendiada, 
fazse  depender  a  partida  de  noticias  que  cheguem  de  mais  tranquili- 
dade e  isto  mesmo  para  incentivo  de  se  tranquilizarem.  Não  me  pa- 
rece bem  nomear  nenhuma  Real  Pessoa,  porque,  he  prometter,  e  depois 
não  se  pode  faltar ;  e  nomear  hum,  he  excluir  os  mais ;  o  que  não 
convém.  Estando  pronta  a  Esquadra,  mande  V.  M.  qual  lhe  parecer ; 
mas  não  prometa  agoi-a,  va  negociando  a  Paz  com  o  Penhor  que  tem 
em  seo  Poder.  Bem  conhece  V.  M.  que  eu  não  trato  aqui  de  dar  hum 
voto ;  trato  de  formalizar  hum  Despacho  segundo  os  votos,  e  segundo 
o  que  V.  M.  ordenar."  (Códice  autographo  na  Bibliotheca  Nacional, 
que  figurou  na  Exposição  de  Historia  do  Brasil;. 


i 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1065 

aquelle  acostumando  ao  desrespeito  dynastico  na  atmosphera 
de  sedição  de  Lisboa  ( i ) . 

Thomaz  António  tinha  razcão  em  que  para  o  seu  jogo 
de  equilibrios  era  condição  indispensável  a  união  dos  dous 
Reinos,  pois  sem  a  certeza  d'ella  as  Cortes  perderiam  as  es- 
tribeiras e  chegariam  onde  não  convinha  absolutamente  que 
fossem,  dando  leis  ao  throno,  posto  que  conservando  esta 
antigalha,  visto  que,  pelo  receio  da  Santa  Alliança  mais  que 
tudo,  ellas  eram  liberaes,  não  demagógicas. 

O  espantalho  da  supremacia  da  ex-colonia,  dentro  mes- 
mo da  união,  mediante  a  assistência  n'ella  do  monarcha  pro- 
duziria, no  entender  do  conselheiro  favorito  de  Dom  João  VI 
um  effeito  salutar  no  afastar  as  fantasias  politicas  e  ageitar  a 
insubordinação  legislativa  «'um  certo  molde,  não  muito  dif- 
ferente  do  existente.  A  questão  da  sede  da  monarchia  devia 
portanto  ficar  em  aberto  até  ulterior  resolução,  dependente 
da  attitude  das  Cortes,  a  qual  podia  não  merecer  sequer  a 
vinda  para  o  seu  seio  de  uma  das  pessoas  reaes,  já  não  f al- 
iando do  Rei. 

Assim,  Lisboa  somente  readquiriria  a  sua  passada  posi- 
ção de  capital  do  império  luzitano,  si  o  constitucionalismo 
continuasse  incubado.  Também  em  Londres  o  ministro  Souza 
tivera  a  idéa  de  pedir  a  lord  Castlereagh  que  insinuasse  ao 
governo  revolucionário  de  Portugal,  que  as  potencias  euro- 
péas  não   reconheceriam   outras   Cortes   que  não   fossem   as 


(1)   Uma  das  apostillas,  de  11  de  Fevereiro  de  1810,  no  códice 

cit.  encerra  a  seguinte  máxima   real   de  governo :   " só   me  pede 

que  sustente  a  sua  autoridade,  o  que  iie  meu  sistema  pois  de  outro 
modo  não  se  sustentando  as  autoridades  publicas  tudo  vai  mal."  E 
elle  dava  o  exemplo  da  applica(.-ão  aos  negócios  do  Estado  e  da  com- 
postura combinada  com   a  deferência  â  opinião. 


1066  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

convocadas  segundo  as  leis  antigas  da  monarchia  nacional, 
não  se  tolerando  á  Hespanha  ingerência  alguma  mesmo  in- 
directa, como  modelo  constitucional,  sob  pena  de  por  seu 
lado  invocarem  as  nações  alliadas  direito  igual  de  inter- 
venção. 

Na  forma  do  costume  respondeu-lhe  Castlereagh  que 
si  as  potencias  em  questão  dessem  o  passo  reclamado,  pre- 
julgariam  as  decisões  do  soberano  portuguez,  e  a  Inglaterra 
em  particular  incorreria  na  costumada  censura  de  accen- 
tuar  em  cada  occasião  o  seu  predominio  sobre  o  Reino  unido. 
Tanto  mais  dispensável  lhe  parecia  o  alvedrio  quanto  todas 
as  mudanças  havidas  e  por  haver  estavam  dependentes  da 
approvação  real,  inclusive  a  natureza  das  Cortes. 

O  ministro  de  estrangeiros  britannico  entendia  firme- 
mente que  tudo  se  tinha  a  lucrar  com  tornar  bem  patente 
aos  olhos  dos  Portuguezes  que,  nas  concessões  que  formu- 
lasse. Dom  João  cedia  tão  somente  ao  impulso  do  seu  cora- 
ção, e  não  a  influencias  estranhas.  O  meio  era  único  de  per- 
suadil-os  a  acceitarem  o  systema  de  governo  que  o  Rei  "lhes 
propuzer  e  no  qual  S.  M.  naturalmente  conciliará  a  sua 
•dignidade  com  o  bem  dos  seus  povos,  e  a  opinião  publica  da 
Europa"  (i).  A  Europa  não  pedia  outra  cousa  e  com  agrado 
receberia  qualquer  ajuste  em  taes  condições. 

Palmella  via  as  cousas  differentemente  e  melhor  do  que 
Thomaz  António,  cujo  espirito  andava  tão  turvado  pela  at- 
mosphera  palaciana  que  lhe  faltava  até  a  coragem  de  nomear  a 
pessoa  real  que  devia  embarcar  para  Portugal,  no  intimo 
por  temor  de  descontentar  as  demais,  entre  as  quaes  era 
grande  e  a  propósito   de   tudo  a  ciumaria,   e  mormente   de 


(.1)    Con-osp.    de    Londres,    1820-1821,    no    Arch.    do    Min,    das 
Rei.   Ext. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1067 

contrariar  o  pensamento  secreto  do  seu  Rei.  Para  o  ministro 
dos  negócios  estrangeiros  era  muito  pelo  contrario  preciso 
abordar  a  situação  com  franqueza  e  energia,  ceder  para  ga- 
nhar, conceder  para  salvar,  pôr-se  de  accordo  com  as  idéas  já 
communs  do  tempo  para  não  incorrer  no  exaggero  d 'estas 
mesmas  idéas. 

Dom  João  VI  também  percebia  —  Palmella  o  diz  mes- 
mo na  sua  correspondência  familiar  (i),  —  que  tal  trata- 
mento era  o  mais  acertado,  e  ás  cataplasmas  de  Thomaz 
António  antepunha  com  sua  lettra  esta  objecção  de  fraca 
orthographia  e  syntaxe,  mas  de  senso  commum:  "Lendo 
a  carta^  (a  Carta  Regia)  vejo  que  a  minha  ida  e  de  meus 
filhos  ficão  dependentes  do  bom  comportamento  que  tiverem 
apezar  que  no  officio  particular  (2)  se  lhe  fala  pozitiva- 
mente  mas  no  publico  não  aprece  pois  julgo  que  esta  carta 
será  impreca." 

Respondia  logo  o  primeiro  ministro  sem  adduzir  razões 
convincentes,  apenas  insistindo  com  pueril  teimosia  na  sua 
primeira  opinião:  "Não  pode  haver  contradição,  pois  na 
Carta  Regia  se  estabelece  a  promessa  para  sempre  de  estar 
huma  Pessoa  Real  em  Portugal,  e  outra  no  Brazil,  desde 
que  as  cortes  terminarem  dignamente:  como  he  o  voto  do 
Mons.r  Almeida  e  outros.  No  officio  se  trata  de  agora  e  que 
vai  Pessoa  Real,  como  diz  a  Carta  Regia,  e  segundo  o  in- 
teresse permittir:  mas  na  esperança  de  virem  noticias  mais 
agradáveis.  Eu  entenderia  melhor  não  se  aumentar  mais 
nada;  nem  especificar  hum  ou  outro  dos  Senhores:  pois 
V.  M.  o  penhor  que  tem  para  conservar  o  Reino  he  a  sua 

(1)  D.  Maria  Amália,  06.  cit. 

(2)  O  Officio  roal  fura  .1  Itegeneia,  cuja  deposição,  seguida  da 
acc]amar;ao  da  Junta  revolucionai-ia,  só  a  12  do  Novembro  chegou  ao 
conhecimento  de  Dom  João. 


1068  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Pessoa,  e  a  Successão  Real,  e  por  este  penhor  he  que  os  pode 
obrigar  a  acomodarem-se.  Por  isto  não  tem  que  prometer 
francamente  porque  perde  a  força  dos  meios  que  tem.  Elles 
pedirão  de  lá,  que  he  melhor  três  Mercês  do  que  huma"  (i). 

N'isto  se  passava  o  tempo  e  ninguém  seguia  para  Lisboa, 
nem  se  resolvia  cousa  alguma  acerca  da  constituição  a  ou- 
torgar, que  Palmella  encarecia  e  Thomaz  António  abomi- 
nava. 

Diversos  dos  de  Thomaz  António  também  eram,  já  se 
sabe,  os  pareceres  de  Arcos.  Na  correspondência  e  despachos 
com  o  Rei  enfunavam-se  as  rivalidades,  e  as  facções  e  os 
cortezãos  beliscavam-se  a  bico  de  penna  e  alfinetadas  orató- 
rias. Na  phrase  de  Thomaz  António  o  conde  dos  Arcos 
"nada  dizia  de  razoens,  dizia  que  não  porque  entendia  que 
não,  e  contentava-se  com  impugnar."  Elle  sim,  por  mais  in- 
comprehensivel  que  nos  possa  hoje  parecer  o  apoio  em  tal 
fundamento,  baseava-se  na  opinião  publica  para  procurar 
desviar  os  perigos  e  dar  conselhos  sãos,  próprios  a  serem 
seguidos   (2)  . 

E'  verdade  que  Thomaz  António  partia  sempre  do  prin- 
cipio da  preservação  da  regia  auctoridade  (3),  dando  porém 
n'esta  ordem  de  idéas  um  parecer  mais  definido  do  que  podia 
agradar   ao   temperamento   opportunista   do   monarcha.    Por 


<í)    Co(i.   oit.  na  Bibl.  Nac. 

(2)  "V.  M.  bem  vê  que  entre  hum  parecer  que  não  diz  nada 
nem  tem  nada  que  dizer;  e  enti-e  outro  que  se  funda  na  opinião  pu- 
blica,   e   que   desvia    o   perigo,    deve    seguir   este (Carta    de    2    de 

DezemílíTO  de  1820,  no  Cod.    cit.   na  Bibl.    Nac.) 

(3)  " e  não  aiproveitará  nada  mandar-se  dizer,  que  V.   M. 

cede  nem  lium  ápice  da  sua  Real  Autoridade.  Se  cede  para  repartir 
eom  a  Nobreza,  virá  a  perderse  toda,  tirando  o  Povo  tudo  ;  o  meio  do 
conservarse  a  Nobreza,  he  conservar  os  uzos  do  Reino,  e  o  Soberano 
he  que  a  defende.  Mas  o  mais  necessário  he  para  tranquilizar  o  Brazil  : 
mas  este  não  se  tranquiliza  por  ceder  dfe  autoiridade,  mas  sim  por  de- 
clarar que  quer  emendar  abusos."  (Carta  de  14  do  .Janeiro  de  1821, 
no  Cod.  cit.,  ihnlcm.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1069 

feitio  de  espirito  Dom  João  VI  gostava  sempre,  nas  crises  gra- 
ves, de  agarrar-se  a  illusões,  cerrando  propositalmente  os 
olhos  á  realidade  quando  lhe  parecia  feia,  e  fiando  do  futuro 
— recurso  supremo  dos  optimistas — a  correcção  do  presente. 

A  revolução  n'aquelle  momento  ostentava-se  no  Porto  e 
em  Lisboa  e  rosnava  em  todo  o  Brazil :  que  importava  ?  A  In- 
glaterra declarara  que  não  reconheceria  a  Junta  rebelde  sem 
que  elle  primeiro  a  reconhecesse,  e  servira  isto  para  lisonjear 
seu  amor  próprio  e  fazer  renascer  suas  esperanças,  como  de- 
via por  certo  ter  servido  para  abaixar  a  grimpa  dos  taes  libe- 
ralões. 

Não  havia  em  Dom  João  VI  indolência  da  intelligencia, 
sim  indolência  da  vontade.  Nas  notas  á  margem  das  cartas  e 
memoranda  dos  seus  ministros,  o  Rei  quasi  uniformemente 
respondia  só  com  relação  aos  pequenos  negócios :  os  de  maior 
monta  ficavam  sempre  para  mais  tarde,  como  elle  dizia  para 
mais  madura  reflexão,  de  facto  para  um  debate  anodino  no 
despacho,  em  que  invariavelmente  se  protelava  a  solução  das 
questões  mais  árduas  ou  mais  espinhosas.  De  ordinário,  o  sobe- 
rano não  compromettia  sua  opinião  ( i )  :  fazia-a  vingar  pelo 
aferro,  não  pela  imposição.  As  cotas  que  nos  foram  conser- 
vadas do  seu  punho  nunca  passam  de  generalidades  ambi- 
guas  e  formulas  dilatórias,  de  um  governante  que  andasse 
ás  apalpadellas,  dos  vejãj  veremos,  faça  o  que  achar  melhor, 
diga-me  o  que  devo  dizer  ao  Conde.  Era  como  si  Palmella 
fosse  o  importuno  que  no  Rio  representava  o  governo  bri- 
tannico   mais   permanentemente. 

Comtudo  um  graphologo — apezar  de  sabermos  de  quan- 
tos enganos  é  capaz  — desdenhando  o  fundo  pela  forma,  no- 


(1)    " dp   bocca   reflecionarei   melhor  sobre   o   objecto   era 

quostão",   respondia  de   urna   voz  a    Thumaz   António,   "pois  a   sua  opi- 
nião sempre  me  faz  pezo." 

D.  J.  —  67 


lOlO  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

taria  na  calllgraphia  real  Indícios  de  um  instincto  dominador. 
Por  effeito  seguramente  da  raça,  da  tradição,  de  uma  dispo- 
sição innata  de  auctoridade,  aquella  lettra  em  pé,  si  bem  que 
pouco  attrahente  como  a  sua  pessoa,  é  ampla  e  regular, 
firme  e  pessoal.  A  acredital-a,  de  magestatica  tinha  Dom 
João  VI  a  consciência  como  tinha  a  magnanimidade. 

Em  fins  de  Janeiro  de  1821  a  partida  de  Dom  Pedro  fi- 
cara absolutamente  decidida  em  despacho,  e  só  restava  a 
Dom  João  convencer  o  filho  da  necessidade  de  embarcar  para 
Lisboa,  arredando-o  assim  das  fantasias  ambiciosas  que, 
insuffladas  por  vários  patriotas,  o  andavam  embalando  e 
levando  a  pretender  concretizal-as  no  vasto  paiz  onde  ti- 
nham decorrido  sua  infância  e  sua  adolescência.  Escrevendo 
ao  Rei  no  dia  31,  dizia  Thomaz  António  ter  pensado  muito 
no  negocio,  que  estava  de  pedra  e  cal,  e  respeitosamente 
apresentava  o  conselho  de  realizar  logo  sua  entrevista  com  o 
Principe  herdeiro  no  intuito  de  lhe  apressar  o  embarque.  ( i ) 


(1)  " hir  o  Principe  Real  a  ouvir,  sal>er  as  queixas,  re- 
mediar o  que  for  segundo  as  Leis,  e  propor  a  S.  M.  as  emiendas  ou 
reformas — e  segunda  parte,  nada  falar  de  Constituição,  e  tudo  de 
melhoramentos,  e  conservar  a  Autoridade  Ueal  toda  int<^ira  para 
V.  M.  e  seus  successores.  Como  nisto  cada  lium  cedeu  da  metade  da 
sua  opinião  ;  e  esta  concordado,  esta  em  termos  d'e  V.  M.  assim  o  de- 
cidir. Seguese  pois  falar  V.  M.  ao  Principe  Real :  por  mimtos  motivos 
— 'para  V.  M.  ouvir  o  Imediato  Sucessor  antes  de  decidir — ^para  que 
elLe  diga  se  voluntariamente  quea-  fazer  esta  acção  que  he  de  grandes 
consequências — e  em  terceiro  lugar,  porque  he  acção  de  amizade  o 
de  confidencia  entre  V.  M.  e  'elle.  Pode  V.  M.  ter  a  certeza  que  em  fa- 
larlihe,  faz  a  coisa  que  será  para  elle  mais  lizongeira  ;  e  para  o  R'eilno 
todo  he  o  mais  saudável  ser  esta  medida  ajustalda  emtre  V.  M.  e  o 
Principe.  Só  pode  repugnar  a  hir  sem  a  Princeza ;  e  nisso  st»  pode 
ceder,  pois  o  ponto  principal  para  socego  do  Brazil,  e  para  conservar 
o  respeito  da  Monarchia  na  Europa,  he  ficar  no  Rio  de  Janeiro  o 
Trono  ;  que  he  V.  M.  e  a  sucessão  directa  da  Coroa.  E  por  isso  em 
ficando  os  Netos  de  V.  M.,  ou  dos  dois,  hum  qu^e  ha  outro  que  se  es- 
pera, o  que  for  o  sucessor ;  he  o  que  basta  para  o  essencial Esta 

conferencia  que  V.  M.  tiver,  será  muito  gloriosa  para  V.  M.  e  mostra- 
rá a'o  Mundo  que  a  Vontade  de  V.  M.  he  toda  o  bem  dos  seus  Vassal- 
ios.   (Cod.  cit.  na  Bibl.  Nac.) 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZTL  1071 

Para  o  conselheiro  valido,  o  Brazil  era  um  terreno  onde 
poucas  sementes  das  novas  idéas  tinham  sido  lançadas,  por- 
tanto o  que  permittia  residência  mais  fácil  e  agradável  a 
um  monarc^ha  absoluto;  além  de  ser  uma  terra  quasi  toda 
por  desbravar  e  de  recursos  fartissimos,  a  qual  convinha  iso- 
lar do  contagio  da  peste  da  emancipação  grassando  nas  coló- 
nias hespanholas  e  á  maior  parte  já  tendo  assegurado  a  inde- 
pendência. Para  conseguir  tal  fim  era,  porém,  indispensável 
permanecer  o  Rei  no  Brazil  e  permanecer  igualmente  um  dos 
netos,  o  que  tivesse  de  herdar  a  coroa. 

A  resposta  de  Dom  João  VI  á  margem  é  evasiva  e  timo- 
rata como  de  costume,  quando  se  tratava  de  affrontar  opi- 
niões alheias  e  de  fazer  prevalecer  o  próprio  sentimento  occul- 
to:  "Até  este  momento  ainda  não  falei  a  meu  Filho  quero 
que  me  diga  se  esta  na  mesma  opinião  diga-me  o  que  lhe 
devo  dizer  e  se  ouver  replica,  o  que  lhe  devo  responder." 
Alguns  dias  depois,  a  4  de  Fevereiro,  já  Dom  João  annun- 
ciava  ter  recebido  o  voto  do  filho,  com  quem  devia  avistar-se, 
e  de  facto  se  avistou,  na  ilha  do  Governador,  mas  tornava  a 
reclamar  o  parecer  de  Thomaz  António. 

A  10  de  Fevereiro,  como  quem  de  continuo  pergunta  a 
mesma  cousa  até  que  lhe  respondam  como  deseja,  instava 
ainda  o  monarcha  pela  replica  do  seu  ministro,  não  se  fur- 
tando por  fim  Thomaz  António  á  repetição  da  sua  idéa  de 
ida  do  Principe  só  ou  apenas  com  a  esposa,  pois  que  a  11 
accusava  o  Rei  o  parecer  delle  (i).  Desde  8  communicara 
Maler  para  Pariz  estar  resolvida  a  partida  imminente  de 
Dom  Pedro  na  qualidade  de  Condestavel,  ficando  no  Rio 
Dona  Leopoldina  por  se   achar   no  ultimo  mez   de  gravidez, 


(1>  Para  n3o  parecer  ou  mesmo  porque  de  facto  se  não  guiava 
só  pelas  luzes  de  Thomaz  António,  ajuntava  o  Rei  ter  também  pedido 
o  parecer  de  outro   ministro. 


1072  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

segundo  no  dia  7  Informava  uma  nota  de  Palmella  o  barão 
de  Sturmer,  novo  ministro  da  Áustria. 

A  pobre  amorosa  Princeza,  não  se  conformando  com  a 
separação,  tanto  instou  porém  com  o  sogro,  que  este  acabou 
por  annuir  a  que  ella  acompanhasse  o  marido,  depois  do 
parto,  ficando  as  crianças  com  o  avô,  aquella  pelo  menos  que 
encarnasse  as  esperanças  da  dynastia. 

O  governo  britannico,  desanimado  de  conseguir  o  re- 
gresso do  Rei,  mandara  instrucções  instantes  ao  seu  ministro 
Thornton  para  que  alcançasse  pelo  menos  a  partida  do  Prín- 
cipe ou  do  Infante,  e  o  diplomata,  de  accordo  com  Palmella, 
trabalhara  com  tanto  afinco  n'esse  sentido  que  D.  João  tinha 
de  fugir  delle,  ausentava-se  mesmo  do  Rio  para  evital-o  ( i ) . 
Por  sua  vez  Dom  Pedro,  instigado  por  Palmella  e  ambicioso 
de  representar  um  papel  nos  successos  que  se  estavam  desen- 
volvendo, convencido  para  mais  da  urgência  de  oppor  um 
dique  á  maré  revolucionaria  (2),  pendia  agora  para  a  ida 
para  Lisboa  e  começava  a  invocar  seus  titulos  e  responsabili- 
dades de  herdeiro,  pedindo  officialmente  a  opinião  dos  mi- 
nistros (3). 

Dom  João,  porém,  no  intimo  ainda  não  completamente 
decidido  e  politicamente  zeloso  como  todo  monarcha  do  seu 
successor  presum^ptivo,  hesitava  em  dar  o  consentimento  para 
o  embarque — mesmo  depois  de  resolvida  e  até  diplomatica- 
mente annunciada  a  partida — sempre  á  espera  de  alguma 
cousa  que  mudasse  o  rumo  dos  acontecimentos.  Na  Imprensa 


(1)  Carresp.  de  Maler,  no  Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de 
França. 

(2)  "Ao  Príncipe,  ■escrevia  IMaler  (Officio  de  8  de  Fevereiro 
de  1821),  não  falta  ■espirito  natural  nem  ardor  para  fazer  o  bem, 
mas  é  indispensável  que  lhe  dêem  um  conselho  próprio  a  guial-o  e 
sustental-o  nas  circumstancias  imperiosas  que  o  vão  rodear." 

(3)  Corresp.  de  MaJer,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRÂZIL  1073 

Real  era  mandado  compor  um  folheto  em  francez  descre- 
vendo as  vantagens  da  permanência  no  Rio  de  toda  a  familia 
real,  o  qual  distribuiam  agentes  da  policia. 

As  duvidas  não  cessavam  com  o  próprio  embarque.  De 
Londres  discutia  o  ministro  Souza  si  o  Principe  deveria 
singrar  directamente  para  Lisboa  ou  parar  nos  Açores,  para 
d'alli  negociar  com  as  Cortes  e  obter  uma  garantia  de  que  nada 
intentariam  de  mau  ou  de  desairoso  contra  a  sua  pessoa,  dei- 
xando-lhe  inteira  a  faculdade  de  approvar  ou  rejeitar  as  pro- 
posições que  lhe  fossem  feitas. 

E'  de  notar  que  o  diplomata  dava  preferencia  á  viagem 
directa,  em  primeiro  lugar  porque  não  reputava  "tão  viciado" 
o  caracter  nacional  portugucz  que  se  tivesse  desprendido  das 
obrigações  devidas  ao  soberano,  e  em  segundo  lugar  porque 
calculava  a  boa  impressão  que  faria  entre  a  população  em 
geral  aquella  prova  da  confiança  regia.  Não  se  dava  por 
outro  lado  tempo  "aos  individuos  mal  intencionados,  ou 
aos  partidistas  da  Hespanha  para  procurarem  aliciar  os  espí- 
ritos com  o  pretexto  da  demora  para  insinuar  que  Sua  Ma- 
gestade  quer  abandonar  Portugal",  nem  com  o  próprio  facto 
da  negociação  se  inspirava  maior  confiança  em  sua  força  ao 
governo  revolucionário,  e  "mais  animo  para  se  oppor  a 
qualquer  mudança  que  Sua  Alteza  Real  julgue  dever  propor 
no  systema  que  tenha  estabelecido"  ( i ). 

Já  a  attitude  benevolamente  indifferente  da  Inglaterra 
com  relação  aos  acontecimentos  de  Nápoles  augmentara 
muito  a  confiança,  senão  jactância  dos  liberaes  portuguezes, 
incitando,  segundo  Lesseps  (2),  á  adopção  de  uma  Constitui- 
ção muito  mais  radical,  distante  da  franceza  e  da  neerlan- 

(1)  Con-esp,    de    Londres,    1820-1821,    no    Arch.    do    Min.    das 
iRel.  Ext. 

(2)  Corresp.  no  Arch.   do  Min.   dos  Neg.   Est.   de  França. 


1074  DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL 

deza,  que  eram  as  que  de  começo  se  tinham  em  vista  para 
não  suscitar  os  reparos  da  Santa  AUiança. 

A  idéa  da  estação  nos  Açores  nascera  muito  provavel- 
mente do  boato  que  corria  em  Londres  de  que,  tanto  n'esse 
archipelago  como  na  ilha  da  Madeira,  população  e  auctorida- 
des  negavam-se  a  submetter-se  ao  governo  de  Lisboa,  Ainda 
assim  D.  José  de  Souza  não  esquecia  as  ilhas  adjacentes  na 
distribuição  de  fragatas  de  guerra  que  suggeria  a  lord  Cas- 
tlereagh,  destacando-se  da  esquadra  do  Rio  da  Prata  umas 
para  serem  postas  á  disposição  de  Dom  João  VI  no  caso  de 
requerer  tal  soccorro  para  acompanhal-o  até  a  Europa,  e 
mandando-se  outras  para  Lisboa,  ilhas  e,  por  prevenção,  a 
conter  na  obediência  a«  Rei  os  habitantes  também  da  Bahia 
e  Pernambuco  ''no  caso  de  quererem  tentar  agora  uma  nova 
revolução." 

