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Full text of "Encyclopedia republicana : revista de sciencias e litteratura (ao alcance de todas as intelligencias)"

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Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/encyclopediarepuOOsous 


iíCLOPEOm  REPOBL 


Re  vista  de  Sei en cias  e  L  ittera  tura 


AO  ALCANCE  DE  TODAS  AS  INTELUCENCIAS 


COLLABORADA    POR 


AFFONSO    DE    SOCSA,   ALBERTO   BASTOS,   ALEXANDRE    DA    CONCEIÇÃO, 

ANGELINA   VIDAL,   ANNES   BAGANHA, 

ANSELMO   XAVIER,   ARRUDA   FOBTADO,   AUGUSTO   ROCHA,   BENTO   MOllENO, 

CARRILHO    VIDEIRA,    COSTA    GOODOLPHIM,    DKAPER, 

ERNESTO   PIRES,   FEIO   TE^EN-VS,   FERNANDO   LFAL,    HUGO   LKAL, 

LEITK.    DE  VASCONCELLOS,   MAGALHÃES   LL\£A, 

MARTINS   CONTREIRAS,    MELLO    d'aZERED0,    REIS   DÂMASO,    SEQUEIRA    FERRAZ, 

S'LVA   LISBOA,   TEIXEIRA   BASTOS, 

THEOPUILO    BRAGA    E   XAVIBR    DE   PAIVA 


^-&., 


^^íZí^TiA- 


LISBOA 

PehOSITO    OA    pMPPyESA    ^DlTOí^A 
Í9,   l.AUGO    DO    MASTRO,  30 

18H3 


ENCICLOPÉDIA  REPUBLICANA 


EiíCLOPEDIA  REPUBL 


Revista  cleScienciaseLítteratura 


40  ALCANCE  DE  TODAS  AS  INTELLIGENCIAS 


,OLL,ABORADA    POR 


AFFOXSO   DE    SOUSA,   ALBERTO    BASTO?,   ALEXANDRE    DA    COXCEIÇÃO, 

AXGELINA    VIDAL,    AXXES    BAGAXHA, 

AXSELMO    XAVIER,    ARRUDA    FL'HT\DO,    ACGCSTO    ROCHA,    BEXTO    MOREXO, 

CARRILHO    VIDEIRA,    COSTA    GOODOI PHIM,    DKAPEB, 

EfiXESTO    PIRES,   FEIO    TEREX\S,    FEBX>Xr)0    Lfi    L,    HUGO    LHAL, 

LEIT-:    DE  VASCOXi.ELLOS,    MAGALHÃES    LIMA, 

MAKTiXS    COXTREIRAS,    MELLO    d'aZERED0,    PEIS    DÂMASO,    SEQUEIRA   FERRAZ, 

S  LVÀ   LISBOA,    TEIXEIRA    BASTOS, 

THEOPHILO    BRAGA    E    XAVIER    DE   PAIVA 


«^'^^^itÇ^^'^^Zí^^ 


LISBOA 

TYPOGRAPHIA  NOVA  MINERVA 

159,   R.   NOVA   DA    PALMA,    154 

1882 


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B5Ò 


TITULO  de  El\CYCL0PEDI4  REPIBLICA^A  en- 
volve o  sentido  o;eral  da  reunião  de  lodos  os 
elementos  doutrinários,  scientificos  e  moraes, 
sobre  que  assenta  a  democracia  moderna,  vul- 
garisando-os  entre  as  classes  activas  que  hoje 
vão  tendo  consciência  dos  seus  direitos.  Não 
aspiramos  a  tanto;  se  procuramos  provocar  na  intelligencia 
popular  o  interesse  pelas  questões  vitaes  do  nosso  tempo,  em 
relação  aos  que  escrevem,  importa  egualmente  corrigir  as  di- 
vagações litterarias  subordinando  as  manifestações  do  talento 
a  um  destino  social.  E  esta  mutua  convergência,  este  accordo 
entre  a  acção  e  a  especulação,  'indispensável  para  se  altingir 
qualquer  progresso,  e  o  meio  mais  fácil  de  realisal-o  é  pela 
forma  aíTectiva,  de  que  a  Litteratura,  na  poesia,  no  drama,  no 
romance,  no  conto,  na  biograpliia,  na  narrativa  histórica  dis- 
põe dos  mais  poderosos  e  extraordinários  recursos.  A  Littera- 
tura, hoje,  é  considerada  como  um  dos  grandes  agentes  de 
transformação  social;  por  ella  se  vulgarisam  as  noções  e  se 
coordenam  as  emoções  que  determinam  actos  voluntários;  é 


VI 

por  isso  que  a  Litteralura  tem  uma  alia  missão  nos  paizes  em 
que  ha  uma  forte  vida  nacional.  Qnanlo  a  nós,  fora  dos  cen- 
tros de  elaboração  intellectual  moderna  c  sem  os  estimules  da 
acção  pratica,  o  verdadeiro  trabalho  civilisador  para  este  paiz 
consiste  unicamente  em  estabelecer  relações  com  o  movimento 
europeu,  fazendo  conhecer  a  summa  de  ideias  novas  e  de  ap- 
plicações  praticas  que  esses  centros  põem  em  circulação  trans- 
formando o  progresso  humano  de  empirico  em  racional,  sub- 
stituindo a  actividade  das  guerras  pela  concorrência  pacifica 
das  industrias. 

Para  um  paiz  sem  iniciativa,  nem  interesses  scienlificos,  e 
sem  a  consciência  da  sua  profunda  degradação  politica  que 
aggrava  as  causas  d'esta  apathin,  qualquer  perturbação  so- 
cial que  provoque  a  intervenção  da  força,  não  faz  senão  per- 
petuar a  situação  decadente  em  que  a  nação  se  extinguirá 
pela  inanidade;  para  que  a  vida  acorde  n'estc  organismo  é 
preciso  um  estimulo,  o  das  ideias,  um  impulso,  o  do  exemplo, 
uma  tenacidade,  a  das  convicções.  E  um  meio  pacifico,  mas 
de  um  poder  invencivel.  Tudo  quanlo  fur  o  por  em  circulação 
ideias,  generalisar  conhecimentos,  esse  é  que  é  o  meio  seguro 
para  que  uma  sociedade  se  levanle  do  marasmo  e  recobre  a 
força  com  que  opere  a  sua  própria  regeneração.  As  Revistas 
são  um  género  de  publicação  que  pela  sua  lendencia  vulga- 
risadora  se  presta  cá  condensação  dos  trabalhos  das  capaci- 
dades eminentes  e  ás  applicações  quotidianas  dos  methodos 
scientificos.  Está  já  constiluido  um  grande  numero  de  scien- 
cias  subsidiarias  da  Sociologia;  importa  que  esses  elementos 
circulem,  para  que  insensivelmente  se  eliminem  antigas  no- 


vn 


ções  que  esses  resultados  hoje  invalidam,  como  se  está  vendo 
em  relação  aos  dogmas  religiosos  e  ás  instituições  politicas. 
E  o  caminho  cerlo  da  emancipação;  os  preconceitos  do  pas- 
sado luctam  contra  a  renovação  do  presente,  e  buscam  apoio 
nas  classes  atrazadas  pelo  perstigio  dos  milagres  e  das  pom- 
pas regias.  N'esta  lucta,  o  saber  é  a  primeira  condição  da 
resistência,  e  a  educação  do  povo  a  garantia  do  triumpho. 
E  este  o  espirito  que  nos  traz  á  liça. 


Theophilo  Braga. 


POLLEGA     E    CORRELIGIONÁRIO 


ONRADO  com  O  lisongeiro  convite  de  collaborar  nas 
paginas  da  Encijdopedia  Republicana  cumpre-me 
agradecer  a  immerecida  distincção  e  aflirmar  o 
meu  sincero  desgosto  de  não  poder  retribuil-a, 
como  devia,  cora  o  meu  trabalho  assíduo  e  dedi- 
cado. 

Os  numerosos  encargos  que  pesam  já  sobre  a 
minha  responsabiHdade  não  me  deixam  um  mo- 
mento de  sobejo  para  contrahir  novas  obrigações. 
Mas,  se  isso  se  dá  com  respeito  a  uma  collaboração  per- 
manente, não  succede  o  mesmo  com  outros  auxilios  que 
eu  possa  prestar  a  essa  utilíssima  publicação,  merecedora 
das  attenções  e  disvellos  de  todos  os  smceros  republica- 
nos. 

O  fim  a  que  se  propõe  a  Encydopedia  Republicana  é  a 
mais  digna  e  elevada  que  pode  conceber  uma  geração  íl- 
lustrada  e  generosa  de  escriptores  modernos,  sequiosos 
de  justiça  e  progresso,  procurando  elevar  o  nivel  intelle- 
ctual  da  sua  pátria  adormecida.  Perante  a  indilferença  e  o  sceptí- 
cismo  das  classes  dirigentes  em  o  nosso  paiz  e  a  ignorância  crassa 
dos  seus  homens  deslado  é  urgente  que  os  rapazes,  os  novos, 
tomem  a  direcção  de  um  grande  movimento  de  iniciativa  particu- 
lar, completamente  extremado  dos  serviços  de  chancella  oíTicial, 
com  que  se  procure  insiifílar  um  novo  oxigénio,  puro  e  vivificador, 
na  circulação  entorpecida  da  sociedade  portugueza. 

É  preciso  que  não  deixemos  retardar  de  forma  alguma  a  acce- 
leração  salutar,  tão  admiravelmente  imprimida  em  o  nosso  movi- 
mento progressivo  peia  solemnisação  imponente  do  Centenário 
de  Camões,  em  1880. 

Essas  festas  grandiosas,  exclusivamente  democráticas,  lançaram 
incontestavelmente  as  bases  do  nosso  rejuvenescimento  nacional. 


2  EíSí:y(:lopedia  republicana 


Desde  então  a  nossa  vida  intellecUial  lem  tido  uni  notável  augmen- 
to.  uma  energia  (|nasi  desconliecida:  as  publicações  litterarias  de 
toda  a  es[)ecie  (juasi  que  duplicaram;  as  bellas  artes  sahiram  da 
sua  habitual  atmiia,  annunciaii. -se  operas  porluguez.is,  proniove-se 
exposições  pai ticiilares  de  pintura,  auiuincia-se  paia  janeiro  pró- 
ximo a  abertura  -.a  impoi  lautíssima  exposição  de  arte  ornamental, 
notável   empreliendimenlo  que  honra  o  nosso  paiz. 

Para  assegurarmos  definitivamente  a  marcha  progressiva  da 
nossa  civilisação.  resta-nos  agora  não  perdermos  o  raro  ensejo  da 
Cenlenaiio  do  Marquez  de  Pombal.  A  significação  particularmente 
demociaíica  e  anli-clerical  que  se  deve  dar  a  esse  acto,  contri- 
buiria podero^^amenle  para  a,  ressar  a  sabida  do  nosso  povo  do  seu 
longo  período  de  inactividade. 

Mas  o  que  sobre  tudo  é  urgente  é  a  organisação  completa  ebem 
archítectada  de  um  vasto  plano  de  propaganda  pratica,  em  que  se 
ensine  ao  |)ovo.  menos  instruído,  o  que  elle  precisa  e  deve  saber. 
O  conhecimento  elementar  das  investigações  da  Sciencia.  em  todos 
os  ramos  da  actividade  humana,  é  tão  nectTssario  ao  homem  de  es- 
tado, ao  philosopho  e  ao  litterato,  como  ao  artista,  ao  operário,  e 
ao  próprio  camponez.  Todo  o  grupo  de  escríptores  reunido  para 
esse  íim,  toda  a  publicação  editada  com  esse  intuito,  torna-se,  pois, 
benemérita  da  pátria  e  credora  do  concurso  de  lodos  os  homens 
que  apostolísain  com  fé  ardente  a  causa  da  demociacia  e  da  ins- 
Irucção. 

É  o  caso  da  Encfjdnpedia  Republicana.  Por  isso,  saudando  com  af- 
fecto  os  seus  fundadores,  envío-lhes  os  meus  votos  sinceros  para 
'que  encontrem  no  favor  publico  a  prosperidade  e  incitamento  que 
merecem  os  seus  esforços  louváveis. 
Lisboa,  20  de  dezembro  de  1881. 

A.  P.  da  Silva  Lisboa. 


©SOS  fuaerarias  cm  BPortunicil 

Os  costumes  populares  são  os  restos  persistentes  de  épocas  so- 
ciaes  e  de  raças  que  se  transformaram;  a  sua  approximação  e  com- 
paração oílerece  uma  immensa  luz  histórica,  e  It^va  o  espiíilo  ao 
encontro  dos  processos  de  desenvolvimento  da  civilisação  iiumana. 
Nós  cremos  na  uniilade  da  Civilisação  occidenlal  não  só  pela  influen- 
cia da  incorporação  romana,  mas  porque  essa  civilisaçã()  se  basêa 
sobre  um  fundo  elhnico  commum,  que  se  reconsliue  |)ela  compa- 
ração dos  costumes  populares,  pelas  tradições,  superstições  e  cau- 
tos nacionaes.  Iremos  apontando  alguns  factos.  Um  anexim  portu- 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL 


guez  diz:  «Abiil,  aguas  mil,  coadas  por  um  íNí/z^r///.»  Com  o  tempo 
desappareceu  este  irajo,  e  conservou-se  a  rima,  alleraiido:  acoados 
por  um  funil».  O  maniiil  ainda  hoje  se  usa  na  Córsega,  onde  se 
consrvam  os  costumes  das  povoações  proto-italicas;  diz  Gregoro- 
vius:  «As  mulheres,  na  Córsega,  trazem  o  mandd,  um  pedaço  de 
panno  de  côr  que  lhes  cobre  o  rosto  o  qual  se  põe  liso  no  alto  da 
cabeça,  e  é  enrolado  em  volta  do  peito,  de  modo  que  se  lhes  não 
vê  os  cabellos.  O  mandil  nota-se  em  toda  a  Córsega;  tem  alguma 
cousa  de  oriental  e  de  mourisco,  mas  é  aborígene,  porque  nos  pró- 
prios vasos  etruscos  se  vêem  mulheres  com  elles.»  O  mcwdil  trans- 
formou-se  em  Portugal;  no  Algarve  ê  o  rebuço,  piopiiamente  mou- 
risco, no  norte  de  Portugal  é  o  lenço  de  cores  vivas,  amarrado  na 
cabeça  deixando  o  rosto  a  descoberto.  O  barrote  poiíteagndo,  preto 
ou  vermelho,  peculiar  do  homem  da  Córsega,  ê  ainda  usado  em 
Portugal  pelos  pescadores,  campinos  e  saloios;  Gregorovius  equipa- 
ra-o  ao  barrete  phrygio,  com  que  os  Romanos  symbolisavam  os 
bárbaros,  e  como  o  trajam  os  Dacios  na  coluiiuia  de  Trajano.  É 
também  frequente  no  norte  de  Portugal  o  carregarem  as  mulheres 
grandes  pezos  á  cabeça,  e  levarem  pelos  caminhus,  (piando  os  obje- 
ctos que  carregam  lhes  não  prendem  as  mãos,  uma  roca  em  que 
vão  fiando;  sur[irehende-nos  portanto  a  observação  de  Gregorovius 
«Assim  carregadas,  ellas  levam  ainda  muitas  vezes  a  roca  na  mão, 
e  fiam  andando.»  Esta  approximação  não  ê  forluila:  é  também  no 
norte  de  Portugal  que  se  observa  a  circumstancia  de  serem  as  mu- 
lheres que  cantam  a  poesia  tradicional,  como  já  Sarmienlo  notara 
para  as  mulheres  da  Galliza,  e  também  o  conservarem-se  nas  pro- 
vincias  do  norte  os  usos  funerários  dos  Clamores,  e  o  jantar  fúne- 
bre dado  aos  amigos  do  finado;  as  cantigas  populares  ainda  faliam 
nas  carpideiras,  que  hoje  já  o  não  são  de  prolissão,  mas  por  sym- 
pathia  compassiva  de  visinhança. 

Estes  costumes  portuguezes  devem  estar  muito  obliterados,  por- 
que as  Constituições  episcopaes,  e  Accordãos  municipaes  prohibiam 
o  bradar  sobre  finado,  e  o  dar  banquetes  por  occasião  de  falleci- 
mento;  comia-se  um  anho,  ou  cabrito  de  um  aiino,  d  onde  veiu  o 
enojo  ou  anejo  em  que  se  acha  a  familia  do  morto.  Pelos  costumes 
populares  da  Córsega,  em  que  as  mulheres  ê  que  cantam  os  Vo- 
ceros  junto  do  cadáver,  se  comprehende  o  costume  das  nudlieres 
de  Lisboa  que  cantavam  em  coro  dansando  junto  da  sepultura  do 
Condestavel  no  convento  do  Carmo,  como  se  vê  pelas  poesias  tra- 
dicionaes  conservadas  pelo  chronista  Azurara.  Gregorovius,  descre- 
vendo estas  mesmas  ceremonias  nos  costumes  acluaes  da  Córsega, 
diz:  «nas  montanhas  do  interior,  sobretudo  no  Niolo,  ellas  subsis- 
tem na  sua  força  antiga  e  pagã  e  parecem-se  com  as  dansas  fune- 
rárias da  Sardenha.  A  sua  rivalidade  dramática  e  o  seu  extasis  fu- 
rioso agita  e  amedronta.  São  só  as  mulheres  que  dansam  que  se 


EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


lamentam  e  cantam».  Gregorovius  accrescenta  descrevendo  essa  im- 
provisação dythirambica :  «O  coro  berra  a  cada  estropbe :  Dehf 
Deh!  Deh!y> 

Nós  não  pretendemos  levar  as  comparações  até  ás  analogias  ima- 
ginosas, mas  esta  neumíi  popular  ouvimol-a  nas  lavandeiras  de  Cane- 
cas, povoação  dos  arredores  de  Lisboa,  na  íórma:  Dah  !  Dah!  Daht, 
a  qual  porventura  tem  analogias  com  a  euskariana  Eloij^,  dos  can- 
tos bascos,  sobretudo  de  Índole  funeral.  Continua  Gregorovius : 
«Das  aldeias  visinhas  chegam  para  o  enterro  os  amigos  e  os  pa- 
rentes. Esta  multidão  reunida  chama-se  o  corleo,  ou  escolta,  ou 
scirrata.  e  também  na  Córsega  se  diz:  Andare  alia  scirrata,  quando 
as  mulheres  vão  juntas  á  casa  do  morto.»  A  palavra  ensarrado 
usa-se  ainda  no  Minho  para  significar  o  lucto  de  familia;  e  também 
das  aldeias  visinhas  vão  os  amigos  do  morto  assistir  ao  enterro, 
recebendo  na  egreja  um  pão,  uma  vela  de  cera,  e  vão  depois  as- 
sistir a  um  jantar  de  feijão  e  bacalháo ;  é  como  o  conforto  e  a  ve- 
glia  da  Córsega.  Os  amigos  do  morto  pagam  a  leitura  de  um  re- 
sponso, e  foi  por  esta  forma  que  a  egreja  substituiu  os  Clamores, 
ficando  ainda  a  designação.  A  generalidade  do  costume  do  banquete 
funerário  em  povos  da  antiguidade  de  diíTerenles  raças,  prova-nos 
que  este  uso  pertence  a  uma  camada  ethnica  proto-historica,  que 
persistiu  no  occidente  da  Europa.  Diz  Gregorovius:  «O  festim  fu- 
nerário entre  os  Phenicios,  os  Pelasgos,  os  Egypcios,  os  Elrus- 
cos,  consistia  sobretudo  em  feijões  e  em  ovos;  estas  duas  comidas 
são  symbolos  mysticos  da  força  vital  e  geradora,  activa  e  passiva, 
segundo  o  velho  mysticismo  oriental  e  pythagorico.  Hoje  em  dia, 
na  Sardenha  ainda  em  muitos  sitios  come-se  n"estes  banquetes  fei- 
jões e  ovos».  Estes  banquetes  fúnebres  são  usados  em  Portugal  no 
dia  dos  fieis  dehinlos,  em  Novembro,  e  ainda  ha  poucos  annos  a 
população  inferior  de  Lisboa  ia  passar  este  dia  para  os  cemitérios 
onde  comia  junto  das  sepulturas  as  suas  merendas.  Na  ilha  de  Sara 
Miguel  não  se  cosinha  na  casa  onde  morreu  alguma  pessoa  durante 
três  dias;  as  pessoas  amigas  é  que  mandam  o  jantar  de  fora,  que 
é  sempre  lauto,  para  brindar  lambem  as  pessoas  que  assistem  ao 
nojo  da  familia. 

Os  cantos  fúnebres  dos  Voceros,  só  têm  analogia  em  os  Fados 
portuguezes  como  o  da  Severa  e  o  do  Toureiro  namorado;  o  brado, 
de  uso  popular,  apparece-nos  na  forma  do  Baladro,  que  chegou  a 
penetrar  na  lilteratura,  como  o  Baladro  de  Merlin.  A  balíata,  ou 


1  A  própria  dansa  fúnebre  na  Sardentia  cliama-se  tiíio  ou  atito;  a  neuraa  dos 
Latinos  era  atat,  a  dos  Gregos  nas  tragedias  era  atototoi.  e  na  Allemanha,  como 
observa  Gregorovius,  ahtatatá.  é  o  grito  de  uma  grande  dor.  jSo  romance  popu- 
lar da  Infantina,  vera  a  neuma:  Táte,  late,  cavalleiro. 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL 


pantomima  funerária  acompanhada  de  canto  tivemol-a,  como  já 
notámos  com  relação  ás  dansas  e  cantigas  na  sepultura  do  Con- 
destavel;  esta  dansa  era  prohibida  por  uma  lei  de  Sólon,  chama- 
Y.a-se  o  lessiis,  e  as  Doze  Tábuas  puniam  o  lessus  como  um  cos- 
tume bárbaro.  Basta-nos  esta  circumstancia  para  concluirmos  que 
estas  cereraonias  fúnebres  pertencem  a  essa  raça  asiática  que  pre- 
cedeu na  Europa  os  Árias,  e  de  que  os  Bascos  são  os  mais  com- 
pletos representantes.  Na  Politica  de  Aristóteles  (liv.  iv,  cap.  2, 
§  6),  se  lé :  «Os  Iberos,  raça  bellicosa,  plantam  sobre  o  tumulo 
do  guerreiro  tantos  espetos  de  ferro,  quantos  os  inimigos  que  ma- 
tou.» 

A  incineração  dos  cadáveres,  ataviados  com  vestes  e  jóias,  era 
uma  ceremonia  dos  lusitanos  e  dos  gallegos,  ou  propriamente  cél- 
tica. Sibelo  e  Morguia  referem-se  a  urnas  cinerarias  achadas  nos  tú- 
mulos ou  mamôas  da  Galliza.  Como  a  incineração  cahiu  em  desuso 
entre  os  Gregos  e  Romanos,  veiu  também  este  costume  a  decahir 
na  civilisação  peninsular  sob  a  influencia  doestes  dois  povos ;  Ap- 
piano,  ao  descrever  a  incineração  de  Viriato,  chama  a  esse  rito  fu- 
nerário costume  bárbaro;  Tito  Livio,  ao  descrever  as  dansas  fune- 
raes  ordenadas  por  Annibal  em  honra  de  Graccho,  chama-lhes  tri- 
pudia hispanorum.  Estas  dansas,  que  tinham  um  caracter  sagrado, 
eram  acompanhadas  de  um  canto  lúgubre,  a  que  Siiio  Itálico,  re- 
ferindo-se  aos  lusitanos,  chama  barbara  carmina,  e  para  os  roma- 
nos eram  tão  característicos,  que  se  designavam  pelo  nome  de 
Hiberae  naeiíiae,  como  se  acha  em  um  proioquio  latino  colligido 
por  Erasmo.  Depois  dos  romanos,  a  Egreja  atacou  profundamente 
os  costumes  populares  prohibindo  essas  ceremonias  primitivas  que 
eram  o  vinculo  moral  da  familia  e  da  nacionalidade:  o  Concilio  de 
Toledo,  diz:  «Prohibimos  completamente  o  cantar  Carmes  fúne- 
bres, que  o  povo  costuma  entoar  aos  mortos.»  Vê-se  portanto  que 
nas  íinguas  vulgares  se  repeliam  esses  cantos,  alguns  dos  quaes 
persistem;  Costa,  na  Poesia  popular  Espaíiola,  consigna  o  facto: 
«Y  todavia  hoy  exislen  poblaciones  á  uno  y  otro  lado  dei  Pirineo, 
donde  permanece  la  costumbre  de  formar  el  duelo  los  hijos,  los 
padres,  la  esposa,  etc,  dei  defunto,  y  hacer  en  el  públicos  extre- 
mos de  dolor  y  ponderar  las  excellencias  dei  defunto.»  (Op.  cit., 
pag.  281.)  Existe  uma  profunda  diíTerença  ethnica  entre  os  povos 
que  enterravam  os  seus  mortos  e  os  que  os  incineravam;  Lubbock, 
no  seu  livro  O  Homem  anterior  d  Historia,  tenta  apresentar  esta 
característica:  «Não  se  pode  duvidar  que  durante  o  periodo  neoii- 
thico  da  edade  de  pedra  enterrava-se  ordinariamente  o  corpo  na 
posição  assentada.  Em  resumo,  parece  provável,  emboia  nada  pos- 
samos affirmar  positivamente,  que  na  Europa  occidental,  esta  posi- 
ção do  cadáver  caracterisa  a  edade  de  pedra,  e  a  incineração  a 
edade  de  bronze ;  ao  passo  que,  quando  o  esqueleto  está  esten- 


e><;yclofedia  republicana 


dido  pode-se  sem  iniiila  hesitação  allribuir  o  tumulo  á  edade  de 
bronze  ^» 

'  Os  escriptores  romanos,  que  descrevem  as  ceremonias  funeraes 
da  incineração  na  península,  caraclerisam-a  de  costume  bárbaro, 
como  Appiaiio  e  Silio  Itálico;  os  romanos  estavam  já  na  edade  de 
ferro  quando  occuparam  a  península,  e  por  isso  condemnavam  como 
nefando  esse  uso  da  edade  de  broiize.  Os  gregos  e  os  romanos  vie- 
ram encontrar  na  península  muitos  costumes  conhecidos,  porque 
eram  communs  ás  raças  que  os  precederam  na  Grécia  e  na  Itália, 
e  sobre  que  se  foioíaram  as  duas  nacionalidades. 

(Conelue)  Theophilo  Braga. 


lÊdeiías  e  instituições 


Um  dos  mais  illuslres  pensadores  contemporâneos  ainda  não  ha 
muito  que  formulou  esta  prohmda  verdade:  «As  concepções  novas 
paia  entrarem  na.  pratica  devem  vestir  novas  formas.»  Infehz- 
mente  poucos  são  aquelles  que  comprehendem  a  precisão  deste 
pensamento.  A  maior  parle  dos  políticos  desconhece  a  intima  re- 
lação (]ue  se  dá  enlre  as  ideias  e  as  instituições,  entre  as  concep- 
ções e  as  formas.  Por  isso,  vemos  constantemente  uma  descoorde- 
nação insensata  entre  os  princípios  adoptados  e  os  meios  propos- 
tos para  a  sua  applícação,  o  que  se  explica  pelo  predomínio  incon- 
sciente das  forças  stalicas,  mesmo  nos  cérebros  mais  avançados;  é 
assim  que  limitas  vezes  se  encontra  uma  opposição  manifesta  en- 
tre a  Iheoria  e  a  pratica,  ouvíndo-se  a  cada  passo  indivíduos  es- 
sencialmente conservadores  e  aucloritarios  (iízerem-se  republica- 
nos e  democratas  eni  theoria,  e  outros  completamente  descrentes 
e  alheos  defenderem  a  religião  como  uma  necessidade  social,  como 
um  freio  para  conter  o  desregramento  das  massas.  Kstes  e  outros 
preconceitos  e  contra-sensos  são  um  eífeito  natural  do  poder  da 
rotina,  da  Ui  da  inércia,  que  tem  muito  maior  iníhiencia  nas  for- 
mas e.xteriores,  na  pratica  material,  do  que  no  próprio  espírito 
das  cousas.  É  curioso  observar-se  o  que  se  passa  na  vida  politica; 
a  reacção,  a  opposíção  faz-se  mais  á  mudança  das  instituições, 
á  transfoimação  das  formulas,  do  que  aos  princípios  em  si.  Pro- 
gressistas e  conservadores  estão  ordinariamente  de  accordo  par- 


1  Op.  cit..  pag.  107.  Trad.  Barbier. 


o  HOMEM  DAS  CAUTELAS 


tindo  de  lados  oppostos;  os  primeiros  querem  a  substituição  das 
ideias  e  acceilam  sem  difficnldade  as  formulas  ve'i!as:  os  segundos 
querem  a  todo  o  transe  a  manutenção  das  instituições  consagra- 
das pelo  tempo,  muito  embora  as  ideias  mudem.  Os  progressistas 
só  vêem  o  lado  llieorico,  e  os  conservadores  só  o  lado  pratico. 
Nem  uns,  nem  outros  comprehendem  a  coordenação  natural  e  a 
dependência  mutua  da  tlieoria  e  da  pratica.  É  deste  falso  critério 
que  parte  todo  o  deseuuilibi  io  social.  Os  princípios  políticos  e  so- 
ciaes,  geralmente  admiltidos  hoje,  e  mesmo  consignados  nas  leis. 
Dão  encontram  ainda  a  sua  racional  e  necessária  applicação  no  des- 
envolvimento orgíiuico  da  sociedade;  do  mesmo  modo  que  formu- 
las indispensáveis  exigidas  no  exercício  das  funcções  políticas  e  ci- 
vis não  correspondem  por  forma  alguma  a  princípios  ou  a  ideias 
que  prodominem  no  espirito  publico.  Assim  succede  a  cada  passo 
na  sociedade  portugueza.  Por  exemplo,  o  principio  da  liberdade 
de  consciência  achase  estabelecido  na  lei  fundamental,  e  exige-se 
o  juramento  calholico  nos  actos  jjidiciaes  e  legishitívos  e  certidão 
do  comportamento  religioso  nas  habilitações  para  qualquer  em- 
prego publico. 

Esta  incolierencia,  hoje  tão  geral,  é  que  leva  entre  nós  os  pro- 
gressistas e  os  constituintes  a  pedirem  reformas  impraticáveis  den- 
tro do  regimen  monarchico  com  que  transigem,  e  mesmo  muitos 
republicanos  a  contentarem-se  com  a  simples  substituição  do  mo- 
narcha  por  um  presidente  eleito  temporariamente,  mantendo  era 
tudo  mais  o  systema  centra lisador  de  administração  que  nos  rege. 

É  preciso  que  os  republicanos  portuguezes  não  esqueçam  o 
pensamento  de  Wyruboff:  «As  concepções  novas  para  entrarem 
na  pratica  devem  vestir  novas  formas.»  Da  comprehensão  d'esta 
verdade  e  da  sua  applicação  depende  o  rápido  desenvolvimento  das 
sociedades  modernas.  As  formulas  e  as  instituições  sociaes  de- 
vem-se  ir  alargando,  modificando  e  substituindo  á  proporção  que 
novas  ideias  e  princípios  entrarem  no  domínio  da  opinião  publica. 
Sem  isso  o  progres«;o  não  será  uma  condição  da  ordem  e  a  Repu- 
blica uma  forma  política  que  equilibre  incessantemente  as  forças 
stalicas  e  as  forças  dynamicas. 

Teíxeira  Bastos. 

O  ÍSonieni  aas  Èauteítis 

(episodio  da  i\ua) 

o  Samuel  trabalhava  como  um  moiro  do  nascer  ao  pôr  do  sol 
e  nada  lhe  luzia:  o  sustento  d'elle,  da  mulher  e  dos  filhos,  levava- 
Ihe  tudo.  Era  realmente  uma  vida  atribulada,  de  suor  contínuo, 


ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


que  o  não  deixava  coalhar  um  vinlensito  para  negocio,  ao  passo 
que  muitos  mandriões  passavam  n"um  regalo  de  invejar. 

—  Nada,  isto  assim  não  vai  bem; — dizia  elle  muitas  vezes  cora- 
sigo  mesmo  —  a  rapaziada  augmenta  e  eu  não  tenho  que  lhe  dei- 
xar: uma  desgraça,  uma  desgraça, —  terminava  baixando  a  cabeça 
e  n'um  tom  muito  triste. 

Quando  á  noite  voltava  do  trabalho  punha-se  a  scismar  na  ma- 
neira de  fazer  algumas  economias;  e  se  manifestava  estes  desejos 
á  mulher,  esta  dizia  lhe  logo: 

—  A  gente  passa  tão  mal,  homem. ..  nem  nos  chega  p'ra  co- 
mer! A  Mariquinhas  está  quasi  nua,  o  nosso  António  anda  descalço 
desde  que  nasceu...  é  uma  miséria  de  louvar  a  Deus.  Ainda  tu 
falias  em  juntar  !. . . 

—  Pois  sim,  mas  a  labutação  na  fabrica  é  que  não  pode  tirar- 
nos  os  pés  da  lama. 

Um  dia,  depois  de  muitos  tratos  aos  miolos,  disse  á  companheira, 
que  amamentava  duas  creanças  gémeas: 

—  A  vida  assim  é  o  diabo,  Joanna.  Ando  cá  a  matutar,  e  re- 
solvi . . . 

A  mulher  olhou-o  fi.\amente  como  a  interrogal-o. 
Elle  continuou: 

—  Ora. . .  tu  tens  p'r'ahi  ainda  esse  cordão  e  essas  argolas  do 
casamento,  que  valem  algum  dinheiro;  vendem-se  e  eu  faço  um 
negocio. . . 

Joanna  ficou  estupefacta. 

Era  o  único  thesouro  que  possuia  d'outros  tempos  talvez  mais 
felizes.  Fora  o  seu  único  dote  comprado  com  o  próprio  suor  de 
muitos  annos  de  servidão.  Que  lagrimas  não  derramou  ella  lodo  o 
tempo  que  andou  de  casa  em  casa,  aturando  os  maus  modos  das 
patroas,  as  oíTensas,  as  reprehensões,  quasi  sempre  génios  insup- 
portaveis !  Foi  uma  escrava,  uma  negra,  e  aquelles  tristes  objectos 
de  ouro  que  possuia,  se  podessem  fallar,  muito  leriam  que  dizer. 
—  Que  só  se  desfaria  d'elles  para  acudir  a  uma  grande  necessi- 
dade—  disse  ella  depois  de  curto  silencio.  O  marido  proseguiu: 

—  Olha,  mulher,  a  fortuna  dà-a  Deus  ou  o  Diabo.  Bem  sei  que 
mercaste  aquillo  com  as  tuas  soldadas  de  muitos  annos:  mas  a  gente 
precisa  de  ganhar  a  nossa  vida  e  olhar  pela  sorte  d'essas  creanças. 

—  Mas  que  queres  tu  fazer,  homem  de  Deus?  Arriscar?  Olha 
que  os  negócios  vão  maus  e  está  tudo  pelos  olhos  da  cara !...  De- 
pois andas  sempre  a  comprar  cautelas...  Bem  snbes  que  se  gasta 
muito  dinheiro  que  era  melhor  empregar  nos  nossos  arranjos.  A 
gente  tem  tanta  precisão...  Credo,  nem  sei  que  fazer  á  minha 
triste  vida ! 

Samuel  passeiava  d'um  para  o  outro  lado  da  casa,  com  a  cabeça 
baixa,  pensando. 


o  HOMEM  DAS  CAUTELAS  9 


Era  domingo.  Ranchos  passavam  para  a  missa  em  ar  bem  pouco 
devoto:  eram  operários  do  bairro  e  famílias  burguezas.  Samuel 
chegara  á  janella.  Os  conhecidos  fallavam-lhe:  uns  desafiando-o  «a 
que  sahisse,  que  viesse  reinar  um  bocado «  outros  dizendo-lhe  «que 
parecia  uuja  cara  de  condemnado.»  Elle  sorria-se  hgeiramente, 
com  um  sorriso  triste,  desconsolado. 

Depois  vollando-se  para  a  mulher: 

—  Não  sei,  Joanna.  O  Thomaz  parece  um  trumpho;  o  Januário 
da  Linda,  renta  a  olhos  vistos,  a  umlher  sempre  aceada  e  os. pe- 
quenos, ganhando  o  mesmo  que  eu.  Só  co  suor  da  fabrica  não 
pode  ser.  O  Anselmo,  dizem  pr'ahi  que  teve  uma  sorte,  e  por  isso 
elle  berra  que  é  uru  gosto.  O  João  Evangelista,  é  o  que  se  vê;  o 
António  da  Justa,  tosca-me  a  que  temo  seu  negocio  particular  que 
lhe  deixa  a  valer;  aliás,  não  teria  amante,  nem  faria  hanquezas. 
Uns  deixaram  a  fabrica  quando  baixaram  os  salários  e  lá  vivem; 
outros  não  quizeram  mais  ser  operaiios.  e  d'ahi  p'ra  cá  parece  que 
a  sorte  os  protege.  Todos  os  meus  companheiros,  aíóra  eu,  o  Je- 
ronymo  da  Canellas,  e  o  Miguel,  dizem-me  que  estão  bem.  'iomo 
isto  é,  confesso  que  não  atiu),  com  mil  raios.  Todos  vão  p"ra  diante 
6  só  eu  Mco  pra  traz. 

Joanna  ouvia-o  com  serenidade  tratando  dos  pequenos. 

—  Tem  paciência,  homem,  não  somos  só  nós  os  infelizes  cá  na 
classe.  Eu  bem  n'os  ouço.  Ohia,  a  .Maitha,  coitada,  queixa-se  que 
o  marido  ha  já  duas  semanas  que  não  traz  a  feria  ;  a  Michelina, 
também  chora  la,L' rimas  de  sangue  por  lhe  não  cliegar  p'ra  nada 
o  ganho  do  marido,  mas  lá  vai  vivendo  como  eu,  graças  a  Deus. 
Teremos  paciência,  não  te  amofines,  homem. 

—  De  paciência  que  viva  o  diabo;  eu  é  que  já  estou  farto.  Pre- 
cisamos dar  alguma  volta  á  vida,  e  eu  lenho  cá  umas  ideias  que 
não  devem  falhar. 

—  Se  tens  alguma  cousa  em  vista . . . 

—  Olá  se  tenho!  Daqui  a  pouco  param  os  trabalhos  da  fabrica, 
segundo  já  me  zumbiram  aos  ouvidos.  Estou  cansado  d'aquella 
maldita. .  .  sinto-me  arrebentado,  doente. . . 

— Vè  lá,  Sanuiel,  se  não  tens  cuidado  em  ti  —  acudiu  Joanna  — 
olha  que  eu  não  lenho  mais  ninguém  no  mundo...  Será  uielhor 
consultar  alguém. . . 

—  Qual  historia,  o  meu  mal  é  outro. 

—  Outro?!... 

—  Pois  então?  Já  to  disse,  mulher. 

—  Ah! 

A  pobre  creatura  pareceu  então  comprehender  o  pensamento  do 
marido,  e  como  resignada  continuou: 

—  Se  nascemos  pra  viver  sempre  assim,  que  lhe  havemos  de 
fazer?  A  gente  não  tem  outro  remédio  senão  acostumar-se. 


10  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

—  Sim,  mas  é  nossa  obrigação  olhar  por  essas  creanças. 

—  Tens  outra  cousa  em  vista,  Samuel? 

—  Tenho.  E  tu  a  repisares !  Vendem-se  essas  cousas  que  pozeste 
pela  primeira  vez  no  dia  do  nosso  casamento,  que  de  nada  servem, 
e  eu  melto-me  a  cauteleiro,  ora  ahi  está. 

—  Tens  cada  lembrança..  .  Cauteleiro! 

—  Bem  vejo  os  outros  de  relógio  e  cadeia  e  corpo  direito.  As 
encommendas  e  os  palpites  é  que  se  quer. 

—  Lembra-te  d"uma  doença,  homem. 

—  Qual  doença  nem  qual  diabo  f  Em  ella  vindo  cá  estou.  A  fa- 
brica é  que  não  pode  dar. . . 

—  Não  faças  tolices,  Samuel,  tem  juízo,  creatura. 

—  Não  quero  saber.  Isto  é  um  prego  que  trago  na  mioleira. 
Joanna  ficou  pensativa.  No  seu  espirito  havia  um  tropel  de  ideias 

contradictorias.  O  marido  insistia  pela  venda  da  única  cousa  de  va- 
lor que  possuía  —  o  seu  cordão  e  os  seus  brincos  —  que  desejaria 
conservar  no  bahu  até  morrer.  A  sabida  d'aquelle  ouro  de  casa, 
era  para  ella  como  que  o  fantasma  da  desgraça.  Aquelle  pouco 
ainda  assim  animava-a  quando  pensava  per  alguns  momentos  na 
doença,  na  miséria  que  esta  sempre  traz  aos  pobres  que  só  vivera 
do  seu  trabalho.  Sentia  o  coração  opprímido  e  presentimentos  va- 
gos a  entristeciam.  Não  poude  conter  duas  lagrimas  que  lhe  cor- 
reram pelas  faces  magras,  d'uma  pallidez  de  cera.  Ella  fora  sem- 
pre muito  arranjada  e  amiga  do  seu  ninho.  Soffreu  com  resignação 
de  martyr,  o  génio  terrível  d'algumas  senhoras  suas  patroas.  Ser- 
viu, porque  se  achou  de  muito  nova  órfã  de  pae  e  mãe.  Cedo  co- 
meçou na  lucta  activa  pela  vida,  a  ganhar  para  si  e  para  uma  ir- 
mãsinha  que  morreu  pouco  tempo  depois  da  mãe.  Joanna  pensou 
muitas  vezes  que  se  o  seu  casamento  com  Samuel,  —  que  lhe  pa- 
recia um  rapaz  honrado, —  não  lhe  trazia  um  mundo  de  venturas, 
porque  eram  ambos  pobres,  dava-lhe  ao  menos  um  amparo  e  pro- 
tecção, pois  que  ella  não  tinha  mais  ninguém.  Ficava  satisfeita  com 
a  amisade  dum  homem  que  também  amava,  e  como  nunca  foi  rica 
não  extranharia  os  revezes  da  vida.  Era  maior  ventura  o  casar  do 
que  viver  sempre  debaixo  do  dominio  dos  amos.  Agora,  compa- 
rando a  sua  situação  de  mulher  casada  com  a  de  criada  de  servir, 
mas  livre  de  cuidados,  tornava-se-lhe  diCQcil  assentar  definitiva- 
mente qual  dos  dois  estados  era  mais  feliz.  Tinha  um  certo  amor 
áquelles  objectos,  que  tomaram  as  proporções  d'uma  pequenina 
propriedade.  Toda  a  sua  fortuna  estava  ali. 

No  dia  seguinte,  Samuel,  vindo  almoçar,  foi  ao  bahu  e  tirou-os, 
emquanto  a  mulher  dava  um  recado  a  uma  visinha  do  lado.  As 
mãos  tremiam-lhe  como  se  commetlesse  uma  profanação.  Pareceu- 
Ihe  n'aquelle  momento  que  aquillo  era  sagrado,  julgando-se  por  isso 
um  criminoso.  Sentiu-se  como  o  ladrão  por  alta  noite  roubando  as 


o  HOMEM  DAS  CAUTELAS  11 

l  —  :z= 

alfaias  (l'uma  egreja.  xMeditou  por  um  pouco.  Esteve  com  o  ouro 
DBS  mãos,  que  sentia  quentes  como  fogo;  escaldavam.  Hesitou. . . 
Depois,  enchendo-se  de  coragem,  reagiu  contra  um  sentimento  de 
respeito,  quasi  sagrado,  por  aquelles  objectos  da  sua  pobre  Joanna, 
que  julgou  n'esle  instante  relíquias  santas.  Se  ella  estivesse  em  casa 
n'aquelle  momento,  não  se  atreveria;  era  uma  barbaridade  prival-a 
do  que  elia  dizia  serem  os  seus  «únicos  recursos  para  um  momento 
de  aíílicção.»  Isto  aos  olhos  d'ella,  era  mais  duro  ainda,  mais  cruel. 
Joanna  tivera  a  ideia  de  esconder  as  suas  jóias  do  casamento;  mas 
julgando  que  o  marido  não  mais  insistiria,  repellindo  do  cérebro  a 
ideia  que  revelou,  deixou-os  ficar.  O  seu  Samuel  era  bom  rapaz. 
Jà  elle  tinha  o  cordão  e  as  argolas  no  bolso,  quando  a  mulher  en- 
trou, com  ar  alegre  e  bondoso.  Samuel  corou  vivamente,  como  a 
creança  apanhada  em  flagrante  d'a!gum  pequeno  e  innocenle  de- 
licio. Joanna  não  sabia  lêr  nas  physionomias  e  não  deu  pela  per- 
turbação do  marido.  Klle  vacillou  ainda  e  esteve  próximo  a  confes- 
sar. Como  o  criminoso  que  sente  o  toque  nervoso  do  arrependi- 
mento defronte  d'um  juiz  severo  que  o  vai  condemnar,  assim  o 
operário  se  achava  embaraçado  em  presença  da  companheira  fiel 
que  sempre  o  consolou  com  uma  bondade  santa. 

—  Até  logo  —  disse  elle  depois  d'um  instante  de  hesitação  an- 
gustiosa. 

A  ideia  de  que  poderia  deixar  a  fabrica  e  juntar  algum  dinheiro 
pelo  negocio  das  caiitelis,  encheu-o  danimo. 

Quando  entrou  n'uma  ourivesaria  da  rua  do  Ouro,  esteve  por 
momentos  a  retirar-se  e  ir  entregar  tudo  á  sua  Joanna,  pedindo- 
Ihe  perdão.  Nunca  a  imagem  da  mulher  se  lhe  apresentou  tão  viva 
na  imaginação.  Viu-a  por  instantes,  com  o  seu  ar  meigo  e  doce, 
com  uma  serenidade  admirável,  fital-o  como  a  pedir-lhe  contas. 
Elle  viu-a  sorrir,  com  as  duas  creanças  ao  peito  e  apertando-as 
com  ternura  entre  mil  caricias  e  beijos.  Depois  ella  pranteava  a 
sua  triste  sorte,  dando  por  falta  do  que  lhe  custara  tantos  annos 
de  sacrifícios,  soluçando,  banhada  em  lagrimas,  que  escaldavam. 
Poz  sobre  o  balcão  os  objectos  e  ajustou.  0. ourives  disse-lhe  o 
peso.  Regatearem.  Novamente  a  recordação  de  Joanna  veiu  ao  es- 
pirito de  Samuel  como  uma  cousa  importuna.  Era  d'uma  persegui- 
ção horrível  aquella  ideia  !  Pareceu-lhe  ver  outra  vez  a  mulher  com 
a  sua  pallidez  de  mármore,  a  sua  magreza  excessiva  e  ao  mesmo 
tempo  sympathica,  que  lhe  supplicava  de  joelhos,  pela  saúde  dos 
filhos,  afflicta.  que  a  não  privasse  do  que  estava  reservado  para  a 
doença  ou  a  falta  absoluta  de  trabalho.  Depois  ouviu-a  no  auge  do 
desespero,  já  quando  não  tinha  esperanças,  condemnal-o  severa- 
mente, lançando-lhe  em  rosto  a  sua  crueldade,  chamando  lhe  «la- 
drão, miserável  í»  As  mãos  de  Samuel  tremiam  e  o  rosto  tinha  essa 
expressão  amargurada  do  homem  que  lucta  intimamente.  O  ouri- 


12  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

ves,  desconfiando  do  operário  pela  sua  bem  manifesta  perturbação, 
disse-llie  «que  não  comprava». 

Samuel  saliiu  como  se  nada  ouvisse.  Caminhava  automaticamente, 
vergado  sob  o  peso  das  suas  ideias  opposlas,  contradictorias,  que 
se  lhe  revolviam  no  cérebro,  como  apertadas  por  um  circulo  de 
ferro.  A  figura  de  Joanna  lá  ia  adiante  de  si,  saltando-lhe  da  ima- 
ginação ás  vezes  mais  distincta.  mais  perfeita,  como  a  estampar-se 
n"uma  tela  lúgubre,  sombria.  Quando  já  havia  andado  um  bocado, 
parou;  e  num  momento  de  arrependimento  voltou  alraz  decidido 
a  desistir  do  seu  propósito.  Mas  a  maldita  ideia  perseguia-o  como 
iim  ser  diabólico  e  cruel.  Um  pensamento,  saltando  como  uma  faisca 
eléctrica  do  fundo  d"um  cabos,  ilhiniinava-lhe  de  repente  um  qua- 
dro scintillante  —  era  o  do  futuro: — outro,  saliindo  lá  do  fundo  da 
consciência  como  envolvido  numa  sombra  negra  e  abafado  por  uma 
tristeza  fúnebre,  gritava-lhe  que  olhasse  para  a  mulher  e  filhos, 
pinlando-lhe  todas  as  scenas  de  desolação  e  amargura  do  lar  —  era 
o  do  presente  —  com  o  malhar  continuo  na  fabrica,  com  os  sorri- 
sos e  cuidados  domésticos,  a  alegria  passageira,  apparenie  para 
animar,  e  a  tiisteza  pungente  da  falta  de  meios.  O  que  mais  se- 
duzia o  seu  espirito  era  o  primeiro,  de  vagos  attractivos,  mas  por 
isso  mesmo  provocante.  Samuel  queria  intentar,  tocar  ivaquella  nu- 
vem e  fugir  à  realidade  presente.  A  sua  resolução  foi  inabalável, 
decidiu-se.  O  futuro  lambem  é  real.  Knirou  na  rua  Augusta,  e  lá 
fez  o  sen  negocio.  O  metal  deu-lhe  uma  expressão  animada,  mas 
passageira:  qnasi  que  teve  remorsos  do  que  havia  feito.— Se  não 
fosse  feliz  —  pensava,  a  lição  seria  tremenda.  Não  confiava  já  na 
sorte  e  a  imagem  da  mulher  perseguia-o.  Luctou  ainda  contra  cer- 
tas ideias  vagas,  esforçando-se  por  aniquilal-as.  Por  momentos  o 
quadro  scintillante  se  de.>ffz  em  fumo  que  se  evaporava.  Fallou- 
Ihe  instantaneamente  aquella  crença  nas  felizes  realidades  da  vida. 
Viu  que  o  presente  era  certo,  mas  o  porvir  incerto;  uma  mutação 
completa  no  seu  espirito  que  já  se  não  podia  conservar  indeciso, 
porque  o  que  estava  feito,  feito  estava.  Levou  muito  tempo  nisto  e 
por  fim  entrou  num  cambista,  empregando  quasi  todo  o  prodncto 
da  venda  do  ouitj  da  sua  Joanna.  em  cautelas  da  loteria  de  Ma- 
drid. Tinha  o  cerebio  em  febre  de  fogo,  e  uma  certa  fraqueza  no 
corpo. 

Era  meio  dia,  a  hora  dos  directores  geraes  e  chefes  de  secreta- 
ria. Os  transeuntes  acotovellavam-se  na  rua  do  Arsenal,  no  gyro 
das  suas  occupaçoes  quotidianas.  Estava  um  dia  triste  e  sombrio, 
d'esses  dias  que  nos  desalentam,. trazendo-nos  um  mal  estar  pro- 
fundo ao  espirito  que  se  debate  em  decepções ;  uma  atmosphera 
das  que  mais  affectam  os  organismos  sensíveis.  Samuel  dirigiuse 
a  um  transeunte  offerecendo-lhe  um  decimo.  Um  policia  que  o  ob- 
servava do  angulo  duma  esquina,  appro.\imou-se  do  cauteleiro  dan- 


o  HOMEM  DAS  CAUTELAS  13 

do-lhe  a  voz  de  «preso».  Uma  bomba  que  estoirasse  aos  pés  de 
Samuel,  descuidado,  não  produziria  tanlo  effeilo  no  seu  auimo  sin- 
cero. Foi  um  choque  horrível  causando-lhe  um  eslremecimenlo  ge- 
ral. Um  homem  a  quem  lira.vsem  todo  o  sangue,  não  ficaria  tão 
pallido  como  elle.  Uma  vertigem  eslonteou-o  e  um  suor  frio  lhe 
assomou  á  fronte.  Falíou-lhe  a  luz  dos  olhos  e  teve  de  encostar-se 
á  parede  para  não  cahir,  levado  apenas  pelo  instincto  de  conser- 
vação que  faz  o  homem  agarrar-se  a  tudo.  Depois,  passados  alguns 
instantes,  reagiu  com  o  policia.  Houve  um  momento  de  lucta.  Ha- 
via já  na  rua  grande  numero  de  espectadores,  que  disfructavam 
aquella  scena  impassíveis.  Samuel  segurava  as  cautelas,  como  se 
toda  a  sua  vida  estivesse  ali. 

— Matem-me— dizia  elle — mas  não  saio  d'aqui. 

— Anila  lá  p'ra  diante— gritava  o  policia  brutalmente. 

No  intimo  d'aquelle  homem  dava-se  uma  lucta  medonha.  A  ca- 
beça cahia-lhe  sobre  o  peito.  Tinha  a  expressão  das  supremas  an- 
gustias. O  seu  único  thesoui'o  estava  n^aquelle  contrabando  que 
escondia  no  seio  aos  olhos  de  todos,  não  vendo  ninguém. 

O  rapazio  cercava-o,  rindo  daquelle  Hercules  vencido  pela  auc- 
toridade,  contra  a  qual  já  não  resistia.  Faltavam-lhe  as  forças  e  a 
coragem,  vendo  n'um  quadro  instantâneo  a  sua  Joanna  e  os  íilhi- 
nhos,  a  fabrica  e  os  seus  companheiros  do  trabalho,  estes  alegres, 
aquelles  vertendo  lagrimas  de  sangue.  Toda  a  força  moral  estava 
perdida,  n"um  momento  aniquilada  I 

Supplicou  em  tom  commovente  que  o  deixassem,  que  lhe  pou- 
passem ao  menos  a  fortuna  que  não  era  sua  e  que  reverenciava 
com  o  respeito  devido  ás  cousas  sagradas. 

—Pelo  amor  de  Deus.  senhor— balbuciava  elle,  rebentando-lhe 
as  lagrimas  como  uma  creança. 

—Guarda  isso  lá  p'r'a  egreja— respondeu  seccamente  o  policia 
empurrando-o. 

O  pobre  homem  ia  arrastado.  A  garotagem  inconsciente  lambem 
se  sensibilisou!  e  alguns  sugeitos  bem  trajados  aconselhavam  o 
operário  a  que  «fosse. . .» 

— Obedeça,  homem,  obedeça  que  é  melhor. 

Samuel  teve  um  instante  de  animo  envergonhando-se  d'aquella 
triste  scena  em  que  elle  hgurava,  escarnecido  talvez  de  todos. 
Desejaria  antes  morrer!  O  quadro  da  família  sobretudo  é  que  o 
contristava:  agilou-se  n'elle  um  mundo  de  pensamentos  e  preferia 
a  perda  total  da  liberdade  ao  despojarem-n'o  do  valor  que  diligen- 
ciava esconder.  Como  o  homem  caminhando  para  o  patíbulo,  assim 
ia  elle  precedido  dos  curiosos  e  ociosos  da  rua. 

No  governo  civil  tornou  a  implorar,  mas  a  auctoridade  superior 
respondeu-lhe  com  um  sorriso  irónico  mandando-o  apalpar. 

Samuel  então,  fazendo  um  esforço  supremo,  reagiu  com  todas 


14  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICADA 

as  forças  da  sua  alma.  Isso  custou-lhe  alguns  mezes  de  prisão, 
embora  elle  repelisse  muitas  vezes  que  «prendessem  também  os 
cambistas,  que  vendiam  de  porta  aberta  a  mercadoria  prohibida.» 

Lá  ficou  envolvido  na  engrenagem  da  acção  preventiva  da  auc- 
toridade. 

Joanna,  sabendo  o  acontecido,  soffreu  um  choque  violentíssimo 
e  cahio  doente,  com  a  alma  despedaçada.  Tudo  que  havia  em  casa 
foi  empenhado  na  miséria. 

Sahindo  da  prisão  o  operário,  achou  preenchido  o  seu  logar  na 
fabrica.  Procurou  trabalho  por  toda  a  parte,  mas  como  era  em 
tempo  de  crise  todos  lhe  diziam  «que  fosse  procurar  vida.»  Era  a 
expiação  do  seu  desvario.  Uma  noite,  batido  pela  fome,  ouvindo  a 
mulher  gemer  estendida  sobre  a  misera  enxerga,  e  os  tilhos  a  cho- 
rar por  pão,  sahio  de  casa  com  a  cabeça  perdida  e  foi  pedir  es- 
mola. 

Repellido  por  uns,  insultado  por  outros,  desatteiidido  pelos  que 
passavam,  o  acaso  o  salvou  de  não  ser  agarrado  pela  policia  por 
mendigo. 

Todo  aquelle  esforço  era  inútil  para  resistir  á  fome,  á  miséria, 
á  doença  e  á  morte  que  lhe  assaltavam  a  casa  e  lhe  foram  dia  a 
dia  decepando  a  familia.  No  fundo  do  seu  abysmo,  abandonado  á 
sua  fatalidade,  repetia  muito  comsigo: 

—  Sou  tão  desgraçado,  que  todos  me  olham  com  despreso. 
Passando   por  uma  rua  deu  com  os  olhos  numa  taboleta  com  o 

seguinte  letreiro:  Sociedade  Protectora  dos  Animaes.  Elle  submer- 
gido nos  seus  pensamentos,  disse: 

—  Se  eu  fosse  um  cão  ainda  me  Irariam  p'r'aqui.  Com  esta  fi- 
gura de  gente,  nem  já  o  esfola  dava  por  mim  um  pataco.  Agora, 
só,  n'este  mundo,  não  tenho  mais  do  que  arrebentar  ahi  p'ra  um 
canto  ! 

Reis  Dâmaso. 


BiegFipklig 

I 
Mlanuel  FeruKrKie.s  Tlioiiiaz 

Cabe-n'os  a  honra  de  abrir  esta  secção  onde  os  vultos  mais  no- 
táveis da  democracia  portugueza,  vão  ter  logar  condigno  aos  seus 
gloriosos  feitos  em  favor  da  pátria  e  da  liberdade. 

Não  queremos  nós,  republicanos,  privilégios  entre  os  vivos, 
mas  forçoso  é  que  os  admitíamos  entre  os  mortos ;  condemna- 


MANUEL  FERNANDES  THOMAZ  15 

mos  OS  grandes,  os  patriarchas  cá  na  terra  e  a  consciência  diz- 
n'os  que  alevantemos  bem  alio,  em  os  escudos  populares  os  gran- 
des e  os  patriarchas  da  liberdade,  da  sciencia,  do  trabalho,  do  ci- 
vismo, os  homens  honrados,  os  profundamente  crentes  na  fé  da 
regeneração  sociaL 

Pois  seja  assim.  Demos  logar  primeiro,  n'esta  galeria  que  nos 
cabe  começar,  ao  enorme  vulto  do  notável  conspirador  que,  de 
1818  a  24  d'agosto  de  1820,  soube  minar  nas  trevas  o  poder  dos 
senhores  por  direito  divino. 

Biographemos  os  mortos  que  melhor  souberam  transformar 
em  planos  ridentes  os  escalvados  montes  que  o  velho  regimen  quiz 
por  trincheiras;  biographemos  aquelles  que  mais  apagaram  as 
sinistras  projecções  dos  séculos  pretéritos,  onde  o  terror  es- 
trangulava a  onsciencia  publica,  em  favor  dos  que  tinham  lanças  e 
espingardas  com  que  decretavam  em  nome  do  direito  de  conquista, 
como  o  corsário  com  mais  risco  e  mais  lealdade  se  impõe  em 
nome  da  força.  Biographemos  aquelles  que  atravez  de  mil  perigos, 
jogando  a  cabeça  e  a  família,  souberam  lançar  a  semente  da  li- 
berdade onde  tinham  raizes  bera  entrelaçadas  os  castellos  roquei- 
ros dos  velhos  suseranos. 


Estamos  ainda  á  beira  de  um  tumulo  que  ha  pouco  abriu  a  gar- 
ganta implacável  para  levar  ás  entranhas  da  terra  o  ultimo  dos 
revolucionários  de  1820. 

Ainda  vemos  o  cadáver  do  veneranda  Basilio  Alberto  de  Souza 
Pinto,  aquelle  que  no  memorável  congresso  constituinte  de  ha  ses- 
senta annos,  proclamou  o  livre  pensamento  sendo  o  primeiro  pela 
lei  sobre  liberdade  d'imprensa;  ainda  estão  quentes  as  cinzas  do 
derradeiro  d'aquella  centena  de  heróicos  patrícios,  que  tinham  de 
cumprir  um  juramento  sagrado  recolhido  por  Fernandes  Thomaz, 
eque  este  prestara  em  nome  da  palria  e  da  humanidade  oífendida, 
aos  clarões  sombrios  das  chammas  que  reduziram  a  cinzas,  depois  de 
garrotados,  os  infelizes  conspiradores  de  1817.  Ainda  soluça  a  fami- 
lia  liberal  porque  perde  a  relíquia  da  ultima  geração  de  valorosos 
cavalleíros  pelas  modernas  soluções  socíaes,  por  isso  á  beira  d'a- 
quelle  tumulo,  no  meio  do  luto  da  pátria  nos  suggeriu  prestar  hu- 
menagem  à  memoria  de  Fernandes  Thomaz,  primeiro  chefe,  cora 
Ferreira  Borges,  do  movimento  mais  glorioso  da  nossa  historia  li- 
beral. 

Com  Fernandes  Thomaz  abriraos  a  galeria  dos  democratas  de  ha 
mais  de  meio  século,  de  quem  podemos  colher  bons  exemplos  e 
ensinamento.  Geração  nova,  mal  pensamos  o  que  custou  a  nos- 


i6  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

SOS  avós  a  herança  da  liberdade  que  delles  recebemos.- Livres  do  7«/- 
zo  da  incon/idencia  a'mí]i\  se  nos  afigura  distante  o  advento  da  Repu- 
blica, sem  nos  virá  mente  (]iie  os  cam[)Osda  democracia  bem  férteis 
ficaram  com  o  sangue  dos  luctadores  da  ultima  geração.  Engano 
evidente  o  nosso.  Mais  um  pouco,  uma  pequena  lucta  entre  povo 
e  rei,  entre  republicanos  e  conservadores,  e  então  se  [)rovará  que 
já  não  podem  valer  as  Santas  Afliaiiças,  que  já  não  pode  haver  con- 
venções de  Gramido  que  prestem,  nem  duques  da  Terceiía  que  sal- 
vem. 

Os  homens  de  1820  disseram  a  Beresfort,  quando  com  procura- 
ção de  um  rei  mau  e  estúpido  vinba  iíitervir  nas  coisas  populares, 
que  a  nação  linha  reivindicado  os  seus  direjtos;  e  o  governo  da  revo- 
lução obrigou  o  ousado  inglez  a  retirar-se  em  ^4  horas  :  pois  agora 
nem  um  Beresford,  nem  a  altiva  Inglaterra,  nem  a  catholica  Hes- 
panha,  nem  paiz  algum  tentaria  deixar  os  seus  revolucionários 
vir  para  aqui  apasiguar  os  nossos,  A  Europa  caminha  toda  para  a 
Republica;  Portugal,  quei'  queiram  quer  não  queiram  os  conser- 
vadores, quei'  queira  quer  não  queira  qualquer  LuiZjqu  er  os  go- 
vernadores empreguem  a  força  e  a  astúcia — obedece  á  lei  e  segue 
o  movimento,  felizmente,  sem  vergonha  da  civilisação. 

O  amor  da  pátria,  tantas  vezes  provado,  soube  dizer  pela  bocca 
dos  bacamartes  ao  invasor  d'Italia  e  Portugal,  ao  vencedor  de  Ma- 
rengo  e  Austerlitz  que  nem  os  sapatos  broxados  dos  seus  exérci- 
tos, nem  as  espadas  dos  seus  capitães  podiam  domar'um  povo  que 
tem  direito  á  liberdade,  como  do  alto  da  tribuna  o  benemérito  con- 
gresso de  18^0  soube  dizer:  «sobei-ania  reside  essencialmente  na 
nação,  Esta  é  livre  e  independente,  e  não  pode  ser  património  de 
ninguém.» 

É  d'aquelle  que  primeiro  iniciou  o  movimento  para  a  gloriosa  re- 
volução de  2i  dagoslo,  de  Manuel  Fernandes  Thomaz,  que  no 
meio  do  terror  dos  cadafalsos  e  das  fogueiras  promovia  a  conspi- 
ração que  mais  tarde  nos  alevantou  aos  olhos  do  mundo  inteiro, 
de  que  vamos  fallar. 

Éelle  o  primeiro  quadro  da  galeria,  e  bem  o  merece. 

Relevem-nos  a  ousadia  da  apresentação. 

(Segue)  Feio  Terenas. 

Um  dia  a  Iniquidade,  a  indómita  megera. 
Sonhou  acorrentar  e  dominar  o  niundo  ; 
Saiu  do  seu  covil  esquálido,  profundo, 
^-  Vibrante  de  rancor,  de  sensações  de  fera. 
A  Paz,  ao  Bem,  e  Amor  e  Luz  declarou  guerra ; 
Forjou  a  Tyrbnnia,  eqúleos  e  atras  leis :    , 
Vencia  em  breve  tudo,  e  triturava  a  Terra 
Sob  o  carro  tiiumphal  dos  Padres  e  dos  Reis  I 

Xavieb  de  Paiva. 


o  ATRAZO  MENTAL  17 


O  tiírazo   mental 

NAS    NAÇÕES    GIVILISADAS 

É  grande,  sem  contestação,  o  desenvolvimento  actual  da  civila- 
ção  enropea  e  americana,  devido  ao  espontâneo  numero  de  pro- 
gressos scientificos  e  industriaes  realisados  nos  últimos  séculos,  mas 
não  nos  devemos  esquecer  que  é  bem  diminuta  a  parte  da  huma- 
nidade que  se  levantou  até  esse  grau  de  superioridade  relativa,  to- 
mando a  dianteira  na  marcha  evoluliva  e  perfeclivel  das  sociedades 
humanas.  A  área  occupada  pelos  povos  que  são  o  verdadeiro  foco 
da  civilisação  é  talvez  a  vigessima  parte  da  superfície  solida  do 
globo  e  o  numero  de  habitantes  que  compõem  a  guarda  avançada 
dos  progressos  humanos  é  egualmente  limitado.  Mesmo  entre  os 
povos  mais  avançados  a  máxima  parte  da  população  conserva-se 
n'um  estado  muito  inferior  de  desenvolvnnento  mental,  pouco  ou 
nada  difTerindo  do  atrazo  intellectual  dos  selvagens.  É  uma  frac- 
ção diminutissima  o  grupo  escolhido  que  forma  realmente  um  com- 
pleto contraste  com  o  estado  rudimentar  das  tribus  africanas  e  aus- 
tralianas. Apenas  uma  centessima  parte  dos  habitantes  da  terra 
pôde  de  direito  reclamar  a  qualificação  de  civilisada,  e  note-se  bem, 
incluindo  n'este  numero  muitos  individuos  que  não  se  desligaram 
ainda  completamente  de  preconceitos  e  superstições  das  épocas  pri- 
mitivas. 

É  geralmente  motivo  de  riso,  e  até  mesmo  de  duvida,  o  facto 
comprovado  por  innumeros  viajantes  e  missionários,  de  que  os  pre- 
tos da  Africa  fabricando  os  seus  deuses,  os  seus  fetiches  de  pau, 
pedem-lhes  favores  e  protecção,  reprehendem-nos,  ameaçam-nos  e 
casligam-nos  quando  os  seus  desejos  não  são  satisfeitos;  no  em- 
lanto  ainda  entre  os  povos  civilisados  se  encontram  vestígios  d'este 
estado  primordial  da  religiosidade. 

Mencionaremos  um  exemplo  que  nos  foi  narrado  ha  pouco  tempo 
por  um  nosso  amigo,  testemunha  ocular  do  facto  :  Ha  em  a  nação 
visinha.  na  província  das  Astúrias,  um  pequeno  povo  de  pescado- 
res, pobres  e  miseráveis,  que  todos  os  annos  em  29  de  junho  fes- 
tejam S.  Pedro,  uma  velha  estatua  de  pau,  que  se  conserva  n'uma 
capella  a  poucos  passos  de  Piavia.  Durante  todo  o  anno  os  habi- 
tantes d'esta  localidade  vão  frequentes  vezes  cá  capella  pedir  ao 
santo  que  lhes  proteja  a  pesca  e  lhes  conceda  toda  a  ordem  de  fa- 
vores; mas  o  pedido  é  acompanhado  de  promessas  e  ameaças  para 
mover  o  animo  interesseiro  de  S.  Pedro  ou  para  lhe  arrancarem 
pelo  medo  o  que  elle  de  bom  grado  não  quizesse  ceder.  Assim  se 
durante  a  pesca  se  levanta  de  repente  uma  tempestade,  as  famílias 

3 


18  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


(los  pescaflores.  que  andam  no  mar  largo,  correm  em  grandes  cho- 
ros á  capella  e  atordoam  os  ares  com  ameaças  ao  santo  para  elle 
lhes  trazer  a  são  e  salvo  os  seus  maridos,  os  seus  filhos,  os  seus 
parentes.  Se  o  máu  tempo  se  prolonga  e  os  pescadores  não  podem 
sair  ao  mar,  lá  vão  elles  ameaçar  S.  Pedro  para  que  lhes  dê  bom 
tempo.  Se  falia  o  peixe,  se  a  pesca  se  torna  insignificante,  o  po- 
bre do  santo  tem  de  providenciar,  quando  não...  no  dia  da  festa 
paga  tudo  por  junto.  Chega  o  dia  29 ;  põem  o  santo  sobre  um  an- 
dor e  em  procissão  solemne,  acompanhada  por  todo  o  povo  de  Pia- 
via  vestido  com  os  seus  trajes  de  gala,  pelo  clero,  por  musicas  e 
foguetes,  etc,  dirigem-se  todos  para  os  lados  do  mar;  á  frente  do 
an^clor  vae  um  homem  espadaúdo,  de  fatos  carnavalescos,  mane- 
jando um  enorme  sabre  com  movimentos  de  antigo  tambor-mòr  e 
com  esgares  ridículos.  Chegado  o  cortejo  ao  estremo  do  seu  gyro, 
á  beira-mar,  depõem  a  imagem  no  chão,  e  então  começa  o  povo  a 
formular  em  alta  grita  as  accusações,  as  faltas  que  imputam  ao 
santo,  uns  a  morte  do  pae,  outros  a  morte  de  um  irmão  ou  de  um 
filho,  ainda  outros  a  perda  do  barco  ou  qualquer  transtorno  sof- 
frido  durante  o  anno. 

A  cada  accusação  o  homem  do  sabre  descarrega  valentes  golpes 
sobre  o  pobre  S.  Pedro;  se  o  povo  acha  que  é  pequeno  o  castigo 
pede  em  brados  atroadores  maior  sova  que  de  ordinário  faz  saltar 
algumas  bastilhas  da  imagem,  e  por  fim  ainda  exige  que  lhe  dêem 
um  ou  mais  mergulhos;  n'este  caso  alam  uma  corda  ao  pescoço 
do  santo  e  aliram-o  ao  mar,  uma,  duas  ou  mais  vezes.  Em  seguida 
tornam  a  collocar  a  imagem  sobre  o  andor  cobrem-no  de  flores  e 
a  procissão  recolhe  à  capella  com  a  mesma  solemnidade  cómica 
com  que  saiu. 

Aqui  têm  um  exemplo  bem  vivo  de  felichismo,  similhante  ao  fe- 
tichismo  das  tribus  africanas,  na  nossa  península  e  que  prova  o  es- 
tado de  alrazo  mental  em  que  ainda  se  acha  actualmente  a  maio- 
ria do  povo  mesmo  nas  nações  civilisadas. 

Teixeira  Bastos. 


Õrineni  nrovaveí  aas  reuniões 

Em  meio  dos  grandes  problemas  da  vida  e  da  morte;  em  fren- 
te do  terror  do  ignoto,  e  da  consciência  da  iuopportunidade  das 
averiguações  sobre  assumpto  tão  ermo  de  phases  elucidadoras,  o 
espirito  acanhado  das  sociedades  infantis  creou  o  ideal  divino, 
com  todo  o  seu  cortejo  de  inepcias  ignaras  e  prejudiciaes. 

Comprebeade-se  sem  esforço  algum  o  terror,  a  admiração  vaga, 


ORIGEM  PROVÁVEL  DAS  RELIGIÕES  19 

a  curiosidade  receiosa  que  invadiu  os  primeiros  seres  humanos  em 
face  dos  esplendores  de  uma  flora  e  fauna  em  todo  o  vigor  da 
sua  superabundância  luxuosa  e  viridente.  O  sol  que  lhes  destendia 
os  músculos  entorpecidos  pelo  frio  e  desabrigo  das  noutes  hiberni- 
cas;  a  chuva  frigida  e  torrencial  dos  climas  ricos,  coando-lhes  no 
corpo  o  desalento  e  o  soífrer  material;  as  esplendidas  manifesta- 
ções tempestuosas  da  electricidade  athmospherica,  as  vibrações 
aspérrimas  do  ribombar  do  trovão;  os  tons  poéticos  e  vagamente 
melancólicos  que  os  raios  da  lua  imprimem  ás  paisagens  outom- 
naes  deviam  actuar-lhes  no  systema  nervoso  do  modo  mais  enei'gico 
e  extraordinário.  Foi  sem  duvida  dos  diveisos  modos  de  ser  das 
manifestações  naturaes  que  brotou  a  utopia  da  religião,  que  partin- 
do da  latria,  devia  terminar  no  monotheismo  puro,  O  atrazo  do 
intellecto  das  gerações  primarias,  como  os  perigos  que  as  rodea- 
vam constantemente,  sobretudo  durante  as  horas  nocturnas  em  que 
as  feras  sabiam  a  atacal-as,  deram-lhes  naturalmente  o  horror  da 
sombra  e  a  gratidão  da  luz.  D"aqui  partiu  a  adoração  do  Sol,  pe- 
culiar a  cada  raça,  reproduzida  em  todos  os  povos  em  dados  mo- 
mentos de  recuada  historia.  Mais  tarde  a  descoberta  do  fogo,  por 
um  meio  que  é  ignorado  de  todo,  despertou-lhes  no  cérebro  a 
idéa  da  comparação,  e  os  foi  conduzindo  a  cogitações  que  muito 
significam  relativamente  á  sua  imperfeição  mental.  O  lume  pro- 
duzia resultados  idênticos  ao  Sol ;  mas  tinha  a  vantagem  de  per- 
petuar o  calor,  e  afugentar  o  inimigo  durante  a  noute :  o  fogo  era 
pois  a  imagem  do  bem,  como  a  treva  era  a  factora  do  mal.  Todavia 
o  Sol  occultava-se  por  vezes  durante  o  dia,  e  períodos  de  desola- 
ção se  lhe  seguiam,  durante  os  quaes  as  fructas  minguavam,  e  os 
arvoredos  gigantescos  escondiam  a  coma  entre  as  neblinas  húmi- 
das, que  similham  o  crepe  luctuoso  da  natureza,  E  então  o  homem 
prosternava-se,  e  na  sua  ignorância  aterrada,  lançava  pelo  espaço 
os  gritos  guturaes  da  linguagem  imperfeita  que  deviam  usar. 

Era  o  egoismo,  era  o  terror  do  ignoto,  era  acima  de  tudo  o  ins- 
tincto  da  conservação  que  o  impelliam  á  prece. 

Como  porém  nem  sempre  havia  Sol,  transportou-se,  ou  antes 
evolou-se  á  adoração  do  astro  creador,  e  breve  vemos  entre  os 
selvagens  a  adoração  do  fogo. 

Estava  pois  lançado  no  espirito  humano  o  gérmen  dos  futuros 
Iheologismos,  Se  porém  piocurarmos  em  todos  os  povos  o  ideal 
primitivo  da  religião,  achamol-a  invariavelmente  representando  o 
Bem  pela  luz  — o  Mal  pela  sombra.  O  Mar  e  Arimane  — entre 
os  antigos  magos  ;  Osíris  e  Tijphon  —  no  Egyplo ;  Ormurd  e 
Ahriman — na  Pérsia;  Witrilíputrili  e  Tescalipuca  —  no  México  ; 
Pachacamac  e  Cupai — no  Peru  ;  o  So/  e  o  Tova  na  Florida,  etc,  pro- 
vam abundantemente  a  idéa  que  todos  os  povos  hão  ligado  aos  dois 
factos  puramente  naturaes  da  visibilidade  ou  ausência  da  luz  solar. 


20  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


A  chegada  da  primavera  festejava-se  no  Egypto  por  festas  es- 
trondosas, bem  como  se  lamentava  publicamente  a  passagem  do 
Sol  para  o  equinoxio  do  outomno.  Ainda  hoje  na  Pérsia  se  consa- 
gra o  equinoxio  primavera!,  por  «ma  festa  a  que  chamam  Nannis, 
e  que  dura  oito  dias  consecutivos. 

Do  fado  da  adoração  do  Sol,  e  mais  tarde  do  fogo  que  lhe  era 
idéa  ligada,  brotou  o  facto  da  sociabilidade,  como  consequência 
natural.  Em  volta  da  chamma  se  agruparam  pouco  a  pouco  os 
seres  humanos  dispersos  pelas  mattas  gigantescas,  e  lentamente 
se  embrenharam  no  labyrintho  das  descobertas  e  investigações. 
Qual  não  seria  o  seu  espanto  quando  ao  approximarem  do  lume  o 
animal  que  haviam  supplantado  na  lucta  pela  existência,  conhece- 
ram a  differença  na  agradabilidade  da  refeição? 

Sem  duvida  que  o  mais  poderoso  factor  do  progresso  mental  e 
material  da  humanidade,  ha  sido  o  fogo.  Por  elle  diligenciou  o 
homem  comprehender-se,  e  levado  peia  necessidade  inventou  a 
linguagem ;  por  elle  lhe  occorreu  a  vantagem  da  sociedade,  por 
elle  ainda  o  principio  da  religião  que  devia  agrupal-o  em  familia, 
em  tribus,  em  nações. 

E  tão  arreigado  ficou  no  espirito  humano  o  eífeito  d'esses  ideaes 
primários,  que  em  todas  as  civilisações,  ainda  as  mais  avançadas 
vamos  achar-lhe  vestígios ;  tal  é  a  influencia  da  hereditariedade ! 
Penetrando  n'um  templo  de  qualquer  crença  iheologica  que  seja 
vereis  a  luz  como  primeira  necessidade  dos  seus  ritos.  • 

Mesmo  no  christianismo,  que  significa  a  lâmpada  do  sanctuario, 
os  cirios  da  Paschoa,  a  profusão  de  luzes  que  adornam  os  thronos 
dos  novos  Ídolos?  Porque  se  não  prescinde  das  tochas  em  frente 
do  cadáver?  Porque  se  illuminam  os  grandes  factos  da  vida  como 
o  matrimonio,  o  reconhecimento  de  um  membro  social,  as  profissões? 

É  sem  duvida  a  gratidão  pela  luz,  o  reconhecimento  pelos  be- 
néficos effeitos  do  fogo,  que  transmittidos  de  geração  em  geração 
se  manifestam  hoje  inconscientemente. 

Em  virtude  dos  efíeitos  da  linguagem,  o  homem  que  existira  no 
estado  selvático,  começou  a  dulcifícar  a  natural  animahdade  do 
seu  caracter  naquelles  obscuros  períodos. 

Pouco  a  pouco  foi  sentindo  necessidades  até  ali  ignoradas,  e 
pela  mesma  forma  foi  procurando  satisfazel-as. 

Então,  assim  como  reconhecia  necessidades  externas,  assim  as 
suppoz  no  ideal  que  creara.  Alegrava-o  o  ruído ;  commovia-o  o 
pranto;  talvez  que  o  Sol,  o  Fogo,  a  Treva,  a  Noute  assim  fossem 
também.  Inventou-se  então  o  culto  externo,  o  rito,  imperfeito, 
sensual  e  grosseiro,  mas  que  devia  ficar  até  á  extincção  da  raça 
humana,  porque  os  séculos  transformam  e  aperfeiçoam,  mas  não 
destroem  nem  aniquilam 

Os  catholicos  que  incensam  os  seus  altares ;  os  livres  pensado- 


DIVAGAÇÕES  21 


res  que  alinham  as  suas  procissões  civicas;  os  musulmanos  que 
se  prostram  nas  suas  mesquitas;  os  hetreos  que  se  flagellam  em 
face  do  tabernáculo;  os  protestantes  que  se  curvam  perante  a  cruz, 
estão  apenas  imitando  aperfeiçoadamente  o  homem  rudimentar  que 
pela  vez  primeira  fez  uma  momice  qualquer  em  honra  da  luz  que 
o  extasiava,  ou  da  treva  que  lhe  apavorava  o  espirito... 

E  assim  se  explicam,  segundo  nos  parece,  as  idí^as  innatas  do 
theologismo  e  da  metaphisica  escolar.  A  creança  que  ergue  o  olhar 
ingénuo  ao  ceu,  não  pensa  decerto  em  deus,  procura  a  claridade 
que  a  deleita,  o  que  facilmente  se  reconhece  pela  fixidez  com 
que  ella  fita  uma  luz  qualquer  que  lhe  fique  ao  alcance  da  vista. 

Sendo  o  cérebro  humano  producto  de  causas  internas  e  externas, 
como  se  prova  scientificamente,  claro  é  que  as  primeiras  impres- 
sões recebidas  devam  ter  grande  parte  no  seu  desenvolvimento. 
Transmittidas  essas  impressões  pela  hereditariedade,  modificadas 
pela  acção  climatológica,  influencia  de  meio,  e  condições  de  exis- 
tência, podem  tomar  direcções  mais  positivas,  dimensões  mais 
sensatas,  mas  teem  inalteravelmente  o  ponto  de  partida  no  pen- 
samento primitivo. 

Tal  se  nos  afiigura  fosse  a  causa  primaria  do  ideal  divino,  que 
mais  tarde  devia  ser  aproveitado  utilmente  em  prol  do  progresso, 
depois  como  assassino  da  razão,  como  carrasco  dos  povos,  como 
o  mais  ignóbil  estorvo  aos  progressos  do  espirito  humano. 

Angelina   Vidal. 


Èí 


ivaaioLçoes 


A  Morte,  essa  mulher  de  lábios  hirtos 
Faz  pulsar  nas  artérias  o  meu  sangue; 
O  sepulchro  é  p'ra  mim  de  verdes  myrtos 
E  a  Morte  attrae-me  o  coiação  exangue. 

Aperta-me  em  seus  braços  regelantes, 
Arrasta-me  aos  espaços  luminosos, 
Onde  passam  os  mundos  deslumbrantes, 
Os  astros  esplendentes  e  formosos. 

E  se  esla  alma  de  lá,  cheia  de  vida, 
Enxerga  a  terra  outr'ora  idolatrada, 
Vé-a  inerta,  sem  luz,  arrefecida, 
Como  um  cadáver  que  desceu  ao  nada. 

Então  a  Morte,  erguendo  a  voz  dolente, 
Diz-lhe,  apontando  o  Sol  na  immensidão  : 
— «Curva  a  fronte  aos  seus  pés,  ó  impotente 
«Que  é  elle  o  rei  de  toda  a  creação. 


21  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


«Eu  que  arremesso  ás  boccas  esfaimadas 
'■Dos  túmulos,  os  lírios  perfumados, 
"Das  donzellas  as  carnes  delicadas 
"E  dos  velhos  os  membros  congelados; 

"Eu  que  esmago  nas  mãos  as  esperanças. 
«Todas  as  illusões  da  Humanidade; 
«O  sorriso  vermelho  das  creanças, 
«As  phantasias  vãs  da  mocidade, 

"Não  posso  erguer  meus  olhos,  côr  da  terra, 
"Até  litar  seus  raios  deslumbrantes! 
"Eu  não  sei  que  mysterios  elle  encerra, 
"O  Sol.  o  rei  dos  astros  fecundantes! 


E  a  minh'alma,  escutando  attentamente 
Aquella  voz  sinistra,  sem  pavor. 
Ergue  seus  olhos  puros,  docemente 
E  no  Sol  reconhece  um  creador. 


Ernesto  Pires. 


Ô  centenário 

DE 

SEBASTIÃO  JOSÉ  D£  CARVALHO  E  MELLO 

MARQUEZ    DE    POMBAL, 

Ha  tempo,  logo  depois  da  commemoração  civica  do  tri-centenario 
de  Camões,  quando  vibiava  ainda  na  grande  alma  popular  a  grata 
recordação  d'essa  festa  triumplial,  aventou-se  a  nobre  idéa  de  so- 
lemnisar  condignamente  o  primeiro  centenário  do  illustre  homem 
de  Estado,  cujo  nome  gloriosa  synthelisa  a  condemnação  de  dois 
factos  que  lêem  conturbado  o  paiz  ncs  últimos  tempos  —  a  invasão 
dos  jesuitas  e  a  criminosa  subserviência  ás  imposições  da  Ingla- 
terra. 

O  Grande  Oriente  Lusitano,  tentando  dar  um  publico  testemunho 
de  que  no  sen  organismo  existe  ainda  um  sopro  de  vida  consola- 
dor, apressou-se  a  corresponder  á  corrente  da  opinião.  Reuniu  e 
resolveu  commemorar  por  modo  significativo  a  data  escolhida  para 
a  glorificação  posthuma  do  edificador  da  moderna  Lisboa. 

Tal  e  tão  patriótica  resolução,  tomada  pelos  pedreiros  livres,  be- 
liscou a  santíssima  orthodoxia  de  um  descendente  idiota  e  degene- 
rado de  Sebastião  de  Carvalho  e  Mello,  o  qual  publicou  em  o  jor- 
nal catholico  A  Nação  uma  seraphica  epistola  em  que  espectorava 


o  CENTENÁRIO  DO  MARQUEZ  DE  POMBAL         23 

a  sua  indignação  sorna  de  jesuila  cachelico.  Como  qup.  atacado  da 
dansa  de  S.  Vito,  o  beato  declarou  e  protestou  perante  o  mundo 
christão  que  não  consentiria  na  manifestação  feita  por  aquelles  pre- 
citos e  excommungados. . .  E  os  manes  do  athleta,  para  quem  as 
fúteis  convenções  e  os  falsos  prejuízos  eram  débeis  liames  que  elle 
despedaçou  sem  o  minimo  esforço,  se  não  fossem  apenas  o  produ- 
cto  de  poética  phantasia,  sentir-sc-hiam  corridos  de  vergonha  do 
procedimento  abjecto  do  homem  que  por  hallucinação  religiosa  não 
trepidou  cuspir  uma  negra  aíTronta  nas  mais  gloriosas  tradições  le- 
gadas pelo  seu  maior! 

Ponhamos  porém  de  parte  a  epistola  indignada  do  hierático  fi- 
dalgo; porque  não  será  o  chocho  escripto,  nem  o  de  todos  os  seus 
congéneres,  se  a  elles  aprouvesse  seguir  o  exemplo,  que  poderão 
obstar  a  que  o  paiz  salde  a  sua  divida  de  reconhecimento,  como  o 
governo  obnoxio  de  então  não  poude  obstar  ao  pagamento  d'essa 
outra  contrahida  ha  três  séculos  para  com  a  memoria  immortal  do 
épico  cantor  das  nossas  glorias. 

A  grande  festa  deve  realisar-se,  mas  não  com  o  só  concurso 
d'esta  ou  daquelía  classe;  deve  sel-o  com  a  consagração  de  todos 
os  homens  animados  d'um  altruísmo  são,  abrilhantada  com  a  as- 
sistência e  o  enlhusiasmo  de  todo  o  paiz  pelo  qual  Sebastião  de 
Carvalho  e  Mello  batalhou,  errou  e  soffreu.  Sabemos  que  algumas 
famílias  sentir-se-hão  alancear  de  recordações  lúgubres  ao  vlbrar- 
Ihes  no  coração  os  eccos  da  manifestação  nacional;  porque  muitos 
dos  seus  antepassados  succumbiram  á  perseguição  e  á  vindicta  do 
rigido  estadista. 

Respeitemos  o  seu  lucto  e  a  sua  dor.  Mas  não  seja  isso  obstá- 
culo ao  intento,  pois  que  nos  demonstra  a  analyse  rigorosa  dos  fa- 
ctos e  o  estudo  desapaixonado  da  época  em  que  occorreram,  que, 
para  o  austero  reformador  conseguir  a  regeneração  e  alevantamento 
da  pátria,  foi-lhe  mister  passar  o  seu  carro  triumphante  por  sobre 
um  montão  de  cadáveres  e  molhar  em  sangue  a  penna  que  lavrou 
os  decretos  que  ainda  hoje  nos  assombram  pela  sua  previsão  e  au- 
dácia. Ainda  assim  os  que  houverem  de  escrever  acerca  de  Sebas- 
tião de  Carvalho  e  Mello  não  se  devem  deixar  cegar  pela  luz  que 
irradia  do  heroe,  que  tal  não  seria  fazer  a  historia  e  a  critica  dos 
factos;  seria  tecer  um  panegyrico  imbecil  de  chronista  fradesco. 

É  preciso  que  vejamos  sempre  o  verdugo  na  pessoa  do  homem 
intemerato,  animado  de  um  espirito  forte,  innovador,  com  as  scin- 
tillações  extranhas  d'um  semi-deus ;  que  descubramos  a  face  do 
algoz  cruelissimo  no  estadista  corajoso,  da  tempera  do  aço,  o  qual, 
tão  somente  escudado  na  passividade  d'um  rei  de  opera  cómica,  re- 
construiu Lisboa —  tornando-a  mais  bella,  magnificente,  sobretudo 
mais  moderna,  — a  cidade  que  um  calaclysmo  horroroso  quasi  re- 
duzira a  um  montão  de  ruinas;  que  atacou  de  frente  as  exorbitan- 


íi  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

les  prerogalivas  da  Egreja,  atacou  o  ominoso  tribunal  da  Inquisi- 
ção e  decretou  a  expulsão  dos  jesuítas,  desnaluralisandoos,  com- 
pellindo-os  a  abandonar  o  reino  num  curto  praso  de  tempo ;  que 
aboliu  a  escravatura  na  metrópole,  e  a  absurda  e  sangrenta  dis- 
tincção  entre  cluistãos  velhos  e  christãos  novos ;  que  reformou  a 
Universidade,  creou  escolas  e  academias,  secularisou,  ampliou  e 
melhorou  a  instrucção  publica,  até  então  acommodada  e  viciada  ao 
sabor  dos  jesuítas;  que  imprimiu  salutar  incremento  á  prosperidade 
das  colónias,  â  organisação  das  companhias  commerciaes  da  índia 
e  Grão  Fará,  da  de  vinhos  do  Alto  Douro  e  da  do  Compromisso  do 
Algarve ;  que  protegeu  e  estimulou  a  agricultura,  a  piscicultura  e 
a  industria  nacionaes;  que  reformou  a  marinha,  o  exercito  e  a  jus- 
tiça; que  se  oppoz  constantemente,  altivo  e  vibrante  de  nobre  pa- 
triotismo, contra  as  tentativas  egoislas  e  traiçoeiras  dos  inglezes, 
costumados  a  humilhar-nos,  a  tutelar-nos,  levantando  o  nivel  mo- 
ral e  inlellectual  da  nação,  tornando-a  digna  e  respeitada  aos  olhos 
da  Europa  assombrada  da  virilidade  de  espirito,  da  capacidade  go- 
vernativa, da  tenacidade  inquebrantável,  da  audácia  heróica,  da 
vista  de  águia  do  grande,  do  integro  estadista  portuguez  I 

A  festa  civica  de  homenagem  á  memoria  do  reformador  não  será 
tão  ternamente  sensibilisadora,  tão  compacta  e  unanime  como  a 
que  ha  quasi  dois  annos  realisàmos  como  consagração  de  respeito, 
gratidão  e  amor  á  palpitante  memoria  do  ingente  poeta.  A  obra  de 
Carvalho  e  Mello  é  apreciada  por  nós  e  pelos  que  nos  visitarem, 
e  pane  d'esse  trabalho  colossal  foi-se  desmoronando  pouco  a  pouco 
depois  da  sua  queda,  por  causa  dos  erros  das  dynastias  que  suc- 
cederam  à  de  José  I,  e  seus  estadistas  de  pechisbeque.  A  obra  de 
Camões  é  eterna  como  a  luz;  todo  o  mundo  a  admira,  todos  os 
povos  a  conhecem  e  reverenceiam  o  seu  immortal  auctor.  Se  Por- 
tugal desappui  ecesse  do  mappa  das  nações  e  o  seu  idioma  se  obli- 
terasse, os  Lu>iiadas  ficariam  transplantados  nas  lilteraturas  das 
nações  mais  cultas.  De  resto  Camões  tem  direito  á  nossa  sympa- 
Ihia  como  homem  e  como  cantor;  Pombal  apenas  como  estadista. 

Mas  a  commemoração  é  um  protesto  enérgico  e  vibrante  contra 
os  que,  por  interesses  particulares,  esquecem  as  leis  e  os  exem- 
plos do  que  sendo  um  tyranno  tanto  trabalhou  para  a  liberdade; 
e  por  isso  o  partido  republicano,  que  se  assignalou  na  apotheose 
camoneana  por  actos  de  nobilíssimo  civismo,  não  pode  nem  deve 
regatear  o  seu  concurso  á  solemnisação  do  centenário  de  Sebastião 
José  de  Carvalho  e  Mello,  porque  seria  negar-se  a  sanccionar  o  du- 
plo protesto  que  em  tempo  levantou  ousadamente  e  fez  reboar  por 
lodos  os  ângulos  do  paiz. 

Xavibr  jde  Paiva. 


o  MEU  PRfMGIRO  DIA  EM  PARIS  25 


eieu  íiriíiieiro  3 ia  eoi  Paris 


1' 

Eram  apenas  7  horas  cruma  bella  manhã  d'agost.o — 1880 — , 
quando  o  meu  excellente  companheiro  me  chamava  ao  restaurant 
do  hotel,  para  saciarmos  o  appetite,  Ião  aguçado  pela  viagem  da 
tarde  anterior.  Depois  de  me  deliciar  nas  esplendidas  paizagens  do 
canal  de  Southampton  e  da  ilha  de  Wight,  havia-me  surprehendido 
a  perspectiva  soberba  do  Havre,  e  sobre  tudo  os  formosos  e  varia- 
dos panoramas,  que  se  nos  desenrolam  no  trajecto  d'esta  cidade 
á  capital  da  França.  Agora  ia  conhecera  vida  intima  d'este  centro 
da  moderna  civilisação:  dominava-me  pois  um  extraordinário  con- 
tentamento. 

Sobre  o  mappa,  o  meu  nobre  amigo  indicava-me  o  itenerario, 
dizendo  por  fim:  «eis  a  sua  romaria,  e  á  noite  no  Palais  Royal 
me  dará  conta  das  primeiras  impressões.»  No  fronteiro  square 
Montholon  e  já  assentado  no  caleche,  recebia-lhe  um  aperto  de  mão 
ouvindo-lhe  ordenar  ao  cocheiro:  Subi  a  rua  Lafayette  até  ao  boule- 
vard  de  Magentas,  e  em  seguida  conduzi  este  senhor  á  praça  da 
Republica.» 

— É  a  estatua  provisória  que  serviu  para  a  festa  do  14  de  ju- 
lho,—  me  dizia  o  cocheiro-cicerone,  ao  torneal-a  em  modos  de  con- 
tinência. Não  foi  a  adoração  idolatra  quo  em  mente  lhe  dirigi,  mas 
com  o  mais  profundo  acatamento  saudei  alli  a  França  republicana, 
democrática,  liberal  e  cosmopolita,  que  aos  meus  olhos  como  que 
apparecia  agora  personificada  n'aquelle  monumento. 

Pouco  depois  divisava  no  solo,  os  marcos  delimitativos  da  hor- 
rível Bastilha.  Oh!  como  que  a  imaginação  me  evocava  as  innume- 
ras  tragedias  representadas  n'aquelle  palco  de  nefanda  memoria. 
Parecla-me  ver  surgir  os  espectros  das  victimas  do  despotismo, 
em  torturas,  ou  jazendo  nos  cárceres  tenebrosos.  Mas  também 
me  pareceu  então  presencear  o  heroísmo  com  que  o  povo,  electri- 
sado  pela  voz  do  joven  Camillo  Desmoulins,  atacava  os  suissos  e 
derribava  n'algumas  horas  os  baluartes  do  velho  mundo,  mos- 
trando como  o  seu  braço  é  bem  mais  forte  que  as  couraças  com 
que  se  protege  a  tyrannia. 

Semi-absorlo  contemplava  este  santuário  da  santa  Democracia 
que  em  breve  avassalará  o  mundo,  quando  dei  com  os  olhos  no 
anjo  reluzente  da  Liberdade,  que  sobremonta  a  columna  de  julho, 
alli  mesmo  erguida,  da  Liberdade  que  aquelles  martyres  haviam 
conquistado  outra  vez  em  1830,  indo  depois  alcançai  a  para  a  Bél- 
gica, e  mais  tarde  para  Portugal. 

Lembrara-me  então  que  talvez  nas  campanhas  da  liberdade  por- 
•tugueza,  alguns  dos  que  se  bateram  nas  jornadas  de  julho  houves- 

4 


26  ENCICLOPÉDIA  REPUBLICANA 

sem  espingariieado  o  absolutismo,  ao  lado  de  meus  maiores  que 
tauto  me  (aliaram  dos  fiaiicezes  na  minha  infância.  E  foi  assim  im- 
pressionado que  subi  ao  capitel  da  colnmna  para  gosardo  magnifico 
panorama  que  nos  apresenta  a  grandiosa  cidade. 

— Ao  faubonrg  S.  António  e  em  seguida  ao  Pantheon,  disse  para  o 
cocheiro.  Tenho  de  reverenciar-me  ao  pé  da  lapide  commemorativa 
do  martyriologio  de  liaudin,  e  quero  concentrar  o  meu  espirito  ante 
os  túmulos  d"esses  dois  génios  que  illuminaram  a  humanidade, 
Rousseau  e  Voltaire.  E  depois  de  ler  aujaldiçoado,  ji^mlo  á  memo- 
ria duma  das  victimas,  esse  crime  nefasto  que  a  historia  denomi- 
nou—  o  2  de  (ltíZ(ímbro — entrei  as  catacumbas  da  Hevolução,  onde 
o  guarda  começou  por  me  apresentar  a  surpreza  do  ecco  muitas 
vezes  sob  as  abobadas  repettido,  para  fazer  jus  á  gratificação  d'al- 
gnns  cêntimos. 

Que  admiração  não  foi  a  minha,  ao  divisar  por  Ioda  a  parte  os 
túmulos  de  mediocridade  que  não  tinham  outros  titulos  á  recora- 
mendação  da  posteridade  senão  os  que  alli  lhe  gravaram;— bispo 
conde,  barão  ou  general  do  império!  Quando  deixarás  tu,  França, 
de  ser  grande  até  na  propila  puerilidade?! 

Invoquei  os  manes  do  authordo  conlracto  social,  accrescenlando: 
o  teu  Emilio  alegrara  o  meu  espirito  e  guiou  a  classe  educadora 
da  humanidade,  l']  uma  dupla  homenagem  que  te  venho  consagrar 
como  homem  e  como   professor:  tu  fizeste-me  cidadão  e  mestre. 

O'  amigo  dosopprimidos,  quão  rudes  e  certeiros  golpes  não  vi- 
brastes na  superstição  e  na  intolerância?!  Sim,  Voltaire,  tu  dis- 
seste—  ecrasons  linfame  —  e  a  tua  voz  repercutiu-a  a  sciencia. 
Aquella  bella  festa  que  os  novos  haviam  de  gosar  e  tanto  lhes  in- 
vejavas, chegou  já  na  primeira  phase,  a  violenta,  e  chamou-se  Re- 
volução; está-se  realisando  na  tranquilla,  e  denomina-se,  Evolução. 
O  teu  riso  desdeidioso  foi  o  stygma  destruidor  de  todos  os  abu- 
sos e  de  todas  as  iniquidades  do  velho  mundo;  bem  hajas,  propu- 
gnador  da  justiça. 

Tinha  realisado  a  minha  communhão  es[)iiitual,  podia  pois  ins- 
truir-me  e  recrear-me.  Fará  o  Luxeaiburg  pela  rua  do  abbade  TE- 
pêe  cuja  gloria  no  ensino  dos  surdos  mudos,  pertence  aules  a  uma 
victima  da  inquisição  portugueza  —  Jacob  Rodrigues  Pereira. 

A  agglomeração  de  povo  no  começo  da  rua  aguçou-me  a  curiosida- 
de; despedi  o  cocheiro  e  entrei  n'uma  sala  enorme  do  edifício  contí- 
guo á  Escola  de  Minas.  As  Bandeiras  entrelaçadas,  e  seguras  por 
placas  contendo  as  letras  —  R.  F.  —  enfeitavam  o  recinto  exterior; 
como  o  estrado  da  meza  e  as  paredes.  Quasi  logo,  c  presi- 
dente, maire  de  arrondissement,  6.°,  faz  signal  e  um  individuo 
empunhando  a  batuta,  colloca-se-lhe  na  frente.  Dois  lazaristas  saem 
arrebatadamente,  algumas  irmãs  da  caridade  lançam-se  aos  fauteuils, 
as  centenas  d"espectadores  erguem-se,  fazendo  como  por  encanto 


o  MEU  PRIMEIRO  DIA  EM  PARIS  27 

O  mais  religioso  silencio.  Cerca  de  300  creanças,  com  a  sua  voz 
angelical,  soltam  as  sublimes. melodias  do  hymno  da  liberdade. — 
a  Marselheza.  Aquella  expressão  eulbusiastica,  de  que  só  são 
capazes  os  francezes,  a  doçura  das  notas  e  o  precioso  do  pensa- 
mento contido  na  letra,  impressionaram-me  de  tal  modo  que  me 
senli  lambem  creança — os  olhos,  permitti  a  confissão,  arrasaram- 
se-me  de  lagrimas. 

Era  a  distribuição  de  prémios  mais  imponente  a  que  em  minha 
vida  assisti.  E  todas  ellas  se  fazem  com  grande  esplendor,  porque 
entram  no  plano  gorai  da  educação  do  povo  para  a  Republica,  como 
me  dizia  uma  distincla  professora,  discípula  da  illustre  Pape-Car- 
penlier. 

Pouco  depois,  n'um  dos  vapores  corria  eu  o  Senna  até  Passy, 
admirando  ainda  especialmente  a  perspectiva  das  Tuilleries,  do 
Trocadero  e  Champ  de  Mars,  onde  se  effecluara  a  ultima  exposição. 
Foi  no  regresso  que  tive  pela  primeira  vez  occasião  de  conhecer  a 
actividade  característica,  a  physionomia  alegre,  expressiva  e  in- 
telligenle  dos  operários  parisienses,  que  já  voltavam  de  Grenelle 
e  Autenil,  os  bairros  industrlaes,  para  os  seus  lares  no  faubourg 
S.  António  e  adjacentes. 

A'  hora  aprazada,  no  Palais  Royal,  onde  os  grandes  revolucio- 
nários planearam  a  derrocada  das  velhas  instituições  e  os  gran- 
des traidores  a  queda  da  primeira  republica,  exliibia  o  meu  con- 
tentamento sem  me  Importar  quasi  com  a  bella  luz  eléctrica  que 
abrilhantava  o  jardim.  E  o  meu  nobre  amigo  pretendia  ver  no 
meu  enthusiasmo  e  procedimento  intimas  relações  com  os  actos 
de  devoção  religiosa.  Sim.  senhor,  lhe  respondi  logo:  O  homem 
religioso,  guiado  pela  fé  invoca  a  estatua  do  seu  heroe  dominado 
por  um  interesse  qualquer  mundano  ou  celeste  e  não  hesita  em 
ir  praticar  em  nome  de  Deus  talvez  o  crime. 

Nós,  os  sectários  doesta  nova  religião  da  sciencia  também  so- 
mos devotos,  respeitamos  os  nossos  martyres,  e  invocamos  a  sua 
memoria,  para  melhor  praticarmos  o  bem  que  é  o  cumprimento  dos 
nossos  deveres. 

Temos  por  dogmas — liberdade  egualdade  e  fraternidade — e 
aceitamos  comorito  apropriado— a  republica.  Eis  os  princípios  cora 
que  procuramos  realisar  a  nossa  felicidade  particular,  contribuindo 
proporcionalmente  para  a  felicidade  commum. 

Lisboa,  20 -de  dezembro  de  1881. 

M.  J.  Martins  Contreiras. 


ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


'oríuqat  e  n  WÍ,ovn  Héa 


Ò  velho  Portugal  !  paiz  de  fama  escripta 
Nas  fortes  vibrações  il'um  livro  heróico,  ingente, 
Um  geograpliico  espectro  és  hoje  só  !  demeuie, 
Cariado  e  imbecil  como  um  gasto  sedomita ! 

Leão  peninsular  1  ergue-te  altivo  e  fita 
A  estrella  que  olfuscou  o  brilho  do  Crescente ; 
Deixa  de  ser  o  Mário  europeu — no  Occidente 
Chorando  á  beira -mar,  como  nação  proícripta. 

Enebria-te  o  rumor  sonoro  do  Athiantico, 
Alquebrado  paiz,  decrépito  romântico? 
Ou  vt's  com  dôr  rasgar  a  épica  epopiía? 

Vibram  novos  clarins  !  Vae  ferir-se  a  batalha  I 
—  Sè  heróico  outra  vez  :  não  precisas  metralha, 
Mas  sim  render  teu  culto  á  grande,  á  Nova  Iuéa. 


Xavier  de  Paiva. 


®sos  funerários  em  Portunal 

Assim  como  o  lalemos  dos  gregos  e  as  Nacnias  romanas,  os 
cantos  fiinebres,  tão  característicos  das  povoações  ante-áricas 
persistentes  no  occidente  da  Eiu^opa,  existem  lambem  na  Rússia,  o 
Pesnipogrebalnia  e  o  Nad-mertvimi :  aCantam-n"o  cada  domingo, 
durante  um  certo  tempo  sobre  as  sepulturas  dos  seus  parentes 
mais  próximos,  e  depois  durante  os  grandes  dias  de  festa  por  al- 
gum tempo  ainda.  Mas  o  que  é  mais  notável,  é  que  cada  vez 
que  vão  visitar  os  túmulos  dos  seus  parentes,  põem  em  cima  pe- 
quenos bolos,  à  maneira  dos  coliva  dos  gregos  modernos,  e  da  fe- 
ralia  e  sUicermum  dos  antigos;  acompanham  as  suas  oíTrendas  da 
conclamatio  ou  lamentações  usadas  na  antiguidade.»  ^  Em  Portu- 
gal as  crianças  cantam,  sobretudo  em  Coimbra  uma  canção  fúne- 
bre, no  dia  de  finados,  que  começa  Bolinhos,  bolinholos. 

Os  russos  tèm  também  as  dansas  fúnebres,  Trisna^  como  as  que 
se  usavam  entre  nós  na  sepultura  do  Condesíavel. 

Nos  costumes  antigos  da  egreja  franceza  encontramos:  «Na  egreja 


1  Guthrie.  Antiquités  de  liussie,  p.  43. 

2  Ib.,  p.  78. 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL  29 

de  S.  Quenlin,  durante  o  ofíicio  da  noite  as  crianças  do  povo  per- 
corriam as  fileiras  dos  fieis,  pedindo  a  e^mola  dos  moitos,  sacu- 
dindo bacias  de  cobre,  que  se  enchiam  de  pequenas  moedas.» 
(Rev.  de  lArt  chétien,  i,  520.)  O  uso  passou  da  egreja  para  a  rua. 
O  dobre  dos  finados,  deriva-se  também  do  antigo  uso  em  que  cada 
fiel  ao  sair  da  egreja  puchava  por  seu  turno  pela  corda  do  sino. 

