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OLIVEIRA LIMA
, DA ACADEMIA BRAZILEIRA
DOM JOÃO M
NO HllAZJL
1808 - 1821
SEGUNDO VOLUME
li IO DK .lANKiKO
Typ. do .1 ornai dn Com »K'/-í-íf>. de Rodrigues & C.
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índice dos capítulos
XV
XVI
XV[I
XVIIÍ
XIX
XX
xxr
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVI í
XXVII l
XXIX
XXX
Enumei
I'A(;s.
A conciuista da Banda Oriental e os insur-
gentes de Ruenos-Ayres 576
A corte do Rio. o gabinete de Madrid e as
potencias medianeiras da Europa 627
A diplomacia de Palmella na questão de
Montevideo 677
Administração e justiça. Os interesses
agrícolas e industriaes 733
O tratamento dos índios 773
A revolução pernambucana de 1817 785
A diplomacia estrangeira no Rio. Caleppi
e Balk Poleff •. . . . 829
O casamento do Príncipe Real 871
A culminância do reinado 887
El Rei 929
O espectáculo das ruas 964
As solemnidades da Corte 983
A revolução portugueza de 1820........ 1015
Rei ou Príncipe? Thomaz António e Pal-
mella 105 9
O movimento constitucional no Brasil.
O ultimo ministério 108 7
A desillusão do regresso 1115
ação das fontes 1136
índice das gravuras
Conde de Palmella. . .
Marquez de Marialva
El-Rei
67 5
8 69
927
/
CAPITULO XV
A CONQUISTA DA BANDA ORIENTAL E OS INSURGENTES DE
BUENOS AYRES
A occupação da Banda Oriental foi o maior desforço,
e desforço tomado pelo Principe Regente e seus conselheiros
em opposição a toda a Europa, mesmo contra o alliado in-
glez, do que Portugal deixara de alcançar em. Vienna e
de justiça lhe cabia. Os primeiros desígnios portuguezes sobre
a margem esquerda do Prata tinham sido frustrados pela
intervenção britannica e pelo armistício conchavado com a
Junta de Buenos Ayres, á qual era summamente obnoxia a
alienação de Montevideo, mas a encorporação do território
secularmente cobiçado fez-se por fim a despeito da Inglaterra
e das Províncias Unidas.
Havendo 'Artigas proseguído percorrendo a campanha
com seus bandos armados, que eventualmente chocavam nos
57S DOM JOÃO VI NO BRAZIL
i
destacamentos portuguezes, o commandante das forças ex-
pedicionárias e capitão general do Rio Grande do Sul
D. "Diogo de Souza firmara-se n'este proceder irregular e
opposto á pacificação — é mister ter presente que Artigas
começou sua aventurosa carreira agindo sob as inspirações
e batalhando de harmonia com a Junta de Buenos Ayres —
para não dar cumprimento ao convénio de 20 de Outubro de
181 1 e evacuar o território hespanhol do Prata. Promettera
comtudo em carta dirigida á Junta, a 2 de Janeiro de 1812,
deixal-o definitivamente si fossem acceitas certas requisições
suas, a começar pelo reconhecimento formal da parte das au-
ctoridades constituídas em Buenos Ayres e Montevideo do
desinteresse, dignidade e justiça com que o Principe Re-
gente de Portugal procedera mandando entrar suas tropas
na Banda Oriental com o fim de conseguir uma pacificação
e de consolidal-a.
Exigia aiinda D. Diogo dos mesmos governos locaes
o compromisso de não intentarem de facto aggressão alguma
contra os dominios port^iguezes, salvo por ordem expressa
da Regência da Hespanha, ficando as questões de limites
pendentes para serem resolvidas directamente pelos gabinetes
do Rio e de Cadiz. ( i )
Segundo o General Mitre (2), a razão principal, senão
única, da demora na execução do armisticio e consequente
desoccupação do território uruguayo pelas tropas portugue-
zas, foi o desejo de D. Diogo de Souza, creatura de Dona
Carlota Joaquina, de promover os interesses de sua ama, para
isto contando com a cooperação militar de Goj^eneche e a
conjuração de Alzaga, que ambas falharam. Dos documentos
(1) Correio Bi-aziliense, vol. IX, n. 50, de J-alho de 1812.
(2) Histeria de Belgrano y de la Independência Argentina,
vol. II.
t)OM JOÃO VI NO BRAZiL ô?9
publicados pelo illustre historiador argentino ( i ) não consta
que fosse D. Diogo partidário conhecido ou occulto da Prin-
ceza do Brazil, constando, entretanto, que esta, contraria-
dissima com a pacificação, a 23 de Novembro de 181 1 insti-
gava Goyeneche para que suffocasse o movimento platino
" con las mismas ejecuciones que praticaste en la ciudad de
la Paz ".
A I de Dezembro de 181 1 ordenara o conde de Linha-
res ao commandante da expedição portugueza que se reti-
rasse, uma vez obtidas " as justas e moderadas reparações ",
pondo-se para tanto de accordo com Vigodet e Goyeneche e
"authorizando S. A. R. a V. S. para que não se demore se os
mesmos generaes assim o exigirem ". A 20 de Fevereiro de
1812 ainda D. Diogo de Souza offerecia, porém, ao general
hespanhol o seu concurso militar (2), a ver si encontrava
assim geito de prolongar e extender a occupação de que fora
encarregado.
Na sua resposta de 19 de Janeiro (3) o governo pro-
visional de Buenos Ayres, presidido por Sarratea, de que
faziam parte Rivadavia e Pueyrredon e que substituirá a
Junta, recusara com muita independência reconhecer a um
general estrangeiro o direito de intrometter-se no ajuste das
differenças puramente domesticas entre dous povos da nação
hespanhola, que entre si tinham celebrado um accordo, cuja
execução só podia ser legitimamente reclamada por qualquer
dos contratantes. Entrava, comtudo, o governo provisional
na apreciação do proceder do governo de Montevideo, não
dando fiel cumprimento ao ajustado no tocante á retirada das
(1) App. ao vol. 11.
(2) Documentos cit,
(3) Correio Braziliense, n. e vol. cit.
580 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
(
forças portuguezas, cuja chegada determinara a approxima-
ção e a concórdia dos povos divergentes. Mai» do que isto,
censurava abertamente o comportamento hostil das tropas
invasoras, que, no seu dizer, retardavam com a attitude to-
mada a marcha de Artigas para além do Uruguay.
N'egava-se por fim o governo de Buenos Ayres a ac-
quiescer nas proposições portuguezas emquanto durasse a oc-
cupação estrangeira, que era a negação viva dos generosos
intuitos proclamados na carta de D. Diogo de Souza, e
também a reconhecer de qualquer modo a auctoridade da
Regência da Hespanha, promettendo em todo caso respeitar
os dominios do Principe Regente de Portugal si este obser-
vasse para com as Províncias Unidas uma conducta reci-
proca. Quanto ás questões de limites, uma vez evacuado o
território nacional, entendia o governo provisional poder
tratal-as pacificamente sem esperar as resoluções da metró-
pole, oíferecendo tamanhas difficuldades a redempção do
monarcha do seu captiveiro e "tendo-se a aucthoridade devol-
vido outra vez aos povos respectivamente, achando-se por
consequência refundida n'este governo, relativamente ao ter-
ritório da sua jurisdicção. " ( i )
(1) "Os americanos consagravam com este acto uma tiheoria
nova, theoria que comquanto perfeitamente de accordo com o espirito
do governo monai^cliico absoluto, era revolucionaria em sua essência
pelas consequências lógicas que d'ella se deduziam. Sustentavam elles
que A America não dependia da Hespanha, mas sim do monai'eha a
quem havia jurado ol>ediencia, e que na sua ausência caducavam todas
as suas delegações na metrópole. Esta theoria do governo pessoal
devia conduzil-os mais tarde a desconhecerem as auctoridades hespa-
nho:las na America, e a reassumirem SvHis direitos e preroga'tivas. em
virtude da soberania absoluta convertida em soberania popular."
(Mitre, 0.1). cit. vol. I). Solorzano, o expositor da constituição colonial
liespanhola na Ameri^ca. deriva os dirt'i.íos dos Reis d'Hespanha ás
índias não da descoberta, mas da bulia paipal que as concf^dera. como
feudo pessoal.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 581
Esta correspondência precedeu de pouco a evacuação
portugueza do território uruguayo. O armisticio termi-
nado, o conflicto não recomeçou logo entre Montevideo e
Buenos Ayres nem se travou entre Buenos Ayres e o Brazil,
proseguindo, porém, a situação anarchica na Banda Oriental
e além do rio, e até tomando, como é próprio das contendas
civis, um caracter selvagino. O partido nacional tinha de de-
fender mais do que a independência politica, a sua própria
existência contra o partido hespanhol, e ás conspirações en-
traram a responder as execuções. Ao tempo que começavam,
em virtude da missão do tenente-coronel Rademaker a
Buenos Ayres, a retirar-se as tropas portuguezas, principia-
vam a rugir ferozes as paixões no Prata, sendo morto entre
outros Alzaga, o chefe do partido addicto á metrópole; e
Montevideo cortava suas communicações com a antiga sede
do vice-reinado.
Rompimento não significa forçosamente lucta armada, e
Artigas, que aquém do Uruguay continuara a alimentar a
desordem, mostrava-se tão infenso a Montevideo como a
Buenos Ayres, dando vigor á resistência das outras provin-
cias contra o governo que aspirava a central. Para o cau-
dilho, Hespanhoes, Portenhos e Portuguezes eram em grau
igual detestáveis. Assim caminharam as cousas até 1816, sem
que houvesse propriamente estado de guerra declarada ao
governo de Buenos Ayres, onde a situação se tornara tão
critica que o maior numero desesperava do êxito da inde-
pendência, já então theoricamente consT; grada pelo Congresso
de Tucuman ; procurando os mais optimistas obter o con-
curso diplomático de outras nações, julgando outros residir a
salvação n'uma monarchia separada da da Hespanha e mais
facilmente acceitavel pela Europa entregue á Santa AUiança,
582 DOM JOÃO VI NO BRAZÍL
preferindo mesmo certos ao alastramento da anarchia o do-
mínio portuguez.
Tampouco se apresentava, longe d'isso, normal e regular
a condição de Montevideo, si bem que não existindo franca
occasião para a intervenção portugueza, a qual foi grande-
mente determinada, depois de 1815, pela situação creada á
monarohia de Dom João VT no Congresso de Vienna, servin-
do então a circumstancia de ser hostilizado por Artigas e estar
ameaçado de succumbir o governo legalista de Montevideo.
O facto era que em 181 5 já se modificara em grau sensivel
o precário estado militar do Brazii, e, sobretudo, a paz geral
da Europa permittia a vinda de Portugal e a organização em
1816 de uma divisão auxiliar de 5.000 veteranos da campa-
nha peninsular, aguerridos pelos repetidos combates e disci-
plinados pela mão férrea do marechal Beresford, que, desa-
vindo com a Regência do Reino e querendo explicar a seu
geito os negócios (resolução que lhe surtio pleno effeito), os
acompanhou ao Brazii e assistio ao seu embarque para Santa
Catharina.
Foi com esta divisão, composta das trez armas, que se
mandou o General Lecor (mais tarde visconde da Laguna)
directamente apoderar-se de Montevideo; ao passo que for-
ças brazileiras, entre ellas um regimento de linha e outro
de negros livres, iam crear uma diversão ás guerrilhas sempre
activas de Artigas, penetrando pela fronteira do Rio Grande,
onde a cavallaria irregular do caudilho nunca cessara de
cruzar e pelejar, a occuparem o território até o rio Uruguay,
isto é, o scenario completo das façanhas dos rebeldes.
Resurgiam vivazes as pretenções portuguezas, afrou-
xadas durante alguns annos com a paralysação da primeira
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 583
expedição, a má vontade da Inglaterra em favonear o im-
perialismo da corte do Rio e as muitas peripécias e surprezas
da historia da independência da America Hespanhola, de-
pois que os resultados, inferiores ás esperanças, colhidos
por Portugal com tanto esforço no Congresso de Vienna, e a
figura menos brilhante do que a almejada que, não obstante
os talentos e serviços de Palmella e seus companheiros, alli
lhe coubera, convenceram a velha monarchia de que só na
America, graças á vastidão e importância dos seus domrnios
e á desaggregação do império colonial hespanhol, poderia
ella aspirar a novamente desempenhar primeiros papeis.
A morte havendo roubado Galvêas, a limitação de hori-
zontes d'este conselheiro da coroa, correspondente ao periodo
de apathia exterior, fora substituida nos ministérios politicos
pelo descortino de Barca, como é sabido, abertamente favorá-
vel, em opposição aos alliados, ao collega Aguiar e ao par-
tido dos fidalgos portu^ezes, á conservação no Brazil da
sede da monarchia. O gabinete britannico bem sentia
a differença da orientação a vir quando, no dizer de Maler
( I ) , moveu á sua nomeação a mais violenta opposição.
Dom João e Barca, unidos em espirito, resolveram
procurar no Novo Mundo as compensações que no Velho
lhes eram devidas mas negadas, mesmo a justa restituição
de Olivença, motivo aliás excellente para um desforço ul-
tramarino envolvendo a occupação definitiva da Banda
Oriental. A Hespanha, longe e exhausta de sangue e de re-
cursos pelas guerras européas e coloniaes que a dilaceravam,
parecia pouco para temer. Em Buenos Ayres, Pueyrredon
tomava conta, como director, de um governo fraco, com-
(1) Officio cifrado de 14 de Outubro de 1815.
584 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
batido pelos federalistas partidários do isolamento provin-
cial, que agitavam ainda mais ruidosamente o problema da
independercia sem lhe darem uma salução definitiva, e até
pelo contrario forneciam ao governo do Rio para qualquer
acção o pretexto, sempre invocado, de precisar garantir a paz
das suas fronteiras meridionaes.
De resto, quando Pueyrredon assumiu o mando dele-
gado pelo Congresso, a nova expedição portugueza á Banda
Oriental era uma realidade. Tanto foi longamente preme-
ditado o proceder da corte do Brazil, só se esperando a in-
teira pacificação européa para poder robustecer o poderio
militar portuguez na America que, dous annos antes, escre-
via Marrocos (i): ''Aqui se está embarcando o corpo de
Artilherla com os mais petrechos e bagagens, assim como
o Marquez de Alegrete, General em Chefe, para a Ilha
de Santa Catharina, e dalli se distribuírem para guarnece-
rem as Linhas das nossas fronteiras, defendendo-as das in-
cursões dos insurgentes Americanos Hespanhoes, que já
ameação o nosso território, mas a nossa força he considerável,
e he mais temivel por sua disciplina. O Governador, que foi
de Montevideo, o Vigodet aqui se acha refugiado, mas não
pinta o caso tão feio, como o referem politicarrões das Pra-
ças, e julgo que com o adjutorio, que se espera da Hespa-
nha Europêa, se accommmodarão depressa estas desordens."
Em vez de soccorros hespanhoes, foram reforços portu-
guezes os que foram a breve trecho chegando em successão,
e o amor próprio portuguez de Marrocos, cujas preferencias
paisanas a principio se tinham escandalizado da arrogância
d'esses militares feitos não só nas casernas como nos campos
(1) Carta ao Pai, de 4 de Agosto de 1814.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 5^
de peleja, cada vez se foi exaltando mais com o seu garbo,
que tão bem impressionou o principe Maximiliano de Wied-
Neuwied ( i ) .
Por muitos motivos não foi a occasião de uma inter-
venção, conductiva de conquista, mal escolhida por Portu-
gal. De 1814 a 1815, ganhando vigor a resistência com a
restauração bourbonica, todas as revoluções sul-americanas
para a independência viram-se suffocadas, excepção feita da
das Províncias Unidas: tempo portanto esse de desanimo
e de espectativa. Só em 181 7 começaria a reacção liberta-
dora, " movimento excêntrico da revolução argentina ame-
ricanizada, em marcha para a emancipação continental"
(1) "A porção de troipa que tem oheg£,do de Lisboa he man-
dada desemlbai'car da banda d"além do rio, em huns sitios ebamados
a Praia Oraiule e a Armação das talcas, oníde se Liie tem preparado
Quartéis á ligeira, ou pro Ínterim : e a Artilheria vai para a ILha das
Cobras ; e para em tudo estar em seipa ração da tropa desta cidade,
se está preparando o seu Hospital na Ilha das Enchadas, onde anti-
gamente esteve o dos Inglezes. Apezar de não terem feito desordens,
são bem aipontados pelas bebedeiras, e certo a,r de chibanteria ; mas
toda a gente lhe espera pela quarentena, em qrsinto se lhes gastão
alguns vinténs, que trazem, e se lhes surrão as tardinhas tafues, com
que ora apparecem ; pois como já succedeo aos primeiros, hão de
ver-se em poucos dias com as caras amarellas, e cabisibaixos." (Carta
ao Pai d 3 8 de Novembro de 1815).
" Aqui tem chegado a Tropa mui arrogante e valentona, e por
isso estão em separação da Tropa daqui, sendo aquartelada na mar-
gem d'.alem do rio : está em tudo disciplinada á Ingleza, e dizem que
em costumes á Franceza ; e por isso toda. a gente se desvia de tomar
conihecimento com elTès." (Carta á ii-mã, de 15 de Novembro de 181")).
" Os corpos de Artilheria e Cavalleria, que chegarão de Lisboa,
já forão enviados para o Rio Grande, .com escala por Santa Catharina :
até agora se tem portado muito bem, e á satisfação geral ; antes pelo
contrario tem sido mal correspondidos da Tropa bravia deste Paiz e
mal re-munerados com o que lhe he devido: porem, tirando huma ou
outra dissenção particular, em que elles sempre mostrão que são
Portuguezes valentes, e não Brazileiros cobardes, o geral tem sempre
mostraido prudência, socego, moderação, e até boa conducta. Affinna-se
que o corpo de caçadores, que está a chegar, hé composto de Trans-
montanos esforçados e escolhidos dos que mais se distinguii-ão na ba-
talha de Talavera." (Carta ao Pai de 23 de Fevereiro de 1816),
■"Pelas Gazetas inclusas verá V. Mce. como foi a enti-ada e re-
cebimento da nossa Tropa, que a todos os Brazileií-os fez a maior
586 DOM JOÃO VI NO BRAZiL
(i). Não admira por isso que fosse opinião sincera do en-
viado confidencial argentino no Rio D. Manuel José Gar-
cia— não só d'elle, de outros, como D. Nicoláo Herrera,
monarchista convicto emigrado no Rio — que a salvação
da sua pátria, dividida pelas facções, privada de reconheci-
mento, ameaçada pela Hespanha, que dizia preparar contra
ella a sua grande expedição de Cadiz, só podia provir, com
a independência ou a annexação, de Portugal.
A Inglaterra achava-se impedida de dar qualquer passo
em favor da revolução sul-americana pelos seus compromis-
sos com a Hespanha, exarados no tratado de 1814; pelos
seus interesses de potencia colonial, incompativeis com eman-
espectação, por nunca terem visto caçadores, nem a sua differente dis-
ciplina. A sua viagem foi muito feliz e so perderão 3 homens, isto he
dous de feibres, e hum que cahio de noute bêbado ao mar; o que mê
foi communicado pelo Aujditor da Divisão, Aohão-se aquartelados
no mesmo sitio da Praia Grande, onde es.tLverão alojados os> primei-
ros, e cre-se que aqui persistirão até depois da Acclamação de Sua Ma-
jestade o Sr. D. João VI, que talvez será no dia 24 de Junho ; e elles
por isso. farão o dia mais brilhante. Maudarão-se preparar com brevi-
dade algumas embarcaç-ões de guerra, que devem sahir para Lisboa,
di/.em, a buscar outra Divisão de 6 mil homens, que são aqui neces-
sários para guarnição de alguns Lugares mais importantes deste
Reino." (Carta ao Pai de IS de Abril de 1816).
"Sua Magestade e toda a Familia Real se achão ha hum mez
no sitio de S. Domingos, pouco distante do sitio da Praia Grande, ;
tem havido repetidos exercícios dos caçadores, que aqui chegarão do
Exercito de Portugal, representando-se aquellas batalhas, em que
se tem feito fumosos. Tem recebido muitas honras, e elles se tem
portado muito bem, de sorte que tem merecido o agasalho de todos.
Esta semana tornão a embarcar todos, e se dirigem a desembarcar em
Maldonado, afim de atacarem com vigor aos Hespanhoes do Rio da
Prata, que já tem passado as nossas fronteiras, e tem feito estragos
nos nossos primieiro» postos Militares. Neste Arsenal se tem feito huma
infinidade de petrechos de guerra para elles levarem, como são, esca-
das, machados, forquilhas, etc, etc. Ix)go que elles saião, sahe tam-
bém o Maresohal Beresford para Lisboa, com as ordens competentes
para ahi organizar outra divisão de 6.000 homens, e dizem que são
d+>stinados para guarnição das duas cidades principaes do Rio de Ja-
neiro e Bahia, pois que a Tropa daqui he Tropa de Theatro." (Carta
ao Pai de 28 de Maio de 1816).
(1) Mitre, Historia de Srni Martm y de la Enuinoi/pacioyi 8ud-
Americana, vol. I.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 587
cipações, e quando se avantajasse a elles a perspectiva mer-
cantil desafogada, pela attitude decidida tomada na questão
pelo autocrata russo, toda favorável ao restabelecimento das
monarchias legitimas e á recolonização das possessões re-
belladas. E' facto que a Inglaterra foi de começo bastante
favorável aos independentes (i) mas já ia diplomatica-
mente variando de rumo, chegando em 1818 a pôr-se ao
lado da Hespanha e da Santa AUiança na questão ameri-
cana, só visando então á franquia commercial das colónias.
A. mudança politica apenas viria com Canning. Por esse
lado económico o momento escolhido por Portugal para prati-
car a annexação da Banda Oriental não era propicio, mas a
opportunidade cessara inteiramente. As colónias que durante
trez séculos tinham sido cobiçadas como campos de explora-
ção exclusiva, entravam apoz a emancipação das colónias
inglezas da America, as impressivas publicações dos abbades
Raynal e de Pradt e a evolução theorica e pratica da eco-
nomia politica, a ser consideradas como mercados interna-
cionaes, terrenos de concorrência commercial. O tratado de
18 10, de Portugal com a Grã Bretanha, bastante denun-
ciara n'um sentido egoista essa orientação que a obra de
Pradt — UEurope et ses colonies — modela na perfeição como
these.
A França, por mais que lhe conviesse contrariar a po-
litica mercantil ingleza, n'esse momento já pouco se incli-
nando de facto e até deixando officialmente de inclinar-se
cm principio á libertação das colónias, e comquanto entrasse
(1) "Ha huma entrou axjui de Montevideo hiiima Fragata Hes-
panhola s pedir soccorro contra os de Buenos Ayres, pois que estes
tem crescido em forças, ajudados dos Negociantes Inglezes, que os
tem fornecido de armas e provisões de guerra." (€arta de Marroicos
ao Pai de IG de Novem-bro de 1818).
588 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
nos seus planos fundar uma ou varias monarchias sul-ame-
ricanas com Bourbons á testa, não podia nem estava em
posição moral de oppor-se aos designios de Fernando VII, re-
passados de legitimidade: Lafayette, todo sympathico aos que
aspiravam a liberdades, não protegia ainda a realeza de
1830. Entendera assim o governo de Luiz XVIII ser o
mais cauteloso no assumpto. As instrucções que levava para
o Brazil o duque de Luxemburgo ( i ) prescreviam que
elle recebesse com circumspecção qualquer emissário das co-
lónias revoltadas, o qual se abrisse com o embaixador, e que,
sem fazer promessas, referisse ao governo em Pariz quanto
confidencialmente lhe relatasse o mesmo emissário, pro-
curando simplesmente "quaes possam ser os meios indirectos
de animar nosso commercio com as ditas possessões, já que
não podemos, na sua condição actual, nem auctorizar, nem
confessar com ellas relação alguma."
Os próprios Estados Unidos não se tinham até então
pronunciado sobre a tutela européa do Novo Mundo: o
acoordo entre Clay e Canning, que deu em resultado a dou-
trina de Monroe, só alguns annos depois se estabeleceria.
Simultânea com a reacção no sentimento governamental
britannico ia-se porém a politica norte-americana affirmando
mais ostensivamente favorável á emancipação das posses-
sões hespanholas, fazendo em 18 19 uma declaração n'esse
sentido por motivo do Congresso de Aix-la-Chapelle, em
que se tratou da mediação das grandes potencias entre as co-
lónias insurrectas e a sua metrópole.
Ante tal colligação de interesses melindrosos e força-
das indifferencas tinham ido esmorecer em Madrid, e iam
(1) Arcli. do Min. dos Xeg. Est. de França.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 589
fracassar em Paríz, os esforços diplomáticos do enviado ar-
gentino Rivadavia. Entretanto no Brazil não se desmentia a
actividade do seu collega Garcia no sentido de uma união
luzo^platrna. O projecto de tratado contemporâneo da sua
chegada ao Rio de Janeiro (Janeiro de 1815) sobre que Ma-
ler prestou informações ao Ministério francez ( i ) , encerrava
a auctorização para o Brazil de occupar a margem oriental do
Prata, abstendo-se Buenos Ayres de fornecer soccorros aos
atacados e devendo, depois da conquista, o Congresso Nacio-
nal de Tucumam solicitar a reunião das Províncias Unidas
ao Reino do Brazil, realizada a qual tomaria Dom João VI
o titulo de Imperador da America do Sul. Os funccionarios
públicos seriam conservados nos seus cargos e todos os postos
ecclesiasticos, civis e militares reservados sempre para os
nascidos no paiz, excepção feita de trez lugares — vice-rei,
bispo e commandante das armas — , de livre escolha do
novo Imperador.
Acreditava Maler que fora na fé de tal accordo que o
Congresso de Tucumam a 9 de Julho de 1816, lobrigando
já em marcha a expedição portugueza do Sul e "ignorando
o estado valetudinário do ministério brazileiro", proclamou
a independência das Provincias Unidas, primeiro passo para
a sua encorporação. A suspeita do agente francez não re-
pousa sobre um fundamento de grande solidez, ainda que
communicava elle que, pouco antes, havia Pueyrredon man-
dado um expresso representar a necessidade de começar as
operações effectivas. Por motivo d'ellas, ajuntava Maler, é
que Barca, ludibriando o seu collega Aguiar, — "demasiado
honesto para adherir a taes conchavos " — determinou subi-
(1) Officio de 10 de Junho de 1817.
590 DOM JOÃO VI NO BUAZIL
tamente a partida para Hespanha das Infantas, a qual se
verificou na manhã de 3 de Julho, começando a 4 o movi-
mento de sahida da expedição acantonada na ilha de Santa
Catharina, para que fora ordem." Assim é que o Sr. conde
da Barca fez marchar a par o penhor da união mais sagrada
com as medidas de aggressão mais injusta" (i).
Ponderando que os governos americanos reconhecidos
ou a reconhecer absorviam todo o tempo e todas as contem-
plações da corte do Rio, relatava o encarregado de negócios
de França que o agente Garcia via frequentemente o conde
da Barca e já começava a usar de menos disfarce e ceri-
monia, entrando no despacho com uma grande pasta de-
baixo do braço. O Rei, de propósito, por deferência para com
os representantes estrangeiros, o não recebia, maj Garcia
andava de tal modo satisfeito que bem parecia que só tinha
a felicitar-se pela politica da corte portugueza.
O historiador Mitre tece os mais francos elogios á in-
telligencia, elevação moral, senso de estadista e patriotismo
de D. Manoel José Garcia, apenas formulando restricções
quanto á sua tenacidade e combatividade. A idéa completa do
enviado argentino consistia em aproveitar-se da ambição
portugueza, dos seus interesses homogéneos, da sua comniiini-
dade de vistas, para supprimir esse fcco de anarchia em que
se convertera Montevideo, precaução sem a qual era inú-
til esperar socego nas Provincias Unidas, contagiadas por
um mal cujos effeitos durariam pelo menos emquanto sub-
sistisse a causa; e em acceitar o protectorado portuguez si
mesmo assim, conforme elle acreditava piamente, proseguisse
(1) Off. clt.
DOM JOÃO VI NO BlUZIL 591
O delírio das paixões e fosse impossível estabelecer uma si-
tuação seria e calma (i).
Garcia não considerava deshonrosa a intervenção por-
tugueza porque em rigor não partia, dizia elle, de uma po-
tencia estrangeira, sim de uma nação de interesses vincula-
dos aos destinos do continente, para cuja emancipação con-
tribuíra efficazmente, ahi installando a sede da sua monarohía
muitas vezes secular. A irmandade das conveniências só se
daria verdadeiramente porém em 1822, quando a separação
determinasse para o Brazil uma situação análoga á das coló-
nias hespanholas libertadas pelo movimento que irradiou dos
seus dous centros de propulsão, em Venezuela e no Rio da
Prata, e o tornasse realmente solidário com ellas na necessi-
dade do reconhecimento da sua independência. Entre o Im-
pério e a Republica Argentina, além do regimen politico
diverso que cada um d 'estes paizes entrou a sj^mbolizar, exis-
tiria todavia então o óbice da Cisplatina que sempre acir-
rara as duas metrópoles e continuaria a dividir as duas novas
nações — porquanto, dos arrazoados de Garcia e da marcha
de Lecor, o que ia resultar era a annexação portugueza da
Banda Oriental sem o restabelecimento da ordem e segu-
rança na margem occidental do Prata.
Relata um escriptor argentino (2) que o pai de D.
Manuel José Garcia escrevia ao filho para o Rio de Ja-
(1) " Estoy persuadido, y la experiência parece haborlo demos-
trado, que necesitamos la fuerza de un poder estrano, no solo para
terminar nuestra contienda, sino para f( rmarmoss un centro comun de
autoridad, capaz de organizar el caos en que estón convertidas nues-
tras províncias, y en la escala de las necesidades pdblicas cuento pri-
mero la de no recaer en el sistema colonial. En tal situacion es preciso
renunciar á la esi)eranza de cegar por niiestras manos la fuente de
tantos males." Communicação de Garcia a Balcarce, de 9 de Junho de
1816, na Hist. de Belgramo, vol. II).
(2) D. Miguel Cané no estudo sobre a diplomacia da Ilevoluçao,
publicado na revista La BiWoteoa, anno de 1897.
592 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
neíro que, si elle voltasse a Buenos Ayres, de ódio o enfor-
cariam n'um ferro de lampeão, tal era a tendência espon-
tânea da coUectividade para a sua autonomia. Com effeito
o enviado argentino, a quem o espectáculo da pátria desunida
e desordenada apparecia de fora tão desanimador e lúgubre,
não calculava bem a vitalidade da resistência nacional a qual-
quer plano de recolonização : fosse este o perdão promettido
por Fernando VII aos seus súbditos transviados e arrepen-
didos, fosse — caso ainda peor — a erecção de um reino
encorporado no império de Dom João VI ou tutelado pela
coroa americana de Portugal; como seria mesmo a absurda
monarchia do descendente dos Incas casado com uma In-
fanta portugueza, filha de Bragança e Bourbon, com que
sonhava Belgrano e que o Congresso de Tucuman aponta-
ria pouco depois a Pueyrredon como o mais sábio desfecho
para as difficuldades com a Hespanha e com Portugal.
O facto é que o povo argentino, estimulado pela recon-
quista, com foros tradicionaes e já agora com tradições guer-
reiras, formadas no episodio da expulsão dos Inglezes, repel-
liria qualquer plano importando em sujeição nacional, por
mais paternal e culto que lhe apregoassem o governo dos
Braganças comparado com o despotismo de Fernando VII
ou com o bárbaro caudilhismo. A sorte estava lançada, a
separação consummada, a independência realizada. A força
moral que assegurava esta ultima podia ser latente mas não
existia menos por isso, e não tardaria até a manifestar-se com
toda a pujança própria de um composto solido e duradouro.
Sentir a febre da autonomia e dispor de força para re-
sistir ao tratamento que lhe queriam impor, eram porém
para a nacionalidade nascente cousas differentes. O director
Pueyrredon não pensava como Garcia, mas acreditava n'uma
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 593
boa intelligencia com a corte do Rio. Si não applaudia em
absoluto a expedição de Lecor, tampouco a poderia guer-
rear com efficiencia. Ignorava até si Portugal e Hespanha
não estariam de accordo, conforme tendiam a fazer crel-o
as declarações do gabinete do Rio de que, indo dar um golpe
de morte na anarchia revolucionaria, servia os interesses da
monarchia catholica ao mesmo tempo que os próprios, orgâ-
nica e fatalmente conservadores. Por isso Pueyrredon addu-
ziu pretextos, adiou soluções, contemporizou, ganhou tempo,
não respondendo a Garcia ( cujas communicações con-
tinuavam a ser dirigidas a Balcarce, antecessor do di-
rector, por ser desconhecida no Brazil nas datas a subida
ao poder de Pueyrredon ), mandando um commissionado
militar ao encontro do general portuguez invasor a pedir
explicações e reclamar o cumprimento do armisticio de i8i2,
e consultando o Congresso, expressão da vontade nacional.
Em face das chimeras de realeza indigena d'esta assem-
bléa e sem meios de crear um novo exercito, como lhe indica-
vam o Cabildo e a Junta de observação ( i ) , Pueyrredon ti-
nha comtudo suas esperanças postas no exercito dos Andes
que San Martin andava disciplinando em Mendoza para a
reconquista do Chile e a libertação do Peru. Entretanto, até
regressar do Pacifico esse exercito robustecido pela victoria e
destinado a repellir os intentos absorventes da metrópole,
salvando a pátria da dissolução, Lecor tomaria posse de
Montevideo, que Artigas não deixara mesmo ser soccorrida,
originando-se uma situação mais instável e mais grave do
que nunca.
A occupação da Banda Oriental era pelo enviado Gar-
cia considerada um bem por um motivo mais. Faltando este
(1) Mitre, Hist. de BoJgrano, yol II.
504 DOM JOÃO VI ísO BRAZIL
ponto de apoio, d'onde em 1806 partira a expedição da re-
conquista, á fallada expedição de Cadiz, que Rivadavia em
Londres e logo- depois José Valentin Gomez em Pariz esta-
vam encarregados de procurar a todo transe empatar, nego-
ciando qualquer proposta de convenção sobre a base da re-
nuncia ao ataque, a Hespanha se não abalançaria á arriscada
aventura. Isto quando a escandalosa retenção de Olivença e
a attitude das grandes potencias formando o cenáculo da
Santa Alliança, e firmemente dispostas a manter a paz ob-
tida apoz um longo e cruciante periodo de guerras, consen-
tissem que o Rei da Hespanha declarasse guerra ao de Por-
tugal, não obstante as suspeitas que os distanciavam.
A posição da corte do Rio entre a metrópole hespa-
nhola e a colónia revoltada de Buenos Ayres, ao mesmo
tempo que não era commoda trazia dupla vantagem. Como
n'outros casos análogos, a sua neutralidade comportava pro-
veitos, buscando as duas parcialidades principaes em con-
flicto no Prata alistal-a em seu beneficio exclusivo, já que a
situação geographica, a paz interna, a alliança ingleza, a
maior copia de recursos e outras circumstancias davam então
a Portugal na secção oriental da America do Sul papel e ca-
pacidade de arbitro quasi supremo.
O pedido em casamento das duas Infantas portuguezas
para o monarcha hespanhol e seu irmão e herdeiro pre-
sumptivo Dom Carlos (i), sabemos que equivalera a uma
(1) o portador officioso do pedido foi o secretario da legação
portugiieza em Madrid Toaquim SeveríBo Gomes, embarcado com cai-ta
de prego no brigue nacional Lehre. O pedido official foi porém apre-
sentado pelo brigadeiro general D. Gaspar de Vigod^^t, a quem trouxe
a fragata hespanhola La SoledM. Depressa ficou Fernando VII viuvo.
k Infanta era de precária saúde. N'uma das cartas de Man-ocos, de
11 de Março de 1814, se diz, passando em revista a saúde da real fa-
inilia : " A Sra. Infanta D. Maria Izabel continua nos seus ac-
cidentes ou desmaios, que muito a incommodão ; e tendo ha dlus hum,
cujo desaccordo lhe durou por espaço de 20 mJbautos."
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 595
tentativa para obter a cooperação portugueza na tarefa
de reduzir os insurgentes platinos: tão ancioso de resultado
esse esforço, que se compromettia a corte de Madrid a faci-
litar a demarcação pendente das fronteiras dos dominios
das duas coroas no Novo Mundo.
O apoio da corte do Rio parecia pois precioso ao go-
verno hespanhol para uma politica de resistência, de que j
cogitava, quando a outros, de fora, apreciando porventura
melhor a situação, mais garantia de êxito se afigurava offe-
recer uma politica de composição. O representante francez
no Brazil, por exemplo, entendia que si Fernando VII for- ^
mulasse concessões e as mantivesse em energia, não seria
cousa impossivel sujeitarem-se as províncias rebeldes, mesmo
sem derramamento de sangue, porquanto "a má administra-
ção dos governantes, suas continuadas dissensões e insaciá-
vel cobiça teem consideravelmente fatigado e descontentado
a multidão ; seis annos ha que aquellas províncias sacudiram
a auctoridade da metrópole e que os sentimentos se exalta-
ram, e homem algum de cabeça ainda se apresentou que haja
sabido dominar os espiritos, dar consistência ás suas institui-
ções nascentes € tirar partido das disposições favoráveis que
lhes testemunham os agentes de uma grande potencia" (i).
Si houvesse surgido um semelhante chefe, já a Hespanha
teria perdido para todo sempre as provincias rebelladas, opi-
nava Maler, sem se estabelecer o cançaço mercê da incapaci-
dade e vícios dos que se achavam á frente da revolução. A
composição ímpunha-se dado o estado de inquietação e de
anarchia que prevalecia, gerado pelo espirito faccioso e pai-
xões odientas, mas tornavam-na impossivel os próprios chefes
realistas, os quaes, a par das suas crueldades, apenas exhibiam
Kl) QCfkio de 12 de Novembro d<i 1815.
596 DOM JOÃO VI NO BRA2IL
fraqueza e insufficiencia nos meios de arcar com a situa-
ção (i).
Idênticas foram as impressões de Luxemburgo, quando
chegou. "A desintelligencia manifestou-se entre os chefes
apoz os últimos acontecimentos militares, informava o em-
baixador; o congresso de Tucumam dissolveu-se antes de
conseguirem pôr-se de accordo os deputados das provincias
insurrectas. Os proprietários não aspiram senão a submet-
ter-se, ou melhor, imploram os meios de se desembaraça-
rem do furacão revolucionário que se agita e carrega a des-
truição onde qu'er que attinge" (2).
Em verdade já era tarde para uma reconciliação. A
idéa de emancipação caminhara muito para poder recuar, e
tão geraes, tão concordes, tão decididas estavam sendo suas
manifestações que lhe imprimiam, junto com as marcas que
ostentava de espontaneidade e de solidariedade moral, e
mau grado a reacção produzida, o cunho da irrevogabilidade.
A's próprias colónias, a saber, ao seu povo, ficara devolvida
a tarefa de preservar sua integridade e autonomia, e ellas
assim o entenderam e acabaram por executar á risca.
Em Buenos Ayres Balcarce foi derribado em Junho
de 18 16, accusado de se não occupar assaz de fazer frente
ás emergências; Pueyrredon, uma vez passado o primeiro en-
thusiasmo da sua elevação, não escapou aos commentarios
de traição: todos os governantes, sem excepção, seriam com-
pellidos pela opinião, diga-se antes pelo instlncto publico,
a precaverem-se e garantirem a liberdade e com ella a inde-
pendência. Nada, pode affirmar-se, fez mais do que esta
anciã popular para radicar nos espiritos o ideal republicano
(1) Off. cit.
(2) Arch. do Min., dos <Neg. Est. de França.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 597
que, recorda Cané com razão, os excessos da Revolução fran-
ceza, sem esquecer os desatinos domésticos, tinham desacre-
ditado no Prata, emprestando fascinação entre a gente culta
ao ideal monarchico liberal de modelo inglez, que estava
até predominando na França cartista e parlamentar, e que
tinha no seu modo de ser a grande vantagem de não dar en-
sanchas a audaciosos como Alvear e a caciques regionaes
como Artigas.
Fora a consciência d'essa maior segurança politica que
dera os seus defensores mais decididos á causa da Princeza
do Brazil e estava ainda suggerindo a busca de outras com-
binações, si bem que antipathicas á corrente popular. Pueyr-
redon achava-se quasi só, entre os próceres da revolução
argentina, no acreditar que a republica devia acompanhar
a separação, e no acceitar a monarchia — preconizada tanto
por Belgrano, o soldado e gonhador generoso, como pelo
pensador educado e recto que foi Rivadavia* — somente como
o melhor modo de fazer tolerar a independência pelas gran-
des potencias reaccionárias da Europa.
Para estas, quando reunidas em 1818 no Congresso de
Aix-la-Chapelle, ao tempo que o abbade de Pradt escrevia
suas defezas mais pomposas de emancipação colonial, redi-
giria o enviado Garcia uma justificação da occupação portu-
gueza da Banda Oriental, a qual o governo de Dom João VI
cohonestava com um argumento que os Estados Unidos
muito depois invocariam com relação á necessidade da inter-
venção em Cuba; não poder o Brazil, paiz reconhecidamente
ordeiro, supportar sem perigo próprio um foco de pertur-
bação tão perto das suas communidades pacificas e laboriosas.
A occupação tinha, porém, por motivos verdadeiros fa-
cultar ao Brazil sua fronteira natural ao sul e tornar bem
598 DOM JOÃO VI NO BRAZÍL
irremediável a desaggregação hespanhola em andamento.
Uma vez consummada, tal desaggregação reduziria a me-
trópole, privada de seus melhores recursos, a potencia muito
subalterna, e collocaria os desunidos e débeis fragmentos do
império colonial rival á mercê da compacta e disciplinada
expansão portugueza no futuro.
O commercio era uma das preoccupações presentes e
por conseguinte um dos motivos da attitude cautelosa do
governo portuguez, o qual, zelando na apparencia a sua
neutralidade, só aguardava occasião propicia de exclusiva
e francamente servir os seus interesses. Entretanto favorecia
quanto podia o trafico mercantil estabelecido entre o Rio,
Montevideo e Buenos Ayres.
Qualquer desvio da tão apregoada isenção que dissi-
mulava o real egoismo da intervenção, podia de resto ser
profundamente ruinoso á corte brazileira. Si desertasse a
causa legal da Héspanha, ficar-lhe-hia a descoberto o velho
Reino, exposto ás represálias da nação visinha. Si a abra-
çasse com sinceridade, correria o risco de ver accender-se um
conf|icto armado do novo Reino com as ex-colonias hespa-
nholas, já praticamente empossadas na sua soberania. Era
portanto de prever que Portugal apenas favorecia effecti-
vamente o partido da metrópole si a considerasse ou melhor
a verificasse em estado de reconquistar as suas possessões: do
contrario, abster-se-hia de pronunciar-se abertamente e não
perderia até ensejo de usar de benevolência para com os
insurgentes.
Maler cita como um dos exemplos da moderação e tole-
rância de Dom João — poderia accrescentar do seu tino — o
tratamento dispensado ao general Alvear, ex-director das Pro-
víncias do Rio da Prata, o qual se refugiara a bordo de uma
DOM JOÃO VI NO^BRAZTL 599
fragata ingleza e d'ahi passara ao Rio de Janeiro. O Prín-
cipe não só o poz a coberto da influencia perseguidora de Vi-
godet, como o assegurou da sua protecção emquanto proce-
desse com discernimento (i).
Também é mais que provável que Dom João consen-
tiria em ajudar o cunhado (em favor de quem se empenhava
diligentemente depois da restauração a Princeza Dona Car-
lota, muito amiga de Fernando VI í, muito hespanhola de
coração e muito trefega de génio), caso a Hespanha con-
sentisse em ceder-lhe a margem oriental do Prata. Nenhuma
abertura a este respeito foi porém tentada, segundo decla-
raram expressamente a Maler tanto o general Vigodet, ao re-
gressar com as Infantas que viera buscar, como o encarre-
gado de negócios da Hespanha Villalba (2) ; entretanto ia
singrar a expedição portugueza contra Montevideo, verdade
é que sob o maior sigillo, ignorando os representantes es-
trangeiros no Rio para onde ella se dirigia exactamente.
A corte do Rio affectava aliás todas as considerações
para com o legitimo soberano e só se mostrava disposta a
agir parecendo que o fazia para proteger seus súbditos, no
interesse e segurança do paiz contra visinhos turbulentos. A
expedição tão antipathica devia comtudo ser á corte de Ma-
drid quanto ao governo revolucionário de Buenos Ayres. A
aversão a Portugal era grande nas terras de Castella, mas
não menor no Rio da Prata, cuja população porventura ad-
mittiria mais facilmente a tutela brazileira do que a recolo-
nização hespanhola com o domínio, ao velho modo, de um
(1) Mais tarde, em 1818, o mesmo encarregado de negocies de
França, e o ministro liespanhol Casa-Flores quizeram debalde impedir
o embapqne de Alvear para Buenos Ayres. (Corresp. de Maler).
(2) Officio de 10 de Julho de 1816.
D. J. — '3S
600 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
vice-rei ou capitão general, anhclando porém mais que tudo
e o mais fortemente pela independência.
Os jornaes inglezes da epocha, cujo parecer se mani-
festava unanimemente muito contrario á expedição do Sul
— quer ella viesse a ser feita de connivencia com o Rei
d'Hespanha, quer fosse intentada unicamente por Portugal
com o fim de castigar um visinho importuno como Artigas
e assegurar á fronteira brazileira uma mais solida protecção
— punham no geral em relevo ( i ) aquella aversão tradicional
e o mal que para os Portuguezes resultava de prestarem ou-
vidos ás facções decahidas e intrigantes que, lá como em toda
a parte, empregavam os melhores esforços para venderem
seu paiz a estrangeiros.
O partido portuguez chegou entretanto a ser considerá-
vel no Rio da Prata "em contraposição aos principios disso-
lutos dos Independentes, que constituiam o outro partido
forte" (2) ; porquanto no que não havia quasi discrepâncias,
em que pese á opinião de Luxemburgo e Maler, imbuidos de
preconceitos de legitimidade e da excellencia das soluções
medias, era por parte da população nacional com relação
ao restabelecimento da auctoridade da mãi pátria, mesmo
scfb a forma de união com previa concessão da autonomia.
Um periódico britannico (3) escrevia até, reconhe-
cendo o vigor do partido affeiçoado á corte do Rio, que "as
pessoas mais respeitáveis das provincias, tanto pela fortuna
como pela reputação, eram favoráveis ao governo portuguez
porque o julgavam preferi vel aos principios revolucionários
e irreligiosos que são infelizmente transmittidos á America
(1) Entre ontvos o Moniing Chronicle de 19 de Setembro de
1816.
(2) Corresp. de (Maler.
(3) Wcekly Messeuffer de 1.3 de Outubro de 181G.
DOM JOÃO VI NO BKAZIL 601
Meridional como a toda a Europa por esses patriotas e esses
reformadores" (i), do outro partido.
A attitude da Inglaterra foi comtudo, official e popu-
larmente, hostil de modo inequivoco a Portugal e á sua
politica platina. Para a Inglaterra a solução mais vantajosa
era a da independência por significar liberdade commercial
nas melhores condições. Uma extensão qualquer de mercados
ciiegava n'esse momento o mais a propósito para compensar
a má vontade que contra as industrias britannicas continuava
a ser ciosamente cultivada no continente. *'A independência
d'esse immenso e rico paiz, escrevia um dos mais conceitua-
dos jornaes (2), desenvolveria em poucos annos os seus
recursos ao mesmo tempo que as suas necessidades, em grau
tal que se produziria um justo equivalente de todos os pre-
juizos que possamos experimentar nos outros mercados da
Europa."
Argumentava a imprensa ingleza com o perfeito titulo
das colónias hespanholas á independência desde o dia em
que Fernando VII abandonara o império da Velha e Nova
Hespanha a José Napoleão, e a America desconhecera o
monarcha intruso. Por seu lado, uma vez restabelecido no
tlirono, o Rei legitimo convidara os seus súbditos ultramari-
nos á sujeição sem condescender em lhes conceder uma só
garantia para as suas liberdades conquistadas. Isto no em-
(1) Ajunta o m^smo periódico no artigo citsdo : "O governo
li.i^spanliol, não satisíoiío com um direito Icgitimia ao S3U despotismo.
Tião contente de mencionar os séculos de obscurantismo da sua monar-
vMn, baseia-a sobre uma parte absurda da linguagi^m empregada na
Kscriptnra, publicando recentemente um cathecismo no qnal os Após-
tolos e os Evangelistas r<^pet<'im os dizeres do D. Pedro Cevallos e dos
syeophantas tia Corte dMIespanha. l'ara refutar esta doutrina o suas
ílciducções, o partido opposto, igualmente insensato, vai ao extremo e
•MU vez de omittu- duvidas sobre a interpretação, repelle a regra, o
iprinicipio e mesmo a fé."
(2) Mo'jMiiiig Ch)'uniehe de 14 de Outubro do 1S1<3.
602 DOM JOÃO VI KO BRAZIL
tanto não justificava a intervenção portugueza. "Não alcan-
çariamos formar uma idéa dos direitos, a menos que os es-
tabeleçam a fraude e a violência, que possa possuir o governo
portuguez para interferir n'uma disputa entre a Hespanha
e as suas colónias" (i).
Igual maneira de ver adoptava o gabinete de Saint-
James apezar de, no intuito de lisonjear os sentimentos prá-
ticos da Inglaterra no assumpto, ter o general commandante
da força expedicionária portugueza levado ordem de decla-
rar abertos ao commercio universal todos os portos de que
se apoderasse, assim abolindo formalmente o systema colo-
nial de exclusivismo.
De resto a potencia alguma da Europa, cujos agentes
no Brazil denunciavam os altos planos da corte do Rio,
agradava o imperialismo americano de Portugal. "Monse-
nhor, exclamava Maler (2), esta Corte mau grado a penú-
ria das suas finanças, a fraqueza do seu governo e o estado
da sua população, nutre idéas ambiciosas; imaginou que
chegara para ellas o momento favorável e o titulo de Reino
Unido havendo exaltado algumas cabeças, acredita poder
impunemente, não sacudir a mascara, mas levantar o véo."
Verdade é que a residência americana dava uma inde-
pendência á corte portugueza como ella desde longo tempo
ou talvez nunca possuirá na Europa, não deixando todas
as potencias de reconhecer o cabimento da preferencia tes-
temunhada pelo Príncipe Regente ao Brazil. "Essa espécie
de sujeição tem frequentemente estorvado a corte de Lisboa,
dizia-se nas instrucções ao coronel Maler, quando nomeado
(1) Periódico citado.
(2) Officio de 31 de Outubro de 1816.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 608
para o Rio de Janeiro (i). O Principe pode desejar for-
rar-se d'ella. A residência no Rio faculta-lhe mais liberdade.''
O governo francez enxergava distinctamente, pois, um
dos principaes motivos que por vontade do seu chefe reti-
nham a familia real além mar. Outro motivo capital que
nas mesmas instrucções se aponta para o apego de Dom João
á nova sede da monarchia, era precisamente a emancipação
em via de firmar-se das colónias hespanholas, as quaes ten-
diam a estabelecer com o Brazil laços politicos e commer-
ciaes que o Império desmanchou, no querer afastar o Reino
da attracção republicana. "O Principe Regente tendo a es-
colher entre ser ainda por muito tempo o primeiro poder da
America Meridional ou voltar a occupar um dos terceiros
lugares na Europa, abraçará porventura o partido que lhe
permitta exercer em redor de si maior influencia" (2)
Tão interessado se mostrava o Principe Regente pelo
Novo Mundo, onde se asylara, que a imprensa ingleza che-
gara pouco antes da expedição do Sul a dar curso ao boato
de que progredia entre as coroas hespanhola e portugueza
uma negociação para trocar o património da dynastia de
Bragança na Europa por territórios mais extensos na Ame-
rica Meridional.
O boato era inexacto, e á Hespanha não illudiam os
protestos de boa fé portugueza, assim como não illudiam
os insurgentes de Buenos Ayres as seguranças de que a
expedição platina visava meramente a repressão da anarchia
(1) L\rch. do Min. dos Nog. Est. do França.
(2) InstmcQões citadas. Maler compreliendeu logo ao ohegar
qup a corte contava permanecer no Brazil. "Por tudo quanto ouço e ob-
servo, reza se^u officio de 6 de Setembro de 1815. sou leivado a crer
firmiemicnte ique de todos os modos se encontra S. A. R. resolvido a
prolongar sua assistência n'esta região, sendo precisas circurnstanciae
muito imperiosas para o compellirem a mudar de resolução."
604 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
local. Na grave crise de 1816 procedeu Pueyrredon com
vigor e patriotismo, ao mesmo tempo que com discerni-
mento. Elle pretendeu com effeito oppor á invasão es-
trangeira o concurso unido de Montevideo, de Artigas e
das Provincias Unidas, quando o Congresso de Tucuman
dava ao deputado Irigoyen, encarregado de uma missão no
Rio de Janeiro, instrucções que começavam altivas pela solu-
ção do reconhecimento da independência das Provincias Uni-
das e manutenção da inviolabilidade do seu território, para
descerem, passando pelas varias hypotheses monarchicas, até
a recolonização do vice-reinado, ignominiosamente transfe-
rido da tyrannia hespanhola para o jugo portuguez (i).
Em nome da vontade soberana das Provincias Unidas
da America do Sul, reunidas em assembléa representativa, e
em virtude do seu mandato ponderou o director, em carta
dirigida ao general em chefe portuguez, que considerava a
aggressão uma infracção do armisticio de 1812, o qual fora
celebrado especialmente em vista da Banda Oriental. O
caudilho uruguayo a ninguém delegara comtudo o cuidado
de formular a sua repulsa. De facto existia, apezar da igual-
dade de interesses em frente ao inimigo commum, pro-
funda antipathia entre os insurgentes das duas margens,
acabando mesmo o governo de Buenos Ayres de aproveitar-se
das difficuldades de Artigas para mandar occupar a cidade
de Santa Fé, de que este se achava de posse.
Ao emissário adrede mandado por Pueyrredon, Nicoláo
de Vedia, respondeu o caudilho com sobranceria que se de-
senvincilharia desajudado; que o governo de Buenos Ayres
estava em mãos tão fracas e incapazes que d'ahi não poderia
(1) Mitro, Ili.sc. (Ic Bchjrano.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 605
esperar soccorro ou vantagem alguma; que, pelo contrario,
iria elle dar-lhe uma licção logo que houvesse repellido os
Portuguezes, e que, caso fosse batido na margem esquerda,
se retiraria para a margem direita ( i ) .
Ainda depois de assignada uma convenção entre as
auctoridades de Buenos Ayres e os deputados da Banda
Oriental, escrevia Maler que a intelligencia entre as duas
margens não passava de macaquices {sitnagrées) (2). E'
mister realmente não esquecer que a ogeriza de Buenos Ay-
res contra Artigas foi um factor relevantissimo dos successos
que occorreram até 1821. "Montevideo n'a reçu et ne re-
cevra aucun secours, ajuntava o encarregado de negócios
de França, et les coriphées du Gouvernement des Provinces
Unies désirent avant tout la destruction d'Artigas, de son
parti, et de son influence."
Buenos Ayres não se prestava a soccorrer efficazmente
Montevideo e apoial-a decididamente em grande parte por-
que. Artigas, desejando por fim e reclamando soccorros, con-
servava sempre ares de dictar suas condições. O auxilio seria
concedido do melhor grado si Montevideo annuisse em en-
corporar-se ao organismo politico das Províncias Unidas;
mas perante suas velleidades persistentes de separação, Bue-
nos Ayres preferia esquivar-se, como lhe aconselhavam ou-
tras circumstancias, mandando todas suas forças disponíveis
para os lados do Chile e decidindo a invasão capitaneada por
San Martin. O desejo era grande de formar com Montevi-
deo uma ligação baseada sobre a autonomia do composto;
porém era também grande o resentimento contra o caudi-
lho intratável, e não menor a timidez em precipitar, sem
(1) CoiTesp. de Maler.
(2) Off. de 20 de Fevereiro de 1817.
006 DOM JOÃO VI XO BRAZIL
recursos adequados, um conflicto com Portugal, perigoso
para a emancipação argentina.
A multidão era por Montevideo, o sentimento popular
estava com a resistência, o instincto dos governantes denun-
ciava a ameaça da occupação estrangeira da Banda Oriental:
força era comtudo aos responsáveis pelos negócios públicos
raciocinarem com mais calculo e menos sentimentalismo, tanto
mais quanto na outra margem do Prata só se lhes deparavam
desconfiança e hostilidade. ''II faut bien selon les circonstan-
ces avoir Tair de ceder aux cris du peuple, mais Tarri-ère pen-
sée est constamment la même, on veut toujours à tout eve-
nement la facilite de se jetter dans les bras des Portu-
gais" (i).'
As tropas portuguezas, aproveitando-se d'estas dissen-
sões e receios, tinham entretanto ido arvorando o pavilhão
do Reino Unido no território oriental. O plano da campanha
era assim esboçado por Hippolyto aos seus leitores na occa-
sião em que se travava a lucta: "As tropas portuguezas do
Rio Grande, entraram já por Missoens, passaram o Uru-
guay, e iam a atacar Corrientes, que he o principal posto
fortificado, que Artigas tem no Paraná. Depois, vindo
pôr este rio abaixo, não terão difficuldade em tomar Santa
Fé, que he a chave da passagem para a margem meridional
do Rio da Prata; assim ficará inteiramente cortada a reti-
rada de Artigas para o interior do paiz; ainda que elle alli
tivesse, o que não tem, amigos que o acolhessem, e proteges-
sem. Se Artigas for com suas tropas de Montevideo a op-
pôr-sc a estes planos dos portuguezes, deixa Montevideo,
Colónia do Sacramento, Maldonado, e toda a margem do
Rio da Prata daquella parte, sem forças para resistir ao
(1) Off. clt. de Maler de 20 de Fevereiro de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 607
desembarque de cinco mil homens, que por mar alli chegarão
do Rio de Janeiro; e apertado entre dous exércitos, cada
um delles superior ao seo, Artigas não tem meio algum de
resistir" (i).
Si o plano não foi seguido á risca e não esperava o re-
sultado facilidade igual á augurada, é que a invasão de
Corrientes e Entrerios não correspondeu ao projecto táctico
e Artigas não ficou afinal entre dous fogos, segundo fora
delineado. Do lado do mar, a marcha dos Portuguezes entre
o littoral e a capital foi comíudo progressivamente feliz, to-
mando o exercito conta das praças em nome do Rei Fide-
lissimo como si se tratasse de verdadeiras conquistas, que de
verdade o eram.
Para confirmar tal impressão, basta ler a convenção
ajustada a 22 de Novembro de 1816 entre o capitão de fra-
gata conde de Vianna e D. Francisco de Aguilar, como
representante do povo de Maldonado, para a entrega d'esta
cidade. Maldonado manifestara aliás preferir muito dedi-
car-se tranquillamente ao commercio, a experimentar o con-
tra-choque das luctas armadas, pelo que o general Barrera,
creatura de Artigas, tinha feito conduzir ao quartel general
do chefe, desarmados e sob uma escolta toda composta de
negros perfeitamente equipados, os milicianos da cidade (2).
Por occasião da rendição de Montevideo, um dos arti-
gos da convenção assignada estipulava, em absoluto menos-
prezo e directa offensiva aos direitos do Rei Catholico, os
quaes tanto se assegurava salvaguardar, que o general Lecor
se compromettia a não devolver as chaves da cidade senão
ás mesmas auctoridades que lh'as tivessem confiado.
(1) Correio Braziliense, n. 98, Julho de 1816.
(2) Corresp. de Maler.
608 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
As proclamações de Lecor eram redigidas e seus actos
pautados na intenção de conciliar os ânimos e ganhar os
corações, e para que pudesse juntar a pratica á thcoria, aper-
feiçoando o seu sistema de seducção, fornecera o governo
do Rio ao general em chefe dinheiro bastante para conceder
pensões e extender dadivas a indivíduos de todr.s as opiniões.
" Assim é que ellc outorgou uma pensão mensal de 8o pias-
tras á viuva de um capitão morto nas fileiras insurgentes ao
combater valentemente os Portuguezes, e que tinha uma
cabeça muito exaltada" (i). '
Não deixa de encerrar profunda ironia que os fernan-
distas, isto é, os partidários da legalidade fossem a um tempo
vaiados em Montevideo e perseguidos pelos Portuguezes, ao
passo que estivessem os revolucionários no favor dos inva-
sores, mostrando-se portanto ahi o gabinete do Rio em ex-
tremo liberal, quando no Brazil o regimen dominante nas
provincias era, na essência, o mesmo obsoleto que prevalecera
nas capitanias e em tantos casos se assignalara pelo arbitrio
e vexames. O jogo era pelo menos arriscado, tratando-se de
experiências novas para a politica portugueza n'uma pro-
víncia limiitrophe, donde podia irradiar irresistível o conta-
•gio para a enorme massa que ao lado dormitava na sua
apathia.
De accordo com as instrucções que levara, Lecor, no
dizer reiterado de Maler (2), prodigalizava dinheiro e afa-
gos com marcada predilecção entre todos os que tinham de-
sempenhado papeis salientes nos transes da revolução, assl-
(1) Officio de Maler de 13 de Março ãe 1817. Informa esto
officio que os Portuguezes encontraram soibre as deíezas de MontcTÍ-
d6o 120 peças ã'artillieiiia cm Iwm estado e 172 mais ou menos dete-
i-ioradas, mas nos armazéns muito pouca pólvora e maujições.
(2) Officio de 20 de Março de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 609
gnalando-se pela sua immoralidade — segundo taxavam os
realistas as opiniões republicanas — ou mesmo pelo exaggero
das suas idéas conservadoras, transmudadas em vistas menos
legitimiistas. O fito politico de Portugal sobretudo era, para
o caso de chegar uma expedição hespanhola de reconquista
ou de Buenos Ayres declarar guerra aos invasores, ter orga-
nizado um partido de annexação ao Brazil com gente cuja
defecção fosse menos para temer, por haver justamente es-
tado antes mais compromettida, quer com o legitimo sobe-
rano, quer com os revoltosos da margem direita, não po-
dendo d'est'arte esperar perdão pela traição commettida.
"Não sei , Monsenhor, exclamava JVíaler no referido offi-
cio, qual das duas cousas é a mais incrivel, si a perversidade,
a iniquidade do projecto, si a inepta confiança nos meios de
execução, em miseráveis traidores, universalmente despre-
zados."
Maler, convém não esquecer, era um espirito mais do
que conservador, reaccionário, ao qual apparecia eminen-
temente repulsiva, fosse a subtracção das colónias hespa-
nholas á sua tutela legal, fosse a encorporação de qualquer
d'ellas n'outra metrópole que não a primitiva. Seguindo de
perto as occorrencias e dispondo de excellentes fontes de in-
formação, porque de mais a mais ccmprehendia e fallava
bem o portuguez, adquirido nos seus longos annos de emi-
gração em Lisboa, elle se não podia certamente illudir no
tocante ao desenvolvimento das idéas portuguezas de manu-
tenção da conquista platina, isto c, de occupação permanente
da margem esquerda do Prata.
O governo portuguez ia até gradualmente abandonando
algumas das suas protestações, que eram subterfúgios. Inter-
rogado por Chamberlain sobre as vistas officiaes n'este as-
610 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
sumpto, Barca ainda pretextou que o pavilhão portuguez
fora içado na Banda Oriental porquanto seria impolitico içar
o pavilhão hespanhol, tão detestado pelos insurgentes ; mas
logo declarou que no caso de alcançar aquellas paragens a
expedição que a corte hespanhola destinava a suffocar a in-
surreição americana, não lhe seria facultado desembarcar
na margem oriental, entrando então o gabinete do Rio em
negociações com o de Madrid (i).
Esta linguagem bastante descobria o propósito formal
de levar d*essa vez a fronteira portugueza no Brazil até
o seu almejado limite platino. O Rei pessoalmente tanto em-
penho punha na guerra e tão pouco o occultava, que não
perdia occasião de mostrar seus enthusiasmos. Passou, como
Debret o fixou artisticamente, revista ás tropas que embarca-
vam para o Sul e, logo depois de Barca fallecer, fez uma
grande promoção no exercito, nomeando 5 tenentes gene-
raes, 3 marechaes de campo e 4 brigadeiros, igualmente fa-
zendo promoções na armada e em todos os corpos de mi-
licia.
A gotta e outras enfermidades do novo secretario d'Es-
tado Bezerra, quasi entrevado, não impediram o serviço
das assignaturas de effectuar-se com grande zelo e desusada
diligencia, o que fazia o encarregado de negócios de França
perguntar si, nada executando o gabinete do Rio para satis-
fazer as potencias medianeiras, não pretendia ainda por
cima affrontal-as distribuindo graças e mercês, e "na sua
impotente fraqueza activando os reforços a mandar para o
theatro da guerra ? (2)
(1) Ofificio cifrado de Maler de 17 de Março de 1817.
(2) Offkio de 6 de Julho de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL fill
Julgando possível uma coUisão com a Hespanha, não
acreditava comtudo Maler na probabilidade de uma guerra
com as Provincias Unidas, tendo por certa a existência de
uma intelligencia secreta entre a corte brazileira e os mais
altos funccionarios de Buenos Ayres. Em abono da sua
convicção, citava por um lado o apoio pelo Congresso de
Tucuman da inacção do director Pueyrredon a respeito do
soccorro de Montevideo contra os Portuguezes, e por outro
lado a inserção na pallidissima, anodissima e ultra-reservada
Gazeta do Rio de Janeiro de documentos traduzidos da
Gazeta de Buenos Ayres, em que aquella assembléa de dís-
colos se appellidava o Soberano Congresso Nacional.
O objectivo d'este, em todo o seu proceder, era nas
expressões de Maler não desagradar ao governo do Brazíl e
salvar Pueyrredon do furor popular, pois que o cercava
um partido irritado pela approximação dos Portuguezes.
"Congresso e Director entendem-se e por demais convém
aos representantes conservarem o Sr. Pueyrredon no cargo
para não fazerem outrosim alguns sacrifícios, assim sendo
que uns e outros entregaram com prazer Montevideo ao es-
trangeiro, mau grado o compromisso publico e solemne que
tinham tomado de defendel-a" (i).
Iam as desconfianças de Maler ao extremo de consi-
derar, e em cada officio para Pariz o repetia como um es-
tribilho, Pueyrredon um traidor á causa nacional, um ven-
dido a Portugal, quando de facto elle tremia justamente
pela preservação da liberdade de Buenos Ayres. Com este
receio de compromettel-a, attrahindo sobre si as iras portu-
guezas, e tendo a consciência de achar-se em casa sobre um
vulcão, deixava o director passar mez apoz mez da occupa-
(1) Off. clt. de 13 de Março ^e 1817.
612 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ção sem se atrever a reclamar no Rio de Janeiro contra a
quebra flagrante de neutralidade, e sem tampouco dar an-
damento á tarefa, que era uma obrigação, de soccorrer es
Orientaes, na forma da sua notificação official ao general
Lecor.
Nenhuma duvida parecia haver no animo do represen-
tante francez de que um simples soccorro de 400 infantes e
100 artilheiros, juntando-se ás disposições bellicosas da po-
pulação da campanha, teria bastado para destroçar o pe-
queno exercito portuguez sitiante da praça (i). E a ver-
dade era, ao ser expressa esta convicção, que Lecor estava
senhor de Montevideo, mas não da campanha, a qual conti-
nuava percorrida, dominada e assolada pelos rebeldes, só
podendo os Portuguezes communicar-se com o Brazil por
mar.
Contava Maler para Pariz, em apoio das suas sus-
peitas, que Pueyrredon supprimira a Crónica Argentina, cujo
espirito era hostil aos Portuguezes e em cujas paginas o cen-
suravam acremente por não haver soccorrido Montevideo,
escrevendo-se que Lecor devia ter lealmente mencionado
aos habitantes da cidade sitiada que nada tinham a esperar
\l'aquelle lado. Pelo contrario o Censor, dirigido por um clé-
rigo que era o testa de ferro do director, fallava ligeiraniente
da invasão brazileira.
Para satisfazer ao sentimento popular de patriotismo,
publicou comtudo Pueyrredon a 2 de Março de 181 7 um
manifesto contra as medidas do general portuguez, fazendo
porém simultaneamente chegar ás mãos d'este (2), junto
com o documento ostensivo, uma carta confidencial para
(II Off. ciif. cit. d- 17 d- :\I:irQi d? 1817.
(2) Off. de Maler de 18 de Abril de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 013
rogal-0 de não tomar clexiiasiado ao serio ou se não melindrar
com essa publicação c providencias annunciadas, pois não
passavam de phrases que, como governante, fora compellido
a assignar em tal conjunctura e lhe não deviam causar a
menor inquietação. Com effeito, proseguia Maler para pro-
var quanto os factos fallavam mais alto que as palavras,
continuavam socegadamente na cidade os Portuguezes que,
segundo as ordens de Pueyrredon, deviam ser presos e de-
portados.
Ao passo que o secretario da guerra, que pelo seu
relatório forçara por assim dizer o director a subscrever o
manifesto, era demittido por isso e por haver externado com
mais vigor sua opinião sobre a necessidade de oppor-se ener-
gicamente o governo de Buenos Ayres ás medidas de rigor
proclamadas pelo general Lecor contra as partidas cjue in-
festavam os campos uruguayos, a connivencia occulta appa-
recia palpável. Com o assentimento de Pueyrredon eram ex-
portadas de Buenos Ayres fangas de milho e cargas de ou-
tros viveres para Montevideo, onde os comestiveis estavam
por altissimos preços ( i ) pelas circumstancias da af fluência
de tropas, por outro lado roubadas pelo recrutamento á
agricultura instante, e da posição dominadora na campanha
da gente de Artigas.
Assevera Malcr (2) que, quando San Martin foi a
Buenos Ayres concertar com o director a expedição do Pa-
cifico, este o quiz converter ás suas vistas de harmonia in-
tima, quiçá de disfarçada vassallagem ao Brazil, mas que o
denodado guerreiro e honesto politico lhe respondeu com
furibunda indignação, jurando altivamente que, emquanto
(1) o trigo custava 20 piastras fortes a faiiga ; vciieliam-se as
100 li".)ras cíp bolacha ])Ui- 2."» i)iasíra<. c uni boi por 40 piastras.
(2) Ofificio de 10 tle Junho do 1817.
614 DOM JOÃO VI NO ÈRAZIL
respirasse e tivesse junto a si um soldado, combateria taes
tramas e resistiria á ambição portugueza.
O representante francez estava todavia persuadido ( i )
de que não obstante as machinações & secretos designios de
Pueyrredon, que persistia em lobrigar, o partido anti-portu-
guez ganharia finalmente a ascendência em Buenos Ayres
e declararia a guerra aos invasores da Banda Oriental. Não
podiam deixar de precipitar esse acontecimento o episodio
subversivo de Pernambuco, a resistência continuada das po-
pulações uruguayas e a debilidade militar dos Portuguezes.
O general Lecor encontrava-se quasi fechado em Montevi-
deo, pois apenas contava uma brigada acampada a alguma
distancia da cidade, e não era possivel então, com a insurrei-
ção no Norte, enviar-lhe reforços, que por outro lado o
velho Reino só muito constrangido consentia em prestar.
Também a expedição custava rios de dinheiro, e as finan-
ças estavam longe de accusar prosperidade. Mais tarde in-
formava Maler (2) que o soldo dos officiaes do exercito an-
dava atrazado de oito mezes e o dos officiaes da esquadra de
onze mezes.
N'uma cousa Maler enxergava por certo claro, e era
em que Artigas constituia o verdadeiro pomo de discórdia
entre as duas margens, apezar de real o sentimento autono-
mista da Banda Oriental. Si o caudilho desapparecesse,
Pueyrredon e os Argentinos não teriam mais duvidas em
apresentar-se e disputar-lhe a successão local, appellando
para a irmandade de raça e a solidariedade hispano-ameri-
cana. Esta convicção, que imperava no Rio de Janeiro, não
permittia adiantarem-se as vistas e intenções do gabinete
(1) Officio de 18 de Abril de 1817.
(2) Oífldo de 4 de Abril de 1818.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 615
brazileiro, tanto quanto ou na forma por que este o dese-
jaria.
Entrava no interesse de Pueyrredon que os Portu-
guezes supprimissem a opposição de Artigas, visto a empreza
parecer em extremo arriscada para elle só. Em 1818 ainda
o caudilho levava decididamente a melhor na contenda com
os portenhos, destroçando na baixada de Santa Fé as tropas
commandadas pelo general Balcarce, e como sempre promo-
vendo em seguida a devastação, ao ponto de faltar carne na
capital das Provincias Unidas. "Não se pode ler sem espanto
e pezar os editaes que a necessidade dieta á municipalidade
de Buenos Ayres sobre a falta de carne n'uma terra onde
outr'ora se matava uma rez somente para aproveitar-lhe o
couro ! " (i)
A abstenção portugueza n'esse momento irritava Pueyr-
redon, tendo o general Lecor faltado ao seu compromisso de
atacar Artigas simultaneamente: os revezes incorridos pelos
destacamentos de Buenos Ayres teriam assim sido motiva-
dos pela falta de correspondência por parte dos Portuguezes.
O general Balcarce viu-se coagido a abandonar suas posi-
ções e retirar-se para a outra margem, ficando Artigas senhor
exclusivo do paiz, com o seu outro adversário, Lecor, inactivo
em Montevideo (2).
O enviado Garcia ia, comtudo, mantendo o mais suave-
mente a boa intelligencia dos dous governos, o governo
legitimo do soberano absoluto de Portugal e Brazil e o go-
verno não reconhecido das Provincias sublevadas e democra-
ticamente organizadas. Si em Buenos Ayres a contemplação
com os occupantes de Montevideo era notória, no Rio não
(1) Officio de Maler de 30 de Abril de 1818.
(2) Officio de Maler de 20 de Maio de 1818.
D. J. — 39
616 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
havia menos notória contemplação com os revolucionários
platino:.
Alvear, expulso de Buenos Ayres, residio trez annos no
Rio rem ser estorvado no minimo, admittido até a beijar a
mão do Rei, e quando para lá quiz voltar (e por signal que
o não quizeram acolher), conseguindo illudir a prohibição
de transportal-o dada por Maler ao cr.pitão da goleta fran-
ceza La Celeste, o governo portuguez nem deu resposta á
nota de Casa Flores, ministro da Hespanha, que em vão
se agitou para tolher a ida do rebelde. Com.o de costume
Dom João dissimulou, ao fazer-se reverencia ao caso na con-
versa que teve com o encarregado de negócios de França
n'uma das numerosissimas recepções do Paço, onde o beija-
mão solemne era frequentíssimo, a propósito de tudo, com
grande desespero do corpo diplomático, ao qual semelhan-
tes festas e tão repetidas agradavam pouco pelo calor, pelo
tédio e sobretudo pelos gastos que acarretavam.
Dando conta d'estes incidentes ao seu governo, Maler
se não podia conter de exclamar com trágica emphase ( i ) :
"Não hesito em avançar bem afoitamente que as contempla-
ções prodigalizadas a Buenos Ayres não teem limites, que
nada me surprehende desde que se trate de proteger e com-
prazer aos revolucionários d'aquella cidade, e por fim que o
accordo reinante entre este paiz e os corypheus da America
do Sul é inconcebivel."
A situação dos Portuguezes na Banda Oriental de
facto não resultava tão critica, ou tão circumscripta a sua
acção militar, quanto o queria fazer crer a insistência dos
agentes diplomáticos europeus no Brazil, addictos á causa da
legitim.idade ou contrários á expansão portugueza. Em fins
(1) Officio cie 9 de Ma-io de 1818.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 617
íle 1817 era voz correníc em Montevideo e no Rio que Arti-
gas estava doente, ameaçado de hydropisia, e no emtanto
entregando-se £en:pre ás bebidas fortes, o que mais contribuia
para arruinar-lhe a sr.ude. A sua popularidade correlativa-
mente baixava, não lhe permittindo a enfermidade a mesma
actividade de antes e não podendo as suas hordas resignar-se
á inércia.
Em meiados de 1S18, r.íaler próprio confessa (i) que
''o pequenino reforço que ora se envia para preencher os
lugares va^^os por morte, ou outros accidentes nas tropas
portuguezes" (2) e constava de nada menos de trez mil
homens — mais de m.etade do effectivo primitivo ao entrar a
força em ccmpanha — dominava de certo modo o território
cisplatino. Tinham-se os Portuguezes apoderado da antiga
Colónia e de Maldonado, posto guarnições ou pelo menos
destacamentos em todos os pontos principaes até o Uruguay,
e assenhoreado do curso deste rio com o estabelecimento de
barcas canhoneiras. Na foz do Uruguay conservavam elles
estacionadas duas embarcações ligeiras, afora 25 velas de
todas as dimensões que cruzavam no Rio da Prata.
Aquelles destacamentos defensivos destinados a envol-
ver Artigas e cortar-lhe qualquer communicação com Bue-
nos Ayres e a margem occidental do Prata, andavam for-
mados pela divisão de veteranos portuguezes que o general
Lecor teria tido instrucções de poupar quanto possivel: eram
as tropas brazileiras de Minas, São Paulo e Rio Grande que,
ao mando do general Curado, batiam a campanha, hosti-
lizando e perseguindo o caudilho. A.ssim o informava Lecor
n'um relatório de Junho de 1818, mandado ao conde de
(1) Officio de 30 do Junho do 1S18,
(2) Expressões d;i Nota do Secretario d'Estado Bezerra, de 9
de Setembro de I^SIT, aos Agentes das cinco potencias medianeiras.
618 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Vianna, primeiro camarista de Dom João e ex-commandante
da estação naval do Rio da Prata, para ser apresentado e lido
ao Rei.
Artigas, ao que presumia o general portuguez, teria
então comsigo uns 700 homens, e como as disposições dos ha-
bitantes entravam a ser mais geralmente sympathicas aos
occupadores á medida que se restringia a auctoridade do cau-
dilho, começava Lecor a tisar partido da mudança, forne-
cendo armas áquelles habitantes e organizando-os cm guerri-
lhas. ''Não nutro mais inquietações, escrevia textualmente
o commandante em chefe da expedição, sobre o successo das
minhas operações: o que mais me preoccupa neste momento
é a vigilância dos Hespanhoes". ( i ) Suas palavras claramente
significam que era mais difficil de vencer na Banda Orien-
tal o sentimento realista e metropolitano do que o revolucio-
nário e nacionalista.
Durante a occupação portugueza, nos annos correspon-
dentes ao reinado americano de Dom João VI, esteve Monte-
video bem longe de permanecer tranquilla: sua situação foi
antes de uma constante agitação, posto que mais surda do
que activa. Fervilhavam as conspirações de militares e civis
hespanhoes, de emigrados e agentes clandestinos de Buenos
Ayres e de partidários de Artigas, uns para restabelecerem o
antigo dominio castelhano, outros para levarem a Banda
Oriental a fazer juncção com o coro de independência
progressivamente entoado por toda a America Hespanhola,
outros ainda para lhe assegurarem a completa autonomia.
Existem numerosas representações do Cabildo de Mon-
tevideo (2) insistindo por medidas de rigor, propondo de»
(1) Relat. cit.
(2) Arch. do Min. das Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 619
portações e justificando repressões, assim como existem nume-
rosas notas do conde de Casa Flores protestando contra o
procedimento do general Lecor de desterrar Hespanhoes
amigos da metrópole, ''externando favor e consideração aos
rebeldes, desprezando e vexando os seguidores fieis do Rei
legitimo".
Os protestos de Casa Flores determinaram até a re-
união, a 31 de Agosto de 1820, na Secretaria dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra dos desembargadores do Paço
Monsenhor Almeida, Luiz José de Carvalho e Mello e Paulo
Fernandes Vianna, os quaes acharam e proclamaram que
Lecor se houvera com muita moderação e prudência, preten-
dendo que taes perturbações da ordem publica se extinguis-
sem e tratando de evitar o perigo de uma explosão. ( l )
Por seu lado o Cabildo de Montevideo agachava-se
diante do procônsul portuguez, exprimindo votos e formu-
lando supplicas para que se consummasse a encorporação da
Banda Oriental como provincia da monarchia portugueza,
ao que o Rei não quiz acceder em 18 19 — quando as tentati-
vas para semelhante fim se tornaram instantes — por temor
da expedição de Cadiz, que era o que d'outra banda estava
fortalecendo as esperanças e animando os esforços do partido
hespanhol.
Dom João VI estava mesmo resolvido a abandonar a sua
conquista, restituindo a praça ao Cabildo, no caso de sahir
para seu destino a projectada e tão annunciada expedição.
A 2 de Dezembro de 18 19 expressava a corporação munici-
pal de Montevideo, em face das circuxnstancias, o seu pezar
"por que no sea dado a un Rey justo e benéfico fixar en
estos momentos el destino de un pueblo que le aclama y á
(1) Ibidem.
620 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
quien ha salvado de los furores de la anarchia". (i) O go-
verno portuguez pensava comtudo, mesmo tendo que eva-
cuar Montevideo, em aproveitar o ensejo da occupação para
propor ás auctoridades Iccaes a conclusão de um tratado de
limites, indubitavelmente no intuito de obter no terreno
aquillo que entretanto não lograva alcançar na Europa em
prolongada e fadigosa negociação a sua diplomacia. (2)
A progressão das armas portuguezas no anno de 181 8
certamente produzio inquietação em Buenos Ayres, não lhe
podendo ser indifferente a posse pelos invasores da fronteira
Colónia do Sacramento, cuja reivindicação fora objecto de
tanta disputa anterior. Nada mais restava, porém, aos inde-
pendentes, dilacerados como andavam pelas discórdias inter-
nas e ameaçados pelos armamentos de Cadiz, do que dissi-
mularem a sua impressão e manterem-se quietos na expecta-
tiva. Com o fim de se darem ares de cooperar na repressão
da anarchia oriental com os Portuguezes e animados pelos
successos d'estes, mandaram entretanto os governantes de
Buenos Ayres um reforço de 700 homens para São Pedro
d'Entre-Rios, porventura para, sem quebra da boa visi-
nhança apparente, tirarem ao gabinete do Rio o pretexto de
mandar as forças portuguezas atravessarem o Uruguay em
perseguição dos rebeldes, assim alargando sua esphera de
acção militar.
De facto a cordialidade entre visinhos pareceu até
accentuar-se, depois que as proscripções e deportações robus-
teceram temporariamente a posição de Pueyrredcn e lhe per-
mittiram menos reserva nos seus planos de conciliação com
a corte portugueza, mais chegada ainda do que a existente.
(1) P.Kpeis avulsos do Arch. do Hin. das F.^cl. Bst,
(2) Vide Caipitulo XVII.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 621
Também no Brazil já se dissimulava muito menos essa intel-
ligencia, que dava origem a uma correspondência muito
activa, ao ponto de perguntar com arrogância a Maler um
hcm.em da confiança de Barca si elle ignorava que em Bue-
nos Ayres existia um partido portuguez ? ( i )
Indignado com que o director nos seus bandos procla-
masse mandar soccorros ás populações subjugadas da Banda
Oriental, quando na verdade estava antes sustentando com
suas remessas os oppressores d'essas populações, o represen-
tante da França citava em confirmação da intimidade rei-
nante o facto de, querendo mostrar-se mais ligado ao Rei
de Portugal e Brazil do que aos principios de independência
que pretendia professar, pronunciar-se Pue^Tredon aberta-
mente contra os acontecimentos de Pernambuco. Os jornaes
platines guardaram silencio sobre o caso, e elle o classificou
de revolta e rebellião, as mesmas expressões empregadas
pelas pessoas leaes ao regimen monarchico.
Até ao regresso de Dom João VI para a Europa os suc-
cessos do Rio da Prata proseguiram repetindo-se com san-
grenta monotonia, crescendo a sua gravidade com o alas-
tramento continuo da desordem, de modo a justificarem a
occupação portugueza, corroborando os motivos apregoados
da intervenção. Em 1820 vem.os o auge do desvario politico
ri'essas regiões. A.s montoneras de Santa Fé bateram as tro-
pas de Buenos Ayres que Rondeau commandava, e as noti-
cias chegadas ao Rio de Janeiro por esse tempo diziam achar-
se Belgrano á frente do movimento regional e ter-se Pueyr-
redon refugiado a bordo de uma corveta americana, estando a
caminho da capital brazileira.
(1) 0«i'cio de 10 de Junho de 181'
622 DOM JOÃO VI NO BKAZIL
De positivo, a 23 de Fevereiro de 1820 firmava-se o
r.rmisticio domestico n'uma convenção assignada pelas ulti-
mas auctoridades de Buenos Ayres com as forços da campanha
uruguaya e de Santa Fé que avançavam, tendo adherido
á causa federalista o corpo portenho enviado, de accordo
com a nova orientação poJitica adoptada, para soccorrer Ar-
tigas e libertar a Banda Oriental do dominio portuguez.
Foi então que a situação em Buenos Ayres se tornou extre-
mamente confusa, attingindo a peor anarchia.
Quando, depois das festas congratulatorias da reconci-
liação, se retiraram os troços federaes, entrou Balcarce na
cidade com 200 homens, proclamando, a 6 de Março, a
contra-revolução. Voltaram, porém, a Buenos Ayres os che-
fes Ramirez e Lopez, fugindo Balcarce e reapparecendo
Sarratea, com quem Lecor trocou saudações. Artigas, aliás,
na sua constante intransigência, não approvara a convenção
de 23 de Fevereiro. O caudilho foi comtudo obrigado a
passar para o outro lado do Uruguay por motivo da defecção
de Fructuoso Rivera com seus 400 homens, obra da corru-
pção de Lecor, cuja campanha parece haver toda sido mais ca-
racterizada pelas intrigas politicas do que pela actividade mi-
litar.
De resto Dom João VI era o primeiro a preferir os enre-
dos ás pelejas, comtanto que se alcançasse o resultado vi-
sado. A propósito do suborno de Fructuoso Rivera escrevia
Maler: "Le Roi en m'entretenant de cet événement en
parloit d'un air triomphant et se plaisoit à louer la conduite
de son general en chef". (i) O dinheiro de Lecor não só
na Banda Oriental se derramava: também em Buenos Ayres
se fazia ao mesmo tempo sentir sua influencia.
(1) Officio de 3 de Maio de 1820.
DOM JOÃO VI NO BKAZIL 623
Alvear, sabido de Montevideo com dinheiro portuguez,
(i) apoderou-se do commandante das forças portenhas
Soler, que prendeu a bordo de navio surto no porto, e do
commando sábio a consolidar a sua auctoridade no campo,
congregando em redor de si 2000 bomens. Soler conseguio,
todavia, recobrar o seu posto e incutir coragem em Sarra-
tea, desertando a gente de Alvear á medida que se foram
esgotando os seus fundos e retirando-se afinal elle próprio
protegido pelo cbefe dos bandos d'Entre-Rios Ramirez,
que assignara a convenção de 23 de Fevereiro com Buenos
Ayres, e «por seu lado estava ameaçado na sua provincia.
O vento continuou no emtanto, com todo este descon-
certo, a soprar decididamente no sentido contrario á politica
portugueza de Pueyrredon, cuja queda Dom João VI deplo-
rava em conversação com Maler, confiando em todo caso,
mau grado a pronunciada bostilidade ao regresso delle, que
o director voltaria ao poder. O enviado Garcia foi retirado
do Rio por Sarratea, denunciando-o a Gazeta de Buenos
Ayres como suspeito de receber uma pensão annual de 30.000
francos do governo portuguez, O mesmo órgão official, na
sua como boje a cbamariamos campanba de imprensa, divul-
gou entre outras peças a correspondência do cónego D. José
Valentin Gomez, quando enviado confidencialmente a
França, expondo a conducta do gabinete do Rio, e deu curso
30S artigos addicionaes e secretos do armisticio de 181 1, até
\uspender-se essa publicação, si dermos credito a Maler, sob
á acção do ouro remettido do Rio a Sarratea. (2)
No torvelinho das sedições, desencadeado pelas facções
eii lucta, não tardou também Sarratea em ser destituido por
(1) Officio de Maler de 24 de Maio de 1820.
(2) Officio de 26 de Maio de 1820.
624 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Anchcrena e acylar-se a bordo do Icarus, emquanto á testa
dos montoneros Alvear e o refugiado chileno Carrera amea-
çavam a cidade, que repellia os desígnios de mando de Alvear,
tendo a municipalidade, no exercício da auctoridade soberana,
nomeado commandante provisório o coronel Dorrego, que
estivera no Rio proscrípto por Pueyrredon. Alvear era auxi-
liado pelas hordas de Santa Fé, ao m.esmo tempo que em
Entre-Rios se batiam Artigas e Ramirez, secundando agora
LecoT o primeiro, ( i ) certamente por haver-se o outro tor-
nado m.aís temível.
Batido em San Nicolas por Dorrego, retirou-se Alvear
para Montevideo, mas por seu turno foi aquelle, comman-
dante em chefe ainda e cobrindo Buenos Ayres com uma nova
posição, surprehendido em Pavon, a i de Setembro, por
Lopez e Carrera á frente dos bandos de Santa Fé. Na cidade,
fácil é de imaginar, reinava a desordem mais triste e mais
completa, desavindo-se e depois reconcílíando-se Dorrego e
o governador Martin Rodriguez, (2) succedendo-se pri-
sões, proscripções e fuzilamentos.
Entretanto chegava ao Rio de Janeiro, a 16 de Setem-
bro de 1820, o brigue de guerra hespanhol Achilles, trazendo
a bordo três commissarios encarregados de estabelecer uma
composição entre a metrópole e os dissidentes do Rio da
Prata, onde o ultimo projecto politico em germinação era
o de fundar-se uma monarchia constitucional em favor d»
Príncipe de Lucca, casando-o com' uma das Infantas porti-
guezas, provavelmente Dona Isabel Maria (3), de quem La-
{ 1 ) Corresp. de Malei";
Cl) Foi Martin Rodriguez quem, como director, celebrou o 24
de Novembro de 1824 a paz com Santa Fé.
{'^} NEscida a 4 de Julho de 1'801.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 625
xemburgo escrevia ser "charmante à tous égards et la plus
accomplie de la famille Royale". A Dom João VI não pare-
cia agradar muito esta segunda suggestão, certamente porque
nada lhe sorria na prim.eira idéa, preoccupando-o saber pelo
marquez de Marialva que o duque de Richelieu, antici-
pando-se de pouco tempo a Chateaubriand, approvava a
idéa de enthronizar um Bourbon em Buenos Ayres.
O encargo dos commissarios tampouco era de natu-
reza a dar-lhe satisfação. "Tenho algum.as razões para crer,
escrevia Maler, (i) que a sua missão não foi lisonjeiramente
encarada pela corte do Brazil, pois que me tendo pergun-
tado o Rei, alguns dias depois da chegada delles, si os havia
visto, respondi que não, o que era a verdade, replicando-me
então Sua Majestade que por si não tinha o menor desejo
de vel-os e acompanhando tal declaração de demonstrações
muito expressivas".
A situação assim se prolongou, permanecendo os com-
missarios no Rio de Janeiro ,até sua partida a 8 de Novem-
bro, sem que os recebesse o Rei. Tão infelizes aliás que
nem puderam, desembarcar em Montevideo, onde dominavam
os Portuguezes, nem em Buenos Ayres onde, apezar da funda
perturbação social, não quizeram tratr.r com quaesquer agen
tes hes'panhoes, antes d'estes terem reconhecido a indepen-
dência das Provincias Unidas. A própria Hespanha via-se
então sacudida por forte estremecimento politico, alli cam-
peando outra vez a revolução, provocada pelo sinistro abso-
lutirm^o real.
O levantamento de Riego , resultado inesperado da de-
cantada expedição de Cadiz, que transformou a ameaça de
(1» Officio do 20 do S(>teni!)ro do 1820,
626 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
recolonização n'um grito de liberdade nacional, para abafar
o qual foi necessário recorrer aos soldados francezes, produ-
zira até certo effeito em Montevideo. O procônsul portu-
guez já não encontrava a mesma flexibilidade na submissa
municipalidade da capital da Banda Oriental, cuja occupa-
ção no meio de tudo isso se tornara virtualmente defini-
tiva.
CAPITULO XVI
A CORTE DO RIO, O GABINETE DE MADRID E AS POTENCIAS
MEDIANEIRAS DA EUROPA
E' um problema a resolver até que ponto a Hespanha e
Portugal, mesmo independente da pressão contraria das gran-
des potencias, anciosas pela manutenção da legitimidade mas
avessas á reabertura dos conflictos internacionaes armados,
estariam dispostos a levar a dissidência ou contenda suscitada
pela usurpação de um território contiguo aos dominios de
uma d'aquellas nações, e que as circumstancias tinham con-
vertido n'um centro perigoso de agitação, d'onde até par-
tiam ataques contra os navios do paiz visinho, expostos a
suppostos corsários insurgentes.
Em muitos casos da historia politica do mundo teem
sido menores os motivos de intervenção. Em condições nor-
maes a Hespanha indubitavelmente hostilizaria a expedição
que violava a sua soberania, mas esta não mais existia alli de
facto. Por isso parece licito perguntar si a Hespanha no
fundo não estaria de accordo, ou si era com indignação sin-
cera que combatia a referida invasão portugueza; si, já meio
628 ])0M JOÃO VI NO BRAZIL
descoroçoaàa qc recuperar integro o seu império colonial e
por um movimento que não estaria por certo muito no ca-
racter nacional, não abria ella mão da Banda Oriental cm
troca de outras vantagens, a posse incontestada de Olivença
e a alliança para suf focar as idéas liberaes na Península;
ou também si, não tendo meios para se oppor além-mar
áquella intervenção armada da corte do Rio, não esperava
a Hespanha aproveitar-se depois, em proveito da coroa de
Fernando VII, da ordem restabelecida e da destruição da in-
dependência de Buenos Ayres, n'este caso afigurando-se-lhe
dever a guerra com as Provincias do Rio da Prata ser a con-
sequência fatal da expedição contra Artigas ?
O matrimonio, no próprio anno de 1816, de Dona
Maria Isabel e Dona Maria Francisca de Assiz com o Rei
d'Hespanha e seu irmão, deveria indicar acharem-se as
duas cortes n'um pé de intimidade. Em Londres até se sup-
puzera, por causa d 'estes enlaces, ser a expedição fructo de
um ajuste secreto, mas depressa o conde de Fernan Nufiez,
embaixador d'Hespanha, dissuadiu d'isso lord Castlereagh, o
qual recebeu com satisfacção o esclarecimento, porquanto a
Inglaterra não considerava, como sabemos, a politica por-
tugueza de imperialismo sul-americano com olhos favorá-
veis.
Não só se arreceiava o governo britannico de que o
Reino do Brazil adquirisse influencia excessiva no Novo
Mundo que pudesse de futuro vir a prejudicar os seus in-
teresses commerciaes, como antevia a estabilidade que a an-
nexação da margem oriental, senão das duas margens do
Rio da Prata, daria á corte do Rio de Janeiro e nutria al-
gum temor da absorpção pela Hespanha da parte européa
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 629
(la monarchia portu-ueza. O equilíbrio da Península fica-
ria assim desmanchr.do e o vigor da Hespanha quiçá renas-
ceria, resultados tão contrários á politica britannica, essa
união e este fortalecimento da monarchia castelhana, que
sempre lhe provocariam os ciúmes. E' sabido conK), para
não perder sua influencia em Madrid, hostilizou o gabi-
nete de Saint James em tempo de Luiz Felippe os celebres
casamentos hespanhoes que ajudariam a expansão franceza,
económica e politica, além dos Pyreneus, e consummariam
a intima alliança das duas nações latinas urdida por
Luiz XIV.
Os acontecimentos dynasticos nem sempre actuam e
dirigem porém os acontecimentos políticos. A expedição
portugueza ao Rio da Prata, contra a qual nada poude
a nova alliança de família, lograria porventura ser vanta-
josa ás pretenções restauradoras da Hespanha na America do
Sul, cooperando para a primitiva unidade colonial com ex-
tinguir o fcco de anarchia que se alastrava por Entre-Rios
e Corrientes para attingir o Paraná, e d'est'arte alimentava
não pouco o espirito de desunião predominante em Buenos
Ayre3.
A expedição não era todavia em.prehendida senão em
beneficio das velhas ambições portuguezas de integração do
Brazil e, mais do que com quaesquer desígnios que, mesmo
benévolos, não podiam ser duradouros, da Hespanha, con-
tava com o cançaço no próprio Uruguay, onde não pouca
gente, farta de vexames oriundos da rebellião de contraban-
distas e patriotas que já degenerara em razzias de bandidos,
aspirava e de antemão estava com não importa que solução
que trouxesse a pacificação. E, segundo testemunhava Luc-
cock em 1818, a acção brazileira foi salutar mesmo sobre
630 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
a Índole dos habitantes, determinando maior doçura, posto
que elles jamais sentissem inclinação pelos novos dominado-
res, de outro povo e de outra lingua.
A justificação da intervenção adduzida pela corte do
Rio era precisamente que não possuindo a Hespanha, con-
forme os factos estavam de sobejo provando, vigor nem
prestigio para restabelecer a paz nas suas colónias rebelladas,
pelo menos emquanto durasse a sua crise financeira e mi-
litar, Portugal tinha forçosamente que assumir esse papel no
que tocava ao Rio da Prata. Não lhe era permittido em boa
politica consentir semelhante estado de cousas, vendo prohi-
bido o seu commercio de fronteira e ameaçada a sua segu-
rança interna pelas tropas indisciplinadas, em grande parte
formadas de foragidos e criminosos, que obedeciam a Arti-
gas, e não só faziam correrias no Rio Grande como planeja-
vam alli excitar a revolta contra o governo de Dom João VI.
A Hespanha retirava, pois, da repressão portugueza a
mencionada positiva vantagem de ser posto cobro á anarchia
quasi irremediável já da Banda Oriental, e o governo pro-
visório em que fallavam as proclamações do general Lecor
como devendo ser installado pelas forças da occupação,
tendia a fazer geralmente crer que a intervenção portugueza
se exercia de concerto expresso ou tácito com o gabinete de
Madrid. Mais tarde, quando ficasse decidida a questão entre
a Hespanha e suas colónias, era idéa da corte do Rio que se
verificaria qual o governo de direito, não só de facto, ao
qual se devia restituir o território occupado ou, muito mais
provavelmente, com o qual cumpria negociar sua acquisição,
pois que o Brazil não mais abriria mão, podia bem con-
jecturar-se, da posse da provincia Cisplatina, que tantos sa'
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 631
críficíos, dissabores e luctas custara ao governo de Lisboa
e ia custar ao do Rio de Janeiro.
Quando não partisse mais da Hespanha, a opposição
partiria de Buenos Ayres. O governo das Provincias Unidas
detestava no intimo a occupação estrangeira tão ao pé da
porta que já lhe entrara em casa, por território que de bom
direito julgava pertencer ao seu composto orgânico. Não
se reconciliava, mau grado as apparencias impostas pela ne-
cessidade, com a idéa d'essa invasão, por mais que o certifi-
cassem que as pretenções portuguezas á annexação de boa fé
paravam no Uruguay e não se extendiam até o Paraná, e
por mais que se desculpasse a corte do Rio com a impreterível
urgência da defeza contra a propaganda revolucionaria e a
invasão aleivosa, sendo tomados, até se liquidar a situação da
região, os pontos d'onde Artigas podia molestar o Brazil.
Nem se podia ainda Buenos Ayres resolver, como depois
teve de fazel-o, a reconhecer em absoluto a independência
d'aquelle outro fragmento do seu prévio vice-reinado. Pun-
gia o seu governo a recordação do que succedera cinco annos
antes, quando em 1811, levantado o sitio de Montevideo
diante da marcha das forças portuguezas de D. Diogo de
Souza e concluído com o commando da praça o armistício
que paralysou a acção do auxilio estrangeiro, o triumvirato
executivo (cessara, com esta reducção de pessoal, o contrapeso
incommodo dos deputados provinciaes que tinham formado
a Junta conservadora) encarregara Belgrano e Echevarria
de concluírem a paz com o Paraguay, admittindo sua auto-
nomia. Em vão esperara, porém, Buenos Ayres que em troca
de semelhante concessão, obtida sem condições pela summa
habilidade de Francia, vogal da junta local, o novo governo
do Paraguay ajudasse a causa commum, atacando de flanco
D. J. — 40
632 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
os domínios de Dom João VI, ou creando pelo menos uma
diversão directa á attitude das tropas portuguezas que ti-
nham invadido o território uruguayo (i).
Nada consta entretanto de intelligencias entre as cortes
de Madrid e do Rio de Janeiro, segundo as insinuavam as
gazetas inglezas do tempo, as suggeriam as proclamações
instruidas pelo governo portuguez aos seus generaes e as
enxerga possíveis a critica distante dos acontecimentos, ao
examinar todos os aspectos da questão. O que consta são os
passos offícíalmente dados pelo gabinete de Fernando VII,
que dizem ter estado quasí disposto a recambiar por desforço
as duas Infantas portuguezas, junto ás cortes das cinco
grandes potencias para protestar solemnemente contra a oc-
cupação de parte das suas possessões no Rio da Prata e pedir
o apoio d'ellas, como medianeiras, contra tão immoral ag-
gressão.
Foi o empenho em satisfazer esta exigência, conside-
rada justíssima, da Hespanha, evitando ao mesmo tempo um
rompimento que possivelmente da sua repercussão na Pe-
nínsula se propagaria a outros pontos da Europa de fácil
conflagração, que determinou a nota ao marquez de Aguiar
de i6 de Março de 1817, assignada em Pariz por Víncent,
Ríchelíeu, Stuart, Goltz e Pozzo di Borgo. As potencias
representadas por estes homens d'Estado ou diplomatas —
Áustria, França, Inglaterra, Prússia € Rússia — , acceitando
o papel de medianeiras, pediam explicações ao governo por-
tuguez sobre suas vistas e convidavam-no a tomar as medidas
mais promptas e próprias para desvanecer as justas appre-
hensões que a invasão em questão estava causando na Eu*
ropa.
(1) Mitre, HM. ãe Bclgrano, tomo II.
DOM JOÃO Ví NO BRAZIL 633
Uma recusa não deixaria mais duvida sobre as inten-
ções reaes de Portugal, a cujo governo seriam imputados
com razão os desastrosos effeitos que pudessem advir a am-
bos os hemispherios. *'A Hespanha, dizia a nota, depois de
ter visto toda a Europa applaudir o seu sábio e moderado
comportamento, acharia na justiça da sua causa, e no apoio
dos seus alliados, meios sufficientes para remediar seus ag-
gravos."
Também para a corte do Rio admittir mais explicita-
mente, quando possivel, que a expedição contra Montevideo
fora de algum modo e até certo ponto feita de connivencia
com o governo de Madrid, com o fim de atalhar os progres-
sos da revolução ultramarina, traria como resultado con-
citar contra o novo Reino americano todas as colónias hes-
panholas revoltadas, justificando as prezas de navios portu-
guezes que já entravam a ser feitas pelos corsários do Rio
da Prata e podiam ser objecto principal de corsários das
outras possessões belligerantes. Outrosim tornaria mais impo-
pular a guerrs^ cuja desculpa única aos olhos dos Brazilei-
ros residia no engrandecimento territorial que proporcio-
nava.
Em verdade teve o gabinete do Rio que defender di-
plomaticamente, e com tenacidade igual á do ataque, o seu
proceder contra a Hespanha e os alliados naturaes d'esta,
fieis á causa do statu quo ante bellum com as variantes, bem
entendido, introduzidas pelo Congresso de Vienna, e sym-
pathicos em principio á recolonização da America Hespa-
nhola. Na Europa se escrevia e se acreditava que o repre-
sentante russo chegava a retirar-se do Brazil, em 1817, sem
se despedir do monarcha e seus ministros por não ter querido
o governo portuguez attender ás suas representações adver-
6â4 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
sas á invasão da Banda Oriental, onde a 20 de Janeiro d'a-
quelle anno o general Lecor recebera as chaves de Montevi-
deo, processionalmente trazidas pelo Cabildo.
Assim explicava verosimilmente o Correio Braziliensc a
retirada do ministro Pedro de Balk Poleff, que Dom
João VI recebeu a 13 de Maio de 181 7 no seu novo caracter
de embaixador determinado pela elevação do Principe Re-
gente ao throno dos seus antepassados por motivo do falle-
cimento da Rainha Dona Maria I. A segunda phase da
missão de Balk Poleff foi, por outras razões (i), mais des-
agradável e mesmo tempestuosa, mas é facto que a intimidade
era então muito grande entre os gabinetes de São Peters-
burgo e de Madrid, contribuindo porventura esta circum-
stancia para levar o mau humor do diplomata aos despropó-
sitos que commetteu.
O governo hespanhol persuadira o Czar Alexandre que
a causa da realeza na America era a causa de toda a Eu-
ropa monarchica e absolutista, á qual tanto menos podia
convir a independência das colónias ibéricas quanto bem de-
pressa lograria a sua separação- transformar-se em supre-
macia, favorecidas como eram aquellas possessões peio
cjima e pela fertilidade e riqueza do solo, ao ponto de ser
para temer que, segundo se não cançava de vaticinar o ab-
bade de Pradt, para lá emigrassem da Europa a industria e
as artes. A intimidade russo-hespanhola tinha todavia fun-
damentos, senão mais consistentes, mais práticos do que uma
mera communidade de vistas reaccionárias, um sentimento de
legitimidade solidaria.
A Rússia andava por esse tempo muito interessada na
costa Occidental da America do Norte e o boato correu de
(1) Vide Capitulo XXI.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 635
que, a troco de um auxílio fornecido pelo Império para redu-
zir as colónias insurgentes, estava a Hespanha disposta a
ceder-lhe Minorca no Mediterrâneo e as duas Californias,
Alta e Baixa, no Novo Mundo. Não é possivel deixar de
imaginar que si isto houvesse occorrido, a face da terra se
apresentaria hoje de algum modo differente: a Rússia ha-
ver-se-hia tornado uma potencia naval do Mediterrâneo, com
a sua Malta, e os Estados Unidos não teriam provavelmente
podido adiantar-se até o Pacifico, pois que os Russos, em
vez de lhes venderem Alaska, se esforçariam desde logo por
ligal-a pelo littoral com os seus novos dominios mais ao sul,
que são uma das poucas regiões deliciosas do planeta.
Por seu lado, e attendendo mesmo á intimidade russo-
hespanhola, não queria o gabinete de Londres passar
aos olhos do de Madrid por um governo de má fé. Já sir
Sidney Smith defendera (i) sua attitude em promover os
interesses platines da Princeza do Brazil pela necessidade
politica de convencer a nação hespanhola, em cujo território
se ia travar o duello anglo-francez, que a Inglaterra não
esposava no Velho Mundo os direitos de Fernando VII,
para intrigar no Novo em favor das pretenções portugue-
zas ou das aspirações independentes. No dizer do almirante,
collocar Dona Carlota Joaquina na Regência era equivalente
a respeitar e garantir os titulos do monarcha legitimo da
Hespanha.
Nem era crivei que, tendo feito as pazes com a Hes-
panha e cessado até de promover a separação de Buenos Ay-
res em proveito próprio, se prestasse o governo britannico a
fomental-a em beneficio do seu velho alliado portuguez,
contentando-se n'um justo egoísmo com a perspectiva da
(1) Memorias cit.
636 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
liberdade de commercio que esperava alcançar como uma
das recompensas, porventura a melhor, da sua efficaz co-
operação militar contra a invasão napoleonica.
O gabinete de Saint James reprovou a primeira tenta-
tiva de intervenção portugueza no Rio da Prata em l8ii,
e não reprovou menos o segundo ensaio de 1816. Pelo con-
trario, apezar de desenhar-se de novo claramente a espe-
rança de uma final libertação das colónias sublevadas e dos
interesses do commercio britannico já se irem radicando com
a franquia mercantil na pratica, a tentativa de reacção da
metrópole hespanhola encontrava em 181 7 um certo echo
no mundo politico britannico.
A volta do dominio hespanhol, com todos os seus ve-
lhos processos, significava comtudo o restabelecimento dos
monopólios, infenso ao trafico auspiciosamente encetado. Po-
dia não se ter ainda crystallizado a politica ulterior de Can-
ning, opposta á ingerência das outras nações no conflicto
por julgal-a attentatoria dos interesses politicos nacionaes,
mas já ella se esboçava pela força dos eventos, superior á
dos propósitos. A neutralidade a principio affectada termina-
ria a breve trecho pela intervenção franca e parcial em
prol das novas nacionalidades, bastando para isto que a Grã
Bretanha se separasse da Santa Alliança.
Os Estados Unidos percebiam perfeitamente a fatali-
dade d'essa evolução. O Secretario d'Estado John Quincy
Adams assim se manifestava ao ministro no Brazil Thomas
Sumter (i): "Pouca duvida ha de que a verdadeira po-
litica da Grã Bretanha esteja em promover a causa dos In-
dependentes, e si bem que os não ajudará por meio de um
(1) Despmcho de 27 de Agosto de 1818, no Arçh, da EmbaUada
Americana co Brasil,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 637
reconhecimento publico, nem dará outro qualquer passo de
que a Hespanha possa tomar offensa, vigiará com especial
cuidado que a alliança européa não adopte contra elles me-
dida alguma activa. Os agentes de Buenos Ayres e da Nova
Granada na Inglaterra endereçaram ao Governo Britannico
protestos contra a interposição dos Alliados, a não ser sobre
a base da total Independência das Colónias, os quaes são
irrespondiveis tanto pelos argumentos de direito, como de
facto; e as vistas da Grã Bretanha e da Rússia acerca do
que se deve fazer estão por forma tal distanciadas (are so
widcly apart), havendo tão pouco desejo em qualquer dos
lados de chegar a accordo sobre este ponto, que nenhuma
duvida pode existir de que o presente appello da Hespanha
aos raios e coriscos dos Alliados termine em outra cousa a
não ser em formal desapontamento."
A idêntico fim estava votado o appello do gabinete
de Madrid concernente á occupação portugueza da Banda
Oriental, ainda que lhe não houvesse faltado sj^mpathica
correspondência da parte das grandes potencias européas.
Castlereagh respondeu com marcada benevolência á nota de
Fernan Nunez de 17 de Dezembro de 1816 (i), annuindo
á proposição hespanhola de interporem as cortes alliadas
seus bons officios afim de evitarem que estalasse a guerra,
chamando Portugal á razão. Ao mesmo tempo e em confir-
mação d'esta resposta, expedia o Foreign Office ao cônsul
geral encarregado de negócios no Rio um despacho em que
se dizia esperar a Inglaterra que as explicações portuguezas
tornassem inútil a intervenção da Santa Alliança, eviden-
ciando a lizura do proceder da corte brazileira.
(1) iCastlereagh's Letters and Dcspatches, vol. XI.
.638 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O que a Inglaterra affectava estranhar mais era o me-
thodo quasi clandestino adoptado pelo governo de Dom João,
decidindo tão seria expedição sem publicar sequer um mani-
festo expondo ao mundo os seus motivos de acção. Com ef-
feito a corte do Rio participara apenas muito summaria-
mente ás chancellarias hespanhola e britannica, em Maio e
Junho de 1815, que por motivo dos progressos assustadores
do espirito revolucionário nas províncias do Rio da Prata,
limitrophes do Brazil, mandara o Príncipe Regente buscar
uma divisão do seu exercito de Portugal "para ser empre-
gada na defensa dos seus Estados na America."
Ajuntava Castlereagh (i) que si o proceder do governo
portuguez resultasse contrario aos direitos da Hespanha e
ás relações existentes entre as duas coroas, a Grã Bretanha
retiraria a garantia da integridade e independência do Reino
Unido de Portugal, Brazil e Algarves, contida no artigo III
do tratado assignado em Vienna a 22 de Janeiro de 181 5.
Sem mesmo esperar a explicação alludida dos motivos da
expedição, devia o agente britannico no Rio representar com
energia *'sobre a impolitica e o perigo da resolução que o go-
verno portuguez parecia ter adoptado."
A annullação da garantia, intimada para o caso de se
suscitar na Europa uma guerra entre Portugal e Hespanha,
justificava-a o Foreign Office com o fundamento de que
"nunca se poderia exigir que huma semelhante garantia se
aplicasse ás eventualidades de huma guerra injustamente
'emprehendida pelo governo portuguez" (2).
Embora tivesse Palmella espirituosamente ponderado
em Londres de antemão que "as garantias virião a ser inu-
(1) Dpspadio de 19 de Dezembro de 1816, iUãcm.
(2) Officio reservado do conde de PaJmella de 1 de Janeiro de
1817, no Arcb. do Min. das Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 639
teis se fosse licito retiral-as todas as vezes que assim pare-
cesse convir" ( I ) , as instrucções mandadas a Chamberlain
eram de "fazer officialmente a sobredita declaração" a menos
que não houvesse razão para crer que tudo se arranjaria ami-
gavelmente, caso em que deixaria de ser transmittida a amea-
ça, celebre na historia das relações diplomáticas anglo-por-
tuguezas.
Tão seria pretendia a ameaça ser que a Hespanha
d'('lhi recebia simultaneamente aviso, ficando prevenida (2)
de que a Grã Bretanha renunciaria eventualmente á sua
protecção de Portugal. Era o mesmo que conceder ao gabi-
nete de Madrid liberdade de acção, escancarar-lhe o campo
na parte occidental da Península, convidar praticamente o
cobiçoso de sempre á annexação do visinho, si apenas fosse
sincera a permissão. De facto a Inglaterra não podia con-
sentir em tal conquista, por opposta diametralmente aos seus
interesses, e tanto que as reservas se seguiam ímmediata-
mente: "Ao mesmo tempo S. Ex. D. José Pizarro não
pode deixar de comprehender que os direitos assegurados a
Portugal pelos seus tratados com as Potencias alliadas exis-
tirão em toda sua força emquanto durarem as negociações,
ou até que o governo portuguez haja formalmente recusado
acceder ás justas reclamações de S. M. C. E' de esperar que
as diligencias da Grã Bretanha determinarão S. M. C. a
não s€ arredar da politica moderada que até aqui a guiou, e
a aguardar a solução da mediação, antes de recorrer a medi-
das ameaçadoras e hostis."
O encarregado de negócios britannico no Rio foi quem
não aguardou instrucções para tomar acertadamente posição
(1) Off. cit.
(2) Nota do marquei de Wollesley a D. José Pizarro, ministro
de estrangeiros de Fernando VII, de 5 de Janeiro de 1817.
éiO DOM JOÃO VI NO BRAZIL
definida contra a expedição do Sul. ''De seu próprio impulso
e sem instrucções, informava Maler ( i ) , protestou contra a
invasão actual, recebendo uma resposta evasiva e insignifi-
cante." A I de Abril de 1817, dessatisfeito com a- respostas
explicativas dadas sobre a occupação da margem oriental do
Prata, Chamberlain levava a effeito a formal declaração de
que o governo britannico renunciava á garantia dos dominios
e estados sobre que reinava a Casa de Bragança.
A garantia em questão era sem duvida preciosa, mas a
sua applicação não era tão simples quanto á primeira vista
parece. No velho Reino a animadversão aos Inglezes andava
tão marcada que, no dizer das informações reservadas do
cônsul geral Lesseps (2), o povo, apezar da calma e indiffe-
rença que distinguem essencialmente o moral portuguez,
veria com maus olhos qualquer ensaio de desembarque de
forças britannicas, mesmo sob pretexto e na intenção de
defender o paiz contra aggressivos designios hespanhoes. Os
Inglezes tinham occupado Portugal por longo tempo ao
sabor das ultimas occorrencias, e os inconvenientes de muitos
géneros que de tal occupação resultaram, estavam ainda
demasiado frescos na memoria nacional para poderem dei-
xar de produzir qualquer movimento reagente como o que
já fermentava, e só esperava o contacto da fagulha incendia-
ria para fazer explosão.
A tendência anti-ingleza tanto se destacava que, mesmo
no Rio, se tornara perceptivel. Escrevia Maler (3) que no
animo da corte brazileira havia uma disposição para lançar
sobre os Inglezes a culpa de quanto succedia, sendo uma
espécie de moda queixar-se do gabinete de Londres. "Tal
(1) Officio de 31 de Outubro de 1816.
(2) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
(3) Officio de 23 de Dezembro de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 641
é o espirito ou impulsão do momento : os Portuguezes podem
impunemente descurar ou mesmo estragar seus próprios
negócios: os Inglezes deveriam arranjar e concertar tudo a
contento delles."
Si a Inglaterra se mostrava infensa a Portugal na
questão de Montevideo, não espanta que muito mais assim
se mostrasse o resto da Santa Alliança, que não andava
unido a elle por idênticos laços. Fiel ao systema adoptado
de appellar para as potencias antes de appellar para a força, o
governo hespanhol mandou o seu embaixador em Pariz,
conde de Peralada, entregar ao duque de Richelieu, a 25 de
Novembro de 1816, logo que a expedição foi divulgada em
Madrid, um longo memorandum sobre o comportamento
iniquo do gabinete do Rio. N'elle se denunciava o constante
imperialismo de Portugal no Novo Mundo e se apontava
para a sua recusa de associar seus esforços com os da Hes-
panha afim de impedirem a constituição de um estado inde-
pendente e republicano paredes meias com a monarchia por-
tugueza, preferindo esta executar sósinha a repressão.
A' habilidade de Brito, que era grande, competia de-
fender cabalmente em Pariz a attitude da sua corte, e não
se pode senão considerar valiosa a sua defeza. Na nota a
Richelieu de 30 de Janeiro de 181 7 (i) tratou elle de ex-
plicar a impossibilidade moral em que se encontrava o go-
verno portuguez de não reagir contra uma propaganda anar-
chista feita nas suas portas e que ameaçava provocar os ha-
bitantes á revolta e emancipar os escravos. Eram afinal puras
medidas defensivas as empregadas, e a corte do Rio ver-se-
hia perdida diante do rancor dos insurgentes, sobretudo
por julgarem-na coluiada com a de Madrid, si não houvesse
(1) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
642 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
congregado em redor de si os recwrsos precisos para extin-
guir o incêndio desmoralizador da revolução. ''Taes são
as circumstancias em que a lei suprema da salvação do Es-
tado forçou o Rei Fidelissimo a agir promptamente e com
energia contra o inimigo das duas coroas, afim de que
aquelle paiz entregue á anarchia e á destruição, abandonado
seis annos ha pela metrópole, se não converta n'um visinho
ainda mais perigoso, consolidando seus meios de ataque e
renovando no Brazil as scenas sanguinolentas de São Do-
mingos" (i).
Havia d'ahi que concluir que o proceder do governo
portuguez não era prejudicial, antes vantajoso, aos interes-
ses do Rei Catholico, ao mesmo tempo que mantinha e as-
segurava a existência social e politica do Brazil. Occupar
território subtrahído ao dominio effectivo da Hespanha, as-
senhoreado pelo inimigo commum das duas coroas, não po-
dia nem devia ser considerado acto hostil contra aquella
metrópole. Ao Brazil mesmo era impraticável realizar a
occupação militar da margem esquerda do Rio da Prata em
nome de Fernando VII, sem attrahir contra si uma guerra
geral da parte dos insurgentes de raça hespanhola que ao
longo de uma enorme fronteira, desde o Paraguay até a
Guyana Hespanhola, envolviam a monarchia portugueza.
Terminava Brito a sua nota com esta bem cabida,
quasi irreplicavel referencia á actividade da Santa Alliança:
"O soberano portuguez no cumprir um dever que lhe im-
punha o interesse dos seus Estados, e que era o de levantar
uma barreira entre a anarchia dos paizes limitrophes e a
tranquillidade do Brazil, exerceu o mesmo direito de que
(1) Nota cit. Artigas detlarara effoctivamonto. com sua iisual
o aggressiva jactância, que o seu plano incluía produzir a revolta dos
negros do Braz^il.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 643
se teem valido em casos análogos as grandes potencias. Con-
siderando mais que por effeito da ultima alliança essas po-
tencias são com elle solidarias na extirpação dos principios
revolucionários, que infelizmente depois de percorrerem o
hemispherio americano podem regressar á Europa, o referido
soberano deve nutrir a esperança de achar nos seus Altos
Alliados outros tantos fiadores das suas intenções pacificas e
da necessidade politica da expedição do Prata. A corte de
França, tendo presente a insurreição das colónias inglezas e
suas fataes consequências, será sem duvida a primeira a jus-
tificar a politica do gabinete portuguez e a persuadir o de
Madrid de adoptar as medidas mais convenientes para re-
cuperar o completo dominio das suas colónias."
N'outra nota de data posterior ( i ) voltava o repre-
sentante portuguez a explicar que os sublevados orientaes
tinham querido açular os Índios e negros brazileiros á re-
volta, ao mesmo tempo que especuladores estrangeiros in-
troduziam armas e munições de guerra nos portos do Rio
da Prata. N'esta nota Brito — o incommodo Brito, que
Richelicu achava insupportavel pelas teimosas exigências
e Maler execravel pelas informações pessimistas que minis-
trava — apontava para a circumstancia da expedição Mo-
rillo não ter por fim tido por destino o Rio da Prata, como
uma prova mais da inconstância do governo hespanhol e uma
nova razão da pouca confiança que ao governo portuguez
podia offereccr essa intervenção da metrópole, que a atti-
tude irreconciliável e as correrias de Artigas tornavam o
mais urgente.
O encarregado de negócios inglez no Rio, observava
Brito, protestara contra a expedição allegando que S. M.
(1) 9 de JuDlio de 1S17, ihid&m.
644 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Britannica fora mediador e garante do armisticio de i8i2
(i) com o governo de Buenos Ayres; mas Portugal não
podia admittir semelhante protesto baseado sobre uma ga-
rantia que nunca existira, tanto mais quanto todos os ou-
tros motivos allegados na nota mencionada de Chamberlain
em caso algum deveriam prevalecer sobre o direito mais sa-
grado que havia, que era o da defeza dos próprios Estados.
Deixando esta tarefa a Portugal, a Hespanha pouparia es-
forços e despezas em subjugar o território rebellado, cuja
independência Buenos Ayres reconhecera, hostilizando-o ape-
nas porque Artigas, sem titulo nem eleição, alli se apode-
rara ou tentava apoderar-se do mando supremo.
No proseguimento da sua politica, que repudiava como
sendo de conquista e somente consentia em que fosse qua-
lificada de resistência dictada pelo instincto da conservação
e horror á anarchia, o governo do Rio assegurava official-
mente uma vez mais pela penna de Brito que, ao fazer oc-
cupar por suas trojpas o paiz situa'do á esquerda do Uruguay,
o Rei não tinha tido outro fim senão o de abafar o espirito
revolucionário n'uma região limitrophe do Brazil. Tomava
uma linha natural de preservação para conserval-a até o dia
em que a lucta entre as colónias hespanholas e a mãi pátria
estivesse terminada.
Só então, restabelecido o socego, reclamaria S. M. Fí-
delissima indemnização pelos prejuizos soff ridos pelos seus
súbditos e compensação pelas despezas occasionadas por uma
guerra determinada pela aggressão dos insurgentes e pela
(1) Os armisticios foram dous : o de 20 de Outubro de 1811,
ontre Buenos Ayres* e Montevideo, pretendendo esta obrigar o Brazil,
e o de 2 de Junho de 1812, pelo qual concordou Portugal na retirada
das suas trapas.
DOM JOÃO VI NO BEAZIL 645
incúria do ministério hespanhol, pois que os próprios des-
agradáveis ifâcheux) successos de Pernambuco se teriam
evitado si a corte de Madrid houvesse agido de combinação
com a do Rio para a pacificação das provincias rebeldes da
America. Apezar das justas reclamações que lhe seria licito
apresentar contra a Hespanha, sobretudo por motivo da
villa e termo de Olivença, que essa potencia retinha contra
o voto solemne emittido no Congresso de Vienna por todos os
soberanos, Portugal não visava comtudo a adquirir um pe-
nhor de tal restituição, e o Rei Fidelissimo nunca se recusa-
ria a entrar em accordo com o Rei Catholico para ajustar
as differenças levantadas e convir definitivamente n'uma
linha de limites, que para o futuro evitasse entre as duas
coroas, tão estreitamente ligadas, as continuadas dissensões
que desde longo tempo se tinham creado ( i ) .
E' interessante ouvir a outra parte, como os mesmos
factos serviam a argumentação contraria. Na circular diri-
gida pela mesma data quasi (2) aos ministros das poten-
cias medianeiras, insistia Fernan Nunez no perigo que havia
em transigir com o espirito revolucionário que a Europa ta-
manho trabalho tivera para debellar. Ora, a attitude de
Portugal no Rio da Prata apenas servia de dar alento ao
partido rebelde de Montevideo, "que já se achava myuito
enfraquecido e prestes a abrandar inteiramente. A invasão
torncu-se o melhor meio, mais poderoso, de despertar o es-
pirito dos sediciosos, e o povo que se achava fatigado, oppres-
so e debilitado, de novo se exacerbou vendo arvorar n'esses
paizes pavilhões que lhe são extranhos e que tinha em horror,
íl) Nota cit. de í) de Junho de 1817.
(2) 2 de Julho de 1817.
646 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
entregando-se por esse mesmo motivo e com novo ardor aos
mesmos excessos."
Sciente d'esta execração, que não pedia licença para ma-
nifestar-se, e no intuito de se sustentar é que o governo por-
tuguez poupava o governo rebelde de Buenos Ayres, usando
com elle, no dizer do embaixador d'Hespanha, de considera-
ções que são somente devidas á auctoridade legitima. Em
verdade a corte do Rio conhecia já a tendência dos senti-
mentos coloniaes e não procedia mais ás cegas, como D. Ro-
drigo de Souza Coutinho com suas intimativas feitas ao
desembarcar e que só serviram para provocar o vivo orgulho
da raça hespanhola.
Em Março de 1817 dera-se a insurreição de Pernam-
buco e tanto o gabinete de Madrid como as potencias media-
neiras a quizeram á fina força relacionar com a occupação
da Banda Oriental, attribuindo a possibilidade da sedição
á escassez no Brazil de tropas regulares produzida pela
applicação no Sul da politica imperialista de Dom João VI.
A sedição pernambucana proporcinou, na sua explicação, en-
sejo a Fernan Nufiez para um rasgo de emphase castelhana
que fosse pautada por uma subtileza italiana. "O estado
de perturbação em que presentemente se encontra uma parte
do Brazil e cujas consequências podem resultar as mais
funestas, serve para provar altamente a grandeza d'alma do
Rei meu Senhor e demonstrar toda a generosidade de que
elle faz uso nas suas deliberações: S. M. Catholica tem
pressa de fazer conhecidos seus desejos de que as Potencias
alliadas queiram conjunctamente occupar-se da urgente ne-
cessidade que ha de destruir esse espirito revolucionário, o
qual compromette a segurança do Brazil e a do throno de
S. M. Fidelíssima, como igualmente se oppõe á felicidade de
DOM JOÃO VI NO ERAZIL 647
todas essas bellas possessões pertencentes aos dous Sobe-
ranos" (i).
Tal devia ser, a saber, castigar o espirito de rebeldia,
o verdadeiro fim da grande confederação européa que pre-
tendia reger os destinos do mundo, e como o episodio per-
nambucano viera bem a propósito revelar que aquelle espi-
rito grassava em toda a parte, tanto mais urgindo anni-
quilal-o, Fernan Nuilez astutamente fez menção de voltar
contra Portugal o argumento de intervenção por pavor do
contagio, para rematar sua circular: "O Rei meu amo, viva-
mente commovido pelas desagradáveis noticias que lhe che-
garam ultimamente e que permittem enxergar-se o perigo
imminente em que se acha no Novo Mundo a monarchia
portugueza, encarrega-me de fazer esta communicação ás
Potencias alliadas para provocal-as a se concertarem entre si
relativamente á necessidade e meios de conter essas desgra-
ças que tendem decididamente á destruição dos governos e
ruina dos Estados."
Como a Santa AUiança tinha por fito conhecido e razão
de ser ostensiva o acabar no mundo com o virus republicano,
é claro que a Hespanha por todos os meios se servia do es-
pantalho revolucionário para enraizar mais fundo as sym-
pathias da Europa pela sua causa, a causa por exceller].cia
da legitimidade e da reacção. No dizer n'este ponto algum
tanto cxaggerado de Maler (2), cedo não se poderia mais
respirar o ar do hemispherio austral sem ao mesmo tempo
se respirar os miasmas da revolta, sendo o grande foco-
pestilencial a cidade 'de Buenos Ayres, prazo-dado dos sedi-
ciosos aventureiros do mundo inteiro.
(1) Circular oit. no Arcb, do Min. dos Neg. Est. de França
(2) Officio de 30 de Junho de 1818.
D. J. — 41
648 DOM JOÁO VI NO BRAZIL
O que tinha o condão de levar ao auge a irritação do
velho militar realista que a Restauração galardoara com um
posto diplomático, era que entre os emigrados no Rio da
Prata se contavam não poucos d'aquelles officiaes do grande
exercito napoleónico, pelo novo regimen reduzidos ao meio
soldo ou privados de todo soldo, que Balzac tão vigorosa-
mente desenhou em romances seus, saudosos do passado, des-
contentes do presente, esperançosos do porvir, promptos a
batalharem sempre que se fallasse nos immortaes principios
que o seu Imperador immortal symbolizara, absorvendo-os.
Iam esses militares para o Rio da Prata, ao que diziam en-
tregar-se a explorações agrícolas, de facto alistar-se a com-
baterem pela liberdade de terras opprimidas.
Os desertores eram ainda mais numerosos. "Penso já
ter feito observar a V. Ex.- que os navios que vão ao Rio da
Prata perdem alli suas tripolações por effeito da deserção.
As embarcações francezas que entram n'este porto, proce-
dentes do Rio da Prata, trazem todas novas folhas de tripo-
lação firmadas pelas auctoridades portuguezas de Montevi-
deo, e outro tanto acontece com os navios inglezes. Cada dia
um novo enxame de mal intencionados vai pois avolumar a
agglomeração, e o espirito de moderação do actual director
Pueyrredon constitue uma fraca garantia contra as consequên-
cias possiveis do mal de que elle poderá bem vir a ser uma
pas primeiras victimas" ( i ) .
Pelos diplomatas acreditados no Rio de Janeiro a me-
diação das grandes potencias era considerada preciosa não
só para chamar á ordem o discolo governo portuguez, como
também para remendar o laço que unira á metrópole hes-
panhola as suas colónias, o Rio da Prata e Chile tanto
(1) Officio cit. de Maler de 30 de Junho de 1818.