Muito  sensatamente  Castlereagh  só  não  objectou  ao 
primeiro  alvitre,  si  bem  que  lastimando  que  da  estação  do 
Rio  da  Prata  se  tivessem  retirado  as  naus  de  guerra,  e  em 
todo  caso  ponderando  a  conveniência  de  ser  a  pessoa  do  Rei 
transportada  a  bordo  de  uma  embarcação  portugueza,  em- 
pregando-se  os  navios  inglezes  na  conducção  das  pessoas  que 
tivessem  de  acompanhar  a  corte.  O  governo  britannico 
achava  sempre  geito  de  voltar  á  sua  toada  favorita  de  não 
querer  dar  pretexto  a  accusações  portuguezas  contra  a  ascen- 
dência ingleza,  as  quaes  prejudicariam  a  real  causa;  tão 
sincera  sendo  sua  vontade  de  não  comprometter  Dom 
João  VI,  que  vacillara  em  seguir  o  exemplo  da  França  e 
annuir  a  representações  endereçadas  pelos  negociantes  ingle- 
zes de  Lisboa  para  fim  idêntico,  de  se  mandarem  mavios  para 
õ  Tejo  com  o  fim  de  protegel-os  de  quaesquer  eventualidades. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1075 

Semelhante  abstenção  não  devia  portanto  ser  tomada, 
conforme  se  rumorejava  no  Rio,  como  um  indicio  de  prote- 
cção indirecta  á  causa  da  revolução:  desconfiança  injusta, 
commentava  lord  Castlereagh,  a  que  o  gabinete  de  Londres 
não  queria  dar  peso  e  que  o  não  demoveria  do  seu  propósito, 
a  bem  da  realeza  e  do  reino,  de  obstar  a  que  as  grandes  po- 
tencias avocassem  um  papel  activo  nos  negócios  portugue- 
zes  (i). 

D.  José  de  Souza  acabara  aliás  por  se  capacitar  de  que 
a  posição  assumida  pela  Inglaterra  offerecia  a  grande  vanta- 
gem de  poder  o  seu  governo  efficazmente  interpor  uma 
mediação  entre  a  coroa  e  as  cortes,  si  estas  por  acaso  re- 
sistissem á  conciliação  imaginada  pela  coroa.  As  relações 
tradicionaes  entre  os  dous  paizes,  a  sua  mutua  situação  geo- 
graphica  (2),  a  neutralidade  affectada  por  aquelle  governo 
estrangeiro  no  conflicto,  tudo  o  fadava  para  um  papel  pa- 
cificador, que  de  certo  entrava  nas  intenções  da  Grã  Breta- 
nha, mas  que  lhe  não  foi  dado  desempenhar  porque  o  movi- 
mento liberal  de  1820  logrou  por  si  enlaçar  o  throno. 

Pretexto  algum  restou  ao  gabinete  de  Londres  para  in- 
terferências. As  probabilidades  de  uma  cooperação  constitu- 


ir) Corresp.  de  Londres,  1820-1821,  no  Arch.  do  Min.  das 
|Rel.   Ext. 

(2)  Os  soberanos  alliados,  quando  quizessem  intervir,  estavam 
condemnados  a  se  não  poderem  servir  nem  da  via  maritima,  domi- 
nando a  Inglaterra  as  communicações  oceânicas,  nem  da  terresti-í", 
oppondo-se  á  passagem  do  tropas  pelo  seu  território,  quando  não  a 
Fi*ança,  a  Ilespanha  constitucional  que  protestfira  de  antemão  contra 
quaesquer  deliberações  de  Troppau,  destinadajs  a  comprimir  a  liber- 
dade dos  povos.  De  resto  as  intervenções  conjimctas  tinham  muito  de 
aleatório.  A  Áustria  estava  sosinha  em  campo  na  Itália,  sem  que  jul- 
gasse dever  a.iudal-a  materialmente  a  Rússia,  comquanto  a  padroeira 
do  aI)Solutismo.  Por  isso  escrevia  sentenciosamente  de  I/ondres  D.  José 
de  Souza  :  "Considero  a  alliança  da  Inglaterra  a  mais  útil,  mas  estou 
longe  de  desejar  que  nos  deixemos  dominar  por  ella."  (Corresp.  de 
Londres,    1820-1821,   ibidem) . 


1076  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

cional  hespanhola  tenderiam  gradualmente  a  desapparecer 
com  a  quasi  certeza  n'aquella  occasião  de  uma  recusa 
franceza  a  consentir  na  passagem  de  qualquer  exercito 
de  repressão  da  Peninsula  (i)  ;  com  o  retrahimento 
consequente  do  ideal  absolutista  e  dispersão  dos  seus  esfor- 
ços, €  com  as  noticias  todas  a  chegar  do  Brazil,  de  adhesão  das 
varias  provincias  ao  novo  regimen,  juramento  pelo  Rei  da 
Constituição  que  fosse  elaborada  em  Cortes,  e  final  certeza 
do  próprio  regresso  d'€lk. 

Para  não  perder  vasas,  Palmella,  no  depoimento  de 
Thomaz  António,  tinha  ido  entretanto  recommendando  o 
liberalismo  moderado  que  foi  sua  constante  norma  politica. 
Vê-se  pela  carta  de  12  de  Fevereiro  (2)  que  a  essa  data  já 
o  ministro  dos  negócios  estrangeiros  achava  insufficiente 
o  decreto  em  preparação,  que  devia  definir  a  attitude  real, 
e  opinava  pela  convocação,  a  par  e  passo  das  Cortes  portu- 
guezas,  de  Representantes  brazileiros.  O  malfadado  decreto 
n'este  comenos  ia,  voltava,  emendava-se,  discutia-se  si  seria 
accrescentado  ou  não,  si  trataria  ou  não  de  Constituição, 
como  si  ainda  fosse  possível  omittir  a  palavra  que  em  todo  o 
Reino  Unido  estava  abrasando  os  corações  e  erguendo  os 
espiritos,  cultos  e  mesmo  ignaros. 

Intelligente  como  era.  Dom  João  VI  enxergava  que  do 
lado  de  Palmella  estavam  mais  a  razão  e  o  bom  senso,  e  si 
outros  lhe  não  afagassem  a  natural  inclinação  absolutista, 
elle  votaria  por  que  se  cuidasse   logo  na  tal   Constituição, 

(1)  o  ministro  de  estrangeiros  de  Luiz  XVIII,  barão  Pasquier, 
explicava  em  despacho  a  Maler  que,  segundo  ora  publico  e  notório 
mesmo  pelas  palavras  officiaes  na  Camará  dos  Deputados  e  pelas 
declarações  feitas  em  Napol^es,  "a  França  se  propuzera  observar  uma 
estricta  neutralidade  em  todas  as  operações  militares  que  poderiam  ter 
lugar,  e  que  sua  resolução  a  tal  respeito  era  tão  positiva  quanto  a 
da  Inglaterra."    (Arch.  do  Min.  dos  Neg.  Est.  de  França.) 

(2)  Carta  de  Thomaz  António  no  Cod.  cit. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BKAZIL  1077 

que  não  era  afinal  cousa  tão  má  pois  que  o  deixava  Rei  e 
mantinha  a  dynastia.  Thomaz  António  continuara  comtudo 
para  melhor  corresponder  ao  pendor  do  soberano  e  satisfa- 
zer ao  mesmo  tempo  a  própria  tendência,  figurando  de  centro 
da  resistência,  cedendo  quasi  á  força,  aos  bocadinhos,  resmun- 
gando, altercando,  choramingando,  declamando.  ''Huma  vez 

encetada  a  Autoridade  Real — não  se  fartava  elle  de  repetir 

toda  vai  perdida,  e  mais  se  não  pode  suspender  a  torrente." 

Declarar  nulla  a  convocação  das  Cortes  de  Lisboa  teria 
sido  o  seu  gosto,  mas  como  reconhecia  ser  impossivel,  ao  me- 
nos que  servissem  apenas  para  canalisar  as  supplicas  dirigidas 
ao  Rei  e  elevar  as  propostas  sujeitas  á  approvação  real,  afim 
de  não  apparecerem  resoluções  e  leis  como  emanadas  da  sobe- 
rania popular.  A'  Carta  Constitucional  de  Palmella  nutria 
sincero  horror,  bem  como  ao  plano  de  ir  o  Principe  Real 
presidir  as  Cortes,  si  não  fosse  já  tempo  de  ir  para  fazer 
cumprir  a  Constituição  outorgada.  O  que?  dar-se  o  monar- 
cha  sem  mais  por  vencido,  "não  sabendo  ainda  o  que  ha 
de  acontecer  a  favor  dos  thronos?"  Despojar-se  o  Rei,  para 
que  o  não  despojassem,  quando  existia  uma  Santa  AUiança 
dos  Reis  contra  os  Povos?  Submetter-se  assim  aos  revolucio- 
nários, desanimando  o  partido  realista  ?  *'Não  lhe  he  decente 
seguir  os  malvados,  e  desamparar  os  honrados." 

A  7  de  Janeiro  ainda  Thomaz  António  opinara  contra 
a  ida  do  Principe  Real  n'aquellas  condições.  "A  vantagem 
que  Vossa  Magestade  tem  he  o  estar  aqui  a  salvo  toda  a  Fa- 
milia  Real;  a  dependência  que  tem  os  de  Portugal  he  de  pedir 
uma  Pessoa  Real:  portanto  não  se  deve  conceder  emquanto 
não  voltarem  a  obediência."  A  carta  regia  de  20  de  Outubro 
de  1820,  repetia,  somente  promettera  uma  pessoa  real  para 
o  governo  de  Portugal  depois  de  terminadas  as  Cortes,  não 


1078  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

havendo  no  seu  entender  duvida  em  acceitarem-se  alterações 
ás  Ordenações  quanto  á  segurança  de  pessoas  e  de  proprie- 
dades, comtanto  que  fossem  a  exame  no  Brazíl  as  propostas 
das  Côrt€s  (i). 

Na  condescendência,  que  reputava  desistência,  antevia 
um  futuro  horrivel.  **0  que  se  tem  visto  em  outras  nações  he 
que  vencido  o  ponto  de  terem  Constituição,  passam  a  for- 
mar-se  conjuraçoens  contra  os  Soberanos;  e  assim  parece  de 
temer,  pois  vencido  o  ataque  contra  a  autoridade,  segue-se 
o  atacar  a  Pessoa...  O  que  fez  Luiz  XVIII  de  offerecer  a 
Carta,  não  ha  paridade,  pois  elle  a  deu  como  graça  estando 
os  Exércitos  alliados  subjugando  a  França.  Mas  neste  caso, 
é  offerecida  aos  Revolucionários,  que  estão  governando  Portu- 
gal: he  temor,  não  he  graça"  (2)  . 

Inclinar-se  para  os  constitucionaes,  era  renunciar  a 
toda  esperança  de  lucrar  com  a  contra-revolução,  fatal  na 
Hespanha,  e,  peor  ainda,  perder  a  própria  obediência  de  Por- 
tugal, quando  perdessem  sua  ephemera  popularidade  os  intru- 
sos que,  com  effeito,  a  breve  trecho  se  haviam  de  ver  alvo  da 
malquerença  da  grande  maioria  da  Nação.  Nem  viessem  a 
Thomaz  António  com  o  argumento  de  que  satisfazer  os  revo- 
lucionários da  antiga  metrópole,  equivalia  a  adormecer  a  sedi- 
ção na  ex-colonia,  ou  de  que  qualquer  insurreição  brazileira 
com  mais  auctoridade  e  proveito  seria  debellada  estando  a 
monarchia  na  sua  sede  natural. 

*'0  outro  fundamento,  de  que  o  Brazil  depende  de 
Portugal,  e  que  d'alli  se  pode  conservar:  não  me  convence, 
porque  o  Brazil  he  independente,  nenhuma  Potencia  da  Eu- 
ropa o  pode  atacar  com  vantagem.  E  bem  se  vê,  que  a  maior 


(1)    Cod.   cit.,  na  Bibl.   Nac. 
(2j    Cod.  cit.,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1079 

anciã  dos  revolucionários  he  incendiar  o  Brazil;  porque  si 
elle  se  separa,  e  rompe  a  comunicação,  Portugal  tem  de 
decahir.  Elle  preciza  ser  conciderado  como  Hanover  a  res- 
peito da  Grã  Bretanha"  (i).  Queria  o  desembargador  dizer 
que  eram  Portugal  e  Brazil  dous  organismos  diversos  e  até 
dissemelhantes:  n'este  ponto  tinha  perfeita  razão,  e  a  unani- 
midade das  opiniões  quanto  á  permanência  no  Brazil  do  Rei 
ou  do  Principe  obedecia  ao  instincto  de  conservação  que  se- 
gredava o  grande  risco  da  separação, 

Thomaz  António  deu  seus  últimos  conselhos  de  rea- 
cção nas  vésperas  do  motim  fluminense  de  2Ó  de  Fevereiro, 
que  compellio  o  Rei  a  jurar  a  Constituição  a  ser  elaborada 
em  Lisboa  e  determinou  o  regresso  de  toda  a  Corte,  com 
excepção  do  Principe  Real  e  familia.  A  22  assim  estalava  o  seu 
amuo:  "Senhor,  Eu  não  he  que  heide  decidir  sobre  a  Monar- 
chia:  ou  se  manda  imprimir  o  Decreto;  ou  se  remette  ao 
Conde  (Palmella)  que  mande  lavrar  o  alvará  com  as  bazes 
(da  Constituição),  e  que  he  elle  quem  deve  referendar.  Elle 
mandou  dizer  aos  Regimentos  que  Vossa  Magestade  dava 
huma  Constituição  ingleza;  e  quer  por  força  que  se  publi- 
quem as  bazes.  Decida  Vossa  Magestade  isto  porque  eu  não 
o  posso  fazer.  Publique  elle  as  bazes  para  Portugal,  como  lhe 
parecer  bem ;  mas  não  se  embarace  o  que  he  preciso  no  Brazil, 
aqui  não  dá  por  contrato,  he  em  Portugal,  e  faça  para  lá 
outro  Diploma"  (2)  . 

Perante  o  constitucionalismo  apregoado  de  Palmella, 
queria  Thomaz  António  ao  menos  livrar  o  Brazil  d'essa  ma- 
nia nefasta  das  innovações.  O  velho  conselheiro,  que  em  ver- 
dade mais  se  preoccupava  com  o  Brazil,  distinguia  bem  entre 


(1)  Cod.  cit.,  ibidem. 

(2)  Cod.    ci)t.,   ibidem. 


1080  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

os  Reinos  e  apreciava  com  a  experiência  que  a  Palmella  fal- 
tava da  terra — a  elle  faltando  muito  embora  toda  a  perspi- 
cácia de  Palmella — a  diversidade  das  condições  e  das  circum- 
stancias  nos  dous  lados  do  Atlântico.  O  mesmo  methodo  não 
servia  para  ambos  os  paizes :  em  Portujíal  o  essencial  era  suavi- 
sar  o  amor  próprio  e  os  interesses  offendidos;  no  Brazil,  re- 
formar abusos.  Assim  se  corrigiriam  em  todo  o  Reino  Unido 
os  esforços  da  propaganda  subversiva  enlevada  na  Constitui- 
ção, concedendo-se  o  menos  para  se  não  abrir  mão  do  mais. 
Dom  João  fluctuava  ainda  e  sempre.  Do  mesmo  dia  22 
foi  esta  a  sua  resposta:  "Tomaz  António  não  olhou  para  o 
m€U  bilhete  que  lhe  dezia  que  logo  que  mostrasse  a  meu  Filho 
a  minuta  do  Conde  de  Palmella  lhe  remeteria  o  saco  com  a 
minha  resolução.  Agora  me  entregou  meu  Filho  os  papeis 
dizendo-me  que  lhe  parecia  que  para  elle  fazer  alguma  nego- 
ciação seria  milhor  não  publicar  as  bazes  da  constituição, 
mas  Tomaz  António  veria  as  gazetas  (i)  que  me  mandou, 
a  força  em  que  falão  por  constituição,  chegando  a  dizer  que 
esperão  que  todo  o  Brazil  os  siga ;  igualmente  a  força  em  que 
fala  o  Conde  a  ponto  de  pedir  a  sua  demição.  remeto  o 
Decreto    assignado    autorizando-o    para   o    mandar    publicar 

(1)  o  periodismo  politico  só  surgiu  no  Brazil  como  •effeito  da 
revolução  portugueza  de  1820,  IN  o  espaço  de  um  anno  'o  numero  dos 
joi-naes  tornou-se  avultado.  Em  Poi-nambuco  puWicavam-se  a  Aurora 
Pernambucana  e  o  Segnrrcga ;  na  Bahia,  além  da  EdaKlc  de  Ouro,  o 
Scm-anario  Cívico  e  o  Diário  Cotistitucionnl ;  no  Rio,  afora  a  Gazeta, 
o  Amigo  do  Rei  e  da  Nação,  o  Conciliador  do  Reino  Uniéo,  a  Sahhatina 
Familiar,  o  Constitiicional,  o  Reverbero,  a  Malagudta,  e  lo  Diário  do 
Rio  de  Janeiro,  de  Zeferino  Victor  de  Meirelles,  o  chamado  Diário  do 
vititem  pelo  pi^eço,  ou  Diário  da  manteiga,  por  publicar  os  preços  dos 
géneros  alimentícios  e  outras  noticias  commerciaes  em  annuncios. 
(Balbi,  ob.  cit.  e  F,  de  Souza  Martins,  Progresso  do  Jornalismo  no 
Brazil,  na  Rev.  Trim.  do  Inst.  llist.  do  Rio  de  .Taneiro).  A  imprensa 
adquiriu  logo,  mercê  da  agitação  do  momento  politico,  grande  violên- 
cia, censurando  a.foitamente  funccionarios  públicos,  denunciando  as 
podridões,  bradando  por  emenda  e  offerecendo  planos  imaginativos  de 
reformas. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1081 

no  cazo  que  tudo  o  que  lhe  digo  lhe  não  fizer  obstáculo, 
julgo  que  seria  conveniente  fazer  alguma  comunicação  ao 
Conde  antes  de  se  publicar,  a  única  couza  que  me  faz  alguma 
força  he  o  que  diz  o  C.  {Conde)  que  milhor  he  o  dar  exponta- 
neamente  do  cjue  por  contrato"  (i). 

Bem  esperto  será  quem  depois  da  leitura  d'este  arrazoado 
puder  com  seguridade  dizer  si  Dom  João  VI  preferia  outorgar 
ou  não  a  Carta  Constitucional  pela  qual  insistia  Palmella. 
EUe  próprio  provavelmente  o  não  sabia,  dúbio  entre  opi- 
niões differentes,  attrahido  por  ideaes  oppostos  e  confusos, 
dilacerado  por  motivos  contrários.  Dom  João  era  um  contem- 
porâneo de  Réné,  e  a  duvida  mórbida,  o  mal  do  século,  exten- 
dia-se  dos  devaneios  sentimentaes  ao  dominio  pratico  da  poli- 
tica e  da  administração.  As  apostillas  de  1821  já  não  refle- 
ctem o  trabalho  regular,  methodico  e  desannuviado  dos 
annos  anteriores:  agora  ellas  traduzem  a  incerteza  e  a  mor- 
tificação, sem  o  forte  sentimento  de  responsabilidade  que  as 
debellaria. 

A  funcção  real  deixava  de  ser  exercida  em  grande  parte 
com  a  preoccupação  de  fazer  justiça,  de  agradar  a  todos,  de 
tornar-se  um  monarcha  popular,  de  dar  raizes  locaes  á  dy- 
nastia,  instando  por  exemplo  o  Rei  pela  remessa  dos  papeis 
das  audiências — "pois  quero  que  as  partes  não  julguem  que 
me  não  lembro  dos  requerimentos  que  me  entregão."  Dom 
João  VI  acreditava  comtudo,  a  meio  da  perplexidade  moral 
em  que  se  debatia,  que  a  sua  permanência  no  Brazil,  com 
semelhante  fé  de  officio,  tradição  tal  de  equidade  e  de  longa- 
nimidade, o  dispensaria  com  certeza  de  brindar  com  uma 
Constituição  essa  secção  da  monarchia,  a  qual  se  contentaria 
com  a  dita  de  possuir  a  Corte  no  seu  seio. 

(li    Cod.    cit.,   na    Bibl.    Nac. 


1082  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Os  Brazileiros  com  effeito  queriam  geralmente  que  o 
Rei  ficasse,  mas  não  mais  os  satisfazia  o  velho  estado  de  cou- 
sas. A  perturbação  constitucional  rasgara  horizontes  de  maior 
amplidão  e  por  forma  tal  accendeu  o  enthusiasmo  entre  ge,nte 
facilmente  levada  a  exaggeros,  que  fez  mespio  sopitarem 
estimulantes  desconfianças  e  provocou  uma  approximação 
sincera  de  Portugal.  O  Reino  nunca  foi  tão  unido  como  n'essa 
phase,  até  que  o  manifesto  brutal  das  Cortes  rompesse  o 
enleio  e  desmanchasse  a  illusão. 

A  Constituição  não  cessou  todavia  de  simbolizar  o  cor- 
rectivo dos  erros,  a  reforma  dos  atrazos,  a  destruição  dos 
abusos.  N 'estas  condições  a  permanência  do  Rei  podia  ser  um 
motivo  de  vaidade,  para  o  paiz  um  objecto  até  de  af feição 
commum  e  superior,  mas  já  nem  constituia  sequer  uma  se- 
gurança de  autonomia,  pois  que  seria  impossível  a  Portugal 
retirar  o  que  fora  uma  vez  concedido:  o  Brazil  não  podia 
mais  voltar  á  servidão  colonial.   ( i ) 

Uma  carta  de  Palmella  em  data  de  3  de  Março,  (2) 
escripta  ao  cunhado,  conde  de  Linhares,  descreve,  periodo 
por  periodo,  ainda  que  muito  succintamente,  a  evolução  ope- 
rada no  espirito  de  Dom  João  VI  e  indica  com  quanta  repu- 
gnância elle  veio  a  abraçar  o  alvitre  de  uma  Constituição. 
Levou-o,  porém,  Thomaz  António  a  ''publicar  só  e  isolada- 
mente o  chamamento  dos  Procuradores  das  Camarás  do 
Brazil,"  deixando  de  lado  todo  um  conjuncto  de  medidas,  que 
tinham  entre  si  um  nexo  necessário,  e  que  eram  instante- 
mente aconselhadas  por   Palmella. 

No  mesmo  dia  22  de  Fevereiro,  em  que  Thomaz  Antó- 
nio e  o  Rei  andaram  tão  escrevinhadores,  e  em  que  foi  refe- 


(1)  Armitage,  06.   cit. 

(2)  D.  Maria  Amália,  oh.  cit. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  108Í? 

rendado  o  decreto  de  i8  convocando  Cortes  no  Brazil,  man- 
dava pela  tarde  o  ministro  assistente  ao  despacho  o  seguinte 
recado:  "Aqui  veio  o  conde  de  Palmella,  trazia  outra  mi- 
nuta, eu  lhe  disse  que  o  Principe  tinha  pedido  a  Vossa  Ma- 
gestade  levar  elle  as  bazes  nas  Instrucçoens  sem  as  publicar; 
que  Vossa  Magestade  assim  tinha  decidido;  e  eu  portanto 
mandava  por  cm  limpo  o  Decreto  para  Convocação  daqui  em 
Junta  de  Cortes."  (i)  9 

Estas  Cortes  locaes  deviam  ser  formadas  pelos  procura- 
dores eleitos  pelas  camadas  municipaes  das  cidades  e  villas 
principaes,  que  tivessem  juizes  lettrados,  tanto  do  Reino  do 
Brazil  como  das  ilhas  dos  Açores,  Madeira  e  Cabo  Verde, 
e  para  tratar  com  ellas  se  nomeava  uma  Junta  de  20  pessoas, 
a  qual  funccionaria  como  commissão  preparatória,  cabendo- 
Ihe  examinar  as  feições  da  futura  Constituição  da  monarchia, 
applicaveis  ao  Brazil.  Um  manifesto,  simultaneamente  publi- 
cado, esclarecia  mais  que  o  Principe  Real  iria  entender-se 
com  as  Cortes  de  Lisboa  e  que  o  Rei  promettia  perfilhar 
quanto,  no  producto  combinado  d'aquella  actividade  executiva 
e  legislativa,  correspondesse  á  situação  peculiar  do  Reino 
ultramarino. 

No  dia  24  já  a  borrasca  se  prenunciava  pois  que,  re- 
cusada pelo  Rei  a  demissão  de  Palmella — Arcos  retirava-se, 
escondendo  seu  jogo  matreiro  e  associando  seus  destinos  aos 
do  Principe  Real — e  apoz  uma  conferencia  com  este,  man- 
dou-se  chamar  os  da  Junta  e  algumas  pessoas  de  fora;  os  da 
Junta  "para  que  segurassem  os  batalhões  de  que  não  se  fazia 
engano;  e  antes  de  se  publicar  o  Decreto  e  também  a  nomea- 
ção, ajustar  com  esta  Junta  se  se  deviam  publicar  as  bazes 


(1/    Cod.  cit.,  na  Bibl.  Nac. 


1084  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

da  Constituição  para  Portugal  €  Brazil,  se  se  devia  reconhecer 
já  a  Constituição  de  Lisboa,  isto  é,  a  da  Hespanha."   (i) 

Thomaz  António  era  quem,  nem  n'esses  momentos  de 
apuro  se  bandeava  e,  como  naufrago  politico,  ainda  se  ape- 
gava á  idéa  das  Cortes  serem  somente  consultivas,  pelo  me- 
nos com  relação  á  ex-colonia,  não  se  effectuando  reforma 
alguma  ou  mudança  no  Brazil  sem  ser  examinada  a  proposta 
por  pessoas  das  provincias  do  novo  Reino:  no  que  afinal 
se  punha  de  accordo,  apparente  senão  real,  com  a  proposição 
de  Palmella  de  congregar  no  Rio  de  Janeiro,  afim  de  appli- 
car  as  bases  fundamentaes  da  Constituição  livremente  conce- 
dida pelo  soberano,  os  procuradores  das  camarás  municipaes 
do  Brazil. 