As  carpideiras  decairam  completamente,  bem  como  as  Nenias 
ou  endechas  dos  mortos,  ainda  em  vigor  na  século  xv.  —  O  uso  de 
comer  sobre  as  sepulturas  acha-se  na  lei  velha,  quando  Tobias  re- 
commenda  a  seu  filho  que  ponha  pão  e  vinho  sobre  o  tumulo  dos 
justos :  Panem  tuum  et  vinum  tuum  super  sepuUuram  justi  consti- 
tue.  (Tob,  IV,  V  18.)  Estes  ritos  eram  também  usados  pelos  Bel- 
gas sob  o  nome  de  dadsisas,  espécie  de  festim  sobre  a  sepultura 
das  pessoas  cuja  memoria  era  cara ;  o  touro  e  o  bode  eram  as 
victimas  regularmente  immoladas.  Na  egreja  primitiva  conservou-se 
o  costume,  como  vemos  na  phrase  de  Santo  Agostinho,  que  re- 
commenda  acerca  dos  banquetes  funerários :  Non  sint  sumptuose. 

Os  banquetes  sobre  as  sepulturas  apparecem  entre  os  povos  scau- 
dinavos  como  formando  parte  das  suas  festas  religiosas  ;  Agoslinho 
Thierry  deriva  d"este  uso  os  banquetes  communs  das  Irmandades 
da  Edade  Media,  em  que  se  renovava  a  liga  defensiva  :  «o  terceiro 
copo  era  bebido  pelos  parentes  e  amigos  cujas  sepulturas,  notadas 
por  montículos  de  relva  se  viam  aqui  e  ali  na  planicie.  O  nome  de 
amisade,  minne.  era  dado  algumas  vezes  á  reunião  daquelles  que 
oíTereciam  em  commum  o  sacrifício,  e  de  ordinário  esta  reunião 
era  chamada  ghilde,  isto  é,  banquete  pago  em  commum,  palavra  que 
significava  também  associação  ou  confraria,  porque  os  co-saciifi- 
cantes  promettiam  por  juramento  defenderem-se  uns  aos  outros  e 
de  se  coadjuvarem  como  irmãos.»  ^  As  sandes  com  vinho  são  ainda 
hoje  um  signa I  de  amisade,  bem  como  os  bodos  nas  festas  dos  san- 
tos, são  o  vestígio  do  culto  dos  heroes,  da  antiga  festa  dos  ghdde. 
Agostinho  Thierry  descreve  a  transformação  do  costume,  que  na 
península  se  liga  á  existência  das  Irmandades :  «Os  Germanos,  nas 
suas  migrações  levaram  este  costume  por  toda  a  parte ;  conserva- 
ram-no  depois  da  sua  conversão  ao  christianismo.  substituindo  a 
invocação  dos  Santos  á  dos  deuses  e  heroes,  e  ajuntando  certas 
obras  pias  aos  interesses  positivos  que  tinham  sido  o  objecto  d'este 
género  de  associações.  De  resto,  a  instituição  original  e  fundamen- 
tal, o  banquete,  subsistiu ;  o  copo  dos  bravos  bebeu-se  em  honra 
de  algum  santo  reverenciado  ou  de  algum  patrono  terrestre ;  o  dos 
amigos  bebeu-se,  como  outr^ora,  em  commemoracão  dos  mortos 


Considerations  sur  l  Hist.  de  France,  eap.  6. 


30  ENCYCLOPEUIA  REPUBLICANA 

por  alma  dos  qiiaes  se  resava  reunidos  depois  da  alegria  do  fes- 
tim. O  ghilde  cíiristão  teve  muito  vigor  entre  os  Anglo  Saxões,  e 
vè-se  apparecer  na  Dinamarca,  na  Noruega  e  na  Suécia,  pela  ex- 
tincção  do  paganismo.  «A  historia  das  associações  fiaternaes,  das 
Germauias,  Arimanias,  Irmandades  e  Confrarias,  em  que  a  liber- 
dade individual  se  defendeu  contra  a  prepotência  do  feudalismo 
está  ligada  a  este  coslume  social,  que  ainda  persiste  nos  usos  fu- 
nerários, mas  já  sem  consciência  do  seu  intuito.  É  preciso  portanto 
separar  as  Obradorios  ou  Oblatas,  que  o  povo  usa  pelos  enterros, 
oíBcios,  exéquias  e  trintarios  (ex.  Villa  de  Garros,  etc.)  dos  han- 
quetes  sobre  as  sepulturas,  que  correspondem  a  uma  phase  social 
mais  elevada,  como  vimos  pelo  uso  scandinavo-germanico. 

«Na  freguezia  de  Villa  Cova  de  Carros,  concelho  de  Paredes,  no 
primeiro  domingo  depois  do  fallecimento  de  alguém,  ha  um  Obra- 
dorio,  (responsos)  e  no  fim  d"elle  todos  os  assistentes  bebem  e  co- 
mem á  porta  da  Egreja.  Em  varias  terras  de  Portugal  é  costume 
dar  esmolas  de  pão  aos  pobres,  ou  ás  portas  das  casas  ou  dos  ce- 
mitérios.» *  Nas  (>onstituições  do  Bispado  do  Porto  se  lè:  «E  cada 
um  dos  parochos,  sob  pena  de  lhes  dar  em  culpa,  não  consintam 
em  suas  freguezias  abusos  e  superstições  nos  acompanhamentos,  en- 
terros, olficios,  exéquias  e  trintarios.  nem  que  se  coma  sobre  as  se- 
pulturas, nem  façam  resas  com  ajuntamento  da  freguezia  á  porta 
da  egreja,  em  que  se  costuma  dar  de  comer.»  (Liv.  iv,  tit.  2.°, 
consta  9.)  O  obrailorio  é  a  forma  popular  de  Oblata  ou  Obrata.  O 
collector  já  citado  consigna  este  outro  costume  :  «Em  Paraduça, 
concelho  de  Moimenta  da  Beira,  quando  morre  alguém  o  dorido 
fica  um  mez  com  a  camisa  no  corpo  sem  a  mudar.  No  primeiro 
domingo  em  que  elle  vae  à  missa,  o  povo  acompanha-o  da  casa  à 
egreja,  e  vice-versa.» 

Na  poesia  tradicional  porlugueza  encontram-se  impoitantes  refe- 
rencias aos  usos  funerários;  no  romance  da  D.  Infanta,  versão  da 
Beira  Baixa,  vem : 

—  Ai  triste  de  mim,  viuva, 
Ai  triste  de  mim,  coitada  1 
Ir-me-hei  por  esse  mundo 
Chamamlo-ine  desgraçada. 
Ai  triste  da  só  viuva. 
De  mim  que  nanja  de  nada. 

(Roín.  fjer.  n.°  l.J 

No  romance  de  Faustina,  (Silvaninha)  lêem-se  estes  versos: 

Nossa  Sentiora  do  Pranto 
Era  quem  a  pranteava ; 


1  Leite  de  Vasconeellos,  'Sota  sobre  os  Fuueraes  (Pantlieon.  p.  97.  t881.) 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL  31 


Iso  seu  pranto,  que  dizia  : 

<i Domingo  tle  madrugada 

Vieram  sete  demónios 

Dormiram  em  tua  casa, 

Para  levarem  teu  pae 

Para  o  inferno  em  corpo  e  alma. 

fOp.  cit.  p,  183.) 

No  romance  do  Casamento  mallogrado,  versão  da  ilha  de  S.  Jorge: 

Cobrira-se  com  o  seu  manto 
Tratara  de  caminhar ; 
As  servas  iam  traz  ella 
Cuidando  de  a  não  alcançar; 
O  pranto  que  ella  fazia 
Pedras  fazia  abrandar. . . 

(Cantos  do  Arcliipelago,  7i.°  55.) 

No  romance  do  Puhre  preso,  (ib.  n.°  73),  ha  a  refet^eucia  ao  to- 
que do  sino : 

E  dizei  ao  thesoureiro 

Que  me  toque  o  meu  signal... 

li  no  romance  do  Toureiro  namorado,  versão  da  Beira  Baixa  : 

Não  me  toquem  a  campana, 
Nem  me  enterrem  em  sagrado... 

Quando  se  não  enterrava  o  morto  em  sagrado,  lançavam-lhe  pe- 
dras sobre  a  sepultura,  fazendo  uns  monlicuios  chamados  Fieis  de 
Deus.  Santa  l{osa  de  Viterbo  diz  (l"este  uso:  «Em  todo  este  reino 
vemos  d'estes  pedregulhos  junto  das  estradas,  sem  que  nos  fique 
a  mais  leve  duvida  que  ali  foram  advertidamente  postos  e  não  por 
acaso.»  E  cita  um  documento  de  Pinhel,  de  1473,  em  que  se  refere 
este  titulo,  «queopovo  também  chama  ^Vo///e5- Ga ^////o.5.»  Santa  Rosa 
de  Viterbo  altribue  este  uso  a  origem  grega,  derivado  do  costume 
de  se  atirarem  pedras  para  honrarem  Hermes  ou  Mercúrio,  para  tor- 
nar propicia  a  viagem  ;  mas  o  deus  das  viandantes  era  primitiva- 
mente um  psi/chopompos,  ou  guia  das  almas  dos  mortos,  e  por  este 
aspecto  nos  remontamos  á  origem  mythica  d'este  uso  funerário.  Nos 
contos  populares,  como  o  de  Pelit  Poucet,  a  criiuiça  que  é  abando- 
nada na  floresta  para  morrer,  consegue  por  meio  de /M/rZ/íAo^  que 
vae  deixando  cair  por  onde  a  levam,  descobrir  o  caminho  para  vol- 
tar para  casa.  As  pedras  no  mylho  dePyrra  são  atiradas  para  traz, 
e  nascem  d'ella  os  homens,  durum  gemis,  como  diz  Lucrécio.  A 
pedra  funerária  tem  por  tanto  um  sentido  mylhico,  a  que  se  figa  a 
esperança  da  resurreição  do  morto,  ou  pelo  menos  a  guia  para 
achar  no  mundo  subterrâneo  o  caminho  para  a  luz  e  a  bemaventu- 


32  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICArSA 

rança.  Gubernalis  cita  este  costume  entre  os  tártaros  da  Pequena 
Rússia,  que  em  viagem  atiram  para  a  sepultura  que  encontram  na 
estrada  pedras  com  um  sentimento  religioso  propiciatório  * ;  o 
mesmo  uso  é  indicado  em  Sérvio  como  existente  na  Itália  meri- 
dional, e  Liebrecht,  encontra-o  entre  os  antigos  gregos,  bem  como 
entre  os  Germanos,  Scandinavos  e  Celtas  da  Gram  Bretanha,  re- 
montando-os  também  á  Índia,  aos  Chinezes,  aos  Japonezes  e  Hot- 
tentotes  -. 

Hoje  ainda  se  atiram  pedras  á  sepultura  do  moito,  e  nos  cos- 
tumes provinciaes  os  indivíduos  que  acompanham  o  saimento  con- 
sideram como  um  dever  religioso  o  atirar  um  punhado  de  terra 
para  denti'0  da  cova.  Gubernatis,  allia  estes  dois  fados,  dizendo 
que  a  palavra  indiana  odri,  s\§n\í\c^  pedra  e  monte.  Diodoro  Siculo 
conta  que  Semiramis  levantara  sobre  a  sepultura  do  marido  uma 
collina  de  terra ;  o  tumulo  de  Heitor  era  de  terra  e  de  pedras,  do 
mesmo  modo  que  o  tumulo  a  Alyattes  por  Xenephonte ;  Pausanias 
diz  que  o  tumulo  de  Laios  era  feito  por  um  monte  de  pedras,  e 
segundo  Virgílio,  o  rei  de  Lacio  Dercennus  foi  enterrado  sob  uma 
collina  de  terra.  Lubbock,  traz  uma  phrase  proverbial  dos  monta- 
nhezes  da  Kscossia,  colhida  por  Wilson,  que  é  uma  espécie  de  cor- 
tezia :  iHeide  ajuntar  uma  pedra  an  túmido  que  te  cobrir. y>  (Curri 
mi  clach  er  do  euirn).  São  numerosíssimos  os  fados  coliigidos  por 
Tylor,  Lubbock,  Liebrecht  e  outros,  e  por  isso  é  fácil  a  erudição, 
mas  dirficil  um  systema  de  coordenação. 

O  costume  de  collocar  pedras  sobre  as  sepulturas  acha-se  entre 
as  raças  selvagens,  entre  os  povos  que  attingiram  uma  civilisação 
rudimentar,  e  persiste  ainda  nas  raças  superiores  da  humanidade, 
como  vestígio  de  uma  concepção  primitiva.  Segundo  Park,  no  in- 
terior da  Africa  existem  montões  de  pedras,  que  os  negros  ac- 
cimiulam  sobre  as  sepulturas  dos  seus  parentes  e  amigos,  augmen- 
tando-os  quando  por  ali  passam ;  Galton  descreve  o  mesmo  cos- 
tume entre  os  Damaras,  o  Spencer  nota-o  entre  os  Bodas  eos  Dhi- 
mals.  Darwin,  na  sua  Viagem,  de  um  Naturalista,  observou  na 
Sierra  de  las  Animas,  em  Maldonado,  montões  de  pedras,  a  ({ue 
attribue  um  inluilo  commemorativo  histórico,  mas  que  em  rigor 
são  exclusivamente  de  uso  funerário;  basta  o  nome  de  Sierra  de 
las  Animas,  e  a  relação  já  estabelecida  por  Gubernatis  entre  a  pe- 


1  Mitolofiia  comparata.  pag.  102. 

2  Nos  costumes  populares  da  ilha  de  S.  Miguel,  tia  a  superstição  de  semear  o 
morto;  quando  vae  alguém  a  enterrar,  os  seus  inimigos  costumam  ir  atraz  do  fé- 
retro espalhando  trigo  e  sal,  para  que  elle  não  torne  pelo  mesmo  caminho  a  per- 
seguil-os. 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL  33 


dm  e  o  monte  (adri)  nos  mylhos  indianos,  *  para  se  conhecer  o 
intuito  das  raças  indígenas  da  America,  e  estabelecer  mais  nm 
ponto  de  contacto  com  a  civilisação  primitiva  dos  Árias.  Darwin 
compara  estes  montões  de  pedras  da  Sierra  de  las  Animas  com  os 
que  commumente  se  encontram  nas  montaniias  do  pniz  de  Galles. 
Os  Árabes  também  costumam  atirar  pedras  ás  sepulturas  com  um 
fim  religioso,  prevenindo-se  de  longe  com  pedras  que  acham  pelo 
caminho  para  não  faitareín  a  este  piedoso  dever;  assim  o  obser- 
vou em  1845  o  viajante  Carrete,  na  Argélia  meridional :  «Viajando 
um  dia  com  os  Árabes,  admirei-me  de  os  vêr  apanhar  uma  pe- 
dra cada  um  d'elles  successivamente  ;  um  d'elles  apresentou-me 
uma,  e  pergunto-lhe  porque  é  que  procediam  assim?  —  Devemos 
passar  diante  do  ?2za  (tumulo)  de  liel-Gassen.  Não  comprehendendo 
peguei  na  pedra  ;  dahi  a  pouco  chegamos  a  um  montão  informe 
de  pedras  de  metro  e  meio  de  altura.  Cada  um  dos  companheiros 
foi  lançando  a  pedra  que  trazia  na  mão,  dizendo :  —  Ao  ?iza  de 
Bel-Gassen.  Fiz  como  elles.» 

O  nosso  amigo  Teixeira  Bastos  cita  egual  costume  na  província 
do  Minho,  por  informações  recebidas  de  Cabeceira  de  Basto: 
«Quando  um  aldeão  passa  por  pé  de  uma  cruz,  que  indica  o  sitio 
€m  qne  se  commetteu  um  assassin;o,  apanha  uma  pedra,  e  depois 
de  rezar  pelo  descanço  eterno  do  morto,  atira-a  para  o  montão 
de  pedras,  que  se  vue  formando  em  volta  da  cruz.  O  mais  interes- 
sante é  que  ás  vezes,  quando  n'aquelle  sitio  não  pode  encontrar 
facilmente  uma  pedra  fora  do  montão,  tem  o  cuidado  de  a  trazer 
de  longe,  para  não  deixar  de  prestar  aquelle  preito  supersticioso 
á  alma  do  finado.»  ^  Vé-se  que  o  costume  primitivo  foi  particula- 
risado  para  os  mortos  violentamente,  talvez  para  guiar  as  alm.is 
errantes  dos  que  não  foram  enterrados  em  sagrado ;  e  o  intuito 
de  desacreditar  o  costume  popular  fez  com  que  as  pedras  fossem 
atiradas  por  devoção  para  as  sepulturas  dos  justiçados.  ComUido 
o  costume  ainda  persiste  em  Portugal,  ligada  a  tradição  da  pedra 
ao  culto  da  montanha :  diz  o  sr.  Leite  de  Vasconcellos :  «Ao  pé  do 
Rio  Tinto,  junto  á  Serra  da  mulher  morta,  (segundo  informações 
que  obtive  do  meu  amigo  o  sr.  Leite  de  Faria)  conserva-se  o  cos- 
tume de  deitar  uma  pedra  e  rezar  um  padre  nosso  ao  pé  de  uma 
cruz  de  ferro  que  ahi  ha,  e  assignala  morte.  Ninguém  pode  to- 
car nos  montículos  de  pedra.»  ^  Lm  nota  accrescenta  :  «Sabem  )S 
■que  existe  n"outras  partes  de  Portugal.»  A  cruz  é  ainda  na  liii- 


1  Mitologia  comparata.  p.  100. 

~  Ensaios  sobre  a  Evolução  da  Humanidade,  p.  19. 

^  Era  xXova,  p.  78. 


34  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

giiagem  methaphorica  a  arvore  da  redempção  ;  nos  mylhos  in- 
dianos, a  palavra  adri,  que  significa  a  pedra  e  o  monte,  exprime 
também  a  arvore,  origem  da  vida.  Ha  aqui  dois  syslemas  religiosos 
correspondentes  a  duas  concepções  das  origens  do  homem,  uma 
que  o  deriva  da  terra  ou  argda  animada,  como  nas  raças  kuschi- 
to-semilas,  e  outra  que  o  deriva  das  arvores,  como  nas  raças  ári- 
cas ;  portanto  na  esperança  de  renovação  da  morte,  o  monte  de 
terra  e  a  pedra  pertencem  á  concepção  rudimentar  da  raça  sobre 
que  se  desenvolveram  os  semitas  ;  e  a  arvore  corresponde  ao  do- 
mínio de  uma  raça  superior,  o  ária,  que  substituiu  na  historia  a 
hegemonia  semita. 

Os  moniiculos  funerários  são  frequentes  em  vários  pontos  de  Por- 
tugal, restos  de  uma  população  ante-historlca,  e  têm  na  linguagem 
popular  o  nome  de  mamôas,  anlellas  e  antinhas,  não  obstante  uma 
grande  parle  d"elles  ter  sido  destruída  pela  exploração  agrícola  e 
pelos  investigadores  de  tliesouros.  O  dr.  Martins  Sarmento  dá  uma 
curiosa  noticia  destes  montículos  do  Valle  Ancora,  alguns  delles 
em  grupos:  «O  exame  dos  Dolmens  e  dos  túmulos  de  Ancora, 
mostra  mais  que  os  Dolmens  e  túmulos  são  sempre,  ou  foram  co- 
bertos por  uma  mamôa  maior  ou  menor,  e  conforme  o  tamanho  da 
sepultura  que  escondia,  mas  composta  sempre  do  mesmo  modo,  terra 
e  pedregulho. y>  *  O  terreno  entre  a  Cilania  e  Sabroso.  onde  está  um 
monliculo  sepulcliral,  ainda  conserva  o  non>e  de  Monte  d^Antiila; 
e  em  Pamplide,  o  Campo  das  Antinhas  tem  algumas  sepulturas 
contíguas  abertas  em  rocha.  ^ 

O  nosso  amigo  Leite  de  Vasconcellos,  solícito  investigador  dos 
usos  das  nossas  localidades,  allude  ao  costume  pr\m\l\\oào  dinheiro 
de  Charonte,  que  se  conserva  ainda  no  Jura  e  no  Dorvan,  como 
nota  Alfred  Maury,  e  que  em  Portugal  se  lança  no  caixão  do  de- 
functo,  para  passar  o  rio  dos  mortos:  tNa  freguezia  de  Guifões, 
perto  de  Mathosinhos,  deila-se  no  caixão  do  morto  dinheiro  de  cru- 
zes para  o  morto  passar  S.  Thiago  de  Galliza,  onde  ha  um  buraco 
a  que  toda  a  gente  tem  de  ir,  vivo  ou  morto.  Em  Cimbres,  conce- 
lho de  Mondim  da  Beira,  deita-se  no  caixão  dinheiro  para  o  morto 
passar  a  barca  (ou  a  ponte).  O  mesmo  costume  existe  em  Sinfães 
e  creio  que  no  Minho.  No  Porto  e  em  Villa  Heal  sei  que  se  espeta 
um  alfinete  no  habito  do  morto  para  este  se  lembrar  dos  vivos  pe- 
rante Deus.»  3  A  crença  da  Barca  chegou  a  inspirar  na  litteratura 
portugueza  os  três  Autos  hieraliros  de  Gil  Vicente  A  Barca  do  Jn- 


1  Pantheon,  p.  4. 

2  Idem,  pag.  21. 

3  Idem,  pag.  97. 


usos  FUNERÁRIOS  EM  PORTUGAL  35 

ferno,  do  Purgatório  e  do  Paraiso;  a  crença  da  Ponte  da  passagem 
das  almas  é  fixada  na  via-lactea,  ou  na  linguagem  popular,  car- 
reiro de  Sam  Tliiago  por  onde  as  almas  partem  d'este  mundo.  * 
A  Psychostasia,  ou  pesagem  das  almas  para  julgar  dos  seus  me- 
recimentos pelo  archanjo  S.  Miguel,  é  vulgar  no  povo  portuguez 
e  acha-se  descripta  em  uma  oração  tradicional  do  Porto  : 


Sam  Miguel  pesae  as  almas, 
Ponde  pezos  na  balança. 
Os  peccados  eram  tantos 
Foram  cotn  elles  ao  chão! 
Poz  Nossa  Senhora  o  Manto, 
Ficaram  pezos  suspenso? : 
(>om  a  graça  de  Maria 
Ficou  a  a  minha  contente.  2 


Estas  concepções  acham-se  geralmente  representadas  em  todas 
as  manifestações  da  arte  christã.  Por  aqui  se  vé  como  os  costumes 
são  a  expressão  de  noções  primitivas,  sendo  o  seu  estudo  um  meio 
directo  para  se  recompor  o  estado  psychologico  d"onde  o  homem 
se  elevou  ás  concepções  philosopliicas. 

A  immensa  generalidade  d'estes  usos  nas  raças  mais  vetustas  da 
Ásia,  da  Africa  e  da  liluropa,  revela-nos  a  persistência  de  um  fundo 
de  civilisação  proto-tiistorica  que  se  acha  nos  povos  áricos  e  indo- 
europeus,  especialmente  nos  costumes.  Qual  o  povo  que  forma  este 
fundo  ethnico  da  Europa?  As  raças  ibérica,  gauleza,  scythica, 
finlandeza  e  tártara,  não  foram  eliminadas  pela  migração  indo-eu- 
ropêa,  e  sobretudo  no  occidente  da  Europa  é  onde  se  conservam 
mais  evidentes  restos  de  uma  civilisação  anárica  rudimentar.  A 
Elhnologia  não  deve  ficar  puramente  descriptiva,  como  aconteceu 
á  geographia  antes  dos  estudos  de  Rilter;  é  preciso  apoiar-se  na 
Anthropologia  como  meio  de  coordenação,  e  visar  á  reconstrucção 
da  historia  da  humanidade  interrompida  entre  a  vida  das  cavernas 
e  a  extraordinária  civilisação  do  Egypto. 

Theophílo  Braga. 


^  Nas  crenças  dos  antigos  Parsis,  é  pela  ponte  de  Tchinevad  que  o  morto  entra 
no  céo. 
2  Romanceiro  geral,  n.'  49. 


36  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Auréoítis    íumuiostts 

AUCjUcsTO  comte 

«Tantos  séculos  ha  que  andaes  cavando 
Nas  ondas  movediças  d't'sse  mar, 
E  não  cessastes  ainda  de  cavar 
Por  vir  inutilmente  trabalhando; 

É  em  vão  que,  as  enxadas  entranhando 
Nas  aguas,  piocuraes  ali  f''rmar 
Funda  cova  fo  não  podeis  tirar 
Um  pahno  só,  as  ondas  separando. 

Ó  loucos,  suspendei  estéreis  lidas 
E  voltae-vos  com  forças  decididas 
Para  o  solo  selvagem,  bravo,  duro.» 

Assim  dizia  Comte  aos  que  buscavam 
As  origens  e  os  fins  do  que  ignoravam, 
Mostrando- lhes  terreno  mais  seguro. 


Teixeira  Bastos. 


I 
]>ío  Caflafalso 

A  hora  do  executor  da  alia  justiça  desempenhar  a  sua  missão, 
soou  lugubremente,  como  um  rumor  no  fundo  d^um  tumulo, 

A  forca,  amaldiçoada  por  muitas  gerações,  de  quem  ella  parecia 
zombar  sempre  com  os  seus  reflexos  sinistros,  similhantes  a  gar- 
galhadas mepliislophelicas,  erguia-se  com  toda  a  hediondez  do  seu 
aspecto,  no  Caes-do-Tojo,  ladeada  por  barricas  dalcatrão  em  laba- 
redas. 

Era  a  execução  dos  nove  estudantes  de  Coimbra,  accusados  do 
assassínio  dos  lentes. 

Aquelle  espectáculo  horrível  era  pois  o  epilogo  da  grande  trage- 
dia que  tivera  a  sua  íntroducção  em  Cartaxinho,  na  madrugada  de 
18  de  março. 

Os  raios  ardentes  d'nm  sol  de  junho,  que  ss  não  eclypsava, 
obstavam  a  que  os  condemnados  erguessem  os  olhos  ao  céo  a  ín- 
terrogal-o  nos  seus  mysterios  e  supplicar-lhe  compaixão  e  abrigo, 
no  fervor  da  crença. 


NO  CADAFALSO  37 


Era  uma  sexta  feira  o  dia  20  de  junho  de  1828. 

Todas  as  esperanças  haviam  fugido  da  alma  dos  sentenciados  á 
morte,  e  os  crédulos  agouravam  um  aconle<:imento  sobrenatural 
n'aquelle  dia  de  supremas  angustias  e  de  luto  intimo 

A  multidão  apinhada,  ondulante,  n'uma  agitação  crescente,  con- 
templava u"um  emmudecimento  idiota,  o  quadro  patibular.  em  que 
o  padre  parecia  ainda  mais  terrível  do  que  o  próprio  carrasco. 

Não  eram  os  sentimentos  depravados  que  levavam  o  povo  ao  es- 
pectáculo desmoralisador  e  affrontoso  da  forca,  mas  sim  a  curiosi- 
dade que  os  grandes  apparalos  despertam.  Embora  beslialisado 
pelo  regimen  absoluto,  raro  era  o  semblante,  mesmo  dentre  os 
mais  Riiiaticos  do  ihrojio  e  do  altar,  que  se  não  voltasse,  no  mo- 
mento em  que  o  algoz  se  apossava  do  padecente,  paia  não  vèr-lhe 
os  horrores  da  agonia. 

O  aspecto  severo  dos  juizes,  nas  suas  capas  e  batinas  negras, 
o  vulto  sinistro  do  carrasco,  as  physionomias  hypocritas  dos  clérigos 
em  coro,  psalmeando  um  latim  fúnebre,  o  ar  aterrador  dos  irmãos 
da  misericórdia,  envoltos  nas  suas  opas  roxas,  os  olhares  provo- 
cadores e  os  gestos  arrogantes,  talvez  forçados,  das  auctoridades 
militares  e  civis,  e  a  pallidez  cadavérica  dos  pacientes  mettidos 
na  alva  ignominiosa,  com  a  cabeça  e  os  pés  nus,  amarrados,  des- 
fallecidos,  agonisantes,  arrastados  pelos  degraus  do  palibnlo,  como 
o  eram  pelas  ruas  publicas,  ouvindo  constantemente  o  ecoo  medo- 
nho do  pregão  da  sentença  condemnatoria,  tudo  isto  era  de  um 
pavor  que  opprimia  o  coração  mais  endurecido,  retalhando  a  alma. 

O  povo  obrigado  a  dar  vivas  a  D.  Migue!  e  á  santa  religião,  ia 
atraz  das  tropas,  cantando  o  Miserere,  n"nm  tom  de  arripiar  as 
carnes  e  os  cabellos. 

A  pena  capital  era  odiada,  mas  todas  as  maldiçijes  recahiam 
sobre  o  algoz  como  se  elle  fosse  a  consciência  que  julgasse. 

As  tropas  que  abriam  e  fechavam  o  préstito,  continham  em  res- 
peito e  temor  esse  eterno  vilipendiado,  cujas  manifestações  apoian- 
do aquelles  horrores,  assimilhavam-se  aos  gemidos  das  victimas 
postas  a  tortura.  Era  ainda  o  terror  do  «Cré  ou  morres»,  que  sau- 
dava a  realeza  triumphante  que  auctorisava  a  barbara  lei  abiaçHn- 
do  politicamente  o  altar  da  hypocrisia. 

Todos  almejavam  que  a  corda  rebentasse  caindo  sobre  o  vulto 
branco  do  condemnado  o  painel  da  misericórdia. 

* 
*     * 

Um  dos  juizes  disse  um  nome,  e  immediatamente  subira  a  es- 
cada do  cadafalso  um  dos  réos,  entre  o  padre  e  o  relho  e  funesto 
Samsão.  «O  creio  em  Deus  Padre  Todo  Poderoso»  dito  pelo  mi- 
nistro da  religião,   e  repetido  pelos  lábios  trementes  do  padeceu- 


38  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

te,  linha  o  som  das  louzas  sepulchraes.  O  crucifixo  cahiii-lhe  das 
mãos  atadas  e  a  alluvino  de  padres  e  frades,  cercando  os  outros 
reos  postados  em  roda  do  patibulo,  psalmeavam  :  De  profundis 
clamori  aii  et. .  •  De  profundis. 

Depois  foi  breve ;  o  capuz  da  alva  long:a  puchado  para  a  cabe- 
ça, a  corda  examinada,  e  o  segredo  terrível  do  carrasco : 

—  Perdoas-me  a  morte? 

—  Não.  Viva  a  ]i...ber  ..da...  Ao  mesmo  tempo  um  vulto 
branco  era  arremessado  no  vácuo. 

A  multidão  agitada  como  a  onda  tocada  de  tempestade,  soltou 
unanimemente  um  grilo  de  dor.  Todos  aquelles  corpos  estreme- 
cendo, sentiram  uns  arripios  gelados. 

Decorreram  alguns  minutos.  O  carrasco  depois  de  verificar  a 
morte,  saltou  dos  bombros  do  suppliciado,  cortou  a  corda,  e  o 
corpo  rolou  no  estrado  aos  olhos  dos  que  se  lhe  segui;<m. 

Outro  nome  foi  pronunciado  brevenjente,  em  voz  mal  segura, 
pelo  juiz.  Era  o  filho  do  capilão-mór  de  Cintra,  afilhado  de  Carlo- 
ta Joaquina.  O  desgraçado  cahiu  na  plataforma,  soltando  um  grito 
doloroso. 

Ao  mesmo  tempo  ouviu-se  uma  voz  rouca  no  meio  da  multidão 
compacta,  grilando : 

—  Esperem!  perdão  I  magnanimidade  real!... 

Todos  se  voltaram,  e  o  condemnado  leve  um  estremecimento 
como  se  sentisse  o  choque  d'uma  pilha  eléctrica,  erguendo-se  d'um 
Ímpeto.  Aquella  voz  vibrou-lhe  no  intimo  d'alma  dando-lhe  um  mo- 
mento de  esperança. 

Uma  mulher,  pallida,  desgrenhada,  coberta  de  luto,  fazia  esfor- 
ços supremos  para  romper  por  entre  a  multidão  e  chegar  ao  patí- 
bulo. Era  a  mãe  do  reo,  a  quem  D.  Miguel  havia  promellido  mu- 
Díficeiícia  regia  para  se  livrar  dos  memoriaes  e  das  supplicas  la- 
crimosas a  que  era  insensível,  ainda  que  se  lhe  rojassem  aos  pes. 

A  pobre  creatura  aíTlicta,  na  sua  dor  de  mãe,  já  sem  poder 
verter  uma  lagrima,  esperava  ainda,  confiada  na  promessa  do  rei, 
que  elle  passasse,  confundida  nas  turbas.  Com  a  alma  esmagada, 
mas  ainda  agarrada  á  esperança,  surda  á  lei.  e  ouvindo  simples- 
mente a  voz  da  natureza,  julgava  se  com  o  poder  de  impedir  a  exe- 
cução, como  se  todas  as  forças  humanas  estivessem  no  seu  orga- 
nismo débil. 

—  Um  instante,  um  minuto  só...  —  gritava  —  Olhem  que  é 
meu  filho. 

Para  ella  um  rei  não  podia  mentir,  crendo-se  auclorisada  pela 
sua  palavra  a  mandar  suspender  todas  as  execuções  do  m.undo. 

—  El-rei  passa,  disse  ainda  com  a  voz  estrangulada. 

Mas  a  realidade  era  que  elle  não  apparecía  e  o  condemnado  su- 
bia os  degros  do  cadafalso. 


NO  CADAFALSO  39 


A  mãe  que  o  via,  parecia  agilar-se  n*um  pesadello  horrivel.  Ella 
lambem  não  cria  outra  cousa  o  espectáculo  a  que  assistia  levada 
por  uma  promessa  e  uma  coragem  sublime. 

Passados  alguns  minutos  nem  já  o  próprio  Deus  lhe  podia  res- 
tituir o  filho  com  vida. 

A  desgraçada  sentira  também  sobre  os  hombros  as  mãos  do 
carrasco,  por  um  desses  sentimentos  poderosos  de  mãe,  e  cahira 
desmaiada.  Passados  poucos  dias  morria  com  a  alma  despedaçada 
por  tamanha  dor. 

Apressaram-se  mais  as  execuções  lemendo-se  que  viesse  o  per- 
dão dalgum  dos  condemnados  ou  que  D.  Miguel  apparecesse  de 
repente. 

O  reo  Francisco  do  Amor,  expirara  na  plataforma,  no  momento 
em  que  o  padre  o  amparava  para  subir  ao  lugar  do  suplicio. 

A  multidão  affastava-se  taciturna,  umas  physionomias  fúnebres, 
que  só  viam  no  executor  da  alta  justiça  o  seu  verdugo. 

Outra  mãe,  também  sublime,  arrastava-se  por  entre  a  massa 
enorme  do  povo  em  altos  gritos  aftlictivos,  pedindo  a  morte  jun- 
tamente com  o  filho  caro,  n'um  eterno  abraço.  Num  adeus  derra- 
deiro, tinha  enlouquecido. 

Os  vultos  negros  das  viuvas  dos  lentes  contemplavam  mudamente 
estas  scenas  de  dor,  d'aífiicç1o  e  de  morte,  animadas  apenas  pelos 
desejos  de  vingança,  pois  que  nos  seus  corações  de  mulheres  e  de 
mães  havia  o  ruido  das  grandes  tempestades,  em  que  se  debatiam. 

« 
*     * 

Cahira  já  o  quinto  suppliciado  e  o  sexto  estava  suspenso  dos 
braços  da  forca.  O  povo  n'um  clamor  surdo  ia  abandonando  de  to- 
do o  espectáculo. 

O  latim  fúnebre,  n'um  cantochão  rouco,  dos  ecciesiasticos,  ec- 
coava  no  fundo  do  Tejo,  levemente  encrespado  pelas  brizas  da 
tarde,  e  de  cujas  ondas  o  sol  indiCFerenle  tirava  áureos  listrões. 

Eram  três  horas.  O  carrasco  já  exhausto  de  forças,  commovido 
pelas  vozes  dos  pacientes  e  pelos  seus  olhares  que  moviam  á  com- 
paixão a  alma  mais  cruel,  grilou  com  um  som  ronco,  cavernoso, 
do  alto  da  forca:  aNão  posso  mais»  oscillou  e  cahiu. 

Não  havia  forças  humanas  que  podessem  resistir  a  tanto,  e  o  al- 
goz era  em  todo  o  caso  um  homem. 

A  natureza,  a  consciência,  gritavam  lá  do  intimo  contra  tama- 
nha barbaridade  praticada  em  honra  do  throno  e  do  altar. 

Não  podia  haver  nada  mais  trágico,  nem  mais  commovente.  D"um 
lado  viam-se  os  corpos  dos  justiçados,  arroxeados,  horríveis,  esten- 
didos aos  pés  dos  companheiros,  por  instantes  a  exhalar  o  ultimo 
suspiro,  contrictos,  fazendo  ainda  umas  confissões  dolorosas,  ura 


40  ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

dizendo-se  iniiocente,  os  oiilros  que  fora  uma  allucinaçãn,  uma 
loucura,  todos  não  sabendo  do  que  arrepeuder-se,  pediíido,  sup- 
plicando  que  os  não  julgassem  coui  insliticlos  ferozes  de  assa- 
sinos,  e  do  outro  a  lumba  da  misericórdia,  pintada  de  negro,  com 
os  emblemas  mortuários,  a  ampulheta,  a  fouce,  a  caveira,  rece- 
bendo o  corpo  inanimado  do  carrasco  que  não  poude  conlinar  a 
execução.  E  era  aquelle  miserável  endmecido  no  crime,  a  quem 
n'um  momento  faltou  a  coragem  para  terminar  a  sua  liorrivel  mis- 
são ! 

Era  ao  seu  ajudante  que  cumpria  continuar.  Os  incidentes  do 
cadafalso,  as  negações,  os  desesperos,  alguns  dos  coudemnados 
aíTirinando  a  sua  innocencia.  protestando  que  não  tinham  sentimen- 
tos d'assassinos,  e  já  mmibimdos  com  a  palavra  «liberdade»  cor- 
tada pela  corda  ;  í)  caso  estupendo  da  commoção  poderosa  do  pri- 
meiro carrasco,  que  involuntariamente,  forçadamente,  arrancava  a 
vida  àípiella  mocidade  que  uma  allucinação  momentânea  [)erdera 
para  sempre,  a  impassibilidade  fria  do  clero,  ainda  mais  glacial  do 
que  a  da  justiça,  tudo  produzia  também  no  animo  do  verdugo 
substituto,  o  marulhar  da  onda  encapellada  quando  se  espraia 
dentro  d"uma  caverna.  Com  as  mãos  trementes  proseguiu  na  ma- 
tança. 

A  noticia  da  queda  do  algoz,  produziu  emoção  extraordinária 
DOS  poucos  espectadores  que  ainda  restavam. 

—  Quando  aquelle  tem  alma — disseram,— que  farão  os  que  não 
têm  crimes. 

Houve  grande  susuro  e  algumas  vozes  gritaram  com  sacrifício 
das  próprias  vidas : 

—  Morra  o  absolutismo!...  abaixo  a  forca!  Viva  a  liberdade!... 

Quando  o  novo  carrasco  decepava  a  cabeça  e  as  mãos  dos  últi- 
mos suppliciados  para  as  pregar  no  poste,  conforme  resava  a  sen- 
tença, o  cutello  cahiu-lhe  por  três  vezes. 

Ao  mesmo  tempo  D,  Miguel  I  apparecia,  precedendo  o  sou  gran- 
de séquito,  e  mandando  distribuir  cacetadas  pelo  povo  horrorisado, 
que  se  affastava  para  o  deixai-  passar,  num  clamoi-  trovejante. 

Sobre  os  montes  de  tojo  e  as  barricas  dalcatrão  v  am-se  ainda 
agitar-se  os  corpos  dos  suppliciados  envoltos  em  chammas  como  a 
pedirem  vingança  de  tamanha  crueldade,  O  cortejo  fúnebre  dis- 
persava. . . 

Que  povo  este  tão  digno  da  sua  liberdade,  governando-se  a  si 
mesmo,  sem  a  aílronta  e  o  aviltamento  da  forca  e  do  caceie. 

Reis  Dâmaso. 


o  MARTYR  OBSCURO  41 


.acerca  da  «íflicirseiliezri» 


Proudhon  aflirraa,  no  seu  livro  du  Principe  de  VArte,  que  a  Mar- 
selheza  não  passa  de  uma  amplificação  rhetorica.  Salvo  o  grande 
respeito  devido  á  memoria  de  Proudhon,  este  asserto  é  que  não 
passa  de  uma  blasphemia  arlislica ;  e  veiu  provar  ainda  uma  vez 
esta  verdade  sabida  —  que  o  bom  senso  é  quasi  sempre  incompa- 
tível com  o  bom  gosto. 

As  grandes  obras  d"arte,  filhas  da  verdadeira  inspiração,  pare- 
cem-se  com  as  obras  da  Natureza,  a  suprema  artista  —  em  toda 
a  gente  as  comprehender  por  instinclo.  E  nenhuma  tem,  mais  pro- 
nunciadamente  que  o  canto  de  Rouget  de  Lisle,  esse  cunho  infal- 
livel.  Não  ha  ouvido,  por  mais  inculto,  que  não  perceba  e  retenha 
para  sempre  aquellas  notas  frementes;  garganta,  por  mais  refractá- 
ria á  harmonia,  que  as  não  possa  entoar.  Duas  nuvens,  carregadas 
de  electricidade,  encontraiam-se  uma  vez  nos  ares  da  França. 
Uma  chamava-se  Enlhusiasmo ;  a  outra  chamava-se  Indignação.  A 
Marselheza  é  o  trovão  que  ribomba  indefinidamente  pelos  eccos  do 
mundo,  depois  do  raio  que  em  179i  fulminou  a  Europa,  illumi- 
nando-a !  —  A  sua  musica  é  um  canto  de  guerra,  que  tem  as  no- 
tas tremendas  do  Magnificat:  deposuit  potentes  de  sede.  E  o  seu 
poema,  se  é  uma  amplificação,  é  a  amplificação  d'aquella  vingadora 
promessa  de  Jesus:  «Os  últimos  serão  os  primeiros.» 

Fernando  Leal. 


Ô  áfltirtvr  obscura 


Abriu  a  bocca  enorme  a  valia  insaciável 
E  recebeu  no  ventre  —  a  grande  fundição, 
O  magro  corpo  vil...  o  vaso  miserável 
Em  que  floriu  um  nobre  e  forle  coração! 

Não  foi  um  potentado  o  que  desceu  á  terra, 
Nem   bispo  ou  general,  nem  tinha  habito  ao  peito ; 
Fez   sempre  á  Tyrannia  a  mais  cruenta  guerra, 
Co'os  rasgos  da  Razão  e  as  armas  do  Direito. 

Á  Jucta  popular  votou  o  pensamento ; 
Foi  ecco  a  sua  voz  d'Í!iiprecações  amargas, 
Por  isso  não  se  ouviu  no  triste  passamento 
Dos  áureos  batalhões  as  fúnebres  descargas... 


42  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Ninguém  o  acoinpanliou  á  iinula  valia  fria  t... 
Acompanlial-o,  sim  !...  São  ceremonias  parvas  I 

—  Um  pobre  como  o...  tal,  pôde  ir  sem  companhia 
Dar  o  corpo  de  pasto  ás  esfaimadas  larvas... 

Nem  uma  voz  amiga  além  lhe  disse  adeus, 
A  beira  d'essa  cova  aberta,  escamíarada... 
Só  o  viram  descer  os  brancos  mausoleos  .. 
Disse-lhe  o  ultimo  adeus  a  brisa  magoada  I 

Mordeu-o  a  inveja  em  vida,  e  ainda  alóm  da  morte 
Mordeu-o  a  hypocrisia  e  a  enxada  do  coveiro  ! 

—  Não  temos  que  o  chorar;  é  essa  sempre  a  sorte 
De  quem  teve  talento  e  não  legou  dinheiro ! . . . 

Emqunnto  teve  alento  o  luctador  infrene 
O  povo  a  defender,  sollreu  cruéis  lançadas ; 
Porém  depois  de  morto...  agradeçam-no  á  hygiene 
O  não  liear  exposto,  .'i  chuva,  nas  calçadas  I... 

Nunca  baixou  a  fronte  ante  o  áureo  altar  do  Vicio; 
Honrarias  desdeidiou...  Foi  sempre  um  pobretão  ! 
Por  isso  elle  morreu  no  grabato  do  hospício 
E  á  vesga  cova  foi  sem  pailre  e  sem  caixão  I 

Que  durma  pois  em  paz;  descance  emfim  da  lueía 
Na  funda  solidão  co'os  vermes  sensuaes ! 
Nas  entranhas  da  terra  a  grita  não  se  escuta 
Das  sórdidas  paixões  de  peitos  desleaesl 

Xavier  de  Paiv.\. 


Estudo  d'estc  parasita,  desastrosos  cITeitos  que  produz  uo  homem 
e  meios  de  evitar  a  IricbiBose 

PRELIMINAR 

A  trichina  é  um  animal,  que,  na  phase  mais  terrível  da  sua 
existência,  se  não  pôde  ver  senão  por  meio  de  um  instrumento 
óptico  de  augmentar,  chamado  microscópio. 

Em  tão  pequenina  grandeza,  este  parasita  existe  e  descobre-se, 
mais  numeroíio  que  as  est relias  do  cén  e  as  areias  do  mar,  no  te- 
cido muscular,  isto  é,  na  carne  de  vários  animaes,  especialmente 
do  porco  e  do  homem  (jue  teve  a  desgraça  de  comer  toucinho  ou 
carne  d'este  animal,  trichinada. 

Os  estudos  até  hoje  feitos  sobre  o  nascimento,  emigração  e  re- 
producção  da  trichina,  no  porco  e  no  homem,  são  já  sufficientes 


A  TRICHLNA  43 


para  nos  demonsUar  a  maior  probabilidade  de  sermos  atacados  de 
írichinose,  quando  ingerirmos  toucinho,  chouriço  ou  carae  de 
porco  eivada  de  tal  verme. 

A  sciencia  na  sua  marcha  collossal  e  assombrosa,  desconhecida 
do  povo,  caminha  incessanlemenle  ! 

Quem  nos  pôde  aíTiant^-ar  que  não  tom  no  nosso  paiz,  fallecido 
de  írichinose  muita  gente,  sem  que  os  médicos  hajam  reconhe- 
cido tão  horrível  doença  ? 

Todavia  a  írichinose,  entre  nós,  não  é  doença  estrangeira :  al- 
guns médicos,  tanto  nos  hospitaes  como  na  chnica  particular,  sur- 
prehendidos  pelo  caracter  extraordinário  de  algumas  affecções  ty- 
phoides,  teem-se  lembrado  de  examinar  a  carne  dos  cadáveres,  e 
assim,  mais  de  uma  vez,  se  tem  descoberto  a  Irichina.  Mas  a  par 
destes,  quantos  casos  completamente  desapercebidos  ! 

Hoje  em  Portugal  as  vistas  do  publico  voltam-se  para  o  celebre 
verme  nematoide.  que  muito  piovavelmente  deu  logar  a  epidemias 
fataes  em  povoações  raianas  da  província  de  Salamanca  e  do  ncsso 
districto  da  Guarda. 

Foi  o  nosso  collega  d'aquelle  districto  que  primeiro  preveniu  o 
governo  sobre  estes  factos  insólitos,  apontando  a  suspeitada  causa. 

Não  se  fez  esperar  a  solicitude  do  governo,  que.  sobre  este  as- 
sumpto, consultou  o  conselho  especial  de  veterinária. 

Esta  illiistre  corporação  redigiu  logo  as  seguintes  instrucções 
de  policia  sanitária,  cuja  execução  está  a  cargo  dos  intendentes  de 
pecuária. 

l.''  —  Os  intendentes  de  pecuária  são  obrigados  a  examinar, 
com  microscópio  de  nunca  menos  de  30  a  oO  diâmetros,  em  quaes- 
quer  lugares  ou  mercados  públicos  (matadouros,  açougues  salchi- 
charias,  alfandegas,  etc.)  a  carne  de  porco  abatido  para  consumo, 
sempre  que  tiverem  alguma  duvida  sobre  a  sua  qualidade,  princi- 
palmente para  se  certificarem  ou  não  da  presença  das  Irichinas, 
dando  depois  parte  por  escripto  e  narrativa,  no  fim  de  cada  mez, 
ao  conselho  especial  de  vetei inaria,  do  resultado  dos  exames  a  que 
houverem  procedido. 

2.'''  —  Os  mesmos  funccionarios  farão  constar  desde  já,  por  edi- 
taes,  ou  instrucções  muita  summarias  impressas,  aíTixadas  nos  lo- 
caes  convenientes,  (|ue  a  carne  de  porco  trichinada  é  grandemente 
prejudicial  á  saúde  dos  consumidores. 

3.'*  —  A  carne  que  fòr  julgada  nociva  ao  consumo,  deverá  ser 
inutilisada  com  acido  sulphurico,  petróleo  ou  acido  phenico,  con- 
forme a  pratica. 

4.* — A  aucloridade  local  competente  deverá  assistir  a  este  acto. 

5.^  —  Acerca  da  írichinose  os  intendentes  de  pecuária  redigirão 
uma  resumidíssima  historia,  em  que  se  declare  a  natureza  e  sede 
d'essa  grave  doença,    a   indicação  dos  caracteres  do  parasita,  a 


44  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

diiriculdade,  ou  antes,  impossibilidade  do  diagnostico  durante  a 
vida,  os  accidentes  que  produz  na  espécie  humana,  e  a  innocui- 
dade  da  carne  trichinada,  de[)0is  de  suhmettida  á  temperatura 
d'entre  78**  a  100**  cenligrados,  quer  se  coza,  quer  se  asse  ou 
fíite. 

6.^ — Esta  indispensável  historia  será  espalhada  profusamente 
nos  respectivos  districtos.  tendo  presente  que  chegue  ao  conheci- 
mento do  maior  numeio  dos  seus  habitantes. 

Ao  mesmo  tempo  foram  enviados  aos  intendentes  de  pecuária, 
microscópios  para  procederem  ao  exame  da  carne  de  porco  e  suas 
preparações. 

Kslà  provado  que  a  Irichinose  é  frequente  nos  porcos,  em  todos 
os  paizes  onde  estes  animaes  existem.  O  nosso  não  pôde  ficar  ex- 
cluído desta  lei. 

Não  é  porém  egualmente  frequente  a  trichinose  humana  em  to- 
dos os  paizes,  pelo  motivo  que  veremos  no  decurso  d'este  escripto; 
no  nosso  nada,  por  emquanto,  se  sabe  sobre  a  frequência  d  esta 
doença,  porque  sempre  a  allenção  da  medicina  delia  tem  andado 
desviada,  mas  ha  toda  a  probabilidade  de  que  muitas  alfecções  dia- 
gnosticadas sob  outro  nome,  não  tenham  sido  outra  coisa  mais  do 
que  a  trichinose. 

Como  ella  provém  sempre  do  consumo  do  toucinho  ou  carne  de 
porco,  consumo  abundantíssimo  em  Portugal,  e  sendo  quasi  sem- 
pre mortal,  a  tal  causa  podemos  allribuir  muitas  epidemias  typhoi- 
des  que,  por  vezes,  teem  dizimado  as  nossas  povoaçijes. 

As  medidas  de  policia  sanitária  feitas  executar  pelo  governo,  e 
muito  principalmente  as  caulellas  que  os  consumidores  esponta- 
neamente adoptarem,  depois  de  conipletaujente  esclarecidos  sobre 
tão  importante  assumpto,  garantirão  seguramente  este  paiz  contra 
os  desastrosos  eíTeilos  do  terrível  parasita. 


A.  ti*icliiiiose  no  homem 

Ponhamos  já  diante  dos  olhos  do  leitor  o  triste  quadro  dos  sym- 
ptomas,  pelos  quaes  se  manifesta  a  trichinose  na  espécie  humana, 
doença  quasi  sempre  mortal,  e  que,  nos  poucos  casos  em  que  não 
mata  o  doente,  com  certeza  o  deixa,  após  uma  longuíssima  conva- 
lescença, fraco,  estragado,  incapaz  de  trabalhar  para  o  resto  dos 
seus  dias. 

Três  semanas,  pouco  mais  ou  menos  depois  de  se  ter  comido 
toucinho  ou  carne  de  porco  com  trichinas  vivas,  o  doente  sente 
ura  enfraquecimento  geral,  perturbações  e  agonias  no  estômago; 
faz  mal  a  digestão ;  perde  o  appetite  e  levanta-se-lhe  levemente  o 


A  THICHINA  45 


ventre.  Ha  alguns  vómitos  e  dores  de  barriga,  não  se  pôde  con- 
sentir a  mais  leve  pressão  no  baixo  ventre,  que  está  muito  doido. 
Apparece  diarrhéa  e,  mais  tarde,  vem  constipação  do  ventre,  isto 
é,  dilljculdade  de  evacuar,  porque  os  excrementos  são  duros  e  o 
intestino  está  irritado. 

A  doença  vai  seguindo  o  seu  curso,  á  maneira  que  os  vermes  se 
vão  derramando  nos  músculos.  íla  febre  ;  o  doente  sente  ditlicul- 
dade  nos  movimentos;  senle-se  tolhido,  como  que  paralytico;  os 
seus  músculos  estão  rijos,  não  se  contraem  livremente  ;  soífre  vio- 
lentas dores  musculares. 

D'aqui  resulta  também  grandíssima  oppressão  no  peito  ;  não 
pôde  respirar  sem  grande  esforço;  não  pôde  engulir  ;  sente  a 
goela  apertada:  manifesta-se  mesmo  inflammação  na  garganta  e 
rouquidão;  o  doente  nem  mesmo  tem  o  desafogo  de  fallar,  quei- 
xar-se,  gritar  livremente.  Manifesta-se  bronchite ;  ha  accessos  de 
tosse  violenta  ;  o  corpo  vai  inchando  todo,  muito  especialmente  a 
cara,  desapparecendo  quasi  os  olhos  no  meio  do  rosto  empastado. 
Esta  inchação  da  cara,  chamada  em  linguagem  medica,  edema  da 
face,  é  considerada,  por  alguns  auctores,  como  symptoma  caracte- 
rístico da  trichiností. 

Além  disto  o  doente  não  dorme,  emmagrece  a  olhos  vistos  ;  em 
poucos  dias  perde  lo  a  20  kilos  do  seu  peso  primitivo. 

A  alteração  profunda  da  nutrição,  e  a  paralysia  dos  músculos 
do  peito  acabam  emfim,  entre  horiiveis  soíTrimentos,  a  vida  do  des- 
venturado doente. 

Kmquanto  os  vermes,  que  se  comeram  na  carne  de  porco,  se 
conservam  no  intestino  humano,  a  reproduzirem-se  prodigiosa- 
mente, apparecem  os  symptomas  todos  que  apresentei  (vómitos, 
diarrhéa,  inchação  do  ventre,  etc),  muito  parecidos  com  os  de  ura 
ataque  de  cholera  benigna,  ou  cholerina;  — é  o  primeiro  periodo 
da  trichinose,  denominado  de  irritação  gasiro-itUeslinal,  que  não 
dura  mais  de  8  dias. 

Os  symptomas  seguintes  a  esses,  manifestados  no  apparelho 
musculax  e  na  niUrição  geral,  coincidem  com  a  passagem  das  tri- 
chinas,  para  as  fibras  dos  músculos  ;  taes  symptomas  caracteiisam 
o  segundo  periodo,  chamado  de  emigração  embrionária .  Este  pe- 
riodo, em  que  o  doente  soíTre  torturas  infernaes,  dura  lo  dias! 

A  exacerl)ação  ou  extraordinário  augmento  dos  symptomas  deste 
segundo  periodo  constitue  o  terceiro  periodo,  o  periodo  typhoide, 
que  decide  da  vida  do  padecente. 

Se  este  possue  grande  resistência  vital,  entra  na  quinta  semana, 
6  está  salvo,  porque  os  vermes  derramados  nos  seus  músculos 
principiam  a  formar  uma  capsula  fibrosa  que  os  isola  das  fibras 
musculares,  comquanto  os  não  mate.  Este  ultimo  periodo  tem  a 
denominação  de  enkistamento  dcs  embriões. 


46  ENCYGLOPEDIA  REPUBLICANA 

Não  esqueçànios  porém,  que  a  cura  da  Iricliinose  é  uma  bem 
triste  cura,  porque,  quem  um  dia  teve  a  desgraça  de  se  infeccio- 
nar de  trichinas,  jamais  poderá  gosar  a  felicidade  da  sua  anliga 
saúde. 

Conhece  o  leitor  o  lastimoso  quadro  que  oíTerece  o  homem  iri- 
ciiinado,  deitado  de  cosias  irtima  cama,  padecendo  dores  aliozes 
em  todos  os  pontos  do  corpo,  quasi  aspiíixiado,  sem  poder  fazer 
movimento  algum,  sem  poder  fallar  nem  gritar,  porque  tem  a  lín- 
gua e  a  garganta  dorida  e  inchada! 

Desde  o  principio  até  ao  lim  d'esta  horrivel  doença,  decorre  or- 
dinariamente o  espaço  de  »»  semanas;  mas  casos  ha  em  que  os 
doentes,  mesmo  que  se  curem,  estão  subjugados  pela  enfermidade 
por  espaço  de  4  mezes  e  ainda  mais. 

O  leitor  deve  achar-se  agora  cheio  de  justa  curiosidade  e  inte- 
resse por  conhecer  completamente  o  estudo  que  se  tem  feito  so- 
bre esse  temivel  parasita  animal,  chamado  trichiiia  spiralis,  e,  so- 
bretudo, o  meio  de  se  prevenir  contra  os  seus  desastrosos  eíTei- 
tos. 

Vamos  satisfazer  esse  justo  empenho  nos  capítulos  subsequen- 
tes. 

II 

A.  tridiina,  musculai* 

Como  a  trichina  se  apresenta  em  dois  estados  differentes,  em 
differentes  lugares  do  organismo  de  alguns  animaes,  iste  é:  —  //- 
vre  no  interior  do  intestino,  e  recolhida  dentro  de  um  kyslo  ou  ca- 
sulosinho  fibroso  nos  músculos,  —  principiemos  por  a  descrever 
n'esle  ultimo  estado,  lai  como  facilmente  pode  ser  observada  por 
meio  do  microscópio  nos  músculos  do  porco. 

É  mais  abundantemente  nos  músculos  do  pescoço,  dos  olhos,  e 
no  diaphragm;),  (musculo  chato  em  forma  de  leque,  que  separa, 
como  um  labique,  a  cavidade  do  peito  da  do  vetitre)  que  se  encon- 
tram, intermeados  com  as  fibras  musculares,  milhares  de  grãosi- 
nhos  brancos.  Também  ás  vezes  se  encontram  no  toucinho.  São 
kislos  ou  habitações  fechadas  hermeticamente,  contendo  de  ordi- 
nário um  só  verme,  mas,  muitas  vezes,  muitos. 

Estes  kistos  são  ovaes,  teem  meio  [nillimetro  de  comprimento, 
são  formados  por  duas  membranasinhas,  uma  por  dentro  da  ou- 
tra, membranas  que,  algum  tempo  depois  da  sua  formação,  se  tor- 
nam num  grãosinho  escuro  e  duro,  porque  nos  seus  poros  se  de- 
positam saes  calcareos,  continuando,  já  se  vé,  as  Irichinas  a  resi- 
dir no  seu  interior,  vivas,  por  muito  tempo,  que  pôde  chegar  a  20 
annos  no  homem  e  5  no  porco;  mas,  na  maioria  dos  casos,  antes 


MOSAICO  HISTÓRICO  47 

de  tão  longos  prasns,  esses  vermes  raorreia  e  petrificam-se  ou  in- 
fillram-se  de  matéria  gorda. 

Não  é  verdade,  como  se  tem  aíTirmado,  que  os  kistos  estourem 
sob  os  dente;,  quando  se  mastiga  carne  trichinada.  Se  assim  fosse 
lodos  conheceriam  o  inimigo  antes  de  lhe  darem  entrada  no  estô- 
mago. 

A  trichina,  dentro  d'esles  kistos,  está  sempre  enrolada,  como  a 
mola  de  um  relógio,  por  isso  se  lhe  chama  trichina  spiralis.  O  seu 
corpo,  similhante  ao  das  lombiigas,  mede  5  a  8  décimos  de  mil- 
limetro  de  cabeça  á  cauda.  Ksta  é  mais  grossa  que  aquella,  e  apre- 
senta um  orifício,  que  é  o  anus. 

Tem  boca,  estômago,  systema  nervoso,  fibras  ao  longo  da  parte 
inferior  do  corpo,  que  a  conservam  enrolada,  e,  na  parte  superior 
tem  o  aspecto  annelado,  como  se  vc,  por  exemplo,  nos  bichos  de 
conta.  Possue  lambem  órgãos  se.xuaes,  respectivamente  o  macho 
e  a  fêmea,  órgãos,  que,  como  o  estômago  e  outros,  são  rudimen- 
tares, isto  é,  de  uma  extrema  simphcidade. 

Na  carne  ou  tecido  muscular,  a  trichina,  se  ahi  se  acha  de  pouco 
tcuipo,  está  enrolada  mas  não  enkistada  ;  não  tarda  porém  que  o 
kisto  se  forme  e  mais  tarde  endureça. 

Emquanto  reside  n'este  tecido  é  uso  denominar  este  parasita 
—  ti  ic/tiíia  muscular. 

III 

Pi-oclig^ioso  iiTiiiiero  cias  tricliiiias  muscnlnres 

Diz  o  sr.  Zundel,  medico-veterinarío  em  Strasburgo,  e  uma  das 
primeiras  illustrações  scienlificas  da  Allemanha,  que  Probslmnyer 
contou  468  trichinas  em  mei.i  gramma  de  tecido  muscular;  que, 
em  Pianne  foram  calculadas  i2oO;000  trichinas  em  30  grammas  do 
mesmo  tecido;  e  que  Colin,  sábio  professor  na  escola  veterinária 
de  Alfort,  admitte  que  1  kilo  de  carne  pode  encerrar  alè  o  mi- 
lhões dos  terríveis  parasitas. 

(Segue)  Annes  Baganh.^. 


Ristorii 


osaica  liislorico 


Em  um  bello  dia  do  anno  de  1728,  os  galfarros  da  policia  do 
tempo  prenderam  na  villa  de  Monforte,  Âlemtejo,  um  pobre  rapaz 
de  19  annos  incompletos,  accusado  do  sacrílego  crime  de  ter  rou- 
bado—diziam—uma pixide  onde  estava  nitidamente  acondicionado, 
c  mLMIior  agasalhado,  o  Santíssimo  Sacramento. 


48  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Como  era  preciso  appl.icar  com  sangue  a  cólera  da  divindade 
irrilada,  porque  segundo  os  doiUores  da  Kgreja  ella  também  se 
irrita  como  qualquer  mortal,  o  infeliz  foi  remellido  para  a  cadeia 
de  Lisboa  soflrendo  atravez  das  villas  e  aldeias  sertanejas  pnr  onde 
passava  os  apupos,  doestos  e  pedradas  do  povo  fanalisadn,  que 
largava  de  mão  os  trabalhos  da  lavoura  e  acorria  ao  cairel  dos  ca- 
minhos para  ver  e  insultar  o  precito. 

Não  se  cuidou  de  inquirir  as  causas  do  crime,  se  o  houve,  nem 
mesmo  se  pensou  em  submetler  o  desgraçado  mancebo  á  obser- 
vação de  médicos  intelligentes,  porque  bem  podia  ser  o  desacato 
o  resultado  duma  f  erturiação  mental.  Urgia  desaggravar  o  Santis- 
ámo  que  andara  aos  baldões  nas  unhas  de  um  larapio ;  e  em  tal 
caso  a  patlioiogia  mtromettendo-se  hicorria  n'inn  perigo. . .  Era 
sacrilégio  sobre  sacrilégio.  A  sciencia  nunca  viveu  em  boa  paz  com 
a  religião. 

A  pouca  idade  mesmo  do  supposto  criminoso  não  foi  levada  em 
conta.  Condemnaram-n'o  a  um  supplicio  horrível. 

Em  o  dia  i3  do  mesmo  anno  arrastaram-no  da  cadeia  ao  Rocio, 
6  ahi,  com  uma  crueldade  inaudita,  e  sem  que  uma  palavra  de  dá 
e  clemência  irrompesse  da  compacta  multidão  que  enchia  a  praça, 
amarraram-n'o  a  um  alto  poste,  mulilaram-no  horrivelmente  cor- 
tando-llie  as  mãos,  garroiaram-n"o,  e  depois  da  destruição  parcial 
e  pautada  do  corpo — talvez  uma  bella  estatua,  — a  mais  perfeita 
obra  do  Creadúv,  fizeram  crepitar  a  lenha  preparada  para  o  eíTeito 
e  lançaram  ao  torvelinho  das  c;.ammas  rúbidas  e  vorazes  aquelles 
ensanguentados  restos  ainda  palpitantes  !  !  I 

A  ira  de  Ueus  estava  plenamente  satisfeita. . .  No  entanto  João  V, 
o  régio  frascario,  assaltava  os  coiivenlos  e  profanava  os  sagra- 
dos recintos  transformando-os  em  prostíbulos  onde  se  entregava  a 
scenas  de  revoltante  libertinagem  com  as  beatificas  filhas  do  Se* 
uhor. . . 

Vá  sem  commentarios  o  confronto. 


A  imprensa,  a  sublime  e  utilitária  invenção  de  Guttemberg,  Foust 
6  Schoffer,  foi,  logo  nos  primeiros  annos  da  sua  applícação,  muito 
perseguida  pela  ignorância  e  pelo  fanatismo. 

Não  se  podia  publicar  um  Uvro  sem  previa  auctorisação.  O  clero 
antes  de  conceder  examinava  e  approvava  a  obra  ;  tinha-se  obriga- 
ção de  pedir-lhe  o  certificado  de  que  o  anctor  era  religioso  e  or- 
thodoxo. 

Alexandre  VI,  em  loOl,  firmou  uma  bulia  de  excommunhão  con- 
tra os  impressores  que  publicassem  doulrmas  perniciosas;  e,  em 
4515,  o  concilio  de  Latrão  prohibiu,  debaixo  da  mesma  pena,  pu-- 


QUEM  FAZ  A  REPUBLICA  49 

blicar  qualquer  iivro  que  não  houvesse  recebido  a  approvação  dos 
censores  ecclesiaslicos. 

Apesar  dos  esforços  da  intolerância  e  do  fanatismo,  a  imprensa 
saiu  victoriosa  da  lucta  contra  os  obstáculos  que  lhe  antepunham  e 
dos  prejuízos  que  lhe  retardavam  a  marcha  atravez  os  séculos,  e 
conseguiu  emfim  ser  o  que  hoje  é  —  o  flagello  dos  hypocritas,  a 
ameaça  dos  tyrannos,  a  conselheira  das  nações,  o  guia  dos  povos, 
e  a  luz  resplendente  que  dissipa  as  lobregas  trevas  da  ignorância. 


yueni  mz  ci  JtenubUcia 


Se  as  instituições  democráticas  para  se  estabelecerem  em  Por- 
tugal tivessem  apenas  o  apoio  das  ideias  theoricas  e  doutrinas  scien- 
tificas  de  alguns  indivíduos,  e  também  a  adhesão  dos  sentimentos 
generosos  das  classes  mais  activas  da  sociedade  que  por  instiiicto 
conhecem  que  a  ordem  é  o  exercício  pleno  da  liberdade,  nada 
d'isto  bastava  para  trazer  essas  instituições  do  domínio  das  ideias 
ou  das  aspirações  para  a  realidade  immediata  dos  factos.  Nas  so- 
ciedades preponderam  as  forças  de  conservação,  o  aferro  ao  passa- 
do, a  desconfiança  pela  novidade,  o  receio  de  mudanças,  u  des- 
favor pelas  ideias  novas,  o  temor  do  desconhecido,  e  é  esta  ten- 
dência regressiva  que  as  instit'Jições  abusivas  exploram,  mantendo 
a  multidão  em  um  obscurantismo  que  a  leva  a  sacrificar-se  ao  mal 
estar  para  não  sair  da  estabilidade. 

Mas,  apezar  d"esta  impotência  implusiva  e  d'e3ta  reacção  espon- 
tânea, as  sociedades  progridem,  por  este  conflicto  permanente 
em  que  todos  cooperam  sem  chegarem  sequer  a  ter  cenhecimento 
da  marcha  evolutiva  das  cousas.  O  excesso  de  conservação  ag- 
grava  o  mal  estar  social,  e  insensivelmente  estabelece-se  uma 
dissidência  entre  as  consciências  e  as  instituições ;  estas  firmando 
a  ordem  na  força  bruta,  aquellas  fortalecendo-se  na  unanimi- 
dade do  protesto  e  das  opiniões  em  que  hão  de  assentar  a  con- 
córdia que  procuram.  É  aproveitando  esta  corrente  social,  que 
os  iniciadores  políticos  conseguem  tornar  praticas  as  suas  ideias. 
Quando  o  iniciador  se  concentra  no  subjectivismo  das  suas  ideias, 
fica  quando  muito  um  sympathico  utopista,  e  mais  nada :  se  entra 
na  acção,  acha-se  isolado,  como  um  perturbador  revolucionário, 
cujos  esforços  se  esgotam  nas  decepções  mortaes. 

Ha  portanto-  uma  força  superior  a  todos  os  uidividuos,  por  mais 
eminentes  e  preponderantes  que  sejam,  força  que  faz  com  que  as 
sociedades  progridam  através  das  luctas  dos  interesses,  máu  grado 

7 


50  EiNGYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 

»  — 

a  incoherencia  das  opiniões,  no  meio  das  conlradicções  do  senti- 
mento, de  encontro  aos  retrocessos  casuaes,  arrastando  comsigo 
as  inslitnições  atrazadas,  fazendo  com  que  lodos  cooperem  para 
um  fim  commiim,  muitas  vezes  sem  mesmo  o  comprehenderem. 
É  esta  foiga,  que  deiiva  da  capacidade  progressiva  da  nossa  es- 
pécie, e  que  a  torna  persistente,  bem  como  o  desenvolvimento  indi- 
vidual emergente  da  edade  e  do  regimen  da  educação ;  é  esta  a 
força  que  nos  leva  para  diante,  e  que  naturalmente  se  contraba- 
lança com  o  inslincto  regressivo  da  conservação. 

Na  sua  Ideia  de  uma  Historia  universal,  Kant  esboçou  em  prin- 
cipio a  cooperação  dessa  força,  com  que  os  politicos  não  contam : 
«Os  indivíduos  e  mesmo  os  povos  não  imaginam  sequer,  que  en- 
tregando-se  cada  um  ao  seu  próprio  sentir,  e  muitas  vezes  a  luta- 
rem uns  contra  os  outros,  elles  seguem  contra  vontade,  como  um 
fio  conductor,  o  desígnio  da  natureza,  que  lhes  é  desconhecido,  e 
concorrem  para  uma  evolução,  de  que  pouco  se  lhes  daiia,  ainda 
que  tivessem  uma  ideia  d'ella.»  Exemplidquemos  este  principio 
fundamental  com  factos  de  qualquer  instituição  social :  A  Egreja, 
com  a  tremenda  corrupção  do  passado,  cooperou  inconscientemente 
para  o  triumpho  do  protestanlismo;  a  Realeza,  pela  absorpção  de 
todas  as  energias  sociaes,  e  pelo  abuso  da  força  do  regimen  cesa- 
risla,  provocou  o  advento  da  éra  revolucionaria:  o  Contituciona- 
lismo,  pelo  sophisma  das  Cartas  outorgadas  e  peia  bypocrisia  li- 
beral, deu  origem  ás  agitações  democráticas  que  reclamam  a  jus- 
tiça da  instituição  da  Republica. 

Em  Portugal  é  evidente  esta  força  da  evolução,  em  que  os  pró- 
prios monarchicos,  os  mais  pessoalmente  interessados  na  causa 
dynastica,  são  os  que  mais  cooperam  pai'a  o  advento  da  Republica, 
embora  de  um  modo  inconsciente.  Os  ministros  revelam  peia  sua 
instabilidade,  que  não  existe  um  poder  definido  tendo  por  base  a 
vontade  da  nação;  as  auctoridades  administrativas  procedem  dis- 
cricionariamente  intervindo  na  independência  do  poder  judicial; 
os  parlamentos  formam-se  por  nomeação  ministerial  com  as  exte- 
rioridades  da  eleição.  Fora  das  bases  jmidicas,  cada  um  defende 
os  seus  interesses  pela  dependência  dos  favores,  e  n'este  confliclo 
nascem  os  despeitos  que  lavram  nos  partidos  monarchicos,  des- 
peitos que  motivam  revelações  importantes,  com  que  a  nação  se 
vae  desilludindo  da  realeza. 

É  geral  esta  falha  de  senso  commum ;  ao  passo  que  os  monar- 
chicos nos  impõem  com  processos  judiciários  o  respeito  pelo  rei, 
são  elles  próprios  que  o  expõem  á  situação  de  ir  receber  ao  Porto 
uma  venera  da  associação  humanitária  I  Um  jornalista,  no  excesso 
de  fervor  pelo  interesse  dynastico,  proclama  a  negação  dos  prin- 
cipios  mais  rudimentares  do  direito  publico,  e  barafusta  na  irra- 
cionalidade, tornando  mais  odiosa  a  ordem  do  que  a  demagogia. 


UM  SANTO...  51 


Um  outro  jornal  monarchico,  atacando  os  republicanos  por  falta 
de  unidade,  diz  que  elles  são  incapazes  de  fundar  a  Republica,  e 
que  se  as  republicas  existem,  é  porque  os  monarchicos  as  con- 
servam, e  sabem  sustentar,  apoiando-se  no  exemplo  de  Tliiers. 
Bella  transição  para  justificar  esta  cooperação  inconsciente. 

De  facto  os  publicistas  modernos  distinguem  estas  duas  capaci- 
dades, a  que  funda  a  Republica  e  a  que  sabe  sustenlal-a  ;  e  Lavel- 
leye,  considera  a  população  das  cidades  como  a  que  tem  a  intel- 
ligencia  e  a  audácia  para  estabelecer  a  Republica,  e  a  população 
das  províncias  como  a  que  tem  a  adhesão  persistente  para  conser- 
val-a.  Um  outro  jornal  monarchico,  a  propósito  de  eleições  confessa 
que  a  população  activa  de  Lisboa,  commerciantes  e  industriaes, 
6  sobretudo  nos  círculos  mais  ricos  e  intelligentes,  se  confessavam 
republicanos  diante  do  candidato  monarchico  que  lhes  impetrava 
o  suíTragio.  A  mesma  confissão  se  repele  nos  jornaes  das  provín- 
cias. Mas  não  basta  isto  ainda  ;  sem  plano  de  convergência,  que 
é  a  missão  dos  chefes,  as  opiniões  republicanas  vão  espontanea- 
mente conslituindo  núcleos  ou  centros  por  todas  as  províncias,  ao 
passo  que  os  partidos  mon.irchicos  se  dividem  em  grupos  despei- 
tados, ou  patrulhas,  atacando-se  os  regeneradores  entre  si  nas 
suas  folhas,  espectáculo  que  se  repete  com  a  mesma  impertinên- 
cia no  jornalismo  progressista.  Nenhum  d'elles  quer  a  Republica, 
é  verdade,  mas  cooperam  fatalmente  para  ella  ;  e  é  esta  incon- 
sciência da  acção,  esta  versatillidade  das  opiniões,  este  desvaira- 
mento  das  personalidades,  que  nos  revela  que  o  tempo  está  perto 
e  que  por  intuição  os  espíritos  tendem  para  a  realisação  de  uma 
ordem  nova. 

Theophilo  Bbaga. 


■ffni  s  ti  ato... 


o  bom  do  prií  r  acabara  de  almoçar  e  dirigia-se  vagarosamente 
para  a  egreja  encostado  à  sua  bengala  de  castão  d'ouro. 

Ia  dizer  missa. 

oQue  sacrilégio!»  dirão  as  beatas  que  nos  escutarem. 

Pois  é  a  pura  verdade.  O  prior  era  fraquito,  apesar  de  que  a  sua 
figura  o  não  indicasse.  O  abdumen  era  monstruoso,  os  hombros  lar- 
gos e  o  seu  aspecto  era  todo  saúde  e  robustez.  Mas,  emflm,  as  ap- 
parencias  illudem. . .  O  pobre  do  padreca  não  podia  estar  duas  ho- 
ras consecutivas  sem  comer.  O  seu  maior  prazer  era  passar  algumas 
horas  à  mesa  deante  dum  succolento  almoço.  No  fim  de  tudo  era 
um  santo  homem. 

Tinha  devorado  o  seu  bello  bife  e  entornado  garrafa  e  meia  dum 


52  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


vinlio  (In  sua  lavra,  que  o  tornara  um  pouco  alegre.  A'  saliida  dera 
um  cliocho  na  ama,  que  não  pareceu  ficar  admirada.  Kstava  costu- 
mada áqnellas  expansões  do  prior,  e  afinal,  que  diabo  havia  n'aquillo? 
Um  beijo  não  fazia  mal  e  até  «abria  o  appelite»,  como  dizia  o  prior 
nos  seus  dias  despirito. 

Tinlia-se  pois  preparado  interiormente  para  receber  o  pão  e  vi- 
nho consagrado. 

A  sua  máxima  era  —  Deus  sobre  tudo.  Portanto  comia  primeiro 
bem,  para  que  a  divindade  ficasse  superior  e  á  altura  conveniente. 

Entrando  na  sachristia,  puxou  da  enorme  caixa  de  prata  e  sor- 
veu estrondosamente  uma  pilada,  offerecendo  em  seguida  ao  sa- 
chrisla,  que  o  imitou.  Momentos  depois  soaram  dois  estrondosos 
espirros  que  atroaram  a  egreja,  seguidos  dos  inseparáveis— Z)owí- 
7ms  Tccmn. 

— Mestre  António,  disse  o  prior  depois  de  limpar  as  volumosas 
ventas,  que  ha  de  novo? 

—  Grandes  novidades,  respondeu  o  sachrista  piscando  os  olhos. 
Veiu  ha  pouco  a  D.  Joaquina  procural-o  e  disse-me  que  não  se  es- 
quecesse de  lá  ir. 

—  Oh!  pode  estar  descansada,  atalhou  o  prior. 

—  Isso  lhe  respondi  eu  e  lá  se  foi  ella  para  a  capella  do  Santís- 
simo rezar  doze  estações. 

—  Bem,  bem;  não  faltarei.  Poucas  senhoras  ha  tão  boas  como 
aquella. . . 

—  Lá  isso  é  verdade,  confirmou  o  sachrista.  Boa  em  toda  a  ex- 
tensão da  palavra. 

E  sublinhou  maliciosamente  a  ultima  phrase. 
Pouco  depois  accrescenlava: 

—  Foi  bastante  infeliz.  Tão  pouco  tempo  casada! 

—  Assim  está  melhor.  Vae  mais  direita  para  o  céo. 

—  Oh!  vae  para  lá  direitinha.  O  sr.  prior  encarrega-se  d'isso. 
O  prior  tossiu  grosso,  fingindo  não  ter  ouvido. 

N'isto  deram  dez  horas  no  relógio  da  sachristia. 

—  São  horas.  Vamos  lá  servir  os  freguezes,  disse  o  prior  alegre- 
mente. 

—  Amen!  accrescentou  o  sachrista,  que  pelo  costume  de  ajudar 
á  missa,  empregava  a  todo  o  momento  aquella  palavra. 

O  padre  paramentou-se  e  entrava  pouco  depois  na  capella-mór 
com  gravidade,  precedido  pelo  acolytho. 

Acabada  que  foi  a  missa  despiu  as  vestes,  envergou  a  sobreca- 
saca preta  dos  dias  de  gala,  poz  o  chapéu  de  copa  baixa  e  abas  lar- 
gas e  pegou  na  bengala. 

—  Até  logo,  mestre  António,  disse  elle. 

E  dirigiu-se  pacificamente  para  casa  de  D.  Joaquina.  Esta  se- 
nhora era  viuva  de  poucos  mezes,  ainda  nova  e  formosa.  Tinha  sido 


UM  SANTO...  33 


casada  pouco  tempo  e  conservava  todo  o  viço  e  frescor  da  moci- 
dade. Apesar  disso  não  queria  casar  segunda  vez,  e  muilos  pre- 
tendentes tinham  sido  rejeitados.  Lá  tinha  as  suas  rasões.  . . 

—  Oh!  meu  caro  prior!  disse  ella  quando  o  viu  entrar.  Acabei 
agora  mesmo  de  chegar. 

—  Minha  querida  senhora  D.  Joaquina,  apressei-me  a  obedecer 
ás  suas  ordens. 

—  Ordens!  Foi  um  simples  pedido. . . 

—  Para  mim  os  seus  desejos  são  ordens,  minha  senhora,  respon- 
deu o  padre  com  galanteria. 

—  Hoje  ha  de  almoçar  comigo,  temos  muito  que  conversar. 

—  Acceito,  disse  elle.  Logo  que  acabei  a  missa  apressei-me  a 
vir  aqui,  portanto  ainda  não  fui  a  casa,  onde  a  minha  boa  Anna  me 
espera. 

—  Pois  que  espere.  O  prior  não  passa  cá  todo  o  dia. . .  disse  ella 
com  uma  certa  impaciência. 

—  De  certo,  de  certo,  mas  não  será  por  falta  de  vontade. 

—  Maganão!  fez  ella  batendo-lhe  no  hombio  amigavelmente. 

—  É  o  que  eu  lhe  digo.  Na  sua  companhia  um  dia  é  um  mi- 
nuto. 

—  Sempre  lisongeiro!  prior. 

—  Nunca  o  fui.  Acredile-me. 

E  apertou  com  força  as  mãos  de  D.  Joaquina. 

—  Está  bom,  meu  querido.  Já  sei  que  me  estima. 

•   —  Oh!  ainda  não  é  o  termo.  Que  a  admn-o,  que  a. . .  adoro. . . 
disse  o  prior  agarrando  nas  mãos  de  D.  Joaquina. 
E  um  sonoro  beijo  resoou  na  sala. . . 

—  Vamos,  vamos;  disse  D.  Joaqnina  Jibertando-se  do  prior  toda 
corada.  O  almoço  devo  estar  na  mesa. 

—  Vamos  lá!  fez  elle  com  um  suspiro. 

Pouco  depois  estavam  sentados  á  mesa  em  frente  um  do  outro. 
Duas  garrafas  meio  despejadas  e  alguns  pratos  já  vasios  mostra- 
vam ter  havido  completa  derrota.  Parecia  uma  aposta  a  ver  qual 
comia  mais. . . 

Santo  Deus!  Quem  diria,  ao  ver  o  prior,  que  tinha  ha  pouco  sa- 
bido da  mesa. 

Com  o  seu  barrete  preto  na  cabeça,  tinha  desabotoado  o  colete 
e  bebia  o  chá,  saboreando-o  a  pequenos  goles,  com  os  pés  esten- 
didos por  debaixo  da  mesa  até  locarem  os  de  D.  Joaquina.  Esta, 
defronte  d"e!le,  sorvia  também  o  chá  com  grande  barulho,  acompa- 
nhando-o  com  torradas,  que  desapparcciam  rapidamente  do  prato. 
Que  du.is  alminhas!  benza-os  Deus. 

Emquanto  comiam  fatiavam  pouco,  limitando-se  a  olhar  um  para 
o  outro.  Não  podiam  fazer  dois  serviços  ao  mesmo  tempo;  ou  bem 
que  comiam,  ou  bem  que  conversavam. 


54  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

—  Meu  amigo,  disse  por  fim  D.  Joaquina  rompendo  o  silencio, 
tenho  a  pedir-lhe  um  favor. 

—  Diga,  minha  boa  amiga.  Estou  ás  suas  ordens,  respondeu  o 
prior  Hinpando  os  beiços  ao  guardanapo. 

—  Monou  o  padre  Vicente,  que  era,  como  sabe,  o  confessor  de 
minha  sobrinha. 

—  É  veidade.  Grande  perda  foi!  Poucos  confessores  haverá  como 
aquelle. . . 

—  Tem  rasão.  Mas  entre  esses  poucos  ha  um  muito  nosso  conhe- 
cido. 

—  Qual?  perguntou  o  prior  ancioso. 

—  O  senhor,  respondeu  D.  Joaquina. 

—  Oh!  minha  senhora.  Confunde-me  com  esses  elogios. 

—  Mas  merecidos,  replicon  ella;  e  peço-lhe  o  favor  de  se  encar- 
regar da  direcção  espiritual  de  minha  sobrinha. 

—  Com  todo  o  gosto,  minha  senhora. 

—  Bem,  então  está  combinado. 

—  De  certo.  E  quando  começaremos? 

—  Amanhã  se  não  lhe  faz  trans'orno. 

—  Muito  bem,  respondeu  o  prior. 

Levantaram-se  em  seguida  da  mesa,  deram  graças  a  Deus  e  fo- 
ram para  a  sala. 

Repotrearam-se  n*um  canapé  e  a  conversação  versou  sobre  cou- 
sas indifferentes. 

Quando  o  padreca  se  retirou  eram  já  duas  horas  da  tarde. 

Chegando  a  casa  perguntou-lhe  a  ama  se  tinha  jà  comido. 

—  Ora  adeus!  Tomei  alguma  cousa,  respondeu  elle,  mas  traz-me 
sempre  o  meu  lunch,  que  não  se  perde  nada. 

E  sentou-se  novamente  á  mesa. . . 


D.  Joaquina  está  no  seu  quarto.  É  um  aposento  pequeno  e  mo- 
bilado simplesmente:  uma  cama,  guarda-vestidos,  lavatório  com  es- 
pelho e  meia  dúzia  de  cadeiras.  Por  cima  da  cama  pentle  um  cru- 
cifixo de  metal  e  um  painel  de  Nossa  Senhora. 

Sentada  n'uma  d'essas  cadeiras  antigas  bastante  pesadas,  com 
um  livrinho  na  mão,  D.  Joaquina  lé  attentamente  a  vida  de  Santo 
Agostinho.  Por  momentos  parava  a  leitura  e  ficava  absorta  a  con- 
templar uma  passagem  mais  edificante  da  vida  do  santo. 

Foi  no  meio  d'uma  destas  contemplações  beatificas  que  a  vieram 
interromper. 

Appareceu  uma  criada. 

—  Que  queres?  perguntou  D.  Joaquina  com  mau  humor. 

—  Minha  senhora,  sua  sobrinha  está  na  sala. 


UM  SANTO...  5fi 


—  Bem,  bem.  Já  lá  vou. . .  disse  ella  mudando  de  tom. 

D.  Joaquina  nfio  tolerava  que  a  interrompessem  quando  estava 
em  medit;ições  religiosas;  quando  isto  acontecia  manifestava-se  logo 
o  seu  mau  humor.  Mas  agora  o  caso  era  differente:  tratava-se  da 
sobrinha  que  cila  idolatrava  e  por  isso  apressou-se  a  apparecer- 
Ihe. 

A  sobrinha  e  o  senhor  p?ior  eram  excepções  á  regra. . . 

—  Minha  querida  sobrinha,  dizia  momentos  depois  D.  Joaquina, 
como  te  vaes  dando  com  o  teu  novo  confessor? 

—  Bem,  minha  tia,  respondeu  ella  corando  muito. 

—  Isso  é  o  que  se  quer.  O  prior  é  um  bom  homem,  não  achas? 

—  Sim. . .  elíe  parece. . .  respondeu  a  sobrinha  visivelmente  per- 
turbada. 

—  Ainda  o  não  podes  conhecer  bem.  Ha  só  um  mez  que  elle  é 
teu  confessor! 

—  Tem  rasão,  minha  tia, 

—  O  prior  é  um  santo.  D'aqui  a  alguns  mezes  o  apreciarás  como 
merece. 

—  Oh!  decerto. 

Pouco  depois  accrescentou  a  sobrinha,  querendo  mudar  de  con- 
versa: 

—  Minha  tia  agora  parece  que  vae  melhor. 

—  Na  verdade  tenho  andado  mais  direitinha. 

—  Bem  se  vê.  Achoa  mais  gorda. . . 

Esta  observação  da  sobrinha  fèl-a  estremecer  e  mudar  de  côr, 
comtudo  ella  ou  não  reparou  ou  fingiu  não  dar  por  tal. 

Aquella  observação  parecia  ter  um  sentido  myslerioso,  parecia 
haver  ironia  n"aquellas  palavras  que  de  certo  haviam  sido  ditas  na 
maior  boa  fé  do  mundo  e  sem  nenhuma  intenção  particular. 

D.  Joaquina,  que  se  tornara  muito  pallida,  em  breve  serenou  e 
disse  placidamente: 

—  Minha  sobrinha,  é  melhor  tirares  o  chapéo. 

—  Não,  tia,  eu  não  me  demoro. 

—  Sim!  Que  pressas  são  essas? 

—  Hoje  é  dia  d'ir  á  confissão.  . . 

—  Ah!  sim.  Não  me  lembrava. 

—  E  eu  não  gosto  de  faltar,  accrescentou  ella  ruborisando-se. 

—  Tens  rasão.  Fazes  muito  bem. 

—  Vim  cá  para  saber  como  a  minha  lia  tem  passado,  que  já  ha 
muito  que  a  não  via. 

—  Julguei  que  já  te  tinhas  esquecido  de  mim. 

—  Oh!  minha  tia.  Que  ideia! 

—  Bem  sei  que  és  minha  amiga. . . 

—  Tenho  tido  tanto  que  fazer! 

—  Sim? 


56  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICAINA 

—  É  verdade.  As  cortinas  para  o  asylo  das  orpliãs  leem-me  dado 
trabalho. 

—  Bem  empregado  tempo!  disse  D.  Joaquina  com  enthusiasmo. 

—  Já  vê  que  se  não  teniio  vindo  é  porque  não  me  tem  sido  pos- 
sível. 

—  D"isso  estou  eu  certa. 

Alguns  mmutos  depois  saliia  a  sobrinha  de  D.  Joaquina  da  casa 
d'esta.  As  faces  estavam  afogueadas  por  um  vivo  carmim,  o  seio 
arfava -lhe  com  violência  e  o  seu  passo  era  apressado  e  nervoso. 

Dirigia-se  para  a  egreja  onde  o  prior  a  esperava. 

Ia  confessar-se. . . 


São  passados  alguns  mezes  depois  do  encontro  de  D.  Joaquina 
com  a  sobrinha. 

O  prior  acabava  de  se  levantar  da  cama.  Parecia  preoccupado  e 
passeava  agitado  pelo  quarto  com  as  mãos  nas  algibeiras. 

—  Diabo!  murmurava  elle  por  entre  dentes,  foi  uma  asneira. 
Por  fim,  depois  de  ter  medido  innumeras  vezes  o  comprimento 

do  quarto,  tomou  uma  resolução. 

—  Vou  almoçar,  disse  elle,  e. . .  talvez  me  esqueça. 

Sahiu  do  quarto  e  entrou  na  casa  de  jantar,  onde  a  ama  acabava 
de  pôr  a  mesa.  Deu-lhe  um  abraço  que  ella  retribuiu  com  usura. 

—  Que  consolação!  exclamou  elle.  Isto  é  para  animar. 

E  estendeu-se  coaimodamente  n'um  canapé,  esperando  o  al- 
moço. 

—  Não  sabe,  sr.  prior? 

—  O  que?  perguntou  elle. 

—  No  outro  dia  cheguei  á  janella  e  disse-me  o  tendeiro  ali  da  es- 
quina: «Você  vae-se  dando  bem  lá  com  o  prior.»  E  vae  eu  respon- 
di-llie:  «Dou-me  muito  bera  na  casa.  O  prior  é  um  santo.»  «Pois 
bem  se  vè,  está  gorda  e  forte. . .»  E  é  isto.  Todos  me  acham  mais 
gorda . . .  disse  ella  com  um  sorriso  significativo. 

—  É  bom  signal.  Dá-se  bem  com  a  comida . . .  disse  elle  rindo. 
E  accrescentou  em  voz  baixa: 

—  Também  esta!  Já  são  Ires. . . 

E  ficou  por  um  momento  pensativo. 

Pouco  depois  o  rosto  desanuveou-se-lhe  e  exclamou  alegremente: 

—  Ora  adeus!  É  a  conta  que  Deus  fez. 

E  sentou-se  á  mesa,  despej^-íido  um  enorme  copo  de  vinho. 

Lisboa — Dezembro  de  1881. 

Alberto  Bastos. 


A  TRICHINA  o7 


tricliÍRXi 

Eslodo  d'este  parasíla,  desasirosos  eITeílos  que  pi  oduz  oo  homem 
e  meios  de  evitar  a  (ríchÍDose 

(ContinuaJo  de  pag.  47} 

IV 

Tri china  iiitestina.1 

Sabemos  já  o  que  é  a  trichina  muscular  ou  enkistada,  vejamos 
o  que  é  a  trichlua  inteslinal.  Não  é  outra  coisa  mais  que  a  trichina 
muscular  enkistada,  que  passou  ao  intesíino  do  animal  que  comeu 
carne  trichinada. 

N'um  excellente  artigo  publicado  em  187S,  no  Jornal  de  Beja, 
pelo  nosso  collega  do  dislricto  de  Beja,  o  sr.  Silveira  Machado,  diz 
elle  sobre  a  trichina  intestinal  o  seguinte  : 

«Quando  a  trichina  enkistada  entra  no  estômago  de  qualquer 
animal,  o  seu  kislo  é  immedialamente  dissolvido  pelo  sueco  gás- 
trico, e  a  trichina,  sobre  a  qual  esse  sueco  não  exerce  a  mais  leve 
acção,  achando-se  livre,  passa  para  a  parte  duodenal  do  intestino 
e  ahi  se  desenvolve  em  harmonia  com  o  seu  sueco,  chegando  as 
fêmeas  ás  vezes,  a  3  millimetros,  podendo  reconhecer-se  a  olho 
nú,  logo  que  deitadas  em  liquido  transparente,  onde  parecem  té- 
nues fios  nadando.» 

Temos  pois  assim  trichinas  machos  e  trichinas  fêmeas,  vivas  e 
livres,  no  interior  do  intestino, 

Ahi  os  machos  fecundam  as  fêmeas,  e  estas,  que  são  dez  vezes 
mais  numerosas  que  elles,  não  tardam  em  dar  á  luz  os  embryõe- 
sinhos  ou  pequenas  trichinas,  em  tão  grande  numero,  que  uma  só 
mãe  pode  parir  3:000! 

Isto  dura  mais  de  um  mez,  desde  que  a  trichina  muscular  en- 
kistada entra  no  intestino. 

Quarenta  dias  após  este  assombroso  parto,  as  trichinas  mães 
morrem,  e  são  expulsas  de  envolta  com  os  excrementos. 

Mas  para  onde  vão  os  em.bryões  que  agora  povoam  o  intestino 
do  animal,  que  ingeriu  a  trichina  muscular? 

Em  breve  essa  innumeravel  população  fura  a  parede  do  intes- 
tino que  a  contém,  e,  segundo  uns  auctores,  vão  as  pequenas  tri- 
chinas, de  cellula  em  cellula,  por  todos  os  tecidos  molles,  para  se 
fixarem  de  preferencia  no  muscular ;  segundo  outros,  de  cujo 
numero  faz  parte  o  sr.  Zundel,  os  parasitas,  atravessando  a  mu- 
cosa intestinal,  penetram  nos  capillares  sanguíneos  e  d'ahi  nos  va- 

8 


38  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

»  -  — 

SOS,  deixando-se  arrastar  na  corrente  do  sangue,  e  parando  só  nas 
fibras  musculares,  para  nellas  se  fixarem. 

«O  embryão,  diz  o  sr.  Zundel,  durante  a  sua  migração  do  in- 
testino para  o  musculo,  torna-se  30  a  40  vezes  maior ;  leva  uns 
10  dias  neste  caminho,  e,  chegado  ao  tecido  muscular,  ahi  se  en- 
rola ao  fim  de  um  mez ;  e  são  precisos  mais  dois  mezes  para  que 
o  kisto  albumino-fibroso  se  forme  em  torno  d'elle.<> 

V 
A.niiin£ics  em  que  se  ol>sci*>^a,  a,  i:]:*ic]iiua 

Sabemos  que  o  homem  e  o  porco  alojam  a  trichina  no  seu  intes- 
tino e  no  seu  tecido  muscular. 

O  mesmo  succede  com  o  javali,  e  muito  principalmente  com  os 
ratos  e  ratazanas,  e  menos  frequentemente  com  as  rapozas,  gatos, 
fuinhas  e  martas,  que  com  os  mesmos  ratos  e  ratazanas  se  alimen- 
tam. 

Alguns  sábios  experimentadores  já  teem  conseguido  trichinar  o 
cão,  assim  como  o  coelho,  em  cujo  organismo  o  desenvolvimento 
das  trichinas  é  prodigioso. 

Os  outros  animaes  pecuários  (varias  espécies  de  gado)  além  do 
porco,  bem  como  as  gallinaceas,  quasi  impossível  é  tornal-os  tri- 
chinosos. 

Na  Allemanha,  onde  tudo  se  observa,  experimenta,  estuda  pro- 
fundamente, aflirma  o  sabiq  professor  de  Strasburgo  que  ha  6  por 
cento  de  ratos  trichinosos.  É  pois  muito  de  suppôr  que  o  porco  con- 
traia a  trichinose,  devorando  ralos  eivados  de  trichinas,  visto  que 
por  toda  a  parte  estes  pequenos  roedores  se  encontram  infeccio- 
nados do  parasita. 

Segundo  um  sábio  allemão,  também  as  minhocas  e  outros  ver- 
mes da  terra,  que  os  porcos  engolem,  são  frequente  vehiculo  para 
a  infecção  d'este  animal,  porque  as  trichinas  também  se  encontram 
em  abundância  no  organismo  de  taes  vermes.  (Sr.  Conselheiro  S. 
Bernardo  Lima.  Archivo  rural,  vol.  8.°,  pag.  171). 

Além  d'estes  meios  de  infecção  trichinosa.  ha  também  os  excre- 
mentos dos  próprios  porcos  (e  por  ventura  de  outros  animaes  e  de 
homem)  infeccionados,  que  estes  animaes  facilmente  comem  de  mis- 
tura com  os  alimentos,  e  n'esses  excrementos  podem  conter-se  mi- 
lhares de  trichinas. 

VI 
Kesisteixcia,  -vital  da,  tricliiixa 

A  trichina  continua  a  viver^  mesmo  depois  de  morto  o  animal  em) 

cujo  organismo  se  aloja. 


A  TRICHINA  59 


Mesmo  que  a  carne  trichinada  apodreça,  ainda  ahi  se  podem  ob- 
servar trichinas  vivas. 

As  diíTerentes  preparações  sob  as  quaes  a  carne  de  porco  se 
apresenta  no  mercado,  laes  como:  toucinho  ou  carne  salgada,  carne 
fumada,  presuntos,  chouriços,  paios,  etc,  manifestam  a  trichina 
cheia  de  vida  e  prompta  a  reproduzir-se. 

Assim,  com  mais  rasão,  a  carne  e  toucinho  fresco. 

Submetlida  a  um  frio  intenso,  como  a  um  calor  elevado,  este  pa- 
rasita ainda  resiste  e  se  conserva  capaz  de  infeccionar  o  organismo 
do  homem  e  ouiros  animaes. 

O  sr.  Zundel,  a  quem  n'este  estudo  principalmente  seguimos, 
diz  que  o  sr.  Leuckart  assevera  que  a  carne  trichinada  conserva 
ainda  tricl.inas  vivas,  depois  úp  estar  submetlida,  por  alguns  dias, 
a  um  frio  de  20  graus  abaixo  de  zero  do  thermometro  centígrado. 

Submettidas  a  uma  temperatura  elevada,  ainda  vivem  a  60  graus 
do  mesmo  thermometro.  Quanto  mais  tempo  teem  de  enkistadas, 
mais  resistem  ao  calor. 

É  preciso  uma  temperatura  de  7o  graus  centígrados  para  nur- 
rerem  seguramente. 

Conseguintemente,  a  carne  de  porco  fresca,  o  toucinho '  j  qual- 
quer preparação  salgada  ou  fumada  do  porco,  que  soffra  a  cozedura 
usual  nas  nossas  cosinhas,  por  espaço  de  duas  a  três  hi  ras,  ficará 
innocBnte,  porque  as  trichinas  que  possa  conter  ficam  mortas. 

Mas,  para  isso,  é  necessário  que  o  calor  penetre,  por  egual,  to- 
dos os  pontos  da  porção  que  se  coze  na  panella.  Um  grosso  pedaço 
de  toucinho  ou  de  carne,  um  paio  inteiro,  um  espesso  bocado  de 
presunto,  se  estiverem  eivados  de  trichinas,  mostrarão  estes  ver- 
mes mortos  á  superficie  e  mesmo  até  certo  ponto  da  sua  massa; 
mas  é  possível  (e  tem-se  experimentado)  que  apresentem  ainda  vi- 
vas as  trichinas  nas  camadas  mais  profundas  até  ao  âmago,  por- 
que até  lá  não  chegou  calor  suíficiente  para  as  matar. 

O  que  dizemos  para  a  cozedura,  succede  quando  se  assa  ou  frege 
a  carne  de  porco  trichinado. 

Voltando  á  cozedura,  convém  ainda  observar  que.  se  lançarmos 
o  tecido  trichinado  logo  em  agua  muito  quente  ou  a  ferver,  a  albn- 
mina  coagula-se  á  superficie  e  L  rma  uma  capa  solida  que  não  deixa 
peneirar  o  calor  bem  no  am?  o,  onde,  em  tal  caso,  as  trichinas  fi- 
cam vivas.  O  mesmo  não  s  ccede,  lançaudo  a  carne,  chouriço  ou 
toucinho  em  agua  fria,  e  aquecendo  tudo  lentamente. 


60  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


VII 

!I?o<ie-S!e  conliecei*  a  tvicliina,  nos  poi*cos  "vivos** 
Tecidos  e  pi-epai-ações  onde  ella  se  encontra 

É  completamente  incerto  o  poder-se  conhecer  se  um  porco  está 
ou  não  infeccionado  de  trichinas,  isto  é,  se  padece  de  trichinose.  A 
maior  parte  dos  porcos  trichinosos  estão  gordos  e  apresentam  to- 
dos os  signaes  de  perfeita  saúde. 

Todavia,  alguns  que,  depois  de  mortos  para  consumo,  denuncia- 
ram a  irichina  no  campo  do  mycroscopio,  haviam  antes  disso  ma- 
nifestado em  vida  alguns  symptomas  mórbidos,  como:  rijesa  de  mús- 
culos, fraqueza  de  rins,  ele. 

Para  nos  certificarmos  se  um  porco  está  ou  mo  atacado  de  tri- 
chinas,  quando  disso  houvermos  suspeita,  ha  quem  aconselhe  que 
se  saque  com  um  arpão  ou  outro  instrumento  apropriado,  peque- 
na- porções  de  carne  do  animal,  ou  que  se  lhe  corte  a  cauda,  cu- 
jos i  'isculos  então  se  podem  analysar  à  vontade. 

Tee  '  sido  infeccionados  experimentalmente  muitos  animaes  com 
a  trichii. '.  A  maior  parte  delles  passam,  com  similliante  infecção, 
perfeitam.  jte,  ou  antes,  não  manifestam  o  mais  leve  symptoma  da 
doença.  N  alguns,  muito  raros,  apenas  se  manifestam  levas  cólicas, 
diarrliéa,  febre  e  tristeza,  restabelecendo-se  em  breve  a  apparen- 
cia  da  saúde. 


Já  vimos  que  nos  músculos,  em  geral,  apparecem  as  trichinas. 
Exceptua-se  porém  desta  regra  o  coração. 

Mas  frequentemente,  comtudo,  e  em  maior  quantidade,  appare- 
cem ellas  nos  músculos  striados,  nos  do  pescoço,  peito,  olhos  e  no 
diaphragma. 

Quanto  ás  preparações  onde  se  encontra  a  tríchina,  são  todas  as 
que  conhecemos,  feitas  com  tecidc^^  do  porco;  mas  ha  muito  maior 
probabilidade,  quasi  certeza,  de  a>  encontrar  nos  enchidos,  espe- 
cialmente os  que  vêem  da  America  visto  que  na  sua  composição, 
entram  tecidos  de  vários  porcos,  ai  um  ou  alguns  dos  quaes  po- 
dem ter  sido  infeccionados. 

Em  vista  do  que  dissemos  sobre  a  resistência  vital  das  (lichinas, 
e  na  certeza  de  que  estão  perfeitamente  vivas  nestas  preparações, 
se  lá  existirem,  vé-se  bem  que  imminente  perigo  correm  as  pes- 
soas que  costumam  comer  chouriço,  presunto  e  até  toucinho  com- 
pletamente cru. 


A  TRICHINA  6i 


VIII 
Exame  micvosoopico  cia  tricliiiia 

O  Jornal  de  agricultura  c  sciencias  correlativas,  tão  pcoficiente- 
mente  redigido  pelo  nosso  illustrado  coilega,  o  sr.  Alves  Tòigo,  no 
seu  numero  de  1  de  maio  do  1881,  transcreve  do  Commercio  de 
Portugal  um  óptimo  artigo  do  illustre  professor  do  Instituto  geral 
de  agricultura,  o  sr.  Jayme  Batalha  Reis,  recentemente  encarregado 
de  umn  aula  de  microscopia  n'aquelle  estabelecimento,  artigo  no 
qual  Sc  descreve  assim  o  exame  microscópico  da  trichina. 

«Na  carne  a  examinar  faz-se  um  corte  tão  fmo  quanto  possível, 
que  se  \)õe  de  môllio  durante  alguns  minutos,  numa  parte  de  po- 
tassa  dissolvida  em  oito  de  agua.  A  carne  lorna-se  assim  mais 
transparente,  e  deixa  ver  á  simples  vista  pequenos  pontos  bran- 
cos. São  as  trichinas.  Se  a  carne  é  gorda  deve  lavar-se  com  élher.» 

aAs  trichinas  estão  ordinariamente  enkistadas,  fechadas  dentro 
de  um  invólucro  calcareo.  Uma  ou  duas  gotlas  de  acido  chloihy- 
drico  fraco  bastarão  para  destruir  o  kisto.» 

«As  trichinas  poderão  então  ver-se  ao  microscópio  enroladas  em 
espiral.» 

«Se  mettermos  a  carne  a  examinar  em  tintura  de  pau  de  cam- 
peche, esta  tinge  a  carne  sem  tingir  a  trichina,  que  então  íica  per- 
feitamente distincta.» 

Os  microcopios  que  o  governo  acaba  de  facultar  aos  intendentes 
de  pecuária,  dão  a  grandeza  real  do  objecto  a  examinar  augmen- 
tada  30  a  50  vezes ;  isto  é :  teem  a  força  de  30  a  50  diâmetros. 

Ora,  tendo  a  trichina,  pelo  menos,  5  deci-millimetros  de  com- 
primento, podemos  vel-a,  com  taes  microscópios  com  15  millime- 
tros  de  comprimento,  pelo  menos. 

Qualquer  pessoa,  mesmo  sem  explicação,  se  serve  d'esse  instru- 
mento. 