DOM JOÃO VI NO BRASIL 649
quanto Nova Granada e Venezuela. Quando se fallava em
restabelecer a aucíoridade real no disperso e revolto império,
logo se ajuntava, porém, que com algumas modificações
indispensáveis. Fernando VII e Alexandre I eram porven-
tura as únicas pessoas a julgarem possivel a recolonização
pura e simples. As reflexões de Maler são interessantes
n'este ponto e dignas de divulgação, por trazerem estam-
pada a imagem d'aquella opinião do mundo diplomático do
Rio de Janeiro — o único então da America do Sul — que,
sendo conservadora, não o era em extremo.
'' Não existe a menor duvida. Monsenhor, que mais se
tardará em offerecer qualquer barreira ao espirito de inde-
pendência e a todas as illusões de que o sabem engalanar,
tanto mais difficil e depressa impossivel se tornará arrancar
as raízes profundas que lhe terão permittido desenvolver e
firmar. Bastantes circumstancias e considerações existem
que reuniriam uma parte da população d'estas províncias ao
seu Rei si fossem ostensiva e sabiamente apoiadas pelas Po-
tencias da Europa; acontece com as revoluções no Novo
Mundo o mesmo que com as do Velho Mundo, é sempre
uma minoria facciosa que se guinda e arrasta e dirige a mul-
tidão; ora a immoralidade, a versatilidade dos corypheus
de Buenos Ayres, suas tramas e secretos conluios com a
pequena corte do Brazil, tudo emfim deve levar-nos a
crer que, com auxilio, uma mão hábil saberia facilmente
fazer vacillar as opiniões d'esses chefes ávidos e tirar van-
tajoso partido da sua cobiça e ambição; por outro lado se
está extremamente fatigado de tantas inquietações, agitações
e convulsões; propostas conciliatórias sustentadas pela me-
diação das grandes Potencias européas promptamente da-
riam animo e energia ao partido certamente mais nume-
650 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
^^^0 ^^-feu coração encerra todas as disposições para
sentir vivamente as scenas que por assim dizer me cercam,
para deplorar a incapacidade dos generaes que tão mal ser-
vem o Rei d'Hespanha e o desatino dos seus súbditos que o
atraiçoam. Não posso também ver sem a mais forte indigna-
ção que a Corte do Brazil tão ternamente unida ao Rei Fer-
nando pelos laços mais sagrados, esquecendo sua própria
dignidade e mesmo seus verdadeiros interesses, queira apro-
veitar-se de um momento calamitoso ; é o cumulo da loucura
d'uma ambição injusta e irreflectida" (i).
A mediação das grandes potencias, exercendo-se mesmo
no sentido de uma reconciliação entre a Hespanha e suas
colónias em via de emancipação, não podia ser unanime por-
que não era generosa: dictavam-na, apressando ou retar-
dando sua acção, interesses diversos. Si á Inglaterra não
sorria a extensão do poderio portuguez na America, tam-
pouco lhe havia de por idêntico motivo agradar a pacificação
das possessões hespanholas mediante o restabelecimento da
auctoridade da metrópole. Tanto assim pensavam as demais
potencias mediadoras, que aconselhavam o gabinete de Madrid
de, no caso de Montevideo, accelerar as negociações directas
com a corte do Rio sob a égide da Santa Alliança, pois de
outra forma daria talvez ensejo ao governo britannico de
entravar essa composição.
A Inglaterra, sob a capa da neutralidade, tinha esta-
belecido relações com todas as colónias revoltadas, e si taes
relações não eram ainda politicas,' de facto acarretavam as
mesmas vantagens. Os commandantes dos navios de guerra
(1) Officio de 19 de Abril de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 651
estacionados nos principaes portos da America Hespanhola e
dependentes todos do mesmo commodoro, faziam as vezes de
cônsules, intervindo para arranjar as questões entre nego-
ciantes inglezes e auctoridades locaes, e regulando as rela-
ções entre si dos súbditos britannicos (i).
Exactamente por comprehender que o irresistível inte-
resse da Grã Bretanha corria em contrario da recolonização,
e por perceber que o restabelecimento da união colonial pela
influencia das potencias alliadas não poderia deixar de im-
portar na perda segura da opportunidade de reconstituir
as mesmas ligações, politicas e administrativas, de outrora,
mcluido o primitivo monopólio da exploração económica, é
que a Hespanha estava privada de entrar em quaesquer nego-
ciações com decisão e franqueza, antes se sentia inclinada a
usar de demoras, tergiversações, resistências e reticen-
cias, todos os expedientes n'uma palavra de um sj^s-
tema de dilação. Por isso, tardando a Hespanha em declarar
sua adhesão ao projecto de pacificação das potencias media-
neiras (2), aventou o governo francez a solução de uma mo-
narchia constitucional em Buenos Ayres, como o melhor
meio de repor a ordem nas Províncias Unidas e fazer viável
uma conciliação.
Offerece por todos os motivos curiosidade acompanhar
na correspondência diplomática, espelho das opiniões dos
círculos officiaes, o reflexo na America da marcha das ne-
gociações na Europa, e verificar a forma por que no Rio
de Janeiro ia sendo dada a pontuação aos despachos dos
(1) Ca,ptaiin Basll Hall, Extracts from a Journal written on the
coasts of CMli, Peru, and México, in the years 1820, 1821 1822 Edin-
burgih, 1824, vol. I. ' '
(2) Officio de Montmorency Lavai a Richelieu, de 9 de Novem-
bro de 1818, no Aroh. do Min. dos Neg. Est. de França.
652 DOM JOÃO VI NO BEAZIL
gabinetes do Velho Mundo. Aliás não era a corte portu-
gueza a que menos se esforçava por prolongar a questão do
Rio da Prata; o barão Pasquier até a accusava de ser a mais
empenhada em trdner raffaire en longueur (i).
O encarregado de negócios d'Hespanha, pelo que lhe
tocava, seguira protestando sempre que a propósito vinha,
contra a deslealdade de ser levantado nas cidades e praças
occupadas na Banda Oriental o pavilhão portuguez, e contra
a impropriedade da recepção dispensada no Rio aos depu-
tados de Montevideo, que tinham vindo apresentar seus votos
e seguranças de fidelidade ao Rei, e aos quaes o conde da
Barca não hesitou em conceder uma audiência.
No dizer de Maler (2), o seu coUega hespanhol du-
vidava no decorrer da sua nota sobre este particular assum-
pto, "affirmar o que lhe parecia mais offensivo e desarra-
zoado, si a ousadia dos pretensos deputados, si o proceder do
Ministro que sem consideração pela sua própria elevada po-
sição, se permittia receber e distinguir súbditos rebeldes,
facciosos, insultando com esta attitude a legação de S. M.
Catholica."
Dom João VI foi acclamado Rei em Montevideo no
dia 7 de Abril de 181 7, como o foi em todas as villas dos
seus dominios, excepção feita do Rio de Janeiro e de Per-
nambuco, por causa da revolução que ahi, na corte e na pro-
vincia rebelde, teve por effeito adiar a cerimonia. Maler, in-
dignado d'aquelle desplante de uma acclamação em terra es-
trangeira, assim convertida em terra conquistada, mais se
enojava de encontrar no Paço, como vira com os seus pro-
(1) Despacho a Maler de 2Õ de Novembro de 1819, ibidem.
(2) Officio de 7 de Abril de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 653
prios olhos, os dous deputados de Montevideo gosando da
entrada na única antecâmara destinada ás pessoas notáveis
pelo seu nascimento e condição. "Cest ainsi, exclamava elle
( I ) transido de horror ante essa quebra do tradicional privi-
legio, qu'on voit accueillir avec distinction des infames
traitres dans le palais des Róis."
Na phrase do representante francez (2) as muitas
notas de reclamação do encarregado de negócios Villalba
eram bem redigidas porque se escreve sempre impressiva-
mente quando se tem a justiça do seu lado, e tanto a tinha o
diplomata em questão que Palmella opinava — communi-
cava Maler sabel-o mui positivamente — ser impossivel res-
ponder victoriosamente ás queixas da Hespanha. E' facto
que Palmella e Saldanha da Gama, longe da influencia do
imiperialismo de que se abrazara a corte do Rio, sem amor
pessoal pelas gentes e cousas do Novo Mundo, só enxer-
gando os inconvenientes politicos da situação do ponto de vista
europeu, pensavam sinceramente, si bem que se esforçando
por cumprirem do melhor modo suas instrucções, ser mais
prudente evacuar Portugal a Banda Oriental do que correr
os riscos de complicações de que elles sentiam de perto a
ameaça.
Tal não era porém o juizo de Dom João VI, tanto
que experimentou o velho João Paulo Bezerra contestar por
negação os articulados de Villalba. Na nota de 27 de
Agosto de 18 17 (3) repete o successor de Barca que o exer-
cito portuguez occupava território que encontrara em estado
de guerra e abandonado pelos Hespanhoes aos insurgentes
na capitulação de Montevideo. As potencias alliadas não
íl) Officio de 25 de Maio de 1817.
>(2) Officio de 1 de Agosto de 1817.
(3) Arch. do Min. das Rei. Ext.
654 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tinhanv em 1814 pedido permissão a Luiz XV III, o sobe-
rano legitimo, para invadirem a França, nem a pedira em
1815 Fernado VII quando, por occasião do regresso da ilha
d 'Elba, fez suas tropíis marcharem sobre o território fran-
cez. Em qualquer d'esses casos o território fora sempre con-
siderado inimigo.
Além d 'isso, assaz se proclamara temporária e provi-
sória a occupação da Banda (oriental pelas tropas portu-
guezas. Somente á sombra do seu pavilhcão poderiam estas
tropas alli haver penetrado, pois que não iam no caracter
de alliadas ou auxiliares do Rei Catholico. As intenções do
Rei Fidelíssimo eram de pacificar o alludido território, de
accordo com a publicação do general em chefe e as condições
de entrega da praça de Montevideo, d'est'arte provendo á
segurança do Reino Unido, sem absolutamente pretender in-
gerir-se na disputa entre a Hespanha e suas colónias.
A liberdade de acção do monarcha brazileiro era com-
pleta no entender de Bezerra, pois que fora violada em 1801
a alliança defensiva de 1778, e o tratado de Basiléa de 1795
já anteriormente provara de sobejo a pouca conta em que em
Madrid eram tidos os soccorros efficazes e generosos de Por-
tugal; como igualmente provavam depois essa falta de con-
sideração a escandalosa retenção de Olivença com seu termo
e a convenção do general Elio em 181 1 com a Junta de
Buenos Ayres.
O encarregado de negócios d'Hespanha não replicou
ao Secretario d'Estado com novos ou repizados argumentos
porque muito provavelmente sabia que "estava para chegiir
um ministro e nko teria empenho em que a discussão se
azedasse comsigo mesmo: declarou apenas aguardar o ef-
■)é^
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 655
feito da carta autographa do soberano portuguez ao sobe-
rano hespanhol sobre a questão, estando também informado
de achar-se ella affecta ao mais alto e imparcial tribunal,
como era o das potencias medianeiras, e julgando não valer
entretanto a pena, longe da mediação e perto do conflicto,
acirrar e desnaturar o debate.
Levantou não obstante uma contradicção, fazendo no-
tar a circumstancia extraordinária do monarcha porruguez
conceder amnistias a vassallos estrangeiros, como a q'ie fúia
prochimnda pelo general Lecor ; e para não ficar atraz em
matéria de allusões históricas, ao mesmo tempo indicanclo a
aggravantc da premeditação na parte contraria, relembrou
que fora o acto de projectada aggressão da corte do Rio de
Janeiro contra as possessões hespanholas do Rio da Prata
que, com determinar a vinda da divisão auxiliar, impedira
o contingente portuguez de tomar parte "nos últimos glo-
riosos acontecimentos pelos quaes se deu a paz á Europa'*,
a saber, na curta campanha culminada em Waterloo.
Os representantes das cinco potencias mediadoras pro-
testaram porem poucos dias depois d'esta troca de notas, a
ó de Setembro de 1817 (i), contra a remessa de novos re-
forços (2) para Montevideo, emquanto estivesse pendente a
mediação. Respondeu-lhes coUectivamente Bezerra, pergun-
tando si os reclamantes se achavam especial e expressamente
(1) N'esta data o corpo diplomático estrangeiro no Brazil se
achava mais reduzido em numero e cathegorla. Comprohendia o mi-
nistro da Prússia, Flemming, o encarregado de negócios d'Austria,
Neven, o da Hespanha, Villalba, e trez cônsules geraes encarregados
de negócios da França, Inglaterra e Rússia, Maler, Ctiamberlain e von
Langsdorff. O ministro hespanhol Casa Flores chegou ao Rio, a boiído
do paquete inglez, a 17 de Setembro de 1817 e o núncio Marefoschi a
27 de Outuhro.
(2) Trstav.a-se do embarque de 800 homens compromettidos
s na revolução de Pernambuco, 400 negros livres, 50 artilheiros e 1.000
p milicianos a cavallo da província de São Paulo.
656 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
auctorizados para exercerem semelhantes funcções de me-
diadores junto ao governo portuguez? (i)
Não tiveram os agentes estrangeiros outro remédio se-
não responderem no dia immediato que não exigiam explica-
ções, conforme parecera ao ministro: apenas tinham mani-
festado que ficariam muito lisonjeados de receberem as que
o gabinete do Rio julgasse conveniente dar e elles pudessem
transmittir ; que não pensavam prevalecer-se do caracter de
medianeiros, o qual só cabia aos seus soberanos respectivos,
e não tinham feito mais na nota mencionada do que con-
sultarem o dever imposto pela natureza mesma das suas
funcções publicas e pelo espirito das suas instrucções; que
estavam muito longe de suppor que a observação apresen-
tada fosse de Índole a affectar mesmo indirectamente a
Augusta Pessoa de S. Magestade, e se abstinham de res-
ponder ao convite de declaração da chancellaria portugueza
por já lhes haver anteriormente sido dado o ensejo de res-
ponderem a tal pergunta.
E' o que em boa linguagem se pode chamar bater em
retirada, e a resolução era acertada visto que, por traz de
Bezerra, facilmente se adivinhava que estava o Rei com sua
maliciosa e obstinada bonhomia. Bezerra andava pelo estado
physico reduzido a uma nullidade, com que se não devia
contar. Justamente por esse tempo escrevia Maler para Pariz
(2) que a saúde do ministro de estrangeiros continuava
sempre no estado mais lastimoso (pitoyable) e que, tendo-o
(1) A resposta de Bezerra começava da seguinte forma: "Sua
Magestade vio com a mayor estraiiheza e vivo desgosto a Nota rece-
bida, e ainda que não admitte a latitude e generalidade que S. S. e
S. S. M. Mces. pretendem dar á referida mediação..." (Arch. do
Min. dos Neg. Est. de França).
{•2) Officio de 1 de Agosto de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 657
procurado cinco vezes, mesmo porque não podia louvar-se
de algumas respostas que recebera, ainda o não conseguira
ver.
Pelo contrario o representante francez via com fre-
quência Dom João VI, que sempre o acolhia com muita bon-
dade e que, mostrando invariavelmente nas suas conversa-
ções desconfiar do gabinete de Madrid, dos soldados hespa-
nhoes e da possibilidade de Fernando VII recobrar suas
possessões, não menos invariavelmente se mostrava incli-
nado a não abrir mão da Banda Oriental, mostrando tão
somente receio de ter que vir a brigar com Buenos Ayres,
com cujo governo queria viver em perfeita paz (i).
Tanto menos devia o governo portuguez fraquear
diante das ameaças de mediação, local ou distante, quanto a
attitude assumida apelas grandes potencias da Europa na
questão do Rio da Prata causara grande sensação em Buenos
Ayres. Director, Congresso e funccionarios públicos no geral
tinham recebido a noticia, ao que se dizia com pezar; com
sentimento hostil o povo, pois que mediação em taes condi-
ções quasi equivalia a intervenção. Aliás á chegada das
novas do promettido auxilio russo á Hespanha, mandou o
director que toda a população se exercesse o mais activa-
mente no manejo das armas e se entregasse a evoluções mi-
litares, de sorte que a cidade se converteu n'um acampamento.
Uma humilhação imposta a Portugal podia outrosim
dar occasião a uma mudança nas disposições que para com
o gabinete do Rio mostrava Pueyrredon, "cuja auctoridade
então se firmava e consolidava, tornando-se cada dia mais
difficil derrubal-o e supplantal-o, trabalhando elle muito e
(1) CcTesp. de Maler, no Arch. do Min. dos Neg. Est. de
Franca.
6Õ8 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
só podendo sua popularidade crescente intimidar seus ad-
versários" (i).
Até ahi verdade é que continuara a reinar a boa intelli-
gencia constantemente observada pelo director e correspon-
dida por Dom João VI. Tudo comprova esta harmonia sem
discrepância, podendo exemplifical-a um pequeno facto entre
outros, vulgar occorrencia de guerra (2). Trez officiaes e
trinta e um officiaes subalternos, prisioneiros de Artigas, con-
seguiram apoderar-se de uma goleta ancorada perto da mar-
gem do Uruguay, com armas e munições do ca.udilho, e esca-
param-sc. Navegando com rumo a Montevideo, foi a goleta
detida em caminho por um corsário portenho que carregou
os prisioneiros para Buenos Ayres, onde o director os acolheu
favoravelmente, soccorrendo-os e mandando trímsportal-os
n'um dos seus navios para a praça oocupada pelos Portugue-
zes, com designios tão assentes de permanência que a estavam
até fortificando. Chegou o director, pela reclamação do ge-
neral Lecor, a fazer entrega da carga como justa preza dos
evadidos, conservando apenas a goleta, por ser propriedade
de um individuo de Buenos Ayres. " Mr. Pueyrredon, não
deixava Maler a opportunidade de commentar (3), fait tout
ce qui depend de lui pour être considere comme un voisin
commode, d'humeur douce et conciliante."
Por seu lado não afagava a corte do Rio mais dilecto
intento do que vir a celebrar uma alliança com Buenos Ay-
res, desistindo o governo portenho das suas pretenções sobre a
margem oriental do Prata e promettendo Portugal unir-se ás
Províncias Unidas afim de combater qualquer expedição
hespanhola que se afoutasse até essas paragens. Os partidários
(1) Officio de Maler úe 2S de Agosto de 1817.
(2) GazeUi do líio de Janeiro, Agasto de 1817.
(3) Officio de 30 de Agosto de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 659
da legitimidade eram pelas circumstancias considerados os
peores inimigos do soberano legitimo de Portugal e Brazil.
Uma carta recebida de Montevideo por Maler e annexada á
sua correspondência official denunciava por esse tempo as
muitas arbitrariedades, violências e mesmo aggressões, com-
mettidas pelos Portuguezes contra os Fernandistas. Para ar-
raigar a occupação, as terras da coroa hespanhola eram, ao
contrario, livremente distribuidas pelos uruguaj^os que re-
negavam o partido de Artigas, e pelos soldados portuguezes
e súbditos brazileiros que tinham ido no encalço da inva-
são ( I ) .
Não admira que em condições taes fossem constantes
as trocas de cortezias entre o Rio e B-uenos Ayres, sendo
até pelo governo portuguez mandados admittir em Monte-
video os navios portenhos ostentando o pavilhão rebelde.
Este estado de equilibrio affectivo era no emtanto instável e
com muita razão observava Maler que a morte mesma de
Artigas, ainda que livrando o Brazil de um inimigo poderoso,
não simplificaria a situação, antes a dificultaria, approxi-
mando as populações irmãs das duas margens do Prata, que
um mal entendido politico separava sem ser ainda definitiva a
scisão, e dando origem a uma perigosa rivalidade internacio-
nal que, entre outras razões, a anarchia produzida pelo cau-
dilho sustava naquella occasião e impedia de aggravar-se.
Os acontecimentos vieram a provar que o encarregado
de negócios de França se não enganava nas suas apreciações:
depois de desapparecido o óbice de Artigas e de consolidada a
independência argentina, foi que a questão de Montevideo se
envenenou, conduzindo á guerra de 1825. Nem sequer tar-
dou multo que as boas disposições argentinas, tão apregoadas,
(1) líantlelmaDa, Oeschichte von BraaiUen.
660 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
fossem sendo praticamente desmentidas por factos e de outra
banda mal correspondidas, tornando-se menos e menos fra-
ternaes as relações.
A corte do Rio queixava-se de que em Buenos Ayres
entrasse a circular um periódico contendo diatribes contra o
governo do Brazil, a par do elogio dos martyres da liberdade
pernambucana. Queixava-se Pueyrredon directamente ao ge-
neral Lecor, dando simultaneamente curso a esta queixa
nos seus jornaes, que fosse dada permissão de residência
e de conspiração em Montevideo a discolos e adversários dos
governos de facto da America Hespanhola, norma de pro-
ceder tanto mais irritante quanto em Buenos Ayres a opinião
tendia cada vez mais accentuadamente para a emancipação
irreductivel.
A' ordem de Pueyrredon foi o agente portuguez Bar-
roso preso em Buenos Ayres sob a accusação de .entreter e pro-
teger a correspondência dos facciosos congregados em Mon-
tevideo com os seus cúmplices da outra margem. Uns e ou-
tros agitavam a já de si desassocegada vida politica das Pro-
víncias Unidas, intrigando, conspirando, espalhando pam-
phletos incendiários impressos em Montevideo, provocando
dissensões sangrentas, para tudo isto se aproveitando de
andar entre as tropas de Buenos Ayres o soldo sempre atra-
zado por defrontarem com o governo os cofres públicos
vasios.
Protestou Lecor contra esta, como a chamou, quebra
do direito das gentes e obteve a soltura de Barroso, com or-
dem, porém, de sahir de Buenos Ayres, pelo que se recolheu
o agente secreto a Montevideo, onde lhe deram o commando
da flotilha do Uruguay (i). A expedição de Cadiz tolhia de
(1) Corresp. de Maler no Arch. do Min. .dos Neg. Est. de Franga.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 661
certo modo os movimentos dos elementos em presença, impe-
dindo a desconfiança de degenerar no Rio da Prata em con-
flicto agudo entre Portugal e Buenos Ayres.
Estes famosos armamentos militares e navaes desem-
penharam um papel notabilissimo na historia psychologica
do tempo: infundiram tantos ou mais receios do que a In-
vencível Armada. Em Portugal e ilhas adjacentes chegou a
haver quasi pânico. Varias familias da Madeira foram, as-
sustadas, refugiar-se em Lisboa ao expedir a Regência do
Reino ordem de apromptar-se a defeza d'essa ilha e bem
assim das dos Açores e Cabo Verde, transportando-se para o
interior das terras tudo quanto fosse mercadoria depositada
na Alfandega ou objecto precioso existente nas habita-
ções ( I ) .
Também no Rio, quando a gente do paquete inglez en-
trado a 6 de Julho de 1818 contou ter avistado na bahia de
Teneriffe uma esquadra hespanhola que transportava quatro
a cinco mil homens de desembarque, reinou grande susto
entre o povo, chegando a commoção ao Rei e seus Ministros,
que ficaram anciosos. Convocaram-se a conselho os officiaes
gencraes mais experimentados; interrogou-se o ministro da
Hespanha, que disse nada saber e muito provavelmente igno-
rava tudo; expediram-se navios para Santa Catharina e para
Montevideo com soldados e munições de guerra (2). De
resto, Angeja — um mavórcio marquez a quem Marrocos
com.para n'uma de suas cartas (3) ao homem de ferro da
procissão de Corpus Christi " ou o Centurio convertido na
do Enterro, pois nelle tudo era metal, e até trazia a banda
(1) Officio do cônsul geral Lesseps, de 14 de Junho de 1818,
ihúlrm.
(2) Officio de Maler de 19 de Julho de 1818.
(.".j íCarta ao Pai de 10 de Maio de 1813.
662 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
c o boldrié muito abaixo das verilhas" — e Barbacena esta-
vam a esse tempo de viagem assentada para Europa, sob
pretexto de irem tomar aguas, na realidade, como era voz
pública, para buscarem mais regimentos portuguezes, uns
três a quatro mil homens que o velho Reino cedia de mau
grado ao imperialismo brazileiro em acção.
Tanto, porém, se fallou nos armamentos de Cadiz que
por fim já a ninguém infundiam medo. Em Portugal,
quando com mais calma os reputaram de verdade destinados
á America Hespanhola, e entrou em jogo o affectado menos-
prezo do Portuguez pelo visinho, deixou de lavrar o receio de
qualquer ataque castelhano. " Os armamentos de Cadiz,
escrevia Lesseps para Pariz ( i ) , não fazem agora aqui maior
impressão do que si fossem intentados para atacar os Chins."
No Rio de Janeiro, si não havia tanta, simulava-se
uma quanta tranquillidade. Conversando com Maler (2), o
Rei taxou os armamentos de exaggerados pelos jornaes in-
glezes, mas o governo não abrandava de facto sua actividade
militar, mandando recrutar novos corpos de milicias, fazer
reconhecimentos, guarnecer as fortalezas da costa e prover
a outros urgências defensivas. A maior difficuldade estava na
marinha, pela falta de pessoal, tornando-se até por este mo-
tivo impossível equipar vários navios a um tempo. O serviço
marítimo, mal remunerado, era muito pouco procurado, me-
lhor dito evitado, e, como se não contavam numerosos, antes
escassos os navios mercantes, faltava então como hoje o na-
tural viveiro dos marinheiros para os navios de guerra. As
embarcações de cabotagem empregavam escravos como tri-
polantes.
(1) Officlo cifrado de 3 de Março de 1819.
(2) Officio de IG de Julho de 1819.
DÒM JOÃO VI NO BRAZIL C6:í
Em Portugal o pagamento não era melhor nem muito
maior a inclinação pelo serviço, sendo forçado o recruta-
mento, mas ainda assim apparecia menor a mingua de gente,
posto que fosse tão grande a miséria naval alli que, segundo
as informações mandadas por Lesseps (i), um corsário de
Artigas, mais precisamente um corsário americano com pa-
vilhão oriental, armado de 24 canhões e tripolado por 200
homens, fundeara durante dias consecutivos na barra de
Lisboa quasi sob o fogo do forte de São Julião da Barra, ao
passo que outro cruzava ao largo e trez mais estacionavam
no cabo de São Vicente, entregando-se todos á commoda e
lucrativa pilhagem dos navios que iam do Brazil.
Maler duvidava comtudo da sinceridade dos esforços
bellicos da corte do Rio no sentido da defeza contra um
ataque hespanhol. *' Tudo quanto até aqui se fez, escrevia
elle ao marquez DessoUes (2), só pode ser considerado como
uma apparencia de querer fazer alguma cousa, e eu, em-
quanto não vir armar os navios todos e construir barcas ca-
nhoneiras, persisto em pensar que o governo brazileiro julga
impossivel a chegada a estas paragens da expedição de
Cadiz. "
A irresolução tinha de facto mais poder do que o re-
ceio, mas neste caso a razão principal residia em que na pró-
pria Hespanha os armamentos de Cadiz já quasi tinham dei-
xado de interessar a opinião. Por isso mesmo mais curioso é
de observar que de repente entraram elles a inspirar novos
temores no Brazil e no Rio da Prata. Em Outubro de 18 19
confessava Dom João VI acreditar na vinda próxima da ex-
pedição, generalizando-se sua inquietação ao ponto de Maler
(1) Officio cifrado de 3 de -Fevereiro de 1819.
(2) Officio de 25 de Julho de 1819.
D, J. — 42
664 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
entrar igualmente a acreditar na realidade das apprehensõe:,
officiaes. Em Buenos Ayres faziam-se, entretanto, maiores
preparativos de defeza e grassava irritação contra a França,
a Inglaterra e a Hollanda por haver constado que a Hes-
panha fretara d'essas nações navios para transporte das tropas
da famosa por nunca realizada expedição.
O mais interessante é que, ao passo que com seus protes-
tos movia a Europa contra a occupação da Banda Oriental
pelas forças portuguezas e ostentava seus preparos de re-
conquista da America Platina, a Hespanha, pela voz do seu
ministro no Rio, protestava também contra a evacuação do
território. Casa Flores implorava quasi que o exercito de
Lecor não abandonasse Montevideo, entregando-a inerme
aos revoltosos e facciosos que alli puUulavam e andavam
contidos por aquellas forças disciplinadas, que os impediam
de manifestarem seus instinctos sanguinários.
Os partidários locaes de Fernando VII eram os primei-
ros a supplicar isso com fervor. De Montevideo dirigiam-se
ao representante no Brazil da sua metrópole não esquecida,
jurando que a anarchia attingiria na cidade uruguaya os
últimos limites si a retirada das tropas portuguezas tivesse
lugar antes da chegada da expedição de Cadiz. Os boatos
eram, com eííeito, tão espalhados e tão repetidos de que a
praça seria despejada á noticia da approximacão da armada
hespanhola, que deviam em toda probabilidade repousar
sobre alguma cousa de real. Contava-se que parte da artilhe-
ria pesada da defeza já fora remettida para o Rio, e Maler,
ao fazer-se para Pariz echo dos rumores, informava que estes
lhe chegavam pelas cartas que recebia de Montevideo
mesmo ( i ) .
(1) Offieio de 14 de Novembro de 1819.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 665
O plano constava ser, quando estivesse a expedição para
chegar, entregar o general Lecor a cidade que occupava ao
seu Cabildo, onde vingavam os elementos revolucionários,
e deixar a Hespanha arranjar-se sósinha com a colónia re-
voltada, a qual estaria d'essa forma praticamente gosando
da independência por que suspirava. A expedição ficaria
assim privada — visto não ser crivei que Montevideo se lhe
rendesse graciosamente — de um ponto de apoio, um porto
de aguada e refresco, e uma praça situada na entrada do es-
tuário cujo dominio ia a metrópole reivindicar.
A Buenos Ayres não podia, pois, ser senão agradável
o alvitre, desmentindo as desconfianças anti-brazileiras que
tratavam de disseminar os elementos mais exaltados. Para
Portugal é evidente que as vantagens resultavam obvias
e muitas: poupava-se a um conflicto armado com a Hespa-
nha, antipathico ao concerto europeu e que podia determinar
na Peninsula amargas consequências; inutilizava a tão pre-
parada intervenção para reconquista, á qual faltaria uma
base de operações; impunha-se á confiança das Provincias
Unidas e conquistava a gratidão de Montevideo, facultando-
Ihe uma autonomia radical que a diplomacia suasória da
corte do Rio trataria mais tarde de converter n'uma reen-
corporação, denunciando e especulando com o perigo de uma
absorpção da parte de Buenos Ayres.
A' Hespanha era que não podia convir o jogo e por
isso intimava Casa Flores ao gabinete portuguez (i), que
a este incumbia a policia do território occupado. *'Cabe a Sua
Magestade Fidelíssima manter e conservar a tranquillidade
e segurança das pessoas e bens d 'esses habitantes até que.
(1) Notas cie 1 e de 5 do Novembro de 1819, no Arch. do Min.
das Rei. Ext.
666 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
estando ajustadas as desavenças entre as duas cortes de
Hespanha e de Portugal, se proceda a executar o que houver
sido combinado. " A advertência do diplomata hespanhol
dava d'este modo completa razão á argumentação dos plenipo-
tenciários portuguezes na Europa, sobretudo depois que
Palmella collocara a questão sobre os fundamentos de uma
mais hábil dialéctica, conseguindo transformar por inteiro a
attitude dos representantes das potencias medianeiras inves-
tidos das suas funcções quasi arbitraes, a qual passou de sym-
pathica á Hespanha a ser sympathica a Portugal.
Como Casa Flores reclamasse uma resposta decisiva e
satisfactoria, Thomaz António, que geria a pasta dos Ne-
gócios Estrangeiros, a deu muito geitosa ( i ) , pondo em
relevo aquella justiça que por fim se via assistir a diplomacia
portugueza, e no mais taxando de imaginários os temores
manifestados nas duas notas hespanholas. Os próprios legiti-
mistas da Banda Oriental eram que espalhavam boatos ater-
radores e, naturalmente envaidados com a próxima chegada
da real expedição, chegavam a provocar os soldados portu-
guezes, que por esse tempo estavam ligando seus movimentos
para atacarem o acampamento de Artigas em Passo de
Arenas e a villa do Coelho (2).
A actividade bellica das duas parcialidades permanecera
bastante adormecida até então n'esse anno de 1819, conser-
vando-se es Portuguezes como que entorpecidos nas suas po-
sições e acantonamentos (3) e Artigas parado no mesmo
quartel-general de Ervidero (onde se encontrava quando
Lecor abrio a campanha de 181 6), depois de se ter sangrado
para fomentar a rebellião e pelejar em Santa Fé contra Bue-
(1) Nota de 8 de Xovembro de 1819, ibidem.
(2) Corresp. de Maler, no Arch. do Min.dosNeg.Est.de França.
{3) Officio de Maler de 30 de Março de 1819.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 66?
nos Ayres, n'um apoio systematico do espirito provincial em
rebelde desafio ao centralismo unitário.
A approximação de Artigas produzio todavia o resul-
tado contrario da celebração de um armisticio entre a ca-
pital das Provincias Unidas e os insurgentes de Santa Fé
como preliminar da pacificação geral, para tratar da qual se
aguardavam os deputados que o caudilho se compromettera
a mandar. A publicação simultânea em Buenos Ayres da
Constituição das Provincias Unidas arredava de vez o pro-
jecto de Garcia de sujeição ao Brazil, e até a politica de boa
visinhança cara a Pueyrredon recebia um duro golpe com a
resignação do director, a quem substituio Rondeau, nascido
em Montevideo e filho de Francez ( i ) .
Contra Rondeau logo entrou a intrigar Sarratea,
mesmo a meio dos preparativos de defeza contra a decan-
tada expedição de Cadiz. Entretanto, pelo fim do anno, de-
vorado pelo ciúme autonomista, o caudilho uruguayo termi-
nava o simulacro das suas negociações de São Lourenço, se-
questrando todas as mercadorias e propriedades de cidadãos
de Buenos Ayres que se encontravam na margem oriental do
Prata, e congregando na baixada de Santa Fé, por um no-
tável esforço, dous mil e quatrocentos homens sob as ordens
do seu immediato Ramirez, afim de recomeçar a guerra con-
tra o governo das Provincias Unidas (2).
Desde 1818, comtudo, que Maler dava como critica a
situação de Artigas, a qual teria sido desesperada, segundo
a opinião do Correio Braziliense, si não fosse a falta de
(1) A mudança no alto pessoal governativo de Buenos Ayi-es
foi commuBicada a Lecor por mensageiro especial, um tenente-corònel
de artilheria, e transmittida a Dom João VI em cartas que lerou um
navio adrede despachado para o Rio.
(2) Con-esp. de Maler, no Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
668 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
postos ao longo do Rio da Prata até a foz do Uruguay e
pela margem d'este rio acima até ás Missões, quando não pelo
Paraná; tanto para obstarem ás irrupções das pequenas par-
tidas de rebeldes, como para forçarem Artigas, sob pena de
se ver cortado em suas communicações, a retirar-se para a
outra banda do rio.
A partir de certo tempo, porém, estava de preferencia o
interesse com a discussão diplomática do que com as opera-
ções militares. Fizera-se evidente que, coin os factores em
acção, estas já não alterariam mais o resultado alcançado: a
Banda Oriental prestes passaria a ser a Provincia Cisplatina
da monarcbia portugueza. O debate politico offerecia no
emtanto ensejo para raras virtuosidades de argumentação
que, si não conseguia ser decisiva, offerecia, pelo menos,
muito maior seducção.
A lógica do desembargador Thomaz António espraia-
va-se, já com um tom festivo, na sua referida nota ao minis-
tro d'Hespanha: "Sendo singular que de Buenos Ayres pro-
testão que S. M. F. não deixe a Praça: os do Cabildo e vi-
sinhos instão pelo mesmo: e S. S.- agora também declara
os sentimentos dos Espanhoes; tendo todos o temor, de que
as Tropas Portuguezas se retirem; e vem a ser só na Europa
por fatalidade onde se suppõe, que a occupação he huma vio-
lência, e não hum beneficio "
Respondendo directamente á increpação de acalentar a
corte do Rio designios de formal annexação do território
occupado, ajuntava o ministro de Dom João VI: ''Entre-
tanto pode o abaixo assignado asseverar a S. S.- que S. M. F.
não tem nenhum Tratado secreto, nem jamais o tem per-
mittido aos seus Ministros, Que tendo procurado com a sua
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 669
occupação o fim de socegar aquelles Habitantes, não os ha
de desamparar, nem deixar em anarchia" (i).
A replica de Casa Flores é de i8 do mesmo mez de
Novembro (2) e coUoca a questão nos seus verdadeiros ter-
mos para o governo hespanhol: "O geral dos habitantes
d'essa digna cidade (Montevideo), cujos sentimentos de fi-
delidade ao seu soberano legitimo são bem conhecidos, mesmo
quando se acham reprimidos pela facção sediciosa, solicita
que as forças portuguezas os não abandonem sem defesa ao
furor e ás intrigas dos revolucionários; mas não deseja e não
pede que a praça não seja restituida ás auctoridades que o
seu Augusto Soberano destinar para tal fim. Por idêntica
razão esse é igualmente o desejo dos Hespanhoes como S. Ex.-
os denomina, sem que seja possível perceber por todo o se-
guimento da Nota de que classe de Hespanhoes se trata, pois
que todos seus habitantes são hespanhoes, excepção feita dos
forasteiros que alli residem."
A contenção hespanhola fora aliás constante para que a
corte do Rio conviesse em que lhe competia devolver a coló-
nia dominada pelas armas portuguezas, logo que o exigisse
o monarcha que tradicionalmente sobre ella exercia sua ju-
risdicção. A nota de D. José Pizarro, ministro dos negócios
estrangeiros de Fernando VH, ás cinco potencias medianei-
ras, em data de 20 de Novembro de 181 7 (3), tratara ex-
plicita e demoradamente d'este ponto, por elle qualificado
de eixo da questão. Eram as seguintes suas palavras: "A
entrega ou não entrega do território pode bem ser um facto,
mas a faculdade de occupal-o e a prompta annuencia no de-
volvel-o são verdadeiros direitos, ou então um facto legal
(1) Nota cit. de 8 de Novenubro de 1819.
(2) Arch. do Min. das Rei. Ext.
(3) (Papeis avulsos, no Arcti. do Min. das Rei. Ext.
670 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
e indivisível. O gabinete hespanhol não lograria comprehen-
der o valor de uma propriedade e de uma soberania, cujo
exercido pudesse ser tornado condicional Uma devolu-
ção de território sem a declaração de soberania seria na ver-
dade alguma cousa de effectivo : deixaria porém a posse
n'um vago, n'uma ince-rteza penosa e perigosa aos olhos da
justiça, e da mesma forma uma soberania sem a previa se-
gurança da devolução ou da posse por effeito da reclama-
ção do legitimo soberano, uma soberania cuja funcção fosse
ainda objecto de duvida, em que restaria o que discutir e
estivesse dependente da acceitação ou recusa das condições
apresentadas da parte de quem não é o soberano e a quem
cabe devolver o território, seria, para começar, um contra-
senso incompatível com a essência da própria soberania: não
condiria com a linha de dignidade das duas Altas Partes,
e deixaria o fundo da questão n'uma situação ainda mais
intricada e arriscada do que o estava antes."
Desde 1817 no emtanto, tinham as cousas mudado bas-
tante de aspecto, e a questão de Montevideo, resolvida de
facto pela invasão portugueza, estava em fins de 1819 ago-
nisante para o gabinete de Madrid, quando mesmo elle a
quizesse disputar á morte, e agonisante também para os legi-
timistas e nacionalistas do Uruguay, quando mesmo uns e
outros lhe quizessem insufflar nova vida.
A atmosphera diplomática na corte portugueza tinha-se
visivelmente desannuviado com a chegada ao Rio, a 24 de
Outubro de 181 9, do ministro Thornton, com caracter pro-
visório de embaixador (i). O Inglez como que trouxera
(1) No mesmo anno, a 23 de Setembro, chegara de Falmoutli,
no paquete inglez, o novo encarregado de negócios da Áustria Ma-
reschall, para substituir o barão de Neven, fallecido de uma pleuresia
e enterrado a 2G de Fevereiro d'esse anno de 1819.
r
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 671
comsígo o reflexo do magnetismo exercido por Palmella
sobre o gabinete britannico. Em Londres e no continente tra-
tara o plenipotenciário portuguez de fazer descarregar sem
estrépito nem estragos a electricidade accumulada no hori-
zonte politico, felizmente mais circumscripto do que o hori-
zonte cósmico, e magicamente alcançara que no firmamento
europeu se desenhasse para o seu paiz o arco-iris da concórdia
in*ternacional.
Os representantes estrangeiros no Brazil, que todos
andavam beliscando o gabinete do Rio, tiveram que mudar
correlativamente de m^odo, e a transição determinou-a o novo
ministro inglez com a decisão própria da diplomacia britan-
nica. Quando os demais ministros e encarregados de negócios
trataram de se agrupar em redor de Casa Flores para intima-
rem, no sentido das conveniências hespanholas, que a eva-
cuação de Montevideo antes da chegada da expedição de
Cadiz constituiria uma anticipação dos resultados das nego-
ciações em andamento na Europa e portanto envolvia uma
falta de consideração ás potencias medianeiras, recusou
Thornton associar-se á manifestação collectiva.
Não fazendo de resto mais do que applicar as máximas
anteriores da politica do seu governo, avessa a annexações
portuguezas e sympathica á libertação colonial do trafico
commercial, elle declarou não comprehender porque havia
de ser o acto da evacuação mal interpretado pelas referidas
potencias, tanto mais quanto as negociações na Europa com-
portavam tantas delongas, não parecendo razoável que
delias ficasse inteiramente dependente o andamento lo-
cal dos negócios. Além de que qualquer acção diplomá-
tica collectiva, concertada no Rio, presuppunha de facto
e com certeza a maneira pela qual as potencias maiores
672 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
encarariam afinal e definitivamente a questão, nenhuma ra-
zão existia que devesse impedir os Portuguezes de reporem
as cousas no primitivo estado, si tal era sua vontade. O Bra-
zil, observava ainda o ministro britannico, estava na obriga-
ção de ter com a republica de Buenos Ayres as contempla-
ções que lhe suggerisse a politica, e o plenipotenciário portu-
guez em Pariz reconhecera os erros commettidos pelo seu
governo em todo esse negocio: nada mais justo do que per-
mittir a occasião de serem elles reparados.
O ministro russo Thuyll ponderou na reunião que en-
tregar a praça occupada aos inimigos de S. M. Catholica em
vez de entregal-a ás forças de S. M. Catholica, era post jul-
gar, não prejulgar as cousas, mas Thornton se não deixou
convencer e persistiu na sua attitude, o que levou seu collega
a dizer depois que o embaixador de S. M. Britannica pare-
cia ter em mente que uma guarnição ingleza poderia perfei-
tamente substituir em Montevideo a guarnição portugueza
até a chegada das forças hespanholas. E não estava com isto
Thuyll muito longe de acertar, si bem que não fosse de na-
tureza a enganar potencia alguma a razão, aventada para
tal caso eventualmente, de mais depressa dever uma guarni-
ção ingleza entregar a praça occupada ao seu legitimo sobe-
rano, mantendo entrementes a ordem, motivo de todas as
preoccupações.
Os partidários da antiga metrópole continuavam a agi-
tar-se na Banda Oriental, pois que informava então Maler
( I ) que Lecor fizera entrar em Montevideo trez regimentos
e prender iio realistas, entre elles officiaes superiores, con-
duzindo-os para bordo de um transporte portuguez que os
levou para Santa Catharina. A violência tinha de certo poí
(1) Oíficio de 18 de Dezembro de 1819.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 673
fim ceder, no caso de evacuação do território pelas tropas
portuguezas, o campo livre aos rebeldes afim de se installa-
rem no poder sem receios. Lecor era o primeiro mesmo a
mandar dizer que a lista dos presos fora organizada pelo
Cabildo, de parcialidade revoltosa.
A' nota de queixa de Casa Flores respondeu Thomaz
António que o Rei dera ordem de carregar de novo os ac-
cusados para Montevideo, no intuito de serem ouvidos e jul-
gados por um conselho de guerra, ficando sujeita ao monar-
cha a deliberação do tribunal militar e dando-se ao governa-
dor de Santa Catharina faculdade para conceder áquelles
que o desejassem, permissão de virem para o Rio de Janeiro.
O manifesto é que, quando as grandes potencias tives-
sem continuado a sustentar a Hespanha, o gabinete de Ma-
drid pouca vontade exhibia de entrar n'uma lucta armada
com Portugal, que elle bem sabia ser mais forte na Ame-
rica, onde assentara permanência a monarchia. Tampouco
ignorava o governo hespanhol que a corte do Rio podia van-
tajosamente responder no Novo Mundo a qualquer ataque
castelhano na Peninsula: bastava-lhe favorecer material-
mente a emancipação de todas as colónias sublevadas, pen-
dente ainda o desenlace do conflicto.
Comprehendia no emtanto o gabinete de Madrid que
este desforço não estaria no interesse do regimen monar-
chico, que a corte do Rio era única a encarnar na America
( I ) ; por conseguinte que a vingança corria o risco de redun-
dar no próprio prejuizo de quem assim a exercesse. Tão
bem presentia aliás Dom João VI o perigo do contagio que.
íl) "Por meio dVllc ÍEl-Hei do Brazil), escrevia o abl^ade de
Prcdt, preservou a Realeza na America um ponto de apoio, com um
representante ; e os thronos da Europa lhe devem, o não haverem ali
pei-dido toda a similhança de suas institulçoens."
674 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mesmo antes da revolução de 1817 lhe dar o rebate e de-
monstrar que sua presença no paiz não constituía sufficiente
obstáculo á explosão de idéas subversivas e separatistas, deli-
berara não sahir do grande theatro de agitação revolucio-
naria, a qual, com o despotismo de Bonaparte primeiramente
e depois com a colligação das monarchias de direito divino,
parecia ter emigrado da Europa para a America.
Na Europa havia sido ao Rei de Portugal útil e avisado
escapar á tormenta estrangeira; na America era indispensável
ao Rei de Portugal e Brazil affrontar de pé a borrasca na-
cional pois que, conforme prophetizava em 181 7 o abbade
de Pradt: "A presença d'El-Rey no Brazil é a verdadeira
segurança que tem a Casa de Bragança n'aquellas regioens,
e a sua mudança seria a sua terminação. El Rey sahindo dali,
deixaria a independência na sua capital desertada."
CAPITULO XVII
A DIPLOMACIA DE PALMELLA NA QUESTÃO DE MONTEVIDEO
A melhor parte da primeira missão diplomática de Pal-
mella em Londres foi dedicada á questão de Montevideo,
da qual entretanto tratava em Madrid o seu antigo compa-
nheiro do Congresso de Vienna Saldanha da Gama (i),
alli acreditado a partir de 1817. Em Outubro de 18 16 as-
sumiu elle o seu posto na corte de Saint James (2), en-
tregando credencial de ministro á espera de saber que cara-
cter teria de futuro o representante britannico na corte do
Rio, isto é, si haveria reciprocidade para a sua credencial
de embaixador, que guardava de previsão. Em fins de 181 7
foi Palmella nomeado ministro dos negócios estrangeiros no
Brazil, com ordem porém de permanecer na Europa até se
ajustarem as desavenças entre os governos portuguez t hes-
panhol por motivo da occupação da Banda Oriental.
(1) o coade de Porto Santo foi mais tarde, em Lisboa, ministro
de estrangeiros de Dom João VI, pouco antes do falIecimeTito do mo-
marclia.
(2) Cypriano Ribeiro Freire teve suas audiências de despedida
em fins de 181G.
678 DOM JOÃO VI NO BllAZIL
Sob a direcção do atilado estadista, a legação de Lon-
dres logo tomou um aspecto diverso no que tocava á gerência
dos negócios: tornou-se interessante ao mesmo tempo que
pratica. Palmella era o que os Inglezes chamam a bom di
plomatist, tendo a visão clara das cousas, occupando-se si-
multaneamente das mais variadas questões, nenhuma jul-
gando inferior á sua capacidade e pouco merecedora do seu
desvelo, sabendo tomar sem hesitar as providencias urgentes
sem deixar de consultar o governo remoto quando fosse
caso para tanto, acudindo a todas as reclamações sem per^
der a fleugma fidalga, trazendo o serviço completamente em
dia e sabendo expor os acontecimentos e offerecer os argu-
mentos n'um estylo simples, fluente, lúcido e directo, sem
elegância litteraria mas com uma nota inconfundivel de dis-
tincção, e geralmente com um sabor agradável de verna-
culidade que de quando em vez adulteravam estrangeirismos
flagrantes (i), originados na educação e longa residência
fora de terras portuguezas.
Palmella encontrou a questão posta nos seguintes ter-
mos: a Hespanha protestava fortemente contra a expedição
portugueza ao Rio da Prata, que tampouco merecia o apoio
sequer condescendente da Grã Bretanha, o que não signi-
ficava, no dizer de um dos officios reservados do repre-
sentante de Dom João VI em Londres, que o governo in-
glez se não mostrasse depois da guerra de 1 8 12-14 com os
Estados Unidos muito menos propenso a favorecer a causa
dos Hispano-Americanos.
Lord Castlereagh puzera-se mesmo de franco accordo
com Fernan Nufiez, n'este sentido dera suas instrucções ao
(1) Assim encontra-se na sua corresponcleiKiia oíficial majori-
(l(ulc por mnioria, ajornar por adiar, cifra por raonogramma, etc.
DOM JOÃO VI XO BRA2IL 679
encarregado de negccios no Rio e fallara até em fazer in-
tervir as potencias maiores afim de obrigarem a serem man-
tidos os tratados existentes. Secundava pois inteiramente o
gabinete britannico os esforços da chancellaria madrilena,
que tendiam ao resultado de tornar arbitras da situação
as potencias quasi todas que formavam a Santa AUiança, não
este conjuncto federativo da reacção.
Palmella, comtudo, não desanimou. Como bom diplo-
mata, que nunca perde a esperança de achar uma solução e
possue uma natural inclinação para ver ou pelo menos para
descrever as cousas mais complicadas sob um disfarce côr
de rosa, escrevia elle a Aguiar ( i ) que se poderia experi-
mentar fazer pender a balança para o outro lado e manifes-
tar-se ainda a favor de Portugal alguma potencia, "alegando
por exemplo o perigo que se segue para o Brazil da declara-
ção da independência e principios jacobinicos das Provindas
limitrophes Espanholas; a injustiça com que a Hespanha,
que as não domina nem as pode sujeitar, exige de nós que as
respeitemos; as pretenções mais justas, que podemos fazer
valer, para arranjos de limites; os sacrifícios em que, a esse
respeito, poderíamos consentir para indemnizar a Espanha ao
norte do Amazonas; a escandaloza retenção de Olivença
pela Espanha; e a injustiça de quererem intervir, para nos
obrigar forçadamente a huma restituição, aquelas mesmas
Potencias que se contentaram só de boas Palavras quando
se tratou da nossa reclamação de Olivença."
O essencial, n'um caso de arbitramento, parecia a Pal-
mella ser — porquanto na espécie era vantajoso a Portugal
— não circumscrever o seu objecto, mas amplial-o para diri-
(1) Officio reservado de 20 de Novembro de 181G, no Arch. do
Min. das ReJ. Ext.
680 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mir de uma feita as questões de fronteiras entre as duas co-
roas: "Tratar não só o fundo da questão da occupação de
todo o território do Rio da Prata por Portugal ou por Es-
panha, pois essa he huma questão de justiça em que não te-
riamos bom partido, mas a questão subsequente de hum ar-
ranjo futuro e estável de h*mites que seria de dezejar que pu-
déssemos levar até á linha do Rio da Prata."
Nem esquecia o ministro de Portugal um lado mais
geral ou pelo menos mais europeu, em todo o caso mais po-
litico da questão, que era o dos inconvenientes contidos em
possiveis futuras intervenções da Santa Alliança, exercendo
uma influencia irresistivel sobre todo o mundo: **Hum
escrúpulo que, com justiça, poderia occorrer, he o de reco-
nhecer a espécie de Dictadura assumida pelas cinco Poten-
cias, esse escrúpulo porem pareceme menor seguindo o plano
da Espanha de as pedirmos voluntariamente por arbitras, do
que esperando, como o propoz a Inglaterra, que Elas mesmas,
sem serem chamadas, se metam em nos dictar a Ley."
A Hespanha de resto, ainda que solicitando sua media-
ção, não tinha vontade de admittir a referida dictadura.
Intencionalmente o gabinete de Madrid reclamara a arbi-
tragem de quatro somente das cinco potencias maiores; ex-
ceptuara de propósito a Prússia "para não reconhecer o Tri-
bunal Supremo que estas Potencias parecião ter querido es-
tabelecer depois da primeira Paz de Paris" (i).
Na sua primeira entrevista com lord Castlereagh, rea-
lizada nos últimos dias de 1816, apoz a entrega da creden-
cial, por haver o ministro dos negócios estrangeiros estado
algum tempo fora — em Mount Steward, na Irlanda —
Palmella apontara o absurdo de querer a Hespanha obstar á
(1) Officlo reservado de 4 de De^zembro de 1S16, ihidemi.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 681
intervenção portugueza em territórios sobre que não pos-
suía auctoridade senão de nome, sem meios de obrigar os
insurgentes a respeitarem o território brazileiro. "Supondo,
disse eu, que os Insurgentes tenhão como creio commettido
hostilidades no Rio Grande, não tem o Governo do Brazil
senão a escolha de as sofrer com paciência, o que não pode
exigir-se, ou de tratar com os mesmos Insurgentes, o que
ofenderia ainda mais a El-Rey de Espanha, ou finalmente
de assegurar pela força das armas a tranquilidade das nossas
fronteiras" (i).
Portugal atravessava porém em Inglaterra uma má
quadra de opinião. Wellington, cuja influencia era poderosís-
sima então nos conselhos da coroa britannica, também se
mostrava muito infenso á expedição brazileira do Rio da
Prata. A' má vontade do general victorioso não seria cer-
tamente alheio algum resentimento pela insistência com que
a Regência do Reino — n'este ponto ajudada pelo marechal
Beresford, marquez de Campo Maior — reclamava por in-
termédio de Palmella para o exercito portuguez, que tão
corajosamente se batera sob as ordens supremas do marquez
de Torres Vedras (2), a parte que lhe competia nos despojos
da guerra. Estes tinham sido pelo Parlamento britannico
convertidos em moeda corrente, mandando-se abonar ao
exercito nacional inglez uma somma julgada equivalente
áquelles despojos: d'essa somma uma boa parte coubera a
Wellington, que d'ella não estava disposto a desprender-se.
A causa de Portugal andava por esse tempo quasi jul-
gada, ou melhor condemnada de antemão. A nota de Har-
denberg a Pozzo di Borgo, em resposta ás informações pres-
(1) Officio reservado de 1 de Janeiro de 1817, ibidem.
(2) Titulo portuguez com que fôra agraciado Wellington.
D. J. — 43
V
682 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tadas pelo diplomata russo á chancellaria prussiana — que a
Hespanha não deixara afinal de convidar igualmente para
intervir como mediadora, pensando judiciosamente melin-
dral-a com a exclusão — assim se expressava a 31 de Janeiro
de 1817 (i): "Si le Portugal croyait devoir cette mesure
à sa súreté afin d'empêcher la contagion des maximes et des
principes révolutionaires, il devait avant toutes choses de-
mander Tacquiescement de TEspagne, et s'il voulait, en
occupant provisionnellement la Province de Buenos Ayres,
rendre service à TEspagne, il devait le lui déclarer d'une
manière positive, et Tengager á y consentir, car aucun Etat
n'a le droít de rendre service à un autre malgré lui et au
détriment de ses droits."
Hardenberg accrescentava que era todavia preciso ou-
vir as explicações portuguezas a respeito, pedindo as po-
tencias medianeiras ao governo de Dom João VI uma jus-
tificação franca e amigável do seu acto. Por isso Palmella,
na falta de instrucções do Rio para o caso, preparou um ma-
nifesto provisório de que dá conta no seu officio reservado
de 9 de Abril (2).
Dos esforços da Hespanha e da benevolência para com
ella da Santa Alliança nasceu a nota conjuncta ao marquez
de Aguiar (3) de 16 de Março de 181 7, já uma vez men-
cionada, approvando a attitude moderada e prudente do ga-
binete de Madrid em não recorrer á força como lhe seria
(1) Corresp. de Palmella, no Arch. do Min. das Rei. Ext.
(li) Despachos c Correspondência do Duque da Palmella, I-ishoa,
1851. Tomo I.
(3) Barca era o ministro de estrangeiros deside começos de
1816, mas a correspondência da legação em Londres continuara diri-
gida a Agui£:r, so principiando a ser endereçada a Barca pouco antes
d>lle falleeer em Junho de 1817. .já fallecido também Aguiar. A nota
conjuncta acha-se no primeiro dos quatro tomos dos Despachos e Cor-
respondendo.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 683
de razão e de justiça, e acceitando o encargo da mediação por
esse governo pedida para evitar o rompimento que estava
no interesse de todas as potencias européas arredar. Castle-
reagh informou Falmella de que a alludida nota fora muito
modificada por influencia da Inglaterra: *'pois que a idéa
de algumas das potencias fora de nos ameaçar, em termos
claros, com a guerra, e de encarregar os seus Ministros no
Rio de Janeiro de exigirem do nosso Governo cathegorica-
mente a evacuação do território hespanhoL"
Ainda assim reputou Palmella descabidos os termos da
nota collectiva em questão, sobre ella escrevendo a Ester-
hazy, embaixador d'Austria em Londres, que "os plenipo-
tenciários alli prejudicam a questão antes de terem recebido
as explicações que pedem e copiam inteiramente as phrases
de que usam os Ministros hespanhoes nos manifestos que
apresentaram ás potencias alliadas; " ( i )
A' medida que se aquecia o zelo apparatoso da Rússia
— do Czar partiu até, ao que se diz, o primeiro conselho
do recurso á mediação da Santa Alliança — pelos interesses
hespanhoes, era natural que abatesse o ardor anti-portuguez
e bastante postiço do gabinete britannico e que arrefecessem
as relações entre as cortes de Londres e de Madrid, tornadas
pelas circumstancias mais calorosas. Por outro lado o enlace
imminente do Principe Real Dom Pedro com a filha do
Imperador dAustria não deixava de ir exercendo seu ef-
feito sobre o modo por que o Império do Danúbio encarava a
situação portugueza. As instrucções mandadas ao principe
(1) Despaclios e Correspondência, Tomo I. São. convom notnr,
muito escESsos os documentos officiaes que n'est;i collecção se encon-
tram sobre a primeira missão de Palmella em Londres, avolumando os
particulares sob a forma de cartas ao conde de Porto Santo, com refe-
rencias miudss aos acontecimentos que se iam desenvolvendo.
684 DOM JOÃO VI NO BRAZTL
Esterhazy e por este confidencialmente mostradas -x Pal-
mella — que naturalmente se apressou em relaLar tudo ao
seu governo ( i ) — rezavam claramente 'que o gabinete de
Vienna não considerava a reclamação do de Madrid senão
como hum convite para intervir como mediador nas suas
dezavenças com o nosso e que em caso nenhum pretende as-
sumir o caracter de alliado da Espanha se a contenda se não
terminar amigavelmente."
Demais, a retrocessão de Olivença era indirectamente
favorecida pela Áustria porque, por motivo de ter a Rainha
da Etruria ficado no Congresso de Vienna sem compensa-
ções territoriaes para os dominios de que fora despojada por
Napoleão, a Hespanha não assignara até então o tratado ge-
ral alli accordado. Agora, segundo communicava Metternich
a Esterhazy, pensava a Áustria ceder em favor d'aquella
Princeza sem reino, e de! séu filho, a reversibilidade do du-
cado de Parma depois da morte da archiduqueza Maria
Luiza, "devendo entretanto o Estado de Luca pertencer á
Raynha da Etruria e ser reunido á Toscana quando se ve-
rificasse a reversibilidade acima annunciada."
Uma vez que a Hespanha adherisse ás decisões do Acto
Geral de Vienna, Olivença volveria a ser portugueza e, rea-
lizado o ajuste dynastico lembrado pela Áustria, ficava Pal-
mella livre do seu receio de que, no caso de ataque da Hes-
panha contra Portugal por causa da conquista de Montevi-
deo, lograsse a Rainha da Etruria realizar mais do que lhe
promettera Napoleão por occasião do tratado de Fontaine-
bleau. Nem se importaria a Inglaterra em extremo com a
transferencia da coroa portugueza, dos Braganças para esse
(1) Officio reservado de 14 de Março de 1S17, ao Arch. do
Min. (las Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 685
ramo dos Bourbons, porque para os políticos britannicos o
essencial era contarem uma monarchia em Portugal e não
uma ficção de governo representativo, sob a forma então exis-
tente de uma delegação muito limitada da soberania absoluta.
Preferiria o gabinete de Saint James, é evidente, que
continuasse a antiga, tradicional dynastia, mas comtanto que
estivesse directamente representada, quando não pelo pró-
prio monarcha, pelo Príncipe herdeiro. O regresso de Dom
João VI, confessava-o Castlereagh, era cousa difficil, at-
tento o descontentamento que necessariamente se seguiria no
Brazil a esse acto, o qual pareceria mesmo desairoso em face
da recente revolução em Pernambuco: nada porém obstava
a que Dom Pedro fosse governar Portugal.
Foi em Junho de 1817 que Palmella ouviu da bocca do
Secretario d'Estado dos Negócios Estrangeiros ( i ) a expres-
são d 'esse desejo, cuja realização a conspiração de Gomes
Freire marcava com o rotulo de urgente e indispensável. A
ausência do soberano ou do seu lugar-tenente significava a
paralysia de um membro da "republica européa". A presença
do Principe Real, como presidente do conselho de regência
do velho Reino, dispensaria o tedioso recurso para o Rio de
Janeiro nas negociações diplomáticas relativas a Portugal e
não mais ficariam as rodas da administração interior impe-
cicias (expressão textual de Palmella) em razão da distancia
a que se achavam da mola real.
Na conferencia que a semelhante respeito teve com
lord Castlereagh, Palmella aproveitou habilmente o ensejo
para ponderar que a providencia suggerida não seria suffi-
ciente para levantar Portugal do seu profundo abatimento,
mais accentuado apoz as ultimas sangrias, e que, si inadia-
(1) Ofíicio secretíssimo de 9 de Jimho de 1817, ibidem.
686 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
vel se tornava curar as feridas portuguezas e animar o com-
mercio decadente e a industria moribunda, nada de melhor se
poderia experimentar do que alliviar o paiz dos males do
tratado de 1810, reconhecendo a Grã Bretanha quanto
"convém aos seus próprios interesses não descontentar o
povo portuguez com o peso da sua alliança."
Em Junho de 18 17 a situação de facto se aclarara para
a corte do Rio. Tinham chegado á Europa as explicações do
governo portuguez, ahi produzindo favorável impressão no
conceito ordinariamente frio do seu ministro em Londres;
a boa impressão devendo sobretudo ter sido causada pelas
noticias dos successos militares dos Portuguezes, culminados
na occupação de Montevideo. O caso é que a Inglaterra aca-
bara por desistir de querer impor a mediação e que a Áustria
se prestara a seguil-a. Já a 9 de Abril Palmella reconhecera,
atravez de todas as recriminações de Castlereagh, a natu-
reza indissolúvel do laço que prendia a Portugal a Grã Bre-
tanha: "Julgo poder mesmo assegurar a V. Ex.-, que, no
caso de uma aggressão por parte da Hespanha, haveria toda
a probabilidade de obtermos do Governo Britannico soc-
corros indirectos, como armas e dinheiro; mas, certamente,
a menos de apparecerem novas combinações, incalculáveis
por agora, nas relações politicas das potencias da Europa,
não devemos esperar que a Grã Bretanha abrace directa e
abertamente a nossa defeza" (i).
Pouco depois, em Junho, mais se accentuavam ainda
suas disposições optimistas, de um optimismo que nunca dei-
xava de ter fundamento solido. "Como quer que seja, a
questão poderá de ora em diante tratar-se e concluir-se mais
brandamente do que começou. A Rússia mesmo, que tanto
(1) Off. cit. nos Despachos e Corrcsponãcnciu, Tomo I.
t)OM JOÃO VI NO BRAZIL 687
fogo pareceu tomar ao principio, tem agora, se pode julgar-se
pela linguagem dos seus Ministros, deitado, para uzar de
huma expressão vulgar, bastante agua na fervura, e pare-
ce-me n'huma palavra, que mediante alguma moderada con-
descendência da nossa parte, não devemos recear que nos
obriguem, ou a evacuar desairosamente o território que as
nossas tropas tem occupado, ou a entregallo á Hespanha, a
não ser em consequência de algum ajuste reciprocamente
vantajozo com essa Potencia" (i).
Sabendo perfeitamente que se achava n'um paiz de
opinião publica, Palmella ao mesmo tempo que tratava de
serenar o governo britannico, occupava-se de explicar á na-
ção britannica as razões de proceder do governo portuguez,
para isto valendo-se do excellente conducto do Times. Nas
expressões de um dos seus communicados á grande folha,
aquelle proceder era singelamente o do varão cauteloso que
vendo a casa do visinho presa das labaredas, tratasse de de-
molir a parte d'ella que pudesse communicar o incêndio á
sua própria casa, coUocando da banda de fora sentinellas
para resguardarem a propriedade illesa do progresso das
chammas. Poder-se-hia em caso tal censurar com justiça o
seu modo de agir ? Teria o dono da casa incendiada direito
de offender-se, achando-se ou demasiado longe ou demasiado
atarefado para apagar o fogo ?
Si a revolução de Pernambuco se prendia ou tinha re-
lações com a do Rio da Prata, como era voz em Londres,
isto só dava razão aos que applaudiam a prudência do mo-
narcha portuguez em assim extinguir o foco de anar-
chia que se abrazava ao pé da sua porta. Ninguém aliás
(1) Officio reservado de 8 de Junho de 1817, no Arch. do Min.
das Rei. Ext.
688 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Ignorava que Artigas, o qual sem eleição se apoderara na
Banda Oriental do poder supremo, praticara depredações
na fronteira brazileira, alistara tropas para invadir a provín-
cia de São Pedro e espalhara proclamações destinadas a
excitar os habitantes das Sete Missões á revolta.
O proceder da corte do Rio não significava apoio á
separação de colónias hespanholas, nem envolvia propósitos
de permanente annexação de qualquer d'ellas. Quando se
annunciou que a expedição do general Morillo, a qual de
repente mudou de destino, se dirigiria para Buenos Ayres,
o governo portuguez dera ordens para lhe serem abertos
os portos brazileiros e abastecida a mesma expedição : mais
do que isso, foi precisamente para auxiliar os Hespanhoes
nessa occasião, que se mandaram vir de Portugal os 4 a
5.000 veteranos.
O caso era porém de todo diverso no que dizia respeito
á própria defeza. Si ao ministério hespanhol agradava deixar
a insurreição enraizar-se nas suas colónias, não lhe assistia
por isso o direito de impedir um Estado estrangeiro de tomar
medidas de anteparo contra esses mesmos insurgentes, que
elle não queria ou não podia sujeitar. O gabinete de Madrid
não tivera paciência bastante para esperar as explicações —
que só pela distancia se demoraram — justificando tamanha
pureza de intenções do Rei Fidelissimo, e levara sua precipi-
tação, reza um dos communicados ( i ) de Palmella, ao
ponto de haver pretendido por vingança metter n'um con-
vento ou recambiar para o Brazil as duas Infantas portu-
guezas, " sendo porém esta proposta indigna repellida com
desprezo pela sabedoria de S. M. Catholica." Igualmente
diligenciara o governo hespanhol acclimar entre as grandes
(1) Times de 7 e 9 fle Junho de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 680
potencias alliadas a idéa de invasão e occupação de Portugal,
como .compensação da perda americana soffrida pela Hes-
panha.
A resposta da embaixada hespanhola á legação portu-
gueza não se fez esperar muito, dada pelo mesmo conducto
da imprensa ( i ) , á qual assim prestavam homenagem go-
vernos dos menos liberaes: é claro que os altos articulistas
se soccorriam de pseudonymos, Palmella do de Um Bra-
zileiro.
A resposta de Fernan Nuíiez deve ser reconhecida
como destra. N'ella se explicava que Artigas não inspirava
ao Brazil verdadeiro terror — o que era talvez exacto; e
que os insurgentes estavam em demasia occupados com dis-
sensões entre si e a guerra cruel empenhada contra os rea-
listas para pensarem em atacar os dominios portuguezes —
o que com certeza era menos exacto.
Si perturbações populares, opinava o correspondente
officioso, si o espirito de sedição ao qual estivesse porven-
tura entregue um Estado visinho, podesse alterar os direitos
do legitimo proprietário, o systema politico ver-se-hia ex-
posto a continuas revoluções e ver-se-hia volverem os tem-
pos em que as nações não conheciam outras leis que não a da
força. Que garantia haveria então contra as tentativas do
poder ?
Que um individuo, vendo a casa do visinho entregue ás
chammas, empregue todos seus esforços para impedir que
o incêndio attinja sua propriedade, nada de mais justo;
mas que, quando o proprietário da casa abrazada corre a
buscar agua ou qualquer outra espécie de soccorro, elle se
aproveite de tão triste occasião para se apoderar da sua for-
(1) Courier de 27 de Junho de 1817.
690 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tuna e bens antes que o possuidor os haja inteiramente aban-
donado, é nada menos do que uma perfídia. Seu dever é apres-
sar-se em fornecer-lhe todos os auxilios que se acharem ao
seu alcance, nunca despojal-o dos seus pertences, sob pretexto
de salval-os ou de assegurar a conservação das suas proprie-
dades.
"Além d'isso, escrevia com emphase o articulista do
Courier, as considerações de utilidade e de interesse parti-
cular não podem supplantar os principios da razão e da jus-
tiça. Nem poderia Portugal, apenas baseando-se no estado
anarchico em que se encontram as colónias hespanholas,
saber, muito menos affirmar que o gabinete de Madrid as
não quer reduzir ou não possue elementos para tanto."
Aquelle estado era antes de lucta que de anarchia, e de
resto a occupação portugueza fora emprehendida sem d'ella
ser mandado aviso expresso e exacto ao legitimo soberano
do território, sem estar pois provado que este o houvesse
abandonado. Constituía um principio perigoso o avançar
que uma rebellião transforma os súbditos em inimigos e que,
em tal caso, o soberano perde seus direitos de mando sobre
os habitantes, tornando-se elles virtualmente independentes,
responsáveis e susceptíveis de aggressão por parte de tercei-
ras potencias. Prevalecendo semelhante principio, a qual-
quer governo seria licito ir tomar conta de Pernambuco, e
mesmo de Portugal si a conspiração de Gomes Freire não
tivesse sido abafada á nascença. Teriam os infiéis portugue-
zes perdido sua qualidade de súbditos, para se converterem
em inimigos do seu monarcha.
O peor porém consistia em que o gabinete portuguez
nunca dera a segurança de que devolveria a colónia: guar-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 691
dará a respeito um silencio equivoco ou somente transmittira
respostas evasivas e mysteriosas. A única, magra, tardia
explicação que existia só fora manifestada porque a corte
do Rio previu ou antes viu imminente a mediação das poten-
cias alliadas em favor da Hespanha.
Também se não devia confundir ou equiparar a oc-
cupação de Montevideo com a de Olivença, porque a d'esta
occorrera em guerra justa, sendo sua acquisição sanccio-
nada por um tratado solemne: tanto assim que os soberanos
representados em Vienna não tinham julgado poderem des-
pojar a Hespanha da praça para restituil-a a Portugal, con-
tentando-se com offerecerem para semelhante fim os seus
bons officios nas negociações amigáveis que se abrissem
entre as duas nações. E disposições amigáveis sempre as nu-
trira a Hespanha, visto que não pensara em invadir e con-
quistar Portugal valendo-se da occasião suggerida, ao
mesmo tempo que temida por Portugal; pelo contrario, so-
mente tratara de fomentar ou activar uma sabia mediação.
Tinha razão o embaixador Fernan Nunez em se não
deixar illudir pelas vagas promessas do governo portuguez,
e em ficar convencido de que os argumentos cavillosos da
corte do Rio só tendiam a disfarçar que ella aproveitava
a distancia a que se achava para dar ensanchas aos seus pla-
nos e proceder de accordo com seus Íntimos designios, o que
na Europa lhe era vedado. A verdade saltava aos olhos
de todos, e ninguém desconhecia que tudo havia sido uma
comedia posta em scena para a realização de uma tradicional
e legitima ambição; a partir do convite inicial de Dom
João VI a Fernando VH para uma acção repressiva conjuncta
no Rio da Prata, até onde o monarcha portuguez queria ex-
tender o seu império brazileiro.
692 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O duque de Richelieu tão bem observava a liberdade de
movimentos que se arrogava o governo portuguez, que es-
crevia por esse tempo ao seu agente Maler as palavras se-
guintes: "A corte do Brazil parece em demasia persua-
dida de que a sua politica poude mudar completamente
com o lugar da sua residência. EUa deveria reflectir que
continua presa á Europa pelos seus dominios territoriaes,
interesses, commercio e allianças de família; que não se for-
talece buscando dotar de maior extensão ainda um novo
Reino ao qual faltam população, industria e todas as artes
geradas pela civilização, e que na sua actual condição de-
veria seu interesse primordial ser o de conservar a paz, ou
por n'ella se lhe deparar uma garantia das suas possessões
na Europa, ou para sem perturbação se occupar dos pro-
gressos de que o Brazil carece" (i).
Não era comtudo menos visivel que a Hespanha perdia
terreno. Quando logo depois da sua tarefa official e officiosa
em Londres, Fernan Nuííez, removido para Pariz — para
Londres foi nomeado embaixador e ahi chegou em Outubro
de 1817 o duque de São Carlos (2) — pretendeu que as
potencias alliadas interviessem entre a Hespanha e suas
colónias para supprimir de vez o espirito insurreccional, não
o escutaram e mandaram a chancellaria madrilena dirigir-se
ás próprias potencias directamente, em vez dos seus repre-
sentantes acreditados na França.
Também, depois de assumir o seu novo posto, mandou
Fernan Nunez aos ministros das cinco potencias alliadas
uma nota tão destemperada sobre a occupação de Montevideo,
(1) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
(2) " Parece, escrevia Palmella a Bezerra a 8 de Outubro, hum
homem moderado e de hum caracter muito mais conciliador e sensato
do que o seu Predecessor, conde de Fenian Nufiez." (Axch. do Min. das
Rei. Ext.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 693
que mereceu que lord Castlereagh mandasse ordem ao em-
baixador Sir Charles Stuart para responder-lhe que aquelle
documento não podia ser tomado em consideração. E' justo
observar que, por occasião d 'esse desabrimento do embaixador
d'Hespanha, não era ainda conhecida a deliberação da corte
do Rio de nomear Palmella para tratar de compor a disputa,
sendo essa nomeação simultânea com a resposta do governo
portuguez á nota collectiva das potencias medianeiras.
Ignorando ainda o rápido desfecho da revolução de Per-
nambuco, Fernan Nunez mettera no jogo o Brazil, expres-
sando o desejo da corte hespanhola de prestar seus bons offi-
cios para que Sua Magestade Fidelíssima gosasse para a
pacificação do Reino americano da mesma vantagem da
intervenção dos alliados. O governo de Fernando VII,
anticipando de alguns annos o sonho de Chateaubriand,
visava pois a nada menos do que a uma extensão do mecha-
nismo da Santa Alliança á America Latina, á garantia por
parte das grandes potencias dos dominios portuguezes e hes-
panhoes no Novo Mundo, "ligando por esse modo, nas
expressões do officio de Palmella para o Rio, o systema
americano ainda novo e vacillante ao systema já estabelecido
da federação européa".
Em Setembro de 1817, ao mesmo tempo que a com-
municação da sua escolha para a pasta dos negócios estran-
geiros e da guerra, chegavam ás mãos de Palmella os plenos
poderes para entabolar a negociação do Rio da Prata com a
corte de Madrid, com mira de encerrar todas as discussões
pendentes; entendendo-se previamente com lord Castlereagh
para concertar "as bazes do systema liberal de commercio
que devemos pretender que a Hespanha adopte para as suas
colónias".
694 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O empenho da corte do Rio era que o seu plenipoten-
ciário tratasse directamente com um plenipotenciário hespa-
nhol adrede designado, quando muito debaixo do influxo da
mediação única da Áustria ou da Grã Bretanha. A D. José
Luiz de Souza, sobrinho de Funchal e predecessor de Sal-
danha da Gama em Madrid, escrevia Palmella sem demora:
"A declaração do reconhecimento seja implicito seja expli-
cito que V. Ex.^ está auctorizado a fazer, dos Direitos € Sobe-
rania de Sua Magestade Catholica sobre o território em que
entraram as tropas portuguezas, aplanará talvez a maior
difficuldade que até agora se oppunha á negociação directa
entre as duas cortes; pelo menos foi esse o primeiro pretexto
que o Governo Hespanhol, creio eu, allegou para recorrer
á intervenção das cortes estrangeiras. Parece-me também que
V. Ex." se poderá servir com grande vantagem do argumento
que rezulta da dignidade e decoro de ambas as corpas, que
certamente perdem algum tanto abaixando-se a reconhecer
quasi como arbitras natas das suas contendas as cinco po-
tencias preponderantes da Europa, e ajudando-as assim, na
tendência que ellas mesmas de per si já não dissimulão, de
erigir a conferencia dos seus ministros em Pariz n'huma espé-
cie de Supremo Directório Europeu", (i)
A Inglaterra favorecia a negociação directa no intuito
de arredar a influencia tussa, a qual ameaçava absorver a
questão, tendo-se tornado predominante em Madrid graças
aos esforços pacientes do conde Tatischeff. Palmella, nave-
gando nas aguas inglezas, queria por seu turno mais que
a negociação com a Hespanha, de que o encarregara a con-
fiança de Dom João VI — o qual não se enganava muito em
julgar competências, só quando as circumstancias podiam
(1) Arch. do Min. das Rol. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZlL 695
mais para determinar a selecção do que a sua perspicácia — ,
se effectuasse em Londres, onde parecia também dever ter
lugar a negociação entre a Hespanha e suas colónias, ainda
mais complicada e difficil.
O pessoal diplomático agitava-se de todos lados no sen-
tido da composição de divergências que, em vez de abran-
darem com o estado chronico que já era o seu, promettiam
tornar-se mais agudas e perigosas do que nunca. O trabalho
das chancellarias verificava-se aquém e além-mar. Para acti-
val-o no Rio de Janeiro partira em meiados de 1817 o novo
ministro hespanhol conde de Casa Flores, no dizer de
Palmella "homem de bem, de um caracter conciliador e de
maneiras agradáveis e serias, porém de engenho não agudo
e de luzes medíocres". ( i ) Só se demorava em seguir o suc-
cessor de Strangford, Thornton, porque o Ministério de
estrangeiros britannico, segundo informava Palmella, " lhe
indicou, que não dezejava que sua mulher ( cujo caracter
altivo e extravagante lhe cauzou desgostos sérios em Suécia)
o acompanhasse ao Brazil. Depois de alguma hesitação
consta-me que se sujeitará á condição que se lhe im-
põem". (2)
Como entretanto a Hespanha concentrasse muitas tro-
pas na fronteira da Extremadura com o fim de intimidar
mais do que ameaçar de verdade Portugal que, pelo que con-
fessavam seus Governadores, não estava então em estado de
resistir-lhe, desfalcadas suas forças com as embarcadas para o
Brazil e muito desorganizado no pé de paz o commissariado,
logrou Palmella afinal obter de lord Castlereagh a promessa
positiva de escrever ao embaixador britannico em Madrid,
(1) Offioio s?croíis.simo de Kl de Jir.ho de 1817, no Arch. do
Min. das Rei. Ext.
(2) Off. cit.
696 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
dando-lhe ínstrucções claras e explícitas para declarar á
corte d'Hespanha *que a garantia de Portugal pela Grã Bre-
tanha subsistia completamente intacta, no momento em que
elle visse que hera necessária tal declaração para prevenir as
hostilidades contra Portugal".
Ficava assim, graças á hábil tenacidade do diplomata
portuguez, revogada a declaração, que lord Castlereagh con-
veio em denominar apressada ou ultrapassando a exacta
interpretação das instrucções expedidas, feita pelo encarre-
gado de negócios Chamberlain no Rio de Janeiro. Tal decla-
ração, de que não era inalterável a garantia dos tratados,
o Foreign Office a havia mandado, conforme admittia
agora, para o caso do Rei se não prestar a dar explicações
satisfactorias sobre a entrada das suas tropas em Montevi-
deo, nem a abrir a esse respeito negociação na forma reque-
rida pelas potencias alliadas.
Não tinham estas entrementes abdicado a sua tarefa,
acabando por ajustar em Pariz um projecto de tratado entre
as duas potencias peninsulares, sobre a base da desoccupação
da margem oriental hespanhola do Prata, ao qual os dous
plenipotenciários portuguezes — a Palmella fora aggregado
n'esta negociação o marquez de Marialva — adheriram a 7
de Outubro de 1818, por lhes parecer o único meio de evita-
rem um rompimento, considerado com sympathia pelos me-
diadores, de preferencia inclinados em maioria ao lado hes-
panhol. Quando isto se passou, achava-se já reunido o novo
Congresso, de Aix-la-Chapelle, onde o proceder portuguez
no assumpto da conquista americana provocou subida satis-
facção, n'elk reconhecendo o Directório europeu um acto de
deferência e um propósito de paz.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 697
De Madrid é que desde logo entrou a partir a resistên-
cia, não julgando o governo hespanhol bastantemente se
guras as garantias offerecidas nem as desistências promet-
tidas. Os representantes na Hespanha das cortes alliadas
tiveram que receber ordens para decidirem o gabinete de
Fernando VII a abandonar sua posição e harmonizar-se com
as vistas dos mediadores e a boa vontade da parte contraria.
Esta era aliás em grande parte dictada pelas circumstancias
da occupação mesma, porquanto a posição de Lecor em Mon-
tevideo, com a campanha sempre assolada pelos bandos
armados de Artigas, que só em 1820 teve que se refugiar
vencido no Paraguay de Francia, e sua inacção em frente ás
partidas de contrabandistas e guerrilheiros estavam desmora-
lizando as tropas reaes e animando a prosecução da lucta,
accrescendo para isto os boatos, baseados na intriga diplomá-
tica de Pariz, de restituição á Hespanha da Banda Orien-
tal.
Pelo acto dos diplomatas portuguezes, em termos mais
pessoaes pelo raro talento profissional de Palmella, que mais
do que ninguém contribuio desde Cadiz até Londres, du-
rante dez annos, para aplanar ao governo do seu soberano
todas as difficuldades que lhe foram suscitadas no tablado
politico europeu, collocou-se Portugal no bom terreno. Com
sua adhesão calculada, pois que o projecto de tratado pro-
posto foi objecto de muitas explicações, muitas modificações
e muitos retoques, foi essa nação que passou a solicitar a
mediação que de primeiro extranhara e repugnara, e a pedir
ás grandes potencias que obtivessem para aquella sua solu-
ção o assentimento hespanhol. E tanto lhes conquistou Portu-
gal as boas graças com sua condescendência não isenta de
dignidade, que Metternich escrevia a Palmella n'uma carta
D, J. — 44
698 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
muito cordial de 21 de Outubro de 1818: "La folie de vos
adversaires a servi la cause du droit que vous avez sçu vous
ménager mieux que n'eut pu le faire Tintervention d'une
cour amie, quelque bienveillante qu'elle puisse être"; e mais
adiante: "Votre attitude politique en attendant est bonne,
et c'est tout ce qu'il faut". (i)
Palmella e Marialva, não tendo sido Portugal convi-
dado para tomar parte no Congresso, como de resto o não
havia sido a Hespanha, abstiveram-se naturalmente de com-
parecer em Aix-la-Chapelle. Saldanha da Gama fora mesmo
escolhido para, com Palmella, tomarem assento como pleni-
potenciários de Portugal, caso a reunião se extendesse além
do circulo restricto do Directório europeu. Não chegou,
comtudo, Saldanha a partir da Madeira, onde se encontrava
e para onde Palmella lhe communicou em carta (2) que
estava disposto a só tentar fazer uso do S€u pleno poder si
fosse a Hespanha admittida á representação no Congresso.
Ficaram, portanto, os diplomatas portuguezes privados
do ensejo de assistirem á iniciação solemne na Santa Alliança
da França expurgada, sóbria, e já libertada da occupação
estrangeira, "para concorrer de accôrdo com as cortes allia-
das á conservação e consolidação do systema que restituio
a paz á Europa, e que he só capaz de assegurar a sua dura-
ção". Palmella e Marialva foram, porém, até B-ruxellas en-
contrar-se na passagem com os representantes que regressa-
vam de Aix-la-Chapelle, especialmente com Metternich, que
não ia parar em Pariz, tomando rumo diverso na volta para a
(1) 'Maço das n(^gociaçõps Palniplla-iMarialv.;!, no Arch. do Min.
das Rei. Ext.
(2) DespacJwê e Correspondência, Toxao I.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 699
Áustria, e exprimira a Palmella o desejo de com elle discor-
rer n 'algum ponto do trajecto mais ao alcance do seu amigo
portuguez.
Valeu a pena a viagem porque Palmella poude ouvir
do chanceller austriaco a informação de que, segundo era de
prever, França e Rússia tinham no Congresso mostrado ten-
dência a favorecerem a Hespanha — Capo d'Istria, dizia Met-
ternich, odeia a Inglaterra e Portugal — , Inglaterra e Áustria
a favorecerem Portugal; ao ponto de Castlereagh annunciar
officialmente que, em presença da annuencia portugueza á
politica de mediação das potencias congregadas, subsistia em
plena força a garantia britannica em prol do Reino Unido de
Portugal e Brazil, a qual assegurava sua independência e
integridade, (i) - %
O Czar, que timbrava muito em ser ou pelo menos
parecer leal e escrupuloso em politica, quando chamada sua
attenção por Metternich e Castlereagh para as intrigas de
Pozzo di Borgo em Pariz e Aix-la-Chapelle e de Tatischeff
em Madrid, affirmara todavia "que não se devia dar credito
a nada do que se referia haver sido proposto em seu nome
á corte de Madrid acerca de hum projecto de alliança sepa-
rada, e que elle declarava traidor (felon) qualquer dos
cinco soberanos alliados que formasse relações com outras
Potencias sem o consentimento e conhecimento das cinco Po-
tencias, e que intentasse mudar as relaçoens que se achavão
estabelecidas actualmente entre elles. Em prova do que, an-
nunciou que ordenaria ao seu ministro em Madrid que em-
pregasse todos os seus esforços para persuadir áquelle Gabi-
(1) Aroh. do Mm. das Rei. Ext.
700 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
nete a confiar-se inteiramente nos conselhos do Gabinete bri-
tannico, ao qual pela sua posição só convinha exercer huma
influencia directa sobre a Hespanha". ( i )
Apezar da renuncia do Imperador Alexandre a diri-
gir o gabinete de Madrid, não se podia por certo esperar
que as potencias alliadas se transformariam de medianeiras
em arbitras, recorrendo á intervenção e empregando os meios
da força ou da comminação afim de obrigarem a Hespanha
a acceitar o projecto por ellas elaborado. Resultava, porém,
para qualquer que acompanhasse a partida, como o mais
claro da situação, qu€ "Portugal ficara só em campo contra
a Hespanha, livre do Perigo de que os mediadores nos amea-
çavão no principio da negociação", e nada tinha mais a re-
ceiar, de grave pelo menos, contando na Europa com a
garantia da Grã Bretanha, e na America com as vantagens
da posição adquirida e superioridade local dos seus recursos.
Deviam ter sido estas derradeiras considerações as que
principalmente determinaram a corte do Rio de Janeiro a
recusar referendar a acceitação por Palmella e Marialva do
projecto de accordo. Não era comtudo unanime, nem talvez
geral no Brazil, a persuasão de que o novo Reino consegui-
ria afinal ficar na posse definitiva da sua almejada e natural
fronteira meridional. O parecer do conde dos Arcos, já
membro do gabinete e muito experiente em assumptos brazi-
leiros pela sua longa estada em postos de alta administração
da colónia, opinava, por exemplo, apezar da occupação da
Banda Oriental, pela fronteira do Jaguarão ao Ibicuhy, ga-
nha em 1801, por occasião do conflicto luzo-hespanhol.
(1) Offido de Piílinolla e do Mci-quez Estribeiro-mor, datado
de liruxfllas aos L'7 do Novembro (\e 1818, no maço cit., ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 701
Palmella, fácil era de descobrir, olhava tanto ou mais
para a situação de Portugal na Europa que na America,
não querendo sacrificar a esta aquella, antes preferindo im-
molar á outra a segunda. Portugal era pequeno e tinha suas
fronteiras seculares: Olivença devia inquestionavelmente
voltar a pertencer-lhe. O Brazil era enorme e tinha umas
fronteiras vagas: as compensações podiam estabelecer-se sem
difficuldade, nada havendo que não possa a diplomacia
alcançar.
Do especial agrado do diplomata portuguez nunca
foi o imperialismo armado de Dom João VI, antepondo elle
á solução violenta, ainda que victoriosa, a combinação que
vinha preconizando de troca de territórios ao sul por terri-
tórios ao norte, a qual tinha para mais a vantagem de fazer
comprar pela Hespanha a questão da fronteira da Guyana,
que Palmella sabia não estar liquidada, apezar de ganho o
ponto essencial, e antevia dilatada e espinhosa. Além d'isso,
alguma cousa que não era para desdenhar: com a facilidade
facultada á reoccupação hespanhola de Montevideo, dava-se
um golpe de morte no governo revolucionário de Buenos
AjTes, cuja visinhança não encerrava ao ver de Palmella
menos perigos que a de Artigas, e não obstante a cordiali-
dade existente algum tempo entre a corte de D. João VI e
o governo das Provincias Unidas, nunca lhe logrou mere-
cer a sympathia, propensa aos aspectos sociaes aristocráticos.
Sem a cooperação de Portugal para a restauração da
auctoridade hespanhola no Rio da Prata, qualquer tentativa
da metrópole ficaria, porém, frustrada, ou pelo menos seria
cem vezes mais difficil. No geral a tarefa em si da recon-
quista era das mais escabrosas. No Congresso de Aix-la-Cha-
pelle, no tocante á mediação, primeiro pedida e depois re-
702 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
jeitada pela Hespanha, com relação a suas colónias suble-
vadas, não se passou de uma discussão platónica de interven-
ção of fíciosa e na pratica vã. ( i )
Ainda assim, tão arriscado parecia á corte do Rio o
problema, que ella própria não fallava claramente em anne-
xação, nem mesmo nas instrucções reservadas dos seus envia-
dos, pretendendo preferir que as Provincias Unidas do
Prata, Montevideo inclusive, fossem erigidas em beneficio
de um Infante hespanhol n'uma realeza, a qual seria um meio
termo entre a reconquista pela metrópole e a independência
democrática. A idéa partiria muito provavelmente do agente
argentino Manoel José Garcia, e na roda de Dom João VI
contava-se de seguro com uma espécie de monarchia tribu-
taria ou satellite como as que Napoleão repuzera em moda,
aliás com tão notável infelicidade, porque das quatro que
creou, a Hollanda de Luiz teve que ser encorporada, as
Duas Sicilias de Murat acabaram por bandear-se contra o
Imperador, a Hespanha de José cavou a ruina dos Bona-
parte, e a Westphalia de Jeronymo não passou de uma ex-
pressão geographica emprestando a dignidade real a um
amável libertino. (2)
Palmella e Marialva reputavam inexequível a pro-
posta d'aquella realeza, sempre que não proviesse directa e
espontaneamente da Hespanha. Bastava que fosse lembrança
de Portugal para não ser acolhida com favor pela outra
parte, que logo lhe adivinharia o interesse. Castlereagh
igualmente, a quem os dous plenipotenciários, depois de
ouvidos os Portuguezes conspicuos na diplomacia que se
achavam na occasião reunidos em Pariz — o conde do Fun-
(1) Corrosp. de ralmella, no Arch. do Mm. das Rei. Ext.
(2) F. Masson, Napolcon et sa Famille, passíw.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 703
chal, Brito, o morgado de Matheus, Gameiro, Reys, etc. —
consultaram confidencialmente bem como a Wellington, foi
de opinião que, para ser viável, a suggestão não devia ema-
nar do Brazil: a iniciativa da monarchia independente do
Prata cabia aos insurgentes, melhor dito ao governo de
Buenos Ayres.
Outrosim hesitariam necessariamente as potencias allia-
das em aconselhar a um soberano que se desprendesse de
parte dos seus dominios hereditários, sem primeiro exhaurir
todos os outros meios de conservar a integridade da sua
coroa. O contrario seria de todo ponto avesso ás doutrinas
da legitimidade. De mais, si a França favorecia o plano,
que já fora de Richelieu, a Áustria e a Prússia (a Rússia, já
se sabe, era toda pela Hespanha) pelas vozes de Vincent e
von Goltz, seus representantes em Pariz, encaravam com
desconfiança o apregoado constitucionalismo da futura mo-
narchia, tendência por outro lado inevitável, caso ella se
tornasse uma realidade, porque, como bem ponderavam Pal-
mella e Marialva, *'os povos do Prata já se tinham acostu-
mado a um governo republicano, posto que desordenado".
Em semelhantes condições de receptividade politica,
é evidente que a implantação, ou antes a transplantação do
absolutismo que na Europa os governos estavam animando
tanto, seria um impossível, não só uma perigosa experiência.
"Ora, commentavam os plenipotenciários portuguezes no
seu officio de 24 de Dezembro de 18 18, (i) se isto acon-
tecer, no estado em que se achão aquelles povos, faltos de
instrucção e cheios de idéas revolucionarias, longe de ser
então a projectada Monarquia hum vehiculo para a pacifica-
(1) Maço cit., no Arch. do Min. das Rei. Ext.
704 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ção, sel-o-ha para a progressão da desordem e da anarchia, e
por consequência um péssimo exemplo para o Brazil".
Pesando tudo isso, decidiram os dous diplomatas portu-
guezes não tornar publica, até nova ordem, a determinação
de recusa de Dom João VI do projecto de tratado das poten-
cias mediadoras. Acontecia que não só estas já consideravam
official a acquiescencia da corte do Rio, pois que a tinham
dado os seus plenipotenciários, como era muito provável a
renuncia do alvitre por parte da corte de Madrid. Ganhava
em tal caso Portugal o beneficio da attitude conciliadora
adoptada, não dando azo a romper-se por culpa sua a nego-
ciação, nem a especular-se mais com a má fé attribuida geral-
mente ao seu governo n'esta questão. Afastava portanto Por-
tugal de si a odiosidade, e em todo o caso lhe ficava sempre
restando o recurso final de uma não ratificação do tratado
quando assignado, pelo commodo motivo de terem seus repre-
sentantes exhorbitado das instrucções recebidas.
N'um longo officio em que expõe com a clareza do
costume as suas idéas sobre a natureza e marcha das nego-
ciações, Palmella abandona um pouco a sua constante frieza,
-mais convencional ainda do que real, para acoimar com bran-
dura a corte do Rio de vacillação, sem querer ver que si
eram vacillantes na forma, não o eram no fundo as suas
instrucções, as quaes tendiam todas a conservar para Portu-
gal a margem oriental do Prata. Essas idéas successivas ou
accumuladas, contrariando-se ou confundindo-se, de grão
ducado, reino autónomo, fronteira defensável, etc, não pas-
savam de contemporizações, continuando a corte portu-
gueza invariavelmente a ligar a proposição de evacuação da
Banda Oriental com a idéa da sua pacificação, invocada
como razão da intervenção e que o governo de Dom João VI
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 705
bem sabia ser irrealizável quasi por outrem e mesmo para
si em extremo difficultosa.
Palmella aliás não acreditava na sinceridade do en-
viado Garcia ao expor á corte do Rio suas idéas monar-
chistas e seus planos de protectorado portuguez sobre todo o
Rio da Prata. Afigurava-se-lhe um meio para os insurgentes
de Buenos Ayres de ganharem tempo e firmarem sua inde-
pendência á sombra dessas intrigas palacianas, próprias a
engodarem as cortes do Rio e de Madrid. Rivadavia, que
por mais de uma vez procurou Palmella na Europa e até
certo ponto dizia abundar nas idéas de Garcia, concordava
entretanto e não occultava que o Infante de Hespanha que
fosse á testa da expedição de Cadiz, seria com certeza me-
lhor recebido no Chile ou no Peru do que em Buenos Ayres,
onde o governo não podia, segundo Rivadavia, responder
pelo acolhimento geral, "por não ter influxo sufficiente nas
Provincias do Rio da Prata": o que era rigorosamente
exacto.
Uma cousa era porém certa, a saber, que uma vez pas-
sado, graças muito a Palmella, o perigo de hostilidade hes-
panhola, moralmente senão materialmente apoiada no con^
certo europeu, contra a antiga metrópole portugueza, a ques-
tão do Rio da Prata se deslocara por completo ou quasi para
o seu t-heatro natural de acção. Passara a ser infinitamente
mais com Buenos Ayres do que com a Hespanha, apezar
d'esta preparar-se sempre para a sua expedição de recon-
quista.
Ora, justamente Palmella não confiava absolutamente
nos revolucionários, nem com elles queria intimidades, opi-
nando por manter-se o Brazil á distancia dos mesmos, pondo
até de permeio a metrópole hespanhola. "Emquanto a mim,
706 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
escrevia elle a Thomaz António, ( i ) confesso que concorro
inteiramente com a opinião que V. Ex.^ me diz ser a do
Sr. conde dos Arcos i. e. que mesmo podendo-se conseguir
a adopção de huma Monarquia constitucional, he esse um re-
sultado cujas vantagens para o Brazil podem ser muito dispu-
tadas. Estou convencido finalmente, que se a totalidade da
America do Sul não pode já agora voltar á sujeição da Es-
panha, o que seria para nós o resultado mais vantajoso, he
sem duvida que a restituição de Montevideo á Espanha,
adquirindo o Reino do Brazil bons limites, e metendo hum
corpo de oito ou dez mil Espanhoes entre nós e Buenos
Ayres garante mais a nossa neutralidade e dá mais lugar a
combinações futuras que nos sejam favoráveis do que os pla-
nos aéreos dos agentes de Buenos Ayres".
N'esta matéria a opinião de Palmella, imbuida de euro-
peismo, no sentido de se não deixar convencer da importân-
cia capital para Portugal d'essa sua questão americana, e
de conservar velhas idéas que além mar já se tinham trans-
formado com a transformação da colónia, discreparia sem-
pre na essência da da corte do Rio, a qual visava á annexa-
ção da Cisplatina, sem se indispor, caso isto fosse possivel,
luctando mesmo, si não houvesse outro remédio, com o go-
verno independente de Buenos Ayres, uma vez afugentado
o espantalho hespanhol. Começa porque Palmella, que estava
do lado de lá do oceano, em contacto diário com os mediado-
res, vivendo entre as intrigas das chancellarias, entendia que
era em qualquer caso conveniente a conclusão de um tratado
com a Hespanha.
íl) Ofificio de 16 de Janeiro de 1819, Corresp reserv. da Le-
gação de Londres, no Arch. do Min. das Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 707
"Emquanto poréai negociamos e vamos ganhando tempo,
sem indispor os mediadores — escrevia a Thomaz António
(i), querendo elíe próprio ganhar tempo diante da soffre-
guidão do seu governo — poderá ser que a força das circum-
stancias induza a Espanha a adoptar a medida de enviar
hum Infante (2) e os inconvenientes que achamos em propor
oficialmente essa medida como um sine qua non da nossa
parte para a restituição de Montevideo cessará logo que se
trate de a promover e apoiar..."
No intuito de abonar ainda mais perante a Europa a
boa vontade portugueza e de dar que pensar á Hespanha,
rebatendo-lhe as ameaças que continuavam incorrigivelmente
a chispar nas notas de Fernan Nunez e nos despachos de
qualquer dos numerosos ministros de estrangeiros que o capri-
cho de Fernando VII elevava para sacudir pouco depois do
gabinete, Palmella, apoz reassumir a gerência da legação
de Londres, fez solemne e directamente renovar pelo Foreign
Office a obrigação britannica de garantia que andava vir-
tualmente negada a Portugal por causa da sua primitiva
attitude nos negócios do Rio da Prata.
Tendo, porém, as cousas mudado por completo com a
ulterior acquiescencia portugueza no projecto de mediação,
era natural que Castlereagh declarasse a Palmella: '*From
that period His Roj^al Highness has felt that the Guarantee,
which had been renewed at Vienna in 18 14 was again in
fuU force, and as long as the Government of the King of
Portugal shall continue to manifest as hitherto an anxious
(1) Offkio cit., de 16 de Janeiro de 1819, ibidem.
(2) O Infante Dom Francisco de Paula era o indicado em pri-
meiro lugar para a realeza americana, sendo porém o candidato de
Dom João VI seu neto o Infante Dom Sebastião, filho de Dom Pedro
Carlos.
708 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
desire to terminate her differences with Spain on principies
of acknowledged justice, and of mutual accommodation,
80 long will this Government consider that Guarantee as
binding", (i)
Chegavam entretanto novas ordens do Rio de Janeiro,
de serem continuadas sobre as bases, propostas pelos mediado-
res as negociações conducentes ao tratado com a Hespanha,
que os dous diplomatas portuguezes tinham estado procras-
tinando, á espera de instrucções positivas para as accelerar,.
retardar ou abandonar, e que assim tiveram de proseguir em
Pariz, dirigindo-as de perto Marialva e de Londres Pal-
mella, com sua dupla auctoridade de provecto profissional e
de chefe escolhido da corporação. Outros incidentes tinham
todavia occorrido n'esse intervallo, e a adhesão de Dom
João VI já veio encontrar modificada a situação.
O processo havia caminhado, tomando a Hespanha uma
posição definida. Suas objecções ao projecto de tratado ela-
borado pelos mediadores eram copiosas e, do seu ponto de
vista, fundadas. Repugnavam-lhe, a liberdade de commercio
para os portos da margem esquerda do Prata, para não pare-
cer que outras nações arrancavam ao seu governo concessões
que deviam ser espontâneas sob pena de desmoralizarem a
metrópole; a indemnização pecuniária a Portugal pelas des-
pezas incorridas com a expedição e occupação de Montevi-
deo, por assemelhar-se muito a uma reacquisição de território
do seu próprio património, do qual tinha aliás o exercito por-
tuguez extorquido fornecimentos avultados, sendo preferível
áquella compensação uma cessão territorial que não fosse em
todo o caso a linha de observação militar indicada no pro-
(1) Nota de 1 de Fevereiro de 1819, no Ar eh. do Min. das
Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 709
jecto, parallela ao Rio da Prata e inadmissível por varias
razões de estratégia e soberania; o aviso prévio da partida
da expedição, que razão alguma justificava; a declaração de
neutralidade da corte do Rio na guerra entre a Hespanha
e as colónias insurgentes; a restituição de Olivença sem com-
pensação, conforme fora de resto estipulado officialmente,
mas que a Hespanha pretendia nada ter a ver com o nego-
cio platino (i).
Tudo isto se continha no projecto e a tudo se furtava
o governo de Madrid, offerecendo porém a 3 de Dezembro
de 181 8, para provar sua boa vontade, um contra-projecto
que incluia uma amnistia; uma rectificação de fronteira de
modo a respeitar a segurança do Brazil e para ser determi-
nada dentro do prazo de um anno; a conservação de um
corpo portuguez de 2.000 homens ( a expedição hespanhola
contaria pelos menos 12.000) no território hespanhol, for-
mando uma linha militar de observação sem postos fortifi-
cados, cuja direita se apoiasse sobre o Rio Negro, na foz
do rio Cordovés, e a esquerda em Castillos chicos: isto para
o caso do governo portuguez não preferir á cessão territorial
a indemnização pecuniária arbitrada em 7 ^ milhões de
francos, restabelecendo-se então em toda a plenitude a fron-
teira de 1808.
Na sua resposta de 11 de Dezembro tinham os pleni-
potenciários portuguezes insistido comtudo na adhesão já
formulada ao projecto dos mediadores, salvo a substituição,
que acceitavam, da outorga do dinheiro pela concessão ter-
ritorial. Logo em seguida, em Janeiro de 1819, tomavam
Palmella e Marialva, diante da calculada hesitação da Hes-
(1 t Con-f^sp. rcsorvada do Palmella. no Arch. do Min. das
«el. Ext
710 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
panha, francamente partido pela separação das províncias
hespanholas do Rio da Prata. Assim mudando de táctica,
transmittiram ao duque de Wellington, encarregado unani-
memente pelo concerto europeu de proceder á pacificação
diplomática da America Hespanhola, a convicção em que se
achava o soberano portuguez da impossibilidade de fazer
volver aquellas provincias quer pela persuasão, quer pelas
armas, á sujeição da metrópole; mostraram a conveniência
geral da humanidade, das potencias maritimas em particular
e sobretudo da "visinha monarquia portugueza", no pôr-se
termo á guerra de desolação que estava grassando havia tanto
tempo, e suggeriram a utilidade, já pelo lado de conservar o
elo entre a Europa e a America, já pelo de sopitar a febre
de jacobinismo que da America poderia passar para a Eu-
ropa, da installação de uma ou varias monarchias em favor
de ramos da real familia hespanhola, com uma organiza-
ção liberal bastante para lhes assegurar a consolidação ( i ) .
Pelo facto de approvar mediocremente estas idéas e de
somente meio constrangido as aventar, não deixava pois
Palmella de estribal-as em bons argumentos, o resultado
sendo que a diplomacia portugueza ia ganhando terreno
e impondo-se á adversaria. Em Fevereiro de 1819 annuia a
Hespanha á restituição de Olivença e reiterava sua inclina-
ção de trocar por uma concessão teritorial a somma estipu-
lada como indemnização, procedendo-se logo a um tratado
de limites. Na hypothese de insistir Portugal na clausula
da indemnização pecuniária — o que para a Hespanha, á
vista dos seus apuros financeiros, seria uma solução espe-
cialmente desagradável — esta se não pagaria por completo
(1) Corresp. reservada de Palmella, iltidcm.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 711
si houvesse* uma linha de occupação militar, pois que assim
se não verificava o caso de desoccupação integral do terri-
tório. A occupação era calculada para findar dentro de um
anno, da mesma forma que se achava fixada a retrocessão
de Olivença. ( i )
Contradizendo mais uma vez a argumentação hespa-
nhola, empenhada em sophismar e protelar nada menos
do que a portugueza, escreveu Palmella de Londres um me-
morandum confidencial que não foi bem recebido em Ma-
drid, tratando o governo de Fernando VII de activar os
armamentos de Cadiz para a expedição tão postergada
quanto esta chamada por Marialva fastidiosa e por Palmella
teidiosa negociação. E' sabido como afinal se mallogrou a ex-
pedição, occorrendo a sublevação de Riego que provocou a
revolução constitucional de Janeiro de 1820, a qual não
mais permittiu ao governo hespanhol occupar-se da nego-
ciação de Montevideo, continuando portanto a occupação
portugueza que redundou na annexação.
Até ahi duraram as delongas e tergiversações, expressas
ou occultas n'um amontoado de notas e de communicações
que faziam cavalgar constantes correios pelas estradas entre
Madrid, Pariz, Londres e Itália (onde durante certos mezes
de 18 19 se encontrava Metternich) e andar continuos ex-
pressos embarcados entre o Rio de Janeiro e Falmouth. A
Hespanha apparentara entretanto formular maiores con-
cessões.
A 16 de Abril de 18 19 uma memoria do embaixador
duque de Fernan Nunez, em resposta ao memorandum por-
tuguez, mudava o ponto terminal da consentida linha pro-
(1) Corrosp. reservada de Palmella, ihidcm.
712 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
visoria de occupação portugueza da bocca do rio Cordovés
para o Passo do Chileno, ficando esta linha de fronteira de-
finitivamente pertencente a Portugal dado o caso de se não
poder ajustar um novo tratado de limites e de não poder
o governo de Madrid pagar ao do Rio de Janeiro a indem-
nização pecuniária concordada. Possuia no emtanto a Hes-
panha, tal lhe ficando reservada, a liberdade de pagal-a
no fim de uns poucos de annos si quizesse, deste modo res-
gatando a hypotheca concedida, sem verificar a cessão terri-
torial, que era a alternativa ( i ) .
Continuava assim para o Brazil a mesma incerteza
no tocante á fixação e segurança da sua fronteira meridional.
Receiavam além d'isso os plenipotenciários portuguezes, pela
declaração hespanhola que o novo tratado de limites só se
poderia verificar depois de um minucioso exame das locali-
dades, bem como pela falta de um prazo prefixo para ulti-
mação de todos os ajustes, que por parte dos contrários
existisse qualquer segunda intenção. Por este motivo sugge-
riram aos governos mediadores a i de Maio de 1819 a opção
de ser intimada ao governo hespanhol a fixação immediata
dos pontos cardeaes da cessão territorial permanente ou o
pagamento também immediato da indemnização estipulada,
recolhendo-se as tropas portuguezas de occupação da Banda
Oriental para a fronteira de 181 5, que corria pelo Quaraim.
Como meio termo entre as duas proposições lembrou
o plenipotenciário prussiano von Goltz o marcar-se o pe-
riodo de um anno, no fim do qual, si os Hespanhoes não
resgatassem o território hypothecado ou si se não concluísse
de commum accordo entre os gabinetes do Rio de Janeiro
e de Madrid um outro ajuste, ficaria a linha temporaria-
(1) Corresp. reservada de Palmella, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 713
mente occupada pelas tropas portuguezas pertencendo em
plena soberania a Sua Magestade Fidelíssima.
A linha provisória, sem a determinação dos pontos car-
deaes da definitiva, tinha por principaes defeitos impedir o
governo portuguez de fortifical-a, expondo-se do contrario a
gastos porventura inúteis; arriscar o mesmo governo a
disputas desagradáveis com o Estado ou Estados visinhos,
caso a Hespanha perdesse para todo sempre as provincias
do Rio da Prata, ou então difficultar a futura negociação
entre Portugal e Hespanha, fazendo surgir novas pretenções
d'esta potencia, si por acaso fosse coroada de êxito a expe-
dição de Cadiz (i). A singular tardança d'esta expedição
não era tanto effeito da falta de recursos pecuniários da me-
trópole como de outras circumstancias, a mencionar entre
ellas as recriminações de Palmella janto a lord Castlereagh.
Em virtude de taes reclamações mandou o ministro dos
negócios estrangeiros da Grã Bretanha ao embaixador em
Madrid sir Henry Wellesley, ordens positivas e enérgicas
afim de representar ao gabinete hespanhol que "se a expedi-
ção se fizesse á vela nas actuaes circumstancias, toda a res-
ponsabilidade do mau êxito da negociação com a nossa corte
e das fataes consequências que dahi podião resultar, recahiria
sobre a Hespanha, e que as Potencias Mediadoras reconhe-
cião que S. M. F. pela sua parte tinha feito desde o mez
d'Agosto de 1818 tudo quanto se podia em justiça e em
equidade desejar para terminar pacificamente esta contenda."
Ao mesmo tempo communicava a Inglaterra que uma sua
esquadra ia partir para os mares da America do Sul no in-
tuito de proteger o commercio britannico, "dando a enten-
(1) Corresp. reservada de Palmella, no Arch. do Min. das
Rei. Ext.
D, J. — 45
714 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
der que essa mesma protecção se extenderia aos seus allia-
dos" (i).
Além d'estas advertências da chancellaria britannica
e simultaneamente com a apparição no sul da Hespanha da
febre amarella, fazendo considerável devastação sobretudo
nos acampamentos, uma grande conspiração se descobria em
Cadiz, que obrigou o governo hespanhol a desarmar 7.000
dos soldados que iam embarcar: com os 4.000 encarregados
de compellir os insubordinados a deporem as armas, se com-
promettia o general conde de Abisbal a eximil-os da obrigação
de partirem na impopular expedição.
Ficava assim esta desfalcada de 1 1 .000 homens, dos
quaes ainda se retirou parte para seguir para Caracas a
pôr-se debaixo das ordens do general Morillo, reduzindo-se
portanto os celebrados armamentos, mesmo conseguindo sin-
grar a armada, a uma cousa destituida da primitiva impor-
tância. Aliás á vista de todos os contratempos sobrevindos
resolveu o gabinete de Madrid, ao que declarou, acceder ao
ajuste em discussão pelos bons officios dos mediadores, pa-
gando a somma convencionada pela entrega de Montevideo
em duas prestações: a primeira metade no acto da restitui-
ção da praça e a segunda logo que as tropas portuguezas
tornassem ás posições que occupavam antes da invasão de
1816.
Semelhante súbita declaração, trahindo nova delibera-
ção, collocava os plenipotenciários portuguezes n'uma certa
perplexidade, bem legitima pois que lhes tinha entretanto
chegado do Rio, inequivocamente expresso, o desejo já por
vezes anteriormente manifestado pelo gabinete portuguez de
(1) Officio de Talmella e Marialva a Thomaz António de Villa
Nova Portugal, datado de Pariz aos 10 de Agosto de 1819, ibidem.
DÕM JOÃO VI NO BRAZIL llÒ
se não concluir tratado algum com a Hespanha sem a condi-
ção da vinda de uma pessoa real para a America do Sul. Foi
a vez de Palmella e Marialva esforçarem-se por ganhar
tempo, chicanando sobre o modo de se effectuarem os paga-
mentos.
Com encetarem a negociação directa proposta por
Fernan Nunez, encontraram elles o m^elhor meio de prote-
lar o debate de accordo com as vistas da sua corte, a qual
invocava que ficaria em má postura perante as populações
platinas si devolvesse Montevideo sem ser em presença
d'uma força armada hespanhola incumbida da reivindicação;
ou então pela acção dos mediadores, os quaes, ficara assen-
tado, seriam representados na cccasião por commissarios
especiaes ; ou, melhor que tudo, pela presença no Rio da
Prata de um representante de sangue da dynastia hespa-
nhola (i).
Não existindo, ora por uma razão ora por outra, grande
empenho de qualquer dos lados em ultimarem-se as negocia-
ções, não admira que seguissem ellas por tal modo posterga-
das ou antes arrastadas. Da conferencia directa entre Fer-
nan Nunez, Marialva e Palmella, vindo a este fim a Pariz,
resultou que o embaixador d'Hespanha se não achava aucto-
rizado para combinar a entrega de Olivença, nem o meio
de se fixarem para o futuro os limites geraes americanos,
nem a concessão do commercio livre a Montevideo, em que
insistia a corte do Rio. Era com effeito mostrar pouca von-
tade de tratar. Romperam portanto os plenipotenciários por-
tuguezes a conferencia e dirigiram ás potencias medianeiras,
em resposta ao pedido por estas feito ás duas partes litigantes
(1) Con-esp. 1'esei'vada de Palmella, ibidem.'
716 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
dos seus respectivos definitivos projectos de accordo, um ul-
timatum destinado a angariar-lhes mais ainda a benevolência.
Declaravam-se ahi os representantes de Dom João VI
invariavelmente decididos a não desistirem jamais de parte
alguma essencial das contidas no projecto inicial dos media-
dores, formulado no anno anterior, com as modificações
apenas a que o governo portuguez accedera para testemunhar
ao da Hespanha seu espirito nimiamente conciliador. Espe-
ravam com isto Palmella e Marialva que a conferencia dos
mediadores decidisse agir com vigor sobre a "versatilidade"
do gabinete de Madrid, fazendo pressão com o fim de ser
acceito o projecto portuguez, por aquelles lavrado. Pozzo di
Borgo, porém, trabalhou no sentido das intrigas russas, sem-
pre favoráveis a Fernando VII, e levou os coUegas a con-
vocarem nova conferencia dos plenipotenciários interessados,
a saber, o hespanhol e os portuguezes para, sob a inspiração
continuada dos representantes em Pariz das grandes poten-
cias, se harmonizarem as differenças notadas entre os dous
projectos apresentados pelas partes adversas (i).
Não sendo aos portuguezes licito mais do que defende-
rem sua posição e se radicarem em sua resolução de se não
afastarem de um só ponto essencial do tratado cujo pro-
jecto tinham perfilhado, pareciam as cousas assim se enca-
minhar para que se suspendessem por completo as negocia-
ções entaboladas. Equivalia isto a verificar-se todo o objecti-
vo da corte do Rio, que outro não era senão deixar de con-
cluir-se qualquer tratado com a Hespanha, ficando as tropas
portuguezas de posse da margem oriental do Rio da Prata,
sem que o pudessem levar a mal as potencias medianeiras,
(1) Maço cit. das negociações Palmella-.Marialva, no Arch. do
Mia. das Rei. ExX.
• DOM JOÃO VI NO BRAZIL 717
antes carregando a Hespanha com a responsabilidade do
mallogro de um ajuste que estaria effectuado si o seu gabi-
nete também mostrasse empenho em adherir ás vistas pro-
postas.
Palmella e Marialva não pensavam exactamente sobre
o assumpto como o monarcha e seus conselheiros, preferindo
um tratado á suspensão das negociações, cujo effeito se lhes
affigurava poder ser a guerra. Recommendavam consequente-
mente que se apparelhasse o general Lecor com os meios
precisos de resistir á expedição de Cadiz, porque "hum dezar
que as nossas armas experimentem em Montevideo seria
tanto mais sensivel quanto a Europa toda estará disposta a
julgar do acerto da nossa actual conducta pelo rezultado que
tiver aquella contenda" (i).
Os plenipotenciários portuguezes n'essa occasião per-
sistiam ou apparentavam de firmes na crença de que a expe-
dição estava prestes a seguir, apezar dos sérios embaraços
que tanto a tinham feito demorar, e para de todas as formas
estorval-a, affirmaram ao ministro dos negócios estrangei-
ros da Grã Bretanha que a corte brazileira, no intuito de
diminuir seus perigos, caso a expedição partisse sem aviso
prévio, se veria forçada a reconhecer a independência de
Buenos Ayres.
Portugal proseguira mantendo sua postura, como lh'a
ageitara Palmella, e a sem razão continuava segundo todas
as verosimilhanças a estar com a Hespanha, cuja má fé re-
sumava sem disfarce nas notas prolixas, irritadas e aggressi-
(1) Officio de Palmella e Marialva a Thomaz António de 4
de Setembro de 1819, no maço cit. ibidem. Este officio, bem como a
nota dos mesmos aos representantes das potencias medianeiras, de 15
de Agosto de 1819, e a memoria histórica de 26 de Agosto, com a nota
da mesma data e os projectos de tratado annexos, acham-se publi-
cados no vol. I dos Despachos e Corrcspoudcncia do duque de Palmella.
718 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
vas do duque de Fernan Nunez e nas declarações altaneiras
dos abundantes ministros de estrangeiros que o Rei Fer-
nando VII ia consumindo, fazendo prestemente succeder á
elevação o exilio.
A ultima pretenção do gabinete de Madrid fora cir-
cumscrever á indemnização pecuniária ou cessão territorial
que a substituiria todo o campo da negociação, julgando
prejudicados com a nova eventual combinação os demais
pontos — fixação permanente dos limites, devolução de Oli-
vença e franquia mercantil para Montevideo — que os ple-
nipotenciários portuguezes tinham posto de lado, não como
annullados mas como accordados, não mais lhes parecendo
necessário voltar a discutil-os. Era opinião porém do plenipo-
tenciário hespanhol que n'um projecto de tratado se não
podia conservar umas certas cl-ausulas, approvando-as, e re-
tirar outras por desagradáveis ou inexequiveis: cumpria ac-
ceitar ou rejeitar o conjuncto.
Com felicidade respondiam Palmella e Marialva (i)
a uma tão estranha theoria diplomática, que offerecia sua
contradicção viva no processo hespanhol de ir restringindo
as concessões a principio promettidas: *'Si dans le cours d'une
négociation par le moj^en de laquelle deux Parties cherchent
à se rapprocher, Tune d'elles se juge autorisée à retracter
à volonté les concessions qu'elle a officiellement accordées,
comment pourra-t-on jamais parvenir à s'entendre, et sur
quelles bases Tautre pourra-t-elle s'appuyer, pour faire de
son côté les concessions nécessaires afin d'arriver à la con-
clusion d'un arrangement ? "
(1) Nota de 21 de Setembro de 1819 aos Representantes das
Potenciais mediadoras, no Areh. do Min. das Kel. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 719
A 4 de Outubro, fazendo assim realçar a boa vontade
do seu governo — para o qual entrara o duque de São Fer-
nando, reputado pelo seu espirito de moderação e cordura,
formando contraste com o dos predecessores — , declarou
Fernan Nuííez que o gabinete de Madrid acceitaria ti atar
separada e isoladamente da restituição de Olivença, comtanto
que esta negociação nada tivesse a ver com a reoccupação
pela Hespanha da Banda Oriental. Marialva julgou todavia
inútil e inadmissivel essa concessão, porquanto o Rei Catho-
lico contrahira pelo Acto Geral do Congresso de Vienna a
obrigação implícita de effectuar sem condições a retrocessão
d'aquella cidade portugueza.
Por esse tempo já Palmella, apoz demorar-se em Pariz
de Abril a fins de Setembro de 1819, se havia de novo re-
tirado para Londres, onde o chamavam affazeres politicos
connexos com a questão de Montevideo, e relativos a outros
negócios pendentes. Foi por isso Marialva só outra vez quem,
a 10 de Outubro, propoz desistir Portugal da indemnização
pecuniária — "único ajuste profícuo á Coroa portugueza
que se achava oneroso á Hespanha no projecto de tratado"
■ — si á testa da expedição de Cadiz partisse na qualidade
mesmo de vice-rei um Infante d'Hespanha.
Explicito estava comtudo que tal indemnização pecuniá-
ria seria facultada pela Hespanha, não a guisa de compensa-
ção da evacuação do território pelas tropas de Dom João VI,
porque isso equivaleria a admittir ou reconhecer sobre elle
direitos que Portugal aliás não pretendia possuir, sim como
uma compensação da vantagem derivada para a Hespanha
do facto de receber pacificada pelas armas portuguezas sua
colónia rebellada. Convém de resto nunca perder de vista
n'esta questão que a rebellião tinha sido a causa determinante
720 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
da intervenção da corte do Rio, sob pretexto de existir o
perigo da insurreição de Artigas contagiar o Brazil do morbo
revolucionário e depois de ter-se a Hespanha recusado a col-
laborar com Portugal na extincção do fcco incendiário.
Não annuindo outrosim a Hespanha ás repetidas de-
monstrações do empenho portuguez em concluir-se um tra-
tado que puzesse cobro á desconfiança e incerteza da situação
geral creada por aquellas circumstancias entre os dous paizes,
e de que Portugal entendia tirar diplomaticamente vanta-
gem, depois de a ter militarmente alcançado, annunciou o
marquez estribeiro-mór que, na ausência de uma resposta
formal do monarcha hespanhol, o seu soberano recobrava a
liberdade de acção.
Era no emtanto, no dizer de Marialva, sincero e bem
sincero o desejo da corte portugueza no tocante á ida de um
Infante como vice-rei, preludio certo de uma outra realeza
americana. Dada a grande probabilidade da separação defi-
nitiva das colónias hespanholas — cuja reunião á mãi pátria
constituiria ainda para o Brazil a melhor solução ao entender
dos dous plenipotenciários portuguezes — parecia preferivel
achar-se então o Reino do Brazil "rodeado de monarquias
legitimas que sopeassem a tendência ao republicanismo que
se observa na maior parte das colónias hespanholas da Ame-
rica, e que o governo dos Estados Unidos não deixa de pro-
mover" (i).
Esta perspectiva, que Marialva appellidava "luminosa
idéa provinda da alta mente do nosso Augusto Amo", con-
tava com o decidido apoio do duque de Richelieu e também
do novo ministro dos negócios estrangeiros da Hespanha
(1) Officio de Marialva a Thomaz António de 6 de Maio de
1820, maço cit. no Arch. do Min. dae Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 721
constitucional, Evaristo Perez de Castro, conhecido antigo
do marquez estribeiro-mór. Com Richelieu e seu substituto,
o marquez Dessolles, tinham conferenciado e tratado os en-
viados confidenciaes argentinos Rivadavia e cónego Gomez,
valendo-se do intermédio de Lafayette, a quem Marialva
alcunhava de "apostolo do republicanismo." A França,
apoiando o projecto de uma monarchia portenha, apenas ma-
nobrava clandestinamente para que o throno coubesse ao
Duque de Lucca e não, como queria a corte do Rio na impos-
sibilidade do seu Dom Sebastião, a um dos Infantes irmãos
do Rei Catholico.
Para o marquez estribeiro-mór, em seguida á revolu-
ção constitucional hespanhola de 1820, a principal preoccupa-
ção passara porém a ser, não mais Montevideo e o limite do
Rio da Prata, si é que alguma vez o fora, sim o próprio, o
velho Portugal. Via este exposto a um dos dous perigos: o
ataque armado pelos Hespanhoes no intuito de reannexar á
monarchia liberal peninsular a conquista de Felippe II, ou
o effeito da seducção exercida sobre o Reino angustiado e
menosprezado pela visinha mudança politica no sentido re-
presentativo.
As intrigas hespanholas trabalhavam com effeito em
Lisboa para fomentar o espirito de desunião nacional por
meio da exploração do descontentamento resultante do afas-
tamento, já systematico, da corte de Dom João, VI, e os li-
beraes hespanhoes — que, mancommunados com os liberaes
francezes e entendendo-se graças ás sociedades secretas
e serviço dos contrabandistas da fronteira, tinham be-
bido suas inspirações além dos Pyreneus e realizado a re-
volução de Cadiz — correspondiam-se com os espiritos
adiantados de Portugal, ante os quaes faziam brilhar a es-
722 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
perança risonha de uma Lisboa, a abandonada, capital da
grande união ibérica.
Marialva por si via tudo negro: submergidas a coroa,
a aristocracia e a religião no turbilhão anarchico contra que
deviam reagir, e luctar por salvarem aquellas naufragas, todas
as potencias conservadoras. Foi 1820, é mister não esquecer,
o anno também das sangrentas insurreições de Nápoles e da
Sicilia, da intromissão mais activa e mais oppressiva da
Áustria na Itália, de uma das crises geraes agudas na con-
tenda européa da liberdade politica contra o despotismo. Por
isso mais se agitava o embaixador portuguez em Pariz junto
aos governos da Santa Alliança, para que interviessem contra
a disseminação de tão perigosas doutrinas, organizando a
resistência legitimista n'um novo Congresso, o qual decla-
rasse que os actos de Vienna e de Aix-la-Chapelle continham
virtualmente uma garantia total e reciproca, por parte das
potencias signatárias, dos seus respectivos territórios e formas
de governo, salvo as modificações que cada um dos sobera-
nos julgasse conveniente outorgar, de accordo com os outros,
em beneficio dos seus vassallos ( i ) .
O que Marialva pretendia era que, reforçando-se a
garantia proveniente dos referidos tratados e que aquellas
nações se deviam mutuamente, ficasse particularmente asse-
gurada a ameaçada integridade da monarchia portugueza.
Fazia n'este designio observar que, no caso de perder a
djmastia de Bragança o seu dominio tradicional, a realeza
de Dom João VI se tornaria puramente americana "e de
mãos dadas com os Estados Unidos consummarião a obra já
muito adiantada da separação geral do Novo Mundo, o que
(1) Corresp. de Marialva, no Arch. do Min. das Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 723
não podia deixar de ser huma calamidade para a Eu-
ropa', (i)
A Hespanha liberal julgava entretanto posto que erra-
damente, pois que bastaria lembrar-se que ao tempo das pri-
meiras tentativas de separação envergara justamente a me-
trópole vestes constitucionaes, ser a transformação politica
operada no seu seio motivo sufficiente para attrahir as co-
lónias rebelladas e refazer-se a ligação despedaçada. Ao tão
protelado projecto de reconquista tinha ella mesmo de re-
nunciar por completo, considerando suas novas esperanças,
sua nova orientação, suas novas preoccupações e, muito par-
ticularmente, a impopularidade da expedição ultramarina
entre os militares.
O perigo não cessava comtudo para o Brazil de um
rechasso, subsistindo até maior com a união federativa de
Buenos Ayres, Santa Fé e Entre-Rios, ao que se suppunha
ou suppunha pelo menos a diplomacia portugueza com an-
nuencia e apoio de Artigas — ''capitão general da Banda
Oriental" — que para semelhante fim teria delegado seus
poderes e instrucções ao governador de Entre-Rios. Para
mais a tal resultado parecia não haver sido estranho, senão
o governo britannico, o commodoro Hardy, chefe da es-
quadra ingleza estacionada no Rio da Prata e, pelo que
n'aquelle tempo se disse, despachado no intuito de auxiliar a
tramada deposição de Pueyrredon e o estabelecimento da
concórdia entre as Provincias pouco unidas.
Favorecendo a conspiração de Sarratea, que por longo
tempo vivera na Inglaterra, contra o Director inclinado á
solução monarchica por falta d'outra melhor ou de mais
(1) Officio cit. de G de Maio Uo 1S20, ibulem.
724 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
fácil execução, a Grã Bretanha favorecia é bem de ver os
seus próprios interesses, que a França procurava contrariar
no espirito do antagonisõmo reinante entre as duas nações, ao
mesmo tempo que buscava implantar no Prata a sua supre-
macia moral, protectora de proveitos positivos.
A solução monarchica não era realmente acolhida no
Rio da Prata senão como uma cousa preferivel á recoloni-
zação, em todo caso muito inferior á completa emancipa-
ção. Abonaria a perspicácia de Palmella — si outros tantos
factos a não comprovassem de sobejo — o não haver desde
principio acreditado na sinceridade realista de D. Valentin
Gomez e de Rivadavia, os quaes, ao que se propalara, anda-
vam trabalhando na Europa por aquella solução; de facto
pugnando principalmente pelo reconhecimento da indepcn-
dencia da republica organizada em Buenos Ayres. Uma
prova está em que o cónego Gomez, quando conferenciou
em Junho de 1819 com Palmella e Marialva acerca da fun-
dação da monarchia portenha, recusou tomar a iniciativa da
proposição respectiva, quer junto do governo hespanhol,
quer mesmo junto das potencias alliadas: o que pode não ex-
cluir sua lealdade, mas certamente não traduz o seu afan
pela missão de que vinha apparentemente encarregado (i).