O  Principe  Real,  esse  é  que  revelando  desde  logo  seu 
temperamento  auctoritario,  que  o  tornaria  a  negação  do  regi- 
men que  veio  a  personificar,  dava  sem  rebuço  á  expressão — 
Cortes  Consultivas — um  sentido  differente  d'aquelle  que  lhe 
emprestara  Palmella.  N'uma  nota  do  seu  próprio  punho  se  lê: 
"Lei  nenhuma  terá  vigor  sem  ser  proposta  pelo  Rei  em 
Cortes  as  quaes  devem  ser  consultivas  quero  dizer  terem  o 
direito  de  descutirem  a  proposta  Real  a  qual  depois  decidida 
pella  pluralidade  de  votos  será  sanctionada  pello  Rei"  (2)  — 
a  este  competindo  portanto  a  iniciativa  e  a  sancção. 

O  /  d'aquella  orthographia  parece  denotar  onde  be- 
bera o  futuro  Imperador  a  noção  da  sancção  real;  mas  não 
foi  nos  doutrinários  francezes,  sim  no  seu  fogoso  tempera- 
mento peninsular  —  d'um  tempo  em  que  peninsular  trazia 
sobretudo  a  idéa  de  frades,  mendigos  e  cortezãos  viciosos — 


d»     Oad.     cit.,    il)klem. 

(2)    Autographos    do    Cod.    clt.,    ihiúem. 


DOM  JOÃO  YI  NO  BRAZIL  1085 

que  elle  foi  buscar  semelhante  repugnância  á  iniciativa  po- 
pular  ( I )  . 

Da  instrucção  liberal  de  Dom  Pedro  n'esse  tempo  (e 
depois  não  melhoraria  muito)  pode-se  ajuizar  pelo  prose- 
guimento  da  sua  annotação:  "Mandar  as  bazes  da  Consti- 
tuição he  reconhecer  a  convocação  destas  cortes  reconhecida 
áhi  está  reconhecido  o  Governo,  e  he  indecorozo  a  V.  M. 
O  Reconhecimento  he  huma  vergonha  certa  e  o  ser  ou  não 
admetida  huma  P.  R.  (proposta  real)  he  incerto  portanto 
neste  cazo  he  milhor  hir  pello  incerto  do  que  não  pello 
certo." 

O  constitucionalismo  do  que  então  era  herdeiro  de 
Portugal  e  Brazil  foi  um  traço  não  tanto  adquirido,  o  que 
lhe  realçaria  o  mérito,  como  postiço,  porque  se  não  coa- 
dunava com  a  sua  educação  descurada  e  depressora  nem  com 
o  seu  caracter  impulsivo  e  violento.  Dom  João  VI  teria 
ao  contrario  feito  pela  sua  sagacidade  de  visão  e  timidez  de 
acção  um  excellente  Rei  constitucional,  em  tempos  normaes. 

Sobre  a  sua  penetração,  mesmo  quando  obscurecida  pela 
fraqueza  de  animo,  não  pode  ficar  duvida  a  quem  reflectir 
que,  a  meio  das  indecisões  e  dos  receios,  elle  descortinava 
claramente  os  defeitos  capitães  da  situação,  tanto  que  ta- 
xava just?< mente  os  alvitres  aventados  em  redor  de  si  de 
"pouco  práticos  e  peccando  por  inclinar-se  exclusivamente 
para  um  paiz  ou  para  outro  segundo  a  nacionalidade,  gostos 
etc.  do  preopinante.  .  .  entretanto  que  a  S.   M.  lhe  parecia 


(1)  Dir-se-ha  que  na  libérrima  Ingkaterra  apenas  os  projectos 
ministeriaes  teem  proí)abilidacles  de  serem  convertidos  em  leis  e  qae 
as  propostas  de  iniciativa  parlamentar  raramente  logram  subir  A  regia 
«ancí/ào  :  é  porém  ocioso  encarecer  quanto  n'esse  paiz  tom  o  tbrono  po- 
liticamente mergulbado  na  sombra  gigantesca  da  representação  na- 
cional, da  qual  6  o  gabinete  a  mera  dolí\ga<jão  exí>ciiti\ri. 

D.  J.  -  68 


1086  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

evidente  não  se  poder  abstrahir  de  nenhum  dos  dous  Paizes 
sempre  que  se  tratasse  de  regular  negócios  em  que  se  achem 
cumulativamente  compromettidos  os  interesses  de  toda  a 
monarchia." 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira,  a  quem  pertencem  taes  pa- 
lavras (i),  accrescentava  esta  outra  observação  muito  lison- 
jeira para  Dom  João  VI,  a  cujo  conhecimento  não  eram 
no  emtanto  destinadas  estas  expansões  de  amigo  para  amigo: 
"Cito  a  V.  S.  estas  observações  de  S.  M.  para  que  por  ellas 
V.  S.  possa  avaliar  a  verdade  do  que  por  vezes  lhe  tenho 
escripto  sobre  a  finura  de  tacto  que  o  mesmo  Sr.  possue  na 
justa  determinação  do  ponto  cardeal  sobre  que  versa  qual- 
quer questão." 

Dom  Pedro  é  que  nunca  poderia  ter  sido  senão  o  que 
foi :  um  soberano  que  abdica  throno  e  grandezas  por  não 
poder  impor  suas  vontades,  e  se  converte  n'um  condottiere  ao 
serviço  de  uma  filha  que  estremecia  e  de  uma  causa  que  pen- 
sava estremecer,  porque  n'ella  concentrara  sua  exhuberancia 
de  imaginação  e  sua  ambição  de  gloria,  dous  traços  moraes 
que,  junto  com  a  bravura  physica  indispensável  ao  officio,  a 
mãi  lhe  infiltrara  na  alma  e  no  sangue. 


(1)    Carta   IT   das  Memorias   e  Cartas   biographicas,   publicadas 
nos  tomos  II  e  III  dos  Annaes  da  Bibl.  Nac.  do  Rio  de  Janeiro. 


CAPITULO  XXIX 


O  MOVIMENTO  CONSTITUCIONAL  NO  BRÂZIL.  O  ULTIMO  MINISTÉRIO 


A  corrente  constitucional,  em  communicação  com  os 
dynr.mos  de  Lisboa,  seguio  no  Brazil  a  direcção  norte  sul. 
A  primeira  descarga  deu-se  no  Pará,  onde  o  pronunciamento 
militar  occorreu  no  dia  i^  de  Janeiro  de  182 1.  O  governador 
conde  de  Villaflor  (futuro  duque  da  Terceira)  estava  au- 
sente no  Rio,  administrando  a  provincia  um  governo  inte- 
rino. "Não. era  difficil,  observa  nas  suas  Memorias  o  mar- 
quez  de  Santa  Cruz  (i),  fazer  aceitar  as  mudanças  da 
Metrópole  em  uma  provincia,  onde  predominava  a  influen- 
cia Portugueza,  e  regida  por  uma  administração  fraca  e  sem 
prestigio."  ,' 

A  Bahia  já  antes  d'isso  não  inspirava  confiança.  A  2 
de  Dezembro  escrevia  Thomaz  António  ao  Rei  :  "He  conhe- 
cida de  V.  M.  a  manobra  secreta  da  Bahia:  todo  o  mundo 
conhece  e  teme"  (2).  E  logo  se  tratou  em  despacho  de 
mandar   para   a   antiga   capital   colonial   o   conde   de    Villa- 

(1)  D.  Ronuialdo  António  de  Seixas,  dx^ois  .arcebispo  da  Bahia 
o  então  vigário  capitular  de  Belém,  o  qual  foi  até  acclamado  jx-lo  povo 
presidente   da  junta   constitucional  orfíaniznda    por   essa    occasião 

(2)  Cod.    cit.,   na   Biibl,    Nac. 


1088  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

flor,  licenciado,  que  foi  effectivamente  nomeado,  mas  não 
seguio  porque  lhe  embaraçaram  a  partida  as  surdas  tra- 
móias da  facção  liberal  (i).  A  20  de  Janeiro  ainda  Tho- 
maz  António  instava  (2)  pelo  embarque  do  governador 
para  seu  destino,  visto  não  serem  boas  as  noticias  e  estar 
imminente  o  tumulto. 

A  escolha  de  Villaflor  foi  mesmo  o  que  o  apressou.  O 
governador  conde  da  Palma  andava  enfermo,  e  não  urgia 
tanto  executar  a  sublevação  já  que  a  repressão  não  cabia 
em  suas  forças;  mas  o  despacho  de  um  militar  desempenado 
como  o  que  seria  um  dos  dous  grandes  marechaes  da  Res- 
tauração, fazia  suppor  intentos  violentos  e  era  mister  tocar 
a  rebate.  Portuguezes  e  Brazileiros  esqueceram  seus  ódios, 
forças  reinóes  e  nacionaes  immolaram  suas  animosidades  no 
altar  da  Constituição,  fraternizaram  as  duas  facções  que 
Palma  quizera  oppor  uma  á  outra  (3),  e  o  capitão  general, 
mau  grado  suas  velleidades  de  resistência,  foi  substituído,  a 
10  de  Fevereiro,  por  uma  Junta  que  confirmou  a  lei  orgâ- 
nica em  embryão  proclamada  pela  tropa  e  pelo  próprio 
conde  da  Palma. 

A  ordem  promptamente  se  restabeleceu  e  prevaleceu  a 
moderação  n'esse  inicio  revolucionário,  apezar  de  ter  havido 
mortos  e  feridos  no  motim,  occorrido  sobretudo  pela  atti- 
tude  de  Felisberto  Caldeira  Brant  (futuro  marquez  de  Bar- 
bacena)  que  á  frente  de  algumas  forças  compellidas  á  fide- 
lidade,  pretendeu   assegurar   praticamente   a   legalidade.    O 


fl)  Diz  Maler  que,  quando  governador  do  Maranlião,  Villaflor 
tinha  -dado  lugar  a  fortes  queixas  contra  elle,  de  certo  por  actos  de 
auctoridade,  pois   sua  honestidade   sempre  foi  apregoada. 

(2)    Cod.    cit.,  na  Biihl.    Nac. 
,  (;í)    Ilandclmann    nota    com    seu   habitual    aicerto   que   a   funda 

inimizade   entre  povo   e   tropa   foi   o  que  em   Pei-naml)uco   retardou   o 
movimento  constitucional. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1089 

cônsul  francez  Guinebaud  escrevia  porém  poucos  dias  de- 
pois (i)  a  Maler:  "Até  aqui  a  auctoridade  real  foi  mantida 
pelo  menos  nominalmente,  mas,  pelo  amor  de  Deus,  si  es- 
tiverdes com  o  Rei,  ou  com  seus  ministros,  dizei-lhes  que  re- 
conheçam depressa  e  regularizem  tudo  isto,  porque  dentro 
de  trez  mezes  não  será  mais  tempo.  Nem  mesmo  quererão 
mais  reconhecer  o  Rei  e  se  declararão  independentes." 

E'  de  crer  que  Maler  conversasse  com  Palmella,  ou 
então  no  espirito  .d'este  se  implantou  incontinenti  a  mesma 
convicção,  pois  ao  ser  conhecida  no  Rio  a  insurreição  bahiana 
com  seus  pormenores,  suggeriu  o  ministro  de  estrangeiros 
de  Dom  João  VI  o  desembarque  em  São  Salvador  do  Prín- 
cipe Real,  no  caminho  para  Lisboa,  indo  na  sua  companhia  o 
conde  dos  Arcos,  muito  considerado  senão  popular  na  Bahia, 
e  sendo  o  manifesto  constitucional  do  soberano  lançado  alli, 
no  próprio  foco  brazileiro,  que  em  tal  se  constituirá,  da  re- 
volta (2).  Palmella  assim  se  valia  da  insurreição  a  ver  si 
ainda  podia  determinar  resoluções  francas  e  definidas,  em- 
quanto  Thomaz  António  —  a  quem  seu  collega  injustamente 
increpava  de  inactivo  n'essa  occasião  —  clamava  pelo  contra- 
rio por  providencias  immediatas  de  força  que  suffocassem  a 
sedição. 

O  tempo  consumira-se  n'essa  discórdia  inglória  e  per- 
dera-se  o  ensejo  de  uma  composição,  mesmo  assim  problemá- 
tica, comquanto  escrevesse  Maler  para  Pariz  (3)  que  a 
menor  concessão,  o  menor  desejo  manifestado  de  remediar  os 
abusos  mais  escandalosos,  teria  bastado  para  conter  os  povos 


(1)  Officio  de  15  de  Fevereiro  de  1821,  no  Arch.  do  Min.  dos 
Neg.  Est.  de  França, 

(2)  D.    Maria  lAmalIia,    ob.    cit. 

(3)  Officio  de  23  de  Fovereiro  de  182,1. 


1090  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

na  orbita  do  dever.  Depois  do  motim  da  Bahia  reconhecia 
elle  que  mais  difficil  se  fizera  satisfazer  os  espiritos  irritados 
pela  obstinação  do  governo,  não  deixando  os  chefes  dos  fac- 
ciosos de  imputar  ao  medo  quanto  se  combinasse  e  publi- 
casse, e  julgando  todos  de  nada  ser  devedores  á  boa  vontade 
de  um  gabinete  que  esperava  até  o  derradeiro  momento  para 
realizar  qualquer  concessão. 

Thomaz  António  não  era  aliás  o  ultimo  em  admittir 
nos  seus  memoranda  ao  Rei,  que  "cada  dia  vai  sendo  peor, 
e  a  demora  a  fazer  desconfiança."  Na  Bahia,  segundo  infor- 
mava o  cônsul  respectivo,  a  Junta  cuidara  sem  demora  de 
augmentar  e  equiparar  o  soldo  das  tropas,  não  lhe  faltando 
recursos  para  isso  porque  de  todos  os  lados  lh'os  offereciam. 
"São  verdadeiros  donativos  voluntários,  activam-se  os  con- 
certos de  varias  embarcações  de  guerra  que  se  acham  no  nosso 
porto,  para  tudo  ha  dinheiro." 

O  motim  fluminense  de  26  de  Fevereiro,  que  se  seguio 
poucos  dias  á  divulgação  do  bahiano,  apresenta  um  duplo 
traço  —  brazileiro  e  portuguez  —  mas  foi  nos  seus  intuitos 
restrictos  muito  mais  portuguez  do  que  brazileiro.  Motim 
militar,  promoveu-o  comtudo  no  saboroso  dizer  de  uma  carta 
do  tempo  ( i ) ,  ^  caixeirada  que  se  nutre  com  a  leitura  dos  fo- 
lhetos de  Londres.  "O  povo,  commentava  o  correspondente, 
ficou  alegre  com  a  mudança  dos  empregados  públicos,  e  estou 
certo  que  nenhumas  prom.essas  o  terião  satisfeito,  huma  vez 
que  não  principiasse  por  depor  Thomaz  António,  Targini, 
Paulo  Fernandes,  etc.  Entrou  n'esta  deposição  o  Sr.  conde 
de  Palmella  único  de  todos  que  tem  feito  a  sua  obrigação, 
mas  com  o  qual  estavão  descontentes  por  isso  que  não  despa- 


(1)   Carta  de  .Tose  da  Silva  Arêas  ao  conde  do  Funchal,  cm  1 
de  Março  de  1821.  Lata  10  da  Coll.  Linhares,  na  Bibl.  Nac. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1091 

chou  a  todos  logo  que  chegou;  sendo  aqui  o  constante  sys- 
tema  do  Ministério  desde  o  principio  do  anno  athé  o  fim 
não  fazer  outra  coisa  senão  ouvir  as  partes,  ler  requerimen- 
tos, e  despachar  absurdos  —  e  por  isso  como  o  Sr.  conde  hia 
cortando  os  abusos  em  que  tudo  estava  não  agradou." 

Os  primeiros  reformadores  em  qualquer  epocha  são 
sempre  apedrejados,  e  no  Brazil  d'esse  tempo  muito  havia  a 
reformar.  "As  coisas  certamente  estavão  mal,  proseguia  a 
missiva  —  mais  prevaricação,  mais  delapidação,  e  mais  lou- 
curas não  era  .possivel  haver ;  e  por  isso  o  estado  da  gente 
era  má  também,  e  por  isso  não  se  contentavão  sem  huma 
scena  como  a  de  26." 

Sympathica  a  toda  a  população  pelas  causas  que  a  moti- 
varam e  pela  orientação  geral  moralizadora  que  proclamou, 
a  scena  de  26  de  Fevereiro  teve  como  razão  determinante 
muito  mais  o  despeito  produzido  entre  o  elemento  portuguez 
pela  annunciada  separação  do  regimen  constitucional  nos 
dous  Reinos,  do  que  mesmo  a  anciã  nacional  por  uma  era 
liberal.  O  commandante  da  policia  avisara  directamente  o 
Rei  (i)  de  que  o  decreto  fora  mal  recebido  e  já  se  f aliava 
"descaradamente  que  o  que  querem  he  a  Constituição  de 
Portugal.  Como  hoje  se  deve  publicar  o  Decreto  da  Junta 
seria  milhor  ver  se  nelle  se  dava  toda  a  esperança  de  que 
se  devia  aceitar  a  dita  Constituição  com  as  mudanças  adaptá- 
veis ao  Paiz  ou  dar  as  bazes." 

A  organização  da  Junta  presidida  pelo  marquez  de 
Alegrete  e  na  quasi  totalidade  composta  de  Brazileiros  (trez 
membros  apenas  eram  Portuguezes),  em  que  tanto  confiava 
Dom  João  para  abrandar  o  partido  americano,  desagradou 

(1)   Resposta  de  Dom  João  a  Thomaz  .Uitonio  no  Cod.   cit. 


1092  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

em  extremo  ao  partido  europeu.  Conta  Maler  ( i )  que  os 
editaes,  apenas  affíxados,  foram  arrancados  ou  cobertos  de 
immundicies  e  que  nos  cafés  e  botequins  se  esbravejava  sem 
sombra  de  commedimento. 

Das  praças  e  ruas  os  agitadores  transportaram  sua 
acção  para  os  quartéis,  intrigando  no  sentido  das  Cortes  e  da 
união  e  provocando  a  sedição  que  devia  amedrontar  o  Rei, 
forçal-o  á  obediência  constitucional  á  assembléa  de  Lisboa  e 
convencel-o  de  partir  em  pessoa  para  não  perder  a  um  tempo 
toda  a  monarchia,  ébria  como  «andava  de  novidades,  alçando 
o  velho  Reino  o  topete  quasi  acima  do  throno,  e  preferindo 
as  provincias  dispersas  do  novo  as  liberdades  civis  e  politicas 
derivadas  do  pacto  popular  com  a  Coroa  á  própria  indepen- 
dência em  corpo. 

O  movimento  de  26  de  Fevereiro,  em  prol  de  uma 
Constituição  vaga,  foi  por  conseguinte  tão  espontâneo  quanto 
pode  ser  um  movimento  subversivo  do  seu  género,  a  saber, 
que  a  conspiração  urdida  e  propagada  por  alguns  cabecilhas, 
encontrara  rápido  e  franco  apoio  porque  correspondia  a  uma 
aspiração  latente  de  mudança.  Entre  esses  cabecilhas  mencio- 
rrava  Maler  (2)  um  certo  major  António  de  Pádua  da  Costa 
e  Almeida,  filho  do  antigo  commandante  da  praça  de  Al- 
meida, fuzilado  em  Lisboa  como  réo  de  traição  por  haver 
feito  entrega  delia  ao  marechal  Masséna  na  sua  invasão; 
um  outro  major  António  Duarte  Pimenta,  destacado  para  a 
índia,  depois  de  ter  militado  com  Lecor  e  de  haver  sido 
con'demnado  a  trez  annos  de  prisão  por  mau  comportamento 
e  insubordinação,  mas  protegido  por  "pessoas  da  familia 
real";  o  padre  Góes,  clérigo  que  vivia  escandalosamente  em 


(1)  Officio   úe   28   de   Fevereiro   de   1821. 

(2)  Officiu  iCit.,  de  2i8   de  'Fe'vereiro  de   1821 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1093 

theatros  e  roletas,  e  o  padre  Macambôa,  outro  ecclesiastico, 
que  advogava  no  foro. 

Ajunta  o  encarregado  de  negócios  de  França  que  estes 
foram  os  personagens  que  se  destacaram  no  pronunciamento, 
mas  que  pessoas  de  rang  plus  élevé  teriam  ajudado  a  em- 
preza.  Arcos  foi  accusado  pelos  que  lhe  conheciam  as  ambi- 
ções e  attentaram  no  seguimento  dos  successos,  e  o  Principe 
Real  não  apparece  isento  de  cumplicidade  aos  que  reparam 
na  celeridade  com  que  compareceu  no  lugar  de  reunião 
das  tropas  amotinadas  desde  a  madrugada  no  largo  do  Ro- 
cio; na  facilidade  cem  que  se  prestou  a  assumir  a  direcção 
do  levante,  rece^bendo  os  protestos,  as  reclamações  e  as  im- 
posições como  si  de  tudo  estivesse  inteirado;  na  presteza  com 
que  do  terraço  do  theatro  de  São  João,  por  entre  acclama- 
ções  frenéticas,  jurou  em  nome  do  Pai  deferir  quanto  d'elle 
exigiam,  exhibindo  uma  passividade  que  lhe  não  estava  no 
temperamento  e  apresentando  elle  próprio  á  multidão  re- 
volta, para  approvação,  uma  lista  de  ministros  e  outros  func- 
cionarios  executivos  —  intendente  de  policia,  general  com- 
mandante  das  armas,  thesoureiro-mcr,  administrador  da  fa- 
zenda real,  etc.  —  preparada  de  antemão. 

Seguido  do  novo  ministério,  que  se  tratou  logo  de  reu- 
nir no  salão  do  theatro,  onde  deliberavam  os  membros  do 
Senado  da  Camará  e  os  mais  influentes  do  movimento,  o 
Principe,  com  a  mão  sobre  os  Evangelhos,  adheriu  á  futura 
Constituição.  Desconfiado  porem  o  povo  de  que  elle  pudesse, 
com  todas  suas  annuencias,  não  estar  interpretando  veridi- 
camente  as  disposições  reaes,  ohrigara-o  a  ir  a  São  Christo- 
vão  buscar  a  approvação  do  soberano  aos  actos  que  punham 
em  pratica  os  votos  dos  manifestantes,  e  segunda  vez  o  obri- 
gou a  ir  buscar  o  Rei  em  pessoa. 


1094  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Con'descendendo  a  contra  gosto,  Dom  João  compare- 
ceu e  renovou  todas  as  declarações,  repetiu  todas  as  juras, 
confirmou  todas  as  promessas,  referendou  todos  os  compro- 
missos e  sanccionou  todos  os  actos  do  seu  herdeiro,  acceitando 
anticipadamente  qualquer  Constituição  que  viesse  de  Lisboa 
e  que  alli  se  acabava  de  acclamar  na  ignorância  do  que  pu- 
desse ser,  na  certeza  em  todo  o  caso  para  os  militares  euro- 
peus de  que  seria  a  tutela  portugueza  reimposta  ao  Brazil. 
Foi  então  que  se  deu  o  conhecido  episodio  da  marcha  trium- 
phai:  n'um  enthusiasmo  delirante  o  povo  desatrelou  os  ca- 
vallos  e  puxou  a  pulso,  do  Rocio  ao  Largo  do  Paço,  o  coche 
dentro  do  qual  Dom  João,  succumbindo  por  fim  a  todas  as 
angustias  moraes  dos  quatro  mezes  passados,  não  encontrou 
mais  tensão  nervosa  para  sustental-o  e  cedeu  ao  pavor,  des- 
fazendo-se  em  pranto  e  quasi  desmaiando. 

No  velho  Paço,  onde  tantas  horas  felizes  tinham  desli- 
zado para  elle,  deu  meio  desacordado  o  Rei  beija-mão 
geral  e,  por  entre  alegres  luminárias  e  repiques  de  sinos, 
voltou  de  noite  ao  theatro  para  assistir  á  representação  de 
gala  com  a  Cenerentola  de  Rossini.  Maler,  que  no  dia  imme- 
diato  correu  a  palácio,  encontrou  o  monarcha  de  vestes  de 
cerimonia  mas  com  os  cabellos  ainda  despenteados  e  por 
empoar,  e  o  aspecto  mudado.  "E'  sem  duvida  a  primeira  vez, 
mandava  o  agente  francez  dizer  para  Pariz  (i),  que  me 
approximei  d'este  Príncipe  sem  lhe  descobrir  na  physiono- 
mia  uma  expressão  de  benevolência :  apenas  encontrei,  e  mui 
manifestos,  os  estragos  causados  por  quanto  acabava  de  oc- 
correr." 

Entretanto  pelo  seu  novo  ministro  dos  negócios  estran- 
geiros mandou  o  Rei  declarar  aos  seus  enviados  na  Europa, 


(1)    Officio   cit.  de  28  de   Fevereiro  de  1821. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1095 

para  que  informassem  os  governos  junto  aos  quaes  se  acha- 
vam acreditados,  que  bem  ao  contrario  do  que  em  Laybach 
se  affirmou,  elle  jurara  livre  e  voluntariamente,  não  coacto  e 
medrosamente,  a  divinal  Constituição : 

A  verdade  não  se  offusca, 
O  Rey  não  se  engana,  não; 
Proclamemos,   Portuguezes, 
Divinal  Constituição  (i). 

Sempre  divergente  do  marido.  Dona  Carlota  ficara  ra- 
diante. Mandou  chamar  o  filho  a  quem  beijou  com  effusão, 
chamando-Ihe  os  nomes  ternos  de  que  era  tão  amiga,  cobrin- 
do-o  de  elogios  pelo  seu  proceder  na  data  celebre  de  26  de 
Fevereiro  e  dizendo  orgulhar-se  d'elle,  emquanto  Dom  Pe- 
dro se  deitava  aos  seus  pés  assombrado  e  commovido.  Tam- 
bém as  jovens  Infantas  agradeceram  muito  ao  irmão  suas 
attenções  no  referido  dia,  socegando-as  por  meio  de  frequen- 
tes recaídos  e  mandando  prevenil-as,  cada  vez  que  troava  o 
canhão,  de  que  era  em  signal  de  regosijo,  para  que  se  não  as- 
sustassem (2). 