Entre  as  duas  laminas  de  vidro  que  o  acompanham  coUoca-se  a 
lenue  partícula  ou  lamina  finíssima  de  carne  a  examinar.  Unidas 
as  laminas,  collocam-se  na  pequena  mesa  negra  do  instrumento, 
de  modo  que  a  carne  fique  ao  centro  do  orifício  circular  da  mesa, 
e  trata-se  logo  de  segurar  as  laminas  ali,  abaixando  e  carregando 
levemente  a  patinha  de  metal  enfiada  na  haste  do  microscópio  supe- 
riormente á  mesa. 

O  observador  colloca  o  instrumento  diante  de  si  sobre  uma  banca 
em  frente  da  luz  de  uma  janella ;  e  com  o  espelhinho  movei  atra- 
vessado na  dita  base  e  sob  a  mesa,  illumina  perfeitamente  o  obje- 
cto a  examinar  fixo  entre  as  laminas  de  vidro. 

Depois,  subindo  ou  descendo  muito  suavemente,   com  a  mão 


6t  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

direita,  o  tubo  rio  microscópio  com  um  dos  olhos  applicado  ao  vidro 
superior,  vae  assim  chegando  á  maior  grandeza  em  que  o  objecto 
pode  ser  visto. 

Para  as  observações  deve-se  escolher,  quanto  possível,  partícu- 
las dos  músculos  onde  a  trichina  é  mais  abundante,  como  vimos. 

(Conclue)  Annes  Baganha. 


Ôtl 


aziareiío 


Ó  triste  nazareno  I  ó  revolucionário  ! 
Meigo  perseguidor  da  antiga  iniquidade, 
Que  deste  a  vida  pela  ingente  Humanidade 
No  supplicio  do  crú  Golgottia  solitário; 

Se  Ta,  resuscitar  podesses  —  visionário, 
E  como  dantes,  louco !  ir  pregar  a  Igualdade, 
Verias  o  Rei  e  o  Padre  —  os  monstros  da  maldade, 
Levarem-te  de  novo  á  morte  do  Calvário  I 

Era  teu  templo  o  mundo ;  o  deus  a  sã  justiça ; 

A  Moral  dava  thema  á  tua  nova  missa... 

E  os  bonzos  vis,  cruéis,  pregavam-te  na  Cruz  ! 

Inda  hoje,  ó  Martyr  bom  !  mensageiro  da  Luz, 
Condemnavam-te  ao  negro  e  bárbaro  supplicio 
Se  não  votasses  preito  á  Infâmia,  ao  Erro,  ao  Vicio 


Xavier  Paiva. 


Estudos  de  Sociologia  «Ensaios  sobre  a  evolução  da  liumanidade»  por  Teixeira  Bastos,  Porto, 
Livraria  Iniversal  de  Magalhães  k  Moniz,  1882,  \  vol.  in-8.°  de  241  pag. 

Eis  um  livro  que  deve  ser  lido  por  todos  aquelles  que  desejarem  instruir-se, 
para  quem  a  seiencia  nunca  deixou  de  ter  attractivos. 

Os  Ensaios  sobre  a  evolução  da  Immanidade,  com[)rehendem  oito  capítulos  todos 
distinctos,  mas  subordinados  ao  mesmo  ponto  de  vista  philosophico.  São  bellos 
estudos  sociológicos  em  perfeita  harmonia  com  o  titulo  da  obra. 

A  philosophia  positiva  que  todos  os  dias  vae  adquirindo  novos  adeptos,  e  orien- 
tando os  melhores  talentos  d'esta  terra,  não  pôde  de  forma  alguma  ser  atacada 
nas  suas  bases,  solidificadas  pela  observação  e  experiência,  o  seu  grande  methodo. 

Só  os  espíritos  educados  na  philosophia  que  teve  por  fundador  Augusto  Comte, 
serão  capazes  de  produzir  obras  que  satisfaçam  ao  ideal  moderno. 

Em  seiencia  e  em  arte  o  melhor  que  se  tem  produzido  é  devido  á  orientação 
positiva.  O  romance,  a  poesia,  a  critica,  tém-se  elevado  nos  últimos  tempos  ásua 


BIBLIOGRAPHIA  63 


maior  altura,  facto  que  de  certo  se  não  daria  com  a  preoccupação  das  especula- 
ções methaphisicas. 

Todos  os  nossos  litteratos  filiados  na  escola  decadente,  são  incapazes  de  pro- 
duzir obras  de  vulto.  O  espirito  rotineiro  esterilisa-os  nos  debates  da  imprensa 
periódica,  nas  locaes  escandalosas,  nos  falsos  juizos,  em  que  não  ha  uma  ideia 
aproveitável  e  nos  arrendilhados  do  estyllo,  coui  applauso  dos  claqueurs,  que  só 
possuem  o  grande  mérito  de  perder  uma  vocação. 

A  incapacidade  que  provém  da  falta  d'um  methodo  seguro,  tem  este  condão 
especial  da  importância  balofa  e  por  isso  mesmo  apregoada,  sem  ser  discutida, 
da  maioria  dos  nossos  litteratos  que  se  impõem  á  admiração  dos  seus  leitores  e 
aos  empregos  de  favor,  quando  os  não  mendigam,  pelos  relevantissimos  rerviços 
prestados  ás  letras  pátrias.  Eis-aqui  porque  somos  um  paiz  de  jornalistas  e  de 
empregados  públicos. 

Os  que  fogem  d'este  circulo  vicioso,  que  leva  fatalmente  o  escriptor  ao  logar 
de  amanuense  de  secretaria,  os  que  trabalham  com  um  ponto  de  vista,  com  cri- 
tério, os  que,  emfim,  se  desviam  da  rotina,  assentando  os  seus  productos  intelle- 
ctuaes  em  bases  puramente  scientificas,  esses  tèem  sempre  contra  si  a  conspira- 
ção do  silencio,  as  inimisades  ou  as  antipathias  litterarias  que  também  trazemi  as 
pessoaes. 

Teixeira  Bastos,  é  um  d'esses  escriptores  applicados,  que  preferem  o  estudo  no 
gabinete,  sentados  á  mesa  do  trabalho,  conservando-se  indiílerentes  ao  ruído  in- 
consciente que  se  faz  em  roda  dos  litteratos  da  moda.  Ellenâo  convive  com  estes 
dandys  almiscarados  e  ocos  da  republica  das  letras,  soltando  constantemente  uma 
enfiada  de  banalidades  enfrascadas,  mas  pretenciosas,  abusando  assim  da  paciên- 
cia indígena.  Elle  trabalha^  estuda  sempre,  com  amor,  com  muita  coragem,  e  os 
seus  trabalhos  de  alta  importância  scientifica  não  lêem  os  reclames  usados  pelo 
nosso  jornalismo  !  E  porque?  Parque  este  escriptor  nunca  seguiu  a  rotina,  e  tem 
combatido  sempre  o  erro,  fazendo  propaganda  dos  sãos  princípios,  escudado  na 
sciencia.  Elle  é  o  verdadeiro  escriptor  moderno,  e  portanto  não  pode  ser  hon- 
rado com  os  juizos  dos  espíritos  conservadores  e  decadentes.  Accresce  que  a  maio- 
ria dos  nossos  homens  de  letras  é  partidária  do  statu  quo,  amando  as  velharias 
e  a  phraseulogia  balofa.  É  impossível  esperar  d'ella  os  louvores  a  um  trabalho 
novo. 

0  recente  livro  de  Teixeira  Bastos  comprehende  uma  serie  de  bellos  estudos 
sociológicos  baseados  na  philosophia  scientilica,  e  assim  intitulados: 

1  Conservação  e  revolução — II  A  Creação  do  homem — III  Origens  da  família — 
IV  Oriçjens  das  Religiões — V  Missões  religiosas — VI  As  guerras  e  o  espirito  mili- 
tar— VII  As  revoluções  sociaes — VIII  Como  se  realisa  a  evolução. 

Se  o  autor  dos  Ensaios  sobre  a  evolução  da  humanidade,  não  tivesse  já  aflQr- 
mado  o  seu  talento  disciplinado  em  outras  abras,  esta  bastaria  para  o  elevar  á 
altura  dos  primeiros  escriptores  da  geração  moderna. 

Este  seu  ultimo  trabalho  revela  um  talento  de  primeira  ordem. 

Desejávamos  fazer  a  analyse  completa  d'este  livro,  mas  não  nos  permitte  a 
falta  de  espaço  com  que  sempre  luctam  revistas  d  esta  ordem. 

Teixeira  Bastos  expõe  admiravelmente  n'um  estyllo  claro,  as  suas  bellas  theo- 
rias  em  que  ha  uma  accumulação  de  factos  curiosos,  citações  d'alta  importância, 
triades  luminosas  d'um  pensador.  Tem  uma  phrase  technica,  perfeitamente  ade- 
quada ao  assumpto.  Os  capítulos  a  Creação  do  homem,  Origens  da  família,  Ori- 
gens das  religiões,  e  as  Guerras  e  o  Espirito  Militar,  são  magistraes,  revelando 
muita  erufiição  e  um  critério  rigorosamente  scientifico. 

É  verdade  que  o  autor  dos  Ensaios  é  uma  illustração,  mas  o  que  o  faz  sobre- 
sahir  como  escriptor,  é  o  methodo  que  elle  possue.  Não  se  pode  exigir  mais  d'um 
rapaz  tão  novo  e  que  muito  se  deve  honrar  com  a  conspiração  do  silencio.  É  a 
maior  prova  de  que  elle  não  produz  banalidades,  mas  sim  trabalhos  de  vulto.  A 
philosophia  positiva  deve-lhe  muito,  porque  elle  é  um  tenaz  vulgarisador  da 
grande  obra  de  Comte,  em  que  tem  robustecido  o  seu  bello  espirito. 


64  ENXYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Livros  tresta  ordem  são  sempre  bem  vindos,  e  merecem  um  lo^'ar  dislirieto  na 
nossa  n)odesta  eslaiitc 

Louvamos  sinceramente  o  seu  autor  pelos  relevantissimos  serviços  que  tão  c  - 
rajosameute  presta  ;i  scienoia  .  onleuiporauea,  estudando  a  humanidade  nas  suas 
diversas  phases  evolutivas. 

Lisboa.  Rkis  Dâmaso. 


Quadras. 


HYPATHIA 

Nas  primitivas  idades  do  chrislianismo  foram  muito  frequentes 
no  grémio  dos  seus  adeptos  as  divergências  e  dissidências,  poi' 
causa  do  modo  como  cada  um  in'erpretava  certos  pontos  theologi- 
cos,  on  promovidas  pela  teimosia,  não  isenta  de  fanatismo,  de  ou- 
tros, em  quererem  imprimir  a  auctoridade  de  dogmas  ás  mysti- 
cas  invenções  de  seus  espiritos  escandecidos  e  allucinados  na  con- 
templação beatifica  das  cousas  sobrenaturaes.  Chamavnm-se  a  es- 
tas divergências :  heresias,  e  aos  seus  auctores  :  heresiarchas. 

Infelizmente,  no  ardor  d"essas  disputas  doutrinarias,  no  embate 
das  contendas  dogmáticas — em  que  sempre  liavia  eíTusão  de 
sangue,  e  portanto  macula  indelével  para  o  que  se  denominava 
a  religião  do  Crucificado!  —  tantos  erros  pi^opagavam  orlliodoxos 
como  heresiarcbas,  tantos  excessos  commettiam  aquelles  que  es- 
tavam da  parle  de  Roma,  como  aquelles  que  ambicionavam  e  ten- 
tavam levantar  novas  igrejas  no  Oriente. 

Porém,  não  é  nosso  intento  agora  descrever  as  scenas  tenebro- 
sas dessas  formidáveis  luctas  do  fanatismo  religioso,  em  que  a 
mescla  do  interesse  particular  ou  de  partido  politico,  o  espirito 
de  tradição  de  raça  ou  tendências  etbnographicas,  tomavam  uma 
grande  parte,  senão  a  maior,  do  sentimento  piedoso  de  religião. 
Queremos  tão  somente  apresentar  ao  leitor  uma  mui  respeitável 
mulher,  uma  heróica  martyr  da  Sciencia.  que  tão  merecidamente 
celebre  se  tornou  em  um  d'esses  períodos  históricos,  que  estão 
gravados  nos  fastos  do  christianismo  com  letras  de  sangue,  do  ge- 
nei^osissimo  sangue  derramado  pelos  Bons,  pelos  Sábios  e  pelos 
Justos. 

E'  Hypathia,  filha  de  Theon.  Foi  uma  notável  mathematica,  e 
viveu  em  Alexandria,  no  quarto  século,  quando  lavravam  com 
pasmosa  intensidade  as  tremendas  e  sangrentas  disputas  movidas 
pelas  doutrinas  de  Ario,  o  athletico  fundador  da  seita  dos  arianos; 


à 


HYPATHIA  tío 


doutrinas  que  os  doutores  romanos  apodaram  de  heréticas  e  sub- 
versivas, mas  que  dominaram  no  Oriente,  e  em  grande  parte  do 
Occidente,  por  espaço  de  quasi  quatrocentos  annos. 

Ario,  tinha  como  inpugnador  e  desvairado  inimigo  um  homem 
allucinado  pelo  zelo  religioso :  era  S.  Cyriilo,  que  fazia  estender  o 
seu  ódio  a  todos  que  seguiam  a  sciencia  grega,  base  de  toda  a 
doutrinação  do  seu  adversário,  e  que  a  illustre  Hypathia  defendia 
e  propagava  com  o  santo  fervor  de  um  apostolado. 

S.  Cyriilo  dispunha  sobre  o  povo  mesclado  da  grande  cidade, 
d'um  prestigio  immenso,  perigosíssimo ;  mas  que,  ainda  assim, 
era  contrabalançado  pelo  de  Hypathia.  Esla,  porém,  dominava  so- 
bre a  parte  da  população  mais  pacifica  e  intelligente. 

A  doutíssima  mulher,  estudara  a  fundo,  com  grande  e  ardente  en- 
thusiasmo,  Aristóteles  e  Platão;  amenisava  e  expunha  em  confe- 
rencias publicas  as  doutrinas  dos  maiores  sábios  da  antiguidade,  e 
atlrahia  os  ouvintes  e  adquiria  partidários  pelo  império  do  saber  e 
persuação  da  verdade.  D'est'arle  promettia  abrir  arriscada  brecha 
na  popularidade  do  allucinado  orthodoxo. 

Hypathia  cultivava  com  estranho  ardor  todas  as  mathematicas ; 
fizera  uns  commentarios  aos  escriptos  de  Apollonio  e  de  outros 
geometros,  que  se  perderam,  mas  cuja  memoria  se  perpetuou 
atravez  as  idades. 

Professava  um  culto  grandioso  pela  publicidade.  Discutia  com 
os  mais  eruditos  sábios  da  época  ;  e  dessiminava  as  flores  da  sua 
bella  alma  e  do  seu  fecundo  e  brilhante  talento,  pelo  povo,  cujo 
instruía  e  moralisava  em  edificantes  palestras  scientificas,  sobre 
as  leis  que  regem  o  globo  terráqueo,  suas  relações  com  os  pheno- 
menos  atmosphericos,  e  de  preferencia  acerca  das  grandes  e  no- 
tabilissimas  descobertas  operadas  por  iniciativa  dos  Ptolomeus. 

Alexandria  era  ainda  o  magestoso  empório  da  sciencia,  cujo 
berço  fora  o  Serapião,  onde  lá  se  erguiam  ainda  —  como  espectros 
ameaçadores,  ou  tristes  recordações  de  um  passado  cheio  de  glo- 
rias, —  os  calcinados  restos  da  decantada  Bibliotheca  dos  sábios 
Ptolomeus. 

A  nossa  heroina  era  o  vulto  mais  sympathico  e  a  mais  devo- 
tada ariana  da  grande  cidade. 

Cyriilo  conheceu  alfim  que  o  seu  poderio  peryclitava  ante  a  eru- 
dição, a  superioridade  moral,  e  porventura  belleza  da  sua  famosa 
adversaria ;  e,  na  sua  mente  transvariada  pelo  ódio  e  pelo  fanatis- 
mo religioso,  nasceu  e  evolumou-se  uma  idéa  ruim.  Essa  idéa, 
primeiro  foi  como  uma  florescência  ephemera,  um  desejo  que  mal 
desabrocha  se  apaga  logo  ;  mas  depois,  reappareceu,  mais  robusta 
e  gravou-se-lhe  no  cérebro  inolvidavelmente,  dominando-Ihe  a  von- 
tade com  a  anciã,  a  sede  abrazadora  de  sangue. 

Tomou  a  peito  desfazer-se  de  Hypathia! 


66  EiNGYCLOPEDIA  KEPUBLICANA 


A  gentallia,  composta  dos  ferozes  representanles  de  diversas 
raças  e  cominuiiliões  polilico-religiosas,  andava  prolundamente  ex- 
citada por  eíTeilo  das  controvérsias  dogmáticas,  e  era  terrivel  e  de 
mau  pronuncio  o  desvario  das  fanáticas  piedicas  dos  monges  chris- 
lãos. 

Cyrillo,  allucinado  pelo  furor  doutrinário,  e  transvariado  pilo 
ódio'  rábido  de  partido,  aproveitou-se  com  satânica  habilidade  da 
exaltação  dos  ânimos.  Só  por  meio  dum  passo  grandemente  ousa- 
do, poderia  aniijuilar  a  merecida  popularidade  da  sua  illustre  rival, 
o  prestigio  Iriumphante  que  ella  tão  nobremente  sabia  conservar 
sobre  os  homens  de  sciencia  e  os  populares  honeslos  da  celebre 
cidade  dos  Plolomeus.  O  rancoroso  sacerdote  da  doce  religião  do 
marlyr  do  Golgotha,  não  hesitou  sequer  em  o  dar ;  porque  bem 
persuadido  eslava  que  Roma  já  n'esse  tempo  lavava  com  a  esponja 
ensopada  em  agua  Denta,  todas  as  maculas  do  sangue  derramado 
em  seu  serviço.  Não  sabemos  até  se  o  sanlo  já  n'esse  tempo  pre- 
libava  os  gosos  da  futura  canonisação,  e  ante-sonhava  as  delicias 
da  bemavenlurança...  de  mescla  com  os  hórridos  projectos  do 
cobarde  assassino. 

Hypathia  habitava  um  magnifico  ediíicio  situado  em  um  dos  mais 
pittorescos  silios  da  populosa  Alexandria.  Das  suas  janellas,  podia 
ella  a  todos  os  momentos  contemplar  as  imponentes  ruinas  do  Sera- 
pião,  que  recordavam  pelos  traços  negros  das  chammas  implacá- 
veis, o  feroz  vandalismo  do  déspota  romano,  morto  heroicamente 
pelo  punhal  de  Bruto. 

Todos  os  dias  longas  fllas  de  carroças  enfeitadas  vistosa  e  gar- 
ridamente, e  puxadas  por  alimárias  ajaezadas  com  luxo  e  riqueza, 
paravam  á  porta  da  sua  morada,  que  também  era  a  sua  acade- 
mia, e  as  suas  espaçosas  e  opulentíssimas  salas  enchiam-se  e  re- 
gorgitavam  de  gente  de  todas  as  classes.  De  longes  terras  vinham 
sábios  discutir  com  Hypathia,  e  estudiosos  ardentes  mitigar  alli  a 
sede  de  saber. 

Ella  era  como  uma  fonte  inexgotavel  de  sciencia,  onde  todos 
procuravam  dessedentar-se. 

—  A  propaganda  herética  e  subversiva  d"aquella  impostora,  pre- 
vertida  pela  chamada  sciencia  grega,  tão  proconisada  pelo  mafar- 
rico  do  Ario,  que  o  inferno  confunda,  é  um  perigo  constante  para 
a  nossa  santa  igreja. 

Assim  dizia  Cyrillo  a  um  grupo  de  monges  christãos,  entre  os 
quaes  se  encontravam  alguns  dos  fanáticos  fomentadores  da  exal- 
tação que  lavrava  no  animo  da  plebe,  tão  azada  às  impressões 
violentas  do  ódio  religioso. 

Elle  continuou,  dissimulando  mal  o  despeito  que  o  dominava : 

—  A  sua  popularidade  recresce  dia  a  dia,  ou,  antes,  de  mo- 
mento a  momento ;  porque  ella  possue  a  arte  diabólica  de  disfar- 


HYPATHÍA  67 


çar  a  falsidade  da  sciencia  que  doutrina,  com  os  ouropéis  illuzo- 
rios  de  uma  eloquência  estudada,  de  uma  dialéctica  infernal,  que 
exerce  a  mais  fascinadora  acção  sobre  o  povo :  essa  monstruosa 
cambada  de  réprobos  e  devassos,  que  se  alropellam  e  derream 
por  essas  ruas  fora,  somente  para  a  ver,  ouvir  e  acciamar.  Klla  nos 
lem  levado  bastantes  ovelhas  do  aprisco  christão,  e  ameaça  tres- 
malliar-nos  o  rebanho  inteiro.  O  seu  proselytismo  tem  feito  tantos 
arianos  como  o  próprio  Ario.  O  heresiarca,  se  continuamos  de  bra- 
ços cruzados,  na  mais  criminosa  especlativa,  poderá  vir  em  mui 
breve  assentar  arraiaes  nesta  cidade  do  peccado,  e  fundar  aqui  a 
nova  igreja  e  proclamar  voz  em  grita  e  de  cathedra  a  sua  diabó- 
lica heresia !  E  os  christãos  fieis  que  se  preparem  para  morrer  ás 
mãos  sacrílegas  dos  excommungados  seguidores  das  doutrinas 
stultas  dos  Aristóteles,  dos  Platões  e  outi-os  pagãos  de  má  nota, 
em  que  baseia  a  sua  doutrina  o  perro  do  Ario ! 

O  santo  estava  medonho  por  affeito  da  exaltação  da  cólera.  Tre- 
mia todo,  e  as  pupillas  brilhavam-Ihe  com  o  fogo  dos  alluciuados ; 
a  sua  palavra  ardente  e  sybillante.  ia  gravar-se  na  mente  dos  ou- 
vintes como  se  elles  escutassem  os  sangrentos  vaticínios  de  um 
propheta  sinistro. 

—  Razão  tendes,  beatifico  Cyrillo,  —  disse  um  monge,  já  bastan- 
temente  excitado;  —  se  essa  vaidosa  mulhei-  proseguir  na  sua  ne- 
fanda obra  de  preversão,  o  povo  em  breve  nos  voltará  por  com- 
pleto as  costas;  e  depois,  sem  crentes,  sem  partidários  e,  por- 
tanto, sem  prestigio  algum,  o  que  será  de  nós  e  da  santa  igreja 
catholica  romana  n'esta  terra? 

—  O  que  será  de  nós  e  da  igreja  mãe?  —  acudiu  n'um  Ímpeto 
de  raiva,  mui  pouco  evangélica,  outro  monge. 

—  Fácil  é  de  prevel-o.  Seremos  sem  duvida  perseguidos  e  im- 
molados  sem  compaixão ;  a  nossa  santa  igreja  será  aniquilada 
ou  dispersa. . . 

—  Oh!  tal  não  acontecerá!  exclamaram  os  mais  exaltados,  er- 
guendo os  braços  em  signal  de  grande  ameaça. 

—  Por  minha  fé  f  exclamou  o  que  primeiro  respondera  a  Cyrillo. 
Se  Hypathia  é  a  causadora  única  dos  males  que  sentimos  e  deplo- 
ramos, como  tudo  nos  leva  a  crer. . .  Hypathia  deve  deixar  de 
existir!  Um  obstáculo  só  se  vence  completamente,  destruindo-o. 

Brados  roucos  de  saudação  acolheram  a  lembrança  do  virtuoso 
monge. 

Cyrillo  esqueceu-se  da  hypocrisia  habitual;  e.  como  era  idêntico 
o  seu  pensamento,  applaudiu  o  sanguinário  monge  com  a  mais 
brutal  franqueza  :  lavrou-se  logo  alli  o  pacto  infame. 

—  Morra,  pois,  a  filha  de  Theon,  para  Iranquillidade  da  igreja 
de  Alexandria  e  gloria  do  nome  do  filho  de  Deus  n'esta  parte  do 
orbe  christão ! 


68  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICAN 

Foram  estas  as  ultimas  palavras  do  futuro  beatificado. 

Alguns  dos  monges  abriram  os  hábitos  e  entre-mostraram  uns 
aos  outros,  com  aspecto  hediondo,  as  armas  que  sob  elles  occul- 
tavam. 

Depois  separaram-se,  indo  mislurar-se  aos  grupos  de  populares, 
que  se  formavam  pelas  ruas  e  praças  para  indagar  dos  aconteci- 
mentos e  commenlal-os  a  seu  sabor. 

Os  monges  desempenharam  hábil  e  galhardamente  a  sua  pérfida 
missão.  Km  menos  de  um  credo  conseguiram  amotinar  a  arraia 
miúda  do  povo,  envenenando-lhe  o  coração  com  uma  duvida  terrí- 
vel :  que  Hypathia  era  uma  especuladora  velhaca,  que,  se  queria 
exercer  prestigio  sobre  o  povo,  era  tão  somente  para  o  transfor- 
mar em  degrau  das  suas  desmesuradas  ambições. 

Ao  descair  da  tarde,  Hypathia,  sentada  no  interior  de  uma  rica 
carroça,  tirada  por  um  formoso  cavallo  da  mais  fina  raça,  passava 
por  uma  das  principaes  praças,  em  direcção  da  sua  academia. 

Grande  numero  dos  seus  admiradores  e  partidários,  iam  desco- 
bertos e  radiantes  de  enthusiasmo  em  derredor  do  vehiculo,  como 
que  a  escoltar  o  seu  idolo.  O  povo,  afastando-se  na  sua  trium- 
phante  passagem,  parava  aos  lados  das  ruas  e  acclamava-a  viva- 
mente, phreneticamente,  em  transportes  de  enthusiasmo,  que  ás 
vezes  tocava  as  raias  do  delírio. 

Das  janellas,  as  damas  vicloriavam-n'a  accenando-lhe  com  os  len- 
ços, cobrindo-a  de  flores. 

E  ella  agradecia  a  lodos,  não  com  o  regosijo  do  orgulho  satis- 
feito, mas  cóm  as  lagrimas  da  mais  sentida  gratidão. 

Era  um  espectáculo  imponente  e  glorioso  que  arrobava  e  en- 
ternecia ! 

De  súbito  surge  na  praça  a  figura  ascética  de  Cyrillo.  O  odioso 
orthodoxo  dirigiu-se  a  uma  mó  de  populares  de  ruim  catadura, 
por  entre  os  quaes  se  enxergavam  alguns  dos  monges,  que  já 
apresentámos. 

—  É  chegado  o  momento  decisivo,  disse  Cyrillo  ao  ouvido  de  um 
monge  de  formas  athleticas  e  semblante  ferocíssimo. 

—  A  plebe,  catechisada  por  nós,  bom  padre, — redarguiu  o 
monge — está  prompta  para  tudo. 

—  Vamos,  pois. 

A  turba-multa,  á  voz  dos  monges,  começou  de  mover-se  como 
uma  serpente  monstruosa,  e  gritos  sinistros  irromperam  de  cente- 
nares de  boccas  avinhadas. 

A  carroça  de  Hypathia,  e  os  admiradores  da  nobre  mulher,  en- 
travam a  este  tempo  n'uma  rua  estreita  e  tortuosa. 

Subitamente  foi  assaltada  pela  horda  de  populares  guiados  pelos 
monges.  Cyrillo  tinha  desapparecido  ...  a  fim  de  não  compro- 
metter  a  sua  sanctíficação  ... 


HYPATHIA  69 


—  Morte  à  impostora!  morte  á  herética!  bradava  a  gentalha,  no 
auge  da  exaltação. 

Hypalhia,  surprehendida  pelo  estranho  do  caso,  mas  serena, 
ainda  que  levemente  pallida,  procurou  fallar  á  multidão. 

—  Não  a  deixem  fallar,  —vociferava  um  monge  ;  — não  a  dei- 
xem fallar,  pois  ella  o  que  pretende  é  desarmar  o  vosso  braço 
vingador,  com  os  dolos  e  embustes  de  sua  infernal  invenção. 

— Apoderai-vos  da  pagã!  —  berrava  outro  monge  açulando  a  corja. 

Alguns  fanáticos  fizeram  parar  a  carroça,  e  um  romano  ia  já  a 
encarrapitar-se  sobre  uma  roda. 

Um  dos  admiradores  de  Hypathia  tomou-o  nos  braços  vigorosos 
e  arremessou-o  a  grande  distancia. 

—  Para  traz,  malvado  ! 

Um  monge  vibrou  uma  punhalada  de  morte  ao  heróico  defensor 
da  filha  de  Theon.  Foi  o  signal  da  lucla.  Os  que  guardavam  o 
carro  foram  vencidos  e  aniquilados ;  e  o  povo,  que  saudara  a  mu- 
lher illustre,  espavorido  e  aterrado,  fugiu  deixando-a  entregue  á 
sanha  dos  assassinos  . . . 

Hypathia  foi  tirada  brutalmente  do  carro,  e  depois  espancada  e 
deitada  por  terra.  A  multidão,  excitada  alé  à  ferocidade,  despiu  a 
dos  seus  vestidos,  e  arrastou-a,  cobrindo-a  de  vergões  das  panca- 
das, e  victuperando-a  com  chascos  e  vaias  obscenas,  até  á  igreja, 
onde  a  esperavam  reunidos  os  companheiros  de  Pedro  o  leitor. 

—  Eis  em  nosso  poder  a  mulher  vaidosa  e  peccadora,  que  du- 
rante tantos  annos  lançou  a  baba  da  sua  duvida  pegadiça  e  nojosa 
na  alma  do  povo  d'esta  cidade,  afastando  o  da  casa  do  Senhor  e 
da  predica  santa  dos  seus  escolhidos,  para  o  attrahir  ao  seu  pros- 
tíbulo, onde  o  prevertia  e  envenenava  com  a  sua  doutrinação  so- 
phistica  e  pagã. 

Assim  clamava  Cyrillo  do  alto  do  púlpito  sagrado.  E  concluiu : 

—  Que  se  ha-de  fazer  delia  ? 

—  Esraagal-a,  como  se  esmaga  um  reptil  peçonhento, — bradou 
um  padre,  com  voz  que  eccoou  pelas  arcarias  do  templo  como  o 
som  cavo  e  fúnebre  d'uma  campa. 

—  Á  morte  a  impostora  !  Á  morte  a  pagã  !  —  berrou  a  multidão, 
que  abafava  no  sagrado  recinto. 

—  Matem-me,  sim  f  matem-me,  fanáticos  preversos!  para  que  o 
sangue  da  martyr  vá  espadanar  nos  vossos  altares,  e  enrubescer 
mais  as  letras  dos  missaes  romanos ! 

Não  poude  dizer  mais  aquella  nobilíssima  creatura.  Os  monges, 
cegos  pela  ira,  arremessaram-se  sobre  o  corpo  esculptural  e  nú  da 
sua  victima,  com  a  sanha  de  uma  alcateia  de  lobos  esfaimados,  e 
lhe  deram  morte  horrendíssima ! 

O  corpo  da  martyr  foi  feito  em  pedaços,  e  os  despojos  sangren- 
tos divididos  pelos  mais  fanatisados  f 


70  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Depois  accenderam  uma  fogueira  ;  e,  quando  a  espiral  das  suas 
ch?miiias  rubras  se  erguia  para  o  espaço,  como  um  dedo  lumiiioso 
erguido  para  o  céo,  os  monges,  que  já  linliam  arrancado  a  carne 
dos  ossos,  atiraram  ao  fogo  os  restos  da  que  tanto  os  incommo- 
dara  com  as  luzes  esplendorosas  do  seu  immenso  saber ! ! 

Assim  nrnbnu  a  mulher  mais  sabia  e  mais  austera  das  primiti- 
vas idades  do  cliristianismo,  depois  de  uma  vida  gloriosa  de  estudo, 
de  trabalho,  de  abnegação  e  iriumphos  I 

Jamais  foi  Cyrillo  chamado  a  responder  por  tão  espantoso  crime  ; 
parece  que  desde  então  se  admitliu  que  —  os  fins  justificam  os 
meios. 


Dizem  que  Hypathia  escreveu  um  grande  numero  de  livros  so- 
bre mathematicas  e  geometria ;  mas  todos  se  perderam  com  a  rica 
bibliolheca  de  Alexandria,  que  foi  dispersada  depois  da  sua  morte, 
como  aviso  áquelles  que  intentassem  levantar  o  facho  luminoso  da 
Sciencia  ante  as  trevas  do  obscurantismo,  que  é  o.  melhor  e 
mais  seguro  esteio  da  tyrannia ! 

Xavier  de  Paiva. 


3Pronressos  da  (luaianidcide  iio  século  actual 

Kstamos  no  ultimo  quartel  do  século  xix.  Lancemos  os  olhos 
para  o  brilhaiite  espectáculo  que  nos  appresenta  o  mundo  e  com- 
paremol-o  com  o  que  nos  apiircsenlava  o  ultimo  quartel  do  século 
xvm.  Que  trabalhos  gigantes  &c  não  fizeram  depois  que  Condorcet  es- 
creveu o  seu  bosquejo  dos  progressos  do  espirito  humano!  Como 
a  humanidade  tem  caminhado  no  curto  espaço  de  um  século !  Os 
caminhos  de  íerro,  o  gaz  da  diummação,  os  vapores,  os  fios  elé- 
ctricos, os  pára-raios,  as  machinas,  a  photographia,  os  telefones,  a  luz 
electiica,  que  quantidade  assombrosa  de  inventos  que  lém  transfor- 
mado a  face  da  terra  e  que  ao  principio  eram  olhados  como  chi- 
meras,  ou  quando  muito  como  objectos  bons  para  se  guardarem 
num  museu  de  curiosidades. 

A  descoberta  do  vapor  data  de  1690,  segundo  alguns  auctores 
que  a  attribuem  ao  sábio  francez  Diniz  Papin;  porém  Jayme  Watt 
é  que  tornou  esta  invenção  aproveitável  nos  fins  do  século  passado  e  é 
elle  quem  gosa  das  honras  de  inventor.  A  machina  de  Watt  espalhou- 
se  rapidamente  e  nos  princípios  do  presente  século  estava  já  em 
uso  em  muitos  logares  da  Europa  e  da  America.  O  celebre  enge- 


PROGRESSOS  DA  HUMANIDADE  NO  SÉCULO  ACTUAL     71 

nheiro  americano  Roberto  Fulton  applicou  este  invento  á  navega- 
ção, e  os  conslruetores  Trevilliick  e  Vivian  applicaram-no  ás  vias 
férreas.  Passaram-se  setenta  annos  e  hoje  vemos  o  mar  sulcado  de 
vapores  que  percorrem  em  quinze  dias  o  espaço  que  nossos  avós 
percorriam  em  três  e  quatro  mezes  nos  seus  navios  de  vella.  Por 
terra  atravessam-se  50  e  60  kilometros  no  mesmo  espaço  de  tempo 
que  os  nossos  antepassados  gastavam  para  andarem  uma  légua. 
As  distancias  desappareceram.  Portugal  e  a  Rússia  approximaram- 
se  da  França.  Napoleão  gastou  alguns  mezes  de  Paris  a  Moscou, 
agora  qualquer  pessoa  faz  em  poucos  dias  a  travessia  napoleonica 
atravez  da  Rússia.  Ha  comboios  directos  que  vão  até  S.  Peters- 
burgo.  A  Europa  tende  a  unificar-se  pelo  progresso. 

Entre  a  Europa  e  a  Ásia  ha  uma  grande  distancia,  ha  a  Africa  e 
o  cabo  das  Tormentas,  isto  é  muito  tempo  perdido  c  innumeros 
perigos.  Que  se  ha  de  fazer?  Supprima-se  a  Africa  e  supprima-se 
com  ella  o  cabo  das  Tormentas.  Como  fazel-o?  Cortando  um  largo 
cordão  de  penedos  que  une  dois  continentes.  Era  um  trabalho  deti- 
tans,  uKis  estamos  no  século  dezenove  e  esse  trabalho  realísou-se. 
Separaram-se  dois  continentes,  ligaram-se  dois  mares  e  o  canal 
de  Suez  tornou-sc  o  caminho  rápido  e  seguro  que  conduz  ao 
Oriente. 

A  electricidade  era  conhecida  desde  os  tempos  antigos,  porém 
só  depois  de  Volta  se  tornou  susceptível  de  ser  applicada.  Franklin 
inventou  os  pãra-raios,  OErsted  e  Arago  applicaram  a  electricidade 
á  telegraphia  ;  vieram  depois  os  aperfeiçoamentos  e  actualmente 
os  fios  eléctricos  pozeram  em  contacto  as  mais  distantes  partes  do 
globo.  A  Europa  e  a  America  estão  ligadas  por  uma  infinidade  de 
fios  telegraphicos  e  quasi  todas  as  terras  do  mundo  se  podem  cor- 
responder em  poucos  instantes.  Pelo  telegrapho  eléctrico  New- York 
fica  a  poucos  minutos  de  Londres,  e  Lisboa  do  Rio  de  .laneiro.  Um 
acontecimento  de  interesse  geral  sabe-se  no  mesmo  dia  em  todo 
o  orbe.  É  simplesmente  assombroso  !  Continuam  a  fazerem-se  des- 
cobertas que  hão  de  um  dia  vir  a  ser  importantes.  A  luz  eléctrica,  o 
telephone,  o  phonographo,  etc,  são  objectos  de  estudo  que  estão 
passando  por  successivas  modificações  e  aperfeiçoamentos,  graças 
aos  esforços  incessantes  e  esplendidos  de  Edisson,  Bell,  Jablocoff  e 
innumeros  outros. 

E  que  espantoso  não  tem  sido  o  movimento  industrial !  As  machi- 
nas  surgem  por  todos  os  lados  e  para  todos  os  effeitos,  machinas  de 
fiar,  machinas  de  tecer,  machinas  de  cortar,  machinas  de  lavrar, 
machmas  de  moer,  machinas  de  costura,  etc.  etc,  E  todas  ellas 
ou  pelo  menos  a  maior  parte  dos  seus  aperfeiçoamentos  são  d'este 
século. 

No  século  XIX  os  progressos  materiaes  têm  tido  ura  incremento 
desusado  e  nunca  anteriormente  visto.  Qual  a  causa  d'este  desen- 


72  ENOYGLOPEDIA  REPUBLICANA 

volvimento?  Todos  os  factos  sociológicos  são  filhos  de  outros  que 
os  precederam,  são  effeitos  de  causas  secundarias  ou  immedialas, 
são  consequências  d'um  meio  determinado.  Ora  os  progressos  ma- 
teriaes  nascem  sempre  dos  progressos  intellectuaes. 

O  progresso  passa  por  três  pliases  regulares  e  successivas : 
primeiro  é  intellectual,  depois  moral  e  por  fim  económico  ou  ma- 
terial. Talvez  alguém  pretenda  contestar  esta  airirmação  citando  o 
que  se  passa  entre  nós  :  a  esse  lembrar-llíe-hei  que  o  nosso  paiz  não 
pôde  servir  de  exemplo  porque  não  tem  tido  um  desenvolvimento  pró- 
prio, a  vida  da  nação  portugueza  é  artificial ;  os  melhoramentos 
materiaes  foram-nos  impostos  pelo  meio  europeu  em  que  vivemos. 
A  profunda  decadência  a  que  chegou  Portugal,  arrastado  pela  mo- 
narchia  de  mãos  dadas  com  a  inquisição  e  com  os  jesuítas,  estiolou 
muitas  gerações  e  deixou-as  vegetar  no  meio  de  um  indiíferentismo 
desolador  que  seria  criminoso  se  fosse  consciente.  Só  agora  come- 
çam a  notar-se  symptomas  de  um  progresso  intellectual  ;  infeliz- 
mente são  ainda  bem  frouxos.  Não  succedeu  porém  o  mesmo  cora 
a  França  e  com  os  paizes  do  norte.  Alli  o  progresso  intellectual  pre- 
cedeu o  material. 

As  sciencias  tom  lido  no  século  actual  cultivadores  insignes  que 
as  têm  desenvolvido,  levantado  e  propagado.  Na  astronomia  têm-se 
continuado  as  observações  dos  planetas,  encontrou-se  Neptuno, 
adoptou-se  a  analyse  espectral  dos  astros,  desrobriram-se  os  satel- 
lites  de  IMaite,  augmentou-se  o  numero  conhecido  de  planetas  que 
gyram  entre  Mercúrio  e  Júpiter,  estudaram-se  as  nebulosas,  segui- 
ram-se  os  cometas,  ele;  Trémaux  explica  por  uma  Iheoria  nova  a 
gravitação,  substituindo  a  attracção  pela  repulsão,  mais  racional  e 
mais  explicativa,  e  sujeita  todos  os  phenomenos  naturaes  ao  prin- 
cipio universal  do  movimento  ;  na  physica  estabeleceu-se  a  unidade 
das  forças,  decompoz-se  a  luz  do  espectro  solar,  descobriu-se  que  o 
calor  não  era  senão  um  modo  do  movimento,  analysaram-se  minu- 
ciosamente innumeros  phenomenos  ;  na  chimica  continua-se  a  ana- 
lyse dos  corpos  inorgânicos,  chega-se  á  composição  artificial  de  al- 
guns corpos  orgânicos,  encontram-se  novos  corpos  simples,  de- 
compõem-se  outros  que  se  julgavam  irredutíveis,  consegue-se  lique- 
fazer o  oxygenio,  e  sob  maiores  pressões  o  azote,  o  hydrogenio,  o  ar 
atmospherico.  Cria-se  a  biologia,  estudam-se  os  corpos  orgânicos, 
comparam-se  entre  si,  classificam-se,  apresenlam-se  theorias  novas, 
Raspaíl  estuda  os  tecidos  e  as  alterações  promovidas  pelos  parasitas, 
Cláudio  Bernard  estuda  os  nervos,  a  cellula,  as  funcções  do  coração,  a 
acção  paralísadora  do  curare,  d"esse  veneno  fortíssimo  da  Ameria,  e 
morre  quando  linha  a  esperança  de  encontrar  o  segredo  da  constitui- 
ção da  cellula;  Luys  estuda  o  syslema  nervoso,  a  espinhal  medula  e  o 
cérebro,  ele.  Augusto  Comte  funda  a  sociologia  e  estabelece  as  rela- 
ções entre  as  várias  sciencias.  Traduzem-se  os  hyeroglificos  e  os  cu- 


i 


A  PROPÓSITO  DA  QUESTÃO  DAS  VIVÍSEGÇÕES  73 

neiformes,  estiidam-se  as  religiões  do  Oriente,  leem-se  os  livros 
sagrados  da  índia  e  da  Pérsia  e  as  epopèas  da  antiguidade  ante- 
historica,  descobre-se  a  epopéa  babylonica,  enconlra-se  o  homem 
pre-bistorico  nas  escavações  realisadas  |)or  toda  a  liiuropa,  compa- 
ram-se  as  rebgiões.  os  mythos,  os  contos,  a^  lendas,  as  lingi  as. 
os  poemas,  etc,  Luscam-se  as  origens  do  direito,  estiidase  a  ar- 
chitectiira,  estudam-se  as  iilteraturas,  descobre-se  o  sanscrito 
e  o  zend,  forma-se  a  granimatica  geral  das  lingnas  indo-enro- 
pêas.  etc. 

Tal  é  o  estado  a  que  chegou  o  progresso  humano  na  epocha 
que  vamos  atravessando.  Se  olharmos  para  traz  e  considerarmos 
o  camhiho  percorrido  veremos  como  é  vagarosa  a  evolução,  e 
como  só  á  custa  de  muitos  e  muitos  sacrifícios  ponde  a  humani- 
dade ascender  ao  logar  elevado  que  hoje  occupa.  Por  quantas  e 
quantas  phases  não  passou  a  humanidade !  Esta  enorme  lagarta  quan- 
tas e  quantas  vezes  não  mudou  de  invólucro  porqueos  velhos  tegu- 
mentos se  foram  apertando  e  rompendo  á  proporção  qué  se  de- 
senvolvia! 

De  século  para  século,  a  herança  universal  de  conhecimentos  e 
de  trabalhos  vae  sempre  augmentando  com  os  esforços  das  gera- 
ções que  se  succedem,  e  decerto  o  século  xix  é  o  que  mais  tem 
augmentado  esse  legado. 

Teixeiiía  Bastos. 


.4  jiroiiosito  da  cruestuo  acis  vívisecções  * 

Outr'ora  os  homens  que  queriam  ter  a  seu  cargo  o  destino  das 
sociedades  e  o  legitimo  orgulho  de  bem  as  ter  evangelisado,  recorriam 
<ios  princípios  religiosos  para  porem  em  pratica  os  principios  scien- 
lificos.  Assim  a  circumcisão  e  a  prohibição  da  carne  de  porco  en- 
tre os  hebraicos,  simples  preceitos  de  hygiene,  precisaram  de  ser 
attribuidas  a  uma  vontade  divina. 

Hoje  os  homens  que  desejam  conservar  a  direcção  espiritual  dos 
povos,  recorrem  a  principios  que  dizem  baseados  na  melhor  religião 
para  insultarem  a  sciencia  e  lhe  extorquirem  os  seus  direitos  legíti- 
mos e  fortes. 


1  O  auctor  destinava  este  artigo  a  ser  publicado  na  Era  Nova  onde  o  foi  o 
do  sr.  Alexandre  da  Conceição  a  que  este  se  refere  :  pelo  acabamento  d'aquella 
Te\  ista  só  agora  é  publicado,  ainda  que  tarde  para  a  resposta,  mas  não  pelas 
considerações  scientificas  com  que  o  auctor  tratou  o  assumpto. 

Nota  da  empreza. 
10 


74  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Ainda  no  século  XIV  foi  a  Egreja  que  aulliorizíu  pela  primeira 
vez  a  dissecção  dos  corpos  humanos  ;  hoje  parece  que,  da  parte  da 
Egreja.  se  caminha  para  fazer  disso  um  peccado. 

É  por  isto  apenas  que  se  diz  que  os  homens  de  sciencia  dhoje 
perpetuam  o  verdadeiro  padre  e  (jue  os  padres  d'hoje  teem  entre  si 
e  os  homens  de  sciencia  essa  tenebrosa  dillerença  que  ha  entre  o 
dia  e  a  noite. 

Isto  porém  era  necessário  e  fatal:  tiidia  obrigação  de  o  fazer  a 
vastidão  crescente  dos  conhecimentos  humanos,  os  progressos  da 
geologia,  da  embryologia.  e  da  histologia  comparada  do  cérebro, 
valentes  demolidores  da  philosophia  espiritualista. 

Os  princípios  do  código  de  illuzões  a  que  se  chama  religião,  não 
sendo  positivos,  não  sendo  formados  dos  factos  natnraes  e  estando 
consequentemente  condemnados  a  toda  hora  aos  abalos  do  seplicis- 
mo,  nasceram,  cresceram  e  vão  desapparecendo  lenta,  mas  radi- 
calmente. 

Os  princípios  scientificos,  pelo  contrario,  erguem-se  dos  factos, 
tornando-se  disaitiveis  sobre  documentos  palpáveis,  e  são  por  isso 
immorredouros  no  progresso  virtiginoso  do  século. 

Só  o  que  é  demonstrável,  avança  e  domina  ;  o  que  é  indemons- 
travel,  marcha  eternamente  no  mesmo  terreno  e  por  fim  é-lhe  for- 
çoso cahir  na  valia  commum. 

É  pois  inevitável  uma  separação  absoluta  :  Sciencia  e  religião  teem 
de  marchar  cada  vez  mais  inharmoniaveis.  Mas  não  é  sem  estra- 
nheza que  vemos  o  reviver  de  conflictos  raivosos  e  pouco  coheren- 
les,  sobretudo  quando  elles  vivem  com  o  assentimento  de  governos 
poderosos  que,  em  tantos  outros  pontos,  são  enormes  alavancas  do 
progresso  e  factores  primários  da  família  humana. 

O  governo  inglez  parece  ter  partilhado  (!o  falso  espirito  christão 
que  lavra  nos  protectores  dos  animaes,  e  está  fazendo  executar  uma 
lei  prohibitiva  das  experiências  dos  physiologistas  em  animaes  vivos 
sobre  pretexto  de  que  estes  experimentalistas  obram  contra  a  reli- 
gião e  a  moral,  e  de  que,  usando  taes  experiências  com  demonstra- 
ção nos  cursos,  fazem  a  mocidade  cruel.  Os  physiologistas  que  por- 
ventura desobedeçam  á  lei  serão  presos  e  multados  severamente. 

A  parle  da  sociedade  ingleza  que  estaciona  à  vista  do  progresso, 
poude  influir  no  parlamento  do  seu  paiz  e  conseguiu  que  similhante 
lei  fosse  votada  e  posta  em  execução  rigorosa.  Esta  influencia  inue- 
gavel  e  poderosa  que  ainda  tem  o  espirito  religioso,  é  um  facto  que 
não  intimida,  mas  que  é  digno  de  uma  attenção  muito  seria,  e  o  pro- 
cedimento do  governo  inglez  parece  a  todos  perfeitamente  deslocado 
no  meio  do  boxe  e  dos  combates  dos  gallos. 

Um  parlamento  que,  a  pedido  de  simples  sociadades  protectoras 
dos  animaes  e  dos  advogados  de  causas  fossilisadas,  esquece  que 
a  saúde  é  a  primeira  base  directa,  que  a  medicina  é  a  garan- 


A  PROPÓSITO  DA  QUESTÃO  DAS  VIVISECÇÕES  7o 

tia  da  saúde,  que  sem  physiologia  não  ha  medicina,  que  sem  ex- 
periência nos  animaes  vivos  não  pode  haver  physiologia  ;  um  parla- 
mento que  despreza  a  opinião  dos  sábios  pelo  alvitre  dos  piedosos, 
quer  arriscar-se  muito  a  que  o  supponham  pouco  versado  na  utili- 
dade capitallissima  da  sciencia  que  vem  aggredir,  a  que  o  julguem 
inimigo  de  si  e  dos  outros,  pouco  zelozo  do  elevado  logar  que  o  seu 
paiz  occupa  na  sciencia,  e  como  diz  o  illustre  Carlos  Darvin,  custa- 
ria a  acreditar  aos  vindouros  que  elle  pagou  com  tanta  ingratidão 
aos  primeiros  bemfeilores  da  humanidade. 

Isto  é  sem  duvida  alguma  assim. 

Mas,  apezar  d'este  procedimento,  para  todos  pouco  conciliador, 
para  muitos  revoltante,' estamos  convencidos  de  que  ninguém  se 
se  lembrará  nem  mesmo  em  Portugal,  de  concluir  o  que  ao  sr. 
Alexandre  da  Conceição  approuve  escrever  na  mesma  phrase  em 
em  que  usa  tiiar  os  seus  ditos  a  limpo  com  o  sr.  Camillo  Caslello 
Branco — que  a  Inglaterra  é  uma  noção  de  caixeiros  carolas  e  bru- 
tos com  pretensões  a  doutores  em  mHaphijsica.  Não.  A  questão  das 
vivisecções  que  será  justamente  tratada  por  todos  os  pontos  civi- 
lisados  do  globo,  não  o  será  por  nenhum  positivista,  como  facto 
isolado  e  em  termos  taes,  senão  pelo  sr.  Alexandre  da  Conceição, 
temos  esta  certeza.  O  facto  carece  de  um  protesto  severíssimo;  é 
um  facto  de  primeira  ordem,  baseado  em  exigências  que  lavram 
também  pela  França  e  pela  Allemanha,  e  no  qual  nada  lêem  que 
fazer  caixeiros  abrutalhados  por  pequenas  hypolheses  portuguezas. 

A  lei  votada  pelo  parlamento  inglez  e  executada  como  o  próprio 
sr.  Alexandre  da  Conceição  nos  diz,  pelo  ministério  de  Gladstone, 
é  um  acontecimento,  por  isto  mesmo,  estupendo  e  grave  que  não 
cabe  debaixo  da  epigraphe  John  Buli  e  ao  qual,  quanto  mais  pue- 
ril o  julgarmos,  tanto  menos  devemos  dar  a  confiança  de  lhe  cha- 
mar violentíssima  tolice,  nem  prohibição  descotnmunalmente  ridícula 
e  bestial.  Os  inglezes,  a  quem  o  sr.  Alexandre  da  Conceição  so- 
nhou amontoados  ao  fundo  duma  mercearia  tratando  questões 
seientificas,  teem  na  sua  bella  língua  uma  palavra  sò  para  estas 
palavras  todas  —  shocking!  A  lei  contra  as  vivisecções  é  um  acon- 
tecimento cujo  mechanismo  é  muito  urgente  não  apreciar  pela 
rama,  e  que  nos  deixa  perplexos,  mais  do  que  enfurecidos,  a  ponto 
de  esquecermos  que  o  governo  inglez,  em  questões  de  dirigir  o 
movimento  intellecttial  do  mundo  moderno,  continua  a  sustentar  il- 
limiladamente  os  primeiros  museus  do  mundo,  o  primeiro  agua- 
rium  do  mundo,  05  primeiros  jardins  zoológico  e  botânico  do  mundo, 
que  as  maiores  explorações  geographicas  se  lhe  devem,  e  o  sr, 
Alexandre  da  Conceição,  pensando  mais  friamente,  verá  que  estes 
factos  bastam  para  desamarrar  sufjicientemente  um  povo  do  ridículo 
da  historia.  Esta  lei  parece-nos  um  caso  de  nenhum  modo  parti- 
cular, mas  sim  a.  prova  inesperada  de  que  ha  ainda  força  bastante 


76  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

do  lado  opposlo,  força  que  necessita  de  ser  energicamente  des- 
truída, mas  peranle  a  qual,  sobretudo  n'estas  proporções,  os  de- 
sabafos palavrosos  são  perfeilameule  estéreis.  Apezar  do  fastio  que 
a  todos  causa,  essa  força  não  dá  a  ninguém  que  escreve  com  o 
moderno  espirito  dirigente  da  sua  terra,  não  dá  a  nenhum  portu- 
guoz  o  direito  de  insultar  um  grande  paiz,  muito  menos  com  os 
primeiros  epliilelos  do  reportório ;  e  nós  vimos  supplicar  á  moci- 
dade porlugueza  (]ue  aprende  com  o  sr.  Alexandre  da  Conceição  e 
com  os  direclores  litlerarios  conniventes  na  publicação  da  sua  ma- 
neira de  appieciar,  que  não  acceite  similhante  exemplo. 

Lemlinmios  que  a  maior  revolução  por  que  lom  passado  o  espi- 
rito humano,  particularmente  nas  sciencias  naluraes,  se  deve  aos 
dois  cérebros  inglezes  de  Carlos  Leyell  e  Carlos  Darvin,  e  o  sr. 
Alexandre  da  Conceição  deverá  lambem  lembrar-se  de  que,  ao 
passo  que  na  França  e  na  Alleuianha,  as  tlieorias  desses  dois 
grandes  homens  de  tempera  inglcza  foram  por  muito  tempo  insulta- 
das ou  prejudicialmente  compreliendidas  e  divulgadas,  na  Inglaterra, 
éllas  eram  geralmente  adoptadas  e  sabiamente  compiehendidas  e 
e  applicadas.  E  já  que  estamos  em  physiologia,  é  obrigação  con- 
fessar que  a  Itiglaterra  neste  ponto,  tem  em  todas  as  epochas 
produzido  grandes  homens  taes  como  Harvey,  Willis,  Hobert  Hook, 
Richard  Lover,  Thomas  Young,  Charles  Bell  e  Marshal  Hall,  cu- 
jos trabalhos  deram  quasi  sempre  impulsos  oiiginaes. 

Tudo  isto  torna  muito  mais  sensível  o  procedimento  do  parla- 
mento inglez,  mas  não  nos  parece  que  nenhum  espirito  meridioual, 
que  nós,  portuguezes,  do  fundo  do  nosso  fatal  mimetismo,  possa- 
mos entrar  nesta  questão  senão  para  fazer  sentir  o  insólito  da  lei 
anti-viviseccionista,  mostrando  o  que  a  Inglaterra  vale  e  que  a  saga- 
cidade e  a  prijdencia  teem  sido  sempre  as  bases  da  conducta  do  seu 
povo.  O  nosso  protesto  não  pode  ir  além  de  pedirmos  aos  sábios  es- 
trangeiros (aos  mglezes)  que  nos  enshiem  a  mostrar  ao  povo  portu- 
guez  a  utilidade  da  physiologia  experimental,  alim  de  lermos  prepa- 
rada a  força  da  opinião  publica  indispensável,  p*ara  qne  enlão  ura 
governo  possa  votar  ao  desprezo  as  exigências  incoherenles  de  al- 
gumas corporações  sentimentalistas,  que  lambem  lemos  por  cá  e 
que  podem  fortificar-se,  como  tem  acontecido  nos  paizes  mais  cul- 
tos da  Kuropa. 

Na  França  as  sociedades  protectoras  não  conseguiam  nem  con- 
seguirão talvez  imped:r  por  lei  os  progressos  da  physiologia  expe- 
rimental, mas  conseguem-o  por  um  modo  quasi  igualmente  ef- 
ficaz,  promovendo  a  morte  immediata  dos  cães  presos  por  vadia- 
gem, de  modo  que,  quando  um  medico  quer  um  cão  vivo  para 
aprender  a  não  matar  algumas  dezenas  de  homens,  não  encontra 
senão  os  animaes  que  os  seus  donos  precisam  para  si. 

Graças  a  esta  maneira  de  proceder,  estas  sociedades,  protegendo 


A  PROPÓSITO  DA  QUESTÃO  DAS  VIVISECÇÕES  77 


assim  os  animaes,  embora  sem  a  conscieucia  do  que  fazem,  lornam-se 
persegiiifloras  dos  homens  e  são  corpos  estranhos  no  meio  da  hu- 
manidade. O  soffrimento  dos  cães  é-lhes  mais  digno  de  respeito  do 
que  o  presente  e  sobretudo  o  futuro  de  uma  sciencia  cujas  praticas, 
inevitáveis  e  não  cruéis,  teem  por  fim  único  o  desempenho  da  ii  issão 
mais  respeitável— abolir  os  soffrimenlos  dos  homens.  Associações  cu- 
jos membros  ainda  julgam  a  moral  inseparável  dos  princípios  religio- 
sos e  que,  em  nome  d'estes  últimos  ('que  também  tiveram  sombra  para 
a  Inquisição)  pedejn  que  os  cães  sejam  oílicialmente  equiparados  aos 
homens,  quando,  por  outro  lado,  querem  um  logar  á  parte  na  clas- 
sificação zoológica,  e  que  rhegam  até  a  dizer  a  quem  lenta  per- 
suadil-os  que  faça  as  experiências  de  vivisecção  em  si. . .  de  asso- 
ciações laes,  ninguém  pode  descobrir  a  coherencia  e  religiosidade 
dos  princípios,  nem  a  moralidade  dos  fins.' 

São  estas  associações  que  é  preciso  fazer  entrar  no  seu  cami- 
nho, se  é  que  ellas  teem  algum  caminho.  É  preciso  convencel-as 
mesmo  de  que  teem  cumprido  suílicientemente  a  sua  missão,  con- 
servando-se  no  seu  primitivo  logar,  limitando-se  a  chorar  sobre  as 
chicotadas  desnecessárias  applicadas  pelos  conductores  de  omni- 
bus,  fazendo,  quando  muito,  algumas  conferencias  a  respeito  d'el- 
las,  mas  sem  se  esquecerem  ile  indicar  outro  meio  de  lazer  andar 
os  cavallos  manhosos  como  é  preciso. 

Mas  isto  não  se  consegue  á  descompostura  n'um  parlamento  que 
obrou  talvez  com  a  sagacidade  que' lhe  é  peculiar.  Ha  muitos  an- 
nos  que  esta  corporação  é  perseguida  pelas  reclamações  pietistas, 
e  já  em  1876  ella  se  vin  obrigada  a  fazer  pequenas  concessões. 
Portanto  não  podemos  dizer  que  obrou  precipitadamente,  e  ainda 
que  a  lei  podasse  deixar  de  ser  votada,  não  é  possível  acreditar 
que  todo  o  parlamento  a  votasse  por  falta  de  sciencia  e  por  amor 
das  sociedades  protectoras;  mas  sim  que  uma  boa  parte  d'elle 
obrou,  sabendo  o  que  ha  sempre  de  tentador  n'um  fructo  prohibido 
e  lançando  opporlunamenle  sobre  a  piedade  buliçosa  a  opinião  es- 
timulada e  esmagadora  dos  homens  de  sciencia,  em  especial  a  dos 
que  são  directamente  oíiendidos.  As  cartas  de  Darwin  e  de  Carlos 
Vogt  publicadas  em  volumes  diversos  da  Rèviie  scientifique,  e  os 
discursos  de  Virchow  c  Michael  Foster  no  recente  congresso  me- 
dico de  Londres,  são  effeitos  notáveis  d'essa  intenção  mais  do  que 
provável. 

O  professor  Virchow,  o  pai  da  pathologia  cellular.  mostrou  n'esse 
congresso  em  q^ue  sé  achavam  reunidos  mais  de  2:o00  médicos 
de  todos  os  paizes,  que  o  estudo  do  cadáver  é  impotente  para  fa- 
zer progredir  a  medicina.  A  doença  é  uma  forma  anormal  da  vida 
e  como  tal  não  se  pode  estudar  nos  tecidos  mortos.  A  base  da  arte 
de  curar  está  na  comparação  da  cellula  saudável  com  a  cellula 
doente  e  isto  só  se  pode  verificar  no  vivo.  O  estudo  do  cadáver 


78  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

não  nos  mostra  de  modo  algum  a  maneira  porque  as  cellulas 
doentes  e  as  saudáveis  se  conduzem,  e  é  exactamente  a  sua  con- 
ducta  e  não  a  sua  decomposição  que  os  physiologistas  médicos 
precisam  conhecer,  O  cadáver  é  útil  somente,  em  pathologia.para 
mostrar  os  estragos  duma  doença  n'um  órgão  que  tinha  sido  im- 
possiveí  observar  em  vida,  mas...  après  la  mort,  le  médecin.  A 
causa  desses  estragos,  a  dilFicuidade  de  circumstancias  em  que 
vivia  o  órgão  lesado,  a  razão  e  a  natureza  d'essas  circumstancias 
difficeis,  a  acção  d'um  medicamento  sobre  a  vida  das  cellulas  mór- 
bidas; eis  ahi  outros  tantos  pontos  capitães  únicos  capazes  de  dar 
a  base  da  verdadeira  medicina,  e  para  os  quaes  não  ha  a  esperar 
dos  tecidos  mortos  senão  uma  completa  nudez. 

Mas  nem  todas  as  experiências  de  physiologia.  apesar  do  curioso 
parecer  de  alguns  adversários  e  da  supposta  crueldade  dos  expe- 
rimentalistas, teem  podido  exercer-se  nas  próprias  pessoas  d'estes 
últimos,  nem  nos  seus  similhantes. 

Não  ha  principio  nenhum  moral  ou  religioso  que  auctorise, nin- 
guém a  experimentar  em  si  uma  substancia  desconhecida  (que  pode 
vir  a  ser  um  medicamento  dos  mais  preciosos),  para  não  pôr  em 
risco  a  vida  d'um  cão  ou  de  um  gato.  Basta  este  exemplo  do  en- 
saio de  um  medicamento,  para  provar  até  á  saciedade  que  a  phy- 
siologia experimental  é  um  recurso  indispensável ;  basta  estender 
os  elos  inseparáveis  d'esta  grande  cadeia: — vivisecção,  physiologia, 
hygiene,  medicina,  saúde,  trabalho,  riqueza  . . .  Ninguém  melhor 
do  que  os  inglezes  teem  sabido  comprehender  a  importância  d'esles 
ires  últimos  factos,  ninguém  melhor  do  que  os  sábios  inglezes  sa- 
berá reagir  eíficazmente  contra  as  associações  pietistas,  para  man- 
ter o  progresso  dos  outros.  O  passo  que  o  parlamento  inglez  acaba 
de  dar,  será  decerto  o  portador  de  grandes  desenganos  e  determi- 
nará a  queda  fatal  das  protectoras,  tornando  bem  patente  o  quanto 
ellas  se  teem  feito  inúteis  e,  mais  do  que  isso,  soberanamente  pe- 
rigosas. 

A  physiologia  não  pode  ser  impedida  de  marchar  no  seu  largo 
caminho,  e  a  lei  britannica,  por  mais  tempo  que  vigore,  é  apenas 
uma  ponte  para  levar  desassombradamente  a  mais  vastos  campos 
de  exploiação. 

Ha  males  qne  servem  de  bem.  O  interesse  dos  physiologistas 
pela  sua  sciencia  redobra,  como  era  de  esperar  ;  a  questão  agita-se 
e  muita  gente  que  até  aqui  não  tinha  ouvido  fallar  em  vivisecção, 
fica  convencida  de  que  ella,  no  estado  presente  da  sciencia,  é  in- 
separável dos  alicerces  sociaes  ;  a  opinião  publica  que  tinha  sem- 
pre considerado  as  sociedades  protectoras  como  cousas  innocentes 
e  da  moda,  passa  a  odial-as  como  a  uma  liga  jesuítica,  e  ellas,  no 
arrefecimento  de  verem  deferidas  as  suas  petições,  talvez  tenham 
tempo  de  se  envergonharem  e  de  se  converterem. 


A  TRICHINA  79 


Concluímos  mudando  um  pouco  a  nossa  opinião  :  —  nós  teremos 
algum  dia  muito  que  agradecer  ao  parlamento  inglez  a  lei  que 
elle  acaba  de  votar  1 


Poiíla  Delgada  (Açores),  6  de  setembro  de  1881. 


Arruda  Furtado. 


A,  triciú 


llllTX 

Estudo  d'cste  parasita,  desastrosos  eíeilos  que  produz  uo  hooieiu 
e  meios  de  evitar  a  trichíuose 

(Concluído  de  pag.  62) 

IX 

!E^sbo<^o  histórico  da  descol>erta  cia  tx*icliiua 

Dala  de  1832  a  descoberta  da  trichina,  feita  em  Londres  por  Hii- 
loD,  Paget  e  Owen,  em  cadáveres  humanos.  Era  a  trichina  muscu- 
lar enkistada. 

Em  1847,  Leidy  affirmou  que  ella  é  abundante  nos  porcos 
d'America. 

Em  1859  o  sr.  Virchow  observou  trichinas  de  ambos  os  sexos 
no  intestino  de  um  cão,  vendo  as  fêmeas  cheias  de  ovos.  Sabemos 
que  esses  ovos  saem  já  transformados  em  embryões  ou  pequenas 
trichinas  rudimentares,  na  occasião  do  parto ;  por  isso  estes  ver- 
mes se  chamam  ovo-viviparos,  em  relação  ao  seu  modo  de  ge- 
ração. 

Só  em  1860  se  reconheceu  a  trichinose  n"uma  mulher  que  co- 
mera carne  de  um  porco  que  mostrou  a  trichina  enkistada.  Foi  o 
sr.   Zeutter  que,  em  Dresde,  fez  esta  descoberta. 

Numerosas  experiências,  consecutivas,  feitas  por  muitos  sábios 
biologistas  e  microscopislas,  puzeram  bem  a  lume  tudo  quanto 
hoje  se  sabe  sobre  a  reproducção,  emigração  e  enkistamento  da 
trichina,  assim  como  as  condições  em  que  se  realisa  a  infecção 
por  meio  d'este  notável  parasita  animal. 

O  numero  de  casos  de  trichinose  humana  que  se  foram  apurando, 
já  isolados,  já,  e  quasi  sempre,  era  epidemias,  foi  tal,  que  um  ver- 
dadeiro terror  se  apoderou  de  toda  a  gente,  e  isto  muito  mais  na 
Allemanlia,  onde  maior  numero  de  estudos  e  observações  se  tem 
feito,  e  onde  o  uso  de  comer  preparados  crus  de  porco  era  mais 
geral  e  constante. 


80  EiNCYCLOPEDIA  KEPUBLICA^A 

Assim,  em  18G3,  de  135  pessoas  infeccionadas  em  Magdebnrgo, 
morreram  il ;  — em  Hedersleben,  no  anno  de  1865,  de  337  doen- 
tes, enlie  2:000  habitantes,  falleceram  163. 

D'aqnella  época  até  ao  presente  muitos  desastres  d'estes  se 
teem  verificado  e  reconhecido  sem  a  mais  leve  duvida  sobre  a  sua 
natureza  e  origem. 

Em  1880  morreram  em  Dusseldorf  4  pessoas  de  20  atacadas  de 
trichinose. 

O  sr.  Znndel  apresenta  uma  curiosa  estatística  do  numero  de 
porcos  em  que  se  reconheceu  a  Irichina  na  Allemaíiha,  desde 
1876,  por  meio  da  inspecção  microscópica,  que  n'aquelle  império 
está  organisada  olficialraenteem  toda  aparte,  entrando  até  já  nos  há- 
bitos do  povo. 

Diz  elle,  que  em  1876,  sobre  1.728:595  porcos  abatidos,  800 
tinham  trichina ; — em  1878,  por  cada  1:665  porcos  mortos,  1 
eslava  infeccionado. 

Não  pôde  entrar  nos  limites  que  a  este  artigo  impozemos,  a 
apresentação  de  muitíssimos  casos  similhantes  aos  que  vimos  de 
citar. 

A  trichina  no  porco  e  a  trichinose  humana  teem  sido  verificadas, 
não  só  na  Âllemanha,  mas  também  na  Suissa  em  1868,  na  Hespa- 
nha  (VilIar-del-Arzobispo,  Sevilha  e  Barcellona),  só  nos  porcos ; 
na  Inglaleira,  Bélgica  e  Hollanda,  também  só  nos  porcos;  na  Áus- 
tria, na  Hungria ;  mas  sobre  tudo  nos  Estados  Unidos  da  America 
é  que  a  trichina  é  frequentíssima  no  gado  suino. 

Sabe-se  que  enorme  quantidade  de  preparações  de  gado  suino 
a  America  exporta  para  o  velho  mundo.  O  sr.  Jacobi  affirma  que 
em  100  presuntos  americanos  (  vem  infeccionado  de  trichinas. 

Em  vista  d'estas  notícias,  perfeitamente  authenlicas,  verificadas 
e  confirmadas  por  novas  e  reiteradas  observações  microscópicas 
n'esles  últimos  tempos,  alguns  paizes  europeus  prohibiram  a  im- 
portação das  conservas  salgadas  e  fumadas,  toucinho  e  carne  de 
porco,  de  procedência  americana.  Veremos  qual  a  utilidade  abso- 
luta desta  medida  prohibitiva,  que  tão  prejudicial  é  ao  commercio, 
á  industria  pecuária  e  às  nessidades  do  consumo. 


IMCedidas  aacloptar  contra  os  efTeltos,  px-opag-ação 
e  consumo  da  trichina 

Em  primeiro  lugar,  perguntemos: — é  possível  curar  a  trichinose 
humana? 

Infelizmente  a  resposta  é  negativa  em  relação  aos  effeitos  da 
trichina  muscular. 


HYPATHIA  81 


Quando  a  trichina  intestinal  —  proveniente  da  trichina  muscular 
ingerida  com  a  carne  de  porco  —  faz  a  sua  migração  e  se  estabe- 
lece nos  músculos  do  homem,  só  a  grande  resistência  vital  do 
doente  o  pode  salvar:  a  trichina  enkistando-se  nos  músculos  do 
homem  que  resistiu  até  esse  momento,  já  não  o  prejudica  mais.  O 
que  elle  continua  a  soílVer  é  eíTeito  do  primeiro  ataque. 

Mas  se  houver  medico  que  consiga  suspeitar  a  presença  da  tri- 
china, emquanto  ella  se  conserva  no  intestino  do  homem,  isto  é, 
emquanto  não  principia  a  sua  fatal  migração.  n'esse  caso  é  possí- 
vel, mas  muito  incerto,  conseguir  a  expulsão  d'essa  colónia  de  pa- 
rasitas, por  meio  dos   purgantes  ordinários  e  dos  anthelminticos. 

Diz-se  que  a  glycerina  associada  ao  acido  phenico  e  os  alcoóli- 
cos dão  bom  resultado. 

Em  todo  o  caso,  bom  é  fortalecer  ou  preparar  o  doente  para  o 
terrível  combate  com  a  trichina  muscular,  por  meio  dos  tónicos. 

Mas...  melhor  é  prevenir  que  remediar,  mormente  um  mal 
sem  remédio. 

Vejamos  pois  as  medidas  prophylaticas  ou  preventivas  que  se 
teem  aconselhado. 

Em  primeiro  lugar,  evite-se  o  mais  possível  a  infecção  dos  porcos. 
Visto  que  elles  se  infeccionam,  comendo  ratos,  vermes  da  terra  e 
excrementos,  que  podem  conter  trichinas,  é  racional  e  necessário 
que  d'elles  sejam  cuidadosamente  afastadas  todas  estas  causas  de 
infecção,  por  meio  da  boa  conslrucção  e  boa  hygiene  das  suas 
habitações. 

Outra  medida,  —  a  prohibição  de  carne  de  porco  americana, — 
tem  contra  si  muitas  opiniões,  visto  que  a  trichina  existe  nos 
porcos  de  todos  os  paizes  europeus,  que  fazem  importação  suina 
da  America.  (]om  a  prohibição  pouco  ou  nada  ganhariam.  No  entanto 
a  prohibição  da  importação  de  poicos  vivos,  seus  productos 
ou  preparações,  em  occasião  de  epizoolias  nos  paizes  da  sua 
procedência,  é  prudente  adoptai  a. 

O  exame  microscópico  das  carnes,  toucinho,  etc,  feito  nas  alfan- 
degas, mercados  e  salchicharias,  tão  prolusamenle  adoptado  na 
Allemanha  e  outros  paizes,  e  que  agora  começa  a  inlroduzir-se  em 
Portugal  por  via  dos  intendentes  de  pecuária,  —  é  outra  medida 
preventiva,  a  que  o  sr.  Zundel  dá  pouca  importância,  considerando 
que  muitíssimas  vezes  se  não  descobre  a  trichina  nas  preparações 
que  a  conlôem,  porque  o  exame  não  pôde  humanamente  realisar-se 
em  todos  os  pontos  da  peça  a  examinar.  Em  todo  o  caso  logo  que 
se  reconheça  que  uma  peça  qualquer  está  trichinada,  temos  a 
certeza  de,  com  a  sua  destruição,  evitar  a  infecção  que  ella  poderia 
occasíonar. 

O  nosso  collega  Silveira  Machado,  no  mencionado  artigo  propõe 
a  creação  de  matadouros  especíaes  para  gado  suíno,  onde  os  inspe- 

11 


ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


ctores  poderão  facilmente  fazer  o  exame  microscópico,  e  verificar 
até  a  existência  de  outras  doenças,  diversas  de  Irichinose,  que 
importem  a  destruiçHo  dos  animaes. 

Propõe  também  outra  medida  não  menos  útil,  que  é  a  obrigação 
imposta  a  todas  as  pessoas  que  matarem  porco  ou  porcos,  de  assim 
o  declararem  á  auctoridade,  afim  de  se  proceder  á  inspecção  mi- 
croscópica. 

Todas  as  imposições  tendentes  a  garantir  a  vida  e  a  saúde  dos 
cidadãos  são  legitimas,  por  mais  vexatórias  que  pareçam. 

Os  governos  devem  redobrar  de  zelo  e  energia  em  assumptos 
d'esta  ordem,  porque  não  falta  em  toda  a  parte  a  ignorância  e  a 
malevúlencia  para  Ilies  fazerem  a  mais  obstinada  opposição. 

O  nosso  referido  collega  cita  um  caso  passado  na  Allemanha, 
em  que  dois  carniceiros,  querendo  provar  que  a  trichina  era  inno- 
cente,  apoderaram-se  de  um  animal  mandado  enterrarpor  ter  trichi- 
nas ;  e  elles,  suas  familias  e  criados  em  numero  de  12  pessoas, 
comeram  solcmnemente  aquella  deliciosa  iguaria...  Publicaram 
esta  façanha  num  jornal  de  Magdeburgo,  sendo  o  manifesto 
assignado  por  li  testemunhas  que  assistiram  ao  banquete. 

Mas  chega  a  quarta  semana  depois  da  festa,  e  três  dos  convivas 
entram  no  hospital  com  todos  os  symptomas  da  trichinose. 

Também  aqui  no  Algarve,  onde  ha  14  annos  contemplo  a  civili- 
sação  do  nosso  povo,  os  porcariços  e  carniceiros  dizem  que  a  carne 
com  xafeíra  ou  granitos  (são  os  kistos  onde  mora  o  cysticercus 
celluloso)  é  a  melhor  de  todas.  Ora.  o  cysticercus  pode  simples- 
mente produzir  a  solitária  ou  tenia,  na  qual  se  transmuda  no 
intestino  humano. 

Adoptem-se  pois  todas  as  medidas  úteis,  razoáveis  e  exequiveis 
para  prevenir  a  infecção  pelas  tric/iinas  spiralis:  mas  sendo  todas, 
até  certo  ponto,  falliveis  em  seu  resultado  ultimo,  uma  umca  existe 
de  effeito  seguro,  quando  cumprida  á  risca. 

O  cumprimento  dessa  medida  não  depende  da  lei  nem  da 
auctoridade.  Unicamente  o  consumidor  a  pode  e  deve  livremente 
executar.  Depende  única  e  exclusivamente  da  sua  illnstração,  do 
conhecimento  completo  que,  por  meio  de  publicações  deste  género, 
possa  adquirir,  sobre  tudo  quanto  respeita  ao  terrível  parasita  de 
que  nos  temos  occupado. 

Ninguém  sabe  se  o  toucinho,  o  chouriço,  o  presunto,  a  carne  de 
porco  fresca  ou  conservada,  que  comprou  e  entrega  á  cozinheira, 
está  ou  não  trichinada ;  ninguém  sabe  se  tem  assim  junto  de  si, 
no  manjar  que  appctece,  a  sua  sentença  de  morte! 

Mas  que  importa  isso,  se  o  consumidor  for  instruído  e  avisado, 
se  se  lembrar  de  que  as  trichinas  não  resistem  a  uma  temperatura 
de  75°? 

Ora,  o  grande  preceito,  a  salvação  certa  e  segura  está  em  nunca 


THEORIA  DA  HUMANIDADE  83 


se  metler  no  estômago  tecido  algum  proveniente  do  porco,  sem  que  esse 
tecido  haja  fervido  demoradamente  em  agua,  tendo-se  sempre  o  maior 
cuidado  em  dividir  a  peça  a  cozer  em  fatias  ou  parcellas  bem  delga- 
das, o  sufficiente  para  não  se  desfazerem.  O  mesmo  preceito  se 
execute,  assando  ou  frigindo  a  peça  culinária. 
Assim  se  vence  o  inimigo  e  se  evita  a  morte  horrível  e  aífrontosa. 

Annes  Baganha. 


luvida 


Deus  ! . . .  mas  onde  está  Deus,  ó  tristes  visionários, 
Que  o  pranto  não  enxuga  á  fraca  humanidade, 
Que  deixa  andar  descalça  e  núa  a  orphandade 
Como  um  bando  cruel  de  réprobos  lendários  ? 

Deus  !...  mas  onde  está  Deus  1  Nos  largos  sanctuarios 
Cheios  d'ouro  e  de  luz  de  hypocrita  piedade? 
Será  Deus  o  Terror  que  impõe  á  christandade 
A  vereda  escabrosa  e  Íngreme  dos  Calvários  ? 

Na  duvida  fatal  soluço  tristemente. 

Sem  ver  brilhar  na  treva  uma  nesga  de  luz 

Que  marque  o  meu  andar  incerto  e  inconsciente  ! 

Desvendae  o  mysterio,  ó  padres  de  Jesus. 

O  sábios  que  guiaes  as  almas  sanctamente 

E  que  andaes  a  pregar  o  Christo  em  nova  cruz. 


Ernesto  Pirrs. 


átíieoriti  da  Síuniuaidadi 


Feição  própria  e  independente  tem  a  liistoria  moderna. 

Os  factos  isolados,  que  na  antiguidade  constituiam  narrações 
eloquentes,  foram  substituídos  no  mundo  actual  pelas  verdadeiras 
causas  do  progresso.  Oulr'ora  narrava-se,  hoje  invesliga-se.  O  que 
honlem  era  um  symbolo  é  agora  uma  ideia.  O  atplm  e  o  omega 
dos  metaphisicos,  lodo  individualista,  theorico  e  abstracto,  vae  ce- 
dendo o  campo  ás  realidades  positivas,  orgânicas  e  experimentaes, 
que,  presentemente,  encaminham  as  sociedades  modernas  a  um 
novo  ideal  mais  pratico  e  legitimo. 

Assim,  pois,  a  historia  é  uma  evolução.  Uma  evolução  que  tem 


m  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

a  sua  forma  objectiva  por  meio  da  revolução,  assim  como  a  poli- 
tica a  teve  por  meio  da  administração.  E  como  a  evolução  é  a  his- 
toria subjectiva,  ideal,  synthetica. 

Determinar,  porém,  com  verdadeira  imparcialidade  o  modo  por 
que  cada  civilisação  concorreu  para  a  civilisação  geral,  induzir  de 
factos  particulares  o  facto  constante  e  permanente;  generalisar  a 
Ioda  a  liimianidade  o  que  é  privativo  do  individuo,  da  família,  da 
corporação,  da  communa,  etc.  —  tal  é,  e  tal  deve  ser,  presente- 
mente, a  verdadeira  missão  da  philosopliia  da  historia. 

Retrocedamos  um  pouco. 


Depois  de  atravessado  alternativamente  o  período  naturalista  — 
de  que  Hobbes  e  Malthus  são  verdadeiros  interpretes,  na  ordem  das 
ideias— chegou  o  homem  ao  conhecimento  racional  da  sua  existência. 

Cônscio  de  si  e  dos  elementos  que  o  rodeiavam,  procurou  elle 
emancipar-se  do  presente  pela  contemplação  do  passado  e  pelo  an- 
ceio  do  futuro. 

Vem  a  Grécia.  É  uma  synthese  o  seu  trabalho  ;  um  equilíbrio 
entre  a  forma  e  a  ideia.  Concentrado  em  si,  o  homem  quasi  es- 
quece o  elemento  externo,  que  lhe  dera  o  ser. 

Ao  passo  que  as  cosmogonias  do  oriente  se  nos  revelavam  n'um 
certo  mysticismo  unitário  e  especulativo  a  Grécia  declara-se  aber- 
tamente pelo  antropomorphismo,  ao  qual  posteriormente  succede  a 
philosophia  estóica. 

Tudo  isto  e  ainda  a  resurreição  do  direito  de  cidade  —  se  di- 
reito se  lhe  podia  chamar  —  tornaram  esta  civilisação,  digna  de  um 
estudo  serio  e  aturado.  E  tanto  que  Koma  mais  tarde  só  veiu 
completar,  ou  melhor  continuar  esta  famosa  Odysseia,  cujo  princi- 
pio pertenceu  a  Homero  e  cujo  termo  ficará  eternamente  ignorado. 

O  individuo,  poiém,  acanhado  nos  limites  da  família  e  da  cidade 
aspirava  a  um  centro  mais  vasto,  onde  melhor,  e  mais  livremente 
podesse  exercer  a  acção  das  suas  faculdades  e  a  tendência  das 
suas  aptidões.  Pela  unidade,  que  Roma  felizmente  soube  imprimir 
ãs  sociedades  gregas,  em  virtude  do  seu  génio  de  conquista  e  emi- 
nentemente centralisador,  realisou-se  a  noção  de  estado,  onde  o 
individuo  nada  era,  quando  a  elle  não  pertencesse. 

Porém  o  estado  era  pequeno  ainda,  e  os  homens  lutavam  sem- 
pre. 

Entre  o  mundo  bárbaro,  que  depois  appareceu,  e  o  mundo  ro- 
mano, já  então  decadente,  eleva-se  o  mundo  christão,  synthese  da 
civilisação  greco-romana. 

Começam  aqui  as  lutas  da  idade  media  e  com  ellas  uma  legi- 
tima aspiração  a  um  estado  melhor  —  a  nacionalidade —  que  leve 
uma  brilhante  aurora  com  a  revolução  politica  do  século  xvni. 


A  THEORIA  DA  HUMANIDADE  83 

A  nacionalidade,  porém,  não  era  nem  podia  ser  um  ideal  de 
perfeita  harmonia  politica.  Provaram-no  as  revoluções  de  1830  e 
de  1848  em  França,  e  attestam-n'o  agora  exuberantemente  as  lutas 
sociaes,  que  por  toda  a  parte  se  travam  e  que  não  são  mais  do 
que  um  novo  ensaio,  confirmado  pela  historia,  e  reconhecido  pela 
justiça  universal,  para  uma  outra  e  mais  completa  revolução,  cuja 
eterna  divisa  será  —  lIuMANmADK. 

É  esta  a  lei  da  historia ;  são  esses  os  gritos  da  sciencia. 

III 

A  Grécia,  fundando  a  cidade,  adquiriu  materialmente  a  ideia  de 
liberdade,  que  Luthero  mais  tarde  desenvolveu  pela  revolução  re- 
ligiosa. 

Roma  —  dizem  — teve  um  grande  defeito,  que  deveras  concorreu 
para  a  sua  decadência.  Conquistou  sempre.  Mas  a  conquista,  como 
aspiração  fortalecia  a  unidade,  e  a  unidade  preparava,  por  seu  turno, 
a  democracia  universal,  do  mesmo  modo  que  Napoleão  I  o  fez 
outr'ora  e  Guilherme  da  Prússia  o  faz  actualmente  :  — um,  unifi- 
cando os  povos  de  origem  romana,  a  fim  de  estabelecer  a  demo- 
cracia latina  ;  outro,  unificando  os  povos  do  norte,  a  fim  de  conso- 
lidar a  democracia  germânica. 

Cada  um,  por  opposla  vereda,  santificava  uma  ideia,  que,  toda- 
via, lhes  surgiu  involuntária  e  espontânea,  como  a  evolução  social 
d'onde  ella  brotava. 

Não  se  comprehende,  porém,  a  liberdade  sem  a  egualdade. 

E,  por  isso  se  levantou  o  brado  da  revolução  no  século  passado, 
o  qual,  coroando  a  egualdade,  inaugurou  definilivamenle  a  epocha 
das  nacionalidades  modernas. 

Mas  a  humanidade,  livre  e  egual,  carecia  lambem  de  ser  irmã.  É 
pois,  o  século  XIX,  o  século  da  fraternidade,  ou  melhor  o  século 
da  humanidade,  como  suprema  lei  e  synthese  suprema. 

Demonstra-o  a  philosophia  da  historia  pelo  eterno  principio  das 

SIMPLIFICAÇÕES. 

Com  effeito,  examinando  as  instituições  dos  differentes  povos, 
vemos  que  todo  o  fito  da  nossa  politica  deve  ser  aperfeiçoar,  sim- 
plificar, dirigir.  Assim  a  polygamia  foi  substituída  pela  monogamia 
o  polytheismo  pelo  monotheismo,  etc. 

Neste  ultimo  termo  de  simplicidade,  que.  para  Emilio  Girardin 
se  cifrava  na  democratisação— abolição  de  lutella  civil  e  religiosa, 
—  e  para  Proudhon  na  anarghia  —  o  governo  da  consciência,  ou 
não  governo,  segundo  a  origem  scientifica  da  palavra,  é  que  deve 
residir  a  grande  lei  do  progresso  na  historia. 

Por  esta  gradação  se  vè  que  as  differentes  espheras  sociaes,  li- 
vres, autónomas,  solidarias  e  subordinadas  umas  ás  outras  consti- 
tuem um  prototypo  de  harmonia  universal,  chamado  Humanidade 


86  ENCYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 


Adminislrativamenle    poderíamos   talvez   forrnulal-o   do   seguinte 
modo  :   O  individuo  livre  na  familia,  a  família  livre  no  município, 
o  mimícípio  livre  na  província,  a  província  livre  no  estado,  o  es- 
tado livre  na  nação,  a  nação  livre  na  humanidade.» 
Decomponhamos  cada  um  d'estes  termos. 

Magalhães  Lima. 


•ti 


onía  eltes  iieiiscini 


Acabrunhados  sob  o  pezo  da  própria  infâmia,  os  reaccionários 
da  Europa,  e  principalmente  os  coroados,  como  que  se  alentaram 
com  a  queda  de  Gambella  e  até  se  rejubilam  com  a  idéa  de  que 
em  breve  a  treva  offuscará  a  luz,  o  mal  o  bem,  o  vicio  a  virtude 
e  a  noite  o  dia,  porque,  tão  maus  como  ignoranies,  desconhecem  o 
estado  de  mundo  actual,  as  leis  que  o  regem,  as  leis  fataes  do 
movimento,  da  estalíca,  da  dynamica,  da  biologia  e  da  sociologia, 
do  progresso  alfim,  e  por  isso  não  só  admíltem  o  estacionamento 
mas  até  o  retrocesso,  e  como  que  julgam  que  a  actividade  procede 
da  inércia  e  a  vida  da  própria  morte.  Néscios  que  são !  Néscios 
em  demazia  ou  em  demazia  preversos. 

Tão  néscios  que  leniam  dar  vida  á  morte,  pois  que  tentam  re- 
suscílar  o  passado,  e  é  na  corrupção  e  no  vicio,  no  embuste  e  na 
intriga,  que  elles  fazem  consistir  o  bem  da  vida  através  dos  mun- 
dos, e  o  Ceii  na  perpetuidade  dos  tempos,  a  ímmortalidade,  a  glo- 
ria, no  infinito,  na  eternidade,  finalmente,  que  é  para  muitos  o  im- 
possível, o  pó,  o  nada,  em  suma. 

São  néscios  ou  velhacos,  se  é  que  não  são  ambas  as  cousas. 

.\pesar  de  tudo— com  pesar  e  apesar  da  ingenuidade  duns.  da 
velhacaria  doutros,  da  ignorância  d'alguns  e  da  covardia  de  mui- 
tos, o  mundo  não  retrograda  —  ó  morcegos  da  luz.' 

O  progresso  é  a  lei,  o  bem  geral  a  aspiração,  a  perfectibilidade, 
o  fim,  o  termo,  o  limite  entre  o  ser  e  o  não  ser,  o  sonho,  o  nada 
talvez,  ou,  se  tanto,  a  descensão  ao  laboratório  immenso  do  Irans- 
formismo,  donde  procederão  novos  seres  e  novos  mundos  — se  é 
que  a  vida  se  transforma  e  perpetua  porque  a  natureza  é  immensa, 
eterna,  finalmente. 

Como  dizíamos :  alegram-se  os  morcegos  com  a  queda  do  maior 
homem  da  França,  mas  que  não  é  a  França,  cuidando  que  com 
ella  soffreria  grande  abalo  a  republica,  que  mais  tarde  succuínbi- 
ria  e  sobre  os  seus  magnos  alcaçares  elles  fundariam  os  seus  er- 
gástulos, os  seus  alcouces,  mas  enganam-se. 


COMO  ELLES  PENSAM  87 


GamDetta  é  mais  para  a  republica  fora  que  denlro  do  poder. 

Foi  iufame  a  cilada  mas  não  lerá  maus  resultados. 

Coligam-se  ahi  pois  lodos  os  reaccionários  para  levar  a  França 
debaixo,  mas  elles  não  o  conseguirão.  Coligam-se  porque  sabem, 
como  nós,  que,  ou  a  França  hade  succumbir  ou  a  monarcliia  cairá 
ern  toda  a  Furopa,  denlro  em  pouco  tempo. 

Não  morrerá,  porém,  a  republica  em  França,  porque  Bismark 
é  pequeno  demais  para  tão  grande  empreza. 

A  Prússia  está  extremamente  pobre  e  a  braços  com  uma  enorme 
crise  e  com  a  revolução  ;  não  está  melhor  a  Áustria  nem  a  Rússia, 
e  da  Itália  e  da  Hespanha,  ha  apenas  a  vontade  dos  seus  coroa- 
dos. O  resto  do  mundo  europeu  está  com  a  França  ou  não  pôde 
prejudical-a. 

A  França  não  é  só  a  cabeça  da  Europa,  é  o  braço  e  o  cérebro 
do  Universo. 

Se  a  Rússia,  a  Prússia  e  a  Áustria,  e  mesmo  a  Itália  e  a  Hes- 
panha, ousassem  atacar  a  França,  ellas  veriam  rebentar  entre  si 
e  logo  a  maior  das  revoluções  no  seu  couce,  que  mais  cedo  afo- 
garia em  ondas  de  sangue  a  monarchia  e  os  seus  heroes. 

A  coligação  devia  ter  como  immediato  resultado  a  republica  em 
toda  a  Europa,  e  por  isso  é  muito  para  desejar,  mas  ella  não  se 
dará — não  pôde  dar-se,  infelizmente. 

Existe  a  coligação  dos  reis,  elles  estudam  o  meio  de  conser- 
var-se,  o  que  é  natural,  mas  é  mais  natural  ainda  a  coligação  dos 
povos  e  de  mais  certos  resultados.  Nem  as  coligações  são  possi- 
veis  desde  que  são  conhecidas  as  virtudes  da  dynamite,  do  nitro, 
da  electricidade,  e  por  isso  elles  substituem  essas  coligações  pela 
intriga,  pelo  embuste  e  pela  corrupção,  que  lhes  dão  melhores 
resultados. 

Se  os  grandes  revolucionários  não  fossem  verdadeiros  homens 
de  bem  não  existiria  já  hoje  um  único  rei. 

O  balão,  as  bombas  e  as  descargas  eléctricas  tornaram  de  lodo 
impossíveis  as  coligações.  O  balão,  as  bombas  e  as  descargas  são 
o  antídoto  da  metralhadora  e  do  Krupp. 

Demais,  a  França  d'hoje,  militarmente  considerada,  vale  quasi 
meia  Europa,  tem  a  seu  lado,  porque  não  pôde  deixar  de  ser,  a 
Inglaterra,  e  teria  lambem  a  própria  America  do  norte,  se  tanto 
fora  preciso,  pois  que  se  esta  não  quer  nem  deve  intervir  de  nação 
para  nação,  na  Europa,  ella  não  deixaria  d'intervir  n'uma  coliga- 
ção que  podesse  aííectar  a  França,  porque  ia  n'isso  o  seu  próprio 
interesse,  e  até  a  gratidão  que  lhe  deve.  Eos  interesses  da  Ingla- 
terra são  lambem  os  da  França,  em  grande  parte.  Nem  os  peque- 
nos Estados  da  Europa  deixariam  de  vir  á  liça,  porque  elles  sa- 
bem de  mais  que  na  morte  da  França  dar-se-hia  a  sua  própria 
morte,   por  isso  que  dado  o  triumpho  da  coligação,  uma  nova  di- 


ENCYCLOPEDIA  REPUBLICARIA 


visão  da  Km  opa  seria  consequência  faial  d'uina  lai  vicloria  e  um 
despolismo  feroz  ainda  por  largo  lempo. 

Mas  não ;  não  pôde  ser,  conlra  similhanle  plano  protesta  a  ci- 
vilisação  do  nosso  tempo,  a  historia,  e  até  o  simples  bom  senso. 

Além  de  tudo  isto,  os  paizes  esmagados  pela  Prússia,  a  Polónia 
6  outros,  e  principalmente  a  Hungria,  que  conta  quasi  duas  deze- 
nas de  milhões  d  habitantes,  seriam  lambem  dum  pezo  enorme 
contra  a  coligação.  Nem  o  que  vae  pela  Herzegovina  e  o  que  mais 
se  prepara  por  outras  partes. .  •  é  lambem  para  desprezar. 

Enti-e  nós,  que  somos  a  Lourinhã  da  Kuropa,  nos  paços  do  rei 
de  cá  até  se  falia  da  breve  ascensão  d'um  creançola,  filho  d'um 
chamado  príncipe  Napoleão,  ao  throno  de  S.  Luiz. 

Isto  nem  deve  commentar-se,  porque  apenas  produz  a  garga- 
lhada e  dá  a  medida  ds  inlcllecto  do  D.  Magnifico  e  quejandos  ca- 
marilheiros. 

Não  ha,  pois,  que  ter  cuidado  pela  republica  franceza,  que  em 
quanto  a  nós  é  dha  muito  consolidada,  e  se  o  não  fosse  eila  se 
consolidaria. 

O  futuro  da  Europa  é  a  republica. 

Que  as  monarchias  se  ponham  bem  com  deus,  porque  com  os 
homens  de  bem  é  impossível,  e  o  porvir  é  d'estes.  O  mundo  não 
retrograda. 

O  império  da  trapaça  agoniza  por  toda  a  parte,  é  quasi  um  ca- 
dáver, e  estes  não  se  galvauisam  porque  a  alchimia  é  uma  irri- 
são. A  vida  não  pôde  provir  da  morte. 

Lisboa.  Mello  d'Azeredo. 


J^iGerâiaâe  3e  consciência  b  lioerdioLtle  reíiaiasict 

S.  A.  MOKIN 

A  liberdade  de  consciência  e  a  liberdade  religiosa  são  inteira- 
mente distinctas. 

A  primeira  é  a  liberdade  de  crer  ou  não  crer  em  qualquer  dou- 
trina, sem  que  d'isso  nos  tomem  satisfação,  ou  nos  inquietem,  em 
virtude  das  nossas  opiniões. 

A  segunda  é  a  liberdade  de  cada  um  professar  e  praticar  paci- 
ficamenie  a  sua  religião  sem  que  alguém  o  possa  estorvar. 

Esta,  como  se  vé,  é  muito  mais  lata,  pois  suppõe  e  contêm  a 
liberdade  de  consciência,  emquanto  que  aquella  não  pode  existir 
sem  a  liberdade  religiosa. 


LIBERDADE  DE  CONSCIÊNCIA  E  LIBERDADE  RELIGIOSA  89 

A  liberdade  de  consciência,  basea-sc  n'um  direito  tão  sagrado 
que  custa  a  crer  que  se  tenha  podido  contestar. 

Comludo  a  historia  offerece-nos  longos  períodos  em  que,  mesmo 
entre  os  povos  mais  civiHsados,  era  desconhecida,  e  foi  principal- 
mente contra  ella  que  se  instituiu  o  tribunal  da  Inquisição  de  hor- 
rorosa memoria. 

Na  Fiança,  sobretudo  depois  da  revogação  do  edito  de  Nantes, 
admittiu  o  systema  monarchico  catholico  que,  qualquer  opinião 
religiosa  contraria  á  do  soberano,  fosse  considerada  como  acto 
de  rebellião,  como  um  attentado  contra  a  aucioridade  real ! 

Não  ha  nada  tão  odioso  e  aviltante  como  tal  doutrina. 

O  governo  pode  fazer  leis  para  garantir  a  ordem,  manter  as  re- 
lações pessoaos,  prohibir  os  actos  que  julgue  contrários  ao  bem 
geral  e  assegurar  com  penas  repressivas  a  sancção  dos  regula- 
mentos. 

Mas  aqui  terminam  as  suas  atlribuições. 

O  governo  não  pode  nem  deve  entremetter-se  no  pensar  d'um 
cidadão  ;  a  consciência  é  um  sanctuario  inviolável ;  e  ninguém  serk 
obrigado  a  declarar  á  auctoridade  publicafquaes  as  suas  crenças 
ou  affeições. 

Não  se  pode  desconhecer  este  principio,  sem  entrar  n'um  des- 
pótico systema  de  vexatórias  perseguições. 

E  qutí  ganha  o  despotismo  com  esta  odiosa  inquisição  e  nefasta 
violação  dos  mais  sagrados  direitos  da  humanidade? 

Nem  a  consciência  escapará  ao  poder  da  força  bruta  ? 

As  ameaças  e  as  torturas  poderão  arrancar  declarações  ;  mas 
só  a  bocca  as  pronuncia ;  o  espirito  nega-as  e  firma-se  nas  con- 
vicções. 

A  liberdade  religiosa  para  se  justificar  carece  apenas  de  invo- 
car o  principio  mais  elementar  de  toda  a  moral,  como  o  preceituam 
todas  as  religiões  e  todas  as  philosophias  :  «Não  façais  a  outrem  o 
que  não  queríeis  que  vos  fizesse.» 

Podemos  dizer  aos  sectários  de  todas  as  religiões  e  com  espe- 
cialidade aos  das  exclusivas  :  «Sois  tão  ciosas  da  vossa  liberdade 
religiosa,  d'essa  faculdade  de  praticar  e  professar  a  vossa  religião 
e  até  de  propagnl-a  por  todos  os  meios  ao  vosso  alcance,  (jue  te- 
ríeis como  injustiça  e  abominável  oppressão,  todo  o  embaraço  que 
oppozesse  ao  seu  exercício,  e  com  mais  razão,  toda  a  lei  o  prohi- 
bisse,  violentando-vos  a  dar  signaes  exteriores  de  adhesão  a  culto 
qualificado  por  vós  de  impio  e  sacrílego.» 

Logo  essa  liberdade  que  vos  arrogaes  considerando-a  como  pa- 
trimónio inviolável,  podeis  recusal-a  aos  outros  sem  receardes 
comprometter  essa  própria  liberdade  ?1 

Especialmente,  vós,  catholicos,  que  levais  a  intolerância  ao  maior 
auge  quando  prósperos  e  que  sois   tão  submissos  e  abjectos  na 

12 


90  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

adversidade,  não  lemois  que  vos  li\item  como  vós  tratais  acjuelles 
que  não  comtnnngam  as  vossas  idéas,  que  se  vos  applique  aquella 
phrase  do  Kvangellio : 

— «Sereis  medidos  pela  mesma  bitola  com  que  medii'des  os  ou- 
tros?! (Mau.  vn,  2). 

Se  nos  paizes  em  que  os  catliolicos  estão  em  minoria,  o  res- 
pectivo soberano  decretasse  a  a|)|jlii.'ação  das  mesmas  leis  outhor- 
gadas  pelo  valicano  contra  os  não  calholicos,  não  concedendo  a  li- 
berdade senão  á  maneira  das  concessões  do  soberano  pontifice, 
teriam  os  partidos  do  absolutismo  que  aprender  também  á  sua 
custa  o  amor  á  liberdade  e  a  compreheiíder  que  os  direitos  e  de- 
veres são  sempre  correlativos. 

Affonso  de  Sousa. 


SPusstido,  IjPreseíite  e  3Futuro 


I 


Meu  passailo  foi  como  a  noite  escura 

—  fsoite  sem  luar.  sem  constellações, 
D'essas  que  fende  ao  naula  a  sepultura 
Do  vaslo  mar  nas  vesgas  solidões ! 

Foi  um  espaço  immenso  !  E  a  sorte  dura 
Jamais  me  fez  sentir  as  vibrações 
Da  límpida  alegria,  e  da  \entura 
Que  engrandece  os  mais  baixos  corações. 

Visitou-me  no  berço  um  mau  destino  ; 
Errei  pois  sempre  —  triste  peregrino, 
Ao  sabor  das  paixões,  dos  vendavaes  I 

Foi  um  espaço  immr-nso  1  Trinta  annos 
D'angustias  bem  cruéis  e  desenganos  : 

—  Uma  epopeia  de  lagrimas  e  ais  1 


íso  passado,  mau  grado  a  desventura 
Inda  animava  algumas  illusões; 
Por  entre  o  véo  da  gélida  tristura 
Sorriam-me,  ás  vezes,  dulcidas  visões. 

Eram  meteoros,  que,  na  noite  escura, 
Faziam  brilhar  ephemeros  clarões  ; 
Mas  esgotando  a  taça  da  amargura 
Não  me  pungiam  tão  cruas  sensações. 


t: 


os  GRAISDF.S  HOMENS  91 


É  que  hoje,  d'aima.  as  crenças  me  baniram. 
E  as  duvidas  o  peito  me  feiiram 
Como  gumes  de  fiiigidas  espadas  ! 

Em  derredor  de  mim  só  vejo  um  cahos  ! 
E  mudaram-se  em  sonhos  negros,  maus. 
As  minhas  velhas  illusões  douradas  ! 


Ill 


Mas  ai  !  se  eu  tive  só  magoas  e  dores 
No  meu  passado  doloroso,  escuro, 
E  no  presente  amargos  dissabores. . . 
— Verei  acaso  um  lúcido  futuro  ? 

Se  desde  infante  —  ó  maternaes  amores  ! 
Hei  soffrido  os  baldões  d'um  fado   impuro. 
Poderei  ver,  ainda,  as  ternas  flores, 
D  um  quieto  oásis,  d'um  porto  mais  seguro  ? 

Ai  I  não,  não  I  Nada  espero ! . .  .  a  alma  canra 
Como  pode  nutrir  um  quê  d'esp'rança 
O  fraco  luctador  que  perde  a  fé  ?! 

Vejo  no  porvir  um  tétrico  Calvário.  . . 
E    meu  corpo  envolvido  n'um  sudário  : 
— Porque  é  morto  jã  o  homem  que  descrê  ! 


Dezembro — 1877. 


Xavier  de  Paiva. 


Os  Grauíles  Homens 


O  estudo  dos  grandes  lypos  da  Humanidade  exerce  uma  pode- 
rosa influencia  na  elevação  do  caracter,  por  essa  tendência  auto- 
mática, que  actua  no  maior  numero  pela  forma  de  imitarão.  O  li- 
vro do  philosopho  Plutarcho,  inspií^ando  a  concepção  de  umagracde 
parte  dos  caracteres  de  Shakespeare,  também  forneceu  vultos  de 
uma  notável  altura  moral  aos  homens  superiores  do  século  xvii  e 
XVIII,  que  procuravam  reproduzir  as  suas  qualidades  eminentes. 
Emquanto  a  vida  de  Jesus  foi  o  ideal  da  imitação,  a  sociedade  me- 
dieval reproduzia  essa  tristeza  hallucinada,  no  isolamento  e  pi^eoc- 
cupação  exclusiva  da  morte ;  com  a  Kenascença  o  livro  de  Plutaiv 
cho  trouxe  ao  conhecimento  dos  homens  cultos  e  de  acção  os  lypos 
de  heroes  e  de  instituidores  da  sociedade  antiga,  que  vieram  a  in- 
fluenciar directamente  na  elevação  do  caracter  civico  dos  homens 
que  fundaram  a  civilisação  moderna.  Porém,  os  estudos  biographi 


92  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

COS  dos  gi\inf]es  homens  foram  encetados  com  o  limitado  critério 
do  ponto  de  vi^ta  moral;  esses  brilhantes  phenomenos  de  hetero- 
genia psychologica  assomem  nma  importância  fimdamenlal  nos  mo- 
dernos trabalhos  anthropologicos  em  qne  se  determina  o  desenvol- 
vimento evolutivo  da  rasão,  a  sua  dependência  da  passividade  sen- 
sorial e  o  sen  accordo  sublime  na  vontade,  manifestado  nos  estádios 
da  civilisação  humana.  É  por  isso  qne  hoje  a  Ideia  de  Plutarcho 
deve  ser  ampliada  em  cada  povo,  pelo  exame  das  individualidades 
mais  distinclas  de  nma  nação  coordenadas  segundo  as  épocas  e  os 
progressos  históricos. 