Outras circumstancias mais pelejavam contra o plano
de creação de monarchias hispano-americanas, afagado pela
corte do Rio no intento mais que tudo de extinguir em redor
do Brazil o espirito republicano que se antevia nocivo ao
Reino brazileiro. A Hespanha rejeitara na sua contenda
com as colónias revoltadas a intervenção amigável de Wel-
lington, mediador para esse fim escolhido pelas grandes
potencias. Achava-se portanto, em conformidade dos ajustes
(1) Corrijsp. reservada de Palmella, i1)idem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 725
de Aix-la-Chapelle, ipso facto terminada a tentativa de me-
diação, ficando as nações alliadas em posição de não pode-
rem dignamente suggerir quaesquer outros alvitres, quando
era formalmente recusado o medianeiro por ellas proposto
para esboçar uma composição. Uma mudança na forma re-
publicana das Províncias Unidas não era por outro lado de
natureza a eliminar a ameaça do reconhecimento immediato
da sua independência da parte dos Estados Unidos, demo-
rado apenas por causa da cessão das Floridas, cujo tratado
se achava dependente da ratificação do Rei Catholico, n'esse
ajuste pondo o governo americano o maior empenho.
Já sabemos que Palmella nunca morreu de amores pela
lembrança, considerando preferível á monarchia própria ou
á democracia a reposição da auctoridade da metrópole, com
limites definitivos estipulados de fresco entre a America
Hespanhola e a America Portugueza, emendando-se o que
a linha de 1777 podia ter de absurda, respeitando-se a con-
quista portugueza de 1801, das missões do Uruguay, e até
consolidando-se a avançada das tropas d'El-Rei Dom
João VI em território oriental.
Desde então a corte do Rio de Janeiro queria dar por
nullo o tratado de 1777, em vista da guerra peninsular de
1801 e dos tratados subsequentes de Badajoz e Madrid que
teriam virtualmente invalidado o convénio de San Ildefonso.
Palmella porém não pensava exactamente da mesma forma,
ponderando a Thomaz António ( i ) : *'... procuraremos sus-
tentar que o Tratado de 1777 nunca se executou por não
ser intelligivel.^t que portanto he nullo de si mesmo; pois
a não ser assim difficilmente poderiamos sustentar perante
os Mediadores a these da nuUidade do sobredito Tratado
(1) Offkio reservado de 9 de Março de 1819, ihid&tn.
726 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
por motivo das guerras subsequentes que occorreram, e
mesmo do Tratado de Fontainebleau, visto que o estado de
guerra suspende só e não annuUa os Tratados de limites
existentes, os quaes se devem julgar revalidados, logo que se
não faz menção d'elles nos Tratados de paz." Si os insurgen-
tes vencessem e se puzessem independentes, então sim, era
opinião de Palmella que se não devia o governo portuguez
julgar obrigado para com elles, representantes de novas
soberanias, pelas convenções que tivesse concluido com a
Hespanha — *'e si elles tal pretendem, dão desde já a co-
nhecer a sua arrogância e vistas ulteriores, das quaes eu
nunca duvidei", (i)
A retenção de Montevideo não se lhe afigurava por
outro lado corrente nem fácil. A permanência de Palmella
em Londres, combinada com as circumstancias do momento
na politica geral, tinham levado Castlereagh a sustentar o
mais resolutamente possivel a corte do Rio na questão da
occupação da Banda Oriental, exercendo n'este sentido em
Madrid a maior pressão compativel com a dignidade, que
por muito pouco se julgava ultrajada, da corte hespanhola e
com o decoro mesmo das relações internacionaes. Não le-
vava comtudo a Inglaterra o altruismo ao ponto de abando-
nar pelos Portuguezes seus interesses americanos, que eram
os do seu commjercio e da sua influencia, e se adaptariam tão
bem ou até melhor a outras condições.
O governo britannico nutria aliás a certeza de que o
imperialismo de Dom João VI não tinha fôlego para chegar
além do Prata, confessando o próprio Thoma^: António tex-
tualmente a Palmella n'um dos seus despachos (2) que nem
(1) Officio roseryado de 8 de Maio de 1811), ibidem.
(2) Ai-ch. do Min. das Rei. Rxt,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 727
se terminara a tranquilla occupação de toda a Banda Orien-
tal, campo relativamente pequeno onde a revolta campeava
ainda, nem. existia "a certeza de conservarem-se o affecto e
fidelidade daquelles Povos."
Por isso, emquanto brandia a ameaça da expedição
de Cadiz, mais mesmo do que os seus organizadores, con-
servava Palmella em mira um duplo fim : induzir n'uma
intenção patriótica a corte do Rio a se não deixar emba-
hir pelas tergiversações do gabinete de Madrid, o qual, no
seu parecer, procrastinava sobretudo a negociação para dar
tempo á expedição de singrar sem que o governo portu-
guez tivesse tomado no Brazil as precauções devidas, e con-
vencel-o de que tampouco se abstivesse ''por excesso de mo-
deração e de confiança na intervenção dos mediadores" de
preparar-se para todas as eventualidades, inclusive qualquer
affronta naval á capital brazileira ou a occupação, que prom-
ptamente acudia, da ilha de Santa Catharina.
Três eram as razões que instigavam o plenipotenciário
de Dom João VI a fazer adoptar, caso fosse possivel contar
com a final adhesão da Hespanha, o tratado ajustado com
as potencias medianeiras, o qual lhe parecia a melhor solução
de todas as propostas. Tratar com a Hespanha, mau grado
seus destemperos de linguagem e suas pretenções chronica-
mente desarrazoadas, sempre era preferível a tratar com as
novas democracias que d'ella queriam separar-se e viver vida
independente, ainda que penosa.
A confederação argentina especialmente, uma vez des-
embaraçada da guerra do Peru e reconhecido o seu governo
por uma ou mais potencias estrangeiras, appareceria nas suas
ambições mais intratável ainda do que a metrópole, si bem
que esta, conseguindo reconquistar suas colónias, não cessa-
728 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ria de mostrar-se a visinha altamente incommoda de sempre,
no tocante á exclusão portugueza da bacia do Prata. Ainda
com as Províncias Unidas, Palmella o esquecia, havia a
esperança, a quasi certeza n'aquelle tempo de obstar-lhes
ás aggressões, dominando-as a monarchia luzo-brazileira
pela extensão dos seus recursos e condição politica homogé-
nea e disciplinada, bem differente da de uma democracia
anarchizada. N'este sentido a restauração hespanhola seria
de mais problemática vantagem.
Em futuras intelligencias com o governo reconhecido de
Buenos Ayres Palmella se não fiava absolutamente, partindo
de que a qualidade de republicano o tornaria instinctiva-
mente incompatível com o governo monarchico do Brazil;
outrosim alimentando elle infallivelmente "o intento bem
natural de recuperar a Banda Oriental, sendo que a boa
harmonia comnosco só subsistirá emquanto julgar que lhe
servimos de escudo para o guardar de huma invazão dos
Hespanhoes, e emquanto não tiver adquirido forças suffi-
cientes para acommetternos" (i).
O ajuste entre Portugal e Hespanha, facilitando o
complemento da invasão de i8ió, poderia com ef feito des-
agradar tanto ao governo de Buenos Ayres que apressasse
o rompimento com o Brazil, um desfecho que Palmella
julgava com acerto impossível de evitar no futuro. Entre-
tanto, dando-se mesmo o rompimento com Buenos Ayres,
melhor lhe parecia ter a questão serenada pelo que dizia
respeito á Hespanha; tanto mais quanto se não desoccuparia
gratuitamente um território pelo qual se ia vantajosamente
obter compensação pecuniária ou territorial, consistindo o
(1) Officio reservado d« 11 de Julho de 1819, ibidem.
\
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 729
lucro maior, porém, em se terem evitado os males de uma
guerra.
O que o tratado offerecia especialmente de bom, se-
gundo Palmella, era não hypothecar o futuro. Não seguindo
por fim de contas a expedição de Cadiz, permanecia neces-
sariamente Portugal, mau grado o tratado e pela própria
força das circumstancias, na posse pacifica e legal do ter-
ritório occupado pelas suas forças. Seguindo a expedição e lo-
grando reconquistar as provincias do Prata, cessaria para
Portugal o perigo da visinhança do foco revolucionário,
sem cessar a possibilidade de negociar ulteriormente com a
Hespanha a acquisição de todo o território da Banda Orien-
tal, até e sobretudo no caso de se haver forçadamente limi-
tado a reconquista a essa colónia.
O mais agradável comtudo a Dom João VI era, con-
forme aconteceu, não se ultimar tratado com a corte de Ma-
drid, pois que lhe repugnava vivamente a idéa de entregar
a praça de Montevideo, ''preferindo manter pelas armas
o que não tivesse perdido pelas negociações." Verdade é que
na confissão de Palmella, que como diplomata e como cor-
tezão estava duplamente habilitado para sempre descobrir
o proveito de qualquer solução aprazente ao seu soberano,
não se celebrando convénio algum prévio e atacando a Hes-
panha as tropas portuguezas estacionadas na margem orien-
tal do Rio da Prata (hypothese que se não verificou), a
repulsa legitimaria a occupação. "Adquiriremos então, além
da posse de facto, huma espécie de direito para conservar
aquelle território" (i).
(1) Corresp. wsorvada de Palmella, no Arch. do Min. das
Rei. Ext.
D. J. — 46
730 DOM JOÃO VI NO BRAZIE
Palmella nunca se perdera no dédalo das ínstrucções
que lhe eram transmittidas para darem ao gabinete portu-
guez ares de muito empenhado na solução diplomática da
questão — não admirando por isso que as reputasse o des-
tinatário "confusas e contradictorias" (i) — porque encon-
trava invariavelmente a esclarecel-o e guial-o nas peores
conjuncturas o seu extraordinário bom senso. Este, ligando-se
a um certo opportunismo que IhíC era peculiar por tempera-
mento e por dever d'officio, concordava afinal no fundo com
a ambição da corte do Rio, achando que o território occupado
"já agora, de hum modo ou de outro, deve ficar perma-
nentemente pertencendo ao Reino do Brazil."
A annexação seria fatal, não só certa, na eventualidade
de uma guerra na Peninsula, declarada, quando outro não
fosse o fundamento, para attribuir emprego profissional ao
exercito revolucionário hespanhol afastando-o mesmo de in-
tervenções na politica domestica. Uma guerra transatlân-
tica, in situ, é que apparecia cada dia menos provável e,
prevenindo o caso da paz, lembrara-se Palmella no decorrer
das negociações em Pariz de estipular que, passado o prazo
da troca de Montevideo por uma indemnização territorial
ou pecuniária, Portugal exigiria da Hespanha a quantia de
400.000 francos mensaes a titulo de compensação dos gastos
que acarretava a occupação. E como a transformação politica
da Hespanha, provocada pela revolução de Cadiz, tornara
problemática a mediação e adiara sine die qualquer desen-
lace por accordo directo, d'outra banda pondo embargos
(Ij Carta a Saldanha da Gama no tomo I dos Despachos e Cor-
respoiulencm, onde também se encontram os offlclos de 8 de Margo,
12 de Abril, 11 de Maio e 15 deJuniho de 1820, dirigidos a Thomaz
António immediatameBte antes do embarque de Palmella para o Rio
de Janeiro.
DOM JOÃO VT NO BRAZTL ' 731
a uma acção no ultramar, as mensalidades a pagar subiriam
depressa a uma somma muito considerável que Portugal,
como concordava a Inglaterra, teria o direito de reclamar
a todo tempo antes de evacuar o território.
Nenhuma d'estas combinações da astúcia do plenipo-
tenciário de Dom João VI teve todavia ensejo de se veri-
ficar, continuando toda solução a procrastinar-se. Quando
Palmella chegou ao Rio de Janeiro, a occupar os seus minis-
térios, apenas encontrou directamente regulada para a emer-
gência da desoccupação portugueza e autonomia da Banda
Oriental, a delimitação pendente com a metrópole e que
em 1819 fora do modo mais pratico fixada no terreno pelo
conde da Figueira, capitão general do Rio Grande do Sul
e delegado para tal fim nomeado pelo governo portuguez, e
pelo delegado do Cabildo que proclamava representar a
suprema auctoridade da Banda Oriental, D. Prudencio
Morguindo.
A fronteira accordada entre o Reino do Brazil e a que
seria no dia seguinte sua provincia demarcada pelo curso
do Uruguay e estuário do Prata, precavia qualquer even-
tualidade de reconquista hespanhola ou absorpção platina,
fazendo correr a linha divisória da foz da lagoa de Cas-
tillos, pelos alagados parallelos á costa, até a lagoa Mirim,
d'ahi torcendo para o rio Jaguarão, attingindo o rio Negro
e seguindo as cumiadas dos serros até as nascentes do rio
Arapehy, cujo curso acompanhava até desemboccar no Uru-
guay (i).
(1) Handelmann, Geschichte von Brasilien. Esita foi a linlia que
veio a prevalecer com o recoBliecimeiíto, a 27 de Agosto de 1828, da
Rapublica independente do Uruguay, que não deixou logo depois de
roclamar a fronteira, mais fa-voímvel, do tratado de 1777.
CAPITULO XVIII
ADMINISTRAÇÃO E JUSTIÇA. OS INTERESSES AGRÍCOLAS E
INDUSTRIAES
Mercê de uma critica sentimental mais do que de um
são discernimento, exercido como é o critério á distancia dos
acontecimentos históricos analysados e, no geral, sem exame
judicioso dos factos e menos ainda dos documentos, tem-se
ultimamente crcado uma certa lenda de que foi impeccavel a
administração brazileira do tempo de Dom João VI. Descre-
vem-na muitos como totalmente differente da que a prece-
deu, e progressiva e moralizadora ao ponto de poder servir
de modelo perpetuo para as administrações subsequentes.
A verdade está em que, conforme temos ido verificando,
o Brazil lucrou extraordinariamente com a trasladação da
corte, porque adquiriu o que lhe escasseava no pleno regi-
men colonial — desafogo para a sua população, no domínio
económico e politico, e consideração por parte dos poderes
públicos, de que não andasse excluída a deferência. O go-
734 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
verno porem, segundo já ficou igualmente notado ao ser con-
tada a acção treffega de Linhares, não se limpara da sua
mancha original.
Escrevia Hippolyto com sal no Correio (i) que esse
governo novo fora arranjado pelo Almanack de Lisboa. Es-
tabeleceram-se no Rio de Janeiro um Desembargo do Paço,
um Conselho de Fazenda, uma Junta de Commercio, sim-
plesmente porque existiam em Portugal: não se indagou ab-
solutamente si o Brazil carecia muito ou dispensava aquellas
fundações. "Precisava-se porem no Brazil, pela natureza
do paiz, um conselho de minas, uma inspecção para aber-
tura de estradas, uma redacção de mappas, um exame da
navegação dos rios." De nada d'isto se cuidou logo por não
constarem taes cousas do Almanack de Lisboa, roteiro da luza
administração.
Accresce, na opinião de Hippolyto, que de semelhantes
instituições judiciarias, administrativas ou consultivas, al-
gumas eram pesadas mesmo em Portugal, sobre serem quasi
inúteis no Brazil. EUe citava como exemplos o Conselho de
Fazenda; a Meza da Consciência e Ordens, que possuia
jurisdicção no eivei, confiada ao clero na pessoa do vigário
de vara, de cujas decisões havia recurso para o vigário geral,
e jque servia também de juiz dos casamentos, sendo o seu
consentimento indispensável ás uniões, e o Supremo Conse-
lho Militar, cuja auctorização era necessária para ser um
official, mesmo da milicia, processado por um paisano, da
mesma forma que, quando era um padre o demandado, ao
juiz ecclesiastico cabia julgar. Este ultimo conselho era o
que decidia sobre as prezas, mas o estado de paz do Brazil
(1) N. 30, Noyembro de 1»10.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 735
(a guerra de Montevideo não começara ainda) e a insigni-
ficância do seu poder militar tornavam fútil o motivo para o
dispendioso e dispensável ornamento burocrático.
Entendia Hippolyto que os trabalhos da Meza da
Consciência e Ordens bem podiam ser despachados uma vez
por semana pelo capellão-mór, e os do Conselho de guerra
pelo general em chefe com dous officiaes da secretaria. Tâo
geral e servil apparecia comtudo a imitação, que até para o
regimento da alfandega do Rio se foi buscar por modelo o
foral da alfandega de Lisboa, creando-se, com o fim de evitar
o escandaloso contrabando, as mesmas duas classes de guar-
das e outras disposições em tudo idênticas ás que na capital
do Reino tinham sido estabelecidas. Nem se lembravam os
conselheiros do monarcha, segundo- apurava o periodista,
que o Tejo é, até defronte da cidade, um rio estreito, com-
parado com a ampla bahia de Guanabara, n'esta "desa-
guando 14 rios navegáveis para onde se podem mandar
lanchas e botes a toda a hora" (i).
O Correio Braziliense, com ser o único periódico por-
tuguez do tempo que podia manifestar independência, por-
que se editava fora dos dominios reaes e tinha á sua frente
um homem de espirito desassombrado e clarividente, consti-
tue o melhor, senão o exclusivo (2) repositório das falhas
da administração brazileira. O jornalista catava-as escru-
pulosamente para expol-as á luz da publicidade, e não ces-
sava sobretudo de verberar os famosos capitães generaes do
ultramar, que a mudança da corte não afugentou, no maior
(1) Correio BraMit^rHC, n. cit.
(2) Em 1813 fundou-se em Londres, sob a direcção do Dr. João
Bernardo da Rocha, outro periódico — O Português — do mesmo género e
orientação do Correio.
736 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
numero militares analphabetos de boas casas que se pejavam
de mandar seus filhos receberem em Coimbra graus aca-
démicos e ganharem uns vislumbres de illustração.
Hippolyto, si não foi propriamente venal, no sentido de
pôr em almoeda a sua penna de pamphletario, não foi toda-
via incorruptivel, pois que se prestava a moderar seus ar-
rancos de linguagem a troco de considerações, de distinc-
ções e mesmo de patrocinio official. "Eu tenho-o contido
em parte até qui com a esperança da subscrição que pede, es-
crevia para o Rio o embaixador D. Domingos de Souza Cou-
tinho (i). Eu não sei outro modo de o fazer calar. Pago o
jornal pode-se dictar. . . O Redactor tem igual talento para
o bem e para o mal; e se o livro se fizer de todo inocente,
pode-se fazer útil e destribuil-o. Em todo o caso eu dezen-
carrego a minha consciência para o futuro. Disputar he es-
cuzado n'este Paiz — já se vio o que José Anselmo queria
fazer atacando-o. As respostas que sahem em Lisboa, são
peiores que a moléstia. S. A. R. rezolverá o que for mais
do seu Serviço."
Hippolyto incontestavelmente tinha coragem, era do-
tado de liberalismo, lançava vistas sadias e adiantadas sobre
a administração publica portugueza; mas o seu ódio ao em-
baixador e os seus ataques virulentos contra os Souzas (Li-
nhares, Funchal e o Principal Souza, membro do Conselho
de Regência do Reino) eram filhos mais do despeito que
da sinceridade. EMe não fizera entretanto da opposição uma
mercancia, isto é, descobrira que o melhor meio de ganhar
dinheiro, de bem espalhar o seu periódico, fosse o aggredir
(1) Officio de 14 de Abril de 1810, no Arch. do Min. das
Eel. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 737
a torto e a direito. Nem se pode dizer que o interessasse
tanto o auxilio pecuniário, visto que o Correio se vendia
muito em Londres — todos os Portuguezes e os Inglezes em
relações com Portugal e Brazil compravam-no e exporta-
vam-no — como o seduzia o facto de ser tratado como uma
potencia.
Estava por isso prompto a sopitar os seus ardores de
censor e pôr de lado discussões irritantes de personalidades,
si chegassem a certos accordos com elle. Visava comtudo
mais ainda do que á contribuição, á deferência, desejando
que o governo impedisse actos como o do governador do
Pará, José Narcizo de Magdhães, que contrariado com al-
gumas reflexões cáusticas do Correio, mandara confiscar os
exemplares recebidos e entrarem os possuidores para o Erá-
rio com a importância dos mesmos. ''Agora com muita reni-
tência, escrevia D. Domingos, custou a alcançar que suppri-
misse hum artigo virulento, que tinha já impresso, contra
J. Narcizo de Magalhães..." Chegou o jornalista a compro-
metter-se algum tempo, na phrase do embaixador, "a escre-
ver para utilidade publica e não para fazer ataques pes-
soaes". (i)
Funchal preoccupava-se mais do que queria confessar
com a opposição do Correio. Os governadores do Reino
então e o Secretario do Governo, Miguel Pereira For jaz,
especialmente, esses nem dissimulavam sua irritação. Hippo-
lyto naturalizara-se Inglez: não podia portanto ser expulso
á solicitação da embaixada, segundo acontecera com José
Anselmo Corrêa. Depois, gosava da amizade do Duque de
Sussex, irmão do Principe Regente da Grã Bretanha, que o
(1) Offlcio cit., ihi-dem.
738 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
recommendara com calor em carta autographa ao Príncipe
Regente de Portugal, (i) Não restava pois mais do quc
entenderem-se amigavelmente o potentado da imprensa e o
da diplomacia.
A correspondência entre Funchal e Vicente Pedro No-
lasco da Cunha, que depois foi com o apoio da embaixada
um dos fundadores do Investigador Portugucz, inventado
para servir de contrapeso e dar o troco ás invectivas do
Correio, não permitte duvidas sobre o ensaio de intelligen-
cia com o periodista. " Torno bem a meu pezar a impor-
tunar a V. Ex.» a respeito do Correio Braziliense, cujo Editor
está impaciente de ver que eu não me resolvo a aceitar a
proposta que elle me fez, e com a maior difficuldade con-
tinua a prestar-se aos conselhos que por via do Dr. V. P.
Nolasco da Cunha lhe mando continuamente, para que não
nomeie individuos, transformando assim o seu jornal em
hum libello..." (2) Por outro lado queixava-se V. P. No-
lasco da Cunha em carta ao embaixador da falta "dos meios
daquella agencia que aplana as maiores difficuldades".
D. Domingos de Souza Coutinho até ahi não opinava
mesmo pela fundação de outro jornal londrino, preferindo
(1) Esta missiva era acompanhada de uma nota a Funclial
coTiceibida nos seguintes termos: "Tlie duke of Sussex, is extremely
anxious that some act of favour may be conferred on IMr. Hipólito
da Costa in order to do awsy the unmerited stigma, which the intri-
gues of Monsicur do Lima (1). Lourenço fie Lima) and IMna Manique
havc brought upon liim. Porhaps Mr. de Souza might find liim a very
usefui person to be employed in the commission relative to the com-
mercial concems with the Brazils. The duke of Sussex can answer for
his zeal and cleavemess." A carta, que se encontra no Arch. do Min.
das Rei. Ext., é datada df Ken.sington Palace, Saturday morning, sem
menção porém de mez ou anno.
(2) Officio a Linhares de 9 -de Maio de 1810, no Arch. do Min.
das Rei. Ext. Funchal ajunta : "Eu não desespero de poder vir a
saber os nomes das Pessoas dessa Corte que lhe fizerão grandes offe-
recimentos para escreYer particularmente contra mim a V. Ex "
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 739
amaciar Hippolyto a assistir ao espectáculo, que lhe repu-
gnava, de luctas de imprensa. O digno diplomata era de pare-
cer que com gazeteiros o melhor é não se ter grandes intimi-
dades nem grandes discussões : apenas rebater directamente,
mas pelo suborno, sem alarido, as falsidades que elles disse-
rem. "Respostas ao dito Editor, a julgar pelas que J. Anselmo
Corrêa aqui publicou, e pelas que ahi tem sabido, só servem
de despertar a bile do Redactor ; e com gazeteiros geralmente
não convém mais correspondência do que a prova de alguma
falsidade que elles dizem". ( i )
Funchal e Hippolyto eram de resto dous caracteres que,
nas circumstancias em que se achavam, jamais poderiam con-
ciliar-se ou manifestar sympathia um pelo outro. O embai-
xador apparece-nos um exemplar completo do diplomata
muito vulgar então como hoje: burocrata, occupando-se sem
cessar dos pequenos assumptos tanto quanto ou mesmo mais
do que dos grandes, pensando no remanso da sua chancella-
ria que ninguém no mundo trabalhava como elle, um nada
jactancioso na certeza de que os mais graves interesses da
monarchia lhe andavam confiados, ávido bastante de honra-
rias. (2)
íl) Carta de B\nichal ao Cardeal Patriarcha Eleito de Lisboa
tíe 18 de Abiil de 1810.
(2) Vejam-se estes dous trechos de ofificios seus, de 3 de Ja-
neiro de 1810, para o irmão no Rio : "Agora á vista de todo este tra-
hallio, í^spero que V. Ex. (contra o seu louvável costume aliaz) falle
ao Augusto Príncipe Regente N. S. a favor de hum irmão de V. Ex.
que he a única Pessoa que não tem sido premiada, e que parece que
he a única qxie não merece de o ser " "Presumo que V. Ex. não
adharíi que se trabaliha pouco n'esta Secretaria. Eu ao menos p.'la
|)arte que me toca, partido que se.ia o paquete, volto para Worthing
a renovar com o ar do mar a minha cabeça que com tantos alga ri -í-
mos já comega a andar a roda." (Aroh. do Min. das Rei. Ext.)
Worthing era a residência preferida do embaixíidor. a quoai
Hiippolyto mais taixJe accusou de tel-a mobilado luxuosamea';e A casta
do Thesouro.
740 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Funchal não era todavia o imbecil por que Hippolyto
o qurz depois fazer passar, perseguindo-o com suas verrinas
até quando transferido para Roma o embaixador. Mallo-
grara-se, é de ver, o accordo esboçado, estando rotas desde
algum tempo todas as negociações nesse sentido. ''Não estou
bem persuadido, commentava Funchal, ( i ) que deixo de
ganhar pessoalmente na mudança, porque o espirito de
Intriga, e de Maldade he tão geral, que em vez de me louva-
rem pela tentativa secreta de moderar, e afinal vir a annul-
lar os perversos fins que tem dictado este Jornal, parece-me
evidente que me querião fazer responsável de todos os des-
varios deste homem. Agora elle por si responde".
Dado o caracter de Hippolyto, qualquer accordo era
mesmo difficil. Não se tratava, é mister conservar presente,
de um vil pamphletario mercenário, sim de um temperamento
bilioso, de um espirito irrequieto e fogoso, de uma intelli-
gencia illustrada e perfeit^^^mente convencida das suas prefe-
rencias reformadoras. Apenas achava-se o escriptor disposto
a temperar a rispidez dos seus ataques. Não alienaria a con-
sciência, somente abrandaria a forma. Deixar-se-hia manejar,
não arrastar. Attendia a considerações pessoaes, mas de or-
dem moral mais do que material. Tinha a obsessão dos car-
gos officiaes, a am'bição da confiança do governo. A troco
d'esta, posto não abdicasse suas idéas e predilecções, alteraria
sua maneira. As perseguições soffridas em Portugal tinham-
Ihe azedado o caracter, dotando-o de uma fácil irritação. (2)
(1) Corresjp. da Emteixada em Londres, no Arcih. do Mie. das
Rei. Ext.
(2^ D'elle escrevia a Funchal o barão de Eben, que militai-ano
exercito portuguez e conhecia o publicista : "Mr. da Costa a un c.i-
ractèe três ferme, et même outré, peut-être aigri par ses malheurs.
II a du talent, et serait un ami utile, aussi qu'il peut être un ennemi
dangereux." (Arch. do Min. das Rei. Ext.)
DOM JOÃO VI NO BRAZTL 741
O escriptor carecia a seus próprios olhos de importância
emprestada pelo poder: seria precisa esta rehabilitação pu-
blica para tornal-o ameno. Foi dest'arte um demolidor em
parte á força, que rejeitaria porventura gratificações, mas
não engeitaria de certo posições.
Comtudo observava Palmella, ao tempo da sua missão
londrina, que o Correio Braziliense tinha, desde certa epocha,
quasi cessado seus ataques á legação e ao governo, * 'sendo
voz publica em Londres entre os Portuguezes, que elle
recebe para esse fim uma pensão da nossa Corte". ( i )
E' facto que a linguagem do jornalista se modificou sensi-
velmente depois da partida de Funchal, podendo filiar-se o
caso n'uma antipathia pessoal, de sobejo conhecida. Nem Pal-
mella adopta a imputação, reproduzindo-a somente como
supposição; entretanto não lhe deviam faltar meios de certi-
ficar-se da realidade. Hippolyto, ajuntava Palmella, despi-
cava-se aliás com usura no Portuguez, começado e conti-
nuado debaixo da sua influencia e protecção, da forçada e
calculada moderação applicada ao Correio.
D'este ou d'aquelle modo é no Correio que devemos ir
buscar o mais seguro esteio de um juizo franco sobre a admi-
nistração e a justiça no Brazil em tempos d'El-Rei Dom
João VI. Ha na sua coUecção copia de dados curiosíssimos,
mesmo sem querer lançar em carga o clássico desmazelo
official, de que dá testemunho, entre outros documentos
alli estampados, uma carta do Infante Dom Pedro Car-
los, (2) a quem o favor do tio Príncipe Re^^ente fizera al-
mirante da esquadra portugueza.
(1) Offkio reservado de 5 de Janeiro de 1817, versando espe-
cialmente sobre a imprensa portugneaa na Inglaterra. (Areh. do Min.
das Rei. Ext.)
(2) Datada de 29 de Maio de 1809.
742 DOM JOÃO VI NO BRAZTL
N'ella se queixava o Infante hespanhol, com a violên-
cia própria do seu temperamento e da sua falta de educação,
ao Presidente do Erário, marquez de Aguiar, do atrazo nos
pagam.entos da repartição da marinha, única que parecia estar
fora da geral distribuição de favores e graças. Chegava a de-
verem-se as ferias dos operários — systema com que se lhe
afigurava impossivel conservar os bons artistas de constru-
cções navaes.
Adduzia Dom Pedro Carlos a propósito considerações
meio descabelladas, mas cheias de razão, sobre o papel e
importância da marinha que salvara a monarchia, ligava
suas partes integrantes, protegia sua defeza, amparava o
commercio e fazia conseguintemente viver o Estado. No
emtanto era de tal ordem a condição das cousas navaes que,
tendo partido a concertar na Inglaterra, logo apoz a che-
gada da familia real ao Rio de Janeiro, uma nau, uma
fragata e um brigue, a nau perdeu-se em Cadiz, a fragata
deu á costa em Cabo Verde, e o brigue, com a primeira tem-
pestade que apanhou, deitou a artilheria ao mar porque
lhe tinham mettido a bordo peças de calibre mais pesado do
que o devido.
D'outra feita, mandaram do Rio uma nau á Bahia e
Pernambuco buscar o dinheiro recolhido nos seus cofres,
verificando-se, no regresso, que a despeza da viagem íôra
superior * ás sommas transportadas. Os naufrágios e perdas
por capturas occorriam tão frequentemente que Hippolyto
escrevia em 1810: ''brevemente nos pouparão o trabalho de
noticiar mais percas desta natureza porque já não haverá
esquadra em que fallar". Continuou, porém, tanta a desidia
1
DOM JOÃO VT NO BRAZIL 743
que em 1820 narrava IVIaler (i) que os 52 contos men-
saes attribuidos ao IVIinisterio da Marinha não eram pon-
tualmente entregues, antes muitas vezes se derivavam para
outras applicações, sendo até com aquelle dinheiro pago um
picadeiro que o Principe Real mandou construir perto de
São Christovão.
Peiores do que o desleixo appareciam os abusos not 'cia-
dos pelos correspondentes do Correio, para os quaes consti-
tuia este uma preciosa válvula de desabafo. Ora são dividas
mandadas pagar entre partes por execução militar, sem pro-
cesso judicial; ora um individuo mandado prender por ter
movido a outro um pleito em justiça; ora uma camará mu-
nicipal reprehendida e desauctorada por haver representado
contra uma nomeação do governador. Para os crimes dos
governadores militares, d'aquelles que se mostravam verda-
deiros régulos, não havia de facto punição nas leis: cha-
mavam-se excessos de jurisdicção e o soberano os censurava
"em palavrosas cartas regias, dando-se como mal servido por
aquelles desastrados agentes, aos quaes não cabiam todavia
penalidades pelos delictos commettidos. A' parte prejudicada
restava intentar acção de perdas e damnos, o que era sempre
— então mais ainda do que hoje — um processo difficil, dis-
pendioso e de resultados problemáticos. Não se deveriam
entretanto qualificar de crimes privados, antes de crimes
públicos, ''excessos de jurisdicção" que abrangiam prisão,
sequestro e quejandas violências.
Melhor em todo caso do que viver reprimindo-os, fora
prevenir taes attentados por meio de uma completa mudança
(1) Aroh. do Min. dos Neg. Est. de França.
744 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
no systema colonial de administração, que continuou quasi
o mesmo para as capitanias depois da trasladação da corte,
apenas sendo em certa medida, sensivelmente, porém, alte-
radas— até a Independência que veio revolucionar tudo —
as condições do governo na capital. Justificava-se, pois, ple-
namente o que dizia em sessão um membro da Camará dos
Communs, que o apodrecido governo de Portugal passara
para o Brazil, afim de continuar os mesmos prejuizos e igno-
rância que já não pudera sustentar na Europa.
E' porém de justiça registrar que o alvará de lO de
Setembro de 1811, no intuito de melhorar esse estado de
cousas tradicional, mandou estabelecer nas capitães dos gover-
nos e capitanias dos dominios ultramarinos, juntas cuja
missão era resolver aquelles negócios que antes se expediam
pelo recurso á Meza do Desembargo do Paço, localizando se
portanto mais, em beneficio das partes, a distribuição da
justiça e contrastando-se de algum modo a tyrannia dos
governadores.
O mal era comtudo mais fundo e o não podiam curar
meras mudanças de expediente. O poder continuava absor-
vente e na própria corte imperava uma baixa cortezanice
Para formar uma idéa do grau de lisonja de que apparecia
indelevelmente colorida a attitude dos vassallos para com a
coroa, basta attentar na linguagem dithyrambica dos pane-
gyricos económicos de Silva Lisboa, em que cada melhora-
mento, por mais simples — a installação de uma typographia
ou a creação de um curso commercial — se descreve como uma
graça celeste, e no exaggero repugnante de certas allocuções,
como a dos cavalleiros de Malta delegados para agradece-
rem a Dom João um elogio publicamente feito aos serviços
prestados pela Ordem durante as invasões francezas, na qual
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 745
O Regente foi tratado sem pejo de "emanação a mais pura
da essência divina". E praticamente assim era, pois que os
avisos expedidos por ordem sua tinham força de lei e valia
suprema.
Si por parte dos agentes da auctoridade havia o desco-
nhecimento dos direitos e bens individuaes, e, nas suas rela-
ções com os governados, falta de responsabilidade efficaz,
pechas que ao tempo não eram somente portuguezas, appa-
recendo igualmente communs os rigores policiaes, não havia
menos falta de segurança e probidade na gestão dos dinhei-
ros públicos. Ao cabo de dez annos de residência da corte
portugueza no Brazil escrevia Maler para França ( i ) que
as finanças do novo Reino se achavam na mais desgraçada
situação, drenado o thesouro e esgotados todos os expedientes
e as meias medidas. O encarregado de negócios francez, na
sua constante opposição á expedição de Montevideo, consi-
derava o custeio do exercito de Lecor e da estação naval do
Prata as razões capitães d'esse atrazo financeiro, a que era
difficil fazer frente; mas na verdade podiam-se-lhe apontar
causas múltiplas.
O contrabando era muito espalhado, e n'uma escala
tão avultada, que chegava Hippolyto ao ponto de escrever
que mais proveitoso seria arrendar-se a administração das
alfandegas do que cobrar o governo directamente as taxas.
D'essas alfandegas desfalcadas pelos roubos dos negociantes,
dos despachantes e dos conferentes, mandava no emtanto o
governo do Rio consignar em 1811 na proporção de 60, 40
e 20.000 cruzados para as alfandegas da Bahia, Pernambuco
e Maranhão respectivamente, a quantia de 120.000 cruza-
(1) Oífkio de 23 de Dezeiubro de 1817, no Arch. do Min. dos
Neg. Est. de França.
D. J. — 47
746 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
dos annuaes como garantia do serviço de juros e amortiza-
ção de um empréstimo de dous milhões de cruzados, juro de
5 por cento, que se mandava aos Governadores do Reino
diligenciassem obter no paiz para soccorrer a miséria parti-
cular proveniente da occupação estrangeira e acudir ás de-
vastações causadas pelas incursões francezas.
Em compensação, ou talvez mais como prolongamento
d'aquella medida protectora dos vassallos europeus da monar-
chia, publicavam-se editaes convidando artifices, especial-
mente de certas e determinadas profissões, a emigrarem para
o Brazil e ahi se estabelecerem.
Dir-se-hia que a seriedade timbrava em não comparecer
em um só dominio administrativo e em mostrar-se incompa-
tível com essa politica mesquinha, de pequenos embaraços e
grandes difficuldades para tudo, que era a dominante e
confundia a meticulosidade com a fiscalização e a oppressão
com a gravidade. Em departamento algum eram, porém,
os regulamentos fiscaes tão draconianos (i) quanto no dis-
tricto dos diamantes, no Serro do Frio, e ahi mesmo a cada
passo se illudiam.
Conta Mawe (2) que lá foi, o primeiro d'crjtre os
estrangeiros, com permissão muito especial de Linhares,
escoltado por dous soldados, que pensava não poder pôr a
vista sobre outros diamantes alem dos do Thesouro, por
áerem todos monopólio da Coroa, servindo uma parte para
fazer-se com o producto em Londres o serviço do emprés-
timo; mas que verificou com grande surpreza que "se troca-
(1) Aliás na própria Inglaterra existia então muita severidade
na manutenção do segredo das suas manufacturas e fabricas, sendo
mesmo prohibid^ a exportação de certas machinas agrícolas, não so
industriaes .
(2) Traveis in the interior of Brazil.
I
DOM JOÃO VI NO BRAZtL 747
vam diamantes por todas as cousas e eram mais correntes do
que a moeda". ( i ) Os navios de guerra ingleses sabia-se
que traziam de volta mais diamantes por conta de parti-
culares do que por conta do governo.
O mesmo acontecia com os outros monopólios da Coroa.
O contrabando do pau-brazil era constante pelo Cabo Frio
e praticava-se em avultada escala mesmo dentro dos arrecifes
de Pernambuco. A frequência e insistência com que nos alva-
rás e leis do tempo se falia da escrupulosa indagação que
devia presidir á escolha dos funccionarios encarregados de
executar uns e outras, e se trata da minuciosa fiscalização
que era necessário exercer sobre as extorsões e venalidades, são
a melhor prova do quanto estas abundavam.
Por isso, por as não favorecer o meio, muitas tentativas
da administração falharam e pela maior parte se adultera-
ram, mau grado a iniciativa de Linhares, cujo principal de-
feito era não ser correspondida, nem sequer comprehendida,
e a largueza de vistas de Barca, que em outros tempos che-
gara a ser apodada de traição, não lhe havendo faltado vitu-
périos porque a invasão do território portuguez pelos Fran-
cezes se deu mais promptamente do que se calculava, e
Araújo era conhecido como eivado de certo liberalismo,
necessariamente francez.
(1) E' curioso o que conta Ilippolyto no Correio d'este conhe-
cido viajante, cuja obra foi muito lida e traduzida para varias línguas.
Ao que parece, não passava Mawe de um joalheiro de Londres que,
fi sombra de saher fazer manteiga, teve artes de conseguir a protecção
de lord Strangford e do conde de Linhares e logrou visitar -com todas
as attenções e isenções o districto diamantino, sem mesmo se lhe exa-
minar no regresso a bagagem. O que vinha nos alforjes constou mais
tarde dos seus annuncios nas gazetas de Londres e da sua montra
no Strand. Em todo caso, pelo que mesmo se deprehende da sua cor-
respondência com Funohal, era Mawe entendido em engenharia e â sua
obra, a primeira das publicadas sobre Minas Geraes fora de Portugal,
offerece muito interesse.
748 DOM JOÃO VI NO BRAZlf.
Aquella corrupção na applicação das idéas era um mal
que vinha de traz e que se prolongaria pelo tempo adiante.
Esforços individuaes, isto é, a resistência poderosa da hones-
tidade pessoal de certos governantes podia, servindo de
dique, contrarial-a, impedil-a momentaneamente de mani-
festar sua influencia devastadora, mas a onda refluia somente
para melhor se arremessar, quando não carregava no reti-
rar-se boas intenções e projectos felizes.
Entre muitas outras cousas excellentes, tentou o go-
verno de Dom João VI implantar no Brazil a immigração
estrangeira que espiritos desannuviados como o de Hippolyto
preconizavam, com vista em adiantar a agricultura e as
artes, povoar o vastissimo paiz quasi deserto, melhorar tanto
no physico como no moral, inoculando-lhe sangue europeu
e idéas européas, a espécie humana que n'elle habitava, e
preparar por fim a abolição da escravatura.
Linhares tivera um projecto de colonização chineza,
com o fito sobretudo de ir substituindo o braço servil cuja
fonte a Inglaterra ameaçava estancar pela suppressão do
trafico. Talvez o objectivo do governo do Rio fosse —
segundo julgavam as instrucções dadas ao coronel Maler
por occasião da sua nomeação para o Brazil (i) — nacionali-
zar alguns estabelecimentos de industria, mais mesmo do que
adquirir cultivadores.
A França preferia naturalmente que qualquer corrente
emigratoria se dirigisse para as suas colónias, mas não dei-
xava de encarar a hypothese da escolha recahir de prefe-
rencia no Brazil, insinuando que o governo portuguez devia
(1) Arch. do Min. dos N^g. Eet. de Framca-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 749
animar por meio de concessões de terras ou outras vantagens
a colonização européa. E tanto parecia esse governo dis-
posto a entrar em tal ordem de idéas que fez em Cantagallo
uma experiência de colonização suissa, denominando-se o
lugar Nova Friburgo.
Todos sabem, porém, que o ensaio foi na pratica um
fiasco. Antes mesmo da chegada, pois que, devido ás ruins
accommodações a bordo e falta de disposições tomadas em
prol dos immigrantes pelo que diz respeito á hj^giene, 8o ou
perto d 'isso morreram durante a travessia. Friburgo vingou
como aprazivel estação de verão, mas agricola e economica-
mente ficou uma colónia nulla. Debret ( i ) particulariza as
razões do mallogro, devido no seu entender: i° a que, dos
fundos destinados pelo governo para o conveniente estabe-
lecimento dos immigrantes, alguns foram distrahidos, ape-
zar da commissão nomeada especialmente para superinten-
der sua applicação; 2- a extravios e roubos occorridos por
occasião do transporte dos objectos de propriedade dos colo-
nos, entre elles utensilios indispensáveis de lavoura, que ti-
nham vindo em caixotes demasiado volumosos para serem
carregados ás costas de mulas, tornando-se preciso abril-os
afim de dividir os fardos; 3^ á falta de previsão administra-
tiva revelada na escolha infeliz do local comprado por bom
preço n'uma difficil região montanhosa, do que resultou mais
tarde ficarem os colonos privados, por falta de communica-
ções fáceis, da exportação dos seus productos agricolas,
quando havia em Minas e São Paulo tanta extensão des-
occupada, accessivel e de clima igualmente sadio e agra-
dável.
(1) Yoyage pittoresque.
750 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Além de tudo havia a circumstancia, referida por Pai-
mella, (i) de não ser a composição da colónia o que se
devia desejar, apparecendo o numero de velhos, de crianças
e de mulheres excessivo em comparação com o dos adultos
masculinos. Aliás, na informação de Maler. (2) nem sequer
se achavam então as terras promptas para a distribuição em
lotes, de sorte que annos depois estavam ainda os bemaven-
turados colonos comendo dos viveres que o governo diaria-
mente lhes fornecia.
Melhor, ainda assim, aquella inferioridade numérica,
de homens úteis para o cultivo dos campos, do que o rebu-
talho das galés de Nápoles, cedido á corte do Rio para ser
collocado como elemento de trabalho no Brazil e de que o
cônsul geral Lesseps (3) menciona a passagem por Lisboa,
em duas fragatas napolitanas, de 200, dos 3.000 promettidos.
Era um género cuja exportação não podia prudentemente
effectuar-se por atacado.
Sorte mais prospera do que os Suissos tiveram os nume-
rosos immigrantes da mesma raça portugueza que affluiam,
engajados ou mais commummente espontâneos, entre elles
os novos casaes de Açorianos mandados expressamente vir
para fomento da agricultura e espalhados da Bahia para o
(1) Corresjp. da Leg. em Londres, bo Arch. do Min. das Rei.
Ext. Este officio foi escripto quando arribou á costa ingleza um dos na-
vios que transportavam os suissos contratados por um agente de nome
Grasset.
(2) Officio de 26 de Janeiro de 1820, no Arch. do Min. dos
Nog. Est. de Franíja. "II se.rait impossible. escreve o encarregado de
negócios de França, de faire plus de depense pour une colonie quel-
conque, ot on ne peut étre plus ingenieux à en perdre le fruit."
(3) Officio de 5 de Abril de 1820, iUdem,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 751
Sul, fornecendo-se-lhes instrumentos de lavoura, sementes,
casas de habitação, gado para os trabalhos ruraes e subsidio
pecuniário para sustento dos dous primeiros annos. Favor
superior a estes, foi-lhes outorgado e aos filhos, e bem assim
aos casaes que de futuro se transportassem dos Açores para
o Brazil, isenção do recrutamento para a tropa de linha e do
serviço nos corpos de milicias. ( i )
A communidade de lingua, religião e origem constituia
uma grande vantagem para semelhantes colonos, tornava-os
nacionaes n'outro continente, quando não fossem súbditos de
um mesmo monarcha. Si a administração publica apresen-
tava maculas e se exercia em parte por vexações, eram umas
e outras as que existiam na terra donde elles tinham emi-
grado. Não havia surprezas desagradáveis. O pesado systema
tributário — a forma mais palpável e inilludivel da acção go-
vernamental— era idêntico ou quasi, porque dentro mesmo
dos limites do Brazil, os impostos cobrados directamente
pelas auctoridades ou arrecadados pelos contratadores diffe-
riam apenas nas verbas menos importantes entre as diversas
capitanias, as quaes entretanto possuiam, como as provin-
cías da China, cada uma sua administração financeira inde-
pendente.
Da mesma forma que na China o likin, lançava-se no
Brazil novo imposto, que variava de um para outro, no regis-
tro de fronteira de cada capitania, de sorte que por exemplo
uma mula do Rio Grande do Sul, cujo preço primitivo or-
çava entre 12 e 15 piastras, pagando uma porção de vezes
il) Decreto de 16 de Fevereiro de 1813.
752 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
um direito de 1.200 a 2.000 réis, chegava á Bahia ou Per-
nambuco pelo dobro ou triplo do seu valor. ( i ) Só depois da
partida de Dom João VI foram abolidos com os monopólios —
certamente para crear um novo laço de união entre as pro-
vincias ^ estes direitos de entrada, muito productivos.
O contribuinte brazileiro dos começos do século XIX
não podia dizer que andava ligeiramente taxado, e não era
por certo culpa d'elle si a receita do Estado não chegava
para as despezas. Além do dizimo tradicional de todos os
productos agricolas, pescarias e gado, que pertencia ao mo-
narcha como grão-mestre da Ordem de Christo; dos direitos
aduaneiros de exportação sobre todos os géneros (2) ; dos
-direitos de importação sobre quaesquer mercadorias segundo
a pauta já conhecida, (3) tinha aqueile contribuinte que
(1) Os direitos muito consideráveis e repetidos em cada alfan-
dega de fronteira, sobre os bens e géneros exportadas de uma para
outra capitania, eram cobrados segundo o peso, tanto para as substan-
cias pesadas como o chumbo e o ferro, como para artigos leves como a
seda. A arroba pagava de entrada em Minas" 720 réis, com excepção
do sal, que d'antes havia constituído estanco rendendo 48 contos por
anno e passara a pagar 450 róis por arroba, vindo em grande parte
.do Reino porque o produzido em Pei-nambnco, Cabo Frio e Rio Grande
aipenas dava para o consumo local. Cada negro importado em Minas
pa-gava a taxa de 7$800 réis no registro de fronteira da capitania.
Cada cabeça de gado vaccum, muar ou cavallar que atravessava o Rio
Paralhybuna pagava 2 patacas (640 réis) ; cada pessoa 1 pataca (320
réis). Cada passaporte visado custava 2 patacas, e os vistos exigiam-se
freiquenteimente.
(2) Os direitos de exportação não eram os mesmos nos diffe-
rentes iporrtos. O algodão pagava, em 1812. 600 réis por arrdba. O as-
sucar branco pagava no Recife 60 réis por arroba e o mascavado
.*?0 réis. No Rio todos os productos embarcados soffriam a taxa uni-
forme de 2 por cento. Os direitos cobrados em Pernambuco regulavam,
com os preços alli correntes, 6 a 10 por cento sobre o valor do género
exportado. N'outros casos a proporção era comtudo menor.
Í8) A alfandega do Rio de Janeiro, segundo a informação de
Hendcrson (ob. cit.) que no Bi*azil exerceu funcções consulares e lidava
portanto com estes algarismos, rendia nos últimos tempos da estada
de Dom João VI .''•OO a 600 mil libras esterlinas por anno, das quacs
o cammercio inglez pagava mais de metad«.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 753
entrar para o Erário com uma porção de impostos especiaes
que comprehendiam nos últimos annos do reinado, salvo
algumas pequenas modificações locaes :
I" — o subsidio real ou nacional, representado por di-
reitos sobre a carne verde, os couros crus ou curtidos, a
aguardente de canna e as lãs grosseiras manufacturadas no
paiz ;
2" — o subsidio litterario, para custeio dos mestres-es-
cola, percebido sobre cada rez abatida, aguardente distillada
e, n'algumas provincias como o Maranhão, sobre a carne
secca no interior, á razão de i pataca por 6 arrobas ;
3^ — o imposto em beneficio do Banco do Brazil^ de
12.800 réis, recahindo sobre cada negociante, livreiro e boti-
cário, loja de ouro, prata, estanho e artigos de cobre, tabaco,
etc, isentas somente as lojas de barbeiro e sapateiro;
4° — a taxa sumptuária, também em beneficio do Banco,
sobre cada carruagem de quatro e de duas rodas; (i)
5° — a taxa sobre engenhos de assucar e distillações,
maior ou menor segundo a provincia; (2)
(5- — a decima do rendimento annual das casas e quaes-
qver immoveis urbanos, taxa somente cobrada no littoral e
lugares mais populosos do interior e que não attingia propria-
mente o sertão ;
7" — a siza, que era um imposto de 10 por cento per-
cebido sobre a venda das casas e outros immoveis urbanos;
8" — a meia siza, que era um imposto de 5 por cento
percebido sobre a venda <le um escravo que fosse negro la-
dino, isto é, já tendo aprendido officio;
(1) No Maranlião este imposto ora de 12 e 10,000 réis re-
sprcti vãmente.
(2) No Maranhão a taxa era de 3.200 réis sol)re cada engenho
de moer canua, e na Bahia de 4.000 réis por cada alambique.
754 DOM JOÃO VI, NO ERAZIL
9^ — os chamados novos direitos^ representados por
uma taxa de lO por cento cobrada ou antes tirada dos salá-
rios dos empregados nos departamentos da Fazenda e Jus-
tiça.
Afora estes impostos geraes e outros, que ainda eram
muitos, abrangendo sellos, foros de patentes, direitos de
chancellaria, taxas de correio, sal, sesmarias, ancoragens, etc,
pesavam sobre o contribuinte os impostos particulares cobra-
dos pelos magistrados em dados lugares e que entravam para
o thesouro local, figurando de taxas municipaes. ( i )
Si os rendimentos não mais correspondiam aos gastos
públicos, como nos bons tempos em que o Rio de Janeiro e
outras capitanias tinham o direito de taxar-se segundo suas
necessidades, a falta estava entretanto muito mais no regi-
men do que na economia publica. O equilibrio só podia
dar-se com reformas radicaes que privassem os nobres das
commendas, pensões, bens da coroa e inúteis empregos lucra-
tivos que desfructavam e açambarcavam, ao passo que os
magistrados, que sommavam de mais como apparecia exces-
siva a multiplicidade dos tribunaes e juntas, dependiam não
menos servilmente do governo sem ao menos disporem de
boas remunerações, abertos por conseguinte ás peitas.
Não eram porém somente as despezas da Real Casa,
as pensões dos fidalgos e os desperdicios da famosa ucharia
que avolumavam e desconcertavam o orçamento do Estado:
as falcatruas e sobretudo as incurias administrativas deviam
em grande parte responder pela angustia financeira. Tam-
bém foi a má orientação do Erário, sem contabilidade seria
nem sequer escripturação que prestasse, que desnaturou e
íl I D"ostc gonei-o ora o diroito do 320 réis pago por cada ca-
hpQa de fiado exportada da comarca de Paracatú, ou o de 80 réis sobre
cada carga de algodão exportada da villa de Cayteté.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 753
acabou por destruir a excellente creação do Banco do Brazil,
pondo-o em condição de fallencia.
Segundo referem Spix e Martius, ( i ) antes mesmo da
chegada da corte portugueza funccionava no Rio um banco
nascido da união de alguns dos principaes negociantes e capi-
talistas da praça, effectuada com o fim de contribuirem para
um fundo commum em proporção com as notas por elles
emittidas debaixo da sua garantia conjuncta, visto a moeda
de ouro e prata em circulação não ser sufficiente para repre-
sentar o grande volume de capital em acção. Este banco par-
ticular chegou, no dizer dos mesmos viajantes, a gosar de
tanta confiança que muitos funccionarios públicos alli col-
locavam seus salários e os proprietários do interior, em cor-
respondência com a praça, alli depositavam suas economias.
Foi elle o embryão do Banco do Brazil, o qual se esta-
beleceu por acções, ficando cada subscriptor obrigado a adian-
tar a somma por que se inscrevia, afim de fazer circular
papel pagável á vista, e com o capital assim levantado des-
contarem-se letras pagáveis a prazo. Dos lucros das opera-
ções bancarias dividiam-se pelos accionistas no fim de cada
anno cinco sextos, retendo-se o ultimo sexto como capital
permanente ou fundo de reserva. Além d'estas especulações
privadas, era o Banco agente do governo para vender no
estrangeiro os bens de monpolio e para cobrar e receber ta-
xas no paiz, pelo que se habilitou com os meios de sacar
sobre lugares distantes, percebendo premio.
Em 1814, (2) augmentou-se o capital por meio de no-
vas acções e deu-se preferencia legal nas fallencias aos cré-
ditos do Banco sobre a massa fallida. Os favores do governo
(1) Reisc in lirasilicii.
(2) O Banco fora fundado em ISOS, sanccioiíando se os novo:?
nstatutos a 12 de Outubro.
7õfi DOM JOÃO VI NO BRAZIL
e o êxito das transacções emprebendidar. n'i!.ma terra de
crescente prosperidade material, em que esse estabelecimento
era o único instrumento de credito commercial, tendo aliás
servido de muito para disseminar o movimento e as novas
idéas mercantis, foram causa de que o Banco distribuisse
em 1815, 11.60 0/0 pelos primitivos accionistas (os que ti-
nham direito á ultima sexta parte ou ao total, depois do
augmento do capital) e 11.35 0/0 pelos novos. Km 1816 o
dividendo foi de 16.45 0/0 e em 181 7 attingiu a 22.75 0/0,
baixando no anno immediato a 17.85 0/0, motivo pelo qual
resolveu o governo augmentar os privilégios do Banco.
Desde então se desdenhavam os lucros pequenos e va-
garosos, lavrando já fundas a febre e a ganância que são
caracteristlcas da actual vida bolsista em todo o mundo.
Pelos artigos da sua fundação, destinando-se a offerecer
maiores facilidades ao commercio, o Banco obrigara-se a
descontar effeitos mercantis á taxa de 6 0/0, mas não se
restringiu a essa modicidade de ganho, logo que descobriu
que, por certos canaes e agentes particulares, lograva obter
10, 12 e 15 0/0 em empréstimos cujas garantias nem sempre
eram das mais seguras.
O governo em tudo apadrinhava o Banco, que de resto
tinha perfeito direito a todas as attenções officiaes por-
quanto suppria as necessidades do Estado, algumas vezes
emprestando sobre penhores ou sobre hypothecas de receitas
futuras. Não é mesmo exaggerado dizer que o Banco estava
á mercê do governo que, por não haver garantia formal
de espécie alguma nem de cousa alguma, se apropriaria
quando quizesse dos seus fundos ou recursos, tornando assim
entretanto illusorio ou impossível o solido credito de tal
estabelecimento.
DOM JOÃO VI NO líIlAZTL 757
De facto em 1821, quando a corte regressou para
Portugal, retiraram-se inopinadamente, sem a menor pre-
caução, importantes sommas depositadas e até diamantes da
coroa -que serviam de caução a empréstimos realizados, o
que, junto com os infalliveis desfalques e a corrida dos
depositantes que abandonavam a terra e dos que, á vista
do ágio da prata, queriam trocar as notas por metal, fez es-
tremecer o Banco nos seus próprios alicerces.
Pelas criticas constantes de Hippolyto sabe-se que a
legação em Londres funccionava como a verdadeira agencia
financial do governo do Rio ( i ) , constando d'outra banda,
pela correspondência de Funchal, que o Erário sacava a cada
momento sobre a legação, sem saber si ahi existiam ou não
sobras dos fundos realizados com a venda dos bens de mono-
pólio da coroa.
A corte, com o seu mechanismo obsoleto de producção
de riqueza e o seu apparelho de sucção da energia nacional
em beneficio das classes privilegiadas, era na verdade o
cancro roedor da vitalidade económica do paiz. EUa patro-
cinava os abusos ou pelo menos, como escrevia um viajante
da epocha, extendia sobre o que se passava um véo tão es-
pesso e impenetrável que a voz popular tendia naturalmente
a exaggerar esses abusos, que eram reaes.
Assim a corte acudia aos seus dependentes immediatos
não só com mezadas e cargos rendosos, mas até com rações
diárias de viveres, as quaes não eram desdenhadas mesmo por
pessoas bastante ricas. As despezas da ucharia de Dom
(1) Fimehal entendia convir uma administração dos contractos
reaes puramente portugueza. que o Correio BraziUcn^se dizia ironica-
mente andar por isso em mãos de negociantes e judeus amigos e co-
nhecidos do embaixador, (nn vez de s<?r confiada à representação do
Banco do Brazil.
758 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
João VI ficaram impressas na tradição popular e são ainda
hoje citadas como symbolicas da imprevidência e prodiga-
lidade da administração da Real Casa. No anno de 1818 —
o pormenor é sufficiente — consumiam-se diariamente no
Paço 620 aves, muito mais n'aquellas rações, cujo valor
subia, o das mais importantes, a 500 francos por mez, do
que na alimentação da gente mesma do palácio. Para se
fazer uma melhor idéa do desperdício, pode-se referir que
a ração diária da aia do Infante Dom Sebastião, filho do
fallecido Dom Pedro Carlos, abrangia 3 gallinhas, 10 libras
de carne de vacca, meia de presunto, 2 chouriços, 6 libras de
porco, 5 de pão, meia de manteiga (que era muito escassa
no Rio), 2 garrafas de vinho, i libra de velas, i de assucar,
café, fructas, massas e folhados, legumes, azeite e outros
temperos (i). Nas cocheiras de São Christovão cncontra-
vam-se uns 300 cavallos e muares, e outros tantos nas do
Paço da cida'de, servindo-se d'elles os fidalgos e outras pes-
soas por qualquer titulo dependentes da corte mais do que
os membros da familia real (2). E não eram poucos esses
dependentes por sobre os quaes se despejavam profusamente
as honrarias, chegando a enchente fora do Paço, ás lojas e
aos armazéns.
O rendimento publico, subindo consideravelmente pelo
aggravamento dos impostos e sobretudo pelo desenvolvimento
dos recursos e expansão da vida económica, favorecera os gas-
tos. Em 1808, no anno da chegada da familia real, a re-
ceita era de 2.258 :i72$499; em 1820, no anno anterior ao
(1) Louis de Freyclnet, Yoyage autour du monde entrepris par
ordre du Roi, execute 8ur Ics corvcttes de S. M. VUranie et la Phy-
sicknne pendant les années 1817, 1818, 1819 et 1820. Paris, 1827,
tomo I, parte I.
(2) Henúerson, ob. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL
75Í)
do regresso da corte, era ella de 9.715 :628$699, mais do
quádruplo por conseguinte. ( i )
,Não havia comtudo dinheiro que chegasse. Quando
o Rei partiu em Abril de 1821, não existia em caixa o bas-
tante para se aprestarem as embarcações da esquadra. Ape-
zar dos agentes da corte retirarem do Thesouro publico todo
o dinheiro amoedado e os diamantes, e bem assim recolherem
(1) Eis n'um succinto quadro comparativo, resumido da cons-
cienciosa obra de Freycinetj a importíiicia das principaes verbas nos
dous orçamentos de receita :
Orçamento de 1808
Rs.
Rendimento aduaneiro (importações, exportações e
taxas de consumo) 785 :0r)6$:J.j2
Mesa de insipecção (estanco do tabaco, imposto sobre
aguas ardentes, monopólio do sal, donativo etc.) . . 144 :110$õ43
Diversos rendimentos reaes (pólvora de guerra, an-
coragem, aguadia, madeiras de construcção) 1 :a30.$640
Obancellaria (dáreitos sobre cargos, sello real, etc.).. 2'» :7."39.$5õ9
Cobranças feitas pelo erário régio (propinas, dizimos,
etc.) l,-;4 :228.f300
Receitas arrendadias e estancadas, correio, subsidio
litterario, etc 79 :700$;íG2
Receitas extraordinárias 585 :942$558
Receitas diversas (amoedr-ção, etc.) 401 :981$011
Orçamento de 1820
Rendimento das alfandegas 1.719 :762$0S4
Estancos e monopólios 202 :859$9'39
Casa da Moeda (amoedaçílo, equiparação, etc.) 148 :101$487
Receitas diversas ( correio, registro, desconto nas
tenças, ipapel sellado, etc.) 3G4 :701$G81
Cara:* verde, subsidio litterario, etc 167 :096.$G05
Caixas dcs provincias 3.551 :47õ$981
Receitas extraordinárias (caixa dos defunctos e au-
sentes. Banco do Brazil, etc.) 1.544 •.977$S:"^0
Cunhagem das piastras hesipanholas, etc 3.956 :65õ$083
^'■esta ultima verba devem certamente achar-se incluídas as
parcellas bem consideráveis do dizimo e do quinto do ouro. Tollenrre,
verdade é que sem garantir a exactidão dos seus cálculos, porque dizia
elle. nada se publicava sobre receita e despeza, orçara em 1817 o
rendimento do Estado em 3 00 milhões de francos ou 40 milhões de
cruzados.
760 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
os fundos conservados nos cofres de soccorro do hospício
da Misericórdia e dos órfãos, foi preciso que o visconde do
Rio Secco supprisse os 300 contos necessários para as des-
pezas absolutamente indispensáveis d'aqu€lles aprestos.
O Erário devia ao Banco do Brazil de 8 a 10 milhões
de cruzados e outro tanto ou quasi lhe deviam particulares,
a prr.ça do commercio, o cofre da policia, etc. A Young,
Finnie e Samuel, trez casas inglezas, devia o Thesouro pu-
blico 1.200 contos, não obstante haver a alfandega rendido
50 0/0 mais no anno anterior, sem fallni* nas sobras da Bahia,
Maranhão e Pernambuco donde entretanto, segundo um
correspondente do tempo, tinham ultimamente chegado re-
cambiadas letras no valor de cerca de 500 contos (1).
A despeza crescera de facto consideravelmente: de
1 808 para 1 820 mais do que quadruplicara no papel ; na
realidade muito mais, quando não a proporção se teria man-
tido entre receita e despeza. Subia esta no anno da che-
gada a 2.297 :904$099 e no anno anterior á partida a
9.771 :iio$875. (2) As verbas que maior augmento soffre-
ram foram, segundo indica o quadro de Freycinet, as das
despezas da Real Casa e as da defeza nacional, activada esta
pela guerra de Montevideo e insurreição de Pernambuco.
(4) Carta de Arêas a Funchal em 10 de Março de 1821. Lata
10 da collecção Linhares, na Bibl. Nac.
(2) Eis discriminadas as verbas principaos :
Orçamento de 1808
Rs.
Casa Real (entrando a ucharla por 124 contos e o
serr^iço do porteiro da camará e giiartía-joias Lo-
bato por 114 contos) 456 :724$059
Exercito 454 :038$115
Armazéns reaee e da marinha 603 :854$176
Thesouro real (pensões, soldos, administrações, obras
publicas, etc.) 633 :470$818
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 761
Nem a administração publica, nem os trabalhos públicos
augmentaram em análoga proporção, antes pouca diffe-
rença denotam de um para outro orçamento, apezar do im-
pulso tomado pelo paiz. Ha mister admittir que os resul-
tados alcançados sob o governo directo e paternal de Dom
João VI, por mais importantes que appareçam quando co-
tejaldos com a esterilidade de algumas administrações ante-
riores, foram em muitos casos insignificantes, ou pelo menos
não merecem todas as louvaminhas de que é modelo a
chronica do padre Luiz Gonçalves, e toda a farfalhada dos
informes officiaes.
Nem os meios empregados permittiam superiores resul-
tados, nem era possivel, como muito bem observa Handel-
mann, n'um império de semelhante extensão (elle o
appellida monstruoso) conseguir-se realizar n'um abrir e
fechar de olhos tanto como o apregoado. As razões do grande
escarcéo feito pelo governo do Rio da sua obra civilizadora
— não seria maior si tivesse praticado maravilhas — foram
dadas por Eschwege, o distinctissimo engenheiro allemão
que serviu de intendente das minas de i8lO a 1821 e
deixou sobre o Brazil paginas de fina observação e notáveis
Orçamento de 1820
Casa Real (entrando a ucharia por 436 contos, as
degpezas 4o porteiro por 167 contos e contando in-
tendências e concertos dos palácios re«es, ca-
pella, etc.) . 1.706 :035$630
Exercito 1-670 :730$616
Marinha 1034 :õ81$746
Tensões 148 •.■598$923
Thesouro real (excluídas as pensões e contando-se
administrações, tribimaes, juntas, professores,
correio, etc.) 447 :777$180
Expediente das cortes de justiça, etc... 163 :774$869
Obras Puiblicas 81 :540$716
De9i>ezas extraordinárias 788 :145$2:i7
(Preycinot, ob. cit.)
D. J. — 48
762 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
estudos scientificos: em primeiro lugar, o Brazileiro gosta
de fallar por hyperboles, devendo em sua terra tudo ser
mais gigantesco e prodigioso do que nas terras alheias, e em
segundo lugar, convindo ao Rei e aos seus ministros, por
óbvios motivos politicos, que se acreditasse geralmente nas
patranhas (Aufschneidereien) dos seus subordinados, aca-
bavam elles próprios por acreditar n'aquillo que procla-
mavam.
Segundo a fama espalhada, de tudo se havia cuidado no
novo Reino com um surprehendente ef feito : de fabricas, arte,
navegação dos rios, civilização dos Índios. A cultura dera pois
passos gigantescos. Eschwege ( i ) reduz porém alguns d 'estes
passos á medida abaixo da commum. Assim, no seu testemu-
nho, a estrada para Minas Geraes por São João d'El-Rei,
pela qual, nas expressões officiaes do intendente de policia
do Rio de Janeiro, podiam galopar em fileira cinco seges,
não passava de uma picada aberta no matto, que a vegeta-
ção já estava de novo obstruindo e dava passagem difficil
a um cavallo.
A canalização do Rio Doce e a franquia da provincia
de Minas Geraes ao commercio universal por essa via fluvial,
pomposamente annunciadas pelo governador do Espirito
Santo, Eschwege as reduz ao seguinte: o governador carre-
gara de sal algumas canoas que com extrema difficuldade
subiram o rio, sendo as canoas e a carga postas em terra
vinte e trez vezes afim de contornar as cachoeiras, e sof-
frendo a gente da expedição os ferozes ataques dos boto-
cudos. Chegadas as canoas a Minas apoz mil perigos, ven-
deu-se o sal, carregou-se algum algodão e iniciou-se a jor-
(1) Journal von BraMHen.
BOM JOÃO VI^NO BRA2IL 763
nada de regresso com os mesmos riscos, ao ponto de nin-
guém mais se abalançar a semelhante commettimento, bapti-
zado solemnemente de abertura da navegação para Minas
Geraes.
Civilizar duzentos Puris em linguagem official, equiva-
lia, na chã linguagem de Eschwege, a attrahir duzentos Ín-
dios fora das suas mattas e distribuil-os como gado pelos
que careciam de escravos: ao cabo de um anno, a maioria
tinha morrido de maus tratos. Tollenare igualmente falia
de indigenas sujeitos por abuso á servidão, observando com
graça que os suppunham mulatos e em todo caso se achavam
tão distantes de qualquer auctoridade que não saberiam fazer
valer seus direitos legaes.
Tanto se não illudiam no emtanto o monarcha e seur
conselheiros sobre o alcance de muitas das reformas, ás quaes
não faltava boa intenção, apenas possibilidade, nas condições
existentes, que tendo Eschwege escripto um relatório sobre a
navegação do Rio Doce, em que desmentia a versão optimista,
recebeu do ministro, a quem o governador mandara aviso,
uma carta autographa dispensando-o de remetter-lhe o seu in-
teressante informe, porquanto já tivera pelo governador co-
nhecimento do conteúdo d'elle. A actividade do circulo su-
perior da administração encontrava para concretizar-se ob-
stáculos insuperáveis nas circumstancias naturaes do paiz,
enorme, despovoado e hostil, na indolência da pouca gente e
não menos na instabilidade do pessoal dos cargos. Pondera
por isso judiciosamente o historiador Handelmann que, com-
quanto se lograsse insufflar na costa uma vida mais desafo-
gada graças ao trafico universal, a situação tradicional do
interior permanecera sem a menor alteração.
764 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Não era porque escasseassem planos. D. Rodrigo os
havia externado por atacado, e um dos seus predilectos fora
justamente o das communicações pelo sertão — "do Pará
com Matto Grosso pelas cachoeiras do Rio Madeira (i), e
do Pará com Goyazes pelos Tocantins e Tapajoz " — em
que meditava muito antes de vir para o Brazil, quando
aconselhava o Principe Regente que guarnecesse de tropas
o Pará, colonizasse com soldados e degradados a linha de
continuidade pelo interior e protegesse a costa com uma
marinha ligeira e activa, ao mesmo tempo que se propagavam
novas culturas "furtadas habilmente ao governo de Ca-
yenna" (2).
Sa'bemos como chammejava a imaginação do conde de
Linhares, da qual escrevia o cônsul Maler ser "plus propre
à enfanter et à adopter toute espèce de projets qu'A créer
€t múrir les moyens d'exécution." Exceptuada porém esta
energia quasi negativa pela sua precipitação, o que ficava
só se distinguia pela sua despreoccupação marroquina.
Ninguém deixou descripções mais cruéis da adminis-
tração do Reino do Brazil do que Maler na sua corres-
pondência official. Quando falleceu o conde da Barca, que
já havia muito mal podia trabalhar. Dom João, como quem
tivesse ficado cançado com Linhares de ministros diligentes
e com Barca de ministros illustrados, e quizesse de então
(1) Trata-se da rota seguida de penetração buscaBdo, cana a
de São Paulo, a convergência em Cuyabâ, ou melhor, no planalto dos
I*arecis. "exprrissivo (livortium aqwarum no bello dizer de Eucl.vdes
da Cunha, de ande irradiam caudaes para todos os quadrantes, e que
teve. em pleno contraste com este caracter physico dispersivo, uma
funcção histórica unificadora que so será bí^m comprehendida quando
o espirito nacional tiver robustez bastante pai-a escrever a epapéa
maravilhosa das Motíções.''
(2) Carta cit. de 29 de Dezembro de 1801, no Arch. Publ. do
Jlio de Janeiro .
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 765
em diante possuir o exclusivo da iniciativa ( i ), chamou na
pessoa de Bezerra outro paralytico e gottoso, mas d'esta
vez sem notável talento. Parece, commentava um dos officios
f rancezes ( 2 ) , que o systema da corte brazileira se funda na
crença de que os ministros mais inválidos são os mais ca-
pazes.
Pois n'este terreno ninguém conseguiria levar a palma
ao Sr. Bezerra. **Depuis plusieurs années son corps est pres-
que entiérement perclus des suites d'une paralysie, il souffre
habituellement de la goutte, et le 13 de ce móis une hemor-
ragie avait fait desesperer de ses jours. Tel est, Monseigneur,
en abrégé, le nouveau fantôme qu'on place à la tête des
affaires."
O ataque de paralysia soffrido pelo conde da Barca
na noite de 13 para 14 de Jun'ho de 181 7 (3) reflectiu-se
em toda a vida publica, sustando o expediente, immobili-
zando os negócios correntes. Ninguém fora auctorizado a
assignar, a titulo mesmo provisório, as ordens indispensá-
veis, de sorte que havia navios promptos a fazerem-se de
vela e que não podiam sahir do porto, estrangeiros detidos
e em favor dos quaes não podiam seus cônsules reclamar,
(1) Jfi quando fora Barca nomeado, informava o encarregado
do negocies de França (Officio cifrado de 14 do Outubro- de 1815) que
a saúde do novo ministro estava arruinada e que'elle apenas se po-
deria entregar a um trabalho muito moderado. O ministério entre-
tanto se comipuntia n'essa occasião de Bai-cn e de Aguiar, outro vale-
tudinário. O Príncipe Regente assim experimentava de voz o seu go-
verno independente de influxos poderosos, absolnto e paternal.
(2) Officio de 23 de Junho de 1817, no Arch. do Min. dos Neg.
Est. de Fi-^ança.
Ci) Barca morreu a 21 de Junho ás 8 horas da tarde, enter-
rando-se na noite de 22. Maler assistiu ao funeral, communic.mdo
(Officio citado de 2H de .Tunho) que "do corpo diplomático apenas
.se encontrara no sahimento com o enviado dos Estados Unidos, o qual
durante a gerência do condj uunca Uie cruzara o bateate."
766 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
passageiros de malas feitas sem alcançarem seus passaportes,
e o próprio paquete embargado somente pela impossibilidade
de obter-se uma firma ( i ) . A' voz, ao appello de confiança
que n'esse momento lhe dirigiu o seu Principe, Mr. Bezerra,
escreve Maler, parece reanimar-se, levanta-se e começa a
assignar, mas á quinta assignatura sobrevem-lhe um violent3
ataque de gotta e Mr. Bezerra é QÍ)rigado a metter-se na
cama.
Não admira, em taes condições, que fizessem nove
mezes que se não rompiam os sellos da correspondência com
os tribunaes de Lisboa e das possessões, e não sei quanto
tempo que se não verificavam e visavam as contas do Real
Thesouro (2). Também não podia ser mais embaraçada a
situação do Thesouro: melhor era mesmo não tentar esclare-
cel-a. As suas operações faziam-se difficilmente, descontando-
se suas letras a uma taxa menos favorável que as do commer-
cio, e pejando a praça, sem serem satisfeitos, os saques de
Montevideo para sustento do exercito.
Nem cabia a culpa exclusivamente á expedição do Rio
da Prata, si bem que custasse perto de milhão e meio de
francos por mez, porque já antes da aggressão contra os do-
minios hespanhoes não era prospero o estado do Erário. A
descripção a propósito feita por Maler corresponde exacta-
mente ás conclusões que podemos tirar da leitura combinada
dos viajantes estrangeiros e dos publicistas nacionaes, e tem
o cunho de official.
Explica o consciencioso funccionario francez (3) :
"Os numerosos vicios da administração parecem-me consti-
(1) Ofificio de 18 de Jiunho de 1817. Não só não havia desde
12 de Junho o mais insignificante despacho de paipeis, como Barca, ao
adoecer de morte, já não via o Rei desde alguns dias.
(2) Officio cit. de 2.3 de .Junho de 1817, ibidem.
(3) Officio de 13 de Julho de 1818, ibidem.
DOM J^OlO VI NO BRAZIL 767
tuir os primeiros motivos da penúria; por causa de uma
infinidade de abusos os rendimentos públicos escoam-se em
parte nos bolsos dos que os percebem ; a fraude outrosim
provocada pela elevação dos direitos aduaneiros mais pre-
judica a cobrança; despezas na realidade módicas sobem a
sommas consideráveis graças á improbidade dos que se
acham d'ellas encarregados; a nobreza que acompanhou o
Principe é pobre e vive do thesouro, que a chegada da Ar-
chiduqueza, o casamento do Principe Real e a coroação de
S. M. acabaram de esgotar. A simplicidade do monarcha
( I ) e sua familia, traduzindo-se em gostos e hábitos con-
sentâneos, não impede que sejam muito consideráveis os
gastos da sua Casa porque a desordem e má fé são análogas
nas suas despezas particulares ás que lavram nas despezas
geraes do Estado. Tudo isto explica o phenomeno da geral
situação folgada dos commerciantes e dos empregados do
governo, ao lado da pobreza do Estado e dos grandes. De
resto, um departamento que foi dirigido provisoriamente
durante annos pelos senhores de Aguiar, de Araújo e Be-
zerra, não pode senão resentir-se longamente do langor e
enfermidades d'esses trez ministros, e devo ajuntar que
n'este instante os fundos se acham por forma tal hauridos
que o Thesouro não offerece em pagamento mais do que
letras sobre a alfandega, a seis mezes de prazo."
São as mais repetidas na correspondência de Maler as
referencias ao estado de anemia do erário e ao desconcerto
das finanças. Como sempre acontece, o governo recorria a
medT9as arbitrarias e apezar d'isso anodinas, quando o se-
(1) Dom .Toão VI era até muito económico e, nos seus cofres
particulares, amontoavara-se pilhas de moedas de ouro. Também, ao
emigrar para o Rio, levara a corte nas suas arcas metade do numerá-
rio em circulação no Reino.
768 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
gredo -do restabelecimento do credito consiste invariavel-
mente na economia e boa ordem na fazenda. Assim, um de-
creto real prohibiu a sabida de moeda metallica do Rio
para as outras provincias, sob pena de confisco e mais dis-
posições da lei contra os desencaminhadores de fundos pú-
blicos, com o fim de valorizar as letras e notas do Banco
do Brazil, cabido em depreciação porque o governo d'abi
retirava o dinheiro que queria {y puisait àpleines mains) .
Maler assim pbilosophava sobre o caso (i): **Quando
todo o ouro e toda a prata em moedas da America Meri-
dional se concentrassem no Rio de Janeiro, sem boa ordem
poucas entraria no Thesouro Real, e sem confiança nenhumas
na caixa do Banco."
O decreto real sobre o Banco do Brazil, expedido por
occasião do regresso da corte, depunha muito contra a eco-
nomia da sua administração, mas Maler observa sensata-
mente (2) que os rendimentos do Brazil tinham considera-
velmente augmentado e que tinham sido precisas uma de-
sordem e uma prodigalidade sem limites para chegar a esse
deficit e para haver ao mesmo tempo arruinado o credito do
Banco. "Nenhuma grande obra publica se emprehendeu ;
nenhuma estrada de ligação entre as províncias do interior
se abriu (3) ; a própria capital apenas gosa de uma illumina-
ção parcial. Teriam creado uma poderosa marinha ? Não,
deixaram imperdoavelmente apodrecer os 8 navios que trans-
portaram o Rei e sua familia para estas regiões e de ha 13
annos para cá só se construio um navio, e este mesmo em
Lisboa e não no Brazil (4). N'uma palavra uma única em-
(1) Off. de 6 de Dezemíbro de 1H18, ihulem.
(2) Off. de 31 de Março de 1821. ibidem.
(3) Maler refere-se, é claro, a commuBicações regulafes e per-
manentes.
(4) Esta asserção merece, como sabemos, impugnação.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 769
preza dispendiosa conheço que é a invasão de Montevideo e
sobre ella não poderia mudar de opinião — os fructos que
os aggressores colherão, serão amargos."
A pintura é quiçá exaggerada, sem que deixe porém de
ser reconhecivel o seu claro fundo de verdade. Descripção
mais cáustica, si possivel, do B-razil-Reino é a legada pelo
f rancez Tollenare ( i ) que, como negociante, andou todo
o tempo mettido com a gente do fisco. A alfandega, no seu
dizer, fazia vergonha. Metade dos direitos se perdia em bai-
xas avaliações criminosas. A venalidade era palmar. Era
publico e notório que os negociantes inglezes pagavam 8 e
IO o/o em vez de i6 o/o. As fraudes davam-se muito mais
nas importações porque os direitos sobre géneros exportados
eram menores ou se calculavam pelo peso, o que as diffi-
cultava.
As ordens de pagamento expedidas pela Junta de Fa-
zenda de qualquer provincia (2) ao seu thesoureiro só eram
satisfeitas ao sabor da disposição d'este funccionario, o que
permittia a florescência de intermediários que auferiam lu-
cros descontando aquellas ordens com 20 e 30 0/0 de pre-
juizo para o interessado.
Na Casa da Moeda da Bahia, não obstante o seu juiz
privativo, como havia também um na alfandega, não se
apresentava uma barra de ouro para contrastar e fundir, pa-
gando o respectivo direito. Grande corrupção reinava entre
(1) Notais dominicacs.
(2) Compiroha-se esta Junta do chanceller (presidente) da Re-
lação ou do diroctor da alfandega, quando não existia na provincia
a(iíiella corte de justiça ; do thesoureiro ; do escrivão da fazenda
real, em cujo cartório se faziam os estancos — os quaes não eram dados
em concorrência — , se pagavíim os registros e patentes, se recebiam
as contas dos collectores da receita e se forçavam á discreção os
devedores, recalcitrantes ao pagamento; do inspector da moeda e do
ouvidor. O governador ou capitão general tinha de direito dous votos,
c de facto uma aactoridadc arbitraria sobre a Junta.
770 DOM JO^O VI NO BRxVZIL
OS magistrados que obedeciam aos empenhos e peitas, quando
a vontade do governador não agia soberanamente, pois a
própria policia se encarnava n'elle, que ou remettia o caso
ao ouvidor do crime, assim o estipulando as Ordenações, ou o
julgava paternalmente.
Nada havia de mais custoso do que receber judicial-
mente uma divida, não só porque as exempções eram muitas,
abrangendo os senhores de engenhos nos seus apparelhos, os
concessionários de terras nos primeiros tempos das suas ro-
çagens, como eram onerosissimas as custas, formidável a
papelada, enormes as delongas. E' verdade que se não conhe-
ciam no foro os debates oraes, mas os advogados escreviam
nos gabinetes seus arrazoados que o juiz communicava a
outra parte para a replica, e os solicitadores pejavam os car-
tórios dos escrivães.
Estes cartórios, os notariados, secretariados, inspectorias
aduaneiras nos dominios reaes e quaesquer postos administra-
tivos eram concedidos por mercês do soberano, mas arren-
davam-se ou sublocavam-se, pagando o alugador ás vezes
mais do que o salário integral do lugar, signal de que se des-
forrava de outro modo. ToUenare menciona um cargo de
fazenda que rendia 6.000 francos por lei e andava arrendado
por 40.000 ou era avaliado n'este alto preço.
Em tudo a sensação era persistente do truncado, afu-
gentando a de um seguido e completo progresso moral e ma-
terial. Os serviços agricolas continuavam, entre os des-
cendentes de Europeus, a praticar-se com o mesmo empi-
rismo, a mesma carência de instrumentos aperfeiçoados, o
mesmo feitio antiquado. E' facto que a febre mineira dis-
trahira poderosamente as attenções da lavoura, raas não é
menos um facto que era considerável e ingenita a molleza
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 771
da população, grassando a ociosidade por systema ou flo-
rindo a esperança da ociosidade, mui raramente predomi-
nando com a noção o prazer da actividade.
Também, na justa phrase de Jay, que prefaciou a
traducção franceza da singela e honesta relação das viagens
de Koster pelo Norte, o povo soffria ''todos os incommodos
da miséria, tendo todos os recursos da opulência." As in-
gentes bellezas naturaes, o esplendor da paizagem e os
esparsos enxertos sociaes de civilização emmolduravam um
profundo atrazo. Nas minas de ouro e diamantes, a maior
riqueza do paiz no século XVIII, os processos usados nunca
foram outros senão o da lavagem, e esta mesmo operada da
maneira menos económica, si bem que a mais fácil para
quem não possuia apparelhos adequados de mineração, nem
meios de obtel-os, nem sequer, na maioria dos casos, o co-
nhecimento d'elles.
Pelo menos, porém, o regimen monarchico autonómico
foi em seu alvorecer no Brazil, como igualmente o foi no
seu occaso, brando e humano. Tampouco fez este governo
gala de uma Índole retrograda ou mesmo conservadora: foi
antes, sem duvida alguma, mais intelligente e progressivo do
que o colonial, até porque dispunha de toda a auctoridade,
de to-dos os meios de acção e de todo o prestigio. Esteve, to-
davia, longe de ser uma dictadura enérgica e revolucionaria,
como em muitos sentidos se exerceu a do marquez de
Pombal.
Pombal foi violento, porém foi um reformador. Repri-
mia os abusos, em muitas occasiões obedecendo a precon-
ceitos e antipathias pessoaes, mas melhorava a valer os me-
thodos de trabalho, não só lavrando alvarás como montando
fabricas. Policiava com rigor, mas estimulava com ardor.
772 POM JOÃO VI NO BRAZIL
Embaraçava ou favorecia determinadas producções segundo
um critério próprio e despótico, mas quando extendia sua
protecção, era para tornar a industria mais abundante e mais
proveitosa para o particular, não só para tornar o seu ren-
dimento mais seguro para o fisco.
O governo de Dom João VI foi igualmente reforma-
dor, posto não fizesse tanto, ou antes não obrasse com tama-
nho vigor no mom.ento, o que não impediu os seus beneficios
de serem mais duradouros porque, si era menor a correspon-
dência do meio, eram incomparavelmente superiores as suas
reservas e possibilidades. Faltavam a Dom João VI, em grau
idêntico a Pombal, resolução, cynismo e disciplina mental.
Os melhoramentos que introduziu na administração brazi-
leira- foram palpáveis, numerosas as vantagens que para o
paiz se derivaram da presença do seu soberano. No emtanto
nunca foram as desigualdades mais accentuadas, nunca foi
mais frizante o contraste entre o que se realizava e o que
se ideava, o que era e o que devia ser, o que se fazia e o que
se descurava.
O caracter nacional offerecia o , mesmo aspecto. "Re-
sulta d'essa mistura de inacção e estupidez com orgulho e
ganância, escrevia Jay (i), uma serie de contrastes; activi-
dade n'um género de industria, negligencia profunda em
tudo mais; nudez e porcaria no interior das habitações, es-
plendor e fausto nos vestidos; amenidade, ou antes fraqueza
no caracter, e cruel indifferença pela sorte dos Índios. Assim
foi o governo até estes últimos tempos, inflexível no que- in-
teressava o fisco, pouco attento ao que tocava á instrucção
e aos costumes, rico de diamantes e pobre de armas, de ca-
naes e de tudo o que constitue a força dos Estados."
(1) Preíacio cit. da ed. franceza das Viagens de Koster.
CAPITULO XIX
O TRATAMENTO DOS ÍNDIOS
N'este ponto pode dizer-se que foi deficiente o governo
de Dom João VI, si com isto se quer exprimir que não teve
resultados permanentes o que elle fez ou tentou fazer pelos
Índios brazileiros. Cumpre todavia notar logo que lhe não
cabem por tal motivo remoques, pois o effeito de quaesquer
esforços, mesmiO mais concretos e enérgicos, teria certa-
mente sido no seu conjuncto negativo, porquanto aquelles
Índios — como todas as raças inferiores, postas embora, e
sobretudo quando assim acontece, em contacto com elemen-
tos civilizadores — se mostram incapazes de outra existência
que não a vegetativa, dividida entre as occupações da caça,
da lucta com outras tribus, das bebedeiras ruidosas e da pre-
paração rotineira das armas de combate, dos mantimentos de
conserva, dos espiritos, das redes e, quando são cultivadores,
dos seus escassos productos agrícolas.
Toda a catechese, religiosa ou leiga, tem sido inhabil para
elevar-lhes marcadamente o nivel moral. Conforme ponde-
774 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
raram Spix e Martius depois que os observaram pessoal-
mente, elles mais dependem, quando aldeiados, da actividade
ou industria dos forasteiros do que da própria, sendo por
isso mesmo de lamentar que não vivessem entre gente que
lhes pudesse dar uma melhor idéa da superioridade moral
da cultura estrangeira, diversa da fornecida pelo egoismo,
cobiça e deshumanidade d'esses occupadores de um solo es-
tranho.
" A civilização dos Índios tem igualmente sido até aqui
obstada pelo costume de empregar uma nação para combater
outra, como foram por exemplo empregados os Coroados
contra os Puris, e pela sanha dos destacamentos militares,
os quaes extenderam aos Puris a guerra de exterminio que
por lei lhes foi facultada contra os Botocudos. (i)" O
Correio Braziliense acremente censurou ao conde de Linha-
res essa guerra cruel, vestigio de antigo barbarismo, que
elle decretara.
Si o exterminio não foi a regra para os selvagens bra-
vios, pelo menos foram os aborigenes mansos praticamente
abandonados nas suas aldeias miseráveis, sem cultura e sem
futuro, quando não deixados a vaguear pelas mattas e cam-
pos. A matéria prima em verdade apparecia refractária e
por isso talvez nada de effectivo lograria jamais constar,
quando muito maior fosse o seu devotamento, ao activo da
Junta creada para indagar de tudo quanto pudesse promover
a civilização dos indigenas, e suggerir os meios convenientes
de chegar a resultados animadores.
Alguns se obtiveram, si bem que de natureza provisória
ou limitada. Spix e Martius, que foram ao interior da capi-
tania de Minas Geraes visitar os Coroados aldeiados no pre-
(1) Spix e Martius, gjj. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 775
sidio de São João Baptista, escrevem que os princípios por
que eram administrados os Índios faziam honra ao governo,
tratando os directores de conserval-os agrupados e fazel-os
cultivar a terra que lhes era dada em propriedade, com
isenção de taxas por dez annos e fornecimento gratuito de
farinha de milho e utensílios agrícolas. Ao mesmo tempo que
os dirigiam, aquellas auctoridades defendiam-n'os contra
quaesquer tentativas de escravisação por parte dos colonos,
concedendo-lhes a protecção da lei, e só os deixando traba-
lhar mediante salários, posto que reduzidos, correlativos com
sua inexperiência e carência de necessidades como as dos
civilizados.
A politica de adiantamentos materiaes e moraes com
que Dom João VI pretendeu assignalar o seu governo di-
recto no Brazil, visava — é justiça admittir — originar no
tocante á civilização dos indígenas resultados mais satisfacto-
rios do que meramente uma mais activa exploração do in-
terior. Aliás deve lembrar-se que até certo ponto foi com
semelhante intuito animada a melhoria das communicações
terrestres e fluviaes do littoral com o sertão. A Junta insti-
tuída adrede denomínava-se, conjunctamente, da conquista
e civilização dos índios e do commercio e navegação do Rio
Doce, e tinha sua sede em Villa Rica: a região dos rios Doce
e Jequitinhonha foi a preferida de começo para taes ensaios
da administração com relação aos aborígenes.
E' de resto obvio que todo progresso n'esse sentido de
facilitar a navegabilidade de rios ou abrir estradas atravez
de mattas espessas, com a consequente colonização de feição
européa, redundaria em proveito do elemento indígena, si
elle próprio no emtanto fosse susceptível de verdadeiro pro-
gresso, não recuando medroso diante da cultura como lhe
776 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
era offerecida, e internando-se cada vez mais nas solidões
para escapar ao jugo das forças militares com que ia sendo
legitimada a posse da terra e praticada a novissima cate-
chese. D'ahi vem que o espectáculo apresentado pelos habi-
tantes primitivos do Brazil na epocha de Dom João VI não
encerrava grande alteração do que se nos houvera deparado
em pleno século XVI.
Dividiam-n'os official e litterariamente em Índios selva-
gens, semi-mansos e mansos, sendo na realidade minima
a differença entre as trez classes. O principe Maximiliano
de Wied-Neuvi^ied occupou-se bastante d'elles e deixou a
respeito um depoimento insuspeito. No seu tempo existiam
ainda em grande numero Índios na própria provincia do
Rio de Janeiro, apezar da referida migração e da constante
fusão com o elemento conquistador.
Os pseudo-civilizados ou em caminho d'isso viviam
em cabanas de taipa com tectos de folha de coqueiro, dor-
mindo nas mesmas redes, servindo-se das mesmas cabaças,
cobrindo o chão com as mesmas esteiras, empregando as
mesmas armas de arremesso que os outros. Conservavam
todos os seus costumes privados, as suas comidas e bebidas,
os seus folgares e tristezas, todos os seus usos collectivos.
Uma espingarda, um espelho, um instrumento agrícola re-
cordaria occasíonalmente — como de resto acontecia ao
tempo dos primeiros escambos — o contacto com a cultura
européa, que se trahía também mais pela adopção da língua
portugueza do que pela da religião chrístã imposta á sua
credulidade e sobre a qual a sua imaginação infantil lan-
çara e bordara um manto de superstições tecido pela igno-
rância.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 777
Geitosos e capazes de bem desempenhar certos mes-
tres, dominava-os comtudo uma invencível preguiça, de que
só se libertavam para a caça e para a guerra, quando davam
mostras da maior diligencia e resistência. Glotões si tinham
comida para saciar-lhes o appetite, logravam não obstante
supportar longo tempo a fome e a sede. De ordinário, quando
não comiam, ou dormiam, ou perseguiam animaes de caça
ou iam no encalço de inimigos, acocoravam-se silenciosos em
redor do fogo, n'uma taciturnidade fundamental, de que só
os despia o seu gosto immoderado pelas bebidas espirituosas.
A inclinação nómada era outro traço ingenito e caracterís-
tico que os levava a facilmente abandonarem as aldeias em
deserções que começavam por ser cynegeticas e se tornavam
definitivas, operando-se com extraordinária presteza, n'ellas
carregando os homens as armas e as mulheres as panellas,
redes e provisões de bocca.
A desconfiança continuava no século XIX, como logo
depois da descoberta, a ser a base das relações entre as duas
raças. Eschwege é dos que dão perfeita razão aos indígenas,
descrevendo a sua situação em relação aos Europeus com
cores diversas das escolhidas por Spix e Martius. E suas in-
formações devem ser mais procuradas e mais exactas, porque
Eschwege residio muito mais tempo no Brazil do que aquel-
les dous naturalistas que tão somente o percorreram, obser-
vando-o embora com summa intelligencia e pondo a maior
dose de probidade nas suas apreciações.
O conhecido mineralogista, esse, não só teve ensejo de
tornar mais conhecido o paiz, geológica e economicamente,
publicando, afora seus livros, artigos de considerável valor
em revistas européas, como estabeleceu em Minas Geraes
diversas fundições de ferro, que manufacturavam boa somma
D. J. — 49
778 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de artigos — foices, machados, ferraduras, pregos, picaretas,
etc. — ; não vingando mais tão promettedora industria
n'uma região em que a matéria prima era mais do que co-
piosa porque, segundo Eschwege mesmo explica e já foi no-
tado, os habitantes, acostumados á vida errante e aventu-
rosa das minerações, desprezavam as occupações fixas e re-
gulares.
Pois tão excellente conhecedor do nosso meio physico e
moral e afoito expositor do que n'elle se lhe deparava,
transmittiu-nos uma pintura de impressionar do tratamento
dos Índios brazileiros. N'ella se revela Eschwege infinita-
mente menos benévolo do que seus compatriotas Spix e Mar-
tius (que aliás discutiam em espécie, baseando-se sobre um
exemplo isolado que por acaso fora o do seu conhecimento)
para com os directores civis que substituiram na tutela dos
aborigenes os missionários, e que denotando, no dizer do ci-
tado escriptor germânico, a maior avareza e doblez e es-
quecendo os mais elementares deveres de humanidade para
com a gente confiada á sua guarda, faziam-se servir pelos
Índios aldeiados como si fossem escravos, espancavam-n'os,
deixavam-n'os espoliar, quando os não espoliavam elles pró-
prios, pelos colonos visinhos das aldeias. Estes, despojando os
desgraçados descendentes dos antigos senhores do solo das
terras que lhes tinham sido doadas e que occupavam, mal-
tratavam-n'os, roubavam-n'os de tudo e não raro até os tru-
cidavam.
Por sua vez os sacerdotes que ajudavam os directores
leigos na tarefa administrativa, e que na gestão espiritual
occupavam a successão dos Jesuitas, estavam longe de pos-
suir o tacto e a mansuetude dos filhos de Santo Ignacio, exi-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 779
gindo de tão miseráveis fieis pagamento adiantado pelos
seus serviços ecclesiasticos e assim contribuindo, com suas
vexações, para tornar mais aborrecida dos Índios essa reli-
gião estranha que elles não logravam sequer comprehender.
Os soldados dos destacamentos espingardeavam sem
tirte nem guarte um aldeiado por uma espiga de milho rou-
bada de uma plantação de branco e commettiam cem bar-
baridades, entre outras a de vender crianças das tribus.
Nada se praticava com doçura e vontade de acertar, em
contrario a todas as recommendações officiaes, cujo theor
era invariavelmente benévolo para com os índios ( i ) . Para
forçar os Puris a hábitos sedentários e a um cultivo regular
da terra, lembraram-se de trazel-os em parte para a capital
de Minas Geraes e ahi distribuil-os em serviço pelas famílias,
n'uma quasí resurreição urbana das encomiendas hespanho-
las. Dizimados pelas doenças, vencidos pela melancholia,
sujeitos aos ruins tratos ou pelo menos forçados a um trabalho
seguido que não estava nos seus hábitos tradicionaes e re-
pugnava á sua natureza, desappareceram esses servos pela
porta da morte ou refugiaram-se de novo nas suas florestas,
onde os perseguiram os soldados, vingando-se elles por fim
com massacrarem o director, destruírem plantações e ímmo-
larem uma quantidade de ínnocentes. (2)
A Dom João VI não eram desconhecidos os abusos es-
candalosos que se passavam e magoava-o um tal estado de
(1) No 1'egimeTato, tomado ao acaso, relativo ao governador
presidente da nova Relação do Maranhão, encontram-se as seguintes
palavras: "e mandará proceder com rigor conti-a quem os mal-
tractar, ou molestar, dando ordens, e providencias para que se possão
sustentar, e viver juncto das Povoações 'dos Portuguezes, ajudando-so
delias de maneira que, os que habitão no Certão, folguem de vir para
as ditas Povoações, e entendão que tenho lembrança delles."
(2) Eschwege, Journal von Brazilicn. . .
780 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
cousas, contra o qual nada podia a sua acção benigna, n'uma
tamanha extensão territorial, com as circumstancias predo-
minantes que iam desde a distancia até a carência de mora-
lidade, e sem agentes fieis para a repressão dos que deviam
civilizar e para a educação dos que havia a civilizar. Tudo
pelejava em contrario ás intenções reaes: a má vontade dos
Índios em submetterem-se, tanto quanto a má vontade das
auctoridades subalternas, e mesmo das que lhes eram imme-
diatamente superiores, em defendel-os e eleval-os.
Quando houvesse sympathia e energia para isso, era
a obra superior aos meios de pôl-a em execução. A Junta de
Villa Rica, funccionando perto, não conseguio reduzir, ape-
zar da guerra movida, o paiz dos Botocudos — cerca de
I.200 léguas quadradas, cobertas de florestas impenetrá-
veis, que permaneceram mais ou menos nas primitivas con-
dições, sem estradas abertas, nem culturas, nem segurança,
não se melhorando sequer a navegação do Rio Doce.
A colonização do interior do Brazil, Dom João VI
a encontrou e a deixou sob a forma de um desbravar em-
pirico, exercido a ferro e a fogo, sem o apparelho apropriado
nem sombra de fundamento scientifico. Traduzia-se, como
hoje ainda, pelas derrubadas e queimadas que, a pretexto de
alargarem a zona de cultivação, extendiam, com a suppres-
são das mattas, a área das seccas para n'ella vegetar, sobre
um solo que de fértil passava a estéril, ''e decaida pelo im-
paludismo, tão característico das regiões incultas, uma po-
pulação de mestiços lamentáveis, agitantes n'um quasi de-
serto" (i).
t
(1) Euclyd^s da Cunha, Um contraste, artigo pnblioado no
Paiz, de 17 do Julho de 1904.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 781
Essa falta de todo preparo industrial, junto com o in-
teiro desconhecimento da hygiene e da prophylaxia, palavras
vasias de significação em semelhante meio mas não em se-
melhante epocha, continuando portanto a operar-se o antigo
espraiar de bandeirantes sobre uma terra fecunda, suscepti-
vel porém de deteriorar-se em sua excellencia e tornar-se
safara; d'outro lado a subsistência dos latifúndios, dos ter-
renos doados, das sesmarias da conquista, difficultando a
acquisição da propriedade territorial com os foros, os arren-
damentos a longo prazo com limitação de cultivo dependente
do valor do aluguel, e a faculdade para o senhor da terra de
recobrar a plena propriedade d'ella pelo pagamento das bem-
feitorias avaliadas por terceiros, redundavam no aspecto de-
solador da nossa lavoura mesquinha, arrancada aos braços
dos escravos sem real correspondência entre o capital e os
esforços empregados, e os resultados obtidos.
Accresce que o Portuguez é por temperamento muito
mais um explorador do que um colonizador. A sua tendên-
cia é abrir caminhos, não tanto estabelecer dominios no in-
terior dos continentes: quando muito, fundar feitorias pelos
littoraes. "Não era de esperar que fosse cultivar os certoens
da America quem deixava sem cultura as férteis campinas
do Alemtejo e as colinas da Beira, e Trás os Montes" (i).
O favor official para tudo era preciso n'essas condi-
ções, mesmo para fazer florescer a industria particular, de-
pendente, segundo deveria ser, da iniciativa de cada um, A
intervenção do Estado era porém tão constante e vexatória
que força era que ella também se exercesse pela abstenção, de
(1) Artigo sobre os Abusos e erros da Administração, em o
Brazil, vol. I do Portuguez; ou Mercúrio Politico, convmercial e lite-
rário. Londres, 1814-19.
782 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
geito a favorecer. Assim, o cônsul geral russo Langsdorff
que, além de colleccionar 1.600 variedades de borboletas,
plantara na sua fazenda Maiidioca 20.000 cafezeiros e fabri-
cava em 181 9 perto de i.ooo saccos de farinha por anno,
carecia para prosperar nas syas lavouras que, não fallando dos
seus sessenta escravos, o Rei indirectamente lhe angariasse tra-
balhadores bastantes, concedendo isenção do serviço de milí-
cias aos moradores da visinhança que se prestassem aos servi-
ços agrícolas da referida propriedade, (i).
Foi comtudo esse cônsul o primeiro da sua classe de
funccionarios estrangeiros a desacreditarem o nosso systema
de colonização estipendiada, assim como foi o conde da Barca
o nosso primeiro agente de emigração na Europa, pródigo
como todos os mais de promessas pomposas. Langsdorff
não trepidou em mandar relatar em gazetas do seu paiz e
da Allemanha que, dos Europeus transportados para o Bra-
zil, alguns tinham expirado de miséria e outros sido recolhi-
dos por navios americanos e levados gratuitamente para os
Estados Unidos, onde o Governo Federal, comquanto não
houvesse mandado abonar as passagens d'esses emigrantes
que lhe chegavam sempre a propósito, os abrigou, alimentou
e proveu de terras para cultivar.
O Congresso de Vienna, junto ao qual se quiz fazer
valer a conveniência da expansão colonial de Portugal como
augmentando as vantagens possiveis para a immigração euro-
péa nos seus territórios brazileiros dilatados pelas armas da
velha metrópole, não era infelizmente assembléa que se dei-
xasse levar pelas visões de Barca ou pelas blandicias de Pal-
mella. A Santa AUiança foi tratando toda ella de subtrahir
(1) HeBderson, ob. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 783
ao Brazil os seus ganhos alcançados pela violência e a que a
corte do Rio dizia haver-se afoitado para maior felicidade
dos futuros emigrantes, os quaes entretanto persistiriam,
nas palavras do abbade de Pradt, a preferir ás immensas e
magestosas solidões da America do Sul as solidões igual-
mente vastas e igualmente imponentes da America do Norte,
regidas porém, como promettiam de seguro ser quaesquer
íOciedades que n'elTas se fundassem, por uma constituição
dmiravel, baseada na mais estricta igualdade e na mais
ompleta liberdade politica, civil e religiosa.
(
CAPITULO XX
A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817
As primeiras noticias da revolução republicana de 1817,
em Pernambuco, alcançaram Londres por via das Antilhas,
a uma das quaes chegara um navio rnglez, Rowenãj que poude
conseguir auctorização para escapar ao rigoroso embargo
posto pelos rebeldes sobre todos os navios ancorados no
porto, e que mais tarde levantaram para as embarcações es-
trangeiras. Diziam aquellas noticias ter o movimento tido
por motivos determinantes o descontentamento das tropas
por não receberem desde muito seus soldos, nem disporem
de outros meios de subsistência, e o descontentamento do
povo "pelas pesadas contribuições e excessivas conscripções"
que provocava a conquista da Banda Oriental, "na que o
povo do Brazil não só não tem parte, mas julga contraria
aos seus interesses" (i).
Hippolyto escrevia isto, mas Palmella não era func-
cionario diplomático que julgasse abaixo da sua missão res-
(1) Correio BrazUicnsc, n. 108, Maio de 1817, vol. XVIII.
786 DOM JOÃO VI NO BIIAZIL
tabelecer a verdade dos factos, e tanto menos deixaria passar
sem a devida contestação semelhantes asserções, quanto lhe
assistia razão bastante em qualquer desmentido. Os abusos
administrativos, sobretudo as prepotências, tinham dimi-
nuido em todo o novo Reino por um effeito reflexo do pro-
gresso dos tempos, e em Pernambuco a siiuação se apre-
sentava até privilegiada, confiado como andava o governo
havia anncs a um homem pacato e bondoso.
Com sua costumada assignatura — Uin Brazileiro —
defendeu Palmella em communicados ao Times o governo
do Rio das pechas de suspicaz e tyrannico, com que o que-
riam gratificar os que defendiam por interesse ou por prin-
cipio a revolução pernambucana. "Esse governo posto que
absoluto, escrevia o futuro embaixador, não é para melhor
dizer outra cousa mais que uma auctoridade doce e pater-
nal. Terão crimes ficado frequentes vezes impunes no Bra-
zil, mas nunca, e desafio qualquer de citar um exemplo
em contrario, a innocencia poude com razão queixar-se da
injustiça do soberano da terra. Em toda a extensão
d'esta é antes facultada uma liberdade de palavra que mais
degenera em licença."
Tratando particularm.ente da referida falta de paga-
mento ás tropas, concordava Palmella em que era possivel
darem-se factos de tal natureza, visto a administração não
estar ainda sujeita a regras uniformes, e cada provincia
prover separadamente as despezas da sua guarnição. "Posso
todavia assegurar que as tropas recebem regularmente seus
soldos na mór parte dos Estados do Brazil e que seme-
lhante falta si jamais occoireu, não podia passar de tem-
porária e em escala muito inferior á que mostram suppor
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 787
algumas pessoas." Em Pernambuco, poderia ter Palmella
accrescentado si possuisse um conhecimento intimo de todas
as capitanias, não faltavam recursos ao Erário graças á
conhecida economia de Caetano Pinto, mas esta própria
economia, exacerbada como na verdade o era até a avareza,
podia justamente ter determinado atrazos no pagamento
das tropas.
E tão reaes estes atrazos, que o motivo c apontado no
primeiro dos officios de Maler sobre "o haver a hydra re-
volucionaria conseguido erguer uma hedionda cabeça no
Brazil" (i). E£creveu-o elle logo depois de ter entrado ino-
pinadamente no porto do Rio a 25 de Março, o brigue com
bandeira branca que conduzia, bastante constrangido. Sua
Excellencia o governador general. "Ha mais de um anno,
reza o citado officio, que a guarnição de Pernambuco era
mal paga e mal alimentada pelo Governo; o território
d'esta cidade e dos districtos visinhos extremamente pro-
ductivo em algodão, é estéril em comestiveis e géneros
de primeira necessidade, de sorte que o pão para os ricos e
a mandioca para a classe indigente vinha de fora e era
comprada por preços muito elevados. Ávidos especuladores
monopolizavam os carregamentos que chegavam e os reven-
diam a retalho ao publico da maneira a mais arbitraria. Os
clamores e as queixas geraes despertaram emfim o indolente
Montenegro, que encarregou o brigadeiro do exercito Sala-
zar de tomar algumas medidas para conter o monopólio e
reprimir a desordem. Mas, este official general não tendo
podido satisfazer a esperança e os votos do publico, commet-
teu-se ainda o injusto dislate de propor ás tropas dar-lhes as
(1) Officio de 28 de Março de 1817.
788 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rações de pão em espécie e de lhes abonar i6 soldos por cada
sacco de mandioca, cujo preço no mercado era de 50 sol-
dos", (i)
A razão da escassez de comestíveis de primeira neces-
sidade é que Míaler falsamente attribuia á improductividade
do terreno áh costa e mattas para essa cultura. Luccock
acertadamente a fornece ao fallar também na carestia dos
mantimentos, da farinha nomeadamente, porque pagando o
algodão melhor, ma província se não cultivavam bastante
géneros alimentícios, como mandioca e feijão. Por outro
lado a capital consumia abundantes provisões de bocca, pro-
vocando sua importação, e a guerra do Sul com seus repe-
tidos fornecimentos estava fazendo encarecer todos os géne-
ros. Para cumulo a estação de 1816 fora muito secca no
Norte, portanto esoassas as safras.
D'estas circumstancias combinadas derivou-se n'este
ponto o soffrimento do povo pernambucano, quando os plan-
tadores e commissarios andavam em maré de fortuna com
o augmento, que chegou a 500 por cento, do preço do algo-
dão por motivo da guerra recente, de 1812 e 1813, dos
Estados Unidos contra a Inglaterra, da extincção em 181 5
do bloqueio continental e da perspectiva de mais largas
exportações de tecidos da Inglaterra para os velhos merca-
dos europeus e os novos mercados latinos do Novo Mundo,
tornado-se indispensável a matéria prima, para cujo suppri-
mento não chegava a pro'ducção norte-americana.
Mais fácil tarefa cabia a Palmella ao affirmar nos
seus communicados ser a exhorbitancia das taxas uma com-
(1) Traducção na Revista do Instituto Archeologico de Per-
nambuco dos Officios de Maior sobre a re^/^olução de 1817, fornecidos
em copia franceza por Oliveira Lima.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 789
pleta falsidade, relativamente, já se vê, e em absoluto o
recrutamento rigoroso exercido para a expedição do Rio da
Prata. Nas provincias septentrionaes do Brazil, focos da in-
surreição que estalara, é até notório, lembrava o representante
de Dom João VI, que se não recrutou um homem nem se
impoz um soldo de contribuição para aquella empreza mili-
tar. As tropas empregadas no Sul tinham vindo de Portu-
gal e eram pagas pelo Erário Publico de Lisboa, excepção
feita das tropas regionaes paulistas e rio-grandenses. Podia
o Thesouro do Rio de Janeiro ter realizado alguns adianta-
mentos, mas a occupação de Montevideo, importando a
cobrança das receitas aduaneiras d'esse considerável porto,
bastaria dentro em breve para custear as despezas da expe-
dição.
As únicas queixas que no atilado dizer dos communi-
cados, destinados, não nos esqueçamos, a um periódico lon-
drino e a um publico britannico, podiam os Brazileiros nu-
trir, seriam os favores extraordinários outorgados no terreno
commercial pelo tratado de 1810 e as concessões a que no
assumpto do trafico fora levado o governo do Rio. Estas
eram expressões de resentimento bem mais fundadas do que
meras questões de subvenção por este ou por aquelle Reino,
emquanto se não abria a risonha perspectiva financeira do
objecto da empreza satisfazer os gastos da sua operação.
Muito mais impopular devia com certeza ser em Portugal
a ambiciosa guerra do Sul, porque lhe acarretava despezas
sem proveito privativo, nem prestigio directo. Verdade é
que no Brazil faltava igualmente, afora interesse que
justificasse a conquista, a não ser o politico, a vaidade nacio-
nal que só pode gerar um accordo de sentimentos. E o
Brazil ainda era, moral como organicamente, fragmentário.
790 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
A revolução de 1817 tem que ser examinada sobre-
tudo pelo seu lado theorico, no seu aspecto correlativo, em
sua feição proselytica. Foi um signal mais dos tempos, a
manifestação de uma .combinação de impulsos em que entra-
vam o amor exaggerado, litterario si quizerem, philosophico
mesmo, mas em todo caso activo, da liberdade, e uma noção
jactanciosa da valia americana que o abbade de Pradt
aponta com felicidade quando escreve n'um dos seus muitos
livros de vulgarisação da emancipação do Novo Mundo, que
"pela primeira vez, tratando-^e do Brazil com relação a
Portugal, uma parte da America aprendera a levantar a
cabeça mais alto que a Europa e a dar leis áquelles de quem
tinha por habito recebel-as."
Aliás estes sentimentos abstractos e geraes assumiam
traços concretos e particulares na provincia revoltada. A
ordem do dia de 4 de Março de 181 7, do capitão general
Caetano Pinto de Miranda Montenegro, ajuntava ás razões
do Correio uma terceira, a mencionada e que estava na raiz
do descontentamento popular: a sizania levantada "entre os
nascidos no Brazil e os nascidos em Portugal", accusados de
monopolizar os melhores empregos civis e militares, os maio-
res proventos e tudo mais de bom na terra. Por outras pala-
vras, eram a questão nativista e a affirmação independente
que sob as vestes democráticas, tão em moda na epocha, sur-
giam incomparavelmente mais vehementes do que em Minas
no final do século XVIII.
" Ha presentemente, proclamava o doutor governador,
alguns partidos, fomentados talvez por homens malvados,
com a louca esperança de tirarem alguma vantagem das des-
graças alheias, sem se lembrarem de que todos somos Portu-
guezes, todos vassallos do mesmo soberano, todos concida-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL . 791
dãos do mesmo Reino Unido, e que nesta feliz união, igua-
lando e ligando com os mesmos laços sociaes os de um e
outro continente, só deve dividir e separar aos que fomentam
tam perniciosas rivalidades".
D'este motivo básico apparecem os outros como flores-
cência e, cortados do pé, não significam bastante para expli-
carem a sublevação, convindo notar que nos ciúmes nativis-
tas, nem todos de preponderância politica, que a tradição
consagrava, entravam em não pequena escala zelos alimen-
tados pelos nacionaes dos bens alcançados pela actividade
commercial dos Portuguezes.
Caetano Pinto, que era homem intelligente e se gabava
de ser homem de lei, comprehendia perfeitamente quanto
eram inevitáveis todos esses ciúmes patrióticos e económicos
que em torno d'elle se agitavam, e philosophava sobre o caso,
desculpando-os, em vez de procurar abafal-os pela violência,
o que sabia dever ser contraproducente. A philosophia con-
dizia admiravelmente com o temperamento pacifico e a
calma judicativa do futuro marquez da Praia Grande:
com a própria segurança do Recife pouco se incommodava a
sua suprema autoridade, sem tentar mantel-a*com uma me-
lhor policia que cohibisse os frequentes roubos, assaltos e
assassinatos, sendo que de ataques de ladrões o governador
em pessoa havia sido victima resignada.
Não admira que, no tocante á conspiração que toda a
gente sabia estar-se forjando nas lojas maçónicas e nos con-
ciliábulos patrióticos, em segredo e ás escancaras, Caetano
Pinto só tarde se resolvesse a agir, tão tarde que o movi-
mento já não teve summa difficuldade em triumphar. A eco-
nr.mia excessiva e a negligencia, em matérias de administra-
ção, do governador de Pernambuco podem portanto ser
792 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
apontadas, sem receio de errar, como fazendo parte das ra-
zões próximas da sedição, si bem que resgatassem aquelles
defeitos brandura e tolerância que não eram communs aos
capitães generaes.
De como andava indisciplinada a soldadesca e não me-
nos a officialidade, o que mais que tudo traduzia o mal
estar, physico e espiritual, caracteristico do momento, deu
evidente prova o crime que deu o signal da rebellião. As
prisões dos suspeitos, ordenadas á ultima hora pelo gover-
nador, deram com effeito origem ao conhecido episodio de
quartel em que o capitão José de Barros Lima (Leão
Coroado) assassinou o seu superior, provocando com tal acto
geral insubordinação nas fileiras do regimento de artilheria,
depois agitação na cidade, toques de rebate, exaltação dos
ânimos, libertação dos detidos politicos e á mistura de cri-
minosos vulgares, e por fim a mais completa perturbação da
ordem.
" Em fim, a 6 d'este mez, contava Maler para Pariz,
um regimento de artilheria excedendo-se em vociferações e
espirito de amotinação, o Governador, avisado do tumulto,
enviou ao quartel o Brigadeiro Salazar para tratar de acal-
mar a desordem. Quando começava a exhortar o regimento,
um capitão, talvez receioso do effeito das suas palavras,
apressou-se em atravessal-o com a espada e Salazar ca'hio
immediatamente morto. ( i ) Ao saber do assassinato o Go-
(1) o assassinado Bão foi Salazar, que era cliefe do regimenti
flo infantaria, sim o brigadeiro Manoel .Toaquim Barbosa, chefe do re-
gimento de artilheria e portuguez, diz Miiniz Tavares, altivo e severo.
quando procedia A prisão dos officiaes sus-peitos. Salazar fez parte
dos officiaes superiores que, em conselho na fortaleza do Brum, decidi-
ram o qne o goveraador desejava, a saber, a capitulação sem derrama-
mento de sangue.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 793
vernador mandou um dos seus ajudantes de campo, que foi
igualmente victíma.
Emquanto que isto se passava nos quartéis, três Brazí-
leiros percorriam a cidade, reuniam a multidão e pregavam
a revolta, vociferando contra o Governo e contra os euro-
peus. Estes três chefes eram: i^ um negociante, Domingos
José Martins, recentemente chegado de Londres, onde que-
brara fraudulentamente; 2" António Carlos de Abreu, (i)
que durante vários annos fora magistrado em Santos, actual-
mente ouvidor, accusado de assassinato e vivendo na mais pa-
cifica, e aqui mais vulgar, impunidade; 3- o Vigário de uma
parochia (2) ; este scejerado para melhor se impor á multidão
teve a infâmia de se revestir do sobrepeliz e da estola. São
visivelmente os três chefes da insurreição, e Domingos José
Martins é o mais influente de todos. (3) Ouviam-se com
frequência gritos de: Viva a independência! Viva a liber-
dade dos filhos da pátria ! Morram os europeus !" (4)
Os successos da revolução de 181 7 são de sobejo conheci-
dos. Os factos que lhe assignalaram a curta duração, encon-
tram-se miudamente historiados em Muniz Tavares (5) e
syntheticamente, quando não gongoricamente romantizados
em discursos e paneg>TÍcos sem conta. A recentissima publi-
cação das Notas Doininicaes (6) veio ajuntar outra rela-
(1) António Carlos de Andraãa, ouvidor em Olinda.
(2) O padi*e .Toão Ribeiro não era vigário de parochia, sim ca-
pellão do hospital do Paraíso.
(3) Para ser bem exacto, deveria Maler ter dito que Domin-
gos Martins já estava recolhido na cadeia donde violentamente o
soltou o tenente de artilheria António Henriques. Só então poude elle
entrar a exaltar a republica com o seu enthusiasmo communicativo.
(4) Trad. cit. do officio de 28 de Março de 1817.
(.')) Historia da Revolução de 1817.
(6) Edição do Instituto Archeologico de Pernambuco, em tra-
ducção do Sr. Alfredo de Carvalho.
D. J. — 50
794 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ção fidedigna de mais uma testemunha presencial. A narra-
ção do sacerdote liberal e os pormenores de Tollenare
acham-se plenamente confirmados nas informações, neste
caso distantes mas sempre bebidas na boa fonte, de Maler,
e, o que aqui mais avulta e importa, nas declarações pres-
tadas em França pelos capitães de embarcações dessa nacio-
nalidade então surtas no porto do Recife. ( i )
Eram em numero de quatro taes embarcações. Segundo
Luiz Vicente Bourges (Borges?), Lisboeta domiciliado em
Nantes, immediato e sobrecarga do navio do mesmo porto
La Felicite, houve vinte pessoas mortas no motim de 6 de
Março, contando-se no numero três marinheiros francezes
que não responderam ao quem vive f dos patriotas. Ava-
liava elle a força regular dos insurgenfes (entrando de certo
as milicias, porque o effectivo dos dous regimentos de linha
estava, ao tempo do movimento, bastante reduzido) em
2.500 a 3.000 homens. Quando La Felicite se poz ao mar a
12 de Março, pois que a circumstancia da revolta lhe per-
mittio reunir uma grande carga, sobretudo de algodão, a
preços vis por continuar o embargo sobre os navios nacio-
naes, occupavam-se os rebeldes de manhã á noite em exerci-
tar-se, melhorar a defesa das fortalezas e outros pontos
principaes de resistência, e organizar a cavallaria.
Outra testemunha do mesmo género, o capitão do navio
La Perle, eleva o numero dos mortos a 50 ou 60, visto
que, como sempre acontece em semelhantes occasiões, apro-
veitaram-se os que de repente se viram com as armas na mão
para satisfazer antigas vinganças ou dar simplesmente curso
I
(1) Estas declarações, tomadas nos portos de entrada, foram
remettldas pelo Ministério da Marinha t» Colónias ao de Estrangeiros
da França, em cujo aricliivo 9» eoií^ontram.
DOMVOAO VI NÔ BRAZIL 795
aos seus ínstinctos bestiaes. E' mister não esquecer que d'a-
quellas mortes no bairro de Santo António, quasi todas,
foram culpados os facinoras libertados da cadeia e não os
soldados e milicianos, tanto que a ulterior occupação, pelos
regulares d'esta revolução em summa ordeira, do bairro do
Recife, não foi manchada por igual morticínio.
Pensava aliás este segundo declarante que, não se offe-
recendo resistência em parte alguma, se não teria dado ma-
tança si não fosse o boato de um appello feito pelo inten-
dente da marinha (Cândido José de Siqueira) aos tripolan-
tes das embarcações portuguezas fundeadas dentro dos arre-
cifes, que estimulou a violência dos rebeldes e chamou a
suspeição e a ogeriza contra tudo que tivesse apparencia de
maritimo. Dos quatro homens de bordo da Perle que, com
receio da pilhagem, para lá carregavam do armazém estabe-
lecido pelo seu capitão para a venda a retalho, 17 a 18.000
francos em ouro, trez foram summariamente espingardeados
e ao quarto apunhalaram nas costas e partiram um braço,
não o acabando os assassinos de matar e até o levando para
um hospital quando verificaram ser um Francez. O capitão
assim se exprimio textualmente: "Os negros livres e escravos,
bem como os mulatos armaram-se de picas, machados, etc,
e massacraram todos os que no primeiro momento tenta-
vam fugir, particularmente marinheiros ; os insurgentes tendo
sabido que o filho do intendente fora a bordo das embarca-
ções portuguezas surtas no porto, afim de pedir aos tripo-
lantes que acudissem em soccorro dos realistas".
As peripécias essenciaes são uniformemente relatadas,
d'ellas não existindo, a bem dizer, duas versões. O governa-
dor continuou até a ultima a ser homem de paz, sa-
hindo do palácio á primeira descarga para encerrar-se na
796 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
fortaleza do Brum e ahi se render, desdenhando os elemen-
tos de resistência — bem superiores aliás aos dos insurgentes
que no bairro de Santo António ainda operavam com fra-
gmentos de regimentos, sem organização e com pouco arma-
mento— que no Recife mesmo se agrupavam e viram-s€ dis-
persos pela ousadia de um dos officiaes rebeldes. Este homem
decidido (i) foi quem se apoderou da ponte do Recife
quando os Portuguezes se dispunham a cortal-a para me-
lhor defenderem sua causa, isolando-se, de facto abdicando
com aquelle gesto a intenção de recuperarem a posição per-
dida, da qual os rebeldes logo se assenhorearam por com-
pleto, arvorando sua bandeira improvisada e proclamando
sua creação menos improvisada.
Seguio-se entre a gente boa da cidade, do commercio
especialmente, que era todo portuguez, a infallivel deban-
dada, movida pelo terror. Estes primeiros emigrados, che-
gando á Bahia n'uma embarcação que logo se fez de vela e
informando o conde dos Arcos do occorrido, p€rmittiram-lhe
tomar suas precauções: chamar a si a tropa, redobrar de
vigilância, prevenir cada um dos suspeitos da sorte que o
esperava si se atrevesse a pronunciar-se, e distribuir procla-
mações realistas que nos parecem hoje ridiculas na sua rhe-
torica empolada e affectada vehemencia, mas que foram
efficientes, suffocando toda velleidade revolucionaria e pro-
(1) Mubíz Tavares attribue o feito ao tenente António Hen-
riques, pelo qual mostra grande parcialidade : Tollenare ao capitão
Pedroso, mestiço de certa instrucção e valente, que de^u voz de fogo
contra o ajudante de ordens Alexandre Thomaz. N'um dos seus in-
teressantes Estudos Pernambucanos. — Os motins de Fevereiro — o Sr.
Alfredo de Carvalho descreve com exactidão histórica e senso do pit-
tx>re«co as ulteriores façanhas, em luctas civis, do Indisciplinado of-
ficial.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 797
(luzindo o resultado visado, que era o socego fiel da provín-
cia. Arcos procedeu em summa como general que era:
si fosse homem de toga, teria talvez procedido como Cae-
tano Pinto, que mesmo as denuncias mais fundadas despre-
zou, até ser tardio o tratamento do mal ainda que violento.
Pode ter-se como certo que a sedição pernambucana
tinha a sua ramificação bahiana, e é possivel que á rápida
acção do conde dos Arcos, que tão grande desanimo local ge-
rou, não fosse extranha a preoccupação de dissimular, ou antes
fazer desapparecer, cahindo no vago e por fim no esqueci-
mento, uns confusos projectos de conspiração aristocrática,
tendente — si vera cst fama — a substituir um throno por
vários thronos, e desconhecida a não ser pela referencia
indistincta de uma proclamação do governo provisório do
Recife aos Bahianos. ( i )
Outro tanto, sem quiçá os precedentes, aconteceria no
Ceará, onde a missão do sub-diacono Alencar veio a gorar
(1) o theor d'este documeBto differe de resto em Muniz Ta-
vares e em Mello Moraes {Historia das Constituições), sendo dVste a
versão meio sy^billíBa. Ha quem diga, e houve então quem pensasse,
que a revolução pernambucana fora gerada em Tiisboa — certamente
nas lojas maçónicas — devendo o movimento sedicioso ser simultâneo
nos dous iReinos e ter por objectivo, a começo, obrigar Dom João VI
a voltar paTa Lisboa. Os Portuguezes reclamavam o seu Rei e as
suas regalias, e os Brazileiros (jue já sonhavam com republica, ou
pelo menos com indnpondencia. tinham a peito afastar o obstáculo
principal <1 proclamação dos seus princípios democráticos ou Ilberaes,
l'ode também suippor-.se que Arcos estivesse mettido at^é certo
ponto na conspiração no intuito, que vingooi mais tarde, de ficar como
mentor do joven Regente Dom Pedro, ou melhor na esperança de voltar
a ser com mais esplendor o que era em 1808, o vlce-rei, de uma nação
porém já feita, não mais de uma colónia. Na aitmosphera particular
de Pernambuco, em cuja composição entravam a indiseiípUna e o phi-
losophismo, e tendo occorrido a cireums-tancia decisiva do essassinato
dos dous officiaps generaes. a solução demagógica irrompeu brusca-
mente, duplicàfido o furor de Arcos, a um tempo enganado nas suas
cmbiçrifs e «avergonhado, para o que procurava desabafo na irrita-
ção, por se haver associado na origem a semelhantes conchavos per-
turbadores.
798 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
como a do padre Roma á Bahia, graças á teimosia do capi-
tão-mór do Crato, um velho malfeitor que para o crime se
valia da sua auctoridade, e á energia do governador. Mau
gra'do quaesquer sympathias que intimamente despertasse
n'essas duas capitanias, não conseguio a revolução attrahir
á sua orbita subversiva mais do que a Parahyba e o Rio
Grande do Norte.
Este era o maior susto da corte, que o movimento se
propagasse, effeito que Maler julgava inevitável; e a facili-
dade com que nas duas provincias satellites foram levadas de
vencida as poucas, débeis resistências levantadas, faz suppor
uma corrente occulta de solidariedade cujo circuito já
estivesse estabelecido, a menos que não implique uma matéria
extremamente amorpha de experiência democrática. Não
podia, porém, ser este ultimo tanto o caso, porque no meio
da geral apathia ignorante existia um núcleo illustrado,
elemento directivo que então exercia mais decidida influencia
do que hoje, arrastando as vontades irresolutas e determi-
nando as adhesões inconscientes.
Semelhante elemento estivera sujeito a uma verdadeira
iniciação, a um trabalho de illuminação politica de que ti-
nham sido conductores os sacerdotes lidos em philosophia
revolucionaria que foram os principaes agentes, propagado-
res e martyres ^'essa revolução de padres, o que pelo menos
no Brazil d'aquella epocha significava uma revolta da intelli-
gencia.
Tanto foi a insurreição de 1817 um movimento muito
mais de principios que de interesses que Tollenare, especta-
dor e chronista insuspeito d'elle, não aponta sequer entre as
suas causas razão alguma económica. Apenas lhe descobrio
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 799
razões moraes : a ambição positiva de uns e a imaginosa chi-
mera de outros, as duas bolindo com os sentimentos nativis-
tas, aggravando os despeitos e humanamente acirrando a
cupide::. Teve portanto a revolução pernambucana, e bem
saliente, a sua formosa feição, pois que captiva e fascina
quanto representa nobre aspiração de liberdade, a qual sabe-
mos não vicejara no Brazil, nem mesmo depois que a trans-
plantação da corte determinara uma mudança climatérica.
O governo das provincias continuou muito a ser o das capita-
nias: o governo do bom ou do mau tyranno. Feliz a terra
quando, como a Bahia, se lhe deparava um governador como
Arcos que nos seus sete annos de governo (1810-1817), si não
deu ensanchas ao espirito politico, confundindo o civismo com
a lealdade dj^nastica e equiparando o patriotismo á dedica-
ção monarchica — termos que se não excluem, mas que po-
dem viver separados — pratica e efficazmente protegeu a in-
strucção publica, o desenvolvimento intellectual, as commu-
nicações fluviaes, o commercio e a defeza militar.