"  E'  inquestionável,  rematava  Maler,  que  o  Principe 
Real  evidenciou  n'aquella  occasião  uma  firmeza  e  presença 
de  espirito  que  surprehenderam  e  encantaram  todos  os  es- 
pectadores; a  meio  de  uma  scena  tão  tumultuosa  nunca  per- 
deu de  vista  todas  as  contemplações  e  deferências  que  recla- 
mava a  familia  real."  Não  se  pode  com  effeito  negar  que  o 
papel  de  Dom  Pedro  foi  em  tão  memorável  dia  saliente  e  deci- 


(1)  H.vmno  constitucional  feito  aos  'òl  de  Margo  de  1821,  e 
offorocido  (\  Nação  l'oi-tugueza  pelo  Principe  Real,  seu  author.  Rio 
de   Janeiro,   1821. 

(2)  Officio  de  Maior  de  2   de  Março  do  1821. 


1096  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

sivo,  e  com  tal  acto  se  prestigiou  perante  a  população  aquelle 
que  poucos  dias  depois  o  Conciliador  do  Reino  Unido  (i) 
chamava  cem  emphase  "o  amável,  inclyto  e  heróico  Joven, 
gloria  dos  olhos  de  todos  os  fieis  vassallos"  que  apparecera 
como  "o  intercessor  e  mediador  entre  o  Throno  e  o  Povo 
para  S.  M.  outorgar  a  graça  de  uma  liberal  Constituição, 
conforme  ao  Espirito  do  Século,  Empenho  de  Portugal,  Voto 
do  Brazil,  e  de  todos  os  habitantes  dos  mais  Estados  e  Domí- 
nios da  Coroa." 

Palmella  era  quiçá  o  único,  com  sua  perceptibilidade 
e  gravidade  habituaes,  a  formar  do  Principe  um  conceito 
exacto  e  não  olhar  para  o  futuro  com  essas  confianças  ly- 
ricas.  Em  carta  ao  conde  do  Funchal  (2),  elle  assim  definia 
imparcialmicnte  a  attitude  do  futuro  Imperador  nos  suc- 
cessos  de  26:  ''O  P.  Real  mostrou  naquella  occasião  o  maior 
desembaraço  e  presença  d'espirito,  e  mesmo  muita  fidelidade, 
porque  a  tropa  quiz  sem  duvida  acclamal-o,  e  Elle  sempre 
atalhou  esse  ultimo  desaforo,  gritando  —  Viva  El-Rey  N.  S. 
viva  meu  Pay:  Ha  comtudo  muita  gente  que  suppoem  que 
Elle  estava  instruido  de  antemão  do  que  se  meditava  e  he 
.certo  que  se  deixa  rodear  e  aconselhar  por  má  gente.  El- 
Rey  temno  chamado  sempre  desde  esse  dia  para  assistir  ao 
Despacho." 

Compunham  o  ultimo  ministério  de  Dom  João  VI  no 
Brazil,  imposto,  não  mais  livremente  escolhido,  o  philosopho 
e  publicista  Silvestre  Pinheiro  Ferreira,  o  almirante  Ignacio 
da  Costa  Quintella,  Joaquim  José  Monteiro  Torres  e  o  conde 
da  Louzã,  nos  negócios  estrangeiros,  reino,  marinha  e  pre- 
sidência do  erário  respectivamente. 

(1)  N.   I.  3"  do  Março  de  1821,  na  Impressão  Regia. 
(2i    Carta   de  3  de   Março  de  1821,   Lata  7   da  Coll.   Linhares, 
na  Bibl.  Nac. 


DOM  JOÃO  .VI  NO  BRAZIL  1097 

Maler  não  pcupa  elogios  a  este  pessoal  administrativo, 
apezar  de  tão  revolucionariamente  installado  no  poder.  Jul- 
gava o  gabinete  composto  de  homens  esclarecidos,  Silvestre 
sobretudo,  e  em  muitas  cousas  parecidos.  "Seria  difficil,  reza 
seu  officio  de  28  de  Fevereiro,  encontrar  trez  pessoas  (i) 
mais  simples  nos  seus  modos;  tenho  tratado  familiarmente 
com  elles  nos  seus  modestos  interiores  e  duvido  que  sua  mo- 
bília valha  mais  de  100  luizes." 

A  ascensão  ao  poder  de  Silvestre  Pinheiro  Ferreira  in- 
dica por  si  só  a  profunda  transformação  que  se  operara  no 
meio  politico.  Era  como  si  na  França  moderada  de  Ferry 
e  de  Ribot  — não  na  França  radical  de  Clemenceau  e  de 
Briand,  tocando  no  socialismo — tivesse  de  repente  sido  cha- 
mado o  Sr.  Jaurés  ou  o  Sr.  Millerand  para  a  presidência 
do  conselho.  Silvestre  era  não  só  um  espirito  de  uma  inde- 
pendência fundamental  e  irreconciliável,  como  um  reforma- 
dor implacável,  posto  que  manso,  ao  ponto  de  não  raro  pare- 
cer paradoxal  e  ser  por  vezes  chimerico. 

Logo  na  primeira  mocidade,  quando  se  destinava  á  car- 
reira ecclésiastica,  desaveio-se  com  os  directores  da  Congrega- 
ção do  Oratório  por  motivo  de  remoques  feitos  á  obra  do 
padre  Theodoro  d 'Almeida — Recreação  philosophica — e  dei- 
xou a  instituição  sacra,  obtendo  depois  em  concurso  o  lugar 
de  lente  de  philosophia  em  Coimbra.  Da  sua  cadeira  propa- 
gou o  sensualismo  de  Locke  e  Condillac,  sendo  por  tal  razão 
alvo  de  nova  perseguição,  tratado  de  jacobino  e  obrigado 
a  expatriar-se.  Acolheu-o  por  essa  occasião  em  Pariz  António 
de  Araújo,   que   teve   influencia  bastante   para  lhe   alcançar 


.  (1)  Os  ministros  oram  quatro,  mas  Malo^r  falilariíi  apenas  dos 
quo  oonhwia.  Não  podia  quoror  aksbralur  do  Loiízã,  quo  até  deixou 
xima  ro^putagão  proverbial  de  honradez. 


1098  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

o  lugar  de  secretario  da  sua  legação  na  Haya,  da  qual,  en- 
trando para  a  secretaria  de  Estrangeiros  de  Lisboa,  passou 
a  encarregado  de  negócios  em  Berlim,  ahi  se  relacionando 
muito  no  circulo  universitário  e  alargando  seus  conhecimen- 
tos de  sciencias  naturaes  e  sua  visão  philosophica  (i). 

Suas  idéas  foram  sempre  ganhando  em  liberalismo,  e 
pela  vida  adiante  o  pensador  propugnou  os  ideaes  mais  adian- 
tados, do  suffragio  universal  á  abolição  da  pena  de  morte,  da 
eleição  da  magistratura  á  obrigatoriedade  do  serviço  militar, 
do  socialismo  do  Estado,  senhor  único  do  solo,  á  annullação 
consequente  do  capitalismo.  Si  não  tivesse  sido  modesto, 
probo,  integro,  immaculado  não  só  de  mãos  como  de  senti- 
mentos, poderiamos  comparal-o  a  Benjamin  Constant,  pela 
circumstancia  de  haver  apa'drinhado  o  novo  systema  repre- 
sentativo no  Brazil.  Foi,  como  aquelle  illustre  doutrinário 
suisso,  fraco  politico  e  excellente  theorista,  patriota  zeloso,  tão 
austero  porém  quanto  dogmático,  bondoso  e  affavel  em  vez 
de  egoista  e  impertinente.  Ao  que  conste,  nenhuma  Madame 
de  Stael  soffreu  cruelmente  por  elle. 

Dom  João  VI  apreciava-o  e  estimava-o  sem  enthu- 
siasmo,  nunca  lhe  tendo  concedido  a  merecida  distincção  cer- 
tamente por  causa  das  suas  opiniões  conhecidamente  consti- 
tucionaes.  Demittido  do  cargo  que  exercia  em  Berlim,  dizem 
que  por  exigência  de  Napoleão,  voltara  Silvestre  para  Lisboa 
e  mudara-se  depois,  não  muito  depois  da  corte,  para  o  Bra- 
zil, onde  tão  somente  occupou  por  annos  os  lugares  de  depu- 
tado da  Junta  do  Commercio  e  director  da  Impressão  Regia. 
Devia  substituir  nos  Estados  Unidos,  como  representante 
diplomático,  Corrêa  da  Serra  quando  o  seu  momento  histo- 


(1  t    Teixeira  de  Mello,  Aimiitamcnfos   hio(jniphicos,  nos  Annaos 
da  Bibl.  Nac,  Tomo  II. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1099 

rico  pareceu  soar  com  o  movimento  de  1821.  Chamado  ou 
melhor  empossado  pelo  motim  militar  e  popular,  o  seu  mi- 
nistério durou  porém  pouquíssimo  e  não  influio  marcada- 
mente na  marcha  dos  acontecimentos.  Acompanhando  o  Rei 
no  seu  regresso  foi  residir  em  Pariz,  ahi  levando  a  vida  de 
um  estudioso  e  tornando-se  celebre  comq  publicista  juridico, 
até  vir  mais  tarde  entregar  a  Portugal  os  fructos  das  suas 
vigilias  e  meditações. 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira,  pelo  que  revelam  suas 
cartas  ha  pouco  editadas,  esteve  quasi  único,  no  desencontro 
de  opiniões  que  caracteriza  esse  instante  histórico,  em  julgar 
a  revolução  portugueza  no  seu  valor  preciso.  Nem  a  consi- 
derou insignificante,  nem  a  encarou  como  o  fim  da  monarchia: 
para  elle  se  não  formulou  sequer  o  dilemma  de  dever  o  sobe- 
rano acudir  ás  carreiras  a  Portugal  para  salvar  as  instituições, 
ou  ter  que  renunciar  ao  velho  Reino  pelo  exclusivo  do  seu 
amor  ao  Brazil.  Fiava  dos  immortaes  principios  a  solução 
equitativa  do  problema. 

De  resto  evento  tão  importante  quanto  aquelle  tinha 
sido  previsto  por  Silvestre,  chegando  seis  annos  antes  a  pre- 
venir o  Rei  do  que  lhe  guardava  o  futuro.  Razão  demais 
para  não  perder  a  própria  cabeça  quando  viu  realizado  seu 
vaticinio,  e  animar  Dom  João  VI  que,  perdido  entre  cem 
pareceres  divergentes,  sensatos  uns,  incongruentes  outros, 
que  zuniam  em  redor  do  throno,  ficara  de  todo  pessimista, 
reputando  i>erdidos  os  negócios  públicos. 

Depois  do  26  de  Fevereiro  eram  dous  os  partidos  a 
querer  que  Dom  João  VI  deixasse  o  Brazil,  pretendendo  na- 
turalmente o  patriota  que  Dom  Pedro  porém  ficasse,  pois  de 
um  mancebo  assim  inexperiente  e  ardego  se  poderia  facil- 
mente fazer  o  instrumento  da  separação  e  da  independência. 


1100 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 


O  Rei  bem  o  percebia,  e  por  isso  redobravam  suas  hesita- 
ções. De  qualquer  lado  se  lhe  antolhavam  revoluções.  Adivi- 
nhava que  deixar  o  Brazil  seria  perdel-o,  si  bem  que  em 
provável  beneficio  da  sua  própria  dynastia.  Não  ir  porém 
para  Portugal,  era  perder  completamente  o  reino  dos  seus 
antepassados,  permittindo  á  revolução  constitucional  que  de- 
generasse em  republicana,  a  não  consentir  n'uma  reacção  ab- 
solutista, sanguinolenta  como  muitos  a  preconizavam.  Ora, 
si  havia  um  ponto  em  que  concordassem  plenamente  Dom 
João  e  Silvestre,  era  com  certeza  na  antipathia  ás  re- 
pressões cruéis  e  na  preferencia  pelas  soluções  brandas. 

A  moderação  não  aproveitava  comtudo  com  personagens 
taes  como  os  cabecilhas  do  motim  de  26,  que  tiveram  a  petu- 
lância de  exigir  serem  apresentados  ao  Rei.  EUes  estavam 
formando  o  que  Maler  muito  apropriadamente  denominava 
um  comité  de  salut  public — comité,  dizia  elle,  sem  missão, 
sem  auctoridade  e  sem  forças  reaes,  a  que  entretanto  bastava 
proferir  uma  palavra  pára  ser  obedecido  pelo  impulso  do 
terror  pânico  que  inspirava   ( i ) . 

Os  exaltados  que  formavam  a  corte  d'esses  tyrannetes, 
de  convicção  uns  e  a  mor  parte  de  calculo,  imaginaram  logo 
um  conselho  extra-ministerial  sem  o  assentimento  do  qual 
ficassem  Rei  e  governo  prohibidos  de  tomar  resolução  al- 
guma importante  sobre  os  negócios  públicos.  Em  Madrid, 
que  se  tratava  de  imitar  ponto  por  ponto,  funccionara  uma 
junta  análoga  antes  da  reunião  das  Cortes,  e  no  Rio  já  auda- 
ciosamente circulava  a  lista  de  dez  membros  de  que  se  devia 
compor  o  tal  conselho  provisório.  Entre  elles  só  se  contava 


(1)    Officio  de   O   de   Março   de   1821. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1101 

um  Brazileiro,  e  este  mesmo  octogenário,  porque  o  plano  no 
fundo  era  anti-nacional  como  era  na  forma  demagógico. 

O  que  se  queria  era  cercear  mais  e  mais  a  auctoridade 
suprema,  escravizar  o  Rei,  cuja  figura  desapparecia  gradual- 
mente diante  da  insubordinação  e  da  anarchia,  porque  Dom 
João  fraquejara  por  completo  na  ignorância  do  seu  poder 
e  do  real  valor  da  sua  funcção  soberana.  Si,  bem  aconse- 
lhado, escrevia  Maler,  esse  Principe  fizesse  encarcerar  os 
dous  padres  Góes  e  Macamboa,  as  demonstrações  de  rego- 
zijo e  as  luminárias  seriam  mais  geraes  do  que  o  foram  por 
occasião  da  Constituição. 

Os  energúmenos  do  constitucionalismo  tinham  convul- 
sionado uma  cidade  que  até  ahi  só  com  festas  se  alvoroçara, 
e  açuládo  as  ruins  paixões  politicas.  No  theatro  os  especta- 
dores da  plebe  obrigavam  a  condessa  de  Belmonte  a  cantar 
as  quadras  e  as  outras  senhoras  presentes  a  repetirem  o  es- 
tribilho do  hymno  nacional.  A  Princeza  Real  dera  á  luz  a 
6  de  Março  e,  nas  cerimonias  religiosas  pelo  nascimento  do 
Principe  da  Beira,  os  sermões  foram  todos  politicos  (l).  A 
12  em  São  Francisco  de  Paula,  na  funcção  mandada  cele- 
brar pelo  Senado  da  Camará,  diz  Maler  ter  ouvido,  pro- 
nunciada do  púlpito,  uma  diatribe  contra  os  vicios  da  admi- 
nistração "que  infelizmente  não  offendia  a  verdade,  mas  cer- 
tamente chocava  todas  as  conveniências  do  sagrado  minis- 
tério e  da  dignidade  real,  alli  presente  e  recebendo  ao  pé  dos 
altares  ensinamentos  que  estavam  longe  de  ser  dictados  pelo 
espirito  de  caridade  christã"   (2). 


(1)  Corresp.    de    Maler   no    Arch.    do    Min.    dos    Neg.    Est.    flft 
França. 

(2)  Officio  de  14  de  Março  de  1821,  ibidem. 

D.J.  -  69 


1102  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Referia  para  Pariz  o  encarregado  de  negócios  que,  em 
duas  entrevistas  que  tivera  com  Dom  João  VI,  lhe  aconse- 
lhara a  medida  inadiável  da  detenção  dos  dous  clérigos  es- 
candalosos que  provocavam  o  alvoroço,  fazendo-lhe  ver 
quanto  eram  ambos  desprezados  e  de  facto  débeis  pela  falta 
de  ligações,  odiando-os  os  Brazileiros  sem  excepção  e  come- 
çando as  tropas  portuguezas  a  envergonhar-se  de  haver  par- 
tilhado com  elles  das  glorias  do  26  de  Fevereiro.  Sem  nada 
poder  dizer  em  contrario  a  Maler,  tampouco  accedeu  o  Rei 
á  recommendação,  parecendo  ainda  em  demasia  penalizado 
e  desfallecido  com  aquelles  acontecimentos  para  poder  ado- 
ptar qualquer  resolução  enérgica,  por  menor  que  fosse;  mas 
já  começando  a  capacitar-se  de  que  semelhantes  indivi- 
duos  não  possuiam  influencia  alguma  duradoura  sobre  as 
tropas    ( I ) . 

Estas  estavam  recolhendo,  com  os  louros,  as  vantagens 
das  suas  façanhas  politicas,  fraternalmente  praticadas.  Pelo 
decreto  de  7  de  Março  os  soldos  dos  officiaes  do  exercito  do 
Brazil  foram  equiparados  aos  do  exercito  de  Portugal  e  esta 
disposição  se  extendeu,  com  um  augmento  simultâneo  nas  ta- 
beliãs, aos  vencimentos  dos  officiaes  subalternos  e  dos  sol- 
dados dos  dous  Reinos.  As  forças  européas,  ao  mesmo  tempo 
que  insistiam  na  communidade  de  nacionalidade  e  de  interes- 
ses, timbravam  todavia  em  não  ser  confundidas  com  as  na- 
cionaes  e  em  reivindicar  a  nobreza  dos  seus  actos. 

N'uma  representação  ao  Rei,  declarava  a  guarnição 
portugueza  da  capital  fluminense  que  o  fito  do  movimento 
politico  por  ella  executado  fora  salvar  o  Brazil  da  anarchia, 
attrahindo-o  á  causa  portugueza  e  destruindo  projectos  que 
pudessem  existir,  tendentes  a  segregal-o  d 'esse  centro  de  uni- 

(1)   Corresp.  de  Maler,  ibidem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1103 

dade,  único  capaz  de  manter  os  interesses  do  Reino  Unido 
(i).  Arrastada  pelo  Principe  Real,  idolo  então  dos  consti- 
tucionaes  portuguezes  do  Brazil  e  que,  si  o  Pai  lhe  houvesse 
dado  consentimento,  teria  prendido  os  quatro  cabecilhas  do 
dia  26,  a  guarnição  renegava  esta  passada  intimidade  e  pro- 
nunciava-se  contra  quaesquer  juntas  provisórias  no  Rio  de 
Janeiro,  protestando  querer  apenas  ver  realizarem-se  os  pla- 
nos de  reforma  gerados  pelas  meditações  e  sabedoria  das 
Cortes,  e  não  projectos  concebidos  por  pessoas  obscuras,  ás 
quaes  tão  somente  competia  obedecerem  ao  que  fosse  vontade 
positiva  de  Sua  Magestade. 

Com  esta  manifestação  militar  se  acobardaram  muito  os 
cabecilhas  que  estavam  terrorizando  o  Rio,  um  d'elles,  o 
major  Almeida,  pedindo  até  logo  o  seu  passaporte  e  todos  re- 
ceiando  a  detenção,  quando  até  ahi  elles  eram  os  que  promo- 
viam as  prisões.  Respeitáveis  membros  da  Junta  anterior  ao 
novo  ministério  foram  recolhidos  á  cadeia,  depois  de  insul- 
tados, por  exigências  dos  terroristas  ou  para  escaparem  a 
tratamento  peor  ás  mãos  do  povo,  a  cujo  furor  assim  os  sub- 
trahiram  as  auctoridades.  A  versão  ultima  é  crivei  si  atten- 
dermos  a  que,  depois  do  aviso  recebido  pelos  cabecilhas  de  se 
não  intrometterem  mais  nos  negócios  públicos,  os  presos  fo- 
ram soltos. 

A  agitação  era  o  elemento  natural  d'esses  personagens, 
e  sem  ella  não  poderiam  mesmo  exercer  seus  talentos  malfa- 
zejos. O  conde  de  Gestas  escrevia  a  I2  de  Março  que  os 
ajuntamentos  populares  augmentavam  de  parelhas  com  a 
indecisão  do  novo  governo,  que  nada  fazia  além  de  procla- 
mações as  quaes,  pretendendo  ser  neutraes,  não  satisfaziam 
partido  algum,  emquanto  que  o  Rei  se  arreceiava  sem  distinc- 

(1)    Informações  do  ic  secretario  conde  do  Gestas,  em  commii- 
nicaçao  de  12  de  Março  de  1821,  ibidem. 


1104  DOM  JOÃO  VrNO  BRAZIL 

ção  de  todas  as  facções,  cedendo  porém  alternativamente  aos 
conselhos  dos  que  acreditava  serem  seus  chefes,  á  espera  lá 
no  âmago  que  n'aquella  confusão  lhe  fosse  ainda  poupado  — 
nem  elle  sabia  mesmo  como  —  o  doloroso  regresso. 

Os  m'ajores  e  padres  que,  instigadores  efficazes  e  já  ex- 
perientes, tinham  andado  acirrando  a  soldadesca  e  a  plebe 
para  conservarem  elles  o  domínio  da  situação,  definiam  na 
parte  que  lhes  tocava  o  estado  de  lucta,  apenas  adormecida 
uns  instantes,  entre  as  duas  correntes,  reinol  e  nacionalista, 
que  d'ora  avante  tinham  de  medir-se  até  se  extinguir  uma 
sob  a  outra.  Os  clubs  portuguezes  queriam  a  todo  transe 
ver  os  empregados  brazileiros  fora  dos  seus  lugares,  das  Se- 
cretarias, da  Alfandega,  do  Desembargo  do  Paço,  e  foi  o 
receio  da  chamada  reacção  brazilica  que  motivou  as  prisões 
arbitrarias  de  Luiz  José  de  Carvalho  e  Mello  (futuro  vis- 
conde da  Cachoeira),  Severiano  Maciel  (futuro  marquez  de 
Queluz),  Targini  (visconde  de  São  Lourenço)  e  almirante 
Pinto  Guedes  (futuro  barão  do  Rio  da  Prata),  suggeridas 
ou  antes  arrancadas  ao  Rei  sob  o  pretexto  de  que  suas  pes- 
soas iam  ser  atacadas  €  maltratadas. 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira  gabou-se  de  ter  feito  annul- 
lar  aquella  apprehensão  de  reacçeão,  dando-lhe  cor  de  pro- 
tecção contra  os  manejos  dos  que  não  podiam  levar  á  pa- 
ciência que  o  Brazil  sahisse  de  vez  da  dependência  colonial. 
Assim  se  extendendo  do  dominio  theoretico  ao  pratico,  á 
acção  do  primeiro  ministro  de  estrangeiros  de  nomeação  po- 
pular no  Brazil,  exercia-se  de  facto  liberalmente  sobre  os 
procedimentos  irregulares  ou  mesmo  violentos  que  os  tempos 
originavam;  accrescendo,  no  caso  de  Targini  — o  único  dos 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1105 

presos  que  era  impopular  —  que  elle  devia  contas  minuciosas 
da  sua  gestão  de  thesoureiro-mór,  da  honestidade  da  qual 
suspeitava  o  próprio  Silvestre,  qualificando  no  emtanto  de 
anarchistas  os  elementos  que  iam  permittindo  semelhantes 
actos  discrccionarios  como  essas  prisões. 

Nem  os  resultados  seriam  afinal  benéficos  porque,  para 
reformar  os  abusos  e  remodelar  a  sociedade  politica  do  tempo, 
não  serviam  processos  vingativos:  o  que  se  fazia  preciso  era 
uma  mão  de  ferro,  com  um  alto  e  sincero  ideal,  podendo  em 
tal  hypothese  evidenciar  um  absoluto  desprendimento  de  con- 
veniências e  de  contemplações.  O  próprio  José  Bonifácio  não 
evoca  essa  figura. 

A  medida,  por  exemplo,  de  tornar  effectiva,  por  meios 
forçosos  ou  voluntários,  a  entrada  das  dividas  dos  particula- 
res ao  Banco  do  Brazil  —  cujo  credito  para  com  o  erário 
tampouco  se  liquidou  apezar  da  espectaculosa  suggestão  do 
penhor  das  jóias  da  coroa — ,  indo  bolir  com  muitas  das  pes- 
soas mais  poderosas  da  terra,  exigia  na  opinião  de  Silvestre 
um  grau  de  energia  para  o  qual  se  não  sentiria  bastante  dis- 
posto o  ministério  a  que,  mercê  da  partida  de  Dom  João  VI, 
ficaria  ao  lado  do  Principe  confiada  a  execução  d'aquella 
tarefa  de  restauração  financeira  ( i ) . 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira  fora,  d  entre  os  novos  minis- 
tros, o  encarregado  de  redigir  a  Carta  Regia  relativa  á  re- 


(1)  "E  na  verdade  he  melhor  não  adoptar  esta  medida  s?  se 
hn  de  lexc  cnitar  ccmo  cstA  acontecendo  com  o  visconde  de  S.  Tx)ui'enço. 
que  pcidind'0-s.p-lhe  contas  da  sua  a^drainistração  como  Tliezcureiro 
mór,  respondeu  com  as  quitações  dos  lialanços  que  fez  annualmente 
o  Presidente  do  Erário:  e  V.  S».  ver.l  (pois  ainxla  cá  fica  depois  de 
nós  partirmos)  que  o  Governo  se  ha  de  dar  por  satisfeito  :  e  o  visconde 
híi  de  sahir  muito  airoso:  e  talvez  muito  elogiado."  (Carta  XV,  nos 
Armacs  da  Bibl.  Nac.) 


1106  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

gencia  e  bem  assim  as  instrucções  que  deviam  ser  deixadas 
com  o  lugar-tenente  real  para  guiar  sua  administração,  na 
qual  serviria  de  primeiro  ministro  o  conde  dos  Arcos,  alfim 
chegado  ao  topo  das  suas  aspirações.  Achava  não  obstante 
Silvestre  que  "todas  e  quaesquer  instrucções  serião  considera- 
das como  desnecessárias  e  impertinentes",  porque  tanto  Dom 
Pedro  como  Arcos  andavam  embalados  por  idéas  erradas 
dos  seus  respectivos  talentos,  prestigio  e  popularidade. 

