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in 2010 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/encyclopediarepuOOsous
iíCLOPEOm REPOBL
Re vista de Sei en cias e L ittera tura
AO ALCANCE DE TODAS AS INTELUCENCIAS
COLLABORADA POR
AFFONSO DE SOCSA, ALBERTO BASTOS, ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO,
ANGELINA VIDAL, ANNES BAGANHA,
ANSELMO XAVIER, ARRUDA FOBTADO, AUGUSTO ROCHA, BENTO MOllENO,
CARRILHO VIDEIRA, COSTA GOODOLPHIM, DKAPER,
ERNESTO PIRES, FEIO TE^EN-VS, FERNANDO LFAL, HUGO LKAL,
LEITK. DE VASCONCELLOS, MAGALHÃES LL\£A,
MARTINS CONTREIRAS, MELLO d'aZERED0, REIS DÂMASO, SEQUEIRA FERRAZ,
S'LVA LISBOA, TEIXEIRA BASTOS,
THEOPUILO BRAGA E XAVIBR DE PAIVA
^-&.,
^^íZí^TiA-
LISBOA
PehOSITO OA pMPPyESA ^DlTOí^A
Í9, l.AUGO DO MASTRO, 30
18H3
ENCICLOPÉDIA REPUBLICANA
EiíCLOPEDIA REPUBL
Revista cleScienciaseLítteratura
40 ALCANCE DE TODAS AS INTELLIGENCIAS
,OLL,ABORADA POR
AFFOXSO DE SOUSA, ALBERTO BASTO?, ALEXANDRE DA COXCEIÇÃO,
AXGELINA VIDAL, AXXES BAGAXHA,
AXSELMO XAVIER, ARRUDA FL'HT\DO, ACGCSTO ROCHA, BEXTO MOREXO,
CARRILHO VIDEIRA, COSTA GOODOI PHIM, DKAPEB,
EfiXESTO PIRES, FEIO TEREX\S, FEBX>Xr)0 Lfi L, HUGO LHAL,
LEIT-: DE VASCOXi.ELLOS, MAGALHÃES LIMA,
MAKTiXS COXTREIRAS, MELLO d'aZERED0, PEIS DÂMASO, SEQUEIRA FERRAZ,
S LVÀ LISBOA, TEIXEIRA BASTOS,
THEOPHILO BRAGA E XAVIER DE PAIVA
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LISBOA
TYPOGRAPHIA NOVA MINERVA
159, R. NOVA DA PALMA, 154
1882
D
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B5Ò
TITULO de El\CYCL0PEDI4 REPIBLICA^A en-
volve o sentido o;eral da reunião de lodos os
elementos doutrinários, scientificos e moraes,
sobre que assenta a democracia moderna, vul-
garisando-os entre as classes activas que hoje
vão tendo consciência dos seus direitos. Não
aspiramos a tanto; se procuramos provocar na intelligencia
popular o interesse pelas questões vitaes do nosso tempo, em
relação aos que escrevem, importa egualmente corrigir as di-
vagações litterarias subordinando as manifestações do talento
a um destino social. E esta mutua convergência, este accordo
entre a acção e a especulação, 'indispensável para se altingir
qualquer progresso, e o meio mais fácil de realisal-o é pela
forma aíTectiva, de que a Litteratura, na poesia, no drama, no
romance, no conto, na biograpliia, na narrativa histórica dis-
põe dos mais poderosos e extraordinários recursos. A Littera-
tura, hoje, é considerada como um dos grandes agentes de
transformação social; por ella se vulgarisam as noções e se
coordenam as emoções que determinam actos voluntários; é
VI
por isso que a Litteralura tem uma alia missão nos paizes em
que ha uma forte vida nacional. Qnanlo a nós, fora dos cen-
tros de elaboração intellectual moderna c sem os estimules da
acção pratica, o verdadeiro trabalho civilisador para este paiz
consiste unicamente em estabelecer relações com o movimento
europeu, fazendo conhecer a summa de ideias novas e de ap-
plicações praticas que esses centros põem em circulação trans-
formando o progresso humano de empirico em racional, sub-
stituindo a actividade das guerras pela concorrência pacifica
das industrias.
Para um paiz sem iniciativa, nem interesses scienlificos, e
sem a consciência da sua profunda degradação politica que
aggrava as causas d'esta apathin, qualquer perturbação so-
cial que provoque a intervenção da força, não faz senão per-
petuar a situação decadente em que a nação se extinguirá
pela inanidade; para que a vida acorde n'estc organismo é
preciso um estimulo, o das ideias, um impulso, o do exemplo,
uma tenacidade, a das convicções. E um meio pacifico, mas
de um poder invencivel. Tudo quanlo fur o por em circulação
ideias, generalisar conhecimentos, esse é que é o meio seguro
para que uma sociedade se levanle do marasmo e recobre a
força com que opere a sua própria regeneração. As Revistas
são um género de publicação que pela sua lendencia vulga-
risadora se presta cá condensação dos trabalhos das capaci-
dades eminentes e ás applicações quotidianas dos methodos
scientificos. Está já constiluido um grande numero de scien-
cias subsidiarias da Sociologia; importa que esses elementos
circulem, para que insensivelmente se eliminem antigas no-
vn
ções que esses resultados hoje invalidam, como se está vendo
em relação aos dogmas religiosos e ás instituições politicas.
E o caminho cerlo da emancipação; os preconceitos do pas-
sado luctam contra a renovação do presente, e buscam apoio
nas classes atrazadas pelo perstigio dos milagres e das pom-
pas regias. N'esta lucta, o saber é a primeira condição da
resistência, e a educação do povo a garantia do triumpho.
E este o espirito que nos traz á liça.
Theophilo Braga.
POLLEGA E CORRELIGIONÁRIO
ONRADO com O lisongeiro convite de collaborar nas
paginas da Encijdopedia Republicana cumpre-me
agradecer a immerecida distincção e aflirmar o
meu sincero desgosto de não poder retribuil-a,
como devia, cora o meu trabalho assíduo e dedi-
cado.
Os numerosos encargos que pesam já sobre a
minha responsabiHdade não me deixam um mo-
mento de sobejo para contrahir novas obrigações.
Mas, se isso se dá com respeito a uma collaboração per-
manente, não succede o mesmo com outros auxilios que
eu possa prestar a essa utilíssima publicação, merecedora
das attenções e disvellos de todos os smceros republica-
nos.
O fim a que se propõe a Encydopedia Republicana é a
mais digna e elevada que pode conceber uma geração íl-
lustrada e generosa de escriptores modernos, sequiosos
de justiça e progresso, procurando elevar o nivel intelle-
ctual da sua pátria adormecida. Perante a indilferença e o sceptí-
cismo das classes dirigentes em o nosso paiz e a ignorância crassa
dos seus homens deslado é urgente que os rapazes, os novos,
tomem a direcção de um grande movimento de iniciativa particu-
lar, completamente extremado dos serviços de chancella oíTicial,
com que se procure insiifílar um novo oxigénio, puro e vivificador,
na circulação entorpecida da sociedade portugueza.
É preciso que não deixemos retardar de forma alguma a acce-
leração salutar, tão admiravelmente imprimida em o nosso movi-
mento progressivo peia solemnisação imponente do Centenário
de Camões, em 1880.
Essas festas grandiosas, exclusivamente democráticas, lançaram
incontestavelmente as bases do nosso rejuvenescimento nacional.
2 EíSí:y(:lopedia republicana
Desde então a nossa vida intellecUial lem tido uni notável augmen-
to. uma energia (|nasi desconliecida: as publicações litterarias de
toda a es[)ecie (juasi que duplicaram; as bellas artes sahiram da
sua habitual atmiia, annunciaii. -se operas porluguez.is, proniove-se
exposições pai ticiilares de pintura, auiuincia-se paia janeiro pró-
ximo a abertura -.a impoi lautíssima exposição de arte ornamental,
notável empreliendimenlo que honra o nosso paiz.
Para assegurarmos definitivamente a marcha progressiva da
nossa civilisação. resta-nos agora não perdermos o raro ensejo da
Cenlenaiio do Marquez de Pombal. A significação particularmente
demociaíica e anli-clerical que se deve dar a esse acto, contri-
buiria podero^^amenle para a, ressar a sabida do nosso povo do seu
longo período de inactividade.
Mas o que sobre tudo é urgente é a organisação completa ebem
archítectada de um vasto plano de propaganda pratica, em que se
ensine ao |)ovo. menos instruído, o que elle precisa e deve saber.
O conhecimento elementar das investigações da Sciencia. em todos
os ramos da actividade humana, é tão nectTssario ao homem de es-
tado, ao philosopho e ao litterato, como ao artista, ao operário, e
ao próprio camponez. Todo o grupo de escríptores reunido para
esse íim, toda a publicação editada com esse intuito, torna-se, pois,
benemérita da pátria e credora do concurso de lodos os homens
que apostolísain com fé ardente a causa da demociacia e da ins-
Irucção.
É o caso da Encfjdnpedia Republicana. Por isso, saudando com af-
fecto os seus fundadores, envío-lhes os meus votos sinceros para
'que encontrem no favor publico a prosperidade e incitamento que
merecem os seus esforços louváveis.
Lisboa, 20 de dezembro de 1881.
A. P. da Silva Lisboa.
©SOS fuaerarias cm BPortunicil
Os costumes populares são os restos persistentes de épocas so-
ciaes e de raças que se transformaram; a sua approximação e com-
paração oílerece uma immensa luz histórica, e It^va o espiíilo ao
encontro dos processos de desenvolvimento da civilisação iiumana.
Nós cremos na uniilade da Civilisação occidenlal não só pela influen-
cia da incorporação romana, mas porque essa civilisaçã() se basêa
sobre um fundo elhnico commum, que se reconsliue |)ela compa-
ração dos costumes populares, pelas tradições, superstições e cau-
tos nacionaes. Iremos apontando alguns factos. Um anexim portu-
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL
guez diz: «Abiil, aguas mil, coadas por um íNí/z^r///.» Com o tempo
desappareceu este irajo, e conservou-se a rima, alleraiido: acoados
por um funil». O maniiil ainda hoje se usa na Córsega, onde se
consrvam os costumes das povoações proto-italicas; diz Gregoro-
vius: «As mulheres, na Córsega, trazem o mandd, um pedaço de
panno de côr que lhes cobre o rosto o qual se põe liso no alto da
cabeça, e é enrolado em volta do peito, de modo que se lhes não
vê os cabellos. O mandil nota-se em toda a Córsega; tem alguma
cousa de oriental e de mourisco, mas é aborígene, porque nos pró-
prios vasos etruscos se vêem mulheres com elles.» O mcwdil trans-
formou-se em Portugal; no Algarve ê o rebuço, piopiiamente mou-
risco, no norte de Portugal é o lenço de cores vivas, amarrado na
cabeça deixando o rosto a descoberto. O barrote poiíteagndo, preto
ou vermelho, peculiar do homem da Córsega, ê ainda usado em
Portugal pelos pescadores, campinos e saloios; Gregorovius equipa-
ra-o ao barrete phrygio, com que os Romanos symbolisavam os
bárbaros, e como o trajam os Dacios na coluiiuia de Trajano. É
também frequente no norte de Portugal o carregarem as mulheres
grandes pezos á cabeça, e levarem pelos caminhus, (piando os obje-
ctos que carregam lhes não prendem as mãos, uma roca em que
vão fiando; sur[irehende-nos portanto a observação de Gregorovius
«Assim carregadas, ellas levam ainda muitas vezes a roca na mão,
e fiam andando.» Esta approximação não ê forluila: é também no
norte de Portugal que se observa a circumstancia de serem as mu-
lheres que cantam a poesia tradicional, como já Sarmienlo notara
para as mulheres da Galliza, e também o conservarem-se nas pro-
vincias do norte os usos funerários dos Clamores, e o jantar fúne-
bre dado aos amigos do finado; as cantigas populares ainda faliam
nas carpideiras, que hoje já o não são de prolissão, mas por sym-
pathia compassiva de visinhança.