A revolução apresentou-se comtudo com suas vestimen-
tas usuaes de indisciplina, desordem e violência. Sua estréa
foi o homicidio de militares de graduação por officiaes sub-
alternos e, para sustentar-se, si bem que a perfilhassem e
favoneassem o clero nutrido de idéas francezas e a aristocra-
cia territorial túrgida de orgulho de nascimento e de senti-
mento bairrista, tinha ella de tornar-se demagógica e, na
falta de outro povo, appellar para a plebe de cor. A carta de
um Portuguez a seu compadre, descrevendo a cidade depois
do levante, diz que se não viam mais do que casas fechadas,
não apparecendo nas ruas a gente branca, e que os patriotas
negros e mestiços que pejavam as calçadas, em vez de anda-
soo DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rem como d'antes pelo meio da estrada, tinham modos inso-
lentes de abordar os Europeus e pedir-lhes fumo.
O commercio, pelo duplo motivo do sentimento nacio-
nal e da desconfiança, só podia ser adverso ao movimento
emancipador e republicano, o qual não dispondo senão limi-
tadamente de forças regulares — as que se rebellaram fize-
ram-no por espirito de imitação muito mais do que por cons-
ciência patriótica e não offereciam plena confiança em caso de
incertezas — ^e tendo que luctar contra um sentimento monar-
chico que provou ser ainda fervoroso em muitos, ou pelo me-
nos com o temor do desconhecido entre a população de certa
condição, (i) carecia de apoiar-se nas camadas baixas. A ralé
é que afinal podia dotar a revolução do largo fundamento de
que esta precisava para exhibir vigor material de que não dis-
punha, e manifestar enthusiasmo mais geral, ainda que não
mais ruidoso e consistente, do que o fornecido pelos vigários,
democratas que foram a cabeça e o coração do movimento, os
senhores de engenho de sangue azul, rivaes natos dos mas-
cates como o da carta ao compadre (2) e os patriotas, em
diminuto numero, de biblio-suggestão, fructos das acade-
mias do Cabo e do Paraiso.
A revolução de Pernambuco seguio a marcha de todos
os pronunciamentos militares: começou por augmentar no
triplo ou quádruplo o soldo das tropas, dos defensores, offi:
ciaes e soldados, da pátria e da liberdade, o que facilitou a
circumstancia de acharem-se no Erário cerca de 800.000
(1) " sem «e lo-mbrai-pm (o.? prniamhiicav-os que fitaram
o« Estiulos Unidos e almejavam o desenvolvimento da pátria) que
com facilidade podo-Ro transplantar a Lei. mas não o espirito da Na-
Qão ; não pensavão que no Brazil existia lium tlii-ono, e oecmpado por
hum Rei naturalmente lx)m, circumstancia qne muito diversificava a
posição respectiva." (Muniz Tavares, ob. cit.)
(2) 1'ublicada por IVIello Moraes no Brazil-Rcino e Bvazil-Im-
peno.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 801
escudos, sendo 200.000 em bilhetes do Banco do Brazil. (i)
Depois, para angariar o favor popular, o governo provisó-
rio (2) abolio vários impostos, entre elles o de subsidio mili-
tar, de 160 réis por arroba, sobre a carne; para prover a sua
segurança, determinou a compra de armas e munições, mon-
tou em guerra um brigue, duas canhoneiras e outra embar-
cação, fazendo appello a marinheiros estrangeiros por des-
confiar dos portuguezes, e permittio o levantarem particula-
res companhias de cavallaria; para dar arrhas do seu fervor
democrático, ordenou o tratamento de vós entre os patriotas;
para conciliar a classe agrícola, já que a mercantil lhe fugia,
facilitou o pagamento das dividas á extincta Companhia de
Pernambuco, cuja liquidação ainda durava, e dif ferio a
emancipação dos escravos, proclamando *'que a base de toda
a sociedade regular, é a inviolabilidade de qualquer espé-
cie de propriedade."
Pode dizer-se que os actos da joven Republica foram
todos impressos de moderação e até de espirito conservador,
o que não é para admirar si a encabeçavam e dirigiam a
gente de bens e a gente de illustração. Os actos propria-
mente politicos também foram repassados de moral jacobina
— a revolução foi paradoxalmente honesta — e de affectada
confiança. Affectada e igualmente espontânea, pois que o
celebrado, já lendário orgulho dos Pernambucanos (os de
boa família, senão de boas lettras, pela maior parte plantado-
(1) Offioio cit. de MaU'i- de 28 de Mar<;o. Miiniz Tavares falia,
em 600 contos. O Erário foi guarde do p-elo mare^chal José Roberto com
o grosso da railicia até ser obrigado a ceder e ver confraternizarem
seus soldados com os de linlia.
(2» Formado de cinco membros, representantes do commercio
ÍI>oiningos .José Marlinsi, da magistratura (.José Luiz de Alendonc.-a),
do clero (padre .João líibeiro Pessoa), do exercito (Domingos Theoto-
nio Jorge) e da agricultura (Manoel Corrêa de Araújo) .
80â DOM JOÃO VI NO BRAZIL
res) augmentara com a fortuna dos últimos tempos, os bons
preços do algodão e do assucar, e reflectia-se nos papeis ema-
nados do governo provisório, ( i ) agindo esta fartura de
accordo com a miséria da plebe ao rebentar o motim.
Apezar da basofia presagiar intransigência, a tolerância
republicana foi tanta que os empregados foram todos con-
servados nos seus officios, mediante uma adhesão não em
extremo difficil de obter. Apenas destoaram d'essa norma
legal, e não sem explicação ou justificação, a abertura das
cadeias, logo corrigida, e annullação dos processos civis e
criminaes, e o sequestro nas propriedades dos negociantes
que por causa da revolução se ausentaram da terra. "A 8 de
Março, escrevia o insuspeito Maler, a ordem e a tranquil-
idade estavam perfeitamente restabelecidas; li uma carta
de um negociante inglez, escripta daquella cidade {Recife)
a 9, que dizia não se perceber mais o menor vestigo da revo-
lução, gosando-s€ da mais perfeita calma e segurança."
O capitão da Perle, que permaneceu em Pernambuco
trinta e dous dias depois de arvoradas as cores da revolução,
escrevia que nem a sua embarcação, nem as outras nove ou
dez, estrangeiras, ancoradas diante do Recife, foram no
minimo molestadas: "os direitos ficaram na mesma, o nego-
cio livre e requisição alguma foi lançada, a não ser de muni-
ções de guerra que havia ordem de arrecadar contra paga-
mento, por decisão do governo provisório". (2)
(1) "Que culpa tiveram os Brazileiros, dizia o manifesto aos
habitantes da provincia, de que o Principe de Portugal sacudido da
sua Capital pelos ventos impetuosos de uma invazão inimiga, sahindo
faminto dVntre os seus Luzitanos, viesse achar o abrigo no franco e
generoso Continente do Brazil, e matar a fome e até a sede na altura
de Pernambuco, e pela quasi Divina Providencia, e liberalidade dos
seus habitantes ? "
(2) Arch. do Min. dos Neg. Est. de Franga.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 803
Quando a Perle singrou, a 8 de Abril, os escravos,
armados no começo, tinham restituido as armas e retomado
sua canga. "O novo governo até me concedeu trez marinhei-
ros portuguezes em substituição dos meus trez homens de
tripolação mortos no tumulto do primeiro dia, testemu-
nhando seu vivo pezar pela calamidade que me assaltara."
E' mesmo possivel que a situação houvesse melhorado,
sob o ponto de vista da segurança e do direito, depois da
insurreição, pois não pode restar duvida de que a provincia
se achava, antes, n'uma condição quasi anarchica, existindo
para a sublevação, ainda considerada objectivamente, causa
mais do que sufficiente. Quando encerrasse exaggeração o
quadro publicado no Correio Braziliense ( l ) por uma tes-
temunha ocular, confirma-se nos seus dizeres a impressão de
quão aleatória era a segurança individual; quão relaxado o
governo; quão venal a justiça; quão deshonesta a adminis-
tração, tanto na Junta de Fazenda, por onde corriam do-
cumentos falsificados, como na Alfandega, onde florescia
publico e notório o contrabando, chegando a desfaçatez ao
ponto de possuirem officiaes d'ella lojas de fazendas, como
na Intendência de Marinha, ninho de falcatruas.
Remettendo para a França o Preciso de José Luiz de
Mendonça, penhor do seu republicanismo violentado, o ca-
pitão da Perle achava-o razoável, enumerando as queixas
que havia da corte, a começar pela aggravação das contri-
buições.
O governador, todos concordavam e a testemunha
ocular do Correio o proclamava, era o único talvez dos
altos funccionarios limpo de mãos; mas si a sua indiffe-
(1) N. 109 de Junho de 1817, vol. XTIII.
804 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rença optimista rastejou antes do levante na inconsciência,
tomando reuniões de conspiradores por assembléas de ma-
ções, achando-lhes até graça e cerrando os olhos a factos
inilludiveis, ao ponto de correrem no Rio boatos que em
Pernambuco Caetano Pinto desconhecia e no emtanto diziam
respeito ao seu governo, depois do levante a sua cordura foi
quasi cobardia (i).
Não foi certamente seu exemplo que inspirou o conde
dos Arcos, o qual, sem esperar instrucções da corte, tomou
logo na Bahia as providencias necessárias para a prompta
repressão da sedição visinha, adoptando uma attitude mili-
tante e até feroz, despachando a bloquearem o Recife o
único pequeno navio armado que tinha á sua disposição e
dous mais que obteve ou arrancou de particulares, e fazendo
antes de decorrido o mez de Março seguir um corpo, dispo-
(1) "O Governador Montenegro, logo no primeiro dia, refu-
giou-so em um dos fortes, cuja ponte levadiça fez levantar ; á vista
de uma intimação de render-se, esicripta n'um farrapo de .pa'pel e sem
assignatura (o que não é exacto, pois o ultimatum era firmado pelos
cabeças), mandou abrir a porta, e foi conduzido directamente e sera
o menor vexame para bordo do brigue que o trouxe aqui. Tendo re-
clamado o seu dinheiro e roupas, a Junta imonediatamente tudo man-
dou-lhe entregar, dizendo que assim procedia attendendo a sua inte-
gridade pessoal, e que tudo teriam retido se elle houvesse roubado
como os outros; o seu dinheiro subia a 6.000 cruza'dos." (Trad, eit.
do officio de Maler de 28 de Março de 1817).
" O capitão Thibaut, de La Loui^se, desde o primeiro momento da
insoirreição teve a generosidade de espontaneamente ir procurar o Go-
vernador e de lhe offerecer (> canhões que tinha a bordo, pólvora e
tolda a sua tripolação para apoiar o partiido real. Tendo este offereci-
mento sido acceito fez desembarcar as peças e alguns barris de pól-
vora ; mas, devido á covardia e pusillanimidade do Governador, este
movimento que poderia ter animado os portuguezes foi inútil; o ca-
pitão Thibaut, vendo-se só e sem o menor apoio, teve- que voltar para
bordo, e durante a noite seguinte poude apenas reembarcar parte dos
seus canhões e munições." (Officio de Maler de 1 de Maio : trad. na
Rev. do Inst. Arch. de Peni.) O immediato de L'Androm,aquc que fi-
cara por do;ente, offereceu pelo contrario seus serviços aos insurgon-
tes, que o nomearam official do brigue então armado.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 805
nivel e improvisado, de 1.500 homens para a comarca das
Alagoas com ordens terminantes de levar tudo a ferro e a
fogo. "Nenhuma negociação será attendida, sem que preceda
como preliminar a entrega dos chefes da revolta, cu a cer-
teza da sua morte; ficando na intelligencia de que a todos
he licito atirar-lhes a espingarda como a lobos." Era d'estas
proclamações que Maler se espantava mau grado todo seu
espirito reaccionário.
A perspectiva não se offerecia desannuviada aos olha-
res anciosos dos patriotas. Já a 29 de Março de 181 7
escrevendo ao seu governo, o cônsul britannico John Lam-
priere augurava mal do movimento: "I think to perceive that
the generality of the inhabitants become daily more gloomy"
(i). Com effeito os soldados da revolução desertavam em
grande numero, apezar do tão considerável augmento na
sua paga, tendo que serem alistados, para encher-lhes os
claros, muitos escravos aos quaes por este motivo se con-
cedia alforria, dando-se ou promettendo-se indemnização
aos senhores. Sobretudo não chegavam noticias, as almejadas
noticias da Bahia, onde os rebeldes contavam com adhe-
sões seguras, quando ao envez, d'esse mesmo lado do qual
no século XVII viera o soccorro definitivo para a expul-
são dos HoUandezes — auxilio tão indispensável quanto
foi no século XVIII o francez para a libertação das coló-
nias inglezas — partia agora a reacção contra o grito per-
nambucano de independência.
Também a pobre insurreição em parte alguma depa-
rava com as sympathias a que tinha ou se julgava com di-
reito, ou de que nutria confiança. Nas capitanias do Norte
(1) Aroh. do Min. das Rei. Ext., Cari^esp. da Leg. em Londres.
806 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
por onde até certo pwnto se propagara o movimento, mas
que eram porções do littoral pouco favorecidas, menos po-
voadas e constituindo a secção mais desprovida de recursos
do paiz, a contra-revolução lavrou rápida: no Rio Grande
do Norte, logo que se ausentou o contingente parahybano
de José Peregrino, na Parahyba por um impulso espontâ-
neo do velho espirito tradicional que produziu uma reacção
fatalista, originando um conflicto de principíos em que o
receio representava papel secundário.
A comarca das Alagoas conservara-se pode dizer-se que
fiel á causa legal. Nella echoara debilmente o clamor sub-
versivo e estalou quasi sem provocação a contra-revolução no
Penedo, passando de prompto a Maceió e vindo em offen-
siva deter a marcha do reforço de José Mariano Cavalcanti,
mandado do Recife para o sul da provincia.
Com as colónias revoltadas da America Hespanhola
não houve tempo nem sobretudo ensejo de firmar solidarie-
dade. Nos Estados Unidos a repercussão foi nulla. O emis-
sário António Gonçalves da Cruz, o Cabugá, para lá despa-
chado a obter o reconhecimento e protecção, só alcançou a
tardia remessa por especulação particular de provisões de
guerra e também de bocca, que estas andavam caríssimas
no Recife, chegando um alqueire de farinha, que custava
d'antes 1.600 a 1.920 reis, a pagar-se por 9.200, sem appare-
cer o género no mercado.
Contra essa infracção de neutralidade, posto que não
official, merecendo comtudo a fiscalização official, pro-
testou aliás sem demora o ministro Corrêa da Serra,
sendo attendido pelo governo federal, como o fora na
sua reclamação contra os navios armados nos portos ame-
ricanos, com bandeira dos insurgentes hespanhoes, para ata-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 807
car as embarcações da metrópole, e também as portuguezas,
estando em lucta o governo do Rio com Artigas e podendo
dar-se a todo momento o rompimento com o governo de
Buenos Ayres ( i ) .
Outro motivo de reclamação por parte de Corrêa da
Serra seria, apoz suffocada a rebellião de 6 de Março, o
proceder do cônsul americano Joseph Ray, accusado pelo
próprio juiz relator da alçada, entre outros feitos de natu-
reza politica, de communicações mais que suspeitas com os
revoltosos e com officiaes estrangeiros por estes alliciados
(1) A nota de 20 de Dezembro de 1816 de Corrêa da Serra
a James Monroe, Secretario d'iEstado, citaiya com precisão vários casos
escandalosos de navios de corso ficticiamente vemãidos a armadores
platinos. e ajuntava muito diplomaticamente:
"Taos factos não precisão de eplthetos para serem propriamente
qualificados, e por isso julguei supérfluo usar delles. Mostram logo
à primeira vista a sua natureza immoral e criminosa, e a sua oppo-
sição ao direito das gentes. Eu conheço perfeitamente os honrados sen-
timentos deste Governo e desta Nação, para não conceiber a menor
suspeita de que olham para elles em outro ponto de vista. A falta
está inteiramente na insuíficienicia das Leys actuaes, e nas evasivas
que offerecem aos culpados, particulsranente quando são ajudados pela
trapassa forense. Provavelmente os passados legisladores Americanos
providenciaram tão imiperfeitamente para taes occufrencias, poi-que
as julgaram imipossiveis ; mas uma vez que chegam a acontecer, nada
pode justificar esta nação aos olhos do mundo civilizado s^não a
promulgação das leys sufficientes para este caso.
Se os cidadãos dos Estados Unidos não forem impedidos pelas
Leys da sua pátria, de serem em massas, partes agentes em guerras,
que não são suas, não dará isto logo aos olhos de todas as Potencias
estrangeiras um caracter e uma cor piratica e odiosa a esta nação,
indignos delia ? A sua paz e tramquill idade serão também postas em
perigo, porque todo o governo assim offendido, tem um direito na-
tural de ressentir e vingar com todas as suas forças injurias por este
modo recebidas contra os usos do mundo civilizado. Deve pois a honra
e a paz do povo americano, de nove milhões de pessoas, a immensa
pluralidade das quaes tem, a meu perfeito conhecimento, um caracter
justo, honrado c paciífico. serem postas em perigo imminente, pela
culpável cobiça de uns poucos de homens de um ou outro porto de
mar, que para adquirirem riquezas não tem duvida de so tomarem
ipiratas ? Porque do facto não he outra cousa andar em corso em
guerras, que não sejam as da nação de cada um.
iRcipresento por conseguinte a este Governo na occasião actual,
não para começar altercações, ou pedir satisfacções, quo a Constitui-
808 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
(os trez bonapartistas, do exercito francez, engajados pelo
Cabugá nos Estados Unidos, chegaram tarde) e de acoutar
na sua residência trez chefes do movimento sedicioso na
Parahyba, que d'ahi foram arrancados pela policia. O go-
verno americano houve que destituir o seu cônsul.
Na Inglaterra, onde o governo provisório sonhara fazer
de Hippolyto o seu ministro, o apoio á revolução foi igual-
mente, e com maior razão, .negativo, obtendo pelo -contra-
rio Palmella facilmente do governo do dia, como era de
prever, quanto pretendia em detrimento da republica. Só
não conseguio, porque o gabinete britannico invocou a pro-
pósito a neutralidade adoptada entre a Hespanha e suas co-
ção dos Estados Unidos talvez o nao habilita a dar, porque eu co-
nheço que o Supremo Executivo doesta nação, todo poderoso quando
fstribado em Leys, he constitucionalmente sem acção, quando ellas
lhe faltam. O que eu solicito delle he que proponha ao Congresso que
dê taes providencias por Ley, que previnam taes attentados para o
futuro."
,'A resposta de ilonroe foi a remessa ao Congresso, pelo Pre-
sidente Madison, de uma mensagem urgindo a necessária extensão das
disposições legislativas, executivas e penaes para manter-se a neutra-
lidade rigorosa dos Estados Unidos, podendo ser detidas as embarca-
ções suspeitas, exigida previa e forte fiança dos donos e commandan-
tes de navios armados, e punidos os transgi-essores, em julgamento,
com multa que não passasse de 10.000 doilares e prisão que não ex-
cedesse dez annos.
E' interessante notar que o resipeito aos direitos dos neutros,
invocado pelo representante portugnez, constituía por esse teraipo,
quando o desconhecia ou pretendia desconhecer a Inglaterra, uma das
maiores preoccupações dos Estados Unidos, tendo até formado o melhor
das instrucções dadas ao sou primeiro ministro no Rio, sendo .Tof-
ferson Presidente e Madison Secretario d'.Estado. Oecorreram mesmo
attritos durante a guerra de 1812-14 porque as auctoridades portugue-
zas por mais que affectasseim neutralidade, não logravam deixar de
mostrar-se parciaes aos Inglezes, sempre que para isto sobrevinha
enseio- até no dizer das reclamações americanas, por occasiao de
ataques de èmbarcEções dos Estados Unidos -pelos corsários britannicos
em aguas territoriaes portuguezas. ^ _.^ h'.í^c
-Nos incidentes das .presas pseudo-platmas, o Departamento d. Es-
tado agiu com correcção, fazendo perseguir os delinquentes pelos pro-
curadores (aitonieys) de distrlcto, segundo se pode ver da correspon-
dência original no Arch. da Emíbaixada Ameri<;ana no Brazil.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 809
lonias sublevadas, como um precedente a respeitar, a coad-
juvação de fragatas de guerra que suggerira, ao julgar no
primeiro momento mais temerosa a insurreição do que na
realidade se revelou.
Acontecera que as noticias mais cedo espalhadas ti-
nham sido as trazidas pelo negociante inglez do Recife
Bowen, amigo de Domingos José Martins e o mesmo em
favor de quem os rebeldes abrandaram o decretado embargo
maritimo. Bowen não só disseminou informações muito opti-
mistas com relação ao triumpho dos patriotas, como em de-
feza d'elles fez insinuações nos Estados Unidos, para onde
se dirigira, e ao Foreign Office, por intermédio do ministro
britannico em Washington. Lord Castlereagh desprezou
porém semelhantes insinuações e, sob pretexto de acatar o
governo legal, contrariou quanto poude o movimento de
Pernambuco (i).
O Board of Trade mandou affixar um edital aconse-
lhando os navios ingkzes que pretendessem commerciar com
a praça do Recife, a dirigirem-se primeiro á Bahia afim de
colherem informações sobre a marcha do conflicto e estado
do bloqueio, que poderia entretanto haver sido levantado.
O governo britannico consideraria boas prezas de guerra, e
não reclamaria os navios seus nacionaes que fizessem signal
de querer romper esse bloqueio participado e admittido.
O correio deixou de receber cartas para Pernambuco,
a não ser via Bahia. Mandou-se embargar nas alfandegas
inglezas as cargas de pau-brazil — monopólio da coroa —
que os insurgentes pudessem ter remettido para disporem
de fundos. A conducta do cônsul Lampriére, de apresentar-se
(1) Offlcio rosorvado dp ralmella, do IG do Julho do 1S17, no
Arch. do Min. das Rei. Ext.
D. J. — 51
810 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
a receber o seu reconhecimento da junta revolucionaria (l),
foi fortemente desapprovada, informando-se d'isto o func-
cionario que o governo britannico acreditava em todo caso
ter erroneamente agido por zelo, para mais efficazmente
proteger as pessoas, bens e commercio dos vassallos inglezes,
e não por extemporânea e indevida boa vontade para com
os insurgentes.
Foi em nota de 17 de Julho que Palmella se queixou
do acto estranhavel de um funccionario estrangeiro que ac-
ceitava de uma junta rebelde (2) a confirmação das suas
funcções, auctorizadas pelo governo legal. Na sua resposta de
13 de Agosto, communicava o Principal Secretario de Es-
tado na repartição dos Negócios Estrangeiros, que ''rece-
bera ordem do Principe Regente, para declarar ao conde de
Palmella, afim de que o participe a S. M. Fidelíssima, que
elle fortemente desapprovou o comportamento d'aquelle em-
pregado publico, e que, em consequência d'isto, ao mesmo em-
pregado publico se fez saber, que elle obrara de um modo
directamente contrario ao theor da sua commissão; c que
não devia terse apresentado tam cedo perante aquellas au-
thoridades irregulares, ou fazer, sem positiva compulsão,
qualquer acto que fosse, pelo qual desse a entender a um
governo usurpador, que elle era reconhecido por um func-
cionario Britannico". (3)
(1) "O cônsul inglt>z om reniambuco foi convidado pela Junta
a .comparecer na sua sala de reuniões, para ouvir a asseveraçcão de qiie
seria re^speltado e secundado no cumprimeiíto dos deveres do «eu cargo".
(Officio cit. de Maler, de 28 de Março de 1817). Lamprièrc fora porém
quf^m provocara essa entrevista com a sua formal adliesão aos factos
consummados e estabelecimento, por iniciativa sua, de relações offi-
ciaes com o governo provisório.
Í2) Passou-se isto a 11 de Março.
(3) Correio Braziliense n. 112, de Setembro de 1817, vol. XIX.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 811
Como a Inglaterra segue comtudo invariavelmente
a norma de defender quanto possivel os seus funccionarios
no exterior e nunca os deixar a descoberto, lord Castlereagh
accrescentava : "O abaixo assignado roga todavia ao conde
de Palmella haja de certificar ao seu governo, que o go-
verno de S. A. R. está convencido, de que tudo o que o côn-
sul de S. M. obrou n'aquelle caso, foi mero effeito de um
zelo mal entendido, para proteger a legitima propriedade
e commercio dos vassallos de S. M. e que por nenhuma
forma fora em razão de ser affeiçoado aos insurgentes, ou de
ter má vontade ao governo de S. M. Fidelissima, o que am-
plamente se prova pela sua correspondência official."
Chegou Palmella a alcançar ( i ) , com sua insistência
amável e graciosa persuasão, que os capitães dos paquetes in-
glezcs (2) deixassem de admittir a bordo e transportar para
Lisboa, exemplares do Correio Braziliense e do Portuguez
que, a propósito da revolução pernambucana, inseriam ar-
tigos julgados sediciosos e publicavam verdadeiros libellos
contra os Governadores do Reino de Portugal e Algarves
(3). Assegurava Palmella na sua correspondência official
que obteria o mesmo com relação ao Brazil, caso o quizes-
(1) Nota rerbal d? lord Castlereagli ao conde de Palmella, de
11 do Julho de 1817, na Corresp. de Londres (Arch. do Min. das
ítel. Ext.)
(2) Estabelecida a linha como sabemos (vide Cap. sobre rela-
(.'õos commerciaes), por uma>.convonção especial entre as duas coi'ôas,
para dosenvolvimento das suas rauiuas relações politicas e mercantis.
(.'i) ralmolla pedira, como um processo mais pratico c expedito
para a sua legaqão. a faculdade de solicitar com êxito a expulsão do re-
dactor do Portuguc-, em voz do chamal-o á responsabilidade perante
os tribunaes por diffama-ão. T.ord Castlereagh respondeu-lhe porém
que, consultados os .iurisconsultos da coroa, tinham estes opinado que
as leis vigentes não auctorizavam uma tal violência administrai iva. i
qual seria vivamente atacada pela opposição e aliás inutilizada pela
collocação de um súbdito britannieo fl frente da publicação como editor
ostensivo ou testa de ferro. (Nota de 11 de Agosto de 1S17, v,\ Cor-
resp. de Londres, no Arch. do Min. das Kel. Ext.)
812 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
se o governo do Rio como o tinha querido a Regência ^c
Portugal. A pouca vontade da corte em associar-se a essa
attitude de Palmella para com certa imprensa periódica, con-
firma porém que Hippolyto era, como se dizia em Londres,
protegido do gabinete senão do próprio monarcha.
Das monarchias européas nunca tinham esperado sym-
pathia os rebeldes pernambucanos, sobretudo das continen-
taes. O agente consular francez, que era o horticultor Ger-
main, e nem recebera ainda o exequatur régio, mostrou-se
sem rebuços infenso ao movimento, pelo que ficou suspeito
á Junta — a qual aliás o destituirá do seu cargo botânico em
Olinda — e teve por melhor retirar-se para o Rio de Ja-
neiro, onde falleceu ao chegar. As esperanças de reconheci-
mento, concentravam-nas os revoltosos nos Estados Unidos,
era Artigas e no governo de Buenos Ayres, ao que contDíi
na corte um negociante francez de Bordéus, Mr. Vigneaux,
embarcado no Le Mercure, do Havre, que a caminho do
Rio fizera aguada em Pernambuco no dia 5 de Abril, ahi
tomando aquelle passageiro ( i ) .
A revolução pernambucana, si não fosse a atmosphera
•glacial que lhe tolheu os movimentos (2), tinha condições
em si para vingar e expandir-se, tornando-se Pernambuco
o centro de attracção do Brazil independente, ou mais ve-
(1) Offlclo de Maler de 1 de Maio de 1817.
(2) O sobrecarga Bourges o\\ Borges, na declaração c:t:ida, •re-
fere também que os patriotas ficaram logo muito inquietos com a tran-
quillidade da Bahia e Maranhão, elemeoitos com que contavam. Kepetiu
clle mais o que com relação á Bahia ouvira : que o gen.'-ral comman-
dante (Arcos certamente), informado da sedição do Rícife, mandara
formar as tix>pas e as interrogara sobre as reclamações que podcssi^m
ter a fazer, satisfazendo immediatamente as relailvas ao atvaiío dos
soldos e insufficien-eia das rações, e facultando aos soldados traba-
lharem por conta própria, mediante o deposito das s.ias armas e o
compromisso de responderem ao primeiro appello militar. "Estas dis-
posições, ajunta a de<;laração, foram acolhidas ao5 grilos de Viva El-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 813
rosimilmente a primeira secção independente do novo Reino
desaggregado. O exemplo das colónias hespanholas agia em
seu favor, e o governo descurara anteriormente e por com-
pleto o perigo d'esse inevitável contagio emancipador. O ca-
pitão Hareng, do La Perle de Honfleur, depoz que tendo
partido para Pernambuco em Fevereiro de 1816, encontrara
a terra socegada, apenas frio o negocio, mas nos espiritos tão
grande a fermentação que tudo annunciava que a provincia
não tardaria em participar no movimento revolucionário que
sacudia a America Hespanhola. "Seguia-se com particular
empenho os progressos dos insurgentes hespanhoes, sabendo
o próprio governo que existiam com elles intelligencias pela
via marítima. Para alterar-lhes o ef feito, foi que o capitão
general entendeu fazer proclamações e passar revistas, recor-
dando aos habitantes e ás tropas a confiança e fidelid-ide
para com o soberano, e promettendo prompta distribuição de
viveres pois era sobretudo da carência de alimentação que os
perturbadores tiravam partido para açular os ânimos" (i).
Por outro lado, chegada a occasião do perigo, o go-
verno encontrava-se na situação mais critica para comba-
tel-o e extirpar o mal: a braços com a guerra do Sul o
exercito, um exercito de of ficiaes e para mais incapazes —
Roy ! e com os mdicios da maior fidelidade". Tal a versão pernam-
Ibucana.
A versão offlcial, expressa n'um dos oftlcios cifrados de Los-
sops, em Lisíboa, era que Arcos, tendo recebido par um correio as
primeiras noticias da revolta, as conservou í!'ícvotis at« proceder ás
prisões dos suspeitos, baseando-se nas queixas dos officiaes para assim
agir.
A correspondência de Lesseps faz menção da avidez do fisco, da
venalidade dos funccionarios, de todo o sajbido estxdo social e moral
do novo Reino, commentando : "Telles sont les causes qul paraissent
avoir inspire de profonds ressentimens à un Peaplci beaucoiip plu.-;
instruit qu'<m ne pense •et plus généraleraent éclarré que celui de Ia
M^étropole." (Arch. do Min. dos Neg. Est. de Fran(;a.)
(1) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
814 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
que custam muito e de nada servem, d'elles escrevia Maler
— , e sem recrutas; a administração concentrada nas mãos
"de um ancião minado pela febre e pelas convulsões" como
era Barca; "esgotadas as finanças e nullo o credito", (i)
Tanto mais louvável e admirável foi portanto o serio
movimento de reacção que teve lugar na capital brazileira
contra a implantação da desordem no paiz e que compre-
hendeu, além do estabelecimento, a i6 de Abril, de um se-
vero bloqueio da costa pernambucana e parahjbana pela es-
quadra legal (2), a organização de um solido corpo ex-
pedicionário ás ordens de Luiz do Rego, que Maler appel-
lida de militar bravo e leal, sem qualidades de administrador,
porém geralmente estimado pelas suas excellentes quali-
dades.
A difficuldade em arranjar soldados era igual á de de-
senvincilhar-se o governo dos muitos officiaes, uns a meio
soldo, outros circumstancialmente licenciados, pertencentes
ao exercito de Portugal, que pediam serviço. "Os officiaes
portuguezes, communicava o encarregado de negócios de
França, serão sem duvida preferidos, e é para receiar que
isto produza mau effeito entre os Brazileiros. Em occorren-
cias e conjuncturas como as presentes, urge não se deixar
só guiar pelos principios militares."
Com effeito o movimento, ao mesmo tempo que anti-
dynastico, era anti-portuguez e d'esta sua cor tiveram ni-
tida impressão a fidalguia e o commercio do Rio ao tomarem
(1) Officio de 29 de Março de 1817.
(2) A esquadra do Rodrigo Lobo nSo deixava do facto ontrar
neim satiir navio aljçum. mesmo noutro, sendo as f.mbircaoõos eslvan-
goiras que tentaram forçar o bloqueio, capturadas c loud.i/das sob
bandeira portugueza para a Bahia.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 815
a dianteira em todas as manifestações de solidariedade com
Dom João VI, affligido mas não succumbido, e bem dis-
posto a dar um desmentido ás previsões pessimistas de Maler
e dos seus collegas diplomáticos, os quaes todos não enxerga-
vam os meios de immediata repressão, acreditavam na propa-
gação do mal anarchico e até já viam imminente a forçada
deserção de Montevideo perante a diminuição do effectivo
de cccupação e bloqueio e o desanimo dos partidários da an-
nexação.
A 7 de Abril inform.ava comtudo Maler para Pariz que
o erário vasio fora supprido pelos muitos dons voluntários
e os empréstimos gratuitos. "O Banco d'esta capital pôz á
disposição do governo um milhão de cruzados, a titulo de
empréstimo; o barão do Rio Secco deu 50.000 cruzados, e
outros capitalistas deram igualmente sommas consideráveis;
o conde de Belmonte offereceu 10.000 cruzados, o marquez
d'Angeja a sua baixella para ser fundida, que era obra do
ourives de Pariz Germain, e toda a alta nobreza lhes seguio
o exemplo."
Em Lisboa, o fervor pela suffocação da rebellião colo-
nial foi muito menor, o que facilmente se comprehende em
vista do afastamento e do descontentamvento que causava a
indefinida ausência da corte. A Regência, no fundo pouco
commovida, não quiz entretanto deixar de patentear sua
lealdade e devotamento ao soberano, logo organizando uma
pequena força marítima para ir bloquear o porto rebelde e
redobrando de rigor na fiscalização dos navios procedentes
do Brazil. A exhibição de energia do conde dos Arcos na
Bahia, onde os primeiros armamentos navaes, ajudados es-
pontânea ou calculadamente pela gente abastada da terra,
se fizeram na phrasc de Maler, com uma presteza que não
816 DOM JOÃO VI NO BKAZIL
era de esperar da índole portugueza (i), instigou tanta acti-
vidade entre os governadores do Reino que os levou a ex-
tremas violências politicas.
Segundo o cônsul geral Lesscps (2), foi da sedição
pernambucana que nasceu a idéa de uma conspiração ''cuja
existência e fito não posso ainda adivinhar, mas que podia
entretanto fazer temer a disposição do espirito publico. Con-
vocou-se adrede uma reunião extraordinária dos membros do
governo, com assistência do marechal (Beresford) e de todos
os conselheiros d'Estado, guardando-se sobre ella o mais ri-
goroso sigillo, até que hontem se soube, com grave surpreza
de todos os habitantes, que muitas prisões tinham sido ef-
fectuadas na noite de domingo para segunda-feira de Pente-
costes, circulando muitas tropas na cidade, e estando prom-
pto a entrar ao primeiro signal um reforço de alguns regi-
mentos congregados nos subúrbios de Lisboa e pelos quaes
se distribuirá cartuchame."
Tão de molde apparecia essa conspiração, que não fal-
tou quem pensasse e ha quem pense ainda que Beresford se
inspirou em Fouché e se valeu de tal meio para preparar os
resultados de um plano mais vasto, o qual, no dizer de Lesseps,
o espirito perspicaz da multidão immediatamente descobriu
entre os refolhos da politica ingleza: quer isto dizer que
compartilhava de semelhante opinião o cônsul do Rei Chris-
tianissimo.
(1) Doup grandes navios de trez mastr>s e clous brigiips .iá, a
5 de Abril, se fizer£m de vela, e não devem tardar oin s.?.:?irtI-os um
outro navio de trez mastros e duas embarcações ligeiras.'" (Officio
de Maler de 29 de Abril). Tollenare falia n'uma grande fragata vinda
do Rio n'nquella occasião e que deve porventura s.íi* contada entre as
quatro primeiras embarca(;ões.
(2) Officio cifrado de 27 de Maio de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 817
O meio de facto mais seguro para o governo britannico
de obstar á tão fallada invasão hespanhola de Portugal em
represália da occupação de Montevideo, seria prevenil-a
por meio de uma occupação ingleza de Lisboa, assim indi-
rectamente provocada pela revolta de regimentos nacionaes.
Por outro lado parecia este o melhor modo de dar realidade
ao constante desejo da corte de Saint James e fazer regressar
para o velho Reino a familia real portugueza.
Gomes Freire foi a victima illustre que na occasião
se offereceu e cujo supplicio precedeu de trez annos a ex-
plosão do rancor popular. Então o seu patibulo se ergueu
a meio do espanto, da consternação e do receio, assim como
na Bahia o trágico episodio do fusilamento do padre Roma,
encarregado de activar as ligações clandestinas, se passou
rodeado d'um silencio lúgubre e medroso. O anno corria
péssimo para as idéas liberaes.
Quando o corpo expedicionário de Luiz do Rego, de
quasi 3.000 homens (i), embarcou a 30 de Abril (2) jun-
tamente com muitos voluntários das milicias, formando com
a gente da Bahia, Sergipe e Alagoas um total approximado
de 8.000 homens, no calculo de Maler, o desanimo reinava
sem partilha na provincia rebelde. No Rio no emtanto cons-
tava e causava apprehensões a propalada actividade do go-
verno provisório no organizar a resistência, confiada em
terra a 4.000 ou 5.000 homens, conforme se orçava depois
de augmentados os regimentos, e no mar "a um brigue com
(1) Compiraha-se de 2 batalhões de infantari:"!. 1 da gvanailoi-
ros. 1 da caçadores, dous esquEdrões que deviíra receber a cavalhada
na Bahia (e d"ahi regressaram por inúteis) e um destaicxmento de ar-
tilharia de 160 horaons e 8 peças de campanha. (Officio de Maler
de 2 de Maio de 1817).
(2) Partiu a expedição a 4 de Maio na aau Vasco da Cama,
servjndo de transporte, com um brigue e duas suin.icas.
818 DOM JOÃO VI NO BRAZIL •
22 canhões, uma bella escuna americana armada, varias gran-
des chalupas e canhoneiras promptas a sahir, além de outros
grandes navios mercantes que pretendem armar em
guerra" (i).
Dizia-se, com o mesmo exaggero, serem permanentes
os trabalhos no arsenal do Recife, como com verdade o es-
tavam sendo os esforços bellicos do governo do Rio, sobre-
sahindo em afan o monarcha que não cessava de visitar os
arsenaes de guerra e marinha e em pessoa apressar — "com
sua presença, seu ardor e seus cuidados" — '■ os preparativos
de repressão, que fazia morosos a falta de trabalhadores e de
materiaes.
A revolução não merecia mais tanto. Ao recrutamento
em terra correspondia no Recife a emigração, sequestrando
a Junta os bens dos que assim se ausentavam, como seques-
trara os navios portuguezes. Não menos se despovoava a
cidade pelo pavor do bombardeio por parte da esquadra
legal, cujo apparecimento originara defecções entre os ca-
pitães portuguezes — os únicos possiveis á falta de nacionaes
— dos navios armados em guerra pelos rebeldes.
Perdera-se de vista o lado theorico; sumira-se o idea-
lismo da revolução. Ninguém mais cogitava dos principies
liberaes, das leis reform^adoras : o essencial era a salvação
de cada um. Uns poucos — o padre João Ribeiro, Domin-
gos Martins, António Carlos, Domingos Theotonio — man-
tinham-se firmes, si já lhes não era licito esperar. Os outros
tão desorientados andavam que os Portuguezes ricos se
atreviam a offerecer loo contos aos membros do governo,
para que renunciassem á lucta e se evadissem. O povo, por
sua vez, tratava todos elles de aristocratas e não mais se
(1) Officio cit. de 2 de Maio do 1S17.
DOM JOÃO VI NO BiUZIL SlO
deixava impressionar pelas suas arengas. Aliás o povo con-
servara-se, como o observou Tollenare, sem enthusiasmo
pelo ensaio democrático que diante d'elle se desenrolava,
sem mesmo uma comprehensão nitida do que se estava pas-
sando: somente percebia com clareza que a sua situação não
melhorara effectivamente como lhe haviam annunciado, e
que continuava a soffrer as mesmas privações que d'antes.
Quanto ao commercio, escusado é referir, andava por com-
pleto paralysado, irritando a gente que d'elle vivia.
A revolução pernambucana foi derrubada pelos próprios
elementos conservadores e até populares da capitania, antes
de se dar a intervenção de fora, da mesma forma que a res-
tauração portugueza de 1654 foi executada pelos elementos
brazileiros desajudados mesmo da metrópole. Antes de che-
gadas as forças da Bahia, que subiam lentamente ao mando
do marechal Cogominho de Lacerda (i), já a republica es-
tava militarmente desmoralizada. A lucta civil abrira-se
entre realistas e patriotas, os senhores de engenho fieis com
quem dos seus navios (2) se correspondia o almirante Ro-
drigo Lobo, e os 400 homens, parte sabidos do Recife, onde
havia ao todo, entre regulares e milicianos, 4.000 homens ou
mais, e parte reunidos no Cabo, sob as ordens de Francisco
de Paula Cavalcanti que foi o peco general d'esse simulacro
de republica.
O combate de Utinga, um assalto de engenho, foi um
episodio inteiramente local pela composição das facções que
ahi se disputaram. Entretanto, na capital. Pedroso, passando
(1) Muniz Tavares (ob. cit.) oi-qnva estas forças em 800 ho-
mens a partida, antes de se lhes aggregarem as milícias de Sorç.pe
d'El-Roi e os legalistts de Alagoas que, com os voluntários do sal de
Pernambuco, as elevaram a muito mais do dobro ou ao triplo.
(2) Uma fragata {Thetis) , duas corvetas e uma escuna.
820 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
das bravatas aos actos de que era um dos poucos capazes, as-
signalava o inicio da anarchia com os seus fuzilamentos sem
processo dos desertores, annunciando com taes descargas ha-
ver cessado a legalidade democrática.
Uma relativa cordura nunca faltou comtudo á rebellião
de 6 de Março que, antes de varrida pelo temporal levan-
tado do Sul, se tinha ido desfazendo com as manifestações
separadas de reacção provincial, provocando uma geral con-
flagração graças ás tentativas de repressão do governo pro-
visório. A estas se associara em pessoa Domingos Martins,
indo porém estonteado entregar-se, sem possibilidade de re-
sistência, pela dispersão das forças, a um destacamento de
Cogominho, o qual entrementes alcançara Serinhaem e,
subindo até Ipojuca, a 13 de Maio (i) destroçou Francisco
de Paula, obrigando-o a refugiar-se no Recife.
A causa foi então considerada perdida e tratou-se da
capitulação, mas tendo Rodrigo Lobo recusado acceital-a
nos termos propostos pelos revoltosos e mostrado mesmo
desdenhar as ameaças de morticínio de todos os Europeus,
formuladas em ultimiatum por Domingos Theotonio erigido
em dictador — tão certo estava o lobo do mar da doçura do
cordeiro republicano — , assistiram as destinadas victimas da
sanha jacobina ao espectáculo inesperado da evacuação da
capital, sede do governo rebelde.
ToUenare conta com mais pormenores do que Muniz
Tavares como se passou a contra-revolução. De ig para 20
de Maio, os patriotas, de todo descoroçoados, retiraram-se
para Olinda em numero de 6.000, inclusive os escravos e
libertos, levando as bagagens, a artilheria e o cofre militar.
(í) Cogominho chegara a It? de Maio á margem sergipana
do São Francisco.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 821
A cidade ficou virtualmente deserta, do que um padre correu
a dar aviso aos marinheiros das embarcações surtas dentro
do porto, para que desembarcassem de madrugada a toma-
rem conta do Recife, arvorando de novo o pavilhão real
que o mesmo sacerdote ia desfraldar "por sua conta e risco".
Ao nascer do sol uma pequena embarcação portugueza içou
com effeito a bandeira legal, outras imitaram-na e seus
canhões salvaram, sem que lhes respondessem, mudas, as
fortalezas de terra, ainda com guarnições insurgentes, que
constituíam uma reserva á disposição de Francisco de Paula
Cavalcanti para proteger a retirada do grosso das forças.
Nos quartéis abandonados encontrou a marujada por-
tugueza, uma vez em terra firme, armas e munições bas-
tantes, e dos fortes se apoderou sem opposição porque aos seus
defensores já lhes faltava por completo o estimulo, tendo-se
o chefe, Francisco de Paula, bandeado com a multidão que
dava vivas ao Rei, e á frente d'esta corrido elle próprio a
libertar os presos politicos da revolução, entre os quaes o ma-
rechal José Roberto, que provisoriamente se encarregou do
governo (i).
Os brigues armados pelos patriotas foram igualmente
desamparados e occupados sem combate. A's 7 horas a muta-
ção de scena era perfeita, agitando-se de novo as cores por-
tuguezas á viração que ia passar a soprar do mar, onde se
divisava immovel a esquadra do bloqueio, que só ás 8 ^,
iníormad'a por mensageiro dos gratos successos, deu signal
de si, respondendo ás jubilosas saudações de terra. Passava
de 4 horas da tarde quando Rodrigo Lobo desembarcou com
50 homens, insufficientes mesmo para guarnecer as fortale-
zas e sobretudo para conter os marinheiros libertadores que,
(1) Muniz Tavai-os, ob. cit.
822 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ébrios, percorriam as ruas dando tiros, perseguindo os pou-
cos patriotas que se afoitavam a sahir, e ao acaso matando
também neutros. ( i )
Durou esta desordem trez dias, porque a 23 chegava
do sul, com os louros de um fácil triumpho, o exercito legal.
O exercito patriota, abandonado á sua sorte pelos chefes
que, com excepção do padre João Ribeiro, fugiram disfarça-
damente, cada um pelo seu caminho, debandara a trez lé-
guas do Recife, voltando os soldados para a cidade attrahidos
pelo perdão, e entregando-se com as armas na mão — os
que ainda as conservavam intactas, pois não poucos as tinham
quebrado no primeiro momento de desespero. Outros muitos,
os constrangidos, desertaram em massa, como o deixava pre-
ver a pouca firmeza com que tinham marchado á sabida da
praça. Nenhum no emtanto, lembram com justo orgulho os
panegyristas da revolução pernambucana, se manchou com
assassinatos e pilhagem. Os que retrocederam e se renderam,
carregaram até como penhor da submissão o cofre militar
incólume. (2)
N'outras disposições de espirito a resistência teria sido
fácil e a victoria illustraria a bandeira republicana nos pri-
meiros encontros, pois, no dizer de ToUenare, as forças
da Bahia não inspiravam extraordinário receio, só tendo de
soffrivel a cavallaria. No seu numero entravam em propor-
ção não despresivel Índios com seus arcos e flechas, lavrado-
res e moradores agarrados sem armas e quasi sem roupa no
caminho da fiel comarca das Alagoas para o norte rebelde.
(1) Notas Dominicaes.
(2) E' sabido que estes soldados da revolta, calculadamento
nnmistiados no primeivo momento, foram cercados pela tropa leal
(uiando assistiam desarmados, como medida de correcção, ao sup-
plicio d'um pj.triota, e transportados para Montevideo mau grado
as supplicas de suas famílias, pois constituíam forças regiona^^s,
radicadas á ttrra.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 823
Os bons militares disciplinados, os aguerridos veteranos por-
tuguezes, tropas que Tollenare chama excellentes, só depois,
a 29 de Junho, chegaram com Luiz do Rego, portador de
proclamações e instrucções redigidas na corte sob o influxo
benigno de Dom João VI e a tendência que nunca deixara
de ser liberal do conde da Barca, e destoando singularmente
das emphaticas, soffregas e cruéis exhortações, que Maler ap-
pellidava ães boutades irre fie chies, de Arcos.
No Rio de Janeiro a noticia da suffocação do movi-
mento foi acolhida com foguetes, repiques de sinos e illu-
minações geraes, escrevendo Maler que nas noites de 15 e
16 de Junho a sua modesta casa foi o sol do seu bairro. No
momento de espalhar-se o feliz boato, d'essa vez verdadeiro,
400 a 500 pessoas da corte correram a felicitar o monarcha
pelo restabelecimento da sua auctoridade, pejando os salões
de São Christovão. Tão satisfeito ficou também o Rei com a
nova da rápida desapparição do movimento sedicioso, de que
muito se temera a generalização, quão pezaroso — elle pró-
prio o repetiu varias vezes a Maler (i) — ^pela dura neces-
sidade a que se via exposto de ter que mandar executar os
cr.beças da revolução.
O sentimento não parece destituido de sinceridade, pois
que a rigidez com que procedeu Luiz do Rego, em desaccordo
com o espirito das ordens que recebera, mais tarde descon-
tentou o soberano. A 3 de Novembro de 181 7 escrevia Maler
que a conducta do governador geral de Pernambuco, a sa-
ber, a severidade excessiva por elle empregada, refreara os
ânimos mas revoltara toda a gente e alienara todos os cora-
ções. Sabia o encarregado de negócios de França estar o Rei
muito desgostado, ainda que pela natural hesitação que
(1) Officlo de 20 de Junho de 181'
824 DOM JOÃO VI NO BRAZlh
o distinguia até tomar uma deliberação — quando a vacilla-
ção se convertia em obstinação — não tivesse ainda cuidado
de dar-lhe um successor mais prudente e mais adequado ao
estado convulsionado da capitania, que assim continuava, no-
tando ToUenare como custou a restabelecer-se a confiança,
affluir a gente do matto e reanimar-se o commercio.
O espectáculo que a Luiz do Rego se deparara tinha
entretanto sido de Índole a abrandar qualquer furor, de tão
triste € impressivo. Da Junta, o padre João Ribeiro, frio e
intrépido esse, tivera único a coherencia de morrer como ci-
dadão livre, suicidando-se, e a sua cabeça, decepada do corpo
mutilado e passeada em triumpho, entre motejos, pelas ruas
da cidade, estava exposta descarnada e horrivel no Pelouri-
nho. Corrêa de Araújo já antes do dia 20 trahira a causa
que nunca de coração abraçou. José Luiz de Mendonça, pre-
ferindo não ser traidor, entregara-se á prisão. Domingos
Martins, preso, espumava de raiva impotente, emquanto o
não transportavam com António Carlos (recolhido de motu
próprio á cadeia). Pedroso, José Mariano Cavalcanti e uma
porção mais de patriotas amarrados ou acorrentados, para
os cárceres e patibulos da Bahia. Domingos Theotonio, o
dictador, que faltara ao seu destino para que não possuia o
talento nem o vigor das resoluções decisivas e salvadoras,
era atraiçoado no seu esconderijo, do mesmo modo que o
Leão Coroado, o vigário Tenório de Itamaracá e António
Henriques, o único dos quatro que escapou á forca do
Recife.
O elemento portuguez, novamente preponderante na
orientação politica, reclamava porém severidade na reacção,
consubstanciando suas idéas de governo no regimen militar
arbitrário applicado ao Brazil, inclinado á rebeldia, e muito
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 825
especialmente na restauração do monopólio commercial. O
corpo d€ negociantes do Recife expressara seu jubilo fa-
zendo um dom de 30 contos ao exercito libertador e orga-
nizando em sua honra uma festa de espavento na matriz do
Corpo Santo, com trez dias de lausperenne, cânticos sem
fim, dous sermões e duas bênçãos do Santissimo por dia.
Os pregadores trovejavam em vernáculo salpicado de
muito latim contra a impiedade e o jacobinismo; pregado-
res d'além mar já se sabe, visto os padres do novo Reino
quasi todos se enfileirarem entre os liberaes ou nutrirem
sympathia pela revolução, e isto por duas razões: l-, porque
eram das poucas pessoas que sabiam ler e das raras instrui-
das, para as quaes portanto o horizonte se abria amplamente ;
2°, porque eram muito mal remunerados, embolsando o Rei
o dinheiro do dizimo como grão-mestre de Christo, senhor
do padroado e sustentador do clero e fazendo, do que perce-
bia, uma magra distribuição que constituia ainda assim o
melhor do apanágio ecclesiastico (l).
Nos intervallos dos sermões eivados de puro luzita-
nismo, e n'uma deliciosa combinação de sagrado e profano,
serviam-se iguarias, doces e refrescos nas galerias superio-
res do templo. As damas em trajes de gala, carregadas de
jóias, que se ajoelhavam e sentavam sobre os tapetes da nave,
iam então espairecer com os officiaes de Luiz do Rego,
gente da m'elhor, rapazes de bonne mise, escrevia ToUenare
em seu canhenho, instruidos e finos: "ce que Téducation du
grand monde offre de plus délicat, se presente dans leurs
(1) O rendimento do arcebispado da Bahia nunca subio
n'aquelles tempos a mais de 10 contos, e o do bispado do Rio de
Janeiro a mais de 6 contos.
D. J. — 02
826 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Sua entrada fora triumphal, por entre as acclamações
do povo e as bênçãos dos mercadores assomados ás janellas
adornadas de alcatifas e colchas, de onde as senhoras sa-
cudiam flores sobre os esbeltos restauradores da Lei, a cujo
som longinquo de guerra se esvaíra de terror a segunda
era da liberdade pernambucana — como a contava o mal-
dito governo provisório, ingenuamente classificando como a
primeira a do dominio hoUandez. Combates, lhes não
proporcionara o fado na província que tivera a ousadia de
pensar e a loucura de tentar a sua independência democrá-
tica: a tarefa estava mesmo abaixo de tão nobres e experi-
mentados guerreiros, e melhor fora que a tivessem executado
os da terra, os Brazíleiros bisonhos.
Ficara-ihes o presenciarem as execuções, suavisando-as
com zombarias aos patriotas, escutadas pelas damas temero-
sas, algumas d'ellas muito vexadas com o seu cabello cortado
á Tito, para condescenderem com Domingos Martins que
reclamara e cuja esposa dera o exemplo d 'esse sacrifício da
vaidade á austeridade republicana. Como entremez, as sur-
ras nos negros alforriados pela revolução, antes de restituí-
dos aos senhores. Dos açoites públicos quizera até, no paro-
xismo da prepotência, Rodrigo Lobo fazer passível um capí-
íão americano que conseguira escarnecer do bloqueio. Os pro-
cessos de castigo eram todos summarios, mas exhaustivos.
Por fim foi a justiça militar suspensa por ordem do
Rio e instituída uma alçada composta de quatro velhos ma-
gistiados do Desembargo do Paço e da Casa da Supplícação,
que com sua meticulosidade irritante e legal impassibilidade
rematou a obra dos carrascos e carcereiros que em Pernam-
buco e na Bahia tinham ceifado vidas honradas ou estavam
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 827
cobrindo de opprobío as torturadas existências dos patriotas
agarrados, agrilhoados e transportados para a capitania vi-
sinha quando ainda fallecia na rebelde auctoridade para eri-
gir tribunal, que não possuia o almirante nem o marechal
Cogominho.
Foi esse o reinado menos violento, mas não menos pe-
rigoso da delação e da denuncia, e pareceu eternizar-se.
Dous annos depois, não tinham terminado os trabalhos
judiciaes da corte especial. Removeram-na para a Bahia a
exigências do capitão general, enciumado na sua auctoridade
e também não enxergando mais utilidade n'um custoso ap-
parelho de justiça que, para justificar sua funcção, ameaçava
taxar de cumplicidade na revolta todos os pernambucanos ou
melhor todos os Brazileiros das capitanias compromettidas,
por onde se extendia a sua jurisdicção.
A alçada de 1817 foi brutalmente abolida pelos acon-
tecimentos que responderam no Brazil á revolução liberal do
Porto, de Agosto de 1820, sendo a sua devassa substituída
pela acção regular da justiça que, pela voz da Relação de
São Salvador, pronunciou a nullidade do processo, inquinado
de vicios, e mandou soltar os presos, com excepção de Pe-
droso e José Mariano, accusados de homicidio e condemnaJos
a degredo perpetuo — perpetuo, n'um momento em que nadi
havia senão temporário — para "íi Ásia. Descia o panno
sobre este clemente epilogo de um drama de sangue sobre o
qual, politicamente, Malcr, bom contemporâneo de Mar-
montel, assim condensava sentenciosamente o seu juizo:
" L'histoire, Monstigneur, conservera le souvenir de peu
d'événements aussi dangereux par les conséquences qu'il pou-
vait avoir, et aussi promptement aussi facilernent même pré-
venu dans ses effets."
828 DOM JOÃO VI NO BRAZlL
Com menos concisão e um nada mais de pretenção lit-
teraria, versejava sobre o caso lealmente, dythirambicamente,
pomposamente, com todos os advérbios em mente que dizia
haver proscripto seguindo **o immortal Filinto Elysio",
n'um canto épico á acclamação faustissima do liberalissimo
Rei Dom João VI, o vate e vassallo fiel Estanislau Vieira
Cardozo, "Segundo Escripturario do Banco do Brazil, e Se-
cretario do I" Regimento de Cavallaria de milicias da
Corte" :
Mas não Te penes, Principe ! Um momento
De perfidia, e desdouro não faz vulto
No quociente de séculos de Gloria.
Troveja o Claro Ceo; benigno é sempre.
Cumpre porem Olhar attento a Esphera:
São das exhalações os raios prole.
Enunciada esta insólita ousadia,
Tua Alma nobre por extremo afflicta.
Mais pelo que urge o Nacional Decoro
Que pelo que é de Ti, que em fim E's Grande,
Ha de nadar de jubilo em torrentes,
Quando á porfia em turmas accorrêrem
Povos fieis ingénuos a offrecer-Te
Os mais prezados bens — Fortunas — Vidas — .
Assim f aliava a Dom João VI espavorido, o gigante
Amazonas, "de gotejante longa melena, e barba denegrida, e
cor tostada", ao sahir-lhe ao encontro, novo Adamastor,
quando "do Pinhal undivago alvejavam inchadas velas" a
caminho do Brazil onde
constante querer-Te hão os Povos.
CAPITULO XXI
A DIPLOMACIA ESTRANGEIRA NO RIO -CALEPPI E BALK-POLEFF
A mudança da corte portugueza para o Rio de Janeiro
implicara naturalmente a mudança do corpo diplomático
acreditado junto á mesma em Lisboa, e quando viessem mais
tarde agentes para junto da Regência, como esteve algum
tempo Canning, para o Brazil se trasladara o melhor do in-
teresse das questões agitadas e tratadas no meio particular
e suggestivo da politica internacional.
Com a França e a Hespanha as relações estavam de
começo cortadas, e ao se restabelecerem muito promptamente
com a segunda d'essas nações por motivo da usurpação na-
poleonica em Madrid, logo partiu para o ultramar o re-
presentante do monarcha legitimo, ou pelo menos da Junta
que no seu nome pretendia agir. O representante britannico
se não demorara em acompanhar em pessoa a trasladação, da
830 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
qual pars magna fuit ( i ) . Si de resto tivesse o Imperador
Napoleão conseguido transformar o reino de Portugal em
departamentos francezes, aprisionando Dom João e a fa-
milia de Bragança, ao Brazil aportaria em vez de um mi-
nistro um pro-consul, porque o governo britannico occuparia
sem hesitar a America Portugueza invocando a sua própria
segurança a zelar (2), segundo havia mesmo declarado.
O núncio, Monsenhor Caleppi, tampouco tardou, e
como cardeal veio a morrer no Rio. (3) O ministro russo,
conde de San Pahlen, é que só em 181 2 chegou de Phila-
delphia na galera americana Bingham : tinha sido transferido
dos Estados Unidos. A estes havia que ajuntar os represen-
tantes officiosos (já não f aliando nos emissários secretos)
dos governos não reconhecidos de Buenos Ayres e de Monte-
video, e depois os representantes officiaes da França, Prús-
sia, Áustria, Paizes Baixos e Sardenha.
O Brazil passara a encerrar a razão de ser da monar-
chia, e como tal tinha jus á primazia nas preoccupações do
(1) Sir Sidney Sraitli acotupanbníi a esquadra porttigueza alt''
lat. .37fl 47' N. e long. 14fi 17' O., doixando-a ahi seguir viagem sol»
a protecção dos navios Malhmongh, London, Monarch e BeâfouL
(2) Mrs. Graham, Journal of a royage to Brasil, and rcfti-
dence there ávring part of lhe ymrs J821, 18Z2 1823. London, 1824.
Diz esta bem informada auctora que foi na previsão perfeitamente
nitida d'esses desastrosos eventos nacionaes, que o Frlncipe Re-
gente cliamou seus confidentes — visconde do Rio Secco, camarista
marquez de Vagos, despenseiro conde de Redondo, almirante da
esquadra Manoel da Cunlui e padre José Eloy, tliesoureiro da Pa-
triarchal — e mandou preparar em segredo quanto faltava para a
partida para a noit^e depois da iramediata (newt night hut onc).
Escreve ainda Mrs. Graham que foi o Rio preferido A Baliia para
residência real por ser de defesa mais fácil do que esta vasta eri-
»eaJda com sua entrada escancarada, e melhor abastecida a ci-
dade pela visinhança de Minas Geraes e São Paulo, donde lhe vi-
nham rezes, cereaes, etc.
(8) Foi enterrado na egi-eja do convento da Ajuda.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 831
pessoal directivo. No Congresso de Vienna, dos trez assum-
ptos ventilados com respeito a Portugal, dous, os essenciaes
— o trafico negro e o limite das Guyanas ou o dominio ex-
clusivo do Amazonas — interessavam o novo Reino, e só a
menos importante posse de Olivença se relacionava com o
Reino velho. A mais importante questão diplomática do rei-
nado de Dom João VI — a encorporação da Cisplatina —
foi exclusivamente uma questão brazileira originada no tra-
dicional anhelo pelo limite meridional do Prata.
O primeiro ensaio de solução d'este problema de velha
data, o qual era mais complexo do que podia á primeira
vista parecer a um estadista recemchegaído da Europa, apres-
sado nas suas deliberações e fraco julgador por inexperiência
dos sentimentos coloniaes, coubera, como sabemos, ao génio
irrequieto de D. Rodrigo de Souza Coutinho, que, logo ao
desembarcar e como si fosse a cousa mais simples do mundo,
mandou propor ás Provincias do Rio da Prata — suppon-
do-as justamente avessas na sua orphandade á tutela fran-
ceza — collocal-as debaixo do protectorado portuguez, com
a guarda dos seus foros, a garantia do seu commercio e o
abandono, por parte dos Inglezes, das passadas e todavia re-
centes pretenções de conquista.
No caso de uma negativa, ameaçava o ministro do Prin-
cipe Regente que Portugal, de parceria com a Inglaterra,
recorreria á guerra para liquidar a situação, que no mais
alto grau lhe interessava pela extensão e natureza a dar
á sua fronteira do Sul, e pelas consequências que do statu
quo poderiam advir com a transformação do Brazil em ca-
beça da monarchia. A Inglaterra, convém não esquecer,
832 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ainda se não reconciliara com a Hespanha diante do inimigo
commum. Na divisão do Rio da Prata, Buenos Ayres lhe
pertenceria e Portugal ficaria com a Banda Oriental, objecto
das suas seculares e justas ambições.
Quando a Inglaterra mudou de posição na Europa e
concomitantemente alterou seus planos ultramarinos, teve
o gabinete do Rio que reduzir suas cobiças ao essencial. Foi
então, por occasião da missão Curado a Buenos Ayres, que
Linhares propoz abertamente a protecção portugueza sobre
a margem oriental do Rio da Prata tão somente, provocando
ainda assim os protestos de Liniers junto á Princeza do Bra-
zil, a qual lhe respondeu transmittindo palavras amigáveis do
Regente, a quem ella e o Infante Dom Pedro Carlos, como
representantes dos Bourbons d'Hespanha, fizeram appello
n'um memorial publico.
Ficou já indicado ser bem possível que, intrigante e la-
dina como era, tivesse Dona Carlota entrado n'um conchavo,
a principio, com D. Rodrigo, promettendo ceder Montevfdéo
ao marido, caso obtivesse a realeza ou pelo menos a regência
dos vice-reinados hespanhoes, posto que se reservando men-
talmente o direito de não cumprir o accordo. Sua principal
esperança estava então posta em sir Sidney Smith, seu. re-
curso mesmo único emquanto se lhe não offereceu o apoio
mais seguro do próprio partido patriota que nos seus iní-
cios a considerou a hypothese emancipadora de mais fácil rea-
lização.
N 'estas negociações platinas, as da primeira phase, o Rio
figurou de principal scenario, não sendo comtudo de ordiná-
rio mais do que o reflector dos successos que decorriam em
mais grandioso palco. As questões externas, ou antes de re-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 833
percussão externa, mais graves e complicadas em que se achou
então empenhado o governo portuguez — as do trafico, de Ca-
yenna e de Montevideo — trataram-se pode dizer-se que intei-
ramente na Europa, devendo aliás ser julgadas tão européas
quanto americanas.
Não era por isso nullo o papel do corpo diplomático
acreditado no Brazil, onde Chamberlain, o cônsul geral
que exerceu funcções de encarregado de negócios entre a
partida de lord Strangford em 1816 e a chegada de Thorn-
ton em 1819, assim como depois da partida d'este para Lisboa,
chegou a exercer certa influencia sobre o espirito do Rei,
o que queria dizer auctoridade sobre o ministério, a esse
tempo quasi que reduzido a Thomaz António Villanova Por-
tugal. Os fios da politica internacional andavam ligados por
forma que passavam por todas as cortes, n'uma já palpável
solidariedade dos interesses de cultura sob os ciúmes egoístas
e as desavenças particulares.
Para jogar em segurança de causa, era preciso possuir
as chaves da rede e assim dominar o mechanismo completo:
de contrario ficava-se a meio do caminho e attrahia-se sobre
si o ridiculo. Quando por exemplo, o governo portuguez
recorreu á venda de bens da coroa e de conventos a suppri-
mir, vexado como andava com os atrazados devidos ao
exercito em operações contra os Francezes, o conde do
Funchal teve uma das suas: precisamente acabava elle de
ser nomeado ministro dos negócios estrangeiros e da guerra
em substituição do irmão fallecido, devendo todavia permane-
cer algum tempo mais na Inglaterra com o fim de ultimar
os negócios pendentes da sua gestão. O êxito pouco feliz da
sua indubitável actividade acabou por comprometter a sua es-
colha para o gabinete.
834 DOM J07V0 VI NO BRAZlL
Com relação á questão dos bens ecclesiasticos, não va-
cillou Funchal em dirigir-se de Londres ao núncio Caleppi,
no Rio de Janeiro, para que a Santa Sé consentisse na pre-
tendida alienação e forçada secularização, promettendo em
troca, com toda a leviandade usual dos seus planos a dis-
tancia, a demonstração do interesse britannico pela situação
do Papado e pela causa dos catholicos na Irlanda e na Ingla-
terra, onde ainda não estavam emancipados, sendo seu prin-
cipal adversário o duque de Wellington, então em pleno pres-
tigio militar e politico ( i ) .
Funchal não era homem com quem Caleppi se enganasse
ao ponto sobretudo de acreditar cegamente nas suas promes-
sas, imaginosas mais do que cavillosas. Havia entre os dous
toda a distancia que vai de um homem de muito espirito a
um homem de pouco espirito. O italiano — un madre com-
pére como o chamava o Inrperador Napoleão — fez sobre a
duqueza de Abrantes, que era pessoalmente uma mulher de
(1) Papeis avulsos no Arch. do Min. das Rei. Ext. A venda
dos bens ecclesiasticos, destinada sobretudo a supprir a suspensão
do subsidio britannico de dous milhões esterlinos, em que se fal-
lara, não se effectuou sobretudo porque monsenhor Macchi, delegado
apostólico junto á Regência do Reino, a quem o núncio Caleppi
fez attribuir a questão, convenceu lord Charles Stuart, representante
inglez era Lisl)oa e membro da Regência, da sua desvantagem pra-
tica ou mesmo inexequibilidade. A modida era aliás impopular, e
sua appli(ía(.ão quiçá faria augmentar os gastos do governo inglez,
porquanto diminuiria a copia e aggravaria os preços dos alimentos
indispensáveis, sendo as propriedades monásticas as melhores senão
as únicas bem cultivadas do paiz. e atravessando Portugal uma
crise económica e politica d(>masiado grave para «pie se apresen-
tassem concorrentes bastantes, nacionaes ou estrangeiros, a esses
bens postos em licitação. A reducção do clero á miséria ou pelo
menos a grande baixa nos seus rendimentos esfriaria, por outro lado,
seu ardor patriótico, posto em evidencia nas campanhas contra os
Francezes, reflectindo-se desastrosamente tal tibieza no enthusias-
mo das tropas portuguezas, ás quaes lord Wellington attribuia em
grande parte e com justa razão o êxito brilhante da resistência e
que, no dizer de Macchi a Stuart, accusavam muito o influxo dos
seus directores de consciência.
DOM JOÃO VI NO BKAZIL 835
espirito e na corte das Tulherias tinha visto desfilar o que
de mais culto e intellectual contava a Europa, a maior im-
pressão pela sua subtileza e instrucção.
E' verdade que monsenhor Calcppi, apezar dos seus
70 annos, se constituíra o cavaliere servente da embaixatriz
de França (i), cujo testemunho poderia portanto ser ta-
xado de suspeito. Junot porém, escrevendo de Lisboa á mu-
lher dous annos depois, por occasião da invasão, dizia elle
próprio do representante pontificio que era com effeito um
homem de summo espirito, ainda que o seu estado habitual
de finura e de astúcia acabasse por ser enfadonho. O duque
de Abrantes não sabia entretanto n'aquella data de quanto
era capaz esse mestre de ironia.
O núncio estivera para embarcar na esquadra que trans-
portou a corte para o Brazil, tendo chegado Anadia, minis-
tro da marinha, a expedir ordem para o receberem e ac-
commodarem a bordo de uma das naus. Não podendo, com-
tudo, no ultimo momento seguir viagem por doença, verda-
deira ou simulada, conservou-se em Lisboa durante boa parte
do curto^proconsulado de Junot, de quem não lograva obter
o passaporte indispensável para embarcar com destino ao seu
posto junto ao Regente de Portugal, O general só lhe queria
facultar sabida por terra, atravessando Portugal já percorrido
pelos regimentos inglezes e a Hespanha em sangue, devastada
pelos soldados de Napoleão e anarcliizada pelos voluntários
patriotas.
Caleppi esperou algum tempo uma opportunidade e
achou por fim meio de se escapar, conta a duqueza de
(1) Mémoires de la duchcssc d'Abrantes.
836 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Abrantes que disfarçado em marujo. Seja ou não exacto este
pormenor, o facto é que a i8 de Abril de 1808 recebia Junot
do núncio uma carta que o enchia de espanto e que termi-
nava pelas seguintes zombeteiras palavras: (i) "Ainsi donc
contrarie par mer; effrayé par terre; agite par les cris de
ma conscience qui me represente sans cesse le Brésil comme
le but de mes devoirs sacrés (et quel autre pourrai-je en
avoir a soixante-dix ans, infirme, et casse ? ) je n'ai plus
qu'un seul parti a prendre, et V. E. n'en será pas surprise.
Pénétré cependant jusqu'au dernier moment par tous les
(1) Papeis particulares do conde do Funchal, dos annos de
1807 até 1809. Lata 11 ua coU. Linhares, na Bibl. Nac. do Rio de
Janeiro. A carta acha-se aliás impi-K^ssa na obra Memorie intorno
alia rita (Jrl Oarkl. Lorcnso Caleppi e ad oicuni avvevAúnenti che lo
rUjuardnno seritte dal commendatore Camillo Lnigi de Rossi, Roma,
1843, Tip. díí^lle S. Congregazione di Propaganda Fide.
O pormenor do disfarce 6 imaginário, a darmos credito,
como devemos de preferencia, íi narrativa da evasão feita por este
auctor, que foi segundo secretario da nunciatura, como tal tendo
servido em Lisboa e depois no Rio. Elle fornece informações minu-
ciosas da missão do seu chefe, da proclamacla dedicação de Ca-
leppi ao Príncipe Regente, das difficuldades que isto lhe ti-ouxe
com Junot, do receio que o núncio tinha de um sequestro caso
acceitassc a escolta franceza para a viagem por terra pela Hes-
panha.
Monsenhor Caleppi e sua pequena comitiva embarcaram em
Pedrouços, pela calada da noite, n"uma catraia, achando-se fora da
barra a embarcação Estrella do Norte, que mediante o pagamento
de 3.000 cruzados se compromettera a transportar a missão ao
Brazil, viagem para que recebera passaporte das novas auctorida-
des. O mar estava encapellado e não foi sem grandes sustos e riscos
que o núncio chegou a bordo depois de vir á falia com um dos na-
vios da esquadra ingleza que bloqueava o portão de Lisboa. O al-
mirante brilannico Cotton, em commando, usou das maiores atten-
ções para com o representante pontifício, o qual, A vista do estado
da sua embarcação, que até fazia agua, e da continuada fúria do
oceano, se passou para a fragata de guerra Medinlor, que o estava
acompanhando rumo sul, e o conduziu para Plymoutli, rebocando
a Estrella do Xorte para não ir A matroca.
Recebido com as maioi-es demonstrações de respeito e p-stima
na Tnglatn-ra, onde aproveitou a curta estada para occupar-se da
emancipação dos catholicos e da segurança do Santo Padre, violen-
tado segundo officialmente se dizia por não ter querido fazer
guerra aos Inglezes nos seus estados, monsenhor Caleppi partiu
afinal para o Brazil, a 10 de Julho de 1808, n'um navio de guerra —
The Stork — para este fim posto As suas ordens pelo governo bri-
tannico. Sua evasão tivera lugar a 18 de Abril.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 837
sentiments de delicatesse que je me suis imposé dans ma po-
sition bien épineuse, ce ne será pas a TEscadre anglaise que
je m'en irai. J'ai prefere un petit Batiment muni par V. E.
de ses Passeports, sur lequel j 'espere enfin pouvoir passer a
ma destination, et meriter par la cet eloge si flatteur dont
V. E. même a honoré quelquefois mon attachement à la Re-
ligion et au Saint-Pere."
No Rio de Janeiro moveu Caleppi forte opposição á
clausula do tratado de 1810 pelo qual ficava a Inquisição
supprimida no Brazil e se dava á Inglaterra o direito de
construirem os seus súbditos templos reformistas, compro-
mettendo-se o governo portuguez a proteger a liberdade
desse culto e a independência dos cemitérios protestantes, e
compromettendo-se, por sua vez, os súbditos britannicos a
não atacarem a religião do Estado que os acolhia, nem a fa-
zerem obra de propaganda evangélica ( i ) .
Comquanto estimadissimo pelo Principe Regente, nada
poude o núncio arrancar, em contrario áquella tolerância,
(li .1. C. Rodi-iguos, Rclif/iõcs acatholicas. Memoria escripta
para o Livro do Quarto Contenario. A intransigência de Caleppi
era constante e tediosa, resumbrando de todos os seus actos. No
Funclial, na passagem para o Brazil, elle insurgiu-se, obtendo ra-
zão, contra a cessão feita pelo governador a Beresiford e suas tro-
pas de occupação de um seminário e <^greja catholicíi para exer-
cício do culto protestante, a que o governo portuguez era pelos
triítados obrigado a prover no caso de estar?m os soldados inglezes
ao sou servi(.'o. Alli, na Madeira, estavam elles de facto occupados
na defesa eventual de uma possessão portugueza.
I*ara abrandar o austero catbolico, que era o núncio, offe-
receu o Principie Regente no decorrer da discussão do tratado o
seu valimento junto íi corte britannica em favor do Papa, do Sacro
Collegio e de Roma occupada por Napoleão. Caleppi agradeceu vi-
vauKnite, sem deixar comtudo de protestar contra as dispositjões de
tibieza religiosa, no seu ent(índer, do tratado, antes travando com
Unhares uma altercação tão irritada que, por ordem de Dom João,
Aguiar interveio para serenar a desavença. Cora sua habitual, ex-
cellente tolerância, o Principe Regente opinava aliás que Caleppi
estava no seu papel de núncio pugnando pela^ intangibilidade da
doutrina catholica. ORossi, Memoria.)
838 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
da bonacheirona tenacidade de Dom João ( l ) , o qual era
sustentado na sua liberal recusa pelo bispo do Rio de Janeiro,
D. José Caetano de Souza Coutinho (2). Já temos verifi-
cado no decorrer d'esta historia do seu reinado americano,
que era Dom João VI homem para teimas, mais ainda quan-
do se sentia bem arrimado, porque a firmeza na applicação
é que não correspondia n'elle á firmeza na opinião.
Um episodio diplomático d'esses tempos, altamente
curioso e quasi desconhecido, cómico por uns lados e violento
n'outros, foi o da virtual entrega dos passaportes, pelo go-
verno de Dom João VI, a Balk-Poleff, ministro russo acre-
ditado junto á corte do Rio e especialmente investido do ca-
racter de embaixador extraordinário para a coroação do mo-
narcha portuguez.
(1) Si nada logrou era 1810, outro tanto lhe não aconteceu
em 1816, por oecasião da elevagão do BrazU a Reino, quando, no
dizer de Rossi, o partido philosophico, antonomásia frequente de
Barca, suspeito, com sabemos, de jacobinismo, pensou, de certo para
attrahir ao Brazil a immigração estrangeira de toda a nacionali-
dade e credo, em decretar a tolerância de todas as seitas religiosas
dentro do domínio americano.
(2) Com o bispo fluminense teve o núncio outra discordân-
cia, em 180í>, (juando o l'aipa concedeu .iubil'eo nos domínios poj-tu-
guezes afim de celebrar a feliz chegada ao Brazil da família real.
D. José Caetano, na sua qualidade de capellão-môr e de accordo
com as prei-ogatlvas que como tal cabiam em Lisboa ao patriarcha,
quando alli residia a corte, reclamou o direito de communicar
aos outros prelados bi'azileiros a graga pontifícia. Por seu lado
exigia o ministério que a pastoral recebesse primeiro, como os l)re-
vt'S, o beneplácito régio.
Caleppi levou n'este ponto a melhor, suscitando aliás pelo
seu uitramontanismo irreconciliável outros conflictos no decorrer
da sua missão. Rossi menciona a queixa pela publicação na Gazeta
(lo Rio de Janeiro de um artigo sobre a lOgreja gallicana e a Con-
cordata da Franga com a Santa Sé, que o núncio considerou atten-
tatorio da doutrina romana. O Príncipe Regente abafou essa con-
trovérsia mais, com uma nota calorosa posto que um" tanto vaga de
^Ddhesão á Egreja. E' mister ter presente que Dom João pi'ofes-
^ava pelo núncio reconhecida estima e n'elle depositava grande
confiança, tendo-se até valido da sua influencia para abrandar a
ppposição feita por Dona Carlota Joaquina ao casamento de sua
filha mais velha, a Princeza Dona Maria Thereza, com o Infante
d'He9panha Dom Pedro Carlos.
^ DOM JOÃO VI NO BRAZiL 839
Segundo consta dos papeis of ficiaes ( i ) , a questão teve
sua origem nas susceptibilidades da chancellaria brazileira,
justamente melindrada pela pouca pressa — aliás intencio-
nalmente correspondida por occasião da resposta — com
que, sob os pretextos de fazer muito calor e de estar prepa-
iando as carruagens para a festa, o diplomata communicou
sua missão temporária e pediu a audiência do estylo; e tam-
bém pela forma descortez com que o mesmo diplomata recla-
mou a prisão do seu cozinheiro e de um sapateiro, franceses
ambos, de quem tinha queixas e que queria textualmente
pôr a pão e a agua.
O conde da Barca deixou até por inteiro de acquiescer
a esse estranho pedido official e não só formulou, como exe-
cutou a propósito a ameaça de devolver qualquer nota menos
correcta, o que sobremodo contrariou Balk-Poleff que, em
despique d'isso e da falta de prompta concessão da sua au-
diência, deixou de comparecer (com o seu collega hollandez
Mollerus que lhe esposou o resentimento, por motivo dos
laços de familia que estreitamente uniam as respectivas cor-
tes) ás recepções de grande gahi de 7 e 25 de Abril, nas
quaes, de pé sobre o throno e rodeado da familia real e dos
grandes da corte, o Rei recebia primeiro os cumprimentos
dos representantes estrangeiros em corpo e dava em seguida
beija mão a todas as classes distinctas do Estado.
Para bem accentuarem sua ausência, que não justifi-
cavam, como o ministro americano a sua, por motivos de
saúde, os representantes russo e hollandez assistiram n'aquel-
las datas a todo o espectáculo, até meia noite, no theatro de
São João, proceder que assim lhes era exprobado pelo encar-
(J) Corresp, de Maler, no Arch. do Min. dos Neg. Est. de
França.
840 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
regado de negócios de França: (i) "Enfin, Monseigneur,
quoique le séjour a Rio de Janeiro ne puisse être agréable
a aucun Ministre Etranger, quoique même la Cour ne fasse
pas de son côté la moindre des démarches auxquelles se prê-
tent naturellement les Cours d'Europe pour accueillir les
agents diplomatiques, je le repete ingénuement et sans la
moindre prévention ces deux Messieurs ont commis une
faute, ils ont manque de bienséance et de délicatesse dans
le choix du temps et des moyens qu'ils ont employé pour
marquer leur froideur."
Balk-Poleff, chegado ao Rio de Janeiro em Outubro
de 1816, era um diplomata do género desagradável. Maler,
que sempre usava de muita considerações pelos collegas, expu-
nha sem rebuço ao seu governo o que denominava "as incon-
sequencias e a irregularidade do comportamento official e
privado" daquelle agente, que a todo o momento se salien-
tava pelos seus sarcasmos e inconvenientes diatribes contra a
terra e contra a gente, e que tinha o sestro de não pagar aos
criados nem aos fornecedores.
Foi este mau veso que lhe attrahio o indecente desagui-
zado — dissimulado por Makr na sua correspondência, por
julgal-o "si fort au dessous de la dignité diplomatique" — com
o seu artista culinário e com o seu artista sapateiro, remate de
uma longa serie de discussões, que subiam até a real pre-
sença, entre credores que exigiam pagamentos da legação
russa e o ministro que solicitava a detenção dos que ousa-
vam manifestar tal pretenção.
O Intendente da Policia e o Ministro de Estrangeiros
'a principio quizeram satisfazer quanto possível o irascivel
U) Officio de 8 de Abril de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 841
diplomata, mas cançaram-se de atural-o, e como tanto mais
furioso se punha Balk-Poleff quanto menos o escutavam,
vio-se Dom João VI obrigado a queixar-se em São Peters-
burgo, por intermédio do seu ministro Saldanha da Gama, do
proceder excessivamente indiscreto do enviado imperial, cujas
notas originaes para lá foram remettidas como prova da
accusação. (i)
(1) Eis em amostras o estylo official do enviado russo, cujo
francez deixava a desejar : *'L'Envoyé Extraordinaire etc. doit faire
Observer a Monsieur'- Tloitendant de Palice, quMl es.t .de toute ri-
gueur, même dans les simples rapports de bienséance, de repondre
aux lettres recues, a plus forte raison entre une personne en charge
et un Ministre d'une Puissance étrangere. , . . . . Cy annexée se trouve
une plainte au nom du même Envoyé, . . . , dont il est absolument
essentiel pour l'Envoyé de Kussie, d'avoir pleine et prompte satis-
faction, ce dernier ne voulant pas être insulte dans son liôtel, asyle
sacré pour le droit des gens, par tous les mauvais sujets de la
capitale, Exigeant ce qui est d'un droit incontestable, l'En-
voyé de Russie aime a croire que Monsieur 1'Intendant de Police
prendra des mesures telles, que les désagrements d'une si déplai-
sattite ©spece, ces,Sfent a jamais, ce qui ne peut être effectué que
pai- une punition exemplaire des ooupables." (tNota de 24 de Feve-
nnro (9 de Março) de 1817.)
"Le soussigné, Chambellan actuei de iSa Majestê TEmpereur
de toutes les Russies, du .rang de Conseiller d'E'tat actuei, son
Envoyé Extraordinaire et Ministre Plénipctentiaire, ne voulant
pas d"un cote importuner Soai Excellence Mansieur le Conseiller
d'(E'ta.t, Ministre de la Marine et des Colonies ayant ad Ínterim le
Portefeuille des Affaires E'trangeres et de la Guerre etc, etc, pour
des transactions du ressort de la Police, et de l'autre, ne pouvant
plus supporter le brigandage de certains individus, ou trop assurés
de 1'impunit'é, ou trop effrontés dans um pays qu'ils supposent être
trop insolite pour se permettre envers le Ministre d'une Puissance
étrangere tout ce qui serait puni avec rigueur, même envers un
Rimple particulier, s'est adressé directement a Mr. l'Intendant de
Police,. .1. .,. . Le soussigné dcnc pour suivre en tout les formes prépo-
sées et pour son particulier, au plus grand regret, prie S. E. de
voTiLoir bien donner des ordres peremptoiros afin qne satisfaction
pleine et entiere soit donnée au soussigné suivant le contenu et
dans les termes prescripts de la plainte " (Nota ao conde da
Barca de 26 ãc Fevereiro (10 de Março) de 1817.)
Estas notas, assim como a resposta, foram ali&s restituídas,
ou melhor, as notas do enviado russo foram devolvidas, d'onde se
seguia a restituição da resposta. A resposta de Barca era no seu
género um modelo, que vale muito a pena publicar integi-almente :
■"O abaixo assignado. Conselheiro de Estado, Ministro e Se-
cretario de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultrama-
rinos, encarregado interinamente da Repartição dos Negócios Es-
trangeiros e da Guerra, accusa a recepção da Nota official que o
D. J. — 53
842 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Com um dos seus coUegas pelo menos, tornaram-se
igualmente tensas, em tão curto espaço de tempo, as relações
de Balk-Poleff, o qual já nem fallava com o encarregado de
negócios da Inglaterra, Chamberlain. Com Maler, a sua ci-
vilidade parece ter sido no emtanto constante, apezar das dif-
ferenças que tiveram.
O rompimento formal entre Balk-Poleff e a corte do
Rio deu-se a breve trecho depois dos incidentes, mais ridi-
Sr. Pedro de Balk-Poleff, Enviado Extraordinário e Ministro Ple-
nipotenciário de S. M. o Imperador de todas as Russias, lhe passou
em data de 10 do corrente, pedindo inteira satisfacção ás queixas
que iS. S. directamente havia feito ao Intendente Geral da Policia
em officio que lhe dirigira em 9 do sobredito mez.
Pela leitura d'este officio de C5. S. que o dito Magistrado não
tardou em transmittir a esta Secretaria de Estado, com a qual se
devem unicamente corresponder os Ministros Estrangeiros, segundo
o estilo de todas as Cortes, soube o abaixo assignado que S. S. se
queixara conti-a as pessoas seguintes :
l.e contra o sapateiro francez Pillet, por haver pretendido
cobrar de S. S. cento e vinte francos, quando apenas se lhe restava
a metade d'essa quantia pelas obras que tinha feito ; e bem assim
por ter dito alguns impropérios ao Secretario particular de S. S.
2.9 contra o cozinheiro Pharó, o mesmo que S. S. trouxe com-
sigo da Europa, pelo facto de haver recusado hum dia fazer o jan-
tar, e de ter penetrado até o gabinete de S. S. (e contra a sua or-
dem) com o pretexto de pedir o pagamento do que se lhe estava
de dever. Exigindo S. S. que por estes factos fizesse o Intendente
Geral da Policia impor aos aitos sapateiro e cozinheiro huma pena
arbitrada por S. S. e desconhecida no código criminal Portuguez,
qual a de mandar prendel-os e pol-os ao pão e agua, até segunda
requisição de S. S.
Além do conhecimento que teve o abaixo assignado da maté-
ria das queixas de S. S., teve mais a surpreza e o desgosto de re-
conhecer que as mencionadas peças officiaes estavão escritas em
hum estilo indecoroso e offensivo ; e que ; não podendo por isso le-
val-as á Augusta Presença de S. M. lhe não resiava senão hum mui
desagradável, porém necessário, expediente, qual he o de restituil-as,
como effectivamente restitue a S. S. para que se sirva, de escrevel-as
em es*tilo decoroso e digno assim do Augusto Soberano, que S. S. tem
a hcfnra de represenlar, como d'aquelle perante Quem s.e acha acre-
ditado, e por Quem tem sido tão distinctamente acolhido.
E para evitar o progresso de huma correspondência tão
alheia da decência diplomática, previne o abaixo assignado a S. S.
de que não aceitará jamais officios de S. S. que não sejão escritos
com o Decoro devido á Dignidade de ambos os Soberanos, e aos
laços de especial amizade que os unem.
Por esta occasião renova o abaixo assignado a S. S. as ex-
pressoens da sua distincta consideração.
Palácio do Rio de Janeiro em 18 de Março de 1817."
DOM JOÃO Ví NO BRAZIL 843
culos que graves, que deixavam prever esse resultado. No
dia immediato ao da nota cáustica de Barca, solicitava o re-
presentante russo audiência para a entrega da sua credencial
de embaixador. ( i ) A resposta, propositalmente retardada,
foi de 5 de Abril, (2) quando a 25 de Março chegara ao
Rio a noticia do movimento revolucionário pernambucano;
o qual fez adiar a acclamação real (que só no anno imme-
diato se effectuaria) e forneceu a Barca um excellente pre-
(1) "L'Ambassadeur Extraordinaire et Ministre Plénipoten-
tiaire de S. M. TEmpereur de toutes les Russies, pour remplir en
cette qualité d'apres les ordres suprêmes de son Augusta Maitre,
une mission temporaire, prie Son Excellence Mr. le Conseiller d'Etat,
etc, etc, de vouloir bien solliciter de Sa Majesté Três Fidelle la
faveur d'une audience telle qu'il pdaira au Roi de raccorder pour
que le soussigné puisse y remettre les lettres de créance d'apres
les formes requises.
,E"taint, seJon les instructions recues de sa 'Cour, autorisé a
se conformer en tout a Tétiquette établie p-res celle du R-oi Três Fi-
delle, pour la rôception des Ambassadeurs Extraordinaires, le soussi-
igné désire être instruit par écrit et en détalL sur ce qui concerne Tob-
jet des formes usitées em pareil cas, ainsi que du lieu qui será des-
tine pour Taudience sollicitée.
Três flatté de pouvoir en la presente conjoncture offrir de
Ia part de iSa Majesté TEmpereur, son Três Auguste IMaitre, un té-
moignage nouveau de cette haute estime et amitié dont Sa Majesté
Três Fidelle a eu des preuves constantes et de manifester en
même temps le desir empressé d'un Souverain aux Immortelles
actions et aux grandes vertus duquel TEurope est redevable de la
paix dout elle jouit, et comiplaire en tout a un Monarque, son Ami
et Allié, le soussigné se fait un devoir de transmettre ci-joint la
copie de la lettre de créance qui constate son titre d'Ambassa<3eur
Extraordinaire, et de réitérer de nouveau a Son Excellence Mon-
sieur le Comte de Barca, les sentimens de sa conslderation três dis-
tinguée.
Pieirre de Balk-Poleifí — Pr.aya do Flamengo ce 7 — 19 Mars
I-S1I7.1 — lV. S. E. Monsieur le Comte de Barca etc."
(2) (Traducção). "Monsieur. J'ay reçu la note que Votre
Seigneurie m'a adre&sée a la date du 7 — ^19 Mars dernier, avec la copie
de la lettre de créance par laquelle Sa Majesté TEmpereur de toutes
les Russies le nomme son Ambassadeur Extraordinaire et Plénipo-
tentialre, pour en cette qualité remplir la mission temporaire de
complimenter le Roi mon Maitre, sur son oxaltation au trCme ; je
Tay mise sous les yeux du même Auguste 'Seigneur ; mais Sa Ma-
jesté ayant différé le jour destine pour son acciamation, et étant
survenu dans oette occasion des circonstances auxquelles on doit
faire face, et qui exige des mesures immédlates, Sa Majesté a jugé
convenable de retarder pour quelques jours Taudience publique pour
844 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
texto fT^a demorar a audiência solemne do embaixador. Tão
leviano este que, para obtel-a, commetteu a imprudência e
não recuou ante a humilhação de valer-se confidencialmente
junto a Dom João do encarregado de negócios Villalba, que
elle sabia ser desaffecto do Ministro de Estrangeiros.
A recepção foi afinal marcada para 13 de Maio, anni-
versario do monarcha, quasi dous mezes portanto depois de
pedida, e recebendo Balk-Poleff o respectivo aviso official
na véspera, ás 2 horas da tarde. A's 3 dirigia elle uma nota
ao conde da Barca, pondo em relevo a coincidência da
audiência e da festa de grande gala somente "como um
desejo de Sua Magestade de emprestar maior realce a essa
nova prova de amizade escolhida por Sua Magestade meu
Augustissimo Amo para comprazer-lhe," e de novo pedindo
communicação por escripto do cerimonial e pragmática em
uso na corte portugueza para as recepções dos embaixadores
extraordinários, que bem anticipadamente reclamara. "Auto-
risé par les ordres de ma Cour de mV conformer, je ne pour-
rai me rendre á Taudience fixée qu'apres avoir obtenu Tobjet
de ma demande."
Satisf acção lhe foi n'este ponto dada pelo conde da
Barca, recebendo elle ,0 cerimonial ás 12 % da noite. Na
la p'1'ésentation de Votre Seigneurie en la suadite qualité d'Anibassa-
deur, et la remissve de la Lettre de créance ci-dessus mentionée.
Des que je recevrai de nouveaux ordres de Sa Majesté sur
cet objet, je les comniuniquerai promptement a Votre 'Seigneurie.
Je profite de cette occasion pour répeter a Votre Seigneurie
les témoignages de mon désir de lui être agréable et de ma consi-
deration distlnguée.
Que Dieu garde a V. S. nombre d'années. Pala is du Rio de
Janeiro ^n H Avril 18!] 7. De V. S. le plus grand et le plus fidelle
serviteur, Comte da Barca. Mr. Pierre de Balk-Poleff etc." (Le-
galisada a copia por Camillo Martins Lages, official maior da Se-
cretaria de Estrangeiros.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 845
occasião, porém, de dirigir-se para a audiência, que devia ter
lugar á I hora da tarde no Paço da cidade, vio-se o embai-
xador constrangido a permanecer durante uma hora quasi
defronte do palácio, sem poder o seu coche romper a tropa
que formara no largo '*e sem que pessoa alguma, escreve
Maler, se occupasse de facilitar-lhe uma passagem para que
comparecesse a um tão solemne convite."
Furioso com tudo isto e achando na maneira adoptada
para a sua apresentação de credencial pretextos bastantes de
recriminação, endereçou Balk-Poleff, no dia i8, um protesto
ao governo portuguez concebido em termos indignados (i)
(1) "Le soussigné Ambassddeur etc. croit de son devoir d'a-
dresser a S. E. etc, la protestation énoneée dans les articles sui-
vajits, afin de constater qu'im pareil exemple ne puisse tirer a con-
séquence, ni servir de régie a ravonir.
il" 11 est de toute notariété qu'aucune c(>mniunicatio.n verbale
du Ministre a un Représentant d'iine Puissance Etrangere ne sau-
rait être regardée comme avenue que lorsque remployé est Torgane
de son Cheí, et c^pendant le Ministre de Sa Majestê sVst adressé et a
voulu se servir pour cette fois du Conseiller de Légation.
2° Loin de prendre aucune mesure áe convenance générale-
ment pratiquée prés des Cours Euix)péennes, au moins pour une
marge de temps suffisante entre le jour de Tannonce et celui de
Taudience, la Note transmise pour cet objet datée du 29 Avril (11 Mai)
n'est parvenue que le lundi 80 Avril (12 Mai) a une lieure apres midi.
I>e même la copie du cérémo-nial demiandée en même temps que Tau-
dlence par la Note du 6 — 18 Mars n'a été recue que la vieille du 1 — 13
Mal apres minuit.
3í! Mais surtout le soussigné doit manifester son extreme sur-
prise qu'en sens inverse des usages reçus, Ton a voulu faire de
rAudienee d'un Ambassadeur Taccessoirè d'un jour de Grand Gala,
comme si une pareille Audidnce n'êtait pas elle même Tobjet prin-
cipal d'une assemblée solennelle. Une premiere Ambassade de la Cour
dn Russie créée nommiément par iSa Maje<sté UiEmipereur, en vue
et dans le but d'obtempérer aux désirs de son Ami e Allié, Sa Ma-
jesté Três Fidelle, méritait d'autant plus d'être distinguée.
Pi'ofondémente pénétré de cette intention de son Três Auguste
Maitre, le soussigné prie Mr. le Comte da Barca de vouloir bien
porter a la connaissance du Rol, que si dans une semblable con-
jfmcture, le soussigné a bien voulu se prêter a passer outre, sur
plusleurs formes reconnues partout comme inherentes a la dignité
iíoprésentative, et d'autres qu'll n'a pas cite, ce n'est pas par aueun
846 POM JOÃO VI NO BRAZIL
e que motivou da parte de Barca uma resposta cortante e
violenta, a qual traz a data de 21 de Maio. (i)
E' mister attentar nas datas. O protesto de 18 foi, ao
que diz o ministro, entregue na noite de 20, justamente
quando Balk-Poleff era recebido pelo monarcha n'uma nova
audiência, particular esta, que obtivera por surpreza, compa-
recendo em São Christovão a pretexto de apresentar felici-
tações pela noticia que se espalhara da conclusão da revolu-
ção pernambucana, de facto para tentar alcançar de Dom
João VI satisfacção das affrontas que recebera do conde da
Barca — assim as qualificava n'uma longa circular mandada
autre motif que poiír montrer son emprpssement zélê de présenter
a Sa Majesté les félicitations et les voeux de son Três Auguste
Maitre et d'offnr par eette conduite a Sa Majesté elle même la
preuve evidente de son désir de Lui complaire.
En offrant ce tribut de justice et d'hommage a un Souve-
rain Allié et Ami de son Três Auguste Maitre, le soussigné prle
S. E. Mr. le Comte da Barca d'agréer le témoignage renouvelié de
sa haute consideration.
Praia do^ Flamengo le 6 — 18 CNIai 1817. — ^Pierre de Balk-Pcleff.
— A S. E. Monsieur le Comte da Barca."
(1) 'O abaixo assignado, Conselheiro de Estado etc. levou á
•Augusta Presença d'El-Rey seu Amo a nota official que S. Ex. o
Sr. Pcidro de Balk-Poleff Embaixador Extraordinaiúo e Plenipoten-
ciário de S. M. o Imperador de todas as Russias lhe dirigio na data
de 18 do corrente (e que lhe foi entregue somente em a Noite de
hontem) contendo hum protesto tão insólito, quanto offenslvo e
inesperado, depois da maneira obsequiosa e distincta porque S. Ex.
foi recebido no faustosíssimo dia 13 do corrente.
Foi tal a surpreza, e o resentimento ue S. M. á vista do
theor da referiua Nota, que mui expressamente ordenou ao abaixo
fissiignado que a transmittisise sem perda de temjpo, e por hum ex-
presso, ao seu Ministro, residente na corte de Petersburgo, para
leval-a quanto antes ao conhecimento de S. M. I. a Quem sem duvida
ella ha de ser tão desagradável quanto o foi a S. M. F.
A participação d'esta Real Determinação he a única resposta
que o abaixo assignado deve por emquanto dar á Nota que recebeu
de S. Ex».
O abaixo assignado tem a honra de reiterar a S. Ex? . o Sr.
Pedro de BalkwPoleff as expressocns da sua distincta consideração.
Palácio do Rio de Janeiro em 21 de Maio de 1817. Conde da Barca."
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 847
no dia 19 de Maio ás legações estrangeiras no Rio de Ja-
neiro, (i)
A resposta de Barca é do dia immediato, 21, qualifi-
cando o protesto de "tão insólito, quanto offensivo e ines-
perado", sem qualquer allusão á entrevista de 20. A 22,
(1) "Monsieur. En réclamant votre attention sur l€s piéces
cy jointes, je vous épargnerai tout commentaire sur les griefs
développés en détail dans ma Note de protestation.
La lecture de ces docuraents a.ioutera un nouveau poids a
IVxpérience que vous avez aoquise de la façon dont le Corps Di-
plomatique est traité prés de cette Cour, puisqu'une Ambassade
toute solennelle et toute faite qu'elle est pour complaire au Roi, n"a
pas été exempte de Tirrégularité dans les procedes, devenus a ce
qui semble systématlique pour le Mlnistere de Rio de Janeiro. De
même les faits parlent dans les piéces. Je ne me permettrai donc,
Monsieur, que de vous arrêter sur quelques réflexions essentielles.
Le renvoi d"une Note ministerielle, lorsqu'aucun acte qui put
exciter par représaille une pareille -violence n'a eu lieu, est-ce un
affront ? Je ne crois pas qu'il y ait deux reponses a faire.
Sans vouloir citer des exemples de la Diplomatie Euro-
péenne, qui passerait condaranation sur celle de Rio de Janeiro,
se refusant d'ailleurs jusques ici de devenir indigéne dans ce pays,
il est notoire, qu'avant de se porter aux extrêmités, l'on prcvient
TEnvoyé d'une Puissance Etrangere, que le contenu ou le style
de la Note n'est pas convenable ; s'il vient a une recidive en termes
plus forts. <m rinvite' a retirer sia Note ; s''il s'y relfus?, ce n'est
quValors qu'on est arme du Droit de lui restituer.
Pour Tétrange mouvement des facultes de Mr. le Comte de
Barca Ton diraiL que cette marche mesurée et tardive est trop com-
mune ou trop dans les prejugés' d'un Ordre de choses que ses pen-
chans intimes Tempeclient d^admiirer. II lui faut des Co^ups de Maitre.
Cest ainsi quMl commence par ou Ton finit dans les pays civilisés,
par me renvoyer ma Note en Taccompagnant d'une de sa part ré-
digée dans un langage qui sent une E'oole. dont oti croirait Mr. le
. Comtie da Barca jusques ici encore le dis-ciple ziélé.
iLes deux notes sont en présence. II n'y a qu'a les oomparer
entre elles po^ur savoir au jusite de qu»el côté appartient rapplication
juste et réeaie des épithetes dont se sert Mr. le Comte da Barca,
qui non content de s'être oublié au point que de faire un affront
a un Ministre Etranger ; mais encore, et c'est un oubli bien plus
remarquable de rejetter tout son courroux sur le Ministre en lui im-
primant une leçon. Ce n'est pas sans doute a Messieurs les membres
du Corps Diplomatique que j'en appellerai pour caractériser en traits
frappants l'engeance des valets et des ouvriers dans cette Capitale,
lorsque les indigènes momo, qui ne sont pas cólons s'en plaignent
sans cesse. II est évident aussi que le soin de peupler Rio de Ja-
neiro et d'y introduire les commodités de la vie sociale lui font
848 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
porém, apoz terem soberano e ministro conversado sobre o
Decorrido, que Barca desconhecia ao expedir a sua rispida
admoestação, uma nova nota punha inteira e abruptamente
une necessite de tolérer toiít ce rebut des demieres classes de la so-
ciété repoussé du sein de l'Europe. Tel est a peu prés le seus des
conjectures vagues par lesquelles jessaye de trouver la source du
brigandage auquel on n'est que trop souvent exposé ici. Par quel
effort de logique Mr. le comte da Barca y a-t-il découvert un ou-
trage contre le Ministere de S. M.? Cest un secret qui semble ne
pa<s valoir la peiíne d"être deviné. Certes dans les pays constitués,
les loix reprlment la lioence et dan« la plus grande partie de TlBu-
rope continentale, 11 y a des mesures réglementaires qui veillent a la
ccnduite de la Domes.tici.té et des ouvrie^rs. N'e9t-ilr'pas au surplus
suffisant qu'i:n Envoyé d'une Puissance Etrangere fasse abnéga-
ticn en arriviant ici áe teus les agriémens de la vie civilisée et so-
ciale, pour avodr encore a endurer les suites de Timpunlté et d'une
Police mal organisée ? Et n'ai je pas eu rexpériencei que pour avoir
négligé de faire punir un de ces miserables, d'autres sont devenus
plus hardis par la suite ?
Dans les capitales d'Europe, les recours pour flagrans delits
se déeident par un Commissaire de Police et sont rares par l'inté-
rêt même de la basse classe de se maintenir en bonne réputation.
Mr. le Comte da Barca lui même, ne m'a-t-il pas fait la distinction
des cas dont les plaintes se rapportent au Ministere et de ceux qui
déipendent directement de la Police ? Ees flagrans déLits étant de
cette derniere classe, je m'étais adressé a rintendant pour demander
satisfaction eiu lui ra;pellant un devoir iqu'il ni'avait pas rempli
envers moi. Ce demier me repondit negativement. Alors seulement
je passais une Note Ministerielle, avec Texpression de mes regrets
et de mes excuses. Sont-ce les excuses que ont remuné la Bile de
•Mr. le Comte da Barca ? Mais un trait de génie do ce dernier, qui
n'aura pas échappé a votre sagacité, c"est la naiveté de dire que
la peàne oorrectioinnelle du pain et Feau infLigiée aux enfants danS
les E'coles, ne se trouve pas dans le code criminei du Poi-tugal et
du Brésil, comme s'il voulait peindre en peu de m'0'ts, la douceur
et rhumanité de ce dernier.
IChacun de nous ne doit-il-pas avouer, que graces aux triom-
phes des Souverains et des Nations combines, la Republique Euro-
péenne ne compte plus dans son sein, aucune Puissance qui ait
beso.in de tenir nn langage indécent et populacier. pour rehausser
d'un ton de Maitre la prépondérance qui lui est dévolue. cependant
le procede de Mr. le Comte aa Barca, le style de sa Note mentio-
née, semblent rappeller des systemes, si ce n'est des époques, qui
en Europe ne pourraient plus être a Tabri du ridicule ou de mépris.
Faudrait-il attribuer par hazard ce ton insolite a un nouveau sys-
teme de uiplomatie inventée par Mr. le Comte de Barca pour cé-
lébrer TEre Caprieornienne ? Malgré toutes ces suppositions aucun
de Messieurs les membres du Corps Diplomatique ne será loin de con-
Yenir avec moi que les sentjments de bonté et les príncipes reli-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 849
termo á missão de Balk-Poleff, negando-lhe de então em
diante e por motivo do desacato commettido admissão á
regia presença, ( i )
gieux de S. M. T. F. sont tout a fait en contradiction avec les airs
d'aiTogance, si ce n'est pas quelque chose de pliis, adoptes par son
[Ministre. Sá néanmoin.s le Ministre de la Puissance laupres ãe laiquelle
cn reside, v'oulait sans poser des bornes fixes et Convenues par la
civillsation pour " entenure les mots, interprêter a sa guise et juger
en demier ressort arbitrairement de la façon dont une Note dolt
être rédigée, pour ne pas lui déplaire, ou en serait le Coips Diploma-
tique, <ybligé de s'iniformer au therniometre des caprices, de Tinfir-
mité et des vapeurs paralytiques, la dos?, et la raes-ure <iu'l1 faut
donner aux termes et expressions des Notes ministerielles? Enfin
Monsieur, pour ne plus vous retenir sur un sujet aussi mesquin
par le fonds, que déplacé et indécent par les formes et procedes de
Mr. le Comte da Barca, .i'aural llionneur de vous assur-er que le,
seul respect pour le devoir d'Ambassadeur rempli et les égards dus
a la personne de Sa Majesté, m'.ont retenu dans les bornes d'un si-
lence respectueux. J'ose dono roe flatter qu'en approuvant la mo-
dération et lo calmie dont j,e me .suis fait jusqu'a présent une LoI,,
vous n'e pourriez, envisiageant la dignité du Oaractera DipLomatique,
que désaprouver, si je me fusse renfermé aesormais dans une abné-
gation totale des droits et prérogatives qui appartiennement a cha-
cun de nous. Ainsi pour ne laisser rien iguorer de ma résolution,
je vais Monsieur, apres avoir proteste par ma Note a Mr. le Comte
da Barca, solliciter de S. M. T. F. une satisfaction complete de
Taflfront exerce contre mol pa.r son Ministre. Quant a sa note du 6 — 18
Mars que je n'ai reçu par rhabitude invétérée de desordre que le
8^ — 128 du même móis a minuit et demi en maison tieroe, apres avoir
envoyé de mon côté celle ou je sollicitais du Rol Taudience en qua-
lité d'Ambassadeur, je n'ai pas besoin d'ajouter, que ne pouvant
trouver place dans aucune Archive Diplomatique, elle será ren-
voyée a celui qui Ta dictée et sans le moindre commentaire. Venil-
lez donc bien, Monsieur, en répondant a Tempressement que j'al
de communiquer le systeme de procedes suivi contre moi, et le
caractere de mes demarclies, transmettre a votre Cour par le pa-
quebot de ce móis ou par la premiere occasion opportune, les pieces
justificatives ainsi que la lettre que j'ai Thonneur de vous adresser.
En ambitionnant votre suffrage, dans une cause ou Tin-
fraction des Droits ot prérogatives d'un Membre du Corps Diploma-
tique touche tie prés son ensemble, permettez de vous offrir Tassu-
rance de la consideration la plus distinguée, etc.
(1) O abaixo assignado etc. dirige-se a S. Ex. o Sr. Tedro de
Balk-Poleff, Embaixador etc. para lho fazer constante que S. M. F.
vivamente offendido do desacato que V. Ex. lhe fez na audiência
particular quo lhe concedeu em a Noite do dia 20 do corrente, tomou
huma resoku.-ão (proporcionada a gravidade da offensa o todavia
modificada pelos sentimentos de especial consideração e amizade
que tem por S. M. o Imperador) qual he a de não admittir a S. Ex.
850 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Nada mais restava ao impetuoso e irreverente diplo-
mata do que pedir seus passaportes, que lhe foram sem tar-
dança concedidos. A 24 o conde da Barca transmittia em
circular ao corpo diplomático acreditado no Rio copia de
toda a correspondência trocada.
O desacato em questão consta circumstanciadamente
do curioso officio de Balk-Poleff ao seu chefe Capo dlstria,
reproduzindo em forma dialogada a audiência real de 20 de
Maio. Qualquer narração que d'esta entrevista se quizesse
tentar, se não poderia approximar em verdade e chiste d'essa
conversação por assim dizer tachygraphada e na qual se
sente de um lado toda a ira, contida pelo respeito á magestade,
do diplomata escarnecido e raivoso, e do outro lado toda a
bonhomia velhaca do Rei, esquivando-se, encolhendo-se, ter-
giversando, contemporisando, para no fim, com uma só
phrase, assumir inesperadamente a responsabilidade da situa-
ção e tornar impossivel o prolongamento da conversa, dei-
xando o interlocutor perplexo e a descoberto.
Começa Balk-Poleff por informar que expressou ao
monarcha a satisfacção que seu Amo sem duvida experimen-
taria ao saber do restabelecimento da tranquillidade nos Es-
tados portuguezes.
''El-Rei — Não duvido do interesse que toma vosso
Imperador por quanto me diz respeito, mas o boato que correu
é falso. O encarregado de annunciar qualquer boa nova
segundo um signal convencionado, enganou-se tomando um
de hoje em diante a sua Augusta Presença até que haja de constar
n'esta Corte a decisão de o. M. 1. sobre o mencionado desacato, e
sua devida satisfação.
O abaixo assignado havendo assim cumprido as ordens ex-
pressas de El Rey seu Amo tem a honra de repetir a S. Ex. o Sr.
Pedro de Balk-Poleff os protestos da sua mui distincta considera-
ção. Palácio do Rio de Janeiro em 22 de Maio de 1817. — Conde da
Barca.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 851
navio inglez pelo que se espera de Pernambuco; mas é um
bom homem. Saòeis que a revolta dos meus súbditos me
causou grande pezar ?
Eu — Acredito, Senhor. E' mister, porém, esperar que
breve estará apaziguada a rebellião, comtanto que Vossa Ma-
gestade ao lado do gladio da justiça haja por bem empregar
a clemência que o caracteriza.
El-Rei — Sim, sim, mas é preciso castigar. Como ides
de saúde?
Eu — Graças á bella estação que presentemente atra-
vessa a capital de Vossa Magestade, até os enfermos pas-
sariam bem.
El-Rei — No emtanto o clima da Europa vale mais
que o da America, hem! hem!
Eu — Sem duvida. Senhor, é mais próprio para Euro-
peus, mas no meio de uma natureza como a do Brazil, com
melhoramentos a capital de Vossa Magestade, que descança
sobre um terreno húmido, tornar-se-hia saudável. Senhor,
eu penso que seria necessário resolver-se Vossa Magestade
a tomar medidas para povoar seus vastos Estados com colonos
europeus, em lugar d estes negros que são obstáculos mais do
que meio de civilização. Ousei dar expressão em termos ge-
raes a semelhante voto no meu discurso.
El-Rei (sorrindo) — Ainda hoje entrou um navio tra-
zendo 400 escravos. (Depois de uma pausa) Sabeis que duas
embarcações inglezas se dirigiam para Pernambuco com
armas e pólvora ? Que pensais d'isso? uma delias foi levada
para a Bahia, hem! hem!
Eu — N'um paiz livre e constitucional como a Ingla-
terra, é impossivel impedir as especulações dos particulares
de qualquer género que sejam.
852 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Apoz um momento de silencio, roguei a Sua Magestade
quizesse ouvir-me em particular, pelo que foi despedido o
criado e assim comecei:
Senhor, Vossa Magestade teve a prova da satisf acção
que experimentei em cumprir um dever que só Lhe poderia
ser agradável, pois que meu Augustissimo Amo só m'o dictou
para comprazer a Vossa Magestade, que porventura ignora,
porém, que se esqueceram com relação a mim de muitas das
formas usadas n'essas espécies de embaixadas.
El-Rci — Sim, fiquei muito contente com a embaixada
e com o vosso discurso. Escrevei ao meu Ministro.
Eu — Foi precisamente o que fiz, mas com um vivís-
simo pezar de ter sido forçado a protestar, sabendo bem que
as intenções de Vossa Magestade não eram de que eu tivesse
razão de queixar-me; tanto mais quanto Vossa Magestade
em pessoa, fallando com o cavalheiro Villalba, manifestou
que seria inconveniente reunir a audiência ao embaixador e
a funcção de grande gala.
El-Rei — Oh! sim, o cavalheiro Villalba fallou-me
muito de vós. Escrevei ao meu Ministro, bem! bem!
Eu — Não deixei de protestar, como era do meu dever:
além de que nenhumas precauções tinham sido tomadas para
que eu pudesse chegar ao Palácio; fui assim obrigado a espe-
rar uma hora no sol e no pó.
El-Rei — Estavam as tropas, bem ! bem !
Eu — Precisamente, Senhor.
El-Rei — Lord Strangf ord passava pelo meio d'ellas ;
(sorrindo) eu tinha-lhe dado permissão para isso.
Eu — O respeito que se tem na Europa a tropas forma-
das diante das janellas do seu soberano ter-me-hia vedado
romper a fileira dos soldados de Vossa Magestade.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 853
EI-Rei — l-lcrAl hem! (i)
Eu — E' também com profundo sentimento de magoa
que me vejo compellido a solicitar de Vossa Magestade uma
reparação como a pode e deve desejar aquelle que tem a
honra de representar seu Augusto Alliado e Amigo. O Mi-
nistério de Vossa Magestade fez-me uma offensa que cara-
cter representativo algum saberia supportar, não somente
devolvendo-me uma Nota por mim dirigida, como escreven-
do-me uma em resposta cujo theor não me é dado soffrer
(je ne suis pas fait pour entendre). Si Vossa Magestade
me dá licença, atrever-me-hia a ler-lhe a nota que me foi
restituida.
El-Rei — Lede.
E com ef feito li a nota cuja copia transmitti ao Sr.
Conde de Nesselrode, ajuntando: Quanto á do Ministro de
Vossa Magestade aqui a tenho sellada para ser-lhe restituida
como documento que não acharia lugar em archivo diplo-
mático algum.
El-Rei — Oh! mas tendes tanta facilidade para as
línguas? Comprehendeis o portuguez.
Eu — Já tive a honra de assegurar a Vossa Magestade
que não sou feito para comprehender o estylo da nota do
seu Ministro, ainda que comprehendesse a linguagem.
(1) "Os item, hem tâo repetidos sao um habito muito fami-
liar a S. M., que o emprega com a maior frequência, le por sestix)
mesmo, e 2^-, ou para confirmar o que acaba de dizer, ou para es-
timular o >a9sentimento das pessiaas com quem conversa." (Oflficio
de Maler a Riclielieu de 24 de Maio de 1817). NVste officio teve o
encarregado de negócios da Fran(.'a ensejo de escrever, a pi'oposito
da referencia de Dom João ás embarcações inglezas que tentaram
ajudar a revolução pernamDucana com armas e provisões, não ser
o monarcha "três porte pour TAngleterre en general." Outro.s muitos
accusaram i>elo contrario o Rei de grande parcialidade pela Grã
Bretanha, provando apenas esta divergência de opiniões ou teste-
munhos que o esperto soberano seguia uma politica sua ou nacional
e, quando acompanhava a politica ingleza, o fazia por ser a que
n'esse caso mais convinha fi dynastia e ao paiz.
854 DOM JOÃO VI NO BRAZlL
El-Rei — Escrevei a respeito ao meu Ministro.
Eu — Nada tenho que lhe escrever sobre o assumpto,
e é sem commentario algum que lhe restituo sua nota para
não imital-o De resto ella não seria digna de ser posta entre
as mãos de um soberano: quando muito pode ser deposta a
seus pés. (Ao dizer isto, effectivamente depuz o envolucro
aos pés do Rei, e prosegui). Ella ahi permanecerá até que
eu tenha a honra de despedir-me de Vossa Magestade. Ouso,
ao mesmo tempo, affirmar-vos. Senhor, que é com verda-
deiro desgosto que me vejo forçado a implorar de Vossa
Magestade satisfacção contra o seu Ministro, pois que injuria
tal não a poderia mesmo tragar um gentilhomcm russo, com
maioria de razão um Ministro.
El-Rei sorria e repetia: hem! hem!
Eu — E' com tanto mais dôr que me acho reduzido a
semelhante extremidade, quanto não me seria licito desempe-
nhar o encargo ulterior de apresentar outra credencial senão
depois de Vossa Magestade me haver concedido a justa repa-
ração que lhe peço.
Passo aqui sob silencio duas ou trez referencias que se
intercalaram de modo imprevisto no thema capital da con-
versa: a questão de um tratado de commercio para substituir
o caduco, ao que respondi negativamente; a gravidez da
Rainha da Hespanha e a continuação da sua epilepsia, pelo
que exprimi esperança de que talvez o parto de Sua Mages-
tade fizesse cessar a epilepsia (haut-mal) ; finalmente a bel-
leza da Infanta menor, sobre que me havendo interpellado o
Rei entendi dever responder-lhe que a Infanta era mais um
anjo que uma mortal, etc, etc.
Fallando de sua filha a Rainha da Hespanha, disse-me
El-Rei que esperava uma Princeza da Europa, mas receiava
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 855
muito que os acontecimentos de Pernambuco se convertessem
n'um obstáculo á partida da Archiduqueza, caso lá chegas-
sem noticias dos mesmos antes do embarque. Apenas podia
responder lisonjeando as esperanças de Sua Magestade.
Quando de novo solicitei satisfacção contra o Conde da Barca,
El-Rei disse-me sorrindo: Sabeis, porém, que os Ministros
não são mais do que os executores da minha vontade.
Nunca duvidei d'isso. Senhor, repliquei. E' assim que os
deseja o Corpo Diplomático residente junto a Vossa Mages-
tade, o qual entretanto não cessa de louvar Vossa Magestade
e abençoar seu destino por ter a dita de approximar-se da sua
pessoa, mas só pode queixar-se do seu Ministro com perfeita
unanimidade. Eu próprio que presto tributo ás virtudes de
moderação, de equidade e de clemência de Vossa Magestade,
traços que me trazem á lembrança os do meu Augusto Amo,
não posso suppor que em qualquer dos actos do seu Ministro
de que me queixo, exista parcella alguma da vontade de
Vossa Magestade, aliás incompativel com o que se assemelha
a um systema que não poderia ser o de Vossa Magestade.
Eis o titulo que mais me auctoriza a solicitar uma satisfacção
contra o seu Ministro.
El-Rei — Já vos disse que a tereis.
Retomando o envolucro deposto aos pés do Rei, retirei-
me saudando segundo a etiqueta."
Refere em seguida Balk-Poleff que o "suffragio una-
nime" por elle obtido sobre o objecto e estylo do seu protesto
comparado com a nota do conde da Barca, mostra sufficien-
temente "de quel côté est la justice de la cause et la regu-
larité des formes et convenances," ao mesmo tempo que
convence pelo que toca á maneira usada na corte do Rio
com o corpo diplomático.
856 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Vale a pena, para complemento do incidente e melhor
comprehensão do meio diplomático do momento, buscar na
correspondência de Maler o effeito produzido entre os agen-
tes estrangeiros no Brazil pelo extraordinário episodio. Ma-
ler, concordando com o processo progressivo, indo da adver-
tência á devolução da nota, que Balk-Poleff dizia ser para
casos taes o diplomático, não se furta a applaudir o primeiro
protesto do representante russo, contra a restituição da nota
relativa ás suas reclamações particulares, considerando-o "re-
dige dans le vrai esprit qui doit guider tout individu appellé
a remplir de si hautes fonctions", e como um testemunho
authentico de que o embaixador soubera perfeitamente *'con-
cilier les égards qui sont dus á S. M. T. F. avec la dignité
du caractere réprésentatif dont il ctait investi par S. M.
TEmpereur Alexandre", (i)
A 22 de Maio transmittio o encarregado de negócios
francez ao duque de Richelieu o resumo de uma entrevista
solicitada por Balk-Poleff e na qual este lhe narrou miuda-
mente todas as suas queixas do conde da Barca, para que
d'ellas pudesse ser informada a corte franceza. Foi ahi que
Maler, pretextando não querer fiar-se tão completamente
em sua memoria — "quand d'apres la nature de ces Communi-
cations, un seul mot changé, ajouté ou omis devait occasion-
ner une erreur sensible et une faute grave" — lhe suggerio a
idéa de uma circular que Balk-Poleff disse de resto estar
já redigindo. A resposta a essa circular, quando para ella
houve ensejo, não satisfez no emtanto muito o embaixador
russo que a desejaria ainda mais formal e abundante, ao que
Maler se excusou comquanto reconhecesse serem-lhe com-
(1) Resposta a Balk-roleff de 20 dp Maio de 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 857
muns as recriminações contra o modo por que a chancella-
ria do Rio tratava os diplomatas estrangeiros. ( i )
Nas ulteriores informações que prestou ao seu governo,
censurou asperamente o agente francez a demora soffrida
por Balk-Poleff em plena rua no dia da entrega da creden-
cial, e quanto á resposta de Barca ao protesto a tal respeito,
achava injustos os qualificativos empregados pelo Ministro,
quer applicados ao caso, quer considerados em geral. (2)
(1) "Voici, iMonseigneur, daiig quel sems j'ay cru devolr rê-
potidre. !La conduite de Mr. Balk avait été irreguLiere, et Ini layalt
nttiré dea scenes désagrt^ables, cependant la ICour du Portugal ayaiit
j)aru avcir oublln le passe, le vpçoit, on sa nouvelle qualité d'Ambassa-
deur : qu'il ait ou iion raison dn protester contra le jonr et la maniere
dont. 11 a été reçu, le style de cette piece est noble et eonvenable,
je n'hesite pas a ravouer et a applaudir aux sentimenu qu'il a ma-
nifeste alors, car il a obél pour plaire a S. M. T. F et il proteste
apres avec dlgnite pour conserver intactes le.s usages et les dis-
linctions attachées a ee haut caractere
Le Ministre des I*ays Ba.s et le chargé d'AffaJres d'Espagne
ont donné leurs réponses telles que Mr. Balk aurait i>u les désirer ;
il est également três satisfait de celle du chargé d'Affaires d'An
gleterre, au reste j'ay la celle ci et la trouve assez adroite. J.e Mi-
nistre des Etats Unis n'a point encore répondu mais d'apres ce
tiu'il m'a dit sur les pieces de ce demelé, je suis fondé a croire (|u'il
:ij)puyera Mr. Balk
Mr. Balk a de 1%'sprit mais il manque de bon sens et <m
resume le Cori^s Diplomai ique naus ce pays ne peut être satisfait
de la manifre dont il est traité et beaucoup moins de la difficulté
que nous épr(i.uvons a recevoir des répons«es aux demaudes les plus
justes et qui devraient ré<'lamer quelque activité de la part du Mi-
nLstere. Individuellement si je n'ay pas a me louer sous ce rapport.
j'ay peut être moins a me plaindre que mes collegues ; le chargé
d'Affaires (VAngleterre me disait il y a três peu de jours que son
(íouvemement trouverait s'il pouvait le désirer assez de griefs pour
déclarer la guerre ; p^ut être, (MonseLgneur, cet état des choses
participe uii peu de la composition pr(%ente du Ministere, mais je
crois pouvoir encore rai)peller ce que j'ay donné a entendre il ya
longtemps, et c'est que la polititiue de cette Cour était peu analogue
a ses forces, a sa puissance réelle et a sa position." (Officio de 22
de Maio de 1817).
(2) Sobre o desacato as reflexões de Maler são bastante ju-
diciosas : "Je respecte trop cordialement, trop scrupuleusement les
Riois legitimes', je me fais trop naturelLement un devoLr de rendre
hom'mage a la bonté persontnelle de \S. M. le Roi de Portugal, pour
avoir le moindre doute pour me permettre la plus légei^e hésitation
sur Tincartade dcnt il se plaint ;. . . Cependant, comme iS. M. ne
D. J. — 54
858 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
De facto todos os diplomatas, Maler e Chamberlain
como o ministro russo, nutriam disposições pouco benévolas
para com o governo portuguez, antes o aborrecendo sem
excepção, no que traduziam fielmente os sentimentos dos
seus respectivos governos. Assim apreciado, o incidente
Balk-Poleff recebe a expressão do mau humor reflexo, la-
tente e geral d'esse meio todo especial, sentimento devido a
uma multiplicidade de causas. A occupação de Montevideo
sobretudo indispuzera com a corte do Rio os gabinetes euro-
peus que não queriam, apoz tão longo periodo de guerras
quanto o napoleónico, abrir ou ver abrirem-se novas luctas
como a que se ensaiava entre Portugal e Hespanha; se ti-
nham desgostado todos com a recusa de Dom João de trans-
portar-se novamente para a Europa, e se mostravam assim
já ligeiramente ciumentos da importância que poderia alcan-
çar o Novo Mundo, com suas novas nacionalidades e dynas-
tias tradicionaes, seu progresso importado e seus recursos
naturaes. As metaphoras do abbade de Pradt são o symptoma
litterario d'esse estado d 'alma em que pouco inclinados se
dósigne ni n'iindiqne Tincartade, je me pei-mettrai un petit commen-
taire, ou quelques reflexions. Je ne puis concevoii" quel a été le imt
de IMr. iBalk .fOi dépasant une note aux pieds du Roi ! Tout au plus
si pareillo n-iaisorie serait recue et adimise pour les Rols let pour
les Ambassadeurs que nos bisayeux pouvalent mettre sur le Theatre ;
et apparemmont que Mr. de Balk aura mis trop de vivacité dans le
mouvement déja si singulier par lui même de mettre aux pieds de
S. M. cette note. Mais je n'hésite pas a publier que ce n'etait pas
du tout IMntention de eelui-ci de manquer au Souverain, de le cho-
qu.er cu de lui faire de la peine ; .j'ay préoédemment fait cooinaitre
avec Impartiallté la malheureuse, 1' inconsequente facilite de Mr. de
Balk a se permettre des sarcasmes et des diatribes ; mais je dois
a la verité d"ajouter qu'il a toujours été respectueux envers le Roi,
et même qu'il s'en était forme une opinion juste et favorable. Je
declare do.nc que Mr. de Balk n^a été a la campagne du 'Roi le 20, que
dans rintention de lui faire des oomplimens de íelicitatioo, et qu'as-
.sez mal avisié pcur ifaire ses complimens sur un événement dont la
fausseté était deja reconnue par les personnes serisées, 11 a été
assez maladroit contre son gré, contre sa volonté pour offenser le
Kol. tUfficio de 1'5 de Maio de 3 817.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 859
deveriam os governos fortes manifestar para favorecerem
aspirações imperialistas de potencias menores e particular-
mente de potencias americanas.
As questões de etiqueta, que tão grande papel desempe-
nham na vida diplomática, contribuiam também muito para
o mau humor dos agentes acreditados no Rio de Janeiro,
que uniformemente se queixavam das faltas de attenção de
que eram victimas da parte do governo, sem se recordarem
das suas próprias culpas, porventura mais graves e de que
era responsável o seu commum snobismo. O embaixador
extraordinário da Áustria, conde de Eltz, esse a quem o
Rei, aliás sem enthusiasmo algum e apoz exigir d'elle uma
memoria sobre o assumpto, emprestou 6o contos com que
prover aos seus gastos e aos das duas fragatas do acompanha-
mento da Princeza Real e salvar-se das garras dos agiotas,
nem uma só festa dera em honra da corte onde fora espe-
cialmente acreditado n'uma tão faustosa occasião. Nas expres-
sões de Maler, o embaixador Eltz vivia incógnito, dei-
tando-se com as gallinhas, não visitando nem recebendo pes-
soa alguma, de sorte que a sua comitiva era convidada para
as reuniões e que ao chefe o punham de lado, como si não
existisse. ( i )
Por vezes mesmo as desattenções officiaes contra que
clamavam os diplomatas, não passavam de meras ninharias.
(1) o conde de Eltz, o barão de Hugel e o príncipe Frede-
rico de la Tour e Taxis partiram a òi de Maio de 1818 em navios
austríacos, seguindo ao mesmo tempo na nau portugueza São 8e-
hastião as damas da corte de Vienna que tinham acompanhado ao
Rio a Archiduqueza. A bordo d'esta nau achava-se como aspirante
D. Luiz Maria da Camará, mancebo de 27 annos, da casa dos con-
des da Ribeira Grande, nomeado conselheiro da embaixada em Pa-
riz e áe quem Maler escrevia (Officio de 6 de Dezembro de 18.1 S)
ser destituído de conhecimentos e não parecer muito desejoso de
adquiril-os, podendo-se adiantar que seguirá machinalmente sua
nova carreira como seguia o movimento que outros impriuiiam á
navegação do seu navio.
860 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Maler fazia para Pariz quasi um negocio de Estado do
facto de Bezerra assignar a 24 de Junho uma circular rela-
tiva ao adiamento da funcção de grande gala pelo santo do
nome do Rei, quando só a 25 foi feita a communicação offi-
cial da sua entrada para o gabinete. Un homme inconnu
chama-o indignado o consul-encarregado de negócios, ajun-
tando: *'Je trouve, Monseigneur, que le debut de Mr. Be-
zerra dans son lit n'est pas brillant, mais comme je ne con-
nais la politique chinoise moderne que par Tambassade de
lord Amherst, je trouve toujours la copie bien au dessous
de Toriginal".