"Estam  na  lisongeira  e  portanto  indestructivel  illusão 
de  que  apenas  o  Brazil  se  entregue  ao  seo  Governo  obede- 
cerá com  docilidade  aos  seos  acenos:  que  debaixo  do  único 
nome  de  Brazileiros  e  de  hum  só  Império  os  Povos  desde  o 
Rio  da  Prata  até  ao  Amazonas  formarão  gostosos  e  tran- 
quillos  huma  só  familia:  e  que  Portugal  caduco  de  annos, 
e  acabrunhado  dos  trabalhos  da  Revolução  que  vae  a  acabar 
lhe  as  forças  ou  se  pefde,  e  nelle  pouco  perde  o  grande  Impé- 
rio do  Brazil,  ou  para  se  salvar  invoca  a  protecção  deste 
seo  poderozo  Co-estado  e  pela  segunda  vez  salva  o  Brazil 
a  Portugal  da  sua  total  anniquilação"  (i). 

E'  facto  que  apenas  o  movimento  da  independência,  de- 
pois de  traduzir-se  pela  acclamação  do  Imperador,  lograria 
reunir  por  suggestão  ou  por  força  o  que  tão  fragmentado 
andava,  ,que  fora  opinião  muito  vigorosamente  exposta  por 
Silvestre,  compartilhada  até  certo  ponto  por  Palmella  mas 
combatida  por  Thomaz  António  e  outros  conselheiros,  que 
na  volta  para  Portugal  se  detivesse  o  Rei  na  Bahia,  como  o 
fizera  na  vinda  para  o  Brazil :  d'€sta  vez,  porém,  na  inten- 


(X)  Carta  XI,  il)Mem. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1107 

ção  de  concertar  a  junta  local  com  o  governo  central,  des- 
manchar a  desunião  que  se  alastrava  e  deixar  o  Reino  ul- 
tramarino de  algum  modo  ligado  no  seu  conjuncto  poli- 
tico (i). 

Tornarà-se  por  fim  inadiável,  e  de  um  modo  absoluto, 
adoptar  uma  resolução  e  uma  norma  sobre  o  regresso.  O  mo- 
mento apparecia  quasi  ou  mesmo  tão  angustioso  como  o  de 
Novembro  de  1807.  Já  pela  demora  a  volta  ia  tomando  ares 
de  satisfacção  ás  cortes,  não  mais  de  graça  do  soberano. 

Os  que  favoreciam  ou  reputavam  indispensável  a  ida 
do  Rei,  sem  quererem  saber  si  esta  lhe  era  ou  não  agradável, 
comtanto  que  servisse  seus  planos,  argumentavam  por  forma 
que   declaravam   decisiva   com   a   sediça   ameaça   da   reunião 


(1)  o  motivo  principal  de  abandonar-se  esta  idéa  foi,  ao  que 
parece,  a  declaração  do  almirante  conde  de  Vianna  ãe  que,  caso  ar- 
ribasse á  Bahia  e  se  demorasse,  não  lograria  a  esquadra  proseguir  a 
viagem  por  falta  de  viveres,  que  com  difficuldade  se  tinham  reunido 
para  tanta  gente  quanta  a  que  embarcava,  e  soffrendo  o  governo  os 
peores  apuro.»  de  .dinheiro. 

A  opinião  expressa  por  Palmella  era  que  o  Rei  mesmo  se  não 
dirigisse  &  Bahia,  ignorando-se  no  Rio  como  seria  elle  recebido  pelas 
novas  auctoridad< !-  da  côí  constitucional,  cujas  di-íposicíões  se  não 
podiam  exactamente  prever:  mas  que  "mandasse  para  lá  o  bergantim 
com  as  suas  Regias  ordens  á  Junta,  acompanhadas  de  um  Manifesto 
conforme  ao  espirito  da  nova  ordem  de  cousas  que  S.  M.  adoptou  e 
jurou   manter,  indo  o  rt-sto   da  esqua.õi-:i   esperar  em  Pernambuco  pela 

reunião   do   mesmo   bergantim No   caso   porém   que   haja   alguma 

esperança   fundada de   que   a  presença   de   S.   M.  na  Bahia  baste 

para  sanar  a  scisão  que  actualmente  existe  entre  aquella  l'rovincia  e 
o  Governo  central  ;  indo  S.  M.  firmemente  determinado  a  não  se  de- 
morar na  arribada  mais  de  oito  dias,  e  a  refazer  os  navios  da  sua 
esquadra  só  de  aguada  e  de  algumas  pr-ovisõ-^s  indispensáveis,  que 
seria  summamente  de  desejar  podessem  pagar-se  por  meio  de  lettras, 
ou  dtí  algum  modo  similhante,  sem  ser  A  .custa  dos  habitantes  da  Ba- 
hia :  r.Ro  hcsitani  n'rst.'^  caso  cm  declarar  que  .considero  por  muito 
mais  conforme  a  dignidade  d^El-Rei  e  aos  interesses  da  Nação  e  da 
Coroa  o  fazer  esta  ultima  diligencia  para  deixar  o  Brasil  unido  e 
tranquillizado,  antes  do  que  proseguir  a  viagem  no  estado  de  duvida  em 
que  tudo  fica  n'este  continente."  (  Despachos  e  Correspondência, 
Tomo  I). 


1108  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

de  Portugal  á  Hespanha,  não  mais  forçada  é  verdade,  effeito 
de  uma  conquista  quasi  impossível,  mas  levada  a  cabo  pela 
solidariekiade  das  idéas  liberaes  e  pela  harmonia  dos  interes- 
ses de  defeza  commum. 

Consolavam-se  outros,  affeiçoados  a  um  tempo  ao  novo 
regimen  e  á  pessoa  do  monarcha,  com  a  idéa  de  quanto 
para  a  solução  constitucional  se  podia  Dom  João  VI  consi- 
derar preparado  pela  sua  cordura  de  animo,  espirito  de  re- 
flexão e  inclinação  para  os  desenlaces  legaes  e  moderados. 

Descortinavam  alguns,  mais  sagazes  ou  menos  confiados, 
que  o  Reino  do  Brazil  se  iria  dissolvendo  sem  remissão  com  a 
adhesão  particular  e  separada  de  cada  uma  das  provincias 
brazileiras  ás  Cortes  de  Lisboa,  e  que  era  mister  sustar  a 
desaggregação  por  meio  de  algum  processo  mais  enérgico  do 
que  a  mera  presença  de  El-Rei  Dom  João. 

O  partido  portuguez  apressava  aquellas  adhesões  desta- 
cadas porque  esphacelavam  o  paiz,  e  faziam  naufragar,  antes 
que  sahisse  ao  mar  largo,  o  projecto  de  Constituição  brazi- 
leira,  differente  da  portugueza,  que  se  asseverava  com  ver- 
dade haver  ideado  Pálmella.  O  constitucionalismo  do  ex-mi- 
nistro,  não  menos  sincero,  era  tão  opportunista,  concreto  e 
inglez  no  sentido  de  pratico,  quanto  o  de  Silvestre  era  dou- 
trinário, abstracto  e  francez  no  sentido  de  theorico,  posto 
apparecessem  um  e  outro  igualmente  de  alcance  porque  par- 
tiam da  intelligencia  mais  que  do  sentimento.  "Mas  o  facto 
he,  escrevia  Silvestre  (i)  sobre  a  desunião  do  laço  politico 
brazileiro  que  atava  frouxamente  as  antigas  capitanias,  que 
desligadas  deste  centro  e  de  hum  systema  existente,  para 
se  ligar  a  huma  autoridade,  e  governar-se  por  huma  legisla- 
ção que  ainda  não  existe  e  talvez  não  existirá  jamais,  he 


(1)   Cartas  cit.,  nos  Annaes  da  Bibl.  Nac. 


i 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1109 

dissolver  todo  o  nexo  social;  he  substituir  a  hum  Governo, 
defeituoso  sim,  mas  emfim  Governo  que  tinha  e  podia  se- 
guir ainda  um  andamento  protector  dos  direitos  civis  de 
cada  habitante,  a  mais  completa  anarchia." 

Justamente  quando  se  deram  as  imposições  â^  dia  26  de 
Fevereiro,  de  uma  constituição  desconhecida  e  de  um  minis- 
tério que  resultou  incontestavelmente  mais  sympathico  á 
opinião  publica  —  quer  a  brazileira,  por  lhe  repugnarem 
aristocratas  como  Palmella  e  validos  como  Thomaz  António, 
quer  a  portugueza,  por  se  lhe  depararem  no  primeiro  capa- 
cidade e  pertinácia  para  encontrarem  solução  á  questão  posta 
—  estava,  como  vimos,  prestes  a  publicar-se  o  decreto  de 
adopção  para  o  Reino  do  Brazil  da  Constituição  a  fazer-se 
em  Lisboa,  sempre  "salvas  as  modificações  que  as  circum- 
stancias  lociaes  tornassem  necessárias." 

Tropa  e  povo  não  queriam  porém  ouvir  fallar  em  modi- 
ficações, por  mais  razoáveis  que  pudessem  ser,  e  só  enten- 
diam de  formular  exigências  novas,  ainda  que  disparatadas. 
Na  phrase  pouco  incisiva  litterariamente,  mas  moralmente 
ponderosa  de  Silvestre,  o  espirito  de  vertigem  que  dera  im- 
pulso para  o  rompimento,  continuava  a  laborar,  "porque  nem 
he  possivel  se  contente  com  qualquer  ordem  de  coisas  que  se 
esítabeleça:  nem  na  actual  se  acham  investidas  de  poder  as 
pessoas  que  detraz  da  cortina  dirigiram  os  passos  dos  que 
no  dia  26  do  mez  passado  figurariam  para  com  o  pu- 
blico" (i). 

Silvestre,  penetrando  d  est'arte  no  jogo  do  partido  por- 
tuguez,  chegou  por  isso  a  considerar  plenamente  dissolvida 
a  monarchia  brazileira.  Proclamando  cada  qual  de  per  si 
sua  submissão    ao   governo   revolucionário   de    Portugal,    as 

(1)   Carta  VII,  de  Março,  mdem. 


1110  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

províncias  ultramarinas  iam  virtualmente  sacudindo  o  jugo 
do  Rio,  mas  para  se  encaminharem  para  a  recolonização,  e 
de  antemão  justificavam  o  esforço  considerável  dos  Andradas 
e  outros  patriotas  para  unificarem  de  novo  o  paiz,  fornecen- 
do-lhe  um  centro  de  acção  e  uma  orientação  conjuncta  e 
harmónica. 

Esta  questão  de  nacionalidade  constituia  o  eixo  em 
volta  do  qual  continuaram  a  gjTar,  em  Março  e  Abril,  as 
discussões  sobre  o  regresso  da  corte  para  Portugal.  O  novo 
ministério  opinava  pela  partida  de  Dom  João  VI  por  lhe 
parecer  ser  de  todo  ponto  impossivel  ao  Rei  acompanhar  de 
tão  longe  a  obra  constitucional  de  reforma,  e  haver  o  perigo 
concomitante  de  dar-se  um  scisma  na  monarchia:  mais  fácil, 
entenldiam  os  do  governo,  de  evitar-se,  estando  o  soberano 
na  antiga  sede  da  sua  auctoridade  e  permanecendo  o  Principe 
como  penhor  da  dynastia. 

Dom  João  resignava-se  sem  se  consolar.  A  sua  partida 
ficou  assente.  Deixou-a  El-Rei  perceber  a  Maler  no  dia  do 
bom  successo  da  Princeza  Real,  quando  este  foi  a  cumpri- 
mental-o,  e  annunciou-a  Silvestre  Pinheiro  Ferreira  em  nota 
circular  de  13  de  Março  ao  corpo  diplomático  estrangeiro  e 
ás  legações  na  Europa.  Segundo  este  documento,  o  Principe 
só  se  demoraria  no  Brazil  até  se  estabelecer  a  Constituição 
geral  da  monarchia,  ficando  no  porto  a  fragata  União  para 
opportunamente  transportal-o  com  a  Princeza. 

Silvestre  cedia  n'este  assumpto  porque,  entre  os  seus 
coUegas  de  ministério,  estava  isolado  no  p'ensar  que  a  par- 
tida do  Rei  implicava  a  separação  do  Brazil,  attendendo  a 
que  só  ficavam  depois  d'ella,  para  manterem  e  legitimarem 
seu  poder  já  quasi  nominal,  tropas  aborrecidas  tom  razão 
pelo  mau  comportamento   de  muitos   dos  seus  membros,   e 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  IIU 

que  difficilmente  poderiam  conter  por  longo  tempo  gentes 
que  já  tinham  tomado  gosto  pela  desordem  e  pelas  innova- 
ções.  Identicamente  raciocinava  Maler,  partindo  de  qutras 
premissas  e  escrevendo  por  seu  lado  que  "os  Brazileiros 
cedo  ou  tardie  acordariam  da  sua  apathia  e  nullidade  e  se 
não  prestariam  mais  a  ser  o  joguete  e  o  ludibrio  de  um  pu- 
nhado de  Portuguezes." 

A  extrema  distancia  entre  o  monarcha  e  a  ássembléa 
constituintie  das  Necessidades,  julgava  Silvestre  que  seria 
até  vantajosa  á  sabia  elaboração  da  lei  orgânica  da  realeza 
constitucional,  corrigindo  e  ajustando  a  sua  mais  que  prová- 
vel c^onfusão  de  princípios  politicos.  A  legislação  subsidiaria, 
preparada  e  promulgada  no  Rio,  teria  também  outro  cunho 
de  gravidade  e  opportunismo ;  sem  esquecer  que,  depois  da 
tarefa  politica  de  Lisboa,  relativa  particularmente  a  Portu- 
gal, restava  conficionar  a  Constituição  brazileira  que  devia, 
juntamente  com  a  portugueza,  formar  a  base  do  Reino 
Unido,  "podendo-se  depois  de  todos  aquelles  preliminares 
trabalhos  e  mais  longe  da  influencia  dos  Partidos  nacionaes 
e  das  Potencias  estrangeiras  {no  caso  de  pretenderem  inter- 
vir em  prol  dos  principios  da  Santa  AlUança)  mais  facil- 
mente organizar  hum  systema  constitucional  conforme  as 
precisões  de  todas  as  differentes,  e  tão  differentes  partes 
desta  vasta  Monarquia"  (i). 

Na  realidade — Silvestre  o  não  queria  certamente  en- 
xergar— o  Rei  passara  a  ser  um  factor  quasi  nullo  d'essas 
emergências.  A  perturbação  da  monarchia  aproveitava  em 
ultima  analyse,  conforme  os  pontos  de  vista,  ás  Cortes  ou  y 
Dom  Pedro.  Po'dia  Dom  João  VI  ser  denominado  El-Rei 
Nosso  Libertador  nos  artigos  pesados  e  grandiloquos   com 


(1)    Cartas  clt.,   ihidem. 


1112  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

que  enalteciam  a  assembléa  de  Lisboa — nossa  Estrella  Polar 
— as  folhas  que  entraram  a  pullular  com  a  liberdade  de  im- 
prensa (i),  todas  tão  declamatórias  como  vasias  (2). 

A  verdadeira  apotheose  passava  porem  por  sobre  a  ca- 
beça do  bondoso  monarcha,  desdenhando  aureolal-a,  para  il- 
luminar  as  figuras  dos  liberalões  que,  de  casaca  abotoada 
justa  e  collarinhos  altos,  apertados  os  pescoços  em  largas  gra- 
vatas de  seda  preta,  tonitroavam  nas  Necessidades,  ou  então 
a  do  príncipe  esbelto  e  moreno  que,  no  seu  uniforme  de 
dragão,  galopava  doidamente  pelas  ruas  e  estradas  do  Rio, 
ancioso  por  desempenhar  um  qualquer  papel  conspicuo. 

Quando  se  tratou  todavia  muito  a  serio  da  retirada  de 
Dom  João  VI  para  a  Europa,  pode  dizer-se  que  a  grande 
rnaioria  senão  a  totalidade  da  população  fluminense,  esque- 
cendo algumas  das  consequências  prováveis  e  para  ella  aus- 
piciosas d'esse  acto  preliminar  da  separação  politica,  se  uniu 
consternada  n'um  mesmo  sentimento.  Por  mais  que  aquella 
partida  servisse  os  interesses  de  uns  ou  os  designios  de  outros, 


(1)  A  censura  passou  tia  policia  para  o  inspector  geral  dos 
estabelecimentos  litterarios. 

(2)  Eis  uma  amostra  tio  estylo  jornalistico  da  epoclia,  carre- 
gado de  mia.iusculas  e  de  .princípios  Jiberaes  e  não  raro  leve  de  senso 
commum  :  "Iliim  Soberano,  que  até  então  não  conhecia  limites  í1  sua 
Authoridade  Real,  posto  que  n'ella  nunca  transpozesse  as  metas  do 
justo,  entregar  nas  mãos  do  seu  Povo  esse  poder  de  que  gozaram  seos 
ínclitos  Maiores,  para  'o  receber  depois  restricto,  mas  consolidado  por 
hum  novo  Tacto  social,  que  assegure  para  sempre  a  felicidade  da  Na- 
ção, he  este  hum  phenomeno  nunca  visto  depois  que  ha  Sociedades, 
depois  que  ha  Reis!  Monarchas  do  Mundo,  que  fazeis  a  guerra  aos 
povos  estranhos,  e  aos  vossos  mesmos  por  hum  palmo  de  terra,  por 
hum  accrescimo  de  Regalia  ;  voltai  os  olhos  para  a  America,  observai 
o  brilhante  Meteoro  que  allumia  esta  vastíssima  Região  :  vede,  e  ad- 
mirai a  Magnanimidade,  a  Munificência  do  Soberano  do  Reino  Unido 
de  rortugal,  Brazil,  e  Algarves,  que  aos  povos  estranhos  dá  legoas,  e 
legoas  de  terra,  e  aos  seos  entrega  com  Generosa  Franqueza  aquella 
parte  da  ingerência  no  Governo  Politico  da  Monarchia,  que  a  Nação 
legalmente  representada  julgar  d.over  exercer  por  seos  legítimos  Pro- 
curadores."   (O  Bem  da  Ordem) . 


Á 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1113 

pois  Portuguezes  e  Brazileiros  contavam  tirar  proveito  da 
mesma,  o  pensamento  que  prevaleceu  no  primeiro  momento 
entre  os  nacionaes,  foi  o  de  pezar  pela  perda  de  um  Rei 
que  todos  se  tinham  acostumado  a  querer  mais  ainda  do  que 
a  respeitar.  Choveram  requerimentos,  do  commercio,  do  clero, 
de  proprietários,  de  empregados  públicos,  implorando  a  per- 
manência de  Dom  João  VI  que  os  escutava  commovido,  tre- 
mulo o  grosso  lábio  e  as  lagrimas  a  correrem-Lhe  pelas  gordas 
bochechas,  sem  ousar  comtudo  pronunciar  um  fico. 

Havia  corn  certeza  preoccupações  egoistas  n'essas  suppli- 
cas,  mas  a  parte  natural  e  impulsiva,  de  puro  sentimento, 
era  incontestavelmente  superior.  O  egoismo  aliás  se  explicava. 
Compre'henide-se  que  na  attitude  de  fidelidade  ao  velho  Rei 
entrasse,  por  parte  do  elemento  brazileiro,  mais  numeroso 
mas  menos  forte  que  o  europeu,  um  certo  instincto  de  defeza, 
uma  impressão  inconsciente,  ou  mesmo  consciente  em  alguns, 
da  mutua  confiança  e  apoio  que  se  podiam  prestar,  porquanto 
o  anno  de  1821,  depois  de  26  de  Fevereiro,  foi  o  anno  typico 
da  oppressão  portugueza  'n'um  supremo  esforço  de  conser- 
vação. 

Todo  o  rancor  accumulado  na  alma  do  velho  Reino 
durante  o  tempo  da  residência  brazileira  da  corte  e  causado 
pela  affeição  regia  á  colónia  deixada  quasi  Império,  espirrou 
então  pela  válvula  offerecida  na  antiga  metrópole  aos  des- 
abafos oratórios.  No  novo  Reino,  a  tropa  de  linha,  cuja  offi- 
cialidade- e  cuja  fileira  eram  em  grande  parte  portuguezas, 
estava  senhora  das  posições  e,  conforme  acontece  sempre  nas 
revoluções,  os  peores  elementos  tinham  vindo  á  tona  e  nada 
obstruia  o  livre  curso  dos  resentimentos. 

As  Cortes  tinham-se  reunido  em  Lisboa  com  o  vlsivel, 
declarado  intento  de  recolonizar  o  Brazil,  e  tanto  bastava 


1114  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

para  que  se  tornassem  populares  entre  o  elemento  reinol 
além-mar.  Todos  os  movimentos  reflexos  de  constituciona- 
lismo que  occorreram,  não  foram,  olhados  por  esse  prisma, 
mais  do  que  outros  tantos  indicios  de  má  vontade  á  aspira- 
ção nacionalista  do  paiz  que  se  organizara  independente  de 
reacção  contra  a  própria  autonomia  concedida  ao  Reino  do 
Brazil. 

Durante  aquelle  anno  o  Principe  herdeiro  conservou-se 
do  lado  portuguez.  Depois  foi  que  o  esforço  de  persuasão 
dos  elementos  nativistas,  a  natural  intelligencia  da  situação 
e  as  violências  declamatórias  das  Cortes  o  determinaram  a 
inclinar-se  para  o  outro  lado  e  lançar  na  balança,  no  prato 
da  separação,  todo  o  peso  do  seu  prestigio  pessoal  e  todo  o 
valor  dos  seus  direitos  de  successão  soberana.  1822  seria  o 
anno  brazileiro,  como  1821  foi  o  anno  portuguez. 


CAPITULO  XXX 


A  DESILLUSÂO  DO  REGRESSO 

Dom  João  VI,  quando  mesmo  não  possuísse  intelligen- 
cia  politica,  tinha  sobrada  experiência  de  governo  para  dei- 
xar de  reconhecer  que,  na  historia  da  monarchia  portugueza, 
o  momento  não  podia  ser  mais  de  resistência,  antes  era  de 
concessões.  Quando  muito  lhe  seria  licito,  ao  representante 
do  direito  divino,  tergiversar  sobre  a  extensão  das  liberda- 
des: negal-as,  porém,  ser-lhe-hia  tão  impossível  quanto  o  havia 
sido  aos  monarchas  da  França  e  da  Hespanha. 

A  elle  próprio  tinha  sido  dado  resistir  ao  tratar-se  ligei- 
ramente em  1810,  depois  de  repellida  a  ultima  invasão  fran- 
ceza,  de  serem  convocadas  em  Portugal  Cortes  na  forma  an- 
tiga da  monarchia— "sendo  d'ellas  apaixonado",  na  phrase 
de  Funchal  (i),  o  marquez  de  Wellesley,  secretario  prin- 
cipal dos  Negócios  Estrangeiros  e  irmão  do  marechal  Wel- 
lington. A  ordem  então  mandada  para  Londres  foi  clara  e 
terminante,  de  oppor-se  o  embaixador  a  semelhante  convoca- 
ção, sempre  que  a  elle  se  referisse  o  Foreign  Office. 

(1)  Officio  seciH^tissimo  a  Linhares,  de  26  de  Novembro  de  1810 
no  Arch.  do  Min.  das  Rei.  Ext.  ' 


1116  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Agora,  comtudo,  debalde  procuraria  esquivar-se  o  mo- 
narcha,  por  mais  que  tentasse  ladear  a  questão  e  usar  de  es- 
capulas. N'esta  impressão  o  devia  ter  necessariamente  radi- 
cado a  presença  no  Rio  de  Palmella  que,  durante  sua  estada 
em  Portugal,  simultânea  com  os  primórdios  da  revolução, 
fora  quem  mais  aconselhara  os  Governadores  do  Reino  a 
convocarem  logo  as  Cortes  como  o  melhor  meio  de  irem  ao 
encontro  das  reivindicações  liberaes  ( i ) . 

Demorado  pela  Regência  legal  e  rogado  de  dar-lhe  os 
conselhos  do  seu  largo  traquejo  'dos  negócios  e  despreoccupada 
comprehensão  das  cousas  politicas  —  por  isto  mesmo  posto 
á  margem  e  mantido  em  desconfiança  pela  junta  provisio- 
nal do  novo  governo  supremo,  de  que  era  alma  Manoel 
Fernandes  Thomaz — ,  Palmella  seguira  afinal  para  o  Rio 
na  resolução  de  suggerir  abertamente  ao  Rei  "que  não  ha 
nem  um  só  instante  a  perder  para  adoptar  medidas  firmes, 
decisivas,  análogas  ao  espirito  do  tempo  quanto  for  compa- 
tivel  com  a  honra  e  segurança  do  Throno,  e  que  este  systema, 
adoptado  sem  perda  de  tempo,  deve  ser  seguido  com  cohe- 
rencia   e   com   franqueza"    (2). 

Palmella  pensava  sobretudo  em  pôr  um  termo  próximo 
á  revolução  de  Portugal  para  evitar  outra,  que  previa  peor, 
no  Brazil,  e  entendia  que  áquella  só  se  poria  termo  mediante 
a  execução  de  intelligentes  medidas  liberaes,  porque  taes 
movimentos  não  eram  tanto  expressões  de  descontentamentos 


(1)  "Esperam  os  Governadoifs  do  Reino,  rezava  a  proclamação 
de  l!?  de  Setembro  dictada  por  Palmella,  que  uma  medida,  que  tão  de- 
cididamente prova  a  determinação  de  se  attender  ás  queixas,  e  ouvir 
os  votos  da  Nação,  reunirá  immediatamente  a  um  centro  legitimo  e 
/commum  a  Nação  inteira  ;  e  que  todas  as  classes,  de  que  a  mesma  se 
compõe,  reconhecerão  a  necessidade  de  uma  tal  união,  para  evitar  os 
males  imminentes  da  anarchia,  da  guerra  civil,  e  talvez  da  dissolução 
da  monarchia."    (Desp.  e  Corresp.,  Tomo  I). 