Estes costumes portuguezes devem estar muito obliterados, por-
que as Constituições episcopaes, e Accordãos municipaes prohibiam
o bradar sobre finado, e o dar banquetes por occasião de falleci-
mento; comia-se um anho, ou cabrito de um aiino, d onde veiu o
enojo ou anejo em que se acha a familia do morto. Pelos costumes
populares da Córsega, em que as mulheres ê que cantam os Vo-
ceros junto do cadáver, se comprehende o costume das nudlieres
de Lisboa que cantavam em coro dansando junto da sepultura do
Condestavel no convento do Carmo, como se vê pelas poesias tra-
dicionaes conservadas pelo chronista Azurara. Gregorovius, descre-
vendo estas mesmas ceremonias nos costumes acluaes da Córsega,
diz: «nas montanhas do interior, sobretudo no Niolo, ellas subsis-
tem na sua força antiga e pagã e parecem-se com as dansas fune-
rárias da Sardenha. A sua rivalidade dramática e o seu extasis fu-
rioso agita e amedronta. São só as mulheres que dansam que se
EiNCYCLOPEDIA REPUBLICANA
lamentam e cantam». Gregorovius accrescenta descrevendo essa im-
provisação dythirambica : «O coro berra a cada estropbe : Dehf
Deh! Deh!y>
Nós não pretendemos levar as comparações até ás analogias ima-
ginosas, mas esta neumíi popular ouvimol-a nas lavandeiras de Cane-
cas, povoação dos arredores de Lisboa, na íórma: Dah ! Dah! Daht,
a qual porventura tem analogias com a euskariana Eloij^, dos can-
tos bascos, sobretudo de Índole funeral. Continua Gregorovius :
«Das aldeias visinhas chegam para o enterro os amigos e os pa-
rentes. Esta multidão reunida chama-se o corleo, ou escolta, ou
scirrata. e também na Córsega se diz: Andare alia scirrata, quando
as mulheres vão juntas á casa do morto.» A palavra ensarrado
usa-se ainda no Minho para significar o lucto de familia; e também
das aldeias visinhas vão os amigos do morto assistir ao enterro,
recebendo na egreja um pão, uma vela de cera, e vão depois as-
sistir a um jantar de feijão e bacalháo ; é como o conforto e a ve-
glia da Córsega. Os amigos do morto pagam a leitura de um re-
sponso, e foi por esta forma que a egreja substituiu os Clamores,
ficando ainda a designação. A generalidade do costume do banquete
funerário em povos da antiguidade de diíTerenles raças, prova-nos
que este uso pertence a uma camada ethnica proto-historica, que
persistiu no occidente da Europa. Diz Gregorovius: «O festim fu-
nerário entre os Phenicios, os Pelasgos, os Egypcios, os Elrus-
cos, consistia sobretudo em feijões e em ovos; estas duas comidas
são symbolos mysticos da força vital e geradora, activa e passiva,
segundo o velho mysticismo oriental e pythagorico. Hoje em dia,
na Sardenha ainda em muitos sitios come-se n"estes banquetes fei-
jões e ovos». Estes banquetes fúnebres são usados em Portugal no
dia dos fieis dehinlos, em Novembro, e ainda ha poucos annos a
população inferior de Lisboa ia passar este dia para os cemitérios
onde comia junto das sepulturas as suas merendas. Na ilha de Sara
Miguel não se cosinha na casa onde morreu alguma pessoa durante
três dias; as pessoas amigas é que mandam o jantar de fora, que
é sempre lauto, para brindar lambem as pessoas que assistem ao
nojo da familia.
Os cantos fúnebres dos Voceros, só têm analogia em os Fados
portuguezes como o da Severa e o do Toureiro namorado; o brado,
de uso popular, apparece-nos na forma do Baladro, que chegou a
penetrar na lilteratura, como o Baladro de Merlin. A balíata, ou
1 A própria dansa fúnebre na Sardentia cliama-se tiíio ou atito; a neuraa dos
Latinos era atat, a dos Gregos nas tragedias era atototoi. e na Allemanha, como
observa Gregorovius, ahtatatá. é o grito de uma grande dor. jSo romance popu-
lar da Infantina, vera a neuma: Táte, late, cavalleiro.
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL
pantomima funerária acompanhada de canto tivemol-a, como já
notámos com relação ás dansas e cantigas na sepultura do Con-
destavel; esta dansa era prohibida por uma lei de Sólon, chama-
Y.a-se o lessiis, e as Doze Tábuas puniam o lessus como um cos-
tume bárbaro. Basta-nos esta circumstancia para concluirmos que
estas cereraonias fúnebres pertencem a essa raça asiática que pre-
cedeu na Europa os Árias, e de que os Bascos são os mais com-
pletos representantes. Na Politica de Aristóteles (liv. iv, cap. 2,
§ 6), se lé : «Os Iberos, raça bellicosa, plantam sobre o tumulo
do guerreiro tantos espetos de ferro, quantos os inimigos que ma-
tou.»
A incineração dos cadáveres, ataviados com vestes e jóias, era
uma ceremonia dos lusitanos e dos gallegos, ou propriamente cél-
tica. Sibelo e Morguia referem-se a urnas cinerarias achadas nos tú-
mulos ou mamôas da Galliza. Como a incineração cahiu em desuso
entre os Gregos e Romanos, veiu também este costume a decahir
na civilisação peninsular sob a influencia doestes dois povos ; Ap-
piano, ao descrever a incineração de Viriato, chama a esse rito fu-
nerário costume bárbaro; Tito Livio, ao descrever as dansas fune-
raes ordenadas por Annibal em honra de Graccho, chama-lhes tri-
pudia hispanorum. Estas dansas, que tinham um caracter sagrado,
eram acompanhadas de um canto lúgubre, a que Siiio Itálico, re-
ferindo-se aos lusitanos, chama barbara carmina, e para os roma-
nos eram tão característicos, que se designavam pelo nome de
Hiberae naeiíiae, como se acha em um proioquio latino colligido
por Erasmo. Depois dos romanos, a Egreja atacou profundamente
os costumes populares prohibindo essas ceremonias primitivas que
eram o vinculo moral da familia e da nacionalidade: o Concilio de
Toledo, diz: «Prohibimos completamente o cantar Carmes fúne-
bres, que o povo costuma entoar aos mortos.» Vê-se portanto que
nas íinguas vulgares se repeliam esses cantos, alguns dos quaes
persistem; Costa, na Poesia popular Espaíiola, consigna o facto:
«Y todavia hoy exislen poblaciones á uno y otro lado dei Pirineo,
donde permanece la costumbre de formar el duelo los hijos, los
padres, la esposa, etc, dei defunto, y hacer en el públicos extre-
mos de dolor y ponderar las excellencias dei defunto.» (Op. cit.,
pag. 281.) Existe uma profunda diíTerença ethnica entre os povos
que enterravam os seus mortos e os que os incineravam; Lubbock,
no seu livro O Homem anterior d Historia, tenta apresentar esta
característica: «Não se pode duvidar que durante o periodo neoii-
thico da edade de pedra enterrava-se ordinariamente o corpo na
posição assentada. Em resumo, parece provável, emboia nada pos-
samos affirmar positivamente, que na Europa occidental, esta posi-
ção do cadáver caracterisa a edade de pedra, e a incineração a
edade de bronze ; ao passo que, quando o esqueleto está esten-
e><;yclofedia republicana
dido pode-se sem iniiila hesitação allribuir o tumulo á edade de
bronze ^»
' Os escriptores romanos, que descrevem as ceremonias funeraes
da incineração na península, caraclerisam-a de costume bárbaro,
como Appiaiio e Silio Itálico; os romanos estavam já na edade de
ferro quando occuparam a península, e por isso condemnavam como
nefando esse uso da edade de broiize. Os gregos e os romanos vie-
ram encontrar na península muitos costumes conhecidos, porque
eram communs ás raças que os precederam na Grécia e na Itália,
e sobre que se foioíaram as duas nacionalidades.
(Conelue) Theophilo Braga.
lÊdeiías e instituições
Um dos mais illuslres pensadores contemporâneos ainda não ha
muito que formulou esta prohmda verdade: «As concepções novas
paia entrarem na. pratica devem vestir novas formas.» Infehz-
mente poucos são aquelles que comprehendem a precisão deste
pensamento. A maior parle dos políticos desconhece a intima re-
lação (]ue se dá enlre as ideias e as instituições, entre as concep-
ções e as formas. Por isso, vemos constantemente uma descoorde-
nação insensata entre os princípios adoptados e os meios propos-
tos para a sua applícação, o que se explica pelo predomínio incon-
sciente das forças stalicas, mesmo nos cérebros mais avançados; é
assim que limitas vezes se encontra uma opposição manifesta en-
tre a Iheoria e a pratica, ouvíndo-se a cada passo indivíduos es-
sencialmente conservadores e aucloritarios (iízerem-se republica-
nos e democratas eni theoria, e outros completamente descrentes
e alheos defenderem a religião como uma necessidade social, como
um freio para conter o desregramento das massas. Kstes e outros
preconceitos e contra-sensos são um eífeito natural do poder da
rotina, da Ui da inércia, que tem muito maior iníhiencia nas for-
mas e.xteriores, na pratica material, do que no próprio espírito
das cousas. É curioso observar-se o que se passa na vida politica;
a reacção, a opposíção faz-se mais á mudança das instituições,
á transfoimação das formulas, do que aos princípios em si. Pro-
gressistas e conservadores estão ordinariamente de accordo par-
1 Op. cit.. pag. 107. Trad. Barbier.
o HOMEM DAS CAUTELAS
tindo de lados oppostos; os primeiros querem a substituição das
ideias e acceilam sem difficnldade as formulas ve'i!as: os segundos
querem a todo o transe a manutenção das instituições consagra-
das pelo tempo, muito embora as ideias mudem. Os progressistas
só vêem o lado llieorico, e os conservadores só o lado pratico.
Nem uns, nem outros comprehendem a coordenação natural e a
dependência mutua da tlieoria e da pratica. É deste falso critério
que parte todo o deseuuilibi io social. Os princípios políticos e so-
ciaes, geralmente admiltidos hoje, e mesmo consignados nas leis.
Dão encontram ainda a sua racional e necessária applicação no des-
envolvimento orgíiuico da sociedade; do mesmo modo que formu-
las indispensáveis exigidas no exercício das funcções políticas e ci-
vis não correspondem por forma alguma a princípios ou a ideias
que prodominem no espirito publico. Assim succede a cada passo
na sociedade portugueza. Por exemplo, o principio da liberdade
de consciência achase estabelecido na lei fundamental, e exige-se
o juramento calholico nos actos jjidiciaes e legishitívos e certidão
do comportamento religioso nas habilitações para qualquer em-
prego publico.
Esta incolierencia, hoje tão geral, é que leva entre nós os pro-
gressistas e os constituintes a pedirem reformas impraticáveis den-
tro do regimen monarchico com que transigem, e mesmo muitos
republicanos a contentarem-se com a simples substituição do mo-
narcha por um presidente eleito temporariamente, mantendo era
tudo mais o systema centra lisador de administração que nos rege.
É preciso que os republicanos portuguezes não esqueçam o
pensamento de Wyruboff: «As concepções novas para entrarem
na pratica devem vestir novas formas.» Da comprehensão d'esta
verdade e da sua applicação depende o rápido desenvolvimento das
sociedades modernas. As formulas e as instituições sociaes de-
vem-se ir alargando, modificando e substituindo á proporção que
novas ideias e princípios entrarem no domínio da opinião publica.
Sem isso o progres«;o não será uma condição da ordem e a Repu-
blica uma forma política que equilibre incessantemente as forças
stalicas e as forças dynamicas.
Teíxeira Bastos.
O ÍSonieni aas Èauteítis
(episodio da i\ua)
o Samuel trabalhava como um moiro do nascer ao pôr do sol
e nada lhe luzia: o sustento d'elle, da mulher e dos filhos, levava-
Ihe tudo. Era realmente uma vida atribulada, de suor contínuo,
ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
que o não deixava coalhar um vinlensito para negocio, ao passo
que muitos mandriões passavam n"um regalo de invejar.
— Nada, isto assim não vai bem; — dizia elle muitas vezes cora-
sigo mesmo — a rapaziada augmenta e eu não tenho que lhe dei-
xar: uma desgraça, uma desgraça, — terminava baixando a cabeça
e n'um tom muito triste.
Quando á noite voltava do trabalho punha-se a scismar na ma-
neira de fazer algumas economias; e se manifestava estes desejos
á mulher, esta dizia lhe logo:
— A gente passa tão mal, homem. .. nem nos chega p'ra co-
mer! A Mariquinhas está quasi nua, o nosso António anda descalço
desde que nasceu... é uma miséria de louvar a Deus. Ainda tu
falias em juntar !. . .
— Pois sim, mas a labutação na fabrica é que não pode tirar-
nos os pés da lama.
Um dia, depois de muitos tratos aos miolos, disse á companheira,
que amamentava duas creanças gémeas:
— A vida assim é o diabo, Joanna. Ando cá a matutar, e re-
solvi . . .
A mulher olhou-o fi.\amente como a interrogal-o.
Elle continuou:
— Ora. . . tu tens p'r'ahi ainda esse cordão e essas argolas do
casamento, que valem algum dinheiro; vendem-se e eu faço um
negocio. . .
Joanna ficou estupefacta.