Desta  forma  o  fim  moral  não  será  exclusivo;  a  biographia  é  sem- 
pre a  consideração  de  uma  dada  época  histórica  pela  relação  do 
homem  com  o  seu  meio  social.  Cada  lilteratura  deve  cooperar  com 
a  Arte  para  a  organisação  de  um  Plutarcho  nacional:  é  assim  qne 
se  pode  levar  uma  sociedade  a  interessar-se  pela  sua  historia  e  a 
conhecer  as  condições  em  qne  pode  confiar  a  um  homem  o  seu 
destino.  Assim  como  a  historia  se  pode  comprehender  procurando 
a  continuidade  e  encadeamento  dos  factos  de  modo  a  fazer  sentir 
a  liansformação  progressiva  das  instituições,  pode-se,  por  outra 
via.  chegar  ao  mesmo  resultado  discriminando  a  intervenção  in- 
dividuaTna  marcha  das  sociedades,  sobretudo  para  chegar-se  á 
determinação  de  um  elemento  consciente  na  realisação  da  liber- 
dade. Uo  piimeiro  caso  lemos  uma  bella  tentativa  em  um  estudo 
de  Kant,  considerando  a  humanidade  como  um  sèr  ideal  e  acom- 
panhando os  seus  n)ovimentos  independentemente  dos  actos  indi- 
viduaes;  é  ao  que  se  pode  chamar  com  grande  precisão  uma  His- 
toria sem  nomes.  O  livro  de  Condorcet,  Quadro  dos  progressos  do 
Espirito  humano,  é  esta  vista  de  conjuncto  procurada  nas  institui- 
ções, sem  se  embaiaçar  com  a  incoherencia  apparente  da  inter- 
venção das  pessoas. 

É  um  processo  de  simplificação  philosophica,  que  embora  tenha 
os  inconvenientes  da  abstracção,  está  de  accordo  com  as  desco.- 
berlas  sociológicas  de  um  movimento  próprio  dos  aggregados  hu- 
manos, que  progride  apesar  de  todas  as  perturbações  individuaes, 
e  qne  por  isso  mesmo  convém  estudar  na  sua  espontaneidade  e 
automatismo:  esta  ideia,  seguida  pelo  eminente  Bukle.  por  Bastiat, 
por  Quelelet,  e  servindo  para  Augusto  Comte  de  base  para  a  sys- 
lematisação  de  uma  physica  social,  é  a  primeira  lei  scienlifica  da 
Sociologia,  á  qual  pertencem  todos  os  phenomenos  de  natureza 
statica.  A  complexidade  e  variabilidade  incalculável  dos  phenome- 
nos que  se  passam  no  meio  social,  exigem  a  necessidade  con- 
stante da  intervenção  de  vontades  coordenadas,  mais  ou  menos  con- 
scientes, e  por  isso  mesmo  impulsoras  ou  retrogradas,  segundo  a 
sua  capacidade.  Quem  acompanhar  nos  diíTerentes  grãos  da  evo- 
lução humana  esta  necessidade  pela  qual  os  factos  tendem  a  con- 


os  GRANDES  HOMENS  93 

form.ir-se  com  a  rasão,  tem  de  procurar  a  acção  consciente  da 
vonlade  sobre  o  antomalismo  tradicional  e  consnelndinario  e  para 
essa  investigação  lodos  os  factos  se  agrnpam  por  si  mesmos  em 
volta  das  altas  individualidades  que  possuíram  o  inslinclo  de  uma 
intervenção  opportuna  È  o  que  se  chamaria  unia  Historia  com  no- 
mes;  é  por  este  aspecto  que  o  estudo  e  a  compreliensão  dos  Gran- 
des Homens  forma  um  capitulo  essencial  da  Sociologia,  em  volta 
do  qual  se  agrupam  os  phenomenos  dyna micos  por  uma  coorde- 
nação racional,  e  d"onde  se  pode  deduzir  uma  applicação  pratica, 
mas  ainda  hoje  profundamente  ignorada  :  Por  que  modo  se  [)ode 
exercer  a  intervenção  individual  na  marcha  das  sociedades?  A 
vida  dos  Grandes  Homens,  que  mereceram  o  nome  de  grandes  por 
isso  que  actuaram  sobre  o  meio  social  e  o  modificaram  para  me- 
lhor, contém  os  elementos  para  a  resolução  deste  problema,  cuja 
importância  para  o  progresso  humano  é  de  um  alcance  incalcu- 
lável. 

A  evolução  natural  das  sociedades  na  creação  das  suas  formas 
nacionaes,  da  propriedade,  das  religiões,  das  industrias,  das  lin- 
guas,  das  lilteraturas,  da  arte,  e  espontânea,  instinctiva.  e  incon- 
sciente ;  é  uma  grande  força  desconhecida,  de  que  ninguém  se  sabe 
apropriar  ainda,  e  que  só  casualmente  ou  accidenlalmenle  é  que 
algumas  individualidades  proeminentes  poderam  aproveitar-lhe  a 
tendência,  ou  lhe  facilitarem  a  siia  expansão.  Seguir  os  Grandes 
Homens  na  sua  acção  é  aproximarmo-nos  do  conhecimento  dessa 
força  pondo-a  ao  serviço  de  uma  transformação  voluntária  e  de  um 
progresso  consciente  e  capaz  de  ser  previsto.  Sem  este  ponto  de 
vista  positivo  o  Grande  Homem  é  um  mylho,  uma  entidade  ab- 
stracta, uma  monstruosidade,  que  em  vez  de  nos  elevar  pelo  exem- 
plo e  pela  conformidade  dos  actos  com  as  ideias,  serve  só  para 
nos  deslumbrar  pelo  prestigio  esleril  e  para  nos  vincular  a  uma 
invencível  mediocridade.  O  reconhecimento  da  necessidade  social 
da  intervenção  das  individualidades  preponderantes,  manifesta-se 
no  instincto  popular  pelos  eponymos.  os  nomes  que  symbolisam  uma 
época,  tendência  que  veiu  a  degenerar  n"um  servilismo  falso  n'es- 
ses  títulos  pomposos  de  sr(7//o  de  Augusto,  século  de  Luiz  XIV,  para 
representar  todos  os  progressos  socíaes  como  consequência  de  uma 
coordenação  individual.  Por  isto  se  vé,  que  desde  os  tempos  mais 
remotos,  em  que  os  Grandes  Homens  eram  deificados,  até  á  época 
moderna,  em  que  começam  a  receber  a  commemoração  socialalrica 
dos  Centenários  nacionaes,  houve  sempre  o  conhecimento  de  uma 
interv3nção  individual,  explicada  segundo  os  estados  da  mentali- 
dade humana.  Em  uma  época  theologica  o  Grande  Homem  é  um 
semi-deus,  porque  a  sua  acção  só  pode  ser  concebida  como  um 
poder  extranho  ao  homem,  derivando  immediatamente  da  divindade 
omnipotente;  em  uma  época  metaphysica,  é  o  órgão  produzido  pela 


94  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICAN 

agitação  de  uma  época,  pelas  aspirações  de  urna  sociedade,  que 
lhe  insullauí  as  suas  tendências  para  vir  a  realisar  as  transforma- 
ções presentidas. 

Porém,  em  uma  época  positiva,  isto  é,  em  que  todos  os  íaclos 
de  ordem  cosmologica,  biológica  e  sociológica  são  submellidos  ao 
critério  scientifico,  e  consegnintemente  á  verificação  experimentai 
e  a  [jievisão  linal.  o  (Irande  Homem  não  é  um  mytlio,  nem  um 
prestigio,  é  uma  consciência,  apoiado  na  mutua  solidariedade  entre 
a  especulação  e  a  acção.  Por  que  é  que,  apesar  do  seu  extraor- 
dinário poder,  o  nnperador  Juliano  não  conseguiu  embaraçar  a  dis- 
solução do  polyllieismo  bellenico,  e  diliicultar  a  propagação  do  Cliris- 
lianismo  nascente  ? 

Por  (jue  é  que  o  imperador  José  II,  possuído  do  mais  extraor- 
dinário desejo  de  reformas  radicaes,  não  ponde  pôr  em  pratica  as 
doutrinas  pliilosopliicas  dos  Kncyclopedistas,  e  foi  victima  das  suas 
utopias?  IJm  contou  somente  com  as  forças  staticas  de  conserva- 
ção, mas  foi  vencido  pela  evolução  progressiva  ;  o  outro  contou 
somente  com  a  tendência  da  piogressão  social,  e  succumbiu  na 
lucta  contra  a  força  espontânea  do  conservaniismo.  O  mesmo  se 
deu  com  Napoleão  1,  lançando  a  Europa  em  um  syslema  criminoso 
de  retrogradação,  mas  não  conseguindo,  apesar  de  todas  as  vio- 
lências e  perturbações  de  uma  desvairada  acção  negativa,  desviar 
o  século  XIX  do  caminho  da  realisação  da  liberdade  restabelecendo 
os  principios  de  1789.  A  tlieoiia  dos  Grandes  Homens  é  simples- 
mente o  syslema  de  explicação  da  intervenção  da  individualidade 
na  marcha  da  sociedade  :  esboçaremos  essa  comprebensão  se- 
gundo as  phases  da  mentalidade  humana. 

Nas  épocas  antigas,  cm  que  preponderava  a  ideia  religiosa,  os 
Grandes  Homens  eiam  objecto  de  um  culto,  como  semi-deuses  ;  o 
saber  ou  a  força  do  heroe.  como  extraordinários  eram  um  dom 
da  divindade.  Na  civilisação  védica,  os  liislii,  são  uns  seres  my- 
thicos,  análogos  aos  nossos  Santos,  que  iniciaram  a  linguagem  e  o 
poder  dos  hymnos  ;  são  em  numero  de  sete,  como  os  seie  sábios 
da  Grécia.  Entre  os  semitas  nota  se  a  mesma  concepção.  No 
Génesis,  e  portanto  em  um  docimiento  que  reflecte  as  ideias  e 
crenças  da  civilisação  chaldeo-babylonica,  os  Grandes  Homens  são 
o  producto  do  cruzamento  dcs  Filhos  de  Deus  co:n  as  filhas  dos 
homens :  «depois  que  os  Filhos  de  Deus  vieram  para  as  fillias  dos 
homens,  e  que  estas  tiveram  filhos :  estes  foram  os  heroes  (gibbo- 
rim)  que  pertencem  d  antiguidade,  homens  de  fama.  y>  (cap.  iv  |  4) 
Ha  aqui  nina  heterogenia  como  causa  de  Grande  Homem,  porque, 
segundo  os  commentarios  modernos,  os  Filhos  de  Deus  represen- 
tam o  facto  anthropologico  de  uma  raça  superior.  *  A  antiguidade 


1  Filha  da  terra  f^Miau-tze)  é  o  nome  dos  aiitochtones   da  China  :  contra- 


os  GRANDES  HOMENS  9o 


era  lambem  uma  saiicção  moral,  e  por  isso  segundo  a  crença  de 
uma  [jerfeição  primitiva,  a  antiguidade  e  a  fama  são  a  consa- 
gração do  lieróe.  Platão  seguia  a  mesma  ideia,  proveniente  do 
fundo  semita  que  iiilliienciou  no  polytlieismo  e  na  epopèa  helle- 
uica  :  «Os  heróes  são  semi-deuses.  porque  são  nascidos  do  amor 
de  um  deus  por  uma  mortal,  ou  de  uma  deusa  por  um  mortal.» 
D'esta  concepção  primitiva  dos  povos  nasceu  o  habito  de  fazer 
a  apotheose  dos  poderosos,  dos  triumphadores,  como  Alexandre, 
que  se  inculcava  por  filho  de  Júpiter,  ou  os  imperadores  roma- 
nos sempre  contados  inter  divos,  ou  ainda  no  século  xix.  em-  que 
Napoleão  maldizia  o  estado  do  espirito  publico,  porque  depois  de 
tantas  batalhas  sanguinárias  já  não  se  podia  proclamar  um  Deus  ! 
O  tremendo  cannibal  dizia:  «Ku  marcho  acompanhado  pelo  deus 
da  fortuna  e  pelo  deus  da  guerra.»  Assim  firmava  o  seu  prestigio; 
e  depois  de  receber  a  sagração  imperial,  dizia  a  Decrés  :  «Vim 
muito  taide ;  Alexandre,  depois  de  ter  conquistado  a  Ásia,  e  de 
se  ler  annunciado  aos  povos  como  filho  de  Ju[)iter.  todo  o  Oriente 
o  acreditou  :  hoje,  se  eu  ine  declarasse  filho  do  Padie  Eterno,  e 
annunciasse  que  lhe  ia  dar  graças  por  este  titulo,  não  haveria 
peixeira  que  me  não  apupasse.  O  povos  tém  hoje  os  olhos  bem 
abertos:  já  não  ha  causa  grande  a  fazer.» 

O  criminoso  da  historia  presentia  que  estava  na  éra  da  positi- 
vidade mental,  cujo  advento  diíficultou,  fazendo  retrogradar  a  Eu- 
ropa ao  regimen  das  guerras  de  conquista.  O  pensamento  de  Evhe- 
mero  explicando  os  deuses  da  antiguidade  como  grandes  ho- 
mens desificados  tem  um  certo  fundo  de  realidade,  embora  não 
sirva  para  interpretação  das  theogonias.  A  força,  o  saber,  o  gé- 
nio artístico  consideravam-se  como  manifestações  de  attributos  di- 
vinos, como  se  infere  da  palavra  déspota,  dos  talentos  industriaes 
dos  Cabiras,  ou  do  influxo  das  Musas.  O  poder  da  invenção  era 
um  característico  da  divindade,  como  nas  demiurgos  Hephaestos 
ou  Prometheo;  nos  fragmentos  de  Sanchoniaton,  é  um  ser  divino, 
Hypsioranios  qne  fabrica  pela  primeira  vez  cabanas  de  junco  e  ca- 
nas. Usôos  inventa  as  vestimentas  de  pelle,  e  os  remos:  «E  quando 
elles  foram  mortos,  os  que  lhes  sobreviveram  levantaram-lhes  cip- 
pas,  a  que  prestaram  culto  e  instituíram  festas  que  se  celebravam 
cada  anuo.»  Outros  seres  divinos,  como  (]ed  que  inventou  a  caça, 
inventaram  também  os  muros  das  cidades  feitos  de  tijolo,  as  ervas 
medicinaes,  as  imprecações,  as  letras  do  alphabeto,  e  as  leis  es- 
criptas,  como  Manu,  ou  Orpheu.  A  lei  da  continuidade  histórica  não 
era  conhecida,  e  por  isso  todos  os  grandes  phenomenos  sociaes 


põe-se  ao  de  Filho  do  céo,  ou  raça  invasora  dominante,  o  que  nos  explica  a  con- 
cepçâo  semita. 


96  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

eram  maravilhosos,  e  receberam  a  expressão  peculiar  d"esle  es- 
tado meiUal  da  humanidade. 

No  eslado  metaphysico,  em  que  se  altrlbuiam  os  phenomenos 
sociaes  a  torças  iminanentes.  o  Grando  Homem  era  o  instrumento 
passivo  de  um  destino,  obedecia  a  uma  vocação,  com  que  amda  se 
caraclerisa  os  iniciadores  ;  achava-se  por  isso  acima  da  humani- 
dade. Nas  transi'. irmações  de  uma  época,  as  sociedades  agilavam-se 
á  espera  de  quem  surgisse  para  dar  realidade  à  sua  a<pu-ação  ou 
dar  expressão  a  essa  anciedade  ;  a  psychologia  do  grande  homem 
nada  linha  de  commum  com  a  nossa  evolução  cerebral,  tirando  de 
si  toda  a  originalidade  e  o  impulso  da  iniciativa  :  nasciam  como 
Palias,  logo  armados  com  o  poder  e  a  sabedoria  á  espera  do  mo- 
meulo  da  sua  intervenção. 

A  concepção  dos  melaphysicos  sobre  as  características  do  Grande 
Homem,  deriva  de  uma  historia  aprioristica  e  de  uma  psychologia 
innalista  absolutamente  separada  dos  dados  experimenlaes.  O  he- 
geliano  Baur  considerava  a  historia  como  a  successão  de  uma  fa- 
talidade, e  portanto  a  intervenção  individual  uma  consequência 
imposta  pela  urgência  do  momento;  assim  para  elle  se  Carlos  Ma- 
gno não  apparecesse,  se  um  Gregório  VH  se  não  elevasse  ao  pon- 
tificado, nem  por  isso  a  sua  missão  histórica  deixaria  de  ser  cum- 
prida, sendo  inevitavelmente  suppridos  por  outros.  Hegel  conside- 
rando a  historia  como  a  realisação  da  ideia  immanente  nos  factos, 
colloca-a  em  uma  fatalidade  divina,  a  que  outros  met.iphysicos  de- 
nominam plano  providencial,  e  como  tal  fora  do  julgamento  e  do 
critério  moral,  arrastando  o  homem  na  sua  corrente  insondável 
como  inslrumento  inconsciente  da  sua  exteriorisação ;  nesta  mar- 
cha fatídica  mas  divina  o  Grande  Homem  é  aquelle  que  obedece  por 
instincto  ao  destino  das  cousas  de  que  tem  um  vago  presentimento. 
O  Grande  Homem  torna-se  a  expressão  das  tendências  indefinidas 
da  multidão  obscura,  e  é  esta  relação  de  passividade,  que  torna 
sympathico  o  vulto  que  a  multidão  adora,  glorifica  ou  immortalisa 
como  o  seu  representante. 

Aqui  a  superioridade  do  Grande  Homem  não  deriva  do  seu  indi- 
vidualismo, nem  da  própria  consciência  ou  liberdade;  mas  sim  da 
submissão  à  exigência  de  um  destino,  feita  com  esse  abandono  de 
si  próprio  como  um  sacrifício.  Nas  crenças  antigas  o  heroe  significa 
o  morto  :  é  assim  a  fatalidade  do  hegelianismo,  em  que  o  Grande 
Homem  deixa  mesmo  de  ter  responsabilidade  moral,  esse  limitado 
critério  subjectivo  incompatível  com  a  comprehensão  do  que  é  ob- 
jectivo e  real  como  a  historia.  A  Iheoria  de  Hegel  é  a  justificação 
do  facto  consummado.  e  como  tal  acceita  por  lodos  os  poderes  abu- 
sivos que,  como  na  Allemanha,  procuram  impedir  o  exame  das  ma- 
niftíStaçíTtes  da  auctoridade.  Era  Sainl-Simon  apparece  também  o 
potimismo  histórico,  mas  com  um  aspecto  scienlifico  da  evolução 


os  GP.ANDF.S  HOMENS  97 


(los  phenomenos  sociaes  e  do  encadeamento  seriario  dos  factos 
para  assim  estabelecer  a  transição  de  uma  para  outra  época.  No 
estabelecimento  da  continuidade  histórica  a  approvação  ou  a  censura 
dos  factos  deve  ser  eliminada  como  inútil,  porque  o  crileri(j  moral 
d'esse  julgamento  linde  derivar-se  do  conlieL'imenlo  da  mesiua  con- 
tinuidade :  o  Grande  Homem  é  o  que  facilita  as  transições  de 
uma  para  outra  época  da  humanidade  n;is  suas  transformações 
constantes  tornamlo-as  por  qualquer  forma  progressivas.  IS'esta 
doutrina  estava  o  gérmen  da  theoria  positiva,  píuque  tem  uma 
base  moral  na  relação  da  solidariedade  hmnana,  e  no  fado  scien- 
tifico  da  evolução  histórica  a  rasão  de  ser  da  intervenção  indivi- 
dual consciente. 

A  doutrina  de  Hegel  foi  propagada  na  França  em  1828  por  Vi- 
ctor Cousin,  que  com  a  abundância  do  seu  estylo  poético  exage- 
rou a  missão  providencial  do  Grande  Homem,  tornando-se  ora  utn 
agente  da  divindade  cujo  pensamento  se  revela  pela  nistoria,  ora 
uma  synlhese  da  multidão  obscura,  ou  o  instrumento  passivo  de 
uma  vocação  absoluta  ;  (Cousin  foi  assim  cahir  n'um  ridículo  opti- 
mismo histórico,  excellente  thema  para  uma  phiiosophia  official 
de  Universidade,  sobretudo  em  um  regimen  de  embustes  liberaes 
e  de  conservantismo  politico  como  n"esse  período  da  Restauração 
do  absolutismo  acobertado  com  as  fórmulas  do  regimen  parlamen- 
tar. 

Esta  ideia  absurda,  que  ainda  persiste  com  relação  á  individua- 
lidade dos  tribunos,  a  quem  attribuem  o  poder  magico  de  levantar  as 
nações  e  de  dispor  dos  movimentos  revolucionários,  foi  fundamental- 
mente modificada  pela  historia  das  descobertas  modernas,  ainda  as 
mais  maravilhosas,  resultantes  de  uma  accumulação  constante  de 
tentativas  anteriores.  É  por  esta  edificação  sobre  as  bases  an- 
tigas que  os  monumentos  do  génio  se  levantam  ;  uma  maior  com- 
municação  social  provoca  uma  maior  troca  de  sentimentos,  de 
ideias,  e  por  isso  uma  multiplicação  de  forças  pela  collaboração  de 
todas  as  capacidades.  Diz  Bastial :  «Qnaiulo  muitos  homens  com- 
municam  entre  si,  aquillo  que  um  delles  observou  é  immedia- 
tamente  conhecido  pelos  outros  todos,  e  basta  que  entre  elles  se 
encontre  um  bastante  engenhoso,  para  que  descobertas  preciosas 
se  tornem  prompt  mente  do  dominio  de  todos.»  Por  este  facto 
Bastiat  foi  levado  á  demonstração  da  lei  económica,  —  que  no  es- 
tado social,  as  nossas  faculdades  ultrapassam  as  nossas  necessida- 
des. Nas  sociedades  antigas,  o  regimen  das  castas  e  o  isolamento 
das  classes  embaraçaram  o  phenomeno  da  selecção,  e  o  nivel  ge- 
ral das  populações  era  o  de  uma  rasa  mediocridade ;  do  moderno 
proletariado  é  que  tem  saido  todas  as  forças  vivas  da  civilisação 
euiopéa,  reveladas  na.  actividade  industrial,  scientifica,  ai tislica  e 
moral.  Se  para  o  mundo  antigo  o  Grande  Homem  era  uma  mara- 

13 


èg  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


vilha,  um  objecto  de  adoração,  para  a  nossa  sociedade  é  facto  cor- 
rente, necessário,  sem  prestigio,  consequência  do  duplo  eííeito  da 
selecção  biológica  e  da  continuidade  histórica.  Ao  passo  que  De 
Candelle,  Wildemeister  e  Paul  Jacoby,  mostram  como  as  famílias 
confinadas  n"um  parentesco  restricto,  caem  na  imiiecilidade,  na 
epilepsia,  nas  neuropatliias  e  na  devassidão,  como  as  dyiiaslias 
reaes  e  as  famílias  aristocráticas  que  se  extinguem  por  uma  fata- 
lidade orgânica,  é  pelo  contrario  o  proletariado  que  está  alimen- 
tando a  civilisação  com  a  selecção  que  produz  as  manifestações 
da  iiitelligencia,  do  talento  e  da  iniciativa.  A  complexidade  do  tra- 
balho leva  a  dividil-o.  como  se  observa  na  natureza  orgânica,  em 
que  á  medida  que  os  organismos  são  mais  elevados  se  estabelece 
a  especialisação  das  luncções.  Daqui  resulta  uma  perfeição  func- 
cional,  e  um  desenvolvimento  de  aptidões  adipiiridas.  Quanto  mais 
uma  sociedade  progride,  tanto  mais  se  estabelecem  estas  differen- 
ças,  que  chegam  a"lormar  uma  desegualdade  social.  Comte  obser- 
vou esta  consequência  da  civilisação.  «O  progresso  continuo  da  ci- 
vilisação, longe  de  aproximar  de  uma  egnaldade,  tende  pelo  con- 
trario a  estabelecer  estas  diíTerenças  fundamentaes,  ao  mesmo 
tempo  que  atenua  muito  a  importância  das  distincções  sociacs  que 
então  as  tinha  comprimidas.»  (Cours,  iv,  oi.) 

As  distincções  sociaes  é  facto  que  di'sapparecem  perante  o  prin- 
cipio de  unificação  nacional  da  egnaldade  perante  a  lei,  sobre  que 
assenta  a  ordem  moderna  ;  mas  as  differenças,  expressas  pela 
phrase  de  aristocracia  de  talento,  revelam  que  se  reconhece  es- 
pontaneamente um  novo  poder  espiritual,  que  só  pode  subsistir 
pela  conformidade  das  opiniões,  islo  é,  universalisando  as  suas  con- 
cepções, generalisando  as  suas  descobertas,  elevando  as  capacida- 
desj  alargando  o  bem  estar,  levantando  o  nivel  geral  das  socieda- 
des. Tal  é  a  missão  do  Grande  Homem,  especialmente  altruísta  ; 
manifestando-se  como  uma  desegualdade  social,  a  sua  acção  é  pro- 
fundamente egualitaria  nos  effeitos;  em  quanto  que  as  desegual- 
dades  exteriores  das  classes  theocraticas  e  aristocráticas  são  feroz- 
mente egoístas,  a  desegualdade  do  talento  só  coopera  para  a  uni- 
ficação social  consciente  pelo  modo  que  produz  menos  perturba- 
ções, o  impulso  das  ideias,  a  coordenação  das  vontades,  a  unani- 
midade das  opiniões.  É  por  este  modo  que  se  caracterisa  a  acção 
do  Grande  Homem,  muitas  vezes  desconhecida  pelo  seu  tempo, 
porque  os  effeitos  não  são  immediatos.  Exemplifiquemos;  MahaíTy, 
estudando  a  vida  de  Descartes,  refere-se  à  influencia  que  exerceu 
pelo  seu  Discurso  sobre  o  Methodo  :  «O  seu  Methodo  manifestou-se 
com  um  brilhante  cortejo  as  descobertas  mathematicas,  trazendo  a 
solução  de  problemas  superiores  ao  alcance  dos  espíritos  ordiná- 
rios.» Aqui  vemos  como  essa  enorme  desegualdade  de  um  génio, 
cujo  nome  synthetisa  a  historia  do  pensamento  especulativo  do  se- 


os  GRANDES  HOMENS  99 

CLilo  XVII,  foi  ao  mesmo  tempo  elevador  das  capacidades  vulga- 
res. 

São  os  factos  desta  oídem  que  nos  revelam  o  modo  da  inter- 
venção individual  na  marcha  das  sociedades  humanas;  as  socie- 
dades movem-se  por  interesses,  por  sentimentos,  por  ideias,  e 
todo  aquelle  que  poder  [)òr  em  jogo  esses  inleiesses,  vibrar  esses 
sentimentos,  generalisar  essas  ideias,  possue  o  segredo  da  força 
que  alevanta  uma  raça,  que  estabelece  uma  nacionalidade,  que 
funda  uma  civilisação;  esse  é  verdadeiramente  um  Grande  PIomem, 
quer  como  inventor  ou  instituidor,  quer  como  poeta  e  artista,  como 
martyr  de  uma  aspiração,  como  sábio  ou  philosopho.  Os  actos  ma- 
leriaes  dos  guerreiros  e  dos  déspotas  cáeuí  na  impotência,  sò  as 
noções  é  que  transformam  sem  ruido.  É  por  isso  que  o  Grande 
Homem  imprime  todo  o  esforço  da  sua  superioridade  sobre  uma 
ideia  dominante,  exclusiva,  e  que  ultrapassando  ás  vezes  o  limite 
da  realidaile.  se  torna  uma  acção  ideal ;  uma  grande  vida,  disse-o 
em  um  bello  verso  Alfred  de  Vigiiy,  é  um  pensamento  da  moci- 
dade realisado  na  edade  madma.  Tal  é  a  divisa  natural  d»!  todos 
os  Grandes  Homens ;  esse  pensamento,  pelo  próprio  effeito  da 
ingenuidade  adolescente,  sem  decepções,  sem  contrastes,  pelo  seu 
subjectivissin)o  torna-se  um  ideal,  ou  motivo  da  acção:  tanta  as 
acções,  tanto  os  ideaes  :  o  bem,  na  moral,  a  justiça  no  direito,  a 
liberdade  na  politica,  a  verdade  na  sciencia,  o  bello  na  arte,  per- 
tencem a  essa  cathegoiia  de  acções  idtiaes.  a  que  andam  ligados 
os  mais  sublimes  productos  da  actividade  do  homem  e  os  pro- 
gressos mais  esplendidos  da  historia.  Será  preciso  exemplifical-o? 
Tomaremos  os  factos  ao  acaso  ;  em  uma  Historia  universal,  Ranke 
caracterisa  Péricles  por  estas  palavras:  «No  meio  das  mais  vastas 
emprezas,  sua  alma  visava  sempre  ao  ideal  e  ao  bello.)'  E  retra- 
tando Alcibíades:  e  «é  um  ex.emplo  deslumbrante  da  parte  que  a 
vontade  e  o  acaso  tem  no  destino  humano.»  Esta  parte  de  acaso 
é  um  facto  ainda  não  considerado,  pelo  qual  se  estabelece  a  rela- 
ção do  meio  social  com  o  Grande  Homem  :  este  acaso  pode  discri- 
minar-se  em  um  accidente  biológico,  como  o  que  distingue  ura 
génio  numa  familia  de  medíocres,  ou  como  uma  resultante  social 
que  determina  a  intervenção  immediata  da  individualidade,  que 
nunca  se  revelaria  sem  essa  cu^cumstancia  histórica.  Do  primeiro 
caso,  tomaremos  ainda  o  exemplo  no  vullo  extraordinário  de  Des- 
cartes: «Novo  exemplo  d'esta  lei  mysteiiosa  da  producção  do  gé- 
nio, que  em  uma  série  de  filhos  ordinários,  nascidos  de  pães  or- 
dinários, escolheu  um  de  preferencia  a  todos  os  outros,  e  faz  que 
perguntemos  com  assombro,  que  subtil  combinação,  que  variação 
momentânea  nas  condições  physicas  pode  produzir  um  tão  mara- 
vilhoso resultado.  Pouco  importa  ao  que  parece,  que  elle  seja  mais 
velhi)  ou  mais  covo  ou  um  dos  intermediários:  a  força  ou  a  fraqueza 


íoo  en«:yclopedia  republicana 

ph)^i(:a  cia  criança,  a  inlelliiíencia  ou  a  pi-ofissao  dos  pães  não  pare- 
cem niLMios  inJilTerenles.— A  descoberta  ilesle  segredo  podeiia  sem 
duvida  mudar  a  historia  futura  da  humanidade.  Voi  ora  é-nos  for- 
çoso esperar  que  um  accidente,  ou  ao  menos  o  que  nos  parece  tal, 
produza  um  génio  como  Dercartes,  Newton  ou  Kant.»  (Mahaffi,  Op. 
cit.)  Vemos,  é  fado.  o  génio  no  homem  hercúleo  como  Leonardo  de 
Vinci,  e  no  valetudinário  coíuo  IvanI;  vemos  a  liberdade  do  i)ensa- 
meuto  no  discipulo  dos  jesuitas,  como  em  Voltaire  e  DAIend)ert,  e 
em  geral  a  falta  de  descendência  nos  homens  de  génio,  como  Shakes- 
peare, ou  os  filhos  medíocres,  como  em  Dante  ou  Cromwel.  Todos 
estes  factos  e.xtremos  se  explicam  pela  selecção  natural;  cada  ho- 
mem de  génio,  como  notam  Renan  e  Jacoby  é  um  capital  accu- 
mulado  de  muitas  gerações  personificado  em  um  homem,  da  mesma 
forma  que  os  traços  physionomicos  e  os  pigmentos  se  accumulam 
accidentalmente  em  um  individuo:  mas  esta  accuiiiulação  por  isso 
que  é  fortuita  não  se  tiansmitte  de  um  modo  directo,  mas  sim  pela 
acção  reflexa  das  ideias  postas  em  circulação;  e  o  que  é  i, aturai, 
é  que  esse  excesso  de  accumulação  de  energia  volte  ás  condições 
normaes  pela  morlalidade,  ou  que  ullrai)assando  o  justo  eijuilibrio 
da  orgauisação,  caia  na  degeneração  ou  [)asse  para  uma  manifes- 
tação pathologica  da  allucinação  e  da  loucura.  É  sobretudo  n'esta 
classe  que  se  agrupam  os  grandes  talentos  militares,  da  devasta- 
ção e  da  violência:  Uanke,  traçando  o  caracter  de  Alexandre,  diz: 
«unia  ás  ideias  hellenicas,  a  farra  ria  phantasia.  Alexandre  é  do 
pequeno  numero  d'aquelles  homens  cuja  biographia  se  confunde 
com  a  historia  do  mundo.-»  Considerado  em  si,  Alexandre  era  um 
allucinado,  e  sem  o  apoio  pratico  das  ideias  hellenicas,  isto  é.  da 
supremacia  do  Occidente  como  centro  da  civilisação  humana,  teria 
sido  um  monstro,  como  qualquer  déspota  da  Pérsia.  É  o  instincto 
d'esta  relação  oppoitima  da  noção  ideal  com  a  aspiração  social,  o 
que  melhor  caracterisa  o  Grande  Momem,  como  o  órgão  por  meio 
do  qual  se  estabelece  a  solidariedade  humana. 

Theophilo  Br.\ga. 


Èostumes  nortunuezes  na  século  XVXl 

Nas  PoKSiAS  de  António  de  Villashoas  e  Sampaio,  auctor  da  Nn- 
biiiarcliia  Portugueza  *  (Coimbra,  — Imprensa   da   Universidade, 


1  Senhor  da  torre  de  Airó,  termo  de  Barcellos  (n.  1629  ;  m.  1701).  Os  vinho 
de  Airó  são  muito  celebrados,  e  até  o  dictado  popular  diz  : 
Vinho  de  Air6 
Bebe-o  tu  só. 


I 


COSTUMES  PORTUGUEZKS  DO  SÉCULO  XVII 


101 


18'ii  — ,  XVI  —  47  pag.)  vem  um  pequeno  poemn  intitulado  Auto 
da  Lavradora  de  Aijró  (já  impresso  1G78),  onde,  ainda  que  rapida- 
mente, se  allude  a  alguns  costumes  populares  [)orlnguezes.  Vamos 
aqui  arcliivar  esses  versos : 


I.  Ao  pé  do  monte  Ayró 
onde,  só  de  liúa  pegada. 

3.  deu  á  fonte  da  Virtude, 
que  alii  nasi'e  vida,  ã:  fama. 

S.  Pelo  caniiidio  de  cima 
com  liúa  tallia  apedrada, 

7.  pueaiinlio  de  Estremoz 
em  prato  de  porcelana. 

9.  Hia  Leonor  pela  sesta 
para  a  fonte  a  buscar  agon. 

II.  lauradora,  que  de  toilas 
he  por  férmosa  envejada 

13.  Leua  o  cabello  em  rolete, 
melenas  dependuradas, 

10.  gargantilha  de  belorios, 
com  lelicario  do  prata. 


17.  Colete  de  serafina. 
ílga  de  azebiche  á  banda, 

19.  ramal  de  coraes  no  braço, 
&  camisa  debuxada 

21.  A  todos  quantos  encontra 
com  seus  olhos  pren  le  &  matta, 

23.  Ã:  com  ser  escaca  a  moça 
dão  seus  olhos  muitas  dadas 

20.  Mais  panos  devo  ás  pedras 
do  que  á  tua  fermosura. 

27.  que  as  pedras  duras  não  logè 
tu  foges,  &  mais  és  dura. 

29.  Se  sabeis  que  vos  adoro 
nam  sejais  esquina  sempre, 

31.  que  amor  com  amoi-  se  apaga, 
&:  só  quem  paga  nom  deue. 


(^GMME.NTARIO 


Versos  1--4.  Parece  alludir-se  aqui  à  crença  vulgar  no  Minho  de 
que  certas  fontes  nasceram  de  uma  pegada.  (Vid.  as  minlias  Tra- 
dições pop.  de  Portugal,  [)ag.  71,  |  161.) 

Verso  7.  A  lonça  de  Kxlremoz  é  ainda  hoje  muito  fallada. 

Terso  15.  Na  Beira-Alta  usavam-se  oulr"ora  uns  folhos  em  volta 
do  pescoço  chamados  gargantdhas.  Tamberu  lia  ainda  hoje  gargan- 
tilhas de  ouro. 

Verso  16.  Os  relicários  ainda  hoje  muita  gente  os  traz  ou  ao 
pescoço  ou  n"um  rosário,  etc. 

Verso  18.  As  figas  de  azeviche  são  egualmente  vulgares.  Ha-as 
até  encastoadas  em  prata,  etc. 

Versú  24.  São  muito  temidos  os  maus  olhados  de  certas  pessoas. 
Existe  mesmo  uma  fórmula  que  se  diz  ás  creanças  quando  se 
vêem  pela  primeira  vez  : 

Renza-te  Deus. 

Bous  olhos  te  vejam 

E  os  máos  quebrados  sejam. 

O  A.  emprega  o  termo  dada.  As  dadas  são  certas  doenças  nos 
peitos  das  mulheres,  para  o  que  ha  vários  remédios  (Vid.  Carmina 


102  ENCYCLOPEDIA  REPUBLIGAINA 

magica,  na  Era-Nova,  ||  3.°  e  37.°);  mas  a  significação  do  termo 
n"este  verso  parece  ser  outra,  ser  até  mais  geral. 

Versos  26-31.  A  menos  que  não  houvesse  coincidência  de  pen- 
samento, o  qne  parece  pouco  provável,  o  A,  conheceu  a  poesia 
popular,  ou  pelo  menos  alguma  tradição  em  que  ella  se  funda  : 


Eu  lieide  amar  uma  peJra 
Deixar  o  teu  curação  ; 
Uma  pedra  não  me  deixa, 
Deixas-me  tu  sem  rasão. 


Amor  com  amor  se  paga, 
INunca  vi  coisa  mais  jusla  : 
f'aga-me  comtigo  mesma. 
Meu  amor,  pouco  te  custa. 


Excavando  nos  nossos  escriplores  antigos,  às  vezes  até  nos  mais 
insignificantes,  encontram-se  frequentemente  allnsões  ás  crenças 
populares. 

N'oulra  occasião  continuarei  estas  excavações  e  commentaríos. 


J.  Leite  ue  Vasconxellos. 


•  «\i    rà  A  Is 


IS  ena 


Ao  contemplarmos  uma  grande  cidade,  rica  de  tradições  históri- 
cas, e  a  vemos  povoada  de  numerosos  e  phantaslicos  edificios,  onde 
a  aite  com  a  sua  eloquência  prodigiosa  reúne  tudo  o  que  a  ima- 
ginação pode  crear  de  bello,  não  nos  lembramos  decerto  que  todo 
aquelle  coujuncto  maravilhoso  esconde  no  seu  seio  muitas  lagrimas 
e  muita  miséria  í 

Palácios  soberbos,  theatros  magestosos,  jardins  enriquecidos  das 
mais  raras  plantas,  carruagens  das  mais  luxuosas,  cruzando-se  etn 
varias  direcções,  mulheres  formosas  cheias  de  adornos  caprichosos 
e  sorrindo  com  alegria  e  orgulho,  vaidade  e  esplendor  em  tudo, 
um  mundo  emfim  grande  de  quanto  a  nossa  imaginação  pode  for- 
mar de  bello,  como  um  sonho  de  fadas ! 

Mas  é  este  o  mundo  real,  o  mundo  positivo!?  Não.  É  o  panno 
de  bocca  de  um  theati^o,  que  nos  apresenta  vários  quadros,  pintu- 
ras caprichosas,  fazendo-nos  suppôr  que  lá  dentro  esconde  mara- 
vilhas, não  encobrindo  mais  do  que  phanlasias,  que  hão  de  entre- 
ter e  illudir  um  momento  a  imaginação  do  espectador. 

A  par  do  luxo  e  do  orgulho  ha  a  miséria  e  a  humildade;  a  par 
do  rico  ha  o  pobre,  a  par  do  trabalhador  ha  o  occioso;  junto  do 
palácio  escoude-se  o  albergue  do  miserável;  emquanto  ims  vivem 
no  fausto  e  na  abundância  outros  gemem  de  fome  e  de  frio :  o 
mundo  tem  duas  faces,  uma  alegre  outra  triste ;  trevas  e  luz. 


A  MÍSERIA  103 


Como  se  orgaiiisou  tudo  isto ! 

É  um  problema  assombroso. 

Houve  (luas  humanidades? 

Não !  Protesta  por  um  lado  as  tradições,  por  outro  a  razão  des- 
preoccupada. 

Mas  o  facto  existe ;  ha  miseráveis  e  ha  poderosos.  Como  pode- 
remos estabelecer  o  equilíbrio  social?  Esta  desegualdade  ha-de  sem- 
pre existir,  não  ha  remédios  para  estas  causas,  para  estas  gran- 
des calamidades? 

A  cabeça  e  o  coração  nada  hão  de  poder,  todos  os  seus  esfor- 
ços hão  de  ser  inúteis? 

Não,  mil  vezes  não.  Esta  injusta  desorganisação  social  tem  a  sua 
origem  na  ignorância  do  homem ;  é  uma  aberração  da  sua  pró- 
pria natureza  ;  a  causa  é  sua  ;  é  o  mesmo  homem  que  hade  pela 
sua  intelligencia  dar  uma  nova  direcção  à  sua  vida,  emendando  e 
corrigindo  todos  os  erros,  que  o  levaram  a  constituir  uma  socie- 
dade imperfeita,  dividindo  uma  mesma  raça  em  dois  ramos,  con- 
vertendo uns  em  escravos,  outros  em  senhores;  collocando  o  tra- 
balho e  a  occiosidade  como  dois  elementos  sociaes. 

A  miséria  tem  existido  sempre ;  tem  por  berço  a  ignorância  : 
vae  lenta  e  gradualmente  desapparecendo  á  proporção  que  a  in- 
telligencia do  homem  se  cultiva, 

O  que  é  a  miséria?  É  por  ventura  uma  raça  especial? 

Um  producto  expontâneo  da  natureza?  Não.  D"onde  vem? 

De  todas  as  classes. 

Qual  a  sua  causa  ?  a  imprevidência  ;  a  deCQciencia  das  leis. 

Como  se  tem  querido  obstar  á  miséria? 

Os  povos  antigos,  sem  direcção  económica,  buscavam  mitigar  a 
fome  do  povo,  construindo  as  Pyramides  do  Egypto  e  organisando 
grandes  trabalhos  públicos.  A  Crecia  alimentava  os  seus  pobres, 
distribuindo-lhes  comestíveis. 

Mas  tudo  isto  não  fazia  senão  augmenlar  o  pauperismo. 

Roma  no  tempo  de  César  linha  320:000  pobres  sobre  440:000 
habitantes. 

A  miséria  antiga  é  assombrosa,  é  medonha !  O  pobre  trabalhava 
até  morrer,  sem  ter  na  vida  senão  lagrimas  e  humilhações! 

Era  elle  que  produzia  tudo  quanto  o  mundo  anligonos  legou  de 
grandioso,  mas  como  recompensa  não  encontrou  mais  do  que  as 
taboas  d"um  ergástulo.  Na  qualidade  de  escravo  era  o  escarneo  e 
irrisão  da  humanidade,  e  bastava  um  louco  capricho  dos  seus  se- 
nhores para  servir  de  pasto  ás  feras,  expirando  a  vida  para  recreio 
d'uma  multidão  sem  consciência. 

Nos  primeiros  séculos  do  chrisíianismo,  a  Gaulia  era  ainda  um 
estado  mais  miserável  do  que  o  Império  romano. 

Mas  ainda  assim  o  preceito  de  Jesus  —  amarás  o  teu  próximo 


lOi  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

cowo  a  ti  mfsmo,  veiíi  lançar  umas  novas  bases  sociaes,  porque 
os  bispos  firgiiendo  os  conventos  e  os  hospitaes,  abriam  aos  po- 
bres uns  eslabelecimenlos,  aonde  encontravam  quem  llies  mitigasse 
a  fome. 

A  UevoUição  de  1789  baseandu-se  sob  as  lbi'miilas  da  egualdade 
e  liberdade,  traçava  mais  largos  horisonles  ao  trabalho,  e  jnlgava 
por  este  meio  attenuar  as  desgraças  publicas. 

Alem  disto,  por  um  decreto  de  lliy-i  votava  annnalmente  uma 
verba  iniportante  |)aia  minorar  a  miséria  do  povo,  soccorrcndo  os 
inválidos  do  Irabalbo,  os  enfei'mos  nos  seus  domicilios  e  estabele- 
cendo hospitaes  e  asylos  para  creanças. 

iMn  cada  departamento  estabelecia  casas  de  detenção. 

O  que  a  Uevolução  não  poude  realisar  approveitou-o  Napoleão, 
que  pelo  decreto  de  5  de  julho  de  1808  estabelece  os  Depósitos 
de  mendicidade,  afim  de  acabar  quanto  possível  com  a  vida  occiosa 
dos  mendigos  das  ruas. 

Estas  medidas  porém  não  foiam  suílicientes,  porque  não  se  ins- 
piravam nos  verdadeiros  princípios  económicos ;  lundavam-se  na 
caridade,  que  ê  a  consequência  da  desgraça,  e  não  no  trabalho,  que 
é  a  lei  suprema  das  sociedades. 

São  muitas  e  variadas  as  causas  da  miséria  :  umas  independen- 
tes da  vontade  do  individuo,  outias  de  que  clle  è  unicamente  a 
origem. 

í*ode  e.\tinguir-se  completamente  a  miseiia? 

Não  é  possível. 

Hade  existir  sempre,  porque  ha  causas  permanentes,  que  nenhum 
governo  pode  deriubar  ;  mas  o  que  se  pode  é  fazer  que  o  numero 
de  desvalidos  seja  menor,  e  por  consequência  para  com  estes  já 
a  sociedade  terá  meios  mais  fáceis  para  lhe  attenuar  os  soffri- 
mentos. 

Donde  provém  a  miséria  ? 

Da  morte  do  operário  que  deixa  a  famiiia  na  desgraça ;  das 
crizes  do  trabalho,  das  oscillações  da  industria,  dum  anno  nefasto 
para  a  agricultura,  das  doenças,  dos  tributos  onerosos,  da  edade, 
que  invalida  o  braço  do  operário,  e  acima  d'isto  tudo,  da  impre- 
vidência de  todas  as  classes. 

A  miséria  como  já  dissemos  não  é  uma  classe  privilegiada,  é 
um  producto  de  todas  as  classes. 

E'  o  homem  que  desbarata  a  fortuna  e  deixa  a  famiiia  na  mi- 
séria sem  educação  nem  aptidão  para  luctar  com  a  adversidade ; 
é  o  operário  que  despresa  o  trabalho  e  não  se  importa  andar  co- 
berto de  farrapos  pelas  praças  pedindo  esmolla,  mas  vivendo  em 
completa  occiosidade  ;  é  o  vadio  a  quem  nunca  obrigaram  a  fre- 
quentar a  escola,  nem  a  aprender  um  otficio,  e  que  assim  vae 
passando  a  vida  sempre  ás  portas  do  crime. 


A  MISÉRIA  105 


Outras  provéeni  de  causas  fataes  e  accidenlaes,  verdadeiramente 
dignas  da  caridade  publica. 

Como  se  podem  altenuar  estas  cansas?  E"  organisando  hospi- 
taes.  eslal)elecendG  numerosos  asylos? 

Não ;  isto  não  basta. 

K  abrindo  escolas  e  officinas. 

Tios  can)pos  estabelecendo  colónias  agrícolas,  nas  cidades  esco- 
las protissionaes ;  obrigando  todos  a  estudar  e  a  trabalhar. 

Os  velhos  e  as  creanças  são  os  únicos  que  precisam  da  protec- 
ção do  estado. 

O  grande  numero  de  asylos,  que  por  toda  a  parle  tem  sido  ne- 
cessário estabelecer,  mostram  que  se  a  caridade  é  muita  a  des- 
graça tem  augmentado  também  de  um  modo  espantoso. 

Nos  povos  antigos  as  raças  privilegiadas  pela  fortuna,  precisa- 
vam que  as  classes  trabalhadoras  vivessem  na  escravidão,  porque 
assim  garantiam  o  seu  bem  estar;  na  actualidade,  como  já  não  ha 
escravos  nem  servos,  pretende-se  pela  caridade  esmagar  os  que 
lêem  fome,  não  se  lembrando  os  poderosos  de  hoje  de  que 
nem  sempre  o  estado  social  ha-de  ser  o  mesmo.  Lucano  dizia: /»<- 
mamiui  paneis  livii  gcnus;  mas  o  futuro  ha-de  escrever  somente, 
trabalho  e  fraternidade  no  lábaro  grandioso  da  festa  universal. 

E  necessário  combater  a  miséria,  porque  uma  sociedade  não 
pode  considerar-se  justa  quando  no  seu  seio  a  par  do  rico  desfru- 
ctnndo  todos  os  bens  e  confortos,  apresenta  o  miserável  sem  pão, 
sem  lar;  os  filhos  cobertos  de  farrapos  vagueando  nas  praças  sem 
direcção  moral  nem  intellectnal. 

É  necessário  procurar  os  meios  de  altenuar  a  desgraça  ;  se  a 
causa  está  principalmente  na  falta  de  previdência  de  todas  as 
classes,  procm^e-se  innociiiar  no  espirito  da  nova  geração  estas 
ideias  profícuas  e  grandiosas;  o  estimulo  ao  trabalho;  a  compre- 
hensão  peideita  e  útil  do  poder  da  coo[;eração. 

Ao  estado  cumpre  velar  pelos  intei'esses  geraes  de  todas  as  clas- 
ses ;  pode  muitas  vezes  uma  lei  ser  justa  para  uma  classe,  para 
uns  determinados  interesses,  mas  tornar-se  injusta  sob  o  ponto  de 
vista  do  seu  plano  vasto.  È  necessário  que  um  governo  tenha  a 
comprehensão  perfeita  da  justiça,  e  de  que  o  bem  estar  dos  povos 
deve  ser  a  lei  supi^ema,  saliis  reipiiblicac  suprema  lex  esto. 

Emquanto  a  sociedade  não  pode  attingir  o  verdadeiro  equilíbrio 
económico,  o  supremo  ideal  de  todos  os  pensadores  da  causa  do 
bem  da  humanidade,  torna-se  necessário  fundar  instituições,  umas 
que  sirvam  de  amparo,  outras  que  desenvolvam  a  industria  e  a 
agricultura,  e  finalmente  outras  lambem  que  combatam  de  frente 
os  vicios  e  industrias  criminosas,  que  a  lei  consente,  mas  que  ser- 
vem para  a  ruina  e  desmoi'alisação. 

Entre  as  primeiras  temos  os  asvios,  os  hospitaes,  as  creches, 

14 


106  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

OS  albeigues  de  inválidos,  e  são  lambem  de  siimma  utilidade  os 
deposilos  de  mendicidade,  não  para  serem  um  viveiío  de  miserá- 
veis, mas  sim  um  meio  cie  que  se  pode  servu"  a  sociedade  para 
obrigar  ao  trabalho,  muitos  braços  validos,  qne  a  occiosidade 
colloca  ás  porl.is  do  crime. 

Entre  as  segundas,  temos  as  escolas  em  todos  os  ramos,  e  as 
instituições  de  previdência  ;  a  associação  do  soccorro  na  doença  ; 
na  inhabilidade  e  as  caixas  económicas.  O  terceiro  grupo  pertence 
a  um  governo  justo  e  enérgico,  que  combate  a  usura,  a  especula- 
ção desenfreada  do  capital,  o  monopólio  das  industrias,  a  protec- 
ção dos  occíosos. 

Paia  esta  regeneração  social  devem  todos  cooperar ;  nem  o  in- 
dividuo só  a  pode  conquistar,  nem  o  Estado  isoladamente  a  con- 
quistará. A  felicidade  publica  é  nm  producto ;  [jiecisa  de  dois  fa- 
ctores. E'  um  grande  edifício,  a  base  é  a  inslrucção. 

Costa  Gooldoltuim. 


fio  Jaterniezza 

(H.  Heine) 
I 

Quando  os  meus  olhos  tristes  vertem  lagrimas, 

Nascem  flores  no  pranto 
Quando  suspiro,  nos  suspiros  ouve-se 

De  rouxinoes  um  canto. . . 

E  tu  se  me  attendesses 
Do  meu  amor  as  preces, 

Todas  para  ti  eram,  rosa  mystica. 

As  lacrimosas  flores ; 
E  na  varanda  os  rouxinoes  dulcíssimos 

Te  cantavam  amores  I 

II 

Dos  meus  prantos  compuz  uma  canção 

Sonora,  delicada. 
Que  voasse  direita  ao  coração 

Da  minha  doce  amada  ; 

Partiu  ;  porém  voltou  logo  a  gemer. . . 

E,  mísero  que  eu  sou  !, 
Ella.  a  l)'íste  canção,  nem  quiz  dizer 

O  que  lá  dentro  achou  I 


J.  Leite  de  Vasconcellos. 


o  EJNTEHUO  DE  BERNARDO  REPOLHO  107 


Ô  eaterro  oa  Scnitirda  ífieRalaa 

(Do  111  volume  da  (Jomedia  do  Campo  por  Bento  Moreno) 

N'essa  mesma  tarde  foram  as  confrarias  buscar  os  ílefiintos.  Era 
uma  consideração  pelo  nome  de  Bernardo  qne  era  irmão  remido ! 
Adiante  de  todas  vinha  a  do  Santissimo  Sacramento,  de  opas  ver- 
mellias  e  a  cruz  de  prata  alçada  reluzindo  ao  sol.  Imii  seguida  des- 
filava a  de  Nossa  Senhora  do  Carmo,  de  opas  brancas  com  murças 
azues,  da  còr  do  ceu  desbotado  de  agosto.  Na  bandeira  que  a  dis- 
tinguia estava  pintada  a  Virgem,  com  a  sua  ridente  face  menineira, 
tendo  pendente  de  uma  das  mãos  um  rosário,  e  da  outra  uns  ben- 
tinhos!  Por  fim  spgnia-se  a  confraria  das  Almas,  com  a  sua  ban- 
deira dolorosa  na  frente !  lira  ali  lepi-esenlado  o  (juadio  terrifi- 
cante do  purgatório  :  —  um  rei  de  coroa  poderosa  e  de  longas 
barbas  patriarchaes,  apoiava  a  sua  mão  sobre  o  hombro  de  um 
bispo  mitrado,  coberto  de  uma  rica  capa  de  ouro,  o  qual  estava 
mais  no  funJo  das  chammas,  soffrendo,  talvez  sem  bastante  resi- 
gnação, que  o  monarcha  chegasse  primeiro  á  bemaventurança  !  Ao 
lado  d'este  augusto  personagem,  uma  peccadora,  com  as  longas 
madeixas  de  Magdalena,  dando  a  mão  a  um  homem  lubricamente 
calvo  e  de  bigode  e  pêra,  trepavam  por  entre  linguas  de  fogo,  de 
uma  iracundia  terrível,  em  ôca  e  vermelhão!  Todos  estes  condem- 
nados,  e  ainda  outros  sem  distincção,  erguiam  olhos  supplicantes 
e  estendiam  as  mãos  abertas  a  um  anjo,  que  eslava  no  alto,  pe- 
sando serenamente  as  culpas  e  os  soffriíiientos  de  cada  um,  para 
lhes  outorgar  a  remissão  promettida  ! . . . 

Da  confraria  da  Senhora  do  Carmo,  destacaram-se  quatro  irmãos 
para  tomarem  conta  do  cadáver  de  Bernardo  Repolho,  e  outros 
quatro  da  confraria  das  Almas  que,  por  caridade,  se  encarregaram 
de  conduzir  o  do  engeitado  . . .  E,  quando  tinham  tomado  sobre 
os  seus  hombros  valentes  os  dois  esquifes,  partiram  pelo  caminho 
adiante,  para  a  igreja,  conduzindo  os  defuntos.  Atraz,  na  casa  da 
viuva,  ficou  o  choro  alarmante  de  Kngracia,  e  das  visinhas  que  a 
acompanhavam,  misturando-se,  na  larga  amplidão  ao  triste  dobre 
dos  sinos  que  echoavam  de  quebrada,  em  quebrada,  com  a  sua 
nota  plangente  e  de  uma  harmonia  rebelde  ! 

Nu  instante  em  que  o  fúnebre  acompanhamento  subia  pela  en- 
costa da  igreja,  o  António  Fogueira  entrava  na  freguezia  !  Havia 
mais  de  oito  dias  que  andava  por  fora,  na  sua  vida  vagabunda  de 
torquilha  . . .  D'esta  vez  trazia  uma  égua  nova,  muito  fugideira, 
que  lhe  vendera  o  Rio-Tinto. 


1,08  ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

O  loque  funeiaiio  dos  sinos  e  o  acompanhamenlo  qiie  elle  viu 
logo  do  longe,  snrprelienden-o,  fazendo-o  parar,  e  teve  nm  baque 
no  coração  !  O  primeiro  esclarecimento  acerca  do  occorrido,  foi-Jhe 
dado  por  uma  mntlier  veília  que  vinha  pelo  caminho  para  o  lado 
d'elle,  vergada  sob  o  [)eso  de  um  grande  molho  de  herva  e  que, 
antes  de  sei"  interrogada,  lhe  disse  encostando-se  com  o  feixe  a 
um  muro  para  descançar : 

—  Aquelle  agora,  meu  rico,  do  que  precisa,  é  de  muita  fartura 
de  missa,  por  aquella  alma !  —  observou-lhe  depois  de  um  «ah!i> 
de  eslafada  a  velha  Vicencia. 

—  Mas  quem  foi  que  morreu'?  —  indagou  o  Fogueira. 

—  Ah!  .>im,  tu  não  sabes! — completou  a  velha  depois  de  ex- 
pellir  o  seu  cançaç.o  asmático!  Andas  sempre  lá  pelas  feiías,  náo 
admira.  Pois  toca-te  pela  vestia  . . .  Foi  teu  pae  Bernardo,  de  uma 
grande  desgraça  I 

O  adoptivo  do  Repolho  impallideceu  rapidamente,  deixando  cair 
as  rédeas  no  pescoço  da  égua  !  Vicencia  concluiu : 

—  ...  Uma  grande  desgraça,  sim  senhor,  é  como  te  digo.  Caiu- 
Ihe  houte  em  cima  da  cabeça,  a  elle  e  ao  vosso  rapaz,  o  Chico,  o 
monte  da  Cham,  quando  lá  foram  ao  barro  I  Se  tu  não  andasses 
sempre  p(  r  essas  feiras,  em  jogatina,  talvez  que  o  pobre  home 
não  fosse  lá,  com  esse  tempo ! 

F  depois,  voltando-se  salientemente  para  o  Fogueira,  exclamou 
de  um  modo  reprehensivo  : 

—  Ora  tu  não  mudarás  de  rumo!  Vè  se  te  confessas,  que  andas 
n'uma  vida  de  home  perdido.  Tem  vergonha  n"essa  cara  !  Faz  uma 
confissão  jaral,  .que  vem  ahi  os  missionários,  grande  maroto ! 

O  Fogueira,  que  era  naturalmente  irritável,  sentiu  subir  por  elle 
acima  uma  forte  ira  contra  a  velha  Vicencia.  Porém,  refreando-se, 
respondeu  lhe  com  uma  indignação  latente  : 

—  Você  que  lhe  imporia  o  que  eu  faço,  seu  diabo  de  coruja  ! 
Vou-lhe  lá  pedir  alguma  cousa?!  Se  não  fosse,  não  sei  porquê,  se 
não  fosse  por  causa  d'aquelle  que  acolá  vae  (alludia  ao  enterro 
que  subia  a  encosta),  eu  lh"o  diria,  seu  grande  diabo  !  . . . 

Uma  culera  viva  apoderoii-se  rapidamente  da  velha,  que  dei- 
xando cair  o  feixe  da 'herva  no  chão,  principiou  a  gesticular,  sem 
encontrar  no  momento  as  verdadeiras  palavras  indignadas,  com 
que  desejava  aggredir  o  Fogueira  !  Como  é  que  um  homem,  tão 
culpado  como  este  maroto,  que  só  andava  pelas  feiras  em  jogatina 
e  com  más  mulheres,  se  atrevia  a  ter  arrogâncias  diante  dos  que 
o  reprehendiam  ?!  Por  isso  ella,  com  uma  voz  gritada  e  com  os 
■  punhos  ameaçadores,  o  increpou,  com  uma  pedra  na  mão: 

—  Ah  !  grandíssimo  ladrão,  o  que  tu  precisavas  era  de  uma 
cadeia.  Talvez  me  queiras  bater,  excommungado!  Ora  vem  para 
cá,  que  le  prego  com  esta  na  testa  !  Cuidas  que  eu  lenho  medo. 


o  ENTERRO  DE  BERNARDO  REPOLHO  109 


slafermo?!  Um  ladrão,  que  não  faz  senão  gastar  o  (jue  aqnelle 
bruto  (alludia  também  ao  morto  que  ia  no  esquife)  andou  por  atii 
a  ganhar  no  trabalho.  Foi  elle  bem  tolo  em  mourejar  p'ra  ti  !  Mas 
deixa,  meu  condemnado  do  inferno,  que  o  senhor  regedor  e  o  se- 
nhor padre  Beiral  te  ensinarão  !  Já  está  prompta  a  farda  qne  has 
de  ter  ás  costas  !. .  .  Imi  vou  dizer  já  ao  tio  António  i^apatrás,  que 
te  vá  prender. 

Porém  esta  indignação  palavrosa  de  Vicencia,  perdeu-se  no  ar. 
O  Fogueira  só  lhe  percebeu  que  ia  ser  preso;  mas  a  este  tempo 
já  tinha  picado  a  égua  pelo  atalho  acima,  para  entrar  em  casa, 
pela  matta,  com  o  fim  de  ninguém  o  ver.  E  quando  se  viu  só  no 
caminho,  a  distancia  da  velha,  cuja  voz  ainda  Ih^  chegava  aos  ou- 
vidos n'uma  gritaria  de  fúria,  o  filho  adoptivo  do  Bernardo  Repo- 
lho considerou  com  a  reflexão  própria  dos  momentos  responsáveis: 

—  Mas  para  que  diabo  foi  elle  buscar  o  barro,  com  um  dia  como 
esteve  houte?  Para  que  se  foi  aquelle  maluco  metter  ao  perigo'?! 
—  exclamava  sem  comprehender,  voltado  mentalmente  para  si 
mesmo ! 

F,  considerando  n"ist()  alguns  segundos,  parado,  a  olhar  fixa- 
mente para  um  muro  musgoso,  concluiu: 

—  É  uma  de  mil  diabos!  Que  grande  bucha  ! 

Dispunha-se  a  dirigir-se  á  cancella  da  malta,  quando  o  susteve 
a  voz  conhecida  do  João  do  l\ego,  que  lhe  appareceu  de  cima  do 
muro  do  caminho  : 

—  Espera  ahi,  ó  Tone !  Ó  rapaz,  espera  ! 
E  aproximando-se  accrescenlou  : 

—  Então  teu  pae  lá  ficou  arrebentado  debaixo  do  barro  e  o  ra- 
paz tamem  ! 

—  O  rapaz  tamem  . .  .  — repetiu  o  Fogueira  absorvido,  mas  sem 
commoção. 

—  Tamem.  Pois  tu  não  sabes  nada? 

—  Sei,  disse-me  ali  em  baixo  a  Vicencia,  aquelle  diabo  que  me 
metteu  cá  umas  cousas  por  dentro,  que  . . .  !  Yalha-a  uni  demó- 
nios ! 

O  do  Rego  continuou  esclarecendo : 

—  Isso  não  faz  monta.  Ella  é  tola,  tu  bem  sabes.  Mas  houte  foi 
ahi  na  freguezia  o  dia  de  juizo !  Juntou-se  povo,  que  povo! — o 
Capatrás,  o  Manco,  o  çurgião  ...  o  poder  do  mundo!  Uesenter- 
raram-nos;  porque  elles  ficaram  debaixo  de  um  monte  de  barro, 
da  altura  d'este  muro.  Depois,  quando  os  trouxeram  para  casa  em 
charola,  em  cima  de  duas  tábuas,  Id  a  tua  velha  fez  ahi  uma  ber- 
raria de  deitar  a  casa  abaixo.  Fazes  lá  idéa  !  Era  muita  gente  a 
querer  agarrar  n'ella  ;  mas  principiou  a  estrabuchar  e  a  morder, 
por  não  a  deixarem  ir  abraçar  o  sen  home!,..  Ora  tu  bem  sabes  que 
a  gente  não  a  devia  deixar,  e  mesmo  o  senhor  padre  Beiral  e  o 


no  ENCVCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Pandegn  díssuram  (|U('  não  deixassem  ;  porque  lhe  podia  dar  al- 
giini  sliipor  !  Hoje  tem  custado  a  ter  mio  n'ella,  quer-se  ir  deitar 
a  alogai-;  mas  a  minha  mãe.  que  lá  eslá,  e  outra  gente  não  dei- 
xam. Quando  a  seguram,  piincipia  a  chorar  aos  gritos,  como  se 
tivesse  o  diabo  e  chama  muito  por  li!  .lá  dizem  que  a  ahna  de  leu 
pae  lhe  tintiou  por  algum  sitio  ...  Se  ó  verdade  temos  que  rir; 
porque  ha  de  custar  a  pòr-lha  íóra !  Isso  de  entrar  uma  alma  no 
corpo  lia  gente  é  jieior  t|ue  maleitas.  Safa  ! 

O  Fogueira  ficou  mais  triste,  mais  acabrmdiado  com  estas  re- 
velações. Principion  a  apoderar-se  delle  um  terror,  um  medo  . . . 
—  o  medo  de  que  a  alma  de  seu  pae  adoptivo  tivesse  realmente 
entrado  no  corpo  de  sua  mãe  i-jigracia  !  K  com  um  ar  scismalico, 
de  homem  abatido,  puchava  pela  longa  barba,  airepelando-a,  e 
consideraudo-se  infeliz ! 

O  João  do  Rego,  no  mesmo  tom  de  confidencia,  rematou  : 

—  E  o  diabo!  Tra/.es  tu  [)0i'  ahi  cigarros?  Conn)  vens  da  villa 
has  de  trazer,  .\gora  foi  a  feira  dos  nove.  Vens  de  lã?  Trazes  uma 
burra  chibante! 

O  António,  passando-lhe  automaticamente  o  cigarro  disse:  «es- 
tive... comprei...»  Depois  perguntou-lhe : 

—  Mas  diz  que  me  querem  prendei!? 

—  Qual  prender!  deixa  (aliar!  Kslà  um  papel  na  porta  da  igreja; 
mas  é  pia  gente  ir  a  Yianna,  por  causa  dessa  cousa  da  tropa. 
Meu  pae  arranjou  cartas  de  fidalgos  da  villa  pra  me  livrarem,  cá 
a  mim,  em  Vianna  ;  porque  bniou  com  elles  no  deputado !  Eu  vou 
e  mais  elle,  domingo,  por  ahi  a  baixo,  á  speçãn.  Vem  coa  gente, 
que  faremos  pandega  !  ?  O  (lapatrás  disse  que  tu  tamem  has  de 
ir.  Ainda  lionle  faltou  no  adro,  que  se  tua  mãe  não  vender  um 
campo  p"ra  te  livrar,  tens  de  andar  com  a  muchila  ás  costas. 

E  concluiu  n'um  tom  de  voz  convidativo : 

—  Mas  a  tua  velha  que  venda  o  campo.  Ella  pVa  que  o  quer 
senão  p'ra*ti?!  Diz-lhe  que  venda  e  vamos  todos  Ida  essa  Vianna! 

Despediiam-se.  O  Fogueira  picou  a  égua,  explicando  ao  do  Rego, 
que  queria  entrar  pelo  lado  da  malta,  para  se  não  encontrar  com 
o  enterro  (jue  ia  no  caminho.  Depois,  quando  chegou  á  cancella,  a 
égua  transpol-a,masenlrou  desconfiada,  reparando  em  tudo,  olhando 
de  Iravez  para  os  objectos!. . .  O  António  forçou-a  a  caminhar  di- 
zendo lhe  :  «Clió  diabo  anda  p*ra  diante!»  E  assentando-lhe  duas 
lambadas  nas  ancas,  esporeou-a  com  força!... 

Porém,  logo  adiante,  o  animal  estacou  com  mais  teimosia,  en- 
carando excentricamente  com  um  velho  carvalho  nodoso.  O  Fo- 
gueira, como  a  égua  era  nova  e  como  o  momento  não  era  próprio 
para  lhe  tirar  as  teimas,  desceu  cordatamente,  pensando  em  a  le- 
var á  rédea.  Para  isso  principiou  a  puchal-a,  com  brandura,  de  um 
modo  carinhoso,  condescendente,  fallando-lhe  com  moderação.  Po- 


o  ENTERRO  DO  BERNARDO  REPOLHO  111 

réiii  ella  fincon-se  nas  mãos,  levaiUoii  a  cabeça,  encostou-se  á  re- 
Iranca  e  piincipioii  a  recuar  resfolganJo  eslrontlusaaieote  pelas 
ventas  dilatadas,  ulliando  esgazeada  e  co;n  uma  tremura  nervosa 
n3s  beiços!  O  António,  conhecendo  que  á  força  a  não  faria  trans- 
por a  matta  povoada  de  carvalhos,  que  produziam  sombras  ame- 
drontadoras,  pensou  em  redobrar  de  carinhos  e  attenções,  desejou 
famiharisal-a  com  a  velha  arvore  nodosa  que  a  espantara  !.  .  .  Para 
isso  animava-a,  fallamio  lhe  n'uma  voz  de  cada  vez  mais  convida- 
tiva, puchando-a  moderadameníe  pelas  rédeas,  para  a  aproximar 
do  objecto  suspeito...  1'orém  ella,  entendeu  que  devia  recuar 
ainda  mais  e,  n'um  momento,  principiou  a  levantar  as  mãos,  a  agi- 
tar mais  freneticamente  a  cabeça,  a  espetar  com  mais  desconfiança 
as  orelhas,  a  curvelear.  . .  e  terminou  |)or  atirar  duas  valentes 
e  corajosas  parelhas  de  couces  á  cancella.  partindo-a. 

O  filho  da  Engracia  teve  n"este  momento  uma  enorme  cólera  e 
veiu-lhe  rapidamente  a  idéa  de  tirar  a  sua  comprida  navalha  e 
abrir  a  barriga  da  égua,  como  em  outra  occasião  íizera  a  um  ca- 
vallo  !  Porém,  a  rellexão  aconselhou-o  a  não  deixar  apparecer  as 
suas  violências  naluraes. . .  O  momenlo  não  era  opporlimo  —  re- 
conhecia-o  elle  perfeitamente!...  Ouvia  dali  mesmo  sua  mãe,  gri- 
tar com  desespero,  acompanhada  pelo  choro  cantado  de  Iodas  as 
visinhas,  que  llie  faziam  companhia  neste  momento  doloroso.  Toda 
a  sua  idéa  era  metter,  sem  ser  presentido,  a  égua  na  côrle  do 
gado,  e  depois,  quando  em  casa  tudo  estivesse  mais  Iranquillo  e 
a  choradeira  acabada,  entraria  pela  porta  dentro,  inesperadamente 
e  de  supilo!...  a  Atinai  de  contas  —  considerava  —  isto  tem  de  ser 
e  tem  I»  Por  isso,  para  não  augmentar  mais  a  desordem  que  ha- 
via um  quarto  de  hora  se  apoderara  do  seu  espirito,  a  desordem 
que  o  cercava  por  todos  os  lados,  optou  por  amansar  a  égua  em 
vez  de  a  matar,  e  para  isso  pi  incipiou  a  cofiar-lhe  as  crinas,  pas- 
sando-lhe  pela  anca  tremula  a  mão  benevolente  e  pródiga  de  afa- 
gos, com  a  brandura  insuspeita  da  mão  de  um  amigo !  Conseguiu 
deste  modo  acalmal-a,  moslrar-lhe  de  perlo  o  velho  carvalho,  che- 
gar-lhe  ás  ventas,  ainda  tremulas,  a  casca  gretada,  (jue  exhalava 
um  forte  cheiro  de  humidade  e  de  bolor.  Conseguiu  o  que  desejava; 
mas  a  égua  atravessou  o  caminho  da  matta,  sempre  desconfiada, 
olhando  de  soslaio,  resfolgando  e  levantando  a  cabeça  ao  menor 
ruido.  O  António  chegou  a  mettel-a  na  corte  do  gado,  prendendo-a 
calculadamente  a  distancia  dos  toiros,  que  permaneceram  a  olhar 
vagamente,  com  os  seus  olhos  redondos,  como  bogalhos  e  reluzen- 
tes como  vidro. 

Pelo  barulho  qne  tudo  isto  produziu,  Engracia  que  já  eslava  ca- 
lada, ficou  advertida  da  presença  de  seu  filho!.. .  Por  isso,  tanto 
ella  como  as  visinhas  que  a  acompanhavam,  tornaram  a  desatar  a 
sua  dôr  recente,  ena  altos  gritos  cheios  de  mortificação  e  que  se 


I.i2  EiXCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

estendiam  pelos  campos!  Quando,  inslanles  depois,  o  António  en- 
trou na  cosinha,  a  viuva  do  Bernardo  agarroii-se-lhe  ao  pescoço, 
dizendo  muitas  vezes:  «Meu  rico  home  do  meu  coração,  que  te 
não  torno  mais  a  ver !  Perdi  o  meu  rico  liome  !  Um  santo  como 
elle  era  !  uma  desgraça  assim  !» 

Esta  paixão  intensa  e  desgrenhada  ei'a  commnnicante,  e  por  isso 
o  António  saiu  dos  braços  de  sua  mãe,  para  se  deitai  de  barriga 
sobre  a  caixa  da  broa,  com  o  rosto  escondido  enlre  as  mãos, 
dando  soluços  alTiontosos  e  dilacerantes!...  As  mulheres,  que 
acompanhavam  tlngracia  principiaram  a  dizer  que  elle  era  muito 
bom  rapaz,  muito  amigo  de  Bernardo,  tão  amigo  como  se  tora  fl- 
Iho  verdadeiro!  Gabavam  muito  este  ciioro  aíllictivo  de  António  e, 
acercandose  delle,  com  as  mãos  escondidas  nos  aventaes,  cori- 
solavam-n"o,  lembrando-lhe  que  a  desgraça  acontecera  por  vontade 
de  Deus  Nosso  Senhor,  e  confirmavam  que  todas  ellas,  que  ali 
estavam  a  chorar  pelo  Bernardo,  também  haviam  de  morrer  e  tal- 
vez bem  cedo!.  • .  E  depois  d"estas  palavras  sensatas  aconselha- 
vam-n'o  a  fazer  uma  confissão  geral  com  os  missionários ;  porque 
era  muito  bom  a  gente  andar  sempre  preparada  para  ir  à  pre- 
sença do  Senhor  Todo  Poderoso!  António  parece  que  não  gostou 
d'esta  advertência,  em  que  presumia  uma  censura  á  sua  vida  des- 
regrada, e  disse-lhes  com  certo  desabrimento,  com  modo  brusco 
e  mal  creado,  sempre  deitado  de  barriga  sobre  o  caixão  da  broa: 

—  Callem-se !  deixem-me  cá.  Ponham-se  agora  ahi  com  loas  e 
aquellas !. . . 

E,  desde  este  momento,  o  seu  choro  foi-se  abrandando  gradual- 
mente, e  um  silencio,  de  vez  em  quando  interrompido  por  um  «ai 
Jesus!»,  restabeleceu-se  na  cosinha.  Engracia,  com  os  olhos  enxu- 
tos, mas  evidentemente  abatida  o  mortificada,  foi  como  um  cão  re- 
prehendido,  sentar-se  ao  canto  da  lareira,  onde  havia  uma  fogueira 
crepitante  e  viva,  procurando  o  ponto  mais  escuro  e  modesto, 
d'onde  atiçava  o  lume,  continuando  a  dar  ais  lastimosos  e  suspiros. 
Passados  alguns  minutos,  quando  as  brazas  estavam  bem  vivas, 
bem  mordentes,  disse  ella  mesma,  com  uma  voz  serena  e  apasi- 
guada,  para  Genoveva,  a  mãe  do  João  do  Rego: 

—  O"  mulher,  vè  se  lhe  deitas  aqui  n'este  lume  uma  posta  de 
bacalhau.  Esse  moço  ha  de  vir  com  fome. 

E,  como  o  António  ainda  de  bruços  sobre  a  caixa  do  pão  se  re- 
mexeu, expellindo  o  ultimo  suspiro  da  sua  angustia,  ella  exclamou 
n'uma  voz  mais  secca,  mais  sincera: 

—  Meu  rico  home  que  o  não  torno  mais  a  ver  até  ao  dia  de 
juizol  Tomara  eu  que  o  dia  de  juizo  fosse  já  hoje,  para  só  tornar 
a  vêr  o  meu  rico  home,  que  foi  morrer  de  uma  desgraça  !. . .  Uma 
cousa  assim  !. . . 

Porém  as  outras  pessoas  ficaram  caladas...  Não  tendo  já  mais  la- 


o  ENTERRO  DE  BERNARDO  REPOLHO  113 

grimas  para  chorar,  as  mulheres  visinhas  principiaram  a  contar  ao 
António,  como  tudo  se  tinha  passado,  como  acontecera  aquillo ! 
Elle,  impellido  por  uma  curiosidade  inconsciente  e  com  o  fim  de 
as  escutar  com  mais  attenção  vollouse  de  ilharga  e  olhava  . . . 
Depois,  como  a  narrativa,  vivamente  colorida  pelos  commentarios 
e  pela  gesticulação,  o  interessava,  sentou-se  e  escutou  até  ao  fim, 
com  as  mãos  apertadas  entre  os  joelhos.  A  Genoveva,  mãe  do 
João  do  Rego,  era  quem  o  certificava  de  todo  o  acontecido,  e  ape- 
sar de  ser  muito  difusa  e  de  entremetter  observações  sem  valor  e 
rodeios  pueris,  o  António  ouvia-a  :  O  Bernardo  era  um  homem  sem 
esperteza  nenhuma,  um  molanqueiro,  um  deixa-te  ir  . . .  Muito 
bom  homem,  muito  honrado,  muito  temente  a  Deus,  de  muito  boas 
contas  . . .  isso  sim,  senhor.  Verdade,  verdade  . . .  não  se  contava 
outro  na  freguezia!  Mas  préstimo  não  tinha  muito,  não  tinha 
mesmo  nenhum.  Todo  o  mundo  o  levava  para  onde  queria,  um 
grande  cebolla  é  que  era  I  Esta  desgraça  que  lhe  succedera  ti- 
nha sido  prevista  pelo  Joaquim  da  Moita,  que  lhe  disse  ao  vel-o 
encostado  á  barreira,  que  tinha  umas  bocas  escancaradas,  que 
mettiam  medo:  «Home,  tu  ahi  não  estás  seguro!  Vè  lá  no  que 
te  raelles,  Bernardo».  Elle  não  quiz  fazer  caso  e  respondeu  :  «Ora 
Dão  ha  de  ter  duvida  . . .».  O  pago  foi  o  que  se  viu,  ficar  esbor- 
rachado. 

O  Fogueira,  ouvia  tudo  isto  com  uma  seriedade  inconsciente  e 
bronca.  Que  diabo  de  toleima,  a  de  seu  pae,  de  se  ir  metler  de- 
baixo da  barreira  que  caiu  !  Uealmente  sempre  era  um  banasola. 
que  não  tinha  préstimo  para  nada!...  E  deixando-se  n'esta  cor- 
rente de  pensamentos  vagos,  impulsionado  pela  palavra  quente  da 
tia  Genoveva,  e,  como  já  lhe  haviam  posto  o  bacalhau  sobre  a 
caixa,  principiou  a  comer  de  vagar,  com  uma  apparente  inappe- 
tencia  . .  .  Tinha  o  olhar  vagaroso  e  a  mastigação  demorada,  ape- 
sar de  ter  fome.  De  vez  em  quando,  Erigracia,  exclamava  pelo 
«seu  rico  home»,  que  não  tornaria  mais  a  ver,  até  ao  dia  de 
juizo!...  Genoveva,  que  durante  a  narrativa  se  enchera  de  espi- 
rito hostil  contra  o  fallecido  Bernardo,  disse  reprehensivamente, 
para  a  viuva  : 

--Cala-te  mulher!  Tamem  já  é  de  mais!  Já  aborreces  com 
tanto  «meu  rico  home!»  (E  fez  um  esgar  de  troça.)  Que  se  não 
fosse  lá  metter  I  Que  não  fosse  pascacio  I 

Depois  concluiu  voltada  para  o  António : 

—  Olha,  elle  se  morreu  é  porque  quiz  !  era  um  bô  home,  um 
bò  serás ;  mas  teimoso  até  ali !  Deus  o  tenha  no  céu,  que  todo  o 
mal  foi  d'elle  ;  mas  verdade,  verdade,  para  onde  lhe  desse  o  tou- 
tiço, era  para  lá,  como  um  casmurro.  Agora  que  está  na  outra 
vida,  Deus  o  tenha  em  bò  logar.  Um  Padre  Nosso  por  sua  alma  é 
que  devemos  resar  ...  Do  que  Bernardo  precisa  é  de  muito  rc- 

15 


114  ENGYGLOPEDIA  REPUBLlCAiNA 

sario  e  de  muitas  missas,  que  quantas  mais,  melhor.  «Padre  Nosso 
que  estaes  no  céu,  santificado  seja  o  vosso  nome,  ele. . . » 

Todos  a  acompanhavam  numa  voz  ciciada,  e  com  as  pálpebras 
meio  cerradas.  Neste  niomenlo  ouviu-se  o  dobre  funerário  e  la- 
mentoso dos  sinos.  Era  o  signal  de  que  os  olficios  tinham  acabado 
e  de  que  o  corpo  ia  ser  dado  á  sepultura  !  Uma  das  amigas  de 
Engracia  observou  : 

—  Elle  là  vae  pra  cova.  coitado!  Olhem  que  ninguém  sabe  onde 
as  tem  armadas!. . .  Ainda  honte,  ia  em  cima  do  carro,  muito  so- 
cegado,  e  já  hoje  dorme  na  greja  pr*a  toda  a  vida  1  Ah !  morte 
negra,  morte  negra  que  assim  os  vaes  levando  a  um  e  um  ! 

Engracia  tornou  a  chorar  alto  e  o  António  atirou-se  novamente 
de  bruços  sobre  a  caixa  do  pão,  conservando-se  muito  tempo  sem 
se  mexer  . . .  Naquelle  posição  adormeceu  de  fatigado  pela  jor- 
nada ! 

Bento  Moreno. 


A  civíUsação  nrena 


É  na  Grécia  que  começa  o  domínio  das  sciencias  positivas.  Pelo 
seu  clima,  pelo  génio  de  seu  povo,  pela  sua  situação  geographica, 
por  todas  as  condições  mesologicas  emfim,  foi  a  Grécia  a  mais 
brilhante  civilisação  da  antiguidade.  O  desenvolvimento  scientifico 
começou  em  Mileto,  colónia  grega  da  Ásia  Menor,  com  a  escola 
jónica,  passou  depois  a  Alhenas  e  por  ultimo  a  Alexandria.  A 
causa  de  terem  principiado  em  Mileto  os  progressos  scienliíicos 
da  Grécia  esià  na  situação  respectiva  das  colónias  com  relação  á 
metrópole.  A  Grécia  pela  sua  configuração,  formada  de  pequenas 
ilhas  e  dividida  em  pequenos  reinos  era  essencialmente  guerreira 
e  conquistadora  e  por  tanto  pouco  apropriada  ao  estudo  das  scien- 
cias ;  as  luctas  constantes  entre  os  estados  Helénicos,  as  rivalida- 
des entre  Athenas  e  Sparta,  occupavam  as  principaes  forças  em 
prejuiso  do  maior  desenvolvimento  humano.  Já  não  succedia  o 
mesmo  com  as  colónias  gregas  onde  a  paz  era  quasi  permanente, 
o  que  dava  logar  muitas  vezes  a  uma  civilisação  precoce,  como  a 
de  Mileto,  Epheso,  etc.  Foi  em  Mileto  que  nasceu  Thales,  um  dos 
sete  sábios  tão  decantados  e  que  foi  o  fundador  da  philosophia 
grega  e  um  dos  primeiros  cultivadores  das  sciencias  na  Grécia.  A 
este  seguiram-se  Anaximandro  e  Anaximenes,  ambos  malhemati- 
cos  e  astrónomos  de  mérito. 

A  situação  marítima  da  Grécia,  levando  o  povo  a  aventurar-se 
a  viagens  e  descobertas,  fez  com  que  elle  observasse  attentamente 
a  natureza  e  adquirisse  assim  um  maior  numero  de  noções  reaes 


A  CÍViLISAÇAO  GREGA  113 

das  cousas,  abandonando  pouco  a  pouco  as  concepções  maravilho- 
sas dos  seus  deuses  olympicos.  Os  gregos,  percorrendo  em  seus 
navios  o  Mediterrâneo  e  o  Mar  Negro,  estabelecendo  colónias  á 
beira  mar  e  expondo-se  aos  contratempos  das  ondas,  poderam 
contemplar  o  céo  sem  ser  através  da  cortina  luminosa,  mas  falsa 
do  polytheismo.  Começou  então  a  prevalecer  a  experiência.  A 
poesia,  e  em  geral  a  arte  grega,  é  um  exemplo  frisante  do  poder 
e  da  influencia  que  a  natureza  exerceu  directamente  sobre  o  gcnio 
da  Grécia.  Toda  a  poesia-  helénica,  e  quando  digo  toda,  refiro-me 
áquella  que  ainda  hoje  chama  a  ai  tenção  das  intelligencias  cultas, 
toda  a  poesia  grega  é  a  descripção  fiel  ou  —  deixae-me  exprimir 
assim  —  realista  do  meio  em  que  viveram  os  poetas.  Ampere, 
quando  percorreu  a  Grécia,  teve  occasião  de  ver  que  os  poetas 
gregos  beberam  a  inspiração  na  natureza  que  os  rodeava  e  que 
elles  descreveram  com  a  maior  verdade  e  precisão  artistica.  E  esta 
a  causa  da  superioridade  poética  da  Grécia. 

Esta  contemplação  rigorosa  da  natureza  que  produziu  os  bellos 
poemas  de  Homero,  as  admiráveis  poesias  de  Hesiodo,  nota-se  do 
mesmo  modo. nos  seus  historiadores,  que  descreveram  tudo  o  que 
observaram  nas  suas  viagens  com  umas  cores  tão  vivas  de  verda- 
de e  com  uma  simplicidade  tão  magestosa,  que  foi  preciso  passa- 
rem muitos  séculos  e  virem  as  modernas  descobertas  archeologi- 
cas,  para  que  trabalhos  importantes  como  os  de  Heródoto  adqui- 
rissem foros  de  fontes  históricas,  perdendo  os  visos  de  imaginação, 
que  lhes  attribuiam. 

No  meio  d'esta  observação  rigorosa  da  natureza  não  podiam  as 
sclencias  deixar  de  desenvolver-se,  e  de  facto  receberam  um  grande 
impulso  nas  mãos  dos  philosophos.  Nas  mathematicas  Euclides  e 
Archimedes,  na  astronomia  Aristarco  de  Samos  e  Hipparco,  bastam 
para  mostrar  o  grande  adiantamento  a  que  chegaram  estas  scien- 
cias  na  antiguidade. 

Aristarco  foi  accusado  de  impiedade  e  denunciado  aos  orthodo- 
xos  por  fazer  mover  a  terra,  como  dezoito  séculos  depois  havia 
de  ser  accusado  do  mesmo  crime  contra  a  divindade  o  grande  Gal- 
lileu.  Os  fanáticos  sempre  foram  o  mesmo  em  todos  os  tempos, 
sempre  procuraram  impedir  o  progresso  das  sclencias,  e  ainda 
hoje  nós  vem  )s  como  elles  procuram  atravessar-se  diante  da  onda 
luminosa  que  cresce  de  dia  para  dia.  E  o  mais  curioso  é  que  o 
processo  empregado  é  sempre  o  mesmo,  sempre  a  denuncia, 
sempre  a  accusação  mesquinha  e  baixa.  Nós  lemos  progredido 
muito,  os  nossos  processos  de  observação  e  de  experiência  são 
muito  variados  e  cada  vez  mais  perfeitos,  o  processo  que  elles  nos 
oppõem  é  que  ainda  é  o  mesmo ;  eis  mais  uma  prova  a  nosso  fa- 
vor :  em  dois  mil  annos  não  avançaram  um  passo,  e  quantos  têm 
recuado  ! 


116  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Na  Grécia  o  melhor  representante  das  outras  sciencias  é  incon- 
testavelmente o  immortal  Aristóteles,  que  como  todos  os  Gregos 
em  geral  foi  um  observador  da  natureza ;  estudou  meteorologia, 
estudou  acústica,  estudou  vários  phenomenos  physicos,  como  as 
cores,  os  ventos,  etc.  Os  seus  principaes  trabalhos  são  os  ensaios 
(!e  historia  natural,  em  que  se  pode  dizer  que  elle  inaugurou  a 
sciencia  experimental,  pois  são  filhos  da  comparação  e  do  estudo 
de  muitos  exemplares  da  flora  e  da  fauna  asiáticas. 

A  Grécia  é  de  todas  as  civilisações  ajiligas  a  que  mais  contri- 
buiu para  o  engrandecimento  da  humanidade  e  é  portanto  a  que 
mais  deve  chamar  a  atlenção  dos  estudiosos. 

Teixeira  Bastos. 


O  Prisioneiro 

(DIANTE  DE  UMA  CABEÇA  DE  MIGUEL  ANGELO) 


Uma  palavra  diz  toda  a  desgraça  : 
—  Ter  por  si  a  razão,  eis  o  seu  crime  I  - 
O  déspota  o  conhece  ;  busca  traça 
Para  esconder  a  victima  que  opprime. 

Ferros  !  vossos  anneis  encadeados 
Venham  soldal-o  para  sempre  ao  muro ; 
Abobadas  I  caiae-íhe  ardentes  brados, 
Trevas  !  summi-o  no  estertor  do  escuro. 

Mas  tudo  é  pouco.  O  prisioneiro  pensa 
No  rancor  do  tyranno  e  adormece  ; 
A  natureza  é  mãe  :  na  dor  immensa 
Accolhe  o  que  nas  anciãs  desfallece. 

Então,  em  som  no  longo  e  descuidoso 
Aos  sitios  mais  queridos  d'outras  eras, 
A  mente  vôa  e  aviva  com  repouso 
Passadas  illusões,  doces  chimeras. 

Quem  cuidará  que  o  inerme  prisioneiro 
Esquecido  do  peso  das  algemas 
Ouve  os  colloquios  do  amor  primeiro  ? 
Do  adeus  final  as  expressões  extremas  ? 

Ali  lhe  transparece  sobre  os  lábios 
O  arpejo  ignoto  de  suave  riso, 
Sereno  como  a  profundez  dos  sábios, 
Triste  como  o  luar  quando  indeciso. 


A  QUESTÃO  DAS  VIVISECÇÕES  H7 


Pensa  que  é  livre  I  o  soinno  é  liberdade 
Para  esse  a  quem  nenhum  consolo  reste  ; 
Qual  será  mais  feliz  ?  a  auctoridade 
Nunca  logrou  um  instante  como  este. 

Vela  o  tyranno,  tendo  alerta  os  guardas, 
Entre  canhões,  muralhas,  torres,  fossos  ; 
Lá  quando  o  somno  chega  em  horas  tardas, 
Ouve  ais,  vé  sangue,  estrépitos,  destroços: 

Escuta  os  grilos  surdos  da  revolta 
Do  povo  que  a  si  mesmo  faz  justiça  ; 
É  negro  o  pezadello,  o  horror  o  escolta, 
Quer  despertar,  remorso  o  enfeitiça. 

Este,  dormindo,  já  se  sente  escravo, 
Arrastado  por  praças,  com  vergonha  ; 
Mas  quem  jaz  mudo  sob  o  iniquo  aggravo 
Que  é  livre,  livre,  ai  prisioneiro,  sonha. 

Qual  será  mais  feliz  ?  um  quando  dorme, 
E'  só  para  sentir  terror,  fraqueza  ; 
E  áquelle  que  succumbe  ao  peso  enorme 
Diz-lhe  ser  livre,  a  santa  natureza. 

Bem  haja  a  eterna  força  que  lhe  inspiras 
Que  não  conhece  algemas  —  a  vontade  ! 
Prepotenles  I  quebrae  ante  ella  as  iras, 
Embalem-nos  os  sonhos  da  verdade. 


Junho,  2o— i872. 


Theophilo  Braga. 


J3L  fiuestuo  das  vívisecções 

No  n.''  23  de  4  de  junho  do  anno  passado  da  Revue  Scientifique 
vem  publicada  uma  carta  do  eminente  naturalista  inglez  Carlos 
Darwin,  dirigida  ao  professor  Kolmgren,  de  EIpsal,  em  que  o  sá- 
bio criador  da  moderna  theoria  do  transformismo  expende  a  sua 
opinião,  adversa  à  lei,  votada  pelo  parlamento  da  Grã-Brelanha, 
em  que  se  prohibem  as  vivisecções,  ou  as  experiências  physiologi- 
cas  em  animaes  vivos. 


1  Como  numa  das  folhas  precedentes  publicamos  um  artigo  do  sr.  Arruda 
Furtado  em  resposta  a  um  outro  do  sr.  Alexandre  da  Conceição,  que  saiu  na 
Era  Nova  sob  o  titulo  de  John  Buli,  cremos  do  nosso  dever  dar  também  publi- 
cidade n'esta8  paginas  á  réplica  do  brilhante  escriptor  e  nosso  correligionário  de 
Figueira  da  Foz. 

Nota  da  Empreza. 


MH  en(:yclopedia  republicana 

A  redacção  da  Rnue  Scienlifique  precede  essa  carta  de  palavras 
severas  contra  o  pietismo  inglez,  que  consegue,  por  uma  agitação 
pueril  e  ridícula,  fazer  votar  pelo  parlamento  uma  lei  de  protecção 
a  favor  dos  porcos  da  Índia  e  dos  cães  vadios,  contra  os  mais  al- 
tos interesses  da  humanidade  e  da  sciencia. 

Indignado  pela  leitura  d'essa  carta  e  das  palavras  com  que  a  re- 
dacção da  lierue  a  acompanha.  escr.evi  sobre  o  assumpto  um  pe- 
queno artigo,  que  foi  publicado  a  paginas  443  da  excellente  re- 
vista a  Era  Nova  com  o  titulo  de  Jobn  Buli. 

N'esse  artigo,  produzido  ao  correr  das  impressões  de  momento 
e  sem  as  mínimas  preoccupações  académicas,  ha  estas  palavras, 
que  resumem  toda  a  substancia  do  escripto  : 

«O  que  torna  particularmente  repugnante  este  pietismo  britan- 
dIco  é  que  ao  passo  que  o  parlamento,  impellido  pelas  reclama- 
ções sentimeiítaes  de  uma  opinião  publica  pueril  e  beata,  vota  pe- 
nalidades ao  trabalho  scientifico,  esse  parlamento  e  essa  opinião 
applaudem  e  consentem  ao  governo  inglez  os  maiores  attentados 
contra  a  vida  dos  homens,  contra  a  independência  e  dignidade  dos 
povos  e  contra  a  fé  dos  contractos,  tolerando  e  explorando  as  vio- 
lências sem  nome  do  governo  da  índia  e  em  geral  de  toda  a  ad- 
ministração colonial  da  Inglaterra,  as  vexações  autocráticas  da  Ir- 
landa, a  infamissima  guerra  contra  os  Boers  e  mil  outras  proezas 
sanguinárias  e  brutaes,  em  que  Portugal  tem  como  victinia  um  pa- 
pel de  protogonista.» 

Modesto  divulgador  do  espirito  scientifico  do  meu  tempo,  que 
procuro  seguir  de  longe  na  sua  gloriosa  ascensão/para  a  verdade, 
eu  erguia,  dentre  a  multidão  confusa  dos  anwymos,  o  meu  braço 
para  protestar  contra  uma  medida  que  considero  obscurante  e  in- 
digna de  uma  nação  civilisada,  e,  juntando  a  nuliííade  da  minha 
opinião  às  vozes  auctorisadas  dos  primeiros  homens  da  sciencia 
contemporânea,  tinha  por  fim  apenas  tornar  conhecido  do  publico 
para  quem  escrevo,  um  facto  que  julgo  digno  de  ser  conhecido^ 
já  pela  importância  do  assumpto,  já  por  ser  revelador  d^  caracter 
inglez,  que  cordealmente  abomino.  :■..,  ^ 

O  meu  artigo,  porém,  apesar  de  toda  a  sua.  43equeflèZ;e  de  toda 
a  sua  modéstia,  mereceu  do  sr.  Arruda  Furtado,  de  Ponta  Del- 
gada, um  severo  correctivo,  em  forma  de  dissertaçã<5  académica, 
publicado  num  dos  últimos  números  do  jornal  lisbonense  Encyclo- 
pedia  Republicana. 

O  sr.  Arruda  Furtado  fez-me  a  immerecida  honra  de  concordar 
comigo  em  todos  os  pontos  da  questão,  diz  que  o  procedimento  do 
parlamento  inglez,  «para  todos  pouco  conciliador,  é  para  muitos 
revoltantB,  "entende  que  o  facto  carece  de  um  protesto  severis- 


A  QUESTÃO  DAS  VIVISECÇÕES  1  ly 

simo»,  mas  não  me  permille  que  eu  me  «revolte»  nem  que  «pro- 
teste severamente»,  assevera  que,  de  lodosos  «pontos»  civilisados 
do  globo  eu  serei  o  único  positivista  que  trate  esta  questão  por 
uma  tal  forma,  e  chega  a  sup|)licar  «á  mocidade  portugueza,  que 
aprende  comigo  e  com  os  directores  lilteiarios  coniventes  na  pu- 
blicação da  minha  maneira  de  apreciar,  que  nã.i  acceite  similhante 
exemplo.» 

Sou  extremamente  sensivel  á  classificação  de  «ponto  civilisado» 
6  de  mais  a  mais  «ponto  positivista»  que  me  dá  o  sr.  Arruda  Fur- 
tado e  particularmente  lhe  agradeço  o  diploma  que  me  passa  de 
instructor  da  mocidade  portugueza  ;  mas  peço  licença  para  decli- 
nar ambas  as  honras,  tanto  a  de  instructor  como  a  de  «ponto», 
embora  civilisado  e  embora  positivista.  Embirro  com  todos  os 
«pontos». 

O  que  não  chego  a  perceber  é  a  razão  porque  o  sr.  Arruda  Fur- 
tado, julgando  merecedora  dos  mais  severos  protestos  a  lei  ingleza 
que  prohibe  as  vivisecções  e  digno  da  mais  áspera  correcção  o  par- 
lamento que  a  votou  e  portanto  o  publico  que  a  exigiu  e  o  publico 
que  a  tolera  sem  reclamações,  se  insurge  contra  a  forma  desabrida 
com  que  eu  apieciei  este  assumpto. 

Eu  concedo  facilmente  ao  sr.  Arruda  Furtado  que  o  meu  estylo 
tem  por  vezes  liberdades  de  adjeclivação  pouco  parlamentares  e 
menos  académicas,  e  para  lh"o  conceder  peço-lhe  que  me  poupe  á 
mais  vergonhosa  recordação  da  minha  obscura  vida  litteraria  ;  mas, 
se  me  é  licito  avançar  uma  observação  em  forma  de  attenuante, 
direi  que  poucas  vezes  terei  escripto  sobre  assumpto  que  melhor 
se  prestasse  á  troça  e  à  descompostura  do  que  este. 

Pois  pôde  lá  tolerar-se  hoje,  em  plena  Europa  civilisada,  que  um 
parlamento  qualquer  se  permitia  vedar  ao  trabalho  scienlifico  as 
suas  mais  legitimas  e  importantes  investigações,  a  pretexto  de  sen- 
sibilidade feminina  ou  de  ridículos  preconceitos  de  piedade  reli- 
giosa ?  Pois  ha-de  conseniir-se,  sem  os  mais  vivos  e  enérgicos  pro- 
testos, que  uma  nação  collocada  á  frente  da  civilisação  do  mundo 
e  representada  no  que  uma  nação  tem  de  mais  legitimo  e  sobe- 
rano, o  seu  parlamento  e  a  sua  opinião  publica,  ouse,  em  íins  do 
século  XIX  prohibir  aos  homens  de  sciencia  que  não  estudem,  que 
não  experimentem,  que  não  investiguem,  a  pretexto  do  soffrimento 
physico  de  alguns  animaes  inúteis,  quando  taes  estudos  e  investi- 
gações tem  justamente  por  flm  aliviar  a  humanidade,  e  mesmo  os 
outros  seres  da  criação,  dos  flagellos  que  a  desimam  e  torturam? 
Pois  os  interesses  da  sciencia,  os  primeiros  e  mais  instantes  in- 
teresses humanos,  podem  lá  estar  por  mais  tempo  chumbados  á 
lousa  sepulchral  da  theologia  e  humildemente  curvados  perante  a 
ferula  do  supranaturalismo? 
E  o  sr.  Arruda  Furtado,  que  se  revela  um  espirito  despreoccu- 


120  ENCYGLOPEDIA  REPUBLICANA 

pado  e  instruído,  estranha  que  os  que  procuram  sinceramente, 
embora  obscuramente,  collocar-se  nu  corrente  dos  grandes  inte- 
resses do  saber  contemporâneo,  verberem  com  todo  o  vigor  de 
uma  legitima  indignação  essas  pretensões  atrazadas,  pueris  e  ridí- 
culas da  intolerância  religiosa? 

Eu  não  sei  ser  lolennte  com  a  intolerância  nem  delicado  com  a 
brutalidade,  e  o  procedimento  do  parlamento  inglez  e  da  nação 
que  elle  representa  é,  n'este  ponto,  intolerante  e  brutal. 

Não  desconheço  o  valor  dos  tilulos  que  a  sciencia  ingleza  tem  á 
consideração  do  mundo;  mas  é  justamente  por  isso  que  o  facto 
em  questão  se  torna  tanto  mais  estranho  e  censurável.  Se  a  prohi- 
bição  das  vivisecções  fosse  decretada  pelo  governo  da  Turquia  ou 
dii  Haiti,  o  caso  não  seria  imprevisto,  mas  apenas  lastimável ;  de- 
cretada porém  pelo  governo  da  Inglaterra,  a  reclamações  da  opi- 
nião publica  e  com  a  sancção  do  parlamento,  tal  prohibição  é  per- 
feitamente uma  tolice  violenta,  ridicula  e  bestial. 

De  todas  as  surprezas  que  me  destinava  este  curioso  artigo  do 
sr.  Arruda  Furtado  a  melhor  e  a  mais  imprevista  reservou-a  elle 
para  o  fim.  Considerando  que  a  lei  ingleza  que  prohibe  as  vivisec- 
ções vae  redobrar  o  interesse  dos  physiologistas  e  desacreditar  as 
sociedades  protectoras  de  animaes,  o  sr.  Arruda  Furtado  termina 
com  estas  palavras  : 

«Concluímos  mudando  um  pouco  a  nossa  opinião;  —  nós  tere- 
mos algum  dia  muito  que  agradecer  ao  parlamento  inglez  a  lei  que 
elle  acaba  de  votar  I» 

Por  este  singular  processo  de  apurar  merecimentos  pôde  che- 
gar-se  aos  mais  extraordinários  e  imprevistos  resultados ;  podemos 
concluir,  por  exemplo,  que  a  melhor  cousa  que  se  conhece  é  o  mal 
porque  provoca  as  reacções  do  bem,  que  o  maior  beneficio  que  de 
vemos  á  monarchia  é  o  despotismo,  porque  provocou  as  reivindi 
cações  da  liberdade,  que  a  inquisição  foi  uma  verdadeira  fortuna 
porque  apressou  o  descrédito  da  theocracia  catholica. . .  É  a  theo 
ria  dos  revolucivos  applicada  ás  doenças  sociaes  ;  a  miséria  cura-se 
com  a  fome,  a  prostituição  com  o  deboche,  a  ignorância  com  o 
analphabetismo,  o  proletariado  com  a  usura,  etc. 

É  uma  theoria  moral  inteiramente  nova,  uma  verdadeira  theo- 
ria  de  ponta  e  mola  applicada  ao  ventre  da  humanidade- . . 

O  sr.  Arruda  Furtado  ha-de  permittir-me  que  lhe  não  tome  a  sé- 
rio esta  ultima  parte  do  seu  artigo,  a  qual  me  parece  inferior  aos 
muitos  recursos  intellectuaes  e  solida  illustração  de  s.  ex.^ 

Alexandre  da  Conceição. 


MOVIMENTO  LITTERAKIO  121 


Sce|iticismo 

(NO   TUMULO  DE  M&U  FILHO  AFFONSO) 
I 

Dividiu-se  a  ininh'alma  em  tres  pedaços, 
Dois  ficaram  na  terra  suspirando 
E  o  terceiro,  o  mais  tímido,  adejando, 
Escondeu-se  na  bruma  dos  espaços. 

Debalde  eu  ergo  á  luz  os  olhos  baços, 
Debalde  pelo  ceu  vou  procurando 
O  rasto  d'esse  sol  que,  fulgurando. 
Orgulhoso  estreitei  entre  meus  braços. 

Sumiu-se  para  sempre  o  ethereo  brilho, 
i\  estrella  que  guiava  os  passos  meus, 
Atravez  d'escabroso  e  duro  trilho, 

Eu  penso  como  vós,  grandes  atheus, 
A  fé  d'um  pae  que  vê  morrer  um  filho 
Em  tudo  o  leva  a  crer  menos  em  Deus. 

II 

Eu  rojei-me  de  bruços,  emplorando 
A  Deus  a  vida  do  ente  estremecido ; 
Podendo  elle  talvez,  não  ha  querido 
E  um  pedaço  d'esta  alma  foi  roubando. 

O  crentes,  pensae  bem  quanto  é  nefando 
Arrancar  ao  arbusto  enverdecido 
O  renovo  mais  tenro,  mais  florido 
De  todos  quantos  elle  está  creando. 

E  depois  julgae,  vós,  se  é  justiceiro. 
Se  é  grandioso,  forte  e  omnipotente 
Quem  assim  se  demonstra  sobranceiro. 

Sacrificar  no  berço  um  innoeente  I 
Se  ha  Deus,  elle  tornou-se  carniceiro, 
De  meu  filho  o  assassino  consciente. 

Viliar  do  Senhor.  Ernesto  Pir^s. 


R.ovÍHieiito     Utíerciria 


As  delicadas  offertas  d'alguns  escriptores  e  editores  obrigaiii- 
nos  a  uma  revista,  só  com  o  fim  de  pôr  os  nossos  poucos  leitores 

16 


12-2  ENXYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 

ao  fado  das  publicações  portugiiezas  e  do  desenvolvimento  intel- 
leclual  moderno. 

N.lG  é  um  trabalho  critico  e  sim  uma  analyse  rápida. 

Dessas  obras  passemos  a  inventariar  as  mais  recentes  que  te- 
mos neste  momento  sobre  a  nossa  mesa  de  trabalho :  A  Morte  do 
Afheii,  por  Jayme  Seguier,  uma  publicação  nilida  de  que  a  imprensa 
do  elogio-mutuo  se  tem  occupado  com  louvor,  mas  sem  uma 
phrase  que  revele  a  ideia  mais  simples  sobre  a  arte  moderna.  Qual 
é  o  fim  d"esta  composição  poética  que  se  impõe  ao  publico  pela 
nitidez  da  impressão?  Se  houver  um  critico  capaz  de  descobrir  al- 
guma cousa  de  novo,  a  não  ser  umas  imagens  rhetoricas,  impos- 
síveis mesmo  nos  versos  dos  parnesianos  francezes,  de  que  Seguier 
é  representante  em  Portugal,  então  faremos  a  critica  d"este  poemeto 
que  apenas  consideramos  mais  uma  banalidade  no  mercado. 