(2)  Desp.    o    Corresp.,    Tomo    I. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRA2:iL  1117 

locaes  como  manifestações  de  um  estado  d'alma  geral,  ao 
qual  somente  se  acudiria  com  a  outorga  de  uma  Carta  para 
fugir  a  uma  Constituição  elaborada  em  Cortes. 

Para  impedir  em  todo  o  caso  que  a  concessão  passasse 
além  de  certos  limites,  o  que  sem  duvida  aconteceria  si  os 
revolucionários  fossem  deixados  sem  freio  e  sem  receio,  re- 
presentara o  ministro  dos  negócios  estrangeiros  e  da  guerra 
ao  seu  soberano  que  se  tornava  mister  ir  para  Lisboa  o 
Rei  em  pessoa  "ou  mandar  o  seu  filho  primogénito  para 
inspirar  respeito,  e  servir  de  centro  de  união  aos  bons  Por- 
tuguezes."  Este  segundo  alvitre,  com  que  o  diplomata  se 
congraçara,  tinha  aliás  uma  vantagem,  a  de  permittir  ao 
monarcha  resistir  melhor  ao  impulso  popular,  o  qual  poderia, 
querer  emprestar  á  Constituição  uma  orientação  em  ex- 
tremo democrática,  ao  mesmo  temipo  que  prevenia  quaesquer 
consequências  fataes  no  Brazil,  indo  quiçá  até  á  dissolução 
da  monarc'hia. 

N'uma  eloquente  memoria,  destinada  a  Dom  João  VI 
e  na  qual  Palmella  taxava  de  perigosos  e  infructiferos  os 
alvitres  propostos  em  discordância  dos  seus  e  em  sympathia 
com  a  maioria  dos  votos  do  conselho  régio,  por  Thomaz  An- 
tónio, tanto  num  espirito  de  antagonismo  politico  como  de 
emulação  pessoal,  dizia  o  auctor  que,  em  sua  opinião,  a  ida 
do  Principe  Real  devia  precisamente  servir  para  guiar  o 
movimento  em  acção,  impedindo-o  de  converter-se  em  dema- 
gógico. 

Si  era  por  um  lado  tão  impossivel  quanto  obrigar  o  sol 
a  recuar,  despedir  as  Cortes  já  reunidas  e  substituir  uma 
assembléa  constituinte  por  outra  consultiva,  envolvia  por 
outro  uma  fraque/a  da  coroa  confirmar  expressamente  o  go- 
verno  intruso    de    Portugal,    que   aliás   estava    de   posse    da 

D.  J.  —  70 


1118  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

auctorida'd«  e  a  não  compartilharia,  sacrificando  sua  popu- 
laridade, com  acolytos  mandados  da  corte  e  destinados  na 
melhor  hypothese  a  ser  figurantes  anodinos  (i). 

Esforçara-se  pois  Palmella  quanto  possível — e  Silvestre, 
menos  pratico  e  mais  doutrinário,  o  acompanharia  com 
igual  pertinácia  e  talvez  convicção  superior — não  por  desven- 
dar a  vista  ao  monarcha,  que  abraçava  perfeitamente  a  theo- 
ria  da  situação,  mas  por  instigar  a  sua  iniciativa  a  entrar 
n'um  caminho  a  igual  distancia  dos  desmandos  dos  revolucio- 
nários, que  queriam  reduzir  a  realeza  a  uma  ficção,  e  das 
illusões  dos  retrógrados,  que  julgavam  possivel  continuar  a 
fazer  pouco  da  revolução  que  rompera  fremente  na  Penín- 
sula, "como  se  elles  escrevessem  a  dez  mil  léguas  de  distan- 
cia do  theatro  desses  acontecimentos,  e  trezentos  annos  atraz 
da  era  em  que  vivemos"   (2). 

Entretanto  propagava-se  a  insurreição  ao  Brazil,  sem  que 
Dom  João  VI  sahisse  do  seu  meio  termo  passivo.  "Thomaz 
António  mantinha  El-Rey  na  sua  inacção",  escrevia  Palmella 
a  Funchal  (3)  quando,  infelizmente,  já  lhe  não  era  dado 
mais  do  que  exclamar :  "Acahou-se  a  nossa  comedia  ao  menos 
para  mim!  e  dar-me-hei  por  muito  feliz  que  não  acabe  a  páo 
como  hum  entremez,  e  sobretudo  que  não  acabe  como  tra- 
gedia." 

Palmella  antevira,  como  sempre,  as  consequências  e 
ainda  escrevera  ao   Rei,   ao  participar-lhe   a   insurreição   da 


(1)  Esta  parte  responidia  a  uma  das  idéas  de  Thomaz  António, 
de  acceitar-se  uma  nova  Regência  composta  de  muitos  dos  personagens 
do  goveii-no  revolucionário,  aggregando-se-lbes  algumas  pessoas  gratas 
ao   coração   do   monarcha. 

(2)  Representação  de  Palmella  a  Dom  João  VI,  nos  Desp.  e 
Corresp.,  Tomo   I. 

(3)  Carta    cit.    de   3   de   Março    de    1821. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1119 

Bahia,  cujas  primeiras  noticias  tinham  chegado  ao  ministro 
inglez  Thornton  por  intermédio  do  cônsul  alli  residente: 
"Creio  que  as  medidas  de  força  e  de  vigor  não  se  podem  já 
adoptar,  por  não  haver  quem  queira  executal-as,  e  nem 
seriam  a  propósito  no  estado  de  effervescencia  em  que  vai 
achar-se  brevemente  esta  cidade  com  a  noticia  de  hoje."  ( i ) 
Mais  uma  vez  rogava  ao  soberano  que  se  puzesse  á  testa  da 
revolução,  como  único  meio  de  atalhal-a  e  de  dictar  elle  a 
lei. 

No  tocante  ao  Brazil  opinara  o  conde  de  Palmella  no 
ministério — além  da  reunião  de  representantes  com  os  quaes 
devia  El-Rei  consultar  sobre  a  applicação  ao  Brazil  e  domi- 
íiios  ultramarinos  das  bases  constitucionaes,  generosamente 
outorgadas  aos  seus  súbditos  ou  estabelecidas  de  accordo  com 
elles — por  algumas  medidas  executivas  de  caracter  urgente 
e  inadiável.  Importava  remover  alguns  funccionarios  que, 
como  Targini,  (2)  tivessem  attrahido  sobre  si  a  geral  ani- 
madversão;  regular  a  administração  da  fazenda;  pagar  a  di- 
visão do  Rio  da  Prata  em  atrazo ;  tratar  do  recrutamento  e  de 
um  regulamento  para  o  exercito;  examinar  a  administração 
da  justiça  e  o  procedimento  dos  governadores,  e  acabar  com 
a  fatal  alçada  de  Pernambuco. 

Assim  singela  e  familiarmente  narra  (3)  Palmella  os 
acontecimentos  que  se  desencadearam  e  carregaram  os  seus 
planos:  "El-Rey  em  vez  de  adoptar  a  totalidade  destas  idéas... 
resolveu-se  por  conselho  do  Thomaz  António  a  publicar  só 
e  isoladamente  o  chamamento  dos  Procuradores  das  Camarás 


(1)  Desp.   e   Cori-esp.,    Tomo   I. 

(2)  No  papel  destinado  ao  Rei  não  vem  mencionado  o  nome 
(lo  'i'ar}íinl.  (iui>  s;'  cnc-ontra  poivm  na  correspondência  original  com  o 
coiulf    de    Funchal. 

(oj    Carta  cit.  a   Funchal  de  T.  de  .»Iarço  de  1821. 


1120  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

do  Brazil  ( i )  Daqui  seguio-se  o  exasperar  o  partido  Euro- 
peu que  pensou  que  huma  tal  medida  tendia  á  separação  dos 
dois  Reinos.  O  Principe  recusou-se  a  partir  immediata- 
mente,  não  querendo  separar-se  da  sua  mulher  nem  por 
poucos  mezes.  Entretanto  cresceu  a  fermentação  e  eu  pedi 
a  minha  demissão,  vendo  que  não  podia  merecer  a  plena  con- 
fiança de  El-Rey  que  era  necessária  em  taes  circumstan- 
cias  (2)  :  porém  não  me  foi  concedida  a  demissão  (pedida 
no  dia  24)   e  quando  El-Rey  me  tinha  ordenado  de  redigir 

(1)  Taes  eram  as  expressões,  a  respeito,  do  Decreto  de  18  do 
Fevereiro,  referendado  a  22  e  publicado  a  24,  que  determinava  a  ida 
do  rrincipe  Real  para  Portugal  e  garantia  eventual  sancção  da  Consti- 
tuição :  "Não  podendo  porém  a  Constituição,  que  em  consequência  dos 
mencionados  iwderes  se  ha  de  estabelecer  e  sanccionar  para  os  Remos 
de  Portugal  e  Algarves,  ser  igualmente  adaptável  e  conveniente  epa 
todos  os  seus  artigos  e  pontos  essenciaes  â  povoação,  localidade  e  mais 
circumstancias  tão  ponderosas  cimo  attendiveis  d'.este  Remo  do  Bra- 
sil assim  como  ás  das  ilhas  e  Domínios  ultramarinos,  que  nao  me- 
recem menos  a  minha  Rea.l  contemplação  e  paternal  cuidado:  Hei> 
-por     conveniência     mandar     convocar     a     esta     CÔrte     os     Procurado- 

,res E    sou    outrosim    servido    que    ellas    {os    Camarás)     ha.iam 

de  os  escolher  e  nomear  sem  demora,  para  que  reunidos  aqui  o 
mais  promptamente  que  fôr  i>ossivel  em  Junta  d?  Cortes,  com  a  pre- 
sidência da  Pessoa  que  eu  houver  por  bem  escolher  para  este  lugar, 
não  somente  examinem  e  consultem  o  que  dos  referidos  artigos  for 
adaptável  ao  Reino  do  Brasil,  mas  também  me  proponham  as  mais 
reformas,  os  melhoramentos,  os  estabelecimentos,  e  quaesquer  outras 
•providencias  que  se  entenderem  essenciaes  ou  úteis,  ou  seja  para  a  se- 
gurança individual,  e  das  propriedades,  boa  administração  da  justiça 
<>  da  fazenda,  augmento  do  commercio,  da  agricultura,  e  navegação,  es- 
tudos, e  ««ducação  publica,  ou  i)ara  outros  quaes<iuer  objectos  condu- 
centes á  prosperidade  e  bem  g(>ral  deste  Reino,  e  dos  Domínios  da 
coroa   portugueza."  .  •    i„    /i. 

(^»  "O  certo  é  í^enlwr.  que  se  algum  m-io  resta  ainda  de 
.servil-  a"v.  M.  ^  de  lhe  evitar  a  desgraça  c  a  huraUiação  de  receber 
a  Lei  que  lhe  quizerem  impor,  como  a  receheo  o  Sr.  D.  Fernando  VIÍ 
é  .adontar  V.  M.  um  svstema  claro,  e  seguil-o  com  lisura.  1  ara  con.sc- 
sec-uir  esse  fim  é  necessário  que  V.  M.  tenha  plena  confiança  naquelles 
a  quem  faz  a  honra  de  escolher  para  seus  Ministros,  e  que  estes  con- 
cordem todos  n-um  mesmo  modo  de  pensar  e  de  obrar.  Meias  medidas 
são  na  minha  opinião  ainda  mais  nocivas  do  que  uma  total  inacção, 
porque,  em  lugar  de  satisfazerem,  irritam  os  ânimos,  e  dao  ao  m.snm 
tempo  uma  prova  da  falta  de  meios  de  resistência,  e  da  falta  de  von- 
tade de  conceder.  E'  de  advertir  além  disso,  que  as  concessões  que 
hontem  terião  sido  sufficientes  talvez  para  evitar  uma  commoçao 
no  Rio  de  Janeiro,  já  o  não  serão  do  mesmo  modo  hoje,  ou  amanha. 
(Desp.  e  Corresp.,  Tomo  I). 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1121 

um  manifesto  com  as  bazes  constitucionaes  como  o  meio  d'evi- 
tar  a  revolução  nesta  cidade  (ordem  que  recebi  no  dia 
25  á  noite)  já  não  era  tempo  de  lançar  mão  nem  mesmo 
desse  remiedio,  porque  a  tropa  instigada  por  três  ou  quatro 
botafogos  appareceu  formada  no  Rocio  na  madrugada  se- 
guinte, e  dictou  a  Lpy.  Acceitou  portanto  El-Rey  e  jurou 
uma  Constituição  que  ainda  não  conhece,  e  eu  entrei  como 
Pilatos  na  proscripção  de  todo  o  Ministério." 

Ahi  transparece  o  ponto  em  tudo  isto  mais  doloroso 
para  Palmella:  ver-se  arredado  dos  negócios  públicos,  que 
constituiíím  o  encanto  da  sua  actividade.  A  29  de  Fevereiro 
solicitava  o  ex-ministro  dos  negócios  estrangeiros  permissão  do 
soberano  para  regressar  para  Portugal,  ''onde  Vossa  Majes- 
tade sabe  que  deixei  mulher  e  filhos,  antevendo  já  desgraça- 
damente o  êxito  que  a  minha  jornada  poderia  ter."  Não  fora 
de  boa  vontade  que  se  alheiara  da  Europa:  elle  próprio  con- 
fessa em  todas  as  suas  cartas  particulares.  ( i )  Uma  vez,  po- 
rém, consumimado  o  sacrificio,  não  se  queria  ver  fora  do  poder, 
n'uma  ociosidade  estúpida,  em  que  mais   duramente  se   lhe 

íl)  Noticiando  por  exemplo  a  Funclial  a  3  de  Aiívil  de  1819, 
a  nomeação  do  mesmo  para  membro  da  Regência  do  Reino,  accres- 
oentava  Palmella  :  "Espero  que  não  recuse  e  provera  «a  Deus  que  eu 
me  achasse  no  seu  cazo  em  vez  de,  me  vêr  ameaçado  com  o  Brazil." 
(Lata  7  da  coll.  Linhares,  na  Bibl.  Nac.) 

Funchal  tornara-se,  depois  do  fallecimento  do  irmão  Linhaa-es, 
que  o  sustentara  em  Londi-es  .contra  todas  as  queixas  e  intrigas,  um 
vei-dadeLro  traml)olho,  uma  merca'doria  diplomática  da  mais  difficil 
eolloeação.  Quando  lhe  negaram  a  representação  de  Portugal  no  Con- 
gresso de  Vienna,  foi  mandado  a  Roma  como  embaixador  especial  para 
cumprimentar  Pio  VII  pela  sua  libertação  da  tyrannia  napoleonica  e 
tratar  eventualmente  de  quaesquer  negócios,  o  que  quer  dizer  nada 
íazer,  pois  IA  havia  um  ministro  ordinário,  o  commendador  Pinto. 
Na  corte  pontifical  se  deixou  Funchal  ficar  até  que  em  Setembro 
de  1817  o  removeram  em  caracter  idêntico  para  Madrid,  encarregado 
de  uma  missão  ad  hoc,  quando  pareceu  que  o  governo  hespanhol  de- 
sistia   da    mediação    na    questão   de    Montevideo. 

Remanchão  como  sempre,  achava-se  porém  Funchal  ainda  em 
líoma  ao  occorrer,  em  vMarço  de  1818,  o  fallecimento  do  titular  Pinto. 
Assumiu  então  a  gerência  da  legação,  da  qual  aliás  não  desejava  sahir 
mais.   Seu  ultimo,  quiçá  único  serviço  foi,   a  pedido  instante   de  Pai- 


1122  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

faria  sentir  a  falta  de  distracções  intellectuaes  e  de  convívio 
mundano. 

Nesta  ordem  de  idéas  entrou  Palmella,  uma  vez  afas- 
tado do  ministério,  a  advogar  de  novo  contra  Thomaz 
António — o  qual,  como  eco  da  regia  predilecção,  optava  pela 
permanência  do  monarcha  no  Rio  de  Janeiro — a  volta  de 
Dom  João  VI  para  Portugal.  Deixou  assim  de  considerar  me- 
lhor alvitre  a  ida  do  Principe  Real,  que  entre  o  partido  euro- 
peu encontrava  partidários  nos  que  julgavam  Dom  Pedro,  pela 
sua  mocidade,  verdura  e  posição  .secundaria  na  dynastia, 
mais  fácil  do  que  o  Rei  de  ser  avassallado  pelas  Cortes,  cujos 
designios  eram  francamente  anti-brazileiros.  O  fundamento 
do  raciocinio  era  análogo  nos  que  o  queriam  prender  ao 
Brazil  com  o  plano  opposto  de  dirigil-o  no  sentido  das  preten- 
ções  nacionaes. 

A  regência  do  Principe  podia  encerrar  perigos,  mas  o 


m^ella,  forrar  dos  seus  compromissos  religiosos  José  Silvestro  Rebello, 
depois  encarregado  de  negócios  em  Washington,  que  tinha  pronun- 
cia-fio  aos  16  annos  votos  de  franciscano  e  queria  entrar  para  o  mundo 
e  a   diplomacia. 

Não  foi  facultado  a  Funchal  permanecer  junto  á  Santa  Sé, 
para  onde  foi  despachado  Pedro  de  Mello  Breyner  ;  e  como  em  Hespa- 
nba  não  idesse  o  gabinete  mostras  de  preferir  negociação  directa, 
nem  Fernando  VII  de  querer  contrahir  nova  alliança  de  familia  com 
l>om  João  VI — escolhendo  uma  princeza  da  iSaxonia  para  se  sentar 
3V0  thruno  de  que  tão  pouco  gosara  a  fallecida  Infanta  portugueza  — 
o  como  ao  mesmo  tempo  se  prolongasse  a  missão  em  Pariz  de  Pal- 
raellia  e  Marialva,  designou  E^-Jiei  a  Funchal,  em  Janeiro  de  1810, 
para  ser  um  dos  governadores  do  Reino.  Nem  havia  elle  ainda  rece- 
hido  n'essa  e.pocha  as  instrucções  ia  credencial  ohegara-lhe  as  mãos 
desde  Maio  de  1818)  para  a  ímvA  hypothetica  missão,  que  se  cifrara 
em  correr  pela  posta,  entre  l*ariz  e  Lfmdres.  Na  forma  do  ciKstume, 
recebendo  a  noticia  em  Abril,  tardou  Funchal  em  ir  lomar  posse  do 
cargo:  foi  seca  e  meça,  fez  uso  das  aguas  em  Cheltenham,  altercou  no 
seu  despeito  com  Thomaz  António  e  deixou  que,  sobrevindo  a  revo- 
lução liberal,  ficasse  sem  effeito  sua  nomeação,  a  qual  aliás  recusou 
])or  se  achar  em  desaccordo  com  as  tenções  despóticas  e  mostrar 
granide  predilecção  pela   politica   de   conciliação. 

No  fundo  elle  não  tin.ha  vontade  alguma  de  servir  n'aquelle 
caracter  e  n"aquella  occasião.  Si  mesmo  a  longa  residência  na  In- 
glaterra lhe  não  incutira  algun«  princípios  constitucionaes,  a  pessoa 
de  Thomaz  António  era-lhe  antipathica,  como  de  resto  á  nobreza  em 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1123 

regresso  da  corte  evitaria,  argumentava  Palmella,  perigos 
maiores,  como  o  de  perder-se  para  todo  sempre  a  sede  tra- 
dicional da  monarchia.  E  já  que  lhe  não  tinha  sido  permit- 
tido  figurar  na  America  como  primeiro  ministro  poderoso, 
o  Richelieu  de  um  Luiz  XIII  astuto,  junto  ao  qual  conti- 
nuava Thomaz  António  a  exercer  como  conselheiro  confi- 
dencial uma  espécie  de  auctoridade  occulta,  nada  se  perdia 
indo  tentar  outra  estréa  sobre  o  novo  tablado  constitucio- 
nal, com  um  scenario  até  risonho  ao  seu  espirito.  Apenas  o 
successo  se  antolhava  mais  duvidoso  porque  a  platéa  de  de- 
mocratas detestava  particularmente  Palmella,  n'elle  enxer- 
gando um  actor  de  talento  capaz  de  dominar  a  revolução, 
sem  a  com'bater  estultamente,  antes  encarnando-a  para  diri- 
gil-a  ao  sabor  da  conveniência  e  do  prestigio  da  coroa. 

Tanto  peor  si  a  permanência  de  Dom  Pedro  no  Brazil 
offerecia  o  núcleo  de  que  carecia  o  movimento  contrario  á 

g<^ral.  Por  isso  pretextou  desde  começo  divergir  do  modo  dominante  de 
encarar  a  situação.  "Eu  estou  persuadid-o,  escrevia  a  Palm -lia  de  Port- 
smoutli  como  da  minha  existência  que  os  males  de  que  o  Reino  de 
lortugal  «offre  não  são  todos  imaginários,  e  que  a  não  se  lh'aplicar 
o  meliior  de  todos  os  remédios,  lie  necessário,  he  indispensável  que  o 
J^.rario  de  Lisboa  baste  para  o  exercito,  e  para  as  mais  despí>zas  es- 
senciaes  o  que  não  succede  actualmente."  (Carta  de  11  de  Julho  de 
ISJO,  Lata  7  da  coll.  Linhares,  ibidem). 

A  .pobreza  dos  recursos  era  com  effeito  o  fundamento  princi 
pai  em  que  assentava  o  descontentamento  do  velho  Reino,  e  para  prin- 
cipiar tornava-se  mister  definir  as  obrigações  reciprocas  dos  dous 
e^-anos,  do  Rio  de  .Janeiro  e  de  Lisboa,  e  pôr  este,  na  phrase  de  Fun- 
cha.l  ao  abrigo  dos  saques  de  Targini."  L^inchal  solicitara  do  governo 
do  Rio  concedesse  por  tal  motivo  á  Regência  poderes  extraordinários, 
posto  que  temporários,  pam  endiívitar  as  cousas,  nas  suas  palavras 
forçar  o  S4'rio  exame,  e  consultar  a  S.  M.  os  meios  demmendar  erros 
antigos,  e  noíonos.  que  oje,  i)ezam  com  maior  força  sobre  a  nação" 
paga?'o'lIxercitr'"'''  ""''"^  *"  ''^'"^  '"'*''''^  i^ili^ar,  a  saí>er,  dos  meios  de 
»  n.-  \^^^I^'^f.a  de  Thomaz  António  fora  uma  só  e  peremptória,  que 
voh,rL"t*;  *^"r"^  retormadores  :  o  que  justificava  de  antemão  a  rc- 
íiistiaçao.  lalmella,  ao  chegar  ao  Rio  nos  fins  de  1820,  mandara  abo- 
T.lJ^fl^TT'^''''^''''  diplomáticos  ao  tio  e  predecessor  em  Londres 
Kda'  '    '"°''"'^'    continuar    na    Europa    n'aquella    ociosidade 


1124  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

desaggregação  da  monarchia  americana,  iniciada  pela  revolu- 
ção de  Pernambuco  e  activada  pelas  recentes  revoltas  consti- 
tucionaes.  Ia  verificar-se  tarde  e  inopportunamente  quão 
mais  acertado  houvera  sido  ter  posto  em  pratica  a  segunda 
parte  da  suggestão,  feita  de  Vienna  por  Palmella  e  relativa 
á  elevação  do  Brazil  a  Reino,  que  fora  a  remoção  do  Prin- 
cipe  Real  para  Lisboa  como  Vice-Rei,  dispondo  de  amplos 
poderes. 

Esta  lembrança  tinham-na  arredado  em  1815  os  conse- 
lheiros privados — o  singular  talvez  coubesse  melhor — que  de 
facto  dispunham  de  uma  influencia  de  que  nunca  logrou 
gozar  a  serie  de  minixtros  jnorihundns  ( i )  que  Dom  João  VI 
chamou  no  Rio  para  seu  despacho,  todos  fallecidos  n'esse 
curto  periodo  de  treze  annos  e  que  eram  substituidos  provi- 
soriamente pelos  collegas,  assim  offerecendo  ao  monarcha 
melhor  opportunídade  e  maior  facilidade  de  governar  dire- 
ctamente, sem  tutelas  incommodas  nem  acompanhamentos 
ostentosos.  Linhares,  Barca  e  Palmella,  por  mais  que  se 
tivessem  assignalado  no  governo,  aconselhando  e  esclare- 
cendo o  Rei  com  seus  talentos,  não  possuiram  maior  auctori- 
dade  effectiva  do  que  Galvêas,  Aguiar  e  Bezerra,  e  a  tiveram 
certamente  menos  do  que  Thomaz  António. 

O  resultado  d'esta  intimidade  espiritual  foi,  com  relação 
á  mutilação  dos  planos  sempre  sensatos  de  Palmella,  que, 
segundo  escreve  o  auctor  das  Considerações  (2)  a  medida 
saudável  e  segura  da  União  dos  Reinos  se  transformou  em 


(1)  Considerações  sohre  o  estado  de  Portugal  e  do  Brazil  deMe 
a  sahida  d'El-Rei  de  Lishoa  em  1807  até  o  presente,  indicando  al- 
gumas providencias  para  a  consolidação  do  Reino  Unido — datadas  de 
Londres,  4  de  .Junho  de  1822,  na  Rev.  Trim.  do  Inst.  Hist.  Tomo  XXVI. 

(2)  Parecem  muito  obra  de  Barbacena,  então  na  Inglaterra, 
coincidindo  muito  seus  dizeres  com  os  da  correspondência  com  José 
Bonifácio. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1125 

uma  medida  de  perpetuo  ciúme,  desunião  e  discórdia,  pois 
que  o  Brazil  ascendia  á  graduação  de  reino  emquanto  Portu- 
gal descia  ao  caracter  de  colónia,  soffrendo  o  Erário  de  Lis- 
boa repetidas  sangrias  em  beneficio  do  Erário  do  Rio,  anemico 
pelas  dilapidações,  despezas  inconsideradas  e  até  descami- 
nhos. E  para  avaliar  do  ef feito  d'aquellas  sangrias  basta  não 
esquecer  que  o  atrazo  no  pagamento  dos  soldos  ás  tropas 
foi  uma  das  causas  immediatas  e  determinantes  da  revolu- 
ção do  Porto,  logo  propagada  a  Lisboa. 