Era o único thesouro que possuia d'outros tempos talvez mais
felizes. Fora o seu único dote comprado com o próprio suor de
muitos annos de servidão. Que lagrimas não derramou ella lodo o
tempo que andou de casa em casa, aturando os maus modos das
patroas, as oíTensas, as reprehensões, quasi sempre génios insup-
portaveis ! Foi uma escrava, uma negra, e aquelles tristes objectos
de ouro que possuia, se podessem fallar, muito leriam que dizer.
— Que só se desfaria d'elles para acudir a uma grande necessi-
dade— disse ella depois de curto silencio. O marido proseguiu:
— Olha, mulher, a fortuna dà-a Deus ou o Diabo. Bem sei que
mercaste aquillo com as tuas soldadas de muitos annos: mas a gente
precisa de ganhar a nossa vida e olhar pela sorte d'essas creanças.
— Mas que queres tu fazer, homem de Deus? Arriscar? Olha
que os negócios vão maus e está tudo pelos olhos da cara !... De-
pois andas sempre a comprar cautelas... Bem snbes que se gasta
muito dinheiro que era melhor empregar nos nossos arranjos. A
gente tem tanta precisão... Credo, nem sei que fazer á minha
triste vida !
Samuel passeiava d'um para o outro lado da casa, com a cabeça
baixa, pensando.
o HOMEM DAS CAUTELAS 9
Era domingo. Ranchos passavam para a missa em ar bem pouco
devoto: eram operários do bairro e famílias burguezas. Samuel
chegara á janella. Os conhecidos fallavam-lhe: uns desafiando-o «a
que sahisse, que viesse reinar um bocado « outros dizendo-lhe «que
parecia uuja cara de condemnado.» Elle sorria-se hgeiramente,
com um sorriso triste, desconsolado.
Depois vollando-se para a mulher:
— Não sei, Joanna. O Thomaz parece um trumpho; o Januário
da Linda, renta a olhos vistos, a umlher sempre aceada e os. pe-
quenos, ganhando o mesmo que eu. Só co suor da fabrica não
pode ser. O Anselmo, dizem pr'ahi que teve uma sorte, e por isso
elle berra que é uru gosto. O João Evangelista, é o que se vê; o
António da Justa, tosca-me a que temo seu negocio particular que
lhe deixa a valer; aliás, não teria amante, nem faria hanquezas.
Uns deixaram a fabrica quando baixaram os salários e lá vivem;
outros não quizeram mais ser operaiios. e d'ahi p'ra cá parece que
a sorte os protege. Todos os meus companheiros, aíóra eu, o Je-
ronymo da Canellas, e o Miguel, dizem-me que estão bem. 'iomo
isto é, confesso que não atiu), com mil raios. Todos vão p"ra diante
6 só eu Mco pra traz.
Joanna ouvia-o com serenidade tratando dos pequenos.
— Tem paciência, homem, não somos só nós os infelizes cá na
classe. Eu bem n'os ouço. Ohia, a .Maitha, coitada, queixa-se que
o marido ha já duas semanas que não traz a feria ; a Michelina,
também chora la,L' rimas de sangue por lhe não cliegar p'ra nada
o ganho do marido, mas lá vai vivendo como eu, graças a Deus.
Teremos paciência, não te amofines, homem.
— De paciência que viva o diabo; eu é que já estou farto. Pre-
cisamos dar alguma volta á vida, e eu lenho cá umas ideias que
não devem falhar.
— Se tens alguma cousa em vista . . .
— Olá se tenho! Daqui a pouco param os trabalhos da fabrica,
segundo já me zumbiram aos ouvidos. Estou cansado d'aquella
maldita. . . sinto-me arrebentado, doente. . .
— Vè lá, Sanuiel, se não tens cuidado em ti — acudiu Joanna —
olha que eu não lenho mais ninguém no mundo... Será uielhor
consultar alguém. . .
— Qual historia, o meu mal é outro.
— Outro?!...
— Pois então? Já to disse, mulher.
— Ah!
A pobre creatura pareceu então comprehender o pensamento do
marido, e como resignada continuou:
— Se nascemos pra viver sempre assim, que lhe havemos de
fazer? A gente não tem outro remédio senão acostumar-se.
10 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
— Sim, mas é nossa obrigação olhar por essas creanças.
— Tens outra cousa em vista, Samuel?
— Tenho. E tu a repisares ! Vendem-se essas cousas que pozeste
pela primeira vez no dia do nosso casamento, que de nada servem,
e eu melto-me a cauteleiro, ora ahi está.
— Tens cada lembrança.. . Cauteleiro!
— Bem vejo os outros de relógio e cadeia e corpo direito. As
encommendas e os palpites é que se quer.
— Lembra-te d"uma doença, homem.
— Qual doença nem qual diabo f Em ella vindo cá estou. A fa-
brica é que não pode dar. . .
— Não faças tolices, Samuel, tem juízo, creatura.
— Não quero saber. Isto é um prego que trago na mioleira.
Joanna ficou pensativa. No seu espirito havia um tropel de ideias
contradictorias. O marido insistia pela venda da única cousa de va-
lor que possuía — o seu cordão e os seus brincos — que desejaria
conservar no bahu até morrer. A sabida d'aquelle ouro de casa,
era para ella como que o fantasma da desgraça. Aquelle pouco
ainda assim animava-a quando pensava per alguns momentos na
doença, na miséria que esta sempre traz aos pobres que só vivera
do seu trabalho. Sentia o coração opprímido e presentimentos va-
gos a entristeciam. Não poude conter duas lagrimas que lhe cor-
reram pelas faces magras, d'uma pallidez de cera. Ella fora sem-
pre muito arranjada e amiga do seu ninho. Soffreu com resignação
de martyr, o génio terrível d'algumas senhoras suas patroas. Ser-
viu, porque se achou de muito nova órfã de pae e mãe. Cedo co-
meçou na lucta activa pela vida, a ganhar para si e para uma ir-
mãsinha que morreu pouco tempo depois da mãe. Joanna pensou
muitas vezes que se o seu casamento com Samuel, — que lhe pa-
recia um rapaz honrado, — não lhe trazia um mundo de venturas,
porque eram ambos pobres, dava-lhe ao menos um amparo e pro-
tecção, pois que ella não tinha mais ninguém. Ficava satisfeita com
a amisade dum homem que também amava, e como nunca foi rica
não extranharia os revezes da vida. Era maior ventura o casar do
que viver sempre debaixo do dominio dos amos. Agora, compa-
rando a sua situação de mulher casada com a de criada de servir,
mas livre de cuidados, tornava-se-lhe diCQcil assentar definitiva-
mente qual dos dois estados era mais feliz. Tinha um certo amor
áquelles objectos, que tomaram as proporções d'uma pequenina
propriedade. Toda a sua fortuna estava ali.
No dia seguinte, Samuel, vindo almoçar, foi ao bahu e tirou-os,
emquanto a mulher dava um recado a uma visinha do lado. As
mãos tremiam-lhe como se commetlesse uma profanação. Pareceu-
Ihe n'aquelle momento que aquillo era sagrado, julgando-se por isso
um criminoso. Sentiu-se como o ladrão por alta noite roubando as
o HOMEM DAS CAUTELAS 11
l — :z=
alfaias (l'uma egreja. xMeditou por um pouco. Esteve com o ouro
DBS mãos, que sentia quentes como fogo; escaldavam. Hesitou. . .
Depois, enchendo-se de coragem, reagiu contra um sentimento de
respeito, quasi sagrado, por aquelles objectos da sua pobre Joanna,
que julgou n'esle instante relíquias santas. Se ella estivesse em casa
n'aquelle momento, não se atreveria; era uma barbaridade prival-a
do que elia dizia serem os seus «únicos recursos para um momento
de aíílicção.» Isto aos olhos d'ella, era mais duro ainda, mais cruel.
Joanna tivera a ideia de esconder as suas jóias do casamento; mas
julgando que o marido não mais insistiria, repellindo do cérebro a
ideia que revelou, deixou-os ficar. O seu Samuel era bom rapaz.
Jà elle tinha o cordão e as argolas no bolso, quando a mulher en-
trou, com ar alegre e bondoso. Samuel corou vivamente, como a
creança apanhada em flagrante d'a!gum pequeno e innocenle de-
licio. Joanna não sabia lêr nas physionomias e não deu pela per-
turbação do marido. Klle vacillou ainda e esteve próximo a confes-
sar. Como o criminoso que sente o toque nervoso do arrependi-
mento defronte d'um juiz severo que o vai condemnar, assim o
operário se achava embaraçado em presença da companheira fiel
que sempre o consolou com uma bondade santa.
— Até logo — disse elle depois d'um instante de hesitação an-
gustiosa.
A ideia de que poderia deixar a fabrica e juntar algum dinheiro
pelo negocio das caiitelis, encheu-o danimo.
Quando entrou n'uma ourivesaria da rua do Ouro, esteve por
momentos a retirar-se e ir entregar tudo á sua Joanna, pedindo-
Ihe perdão. Nunca a imagem da mulher se lhe apresentou tão viva
na imaginação. Viu-a por instantes, com o seu ar meigo e doce,
com uma serenidade admirável, fital-o como a pedir-lhe contas.
Elle viu-a sorrir, com as duas creanças ao peito e apertando-as
com ternura entre mil caricias e beijos. Depois ella pranteava a
sua triste sorte, dando por falta do que lhe custara tantos annos
de sacrifícios, soluçando, banhada em lagrimas, que escaldavam.
Poz sobre o balcão os objectos e ajustou. 0. ourives disse-lhe o
peso. Regatearem. Novamente a recordação de Joanna veiu ao es-
pirito de Samuel como uma cousa importuna. Era d'uma persegui-
ção horrível aquella ideia ! Pareceu-lhe ver outra vez a mulher com
a sua pallidez de mármore, a sua magreza excessiva e ao mesmo
tempo sympathica, que lhe supplicava de joelhos, pela saúde dos
filhos, afflicta. que a não privasse do que estava reservado para a
doença ou a falta absoluta de trabalho. Depois ouviu-a no auge do
desespero, já quando não tinha esperanças, condemnal-o severa-
mente, lançando-lhe em rosto a sua crueldade, chamando lhe «la-
drão, miserável í» As mãos de Samuel tremiam e o rosto tinha essa
expressão amargurada do homem que lucta intimamente. O ouri-
12 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
ves, desconfiando do operário pela sua bem manifesta perturbação,
disse-llie «que não comprava».
Samuel saliiu como se nada ouvisse. Caminhava automaticamente,
vergado sob o peso das suas ideias opposlas, contradictorias, que
se lhe revolviam no cérebro, como apertadas por um circulo de
ferro. A figura de Joanna lá ia adiante de si, saltando-lhe da ima-
ginação ás vezes mais distincta. mais perfeita, como a estampar-se
n"uma tela lúgubre, sombria. Quando já havia andado um bocado,
parou; e num momento de arrependimento voltou alraz decidido
a desistir do seu propósito. Mas a maldita ideia perseguia-o como
iim ser diabólico e cruel. Um pensamento, saltando como uma faisca
eléctrica do fundo d"um cabos, ilhiniinava-lhe de repente um qua-
dro scintillante — era o do futuro: — outro, saliindo lá do fundo da
consciência como envolvido numa sombra negra e abafado por uma
tristeza fúnebre, gritava-lhe que olhasse para a mulher e filhos,
pinlando-lhe todas as scenas de desolação e amargura do lar — era
o do presente — com o malhar continuo na fabrica, com os sorri-
sos e cuidados domésticos, a alegria passageira, apparenie para
animar, e a tiisteza pungente da falta de meios. O que mais se-
duzia o seu espirito era o primeiro, de vagos attractivos, mas por
isso mesmo provocante. Samuel queria intentar, tocar ivaquella nu-
vem e fugir à realidade presente. A sua resolução foi inabalável,
decidiu-se. O futuro lambem é real. Knirou na rua Augusta, e lá
fez o sen negocio. O metal deu-lhe uma expressão animada, mas
passageira: qnasi que teve remorsos do que havia feito.— Se não
fosse feliz — pensava, a lição seria tremenda. Não confiava já na
sorte e a imagem da mulher perseguia-o. Luctou ainda contra cer-
tas ideias vagas, esforçando-se por aniquilal-as. Por momentos o
quadro scintillante se de.>ffz em fumo que se evaporava. Fallou-
Ihe instantaneamente aquella crença nas felizes realidades da vida.
Viu que o presente era certo, mas o porvir incerto; uma mutação
completa no seu espirito que já se não podia conservar indeciso,
porque o que estava feito, feito estava. Levou muito tempo nisto e
por fim entrou num cambista, empregando quasi todo o prodncto
da venda do ouitj da sua Joanna. em cautelas da loteria de Ma-
drid. Tinha o cerebio em febre de fogo, e uma certa fraqueza no
corpo.