A  Republica  fkderal  por  Assis  Brazil.  É  um  trabalho  admirável, 
consciencioso,  dividido  em  quatro  livros  e  comprehendendo  cada 
um  delles  diversos  capitulos.  Daremos  aqui  os  seus  titulos  para 
que  se  possa  fazer  uma  ideia  do  valor  da  obra  do  illustre  publi- 
cista brazileiro  :  —  I  As  Formas  de  Governo  —  lí  Relalividade  das 
Formas  de  Governo  —  III  Legitimidade  da  Republica  —  IV  Superio- 
ridade  da  Republica  —  V  Preferencia  do  paiz  pela  Republica  — 
Ví  Theoria  do  opportunismo  —  VII  Objecções  impiricas  dos  monar- 
chistas — VIÍI  Justificação  da  opportunidade  da  Republica — IX.  Ideal 
da  democracia  na  America  —  X  Fundamento  racional  do  Suffragio 
Universal  —  XI  Falsidade  dos  Syslemas  Restrictivos  —  XII  Extensão 
e  effeifos  do  sufjragio  universal. 

O  sr.  Assis  Brazil  possue  uma  orientação  scientifica,  e  tem  pon- 
tos de  vista  verdadeiros. 

As  suas  opiniões  sobre  o  federcdismo  e  unitarismo,  parece-uos 
serem  as  mais  completas  quando  diz  a  pag.  215:  «o  federalismo 
é  a  maior  simplicidade,  e  o  unitarismo  a  maior  complicação.  Tudo 
se  simplifica  no  regimen  federal :  simplifica-se  e  facilila-se  a  ad- 
ministração geral,  o  regimen  financeiro,  pela  ausência  de  duplas 
repartições,  cujo  costeio  fica  reduzido  à  metade  ;  siraplifica-se  a 
missão  do  governo  geral,  porque  elle  não  tem  de  gerir  o  conjun- 
cto  inteiro  dos  negócios  do  paiz,  porém  unicamente  o  que  inte- 
ressa á  communhão ;  simplifica-se,  finalmente,  a  missão  dos  pode- 
res locaes,  porque  elles  não  tèem  de  moldar-se  pelas  imposições 
do  centro  ou  de  pedir-lhe  vénia,  mesmo  n'aquillo  em  que  a  sua 
autonomia  soja  reconhecida  e  inegável.  Exactamente  o  contrario 
dárse  com  o  unitarismo :  repartições  provinciaes  e  geraes ;  imposto 
duplo ;  governo  geral  sobrecarregado  de  trabalho,  resumindo  em 
si  toda  a  vida  nacional ;  governo  local  escravisado  ao  centro,  nullo 
por  falta  de  autonomia.  Só  uma  cousa  se  torna  simples  e  fácil  no 
unitarismo:  são  os  golpes  de  estado  e  as  revoluções.» 


MOVIMENTO  LITTERARIO  i23 


Estas  e  outras  ideias  expendidas  ii'este  volume,  revelam  o  bom 
senso  do  seu  autor. 

Padhes  e  reis  ou  a  inquisição  moderna,  por  Âguus  pseudónimo 
d"um  sincero  republicano,  conhecido  no  partido  por  F.  Cordeiro. 
É  um  folheto  de  propaganda  contra  o  clero  e  a  realeza,  e  dieio 
de  comparações  curiosas  entre  os  modernos  e  antigos  tempos. 
Agnus,  n'este  seu  trabalho  demolidor  e  eloquente,  ao  alcance  do 
povo,  pretende  demonstrar  que  a  sociedade  moderna  vive  ainda 
debaixo  da  pressão  inquisitorial  dos  tempos  medievaes,  e  que  to- 
dos os  nossos  males,  o  nosso  atrazo,  provêem  unicamente  de  duas 
classes  poderosas,  nobreza  e  clero,  que  se  afundam  a  passos  lar- 
gos. 

Ha  n'este  folheio  algumas  contradicções  e  exageros  verdadewa- 
menie  românticos,  e  mesmo,  pontos  de  vista  falsos,  phrases  rhe- 
toricas  que  revelam  a  instrucção  ainda  methaphisica  do  seu  auctor ; 
mas  em  compensação  desses  erros,  que  são  também  os  da  maio- 
ria dos  nossos  escriptores  (embora  alguns  d"elles  sejam  reputados 
como  os  principaes),  existem  ideias  alevantadas,  e  conclusões  re- 
volucionarias. O  estyln  é  vigoroso,  quente,  o  dos  grandes  agitado- 
res e  ainda  o  dos  revolucionários  methaphisicos  e  sentimentaes. 
Cremos  que  este  nosso  intelligenle  correligionário  se  tiver  mais 
estudo  e  applicação,  poderá  dar-nos  de  futuro  obras  menos  apai- 
xonadas, porque  tem  aptidões  e  vontade.  Este  seu  ultimo  trabalho, 
que  aliás  revela  talento,  resente-se  d"essa  falta  de  estudo  e  refle- 
xão. 

Todavia  torna-se  recommendavel  pelos  fados  curiosos  que  aponta, 
muitos  de  boa  fonte,  por  algumas  comparações  verdadeiras,  e 
sobretudo  pelo  assumpto  e  ponto  de  vista  demolidor.  Não  se 
pôde  ser  mais  enérgico  para  um  povo  ainda  cheio  de  preconceitos 
religiosos,  na  maior  parte  ignorante,  embrutecido  pelo  clero,  nem 
Ião  pouco  ser  mais  enlhusiasla  dos  modernos  princípios. 

O  HOMEM  QUATERNÁRIO  E  AS  CIVILISAÇÕES  PREHISTORICAS  NA  AmE- 

RiCA  (traços  duma  impressão  scientifica)  pelo  doutor  F.  Ferraz  de 
Macedo.  É  um  volume  de  oO  pag.,  formato  in-quarlo,  edição  pri- 
morosa. 

O  sr.  Francisco  Ferraz  de  Macedo,  é  uma  illustração  reconhe- 
cida por  todos  os  homens  que  estudam,  e  um  trabalhador  incan- 
sável. Este  seu  ultimo  trabalho  que  é  um  estudo  critico,  funda- 
mentado em  fados  geológicos  e  em  concepções  philosophicas,  bem 
o  demonstram.  Depois  que  foi  comprovada  a  existência  do  homem 
plioceno  na  Califórnia,  torna-se  já  impossível  contestar  as  ideias 
n'este  livro  expendidas. 

O  illustre  escriptor  prova  evidentemente  que  a  America  teve 
grandes  relações  com  a  Ásia  e  mui  particularmente  com  o  Egypto; 
não  duvida  que  as  raças  da  Europa  em  geral  sejam  oriundas  da 


124  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Asia,  mas,  que  não  estando  ainda  estudado  o  vasto  território  do 
velho  continente  americano,  como  admittir  sem  uma  discussão  se- 
ria e  importante  que  para  ali  fosse  a  Asia  lançar  a  semente  de 
tão  diíTerentes  raças,  como  se  tem  julgado?  Assim  fica  desfeita  a 
liypothese  de  que  a  Asia  fosse  o  único  berço  da  humanidade :  não 
cremos  que  ella  tivesse  um  único  berço.  Este  trabalho  é  importan- 
tissimo,  e  foi  escripto  a  propósito  da  obra  de  Florentino  Ameghino 
A  antiguidade  do  homem  no  Praia.  Este  illustre  homem  de  scien- 
cia  depois  de  muitas  investigações  «poude  chegar  á  conclusão  de 
que  a  fauna  americana  antiga  nenhuma  relação  teve  de  continui- 
dade e  de  similhança  com  a  fauna  do  velho-mundo».  Sobre  esta 
opinião  é  que  o  doutor  Ferraz  de  Macedo,  baseou  o  seu  bello  es- 
tudo anthropologico,  dando-nos  uma  serie  de  novidades  que  muito 
interessam  â  sciencia  moderna.  Ameghino  pensou  assim  porque 
alguns  dos  animaes  fosseis  que  encontrou  naquellas  regiões  e  que 
outros  exploradores  audazes  téem  descoberto,  não  tinham  n'aquelle 
tempo,  nem  o  tèm  até  hoje,  congéneres  no  antigo  mundo,  embora 
houvesse  alguns  dentre  elles  com  apparencias  e  pontos  de  con- 
tacto anatomo-physiologicos? 

«As  cidades  e  grandes  destroços  de  edifícios  esparsos,  (diz  o 
doutor  Macedo  pag.  1:2)  encontrados  em  profundas  camadas  geo- 
lógicas, ou  jazendo  em  florestas  seculares  e  intransitáveis,  a  occal- 
tas  da  vista  e  communicação  do  homem,  arrancados  do  tumulo  da 
insciencia,  ora  pelo  próprio  testemunho  de  Florentino,  ora  pelas 
dezenas  de  outros  testemunhos  respeitáveis,  nenhuma  similhança 
architectonica  e  artística  têem  com  as  velhas  e  derrocadas  cidades 
e  edifícios  da  índia,  do  Egypto,  da  Etruria,  etc.»  Além  d'estes, 
outros  muitos  fados  provam  evidentemente  que  o  homem  ameri- 
cano é  originário  da  própria  America. 

É-nos  impossível  nesta  revista  uma  analyse  completa  do  Ho- 
mem Quaternário  do  doutor  F.  Ferraz  de  Macedo.  Concluindo,  di- 
remos que  é  um  livro  que  precisa  ser  consultado  pelos  que  se  de- 
dicam a  este  género  de  trabalhos,  e  com  o  qual  a  sciencia  multo 
lucrou.  A  linguagem  é  primorosa,  fluente,  a  exposição  clara,  no- 
tando-se  em  algumas  paginas,  puramente  descriptívas,  uns  toques 
verdadeiramente  artísticos.  As  palavras  dos  primeiros  vultos  da 
sciencia  moderna,  laes  como  Topinard,  Le  Bon,  e  outros,  consa- 
gradas a  este  livro,  bastam  para  definir  o  seu  valor  scientifico  e 
o  apreciarmos  como  um  dos  trabalhos  recentes  de  maior  impor- 
lancia. 

Reis  Damáso. 


A  POESIA  DAS  ALDEIAS 


123 


.J3L  uacsía  das  aíueías 


As  Janeiras 


No  dia  31  de  dezembro,  e  ainda  no  1.°  de  janeiro  de  manhã,  é 
costume  em  muitas  terras  de  Portugal  andarem  bandos  de  rapa- 
zes, raparigas,  ele.  a  cantarem  pelas  portas,  pedindo  as  Janeiras. 
Eis  uns  versos  que  se  cantam  n'uma  aldeia  do  concelho  de  Sin- 
fães,  e  eu  os  dou  ao  mesmo  tempo  como  espécimen  de  linguagem 
popular : 


As  Janeiras  num  se  canto 
Nem  aos  reis,  nem  aos  fidalgos  : 
Canto -se  a  estes  sinhores, 
Por  ser  anno  milhorano, 
Milliorano  na  saúde. 
Descontado  nos  peceados  i 
Vós  que  estaes  na  vossa  cama. 
Entre  dois  lançoes  lavrados, 
Mandae-nos  dá-las  Janeiras 
Em  louvor  de  S.  Gonsalo  : 
Eile  vos  manda  pedir 
Que  as  deis  com  devoçom, 
Que  elle  vos  tem  promettido 


De  vos  dar  a  salvaçom. 
Qué-las  deis,  qué-las  num  dois,  ^ 
Sempre  co'os  anjos  fiqueis; 
E  qué-las  daes,  qué-las  num  daes. 
Sempre  co'os  anjos  ficaes. 

—  Quem  diremos  nós  que  viva 
No  cópintio  d'auga-ardente  ? 

—  Viva  o  patrão  d'esta  casa 
E  mais  toda  a  sua  gente. 

—  Quem  diremos  nós  mais  que  viva 
Na  casquinfia  da  cebola  ? 

—  Viva  o  patrão  d'esta  casa 
E  a  sua  senliora. 


II 

Os  Reis 


O  mesmo  costume  das  Janeiras  repeíe-se  na  véspera  á  tarde  e 
á  noite  do  dia  6  de  janeiro,  e  mesmo  no  próprio  dia  de  manhã. 
As  seguintes  cantigas  são  do  mesmo  concelho : 


^  Versões  d'outras  partes  dizem  por  ser  anno  melhorado.  Na  Beira  Alta  é  cos- 
tume, quando  se  come  uma  cousa  pela  primeira  vez,  dizer  : 

Anno, 

Milhorano. 

Deus  nos  deixe  ctiegar  ao  anno  (anno  seguinte). 


2  Quer  as  deis,  etc. 


126  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICADA 


—  Que  pastores  som  aquelles 
Que  vem  á  beira  do  rio  ? 

—  Som  aquelles  santos  Ileis-Magos  > 
Que  vem  adorar  o  menino. 

O  menino  stá  na  neve 
E  a  neve  o  faz  tremer  : 
(j  meu  menino  Jàsus, 
Quem  vos  pudera  valer  I 

Entrae,  pastores,  entrae 
Por  esse  portal  sagrado  : 
Lá  vereis  star  o  menino 
Nuas  palhinhas  líeitado. 

As  palhinhas  déitom  lírios, 
Oh  que  bellos  três  niarlyrios  I 

As  palhinh;is  déitom  rosas, 
Oh  que  bellas  três  formosas  I 

Lá  vem  na  pombinha  branca 
Á  ponta  da  oliveira  : 
Viva  o  senhor  d'esfa  casa 
A  2  mai-la  sua  companheira. 

Sobreirinho  ramalhudo, 
Já  le  cahiu  a  belota  : 
Se  nos  hom-de  dá-los  Reis, 
Mande-nos  abri-la  porta  : 

Qué-los  deis,  qué-los  num  deis, 
Co'a  graça  de  Jâsus  fiqueis. 

Este  final  de  boa  resignação  é  subsliluido  no  Minho  (e  creio  que 
n'outras  partes),  pela  seguinte  imprecação,  quando  as  pessoas  da 
casa  não  dão  nada. 

Esta  casa  é  de  Ijarro, 

Aqui  mora  algum  diabo  !  etc. 

Porto,  Março  82. 

J.  Leite  de  Vasconcellos. 


1  Variante  :  Reisnados. 

2  Sobre  este  a  publicaremos,  talvez  breve,  um  artigo. 


SUISSA  i27 


Suissa 


Todos  quantos  em  Portugal  tratam  de  viilgarisar  as  instituições 
republicanas,  usam  de  ordinário  apresentar-nos  a  França  como  o 
modelo  das  democracias.  Os  jornaes  de  todos  os  matizes  encare- 
cem à  uma  a  republica  franceza,  extasiam-se  perante  os  seus 
grandes  homens,  Gambetta  e  Grevy  tomam  as  proporções  de  semi- 
deuses, tão  invioláveis,  infalliveis  e  indiscutiveis  como  os  chefes 
das  monarchias. 

Assim  pensam  e  escrevem  os  que  ignoram  as  leis  orgânicas  da 
Suissa. 

Os  que  passaram  a  juventude  mettidos  nas  sacristias,  nas  pro- 
cissões, nas  touradas  ou  philarmonicas,  nos  salões  da  aristocracia 
decrépita  ou  faminta  ou  nas  salas  da  burguesia  ignara  e  egoísta 
não  tem  capacidade  para  comprehender  o  ideal  moderno  de  pro- 
gresso e  justiça  e  precisam  de  substituir  na  mente  os  Ídolos  que 
deixaram  por  outros  cujo  papel  se  coadune  mais  com  as  suas  as- 
pirações de  deslumbramento  alvar  e  fútil. 

Chegam  a  esquecer  que  ha  em  França  uma  formidável  phalange 
de  caracteres  de  elite,  apóstolos  fervorosos  da  ideia,  sempre  prom- 
ptos  a  arrostarem  com  lodos  os  sacrifícios,  não  transigindo  nunca, 
porque  nada  mais  ambicionam  que  a  victoria  dos  seus  princípios 
e  essa  phalange  de  homens  eminentes,  na  industria,  na  sciencía, 
no  commercio  e  nas  artes,  depois  de  soffrerem  o  desterro,  a  emi- 
gração e  o  cárcere,  vêem  debalde,  ha  onze  annos,  reclamando  re- 
formas que  ponham  em  vigor  uma  parte  das  leis  já  decretadas, 
ha  cerca  de  um  século  pela  Convenção,  garantindo  os  direitos  in- 
dividuaes,  augustos  e  inauferíveis.  Hoje  mesmo  que  a  França  ex- 
pulsa do  seu  solo  os  íllustres  emigrados  russos^  a  Inglaterra  ofte- 
rece-lhes  um  asylo  seguro.  Touco  importa  aos  que  governam  que 
os  republicanos  históricos  protestem.  Nos  decretos  da  reacção  lá 
vão  encontrar  qualquer  disposição  para  justificarem  o  arbítrio  e  só 
assim,  sustentando  a  Concordata,  que  reconciUou  o  Papa  com  o 
primeiro  imperador  e  com  que  o  ultimo  enfeudou  a  França  ao 
papismo,  só  assim  é  que  os  republicanos  de  hontem,  os  Gambettas, 
os  Ferrys  preterem  os  homens  da  experiência  e  dos  sacrifícios,  e 
captam  a  estima  e  a  benevolência  dos  príncipes  e  imperadores, 
que  os  sustentam,  em  vão  esperando  ensejo  de  poderem  asphixiar 
a  Republica. 

É  por  isto  que  um  resumo  das  instituições  politicas  da  Suissa 
se  torna  extremamente  preciso  e  útil.  Vamos  por  isso  esboçal-o, 
soccorrendo-nos  principalmente  a  Charbounier  por  ser  o  mais  re- 
sumido e  adequado  ao  fim  que  temos  em  vista. 


128  ENGYCLPEDIA  REPUBLICANA 

Para  nós  é  até  de  um  conforte  extraordinário  o  fallar  d'este  he- 
róico e  pequeno  povo,  que  vive  independente  ha  cerca  de  cinco 
séculos,  sempre  livre  e  progredindo.  Sem  a  intervenção  dos  gran- 
des homens  e  dos  milagres  soube  consolidar  a  sua  autonomia, 
n"um  periodo  em  que  o  despotismo  era  omnipotente  na  Europa,  e 
a  ignorância  profunda.  Bastou-lhes  o  quererem  para  fundarem  a 
communa  e  o  cantão,  as  duas  agrupações  naturaes  e  mais  legiti- 
mas dos  povos,  que  fazem  estremecer  de  horror  todos  os  elemen- 
tos reaccionários  e  que  finalmente  constituem  a  felicidade  da 
Suissa,  unindo  n'uma  nacionalidade  admirável  dois  milhões  e  se- 
tecentos mil  homens,  allemães,  franceses  e  italianos,  fallando  cada 
um  a  sua  lingua  e  professando  cada  um  o  seu  culto.  É  que  só  a 
Federação  faz  d'estes  prodígios! 

* 
*    *  " 

A  historia  da  Suissa  é  poética  e  heróica  como  a  de  quasi  todos 
os  pequenos  estados.  É  a  lucta  da  consciência  contra  o  privilegio 
e  o  abuso,  e  o  mais  frisante  e  feracissimo  exemplo  de  quanto  pode 
o  povo  que  se  apoia  na  razão  e  na  verdade.  Rudes  montanhezes, 
durante  mais  de  dois  séculos  luctaram  contra  os  exércitos  do  impe- 
rador da  Áustria,  derrotando-os  successiva  e  constantemente,  sem 
surgir  o  nome  de  nenhum  general  ou  grande  sábio. 

Os  três  cantões  da  Uri,  Schwitz  e  Unterwaid,  para  se  subtrahi- 
rem  á  oppressão  dos  pequenos  senhores,  sollicilaram  a  protecção 
da  casa  de  Habsbourg,  em  1273,  a  qual  reconhecendo-lhe  ao  prin- 
cipio as  suas  franquias  em  breve  tentou  converter  em  soberania 
os  direitos  de  simples  patronage.  Os  agentes  do  duque  Alberto, 
sobretudo  Gessler  que  figura  na  lenda  de  Guilherme  Tell  com  as 
cores  sinistras  de  um  conde  Andeiro,  de  dia  para  dia  tornavam-se 
mais  déspotas  e  implacáveis.  Foi  contra  a  lyrannia  da  casa  dAus- 
tria,  que  os  três  referidos  cantões  decidiram  revollar-se,  estabele- 
cendo entre  si  uma  alliança,  pactuada  pelos  delegados  dos  Ires 
pequenos  estados,  no  valle  de  Grulli,  num  golplio  do  lago  dos 
Quatro-Cantões,  a  7  de  novembro  de  1307,  jurando  Werner,  Stauf- 
facher,  AYalter  Furst  e  Arnold  de  Melchthal,  libertarem  para  sem- 
pre a  sua  pátria. 

No  primeiro  de  janeiro  de  1308  rebentou  a  revolução,  que  veiu 
a  concluir  só  em  13  de  novembro  de  1313,  com  a  batalha  deMor- 
gaten,  um  prodígio  de  varonil  heroísmo,  em  que  um  exercito 
aguerrido  foi  aniquilado  por  um  bando  de  valentes  e  rudes  pasto- 
res, quasi  que  não  tendo  por  armas  mais  do  que  paus  e  pedras  e 
por  muros  as  alcantiladas  penedias  da  sua  pátria.  Unidos  pela  au- 
gusta aspiração  de  liberdade  e  pelo  perigo  commum  os  três  can- 


SUÍSSA  129 

toes  renovaraQi  a  liga  de  1291,  em  Brunnen,  a  9  de  dezembro 
de  1315,  proseguindo  victoriosos  na  Incta  e  alcançando  a  adhesão 
de  outros  cantões,  Liicerna  em  1332.  Znrich  em  1351,  Zug  e 
Glaris  em  1352  e  Berne  em  1353,  não  podendo  algum  cantão  re- 
conhecer um  senhor,  nem  emprehender  negociações  ou  tratados 
sem  o  consentimento  dos  demais. 

Constantemente  em  guerra  com  os  potentados  visinhos  e  suíTo- 
cando  muitas  vezes  as  insurreições  internas  que  lhes  fomentavam 
os  inimigos,  depois  das  batalhas  de  Granson  e  de  Morat,  as  Ter- 
mopilas  da  Saissa,  a  bravura  deste  povo  tornou-se  proverbial  na 
Europa,  com  a  derrota  que  infligiu  a  Carlos,  o  temerário,  duque 
de  Borgonha,  em  1476,  e  o  império  pelo  tratado  de  Bale,  em 
1499,  leve  de  renunciar  ás  suas  pretenções  de  conquista,  reco- 
nhecendo a  autonomia  da  Suissa. 

Os  cantões  de  Fribourg  e  Saleure  em  1481,  Bale  e  Schafíhouse 
em  1501,  Appenzell  em  1513  adheriram  á  liga,  elevando-se  a  13 
o  numero  dos  cantões. 

Durante  a  guerra  dos  trinta  annos  a  Suissa  teve  de  repellir  as 
aggressões  da  Hespanha,  vindo  finalmente  a  Europa  a  reconhecer, 
de  facto  e  de  direito,  a  autonomia  da  Helvécia  pelo  tratado  de 
Westphalia  em  1648. 

Desde  então  só  as  questões  religiosas  perturbaram  o  paiz,  in- 
troduzindo Zwingie  o  protestantismo  em  Zurich  em  1519,  e  Cal- 
vino  em  Genebra,  adherindo  á  Reforma  a  maior  parte  dos  13  can- 
tões. 

A  Revolução  Franceza  que  foi  uma  almenara  de  luz  que  veiu  il- 
luminar  os  espíritos,  agitou  a  Suissa,  e  começou  então  ali  a  orga- 
nisar-se  o  partido  liberal,  cujo  programma  exigia  a  egualdade  de 
direitos  para  todos,  a  unidade  da  Suissa,  acabando  de  vez  a  dis- 
lincção  de  cantões  soberanos  e  cantões  vassalos.  Bonaparte  inter- 
veiu  em  favor  dos  liberaes  e  a  Republica  Helvética,  una  e  indivi- 
sível, foi  confirmada  com  a  victoria  de  Stanz,  em  9  de  setembro 
de  1798.  O  génio  da  guerra  e  do  extermínio  foi  n'este  paiz  um 
impulsor  eííicaz,  e  por  certo  inconsciente,  das  ideias  liberaes.  Os 
princípios  democráticos  germinavam  na  mente  do  povo,  ao  qual 
•faltava  a  capacidade  de  estabelecer  a  forma  de  os  tornar  práticos, 
e  por  isso  a  intervenção  de  Bonaparte,  dando  á  Suissa  uma  con- 
stituição federal,  mas  centralisadora,  acabando  com  as  desegualda- 
des  anteriores  e  dividindo  o  território  em  19  cantões,  foi  um  be- 
neficio politico,  porqne  em  vez  de  matar  a  questão,  os  ânimos  agi- 
laram-se,  os  princípios  debateram-se  e  a  luz  fez-se  nos  espíritos, 
chegando-se  á  conclusão  de  que  a  única  forma  de  consolidar  a  li- 
berdade e  fundar  a  egualdade  civil  é  a  descentralisação  ou  o  fede- 
ralismo. 

Desde  a  Revolução  Franceza  até  hoje  teve  a  Suissa  de  passar 

17 


130  ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

por  períodos  agiladissimos  e  crises  difficeis.  Os  sinceros  liberaes 
e  velhos  patriotas  por  vezes  tiveram  de  pedir  o  auxilio  do  estran- 
geiro para  fazerem  pela  violência  trinmphar  os  seus  principios. 
Lahnrpe  e  Ochs  tiveram  de  recorrer  á  protecção  da  França,  para 
fazerem  a  unificação  e  acabar  de  vez  com  os  senhores  feudaes 
que  os  opprimiam.  Este  predomínio  da  França  foi  vergonhoso  e 
crudelissímo,  a  verdadeira  prostituição  dos  principios  que  as  bayo- 
netas  iam  defender  ali.  Entretanto  deu  aso  a  que  Stapfer,  minis- 
tro das  artes  e  das  sciencias,  decretasse  a  reforma  do  ensino, 
como  base  de  todo  o  progresso  e  da  felicidade  publica.  Em  cada 
capital  de  cantão  organisou  um  conselho  de  educação,  composto 
de  sete  membros  e  um  inspector  de  instrucção  publica,  para  tls- 
calisar  as  escolas  e  nomeiar  professores  competentes  e  aptos  para 
o  ensino.  Foi  a  instancias  de  Slapfer  que  o  grande  Pestalozzi  e 
os  seus  dois  discípulos  Fellenberg  e  Wehrli  se  dedicaram  a  re* 
formar  o  antigo  systema  de  ensino,  publicando  um  jornal  em  que 
vulgarisava  as  suas  theorias  de  pedagogia,  e  montando  em  Stanz 
uma  escola  para  as  crianças  pobres,  que  elle  pessoalmente  regia. 

A  instrucção  superior  soíTreu  o  mesmo  impulso  reformador.  Com 
os  escassos  capitães  do  poder  centralisado  fundaram-se  gymnasios 
6  delineou-se  a  fundação  da  primeir?  escola  polytechnica  suissa, 
crearam-se  sociedades  litterarias  e  artísticas,  fundaram-se  jornaes, 
revistas  e  bibliothecas  populares  publicas.  Os  exforços  heróicos 
d'este  homem,  que  tanta  luz  diíTundiu  sobre  o  seu  paiz  e  que  não 
fez  reformas  á  Pombal,  mas  sim  segundo  os  principios  da  liber- 
dade e  justiça,  por  vezes  foram  contrariados.  Pestalozzi  e  elle  vi- 
ram-se  ridiculisados  e  calumniados,  porque  a  arislhocracia  ferida 
nos  seus  privilégios  e  o  clero  nas  suas  especulações  trataram  de 
attrahir  a  si  as  massas  ignaras  e  contra  a  França  que  os  roubava, 
mas  illuslrava,  pediram  o  auxilio  da  Áustria.  Deu-se  aqui  um  phe- 
Domeno  extraordinário :  os  unitaristas  ou  centralistas  eram  os  de- 
mocratas protegidos  pela  França,  os  federalistas  ou  partidários  da 
antiga  constituição  que  não  era  subrnettida  á  sancção  geral  do 
povo,  reunido  em  plebescito,  eram  os  retrogados  religiosos,  se- 
cundados pela  Áustria  christianissima. 

Este  periodo,  que  iniciou  a  resurreição  de  um  povo  heróico,  é 
em  extremo  curioso,  e  por  isso  antes  de  entrarmos  no  assumpto 
principal  d'estes  artigos,  que  vem  a  ser  o  actual  mechanismo  po- 
litico da  Suissa,  exporemos,  o  mais  concisamente  possível,  as  fre- 
quentes vicissitudes,  a  enorme  fermentação  politica  por  que  pas- 
sou a  Suissa  até  chegar  nos  nossos  dias  á  prosperidade  que  ne- 
nhum outro  povo  ainda  attingiu. 

(Segue). 


o  CASAMENTO  CIVIL  131 


O  ctisaiiieiiía  civil 


Acabava  de  soar  a  ultima  badalada  do  meio  dia. 

A  noiva  impaciente  andava  agitada  pela  casa  chegando  repeti- 
das vezes  á  janella.  Eram  já  horas,  e  a  senhora  que  a  devia  acom- 
panhar á  administração  ainda  não  apparecera. 

Um  trem  da  Companhia  esperava  á  porta.  O  cocheiro  encostado 
à  almofada  tinha  adormecido. 

Era  um  casamento  civil. 

A  visinhança,  que  sempre  apparece  n'estas  occasiões  para  não 
jurar  falso,  chegava  ás  janellas  cochichando  e  entremeiando  a  pa- 
lestra com  risinhos  irónicos.  Duas  visinhas  faltavam  indignadas 
do  casamento.  Era  um  gosto  ouvil-as  I 

—  O'  visinha,  viu-se  já  uma  coisa  assim!  dizia  uma  velha  sol- 
teirona despeitada  por  não  se  ler  casado. 

—  Não,  que  na  minha  vida  nunca  julguei  chegar  a  ver  tal ! 

—  Foi  preciso  virem  aquelles  malditos  americanos. . . 

—  Republicanos,  emendou  a  visinha  que  era  um  pouco  mais  il- 
lustrada. 

—  Pois  seja  I  Republicanos  ou  americanos  é  tudo  a  mesma  coisa, 

—  Não  visinha,  isso  não,  replicou  a  outra,  que  não  deixava  pas- 
sar occasião  alguma  de  mostrar  o  seu  saber.  E  preparou-se  para 
explicar. 

Tossiu  duas  ou  Ires  vezes,  escarrou  e  depois  de  se  ter  conve- 
nientemente assoado  começou  assim  : 

—  Americanos  são  os  habitantes  lá  d'esses  Brazis  que,  por  sig- 
nal,  são  muito  ricos.  Sempre  me  lembro  d'aquelle  meu  compa- 
dre, que  Deus  haja,  que  sempre  tinha  coisas  mais  lindas !  Elle 
era  um  papagaio,  elle  era  um  periquito,  elle  era  um  macaco... 
Sempre  tinha  coisas  !  aquillo  só  visto. . . 

«E  republicanos,  esses  são. . .  são. . . »  e  ficou  atrapalhada. 

—  Até  dizem  que  querem  matar  a  rainha !  disse  por  fim  sa- 
hindo  dos  apuros  em  que  estava. 

—  Ora  vejam  vocês  !  Disse  a  velha  escandalisada. 

—  Pois  é  preciso  serem  muito  malvados  I  A  pobre  senhora  tão 
boa!  coitadinha. . .  que  não  faz  mal  a  ninguém. . .  accrescentou 
3  outra  em  tom  de  lamuria. 

— Pois  esses  excommungados,  Nosso  Senhor  me  perdoe,  não 
lhes  posso  dar  outro  nome,  esses  excommungados  é  que  trouxe- 
ram cá  essa  ideia. 

—  Qual  ideia? 

—  A  do  casamento  civil.  E  chamam  elles  a  isto  um  casamento ! 
Não,  eu. . . 


132  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

—  Não  está  mau  casamento!  exclamou  a  outra.  Cá  na  minha 
não  passa  d 'uma  mancebia. 

—  Diz  muito  bem,  visinha,  applaudiu  a  velha.  Aquillo  é  como 
os  cães. . . 

— De  certo.  Sem  receberem  as  bênçãos  do  padre  I  É  mesmo 
uma  consciência  !. . . 

—  E  aquella  menina. . .  disse  a  velha  referindo-se  á  noiva.  Nunca 
esperei  tal ! 

—  Nem  eu!  Quando  me  lembro  que  ella  assistia  à  missa  com 
muita  altenção,  com  o  seu  livrinho. . . 

—  É  verdade,  confirmou  a  velha.  Sempre  se  vê  coisas  !  Quem 
havia  de  dizer  ? 

—  Aquella  sonsinha  enganou-me  bem. 

—  A  mocidade  está  perdida !  e.xclamou  a  velha  em  tom  sen- 
tencioso. 

—  Jà  não  ha  religião,  accrescenta  a  outra. 

—  Tudo  vae  com  a  moda...  disse  a  velha  com  um  suspiro. 

—  Olha,  grita  de  repente  uma  visinha  do  lado,  lá  vem  dois 
trens. 

—  Agora  devem  ser  elles,  disse  uma  para  a  outra. 
Eram  efleclivamenle  elles. 

Pararam  à  porta  da  casa  ao  pé  do  da  Companhia  e  sahiram  de 
dentro  três  sujeitos  todos  de  preto  com  gravata  e  luvas  brancas  e 
uma  senhora,  já  de  edade,  com  um  vestido  escuro  e  um  chapéo 
preto  enfeitado  de  rosas  escarlates. 

Uma  rapariga  travessa  debruçava-se  da  janella  dizendo  que  que- 
ria ver  o  noivo. 

Mostraram-lhe  e  ella  exclamou  desconsolada : 

—  È  um  pausinho  ! 

As  visinhas  fizeram  coro,  ainda  que  bastante  desafinado,  ás 
gargalhadas. 

—  Olha  a  tola!  Tomaral-o  tu  assim,  disse  outra  rapariga  com 
voz  esganiçada. 

—  Cala-te  Francisca,  retorquiu  a  outra,  tu  falias  assim  porque 
o  leu  Anastácio  é  também  um  niagricella. . . 

—  Melhor!  Meu  proveito. . .  exclamou  a  rapariga  despeitada. 
Pouco  depois  dizia  uma  das  Marias-visinhas : 

—  Olha,  lá  sabem  agora. 

Saltava  n'este  momento  para  o  trem  da  Companhia,  deixando 
ver  o  pequenino  pé  calçado  n"umas  botinas  brancas,  uma  menina 
trigueira  d'olhos  castanhos  e  cabellos  da  mesma  côr,  toda  vestida 
de  branco  e  com  flores  de  larangeira.  Ao  lado  d'ella  sentava-se 
a  senhora  já  dedade  que  acabara  de  chegar.  Em  cada  um  dos 
outros  trens  metteram-se  dois  indivíduos,  e  em  seguida  as  carrua- 
gens pozeram-se  em  movimento  parando  na  administração. 


o  CASAMENTO  CIVIL  133 


Escusado  será  dizer  que  as  visinhas  continuavam  tocando  ad- 
miravelmente rebeca  sem  necessitarem  d'arco,  á  espera  da  volta 
dos  noivos. 

Entretanto  a  mãe  da  noiva  conservava-se  no  seu  quarto  era 
companhia  d'uma  creada  antiga  da  casa. 

Era  uma  senhora  de  quarenta  e  tantos  annos,  magra  e  ainda 
bastante  formosa.  No  seu  rosto  viam-se  vestígios  de  lagrimas  re- 
centes. 

A  boa  da  creada  olhava  para  sua  ama  com  compaixão. 

Porque  estaria  triste  a  mãe  no  dia  do  casamento  da  filha? 

Tentemos  explical-o. 

A  filha  tinha  tido  durante  alguns  mezes  namoro  com  ura  rapaz 
que  se  decidiu  a  pedil-a  em  casamento.  Assim  foi,  e  a  mão  da  me- 
nina Laura  não  lhe  foi  recusada,  porque  por  inforraações  obtidas 
era  um  bom  rapaz. 

Mas  quando  este  declarou  que  só  se  casaria  civilmente  as  sce- 
nas  mudaram. 

Foi  um  inferno  lá  em  casa !  A  mãe  determinou  formalmente  que 
d'esse  modo  recusava. 

Houve  discussão,  deu  um  faniquito  á  menina  e  por  fim  o  papá 
declarou  que  tudo  vinha  a  ser  o  mesmo,  tanto  fazia  ir  á  egreja 
como  á  administração,  e  disse  para  os  rapazes  «que  se  casassem 
que  a  mãe  havia  de  se  convencer.»  Mas  não  se  convencia,  não. 
A  mãe  «detestava  as  ideias  novas»  e  «queria  seguir  a  religião  de 
seus  pães.» 

Eis  a  razão  porque  ella  estava  triste  no  dia  do  casamento  da 
filha. 

Reinava,  havia  um  momento,  o  silencio  no  quarto,  quando  a  se- 
nhora rompendo-o  disse  para  a  creada : 

—  Minha  boa  Anua,  já  se  foram? 

—  Sim  minha  senhora.  Partiram  agora. 

—  Ah!  A  minha  filha...  soluçou  ella. 

—  Não  se  apoquente  assim  que  lhe  faz  mal. 

—  Tens  rasão,  de  mais  me  tenho  eu  ralado  !  E  acrescentou  sus- 
pirando: 

—  Não  posso  ver  aquillo!  Para  mira  minha  filha  não  fica  ca- 
sada. 

— De  certo,  de  certo,  confirmou  a  Anna.  E  se  vem  os  filhos? 

—  É  de  quem  eu  tenho  pena.  Sem  serem  baplisados... 

—  Ficam  uns  irracionaes ;  disse  a  Anna  com  convicção. 

—  Pobres  anginhos !  Pode-se  ter  compaixão...  Pouco  depois  ac- 
crescentava  com  amargura : 

—  Casamento  !  Ora  não  ha  I ...  É  um  contracto,  uma  escriptura 
como  se  fosse  uma  renda  de  casa. 


134  ENCYCLOPEUIA  REPUBLICANA 

—  Depois  d'aborrecidos,  cada  um  vae  para  seu  lado  e  acabou- 
se...  accrescentou  a  Anna. 

—  Ê  commodo !  disse  a  senhora  com  um  riso  nervoso  que  in- 
commodava  ouvir. 

—  Infelizmente  sua  filha  segue  as  ideias  modernas... 

—  Quem  tem  a  culpa  é  o  pae.  E  diz-me  elle  que  me  hade  con- 
vencer. Nunca,  nunca  1 

—  Estou  certa  que  a  senhora  nunca  mudará  d'ideias. 

—  Oh!  seguirei  sempre  a  religião  de  meus  pães,  embora  se 
riam  de  mim.  Nunca  admittirei  o  casamento  civil. 

NMsto  ouviu-se  o  rodar  dos  trens  que  pararam  á  porta.  Eram  os 
noivos  que  chegavam. 

Dois  annos  depois,  á  porta  da  mesma  casa  estavam  parados 
dois  trens. 

A  visinhança  estava  alvoroçada,  havia  grande  novidade  n'aquella 
rua. 

0  que  seria?  A  coisa  mais  natural — um  casamento. 

A  mãe  de  Laura,  que  tinha  enviuvado,  estava  ainda  bastante 
conservada,  e  depois  d'enterrar  o  marido  tratou  d'arranjar  substi- 
tuto. «Precisava  duma  companhia»  dizia  ella. 

Era  pois  uma  coisa  tão  natural  que  preoccupava  a  visinhança  ? 
De  certo. 

Um  casamento  d'uma  viuva  não  era  para  menos.  Mas  não  era  só 
isto,  o  casamento  era...  civil. 

A'  sabida  da  administração,  quando  a  mãe  de  Laura  subia  para 
a  carruagem,  sentando-se  ao  lado  do  esposo,  disse  baixinho: 

—  Bem  me  dizia  meu  marido  que  me  havia  de  convencer.  Ao 
menos  dou  graças  a  Deus  por  poder  provar-lhe  que  as  suas  pala- 
vras não  foram  em  vão. 

E  accrescentou  em  seguida : 

—  Egreja...  administração...  tudo  serve.  O  fim  é  o  mesmo. 

E  recostou-se  na  carruagem  apertando  nas  suas  as  mãos  do  se- 
gundo marido. 

Alberto  Bastos. 

ÊonTBrericias  nreUniíaares  ao  êeiiteriaria 
ae  Èuniòes 

1  Camões  e  a  Nacionalidade  portugueza,  por  Theophilo  Braga. 
(Salão  da  Trindade,  em  3  de  Maio  de  1880.) 

II  Leitura,  de  Vasconcellos  Abreu,  sobre  lendas  buddicas  no 
poema  de  Camões.  (Sociedade  de  Geographia.) 


CONFERENCIAS  DO  CENTENÁRIO  DE  CAMÕES  133 

III  A  lingua  portugiieza  e  a  unidade  nacional,  por  Adolpho  Coe- 
lho. (Sociedade  de  Geographia.) 

IV  A  Odyssea  Camoniana,  por  Pedro  Gastão  Moreira.  (Salão  da 
Trindade.)  " 

V  Camiões  e  a  Nacionalidade  portugueza,  leitura  de  Teixeira 
Bastos.  (Salão  dos  Empregados  do  Commercio.) 

VI  Camões  e  a  Renascença,  leitura  de  Ramalho  Ortigão.  (Salão 
da  Sociedade  de  Artistas  Lisbonenses.) 

VII  A  vida  intima  de  Camões,  conferencia  por  Theophilo  Braga. 
(Salão  da  Trindade.) 

VIII  Camões,  sua  vida,  sua  época  e  Obras,  conferencia  de  An- 
tónio José  Lourinho,  (Instituto  agrícola  e  industrial.) 

IX  A  Renascença,  conferencia  de  Sertório  do  Monte  Pereira. 
(Idem.) 

X  Camões  e  a  Pátria,  conferencia  por  Pinheiro  Chagas.  (Salão  da 
Trindade.) 

XI  Camões  e  o  espirito  popular,  conferencia  por  Theophilo  Braga. 
(Salão  da  Associação  Pelicano.) 

XII  A  mythologia  dos  Lusíadas,  conferencia  por  F.  Adolpho  Coe- 
lho. (Salão  da  Trindade.) 

XIII  Camões  e  a  índia,  leitura  de  Christovão  Ayres,  (Sociedade 
de  Geographia.) 

XIV  Camões  e  a  integridade  nacional,  conferencia  de  Manoel  de 
Arriaga.  (Salão  da  Trindade.) 

XV  Camões  e  a  Renascença  em  Portugal,  conferencia  de  Adol- 
pho Coelho.  (Curso  Superior  de  Letras.) 

XVI  Camões  é  uma  litteratura  inteira,  conferencia  de  Theophilo 
Braga.  (Curso  Superior  de  Letras.) 

XVII  Camões  e  o  século  XIX,  conferencia  de  Hugo  Leal.  (Cen- 
tro republicano  federal.) 

XVIII  Camões,  a  sua  época  e  a  sua  ideia,  por  Affonso  Vargas. 
(Na  rua  dos  Douradores. ) 

XIX  Sobre  as  Descobertas  dos  Portuguezes,  conferencia  de 
Egberto  de  Mesquita.  (No  Instituto  Agricola.j 

X\  Camões  e  o  Jesuitismo,  conferencia  por  C.  de  Salamonde. 
(No  Collegio  Lusitano.) 

XXI  Camões  e  o  Algarve,  conferencia  por  Martins  Contreiras. 
(Centro  republicano  democrático). 

XXII  Camões,  a  Typographia  e  as  Sciencias  do  século  xvi, 
conferencia  de  Theophilo  Braga.  (Associação  typographica  lisbo- 
nense.) 

XXIII  Camões  e  Gil  Vicente,  conferencia  de  Theophilo  Braga. 
(Na  Associação  dos  Ourives  da  Prata  lisbonenses.) 

XXIV  Camões  e  o  Federalismo  peninsular,  conferencia  de  Theo- 
philo Braga.  (Centro  republicano  federal.) 


136  EXCYCLOPEDIA  REPUBLICA^A 

XXV  Camões  e  as  Mulheres  portuguezas,  por  D.  Margarida  Vi- 
ctor. (Sociedade  de  Geographia.) 

XXVI  Camões  e  a  Sociedade  portugueza,  por  D.  Angelina  Vidal. 
(Salão  da  Trindade.) 

XXVII  Camões  e  o  ideal  da  Humanidade,  conferencia  de  Manuel 
de  Arriaga.  (Centro  republicano  federal  ) 

XXVIII  Bernardes  Branco,  conferencia. 

XXIX  Brito  Aranha,  conferencia.  (Na  Associação  promotora  das 
Classes  laboriosas.) 

XXX  Silvestre  Bibeiro.  (Idem,  idem.) 

XXXI  Camões  e  as  tradições  portuguezas,  conferencia  de  Theo- 
philo  Braga.  (Sala  da  Associação  promotora  das  Classes  laborio- 
sas.) 

XXXII  Pedro  de  Oliveira  Pires,  conferencia. 

XXXIII  Baptista  Ferreira,  idem. 

XXXIV  Alves  Corrêa,  Leitura :  Camões  e  os  protestos  contra  a 
decadência  nacional.  (Centro  republicano  federal.) 

XXXV  Leitura  de  João  José  de  Sousa  Telles.  (Na  Associação 
promotora  das  Classes  laboriosas.) 

XXXVI  Leitura  de  Brito  Aranha.  (Idem.) 

XXXVII  António  Augusto  Pessoa.  Camões,  a  Litteratura  e  a  Na- 
cionalidade portugueza.  (Quartel  de  caçadores  2,  em  9  de  maio.) 

XXXVIII  Magalhães  Lima,  Influencia  do  Centenário  de  Camões 
na  sociedade  portugueza.  (Cooperativa  de  Instrucção.) 

De  quasi  todas  estas  conferencias  existem  noticias  nos  jornaes, 
d'onde  extrahimos  os  seus  lilulos ;  algumas  foram  publicadas  em 
opúsculos.  Seria  um  magnifico  trabalho  o  reunil-as  em  volume, 
obtendo  dos  seus  auclores  quando  não  o  próprio  texto  da  confe- 
rencia, pelo  menos  uma  summa  que  desse  uma  clara  ideia.  Er- 
guia-se  assim  um  monumento,  que  sendo  uma  das  mais  bellas  glo- 
riflcações  do  grande  épico  nacional,  nos  ensinaria  que  se  as  socie- 
dades antigas  se  moviam  por  mteresses  e  paixões,  modernamente 
os  povos  só  se  levantam  pela  unanimidade  das  ideias. 

Theophilo  Braga. 


vsterios     du    noite 

Ao  inspirado  e  mimoso  poeta  do  Atheu,  o  ex""  sr.  José  Joaquim  Vieira, 

como  testemunho  de  respeitosa  gratidão, 

dedica  o  auctor 

4  Da  noite  o  véo  espesso,  immenso  e  tenebroso, 

D'ignotas  regiões  ha  muito  já  desceu 
Sobre  a  terra  prostrada  em  mórbido  repouso. 


MYSTERIOS  DA  NOITE  137 


Não  brilha  um  astro,  um  só,  mrs  amplidões  do  Céo. 
E  as  aves  do  Terror,  piam  íunebremente 
Das  velhas  cathedraes  no  agudo  coruchéo. 

No  vasto  leito  o  Mar  resfolegar  se  sente, 
E  quebram  o  silencio  as  brisas  gemebundas 
Dedilhando  no  espaço  o  seu  queixar  dolente. 

Parecem  escutar-se  as  vozes  moribundas 

Dos  negros  cyprestaes,  onde  uma  crença  errónea 

Nos  diz  a  Morte  erguer-se  em  commoções  profundas. 

Dorme  apparen temente  a  grande  Habylonia. 
Mas  parte  d'esse  monstro  abjecto  pustuloso, 
Entrega-se  com  anciã  á  bestial  insomnia. 

Não  chega  o  somno,  não,  ás  regiões  do  goso, 
A's  espeluncas  vis,  ou,  aos  antros  temíveis 
Onde  inda  tripudia  o  Vício  criminoso. 

A  desolada  noite  abysmos  tem  horriveis. 

—  No  coração  da  treva,  qs  ruivus  miseráveis 
Commettem  por  prazer  delictos  bem  puníveis ! 

Nos  salões  do  íp-and  monde,  esposas  muito  amáveis, 
Adulteras  gentis  I  conversam  i-o'os  amantes 
Bem  perto  dos  barões  —  maridos  execráveis  ! . . . 

Austeros  ordeirões.  censores  petulantes, 
Catões  á  luz  do  sol,  extenuados  da  or^ia 
Fumam  o  seu  breiè  nos  seios  das  bacchantes. 

Um  fulvo  conselheiro  e  a  mulher  séL'ca  e  fria, 
No  remanso  do  lar,  tratam  vender  a  filha, 

—  Figurino  animado,  uma  flor  da  anemia. 

Na  alcova  sensual  e  que  a  morna  baunilha 
Incandesce  e  perfuma,  a  lúbrica  hespanhola 
PrenJe  o  Creso  burguez  nas  malhas  da  mantilha. 

Em  doida  saturnal  o  homem  ébrio  rola 

No  atapetado  chão. . .  esquecido  de  todos. . . 

Lembrado  só  da  mãe,  que  a  magoa  desconsola  ! 

Os  filhos  dos  Heroes,  debatem-se  nos  lodos 
Das  baixas  corrupções,  co'as  gastas  Messalinas 
D'alma  enfraseada  em  vinho  e  fementidos  modos  ! 

Votando  á  fome  a  esposa  a  as  filhas  pequeninas 

Um  miserável  entra  em  sórdida  espelunca 

E  aos  bons  punhados  joga  as  lib:-as  sterlinas  !  ! . . . 

—  O  jogo,  tentador,  esconde  a  garra  adunca 
Em  montes  de  metal  aurífero,  ardiloso, 

E  aquelle  que  empolgou  não  torna  a  soltar  nunca !  — 

18 


138  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


O  sybarila  sorna,  immundo,  esguio,  gotoso, 

Fareja  aqui,  ali,  qual  lobo  esfomeado, 

As  frouxas  sensações  d'um  vicio  crapuloso  ! 

Um  vullo  feminil — quem  sabe?  ente  adorado  — 

Arremessa  ao  monturo  um  tenro  corposinho, 

Que  ba  pouco  inda  nasceu,  em  trapos  embrulhado. . . 

Transforma,  outra,  em  aleouce  o  tbalamo,  o  almo  ninho, 
O  quarto  conjugal,  e  mata  o  amor  mais  puro 
Na  turva  embriaguez  dum  doido  torvelinho! 

Romântica  Julieta,  um  pomo  azedo,  impuro, 

Olvida  os  pães  e  foge  em  rapto  singular 

Co'um  Romeu  que  possue. . .  a  cadeia  por  futuro. 

N"um  albergue  sem  iuz  escuta-se  o  chorar, 

O  pranto  de  mulher. .  .  É  o  noivo  em  desvario  J 

De  vinho  ardente  e  mau,  que  a  tenta  estrangular  I  1 

Na  rua  o  commensal  d'um  pandigar  sombrio 
Insulta  sem  pudor  com  chufas  immoraes 
Um  velho  triste  e  só,  que  esmola  lhe  pediu  I 

Nas  mesas  dos  festins  brilhantes  de  crystaes, 
Reboam  do  tripudio  os  ditos  vis,,  profanos, 
As  lúbricas  canções  das  velhas  saturnaes. 

É  tuilo  podridão  I  E  os  fétidos  arcanos 

Inda  não  descerrei !. . .  Mas  ai  I  os  criminosos 

São  todos  bons  christãos  catholicos  romanos. . .  ] 

Amantes  são  dos  reis,  são  crentes  fervorosos  ;  i 

Com  mui  devota  unção,  eonfessam-se,  ouvem  missa, 
Deprecam  sempre  a  Deus  nos  psaímos  lacrymosos. . . 

Detestam  a  Razão  por  mystica  perguiça  : 
Newton,  Kléper  e  Bruno  —  os  límpidos  clarões. 
E  á  luz  do  Saber  na  magestosa  liça 
Oppõem  o  declamar  dos  gastos  histriões. 


Lisboa  21  de  setembro  de  1879. 


Xavier  de  Paiva 


Aulílu  Cl  jiroíiosiÍQ  da  questão  Jus  vivisecções 

O  artigo  que  cu  tive  a  honra  de  publicar  na  Enajdopedia  Repu- 
blicana e  que  motivou  o  toUietini  do  sr.  Alexandre  da  Conceição 
no  numero  ;U9  do  Século,  está  bem  visto,  não  tem  nada  que 
ver  com  a  questão  pessoal.  O  sr.  Alexandre  da  Conceição  dignou-se 
de  me  responder,  nos  mais  delicados  lermos  é  verdade;  mas  com 
certas  piadas  e  trocadilhos  que  eu  receio  que  reduzam  a  altura  da 


AINDA  A  QUESTÃO  DAS  VIVISECÇÕES  139 

sua  resposta.  Cabe-me  pois  dizer  mais  alguma  coisa,  apezar  de 
siippòr  que  a  minha  melhor  resposta  seria  pedir  ao  sr.  Alexandre 
da  (Conceição  que  considerasse  seriamente  na  sua. 

S.  ex.^,  no  seu  folhetim,  apresenla-nos  o  artigo  Jonh  Buli  como 
a  única  cousa  que  se  poderia  escrever  depois  da  leitura  da  carta 
de  Darwin  ao  professor  Holmgren  e  das  palavras  da  redacção  da 
Remie  Sdentifique  que  precedem  essa  carta.  Não  tanto  a  propósito 
d'este  incidente  entre  mim  e  o  sr.  Conceição,  como  para  tornar 
bem  conhecida  entre  nós  a  maneira  delicada  e  prudente  d'ella 
qual  costuma  a  emittir  a  sua  opinião  a  gente  que  se  não  dedigna 
de  ser  mstructor  da  mocidade,  traduzo  aqui  a  carta  do  sábio 
Darwin. 

Down  Beckenham,  14,  de  abril  de  1881. 

Caro  sr. 

Respondo  á  vossa  amável  carta  de  7  de  abril,  e  nenhum  emba- 
raço me  causa  o  dizer-vos  o  que  penso  do  direito  que  têem  os  sá- 
bios de  fazerem  experiências  sobre  animaes  vivos.  Sirvo-me  d'esta 
expressão  porque  a  julgo  mais  correcta  e  mais  fácil  de  compre- 
hender  do  que  a  palavra  vivisecção.  Vós  podeis  fazer  da  minha  carta 
o  que  melhor  vos  parecer ;  mas  se  a  publicardes,  desejo  que  seja 
por  inteiro. 

Fui  sempre  partidário  da  doçura  para  com  os  animaes,  e,  nos 
meus  escriptos,  esforcei-me  por  espalhar  esta  idéa  que  considero 
como  um  dever.  Quando  o  movimento  contra  os  physiologistas  co- 
meçou na  Inglaterra,  ha  jà  muitos  annos,  aíTirmou-se  que  se  pra- 
ticava actos  de  crueldade  contra  os  animaes  e  que  se  lhes  infligia 
soffrimentos  inúteis ;  eu  pensei  então  que  o  parlamento  devia  in- 
tervir a  favor  dos  animaes.  Tomei  activa  parte  no  movimento  e 
reclamei  uma  lei  que  supprimisse  toda  a  razão  de  queixa,  deixando 
comtudo  aos  physiologistas  a  liberdade  das  suas  indagações ;  e  o 
meu  projecto  era  bem  differente  da  lei  que  foi  depois  votada. 

Devo  ajuntar  que  a  inspecção  feita  por  uma  commissão  real  pro- 
vou a  falsidade  das  accusações  feitas  aos  physiologistas  inglezas. 

Comtudo,  pelo  que  ouço  dizer,  creio  que  em  certos  paizes  da 
Europa  não  se  faz  muito  caso  dos  soffrimentos  dos  animaes.  Se  as- 
sim é,  ser-me-hia  agradável  saber  que  se  tomava  medidas  para  im- 
pedir estes  actos  de  crueldade. 

Por  outro  lado,  sei  que  a  physiologia  não  pode  fazer  nenhum 
progresso  supprimidas  as  experiências  nos  animaes  vivos,  e  tenho 
a  intima  convicção  de  que  retardar  os  progressos  da  physiologia 
é  commetter  um  crime  contra  o  género  humano.  Quem,  como  eu, 
se  lembra  do  estado  d'esta  sciencia  ha  cincoenta  annos,  deve  re- 
conhecer que  ella  tem  feito  immensos  progressos  e  que  avança 
cada  dia  com  uma  rapidez  crescente. 


140  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Quaes  são,  na  pratica  da  medicina,  os  progressos  que  se  pode 
attribuir  directamente  á  physiologia,  é  o  que  só  os  médicos  e  os 
physiologistas  podem  discutir  com  competência  :  mas,  tanto  quanto 
eu  posso  julgar,  os  benefícios  recebidos  são  já  consideráveis. 

A  não  se  ignorar  absolutamente  tudo  o  que  a  sciencia  tem  feito 
pela  bumanidade,  deve-se  estar  convencido  de  que  a  physiologia 
é  chamada  a  prestar  no  futuro  ao  homem  e  mesmo  aos  animaes 
incalculáveis  benefícios.  Veja-se  os  resultados  dos  trabalhos  de  M. 
Pasteur  sobre  os  germens  das  doenças  contagiosas ;  os  animaes  não 
serão  os  primeiros  a  utilisar  esses  resultados?  Quantas  vidas  se 
tem  salvado,  quantos  soffrimentos  poupados,  com  a  descoberta  dos 
vermes  parasitas,  devida  ás  experiências  de  Wirchow  e  outros 
sobre  os  animaes  vivos ! 

Causará  admiração,  mais  tarde,  a  ingratidão  que  a  Inglaterra 
mostrou  para  com  estes  bemfeitores  da  humanidade. 

Quanto  a  mim,  deixai-me  assegurar-vos  que  honro  e  que  hon- 
rarei sempre  todo  aquelle  que  contribuir  para  o  progresso  d'esta 
Dobre  sciencia  —  a  physiologia. 

Sinceramente  vosso. 

Carlos  Darwin. 

N'esta  carta,  como  se  vê,  faltam  as  expressões:  —  «caixeiros 
carolas  e  brutos;  tolice  violenta,  ridícula  e  bestial.»  O  sr.  Alexan- 
dre da  Conceição,  não  obstante  considerar  a  phrase  de  Darwia 
particular  «d"aquelle  espirito  ordeiro  e  característico  dos  seus  li- 
vros mais  revolucionários»,  quiz  remediar  essa  falta,  e  o  seu  ar- 
tigo, inspirado  pela  carta  do  auctor  da  Ongin  of  species,  como  s. 
ex.*  diz  que  é,  é  tudo  menos  a  inspiração  d 'um  «modesto  divul- 
gador do  espirito  scientifico  do  seu  tempo,  que  junta  a  nullidade 
da  sua  opinião  ás  vozes  auctorisadas  dos  primeiros  homens  da 
sciencia  contemporânea».  O  sr.  Alexandre  da  Conceição  entendeu 
que,  sem  aquelles  epilhetos  formosos,  o  caracter  inglez  não  podia 
ser  «cordealmenle  abominado»  e  fez  mais  alguma  cousa  : — oscre- 
veu-os,  sobre  aquelle  assumpto  que  ainda  lhe  parece  sem  rival  para 
uma  «troça»  e  para  uma«descomposlura»  com  todo  o  pezo  da  au- 
ctoridade  portugueza! 

Ao  ver  isto,  eu  pensei  em  que  era  dever  de  nós  todos  irmo-nos 
revoltando  contra  as  «liberdades  de  adjectivação  pouco  parlamen- 
tares e  menos  académicas.» 

A  phrase  poUuida  que  a  todos  custa  a  ouvir  da  bocca  da  plebe, 
não  pode  continuar  a  figurar  na  nossa  litteratura  como  elementa 
indispensável  de  uma  linguagem  expressiva.  D'outromodo,  o  rea- 
lismo e  toda  a  litteratura  que  d'elle  se  alimenta  podem  preoccu- 
par-se  do  sétimo  volume  de  Bocage  e  suppór  que  somos  lodos  uns 


AINDA  A  QUb:STÃO  DAS  VIVISECÇÕES  141 


ignorantes  que  carecemos  de  ouvir  «a  palavra»  para  sabermos  que 
se  trata  de  mullier  publica,  e  que  nos  niio  desviamos  das  immun- 
dicies  da  estrada  se  lá  não  estiver  um  rotulo  bem  claro. 

Condemnar  as  nossas  mulberes  e  as  nossas  filhas  a  não  terem 
na  lingna  pátria  um  romance  que  melhor  se  chamaria  verdadeira- 
mente moderno  e  scienlifico,  austero  como  a  linguagem  da  scien- 
cia  que  tudo  sabe  dizer  sem  ser  erótica,  parece-me  uma  falta  grave; 
querer  vulgarisar  as  mais  elevadas  questões  scientificas  e  attrahir 
sobre  ellas  a  attenção  serena  e  firme  do  publico,  mislurando-lhes 
um  phraseado  contrario  e  dando  o  exemplo  de  imprecações  popu- 
lares e  impróprias,  pareceu-nos  uma  falta  maior  ainda. 

Notando  as  palavras  do  sr.  Alexandre  da  Conceição,  nós  não 
quizemos  de  modo  algum  censural-o  na  sua  pessoa,  mas  apenas 
defumar-nos  desta  epidemia  litteraria  que  nos  obriga,  homens  cor- 
tezes  com  toda  a  gente  na  conversação,  a  fa liarmos  em  forma  de- 
sabrida, comos,  ex.^  chama  ao  systema,  nos  escriptos  que  produ- 
zimos. 

Que  a  exemplo  de  Holmgren,  Darwin,  ^Yirchow...  seja  a  ques- 
tão tratada  serenamente,  promovendo  os  protestos  de  verdadeiro 
pezo,  ou  apresentando  os  nossos  na  linguagem  moderada  e  humi- 
lhante da  critica  sabia.  Que.  em  vez  de  meras  noticias  em  forma 
de  desabafo  de  ponta  e  mola  (é  aqui  que  vem  de  molde  a  classi- 
ficação) se  tornasse  bem  patente  a  indifferença  dos  homens  com- 
petentes de  Portugal ;  isto  seria  para  a  historia  dos  nossos  cos- 
tumes um  documento  mais  precioso. 

A  insistência  em  considerar  universalmente  o  procedimento  do 
parlamento  inglez  e  da  nação  que  elle  representa  como  intolerante 
e  brutal,  faz-me  insistir  pela  interpretação  que  consegui  dar-lhe. 
Mas,  ainda  que  o  acto  fosse  brutal,  ser  delicado  com  a  brutalidade 
nunca  deshonrou  ninguém. 

Quando  eu  comparei  a  linguagem  de  Jonh  Buli  ás  camilladas 
da  Revista  bibliographica  de  Cliardron,  não  intentei  corrigir  a 
opinião  do  illustre  auctor  d"aquelle  artigo,  por  meio  d'uma  re- 
cordação pungente  de  parte  da  sua  vida  litteraria  que  eu  nunca 
deixarei  tratar  de  obscura.  Respeito  a  infelicidade  que  acompanhou 
o  sr.  Conceição  n'aquellas  polemicas  e  foi  por  isso  mesmo ;  mas 
não  sei  que  esta  se  revelasse  senão  no  abuso  dos  termos.  Jonh 
Buli  e  folhetim  não  são  porém  ainda  provas  de  arrependimento, 
e  eu  não  posso  poupar  s.  ex.^  a  essa  recordação.. .  vergonhosa, 
(já  que  agora  se  honra  chamando-lhe  assim)  emquanto  o  não  vir 
arrependido  do  motivo  que  apenas  sinto  para  a  vergonha. 

Quanto  á  dissertação  que  o  sr.  Alexandre  da  Conceição  faz  so- 
bre o  ultimo  período  do  meu  artigo,  visto  que  s.  ex."*  carece  de 
explicação,  eu  tomo  a  liberdade  de  lhe  lembrar  (e  privo-me  de 
commentarios  graciosos)  que   o  dictado  à  quelque  chose  malheur 


142  ENGYGLOPEDIA  REPUBLICANA 

est  hon,  ainda  não  está  condemnado,  e  que,  se  a  melhor  cousa  que 
se  conhece,  não  é  o  mal,  embora  possa  provocar  as  reacções  do  bem, 
a  descomposhira  em  cousas  sérias  é  ainda  mais  abominável  do  que 
o  mal,  porque  é  pelo  contrario  estéril  para  tudo. 

Depois  que  o  dr.  Pinei  aboliu  as  chicotadas  nas  alienaçijes,  está 
reconhecido  scientificamente  que  o  azorrague,  è  contraproducente 
e  que  todos  devemos  deixal-o  na  mão  d°aquelles  a  quem  por  of- 
ficio  pertence. 

Julgo  ter  dado  por  uma  vez  os  meus  motivos,  sem  esquecer 
mesmo  a  satisfação  particular  que  porventura  devesse  ao  sr. 
Alexandre  da  Conceição. 

Ponla  Delgada  (Açores),  8  de  março  de  1882. 

Arruda  Furtado. 


John  Willlam  Draper,distinctissimo  professor  da  Universidade  de 
New- York,  é  um  dos  publicistas  contemporâneos  mais  eruditos  e  ar- 
rojados, e  talvez  o  escriptor  de  mais  imparcialidade  histórica  e 
scientiflca  da  escola  positivista. 

Possuidor  de  muitos  e  variados  conhecimentos,  colhidos  no  es- 
tudo aturado  e  disciplinado  de  toda  a  vida,  e  reforçado  com  as 
investigações  e  cogitações  do  seu  espirito  alevantado  c  culto,  tem 
enriquecido  a  litteraíura  moderna  com  obras  de  verdadeiro  quilate, 
que  são  outros  tantos  subsídios  assas  valiosos  para  as  pessoas  que 
pretendam  estudar  os  grandes  problemas  historico-scientificos  e 
politico-sociaes,   que   mais  interessam  aos  povos  e  á  civilisação. 

Draper.  que  tão  notável  se  tem  tornado  pela  tenacidade  com  que 
•procura  illuminar  com  os  reflexos  da  sua  brilhante  intelligencia  os 
mais  escuros  recessos  da  Historia,  fazendo  luz  onde  só  tem  exis- 
tido a  treva,  substituindo  a  verdade  ao  erro,  o  real  ao  ideal,  é, 
dos  historiadores  modernos  o  de  mais  atrevidas  concepções,  mas 
sem  nunca  se  deixar  arrastar  pela  parcialidade  que  tanto  desau- 
ctorisa  muitos  outros,  aliás  distinctos. 

A  sua  Historia  do  desenvolvimento  inlellectual  da  Europa,  que 
além  do  grande  numero  de  edições  que  tem  tido  na  America,  já 
foi  traduzida  em  francez,  allemão,  russo,  polaco,  sérvio,  etc,  dis- 
fructa  de  grande  reputação  no  mundo  illustrado. 

Porém,  acima  d'e£sa  obra  eminente  e  da  Historia  da  guerra  ci- 
vil da  America,  devemos  collocar  os  Confllictos  entre  a  sciencia  c  a 
religião  em  que  Draper  se  revela  não  só  historiador  consummado, 
mas  critico  superior,  e  um  athleta  infatigável  da  sciencia  positiva  que 
teve  a  Augusto  Comte  por  fundador,  e  por  adeptos  e  cultores  as 
mais  privilegiadas  intelligencias  da  moderna  geração. 

Os  Conflictos  entre  a  sciencia  e  a  religião,  é  um  livro  de  combate 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  143 


que  illiistra,  aLtrahe  e  encanta,  pelos  delicados  problemas  que 
apresenta  e  desenvolve  n"uma  fornia  artística  e  n'um  estylo  vigo- 
roso e  cheio  de  bellezas. 

Não  podemos  resistir  ao  desejo  de  darmos  aqui  alguns  trechos 
do  magnifico  livro  do  illustre  historiador  americano.  Os  leitores  que 
nos  revelem  a  ousadia  do  emprehendimento  de  transplantar  para 
a  nossa  lingua  um  escripto  de  tão  vasto  alcance.  O  que  a  tanto 
nos  anima  é  a  boa  vontade,  e  não  a  vaidosa  intenção  de  inculcar- 
mos forças  e  conhecimentos  que  não  temos. 

Damos  em  seguida  o  primeiro  capitulo,  por  ser  um  dos  mais 
encantados  na  forma  e  no  estylo. 

Xavier  de  Paiva. 


A  orícieni  na  ScíenciLa 

Situação  religiosa  dos  gregos  no  século  iv  antes  de  Jesus  Christo.  —  Suas  inva- 
sões na  Pérsia  põe-n'os  em  contacto  com  aspectos  novos  da  natureza  e  com 
novos  systemas  religiosos.  —  A  acti\  idade  militar,  industrial  e  scieutiíica  pro- 
duzida pelas  campanhas  macedonicas  dá  origem  ao  estaljeleciíiieuto  do  Mu- 
seu de  Alexandria,  instituído  para  o  estudo  das  sciencias  por  meio  da  expe- 
riência, da  observação  e  do  raciocínio  exacto.  —  O  Museu  é  o  creador  da 
seiencia. 

Não  ha  no  muudo  espectáculo  mais  triste,  mais  solemne  que  o 
de  uma  religião  velha  que  morre  depois  de  ter  sido  durante  sé- 
culos o  consolo  de  muitas  gerações. 

Quatrocentos  aunos  antes  do  nascimento  de  Jesus  Christo,  co- 
meçava a  Grécia  a  adiantar-se  á  sua  antiga  Iheologia. 

Seus  philosophos,  que  tinham  estudado  a  natureza,  estavam  já 
profundamente  impressionados  com  o  contraste  entre  a  magestade 
de  suas  operações  e  a  miséria  dos  deuses  do  Olynipo. 

Seus  historiadores,  que  haviam  contemplado  o  curso  regular  dos 
negócios  humanos,  a  permanência  da  acção  do  homem,  e  que 
viam  que  nenhum  successo  se  produzia  á  sua  vista,  cuja  causa 
não  lhes  fora  fácil  descobrir  em  algum  outro  anterior,  começavam 
a  suspeitar  que  os  milagres  e  intervenções  dos  céos  que  chama- 
vam os  velhos  annaes,  bem  podiam  não  ser  mais  que  ficções.  Per- 
guntavam porque  tinham  emmudecido  os  oráculos  e  cessado  os 
seus  prodígios,  e  em  que  tempo  findara  a  era  do  predomínio  do 
sobrenatural. 

Tradições  de  uma  antiguidade  immemorial,  acceites  n"outro 
tempo  pela  gente  piedosa  como  verdades  incontestáveis,  haviam 
povoado  as  ilhas  do  Mediterrâneo  e  os  paizes  lemitrophes  de  ma- 
ravilhas sobrenaturaes,  de   fadas,    feiticeiras,   drasgos,   harpias, 


144  ENCYCLPEDIA  REPUBLICANA 

gigantes,  centauros,  cyclopes,  etc.  A  abodada  azulada  era  o  céo. 
Ali.  Zeus,  rodeiado  dos  deuses  inferiores  com  suas  mulheres  e 
suas  amantes,  tinha  a  sua  corte,  e  occupava-se  em  assumptos  si- 
milhantes  aos  dos  homens,  e  entregava-se  como  elles  á  paixão  e 
ao  crime. 

Costas  accidentadas,  um  archipelago  formado  das  ilhas  mais 
deliciosas  que  ha  no  mundo,  inspiravam  aos  gregos  o  gosto  pela 
vida  marilima,  pelos  descobrimentos  geographicos  e  f)ela  coloni- 
sação.  Os  seus  navios  cortavam  as  aguas  do  mar  Negro  e  do 
Mediterrâneo.  Reconheceu-se  que  as  maravilhas  em  que  se  acre- 
ditava desde  séculos  e  que  estavam  inscriplas  na  religião  do  Es- 
tado, não  existiam.  Aprendeu-se  a  conhecer  a  natureza,  com- 
prehendeu-se  que  a  abobada  azulada  era  um  eíYeito  de  óptica ; 
que  não  havia  Olympo  sobre  nossas  cabeças,  e  tão  somente  o  es- 
paço e  as  estrellas.  Quando  os  deuses  já  não  tiveram  morada, 
desvaneceram-se,  ao  mesmo  tempo  os  do  typo  jónico  de  Homero 
que  os  do  typo  dórico  de  Hesiodo. 

Sem  embargo,  isto  não  se  realisou  sem  resistência.  Desde  logo 
o  povo,  e  em  particular  a  parte  piedosa,  interpretou  as  duvidas 
que  surgiam  como  uma  invasão  do  etheismo.  Foram  os  culpados 
privados  de  seus  bens,  desterrados,  e  até  condemnados  á  morte, 
O  publico  ficou  convencido  de  que  cousas  que  tinham  sido  crea- 
das  por  os  espíritos  religiosos  desde  tempo  remoto,  e  que  haviam 
resistido  á  prova  de  tantos  séculos,  não  podiam  deixar  de  ser  ver- 
dadeiras. Depois,  quando  a  prova  do  contrario  se  fez  irrefutável, 
contentou-se  com  admittir  que  estas  maravilhas  eram  allegorias 
sob  as  quaes  a  prudência  dos  antigos  havia  occultado  verdades 
sagradas  e  mysteriosas.  Cuidoti«se  de  reconciliar  os  dogmas  — 
que  se  temia  entretanto  não  ser  outra  cousa  mais  do  que  mylhos 
—  com  o  progresso  intellectual.  Porém,  os  esforços  foram  balda- 
dos, vãos ;  porque  ha  phases  necessárias  pelas  quaes  deve  passar 
fatalmente  a  opinião  publica,  em  laes  casos.  Ao  principio  a  duvida 
substitue  a  veneração,  em  seguida  vêm  as  interpretações  novas, 
depois  cae-se  em  dissidência,  e  finalmente  se  deseja  por  pura  fa- 
bula todo  o  conjuncto  das  velhas  crenças. 

Aos  historiadores  e  philosophos  seguiram-se  os  poetas.  Euripi- 
des  incorreu  no  delido  de  heresia  ;  Esquilo,  a  ponto  de  ser  casti- 
gado por  blasphemo.  Porém,  os  esforços  desesperados  dos  interes- 
sados em  defender  o  erro  acabam  sempre  por  ser  vencidos.  A  des- 
raoralisação  estendeu-se  de  uma  maneira  irresistível  em  todos  os 
ramos  da  litleratura  e  acabou  por  penetrar  nas  próprias  camadas 
populares. 

Na  Grécia  tinha-se  unido  a  critica  philosophica  á  scientifica  para 
derrubar  a  religião  nacional.  Susteve  com  seus  argumentos  a  in- 
credulidade que  se  espalhava  e  confundia.  Comparou  as  doutrinas 


A  OaiGEM  DA  SCÍENCIA  145 


das  flifferentes  escolas,  e  deinonslrnu  em  suas  conlradicções  que 
o  homem  não  possiie  um  critério  de  verdade  :  que  desde  o  mo- 
mento em  que  as  unções  d'elle  sobre  o  bem  e  o  mal  variam  com 
os  tempos  e  os  logaies,  é  |)orqiie  não  estão  fundadas  na  natureza 
das  cousas,  senão  creadas  pela  educação;  que  o  bem  e  o  mal  são 
duas  ficções  que  a  sociedaije  faz  servir  para  seu  objecto. 

Em  AlhtMias,  as  classes  intelligentes  tinham  chegado,  não  so- 
mente a  negar  o  sobrenatural  e  tudo  que  dependia  dos  sentidos, 
senão  a  pensar  que  o  mundo  podia  muito  bem  ser  um  sonho,  uma 
phantasmagoiia,  e  levaram  a  duvida  a  ponto  de  não  crerem  em 
cousa  alguma. 

A  coidiguração  topographica  da  fiiecia  determinava  a  forma  á:\ 
sua  consliluição  politica.  K>lava  repartida  em  communidades  dis- 
linctas.  divididas  por  interesses,  e- portanto  impróprias  para  a  cen- 
Iralisação.  Guerras  conlínuas  entre  os  estados,  obstavam  ao  seu 
progresso.  Ki-a  pobre,  e  seus  chefes  estavam  corrompidos  e  sem- 
pie  |)r()mpt'is  a  vender  os  interesses  sagrados  do  seu  paiz  a  troco 
do  ouro  oirerecido  pela  IVrsia.  Os  gregos  mais  accessiveis  á  idéa 
do  bello  plástico,  como  iml-o  mostram  hastaiite  a  sua  architeclura 
e  a  sua  estatuária,  como  nunca  o  foram  nenhum  povo  nem  antes 
nem  depois  dVlles,  tiidiam  perdido  nas  cousas  moraes  o  discerni- 
menlo  do  verdadeiro  e  do  bem. 

Kmquanto  ipie  os  gregos  da  Europa,  replectos  das  idéas  de  li- 
berdade e  independência,  repelliam  a  soberania  da  Pérsia,  os  gre- 
gos da  Ásia  acolliiam-n'a  sem  resistência.  O  império  persa,  n'esta 
época,  egualava  em  extensão  a  metade  da  Europa  moderna.  Con- 
finava com  o  Mediterianeo,  com  o  mar  Negro,  com  o  mar  Egeo, 
com  o  mar  Caspio,  com  o  mar  das  Índias  e  com  o  mar  Roxo.  Seis 
dos  majores  i'ios  do  mundo,  o  Eufrates,  o  Tigre,  o  Indo,  o  Oxus, 
o  Jaxardes  e  o  Nilo.  cada  um  dos  quaes  tinha  um  curso  de  mais 
de  mil  milhas,  sulcavam  o  seu  território.  Uma  parte  da  sua  super- 
fície descia  a  mil  e  trezentos  pés  abaixo  do  nivel  do  mar,  c  outra 
elevava-se  a  vinte  mil  pés  acima  do  mesmo.  O  seu  solo  era  por- 
tanto azado  para  todo  o  género  de  cultura.  As  suas  riquezas  mi- 
nerai's  não  tudiam  limites.  E  demais,  havia  herdado  todo  o  presti- 
gio dos  velhos  impérios:  medo,  babylonio,  assyrio,  e  chaldeo,  cu- 
jos anrines  oC('(ipavam  vinte  séculos  transcorridos. 

A  Pers.a  comleinplara  sem|)re  a  Grécia  da  Europa  como  um  paiz 
de  pouca  importância  sitb  o  ponto  de  vista  politico.  Apenas  tinha 
a  extensão  da  metade  de  uma  satrapia.  Sem  eudiargo,  as  expedi- 
ções que  euq)rehendera  para  reduzil-a  á  escravidão,  mais  lhe  ti- 
nham demonstrado  as  (jualidades  militares  de  seus  habitantes. 
Também  encorpnrou  no  exercito  persa  mercenários  gregos,  e  es- 
tes eram  considerados  como  os  melhores  soldados.  Não  duvidou 
até  algumas  vezes  em  dispensar  o  commando  dos  seus  exércitos 

19 


146  ENGYCLOPEUIA  HEPUBLICANA 

a  generaes  gregos,  e  entregar  as  suas  flotas  a  capitães  da  mesma 
nacionalidade.  Os  resultados  d'esta  falta  foram  consideráveis.  Os 
mercenários  estrangeiros  estudaram  attentamente  a  situação  do 
Império.  Conheceram  a  sua  debilidade  real  e  viram  que  nada  era 
mais  fácil  que  penetrar  até  á  capital.  Depois  da  morte  de  Cyro, 
no  campo  da  batalha  de  Cunava,  a  retirada  immortal  dos  dez  mil 
provou  que  um  exercito  grego  podia  abrir  passo  atravez  da  Pérsia. 

A  alta  opinião  que  das  obras  dos  engenheiros  militares,  taescomo 
a  ponte  estendida  sobre  o  Hellesponlo,  por  Xerxes,  e  a  perfuração 
do  isthmo  junto  ao  monte  Athos,  tinham  feito  conceber  aos  gregos 
que  a  habilidade  dos  generaes  persas  se  enganara  em  Salamina, 
em  Prateo,  em  Mycala.  Saquear  as  ricas  provindas  da  Pérsia  che- 
gara a  ser  tenlação  irresistível.  Com  este  intento  emprehendeuAge- 
silào,  rei  de  Esparta,  a  expedição  que  se  iniciou  com  um  brilhante 
triumpho,  mas  que  foi  mui  de  promplo  interrompida,  graças  á  po- 
Utica  dos  persas  que  subornavam  sempre  os  visiuhos  de  Esparta 
quando  necessitava  que  fosse  atacada  :  «Hei  sido  vencido  por  trinta 
mil  archeiros  persas,»  exclamou  amargamente  Agesiláo  ao  reem- 
barcar,  fazendo  allusão  ás  moedas  persas,  os  daricos  que  tinham 
no  anverso  a  eíTigie  de  um  archeiro. 

Por  fim,  Filippe  de  Macedónia  meditou  envidar  novos  esforços ; 
porém  d'esta  vez  com  mais  consideráveis  meios  e  com  uma  inten- 
ção mais  nobre.  Diligenciou  fazer-se  eleger  generalíssimo  de  toda 
a«Grecia,  não  já  para  fazer  uma  incursão  pelas  satrapias  da  Pérsia, 
senão  para  derrubar  a  dynastia  persa  no  próprio  coração  do  im- 
pério. Assassinado  antes  de  concluidos  os  preparativos  da  expedi- 
ção, teve  por  successor  a  seu  filho  Alexandre,  ainda  adolescente. 
Uma  Assembléa  Geral  de  gregos,  celebrada  em  Corintho,  tinham- 
n'o  eleito  por  unanimidade  para  substituir  a  seu  pae.  Houveram 
alguns  distúrbios  na  Illiria  e  Alexandre  viu-se  forçado  a  marchar 
para  o  Norte  do  Danúbio  com  o  objectivo  de  suffocal-os.  Durante 
a  sua  ausência,  conspiraram  contra  elle  os  thebanos  e  alguns  ou- 
tros. No  seu  regresso  tomou  Thebas  de  assalto,  fez  uma  matança 
de  seis  mil  de  seus  habitantes,  vendeu  outros  trinta  mil  como  es- 
cravos, demoliu  os  muros  e  arrasou  as  casas. 

A  prudência  que  tinha  dictado  estes  rigores,  ficou  provada  du- 
rante as  suas  campanhas  na  Ásia,  pois  não  foi  jamais  incommo- 
dado  por  revolta  alguma  na  sua  reclaguarda. 

Na  primavera  do  anno  334,  antes  de  .lesus-Christo,  atravesou 
Alexandre  o  Hellesponto  e  entrou  na  Ásia.  Compunha-se  o  seu 
exercito  de  trinta  e  quatro  mil  infantes  e  quatro  mil  de  cavallaria. 
Em  dinheiro  não  levava  comsigo  mais  que  setenta  talentos.  Mar- 
chou direito  ao  exercito  persa,  que,  mui  superior  em  numero,  es- 
tava intrincheirado  nas  ribas  do  Granico :  passou  o  rio,  derrotou 
o   inimigo,  e  a  conquista  da  Ásia  Menor  com  todos  os  seus  the- 


BIBLIOGRAPHIA  DO  FOLKLORE  147 

souros,  foi  o  premio  da  sua  vicloria.  Empregou  o  resto  do  anno 
na  organisação  militar  das  provincias  conquistadas. 

Durante  este  tempo,  Dário,  rei  da  Pérsia,  avançava  com  um 
exercito  de  seiscentos  mil  homens  para  impedir  a  entrada  dos  ma- 
cedonios  na  Syria.  ]N'uma  batalha  dada  no  meio  dos  desíilladeiros 
d'Issus,  os  persas  foram  vencidos.  Foi  tuo  grande  a  matança,  que 
Alexandre  e  Ptolomeu,  um  dos  seus  logar-tenentes,  conseguiram 
atravessar  a  pé  enchuto  uma  torrente  profunda,  por  estar  replecta 
de  cadáveres  ininiigos. 

Foram  avaliadas  as  perdas  em  oitenta  mil  homens  de  infanteria 
e  dez  mil  cavalleiros.  O  estandarte  real  caiu  em  poder  do  vencedor, 
e  além  do  estandarte,  a  mulher  e  alguns  filhos  de  Dário. 

Assim  entrou  a  Syria  no  numero  das  conquistas  dos  gregos. 

Na  cidade  de  Damasco  encontraram-se  as  concubinas  do  rei,  vá- 
rios oíTiciaes  do  seu  exercito,  e  consideráveis  thesouros. 

(Segue.)  , 


|3intionrajifua  do  jfollilore 

1 

Almanach  dcs  imditions  pnpulaires,  —  première  année  —  1882, 
—  Paris,  Maisonneuve  et  c.'® .  éditeurs,  1882,  —  pr.  4  fr. 

Ao  grande  numero  de  foikloristas  que  estão  espalhados  pelos 
diíTerentes  paizes  faltava  um  orgãD  pelo  meio  do  qual  soubessem 
as  moradas  e  publicações  uns  dos  outros,  para  mais  facilmente  po- 
derem communicar.  Esse  órgão  estabeleceu-o  no  Álmaimdi  cies  ira- 
dilions  pofjidaires  o  sr.  E.  Holland,  benemérito  auctor  da  Fuune  po- 
pulcire  de  la  France.  O  1.*  vol.  do  Almanach  compõe- se  do  se- 
guinte : 

hitrodiicção. 

Calendrier  populaire  potir  1882,  onde  se  referem  as  invocações 
populares  de  muitos  santos,  como  S.  Simplício,  advogado  contra 
as  dores  de  cabeça,  etc,  Estas  invocações  são,  ao  que  parece,  pu- 
ramente francezas. 

Adresscs  des  folldoristcs,  avec  indication  de  leurs  eludes  spéciales. 
O  sr.  Rolland  pede  em  nota  a  todos  aquelles,  cujos  nomes  ahi  não 
figurem,  se  lhe  dirijam  antes  da  publicação  do  Almanach  do  2.". 
anno.  A  lista  é  necessariamente  incompleta  ;  assim,  a  respeito  de 
Portugal  faltam  os  nomes  dos  srs.  Theophilo  Braga  e  Estacio  da 
Veiga. 

Nécrologie.  Lista  de  alguns  foikloristas  fallecidos  em  1880  e  188i. 


148  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Biblin/jraplíie.  Meiícioiiarn-se  as  obras  sobre  Fnlkbre  publicadas 
nos  uliimos  tempos  ;  com  a  indicação  das  apreciações  criticas  feitas 
em  vários  jornaes  a  respeito  de  muitas  delias.  U  sr.  K.  Kolland 
não  deixa  de  declarar  a  d.ita,  numero  de  paginas  e  alé  ás  vezes  os 
preços.  Porliigal  eniia  abi  com  as  publicações  dos  meus  amigos  os 
srs.  Ad.  Coelbo  e  Consiglieri  Pedroso,  e  a  Eranova. 

Le  diner  dn  folJdcre.  È  nm  pequeno  artigo  de^tli!ado  a  dar  conta 
de  um  costume  tão  inieressanle  como  original.  Us  fnlkloristas  de 
Paris,  6  os  piovincianos  ou  estrangeiros  (|ue  lá  estiverem,  jimtar- 
se-lião  n^ima  refeição  intima,  na  segunda  3.^  feua  dos  mezes  de 
Novembro  a  Maio  :  ã  sobremeza  ouvir-se-bão  cançõi-s  e  contos  po- 
pulares, e  far-se-hão  passar  de  mão  em  njão  amuletos  curiosos.  A 
escollia  de  3.^  feira  provém  acaso  de  este  dia  gosar  de  ceito  res- 
peito nas  superstições : 

Á  3.»  feira 

Não  cases  a  filha, 

Nem  urdas  a  teia  ? 

Canções  populares  de  França,  algumas  acompanhadas  de  musica 
e  de  notas  comparativas. 

Une  devinette  iiíandaise,  ou  antes  uma  pequena  poesia  a  respeito 
das  primeiras  missões  cbristãs  na  Irlanda, — publicada  e  traduzida 
pelo  sr.  II.  Gaidoz,  illuslre  director  da  Reviie  celtifjue. 

Siir  (es  contes  de  Charles  Detdin,  —  pelo  sr.  Loys  Rrueyre,  au- 
ctor  de  um  bom  volume  de  conles  popidaires  de  la  Grande  lirelagne, 
com  muitas  notas  compaialivas.  N'este  artigo  o  sr.  Brueyre  diz  que 
os  contos,  alguns  dos  quaes  muito  bellos,  (|ue  Ch.  Deulm  escreveu 
dans  la  langa(/e  et  avcc  les  pitloresrjuos  expressions  de  ce  paijs  de 
Flandre  quil  aimait  tant,  não  são  senão  reproducção  de  contos  de 
diversos  paizes,  — devendo  portanto  os  foikloristas  precaver-se  con- 
tra o  uso  d'elles  para  o  esujdo  comparativo. 

La  photographie  appUquée  a  la  description  des  jeiíx  d^enfanls  et 
des  danses  popnlaires  — O  sr.  Machado  y  Alvarez  (Demofilo).  pres- 
tante auctor  de  uma  colleccion  de  enigmas  ij  adivinanzas  en  forma 
de  dkcionarin,  propoz  o  emprego  da  photngraphia  para  a  repre- 
sentação fiel  dos  jogos  infantis:  o  sr.  E.  Rolland  accrescenta  n"este 
artigo  que  tal  emprego  se  deve  estender  á  representação  das  dan- 
ças. A  photographia  não  só  é  útil  nos  dois  casos  que  os  dislinclos 
foikloristas  apontaram,  mas  sempre  que  se  quizer  dar  uma  descri- 
pção  precisa  dos  amuleltos.  armadilhas  populares  para  pássaros  e 
aves,  instrumentos  de  lavoura,  etc.  etc.  Aproveito  a  occasião  para 
também  lembrar,  se  ainda  não  foi  lembrada  a  intervenção  da  ta- 
cbygraphia  na  colheita  dos  contos  populares  e  ainda  de  outras  pe- 
ças;  por  meio  delia  apanha-se  em  ílagrante  a  narração  do  povo, 
e  será  esta  muito  mais  genuina  a  respeito  da  linguagem. 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  149 

Como  appendice  ao  Altnannch,  vem  um  catalogo  das  publicações 
da  casa  Maisonncnve  sobre  lUfcraturas  popfilures,  etc. 

Seja-me  permitliilo  fechar  esta  singela  noticia  com  um  voto  de 
louvor  ao  sr.  K.  Kulland  pela  formosa  publicação  que  nos  deu  a 
lodos  nós  os  que  recolhemos  e  estudamos  as  tradições  populares. 

Porto,  abril  de  1882. 

J.  Leite  db  Vasconcellos. 


BiQgrãphiãs 


Manoel  Fei-nandeísí   Tlioniaa?:  i 


iManoel  Fernandes  Thomaz,  o  palria^cha  da  liberdade  portugueza, 
o  rei  da  revoliiçrio  de  1820,  como  ingenuamente  lhe  chamava  o  povo, 
é  um  dos  vultos  mais  sympalhicos  e  notáveis  que  lèm  presidido  ás 
transfiirmaçõcs  politicas  e  sociaes  da  nossa  nacionalidade.  Klle,  en- 
carnou em  si  uma  época,  sviitlietis^u  um  período  memorável  da 
historia  pátria,  repiesentou  uma  as()ira(;rio  generosa  e  bt-lla  de  um 
povo  vilipendiado,  de  uma  nação  esci  avisada,  morta,  que  necessita 
respirar  o  ar  puro  e  revivificadnr  da  liberdade;  e  no  emlanto  o  seu 
nome  foi  esquecido  e'a  lembiança  da  sua  obra  apagou-se  inteira- 
mente da  memoria  das  gerações  que  lhe  succederam.  É  porque  os 
esforços  sinceros  do  patriota  não  furam  comprehendidos,  nem  a  sua 
voz  austera  encontrou  ecco  na  consciência  adormecida  da  multidão, 
n'essa  consciência  embotada  por  mais  de  dois  séculos  de  regimen 
inquisitorial  e  despótico. 

A  revftiução  de  1820,  como  a  de  1789  em  França,  foi  uma  ne- 
cessidade, urgente,  impreterível,  decerto,  no  estado  de  miséria  e 
decadência,  a  que  o  paiz  tinha  descido;  mas  as  suas  consequências 
foram  muito  além  do  desenvolvimento  intellectual  das  classes  po- 
pulares :  os  ânimos,  embrutecidos  pela  educação  jesuítica  e  pelo 
espectáculo  repugnante  dos  autos-de-fé  e  da  forca,  não  podiam  acei- 


1  Não  podendo  o  sr.  Feio  Terenas  escrever  a  biograptiia  de  Fernandes  Ttio- 
maz,  como  nos  prometlera,  em  fons^quencia  diis  seus  innumeros  trabalhos  aetuaes 
e  da  falta  de  tempo  com  que  sempre  lueta,  pedimos  a  outro  correligionário  o  pre- 
sente estudo  hiograptiico  do  grande  revolucionário  de  1820. 

A  Empresa. 


150  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

lar  ainda,  em  opposição  aos  privilégios  da  nobreza,  do  clero  e  do 
rei,  os  Direitos  do  Homem.  Era  cedo  para  as  Iheorias  revoluciona- 
rias dos  legisladores  de  1821  e  ISiá  entrarem  na  pratica.  A  revo- 
lução intellectual,  inteiramente  metaphysica,  que  se  dava  nos  cére- 
bros mais  illustrados  d^aquella  época,  não  descera  ainda  a  esten- 
der-se  á  grande  massa  ignorante  e  fanatisada,  que  se  ajoelhava 
liumildemenle  aos  pés  da  realeza  e  esmolava  sem  dignidade  ás 
portarias  dos  conventos.  A  Constituição  foi  obra  dos  espirilos  mais 
intelligenles  do  paiz.  de  homens  dislinctos  e  independentes,  como 
Borges  Carneiro,  Ferreira  Borges,  general  Sepúlveda,  e  outros,  os 
quaes  Fernandes  Thomaz  aggrupara  ao  redor  de  si  para  levar  a 
effeito  a  revolução,  como  de  facto  o  conseguiu  em  2i  de  agosto 
de  1820. 

Fernandes  Thomaz,  segundo  o  testemunho  de  um  seu  contem- 
porâneo e  companheiro  nos  trabalhos  de  conspiração  e  do  con- 
gresso, «era  um  jurisconsulto  profundo,  muito  inteiro  no  seu  ofíi- 
cio  de  juiz,  e  dotado  pela  natureza  de  uma  rectidão  de  juizo  sin- 
gular: é  esta  mais  eminente  qualidade  que  o  distinguia  de  to- 
dos; foi  ella  quem  lhe  fez  divisar  os  elementos  da  revolução,  que 
existiam  no  paiz,  quando  tudo  estava  aterrado  com  a  carniçaria 
judicial  do  Campo  de  SatitWnna.»  ^  E  mais  adiante  acrescenta 
o  mesmo  auctor:  «feita  a  revolução  om  24  de  agosto,  Fernandes 
Thomaz,  foi  um  modelo  acabado  de  presença  de  espirito  e  de  vi- 
gilância: a  sua  sabida  do  Porto,  a  sua  marcha  sobre  a  capital,  único 
fito  da  empresa,  e  complemento  delia;  sem  se  deixar  desviar  d'este 
grande  fim  por  obstáculo  algum,  nem  proposta  de  tréguas,  ou 
transacção,  tudo  isto  mostra  não  só  juizo  claro,  mas  recto  em 
summo  grau.»  - 

E  realmente  Fernandes  Thomaz  era  um  homem  superior  pela 
sua  illustração,  pela  sua  energia,  pelo  seu  caracter  firme  e  arro- 
jado, como  o  provou  sempre  em  todo  o  curso  da  sua  carreira  so- 
cial, muito  principalmente  nos  cinco  annos  que  decorrem  entre  a 
fundação  do  Sinédrio  ou  junta  revolucionaria  e  o  seu  fallecimento. 
]N'esles  cinco  annos  o  grande  patriota  representa  o  principal  papel 
no  drama  esplendido  da  nossa  revolução.  É  elle  a  alma  do  movi- 
mento de  1820  e  do  congresso  notável  que  elaborou  a  Constitui- 
ção de  1822, 

Este  periodo  tão  curto,  mas  tão  fértil  de  acontecimentos,  encerra 
a  parte  mais  brilhante  da  vida  de  Fernandes  Thomaz,  aquella  que 
é  exactamente  a  sua  gloria. 


1  Revelações  e  viemorias  para  a  historia  da  revolução  de  24  de  agosto  de  1820 y 
'te.,  por  José  Maria  Xavier  d'Araujo. — Lisboa,  1846! — pag.  77. 
-Idem.f  pag.  78. 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  151 

II 

Desde  longos  annos  qiie  a  inépcia  dos  homens,  que  as  circum- 
stancias  históricas  callocavam  á  frente  das  cousas  publicas,  ia  ar- 
rastando o  paiz  para  uma  crise  grave  e  ditíiciL  sem  solução  pos- 
sível de  prever.  A  invasão  franceza  e  a  fuga  vergonhosa  da  corte 
para  o  Rio  de  Janeiro,  em  novembro  de  1807,  aggry varam  ain- 
da a  situação,  precipitando  o  esphacelamenlo  geial  da  velha  mo- 
narchia.  O  príncipe  regente,  embarcando  á  pressa  com  a  família 
real  e  muitas  pessoas  de  todas  as  classes  e  condições,  para  fugir 
ao  exercito  de  Junot,  recommendava  irrisoriamente  ao  mísero  povo 
que  recebesse  os  francezes  como  amigos,  ao  passo  que  elle  se  aco- 
lhia á  protecção  da  esquadra  íngleza.  Assim,  criminosa  e  cobarde- 
mente, a  casa  de  Bragança  abandonou  o  reino  ao  azar  da  invasão 
estrangeira,  transportando  para  o  Brasil  a  sede  do  governo  e  re- 
duzindo a  pátria  á  maior  miséria.  Só  à  custa  de  muito  sangue  e  de 
enormes  sacrifícios  ponde  a  nação  expulsar  o  exercito  de  Junot  e 
resistir  heroicamente  a  duas  novas  invasões,  indo  ajudar  ainda  os 
nossos  visínhos  na  dura  empresa  de  acossarem  as  tropas  aguerri- 
das de  Napoleão  até  ao  seio  da  própria  França.  N'estas  luctas  fo- 
mos auxiliados  pelos  soldados  inglezes,  e  os  cargos  mais  impor- 
tantes do  exercito  haviam  sido  confiados  a  oíTiciaes  da  mesma  na- 
cionalidade. Esta  coadjuvação,  pagámol-a  bem  cara!  Os  nossos  al- 
liados  vieram  terminar  a  obra  de  devastação  e  de  ruina,  excedendo 
muito  os  inimigos  nos  seus  desvarios  e  rapinas;  tratavam  Portugal 
como  paiz  conquistado;  para  elles  não  havia  cousa  alguma  digna 
de  respeito  no  sólo  que  vinham  defender.  E  D.  João  Yl,  caríssimo 
pae  dos  portuguezes,  entregava-os  agora  amorosamente  a  Wellesley 
6  a  Beresford,  como  já  os  entregara  a  Junot. 

Ao  terminar  a  guerra  com  os  francezes  o  estado  de  Portugal  era 
realmente  lamentável ;  o  paiz  apresentava  um  espectáculo  desola- 
dor; campos  desertos,  casaes  abandonados,  pontes  abatidas,  villas 
e  aldéas  arrasadas,  fortalezas  destruídas,  todas  as  familias  cober- 
tas de  lucto;  as  cidades  atulhadas  de  mendigos,  de  operários  inu- 
tilisados  pela  guerra,  que  pediam  pão,  porque  não  o  podiam  ga- 
nhar; searas  inteiramente  perdidas;  faltavam  os  braços  para  arro- 
tearem as  terras,  faltavam  os  recursos  para  reconstruírem  as  ha- 
bitações, faltava  tudo  quanto  era  indispensável.  O  commercio,  a  in- 
dustria, a  agricultura  estavam  no  maior  grau  de  aniquilamento;  a 
fazenda  publica  achava-se  exhausta  e  não  havia  meio  de  se  recor- 
rer a  empréstimos.  A  fome  ameaçava  estender-se  a  lodo  o  paiz. 

No  meio  d"esla  situação  desesperada  o  govej^no  da  nação  estava 
confiado  pelo  príncipe  regente  a  homens  ambiciosos  e  ignorantes, 
ecclesiastícos  ou  titulares,  que  se  submettiam  cegamente  aos  capri- 
chos dos  estrangeiros,  em  especial  a  Beresford,  elevado,  pelo  favor 
da  realeza,  a  marechal  general  e  a  chefe  absoluto  das  tropas  por- 


!52  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

iugiiezas.  Kiiliflanto  D.  João  VI.  no  Brasil,  imlolenle  e  iniJeciso, 
quasi  que  se  es(|iiecera  do  seu  reino ;  se  uma  ou  outra  vez  fallou 
no  regresso  a  P.  ilugal,  em  breve  mudava  de  tenç;io  e  luri!ava-se 
até  impaciente  quando  algneu)  ousava  mostiarlhe  a  necessidade 
de  voltar  para  a  Km'opa.  K'  o  ijue  se  conclue  dos  despachos  de  Lord 
Strangford,  embiixador  iuglez,  mandados  do  Rio  para  o  seu  go- 
veriio.  A  morle  de  .Maria  I,  em  "10  de  março  de  1816,  e  a  accla- 
mação  de  João  VI,  em  nada  alterou  a  marclia  dos  negócios  de  Por- 
tugal. 

O  descontentamento  publico  manifeslaN^a  se  a  cada  momento,  e 
a  desconfiança  ou  o  receio,  de  que  as  auctoridades  eslavim  pos- 
suídas, en.;liia  as  prisões  de  individnos  suspeitos.  O  intendente  da 
policia,  João  de  Mattos  Vascoucelltjs  Barbosa  de  Magalhães,  seguia 
as  tradições  do  fauioso  Manique.  KíTecluavam  se  as  [irisões  arbitra- 
riamente, sendo  muitos  assaltados  em  suas  próprias  camas  por  alta 
noite  e  levados  para  a  cadeia,  sem  que  soubessem  o  crime  de  que 
eram  accusados.  N"estas  proezas  distinguia-se,  entre  outí'os,  o  mal- 
vado Jo>é  Ignacio  de  Mendonça  Furtado,  corregedor  (\v  Belém.  As 
sociedades  secretas  tinham-se  espalhado  por  toilo  o  pai/,  depois 
das  invasões  dos  francezes,  e  principalmente  em  seguida  ao  re- 
gresso da  legião  poitugueza  que  militou  na  Kussia  sot)  as  ordens 
de  Napoleão.  A  maçonaria,  estabeleceudo-S(3  em  Portugal,  fazia  sor- 
rir Beresford,  mas  inspirava  sérios  cuidados  ao  intendente  de  po- 
licia. Ksle,  por  todos  os  paquetes,  mandava  |)ara  o  Uio  de  Janeiro 
noticias  circumslanciadaí>  dos  perigos  enormes,  que  ameaçavam  o 
governo,  pela  aprehensão  de  panos  talhados  em  forma  não  ordi- 
nária, de  lettras  nnjsteriosas,  de  |)inlmas  maçónicas,  de  balaustra- 
das e  outras  muitas  cousas  extravagantes  e  ridicidas.  Appareciam 
também  com  frequência  pas(|uins  contra  o  governo  e  contra  Beres- 
ford, em  que  os  insultos  e  as  ameaças  não  se  poupavam.  Tal  era 
por  exemplo: 

Quein  perde  Portugal  ?  o  marechal; 

Quem  sancciona  ;is  leis?  o  rei; 

Quem  são  os  executores?  os  governadores. 

Para  o  marectial,  um  puntial. 

Para  o  rei,  a  lei. 

Para  es  governadores,  os  executores. 

O  marechal,  que  ao  principio  despresara  as  associações  secre- 
tas, começou  a  mostrar- se  receioso  pela  sua  segurança  individual 
e  a  dirigir  queixas  aos  governantes.  K>les,  em  virtude  de  uma  de- 
Duncia  feita  por  Beresford,  ordenaram,  em  11  de  janeiro  de  1817, 
ao  intendenie  de  policia  que  procedesse  a  mvestigações  miimciosas 
sobre  uma  conspiração  projectada;  e  em  21  de  maio  publicaram 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  153 

uma  portaria  na  qual,  aíTirmando  a  existência  de  uma  conjuração 
preparada  por  alguus  traidores  com  o  detestável  projecto  de  estabe- 
lecer um  governo  revolucionariu,  ordenavam  que  se  terminassem 
-as  averiguações  e  depois  de  concluido  o  processo  fosse  sentenciado 
pelo  juiz  da  Inconfidência  e  seus  adjuntos.  Correu  secretamente  o 
processo,  do  modo  mais  inquisitorial,  durante  quatro  mezes  e  meio; 
e  em  15  de  outubro  foram  em  fim  condemnados  os  réus  por  crime 
de  lesa-magestade.  Eram  18  os  accusados,  entre  os  quaes  figurava 
o  valente  general  Gomes  Freire  de  Andrade ;  apenas  dois  foram 
absolvidos  e  um,  o  Barão  de  Eben,  oííicial  hanoveriano,  expulso 
do  reino;  todos  os  mais  foram  condemnados,  três  em  degredo  para 
Africa,  quatro  a  serem  enforcados  e  os  restantes  a  morte  de  gar- 
rote, sendo  em  seguida  reduzidos  a  cinzas  e  estas  lançadas  ao  mar. 
O  processo  nunca  saiu  a  publico,  mas  pela  sentença  vê-se  que  a 
conspiração  era  só  contra  a  influencia  estrangeira  e  o  predomínio 
despótico  de  Beresford;  a  fome  e  o  atrazo  de  soldos  eram  a  causa 
principal  desta  tentativa  revolucionaria  ;  a  um  dos  réus,  ao  coro- 
nel Monteiro,  chefe  de  familia,  tendo  de  sustentar  mulher  e  filhos 
menores,  devia  o  estado  trinta  mezes  de  soldo !  Gomes  Freire,  esse 
então,  nem  promovera,  nem  tomara  parte  alguma  nos  trabalhos  da 
conspiração;  sabia  só  que  andava  em  projecto  e  linha  promettido,  no 
caso  d'ella  se  realisar,  tomar  a  direcção  do  movimento  para  impe- 
dir os  desregramentos  e  crear  um  governo  interino.  Infelizmente 
o  orgulhoso  marechal  via  no  general  portuguez  um  rival  temivel, 
porque  gosava  de  geraes  sympathias.  tanto  no  exercito,  como  no 
publico,  e  determinou  desfazer-se  d"elle,  o  que  conseguiu  de  uma 
maneira  tão  barbara  e  tão  revoltante.  As  pobres  victimas  tentaram 
ainda  pôr  embargos,  mas  não  foram  attendidos;  e  no  dia  18  de  ou- 
tubro effectuou-se  a  execução.  Como  se  receiasse  algum  tumulto 
do  povo  e  da  tropa  se  trouxessem  Gomes  Freire  para  Lisboa,  as- 
sassinaram-no  affrontosamente,  pelas  7  horas  da  manhã,  na  própria 
fortaleza  de  S.  Julião  da  barra,  onde  estava  encarcerado.  Os  outros 
réus  foram  executados  no  mesmo  dia  no  campo  de  Sant'Anna,  — 
hoje  justamente  denominado  campo  dos  Martyres  da  Pátria  —  com 
todo  o  apparalo  e  ostentação  dos  antigos  autos-de-fé,  prolongan- 
do-se  o  supplicio  até  á  noite  com  bastante  satisfação  dos  membros 
do  governo,  um  dos  quaes,  D.  Miguel  Pereira  Forjaz,  ás  3  horas 
da  tarde  escrevia  ao  intendente  da  policia  :  «. .  .é  verdade  que  a 
execução  se  prolongará  pela  noite,  mas  felizmente  ha  luar  e  pare- 
ce-me  tudo  tão  socegado  que  espero  não  cause  isso  prejuízo  algum. . .» 

É  simplesmente  horroroso ! 