Si  mais  tarde  do  que  1815,  nos  criticos  momentos  de 
1821,  Dom  João  VI  não  seguio  resolutamente  os  conselhos  de 
Palmella,  não  foi  porque  lhe  faltasse  a  consciência  nitida 
da  situação,  sim  a  fibra  precisa  para  arrostal-a.  E'  verdade 
que  preferia,  porque  estavam  muito  mais  na  sua  natureza, 
os  rodeios  e  artificies  politicos  inventados  pelo  génio  conser- 
vador de  Thom.az  António,  mas  não  ha  melhor  prova  de 
que  para  o  soberano  do  Reino  Unido  era  inevitável  com  sua 
partida  a  separação,  do  que  a  phrase  tão  conhecida  ao  filho 
sobre  a  necessidade  de  não  deixar  escapar  a  coroa  americana. 

Nem  pode  sua  authenticidade  .ser  contestada,  visto 
achar-se  reproduzida  na  carta  de  Dom  Pedro,  Regente,  ao 
Pai,  de  19  de  Junho  de  1822.  Os  termos  são  os  seguintes: 
"Eu  ainda  me  lembro  e  me  lembrarei  sempre  do  que  Vossa 
Magestade  me  disse,  antes  de  partir  dois  dias,  no  seu  quarto: 
Pedro,  se  o  Brazil  se  separar,  antes  seja  para  ti,  que  me  has 
de  respeitar,  do  que  para  algum  desses  ai^entureiros.  Foi  che- 
gado o  momento  da  quasi  separação,  e  estribado  eu  nas  elo- 
quentes e  singelas  palavras  de  Vossa  Magestade,  tenho  mar- 
chado adiante  do  Brazil,  que  tanto  me  tem  honrado"  (i). 


(1>    Documentos  para   a   historia   das   Cortes   Geraes   da   Nação 
Tortugueza,   Tomo   I,   1820-1825. 


1126  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Dom  João  VI  esperara,  comtudo,  até  a  ultima  que  o  for- 
çassem a  ficar.  O  seu  ouvido  estava  sempre  alerta,  a  presen- 
tir  uma  manifestação  que  não  chegava  e  que,  quando  se 
esboçou,  foi  para  tornar  mais  amarga  sua  partida,  maculando 
de  sangue  os  últimos  dias  da  sua  estada  no  Brazil.  O  povo 
não  estava  em  condições  de  luctar  com  a  tropa.  Maler  escre- 
via com  exactidão  para  Pariz  ( i )  que  a  população  do  Rio 
via  afastar-se  o  Rei  com  pezar  e  também  com  inquietação ; 
mas  que,  quando  alguns  intitulados  facciosos  quizeram  dar 
corpo  a  esses  sentimentos  e  affixaram  cartazes  ameaçadores, 
fallando  em  opporem-se  pelas  armas  á  partida  da  família 
real,  as  trepas  protestaram  contra  o  alarme  e  juraram —  a 
epocha  era  dos  juramentos — manter  com  fidelidade  o  socego 
publico  e  velar  com  dedicação  pelo  embarque  dos  augustos 
personagens,  sãos  e  escorreitos. 

Disfarçadamente  era  um  mandado  de  despejo,  a  que  os 
acontecimentos  iam  fornecer  uma  cruel  sancção.  Ao  mesmo 
tempo  que  o  decreto  que  annuncia\^i  a  ida  do  Rei  para  Lis- 
boa, ficando  o  Príncipe  no  Rio,  com  que  se  punha  cobro  ás 
supplícas,  intrigas  e  suspeitas  originadas  no  boato  de  acom- 
panhar o  herdeiro  o  soberano,  outro  decreto,  do  mesmo  dia 
7  de  Março,  mandava  proceder  á  escolha  dos  eleitores  de 
parochia  para  a  eleição  final  dos  deputados  brazileiros  ás 
Cortes  portuguezas  (2),  que  deveriam  seguir  no  mais  curto 
espaço  lie  tempo  a  tomarem  assento  nessa  assembléa  delibe- 
rativa e  constituinte. 


(1)    Officio   de   IT)   fio   Março- de   1821. 

(12)  O  processo  adoptado  pelo  govoíTio  provisório  de  Portugal 
e  imitado  do  liespanliol  <»ra  complicado,  representando  uma  eleição 
de  quatio  graus.  O  pcvo  nomeava  commissarios,  estes  os  í^leitores  de 
parochias,  que  evscolhiam  os  eleitores  de  comarca,  votando  estes  final- 
mente nos  deputados  de  província. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1127 

Estas  primeiras  eleições  estimularam  a  rivalidade  acal- 
mada entre  os  dous  grandes  partidos  e  levaram-n'os  a  vir- 
tualmente definir  suas  attitudes,  de  forma  que  os  eleitores 
fluminenses  se  reuniram  em  más  disposições  de  espirito  na 
tarde  de  2i  de  Abril,  no  edificio  da  Bolsa,  na  rua  do  Sabão, 
em  convocaçcão  extraordinária  para  lhes  ser  apresentada  a 
lista  do  ministério  do  Principe  lugar  tenente  (i). 

A  Regência  estava  então  imminente.  A  nova  traslada- 
ção da  corte  assumia  porém  proporções  e  circumstancias 
imprevistas.  Commerciantes  e  capitalistas  portuguezes,  dos 
mais  importantes  e  em  crescido  numero,  iam  na  frota  com 
receio  dos  successos  a  vir,  realizando  seus  negócios,  carre- 
gando seus  bens,  drenando  o  ouro  e  valores  do  Banco  e, 
ao  que  se  propalara,  elles  e  os  representantes  da  administra- 
ção limpando  das  ultimas  migalhas  os  cofres  públicos.  Pesava 
sobre  o  espirito  nacional  uma  atmosphera  de  desconfiança, 
produzindo  uma  mal  contida  irritação,  que  por  um  nada  se 
mudaria  em  violência. 

'Toda  reunião  n'aquelles  tempos  pretendia  tomar  ares 
de  parlamento,  e  os  eleitores  do  Rio,  aos  quaes  para  mais 
completa  imitação  até  se  deliberara  communicar  o  pro- 
gramma  do  futuro  governo,  não  se  furtaram  a  fazer  vezes 
de  convenção.  Xudo  lhes  sérvio  de  thema  de  discussão,  as 
theses  atropellaram-se,  os  debates  acaloraram-se  e  a  breve 
trecho,  depois  de  ordenar  o  desembarque  dos  cofres  públicos, 
reputados  a  bordo,  sob  pena  das  fortalezas  não  deixarem  a 
esquadra  transpor  a  barra,  a  sessão  se  declarou  em  perma- 
nência até  que  o  Rei  jurasse  provisória  e  immediatamente  a 
Constituição  hespanhola  de  1812 — ideal  politico,  como  a 
chama  Handelmann,  de  todas  as  nações  latinas  do  meio-dia. 


(Ij  Handelmann,  oh.  cit. 


1128  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

A'  msia-noite  foram  acordar  o  Rei.  Este,  que  almejara 
provocar  uma  demonstração  de  lealdade,  não  uma  manifesta- 
ção de  liberalismo,  mal  veio  a  si  do  espanto,  estremunhado  e 
desilludido,  annuio  a  tudo:  concedeu  a  Constituição  hespa- 
nhola,  concedia  até  o  sceptro  si  o  tivessem  reclamado.  As 
ruidosas  acclamações  com  que  em  toda  a  cidade  foi  pelos 
patriotas  recebido  o  resultado  desse  seu  exclusivo  pronuncia- 
mento civil,  despertaram  todavia  da  primeira  indifferença 
as  troipas  portuguezas,  que  se  congregaram  logo,  como  já 
se  fizera  costume,  no  largo  do  Rocio. 

D'ahi  ao  pronunciamento  militar,  distava  um  passo. 
Ao  romper  do  dia,  emquanto  se  enfiavam  na  Bolsa  os  dis- 
cursos congratulatorios,  á  sombra  da  promettida  protecção 
de  liberdade  de  palavra  por  parte  do  commandante  das 
armas,  general  Caula,  um  regimento  de  caçadores  cercou 
o  edifício,  intimou  a  dispersão  da  reunião,  deu  uma  descarga 
de  mosquetaria  contra  as  janellas  e  penetrou  no  recinto  de 
baioneta  calada,  dissolvendo  o  ajuntamento  sedicioso,  ma- 
tando trez  pessoas,  ferindo  mais  de  vinte,  prendendo  uma 
porção  e  pondo  em  fuga  o  maior  numero  ( i ) .  O  arremedo 
de  convenção  vivera...    l' espace  d'une  nuit. 

De  novo  ;n'este  episodio  se  quer  ver,  com  bastante  appa- 
rencia  de  razão,  a  participação  do  Principe.  E'  muito  pouco 
provável  que  os  caçadores  tivessem  agido  de  motu  próprio; 
o  Rei  com  certeza — ninguém  mesmo  o  accusou — esteve 
alheio  á  violência  empregada;  os  officiaes  do  regimento 
seriam  por  si  capazes  de  ter  ordenado  a  debandada  e  ma- 
tança de  uma  assembléa,  cuja  reunião  era  legal  pois  que  a 
convocara  o  juiz  do  districto,  si  bem  que  estivessem  sendo 
exaggeradas  suas  pretenções  e  que  se  houvesse  augmentado 

(1)    Handelmann,  06.  cit. 


BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1129 

seu  pessoal  com  bom  numero  de  indivíduos  sem  titulo  para 
se  acharem  presentes? 

O  interesse  do  acto  revertia  em  todo  caso  a  favor  de 
Dom  Pedro  e  do  seu  mentor  Arcos,  que  temiam,  pelo  menos 
tanto  quanto  Dom  João  a  desejava,  uma  pressão  contraria  á 
partida  da  corte;  e  si  o  Principe,  conforme  rezam  alguns 
depoimentos,  depois  de  provocar  a  carnificina  a  sustou,  não 
fez  mais  do  que  zelar  sua  nascente  e  então  geral  populari- 
dade. As  ordens,  é  claro,  foram  dadas  em  nome  do  Rei,  o 
pobre  Rei  que  já  não  mandava  e  a  quem,  no  dia  22,  fizeram 
revogar  tudo  quanto  outorgara  na  noite  anterior  e  confiar  de 
vez  a  seu  filho,  assistido  de  um  gabinete  de  quatro  membros, 
a  direcção  autónoma  dos  negócios  brazileiros   ( i ) . 

Ha  ainda  a  versão,  perfilhada  por  Mrs.  Graham,  ver- 
dade é  que  testemunha  muito  parcial  a  Dom  Pedro,  de  um 
mal  entendido,  ou  melhor  ainda,  da  descarga  haver  resultado 
de  uma  precipitação,  natural  senão  justificável,  em  momen- 
tos de  fácil  pânico.  Os  que  assim  querem  pensar,  invocam  em 
seu  abono  a  imprudência  que  havia  em  irritar  o  povo  da 
capital  quando  tanto  dependia  da  sua  calma,  esquecendo, 
porém,  que  a  tropa  portugueza  tinha  a  persuasão  e  até  se 
jactava  de  poder  manter  perfeita  a  tranquillidade  publica, 
comtanto  que  a  deixassem  agir  com  relativa  decisão. 

O  acontecimento  da  Bolsa  teve  enorme  repercussão, 
desproporcionada  mesmo  á  sua  importância,  e  não  só  tornou 
impossivel  qualquer  alteração  em  que  ainda  se  pudesse 
pensar    da     combinação     dynastica     assentada,    como    cavou 

(1)  Com'i)unha-se  es.se  ministério  de  Arcos  (reimo),  Louzã  (fa- 
zenõa),  íCauLa;  (negócios  militares),  e  Mano?]  Antcnio  Farinlia  (ne- 
gócios marítimos).  Ao  Regente  cabiam  as  mais  extensas?  preroga- 
tivas  :  conceèer  perdões  e  commutações  de  penas,  nomear  funcclona- 
ri(ks  de  toda  casta,  fazer  Kuerrn  e  celebrar  paz,  e  distribuir  graças 
e  mercês  honorificas. 


1130  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mais  fundo  o  fosso  de  prevenções  que  moralmente  separava 
as  duas  metades  da  monarchia  luzitana.  Seu  effeito  immedia- 
to  foi  despir  de  todo  brilho,  de  todo  alarido,  de  todo  calor, 
de  toda  expressão  de  saudade  a  partida  do  Rei  que  a  24,  á 
noitinha,  embarcou  na  nau  D.  João  VI  e  a  26  de  Abril 
sahio  do  porto,  acompanhado  por  duas  fragatas  e  nove  trans- 
portes,- levando  milhares  de  pessoas — quatro  mil  ao  que  se 
diz — pertencentes  e  não  ao  serviço  real,  e  50  milhões  de  cru- 
zados. A  maré  carregava  o  que  a  maré  trouxera.  O  Erário 
ficava  de  facto  vasio  do  numerário,  em  troca  do  qual  e  para 
pagamento  de  dividas  do  governo  se  tinham  dado  letras, 
que  não  eram  acceitas,  sobre  as  thesourarias  provinciaes  da 
Bahia,  Pernambuco  e  Maranhão,  e  se  entregaram  ao  Banco 
os  diamantes  do  monopólio  e  jóias  da  coroa,  (i) 

Dom  João  VI  veio  crear  e  realmente  fundou  na  America 
um  Império,  pois  merece  bem  assim  ser  classificado  o  ter 
dado  foros  de  nacionalidade  a  uma  immensa  colónia  amorpha, 
para  que  o  filho,  porém,  lhe  desfructasse  a  obra.  Elle  próprio 
regressava  menos  r€Í  do  que  chegara,  porquanto  sua  auctori- 
dade  era  agora  contrastada  sem  pejo.  Deixava  comtudo  o 
Brazil  maior  do  que  o  encontrara. 

As  ultimas  disposições  de  Dom  João  VI  com  relação  á 
Cisplatina  foram  tendentes  á  definitiva  encorporação  ao  paiz 
d'essa  província,  fechando-se  o  cyclo  de  guerras  a  que  dera 
origem  a  fundação  da  Colónia  e  recentemente  resultara,  a 
ultima  delias,  da  recusa  de  Elio,  dictada  por  fidelidade  dy- 
nastica  e  nacional,  em  acompanhar  os  autonomistas  de  Bue- 

(1)  o  governo  reconheceu  como  divida  nacional  os  seus  com- 
pmmissos  com  o  Banco  do  Brazil  e  determinou  o  levantamento  na 
Europa  de  um  empreslimo  de  l'.4O0  contos,  que  foi  reprovado  pelas 
(Cortes,  as  quaes  a-esolveram  até  pedir  contas  ao  Hei  da  entrega  de 
jóias  da  Coroa. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1131 

nos  Ayres.  A  Banda  Oriental,  que  Elio  anteriormente  res- 
guardara da  ambição  portugueza,  de  que  foi  expressão  a 
missão  Curado,  encontrou,  porém,  no  seu  seio  um  caudilho 
para  personificar  sua  própria  autonomia  em  frente  á  inva- 
são brazileira  e  á  reivindicação  portenha. 

Poucas  historias  ha  tão  agitadas,  nesta  agitada  Ame- 
rica do  Sul,  como  a  d'esses  dous  lustros  de  lucta,  e  com 
um  resultado  tão  inevitável,  nas  circumstancias  de  então, 
quanto  a  verificada  conquista  estrangeira.  A  pequena  pro- 
vincia  não  podia  escapar  a  cobiças  tão  poderosas  como  as 
que  pelo  norte  e  pelo  sul  a  espreitavam,  e  d'ellas  a  mais 
fraca  cedeu  á  mais  forte.  Buenos  Ayres,  no  próprio  interesse, 
segundo  acreditava,  favoreceu  Artigas  contra  as  auctoridades 
legalistas,  ajudando-o  a  sitiar  xVlontevidéo,  e  Alvear  logrou 
em  1814  impor  a  Elio  uma  capitulação  depois  que  Brown, 
ao  serviço  argentino  como  almirante,  destruio  a  esquadrilha 
do  vice-rei  hespanhol.  Foi  n'este  periodo  que  a  corte  do 
Rio,  a  pretexto  de  proteger  o  livre  commercio  costeiro  entre 
os  portos  do  Sul  e  os  do  Prata  (i),  sérvio  contra  Vigodet  d 
governo  das  Provincias  Unidas,  não  podendo  este  mais  tarde, 
quando  Artigas  só  em  campo,  obstar  a  que  fosse  cobrado 
aquelle  serviço  a  Montevideo  com  o  preço  da  independência 
uruguaya. 

Buenos  Ayres  calculara  ainda  que  tal  sacrifício,  qufí 
Artigas  quizera  arrostar  desajudado,  lhe  aproveitaria  e  á 
causa  do  seu  federalismo,  mas  a  previsão  provou  errada  e 
vimos  que  foi  o  imperialismo  portuguez  que,  como  era  natu- 


(1)  A  expansão  do  francas  relações  nuM-cantis  entre  o  Brazil 
e  o  Rio  da  Prata  foi  o  onj^odo  com  que  Linhares  pretendeu  em  1808, 
ol»ter  de  Liniers  a  colIocaçAo  de  guarnições  poiMujíuez<as  em  algumas 
praças  da  margem  oriental  do  T^ruguay,  além  d:i  indispensável  segu- 
rança Idas  pi«ssoas  e  propriedades  portuguesas  i'm  todos  os  domínios 
liespanhoes  do  'Atlântico.    ('M<s,   add.  do  Museu  Britannico,  n.  ;{2,G08), 


1132  BOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

ral,  lucrou  cora  as  operações  militares  do  anno  de  1816,  em 
que  as  trez  columnas  de  Curado,  Manoel  Marques  de  Souza 
e  Lecor  penetraram  por  caminhos  differentes  no  território 
disputado,  e  em  que  Abreu  (Cerro  Largo),  Menna  Barreto 
e  Oliveira  Alvares  desmancharam  o  plano  de  invasão  do 
Rio  Grande  pelas  forças  irregulares  do  caudilho  e  seus  sub- 
ordinados. 

Culminou  a  rápida  campanha  de  defeza  da  fronteira  no 
combate  de  Catalão  (4  de  Janeiro  de  1817),  que  vingou  as 
armas  brazileiras  das  vantagens  obtidas  por  Artigas  em 
1814-1815,  quando  chegou  a  tomar  um  parque  de  artilhe- 
ria.  A  devastação  e  a  pilhagem  occuparam  essas  forças  vence- 
doras ao  tempo  que  Lecor  derrotava  Fructuoso  Rivera  e, 
protestando  querer  apenas  destruir  a  tyrannia,  avançava  por 
Maldonado  sobre  Montevideo,  que  sabemos  com  quanta  faci- 
lidade occupou,  apoz  repellir  no  caminho  as  guerrilhas  de 
Lavalleja,  e  de  Oribe  (i). 

Em  1820,  a  situação  apresentava-se  satisfactoria  para 
o  exercito  de  occupação,  a  qual  não  veio  por  isso  a  soffrer 
com  os  successos  constitucionaes.  As  tentativas  de  Artigas 
para  interceptar  as  communicações  brazileiras  entre  Monte- 
video e  o  Rio  Grande  tinham  falhado,  sendo  derrotados  seus 
auxiliares  e  elle  próprio  levado  de  vencida  até  o  Uruguay. 
Ahi  a  retaguarda,  com  Entre-Rios,  lhe  ficou  livre  até  con- 
seguirem cortar-lhe  taes  communicações  as  forças  portugue- 
zas,  constantemente  reforçadas,  e  pelo  combate  de  Taqua- 
rembó  (22  de  Janeiro  de  1820),  lançar  o  inimigo  para  além 
do  Uruguay. 

Trahido  por  Fructuoso  Rivera  e  supplantado  na  sua 
auctoridade    pelo   caudilho    de    Entre-Rios,    Ramirez,  entre- 

(1)   Rev.  Trim.  do  Inst.  Hist.  passim. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1133 

gou-se  Artigas  a  Francia  emquanto  Curado,  descendo  a  mar- 
^evn  esquerda  do  Uruguay,  realizava  afinal  sua  juncção  com 
Lecor,  abraçando  a  tutela  portugueza  capital  e  campanha. 
Em  Montevideo  entretanto,  cuja  guarnição  se  desmoralizara 
pela  inacção,  dando-se  largas  a  devassidão  dos  chefes,  bem 
como  os  desmandos  dos  inferiores,  surprehendera  o  comm.ari- 
dante  em  chefe  e  atalhara  uma  conspiração  destinada  a  eli- 
minar pela  expulsão  o  dominio  estrangeiro,  que  odiavam  os 
bons  Hespanhoes  e  centra  o  qual  se  levantariam  mais  tarde 
os  patriotas  partidários  da  independência  local. 

Durante  sua  curta  passagem  pelo  poder  quiz  Silvestre 
Pinheiro  Ferreira  cuidar  da  questão  ainda  em  aberto  da 
Cisplatina,  não  obstante  ser  para  elle  inçada  de  asperezas  e 
pejada  de  duvidas,  nem  o  seduzindo  a  annexação  pura  e 
simp'les  pelo  facto  de  lhe  parecerem  muito  diversas  a  natu- 
reza, estructura  e  tradições  da  provincia  vindoura,  nem  con- 
siderando politicamente  razoável,  apezar  do  seu  desinteresse, 
que  se  perdesse  o  fructo  de  tantos  trabalhos  e  despezas  tão 
avultadas.  A  expressão — os  povos  querem — que  alguns  avan- 
çavam para  justificar  a  encorporação,  afigurava-se-lhe,  mau 
grado  o  seu  doutrinarismo,  oca  de  sentido  real,  falsa  e 
absurda  mesmo  por  não  existir  jamais  a  concordância  que  a 
expressão  faz  suppor,  e  ser  a  orientação  de  um  qualquer 
corpo  social  invariavelmente  imposta  por  um  ou  muito  pou- 
cos individuos.  (i) 

A  idéa  que  Silvestre  tinha  por  mel'hor,  era  a  de  congre- 
gar o  general  commandante  de  Montevideo  e  do  exercito  de 
occupação  os  comicios  eleitoraes  para  formar  uma  assembléa 
provincial  do  Uruguaj^  afim  dos  deputados  franca  e  livre- 


(1)  Semelhante  theoria  constitucional,  com  as  reprovações 
correlativas,  foi  desenvolvida  em  «reunião  do  gabinete  e  acha-se  ex- 
pressa n*uma  das  suas  cartas,  nos  Annaes  da  Bibl.  Nac. 

D.  J.  —  71 


1134  DOM 'JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

mente  decidirem  o  que  m.ais  lhes  convinha  e  aos  seus  consti- 
tuintes: si  a  erecção  da  Banda  Oriental  em  estado  indepen- 
dente, si  a  reunião  a  Buenos  Ayres,  si  a  encorporação  ao 
Brazil.  Opinava  ao  mesmo  tempo  o  ultimo  ministro  dos  negó- 
cios estrangeiros  de  Dom  João  VI  na  America  que  se  acredi- 
tasse um  agente  como  consul-encarregado  de  negócios  nas 
Provincias  Unidas,  no  intuito  de  manifestar  as  intenções 
amigáveis  do  governo  portuguez  com  relação  aos  paizes  cir- 
cumvizinhos  da  sua  nova  annexação  —  caso  tivesse  esta 
lugar  — ,  entrando-se  com  elles  em  proveitosas  relações  com- 
merciaes  e  respeitando-se  mutuamente  as  bandeiras. 

O  que  a  Silvestre  se  afigurava  com  razão  impossível 
era  prolongar  mais  o  statu  quo,  representado  por  uma  exhi- 
bição  militar  dispendiosissima,  sem  se  decidir  cousa  alguma 
definitiva,  nem  sendo  mesmo  possivel  fazel-o  nas  condições 
creadas,  pois  que  a  corte  do  Rio  fora  ao  ponto  de  reconhecer, 
no  decorrer  das  negociações,  a  soberania  do  Rei  Catholico 
sobre  o  território  avassallado  pelas  armas  portuguezas.  Nun- 
ca se  houvera  comtudo  aquella  corte  declarado  prompta  a 
restituil-o  sem  compensação,  conforme  o  exigia  o  gabinete 
de  Madrid,  arguindo  que  a  devolução  seria  apenas  a  conse- 
quência natural  de  tal  reconhecimento  de  soberania,  e 
que  portanto  ao  governo  brazileiro  cumpria  declarar-se  dis- 
posto a  retroceder  o  território  invadido,  em  virtude  da  mera 
reclamação  do  seu  legitimo  soberano. 

As  ultimas  ordens  de  Dom  João  VI,  antes  de  se  retirar 
para  Lisboa,  foram  no  sentido  das  formas  preconizadas  por 
Silvestre  e  na  direcção  do  seu  próprio  constante  pensamento, 
que  n'este  assumpto  se  concretizou  n'uma  acção  perseverante 
e  feliz.  Convidados  os  habitantes  da  Banda  Oriental  a  deli- 
berarem sobre  seu  futuro,  resolveram  a  31  de  Julho  de  1821 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRaZIL  1135 

da  maneira  que  era  dado  prever  nas  condições  em  que  se 
fazia  a  consulta,  annexando  sua  terra  ao  Brazil,  como  Pro- 
vincia  Cisplatina. 

Tanto  tivera  de  alegre  a  chegada,  como  teve  de  so- 
turna a  partida  de  Dom  João  VI.  Com  o  monarcha  foram-se 
n'uma  ultima  peregrinação  oceânica  dous  dos  mortos  da  fami- 
lia,  a  Rainha  D.  Maria  I  e  o  Infante  de  Hespanha  Dom 
Pedro  Carlos,  transportados  na  ante-vespera,  á  noite,  dos 
seus  túmulos  no  Convento  da  Ajuda  e  no  Convento  de  Santo 
António  para  bordo  da  fragata  armada  em  capella  ardente, 
n'um  duplo  e  apparatoso  préstito  fúnebre  que  foi  o  ultimo 
cortejo  do  Reino  americano  e  no  qual  figuravam  o  Rei,  a 
filha  viuva  e  o  netinho  orphão. 