Era meio dia, a hora dos directores geraes e chefes de secreta-
ria. Os transeuntes acotovellavam-se na rua do Arsenal, no gyro
das suas occupaçoes quotidianas. Estava um dia triste e sombrio,
d'esses dias que nos desalentam,. trazendo-nos um mal estar pro-
fundo ao espirito que se debate em decepções ; uma atmosphera
das que mais affectam os organismos sensíveis. Samuel dirigiuse
a um transeunte offerecendo-lhe um decimo. Um policia que o ob-
servava do angulo duma esquina, appro.\imou-se do cauteleiro dan-
o HOMEM DAS CAUTELAS 13
do-lhe a voz de «preso». Uma bomba que estoirasse aos pés de
Samuel, descuidado, não produziria tanlo effeilo no seu auimo sin-
cero. Foi um choque horrível causando-lhe um eslremecimenlo ge-
ral. Um homem a quem lira.vsem todo o sangue, não ficaria tão
pallido como elle. Uma vertigem eslonteou-o e um suor frio lhe
assomou á fronte. Falíou-lhe a luz dos olhos e teve de encostar-se
á parede para não cahir, levado apenas pelo instincto de conser-
vação que faz o homem agarrar-se a tudo. Depois, passados alguns
instantes, reagiu com o policia. Houve um momento de lucta. Ha-
via já na rua grande numero de espectadores, que disfructavam
aquella scena impassíveis. Samuel segurava as cautelas, como se
toda a sua vida estivesse ali.
— Matem-me— dizia elle — mas não saio d'aqui.
— Anila lá p'ra diante— gritava o policia brutalmente.
No intimo d'aquelle homem dava-se uma lucta medonha. A ca-
beça cahia-lhe sobre o peito. Tinha a expressão das supremas an-
gustias. O seu único thesoui'o estava n^aquelle contrabando que
escondia no seio aos olhos de todos, não vendo ninguém.
O rapazio cercava-o, rindo daquelle Hercules vencido pela auc-
toridade, contra a qual já não resistia. Faltavam-lhe as forças e a
coragem, vendo n'um quadro instantâneo a sua Joanna e os íilhi-
nhos, a fabrica e os seus companheiros do trabalho, estes alegres,
aquelles vertendo lagrimas de sangue. Toda a força moral estava
perdida, n"um momento aniquilada I
Supplicou em tom commovente que o deixassem, que lhe pou-
passem ao menos a fortuna que não era sua e que reverenciava
com o respeito devido ás cousas sagradas.
—Pelo amor de Deus. senhor— balbuciava elle, rebentando-lhe
as lagrimas como uma creança.
—Guarda isso lá p'r'a egreja— respondeu seccamente o policia
empurrando-o.
O pobre homem ia arrastado. A garotagem inconsciente lambem
se sensibilisou! e alguns sugeitos bem trajados aconselhavam o
operário a que «fosse. . .»
— Obedeça, homem, obedeça que é melhor.
Samuel teve um instante de animo envergonhando-se d'aquella
triste scena em que elle hgurava, escarnecido talvez de todos.
Desejaria antes morrer! O quadro da família sobretudo é que o
contristava: agilou-se n'elle um mundo de pensamentos e preferia
a perda total da liberdade ao despojarem-n'o do valor que diligen-
ciava esconder. Como o homem caminhando para o patíbulo, assim
ia elle precedido dos curiosos e ociosos da rua.
No governo civil tornou a implorar, mas a auctoridade superior
respondeu-lhe com um sorriso irónico mandando-o apalpar.
Samuel então, fazendo um esforço supremo, reagiu com todas
14 ENCYCLOPEDIA REPUBLICADA
as forças da sua alma. Isso custou-lhe alguns mezes de prisão,
embora elle repelisse muitas vezes que «prendessem também os
cambistas, que vendiam de porta aberta a mercadoria prohibida.»
Lá ficou envolvido na engrenagem da acção preventiva da auc-
toridade.
Joanna, sabendo o acontecido, soffreu um choque violentíssimo
e cahio doente, com a alma despedaçada. Tudo que havia em casa
foi empenhado na miséria.
Sahindo da prisão o operário, achou preenchido o seu logar na
fabrica. Procurou trabalho por toda a parte, mas como era em
tempo de crise todos lhe diziam «que fosse procurar vida.» Era a
expiação do seu desvario. Uma noite, batido pela fome, ouvindo a
mulher gemer estendida sobre a misera enxerga, e os tilhos a cho-
rar por pão, sahio de casa com a cabeça perdida e foi pedir es-
mola.
Repellido por uns, insultado por outros, desatteiidido pelos que
passavam, o acaso o salvou de não ser agarrado pela policia por
mendigo.
Todo aquelle esforço era inútil para resistir á fome, á miséria,
á doença e á morte que lhe assaltavam a casa e lhe foram dia a
dia decepando a familia. No fundo do seu abysmo, abandonado á
sua fatalidade, repetia muito comsigo:
— Sou tão desgraçado, que todos me olham com despreso.
Passando por uma rua deu com os olhos numa taboleta com o
seguinte letreiro: Sociedade Protectora dos Animaes. Elle submer-
gido nos seus pensamentos, disse:
— Se eu fosse um cão ainda me Irariam p'r'aqui. Com esta fi-
gura de gente, nem já o esfola dava por mim um pataco. Agora,
só, n'este mundo, não tenho mais do que arrebentar ahi p'ra um
canto !
Reis Dâmaso.
BiegFipklig
I
Mlanuel FeruKrKie.s Tlioiiiaz
Cabe-n'os a honra de abrir esta secção onde os vultos mais no-
táveis da democracia portugueza, vão ter logar condigno aos seus
gloriosos feitos em favor da pátria e da liberdade.
Não queremos nós, republicanos, privilégios entre os vivos,
mas forçoso é que os admitíamos entre os mortos ; condemna-
MANUEL FERNANDES THOMAZ 15
mos OS grandes, os patriarchas cá na terra e a consciência diz-
n'os que alevantemos bem alio, em os escudos populares os gran-
des e os patriarchas da liberdade, da sciencia, do trabalho, do ci-
vismo, os homens honrados, os profundamente crentes na fé da
regeneração sociaL
Pois seja assim. Demos logar primeiro, n'esta galeria que nos
cabe começar, ao enorme vulto do notável conspirador que, de
1818 a 24 d'agosto de 1820, soube minar nas trevas o poder dos
senhores por direito divino.
Biographemos os mortos que melhor souberam transformar
em planos ridentes os escalvados montes que o velho regimen quiz
por trincheiras; biographemos aquelles que mais apagaram as
sinistras projecções dos séculos pretéritos, onde o terror es-
trangulava a onsciencia publica, em favor dos que tinham lanças e
espingardas com que decretavam em nome do direito de conquista,
como o corsário com mais risco e mais lealdade se impõe em
nome da força. Biographemos aquelles que atravez de mil perigos,
jogando a cabeça e a família, souberam lançar a semente da li-
berdade onde tinham raizes bera entrelaçadas os castellos roquei-
ros dos velhos suseranos.
Estamos ainda á beira de um tumulo que ha pouco abriu a gar-
ganta implacável para levar ás entranhas da terra o ultimo dos
revolucionários de 1820.
Ainda vemos o cadáver do veneranda Basilio Alberto de Souza
Pinto, aquelle que no memorável congresso constituinte de ha ses-
senta annos, proclamou o livre pensamento sendo o primeiro pela
lei sobre liberdade d'imprensa; ainda estão quentes as cinzas do
derradeiro d'aquella centena de heróicos patrícios, que tinham de
cumprir um juramento sagrado recolhido por Fernandes Thomaz,
eque este prestara em nome da palria e da humanidade oífendida,
aos clarões sombrios das chammas que reduziram a cinzas, depois de
garrotados, os infelizes conspiradores de 1817. Ainda soluça a fami-
lia liberal porque perde a relíquia da ultima geração de valorosos
cavalleíros pelas modernas soluções socíaes, por isso á beira d'a-
quelle tumulo, no meio do luto da pátria nos suggeriu prestar hu-
menagem à memoria de Fernandes Thomaz, primeiro chefe, cora
Ferreira Borges, do movimento mais glorioso da nossa historia li-
beral.
Com Fernandes Thomaz abriraos a galeria dos democratas de ha
mais de meio século, de quem podemos colher bons exemplos e
ensinamento. Geração nova, mal pensamos o que custou a nos-
i6 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
SOS avós a herança da liberdade que delles recebemos.- Livres do 7«/-
zo da incon/idencia a'mí]i\ se nos afigura distante o advento da Repu-
blica, sem nos virá mente (]iie os cam[)Osda democracia bem férteis
ficaram com o sangue dos luctadores da ultima geração. Engano
evidente o nosso. Mais um pouco, uma pequena lucta entre povo
e rei, entre republicanos e conservadores, e então se [)rovará que
já não podem valer as Santas Afliaiiças, que já não pode haver con-
venções de Gramido que prestem, nem duques da Terceiía que sal-
vem.
Os homens de 1820 disseram a Beresfort, quando com procura-
ção de um rei mau e estúpido vinba iíitervir nas coisas populares,
que a nação linha reivindicado os seus direjtos; e o governo da revo-
lução obrigou o ousado inglez a retirar-se em ^4 horas : pois agora
nem um Beresford, nem a altiva Inglaterra, nem a catholica Hes-
panha, nem paiz algum tentaria deixar os seus revolucionários
vir para aqui apasiguar os nossos, A Europa caminha toda para a
Republica; Portugal, quei' queiram quer não queiram os conser-
vadores, quei' queira quer não queira qualquer LuiZjqu er os go-
vernadores empreguem a força e a astúcia — obedece á lei e segue
o movimento, felizmente, sem vergonha da civilisação.
O amor da pátria, tantas vezes provado, soube dizer pela bocca
dos bacamartes ao invasor d'Italia e Portugal, ao vencedor de Ma-
rengo e Austerlitz que nem os sapatos broxados dos seus exérci-
tos, nem as espadas dos seus capitães podiam domar'um povo que
tem direito á liberdade, como do alto da tribuna o benemérito con-
gresso de 18^0 soube dizer: «sobei-ania reside essencialmente na
nação, Esta é livre e independente, e não pode ser património de
ninguém.»
É d'aquelle que primeiro iniciou o movimento para a gloriosa re-
volução de 2i dagoslo, de Manuel Fernandes Thomaz, que no
meio do terror dos cadafalsos e das fogueiras promovia a conspi-
ração que mais tarde nos alevantou aos olhos do mundo inteiro,
de que vamos fallar.
Éelle o primeiro quadro da galeria, e bem o merece.
Relevem-nos a ousadia da apresentação.
(Segue) Feio Terenas.
Um dia a Iniquidade, a indómita megera.
Sonhou acorrentar e dominar o niundo ;
Saiu do seu covil esquálido, profundo,
^- Vibrante de rancor, de sensações de fera.
A Paz, ao Bem, e Amor e Luz declarou guerra ;
Forjou a Tyrbnnia, eqúleos e atras leis : ,
Vencia em breve tudo, e triturava a Terra
Sob o carro tiiumphal dos Padres e dos Reis I
Xavieb de Paiva.
o ATRAZO MENTAL 17
O tiírazo mental
NAS NAÇÕES GIVILISADAS
É grande, sem contestação, o desenvolvimento actual da civila-
ção enropea e americana, devido ao espontâneo numero de pro-
gressos scientificos e industriaes realisados nos últimos séculos, mas
não nos devemos esquecer que é bem diminuta a parte da huma-
nidade que se levantou até esse grau de superioridade relativa, to-
mando a dianteira na marcha evoluliva e perfeclivel das sociedades
humanas. A área occupada pelos povos que são o verdadeiro foco
da civilisação é talvez a vigessima parte da superfície solida do
globo e o numero de habitantes que compõem a guarda avançada
dos progressos humanos é egualmente limitado. Mesmo entre os
povos mais avançados a máxima parte da população conserva-se
n'um estado muito inferior de desenvolvnnento mental, pouco ou
nada difTerindo do atrazo intellectual dos selvagens. É uma frac-
ção diminutissima o grupo escolhido que forma realmente um com-
pleto contraste com o estado rudimentar das tribus africanas e aus-
tralianas. Apenas uma centessima parte dos habitantes da terra
pôde de direito reclamar a qualificação de civilisada, e note-se bem,
incluindo n'este numero muitos individuos que não se desligaram
ainda completamente de preconceitos e superstições das épocas pri-
mitivas.