O juizo que, pessoalmente, Maler e sem duvida os seus
coUegas formavam de Balk-Poleff era comtudo de natureza
a contrariar toda a sua intencional parcialidade na defeza
das regalias e vaidades diplomáticas, (i) "Je n'ay jamais
voulu me lier avcc Mr. de Balk malgré ses avances, escrevia
Maler. J'ay cru devoir m'en tenir avec lui a de simples de-
voirs de politesse car je voyais dans nos caracteres trop peu
d'analogic." E n'outra occasião admitte sem ambages que
"Mr. de Balk n'avait rien fait personellement qui put lui
mériter un accueil empressé, il avait debute avec imprudence,
avec légereté et avec beaucoup d'indiscretion."
O incidente — affaire désagréable en toiít sens, segundo
o caracteriza a linguagem diplomática do tempo — deriva sua
gravidade e interesse da forma que assumio, pois que no
fundo todo elle se cifra n'uma rixa entre o Ministro de Es-
(1) je ne puis m' empêcher de demandor ce que de-
viendraiejit et la nature respectable par elle mênie des fonctions di
plomatiques et tout ce qui se rattaclie a la dignité Representativo
des Souverains dans une Cour étrangere, s*il n'était point permis de
protester avec modération, avec noblesse contre ce qu'ils pensent
avoir été négligé a leur egard, afin de constatar qu'un parei! exemple
ne puisse tii*er a consequence et ne puisse servir de regle a ravccJ"."'
(Officio de 20 de Maio de 1817).
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 861
trangeiros, contra quem Balk-Poleff, Villalba e Mollerus
tinham organizado um triumvirato, e o representante russo.
A' desavença conservou-se alheio o Rei até o momento em
que o diplomata quiz inhabilmente insistir em lançar as
culpas todas sobre o Ministro e destacar a pessoa do sobe-
rano, declaradamente para exaltal-a, n'uma irresponsabi-
lidade quasi insultuosa pois que implicava da parte do mo-
narcha ignorância dos negócios públicos em andamento, e
a admissão de abusos de grave caracter internacional a que
se não extendia plenamente sua auctoridade, da qual era elle
muito cioso. Apenas n'um regimen constitucional é licito
responsabilizar o ministro e isolar o Rei. Contra Balk-
Polcff pesoalmentc, Dom João nada tinha até então ou nada
queria apparentar, tanto que acolheu perfeitamente a inter-
venção bastante descabida e desgraciosa do encarregado de
negócios da Hespanha na questão, e não se mostrou resentido
com as primeiras incorrecções do embaixador extraordinário,
que as foi, porém, accumulando.
**Le Roi naturellement bon, escrevia Maler a Riche-
lieu, se preta sans violence á accorder ce quon lui deman-
dait, (i) il a avoué même qu'il était venu cn ville un jour
dans la croyance que les ordres avait été données en consé-
quence, mais que le Comte da Barca avait oublié de les
faire expédier; et c'est que la tactique de celui-ci était moins
conciliante; il a cherché a retarder la réception de Mr. de
Balk pour se donner le temps de recevoir une réponse aux
plaintes que dés le móis d'Octobre il avait adressées á Pe-
tcrsbourg, et pour peu qu'il eút vu le moindre jour au bon
accueil de ses plaintes, il se croyait assez en force pour ne- le
(1) Refere-so Maler íl domorada audiência para entrega da
credencial de embaixador, peia qual se empenhou confidencialmente
Villalba.
■362 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
point admettre. Cependant le ii Mai ayant reçu les ordres
du Roi, Mr. da Barca envoya chercher Mr. Swertchkoff,
Conseiller de légatíon russe, jeune homme que frequentait
três intimement sa maison, et qui par cela même n'est pas
bien vu de Mr. de Balk, et il le chargea de demander
a celui-ci si Taudience pouvait lui convenir dans la journée
du 13. Mr. de Balk reçut aussi mal le messager que le
message, crut le regarder comme non avenu, et en a fait
plus tard un des articles de sa protestation." ( i )
Barca queria visivelmente desenvincilhar-se de um per-
sonagem antipathico e importuno e tratou-o em varias oc-
casiões com menos caso, quando, por exemplo, só á ultima
hora e á instancia reiterada do diplomata, lhe remetteu o
indispensável ceremonial solicitado quasi dous mezes antes.
Na occorrencia do faustissimo 13 de Maio lhe não cabe,
entretanto, ao Ministro de Estrangeiros, culpa proposital,
delia o ísentanido o próprio Maler (2). A' recepção do
embaixador, que se seguio á audiência real — na qual se
refere que Balk-Poleff fallou muito respeitosamente á Rainha,
de cabeça descoberta — é que nenhuma das pessoas gradas da
corte compareceu, nem mandou sequer um cartão.
Esta circumstancia indica assaz a hostilidade que contra
o diplomata havia, acirrada de certo pelo conde da Barca
e a que ainda então continuava naturalmente de algum modo
alheio o Rei. A prova d'isto está em que na audiência parti-
cular de São Christovão, na noite de 20, o monarcha não fez
(1) Ofíicio cit. de 29 de Maio de 1817.
(.2) "€ela s'est passe sous m'es yeux, nie trouvant dans Tan-
tichambre du Roi, avec S. M., la famille royale et leur Cour. Je
crois devoir faire sentir que ce n'est point du tout une pieoe qu'on
ait voulu faire a Mr. de Balis, ce n'a été que la conséquence natu-
relle de rinsouciance, 'du peu d'êgard c|u'ion a 'généralement pour
oui Que ce soit." (Officio cit. de 29 de Maio de 1817).
DOM JOÃO VI NO BRAZIL g63
allusão ao forte desagrado de que foi expressão a nota de 21
(o que ainda se pode explicar por não haver tido até áquella
hora conhecimento do protesto de Balk-Poleff dirigido a 18 e
recebido, pelo que se disse, no próprio dia 20, á noite) e não
tomou mesmo a principio muito ao trágico o famoso desacato
de que Barca tirou tão grande partido. O positivo é que o
Rei Dom João recebeu, logo em seguida ao embaixador, uma
pessoa tão de sua privança como João Paulo Bezerra, " et
Mr. Bezerra dit que d'aprés ce que le Roi lui a témoigçié il
ne paraissait pas être três satisfait de Mr. Balk, mais qu'il
ne paraissait pas non plus aussi ofEensé qu'il Ta manifeste ".
Si Bezerra não falkva assim por opposição a Barca,
teve este, ao que se vê, artes para persuadir o monarcha de
que a opportunidade era excellente de livrar-se a corte do
Rio do incommodo e atrevido diplomata, por um modus fa-
ciendi corrente, mas que Maler entendeu todavia assim cri-
ticar: ** Qu'il me soit permis en terminant ce rapport d'avan-
cer mon opinion particuliére. La Cour de Russie avait fait un
três mauvais choix, en nommant Mr. de Balk a des fonctions
pour lesquelles il n'a pas la moindre bonne disposition. En
voulant patienter et y mettre Tesprit de conciliation toujours
convenable rien n'était plus aisé que de le faire rappeller, et
três certainement S. M. I. n'aurait pu sV refuser; au lieu
de cela Mr. le Comte de la Barca s'est emporté mal a propôs
et a encore eu la maladresse de présenter lui même ce démélé
par ses Communications, sous la face la moins favorable, de
maniére qu'ayant raison dans le fond, S. M. I. et les autres
Cours pourront bien n'avoir pas a se louer des formes, et
certes je le repete, c'est être assez maladroit avec un adver-
saire tel que Mr. de Balk." (i) ■
(1) Officio cit. de 29 de Maio de 1817.
S64 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O que mais notável parece é que Barca, um mez antes
de morrer, doente como já estava (i ), tivesse tido ainda ener-
gia para tanto. Da questão nada resultou ; a corte russa apre-
ciou no seu justo valor o conflicto levantado pelo seu agente e
bem correspondido pelo Ministro portuguez. O ultimo echo
do incidente encontra-se no officio de Maler de 24 de Junho,
em que communica ter-se Balk-Poleff decidido a partir por
aquelle paquete, o que quer dizer que teve de esperar um
mez no Rio de Janeiro. Ao pedido que fez ao encarregado
de negócios da França de um passaporte para si e sua
comitiva, respondeu Maler com a remessa do passaporte para
elle só, por haver sabido que o desastrado diplomata ia partir
acompanhado de um homem " perdu de reputation et criblé
de dettes ".
Mal se houve pois com esse embaixador e todavia Dom
João VI, como era natural, tomava muito ao serio a cathego-
ria da representação diplomática na sua corte e folgava em
extremo com ver embaixadores ao seu lado. A Inglaterra não
lhe queria dar esse gosto emquanto a corte não regressasse
para Lisboa, mas á França, depois da volta de Luxemburgo,
tanto empenho mostrou o Rei que a 9 de Novembro de 18 19
era nomeado embaixador no Brazil o general marquez de
Saint-Simon, o qual, segundo o ministro de estrangeiros
Dessolles participava ao seu collega da marinha barão Portal,
devia seguir em navio de guerra.
Uma das razões, e não a menor, da deliberação fran-
ceza foi que, devendo-se renovar em 1820 o tratado anglo-
(1) Em 1815, dous annos antes d'este episodio, uma das car-
tas de Marrocos dava Barca sem voz e sacramentado, informando :
"A sua moléstia he antiga, e está muito aggravada : dizem ser mo-
léstia das entranhas : eu nelle não vejo senão inchação e tremulen-
cia ; e S. A. 11. disse a minha vista que elle já não podia assignar..."
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 865
luzo de i8io, que os Estados Unidos guerreavam de fora
e dentro da praça Palmella atacava, o ensejo parecia asado
para obterem outras nações algumas das vantagens com-
merciaes exclusivamente attribuidas aos Inglezes.
Outra razão importante foi que, parecendo destinada
a vencer a rebellião das colónias hespanholas, não seria de-
sarrazoado ir tomando posição e, sem dar propriamente
mostras d'isto muito evidentes, estabelecer um posto de ob-
servação donde eventualmente se pudesse entrar em relações
com aquelles paizes emancipados. Em casos taes é mister
madrugar. Saint-Simon escreveu a propósito um memoran-
dum ( I ) em que lembrava que por se não haver prestado no
Occidente a attenção devida ás primeiras aggressões contra
a Polónia, ficara irremediavelmente compromettido o equili-
brio da Europa, tão laboriosamente preparado no tratado
de Westphalia.
A America Hispano-Portugueza constituía para a Fran-
ça, que estava sendo tão manufactureira quanto agricola, um
mercado de muito futuro, mas força era, na opinião
do embaixador nomeado, começar por luctar contra a pre-
ponderância assumida pelos Inglezes, cuja interesseira ami-
zade não parecia natural que Dom João VI pensasse em sup-
portar indefinidamente, uma vez exhauridas pelos próprios
Inglezes as provincias europcas da monarchia e assente o
throno no Novo Mundo, virgem de semelhantes tutelas,
outras que as das suas metrópoles no regimen colonial, e po-
dendo dispensar-lhes a utilidade. Saint-Simon não compar-
tilhava n'este ponto da idéa do ministro americano Sumter,
de uma diplomacia menos complicada, que tinha o Rei por
amigo cordialíssimo da politica britannica.
(1) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
866 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
Em tudo isto era a idéa intima de Saint-Simon mostrar
a necessidade de rivalizar em brilho a sua embaixada com a
legação ingleza e assim obter maior ajuda de custo. Pen-
sava elle, segundo manifestava, em levar moveis de luxo
para assim expor ao commercio brazileiro o estado da in-
dustria franceza, e fazer-se acompanhar de officiaes práti-
cos e inteliigentes do antigo exercito que percorressem o
Brazil e organizassem uma sua relação topographica, geo-
désica, zoológica, botânica, etc.
Pondo de lado as illusões d'estes planos, Saint-Simon
enganava-se de longe no tocante ás possibilidades do se-
gundo por parte do governo do Rio, que lhe opporia a mais
formal recusa. Mais ou menos por esse tempo, a 17 de Ju-
nho de 181 8, respondia Thomaz António á reiterada soli-
citação de Maler, de uma nova portaria auctorizando o na-
turalista Saint-Hilaire a viajar mais no interior do Brazil,
que apezar das prohibições estabelecidas por inconvenientes
occorridos e derivados da communicação estrangeira com
as capitanias do Pará, Rio Negro e Matto-Grosso, permis-
são era concedida, attendendo-se ao bom comportamento
anterior de Saint-Hilaire, para percorrer as províncias do
Espirito Santo, São Paulo, Goyaz e São Pedro do Sul, mas
não a de Matto Grosso ( i ) .
Com grande pezar de Dom João VI, Saint-Simon não
chegou afinal na divisão naval franceza entrada a 18 de
Agosto de 1820, que o devia transportar, nem veio jamais
ao Brazil, mercê das suas exigências de dinheiro, comquanto
(1) Tão pouco liberal ora do facto a franquia do Brazil quo,
tondo o ministro prussiano, conde de Flemming, pedido liconqa
para visitar Minas Geraes, com um secretario e um botânico, a per-
missão só a elle individualmente foi dada para o Districto Dia-
mantino, com exclusão da sua comitiva, pelo que, despeitado, o di-
plomata i-enunciou á projecteida viagem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 867
tivesse até mandado tomar casa no Rio pelo conde de Ges-
tas, que devia ter sido o seu secretario e ficara no Rio,
avulso, desde o tempo da primeira embaixada. Tampouco
alcançou a capital brazileira o embaixador nomeado em
lugar de Saint-Simon, Hyde de Neuville ; este porém por
motivo do regresso da corte para Lisboa, onde foi residir e
onde desempenhou papel conspícuo nos r^contecimentos polí-
ticos que amarguraram os últimos annos de Dom João VI.
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CAPITULO XXII
O CASAMENTO DO PRÍNCIPE REAL
Entre as negociações diplomáticas do reinado americano
de Dom João VI figura, e avulta entre os seus successos
notáveis, o casamento do Príncipe herdeiro Dom Pedro.
Não, entretanto, que fosse difficil n'essa parte matrimonial
a missão do marquez de Marialva em Vienna. Quando o
embaixador portuguez chegou á capital do Império, os
obstáculos que tinham parecido contrariar o enlace estavam
derrubados, e feito em Novembro de 1816 o ajuste pelo
encarregado de negócios, commendador R. Navarro de
Andrade, persona gratissima á corte austriaca. Não se tra-
tava mais do que pedir solemnemente a mão da Archidu-
queza Carolina Josepha Leopoldina, redigir o tratado de
despcsorio, celebrar os esponsaes por procuração e receber a
futura soberana do Reino Unido de Portugal, Hrazil e
Algarves a bordo da esquadra portugueza que a devi»
transportar para a sua nova pátria.
Essa união era mesmo o fruto de uma velha combina-
ção dynastica, que apenas razões pessoaes ameaçaram um
instante comprom^tter, e a sua realização causou no dizer —
872 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
que nunca seria outro — dos officios de Marialva, grande
satisfacção á casa de Habsburgo-Lorena, na qual abundavam
as Archiduquezas. A nobreza da casa de Bragança, a vasti-
dão e apregoada riqueza do Império Portuguez, a própria
garbosa pessoa do noivo, que já em 1803 dizia a duqueza
de Abrantes ser a única cara bonita n'um concurso monstro
de fealdades em que cabiam os primeiros prémios ao Principe
Regente e a Dona Carlota, faziam pelo prisma palaciano o
consorcio parecer particularmente auspicioso.
Ficou viva entre nós a tradição da extraordinária do-
çura da Imperatriz Leopoldina: sua intelligencia e instru-
cção constam das memorias do tempo. Assim que ficou
decidido seu casamento entrou, com toda a consciência de
uma boa allemã que toma ao serio suas obrigações, a estudar
não só a lingua portugueza, como a historia, geographia,
producções, etc, do paiz que ia adoptar. Especialmente affei-
çoada á mineralogia e á botânica, logo fallou em carregar
para o Rio uma collecção mineralógica e acclimar no Brazil
differentes plantas européas, exultando com a certeza que,
na sua mendacidade cortezã, lhe deu sem titubear Marialva,
de que o Principe Dom Pedro também se dedicava com
fervor a semelhantes estudos.
Dos estudos amáveis a que de preferencia se entregava
o fogoso mancebo não disse palavra o cauteloso embaixador
e foram esses que entristeceram e consumiram a vida da
excellente Archiduqueza que, para afastal-os, nem em si
possuía o recurso da formosura. O próprio Marialva, com
todo o seu cavalheirismo, não ousava referir-se á sua belleza :
limitava-se a escrever que " em sua presença resplandece a
soberania a par da mais rara bondade" (i).
(1) Archivo do Ministério das Relações Exteriores.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 873
Esta foi, aliás, a impressão geral no Rio, estampada
n'uma das cartas de Marrocos: (i) *'A Serenissima Senhora
D. Carolina Icm agradado em extremo a todos ; mui discreta,^
desembaraçada e communicavel ; falia, além de sua lingua
pátria, o Francez, Inglez e Italiano; alguns conhecimentos
de Bellas .Lettras, e não menos de botânica, alem daquellas
prendas que já são próprias em huma Senhora, em que dizem
ser eminente: mui fértil na conversação, e mui aguda em res-
postas: mestra na arte de agradar e fazer-se estimável; e
para ser mais notável, até tem medo de trovoadas. Na Ilha
da Madeira demorou-se trez dias donde trouxe grande quan-
tidade de macacos, papagaios, etc. . ."
Outros encargos trazia, comtudo, para Vienna, o em-
baixador de Portugal. Trazia a missão de promover outros
enlaces entre as duas casas reinantes, casando-se o Principe
Imperial d'Austria cem a Infanta Isabel Maria, e o Grão
Duque da Toscana, irmão do Imperador e que em proveito
d 'este se privara da sua noiva, uma Princeza da Baviera,
com a Princeza Maria Thereza. A corte portugueza pro-
curava desforra do mallogro do projecto matrimonial com a
Casa de P>ança, que tanto a magoara que Luxemburgo at-
tribue á má vontade d'ahi proveniente o nenhum êxito da
sua missão. "On a montré beaucoup de jalousie et même un
peu d'humeur en apprenant Talliance que vient de former
Mgr. le Duc de Berry. J'ai eu beaucoup de peine a adoucir
ces regrets, et j'en retrouve souvent les traces dans mes
discussions" (2).
Da segunda das uniões confiadas á diplomacia de Ma-
rialva parece quasi se não haver tratado. A primeira, porém,
(1) Carta ao Pai do 12 ele Novembro de 1817.
(2) Officio de 30 de Julho de 181G.
874 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
acha-se repetidamente mencionada na correspondência offi-
cial do marquez estribeiro-mór. Frustrou-se afinal, segundo
a versão dada, porque o physico rachitico e mentalidade
apoucada do Príncipe dissuadiram o Imperador de apres-
sar qualquer consorcio, para decidir do qual precisaria
também receber as informações que sobre a Infanta lhe
devia mandar sua filha, ou o novo representante austriaco,
ou mais provavelmente alguém da comitiva da Archidu-
queza, mais chegado ao circulo intimo da corte e officiosa-
mente incumbido d'essa missãosinha confidencial e deli-
cada.
Espalhou-se depois o boato do consorcio de Dona Isa-
bel Maria com o irmão do herdeiro da coroa austriaca, mas
o barão de Neveu, encarregado de negócios d'Austria, disse
a Maler (i) estar persuadido de que "pour le moment ce
ne pouvait être qu'un désir manifeste par la Princesse Léo-
poldine et rien de plus" (2).
Os encargos essencialmente políticos dados a Marialva,
esses eram dos mais importantes para a monarchia portu-
gueza. Foi 1816 o anno das mais espinhosas negociações re-
lativas a JVIontevidéo, o período agudo nas relações entre
as cortes de Madrid e do Rio de Janeiro por motivo da
occupação militar da margem oriental do Rio da Prata. Sa-
(1) Officio de 10 d(í Novembro de 1817.
(2) Neveu, prematuramente falleeido, foi quem esteve para
oasai' no Rio de .Janeiro, segundo inToi-ma Marroeos na sua carta
de 1.'4 de Fevereiro de 1818 : "Consta n'esta Corte estar justo o
casamento da filiia do Visconde do Rio 'Secco com o Barrão de iNeveu,
Austriaco, e Consellieiro de Eml)aixada, que veio na occasião do
transpox-te de S. A. R. a 'Sereníssima Sna. D. Carolina. O Visconde ao
principio repugnou fiquelle ajuste : mas S. Magestade llie mostrou
quanto lhe deveria ser homroso aiquelle e-nlace >de sua íilba Com o
dito fidalgo, Primo do Príncipe de Metternich. Ignoro se o negocio
virá a effectuar-se, mas sei que o .dito iBarão todos os dias se apre-
senta com o maior explendor e apparato em casa do Visconde, para
fazer corte íi menina."
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 875
bemos que a Inglaterra quasi abandonara seu antigo alliado,
proclamando retirar-lhe a garantia da integridade territorial,
sobretudo porque Dom João VI se obstinava em não deixar
o Brazil. Fazia-se sobretudo mister achar um contrapeso
para o auxilio que a Rússia estava prestando á Hespanha,
ameaçando transformal-o de moral em material: o que pa-
recia tanto mais provável quanto não era tal apoio desinte-
ressado, dictado apenas pelos principios da legitimidade e da
indissolubilidade dos laços que prendem os povos aos seus
Soberanos.
Affirma-se — e Marialva reproduz o consta — que a
Hespanha promettera á Rússia consentir na occupação mi-
litar, pelo Império, de parte da ilha de Minorca. Em vista
dos designios constantes nutridos pelo governo de São Pe-
tersburgo contra a Porta, não deixava de ser valioso o dispor
assim a Rússia de um porto no Mediterrâneo, onde lhe
fosse dado reunir livremente as suas esquadras e possuir
um ponto de refugio, senão uma base de operações. O re-
ceio de Marialva, de que a expedição hespanhola de recon-
quista do Prata levasse um forte contingente russo, basea-
va-se não só n'esta consideração como nas inclinações belli-
cas do Czar, a quem, mau grado o mysticismo, facilmente
seduzia quanto se referisse a guerras, e também no facto de
existir um numerosissimo e experimentado exercito russo,
desoccupado com a paz da Europa e naturalmente ancioso
de ir pelejar e pilhar "em hum paiz cujo clima e riqueza são
tão exaltados na Europa" (i).
Não se havendo ainda por esse tempo verificado a al-
teração nas disposições britannicas que o talento diploma-
(1) Officio de Marialva a Aguiar do 8 de Pevereiro de 1.S17.
Maço de papeis referentes ao casamento do Principo Real, no Arch.
do Min. das liei. Ext.
D. J. — 55
876 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tico de Palmella, ageitando as circumstancias, logrou obter,
a mediação austriaca no caso de Montevideo afigurava-se
á corte portugueza mais favorável do que a ingleza, julgada
até n'esse momento parcial á Hespanha. Metternich não se
dispunha (nem lh'o seria consentido) a intervir só na con-
tenda aberta entre as duas cortes ibero-americanas : a Europa
não desistira dos seus direitos de tutela sobre o Novo Mundo.
Entretanto dava o Chanceller arrhas da sua dedicação á
dynastia de Bragança informando o embaixador portuguez
de quanto occorria e chegava ao seu conhecimento sobre o
assumpto, e não hesitou mesmo, antes da partida de Marialva
para Pariz, onde conjunctamente com Palmella ia proseguir
outras negociações, em expedir ao representante austriaco
na França, barão de Vincent, ordens muito positivas para
proteger Portugal.
Logrou assim o marquez estribeiro-mór cumprir suas
instrucções politicas, agindo aliás de perfeita conformidade
com as vistas claras e seguras do seu amigo e collega de
Londres, de quem Metternich formava o mais elevado con-
ceito (i), declarando ao embaixador de Dom João VI não
(1) Também o governo americano, segundo se collige dos
despachos de "Washington, especialmente dos de John Quincy Adams,
que em 1814 fora a Gand negociar a paz com a Inglaterra e culti-
vava suas amizades européas, tinlia grande confiança no caracter
e habilitações de Palmella, almejando pela vinda d'elle para o Rio
a occupar sua pasta, afim de ter o representante dos Estados Unidos
uma pessoa ãe intelligencia desassombrada e vontade firme com
quem tratar e encaminhar os negócios de mutuo interesse, taes como
relações commerciaes, ligação continental americana etc. Em 1819
foi nomeado para substituir Sumter um antigo funccionario do De-
partamento d'Estado, John Graham, que na qualidade de commissa-
rio americano tinha anteriormente viajado na Argentina e no Chile
para verificar o estado das cousas e lormular representações contra
as praticas de pirataria, das quaes não eram de resto os Estados
Tnidos muito menos culpados. Graham pouco poude demorar-se no
Rio. Obtendo licença por doente em Maio de 1820, falleceu na sua
pátria aos 31 de Julho do mesmo anno. A legação ficara a cargo
do secretario John J. Appleton.
DOM JOÃO VI NO BR\ZIL 877
duvidar do feliz resultado das negociações de Pariz relati-
vas ao Prata: "pois que por huma parte a nossa causa, além
de ser justa, era manejada por huma pessoa tão hábil, como
sem duvida o era o Conde de Palmella; e que por outra
parte tinhamos também a nosso favor a impericia e o orgu-
lho do Plenipotenciário Hespanhol, que indispunha o animo
de alguns dos medianeiros a ser-lhe propicio em pretençoens
já por si «mesmas tão pouco acertadas" (i).
O futuro de Portugal, cuja conquista a Hespanha ru-
minava emprehender — pelo menos esta era a impressão
geral — ficaria pois, á falta da garantia britannica, repou-
sando sobre o prestigio da chancellaria e da dynastia aus-
tríacas, empenhadas na preservação de uma casa real, tão
proximamente parente quanto era a de Bragança, em sua
completa auctoridade.
Outra prova de como se achavam entrelaçados os fios
da diplomacia, é que mesmo na sua agradável embaixada de
Vienna, teve o marquez estribeiro-mór que se occupar, como
vimos, da questão da Guyana, cuja devolução o duque de
Richelieu queria a todo o transe apressar, influindo sobre
o negociador portuguez em Pariz por intermédio de Ma-
rialva ou mesmo deslocando as negociações para a capital
austríaca.
Desde começo comprehendera o governo francez perfei-
tamente que a inclusão um tanto arbitraria da restituição
da Guyana no tratado de paz de 30 de Maio de 1814 era
apenas o pretexto para não querer ratifical-o o Principe Re-
gente, pois que estando accordada a restituição entre Portu-
gal e sua alliada, tal inclusão não podia na verdade ferir nem
humilhar o governo do Rio. Depois, em face dos compro-
(1) Officio do Marialva a liozorra, do 21 do Fovereiro do 1S18.
878 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
missos tomados, outro não poude ser o desenlace da ques-
tão senão a restituição d'aquella conquista das armas por-
tuguezas (i), que a indrfferença da Inglaterra em 1814
e o constrangimento dos plenipotenciários portuguezes ao
Congresso de Vienna em 181 5 assim tornaram ephemera,
mas que a previsão de Palmella e a tenacidade de Brito
souberam converter pelo menos n'um ganho positivo qual
o da delimitação ao sabor das aspirações portuguezas.
As satisfacções de vaidade, pessoal e patriótica ou mais
precisamente dynastica, teriam amplamente consolado o em-
baixador portuguez de quaesquer semsaborias politicas e di-
plomáticas, quando por acaso as houvesse contado a sua mis-
são. As ordens do Rio mandavam fazer figura, gastar muito
para parecer bem, e a Marialva seria licito escrever com
justo desvanecimento que "ainda se não havia visto em
(1) Hippolyto não deixava, entretanto, em numero apoz nu-
mero do Correio Braziliensc, de censurar a entrega incondicional de
Cayenna, considerando-a um erro por todos os motivos e especial-
mente :
l.í? porque a colónia constituía a melhor garantia das reclama-
ções particulares que á França apresentava Tortugal, subindo a 12
milhões de trancos, independentes das despezas de conquista e con-
servação da referida possessão ;
2.9 porque a contiguidade territorial do Brazil a fazia peri-
gosa por causa dos corsários que facilmente d'alli velejavam a in-
terceptar o commercio portuguez e contra os quaes o tratado de de-
volução nenhuma providencia estipulou ;
3.9 porque estando o governo da Restauração ■empenhado em
afastar da França os officiaes affeiçoados ao bonapartismo, pode-
inam quaesquer d'elles, por tal motivo nomea-dos para a Guyana, de-
clarar independente a colónia, repetindo-se no Extremo Norte as
agitações, violências e perigos que se estavam dando no Extremo
Sul, com a ameaça implícita a mais de se ligarem esses insurgentes
com os revoltosos hespanhoes e, juntos, apertarem o Brazil n'um
circulo demagógico.
iSi par causa da sua condição turbulenta, a iFrança ficara de-
pois da paz occupada por um exercito internacional, o que justificava
não haver preponderado a mesma consideração com relação à colónia
da Guyana ?
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 879
Víenna huma tão apparatosa embaixada, como aquella que
S. M. me confiou".
Os gastos d'ella, comprehendida a distribuição de jóias
e até de barras de ouro pelo pessoal da corte e do Minis-
tério de Estrangeiros, inclusive o principe de Metternich,
subiram a mais de milhão e meio de francos — exactamente
a francos 1.573.443,80 cêntimos — , despendendo o embai-
xador da sua fazenda, segundo elle próprio referia sem c»m-
tudo solicitar o reembolso, mais de 106 contos. A principal
despeza fora feita com a esplendorosa festa dada no jardim
imperial de Augarten, onde o marquez de Marialva mandou
expressamente construir um salão que depois serviu para
varias festas de caridade e offereceu, apoz as danças, uma
ceia a mais de 400 convidados: os diamantes remettiam-se
naturalmente do Brazil, não entrando nos gastos da em-
baixada senão a sua montagem.
E tão escolhidas e magnificas eram as pedras que, no
dizer da correspondência de Marialva, fizeram pasmar a
corte de Vienna, communicando-lhe um estremecimento o
contacto de toda essa riqueza digna dos contos orientaes.
Eis como n'um bello desenvolvimento de estylo cortezão, des-
creve o embaixador ( i ) a apresentação á Archiduqueza do
retrato de Dom Pedro, n'um medalhão cercado de diamantes
da mais pura agua: " Ser-me-hia diffícil expressar a
V. Ex. o jubilo de S. A. I. vendo o Retrato de Seu Augusto
Futuro Espozo: immediatamente o poz ao peito, e nessa
occasião lhe ouvi as mais lisongeiras expressões sobre a feli-
(1) Officio a Barca de 8 de Abril de 1817.
88Q DOM JOÃO VI NO BRAZIL
cidade que tão alto e bem acertado consorcio lhe fazia es-
perar. Por extremo agradou á Serenissima Senhora Archi-
duqueza a physionomia de S. A. o Principe Real, dizendo-
me a mesma Senhora que muito coincidião as feiçoens que
observava naquelle Retrato com a Idéa que ella formava das
virtudes moraes possuidas pelo Augusto original delias. Sem
duvida foy grande a impressão que fez no animo de S. A. I.
a magnificência da cercadura que guarnecia o Retrato; e
ainda que a Serenissima Senhora Archiduqueza mais atten-
desse, e sem affectação, á imagem do seu Real futuro espozo,
do que ao riquissimo ornato que a adornava, não deichou
comtudo de me expressar o quanto a enchia de satisfacção e
reconhecimento hum tão magnifico presente; porem a cama-
reira-mór da mesma Senhora e o seu mordomo-mór, que se
achavão prezentes, estavão como surprendidos de ver a bel-
leza daquella jóia, asseverando-me que jamais se tinha visto
aqui, nem mesmo se havia formado idéa de tal riqueza. O
Principe de Metternich a quem depois mostrei aquelle pre-
cioso donativo, me observava que só nas fabulozas chronicas
orientaes he que se poderia encontrar a descripção de algum
objecto análogo, que lhe fosse comparado."
No acto do casamento, que se celebrou com a ostenta-
ção habitual ás cerimonias da corte austriaca no dia 13 de
Maio, natalicio de Dom João VI, representou o noivo o
Archiduque Carlos, irmão do Imperador, a quem o embai-
xador portuguez entregara dous dias antes, com toda a so-
lemnidade, a procuração do Principe Dom Pedro. A 2 de
Junho partiam a noiva e sua comitiva para Florença, onde
chegaram a 14, afim de aguardarem junto ao Grão Duque
da Toscana a chegada a Liorne da esquadra portugueza que,
à
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 881
vinda de Lisboa, devia transportar ao Brazil a sua nova
Princeza ( i ) . No caminho tiveram a noticia do levanta-
mento de Pernambuco, a qual, segundo communicava Ma-
rialva, só f€Z augmentar a anciã da Princeza de reunir-se á
familia de adopção para compartilhar das amarguras e pro-
vações do momento revolucionário. Nem o espectro de Maria
Antonieta, sua tia, demoveu um instante a Archiduqueza
Leopoldina do cumprimento d'esse régio dever, só involunta-
riamente adiado.
Escrevia o marquez estribeiro-mór para o Rio de Ja-
neiro que a ter de dar-se, por motivo da rebellião, maior
tardança do que a já occasionada pela chegada das naus, pre-
feria muito ver a Princeza em Florença, corte aliás austriaca
e onde se achavam, com o fim de acompanhal-a nos últimos
dias de residência européa, suas duas irmãs, a Duqueza
de Parma ( Imperatriz Maria Luiza ) e a Princeza de
Salerno. Em Vienna havia o grave inconveniente de estar
o governo britannico — empenhado sempre em trazer a
corte portugueza de novo para Lisboa e singularmente
ajudado no seu intento pela sedição de Pernambuco e
pela conspiração de Gomes Freire, ambas em 1817 — in-
trigando para que a Princeza Leopoldina permanecesse na
Áustria ou pelo menos, em vez de dirigir-se para o Brazil,
se dirigisse para Portugal afim de a'hi esperar o regresso in-
evitável da familia real em cujo seio entrara.
íl) As naus Dom João VI o São Sebastião partiram do Lis-
boa a O de uTulTio t« clipgaram a Liorne a 2G. lA 12 ide Agosto verifi-
cou-se a entrega e a lo o embarque, singrando a frota a 15. A de-
mora foi devida á difficuldade que experimentara a Regência por-
tugueza em reunir navios adequados a esse propósito, tendo tido
que distraliir naus para defender a costa luzitana e as aguas dos
a reli i pélagos africanos dos insultos dos» corsários americanos com
bandeira de Artigas, o mandar reforços marítimos para o bloqueio
de Peraambuco.
882 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
As razões sentimentaes eram obvias e bastantes para o
coração paternal do Imperador Francisco. Junto a Metter-
nich, cujas boas disposições para com o governo portuguez
o consorcio da Archiduqueza activara, passando o poderoso
Chanceller, segundo refere Marialva, a achar muito justas
as razões da occupação de Montevideo, e injustificáveis as
desconfianças do Rei Catholico (i) era necessário ao em-
baixador britannico fazer valer as razões politicas. Adduzia
por isso que o estado de agitação demagógica do Brazil, e a
demagogia era o terror constante de Metternich, não acon-
selhava a ida de uma Archiduqueza educada na mais aristo-
crática das cortes; sendo que, pelo contrario, sua apparição
em Lisboa teria o condão de contentar os Portuguezes, ancio-
sos por abrigarem outra vez a sua velha corte, e de desvane-
cer os enredos hespanhoes tendentes á encorporação do Reino
e consequente unificação peninsular.
Metternich mostrou-se meio abalado com as razões
invocadas, mas finalmente recusou a Áustria entrar no jogo
da Inglaterra, e o próprio Chanceller foi a Liorne effectuar
a entrega da Archiduqueza ao marquez de Castello Melhor,
commissario especial de Dom João VI — que para tal fim
embarcara na resumida esquadra da Regência juntamente
(1) Opinava o publicista Gentz, confidente de Metternicli e a
soldo muito provavelmente do governo portuguez, que as tropas
portuguezas tinham avançado até a fronteira natural e lógica do
Brazil quando o território oriental se achava verdadeira res imlUus,
presa apenas da desordem e da anarchia. as boas disposições aus-
tríacas fizeram naturalmente recrudescer a mA vontade russa para
com Portugal. Jíi a esse tempo existia o conflicto latente nos Bal-
kans entre Áustria e Rússia, escrevendo A. de Saldanha da Gama
de São Petersburgo : " Estes dous govemos medem-se e se
cbservão mutuamente debaixo das formas da mais estreita amizade :
porem logo que huma occasião se offereça, pareceme impossível que
a política os não obrigue a seguir differeaites interesses." (Carta de
26 de Maio — 7 de Junho de 1817) .
DOM JOÃO VI NO BRAZXL 883
com o conde da Louzã, mordomo-mór da Princeza, e o
conde de Penafiel, seu veador.
Na serenata do palácio de São Christovão, por occasião
do casamento no Rio, o próprio Rei referiu a Maler (i)
quanto trabalhara o embaixador britannico em Vienna para
impedir a vinda da Archiduqueza até ao Brazil; mas que,
instado a respeito, o Imperador d'Austria respondera que
sua filha passara a ser filha do Rei de Portugal, cabendo
pwrtanto a S. M. F. designar-lhe a residência. "Devo ajun-
tar, commentava o agente francez, que o monarcha, apezar
da sua profunda dissimulação, não pode occultar os senti-
mentos de opposiçãò que nutre contra as vistas do gabinete
inglez; tenho frequente ensejo de fazer esta observação."
A continua pressão exercida pelo governo britannico para
que se realizasse uma viagem que a Dom João era antipa-
thica, ao corpo e ao espirito, não podia menos do que exacer-
bar o mau humor régio ao ventilar-se esta questão.
Tinham surgido duvidas sobre a nacionalidade a que
devia pertencer a comitiva da Princeza, preferindo o Im-
perador d'Austria, segundo a pragmática por elle seguida,
que a compuzesse gente portugueza. Havia porém para
isto, entre outras .difficuldades, a da enorme distancia que
separava as duas cortes, uma européa e outra sul-americana,
obstando á rápida deslocação do seu pessoal. Chegou-se
por fim á combinação de ser desde logo portugueza, como
vimos, a parte masculina da casa official da Princeza, e aus-
triaca, até o Rio de Janeiro, a parte feminina, formando-a as
condessas de Kunburg, Sarentheim e Lodron, a primeira
como camareira-mór e as duas outras como damas.
(1) Officio de 10 do Novembro de 1817.
884 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O •embaixador especial, conde de Eltz, incumbido de
apresentar as felicitações do soberano austriaco pela elevação
de Dom João VI ao throno e que, na phrase por vezes cáus-
tica de M.aler, nem encontrou com quem fallar francez no
gabinete do monarcha, que então se compunha do portugue-
zissimo Thomaz António (i), uma vez fallecido Bezerra,
seguio também na São Sebastião, tendo-o precedido a mis-
são ordinária, composta do encarregado de negócios Neveu
(2) com dous secretários e dous camaristas do Imperador.
Além das damas de honor, outras damas do serviço par-
ticular da Princeza, retretas, açafatas, criadas, um capellão,
um bibliothecario, vários serviçaes de libré aboletaram-se nas
naus, todos de nacionalidade austriaca. Os médicos eram
portuguezes, porque a Regência de Lisboa para este fim des-
pachara o scientista Francisco de Mello Franco e o aba-
lizado clinico Bernardino António Gomes. O chefe de co-
sinha, esse exigiu Marialva, com o seu apurado senso de
gastronomo, que fosse austriaco, explicando n'um dos seus
officios que "os cozinheiros que vierão de Lisboa talvez
sejão bons, porem hum jantar feito por elles que me derão
a bordo, tinha péssima cara e peor gosto." E rematava en-
fastiado: ''enfim tenho passado por algumas vergonhas..."
(1) "Ce qu'il y a de cortain, Monscignour, c'ost qiio pavmi
toiítes les plaintes que le Gouvernement Espagnol pourra produire
contre les mesures du Cabinet Brésilien, il ne saurait lui reprochei-
pas méme rintention d' avoir cherché a cajoler les agens des Puis-
sanccs Etrangeres, car il est remarquable qu'un Ambassadeur Ex-
traordinaire d'Autriche vienne au dela de« mers avec une suite aussi
nombreuse qu' éclatante et qu'il ne trouve pas a qui parler d'affai-
res." Felicitava-se por isso Maler (officio de 2 de Janeiro de Í818)
que Arcos tivesse sido nomeado interinamente para os Negócios
Estrangeiros.
(2) Dom .Toão VI gostou muito <le Neveu e nada de Eltz, o
qual de resto já sabemos de que modo entendeu e praticou sua em-
baixada. Seus secretários, "degoutés de la capitale — diz Maler. c
mais ainda d'o Tiver mesquinho do chefe — ont été promener leur
ennui dans la capitainerie de Saint-Paul."
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 885
A embaixada austríaca foi recebida no Rio, ao que reza
a chronica de Maler, com distincções especiaes que não tive-
ram outras missões da mesma cathegoria — a de Luxem-
burgo e muito menos ainda a de Balk-Poleff — sendo o em-
baixador cumprimentado a bordo pelo official maior da
Secretaria de Estrangeiros, e transportado para a sua au-
diência, a qual teve lugar immediatamente no Paço da ci-
dade, n'um coche da Real Casa, com o introductor ao lado e
acompanhando o cortejo os coches de todos os grandes da
corte. No baile dado em honra de Eltz pelo invalido e
quasi agonisante Bezerra, na sua fazenda de Maracanã,
forças de infanteria estavam postadas desde a grade do
parque até a porta de entrada, e piquetes de cavallaria for-
mados pelo caminho.
Foi um periodo de festas consecutivas, que correspon-
deram aos "immensos preparativos" de que fallava Marrocos
nas suas cartas para Lisboa, e em que cada um tinha seu
papel. Na serenata de São Christovão, a 7 de Novembro,
em celebração dos esponsaes, e para a qual refere Marrocos
que se fizeram os ensaios nas salas da Real Bibliotheca, o
Principe Dom Pedro, a Princeza Maria Thereza e a In-
fanta Isabel Maria cantaram successivamente uma arieta, e
os músicos da Real Camará com os da Real Capella exe-
cutaram uma peça dramática composta para a occasião e que
se prolongou até duas horas da manhã. No mesmo mez
offerecia a Rainha Dona Carlota a sua nora um ''esplen-
didissimo e mui delicado jantar", entrando os noivos a ap-
parecer em passeio, "e com estado separado" (i).
Pouco depois (2) communicava ao pai esse assiduo
correspondente filial que "a Serenissima Senhora D. Caro-
(1) ('arta de Marrocos do 25 de Novembro de 1817.
(2) Carta de 31 de Janeiro de 1818.
886 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
lina tem disfructado muito boa saúde, sem estranhar o clima,
nem o seu novo estado, em que com satisfação se sabe ter
já dado a conhecer a sua fecundidade"; ajuntando que "pas-
sêa muito e com aproveitamento, mostrando nestes recreios
não só hum methodo singular, nascido de huma regular
educação, mas o estudo que tem tido em Sciencias Naturaes."
Nas cartas para a familia parece que se mostrava a Ar-
chiduqueza menos ditosa do que a enxergava Marrocos. Sup-
portava mal o clima, tendo com este travado conhecimento
nos começos do verão, e o meio social e sobretudo palaciano
não podia corresponder ao que ella ingenuamente imagi-
nara, mesmo dando desconto á differença de continente. Em
todo caso as illusões conjugaes da Princeza Real ainda du-
ravam quando já tinham soffrido o primeiro e rude golpe
as illusões politicas do seu sogro e Rei, que era na corte
o seu melhor, talvez o seu único amigo.
CAPITULO XXIII
A CULMINÂNCIA DO REINADO
Nenhum resumo mais enthusiastico nem redigido em
mais bella linguagem se poderia tentar da obra de Dom
João VI no Brazil do que a elogiaca oração do académico
Garção Stockler (i), delegado pela Academia Real das
Sciencias de Lisboa para fallar em nome da deputação encar-
regada de felicitar o Principe por occasião da sua exaltação
ao throno. Pronunciou-a Stockler na presença real aos 12 de
Maio de 181 8, no anno das mais pomposas festas de corte
que jamais se fizeram entre nós, anno da culminância do
reinado, quando o fácil esmagamento da revolução pernam-
bucana de 181 7 parecia assegurar para sempre o prestigio da
coroa portugueza na America, e não soprava ainda do velho
Reino abandonado o vento impetuoso da rebeldia de 1820.
Vimos que o movimento republicano do Recife provo-
cara no centro uma espontânea e considerável manifestação
de dedicação dynastica e lealdade monarchica, offerecendo-se
(1) Hist. e Memorias da Acad. Real das Sciencias, Tomo VI,
Parte I.
888 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
numerosos milicianos para irem combater os revoltosos, e
concorrendo no mesmo fim avultadas contribuições pecuniá-
rias. Somente na cidade do Rio ter-se-hiam apresentado
7.000 voluntários e apurado 200 contos, n'um calculo de
Mello Moraes que, á vista da realidade de outras informa-
ções, se me afigura encerrar gente a mais e dinheiro a
menos.
O positivo é que a exhibição, n'aquelle momento, de
amor pelo soberano foi mais do que calorosa, foi delirante.
No theatro, que já começava a ser o lugar capital das de-
monstrações politicas fluminenses, como acontecia em Pariz
durante a Revolução, agitavam-se lenços com o perfil do
Rei e motes de devoção á sua pessoa e ás instituições, dos
quaes se havia fabricado dez mil; cantava-se o hymno es-
cripto e composto para a occasião; acclamava-se estrepito-
samente o governante sagaz que tudo aliás puzera em jogo
para encarecer sua popularidade, apparecendo, mostrando-
se, agitando-se, fazendo gala da sua actividade, elle tão
sedentário, e da sua bonhomia, armando ao effeito com afa-
digar-se muito ao serio para conseguir aquillo que foi quiçá,
nos preparativos pois que a execução lhe escapou, a mais
fina amostra, a mais forte expressão, o mais serio esforço
da nossa moderna historia militar, somente comparável ao
que succedeu ao tempo da guerra do Paraguay.
O próprio Dom João VI devia ter sido o primeiro a sur-
prehender-se do arranco, visto que finamente penetrara
a antipathia dos seus súbditos americanos aos serviços de
guerra : tanto assim que, em conversação com Maler ( i ) ,
manifestou um dia o desejo — que o filho mais tarde con-
verteu em realidade — de mandar vir, para encorporal-os
(,1) Officio do 22 de Setembro do ISlfl.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 889
ao exercito, dous regimentos estrangeiros. Era em merce-
nários suissos, os fieis Suissos do i o de Agosto, que pensava o
Rei, em razão da grande difficuldade que no Brazil offere-
cia o preenchimento dos effectivos militares.
Apezar de moribundo, foi Barca, o suspeito jacobino,
o braço da reacção de que era o monarcha a cabeça; dando
impulso a tudo, ao mesmo tempo que simulava indifferença
pela sublevação e apparentava confiança extrema na esta-
bilidade do throno. "O conde, escrevia Maler, tudo disfarça,
affectando tratar a cousa como um acto de loucura."
Tinha pois sobeja razão o eloquente académico de Por-
tugal quando exclamava no Paço da cidade, reflectindo o
pensar de tantos e alludindo á abertura dos pertos, á ele-
vação do Brazil a Reino, á exclusão da Inquisição, á poli-
tica liberal para com os exploradores scientificos, os artistas
e os colonos, á conquista da Cisplatina e ás promessas offi-
ciaes de abolição do trafico de escravos: "As gerações futuras
admirarão a sabia e liberal politica, com que V. M. fran-
queando o commercio d'esta riquissima porção do Novo
Mundo a todos os povos civilizados, abriu para os seus
habitantes a fonte mais caudal de riqueza e prosperidade: a
justiça com que egualando em tudo e por tudo a sorte de
seus vassallos, nas quatro partes do globo que habitamos, e
elevando o Brazil a dignidade de reino, poz termo á fu-
nesta rivalidade que existia entre os portuguezes america-
nos, e os portuguezes europeus : a prudência com que cerrou
a entrada do novo e ainda mal povoado reino a uma antiga
instituição, que a piedade de um dos seus augustos pre-
decessores havia admittido nos seus dominios da Europa
e da Ásia; mas que sendo olhada com horror pela maior
parte dos governos, e dos homens alumiados, seria um gravis-
890 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
simo obstáculo ao augmento da população, e aos progressos
das luzes e da industria no Brazil Elias admirarão não
menos a bem entendida e generosa liberalidade, com que
V. M. tem pretendido atrair para este vastissimo continente
agricultores e artistas de todas as partes do mundo: a pru-
dência e o vigor com que afugentando de nossas fronteiras
visinhos turbulentos e agitadores, animados de principios in-
compativeis com a tranquillidade interna, procura encerrar
os seus dominios americanos em barreiras naturaes, que jun-
ctamente facilitem a sua defesa, e segurem aos seus vassallos
a fruição socegada dos bens que a natureza liberalizou a
estes fertilissimos paizes : a humanidade e a circum-
specção com que pela gradual e progressiva abolição do com-
mercio da escravatura, vai suavemente substituindo a servos
destituidos de todo o estimulo de emulação e brio, homens
que reconhecendo a vantagem que deve resultar-lhes do
aperfeiçoamento de seus talentos, e do augmento de sua peri-
cia nas artes e mesteres que exercitam, se esforcem por me-
lhorar a sua condição, por meio da applicação e assiduidade
ao trabalho, e concorram assim efficazmente para a publica
felicidade."
Foi este mesmo erudito a pessoa encarregada pelo
conde da Barca de elaborar um projecto de organização da
instrucção publica no Brazil, "quando pareceu necessário
dar-lhe um plano systematico, em virtude do qual os estabe-
lecimentos litterarios e scientificos creados estivessem liga-
dos entre si, dependentes uns dos outros, e subordinados
todos a um só pensamento, a um centro de direcção. Sob a
influencia d'este modo de ver as cousas, propunha Stockler
que uma Sociedade Real das Sciencias e Artes fosse no Rio
I
r)OM JOÃO VI NO BRAZIL 891
de Janeiro o centro único de toda a instrucção publica bra-
zileira" (i).
O Instituto Académico, por alguns denominado Uni-
versidade, que Dom João VI deliberara fundar no Rio com
o donativo do commercio da capital, feito para commemorar
sua acclamação e cujo rendimento devia s€r perpetuamente
applicado a estabelecimentos que promovessem a instrucção
nacional, obedecia ao mesmo ideal de unidade ou centrali-
zação pedagógica (2).
" Todos os descobrimentos novos que á Sociedade ideada
por Stockler fossem devidos, ou para os quaes contribuisse
de algum modo, bem depressa seriam transmittidos aos pro-
fessores respectivos; e o mesmo succederia em quanto aos
descobrimentos feitos em outros paizes, pois que, por hypo-
these, estaria a sociedade em correspondência activa com elles,
e transmittiria depois o que chegasse ao seu conhecimento.
Para a constituição da Sociedade Real, seria possivel attrahir
alguns estrangeiros sábios, que o estado publico da França e
da AUemanha obrigava a expatriarem-se. A instrucção pu-
blica seria dividida em 4 grãos, sendo as respectivas escolas
denominadas pedagogias, institutoSj lyceus e academias e
abrangendo, as primeiras, os conhecimentos que a todos são
necessários, qualquer que seja o seu estado e profissão; as
segundas, o desenvolvimento da maior parte d'estas noções
e os conhecimentos essenciaes aos agricultores, artistas e com-
merciantes; as terceiras, os conhecimentos scientificos que
(1) José Silvestre Ribeiro, Historia dos Estabelecimentos
scientificos etc. Lisboa, 1871-93.
(2) Resava o Aviso respectivo que o Rei mandaria unir fls
cadeiras das sciencias que já existiam na corte "aquellas» que de mais
se houverem de crear, em ordem a completar hum Instituto Acadé-
mico que comprehenda, não s6 o ensino das Sciencias. mas também o
das Bellas Artes, e o da sua appllcação â Industria.'"
D. J. — 56
892 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
devem servir de introducção ao estudo profundo das scien-
cias e de todo o género de erudição; as quartas, finalmente,
o ensino das sciencias, tanto abstractas, como de applicação,
consideradas na sua maior extensão e em todas as suas di-
versas relações com a ordem social, e o estudo das sciencias
moraes e politicas, designadas com a denominação de scien-
cias sociaes" (i).
Diz Ferdinand Denis, o qual esteve no Brazil muito
poucos annos depois do regresso da corte para Lisboa, que o
bello plano pedagógico de Garção Stockler, expressão do
afan reformador e das intenções levantadas que distingui-
ram entre nós esse momento histórico, foi rejeitado pela in-
fluencia das pessoas que pretendiam conservar o Brazil no
estado moral, já que não mais politico, de colónia portugueza,
e ás quaes não convinha tão completa emancipação intelle-
ctual. O Rei não podia arcar em tudo e por tudo co^n o
elemento reaccionário que o cercava: era-lhe mister fazer al-
gumas concessões.
O grau de progresso attingido pelo novo _ Reino sob o
governo de Dom João VI, seu creador, tem que ser, para me-
lhor avaliação, comparativamente calculado e descripto, por-
que não é tanto absoluto como relativo. Confrontado com
o que era dez annos atraz, quando ao Rio de Janeiro chegou
a corte portugueza, o paiz em 1818 offerecia sem a menor
duvida um notável desenvolvimento. A população crescera
com as entradas de fora, além do resultado da natural pro-
gressão.
(1) .T. S. Ribeiro, oh. cit. Nos institutos (25 grfio) ensina-
vam-se princípios de historia natural, chimica, meclianica, agricul-
tura, economia politica, commercio e moral; nos lyceus (39 gráo)
estudavam-se rhetorica, línguas, historia, geographia e hermenêutica.
O condicional seria melhor appl içado aos dous verbos, porque o
plano nunca teve execução.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 893
Calculava-a o conselheiro Velloso de Oliveira na sua
informação de 1819 (i), que devia servir de base á pro-
jectada divisão dos bispados e na qual se propunham sete
provincias ecclesiasticas ou dioceses archiepiscopaes, em
2.697.099 habitantes, excluidos os Índios bravos. Accrescen-
tando-se, como querem, um terço por causa da inexactidão e
deficiência dos mappas coUigidos, sem excessiva diligencia,
n'um tão vasto território, com núcleos de população muito
disseminados e muito refractários a qualquer estatistica,
chega-se ao algarismo de 3.596.132 habitantes civilizados,
e com 800.000 Índios bravos, conta redonda e imaginativa,
se perfaz um total de 4.396.132 habitantes.
Para o Rio somente dava Henderson no mesmo anno
o algarismo de 150.000 habitantes, dous terços dos quaes de
côr, ou melhor de cores (exhibiting every variety of co?n-
plexion). Os brancos contavam entretanto na af fluência da
Europa um contingente fixo, mesmo de Francezes, que são
reconhecidamente os Europeus que menos emigram. N'um
dos seus officios de 181 7 participava Maler a chegada nos
dous últimos navios de 54 súbditos do Rei Christianissimo,
na maioria artifices. A capital tendia assim a embranque-
cer-se.
A immigração em geral cada anno se fazia maior, e
não se cifrava somente nos Suissos relegados á sua colónia
de Nova-Friburgo e nos Ilhéos distribuídos pelo paiz com
provisão de instrumentos agrícolas, ou enraizados nas imme-
diações da capital, supprindo o seu mercado cada vez mais
exigente porque, crescendo o conforto e surgindo o luxo, a
meza tinha fatalmente que se tornar mais variada e esme-
(1) Revista Trimensal, Tomo XXIX, Parte in.
SU DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rada. Abrangia ella crescido numero de outros portuguezes
do Reino e estrangeiros, entre os quaes elementos pouco
desejáveis que a policia arbitraria, quando não abusiva (i),
de Paulo Fernandes Vianna e Vidigal trazia sob a sua ri-
gorosa fiscalização, sobretudo depois do inesperado si bem
que explicável rebentar da revolução de 1817 e da descoberta
de numerosas sociedades secretas (2).
A vida fluminense offerecia toda ella uma apparencia
mais animada e attrahente, tendo perdido bastante do seu
aspecto quasi vegetativo para assumir um caracter intelli-
gente. Luccock, que chegou ao Brazil em 1808 e se retirou
justamente em 181 8, escrevia que deixava a sociedade com
(1) Hippolyto, cujos duendes eram o governo militar das
capitanias e a policia, reprovou em termos acres no Correio o de-
creto de 7 de Novembro de 1812, aliás logo revogado, que man-
dava que nenhum preso por ordem do Intendente Geral podesse ser
solto por qualquer auctoridade : "por mandados, sentenças, ou as-
sentos de visita (como as visitas ás prisões do Regedor das justiças)
sem que antes o mesmo Intendente seja sciente, e o dê por corrente."
Um correspondente anonymo do Correio escrevia porém a este
propósito que o redactor se agitava sem grande motivo, pois que o
decreto não era extraordinário, atroz e cruel como elle acreditava.
Nem podia deixar de ser razoável que se ouvisse a policia sobre a
culpabilidade de um preso íi sua ordem : o contrario seria a anar-
chia da justiça, mandando uma auctoridade prender e outra soltar
a esmo, sem se entenderem. E o corresponaente accrescentava que
no Brazil havia muita liberdade de expi*essão, até nos cafés e bo-
tequins, sem receio de delações, havia mesmo falta de respeito nas
ceremonias religiosas, e âs claras agiam clubs e ajuntamentos, o que
seria incompatível com um regimen de terror. Não tira isto a razão
ao publicista no reclamar legislação mais consentânea na theoria
com os velhos privilégios e as novas aspirações populares.
(2) Funccionavam no Brazil, dependendo porém do Oriente
Luzitano até que José Bonifácio reorganizou a maçonaria nacional,
creando-se o Oriente Brazileiro, tão conspícuo nos tempos da Inde-
pendência. Em Pernambuco havia loja desde 1S09, e no Rio e Bahia
desde a mesma data approximadamente. A loja de Nitherohj- con-
tava como membro influente José Mariano Cavalcanti, cujo papel
na revolução de 1817, si não foi brilhante ou sympathico, foi era
todo caso saliente. Para o juizo de Inconfidência estabelecido para
taes sociedades secretas depois da sedição pernambucana, escolheu-
se o desembargador José Albano Fragoso. (Mello Moraes, iirazil-
Beino e Brazil-Imperio).
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 895
que tratara dotada de muito mais energia individual, de
muito mais espirito de trabalho, de muito mais iniciativa
(pushing). Os interesses particulares obravam e impelliam,
tornando aguda e instante a lucta económica e social onde
d'antes havia apathia.
A paixão pela agricultura, pela industria, pela mine-
ração, por tudo quanto representasse progresso material e
servisse de base á riqueza privada e publica, accendera-se
por forma tal que perdera a noção do meio e chegava pela
ambição a tingir-se de ingenuidade. Assim em 1816, a pro-
pósito do Instituto Académico planejado, se entendia e de-
clarava que os jovens destinados á religião e á magistratura
deveriam possuir "conhecimentos de historia natural, agri-
cultura e artes de que ella depende", sendo os curas obriga-
dos, antes de admittidos aos beneficios, a demonstrar, como
acontecia na Suécia com os pastores lutheranos, sciencia agro-
nómica applicavel ao ensino e aproveitamento dos seus fieis.
Não existia ainda casa regular de instrucção d'essas
matérias agronómicas, mas já alguns conhecimentos techni-
cos se poderiam alcançar na aula de agricultura e botânica
que, a cargo do competente frei Leandro do Sacramento,
começou a funccionar a 13 de Março de 1815. Tinha lugar
o curso, para o qual entravam alumnos ordinários e volun-
tários, que estes não eram obrigados a exames nem a matri-
culas, no Passeio Publico: "e em muitas tardes far-se-hão
digressões pelos montes para estudal-os", dizia o edital que
estabelecia esse "ensino de anatomia, physiologia e classifi-
cação das plantas, princípios e pratica da agricultura para
instrucção dos proprietários de engenhos e fazendas."
896 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Pelo que respeita á protecção em si dos interesses agri-
colas, desde 21 de Janeiro de 1809 um alvará concedera aos
habitantes do Brazil o privilegio de não serem executados na
propriedade dos seus engenhos, fabrica e lavoura e somente
em uma parte dos seus rendimentos.
Para levantar a mineração, muito abandonada desde
que as minas escassearam ou entraram a produzir menos, fez
o governo de Dom João VI administrativamente o possivel.
A carta regia de 12 de Agosto de 181 7 ao governador e ca-
pitão general de Minas Geraes, D. Manoel de Portugal e
Castro, occupava-se, ultima em data de uma serie de provi-
dencias, da formação de sociedades destinadas a promover a
lavra das minas de ouro: "empregando-se os fundos dessas
sociedades, por conta das mesmas, no estabelecimento de
lavras regulares e methodicas, mas debaixo da direcção de
um inspector geral versado em sciencia montanistica e me-
tallurgica, nomeado pelo soberano. As referidas lavras ser-
viriam ao mesmo tempo para instrucção publica, patenteando-
se aos habitantes as grandes vantagens que resultam do me-
thodo scientifico dos trabalhos montanisticos, aproveitando-
se os terrenos inutilizados e melhorando-se os methodos de
mineração."
Si resultou platónica a recommendação e a mineração
continuou em repouso, a culpa foi da falta de capitães, mais
mesmo do que de actividade industrial. Os capitães parti-
culares eram, n'este sentido de disponiveis, á busca de coUo-
cação, nullos no Brazil. Na falta de um commercio extenso
e proveitoso á economia nacional, que estava ainda e con-
tinua em formação, constavam de terras que davam na me-
lhor hypothese um rendimento absorvido pelas escravarias.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 897
sempre a renovarem-se, e pelas exigências crescentes da vida
social n'um meio em transformação.
O governo, por seu lado, não tinha dinheiro supérfluo
( I ) para crear ou fomentar industrias, por mais remunera-
doras que as anticipasse. Suas únicas tentativas n'este campo
foram a fabrica ou fundição do Serro do Frio, mandada
construir á custa da real fazenda pelo intendente geral do
Districto Diamantino, e a fabrica de ferro de Ipanema,
igualmente de iniciativa do conde de Linhares, o qual em
1810, tendo noticia das extraordinárias quantidades de mi-
nério existentes n'aquella localidade paulista, mandou alli
estabelecer mineiros e fundidores suecos.
A manufactura de Ipanema produzia em 181 7 quatro
mil arrobas de ferro annuaes, havendo comtudo a fahrica
soffrido extensões e passado por alterações e modificações
importantes depois de confiada sua gerência ao tenente coro-
nel allemão Varnhagen, que levantou uma fundição pelo
custo de 300.000 cruzados e mandou vir da Allemanha
fundidores para a execução de trabalhos mais delicados.
Spix e Martius, que visitaram São Paulo exactamente
quando estavam terminadas as novas construcções e dado o
novo impulso, relatam que a fabrica nunca rendera quanto
se calculara a principio, opinando uns que não era boa a
qualidade do ferro depois de refinado e fundido, attribuindo
outros o relativo mallogro em parte talvez ás communicações
difficeis e certamente muito á concorrência dos productos
inglezes, tão favorecidos pelo tratado de 18 10.
M) \o Reino de Portugal a falta de recursos chegai\a a
ponfo tal e tanto se avolumara o deficit que, era Í812, para fazer
face As despezas militares, mandava o Principe Regente, entro outras
medidas e vendas que recommendava aos Governadores, alienar bens
livres da Coroa. No Brazil a situação financeira era menos angus-
tiosa mas em extremo acanhada.
898 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Em Minas Geraes pequenas fabricas particulares, le-
vantadas sob a direcção do barão de Eschwege, testemunha-
vam entretanto o custoso despertar industrial do Brazil,
também revelado no melhoramento de estradas, no lança-
mento de pontes, na conducção d'agua potável para os cen-
tros de população, no augmento da tecelagem na mesma
considerável provincia de Minas.
Uma carta regia de 1 6 de Janeiro de 1817 approvava o
estabelecimento da companhia de mineração de ferro de
Cuyabá, dando estatutos para sua regulação, e insinuava
a conveniência de mandar pessoas aprenderem a arte de
fundir nas fabricas de São Paulo e Minas; outrosim recom-
mendava que se perscrutasse a existência de minas de sal na
capitania de Matto Grosso.
Outro assumpto que como sabemos mereceu bastante 3
attenção do governo, foram as communicações fluviaes, as
mais indicadas, as únicas indicadas mesmo n'um paiz de
tão exaggeradas proporções, com um systema hydrographico
perfeito, e quando se não achavam previstas na pratica as es-
tradas de ferro. Procurou-se com empenho ligar por esse meio,
o mais possivel, a costa com o interior, isto é com Goyaz e
Matto Grosso, quer pelo Amazonas e seus af fluentes e sub-
affluentes, quer pelo Tietê e Paraná e d'ahi por differentes
rios mais ou menos navegáveis indo dar no São Lourenço e
Cuyabá.
A carta regia de 5 de Setembro de 181 1, expedida ao
governador e capitão general de Goyaz, sanccionava o
plano de organização de uma sociedade de commercio entre
a referida capitania e a do Pará, e concedia privilégios aos
accionistas. Reportando-se com louvores a tal tentativa,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 899
Hippoh^to propugnava no Correio a idéa de uma capital cen-
tral, perto das cabeceiras dos grandes rios, que se deviam
tornar inteiramente navegáveis, e clamava uma vez mais
por legislação liberal que attrahisse uma immigração es-
trangeira mais proficua e estável do que a meramente com-
posta de negociantes — "cuja pátria são a carteira e o es-
criptorio" (i).
Com vista n'estes resultados práticos arranjaram-se
explorações nacionaes que o governo muito animava, como
animava até certo ponto as missões estrangeiras que acudiam
seduzidas pela novidade e captivadas pelo interesse do paiz.
Algumas das ultimas deixaram nome illustre nos fastos
scientificos : a austríaca e a bavara entre outras, que acom-
panharam a Archiduqueza Leopoldina em 1817, composta
a segunda dos celebres naturalistas Spix e Martius, abran-
gendo a primeira, preparada por Van Schreibers, director do
Museu imperial de historia natural de Vienna, o professor
Mikan, de Praga, encarregado da parte botânica e da en-
tomologia; Pohl, da mineralogia; Natterer, da zoologia;
Ender, pintor paisagista; Buckberger, pintor botânico, e
Schost, horticultor.
Por conta própria mesmo o governo de Dom João VI,
intolerante n'este assumpto só quando se lhe despertava a
desconfiança, subvencionava explorações feitas por estran-
geiros distinctos ou competentes. Assim, por decreto de i de
Julho de 181 5, mandou pensionar dous naturalistas alle-
íl) L ma (las primeiras abertas foi a navegação do Rio Grande
desde Belmonte, que facilitava a communicac;ão da capitania de
Porto Seguro com as do centro, "fazendo-se uma estrada de 55 lé-
guas para diminuir algumas dlfficuldades restantes da navegação",
a qual era custosa por causa das cachoeiras e andava prohibida por
causa dos diamantes de Jequitinhonha.
900 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mães, Freyzen e Sellow, com 400.000 réis annuaes para
estimular seus trabalhos, "com obrigação de apresentarem
n'esta corte no fim de cada uma de suas viagens, não so-
mente a memoria descriptiva d'ellas, mas os exemplares de
todos os objectos que tiverem analysado e colligido, os quaes
serão recebidos no real gabinete, que para este fim me pro-
ponho mandar estabelecer." Assim annunciava o Rei a fun-
dação no Rio de Janeiro do Museu Nacional, que veio a
prestar serviços tão inquestionáveis á nossa historia natural,
anthropologia e ethnographia.
O Jardim Botânico (a principio Real Horto), plan-
tado originariamente para introduzir no Brazil a cultura
de especiarias das índias Orientaes, no lugar do engenho
de Rodrigo de Freitas onde também se montara a fabrica
de pólvora, foi outra creação de Dom João VI cujos resul-
tados scientificos teem sido consideráveis e são inesgotáveis.
Esse jardim que interessava o seu fundador ao ponto de,
segundo se conta, ahi passar dias inteiros, abrigou numero-
sas plantas exóticas e acclimou varias que hoje admiramos
e usufruimos, tendo-se outras perdido por abandono. No nu-
mero, das aproveitadas e das desamparadas, entram a canna
de Cayenna, o chá, a palmeira real — assim chamada por
haver sido plantada pelas regias mãos — o abacate, o olho
de boi e o litchi da China, a camphorelra, o cravo da índia,
a fructa-pão, a noz moscada, o cajá-manga, a fructa do
conde, a pimenta do reino, a carambola, a amoreira, etc (i).
Filiaes do Jardim foram mandadas dispor em Pernam-
buco, Bahia, Minas Geraes e São Paulo, dirigidas, a primeira
(1) Hortiis Fluwinensis, ou Brcre noiicia sohre as plantas
cultivadas vn Jardim Botânico do Rio de Janeiro, por J. Barbosa
Rodrigues. Rio, 1805.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 901
pelo agrónomo francez Paulo Germain, vindo de Cayenna
( I ) , e a ultima pelo suisso João Baptista Badaró.
E' natural que explorações geographicas, cultivo de
sciencias naturaes, experiências agricolas, leituras mais ex-
tensas e folgadas e um feitio de vida mais pratico e des-
afogado redundassem n'uma producção intellectual mais ca-
racteristica e proveitosa do que exclusivamente a de sermões,
paneg>TÍcos, dithyrambos, elegias e discursos académicos.
De facto, si percorrermos o rol das edições da Tj^pographia
Regia de 1808 a 1821, encontraremos, afora as dulcificas,
todavia esclarecidas e progressivas observações commerciaes e
económicas de José da Silva Lisboa (1808-10) e além de
traducções de Voltaire, Bernardin de Saint Pierre e Delille
(1811) auctores muito ao gosto do tempo, dos infalliveis
(1) Por causa do mau estado em que, devido íi longa viagem,
chegaram do Cayenna, plantaram-se em Pernambuco, além das des-
tinadas especialmente á capitania, a mór parte das arvores que iam
para o jardim da corte, no intuito de mais facilmente depois se re-
moverem, com menos perigo de não vingarem.
Paulo Germain era, no dizer do governador Caetano Pinto
que as Notas de Tollenare corroboram, um francez volúvel e sem
grande respeitabilidade para chefe ; ''livre porém do contagio jaco-
binieo e aborrecendo no seu coração o governo de Buonaparte"
O professor de desenho do seminário de Olinda e corypheu da futura
revolução de 1817 — "ecclosiastico de muita probidade e com bas-
tantes luzes de historia natural, que estudou com o Dr. Manoel Ar-
ruda da Camará" — foi pelo governador de Pernambuco encarregado
do dirigir o viveiro das plantas, trabalhando Germain sob suas or-
dens (Officio de Caetano Pinto ao condo do Linhares, de 21 de
Junho do 1811, nos Documentos sobre o Jdrditn Botânico de Olinda,
181Í, 12 e JG, na Rov. do Inst. Arch. e Geog. Pem. n. S7).
Tndo comtudo Germain ao Rio de Janeiro proceder ao plantio
do rosto das arvores para alli do^stinadas, regressou em 1812 a Per-
nambuco, encarregado polo governo da direcção mesmo do horto
croado onde, no dizer de Galvéas (Officio de 11 do Março de 1812)
"semelhante ctiltura deve prosperar por sor sou clima muito análogo
ao de ('ayenna." Do horto tinha entretanto ficado cuidando o padre
João Ril>oiro. que lh'o entregou a 25 de Setembro, constando da sua
rolação existirem no referido Jardim, transplantados ou em viveiro,
300 pés de girofeiro ( cario phi/lhis aromntic), 17 de canelleira (Efifí-
rits cinamomum), 11 arvores de fructa do Conde (anona squamoza),
14 nogueiras de Bencul {artocarpus incisa), xO arvores do pão, etc.
902 DOM JOÃO VI NO BRÂZIL
elogios históricos e orações fiinebres, e do poema Assumpção
da Virgem de frei Francisco de São Carlos (1819), mixto
de religiosidade e pompa rhetorica promissivo do palavroso
romantismo christão: roteiros como o de Silva Belfort, do
Maranhão ao Rio (1810), e o de Oliveira Bastos, de Santa
Maria de Belém pelo rio Tocantins (1811); os escriptos
profissionaes de Vicente Navarro de Andrade ( i ) e Correia
Picanço (2); a íraducção da Álgebra de Lacroix (1812);
(1) Plano de orqanização de uma escola medico-cirurgica
(1812).
(2) Ensaios sohre os perigos das sepulturas dentro das cida-
des e nos seus contornos (1812). Não obstante esta publicação de
uma auctoridade scientifica da côi-te e em posição official, os en-
téricos nas egrejas continuaram até 1830, quando foi formalmente
prohibido inhumar a não ser nos cemitérios, que no emtanto não
foram abertos a grandes distancias da cidade. No tempo de Dom
João VI" havia já cemitério mas para os pobres e os negros, cujos
corpos eram levados aos dous e trez numa rede e sepultados de mis-
tura, altemanao-se na pilha pés e cabeça. Os corpos dos ricos eram
carregados ás pressas, sem grande respeito, para as egrejas, e sa-
cudidos com cal viva nas covas das naves, socando-se por cima a
terra com macetes (Luccok, oh. cit.) Ao cabo de um anno exhuma-
vam-se, para abrir nas sepulturas vagas a que não faltavam candi-
datos, os ossos dos enterrados, que se conservavam amontoados n'um
deposito ou pateo da egreja. Depois de 1816 generalizou-se muito o
costume de construir o que se chamou catacumbas o eram galerias
abertas contíguas aos templos, a exemplo das que então existiam no
Carmo e São Francisco de Paula, exclusivas dos ii-mãos. Igual-
mente era ahi costume tirar no fim do anno a ossada do seu buraco
ou oco murado de tijolo e cal, passando para outra dependência
sagrada dentro de uma urna. A ostentação invadiu este terreno da
morte como invadira os da vida, subindo as urnas de modestas a
sumptuosas e exhibindo na sua piedade pelo morto a abastança da
família.
Os enterros realizavam-se sempre ao lusco-fusco, sendo o
coi-po transportado n'uma padiola forrada de velludo preto reca-
mado de renda de ouro. O cadáver ia descoberto ; diz Debret que com
a cara pintada, o cabello empoado e a testa ornada de flores ou
cinta por uma coroa de metal, o que nem ajudava a emoção nem a
deferência, emprestando ao acto ares de carnaval.
A estada da corte, com suas conhecidas consequências de
desenvolvimento mental, fez melhorar muito isto como tudo mais,
passando a haver, segundo o mesmo Debret, testemunha presen-
cial da transformação, melhor arranjo nos cemitérios, maior decên-
cia nos acompanhamentos fúnebres e respeito mais accentuado pelos
mortos e seus lugares de repouso. Ainda assim, Henderson nas suas
impressões mostrou-se muito escandalizado por ter ouvido proferir,
ou constar-lhe que foram proferidas palavras obscenas n'uma ceri-
monia fúnebre, pelo pai da moça que se baixava á sepultura.
DOM JOÃO VI NO ERAZIL 903
*
a da Mechanica de Francoeur por J. Saturnino da Costa
Pereira (1813) ; a da Physica de Hauy (1813) ; a da Eco-
nomia politica moderna de Herrenschwand ; as elevadas pre-
lecções philosophicas de Silvestre Pinheiro Ferreira (181 3)
(i) ; a Chorographia do padre Ayres do Casal sobre que se
basearam tantas obras estrangeiras em matéria de geogra-
phia brazileira, e as Memorias históricas do Rio de Janeiro
de Monsenhor Pizarro, áridas no estylo mas fecundas com
respeito a documentos e informações (2).
(1) Marrocos, como era veso seu, desfazia das lucubrações do
í^minente ensaísta e tratadista, nos termos seguintes da sua carta
ao pai, de 19 de Maio de 1813 : " aqui também se prega muito,
produzindo-se Planos e Projectos Litterarios, mas ex tanto nihil.
Silvestre Pinlieiro está mottido a Projectista e as suas lições redu-
zem-se a huma mezela scientifioa, que se não sabe o que lie : esta-
mos no tempo das Grammaticas Filosóficas, e o sistema de todas
as Linguas reduzido a huma sô praxe." Tempos depois, em cai-ta
de 23 de Fevereiro de 1816, voltava a occupar-se do assumpto nos
mesmos termos displicentes para o philosopho publicista : "Silvestre
IMnheiro, no tempo em que esteve suspenso de seus Lugares, occupou-
se em ensinar Filosofia por hum methodo mui amplo e genérico,
que abrangia todos os seus ram.os : julgo que suas intensões Lhe sahi-
rão mais difficeis na pratica, do que havia concebido, porque
são Proposições á Franceza. Tem publicado alguns folhetos
de suas Prelecções e na introducção se conhece a verdade do
que digo acima. Não sei se será erro meu em dizer que Silvestre Pi-
nlieiro lie daíqufilles homiens, que tem a habilidade de infundir vene-
ração scientifica ; e inculcando-se corifèo encyclopedico, grangêa hum
l)artido, que ouvem suas palavras soltas, como vozes de oráculo.
Poucas vezes o tenho ouvido fallar, porque até nisso se quer miste-
rizar ; porém na roda, que o segue, quando vem á Livraria, considero
quão fracos somos, quando nos arrasta a opinião! O Padre Joaquim
Damazo (por elle ser seu co-llega Congregado) mo inculca sempre
por superior a todos, nos tempos actuaes, em luzes e conhecimentos ;
e eu, ao contrario vejo nas suas Prelecções impressas Definições e
Theoremas, que por sua ostentação de novidade só me cauzão riso,
ou nojo ; apezar da illustrada Analise, que lhes fazem os Redactores
do Investigador Portuguez, elevando-as ás nuvens "
(2) iNas capitanias foi graduai mas moroso o apparecimento
da imprensa. Em Pernambuco, o primeiro uso d'ella (excepção feita
de um modestissimo ensaio, em 170G, logo abafado pela metrópole)
foi feito pelos revolucionários de 1817 com os typos e prelo que, com
intuitos commerciaes, tinliam sido mandados tir da Inglaterra em
181G pelo negociante do Recife Ricardo Fernandes Catanho, o qual
se aprestava a usar dos mesmos apoz auctorização, dada aos 9 de
Novembro de 1816, pelo marquez de Aguiar com as competentes re-
saivas de licença, revisão e censura. \ demora em funccionar a
iaiprensa fura causa^aa por não haver ainda offielaes de typoigrapliia.
904 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Lítterariamente, porém, nada melhor reflecte essa epo-
cha de remodelação politica e mais ainda social, e de inno-
vação intellectual que, consciente ou instinctiva, representa
para o Brazil e sobretudo para a sua capital a transferencia
da sede da monarchia, do que O Patriota, revista precur-
sora do Panorama de Lisboa, cuja publicação se encetou
em 1813 e onde se encontram conhecimentos úteis, varieda-
des históricas, notas de explorações e trabalhos profissionacs
de botânica, medicina e outras sciencias. O Patriota foi a
revista adequada á sociedade e ao momento histórico de Don\
João VI no seu reinado americano. Correspondeu precisa-
mente á curiosidade de saber que por esse tempo se desdobrou
mercê do levantamento do nivel nacional, e á expansão que
no Brazil tomaram os estudos agricolas, industriaes, hygie-
nicos, chimicos, geographicos e outros d'antes descurados,
como si, na phrase do editor, "a posição physica retardasse a
luz a chegar ao nosso horizonte" (i).
Em Março de 1817 improvisaram-se compositores dous fi-a<ies, um in-
glez e um marujo francez sob a direcção do padre João Ribeiro, sendo
o primeiro trabalho sabido á luz o Preciso dos suvcessos elaborado
pelo Dr. José Luiz de Mendonça.
'Quando triumpliante a restauração, cassQU-se a primitiva licença
pelo infame ahuso commettido com a officina, cujo material se man-
dava fechar e remetter para o Rio. Recolhido todo este mateiúal ao
Trem Real (Arsenal de Guerra), apenas parte foi enviado para a ca-
pital, dous annos depois da rebelliãoi, em virtude de reclamação do ou-
vidor geral da comarca. Com o que ficou, e um prelo de madeira fabri-
cado no próprio Trem, montou Luiz do Rego mais tarde, em ]Março de
1821, uma typographia para vulgarização, exigida pelas novas cir-
cumstancias politicas, de frequentes documentos officiaes, e publica-
ção da Aurora Fernamhucana, folha redigida por seu genro, o depois
famoso estadista portuguez Rodrigo da Fonseca Magalhães (Pereira
da Costa, Estabelecimento e Desoicolvimento da Imprensa em Pernam-
hiico, na Rev. do Inst. Arch. e Geog. Pern. n. 39).
(1) Introducção ao le numero, Janeiro de 1813.
Entre as contribuições ã revista fluminense, originaes ou tradu-
zidas de publicações inglezas e francezas e todas ellas mais de cara-
cter pratico do que de índole puramente litterai'ia, encontram-se me-
morias sobre o plantio do café, o tratamento do anil e da cochonilha,
a cultura do algodoeii'o (da lavra de Arruda Camará), o fabrico do
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 905
A secção restrictamente lítteraria abrangia máximas
do futuro marquez de Maricá, poesias novas ou conserva-
das inéditas de Bocage, Filinto Elysio, Diniz, António Ri-
beiro dos Santos, Silva Alvarenga, Borges de Barros (Pedra
Branca). Si bem que nos pareça assaz repleta do mau gosto
da epocha, com todas suas amplificações rhetoricas e exagge-
ros cortezãos, essa secção era comtudo em demasia reduzida
para o que costuma ser a exigência do publico n'uma terra de
ingenita verbosidade e de intoxicação sentimental.
Seria por isso que durou pouco a publicação, anno e
meio apenas ? O tom geral da revista não podia entretanto
deixar de ser sympathico, pois traduzia, antes a preoccupa-
ção, que com effeito apparecia geral e aguda, de dilatar a
producção e commercio domestico do Brazil, extendendo o
seu povoamento pelo interior, cuja descripção se intentava e
executava de accordo com explorações então recentes. As
capitanias de Goyaz, Matto Grosso, Piauhy e Pará ( í )
urucíi, o modo de refinar o assucar, as plantas medicinaes e as madei-
ras a empregar nas artes, as novas furnallias para coser o assucar
com l)aga(;o inventadas pelo Dr. Manoel Jacintlio de Almeida, o me-
thodo imaginado e praticado no laboratório de António de Araújo
(Barca) para a extracção do óleo de mamona; a descripção de um
alambique existente no mesmo laboratório ; soluções de problemas de
matbematica ; ensaios hydraulicos e hydrographicos ; interessantes
pareceres em resposta a quesitos do Senado da Camará, propostos
aesde 1798, sobre doenças endémicas e epidemicas da capital, razões
que as determinavam e meios de corrigil-as ; papeis que "apodreciam
no esquecimento" como a pratica ou discurso de recepção de Alexan-
dre de Gusmão ao entrar a i;> de Março de 1782 para a Academia de
Historia de Lisboa, praticas de Duarte Ribeiro de Macedo, e a memo-
ria histórica e geographica da descoberta das minas de Cláudio Ma-
noel da Costa ; narrações de viagens como a de São Paulo a Cuyabá ;
derrotas marítimas e roteiros terrestres ; dados topograpliicos e es-
tatísticos sobre as diversas capitanias ; informações sobre povoações
e nações de Índios ; considerações grammaticaes, chimicas e philoso-
phicas de Silvestre Pinheiro Ferreira, e uma longa dissertação minera-
lógica de José Bonifácio de /Vndrada e Silva.
(1) Por Pará entende-se n'este sentido o enorme hinterland
amazonico que da mesma capitania fazia parte, só multo mais tarde
so organizando como província separada.
906 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
attrahiam n'aquelle tempo mais a attenção do que as do lit-
toral, e não tanto pelo ouro que as duas primeiras produ-
ziam em pequena escala, como pelo gado que n'ellas todas
se poderia criar, pelas lavouras que se poderiam propagar nas
suas extensões, pelas culturas que se poderiam ensaiar nos
seus climas.
Dir-se-hia que recuamos d'esta posição, porque é sempre
recuar menosprezar o desenvolvimento dos possiveis recur-
sos nacionaes. A navegação a vapor e o telegrapho eléctrico
approximaram-nos demais da Europa e distanciaram-nos
do nosso próprio sertão. Nos começos do século XIX ainda
se procurava, porém, com afan utilizar as vias fluviaes e
desbravar vias terrestres em toda a superficie do paiz (i),
com o fito de formar do Brazil um todo uno, compacto,
forte, poderoso e aggressivo.
O simples titulo da revista — O Patriota — é também
uma indicação inequivoca do quanto politicamente tinham
mudado os tempos: já não arripiava as carnes esse termo
de cunho revolucionário, d'antes proscripto sem remissão. E
tão pouco escapava a observação aos contemporâneos que por
este motivo escrevia Hippolyto (2) com muita razão: "Por
mais insignificante que pareça a circumstancia de se deixar
correr um jornal com o nome de Patriota, ou permittir-se
uma traducção da Henriada, nós julgamos isto matéria de
importância; porque he seguro indicio, de que o terror inspi-
rado pela Revolução franceza, que fazia desattender a toda
a proposição de reformas, principia a abater-se, e já se não
(1) Yeja-se como exemplo no volume III d'0 Patriota, o Dis-
curso sobre a necessidade de uma povoação na cachoeira do Salto do
Rio Madeira para facilitar o commercio que pela carreira do Pará se
deve fomentar para Matto Grosso.
(2) Correio Bra^iUense, n. 67, de Dezembro de I8I0.
i
t)OM JOÃO VI NO BRAZIL 907
olha para as idéas de melhoramento das instituíçoens publicas,
como tendentes á anarchia, em vez de servirem á firmeza do
Governo."
A divulgação das noções scientificas e de economia so-
cial não ficou de resto sem resultados palpáveis. Assim, in-
troduzio-se e applicou-se no Brazil a vaccina, contra a qual
existiam as mais fortes prevenções, sobretudo na Inglaterra,
onde até protestavam violentamente contra a inoculação
os reaes collegios de cirurgiões de Londres e Dublim, e se
manifestava a própria repugnância pessoal de Dom João VI,
que pelo menos em 1807, antes de se mudar para o Brazil,
chegou a mandar imprimir á sua custa um folheto des-
acreditando semelhante pratica preventiva.
Outro tanto aconteceu no dominio da caridade publica.
A Santa Casa da Misericórdia installou uma enfermaria es-
pecial para loucos, outra para inuiheies. Separou-se a secção
dos orphãos, fundou-se um recolhimento para os do sexo
feminino e abriu-se um lazareto, onde em 181 8 existiam
84 leprosos pobres. A Casa dos Expostos, em que as amas
eram negras alugadas, cujos senhores percebiam os salários,
offerecia mais do que limpeza, certo capricho no conforto.
Aliás a Santa Casa e suas dependências produziam sempre
o melhor effeito sobre os visitantes estrangeiros pela sua
cuidada conservação. Debret, entre outros, elogia sem re-
servas os hospitaes brazileiros do tempo.
Em dominio algum todavra como no militar se apre-
sentava mais vivo o contraste entre o que era o Brazil em
1808 e o que passava a ser em 181 8. O apoucado dos recur-
sos de defeza e a inferioridade dos instrumentos de ataque,
vimos que foram os motivos principaes da politica vacillante
D. J. — 57
90« DOM JOÃO VI NO BRAZIL
do Príncipe Regente com relação á encorporação da Banda
Oriental, até que poude dispor em 1816 dos seus veteranos
das campanhas continentaes contra Napoleão. Só então ihe
foi dado reforçar a expressão do seu feliz ensaio de impe-
rialismo, que deu ao novo Reino sua fronteira necessária,
para isto affrontando o ciúme dos regulares brazileiros, cujos
regimentos no emtanto só conseguiam encher seus claros me-
diante levas forçadas.
O espectáculo militar differia não obstante muito do
colonial, e Linhares, si estivesse vivo, de certo exultaria de
ver que não ficara perdido ou inútil seu primeiro impulso com
vista na fundação do poderio militar que devia servir de
base á grandeza do Brazil, fornecido com a creação da Aca-
demia Militar e outras providencias tomadas no seu minis-
tério, e que se foram ligando e fortalecendo e fructificando,
não descurando sequer o solicito estadista a condição das
familias dos soldados.
Também a melhoria fora prompta e sensivel, tanto
pelo lado da administração, que se tornou mais zelosa e effi-
ciente, posto na guerra de Montevideo occorresse ainda o
facto, narrado por Luccock, de remetterem-se balas e car-
tuchos desproporcionados aos fuzis; como pelo lado profissio-
nal, para o que vieram contribuir muito, immediatamente
antes da campanha contra Artigas, o desvelo e competência
de Beresford, o qual tendo ido em pessoa ao Rio de Janeiro
solicitar do Rei recompensas para as forças portuguezas
victoriosas na guerra peninsular, disciplinou e remodelou
quanto poude no curto prazo da sua estada o pequeno exer-
cito brazileiro, tentando incutir-lhe o essencial espirito m.i-
litar que lhe faltava.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 909
Ao visitar o Rio em 1813, no anno seguinte ao da morte
de Linhares, a fragata Nisus^ achara Prior ( i ) , que não
fazia cerimonia em pôr defeitos no que via, a guarnição, além
de considerável na apparencia, bem uniformizada e discipli-
nada. O principe Maximiliano de Wied-Neuwied, que era
da profissão e combatera contra os exércitos napoleónicos,
comparava, porém, ainda desfavoravelmente poucos annos
depois o aspecto, que achou soberbo, dos regimentos vindos
de Lisboa — os aguerridos voluntários reaes — com o dos
regimentos brazileiros, no seu dizer "effeminado e impo-
tente". Em 1819 von Leithold (2), official prussiano,
cunhado de Silvestre Pinheiro Ferreira, apenas se mostrou
impressionado, em matéria militar, pelo brilho exaggerado
de alguns dos fardamentos, repetindo o que ouvira no tocante
á valia do estado maior, que se dividia em duas partes, uma
que dormia e outra que velava.
Para quem tivesse acompanhado as cousas desde o co-
meço, a transformação appareceria apreciável em todos os
departamentos militares, e si é facto que a vida dos quartéis
e acampamentos continuava a mostrar não possuir seducção
para a gente da terra, a não lhe fallar absolutamente á
alma, também é verdade que a vida de soldado não encer-
rava entre nós compensações, nem offerecia garantias de
espécie alguma.
Os voluntários faziam seus contractos por seis e oito
annos: os recrutados, que serviam indefinidamente, quando
obtinham baixa por enfermidade ou velhice, viam-se reduzi-
dos a mendigar pelas ruas. E' quasi inútil ajuntar que a
{l)Vojfagc aloiifj the costcni coaftt of Arica, to Rio de
Janeiro, Bahia and Pcrnamhuco. London, 1819.
(2) Mcinc Aiisflncht nach Brasilien. Berlin, 1820.
910 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
lei de recrutameato se não applicava com severidade, nem
mesmo com exactidão. Os commandantes de districtos, in-
cumbidos d'esse serviço publico, por interesse ou condescen-
dência isentavam individuos sãos e capazes para alistarem
individuos débeis e mal conformados, somente porque não
tinham dinheiro nem contavam com protecções. E, com-
quanto semelhantes abusos fossem bem patentes, continuava
a situação no mesmo pé porque, na phrase mordaz do via-
jante L. de Freycinet (i), o defeito da administração por-
tugueza, transmittido á brazileira, consistia em seguir á
risca a máxima de "evitar todo escândalo e não compromet-
ter pessoa alguma (eviter tout ce qui peut faire de Véclat et
ne compromettre personne). ''
O essencial parecia residir em não fazer novidade. Por
isso os quadros nunca se encontravam completos, e aliás era
de toda conveniência para a boa economia dos regimentos
conservarem-se os effectivos — que deviam compor-se em
cada caso de 1.557 homens — muito abaixo do limite nor-
mal, não excedendo frequentemente de 400 soldados, visto o
Estado pagar os 20 réis diários para fardamento, além dos
70 réis do soldo, sobre a base de 600 homens em regimento.
D. João VI melhorou muitas d'essas faltas capitães da
organização militar, assegurando aos soldados, com a baixa,
reformas e pensões e creando estabelecimentos de inválidos.
No que diz respeito ao velho Reino, o commando estran-
geiro — tradicional recurso de que se valera Pombal com o
conde de Lippe, em que pensara o Principe Regente com
(1) Ob. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 911
Waldeck e que apj)licou com Beresford — foi indubitavel-
mente um bem, porquanto sob elle, que era a theoria, e ajun-
tando-se a pratica da guerra, o soldado portuguez, sem nada
perder do seu denodo, aperfeiçoou o seu garbo militar e
aprendeu a manobrar com mais precisão, assim lucrando
também debaixo do ponto de vista technico.
Pondera todavia Freycinet, dos mais conscienciosos e
bem informados visitantes do Brazil de Dom João VI, que
o soldado portuguez cujos predicados principaes eram, além
da bravura, a subordinação e a sobriedade, perdera justa-
mente em relação a estes aspectos, tornando-se menos tem-
perante, exigente e muitas vezes indisciplinado ( 7nutin ),
por haverem-no os chpfes estrangeiros, o interesse dos quaes
estava em captar a confiança e a estima da força da nação,
afeito a continuas reclamações e d'este modo levado a despir
se da antiga e illimitada docilidade (i).
O importante porém era que o Reino Unido de Por-
tugal e Brazil contava agora com um exercito moldado por
uma composição militar. Vimos como foi especialmente sa-
tisfactoria a exhibição bellica por occasião da revolução per-
nambucana; como foram os seus arranjos executados de um
modo firme e decidido, desenvolvendo o próprio Rei, contra
seus hábitos commodistas, notável actividade physica nas
(1) Acaba de ser recordado que Beresford foi de propósito ao
Brazil á cata de prémios para os seus subordinados. Palmolla com
muita razão igualmente se occupou, em Londres, da compensação pe-
cuniária que ás forças portuguezas competia pelos despojos da cam-
panha peninsular, tendo-a o Parlamento Britannico exclusivamente
votado pai-a as forças inglezas. Cora sua habitual felicidade arrancou o
diplomata essa justa indemnização, já quasi ao deixar a missão com
destino ao Rio.
912 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
visitas seguidas aos quartéis e aos armfzens. Não deixa de
ser curioso e suggestivo que do mesmo Rio de Janeiro onde,
por occasião da chegada da corte, parecia até difficil man-
ter-se uma guarnição insignificante por falta da matéria
prima elementar sahissem, em 1816 uma considerável ex-
pedição militar e naval contra os rebeldes estrangeiros do
Uruguay e em 181 7 outra quasi tão considerável contra os
rebeldes nacionaes de Pernambuco; logrando a primeira
cumprir seu programma, que era de annexar ao Brazil a
cobiçada Banda Oriental ( i ) , e só não cabendo á segunda
a honra de repor a auctoridade real nas capitanias revolta-
das, por já estar completa a tarefa com os elementos lo-
caes.
Ambas as expedições forneceram comtudo testemunho
positivo do vigor militar, natural ou artificialmente, adqui-
rido pelo Reino americano, e que com o Império se extenuou
sem maiores esforços. Nem por isso ficara o Rio de Ja-
neiro desprotegido: a sua guarnição, segundo Luccock, pas-
sou a ser supprida, afora alguns corpos regulares que ainda
permaneceram, por milicias do interior, rendidas todos os
'mezes, e cuja apparencia e disciplina igualmente se tinham
reformado, regressando outrosim os milicianos, da capital
para seus sertões ou campos, com hábitos menos atrazados
e idéas progressivas.
Esta reflexão do citado auctor inglez é feliz: precisa-
mente uma das vantagens da residência da corte no Rio de
Janeiro foi essa, de permittir uma influencia mais directa,
mais suggestiva e mais efficaz sobre os costumes e o pensar
da totalidade do Brazil. A transferencia da sede da monar-
chia podia ter produzido o effeito, de certo modo contrario ao
(1) Lecor entrou om Montevideo a 20 de Janeiro de 181'
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 913
progresso nacional, de desviar a attenção da peripheria para
o centro, acabando com as ligações independentes das capi-
tanias com a metrópole portugueza e retardando portanto
o seu desenvolvimento parallelo e autónomo, além de one-
ral-as com encargos supplementares, quando as vantagens da
permanência da corte eram auferidas pela nova metrópole,
a brazileira.
Por outro lado porém, a trasladação veio emprestar ao
paiz aquillo que lhe faltava para entrar n'essa cathegoria,
uma capital convergente e propulsora que enfeixasse as as-
pirações e as tornasse harmónicas. Os deputados das cama-
rás municipaes das provincias que concorreram ao Rio de
Janeiro para agradecer a Dom João a elevação do Brazil
a Reino, eram os portadores na grande maioria inconscientes
d'estes votos de unidade politica sob que se aninhavam e me-
dravam ambições de perfeita soberania, quando o monarcha
julgava ter-lhes ido ao encontro, fazendo do Brazil a parte
preponderante do Império luzitano.
Ponto central do Circulo que abrange
As Plagas quatro em que Teu Sólio firmas,
Divergerás fulgor almo e Divino,
E a Ti convergerá do espaço immenso
Espontânea homenage igual aos Evos ( i ) .
E' fácil prever o resultado que teria tido a crise de fe-
deralismo, si não fosse a robustez do sentimento unitário e
patriótico crystallizado com a mudança do throno portu-
guez para a America. Um dos poetastros que perpetuavam a
tradição dos vates palacianos no meio fluminense, sempre
(1) Estanislau Vieira Cardozo, Canto épico clt.
914 DOM JOÃO VI NO BRAZII.
indifferente quando não hostil aos seus encómios cortezãos,
feria entretanto a justa tecla, quando exclamava no ápice do
seu curto estro:
Três Séculos havia
Fora a planta lançada
Do Brasilico novo vasto Império;
Mas, arvore deixada á Natureza,
Crescia vagarosa:
Benigna sobra lh'era
Mais que tudo precisa: eis chegas, toma
Novo viço e vigor, e já robusta
Não receia tufões de bravos Euros:
Tens de grandes destinos
Nobre porção cumprido !
Que Monarca Europeo transpoz o Oceano,
E á Quarta Parte nova ha dado a gloria
De possuir hum Throno ?
Tu Primeiro te acclamas
Entre Povos que nem pensallo ousavão!. . .
Mas a Lysia rezervas mor ventura:
Hum dia. . . Aqui silencio m'impõe Febo ! (i)
Não esqueçamos porém que não só do baptismo militar
do Brazil-Reino foi padrinho o exercito das campanhas pe-
ninsulares, como que de 1816 a 1820 foi continuo, por
instrucções da corte, o affluxo de tropas portuguezas ao
Brazil, inspirando confiança aos Portuguezes que já se ar-
(1) Joaquim José Pedro Lopes, Ode ã acclamação de Sua Mn-
f/rstndc Fidelissima o ScnTior D. João VI etc. Rio de Janeiro, anno
1817.
i
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 915
receiavam das idéas separatistas, e instillando despeito nos
Brazileiros que enxergavam nas forças transplantadas um
precioso instrumento de jugo e oppressão (i).
Refere Luccock que a esquadra cm i8i8 se achava
muito augmentada, pois desde o anno de 1813 se lhe tinham
aggregado, em que pese ás informações o'fficiaes de Maler,
importantes unidades, construídas as mais d'ellas no Rio e
na Bahia, onde já nos tempos coloniaes se fabricavam navios.
Luccock porventura força n'este ponto a nota optimista, mas
é facto que Turnbull, o qual fez de 1800 a 1804 uma via-
gem em redor do mundo, estando no Brazil, falia com
muitos elogios do arsenal da Bahia, em cujo estaleiro en-
controu uma nau de 64 chamada Príncipe do Brazil, admi-
ravelmente construida com madeira do paiz. ''Concebo que
he de justiça accrescentar, escrevia elle (2), que este navio
me pareceu huma completíssima, e bem acabada peça de mão
d'obra; e junctamente com a sua elegância, combinava for-
taleza € substancia, que se não podem exceder, e commum-
mente não se igualam nos estaleiros da Europa."
Em 1818, além de novos navios lançados ao mar, ti-
nham sido reparados os velhos, remodelado o almirantado,
restauradas as fortalezas de Santa Cruz e Villegaignon, ar-
(1) A 21 de Outubro do 1817 escrevia Marrocos ao Pai: "Os
Navios da Tropa vão entrando ; vindo a ser todos (ou os que
puderem) aquartelados no famoso edifício do Lazareto, no sitio de
S. Cliristovão, e próximo il Real Quinta da Boa Vista. Todos aqui
suspirão pelos nossos valorosos Soldados Portuguezes ; e por toda a
part<» reina humia aiffeição íuo seu lieroismo e hum desejoi de .0§ re-
ceber e agasalhar." A 1 de Novembi"o ajuntava n'outra carta : ". ... ; o
S. Magestade tem dado a toda a tropa bom convite de comer e dinheiro
no aia do seu desembarque, ú proporção que tom entrado e desembar-
cado, de sorte que he para elles hum dia de S. Martinho. O serviço do
Palácio de S. Christovão, onde S. Magestade reside effectivam;^nte, he
feito por elles exclusivamente ; e em geral todo o Povo está cheio de
prazer com a sua chegada, pelas i<Jéas vantajosas que tem do seu
valor e disciplina."
(2) Traducção publicada no Correio Braziliense n. 93, de Fe-
vereiro de 1816, vol. XVI.
916 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mazenada a artilheria pesada na ilha das Cobras, levantadas
novas baterias de defeza em posições estratégicas, edificados
quartéis, artilhadas as praias. Assim nos informa Luccock,
e a sua informação discordante da de Maler e mais fide-
digna por ser a de um homem do mundo commercial indiffe-
rente a questões exclusivamente politicas, indica que o agente
diplomático via e julgava a expansão portugueza na Ame-
rica, muito melhor apparelhada como estava sendo, pelo
prisma deturpador do seu legitimismo e do seu europeanismo,
igualmente infensos á libertação da America Hespanhola
e ao engrandecimento no Novo Mundo de uma potencia que
já não era colónia, mas sim a metade melhor da monarchia
portugueza.
Accresce que a França da Restauração, esquecida de
que sob os Bourbons se tinham deixado perder o Canadá,
a Acadia e a Louisiana, afora no Oriente a índia, não per-
doava a Buonaparte a venda aos Estados Unidos do immenso
território d'além Mississipi, que o Imperador não podia man-
ter francez sem esquadras, e que sobretudo desejou resguar-
dar de uma conquista ingleza, a qual seria inevitável, alar-
gando-se então extraordinariamente a esphera do dominio
britannico na America Septentrional, em detrimento das suas
ex-colonias, cuja doutrina fundamental externa ainda lhes
não fora dado condensar, nem o seria até Monroe, vinte
annos depois da compra da Louisiana.
Uma das illustrações da marinha nacional, o Sr. almi-
rante Jaceguay, observa com muita intelligencia no seu es-
tudo sobre a formação da armada brazileira (i), que ''de
todas as colónias americanas a única que, por occasião de
(1) De Aspirante a Almirante, 1860 a 1002, Minha fé de of fi-
do documentada. Mendes, 1906.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 917
emancipar-se, possuía elementos para luctar contra o poder
naval da metrópole foi o Brazil, circumstancia esta ainda não
notada explicitamente por nenhum historiador, mas que tal-
vez tenha sido a que influio mais poderosamente para abre-
viar a nossa completa independência politica."
Aquelles elementos foram os deixados pelo governo de
Dom João VI n'esse Rio de Janeiro que se tornara o centro
dos recursos navaes da nação, mesmo porque era a verda-
deira capital do Reino Unido e porque se dissolvera o es-
tabelecimento maritimo de Portugal. Trouxera comsigo o
Principe Regente todos os bons elementos da armada, navios
e pessoal, — lembra ainda o Sr. Jaceguay — só deixando
as embarcações imprestáveis. Quando porém regressou, le-
vava o Rei apenas uma fracção da armada luzo-brazileira: o
que ficava ( i ) constituio o núcleo da marinha imperial,
sendo já nacional pelo espirito quando não pelo nascimento.
Essa marinha de guerra, herdada do Reino do Brazil, foi
na crise da Independência o instrumento mais adequado e
mais opportuno da unidade politica quando ainda o com-
posto offerecia o perigo de desaggregar-se.
Na administração da justiça foram menos sensíveis as
reformas porque o mal jazia na natureza mesma das cousas,
e só o tratamento mais enérgico, mais radical, o poderia
debellar. Com sua habitual mordacidade de funccionario
mal pago e que, consoante suas queixas, ainda recebia com
difficuldade seus parcos vencimentos (2), escrevia Maler
por esse tempo (3) que no Brazil por toda parte havia
(1) Uma nau, tvoz fragatas, duas corvotas e troz borgantins,
quasl todos os navios carecendo todavia de grandes reparações 1 Al-
mirante Jaceguay, 06 cit.)
(2) Corresp., jxissini.
(3) Relatório commercial de 1818.
918 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
juizes sem haver tribunaes, por toda a parte havia admi-
nistradores sem haver administração. Nas cidades princi-
paes existiam uns fantasmas de corporações municipaes cha-
madas Senados, cujas funcções mais importantes consistiam
porém em votar fundos para cerimonias publicas.
Logo, dando a mão á sua critica, ponderava o consul-
encarregado de negócios ser assim sem apoio, sem ligações,
que o governo do Rio caminhava ou melhor se arrastava,
esquecido do passado e destemoroso do presente: **Já olvidou
as causas que revolucionaram a Europa e o forçaram a re-
fugiar-se sob o trópico, e sem inquietação vê estas mesmas
causas agitarem tudo quanto o cerca."
Nos tribunaes superiores do Reino do Brazil encon-
trava-se commummente espirito de equidade, no sentido que
seus membros não eram no geral accessiveis ao suborno e se
contentavam, na peor hj^pothese, com serem subservientes
ao governo do qual dependiam por completo. Nos juizos in-
feriores, entretanto, a venalidade não era cousa rara, decla-
rando alguns dos magistrados sem rebuço que os seus lugares
constavam como vencimentos de emolumentos que as partes
deviam pagar, visto os ordenados serem ridiculos para os gas-
tos que a corte reclamava dos distribuidores da real justiça.
Comtudo n'este terreno também se conheceram vanta-
gens. Muitos juizes de fora foram creados para uma mais
prompta e acertada distribuição dos julgamentos; novas
comarcas fundadas com partes das antigas divisões judiciaes,
por serem estas em demasia extensas e impossibilitarem as
correições dos ouvidores; os processos tornados mais sum-
marios e menos demoradas as demandas, apenas chegando
á capital as de maior monta e sendo as outras resolvidas pelos
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 91Ô
ouvidores das comarcas e governadores das capitanias, depo'3
províncias ( i ) .
A criminalidade era grande, porque somente de
vinganças havia abundância, e pareciam ellas até naturaes
n'uma sociedade como essa, mais desorganizada que pritui-
tiva, porque os moldes rigidos da legislação não asseguravam
sós a solidez do composto. Primitiva também até certo ponto
se a poderia chamar, pois que era o sopro poderoso da livre
natureza que sacudia a dureza da administração, mitigando-
Ihe a acção, e era a sua alma em boa parte feita de paixões
mal reprimidas, para corrigir as quaes só dispunha o Estado
de uma justiça morosa, não em absoluto respeitável, e dis-
persa na vastidão territorial da ex-colonia.
A policia agia entretanto com rigor na forma por que
a concebera e organizara a monarchia portugueza, esfor-
(1) A organização judiciaria da velha monarchia comprehondia
na primeira instancia os juizes ordinários, eleitos, o os juizes do fora,
de nomeação regia, que também executavam as decisões das camarás
municipaes, absorvendo-lhos cm grande parte a importância. Os ou-
vidores de comarca nas suas correições julgavam os pleitos, e os tri-
Ijurres de relação constituíam a segunda instancia, da qual havia re-
curso e final appellação para a Casa da Supplicação, composta de um
presidente ou regedor das justiças, um chanceller, o.Uo desembarga-
dores aggravistas, um corregedor do crime da côi"te ■? casa, am juiz
dos feitos da corOa e fazenda, um corregedor do eivei da corte, um juiz
da chancellaria, um ouvidor do crime, um promotor da justiça o mais
seis dezembargadores extravagantes.
A Casa da Supplicação exercia funcções judiciarias de caracter
mais criminal do que eivei, conhecendo dos recursos hiterpostos nas
sentenças proferidas pela Relação da Bahia e outros tribunaes. A
Meza do Dezembargo do Paço, que era a mais alta instituição judi-
ciaria, deliberava sobre assumptos de competência mais civil do que
criminal. Segundo um jurisconsulto portuguez, esto tribunal Gxpi?dia
as graças, privilégios e franquias de outorga real ; homologava os
actos de legitimação de filhos bastardos, as adopções e adrogagões e as
doações ; pronunciava a rehabilitação dos sentenciados a penas infa-
mantes, estatuía sobre maniitenções de posse e restituições aos des-
pojados dos seus l>ens ; emancipava menores; concedia dispensas de
idade, perdões em certas causas criminaes e liaheas-corpus sob fiança ;
facultava revisões de processos e auctorizava trocas de bens vincula-
920 DOM JOÃO VI NO BRA2IL
çando-se por manter a segurança publica e também a mora-
lidade, visto que se empenhava particularmente em repri-
mir o jogo. O próprio governo porém, invocando motivos
financeiros, estabeleceu com suas loterias mensaes uma de-
testável forma de jogo que criou as mais fortes raizes.
Os crimes eram de ordinário mais de natureza senti-
mental do que de interesse. Nos campos, afora gado, não
havia mesmo muito que roubar, e as questões de terras não
eram vulgares, não só porque sobrava espaço, como porque
se respeitavam as propriedades quando óffereciam 6o annos
de occupação continua e indisputada na familia, sendo consi-
derado tal periodo titulo sufficiente de posse. Nem se pode
dos e dotaes. No caso de appellação de uma sentença capital, bastava
o voto de um dezembargador para a commutação da pena ter lugar.
Os tribunaes administrativos abrangiam o Erário Régio, o Con-
selho de Fazenda, a que cabiam a gestão dos bens da Coroa e a apu-
ração das dividas, e a Junta de Commercio, Agricultura, Fabricas e
Navegação. O Erário Régio comprehendia G repartições : a 19 de co-
brança dos imiposrtos da provinda do Rio de Janeiro ; a 28 de cobrança
das rendas da Acfrica Orientai, Aisia e capitanias do sul e do centro
do Brazil ; a 3s de cobrança das i-ejidas da Africa Occidental, capita-
nias do norte do Brazil e ilhas adjacentes ao Reino de Portugal ; a
49, chamada directoria geral dos diamantes, que cuidava d'este mo-
nopólio real ; a 59, que superintendia os novos impostos, e a O», pela
qual corriam os imgamentos das tropas da guarnição do Rio de Ja-
neiro. As duas secções do Conselho de Fazenda ei*am a do expediente
do tribunal e a do assentamento, que tinha a seu cargo a contabilidade
Gos salários e pensões. O Conselho examinava os títulos dos requeren-
tes de pagamentos e occupava-se dos estancos. Sobre os bens da Coroa
velava especialmente o procurador da fazenda. A Junta de Commercio,
Agricultura etc. fazia verdadeiramente as vezes de tribunal do com-
mercio e industria, esclarecendo o governo snbre quanto podesse servir
pai^ melhorar esses dous ramos da actividade nacional, e percebendo
certas taxas para manter seus deputados, installar machinas, concer-
tar estradas e outras despezas. Incluía um juiz conservador, um fiscal
dos contrabandos e um juiz das fallencias.
Os tribunaies wclesiasticcis eram a Meza da Consciência e Or-
dens e a Junta da Bulia da Cruzada, que percebia as dispensas.
O Conselho Supremo Militar occupava-se de todo o relativo
ao exercito, armada e prezas, propondo reformas, expedindo patentes
e contornando as decisões dos conselhos de guerra. Quando deliberava
sobre negócios do contencioso ou prezas, aggregava trez magistrados
civis aos oito conselheiros militares.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 921
dizer que fosse ligeira a garantia n'um paiz de exploração
progressiva, occupação indisciplinada e falta de tradições
locaes.
Avesso o Rei a assignar sentenças capitães ( i ) e não
existindo ainda a prisão cellular, a punição exercia-se pela
prisão commum, a degradação e o degredo.
Nas cidades o crescimento da população pela affluencia
do interior e de fora, trazendo na enxurrada os melhores
elementos e igualmente os peores, determinara um augmento
positivo da criminalidade. A proporção devia ter ficado sem
alteração nos campos, cuja vida seguira praticamente a
mesma, no seu acanhamento de produzir pouco e consumir
pouco. Já por este motivo, já pelo facto de mais emigrar
então a gente urbana que a rural, muito apegada á terra,
era a tendência toda para a agglomeração nas cidades dos
immigrantes, na grande maioria artesanos.
Por mais que isto prejudicasse a agricultura e que fosse
mister ir saldando as importações crescentes do luxo dos
centros com o excesso da producção do solo, o governo nada
podia contra esse defeito de distribuição originado na pró-
pria natureza da colonização e no maior attractivo exercido
pelas cidades, n'um paiz sobretudo tão despovoado, inculto
e atrazado como o Brazil.
Nem corria risco d'aquelles artífices, conforme mos-
trava Maler receiar, prejudicarem-se uns aos outros e lo-
(1) As í-xociKjõcs foram sobretudo raríssimas depois da exal-
tação de Dom João ao llirono. Antes não eram tão espaçadas, pois
que na carta de 25 de Outubro de 1813 escrevia Marrocos ao pai que
a 8 tinham sido enforcados 5 pretos criminosos, e havia "40 e tantos
quo hão de seguir o mesmo destino." Depois de 1810 menciona-se, a
22 de .Julho de 1810, o supplicio de um criminoso que esfaqueara G
pessoas, entre ellas uma mullier gravida.
922 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
grarem apenas vegetar, quando se lhes depararia tanta oc-
cupação n'uma terra até ahi fechada e agora em franco pro-
gresso. Os immigrantes de alguns cabedaes, collocavam-n'os
logo em especulações no commercio, e aos desprovidos de
recursos pecuniários, mas não de um mester, bastariam as
obras particulares, sem fallar nas publicas.
Não é de surprehender que, no balanço dado a um
tão geral adiantamento, a cidade mesma do Rio de Janeiro,
a capital do novo Reino, se apresente com um largo credito
ao seu activo. A transformação de então foi, para o tempo
e dado o desconto devido á differença das idéas e dos meios,
tão considerável como a que acabamos de presenciar. Remo-
çara e arrebiçara-se a cidade que Prior descrevia em 1813
formada de edificios sujos, fortes desmantelados, habitações
arruinadas e paredes nuas, horrorizando-se sobretudo da
parte commercial, retrato da devastação, visto os Portugue-
zes, no seu dizer, fazerem da mercancia e da porcaria com-
panheiras inseparáveis.
Marrocos repetidas vezes falia nas suas cartas de tra-
balhos de aformoseamento intentados pela corte: "... sempre
aqui se projecta em obras, e obras grandes: o Palácio de
S. Christovão está muito adiantado: o de Santa Cruz vai
a reformar-se e augmentar-se : ha Plano prompto para hum
Palácio novo no sitio chamado a Ponta do Cajií, orçando-se
a obra em 17 milhões. A capella R. vai a dourar-se toda,
A Sra. D. Carlota vai para o Palácio, em que habitou o
conde das Galvêas, no sitio de Mata Porcos, que se está
preparando, como foi o de Andarah}^ " ( i )
(1) Carta de 29 do Junho de 1815.
1
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 923
Muitas vezes, como é veso nosso, as obras não passa-
vam do projecto, ou os projectos não passavam da metade
(i), mas n'outros casos o planejado se executava e a corte
ia sempre ganhando em exterioridade e decência. Nem po-
diam desapparecer como por encanto os defeitos essenciaes
da edificação fluminense: a agglomeração das habitações,
egrejas e o mais nas depressões formadas entre os morros
donde, por occasião das grandes chuvas, descia a agua aos
borbotões, carregando as impurezas da cidade e algumas
vezes também as casas antigas e estragadas (2), e a falta
de gosto architectonico, reflexo do temperamento pouco ar-
tístico e da nenhuma educação artística, parecendo até, na
phrase cáustica de Prior, que fosse impiedade a elegância
e o aceio peccado.
Mais depressa se corrigiriam as faltas si não fosse que,
dos fidalgos da corte, pouquíssimos se interessavam pelos
melhoramentos do Rio de Janeiro, pois lhes tardava sobre-
modo voltarem para Lisboa, donde se diria que tinham im-
portado, para piedosamente zelal-o, algum do lixo metro-
politano (3). Ainda assim, no periodo embora de espectativa
(1) "Ilum I'icadoiro novo e huma Cadêa são últimos planos,
que se vao pôr em c::ecuç;ão : o l'-' he reputado em 50 mil cruzados,
que se farão logo promptos ; e para o 2!! foi destinação o producto
de hum dia de beneficio no Thoatro desta corte, para servir de prin-
cipio de clespezas : Entretanto a .obra noiva do R. Tlicscuro ficou
no esqueleto, liavendo-se alli consumido para cima de 700 mil cruza-
zados : e parou porque claramente se via que a dcspeza crescia, e a
obra não subia." (Carta de 23 de Fevereiro de 181G).
(2) Em razão de successivas desgraças acontecidas com casas
velhas que desabavam c tendo chegado a cahir no I*aço parte de uma
parede e abobada, projectou-sio uma vistoria geral da qual se» poideria
haver derivado grande beneficio para o aspecto geral da cidade, si a
não tivesse annullado o suDomo dos inspectores das propriedades.
(Carta cit. de Marrocos).
(3j Prior, oh. cit.
D. J. — 5S
Ô24 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de regresso, alguns, mui raros, contribuíram por este ou
aquelle motivo, por vontade ou por necessidade, para o embel-
lezamento da sede ultramarina da monarchia (i).
Não se podia, é bem de ver, passar a vida inteira em re-
cordações saudosas do passado ou mesmo risonhas esperanças
do porvir. O presente tinha suas exigências, e era mister ir
tratando de fazel-o agradável ahi mesmo, n'esse desterro
colonial que podia ainda durar annos. A mocidade sobretudo,
que não tinha as mesmas razões para tristezas e decepções
adrede exaggeradas, reclamava seus folgares e suas distrac-
ções. Por isso escrevia Marrocos (2) que ''a toda a pressa
se está apromptando huma casa de Opera particular no sitio
de Botafogo, para divertimento de SS. AA. as Meninas; e
das Fidalgas suas criadas: os Representantes são os mesmos
Fidalgos rapazes, que fazem figuras utriusque sexus; e he
muito natural que as Fidalgas moças os vistão, ornem e en-
feitem, tudo grátis. Já se repartirão as partes; e me parece
cousa muito digna que elles se occupem n'hum exercicio, que
no tempo presente lhes he bem análogo, visto que vão já a
sahir os Francezes da Peninsula: e alguns dahi vierão mui
fatigados com o peso das armas."
Pondo de lado as maldades do correspondente, vê-se
que a vida de corte assim espontaneamente renascera, pois
que a praia de Botafogo, onde d'antes apenas viviam nas
suas cabanas ciganos e pescadores, já era lugar de tão aris-
tocráticos folguedos. E foros taes de largueza foi ganhando a
convivência que, poucos annos depois, mandava o mesmo iro-
(1) "Está-se edificando hum grande Palácio para a Duqueza
de Cadaval aqui no sitio das Laranjeiras. Ella € seus filhos lançaram
as primeiras pedras nos alicerces. O Architecto he Francez, e affir-
mão-me que todos os Mestres também o são." (Carta de 21 de Setem-
bro de 181G.)
(2) Carta de 28 de Setembro de 1813.
DOM JOÃO VI NO BRAZÍL 925
nico chronista ( i ) esta relação de uma festa brilhante offe-
recida á Princeza Dona Carlota: "S. A. R. a Sra. Princeza
D. Carlota com suas Filhas e as competentes criadas forão
passar hum dia inteiro ao Palácio novo do Visconde de
V" N" da Rainha, no sitio de Botafogo, por convite do mesmo
Visconde; e foi a maior pompa que se tem observado, pelo
que pertence a meza e recreio, para obsequiar a SS. AA
Excellente orchestra vocal e instrumental. Dança, refrescos,
e tudo o mais que deveria solemnizar aquelle dia, de tudo o
Visconde lançou mão, para se distinguir mais do conde da
Louzã, e findou o divertimento pelas trez horas da madru-
gada do dia seguinte. S. A. R. se dignou conferir-lhe a Nova
Ordem Hespanhola de Santa Izabel Americana: e passados
poucos dias renovou a sua visita, com a differença de não
levar criadas, e foi igualmente servida com a mesma magni-
ficência."
Si o Principe Regente fosse, por seu lado, mais amigo de
ostentação, a corte retomaria certamente todo o seu relativo
esplendor lisboeta, esse aspecto de grandeza e decadência que
lhe era peculiar e a que um observador inglez do tempo appli-
cava com felicidade a denominação composta e contradictoria
de sJiabby-gentcel (mesquinho-garboso). Dom João era,
porém, pessoalmente pouco inclinado a pompas, que só tole-
rava — e então até as estimulava e apreciava — em occa-
siões excepcionaes como as da sua acclamação e do casamento
do herdeiro e filho predilecto. No diário dispensava as magni-
ficências posto que não as etiquetas, e bastantes vezes bus-
cava até na simplicidade, que o tornava tão accessivel, refu-
gio e distracção das fadigas, convenções e tédios da sua exis-
tência official.
(1) Carta de 23 de Fevereiro de 1816.
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'.r-.-c. VI
i
CAPITULO XXIV
EL-REI
Paia bem se aquilatar da parte preponderante que de
facto pertencia a Dom João VI no governo, do quanto pe-
sava sobre a administração sua influencia pessoal, é mister
salientar a circumstancia de que, exactamente ao transpor
a culminância do seu reinado americano, o monarcha dirigia
só os negócios públicos. Só, quer dizer com seu valido Tho-
maz António Villa Nova Portugal, valido pouco ambicioso
e nada ganancioso, que se contentava com possuir a con-
fiança do seu Principe sem pretender exercer acção directa e
pessoal no Estado. Confidente e intimo o foi porém, quasi sem
interrupção, desde o tempo em que o conhecera o Regente de
corregedor em Villa Viçosa e o passara logo para a Casa da
Supplicação de Lisboa e depois para o Desembargo do Paço,
afim de ter sempre ao alcance, quando lhe convinha, um pa-
recer judicioso e desinteressado sobre assumptos diff iceis.
Barca e Aguiar tinham fallecido ambos em 1817, Pal-
mella continuava occupado na Europa, Bezerra desappare-
cera do rol dos inválidos apoz poucos mezes de governo;
Thomaz António, apezar dos seus 63 Janeiros, era quem,
por menos que se fizesse na opinião dos diplomatas estran-
geiros, acudia a tudo nos fins do anno da revolução de Per-
nambuco e da occupação de Montevideo. E o processo tão
930 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
bom pareceu a El-Rei que n'elle persistiu, apenas chamando
da Bahia, em Fevereiro de 1818, para a pasta da marinha
o conde dos Arcos, novato nos conselhos régios, si bem que
veterano da administração colonial por própria conta.
Relata Palmella (i) que á sua chegada ao Rio em
1820, encontrou o governo nas mãos d'esses dous homens:
**um (Thomaz António) cheio de puras intenções, mas não
tinha a menor idéa do estado de cousas na Europa nem
de forma alguma de governo diverso do que existia entre
nós desde o ministério do marquez de Pombal (2) ; o outro
(Arcos) dominado de sentimentos cavalheirescos, e também
de boas intenções, posto que assaz vagas e indefinidas, não
gozava da confiança d'El-Rei."
Thomaz António ficara conri ef feito sendo, n'esse ministé-
rio anormal em que lhe cabiam as pastas do reino, erário, ne-
gócios estrangeiros e guerra, o homem de confiança de Dom
João VI: tão arredado o collega da privança real e tão
alheio aos segredos do gabinete (o que reforça a crença de
que os seus serviços estrénuos da B^ahia resgatavam um pen-
samento, pelo menos, de deslealdade) que se não pejava de
perguntar a Maler (3), e isto sem ironia, muito candida-
mente ao que quiz parecer ao encarregado de negócios de
Sua Magestade Christianissima : "Expliquez-moi, s'il vous
plait, ce que c'€St que la guerre du Rio de la Plata, dont
la politique et le but sont aussi enigmatiques pour moi que
les mouvemens du general Lecor ? " E, depois de repetir
(1) Introducção aof? Despachos c Cartas publicados em 1851
pelo Sr. Reis e Vasconcellos.
(2) Palmella era, como provou no seguimento da sua vida agi-
tada, partidário do regimen repres-eintativo, de uma Carta tcdavia ou-
torgada pelo soberano e não elaborada pelo Tovo, ao qual somente com-
petia o uso de uma liberdade modemda.
(8) Officio de 13 de Julho de 1818, no Arch. do Min. dos Neg
Est. de França.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 931
na sua correspondência esta estranha pergunta ajuntava o
agente francez: "Que Votre Excellence n'aille pas croire
qu'il plaisantait lui même, je sais três bien qu'il n'était pas
initié dans ces mystéres."
Maler forçava certamente a nota da ingenuidade, pois
não é crivei que acreditasse em Arcos ignorar o que para
ninguém era segredo: que a campanha do Sul tinha por ob-
jectivo a conquista da margem oriental do Rio da Prata.
No que elle tinha razão era em commentar para Pariz que
'Tun de ces ministres est beaucoup trop ministre, et Tautre
trop peu", e teria também acertado si prognosticasse que uma
pronunciada desintelligencia surgiria d'esta situação desigual
e humilhante para Arcos.
N'um sentimento entretanto pareciam combinar os dous
ministros, na antipathia ás idéas liberaes, distanciando-se
ambos de Barca, como jubilosamente recordava Maler (i),
pondo em relevo "os predicados sociaes e amáveis" do antigo
vice-rei do Brazil e observando que, com sua escolha para o
ministério, o Rei não só tinha querido recompensar-lhe os
inestimáveis esforços em prol da restauração da auctoridade
legitima em Pernambuco, como agradar aos nacionaes, que
por certo estimariam ver elevado ao poder um antigo resi-
dente e perfeito conhecedor do Reino americano e suas ne-
cessidades. Além d'isto reaccendia no governo a tradição, já
um tanto apagada, da facção anti-ingleza (2) dos tempos
lisboetas, assim dando arrhas á corte britannica, com Tho-
maz António, da velha amizade, e com Arcos fazendo-lhe
negaças.
Confirmando o sabido, que Dom João VI consultava
Thomaz António sobre todo assumpto de importância e que
(1) Officio ae 29 de Junho de 1817, ibidem.
(2) Officio de Desseps de 30 de Agosto de 1817.
932 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
a este não faltava intelligencia nem sobretudo um grande
conhecimento de minúcias administrativas, ponderava Maler
que em desprendimento e patriotismo era o novo ministro
assistente ao despacho digno de succeder ao virtuoso Aguiar.
Era na verdade Thomaz António honesto até a alma,
complacente para com seu Senhor, resingueiro com os am-
biciosos, confiado ás vezes em excesso com os aduladores,
cheio de gravidade e de formalismos. Dir-se-hia a imagem
do velho Portugal, de calções, capote e chapéo redondo,
recuando diante do novo Brazil que avançava de botas de
montaria e chicote, encarnado, com os defeitos da juvenili-
dade, no Principe exhuberante de vida como a mãi e como
ella malcriado — um ill-educated and hoisterous young rnan
na phrase de Luccock.
A influencia do digno magistrado sobre o soberano e
portanto indirectamente sobre a marcha da administração
foi, quanto lh'o permittia o ciúme governativo de Dom
João VI, avultada e pôde em summa dizer-se que benéfica
porquanto, si se não distinguia por uma ampla visão politica,
recommendava-se Thomaz António pelo seu raro escrúpulo.
Em Portugal, quando deputado á Junta do Commercio, fa-
zia todo o trabalho official para o conde de Villa Verde,
que não passava de um lazzarone obeso e comilão, e desem-
penhara com efficiencia o cargo de fiscal do Real Erário,
conseguindo avolumar a arrecadação da receita e diminuir a
despeza, o que é um resultado colossal n'um paiz de invete-
rados abusos e inveterados desperdicios.
No Brazil aonde acompanhou a corte, cuja traslada-
ção fortemente aconselhara, foi nomeado chanceller-mór do
Estado e tornou-se, cada dia mais ostensivamente, o conse-
lheiro privado de Dom João VI, constituindo elle sósinho o
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 933
kttchen cabinet de São Christovão. O seu parecer era cote-
jado com os dos ministros e frequentemente seguido de pre-
ferencia. Correspondia-se de Santa Cruz com os membros do
gabinete, transmittindo-lhes as ordens reaes que elle próprio
muitas vezes determinara ou pelo menos suggerira. D'estas
foram, no dizer de Mello Moraes (i), a vinda da divisão
auxiliar portugueza que fez a campanha da Cisplatina; a
distribuição de titulos de nobreza e cargos politicos pelos
Brazileiros natos com o fim de extirpar prejuízos nativistas
e que somente redundou em accrescimo de intrigas e ciúmes
entre os filhos dos dous reinos, e a franca entrada no cami-
nho da abolição da escravatura, começando-se pela limita-
ção do trafico, cujo primeiro ensaio, no Congresso de Vienna,
teria merecido o apoio de Thomaz António.
Como não pedia, nem enredava, nem roubava, das suas
poucas necessidades dando testemunho a modestíssima casa
de Catumby onde residia mesmo quando primeiro ministro,
o seu conceito junto ao soberano creara raizes fortíssimas e
contra elle não podiam prevalecer os zelos que do burguez
jurista, filho de um pequeno advogado de província, nutriam
os fidalgos da corte.
Como ministro (2) tratou de fazer economias e
manter em equilíbrio o orçamento. Pessoalmente pouco
(1) Bni^il-Rchw e Brazil-Impci-io. António de Drummoind, cujo
archivo forneceu todo o attractivo e interesse aos trabalhos apressados
e indigestos de Mello Moraes, foi secretario do gabin<?t<; de Thomaz An-
tónio e, quando representante do Império em Lisboa, ainda conviveu
com seu antigo chefe que apenas falleceu em 1839, com 84 annos, e na
maior indigência e ind-ependencia como sempre vivera.
(2) Tliomaz António dirigiu os negocies da marinha e ultra-
mar de Junho de 1817 a Fevereiro de 1818, quando os entregou a
Arcos ; csi n<^g.oci.oiS estrangcãros e da guerra de fins de 1817 a fins <le
1820, quando chegou I'almella, e os do reino e fazenda, com a assis-
tência ao despacho, d^ 1817, depois de fallecer Bezerra, até pou(X)
antes da retirada da corte em 1821.