Este  espectáculo  cruento  e  infame,  em  vez  de  atemorisar  os  âni- 
mos e  de  espalhar  o  terror  de  um  a  outro  extremo  do  paiz,  ainda 
exacerbou  mais  o  geral  descontentamento  e  levantou  maiores  mur- 
múrios. Manoel  Fernandes  Thomaz,  desembararador  da  Relação  do 

20 


•154  ENCYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 


Porto,  era  um  dos  que  se  mostrava  mais  indignado  nas  conversas 
particulares  com  os  seus  amidos,  especialmente  com  José  Ferreira 
Borges  e  Ji'sé  da  Silva  Carvalliu.  a<juelle  advogado  da  Uelação  e 
secretario  da  cnmpaiihia  dos  vmlios.  e  este  juiz  dos  orphãos  da 
mesma  cidade.  *  rreijueiiles  vezes  dizia:  —  «Kste  estado  de  cousas 
é  impossível  (jue  persista;  lia  de  haver  por  força  revolta,  e  não  se 
achando  nada  pieparado  degenera  em  anarciíia;  forme-se  um  corpo 
compacto  e  duigenle,  que  appaieça  no  momento  opporluno  e  guie 
o  movimento  a  prol  do  paiz  e  da  sua  liberdade.» 

JN'uiu.i  noiíe  de  janeiro  de  1818  reuiiiram-se  em  casa  do  acredi- 
tado coiumerciante  .Idíiu  Ferreira  Viaima,  na  cidade  do  Porto,  Silva 
Carvalho,  Kerreira  Borges  e  Fernandes  Thomaz;  e  versando  a  con- 
versação sobre  o  esladi)  geral  do  paiz.  insistiu  este  ultimo  na  sua 
ideia  ().ominanle  e  convenceu  os  ^ens  três  amigos  da  necessidade 
de  se  Jnnd.u-  um  núcleo  reV(jlncionario  para  observar  a  opinião  pu- 
blica, seguir  a  marcha  dos  acontecimentos  internos  e  colher  noti- 
cias do  estrangeiro,  em  especial  da  nossa  visinha  llespanha.  Con- 
cordando lodos,  resolveram  pôr  em  execução  immediatamenle  a 
ideia  de  Fernandes  Thomaz  e  começaram  a  formular  os  estatutos, 
dando  á  sociedade  o  nome  de  Sincíliin.  Juraram  guardar  entre  si 
a  maior  lealilade  e  o  mais  invinlavel  segredo  para  com  os  estra- 
nhos, e  combinaram  jiaia  não  de-|)erlarein  suspeitas,  reuniiem-se, 
DO  dia  -2  de  cada  mez,  em  um  jantar  na  Foz,  onde  partici()ariam 
uns  aos  outros  os  successos  do  mez  antecedente,  e  discutiriam  a 
sua  linha  de  condiicta  e  o  (jue  conviria  fazer  no  mez  seguinte. 

Assim  se  hindou  o  Sinpilno  pelos  esforços  perseverantes  do  be- 
nemérito cidíídãt)  Manoel  Pernaiides  Thomaz.  Im)í  (fesle  núcleo  mo- 
desh)  e  qiiasi  insignificante,  na  sua  oirgem,  que  surgiu  o  famoso 
movimento  de  ISiO.  Alas  antes  de  prosegnirmos  na  relação  d'es- 
les  acontecimentos  tão  memoráveis,  digamos  duas  palavras  sobre 
o  passado  do  grande  patriota. 

(Segue.)  Teixeiba  Bastos. 


'^ríiflições  noRulares 

(Gollecção    do    Algarve) 
ROMANCES 

As  variantes  que  hoje  começamos  a  publicar,  fazem  parte  duma 
collecção  de  tradições  d'aquelle  povo,  que  ha  tempo  possuímos. 


1  Vid.  Uerdaçues  emeinorins,  etc,  por  Xavier  crAraujo,  pag.  iO  e  Annual  his- 
tórico e  pulUico  de  Portugal  e  Brasil,  ele.  Lisboa,  18oi,  pag.  52. 


I 


TRADIÇÕES  rOPULARES  155 

Dâmol-as  á  pnbliridiule  nfio  par  as  julgnrinns  de  grai)de  impor- 
tância, mas  poiqiie  h<) vendo  um  Romanceiro  do  Algnrvp,  publicado 
pelo  sr.  Estacio  da  Veiga,  uns,  deixaram  de  ser  ali  incluídos,  e 
outros,  sendo-o,  foram  injpiamenle  maltratados  pelo  arlificio ;  e 
lambem  ponjue  entre  as  diveisas  lições  publicadas  nos  outros  ro- 
manceiros que  conhecemos,  não  vemos  nenhuma  d"aquella  provín- 
cia. 

Elias  ahi  vão  tal  como  as  ouvimos  da  bocca  do  povo  para  que 
os  estudiosos  as  apreciem. 

Se  n'ellas  ha  ou  deixa  de  haver  alguma  cousa  de  novo,  elles  o 
dirão. 

Que  não  deviamos  deixal-as  esquecidas  e  abandonadas  no  fundo 
d'uma  gaveta,  foi  o  que  nos  occorreu  n'um  momenlo.  É  justo  dar- 
mos tudo  o  que  sabemos  d'aqiiella  província.  Por  eslas  e  outras 
tradições,  que  mais  tarde  publicaremos,  se  avaliará  o  material, 
por  tanto  tempo  ignorado,  que  o  Algarve  possue. 

Pondo  pois,  á  disposição  dos  collectores,  que  poderão  compa- 
ral-as  e  estudal-as,  as  variantes  algarvias  que  seguem,  julgamos 
cumprir  com  um  dever. 

Algumas  d'ellas,  é  forçoso  confessar,  nada  apresentam  de  no- 
tável, segimdo  o  nosso  modo  de  ver;  outras  ha,  porém,  que  nos 
parecem  um  tanto  dignas  de  attenção  e  estudo.  Aquelles  a  quem 
interessam  eslas  cousas  decidirão. 


BEBNAL   FRANCEZ 

— Oila,  oila  !  —  Quem  está  ahi  ? 

— É  Bernal  F'rani-ez,  senhora. 

— A  porta  vou  abrir. 

(Vindo  a  senhora  pelos  ladrilhos  descalça:) 

— Apa^^aste  o  meu  candiín 

Pelo  canudo  de  prata. 

— Que  me  importa  a  mim  senhora 

Se  a  luz  dos  seus  olhos  basta. 

Levou-o  para  o  seu  jaidim 

Lavou-o  de  mãos  e  pés 

Em  ajíoas  d'alecrim. 

Fez-lhe  uma  cauia  de  rosas 

Deifou-o  em  par  de  si. 

Era  meia  noite  em  pino 

E  elle  sem  se  virar  para  si. 

— Que  tens,  Bernal  Fiancez, 

Que  não  te  viras  para  nn'm  ? 

Se  tens  medo  de  meus  filhos 

Elles  estão  dormindo. 

Se  tens  meilo  de  meus  criados 

Elies  não  estão  por  ahi. 

Se  tens  medo  de  meu  marido 


156  EiNCYCLOPEUIA  REPLBLICANA 


Longes  terras  está  de  mim. 

Os  iiionros  o  captivem  lá 

E  más  novas  me  venliam  aqui. 

—  Não  tenho  medo  de  meus  tilhos 

Que  elles  tilhos  são  de  mim. 

Não  tenho  medo  de  seus  criados 

Que  elles  criados  são  de  mim. 

INão  tenho  medo  de  seu  marido 

Que  aqui  o  tom  em  par  de  si. 

— Matai -me,  senhor,  matai-ms, 

Que  isto  foi  sonho  que  eu  sonhei. 

— Que  te  mate  Deus  do  céo 

Que  para  isso  te  creou, 

iMas  deixa  vir  a  manhã 

Que  eu  te  darei  de  vestir, 

Bom  sapato,  boa  meia, 

Gregantilha  acalorada 

E  saia  de  carmezim. 

Manhã  que  era  chegada 

Elle  que  a  degolava. 

Montando  no  seu  cavallo 

A  toda  a  brida  partio. 

Indo  lá  mais  adiante 

Um  lanceiro  que  encontrava. 

— Adonde  vás,  ó  lanceiro, 

Que  vás  tão  cuidadoso  em  ti  ? 

— Vou  ver  a  minha  amada 

Que  ha  muito  a  não  vrjo. 

— Tua  amaila  já  é  morta 

E  morta  que  eu  a  matei. 

Se  para  isso  viesse  pieparado 

O  mesmo  te  dera  a  ti. 

— Anda,  anda,  meu  cavallo, 

Vamos  vér  se  isto  é  assim. 

Indo  lá  mais  adiante 

Um  alvisão  que  encontrava. 

Elle  teve  tanto  medo 

Que  fez  modos  de  fugir. 

— Não  fujas,  Bernal  Francez, 

Não  fujas  tu  já  de  mim. 

Os  olhos  com  que  te  olhava 

Já  de  névoa  os  cobri, 

Bocca  com  que  te  beijava 

Já  de  terra  a  cobri. 

Braços  com  que  te  abraçava 

Já  não  têm  força  em  si. 

A  mulher  com  quem  casares 

Que  se  chame  Anna  ^  como  a  mim, 

Para  quando  chamares  por  ella 

Te  lembrares  de  mim. 

(Lagoa).  Rkis  Dâmaso. 


^  O  povo  diz  que  esta  dama  era  irmã  da  Morena,  romance  que  publicaremos. 


A  COMPANHÍA  DE  JESUS  157 

A   6oHi|iaiiliia   3e  0esus 
CAPITULO  I 

OrigeiML  e  fins  da  iiistitui^á,o 

Vendit  Alexander  claves,  aliaria,  Címstum  : 
Emerat  ille  prius.  vendere  jure  potest. 

No  principio  do  século  xvi,  quando  o  calholiclsmo  e  o, edifício 
pontific;il  começavam  a  ser  fortemente  abalados  pelos  progressos 
da  Reforma,  a  despeito  da  confissão  auricular  e  da  Inquisição,  e 
que  muitos  paizes  arrastados  pela  palavra  eloquente  de  Luthero, 
Melanchton,  Zevingie,  Calviuo  e  outros  reformadores,  sacudiam  o 
jugo  de  Roma,  fundou-se  uma  nova  associação  ecclesiastica  para 
obstar  á  emancipação  intellectual  da  espécie  humana. 

Esta  sociedade,  que  em  pouco  tempo  havia  de  invadir  lodo  o 
mundo,  impedir  o  progresso  scienlifico  e  moral  da  humanidade, 
promover  horríveis  e  monstruosas  carnificinas,  preverter  os  povos 
com  máximas  perniciosas  e  fazer  tremer  os  reis  e  os  papas,  que 
muitas  vezes  lhe  sentiram  o  punhal  e  o  veneno,  era  a  Companhia 
de  Jesus. 

A  egreja  romana,  cujo  poder  principiara  a  declinar  no  pontifi- 
cado de  Bonifácio  VIII,  successor  e  assassino  de  Celestino  V,  vir- 
tuoso pontífice,  que  abdicou  o  "Oííicio  de  papa»,  como  elle  dizia 
na  sua  linguagem  singella,  cançado  das  intrigas  dos  cardeaes  a 
que  chamava  inimigos  da  fé  e  sanguesugas  dos  chrislãos,  tinha 
então  chegado  ao  apogêo  do  desregramento,  da  immoralidade  e  do 
crime,  transformada  na  mais  requintada  orgia. 

A  corrupção  do  clero  lavrava  profunda  por  toda  a  parte  e  a  sua 
rapacidade  só  podia  comparar-se  com  o  cynismo  do  seu  procedi- 
mento. 

Os  abbades,  os  frades,  os  prelados,  amontoavam  ihesouros  so- 
bre thesouros,  accumulavam  as  prebendas  e  não  se  envergonha- 
vam de  entrar,  mesmo  de  dia,  nas  casas  de  devassidão.  Os  bispos 
davam  os  benefícios  só  por  intervenção  das  mulheres,  que  tinham 
de  sacrificar  a  honra  para  proteger  os  candidatos  seus  parentes! 
Os  conventos,  cujas  cisternas  se  povoavam  com  os  cadáveres  dos 
recemnascidos,  eram  verdadeiros  lupanares  e  as  cousas  sagradas 
objecto  dum  trafico  vergonhoso. 

A  simonia,  o  envenenamento,  o  incesto,  o  assassinato,  o  adulté- 
rio, as  perseguições,  eram  moeda  corrente  na  corte  de  Roma,  não 
duvidando  os  papas  recorrer  aos  mais  ignóbeis  meios  e  ao  próprio 
crime  para  aniquilarem  os  seus  inimigos,  os  seus  competidores, 


158  eni:yglopedia  republicana 

para  confiícarem  em  seu  proveito  os  bens  dos  ricos,  conseguindo 
satisfazer  assim  iiioa  ambição  desmedida. 

Calamitosos  tempos  em  que  se  creavam  empregos  só  para  se- 
rem vendidos,  chegando  o  papa  Leão  X  a  creai-  e  vender  dois  mil 
cento  e  cincoenia  cargos  novos! 

O  homem  da  edade  medea,  ignorante  e  fanalisado,  não  era  mais 
do  que  um  sei'vo  da  Egreja,  e  a  sua  Cdusciencia  como  o  seu  coipo 
pertenciam  ao  senhor,  que  sobre  elle  tinha  o  direito  de  vida  e  de 
morie. 

Alguns  abbades  possuíam,  no  dizer  dos  historiadores,  mais  de 
vinte  mil  escravos ! 

Os  processos  da  Inquisição  tornavam -se  cada  vez  mais  atrozes! 

O  accnsado  não  conhecia  o  accusadur.  e  os  inqni>;idores.  uíonstros, 
vergonha  da  espécie  humana,  e  que  (»(tr  si  bastariam  |)ara  desau- 
thoii.sar  uma  religião,  não  [)ermittiam  que  a  victima  do  infame  tri- 
bunal, que  horrorisava  o  mundo  com  as  suas  atrocidades,  tivesse 
sequer  um  defensor  ! 

O  desgraçado,  caliindo  n'aquelle  antro  de  sangue,  sabia  d"an- 
temão  que  em  seguida  á  tortura  e  á  morte  lhe  seriauí  contiscados 
os  bens  e  os  da  íamilia. 

Os  papas  recolhiam  matade  e  os  inquisidores  outra  metade  ! 

Posto  que  a  Egreja  condenmasse  a  uzuia,  linha  estabelecido 
um  completo  systema  de  bancos  ponidicaes.  em  relações  com  a  cú- 
ria, para  emprestar  diidieiro.  ()or  exhoibilantes  juros,  aos  f)relados, 
sollicitadores  e  litigantes.  Os  bancos  papaes  eram  pilvilegiados ; 
todos  os  mais  estavam  sujeitos  à  censura.»  * 

A  Egreja  estava  convertida  numa  fabrica  de  dinheiro.  Sommas 
consideráveis  eram  levantadas  na  lialia  ;  outras  eram  extorquidas 
sob  diíTerentes  pretextos,  aos  diversos  [)ai7.es  da  Europa.  O  mais 
funesto  dos  meios  empreitados  foi  a  venija  das  indulgências,  isto  é, 
o  direito  de  peccar.  A  religião,  tal  como  a  comprehendiam  na  Itá- 
lia, tinha-se  transformado  na  arte  de  roubar  os  povos.»  ^ 

Leão  X,  attribuindo-se  o  monopólio  da  vergonhosa  pratica  da 
venda  das  indulgências,  intro(hizid;i  pelos  bispos,  tirou  lhes  essa  re- 
galia, estabelecendo  por  toda  a  parle,  até  nas  mais  insignificantes 
aldeias,  agentes  e  recebedores,  com  os  c  irtorios  nas  egrejas.  para 
receber  o  dinheiro  extorquido  aos  fieis  e  de  que  o  chefe  do  catho- 
llcismo  carecia  para  sustentar  o  luxo  asiático  da  sua  corte,  os  seus 
projectos  ambiciosos  e  para  a  edificação  da  Egreja  de  S.  Pedro. 

(Segue.) 

Anselmo  Xavier. 


í  Draper  —  Les  conflits  de  la  science  et  de  la  religion  — pag.  199. 
2  Ideai  —  pag.  187. 


AIXDA  A  QUESTÃO  DAS  VIVÍSEGÇÕES  139 


Ainaa   ti   (mestãa   deis    vivisccções 

Esta  amável  controvérsia,  levantada  entre  mim  e  o  sr.  Arruda 
Furtado  a  propoMlo  da  questão  das  vivisecções,  que  tanto  cuidado 
está  dando  á  medicina  C0Mlem|)i)ranea,  não  pode  [)ela  minlia  parte, 
ser  tratada  senão  no  campo  das  vagas  generalidades  do  ti/lciiaitii.sino 
scienlilico.  poiqne  me  falta  inteiramente  a  competência  especial 
para  discutir  com  pmticiencia  um  assumpto  d*esta  importância. 

Além  de  que  o  sr.  Arruda  Turtado  não  impugna  as  vivisecções. 
Reconhece,  com  toda  a  sciencia  contemporânea  independeiile,  (jue 
sem  ellas  a  physiologia  fica  estmlliada  do  seu  mais  fecundo  me- 
thodo  de  iuvesligação  experimenial,  e  que  sendo  a  pliy-iologia  a 
pedra  angular  da  medicina  moderna,  a  cruzada  Itv.miada  contra 
aquella  peíos  preconceitos  religiosos  é  uma  vei'dadeira  guiMra  de 
bárbaros  contra  o  mais  inviolável  dos  interesses  da  humanidade, 
o  interesse  da  sua  própria  conservação. 

Qual  é  pois  a  divergência  que  nos  separa  n'este  assumpto? 

É  uma  questão  de  princípios? 

ISão  é. 

É  uma  simples  questão  de  forma,  é  uma  simples  questão  de  es- 
tylo. 

O  sr.  Arruda  Furtado  acha  que  eu  tratei  o  assumpto  com  umas 
liberdades  de  adjectivação  inteiramente  descabidas  n"uina  ipieslão 
d'esta  ordem,  e  reforça  os  seus  argumentos  com  os  exemplos  dos 
primeiros  hí)mens  da  sciencia  coir.emporanea.  os  D.nwin.  os  Vir- 
chow.  os  Forsler,  os  Kolmgren,  os  quaes  lendo  defemlido  os  di- 
reitos da  sciencia  contra  os  ataques  do  fanatismo  religioso,  soube- 
ram fazei  o  sem  se  afastarem  um  momento  da  linha  das  mais  se- 
veras con\eniencias  da  linguagem,  não  empregando  uma  única 
phrase  desabrida. 

Tem  razão  em  these  mas  faltadhe  a  justiça  na  bypothese.  In- 
validou a  pi  ova  f)or  ter  provado  de  mais. 

Se  en  pretendesse  tratar  a  questão  das  vivisecções  na  sua  al- 
tura scieniifica.  expondo  as  razões  que  tornam  e^^^a  melhodo  de 
investigação  indis[)eiisavel  aos  progressos  da  physiologia  e  porianlo 
da  medicina  ;  se  eu  trouxesse  para  a  discussão  um  nome  auctori- 
sado  por  Ir  bailios  d"aquelle  género  «m  sequer  por  lituíos  de  lia- 
bililação  profissional,  o  sr.  Arruda  Pintado  teria  moiivos  pata  es- 
tranhar que  eu  úé^^e  ao  meu  estylo  o  c;iiacier  ligeifo  e  apaixo- 
nado de  uma  polemica  jornalistica  e  não  o  tom  severo  e  composto 
que  se  exige  numa  exposição  impessoal  de  douliiiia. 

Cônscio  porém  da  própria  incompelencia.  eu  apenas  qiiiz,  no 
meu  artigo  da  Era  Nova,  sob  o  titulo  intencionalmente  cómico  de 


160  en<:yclopedia  republicana 

John  Buli,  fazer  obra  de  viilgniisação,  levando  ao  conhecimento  do 
grande  publico,  afastado  completamente  de  interesses  scientificos, 
um  facto  que  me  parece  digno  das  mais  ásperas  censuras,  e  ex- 
pondo-lh*o  n'uma  forma  pitloresca  e  viva,  precisamente  no  intuito 
de  o  apaixonar  por  essa  questão. 

A  sciencia  está  sendo  ha  dois  mil  annos  martyrisada  pelo  fana- 
tismo religioso,  justamente  ponjue  este,  tendo  conseguido  habil- 
mente chamar  à  sua  causa  a  grande  massa  do  publico,  dispunha 
de  uma  força  com  que  aquella  nunca  contou. 

É  já  tempo  que  estes  papeis  se  invertam  e  que  a  sciencia  oc- 
cupe  nas  sympathias  e  no  interesse  do  espirito  publico  o  logar 
que  a  theologia  ali  tem  desastrosamente  usurpado  ha  tantos  séculos. 

Nós  todos  pois,  os  que  conseguimos  libertar-nos  dos  preconcei- 
tos religiosos,  pelo  baptismo  purificador  das  verdades  positivas, 
devemos  auxiliar  com  todas  as  nossas  forças,  pequenas  ou  gran- 
des, este  glorioso  trabalho  de  regeneração  mental. 

E  isso  o  que  eu  procuro  fazer  na  estreitíssima  esphera  da  minha 
acção  sobre  o  publico  para  quem  escrevo,  que  não  é  por  certo  o 
publico  de  elite  dos  homens  de  sciencia,  mas  sim  o  publico  que 
commerceia,  que  trabalha,  que  se  agita  na  faina  material  da  vida, 
que  lé  por  acaso  um  artigo  de  jornal  ou  de  uma  revista  de  vul- 
garisação,  mas  que  não  tem  tempo  nem  educação  intellectual  para 
compulsar  livros  de  sciencia  ou  memorias  de  academias.  Para  me 
fazer  entender  e  estimar  d'esse  publico  tratando  de  assumptos 
estranhos  ás  suas  preoccupaçõcs  e  interesses  quotidianos,  preciso 
por  isso  de  lhe  fallar  na  linguagem  adoptada  pela  litteratura  de 
fantasia — única  por  emquanlo  que  elle  comprehende  e  aprecia— no 
estylo  imaginoso  e  pittoresco  dos  litteratos  e  dos  jornalistas,  dando 
a  máxima  luz  e  o  máximo  relevo  ás  idéas,  para  o  chamar  á  mi- 
nha causa,  que  julgo  ser  a  causa  da  verdade.  Não  tenho  ambições 
a  fazer  sciencia,  tenho  apenas  desejos  de  levar  para  os  domínios 
da  litteratura  e  para  as  discussões  do  jornalismo  diário  as  grandes 
questões  que  agitam  o  espirito  contemporâneo,  expondo-as  tão 
clara  e  escrupulosamente  quanto  posso,  embora  nas  vagas  genera- 
lidades a  que  attinge  a  minha  ignorância,  que  orçará  pela  do  pu- 
blico que  me  lè. 

Não  ha  absolutamente  originalidade  nenhuma  n'este  meu  propó- 
sito. Em  França  particularmente  desenvolve-se  em  todos  òs  senti- 
dos, por  meio  de  conferencias,  de  livros  e  de  revistas,  um  immenso 
trabalho  de  vulgarisação  scientifica,  que  influe  energicamente  na 
elevação  do  nivel  intellectual  d'aquelle  paiz.  Mas  sem  ir  buscar 
exemplos  estranhos,  entre  nós  mesmo  este  género  de  propaganda 
está  iniciado  e  começa  a  tomar  um  incremento  promettedor. 

E  depois,  eu,  tratando  nas  suas  generalidades  a  questão  das 
vivisecções,  não  tinha  por  intuito  apenas  fazer  propaganda  em  fa- 


AINDA  A  QUESTÃO  DAS  V1VISECÇÕE6  161 

vor  d'iini  assumpto,  a  que  se  prendem  os  mais  graves  inleresses 
da  civilisação.  coiistantemerile  ameaçada  pelas  aggressões  sacríle- 
gas da  intolerância  religiosa  ;  propunlia-me  também  fazer  sentir  o 
papel  repngnante  que  a  nação  ingleza.  cujas  qualidades  reconheço, 
mas  cujos  defeitos  não  tenho  obrigação  nenhuma  de  calar,  estava 
representando  por  intermédio  do  seu  parlamento  n"esla  cr.izada 
idiota  do  fanatismo  e  da  carolice  contra  os  mais  inviolaviMS  direi- 
tos do  sabor  contemporâneo;  e  comparando  essa  sentimentalidade 
pueril  do  pielismo  inglez  com  os  processos  summarios  e  brutaes 
da  sua  diplo:nacia  sordidamente  mercantil,  da  qual  nós,  os  portu- 
guezes,  somos  ha  três  séculos  victimas  vergonhosamente  resigna- 
das e  inertes,  eu  protestava,  como  homem  educado  na  admiração 
da  sciencia,  conti"a  as  prelenções  d"esse  pietUmo,  e,  como  demo- 
crata e  patriota,  contra  as  violências  d*essa  diplomacia. 

É  particularmente  n'este  segundo  ponto  que  as  divergências 
entre  mim  e  o  sr.  Arruda  Furtado  são  insanáveis. 

O  sr.  Arruda  Furtado  é  anglomaniaco.  e  eu  sinlo-rae  com  gran- 
des tendências  para  ser  anglophobo.  File  considera  a  Inglaterra 
uma  grande  nação  e  os  inglezes  um  grande  povo ;  eu,  sem  con- 
testar a  grandeza  mateiial  da  Inglaleira  nem  pôr  em  duvida  os 
serviços  que  ella  tem  prestado  á  causa  da  civilisa-^ão  e  da  scien- 
cia, acho  o  espirito  inglez.  em  geral,  abominável  pela  completa 
ausência  de  qualidades  generosas  e  heróicas,  pelo  amor  exclusivo 
no  lucro,  pela  sordidez  da  paixão  da  usura,  que  o  leva  muitas  ve- 
zes a  sacrificar  tudo,  desde  a  dignidade  nacional  até  á  dignidade 
pessoal,  á  idolatria  aljsorvente  do  bezerro  de  ouro. 

Mas  isto  é  um  lado  secundaiio  da  questão,  que  eu  não  pretendo 
tratar  porque  seria  interminável  e  fastidiosa.  O  sr.  Arruda  Fur- 
tado havia  de  encontrar  nos  fartos  repositórios  da  sua  erudição 
histórica  bom  numero  de  argimientos  para  me  demonstrar  a  sua 
Ihese,  como  a  mim  me  não  faltariam  exemplos  para  defender  a 
minha  opinião,  apesar  do  cabedal  dos  meus  coulitcímentos  em  as- 
sumptos de  historia  ser  de  uma  pobreza  deplorável.  E  depois  de 
uma  grande  massada  de  factos  e  de  datas  e  de  citações,  dum  di- 
ze-tu  direi-eu  interminável,  o  sr.  Arruda  Furtado  com  certeza  não 
se  convertia  às  exhortaçnes  da  minha  prosa,  e  eu  provavelmente 
não  me  penitenciava  dos  meus  erros.  O  publico,  esse  indubitavel- 
mente adormecia  ao  meu  segundo  folhetim  e  ahi  ficávamos  nós 
dois  a  pregar  aos  peixinhos  n"um  grande  dispêndio  inútil  de  ges- 
tos oratórios,  alé  que  o  sacristão  do  bom  senso  nos  viesse  pôr 
diques  á  facúndia,  avisando-nos  de  que  eslava  deserta  a  egreja. 

Não  receio  desastre  por  mim,  que  estou  aíTeito  a  elles,  mas 
pelo  sr.  Arruda  Furtado,  que  se  havia  de  arrepender  mil  vezes 
de  ter  distinguido  immerecidamenle  mn  dos  meus  escriplos  com 
as  suas  cavalheirosas  impugnações. 


l-ei  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Se  as  explicações  que  ahi  ficam  me  não  innocenlam,  no  caso 
siigeito,  do  emprego  de  alguns  adjectivos  revolucionários  e  pouco 
académicos,  eu  dar-me-hei  íncilmente  por  vencido,  mas  receio  bem 
que.  apparecendo  egual  ensejo,  elles  me  não  fujam  da  penna  como 
foge  um  bando  de  rapazes  inqnielos  e  trocistas  pela  porta  fora  da 
aula,  terminada  a  hora  da  lição. 

O  estylo  é  o  temperamento  do  escriptor,  é  a  manifestação  ar- 
tística do  seu  caracter ;  e  a  sabedoria  popular  diz  ha  muito  que 
quem  torto  nasce  tarde  ou  nunca  se  endireita. 

Eu  por  mim  creio  que  preciso  de  me  resignar  a  viver  toda  a 

vida  aleijado. 

Alexandre  da  Conceição. 


IS  reis  nassam 


Os  reis  passam.  Phrase  que  synlhetisa  o  espirito  consciente  de 
um  século  immenso,  positivo. 

A  onda  levada  a  essa  ofTicina  de  sublimidades  allilelicas  —  a 
Convenção,  alii  cimentada,  retemperada,  na  garganta  das  tempes- 
tades cyclopeas  dessa  gigante  de  ideias,  e  vomitada  em  calara- 
ctas  germinadoras  pelo  corpo  lelhargico  dos  povos,  que  a  educa- 
ção jesuiticíi  rachetiquisou,  hoje,  convulsiona  estes  organismos  ma- 
rasmaticos,  infiltrando-lhes  o  elemento  de  vitalidade  que  lhes  dará 
a  energia  das  supremas  vontades. 

Aos  voltaireanos  succedem  os  homens  da  sciencia ;  aos  que 
eram  uma  descrença  succedem  os  que  são  uma  fé ;  aos  que  en- 
travam na  lucta  com  o  ideal  da  destruição,  como  demolidores, 
como  negativos,  succedem  os  que  trazem  para  o  combate  o  espi- 
rito da  organisação.  a  formula  das  construcções  robustas,  as  ten- 
dências da  tenacidade  positiva.  Nós  somos  a  lei  de  que  ellas  eram 
uma  hypothese. 

A  philosophia  moderna  demonstra  este  facto  complexo,  eminen- 
tenienle  evolutivo. 

É  por  isso  que  nós,  republicanos  federaes,  quando  repetimos  o 
dizer  universal  —  os  reis  passam, —  affirmamos  mais  uma  verdade 
fatal  —  amanhã  não  existirão. 

Amanhã  não  existirão ;  dobre  fúnebre  que  deve  reboar  lugu- 
bremente pelas  abobadas  solitárias  d'estes  palácios  realengos,  con- 
fortáveis, que  se  erguem,  na  volúpia  do  seu  poderio,  das  margens 
geladas  do  Neva,  às  alturas  ridentes  das  cercanias  do  Tejo/Que 
seus  hospedes  se  distráhiam  um  momento  de  seus  prazeres  de  rei, 
para  escutarem  este  ecco,  é  o  que  pouco  nos  interessa.  Sabemos 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  16S 


que  são.  011  uma  immobiiidade  ou  uma  resistência.  Immobili- 
(iade,  quando  os  toleramos  por  fraqueza,  resistência,  quando  os 
atacamos  indisciplinados.  E  sabemos  ainda,  que  a  revolução,  em 
nossa  edade,  é  uma  força  explosiva  aberta  debaixo  dos  thronos. 
Honlem  elles  afogavam-n'a  sob  seus  estrados,  sob  seus  tapeies, 
sob  a  cerviz  delambida  de  seus  corlezãos  cynicos ;  boja,  ella  ir- 
rompe por  frestas,  tem  rugidos  de  fera  enjaulada,  e  dá  abalos  de 
feto  crescido ;  amanhã  mergulhará,  sob  as  suas  linguas  de  cham- 
mas  niveladoras,  lodo  esse  edifício  velho,  esboroado,  convencionai 
e  sórdido. 

Os  reis  passam,  quer  dizer,  a  imbecilidade  cretina  de  um,  não 
esmagará  mais,  as  vontades  racionaes  de  muitos,  as  liberdades  ló- 
gicas da  maior  parte,  o  brio  das  consciências  livres  de  todos.  Aca- 
bar-se-hão  a  arlequinada  torpe  das  camarilhas,  a  tyrannia  mesqui- 
nha dos  creados  de  galão,  as  protecções  escandalosas  dos  compa- 
drescos  infames,  as  batotas  pyramidaes  das  commanditas,  a  pros- 
tituição cynica  dos  sentimentos,  o  aviltamento  monstruoso  das  con- 
sciências. O  homem  deixará  de  ser  uma  immoraliflade. 

E  é  por  estes  dias  de  redempção  civica,  de  trabalho  e  honra, 
de  virtudes  allruistas  e  boa  fé  particulares,  que  combatemos  con- 
scientes, firmes,  até  esta  firmeza  rude  do  fanático,  á  sombra  da 
bandeira  civilisadora  da  Republica  Federal. 

Nossa  força  está  na  firmeza  destes  homens  de  bem,  a  quem  a 
honestidade  da  educação,  ou  a  rijeza  de  caracter  enérgico  não  dei- 
xaram mergulhar  n'esse  lodo  degradante  da  cortezania  e  da  vai- 
dade, apanágio  necessário  das  monarchias. 

E  por  ullimo,  os  reis  passam  —  é  a  verdade  potente  de  uma  de- 
monstração que  se  realisa,  desenrolando  ás  vistas  acanhadas  das 
mediocridades  parlamentares  do  dia,  estes  pequeninos  factos  que, 
apezar  da  sua  contrariedade  apparente,  se  harmonisam  na  comple- 
xidade de  um  systema  uniforme. 

HCGO  Leaí.. 


A  o  ria  em  da  Scíciicía 


(Continuado  de  pag.  117) 

Antes  de  aventurar-se  nas  planícies  da  Mesopotâmia,  para  n'el- 
las  ferir  a  batalha  decisiva,  Alexandre,  com  o  cuidado  de  assegu- 
rar a  retirada  e  conservar  livres  as  communicações  com  o  mar, 
dirigiu-se  para  o  Sul  e  submetteu  todo  o  paiz  até  ás  margens  do 
Mediterrâneo.  No  conselho  de  guerra  que  celebrou  depois  da  ba- 


164  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

talha  d'íssiis,  expoz  a  seus  generaes  que  não  era  necessário  so- 
nhar em  perseguir  a  Dário,  emquanto  não  fossem  senhores  de 
Tyro,  e  a  Pérsia  reinasse  em  Chypre  e  no  Egyplo  lambem  ;  e  con- 
tinuou, dizendo  que  se  o  exercito  persa  alcançasse  os  portos  do 
império,  levaria  a  guerra  á  Grécia,  emquanto  que  possuindo  já  os 
gregos  o  Egyplo  e  Chypre,  nenhum  cuidado  deviam  ler  pela  se- 
gurança de  seu  paiz  nalal.  O  sitio  de  Tyro  durou  seis  mezes. 
Diz-se  que  para  vingar-se  desta  larga  resistência  fez  expirar  na 
cruz  a  dois  mil  prisioneiros.  Jerusalém  rendeu-se  á  sua  aproxima- 
ção, motivo  por  que  foi  tratada  com  brandura  ;  porém,  em  Gaza, 
o  governador,  Bélis.  obslinou-se  na  defeza,  e  os  macedonios,  para 
quem  era  csla  praça  a  chave  do  Egyplo,  estiveram  detidos  pelo 
espaço  de  dois  mezes.  Quando  alfim  íoi  lomada  de  assalto,  foram 
cruelmente  assassinados  dez  mil  habitantes,  vendido  o  reslo  cora 
mulheres  e  filhos  como  escravos,  e  o  governador  arrastado  vivo 
em  torno  da  cidade,  amarrado  ao  carro  do  vencedor.  Tinha  caido 
o  ultimo  obstáculo.  Os  eijypcios,  que  detestavam  a  dominação  persa, 
receberam  com  jubilo  os  novos  invasores.  Alexandre,  organisou  o 
paiz  como  convinha  a  seus  interesses ;  confiou  todos  os  empregos 
militares  aos  macedonios.  entregando  ao  cuidado  dos  egypcios  os 
assumptos  civis. 

Emíjuanto  que  se  preparava  a  campanha  decisiva,  Alexandre  em- 
prehendeu  luna  viagem  ao  templo  de  Jupiler  Ammon,  umas  duzen- 
tas milhas  distante  e  situado  n'um  oásis  no  meio  do  deserto  da  Ly- 
bia.  O  oráculo  declarou  que  Alexandre  era  filho  d'este  Deus,  o 
qual,  em  forma  de  serpente  linha  seduziílo  Olympia  sua  mãe.  As 
concepções  immaculadas  e  os  parentescos  divinos  admitliam-se  tão 
correntemente  n'esse  tempo,  que  lodo  aquelle  que  se  elevava  acima 
dos  outros  homens,  repulava-se  logo  de  origem  celestial.  Na  pró- 
pria Roma,  e  muito  depois  da  época  de  que  nos  occupâmos,  nin- 
guém ausaria  crntradizer  que  o  nascimento  de  seu  fundador,  Ró- 
mulo, não  lôra  devido  ao  encontro  casual  do  Deus  Marte  com  a 
virgem  Rhea  Silvia,  num  dia  em  que  ella  ia  com  o  contaro  buscar 
agua  á  fonte.  Os  discípulos  egypcios  de  Platão  receberiam  com  có- 
lera aquelles  que  condemnassem  a  lenda  segundo  a  qual  Perictíone, 
mãe  do  grande  philosopho,  virgem  pura,  concebera  sem  mancha 
por  influeticia  de  Apolo,  que  o  linha  feito  saber  a  Arislono,  esposo 
prometlido  de  Perittione.  Assim,  pois,  quando  Alexandre  enviava 
cartas,  ordens  e  decretos,  debaixo  do  titulo  de  «Alexandre,  rei, 
filho  de  Jupiler  Ammon»,  era  tudo  recebido  pelos  habitantes  do 
Egyplo  e  da  Syria,  com  um  respeito  de  que  não  podemos  formar 
hoje  uma  ideia  exacta.  Comtudo,  os  livres  pensadores  da  Grécia 
estimavam  no  seu  justo  valor  esta  origem  sobrenatural.  Olympia, 
que  sabia  melhor  que  ninguém  o  que  havia  de  verdade  n'aquella 
intervenção  divina,  dizia  em  voz  alta :  «que  desejava  que  Alexan- 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  465 

dre  não  a  confundisse  sempre  com  a  mulher  de  Jnpiler.»  Arriano, 
historiador  das  conquistas  macedoriias,  disse:  «Não  lhe  cabe  cen- 
sura por  ter  pretendido  imprimir  nos  seus  súbditos  a  crença  em 
sua  origem  divina,  nem  considerar  como  um  crime  elle  querer, 
como  se  pôde  acreditar  razoavelmente,  que  com  eíTt3Íto  queria  au- 
gmentar  tão  somente  por  esse  meio  a  confiança  de  seus  soldados.» 

Tendo  segura  a  retirada,  regressou  á  Syria  e  dirigiu  f)ara  Este 
a  marcha  do  seu  exercito,  (jue  se  compunha  de  cincoenla  mil  ve- 
teranos. Depois  de  haver  atravessado  o  Eufrates,  torneou  as  col- 
linas  dé  Masia  para  evitar  os  calor,  s  irdensos  qi,e  reinam  nas  pla- 
nícies meridionaes  da  Mesopotâmia.  Era,  por  outra  razão  mais 
fácil  obler-se  d'este  modo  as  forragens  para  a  cavallhria.  Na  mar- 
gem esquerda  do  Tigre,  e  perlo  de  Arbela,  encontrou  um  grande 
exercito  de  um  milhão  e  cem  mil  homens  que  Daiio  conduzia  de 
Babylonia.  A  morte  do  nionarcha  persa,  que  se  seguiu  após  a  sua 
derrota,  deixou  o  general  Macedónio  senhor  de  todo  o  pniz  que  se 
estende  desde  o  Danúbio  até  ao  Indo.  Todavia  levou  as  suas  con- 
quistas ás  plagas  do  Ganges.  Os  thesouros  de  «pie  se  apoderou 
tocam  as  raias  do  impossível.  Só  em  Suza.  segundo  diz  Ariiano, 
encontrou  elle  cincoenla  mil  talentos  de  di::heiro. 

O  leitor  moderno,  e  em  particular  o  que  fôr  militar,  não  pôde 
admirar  nunca  o  bastante  similhaides  campanhas  em  tudo  extra- 
ordinárias. A  passagem  do  flelespnnlo  e  do  Gianico  no  fragor  da 
batalha ;  o  inverno  consagrado  á  organisação  politica  da  A>ia  Me- 
nor conquistada  ;  os  trabalhos  do  silio,  bastante  temiveis,  des' ruí- 
dos em  Tyro ;  o  assalto  e  tomada  de  Gaza ;  a  Pérsia  isolada  da 
Grécia ;  sua  marinha  expulsa  do  Mediterrâneo ;  a  aniquilação  de 
todos  os  seus  esforços  que  ainda  assim  empregou,  como  os  linha 
empregado  até  então  com  excellente  resultado,  para  corromper, 
na  ausência  dos  generaes,  aos  chefes  poliiicos  de  Allien;is  e  Es- 
parta;  o  Egypto  subjugado;  um  segundo  inverno  dedicado  a  or- 
ganisar  politicamente  este  paiz  venerável  por  sua  antiguidade ;  o 
exercito  reunido  na  primavera  seguinte  nas  margens  do  mar  Ne- 
gro e  do  mar  Roxo,  e  nas  ásperas  planícies  da  Mesopotâmia  ;  a 
passagem  do  Eufrates,  no  sitio  em  que  linha  sido  destruída  a 
ponte  de  Thapsacus;  a  passagem  do  Tigre;  o  reconhecimento  no- 
cturno antes  da  grande  e  memorável  batalha  de  Aibela  ;  o  movi- 
mento obliquo  executado  durante  o  combale ;  a  divisão  do  centro 
inimigo — manobra  reproduzida  muitos  séculos  depois  em  Auster- 
htz ; — a  vigorosa  perseguição  ao  monarcha  persa  ;  são  feitos  glo- 
riosos que  nenhum  general  tem  ultrapassado  em  todos  os  tempos. 

D'este  modo  deu-se  um  impulso  prodigioso  á  actividade  intelle- 
ctual  da  Grécia.  Haviam  homens  que  tinham  seguido  os  exércitos 
desde  o  Danúbio  ao  Nilo,  e  do  Nilo  ao  Ganges.  Tinham  sentido  o 
sopro  glacial  dos  paizes  que  se  estendem  ao  norte  do  mar  Negro, 


186  ENCYCLOPEDIA  UEFUBLICANA 


O  simoun  e  os  furacões  de  areia  fios  tiesertos  do  Egypto ;  tinham 
visto  as  pyramides,  cm  pé  havia  já  vinte  séculos;  os' obeliscos  de 
Lngsoii  carregados  de  geroglyíij')s ;  largas  fileiras  de  síiiiges  mu- 
das e  mysleiiosas ;  as  estatuas  colossaes  dos  monarchas  que  ti- 
nham reinado  nas  primeiras  epochas  do  mundo.  Nas  salas  de 
Esar-fladdon,  linham-se  sentado  sobre  os  thronos  dos  velhos  reis 
sombrios  da  Assyria,  guardados  por  toiros  com  azas.  Tiidiam  con- 
templado as  muralhas  de  Babylonia  ejectas  sempre  apesar  dos  des- 
troços de  Ires  comiuislas  e  de  três  séculos,  e  com  uma  elevação 
de  oitenta  [)és  ainda  assim.  Existiam  ainda  n'esla  cidade  as  ruí- 
nas do  templo  de  Bal,  o  Ueus  rodeado  de  museus,  e  no  remate 
do  edificio  o  observatório,  do  qual  os  mysticos  astrónomos  chal- 
deos  haviam  estado  em  comnuinicação  nocturna  com  as  estrellas. 
E  além  d'isso  os  vestígios  dos  palácios,  com  seus  jardins  suspen- 
sos, nos  quacs  grandes  arvores  elevaranj  para  a  amplidão  os  seus 
troncos  gigantescos,  e  os  restos  da  machina  hydraulica  que  lhes 
ministrava  a  agua  do  rio.  No  lago  artificiai  formado  por  um  vasto 
syslema  de  aijueductos  e  assudes,  as  aguas  das  montanhas  da  Ar- 
ménia chegavam  a  reunir-se  e  dali  se  espargiam  pela  cidade,  en- 
canadas pelas  profundas  ribas  do  Eufrales.  Poiém.  mais  maravi- 
lhoso do  que  tudo  isto,  era  o  túnel  praticado  por  debaixo  do 
leito  do  rio. 

Se  a  Cnaldèa,  a  Assyria,  e  Babylonia  oííereciam  prodigiosas  e 
verdadeiras  antiguidades,  cuja  origem  se  perdia  na  noite  dos  tem- 
pos, lamt'em  a  Pérsia  tinha  as  suas  maiavillias  mais  modernas. 
As  salas  de  Persepoles,  sustidas  por  columnas,  estavam  repletas 
de  obras  artísticas  que  eram  outros  tantos  prodígios,  de  grava- 
dos, (le  esculpluras,  de  esmaltes,  de  bibliolhecas  de  alabastro,  de 
obeliscos,  de  sfinges,  de  toiros  gigantescos.  Ecbatana,  a  suave  re- 
sidência de  verão  dos  monarchas  persas,  eslava  defendida  por  sete 
cercos  de  muralhas  formadas  de  pedras  talhadas  e  polidas,  ue  co- 
res variegadas,  que  se  elevavam  progressivamente  ao  centro,  des- 
tinadas a  figurar  as  orbitas  dos  sete  planetas.  O  palácio  estava 
coberto  com  telhas  de  praia,  as  vigas  eram  revestidas  de  ouro.  A 
certas  horas  da  noite  allumiavam-se  as  salas  com  meias  luas  lu- 
minosas de  nafta,  que  rivalisavam  com  a  luz  do  dia.  Havia  um 
paraizo.  este  luxo  favorito  dos  monarchas  asiáticos,  plantado  no 
centro  da  cidade.  O  império  persa,  desde  o  Helesponto  até  ao  In- 
dus,  era  verdadeiramente  o  jardim  do  mundo. 

Tenho  consagrado  algumas  paginas  á  narração  d'eslas  cam- 
panhas extraordinárias,  porque,  excitando  grandemente  o  génio 
militar,  conduziram  o  estabelecimento  das  escolas  prati(as  e  ma- 
thematicas  de  Alexandria,  que  foram  a  verdadeira  creadora  da 
sciencia.  Podemos  fazer  remontar  todos  os  nossos  conhecimentos 
exactos  ás  campanhas  macedonicas.  liumboldt  fez  notar  com  muita 


A  ORIGfi:M  DA  SCIENCIA  i6í 

razão,  que  a  vista  dos  aspectos  novos  e  grandes  da  natureza  ex- 
pande o  espirito  humano.  Os  soldados  de  Alexandria,  e  mais  pes- 
soas que  seguiam  os  seus  exércitos,  encontravam  a  cada  passo 
scenas  inesperadas  e  pitlorescas.  Os  gregos  eram  um  povo  o  mais 
impressionavel  e  o  mais  observador.  Ali,  havia  planícies  intermi- 
náveis de  areia,  n'outras  parles,  montanhas  cujos  cumes  se  per- 
diam entre  as  nuvens ;  o  deserto  apresentava  os  seus  perigos  e  as 
suas  ardentias;  as  collinas  as  sombras  e  vapores  que  resvalavam 
sobre  os  seus  flancos.  Kstavam  no  paiz  dos  dálites  doirados,  dos 
cyprestes,  dos  tamarindos,  dos  niyrthos  verdes  e  dos  leandros. 
Em  Arbella  tinham  combatido  contra  os  elephantes  da  Índia,  e 
nos  bosques  caspios  tinham  feito  sair  o  tigre  real  do  seu  covil. 

Tinham  visto  animaes  que,  comparados  com  os  da  Eiu'opa,  não 
eram  somente  extranhos  por  suas  formas  extravagantes,  senão 
mais  ainda,  por  seu  tamanho  colossal  — o  rhinoceronte,  o  hippopo- 
tamo,  o  camello,  e  o  corcodilo  do  Nilo  e  do  Ganges— e  tmhara 
encontrado  homens  de  todas  as  raças  vestidos  com  os  trajos  mais 
variegados:  o  syrio  tostado  do  sol,  o  bronzeado  persa,  o  africano 
negro.  Conta-se  que  o  próprio  Alexandre  fez  sentar  o  seu  almi- 
rante Narco  junto  do  seu  leito  de  morte,  e  sentiu  ainda  bastante 
prazer  em  fazel-o  referir  suas  aventuras  náuticas  no  rio  Indo  e  no 
golfo  pérsico.  O  conquistador  tinha  observado  com  surpreza  o  fluxo 
e  refluxo  do  mar.  Fizera  construir  navios  com  o  intento  de  explo- 
rar o  mar  Caspio,  pensando  que  bem  podia  ser  este  mar  o  mesmo 
que  o  mar  Negro,  golfos  de  um  grande  Oceano,  supposto  que 
Narco  tinha  descoberto  que  não  eratn  outra  cousa  os  da  Pérsia  e 
Roxo.  Tencionava  que  a  sua  frota  emprehendesse  uma  viagem  de 
circumnavegação  ao  redi>r  de  Africa  e  entrasse  no  Mediterrâneo 
por  o  caminho  das  columnas  de  Hercides,  empresa  que  se  preten- 
dia ler  sido  já  levada  a  cabo  noutro  tempo  pelos  Pharaós. 

Não  foram  somente  os  grandes  soldados,  se  não  também  os 
grandes  pensadores  da  Grécia  que  encontraram  no  império  con- 
quistado objectos  dignos  da  sua  admiração.  Callislhenes  encontrou 
em  Babylonia  uma  serie  de  observações  aslronomic?s  feitas  pelos 
chaldeos,  que  abraçava  um  transcurso  de  mil  novecentos  e  três 
annos :  enviou-a  a  Aristóteles.  Como  estavam  inscriptos  em  ladri- 
lhos cozidos  ao  fogo,  não  é  um  impossível  que  as  excavações  era- 
prehendidas  em  nossos  dias  possam  descobrir  cousas  similhantes 
nestas  bibliothecas  dos  reis  de  Assyria,  compostos  de  laminas  da 
argda.  Pt(domeu.  o  astronom»»  egypcio,  possuía  em  Babylonia  ob- 
servações de  eclipses  que  remontavam  a  setecentC'S  quarenta  e 
sete  annos  antes  da  nossa  era  Teriam  sido  precisos  largos  e  ri- 
gorosos estudos  para  chegar  a  este  ponto.  Os  babylonios  tinham 
deleruiinado  a  diuação  d'um  armo  tropical,  não  se  enganando  se- 
não em  vinte  minutos,  menos  da  duração  real.  Do  mesmo  modo 


168  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

SÓ  tinham  errado  dois  niiniUos  ao  fixar  o  anno  siderio.  Tinham 
descoberto  a  precessão  dos  eqiiinoccios ;  conheciam  a  causa  dos 
eclipses,  e  com  a  Hjuda  dos  seus  cyclos  podiam  predizei-os.  Sò 
em  dezenove  minutos  e  meio  se  tinham  enganado  ao  determinar 
a  duração  doeste  cyclo,  o  qual  abrange  mais  de  seis  mil  quinhen- 
tos oitenta  e  cinco  dias. 

Similhantes  resultados  diio  a  prova  irrecusável  da  paciência  e 
hal)irnlade  com  que  se  tinha  feito  o  estudo  da  astronomia  na  Me- 
sopotâmia, pois  que  com  instrumentos  mui  insuíTicientes  alcança- 
ram um  giau  tal  de  perfeição,  lilstes  antigos  observadores  tinham 
formado  um  catalogo  de  esliellas  e  dividido  o  zodiaco  em  uoze 
signos,  o  dia  e  a  noite  em  doze  horas. 

Segundo  Aristóteles,  tinham  observado  ha  muito  tempo  a  des- 
apparição  das  e>treilas  por  detraz  da  lua.  Possuíam  noticias  exa- 
ctas sobre  o  systema  solar  e  couheciam  a  ordem  e  posição  dos 
planetas.  Kiles  construíram  os  quadrantes  solares,  elepsidros,  os 
astrolábios  e  os  gnomones. 

Será  inleressanle  recordar  seus  ensaios  de  imprensa.  Gravaram 
suas  memorias  em  caracteres  cuneiformes  sobre  cylindi"os,  e  ro- 
dando estfS  |)or  de  cima  d"uma  capa  de  argilla  plástica,  obtinham 
provas  indeléveis.  Podemos  esperar  recolher  em  suas  bibliothecas, 
formadas  assim  com  laminas  de  terra  cosida,  uma  verdadeira  col- 
lecçâo  historifo-litteraria.  Não  deixavam  também  de  conhecer  a 
óptica.  .\s  lentes  convexas  que  tcem  sido  encontradas  em  Nimrod, 
comprovam  que  tinham  instrumentos  de  augmento.  Km  arithme- 
tica  tinham  encontiado  o  vdor  da  j)osição  das  cifras,  ainda  que 
lhes  fallava  a  grande  ii.venção  india  do  zero. 

Que  sni|)rehendenle  espectáculo  para  os  conquistadores  gregos, 
que  até  entâu  não  conheciam  nem  a  experimentação  nem  a  obser- 
vação, e  que  sempre  tmham  vivido  de  meditações  vãs  e  especula- 
ções inúteis ! 

Porém,  o  que  mais  poderosamente  contribuiu  para  o  desenvof- 
vimento  intellectu.d  dos  gregos,  e  ainda  mais  das  novas  ideias  so- 
bre a  natureza,  foi  o  conhecimento  das  religiões  dos  paizes  con- 
quistados. A  idolatria  que  reinava  na  Grécia  fora  sempre  um 
objecto  de  hoiror  para  os  persas,  e  nas  suas  invasões  nunca  dei- 
xaram de  destruir  os  templos  e  insultar  destes  deuses  imruoraes. 
A  impunidade  que  se  seguira  a  estes  sacrilégios  assombr^ava  pro- 
fundamen;e  o  |)Ovo  e  contribuiu  a  minar  a  fé  helénica.  Agora  o 
adorador  das  impuras  divindades  do  Olympo  apremlia  a  conhecer 
um  vasto  systema  religioso,  bello  e  solido,  baseado  em  tudo  na 
pbilosopiíia. 

A  Peisia.  como  acontece  a  todos  os  velhos  impérios,  tinha  sof- 
frido  muitas  mudanças  de  religião.  Seguira  o  monotheismo  de  Zo- 
roastro ;  depois  o  dualismo,  e  mais  tarde  o  magismo.  No  tempo 


o  CATHOLICISMO  E  A  FAMÍLIA  16^ 


da  conquista  mecedonica  reconhecia  uma  intelligencia  universal^- 
creadora,  conservadora,  soberana,  esseticia  pura  do  verdadeiro, 
manancial  do  bem  supremo  5  e  do  mesmo  «nodo  qne  vemos  na 
terra  resultar  o  movimento  da  opposição  das  forças,  havia  por 
baixo  d"esla  intelligencia  dois  princípios  eguaes,  coeternos,  repre-' 
sentados  pela  imagem  da  luz  e  das  treva.í.  Kstes  princípios  estão 
eternamente  em  lucta :  o  inundo  é  o  seu  campo  de  batalha,  o  ho- 
mem a  presa  qne  disputam. 

Na  lenda  antiga  do  dualismo  estava  dito  que  o  espirito  mau  ti- 
nha enviado  a  sua  serpente  para  destruir  o  Paraizo,  obra  do  es- 
pirito bom.  Ksla  lenda  era  conhecidíssima  dos  judeus  levados  ca^ 
plivos  para  Babylonia. 

A  existência  de  um  principio  do  mal  è  a  consequência  da  exis- 
tência de  nm  principio  do  bem,  como  a  sombra  é  necessária  á 
percepção  da  luz.  Assim  se  pótie  comprehender  a  apparição  do 
mal  n'um  mundo  creado  e  governado  por  nm  Deus  soberanamente 
bom.  Cada  um  dos  dois  princípios,  Ormuz  génio  da  luz.  e  Ahri- 
man  génio  das  trevas,  tem  seus  anjos  que  lhe  obedecem,  seus 
conselheiros  e  seus  exércitos.  O  homem  bom  deve  buscar  a  ver- 
dade, guardar  a  pureza,  enlregar-se  ao  trabalho.  Pôde  esperar, 
quando  lhe  expirar  a  vida  mortal,  outra  vi^la  n'onlro  mundo  e 
contar  com  a  resurreição  do  corpo,  a  immortalidade  da  alma,  e 
persistência  da  sua  individualidade. 

Nos  últimos  annos  do  império  as  ideias  do  magismo  tinham  pre- 
valecido cada  vez  mais  sobre  as  ideias  de  Zoroastro.  O  magismo 
era  essencialmente  o  culto  dos  elementos,  e  entre  estes  reputa- 
va-se  o  fogo  como  a  expressão  mais  viva  do  Ser  Supremo.  Sobre 
altares  levantados,  não  nos  tem()los,  mas  deliaixo  da  abobada  azu- 
lada, ardiam  fogos  perpétuos,  e  o  soi  nascente  consideravam-n'o 
os  magos  como  o  mais  nobre  objecto  da  adoração  dos  hnmensl 
Nas  sociedades  asiáticas  nada  se  eleva  mais  do  que  o  monarcha ; 
no  espaço  immenso  todos  os  astros  desapparecem  com  a  presença 
do  sol. 

(Segue.) 


d   ctitlioUcisnio    e   a    faniiuw 

Incapaz  de  praticar  uma  acção  benéfica  e  civilisadora,  a  familia 
eatholica  jaz  n"nma  espécie  de  agrilhoamento  espiritual,  ao  mesmo 
tempo  que  se  dulcifica  n'um  goso  intimo  que  lhe  vem  da  moral 
egoísta  do  catholicismo. 

O  pensamento  sujeito  a  uma  tutflla  rigorosa,  a  tutella  d'uma 
infinidade  de  superstições  idiotas,  de  preconceitos  e  scismas  que 

â2 


170  ENr.YCLOPEblA  REPUBLICANA 

subjugam  a  razão,  a  consciência,  alrophiando-a,  não  pôde  ir  além 
da  esphera  confusa  e  tuniulluosa,  do  circulo  menor  traçado  pela 
urgência  Iheologica.  A  phanlasia  n'esle  estado  mental,  restringe-se 
a  ver  continuamente  através  do  mesmo  prisma  ;  a  acção  é  paraly- 
sada  pelas  mesmas  pêas  de  ferro;  os  movimentos,  a  vontade,  de- 
pende d'uma  lei  incógnita,  dum  principio  desconhecido,  d'uma 
influencia  indefinida,  mas  que  se  julga  só  possuir  a  noção  vaga  de 
superioridade. 

As  ideias  do  espirito  religioso  estão  assim  á  mercê  da  vontade 
suprema,  das  influencias  sacerdolaes,  dos  preceitos  da  egreja.  da 
educação  supersticiosa  da  infância.  São  como  as  huris  escravisadas 
cuja  prostituição  se  iiarmonisa  com  a  vontade  absoluta  do  senhor. 

Dizia  Edgard  Quinet,  o  fervoroso  apostolo  da  emancipação  reli- 
giosa, que  o  catholicismo  é  o  inimigo  do  género  humano. 

Na  família,  e  sobretudo  na  mulher,  exerce  elle  ainda  notável 
influencia,  enlorpecendo-lhe  os  sentidos  e  sufl'ocando-lhe  o  coração 
á  voz  dos  sentimentos  allruistas. 

O  catholicismo  é  como  uma  rede  traiçoeira  que  envolve  mais 
covardemente  o  espirito  do  sexo  afl"ectivo  pela  sua  fragilidade  e 
superioridade  de  sentimento:  é  o  seductor  myslico,  que  se  intro- 
duz na  família  devassando-a  e  corrompendo-a,  forçando-a  a  essas 
praticas  irrisórias  do  culto,  das  crenças  inconscientes  e  absurdas. 
Os  segredos  Íntimos  da  mulher,  as  acções,  os  pen>amentos  do  ho- 
mem, a  ingenuidade  das  creanças,  são  obrigados  a  uma  exposição 
immoral,  vergonhosa  e  humilhante,  perante  os  representantes  de 
Chrísto  na  terra,  exposição  que  os  deleita,  ao  mesmo  tempo  que 
os  inspira  uos  mysterios  da  divindade. 

O  catholicismo,  longe  de  inspirar  à  família  um  sentimento  apre- 
ciável, longe  de  os  estimular  à  pratica  do  bem,  a  uma  acção  ge- 
nerosa e  humanitária,  é,  pelo  contrario,  o  seu  grande  corruptor. 

Como  a  trimurli  indiana  enroscada  por  serpentes  medonhas  que 
vomitam  chammas  abrasadoras,  assim  as  ideias  religiosas  d"un[i 
espirito  doente,  d'um  cérebro  subjugado  a  uma  pressão  confusa, 
esterilisadora  e  atrí.phiante:  a  illuslração  não  pôde  ir  mais  além, 
transpor  aquellas  barreiras  impeiietraveis;  a  educação  reslringe-se 
á  sabedoria  de  bem  viver  para  melhor  morrer,  n'uns  sonhos  contí- 
nuos, ás  vezes  pesados,  do  paraizo,  ou  do  inferno.  N'essas  visões 
mysticas,  celestes,  n'esses  mysterios  incomprehensiveis  de  além 
da  campa,  na  gloria  eterna  e  divina  graça,  e  outros  tantos  absur- 
dos que  amolecem  o  cérebro,  que  o  desvairam,  que  o  amesqiii- 
nham  produzindo  pesadellos  enormes,  eis  no  que  se  resume  a  vida 
devota,  toda  a  actividade  pensante  do  fervoroso  crente,  toda  a  sa» 
piencia  do  fiel  servo  calliolíco.  O  eu  subjectivo  é  um  bafejo  de 
Deus,  6  portanto  uma  natureza  toda  divina:  logo,  conclue-se  que 
as  três  grandes  faculdades  da  alma,  que  regulam  todos  os  nossos 


TRADIÇÕES  POPULARES  fíl 

aclos  individuaes  —  sensibilidade,  intelUgencia  e  actividade,  estão 
sempre  subordinadas  ao  mero  principio  creador,  sem  licença  do 
qual  o  individuo  religioso  não  podciá  sentir,  pensar  e  obrar. 

Assim,  a  moral  catholica  nunca  poderá  ser  independente  como  a 
moral  universal  e  pliilosophica,  a  moral  consciente,  só  racional  e 
lógica,  só  verdadeiramente  humana — a  moial  [)ositiva, 

E  vemos  que  a  família  educada  no  catholicismo,  debalde  dili- 
genceia  a  harmonia  no  lar,  não  podendo  aspirar  a  ura  ideal  de  fe- 
licidade: as  discórdias  são  frequentes,  motivadas  quasi  sempre  por 
pequenas  contrariedades  em  que  os  sentimentos  se  não  fraterni- 
sam  pelo  egoismo  da  salvação  da  personalidade,  pelo  ascetismo 
que  immobilisa,  e  outras  tantas  cousas.  D'aqui.  não  obstante  as 
mesmas  noções  vagas,  observamos  um  facto  curioso  que  assombra 
e  que  é  o  seguinte: — De  200  casamentos  calliolicos  por  trimestre, 
só  em  Lisboa,  100  se  divorciam,  caliindo,  pouco  mais  ou  menos, 
50  em  poder  dos  tribunaes  a  tentarem  acções  de  separação  judi- 
cial, sempre  acompanhadas  de  allegações  immoralissimas,  e  em 
que  se  descobrem,  a  maior  parte  das  vezes,  as  influencias  do  cle- 
ricalismo  e  educação  religiosa.  Desta  revelação  se  vê  que  a  mé- 
dia de  taes  casamentcs  dissolvendo-se  concone  para  a  desmorali- 
sação  social,  dando  depois  um  triste  exemplo  aos  filhos  innocentes. 

INote-se  que  nenhum  dos  casamentos  civis,  não  obstante  serem 
muitos  os  que  já  se  teem  eílectuado,  foi  aiuda  dissolvido. 

Reis  Dâmaso. 


^rciflíções  nonuíares 

(CoUecção    do    Algarve) 
ROMANCES 

D.  BOZÓ 

— Levantae-vos,  ó  D.  Bozó, 

Se  bem  me  quereis; 

Ide  chairiar  vossa  mãe 

Cá  vos  la  chameis. 

— Afonlae,  ó  minha  mãe, 

Do  flôce  dormir; 

Venha  á  Flor  (l'a!raa 

Qu'e?tá  p"ra  parir. 

— S'ell3  parir  que  pára 

Um  rapaz  varão, 

Que  arrebente,  estale, 

Pelo  coração. 


.J72  EXCYCLOPEDIA  REPUBLK^ANA 


— Onspcvae  vos,  minh'alma, 
Na  Virgem  Maria; 
Minha  mãe  iiãn  está  em  casa 
Fel  a  ama  romaria. 

— Levanlae-vos,  ó  D.  Bozó, 

Se  bem  me  quereis 

lile  ••liamar  vossa  mana 

Cá  vos  la  i-liaineis. 

— Acciírdae,  6  rninha  mana. 

Dii  dô''e  dormir; 

Venirá  Flor  d  alma 

QuVslá  p'ra  parir. 

— S'ella  puir  que  pára 

Uma  r^p  ,i  i};a, 

Que  arreheiife,  estale, 

E  acabe  a  vida. 

— (^oiiservae  \os,  minh'alma, 

Na  Virjírm  Maria; 

Minba  mana  não  está  em  casa 

Foi  á  niesma  romaria. 

— Levantae-vos,  ó  D.  Bozó, 

Se  liem  nie  quereis; 

Me  chamar  a  minha  mãe 

Cá  vos  la  chameis. 

— Accor.lae.  ó  ii.inha  sogra, 

Do  dó  e  dormir; 

Venha  á  For  d'alma 

Questá  |)ra  parir. 

— Subi   subi,  meu  genro, 

Comei  um  bocado, 

En)quaiito  eu  ponho 

Esle  negro  toucado. 

— Accordae,  ó  meus  moços, 

A  seliar  as  minhas  mulas, 

Emquanio  eu  visto 

Estas  ne{,'ras  vestiduras. 

— Pastorinha  nobre 
Que  o  gado  guardaes, 
A  quem  se  dubra 
Estes  siíínaes  ? 
— É  pela  Fior  d'alma 
Que  morreu  de  parto. 
— Ai,  minha  querida  filha, 
Fdha  da  minha  vidai 
Se  eu  lá  estivesse 
Ainda  eras  viva. 
— Aij  minha  querida  filha. 
Filha  do  meu  coração; 
Se  eu  lá  estivesse 
Monerias  ou  não. 

A  sogra  cançava 

Em  acc€niier  os  cyrios; 


1 


TRADIÇÕES  POPULARES  173 


A  mãe  não  cançava 
Em  (lar  suspiros. 
A  soura  cain;ava 
Em  acceiíder  as  vellas, 
A  mãe  não  caiifava 
Em  chorar  por  ella. 


D.  MARCOS 

«Amanhã  parte  D.  Marcos 

Para  a  guerra  hnjçar. 

— n Quando  virás  tu,  meu  conde, 

Quando  tornarás  a  voltar  ? 

—  Se  aos  seis  annos  não  vier 

Aos  sete  o  mais  tardar; 

E  vindo  para  os  nove 

Já  te  poderás  casar. 

Ainda  os  seis  não  eram  vindos 

Já  a  condi  ssa  era  casada; 

O  D.  Marcos  que  partia 

lia  sua  guerra  passada, 

Encontrou  umas  vaquinhas 

Forradas  d 'outro  signal. 

— De  quem  são  essas  vaquinhas,  moiral. 

Forradas  doutro  signal? 

— Ató  agora  eram  de  D.  Marcos, 

Deus  lhe  queira  perdoar; 

Agora  são  de  D.  Fernando, 

Tirem-me  d'este  lugar. 

— Dá- me  os  teus  fatos,  moiral, 

Queiras  tu  os  meus  vestir. 

Quero  ir  áquella  porta, 

Uma  esmola  pedir. 

Uma  esmola,  senhora. 

Para  aju  la  de  passar. 

Estando  elle  n'estas  falias 

A  comlessa  ao  portal, 

Deu-lhe  uma,  deu-lhe  duas, 

Ás  três  cahiu  no  chão; 

Aos  gritos  da  condessa 

Accudiu  o  D,  Fernando. 

— Que  é  isso  que  tens,  condessa. 

Que  é  isso  que  tens,  minh'alma? 

— São  os  olhos  lie  D.  Marcos, 

Vi51  os,  vél  os  aqui  eitão. 

— Não  me  chames  D.  Marcos 

Nem  D.  Marcos  me  chamarão, 

Que  tiveste  a  desventura 

D'esquecer  o  meu  coração. 


(Lagoa) 


Heis  Dâmaso. 


t74  ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Biographias 

l>£a.uoel  Fernandes   Tliomaz: 
III 

Quem  era  Fernandes  Tliomaz? 

Natural  da  Figueira  da  Foz,  onde  nnsceu  a  30  de  junho  de  1771, 
era  íillio  de  João  Fernandes  Tliomaz  e  de  Maria  da  Encarnação,  se- 
gundo refere  um  de  seus  biograplios  *.  Seu  pae  dedicava-se  ao  com- 
niercio  marilimo,  que  lhe  rendia  baslaíite  para  viver  bem  e  para 
dar  uma  educação  hberal  aos  Dlhos. 

Enlrando  aos  15  annos  na  universidade  de  Coimbra,  mostrou 
pouco  fervor  pelo  estudo,  mas  em  breve  conquistou  verdadeira  su- 
perioridade moral  sobre  os  seus  condiscípulos  pela  firmeza  de  ca- 
racter e  pela  Inciílez  de  espirito  que  desenvolveu.  Queria  seguira 
carreira  ecciesiastica  e  tomar  ordens,  chegando  a  receber  o  grau 
de  bacharel  na  faculdade  de  Cânones,  em  1791;  porém  mudou  de 
tenção  e  consagrou-se  completamente  aos  estudos  forenses,  sendo, 
em  1801,  despachado  para  Arganil  a  exercer  as  funcções  de  juiz 
de  íòra,  e  quatro  annos  depois  nomeado  superintendente  das  alfan- 
degas e  tabacos  nas  comarcas  de  Aveiro,  Coimbra  e  Leiria.  Ambos 
estes  cargos  desempenhou  com  a  inteireza  e  a  rectidão  que  sem- 
pre o  distinguiram  no  serviço  publico  e  na  vida  particular. 

A  fuga  do  imbecil  monarcha  para  o  Brasil  e  os  desastres  que  a 
politica  inepta  e  falsa  do  gabinete  portuguez,  perante  os  interesses 
oppostos  de  Napoleão  e  da  Inglaterra,  arrastou  sobre  o  [)aiz,  des- 
gostaram Fernandes  Thomaz,  como  bom  patriota  que  era,  e  leva- 
ram-no  a  abandonar  a  vida  publica  e  a  regressar  á  sua  terra  na- 
tal, onde  se  conservou  por  algum  tempo  no  maiur  isolamento.  Ahi 
o  foi  despertar  a  chegada  das  tropas  inglezas,  que  vinham  auxi- 
liar-nos  a  expulsar  os  invasores  e  que  desembarcaram  perto  da 
Figueira.  Artliur  Wellesley,  mais  tarde  lord  Wellington,  comman- 
dante  em  chefe  dos  nossos  alliados,  mandou  procurar  Fernandes 
Thomaz,  como  primeira  auctoridade  do  dislricto,  para  legalisar  as 
requisições  que  tinha  de  fazer  oflicialmente  para  o  sustento  e  trans- 


1 


1  Estes  nomes  vêm  n'um  artigo  publicado  no  n."  372  do  jornal  in<i\èz  Moiíthly 
Magazine  e  tianscnpto  no  Piano  do  Governo  n.°  238.  de  9  de  ouluhro  de  1822, 
aiada  em  vida  de  Fernandes  Tliomaz,  e  segundo  paret-e  devido  á  penna  de  algum 
dos  seus  amigos  políticos. 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  175 

porte  dos  soldados  inglezes.  Fernandes  Tliomaz  apressou-se  a  com- 
parecer e  desenvolveu  immedialamenle  ioda  a  sua  energia  em  fa- 
cilitar a  alimentação  e  os  materiaes  indispensáveis  para  o  começo 
da  campanha  contra  o  exercito  francez.  Sendo  nomeado  em  1808 
provedor  da  comarca  de  Coimbra,  interrompeu  pouco  depois  o 
exercício  d'este  cargo,  para  servir  de  intendente  dos  viveres  ou 
deputado  commissario  do  exercito  no  quartel  general  de  Beres- 
ford,  a  instancias  dos  generaes  inglezes,  que  tinham  por  elle  a 
máxima  estima.  Em  10  de  fevereiro  de  18 lá  foi  reintegrado  nas 
funcções  de  provedor  de  Coimbra ;  tinha  já  o  titulo  de  desembar- 
gador da  relação  do  Porto,  mas  só  entrou  na  effectividade  em  1817. 
Em  181")  publicou  dois  pequenos  volumes  sobre  Direitos  Domini- 
caes,  e  desde  os  bancos  da  universidade  que  vinha  formando  uma 
collecção  de  todas  as  leis  extravagantes,  das  quaes  depois  deu  a 
lume  um  reportório.. 

No  meio  d'este  viver  bastante  agitado  foram-se  desenvolvendo  e 
retemperando  as  eminentes  qualidades,  que  fizeram  de  Fernandes 
Thomaz  o  principal  heroe  da  revolução  e  o  mais  sensato  dos  legis- 
ladores do  congresso  constitumte.  No  exercício  dos  seus  empregos 
públicos  teve  occasião  d»;  observar  de  perto  o  estado  de  decadên- 
cia e  de  ruina,  a  que  tinha  descido  o  regimen  monarchico-feudal.  e 
conhecer  a  necessidade  urgente  de  uma  reforma,  pela  qnal  se  abo- 
lissem os  privilégios  vexatórios  e  iniquos  que  abafavam  o  natural 
desenvolvimento  da  nação.  As  condições  do  paiz,  dlíBceis  no  prin- 
cipio do  século,  aggravaram-se  muiio  com  os  tristes  aconleciraeu- 
tos  que  se  seguiram.  Fernandes  Thomaz.  patriota  sincero,  conce- 
bia esperanças  de  levantar  a  nacionalidade  portugueza  do  seu  aba- 
timento, e  para  realisar  a  sua  ideia  generosa  fundou  o  Sinédrio. 
Ao  primeiro  núcleo  composto  por  Fernandes  Thomaz,  Ferreira  Bor- 
ges, Silva  Carvalho  e  João  Ferreira  Vianna,  foram  se  juntando  suc- 
cessivamente  Duarte  Lessa,  José  Pereira  de  Menezes.  Francisco 
Gomes  da  Silva.  João  da  Cunha  Solto-maior,  José  Maria  Lopes  Car- 
neiro e  José  Gonçalves  dos  Santos  e  Silva.  Os  annos  de  1818  e 
1819  passaram-se  em  discussões  verdadeiramente  estéreis  e  na  ob- 
servação dos  acontecimentos  da  politica  interna  e  externa. 

Começou  o  anno  de  1820.  e  o  Sinédrio  tornou  se  militante;  to- 
dos os  seus  membros  estavam  animados  dos  melhores  desejos  de 
levarem  a  eíTeito  a  grandiosa  empresa ;  gaiiharam  a  adhesão  de 
muitos  officiaes  do  exercito,  dos  principaes,  dos  que  tinham  maior 
influencia  sobre  os  soldados  ou  que  dispunham  de  maiores  forças; 
assim  conquistaram  o  coronel  Cabreira,  conuuandantc  da  artilheria 
na  cidade  do  Porto,  e  os  leneute-coroneis  Gil,  Pamplona  e  Guedes, 


tí^  ENGYGLOPEDIA  REPUBLICANA 


cujos  corpos  estacionnvíim  no  Porlo,  em  Villa  tl.i  Feira,  em  Pena- 
fiel, ele;  contavam  tamliem  com  o  corpo  da  policia  e  com  as  mi- 
licias  da  Maia.  da  Feira.  etc. 

O  que  determinou  o  Sinédrio  a  entrar  em  trabalhos  activos  para 
apressar  a  revolução? 

Em  primeiro  logar  e  a  causa  mais  immediata  d'e«te  movimento, 
foi  decerto  a  noticia  da  sublevação  da  Galiza,  que  proclamou  como 
bandeira  de  revolta  a  celebre  constituição  de  Cadix.  Mas  além  d'isso 
as  próprias  occorrencias  interiores  haviam  (ie  influir,  e  não  pouco, 
nas  resoluções  tomadas  por  atiuella  associação  revolucionaria. 

Se  em  janeiro  de  1818  a  situação  do  paiz  era  |)essima  e  muito 
grave,  como  procurámos  mostrar,  nos  dois  annos  decorridos  ainda 
se  aggravou  em  extremo,  e  em  18á0  o  estado  dos  negócios  públi- 
cos era  desesperado. 

Depois  da  condemnação  de  Gomes  Freire  e  dos  seus  infelizes 
<:ompaidieiros,  D.  João  VI  promulgou  um  alvará,  em  30  de  março 
de  !8I8,  em  que  declara  criminosas  todas  as  associações  que  não 
tenham  obtido  auctorisação  régia,  prf>hibe-as  e  considera  os  seus 
membros,  como  réus  de  lesa-mageslade.  Fsta  lei,  em  vez  de  pro- 
duzir o  effeito  desejado  pelo  monarcha.  vinha  ainda  aggravar  a  si- 
tuação. 

O  thesouro  achava-se  esgotado,  porque  o  gnverno  do  Pio  de  Ja- 
neiro mandara  ir  para  o  Brasil  todos  os  rendimentos  de  Portugal: 
e  os  governadores  apressaram-se  a  cumprir  tstas  ordens,  apesar 
da  fome  reinar  em  alguns  pontos  do  [)aiz  e  as  tmpas  terem  os  sol- 
dos em  grande  atraso!  A  própria  regência  viu-se  forçada  a  alliviar 
os  pescadores  da  Estremadura  de  metade  dos  tributos.  A  emigra- 
ção para  o  Brasil  crescia  extraordinariamente ;  houpns,  nuilheres 
e  crianças  dirigiamse  para  ali  em  grupos  a  borilo  dos  navios  qaé 
constantemente  partiam.  O  roubo  estava  inaugurado  em  systema; 
as  alfandegas,  segundo  a  expressão  de  um  escnptor  bastante  reac- 
cionário, eram  verdadeiros  covis  de  ladrões ;  o  tristemente  celebre 
corregedor  de  Belém  chegava  a  introduzir  tabaco  nos  leitos,  na 
occasião  das  buscas,  para  arranjar  criminosos  a  (piem  roubar.  Os 
tribimaes  convcrteram-se  em  praças  de  leilões,  onde  a  justiça  se 
vendia  a  quem  mais  dava  ;  os  juizes  não  olhavam  ás  razões  que 
militavam  a  favor  de  uma  das  partes,  mas  ao  (Jmheiro  que  a  outra 
lhes  offerecia.  A  segurança  pessoal  não  existia;  uma  suspeita,  uma 
íienuncia  falsa,  bastava  para  um  cidadão  ser  arran  ado  dos  braços 
carinhosos  da  esposa  e  atirado  para  uma  misuiorra  hiiinida  e  in- 
fecta, onde  havia  de  passar  ann(»s  sem  conheciír  ao  menos  o  crime 
de  que  o  acusavam.  A  propiiedade  também  não  era  respeitada;  os 
propiios  ministros  não  se  envergonhavam  de  expoliar  torpemente 
os  seus  compatriotas  indefensos.  Os  cargos  davam-se  a  quem  Ira- 
ria mais  empenhos,  e  o  melhor  dos  empenhos  era  o  ouro.  O  papel 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  177 

moeda  era  um  cancro  devorador  que  augmentava  a  obra  de  des- 
truição. 

Emfmi  o  estado  interno  da  nação  era  tão  grave,  que  por  deli- 
beração da  regência,  Beresford  partiu  para  o  Bio  de  Janeiro,  afim 
de  expor  a  D.  João  VJ  o  estado  de  cousas  e  pedi  -lhe  providen- 
cias e  dinheiro  para  pagar  o  atrazado  aos  soldados. 

A  sabida  do  marechal  para  o  Brasil  fez  apressai-  os  preparativos 
da  revolução;  o  Sinédrio  activava  as  adhesões  e  recebia  em  seu 
seio  mais  dois  membros,  José  de  Mello  Castro  e  Abreu  e  João  Ma- 
ria Xavier  d'Araujo.  A  recepção  d'este  ultimo  vem  contada  pela 
seguinte  forma  nas  suas  Revelações  e  memorias:  «Sem  embargo  de 
ler  presenciado  muitos  d'estes  actos,  devo  confessar  que  fez  sobre 
mim  impressão  profunda  o  discurso,  que  Fernandes  Thomaz  n'essa 
occasião  me  dirigiu.  Presidia  elle;  e  com  a  sua  voz  fortemente  ac- 
centuada  pintou  o  estado  do  paiz  ;  sem  rei  que  o  goveinasse,  um 
general  estrangeiro  senhor  do  exercito,  estrangeiros  lambem  go- 
vernando as  províncias,  nossa  dependência  do  Brasil,  e  emfim  a 
revolução  de  Hespanha  que  acabava  de  terminar  felizmente  com  o 
juramento  de  Fernando  VII  á  constituição  de  Cadix.  Ficaremos  nós 
assim?  Ou  devemos  continuar  n'esle  aviltamento?  Kepetiu  elle  mui- 
tas vezes  com  fo^ça  !  A  figura  de  Fernandes  Thomaz,  as  suas  cans 
respeitáveis,  tudo  o  fazia  sublime  n'essa  occisião.  Sahi  enlhusias- 
mado  e  capaz  de  arrostar  os  maiores  perigos!»  Esta  narração 
simples  e  desperlcnciosa  de  Xavier  d'Araujo  revelia  o  ascendente 
moral,  que  Fernandes  Thomaz  exercia  sobre  lodos  que  se  aproxi- 
mavam delle.  e  o  enthusiasmo  e  a  tenacidade,  com  que  proseguia 
na  sua  obra  revolucionaria. 

Fixou-se  o  dia  29  de  junho  para  a  empresa,  mas  alguns  succes- 
sos  graves  fizeram-na  addiar  e  quasi  que  comprometleram  o  mo- 
vimento. O  coronel  Barros,  commandante  da  força  militar  do  Mi- 
nho, cujo  concurso  fora  promettido  por  Xavier  dWraujo,  recusou-se 
formalmente  a  adherir  e  obrigou  este  a  retira r-se  sem  demora  de 
Braga.  Ao  mesmo  tempo  uma  ordem  do  ministro  da  guerra  paia 
o  coronel  Cabreira  mandar  para  Peniche  um  destacamento  do  seu 
corpo  de  arlilheria  fez  desconfiar  que  estivesse  descoberta  a  cons- 
piração, e  originou  uma  séria  pendência  com  o  coronel  Gil.  O  re^ 
ceio  assaltou  todos  os  chefes;  o  próprio  Fernandes  Thomaz  occul- 
tou-se  em  sua  casa,  nas  Caldas  das  Taipas,  onde  o  foi  encontrar, 
n'um  quarto  escuro,  Xavier  d'Araujo  que  sahira  á  pressa  de  Braga. 
Apenas  o  viu  disse-Ihe  Fernandes  Thomaz: 

— Meu  amigo,  vem  me  achar  no  segredo.  A  nossa  revolução  mal- 
logrou-se  no  Porto.  Os  chefes  militares  lomaram-se  de  razões  uns 
com  os  outros,  e  é  provável  que  a  esta  hora  estejamos  descober- 
tos e  denunciados.  Eu  tenho  horror  aos  segredos  das  prisões;  por 
isso,  e  para  me  acostumar  ao  que  é  provável  nos  aconteça,  já  me 

ááó 


178  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICADA 

■u.  

fecho  todos  os  dias  três  oa  quatro  horas  n'esle  aposento  escuro, 
para  não  estranhar  depois*. 

Os  ânimos,  porém,  socegaram,  e  desapparecendo  o  receio  infun- 
dado, Fernandes  Thomaz  voltou  ao  Porto  e  reuniu  o  Sinédrio.  Mos- 
trou aos  seus  collegas  a  necessidade  de  ir  a  Lisboa  sondar  a  opi- 
nião publica  e  entender-se  com  os  amigos  para  não  ficai^m  de- 
pois isolados ;  todos  approvaram  esta  ideia  e  pozeram  á  sua  dis- 
pozição  as  sommas  precisas  para  a  viagem,  mas  o  grande  patriota 
recusou  todo  o  auxilio  e  partiu  para  a  capital  em  fins  de  julho. 

Durante  a  sua  ausência,  o  Sinédrio  recebeu  um  valioso  apoio; 
foi  o  de  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz.  que,  passando  para  Ponte  de 
Lima,  offereccu  o  seu  concurso  para  a  revolução,  promeltendo  de- 
cidir o  coronel  Barros  a  entrar  no  movimento. 

Maneei  Fernandes  Thomaz  demorou-se  oito  dias  em  Lisboa,  cor- 
rendo grandes  perigos,  porque  já  se  suspeitava  a  existência  da 
conjuração,  e  mesmo  segundo  referem  alguns  auctores,  escapando 
aos  espiões  da  policia  por  não  o  conhecerem,  e  regressou  ao  Porto, 
onde  encontrou  já  tudo  preparado  para  a  revolução.  Esperaram 
que  chegasse  o  coronel  Bernardo  Corrêa  de  Castro  Sepúlveda  cora 
o  regimento  de  infanteria  18  e  receberam-no  no  Sinédrio,  fixando 
logo  o  dia  24  de  agosto  para  a  revolução.  Ainda  d'esta  vez  ia  sendo 
mallograda  a  empresa  por  causa  do  manifesto  que  se  deveria  diri- 
gir â  nação.  António  da  Silveira  não  approvou  a  redacção  de  Fer- 
nandes Thomaz  e  pretendia  que  a  Junta  provisória  se  chamasse  dos 
Braganções  e  se  limitasse  a  representar  a  D.  João  VI  sobre  o  es- 
tado do  paiz  e  lhe  pedisse  o  regiesso  á  Europa.  Fernandes  Tho- 
maz em  vão  o  procurou  convencer  com  argumentos  sérios  e  racio- 
naes.  Convocou,  poitanto,  o  Sinédrio  e  conlando-líie  a  teima  de 
Silveira,  allirmou  que  estava  tudo  perdido,  que  era  impossível  avan- 
çar-se  um  passo. 

Lopes  Carneiro,  dando  um  murro  sobre  a  mesa,  exclamou: — Se 
um  homem  se  oppõe  á  revolução,  porque  se  não  prescinde  d'elle  ? 
porque  não  se  sacrifica  esse  homem? 

--Eu  não  venho  aqui  para  disputar,  disse  serenamente  Sepúl- 
veda desembainhando  a  espada,  venho  só  para  tratar  dos  meios  e 
do  dia  da  revolução.  Offereceu-se  para  ir  com  dois  collegas  con- 
vencer Silveira.  Ferreira  Borges  e  João  da  Cunha  prestaram-se  a 
acompanhal-o.  Fernandes  Thomaz  julgava  inútil  esta  diligencia,  mas 
exclamou  por  fim: 

—Pois  vão,  mas  não  fazem  nada;  evoltando-se  para  Lopes  Car- 
neiro disse-lhe: — Eu  convenço-me  com  razões  e  não  com  murros. 

Foi  prolongada  a  lucía  que  os  três  delegados  sustentaram  com 


1  Ob.  cit..  pag.  17. 


SUISSA  179 

António  da  Silveira,  mas  por  fim  levaram-no  a  assignar  «m  mani- 
festo que  Ferreira  Borges  fez  para  substituir  o  primeiro. 

Estando  assim  vencido  o  ultimo  obstáculo,  no  dia  23,  á  noite, 
reuniu-se  o  Sinédrio  em  casa  de  Ferreira  Borges  para  escreverem 
as  proclamações  e  as  cartas  que  tinham  de  ser  publicadas  e  expe- 
didas no  seguinte  dia,  e  prcpararem-se  para  a  revolução. 

(Segue.)  Teixeira  Bastos. 


píUlSStl 

(Continuado  de  pag.  130.) 

Havíamos  promettido  historiar  aqui,  em  resutiio,  as  pertinazes 
luctas  religiosas  e  politicas  que  se  travaram  nos  cantões  suissos, 
depois  da  morte  da  Helvécia  e  a  descriminação  dos  partidos  cen- 
tralista e  federalista  (1802)  até  á  ultima  reforma  da  Constituição, 
realisada  a  19  de  abiil  de  1874.  Faltando-nos  porém  espaço,  por 
isso  que  se  aproxima  a  conclusão  do  primeiro  volume  da  Encyclo- 
pedia,  adiamos  este  trabalho  para  mais  tarde  e  passamos  a  descre- 
ver, segundo  Charbonnier,  o  mechanismo  das  actuaes  instituições 
politicas  úé.  Suissa,  trabalho  que  muito  servirá  por  certo  para  orien- 
tar o  povo  na  forma  republicana  que  deve  adoptar,  abandonando  a 
escola  do  sentimentalismo  e  das  declamações  banaes. 

Poderes.  —  O  poder  supremo  da  Confederação  suissa  é  exer- 
cido pela  AsscmhUa  Federal,  que  se  compõe  de  duas  Camarás :  o 
Conselho  Nacional  e  o  Conselho  dos  Eslados. 

Formação  das  leis.  —  Cada  um  destes  dois  Conselhos  deli- 
bera separadamente.  As  medidas  legislativas  devem  successiva- 
mente  ser  adoptadas  pelos  dois  Conselhos;  mas  a  iniciativa  per- 
tence indislinctamente  a  um  ou  a  outro.  Em  certos  casos,  o  Con- 
selho Nacional  e  o  Conselho  dos  Estados  reunem-se  e  deliberam  em 
commum  ;  é  assim  que  procedem  por  commum  accordo  á  eleição 
de  sete  delegados  que  formam  o  Conselho  Federal,  encarregado  de 
exercer  o  poder  executivo  da  Confederação  e  dentre  os  quaes  elles 
próprios  escolhem  o  Presidente  da  Confedera  cão. 

Censelho  Federal.  —  Os  membros  do  Conselho  Federal  são 
nomeados  por  três  annos  pelas  duas  secções  da  AsíSembléa  fede- 
ral reunidas,  e  escolhidos  dentre  todos  os  cidadãos  elegíveis;  este 
conselho  é  renovado  integralmente  em  seguida  a  cada  renovação 
do  Conselho  Nacional. 

Presidente  da  Confederação.  —  O  presidente  da  Confede- 
ração e  vice-presidente  do  Conselho  Federal  são  nomeados,  por  um 
anno,  pela  Assembléa  Federal  reunida  e  ambos  escolhidos  d'entre 


180  ENCYGLOFEDIA  REPUBLICANA 

OS  membros  do  Conselho  Federal;  não  podem  porém  desempenhar 
esles  caiyos  duranle  dois  annos  conseeiílivos.  O  vice-presidente  ó 
chamado,  no  anno  seguinte,  á  presidência,  em  virtude  d"um  uso 
constante.  O  [)residente  da  Confederação  e  os  den}ais  membros  do 
Conselho  Federal  recebem  uma  remuneração  annual  paga  pela  caixa 
federal. 

Conselho  dos  Estados.  —  O  (Conselho  dos  Estados  compõe-se 
de  quarenla  e  quatro  deputados  dos  cantões.  Cada  Cantão,  qual- 
quer que  seja  a  sua  população,  elege  dois  deputados;  nos  cantões 
subdivididos,  cada  semi-Fslado  elege  um. 

Os  membros  do  (Conselho  dos  Fstados  são  eleitos  pelos  cantões 
e  peia  lo; ma  prescita  na  ki  cantonal.  Em  Uri,  (ílaiis,  Appenzel, 
ele,  são  estes  eleitos  pelo  povo  reunido  na  praça  publica.  Km  Zu- 
ricl)  os  eleitores  nomeiam-nos  pelo  sulíVagio  universal  directo.  Na 
maior  parte  dos  outros  Estados  são  eleitos  pelos  Grandes  Conselhos, 
ou  asseiubiéas  cantonaes  de  cada  Estado  ou  semi-Estado. 

Duração  do  Mandato.  —  O  mandato  dos  membros  do  Con- 
selho dos  Estados  tem  a  duração  que  apraz  a  cada  cantão.  De  or- 
dinário é  de  um  sò  anno,  com  reeleição. 

Presidência.  —  O  Conselho  dos  Estados  escolhe,  no  seu  seio, 
para  cada  sessão  ordinária  ou  extraordinária,  um  presidente  e  um 
vice-piesidenle.  Estes  altos  dignatarios  não  podem  ser  eleitos  d'en- 
tre  os  deputados  do  Cantão,  onde  foi  escolhido  o  presidente  para  a 
sessão  ordinária  que  immediatamente  a  precedeu;  fs  deputados  do 
mesmo  cantão  não  podem  ser  investidos  do  cargo  de  vice-presi- 
dente diuante  duas  sessões  consecutivas. 

No  caso  de  empate,  a  opinião  do  presidente  é  prepondeiante;, 
nas  eleições  elle  vota  como  qualquer  outro  membro. 

Remuneração.  —  Os  membros  do  Conselho  dos  Estados  são 
pagos  |)elos  seus  respectivos  cantões. 

Conselho  Nacional. —  O  Conselho  Nacional  compõe-se  de  de- 
putados eleitos,  i)or  esci utinio  directo  e  secreto,  em  cada  cantão, 
na  razão  da  sua  população  e  na  proporção  de  um  membro  por  cada 
vinte  mil  habitantes. 

Todo  o  cantão  ou  semi-cantão,  até  quando  a  sua  população  é  in- 
ferior a  esta  cifra,  nomeia  pelo  menos  um  deputado;  as  fracções  de 
população  superiores  a  dez  mil  almas  têm  direito  a  um  deputado. 

Eleições. —  Cada  Estado  federal  (Cantão  ou  semi-Cantão)  pro- 
cede ás  eleições  conforme  as  prescripções  das  leis  que  lhes  são 
particulares,  mas  sob  reserva  das  diversas  disposições  geraes,  al- 
gumas das  qnaes,  as  mais  importantes,  passamos  a  mencionar: 

Todo  o  cidadão  suisso  com  vinte  e  um  annos  de  edade  tem  di- 
reito a  votar,  logo  que  não  esteja  excluído  do  direito  de  cidadão 
activo  pela  legislação  do  cantão,  onde  tem  o  seu  domicilio. 

Os  militares  votam  nas  mãos  do  commandante  do  seu  corpo,. 


SUISSA  1«1 

acompanhado  por  uma  mesa  especial  que  envia  as  listas  ao  circulo 
a  que  pertence  o  soldado  pelo  seu  domicilio  habitual.  Os  volos  dos 
militares  são  então  adicionados  aos  votos  do  municipio  ou  assem- 
bléa  eleitoral  do  seu  domicilio. 

O  cidadão  suisso  exerce  (js  seus  direitos  eleitoraes  no  local  onde 
reside,  quer  como  cidadão  do  cantão,  quer  como  cidadão  estabele- 
cido ou  com  residência  temporária.  Seis  mezes  de  permanência  na 
mesma  communa  são  apenas  necessários  para  ser  inscriplo  no  re- 
censeamento eleitoral. 

Listas  eleitoraes. — Todo  o  cidadão  suisso  domiciliado  numa 
communa  deve  graluitamenie  ser  inscripio  no  registo  eleitoral  da 
sua  coniiiiuna,  logo  que  a  aucloridade  compuicnte  não  possua  a 
prova  de  que  elle  está  excluído  do  direito  de  ciiladão  activo  pela 
legislação  do  cantão. 

As  prescripções  relativas  á  oi-ganisação  dos  registos  eleitoraes, 
são  as  mesmas  para  todas  os  cidadãos  suissos. 

As  listas  eleitoraes  são  permanentes;  a  sua  revisão  não  tem  lo- 
gar  senão  uma  vez  por  anno;  as  reclamações  dos  eleitores,  poroc- 
casião  d'esta  revisão,  são  recebidas  desde  lo  de  janeiro  até  3  de 
fevereiro. 

Antes  de  cada  eleição,  os  registos  eleitoraes  devem  ser  expos- 
tos ao  publico,  pelo  menos  durante  duas  semanas,  afim  de  que  os 
eleitoies  possam  tomar  completo  conhecimento  d"elles;  o  mais  cedo 
que  podem  retirar-se  são  três  dias  antes  da  votação. 

Os  recursos  contra  as  omissões  ou  eliminações  illegacs,  impu- 
tadas ao  maire,  são  apresentados  perante  uma  comunssão  munici- 
pal, com  direito  a  appellarem  para  o  juiz  de  paz,  de  cuja  decisão, 
por  violação  da  lei  ou  excesso  de  poderes,  pôde  recorrer-se  ao  su- 
prem.o  tribunal  de  jijsliça. 

Póde-se  ainda  recorrer  ao  Conselho  Federal,  contra  as  auctori- 
dades  cantonaes,  pela  recusa  ou  suppressão  de  inscripção  ou  por 
qualquer  infracção  da  lei  eleitoral. 

Escrutinios.  —  As  eleições  fazem-se  por  escrutínio  secreto; 
a  acta  de  cada  uma  é  redigida  pelos  membros  da  mesa  respectiva 
e  expedida  ao  governo  do  cantão,  que  apura  o  resultado  das  vota- 
ções nas  differentes  assembléas  e  o  transmille  ao  publico. 

As  leclamações  relativas  a  eleições  devem  ser  enviadas,  no  praso 
de  6  dias,  ao  governo  cantonal,  que  as  trausmitle  ás  auctoridades 
federaes;  decorrido  este  praso  não  são  admitlidas.  O  governo  can- 
tonal transmille,  em  seguida  ao  (>onselho  federal  todos  os  documen- 
tos relativos  ás  eleições,  excepto  as  listas,  que  não  são  expedidas 
senão  a  pedido  e  que  são  destruídas  logo  que  a  eleição  está  vali- 
dada. 

Ninguém  é  eleito  no  primeiro  turno  de  escrulinio  se  não  reúne: 

l.°  A  maioria  absoluta  de  votos  expressos; 


182  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

2."  Um  numero  de  votos  egual  á  quarta  parte  dos  eleitores  in- 
scriptos. 

No  segundo  escrutínio  a  eleição  é  por  maioria  relativa,  seja  qual 
fòr  o  numero  de  votantes. 

Se  n'um  escrutínio  o  numero  de  candidatos  que  obteve  maioria 
absoluta  excede  o  numero  de  deputados  que  ha  a  eleger,  os  que 
alcançaram  o  maior  numero  de  votos  são  considerados  eleitos. 

Nos  casos  em  que  os  candidatos  obtêm  egual  numero  de  votos, 
è  preferido  o  candidato  mais  velho. 

(Segue.) 


Evolucõa;  SHLevoíu 


ena;  ynuevoíucuo 

A  democracia  contemporânea,  por  muilo  tempo  servida  no  campo 
especulativo  apenas  pelas  vagas  aspirações  do  jacobinismo  revolu- 
cionário, pela  doutrina  dos  confrontos  históricos  e  dos  exemplos  po- 
líticos, e  pela  incoercível  percepção  de  novos  ideaes,  recebe  agora 
novas  e  mais  seguras  razões  e  argumentos  com  o  advento  e  pro- 
gressos do  transformismo.  A  brilhante  theoria  que  Darwin  p('ude 
levar  até  á  sua  plena  elllorescencia  e  universal  expansão,  constitue 
lambem  o  mais  poderoso  meio  de  analyse  para  os  complexos  factos 
sociológicos. 

Na  serie  embryologica.  synthese  do  trabalho  orgânico  que  houve 
de  prodnzir-se  á  superficie  da  terra  para  o  apparecimeuto  do  ho- 
mem, este  é  sô  um  organismo,  cuja  estruclura  elevada  a  um  gráo 
de  differenciação  mais  completa,  se  acompanha  por  uma  especiali- 
sação  funccional  párallelamente  aperfeiçoada. 

Na  serie  anthropologica,  o  homem,  primeiramente  troglodita,  an- 
thropoide,  dotado  de  instinclos  perfeitamente  besliaes,  veiu  subindo 
até  lançar  as  bases  e  delineamentos  das  proto-civilisações  elemen- 
tares. 

Na  serie  histórica  o  homem  sahiu  gradualmente  da  íluctuação 
cega  e  insciente  das  suas  raças  sobre  o  globo  para  a  posse  plena 
e  consciente  d'esse  mesmo  globo  por  um  grupo,  em  cujas  mãos 
está  agora  condensada  a  hegemonia  dos  destinos  humanos. 

Na  serie  politica  o  homem  partiu  da  concepção  theologica  e  he- 
róica da  aucloridade,  até  rehavel-a  e  conquistal-a  pela  conclusão 
scientifica  de  que  a  auctoridade  emanava  do  seu  próprio  ser  e  acti- 
vidade.. 

De  modo  que  abstractamente  considerado,  o  homem,  oriundo 
das  mais  humildes,  rasteiras  e  confusas  origens  animaes,  logrou 
atlingir  a  comprehensão  do  seu  ser,  da  sua  omnipotência  racional, 
do  seu  destino  messiânico. 


EVOLUÇÃO : REVOLUÇÃO  183 


Tal  é  o  ideal,  o  typo  humano  no  momento  presente.  Este  typo 
é  o  ponto  convergente  de  todos  os  esforços  individuaes  e  sociaes, 
e  portanto  o  critério  superior  do  direito. 

Definido  este  principio,  conclue-se  immediatamente  que  é  incom- 
pativel  com  a  generalisação  do  seu  conhecimento  a  preponderância 
de  castas  circumscriptas, —  Ínfimas,  minorias  no  meio  das  popula- 
ções e  grupos  nacionaes;  bem  como  ha  também  incompatibilidade 
entre  a  aspiração  jurídica  das  massas  e  a  persistência  de  uma  au- 
ctoridade,  emanada  das  noções  theologica  e  heróica,  vagamente 
concebidas  nos  primórdios  da  historia.  Esta  concepção  da  auctori- 
dade  é  com  eíTeito  immensamente  distante  da  actual  concepção  ty- 
pica  do  direito  humano;  e  o  formalismo  que  praticamente  a  reveste 
torna-se,  portanto,  ii  compatível  com  as  necessidades  presentes  de 
uma  formula  concreta  apropriada,  que  9ò  pôde  dar-nos  um  regi- 
men differente, —  o  regimen  democrático. 

A  conquista  d'este  regímen,  pelas  próprias  condições  da  evolu- 
ção, não  se  faz  por  egual  no  tempo  e  no  espaço  á  superfície  da 
terra.  Ha  uma  tendência  constante  e  uma  permanente  aproximação 
para  o  ideal  onde  convergem  n"este  momento  as  attenções  e  esfor- 
ços psycho  sociaes  da  espécie  humana.  Este  movimento  de  conver- 
gência opera  se  ininterruptamente  e  com  tanta  maior  evidencia 
quanto  menor  é  a  distancia.  A  lei  que  o  regula  tem  alguma  cousa 
da  lei  da  gravitação,  se  é  apropriado  comparar  duas  ordens  de  phe- 
nomenos,  collocados  a  tamanha  distancia  na  serie  dos  actos  da  vida 
liuiversal. 

Não  é  sereno  e  uniforme  o  processo  por  que  se  executa  o  mo- 
vimento. Aqui  se  observam,  do  mesmo  modo  que  em  qualquer  ou- 
tro agrupamento  de  seres,  as  leis  eternas,  de  cuja  acção  constante 
tem  resultado  a  vida  e  o  progresso  dos  organismos, —  a  lucta  pela 
existência,  a  selecção  natural.  A  primeira  tornará  penoso  e  cheio 
de  accidentes  o  advento  da  democracia,  mas  assegurar-lhe-ha  o 
triumpho  definitivo  como  á  noção  psychíca  mais  bella,  mais  pode- 
rosa, mais  resistente,  que  até  agora  o  cérebro  humano  ponde  tra- 
balhar. A  segunda  assegura  o  apuramento  das  conquistas  huma- 
nas jcá  effectuadas  no  sentido  democrático,  e  bem  assim  a  duração 
no  tempo  e  a  transmissão  de  pães  a  filhos  d'esse  regimen  ;  e  no 
conflicto  de  allianças  entre  varias  doutrinas  sociológicas  regula  o 
aperfeiçoamento  das  noções  democráticas,  e  define-lhes  os  caracte- 
res que  hão  de  fixar-se,  transmiltir-se  e  durar. 

De  toda  esta  incessante  elaboração  resulta  necessariamente  eli- 
minarem-se  e  desapparecerem  as  formulas  correspondentes  ás  no- 
ções foliticas  retardatárias,  enfezadas  ou  mortas.  A  maneira  por 
que  se  ha  de  operar  esta  eliminação  pôde  ser  brusca,  repentina  e 
transitória,  ou  continua,  ininterrupta  e  duradoura,  É  isto  o  que  na 
linguagem  dos  nossos  jornaes  corresponde  respectivamente  aos  ter- 


I8i  ENCYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 

mos  revolução  e  evolução.  D'aqiiellas  duas  maneiras  uma  não  ex* 
clue  a  outra,  e  o  progresso  das  idéas,  como  o  dos  seres,  faz-se  de 
ordinário,  por  actos  desordenados,  na  apparencia  perturbadores, 
e  instantâneos,  ou  por  actos  conliniios,  regulares  e  demorados,  em 
varia  e  imprevista  combinação.  As  chamadas  revolução  e  evolução 
não  constituem  dois  factores  antagónicos,  mas  duas  phases  do  mes- 
mo processo  natural. 

Augusto  Hocha. 


Lagoa. 


uli 


.i^rcidiçoes  jioíiumres 

(Collecção    do    Algarve) 
ROMANCES 

D.  ALBERTO 

(Varianio  \) 

—  D.  All)erto.  D.  AllJ^Tto, 
O  nosso  somno  foi  sahiJo  , 
As  armas  d'EI-i  ei  meu  pae 
Entre  nós  estão  mettidas: 
Levantate  e  pede-lhe  perJâo 
E  cliora-lhe  como  menino. 

—  Perdão  vos  peço.  El-Rei 
Meu  senhor,  perdão 

Vos  quero  pedir. 
Sou  filho  d'El-líei  de  França, 
Neto  (1  El-Rei  de  Cascaes  ; 
Sobrinho  do  padre  Santo 
Diga  o  Rei  qual  seja  mais. 

—  Levanta-te,  D.  .Alberto, 
Que  foste  muito  atrevido  ; 
Ate  agora  eras  filho 

D'hoje  em  diante  genro  querido. 


Reis  Da.\aso 


A  sciencia  é  a  religião,  o  futuro;  Comte  e  Liltré  são  os  seus  pro- 
phetas;  o  positivismo  é  o  seu  dogma  fundamental.  Façam  o  que  fi- 
zerem não  pôde  subtrahir-se-lhe.  Dumas  (fdho). 


A  sciencia  é  para  o  humem  o  que  o  sol  é  para  a  terra. 

E.  DE  GlBARDIN. 


V^  VICTIS  185 


Vxv  vi  et  is 


Recitada  paio  auclor,  no  theatro  de  S.  João,  nas  feitas  académicas 
do  centenário  do  marquez  de  Pombal 

Ha  outro  mundo,  sim,  ó  parires  de  Jesus  ; 
Mas  não  o  eohre  o  vulto  uifausto  ile  uma  cruz, 
Não  lhe  seiveni  de  esteira  os  pannos  das  batinas, 
Rendilhados  de  unção  e  de  bênçãos  divinas  : 

É  o  inundo  da  Seiencia,  o  Mundo  da  Verdade. 

Vós  que  quereis  tornar  escrava  a  Liberdade, 
Apagar  a  consciência,  algemar  a  razão, 
Pomlo-nos  sem  vigor  p'ra  a  vida  e  para  a  acção, 
E  por  onde  passaes,  monstros  de  togas  pretas. 
Nem  os  lirios  dão  flor,  nem  crescem  as  violetas. 
Ou  o  jasmim  levanta  o  cálix  branco  e  fino, 

Fica  estéril  o  chão  como  a  alma  do  assassino. 