É geralmente motivo de riso, e até mesmo de duvida, o facto
comprovado por innumeros viajantes e missionários, de que os pre-
tos da Africa fabricando os seus deuses, os seus fetiches de pau,
pedem-lhes favores e protecção, reprehendem-nos, ameaçam-nos e
casligam-nos quando os seus desejos não são satisfeitos; no em-
lanto ainda entre os povos civilisados se encontram vestígios d'este
estado primordial da religiosidade.
Mencionaremos um exemplo que nos foi narrado ha pouco tempo
por um nosso amigo, testemunha ocular do facto : Ha em a nação
visinha. na província das Astúrias, um pequeno povo de pescado-
res, pobres e miseráveis, que todos os annos em 29 de junho fes-
tejam S. Pedro, uma velha estatua de pau, que se conserva n'uma
capella a poucos passos de Piavia. Durante todo o anno os habi-
tantes d'esta localidade vão frequentes vezes cá capella pedir ao
santo que lhes proteja a pesca e lhes conceda toda a ordem de fa-
vores; mas o pedido é acompanhado de promessas e ameaças para
mover o animo interesseiro de S. Pedro ou para lhe arrancarem
pelo medo o que elle de bom grado não quizesse ceder. Assim se
durante a pesca se levanta de repente uma tempestade, as famílias
3
18 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
(los pescaflores. que andam no mar largo, correm em grandes cho-
ros á capella e atordoam os ares com ameaças ao santo para elle
lhes trazer a são e salvo os seus maridos, os seus filhos, os seus
parentes. Se o máu tempo se prolonga e os pescadores não podem
sair ao mar, lá vão elles ameaçar S. Pedro para que lhes dê bom
tempo. Se falia o peixe, se a pesca se torna insignificante, o po-
bre do santo tem de providenciar, quando não... no dia da festa
paga tudo por junto. Chega o dia 29 ; põem o santo sobre um an-
dor e em procissão solemne, acompanhada por todo o povo de Pia-
via vestido com os seus trajes de gala, pelo clero, por musicas e
foguetes, etc, dirigem-se todos para os lados do mar; á frente do
an^clor vae um homem espadaúdo, de fatos carnavalescos, mane-
jando um enorme sabre com movimentos de antigo tambor-mòr e
com esgares ridículos. Chegado o cortejo ao estremo do seu gyro,
á beira-mar, depõem a imagem no chão, e então começa o povo a
formular em alta grita as accusações, as faltas que imputam ao
santo, uns a morte do pae, outros a morte de um irmão ou de um
filho, ainda outros a perda do barco ou qualquer transtorno sof-
frido durante o anno.
A cada accusação o homem do sabre descarrega valentes golpes
sobre o pobre S. Pedro; se o povo acha que é pequeno o castigo
pede em brados atroadores maior sova que de ordinário faz saltar
algumas bastilhas da imagem, e por fim ainda exige que lhe dêem
um ou mais mergulhos; n'este caso alam uma corda ao pescoço
do santo e aliram-o ao mar, uma, duas ou mais vezes. Em seguida
tornam a collocar a imagem sobre o andor cobrem-no de flores e
a procissão recolhe à capella com a mesma solemnidade cómica
com que saiu.
Aqui têm um exemplo bem vivo de felichismo, similhante ao fe-
tichismo das tribus africanas, na nossa península e que prova o es-
tado de alrazo mental em que ainda se acha actualmente a maio-
ria do povo mesmo nas nações civilisadas.
Teixeira Bastos.
Õrineni nrovaveí aas reuniões
Em meio dos grandes problemas da vida e da morte; em fren-
te do terror do ignoto, e da consciência da iuopportunidade das
averiguações sobre assumpto tão ermo de phases elucidadoras, o
espirito acanhado das sociedades infantis creou o ideal divino,
com todo o seu cortejo de inepcias ignaras e prejudiciaes.
Comprebeade-se sem esforço algum o terror, a admiração vaga,
ORIGEM PROVÁVEL DAS RELIGIÕES 19
a curiosidade receiosa que invadiu os primeiros seres humanos em
face dos esplendores de uma flora e fauna em todo o vigor da
sua superabundância luxuosa e viridente. O sol que lhes destendia
os músculos entorpecidos pelo frio e desabrigo das noutes hiberni-
cas; a chuva frigida e torrencial dos climas ricos, coando-lhes no
corpo o desalento e o soífrer material; as esplendidas manifesta-
ções tempestuosas da electricidade athmospherica, as vibrações
aspérrimas do ribombar do trovão; os tons poéticos e vagamente
melancólicos que os raios da lua imprimem ás paisagens outom-
naes deviam actuar-lhes no systema nervoso do modo mais enei'gico
e extraordinário. Foi sem duvida dos diveisos modos de ser das
manifestações naturaes que brotou a utopia da religião, que partin-
do da latria, devia terminar no monotheismo puro, O atrazo do
intellecto das gerações primarias, como os perigos que as rodea-
vam constantemente, sobretudo durante as horas nocturnas em que
as feras sabiam a atacal-as, deram-lhes naturalmente o horror da
sombra e a gratidão da luz. D"aqui partiu a adoração do Sol, pe-
culiar a cada raça, reproduzida em todos os povos em dados mo-
mentos de recuada historia. Mais tarde a descoberta do fogo, por
um meio que é ignorado de todo, despertou-lhes no cérebro a
idéa da comparação, e os foi conduzindo a cogitações que muito
significam relativamente á sua imperfeição mental. O lume pro-
duzia resultados idênticos ao Sol ; mas tinha a vantagem de per-
petuar o calor, e afugentar o inimigo durante a noute : o fogo era
pois a imagem do bem, como a treva era a factora do mal. Todavia
o Sol occultava-se por vezes durante o dia, e períodos de desola-
ção se lhe seguiam, durante os quaes as fructas minguavam, e os
arvoredos gigantescos escondiam a coma entre as neblinas húmi-
das, que similham o crepe luctuoso da natureza, E então o homem
prosternava-se, e na sua ignorância aterrada, lançava pelo espaço
os gritos guturaes da linguagem imperfeita que deviam usar.
Era o egoismo, era o terror do ignoto, era acima de tudo o ins-
tincto da conservação que o impelliam á prece.
Como porém nem sempre havia Sol, transportou-se, ou antes
evolou-se á adoração do astro creador, e breve vemos entre os
selvagens a adoração do fogo.
Estava pois lançado no espirito humano o gérmen dos futuros
Iheologismos, Se porém piocurarmos em todos os povos o ideal
primitivo da religião, achamol-a invariavelmente representando o
Bem pela luz — o Mal pela sombra. O Mar e Arimane — entre
os antigos magos ; Osíris e Tijphon — no Egyplo ; Ormurd e
Ahriman — na Pérsia; Witrilíputrili e Tescalipuca — no México ;
Pachacamac e Cupai — no Peru ; o So/ e o Tova na Florida, etc, pro-
vam abundantemente a idéa que todos os povos hão ligado aos dois
factos puramente naturaes da visibilidade ou ausência da luz solar.
20 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
A chegada da primavera festejava-se no Egypto por festas es-
trondosas, bem como se lamentava publicamente a passagem do
Sol para o equinoxio do outomno. Ainda hoje na Pérsia se consa-
gra o equinoxio primavera!, por «ma festa a que chamam Nannis,
e que dura oito dias consecutivos.
Do fado da adoração do Sol, e mais tarde do fogo que lhe era
idéa ligada, brotou o facto da sociabilidade, como consequência
natural. Em volta da chamma se agruparam pouco a pouco os
seres humanos dispersos pelas mattas gigantescas, e lentamente
se embrenharam no labyrintho das descobertas e investigações.
Qual não seria o seu espanto quando ao approximarem do lume o
animal que haviam supplantado na lucta pela existência, conhece-
ram a differença na agradabilidade da refeição?
Sem duvida que o mais poderoso factor do progresso mental e
material da humanidade, ha sido o fogo. Por elle diligenciou o
homem comprehender-se, e levado peia necessidade inventou a
linguagem ; por elle lhe occorreu a vantagem da sociedade, por
elle ainda o principio da religião que devia agrupal-o em familia,
em tribus, em nações.
E tão arreigado ficou no espirito humano o eífeito d'esses ideaes
primários, que em todas as civilisações, ainda as mais avançadas
vamos achar-lhe vestígios ; tal é a influencia da hereditariedade !
Penetrando n'um templo de qualquer crença iheologica que seja
vereis a luz como primeira necessidade dos seus ritos. •
Mesmo no christianismo, que significa a lâmpada do sanctuario,
os cirios da Paschoa, a profusão de luzes que adornam os thronos
dos novos Ídolos? Porque se não prescinde das tochas em frente
do cadáver? Porque se illuminam os grandes factos da vida como
o matrimonio, o reconhecimento de um membro social, as profissões?
É sem duvida a gratidão pela luz, o reconhecimento pelos be-
néficos effeitos do fogo, que transmittidos de geração em geração
se manifestam hoje inconscientemente.
Em virtude dos efíeitos da linguagem, o homem que existira no
estado selvático, começou a dulcifícar a natural animahdade do
seu caracter naquelles obscuros períodos.
Pouco a pouco foi sentindo necessidades até ali ignoradas, e
pela mesma forma foi procurando satisfazel-as.
Então, assim como reconhecia necessidades externas, assim as
suppoz no ideal que creara. Alegrava-o o ruído ; commovia-o o
pranto; talvez que o Sol, o Fogo, a Treva, a Noute assim fossem
também. Inventou-se então o culto externo, o rito, imperfeito,
sensual e grosseiro, mas que devia ficar até á extincção da raça
humana, porque os séculos transformam e aperfeiçoam, mas não
destroem nem aniquilam
Os catholicos que incensam os seus altares ; os livres pensado-
DIVAGAÇÕES 21
res que alinham as suas procissões civicas; os musulmanos que
se prostram nas suas mesquitas; os hetreos que se flagellam em
face do tabernáculo; os protestantes que se curvam perante a cruz,
estão apenas imitando aperfeiçoadamente o homem rudimentar que
pela vez primeira fez uma momice qualquer em honra da luz que
o extasiava, ou da treva que lhe apavorava o espirito...
E assim se explicam, segundo nos parece, as idí^as innatas do
theologismo e da metaphisica escolar. A creança que ergue o olhar
ingénuo ao ceu, não pensa decerto em deus, procura a claridade
que a deleita, o que facilmente se reconhece pela fixidez com
que ella fita uma luz qualquer que lhe fique ao alcance da vista.
Sendo o cérebro humano producto de causas internas e externas,
como se prova scientificamente, claro é que as primeiras impres-
sões recebidas devam ter grande parte no seu desenvolvimento.
Transmittidas essas impressões pela hereditariedade, modificadas
pela acção climatológica, influencia de meio, e condições de exis-
tência, podem tomar direcções mais positivas, dimensões mais
sensatas, mas teem inalteravelmente o ponto de partida no pen-
samento primitivo.
Tal se nos afiigura fosse a causa primaria do ideal divino, que
mais tarde devia ser aproveitado utilmente em prol do progresso,
depois como assassino da razão, como carrasco dos povos, como
o mais ignóbil estorvo aos progressos do espirito humano.
Angelina Vidal.
Èí
ivaaioLçoes
A Morte, essa mulher de lábios hirtos
Faz pulsar nas artérias o meu sangue;
O sepulchro é p'ra mim de verdes myrtos
E a Morte attrae-me o coiação exangue.
Aperta-me em seus braços regelantes,
Arrasta-me aos espaços luminosos,
Onde passam os mundos deslumbrantes,
Os astros esplendentes e formosos.
E se esla alma de lá, cheia de vida,
Enxerga a terra outr'ora idolatrada,
Vé-a inerta, sem luz, arrefecida,
Como um cadáver que desceu ao nada.
Então a Morte, erguendo a voz dolente,
Diz-lhe, apontando o Sol na immensidão :
— «Curva a fronte aos seus pés, ó impotente
«Que é elle o rei de toda a creação.
21 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
«Eu que arremesso ás boccas esfaimadas
'■Dos túmulos, os lírios perfumados,
"Das donzellas as carnes delicadas
"E dos velhos os membros congelados;
"Eu que esmago nas mãos as esperanças.
«Todas as illusões da Humanidade;
«O sorriso vermelho das creanças,
«As phantasias vãs da mocidade,
"Não posso erguer meus olhos, côr da terra,
"Até litar seus raios deslumbrantes!
"Eu não sei que mysterios elle encerra,
"O Sol. o rei dos astros fecundantes!
E a minh'alma, escutando attentamente
Aquella voz sinistra, sem pavor.
Ergue seus olhos puros, docemente
E no Sol reconhece um creador.
Ernesto Pires.