934 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mais fez, que conste. O seu conselho valia mais do que a
sua acção, e a sua iniciativa era sobrepujada pela sua ten-
dência conservadora. Timorato sempre, faltando-lhe o ha-
bito da responsabilidade, habituado como andava a agir por
traz dos reposteiros do despacho régio, nem mais soube na
velhice mostrar-se enérgico com relação aos desvios communs
entre o funccionalismo brazileiro e, em especial, as irregu-
laridades de que era notoriamente culpado o thesoureiro-
mór Targini (visconde de São Lourenço), cuja preponde-
rância continuou a vingar em matéria de fazenda como no
tempo do probo Aguiar.
O renome de Targini chegara a tanto que as denuncias,
que em 1817 choveram nas secretarias do Rio para serem
apresentadas a El-Rei, accusando todo o mundo brazileiro,
politico e social, de ser composto de pedreiros livres (os
quaes até então se não tinham visto molestados, fechando o
governo os olhos á sua tibieza religiosa por julgal-a com-
pativel com o fervor dynastico ( i ) ) sobretudo abocca-
nhavam o thesoureiro-mór — "que por todos os principios
engrossa a maledicência e traição contra a pessoa de Vossa
Magestade e seus direitos, extorquindo os cabedaes
régios de V. M., não só aqui, como pela sua autoridade es-
(1) iPricr (oh. cit.) ãvz eonstar-llie a existência no interior de
uma das melhores egrejas da Bahia de um retrato de corpo inteiro do
Príncipe Regente da Inglaterra com suas insígnias maçónicas de grão-
mestre, ajuntando ser a maçonaria muito admirada e seguida. Entre
os irmãos das trez lojas de São Salvador contavam-se, posto que o não
confessassem abertamente, o governador, o arcebispo e as pessoas prin-
cipaes da cidade, af6ra bastantes clérigos. "Os estrangeiros conhecidos
como maç^ões, recebem dos iniciadas .attenções e carinhos que outros
ambicionarão em vão."
Mal informado, porque sua demora no Rio foi de dias, pensava
Prior que o Príncipe Regente, n'este ponto acompanhado por alguns
ministros e pelas baixas camadas, enxergava a traição e o jacobinismo
unidos íi maçonaria, quando de facto a tolerância emanava d'eille ou
se não daria.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 935
gotando os das capitanias, O vulcão rebenta e estoura,
e talvez sem remédio; a convenção ou partido da assembléa
engrossa "
Esta denuncia ( i ) especificava mantas compradas a
um compadre inglez por i.ooo réis para o arsenal do exer-
cito, cortadas ao meio e pagas pelo governo a 2.000 réis,
ganhando a sociedade cinco contos para mais; vinte e dois
praticantes do erário nomeados a negocio para poderem es-
capar ao recrutamento forçado; os criados do serviço par-
ticular do traidor retribuidos sob o titulo de continuos do
erário, sem ahi terem jamais apparecido para exercicio; sua
casa de moradia construida á sombra da edificação do mesmo
erário.
Uma outra denuncia, dirigida a Dona Carlota Joa-
quina, de quem se reclamava o "valor heróico" da sua com-
patriota Dona Luiza de Guzmán, visava não só Targini
como todos os conselheiros do monarcha. O delator ano-
nymo, querendo no fundo impedir a remessa de soccorros
legalistas para a Bahia e Pernambuco e acabar com o exercito
pois aconselhava a prisão de todos os officiaes por desleaes
(2), pretendia desvendar a ameaça de uma revolta de ne-
gros no caso de lavrar discórdia mais seria entre os brancos,
e simulava revelar um assombroso plano de ''pôr em desor-
dem este contingente afim de introduzirem para o governo
destes Estados os irmãos de Bonaparte, que se achão nas
Américas Inglezas, e ao depois tudo ser entregue a Bonaparte,
arrancado pela força de Santa Helena."
(1) rublicada por Mello Moraes na 06. cit.
(2) Ordenaria ousadamente esta prisão o Príncipe Real, "que
no futuro virá a ser acclamado Imperador", reza a denuncia.
936 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
E' curioso que o senso popular tão bem discriminava
entre thesoureiro-mór e ministro, que não pedia para elles
igual punição: um era culpado de malversações, o outro só
o seria de fraqueza. O pasquim, fructo da effervescencia
politica de 1821, assim dizia:
Excelso Rei,
Se queres viver em paz
Enforca Targine
E degrada Thomaz.
O ministro tinha as melhores preoccupações de admi-
nistração, quando o thesoureiro-mór só tinha, na voz do
povo, os peores instinctos de corrupção. Assim, foi Thomaz
António partidário decidido da colonização estrangeira, pro-
jectando outros núcleos suissos e allemães como o de Fri-
burgo, e não os levando a effeito provavelmente pela oppo-
sição real. Dom João VI achara muito dispendiosa aquella
experiência, na qual veio a sahir cada immigrante por
1.500 francos, e opinava, segundo mesmo disse a Maler (i),
que melhor houvera sido facilitar aos colonos a entrada á
for?n{ga do que concluir para sua introducção negócios
onerosos, de que sobretudo se aproveitavam os empreiteiros,
sem que a qualidade ou sequer o numero compensasse a avul-
tada despeza.
O peior effeito do ensaio de Friburgo fora na verdade
o de ser immigração subsidiada, recolhidos os emigrantes á
matroca entre gente pouco apta para tal fim e enganada por
promessas miríficas. Diz von Leithold (2) que muitos dos
(1) Officlo de 28 de Setembro de 1819.
(2) 06. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 937
colonos vieram na ídéa de serem senhores de terras e de
negros, e outros tantos na esperança de reconstituírem suas
fortunas e voltarem em pouco tempo, todos elles, como rica-
ços para suas terras. O desapontamento foi grande quando
se encontraram sem escravos e com a terra em frente para
cultival-a com seus próprios braços. Desanimados, não pou-
cos, os allemães — ^pois que esses immigrantes suissos e catho-
licos eram em boa parte Allemães do Sul e protestantes —
fizeram-se soldados.
Da immigração portugueza também foi Thomaz Antó-
nio protector, fundando em Santa Catharina uma colónia
de pescadores da Ericeira e outras colónias em diversos pon-
tos, para as quaes se sérvio dos soldados portuguezes a que
ia dando baixa, substituindo-os por praças destacadas das
forças que as guerras tinham acabado por accumular cm
Portugal e que o governo do Rio canalizara para o Brazil
e para Montevideo.
O conselheiro de Dom João VI não possuio entretanto
resolução, ou mesmo percepção intellectual bastante aguda
para chegar até as medidas superiores e effectivas, de poli-
tica domestica, que melhor poderiam attrahir e desenvolver
a apreciada colonização européa, de tão fecundos resultados
si hábil e intelligentemente encaminhada desde então.
Mais respeitador das formas do que o seria qualquer
outro ministro da coroa, graças á sua educação jurídica,
desapprovou de modo discreto a conducta do conde dos
Arcos na Bahia, mandando executar sem garantias e até sem
processo os revolucionários pernambucanos desgarrados ou
arrastados; substituio o secretario do novo governador Luiz
do Rego, culpado de violências; ordenou, de preferencia á
summaria justiça militar, a alçada que funccionou na pro-
938 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
vincia rebelde, e também a inconfidência que se exerceu no
Rio contra os pedreiros livres, valendo-se dos meios de denun-
cia, espionagem e inquéritos sob sigillo porque eram os que
lhe facultavam a legislação e os costumes da epocha ; por fim,
não julgando ser uma sedição local motivo sufficiente para
retirar o Rei ao Brazil sua benevolência e transformal-a em
odienta perseguição, propoz a Dom João VI, por occasião da
sua acclamação em 1818, conceder uma amnistia geral e
completa que no ultimo momento foi, ao que anda relatado
em Mello Moraes, ( i ) trocada por uma ordem, mal obede-
cida que veio a ser, de suspensão das prisões e outras perse-
guições ainda em andamento por motivo da revolta de 6 de
Março de 181 7.
Acompanhando o movimento imperialista peculiar ao
momento, defendeu Thomaz António a politica de prolonga-
mento meridional da costa brazileira até o Rio da Prata,
sendo n'este ponto o seu ardor igualado pela indifferença
com que encarou a restituição de Cayenna — terras, dizia
elle, de que não precisava o Brazil, para o qual, não obstante,
architectava em sua mente um glorioso porvir, repetindo, e
de certo mais sinceramente, com o poeta:
Povos ! Se os Luzos, com o invencivel Gama
Ao mando do seu Rei debelão Reinos,
Hoje o que farão por seu Rei guiados ! (2)
Feitas as contas, sommados os proveitos e descontadas as
desvantagens, o Brazil lucrara, assaz o temos visto, com a
(1) 05. cit.
(2) Discurso offerecido aos Bahianos no dia da abertura do
seu novo theatro, aos 13 de Maio de 1812.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 939
mudança da corte para o Rio de Janeiro, uma profunda
alteração nas suas condições mercantis, económicas, intelle-
tuaes, sociaes e politicas. De facto ganhara a independência
que seria consummada em 1822, mas que já antes se fizera
sobremodo clara e evidente.
D'aquella alteração foram vários os instrumentos, vários
mesmo os agentes, mas fautor constante foi o monarcha que
alli, na sua colónia americana, se acolhera n'um momento
dramático, alli gosara bem estar physico ( i ) , satisf acções mo-
raes e até triumphos bellicos, alli desejaria ter descançado para
sempre, e pelo menos alli fundou e deixou uma dynastia
para guiar os destinos da nova nacionalidade no encalço das
suas honrosas tradições.
Dom João VI não foi o que se pode chamar um grande
soberano, de quem seja licito referir brilhantes proezas mili-
tares ou golpes audaciosos de administração : não foi um Fre-
derico II da Prússia nem um Pedro I da Rússia. O que fez,
o que conseguio, e não foi afinal pouco, fel-o e conseguio-o
no emtanto pelo exercicio combinado de dous predicados que
cada um d'elles denota superioridade: um de caracter, a bon-
dade, o outro de intelligencia, o senso pratico ou de governo.
Foi brando e sagaz, insinuante e precavido, affavel e
pertinaz.
Da sua amabilidade contam-se traços de captivar. Quan-
do a Archiduqueza Leopoldina, apoz a cerimonia do casa-
mento, chegou a São Christovão, que tinha sido preparado
para receber os nubentes, encontrou nos seus aposentos parti-
(1) A nao ser a conhecida moléstia da perna, que alguns dizem
ter sido uma ulcera rebelde, e provavelmente não passava das lymplia-
tites de que depois, em Lisboa, o Rei continuou com frequência acha-
cado, o estado de saúde de Dom João no Brazil foi sempre o mais sa-
tisfactorio.
940 DOM JOÃO VI NO BKAZIL
culares o busto do Imperador da Áustria, seu pai, e o Rei
fez-lhe entrega, para que lesse e se distrahisse, de um livro
que, ao abrir e folhear, verificou ella commovida conter os
retratos de toda a sua f amilia ausente. ( i )
Para avaliar sua esclarecida equidade, basta referir o
que observou o cônsul Henderson: que os Inglezes residen-
tes no Rio, quando lhes occorriam difficuldades serias com
a administração, preferiam muito dirigir-se directamente ao
monarcha, sempre disposto a fazer justiça, a entender-se
com seus ministros. Frequentes vezes na sua obra, (2) o
auctor britannico elogia a cordura, a benignidade e o libe-
ralismo de Dom João VI, que um escriptor dos nossos
dias, (3) confundindo a miragem com a perspectiva, intitu-
la com mais espirito do que verdade histórica um "real
fantoche."
Também o ministro americano Sumter dizia gostar
incomtparavelmente mais de tratar com o Rei, cuja bondade
reconhecia e proclamava, do que de tratar com seus conse-
lheiros, sobre quem lançava a culpa de quanto pudesse sue-
ceder de mau. " Falia em termos favoráveis do Rei, mas
julga péssima a condição da sociedade e altamente desap-
prova os mil vexames e abusos praticados com o povo em
nome do Governo." (4) Tão longe estava aquelle diplomata
de considerar o Rei uma nuUidade, que n'elle admittia von-
tade sincera de cultivar boa intelligencia e amizade com os
(1) L>ebret, Voynfje Pitiorcsque, vol III.
(2) A History of the Brazil.
(3) Paul Groussac, no est. cit. sobre S. Liniers.
(4) Braekenridge, Yoyaye lo South America, performcd 6/y ar-
der of the Atneriean Government in the years 1817 and 1818, in the
Friffâ^te Congress. Baltimore 1819. O auctor m comoi secretario d'essa
missão politica ao Rio da Prata, mandada inquirir da situação das
Províncias Unidas.
i
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 941
«
Estados Unidos, reputando-o em tal assumpto muito mais
adiantado do que os seus cortezãos.
São traços todos esses mai^ authentlcos e fidedignos na
sua sympathica nobreza do que as anecdotas picarescas que
valeram a Dom João VI um renome — talvez não usurpado si
contido nos limites do desenho e não puxado até a caricatura
— de desmazelo bonacheirão e de esperteza saloia, uma
aureola barata de bonhomme Richard coroado, uma fama
de rei philosopho, que apimentavam suas desventuras con-
jugaes e a que emprestava verosimilhança o seu physico in-
grato, honiely como bruscamente o qualificou Prior.
Baixo, gordo, sanguineo, tinha de aristocrático as mãos
e pés muito pequenos, mas de vulgar as coxas e pernas muito
grossas mesmo em relação á corpulência, e sobretudo um
rosto redondo sem magestade nem sequer distincção, no qual
avultava o lábio inferior espesso e pendente dos Habsburgos,
sem porém a maxilla protuberante e o queixo pontudo de
alguns dos príncipes austriacos, cujos retratos nos foram lega-
dos por celebres artistas — que de certo não aninhariam tal
propósito maldoso — como exemplares indiscutiveis de dege-^
nerescencia.
Em Dom João VI as imperfeições de todo ser humano
não chegavam para que desmerecessem as solidas qualidades.
Si era timido, pusillanime mesmo, como tal egoista, resen-
tido, ciumento de attenções, amigo de monopolizar as defe-
rências e inimigo de perdoar os aggravos menores, também
era clemente, misericordioso nas grandes occasiões quando se
fazia appello directo ao seu coração, arguto em qualquer
emergência, raramente ou nunca perdendo o equilibrio mo-
ral, tão generoso para com seus fâmulos e validos quanto
económico comsigo, estudioso aferrado dos negócios públicos
D. j. — 59
942 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
e governante invariavelmente bem intencionado. Eram aquel-
les em summa pequenos defeitos a contrapor a um bello
conjuncto de virtudes, raro n'um monarcha despótico.
Seu senso politico revelou-se em muita occasião. Um dos
mais fracos soberanos da Europa, vimos ter sido o único que
escapou ás humilhações pessoaes por que fez Napoleão passar
os representantes do direito divino: os Bourbons da Hespa-
nha e da Itália, ludibriados, depostos, vagabundos ou capti-
vos; o Rei da Prússia, expulso dos seus Estados; o César
austríaco, compellido a implorar a paz e conceder ao aven-
tureiro corso a mão de sua filha; o próprio Czar, ora tendo
que acceitar intimidades em entrevistas memoráveis, ora que
rebater a invasão devastando provincias do seu Império.
E não ha dizer que Dom João VI seguia impulsos de mo-
mento, fazia politica só de opportunismo. '*A medida da emi-
gração, escreve Prior, em tempo nos pareceu a todos tão
extranha quanto desusada, e tem sido abusivamente commen-
tada, um aipoz outro, por quasi todos os politicos da Europa;
mas quer se haja originado na timidez ou na fraqueza, pro-
vou ser da mais profunda sabedoria politica."
Calando a circumstancia de que para a trasladação da
corte portugu^za contribuíram em dose apreciável os ciú-
mes do Príncipe Regente pela sua mais valiosa colónia, des-
pertados pelo conhecimento em que estava dos esforços em-
pregados pela Inglaterra desde 1790 para emancipar a Ame-
rica Hespanhola, (i) Prior faz justamente sobresahir o facto
de ter o Rei de Portugal ficado illeso dos maus tratos de Bona-
parte e haver preservado a união com sua importantíssima
possessão — "onde o desejo de independência era geral entre
(1) Lyman, History oj lhe Diplomacy of the United States,
vol. II. Boston.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 943
o povo e fraco o poder do governo local," ponderava elle
com mais presciência do que exactidão.
A America do Norte verdade é que offerecia um exem-
plo feliz, "de ha muito admirado, e que de certo teria sido
imitado desde logo si os Brazileiros possuissem vigor de cara-
cter igual ao d'a'quelle povo turbulento. Faltava também um
ensejo para servir de pretexto plausivel á renuncia da metró-
pole, mas esse o forneceria á colónia a invasão franceza, não
havendo sombra de duvida entre os que melhor conhecem
o paiz que, a não ser pela chegada opportuna do governo,
o Brazil teria seguido, senão precedido os esforços das coló-
nias hespanholas em prol da sua independência." ( i )
A unidade de vistas provinha para a administração por-
tugueza de que, governando com estes ou com aquelles minis-
tros, de differentes opiniões, Dom João VI nos problemas
essenciaes impunha sempre sua orientação. Assim, emquanto
permaneceu no Velho Mundo, nunca deixou de pôr sua
confiança e fiar seu salvamento da alliança ingleza. Uma
vez, porém, que percebeu quanto se esquivava no Novo
Mundo, não só á coacção das outras potencias como á
pressão da nação amiga, não quiz mais sahir da America e
decidio ahi permanecer, mau grado todas as instancias feitas
em 1814 e 181 5 pela Santa Alliança e nos annos subsequen-
tes reiteradas pela Grã Bretanha. Dom João VI avaliara cona
justeza quão difficil tornavam os recursos incompletos de
então qualquer efficaz demonstração armada a tão grande
distancia.
Sabemos que o êxodo de 1807 só foi precipitado na occa-
sião, no instante, não se calculando tão prompta a invasão
e querendo o Principe aguardar a suprema injuria e o paro-
(1) Prior, 06. cit.
944 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
xismo da crise, que justificariam sua attitude. Pois da mesma
forma que resolveu e preparou com tempo sua partida para
o Brazil para o caso que s€ verificou, e que só os irresponsá-
veis podiam deixar de prever dada a marcha dos aconteci-
mentos politicos e perante o proceder de Napoleão com rela-
ção ás velhas monarchias da Europa, reflectio Dom João
maduramente na questão do regresso com a paz geral.
Pesou elle perfeitamente que a residência prolongada
no Brazil até constituia uma melhor garantia da indepen-
dência de Portugal do que o apoio interesseiro da Grã
Bretanha, porquanto as colónias hespanholas, luctando ainda
desesperadamente pela emancipação, serviam de excellente
penhor do recolhimento da metrópole, a qual bem compre-
hendia que Portugal tentaria engrandecer-se na America
do Sul do que perdesse na Peninsula.
Era Dom João VI por demais intelligente para não des-
cobrir que a integridade portugueza, uma vez reposta a nor-
malidade na Europa, era do interesse de todos, não só do
gabinete de Saint James: o que provou mais tarde quando
procurou que, em Laybach, as grandes potencias conjuncta-
mente garantissem a inviolabilidade do seu velho Reino
amotinado e inçado de iberismo democrático. Os alliados por-
tuguezes quasi não precisavam ser solicitados nesse ponto.
Eram espontâneos e naturaes, não podendo qualquer dos
factores europeus de importância aspirar a destruir o equi-
librio de fronteiras e de idéas restabelecido em Vienna.
Já no século XVIII escrevia o abbade Raynal que
nunca a politica previdente, inquieta e suspicaz d'aquelle
século supportaria que todos os thesouros do Novo Mundo
cahissem nas mesmas mãos, ou que uma casa reinante, vindo
a dominar só na America, ameaçasse a liberdade da Europa.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 945
A Portugal e Brazil não era licito levar tão longe seu deva-
neio de dominio americano : a Hespanha é que se não confes-
sava, longe d 'isso, vencida nas suas colónias, e até jurava tirar
estrondosa desforra da perfidia portugueza em se aprovei-
tar das suas difficuldades.
Por todas estas razões politicas, e porque sua natureza
era amiga das commodidades, sobretudo aos 50 annos, (i)
e se sentia bem no Brazil, resistio o Rei ao desejo expresso,
ao ciúme manifesto, ás reclamações da antiga metrópole, tão
desgostosa com a perda da sua posição de auctoridade e de
exclusivo económico, que chegou a correr no Rio de Janeiro
com grande insistência que os Portuguezes, renovando os
episódios nacionaes do Mestre d'Aviz e do Duque de Bra-
gança, iam acclamar soberano o joven Duque de Cadaval,
descendente, como os Braganças, do Condestavel Nunalvares.
Fora Cadaval, filho do duque fallecido na Bahia á
vmda de Lisboa, o primeiro fidalgo de nota a desertar a
corte americana de Dom João VI, regressando para Lisboa,
a pretexto de tomar estado, com a duqueza sua mãi, na
companhia de seu tio materno o duque de Luxemburgo,
quando voltava de reatar as relações entre a França de
Luiz XVIII c o governo portuguez. (2)
Radicava-se também o boato da usurpação no facto
relatado por Debret, bem informado nestes assumptos, de
andar o joven Cadaval mal visto na corte, porque, muito
vanglorioso da sua estirpe e tendo a atiçal-o o orgulho da
10 do,Ma!o oHsíu'" ''' "'■'''" ^ '■' ^' '^''''^ ''' '""'' " '■«"^'^^" ^
(21 Mello Moraes {Brazil- Reino o ItrazU-Tinimin) cita oslo
incKlonte histórico com Cadaval, (nie confirmam umas rcforoncias muito
viMadas de Luccock <^ corroborai a correspondência diplomática do tompo
A constniccao planeada de iim solar no Rio, nas Laranjeiras, tinha pro-
vavelmente por motivo distrahir as attenções da ausência e fazel-a
passar por temporária.
946 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
velha fidalga franceza, contrariada no Brazil, onde per-
dera o esposo e levava uma vida acanhada, nunca quiz accei-
tar emprego do seu real primo, afim de conservar o distincto
e raro privilegio de trocar visitas com o monarcha e não
passar á obrigação de comparecer ao beija-mão. (i)
Aliás era, n'esse tempo de súbitas mudanças dynastlcas,
postas em moda pela Revolução e suggeridas pelo extraordi-
nário destino de Bonaparte, o nome do duque de Cadaval
com frequência citado como o de um rei eventual de Portu-
gal. A duqueza d'Abrantes, ao mencionar nas Memorias
a sua compatriota duqueza de Cadaval, cuja belleza, en-
canto, dignidade e génio administrativo — revelado na re-
construcção financeira da casa ducal — exalta como é natural,
escrevia, e isto em epocha posterior, depois da lucta entre
Dom Pedro e Dom Miguel, que Cadaval, o qual de resto to-
mara franco partido pelo rei legitimo, e, finda a contenda, se
expatriou, podia vir ainda a sentar-se no throno portuguez.
Não seriam porventura extranhas mesmo a essa expa-
triação da casa de Cadaval, que ainda perdura, semelhantes
intrigas de successão, comparáveis com as que em França
então se agitavam em redor do Duque de Orléans e acaba-
ram coUocando a coroa sobre sua cabeça. Que uma conspira-
ção existio, formal ou incipiente, seguida ou interrupta, no
intuito de substituir Cadaval a Bragança, ou pelo menos que
foi uma realidade o pensamento de tal mudança, não pode
soffrer duvida.
De Lisboa escrevia para Pariz o cônsul geral Les-
seps (2) que, na crise moral portugueza, dous partidos se
íl) Debret, 06. cii. Uma litbographia colorida da serie publi-
cada na obra anonyraa Sketches of Portuf/al conservou-nos, com in-
tengão ridícula, a lembrança d*este cortejo em tempo de Dom João Ví.
(2) Officio oifra.do de 31 de Maio de 1&17, na ArcQi. do Min.
dos Neg. Est. de 1^ rança.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 947
avantajavam e ganhavam terreno : o dos intellectuaes, dis-
pondo de menos força porque nem possuía o consentimento
tácito do povo, mas podendo vir a ter o apoio da tropa, e era
o que pensava em republica ; e o de grande parte da nobreza,
descontente do seu papel nullo, longe da corte, e estribada
nas classes populares. Desejava esta facção uma mudança de
dynastia, sem se derrubar a instituição monarchica, e tinha
os olhos postos em Cadaval.
Era este o partido que se poderia denominar, fazendo
recuar o appellido transplantado, do Greater Portugal, vi-
sando a recolonização do Brazil. O da republica podia pas-
sar pelo do Little Portugal, já que não descobria inconve-
niente em ficar o Reino reduzido ás suas proporções européas,
''suffisant a ses besoins par les seules ressources de son terri-
toire et de son industrie", (i)
Nem se pode ter por menos certo o facto, quando o
marquez de Marialva ( 2 ) fazia julgar pelo tribunal do
Sena e condemnar a dous annos de prisão e 4.000 francos de
multa o Cônsul Sodré Pereira como auctor do folheto im-
presso em Pariz e intitulado Pieces Politiques. (3) Incluia
este folheto uma carta de Lisboa em que se alludia franca-
mente á conspiração em favor do duque de Cadaval, e quem
(1) Tanto se espalihara o boato concernente a Cadaval que,
ao regressar de Franqa um medico francez domiciliado em Lisboa e
muito ligado com a fa,mil,ia ducal, o. Dr. Gavrelle, foi visitado a bordo
por um corregedor que lhe pediu todos os papeis para examinar (€or-
rcsip. de Lesseps, ihkloii).
(2)' Corr-isp. da Embaixada Portugueza em Pariz em 1820. no
Arch. do Min. das Kel. Ext.
í'3) ,S.O'di'é homd'SÍara-se na Inglaterra logo que a Embaixada re-
quereu da justiça franceza um inonerito nolicial sobre a auctoria da
referida publicarão, para servir de fundament<o á projectada, acção
criminal : ao mesmo tempo que o cônsul gorai Bernardo Daupias pro-
cedia por seu lado a uma inquirição que podesse servir de base ao pro-
cesso a ser iniciado era Portugal contra o incriminado escriptor da bro-
chura e seus cúmplices, culpados do crime de lesa-magestade (Cor-
resp. cit. de Marialva).
948 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
em Pariz a recebera devia forçosamente pertencer ao grupo
de Portuguezes ahi residentes, em contacto com os elemen-
tos jacobinos francezes e em correspondência com os liberaes
hespanhoes, que tão activa parte tomou no preparo da revo-
lução constitucional do Porto, e depois de Lisboa, que assi-
gnalou o anno de 1820.
O afan de Marialva em perseguir os delinquentes,
assim patenteando sua devoção á dynastia, devia ser tanto
maior quanto sua alliança com a casa de Cadaval era de
familia e interesses, e por motivo d'ella o tinham até querido
tornar de novo suspeito aos olhos de Dom João VI, esquecido
já de -passadas tibiezas. Com ef feito uma das trez irmãs do
marquez estribeiro-mór desposara, muito nova, o velho du-
que de Lafões, cuja casa, ao extinguir-se por falta de suc-
cessão masculina immediata, se vinculara por matrimonio
na de Cadaval.
De 181 5 a 1820 discutio-se constante e acaloradamente
em Portugal a volta da familia real para a velha sede da
monarchia. A partida de Dom João VI para Portugal seria
no emtanto o signal certo da separação imminente, assim como
a revolução pernambucana de 1817 fora o symptoma inilludi-
vel da fermentação geral dos espirites. Ninguém prévio me-
lhor esta scisão e tão bem definio os acontecimentos como o
abbade de Pradt, ao escrever sobre a mudança da corte : ( i )
"Formaram-se immediatamente duas novas combinações en-
tre Portugal, reduzido agora a colónia, e o Brazil vindo a
ser metrópole; entre o Brazil aspirando a conservar o Rei,
e Portugal de sua parte aspirando a recuperal-o ; entre o
Brazil vivificado e enriquecido pela presença do Soberano,
(i) Les trois dcrnicrs móis de VAmcrique Mcrulionalc et du
Brésil. Paris, 1817.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 949
e Portugal humilhado e empobrecido pela sua ausência, e
affligido pela distancia." (i)
No velho Reino o descontentamento não fizera mais do
que ir crescendo até que se manifestou tumultuario e sub-
versivo. No próprio officioso Investigador Portuguez em
Inglaterra, que deixou de receber a subvençcio e por isso
teve de suspender a publicação (2), citavam-se em 1818 as
Cortes de Coimbra, nas quaes foi acclamado Rei o Mestre
d'Aviz, em abono da these de que aos Portuguezes cabia o
(í) Versão publicada no Correio Brazilicnse. Na sua obra sobre
o Congresso de Vienna — ^de facto cm todas suas publicações — manifes-
tava-se de forma ainda mais cathegorlca a opinião do antigo capellão de
Napoleão e ex-arcebispo de Malines : "El-Rey não pode conservar o
seu dominio em Portugal e no Brazil, e deve escolher ou ser Key de
Portugal, e abandonar o Brazil, ou ser Rey do Brazil, e abandonar
Portugal."
(2) A subvenção de que gosava o Investigador foi retirada em
liSlO pelos çixcessos e erros commiettLdos, no juizoi do governo, pelo
collaborador José Liberato Freire de Carvalho, o traductor de Tá-
cito ; mandando comtudo logo depois a corte do Rio ordem ao conde
de l*almella para agir no caso como melhor entendesse e. quorendo, con-
tinuar a subvencionar o periódico. Palraella, porém, não quiz valer-se
da faculdade concedida porque, dos redactores prinoipaes d^ Invcsii-
gador, um, o Dr. Vicente Pedro Nolasco, estava muito doente em Pariz,
e o outro, o Dr. INIiguel Caetano de Castro, diplomado pela Univer-
sidade de Edimburgo, deliberara ir clinicar em Lisboa. Fazia-se mister
procurar e encontrar novos redactores habilitados. Sendo os A iinors
das Sciteiicias, Artes e Lettras de Pariz uma publicação muito «siJaçada
(era trimensal) para poder ser aproveitada com vantagem para fins
políticos, inserindo-se n'ella artigos officio.sos — quando mesmo fossem
para tanto competentes os seus directores, cujas habilitações e pre-
dilecções eram diversas — achava Palmella preferível, para responder
fis verrinas ú'0 Portuguez e do Correio Braziliense, "publicarem-so no
Rio do Janeiro e em Liisboia jornaes que defendessiem a cauza do Go-
verno com talento e conhecimento." (Corresp. de Londres, no Arch.
do Min. das líel. Ext.)
Palmella não se vexava com esses Jornaes da mesma fornia que
Funchal, também porque elles o mall ratavam incomparavelmenti» me-
nos, e o seu alvitre tinha a dupla vantagem de evitar A Legação em
Londres o contacto pouco agradável de uma impiiensa assalariada, que
entre os Inglezes pouco significava o aos Portuguezes nenhum serviço
l)res'tava .de valor, e vulgarizar nas duas capitães do Reino Unido
de Portugal e Brazil o uso da imprensa politica com os benefícios que
d'elle se derivavam.
Os Annaes obtiveram todavia um subsidiai para manterem-.-:e
posto que permanecendo a politica fora da orbita das suas prooc-
cupaicões.
950 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
pleno direito de escolherem um Soberano, estando vago o
throno: e o throno devia considerar-se vago pois não era
admissivel, e segundo o abbade de Pradt depunha até contra
a honra da Europa, que uma corte da America tivesse pos-
sessões européas.
Aliás o incançavel publicista encontrava as maiores van-
tagens em fazer-se o Rei de Portugal de todo Braziliano,
apenas lamentando que a nova corte tivesse sido dominada
por velha gente, os novos negócios manejados por homens
antigos, os novos objectos regulados por instrumentos anti-^
quados. Por isso se não vira inventar uma só medida, dizia
elle, das de grande momento, afora a liberdade de commer-
cio, decretada em circumstancias especiaes, applicavel ás con-
dições do Brazil, onde tudo continuara a ser regido pelo sys-
tema portuguez, quando não colonial. O meio, as necessi-
dades, tudo entretanto era differente.
"Vassallo ou inferior de todos na Europa, El-Rey do
Brazil, ipizando a terra da America, adquiriu um campo im-
menso ; entrou na politica do universo, em que lhe cabia tam
pequena partilha, pelos seus territórios Europeus. Súbdito,
em sua antiga habitação; na nova, he de todo independente;
e participa no systema de emancipação, que he a nova vida
dos paizes, q«e o cercam." ( i ) O que poderia vir a ser o
Reino Americano creado pelo monarcha portuguez, deva-
neav^-o a imaginação do abbade, alimentada n'essa epocha de
soffreguidão mental por todas as chimeras liberaes herdadas
da transformação de idéas do século XVIII.
Única voz discordante aquém do Atlântico de que nos
haja chegado a repercussão além da de Pradt, Hippolyto
era de parecer que, no estado de agitação e incerteza no qual
(1) Versão cit. do Correio Brasiliense.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 951
se encontrava a America Hespanhola, caso o Rei estivesse
em Lisboa, se lhe devia aconselhar que embarcasse para o
Brazil a cuidar dos seus interesses, visto representar o dominio
ultramarino o melhor apanágio da coroa.
Assim o entendia Dom João VI, sem querer todavia ferir
muito fundo o ciúme dos seus vassallos portuguezes, antes
affectando pelas formas um respeito meticuloso. Sua accla-
mação foi adiada de 1817 para 1818 por motivo da rebel-
lião de Pernambuco, mas já fora transferida de 1816 para
181 7, não tanto pela consternação causada pelo fallecimento
da Rainha quanto pela razão apontada por Marrocos (i)
como lhe havendo sido communicada: *'Dizem-me que a
acclamação não se faz ainda, sem chegarem as Deputações
dos Reinos de Portugal e Algarves, em razão de não haver
Junta dos Tres-Estados : não sei se isto he supprimento de
Cortes, mas parece-me hum passo muito acertado, para não
haverem depois questões, por não ser feita a acclamação na
sede da Monarquia: E por que não se fará lá ? Dicant Pa-
duani."
D. Maria I expirara a 20 de Março de 1816: findara
aos 82 annos o seu longo vegetar. A 23 de Fevereiro, na sua
minuciosa chronica á familia dos acontecimentos da corte do
Rio, dava Marrocos noticia da gravidade da sua condição
havia mais de um mez. **De dia em dia a sua moléstia se
tem aggravado muito, principiando por huma dysenteria, fe-
bre, fastio; e daqui tem proseguido a huma insensibilidade
notável da cintura para baixo, inchação de pés e mãos, e
olhos quasi sempre fechados. Tem tido algumas occasiões
de allivio; porém, passado este, carrega-lhe novo ataque
destes simptomas com mais força; e apezar das diligencias e
(1) íCarta ao Pai de 28 de Maio de 1816.
052 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
disvelos dos facultativos com os soccorros da Medicina, nada
até hoje nos tem dado motivos de alguma esperança de sua
perfeita cura. Todavia não deixam de a levantar sempre da
cama, e dentro de uma cadeirinha é conduzida todos os dias
por dentro do Paço em forma de passeio, o que sem duvida
lhe é muito proveitoso: e por ultimo ha idéas e votos de a
fazerem tomar novos ares em um sitio pouco distante daqui,
a que chamão Mata^Porcos, onde foi a residência do falle-
cido conde das Galvêas."
Quando no seu estado, por tantos annos normal, de
bem estar idiota, dava a Rainha diariamente o seu passeio de
carro pelas ruas da sua nova capital, ( i ) que ella nunca che-
gou a conhecer e differençar com os olhos do espirito. No
Rio de Janeiro entretanto lhe foram prestadas as impressi-
vas honras fúnebres devidas á sua jerarchia.
Assim que peorou extremamente a enferma e se decla-
rou o artigo de morte, a 19 de Março, sahiram á rua confra-
rias e clero, secular c regular, com a cruz alçada e entoando
ladainhas e preces, indo todos rojar-se na Real Capella
ante o Santissimo Sacramento e recitar as antiphonas, versos
e orações litúrgicas da occasião. No palácio o officio da ago-
nia e os psalmos ipenitenciaes eram simultaneamente rezados
pelo bispo capellão-mór, pelo núncio e por frei Joaquim Dâ-
maso, da Congregação do Oratório (2).
Uma vez dado pela pobre demente o ultimo alento, ves-
tiram-lhe o cadáver de negro com a banda das trez ordens
(1) Padro 1aú7j (íon(;a.Ivi»s dos Sanctos, 06. cit.
(2) rapellão da Infanta Dona Marianna, irmã da líainha, fal-
locida no Rio om ISiri, o liihliolhecario real. Não querendo ficar no
Brazil cm 1821, foi oUe (lucm do novo levou para IJsboin os manus-
criptos da Coroa. Marrocos descrevia o padrcsinJio como tão valido de
Aguiar, "que tem toda a liberdade de ver, mexer, e remexer todos os
Papeis da dito Conde, e ■est« o consulta em muitos Etespachos ....
(Carta de 19 de Maio de 1812).
DOM JOÃO VI KO BRAZIL 953
militares e da Torre e Espada, cobriram-lhe os hombros com
o manto das mesmas ordens e passaram-lhe o ijianto real
de velludo carmezim bordado de estrellas d'ouro e forrado
de setim branco. N 'estas galas mortuárias celebrou-se o beija-
mão da defuncta na presença do novo Rei — "o qual está
na maior desolação possivel de magoa e de saudade, perdeu o
comer e ainda persiste em continuo pranto" (i).
Mettido o corpo n'um caixão forrado de fina Ihama
branca e por fora de velludo negro, com drogas aromáticas
seccas e moidas dentro (2), celebrou-se o funeral com as
mesmas solemnidades, em maior escala, observadas por oc-
casião do enterro do Infante Dom Pedro Carlos : idênticos
responsos e outros actos religiosos do ritual e da pragmática
e uma importante exhibição militar. Nas decorações luctuosas
da egreja predominavam os tons roxos da viuvez, e a pompa
da realeza ainda se affirmava na construcção de columnas
de capiteis corinthios e cúpula de velludo preto com galões
de ouro e prata sob que respousava a eça, em redor da qual
se succediam em todos os altares missas encommendando a
alma da soberana.
O officio fúnebre foi presidido pelo núncio do Papa,
que rezou o responso final, seguindo até a porta o cortejo em
que figuravam a familia real, a camareira-mór e as damas
'Vestidas de donaire", todos os circumstantes segurando to-
chas. No préstito formaram os cónegos e os nobres, de capas
pretas, nas suas montarias também cobertas de mantas de
lucto, alumiados pelos criados de libré ostentando nos teli-
zes do braço os brazões das casas fidalgas que serviam.
(1) íCarta de Marrocos ao Pai, ãe 30 de Março de ISltí.
(2» Paidre Luiz Oonralvcs dos Sanctos, ob. cit.
954 DOMfJOAO VI NO BRAZIL
Puxavam o coche oito machos e escoltavam-no os re-
gimentos de linha e de milicias "com os tambores cobertos
de baetas negras, as bandeiras de rasto, e enlutadas com
fumo, e com marchas muito maviosas." (i) A' porta da
cgreja da Ajuda desceu-se o caixão, que primeiro foi levado
sobre o esquife da Misericórdia, aos hombros de irmãos po-
bres, n'um bello symbolo da igualdade humana perante a
morte, e então carregado para o interior pelos grandes
do Reino e reposteiros do Paço, emquanto os officiaes da Real
Casa quebravam suas insígnias em publico.
Oito dias depois os vereadores da Camará em sombria
procissão, precedida por um cidadão de capa negra, com
bandeira negra e o fumo arrastando do chapéu de largas
abas, também quebrariam os escudos nos tablados adrede
levantados na praça do Capim, no largo de Santa Rita, no
Rocio € diante da Lapa do Desterro, concitando o povo a
chorar a morte da sua Rainha (2), cujo lucto de um anno
já o bando do Senado sahira a annunciar.
Contemplações pela saúde de Dom João fizeram redu-
zir o nojo a oito dias ( 3 ), decorridos os quaes a família
real recebeu pezames e sahiu a ouvir missa e aspergir o cai-
xão, sendo recebida dentro do coro pela communidade do
convento, com a abbadessa á frente, de pluvial negro.
As exéquias realizaram-se a 23 de Abril, na Real Ca-
pejla, forrada de alto a baixo de negro avivado de ouro que
se casava com os entalhamentos dos altares, as franjas dos
(1) Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos, oh. cit.
(2) Em Lisboa, onkle se achava em 1816, Toillenare presenciou
ipspeetaculo análogo promovido pelo Senado da Camará (Parte ms. e
ined. das Notas Dominicaes) .
(3) "El Rey N. Senhor em razão do clima dispensou as meias
de seda em luto rigoroso : e logo ao principio havia dispensado o rigor
da Pragmática de 1746, quajito a pessoas pobres". ((Carta de Marrocos
ao Pai de 30 de Março de 1816).
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 955
dóceis e o espaldar do sólio episcopal. Na véspera, mergu-
lhado nas trevas o mausoléu octogono com emblemas ma-
gestaticos e inscripções latinas, tinha tido lugar o officio
de canto-chão entoando os capellães e cónegos as lições,
e os responsorios os músicos dirigidos pelo grave e pomposo
Marcos Portugal. A cerimonia no próprio dia prolongou-se
das IO Yj. da manhã ás 4 da tarde, executando-se a missa de
pontifical e as absolvições do mesmo maestro Fortogallo e
proferindo o sermão o deão de Braga.
A cidade inteira como que carregara o lucto em acom-
panhamento ao da dynastia, echoando nas ruas e praças os
cânticos de saudade que, no interior da maioria dos templos
e conventos, provocava a real memoria evocada nos sermões
e jaculatórias, de encommenda dos regimentos, das irman-
dades, de todas as corporações militares, civis e religiosas, até
da Ordem de Malta. Os bardos de nenias, os escrevinhadores
de elogios históricos, os latinistas de epigraphes, os músicos
de voz e de instrumentos, os armadores de egreja e artífices
em qualquer género, os oradores sagrados em ferias, todas
estas classes passaram um anno regalado, rivalizando em
perícia e sinceridade, como rivalizavam na ostentação os que
lhes pagavam a melancholia e o primor. Marrocos escrevia
(i) que começou a fazer collecção das inscripções sepul-
chraes, suspendendo-a * por não ter proporções, para obtel-as
de toda a parte, nem também merecião essa fadiga."
Diz o chronísta Padre Luiz Gonçalves que nenhuma
demonstração do pezar fluminense excedeu porém em ma-
gnificência as exéquias mandadas celebrar na própria egreja
da Ajuda, com assistência do Rei, pelo Senado da Camará.
A imaginação macabra dos decoradores dera-se largas na
(n (Caii-ta ao T'ai do 10 do .Talha do 181 G.
956 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
estatuária symbolica: umas figuras de anjos com caveiras na
mão, como Hamlets de cemitério, equilibrando-se sobre as
pontas dos obeliscos carregados de tropheos nas bases, onde
vinham prender-se as grandes cortinas de velludo negro que
desciam do sobrecéo, em forma de coroa, do cenotaphio guar-
dado pela Sabedoria, exhibindo esta inscripção lisonjeira a um
tempo da Rainha morta e do seu herdeiro:
Se abrigo o Filho Excelso me não fora,
Ao Ceo, donde baixei, volvera agora.
O fallecimento de Dona Maria I suspendera um com-
plemento de separação de que resultaria para o filho um ac-
crescimo d 'essa segurança pela qual lhe foi tão cara a terra
brazileira. Dona Carlota Joaquina pretendia acompanhar a
Hespanha, donde muito provavelmente não regressaria á
America, as duas Infantas que alli iam consorciar-se e cujo
embarque foi retardado pela repentina gravidade do estado
da avó. "Muito gosto fazia de ser EUa Mesma a Con-
ductora de suas filhas, e de as entregar aos seus dous Ir-
mãos, fazendo com a sua Real Presença ainda mais festivas
e solemnes as ceremonias dos Reaes Consórcios" (i).
Menos de um mez antes do óbito da soberana, precisa-
mente no dia para o qual fora marcada a partida das In-
fantas (2), escrevia Marrocos ao Pai: "A partida de
S. A. R. (Dona Carlota Joaquina) para Hespanha, ou
para Lisboa, não he já objecto de duvida: os preparos são
decisivos em todos os ramos relativos a este ponto: toda a
Familia, assim das Senhoras, como de criados, está prompta :
deram-se a todos as competentes ajudas de custo; i :ooo$ooo
(1) Padre Luiz Gonçalves dos »anctos, oh. cit.
(2) 2.3 âe Fevei-eiíTO de 1816.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 957
á Camareira-Mór, 400$ooo ás Açafatas, e assim os mais em
proporção, vindo a terminar com as de 8o$ooo a Varredores
e Moços de Quarto: Ha tenção de ser a sahida a 20 de
Março, e em Quarta-feira será a Desobriga geral. Não
posso explicar a V. Mcê. o fervor e a pressa, com que se
está embarcando o trem pelas respectivas Repartições; e
vejo caixões que custão a carregar-se por 20 negros: a Nao
S. Sebastião está mui linda, sendo renovada e pintada, assim
como a Fragata Hespanhola do Vigodet: e SS. AA. tem ido
jantar a bordo muitas vezes: aff irmão que as mais Embar-
cações de Guerra que forão conduzir a tropa a Santa Ca-
tharina, devem acompanhar, assim como certos Navios mer-
cantes, creio, de refrescos ou mantimentos. Apezar de todos
estes preparos públicos e indubitáveis, ha muitas apostas e
questões particulares sobre a concluzão desta empreza; mas
de certo nenhum fundamento ha para estas duvidas senão
as reflexões politicas, que faz suggerir a actual moléstia de
S. Magestade, não podendo combinar-se politicamente, no
meio deste inconveniente, a retirada daquellas Senhoras,
quando mesmo S. A. R. por este motivo, não effeituou agora
a sua costumada Jornada de Santa Cruz neste mez, a que
nunca tem faltado, por sua saúde, obrigando-sie por isto,
a huma continua e vigilante attenção da moléstia de S. Ma-
gestade. Mas o tempo perde-se nestas reflexões, que, sem ser
Sebastianista, ouso affirmar sahirão goradas aos duvidosos."
As Infantas foram sós: Dona Carlota tinha agora de-
veres de Rainha a cumprir, e ficou, sem que no emtanto
mais esta contrariedade lhe abatesse o espirito forte, como
não deu mostras de enternecel-a em demasia a separação das
filhas, a quem muito prezava. Por occasião do bota-fóra o
Rei demorou-se apenas um quarto de hora a bordo e rcti-
D.J. — GU
958 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rou-se aos soluços: a Rainha não chorou, attendeu aos úl-
timos preparativos da viagem antes de descer, e foi, com os
olhos seccos e brilhantes, acompanhar por terra os navios em
direcção á barra, até perdel-os de vista na Praia Vermelha,
donde lhes dirigiu o ultimo adeus (i).
Não é que fosse destituida de coração Dona Carlota;
pelo contrario o seu humor caridoso era tão vivo quanto a sua
Índole vingativa. Marrocos conta a esse respeito uma ane-
cdota tj^pica (2). Um servente mettera sem razão alguma
plausivel, antes diffamando-a vergonhosamente, a mulher
n'um recolhimento, onde a deixou ao abandono e ao soffri-
mento. Justificando-se judicialmente e conseguindo recobrar
a liberdade, a pobre poz-se a servir para se manter e valer
ás duas filhinhas, obtendo por fim ser criada de uma das
(1) "No dia 2 do corrente raez as Sras. D. Maria Izabel, Uainlia
de Ilespanlia, e D. Maria Francisca embarcarão- logo de manliã na
Nao 8. Seboslião, e suas criadas, 3 Açafatas, as criadas destas, 2 Ro-
tretas, 2 moças de Quarto, e 2 pretas, para ficarem em Ilespanha ao
seu s.eiiviço ; e acompanhadas pelo Mai-quez de Vallada, a Marqueza sua
mullier, liuma filha delle ainda solteira, a Condeça de Linhares (Ca-
mareira-Mor) e a Condeça do Barreiro, Viuvas. Os criados não tinháo
destino de ficarem em Hespanha, menos aquelles que as ditas Senhoras
quizerem que alli fiquem, para o que levão licença somente nesse caso :
foi eguslmente o Medico Azevedo, irmão do Barão do Kio Secco. D"-
pois de hir o Bispo a hordo benzer a Nao, e haver Beija-Mão publico
de despedida, ao qual foi immenso Povo, a que se dava entrada na Nao
sem excepção de pessoa, sahirão no dia seguinte 3 pela manhã com boui
vento : foi-ão acompanhadas da Fragata Principe D. Pedro, em que hia
o Marechal Beresford, que se offereceu para acompanhal-as, e da Fi-a-
'^ata Ilespanhola, em que hia o Tenente-íGeneral Vigodet, Encarregado
da rommissão. Parece que o rumo he para Cadiz, e dalli para Lisboa.
V sua sahida foi muito vistosa, mas pranteada. A Rainha, havendo es-
tado no dia antecedente sempre a bordo até As 10 horas da noute, toi
também ao bota-fóra, não levando nunca as outras Sras. Infantas com-
sigo. BURey c-steve a bordo só hum quarto de ho-ra, e retiroai-se logo
para o Paço. _ ^ ,,„^„
O acto da separação foi terníssimo para com seu Pay, nem pode
descrever-se, assim como o animo varonil de sua ."Mãy, que sem lagrimas
exteriores mostrou o seu disvelo em seus preparos ;..._. .
Nos primeiros dias depois de sua sahida receberão ,S. Magestades
cartas de suas Filhas por Navios.- que encontravão no «lar, o que se (fi-
rigião para este Porto." (Carta de Marrocos ao Pai de 10 de Julho de
(2) Carta ao Pai de 28 de Setembro de 1813.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 959
retretas da Princeza Real. Levada de sege para Botafogo,
foi admittida a beijar a mão de Dona Carlota, e tão con-
doida ficou esta da penúria da rapariga, que para mais
andava enferma, e ao mesmo tempo tão agradada d'ella,
que lhe fez preparar logo roupa e pessoalmente ordenou ao
medico da real camará que a attendesse com fodo o carinho,
correndo os remédios por conta do seu bolsinho. *'Foi S. A.
tão estremosa neste ponto, que hia lembrar á doente as horas,
em que todos os dias havia de tomar os remédios, assistindo
alli nessas occasiões. Sabendo ao depois que ella tinha duas
filhas pequenas e em desamparo, mandou logo buscal-as,
vestiu-as nobre e magnificamente com hum primoroso enxo-
val,, e pol-as a educar e aprender em hum Colkgio de meni-
nas, pagando mensalmente por sua educação 36$ooo."
Dom João era menos expansivo talvez nos seus impul-
sos generosos, mas em compensação não era tão rancoroso.
Perdoava com muito mais facilidade. Na atmosphera sus-
picaz de Lisboa, inficionada de idéas jacobinas, um tempo
houve em que o Principe Regente facilmente viu conspira-
ções e attentados què lhe descobria a cada passo — e até os
inventava — o Intendente de policia Pina Manique: (i)
nem assim, porem, se tornou um tyranno. Apenas descon-
fiava dos homens intelligentes e illustrados que lhe não des-
sem prova particular do seu devotamento, aborrecendo mes-
mo a sciencia por julgal-a madrinha de reformas politicas.
(1) Pina Manique ficou na fama como o prototypo do adminis-
trador rígido o arbitrário : deportava a seu talante para o ultramar
e envolvera a vida social portiigueza n'ura systema de espionagem o de-
lação. No dizer do auctor 'anonymo da Uistoirc de Jcan VI, sua activi-
dade era muito maior em fomentar os próprios interesses do que em
zelar o aceio e segurança da capital, devendo-se a I). Rodrigo de Sou>;a
Coutinho tanto a illuminação permanente de LisI)oa, como a creação da
policiíi a pó e a cavallo. E' justo comtudo lembrar que Pina Manique
cuidou da instrucção, fundando uma casa de correcção para os doug
sexos, escolas de desenho o coUegios etc.
960 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
No Brazil mudara sua situação de espirito. Longe da
Frainça e reposto dos seus terrores demagógicos, enxergava
as cousas com mais calma, abordava-as com mais discerni-
mento, resolvia-as com mais longanimidade ainda, e tão
accentuada e pessoal lhe ficou a feição que d'ella se não
despojou quando, de novo em Lisboa, se viu a braços com a
agitação constitucional e a reacção absolutista.
São abundantes os exemplos da tolerância de Dom
João. O general bonapartista Hogendorp, antigo comman-
dante em chefe de Wilna e fervente admirador de Napo-
leão, viveu tranquillo e isolado n'uma fazenda nos arredores
do Rio, cultivando seus 20.000 pés de café, sem que jamais
o incommodasse a policia ou deixasse o Rei de usar para com
elle de toda a contemplação. O velho militar, que era uma
das curiosidades da capital fluminense, costumava até rece-
ber frequentes visitas de diplomatas e outros estrangeiros,
que o procuravam como a um homem de reputação e valor.
O episodio com o marquez de Loulé é o mais signifi-
cativo. A' revelia condemnado á pena ultima por sentença
dada em Lisboa a 21 de Novembro de 181 1, dictada pelo
crime de lesa-patria pois que pegara em armas com os Fran-
cezes e servira ás ordens de Massena, apezar de haver sido
um mimoso do Regente, Loulé alguns annos depois, em
181 7, decidiu-se a ir ao Rio implorar o perdão real. Reco-
lhido á prisão como contumaz, ahi permaneceu treze mezes,
mas foi em seguida solto, dando-se-lhe o novo Reino por
menagem, e successivamente indultado, rehabilitado e resta-
belecido nas suas honras, mercês e bens, ficando em esque-
cimento o facto capital e sem effeito algum a sentença pri-
mitiva. Mais do que isto, readmittiu o Rei o fidalgo no seu
serviço, dizendo ao seu séquito quando o ergueu do chão,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 961
onde elle se prosternara: Foi o primeiro que se fiou no meu
coração e se entregou nas minhas mãos. ( i ) Marrocos,
espantado, communicava ao Pai (2) que o réo de alta trai-
ção fora convidado para o Paço e já entrara de semana como
camarista.
O académico Stockler, de cuja bocca ouvira o Rei o ex-
celso elogio official da sua politica americana, era outro trai-
dor perdoado. Chegara inesperadamente ao Rio uns seis
annos antes, em 1812, dizia ironicamente Marrocos (3)
que "para servir onde S. A. R. houvesse por bem empre-
gal-o", não o vendo elle comtudo ir ao Paço e não tendo
ainda beijado a mão do Principe. "Elle vive como em retiro
fora da cidade, inculca muito de sua conducta exemplar no
tempo do intruso Governo, e publicou huma Obra — Cartas
ao Auctor da Historia Geral da Invasão dos Francezes e?n
Portugal, e da Restauração deste Reino. Rio de Janeiro
18 13. 4° — em que pertende justificar-se com muita palavra
ou parolada, assim como o seu Plano de Campanha com o
Duque de Lafões, porem he tão infeliz que cada vez se con-
demna mais, e se atola no lodo."
A bondade proverbial de Dom João VI, a sua allgemein
bekannte Herzensgute como a chamava von Leithold (4),
era tanto mais espontânea quanto nem se podia dizer fosse
(1) von LeithoM, oh. cit., onde se encontra narrado o caso com
todos os pormenores.
(2) Carta de 8 de Setembro de 1818.
(3) íCarita ao Pai de 28 de Setembro de 1813.
(4) von Leithold lião alcançou todavia que o Kei Ibe conce-
desse terras para um>a faz-enda ; mas conta que a um conde d'0mervail
que veio pela primeira vez ao Rio, especular por conta própria e alheia,
n"um navio que ?e incendiou com toida a carga, salvando-«e a custo 3
apoz muitos perigos a tripclação, fez o Rei presente de 18 comtós, nSo
tendo sido possivel conceder-lhe como projectava livre franquia adua-
neira das mercadorias, trazidas em 1810, quando pela segunda voz veio
tentar fortuna. Os es*criptores estrangoivos são absolutamente unanimes
em celebrar a natureza indulgente de Dom João VI.
962 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
estimulada por um cálido sentimento religioso. Dona Car-
lota era devota, mas a Dom João pouco faltava de facto
para ser no intimo voltairiano. Basta citar em abono do seu
aborrecimento ao fanatismo o despacho do marquez de
Aguiar ao ministro portuguez em Roma José Manoel Pinto,
declarando que o governo do Principe Regente de Portugal
não adheria absolutamente ao restabelecimento da Compa-
nhia de Jesus feita pelo Papa Pio VII por meio da bulia
SoUicitudo omnium, ^'porquanto a corte do Rio de Janeiro
não fora prevenida dessa deliberação pontifical e muito tinha
a queixar-se das offensas da Companhia de Jesus, contra a
qual Portugal tinha tido que adoptar medidas muito enér-
gicas." Propunha-se o Principe Regente conservar em pleno
vigor o alvará de 3 de Setembro de 1759, que expulsara a
Ordem, e as instrucções expedidas ao seu representante diplo-
mático junto á Santa Sé eram de não acceitar discussão, nem
escripta nem verbal, sobre o assumpto (i).
Não se é impunemente do seu tempo, tempo de duvida
e de negação, ainda que Dom João VI tivesse crescido
n'uma corte de exterioridades beatas e sob a auctoridade
de uma Mãi e Rainha que a devoção levou á insânia. Por
outro lado, porém, era neto pelo pai de Dom João V, que
fazia dos conventos de freiras o retiro dos seus atrevidos
galanteios, e pela mãi neto do Rei que sustentara o anticle-
ricalismo de Pombal (2), certo de que lhe aproveitava ao
regalismo.
(1) iDespacho de 1 de Abril de 1815, no Arch. do Min. das Rei.
■¥.^\.
Í2) O Sr. Zephyrino Brandão acaba de publicar um livro em que
protimde provar ter sido Pombal um espirito sinceramente religioso, o
que todavia não exclue que, em holocausto ao Estado, houvesse despe-
dido núncio, expulsado jesuítas e até queimado o padre Malagrida.
DOM JOÃO VI í>0 13UAZIL 963
O filho primogénito de Dona Maria, o pranteado
Príncipe do Brazil Dom José, criado ao influxo de Pom-
bal, Seabra e outros bons filhos do século XVIII, deixou
lembrança das suas idéas adiantadas: Beckford d'ellas se
espantou n'uma conversação privada que tiveram nos jardins
de Queluz. Dom João era menos illustrado mas não seria
menos intelligente que o irmão, e dava seu exacto valor á
expressão tradicional de uma sociedade que era supersticiosa
muito mais do que religiosa, sem esquecer que na França,
igualmente povoada de templos e de mosteiros, congregados
do Oratório e seminaristas se tinham transformado da noite
para o dia em convencionaes regicidas e desapiedados. Não
havia que fiar tudo do freio religioso.
Dom João comprehendia no emtanto que a Egreja, com
seu corpo de tradições e sua disciplina moral, só lhe podia ser
útil para o bom governo, a seu modo, paternal e exclusivo,
de populações cujo dominio herdara com o sceptro. Por isso
foi repetidamente hospede de frades e Mecenas de compo-
sitores sacros, sem que n'essas manifestações epicuristas ou
artisticas se compromettesse seu livre pensar ou se desna-
turasse sua tolerância sceptica.
Aprazia-lhe o refeitório mais do que o capitulo do
mosteiro, porque n'este se tratava de observância e n'aquelle
se cogitava de gastronomia, e para observância lhe bastava
a da pragmática. Na Capella Real mais gosava com os sen-
tidos do que rezava com o espirito: os andantes substituíam
as meditações. Era o seu grande prazer a musica; como a
gulodice o seu peccadilho, e si uma e outra revestiam a forma
ecclesiastica, a razão estava em que as fazia forçadamente
assumir tal. aspecto o caracter dominante da sociedade portu-
gueza do tempo, freiratica e voluptuosa.
964 DOM JOÃO TI NO BRAZIL
Aos monarchas tíbios de fé catholica e convencidos
das excellencias do despotismo esclarecido e magnânimo,
como Carlos III d'Hespanha e José II d'Austria, tinha
Dom João por modelos, e nenhum d'esses, affeiçoados como
eram aos progressos materiaes e despidos de preconceitos ul-
tramontanos, perdia seu tempo com ladainhas ou se entre-
gava ingénuo nas mãos de um confessor astuto, que assim
vinha a possuir a realidade do poder. Para mandar, El-Rei
bastava; para executar e mesmo aconselhar, uns poucos de
competentes; para obedecer, a grande massa que se fazia
necessário trazer satisfeita, interessando-se por ella, activan-
do-lhe o bem estar, proporcionando-lhe até vaidades para não
ter que lhe supportar caprichos.
E quando estes pela força das cousas surgissem e não
bastassem para contental-os as commendas, os titulos, as
promoções, as honrarias, os benefícios e as festas, que remédio
senão contemporizar, acceder, afagar, para não perder tudo,
para conservar o essencial ? Monarcha que assistira a tantas
provações de outros e vira até rolar do cadafalso a cabeça
de um, devia, si fosse sensato, dar-se por satisfeito com pre-
servar a sua coroa ainda que mareada. O manto sobre os
hombros agasalhava sempre e parecia sempre decorativo,
quando mesmo o arminho fosse falso e o velludo de algodão.
CAPITULO XXV
O ESPECTÁCULO DAS RUAS
Nunca, como em tempo de Dom João VI, foi a corte
do Rio de Janeiro tão animada, nem as suas ruas tão pit-
torescas. Formigavam nellas typos hoje desapparecidos e
que eram representativos de outros costumes e de outras
idéas, os andadores das almas e pedintes de irmandades por
exemplo, com suas opas verdes, escarlates e azues, exten-
dendo aos transeuntes e abrindo debaixo das janellas os
largos saccos vermelhos que traziam cozida a imagem do
Santo ou da Virgem, gravada n'uma pesada chapa de prata;
ou os cumpridores de promessas devotas, tirando por humil-
dade christã e não por necessidade esmolas para uma missa
em acção de graças.
As superstições continuam a florescer na nossa capital
fluminense — um recente e curioso inquérito sobre as reli-
giões do Rio o demonstrou, exhibindo nomeadamente em
toda sua crueza as grotescas e terriveis superstições negras
— mas não mais se ostentam como quando percorriam a ci-
dade os vendedores de arruda, que todas as negras compra-
vam para se preservarem de feitiçarias; ou se dava em cheio
906 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
com um ruidoso funeral de filho de rei africano (o qual
continuara na escravidão a exercer prestigio e auctoridade
sobre os ex-vassallos de seu pai), cujo cadáver fora velado
por deputações das differentes nações da Costa, e se trans-
portava n'uma rede, precedida de um negro atirando fo-
guetes e bombas e de outros executando em todo o percurso
cabriolas pelo chão, e seguida de uma multidão côr "de
ébano, em parte silenciosa, lúgubre e burlesca a um tempo,
em parte tangendo instrumentos exquisitos e entoando can-
tigas estridentes.
Era sobretudo a população de côr que emprestava á
capital do Reino Unido de Portugal, Brazil e Algarves o
seu aspecto estranho e único na monarchia, compartilhado
é claro pelas outras cidades do littoral brazileiro. Em Lisboa,
não obstante o forte contingente africano, predominavam
os brancos; nas possessões d'Africa os negros estavam quasi
sós; no Rio de Janeiro era que se equilibravam em numero
descendentes de Europeus e de Africanos, avolumando-se
constante e simultaneamente ambas as correntes com a en-
xurrada de reinóes attrahidos pela corte *e as levas de escra-
vos arrebanhados pelos negreiros.
As numerosas e impressivas lithographias que acompa-
nham o texto das obras de Debret e de Chamberlain, e que
são a mais completa e interessante documentação artistica da
residência americana de Dom João VI, fornecem uma idéa
bastante precisa do que era o carnaval perpetuo d'essa cidade
sob muitos aspectos ainda colonial, sob outros, não menos
abundantes, exótica, e apenas cortezã por algumas, mais raras,
feições. '
Daria occasionalmente esta ultima nota uma traquitana
de desembargador da Casa da Supplicação, com sua beca
DOM JOÃO VI NO BUAZIL 967
de seda negra e ao pescoço o collar carmezim de Christo,
ou a sege de um ministro d'Estado, escoltada pelos correios
a cavallo, de farda azul com gola e punhos vermelhos aga-
loados de ouro, botas altas e chapéu armado de oleado.
Muito mais frequentes appareciam no emtanto outros es-
pectáculos, menos aristocráticos. Ora seria um baptizado
de negros novos, com seus padrinho e madrinha de cor, es-
paventosamente vestidos ; ora um casamento de mucama e co-
peiro de casa de tratamento; ora um enterro de anjinho
preto, cujo corpinho, quando o permittiam as posses dos pais,
era levado n'uma vistosa cadeirinha adrede alugada, ou pelo
menos carregado sem acompanhamento n'um singelo tabo-
leiro, com flores artificiaes espetadas nos quatro cantos.
Aos enterros dos negros adultos concorriam sempre um
mestre de cerimonias de vara na mão e transudando impor-
tância, um rufador de caixa-tambor e algumas carpideiras
que psalmodiavam e batiam palmas para acompanharem o
rhythmo do pranto. Si de todo era destituida de bens a
gente do morto, o corpo* expunha-se na rua dentro da rede
mortuária, afim de recolher os obulos dos viandantes que
permittissem a inhumação, a qual sempre custava alguma
cousa. Não havia risco de ficar um cadáver insepulto, porque
a caridade dos próprios negros se manifestava infallivelmente
para com os fallecidos irmãos desvalidos.
Semelhantes cortejos, festivos ou fúnebres, de continuo
os offerecia a cidade no seu ar pronunciadamente africano,
que foi perdendo depois da abolição do trafico, da progressiva
extincção dos negros da Costa, do augmento da immigração
européa e da diluição dos mestiços na população branca, ga-
nhando de todo, senão a cor, os modos e o aspecto geral e
uniforme do resto da gente. N'outros tempos, porém, dcscm-
968 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
penhavam os pretos papel muito considerável na vida quoti-
diana da cidade, na sua existência económica e na sua exis-
tência domestica, e si por um lado se achavam então mais
perto, pela constante importação dos seus contingentes, da
primitiva selvajaria, por outro tinham basto ensejo de dar
largas a todas suas qualidades de dedicação e affectividade.
Como, sem faltar á verdade de uma reconstrucção lit-
teraria, expulsar do tablado fluminense da epocha esse
mundo animado de barbeiros ambulantes armados de medo-
nhas navalhas, cesteiros vendendo os samburás que teciam,
mercantes de gallinhas, de caça, de palmitos, de leite, de
capim para forragem, de milho, de carvão, de cebollas e
alhos, de sapé para colchões, quitandeiras de angu e café,
carregadores, conductores de carros de bois que chiavam de-
sesperadamente pelas ruas sem calçamento ou guarnecidas
de lages, puxadores de carretas com fardos, quatro adiante
e dous atraz empurrando, á moda japoneza ? Na própria
rua do Ouvidor, que já armava pretenções a elegante, abun-
daram os barbeiros pretos até algum tempo depois da che-
gada da familia real, quando alli se estabeleceu, com suas
pomadas e loções perfum.adas, o cabelleireiro da corte Mon-
sieur Catilino, e abriu loja a costureira da moda. Madame
Josephine.
Assim perpassava o incessante movimento popular de
negra algazarra e negra alegria, que variavam raras car-
ruagens e menos raras cadeirinhas, particulares ou de aluguel,
de que costumavam utilizar-se com muito garbo as mulatas
da vida airada, inculcando-se a si e ao seu luxo. Os palan-
quins em que se pavoneavam estas sacerdotizas do amor
fusco tinham, muitos d'elles, a coberta toda enfeitada de es-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 969
culpturas douradas e fechavam-se dos lados com pesadas
cortinas de velludo e seda, bem agaloadas ( i ) .
Afora esse bulício normal, as ruas do Rio de Janeiro
mais vida ainda tomavam amiúdo com as funcções do culto,
entre as quaes primavam as procissões, que eram repetidas,
fornecendo occasião e pretexto para as elegâncias femininas
e as pompas das irmandades. Debret enumera e descreve sete
principaes: a de São Sebastião, a 28 de Janeiro, oito dias
depois da festa do padroeiro da cidade; a de Santo António
na quarta-feira de Cinzas; a do Senhor dos Passos, na se-
gunda sexta-feira da quaresma ; a do Triumpho, na sexta-
feira que precede o domingo de Ramos; a do Enterro, na
sexta-feira santa; a do Corpo de Deus, e a da Visitação, a
2 de Julho, todas com o seu infallivel cortejo de soldados
de barretina dependurada do ante-braço, estandartes e guiões
religiosos, congregações sacras e leigas, músicos e cantores
da Real Capella, camaristas e outras pessoas gradas, inclu-
sive os mais elevados figurões da corte, nos seus uniformes
bordados.
Passavam os préstitos ao som das musicas, dos cânticos
e dos foguetes por entre multidões compactas que acudiam
por devoção e por prazer, havendo sempre n'esses dias um
farto negocio de doces e bolos com que lucravam as negras
quitandeiras, e um grande commercio de balas, cuja lojinha
mais reputada e afreguezada ficava á rua da Ajuda.
Na procissão de São Sebastião o orago ostentava a
fita e placa em diamantes de commendador de Christo, cuja
patente recebera e cuja tença era applicada ao custeio da
sua capella. Mais brilhante e vistosa desfilava porem a de
íl) Dobret, ob. cit. von Leithold cala de que côr eram as Frcu-
úcnmmT^chcn d? primeira classe na sua expressão, de que díi noticia.
970 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Santo António, que sahia do convento dos franciscanos, com
um sem numero de imagens e grupos resplendentes no
meio das gazes de ouro e prata simulando nuvens illuminadas
pelos raios do sol, donde espreitavam curiosamente o mundo
rostinhos de cherubins.
Tudo no cortejo era rico e apparatoso, contrastando
com a pobreza regulamentar da Ordem: os anjinhos de saias
tufadas de bailarinas, carregados com os adereços de fami-
lia; os andores recobertos de velludo carmezim franjado de
ouro; as velas, obras primas dos cerieiros, com flores de mil
cores, aves fantásticas e cabecinhas aladas; as enormes esta-
tuas vestidas de sedas claras e paramentadas de jóias. Com os
santos populares, que eram muitos, incluindo o preto São
Benedicto, alternavam um rei, uma rainha, um papa com
seu sacro collegio de cardeaes e São Luiz Rei de França
transportando os trez cravos e a coroa de. espinhos, mas, sem
respeito algum pelas tradições dos alfaiates medievaes, re-
gressando da cruzada com um fato do século XVII, cabel-
leira de medico de Moliere e mantéo estrelado de magico.
A procissão dos Passos era toda de uma tonalidade
roxa. A imagem carregava-se na véspera á noite para o
templo donde tinha de sahir o préstito afim de voltar á pri-
mitiva egreja, e alli affluia a população inteira a beijar o pé
machucado e ferido do Senhor. Cada anno repetia-se com a
mesma concorrência a cerimonia devota, que offerecia um
ponto de reunião e ensejo para exhibição de vestuários e
exercicios de namoro.
As procissões constituiam, com as noitadas já tradi-
cionaes e um tanto abandonadas do Passeio Publico e as re-
presentações no theatro, as grandes para não dizer únicas
distracções fluminenses no tempo d'El-K.ei Dom João VI,
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 971
mas nada se comparava, pelo encanto na união do mystico
e do profano, áquelle beija-pé da segunda sexta-feira da qua-
resma. Sobresahiam na multidão as mulheres. Velhas e mo-
ças, fidalgas, burguezas, mucamas e prostitutas, todas cor-
riam a prosternar-se na capella e todas faziam alarde de
garridice igual: as prostitutas de corpetes de sedas vivas,
saias de cambraia da índia ou de renda sobre um fundo de
seda, meias de seda branca e sapatos de cores variadas. Ao
sahir para refazer em sentido inverso o trajecto da noite an-
terior, ia o andor rodeado de lanternas de metal dourado na
ponta de longas hastes, levadas por pessoas de distincção, e
guardado por archeiros do Paço com suas alabardas e no seu
uniforme peculiar, ainda hoje usado pelos de Portugal.
Na procissão do Triumpho figuravam todos os passos
da Paixão de Christo, e Nossa Senhora das Dores com o co-
ração golpeado por sete espadas gottej antes de sangue. Na
do Enterro misturavam-se penitentes sombrios, de capuz
cobrindo toda a cara, apenas com orificios nos lugares dos
olhos, e soldados romanos armados de ponto em branco, sob
o commando de um centurião de capacete descommunal. O
corpo de Jesus, coberto por um lençol franjado de ouro, era
seguido de uma Magdalena de carne e osso, representada,
em homenagem por certo á moral, por um mancebo vestido
de mulher.
A procissão do Corpo de Deus, bem viva ainda na lem-
brança popular, assemelhava-se sem tirar nem pôr a uma
mascarada, comprehendendo São Jorge a cavallo, o homem
de ferro, picadores e cavallos ricamente ajaezados da Real
Casa, músicos negros de vestes escarlates, atiradores de fo-
guetes: uma palheta de cores oppostas nas pelles e nos esto-
fos, uma galeria de trajos de estylos e feitios os mais diversos,
972 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
uma combinação espaventosa de setins e velludos, ornatos de
ouro e prata, brocados raros e fitas garridas.
O ultimo dos préstitos religiosos sahia da Capella Real
levando a imagem da Virgem e encontrava-se a meio cami-
nho com a irmandade da Misericórdia transportando Santa
Isabel, mãi de São João Baptista. Dava-se então na rua e
ao natural a scena da Visitação : as duas imagens tocavam-se
e beijavam-se, seguindo juntas para a Misericórdia onde,
reunida no interior da egreja a directoria d'esta instituição
pia, cuja opulência e extensiva caridade acreditariam, qual-
quer sociedade, prestava conta publica da sua gerência an-
nual.
Esta procissão da Visitação era a festa municipal por
excellencia, empunhando os camaristas o pallio, precedidos
dos vereadores, maceiros e outros officiaes do Senado. Qual-
quer das festas, porém, significava o templo da sua celebra-
ção todo enfeitado pelos armadores com pannos de damasco
carmezim, galões de ouro c prata e guarnições de gaze pra-
teada; illuminado pelos cirios dos castiçaes e velas dos can-
delabros, que faziam brilhar os vasos dourados, as cercadu-
ras trabalhadas dos altares e os resplandores dos santos; per-
fumado pelas hervas e ramagens espargidas sobre os tapetes
ou sobre as lages, e pizadas pelos magotes de fieis que se api-
nhavam presos de curiosidade, ávidos de distracção ou sa-
cudidos de fervor religioso.
Fora das egrejas, as festas do culto traduziam-sc por
outras muitas manifestações, invariavelmente ruidosas e jo-
viaes. Eram o foguetorio caracteristico dos préstitos e arraiaes
portuguezes; os animados leilões de prendas em beneficio
do padroeiro; as cantigas e danças variadas de gentes de
variadas origens, casando-se o fandango com o batuque. Das
I
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 973
janellas, nas ruas percorridas pelo cortejo, pendiam as col-
chas de damasco da Índia e de seda da China e os pannos
de velludo debruados de ouro sobre que se debruçavam prin-
cezas e damas da corte com turbantes de gaze, diademas de
brilhantes e grandes plumas no toucado, e senhoras abasta-
das enfarpeladas de seda, decotadas á luz do dia e pesadas de
jóias. As ruas juncavam-se de palmas e folhagens e, depois
do sol posto, aclaravam-se com as velas de sebo colgadas
pelas armações de latão nas fachadas das casas, com espelhos
por traz para lhes reflectir a fraca chamma. Por essas ruas,
decoradas e clareadas, se escoava n'um rumor prazenteiro a
assistência congregada de longe para a funcção.
Para as mulheres essas festas, então, tinham o melhor
dos attractivos. Para as fluminenses tafulas da epocha as
procissões equivaliam ao que para as parisienses de hoje
são as corridas de Longchamips: o lugar e o momento de
estrearem novos vestidos e arvorarem novas galas. Para as
que não eram secias, sempre havia o encanto de um luxosinho
a mais, quando nã© de um namorico. O espectáculo mesmo
em si era tão apurado e decorativo que, com todos seus
preconceitos britannicos e protestantes, não poude Hender-
son deixar de observar que o effeito attingido devia quali-
ficar-se de imponente (the general cffect of the wJiole was
very imposing).
Uma procissão diária nas ruas do Rio de Janeiro ou de
qualquer outra das nossas cidades coloniaes, era a do Via-
tico, o conhecido Nosso Pai, levado aos moribundos e doentes
debaixo do pallio ou da umbella, segundo o acompanha-
mento ia mais ou menos luxuoso. Ladeavam o sacerdote os
irmãos do Santissimo, de opa vermelha, um tangendo a cam.-
painha sem parar, outros alçando a cruz c os castiçaes. A
p. J. — 61
974 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
estes se aggregava um sem numero de devotos entoando a
ladainha e assim fazendo acompanhamento vocal á musica
militar, de trombetas ou de tambor e pifano segundo a arma,
que precedia a guarda chamada do posto mais próximo, e
marchando com as espingardas em funeral e a barretina na
mão ou segura ao braço pela correia do queixo.
Todas as egrejas repicavam á passagem do cortejo sa-
grado, o qual, no caso de chuva, se reduzia occasionalmente
a uma sege a passo, conduzindo o sacerdote o cibório e o
sachristão a cruz e uma lanterna de prata, e indo ao lado do
carro um negro a pé, tocando a sineta. No caso de ser o en«
fermo que esperava o sacramento membro da familia real ou
empregado da real casa, o padre era transportado n'um co-
che do Paço com criados de libré, a cavallo, para carrega-
rem os tocheiros e tangerem a campainha que provocava as
orações e evocava no espirito dos transeuntes ajoelhados uma
sympathia dolorida.
Menos frequentemente do que os séquitos religiosos,
percorria as ruas da cidade o bando municipal proclamando
aos habitantes algum acontecimento, auspicioso ou luctuoso,
occorrido na corte. Formavam-no os meirinhos a cavallo, os
almotacés (i), os vereadores vestidos de negro com gola e
punhos de renda branca e chapéo preto de plumas brancas,
montados em animaes ajaezados, empunhando o estandarte
desfraldado, e varias pessoas de posição em grande uniforme,
nas suas carruagens, precedendo o préstito a cavallaria da
policia e seguindo-o a musica de um regimento da milícia.
Outros muitos espectáculos curiosos offereciam ainda
as ruas do Rio de Janeiro, muito concorridas não só de ne-
gros e mulatos, como de grande numero de ciganos, vindos
(1) Juizes vevificadorofi dos pe«os c medidas.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 975
não se sabe bem donde, de Hespanhoes do Prata, fugidos á
guerra civil, e de marinheiros estrangeiros, inglezes sobre-
tudo, desembarcados dos numerosos vasos de guerra e navios
mercantes. Entre os nacionaes da melhor classe a vista era
interessante da variedade de modas, espelho da variedade de
opiniões, trajando uns á antiga, de chapéo armado e espadim,
outros á ingleza, sem cabelleira, de meias botas, longa sobre-
casaca e chapéo de castor.
A nota popular era entretanto a mais divertida sempre.
Um dos folguedos mais animados dos tempos coloniaes costu-
mava ser, no sabbado santo, a queima do Judas, representado
por uma figura grotesca, cavalgada pelo diabo em pessoa e
que, recheada de bombas, se fazia explodir e se despedaçava ao
romper da alleluia, por entre o enthusiasmo da multidão.
Depois da chegada da corte, este divertimento ruidoso
foi prohibido para evitar ajuntamentos que por muita jovia-
lidade se podiam facilmente tornar desordeiros. E bem avi-
sado andou o Intendente geral da policia, pois que no sab-
bado santo de 1821, trez dias antes do embarque da corte
para Lisboa, um magote compacto de arruaceiros enforcou
e queimou em effigie a céo descoberto, em vez do Judas tra-
dicional, alguns personagens conspicuos da administração,
entre elles o próprio Intendente geral e o commandante mi-
litar da policia. Com esta variante nos traidores immolados,
recomeçou aliás o divertimento sem nada perder da sua po-
pularidade.
Continuara porém a effectuar-se sob Dom João VI a
conhecida mascarada do imperador do Espirito Santo, com
que contrastava a tocante cerimonia do bodo aos presos,
que não eram então sustentados pelo Estado mas tão so-
mente pela caridade publica, atirando-lhes esmolns os tran-
970 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
seuntes e mandando-lhes diariamente a irmandade da Mise-
ricórdia, pelos calcetas destacados para esse serviço de abas-
tecimento, sopa e farinha. O grande jantar da festa de Pen-
tecostes era comtudo levado processionalmente de véspera
á prisão, em carroças atochadas de comestiveis, pelas irman-
dades do Santissimo com seus estandartes erguidos, musica
e grande acompanhamento.
A clemência do Rei, denotando-se pelas constantes com-
mutações de penas ultimas, raramente permittiu ao contrario
que durante sua estada no Brazil cruzasse as ruas da capital
o sinistro préstito dos condemnados á morte. Refere Debret
que em quinze annos de residência no Rio apenas assistiu
a duas execuções, uma d'ellas já sob o Império e politica,
tendo sido preciso que se desencadeiassem as ferozes paixões
partidárias para que uma outra revolução pernambucana, a
de 1824, offerecesse pretexto a Dom Pedro I para fazer
por assim dizer reviver, com o cortejo dos sentenciados d'Es-
tado, um espectáculo quasi desapparecido do theatro flu-
minense.
Bem lúgubre aliás a scena. Caminhava o réo de alva,
os pés descalços, o crucifixo nas mãos ligadas e a corda no
pescoço, com as duas pontas para traz seguras, assim como
a cauda da alva, por um dos dous carrascos, negros acorren-
tados. Sustentavam o misero seus confessores e guardava-o a
irmandade da Misericórdia, que tomava conta do cadáver,
para lhe dar sepultura, depois que o atiravam abaixo da forca,
onde elle se balouçara espectral, de capuz puxado sobre o
rosto, cavalgado nos hombros por um dos algozes, para fazer
peso, no momento em que a corda se enrolava e o nó se
apertava. . . .
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 977
Quando o corpo era de um condemnado pelo crime de
parricidio, cortavam-se-lhe a cabeça e mãos para ficarem
expostas ás vistas do publico aterrado e á voracidade dos
urubus.
A falta de segurança, effeito da alteração da vida col-
lectiva, não da commiseração regia, convertera-se n'uma das
feições peores da existência fluminense. Os escriptores es-
trangeiros do começo do reinado americano de Dom João VI
a não mencionam, ao passo que os do fim a relatam demora-
damente. Os assaltos nocturnos tinham-se tornado communs.
Conta von Leithold — a quem d'outra vez, quando ausente,
arrombaram os ladrões a porta e carregaram toda a baga-
gem, inclusive o seu uniforme de capitão de hussards — que
regressando uma noite a pé do theatro, foi perseguido por
uma quadrilha de negros armados, devendo a salvação á
pusillanimidade dos atacantes mais do que ao próprio san-
gue frio, pois que, embora mostrando disposição de defen-
der-se, deixara dominar-se pelo terror.
Queixando-se elle no dia immediato do occorrido ao
cunhado, Silvestre Pinheiro Ferreira informou-o de que nas
noites precedentes a policia recolhera á cadeia não menos de
300 individuos de côr, cada um dos quaes tinha sua faca e
que facilmente passariam de vagabundos a aggressores. Seis
annos antes de von Leithold, já Marrocos escrevia ao pai
(i) que cidade e subúrbios andavam infestados de ladrões,
cujas proezas começavam logo á bocca da noite, accommet-
tendo transeuntes, pilhando casas e muitas vezes comple-
tando o roubo pelo assassinato (2).
(1) Carta de 28 de iS^tembro de 1813.
cultos 22 aSslniosT''' '" '"""■"'°'' <'°»'"«»-«'' =■» P«l"™o clr-
978 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
"Tem sido tal o seu descaramento que até avanção a
pessoas mais distinctas e conhecidas, como foi o próprio
Chefe da Policia; » chefe de Divisão José Maria Dantas
recebeu por grande favor duas tremendíssimas bofetadas por
cahir no erro de trazer pouco dinheiro, depois de lhe rou-
barem o relógio, etc. Alem d'isto tem degolado varias mu-
lheres, depois de soffrerem outros insultos; o que tudo tem
dado que fazer ao Corpo da Policia, e não sendo este suffi-
ciente para as rondas e patrulhas, multiplicadas em todas as
ruas, o Intendente mandou armar e apontar todas as Jus-
tiças de paisanos para ajudarem as da Policia; mas os po-
bres Aguazis até já forão accommettidos e insultados pelas
grandes quadrilhas de ladrões, que lhes tem dado coças.
Com effeito grande numero d'elles forão já presos, e estão
bastantes sentenciados a pena ultima, dos quaes vão amanhã
3 para o Oratório. Faz-se agora hum novo recrutamento
mui rigoroso em consequência daquelles successos, e para se
augmentar o Corpo de Policia e os outros Regimentos; pois
o caso está muito serio, por não poder-se andar na rua muito
tarde. Eu recolho-me ás oito horas da noute e nunca as mi-
nhas digressões se extendem para longe, mas só se limitão
a casa de Feliciano palestrar com o meu Velho Padre Maz-
zoni."
Na carta de 8 de Junho de i8i8 referia Marrocos con-
tinuar a perseguição aos ladrões e assassinos, tendo havido em
Abril 28 mortes violentas: o que mostra que de pouco ou
nada valeram as providencias tomadas e que o mal era grave.
Maler confirma ( i ) que os assassinatos na cidade e arredo-
res se tinham tornado frequentissimos e muitos com circum-
stancias barbaras. A policia chegava a prometter recompensas
(1) OfficiQ de 24 de JuIhQ de 1813.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 979
a quem descobrisse os malfeitores, não surtindo as mais das
vezes effeito o recurso. Comtudo, á data do officio de Maler,
havia 83 individuos presos e condemnados á pena capital
por homicidio, alguns até reincidentes, sem que se lhes appli-
casse a sentença por falta de assentimento real.
Em condições taes de inseguridade, não é de admirar
que reinasse na capital, senão um terror negro, uma appre-
hensão bastante forte de um levante da gente, de cor. Os
atrozes feitos de São Domingos estavam ainda frescos
nas memorias e no próprio Brazil, na Bahia, se dera "um
grande tumulto de negros" que causou grande susto e teve
sua importância. Dos historiadores penso ser Handelmann o
único que lhe faz referencia, mas a correspondência de Mar-
rocos ( I ) suppre uma vez mais a falta e indica que o Rio
ouviu com temor a relação do occorrido em São Salvador.
" : elles matarão muitos brancos, e alguns erão
Negociantes; alguns soldados também forão mortos, assim
como outros Negros, que não querião associar-se ao
tumulto. Lançarão fogo a muitos Engenhos, aos Armazéns
da pesca da Balêa, e a mil outras partes, de maneira que se
affirma que só a Fazenda Real perdera mais de 300$ cru-
zados. He muito para se temerem alli estes acontecimentos;
porque tem os Negros a boa circumstancia de não se unirem
nas suas senzalas e ranchos, senão os filhos da sua mesma
terra, e não acompanhão, nem contrahem amizade com ou-
tros; e como he immensa a variedade de Nações delles (2),
não se unindo ellas, vem a ser os ranchos de cada huma
pouco numerosos; isto succede aqui no Rio de Janeiro, onde
entrão Negros de todas as Nações, e por isso inimigos huns
(1) Carta ao Pai de 15 de Março de 1814.
(2) íE' precizo ter presente que nas escravarias de entào tão
numerosos eram os negros creoulos quanto os africanos.
980 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
dos outros. Porem na Bahia por huma inclinaçcão natural
dos habitantes, entrão só Negros da Costa da Mina, e mui
poucos de alguma outra Nação, sendo por esse motivo todos
elles Patricios, companheiros e amigos; e em qualquer desor-
dem, ou tumulto, todos são unanimes, como neste se acha-
rão, e só matarão os que não erão seus Patricios. A muita
liberdade, que o Governador lhes tem dado, e o pouco caso
que faz das suas desordens, julgando-os incapazes de empre-
zas grandes, produzirão talvez esta explosão, que ha de
ficar em lembrança: com effeito conseguio-se prender lO
Negros e os mais, que erão em grande numero, fugirão para
o matto, e alli se embrenharão."
Si á noite inspiravam pavor, de dia recobravam as ruas
do Rio de Janeiro a sua alacridade, pois que de todo tempo
e n'aquelle especialmente foram, ao que parece, concorridas,
alvoroçadas e barulhentas. Pelo calçamento de pedra extra-
hida dos grandes morros de granito que expõem ao sol corus-
cante os seus flancos nus, e pela estreiteza das bitesgas que,
apoz semanas de secca, se cobrem de um pó fino, que acin-
zenta a atmosphera, como que n'aquellas ruas resoam do-
brado todos os ruidos. Alarido maior do que as recuas de
mulas ariscas galopando atraz da madrinha e tangidas dos
lados da cidade nova pelos tropeiros paulistas armados de
chicote, ou do que os bandos de negros ganhadores transpor-
tando fardos e sempre entoando cantigas que só interrom-
piam para se persignarem diante de cada retábulo de santo
ou das almas do purgatório, faziam porém pelas raras praças
e numerosas viellas ou estradas, os batedores e cadetes que
precediam e rodeavam as carruagens reaes, compellindo os
estrangeiros — os nacionaes não ousariam esquivar-se á usan-
ça — a desmontarem das suas cavalgaduras ou apearem-se
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 981
dos seus carros para saudar, de chapéo na mão e dorso cur-
vado, o augusto passeante.
A residência da família real tivera também por effeito
addicionar um elemento novo e precioso ás antigas diversões
e folganças da colónia, e vinha a ser o espectáculo das festas
de corte, das quaes o anterior viver dos vice-reis mal podia
dar uma idéa. Não eram tanto as paradas militares, as pro-
cissões religiosas, os Te-Deums e requiems nas egrejas, as
luminárias e fogos de artificio agora empregados para cele-
brar os anniversarios das pessoas reaes ou festejar a chegada
de novas felizes da guerra peninsular, o que excitava a curio-
sidade e despertava a admiração, como eram as cerimonias
peculiares á monarchia. A população do Rio de Janeiro nem
podia bem imaginar o que deviam ser os cortejos esplendidos
da realeza em toda sua pompa legendaria. Entretanto en-
traram taes cortejos de súbito a surgir para sacudir o torpor
da pacata cidade ao mesmo tempo que lhe emprestavam fei-
ções bem accentuadas de elegância, de distincção e de luxo.
CAPITULO XXVI
AS 80LEMNIDADES DA CORTE
Aos poucos fora a corte emigrada refazendo seu am-
biente de etiquetas. O desembarque em 1808 tinha sido jubi-
loso e cordial na sua feição antes popular do que nobre, mas
relativamente modesto nas suas galas. Em 181 7, porém, já
a Archiduqueza Leopoldina veio da nau para terra na ga-
leota esculpida e dourada, remada por cem homens, e foi
transportada com os sogros e o noivo, do Arsenal de Mari-
nha ( I ) para a Capella Real onde se celebrou o consorcio,
n'um coche de gala, como os de D. João V, pomposo e
puxado a quatro parelhas de cavallos morzellos, de penna-
chos vermelhos e mantas de velludo bordado a ouro. Dous
outros coches eram destinados ás Altezas Reaes e uma porção
mais, vindos quasi todos de Portugal, (2) aos dignitários e
(1) Para o desembarque no Arsenal mandaram os officiaes da
armada erguer na ponte um enorme arco de triumpho com pilastras
esguias, grinaldas e allegorias, o qual se pode ver reproduzido n'um
dos quadros de Debret conservados na Escola de Bellas Artes.
(2) Em 1811. para a inauguração do novo templo da Candelá-
ria, serviu-se o Príncipe Regente pela primeira vez, segundo diz o
Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos, do coche que mandara vir de
Lisboa, o que leva a crer que até ahi usou as modestas carruagens
(iue IJie podia haver fornecido a colónia. Escreve o padre que até por
esse motivo concorreu muita gente a presenciar a passagem do real
cortejo. Nas contas da legação em Londres figuram todavia em 1810
984 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
fidalgos da corte que assim passara a reviver no fausto de
Lisboa.
As festas do casamento do Principe Real foram, dentro
dos recursos de grandeza do novo Reino, á altura do aconte-
cimento e dos nubentes. Para dar brilho ao enlace da Infanta
Maria Theresa, em 1810, já havia a Corte envidado o me-
lhor dos seus esforços, ordenando touradas e cavalhadas —
que não importavam comtudo em novidade para a colónia,
onde pelo menos as cavalhadas constituiam um folguedo
nacional — n'uma praça ( i ) adrede construida no Campo de
Sant'Anna com 348 camarotes, recita de gala, decorações
publicas e illuminações. Os artistas nacionaes eram ainda
insufficientes em pericia para o gosto das ornamentações,
para as quaes começariam em 181 7 a ser postos em contri-
buição os talentos dos artistas mandados vir de França para
dtnisí coches e arreios reni?tti(los para o Rio, que custaram 8o5 libras
t\sterlinas. Era a legação^ que occasionalniente satisfazia as encoinmcn-
das da corte, quer fossem livros de m.ineralogia para J.inhares. quer
fossem lenços de seda para o pescoço do Regente, aos quaes Funchal
mandava carinhosamente applicar almofadinhas de cambraia de linho
em vez de algodão, por causa do clima, escrevia elle. As contas trimen-
Raesi appareciam avultadas, geralmente cntr?. 1.000 e 2.000 libras afora
salários ; não tanto por aquellas encommendas, que eram raras, como
pelas muitas despezas extraordinárias da missão. Uma funcção na
legação, por exemplo, custou 120 libras ; o Te-Deum pela chegada da
família real á Bahia importou em 1(53 libras ; as luminárias pela che-
gada ao Rio 170 libras. A capella da legação constituía uma despeza
permanente, com seu capellào e a musica, a que se pagava umas 160
libras por anno. As repetidas viagens de Funchal a Worthing, Ply-
mouth, etc, figuravam como outra parcella importante dos gastos,
nunca sendo inieriores as despezas a 100 libras e passando frequen-
temente de 200 uma excursão maior ou mais demorada.
Os coches de gala de Dom João VI foram restaurados em 1817
pelo pintor portuguez Manoel da Costa o Dom Pedro lhos addicionou
um mais, fabricado cm Tariz para o Rei José Napoleão e que não
chegara a ser usado nem soquer remettido para Madrid.
(1) íí<:s últimos tempos da estada no Rio da corte de Dora
João VI, esta arena preparada para touradas ã portugueza servia de
circo onde trabalhava com grande successio uma companhia de acro-
batas e funambulc-s ingleses, acudindo a população a rir estrepitosa-
mente com os tregeitos dos palhaços, applaudir os maravilhosos exer-
cícios equestres de Mr. Southby e extasiar-se deante da corda bamba
e dos equilibrios de Mrs. Southby.
I^OM JOÃO VI NO BRAZIL 985
a projectada Academia. Não obstante, no dizer do minucioso
e indulgente chronista Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos,
correram soberbas as festas organizadas com os meios de que
dispunha o senso esthetico da colónia, antes de que os es-
trangeiros introduzissem no Brazil o sentimento artístico
de que careciam mesmo, para lhes dar relevo á uncção reli-
giosa, os pintores de telas para egrejas que, com a animação a
tudo emprestada pela corte, deram em descobrir suas voca-
ções, achando-lhes destino nas decorações de novos templos e
no embellezamento dos já existentes.
E' verdade que Luccock, mais viajado e mais desabu-
sado que o padre, considerou pueris e absurdas as festas de
1810, o que parece mais exacto. Nenhum ridiculo haveria,
pôde crer-se, no bando que sahio a ler á população o edital
da Camará contendo a nova do consorcio e o convite ao
jubilo nacional, com a comitiva dos officiaes do Senado,
montados e deixando fluctuar suas capas bandadas de seda
branca e seus chapéos de plumas brancas, e o séquito dos
criados do Paço conduzindo pela rédea ginetes ornados de
fitas e pennachos, e três azemolas carregando fogos de ar.
Tampouco seria ridiculo, pizando as ricas alcatifas da Pérsia
que cobriam o estrado dando passagem do Palácio para a
Capella, o cortejo nupcial, o primeiro da realeza brazileira,
formado nas salas forradas de damasco, sob os lustres de
crystal, e desfeito á porta onde o aguardavam bispo e cabido
paramentados de branco, para de novo se constituir á luz
das tochas empunhadas pelos moços da camará e ao som das
salvas e descargas que abafavam os instrumentos de sopro
das musicas regimentaes.
Onde resumbrava o mau gosto era na fachada de archi-
tectura erigida fronteira ao mar e representando um fundo
986 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de jardim, com um grande e bem moldurado painel encer-
rando os retratos de Dom João e de Dona Carlota encimados
por um génio — o da concórdia provavelmente — e mais abaixo,
sob a protecção do hymeneu coroado de rosas, outro painel
com os retratos dos noivos. Descreve miudamente o chro-
nista os pedestaes de bem fingida pedra dos medalhões, os
emblemas, os escudos, os versos allegoricos, os golphinhos,
os vasos de flores postos no alto da estructura, e a impressão
que nos fica de todo esse complicado vergel architectonico é
a de uma balaustrada "com bambolinas de velludo carmezim
com forro de arminho."
Do drama Triumpho da America dado na recita de
gala, nada nos permitte hoje julgar, mas as danças de Afri-
canos no terreiro do Paço "com estampidos de gyrandolas e
fogos imitando salvas de artilheria e fogos rolantes de mos-
quetaria", misturados de rodas e valverdes de São João, e as
cavalhadas de mascarados em quatorze pares com divisas
encarnadas e azues sob forma de listões pendentes do hom-
bro, precedidos de trombeteiros montados, e trotando, galo-
pando, caracolando, com tochas na mão, depois esgrimindo e
descarregando pistolas, deviam produzir uma sensação mixta
de quadrilha de circo e marcha nupcial allemã.
O cumulo do burlesco attingiram, porém, as festas,
commemorativas ainda da boda, celebradas mezes depois, e
que de certo procrearam o carnaval fluminense. Duraram
sete dias na praça do Campo de Sant'Anna e, para amostra
do que foi o desfilar de carros allegoricos, basta referir que o
primeiro, o dos mercadores, figurava um monte coroado
pela estatua da America de arco, aljava, cocar e saiote de
plumas, cercada de índios, quadrúpedes e pássaros assomando
dentre as hervas e flores, donde também brotavam esguichos
I
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 987
que aguavam a praça. Havia nos outros carros, offerecidos
pelos ourives, negociantes de molhados, latoeiros, carpintei-
ros e outros como os denominariamos hoje syndicatos profis-
sionaes, uma dança de Chins, uma ilha do Pacifico com seus
indígenas, um castello donde emergia uma dança militar,
um escaler de marujos remando e cantando antes de desem-
barcarem e bailarem, um grupo de ciganos com as mulheres
nas garupas dos cavallos, até uma dança de homens disfar-
çados em macacos, dando saltos, fazendo caretas, executando
cabriolas, até formarem a pyramide humana — nil novi sub
sole — e o macaquinho do tope desenrolar diante da tribuna
real... os retratos dos sereníssimos consortes.
Parecendo pequeno o recinto onde, depois d'essas danças
zoológicas e mavórcias, correram justas, escaramuçaram, per-
fizeram cortezias em ginetes da real casa cavalleiros vestidos
de "casacas de fino belbute e acompanhados de serventes ves-
tidos de setim das mesmas cores", e correram touros cam-
peões e capinhas de melhor intenção do que experiência, o
carnaval trasbordou e numa gargalhada abraçou toda a ci-
dade. Foram umas saturnaes decentes. Sahiram as allegorias,
reboaram os cantares e desdobraram-se as danças pelas ruas,
pelas quaes rodava um carro mais, engenhoso e monumental,
figurando um brigue de guerra illuminado e salvando.
No Campo improvisara-se um passeio de palmeiras, en-
gradando ramas entrelaçadas de plantas aromáticas as alame-
das terminadas por arcadas de madeira, e levantando-se no
centro uma peça de architectura onde se armara o fogo de
artificio que dignamente rematou a serie de festas.
Por occasião do consorcio do Príncipe Real já não
houve discrepâncias na critica. Os estrangeiros, von Leithold
no numero, recordam com louvor a bella ordenação do cor-
988 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tejo nupcial, que ao som dos sinos e dos canhões percorreu a
distancia do Arsenal á Capella sobre as ruas juncadas de
flores e entre janellas adornadas de colchas. A' frente um
destacamento de cavallaria, a que se seguiam os lacaios e
palafreneiros do Paço em cavallos ricamente ajaezados,
transportando dous d'elles os escabellos forrados de damasco
vermelho para os noivos; atraz a musica da cavallaria; logo
oito maceiros, os reis d'armas e arautos, montados todos e
trajando de grande gala. Vinham depois a carro os conselhei-
ros reaes, o mordomo-mór, os camaristas, acompanhados, co-
ches e berlindas, de lacaios a pé. O estribeiro-mór, ou antes
quem suas vezes fazia, precedia immediatamente o coche real,
que escoltava o capitão da real guarda de archeiros e ladea-
vam os moços da camará, de cabeça descoberta.
Durante todo o dia resoaram as acclamações populares
em frente ao Paço, onde, depois da cerimonia religiosa, se
realizou o jantar de apparato, € á noite, por entre tochas
accesas, sob arcos triumphaes e com geraes luminárias, reto-
mou o cortejo o caminho do Arsenal para alcançar São Chris-
tovão por mar, n'uma flotilha caprichosamente illuminada a
copinhos de cores.
Na véspera tinha ido o Conde de Vianna a bordo sau-
dar a Archiduqueza, e mais tarde alli a visitaram todos os
membros da real familia, já então sendo descripto como im-
pressivo o espectáculo das embarcações empavezadas, com os
marinheiros nss vergas dando vivas, emquanto batiam com-
passadamente a agua os remadores mettidos nas suas bellas
roupas. A' noite, relata-se como feérico o aspecto de con-
juncto das luzes do Arsenal, das pontes de desembarque e
dos muitos navios, reflectindo-se nas aguas quietas da bahia.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 989
Logo em Janeiro passou o anniversario da Princeza
Real, sendo a data ruidosamente festejada com touradas, (i)
danças de mouros e selvagens organizadas pelo mestre de
bailados Lacombe no salão do theatro e fogos de artificio no
jardim de São Christovão e no Campo de Sant'Anna. (2)
Os Índios eram parte obrigada e ainda seriam parte essencial
do symbolismo nacional, mas no fogo de artificio por occa-
sião da elevação do Brazil a Reino, vira-se o paiz depor o
cocar e saiote de pennas e assumir a coroa e manto com que
o brindara o Principe Regente.
De todas as festas reaes celebradas no Rio de Janeiro
as mais solemnes e deslumbrantes foram, porém, as da accla-
mação de Dom João VI, em Fevereiro de 181 8, com o seu
seguimento em Outubro do mesmo anno. Para a funcção da
acclamação foi que se levantou no largo do Paço, entre o
Palácio e a Capella, a famosa varanda ou galeria que Debret
desenhou na sua famosa obra, com as dezoito arcadas, os tro-
phéos e as estatuas da decoração, e ao centro a tribuna em
projecção destinada á cerimonia, de forma a nada perderem
d'ella a família real, a corte e o corpo diplomático esparsos
em tribunas ligadas ao Paço.
O que a lithographia não podia porém reproduzir, era
o luxo interior da galeria, toda revestida de velludo carme-
zim e com pinturas allegoricas nos tectos, lembrando as vir-
tudes do monarcha que subia ao throno de seus avós longe
da pátria tradicional, mas no coração de uma nova pátria
por elle fundada.
(1) Refere von Leithold que as touradas, fi portugueza, com
cortezias e moços de forcado, foram indecentes porque se correram
animaes magros e mansos e formavam as quadrilhas bandarilheiros
ineptos.
(2) Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos, o&. eit.; Freyelnet, ob.
cit.; e Cartas de Marrocos, passim.
D. J. — 6
990 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Recebeu então o Rio de Janeiro o seu baptismo de capi-
tal da monarchia. O espectáculo tanto foi militar como civil
e foi parallelamente grandioso. O dia escolhido foi o de 6 de
Fevereiro. Pela manhã teve lugar a missa do Espirito-Santo
e á tarde a acclamação com todas as formalidades costuma-
rias. Encaminhou-se o cortejo do Paço — ao qual por um lado
e pelo outro á Capella se achava a galeria ligada por um
largo estrado descoberto e alcatifado — formado pelos portei-
ros da canna com maças de prata ao hombro, reis d'armas,
arautos, passavantes, archeiros, reposteiros, gentis homens da
camará, nobres e titulares, bispos e prelados, of f iciaes da Real
Casa e grandes do Reino. O Infante servia de Condestavel,
o conde de Vianna de reposteiro-mór, o marquez de Bellas
de capitão da guarda, e o conde de Barbacena, como alferes-
mór, empunhava o estandarte real enrolado. Por baixo da
varanda central tocava a orchestra de músicos allemães que
tinha acompanhado da Europa a Archiduqueza Leopoldina.
O Rei ostentava, preso no peito por um atacador de
diamantes, um manto carmezim com as armas admiravel-
mente bordadas de Portugal, Brazil e Algarves, o escudo
com as cinco quinas, a esphera armillar e os sete castellos.
Segurando na sinistra o sceptro, de ouro macisso bem como a
coroa — obra, uma e outra insignia, de um mulato brazileiro
empregado pelo joalheiro da coroa — Dom João com a dextra
sobre o Evangelho prestou ao bispo-capellão o juramento
do estylo. Sobre o mesmo missal lhe prestaram os Principes
de sangue o juramento de obediência. Desenrolando então
o estandarte, acclamou o alferes-mór o soberano, e adian-
tando-se até o parapeito da varanda, repetio o seu brado que o
povo recebeu com applausos estrondosos.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 991
Entre a massa compacta agglomerada diante da galeria,
destacavam-se os pelotões de infanteria e os esquadrões de
cavallaria postados com receio de alguma manifestação de des-
contentamento da parte do elemento portuguez pelo facto
de ter lugar a acclamação no Brazil. Pela primeira e ultima
vez no Reino americano desempenhou o seu papel o Juiz do
Povo da antiga monarchia, o tradicional tribuno popular que
em Lisboa era eleito pela Casa dos 24 e que no Brazil ainda
exercia uma auctoridade que se não podia chamar um simu-
lacro, pois que dispunha para sua affirmação da sancção
penal. No cumprimento da sua missão de defender o povo
contra as arbitrariedades do poder, fez o já em todo caso
archaico magistrado de depositário da real promessa de res-
peitar a religião, as leis e os privilégios populares.
Satisfeita esta pequenina deferência, que era antes uma
formalidade, ao Terceiro Estado, na mesma ordem se diri-
gio o cortejo para a Capella Real, onde se realizaram o
Te-Deum e a triplice benção dada com um pedaço do Santo
Lenho na custodia.
O largo do Paço offerecia todo elle um aspecto festivo.
A' beira do cães mandara o Senado da Camará levantar por
Grandjean de Montigny um templo de Minerva (i) em
que se viam a estatua da deusa protegendo o Rei e na en-
trada, em relevo, as figuras da Poesia, da Historia e da
Fama e bem assim os rios principaes das quatro partes do
mundo no acto de tributarem os productos do seu trafico.
Ern frente ao chafariz colonial, um arco de triumpho, obra
(1) Ileproduzklo no reverso da medalha commemorativa conhe-
cida par Setwtus Fliiminenais, em cujo verso Zepherino Ferrez gravou
a effigie de Dom João VI. A gravura de templo é por outro artista
francez, que enlouqueceu^
992 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de Debret, erguido pela Junta Real de Commercio, osten-
tava suas figuras, allegorias e baixos relevos, tendo pintadas
sobre transparentes scenas allusivas a Dom João VI : o seu
desembarque no Rio e a protecção por elle dispensada ás artes
e ao commercio. No meio da praça elevava-se um obelisco,
imitação de granito vermelho, fructo do estatuário Taunay.
O arranjo da praça fora confiado aos artistas francezes,
que assim quizeram evocar, no templo o estylo grego, no
arco o romano e no obelisco o egypcio, transplantando para
o Rio a moda das decorações napoleónicas. Por uma ironia
do destino, ao tempo que o conquistador penava em Santa
Helena, artistas dos seus, dos que em Pariz tinham visto,
quando não preparado e executado suas apotheoses, trabalha-
vam no Brazil para o monarcha emigrado, cuja acclamação,
no gosto das festas delineadas para a glorificação do seu pode-
roso inimigo, se verificava no seio de um outro continente,
grande parte do qual obedecia ao Rei foragido e onde este
havia até alargado seus extensos dominios á custa dos adver-
sários de 1807.
Já em Pariz o clássico estylo napoleónico, de um classi-
sismo meio bárbaro, se tpuzera ao serviço dos Bourbons. Por
isso escrevia Maler ( i ) que a decoração do largo do Paço
recordava aos Francezes o regresso de Luiz XVIII á sua
capital, não tendo Grandjean feito mais do que reeditar o
templo construído ad hoc no Pont-Neuf.
Obelisco, arco e templo accendiam-se á noite clareando
a bahia escura onde se destacavam, do outro lado, as foguei-
ras ardendo sobre os morros da Praia Grande. As illumina-
ções mais brilhantes foram comtudo as do Campo de Santa
(1) Offlcio de 7 de Fevereiro de ÍSÍS.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 993
Anna, (i) transformado em jardim, com um palacete cen-
tral de madeira, cujos terraços serviam á família real de tri-
buna, e com fortins fingidos, nos quatro cantos, em cujas
esplanadas tocavam musicas e em cujas salas d'armas se ser-
viam café e refrescos. A' noite o improvisado jardim aclara-
va-se como si fosse dia: circumdavam o tanque central com
repuxo i6 estatuas illuminadas e, nas alamedas que alli con-
vergiam, deparavam-se 102 pyramides luminosas. Escrevia
Malcr (2) — e o elogio não é fraco — que o Campo de
Sant'Anna exhibia brilho e gosto sufficientes para fazer pen-
sar nas Tulherias e nos Campos Elyseos, quando illuminados.
Ahi teve lugar no dia immediato, 7 de Fevereiro, a
parte popular das festas reaes. No vasto recinto da praça de
touros effectuaram-se evoluções militares, deram-se danças
e funccionou um theatro onde, em presença da corte, se
representou uma magica, se executou um bailado allegorico
e durante perto de uma hora se recitaram poesias allusivas,
se pronunciaram allocuções patrióticas e se cantou o hymno
nacional.
O Elofrio tle Dom João rematava no palco pela sua exal-
tação mythologíca. Fizera-se appello a Vénus e ás Trez Gra-
ças, que gentilmente compareceram não obstante a pouca
belleza do hcroe, e emquanto se esperava que descessem do
Olympo, laborava sobre o altar do hymeneu o fogo sagrado
da união mystica do Rei e do seu povo. Representantes dos
trez Reinos unidos e guerreiros de toda a espécie entravam
(1) lEra então um areal entremeado do mangues, ahi fazendo
s'nis exercicios a tropa de linha e a milici;) e occon-endo os festejos
do Espirito Santo. Algumas casas separadas por muras d« jardins e
quintaes, fechavam troz lados do campo, correndoí pelo septentrional
uma cerca de espinhos que terminava em frente á capella de Santa
Anna.
(2) Officio cit. de 7 de Fevereiro de 1818.
994 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
como comparsas d'esse final nephelibata, em que se destaca-
vam animados, pairando entre as nuvens, os génios das na-
ções componentes da dilatada monarchia.
No dia 8, depois do beija-mão, renovaram-se no Campo
de Sant'Anna as diversões da véspera e queimou-se um es-
plendido fogo de artificio á noite, quando a corte sahio a
visitar as illuminações, que emprestavam uma apparencia
fantástica, a toda a cidade, pois não se limitavam ás dispos-
tas pela Intendência de Policia, Senado da Camará e Junta
do Commercio. Particulares rivalizavam em grandeza com
estas corporações e repartições officiaes: só uma casa se
enfeitara com 6.000 lampeões de cor.
Os artistas francezes tinham prestado seu concurso
com a maior liberalidade, dando uma neta distincta ás orna-
mentações, redigindo inscripções, forjando emblemas, exca-
vando allegorias a fixar sobre os transparentes, distribuindo
desenhos, ideando construcções architecturaes, delineando
templos com bustos reaes coroados do louro guerreiro ou da
pacifica oliveira. As armas dos trez Reinos, o génio do Brazil
e as homenagens de figuras symbolicas eram os motivos do-
minantes nas decorações, que todas traduziam, sob a expan-
são do affecto dynastico, o orgulho particularista atiçando
as rivalidades que de regionaes passavam a nacionaes.
O resto das festas realizou-se oito mezes depois, effe-
ctuando-se no circo do Campo de Sant'Anna as cavalhadas,
touradas e danças a caracter promovidas pelas corporações
profissionaes. Os desportos equestres e tauromachicos de-
viam ter sido os mais apurados da epocha a julgar pelos lon-
gos e cuidados preparativos. Marrocos, que não alimentava
muita ternura pelo Brazil e estava sempre prompto a desfa-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 995
zer nas festas fluminenses, assim escrevia ao Pai : ( i ) "Tra-
ta-se aqui agora dos arranjos relativos ás próximas festas
reaes, em que se vê o firme ardor, empenho, e concorrência
notável do Senado da Camará. De algumas das Capitanias
confinantes tem chegado a esta Corte grande numero de pes-
soas, insignes cavalheiros, para figurarem e brilharem nas
cavalhadas, de que já começaram os ensaios, a que tem ido
assistir immenso povo, menos eu: assim como se mandarão
vir grossas manadas de touros escolhidos em força e bra-
veza, com que se pretende dar boas tardes a huns, e boas nou-
tes a outros. Ouvirei contar, se entretanto puder chegar a
essa época memorável."
A funcção foi de facto completa. Carros com musicas
transportavam á arena os bailarinos que ahi, apeando-se,
executavam quadrilhas e solos: um grupo disfarçado em
guerreiros hespanhoes antigos, outro em habitantes da Cur-
landia, precedidos ambos pelo carro de Neptuno e pela infal-
livel dança de caboclos. Aos exercicios choreographicos segui-
ram-se os torneios. Entrando de lança em riste, os cavallei-
ros faziam suas cortezias e procediam ás variadas exhibições
de equitação e destreza: cannas, argolinhas, estafermo, alcan-
zias, etc. Por fim, pondo-se em contribuição a nova conquista,
celebraram-se as touradas com artistas vindos de Montevideo,
os cavalleiros comtudo á antiga portugueza, de casaco de
velludo bordado com bofes de renda e chapéo tricorne, mon-
tados nos estribos de caixa sobre cavallos de boa raça e visto-
samente ajaezados.
O Campo de Sant'Anna era o local para semelhantes
divertimentos, mas o largo do Paço constituia o centro da
(1) íCarta de 17 de Junho de 1818.
996 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
vida cortezã, popular, militar e até mercantil da cidade. Ahi
vemos que se realizavam as augustas cerimonias da realeza;
ahi se davam largas os júbilos da plebe emquanto não che-
gavam seus desvarios; por ahi desfilavam ao som das bandas
marciaes os regimentos que iam ou vinham da campanha do
Sul; ahi se reuniam á hora da fresca os mercadores tempe-
rantes, sorvendo a largos tragos os moringues de agua fresca,
e se congregavam cm turbulenta agglomeração as tripola-
çõcs ébrias dos navios surtos no porto.
O Palácio com suas dependências dominava o espaçoso
quadrilátero. Nas janellas de sacada do edifício principal
costumavam apparecer figuras aristocráticas quando n'elle
assistia a família real, assim como do segundo andar do con-
vento annexado (onde hoje funcciona o Instituto Histórico)
se viam espreitar o movimento da praça os officiaes da corte
que alli tinham seus aposentos. No andar térreo e nos pateos,
onde ficavam as cozinhas e a ucharia, era um fervilhar de
criadagem.
As cavallariças tinham ido para o largo do Moura e as
cocheiras para a praia de D. Manoel, de sorte que nas imme-
diações da mansão colonial se tinha formado um acampamento
completo em que se agitava uma verdadeira população pala-
ciana, desde os fidalgos altaneiros de Lisboa até a arraia
miúda dos serviçaes brancos, negros e mestiços: tão* nume-
rosos apezar das reducções que soffreu o seu exercito, tão
pouco disciplinados e tão velhacos que um dia, ao que refere
a chronica epistolar de Marrocos, ( i ) foi preciso metter na
cadeia toda a cambada dos empregados na cozinha e copa
de Dona Carlota, "por haverem gramanteado a Merenda
(Ij Cai-ta ao Tai de 29 de Abril de 1815.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 997
destinada para Suas Altezas." Nos dias de funcção de gala,
com o beija-mão indispensável, tornava-se enorme a azáfama,
concorrendo coches, berlindas, seges, traquitanas, gôndolas,
carros inglezes, toda a espécie de vehiculos a transportarem o
pessoal obrigado e facultativo d'essas cerimonias.
Do lado esquerdo do largo do Paço levantavam-se casas
uniformes que foram primeiro occupadas por fornecedores e
empregados da Real Casa, mas em 1818, tendo-se deslocado
o grosso da corte para São Christovão, já o eram, nas lojas
por vários cafés, e nos andares superiores por bilhares e ho-
téis á franceza. Por traz d'este quarteirão, no dedalosinho
de ruas que subsistem, encontrava-se bem repetido o typo
clássico da hospedaria portugueza, annunciada por grandes
taboletas e lanternas de folhas de Flandres, e com armazéns
para deposito das mercadorias dos viajores, na maior parte
de commercio.
Na fachada do quarteirão da banda da praia as lojas de
variados fornecimentos formavam uma espécie de mercado
que nunca se levantava, e da banda opposta, as casas volta-
das para terra constituíam o começo da rua Direita com suas
boas lojas de negociantes abastados. Encostado mesmo ao
mar fazia-se -o mercado do peixe, a que se seguiam os trapi-
ches da Alfandega e depois a praia dos Mineiros, onde se
vendiam bananas, lenha, louças e outros artigos. ( i )
Si nem toda ella podia haver-se esmerado e adoptado o
bom tom, que se derivava de um arremedo que fosse do legi-
timo esplendor das realezas, a vida fluminense no geral ga-
nhara tanto com a fartura proveniente de um commercio di-
recto e extenso, e com a convivência estrangeira, que em
(1) Dcbret, ob. cit.
998 DOM JOÃO VI NO 13RAZIL
1817, no dizer de Debret, offerecia mesmo recursos aos gas-
tronomos. A meza civilizara-se entre certos; educara-se o
paladar de muitos, d'antes embotado pela monotonia da carne
secca com feijão e do cozido com farinha, conhecendo como
delicia suprema a franga assada; o jantar convertera-se para
os educados no que era na Europa: uma reunião agradável
para o corpo e para o espirito, prazer dos sentidos e recreio
da intelligencia. ( i )
O palácio de São Christovão onde o Rei residia mais
frequentemente do que em qualquer outro, passou por diffe-
rentes arranjos e soffreu algumas addições durante a estada
no Brazil de Dom João VI. Logo depois da doação, em 1808,
o architecto-engenheiro portuguez José Domingos Monteiro
f ez-lhe o portão e Manoel da Costa pintou as decorações inte-
riores. A primitiva casa da chácara do negociante Elias tinha
por mimo uma varanda ou galeria, muito commum nas
construcções tropicaes. Em 1816 chamavam, porém, a atten-
ção a grade, o pateo de honra e a fachada lateral gothica,
obra de um architecto inglez — como o intitula Debret (2) —
que foi quem preparou os aposentos para o Principe Real
na occasião do casamento e proseguio nesse mesmo anno de
(1) Debret falia de uma exceWente casa de pasto dirigida por
ura italiano, e de varias casas de comestiveis na rua do Rosário, cen-
tro da colónia italiana, onde se vendiam bons azeites, massas, conser-
vas fructas seccas ^e outros géneros finos de alimentação. Tinham^se
montado padarias francezas, allemãs e italianas, importando um fran-
cez excellent> farinha de trigo do seu paiz. Outro francez, borticultor,
memorara consideravelmente o cultivo dos legumes, fazendo vir da
Europa e acclimando no Brazil variedades desconhecidas.
(2) Esse architecto, um Mr. Johnson, era ant<^s um mestre de
obras que viera ao Rio especialmente para collocar a grade do portão
idêntica A de Sion House. mandada de presente ao Rei pelo duque de
Northumberland e aproveitada na frente de São Christovam.
O estylo gothico foi supprimido e substituído pelo anterior es-
tylo portuguez quando, no anno da Independência, se confiaram a
Manoel da Costa os trabalhos e restaurações de urgência para accom-
modagão da nova corte imperial.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 999
1817 a construcção de um dos quatro pavilhões com arcaria
ogival imaginados para os ângulos.
N'este palácio dava o Rei, ao som de uma banda de
musica, o que se pode denominar beija-mão commum todas
as noites das 8 ás 9, excepção feita dos domingos e dias santi-
ficados. Concorria á cerimonia crescido numero de pessoas
a pé, a cavallo, de sege ou em cabriolet, pejando os caminhos
da Cidade Nova, Catumby, e Mata-porcos. N essas recepções
ordinárias um mulato pisava os calcanhares de um general,
na phrase expressiva de Henderson. Dom João VI gostava
muito que os seus súbditos frequentassem o beija-mão e fazia
por isso lá voltarem reipetidas vezes os pretendentes, parti-
cularmente os que vinham da Europa com algum desejo. A
estes maliciosamente os demorava no Rio, como que para lhes
ensinar a apreciarem sua capital de eleição. Dotado da prodi-
giosa memoria dos Braganças, nunca confundia as physiono-
mias nem as supplicas, e maravilhava os requerentes com o co-
nhecimento que denotava das suas vidas, das suas familias, até
de pequenos incidentes occorridos em tempos passados e que
elles mal podiam acreditar terem subido á sciencia d'El-Rei.
Ao beija-mão de gala compareciam não só os persona-
gens em evidencia como quantos ambicionassem approxi-
mar-se da realeza e tivessem meios de envergar um trajo de
casaca preta, collete branco, calções e meias negras e chapéo
de pasta. Os de nascimento nobre aggregavam um espadim.
Ao lado da poltrona real, para cá dos dous enormes anjos
de azas e armadura prateadas que sustentavam o docel do
throno, uma mesinha com dous castiçaes em cima servia
para accumular as petições e permittia ao monarcha lançar-
Ihes uma vista de olhos. O desfilar não obedecia a preceden-
1000 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
cia alguma e todos sem distincção fincavam um joelho no
chão ou se ajoelhavam com os dous diante do Rei (i ).
Na casa de campo de Santa Cruz passava Dom
João VI todos os annos algumas semanas, e a essa residên-
cia de fazenda affeiçoaram-se muito Dom Pedro e Dona
Leopoldina, ahi se demorando por vezes bastante tempo.
Foi de resto por occasião do seu consorcio, exercendo o cargo
de intendente geral dos edificios da coroa o visconde do Rio
Secco, que se arranjou convenientemente a vivenda, des-
manchando-se as cellas da antiga casa da Ordem, onde con-
tinuara a alojar-se o Rei, para se fazerem divisões mais
amplas.
Não eram mais frequentes as viagens da corte porque
cada uma custava rios de dinheiro, roubando os fornecedores
escandalosamente de combinação com os mordomos. Também
fora a fazenda um desastre completo pelo lado financeiro.
Mal cultivada depois que pela força a desertaram os padres
jesuitas, nenhum proveito se tirava dos milhares de cabeças
de gado que por suas pastagens erravam, nem dos escravos
negros, quasi mil em numero, que nas suas senzalas se jun-
tavam. Mawe, que esteve feito administrador da fazenda
para pôr em execução sua famosa receita de fabricar man-
teiga, escreve que era lamentável a condição da propriedade
e deploráveis os abusos. Nas terras amanhadas cresciam as
hervas; as plantações de café pareciam capoeiras, com ar-
bustos bravios mais altos do que os cafezeiros; o gado andava
tão maltratado que não se encontrava um só cavallo que
prestasse para montaria.
Linhares, que em tudo pensava e de tudo se occupava,
installou em Santa Cruz colonos chins, dos que mandara vir
(1) von Leithold, ob. cit.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 1001
de Macau. Não medraram todavia: voltaram uns para a ci-
dade a venderem foguinhos e outros artigos da sua producção
exótica, e desappareceram outros, ou porque tivessem morrido
de pura nostalgia, ou porque se internassem a esmo, rondando
muitos dessatisfeitos á aventura. Poucos foram os que fica-
ram na fazenda, sem alip-^; se importarem de forma apre-
ciável quer com a agricultura, quer com a horticultura.
Tal foi o aspecto material da realeza brazileira. Pelo
que toca ao moral, fácil é imaginar o tom predominante na
corte do Rio de Janeiro, nos tempos 'do Reino Unido, para
quem conserva presente na memoria ou conhece de tradição
a feição geral da fidalguia portugueza antes que o cosmopo-
litismo e a educação correlativa, transformando a apparencia
do paiz, a fossem também muito recentemente transfor-
mando,
D'essa nobreza caracteristicamente nacional, inculta, il-
letrada, toureira, fadista, dissipada, arruaceira, foram Dom
Pedro, até a lucta e o infortúnio o depurarem, e Dom Mi-
guel, até o exilio e a pobreza o ennobrecerem, dous repre-
sentantes genuinos e completos. Não desmentiam, um e ou-
tro, nem a filiação materna, nem o meio aristocrático a que
pertenciam, na pouca elevação das inclinações, na grosseria
das maneiras, na curteza das vistas, na sensualidade dos ap-
petites, na animalidade dos gostos.
Conta Henderson que, tendo alcançado um dia em
seu passeio as terras de São Christovão, deparou com o
Principe Real amansando com um enorme chicote, que fazia
estalar com o frenesi d'um postilhão, animaes de tiro para as
cocheiras do palácio, já tendo n'aquella manhã esfalfado
quatro parelhas. Não longe o Infante, de botas altas, cha-
péo armado e placa ao peito, munido de um longo aguilhão
1002 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
e ajudado por alguns negros e pelo feitor, lavrava o campo
com um arado puxado por trez juntas de bois.
Assim se preparavam para o governo da monarchia os
filhos de Dom João VI, rijos de músculos mas alheios a
todas as questões publicas, cheios de actividade mas estra-
nhos a qualquer preoccupação intellectual, supprindo sua
palmar ignorância por uma grande vivacidade natural e sua
odiosa vulgaridade pelos rasgos de um cavalheirismo espon-
tâneo, de raça ou de Índole, que fazia as vezes de contrapeso
moral.
Com elles faziam coro os jovens rebentos das casas
fidalgas transplantadas em 1808, criados nas tradições da
ociosidade mental e com o fetichismo da Lisboa devassa e
desordeira ( i ) , cujos palácios cheios do rumor dos depen-
dentes tão pouco se pareciam com as quintas mais tranquillas
na sua exhuberancia tropical dos arrabaldes fluminenses, onde
por fim se aninhara muita gente principal da corte, acompa-
nhando os Inglezes que primeiro invadiram os subúrbios á
cata de residências frescas e agradáveis.
Eram na verdade estrangeiros que occupavam os melho-
res pontos da praia do Flamengo, onde residiram os minis-
tros Balk-Poleff e Thornton, de Catumby, onde foi viver
n'um alto o ministro Flemming, e de Botafogo, onde sobre-
tudo se destacava a elegante vivenda do negociante Harrison.
(1) "Os fidalgos e os que aqui constituem .as classes mais altas
•da socLedade, acliam-se imfinitamiente ,aquem das classes corresiponden-
t.es nos principaes paizes da Europa, tanto no conhecimento como na
pratica da vida civilizada. Os prazeres e requintes do intercurso so-
cial igualmente lhes são estranhos ; ciosos dos estrangeiros, sua atti-
tude para com elles não é caracterii.dda por aquella attenção e hospi-
talidade tão conspícuas n'outras nações, onde prevalece o cultivo de
um sj^stema liberal de sociedade." (Henderson, oh. cit.)
DOM JOÃO^VI NO BRAZIL 1003
Os arrabaldes aformoseavam-se d 'esse modo sem que porém
melhorassem muito os rudes caminhos que a elles conduziam.
O Cattete andava como outr'ora, cheio de buracos que,
depois de qualquer chuvada, se convertiam em vastas poças
d'agua. A única estrada cuidada — e é mister não exaggerar
o qualificativo, — era a de São Christovão, a mais frequen-
tada também por causa da assistência real. A visinhança da
corte determinara aliás a fundação de apraziveis chácaras
por toda aquella redondeza, merecendo favor e povoando-se
gradualmente o Engenho Velho, o Engen'ho Novo, a Tijuca
e o Andarahy.
Em todas as festas da corte, avultavam as recitas de
gala. N'essa vida fluminense sem conforto mas com luxo,
que este já despontara quando aquelle ainda se não organi-
zara; sem distracções intelligentes mas com exhibições faus-
tosas; atrazada e vistosa ao mesmo tempo, ellas se assigna-
lavam por darem-lhe a nota mais apparatosa. As modas in-
glezas e francezas tinham-se ido introduzindo e apurando
o gosto, e as fazendas caras eram realçadas pela profusão
de joias. Von Leithold diz que em parte alguma se podiam
admirar tantas pedrarias como as que constellavam as damas
brazileiras que assistiam aos espectáculos, de toucados em-
plumados, vestidos carregados de passamanes de ouro e prata
e meneando leques decorados de pérolas e de outras pedras
finas.
Não se tornara portanto o theatro terreno somente
para incipientes manifestações politicas; entrara cada vez
mais a ser o ponto por excellencia de reunião social, sobre-
tudo depois que a 12 de Outubro de 1813, anniversario
1004 DOM JOÃO VI NO BRAZTL
natalício do Príncipe da Beira, se inaugurara no Rocio com
o drama lyrico — O juramento dos Numes — e a peça dra-
mática e patriótica — O combate de Vuneiro — o theatro
de São João (mais tarde de São Pedro d'Alcantara) mo-
delado como tudo mais no Rio, edifício ou instituição, pelos
figurinos portuguezes, imitação reduzida a sua fachada da
do theatro de São Carlos de Lisboa.
No desbravado Campo da Lampadosa, uma vez le-
vantado o theatro, começaram logo particulares a construir
casas de residência. Ficava-lhes assim ao pé da porta o diver-
timento fino da cidade, no qual estavam directamente interes-
sados os maiores capitalistas fluminenses, pois que o theatro
fora erguido por subscripção, ficando cada subscriptor pro-
prietário de um camarote. O organizador-iemprezario, José
Fernandes de Almeida, além d'estas facilidades de capital
que encontrou, usou á discreção de material transportado
dos visinhos trabalhos de adaptação da Sc, começada no
largo de São Francisco de Paula, á Academia Militar fun-
dada pelo tempo: mas ainda achou meio de ficar devendo ao
mestre de obras a madeira, a cal e as telhas.