Vós,  é  que  não  sabeis  a  entrada  d'esse  mundo, 

Mais  extenso  que  o  Ceu,  mais  bello,  mais  fecundo  } 

Pois  como  poderá  comprehender  o  amor. 

Os  segredos  da  luz,  os  tecidos  da  íl()r, 

Quem  anda  sempre  immerso  em  trevas,  macillento. 

Orgulhoso  de  si,  na  morte  o  pensamento. 

Rogando  maldições  á  Natureza  inteira  ? 

O  padres  de  Jesus,  olhae  :  a  águia  altaneira 
Nunca  se  circumscreve  ao  ninho  em  que  nasceu  : 
Escala  os  montes,  desce  ao  vai,  percorre  o  ceu. 
Domina  o  mar,  encara  o  sol,  tudo  preseruta, 
É  num  anceio  inmienso,  e  numa  eterna  lucta. 
Depois  de  ter  sondado  as  florestas  bravias, 
E  os  antros  onde  ecboa  a  voz  das  ventanias 
E  o  druida  recitava  as  forinulas  sagradas, 

Morre,  cheia  de  ideal,  nas  rochas  escarpadas . 

O  homem  é  maior  que  a  própria  a^-uia  altiva. 
E,  ainda  que  surgiu  também  na  rocha  viva. 

Sem  aujparo  nenhum,  selvagem,  desgnicado. 

Tendo,  em  vez  de  um  palácio,  utu  mattagal  fechado, 

E  foi  nu,  ou  envolto  em  mísera  roupagem. 

Que  os  mythos  concebeu  e  formou  a  linguagem, 

As  leis.  as  religiões,  o  governo,  a  familia. 

Em  horas  de  anmrgura  e  noites  de  vigilia. 

Não  descançou  jamais  na  encarniçada  lucta, 
Com  o  silex  na  mão,  atraz  da  fera  bruta. 
Errante,  hallueinado. . .  e,  chaldeu  ou  egypcio, 
Soldado  da  virtude,  idolatra  do  vicio,  .-i-v:.  o 

Cavou  a  terra  toda  e  rasgou  todo  o  mar.  -  ,.i|.;.  -  .-,.  * 

24"  ■■■■■ 


186  ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Poeta  na  velha  índia,  á  sombra  de  um  palmar, 
Entre  as  murmurações  santíssimas  do  Ganges  ; 
Na  Arábia  manejando  o  ferro  dos  alfanges  ; 
Em  líoma  gladiador ;  na  Grécia  heroe  e  artista, 

Aonde  lançou  elle  a  sua  larga  vista 

Que  não  colhesse  logo  as  palmas  da  vietoria 

E  desse  mais  um  deus  ao  pantheon  da  Historia  '' 

Ern  vão  arrojareis  o  hysope  contra  nós.  " 

E  fareis  retumbar  nos  |)ulpitos  a  voz 

Que  animncia  o  inferno  á  geração  descrente  ! 

Está  comvosco  era  guerra  a  mocidade  ardente  ; 
Ella  fem  dentro  da  alma  a  força  do  vulcão, 
Que  oulra  coisa  não  é  a  aujiusta  aspiração 
Do  Direito,  da  Paz,  da  Justiça  e  do  Amor  ! 

E  pode-se  encadear  o  vento  assolador, 
Derrubar  a  montanha  e  o  cedro  omnipotente.. 
Subir  pela  atmosphera  e  voar  livremente 
Como  a  ave  que  canta  e  o  raio  que  dá  luz, 
Pode-se  pór  um  dique  ás  ondas  do  oceano   . . 
Mas  nunca  podereis,  6  padres  de  .lesus. 
Reprimir  e  matar  o  pensamento  humano  ! 

O  pensamento  avança  a  passos  magestosos, 
Anhelante  seguindo  a  estrada  do  seu  rumo, 
Derrubando  da  peanha  os  santos  carunchosos, 
Que  se  esvaem  no  ar,  como  ligeiro  fumo: 
Parece  até  que  mostra  um  gosto  indefinido 
Em  arrancar  a  um  peito  estóico  e  destemido 
Uma  crença  de  avós  ou  um  sonho  feliz 
Como  aquelle  que  arranca  ao  solo  uma  raiz  I 
E  hoje,  que  elle  cantou  a  gloria  das  nações 
Nas  festas  immortaes  de  Pombal  e  Camões ! 
Hoje,  que  elle  sustenta  um  sceptro  tão  brilhante, 
A  que  se  curva  o  espaço  e  a  fera  soluçante. 
Como  ante  o  seu  rajah  os  servos  do  Indostão, 
Não  deve  consentir  nesta  contradicção  : 

Que  á  luz  do  Sol  supremo,  o  Jesuita  obscuro 
Vá  sentar-se  indolente  ás  portas  do  Futuro  I 

Porto,  8  de  maio  de  1882. 

J.  Leite  de  Vascoxcellos. 


O  nivel  moral  e  inlellectual  dos  povos  está  na  razão  inversa  da 
influencia  dos  padres.  Jaculliot. 

A  religião  calholica  é  contraria  a  todos  os  progressos  que  ten- 
tem realisar  as  sociedades  humanas.  L.  Jourdan. 


COSTUMES  DA  BEIRA-ALTA  187 


Êostuiiies  da  Speira-.  ÍIío 

Limitada  ao  N,  pelo  rio  Douro,  (jiie  a  separa  de  Tras-os-Mou- 
tes,  e  ao  S.  pelo  districto  de  Coimbra,  a  Beira-Alla  é  aljavessada 
por  três  grandes  linhas  de  montanhas  ;  a  primeira  composta  do 
Caramello,  a  segunda  das  Serras  de  Leomil,  Santa  Melena,  Monte- 
muro  e  Gralheira,  a  terceira  das  serras  de  Ferreira  de  Aves,  Cotta 
e  Manhouce.  N'essas  montanhas,  onde  á  vista  se  estendem  terre- 
nos e  terrenos  maninhos,  silenciosos,  vagos,  sobre  os  quaes, 
quando  o  sol  espreita  por  entre  as  nuvens,  estas  projectam  uma 
sombra  disforme,  movediça,  como  o  pensamento,  ou  quando  o  ne- 
voeiro os  envolve,  se  vêem  errar  os  vultos  phantasticos  dos  lobos ; 
ahi,  digo,  nas  margens  de  rios  tortuosos,  entre  enormes  massas 
graniticas  e  montões  de  neve,  muito  assumpto  ha  ()rira  o  ethno- 
grapho,  para  o  poeta  e  para  o  romancista.  Nellas  habitam  raças 
semi-barbaras,  que  ha  séculos  transmittem  de  geração  em  geração 
um  inexhaurivel  thesouro  de  tradições,  conservado  com  o  respeito 
por  uma  herança  de  avós. 

Descendo  da  serra  para  a  ribeira,  a  vida  apresenta  outra  ex- 
pansão, posto  que  presa  á  antiguidade  pelos  mesmos  laços  tradi- 
cionaes. 

Vizeu  e  Lamego  são  as  duas  povoações  principiies  da  província, 
a  primeira,  com  as  lendas  heróicas  de  Viriato :  a  segunda,  com  a 
reminiscência  dos  seus  régulos  árabes, — ambas  ainda  com  os  per- 
fumes da  Edade-Média. 

As  casarias  dos  conv-entos  estendidas  no  meio  dos  povoados,  os 
castellos  arruinados  no  alto  dos  outeiros,  os  pelourinhos  erguidos 
nos  largos  das  velhas  villas,  os  brazões  de  armas  nos  edifícios  no- 
bres, as  fontes  e  as  encruzdhadas  cheias  de  painéis  e  de  cruzes, 
os  templos  carcomidos  a  negrejarem  por  toda  a  parle,  as  construc- 
ções  antigas,  as  ruas  povoadas  de  nichos, — tudo  isto,  à  sombra 
venerável  dos  grossos  castanheiros,  e  dos  pinheiraes  verde-escu- 
ros  espalhados  nos  montes,  dá  a  uma  grande  parte  da  provinda 
o  aspecto  solemne  e  grave  que  nos  faz  olhar  para  ella  como  para 
o  passado. 

Nas  paginas  que  se  seguem  vou  descrever  alguns  dos  costumes 
da  Beira-Alta,  parte  lembrança  dos  tempos  infantis,  porque 

Esta  p  a  ditosa  pátria,  minha  amada. 

parle   recolhidos  no  estudo  geral  que  ando  fazendo  nas  tradições 
populares  portuguezas. 
f       Começarei  pelas  serras  da  freguezia  de  Almofalla,  hoje  no  con- 


i88  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

celho  de  Castro-Daire,  limilrnphe  do  de  Mondim.  As  casas  são  ge- 
ralmente térreas,  paredes  nuas,  e  telhados  de  colmo.  Occupam  ás 
vezes  uma  pequeníssima  área,  como  é  vulgar  nos  povos  antigos 
ou  selvagens,  dos  quaes  posso  citar  para  exemplo  a  Citania  no 
nosso  Minho,  *  e  os  Auslralios.  ^  N  um  pequeno  terreiro,  que  ou- 
tra cousa  não  são  muitas  destas  casas,  nascem  e  desenvolvem-se 
uma  poucas  de  gerações  robustas.  A  um  canto,  uma  lágea  a  ser- 
vir de  cosinha,  a  outro  a  cama  ou  camas,  e  a  outio  uma  caixa,  eis 
a  mobília  dos  mais  pobres.  Em  volta  da  casa  verdeja  frequente- 
mente uma  pequena  horta  plantada  de  couves. 

O  trajo  diário  dos  homens  compue-se  da  jaqueta  de  saragoça, 
calça  do  mesmo  tecido  ou  de  linho,  chapéu  de  panno  ou  de  palha, 
socos  ferrados  ou  sapatos  muito  grossos ;  usa-se  também  a  capu- 
cha, espécie  de  capa  formada  de  uma  simples  saragoça,  sem  forro 
nem  feitio  nenhiun,  e  no  cimo,  paia  cobrir  a  cabeça,  uma  espécie 
de  carapuça  feita  das  dobras  do  panno.  A  capucha  é  trazida  por 
mulheres  e  homens,  e  nestes  subslilue  a  maior  parte  das  vezes 
O  chapéu. 

No  domingo,  porém,  o  serrano  despe  a  jaqueta  e  veste  a  nisa' 
semelhante  a  uma  casaca,  de  botões  lisos  e  amarellos,  e  também 
de  saragoça.  Mesmo  fora  da  serra  tenho  já  visto  este  trajo  domin- 
gueiro. Antigamente  usavam-se  calções  cheios  de  botões  pela  perna 
abaixo  e  continuados  por  grandes  meias  escuras.  Hoje  raro  se  en- 
contra, e  a  única  lembrança  j)essoal  que  conservo  é  a  de  um  hmto 
que  nunca  os  largava.  Este  homem  de  virtude  linha  chorado  no 
ventre  materno,  porque  ninguém  é  hento  sem  tal  condição.  Todas 
aquellas  povoações  por  ali  em  volta,  inclusivamente  Lamego,  o 
chamavam  nas  doenças.  FJie  tinha  um  ar  grave,  uma  voz  pausada 
e  grossa  como  de  propheta, — só  gostava  muito  do  liquido  de  S. 
Martinho.  Quando  o  rogavam,  montava  na  sua  burrinha,  punha  os 
alforges  adeante,  lançava  um  santo  Christo  ao  pescoço,  o  lá  ia  cu- 
rar a  humanidade  enferma.  As  suas  receitas  não  se  afastavam  das 
de  todos  os  charlatães :  uns  chás  de  hervas  seccas,  umas  bebidas 
de  camizas  queimadas  dos  doentes,  umas  rezas,  e  eis  tudo.  A  jus- 
tiça por  varias  vezes  o  tinha  interrompido  nas  funcçõ^s  sagradas, 
mas  nem  o  olhar  austero  do  juiz,  nem  as  paredes  negras  do  cala- 
bouço, o  poderam  aíTastar  do  caminho  seguido.  Elle  chorara  no 
ventre  da  mãe  :  recebia  de  toda  a  parte  as  provas  evidentes  da 
sua  virtude ;  ao  longe  estendiam-lhe  os  braços ;  em  casa,  á  porta, 


1  Vid.  Obsenorues  á  Citania  do  si:  dr.  E.  Hiibner,  por  F.  Martins  Sarmento, 
Porto  1879.  pag.  d  3. 

2  Vid.   O  hoimm  antes  da  Historia,  por  Lul)boek,  Paris  1867  (trad.  fr.),  pasf. 
348. 


COSTUMES  DA  BEIRA-ALTA  189 

sempre  uma  multidão  de  doentes,  como  eu  presenceei :  que  mais 
queria  elle?  Não  costumava  receber  dinheiro,  recebia  fructos,  car- 
nes, etc. ;  para  isso  levava  sempre  os  alforges  em  cima  da  burri- 
nha. Outras  vezes  lambem,  os  parochos  das  freguezias  corriam-no, 
e  elle,  sempre  firme  na  sua  missão  predestinada,  o  mais  que  lhes 
dizia,  era  : — eu  cá  smi  bento,  e  rós  não! 

As  serranas  vestem  egnalmente  de  saragoça,  umas  saias  curtas, 
umas  polainas  de  lã,  e  ao  pescoço  uns  largos  gorgetes  brancos  e 
folhudos. 

A  riqueza  dos  serranos  consiste  nos  gados,  no  centeio,  nas  cas- 
tanhas e  no  carvão.  O  carvoeiro,  com  a  sua  cara  rugosa  a  negra, 
a  sua  voz  rude,  é  um  typo  legendário  e  entra  nos  contos  populares. 

Alguns  serranos  entregam  se  á  caça  e  á  pesca,  indo  longe  ven- 
der os  seus  productos. 

Nas  casas  ha  sempre  bom  provimento  de  carnes  de  porco,  mel 
e  queijo. 

Homens  e  mulheres  trabalham  no  campo.  Plinio  já  falia  do  tra- 
balho domestico  das  mulheres  luzitanas. 

Nada  ha  mais  triste  do  que  passar  uma  d'essas  serras  da  Beira- 
Alta,  na  occasião  em  que  n"um  lenteiro  solitário,  á  beira  de  um 
no  cavernoso,  em  dias  calmos  de  outomno,  ao  fim  da  tarde,  pas- 
tam os  bois  e  as  vaccas.  Reina  o  silencio  em  toda  a  redondeza, 
apenas  quebrado  peias  quedas  d'agua  e  pelo  som  metallico  dos 
grandes  chocalhos  pendentes  dos  pescoços  dos  aniniaes.  É  este 
som  metallico  que  põe  na  paisagem  uma  tristeza  profunda. 

Nos  maninhos  das  serras  pasta  o  gado  meudo. —carneiros,  ove- 
lhas, bodes  e  cabras.  É  um  paslorinho  que  o  guarda,  ou  uma  mu- 
lher, que.  em  algumas  partes  da  província,  tem  o  nome  àedofira. 
Parece  ainda  que  estou  a  ver  estas  mulheres,  de  capucha  pela  ca- 
beça, fiando  linho,  com  a  roca  á  cinta,  sentadas,  (juasi  immoveis, 
sobre  um  peniido,  ou  levantando-se  a  cada  passo  a  pegar  numa 
pedra,  e  atirar  uma  lapada  ^  ao  gado.  CMba  cá,  chiba  lá!  gritam 
ellas  de  vez  em  quando  às  cabras  mais  impacientes.  Quantas  ve- 
zes alguma  d"essas  serraninhas,  todas  embrulhadas  no  seu  giosso 
burel,  e  mal  tendo  um  bocadito  do  coração  aberto  ao  amor,  can- 
taria a  seguinte  cantiga  que,  com  outras  jà  ha  annos.  ouvi  nas 
montanhas  da  Beira-Alta? 

Ha  silvas  que  dão  amoras, 
Ha  oifras  que  as  num  dão  : 

Elle  ha  hornes  que  são  firmes.  - 
Ha  oitros  que  o  num  são. 


1  Atirai-  uma  pedrada  diz-se  vulgarmente  no  ineu  concelho  :  atirar  tima  In- 
pada. 

2  Xas  orações  impessoaes  emprega-se  popular  e  mesmo  familiarmente  o  pro- 
nome elle  :  elle  chove,  etc. 


190  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Nos  dias  de  trabalho  não  se  vè  viva  alma  em  ociosidade  na 
serra,  as  ruas  estão  solitárias, — e  passar  pelas  povoações  equivale 
a  passai'  por  um  deserto  :  sò  ao  domingo  é  que  no  adro  da  egreja, 
no  fim  da  missa,  ou  á  porta  da  venda  *  do  iogar,  ha  um  rendez- 
vous  das  pessoas  mais  gradas. 

Ninguém  se  deita  sem  ter  resado  em  coro,  com  o  resto  da  fa- 
milin.  o  rosário  de  Nossa  Senhora.  Em  pequeno  assisti  a  uma  des- 
las  rezas,  no  inverno,  á  lareira,  em  Almofalla.  Depois  da  reza 
contou  o  //  Jeròmino  ^  alguns  casos  ultimamente  succedidos  com 
os  lobos  na  visiuhança.  Os  lobos  ali  são  lemiveis,  com  especiali- 
dade em  occasião  de  grandes  nevadas  ;  atacam  as  casas, — e  os 
povos  vèem-se  obrigados  a  fazer-lhes  montarias.  Também,  aquelle 
que  mata  um  lobo.  tiralhe  a  pelle.  empalha-a.  e  vae  com  elle  por 
esses  mundos  a  pedir,  como  se  tivesse  commettido  um  acto  de 
enorme  heroicidade,  o  qual  precisasse  de  remuneração. 

Os  serranos  conservam  sempre  a  porta  aberta;  porta  fechada  é 
signal  de  ausência  da  família, — salvo  de  noute.  ^ 

Os  dias  de  lesta  são  verdadeiros  dias  de  gloria  nacional.  Os  pa- 
rochos  e.xercem  o  profundo  poder  sobre  a(]uella  pobre  gente  da 
serra.  Quando  os  influentes  políticos  querem  os  votos  dos  serra- 
nos, não  se  dirigem  a  estes,  mas  aos  parochos.  Os  parochos  man- 
dam os  parochianos,  que,  coitados!  lá  seguem  para  a  eleição,  ar- 
mados do  inseparável  vara-pao.  sem  saber  para  onde  nem  para 
que,  como  as  rezes  para  o  matadouro. 

È-me  impossivel  descrever  todas  as  festas  da  serra:  por  isso 
vou  apenas  fallar  das  fogaças  do  dia  da  Senhora  das  Candeias,  fes- 
tividade que  vi  em  Almofalla  em  1874,  quando  eu  tinha  apenas  os 
meus  15  para  10  annos. 

Chamam-se  fogaças  a  pães  de  ló  que,  em  proveito  do  cofre  da 
Senhora,  são  postos  em  leilão  e  arrematados  a  quem  mais  der.  Os 
pães  de  ló  são  levados  para  o  leilão  por  donzellas  competentemente 
vestidas  de  branco  e  enfeitadas  com  filas  de  cores.  O  leilão  reali- 
sa-se  no  fim  da  festa,  á  porta  do  templo.  O  arrematante  da  fogaça 


í  Em  vez  de  taverna  o  povo  diz  geralmente  a  venda,  e  em  vez  de  taverneiro 
diz  vendeiro. 

^  Na  Beira  Alta.  espei-ialmente  na  serra,  o  povo  chama  tios  ou  tias  ás  pessoas 
mais  velhas.  Jeròmino  é  a  forma  vulgar  de  Jerónymo.  Na  phrase.  diz-se  li  F.  em 
vez  de  tio  F. 

3  Of.  os  seguintes  \er80s  do  rouiance  D.  Sylvana  (versSo  do  Porto); 

Foi  conde  para  palácio, 
Pensando  no  que  faria  : 
Mandou  fechar  seu  palácio 
Cousa  que  nunca  fazia. 


COSTUMES  DA  BEIRA-ALTA  191 


lum  obrigação  de  comprar  no  armo  immediato  outro  pão.  O  lei- 
loeiro veste  uma  opa  vermelha,  e,  como  em  lodos  os  leilões  das 
festas  d'aldeia.  desempenha  a  sua  missão  entre  chalaças  e  garga- 
lhadas d'elle  e  dos  circumstantes.  Na  minha  terra,  os  homens  que 
faziam  o  leilão,  quando  tinham  de  dizer  que  um  objecto  fora  ar- 
rematado por  ^o  réis,  diziam  sempre  vinte  ciscos;  também  chama- 
vam a  cada  moeda  de  o  réis  um  bcihaú,  e  em  vez  de  dizerem,  por 
exemplo,  um  pataco,  diziam  oito  bâbáus. 

Quem  entrar  nos  templos  das  nossas  aldeias  beiras  ^  nota  quasi 
sempre  ao  lado  das  imagens,  sobre  os  altares,  uma  multidão  de 
pernas  e  braços  de  cera  ou  de  pau,  cabeças,  mãos,  etc,  que  os 
devotos,  seguindo  ainda  as  ideias  pagans,  offerecem  aos  santos  que 
os  livraram  de  certas  doenças. 

Nos  próprios  cruzeiros  que  ha  pelas  estradas,  ou  nos  nichos  que 
estão  nas  paredes,  longe  dos  povoados,  abundam  estas  offerendas. 

Em  Peva,  concelho  da  Moimenta,  e  nos  logares  visinhos,  quando 
adoece  algum  animal,  promettem,  para  elle  sarar,  conduzil-o  em 
romaria  á  volta  da  capella  de  Santo  Antão.  Depois,  não  só  cum- 
prem isto,  mas  levam  mesmo  carne,  etc,  de  presente  ao  santo,  o 
que  tudo  é  arrematado  em  leilão  para  o  cofre  da  capella. 

As  ideias  religiosas  são  em  verdade  um  grande  alimento  dos  cé- 
rebros das  nossas  populações. 

Na  Beira  Alta,  oito  dias  antes  do  dia  da  festa  deitam  morteiros, 
ás  trindades  da  manhã,  meio  dia  e  noite  ;  na  véspera  á  tarde  vem 
a  musica  (quando  ella  é  de  fora)  que  é  esperada  pelos  rapazes  e 
pelos  mordomos  a  pouca  distancia  da  terra,  dando-lhe  geralmente 
vinho  à  entrada  ;  á  noite  faz-se  a  illuminação. 

As  vésperas  das  festas,  na  occasião  do  fogo,  constituem  bellas 
horas  de  alegria.  O  local  é  ordinariamente  um  souto  desviado  da 
povoação.  Improvisam-se  logo  botequins  e  doçarias  em  barracas  de 
panno.  Bandos  de  rapazes,  armados  de  pão  de  chuço,  percorrem  o 
terreno,  tocando  e  cantando.  As  mulheres  installam-se  aos  mago- 
tes sobre  uma  parede  ou  n'uma  pedra  alta  para  disfructarem  os  fes- 
tejos. Heiumba  por  toda  a  parte  um  sussurro  confuso  de  vozes, 
como  de  um  mar  longínquo.  Durante  todo  este  tempo,  o  ceu  os- 
tenta-se  como  uma  grande  lamina  polida,  cheia  das  faiscações  dos 
astros,  e  a  lua  vae  arrastando  pelos  espaços  estellares  um  olhar 
curioso  e  suave,  que  se  infiltra  através  das  ramagens  dos  casta- 
nheiros e  faz  que  estas  desenhem  no  chão  os  caracteres  de  uma 
hieoroglyphica  extraordinária.  N'isto  sobe  o  primeiro  balão  a  que 
o  povo  chama  mánica  (machina).  Palmas,  gargalhadas  e  gritos, 


Quando  digo  hetrãs.  não  quero  dizer  que  isto  seja  exclusivo  d'ellas. 


192  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

acompanham  a  ascensão  aérea.  Todos  os  olhos  se  voltnm  acto  con- 
tinuo para  o  ar,  e  seguem  com  toda  a  circumspecção  as  menores 
oscillações,  os  menores  movimentos  do  humilde  aerostalo,  até  que, 
nas  regiões  elevadas  da  almosphera,  elle  se  confunde  com  o  bri- 
lho apparentemente  pequeno  das  estrellas.  Começa  então  a  mu- 
sica, a  foguetaria,  e,  para  coroa  de  tudo,  o  fogo  preso,  ou,  como 
o  povo  diz,  as  árbes  de  fogo.  Entretanto,  o  rapazio  espinoleia  de 
banda  para  banda  procuiando  cannas  de  fogueies,  —  e  o  espaço 
bonita  se  de  um  chuveiro  de  luz  meuda  e  caprichosa,  como  lagri- 
mas de  alguma  divindade  de  um  olympo  antigo.  Depois  que  ;ste 
movimento  cessa,  a  aldeia  cobre-se  outra  vez  da  sua  paz  e  mono- 
tonia habitual.  Nada  perturba  o  silencio  dos  campos,  excepto  al- 
gum sapo  chocalhando  ao  longe  sobre  as  lameiras  marginaes  dos 
rios,  ou  algum  cão  ladrando  nos  portaes  das  eiras  e  das  tapadas, 
para  afugentar  os  ratoneiros  nocturnos. 

No  dia  da  festa  quasi  todas  as  pessoas  vestem  um  trage  com- 
pleto ou  pelo  menos  um  objecto  novo,  e  assim  se  aggiomeram  nas 
janellas,  varandas,  peitoris,  palanques,  cômoros,  para  verem  des- 
filar a  procissão. 

Costuma-se  em  Mondim,  n"uma  festa  annual  que  se  ahi  fiz  a  Santa 
Barbara  {Santa  Bdrbura),  pendurar  nos  andores  os  primeiros  ca- 
chos de  uvas  do  anno,  que  ás  vezes  se  vão  buscar  ao  Douro.  Este 
costume  é  idêntico  ao  de  dispor  nos  altares,  em  volta  das  imagens, 
muitos  ramos  de  giesta  com  os  primeiros  casulos  de  seda.  Temos 
aijui  um  vestigio  evidente  das  primicias  pagans  ás  divindades. 

De  tarde,  depois  dos  andores  estarem  recolhidos,  de  se  terem 
extinguido  nos  âmbitos  do  templo  as  ultimas  nuvens  de  incenso, 
de  os  senhores  reverendos,  com  a  camisa  desabotoada  e  o  peito  ao 
léu,  terem  sorvido  o  ultimo  golle  e  limpado  a  testa  humedecida 
com  o  suor  do  sermão  e  da  missa  cantada  —  começa  a  festa  pro- 
fana do  povo,  o  descante. 

Duas  alas  parallelas  de  rapazes  e  raparigas  dançam  a  chula  ;  o 
rabequista  mais  afamado  dos  arredores  faz  gemer  a  rabeca,  acom- 
panhado da  viola,  dos  férrinhos,  do  zabumba,  das  castanhetas,  e 
das  modas  alegres  e  repenicadas  do  cantador. 

Especialisando  o  assumpto,  fallemos  da  romagem  de  Santa  Com- 
binha  que  se  festeja  no  logar  de  Santa-Comba,  em  dia  do  Espiri- 
to-Santo*.  Santa  Combinha  advoga  o  gado  lanígero,  e  por  isso  lhe 


1  Combinha,  deminutivo  de  Comba  deriva  do  lat.  Columba  (cf.  fr.  colombe)  e 
está  ao  lado  de  pomba  e  de  palomba  e  palombinha  (ef.  castelli.  paloma)  num  ro- 
mance popular  transmontano  : 


COSTUxMES  DA  BEIRA-ALTA  193 


leva  o  povo  um  guedêlho  de  lã,  cnjo  valor  reverte,  segundo  me  di- 
zem, em  favor  do  templo  e  do  padre.  Convém  notar  de  passagem 
as  coincidências  da  festa  de  Santa  Combinha  com  a  do  Espirito-Santo 
(uma  pomba;.  Eis  aqui  algumas  cantigas  que  se  cantam  por  occa- 
sião  da  romaria,  e  que  eu  devo  ao  obsequio  de  um  meu  condiscí- 
pulo beirão : 

—  Senhora  Santa  Combinha,  Senliora  S.  Combinha. 
Quem  vos  trouxe  a  Santa-Comba  ?  ,  A  vossa  capella  cae  . 

—  As  meninas  de  Mortágua  Ajuntae  as  moças  todas. 
Numa  barquinha  redonda.  I  Tirae-lhe  a  telha,  tirap. 

Senhora  Santa  Combinha, 
Que  la  mora  no  altinho, 
Por  maior  que  seja  a  calma, 
Sempre  lá  corre  ventinho. 

Uma  das  romarias  mais  notáveis  da  Beira  é  a  da  Senhora-da- 
Lapa-de-Longe,  á  qual  concorre  gente  de  terras  muito  afastadas. 
Vão  os  parochos  das  respectivas  freguezias  com  as  cruzes  e  os  pa- 
rochianos,  pelo  menos  uma  pessoa  de  cada  casa.  Ainda  me  lem- 
bro muito  bem  de  ver  passar  na  minha  aldeia  batalhões  de  ho- 
mens e  mulheres,  pressurosos,  anhelantes,  com  uma  fé  viva  em  ir 
visitar  o  penedo  debaixo  do  qual,  sc^ /.ndo  a  lenda,  appareceu  a 
imagem  da  Senhora.  Na  volta,  porém,  é  que  estes  adjunctos  tem 
mais  graça.  Quando  entram  nas  povoações  que  lhes  ficam  no  ca- 
minho, vem  sempre  a  dançar.  Os  romeiros,  de  calça  clara,  jaqueta 
ao  hombro,  lenço  branco  em  volta  do  pescoço  para  enxugar  o  suor, 
um  ramo  artificial,  e  um  papal,  chamado  registro,  com  a  imagem, 
pregado  no  chapéu,  fazem  tremer  as  castanhetas  com  as  mãos  no 
ar;  as  romeirinhas,  com  as  suas  veneras,  pregadas  no  peito,  os 
dedos  carregados  de  anneis  de  prata  e  de  vidro  vermelho,  arfando- 
Ihes  os  seios  como  duas  ondas,  e  a  face  corada  como  uma  rosa, 
ensaiam  as  gargantas  sonoras  em  cantigas  no  gosto  d'esta  : 

Nossa  Senhora  da  Lapa, 
Da  Lapa  e  da  Lapinha  : 
Chamae-me  vós  afi.hada, 
Que  eu  vos  chamarei  madrinha. 

A  capital  do  meu  concelho,  Mondim  da  Beira,  tem  nas  choro- 
graphias  antigas  (e  é  assim  conhecida  ao  longe)  o  nome  de  Mon- 


Ó  palomba,  ó  palombinha. 
Mal  soubeste  apalombar : 
Hoje  te  cortam  a  lenha, 
Amanhã  te  vão  queimar,  etr. 

Palomba  e  pomba  são  formas  de  palumbo. 

25 


194 


ENOYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 


dim  das  meias,  porque  uma  das  industrias  mais  notáveis  das  mu- 
lheres de  lá  é  o  fabrico  das  meias.  Quando  passanj  os  romeiros 
para  a  Lapa,  as  velhas  da  terra  apresentam  um  estendal  de  meias 
e  carpins  ou  cothurnos,  que  aquelles  compram.  Resulta  sempre  en- 
tão um  bello  negocio  para  os  mondinenses,  que  gastam  o  tempo 
esca r meando  ^ ,  cardando  e  fiando  a  lã,  matéria  prima  das  meias. 
Raro  se  encontrará  em  Mondim  uma  mulher  do  povo  que  não  es- 
teja fazendo  na  meia;  mas  é  nos  serões  que  essa  industria  recebe 
um  verdadeiro  desenvolvimento.  Quem  quizer  conhecer  a  littera- 
tura  popular,  frequente  os  serões,  porque  ahi  as  historias,  canti- 
gas, romances,  adivinhas  constituem  o  encanto  das  noites,  líiis, 
para  amostra,  uma  oração  ouvida  n'um  serão  (Taboaçoj: 


Estando  eu  á  minha  porta 
Com  três  tioras  de  serão, 
Vi  passar  Nossa  Senhora 
Cum  cordão  d'oiro  na  mão : 
Eu  pedi-ie  um  bocadinho. 
ENa  dixe-me  que  não; 
Eu  tornei-1'o  a  pedir, 
Ella  deu- me  o  seu  cordão  ; 


Ó  beato  SanfAntónho, 
Binde  bêr  o  meu  cordão, 
Que  m'o  deu  Nossa  Senhora 
Domingo  da  Surreição ; 
Dá-me  ires  voltas  á  cinta. 
Oitras  três  ó  coração  ; 
Dae-me  mais  um  liocadinlio, 
P'ra  cliigar  do  ceu  ao  chão. ' 


As  mulheres  constituem  o  serão,  formando  uma  roda  sentadas, 
e  tendo  no  meio,  ou  pendurada  do  tecto,  se  é  n'uma  loja  (o  mais 
vulgar),  ou  n'um  velador,  se  é  n'uma  sala,  a  candeia,  para  cujo  li- 
quido cada  mulher  concorre  com  uma  pequena  quantia.  O  trabalho 
dos  serões  é  muitas  vezes  interrompido  por  alguma  tocata  de  ra- 
pazes divertidos. 

Seja-me  permittido  este  parenthesis  a  respeito  dos  serões  e  con- 
tinuarei com  as  festas. 

A  procissão  do  Corpo  de  Deus  era  antigamente  de  um  apparato 
extraordinário,  e  parece  até  que  a  apotheose  da  industria  medie- 
val. Em  Briteande,extincta  villa  do  concelho  de  Lamego,  conserva- 
va-se  ha  annos,  e  não  sei  se  ainda  hoje,  a  tradição  de  que  n'ou- 
tros  tempos,  na  procissão  do  Corpo  de  Deus  que  lá  se  fazia,  iam 
umas  mulheres  da  próxima  povoação  de  Perafila,  chamadas /Jé//e«- 
ras,  a  dançar  na  frente,  tocando  pandeiretas.  Este  facLo  conside- 
.rava-se  como  desprezo,  e  o  tal  emprego  das  pélleiras  dizem  que 
pertencia  só  a  uma  certa  familia. 


1  Carmeando.  O  povo  accreseenta  s  ou  es,  e  assim  diz  mais  esfallecer,  esconju- 
rar, etc. 

1  No  verso  14,  escrevi  ó  em  vez  de  ao  porque  muitas  pessoas  illustradas  dizem 
au  =  ao,  em  quanto  que  a  pronuncia  popular  ordinária  é  a  primeira.  Tanto  nos 
antigos  escriptores,  como  em  gallego,  se  encontra  ò  ^=  ao  (corresponde  a  à  =  na). 


A  ESPADA  E  O  SYLLABUS  195 


Já  que  fallei  em  Briteande  convém  referir-me  aqui  â  grande  len- 
denci-)  que  o  povo  tem  para  explicar  tudo.  A  etymologia  popular 
explica  assim  a  origem  de  Brileande.  ICra  uma  vez  um  rei  que 
passou  por  aquelle  sitio  na  occasião  em  que  um  lavrador  andava  a 
varejar  uma  nogueira.  O  pobre  homem  offereceu  nozes  a  um  dos 
da  comitiva  real,  e  como  este  acceilasse.  o  rei  disse-lhe  :  —  «(^mde, 
brite  e  anup.n  D'aqui  o  nome  da  povoação. — .\gora  me  occorre  ou- 
tra etymologia  popular  da  povoação  de  Crescido,  ao  pé  de  Casiro 
Daire.  Um  rei  que  visitou  um  certo  fidalgo,  exclamou  ao  reparar 
no  desenvolvimento  physico  de  um  filho  do  fidalgo:  —  «.\b!  está 
crescido  !t> — Existem  muitas  lendas  semelhantes  em  todo  o  paiz,  e 
uma  cousa  curiosa  é  que  nellas  entram  frequentemente  reis  e  al- 
tos personagens. 

A  propósito  de  explicações,  vem  de  geito  esta  conhecida  phrase 
noites  de  Lamego^  que  se  interpreta  assim :  Um  viajante  hospe- 
dou se  uma  noite  em  Lamego.  O  dono  da  casa  deu-lhe  um  quarto 
muito  escuro,  onde  havia  um  armário  com  queijos,  e  pela  manhã 
esqueceií-se  de  ir  abrir  a  porta.  O  viajante  acordou,  e  cuidando 
que  o  armário  era  uma  janella,  abriu-o,  e  como  não  visse  luz  e 
elle  lhe  cheirasse  ao  queijo  que  lá  estava,  disse:  "É  muito  cedo, 
não  se  vé  nada,  e  só  ainda  agora  as  mulheres  vão  a  vender  o  leite 
pela  rua."  E  tornou-se  a  deitar,  dormindo  não  sei  se  um  dia,  se 
mais.  Quando  lhe  abriram  a  p^rta,  ficou  tão  admirado  por  as  noi- 
tes de  Lamego  serem  tão  compridas. 

(Segue.)  J.  Leite  de  Vasconcellos. 


.4   esiiatla   e    o   svHttuus 

Etilre  a  espada,  que  representa  a  brutalidade,  e  o  syllabus,  que 
representa  a  treva,  ha  essa  altracção  rasteira,  canibal,  do  que  é 
criminoso.  Servem-se  na  capula  hedionda,  confraternisam  na  cum- 
plicidade suja. 

Os  dois  algozes  do  espirito  moderno  são  elles ;  elles  que  o  as- 
sassinam, que  o  vampirisam,  que  o  esmagam.  O  soldado  e  o  pa- 
dre;  Allemanha  e  Roma;  Papa  e  César.  Um  faz  emmudecer;  o 
outro  cega  ;  ambos  altrophiam.  Nossos  eternos  e  insaciáveis  inimi- 
gos, inimigos  de  todo  o  progresso  e  de  toda  a  ordem  consciente. 
Contra  os  seus  accintosos  e  últimos  baluartes  invistamos  com  te- 
nacidade, com  disciplina.  A  espada,  espedacemol-a  debaixo  do  ma- 
lho da  industria,  o  syllabus  aff"oguemol-o  sob  os  raios  vividos  da 
Sciencia.  Ataquemol-os  em  todos  os  campos,  usemos  das  grandes 


iOe  ENCVCLOPKDIA  REPUBLICANA 


armas  que  trazem  em  seus  lampejos  a  redempção  e  a  paz.  Em 
cada  altura  ganha,  levantemos  uma  Exposição,  abramos  um  Con- 
gresso e  casemos  estes  dois  focos  sob  a  patronagem  santa  de  um 
grande  vulto  humano.  Tenhamos  um  Centenário. 

Atacarmos  porém  a  esp;ida  e  o  syilabns  nesse  vago  sentimen- 
talismo doutrinário  é  derrubarmos  o  grande  monolilho  a  balas  de 
espuma.  Precisamos  de  processos  rápidos  sem  deixarem  de  ser 
racionaes,  lógicos,  scientificos.  Extirpemos  o  mal  onde  elle  se  lo- 
calisa.  Sabemos  perfeitamente  que  ha  uma  forma  politica  nociva, 
que  derruida  levará  em  seu  naufrágio  as  torpezas  onde  assenta. 
Essa  forma  politica  é  a  realeza  ;  é  seu  re[)resenlanle,  o  rei.  Diri- 
jamos portanto  nossas  energias,  directamente  contra  o  inimigo  que 
se  apoia  na  espada  e  que  se  santifica  no  syllabus.  Cahiàmos  sobre 
a  realeza,  eliminemol-a.  Morta  ella,  a  espada  não  comprehenderá 
o  syllabus,  quebrarão  esse  laço  (|ue  os  fortifica,  e  que  nos  op- 
prime.  Sem  o  auxilio  mutuo  da  coroa  elles  se  pulverisarão  ao  pri- 
meiro embate.  Faltar-lhes-ha  o  ponto  de  apoio. 

O  soldado  será  operário,  industrial ;  o  padre  será  professor,  sá- 
bio. Ambos  serão  cidadãos  ;  de  parasitas,  de  sangnesugas  trans- 
formar-se-hão  em  actividades,  em  núcleos  prodnclores.  Não  será 
um,  o  acido  dissolvente  na  moral  social;  não  será  o  outro,  o  prin- 
cipio negativo  na  moral  intellectual.  Teiemos — trabalho,  com  o  en- 
grandecimento da  industria;  progresso,  com  o  levantamento  da 
sciencia ;  ordem,  com  a  sagração  dos  centeriarios,  isto  é,  da  paz 
realisada  pela  solidariedade.  Humanisemo-nos  para  einanciparmo- 
nos. 

Por  isso,  lutando  frente  a  frente,  tenazes  e  firmes  contra  a  es- 
pada e  contra  o  syllabus.  para  a  completa  solução  da  equação  mo- 
derna, comecemos  por  eliminar-lhe  esíie  termo —a  realeza.  Elimi- 
nemol-a já,  hoje.  que  amanhã  succumbirão  o  hioldado  e  o  padre. 
A  espada  e  o  syllabus  deixarão  de  ser  uma  aííronta,  para  entra- 
rem nos  apontamentos  pingues  dos  eruditos  de  gabinete. 

Hugo  Leal. 


I 


BiogFãphias 


iMíinoel  Ft5i'ii«ii<ie>i  Thómaz 


Amanheceu  o  dia  24.  Cabreira  mandou  formar  a  artilheria  nu 
campo  de  Santo  Ovidio,  e  depois  de  ouvir  missa  annunciuu  á  ci- 
dade a  revolução  por  uma  salva  de  21  tiros.   .\'  mesma  hora  Se- 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  197 


pulveda  e  Gil  chamavam  ás  armas  os  regimentos  6  e  18  para  irem 
reunir  se  a  Cabreira.  Infariteria  C  recuson-se  por  algum  tempo  a 
sair  sem  ver  á  sua  frente  o  coronel  Grnnt,  fjui;  era  muito  estimado, 
mas  resolveu-se  por  íim  a  acompanhar  o  tenente-coronel  Gil.  Che- 
gando a  tropa  ao  campo  de  Santo  Ovidio,  os  commandantes  fc  mia- 
ram um  conselho  de  guerra,  dirigiram  uma  proclamação  aos  sol- 
dados e  ofliciaram  ao  juiz  de  fora  do  cível  para  convocar  sem  perda 
de  tempo  a  camará  municipal. 

Ás  8  horas  da  manhã  renniram-se  nos  paços  do  concelho  os  qua- 
tro vereadores,  o  procurador  do  concelho,  o  escrivão,  o  syndico, 
o  juiz  e  o  procurador  do  povo  e  as  auctoridades  ecclesiasticas,  ci- 
vis e  militares,  tendo  á  sua  frente  o  general  Canavarro  e  o  bispo 
do  Porto.  Os  membros  do  conselho  militar,  expondo  a  situação  cri- 
tica em  que  se  achava  o  paiz,  sujeito  a  qualquer  movimento  anar- 
cbico,  n)oslraram  a  necessidade  de  salvar  a  nação  e  propozeram 
que  se  formasse  uma  junta  provisória,  «depositaria  do  supremo 
governo  do  reino,»  a  qual  governando  em  nome  do  senhor  rei  e  man- 
tendo a  sagrada  religião  calholica  romana,  convocasse  cortes  repre- 
sentativas para  «nellas  formar  uma  constituição  adequada  á  nossa 
santa  religião,  aos  nossos  bons  usos  e  ás  leis  que  na  actualidade 
das  cousas  nos  convém.»  Os  bons  revolucionários  receavam  passar 
por  inimigos  do  rei  e  da  religião  e  apresentavam-se  como  salvado- 
res da  pátria  que  se  despenhava  no  abysmo  da  anarchia!  .Mantendo 
o  senhor  rei  e  a  santa  religião,  tudo  o  mais  se  podia  reformar,  tudo 
era  susceptível  de  ser  modificado  pela  constituição. 

Os  membros  que  deviam  formar  a  junta  eram:  António  da  Sil- 
veira Pinto,  presidente.  Deão  Luiz  Pedro  de  Andrade  Brederode, 
Pedro  Leite  Ferreira  de  Mello,  P^rancisco  de  Sousa  Cirne  de  .Madi  - 
reira.  Manoel  Fernandes  Thomaz,  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz.  João 
da  Cunha  Sotto-maior,  Xavier  dAranjo,  Castro  e  Abreu.  Hoque  Ri- 
beiro d"Abranches  Castello  Branco,  José  Joaquim  de  Moura,  José 
Manoel  de  Sousa  Ferreira  de  Castro  e  Francisco  José  de  Barros 
Lima.  Secretários  com  voto:  Ferreira  Borges,  Silva  Carvalho  e 
Francisco  Gomes  da  Silva.  A  camará  oíTicioii  logo  a  todos  estes  in- 
divíduos para  que  reunissem  e  formassem  a  junta.  Fntretanto  na 
praça  nova  (hoje  de  D.  Pedro),  era  enorme  a  concorrência  de  povo, 
que  soltava  enlhusiastícos  vivas  e  acciamava  a  revolução. 

Apenas  os  cavalheiros  mencionados  receberam  as  cart?s  de  con- 
vite, reuniram-se  numa  das  salas  baixas  dos  paços  do  concelho  e 
constituíram  a  junta  provisória  do  governo,  dando  começo  aos  seus 
trabalhos.  Publicaram  o  manifesto  á  nação,  remetteram  circulares 
às  auctoridades  civis  e  militares  das  províncias,  participando  o  De- 
corrido e  convidando-as  a  prestarem  obediência  ao  novo  governo, 
escreveram  á  regência  notificando-lhe  a  causa  e  os  fins  da  re- 
volução :  decretaram  a  creação  de  um  thesouro  publico,  no  Porto, 


EiNCYCLOPEDIA  KEPUBLICANA 


para   receber  a  receita   do  estado  e  satisfazer  a  todas  as  despe- 
zas.  ele. 

Os  governadores  do  reino,  ao  receberem  a  noticia  no  dia  29, 
publicaram  uma  proclamação,  em  que  protestavam  contra  os  actos 
da  junta,  e  qualiiicavam  a  revolução  como  o  resultado  da  conspira- 
r.7".  ilcal/ins  mal  intencionados  epreversos.  Três  dias  depois,  diri- 
giram ao  paiz  novo  manifesto  em  que  annunciavam  que  «usando 
das  faculdades  exlraordmnrias  que  lh.es  eram  concedidas  por  suas 
instrucções  em  casos  urgentes,»  iam  convocar  as  cortes.  A  regên- 
cia, vendo  a  sua  causa  perdida,  começava  assim  a  ceder  o  terreno 
aos  revolucionários,  e  em  breve  tentou  entrar  em  negociações:  pri- 
meiro participou  à  junta  qne  mandara  proceder  á  eleição  de  procu- 
radores a  cortes  e  qne  a  tornava  responsável  de  tudo  o  que  podesse 
succeder;  e  em  seguida  mandou  o  general  Povoas  a  Coimbra  para 
contraclar  com  ella,  que  vinha  já  em  direcção  de  Lisboa.  A  junta, 
porém,  não  quiz  recebel-o  e  ordenou-lhe  que  se  retirasse  da  cidade. 

Na  manhã  do  dia  15  de  setembro,  infanteria  16  saiu  do  quartel 
e  dirigindo-se  ao  Rocio  proclamou  a  revolução,  adlierindo  logo  a 
este  movimento  todos  os  corpos  da  capital.  Juntou-se  gente  e  na 
presença  do  juiz  do  povo  e  do  seu  escrivão  acciamou-se  um  go- 
verno provisório. 

Não  entraremos  em  promenores  sobre  a  vinda  da  junta  provisó- 
ria, da  cidade  do  Porto  para  Lisboa,  e  das  dissenções  que  por  duas 
vezes  se  levantaram  por  causa  de  António  da  Silveira;  nem  nos  oc- 
cuparemos  aqui  da  rivalidade  que  se  estabeleceu  entre  o  governo 
revolucionário  da  capital  c  o  que  vinha  do  Porto,  rivalidade  que 
terminou  pela  juncção  d"ambos  n"uma  só  junta  suprema,  dividida 
em  duas  secções. 

Em  5  de  outubro  entraram  em  Lisboa  as  tropas  que  haviam  pro- 
clamado a  revolução  na  segunda  cidade  do  reino  e  foram  recebidas 
com  geraes  demonstrações  de  alegria.  Ajunta  participou  immedia- 
tamente  a  D.  João  VI  os  acontecimentos  últimos  e  pediu-lhe  para 
regressar  à  Eiuopa.  Poucos  dias  depois  voltava  Beresford  do  fiio 
de  Janeiro,  mas  não  lhe  foi  permittido  desembarcar,  nem  ler  qual- 
quer communicação  para  terra,  apesar  de  trazer  poderes  illimita- 
dos  do  monarcha:  e  foi  obrigado  a  sair  para  Inglaterra,  porque  o 
povo  amotinado  queria  lançar  fogo  ao  palácio,  onde  suppunha  es- 
tar elle  escondido. 

A  junta  provisória  proseguia  entretanto  nos  seus  trabalhos  e  dis- 
cutia a  forma  das  eleições,  ás  vezes  no  meio  do  maior  tumulto,  re- 
solvendo por  fim.  em  31  de  outubro,  que  o  suíTragio  fosse  indire- 
cto, escolhendo  o  povo  os  eleitores  e  estes  os  deputados  em  nu- 
mero de  cem,  e  quarenta  substitutos.  As  primeiras  eleições  fixa- 
ram-se  para  o  dia  26  de  novembro,  e  as  dos  deputados  para  3  de 
dezembro. 


AS  ARVORES  E  AS  ABELHAS  f99 

Os  ânimos,  porém,  não  estavam  socegados  e  eram  muitos  os  des- 
contentes, principalmente  no  exercito.  António  da  Silveira  aleiava 
o  fogo.  No  dia  11  de  novembro  houve  uma  revolta  militar,  às  ho- 
ras em  que  se  deviam  reunir  os  membros  da  junta;  a  tropa  accla- 
mou  a  constiluição  de  Cadix  como  base  para  a  constituição  portu- 
gueza,  elegeu  seu  commandante  Gaspar  Teixeira  e  impoz  ao  go- 
verno quatro  novos  membros.  A  junta  curvou-se  a  todas  as  impo- 
sições, mas  dois  dias  depois  deram  a  sua  demissão  Fernandes  Tho- 
maz,  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz,  Ferreira  de  Moura  e  Braamcamp 
de  Sobral.  Fernandes  Thomaz  tivera  conhecimento  do  que  se  tra- 
mava, podia  prender  os  chefes,  mas  não  seria  apressar  a  revolu- 
ção? Preferiu  esperar  a  reunião  do  congresso;  mas  os  adversários 
anticiparam-se.  A  sabida  d'aquelles  quatro  homens  dignos,  e  prin- 
cipalmente a  de  Fernandes  Thomaz,  muito  estimado  do  povo,  pro- 
duziu impressão  e  desgosto  em  toda  a  cidade;  ás  6  horas  da  ma- 
nhã do  (Jia  17  começou  a  juntar-se  a  mullidão  em  frenle  da  casa 
do  grande  patriota,  dando-lhe  vivas  e  pedindo-lhe  para  voltar  para 
o  governo;  os  mais  insoffridos  invadiram  a  escada.  Fernandes  Tho- 
maz e  Borges  Carneiro,  que  estava  em  sua  companhia,  sahiram, 
levados  quasi  ao  colo,  e  melteram-se  n'uma  carruagem;  era  enor- 
me o  enthusiasmo ;  muitos  archotes  illuminavam  esta  scena  e  os 
vivas  atroavam  os  ares  ;  quizeram  tirar  os  tirantes  da  sege.  mas 
Borges  Carneiro  não  o  consentiu,  teve  de  fallar  á  turba,  teve  de 
lhe  pedir  que  o  não  fizesse  porque  Fernandes  Thomaz  era  muito 
doente  e  tantos  obséquios  populares  mortiíicavam-o.  Foram  em 
marcha  triumphal  desde  o  Calhariz  até  ao  Rocio.  O  ajuntamento 
aqui  era  numeroso ;  os  vivas  eram  incessantes  e  vinham  de  iodos 
os  lados.  Subiram  para  o  palácio  do  governo  nos  braços  do  povo 
e  tiveram  de  sair  à  varanda  para  agradecerem  tão  imponente  ma- 
nifestação. Todos  os  membros  demillidos  tornaram  a  occupar  os 
seus  logares,  Gaspar  Teixeira  recebeu  a  demissão  e  o  presidente 
da  junta,  António  da  Silveira,  teve  ordem  para  sair  em  24  horas 
para  a  sua  quinta  de  Canellas. 

(Segue.)  Teixeira  Bastos. 


As  arvores  p  as  anêlíicts 

(Conto  oriental) 

Um  grande  príncipe,  que  via  afundar-se  o  seu  reino  sem  atinar 
com  a  causa,  viajava  pelo  mundo  para  estudar  as  diversas  formas 
de  governo. 

Visitando  todos  os  estados  e  interrogando  sobre  as  suas  insti- 


HbO  ENCVCLOPEDIA  REPUBLICANA 


luições,  que  em  tudo  achava  similhanles  ás  do  seu  reino,  disse  com 
certa  magoa: 

—  Não  valia  a  pena  para  isto  deixar  o  meu  sceptro  nas  mãos 
dexlranhos. 

Ouvia  sempre  os  mesmos  queixumes  dos  povos  opprimidos,  af- 
ílictos,  as  mesmas  invectivas  contra  os  grande.i  e  poderosos,  con- 
tra os  reis  e  imperadores. 

Elle,  que  tinha  uma  grande  alma  e  ouvia  constantemente  os  ge- 
midos do  seu  povo,  desejava  do  intimo  tornal-o  feliz,  livrando-o 
duma  oppressão  de  séculos  e  modificando  as  barbaras  leis  do  seu 
paiz. 

Não  encontrara  em  parle  alguma  um  bom  exemplo ;  nenhuma 
instituição  lhe  agradara  para  a  imitar. 

Já  regressando  á  pátria,  muito  desconsolado  e  disposto  a  não 
mais  abandonar  o  throno,  teve  de  atravessar  um  deserto  immenso. 

Apeando-se  para  descançar  á  sombra  d  uma  arvore  frondosa,  ou- 
viu uma  voz  dizer-lhe: 

—  Caminha  e  segue-me. 

Uma  cousa  informe  bolia  no  ar,  e  elle  seguiu-a. 

—  Fica-te  ahi  e  medita. 

Haviam  chegado  a  um  sitio  onde  se  ouvia  o  rumor  dos  vivos. 
Aqui,  um  jardim  encantador,  uma  vegetação  lica,  que  lhe  poz  a 
alma  em  adoração  panlheista  ■.  acolá,  umas  ruinas  fúnebres,  umas 
arvores  mirradas,  tristes,  próximo  a  definharem-se.  Dum  lado  a 
vida,  com  todas  as  suas  palpitações;  do  outro,  a  morte  com  a  sua 
fealdade. 

—  Ah  !  como  é  bella  a  natureza  quando  a  vida  lhe  sorri !  —  ex- 
clamara o  príncipe,  sentindo  a  alegria  e  a  frescura  das  plantas. 

—  Mira  aquellas  arvores  e  aquellas  colmêas  —  tornara  a  cousa 
informe. 

E  desappareceu. 

O  principe  mterrogou  doeste  modo  as  arvores  que  se  definhavam: 

—  Qual  a  razão  porque  sendo  vós  visinhas  fronteiras  daquelle 
jardim  encantador,  pareceis  morrer,  ao  passo  que  a  vegetação 
d'elle  parece  querer  subir  ao  céo  n'uma  vitalidade  surprehendente? 

As  arvores  responderam : 

—  De  nós,  que  temos  por  senhor  um  descendente  do  propheta, 
ninguém  faz  caso,  permittindo-se  que  estas  malditas  plantas  para- 
sitas que  se  enroscam  no  nosso  corpo  e  nos  nossos  braços,  nos  su- 
guem pouco  a  pouco  o  nosso  sangue.  Tcdos  os  organismos  que  ali- 
mentam parasitas,  morrem.  Somos  como  as  nações  que  os  conser- 
vam. 

O  príncipe  abaixou  a  cabeça  e  poz-se  a  scismar. 
Voltando-se  para  as  arvores  frondentes  do  jardim,  fez  egual  per- 
gunta. 


TRADIÇÕES  POPULARES  DO  ALGARVE  tOl 


Elias  responderam  em  voz  fresca,  saudável: 

—  Nós  temos  por  dono  um  homem  laborioso  que  nos  visita  lo- 
dos os  dias,  que  nos  rega,  enchendo  as  nossas  raizes  de  frescura, 
não  consentindo  que  qualquer  parasita  galgue  o  nosso  corpo  e  su- 
gue a  nossa  seve.  Se  somos  viçosas  e  admiradas  pelos  que  passam, 
devemos  essa  felicidade  ao  nosso  bom  senhor,  que  nos  trata  a  custo 
do  suor  do  seu  rosto.  Podemos  assimilhar-nos  ás  nações  florescen- 
tes por  uma  sabia  administração,  livres  dos  parasitas  sociaes. 

O  príncipe  abaixou  outra  vez  a  cabeça  e  poz-se  a  scismar. 
N'este  tempo  passou  ura  enxame  de  abelhas,  zumbindo  alegre- 
mente : 

—  Matemos,  matemos  os  mandriões,— disseram,  correndo  para 
o  cortiço. 

O  príncipe  deteve-as. 

—  Olá !  —  disse  elle. 

—  Que  queres  tu?  —  responderam  ellas  todas  a  uma  voz. 

—  Quero  a  explicação  d''essa  grande  matança  que  ides  fazer. 

—  E'  fácil.  Nós  trabalhámos  como  umas  negras,  ao  passo  que 
nas  nossas  colmèas  vive  na  ociosidade  uma  sucia  de  individualida- 
des. Matamol-os  porque  são  inúteis,  porque  com  elles  não  pode- 
mos prosperar. 

O  príncipe  ficou  ainda  pensativo. 

Caminhando  sempre,  passou  por  dois  pequenos  estados  que  se 
miravam. 

Um  mostrava-se  ílorescenle;  não  tinha  exercito  permanente,  nem 
rei  nem  sacerdotes;  era  uma  republica.  O  outro  jazia  na  decadên- 
cia, arruinado  por  um  poder  despótico  rodeado  de  aulicos  e  vivendo 
com  todo  o  esplendor  asiático.  O  povo  gemia,  emqnanto  os  gran- 
des parasitas  sociaes  so  regalavam  na  sua  vitalidade:  era  um  reino. 

Então  o  príncipe,  recordando-se  das  arvores  e  das  abelhas,  achou 
em  si  mesmo  a  causa  dos  grandes  solfrimenios  do  seu  povo,  tendo 
de  calar  no  intimo  d'alma  esta  grande  lição  que  lhe  não  servia. 

Reis  Dâmaso. 


íradiçães  iioiiuíares  ílo  ^l^ujarve 


BOiMANCES 


A  MORENA 


—  Abre  a  porta,  morena, 
Abre  a  porta,  iiiinh'alma.    ■ 

—  Como  te'heide  abrir  a  porta 
Men  ffpi  João  da  miiilVnliná, 


átí 


à(ji>  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Faro. 


Se  tenho  meus  filhos  ou  peito 
E  meu  marido  á  ilharga? 
Levanta-te,  marido  meu, 
Pega  nos  cães,  vae  á  caça: 
Não  ha  melhor  caçada 
Que  a  da  madruj^ada. 
Seu  marido  que  saia 
Morena  que  se  apromplava 
Com  sua  meia  de  seda 
Que  na  peina  lh'estalava. 
Com  seu  sapato  de  setim 
Que  no  chão  não  lho  tocava. 
Com  seu  vestido  de  seda 
Que  a  todos  invejava, 
Com  sua  capa  de  moirè 
Que  o  vento  levava. 
Chegando  ao  convento 
Por  frei  .loão  perguntava. 
Frei  João,  que  isto  ouviu, 
Se  havia  de  correr,  saltava  ; 
Pegou-lhe  na  sua  mão 
Levou-a  p'ra  sua  cella, 
Dando-lhe  beijos  e  abracus 
E  bocadinhos  de  marmellada. 

—  Vaet'embora,  Morena, 
Vae-fembora,  minh'alM)a  : 
Pode  leu  marido  vir 

E  achar  a  porta  fechada. 
Morena  que  saia 
Seu  marido  que  encontrava. 
^Da  onde  vens,  ó  Morpn:i. 
Que  vens  tão  orvalhada  "! 

—  Eu  venho  da  missa  nova 
Com  ella  venho  coiisolíula. 

—  Anda  lá  mais  para  diaiifi- 
Que  uma  facada  levaras. 

—  Não  se  me  d<á  de  inorirr 
Nem  tão  pouco  de  acabar. 
Só  se  me  dá  das  contas 
Que  a  Deus  tenho  que  dar  : 
E  também  de  meus  li  lhos 
Que  outra  mãe  não  bão-di^  ("r 

—  Ton)a  lá  esta  facada 
Ao  lado  do  coração, 

Para  não  dares  beijos  i-  :ili;aí;. 
Outra  vez  em  frei  João. 


o  CEGO 

—  Fecha  a  tua  porta 
Abre  o  teu  postigo. 
Dá-me  cá  o  teu  Iciko 
Qu'eu  venho  ferido. 


i 


TRADIÇÕES  POPULARES  DO  ALGARVE  2(« 


Lagoa. 


—  Se  Ui  vens  ferido 
Vinde  muito  embora; 
Qual  é  o  vadio 

Que  anda  a  esfliora  I 

—  Levanta-te,  Anniea, 

Mais  um  bocadinho, 
A  um  pobre  cego 
Ensina  o  caminho. 
S'elle  te  pedir  pão 
Dá-ihe  pão  e  vinho, 

—  Não  quero  o  seu  pão, 
Não  quero  o  seu  vinho, 
Quero  só  que  Anna 

Me  ensine  o  caminho. 

—  Eu  já  estou  cm  anagoa 
P'ra  ir  p'ra  cama. 

Qual  é  o  vadio 

Que  a  esta  hora  anda  '? 

—  Levanta-te  Anniea 
Mais  um  bocadinho. 
A  um  pobre  cego 
Ensina  o  caminho. 

—  Adeus  minhas  casaSj 
Adeus  minhas  janellas, 
Adeus  minha  mãe 

Que  tam  falsa  me  eras. 

Por  duques  e  marquezes 

Me  vi  perseguida. 

Por  um  pobre  cego 

Me  veje  rendida. 

Eu  d'onde  estou  bem  vejo 

Os  palácios  d'El-Rei. . . 

—  Anda  p'ra  diante,  Anniea, 
Qu'eu  te  coroarei. 


D.  CARLOS   DE   MONT'ALVAR 

(Variante  I) 

Estando  D.  Galançua 

Pela  sua  varanda  a  passei.ir. 

Por  alli  passou  D.  Carlos, 

D.  Carlos  de  Moiit'Alvar. 

— Que  linda  menina  esta 

Para  commigo  brincar! 

— Brincaria  toda  a  tarde 

Se  te  não  fosses  gabar. 

No  outro  dia  pela  manhã 

Ao  bilhar  se  foi  gabar: 

— Eu  brinquei  com  uma  menina 

Que  no  mundo  não  ha  tal. 


204  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Olharam  uns  para  os  outros: 

— Quem  será,  quem  não  seria? 

—  É  D.   Galançua,  filha  d'El-rei  Cardeal. 

- — Pelas  minhas  barbas  juro 

Que  ao  pae  hei  de  ir  contar. 

Aqui  venho,  ó  seòr  rei, 

Tristes  novas  lhe  quero  dar: 

Sua  filha  Galançua 

Com  D.  Carlos  foi  brincar. 

— Se  não  tivesse  lenha  colhida 

Já  a  mandava  matar, 

Como  tenlio  lenha  colhida 

Já  a  mando  queimar. 

— Não  se  me  di  de  morrer 

Nem  tam  pouco  d'acabar. 

Só  se  me  dá  do  meu  ventre 

Que  leva  sangue  real: 

Tenho  aqui  uma  carta, 

Não  tenho  quem  nTa  vá  levar. 

Veio  um  anjo  do  céo  á  terra: 

— Senhora,  eu  vou  levar. 

— Se  o  achares  dormindo 

Deixae-o  accordar. 

Se  o  achares  jantando 

Deixae-o  acabar. 

Em  tam  boa  hora  foi 

Que  o  achou  a  passeiar. 

Logo  que  pegou  na  c?rla 

Logo  se  poz  a  chorar. 

—Corram,  corram,  meus  creados, 

Os  que  estão  aos  meus  mandados. 

A  ferrar  os  meus  cavallos 

Com  ferraduras  de  bronze. 

Que  esta  noute,  toda  a  noute, 

Quinze  léguas  teem  que  andar. 

Chegando  ao  convento 

Onde  ella  ia  a  queimar: 

— Arreda,  justiça,  arreda, 

Senão  faço-a  arredar. 

Que  essa  menina  que  ahi  vae 

Inda  vae  por  confessar. 

— Se  sois  vós  o  confessor 

Ide-a  já  a  confessar. 

No  meio  da  confissão 

Um  beijo  lhe  quiz  dar. 

—Não  permilta  Deus"  d'Arcello 

Nem  a  sua  coroa  real, 

Que  mais  ninguém  me  ponha  a  bocca 

Senão  D.  Carlos  de  MonfAlvar 

Que  da  morte  me  veio  livrar. 

Lagoa.  Heis  Dâmaso. 


A  verdade  suífoca-se  quando  aspira  o  ar  da  lisonja;  por  isso  dif- 
ficilmente  atravessa  as  antecâmaras  dos  monarchas. 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  205 


:%  orineiii  aa  Scieiíciti 

(Continuado  de  pag.  169.) 

Assallado  pela  morte  no  meio  dos  seus  grandes  projectos,  Ale- 
xandre falleceu  em  Babylonia  antes  de  ter  completado  trinta  e  Ires 
aonos  (323  antes  de  J.-C).  Siippoz-se  que  linha  sido  envnnenado. 
Seu  génio  lornara-se  tão  insupportavel,  scas  paixões  tão  ferozes, 
que  seus  generaes  e  até  os  mais  Íntimos  amigos  d'elle  viviam  em 
contínuo  temor ;  num  momento  de  cólera  tinha  dado  a  morte  a 
Clito,  que  era  um  dos  ultuuos.  Callisthenes,  que  servia  habitual- 
mente de  intermediário  entre  elle  e  Aristóteles,  assevera  alguém 
bem  informado  e  dum  modo  positivo,  que  fora  por  ordem  sua  ex- 
posto sobre  a  roda  e  depois  crucificado.  Talvez  que  os  conspirado- 
res não  procurassem  na  sua  morte  senão  a  própria  salvação.  Seria 
portanto  uma  calumnia  imputar  a  Aristóteles  cumplicidade  no  cri- 
me ;  melhor  do  que  associar-se  áquelle  assassinato,  teria  soffrido 
todos  os  tormentos  que  Alexandre  houvesse  por  bem  querer  infli- 
gir-lhe. 

Um  quadro  de  anarchia  e  sangue  derramado  succede  a  este  triste 
acontecimento.  Não  cessou  o  mal  com  a  repartição  do  império.  No 
meio  de  todas  estas  vicissitudes,  prende-nos  a  attenção  um  inci- 
dente. Ptolomeu,  filho  de  Philippe  e  de  Arsinoe.  sua  formosa  con- 
cubina, o  qual  em  sua  juventude  compartilhara  o  desterro  de  Ale- 
xandre quando  incorreram  no  desagrado  de  seu  pae,  e  que  tam- 
bém tinha  sido  mais  tarde  seu  companheiro  nos  perigos  das  bata- 
lhas, foi  nomeado  governador  e  eventualmente  rei  do  l">gypto. 

No  sitio  de  Rhodas,  Ptolomeu  tinha  prestado  serviços  tão  assi- 
gnalados  a  todos  os  habitantes,  que  estes  no  fervor  do  seu  reco- 
nhecimento lhe  prestaram  as  honras  divinas.  Tinham-lhe  dado  o  so- 
brenome de  Soter  (Salvador);  e  por  Ptolomeu  Soter  se  distingue 
dos  outros  reis  macedonios  que  lhe  succedei-am  no  Ihrono  do  Kgy- 
plo.  Não  estabeleceu  a  côrle  do  seu  governo  nas  antigas  capitães 
dos  Pharaós,  mas  sim  na  nova  cidade  de  Alexandria.  Na  época  da 
sua  viagem  ao  templo  de  Júpiter  Ammon,  o  conquistador  dera  prin- 
cipio á  fundação  d'esta  cidade,  prevendo  que  chegaria  um  dia  a  ser 
o  grande  imporio  commercial  da  Europa  e  da  Ásia. 

E'  mister  notar,  não  somente  que  Alexandre  levou  ali  judeus  da 
Palestina  para  formar  o  primeiro  nncleo  da  sua  população,  que  não 
somente  Ptolomeu  Soter  enviou  cinco  mil  depois  da  tomada  de  Je- 
rusalém, senão  que  Ptolomeu  Fdadelpho,  seu  successor,  resgatou 
cento  noventa  e  oito  mil  escravos  judeus  que  pertenciam  a  egy- 
pcios.  e  lhes  conferiu  os  mesmos  privilégios  que  disfructavam  os 
idadãos  macedonios:  este  tratamento  sobre  modo  favorável  attra- 


JHHi  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


biu  os  seus  compatriotas  dispersos,  e  muitos  syrios  acudiram  ao 
Egypto;  denominaram-os  judeus-lielenos.  Tentados  egualmente  de 
viver  debaixo  do  paternal  governo  de  Soter,  grande  multidão  de 
gregos  buscou  um  asylo  em  seu  paiz,  e  uas  invasões  de  Perdiccas 
e  de  Antigone  se  viu  os  soldados  desertar  para  se  apresentarem 
no  campo  de  Ptolomeu. 

A  população  de  Alexandria  compunha-se,  pois,  de  três  naciona- 
lidades dislinctas:  os  naturaes.  isto  é,  os  egypcios,  os  gregos  e  os 
judeus.  Ksta  circumstancia  tem  influido  profun(]amente  na  forma 
que  tem  tomado  a  religião  da  Europa  moderna. 

Os  architectos  e  os  engenheiros  da  Grécia  tinham  feito  de  Ale- 
xandria a  cidade  mais  formosa  que  houve  no  mundo  Tinham-a  po- 
Voado  de  templos,  de  palácios,  de  Iheatros  magnificos;  em  seu  cen- 
tro, no  ponto  do  cruzamento  das  duas  vias  principaes  que  se  cor- 
tavam em  angulo  recto,  no  meio  de  jardins,  de  fontes  e  obeliscos, 
elevava-se  o  mausoléu  onde  repousava  o  corpo  de  Alexandre,  em- 
balsamado á  egypcia.  Fora  este  trazido  com  a  máxima  magniíicen- 
cia  desde  Babylonia.  no  meio  d"um  cortejo  fúnebre  que  não  se  de- 
morara menos  de  dois  annos  no  seu  trajecto.  O  féretro  fez-se  pri- 
meiramente de  ouro  de  lei,  mas  depois  fez-se  de  alabastro,  temen- 
do-se  que  o  brilho  do  ouro  fosse  mo'ivo  para  violação  da  tumba. 
Porém,  nem  estas  magniticencias,  nem  ainda  a  maravilha  dos  seas 
pharoes  de  mármore  branco  tão  altos  que  as  luzes  n'elles  colloca- 
das  se  viam  a  uma  distancia  prodigiosa,  merecem  deter  a  nossa 
attenção.  O  verdadeiro  e  glorioso  monumento  dos  reis  egypcios  é 
o  Museu. 

A  influencia  desta  fundação  far-se-ha  sentir  no  mundo  ainda 
quando  as  Pyramides  se  hajam  reduzido  já  a  pó. 

Foi  começado  o  Museu  de  Alexandria  p(>r  Ptolomeu  Soter,  e  con- 
tinuado por  sen  íllho  Ptolomeu  Filadelpho.  E«tava  situado  no  Bru- 
chião,  o  bairro  aristocrático  da  cidade,  contiguo  ao  palácio  do  rei, 
construído  de  mármore  e  no  centro  d'uuia  praça,  na  qual  passeia- 
vam  os  cidadãos,  conversando.  As  suas  salas  esculpidas  encerra- 
vam a  bibliotheca  filadelphiana  com  uma  quantidade  innumernvel 
de  estatuas  e  quadros.  Mais  tarde,  e  sendo  já  minguado  o  espaço 
para  o  numero  de  volumes,  estabeleceu-.-e  outra  bibliotheca  no  tem- 
plo de  Serapis,  situado  no  bairro  adjacente  de  Rhacotis :  n'esta, 
que  se  chamava  a  filha  do  Museu,  contavam-se  quiçá  300:000  vo- 
lumes. Havia,  pois,  cerca  de  700:000  volumes  n'estas  duas  reaes 
collecções. 

Alexandria  não  era  somente  a  Cc.pital  do  Egypto:  era  a  metró- 
pole intellectual  do  mundo.  Ali,  tem-se  dito  com  verdade,  tinha-se 
encontrado  o  génio  do  Oriente  com  o  génio  do  Occidente.  e  este 
Paris  da  antiguidade  chegou  a  ser  um  foco  de  dissipação,  de  luxo 
e  de  sceplicismo.   Entre  as  seducções  da  sua  vida  social  os  mes- 


A  OlUGEM  DA  SCIENCIA  á07 


mos  judeus  se  esqueceram  da  sua  paliia  querida,  abandonaram  a 
lingna  de  seus  pães  e  adoptaram  a  grega. 

Três  foram  as  intenções  de  Ptolomeu  Soter  e  Ptolomeu  Filadel- 
plio  ao  estabelecerem  o  Museu:—!.",  conservar  os  conhecimentos 
adquiridos;  2.",  accrescenlal-os;  3.°,  divulgal-os. 

{.°  Para  conservar  os  conhecimentos  adquiridos,  ordenou-se  ao 
primeiro  bibliothecario  que  comprasse  sem  distincção  todos  os  li- 
vros existentes!  iMantinha-se  no  Museu  um  corpo  de  copistas  en- 
carregados de  reproduzir  correctamente  todas  as  obras  de  que 
seus  proprietários  não  se  quizessem  desfazer.  Todo  o  livro  que  en- 
trava no  Kgypto,  devia  em  seguida  ser  levado  ao  Museu;  fazia-se 
d'elle  uma  copia  exacta,  a  qual  se  dava  ao  possuidor  da  obra,  e 
guardava-se  o  original;  juntava-se  á  copia  uma  indemnisavão  pecu- 
niária. Disse-se  que  Ptolomeu  Evergetes,  havendo  obtido  que  lhe 
enviassem  de  Athenas  as  obras  de  Sofocles,  de  P^uripedes  e  de  Es- 
quillo,  deu  ao  proprietário  dos  manuscriptos  originaes,  cerca  de 
quinze  mil  escudos  e  bellissimas  copias.  Ao  regresso  da  expedição 
da  Syria,  levou  em  triumplio  de  Ecbatana  e  de  Suza  todos  os  monu- 
mentos egypcios  que  Cambises  e  outros  conquistadores  da  Ásia  ti- 
nham arrebatado  ao  Egypto ;  estes  objectos  foram  collocados  nos 
seus  antigos  logares  ou  consagrados  á  ornamentação  do  Museu. 
Quando  as  obras,  em  vez  de  serem  somente  copiadas  eram  tradu- 
zidas, pagavam-se  sommas  fabulosas,  como  aconteceu  com  a  ver- 
são dos  Setenta,  feita  por  ordem  de  Ptolomeu  Filadelpho. 

2.°  Para  accrescenlar  os  conhecimentos.  Uma  das  principaes  con- 
dições do  Museu  era  servir  de  asylo  a  certo  numero  de  homens 
consagrados  ao  estudo  e  que  eram  mantidos  e  alojados  á  custa  do 
rei.  Algumas  vezes  vinha  elle  mesmo  sentar-se  á  sua  mesa.  Tem-se 
conservado  mais  de  uma  anecdota  com  relação  a  este  assumpto. 
Na  organisação  primitiva,  estavam  divididos  os  residentes  em  qua- 
tro faculdades:  bellas  lettras,  malhematicas,  astronomia  e  medicina. 
Os  ramos  da  sciencia  que  saiam  destes  quatro  troncos  ficavam  uni- 
dos a  elles.  Um  personagem  publico  importante,  tinha  a  superin- 
tendência do  estabelecimento  e  o  cuidado  dos  seus  negócios.  De- 
métrio de  Falerio,  talvez  o  homem  mais  sábio  do  seu  tempo,  eqae 
tinha  sido  durante  muitos  annos  o  governador  de  Athenas,  foi  o 
que  primeiro  teve  aquelie  emprego.  Ás  suas  ordens  estava  o  bi- 
bliothecario, e  este  era  quasi  sempre  um  homem  cujo  nome  devia 
passar  á  posteridade;  por  exemplo:  Eratosthenes  e  Apolonio  de 
Rhodas. 

Junto  ao  Museu  havia  um  jardim  botânico  e  zoológico.  Este  jar- 
dim, como  a  sua  denominação  indica,  servia  para  facilitar  o  estudo 
das  plantas  e  animaes.  Também  existia  um  observatório  provido 
de  espheras  armilares,  de  globos,  de  solsticios,  de  círculos  equa- 
toriaes,  de  regras  paralaclicas,  em  summa,  de  todos  os  inslrumen- 


2ftK  ENCYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 


tos  entno  usados,  cujas  divisões  eram  em  graus  e  em  segundos. 
Sobre  o  tablado  d"esle  observatório  eslava  traçada  uma  meridiana. 
Senlia-se  grandemente  a  falta  dum  methodo  exacto  para  medir  o 
tempo  e  a  temperatura.  O  clepsidro  de  Clesibius  respondia  mui 
imperfeilamente  á  primeira  d"aquellas  necessidades;  o  hydrometro 
fluctuando  n"um  vaso  de  agua,  não  satisfazia  melhor  a  segunda: 
media  as  variações  da  temperatura  por  as  da  densidade. 

Filadelpho,  que  até  ao  fim  de  sua  carreira  leve  medo  á  morte, 
consagrou  uma  parle  do  seu  lempo  a  procurar  nm  elixir  de  longa 
vida ;  por  isso,  iez  inslallar  no  Museu  um  laboratório  de  chimica. 
A  despeito  das  pieoccupações  da  época,  e  sobretudo  das  preoccu- 
pações  egypcias.  se  annexou  ao  departamento  da  medicina  uma 
sala  de  dissecações  anatómicas,  dissecações  que  se  praticavam  não 
somente  sobre  os  cadáveres,  como  até  nos  vivos,  isto  é,  sobre  os 
condenmados 

3.°  Para  divulgar  os  conbecimentos.  No  Museu  instruia-se  o  povo 
em  todos  os  ramos  da  sciencia  e  da  lilleralura  por  meio  de  leitu- 
ras 6  conferencias.  Grande  numero  de  estudantes  de  lodos  os  pai- 
zes  acudia  a  esse  centro  inlellectual.  Conta-se  que  não  havia  menos 
de  quatorze  mil  ordinariamente.  Vários  padres  da  Egreja,  e  dos 
mais  illustres,  como  Clemente  de  Alexandria.  Origenes  e  Alhana- 
sio.  sahiram  d'esla  escola. 

A  bibliotheca  do  Museu  ardeu  durante  o  sitio  posfo  a  Alexan- 
dria por  Júlio  César.  Para  compensar  esta  grande  perda,  Marco 
António  presenteou  Cleópatra  com  a  que  tinha  sido  formada  por 
Eumenes,  rei  de  Pergamo.  Era  a  rival  da  dos  Plolomeus  e  foi  ag- 
gregada  á  collecção  serapiana. 

Hestanos  dizer  summariamente  qual  era  a  base  philosophica  do 
Museu,  e  o  que  esta  instituição  juntou  á  somma  dos  conhecimen- 
tos humanos. 

Em  memoria  do  illustre  fundador  d'esle  nobre  estabelecimento, 
que  a  antiguidade  designava  com  o  nome  de—  il  dhmm  escola  de 
Alexandria,  é  mister  cilar  primeiro  a  Historia  das  campanhas  de 
Alexandre,  por  Ptolomeu  Soter,  o  qual  reuniu  á  gloria  militar  e  aos 
talentos  para  governar,  o  mérito  de  historiador.  O  lempo,  que  nos 
conservou  a  recordação  dos  serviços  por  elle  prestados,  não  res- 
peitou o  seu  livro,  hoje  perdido. 

Em  consequência  da  estreita  amisade  que  reinava  entre  Alexan- 
dre, Ptolomeu  e  Aristóteles,  a  philosophia  paripateclica  foi  a  pedra 
angular  do  Museu.  O  rei  Filippe  linha  confiado  a  Aristóteles  a  edu- 
cação de  seu  filho,  e  esle  conquistador,  durante  o  tempo  de  suas 
campanhas  na  Pérsia,  tinha  dado  ao  philosopho  dinheiro  e  outros 
soccorros  para  contribuir  para  a  conclusão  da  Historia  da  Natureza, 
que  estava  em  preparação. 

Era  o  principio  fundamental  da  philosophia  paripateclica  elevar- 


.  A  ORIGEM  DA  SGIE.NCIA  209 

se  dos  feilos  particulares  aos  feitos  geraes,  e  Ll'estes  aos  uiiiver- 
saes  por  meio  da  iiiducção.  A  inducção  tira  a  sua  exactidão  do  nu- 
mero de  feitos  que  se  acham  na  base  de  suas  proposições,  a  prova 
pelo  descobrimento  de  feitos  aliás  desconhecidos.  Esíq  methodo 
€xige  um  grande  trabalho,  porque  é  preciso  adquirir  o  coniieci- 
raento  dos  feitos  pela  experiência  e  pela  observação,  comprehen- 
del-os  logo  e  apreciar  suas  relações  por  uma  meditação  profunda. 
É,  pois,  questão  de  raciocínio,  não  de  imaginação.  Os  erros  nume- 
rosos de  Aristóteles  nada  provam  contra  o  seu  methodo,  pois  que 
resultam  da  insullicieucia  dos  feitos  observados. 

Alguns  dos  resultados  obtidos  por  elle  são  muito  importantes. 
Demonstrou  que  a  vida  está  universalmente  estendida  pela  natu- 
reza; que  as  differentes  formas  orgânicas  que  se  oífereceín  a  nos- 
sos olhos,  são  devidas  á  influencia  do  meio;  que  se  o  meio  se  al- 
tera, também  se  alteram  as  formas;  que  a  vida  orgânica  é  uma  ca- 
deia ininterrupta,  começando  no  mais  débil  vegetal  e  terminando 
no  homem,  e  que  as  differentes  series  se  fundem  umas  nas  outras 
por  uma  graduação  insensível. 

O  methodo  inductivo  assim  formulado  é  um  instrumento  d'uma 
grande  potencia;  a  elíe  se  devem  todos  os  progressos  da  sciencia 
moderna.  l'^sta,  com  effeito,  eleva-se  por  inducção  do  phenomeno 
á  causa  ;  e  logo,  como  fazia  a  Academia,  descendo  por  deducção 
da  causa  aos  detalhes  do  phenomeno. 

Emquanto  que  a  escola  scientifica  de  Alexandria  se  fundava  so- 
bre os  princípios  de  um  illustre  philosopho  de  Àthenas,  a  escola 
das  sciencias  moraes  se  elevava  sobre  as  máximas  de  outro  philo- 
sopho, Zenon;  o  qual,  ainda  que  chypriota  e  phenicio,  se  tinha  feito 
alheniense  por  sua  demorada  residência  na  capital  da  Attica,  To- 
maram seus  discípulos  o  nome  de  estóicos.  Suas  douti  inas  lhe  so- 
breviveram muito  tempo,  e,  numa  época  em  que  não  havia  para 
o  homem  outras  consolações,  ellas  fructificaram  nos  seus  dolorosos 
transes  e  guiaram  na  vida,  não  somente  a  illuslres  gregos,  se  não 
também  a  muitos  grandes  philosoplios,  homens  de  Estado,  gene- 
raes  e  imperadores  romanos. 

A  intenção  de  Zenon  era  tlar  aos  homens  uma  regra  de  condu- 
cta,  e  gnial-os  á  virtude.  Considerava  a  educação  como  origem  de 
toda  a  perfeição,  porque,  conhecendo  nós  o  que  é  bom,  dizia  elle, 
inclinar-nos-hemos  a  seguir  o  bem.  Devemos  referir-nos  a  nossos 
sentidos  para  que  nos  proporcionem  os  primeiros  dados  do  conhe- 
cimento, e  à  nossa  razão  para  os  combinar. 

Nisto,  a  aífiiiidade  entre  Aristóteles  e  Zenon  é  manifesta.  Toda 
concupiscência,  toda  desejo,  vem  da  imperfeição  do  nosso  ccnhe- 
cimento.  A  fatalidade  fez  a  nossa  natureza  phisica;  devemos,  po- 
rém, aprender  a  reinar  sobre  nossas  paixões,  a  viver  livres,  intel- 
ligentes,  virtuosos  e,  em  tudo  e  por  tudo,  conformes  com  a  razão. 


âlO  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

A  nossa  vida  deve  ser  Ioda  intellecliial,  e  devemos  ser  indifferen- 
tes  ao  prazer  e  á  dor.  Não  devemos  nunca  esquecer  que  somos  ci- 
dadãos e  não  escravos  da  sociedade.  «Possuo,  diz  o  estóico,  um 
thesouro  que  nada  me  arrebatará,  porque  nada  pude  tirar-me  o 
beneficio  da  morte.»  Devemos  lembrar-nos  de  que  a  natureza  em 
suas  operações  lende  ao  universal,  e  sacrifica  ao  seu  fim  o  indivi- 
dual. Não  temos,  pois,  mais  que  submelter-nos  ao  destino  e  culti- 
var em  nós  outros  o  conhecimento,  a  temperança  e  a  justiça,  como 
elementos  necessários  da  virtude.  Sabemos  que  tudo  muda  em  der- 
redor de  nós,  que  a  morte  succede  á  vida,  a  vida  á  morte,  e  que 
è  insensatez  não  querer  morrer  n"um  mundo  em  que  tudo  morre. 
Assim  como  a  torrente  que  conserva  sempre  o  mesmo  aspecto  e  a 
mesma  íórma,  ainda  que  as  suas  aguas  se  renovam  sem  cessar, 
a  natureza  é  um  rio  que  corre  sempre.  O  universo  considerado  em 
seu  conjuncto  é  invariável,  porém  eterno;  nada  mais  ha  que  o  es- 
paço, os  átomos  e  a  força.  As  formas  da  natureza  são  essencial- 
mente transitórias  e  passageiras. 

Também  devemos  recordar  que  a  maioria  dos  homens  tem  re- 
cebido uma  educação  imperfeita,  e  portanto  evitarmos  de  ferir  as 
crenças  religiosas  do  nosso  século.  Dasta  que  saibamos,  que  ainda 
quando  exista  uma  potencia  superior  não  ha  um  Ser  Supremo;  ha 
um  principio  invisível,  não  um  Deus  pessoal,  ao  qual  seria  por  isso 
mais  absurdo  que  blasphemo  altribuir  as  formas,  os  sentimentos, 
e  as  paixões  dos  homens.  Toda  a  revelação  é  necessariamente  uma 
ficção.  O  que  se  chama  azar  é  o  effeito  d'uma  causa  que  se  não  co- 
nhece ;  a  casualidade  mesma  tem  a  sua  lei.  As  modificações  que 
soffrem  todas  as  cousas  são  produzidas  d"uma  maneira  fatal,  e  po- 
deria dizer-se  que  o  mundo  em  seu  progresso  procede  como  um 
gérmen  que  não  pôde  desenvolver-se  senão  de  um  modo  determi- 
nado. 

A  alma  do  homem  é  uma  scentelha  da  chamma  da  vida,  do  prin- 
cipio geral  das  cousas;  transmitte-se  como  o  calor  e,  finalmente,  é 
de  novo  absorvida  no  principio  universal.  Não  é  pois  a  destruição 
o  que  nos  espera,  é  a  reunião;  porém,  como  o  homem  fatigado  pro- 
cura o  somno,  o  philosopho  cansado  d'este  mundo  chama  o  repouso 
da  morte.  Sobre  estas  cousas,  todavia,  não  temos  mais  que  idéas 
incertas,  supposto  que  o  espirito  não  pôde  tirar  nenhuma  certeza 
do  seu  próprio  fundo.  Ê  contrario  á  sã  philosophia  dedicar-se  à  in- 
vestigação das  causas;  contentemo-nos  em  estudar  os  phenomenos. 
Sobre  tudo,  não  esqueçamos  jamais  que  o  homem  não  podia  che- 
gar á  verdade  absoluta,  O  resultado  final  dos  esforços  humanos 
para  penetrar  nos  segredos  da  matéria,  é  saber  que  somos  inca- 
pazes de  comprehender  tudo,  e  que  ainda  quando  possuíssemos  a 
verdade,  nos  faltaria  a  certeza. 

(Segue.) 


COSTUMES  DA  BEIRA-ALTA 


211 


âostunies  «ci  Çcirci-^ 

(Conclusão) 


11 


Passemos  agora  a  descrever  alguns  dos  festejos  da  noiíle  de  S. 
João,  consoante  se  elles  fazem  em  Mondim  da  Beira.  Podem  divi- 
dir-se  em  duas  partes :  os  dos  rapazes  e  os  das  raparigas ;  os 
d'aquelles  n'um  monte,  os  d'estas  na  povoação.  Ambos  porém 
constam  de  fogueiras  e  cantigas.  A  fogueira  que  os  rapazes  fazem 
no  monte  da  Banha,  visinbo  de  Mondim  de  Cima,  chama-seo  fa- 
cho ou  o  galheiro.  Dias  antes  da  funcção,  vae-se  a  um  pinhal  pró- 
ximo, ao  som  de  tambores,  pifanos  e  grandes  algazairas,  arrancar 
um  pinheiro  alto,  ao  qual  se  cortam  as  ramas  e  se  deixam  apenas 
as  galhas  (d'onde  galheiro);  este  pinheiro  é  espetado  no  cimo  do 
monte  e  vestido  de  rosmaninho,  hel!a-iuz,  fieilos  *,  etc.  Quando, 
na  noute  do  Santo,  se  vêem  estes  fachos  todos  a  arder  n^ms  pou- 
cos de  montes  fronteiros,  e  de  vez  em  quando  flammejam  pelo  ar 
ou  estoiram  pelo  chão,  as  bombas,  as  bichas  e  os  sacatrapos  ^, 
ouvindo-se  além  disso  as  harmonias  desafinadas  dos  instrumentos 
músicos  dos  pastores  (pois  são  estes  os  principaes  influentes)  e 
as  gargantas  sonoras  das  raparigas,  ninguém  imagina  o  bello  ef- 
feito  que  a  aldeia  apresenta.  O  povo,  não  contente  com  ter  trans- 
formado uma  festa  naturalística  n'um  humilde  brinquedo  mais  ou 
menos  catholico,  identificou  com  os  seus  próprios  costumes  a  per- 
sonalidade de  S.  .loão : 


1." 

Ó  meu  S.  João  da  Ponte, 
O  meu  S.  Jocão  pequenino, 
Heis-de  ser  o  meu  compadre 
Do  meu  primeiro  menino. 

1.» 

S.  João  p'ra  ver  as  moras 
Fez  uma  fonte  de  pedra  : 
As  moças  não  vão  a  ella, 
S.  João  bem  se  arrepèlla. 

O  S.  João  pequenino 
Vendeu  o  pão  do  almoço. 
Para  comprar  uoias  contas, 
Para  botar  ao  pescoço. 


()  meu  S.  João  da  Ponte, 
O  meu  Santo  marinbeiro, 
Levae-me  na  vossa  barca 
Para  o  Iàío  de  Janeiro. 

S.  João  adormeceu 
Nas  escadinhas  do  coro: 
Deram  as  freiras  com  elle, 
Depenicaram-no  todo. 

2.0 

O  S.  João  pequenino 
Vendeu  o  pão  do  jantar, 
Para  comprar  umas  contas 
P'ra  no  Domingo  resar. 


1  O  nome  do  feto  em  Mondim  da  Beira  é  jieito,  palavra  muito  bem  derivada 
do  lat.  filectum,  d'onde  derivam  ainda  outras  formas  parallelas  :  feito,  feitêlha 
(demin  ),  feite,  feto,  feto-7-eah  fenta,  fentêlha  (demiii.)  e  fentão. 

2  Estes  três  nomes  designam  outra.s  tantas  composições  pyrotectinieas  pró- 
prias das  creanças. 


212 


ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


1° 

S.  João  foi  para  o  Norte 
Com  vifite  e  finco  donzeilas  : 
Embarca,  não  desembarca, 
S.  João  no  meio  d'ellas  ! 


9  o 

S.  João  foi  para  o  Norte 
Com  vinte  e  cinco  viuvas  : 
Embarca,  não  desembarca, 
S.  João  a  comer  uvas. 


Além  do  facho,  queimam-se  lambem  niiiilas  pinhas  de  pinheira 
dispostas  ao  longo  do  monte. 

A  festa  das  raparigas  tem  um  caracter  mais  pliallico  do  que  a 
primeira.  No  meio  de  um  largo,  ou  mesmo  numa  qiiintan  ou  quin- 
teiro, accumula-se  uma  porção  dos  mesmos  vegelaes  que  consti- 
tuem o  facho,  aos  qiiaes  se  lança  o  fogo.  F-umada  a  fogueira,  as 
raparigas  levantam  levemente  as  saias  e  saltam  por  cima  delia, 
dizendo  em  fúruia  de  oração  recitada,  não  cantada: 


Fogo  no  sargaço, 
Saúde  no  meu  braço. 

F^ogo  no  rosmanintio, 
Saúde  no  meu  passariniio. 

Fogo  na  gésla,  • 
Saúde  na  minha  lesta. 


Fogo  na  bella-luz. 
Saúde  nas  minhas  cruzes. 

Fogo  no  pieitD, 

Dê  saúde  a  meu  peito. 

Em  louvor  de  S.  João. 

Que  dé  saúde  ao  meu  coração. 


S.  João  vae.  vem, 

Minha  mãe  por  casar- me  tem. 

Na  Ucaniia  recitam-se  estes  versos,  além  doutros  muito  licen- 
ciosos : 


Aramá  pelas  hervinhas  do  S.  João, 
Saúde  no  meu  coração. 

Aramá  por  ti, 
Saúde  em  mi. 


Aramá  pelo  feieito. 
Saúde  no  meu  peito. 

Aramá  pelo  rosmaninho, 
Saúde  no  meu  peitiidio. 


Aramá  pelo  sargaço, 
Saúde  no  meu  peitaço. 


Aramá  pelo  sargaço. 
Saúde  no  meu  peitaço. 

Além  das  fogueiras,  ha  ainda  muitos  usos  e  superstições  na 
noule  e  madrugada  de  S.  .loão,  como  as  sortes,  as  orvalhadas,  o 
apparecimenlo  das  Mouras  á  meia  noute  a  pentearem-se,  as  alca- 
chofras, etc. 

As  sortes  tem  uma  fórmula,  que,  segundo  creio,  também  se 
canta  em  forma  de  cantiga: 

S.  João,  de  Deus  amado, 
S.  João,  de  Deus  querido. 
Dae-me  a  minha  boa  sorte, 
N'este  copinho  de  vidro. 


1  Giesta. 


COSTUMES  DA  BEIRA-ALTA  213 


Ás  alcachofras  allude  a  quadra : 

Na  noiíte  de  S.  João. 
Muita  pancada  apanhei, 
Por  via  das  alcacliofias. 
Que  por  ti,  amor,  deitei. 

Ás  orvalhadas  allude  esla,  que,  parece  é  originaria  do  Porto, 
como  outras  mais  ahi  localisadas : 

Na  noute  de  S.  Joãu, 
É  bem  tolo  quem  se  deita  : 
P'i'a  tom.;.-  as  orvalliadas 
No  Campo  de  Cedofeita. 

De  fado,  na  noute  de  S.  João  ninguém  se  deita,  e  de  manhã 
vão  tomar  as  orvalhadas  pelos  campos,  a  banharem-se  nos  rios  e 
nas  fontes.  Os  pastores  levam  os  gados  aos  rios. 

Além  dos  versos  que  ficam  ;ip()iilad()s.  e  que  conlèem  a  menção 
de  muitos  usos  e  superstições,  ha  mais  com  outras  referencias 
mythicas,  como  eu  já  mostrei  no  meu  opúsculo  Fragmentos  de  My- 
thologia,  ex. : 

— Oh  S.  João  donde  vindes. 
Pelas  cahnas  sem  i'hapiu? 
— Vei;ho  de  ver  as  fojiueiras. 
Que  se  accenderani  no  Ou 

A  noute  de  S.  João  é  por  excellencia  a  noute  dos  amores  e  dos 
requebros  apaixonados.  A  cantiga  mesmo  o  diz : 

Na  noute  de  S.  João 

È  que  é  lomar  amores, 

Que  estão  os  trigos  nos  campos 

Todos  com  as  suas  ílores. 

A  festa  de  S.  João,  não  é  puramente  cliristã,  é  universal,  por- 
que 

Até  os  moiros  da  Moirama 
Festejam  o  San-João, 
Com  pandeiras  e  violas. 
Com  cannas  verdes  na  mão. 

Como  se  viu,  a  festa  do  S.  João  é,  nor  assim  dizer,  uma  festa 
campestre.  Ha  ainda  outras.  No  primeiro  de  novembro,  dia  de  To- 
dos os  Santos,  quando  nas  torres  o  nos  campanários  os  sinos  bra- 
dam por  nossos  pães,  e  os  ares  se  enchem  da  tristeza  fúnebre  da 
morte,  cosluma-se — notável  contraste ! — accender  também  foguei- 
ras de  silvas  sèccas  nos  montes  e  nos  soutos  para  assar  casta- 


2íli  EXCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

nhãs.  Chama-se  a  isto  [azo  o  magtisto.  Assim  como  no  primeiro 
de  maio  poucos  deixam  de  comer  castanhas  picadas,  por  causa  do 
burro,  poucos  no  dia  de  Todos  os  Santos  deixam  de  celebrar  o 
seu  sacrifício,  o  seu  magusto.  O  vinhu  e  as  maçãs  não  deixam  fal- 
tar áquelle  festim  campestre  e  frugal.  Ás  vezes  o  magusto  é  ter- 
minado por  uma  enfarruscadelln,  porque  as  mãos  sujas  de  debu- 
lhar as  castanhas  prestam-se  excellenlemenle  a  essa  brincadeira 
de  entrudo.  Em  Mondim  da  Beira  vendem-se  n'esse  dia  uns  bolos 
compridos  de  trigo,  chamados  saniúros  (do  lat.  sanctorum). 

Se  eu  tivesse  de  descrever  todos  os  costumes  da  minha  pátria, 
de  muito  espaço  precisava  ainda  de  dispor.  O  pouco  que  ahi  deixo 
é  apenas  uma  amostra,  feita  despertenciosamente  e  ao  correr  da 
penna.  Para  terminar,  permittam-se-me  ainda  duas  observações. 

Os  serranos,  por  isso  que  vivem  entre  os  seus  montes  e  os  seus 
mattos  bravos,  no  isolamento  do  mundo,  costumados  à  esterilidade 
do  solo  para  certos  frnctos.  e  ás  intempéries  do  clima,  luctando 
já  cora  os  Icbos,  já  uns  com  os  outros  por  causa  das  divisões  dos 
terrenos  maninhos,  alimentando-se  sobriamente,  sem  licença  de 
costumes,  vivem  muito  (tenho  conhecido  serranos  de  mais  de  cem 
annos),  são  robustíssimos,  manhosos,  fanáticos,  inteiramente  vo- 
tados aos  usos  antigos,  e  estabelecem  a  transição  do  estado  pas- 
t(»ral  para  o  agrícola. 

Os  da  ribeira,  mais  perto  da  estrada  e  dos  centros  de  civilisa- 
ção  e  actividade,  são  em  tudo  qnasi  o  contrario  d'aquelles. 

Nos  povos  porém  de  uma  e  outra  banda  ha  caracteres  communs, 
não  sendo  as  distincções  que  estabeleci  senão  na  intensidade  e  não 
na  qualidade. 

A  vida  das  nossas  populações  passa-se  principalmente  no  campo. 
A  poesia,  a  musica,  a  dança,  as  festas,  são  o  allivio  d'eisa  vida. 
Predominam  por  toda  a  parte  as  ideias  religiosas  misturadas  de 
superstições  de  toda  a  espécie,  mas  tudo  isso  vae  em  decadência. 
A  palavra  frade  é  um  litulo  de  escarneo,  e  egualmente  se  vão 
aproximendo  delia  abbade  e  mesmo  padre.  Criumpha  emfim  a 
sciencia,  e  não  virá  talvez  longe  o  dia  em  que  os  cruzeiros  des- 
appareçam  dos  caminhos,  e  os  habitantes  das  montanhas,  des- 
pindo a  capucha  e  a  nisa,  desçam  a  tomar  parte  no  convívio  in- 
tellectual  dos  povos  cultos.  * 

Porto.  1881.  J.  Leite  de  Vasconcellos. 


1  No  livro  Saraiva  e  Castilho,  por  A.  B.  Saraiva,  livro  insulso  s  cheio  de  pre- 
tensões ridiculas,  ha,  em  notas^  a  narração  exacta  de  muitos  costumes  da  Beira- 
Alta,  principalmente  a  propósito  de  festas.  O  A.  salpica  tudo  de  observações 
pueris  e  tolas ;  mas  algumas  cousas  pôde  o  folklorista  ahi  aproveitar.  Segundo 
Phaedro,  também  in  sterquilinio  pullus  riallinaceus  margaritam  repent.  Está  nes- 
ses  costumes  o  único  merecimento  do  livro,  pelo  menos  para  mim. 


TRADIÇÕES  POPULARES  DO  ALGARVE  âlS 


Tradições  jiojiuíares  3o  .l,ínarve 

ROMANCES 

LISARDA 
(Variante  II) 

— Lisarda,  amor  Lisarda, 

Lisarda,  amor  primeiío; 

Se  tu  me  deras  iim  beijo, 

Lisarda  amor  verdadeiro. .  . 

— Xão  te  dou,  nem  um  nem  dois,. 

Nem  um  nem  dois  te  hei  de  darj 

Que  eu  não  quero  que  depois 

Tu  de  mim  te  vás  gabar. 

— Eu  já  íiz  um  juramento, 

Protesto  de  o  não  cobrar; 

Menina  com  quem  eu  durma 

Nunca  a  hei  de  diíTamar. 

Mas  no  fim  de  três  mezes 

Para  o  jogo  se  foi  gabar. 

Os  seus  manos  que  alii  estavam 

Disseram  um  para  o  outro: 

— Será  a  mana  Lisarda  ou  não  ? 

Quando  vieram  para  casa 

A'  mãe  o  foram  contar. 

Sua  mãe  assim  que  (ai  soube 

Lizarda  mandou  fechar. 

Quando  o  pae  chegou  a  casa 

Também  lh'o  foram  contar. 

O  seu  pae  assim  que  o  soube 

Lisarda  mandou  queimar. 

Estando  Lisarda  fechada. 

Triste,  triste,  agoniada, 

Ella  chegou  á  janella. 

—Quem  o  meu  pão  quizer  ganhar 

Esta  carta  ha  de  entregar 

Ao  meu  conde  de  Mont'Alvai-. 

Appareceu-lhe  um  menino 

De  sete  annos,  mais  não: 

— O  menina,  eu  levo  a  carta 

Escripta  no  coração. 

— Se  elle  estiver  jantando, 

Deixa- o  primeiro  acabar. 

Se  eile  estiver  dormindo 

Deixa-o  primeiro  accordar. 

— Logo  foi  fortuna  minha 

Eneontral-o  a  passear. 

Pegue  lá,  ó  seôr  conde, 

Esta  carta  de  pesar, 

Que  lhe  manda  sua  amada 

Pois  ella  vae  a  queimar, 

— Tanto  se  me  dá  que  a  queimem 

Como  a  deixem  de  queimar, 


216  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Faro. 


A  pena  que  meu  coração  sente 
É  seu  ventre  sangue  real  levar. 
Ala  l;i  os  meus  creados 
Is  cavallos  vão  a  ferrar. 
Com  ferraduras  de  cobre 
Que  é  pra  assim  se  não  gastar, 
E  jornada  de  oito  dias, 
Que  nós  temos  para  andar. 
Elle  se  vestiu  de  padre 
Ao  caminho  a  foi  esperar. 
—Alto  ahi,  parae  justiça, 
Se  não  eu  te  faço  parar; 
Essa  menina  cpie  ahi  levam 
Ainda  vae  por  confessar. 
— Pois  confesse-a  o  seór  padre 
Em  quanto  nós  v^mos  jantar. 
— Ajoelhe-se,  ó  menina. 
Faça  o  seu  pelo  signal, 
Que  nc  meio  da  conlissão 
Um  beijinho  me  ha  de  dar. 
— Não  permitia  Deus  dos  céos 
Nem  nos  santos  do  altar; 
Bocca  que  um  conde  beijou 
Padre  nenhum  ha  de  beijar. 
— Ajoelhe-se,  ó  menina, 
Faça  o  seu  pelo  signal, 
Que  no  fim  da  confissão 
Um  abraço  me  ha  de  dar. 
— Não  permitia  Deus  dos  céos 
Nem  nos  santos  do  altar, 
Corpo  que  um  conde  abraçou 
Padre  nenhum  ha  de  abraçar. 
O  padre  então  se  sorriu 
Pregando  os  olhos  no  chão. 
— Esse  rir,  ó  seór  padre. 
Esse  rir  de  mangar 
Parece-me  a  mim  ser 
Do/iieu  conde  de  MonfAlvar. 
— É  verdade,  ó  menina, 
Prenda  lio  meu  coração. 
— Se  tu  er:)S  o  meu  conde 
Para  qu^^  me  fizeste  zangar  ? 
— Callai-vos,  menina. 
Que  foi  para  t'exp'rimontar, 
Manda  chamar  os  teus  manos 
Que  te  vão  agora  accusar; 
Manda  chamar  tua  mãe. 
Que  te  mande  agora  fechar; 
Manda  chamar  teu  pae. 
Que  te  mande  agora  queimar; 
E  manda  chamar  a  justiça 
Que  te  venha  aqui  buscar, 
Que  amanhã  por  estas  horas 
Na  egreja  havemos  de  estar. 


Heis  Da.\iaso. 


MANOEL  FERNANDES  THOMAZ  ál7 


Biograpliiag 

IMfiiioel  Feruíiiiclcs  Tliôiiia;^ 

(Conclusão.) 
VI 

No  dia  24  de  janeiro  de  1821  realisoii-se  a  abei  lura  do  famoiio 
congresso  constituinte,  estando  reunidos  64  deputados.  A  altitude 
de  Fernandes  Tliomaz  em  Iodas  as  sessões  d"esle  memorável  con- 
cilio liberal,  foi  sempre  das  mais  enérgicas,  e  as  doutrinas,  que 
sustentou  com  a  sua  palavra  auclorisada  e  íirme,  eram  inteiramente 
democráticas.  Um  dos  seus  detractores  da  aristocracia  compara  a 
influencia  que  elle  exercia  no  congresso,  á  que  Mirabeau  teve  em 
França^.  Outro  adversaiio  das  ideias  de  Fernandes  Thomaz  diz 
que  as  cortes  porluguezas  ultrapassaram  os  devaneios  da  própria 
Hespanha . .  .  demolindo  a  golpes  de  machado  o  edifício  da  monar- 
chia^.  E  de  faclo  é  esta  a  sua  maioi'  gloria;  é  o  que  torna  sympa- 
thico  a  nossos  olhos  o  celebre  congresso  e  o  que  nos  mostra  real- 
mente bello  o  vulto  de  Fernandes  Tbomaz.  Quando  o  deputado  Sar- 
mento propoz  que  se  desse  o  nome  de  pae  da  pátria  a  D.  João  VI, 
o  grande  orador  popular  conseguiu  que  ficasse  addiado  «até  vèr 
que  titulo  se  lhe  havia  de  dar»  e  accrescenlou:  «Vèr-se-ha,  depois 
de  feita  a  constituição,  se  o  merece!»  Para  elle  a  verdadeira  so- 
berania estava  no  povo;  foi  esta  a  doutrina  sustentada  nas  cortes 
de  1821  com  geral  applauso.  A  soberania  reside  essencialmente  em 
a  nação  ;  os  deputados,  como  representantes  d'ella,  tinham,  por 
conseguinte,  plenos  poderes  para  legislarem  e  reformaiem  tudo, 
tendo  só  cm  vista  o  bem  estar  e  a  felicidade  do  povo,  sem  depen- 
dência alguma  de  qualquer  vontade  superior;  só  no  caso  de  o  jul- 
garem conveniente  poderiam  submetter  as  leis  á  sancção  da  coroa. 
Não  era  uma  obrigação  de  súbditos  para  com  o  seu  rei,  mas  uma 
simples  concessão  do  veidadeiro  soberano  ao  seu  primeiro  repre- 
sentante. 