Em  1808,  por  occasião  do  desembarque.  Dom  João  estava 
jubiloso  e  Dona  Carlota  Joaquina  desesperada.  Agora  dava-se 
o  opposto,  como  era  de  regra  nas  suas  relações  conjugaes; 
pensar  e  agir  um  sempre  em  discordância  do  outro.  O  Rei 
partia  vergado  á  afflicção.  Não  acreditava  muito  na  efficacia 
da  sua  presença  em  Portugal  para  abrandar  a  revolução  e 
restabelecer  a  auctoridade  do  throno,  a  ordem  e  a  confiança 
abaladas.  Pairavarn  sobre  o  seu  espirito  timorato  e  bom  o 
receio  dos  acontecimentos  previstos  e  imprevistos  nas  duas 
partes  do  mundo,  trazidos  pela  separação  fatal  do  Brazil  e 
pela  degeneração  do  movimento  constitucional  em  frenesi 
jacobino,  e  o  receio  da  vindicta  popular,  exercendo-se  crua- 
mente não  tanto  sobre  elle  como  sobre  os  seus  protegidos  e 
validos. 

A  Rainha  ia  pelo  contrario  delirante:  n'esse  momento 
toda  ella  era  amores  pela  Constituição.  Ao  passo  que  o  ma- 
rido, á  cautela,  embarcava  ao  lusco-fusco  lá  longe,  em  São 
Christovão,  para  ir  tomar  a  dianteira  da  frota  que  de  torna 


1136  DOM  JOÃO  VI  NO  BRA2IL 

viagem  o  transportava,  envergonhado  e  saudoso,  a  soffrer 
com  resignação  os  desaforos  das  Cortes,  D.  Carlota  sahia 
em  pleno  dia  do  Paço  da  cidade  para  o  escaler  amarrado  ao 
cães  fronteiro,  despedindo-se  com  ruidosa  alegria  da  sua 
comitiva  e  despejando  nas  ultimas  palavras  que  pronunciava 
— afinei  vou  para  terra  de  gente! — todo  o  seu  aborrecimento 
á  terra  hospitaleira  em  que  vivera  treze  annos,  podendo  sa- 
tisfazer todos  os  seus  caprichos  libertinos,  mas  nenhuma  das 
suas  ambições  politicas. 


ENUMERAÇÃO  DAS  FONTES 


IMPRESSOS 


A)  Historias,  Memorias,  Relações,  Biographias  e  Col- 
lecções  de  papeis  públicos  e  particulares : 

Handelmann  —  Gesohichte  von  Brasilien.  Berlin,  1860. 

Ayres  de  Casal  —  Corographia  Brasilica,  ou  relação 
histórica  e  geographica  do  Reino  do  Brasil.  Rio  de  Janeiro, 
1817,  2  vols. 

Henderson — A  History  of  the  Brazil,  comprising  its 
geography,  commerce,  colonization,  aboriginal  inhabitants 
etc,  etc.  London,  1821. 

Historia  do  Brazil  desde  1807  até  ao  presente,  original- 
mente composta  em  portuguez  para  servir  de  continuação 
á  que  se  publicou  vertida  do  francez,  completa  em  12  tomos. 
Lisboa,  1817-34. 

Ferdinand  Denis  et  Hippolyte  Taunay  —  Le  Brésil 
ou  histoire,  moeurs,  usages  et  coutumes  des  habitants  de  ce 
royaume.  Paris,  1822,  6  vols. 


1138  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Ealbi  —  Essai  statistique  sur  le  royaume  de  Portugal 
etc.  Paris,  2  vols.  • 

Raynal  —  Histoire  Philosophíque  des  E'tablissements 
et  du  Commerce  des  Européens  dans  les  deux  Indes.  Ams- 
terdam,  1770,  2  vols. 

Jacome   Ratton  —  Recordações.    Lisboa. 

Padre  Luiz  Gonçalves  dos  Sanctos  —  Memorias  para 
servir  á  historia  do  reino  do  Brazil.  Lisboa,   1825,  2  vols. 

Histoire  de  Jean  VI,  Roi  de  Portugal,  depuis  sa  nais- 
sance  jusqu'á  sa  mort,  en  1826;  avec  des  particularités  sur 
sa  vie  privée  et  sur  les  principales  circonstances  de  son 
regne.  Paris  et  Leipzig,  1827. 

Munch  (Dr.  Ernst) — Geschiòhte  von  Brasilien.  Dres- 
<len,  1829. 

Armitage  —  The  History  of  Brazil,  from  the  period 
of  the  arrival  of  the  Braganza  Family  in  1808,  to  the  ab- 
dication  of  Don  Pedro  the  first  in  1831.  London,  1836, 
2  vols. 

Mello  Moraes  —  Corographia  histórica,  chronographi- 
ca,  genealógica,  nobiliária  e  politica  do  Império  do  Brasil, 
contendo  noções  históricas  e  politicas,  etc,  etc.  Rio  de  Ja- 
neiro, 1858-63,  5  tomos  em  4  vols. 

Mello  Moraes  —  Historia  do  Brazil-Reino  e  do  Bra- 
zil-Imperio.  Rio  de  Janeiro,  1871,  2  tomos  em  i  vol. 

Mello  Moraes  —  Historia  das  Constituições.  Rio  de 
Janeiro. 

Monsenhor  Pizarro  e  Araújo  —  Memorias  históri- 
cas do  Rio  de  Janeiro  e  das  provincias  annexas  á  jurisdicção 
do  vice-rei  do  Estado  do  Brazil.  Rio  de  Janeiro,  1820-22, 
IO  vols. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1139 

José  da  Silva  Lisboa  —  Princípios  de  Direito  Mercan- 
,  til.  Lisboa,  1801. 

João  Ribeiro  —  Historia  didáctica  do  Brasil.  Rio  de 
Janeiro,  1903. 

José  Silvestre  Ribeiro  —  Historia  dos  Estabelecimentos 
scientificos,  litterarios  e  artisticos  de  Portugal  etc.  Lisboa, 
1871-93,   18  vols. 

Mitre  (  Don  Bartolomé  )  —  Historia  de  Belgrano  y 
de  la  Independência  Argentina.  Buenos  Aires,  3  vols. 

Mitre  (Don  Bartolomé)  — Historia  de  San  Martin  y 
de  la  Emancipacion  Sud-americana.  Buenos  Aires,  3  vols. 

F.  Schoell — Histoire  des  traités  de  paix.  Paris. 

Martens  —  Recueil  des  traités.   Paris. 

Albert  Sorel  —  L'Europe  et  la  Révolution.  Paris, 

Frédéric  Masson  —  Napoléon  et  sa  Famille.  Paris, 
9  vols.   (ainda  em  via  de  publicação). 

J.  Accursio  das  Neves  —  Historia  geral  da  invasão 
dos  francezes  em  Portugal  e  da  restauração  d'este  reino. 
Lisboa,  1810-11,  5  vols. 

Mémoires  de  la  Duchesse  d'Abrantes.   Paris, 

Lieut,  Count,  Thomas  0'Neill — A  concise  and  accurate 
account  of  the  proceedings  of  the  squadron  under  the  com- 
mand  of  Rear  Admirai  Sir  W.  Sidney  Smith  in  effecting 
the  escape  and  escorting  the  royal  family  of  Portugal  to  the 
Brazils.  London,   1809. 

Memoirs  of  Admirai  Sir  Sidney  Smith.  London,  1839, 
2  vols. 

Exposição  analytica,  e  justificativa  da  conducta,  e  vida 
publica  do  visconde  do  Rio  Secco,  desde  o  dia  25  de  No- 
vembro de  1807,  em  que  Sua  Magestade  Fidelíssima  o  in- 
cumbiu dos  arranjamentos  necessários  da  sua  retirada  para 


1140  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

O  Rio  de  Janeiro,  até  o  dia  15  de  Septembro  de  1821,.  .  .  pu- 
blicada por  elle  mesmo.  Rio  de  Janeiro,  1821. 

Marques  de  Ayerbe  —  Memorias  sobre  la  estancia  de 
D.  Fernando  VII  en  Valençay  y  el  principio  de  la  guerra  de 
la  Independência.  Madrid. 

Don  José  Presas  —  Memorias  secretas  de  la  Princesa 
dei  Brasil,  actual  Reina  viuda  de  Portugal,  la  Senora  Dona 
Carlota  Joaquina  de  Borbon.  Burdeos,   1830. 

D.  Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho  —  Vida  do  Duque 
de  Palmella,  D.  Pedro  de  Sousa  e  Holstein.  Lisboa,  1898- 
903,   3   vols. 

Despachos  e  Correspondência  do  Duque  de  Palmella, 
colleccionados  por  Reis  e  Vasconcellos.  Lisboa,  1851,  4  vols. 

Castlereagh — Letters   and   Despatches.   London. 

Mémoires  du  Prince  de  Talleyrand.   Paris,  4  vols. 

Lyman  —  History  of  the  Diplomacy  of  the  United 
States.  Boston,  2  vols. 

De  Pradt  —  L'Europe  et  ses  Colonies.  Paris,  181 7, 
2  vols. 

De  Pradt  —  Les  six  derniers  móis  de  TAmérique  Meri- 
dionale  et  du  Brésil.  Paris,   181 7. 

De  Pradt  —  Les  trois  derniers  móis  de  TAmérique  et 
du  Brésil.  Paris,  181 8. 

Pereira  Pinto  —  Apontamentos  para  o  Direito  Inter- 
nacional etc.  Rio  de  Janeiro,  4  vols. 

Francisco  Bauzá  —  Historia  de  la  Dominación  espa- 
nola  en  el  Uruguay.  Montevideo,  1822,  3  vols. 

Livro  do  Centenário  (Contribuições  de  José  Verís- 
simo sobre  Imprensa,  do  Dr.  José  Carlos  Rodrigues  sobre 
Religiões  acatholicas  e  do  almirante  Arthur  Jaceguay  sobre 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1141 

Formação  da  armada  brasileira  até  o  fim  do  século  XIX). 
Rio  de  Janeiro,  1900,  3  vols. 

Fernandes  Pinheiro — Ensaio  sobre  os  Jesuitas.  Rio  de 
Janeiro. 

Joaquim  Manoel  de  Macedo  —  Um  passeio  pela  cidade 
do  Rio  de  Janeiro.  Rio  de  Janeiro. 

Dr.  Moreira  de  Azevedo  —  O  Rio  de  Janeiro,  sua  his- 
toria, monumentos,  hom.ens  notáveis,  usos  e  curiosidades. 
Rio,  1877,  2  vols. 

Elysio  de  Araújo — Estudo  histórico  sobre  a  policia  da 
Capital  Federal  de  1808  a  1831,  i^  parte.  Rio  de  Janeiro, 
1898. 

Pandiá  CaLogeras — ^As  minas  do  Brazil  e  sua  Legis- 
lação,   Rio,    1904-06,    3    vols. 

Barboza  Rodrigues — Hortus  fluminensis,  ou  Breve  no- 
ticia sobre  as  plantas  cultivadas  no  Jardim  Botânico  do  Rio 
de  Janeiro.  Rio,  1895. 

Dr.  Muniz  Tavares — Historia  da  revolução  de  181 7, 
2"  edição  com  introd.  e  notas  do  Dr.  M.  L.  Machado.  Per- 
nambuco, 1884. 

L.  F.  de  ToUenare — Notas  dominicaes,  tomadas  du- 
rante uma  residência  em  Portugal  e  no  Brasil  nos  annos  de 
181 6,  181 7  e  181 8.  Parte  relativa  a  Pernambuco,  trad.  do 
manuscripto  francez  por  Alfredo  de  Carvalho.  Recife,  1906. 

Alfredo  de  Carvalho — Estudos  Pernambucanos.  Re- 
cife, 1906. 

Euclydes  da  Cunha — Contrastes  e  Confrontos.  Porto, 
1907. 

Discurso  offerecido  aos  Bahianos  no  dia  da  abertura  do 
seu  novo  theatro,  aos  13  de  Maio  de  181 2. 


1142  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Estanislau  Vieira  Cardoso — Canto  épico  á  acclamação 
faustissima  do  Muito  Alto,  e  Muito  Poderoso  Senhor  I>. 
João  VI,  o  Liberalissimo  Rei  do  Reino  Unido  de  Portugal, 
e  do  Brazil  e  Algarves.  Rio  de  Janeiro,  1818. 

Ode  á  acclamação  de  S.  M.  F.  o  Senhor  D.  João  VI 
etc,  por  Joaquim  José  Pedro  Lopes.  Rio  de  Janeiro,  181 7. 

Relação  dos  festejos  que  á  feliz  acclamação  do  Muito 
Alto,  e  Muito  Poderoso  e  Fidelissimo  Senhor  D.  João  VI 
Rei  do  Reino  Unido.  .  .  votarão  os  habitantes  do  Rio  de  Ja- 
neiro. .  .  collegida  por  Bernardo  Avellino  Ferreira  e  Souza. 
Rio,   1818. 

Memorias  do  marquez  de  Santa  Cruz,  Arcebispo  da 
Bahia,  etc.  Rio  de  Janeiro,  1861. 

Valle  Cabral — Annaes  da  Imprensa  Nacional  do  Rio 
de  Janeiro  de  1808  a  1822.  Rio  de  Janeiro,  1881. 

Documentos  para  a  historia  das  Cortes  Geraes  da  Na- 
ção Portugueza,  Tomo  I,  1820-25.  Lisboa. 

Oscar  Canstatt — Kritisches  Repertorium  der  Deutsch- 
Brasilianischen  Literatur.  Berlin,  1902. 

B)  Viagens  e  Explorações:. 

Hautefort  —  Coup  d'oeil  sur  Lisbonne  et  Madrid  en 
181 4.  Paris. 

Debret  (J.  B.) — Voyage  pittoresque  et  historique  au 
Erésil,  ou  séjour  d'un  artiste  français  au  Brésil  depuis  1816 
etc.  Paris,  1834-39,  3  vols. 

Auguste  de  Saint-Hilaire — Voyage  dans  les  provinces 
de  Rio  de  Janeiro  et  de  Minas  Geraes  (1816-1817).  Paris, 
1830,  2  vols. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  I143 

Freycínet  (  L.  de  )  —  Voyage  autour  du  monde  entre- 
.pris  par  ordre  du  Roi  execute  sur  les  corvettes   de  S.   M. 
rUraníe  et  la  Physicienne  pendant  les  années   18 17,    181 8, 
1819  et  1820.  Paris,  1827,  com  atlas. 

Gendrin  (V.  A.)— Récít  historique,  exact  et  sincere, 
par  mer  et  par  terre,  de  quatre  voyages  faits  au  Brésil,  au 
Chili  etc,  Versailles,   1856. 

Mawe  (John)— Traveis  in  the  interior  of  Brazil,  par- 
ticularly  in  the  gold  and  diamond  districtcs  etc.  London,  1812. 

Luccock— Notes  on  Rio  de  Janeiro  and  the  southern 
parts  of  Brazil;  taken  during  a  residence  of  ten  years  in 
that  country  from  1808  to  1818.  London,  1820. 

Maria  Graham — Journal  of  a  voyage  to  Brazil,  and 
residence  there,  during  part  of  the  years  1821,  1822,  1823. 
London,    1824. 

Koster  (Henry) — Traveis  in  Brazil.  London,  1816. 
E  prefacio  de  Jay  na  trad.  franceza,  Paris,  1818. 

Sir  G.  M.  Keith — A  voyage  to  South  America  and  the 
Cape  of  Good   Hope.   London,    1810. 

James  Prior — Voyage  along  the  eastern  coast  of  Africa 
to  Mosambique.  .  .  ;  to  Rio  de  Janeiro,  Bahia  and  Pernam- 
buco in  Brazil,  in  the  Nisus  Frigate.  London,  18 19. 

iSketches  of  Portugal.  London,   1820. 

Captain  Basil  Hall — Extracts  from  a  Journal  written 
on  the  coasts  of  Chili,  Peru,  and  México,  in  the  years  1820, 
1821,  1822.  Edinburg,  1824,  2  vols. 

Brackenridge  —  Voyage  to  South  America,  pcrformed 
by  order  of  the  American  Government  in  the  years  181 7 
and  181 8,  in  the  Frigate  Congress.  Baltimore,  18 19,  2  vols. 

Ruders  — Reise   durch    Portugall.    Berlin,    1808, 


1144  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Joh.  Bap.  von  Spix  und  C.  Fr.  Phil.  von  Martius— 
Reise  in  Brasilien  auf  Befehl  Sr.  Majestat  Maximilian  Jo. 
seph  von  Bayern  in  den  Jahren  1817  bis  1820.  Munchen. 
1823-31,  3  vols.  e  atlas. 

Maximilian,  Prinz  zu  Wied-Neuwied  —  Reise  nach 
Brasilien  in  den  Jahren  181 5  bis  181 7.  Frankfurt  a  M., 
1820-21,  2  vols.  e  atlas. 

W.  E.  von  Eschwege — Journal  von  Brasilien,  oder 
vermischte  Nachrichten  aus  Brasilien,  auf  wissenschaftlichen 
Reisen  gesammelt.  Weimar,   181 8,  2  vols. 

W.  E.  von  Eschwege  —  Brasilien  die  Neue  Welt  in  to- 

pographischer Hinsicht,  wahrend  eines  elfjahrigen  Au- 

fenthaltes,  von  18 10  bis  1821.  Braunschweig,   1830,  2  vols. 

Theodor  von  Leithold— Meine  Ausflucht  nach  Brasi- 
lien etc.  Berlin,   1820. 

C)  Periódicos: 

Correio  Braziliense  ou  Armazém  literário.  Londres, 
1808-22,  28  vols. 

O    Investigador    Portuguez    em    Inglaterra.    Londres, 

i8ii-i9- 

O  Portuguez;  ou  Mercúrio  politico,  commercial  e  li- 
terário. Londres,  1 814-21,  11  vols. 

O  Patriota,  Jornal  Litterario,  politico,  mercantil,  etc, 
do  Rio  de  Janeiro,  1813-14,  3  vols. 

Historia  e  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias 
de  Lisboa. 

Revista  Trimensal  do  Instituto  Histórico  e  Geogra- 
phico  do  Rio  de  Janeiro,   1839-903- 


DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1145 

Revista  do  Instituto  Archeologico  e  Geographico  Per- 
"Tiambucano,  1862-903. 

Annaes  da  Bibliotheca  Nacional  do  Rio  de  Janeiro. 

Anales  de  la  Biblioteca  Nacional  de  Buenos-Aires. 

La  Biblioteca,  Revista  dirigida  por  P.  Groussac.  Bue- 
nos Aires,  1896-97. 

Kosmos,  Revista.  Rio  de  Janeiro,   1903-04. 

Legislação  de  1808  a  1821  (Alvarás,  Cartas  Regias, 
Decretos,  etc. 

Gazeta  do  Rio  de  Janeiro,  1817. 

Conciliador  do  Reino  Unido,  1821. 

Bem  da  Ordem,  1821. 

Observer,  de  Londres,  181 5. 

Morning  Chronicle,  de  Londres,  1816. 

Weekly  Messenger,  de  Londres,   18 16. 

Times,  de  Londres,  181 7. 

Courier,  de  Londres,   181 7. 

II 
MANUSCRIPTOS 

A)  Archivo  Publico  do  Rio  de  Janeiro: 

Cartas  de  D.  Rodrigo  de  Souza  Coutinho  (conde  de 
Linhares)  ao  Principe  Regente,  ao  conde  de  Aguiar  e  a 
diversos,  1796-809. 

Pareceres  officiaes  de  D.  Rodrigo  e  Avisos  ao  Gover- 
nador do  Pará,  seu  irmão  D.  Francisco,  1796-809. 

Cartas  de  D.  Fernando  José  de  Portugal  (marquez 
de  Aguiar)    ao  Principe  Regente,   1809. 


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1146  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Instrucções  ao  marquez  de  Niza  na  sua  missão  a  São 
Petersburgo  e  correspond-encia  d'esta  missão,  1801. 

Despachos  de  D.  João  de  Almeida  Mello  e  Castro 
(conde  das  Galvêas)  ao  marquez  de  Niza,  1801. 

Cartas  do  marquez  de  Alorna  ao  Principe  Regente, 
1801. 

B)  Bibliotheca  Nacional  do  Rio  de  Janeiro: 

Cartas  de  Dona  Carlota  Joaquina  a  Dom  João  VI  e  a 
Thomaz  António  de  Villa  Nova  Portugal. 

Collecção  de  papeis  avulsos,  memorias,  cartas,  aponta- 
mentos, etc,  pertencentes  a  D.  Rodrigo  de  Souza  Coutinho 
e  adquiridos  em  Lisboa,  no  anno  de  1895,  no  leilão  da  livra- 
ria da  casa  Linhares.  Em  12  latas  e  vários  códices. 

Papeis  particulares  de  D.  Domingos  de  Souza  Couti- 
nho (conde  do  Funchal),  1806-10  e  1821.  Nas  mesmas  latas 
da  collecção  Linhares. 

Cartas  de  Thomaz  António  Villa  Nova  Portugal  a 
Dom  João  VI  e  respostas  do  Rei;  memoranda  e  apostillas, 
1820-21.  N'um  códice  de  116  folhas. 

C)  Archivo  do  Ministério  de  Estado  das  Relações  Ex- 
teriores: 

Correspondência  ostensiva  e  reservada  de  D.  Pedro  de 
Souza  Holstein  (conde  de  Palmella),  de  Cadix,  1810-11. 
N'um  códice. 

Correspondência  ostensiva,  reservada  e  confidencial  da 
Legação  em  Londres  (occasionalmente  Embaixada)  sob  a 
gerência  do  conde  do  Funchal,  de  Cypriano  Ribeiro  Freire, 


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DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL  1147 

do  conde  de  Palmella  e  de  D.  José  Luiz  de  Souza   (conde 
ie  Villa  Real),   1808-21.  Em  vários  códices. 

Correspondência  ostensiva  e  reservada  dos  Plenipoten- 
ciários de  Portugal  ao  Congresso  de  Vienna,  1814-15.  Em 
dous  códices. 

Correspondência  ostensiva  e  reservada  da  Legação  em 
São  Petersburgo  sob  a  gerência  de  Rodrigo  Navarro  de  An- 
drade, de  António  de  Saldanha  da  Gama  (conde  de  Porto 
Santo),  do  visconde  da  Lapa  e  de  Abreu  Lima  (conde  da 
Carreira),  1808-21.  Em  vários  códices. 

Correspondência  ostensiva  e  reservada  da  Legação  em 
Roma  sob  a  gerência  de  José  Manoel  Pinto  e  de  Pedro  de 
Mello  Breyner,  181 5-21.  Em  vários  códices. 

Correspondência  do  marquez  de  Marialva,  de  Vienna, 
Florença  e  Liorne,  por  occasião  do  casamento  por  pro- 
curação do  Principe  Real  Dom  Pedro,  1816-17.  Num 
grande  maço. 

Correspondência  do  conde  de  Palmella  e  do  marquez  de 
Marialva  durante  as  negociações  de  Pariz  relativas  a  Mon- 
tevideo, 1818-20.  N'um  grande  maço. 

Correspondência  do  Consulado  em  Londres.  Em  vários 
códices. 

Livros  de  Registro  da  Secretaria  de  Estado  dos  Negó- 
cios Estrangeiros,  1808-22. 

Cartas  secretissimas  do  conde  do  Funchal  ao  Principe 
Regente  e  ao  conde  de  Linhares,  1808-10.  N'um  pacote. 

Cartas  de  Filippe  Contucci  ao  conde  de  Linhares,  em 
datas  diversas.  Em  papeis  avulsos. 

Cartas  de  José  Presas  a  Filippe  Contucci,  em  datas  di- 
versas. Em  papeis  avulsos. 


1148  DOM  JOÃO  VI  NO  BRAZIL 

Cartas  de  António  de  Saldanha  da  Gama,  de  Laybach, 
1821.  Em  papeis  avulsos. 

Cartas  de  Thomaz  António  Villa  Nova  Portugal  a 
Dom  João  VI,  181 7-21.  Em  papeis  avulsos. 

Representações  do  Cabildo  de  Montevideo,  em  datas 
diversas.   Em  papeis  avulsos. 

D  )  Archivo  do  Ministério  dos  Negócios  Estrangeiros 
de  França: 

Correspondência  do  Embaixador  duque  de  Luxemburgo, 
do  cônsul  geral-encarregado  de  negócios  Maler  e  do  1°  se- 
cretario conde  de  Gestas,  do  Rio  de  Janeiro,   1 816-21. 

•  Correspondência  do  cônsul  geral-encarregado  de  negó- 
cios Lesseps,  de  Lisboa,   181 5-21. 

Minutas  dos  Despachos  do  Ministério  dos  Negócios 
Estrangeiros  para  o  Rio  de  Janeiro  e  Lisboa,  181 5-21. 

Avisos  do  Ministério  da  Marinha  e  das  Colónias  ao 
dos  Negócios  Estrangeiros,   181 5-21.  Tudo  em  sete  códices. 

E)  Archivo  do  Departamento  de  Estado  dos  Estados 
Unidos: 

Correspondência  da  Legação  no  Rio  de  Janeiro  sob  a 
gerência  do  ministro  Thomas  Sumter,  1 810-19.  ~ 

Despachos  dos  Secretários  de  Estado  R.  Smith  e  John 
Quincy  Adams  á  Legação  no  Rio  de  Janeiro,  18 10-21.  Em 
vários  códices. 

F)  Archivo  da  Embaixada  Americana  no  Brazil: 

Livro  de  Registro  da  correspondência  do  encarregado 
de  negócios  Condy  Raguet,  1822-23.  N'um  códice. 


DOM  JOÃO  VI  NO  BUAZIL  1149 

G')   Museu  Brítannico: 

Manuscriptos  addicíonaes  ns.  32.608  e  32.609,  perten- 
centes á  collecção  de  C.  W.  Parish.  Dous  códices. 

Nota — Os  summarios  d'estes  códices  encontram-se  na 
Relação  dos  Manuscriptos  portuguezes  e  estrangeiros,  de 
interesse  para  o  Brazil,  existentes  no  Museu  Brítannico  de 
Londres,  coordenada  por  Oliveira  Lima.  Rio  de  Janeiro, 
1903. 

H)  Real  Bibliotheca  da  Ajuda: 

Cartas  de  Luiz  Joaquim  dos  Santos  Marrocos,  em  nu- 
mero de  171,  escriptas  do  Rio  de  Janeiro  á  familia  em  Lis- 
boa, 181 1-20. 

/)  Archivo  do  Instituto  Archeologico  e  Geographico 
Pernambucano: 

Parte  inédita,  referente  a  Portugal  e  á  Bahia,  das 
Notas  Dominicaes  de  ToUenare.  Copia  do  original  existente 
na  Bibliotheca  de  Santa  Genoveva  de  Pariz. 


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