Depois de começar a funccionar a nova casa de espectá-
culos, contribuía o Príncipe Regente com largas sommas
para as despezas das representações officiaes nos anniversa-
rios da família real, celebrados por meio de bailados ou gru-
pos históricos, nos quaes veio a primar o talento de Debret,
por bastantes annos empregado n'esse serviço artístico, do
que resultou ficarem perpetuadas em suas líthographías al-
gumas das formosas allegorías choreographícas por elle ima-
ginadas, compostas e ensaiadas. Nada comtudo lhe chegando,
solicitava o emprezario empréstimo sobre empréstimo dos
accionistas do Banco do Brazil, dando em hypotheca o edi-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL H)U5
flcio, que em 1825 se incendiou e foi reconstruido pelo
mesmo Almeida, concedendo-se-lhe para tal fim loterias ( i ) .
A inauguração ficara memorável. O auctor da peça
symbolica, bocado de resistência do espectáculo, chamava-se
D. Gastão Fausto da Camará Coutinho e era um poeta cor-
tezão do género dos que hoje em dia regalam o Imperador
AUemão com os seus panegyricos dramatizados dos Hohen-
zollerns. Parece-nos agora o seu estylo pretencioso, empolado
e confuso, ao ponto de por vezes perder não somente a graça
e- a limpidez, que estas lhe são desconhecidas, mas até a in-
telligibilidade. Nenhum todavia podia em certo aspecto ex-
pressar melhor essa epocha nacional de vangloriosos desâni-
mos, de encyclopedismo afoito e de arremettidas disfarçadas.
O próprio entrecho não é fácil de resumir.
O primeiro quadro figura a sediça forja de Vulcano.
O deus incita os cyclopes a trabalharem com fervor nas
armaduras dos Portuguezes, requeridas pela guerra. Como
nos Luziadas, modelo eterno de talentos e de mediocridades,
Vénus apparece de protectora d'esss amorosos incorrigiveis,
rogando ao complacente marido que se apresse em soccorrer
(1) Ao lado (lo theatro de São João, trabalhava antos da In-
dependência um theatvinlio de propriedade de uma sociedade de nego-
ciantes ricos, onde distinctos curiosos desempenhavam peças escolhi-
das, compondo-se a orchestra igualmente de curiosos. A sala era lin-
damente decorada : a sociedade dissolveu-se iiorém em 1817, diz-se
que por invejas, ciúmes e enredos. O abastado negociante Luiz de
Souza Dias mandou construir outro theatro, de que foi architecto
Grandjean de Montigny e onde eram também amadores que represen-
tavam (iDebre,t, 06. cit.) Não nos ficaram tradições litterarias d'esses
palcos, cuja acção devia ter sido muito limitada, como era exclusivo
o seu circulo de actores e espectadoi*es.
A existência das referidas salas indica poi*ém como era vivo
no Brazil o gosto pelo theatro, bem como era vivo o gosto pela mu-
sica. Ambos aliás eram espalhados, não só fluminenses.
Na Bahia davam-se regularmente desde ISIO pacas nacionaes
e italianas. Em Pernambuco igualmente havia casa de espectáculos.
Em São Luiz do Maranhão abriu-se uma em 1820. N'outros tempos,
■do esplendor de Villa Rica, fora o seu tlieatro o viveir > dos actores
do Rio de .Janeiro.
D j. - g:j
1006 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
a gente d'ella na crise em que se vê ameaçada pela França.
Vulcano dá-lhe porém a grata nova de já terem os Portu-
guezes lançado o inimigo além dos Pyreneus, o que, entre
parenthesis, não vai de accordo com o afan pelo próprio pa-
trão reccmmendado á faina bellica da sua officina. Apoz
uma larga explicação musical e vocal dos motivos da sua
perenne e suspeita benevolência para com os Luzos, retira-se
Vénus, promettendo aos cyclopes, como premio da diligen-
cia que revelarem, as quatorze n5^mphas que a servem. As
árias que se seguem ao descarado contrato são obrigadas a
compasso de martellos, batendo sobre as bigornas.
No segundo quadro, que representa um bosque, a Paz
vem qu€Íxar-se de só achar guarida "nos brutos animaes,
a que o Olimpo previdente nega razão aguçosa." Surge a
consolal-a o Génio lusitano, com a esperança de que os mo-
narchas da Britania e Lysia hão de ^azer levantar o seu tem-
plo sobre unigos sórdidos cadáveres, e de novo a adornando
das insignias de que eila se despojara, convida-a a entrar no
"sacrosanto alcaçar do supremo heroismo" para ver
A scintillante effigie portentosa
Do Monarca maior, que hão visto as eras.
— scilicet Dom João VI. A rhetorica é capaz de tudo e me-
rece ser perdoada, porque carece dos seus estratagemas de
tropos e hyperboles para ef feitos scenicos como esse, diff iceis
de preparar e sobretudo de tornar impressivos.
O Génio luzitano conduz de passagem a Paz á forja
de Vulcano, afim de admirarem as armaduras dos Portu-
guezes, que transportam para o templo do Heroismo, no
fundo do qual se desenha o régio pacato retrato. AUi encon-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1007
tram Vénus com seu coro de Graças, cantando todos ao
desafio e fazendo o Génio o juramento de que Portugal ja-
mais seria vencido.
Sob a direcção Almeida trabalharam no São João, du-
rante a estada da familia real no Rio, uma companhia de
canto dirigida por um certo Rascolli (i), a companhia dra-
mática da celebre actriz Marianna Torres e a de dança do
famoso Lacombe (2). O corpo de baile era cosmopolita:
n'elle figuravam francezas, hespanholas e até uma mulata
(3). A orchestra deixava um tanto a desejar, excepção feita
de um flautista francez e de um excellente violinista (4).
Empunhava porém a batuta o celebre Marcos Portugal,
que em Lisboa regia a grande orchestra do São Carlos e go-
sava de muita reputação nos palcos lyricos italianos pelas
suas operas pomposas e alegres que tanto agradavam ao
Principe, pela inspiração -de quem ou para satisfazer a quem,
refere Debret, introduziu o maestro na sua musica sacra uma
tonalidade profana, de musica jovial e saltitante, mais pró-
pria do género buffo.
Não quer isto dizer que não fosse genuíno em Dom
João VI o gosto musical, que é apurado e tradicional na fa-
milia de Bragança. Podia o real amador deleitar-se com a
musica mais superficial e retumbante de Marcos Portugal,
mas não deixava por isso de sentir profundamente a musica
(1) Era 1819 davam-se, entre outras operas, Tancredo e a Ca-
çada de Henrique IV, razoavelmente cantadas pelas damas Faschiotti
« Sabini e por um tenor magríssimo, cujo estylo pareceu a von Lei-
thold affectado, mas em quem reconheceu vivacidade scenica.
(2) Mr. e Mme. Lacombe eram os ensaiadores' e davam tam-
bém liQões particulares de dança. Os emprezarios da companhia eram
Mr. e Mme. Toussaint, da Porte Saint-Martin.
(3) Os bailados, muito apreciados do publico, eram em geral
bons, tanto os cómicos, como os dramáticos — Morte de Pyrrho, Paulo
c Virgínia, etc.
(4) von Leithold, oh. cit.
1008 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mais suave e penetrante do padre José Maurício, a quem con-
decorara com o habito de Christo desde 1810, dando im-
mediatamente e só por si o valor devido á maneira fina-
mente melodiosa, sem grandes effeitos orchestraes, que fa-
ziam do padre um Mozart, comparando-o com o génio mar-
cadamente italiano do seu illustre emulo.
Os dous compositores, si personificavam correntes mu-
sicaes divergentes, também inconscientemente symbolizavam
correntes politicas oppostas, anticipando-se o conflicto ar-
tístico ao patriótico. Era José Maurício Nunes Garcia um
producto espontâneo do génio nacional, pois tudo quanto
valia, devia tão somente á sua intuição artística, ao contrario
de Marcos Portugal que vivera algum tempo e aperfeiçoara
sua faculdade na terra clássica das artes.
O brazileiro nunca sahira com effeito do' Rio, onde nas-
ce^ em 1767 e estudou com proveito suas humanidades, co-
nhecendo bem, no dizer do seu biographo Porto Alegre, geo-
graphía, historia, philosophia, francez, italiano, inglez, latim,
e grego. Preferiu comtudo a ser professor de philosophia,
depois de ordenar-se, o entrar como mestre de capella para a
.Sé, dando assim a melhor applicação d'aquelle tempo ao seu
talento musical: talento completo, porquanto José Maurício
não só tocava dous instrumentos, improvisava melodias e
possuía uma prodigiosa memoria acústica, como, dotado de
uma bellíssíma voz, cantava admiravelmente (i).
Ao chegar em 1808, a família real encontrou na cathe-
dral, nas funcções de organista, o compositor que desde
1799 com desvelo se esforçava por propagar o gosto ingenito
pela musica entre os seus compatriotas, sahindo da aula es-
(1) Biographia ci^
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1009
pecial que regia, cantores, Instrumentistas e até compositores.
Nomeou-o o Regente inspector de musica da real capella,
onde graças á augusta influencia, perfeitamente correspon-
dida, se conseguiram resultados maravilhosos, subindo ainda
de esplendor as funcções religiosas da nova capital quando,
em 1810, chegou de Lisboa Marcos Portugal (i), acompa-
nhado de vocalistas e concertistas.
Em 181 5 possuia a Capella Real um corpo de 50 can-
tores, entre elles magnificos virtuosi italianos, dos quaes al-
guns famosos castrati, e de 100 executantes excellentes, diri-
gidos por dous mestres de capella, avaliando Debret os gas-
tos com esses artistas em 300.000 francos annuaes. Tam-
bém, no dizer dos entendidos, o Miserere de Pergoletti se
(1) Marcos I'ortngal foi o mestre de musica das filhos de Dom
João VI e ficou vivendo no Rio até fallecer, durante a Regência. O
iras.civel Marrocos não podia supportar o seu afamado patricio, a quem
nas cartas trata sempre desdenhosamente de "rapsodista, candidato
na Fidalguia pela escala do Do, Ré, Mi. e barão de Alamire." O teiró
parece ter começado no dia em que Marcos Portugal, "indo ver os
Manuscriptos por faculdade de S. A. R., teve a insolentíssima ousadia
de me dizer que todos elles juntos nada valião, e que S. A. R. não
fez bem em es mandar vir, ant^^s deverião ser recolhidos na Torre do
TomI)o ! Logo me lembrei o dito de Horácio: risum teneatis, a miei;
porém mettendo a cousa a disfarce, olhando para os ares, lhe res-
pondi : que o tempo estava mudado e que promettia chuva. Foi tão
besta, que não entendeu ; antes, dando quatro fungadellas, voltou
costas, e poz-se a ler os versos de Thomaz Pinto Brandão. Que las-
tima!.. . (Carta de 3 de Julho de 1812).
N'outra carta de 7 de Outubro do mesmo anno, escrevia elle
com a mi-^smia prevenção : "Marcos António Portugal esitS. fsito hum
Lord com fumos mui subidos. Por certa Ária, que elle compoz para
cantarem trez Fidalgas em dia d'annos de outra, fez-lhe o Conselheiro
.Toaquim José de Azevedo {Rio f?ecco) hum magnifico prezente, que
consistia em 12 dúzias de garrafas de vinho de Champagne (cada
garrafa do valor de 2$800 réis) e 12 dúzias ditas de vinho do Porto.
Elle jft quer ser Commendador, e argumenta com Franzini, e Josô
Monteiro da Rocha." '■ ' I
Aos olhos de Marrocos o compositor era sobretudo culpado de
ter obtido do Príncipe Regente uma sege effectiva, ração de guarda-
roupa, 000$000 réis de ordenado, "e do R. Bolsinho aquíllo que
S. A. R. julgasse lhe era próprio e conveniente", além de ser director
geral de todas as funcções publicas, assim de igreja como de theatro.
Nem lhe excitava a sympathia o estupor qiie soffrera Marcos Portu-
gal, "de cujo ataque ficou leso de hum braço" (Carta de 20 dti Qutu-
1010 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
cantava no Rio, por occasião da Semana Santa, com o mesmo
encanto que em Roma, na Capella Sixtina.
A inclinação musical não era só poderosa no Brazil
entre a gente de educação: ella denunciava-se, sem artifícios
nem preparos, na característica e espontânea musica popular.
O que faltava era apenas escola. Ao próprio padre José
Mauricio e a outros talentos brazileiros do género foi muito
útil, ao que se af firma ( i ) , o influxo da banda allemã que
ficou com a Princeza Real e ajudou a formar entre nós o
bom gosto e o estylo musicaes, determinando a pratica intel-
ligente e sabia sem a qual se extraviam numerosas vocações
profissionaes.
Os Jesuítas, que tão grandes disciplinadores espirituaes
e temporaes são, tinham fundado na fazenda de Santa Cruz
bro de 1811) : antes, oxtendendo a antipathia á familia do musico,
assim maltratava o irmão, passando depois a ensaiar sobre o próprio
novas variações. "Simão Tortugal é organista da Capella R. com os
seus 300!?000 r(Ms e appendices, ignoro se com ração ; porém o irmão
tem-no introduzido com os seus conhecimentos do sorte que tem gran-
geado muitos discípulos e discípulas, que lhe mandão suas seges a
ca'sa buseal-o ; eu o tenho visto mil vezesi nas ditas síiges, entre
ellas a da Duqueza de Cadaval : por isso não tem razão de lamentar-se,
porque he mui natural lhe provenhão grandes interesses de seu exer-
cício. O irmão Marcos tem ganhado a aversão de todos pela sua fan-
farronice ainda maior que a do Pão de Ló : he tão grande a sua im-
postura e soberba por estar acolhido A graça de S. A. li., que se tora
levantado contra si a maior parte dos mesmos que o obsequiavão : he
notável a sua circumspecção, olhos carregados, cortejos de superiori-
dade, emfim apparencias ridículas e do charlatão : já tem desmerecido
nas suas composições : e hum grande Musico e Compositor, vindo de
Pernambuco (?), e que aqui vivo. he hum seu Antagonista, e mostra
a todos, os que quizerem ver, os lugares, (pio Marcos furta de outros
A. A., publicando-os como originaes. Como e^^tã constituído Director
dos Theatrog o Funcções, quanto a Musica, tem formado enormes in-
trigas entre Músicos e Actores, de que se tem originado grandes de-
sordens. Do novo theatro que vai a abrir-se queria Marcos ser
despótico Director com 2 :000$000 além de Benefícios e o melhor ca-
marote da bocca ; porém como encontrasse duvidas no seu Emprezario,
tem-se empenhado em desviar os Actores, e para isso obrigando-os a
exigir graoides mezadas. He i'iso vel-o ã janella, e em publico, todo
empoado e emproado, como quem está governando o Mundo : mas
emfim tem hum grande l'adrinho, e por este o ser, he affagado por
outros." (Carta ao l'ai ae 2S de Setembro de 1813).
(1) Debret, o&. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1011
uma espécie de conservatório de musica para ensino dos
pretos, onde methodizavam suas aptidões naturaes. Mesmo
depois de expulsos os padres, subsistiu esta tradição, ao ponto
de ficar por tal forma impressionado o Principe Regente,
quando visitou aquella propriedade confiscada para a coroa,
com a relativa mestria da execução vocal e instrumental na
egrejinha, que estabeleceu na fazenda escolas de primeiras
lettras, composição musical, canto e diversos instrumentos.
Logrou d'est'arte Dom João que d'alli sahissem boas
figuras para o pessoal não só da capella real de Santa Cruz
como da do Rio, e mesmo que alguns dos alumnos chegas-
sem a tocar e cantar primorosamente. Dom Pedro, em quem
o gosto pela musica foi paixão e paixão cultivada com certo
esmero, protegeu muito a fundação paterna, alcançando, se-
gundo se conta ( i ) , ter operas, adrede compostas pelos dous
irmãos Portugal, inteiramente executadas por aquelles afri-
canos e mestiços.
Tanto quanto a incomparável musica, abrilhantava as
festas de egreja do tempo a oratória sagrada, então no seu
apogeo no Brazil. Envaidava-se Dom João VI — e assim o
repetiu frei Francisco de Mont'Alverne — de contar no Rio
uma plêiade de pregadores que lhe não permittia nutrir
saudades dos que deixara em Portugal. E com effeito dif-
ficil pareceria em extremo, d'outro modo, quem, para cantar
os louvores da religião e seus prototypos, celebrar as virtu-
des evangélicas e exaltar os méritos e serviços da dynastia,
possuia em redor de si, para não citar outras, as vozes elo-
quentes do padre Souza Caldas com seus resaibos mysticos
(1) Balbi, Essoi statistique aur le royaume de Portugal et sen
colonics.
1012 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
( I ) , de frei Francisco de São Carlos com suas galas imagi-
nosas, de frei Francisco de Sampaio com seu verniz acadé-
mico (2), de Mont'Alverne com seu brilho de forma e sua
vibração mais humana.
Tão soberba exhibição de oratória, por mais orthodoxa
que fosse, contribuia muito para que as egrejas representas-
sem uma distracção de sabor quasi profano, a par das festi-
vidades da corte e das funcções theatraes. Qualquer outra a
não conseguiria até supplantar, visto se exercer o seu appello
sobre toda, não só parte da população, agglomerando-se a
multidão nas naves estreitas onde, á luz sempre mortiça de
centenares de velas, se divisavam sobretudo as mulheres de
corpete decotado, cinto e saia meio curta de tulle sobre um
fundo de seda, todas sem chapéu, com a mantilha negra, em
vez porém de usada triangularmente na testa, á hespanhola,
presa por flores no alto ou parte posterior do penteado que
rematava o descommunal pente de tartaruga.
Os viajantes estrangeiros da epocha notam todos á
porfia a pouca dignidade das nossas cerimonias religiosas; á
parte a pompa, o tom era menos de respeito que de folia. O
culto resentia-se do pouco recato dos ecclesiasticos. O clima,
a distancia dos altos censores hierarchicos, a relaxação que
a existência da escravidão emprestava aos costumes, a au-
sência de uma aguda questão religiosa como a que no se-
(1) o padre Caldas, cuja traduajão dos rsalmos de David
constitue uma das poucas jóias da nossa poesia christã. era um sa-
cerdote de raro desinteresse. Recusou herdar uma grande fortuna de
um amigo e recusou dons bispados, s^ndo ura d'el.Ies o do Rio ás Ja-
neiro, e também uma pingue abbadia que lhe foi offerecida por seu
amigo Lafões. Em 1807 acompanhou a corte, fallecendo no Rio a i'
de Março de 1814.
(2) De Sampaio também falia com louvor Preycinet, citando
sua bella bibliotheca franceza que ia dos grandes pregadores do sé-
culo XVII — 'Bissuct, Massillon. Fléchier, Bourdaloue— aos reformado-
res do século XVIII — Diderot e Jean Jacques Rousseau.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1013
culo XVI dotara de tanto valor e estimulara tanta virtude
entre a combativa milicia jesuítica, tudo concorria para o
desregramento do clero, contra o qual em vão reagia tenaz-
mente o respeitável bispo do Rio, D. José Caetano de Souza
Coutinho, prelado de mérito pela conducta exemplar e pelo
zelo apostólico, e homem de boas lettras, familiar com os
clássicos latinos e os bons auctores francezes.
Este e outros perdiam muito o seu tempo, é caso de
dizer o seu latim. A libertinagem distinguiria tanto o clero da
Independência quanto o liberalismo. Freycinet refere que
muitos dos frades nédios e bem tratados que elle via de dia
mettidos nos seus severos hábitos monásticos, envergavam á
noite trajes seculares para sahirem á cata de aventuras de
amor, e que no seu aspecto mui pouca humildade havia em
qualquer occasião, affectando um ar antes marcial que con-
ventual e primando a altaneria a piedade. Elles eram en-
tretanto um elemento necessário da população porque, si já
não representavam a fé em toda sua pureza, ainda represen-
tavam a intelligencia na sua suggestiva expressão.
As ultimas grandes festas da realeza brazileira foram,
em 1819, as do baptizado da Princeza Maria da Gloria.
Um cortejo vistoso como os anteriores cruzou o mesmo ta-
blado do largo do Paço entre o palácio e a capclla; orches-
tras em abundância tocaram as mesmas musicas alegres e
vibrantes ; illuminações e fogos de artificio como os outros
lançaram os mesmos clarões rubros e jubilosos. Era a apo-
theose final. Em 1820 a revolução estalava em Portugal e
vencia: uma revolução que era anti-brazileira, assim como
fora uma revolução anti-portugueza a debellada sedição
pernambucana de 181 7.
CAPITULO XXVII
A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA DE 1820
O auctor das Notas Dorninicaes andou por Lisboa em
1816 e das suas observações, pontualmente exaradas cada
semana, resumbra uma V€Z mais que a questão do dia em
Portugal era a situação de dependência do velho Reino com
relação ao novo. '*As duas partes da monarchia, notava o
f rancez ( i ) , acham-se mais em situação de inimizade do
que de fraternidade, e na verdade é bem difficil administrar
dous paizes que quasi não experimentam a necessidade mutua
de uma alliajiça e qu€, pelo contrario, possuem interesses op-
postos."
Para Portugal a questão era principalmente de amor
próprio, antes mesmo que de conveniência. O antigo Reino
sentia-se completamente abandonado : decahido dos seus foros
tradicionaes, sem mais uma politica sua, quasi reduzido a
não constituir sequer uma expressão geographica européa,
pois se acreditava geralmente (2) que Dom João VI delibe-
n ) Parte inédita do manuscripto de Tollonaro.
Í2» Correspondência do cônsul geral encarregado de negócios
Lesseps, no Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
1016 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
rnra não regressar mais e nutria a intenção de, depois de
esgotar Portugal, já tão depauperado em homens e em di-
nheiro, trocal-o por uma das possessões hespanholas da Ame-
rica, convertendo-se a dynastia bragantina n'uma realeza
exclusivamente americana (i).
O thermometro das esperanças regulava pelos traba-
lhos do palácio da Ajuda: segundo se acceleravam ou esta-
cionavam, tinha-se a volta por próxima ou indefinida (2).
€ todos a desejavam, excepção talvez feita de certa classe de
proprietários que temiam novos impostos, portanto um ac-
crescimo de encargos, com a presença da corte n'uma capital
arruinada, não só empobrecida.
Para o exercito e o povo, ahi se tratava de vaidade, di-
ga-se mesmo de pundonor; de interesse local para os lojistas
e de interesse geral para os armadores e vinhateiros, que estes
sonhavam com o restabelecimento do monopólio mercantil
brazileiro. Devesse muito embora a abolição do exclusivo
commercio náutico dos Portuguezes trazer como resultado,
segundo pensavam alguns economistas da terra, desviar os
capitães e os braços para a agricultura e as manufacturas,
susceptiveis de grande desenvolvimento. Não significava
isto menos que um manancial farto e fácil de lucros havia
sido estancado n'uma occasião, para mais, em que tudo se
conspirara contra a riqueza nacional, até a recrudescência
das piratarias argelinas e o apparecimento dos corsários pla-
tinos, acabando de esphacelar o compromettido trafico ma-
ritimo.
Portugal expiava só as velleidades imperialistas do
Brazil, e as compensações que do Rio lhe vinham chegavam
(1) Offlcio de, Lcsseps de 28 de Fevereiro de 1818.
(2) Tollenai-e, parte inédita.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1017
a parecer escarneo. Não se lembrara El-Rei, em testemunho
de benevolência á terra do seu nascimento, de ordenar que nas
vestimentas dos seus criados e nos uniformes das tropas de
terra e mar somente se empregassem productos das fabri-
cas portuguezas ? ( i ) Entretanto abrira o mercado brazi-
leiro, quer dizer que o entregara á exportação ingleza, e
quando lhe fallavam no remédio essencial aos males da ex-
metropole, n'esse regresso que até lhe curaria as lymphati-
tes, fazia ouvidos de mercador. Não carecia de atravessar o
oceano para ter ar do mar : bastava-lhe a ilha do Governador,
que de uma caravella até tinha a forma esguia. Das janellas
do convento só se enxergavam as aguas da bahia, salpicadas
de terras que lhes quebravam a monotonia, e era tão gostoso
o peixe de mar servido no refeitório. . .
Insubordinação por insubordinação, já que tanto se es-
peculava com a de Pernambuco para o dissuadir de ficar,
também em Portugal se cogitava de revoluções, conforme
andava informado, e muito peor seria qualquer movimento
n'uma terra esfomeada do que n'uma terra abastada. E era
facto que avisos de prevenção tinham subido até o gabinete
real, desacreditando a fidelidade portugueza.
Depois, como de bom grado renunciar a uma posição
preponderante como a que Dom João VI na verdade occupa-
va e mais ainda imaginava occupar na America ? Maler não
se enganava quando escrevia (2) que o gabinete do Rio, fas-
cinndo talvez pelos hábeis artificios de Barca, parecia mais
interessado no papel que se desvanecia de estar desempe-
nhando no Novo Mundo, do que disposto a retomar seu lu-
gar entre as potencias do Velho. "Em tempo ouvi a este
(1) Officio cit. de Lesseps.
(2) Officio de l.T de Julho de 1818.
1018 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
respeito as cousas mais espantosas da bocca do fallecido Be-
zerra. Este coitado, todo entrevado, não trepidava em en-
contrar um novo Frederico Magno e 40.000 homens de
guerra no Brazil com a mesma facilidade com que o Sr.
conde dos Arcos encontrou depois na Bahia um exercito de
Scipiões" (i).
O afastamento do Rei afigurava-se com boa razão a
Portugal a causa capital dos seus infortúnios, que mais acer-
bos se tornavam cada dia. A' situação critica e inquietadora,
classe alguma da sociedade escapava. Os negócios apodre-
ciam e a corte, quer dizer o soberano, notoriamente affei-
çoado á sua ex-colonia, accumulava as medidas nocivas aos
interesses luzitanos e acirrava os ciúmes já azedos, collocando
o exercito portuguez em pé de guerra por amor ao Brazil,
restabelecendo por trez annos a contribuição de guerra, a
saber o quinto sobre todos os rendimentos e em todas as ci-
dades, por causa do Brazil, dispondo successivos embarques
de forças armadas e equipadas para serviço no Brazil ou
serviço do Brazil (2).
Em 181 7 tinham seguido 6.000 homens mais para a
campanha do Sul e logo se pediram mais 4.000, quando, ao
tratar-se de ida para a America, era necessário proceder a
uma escolha individual porque nenhum soldado se deixava
convencer de alistar-se voluntariamente, correspondendo
sempre ao convite, cedo transformado em intimativa, um
augmento nas deserções. Fora por isso mister recorrer ao
recrutamento forçado nas villas e campos, a principio discreto
(1) Allusão á pi'imeira prcelamação aos Pernambucanos :
" he mpu primoiro devei- assegnrar-vos que a devisa dos Bahia-
no55 he— fidelidade ao mais querido dos Reis — e que cada soldado da
Bahia seríl hum Scipião no vosfto ííwfio "
'(2) Officio CiiÊrado de Lesseps de 22 de Abril d.- 1S17.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1019
para não excitar reclamações demasiado vivas, logo exe-
cutado com gana, tendo sido revogadas as isenções concedidas
por privilégios particulares. Ainda assim, de modo algum
se puderam arranjar os 4.000 soldados: apenas foram, a 14
de Agosto, 2.900 homens de infanteria e um destacamento
de engenharia.
Para o thesouro todas essas despezas — expedição a
Liorne para buscar a Princeza, bloqueio de Pernambuco,
guerra de Montevideo — eram umas tantas sangrias dadas
a um anemico de ultimo grau, que só á força de expedientes
se mantinha de pé. Para o empréstimo de quatro milhões de
cruzados a que em 181 7 houve que recorrer com urgência,
só se encontraram subscriptores para milhão e meio, apezar
do juro razoável de 6 %, de uma taxa especial de garantia
do seu serviço — 15 % sobre géneros salgados, queijos e
manteiga de importação — e das instancias da Regência
junto aos principaes negociantes e capitalistas de Lisboa. A
operação ultimou-se porque a Regência distribuio á força
o restante do empréstimo por aquelles mesmos tomadores,
que se consolaram da violência com a idéa de que o dinheiro
serviria também para se armarem fragatas destinadas a pro-
teger o commercio portuguez contra os corsários de Artigas.
Em 1819 recusou porém a Regência muito respeitosa-
mente obtemperar a outro pedido real, de mais 5.000 ho-
mens, parecendo-lhe impossivel recrutar mais gente para um
serviço que a todos repugnava e quando no paiz, constante-
mente sob a ameaça da Hespanha, se reduzia o effectivo
armado ao estricto necessário.
Em dinheiro não havia mais que pensar ; o que sobrava
de negociantes ricos da capital transferia seus fundos para
França, para livrarem-se de novas exigências, e até fallavam
1020 DOM JOÃO VI NO BUAZIL
em mudança para lá ( i ) , aggravando com esse beato de
trasladação — depois dos fidalgos, os mercadores — a acri-
monia popular. O povo, ainda que pobre, sente como si sua
fosse a emigração da fortuna. Já parecia demais.
Soldados que iam para o Brazil, lá ficavam como colo-
nos, si escapavam dos combates; navio que para lá fosse,
também ficava para guardar e alargar o dominio pelo qual
se perdera de amores o monarcha fidelissimo, cujo proceder
para com Portugal, escrevia de Lisboa Lesseps (2), pro-
vava cada vez mais que lhe importavam pouco seus destinos e
que somente buscava utilizar todos os seus recursos para di-
latar os estados reaes na America. Na reali-dade qualquer
movimento portuguez tinha que ser um movimento separa-
tista e justificado pelo brazileirismo, de sentimentos e de in-
teresses, da corte de Dom João VI.
Quando um dia — tão patente se fazia a tendência —
Maler quizera carregar a fundo sobre Barca a propósito da
expedição do Rio da Prata e aventara como uma consequên-
cia provável e funesta da politica do gabinete do Rio — leur
avant-poste — foi-lhe friamente respondido que o governo
se achava preparado para tal eventualidade, que se não as-
sustava com ella e que de coração leve renunciaria á Eu-
ropa, ficando de todo americano (3).
Tão deliberado parecia o propósito de despovoar de
defensores e reduzir á miséria extrema os antigos estados da
monarchia, em vez de acudir-lhes o soberano com sua pre-
sença, que chegou a correr a ter-se por verdadeiro o boato de
haver Dom João VI feito appello á nobreza, auctorizando-a a
alienar seus morgadios europeus e transferir-lhes o producto
(1) Corresp. de Lesseps, ibidem.
(2) Ofíicio de 2 de Maio de 1817
(S) Corresp. de Maler, ibUHcm.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1021 .
para o Brazil. Já os rendimentos da Real Casa e das casas
nobres passavam regularmente além-mar e lá se consumiam,
indifferente o Rei ás representações da Regência e ás suppli-
cas dos negociantes para se estabelecerem em Lisboa um
porto franco e um entreposto com os favores indispensáveis á
navegação e commercio em crise. De seu lado o recrutamento
não só irritava os ânimos, como rouibava á lavoura braços
numerosos, quasi se tendo já por preferivel, em muitos casos,
deixar baldios os terrenos do que cultival-os com tanto ónus.
O agastamento assumira até a forma de cartas anony-
mas dirigidas ao juiz do Povo, em que se lhe declarava, em
nome da população, que esta não sanccionava disposições tão
vexatórias e tão adversas ao bem estar do Reino e se opporia
a ellas com toda a vehemencia do desespero. ( i ) Vista a
esta luz, a conspiração de Gomes Freire fora uma manifes-
tação não só anti-estrangeira ou patriota como anti-dynas-
tica ou democrática. A opinião corrente era hostil ao Rei, pro-
testando-se ás claras que o receberia mal o paiz, que era o seu
mas que elle tratara como inimigOj caso a juncção do governo
rebelde de Buenos Ayres com Artigas desse em resultado a
invasão do Brazil e uma nova fuga da corte, d'esta vez para
Lisboa.
As incertezas do momento traduziam-se nos boatos mais
desencontrados : ora que a Regência ia por sua própria aucto-
ridade e iniciativa destituir Beresford e avocar as responsabi-
lidades do mando, ora que ia pelo contrario resignar seus
poderes nas mãos do que se poderia então com plena justiça
denominar procônsul britannico. Na phrase expressiva de
Lesseps (2), a força de inércia e o risco da sua destruição
(1) Officio cifrado cit. de 22 d^ Abril de 1817.
(2) Officio cifrado de Lesseps de 21 de Fevereiro de 1818.
D. J. — 64
1022 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
eram os únicos eixos sobre que se movia esse desgraçado pe-
queno estado.
Em certos meios já se ia até ao extremo de despedir
toda susceptibilidade de independência e encarar sem relu-
ctancia a união ibérica, de ordinário tão antipathica. Parecia
mais digno este casamento de conveniência dos dous povos
rivaes, pondo cobro a uma tensão sete vezes secular, do que
o prolongamento da subalternação ao Brazil. No fundo, a
impedir qualquer reconciliação de interesses, senão de affe-
ctos, sobre a base da segunda formula, jazia insistente e
irritante o problema do monopólio.
A idéa ou mesmo proposta de restabelecel-o indirecta-
mente, fazendo os géneros brazileiros pagarem á sabida,
para qualquer paiz que não fosse Portugal, um direito espe-
cial igual ao que os tributaria si como antigamente tivessem
Lisboa poT escala, não tivera acceitação. ( i ) Seria restituir ao
Tejo a perdida primazia, mas ás custas da colónia elevada
a Reino.
Tornava-se preciso vingar a revolução liberal para que
se pensasse a serio na reconstrucção do derrubado edificio
económico, invocando-se o principio de que n'um governo
representativo a colónia não pode ser livremente tratada
ou se não acha exclusivamente á mercê do soberano, consti-
tuindo propriedade commum da nação, sobre a qual exerce
esta direitos e possue voz activa: mais ainda, pois, como era
o caso, as Cortes personificavam ellas sós a soberania nacio-
nal.
Seria injusto calar, a par dos aggravos de Portugal, a
difficuldade da tarefa cabida a Dom João VI. Tollenare sem
(1) Tollenare, parte inédita.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1^3
hesitar lhe reconhecia tal caracter, afigurando-se-lhe bem
complicado ser a um tempo Rei de Portugal e Rei do Brazil
e proceder paternalmente ipara com dous povos com designios
tão antagónicos, um d'elles só podendo viver de monopólio,
o outro só respirando com sua suppressão. Uma vez conhecido
o Brazil, mais se lhe radicou então esta impressão.
Entre as notas tomadas na Bahia, encontra-se a se-
guinte: "Das difficuldaídes que offerece o bello thema da
prosperidade possivel do Brazil, uma ha que sempre me ferio
vivamente, a da combinação de tal prosperidade com a do
Reino Unido de Portugal. Todas as formulas que dizem
respeito a semelhante harmonia apparecem-me n'uma confu-
são tão grande, que me sinto invariavelmente succumbir
diante do esforço preciso para deslindar a verdadeira, quando
d'isso cogito. Existem sem duvida principies que devem servir
a levantar o edificio da união: quereria possuir talento e
lazer bastantes para pesquizal-os ; mas renuncio a tanto, pelo
menos por emquanto" (i). Ao voltar ao assumpto, já encon-
traria o Francez a solução do seu problema prejudicada pela
separação. •
N'um ponto só se ajustavam os sentimentos collectivos
dos dous povos, o portuguez e o brazileiro: na antipathia á
Inglaterra. Os Portuguezes rangiam os dentes por ver um
general inglez occupando de facto o lugar do soberano legi-
timo, que a Regência só nominalmente representava. Para
os Brazileiros constituia a Inglaterra o óbice maior á conti-
nuação do trafico negro, que interessava quasi toda a gente
e que quasi toda a gente — raríssimas eram as excepções —
desejava cordialmente ver prolongar-se
(1) Tollenare, parte inédita.
1024 DOM JOÃO VI NO BRAZTL
"E' como se fosse sua ultima taboa de salvação, escrevia
um sagaz viajante, (i) Prima qualquer outra consideração.
Portugal e Hespanha, Inglaterra e França, Wellington,
Bonaparte e o Principe, pode tudo ir parar nas profundas,
comtanto que se não toque no querido trafico, objecto dos
seus devaneios na vigilia e dos seus sonhos no somno. Argu-
mento algum tem poder para romper esta ligação, exce-
ptuado o da força, que é sempre uma medida áspera e por-
ventura pouco justificável, considerado o ciúme alimentado
da nossa influencia nos conselhos nacionaes, a qual todos,
estadistas e mercadores, ecclep-asticos e soldados, anhelam
por ver diminuida. Nossa popularidade está na verdade sus-
p)€nsa apenas de um ténue fio, porque a peculiar união com-
mercial com a Grã Bretanha tem sido apodada de tão preju-
dicial por alguns dos publicistas da terra que, si o governo
fosse de indole mais popular, sem duvida de ha muito ella
se acharia dissolvida."
Da Inglaterra provinha justamente o mais forte empe-
nho para que se não desatasse o laço que unia Portugal ao
Brazil. Nas suas reflexões diplomáticas (2) dizia o marquez
de Saint Simon ser evidente que uma monarchia com o
oceano de permeio entre as suas metades, se achava virtual-
mente entregue á prepotência da Grã Bretanha, a qual do-
minava suas communicações. Por isso instava tanto o gabi-
nete de Londres, para que se não desligasse Portugal do
consorcio, pelo regresso da corte. Que futuro independente
teria, porém, o velho Reino esgotado, divorciado da sua
dynastia nacional? A Hespanha nem tempo lhe daria para
qualquer tentativa. Ainda o Brazil tinha por si um desenvol-
(1) Prior, oh. cit.
(2) Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL Í025
vimento que cada anno mais se accentuava, e melhor base se
não poderia offcrecer a uma forma autónoma de governo.
O embaixador em perspectiva de Luiz XVIII pensava
que á França pelo contrario, já que não visava a dominar
politicamente, mais conviria a desaggregação do Reino Unido,
pois assim se lhe antojava no Brazil o ensejo de conquistar
uma posição económica ao mesmo tempo que se lhe abria
em Portugal a opportunidade de recobrar, em beneficio mer-
cantil, a influencia de antes do tratado de Methuen, que já
fora dictado sobretudo pela preoccupação portugueza de pro-
teger as possessões transatlânticas.
Por meio de uma alliança com a corte de Lisboa, logra-
ria alem do mais a de Pariz pesar sobre a Hespanha e recupe-
rar os meios de acção que, segundo Saint-Simon, ''a situação
actual torna mais necessários." Menos de quatro annos depois
a França intervinha com effeito além dos Pyreneus, co-
lhendo o Duque d'Angoulême os fáceis louros do Trocadero.
França e Inglaterra concordavam no emtanto em con-
siderar infensa aos seus interesses a união ibérica, que a ambas
reduziria de metade as possiveis vantagens politicas e com-
merciaes. Em Portugal era esta também a solução temida
pelo maior numero e que o rancor nacional attribuia igual-
mente ao Brazil, pois mercê da Banda Oriental fora que
chegara a concentrar-se na fronteira um exercito hespanhol
contra o qual o velho Reino, para garantir a sua autonomia,
só enxergava armas, desproporcionadas na quantidade mas
talvez superiores na qualidade, no valor disciplinado do seu
exercito reduzido e no desespero patriótico da sua população.
A Hespanha tinha comtudo um objectivo mais remoto
e menos singelo do que a annexação portugueza, a qual seria
um alimento demasiado forte em seu estado de debilidade. A
10?.6 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
idéa do seu governo era sem duvida em primeiro lugar ro-
bustecer as reclamações feitas no Rio sobre a occupação do
território platino, mas não era menos levar a Regência portu-
gueza a reter na Europa algumas, quando não muitas das
tropas que poderiam ir reforçar o exercito em operações na fu"
tura Cisplatina.
Entre os liberaes hespanhoes, n'aquelle momento sub-
jugados mas sempre alerta e conspirando, o ideal ibérico era
o da associação voluntária. Si intrigavam em Lisboa, era
para que ahi se comprehendesse a utilidade de resistirem
juntos os dous paizes aos muitos que combatiam os novos
principies. Uma vez de posse da administração os liberaes,
no anno mesmo de 1820, a conveniência era grande de evitar
que na capital do Reino visinho, continuando apegada ás ve-
lhas instituições, se fundasse um centro de reacção contra
o regimen constitucional, quasi republicano, de Cadiz.
Eis porque foram conspicuas n'essa occasião as cnzo-
nas urdidas pelo encarregado de negócios Pando, devendo-se-
Ihes em boa parte attribuir a revolução portugueza de Agosto
(i). A federação ibérica é de resto uma miragem politica
que surge sempre distincta ao vingarem na Hespanha pre-
ferencias ultra-liberaes c de outro lado avolumar-se em Por-
tugal o movimento democrático. Moralmente é quasi uma
crise do instincto de conservação, pois que com essa miragem
é infallivelmente concomitante o afastamento nas duas nações
da influencia ingleza, de ordinário activa na Península e
preponderante em Portugal.
A par do surdo trabalho hespanhol de solidariedade
liberal, crescia a olhos vistos a rivalidade entre as duas
secções da monarchia de Dom João VI. A correspondência de
(1) Corresp. de L&ssejps, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1027
Lesseps accusa em Portugal uma tendência progressiva para
a impaciência e o desassocego. Já os soldados destinados ao
Brazil recusavam embarcar sem que lhes fosse pago o soldo
devido de mezes, e a indisciplina dos militares animava a ex-
acerbação dos civis. Crescia entre estes a audácia. Nas esqui-
nas appareciam pregados cartazes sediciosos e ameaçadores,
que denunciavam claros intentos subversivos.
Beresford, que era quiçá o único com caracter e firmeza
para conter a rebellião, si pudesse ter completa liberdade de
acção, e que na previsão dos acontecimentos bem próximos,
tinha em vão urgido a Regência a fornecer ao governo de
Fernando VII os 6.000 homens pedidos para ajudal-o a
debellar a revolução de Março, dispv.z-se a partir de novo
para o Rio (i). Não só não podia levar á paciência que o
soldo das suas tropas andasse tão indecorosamente atrazado,
como, movido talvez pelo governo britannico, quiz expor
pessoalmente ao Rei a situação angustiosa e decidil-o a vir
impedir o estalar de uma insurreição (2). Ausente o mare-
chal— que em qualquer caso estava prestes a retirar-se, pois
já fora nomeado governador de Jersey — desapparecia a
garantia maxim.a da disciplina portugueza.
No Brazil ia Beresford descobrir uma corrente parecida
de discórdia. Havia mais de dous annos que Maler annun-
ciava pára Pariz (3) que uma marcada antipathia se mani-
festava a cada passo entre os batalhões brazileiros de regresso
da expedição de Pernambuco e os regimentos portuguezes
chegados com o marquez de Angeja, e que tinham ficado de
guarnição á capital. Não tendo o duello entrado nos hábitos
luzo-brazileiros, as rixas tomavam a forma frequente do
(1) Segnio a 4 dp Abril de 1820 na fnagiata de guerra Spartan.
(2) Corresp. de Lesseps, ihiâem.
(3) OMcio de 22 de Margo de 1818.
1028 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
assassinato e a forma diária do espancamento, ambas muito
ao salbor da tradição nacional.
Começaram os superiores por tomar meias medidas, dis-
cursando ás tropas, appellando para sua cordura, publicando
sentenciosas ordens do dia. Como nada d'isto fosse bastante e
o mal continuasse e até se aggravasse, o governador comman-
dante das armas, na impossibilidade de arredar permanente-
mente os combatentes, tomou a resolução extrema de mandar
apoderar-se e queimar os porretes, instrumentos das aggres-
sões, sacudindo-se suas cinzas no mar (i).
;0 mais intelligente historiador do Brazil (2) attribue
pela maior parte os attritos á basofia portugueza, do seu
renome militar e da sua sciencia profissional, com a qual
mal se accommoidavam a inexperiência e a desconfiança bra-
zileiras. Os officiaes do velho Reino desdenhavam dos do
novo, negando-lhes foros de camaradas, e o general Vicente
Arbués de Oliveira insistia até de continuo na corte para
que o accesso aos Brazileiros só fosse concedido até o posto
de capitão, sendo todos os lugares do estado-maior occupados
por Portuguezes natos. As cousas chegaram a ponto de haver
que adiar indefinidamente as manobras para se não accom-
metterem de verdade e com vontade heroes de Talavera e
heroes de Pernambuco, para não brigarem pés de chumbo e
pés de cabra. (3)
As i'déas liberaes estimulavam instinctivamente os senti-
mentos nativistas, que tinham por força que acabar pela sepa-
ração dos dous Reinos, mas eram sem comparação muito
menos hostis á realeza no Brazil do que em Portugal. Pes-
(1) Qfficio de (Mal-or de 4 de Abril de 1818.
(2) Handelmann, oh. cit.
(o) Handelmann, oh. cit.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1029
soalmente Dom João VI nunca deixou de ser popular (i), si
bem que se não possa conceber que o Brazil permanecesse
regido pelo absolutismo ao lado de Portugal constitucional.
Verdade é que para tal resultado politico no velho Reino
contribuiria mais do que a corrente idealista que agitava a
Europa em anciãs de reforma, o despeito, o ódio mesmo da
colónia emancipada. A subsequente popularidade de Dom Mi-
guel prova como o velho Reino era apegado ao seu tradicio-
nal regimen politico, de que o pretendia libertar uma mino-
ria Ínfima de ideólogos. Apoz três quartos de século de con-
stitucionalismo, ainda se não tornou Dom Pedro popular em
Portugal: em vida, então, foi alvo de um concentrado ran-
cor que exiplodia até depois de instajUado o governo liberal.
Mais accessivel estava o Brazil por todas as circum-
stancias, ás blandicias do credo novo. Grande resentimento
produzia entre os Brazileiros a situação privilegiada de que
viam no seu meio gosarem os Portuguezes, senhores do com-
mercio, apezar de franqueado, por uma norma arraigada e
por uma disposição ao trabalho mais forte em emigrantes
do que nos da terra, e senhores sobretudo dos serviços públi-
cos que constituiam uma inclinação hereditária, robustecida
pela presença da corte com sua larga e ociosa burocracia.
Ameaçados ou pelo menos invejados, os Portuguezes
cerravam fileiras, defendiam suas posições, c o bando dos
assaltantes tinha de recuar, fallando com ira em preterição
official e em direitos patrióticos aos lucros c ás dignidades.
Já era ousadia, a desses reinóes, de virem ao Brazil tomar
(1) "Todas aqnellas novidades propirias deviam ser gra<a-
mente attriíbuidas á. munificência (freie Gna>de) do monarcha, e lho
são com effeito referidas no geral cora o mais intimo reconliecimento."
'l'ão grande era a liberalidade real, que na sua nHo lotiga (>slada no
Brazil quasi desbaratou em doações as terras do real património nas
províncias do Rio, São Paulo e Minas •Geraes. (Ilandielmann, 06. cit.).
1030 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
desforra do que lhes arrebatara com tanta justiça a trasla-
dação da corte, seguida da elevação do Brazil a Reino... Os
proventos e os cargos deviam d'ora avante ser reservados aos
filhos da terra, ou a graça concedida ficava sem significação,
tornava-se irrisória.
Assim raciocinavam os pretendentes, que eram legião,
e suas ambições echoavam n'um ambiente symipathico, porque
o interesse era de todos. Nas provincias — Handelmann o
recorda com justeza — aggravavam-se estes sentimentos de
crú nativismo com outro, que era o do bairrismo ou orgulho
local ferido pelas vantagens colhidas pelo Rio de Janeiro,
que as capitanias estavam tão pouco acostumadas a conside-
rar capital do Estado do Brazil, quanto aquella mesma cidade
a julgar-se corte, ao que a erguera sua nova posição. Algu-
mas das provincias ou muitos nas provincias preferiam ainda
assim ser sua terra colónia portugueza a ser colónia flumi-
nense.
A esta impressão obedeceria aliás Dom João VI, quando,
na imipossibilidade de permanecer elle próprio a tentar fazer
frente ao furacão liberal, desencadeado no Brazil, com suas
meias medidas benévolas € astutas, decidio que o filho fi-
casse para se arvorar em centro da agitação e unificar as
velleidades dispersivas de independência, respigando os bene-
ficios da separação e implantando a coroa imperial onde sem
elle teria brotado o barrete phrygio. A intuição do Rei foi
profunda e não lhe cabe duvida, pois que consta da corres-
pondência ulterior entre pai e filho, gradualmente apresen-
tada ás Cortes installadas em Lisboa pela revolução victo-
riosa de Agosto-Setembro de 1820.
Dom João disse ao coronel Maler que as noticias que de
Lisboa lhe trouxera Beresford tinham sido para elle uma
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1031
cruz, mas não se resolveu a regressar, que era o que em
Portugal se esperava resultasse da nova viagem do marechal
ao Rio. O Rei hesitava, usava de subterfúgios e ensaiava
uma diversão — "três possible d'apres le caractere de Sa Ma-
jesté," commentava Maler para Pariz — ao objecto da missão
accordada com a Regência, incumbindo provisoriamente o
enviado de inspeccionar e reorganizar o exercito brazileiro, e
os estabelecimentos militares taes como hospitaes e armazéns.
Para Portugal mandava-se entretanto algum dinheiro,
afim de se ir saldando os atrazados do exercito portuguez,
e cogitava-se de uma carta regia abrindo no Brazil mais fácil
e vantajoso mercado aos productos agricolas e industriaes
de Portugal com isentar-lhe de toda taxa as fazendas de
própria manufactura e sobrecarregar de imposto os vinhos
estrangeiros. ( i )
A situação tornara-se, porém, grave. A revolução de
Cadiz propagara-se moralmente; a agitação nas provincias
era ainda maior do que em Lisboa ; a solução Cadaval apre-
sentava-se francamente, não parecendo repugnar á duqueza
mãi o papel de Luiza de Guzmán, e da Hespanha mais e
mais se atiçava, por meios ostensivos e secretos, a rebellião,
constitucional muito embora, porque ella própria continuara
sendo uma monarchia posto que ultra-liberal.
Bcrcsford — ellc mesmo o declarou a Maler (2) —
viera lealmente prevenir Dom João VI de tudo isso e pôr
debaixo dos seus olhos o quadro exacto dos soffrimentos e
queixumes portuguezes, no intuito de que o Rei lhes valesse,
começando por livrar da decadência e do abandono a lavoura
e o commercio do velho Reino. Si ao monarcha contrariava
(1) Officio de Maler de 20 de Jnnho de 1820.
(2) Officio de 30 de Julho de 1820.
1032 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
tanto a volta, que mandasse em seu lugar o Príncipe Real:
a salvação podia effectuar-se sem essa condição, mas o pe-
nhor seria precioso das boas intenções do soberano.
Esta ultima reflexão foi quanto Beresford manifestou ao
encarregado de negócios de França, calando que se occupava
de promover a realização do alvitre. Nem Maler lhe per-
guntou por mais porque, na sua phrase, "le marechal n'est
pas un homme á questionner, il faut se contenter de ce qu'il
veut vous dire."
Dom João VI negou-se a deixar partir Dom Pedro, si
bem que fosse conselho instante de Wellington — e nenhuma
opinião mais auctorizada, ou que maiores probabilidades ti-
vesse de ser executada — ^que o marechal devia volver sem de-
mora a Lisboa afim de parar os golpes de uma revolução que
já era inevitável, seguindo-o, porém, de perto o herdeiro da
coroa ( I ) . Beresford foi o único a partir no Vengeurj um dos
navios da divisão do commodoro Sir Thomas Hardy, mas para
encontrar consuminado o movimento.
Soubera-se em Portugal que o marechal era portador
do resto da divida ás tropas e a informação fez apressar o
levante, pois receiavam seus promotores que, pelo principio
de cessada a causa, cessar o effeito, o pagamento acalmasse a
effervescencia entre os soldados e apagasse o descontenta-
mento. A Junta liberal nem permittio ao marechal des-
embarcar. Na barra mudou de embarcação e singrou para
Inglaterra no Arabella, deixando porventura uma única
pessoa saudosa entre tantas que lhe faziam a corte — "la três
jolie et fringante épouse" de um funccionario portuguez, da
qual era Beresford notoriamente amante (2).
(1) Officio cifrado de Less.e.ps, de 15 de No-vembro de 1820.
(2) Tollenare, paa-te inédita.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 10H3
As doações e dignidades conferidas pelo monarcha ao
commandante estrangeiro do exercito nacional, e bem assim
as graças e honrarias dispensadas aos seus partidários, de
quem como era natural se occupara exclusivamente o mare-
chal, mais tinham acirrado os ódios no meio indisciplinado e
apaixonado do Reino em rebellião.
Dom João VI ficara comtudo crente de que a presença
de Beresford, provido de bom metal sonante, conciliaria a
agitação, de que lhe tinham chegado as primeiras e inequivo-
cas novas, a 17 de Outubro, por um brigue de guerra portu-
guez, cujas communicações com a cidade foram immediata-
mente vedadas. Tão esperançado andava o Rei, que se não
affligio nem deu mostras de maior inquietação. Da ilha do
Governador, onde se achava e onde lhe foram parar os des-
pachos, veio no dia seguinte para São Christovão, nada com-
municando do occorrido á familia e guardando segredo para a
própria gente de sua privança. As noticias espalhavam-se
entretanto na capital graças á correspondência trazida pelo
navio de guerra britannico La Créole, entrado na tardinha
de 18.
Em contradicção com sua indole moderada € clemente,
o Rei tinha aversão aos regimens liberaes. N'este ponto, como
observava Maler, deixava de raciocinar com o seu bom
senso do costume. A expressão — constitucional — soava
odiosamente aos seus ouvidos, talvez porque *'imbuido de
certos princípios, quiçá fortalecido pela sua consciência" ( i ) ,
não formava sequer idéa clara e precisa de uma monarchia
que. não fosse a absoluta, em cujas máximas fora educado.
Maler conta que mais de uma vez tentara, desde 1815,
insplrar-lhe idéas menos desfavoráveis com relação á partici-
(1) Officlo de Maler de 2íí de Maio de 1820.
1034 DOM JOÃO VI NO BIIAZIL
pação da nação no governo, expondo com geito e cautela as
noções preliminares da essência e modalidades de um regi-
men pelo qual se estava dirigindo a França; mas que Dom
João VI, o qual sempre o escutava com extrema bondade,
repellia logo qualquer insinuação d'esse género, pelo que com
muito pezar e só com o receio de tornar-se importuno, ces-
sara havia muito o agente diplomático de discorrer sobre
essas verdades politicas.
Acontecia agora que chegava a occasião decisiva sem
que pudesse ser aproveitada pelos dous elementos que, longe
de se harmonizarem, se oppunham irreconciliáveis. O sobe-
rano— descortinava Alaler perfeitamente — sem um conse-
lho d'Estado ao qual recorrer, privado de qualquer entidade
intermediaria que lhe fosse dado consultar, só se decidiria
na ultima extremidade a dotar Portugal de favores que lhe
pareceriam enormes, na realidade palliativos que á distancia e
nas circumstancias dominantes produziriam antes mal do que
bem : sem esquecer que uma sedição portugueza daria o signal
de uma perturbação perigosa no Brazil.
" Pessoas as mais distinctas por sua cathegoria, e cargos
affirmam-me que nas provincias do Norte, principalmente,
existe um fermento de descontentamento e mal estar que é
para temer-ses," ouvi este desabafo melancholico a grandes da
corte, officiaeè generaes e altos magistrados; n'uma palavra
todas as pessoas cujas opiniões são de valor, acham-se tran-
sidas de susto e julgam-se n'uma crise pavorosa" ( i ).
Dom João VI era o único optimista, e do género volun-
tário, que é o mais difficil de se deixar abalar. Bastava
ouvil-o exclamar com alegria ao representante da França,
quando se soube que o Rei da Prússia se negava a outorgar
(1) Officlo clt. de 23 de Maio de 1820.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1035
uma constituição ao seu povo: "Les journaux et les amateurs
de changemens diront ce qu'il leur plaira, mes nouvelles
de Berlin sont positives et les choses vont três bien" (i).
Para ganhar tempo, e também porque no fundo perce-
bia que a questão entrara n'uma phase seria, ainda que espe-
rançosa do desfecho pela acção de Beresford— appello ao
vigor alheio próprio de um temperamento pusillanime— o
Rei pedio por escripto a opinião de varias pessoas: fora os
dous ministros, onze, no numero dous fidalgos da sua casa,
quatro magistrados, o bispo e o intendente de policia.
A sua finura como que se extraviara, e a sua prudência
tanto se desaprumara com o balanço, que degenerava n'essa
emergência na mais improficua vacillação. Não se preparara
bastante para o golpe, a que fechara intencionalmente os
olhos; o seu espirito não quizera encarar assaz a conjun-
ctura de uma desunião da sua monarchia pela corrosão de-
magógica, como noutros temipos encarara a partida para o
Brazil, a que promptamente se acostumara, também porque
lhe era sympathica a hypothese. Agora perdia dias em lamen-
tar-se, condemnar a ingratidão dos que tinham desnorteado
o povo portuguez. De facto procedia como um nullo quem
tinha perspicácia para traçar sua rota, quem levara as cou-
sas do Rio da Prata até o desenlace da encorporação da Cis-
platina, com a legalização da qual ia rematar seu reinado
americano. D'esta vez, porém, Maler notava com acerto que
Dom João "experimentava uma sensação penosa e uma certa
reluctancia a examinar a questão na sua verdadeira luz."
Força lhe era entretanto acudir ao assumpto. Dos parece^
res pedidos — treze ao todo — oito opinavam pela partida do
Principe Real, solução que agradava mediocremente a Dom
(l) Officio (lo Maior do 17 de Outiibro do 1820.
1036 . DOM JOÃO VI NO BRAZIL
João VI, posto lhe não desagradasse tanto quanto a do seu
próprio regresso. Imaginou porém arcar sósinho com a tem-
pestade. O brigue Providencia, que a Regência lhe despa-
chara, devia singrar de volta a 29 de Outubro (i). O Rei
na véspera encerrou-se na sua camará, sem ouvir qualquer
dos conselheiros habituaes, nem mesmo Thomaz António,
e redigio sua resposta ás communicações de Lisboa, mandan-
do-a para bordo alta noite por pessoa da sua confiança e
velejando a embarcação pela madrugada (2).
Só se sabia então no Rio do levante do Porto, extenden-
do-se a algumas localidades do Minho. A gangrena não pare-
cia ainda geral. Dom João declarava, com sua natural clemên-
cia, conceder amnistia geral aos revoltosos e, com sua não
menos natural argúcia, auctorizar as cortes convocadas pela
annuencia dos ex-governadores do Reino, sem comtudo escon-
der sua surpreza de tal convocação, incompetente sem o con-
curso da sua real grandeza.
Julgando poder conter e dirigir o movimento — illusão
commum nos governantes, que se repete em cada crise consti-
tucional — ordenava que, terminadas as sessões da assem-
bléa, lhe fossem apresentadas as queixas da nação, para que
as remediasse, e as propostas formuladas, para que as sanc-
cionasse a coroa. Depois partiria elle, ou um dos seus augus-
tos filhos, a applicar as resoluções adoptadas, com a condição
todavia que pelas noticias subsequentes o soberano adqui-
risse previamente a certeza de que semelhante deliberação
não exporia a perigos a dignidade real.
A prevenção era prudente, pois acontecia que no Rio
mesmo essa dignidade se estava desprestigiando com uma ra-
(1) Chegou a Lisboa a 16 de Dezembro.
(2) Corresp. de Maler, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZTL 1037
pidez quasí fulminante. Conta Maler (i) que a população,
de respeitosa que era da realeza por natureza e por habito, se
tornara insolente e turbulenta desde que se inteirara dos
primeiros acontecimentos de Portugal. Choviam sarcarmos
e borbulhavam pasquins ridicularizando a confiança mani-
festada pelo Rei no restabelecimento da ordem e das formas.
Manifestada, melhor se diria apparentada. O silencio
real, observado para com o próprio Príncipe Dom Pedro,
denunciava vacillação mais do que astúcia. Na incerteza das
cousas. Dom João refugiava-se na inacção, fiava-se na Pro-
videncia e achava ganho nas demoras. Quando a I2 de No-
vembro o alcançaram, com uma travessia de 44 dias, no
brigue de guerra Infante Dom Sebastião, as novas do suc-
cedido em Lisboa, ficou porém succumbido. A fatalidade
podia mais do que o fatalismo. Maler participava ao seu
chefe em Pariz (2) que se retirara da ultima audiência de-
veras pezaroso, porquanto o Rei estava por forma tal im-
pressionado e abatido, que era ponto de duvida si con-
seguiria n'aquella condição deliberar e agir de modo con-
veniente. A finura ficara annullada pela fraqueza.
Não querendo imputar ao Rei as responsabilidades,
culpava Maler o seu gabinete — uma cousa que bem sabia
não existir — de ter fechado voluntariamente os olhos ao
dissabor progressivo da nação portugueza, desprezado o
aviso da revolução hespanhola, permanecido perplexo ante
a revolução portuense e de todo descoroçoado com a noticia
da insurreição lisbonense. Tomar um expediente, philoso-
phava o encarregado de negócios de França, é sobremaneira
difficil quando nada está preparado, tudo falta e se reputa
(1) Officio de 10 d« Novembro de 1S20.
(2) Offieio de 15 de Noveui/bro de 1820.
D. J. — 65
1038 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
impossível qualquer tentativa, e esta é a triste situação do
governo.
Tão evidente era, que d'ella se ia apercebendo perfeita-
mente o publico: também os cartazes e as diatribes multipli-
cavam-se espantosamente. Tudo indicava que não tardaria a
explosão do vulcão sobre que se repousava. Medidas tranquil-
izadoras, ninguém as tomava no meio do torvelinho, ao Rei
competindo aliás adoptal-as. Nenhum systema se procurava se-
guir no Paço, nem se organizava um governo forte para con-
jurar os apuros. O espectáculo era lamentável, de uma tão
singular apathia que não logravam sacudir os inimigos já
confessos da situação, muito menos os que ainda andavam á
espreita de um ensejo para lançarem o repto. Na verdade
porém o poder só exhibia indeterminação, sujeitando-se a ser
dominado pela força dos acontecimentos. Maler surprehen-
día-se com razão de que nem se effectuassem prisões entre os
que de noite affixavam boletins incendiários ou durante o
dia parolavam em termos sediciosos.
Em Lisboa calculara-se mais reacção por parte do
throno. Era até voz geral ( i ) que Dom João VI solicitara
da Inglaterra o auxilio armado estipulado pelos tratados de
alliança e de garantia para as graves emergências nacionaes.
De facto a politica britannica buscava, como está nos seus
hábitos intelligentes, tirar o máximo proveito de circum-
stancias que não favoneara, antes aborrecia.
Si a diplomacia franceza, na esperança de pôr de lado
os Inglezes e auferir as vantagens de que estes se achavam
na posse, mostrava certa sympathia pela evolução liberal
portugueza, a diplomacia ingleza por sua vez desviou do
movimento qualquer ameaça. Sacrificando seus resentimen-
(1) Officio de Lesseps, de 27 de Dezembro de 1820.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1039
tos, ella até empregou no Rio esforços — os quaes deixava
que se divulgassem em Lisboa — para o Rei approvar a at-
titude dos liberaes, que assim esperava arregimentar do seu
lado. A reunião á Hespanha — provável no caso da corte re-
sistir, ou dos constitucionaes se nãc contentarem com meias
reformas, as únicas auctorizadas pelo príncipe que viesse
representar o soberano, ou do duque de Cadaval não alcan-
çar subir ao throno mau grado as muitas sympathias de que
o aureolavam e o serio partido de que dispunha — era o des-
fecho que mais temia e mais desagradava ao governo de
Londres.
Esta perspectiva s-e foi porém dissipando por si á me-
dida que se ia affirmando o vigor da revolução, apoiada
como estava sendo nas classes conservadoras e nas illustra-
das, nos proprietários, nos commerciantes, nos professores,
no clero menor, e apenas hostilizada por alguns fidalgos,
emquanto o povo não perdia suas illusões a respeito. Em vez
da juncção á Hespanha, por mais que a decepção custasse aos
que com tal pensamento ooculto tinham, sobretudo para lá
da raia, instigado o movimento, no que se pensava era na
reconciliação com o Brazil, uma reconciliação imposta e
pautada pela recolonização.
A diplomacia portugueza agitava-se no emtanto por
conta própria, sem esperar pela distancia instrucções do Rio,
desde que fora informada dos successos revolucionários. De-
bellar a revolução hespanhola era em grande parte debellar
a revolução portugueza, e para debellar ambas, que tinham
operado pode dizer-se de concerto e se disporiam com certeza
a resistir alliadas, era indispensável aos partidários do velho
regimen recorrerem á intervenção estrangeira. Os recursos
nacionaes appareciam insufficientes ou fallazes.
1040 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Marialva, centralizando, como antes delle, com a
auctoridade do seu talento e serviços, costumava proceder
Palmella, a direcção na Europa da politica externa portu-
gueza, não se descuidou de enviar sobre o assumpto circular
sobre circular ás outras missões portuguezas, e em pessoa
procurou em Pariz levar o governo francez a iniciar uma
cruzada legitimista, mandando para Portugal soldados e na-
vios. Só conseguio todavia o despacho de um navio de guerra
para Lisboa, em missão expectante ( i ) : faltava ainda no go-
verno quem quizesse pôr em pratica as fantasias reaccionárias
de Verona.
O ministro em Londres, D. José Luiz de Souza (so-
brinho de Linhares e Funchal, mais tarde conde de Villa
Real) procurara logo lord Castlereagh (2) para obstar ao
reconhecimento do governo constituido em seu paiz, antes
de sanccionada a legitimidade d'elle pelo Rei Fidelissimo:
tal respondeu o ministro dos negócios estrangeiros da In-
glaterra ser a firme intenção da Europa coUigada.
Ponderou-lhe mais D. José de Souza a necessidade de
ligar o governo constitucional de Madrid por igual decla-
ração, que teria a dupla vantagem de fazer esmorecer certas
esperanças mais vehementes da Junta portugueza e limpar a
honra da Hespanha compromettida pelos conluios do seu
agente diplomático em Lisboa. A esta parte replicou Castle-
reagh referindo as observações que a respeito transmittira
por intermédio de sir Henry Wellesley, embaixador junto ao
Rei Catholico, com a declaração de considerar ataque contra
a integridade dos domínios portuguezes, cuja garantia assu-
(1) Archivo do Mm. das Rei. Ext.
(2) Officio a Tbomaz António de .SI de Outubro de 1820,
Corresp. de LonidTes, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1041
mira a Grã Bretanha, qualquer excitação á rebellíão: do
que entretanto a Hespanha se tentara illibar com os maiores
protestos, não obstante o encarregado de negócios Pando
haver participado em nota á Regência do Reino a marcha
de tropas hespanholas para a fronteira portugueza da Galliza
e constar tal facto da proclamação da Junta do Porto de 2 de
Setembro.
Não annuio comtudo o gabinete britannico á sugges-
tão, que seria consequente com sua negativa de reconhe-
cimento, de mandar retirar de Lisboa o encarregado de ne-
gócios Ward, assim cortando todas as relações com os rebel-
des. O caracter diplomático d'este agente fora suspenso, mas
a sua partida seria inconveniente, tornando demasiado pa-
tente a parcialidade ingleza pela causa do soberano portuguez
e justificando de antemão qualquer futura accusação de pres-
são estrangeira, portanto impopular.
No interesse combinado de Dom João VI e da nação
aconselhava-se uma calculada isenção, a começar pela absten-
ção do emprego de forças militares e navaes contra os re-
voltosos, o qual redundaria em proveito dos partidários da
união ibérica e adversários da auctoridade real. Tampouco
deviam as relações commerciaes soffrer com as alterações
politicas. A' diplomacia portugueza fazia-se mister admittil-o,
em vez de se estar mexendo no continente, a reboque de Ma-
rialva, para provocar uma intervenção armada de todo ponto
imprópria e inefficaz, quando factivel.
Nem podia a Inglaterra tolerar que, na sua falta, outros
pensassem cm entremetter-se na sua esphera de influencia.
A independência da coroa portugueza no lidar com a revolu-
ção cumpria que fosse escrupulosamente respeitada, e Dom
João mesmo provaria que entendia tratar do caso sem inter-
1042 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ferencias estranhas. De resto, para qualquer expedição, de-
pendia o gabinete da votação parlamentar de um credito, que
seria muito difficil obter visto o seu êxito problemático (i).
Sob o pretexto, que em breve se tornaria um principio
politico seu, de repugnar-lhe o processo das intervenções, a
Inglaterra esquivava-se pois a tudo, a fornecer contingente
militar ou naval, ou subsidio pecuniário contra o movimento
constitucional no" velho Reino.
Souza referiu em officio a Marialva (2) sua entrevista
com Castlereagh, fazendo chegar aos ouvidos do marquez es-
tribeiro-mór, todo açodado no seu absolutismo proselytico, a
linguagem do bom senso: que não justificasse, com aggres-
sões anti-patrioticas, quer o partido dos que proclamavam
querer apenas fazer Portugal independente do Brazil, even-
tualmente immolando a dynastia, quer o partido dos que
manobravam para a reunião á Hespanha, aconselhada pela
geographia e pela politica.
Era preciso, no dizer do ministro ao embaixador (3),
não exacerbar os ânimos e não cercar de difficuldades a
acção do Rei ou do seu lugar tenente, que viesse repor as
cousas em ordem na secção européa da monarchia, e cujas
intenções honestas e benévolas se deviam ir encarecendo. A
Inglaterra iria mesmo além d'aquella politica negativamente
favorável a uma intelligencia directa entre soberano e súbdi-
tos: desmancharia o ef feito da declaração conjuncta, vaga
como resultou, de Troppau, e em Laybach se ingeriria, para
annuUal-os, nos planos de António de Saldanha da Gama,
que dos trez plenipotenciários portuguezes — Marialva,
Lobo da Silveira e elle — nomeados para o que desse e
(1) Corrosp. de Londres, 1820-1821, ihiãem.
(2) Corresp. de Londres, 1820-1821, ibidem.
(8) Corresip. de Ijondres, 1820-1821, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1043
viesse em matéria de congressos, foi, de combinação com os
outros dous, o único que alli se apresentou.
A Inglaterra usara com o representante portuguez de
uma linguagem sincera. A lord Stewart, embaixador em
Vienna, que recebera ordem de achar-se em Troppau quando
alli se encontrassem os soberanos alliados, mandou lord Cas-
tlereagh instrucções para que se deixasse alli em paz a re-
volução portugueza, no próprio beneficio da conservação da
auctoridade de Dom João VI, cuja presença só por si daria
satisfacção ás queixas e collocaria de novo a nação nos seus
eixos, sem que se avivassem suspeitas nativistas e se abonasse
a opinião dos que pretendiam querer a Inglaterra conser-
var Portugal n'uma dependência indecorosa ( i ) . Longe do
tumultuar das paixões e do pugnar dos partidos, mais avi-
sadas providencias ainda poderia o Rei ir entrementes archi-
tectando para defrontar com a situação.
A opinião publica britannica já era no conjuncto liberal
bastante para festejar as mudanças politicas de que estava
sendo theatro a Peninsula Ibérica, e ao gabinete conservador
não convinha crear, mormente de motu próprio, mais tro-
peços á sua gestão. Em Nápoles também o constituciona-
lismo obtivera uma victoria, que mais ephemera seria que as
outras, e o ministro Acourt não fora retirado, si bem que
lhe não tivessem expedido novas credenciaes.
Lord Castlereagh previa acertadamente que Dom
João VI se adaptaria á ordem de cousas dominante em Por-
tugal e tratava de contemporizar, aconselhando até D.
José de Souza a responder á circular de Hermano Braam-
camp, ministro dos negócios estrangeiros do governo liberal
(1) Despacho de lord Castlereagh a lord Stewart, no Arch.
Min. das Rei. Ext.
1044 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de Lisboa, ao corpo diplomático portuguez, nos mesmos ter-
mos que o encarregado de negócios britannico havia esco-
lhido, para que se desse a conhecer a harmonia que reinava
entre as cortes de Saint James e de São Christovão. Souza
não julgou todavia dever ir além de uma carta particular, de-
clinando entrar em relações com a Junta antes de receber
instrucções do Rio de Janeiro ( i ) .
Fora D. José de Souza quem havia recebido o maço de
exemplares da circular e o remettera a Marialva, que o
devolveu sem lhe querer dar destino. O marquez estribei-
ro-mór não se ageitava muito com essa politica de concilia-
ção e não só se recusava a responder a qualquer communi-
cação de Lisboa, como solicitava por nota a suspensão das
f uncções do encarregado de negócios f rancez em Lisboa — o
que o ministro barão Pasquier verbalmente lhe prometteu —
e não cessava de insistir na intervenção. Chegou a despa-
char Navarro de Andrade para Troppau, onde os soberanos
alliados iam " concertar algumas medidas relativamente aos
successos que tem tido lugar no decurso deste anno no meio
dia da Europa" (2) .
Em corte alguma, das principaes pelo menos, permane-
cera inactiva nessa crise a diplomacia portugueza. Para
evitar a união ibérica podia bem contar-se com a Inglaterra,
mas o concurso da Rússia parecia igualmente precioso pelo
que significava por si, e pela preponderância que nos annos
de 181 5 a 1825 essa potencia exerceu sobre os outros paizes
da Europa. Por isso logo que o movimento do Porto respon-
deu ao levante hespanhol, o ministro em São Petersburgo,
(1) Coiresp. de Londres, 1820-1821, ibidem.
(2) Officio de Marialva a D. José de Souza de 21 de Outubro
de 1820, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1045
visconde da Lapa, tratou de induzir o governo do Czar a
assumir o compromisso de proteger a integridade portugueza
contra qualquer ameaça de dilaceração por parte da Hes-
panha revolucionaria (i).
Invocava o diplomata portuguez a assignatura collectiva
dos tratados de Vienna que, no seu dizer, continham implí-
cita uma garantia geral e reciproca dos territórios respecti-
vos das potencias signatárias, assim como da legitimidade e
independência dos seus governos. Na sua resposta, a chan-
cellaria russa, arredando de vez os ajustes do tratado de
1799 entre o Im,perio e Portugal por terem sido ipso facto
annuUados em 1808 — não se renovando suas estipulações e
dando Portugal as mãos á Inglaterra, então no campo ad-
verso á Rússia — chamava a attenção da legação portugueza
para a theoria eminentemente conservadora sustentada nesta
matéria pelo governo de São Petersburgo.
A Rússia propuzera com effeito em Aix-la-Chapelle
uma garantia explicita, universal e reciproca afim de con-
verter n'um facto material e incontestável o espirito das tran-
sacções que constituíam o direito publico europeu. Esta pro-
posta não estava comtudo ainda acceita e a chancellaria de
São Petersburgo rejeitou ligar-se por um accordo cathego-
rico, mas isolado. O despacho mandado em Julho de 1820,
antes da revolta do Porto, ao barão de Thuyll, ministro no
Rio de Janeiro, rezava que a Rússia offerecia a Portugal, no
caso de aggressão por parte da Hespanha, o mesmo apoio mo-
ral que dera a esta por occasião da aggressão portugueza no
Rio da Prata. A mal disfarçada ironia da resposta cantida
(1) Corivsp. do visconde da liapa e do encarregado de negócios
Abreu Lima (futuro conde da Carreira), nos Papeis avulsos no Arcli.
do Min. das Rei Ext.
1046 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
em substancia n'esse despacho, indica que não passara até
então o mau humor russo, cultivado por Tatischeff e pelo
governo de Fernando VII.
António de Saldanha levaria para Laybach o seu plano
particular, de mais vastas proporções, e em que entrava Ma-
rialva. Consistia em mover o directório europeu a agir em
nome dos seus principios no beneficio da monarchia portu-
gueza, oppondo-se pela força ás idéas revolucionarias propa-
gadas no velho Reino e iniciando por Portugal a tarefa sa-
lutar da repressão e restabelecimento da ordem na Penin-
sula, ''pois que daquelle reino he que se devia trabalhar para
o socego e quietação da Hespanha" (i).
O provecto plenipotenciário portuguez conversara com
Capo d'Istria e Metternich, que ambos julgavam o mo-
mento azado para medidas geraes, tendo Metternich ado-
ptado este modo de ver do ministro de estrangeiros da Rússia
depois da revolução de Nápoles, cujo contagio era para re-
ceiar nos dominios italianos do Império austriaco. Vienna
accedera já a que coubesse á França na Hespanha o papel que
á Áustria cabia na Itália, de abafar todo movimento sedi-
cioso, surprehendendo-se o chanceller de que a essa politica
activa preferisse a Inglaterra a inacção, sobretudo por ser de
temer a reunião de Portugal á Hespanha.
A coadjuvação da Grã Bretanha era necessária, mas
esta potencia, cujo assentimento as outras não podiam dis-
pensar, esquivava-se de mostrar hostilidade a movimentos
que não fossem puramente republicanos. Já no decorrer de
1820, querendo a Rússia arrastar as nações alhadas a uma
intervenção anti-constitucional na Hespanha, tendente a con-
(1) Officio de António de Saldanha a Thomaz António de 26
de Janeiro de 1821. Esta correspondência de Laybacla encontra-se
entre os Papeis avulsos no Arch. do Min. das Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1047
solidar a paz européa, recusara o governo de que Castle-
reagh fazia parte, terminantemente associar-se a qualquer de-
monstração militar ou sequer politica n'aquelle sentido, a
qual só poderia originar uma nova conflagração, em seu
entender.
A Inglaterra, que argumentava historicamente com os
males enormes resultantes da interferência estrangeira nos
negócios da França em 1792, achava-se então no periodo de
voluntário retrahimento, de intencional isolação, indecisa
entre a combinação autocrática que tutelava o continente e
a inclinação liberal que prevalecia a meio do seu povo: uma
incerteza de que em breve a resgataria o génio ousado de
Canning, collocando-a resolutamente á frente do movimento
constitucional e offerecendo combate á reacção enthroni-
zada na Euroipa e disposta a avassallar de novo a America.
Tampouco queria a França n'aquell€ momento envolver-se
nos negócios da Peninsular não era chegado o instante em
que Chateaubriand julgaria com a expedição do Duque d'An-
goulême dar lustre imperecivel ás armas bourbonicas.
Outra razão pela qual a Inglaterra se negava a inter-
vir directa e activamente n'esse caso, era a de pretender
por tal meio compellir Dom João VI a voltar para Portu-
gal. Não contando o Rei com auxilio estrangeiro para esma-
gar a revolução, força lhe era esperar acalmal-a com sua pre-
sença. Ora, o ensejo apparecia afinal em extremo propicio
á realização d'aquelle designio constante da politica ingleza
no tocante aos negócios portuguezes, pelo qual se sacri-
ficara até Strangford: não podiam de boa mente perdel-o
em Londres.
Por essa circumstancia especial, e também pela razão
geral de que o verdadeiro protectorado exercido sobre o
1048 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
velho Reino não devia comportar co-participantes, desconvi-
nha pois á Inglaterra que fossem os negócios da Peninsula
tratados no Congresso, ou melhor reunião soberana de Lay-
bach. Chegou mesmo a declarar não ter alli plenipotenciário,
apezar de se achar presente e tomar parte nas conferencias
lord Stewart, e a aconselhar António de Saldanha a reti-
rar-se para Lorídres e lá aguardar o desenrolar dos acon-
tecimentos ( I ) .
De outro lado Bernstorf suggeria ao plenipotenciário
portuguez que ficasse, o que equivalia a dizer continuasse a
trabalhar no sentido da intervenção estrangeira. Tratou An-
tónio de Saldanha effectivamente de alcançal-a nas audiên-
cias em que foi recebido pelos Imperadores da Áustria e da
Rússia, em ambos os soberanos encontrando inequivoca boa
vontade no prestarem apoio á causa dos thronos contra os
povos. Esbarrava porém com a frouxa disposição da França,
"que se desculpava com a sua situação interior" — a qual
o recente assassinato do Duque de Berry por Louvei paten-
teara incerta € agitada — e com a pouco disfarçada repu-
gnância da Inglaterra, "que não só não queria intervir,
porem que quasi protestava contra tudo que se fazia a res-
peito de Nápoles."
Escrevia a este propósito Lesseps (2) que o afasta-
mento da Inglaterra das cortes reaccionárias € sua adopção
de um systema de neutralidade tinham ferido o espirito dos
liberaes portuguezes, insinuando ao mesmo tem-po que a
França obrara mal em acceder em these á repressão, posto
que lhe levantando restricções na pratica. Bastava comtudo
isto para desmanchar o concerto das nações alliadas, cuja
(1) Corrôsp. de Laybach no Arch. do Min. das Rei. Ext.
(2) Officio cifrado de 11 de Março de 1821.
DOM JOÃO VI NO BUAZIL 1049
falta de união ficaria publicamente demonstrada no verifi-
car-se uma mediação parcial e poderia assim causar, nas pró-
prias palavras do Czar Alexandre, maior mal do que bem á
causa geral ( i ).
Afim de não acirrar os ciúmes da Inglaterra e na falta
de instrucções positivas e terminantes da corte do Rio, reti-
rou-se no emtanto António de Saldanha de Laybach sem
lograr que as trez grandes potencias ultra-conservadoras —
Áustria, Rússia e Prússia — , as mais empenhadas em sup-
primir todo gérmen demagógico, "adoptassem uma resolu-
ção peremptória acerca dos negócios de Portugal."
Sentiam-se aquellas outras nações tolhidas sem o as-
senso da França e da Inglaterra, d'esta sobretudo, da qual, no
dizer do plenipotenciário, Portugal era considerado um sa-
tellite. Referia António de Saldanha que se não afoitavam
as poderosas cortes do Norte a "ingerir-se nos negócios deste
Reino, com o receio de que aquella Potencia julgue huma tal
intervenção como hum ataque feito a sua propriedade. Tal
he a triste situação a que nos achamos reduzidos" (2).
Tendo ido a Pariz ver Marialva, esteve D. José de
Souza com António de Saldanha no regresso de Laybach e,
procurando saber d'este si haveria intervenção, ficou certo de
que ella se não daria, não tanto pela distancia do foco sedi-
cioso quanto pela impossibilidade de promover-se contra
Portugal uma liga reaccionária á qual faltasse o concurso
britannico. Resignaram-se as nações alliadas a aguardar em
Portugal o tratamento pela suggestão das medidas violentas
tomadas contra Nápoles, julgando igualmente mais acertado
não proceder desde logo contra a Hespanha para não "au-
(1) Corresp. de Laybach no Arch. do Wm. das Rei. Ext.
(2) Officio datado de Pariz aos 10 de Margo de 1821.
1050 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
gmentar os males que alli se estão soffrendo, e compromet-
ter mais a Pessoa d'El-Rei (i).
O governo britannico, assumindo uma attitude que
nada tinha de ambígua, declarou em despacho circular aos
governos estrangeiros que reputava perigosa a ingerência das
potencias colligadas nas transacções interiores dos outros Es-
tados, protestando que não adheriria ás medidas que a tal
respeito se pudesse ter em vista. Em conversação com Souza,
admittiu lord Castlereagh sem difficuldade que a circular
houvesse inspirado alguma confiança em Lisboa aos chefes
do partido revoltoso, fortificando-os na justa crença de que
a Inglaterra só se julgaria obrigada pela estipulação dos
tratados quando se tratasse de livrar Portugal de uma ag-
gressão estrangeira, não para rebater um levantamento na-
cional.
Deplorou o ministro de estrangeiros da Grã Bretanha
na alludida entrevista com D. José de Souza (2), que a pu-
blicidade dada á declaração das intenções dos alliados de aba-
farem as revoluções levadas a cabo por facções armadas, e
a referencia feita aos sentimentos do governo inglez no as-
sumpto, tivessem posto este na necessidade de dirigir a cir-
cular em questão, que o prendia nas suas operações.
O soberano de Portugal e Brazil tampouco desejava,
antes repudiava uma intervenção da Santa Alliança no seu
reino europeu. O monarcha que fúteis compiladores de me-
morias, como a doidivanas duqueza de Abrantes, expuzeram
quasi imbecil aos olhos da posteridade, e de quem escarneceu
sem dó, glosando anecdotas postiças, um historiador cheio de
(1) ICorresp. de Loridres, 1820-1821, no Arch. do Min. das
Rei. Ext.
(2) Oorresp. de Londres, 1820-1821, ibidem.
DOM JOÃO Vr NO BRAZIL 1051
talento e também de prevenções como Oliveira Martins,
comprehendeu o que muitos políticos, julgados tanto mais
atilados, do tempo não quizeram perceber, o que escapou a
Metternich como a Chateaubriand, a saber, que com a in-
tervenção estrangeira apenas lucraria a causa popular.
António de Saldanha andara avisadamente retirando-se
de Laybach. A circular expedida do Rio de Janeiro a 30 de
Janeiro de 1821, concernente á revolução portugueza, dizia
expressamente aos representantes diplomáticos na Europa
não ter Dom João VI ''por agora a intenção de empregar
meios de coacção nem de pedir soccorros militares aos seus
alliados para sujeitar os seus vassallos extraviados." A In-
glaterra não ficava excluida d'essa "resolução final" que
Castlereagh dizia em Londres a D. José de Souza não haver
ainda sido tomada pelo Rei sobre o systema que se propunha
seguir.
A brandura ingenita e o claro senso politico de Dom
João VI acham-se estampados n'aquellas palavras. Os repre-
sentantes diplomáticos. Marialva e António de Saldanha,
estavam sendo mais realistas do que o Rei. O que este queria
era tão somente que a Inglaterra mantivesse com relação á
Hespanha a sua obrigação de garantia da integridade da
monarchia portugueza, e a isto de bom grado annuia o go-
verno de Londres. Havendo-lhe Souza figurado a hypothese
de mandarem os Hespanhoes tropas contra Portugal como
uma em que cabia a Dom João reclamar positivamente o
effeito do compromisso britannico, nada objectara lord Cas-
tlereagh, allegando até que sobre este ponto muito tempo
havia que sir Henry Wellesley tinha levado uma communica-
ção official ao governo de Madrid (i).
(1) Corresp. de Londres, 1820-1821, ibidem.
1052 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Este era porém um caso de ameaça á independência
portugu€za. Com respeito aos seus súbditos, sobre que se
exercia a sua soberania, que o abbade de Pradt desrespeitosa-
mente taxava de itinerante (souveraineté voyageuse), achava
o Rei de Portugal e Brazil preferivel, mais decoroso, mais
digno .e mais hábil, agir livre de suggestões e de soccorros de
fora: '* S. M. se não determinará a recorrer a meios
extremos e violentos senão quando se achem esgotados todos
os de conciliação, e quartdo se vejão frustradas as diligencias
que intenta praticar para attrahir por concessoens justas, ra-
soaveis e compativeis com o decoro e segurança da sua Real
Coroa os ânimos daquella gente extraviada, não sendo de
esperar de coraçoens de Portuguezes hum tal excesso de
infidelidade e de ingratidão" (i). Dom João VI está todo
elle n'estas nobres palavras, de estadista e de homem de
coração.
Elegendo tal norma de proceder, o Rei ia mesmo de
encontro ás idéas do seu conselheiro habitual e habitual-
mente escutado, Thomaz António, cujo projecto immediato,
ao chegarem ao Rio as noticias da revolução portugueza,
fora obter para combatel-a o auxilio maritimo da Rússia —
que elle acreditava não lhe seria negado pelo Czar Alexan-
dre, o pacificador da Europa e arbitro dos seus destinos — no
caso de se mallograrem em Londres os esforços de D. José
Luiz de Souza (2).
.0 visconde da Lapa destruio porém logo essa illusão,
fazendo ver ao seu chefe a quasi impossibilidade de alcan-
çar o que se almejava da parte do gabinete de São Peters-
(1) Papei's flvulfíos no Ardi. do Min. das Rei. Ext.
(2) O sabrinlio de Funchal para alili (passara de Madrid, como
ministro, n'uma reaffirmação do favor da família com que lucrou o
conde de Linhares, filho de D. Rodrigo, d^^spachado para Turim.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1053
burgo, pouco inclinado a entrar n'esse terreno em conflicto
com a Inglaterra, protectora reconhecida de Portugal. Tudo
conspirava contra: além das continuas ausências do Czar da
sua capital, difficultando quaesquer intelligencias, os negócios
italianos, mais próximos e mais prenhes de perigos ainda,
absorviam a attenção geral das graníles chancellarias, as
quaes, sobretudo por causa d'elles, não tinham no congresso
de Troppau, em 1820, dedicado particular cuidado aos ne-
gócios portugueses, limitando-se a declarações theoricas de
resistência ao espirito de revolta e salvaguarda dos interes-
ses da legitimidade.
Por isso e por intuição politica sua escrevia, com muito
acerto, o ministro portuguez na Rússia aquillo mesmo que
com differença de dias mandava no Rio Dom João IV ex-
primir ao seu corpo diplomático por palavras diversas: "Cha-
mar forças externas para coadjuvar a expulsão de inimigos
externos, é o que a historia apresenta a cada passo; porem
para socegar as desordens internas é sempre arriscado. . . A
massa da nação é ainda sãa, e sendo a força moral a que se
deve procurar encaminhar, não posso occultar, que o em-
prego da força marítima só poderia servir para a irritar, e
conduzir aos desvarios a que a desesperação pode ar-
rastar" (i). , <
O conselho era bom e tanto mais merece ficar assigna-
lado, quanto em Pariz se estavam celebrando aquelles con-
ciliábulos de representantes conspicuos do Reino Unido, Ma-
rialva á frente, que o Correio Braziliensc verberava com
muita acrimonia. Hippolyto bem suppunha o plano de reac-
ção desapprovado na corte do Rio, mas imaginava mal que
(1) Officio de 24 do .Tanoiro de 1821, nos Papeis avulsos no
Areh. do Min. das Rol. Ext.
D. J. - 60
1054 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
o directório de diplomatas em Pariz estava tomando a dian-
teira á chancellaria fluminense e impondo o seu modo de
pensar, quando na verdade a inspiração partira simultanea-
mente de Marialva e de Thomaz António, o qual era inca-
paz de ir de encontro nos seus actos á vontade real. Sustaria
porém tal inspiração a benignidade intelligente de Dom
João VI, um momento empannada, ao recuperar sua lucidez
e pôr-se em harmonia com uma melhor comprehensão das
conveniências do momento histórico.
No essencial se não enganava todavia Hippolyto, antes
acertou logo em julgar o Rei pessoalmente infenso aos ma-
nejos do chamado partido aristocrático (i), que na sua
constante ainda que mais disfarçada malevolencia a Palmella,
o publicista acreditava dirigidos por este estadista, de facto
empenhado em conciliar as cousas muito mais do que em
ajustal-as pela força " Mas parece-nos que não será
difficil o dar algumas provas, de que não he El-Rey quem
obr« contra Portugal, que não he do soberano de quem se
devem temer opposiçoens a um systema constitucional, em
(1) o Correio, o Português, cujo redactor a legação pretendia
ainda fazer expulsar de Londres, e o Campeão, de José Llberato, es-
tavam em todo caso mais no diapasão das disposições regias do que
o pessoal diplomático que se deixava influenciar pelo marquez es-
trH>eiro-móT. O Portuf/iiez alias hlazonava (Officio secretíssimo de
Souza, de 4 de Fevereiro de 1821, no Arch. do Min. das Rei. Ext.)^
ter no Rio de Janeiro pessoa de dentro que o informava do que alli
òccorria, apparoceoido nas isuas paginas contribudções ã'es^e correspon-
dente que bem indicavam não serem fingidas, e até uocumentos que
só podiam ser extrahidos de algum dos gabinetes privados do go-
verno : "srado hum destes documenitos a denuncia da cons,piração de
Portugal, feitA por Pinto e Corvo, e publicada no Campeão, papel que
deveria ser reservado nos esconderijos mais recônditos do Gabinete."
Era crença geral reproduzida por D. José de Souza, que n'este
ponto íallava como bom sobrinho dos tios, ter uma das auctoridades do
Rio a seu soldo o Correio Braziliense, servindo-se d'este orgam "para
calumniar e injuriar descamda, e impunemente pessoas, que 'occupão
os mais altos empregos, e oue S. M. honra com a sua confiança."
(Officio cit.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1055
que os empregados públicos sejam responsáveis por sua ge-
rência, que he, em duas palavras, tudo quanto a voz publica
pede e exige; El-Rey não tem interesse em oppor-se a isso;
porque com a existência dessa responsabilidade nada perde,
antes muito ganha. Os governantes, que são os que verão
suas mãos atadas para não fazer mal, são os que se devem
suspeitar de fazerem essa opposição a um systema para lhes
porem freio. . . E he de esperar que as Cortes de Portugal
nunca se esqueçam de fazer a devida distincção entre os sen-
timentos d'El-Rey, e os de um partido de intrigantes, cujos
fins são manter seus interesses, a despeito dos da nação, e da
mesma authoridade do Rey" (i).
Si fosse exacto que Palmella, nomeado havia muito
ministro dos negócios estrangeiros e assumindo afinal a pasta,
inspirara e fomentara o denegrido " conciliábulo aristo-
crata" de Pariz — no intuito, pouco crivei aliás, de desbravar
para si o terreno e permittir-lhe n'um campo livre o cultivo
das regias concessões — maior merecimento tocaria ainda á
attitude perspicaz do Rei no assumpto.
Foi bem um gesto privativo d'elle, esse que tão de ac-
cor'do se achava com o pensar do gabinete britannico e tão
de harmonia estava com recentes ensinamentos da historia,
que indicavam haver a intervenção estrangeira custado a vida
a Luiz XVI e a Maria Antonietta. Além d'isso era obvio —
obvio para quem tivesse bons olhos — que uma intervenção
estrangeira podia occorrer em Portugal e ahi abafar com
relativa facilidade o movimento liberal, mas não poderia ir
suffocal-o no Brazil, onde elle repercutiria mais vivamente
mercê mesmo da reacção creada em Portugal.
(1) Correio Tirazilimsê n. 153, Fcvoreiro do 1.S21, vol. XXVI.
1056 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Para isto seria indifferente ficar o Rei no novo Reino
ou voltar para o velho. A questão não era tanto essa: era
sobretudo, como muito bem a coUocava Hippolyto, o resistir
ou entrar a realeza no caminho das reformas constitucionaes,
o governar arbitrariamente ou com um ministério responsá-
vel e popular, cujos interesses não estivessem vinculados aos
das classes privilegiadas. Somente assim ficaria garantida,
dado o progresso dos tempos, a integridade da monarchia.
De outro modo a revolução caminharia impávida em Portu-
gal, annullando a coroa, e se propagaria ao Brazil.
Pernambuco, apezar da residência da corte no Rio, suble-
vara-se antes de Portugal, e si a tentativa fora mal succe-
dida — como também o fora pelo mesmo tempo em Lisboa
o ensaio de Gomes Freire — depunha isto apenas contra as
circumstancias do momento. O facto provava que o gérmen
do governo constitucional existia no Brazil independente
de Portugal, tendo bastado para a fecundação o contacto
da America Hespanhola, depois do exemplo dos Estados Uni-
dos. Não alcançaria constituir empecilho sufficiente contra a
corrente a popularidade pessoal do Rei, que o periodista do
Correio carinhosamente descreve "brando, pacifico, soffre-
dor, indulgente; sem ambição nem avareza, nem crueldade'*;
porquanto ao lado de Dom João VI existia um ministério
de gente corrupta — Hippolyto poderia ter escripto, com
mais verdade, de gente eivada de preconceitos — que com sua
presença excitava contra o throno e contra o velho regimen
as novas paixões populares.
Essa era com effeito a questão, posta nos seus termos
geraes e politicos; no caso particular de que se trata, havia
porém que contar com um elemento a mais, fornecido pela
discórdia creada entre as duas metades da monarchia, das
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1057
quaes uma reclamava a sua dynastia, sob pena de fazer voar
o throno em estilhaços, e a outra timbrava em conservar a
investidura recdbida de cabeça do império.
Em Londres descortinava-se claro, e era de Londres
que Souza aconselhava (i) e reputava mesmo inadiável a
vinda do Principe Real para o velho Reino, ficando em-
bora na America Dom João VI para prevenir qualquer re-
volta análoga á das colónias hespanholas; por outra, "resta-
belecendo-se a authoridade de S. M. em Portugal sem a pôr
em perigo no Reino do Brazil." Uma situação forte nasce-
ria de tal combinação e seria igualmente vantajosa ás duas
partes, preparando a futura consolidação da união por "hum
systema de governo ad justado ao espirito do século" e re-
pousando sobre uma reciprocidade de interesses. A beneficio
da sua própria conservação, a dynastia teria comtudo que se
dividir.
(1) Officio a Thomaz António de 8 do Dezembro de 1820 no
Arch. do Min. das Rei. Ext.
CAPITULO XXVIII
REI OU príncipe ?-THOMÂZ ANTÓNIO E PALMELLA
Os acontecimentos de Portugal, uma vez divulgados,
produziram no Brazil, juntamente com a effervescencia
liberal, consequência d'aquelle movimento constitucional,
um alastramento da tendência emancipadora e separatista.
Como é natural, deu este conflicto de idéas origem a uma
quantidade de alvitres, planos e soluções para regular a si-
tuação, que se agitavam em cheio quando a 23 de Dezembro
chegou ao Rio, tendo deixado Lisboa nos primeiros dias de
Novemhro, uma testemunha ocular da revolução, pessoa
dotada de bastante experiência do mundo, moderação de
animo e superioridade de intelligencia para julgal-a com
frieza e lucidez. Era esta pessoa o conde de Palmella, com
cuja altiva indifferença e fleugmatico charuto nos familiari-
zou o auctor do Portugal Contemporâneo^ e que coube a uma
illustre escriptora portugueza primeiro evocar n'uma excel-
lente obra com aquellas feições, e os seus traços alli olvida-
dos de sympathia, ternura, dedicação e gravidade.
Viera Palmella da Europa acalentando um projecto de
monarchia cartista, cm que fosse a nobreza o elemento pre-
1060 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
ponderahte como na Inglaterra, e machinando com insistên-
cia a restituição do Rei á sede da velha corte portugueza,
emquanto permanecia o herdeiro da coroa no Brazil e ahi
proseguia o regimen em vigor, com algumas variantes mais
de forma que de fundo.
Thomaz António pensava, e não mal, o opposto: que
Dom João VI é quem devia ficar no Brazil e Dom Pedro
ir para Portugal, porque, uma vez desunido, o Reino ameri-
cano não mais se tornaria a ligar ao europeu, ao passo que
este, si por acaso levasse o desvario ao ponto de proclamar-se
republicano, depressa volveria á sã razão, não só coagido
pela Santa Alliança, cuja intervenção então se imporia, como
principalmente movido pelo receio da sua annexação pela
Hespanha, faltando-lhe a melhor garantia da própria inde-
pendência com o inevitável repudio pela Inglaterra de uma
demagogia.
Já lhe não merecia, a Thomaz António, particular
preoccupação a hypothese, tão aventada antes, da substitui-
ção da famâlia de Bragança pela de Cadaval, apezar de em
tempo ter o governo do Rio feito pelo marquez de Marialva
obstar á ida do duque de Luxemburgo a Portugal, para assis-
tir com grande espavento ao casamento do sobrinho, e d'est'e,
quando se deu a revolução de 1820, alardear muito constitu-
cionalismo e dar mostras de querer representar em Lisboa o
papel que em Pariz estava desempenhando com rara habili-
dade o Duque d'Orléans.
Arcos, com suas pretenções a valido do joven Principe
herdeiro, ia no encalço de Palmella e aconselhava a regência
no Rio de Janeiro, da qual elle se constituia em mente a
principal figura porque não previa que já representaria o
personagem um nacional, cujo valor, pelo menos de scien-
DOM JOÃO VI NO BKAZIL 1061
tista e de homem de caracter (i), não escapara a Thomaz
António, que o quizera ligar á alta administração do novo
Reino.
Qualquer que fosse a combinação, as circumstancias
estavam todas convergindo para a scisão do Estado elevado
á dignidade de parte integrante, por direito próprio, da mo-
narchia, quando foi preciso dar a Portugal, afim de que hom-
breasse em Vienna com as potencias maiores, o status corres-
pondente, pelo menos territorial. Não as enxergava comtudo
Palmella com sua habitual agudeza, quando desembarcava
no Rio no firme propósito de reconduzir o Rei para Lisboa.
Dous motivos o impelliam para isso. Primeiramente,
estava capacitado, e não se pode dizer que sem justeza, de
que no estado de confusão material e moral na qual deixara o
Portugal revolucionário de 1820 — confusão mais real
mesmo do que apparente, porque na superficie contrastava
até a serenidade portugueza com a agitação hespanhola —
somente a presença do Rei em pessoa teria prestigio suffi-
ciente para impor ao movimento a precisa orientação, a um
tempo liberal e conservadora.
Depois, Palmella nutria a justificada ambição de assu-
mir com a nova ordem de cousas uma importância politica
mais saliente ainda: tinha para tanto a consciência de ver
longe 'n'uma sociedade de myopes, de possuir sangue frio n*um
meio em que geralmente se andava ás tontas. Semelhante im-
(i) o encarrogado de nofíocios norto-amoricano Condy Raguot,
cuja correspondoncia e actividado indicam ter sido um diplomata sagaz
e trefego, escrevendo para Washington em 1H22 sobre José Bonifácio,
fazia plena justiça ao seu merecimento intellectual. mas negava-lhe
dotes de estadista e sobretudo capacidade de administrador. No dizer do
liaguet, o Patriarcha da Independência, sendo um mineralogista no-
tável, não estava politicamence á altura dos eventos a que por assim
dizer presidiu. (Arch. da Emb. Americ. no Brazil) .
1062 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
portancia, não a desejava elle porém revestir no tablado do
Rio de Janeiro: aspirava ao scenario da velha Europa, onde
deixara sua família, suas amizades, suas relações, seus hábitos,
tudo quanto reclamava sua natureza acostumada á boa con-
vivência cosmopolita, a circulos polidos em que era conhecido
e bemquisto, e sem os quaes não comprehendia sequer a
existência.
Era o caso de dizer-se de Palmella o que sobre os ou-
tros fidalgos elle escrevia á esposa: "Todos choram as ce-
bolas do Egypto, e voltam a cara para o Oriente" (i). Só
Dom João VI, verdade seja, não tinha saudade alguma das
cebolas. Entendia que o passado, passado; á Terra da Pro-
missão chegara quando puzera o pé na exótica Bahia, e a
nada de melhor voava sua ambição do que ao ramerrão na
quinta da Boa Vista.
Também Palmella, malleavel como sempre se mostrou,
sabendo ageitar as idéas ás circumstancias, logo mudou de
plano para não perder tempo com o que se lhe afigurou
summamente improvável, e, tomando ares de bom cortezão,
adheriu ao parecer dos que suggeriam ser preferivel a con-
tinuação do Rei no Brazil e a mudança para Portugal do
Principe Real. A ida de um ou de outro era todavia for-
çosa e inadiável, e o ministro dos negócios estrangeiros a
instigava no sincero intento de poder organizar-se e mode-
lar-se o movimento constitucional: não a aconselhava como
Thomaz António — nas suas palavras o mais inepto e o mais.
lisonjeiro de todos os homens (2) — para ser apenas levada a
effeito, como recompensa, depois de garantida a manutenção
(1) D. Maria Amália Vaz de Carvalho, Vida do Duque de Pal-
mella {Documentos) .
(2) D. Maria Amália, 06. cit. [Documentos.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1063
das regalias reaes. Como si fosse possivel prescrever a preser-
vação da essência do absolutismo por meio de negaças ás ar-
degas Cortes de Lisboa !
O projecto de Thomaz António, desenvolvido ou an-
tes embuça'do na carta ao Rei de 28 de Outubro de 1820
(i), dia em que o Rei se fechou para redigir sua primeira
resposta á revolução, na qual seguio ponto por ponto o pare-
cer de Thomaz António ou quiçá o seu próprio parecer
echoado em Thomaz António — o que explica que não fosse
preciso convidal-o a repetir verbalmente o que já escrevera
— era de uma doblez singela : consistia em equilibrar-se na
maromba, nada decidir de definitivo até ver no que davam
os acontecimentos.
As Cortes podiam ir funccionando á moda antiga, como
cortes consultivas, ratificando a coroa o que bem lhe approu-
vesse e deixando repousar o resto, em estado de aspiração
(1) E]-a o,sita carta resposta a uma apostilla do 27 ao parecer
do mesmo Thomaz António de 26. pei-gimtando o Rei si deveria ac-
crescentar na sua communicação ás palavras "hir hum dos Senhores"
estas: "he porém o mais provável o hir o Príncipe Real". Escrevia
Thomaz António: " As cortes são illegaes, e he necessário dizer
que o sao, para que ellas não digão aos Povos que tem autoridade de
dar leis ao Trono. Porém estão convocadas, e faria maior mal o dis-
solvellas, logo he necessário tãobem autorizai las, para representarem
tudo o que for bom, e para ser sancionado o que não for contrario
aos costumes e Leis do Reino. Não ha outro modo de fazer bom, este
meio perigoso a que se recorreo pelos (Governadores. Ora o grande
ponto he a sede da Monarchia se hade estar em l'ortugal ou no Brazil.
Não ha ncinhum meio senão estar huma Pessoa Real em ca^da hum
destes Continentes. E na Carta Regia se lhe diz que terminadas as
contes com Dignidade, hade V. M. fazello assim. Ksta Promessa em
geral vai dirigida a concluir cortes em l)em : mas se fosse explicada
de hir V. M., ou o Sucessor do Reino, não terminava nada. poi-que
obtulo esse grande isento, tratavão logo do segun'do, isto he, nova
Constituição. E V. M. perderia o penhor que tem na sua Mão', para
que elles não intentem mudar; que he— se vos conservaes a mesma
Obediência ao Rey, hirei então estar entre vos. E para que elles en-
tendão que esta promessa se verifica com vantagem ; he que he útil
1064 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
latente, até fermentar. Si as Cortes procedessem bem, isto é,
si se mantivessem dentro d'essa digna reserva, o Rei as pre-
miaria com um ar de sua graça. Quando não. . . a corte
quedar-se-hia no Rio de Janeiro, e o velho Reino que con-
tinuasse a aguentar a interdicção, como um pai pródigo que
fez grandes loucuras e está afinal debaixo da tutela do filho
mais sensato. Para Lisboa iria em segundo caso o Principe
Real, rapaz impetuoso, mais fácil de infundir respeito do
que o velho Rei manso de São Christovão; em terceira hy-'
pothese o Infante, uma criança estouvada, e em ultimo caso
ninguém. O projecto do desembargador-ministro era infan-
til, e bem o presentia Dom João VI ao querer ser mais pre-
ciso, elle que era tão minucioso e meticuloso no exame dos
negócios públicos, e que comprehendia a utilidade de satis-
fazer o povo portuguez com a segurança da ida próxima
de alguém da familia real, mesmo para que se não fosse
dizerlhe — mas sempre estará tãobem liuma Pessoa Real no Brazil —
pois bem vem que o Brazil não hade já agora ser Colónia ; e descon-
fiarão sempre que se deixará o menos pelo mais : e pai-a socegarem lie
precizo que contem com a imião do Reino do Brazil.
V. M. vê a variedade de votos, huns que seja V. M. vá ; outros
o Sereníssimo Sr. Principe Real ; outros o Senhor Infante : porém esta
jornada não he tratando da sede da Monarchia, para o fim das cortes,
como trata a Carta Regia : he uma jornada para acudir ao incêndio,
e dirigir o progresso das cortes. Escrevendo o officio (á Regência do
Reino) pareceo me que uno a variedade de votos em dizer que huma
das Pessoas Reaes vai agora, e se manda aprontar a Esquadra. Po-
rém como não he prudente hir para huma Casa que está incendiada,
fazse depender a partida de noticias que cheguem de mais tranquili-
dade e isto mesmo para incentivo de se tranquilizarem. Não me pa-
rece bem nomear nenhuma Real Pessoa, porque, he prometter, e depois
não se pode faltar ; e nomear hum, he excluir os mais ; o que não
convém. Estando pronta a Esquadra, mande V. M. qual lhe parecer ;
mas não prometa agoi-a, va negociando a Paz com o Penhor que tem
em seo Poder. Bem conhece V. M. que eu não trato aqui de dar hum
voto ; trato de formalizar hum Despacho segundo os votos, e segundo
o que V. M. ordenar." (Códice autographo na Bibliotheca Nacional,
que figurou na Exposição de Historia do Brasil;.
i
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1065
aquelle acostumando ao desrespeito dynastico na atmosphera
de sedição de Lisboa ( i ) .
Thomaz António tinha razcão em que para o seu jogo
de equilibrios era condição indispensável a união dos dous
Reinos, pois sem a certeza d'ella as Cortes perderiam as es-
tribeiras e chegariam onde não convinha absolutamente que
fossem, dando leis ao throno, posto que conservando esta
antigalha, visto que, pelo receio da Santa Alliança mais que
tudo, ellas eram liberaes, não demagógicas.
O espantalho da supremacia da ex-colonia, dentro mes-
mo da união, mediante a assistência n'ella do monarcha pro-
duziria, no entender do conselheiro favorito de Dom João VI
um effeito salutar no afastar as fantasias politicas e ageitar a
insubordinação legislativa «'um certo molde, não muito dif-
ferente do existente. A questão da sede da monarchia devia
portanto ficar em aberto até ulterior resolução, dependente
da attitude das Cortes, a qual podia não merecer sequer a
vinda para o seu seio de uma das pessoas reaes, já não f al-
iando do Rei.
Assim, Lisboa somente readquiriria a sua passada posi-
ção de capital do império luzitano, si o constitucionalismo
continuasse incubado. Também em Londres o ministro Souza
tivera a idéa de pedir a lord Castlereagh que insinuasse ao
governo revolucionário de Portugal, que as potencias euro-
péas não reconheceriam outras Cortes que não fossem as
(1) Uma das apostillas, de 11 de Fevereiro de 1810, no códice
cit. encerra a seguinte máxima real de governo : " só me pede
que sustente a sua autoridade, o que iie meu sistema pois de outro
modo não se sustentando as autoridades publicas tudo vai mal." E
elle dava o exemplo da applica(.-ão aos negócios do Estado e da com-
postura combinada com a deferência â opinião.
1066 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
convocadas segundo as leis antigas da monarchia nacional,
não se tolerando á Hespanha ingerência alguma mesmo in-
directa, como modelo constitucional, sob pena de por seu
lado invocarem as nações alliadas direito igual de inter-
venção.
Na forma do costume respondeu-lhe Castlereagh que
si as potencias em questão dessem o passo reclamado, pre-
julgariam as decisões do soberano portuguez, e a Inglaterra
em particular incorreria na costumada censura de accen-
tuar em cada occasião o seu predominio sobre o Reino unido.
Tanto mais dispensável lhe parecia o alvedrio quanto todas
as mudanças havidas e por haver estavam dependentes da
approvação real, inclusive a natureza das Cortes.
O ministro de estrangeiros britannico entendia firme-
mente que tudo se tinha a lucrar com tornar bem patente
aos olhos dos Portuguezes que, nas concessões que formu-
lasse. Dom João cedia tão somente ao impulso do seu cora-
ção, e não a influencias estranhas. O meio era único de per-
suadil-os a acceitarem o systema de governo que o Rei "lhes
propuzer e no qual S. M. naturalmente conciliará a sua
•dignidade com o bem dos seus povos, e a opinião publica da
Europa" (i). A Europa não pedia outra cousa e com agrado
receberia qualquer ajuste em taes condições.
Palmella via as cousas differentemente e melhor do que
Thomaz António, cujo espirito andava tão turvado pela at-
mosphera palaciana que lhe faltava até a coragem de nomear a
pessoa real que devia embarcar para Portugal, no intimo
por temor de descontentar as demais, entre as quaes era
grande e a propósito de tudo a ciumaria, e mormente de
(.1) Con-osp. de Londres, 1820-1821, no Arch. do Min, das
Rei. Ext.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1067
contrariar o pensamento secreto do seu Rei. Para o ministro
dos negócios estrangeiros era muito pelo contrario preciso
abordar a situação com franqueza e energia, ceder para ga-
nhar, conceder para salvar, pôr-se de accordo com as idéas já
communs do tempo para não incorrer no exaggero d 'estas
mesmas idéas.
Dom João VI também percebia — Palmella o diz mes-
mo na sua correspondência familiar (i), — que tal trata-
mento era o mais acertado, e ás cataplasmas de Thomaz
António antepunha com sua lettra esta objecção de fraca
orthographia e syntaxe, mas de senso commum: "Lendo
a carta^ (a Carta Regia) vejo que a minha ida e de meus
filhos ficão dependentes do bom comportamento que tiverem
apezar que no officio particular (2) se lhe fala pozitiva-
mente mas no publico não aprece pois julgo que esta carta
será impreca."
Respondia logo o primeiro ministro sem adduzir razões
convincentes, apenas insistindo com pueril teimosia na sua
primeira opinião: "Não pode haver contradição, pois na
Carta Regia se estabelece a promessa para sempre de estar
huma Pessoa Real em Portugal, e outra no Brazil, desde
que as cortes terminarem dignamente: como he o voto do
Mons.r Almeida e outros. No officio se trata de agora e que
vai Pessoa Real, como diz a Carta Regia, e segundo o in-
teresse permittir: mas na esperança de virem noticias mais
agradáveis. Eu entenderia melhor não se aumentar mais
nada; nem especificar hum ou outro dos Senhores: pois
V. M. o penhor que tem para conservar o Reino he a sua
(1) D. Maria Amália, 06. cit.
(2) O Officio roal fura .1 Itegeneia, cuja deposição, seguida da
acc]amar;ao da Junta revolucionai-ia, só a 12 do Novembro chegou ao
conhecimento de Dom João.
1068 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Pessoa, e a Successão Real, e por este penhor he que os pode
obrigar a acomodarem-se. Por isto não tem que prometer
francamente porque perde a força dos meios que tem. Elles
pedirão de lá, que he melhor três Mercês do que huma" (i).
N'isto se passava o tempo e ninguém seguia para Lisboa,
nem se resolvia cousa alguma acerca da constituição a ou-
torgar, que Palmella encarecia e Thomaz António abomi-
nava.
Diversos dos de Thomaz António também eram, já se
sabe, os pareceres de Arcos. Na correspondência e despachos
com o Rei enfunavam-se as rivalidades, e as facções e os
cortezãos beliscavam-se a bico de penna e alfinetadas orató-
rias. Na phrase de Thomaz António o conde dos Arcos
"nada dizia de razoens, dizia que não porque entendia que
não, e contentava-se com impugnar." Elle sim, por mais in-
comprehensivel que nos possa hoje parecer o apoio em tal
fundamento, baseava-se na opinião publica para procurar
desviar os perigos e dar conselhos sãos, próprios a serem
seguidos (2) .
E' verdade que Thomaz António partia sempre do prin-
cipio da preservação da regia auctoridade (3), dando porém
n'esta ordem de idéas um parecer mais definido do que podia
agradar ao temperamento opportunista do monarcha. Por
<í) Co(i. oit. na Bibl. Nac.
(2) "V. M. bem vê que entre hum parecer que não diz nada
nem tem nada que dizer; e enti-e outro que se funda na opinião pu-
blica, e que desvia o perigo, deve seguir este (Carta de 2 de
DezemílíTO de 1820, no Cod. cit. na Bibl. Nac.)
(3) " e não aiproveitará nada mandar-se dizer, que V. M.
cede nem lium ápice da sua Real Autoridade. Se cede para repartir
eom a Nobreza, virá a perderse toda, tirando o Povo tudo ; o meio do
conservarse a Nobreza, he conservar os uzos do Reino, e o Soberano
he que a defende. Mas o mais necessário he para tranquilizar o Brazil :
mas este não se tranquiliza por ceder dfe autoiridade, mas sim por de-
clarar que quer emendar abusos." (Carta de 14 do .Janeiro de 1821,
no Cod. cit., ihnlcm.)
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1069
feitio de espirito Dom João VI gostava sempre, nas crises gra-
ves, de agarrar-se a illusões, cerrando propositalmente os
olhos á realidade quando lhe parecia feia, e fiando do futuro
— recurso supremo dos optimistas — a correcção do presente.
A revolução n'aquelle momento ostentava-se no Porto e
em Lisboa e rosnava em todo o Brazil : que importava ? A In-
glaterra declarara que não reconheceria a Junta rebelde sem
que elle primeiro a reconhecesse, e servira isto para lisonjear
seu amor próprio e fazer renascer suas esperanças, como de-
via por certo ter servido para abaixar a grimpa dos taes libe-
ralões.
Não havia em Dom João VI indolência da intelligencia,
sim indolência da vontade. Nas notas á margem das cartas e
memoranda dos seus ministros, o Rei quasi uniformemente
respondia só com relação aos pequenos negócios : os de maior
monta ficavam sempre para mais tarde, como elle dizia para
mais madura reflexão, de facto para um debate anodino no
despacho, em que invariavelmente se protelava a solução das
questões mais árduas ou mais espinhosas. De ordinário, o sobe-
rano não compromettia sua opinião ( i ) : fazia-a vingar pelo
aferro, não pela imposição. As cotas que nos foram conser-
vadas do seu punho nunca passam de generalidades ambi-
guas e formulas dilatórias, de um governante que andasse
ás apalpadellas, dos vejãj veremos, faça o que achar melhor,
diga-me o que devo dizer ao Conde. Era como si Palmella
fosse o importuno que no Rio representava o governo bri-
tannico mais permanentemente.
Comtudo um graphologo — apezar de sabermos de quan-
tos enganos é capaz — desdenhando o fundo pela forma, no-
(1) " dp bocca reflecionarei melhor sobre o objecto era
quostão", respondia de urna voz a Thumaz António, "pois a sua opi-
nião sempre me faz pezo."
D. J. — 67
lOlO DOM JOÃO VI NO BRAZIL
taria na calllgraphia real Indícios de um instincto dominador.
Por effeito seguramente da raça, da tradição, de uma dispo-
sição innata de auctoridade, aquella lettra em pé, si bem que
pouco attrahente como a sua pessoa, é ampla e regular,
firme e pessoal. A acredital-a, de magestatica tinha Dom
João VI a consciência como tinha a magnanimidade.
Em fins de Janeiro de 1821 a partida de Dom Pedro fi-
cara absolutamente decidida em despacho, e só restava a
Dom João convencer o filho da necessidade de embarcar para
Lisboa, arredando-o assim das fantasias ambiciosas que,
insuffladas por vários patriotas, o andavam embalando e
levando a pretender concretizal-as no vasto paiz onde ti-
nham decorrido sua infância e sua adolescência. Escrevendo
ao Rei no dia 31, dizia Thomaz António ter pensado muito
no negocio, que estava de pedra e cal, e respeitosamente
apresentava o conselho de realizar logo sua entrevista com o
Principe herdeiro no intuito de lhe apressar o embarque. ( i )
(1) " hir o Principe Real a ouvir, sal>er as queixas, re-
mediar o que for segundo as Leis, e propor a S. M. as emiendas ou
reformas — e segunda parte, nada falar de Constituição, e tudo de
melhoramentos, e conservar a Autoridade Ueal toda int<^ira para
V. M. e seus successores. Como nisto cada lium cedeu da metade da
sua opinião ; e esta concordado, esta em termos d'e V. M. assim o de-
cidir. Seguese pois falar V. M. ao Principe Real : por mimtos motivos
— 'para V. M. ouvir o Imediato Sucessor antes de decidir — ^para que
elLe diga se voluntariamente quea- fazer esta acção que he de grandes
consequências — e em terceiro lugar, porque he acção de amizade o
de confidencia entre V. M. e 'elle. Pode V. M. ter a certeza que em fa-
larlihe, faz a coisa que será para elle mais lizongeira ; e para o R'eilno
todo he o mais saudável ser esta medida ajustalda emtre V. M. e o
Principe. Só pode repugnar a hir sem a Princeza ; e nisso st» pode
ceder, pois o ponto principal para socego do Brazil, e para conservar
o respeito da Monarchia na Europa, he ficar no Rio de Janeiro o
Trono ; que he V. M. e a sucessão directa da Coroa. E por isso em
ficando os Netos de V. M., ou dos dois, hum qu^e ha outro que se es-
pera, o que for o sucessor ; he o que basta para o essencial Esta
conferencia que V. M. tiver, será muito gloriosa para V. M. e mostra-
rá a'o Mundo que a Vontade de V. M. he toda o bem dos seus Vassal-
ios. (Cod. cit. na Bibl. Nac.)
DOM JOÃO VI NO BRAZTL 1071
Para o conselheiro valido, o Brazil era um terreno onde
poucas sementes das novas idéas tinham sido lançadas, por-
tanto o que permittia residência mais fácil e agradável a
um monarc^ha absoluto; além de ser uma terra quasi toda
por desbravar e de recursos fartissimos, a qual convinha iso-
lar do contagio da peste da emancipação grassando nas coló-
nias hespanholas e á maior parte já tendo assegurado a inde-
pendência. Para conseguir tal fim era, porém, indispensável
permanecer o Rei no Brazil e permanecer igualmente um dos
netos, o que tivesse de herdar a coroa.
A resposta de Dom João VI á margem é evasiva e timo-
rata como de costume, quando se tratava de affrontar opi-
niões alheias e de fazer prevalecer o próprio sentimento occul-
to: "Até este momento ainda não falei a meu Filho quero
que me diga se esta na mesma opinião diga-me o que lhe
devo dizer e se ouver replica, o que lhe devo responder."
Alguns dias depois, a 4 de Fevereiro, já Dom João annun-
ciava ter recebido o voto do filho, com quem devia avistar-se,
e de facto se avistou, na ilha do Governador, mas tornava a
reclamar o parecer de Thomaz António.
A 10 de Fevereiro, como quem de continuo pergunta a
mesma cousa até que lhe respondam como deseja, instava
ainda o monarcha pela replica do seu ministro, não se fur-
tando por fim Thomaz António á repetição da sua idéa de
ida do Principe só ou apenas com a esposa, pois que a 11
accusava o Rei o parecer delle (i). Desde 8 communicara
Maler para Pariz estar resolvida a partida imminente de
Dom Pedro na qualidade de Condestavel, ficando no Rio
Dona Leopoldina por se achar no ultimo mez de gravidez,
(1> Para n3o parecer ou mesmo porque de facto se não guiava
só pelas luzes de Thomaz António, ajuntava o Rei ter também pedido
o parecer de outro ministro.
1072 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
segundo no dia 7 Informava uma nota de Palmella o barão
de Sturmer, novo ministro da Áustria.
A pobre amorosa Princeza, não se conformando com a
separação, tanto instou porém com o sogro, que este acabou
por annuir a que ella acompanhasse o marido, depois do
parto, ficando as crianças com o avô, aquella pelo menos que
encarnasse as esperanças da dynastia.
O governo britannico, desanimado de conseguir o re-
gresso do Rei, mandara instrucções instantes ao seu ministro
Thornton para que alcançasse pelo menos a partida do Prín-
cipe ou do Infante, e o diplomata, de accordo com Palmella,
trabalhara com tanto afinco n'esse sentido que D. João tinha
de fugir delle, ausentava-se mesmo do Rio para evital-o ( i ) .
Por sua vez Dom Pedro, instigado por Palmella e ambicioso
de representar um papel nos successos que se estavam desen-
volvendo, convencido para mais da urgência de oppor um
dique á maré revolucionaria (2), pendia agora para a ida
para Lisboa e começava a invocar seus titulos e responsabili-
dades de herdeiro, pedindo officialmente a opinião dos mi-
nistros (3).
Dom João, porém, no intimo ainda não completamente
decidido e politicamente zeloso como todo monarcha do seu
successor presum^ptivo, hesitava em dar o consentimento para
o embarque — mesmo depois de resolvida e até diplomatica-
mente annunciada a partida — sempre á espera de alguma
cousa que mudasse o rumo dos acontecimentos. Na Imprensa
(1) Carresp. de Maler, no Arch. do Min. dos Neg. Est. de
França.
(2) "Ao Príncipe, ■escrevia IMaler (Officio de 8 de Fevereiro
de 1821), não falta ■espirito natural nem ardor para fazer o bem,
mas é indispensável que lhe dêem um conselho próprio a guial-o e
sustental-o nas circumstancias imperiosas que o vão rodear."
(3) Corresp. de MaJer, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRÂZIL 1073
Real era mandado compor um folheto em francez descre-
vendo as vantagens da permanência no Rio de toda a familia
real, o qual distribuiam agentes da policia.
As duvidas não cessavam com o próprio embarque. De
Londres discutia o ministro Souza si o Principe deveria
singrar directamente para Lisboa ou parar nos Açores, para
d'alli negociar com as Cortes e obter uma garantia de que nada
intentariam de mau ou de desairoso contra a sua pessoa, dei-
xando-lhe inteira a faculdade de approvar ou rejeitar as pro-
posições que lhe fossem feitas.
E' de notar que o diplomata dava preferencia á viagem
directa, em primeiro lugar porque não reputava "tão viciado"
o caracter nacional portugucz que se tivesse desprendido das
obrigações devidas ao soberano, e em segundo lugar porque
calculava a boa impressão que faria entre a população em
geral aquella prova da confiança regia. Não se dava por
outro lado tempo "aos individuos mal intencionados, ou
aos partidistas da Hespanha para procurarem aliciar os espí-
ritos com o pretexto da demora para insinuar que Sua Ma-
gestade quer abandonar Portugal", nem com o próprio facto
da negociação se inspirava maior confiança em sua força ao
governo revolucionário, e "mais animo para se oppor a
qualquer mudança que Sua Alteza Real julgue dever propor
no systema que tenha estabelecido" ( i ).
Já a attitude benevolamente indifferente da Inglaterra
com relação aos acontecimentos de Nápoles augmentara
muito a confiança, senão jactância dos liberaes portuguezes,
incitando, segundo Lesseps (2), á adopção de uma Constitui-
ção muito mais radical, distante da franceza e da neerlan-
(1) Con-esp, de Londres, 1820-1821, no Arch. do Min. das
iRel. Ext.
(2) Corresp. no Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.
1074 DOM JOÃO VI NO BKAZIL
deza, que eram as que de começo se tinham em vista para
não suscitar os reparos da Santa AUiança.
A idéa da estação nos Açores nascera muito provavel-
mente do boato que corria em Londres de que, tanto n'esse
archipelago como na ilha da Madeira, população e auctorida-
des negavam-se a submetter-se ao governo de Lisboa, Ainda
assim D. José de Souza não esquecia as ilhas adjacentes na
distribuição de fragatas de guerra que suggeria a lord Cas-
tlereagh, destacando-se da esquadra do Rio da Prata umas
para serem postas á disposição de Dom João VI no caso de
requerer tal soccorro para acompanhal-o até a Europa, e
mandando-se outras para Lisboa, ilhas e, por prevenção, a
conter na obediência a« Rei os habitantes também da Bahia
e Pernambuco ''no caso de quererem tentar agora uma nova
revolução."
Muito sensatamente Castlereagh só não objectou ao
primeiro alvitre, si bem que lastimando que da estação do
Rio da Prata se tivessem retirado as naus de guerra, e em
todo caso ponderando a conveniência de ser a pessoa do Rei
transportada a bordo de uma embarcação portugueza, em-
pregando-se os navios inglezes na conducção das pessoas que
tivessem de acompanhar a corte. O governo britannico
achava sempre geito de voltar á sua toada favorita de não
querer dar pretexto a accusações portuguezas contra a ascen-
dência ingleza, as quaes prejudicariam a real causa; tão
sincera sendo sua vontade de não comprometter Dom
João VI, que vacillara em seguir o exemplo da França e
annuir a representações endereçadas pelos negociantes ingle-
zes de Lisboa para fim idêntico, de se mandarem mavios para
õ Tejo com o fim de protegel-os de quaesquer eventualidades.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1075
Semelhante abstenção não devia portanto ser tomada,
conforme se rumorejava no Rio, como um indicio de prote-
cção indirecta á causa da revolução: desconfiança injusta,
commentava lord Castlereagh, a que o gabinete de Londres
não queria dar peso e que o não demoveria do seu propósito,
a bem da realeza e do reino, de obstar a que as grandes po-
tencias avocassem um papel activo nos negócios portugue-
zes (i).
D. José de Souza acabara aliás por se capacitar de que
a posição assumida pela Inglaterra offerecia a grande vanta-
gem de poder o seu governo efficazmente interpor uma
mediação entre a coroa e as cortes, si estas por acaso re-
sistissem á conciliação imaginada pela coroa. As relações
tradicionaes entre os dous paizes, a sua mutua situação geo-
graphica (2), a neutralidade affectada por aquelle governo
estrangeiro no conflicto, tudo o fadava para um papel pa-
cificador, que de certo entrava nas intenções da Grã Breta-
nha, mas que lhe não foi dado desempenhar porque o movi-
mento liberal de 1820 logrou por si enlaçar o throno.
Pretexto algum restou ao gabinete de Londres para in-
terferências. As probabilidades de uma cooperação constitu-
ir) Corresp. de Londres, 1820-1821, no Arch. do Min. das
|Rel. Ext.
(2) Os soberanos alliados, quando quizessem intervir, estavam
condemnados a se não poderem servir nem da via maritima, domi-
nando a Inglaterra as communicações oceânicas, nem da terresti-í",
oppondo-se á passagem do tropas pelo seu território, quando não a
Fi*ança, a Ilespanha constitucional que protestfira de antemão contra
quaesquer deliberações de Troppau, destinadajs a comprimir a liber-
dade dos povos. De resto as intervenções conjimctas tinham muito de
aleatório. A Áustria estava sosinha em campo na Itália, sem que jul-
gasse dever a.iudal-a materialmente a Rússia, comquanto a padroeira
do aI)Solutismo. Por isso escrevia sentenciosamente de I/ondres D. José
de Souza : "Considero a alliança da Inglaterra a mais útil, mas estou
longe de desejar que nos deixemos dominar por ella." (Corresp. de
Londres, 1820-1821, ibidem) .
1076 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
cional hespanhola tenderiam gradualmente a desapparecer
com a quasi certeza n'aquella occasião de uma recusa
franceza a consentir na passagem de qualquer exercito
de repressão da Peninsula (i) ; com o retrahimento
consequente do ideal absolutista e dispersão dos seus esfor-
ços, € com as noticias todas a chegar do Brazil, de adhesão das
varias provincias ao novo regimen, juramento pelo Rei da
Constituição que fosse elaborada em Cortes, e final certeza
do próprio regresso d'€lk.
Para não perder vasas, Palmella, no depoimento de
Thomaz António, tinha ido entretanto recommendando o
liberalismo moderado que foi sua constante norma politica.
Vê-se pela carta de 12 de Fevereiro (2) que a essa data já
o ministro dos negócios estrangeiros achava insufficiente
o decreto em preparação, que devia definir a attitude real,
e opinava pela convocação, a par e passo das Cortes portu-
guezas, de Representantes brazileiros. O malfadado decreto
n'este comenos ia, voltava, emendava-se, discutia-se si seria
accrescentado ou não, si trataria ou não de Constituição,
como si ainda fosse possível omittir a palavra que em todo o
Reino Unido estava abrasando os corações e erguendo os
espiritos, cultos e mesmo ignaros.