Na  terceira  sessão  do  congresso,  Fernandes  Thomaz  propoz  que 
se  nomeasse  uma  commissão  para  formular  as  bases  da  constitui- 
ção, que  deviam  ser  apresentadas  ao  rei,  apenas  chegasse.  Era  in- 
dispensável que  D.  João  VI,  ou  qualquer  pessoa  da  familia  real, 
que  regressasse  á  Europa,  jurasse  logo  as  bases  do  pacto  social 
estabelecido  entre  o  povo  e  o  monarcha.  Estas  bases,  publicadas 
em  9  de  março,  foram  inspiradas  pela  Declaração  dos  Direitos  do 


1  Diorama  de  Portugal  nos  33  mezes  constitucionaes,  etc,  por  J.  S.  de  Salda- 
nha.—  Lisboa,  182o.  —  pag.  215. 

2  Historia  de  Portugal,  por  J.  M.  de  Souza  Monteiro,  tomo  ii. 

28 


nn  ENOYCLOPEDIA  KEPUBLIGANA 


Homem  e  consignam:  a  liberdade  individual,  a  liberdade  de  im- 
prensa, o  direito  de  propriedade,  a  inviolabilidade  da  casa  do  ci- 
dadão, a  egualdade  perante  a  lei,  a  livre  admissão  aos  empregos 
sem  outra  distincção  senão  a  de  talento  e  virtudes,  a  abolição  dos 
privilégios,  ele. 

Fernandes  Thomaz  sustentou  vigoiosamente  i;  repelidas  vezes, 
em  discursos  enérgicos  e  sensatos,  a  liberdade  de  imprensa,  a  re- 
forma dos  foraes,  a  exlincção  da  inquisição,  a  abolição  das  leitu- 
ras no  desembargo  do  paço  e  da  inconfidência  civil,  a  instituição 
dos  jurados  eleitos  pelo  povo,  ele.  Combateu  a  creação  de  duas  ca- 
marás e  o  veto  absoluto,  porque  não  comprehendia  que  o  exercí- 
cio legal  do  direito  de  legislar  podesse  ser  limitado  aos  indivíduos 
investidos  pela  soberania  nacional.  Fernandes  Tliomaz  recusou-se 
nobremente  a  receber  o  ordenado  que  o  congi-esso  aibilrou  aos 
membros  do  governo  provisório,  dizendo  que  o  que  fizera  fora  so- 
mente a  bem  da  pátria,  sem  alguma  ideia  de  premio.  i\o  preambulo 
do  decreto  sobre  a  exlincção  do  tribunal  inquisilorial  dizia-se  que 
a  nação  não  o  podia  sustentar  por  causa  do  estado  da  fazenda  pu- 
blica. O  grande  orador,  levanlando-se  indignado,  exclamou  que  era 
ridículo  semelhante  motivo,  quando  a  veidadeira  e  a  única  razão 
era  elle  não  poder  existir  n'um  paiz  de  homens  livres.  Apezar  do 
congresso  evocar  a  protecção  do  espirito  santo  e  de  se  submetter 
á  santa  religião,  Fernandes  Thomaz.  por  difterentes  vezes,  se  mos- 
trou adversário  decilido  do  clero,  combatendo  com  firmeza  as  suas 
perlenções,  como  na  occasião  em  que  o  patriarcha  se  recusou  a 
jurar  as  bases  da  constituição;  o  sincero  liberal  piopoz  que  fosse 
ouvido  e  julgado.  O  congresso  approvou  a  formação  de  um  conse- 
lho de  Estado  de  nomeação  regia,  entre  nomes  propostos  pelas  cor- 
tes. Disculindo-se  se  os  frades  seriam  ou  não  elegíveis  para  con- 
selheiros de  Estado,  Fernandes  Thomaz  disse  «que  elles  tinham 
morrido  para  o  mundo,  e  que  desejava  que  elreí  os  não  tomasse 
para  confessores  quanto  mais  para  conselheiros!  Se  qiiizerem  que 
deixem  o  habito,  e  então  talvez  se  resolvesse  a  votar  em  al- 
gum ! » 

Occupando-se  n'uma  sessão  do  veto  concedido  ao  monarcha, 
disse  que  «era  somente  para  as  leis  orgânicas:  mas  que  emquanto 
á  constiluição  não  havia  senão  acceital-a  ou  rejeital-a.»  D.  João  VI 
resolvera-se  por  fim  a  partir  para  Portugal;  e  na  manhã  de  3  de  ju- 
lho a  frota  que  o  conduzia  fundeou  no  Tejo.  Por  deliberação  das 
cortes  o  rei  só  desembarcou  no  dia  seguinte,  indo  immediatamente 
jurar  as  bases  da  constituição.  Silvestre  Pinheiro  Ferreira  leu  em 
nome  do  rei  o  discurso  em  resposta  ao  do  presidente  da  camará, 
pronunciado  por  occasião  do  juramento.  As  expressões  da  resposta 
regia  não  agradaram  ao  congresso  que  as  julgou  contrarias  ás  ba- 
ses da  constituição,  vendo-se  D.  João  VI  forçado  a  declarar  por 


MANUEL  FERNANDES  THOMAZ  219 


carta  que  não  fora  sua  intenção  violar  o  juramento  prestado  na 
véspera, 

A  falta  de  espaço  não  nos  permilte  entrar  em  mais  extensas 
considerações  sobre  a  linha  de  condiicta  de  Fernandes  Thomaz  no 
parlamento.  Em  resumo,  só  podemos  dizer  que  el!e  conservou-se 
sempre  á  altura  do  seu  sincero  patriotismo  e  do  seu  immciiso  amor 
pela  causa  do  povo.  Por  isso  mesmo  era  odiado  pelos  grandes  da 
corte  e  calumniado  mi^eravelmente  por  invejosos  e  despeitados ; 
pintaram-no  ao  pé  da  forca,  acusaram-no  de  roubo,  e  todos  os 
dias  lhe  enviavam  cartas  anonymas  com  insultos  e  ameças  de  mor- 
te. Foi  sempre  esta  a  recompensa  das  grandes  acções  e  do  desin- 
teresse no  serviço  da  pátria  ! 

A  figura  de  Fernandes  Thomaz  no  congresso  constituinte  é  des- 
cripta  assim  por  um  estrangeiro:  «As  feições  do  seu  rosto  eram 
austeras  e  fortemente  caracterisadas ;  os  olhos  eram  de  fogo,  os 
cabellos  curtos  e  crespos  começavam  a  embranquecer.  Sua  tez  era 
de  um  moreno  pronunciado:  a  voz  retumbava  como  o  ribumbo  do 
trovão ;  suas  ideias  eram  claias,  as  phrases  concisas  e  nervosas. 
Em  seus  discursos  nem  se  encontravam  parenlhesis,  nem  circum- 
loquios:  nem  offendia,  nem  lisonjeava  pessoa  alguma;  parecia  não 
cuidar  na  impressão  que  produzia  no  auditório,  e,  com  os  olhos 
fixos  no  presidente  não  estava  altenlo  senão  para  a  inspiração  da 
sua  consciência.  Á  vista  deste  orador  observei  nas  physionomias 
dos  ouvintes  um  sorriso  de  satisfação  misturado  com  respeito*.» 

É  porque  elle  era,  na  verdade,  como  disseram  ao  illustre  estran- 
geiro:—  O  rei  da  nossa  revolução. 

VII 

Em  setembro  de  182:2  concluiu-se  a  constituição  e  no  dia  30  foi 
jurada  pelos  deputados.  No  dia  1  de  outubro  D.  João  VI,  acompa- 
nhado do  infante  D.  Miguel  e  de  toda  a  corte,  prestou  o  juramento 
solemne,  a  que  dentro  de  alguns  mezes  havia  de  faltar,  listavam 
encerrados  os  trabalhos  do  congresso  constituinte. 

Fernandes  Thomaz  tamhern  tinha  terminado  a  sua  missão.  Doente 
ha  muito,  perdera  de  tal  modo  as  forças,  nos  últimos  mezes,  pelos 
cuidados  e  esforços  dispendidos  com  as  sessões  das  cortes,  que  lhe 
sobreveio  uma  febre  agudíssima  e  cahiu  prostrado  no  leito,  em  es- 
tado perigosíssimo.  Esta  noticia  causou  no  publico  a  mais  viva  im- 
pressão :  o  povo  corria  todo  a  casa  do  grande  tribuno  para  infor- 
mar-se  do  que  succedia.  Nas  ruas  e  nas  praças  ninguém  fallava 
n'outra  cousa.   Ouviam-se  palavras  sentidas  de  respeito,  quasi  de 


1  Lettres  historiques  et  politiques  snrle  Portugal,  Conde  Peccliio,  apud  Tli.  Bra- 
ga: Soluções  positira'i  da  politica  portttgueza,  vol.  in,  pag.  6'i. 


220  EtNCYCLOPEDIA  HEPUBLICANA 

adoração.  Circulavam  boatos  assustado! es.  Dizia-se  que  o  grande 
patriota  estava  moribundo.  Heuriiam-se  grupos  nos  passeios,  nos 
largos.  Viam-se  semblantes  tristes  e  carregados  :  olhos  arrasados 
de  lagrimas. 

Perdera-se  de  lodo  a  esperança  de  o  salvar.  Mas  elle.  sublime 
espirito,  apezar  de  gravemente  doente,  discutia  ainda  os  negócios 
públicos  com  os  seus  amigos,  e  com  os  médicos  os  remédios  que 
pertendiam  applicar-lhe.  Não  dei.xava  um  só  instante,  mesmo  no 
leito  da  dòr,  de  [)ensar  na  pátria  a  ijiie  consagrara  os  melhores 
dias  da  sua  vida.  Era  a  sua  ideia  permanente,  e  no  emtanto  estava 
convencido  do  seu  próximo  fim.  Na  véspera  do  dia  fatal,  voltava-se 
para  o  medico,  e  dizio-lhe  em  voz  firme,  sorrindo:  «Então,  meu  dou- 
tor, quem  sabe  mais  medicina'?.  . .  Sou  eu,  que  sempre  o  disse. 
Nós  tinhamos  argumentado,  e  eu  lhe  tinha  talvez  dito  alguma  cousa 
mais  forte:  mjs  não  lhe  peço  perdão,  porque  o  não  ofíendi:  entre- 
tanto sou-lhe  muito  agradecido;  porque  tem  trabalhado  como  um 
homem  ecomo  um  amigo'».  Elle  próprio  animava  a  esposa  e  pro- 
curava consolal-a;  dizia-lhe  que  sentia  alguns  allivios,  mas  que  não 
tivesse  grandes  esperanças,  porque  tinha  de  ser  assim.  Mais  tarde 
quiz  despedir-se  delia;  estava  ao  lado  da  cama  o  padre  mestre  Fr. 
Sabino,  a  quem  pediu  para  a  ir  chamar.  Respondeu-lhe  este  que 
ia  perguntar  aos  seus  amigos  se  seria  conveniente  essa  entrevista, 
e  voltando,  participou-lhe  que  era  negativo  o  voto  unanime  delles. 
Fernandes  Thomaz  ol)servou  placidamente  :  «Então  está  isso  lá 
por  fora  em  boa  ordem  :  |)0is  bem  ;  elles  assim  o  decidiram  e  eu 
me  sujeito  porque  elles,  fora  do  caso  em  que  me  acho,  tèm  obri- 
gação de  pensar  melhor  do  iiue  eu.   Este  negocio  está  acabado!» 

Assim  terminaram,  em  19  de  novembro  de  1822,  os  soffrimen- 
tos  deste  honrado  e  sincero  revolucionário,  que  tantos  serviços 
prestou  á  causa  da  liberdade.  Morreu  como  viveu.  Corajoso  e  enér- 
gico alé  aos  últimos  momentos,  legou-nos  um  exemplo  grandioso 
do  que  pôde  a  vontade  unida  a  um  caracter  nobilíssimo,  que  li- 
nha por  ideal  o  bem  do  povo  e  o  futuro  da  nossa  nacionalidade. 

Teixeira  Bastos. 


A  3RLasào 
I 

Eu  não  venlio  cantar  as  noites  socegadas, 
As  noites  das  Ninons  nervosas  ou  lympliatÍL'as. 
Nem  tão  poui'o  saudar  as  frescas  madrugadas, 
E  as  rosas  em  botão,  as  rosas  aromáticas: 


1  Vid.  Diarw  do  Governo,  n.»»  271  e  272.  de  16  e  18  de  novembro  de  1822. 


A  RASÃO  221 


N:ío  trago  dentro  d'alrna  um  ninho  perfumado 
D'alegres  rouxinoes  e  brancas  cotovias. 
Deixei  o  Homantisino,  —  esse  velUo  castrado. — 
Nos  braços  já  senis  das  magras  utopias. 
E  venho  a  escarnecer,  por  este  mundo  fora. 
Das  trágicas  visões  d'uns  palhdos  poetas 
Que  atiram  madrigaes  iilylicos  á  aurora 
E  choram,  atravez  dos  vidros  das  lunetas 
Uns  prantos  ideaes.  alambicados,  ternos, 
Como  as  superstições  idolatras  dos  persas; 
Eu  trago  dentro  d'alriia  o  gelo  dos  invernos. 
As  crenças  sem  calor,  as  illusões  dispersas. 

Tenho  um  punhal  agudo,  um  escalpelo  enor.Te. 

Que  rasga  e  dilacera  os  peitos  mais  valentes, 

Dentro  em  mim  a  consciência^  esse  espião,  não  dorme. 

Não  sôa  ao  meu  ouvido  a  voz  terna  dos  crentes. 

Sujeito  ao  meu  olhar  insondável  e  frio, 

Como  os  gumes  falaes  dos  aços  fulgurantes, 

Os  feitos  dos  heroes,  o  ceu  uegio  e  sombrio, 

A  vida  das  nações,  as  almas  dos  amantes. 

Eu  desço  á  profundesa  escura  do  inysterio, 

Hevolvo  as  podridões  nojentas,  asquerosas, 

Onde  vive  a  Traição,  a  Crápula,  o  Adultério, 

O  Vicio,  a  Embriaguez,  as  coisas  criminosas 

Em  fraternal  convívio,  em  doce  sociedade, 

Como  um  bando  fatal  de  cortesãos  medonhos, 

Sentados  em  redor  da  mesa-Ebriedade, 

Cançados  de  beber,  nostálgicos,  medonhos. 

Eu  subo  o  meu  olhar,  a  águia  que  se  alteia. 

Ao  infinito  Azul  das  coisas  mais  claras, 

Eu  comprehendo  o  Bel  lo,  eu  idolatro  a  Ideia, 

Deleito- me  ante  o  brilho  aurífero  das  Searas: 

Eu  sorrio-me  ao  \er  as  timidas  creanças 

Rasgar  com  mãos  de  neve  as  límpidas  flores. 

Gosto  d'ouvir  cantar  o  coro  das  Esperanças, 

Acompanhando  a  voz  dos  cândidos  Amores 

E,  em  noites  de  harmonia  em  que  a  atmosphera  e  pura, 

A  lua  radiosa,  as  lymphas  socegadas. 

Deixo  vagar  á  toa  esta  miuh"alma  escura 

Pela  charneca  além  das  Iliusões  sagradas. 

Eu  olho  friamente  as  coisas  mais  extranhas. 

Comprehendo  o  Remorso,  a  Afflicção  e  o  Crime. 

Devasso  do  Universo  as  revoltas  entranhas. 

Sei  que  a  Lagrima  é  doce  e  que  a  Prece  redime. 

Não  me  deslumbra  o  olhar  monótono  do  Christo. 

Pregado  no  madeiro,  envolto  de  negrura, 

E  pergunto,  apontando-o:  —  O  padres,  o  que  é  isto  ? 

É  eterno  o  sotfrer,  eterna  esta  amargura? 

Quereis  prender  assim  um  revolucionário, 

Quando  a  Sciencia  marcha  e  o  Pensamento  avançai 

Ai,  loucos,  cansará  a  Lenda  do  Calvário, 

Mas  olhae  que  a  Rasão.  essa  jamais  se  cança. 

Eu  encho  de  lauréis  a  fronte  da  Justiça, 
Dobro  o  joelho  em  terra  em  frente  da  Virtude. 


222  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Sigo  de  perto  a  Lucta,  ando  sempre  tia  liça 

E  vou  buscar  a  Historia  ás  sombras  do  athaude. 

Sou  eu  que  impulsiono  esse  monstro  de  ferro 

Que  atravessa,  rugindo,  as  fecundas  campinas, 

(Jue  transpõe,  sibilando,  um  rio,  um  valle,  uni  cerro 

f]  que  rasga,  orgulhoso,  os  seios  das  coUinas. 

Eu  dou  ao  navegante  a  sonda  e  a  coragem, 

A  Arte  a  phantasia.  a  concepção  ao  Bel  lo. 

Ao  Poeta  o  enthusiasmo,  a  adoraçcão,  a  imagem 

E  o  Amor  aos  corações  que  sabem  comprehendel-o. 

Ruge  no  throno  o  rei  ouvindo  a  voz  solemne 
Que  en  solto  pela  bocca  enorme  da  canalha, 
Jesus  freme  no  altar  com  meilo  que  o  condemne 
L'm  meu  protesto  audaz  e  essa  infame  gentalha, 
Os  grandes  charlatães  das  fabricas  de  Roma, 
Escutam  com  pavor  os  meus  cantos  divinos. 
Fogem  se  ao  lábio  meu  uma  Ironia  assoma, 
Como  uma  horde  feroz  de  negros  assassinos, 
Perseguidos  de  perto,  apressuradamenle, 
Pela  vingança  audaz  dos  grandes  pumdores; 
Não  supportam  a  luz  os  olhos  da  serpente, 
Não  roçam  pelo  Sol  as  azas  dos  condores. 

II 

Eu  chamo-me  a  Rasão  e  venho  armar  o  Povo 
Contra  o  poder  de  Deus,  contra  o  poder  dos  reis, 
Trago  para  .salval-o  um  Evangelho  novo, 
.Novas  crenças  d'Amor,  novas  e  sabias  leis. 

Eu  chamo  me  a  Rasão  e  vós,  ó  condemnados 
Que  vos  chamaes  Canalha,  erguei  o  olhar  feroz  ! 
Em  breve  ha  de  raiar  o  Sol  dos  desgraçados. 
Em  breve  ha  de  vibrar  o  som  da  minha  voz  ! 

E  então  é  destruir  esse  mundo  já  podre. 
Onde  tudo  é  postiço,  é  theatral,  é  vil, 
É  esmagar  aos  jiós  esse  estafado  odre, 
É  punir,  é  vence-,  ó  Povo  inda  servil  1 

Além  ouve-se  já  o  rumor  da  batalha, 
Sente-se  o  trovejar  da  bocca  do  canhão. 
Eia,  de  pé,  de  pé  I  Levantate,  Canalha, 
Que  está  juncto  de  nós  a  santa  Revolução. 

Aponta  ao  padre  infame,  ao  monarcha  devasso 
Os  fdhos  teus  sem  pão.  os  olhos  teus  sem  luz; 
Destroe  o  throno  e  o  altar,  arrasa  a  egreja  e  o  paço. 
Desprende  o  Christo,  beroe,  dos  braços  dessa  crnz. 

Esmaga  d'um  só  bote  a  tétrica  realeza, 
O  rei  tornado  Deus,  a  hypocrisia,  emlim; 
Que  soem  pelo  ar  os  sons  da  Marsetheza, 
Cantados  pela  bocca  austera  do  clarim. 


o  CÂNTICO  DOS  PARIAS  22.1 


E  depois  raiará  o  dia  da  Justiça, 
Banhado  pela  luz  fecunda  da  Masão. 
Anin>o,  eia,  luctar,  ó  vós  que  andaes  na  liça, 
Ó  filhos  da  Canalha,  ó  Povo,  ó  meu  irmão  ! 


Lisboa.  Julho.  1882. 


Ernesto  Pires. 


Ô  ccintica  dos  íidrlias 

Mal  hajam  aquelles  que  interdisseram  aos  párias  a  terra. 
o  sol,  a  agua,  o  arroz  e  o  lume.  Mal  hajam  os  que  os 
amaldiçoaram.  Mal  hajam  os  que  os  forcaram  a  abrigar 
a  velhice  dos  avós  e  o  herco  dos  filhos  nos  reductos  das 
feras.  Mal  hajam  os  que  atiraram  com  os  párias  para  a 
casta  dos  abutres  e  das  chaeas  immuudas,  porque  os  pá- 
rias são  homens. 

TlP.UVALLUVAR. 

Luiz  Jacolliot,  iim  dos  indianistas  mais  conscienciosos  e  mais  fe- 
cundos, Iraz  no  seu  bel!o  e  interessante  livro  do  Paiiah  dansVhu- 
manité,  cap.  II,  pag.  10,  o  cântico  que  os  párias  (a  quem  o  férreo 
e  embrutecedor  dominio  sacerdotal,  que  tão  maus  frutos  tem  pro- 
duzido em  todos  os  logares  em  que  por  infellicidade  tem  impe- 
rado, negou  a  dignidade  de  homens)  o  cântico,  repito,  que  os  pá- 
rias entoam  triste,  soturna  e  desesperadamente  por  toda  a  índia, 
quer  nas  costas  de  Coromandel,  quer  nos  júngles  de  Travencor  ou 
nas  florestas  do  Malabar. 

Umas  vezes  é  uma  rapariguita  que  modula  estas  estancias  em 
tom  monótono  e  choroso,  fabricando  cestos  de  junco  ás  bordas  de 
um  pântano  :  outras  um  pobre  rapaz  que  vae  pastorear  uma  ca- 
bra magra  e  enfezada  n'alguma  pastagem  deserta  ;  outras  um  po- 
bre velho  abandonado  que  repete  á  solidão  a  enormidade  das  suas 
misérias;  outras  ainda  qualquer  d'estes  infelizes  hindus  que  vae 
em  busca  do  seu  iminundo  sustento,  que  elle  se  vê  obrigado  ainda 
assim  a  disputar  ás  hyenas  e  aos  chacaes. 

Ahi  vae  agora,  sem  mais  preâmbulos  o  alludido 

Cântico  dos  párias 

I 

«Que  importa  que  Surya  prosiga  nos  espaços  celestes  o  seu 
curso  eterno  e  que  esparja  em  ondas  numerosas  e  ingentes  os  seus 
raios  que  a  nossa  vista  não  pôde  fitar!...  Ceu  e  terra,  vede  o 
que  nós  somos. 

II 

Que  importa  que  a  joven  esposa  receba  um  gérmen  precioso  da 
ternura  do  marido,  que  importa  o  amor  e  a  fecundidade  . . .  Ceu 
.6  terra,  vede  o  que  nós  somos. 


224  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

III 

Que  importam  os  Ires  deuses  que  criam,  conservam  e  transfor- 
mam o  universo ;  não  é  para  nós  que  elles  brilham  com  tanta  glo- 
ria!... Ceu  e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

JV 

Não  é  para  nós  que  o  fumo  dos  sacrifícios  se  eleva  até  ao  elher, 
que  as  flores  habitam  a  terra,  que  os  frutos  pendem  nas  arvores, 
que  corre  a  agua  sagrada  do  Ganges  !. . .  Ceu  e  terra,  vede  o  que 
nós  somo?. 

V 

Não  é  para  nós  que  os  animaes  criam  e  que  as  abelhas  produ- 
zem o  mel.  Não  é  para  nós  que  as  donzellas  pisam  no  almofariz 
sonoro  a  herva  sagrada  com  que  fabricam  o  divino  licor  de  So- 
ma!. .  Ceu  e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

VI 

Não  é  para  nós  que  Âgni  creou  o  fogo  e  índra,  da  essência  im- 
mortal,  creou  a  prece  ! . . .  Ceu  e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

Vil 

Encanto  dos  olhos,  bezoii"0  das  regiões  celestes,  Indra,  tu  a 

quem  todos  os  homens  veneram,  nós  não  podemos  pedir-te  nada, 

os  nossos  votos  profanariam  teus  ouvidos!...  Ceu  e  terra,  vede 

o  que  nós  somos. 

VIU 

Foi  de  balde  que  eu  arrostei  a  morte,  procurando  surpreender 
os  mentrams  que  evocam  os  deuses;  foi  em  vão  que,  nos  reductos 
mais  espessos  dos  bosques,  eu  effectuei  as  librações  sagradas  que 
os  tornam  propícios,  os  deuses  fugiram  ao  aproximar-se!. . .  Ceu 
e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

IX 

Onde  estão  as   fontes  de  agua  pura  onde  possamos  apagar  a 

nossa  sede?  a  agua  que  cae  dos  bebedoiros  e  se  conserva  nos 

rastos  do  gado  é  a  nossa  única  bebida ! . . .  Ceu  e  terra,  vede  o 

que  nós  somos. 

X 

Onde  estão  os  campos  que  produzem  para  nós  o  arroz  e  os  ou- 
tros grãos  miúdos?  Não  ha  no  mundo  uma  haste  de  sorgho,  um 
pedacinho  de  herva,  uma  folha  de  rosa  que  nos  pertença  I  . .  Ceu 
e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

XI 

As  feras  tem  o  seu  covil,  as  serpentes  os  ninhos  de  cariahs,  a 
ave  é  livre  nos  ares,  qualquer  ramo  pôde  proteger-lhe  o  ninho  e 
as  canções.  Agni  possue  o  universo,  Vayú  a  atmosphera,  Aditya 


i 


o  CÂNTICO  DOS  FARIAS  225 

O  ceu,  Tchandramos  os  espaços  conslellados,  Vidyut  as  nuvens,  o 
homem  das  quatro  castas  nasce  e  morre  na  casa  de  seu  pae ;  e 
onde  é  que  o  filho  do  pária  pôde  abrir  os  olhos?  onde  está  a 
terra  amiga  que  lhe  hade  guardar  os  despojos?. . .  Ceu  e  terra, 
vede  o  que  nós  somos. 

XII 

Quando  a  sombra  sobe  dos  valles  ao  cume  dos  bosques  sagra- 
dos, que  o  padial  reconduza  os  rebanhos  de  elephantes,  que  o  su- 
dra  deixe,  cantando,  os  arrozaes,  a  pedra  de  cacry  retine  sob  a 
mão  das  raparigas  que  preparam  a  refeição  da  noite  ;  quando  se 
deitam  aos  cães  os  sobejos  da  comida,  onde  pôde  o  pária  ir,  pois, 
comer?. . .  Ceu  e  terra,  vede  o  que  nós  somos. 

XIII 

Quando  as  mulheres  traçam  no  chão  das  habitações  os  signaes 
consagrados  que  expulsam  os  maus  espíritos  :  quando  toda  a  gente 
repousa,  onde  pôde  dormir  o  pária?. . .  Ceu  e  terra,  vede  o  que 
nós  somos. 

XIV 

Quando  lodos  choram  numa  casa,  e  o  carro  mortuário  está  co- 
berto de  flores,  a  alma  do  morto  está  satisfeita,  o  bálsamo  liquido 
correrá  sobre  a  fogueira ;  aquelle  que  tem  a  esperança  de  sei-  ac- 
companhado  das  preces  sagradas  pôde  esperar  com  alegria  o  des- 
pertar celeste. . .  Mas  o  pária  onde  pôde  morrer?. . .  Que  espe- 
rança pôde  ter  de  renascer?...  Ceu  e  terra,  vede  o  que  nós 
somos.» 

Este  verdadeiro  e  sentido  cântico  que  os  infelizes  párias  repe- 
tem na  sua  agonia  eterna,  demonstra  evidentemente  a  veracidade 
das  seguintes  linhas:  «Mourant  de  faira  ou  malade  (le  pariah),  au- 
cune  porte  ne  sesl  jamais  ouverte  devant  lui ;  ses  enfants  naissent 
dans  la  jungie,  sou  corps  pourrit  dans  les  charnersi  déserts,  car 
il  n"a  droit  ni  aux  búchers  ni  à  la  terre,  la  ílétrissure  jetée  sur 
sa  race  par  le  prètre  le  pourrint  dans  la  morí.»  E  outrosim  que 
«dans  le  drame  mystérieux  et  triste  qui  joue  sur  la  terre  depuis 
des  centaines  de  siècles,  il  est  un  role  que  n'a  jamais  manque 
d'acteurs:  c'est  celui  de  Topprimé,  de  Tesclave.  du  pariah.» 

As  estrophes  traduzidas  assim  são  devidas  a  Tirnoalluva,  o  único 
poeta  pária  que  a  índia  inteira  tem  produzido.  Nada  obstante  os 
preconceitos  da  casta  que  repellem  o 'pária  e  que  fazem  couside- 
ral-o  mais  impuro  que  o  mais  impuro  dos  auimaes,  os  próprios 
brahmas  chamam  a  este  poeta  o  Dkino  pária.  E  decerto  quadra 
admiravelmente  bem  o  titulo  de  Divino  ao  escriptor  que  assim 
soube  lamentar  os  sofTrimentos  da  sua  raça  e  que  à  frente  do  seu 
livro  dos  Deveres,  mais  sublimes  decerto  do  que  o  do  grande  ora- 
dor romano  (De  offtciis)  escreveu  o  seguinte  proemio.  (ib.  pag. 

29 


ENOYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


80-81)  onde  deixou  uma  parle  da  sua  alma  nobre  e  grandiosa  e 
verdadeiíamente  devotado  á  causa  dos  opprimidos. 
Eil-o: 

I 

«Aquelle  que  soíTre,  roga  e  ama  é  um  homem. . .  O  pária  sof- 
fre,  roga  e  ama ...  O  pária  é  um  homem. 

II 
Todos  aquelles  que  o  sol  aquece  com  seus  raios,  todos  aquelles 
que  rasgam  a  terra  com  a  charrua  são  homens. . .  O  pária  gosa  o 
sol  e  nutre-se  dos  fructos  da  teria. . .  O  pária  é  um  homem. 

III 

Todos  aquelles  a  quem  a  rasão  diz:  isto  é  bom.  aquillo  é  mau, 
são  homens.  O  páiia  conhece  o  bem  e  o  mal. . .  O  pária  é  um 
homem. 

IV 

Todos  os  que  veneram  os  antepassados,  respeitam  seus  pães, 
protegem  suas  mulheres  e  seus  filhos,  são  homens.  O  pária  sacri- 
fica aos  manes,  respeita  seu  pae  e  protege  a  sua  mulher  e  os 
seus  filhos. . .  O  pária  é  um  homem. 

V 

Mal  hajam  aquelles  que  interdisseram  aos  párias  a  terra,  o  sol, 
.a  agua,  o  arroz  e  o  lume. . .  porque  os  párias  são  homens. 

VI 

Mal  hajam  aquelles  que  os  amaldiçoaram.  Mal  hajam  aquelles 
que  os  forçaram  a  abrigar  a  velhice  dos  avós  e  o  berço  dos  filhos 
nos  reductos  das  feras. . .  porque  os  párias  são  homens. 

VII 

Mal  hajam  aquelles  que  atiraram  com  os  párias  para  a  casta 
dos  abutres  e  dos  chacaes  immundos. . .  porque  os  párias  são  ho- 
mens.» 

A.  DE  Sequeira.  Ferraz. 


M\usíca  reuniosa 


(Ao  meu  condiscípulo  Braz  de  Sá) 

O  musica  lethal  das  nossas  almas. 

Não  soltes  mais  as  tuas  harmonias  I 

Das  mãos  do»  maityres  vão  eatiindo  as  palmas, 

E  o  século  condemna  os  vellios  dias. 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  227 


N'aquellas  doces,  iiieffaveis  eras, 
Em  que  na  onda  do  incenso  dos  altares, 
A  alm.i  buscava  a  luz  das  primaveras 
Nas  regiões  translúcidas  dos  ares, 

E  o  azul  do  ceu,  profundo,  indefinido. 
Reflectia  o  clarão,  da  Divindade, 
— O  musicd  lethal,  o  teu  gemido 
Era  um  bálsamo  :  hoje  é  uii)a  saudade. 

(1880).  J.  Leite  de  Vasconcellos. 


A  oricieni  da  p ciência 

(Conclusão.— V.  pag.  210.) 

Que  nos  resta,  pois?  A  sciencia,  tal  como  se  pôde  procurar  no 
estudo,  na  virtude,  na  amisade,  no  amor  á  verdade  e  á  boa  fé,  a 
acceilação  resignada  das  condições  da  nossa  exislencia,  uma  vida 
conforme  aos  principios  da  razão. 

Ainda  que  o  Museu  de  Alexandria  houvesse  sido  instituído  prin- 
cipalmente para  o  estudo  da  philosopliia  peripatetica,  não  vá  a 
crêr-se  que  os  outros  systemas  philosophicos  estavam  d'elle  des- 
terrados. Platão,  foi  ali  não  somente  estudado  nos  seus  últimos 
desenvolvimentos,  senão  que  acabou  de  supplantar  a  Aristóteles, 
6  através  da  nova  Academia  marcou  o  christianismo  um  séllo  pro- 
fundo. Seu  methodo  philosophico  era  inverso  do  peripalelico.  To- 
mava seu  ponto  de  partida  dos  feitos  universaes ;  a  existência 
mesma  era  assumpto  de  fé,  e  dali  deicia  aos  detalhes.  Aristóte- 
les, pelo  contrario,  ia  do  particular  ao  geral,  procedendo  por  in- 
ducção. 

Platão,  fiava-se  pois,  na  imaginação.  Aristóteles,  na  razão;  o  pri- 
meiro dividia  uma  idéa  primordial  em  idéas  subsequentes ;  o  se- 
gundo formava  uma  concepção  total  com  varias  idéas  particulares. 
D'ahi  resulta  que  o  methodo  platónico  produzia  rapidamente  um 
ideal  esplendido,  porém  vão;  e  o  peripatelico,  mais  lento  nas  suas 
operações,  era  muito  mais  solido.  Exigia  um  trabalho  infinito  para 
o  estudo  dos  feitos,  uma  fastidiosa  fidelidade  na  experiência  e  na 
observação,  e,  por  ultimo,  a  demonstração  vigorosa.  A  philosophia 
de  Platão  assimelha-se  a  um  palácio  elegante  suspenso  nos  ares ; 
a  de  Aristóteles  a  uma  perfeita  construcção  fundada  sobre  rocha 
laboriosamente  e  com  trabalho  incessante. 

É  muito  mais  agradável  evocar  a  imaginação  que  appellar  para 
a  razão.  No  periodo  da  sua  declinação,  preferiu  a  escola  de  Ale- 
xandria os  raelhodos  suaves  ao  severo  exercido  intellectual  que  re- 


228  EXGVr.LOPEDIA  REPUBLICAxNA 

quer  a  observação  tios  feitos.  As  escolas  dos  iieo-plaloriicos  esta- 
vam inçadas  de  myslicos  e  philosophos  especulativos,  como  Ammo- 
nius,  Saccas  e  Plaiin.  Estes  occuparam  o  posto  dos  graves  geóme- 
tras do  velho  Museu. 

A  escola  de  Alexandria  exhibe  a  primeira  applicação  d'este  sys- 
tema  que  nas  mãos  dos  nossos  modernos  physicos  tem  dado  resul- 
tados tão  maravilhosos.  Tem  destrinçado  tudo  o  que  emana  da  ima- 
ginação, e  feito  com  suas  Iheorias  a  synthese  dos  feitos  demonstra- 
dos pela  experiência,  pela  observação,  e  o  raciocínio  exacto.  Tem 
reconhecido  o  principio  de  que  não  se  estuda  bem  a  natureza.  As 
investigações  de  Archimedes  sobre  o  peso  especifico  e  as  obras  de 
Ptolomeu  sobre  óptica,  parecem-se  com  as  investigações  da  philo- 
sophia  experimental  e  formam  um  grande  contraste  com  as  diva- 
gações dos  antigos  esciiplores. 

Laplace  nos  ensina  que  a  única  observação  que  nos  apresenta 
a  historia  da  astronomia  entre  os  gregos  antes  da  fundação  da  es- 
cola de  Alexandria,  é  a  do  solsticio  de  verão  no  anno  432  antes  de 
Jesus  Christo.  feita  por  Melou  e  Knctemon.  Nesta  escola  vemos 
pela  primtira  vez  um  syslerna  de  observação  complexa,  formado 
de  instrumentos  para  medir  ângulos  e  calculado  por  melhodos  tri- 
gonométricos. A  asironomia  toma  desde  então  uma  forma  que  os 
séculos  seguintes  não  puderam  mais  do  que  aperfeiçoar. 

Não  entra  no  quadro  e  plano  d'esta  obra  relatar  detalhadamente 
os  descobrimentos  juntados  pelo  Museu  de  Alexandria  aos  conhe- 
cimentos humanos:  basta  que  o  leitor  tenha  uma  idéa  geral  do  seu 
caracter.  Para  cada  objecto  particular  pôde  consultar  o  sexto  capi- 
tulo da  minha  Historia  do  dcsenvolvimenlo  inteUectnal  da  Europa. 

Acabamos  de  ver  que  a  philosophia  estóica  duvidava  que  o  espi- 
rito de-  homem  pudesse  chegar  á  verdade  absoluta.  Emquanlo  que 
Zenon  propagava  esta  duvida,  preparava  Euclydes  a  sua  grande 
obra,  confeccionada  para  desafiar  toda  a  conlradicção  humana.  De- 
pois de  mais  de  vinte  e  dois  séculos,  vive  ainda,  modelo  de  exa- 
ctidão, de  clareza,  typo  de  demonstração  exacta.  Este  grande  geo- 
metra  escreveu  não  somente  sobre  outros  assumptos  de  mathema- 
tica,  taes  como  secções  cónicas  e  os  porismas,  senão  que  também 
se  lhe  attribuem  tratados  de  harmonia  e  de  óptica.  Neste  ultimo 
assentava  a  hypothese  de  que  os  raios  visuaes  partem  do  olho  e  se 
estendem  aos  objectos. 

É  mister  collocar  Archimedes  entre  os  physicos  e  mathematicos 
de  Alexandria,  com  quanto  houvesse  vivido  accidentalmeule  na 
Cicilia.  No  numero  das  suas  obras  de  mathemathicas,  encontra- 
vam-se  dois  livros,  sobre  a  esphera  e  sobre  o  cylindro,  nos  quaes 
demonstrava  que  o  cubo  da  esphera  é  egual  aos  dois  terços  da 
sua  circumferencia.  Tanto  era  o  apreço  que  dispensava  a  este  des- 
cobrimento, que  fez  gravar  a  figura  sobre  a  sua  sepultura.  Tam- 


A  ORIGEM  DA  SLIENCIA  229 


bem  tralon  da  quadratura  do  circulo  e  da  parábola,  escreveu  so- 
bre as  canoides  e  espheroides,  assim  como  a  respeito  da  espiral 
que  tem  o  seu  nome,  e  cujo  principio  lhe  foi  suggerido  por  seu 
amigo  Cariou  de  Alexandria.  Como  malhematico  não  tem  lido  rival 
na  Europa  no  espaço  de  quasi  dois  mil  annos.  Como  physico,  poz  os 
cimentos  da  sciencia  hydrostalica,  inventou  a  maneira  de  medir  o 
peso  especifico,  discutiu  o  equilíbrio  dos  corpos  fluctuantes,  des- 
cobriu a  verdadeira  theoria  da  balança,  e  encontrou  a  idéa  da 
bomba  que  tem  o  seu  nome  e  que  serviu  para  elevar  as  aguas  do 
Nilo.  A  elle  lambem  pertencem  a  lielice  sem  fim,  e  uma  forma  de 
lentes  de  vidro  que  no.  sitio  de  Syracusa,  segundo  se  disse,  poze- 
ram  fogo  aos  navios  dos  romanos. 

Eratoslhenes,  que  fora  em  tempo  bibliothecario  do  Museu  de 
Alexandria,  era  o  auctor  de  varias  obras  importantes.  Entre  estas 
pôde  citar-Stí  a  determinação  do  intervallo  dos  trópicos  e  uma  ten- 
tativa para  medir  as  dimensões  da  terra.  Occupou-se  com  a  arti- 
culação e  com  a  expansão  dos  continentes,  com  a  posição  das  ca- 
deias de  montanhas,  com  a  acção  das  nuvens  sobre  a  terra,  com 
as  catastrophes  geológicas,  com  os  dilúvios,  com  a  elevação  do 
solo  em  togares  outras  vezes  cobertos  pelas  aguas,  com  a  forma- 
ção dos  Dardanellos,  com  o  estreito  de  Gibraltar  e  com  o  mar  Ne- 
gro. Compoz  um  systema  do  mundo  em  três  volumes,  physico, 
mathemathico  e  histórico,  acompanhado  de  cartas  que  representa- 
vam todos  os  paizes  então  conhecidos.  Não  se  tem  apreciado  jus- 
tamente, até  ha  alguns  annos  a  esta  parte,  os  fragmentos  que  nos 
restam  das  suas  Chronicas  dos  reis  de  Tebas.  Durante  bastantes 
séculos  foram  lidos  em  grande  descrédito  por  nossas  absurdas 
chronologias  tlieologicas. 

É  inútil  citar  os  argumentos  empregados  pelos  alexandrinos 
para  demonstrar  a  redondez  da  terra.  Tinham  noções  exactas  no 
tocante  á  esphera,  aos  poios,  ao  eixo,  ao  equador,  aos  círculos  ár- 
ctico e  antartico,  aos  pontos  equinocciaes,  aos  soislicios,  á  varie- 
dade de  clima,  ctc.  Basta  recordar  os  tratados  das  secções  cónicas 
e  de  máxima  e  minima  por  Apolonio,  que  foi,  se  disse,  o  primeiro 
que  empregou  as  palavras  de  elipse  e  hyperhole.  Egualmente  só 
mencionarei  as  observações  astronómicas  de  Arislylle  e  de  Timo- 
charis.  Ás  d'este  ultimo,  com  referencia  á  estrella  Epi.  deveu  Hy- 
parco  o  seu  grande  descobrimento  da  preccessão  dos  equinoccios. 
Este  determinou  as  desegualdades  da  lua  e  a  eíjuação  do  centro. 
Adoptou  a  theoria  dos  Epiciclos  e  das  excêntricas,  concepção  geo- 
métrica que  serve  para  explicar  o  movimento  apparenie  dos  cor- 
pos celestes  por  o  movimento  circular.  Também  emprehendeu  a 
formação  d'um  catalogo  de  estrellas  por  um  n^ethodo  de  alienação, 
isto  é,  indicando  successivamente  as  que  pareciam  encontrar-se 
n'uma  mesma  zona  :  o  numero  de  estrellas  catalogadas  assim,  era 


830  E:\CYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

de  i:080.  Ao  mesmo  tempo  que  procurava  dar  uma  descripção  do 
firmamento,  fazia  o  mesmo  para  a  superfície  da  terra,  indicando 
a  posição  das  cidades  e  dos  outros  objectos  por  graus  de  latitude 
e  de  longitude.  Foi  o  primeiro  que  construiu  tábuas  da  lua  e  do 
sol. 

No  iniic»  de  tão  brilhante  pleyade  de  geómetras,  de  astrónomos 
e  de  physicos,  sobresahia  em  primeiro  plano  Ptolomeu,  auctor  da 
Syntaxis,  Tratado  de  malhematica  celeste.  Esta  obra  tem  vivido 
cerca  de  mil  e  quinhentos  annos.  e  não  ha  sido  supplantada  senão 
pelos  immortaes  Princípios,  de  Newton.  Expõe  doutrina  de  que  a 
terra  é  redonda  e  fixa  no  espaço  :  descreve  todo  o  systema  de 
instrumentos  para  observar  os  :;olsticios  ;  deduz  a  obliquidade  da 
ecliplica  ;  indica  as  latitudes  terrestres  por  meio  de  gnomo;  marca 
os  diíTerentes  climas ;  mostra  a  relação  dum  dia  terrestre  com 
um  dia  sidéreo  ;  apresenta  razões  para  preferir  ao  anno  sidéreo  o 
anno  iropital ;  expõe  a  theoria  solar,  partindo  do  principio  de  que 
a  orbita  do  sol  é  uma  excêntrica  ;  explica  a  equacção  do  tempo ; 
faz  avançar  a  discussão  sobre  os  movimentos  da  lua ;  trata  da  pri- 
meira desegualdade,  de  seus  eclipses,  e  das  variações  de  seus 
modos.  Dá  em  seguida  o  grande  descobrimento  de  Ptolomeu,  o 
que  ha  tornado  o  seu  nome  immortal,  o  descobrimento  da  segunda 
desegualdade,  condiizindo-o  á  theoria  do  epicyclo.  Esforçou-se, 
com  pouca  fortuna,  diga-se  em  boa  verdade,  ( m  medir  a  distancia 
do  sol  e  da  lua  à  terra.  Falia  extensamente  sobre  o  descobrimento 
de  Hyparco,  o  da  preccessão  dos  equinoccios  cujo  cyclo  inteiro  é 
de  vinte  e  cinco  mil  annos.  Dá  nm  catalogo  de  \:Ò2i  eslrellas, 
falia  da  natureza  da  via  láctea  e  discute  d  uma  maneira  magistral 
o  movimento  dos  planetas.  Este  ultimo  ponto  mereceu  a  Ptolomeu 
um  renome  immortal.  Fizeram-se  determinações  das  orbitas  pla- 
netárias comparando  suas  próprias  observações  com  as  dos  anti- 
gos astrónomos  e  em  particular  com  as  de  Timocharis  sobre  o 
planeta  Vénus. 

No  Museu  de  Alexandria,  Ctesibius  inventou  a  machina  de  fogo; 
seu  discípulo  Hero  aperfeiçoou-a,  annexando-lhe  dois  cylindros. 
Ali  também  appareceu  a  machina  a  vapor:  era  imia  invenção  tam- 
bém de  Hero,  e  era  de  reacção,  construída  sobre  o  modelo  da 
eolipela.  O  silencio  das  salas  de  Serapis  foi  perturbado  pelos  re- 
lógios de  agua  de  Stesibius  e  A  polónio,  relógios  que  mediam  o 
tempo  gota  a  gota.  Quando  o  kaiendario  romano  caiu  em  uma  con 
fusão  tão  cahotica  que  se  tornou  necessário  corrigil-o,  Júlio  César 
chamou  de  Alexandria  o  astrónomo  Lorigenes;  por  conselho  d'este, 
o  anno  lunar  foi  abandonado,  o  anno  solar  instituído  como  anno 
civil,  e  o  kaiendario  Juliano  introduzido  em  Roma. 

Tem-se  insultado  os  reis  macedonios  do  Egypto  pelo  modo  como 
trataram  o  sentimento  religioso  do  seu  povo.  Prostituíram  a  reli- 


A  ORIGEM  DA  SCIENCIA  231 

gião  fazendo-a  descer  ás  torpesas  da  intriga  do  Estado,  valendo-se 
delia  como  um  meio  de  governo ;  no  entanto,  deram  a  philoso- 
phia  ás  fiasses  intelligenles. 

Ninguém  duvida  de  que  houvessem  aprendido  esta  politica  du- 
rante aquellas  memoráveis  campanhas,  que  tinham  feito  dos  gre- 
gos o  primeiro  povo  do  mundo.  Haviam  visto  as  concepções  my- 
thoiogicas  de  seus  antepassados  reduzidas  a  puras  illusões,  fabulas 
e  maravilhas,  com  as  quaes  os  antigos  poetas  tinham  povoado  o 
Mediterrâneo.  As  divindades  do  Olympo  tinham-se  desvanecido,  e 
com  ellas  o  mesmo  Olympo.  Plutão  já  não  era  objecto  de  terror, 
não  se  sabia  mesmo  onde  o  collocar.  Os  deuses  e  as  deusas  ti- 
nham abandonado  os  bosques,  as  grutas  e  os  rios  da  Ásia  Menor. 
Os  seus  devotos  também  começavam  a  duvidar  de  que  elles  os  ti- 
vessem habitado  alguma  vez.  Se  as  jovens  syriacas  lamentavam, 
pois,  em  amorosos  clamores  a  sorte  de  Adónis,  não  era  já  senão 
á  conta  de  costume  nacional. 

A  Pérsia  mudara,  por  vezes  bastantes,  de  deuses  e  de  ritos :  á 
revelação  de  Zoroastro  substituira-se  o  dualismo ;  debaixo  de  no- 
vas influencias  politicas  adoptara  o  magismo.  Adorara  o  fogo  em 
altares  incendidos  nos  cumes  das  montanhas,  depois  ao  sol,  e, 
quando  apparecen  Alexandre,  cahiu  rapidamente  no  pantheismo. 

Um  paiz,  ao  qual  os  seus  deuses  particulares  não  hajam  soccor- 
rido  nos  momentos  de  perigo,  está  mui  perto  de  perder  a  fé.  As 
veneráveis  divindades  do  Egypto,  a  que  se  haviam  levantado  obe- 
liscos e  templos,  tinham-se  deixado  vencer  com  excessiva  frequên- 
cia pela  espada  dos  conquistadores.  Na  terra  das  Pyramides,  dos 
Colossos,  das  Sphynges,  as  imagens  dos  deuses  não  representa- 
vam já  realidades  vivas.  Não  se  cria  n'e!les ;  pediam-se  outros,  e 
Serapis  derrubou  Osiris.  Nas  tendas  e  nas  ruas  de  Alexandria  ha- 
via milhares  de  judeus  que  tinham  esquecido  o  Deus  do  Taber- 
náculo. 

A  tradição,  a  revelação,  o  testemunho  dos  séculos,  tudo  perdera 
o  prestigio  e  o  poder ;  as  recordações  mylhologicas  da  Europa,  as 
encarnações  da  Ásia,  os  dogmas  seculares  do  Egypto,  tudo  des- 
apparecera,  e  os  Ptolomeus  reconheceram  ainda  quão  ephemeras 
são  as  formulas  da  fé. 

Mas  o  que  também  reconheceram,  foi  que  ha  alguma  coisa  mais 
duradoura  do  que  estas  formas  religiosas,  as  quaes,  uma  vez 
destruídas,  são  como  as  formas  orgânicas  sepultadas  sob  as  ca- 
madas geológicas,  mortas  para  não  mais  reviver,  e  que  debaixo 
d'este  mundo  de  illusões  passageiras  se  occulta  um  mundo  de 
eternas  realidades. 

Não  se  poderia  descobrir  este  mundo  atravez  as  vans  tradições 
legadas  pelos  homens  que  viveram  na  aurora  da  civilisação,  nem 
tão  pouco  nos  sonhos  dos  inspirados  mysticos.  É  mister  pedir  os 


è32  EiNCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

seus  segredos  á  geometria  e  á  natureza.  Elias  derramarão  a  flux 
sobre  a  humaniilade  benefícios  sem  numero,  duradouros,  e  de  in- 
calculável preço. 

Jamais  chegará  um  dia  em  que  se  possam  disputar  as  proposi- 
ções de  Euclydes ;  jamais  chegará  um  dia  em  que  se  ponha  em 
duvida  a  redondeza  da  terra,  reconhecida  por  Eratosthenes.  O 
mundo  não  permitlirã  que  os  grandes  descobrimentos  e  as  gran- 
des invenções  da  physica,  realisadas  em  Alexandria  e  em  Syra- 
cusa,  caiam  nunca  no  olvido.  Os  nomes  beneméritos  e  sempre  il- 
lustres  de  Hiparco,  de  Apolonio.  de  Ptolomeu  e  de  Archimedes 
serão  pronunciados  com  respeito,  emquanlo  haja  homens  sobre  a 
terra. 

O  iMuseu  de  Alexandria  foi,  pois,  a  base  da  sciencia  moderna. 
É  verdade  que,  muito  tempo  antes  da  sua  fundação,  se  tinham 
feito  observações  astronómicas  na  China  e  na  Mesopotomia.  As 
mathematicas  também  tinham  sido  cultivadas  ua  índia  com  certo 
bom  resultado.  Porém,  em  nenhuma  parte  se  havia  tomado  um 
methodo  de  investigação,  uma  forma  correcta  e  séria ;  em  ne- 
nhuma parte  haviam  recorrido  ás  experiências  physicas. 

Pois  bem :  o  caracter  especial  da  sciencia  de  Alexandria,  como 
também  da  sciencia  moderna,  é  que  não  se  contenta  com  obser- 
var a  natureza,  senão  que  a  sabe  interrogar. 

Trad.  de  Xavikr  de  Paiva. 


*!Frafuções  jiojiulares  do  .Íltiarve 


ROMANCES 


CHHISTIANO 

— De  manhã  pisar  piíiienfa, 
De  tarde  cravo  e  canella  ; 
A  noute  que  eia  chegada, 
Me  deitei  no  coilo  delia. 
— Diz-me  cá,  ó  Chrisliano, 
i^orqiie  não  vaes  pra  tua  terra  ? 
— (Jomo  eu  hei  de  ir,  siôra, 
Se  me  falta  ia,  moeda  I 
Mette  a  mão  á  fraldisqueira, 
Trinta  mil  duros  lhe  dera. 
— Diz  me  cá,  ó  Christiaiio, 
Se  vaes  pdr  mar  ou  por  terrií. 
Que  se  tu  fores  por  mar, 
Companhia  eu  te  lizera, 
E  mal  que  (u  lá  chegasses 
('aso  de  mim  não  fizeras. 


TRADIÇÕES  POPULARES  DO  ALGARVE  23:j 


— Pelo  contrario,  siòra, 
Lhe  ehaiiiaiei  minha  hella. 
— Vae  áquella  cavaliariça, 
Vae  buscar  aquella  égua; 
Se  encontrares  o  rei  turco, 
Diz-ihe  que  vaes  para  a  herva. 
Palavras  não  eram  ditas, 
O  rei  turco  era  chegado. 
— Bemdito  e  louvado  seja 
O  Senhor  seja  louvailo  ! 
Jcá  chegou  a  minha  hora 
De  eu  puder  ser  resgatado. 

— Vinde  cá,  ó  Christiano, 
Vinde  cá,  ó  meu  escravo  ; 
Quem  te  .leu  tanto  dinheiro 
Para  tu  seres  resgatado  ? 
— De  três  irmãos  que  eu  tenho 
Todos  três  me  teem  ganhado, 
E  me  mandaram  agora 
Pelo  correio  passado. 
— Vinde  cá,  6  Christiano, 
Vinde  cá,  ú  meu  creado. 
Se  te  queres  tornar  turco 
Morre  perro  arrenegado. 
— Não  me  quero  tornar  turco 
Nem  morro  perro  arrenegado, 
Que  Christo  por  mim  morreu 
N'uma  cruz  ci^ucificado. 
Se  eu  d'elle  merecer  castigo 
D'ellc  serei  castigado. 

— Vinde  oá,  ó  Christiano, 

Vinde  cá,  ó  meu  creado  ; 

Se  te  queres  tornar  turco 

Morre  perro  ai  renegado; 

Eu  te  faiei  general^ 

General  do  meu  reinado. 

— Não  me  quero  tornar  turco 

Nem  morro  perro  arrenegado^ 

Que  Christo  por  mim  morreu 

Numa  cruz  crucificado. 

— Vinde  cá.  ó  Christiano. 

Vinde  cá.  ó  meu  creado, 

Se  te  queres  tornar  turco 

Morre  perro  arrenegado. 

Eu  te  farei  alferes  mór 

Andarás  sempie  a  meu  lado, 

Casarás  com  os  melhores  olhos, 

Que  tem  este  meu  reinado. 

— Não  me  quero  tornar  turco,  etc,  etc. 

— Vinde  cá,  ó  Christiano, 

Vinde  cá  ao  meu  chamado. 

Se  te  queres  tornar  turco, 

Morre  perro  arrenegado; 

Casarás  com  a  minha  filha, 

30 


234  ENCYCLOPEUIA  REPUBLICANA 


Pois  bem  na  tens  enzonado, 

E  tu  pela  minha  morte 

Ficarás  um  rei  coroado. 

— Não  me  quero  tornar  turco,  etc,  etc. 

— Vinde  c;i,  ó  minlia  íilha, 

Vinde  cá  ao  meu  chamado  ; 

Dize-ri:e  se  Chrisliaiio, 

Se  eile  te  tem  deshonrado. 

— Mande  embora  (Ihristiano 

Que  eile  a  mim  não  deve  nada  ; 

Leva- me  a  luz  dos  meus  olhos, 

Dou- Ta  por  bem  empregada. 

— Vae-te  embora,  ó  (Ihristiano. 

Vae-te  embora  pra  tua  terra; 

Pede  lá  ao  leu  rei, 

Que  me  não  arme  m.iis  guerra. 


Porlimão,  Ferragudo,  e  Meixilhoeira. 


D.  ALBERTO 

(Variante  H) 

— D.  Alberto,  não  ames 

A  fdha  do  teu  Senhor ; 

Ella  é  muito  criancinha^ 

Não  te  ba  de  ter  aujor. 

D.  Alberto  como  entendido 

A  longes  terras  foi  parar, 

Casou  com  uma  senhoia 

Que  muito  bem  sabia  fallar. 

A  primeira  que  isto  soube 

Logo  se  pôz  a  pelingrinar  : 

— Esmola  á  pelingrina 

Que  anda  a  pelingrinar; 

Que  a  pelingi  inajá  foi  rica, 

Já  teve  nuiito  que  dar. 

— Quem  sois  vós,  minha  senhora, 

Que  também  sabeis  fallar  ? 

— Sou  íiília  do  rei  d'He8panha, 

Rainha  de  Portugal. 

Dá- me  a  mão,  D.  Alberto, 

Que  de  ti  me  não  queropartar. 

— Como  pôde  ser,  senhora, 

Se  ainda  hoje  me  fui  casar? 

— Se  tiveres  nuilher  moca, 

Deus  t'a  deixe  gosar  ; 

E  se  tiveres  blhos. 

Deus  t'os  deixe  crear. 

Encostou -se  ao  hombro  d'elle 

E  ali  se  deixou  finar. 

A  rainha  que  isto  viu 

Logo  os  mandou  separar  ; 

Uma  hora  era  passada, 

O  rei  estava  a  expirar. 


Lagoa. 


TRADIÇÕES  POPULARES  DO  ALGARVE  233 


Um  enterrou-se  ao  pé  d'um  púlpito. 

Outro  ao  pé  (l'um  altar; 

D'elle  se  formou  um  pereiro, 

D'ella  uma  pereira  real ; 

As  folhinhas  que  caíam 

Logo  se  punham  a  brincar. 

A  rainha  que  isto  soube 

Logo  as  mandou  cortar ; 

D'elle  se  formou  um  pombo, 

D'e!la  uma  pomba  real, 

E  n'um  vôo  que  deram 

Loj,'0  se  foran)  abraçar. 

— A  esta  hora  estão  no  ceu 

A  sua  felicidade  a  gosar. 


(Variante   II!) 

— General,  general, 

General  mais  querido, 

Dormi  uma  noute  comigo. 

— Eu  sou  vosso  criado,  senhora, 

Vós  estaes  mangando  comigo, 

Mas  se  isso  é  assim, 

Dizei  a  hora  a  que  hei  de  vir. 

— Vem  pela  meia  noute  em  pino, 

Que  está  el-rei  meu  pae  a  dormir. 

Ainda  não  era  meia  noute 

General  ao  postigo. 

-^Quem  bate  á  minha  porta 

Á  hora  do  meu  dormir  '? 

— É  general  senhora, 

Que  vem  ao  vosso  serviço. 

— Dá-me  a  mão,  general, 

Vem-te  aqui  deitar  comigo. 

Seu  pae,  que  desconfiou, 

Sapatos  de  lona  calçou, 

Logo  ao  quarto  se  dirigiu. 

Viu  estar  ambos  a  dormir. 

Viu  estar  rosto  com  rosto. 

Como  mulher  com  marido. 

— Eu  se  mato  o  general, 

Criei-o  lie  pequenino ; 

Eu  se  mato  a  princeza. 

Tenho  o  meu  reino  perdido. 

Aqui  deixo  as  minhas  armas 

Entre  um  e  outro  mettido. 

Para  quando  acordarem. 

Que  digam  que  este  somno  foi  sabido. 

A  princezH  que  acordou  : 

— Ai  de  mim  eslou  perdida, 

A  arma  d'el-rei  meu  pae 

Entre  nós  está  meltida  ! 

Levanta-te,  general, 


236  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Ajoelha  aos  pés  do  meu  pae, 
E  chora-lhe  como  menino ; 
Não  é  elle  tão  mau. 
Para  que  não  cases  comigo. 
General  se  levantou, 
E  aos  pés  do  rei  ajoelhou. 
— Aqui  estou,  el-rei  meu  senhor, 
A  morte  eu  tenho  merecido. 
— Levanta-te,  general. 
Que  foste  muito  atrevido, 
Ainda  hontem  meu  vassallo 
Hoje  já  meu  genro  querido. 
— Se  sou  seu  genro  querido, 
Tamhem  IIh>  quero  explicar: 
Sou  fdho  do  rei  de  Hespanha, 
Neto  do  rei  de  Cascaes ; 
Sou  sohrinho  do  padre  santo, 
Diga  el-rei  qual  seja  mais. 

Paderne,  Estombar,  Alvor,  Ali)erne  e  Monchique. 


CANTARES  DE  DESPIQUE 
N'uma  romaria  da  Senbora  da  Guia,  no  Algarve 

— Com  licença  dos  senhores 

E  da  Senhora  da  Guia, 

Diga-me  senhor  mancebo, 

Se  vem  aqui  por  alma  mia. 

— A  via  em  que  eu  venho  j|| 

Eu  vos  digo  na  verdade  ;  .  " 

Venho  por  passar  o  tempo 

Que  é  cousa  da  mocidade. 

— Mocidade,  mocidade, 

Tudo  isso  faz  fazer, 

Diga-me,  senhor  mancebo. 

Se  sabe  ler  ou  escrever. 

— Não  sei  ler  nem  escrever 

Nem  tão  pouco  tocar  viola, 

Mas  espero  de  aprender 

Menina  na  vossa  escola. 

— Escola  tenho  eu 

Nêja  para  vós  aprender  ; 

Deus  vos  dera  juizo 

E  mimoira  para  saber. 

— Tindes  vós,  minha  senhora, 

Que  tão  esquiva  me  fallaes. 

Sempre  pensei,  menina, 

Que  vós  me  quizesseis  mais. 

— Muito  vos  quero,  meu  mancebo, 

N'alma  e  no  coração  ; 

Mas  ainda  comtudo  isso 

Não  me  deve  pôr  a  mão. 

— Eu  não  lhe  ponho  a  mão 

Nem  tão  pouco  bulo  era  vosco, 


Lagoa  e  Porches. 


A  PROGRESSÃO  HUMAiNA  237 


Mas  estar  á  sua  vista 
Levo  eu  em  gi-ande  gosto. 
— Desgostae,  meu  mancebo, 
Desgostae  por  vida  vossa, 
Que  esta  rosa  que  aqui  vedes 
Ella  é  d'outro  e  não  é  vossa. 
— S'ella  é  d'outro  e  não  é  minha 
Eu  o  espero  de  ser, 
Diga  menina  a  seu  pae 
Que  nos  mande  a  receber. 
— Isso  não  diiei  eu, 
Serão  palavras  escusadas, 
Menina  de  quinze  annos 
Não  é  capiz  de  dirigir  casa. 
— Outras  ue  menos  edade 
Dirigem  casa  e  marido, 
Assim  fareis  vós,  senhora, 
Quando  casardes  comigo. 
— Voltas,  meu  mancebo, 
Pelo  caminho  por  onde  viestes 
— Pelo  caminho  d'oiide  eu  vim 
Bem  o  vejo  eu  daqui. 
Quem  se  ha  de  apartar 
Sem  a  rosa  em  par  de  si. 
^Vinde  cá  outra  vez 
Que  a  resposta  levareis. 
— Não  venho  cá  outro  dia 
Gastar  solas  em  baMe. 
— Tindes  rasão,  meu  mancebo. 
Que  as  solas  custam  dinheiro  ; 
Podeis-vos  gabar,  meu  mancebo. 
Que  fostes  vós  o  primeiro. 


Reis  Dâmaso. 


A,  (ironressãQ  liuiiicniti 

Com  bastante  rasão  comparou  Pascal  a  humanidade  a  um  ho- 
mem só  que  no  decurso  dos  séculos  vae  aprendendo  sempre  e 
desenvolvendo-se  gradualmente. 

O  que  é  que  a  humanidade  tem  feito  até  hoje  senão  progredir 
e  aperfeiçoar-se  ?  Dizem  alguns  que  os  homens  teem  degenerado 
e  retrogradado  e  tendem  cada  vez  mais  a  decair.  Onde  estão  as 
provas?  Dizem:  Nos  povos  selvagens,  que  são  um  exemplo  vivo 
da  degradação  a  que  pode  descer  a  raça  humana,  tão  perfeita  e 
tão  feliz  nos  tempos  edenicos  descriptos  no  Velho  Testamento,  na 
edade  áurea  dos  theologos.  Mas  essas  provas  mostram-nos  o  con- 
trario, e  ainda  bem  I  Os  povos  selvagens  não  são  o  exemplo  vivo 
do  estado  a  que  temos  de  descer,  não.  São  pelo  contrario  o  exem- 
plo vivo  do  estado  d'onde  nos  temos  vindo  elevando  desde  ha 
muitos  séculos!  Quereis  as  provas?  Poder-vos  hia  fornecer  mui- 


238  ENGYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


tas,  muitíssimas.  Eis  algumas:  Onde  enconlraes  vós  entre  os  po- 
vos selvagens  vestígios  de  uma  civilisação  mais  perfeita,  de  um 
estado  social  supeiíor  ao  que  hoje  teem,  onde?  Excavae  os  terri- 
tórios que  elles  habitam,  ínterrogae  o  solo  e  nada  encontrareis 
que  vos  deixe  suppor  tal.  Pois  bem,  fazei  o  mesmo  ao  nosso  solo, 
aos  territórios  em  que  vivem  os  povos  mais  civilisados,  o  que  en- 
contraes  por  toda  a  parte?  Decerto  encontrareis  vestígios  de  ruí- 
nas e  de  muitas  ruínas,  encontrareis  ruínas  sobrepostas,  e  se  as 
estudardes  na  rasão  directa  das  camadas  geológicas  e  na  inversa 
dos  séculos  percorridos  vereis  que  as  mais  modernas  são  as  dos 
povos  mais  adiantados  e  as  mais  antigas  as  dos  mais  alrazados,  e 
assim  investigareis  as  ruínas  do  passado,  desde  o  resto  das  eda- 
des  romanas  até  aos  restos  das  villas  lacustres,  desde  os  instru- 
mentos d^i  ferro  até  aos  instrumentos  de  sílex  e  de  osso.  Vereis 
então  que  os  nossos  mais  antigos  antepassados,  esses  fosseis  de 
Cro-Magnon,  Neanderlhal,  Cabeço-dArruda.  etc,  em  nada  eram 
superiores  aos  povos  selvagens  das  ilhas  de  Bornéu  e  de  Sandwich, 
e  aos  indígenas  da  Africa  e  da  Austrália.  E  o  que  vos  diz  a  Bí- 
blia dos  povos  primitivos?  Não  nos  descreve  ella  Adão  coberto 
com  a  clássica  folha  de  figueira?  No  Velho  Testamento  onde  en- 
contraes  a  menor  allusão  a  essas  machinas,  que  fiam,  tecem  e  co- 
sem todos  os  nossos  fatos?  Decerto  por  peores  que  estes  sejam 
sempre  são  superiores  à  folha  de  figueira  primitiva. 

Não  percamos  tempo  a  destruir  absurdos,  e  de  mais  absurdos 
tão  palpáveis,  como  este  que  tantas  vezes  nos  apresentam  contra 
o  progresso. 

O  progresso  humano  é  um  fado  já  hoje  indiscutível ;  quem  hoje 
o  contesta  é  porque  de  lodo  em  todo  o  não  quer  ver,  ou  tem  a 
íntelligencia  tão  acanhada  que  o  não  vè;  de  qualquer  dos  modos  é 
inútil  a  discussão.  Se  um  cego  negar  a  existência  do  sol  decerto 
não  vos  cansareis  a  provar-lhe  o  contrario. 

A  humanidade  para  chegar  ao  estado  de  adiantamento  e  pro- 
gresso, que  hoje  alcançou,  tem  caminhado  muito  e  tem  dispendido 
uma  somma  incalculável  de  esforços  e  de  forças,  que  se  teem  ido 
accumulando  e  multiplicando  atravez  dos  séculos. 

Desde  o  ponto  de  partida  na  sua  vida  ante-historica  passou  a 
humanidade  por  diversas  phases  ou  estados,  que  parecem  serem 
os  seguintes  na  sua  ordem  de  snccessão :  estado  de  caçador,  es- 
tado pastoral  e  estado  agrícola,  que  correspondem  à  primeira  parte 
do  período  theologico,  isto  é  ao  período  fetichísta.  Da  vida  ante- 
historica  teem-se  encontrado  documentos  em  cavernas  e  excava- 
ções  feitas  por  toda  a  Europa  e  na  America,  e  pode-se  fazer  uma 
idéa,  mais  ou  menos  aproximada,  do  viver  primitivo  pelas  relações 
de  viagens,  em  que  se  mencionam  os  usos  e  costumes  dos  povos 
selvagens  da   America,  da  Africa  e  da  Austrália.  Os  documentos 


SUISS\  á39 

encontrados  nas  excavações  consistem  em  lanças  e  machados  de 
silex  ou  bronze,  alguns  objectos  de  cerâmica,  enfeites  de  pedra  e 
de  osso,  etc. 

Os  povos  mais  antigos,  cuja  vida  histórica  conhecemos  pelos 
monumentos  que  chegaram  até  nós  e  que  foram  recentemente  re- 
velados aos  homens  que  se  dedicam  ao  estudo  da  sociologia  pelos 
especialistas  competentes,  são  o  Egypto,  a  Chaldèa  e  a  Assyria. 
São  estes  os  povos  mais  antigos  do  Oriente,  cuj  is  civiiisaçDes  du- 
laram  nmitos  séculos  e  onde  o  progresso  humano  teve  grande 
desenvolvimento.  Con)  a  queda  destes  impérios  os  grandes  pro- 
gressos dos  povos  orientaes  não  foram  perdidos  para  a  civilisação 
da  humanidade;  os  povos  semitas  pela  sua  natureza  assimiladora 
e  cosmopolita  encarregaram-se  de  os  Iransmittir  e  propagar.  Os 
phenicos  pelas  navegações,  os  judeus  pelas  migrações,  e  os  ára- 
bes pela  conquista  foram  os  transmissores  dos  progressos  huma- 
nos; pelos  árabes  recebemos  nós  os  systemas  agrícolas  dos  chal- 
deos ;  os  arados  empregados  vulgarmente  nos  nossos  campos  e  as 
noras  de  alcatruzes  que  ainda  estão  em  uso  entre  nós  teem  esta 
origem.  Foi  também  pelos  árabes  que  a  Europa  recebeu  da  Gré- 
cia a  herança  scienlifica  que  tanto  tem  accrescentado  desde  o  sé- 
culo XVI. 

Por  outro  lado  a  corrente  directa  do  progresso  indo-europeu 
seguia  este  itenerario:  Índia,  Pérsia,  Grécia,  Roma,  Europa  da 
edade  media  e  Europa  moderna. 

Teixeira  Bastos. 


loissa 


(Conclusão.— V.  pag.  182.) 


Elegibilidade. — As  condições  de  elegibilidade  são  as  mesmas 
em  toda  a  Confederação.  Todo  o  cidadão  suisso  não  pertencente  a 
ordem  alguma  religiosa  e  tendo  direito  de  votar,  pôde  ser  eleito 
membro  do  Conselho  Nacional;  os  estrangeiros  naturalisados  suis- 
sos  não  são  elegíveis  senão  depois  de  cinco  annos  de  posse  do  di- 
reito de  cidadão. 

Incompatibilidades.  -  As  funcções  de  membro  do  Conselho 
Nacional  são  incompatíveis  com  as  de  deputado  ao  Conselho  dos 
Estados,  de  membro  do  Conselho  Federal,  e  cora  todos  os  cargos 
conferidos  por  este  Conselho. 

Todavia,  a.s  pessoas  investidas  destas  funcções  são  elegíveis, 


240  ENCYCLOPEDIA  UEPUBLICANA 


com  a  condição  de  optarem,  depois  de  eleitas,  por  uma  das  fiinc- 
ções  incompativeis. 

Duração  do  Mandato. — O  Conselho  Nacional  é  eleito  por  três 
annos  e  de  cada  vez  integralmente  renovado. 

As  eleições  geraes  para  o  renovamento  do  Conselho  Nacional, 
têem  logar  no  ultimo  domingo  do  mez  de  outnbro;  se  acaso  não 
puderem  terminar  no  mesmo  dia,  são  affixadas  para  o  dia  desi- 
gnado por  cada  governo  canlonal. 

As  eleições  parciaes  para  a  substituição  dos  membros  cujos  to- 
gares ficam  vagos,  tèem  logar  no  dia  marcado  pelo  governo  can- 
tonal,  no  máximo  espaço  de  seis  mezes. 

Opções.  —  Se  o  mesmo  individuo  foi  eleito  em  muitos  círculos 
eleitoraes,  deve,  por  indicação  do  Conselho  Federal,  declarar  sem 
demora,  qual  o  circulo  por  que  opta.  Á  vista  d"esta  declaração,  o 
Conselho  Federal  ordena  immediatamente  que  se  proceda  a  uma 
nova  eleição  nos  collegios  eleitoraes  que  ficaram  vagos. 

Sessões. — A  cada  renovamento  integral  do  Conselho  Nacional, 
os  eleitos  devem,  sem  outra  convocação  mais  do  que  o  oíTicio  de 
aviso  da  sua  eleição,  apresentar-se  na  cidade  federal  (Berne),  na 
primeira  segunda  feira  de  dezembro,  ás  dez  horas  da  manhã,  para 
a  primeira  sessão  do  Coneslho  Nacional. 

Verificação  de  poderes. — Logo  que  se  reúne  o  Conselho  Na- 
cional procede-se  á  verificação  de  poderes;  os  membros  cuja  elei- 
ção é  contestada  devem  relirar-se  no  momento  da  discussão  que 
lhe  diz  respeito. 

Os  membros  eleitos  no  decurso  da  sessão  do  Conselho  Nacional 
são  convocados  pelo  Conselho  Federal:  elles  não  podem  tomar  parte 
nas  deliberações  senão  depois  de  lhes  validarem  a  eleição. 

Demissões. — O  deputado  que  quer  demittir-se  das  suas  func- 
ções,  dirigir-se-ha  ao  Conselho  Nacional  :  é  porém  obrigado  a  as- 
sistir ás  sessões  emquanto  não  vier  o  suecessor  substituil  o. 

Presidência. — U  Conselho  Nacior.al  escolhe  no  seu  seio,  para 
cada  sessão  ordinária  ou  extraordinária,  um  presidente  e  um  vice- 
presidente. 

O  mesmo  membro  não  pôde  exercer  estas  elevadas  funcções  du- 
rante duas  sessões  ordinárias  consecutivas.  O  vice-presidente  fica 
geralmente  presidente  no  anno  seguinte.  Em  caso  de  empate  de 
votos,  o  parecer  do  presidente  é  preponderante  ;  em  matéria  de 
eleição  o  presidente  vota  como  os  outros  membros. 

Subsidio. —  Os  membros  do  Conselho  Nacional  são  indemnisa- 
dos  pelo  cofre  federal  por  meio  de  bilhetes  de  assistência  a  razão 
de  1^260  réis  por  dia.  Nos  termos  da  lei  de  20  de  julho  de  1872 
o  numero  dos  membros  do  Conselho  Nacional  eleva-se  actualmente 
a  cento  e  trinta  e  cinco. 

Revisão  da  Constituição. — Independentemente  das  eleições 


SUISS\  241 

a  que  dão  logar  a  formação  dos  Conselhos  Nacional  e  Federal, 
existe  um  outro  caso  em  que  os  eleitores  suissos  são  chamados  a 
manifestarem  a  sua  opinião  e  vontade. 

Quando  uma  secção  da  Assembléa  Federal  decreta  a  revisão  da 
Constituição  e  a  outra  secção  não  consente,  ou  logo  que^  por  via  de 
petição,  cincoenta  mil  cidadãos  suissos,  com  direito  a  votarem,  po- 
dem a  revisão,  a  questão  de  saber  se  a  Constituição  deve  ser  re- 
visada é  submetlida  á  votação  do  povo  suisso,  o  qual  resolve  vo- 
tando sim  ou  não. 

Se  a  maioria  dos  eleitores  que  tomaram  parte  na  votação  se  pro- 
nuncia pela  afíirmativa,  as  duas  secções  da  Assembléa  Federal  são 
renovadas  para  trabalharem  na  revisão. 

A  Constituição  assim  revisada  não  pôde  entrar  em  vigor  senão 
quando  for  adoptada  pela  maioria  dos  cidadãos  suissos  que  toma- 
rem parte  na  votação  e  pela  maioria  dos  cantões. 

Foi  assim  que  a  revisão  da  Constituição  votada  pelo  Conselho 
dos  Estados  e  pelo  Conselho  Nacional,  a  o  de  maio  de  1872,  foi 
annullada  pelo  plebescito  de  1:2  do  mesmo  mez.  Em  contraposição, 
uma  nova  revisão  foi  adoptada,  a  19  de  abril  de  1874,  por  14  can- 
tões e  um  semi-cantão,  representando  331:087  votos,  contra  7  can- 
tões e  um  semi-cantão  que  não  reuniram  mais  de  199:637  sufíra- 
gios. 

LEGISLAÇÕES  CANTONAES 

Independentemente  da  Constituição  Federal,  e  até  certo  ponto 
sobre  a  guarda  d'esta,  funccionam  na  Suissa,  vinte  e  cinco  Consti- 
tuições cantouaes  particulares,  (Três  dos  vinte  e  dois  cantões  da 
Confederação  acham-se  divididos  em  duas  fracções,  tendo  cada  uma 
sua  organisação  distincta.) 

Vamos  rapidamente  examinar  as  principaes  disposições  d"estas 
diversas  Constituições,  no  que  diz  respeito  aos  poderes  legisla- 
tivos. * 

Assembléas  únicas.  —Em  vinte  e  três  das  vinte  e  cinco 
Constituições  especiaes  que  funccionam  na  Suissa,  o  poder  legis- 
lativo é  delegado,  com  mais  ou  menos  extensão,  a  uma  assembléa 
única,  chamado  o  Grande  Conselho  (Gross-Ral/i,  Gran-Consiglio) 
por  todas  estas  Constituições,  salvo  as  dos  cantões  de  Cri,  de  Bale- 
Campagne,  que  adoptam  o  nome  de  Landral,  e  as  de  Schwylz,  Zu- 
rich  e  Soleure,  que  empregam  o  de  Kantonwalh. 


1  Esta  parte  do  nosso  traballio  foi-nos  ministrada  pelo  interessante  Estudo  so- 
bre a  duração  do  mandato  e  forma  de  renovação  das  camarás  lerjtslaíivas.  apresen- 
tado porHarold,  o  illusire  prefeito  do  Sena,  reeem  fallecido,  cumo  republicano  e 
livre  pensador  convicto,  á  Sociedade  de  Legislação  Comparada,  na  sessão  de  10 
de  janeiro  de  1872. 

^  31 


t42  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 

Duas  assembléas.  —  Apenas  as  Constituições  de  Unlerwald- 
Haut  e  Glaris  estabelecem  duas  assembléas  participando,  por  dif- 
ferenles  latitudes,  do  poder  legislativo.  N'estas  Constituições,  uma 
das  Assembléas  {Drcifacher-Rath)  é  uma  espécie  de  intermediário 
entre  a  assembléa  geral  dos  cidadãos  do  cantão  e  o  conselho  legis- 
lativo propriamente  dito  {Ruth  em  Glaris,  Landrath  em  Unterwaid). 

Numero.- O  numero  de  membros  d'estas  diversas  assembléas 
está  na  proporção  da  população,  mas  sobre  bases  differentes  umas 
das  outras.  É  assim  que  no  cantão  de  Berne,  a  proporção  é  de  um 
representante  para  dois  mil  habitantes,  emqiianto  que  em  Unter- 
wald-Ilaut,  as  fracções  de  mais  de  setecentos  habitantes  teem  di- 
reito a  um  representante  ao  DveifacherRath. 

Duração  do  mandato.  —  No  que  diz  respeito  á  duração  do 
mandato  dos  deputados  e  renovação  das  assembléas,  vamos  repro- 
duzir os  dados  recolhidos  por  Herold,  embora  sejam  até  certo  ponto 
incompletos. 

O  iílustre  jurisconsulto,  recém  fallecido,  como  livre  pensador,  no 
cargo  elevado  de  prefeito  do  Sena,  não  pôde  enconírar  indicação 
alguma  sobre  o  modo  de  renovação  das  camarás  legislativas  do 
cantão  de  Claris  e  das  duas  divisões  de  Appenzel.  Apesar  de  acti- 
vas investigações,  nada  pudemos  também  encontrar  sobre  este 
ponto.  I'"allaremos,  por  consequência,  só  de  vinte  e  duas  Consti- 
tuições. 

Renovação  integral.  —  De  vinte  e  duas  constituições,  deze- 
sete  admittem  a  renovação  integral ;  a  duração  do  mandato  é  que 
varia  de  um  a  seis  annos. 

Ê  de  seis  annos  no  cantão  de  Unterwald-bas;  de  cinco  nos  can- 
tões de  Soleure  e  Fribourg ;  de  quatro  annos  nos  de  Berne,  Lu- 
cerna,  Uri,  Argovia,  Tessin,  Vaud,  Valois;  de  três  annos  no  semi- 
cantão  de  Bâle-Campagne,  e  nos  cantões  de  Saint-Gall,  Thnrgovia, 
Neuchatel;  de  dois  annos  nos  cantões  de  Zug,  Zurich,  e  Genebra; 
de  um  anno  no  cantão  dos  Grisons. 

Renovação  parcial.  —  Cinco  constituições  admittem  a  reno- 
vação parcial.  São:  O  semi-cantão  de  Unterwald-haut,  no  qnal  o 
mandato  legislativo  é  de  quatro  annos  e  se  renova  na  quarta  parte 
cada  anno ;  o  cantão  de  Schwilz,  em  que  o  mandato  é  de  quatro 
annos  e  de  dois  em  dois  annos  renova  metade;  o  cantão  de  Schaf- 
fause  e  o  semi-cantão  de  Bale-ville,  em  que  o  mandato  é  de  seis 
annos  e  se  renova  por  metade  de  três  em  três  annos. 

Dissolução.  —  Não  ha  na  Suissa  poderes  depositários  do  di- 
reito de  dissolução,  por  isso  que  as  assembléas  electivas  são  as  de- 
positarias únicas  da  auctoridade  suprema.  Como  estas  por  si  mes- 
mo designam  os  membros  do  poder  executivo,  excepto  em  Gene- 
bra e  Zurich,  os  confli€tos  são  quasi  impossíveis  entro  os  dois  po- 
deres. 


DEANTE  DUM  CHRISTO  2i3 


Todavia,  em  dois  cantões,  a  revocação  antecipada  do  mandato 
legislativo  pôde  ter  logar  por  vontade  dos  eleitores. 

No  semi-canlão  de  Bale-Campagne  ha  excepcionalmente  logar  a 
um  renovamento  integral  do  Landrath,  quando  o  pedido  resulta  de 
um  voto  emittido  em  escrutinio  secreto  realisado  em  reunião  pu-, 
blica  e  tomando  parte  na  votação  a  maioria  dos  eleitores  presen- 
tes, com  a  condição  que  estes  sejam  em  numero  de  mil  e  quinhen- 
tos, pelo  menos,  (contando  o  semi-canlão  quasi  cincoenla  e  quatro 
mil  habitantes). 

No  cantão  de  Argovia,  quando  seis  mil  eleitores  (o  cantão  tem, 
pelo  menos,  duzentos  mil  eleitores)  exprimem,  por  via  de  petição, 
o  voto  da  dissolução  do  Grande  Consplho,  o  poder  executivo  é  obri- 
gado a  submellei'  a  questão  ás  assembléas  dos  círculos,  que  a  re- 
solvem. N'este  caso,  o  novo  Grande  Conselho  não  é  eleito  senão 
para  completar  o  tempo  do  mandato  que  restava  preencher  ao  pre- 
cedente. 

Tal  é,  em  resumo,  e  salvo  certos  detalhes  secundários,  que  nos 
é  impossivel  recolher,  a  summa  da  legislação  suissa  em  matéria 
de  direito  eleitoral.  Entretanto  c  incontestavelmente  este  o  único 
paiz  da  Europa,  onde  peia  sua  ( rganisação  administrativa,  o  povo 
exerce  uma  verdadeira  soberania  e  onde  os  gol[)es  de  estado  e  as 
dictaduras  se  tornam  impossíveis.  Na  Suissa  não  ha  grandes  ho- 
mens nem  cenlralisação  de  poderes,  e  por  isso,  como  é  o  povo  que 
quer  e  manda,  as  grandes  crises  são  debelladas  e  no  meio  de  ini- 
migos irreconciliáveis  sabe  este  paiz  aguentar  dignamente  a  sua 
autonomia,  prosperando  e  progredindo. 

Carrilho  Videira. 


fieuiite  o  uoi  iKíirisío 
I 

DeixHS  que  prenda  assim  teu  braço  forte 
A  cadfia  da  negra  esiM-avidão^ 
Pregado  n'essa  cruz,  depois  da  morte 
Softrendo  uma  contínua  expiação  ! 

Eu  não  invejo  a  tua  liorrivel  sorte. . . 
Sujeito  ao  ciliar  feroz  da  multidão, 
Não  vês  nunca  biilliar  no  ceu  do  norte 
Uma  estreita  sequer  de  redempção. 

Ai,  meu  dooe  Jesus  1  eu  soíTro  tanto  ! 
Tenlio  no  peito  meu  a  Raiva  e  a  Dor 
E  no  olliar  desvairado  a  luz  do  Espanto. . 


244  EXCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


Mas  sei  que  ha  de  findar  o  meu  Horror 
E  sei  que  hei  de  enxugar  este  meu  pranto 
Ás  dobras  d'um  sudário  redemptor. 


II 


E  tu  cá  ficarás  exposto  ao  frio 
>ia  Iriste  solidão  das  calhedraes. 
Curvado  o  rosto  pallido  e  souiiirio. 
Guardando  dentro  em  ti  a  Magoa  e  os  Ais. 

E  tu  cá  ficarás  conlinuamenle. 
Exposto  aos  furacões,  aos  vendavaes, 
Sempre  preso  na  cruz,  sempre  pendente, 
Sempre  submisso  á  voz  dos  cardeaes. 

Hnrrivel  fado  teu  !  horrivel  sorte  I 
Viver  eternamente,  após  a  morte, 
Sentir  pulsar  gelado  o  corapão  ! 

Ai.  meu  doce  Jesus  I  ai,  que  alegria, 
Poder  a  gente  descançar  um  dia  I . . . 
Antes  fosses,  Jesus,  um  meu  irmão. 


Lisboa. 


Ernesto  Pires. 


Xavier  «e  3Paiva 

(Esboço  biograplnco) 

Dizer  quem  era  este  individuo  e  definil-o  em  poucas  linhas,  não  é  fácil,  por- 
quanto a  sua  vida  foi  unia  das  mais  atribuladas  que  conheço,  dando  por  isso  as- 
sumpto para  umas  paginas  cheias  de  sentimento. 

IS'asceu  em  Lagos,  d'uma  familia  pobre,  e  tinha  apenas  trinta  e  quatro  an- 
nos  quando  expirou  n'um  catre  do  hospital,  abandonado  dos  amigos  e  correli- 
gionários. 

Xavier  de  Paiva  era  um  bello  espirito,  um  poeta  arrojado,  um  obscuro 
obreiro  do  progresso.  Não  contava  um  episo  lio  alegre  da  sua  vitla  sempre  triste 
6  mesquinha.  Parece  que  nascera  só  para  o  sofTrimento  e  para  a  miséria  que  o 
procurava  de  preferencia  a  outros  enlhusiastas  das  nnvas  ideias. 

Vi-o  e  fallei-lhe  uma  só  vez.  Foi-nie  apresentad"  por  ura  moço  com  quem 
ellft  convivia  na  maiur  jntimidade.  A  maneira  simples  por  que  Xavier  de  Paiva 
se  me  apresentou  e  as  poucas  palavras  que  me  dirigiu,  pedindo-me  um  artigo 
para  a  Encvcilupedia  Iíepcblicana  que  ia  fundar,  bastaram- me  para  que  imme- 
diatamente  sympathisasse  cor.  o  seu  todo  despretencioso  e  modesto.  Olhando-se 
para  elle,  observando-se  os  seus  movimentos  nervosos,  o  seu  olhai'  vivo,  pene- 
trante, sentia-se  essa  lufada  quente  do  talento  e  da  inspiração. 

Era  o  que  se  chama  um  martyr  das  ideias  revulucionanas,  um  valente  lucta- 
dor,  muitas  vezes,  por  ser  republicano,  repellido  das  offieinas.  onde  elle  pobre 
operário  trabalhava  para  se  alimentar. 

As  privações  e  desconforto  de  toda  a  sorte  aggravaram  os  seus  soíTrimentos 
physicos;  mas  ainda  assim  o  grande  democrata  pugnava  pelos  direitos  do  prole- 
tariado d'onde  sahira,  sem  pensar  um  só  momento  de  que  elle  mesmo  era  o  maior 


XAVIER  DE  PAJVA  245 


desgraçado.  Era  esse  bello  e  generoso  sentimento  do  bem  e  da  justiça  universal, 
que  o  animava  na  composição  das  suas  estiophes  demolidoras,  cheias  de  enthu- 
siasmo  e  convicção. 

l'oude  este  herne,  este  martyr  obscuro,  d"uma  vida  cheia  de  amarguras,  exer- 
cer como  poeta  e  escriptor  alguma  iniluencia  no  seu  meio?  Decerto,  porque  a 
classe  operaria  lia  os  seus  esciiptos  com  avidez,  enlhusiasmando-se  a  cada 
phrase,  a  cada  periodo,  a  cada  verso,  admirando  o  arrojo,  e  elovação  dos  seus 
pensamentos^  a  sinceridade  e  firmeza  das  suas  crenças.  Se  Xavier  de  Paiva  ti- 
vesse tido  uma  inslrucção  solida,  seria  um  grande  escriptor  e  poeta  para  nós  to- 
dos. Assim,  ficou  sendo  para  as  classes  mais  instruídas,  um  moJpsto  obreiro,  e 
para  os  seus  companheiros,  o  seu  publico,  a  classe  operaria,  a  quem  o  trabalho 
material  quotidiano,  superior  ^s  suas  forças,  a  má  constituição  soiMal  e  a  inépcia 
dos  nossos  governantes  roubam  todos  os  elementos  par.í  se  instruir,  restará  sem- 
pre, mais  elevado,  como  um  enérgico  delensor  dos  seus  direitos,  como  um  grande 
revolucionário,  e  um  poeta  fogo.- o  e  de  giande  talento  (;ue  tão  bem  soube  failar- 
Ihe  ao  coração.  Esses  miseros  que  trabalham  noite  e  dia,  humedecendo  os  lábios 
resequidos  pelo  esforço  com  o  seu  próprio  suor,  não  podem  deixar  de  ignorar 
ainda  os  modernos  progressos  inlellecluacs,  os  grandes  avanços  da  sciencia  e  da 
arte,  demais  quando  a  maior  parle,  por  falta  de  condições  favoráveis  para  recrear 
o  espirito  n'alguns  momentos  apenas,  se  vê  forçada  a  \iver  nas  trevas,  condeni- 
nada  a  não  poder  nunca  aspirar  a  um  raio  de  luz,  a  não  poder  allingir  as  fulgu- 
rações dos  génios.  É  pois  o  proletariado  que  elle  pretendia  erguer,  quebrando- 
Ihe  as  eadéas,  e  para  quem  elle  escrevia  energicamerde  com  a  fin)  de  o  fazer 
comprehender  os  grandes  princípios  da  moral  e  da  justiça,  que  o  seu  nome  licará 
mais  duradouro  e  melhor  gravado  nos  corações,  como  o  d'um  apostolo  do  bem. 

Neidium  poeta  como  Xavier  de  P.iiva,  soube  lãu  bem  fallar  á  classe  opera- 
ria a  que  elle  pertencia.  Elle  conhecia- a  e  sabia  peifeitamente  quaes  as  suas  as- 
pirações, quaes  os  seus  conhecimentos  litterarios,  e  confessava  que  ella  era  real- 
mente a  menos  instruída  [lara  a  conqirehensão  (Funia  certa  ordem  de  trabalhos 
de  propaganda.  Por  isso  combatia  denodadamente  as  instituições  caducas  sem 
ponto  de  vista  phílosojihico,  também  sem  ostentação  erudita,  e  quando  muito  il- 
luminava  as  suas  concepções  poéticas,  com  uma  fiafina  das  mais  eloquentes  da 
Historia,  que  elle  escolhia  de  propósito  para  o  eITeilo  emocional. 

Era  assim  que  elle  conseguia  eidhusiasmar  e  toniar-se  querido.  E  por  isso 
que  a  sua  niernoria  se  conservará  entre  os  que  foram  seus  companheiros  no  tra- 
balho e  na  desventura. 

Mas  se  o  bíograpbado  não  era  considerado  entre  os  mais  instruídos  como  um 
talento  privilegiado,  nem  ao  nienos  como  um  escriptor  distincto,  o  que  já  é  fa- 
vor, e  sim  como  um  modesto  ohreiro,  o  que  equivale  a  dizer  na  sua  linguagem  de 
sahios  —  o  termo  medio  entre  o  prodígio  e  a  nullidade  ou  eiUre  a  illustração  e  a 
simples  habilidade,  e  só  as  classes  menos  privilegiadas  da  sociedade  o  conside- 
ravam como  o  seu  mais  revolucionário  poeta^  é  d'esse  mesmo  antagonismo^  d'essa 
contradicção,  d'esse  modo  de  ver,  de  apreciar  e  de  sentii.,  que  inferimos  o  grande 
merecimento  do  finado  escriptor.  A  sua  maior  gloria  é  o  ter  sido  colloeado  en- 
tre os  modestos  obreiros;  a  prova  de  que  elle  era  um  distincto  mendjro  do  par- 
tido republicano  está  n'essa  phrase  proferida  antes  e  depois  do  homem  se  finar, 
quer  como  expressão  sincera  e  convicta,  quer  como  simples  desabafo  ou  lamento 
forçado,  para  se  não  desdourar,  d'essa  aristocracia  republicana  que  o  julgava  no 
intimo  da  sua  consciência  e  alta  capacidade  critica,  corno  um  dos  mais  humildes 
e  menos  validos.  Ou  commiseração  para  com  os  infelizes  e  repugnância  dos  mo- 
tejos depois  da  morte^  ou  a  sinceridade  conscíen/e  e  perfeita  comprehensão  dos 
individuos  que  se  não  impõem  nem  procuram  as  ovações  ruidosiiS  ás  portas  das 
egrejas  e  nos  espectáculos.  Nem  sempre  convém  a  manifestação  de  tudo  quanto 
se  sente,  nem  tão  pouco  ser-se  expansivo  demais,  principalmente  para  com  aquel- 
les  que  nos  excedem  na  abnegação  e  coragem,  traçando  uma  linha  de  condueta 
na  sua  vida,  amando  a  rectidão,  o  direito  e  a  justiça,  luctando  sempre  no  campo 


246  ENCYCLOPEDIA  REPUBLICANA 


da  honra,  e  soffrendo  toda  a  casta  de  privações  por  se  não  querer  afastar  um 
passij  da  linha  recta  que  traçou. 

Xavier  de  Paiva,  como  escriptor,  jornalista  e  poeta,  agradou  sempre  aos  seus 
sinceros  correligionários;  poude  mesmo  exercer  influencia  com  os  seus  escriptos 
sohre  as  classes  operarias  com  quem  convivia.  Sempre  vigoroso  e  brilhante  nos 
seus  artigos  e  poesias,  não  podia  de  modo  algum  deixar  de  influir  nos  que  não 
téi-m  tempo  ou  não  podem  estudar  grandes  cousas.  O  que  mais  admira  é  como 
elle,  suppoilando  todas  as  cruciações  da  pobresa,  poude  conseivar-se  sempre  firme 
nos  seus  print-ipios,  produzimlo  enérgicos  e  vibrantes  :irtigos,  e  admiráveis  poe- 
sias, que  por  ani  íicam  espalhados  pelas  folhas  democr..ti:as  as  mais  avançadas 
do  paiz !  Era  escriptor  fluente  e  correcto  e  de  arrojados  pensamentos.  Seria  bom 
que  os  seus  amigos  e  correligionários  a  quem  elle  emocionou,  se  lembrassem  um 
dia  de  reimprimir  em  volum>í  algumas  das  suas  mais  bellas  producções.  Era  mais 
um  serviço  prestado  ás  letras  e  ao  partido  republicano,  e  também  uma  homena- 
gem á  memoria  do  inspirado  poeta,  sin:ero  e  valente  democrata.  Se  elle  foi  o 
canior  das  afflicçôes  e  misérias  do  proletariado,  se  elle  com  00  seus  versos  poude 
enthusiasmar  e  con.sidar  os  que  se  esgotam  e  delinham  no  trabalho  durante  o  dia 
e  a  noite,  á  luz  do  sol  e  á  luz  das  lâmpadas,  se  elle  combateu  energicamente  o 
abuso  e  o  erro,  é  bem  que  Kssa  classe  por  quem  elle  tanto  se  interessou,  nunca 
o  possa  esquecer,  o  que  não  é  crive!  possuindo  um  livro  d  esses  gritos,  d'esses  ais, 
d'esses  gemidos,  que  o  poeta  soltava  clamando  pelo  direito  e  pela  justiça,  tomado 
de  angustia,  de  dor  e  de  cólera. 

Como  se  houvesse  um  Deus  destinado  a  agradar  aos  reis  e  um  demónio  a  en- 
tristecer os  republicanos,  Xavier  de  Paiva  morreu  no  hospital  de  S.  José,  a  12 
de  janeiro  de  18.S2,  quanio  o  rei  de  Hespaidia  visitava  Poitugal  e  o  luido  das 
festas  em  sua  homa  trazia  em  alvoroço  a  [)opuiação  de  Lisbija,  esta  pobre  corte 
dos  potentados  e  dos  nnseraveis. 

Pouco  tem[)0  antes  de  morrer  o  poeta  escreveu  uma  poesia,  já  impressa  a  pa- 
ginas 41  (i'esta  publicação^  sob  a  epi^raphe  O  Marlyr  Obscuro,  que  è  uma  admi- 
rável pagina  da  sua  vida  e  ao  mesmo  tempo  o  seu  retrato  iniimo  Pode  alguém 
dizer  onde  morrerá  e  o  que  se  passará  depois  ?  Não,  jior  certo;  mas  Xavier  de 
Paiva,  como  se  presentisse  a  morte  próxima,  retratouse  fielmente  n'aqiiellas  qua- 
dras, f.zendo  mesmo  a  descripção  do  seu  enterro.  Não  teve  luzido  acompanha- 
mento: apenas  um  grupo  de  operários  e  amigos,  d"entre  os  quaes,  dois  pronun- 
ciaram algumas  palavras  de  sentimento  quando  o  seu  cadáver  ia  des-er  á  cova. 
O  que  escreveu  n'aquelles  sentidos  versos  foi  exactamente  o  que  su  :cedeu.  Pa- 
rece mais  a  obra  d'uin  resuscitado,  se  resuscitados  huuvesse,  assentando-se  na 
beira  da  sepultura,  meditando  na  vida  e  recordando-se  dos  estremeções  da  morte 
por  que  já  passara. 

Cumpria-me  o  dever  de  deixar  na  E.nxvclopedia  Repcblicana  estes  leves  tra- 
ços da  vida  do  seu  fundador. 

Reis  Dâmaso. 


Acima  das  formas  que  passam  eleva-se  o  poder  da  razão,  da  jus- 
tiça e  da  liberdade,  que  engrossa  de  armo  a  atmo  que  decorre  e  de 
cada  virtude  que  se  esvae  em  silencio. 

Edgar  Quixet. 


Um  republicano  é  sempre  mais  amante  da  pátria  do  que  um  vas- 
sallo,  pela  razão  que  se  ama  sempre  mais  o  que  nos  pertence  do 
que  o  que  pertence  a  um  amo. 

Voltaire. 


XD(NrxaxG3e 


Affonso  de  Sousa:  —  Liberdade  de  coiiseieneia  e  liberdade  religiosa 88 

Alberto  Bastos;  —  Um  santo  (conto) 51 

O  casamento  civil  (conto)  13i 

Alexandre  da  Coxceição:  —  A  questão  das  vivisecções 117 

Ainda  a  questão  das  vivisecções lo9 

Angellxa  Vidal:  —  Origem  pro\avel  das  religiões 18 

Annes  B aganha:  —  A  trichina 42,  57,     79 

Anselmo  Xavier:  —  A  companhia  de  Jesus - lo7 

Arruda  P^urtado:  —  A  propósito  da  questão  das  vivisecções 73 

Ainda  a  propósito  da  questão  das  vivisecções 138 

Augusto  Rocha:  —  Evolução;  revolução 182 

Bento  Moreno  (T.  de  Queiroz):  —  O  enterro  do  Bernardo  Repolho  (conto).  107 

Carrilho  Videira:  —  Suissa 127,  179,  239 

Costa  Goodolphim:  —  A  miséria 102 

Draper  (J.  W.) :  —  A  origem  da  sciencia  (tr.  de  X.  de  Paiva) .  143, 163, 205.  227 

Ernesto  Pire-  :  —  Divagações  (poesia) 21 

Duvida  (soneto) 83 

Sceplic^smo  (sonetos) 121 

A  rasão  (poesia) 220 

Deante  d'um  Christo  (sonetos) 243 

Feio  Terenas:  —  xManoel  Fernandes  Thomaz 14 

Fernando  Leal:  —  Acerca  da  Marselheza 41 

Hugo  Leal:  —  Os  reis  passam 162 

A  espada  e  o  syllabus 19o 

Leite  de  Vasconcellos  (J.):  —  Costumes  portuguezes  do  século  xvii 100 

Do  Iiitermezzo  (poesia) 106 

A  poesia  das  aldeias 123 

Bibliouraphia  do  Folklore 147 

Vai'  Victis  (poesia) 185 

Costumes  da  Beira  Alta 187,  211 

Musica  religiosa  (poesia) 226 

Magalhães  Llma:  —  Theoria  da  humanidade 83 

M.\RTiNS  Contreiras  (M.  J.):  —  O  meu  primeiro  dia  era  Paris 25 

Mello  d'Azeredo:  —  Como  elles  pensam 86 


Reis  Dâmaso:  —  O  homem  das  cautellas  (episodio  da  rua) 7 

No  cadafalso  (quadro  histórico) 36 

Bibliographia:  Ensaios  sobre  a  evolução  da  humanidade G2 

Movimento  litterario 121 

Tradições  populares  do  Algarve;  romances: 154 

a)  Bernal  fiancez 155 

b)  D.  Bozó 171 

c)  D.  Marcos 173 

d)  D.  Alberto 184,  234,  235 

e)  A  morena 201 

f)  O  ceíro 202 

g)  D.  Carlos  de  Montalvar 203 

h)  Lisarda 215 

i)  r.hristiano 232 

j)  Cantares  de  despique 2^ó 

O  catholicisnio  e  a  família 169 

As  arvores  e  as  abelhas  (conto  oriental) 199 

Xavier  de  Paiva  (esboço  biographico) 244 

Sequeira  Ferraz  (A.  de):  —  O  cântico  dos  párias 223 

Silva  Lisboa  (A.  P.):  —  Carla 1 

Teixeira  Bastos:  —  Ideias  e  instituições 6 

O  atrazo  mental  nas  nações  civilisadas 17 

Augusto  Comte  (soneto) 36 

Progressos  da  huiiiariidade  no  século  actual 70 

A  civilisação  grega 114 

Manoel  l-ernandes  Thomaz  (biographia) 149,  17o,  196,  217 

A  ])iogressão  humana 237 

Theophilo  Braga:  —  Csos  funerários  em  Portugal 2,  28 

Quem  faz  a  republica 49 

Os  grandes  homens 91 

O  prisioneiro  (poesia) 116 

Conferencias  preliminares  do  centenário  de  Camões 134 

Xavier  de  Paiva:  —  Poesia 16 

O  centenário  de  Sebastião  José  de  Carvalho  e  Mello,  marquez  de  Pombal.  22 

Portugal  e  a  nova  ideia  (soneto) 28 

O  marlyr  obscuro  (poesia) 41 

O  Nazareno  (soneto) 62 

Hypathia  (quadro  histórico) 64 

Passado,  presente  e  futuro  (sonetos) 90 

Mysterios  da  noite  (poesia) 136 

John  William  Diaper  (noticia  histórica) 142 

Mosaico  histórico 47 

Pensamentos  de  vários  auctores 184,1  86,  204,  246 


ERRATA 

Pagina  221,  na  poesia  A  Razão,  verso  26,  onde  se  lê: 

Como  um  bandii  fatal  de  cortesãos  medonhos 
Deve  lér-sc : 

Como  um  bando  fal?l  de  cortesãos  risonhos. 


ineuular.  "      ^  eNpeiavamuí,  e  que  tomai-am  a  publicação  das  lo  h; 

te.ní;^-r^  ílj  rís-.:;,rZ;!'^?'"'";^  ^  inten-o..pe.eu.os  p,.-  a„. 

que  .-.ctual.ne/.te  se  ( ebaleu?  pó  s\/úrten/  .^^  questões  pol.t.cas  e  scientili.a 
scifDcia  pratica  ^        ^      leiícioiíamos  puMicar  um  evaii^eltio  d 

liareui  «.'esta  leutativa  e  cm  á  ,^i,  é  ra  íw  í  '  "f  '""'.  ^'"■'""■•^'"  «  ^"^'' 
nossos  leitores  um,  prospecto  co  Ó"  .ti  .Í.J  '^'"'"'''  '^'""'«  ^''''^-^"'os  ao. 
scieucia  applicada,  «jue  pre  ende  o  ^air,  .1  '^^''^'^'''^"^P^^'^  «  questões  d. 
inieiaufos  ^      P'tíieiiaetíios  tratai,  ahaudoiiando  o  campo  vago  -ir  qut 

nos  'Í;:^ .|^;^::^S'^"'^""^  '■^"••^"''-  ^^^  '--s  assi,uautes  a  coa.lju vaçSo  que 


REIS  DÂMASO 


'--ví>e.  >^-, 


SCENOGRAPHIAS 

(CoNrOS   ^'ATURAL.ISTAS) 


O  IM|.|0-~A    VILVA-0   HO.ME.M   DAS   CAITKLL^S 

NO  CADAFALSO— O  PRATO  DEI  -KEl 

O  CO.H.  ''AS  K.MOLAS-A  LO.DA  DALPANZt.NA-O  FHESCAH.DKiHA 

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