Ô centenário
DE
SEBASTIÃO JOSÉ D£ CARVALHO E MELLO
MARQUEZ DE POMBAL,
Ha tempo, logo depois da commemoração civica do tri-centenario
de Camões, quando vibiava ainda na grande alma popular a grata
recordação d'essa festa triumplial, aventou-se a nobre idéa de so-
lemnisar condignamente o primeiro centenário do illustre homem
de Estado, cujo nome gloriosa synthelisa a condemnação de dois
factos que lêem conturbado o paiz ncs últimos tempos — a invasão
dos jesuitas e a criminosa subserviência ás imposições da Ingla-
terra.
O Grande Oriente Lusitano, tentando dar um publico testemunho
de que no sen organismo existe ainda um sopro de vida consola-
dor, apressou-se a corresponder á corrente da opinião. Reuniu e
resolveu commemorar por modo significativo a data escolhida para
a glorificação posthuma do edificador da moderna Lisboa.
Tal e tão patriótica resolução, tomada pelos pedreiros livres, be-
liscou a santíssima orthodoxia de um descendente idiota e degene-
rado de Sebastião de Carvalho e Mello, o qual publicou em o jor-
nal catholico A Nação uma seraphica epistola em que espectorava
o CENTENÁRIO DO MARQUEZ DE POMBAL 23
a sua indignação sorna de jesuila cachelico. Como qup. atacado da
dansa de S. Vito, o beato declarou e protestou perante o mundo
christão que não consentiria na manifestação feita por aquelles pre-
citos e excommungados. . . E os manes do athleta, para quem as
fúteis convenções e os falsos prejuízos eram débeis liames que elle
despedaçou sem o minimo esforço, se não fossem apenas o produ-
cto de poética phantasia, sentir-sc-hiam corridos de vergonha do
procedimento abjecto do homem que por hallucinação religiosa não
trepidou cuspir uma negra aíTronta nas mais gloriosas tradições le-
gadas pelo seu maior!
Ponhamos porém de parte a epistola indignada do hierático fi-
dalgo; porque não será o chocho escripto, nem o de todos os seus
congéneres, se a elles aprouvesse seguir o exemplo, que poderão
obstar a que o paiz salde a sua divida de reconhecimento, como o
governo obnoxio de então não poude obstar ao pagamento d'essa
outra contrahida ha três séculos para com a memoria immortal do
épico cantor das nossas glorias.
A grande festa deve realisar-se, mas não com o só concurso
d'esta ou daquelía classe; deve sel-o com a consagração de todos
os homens animados d'um altruísmo são, abrilhantada com a as-
sistência e o enlhusiasmo de todo o paiz pelo qual Sebastião de
Carvalho e Mello batalhou, errou e soffreu. Sabemos que algumas
famílias sentir-se-hão alancear de recordações lúgubres ao vlbrar-
Ihes no coração os eccos da manifestação nacional; porque muitos
dos seus antepassados succumbiram á perseguição e á vindicta do
rigido estadista.
Respeitemos o seu lucto e a sua dor. Mas não seja isso obstá-
culo ao intento, pois que nos demonstra a analyse rigorosa dos fa-
ctos e o estudo desapaixonado da época em que occorreram, que,
para o austero reformador conseguir a regeneração e alevantamento
da pátria, foi-lhe mister passar o seu carro triumphante por sobre
um montão de cadáveres e molhar em sangue a penna que lavrou
os decretos que ainda hoje nos assombram pela sua previsão e au-
dácia. Ainda assim os que houverem de escrever acerca de Sebas-
tião de Carvalho e Mello não se devem deixar cegar pela luz que
irradia do heroe, que tal não seria fazer a historia e a critica dos
factos; seria tecer um panegyrico imbecil de chronista fradesco.
É preciso que vejamos sempre o verdugo na pessoa do homem
intemerato, animado de um espirito forte, innovador, com as scin-
tillações extranhas d'um semi-deus ; que descubramos a face do
algoz cruelissimo no estadista corajoso, da tempera do aço, o qual,
tão somente escudado na passividade d'um rei de opera cómica, re-
construiu Lisboa — tornando-a mais bella, magnificente, sobretudo
mais moderna, — a cidade que um calaclysmo horroroso quasi re-
duzira a um montão de ruinas; que atacou de frente as exorbitan-
íi EiNCYCLOPEDIA REPUBLICANA
les prerogalivas da Egreja, atacou o ominoso tribunal da Inquisi-
ção e decretou a expulsão dos jesuítas, desnaluralisandoos, com-
pellindo-os a abandonar o reino num curto praso de tempo ; que
aboliu a escravatura na metrópole, e a absurda e sangrenta dis-
tincção entre cluistãos velhos e christãos novos ; que reformou a
Universidade, creou escolas e academias, secularisou, ampliou e
melhorou a instrucção publica, até então acommodada e viciada ao
sabor dos jesuítas; que imprimiu salutar incremento á prosperidade
das colónias, â organisação das companhias commerciaes da índia
e Grão Fará, da de vinhos do Alto Douro e da do Compromisso do
Algarve ; que protegeu e estimulou a agricultura, a piscicultura e
a industria nacionaes; que reformou a marinha, o exercito e a jus-
tiça; que se oppoz constantemente, altivo e vibrante de nobre pa-
triotismo, contra as tentativas egoislas e traiçoeiras dos inglezes,
costumados a humilhar-nos, a tutelar-nos, levantando o nivel mo-
ral e inlellectual da nação, tornando-a digna e respeitada aos olhos
da Europa assombrada da virilidade de espirito, da capacidade go-
vernativa, da tenacidade inquebrantável, da audácia heróica, da
vista de águia do grande, do integro estadista portuguez I
A festa civica de homenagem á memoria do reformador não será
tão ternamente sensibilisadora, tão compacta e unanime como a
que ha quasi dois annos realisàmos como consagração de respeito,
gratidão e amor á palpitante memoria do ingente poeta. A obra de
Carvalho e Mello é apreciada por nós e pelos que nos visitarem,
e pane d'esse trabalho colossal foi-se desmoronando pouco a pouco
depois da sua queda, por causa dos erros das dynastias que suc-
cederam à de José I, e seus estadistas de pechisbeque. A obra de
Camões é eterna como a luz; todo o mundo a admira, todos os
povos a conhecem e reverenceiam o seu immortal auctor. Se Por-
tugal desappui ecesse do mappa das nações e o seu idioma se obli-
terasse, os Lu>iiadas ficariam transplantados nas lilteraturas das
nações mais cultas. De resto Camões tem direito á nossa sympa-
Ihia como homem e como cantor; Pombal apenas como estadista.
Mas a commemoração é um protesto enérgico e vibrante contra
os que, por interesses particulares, esquecem as leis e os exem-
plos do que sendo um tyranno tanto trabalhou para a liberdade;
e por isso o partido republicano, que se assignalou na apotheose
camoneana por actos de nobilíssimo civismo, não pode nem deve
regatear o seu concurso á solemnisação do centenário de Sebastião
José de Carvalho e Mello, porque seria negar-se a sanccionar o du-
plo protesto que em tempo levantou ousadamente e fez reboar por
lodos os ângulos do paiz.
Xavibr jde Paiva.
o MEU PRfMGIRO DIA EM PARIS 25
eieu íiriíiieiro 3 ia eoi Paris
1'
Eram apenas 7 horas cruma bella manhã d'agost.o — 1880 — ,
quando o meu excellente companheiro me chamava ao restaurant
do hotel, para saciarmos o appetite, Ião aguçado pela viagem da
tarde anterior. Depois de me deliciar nas esplendidas paizagens do
canal de Southampton e da ilha de Wight, havia-me surprehendido
a perspectiva soberba do Havre, e sobre tudo os formosos e varia-
dos panoramas, que se nos desenrolam no trajecto d'esta cidade
á capital da França. Agora ia conhecera vida intima d'este centro
da moderna civilisação: dominava-me pois um extraordinário con-
tentamento.
Sobre o mappa, o meu nobre amigo indicava-me o itenerario,
dizendo por fim: «eis a sua romaria, e á noite no Palais Royal
me dará conta das primeiras impressões.» No fronteiro square
Montholon e já assentado no caleche, recebia-lhe um aperto de mão
ouvindo-lhe ordenar ao cocheiro: Subi a rua Lafayette até ao boule-
vard de Magentas, e em seguida conduzi este senhor á praça da
Republica.»
— É a estatua provisória que serviu para a festa do 14 de ju-
lho,— me dizia o cocheiro-cicerone, ao torneal-a em modos de con-
tinência. Não foi a adoração idolatra quo em mente lhe dirigi, mas
com o mais profundo acatamento saudei alli a França republicana,
democrática, liberal e cosmopolita, que aos meus olhos como que
apparecia agora personificada n'aquelle monumento.
Pouco depois divisava no solo, os marcos delimitativos da hor-
rível Bastilha. Oh! como que a imaginação me evocava as innume-
ras tragedias representadas n'aquelle palco de nefanda memoria.
Parecla-me ver surgir os espectros das victimas do despotismo,
em torturas, ou jazendo nos cárceres tenebrosos. Mas também
me pareceu então presencear o heroísmo com que o povo, electri-
sado pela voz do joven Camillo Desmoulins, atacava os suissos e
derribava n'algumas horas os baluartes do velho mundo, mos-
trando como o seu braço é bem mais forte que as couraças com
que se protege a tyrannia.
Semi-absorlo contemplava este santuário da santa Democracia
que em breve avassalará o mundo, quando dei com os olhos no
anjo reluzente da Liberdade, que sobremonta a columna de julho,
alli mesmo erguida, da Liberdade que aquelles martyres haviam
conquistado outra vez em 1830, indo depois alcançai a para a Bél-
gica, e mais tarde para Portugal.
Lembrara-me então que talvez nas campanhas da liberdade por-
•tugueza, alguns dos que se bateram nas jornadas de julho houves-
4
26 ENCICLOPÉDIA REPUBLICANA
sem espingariieado o absolutismo, ao lado de meus maiores que
tauto me (aliaram dos fiaiicezes na minha infância. E foi assim im-
pressionado que subi ao capitel da colnmna para gosardo magnifico
panorama que nos apresenta a grandiosa cidade.
— Ao faubonrg S. António e em seguida ao Pantheon, disse para o
cocheiro. Tenho de reverenciar-me ao pé da lapide commemorativa
do martyriologio de liaudin, e quero concentrar o meu espirito ante
os túmulos d"esses dois génios que illuminaram a humanidade,
Rousseau e Voltaire. E depois de ler aujaldiçoado, ji^mlo á memo-
ria duma das victimas, esse crime nefasto que a historia denomi-
nou— o 2 de (ltíZ(ímbro — entrei as catacumbas da Hevolução, onde
o guarda começou por me apresentar a surpreza do ecco muitas
vezes sob as abobadas repettido, para fazer jus á gratificação d'al-
gnns cêntimos.
Que admiração não foi a minha, ao divisar por Ioda a parte os
túmulos de mediocridade que não tinham outros titulos á recora-
mendação da posteridade senão os que alli lhe gravaram;— bispo
conde, barão ou general do império! Quando deixarás tu, França,
de ser grande até na propila puerilidade?!
Invoquei os manes do authordo conlracto social, accrescenlando:
o teu Emilio alegrara o meu espirito e guiou a classe educadora
da humanidade, l'] uma dupla homenagem que te venho consagrar
como homem e como professor: tu fizeste-me cidadão e mestre.
O' amigo dosopprimidos, quão rudes e certeiros golpes não vi-
brastes na superstição e na intolerância?! Sim, Voltaire, tu dis-
seste— ecrasons linfame — e a tua voz repercutiu-a a sciencia.
Aquella bella festa que os novos haviam de gosar e tanto lhes in-
vejavas, chegou já na primeira phase, a violenta, e chamou-se Re-
volução; está-se realisando na tranquilla, e denomina-se, Evolução.
O teu riso desdeidioso foi o stygma destruidor de todos os abu-
sos e de todas as iniquidades do velho mundo; bem hajas, propu-
gnador da justiça.
Tinha realisado a minha communhão es[)iiitual, podia pois ins-
truir-me e recrear-me. Fará o Luxeaiburg pela rua do abbade TE-
pêe cuja gloria no ensino dos surdos mudos, pertence aules a uma
victima da inquisição portugueza — Jacob Rodrigues Pereira.
A agglomeração de povo no começo da rua aguçou-me a curiosida-
de; despedi o cocheiro e entrei n'uma sala enorme do edifício contí-
guo á Escola de Minas. As Bandeiras entrelaçadas, e seguras por
placas contendo as letras — R. F. — enfeitavam o recinto exterior;
como o estrado da meza e as paredes. Quasi logo, c presi-
dente, maire de arrondissement, 6.°, faz signal e um individuo
empunhando a batuta, colloca-se-lhe na frente. Dois lazaristas saem
arrebatadamente, algumas irmãs da caridade lançam-se aos fauteuils,
as centenas d"espectadores erguem-se, fazendo como por encanto
o MEU PRIMEIRO DIA EM PARIS 27
O mais religioso silencio. Cerca de 300 creanças, com a sua voz
angelical, soltam as sublimes. melodias do hymno da liberdade. —
a Marselheza. Aquella expressão eulbusiastica, de que só são
capazes os francezes, a doçura das notas e o precioso do pensa-
mento contido na letra, impressionaram-me de tal modo que me
senli lambem creança — os olhos, permitti a confissão, arrasaram-
se-me de lagrimas.