Intelligente como era. Dom João VI enxergava que do
lado de Palmella estavam mais a razão e o bom senso, e si
outros lhe não afagassem a natural inclinação absolutista,
elle votaria por que se cuidasse logo na tal Constituição,
(1) o ministro de estrangeiros de Luiz XVIII, barão Pasquier,
explicava em despacho a Maler que, segundo ora publico e notório
mesmo pelas palavras officiaes na Camará dos Deputados e pelas
declarações feitas em Napol^es, "a França se propuzera observar uma
estricta neutralidade em todas as operações militares que poderiam ter
lugar, e que sua resolução a tal respeito era tão positiva quanto a
da Inglaterra." (Arch. do Min. dos Neg. Est. de França.)
(2) Carta de Thomaz António no Cod. cit.
DOM JOÃO VI NO BKAZIL 1077
que não era afinal cousa tão má pois que o deixava Rei e
mantinha a dynastia. Thomaz António continuara comtudo
para melhor corresponder ao pendor do soberano e satisfa-
zer ao mesmo tempo a própria tendência, figurando de centro
da resistência, cedendo quasi á força, aos bocadinhos, resmun-
gando, altercando, choramingando, declamando. ''Huma vez
encetada a Autoridade Real — não se fartava elle de repetir
toda vai perdida, e mais se não pode suspender a torrente."
Declarar nulla a convocação das Cortes de Lisboa teria
sido o seu gosto, mas como reconhecia ser impossivel, ao me-
nos que servissem apenas para canalisar as supplicas dirigidas
ao Rei e elevar as propostas sujeitas á approvação real, afim
de não apparecerem resoluções e leis como emanadas da sobe-
rania popular. A' Carta Constitucional de Palmella nutria
sincero horror, bem como ao plano de ir o Principe Real
presidir as Cortes, si não fosse já tempo de ir para fazer
cumprir a Constituição outorgada. O que? dar-se o monar-
cha sem mais por vencido, "não sabendo ainda o que ha
de acontecer a favor dos thronos?" Despojar-se o Rei, para
que o não despojassem, quando existia uma Santa AUiança
dos Reis contra os Povos? Submetter-se assim aos revolucio-
nários, desanimando o partido realista ? *'Não lhe he decente
seguir os malvados, e desamparar os honrados."
A 7 de Janeiro ainda Thomaz António opinara contra
a ida do Principe Real n'aquellas condições. "A vantagem
que Vossa Magestade tem he o estar aqui a salvo toda a Fa-
milia Real; a dependência que tem os de Portugal he de pedir
uma Pessoa Real: portanto não se deve conceder emquanto
não voltarem a obediência." A carta regia de 20 de Outubro
de 1820, repetia, somente promettera uma pessoa real para
o governo de Portugal depois de terminadas as Cortes, não
1078 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
havendo no seu entender duvida em acceitarem-se alterações
ás Ordenações quanto á segurança de pessoas e de proprie-
dades, comtanto que fossem a exame no Brazíl as propostas
das Côrt€s (i).
Na condescendência, que reputava desistência, antevia
um futuro horrivel. **0 que se tem visto em outras nações he
que vencido o ponto de terem Constituição, passam a for-
mar-se conjuraçoens contra os Soberanos; e assim parece de
temer, pois vencido o ataque contra a autoridade, segue-se
o atacar a Pessoa... O que fez Luiz XVIII de offerecer a
Carta, não ha paridade, pois elle a deu como graça estando
os Exércitos alliados subjugando a França. Mas neste caso,
é offerecida aos Revolucionários, que estão governando Portu-
gal: he temor, não he graça" (2) .
Inclinar-se para os constitucionaes, era renunciar a
toda esperança de lucrar com a contra-revolução, fatal na
Hespanha, e, peor ainda, perder a própria obediência de Por-
tugal, quando perdessem sua ephemera popularidade os intru-
sos que, com effeito, a breve trecho se haviam de ver alvo da
malquerença da grande maioria da Nação. Nem viessem a
Thomaz António com o argumento de que satisfazer os revo-
lucionários da antiga metrópole, equivalia a adormecer a sedi-
ção na ex-colonia, ou de que qualquer insurreição brazileira
com mais auctoridade e proveito seria debellada estando a
monarchia na sua sede natural.
*'0 outro fundamento, de que o Brazil depende de
Portugal, e que d'alli se pode conservar: não me convence,
porque o Brazil he independente, nenhuma Potencia da Eu-
ropa o pode atacar com vantagem. E bem se vê, que a maior
(1) Cod. cit., na Bibl. Nac.
(2j Cod. cit., ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1079
anciã dos revolucionários he incendiar o Brazil; porque si
elle se separa, e rompe a comunicação, Portugal tem de
decahir. Elle preciza ser conciderado como Hanover a res-
peito da Grã Bretanha" (i). Queria o desembargador dizer
que eram Portugal e Brazil dous organismos diversos e até
dissemelhantes: n'este ponto tinha perfeita razão, e a unani-
midade das opiniões quanto á permanência no Brazil do Rei
ou do Principe obedecia ao instincto de conservação que se-
gredava o grande risco da separação,
Thomaz António deu seus últimos conselhos de rea-
cção nas vésperas do motim fluminense de 2Ó de Fevereiro,
que compellio o Rei a jurar a Constituição a ser elaborada
em Lisboa e determinou o regresso de toda a Corte, com
excepção do Principe Real e familia. A 22 assim estalava o seu
amuo: "Senhor, Eu não he que heide decidir sobre a Monar-
chia: ou se manda imprimir o Decreto; ou se remette ao
Conde (Palmella) que mande lavrar o alvará com as bazes
(da Constituição), e que he elle quem deve referendar. Elle
mandou dizer aos Regimentos que Vossa Magestade dava
huma Constituição ingleza; e quer por força que se publi-
quem as bazes. Decida Vossa Magestade isto porque eu não
o posso fazer. Publique elle as bazes para Portugal, como lhe
parecer bem ; mas não se embarace o que he preciso no Brazil,
aqui não dá por contrato, he em Portugal, e faça para lá
outro Diploma" (2) .
Perante o constitucionalismo apregoado de Palmella,
queria Thomaz António ao menos livrar o Brazil d'essa ma-
nia nefasta das innovações. O velho conselheiro, que em ver-
dade mais se preoccupava com o Brazil, distinguia bem entre
(1) Cod. cit., ibidem.
(2) Cod. ci)t., ibidem.
1080 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
os Reinos e apreciava com a experiência que a Palmella fal-
tava da terra — a elle faltando muito embora toda a perspi-
cácia de Palmella — a diversidade das condições e das circum-
stancias nos dous lados do Atlântico. O mesmo methodo não
servia para ambos os paizes : em Portujíal o essencial era suavi-
sar o amor próprio e os interesses offendidos; no Brazil, re-
formar abusos. Assim se corrigiriam em todo o Reino Unido
os esforços da propaganda subversiva enlevada na Constitui-
ção, concedendo-se o menos para se não abrir mão do mais.
Dom João fluctuava ainda e sempre. Do mesmo dia 22
foi esta a sua resposta: "Tomaz António não olhou para o
m€U bilhete que lhe dezia que logo que mostrasse a meu Filho
a minuta do Conde de Palmella lhe remeteria o saco com a
minha resolução. Agora me entregou meu Filho os papeis
dizendo-me que lhe parecia que para elle fazer alguma nego-
ciação seria milhor não publicar as bazes da constituição,
mas Tomaz António veria as gazetas (i) que me mandou,
a força em que falão por constituição, chegando a dizer que
esperão que todo o Brazil os siga ; igualmente a força em que
fala o Conde a ponto de pedir a sua demição. remeto o
Decreto assignado autorizando-o para o mandar publicar
(1) o periodismo politico só surgiu no Brazil como •effeito da
revolução portugueza de 1820, IN o espaço de um anno 'o numero dos
joi-naes tornou-se avultado. Em Poi-nambuco puWicavam-se a Aurora
Pernambucana e o Segnrrcga ; na Bahia, além da EdaKlc de Ouro, o
Scm-anario Cívico e o Diário Cotistitucionnl ; no Rio, afora a Gazeta,
o Amigo do Rei e da Nação, o Conciliador do Reino Uniéo, a Sahhatina
Familiar, o Constitiicional, o Reverbero, a Malagudta, e lo Diário do
Rio de Janeiro, de Zeferino Victor de Meirelles, o chamado Diário do
vititem pelo pi^eço, ou Diário da manteiga, por publicar os preços dos
géneros alimentícios e outras noticias commerciaes em annuncios.
(Balbi, ob. cit. e F, de Souza Martins, Progresso do Jornalismo no
Brazil, na Rev. Trim. do Inst. llist. do Rio de .Taneiro). A imprensa
adquiriu logo, mercê da agitação do momento politico, grande violên-
cia, censurando a.foitamente funccionarios públicos, denunciando as
podridões, bradando por emenda e offerecendo planos imaginativos de
reformas.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1081
no cazo que tudo o que lhe digo lhe não fizer obstáculo,
julgo que seria conveniente fazer alguma comunicação ao
Conde antes de se publicar, a única couza que me faz alguma
força he o que diz o C. {Conde) que milhor he o dar exponta-
neamente do cjue por contrato" (i).
Bem esperto será quem depois da leitura d'este arrazoado
puder com seguridade dizer si Dom João VI preferia outorgar
ou não a Carta Constitucional pela qual insistia Palmella.
EUe próprio provavelmente o não sabia, dúbio entre opi-
niões differentes, attrahido por ideaes oppostos e confusos,
dilacerado por motivos contrários. Dom João era um contem-
porâneo de Réné, e a duvida mórbida, o mal do século, exten-
dia-se dos devaneios sentimentaes ao dominio pratico da poli-
tica e da administração. As apostillas de 1821 já não refle-
ctem o trabalho regular, methodico e desannuviado dos
annos anteriores: agora ellas traduzem a incerteza e a mor-
tificação, sem o forte sentimento de responsabilidade que as
debellaria.
A funcção real deixava de ser exercida em grande parte
com a preoccupação de fazer justiça, de agradar a todos, de
tornar-se um monarcha popular, de dar raizes locaes á dy-
nastia, instando por exemplo o Rei pela remessa dos papeis
das audiências — "pois quero que as partes não julguem que
me não lembro dos requerimentos que me entregão." Dom
João VI acreditava comtudo, a meio da perplexidade moral
em que se debatia, que a sua permanência no Brazil, com
semelhante fé de officio, tradição tal de equidade e de longa-
nimidade, o dispensaria com certeza de brindar com uma
Constituição essa secção da monarchia, a qual se contentaria
com a dita de possuir a Corte no seu seio.
(li Cod. cit., na Bibl. Nac.
1082 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Os Brazileiros com effeito queriam geralmente que o
Rei ficasse, mas não mais os satisfazia o velho estado de cou-
sas. A perturbação constitucional rasgara horizontes de maior
amplidão e por forma tal accendeu o enthusiasmo entre ge,nte
facilmente levada a exaggeros, que fez mespio sopitarem
estimulantes desconfianças e provocou uma approximação
sincera de Portugal. O Reino nunca foi tão unido como n'essa
phase, até que o manifesto brutal das Cortes rompesse o
enleio e desmanchasse a illusão.
A Constituição não cessou todavia de simbolizar o cor-
rectivo dos erros, a reforma dos atrazos, a destruição dos
abusos. N 'estas condições a permanência do Rei podia ser um
motivo de vaidade, para o paiz um objecto até de af feição
commum e superior, mas já nem constituia sequer uma se-
gurança de autonomia, pois que seria impossível a Portugal
retirar o que fora uma vez concedido: o Brazil não podia
mais voltar á servidão colonial. ( i )
Uma carta de Palmella em data de 3 de Março, (2)
escripta ao cunhado, conde de Linhares, descreve, periodo
por periodo, ainda que muito succintamente, a evolução ope-
rada no espirito de Dom João VI e indica com quanta repu-
gnância elle veio a abraçar o alvitre de uma Constituição.
Levou-o, porém, Thomaz António a ''publicar só e isolada-
mente o chamamento dos Procuradores das Camarás do
Brazil," deixando de lado todo um conjuncto de medidas, que
tinham entre si um nexo necessário, e que eram instante-
mente aconselhadas por Palmella.
No mesmo dia 22 de Fevereiro, em que Thomaz Antó-
nio e o Rei andaram tão escrevinhadores, e em que foi refe-
(1) Armitage, 06. cit.
(2) D. Maria Amália, oh. cit.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 108Í?
rendado o decreto de i8 convocando Cortes no Brazil, man-
dava pela tarde o ministro assistente ao despacho o seguinte
recado: "Aqui veio o conde de Palmella, trazia outra mi-
nuta, eu lhe disse que o Principe tinha pedido a Vossa Ma-
gestade levar elle as bazes nas Instrucçoens sem as publicar;
que Vossa Magestade assim tinha decidido; e eu portanto
mandava por cm limpo o Decreto para Convocação daqui em
Junta de Cortes." (i) 9
Estas Cortes locaes deviam ser formadas pelos procura-
dores eleitos pelas camadas municipaes das cidades e villas
principaes, que tivessem juizes lettrados, tanto do Reino do
Brazil como das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde,
e para tratar com ellas se nomeava uma Junta de 20 pessoas,
a qual funccionaria como commissão preparatória, cabendo-
Ihe examinar as feições da futura Constituição da monarchia,
applicaveis ao Brazil. Um manifesto, simultaneamente publi-
cado, esclarecia mais que o Principe Real iria entender-se
com as Cortes de Lisboa e que o Rei promettia perfilhar
quanto, no producto combinado d'aquella actividade executiva
e legislativa, correspondesse á situação peculiar do Reino
ultramarino.
No dia 24 já a borrasca se prenunciava pois que, re-
cusada pelo Rei a demissão de Palmella — Arcos retirava-se,
escondendo seu jogo matreiro e associando seus destinos aos
do Principe Real — e apoz uma conferencia com este, man-
dou-se chamar os da Junta e algumas pessoas de fora; os da
Junta "para que segurassem os batalhões de que não se fazia
engano; e antes de se publicar o Decreto e também a nomea-
ção, ajustar com esta Junta se se deviam publicar as bazes
(1/ Cod. cit., na Bibl. Nac.
1084 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
da Constituição para Portugal € Brazil, se se devia reconhecer
já a Constituição de Lisboa, isto é, a da Hespanha." (i)
Thomaz António era quem, nem n'esses momentos de
apuro se bandeava e, como naufrago politico, ainda se ape-
gava á idéa das Cortes serem somente consultivas, pelo me-
nos com relação á ex-colonia, não se effectuando reforma
alguma ou mudança no Brazil sem ser examinada a proposta
por pessoas das provincias do novo Reino: no que afinal
se punha de accordo, apparente senão real, com a proposição
de Palmella de congregar no Rio de Janeiro, afim de appli-
car as bases fundamentaes da Constituição livremente conce-
dida pelo soberano, os procuradores das camarás municipaes
do Brazil.
O Principe Real, esse é que revelando desde logo seu
temperamento auctoritario, que o tornaria a negação do regi-
men que veio a personificar, dava sem rebuço á expressão —
Cortes Consultivas — um sentido differente d'aquelle que lhe
emprestara Palmella. N'uma nota do seu próprio punho se lê:
"Lei nenhuma terá vigor sem ser proposta pelo Rei em
Cortes as quaes devem ser consultivas quero dizer terem o
direito de descutirem a proposta Real a qual depois decidida
pella pluralidade de votos será sanctionada pello Rei" (2) —
a este competindo portanto a iniciativa e a sancção.
O / d'aquella orthographia parece denotar onde be-
bera o futuro Imperador a noção da sancção real; mas não
foi nos doutrinários francezes, sim no seu fogoso tempera-
mento peninsular — d'um tempo em que peninsular trazia
sobretudo a idéa de frades, mendigos e cortezãos viciosos —
d» Oad. cit., il)klem.
(2) Autographos do Cod. clt., ihiúem.
DOM JOÃO YI NO BRAZIL 1085
que elle foi buscar semelhante repugnância á iniciativa po-
pular ( I ) .
Da instrucção liberal de Dom Pedro n'esse tempo (e
depois não melhoraria muito) pode-se ajuizar pelo prose-
guimento da sua annotação: "Mandar as bazes da Consti-
tuição he reconhecer a convocação destas cortes reconhecida
áhi está reconhecido o Governo, e he indecorozo a V. M.
O Reconhecimento he huma vergonha certa e o ser ou não
admetida huma P. R. (proposta real) he incerto portanto
neste cazo he milhor hir pello incerto do que não pello
certo."
O constitucionalismo do que então era herdeiro de
Portugal e Brazil foi um traço não tanto adquirido, o que
lhe realçaria o mérito, como postiço, porque se não coa-
dunava com a sua educação descurada e depressora nem com
o seu caracter impulsivo e violento. Dom João VI teria
ao contrario feito pela sua sagacidade de visão e timidez de
acção um excellente Rei constitucional, em tempos normaes.
Sobre a sua penetração, mesmo quando obscurecida pela
fraqueza de animo, não pode ficar duvida a quem reflectir
que, a meio das indecisões e dos receios, elle descortinava
claramente os defeitos capitães da situação, tanto que ta-
xava just?< mente os alvitres aventados em redor de si de
"pouco práticos e peccando por inclinar-se exclusivamente
para um paiz ou para outro segundo a nacionalidade, gostos
etc. do preopinante. . . entretanto que a S. M. lhe parecia
(1) Dir-se-ha que na libérrima Ingkaterra apenas os projectos
ministeriaes teem proí)abilidacles de serem convertidos em leis e qae
as propostas de iniciativa parlamentar raramente logram subir A regia
«ancí/ào : é porém ocioso encarecer quanto n'esse paiz tom o tbrono po-
liticamente mergulbado na sombra gigantesca da representação na-
cional, da qual 6 o gabinete a mera dolí\ga<jão exí>ciiti\ri.
D. J. - 68
1086 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
evidente não se poder abstrahir de nenhum dos dous Paizes
sempre que se tratasse de regular negócios em que se achem
cumulativamente compromettidos os interesses de toda a
monarchia."
Silvestre Pinheiro Ferreira, a quem pertencem taes pa-
lavras (i), accrescentava esta outra observação muito lison-
jeira para Dom João VI, a cujo conhecimento não eram
no emtanto destinadas estas expansões de amigo para amigo:
"Cito a V. S. estas observações de S. M. para que por ellas
V. S. possa avaliar a verdade do que por vezes lhe tenho
escripto sobre a finura de tacto que o mesmo Sr. possue na
justa determinação do ponto cardeal sobre que versa qual-
quer questão."
Dom Pedro é que nunca poderia ter sido senão o que
foi : um soberano que abdica throno e grandezas por não
poder impor suas vontades, e se converte n'um condottiere ao
serviço de uma filha que estremecia e de uma causa que pen-
sava estremecer, porque n'ella concentrara sua exhuberancia
de imaginação e sua ambição de gloria, dous traços moraes
que, junto com a bravura physica indispensável ao officio, a
mãi lhe infiltrara na alma e no sangue.
(1) Carta IT das Memorias e Cartas biographicas, publicadas
nos tomos II e III dos Annaes da Bibl. Nac. do Rio de Janeiro.
CAPITULO XXIX
O MOVIMENTO CONSTITUCIONAL NO BRÂZIL. O ULTIMO MINISTÉRIO
A corrente constitucional, em communicação com os
dynr.mos de Lisboa, seguio no Brazil a direcção norte sul.
A primeira descarga deu-se no Pará, onde o pronunciamento
militar occorreu no dia i^ de Janeiro de 182 1. O governador
conde de Villaflor (futuro duque da Terceira) estava au-
sente no Rio, administrando a provincia um governo inte-
rino. "Não. era difficil, observa nas suas Memorias o mar-
quez de Santa Cruz (i), fazer aceitar as mudanças da
Metrópole em uma provincia, onde predominava a influen-
cia Portugueza, e regida por uma administração fraca e sem
prestigio." ,'
A Bahia já antes d'isso não inspirava confiança. A 2
de Dezembro escrevia Thomaz António ao Rei : "He conhe-
cida de V. M. a manobra secreta da Bahia: todo o mundo
conhece e teme" (2). E logo se tratou em despacho de
mandar para a antiga capital colonial o conde de Villa-
(1) D. Ronuialdo António de Seixas, dx^ois .arcebispo da Bahia
o então vigário capitular de Belém, o qual foi até acclamado jx-lo povo
presidente da junta constitucional orfíaniznda por essa occasião
(2) Cod. cit., na Biibl, Nac.
1088 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
flor, licenciado, que foi effectivamente nomeado, mas não
seguio porque lhe embaraçaram a partida as surdas tra-
móias da facção liberal (i). A 20 de Janeiro ainda Tho-
maz António instava (2) pelo embarque do governador
para seu destino, visto não serem boas as noticias e estar
imminente o tumulto.
A escolha de Villaflor foi mesmo o que o apressou. O
governador conde da Palma andava enfermo, e não urgia
tanto executar a sublevação já que a repressão não cabia
em suas forças; mas o despacho de um militar desempenado
como o que seria um dos dous grandes marechaes da Res-
tauração, fazia suppor intentos violentos e era mister tocar
a rebate. Portuguezes e Brazileiros esqueceram seus ódios,
forças reinóes e nacionaes immolaram suas animosidades no
altar da Constituição, fraternizaram as duas facções que
Palma quizera oppor uma á outra (3), e o capitão general,
mau grado suas velleidades de resistência, foi substituído, a
10 de Fevereiro, por uma Junta que confirmou a lei orgâ-
nica em embryão proclamada pela tropa e pelo próprio
conde da Palma.
A ordem promptamente se restabeleceu e prevaleceu a
moderação n'esse inicio revolucionário, apezar de ter havido
mortos e feridos no motim, occorrido sobretudo pela atti-
tude de Felisberto Caldeira Brant (futuro marquez de Bar-
bacena) que á frente de algumas forças compellidas á fide-
lidade, pretendeu assegurar praticamente a legalidade. O
fl) Diz Maler que, quando governador do Maranlião, Villaflor
tinha -dado lugar a fortes queixas contra elle, de certo por actos de
auctoridade, pois sua honestidade sempre foi apregoada.
(2) Cod. cit., na Biihl. Nac.
, (;í) Ilandclmann nota com seu habitual aicerto que a funda
inimizade entre povo e tropa foi o que em Pei-naml)uco retardou o
movimento constitucional.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1089
cônsul francez Guinebaud escrevia porém poucos dias de-
pois (i) a Maler: "Até aqui a auctoridade real foi mantida
pelo menos nominalmente, mas, pelo amor de Deus, si es-
tiverdes com o Rei, ou com seus ministros, dizei-lhes que re-
conheçam depressa e regularizem tudo isto, porque dentro
de trez mezes não será mais tempo. Nem mesmo quererão
mais reconhecer o Rei e se declararão independentes."
E' de crer que Maler conversasse com Palmella, ou
então no espirito .d'este se implantou incontinenti a mesma
convicção, pois ao ser conhecida no Rio a insurreição bahiana
com seus pormenores, suggeriu o ministro de estrangeiros
de Dom João VI o desembarque em São Salvador do Prín-
cipe Real, no caminho para Lisboa, indo na sua companhia o
conde dos Arcos, muito considerado senão popular na Bahia,
e sendo o manifesto constitucional do soberano lançado alli,
no próprio foco brazileiro, que em tal se constituirá, da re-
volta (2). Palmella assim se valia da insurreição a ver si
ainda podia determinar resoluções francas e definidas, em-
quanto Thomaz António — a quem seu collega injustamente
increpava de inactivo n'essa occasião — clamava pelo contra-
rio por providencias immediatas de força que suffocassem a
sedição.
O tempo consumira-se n'essa discórdia inglória e per-
dera-se o ensejo de uma composição, mesmo assim problemá-
tica, comquanto escrevesse Maler para Pariz (3) que a
menor concessão, o menor desejo manifestado de remediar os
abusos mais escandalosos, teria bastado para conter os povos
(1) Officio de 15 de Fevereiro de 1821, no Arch. do Min. dos
Neg. Est. de França,
(2) D. Maria lAmalIia, ob. cit.
(3) Officio de 23 de Fovereiro de 182,1.
1090 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
na orbita do dever. Depois do motim da Bahia reconhecia
elle que mais difficil se fizera satisfazer os espiritos irritados
pela obstinação do governo, não deixando os chefes dos fac-
ciosos de imputar ao medo quanto se combinasse e publi-
casse, e julgando todos de nada ser devedores á boa vontade
de um gabinete que esperava até o derradeiro momento para
realizar qualquer concessão.
Thomaz António não era aliás o ultimo em admittir
nos seus memoranda ao Rei, que "cada dia vai sendo peor,
e a demora a fazer desconfiança." Na Bahia, segundo infor-
mava o cônsul respectivo, a Junta cuidara sem demora de
augmentar e equiparar o soldo das tropas, não lhe faltando
recursos para isso porque de todos os lados lh'os offereciam.
"São verdadeiros donativos voluntários, activam-se os con-
certos de varias embarcações de guerra que se acham no nosso
porto, para tudo ha dinheiro."
O motim fluminense de 26 de Fevereiro, que se seguio
poucos dias á divulgação do bahiano, apresenta um duplo
traço — brazileiro e portuguez — mas foi nos seus intuitos
restrictos muito mais portuguez do que brazileiro. Motim
militar, promoveu-o comtudo no saboroso dizer de uma carta
do tempo ( i ) , ^ caixeirada que se nutre com a leitura dos fo-
lhetos de Londres. "O povo, commentava o correspondente,
ficou alegre com a mudança dos empregados públicos, e estou
certo que nenhumas prom.essas o terião satisfeito, huma vez
que não principiasse por depor Thomaz António, Targini,
Paulo Fernandes, etc. Entrou n'esta deposição o Sr. conde
de Palmella único de todos que tem feito a sua obrigação,
mas com o qual estavão descontentes por isso que não despa-
(1) Carta de .Tose da Silva Arêas ao conde do Funchal, cm 1
de Março de 1821. Lata 10 da Coll. Linhares, na Bibl. Nac.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1091
chou a todos logo que chegou; sendo aqui o constante sys-
tema do Ministério desde o principio do anno athé o fim
não fazer outra coisa senão ouvir as partes, ler requerimen-
tos, e despachar absurdos — e por isso como o Sr. conde hia
cortando os abusos em que tudo estava não agradou."
Os primeiros reformadores em qualquer epocha são
sempre apedrejados, e no Brazil d'esse tempo muito havia a
reformar. "As coisas certamente estavão mal, proseguia a
missiva — mais prevaricação, mais delapidação, e mais lou-
curas não era .possivel haver ; e por isso o estado da gente
era má também, e por isso não se contentavão sem huma
scena como a de 26."
Sympathica a toda a população pelas causas que a moti-
varam e pela orientação geral moralizadora que proclamou,
a scena de 26 de Fevereiro teve como razão determinante
muito mais o despeito produzido entre o elemento portuguez
pela annunciada separação do regimen constitucional nos
dous Reinos, do que mesmo a anciã nacional por uma era
liberal. O commandante da policia avisara directamente o
Rei (i) de que o decreto fora mal recebido e já se f aliava
"descaradamente que o que querem he a Constituição de
Portugal. Como hoje se deve publicar o Decreto da Junta
seria milhor ver se nelle se dava toda a esperança de que
se devia aceitar a dita Constituição com as mudanças adaptá-
veis ao Paiz ou dar as bazes."
A organização da Junta presidida pelo marquez de
Alegrete e na quasi totalidade composta de Brazileiros (trez
membros apenas eram Portuguezes), em que tanto confiava
Dom João para abrandar o partido americano, desagradou
(1) Resposta de Dom João a Thomaz .Uitonio no Cod. cit.
1092 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
em extremo ao partido europeu. Conta Maler ( i ) que os
editaes, apenas affíxados, foram arrancados ou cobertos de
immundicies e que nos cafés e botequins se esbravejava sem
sombra de commedimento.
Das praças e ruas os agitadores transportaram sua
acção para os quartéis, intrigando no sentido das Cortes e da
união e provocando a sedição que devia amedrontar o Rei,
forçal-o á obediência constitucional á assembléa de Lisboa e
convencel-o de partir em pessoa para não perder a um tempo
toda a monarchia, ébria como «andava de novidades, alçando
o velho Reino o topete quasi acima do throno, e preferindo
as provincias dispersas do novo as liberdades civis e politicas
derivadas do pacto popular com a Coroa á própria indepen-
dência em corpo.
O movimento de 26 de Fevereiro, em prol de uma
Constituição vaga, foi por conseguinte tão espontâneo quanto
pode ser um movimento subversivo do seu género, a saber,
que a conspiração urdida e propagada por alguns cabecilhas,
encontrara rápido e franco apoio porque correspondia a uma
aspiração latente de mudança. Entre esses cabecilhas mencio-
rrava Maler (2) um certo major António de Pádua da Costa
e Almeida, filho do antigo commandante da praça de Al-
meida, fuzilado em Lisboa como réo de traição por haver
feito entrega delia ao marechal Masséna na sua invasão;
um outro major António Duarte Pimenta, destacado para a
índia, depois de ter militado com Lecor e de haver sido
con'demnado a trez annos de prisão por mau comportamento
e insubordinação, mas protegido por "pessoas da familia
real"; o padre Góes, clérigo que vivia escandalosamente em
(1) Officio úe 28 de Fevereiro de 1821.
(2) Officiu iCit., de 2i8 de 'Fe'vereiro de 1821
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1093
theatros e roletas, e o padre Macambôa, outro ecclesiastico,
que advogava no foro.
Ajunta o encarregado de negócios de França que estes
foram os personagens que se destacaram no pronunciamento,
mas que pessoas de rang plus élevé teriam ajudado a em-
preza. Arcos foi accusado pelos que lhe conheciam as ambi-
ções e attentaram no seguimento dos successos, e o Principe
Real não apparece isento de cumplicidade aos que reparam
na celeridade com que compareceu no lugar de reunião
das tropas amotinadas desde a madrugada no largo do Ro-
cio; na facilidade cem que se prestou a assumir a direcção
do levante, rece^bendo os protestos, as reclamações e as im-
posições como si de tudo estivesse inteirado; na presteza com
que do terraço do theatro de São João, por entre acclama-
ções frenéticas, jurou em nome do Pai deferir quanto d'elle
exigiam, exhibindo uma passividade que lhe não estava no
temperamento e apresentando elle próprio á multidão re-
volta, para approvação, uma lista de ministros e outros func-
cionarios executivos — intendente de policia, general com-
mandante das armas, thesoureiro-mcr, administrador da fa-
zenda real, etc. — preparada de antemão.
Seguido do novo ministério, que se tratou logo de reu-
nir no salão do theatro, onde deliberavam os membros do
Senado da Camará e os mais influentes do movimento, o
Principe, com a mão sobre os Evangelhos, adheriu á futura
Constituição. Desconfiado porem o povo de que elle pudesse,
com todas suas annuencias, não estar interpretando veridi-
camente as disposições reaes, ohrigara-o a ir a São Christo-
vão buscar a approvação do soberano aos actos que punham
em pratica os votos dos manifestantes, e segunda vez o obri-
gou a ir buscar o Rei em pessoa.
1094 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Con'descendendo a contra gosto, Dom João compare-
ceu e renovou todas as declarações, repetiu todas as juras,
confirmou todas as promessas, referendou todos os compro-
missos e sanccionou todos os actos do seu herdeiro, acceitando
anticipadamente qualquer Constituição que viesse de Lisboa
e que alli se acabava de acclamar na ignorância do que pu-
desse ser, na certeza em todo o caso para os militares euro-
peus de que seria a tutela portugueza reimposta ao Brazil.
Foi então que se deu o conhecido episodio da marcha trium-
phai: n'um enthusiasmo delirante o povo desatrelou os ca-
vallos e puxou a pulso, do Rocio ao Largo do Paço, o coche
dentro do qual Dom João, succumbindo por fim a todas as
angustias moraes dos quatro mezes passados, não encontrou
mais tensão nervosa para sustental-o e cedeu ao pavor, des-
fazendo-se em pranto e quasi desmaiando.
No velho Paço, onde tantas horas felizes tinham desli-
zado para elle, deu meio desacordado o Rei beija-mão
geral e, por entre alegres luminárias e repiques de sinos,
voltou de noite ao theatro para assistir á representação de
gala com a Cenerentola de Rossini. Maler, que no dia imme-
diato correu a palácio, encontrou o monarcha de vestes de
cerimonia mas com os cabellos ainda despenteados e por
empoar, e o aspecto mudado. "E' sem duvida a primeira vez,
mandava o agente francez dizer para Pariz (i), que me
approximei d'este Príncipe sem lhe descobrir na physiono-
mia uma expressão de benevolência : apenas encontrei, e mui
manifestos, os estragos causados por quanto acabava de oc-
correr."
Entretanto pelo seu novo ministro dos negócios estran-
geiros mandou o Rei declarar aos seus enviados na Europa,
(1) Officio cit. de 28 de Fevereiro de 1821.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1095
para que informassem os governos junto aos quaes se acha-
vam acreditados, que bem ao contrario do que em Laybach
se affirmou, elle jurara livre e voluntariamente, não coacto e
medrosamente, a divinal Constituição :
A verdade não se offusca,
O Rey não se engana, não;
Proclamemos, Portuguezes,
Divinal Constituição (i).
Sempre divergente do marido. Dona Carlota ficara ra-
diante. Mandou chamar o filho a quem beijou com effusão,
chamando-Ihe os nomes ternos de que era tão amiga, cobrin-
do-o de elogios pelo seu proceder na data celebre de 26 de
Fevereiro e dizendo orgulhar-se d'elle, emquanto Dom Pe-
dro se deitava aos seus pés assombrado e commovido. Tam-
bém as jovens Infantas agradeceram muito ao irmão suas
attenções no referido dia, socegando-as por meio de frequen-
tes recaídos e mandando prevenil-as, cada vez que troava o
canhão, de que era em signal de regosijo, para que se não as-
sustassem (2).
" E' inquestionável, rematava Maler, que o Principe
Real evidenciou n'aquella occasião uma firmeza e presença
de espirito que surprehenderam e encantaram todos os es-
pectadores; a meio de uma scena tão tumultuosa nunca per-
deu de vista todas as contemplações e deferências que recla-
mava a familia real." Não se pode com effeito negar que o
papel de Dom Pedro foi em tão memorável dia saliente e deci-
(1) H.vmno constitucional feito aos 'òl de Margo de 1821, e
offorocido (\ Nação l'oi-tugueza pelo Principe Real, seu author. Rio
de Janeiro, 1821.
(2) Officio de Maior de 2 de Março do 1821.
1096 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
sivo, e com tal acto se prestigiou perante a população aquelle
que poucos dias depois o Conciliador do Reino Unido (i)
chamava cem emphase "o amável, inclyto e heróico Joven,
gloria dos olhos de todos os fieis vassallos" que apparecera
como "o intercessor e mediador entre o Throno e o Povo
para S. M. outorgar a graça de uma liberal Constituição,
conforme ao Espirito do Século, Empenho de Portugal, Voto
do Brazil, e de todos os habitantes dos mais Estados e Domí-
nios da Coroa."
Palmella era quiçá o único, com sua perceptibilidade
e gravidade habituaes, a formar do Principe um conceito
exacto e não olhar para o futuro com essas confianças ly-
ricas. Em carta ao conde do Funchal (2), elle assim definia
imparcialmicnte a attitude do futuro Imperador nos suc-
cessos de 26: ''O P. Real mostrou naquella occasião o maior
desembaraço e presença d'espirito, e mesmo muita fidelidade,
porque a tropa quiz sem duvida acclamal-o, e Elle sempre
atalhou esse ultimo desaforo, gritando — Viva El-Rey N. S.
viva meu Pay: Ha comtudo muita gente que suppoem que
Elle estava instruido de antemão do que se meditava e he
.certo que se deixa rodear e aconselhar por má gente. El-
Rey temno chamado sempre desde esse dia para assistir ao
Despacho."
Compunham o ultimo ministério de Dom João VI no
Brazil, imposto, não mais livremente escolhido, o philosopho
e publicista Silvestre Pinheiro Ferreira, o almirante Ignacio
da Costa Quintella, Joaquim José Monteiro Torres e o conde
da Louzã, nos negócios estrangeiros, reino, marinha e pre-
sidência do erário respectivamente.
(1) N. I. 3" do Março de 1821, na Impressão Regia.
(2i Carta de 3 de Março de 1821, Lata 7 da Coll. Linhares,
na Bibl. Nac.
DOM JOÃO .VI NO BRAZIL 1097
Maler não pcupa elogios a este pessoal administrativo,
apezar de tão revolucionariamente installado no poder. Jul-
gava o gabinete composto de homens esclarecidos, Silvestre
sobretudo, e em muitas cousas parecidos. "Seria difficil, reza
seu officio de 28 de Fevereiro, encontrar trez pessoas (i)
mais simples nos seus modos; tenho tratado familiarmente
com elles nos seus modestos interiores e duvido que sua mo-
bília valha mais de 100 luizes."
A ascensão ao poder de Silvestre Pinheiro Ferreira in-
dica por si só a profunda transformação que se operara no
meio politico. Era como si na França moderada de Ferry
e de Ribot — não na França radical de Clemenceau e de
Briand, tocando no socialismo — tivesse de repente sido cha-
mado o Sr. Jaurés ou o Sr. Millerand para a presidência
do conselho. Silvestre era não só um espirito de uma inde-
pendência fundamental e irreconciliável, como um reforma-
dor implacável, posto que manso, ao ponto de não raro pare-
cer paradoxal e ser por vezes chimerico.
Logo na primeira mocidade, quando se destinava á car-
reira ecclésiastica, desaveio-se com os directores da Congrega-
ção do Oratório por motivo de remoques feitos á obra do
padre Theodoro d 'Almeida — Recreação philosophica — e dei-
xou a instituição sacra, obtendo depois em concurso o lugar
de lente de philosophia em Coimbra. Da sua cadeira propa-
gou o sensualismo de Locke e Condillac, sendo por tal razão
alvo de nova perseguição, tratado de jacobino e obrigado
a expatriar-se. Acolheu-o por essa occasião em Pariz António
de Araújo, que teve influencia bastante para lhe alcançar
. (1) Os ministros oram quatro, mas Malo^r falilariíi apenas dos
quo oonhwia. Não podia quoror aksbralur do Loiízã, quo até deixou
xima ro^putagão proverbial de honradez.
1098 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
o lugar de secretario da sua legação na Haya, da qual, en-
trando para a secretaria de Estrangeiros de Lisboa, passou
a encarregado de negócios em Berlim, ahi se relacionando
muito no circulo universitário e alargando seus conhecimen-
tos de sciencias naturaes e sua visão philosophica (i).
Suas idéas foram sempre ganhando em liberalismo, e
pela vida adiante o pensador propugnou os ideaes mais adian-
tados, do suffragio universal á abolição da pena de morte, da
eleição da magistratura á obrigatoriedade do serviço militar,
do socialismo do Estado, senhor único do solo, á annullação
consequente do capitalismo. Si não tivesse sido modesto,
probo, integro, immaculado não só de mãos como de senti-
mentos, poderiamos comparal-o a Benjamin Constant, pela
circumstancia de haver apa'drinhado o novo systema repre-
sentativo no Brazil. Foi, como aquelle illustre doutrinário
suisso, fraco politico e excellente theorista, patriota zeloso, tão
austero porém quanto dogmático, bondoso e affavel em vez
de egoista e impertinente. Ao que conste, nenhuma Madame
de Stael soffreu cruelmente por elle.
Dom João VI apreciava-o e estimava-o sem enthu-
siasmo, nunca lhe tendo concedido a merecida distincção cer-
tamente por causa das suas opiniões conhecidamente consti-
tucionaes. Demittido do cargo que exercia em Berlim, dizem
que por exigência de Napoleão, voltara Silvestre para Lisboa
e mudara-se depois, não muito depois da corte, para o Bra-
zil, onde tão somente occupou por annos os lugares de depu-
tado da Junta do Commercio e director da Impressão Regia.
Devia substituir nos Estados Unidos, como representante
diplomático, Corrêa da Serra quando o seu momento histo-
(1 t Teixeira de Mello, Aimiitamcnfos hio(jniphicos, nos Annaos
da Bibl. Nac, Tomo II.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1099
rico pareceu soar com o movimento de 1821. Chamado ou
melhor empossado pelo motim militar e popular, o seu mi-
nistério durou porém pouquíssimo e não influio marcada-
mente na marcha dos acontecimentos. Acompanhando o Rei
no seu regresso foi residir em Pariz, ahi levando a vida de
um estudioso e tornando-se celebre comq publicista juridico,
até vir mais tarde entregar a Portugal os fructos das suas
vigilias e meditações.
Silvestre Pinheiro Ferreira, pelo que revelam suas
cartas ha pouco editadas, esteve quasi único, no desencontro
de opiniões que caracteriza esse instante histórico, em julgar
a revolução portugueza no seu valor preciso. Nem a consi-
derou insignificante, nem a encarou como o fim da monarchia:
para elle se não formulou sequer o dilemma de dever o sobe-
rano acudir ás carreiras a Portugal para salvar as instituições,
ou ter que renunciar ao velho Reino pelo exclusivo do seu
amor ao Brazil. Fiava dos immortaes principios a solução
equitativa do problema.
De resto evento tão importante quanto aquelle tinha
sido previsto por Silvestre, chegando seis annos antes a pre-
venir o Rei do que lhe guardava o futuro. Razão demais
para não perder a própria cabeça quando viu realizado seu
vaticinio, e animar Dom João VI que, perdido entre cem
pareceres divergentes, sensatos uns, incongruentes outros,
que zuniam em redor do throno, ficara de todo pessimista,
reputando i>erdidos os negócios públicos.
Depois do 26 de Fevereiro eram dous os partidos a
querer que Dom João VI deixasse o Brazil, pretendendo na-
turalmente o patriota que Dom Pedro porém ficasse, pois de
um mancebo assim inexperiente e ardego se poderia facil-
mente fazer o instrumento da separação e da independência.
1100
DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O Rei bem o percebia, e por isso redobravam suas hesita-
ções. De qualquer lado se lhe antolhavam revoluções. Adivi-
nhava que deixar o Brazil seria perdel-o, si bem que em
provável beneficio da sua própria dynastia. Não ir porém
para Portugal, era perder completamente o reino dos seus
antepassados, permittindo á revolução constitucional que de-
generasse em republicana, a não consentir n'uma reacção ab-
solutista, sanguinolenta como muitos a preconizavam. Ora,
si havia um ponto em que concordassem plenamente Dom
João e Silvestre, era com certeza na antipathia ás re-
pressões cruéis e na preferencia pelas soluções brandas.
A moderação não aproveitava comtudo com personagens
taes como os cabecilhas do motim de 26, que tiveram a petu-
lância de exigir serem apresentados ao Rei. EUes estavam
formando o que Maler muito apropriadamente denominava
um comité de salut public — comité, dizia elle, sem missão,
sem auctoridade e sem forças reaes, a que entretanto bastava
proferir uma palavra pára ser obedecido pelo impulso do
terror pânico que inspirava ( i ) .
Os exaltados que formavam a corte d'esses tyrannetes,
de convicção uns e a mor parte de calculo, imaginaram logo
um conselho extra-ministerial sem o assentimento do qual
ficassem Rei e governo prohibidos de tomar resolução al-
guma importante sobre os negócios públicos. Em Madrid,
que se tratava de imitar ponto por ponto, funccionara uma
junta análoga antes da reunião das Cortes, e no Rio já auda-
ciosamente circulava a lista de dez membros de que se devia
compor o tal conselho provisório. Entre elles só se contava
(1) Officio de O de Março de 1821.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1101
um Brazileiro, e este mesmo octogenário, porque o plano no
fundo era anti-nacional como era na forma demagógico.
O que se queria era cercear mais e mais a auctoridade
suprema, escravizar o Rei, cuja figura desapparecia gradual-
mente diante da insubordinação e da anarchia, porque Dom
João fraquejara por completo na ignorância do seu poder
e do real valor da sua funcção soberana. Si, bem aconse-
lhado, escrevia Maler, esse Principe fizesse encarcerar os
dous padres Góes e Macamboa, as demonstrações de rego-
zijo e as luminárias seriam mais geraes do que o foram por
occasião da Constituição.
Os energúmenos do constitucionalismo tinham convul-
sionado uma cidade que até ahi só com festas se alvoroçara,
e açuládo as ruins paixões politicas. No theatro os especta-
dores da plebe obrigavam a condessa de Belmonte a cantar
as quadras e as outras senhoras presentes a repetirem o es-
tribilho do hymno nacional. A Princeza Real dera á luz a
6 de Março e, nas cerimonias religiosas pelo nascimento do
Principe da Beira, os sermões foram todos politicos (l). A
12 em São Francisco de Paula, na funcção mandada cele-
brar pelo Senado da Camará, diz Maler ter ouvido, pro-
nunciada do púlpito, uma diatribe contra os vicios da admi-
nistração "que infelizmente não offendia a verdade, mas cer-
tamente chocava todas as conveniências do sagrado minis-
tério e da dignidade real, alli presente e recebendo ao pé dos
altares ensinamentos que estavam longe de ser dictados pelo
espirito de caridade christã" (2).
(1) Corresp. de Maler no Arch. do Min. dos Neg. Est. flft
França.
(2) Officio de 14 de Março de 1821, ibidem.
D.J. - 69
1102 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Referia para Pariz o encarregado de negócios que, em
duas entrevistas que tivera com Dom João VI, lhe aconse-
lhara a medida inadiável da detenção dos dous clérigos es-
candalosos que provocavam o alvoroço, fazendo-lhe ver
quanto eram ambos desprezados e de facto débeis pela falta
de ligações, odiando-os os Brazileiros sem excepção e come-
çando as tropas portuguezas a envergonhar-se de haver par-
tilhado com elles das glorias do 26 de Fevereiro. Sem nada
poder dizer em contrario a Maler, tampouco accedeu o Rei
á recommendação, parecendo ainda em demasia penalizado
e desfallecido com aquelles acontecimentos para poder ado-
ptar qualquer resolução enérgica, por menor que fosse; mas
já começando a capacitar-se de que semelhantes indivi-
duos não possuiam influencia alguma duradoura sobre as
tropas ( I ) .
Estas estavam recolhendo, com os louros, as vantagens
das suas façanhas politicas, fraternalmente praticadas. Pelo
decreto de 7 de Março os soldos dos officiaes do exercito do
Brazil foram equiparados aos do exercito de Portugal e esta
disposição se extendeu, com um augmento simultâneo nas ta-
beliãs, aos vencimentos dos officiaes subalternos e dos sol-
dados dos dous Reinos. As forças européas, ao mesmo tempo
que insistiam na communidade de nacionalidade e de interes-
ses, timbravam todavia em não ser confundidas com as na-
cionaes e em reivindicar a nobreza dos seus actos.
N'uma representação ao Rei, declarava a guarnição
portugueza da capital fluminense que o fito do movimento
politico por ella executado fora salvar o Brazil da anarchia,
attrahindo-o á causa portugueza e destruindo projectos que
pudessem existir, tendentes a segregal-o d 'esse centro de uni-
(1) Corresp. de Maler, ibidem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1103
dade, único capaz de manter os interesses do Reino Unido
(i). Arrastada pelo Principe Real, idolo então dos consti-
tucionaes portuguezes do Brazil e que, si o Pai lhe houvesse
dado consentimento, teria prendido os quatro cabecilhas do
dia 26, a guarnição renegava esta passada intimidade e pro-
nunciava-se contra quaesquer juntas provisórias no Rio de
Janeiro, protestando querer apenas ver realizarem-se os pla-
nos de reforma gerados pelas meditações e sabedoria das
Cortes, e não projectos concebidos por pessoas obscuras, ás
quaes tão somente competia obedecerem ao que fosse vontade
positiva de Sua Magestade.
Com esta manifestação militar se acobardaram muito os
cabecilhas que estavam terrorizando o Rio, um d'elles, o
major Almeida, pedindo até logo o seu passaporte e todos re-
ceiando a detenção, quando até ahi elles eram os que promo-
viam as prisões. Respeitáveis membros da Junta anterior ao
novo ministério foram recolhidos á cadeia, depois de insul-
tados, por exigências dos terroristas ou para escaparem a
tratamento peor ás mãos do povo, a cujo furor assim os sub-
trahiram as auctoridades. A versão ultima é crivei si atten-
dermos a que, depois do aviso recebido pelos cabecilhas de se
não intrometterem mais nos negócios públicos, os presos fo-
ram soltos.
A agitação era o elemento natural d'esses personagens,
e sem ella não poderiam mesmo exercer seus talentos malfa-
zejos. O conde de Gestas escrevia a I2 de Março que os
ajuntamentos populares augmentavam de parelhas com a
indecisão do novo governo, que nada fazia além de procla-
mações as quaes, pretendendo ser neutraes, não satisfaziam
partido algum, emquanto que o Rei se arreceiava sem distinc-
(1) Informações do ic secretario conde do Gestas, em commii-
nicaçao de 12 de Março de 1821, ibidem.
1104 DOM JOÃO VrNO BRAZIL
ção de todas as facções, cedendo porém alternativamente aos
conselhos dos que acreditava serem seus chefes, á espera lá
no âmago que n'aquella confusão lhe fosse ainda poupado —
nem elle sabia mesmo como — o doloroso regresso.
Os m'ajores e padres que, instigadores efficazes e já ex-
perientes, tinham andado acirrando a soldadesca e a plebe
para conservarem elles o domínio da situação, definiam na
parte que lhes tocava o estado de lucta, apenas adormecida
uns instantes, entre as duas correntes, reinol e nacionalista,
que d'ora avante tinham de medir-se até se extinguir uma
sob a outra. Os clubs portuguezes queriam a todo transe
ver os empregados brazileiros fora dos seus lugares, das Se-
cretarias, da Alfandega, do Desembargo do Paço, e foi o
receio da chamada reacção brazilica que motivou as prisões
arbitrarias de Luiz José de Carvalho e Mello (futuro vis-
conde da Cachoeira), Severiano Maciel (futuro marquez de
Queluz), Targini (visconde de São Lourenço) e almirante
Pinto Guedes (futuro barão do Rio da Prata), suggeridas
ou antes arrancadas ao Rei sob o pretexto de que suas pes-
soas iam ser atacadas € maltratadas.
Silvestre Pinheiro Ferreira gabou-se de ter feito annul-
lar aquella apprehensão de reacçeão, dando-lhe cor de pro-
tecção contra os manejos dos que não podiam levar á pa-
ciência que o Brazil sahisse de vez da dependência colonial.
Assim se extendendo do dominio theoretico ao pratico, á
acção do primeiro ministro de estrangeiros de nomeação po-
pular no Brazil, exercia-se de facto liberalmente sobre os
procedimentos irregulares ou mesmo violentos que os tempos
originavam; accrescendo, no caso de Targini — o único dos
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1105
presos que era impopular — que elle devia contas minuciosas
da sua gestão de thesoureiro-mór, da honestidade da qual
suspeitava o próprio Silvestre, qualificando no emtanto de
anarchistas os elementos que iam permittindo semelhantes
actos discrccionarios como essas prisões.
Nem os resultados seriam afinal benéficos porque, para
reformar os abusos e remodelar a sociedade politica do tempo,
não serviam processos vingativos: o que se fazia preciso era
uma mão de ferro, com um alto e sincero ideal, podendo em
tal hypothese evidenciar um absoluto desprendimento de con-
veniências e de contemplações. O próprio José Bonifácio não
evoca essa figura.
A medida, por exemplo, de tornar effectiva, por meios
forçosos ou voluntários, a entrada das dividas dos particula-
res ao Banco do Brazil — cujo credito para com o erário
tampouco se liquidou apezar da espectaculosa suggestão do
penhor das jóias da coroa — , indo bolir com muitas das pes-
soas mais poderosas da terra, exigia na opinião de Silvestre
um grau de energia para o qual se não sentiria bastante dis-
posto o ministério a que, mercê da partida de Dom João VI,
ficaria ao lado do Principe confiada a execução d'aquella
tarefa de restauração financeira ( i ) .
Silvestre Pinheiro Ferreira fora, d entre os novos minis-
tros, o encarregado de redigir a Carta Regia relativa á re-
(1) "E na verdade he melhor não adoptar esta medida s? se
hn de lexc cnitar ccmo cstA acontecendo com o visconde de S. Tx)ui'enço.
que pcidind'0-s.p-lhe contas da sua a^drainistração como Tliezcureiro
mór, respondeu com as quitações dos lialanços que fez annualmente
o Presidente do Erário: e V. S». ver.l (pois ainxla cá fica depois de
nós partirmos) que o Governo se ha de dar por satisfeito : e o visconde
híi de sahir muito airoso: e talvez muito elogiado." (Carta XV, nos
Armacs da Bibl. Nac.)
1106 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
gencia e bem assim as instrucções que deviam ser deixadas
com o lugar-tenente real para guiar sua administração, na
qual serviria de primeiro ministro o conde dos Arcos, alfim
chegado ao topo das suas aspirações. Achava não obstante
Silvestre que "todas e quaesquer instrucções serião considera-
das como desnecessárias e impertinentes", porque tanto Dom
Pedro como Arcos andavam embalados por idéas erradas
dos seus respectivos talentos, prestigio e popularidade.
"Estam na lisongeira e portanto indestructivel illusão
de que apenas o Brazil se entregue ao seo Governo obede-
cerá com docilidade aos seos acenos: que debaixo do único
nome de Brazileiros e de hum só Império os Povos desde o
Rio da Prata até ao Amazonas formarão gostosos e tran-
quillos huma só familia: e que Portugal caduco de annos,
e acabrunhado dos trabalhos da Revolução que vae a acabar
lhe as forças ou se pefde, e nelle pouco perde o grande Impé-
rio do Brazil, ou para se salvar invoca a protecção deste
seo poderozo Co-estado e pela segunda vez salva o Brazil
a Portugal da sua total anniquilação" (i).
E' facto que apenas o movimento da independência, de-
pois de traduzir-se pela acclamação do Imperador, lograria
reunir por suggestão ou por força o que tão fragmentado
andava, ,que fora opinião muito vigorosamente exposta por
Silvestre, compartilhada até certo ponto por Palmella mas
combatida por Thomaz António e outros conselheiros, que
na volta para Portugal se detivesse o Rei na Bahia, como o
fizera na vinda para o Brazil : d'€sta vez, porém, na inten-
(X) Carta XI, il)Mem.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1107
ção de concertar a junta local com o governo central, des-
manchar a desunião que se alastrava e deixar o Reino ul-
tramarino de algum modo ligado no seu conjuncto poli-
tico (i).
Tornarà-se por fim inadiável, e de um modo absoluto,
adoptar uma resolução e uma norma sobre o regresso. O mo-
mento apparecia quasi ou mesmo tão angustioso como o de
Novembro de 1807. Já pela demora a volta ia tomando ares
de satisfacção ás cortes, não mais de graça do soberano.
Os que favoreciam ou reputavam indispensável a ida
do Rei, sem quererem saber si esta lhe era ou não agradável,
comtanto que servisse seus planos, argumentavam por forma
que declaravam decisiva com a sediça ameaça da reunião
(1) o motivo principal de abandonar-se esta idéa foi, ao que
parece, a declaração do almirante conde de Vianna ãe que, caso ar-
ribasse á Bahia e se demorasse, não lograria a esquadra proseguir a
viagem por falta de viveres, que com difficuldade se tinham reunido
para tanta gente quanta a que embarcava, e soffrendo o governo os
peores apuro.» de .dinheiro.
A opinião expressa por Palmella era que o Rei mesmo se não
dirigisse & Bahia, ignorando-se no Rio como seria elle recebido pelas
novas auctoridad< !- da côí constitucional, cujas di-íposicíões se não
podiam exactamente prever: mas que "mandasse para lá o bergantim
com as suas Regias ordens á Junta, acompanhadas de um Manifesto
conforme ao espirito da nova ordem de cousas que S. M. adoptou e
jurou manter, indo o rt-sto da esqua.õi-:i esperar em Pernambuco pela
reunião do mesmo bergantim No caso porém que haja alguma
esperança fundada de que a presença de S. M. na Bahia baste
para sanar a scisão que actualmente existe entre aquella l'rovincia e
o Governo central ; indo S. M. firmemente determinado a não se de-
morar na arribada mais de oito dias, e a refazer os navios da sua
esquadra só de aguada e de algumas pr-ovisõ-^s indispensáveis, que
seria summamente de desejar podessem pagar-se por meio de lettras,
ou dtí algum modo similhante, sem ser A .custa dos habitantes da Ba-
hia : r.Ro hcsitani n'rst.'^ caso cm declarar que .considero por muito
mais conforme a dignidade d^El-Rei e aos interesses da Nação e da
Coroa o fazer esta ultima diligencia para deixar o Brasil unido e
tranquillizado, antes do que proseguir a viagem no estado de duvida em
que tudo fica n'este continente." ( Despachos e Correspondência,
Tomo I).
1108 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
de Portugal á Hespanha, não mais forçada é verdade, effeito
de uma conquista quasi impossível, mas levada a cabo pela
solidariekiade das idéas liberaes e pela harmonia dos interes-
ses de defeza commum.
Consolavam-se outros, affeiçoados a um tempo ao novo
regimen e á pessoa do monarcha, com a idéa de quanto
para a solução constitucional se podia Dom João VI consi-
derar preparado pela sua cordura de animo, espirito de re-
flexão e inclinação para os desenlaces legaes e moderados.
Descortinavam alguns, mais sagazes ou menos confiados,
que o Reino do Brazil se iria dissolvendo sem remissão com a
adhesão particular e separada de cada uma das provincias
brazileiras ás Cortes de Lisboa, e que era mister sustar a
desaggregação por meio de algum processo mais enérgico do
que a mera presença de El-Rei Dom João.
O partido portuguez apressava aquellas adhesões desta-
cadas porque esphacelavam o paiz, e faziam naufragar, antes
que sahisse ao mar largo, o projecto de Constituição brazi-
leira, differente da portugueza, que se asseverava com ver-
dade haver ideado Pálmella. O constitucionalismo do ex-mi-
nistro, não menos sincero, era tão opportunista, concreto e
inglez no sentido de pratico, quanto o de Silvestre era dou-
trinário, abstracto e francez no sentido de theorico, posto
apparecessem um e outro igualmente de alcance porque par-
tiam da intelligencia mais que do sentimento. "Mas o facto
he, escrevia Silvestre (i) sobre a desunião do laço politico
brazileiro que atava frouxamente as antigas capitanias, que
desligadas deste centro e de hum systema existente, para
se ligar a huma autoridade, e governar-se por huma legisla-
ção que ainda não existe e talvez não existirá jamais, he
(1) Cartas cit., nos Annaes da Bibl. Nac.
i
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1109
dissolver todo o nexo social; he substituir a hum Governo,
defeituoso sim, mas emfim Governo que tinha e podia se-
guir ainda um andamento protector dos direitos civis de
cada habitante, a mais completa anarchia."
Justamente quando se deram as imposições â^ dia 26 de
Fevereiro, de uma constituição desconhecida e de um minis-
tério que resultou incontestavelmente mais sympathico á
opinião publica — quer a brazileira, por lhe repugnarem
aristocratas como Palmella e validos como Thomaz António,
quer a portugueza, por se lhe depararem no primeiro capa-
cidade e pertinácia para encontrarem solução á questão posta
— estava, como vimos, prestes a publicar-se o decreto de
adopção para o Reino do Brazil da Constituição a fazer-se
em Lisboa, sempre "salvas as modificações que as circum-
stancias lociaes tornassem necessárias."
Tropa e povo não queriam porém ouvir fallar em modi-
ficações, por mais razoáveis que pudessem ser, e só enten-
diam de formular exigências novas, ainda que disparatadas.
Na phrase pouco incisiva litterariamente, mas moralmente
ponderosa de Silvestre, o espirito de vertigem que dera im-
pulso para o rompimento, continuava a laborar, "porque nem
he possivel se contente com qualquer ordem de coisas que se
esítabeleça: nem na actual se acham investidas de poder as
pessoas que detraz da cortina dirigiram os passos dos que
no dia 26 do mez passado figurariam para com o pu-
blico" (i).
Silvestre, penetrando d est'arte no jogo do partido por-
tuguez, chegou por isso a considerar plenamente dissolvida
a monarchia brazileira. Proclamando cada qual de per si
sua submissão ao governo revolucionário de Portugal, as
(1) Carta VII, de Março, mdem.
1110 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
províncias ultramarinas iam virtualmente sacudindo o jugo
do Rio, mas para se encaminharem para a recolonização, e
de antemão justificavam o esforço considerável dos Andradas
e outros patriotas para unificarem de novo o paiz, fornecen-
do-lhe um centro de acção e uma orientação conjuncta e
harmónica.
Esta questão de nacionalidade constituia o eixo em
volta do qual continuaram a gjTar, em Março e Abril, as
discussões sobre o regresso da corte para Portugal. O novo
ministério opinava pela partida de Dom João VI por lhe
parecer ser de todo ponto impossivel ao Rei acompanhar de
tão longe a obra constitucional de reforma, e haver o perigo
concomitante de dar-se um scisma na monarchia: mais fácil,
entenldiam os do governo, de evitar-se, estando o soberano
na antiga sede da sua auctoridade e permanecendo o Principe
como penhor da dynastia.
Dom João resignava-se sem se consolar. A sua partida
ficou assente. Deixou-a El-Rei perceber a Maler no dia do
bom successo da Princeza Real, quando este foi a cumpri-
mental-o, e annunciou-a Silvestre Pinheiro Ferreira em nota
circular de 13 de Março ao corpo diplomático estrangeiro e
ás legações na Europa. Segundo este documento, o Principe
só se demoraria no Brazil até se estabelecer a Constituição
geral da monarchia, ficando no porto a fragata União para
opportunamente transportal-o com a Princeza.
Silvestre cedia n'este assumpto porque, entre os seus
coUegas de ministério, estava isolado no p'ensar que a par-
tida do Rei implicava a separação do Brazil, attendendo a
que só ficavam depois d'ella, para manterem e legitimarem
seu poder já quasi nominal, tropas aborrecidas tom razão
pelo mau comportamento de muitos dos seus membros, e
DOM JOÃO VI NO BRAZIL IIU
que difficilmente poderiam conter por longo tempo gentes
que já tinham tomado gosto pela desordem e pelas innova-
ções. Identicamente raciocinava Maler, partindo de qutras
premissas e escrevendo por seu lado que "os Brazileiros
cedo ou tardie acordariam da sua apathia e nullidade e se
não prestariam mais a ser o joguete e o ludibrio de um pu-
nhado de Portuguezes."
A extrema distancia entre o monarcha e a ássembléa
constituintie das Necessidades, julgava Silvestre que seria
até vantajosa á sabia elaboração da lei orgânica da realeza
constitucional, corrigindo e ajustando a sua mais que prová-
vel c^onfusão de princípios politicos. A legislação subsidiaria,
preparada e promulgada no Rio, teria também outro cunho
de gravidade e opportunismo ; sem esquecer que, depois da
tarefa politica de Lisboa, relativa particularmente a Portu-
gal, restava conficionar a Constituição brazileira que devia,
juntamente com a portugueza, formar a base do Reino
Unido, "podendo-se depois de todos aquelles preliminares
trabalhos e mais longe da influencia dos Partidos nacionaes
e das Potencias estrangeiras {no caso de pretenderem inter-
vir em prol dos principios da Santa AlUança) mais facil-
mente organizar hum systema constitucional conforme as
precisões de todas as differentes, e tão differentes partes
desta vasta Monarquia" (i).
Na realidade — Silvestre o não queria certamente en-
xergar— o Rei passara a ser um factor quasi nullo d'essas
emergências. A perturbação da monarchia aproveitava em
ultima analyse, conforme os pontos de vista, ás Cortes ou y
Dom Pedro. Po'dia Dom João VI ser denominado El-Rei
Nosso Libertador nos artigos pesados e grandiloquos com
(1) Cartas clt., ihidem.
1112 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
que enalteciam a assembléa de Lisboa — nossa Estrella Polar
— as folhas que entraram a pullular com a liberdade de im-
prensa (i), todas tão declamatórias como vasias (2).
A verdadeira apotheose passava porem por sobre a ca-
beça do bondoso monarcha, desdenhando aureolal-a, para il-
luminar as figuras dos liberalões que, de casaca abotoada
justa e collarinhos altos, apertados os pescoços em largas gra-
vatas de seda preta, tonitroavam nas Necessidades, ou então
a do príncipe esbelto e moreno que, no seu uniforme de
dragão, galopava doidamente pelas ruas e estradas do Rio,
ancioso por desempenhar um qualquer papel conspicuo.
Quando se tratou todavia muito a serio da retirada de
Dom João VI para a Europa, pode dizer-se que a grande
rnaioria senão a totalidade da população fluminense, esque-
cendo algumas das consequências prováveis e para ella aus-
piciosas d'esse acto preliminar da separação politica, se uniu
consternada n'um mesmo sentimento. Por mais que aquella
partida servisse os interesses de uns ou os designios de outros,
(1) A censura passou tia policia para o inspector geral dos
estabelecimentos litterarios.
(2) Eis uma amostra tio estylo jornalistico da epoclia, carre-
gado de mia.iusculas e de .princípios Jiberaes e não raro leve de senso
commum : "Iliim Soberano, que até então não conhecia limites í1 sua
Authoridade Real, posto que n'ella nunca transpozesse as metas do
justo, entregar nas mãos do seu Povo esse poder de que gozaram seos
ínclitos Maiores, para 'o receber depois restricto, mas consolidado por
hum novo Tacto social, que assegure para sempre a felicidade da Na-
ção, he este hum phenomeno nunca visto depois que ha Sociedades,
depois que ha Reis! Monarchas do Mundo, que fazeis a guerra aos
povos estranhos, e aos vossos mesmos por hum palmo de terra, por
hum accrescimo de Regalia ; voltai os olhos para a America, observai
o brilhante Meteoro que allumia esta vastíssima Região : vede, e ad-
mirai a Magnanimidade, a Munificência do Soberano do Reino Unido
de rortugal, Brazil, e Algarves, que aos povos estranhos dá legoas, e
legoas de terra, e aos seos entrega com Generosa Franqueza aquella
parte da ingerência no Governo Politico da Monarchia, que a Nação
legalmente representada julgar d.over exercer por seos legítimos Pro-
curadores." (O Bem da Ordem) .
Á
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1113
pois Portuguezes e Brazileiros contavam tirar proveito da
mesma, o pensamento que prevaleceu no primeiro momento
entre os nacionaes, foi o de pezar pela perda de um Rei
que todos se tinham acostumado a querer mais ainda do que
a respeitar. Choveram requerimentos, do commercio, do clero,
de proprietários, de empregados públicos, implorando a per-
manência de Dom João VI que os escutava commovido, tre-
mulo o grosso lábio e as lagrimas a correrem-Lhe pelas gordas
bochechas, sem ousar comtudo pronunciar um fico.
Havia corn certeza preoccupações egoistas n'essas suppli-
cas, mas a parte natural e impulsiva, de puro sentimento,
era incontestavelmente superior. O egoismo aliás se explicava.
Compre'henide-se que na attitude de fidelidade ao velho Rei
entrasse, por parte do elemento brazileiro, mais numeroso
mas menos forte que o europeu, um certo instincto de defeza,
uma impressão inconsciente, ou mesmo consciente em alguns,
da mutua confiança e apoio que se podiam prestar, porquanto
o anno de 1821, depois de 26 de Fevereiro, foi o anno typico
da oppressão portugueza 'n'um supremo esforço de conser-
vação.
Todo o rancor accumulado na alma do velho Reino
durante o tempo da residência brazileira da corte e causado
pela affeição regia á colónia deixada quasi Império, espirrou
então pela válvula offerecida na antiga metrópole aos des-
abafos oratórios. No novo Reino, a tropa de linha, cuja offi-
cialidade- e cuja fileira eram em grande parte portuguezas,
estava senhora das posições e, conforme acontece sempre nas
revoluções, os peores elementos tinham vindo á tona e nada
obstruia o livre curso dos resentimentos.
As Cortes tinham-se reunido em Lisboa com o vlsivel,
declarado intento de recolonizar o Brazil, e tanto bastava
1114 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
para que se tornassem populares entre o elemento reinol
além-mar. Todos os movimentos reflexos de constituciona-
lismo que occorreram, não foram, olhados por esse prisma,
mais do que outros tantos indicios de má vontade á aspira-
ção nacionalista do paiz que se organizara independente de
reacção contra a própria autonomia concedida ao Reino do
Brazil.
Durante aquelle anno o Principe herdeiro conservou-se
do lado portuguez. Depois foi que o esforço de persuasão
dos elementos nativistas, a natural intelligencia da situação
e as violências declamatórias das Cortes o determinaram a
inclinar-se para o outro lado e lançar na balança, no prato
da separação, todo o peso do seu prestigio pessoal e todo o
valor dos seus direitos de successão soberana. 1822 seria o
anno brazileiro, como 1821 foi o anno portuguez.
CAPITULO XXX
A DESILLUSÂO DO REGRESSO
Dom João VI, quando mesmo não possuísse intelligen-
cia politica, tinha sobrada experiência de governo para dei-
xar de reconhecer que, na historia da monarchia portugueza,
o momento não podia ser mais de resistência, antes era de
concessões. Quando muito lhe seria licito, ao representante
do direito divino, tergiversar sobre a extensão das liberda-
des: negal-as, porém, ser-lhe-hia tão impossível quanto o havia
sido aos monarchas da França e da Hespanha.
A elle próprio tinha sido dado resistir ao tratar-se ligei-
ramente em 1810, depois de repellida a ultima invasão fran-
ceza, de serem convocadas em Portugal Cortes na forma an-
tiga da monarchia— "sendo d'ellas apaixonado", na phrase
de Funchal (i), o marquez de Wellesley, secretario prin-
cipal dos Negócios Estrangeiros e irmão do marechal Wel-
lington. A ordem então mandada para Londres foi clara e
terminante, de oppor-se o embaixador a semelhante convoca-
ção, sempre que a elle se referisse o Foreign Office.
(1) Officio seciH^tissimo a Linhares, de 26 de Novembro de 1810
no Arch. do Min. das Rei. Ext. '
1116 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Agora, comtudo, debalde procuraria esquivar-se o mo-
narcha, por mais que tentasse ladear a questão e usar de es-
capulas. N'esta impressão o devia ter necessariamente radi-
cado a presença no Rio de Palmella que, durante sua estada
em Portugal, simultânea com os primórdios da revolução,
fora quem mais aconselhara os Governadores do Reino a
convocarem logo as Cortes como o melhor meio de irem ao
encontro das reivindicações liberaes ( i ) .
Demorado pela Regência legal e rogado de dar-lhe os
conselhos do seu largo traquejo 'dos negócios e despreoccupada
comprehensão das cousas politicas — por isto mesmo posto
á margem e mantido em desconfiança pela junta provisio-
nal do novo governo supremo, de que era alma Manoel
Fernandes Thomaz — , Palmella seguira afinal para o Rio
na resolução de suggerir abertamente ao Rei "que não ha
nem um só instante a perder para adoptar medidas firmes,
decisivas, análogas ao espirito do tempo quanto for compa-
tivel com a honra e segurança do Throno, e que este systema,
adoptado sem perda de tempo, deve ser seguido com cohe-
rencia e com franqueza" (2).
Palmella pensava sobretudo em pôr um termo próximo
á revolução de Portugal para evitar outra, que previa peor,
no Brazil, e entendia que áquella só se poria termo mediante
a execução de intelligentes medidas liberaes, porque taes
movimentos não eram tanto expressões de descontentamentos
(1) "Esperam os Governadoifs do Reino, rezava a proclamação
de l!? de Setembro dictada por Palmella, que uma medida, que tão de-
cididamente prova a determinação de se attender ás queixas, e ouvir
os votos da Nação, reunirá immediatamente a um centro legitimo e
/commum a Nação inteira ; e que todas as classes, de que a mesma se
compõe, reconhecerão a necessidade de uma tal união, para evitar os
males imminentes da anarchia, da guerra civil, e talvez da dissolução
da monarchia." (Desp. e Corresp., Tomo I).
(2) Desp. o Corresp., Tomo I.
DOM JOÃO VI NO BRA2:iL 1117
locaes como manifestações de um estado d'alma geral, ao
qual somente se acudiria com a outorga de uma Carta para
fugir a uma Constituição elaborada em Cortes.
Para impedir em todo o caso que a concessão passasse
além de certos limites, o que sem duvida aconteceria si os
revolucionários fossem deixados sem freio e sem receio, re-
presentara o ministro dos negócios estrangeiros e da guerra
ao seu soberano que se tornava mister ir para Lisboa o
Rei em pessoa "ou mandar o seu filho primogénito para
inspirar respeito, e servir de centro de união aos bons Por-
tuguezes." Este segundo alvitre, com que o diplomata se
congraçara, tinha aliás uma vantagem, a de permittir ao
monarcha resistir melhor ao impulso popular, o qual poderia,
querer emprestar á Constituição uma orientação em ex-
tremo democrática, ao mesmo temipo que prevenia quaesquer
consequências fataes no Brazil, indo quiçá até á dissolução
da monarc'hia.
N'uma eloquente memoria, destinada a Dom João VI
e na qual Palmella taxava de perigosos e infructiferos os
alvitres propostos em discordância dos seus e em sympathia
com a maioria dos votos do conselho régio, por Thomaz An-
tónio, tanto num espirito de antagonismo politico como de
emulação pessoal, dizia o auctor que, em sua opinião, a ida
do Principe Real devia precisamente servir para guiar o
movimento em acção, impedindo-o de converter-se em dema-
gógico.
Si era por um lado tão impossivel quanto obrigar o sol
a recuar, despedir as Cortes já reunidas e substituir uma
assembléa constituinte por outra consultiva, envolvia por
outro uma fraque/a da coroa confirmar expressamente o go-
verno intruso de Portugal, que aliás estava de posse da
D. J. — 70
1118 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
auctorida'd« e a não compartilharia, sacrificando sua popu-
laridade, com acolytos mandados da corte e destinados na
melhor hypothese a ser figurantes anodinos (i).
Esforçara-se pois Palmella quanto possível — e Silvestre,
menos pratico e mais doutrinário, o acompanharia com
igual pertinácia e talvez convicção superior — não por desven-
dar a vista ao monarcha, que abraçava perfeitamente a theo-
ria da situação, mas por instigar a sua iniciativa a entrar
n'um caminho a igual distancia dos desmandos dos revolucio-
nários, que queriam reduzir a realeza a uma ficção, e das
illusões dos retrógrados, que julgavam possivel continuar a
fazer pouco da revolução que rompera fremente na Penín-
sula, "como se elles escrevessem a dez mil léguas de distan-
cia do theatro desses acontecimentos, e trezentos annos atraz
da era em que vivemos" (2).
Entretanto propagava-se a insurreição ao Brazil, sem que
Dom João VI sahisse do seu meio termo passivo. "Thomaz
António mantinha El-Rey na sua inacção", escrevia Palmella
a Funchal (3) quando, infelizmente, já lhe não era dado
mais do que exclamar : "Acahou-se a nossa comedia ao menos
para mim! e dar-me-hei por muito feliz que não acabe a páo
como hum entremez, e sobretudo que não acabe como tra-
gedia."
Palmella antevira, como sempre, as consequências e
ainda escrevera ao Rei, ao participar-lhe a insurreição da
(1) Esta parte responidia a uma das idéas de Thomaz António,
de acceitar-se uma nova Regência composta de muitos dos personagens
do goveii-no revolucionário, aggregando-se-lbes algumas pessoas gratas
ao coração do monarcha.
(2) Representação de Palmella a Dom João VI, nos Desp. e
Corresp., Tomo I.
(3) Carta cit. de 3 de Março de 1821.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1119
Bahia, cujas primeiras noticias tinham chegado ao ministro
inglez Thornton por intermédio do cônsul alli residente:
"Creio que as medidas de força e de vigor não se podem já
adoptar, por não haver quem queira executal-as, e nem
seriam a propósito no estado de effervescencia em que vai
achar-se brevemente esta cidade com a noticia de hoje." ( i )
Mais uma vez rogava ao soberano que se puzesse á testa da
revolução, como único meio de atalhal-a e de dictar elle a
lei.
No tocante ao Brazil opinara o conde de Palmella no
ministério — além da reunião de representantes com os quaes
devia El-Rei consultar sobre a applicação ao Brazil e domi-
íiios ultramarinos das bases constitucionaes, generosamente
outorgadas aos seus súbditos ou estabelecidas de accordo com
elles — por algumas medidas executivas de caracter urgente
e inadiável. Importava remover alguns funccionarios que,
como Targini, (2) tivessem attrahido sobre si a geral ani-
madversão; regular a administração da fazenda; pagar a di-
visão do Rio da Prata em atrazo ; tratar do recrutamento e de
um regulamento para o exercito; examinar a administração
da justiça e o procedimento dos governadores, e acabar com
a fatal alçada de Pernambuco.
Assim singela e familiarmente narra (3) Palmella os
acontecimentos que se desencadearam e carregaram os seus
planos: "El-Rey em vez de adoptar a totalidade destas idéas...
resolveu-se por conselho do Thomaz António a publicar só
e isoladamente o chamamento dos Procuradores das Camarás
(1) Desp. e Cori-esp., Tomo I.
(2) No papel destinado ao Rei não vem mencionado o nome
(lo 'i'ar}íinl. (iui> s;' cnc-ontra poivm na correspondência original com o
coiulf de Funchal.
(oj Carta cit. a Funchal de T. de .»Iarço de 1821.
1120 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
do Brazil ( i ) Daqui seguio-se o exasperar o partido Euro-
peu que pensou que huma tal medida tendia á separação dos
dois Reinos. O Principe recusou-se a partir immediata-
mente, não querendo separar-se da sua mulher nem por
poucos mezes. Entretanto cresceu a fermentação e eu pedi
a minha demissão, vendo que não podia merecer a plena con-
fiança de El-Rey que era necessária em taes circumstan-
cias (2) : porém não me foi concedida a demissão (pedida
no dia 24) e quando El-Rey me tinha ordenado de redigir
(1) Taes eram as expressões, a respeito, do Decreto de 18 do
Fevereiro, referendado a 22 e publicado a 24, que determinava a ida
do rrincipe Real para Portugal e garantia eventual sancção da Consti-
tuição : "Não podendo porém a Constituição, que em consequência dos
mencionados iwderes se ha de estabelecer e sanccionar para os Remos
de Portugal e Algarves, ser igualmente adaptável e conveniente epa
todos os seus artigos e pontos essenciaes â povoação, localidade e mais
circumstancias tão ponderosas cimo attendiveis d'.este Remo do Bra-
sil assim como ás das ilhas e Domínios ultramarinos, que nao me-
recem menos a minha Rea.l contemplação e paternal cuidado: Hei>
-por conveniência mandar convocar a esta CÔrte os Procurado-
,res E sou outrosim servido que ellas {os Camarás) ha.iam
de os escolher e nomear sem demora, para que reunidos aqui o
mais promptamente que fôr i>ossivel em Junta d? Cortes, com a pre-
sidência da Pessoa que eu houver por bem escolher para este lugar,
não somente examinem e consultem o que dos referidos artigos for
adaptável ao Reino do Brasil, mas também me proponham as mais
reformas, os melhoramentos, os estabelecimentos, e quaesquer outras
•providencias que se entenderem essenciaes ou úteis, ou seja para a se-
gurança individual, e das propriedades, boa administração da justiça
<> da fazenda, augmento do commercio, da agricultura, e navegação, es-
tudos, e ««ducação publica, ou i)ara outros quaes<iuer objectos condu-
centes á prosperidade e bem g(>ral deste Reino, e dos Domínios da
coroa portugueza." . • i„ /i.
(^» "O certo é í^enlwr. que se algum m-io resta ainda de
.servil- a"v. M. ^ de lhe evitar a desgraça c a huraUiação de receber
a Lei que lhe quizerem impor, como a receheo o Sr. D. Fernando VIÍ
é .adontar V. M. um svstema claro, e seguil-o com lisura. 1 ara con.sc-
sec-uir esse fim é necessário que V. M. tenha plena confiança naquelles
a quem faz a honra de escolher para seus Ministros, e que estes con-
cordem todos n-um mesmo modo de pensar e de obrar. Meias medidas
são na minha opinião ainda mais nocivas do que uma total inacção,
porque, em lugar de satisfazerem, irritam os ânimos, e dao ao m.snm
tempo uma prova da falta de meios de resistência, e da falta de von-
tade de conceder. E' de advertir além disso, que as concessões que
hontem terião sido sufficientes talvez para evitar uma commoçao
no Rio de Janeiro, já o não serão do mesmo modo hoje, ou amanha.
(Desp. e Corresp., Tomo I).
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1121
um manifesto com as bazes constitucionaes como o meio d'evi-
tar a revolução nesta cidade (ordem que recebi no dia
25 á noite) já não era tempo de lançar mão nem mesmo
desse remiedio, porque a tropa instigada por três ou quatro
botafogos appareceu formada no Rocio na madrugada se-
guinte, e dictou a Lpy. Acceitou portanto El-Rey e jurou
uma Constituição que ainda não conhece, e eu entrei como
Pilatos na proscripção de todo o Ministério."
Ahi transparece o ponto em tudo isto mais doloroso
para Palmella: ver-se arredado dos negócios públicos, que
constituiíím o encanto da sua actividade. A 29 de Fevereiro
solicitava o ex-ministro dos negócios estrangeiros permissão do
soberano para regressar para Portugal, ''onde Vossa Majes-
tade sabe que deixei mulher e filhos, antevendo já desgraça-
damente o êxito que a minha jornada poderia ter." Não fora
de boa vontade que se alheiara da Europa: elle próprio con-
fessa em todas as suas cartas particulares. ( i ) Uma vez, po-
rém, consumimado o sacrificio, não se queria ver fora do poder,
n'uma ociosidade estúpida, em que mais duramente se lhe
íl) Noticiando por exemplo a Funclial a 3 de Aiívil de 1819,
a nomeação do mesmo para membro da Regência do Reino, accres-
oentava Palmella : "Espero que não recuse e provera «a Deus que eu
me achasse no seu cazo em vez de, me vêr ameaçado com o Brazil."
(Lata 7 da coll. Linhares, na Bibl. Nac.)
Funchal tornara-se, depois do fallecimento do irmão Linhaa-es,
que o sustentara em Londi-es .contra todas as queixas e intrigas, um
vei-dadeLro traml)olho, uma merca'doria diplomática da mais difficil
eolloeação. Quando lhe negaram a representação de Portugal no Con-
gresso de Vienna, foi mandado a Roma como embaixador especial para
cumprimentar Pio VII pela sua libertação da tyrannia napoleonica e
tratar eventualmente de quaesquer negócios, o que quer dizer nada
íazer, pois IA havia um ministro ordinário, o commendador Pinto.
Na corte pontifical se deixou Funchal ficar até que em Setembro
de 1817 o removeram em caracter idêntico para Madrid, encarregado
de uma missão ad hoc, quando pareceu que o governo hespanhol de-
sistia da mediação na questão de Montevideo.
Remanchão como sempre, achava-se porém Funchal ainda em
líoma ao occorrer, em vMarço de 1818, o fallecimento do titular Pinto.
Assumiu então a gerência da legação, da qual aliás não desejava sahir
mais. Seu ultimo, quiçá único serviço foi, a pedido instante de Pai-
1122 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
faria sentir a falta de distracções intellectuaes e de convívio
mundano.
Nesta ordem de idéas entrou Palmella, uma vez afas-
tado do ministério, a advogar de novo contra Thomaz
António — o qual, como eco da regia predilecção, optava pela
permanência do monarcha no Rio de Janeiro — a volta de
Dom João VI para Portugal. Deixou assim de considerar me-
lhor alvitre a ida do Principe Real, que entre o partido euro-
peu encontrava partidários nos que julgavam Dom Pedro, pela
sua mocidade, verdura e posição .secundaria na dynastia,
mais fácil do que o Rei de ser avassallado pelas Cortes, cujos
designios eram francamente anti-brazileiros. O fundamento
do raciocinio era análogo nos que o queriam prender ao
Brazil com o plano opposto de dirigil-o no sentido das preten-
ções nacionaes.
A regência do Principe podia encerrar perigos, mas o
m^ella, forrar dos seus compromissos religiosos José Silvestro Rebello,
depois encarregado de negócios em Washington, que tinha pronun-
cia-fio aos 16 annos votos de franciscano e queria entrar para o mundo
e a diplomacia.
Não foi facultado a Funchal permanecer junto á Santa Sé,
para onde foi despachado Pedro de Mello Breyner ; e como em Hespa-
nba não idesse o gabinete mostras de preferir negociação directa,
nem Fernando VII de querer contrahir nova alliança de familia com
l>om João VI — escolhendo uma princeza da iSaxonia para se sentar
3V0 thruno de que tão pouco gosara a fallecida Infanta portugueza —
o como ao mesmo tempo se prolongasse a missão em Pariz de Pal-
raellia e Marialva, designou E^-Jiei a Funchal, em Janeiro de 1810,
para ser um dos governadores do Reino. Nem havia elle ainda rece-
hido n'essa e.pocha as instrucções ia credencial ohegara-lhe as mãos
desde Maio de 1818) para a ímvA hypothetica missão, que se cifrara
em correr pela posta, entre l*ariz e Lfmdres. Na forma do ciKstume,
recebendo a noticia em Abril, tardou Funchal em ir lomar posse do
cargo: foi seca e meça, fez uso das aguas em Cheltenham, altercou no
seu despeito com Thomaz António e deixou que, sobrevindo a revo-
lução liberal, ficasse sem effeito sua nomeação, a qual aliás recusou
])or se achar em desaccordo com as tenções despóticas e mostrar
granide predilecção pela politica de conciliação.
No fundo elle não tin.ha vontade alguma de servir n'aquelle
caracter e n"aquella occasião. Si mesmo a longa residência na In-
glaterra lhe não incutira algun« princípios constitucionaes, a pessoa
de Thomaz António era-lhe antipathica, como de resto á nobreza em
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1123
regresso da corte evitaria, argumentava Palmella, perigos
maiores, como o de perder-se para todo sempre a sede tra-
dicional da monarchia. E já que lhe não tinha sido permit-
tido figurar na America como primeiro ministro poderoso,
o Richelieu de um Luiz XIII astuto, junto ao qual conti-
nuava Thomaz António a exercer como conselheiro confi-
dencial uma espécie de auctoridade occulta, nada se perdia
indo tentar outra estréa sobre o novo tablado constitucio-
nal, com um scenario até risonho ao seu espirito. Apenas o
successo se antolhava mais duvidoso porque a platéa de de-
mocratas detestava particularmente Palmella, n'elle enxer-
gando um actor de talento capaz de dominar a revolução,
sem a com'bater estultamente, antes encarnando-a para diri-
gil-a ao sabor da conveniência e do prestigio da coroa.
Tanto peor si a permanência de Dom Pedro no Brazil
offerecia o núcleo de que carecia o movimento contrario á
g<^ral. Por isso pretextou desde começo divergir do modo dominante de
encarar a situação. "Eu estou persuadid-o, escrevia a Palm -lia de Port-
smoutli como da minha existência que os males de que o Reino de
lortugal «offre não são todos imaginários, e que a não se lh'aplicar
o meliior de todos os remédios, lie necessário, he indispensável que o
J^.rario de Lisboa baste para o exercito, e para as mais despí>zas es-
senciaes o que não succede actualmente." (Carta de 11 de Julho de
ISJO, Lata 7 da coll. Linhares, ibidem).
A .pobreza dos recursos era com effeito o fundamento princi
pai em que assentava o descontentamento do velho Reino, e para prin-
cipiar tornava-se mister definir as obrigações reciprocas dos dous
e^-anos, do Rio de .Janeiro e de Lisboa, e pôr este, na phrase de Fun-
cha.l ao abrigo dos saques de Targini." L^inchal solicitara do governo
do Rio concedesse por tal motivo á Regência poderes extraordinários,
posto que temporários, pam endiívitar as cousas, nas suas palavras
forçar o S4'rio exame, e consultar a S. M. os meios demmendar erros
antigos, e noíonos. que oje, i)ezam com maior força sobre a nação"
paga?'o'lIxercitr'"''' ""''"^ *" ''^'"^ '"'*''''^ i^ili^ar, a saí>er, dos meios de
» n.- \^^^I^'^f.a de Thomaz António fora uma só e peremptória, que
voh,rL"t*; *^"r"^ retormadores : o que justificava de antemão a rc-
íiistiaçao. lalmella, ao chegar ao Rio nos fins de 1820, mandara abo-
T.lJ^fl^TT'^''''^'''' diplomáticos ao tio e predecessor em Londres
Kda' ' '"°''"'^' continuar na Europa n'aquella ociosidade
1124 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
desaggregação da monarchia americana, iniciada pela revolu-
ção de Pernambuco e activada pelas recentes revoltas consti-
tucionaes. Ia verificar-se tarde e inopportunamente quão
mais acertado houvera sido ter posto em pratica a segunda
parte da suggestão, feita de Vienna por Palmella e relativa
á elevação do Brazil a Reino, que fora a remoção do Prin-
cipe Real para Lisboa como Vice-Rei, dispondo de amplos
poderes.
Esta lembrança tinham-na arredado em 1815 os conse-
lheiros privados — o singular talvez coubesse melhor — que de
facto dispunham de uma influencia de que nunca logrou
gozar a serie de minixtros jnorihundns ( i ) que Dom João VI
chamou no Rio para seu despacho, todos fallecidos n'esse
curto periodo de treze annos e que eram substituidos provi-
soriamente pelos collegas, assim offerecendo ao monarcha
melhor opportunídade e maior facilidade de governar dire-
ctamente, sem tutelas incommodas nem acompanhamentos
ostentosos. Linhares, Barca e Palmella, por mais que se
tivessem assignalado no governo, aconselhando e esclare-
cendo o Rei com seus talentos, não possuiram maior auctori-
dade effectiva do que Galvêas, Aguiar e Bezerra, e a tiveram
certamente menos do que Thomaz António.
O resultado d'esta intimidade espiritual foi, com relação
á mutilação dos planos sempre sensatos de Palmella, que,
segundo escreve o auctor das Considerações (2) a medida
saudável e segura da União dos Reinos se transformou em
(1) Considerações sohre o estado de Portugal e do Brazil deMe
a sahida d'El-Rei de Lishoa em 1807 até o presente, indicando al-
gumas providencias para a consolidação do Reino Unido — datadas de
Londres, 4 de .Junho de 1822, na Rev. Trim. do Inst. Hist. Tomo XXVI.
(2) Parecem muito obra de Barbacena, então na Inglaterra,
coincidindo muito seus dizeres com os da correspondência com José
Bonifácio.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1125
uma medida de perpetuo ciúme, desunião e discórdia, pois
que o Brazil ascendia á graduação de reino emquanto Portu-
gal descia ao caracter de colónia, soffrendo o Erário de Lis-
boa repetidas sangrias em beneficio do Erário do Rio, anemico
pelas dilapidações, despezas inconsideradas e até descami-
nhos. E para avaliar do ef feito d'aquellas sangrias basta não
esquecer que o atrazo no pagamento dos soldos ás tropas
foi uma das causas immediatas e determinantes da revolu-
ção do Porto, logo propagada a Lisboa.
Si mais tarde do que 1815, nos criticos momentos de
1821, Dom João VI não seguio resolutamente os conselhos de
Palmella, não foi porque lhe faltasse a consciência nitida
da situação, sim a fibra precisa para arrostal-a. E' verdade
que preferia, porque estavam muito mais na sua natureza,
os rodeios e artificies politicos inventados pelo génio conser-
vador de Thom.az António, mas não ha melhor prova de
que para o soberano do Reino Unido era inevitável com sua
partida a separação, do que a phrase tão conhecida ao filho
sobre a necessidade de não deixar escapar a coroa americana.
Nem pode sua authenticidade .ser contestada, visto
achar-se reproduzida na carta de Dom Pedro, Regente, ao
Pai, de 19 de Junho de 1822. Os termos são os seguintes:
"Eu ainda me lembro e me lembrarei sempre do que Vossa
Magestade me disse, antes de partir dois dias, no seu quarto:
Pedro, se o Brazil se separar, antes seja para ti, que me has
de respeitar, do que para algum desses ai^entureiros. Foi che-
gado o momento da quasi separação, e estribado eu nas elo-
quentes e singelas palavras de Vossa Magestade, tenho mar-
chado adiante do Brazil, que tanto me tem honrado" (i).
(1> Documentos para a historia das Cortes Geraes da Nação
Tortugueza, Tomo I, 1820-1825.
1126 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Dom João VI esperara, comtudo, até a ultima que o for-
çassem a ficar. O seu ouvido estava sempre alerta, a presen-
tir uma manifestação que não chegava e que, quando se
esboçou, foi para tornar mais amarga sua partida, maculando
de sangue os últimos dias da sua estada no Brazil. O povo
não estava em condições de luctar com a tropa. Maler escre-
via com exactidão para Pariz ( i ) que a população do Rio
via afastar-se o Rei com pezar e também com inquietação ;
mas que, quando alguns intitulados facciosos quizeram dar
corpo a esses sentimentos e affixaram cartazes ameaçadores,
fallando em opporem-se pelas armas á partida da família
real, as trepas protestaram contra o alarme e juraram — a
epocha era dos juramentos — manter com fidelidade o socego
publico e velar com dedicação pelo embarque dos augustos
personagens, sãos e escorreitos.
Disfarçadamente era um mandado de despejo, a que os
acontecimentos iam fornecer uma cruel sancção. Ao mesmo
tempo que o decreto que annuncia\^i a ida do Rei para Lis-
boa, ficando o Príncipe no Rio, com que se punha cobro ás
supplícas, intrigas e suspeitas originadas no boato de acom-
panhar o herdeiro o soberano, outro decreto, do mesmo dia
7 de Março, mandava proceder á escolha dos eleitores de
parochia para a eleição final dos deputados brazileiros ás
Cortes portuguezas (2), que deveriam seguir no mais curto
espaço lie tempo a tomarem assento nessa assembléa delibe-
rativa e constituinte.
(1) Officio de IT) fio Março- de 1821.
(12) O processo adoptado pelo govoíTio provisório de Portugal
e imitado do liespanliol <»ra complicado, representando uma eleição
de quatio graus. O pcvo nomeava commissarios, estes os í^leitores de
parochias, que evscolhiam os eleitores de comarca, votando estes final-
mente nos deputados de província.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1127
Estas primeiras eleições estimularam a rivalidade acal-
mada entre os dous grandes partidos e levaram-n'os a vir-
tualmente definir suas attitudes, de forma que os eleitores
fluminenses se reuniram em más disposições de espirito na
tarde de 2i de Abril, no edificio da Bolsa, na rua do Sabão,
em convocaçcão extraordinária para lhes ser apresentada a
lista do ministério do Principe lugar tenente (i).
A Regência estava então imminente. A nova traslada-
ção da corte assumia porém proporções e circumstancias
imprevistas. Commerciantes e capitalistas portuguezes, dos
mais importantes e em crescido numero, iam na frota com
receio dos successos a vir, realizando seus negócios, carre-
gando seus bens, drenando o ouro e valores do Banco e,
ao que se propalara, elles e os representantes da administra-
ção limpando das ultimas migalhas os cofres públicos. Pesava
sobre o espirito nacional uma atmosphera de desconfiança,
produzindo uma mal contida irritação, que por um nada se
mudaria em violência.
'Toda reunião n'aquelles tempos pretendia tomar ares
de parlamento, e os eleitores do Rio, aos quaes para mais
completa imitação até se deliberara communicar o pro-
gramma do futuro governo, não se furtaram a fazer vezes
de convenção. Xudo lhes sérvio de thema de discussão, as
theses atropellaram-se, os debates acaloraram-se e a breve
trecho, depois de ordenar o desembarque dos cofres públicos,
reputados a bordo, sob pena das fortalezas não deixarem a
esquadra transpor a barra, a sessão se declarou em perma-
nência até que o Rei jurasse provisória e immediatamente a
Constituição hespanhola de 1812 — ideal politico, como a
chama Handelmann, de todas as nações latinas do meio-dia.
(Ij Handelmann, oh. cit.
1128 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
A' msia-noite foram acordar o Rei. Este, que almejara
provocar uma demonstração de lealdade, não uma manifesta-
ção de liberalismo, mal veio a si do espanto, estremunhado e
desilludido, annuio a tudo: concedeu a Constituição hespa-
nhola, concedia até o sceptro si o tivessem reclamado. As
ruidosas acclamações com que em toda a cidade foi pelos
patriotas recebido o resultado desse seu exclusivo pronuncia-
mento civil, despertaram todavia da primeira indifferença
as troipas portuguezas, que se congregaram logo, como já
se fizera costume, no largo do Rocio.
D'ahi ao pronunciamento militar, distava um passo.
Ao romper do dia, emquanto se enfiavam na Bolsa os dis-
cursos congratulatorios, á sombra da promettida protecção
de liberdade de palavra por parte do commandante das
armas, general Caula, um regimento de caçadores cercou
o edifício, intimou a dispersão da reunião, deu uma descarga
de mosquetaria contra as janellas e penetrou no recinto de
baioneta calada, dissolvendo o ajuntamento sedicioso, ma-
tando trez pessoas, ferindo mais de vinte, prendendo uma
porção e pondo em fuga o maior numero ( i ) . O arremedo
de convenção vivera... l' espace d'une nuit.
De novo ;n'este episodio se quer ver, com bastante appa-
rencia de razão, a participação do Principe. E' muito pouco
provável que os caçadores tivessem agido de motu próprio;
o Rei com certeza — ninguém mesmo o accusou — esteve
alheio á violência empregada; os officiaes do regimento
seriam por si capazes de ter ordenado a debandada e ma-
tança de uma assembléa, cuja reunião era legal pois que a
convocara o juiz do districto, si bem que estivessem sendo
exaggeradas suas pretenções e que se houvesse augmentado
(1) Handelmann, 06. cit.
BOM JOÃO VI NO BRAZIL 1129
seu pessoal com bom numero de indivíduos sem titulo para
se acharem presentes?
O interesse do acto revertia em todo caso a favor de
Dom Pedro e do seu mentor Arcos, que temiam, pelo menos
tanto quanto Dom João a desejava, uma pressão contraria á
partida da corte; e si o Principe, conforme rezam alguns
depoimentos, depois de provocar a carnificina a sustou, não
fez mais do que zelar sua nascente e então geral populari-
dade. As ordens, é claro, foram dadas em nome do Rei, o
pobre Rei que já não mandava e a quem, no dia 22, fizeram
revogar tudo quanto outorgara na noite anterior e confiar de
vez a seu filho, assistido de um gabinete de quatro membros,
a direcção autónoma dos negócios brazileiros ( i ) .
Ha ainda a versão, perfilhada por Mrs. Graham, ver-
dade é que testemunha muito parcial a Dom Pedro, de um
mal entendido, ou melhor ainda, da descarga haver resultado
de uma precipitação, natural senão justificável, em momen-
tos de fácil pânico. Os que assim querem pensar, invocam em
seu abono a imprudência que havia em irritar o povo da
capital quando tanto dependia da sua calma, esquecendo,
porém, que a tropa portugueza tinha a persuasão e até se
jactava de poder manter perfeita a tranquillidade publica,
comtanto que a deixassem agir com relativa decisão.
O acontecimento da Bolsa teve enorme repercussão,
desproporcionada mesmo á sua importância, e não só tornou
impossivel qualquer alteração em que ainda se pudesse
pensar da combinação dynastica assentada, como cavou
(1) Com'i)unha-se es.se ministério de Arcos (reimo), Louzã (fa-
zenõa), íCauLa; (negócios militares), e Mano?] Antcnio Farinlia (ne-
gócios marítimos). Ao Regente cabiam as mais extensas? preroga-
tivas : conceèer perdões e commutações de penas, nomear funcclona-
ri(ks de toda casta, fazer Kuerrn e celebrar paz, e distribuir graças
e mercês honorificas.
1130 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
mais fundo o fosso de prevenções que moralmente separava
as duas metades da monarchia luzitana. Seu effeito immedia-
to foi despir de todo brilho, de todo alarido, de todo calor,
de toda expressão de saudade a partida do Rei que a 24, á
noitinha, embarcou na nau D. João VI e a 26 de Abril
sahio do porto, acompanhado por duas fragatas e nove trans-
portes,- levando milhares de pessoas — quatro mil ao que se
diz — pertencentes e não ao serviço real, e 50 milhões de cru-
zados. A maré carregava o que a maré trouxera. O Erário
ficava de facto vasio do numerário, em troca do qual e para
pagamento de dividas do governo se tinham dado letras,
que não eram acceitas, sobre as thesourarias provinciaes da
Bahia, Pernambuco e Maranhão, e se entregaram ao Banco
os diamantes do monopólio e jóias da coroa, (i)
Dom João VI veio crear e realmente fundou na America
um Império, pois merece bem assim ser classificado o ter
dado foros de nacionalidade a uma immensa colónia amorpha,
para que o filho, porém, lhe desfructasse a obra. Elle próprio
regressava menos r€Í do que chegara, porquanto sua auctori-
dade era agora contrastada sem pejo. Deixava comtudo o
Brazil maior do que o encontrara.
As ultimas disposições de Dom João VI com relação á
Cisplatina foram tendentes á definitiva encorporação ao paiz
d'essa província, fechando-se o cyclo de guerras a que dera
origem a fundação da Colónia e recentemente resultara, a
ultima delias, da recusa de Elio, dictada por fidelidade dy-
nastica e nacional, em acompanhar os autonomistas de Bue-
(1) o governo reconheceu como divida nacional os seus com-
pmmissos com o Banco do Brazil e determinou o levantamento na
Europa de um empreslimo de l'.4O0 contos, que foi reprovado pelas
(Cortes, as quaes a-esolveram até pedir contas ao Hei da entrega de
jóias da Coroa.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1131
nos Ayres. A Banda Oriental, que Elio anteriormente res-
guardara da ambição portugueza, de que foi expressão a
missão Curado, encontrou, porém, no seu seio um caudilho
para personificar sua própria autonomia em frente á inva-
são brazileira e á reivindicação portenha.
Poucas historias ha tão agitadas, nesta agitada Ame-
rica do Sul, como a d'esses dous lustros de lucta, e com
um resultado tão inevitável, nas circumstancias de então,
quanto a verificada conquista estrangeira. A pequena pro-
vincia não podia escapar a cobiças tão poderosas como as
que pelo norte e pelo sul a espreitavam, e d'ellas a mais
fraca cedeu á mais forte. Buenos Ayres, no próprio interesse,
segundo acreditava, favoreceu Artigas contra as auctoridades
legalistas, ajudando-o a sitiar xVlontevidéo, e Alvear logrou
em 1814 impor a Elio uma capitulação depois que Brown,
ao serviço argentino como almirante, destruio a esquadrilha
do vice-rei hespanhol. Foi n'este periodo que a corte do
Rio, a pretexto de proteger o livre commercio costeiro entre
os portos do Sul e os do Prata (i), sérvio contra Vigodet d
governo das Provincias Unidas, não podendo este mais tarde,
quando Artigas só em campo, obstar a que fosse cobrado
aquelle serviço a Montevideo com o preço da independência
uruguaya.
Buenos Ayres calculara ainda que tal sacrifício, qufí
Artigas quizera arrostar desajudado, lhe aproveitaria e á
causa do seu federalismo, mas a previsão provou errada e
vimos que foi o imperialismo portuguez que, como era natu-
(1) A expansão do francas relações nuM-cantis entre o Brazil
e o Rio da Prata foi o onj^odo com que Linhares pretendeu em 1808,
ol»ter de Liniers a colIocaçAo de guarnições poiMujíuez<as em algumas
praças da margem oriental do T^ruguay, além d:i indispensável segu-
rança Idas pi«ssoas e propriedades portuguesas i'm todos os domínios
liespanhoes do 'Atlântico. ('M<s, add. do Museu Britannico, n. ;{2,G08),
1132 BOM JOÃO VI NO BRAZIL
ral, lucrou cora as operações militares do anno de 1816, em
que as trez columnas de Curado, Manoel Marques de Souza
e Lecor penetraram por caminhos differentes no território
disputado, e em que Abreu (Cerro Largo), Menna Barreto
e Oliveira Alvares desmancharam o plano de invasão do
Rio Grande pelas forças irregulares do caudilho e seus sub-
ordinados.
Culminou a rápida campanha de defeza da fronteira no
combate de Catalão (4 de Janeiro de 1817), que vingou as
armas brazileiras das vantagens obtidas por Artigas em
1814-1815, quando chegou a tomar um parque de artilhe-
ria. A devastação e a pilhagem occuparam essas forças vence-
doras ao tempo que Lecor derrotava Fructuoso Rivera e,
protestando querer apenas destruir a tyrannia, avançava por
Maldonado sobre Montevideo, que sabemos com quanta faci-
lidade occupou, apoz repellir no caminho as guerrilhas de
Lavalleja, e de Oribe (i).
Em 1820, a situação apresentava-se satisfactoria para
o exercito de occupação, a qual não veio por isso a soffrer
com os successos constitucionaes. As tentativas de Artigas
para interceptar as communicações brazileiras entre Monte-
video e o Rio Grande tinham falhado, sendo derrotados seus
auxiliares e elle próprio levado de vencida até o Uruguay.
Ahi a retaguarda, com Entre-Rios, lhe ficou livre até con-
seguirem cortar-lhe taes communicações as forças portugue-
zas, constantemente reforçadas, e pelo combate de Taqua-
rembó (22 de Janeiro de 1820), lançar o inimigo para além
do Uruguay.
Trahido por Fructuoso Rivera e supplantado na sua
auctoridade pelo caudilho de Entre-Rios, Ramirez, entre-
(1) Rev. Trim. do Inst. Hist. passim.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1133
gou-se Artigas a Francia emquanto Curado, descendo a mar-
^evn esquerda do Uruguay, realizava afinal sua juncção com
Lecor, abraçando a tutela portugueza capital e campanha.
Em Montevideo entretanto, cuja guarnição se desmoralizara
pela inacção, dando-se largas a devassidão dos chefes, bem
como os desmandos dos inferiores, surprehendera o comm.ari-
dante em chefe e atalhara uma conspiração destinada a eli-
minar pela expulsão o dominio estrangeiro, que odiavam os
bons Hespanhoes e centra o qual se levantariam mais tarde
os patriotas partidários da independência local.
Durante sua curta passagem pelo poder quiz Silvestre
Pinheiro Ferreira cuidar da questão ainda em aberto da
Cisplatina, não obstante ser para elle inçada de asperezas e
pejada de duvidas, nem o seduzindo a annexação pura e
simp'les pelo facto de lhe parecerem muito diversas a natu-
reza, estructura e tradições da provincia vindoura, nem con-
siderando politicamente razoável, apezar do seu desinteresse,
que se perdesse o fructo de tantos trabalhos e despezas tão
avultadas. A expressão — os povos querem — que alguns avan-
çavam para justificar a encorporação, afigurava-se-lhe, mau
grado o seu doutrinarismo, oca de sentido real, falsa e
absurda mesmo por não existir jamais a concordância que a
expressão faz suppor, e ser a orientação de um qualquer
corpo social invariavelmente imposta por um ou muito pou-
cos individuos. (i)
A idéa que Silvestre tinha por mel'hor, era a de congre-
gar o general commandante de Montevideo e do exercito de
occupação os comicios eleitoraes para formar uma assembléa
provincial do Uruguaj^ afim dos deputados franca e livre-
(1) Semelhante theoria constitucional, com as reprovações
correlativas, foi desenvolvida em «reunião do gabinete e acha-se ex-
pressa n*uma das suas cartas, nos Annaes da Bibl. Nac.
D. J. — 71
1134 DOM 'JOÃO VI NO BRAZIL
mente decidirem o que m.ais lhes convinha e aos seus consti-
tuintes: si a erecção da Banda Oriental em estado indepen-
dente, si a reunião a Buenos Ayres, si a encorporação ao
Brazil. Opinava ao mesmo tempo o ultimo ministro dos negó-
cios estrangeiros de Dom João VI na America que se acredi-
tasse um agente como consul-encarregado de negócios nas
Provincias Unidas, no intuito de manifestar as intenções
amigáveis do governo portuguez com relação aos paizes cir-
cumvizinhos da sua nova annexação — caso tivesse esta
lugar — , entrando-se com elles em proveitosas relações com-
merciaes e respeitando-se mutuamente as bandeiras.
O que a Silvestre se afigurava com razão impossível
era prolongar mais o statu quo, representado por uma exhi-
bição militar dispendiosissima, sem se decidir cousa alguma
definitiva, nem sendo mesmo possivel fazel-o nas condições
creadas, pois que a corte do Rio fora ao ponto de reconhecer,
no decorrer das negociações, a soberania do Rei Catholico
sobre o território avassallado pelas armas portuguezas. Nun-
ca se houvera comtudo aquella corte declarado prompta a
restituil-o sem compensação, conforme o exigia o gabinete
de Madrid, arguindo que a devolução seria apenas a conse-
quência natural de tal reconhecimento de soberania, e
que portanto ao governo brazileiro cumpria declarar-se dis-
posto a retroceder o território invadido, em virtude da mera
reclamação do seu legitimo soberano.
As ultimas ordens de Dom João VI, antes de se retirar
para Lisboa, foram no sentido das formas preconizadas por
Silvestre e na direcção do seu próprio constante pensamento,
que n'este assumpto se concretizou n'uma acção perseverante
e feliz. Convidados os habitantes da Banda Oriental a deli-
berarem sobre seu futuro, resolveram a 31 de Julho de 1821
DOM JOÃO VI NO BRaZIL 1135
da maneira que era dado prever nas condições em que se
fazia a consulta, annexando sua terra ao Brazil, como Pro-
vincia Cisplatina.
Tanto tivera de alegre a chegada, como teve de so-
turna a partida de Dom João VI. Com o monarcha foram-se
n'uma ultima peregrinação oceânica dous dos mortos da fami-
lia, a Rainha D. Maria I e o Infante de Hespanha Dom
Pedro Carlos, transportados na ante-vespera, á noite, dos
seus túmulos no Convento da Ajuda e no Convento de Santo
António para bordo da fragata armada em capella ardente,
n'um duplo e apparatoso préstito fúnebre que foi o ultimo
cortejo do Reino americano e no qual figuravam o Rei, a
filha viuva e o netinho orphão.
Em 1808, por occasião do desembarque. Dom João estava
jubiloso e Dona Carlota Joaquina desesperada. Agora dava-se
o opposto, como era de regra nas suas relações conjugaes;
pensar e agir um sempre em discordância do outro. O Rei
partia vergado á afflicção. Não acreditava muito na efficacia
da sua presença em Portugal para abrandar a revolução e
restabelecer a auctoridade do throno, a ordem e a confiança
abaladas. Pairavarn sobre o seu espirito timorato e bom o
receio dos acontecimentos previstos e imprevistos nas duas
partes do mundo, trazidos pela separação fatal do Brazil e
pela degeneração do movimento constitucional em frenesi
jacobino, e o receio da vindicta popular, exercendo-se crua-
mente não tanto sobre elle como sobre os seus protegidos e
validos.
A Rainha ia pelo contrario delirante: n'esse momento
toda ella era amores pela Constituição. Ao passo que o ma-
rido, á cautela, embarcava ao lusco-fusco lá longe, em São
Christovão, para ir tomar a dianteira da frota que de torna
1136 DOM JOÃO VI NO BRA2IL
viagem o transportava, envergonhado e saudoso, a soffrer
com resignação os desaforos das Cortes, D. Carlota sahia
em pleno dia do Paço da cidade para o escaler amarrado ao
cães fronteiro, despedindo-se com ruidosa alegria da sua
comitiva e despejando nas ultimas palavras que pronunciava
— afinei vou para terra de gente! — todo o seu aborrecimento
á terra hospitaleira em que vivera treze annos, podendo sa-
tisfazer todos os seus caprichos libertinos, mas nenhuma das
suas ambições politicas.
ENUMERAÇÃO DAS FONTES
IMPRESSOS
A) Historias, Memorias, Relações, Biographias e Col-
lecções de papeis públicos e particulares :
Handelmann — Gesohichte von Brasilien. Berlin, 1860.
Ayres de Casal — Corographia Brasilica, ou relação
histórica e geographica do Reino do Brasil. Rio de Janeiro,
1817, 2 vols.
Henderson — A History of the Brazil, comprising its
geography, commerce, colonization, aboriginal inhabitants
etc, etc. London, 1821.
Historia do Brazil desde 1807 até ao presente, original-
mente composta em portuguez para servir de continuação
á que se publicou vertida do francez, completa em 12 tomos.
Lisboa, 1817-34.
Ferdinand Denis et Hippolyte Taunay — Le Brésil
ou histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce
royaume. Paris, 1822, 6 vols.
1138 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Ealbi — Essai statistique sur le royaume de Portugal
etc. Paris, 2 vols. •
Raynal — Histoire Philosophíque des E'tablissements
et du Commerce des Européens dans les deux Indes. Ams-
terdam, 1770, 2 vols.
Jacome Ratton — Recordações. Lisboa.
Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos — Memorias para
servir á historia do reino do Brazil. Lisboa, 1825, 2 vols.
Histoire de Jean VI, Roi de Portugal, depuis sa nais-
sance jusqu'á sa mort, en 1826; avec des particularités sur
sa vie privée et sur les principales circonstances de son
regne. Paris et Leipzig, 1827.
Munch (Dr. Ernst) — Geschiòhte von Brasilien. Dres-
<len, 1829.
Armitage — The History of Brazil, from the period
of the arrival of the Braganza Family in 1808, to the ab-
dication of Don Pedro the first in 1831. London, 1836,
2 vols.
Mello Moraes — Corographia histórica, chronographi-
ca, genealógica, nobiliária e politica do Império do Brasil,
contendo noções históricas e politicas, etc, etc. Rio de Ja-
neiro, 1858-63, 5 tomos em 4 vols.
Mello Moraes — Historia do Brazil-Reino e do Bra-
zil-Imperio. Rio de Janeiro, 1871, 2 tomos em i vol.
Mello Moraes — Historia das Constituições. Rio de
Janeiro.
Monsenhor Pizarro e Araújo — Memorias históri-
cas do Rio de Janeiro e das provincias annexas á jurisdicção
do vice-rei do Estado do Brazil. Rio de Janeiro, 1820-22,
IO vols.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1139
José da Silva Lisboa — Princípios de Direito Mercan-
, til. Lisboa, 1801.
João Ribeiro — Historia didáctica do Brasil. Rio de
Janeiro, 1903.
José Silvestre Ribeiro — Historia dos Estabelecimentos
scientificos, litterarios e artisticos de Portugal etc. Lisboa,
1871-93, 18 vols.
Mitre ( Don Bartolomé ) — Historia de Belgrano y
de la Independência Argentina. Buenos Aires, 3 vols.
Mitre (Don Bartolomé) — Historia de San Martin y
de la Emancipacion Sud-americana. Buenos Aires, 3 vols.
F. Schoell — Histoire des traités de paix. Paris.
Martens — Recueil des traités. Paris.
Albert Sorel — L'Europe et la Révolution. Paris,
Frédéric Masson — Napoléon et sa Famille. Paris,
9 vols. (ainda em via de publicação).
J. Accursio das Neves — Historia geral da invasão
dos francezes em Portugal e da restauração d'este reino.
Lisboa, 1810-11, 5 vols.
Mémoires de la Duchesse d'Abrantes. Paris,
Lieut, Count, Thomas 0'Neill — A concise and accurate
account of the proceedings of the squadron under the com-
mand of Rear Admirai Sir W. Sidney Smith in effecting
the escape and escorting the royal family of Portugal to the
Brazils. London, 1809.
Memoirs of Admirai Sir Sidney Smith. London, 1839,
2 vols.
Exposição analytica, e justificativa da conducta, e vida
publica do visconde do Rio Secco, desde o dia 25 de No-
vembro de 1807, em que Sua Magestade Fidelíssima o in-
cumbiu dos arranjamentos necessários da sua retirada para
1140 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
O Rio de Janeiro, até o dia 15 de Septembro de 1821,. . . pu-
blicada por elle mesmo. Rio de Janeiro, 1821.
Marques de Ayerbe — Memorias sobre la estancia de
D. Fernando VII en Valençay y el principio de la guerra de
la Independência. Madrid.
Don José Presas — Memorias secretas de la Princesa
dei Brasil, actual Reina viuda de Portugal, la Senora Dona
Carlota Joaquina de Borbon. Burdeos, 1830.
D. Maria Amália Vaz de Carvalho — Vida do Duque
de Palmella, D. Pedro de Sousa e Holstein. Lisboa, 1898-
903, 3 vols.
Despachos e Correspondência do Duque de Palmella,
colleccionados por Reis e Vasconcellos. Lisboa, 1851, 4 vols.
Castlereagh — Letters and Despatches. London.
Mémoires du Prince de Talleyrand. Paris, 4 vols.
Lyman — History of the Diplomacy of the United
States. Boston, 2 vols.
De Pradt — L'Europe et ses Colonies. Paris, 181 7,
2 vols.
De Pradt — Les six derniers móis de TAmérique Meri-
dionale et du Brésil. Paris, 181 7.
De Pradt — Les trois derniers móis de TAmérique et
du Brésil. Paris, 181 8.
Pereira Pinto — Apontamentos para o Direito Inter-
nacional etc. Rio de Janeiro, 4 vols.
Francisco Bauzá — Historia de la Dominación espa-
nola en el Uruguay. Montevideo, 1822, 3 vols.
Livro do Centenário (Contribuições de José Verís-
simo sobre Imprensa, do Dr. José Carlos Rodrigues sobre
Religiões acatholicas e do almirante Arthur Jaceguay sobre
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1141
Formação da armada brasileira até o fim do século XIX).
Rio de Janeiro, 1900, 3 vols.
Fernandes Pinheiro — Ensaio sobre os Jesuitas. Rio de
Janeiro.
Joaquim Manoel de Macedo — Um passeio pela cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Dr. Moreira de Azevedo — O Rio de Janeiro, sua his-
toria, monumentos, hom.ens notáveis, usos e curiosidades.
Rio, 1877, 2 vols.
Elysio de Araújo — Estudo histórico sobre a policia da
Capital Federal de 1808 a 1831, i^ parte. Rio de Janeiro,
1898.
Pandiá CaLogeras — ^As minas do Brazil e sua Legis-
lação, Rio, 1904-06, 3 vols.
Barboza Rodrigues — Hortus fluminensis, ou Breve no-
ticia sobre as plantas cultivadas no Jardim Botânico do Rio
de Janeiro. Rio, 1895.
Dr. Muniz Tavares — Historia da revolução de 181 7,
2" edição com introd. e notas do Dr. M. L. Machado. Per-
nambuco, 1884.
L. F. de ToUenare — Notas dominicaes, tomadas du-
rante uma residência em Portugal e no Brasil nos annos de
181 6, 181 7 e 181 8. Parte relativa a Pernambuco, trad. do
manuscripto francez por Alfredo de Carvalho. Recife, 1906.
Alfredo de Carvalho — Estudos Pernambucanos. Re-
cife, 1906.
Euclydes da Cunha — Contrastes e Confrontos. Porto,
1907.
Discurso offerecido aos Bahianos no dia da abertura do
seu novo theatro, aos 13 de Maio de 181 2.
1142 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Estanislau Vieira Cardoso — Canto épico á acclamação
faustissima do Muito Alto, e Muito Poderoso Senhor I>.
João VI, o Liberalissimo Rei do Reino Unido de Portugal,
e do Brazil e Algarves. Rio de Janeiro, 1818.
Ode á acclamação de S. M. F. o Senhor D. João VI
etc, por Joaquim José Pedro Lopes. Rio de Janeiro, 181 7.
Relação dos festejos que á feliz acclamação do Muito
Alto, e Muito Poderoso e Fidelissimo Senhor D. João VI
Rei do Reino Unido. . . votarão os habitantes do Rio de Ja-
neiro. . . collegida por Bernardo Avellino Ferreira e Souza.
Rio, 1818.
Memorias do marquez de Santa Cruz, Arcebispo da
Bahia, etc. Rio de Janeiro, 1861.
Valle Cabral — Annaes da Imprensa Nacional do Rio
de Janeiro de 1808 a 1822. Rio de Janeiro, 1881.
Documentos para a historia das Cortes Geraes da Na-
ção Portugueza, Tomo I, 1820-25. Lisboa.
Oscar Canstatt — Kritisches Repertorium der Deutsch-
Brasilianischen Literatur. Berlin, 1902.
B) Viagens e Explorações:.
Hautefort — Coup d'oeil sur Lisbonne et Madrid en
181 4. Paris.
Debret (J. B.) — Voyage pittoresque et historique au
Erésil, ou séjour d'un artiste français au Brésil depuis 1816
etc. Paris, 1834-39, 3 vols.
Auguste de Saint-Hilaire — Voyage dans les provinces
de Rio de Janeiro et de Minas Geraes (1816-1817). Paris,
1830, 2 vols.
DOM JOÃO VI NO BRAZIL I143
Freycínet ( L. de ) — Voyage autour du monde entre-
.pris par ordre du Roi execute sur les corvettes de S. M.
rUraníe et la Physicienne pendant les années 18 17, 181 8,
1819 et 1820. Paris, 1827, com atlas.
Gendrin (V. A.)— Récít historique, exact et sincere,
par mer et par terre, de quatre voyages faits au Brésil, au
Chili etc, Versailles, 1856.
Mawe (John)— Traveis in the interior of Brazil, par-
ticularly in the gold and diamond districtcs etc. London, 1812.
Luccock— Notes on Rio de Janeiro and the southern
parts of Brazil; taken during a residence of ten years in
that country from 1808 to 1818. London, 1820.
Maria Graham — Journal of a voyage to Brazil, and
residence there, during part of the years 1821, 1822, 1823.
London, 1824.
Koster (Henry) — Traveis in Brazil. London, 1816.
E prefacio de Jay na trad. franceza, Paris, 1818.
Sir G. M. Keith — A voyage to South America and the
Cape of Good Hope. London, 1810.
James Prior — Voyage along the eastern coast of Africa
to Mosambique. . . ; to Rio de Janeiro, Bahia and Pernam-
buco in Brazil, in the Nisus Frigate. London, 18 19.
iSketches of Portugal. London, 1820.
Captain Basil Hall — Extracts from a Journal written
on the coasts of Chili, Peru, and México, in the years 1820,
1821, 1822. Edinburg, 1824, 2 vols.
Brackenridge — Voyage to South America, pcrformed
by order of the American Government in the years 181 7
and 181 8, in the Frigate Congress. Baltimore, 18 19, 2 vols.
Ruders — Reise durch Portugall. Berlin, 1808,
1144 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Joh. Bap. von Spix und C. Fr. Phil. von Martius—
Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestat Maximilian Jo.
seph von Bayern in den Jahren 1817 bis 1820. Munchen.
1823-31, 3 vols. e atlas.
Maximilian, Prinz zu Wied-Neuwied — Reise nach
Brasilien in den Jahren 181 5 bis 181 7. Frankfurt a M.,
1820-21, 2 vols. e atlas.
W. E. von Eschwege — Journal von Brasilien, oder
vermischte Nachrichten aus Brasilien, auf wissenschaftlichen
Reisen gesammelt. Weimar, 181 8, 2 vols.
W. E. von Eschwege — Brasilien die Neue Welt in to-
pographischer Hinsicht, wahrend eines elfjahrigen Au-
fenthaltes, von 18 10 bis 1821. Braunschweig, 1830, 2 vols.
Theodor von Leithold— Meine Ausflucht nach Brasi-
lien etc. Berlin, 1820.
C) Periódicos:
Correio Braziliense ou Armazém literário. Londres,
1808-22, 28 vols.
O Investigador Portuguez em Inglaterra. Londres,
i8ii-i9-
O Portuguez; ou Mercúrio politico, commercial e li-
terário. Londres, 1 814-21, 11 vols.
O Patriota, Jornal Litterario, politico, mercantil, etc,
do Rio de Janeiro, 1813-14, 3 vols.
Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias
de Lisboa.
Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geogra-
phico do Rio de Janeiro, 1839-903-
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1145
Revista do Instituto Archeologico e Geographico Per-
"Tiambucano, 1862-903.
Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro.
Anales de la Biblioteca Nacional de Buenos-Aires.
La Biblioteca, Revista dirigida por P. Groussac. Bue-
nos Aires, 1896-97.
Kosmos, Revista. Rio de Janeiro, 1903-04.
Legislação de 1808 a 1821 (Alvarás, Cartas Regias,
Decretos, etc.
Gazeta do Rio de Janeiro, 1817.
Conciliador do Reino Unido, 1821.
Bem da Ordem, 1821.
Observer, de Londres, 181 5.
Morning Chronicle, de Londres, 1816.
Weekly Messenger, de Londres, 18 16.
Times, de Londres, 181 7.
Courier, de Londres, 181 7.
II
MANUSCRIPTOS
A) Archivo Publico do Rio de Janeiro:
Cartas de D. Rodrigo de Souza Coutinho (conde de
Linhares) ao Principe Regente, ao conde de Aguiar e a
diversos, 1796-809.
Pareceres officiaes de D. Rodrigo e Avisos ao Gover-
nador do Pará, seu irmão D. Francisco, 1796-809.
Cartas de D. Fernando José de Portugal (marquez
de Aguiar) ao Principe Regente, 1809.
\
^
1146 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Instrucções ao marquez de Niza na sua missão a São
Petersburgo e correspond-encia d'esta missão, 1801.
Despachos de D. João de Almeida Mello e Castro
(conde das Galvêas) ao marquez de Niza, 1801.
Cartas do marquez de Alorna ao Principe Regente,
1801.
B) Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro:
Cartas de Dona Carlota Joaquina a Dom João VI e a
Thomaz António de Villa Nova Portugal.
Collecção de papeis avulsos, memorias, cartas, aponta-
mentos, etc, pertencentes a D. Rodrigo de Souza Coutinho
e adquiridos em Lisboa, no anno de 1895, no leilão da livra-
ria da casa Linhares. Em 12 latas e vários códices.
Papeis particulares de D. Domingos de Souza Couti-
nho (conde do Funchal), 1806-10 e 1821. Nas mesmas latas
da collecção Linhares.
Cartas de Thomaz António Villa Nova Portugal a
Dom João VI e respostas do Rei; memoranda e apostillas,
1820-21. N'um códice de 116 folhas.
C) Archivo do Ministério de Estado das Relações Ex-
teriores:
Correspondência ostensiva e reservada de D. Pedro de
Souza Holstein (conde de Palmella), de Cadix, 1810-11.
N'um códice.
Correspondência ostensiva, reservada e confidencial da
Legação em Londres (occasionalmente Embaixada) sob a
gerência do conde do Funchal, de Cypriano Ribeiro Freire,
/
>*
DOM JOÃO VI NO BRAZIL 1147
do conde de Palmella e de D. José Luiz de Souza (conde
ie Villa Real), 1808-21. Em vários códices.
Correspondência ostensiva e reservada dos Plenipoten-
ciários de Portugal ao Congresso de Vienna, 1814-15. Em
dous códices.
Correspondência ostensiva e reservada da Legação em
São Petersburgo sob a gerência de Rodrigo Navarro de An-
drade, de António de Saldanha da Gama (conde de Porto
Santo), do visconde da Lapa e de Abreu Lima (conde da
Carreira), 1808-21. Em vários códices.
Correspondência ostensiva e reservada da Legação em
Roma sob a gerência de José Manoel Pinto e de Pedro de
Mello Breyner, 181 5-21. Em vários códices.
Correspondência do marquez de Marialva, de Vienna,
Florença e Liorne, por occasião do casamento por pro-
curação do Principe Real Dom Pedro, 1816-17. Num
grande maço.
Correspondência do conde de Palmella e do marquez de
Marialva durante as negociações de Pariz relativas a Mon-
tevideo, 1818-20. N'um grande maço.
Correspondência do Consulado em Londres. Em vários
códices.
Livros de Registro da Secretaria de Estado dos Negó-
cios Estrangeiros, 1808-22.
Cartas secretissimas do conde do Funchal ao Principe
Regente e ao conde de Linhares, 1808-10. N'um pacote.
Cartas de Filippe Contucci ao conde de Linhares, em
datas diversas. Em papeis avulsos.
Cartas de José Presas a Filippe Contucci, em datas di-
versas. Em papeis avulsos.
1148 DOM JOÃO VI NO BRAZIL
Cartas de António de Saldanha da Gama, de Laybach,
1821. Em papeis avulsos.
Cartas de Thomaz António Villa Nova Portugal a
Dom João VI, 181 7-21. Em papeis avulsos.
Representações do Cabildo de Montevideo, em datas
diversas. Em papeis avulsos.
D ) Archivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
de França:
Correspondência do Embaixador duque de Luxemburgo,
do cônsul geral-encarregado de negócios Maler e do 1° se-
cretario conde de Gestas, do Rio de Janeiro, 1 816-21.
• Correspondência do cônsul geral-encarregado de negó-
cios Lesseps, de Lisboa, 181 5-21.
Minutas dos Despachos do Ministério dos Negócios
Estrangeiros para o Rio de Janeiro e Lisboa, 181 5-21.
Avisos do Ministério da Marinha e das Colónias ao
dos Negócios Estrangeiros, 181 5-21. Tudo em sete códices.
E) Archivo do Departamento de Estado dos Estados
Unidos:
Correspondência da Legação no Rio de Janeiro sob a
gerência do ministro Thomas Sumter, 1 810-19. ~
Despachos dos Secretários de Estado R. Smith e John
Quincy Adams á Legação no Rio de Janeiro, 18 10-21. Em
vários códices.
F) Archivo da Embaixada Americana no Brazil:
Livro de Registro da correspondência do encarregado
de negócios Condy Raguet, 1822-23. N'um códice.
DOM JOÃO VI NO BUAZIL 1149
G') Museu Brítannico:
Manuscriptos addicíonaes ns. 32.608 e 32.609, perten-
centes á collecção de C. W. Parish. Dous códices.
Nota — Os summarios d'estes códices encontram-se na
Relação dos Manuscriptos portuguezes e estrangeiros, de
interesse para o Brazil, existentes no Museu Brítannico de
Londres, coordenada por Oliveira Lima. Rio de Janeiro,
1903.
H) Real Bibliotheca da Ajuda:
Cartas de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, em nu-
mero de 171, escriptas do Rio de Janeiro á familia em Lis-
boa, 181 1-20.
/) Archivo do Instituto Archeologico e Geographico
Pernambucano:
Parte inédita, referente a Portugal e á Bahia, das
Notas Dominicaes de ToUenare. Copia do original existente
na Bibliotheca de Santa Genoveva de Pariz.
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