Era a distribuição de prémios mais imponente a que em minha
vida assisti. E todas ellas se fazem com grande esplendor, porque
entram no plano gorai da educação do povo para a Republica, como
me dizia uma distincla professora, discípula da illustre Pape-Car-
penlier.
Pouco depois, n'um dos vapores corria eu o Senna até Passy,
admirando ainda especialmente a perspectiva das Tuilleries, do
Trocadero e Champ de Mars, onde se effecluara a ultima exposição.
Foi no regresso que tive pela primeira vez occasião de conhecer a
actividade característica, a physionomia alegre, expressiva e in-
telligenle dos operários parisienses, que já voltavam de Grenelle
e Autenil, os bairros industrlaes, para os seus lares no faubourg
S. António e adjacentes.
A' hora aprazada, no Palais Royal, onde os grandes revolucio-
nários planearam a derrocada das velhas instituições e os gran-
des traidores a queda da primeira republica, exliibia o meu con-
tentamento sem me Importar quasi com a bella luz eléctrica que
abrilhantava o jardim. E o meu nobre amigo pretendia ver no
meu enthusiasmo e procedimento intimas relações com os actos
de devoção religiosa. Sim. senhor, lhe respondi logo: O homem
religioso, guiado pela fé invoca a estatua do seu heroe dominado
por um interesse qualquer mundano ou celeste e não hesita em
ir praticar em nome de Deus talvez o crime.
Nós, os sectários doesta nova religião da sciencia também so-
mos devotos, respeitamos os nossos martyres, e invocamos a sua
memoria, para melhor praticarmos o bem que é o cumprimento dos
nossos deveres.
Temos por dogmas — liberdade egualdade e fraternidade — e
aceitamos comorito apropriado— a republica. Eis os princípios cora
que procuramos realisar a nossa felicidade particular, contribuindo
proporcionalmente para a felicidade commum.
Lisboa, 20 -de dezembro de 1881.
M. J. Martins Contreiras.
ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
'oríuqat e n WÍ,ovn Héa
Ò velho Portugal ! paiz de fama escripta
Nas fortes vibrações il'um livro heróico, ingente,
Um geograpliico espectro és hoje só ! demeuie,
Cariado e imbecil como um gasto sedomita !
Leão peninsular 1 ergue-te altivo e fita
A estrella que olfuscou o brilho do Crescente ;
Deixa de ser o Mário europeu — no Occidente
Chorando á beira -mar, como nação proícripta.
Enebria-te o rumor sonoro do Athiantico,
Alquebrado paiz, decrépito romântico?
Ou vt's com dôr rasgar a épica epopiía?
Vibram novos clarins ! Vae ferir-se a batalha I
— Sè heróico outra vez : não precisas metralha,
Mas sim render teu culto á grande, á Nova Iuéa.
Xavier de Paiva.
®sos funerários em Portunal
Assim como o lalemos dos gregos e as Nacnias romanas, os
cantos fiinebres, tão característicos das povoações ante-áricas
persistentes no occidente da Eiu^opa, existem lambem na Rússia, o
Pesnipogrebalnia e o Nad-mertvimi : aCantam-n"o cada domingo,
durante um certo tempo sobre as sepulturas dos seus parentes
mais próximos, e depois durante os grandes dias de festa por al-
gum tempo ainda. Mas o que é mais notável, é que cada vez
que vão visitar os túmulos dos seus parentes, põem em cima pe-
quenos bolos, à maneira dos coliva dos gregos modernos, e da fe-
ralia e sUicermum dos antigos; acompanham as suas oíTrendas da
conclamatio ou lamentações usadas na antiguidade.» ^ Em Portu-
gal as crianças cantam, sobretudo em Coimbra uma canção fúne-
bre, no dia de finados, que começa Bolinhos, bolinholos.
Os russos tèm também as dansas fúnebres, Trisna^ como as que
se usavam entre nós na sepultura do Condesíavel.
Nos costumes antigos da egreja franceza encontramos: «Na egreja
1 Guthrie. Antiquités de liussie, p. 43.
2 Ib., p. 78.
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL 29
de S. Quenlin, durante o ofíicio da noite as crianças do povo per-
corriam as fileiras dos fieis, pedindo a e^mola dos moitos, sacu-
dindo bacias de cobre, que se enchiam de pequenas moedas.»
(Rev. de lArt chétien, i, 520.) O uso passou da egreja para a rua.
O dobre dos finados, deriva-se também do antigo uso em que cada
fiel ao sair da egreja puchava por seu turno pela corda do sino.
As carpideiras decairam completamente, bem como as Nenias
ou endechas dos mortos, ainda em vigor na século xv. — O uso de
comer sobre as sepulturas acha-se na lei velha, quando Tobias re-
commenda a seu filho que ponha pão e vinho sobre o tumulo dos
justos : Panem tuum et vinum tuum super sepuUuram justi consti-
tue. (Tob, IV, V 18.) Estes ritos eram também usados pelos Bel-
gas sob o nome de dadsisas, espécie de festim sobre a sepultura
das pessoas cuja memoria era cara ; o touro e o bode eram as
victimas regularmente immoladas. Na egreja primitiva conservou-se
o costume, como vemos na phrase de Santo Agostinho, que re-
commenda acerca dos banquetes funerários : Non sint sumptuose.
Os banquetes sobre as sepulturas apparecem entre os povos scau-
dinavos como formando parte das suas festas religiosas ; Agoslinho
Thierry deriva d"este uso os banquetes communs das Irmandades
da Edade Media, em que se renovava a liga defensiva : «o terceiro
copo era bebido pelos parentes e amigos cujas sepulturas, notadas
por montículos de relva se viam aqui e ali na planicie. O nome de
amisade, minne. era dado algumas vezes á reunião daquelles que
oíTereciam em commum o sacrifício, e de ordinário esta reunião
era chamada ghilde, isto é, banquete pago em commum, palavra que
significava também associação ou confraria, porque os co-saciifi-
cantes promettiam por juramento defenderem-se uns aos outros e
de se coadjuvarem como irmãos.» ^ As sandes com vinho são ainda
hoje um signa I de amisade, bem como os bodos nas festas dos san-
tos, são o vestígio do culto dos heroes, da antiga festa dos ghdde.
Agostinho Thierry descreve a transformação do costume, que na
península se liga á existência das Irmandades : «Os Germanos, nas
suas migrações levaram este costume por toda a parte ; conserva-
ram-no depois da sua conversão ao christianismo. substituindo a
invocação dos Santos á dos deuses e heroes, e ajuntando certas
obras pias aos interesses positivos que tinham sido o objecto d'este
género de associações. De resto, a instituição original e fundamen-
tal, o banquete, subsistiu ; o copo dos bravos bebeu-se em honra
de algum santo reverenciado ou de algum patrono terrestre ; o dos
amigos bebeu-se, como outr^ora, em commemoracão dos mortos
Considerations sur l Hist. de France, eap. 6.
30 ENCYCLOPEUIA REPUBLICANA
por alma dos qiiaes se resava reunidos depois da alegria do fes-
tim. O ghilde cíiristão teve muito vigor entre os Anglo Saxões, e
vè-se apparecer na Dinamarca, na Noruega e na Suécia, pela ex-
tincção do paganismo. «A historia das associações fiaternaes, das
Germauias, Arimanias, Irmandades e Confrarias, em que a liber-
dade individual se defendeu contra a prepotência do feudalismo
está ligada a este coslume social, que ainda persiste nos usos fu-
nerários, mas já sem consciência do seu intuito. É preciso portanto
separar as Obradorios ou Oblatas, que o povo usa pelos enterros,
oíBcios, exéquias e trintarios (ex. Villa de Garros, etc.) dos han-
quetes sobre as sepulturas, que correspondem a uma phase social
mais elevada, como vimos pelo uso scandinavo-germanico.
«Na freguezia de Villa Cova de Carros, concelho de Paredes, no
primeiro domingo depois do fallecimento de alguém, ha um Obra-
dorio, (responsos) e no fim d"elle todos os assistentes bebem e co-
mem á porta da Egreja. Em varias terras de Portugal é costume
dar esmolas de pão aos pobres, ou ás portas das casas ou dos ce-
mitérios.» * Nas (>onstituições do Bispado do Porto se lè: «E cada
um dos parochos, sob pena de lhes dar em culpa, não consintam
em suas freguezias abusos e superstições nos acompanhamentos, en-
terros, olficios, exéquias e trintarios. nem que se coma sobre as se-
pulturas, nem façam resas com ajuntamento da freguezia á porta
da egreja, em que se costuma dar de comer.» (Liv. iv, tit. 2.°,
consta 9.) O obrailorio é a forma popular de Oblata ou Obrata. O
collector já citado consigna este outro costume : «Em Paraduça,
concelho de Moimenta da Beira, quando morre alguém o dorido
fica um mez com a camisa no corpo sem a mudar. No primeiro
domingo em que elle vae à missa, o povo acompanha-o da casa à
egreja, e vice-versa.»
Na poesia tradicional porlugueza encontram-se impoitantes refe-
rencias aos usos funerários; no romance da D. Infanta, versão da
Beira Baixa, vem :
— Ai triste de mim, viuva,
Ai triste de mim, coitada 1
Ir-me-hei por esse mundo
Chamamlo-ine desgraçada.
Ai triste da só viuva.
De mim que nanja de nada.
(Roín. fjer. n.° l.J
No romance de Faustina, (Silvaninha) lêem-se estes versos:
Nossa Sentiora do Pranto
Era quem a pranteava ;
1 Leite de Vasconeellos, 'Sota sobre os Fuueraes (Pantlieon. p. 97. t881.)
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL 31
Iso seu pranto, que dizia :
<i Domingo tle madrugada
Vieram sete demónios
Dormiram em tua casa,
Para levarem teu pae
Para o inferno em corpo e alma.
fOp. cit. p, 183.)
No romance do Casamento mallogrado, versão da ilha de S. Jorge:
Cobrira-se com o seu manto
Tratara de caminhar ;
As servas iam traz ella
Cuidando de a não alcançar;
O pranto que ella fazia
Pedras fazia abrandar. . .
(Cantos do Arcliipelago, 7i.° 55.)
No romance do Puhre preso, (ib. n.° 73), ha a refet^eucia ao to-
que do sino :
E dizei ao thesoureiro
Que me toque o meu signal...
li no romance do Toureiro namorado, versão da Beira Baixa :
Não me toquem a campana,
Nem me enterrem em sagrado...
Quando se não enterrava o morto em sagrado, lançavam-lhe pe-
dras sobre a sepultura, fazendo uns monlicuios chamados Fieis de
Deus. Santa l{osa de Viterbo diz (l"este uso: «Em todo este reino
vemos d'estes pedregulhos junto das estradas, sem que nos fique
a mais leve duvida que ali foram advertidamente postos e não por
acaso.» E cita um documento de Pinhel, de 1473, em que se refere
este titulo, «queopovo também chama ^Vo///e5- Ga ^////o.5.» Santa Rosa
de Viterbo altribue este uso a origem grega, derivado do costume
de se atirarem pedras para honrarem Hermes ou Mercúrio, para tor-
nar propicia a viagem ; mas o deus das viandantes era primitiva-
mente um psi/chopompos, ou guia das almas dos mortos, e por este
aspecto nos remontamos á origem mythica d'este uso funerário. Nos
contos populares, como o de Pelit Poucet, a criiuiça que é abando-
nada na floresta para morrer, consegue por meio de /M/rZ/íAo^ que
vae deixando cair por onde a levam, descobrir o caminho para vol-
tar para casa. As pedras no mylho dePyrra são atiradas para traz,
e nascem d'ella os homens, durum gemis, como diz Lucrécio. A
pedra funerária tem por tanto um sentido mylhico, a que se figa a
esperança da resurreição do morto, ou pelo menos a guia para
achar no mundo subterrâneo o caminho para a luz e a bemaventu-
32 ENCYCLOPEDIA REPUBLICArSA
rança. Gubernalis cita este costume entre os tártaros da Pequena
Rússia, que em viagem atiram para a sepultura que encontram na
estrada pedras com um sentimento religioso propiciatório * ; o
mesmo uso é indicado em Sérvio como existente na Itália meri-
dional, e Liebrecht, encontra-o entre os antigos gregos, bem como
entre os Germanos, Scandinavos e Celtas da Gram Bretanha, re-
montando-os também á Índia, aos Chinezes, aos Japonezes e Hot-
tentotes -.
Hoje ainda se atiram pedras á sepultura do moito, e nos cos-
tumes provinciaes os indivíduos que acompanham o saimento con-
sideram como um dever religioso o atirar um punhado de terra
para denti'0 da cova. Gubernatis, allia estes dois fados, dizendo
que a palavra indiana odri, s\§n\í\c^ pedra e monte. Diodoro Siculo
conta que Semiramis levantara sobre a sepultura do marido uma
collina de terra ; o tumulo de Heitor era de terra e de pedras, do
mesmo modo que o tumulo a Alyattes por Xenephonte ; Pausanias
diz que o tumulo de Laios era feito por um monte de pedras, e
segundo Virgílio, o rei de Lacio Dercennus foi enterrado sob uma
collina de terra. Lubbock, traz uma phrase proverbial dos monta-
nhezes da Kscossia, colhida por Wilson, que é uma espécie de cor-
tezia : iHeide ajuntar uma pedra an túmido que te cobrir. y> (Curri
mi clach er do euirn). São numerosíssimos os fados coliigidos por
Tylor, Lubbock, Liebrecht e outros, e por isso é fácil a erudição,
mas dirficil um systema de coordenação.
O costume de collocar pedras sobre as sepulturas acha-se entre
as raças selvagens, entre os povos que attingiram uma civilisação
rudimentar, e persiste ainda nas raças superiores da humanidade,
como vestígio de uma concepção primitiva. Segundo Park, no in-
terior da Africa existem montões de pedras, que os negros ac-
cimiulam sobre as sepulturas dos seus parentes e amigos, augmen-
tando-os quando por ali passam ; Galton descreve o mesmo cos-
tume entre os Damaras, o Spencer nota-o entre os Bodas eos Dhi-
mals. Darwin, na sua Viagem, de um Naturalista, observou na
Sierra de las Animas, em Maldonado, montões de pedras, a ({ue
attribue um inluilo commemorativo histórico, mas que em rigor
são exclusivamente de uso funerário; basta o nome de Sierra de
las Animas, e a relação já estabelecida por Gubernatis entre a pe-
1 Mitolofiia comparata. pag. 102.
2 Nos costumes populares da ilha de S. Miguel, tia a superstição de semear o
morto; quando vae alguém a enterrar, os seus inimigos costumam ir atraz do fé-
retro espalhando trigo e sal, para que elle não torne pelo mesmo caminho a per-
seguil-os.
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL 33
dm e o monte (adri) nos mylhos indianos, * para se conhecer o
intuito das raças indígenas da America, e estabelecer mais nm
ponto de contacto com a civilisação primitiva dos Árias. Darwin
compara estes montões de pedras da Sierra de las Animas com os
que commumente se encontram nas montaniias do pniz de Galles.
Os Árabes também costumam atirar pedras ás sepulturas com um
fim religioso, prevenindo-se de longe com pedras que acham pelo
caminho para não faitareín a este piedoso dever; assim o obser-
vou em 1845 o viajante Carrete, na Argélia meridional : «Viajando
um dia com os Árabes, admirei-me de os vêr apanhar uma pe-
dra cada um d'elles successivamente ; um d'elles apresentou-me
uma, e pergunto-lhe porque é que procediam assim? — Devemos
passar diante do ?2za (tumulo) de liel-Gassen. Não comprehendendo
peguei na pedra ; dahi a pouco chegamos a um montão informe
de pedras de metro e meio de altura. Cada um dos companheiros
foi lançando a pedra que trazia na mão, dizendo : — Ao ?iza de
Bel-Gassen. Fiz como elles.»
O nosso amigo Teixeira Bastos cita egual costume na província
do Minho, por informações recebidas de Cabeceira de Basto:
«Quando um aldeão passa por pé de uma cruz, que indica o sitio
€m qne se commetteu um assassin;o, apanha uma pedra, e depois
de rezar pelo descanço eterno do morto, atira-a para o montão
de pedras, que se vue formando em volta da cruz. O mais interes-
sante é que ás vezes, quando n'aquelle sitio não pode encontrar
facilmente uma pedra fora do montão, tem o cuidado de a trazer
de longe, para não deixar de prestar aquelle preito supersticioso
á alma do finado.» ^ Vé-se que o costume primitivo foi particula-
risado para os mortos violentamente, talvez para guiar as alm.is
errantes dos que não foram enterrados em sagrado ; e o intuito
de desacreditar o costume popular fez com que as pedras fossem
atiradas por devoção para as sepulturas dos justiçados. ComUido
o costume ainda persiste em Portugal, ligada a tradição da pedra
ao culto da montanha : diz o sr. Leite de Vasconcellos : «Ao pé do
Rio Tinto, junto á Serra da mulher morta, (segundo informações
que obtive do meu amigo o sr. Leite de Faria) conserva-se o cos-
tume de deitar uma pedra e rezar um padre nosso ao pé de uma
cruz de ferro que ahi ha, e assignala morte. Ninguém pode to-
car nos montículos de pedra.» ^ Lm nota accrescenta : «Sabem )S
■que existe n"outras partes de Portugal.» A cruz é ainda na liii-
1 Mitologia comparata. p. 100.
~ Ensaios sobre a Evolução da Humanidade, p. 19.
^ Era xXova, p. 78.
34 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
giiagem methaphorica a arvore da redempção ; nos mylhos in-
dianos, a palavra adri, que significa a pedra e o monte, exprime
também a arvore, origem da vida. Ha aqui dois syslemas religiosos
correspondentes a duas concepções das origens do homem, uma
que o deriva da terra ou argda animada, como nas raças kuschi-
to-semilas, e outra que o deriva das arvores, como nas raças ári-
cas ; portanto na esperança de renovação da morte, o monte de
terra e a pedra pertencem á concepção rudimentar da raça sobre
que se desenvolveram os semitas ; e a arvore corresponde ao do-
mínio de uma raça superior, o ária, que substituiu na historia a
hegemonia semita.
Os moniiculos funerários são frequentes em vários pontos de Por-
tugal, restos de uma população ante-historlca, e têm na linguagem
popular o nome de mamôas, anlellas e antinhas, não obstante uma
grande parle d"elles ter sido destruída pela exploração agrícola e
pelos investigadores de tliesouros. O dr. Martins Sarmento dá uma
curiosa noticia destes montículos do Valle Ancora, alguns delles
em grupos: «O exame dos Dolmens e dos túmulos de Ancora,
mostra mais que os Dolmens e túmulos são sempre, ou foram co-
bertos por uma mamôa maior ou menor, e conforme o tamanho da
sepultura que escondia, mas composta sempre do mesmo modo, terra
e pedregulho. y> * O terreno entre a Cilania e Sabroso. onde está um
monliculo sepulcliral, ainda conserva o non>e de Monte d^Antiila;
e em Pamplide, o Campo das Antinhas tem algumas sepulturas
contíguas abertas em rocha. ^
O nosso amigo Leite de Vasconcellos, solícito investigador dos
usos das nossas localidades, allude ao costume pr\m\l\\oào dinheiro
de Charonte, que se conserva ainda no Jura e no Dorvan, como
nota Alfred Maury, e que em Portugal se lança no caixão do de-
functo, para passar o rio dos mortos: tNa freguezia de Guifões,
perto de Mathosinhos, deila-se no caixão do morto dinheiro de cru-
zes para o morto passar S. Thiago de Galliza, onde ha um buraco
a que toda a gente tem de ir, vivo ou morto. Em Cimbres, conce-
lho de Mondim da Beira, deita-se no caixão dinheiro para o morto
passar a barca (ou a ponte). O mesmo costume existe em Sinfães
e creio que no Minho. No Porto e em Villa Heal sei que se espeta
um alfinete no habito do morto para este se lembrar dos vivos pe-
rante Deus.» 3 A crença da Barca chegou a inspirar na litteratura
portugueza os três Autos hieraliros de Gil Vicente A Barca do Jn-
1 Pantheon, p. 4.
2 Idem, pag. 21.
3 Idem, pag. 97.
usos FUNERÁRIOS EM PORTUGAL 35
ferno, do Purgatório e do Paraiso; a crença da Ponte da passagem
das almas é fixada na via-lactea, ou na linguagem popular, car-
reiro de Sam Tliiago por onde as almas partem d'este mundo. *
A Psychostasia, ou pesagem das almas para julgar dos seus me-
recimentos pelo archanjo S. Miguel, é vulgar no povo portuguez
e acha-se descripta em uma oração tradicional do Porto :
Sam Miguel pesae as almas,
Ponde pezos na balança.
Os peccados eram tantos
Foram cotn elles ao chão!
Poz Nossa Senhora o Manto,
Ficaram pezos suspenso? :
(>om a graça de Maria
Ficou a a minha contente. 2
Estas concepções acham-se geralmente representadas em todas
as manifestações da arte christã. Por aqui se vé como os costumes
são a expressão de noções primitivas, sendo o seu estudo um meio
directo para se recompor o estado psychologico d"onde o homem
se elevou ás concepções philosopliicas.
A immensa generalidade d'estes usos nas raças mais vetustas da
Ásia, da Africa e da liluropa, revela-nos a persistência de um fundo
de civilisação proto-tiistorica que se acha nos povos áricos e indo-
europeus, especialmente nos costumes. Qual o povo que forma este
fundo ethnico da Europa? As raças ibérica, gauleza, scythica,
finlandeza e tártara, não foram eliminadas pela migração indo-eu-
ropêa, e sobretudo no occidente da Europa é onde se conservam
mais evidentes restos de uma civilisação anárica rudimentar. A
Elhnologia não deve ficar puramente descriptiva, como aconteceu
á geographia antes dos estudos de Rilter; é preciso apoiar-se na
Anthropologia como meio de coordenação, e visar á reconstrucção
da historia da humanidade interrompida entre a vida das cavernas
e a extraordinária civilisação do Egypto.
Theophílo Braga.
^ Nas crenças dos antigos Parsis, é pela ponte de Tchinevad que o morto entra
no céo.
2 Romanceiro geral, n.' 49.
36 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Auréoítis íumuiostts
AUCjUcsTO comte
«Tantos séculos ha que andaes cavando
Nas ondas movediças d't'sse mar,
E não cessastes ainda de cavar
Por vir inutilmente trabalhando;
É em vão que, as enxadas entranhando
Nas aguas, piocuraes ali f''rmar
Funda cova fo não podeis tirar
Um pahno só, as ondas separando.
Ó loucos, suspendei estéreis lidas
E voltae-vos com forças decididas
Para o solo selvagem, bravo, duro.»
Assim dizia Comte aos que buscavam
As origens e os fins do que ignoravam,
Mostrando- lhes terreno mais seguro.
Teixeira Bastos.
I
]>ío Caflafalso
A hora do executor da alia justiça desempenhar a sua missão,
soou lugubremente, como um rumor no fundo d^um tumulo,
A forca, amaldiçoada por muitas gerações, de quem ella parecia
zombar sempre com os seus reflexos sinistros, similhantes a gar-
galhadas mepliislophelicas, erguia-se com toda a hediondez do seu
aspecto, no Caes-do-Tojo, ladeada por barricas dalcatrão em laba-
redas.
Era a execução dos nove estudantes de Coimbra, accusados do
assassínio dos lentes.
Aquelle espectáculo horrível era pois o epilogo da grande trage-
dia que tivera a sua íntroducção em Cartaxinho, na madrugada de
18 de março.
Os raios ardentes d'nm sol de junho, que ss não eclypsava,
obstavam a que os condemnados erguessem os olhos ao céo a ín-
terrogal-o nos seus mysterios e supplicar-lhe compaixão e abrigo,
no fervor da crença.
NO CADAFALSO 37
Era uma sexta feira o dia 20 de junho de 1828.
Todas as esperanças haviam fugido da alma dos sentenciados á
morte, e os crédulos agouravam um aconle<:imento sobrenatural
n'aquelle dia de supremas angustias e de luto intimo
A multidão apinhada, ondulante, n'uma agitação crescente, con-
templava u"um emmudecimento idiota, o quadro patibular. em que
o padre parecia ainda mais terrível do que o próprio carrasco.
Não eram os sentimentos depravados que levavam o povo ao es-
pectáculo desmoralisador e affrontoso da forca, mas sim a curiosi-
dade que os grandes apparalos despertam. Embora beslialisado
pelo regimen absoluto, raro era o semblante, mesmo dentre os
mais Riiiaticos do ihrojio e do altar, que se não voltasse, no mo-
mento em que o algoz se apossava do padecente, paia não vèr-lhe
os horrores da agonia.
O aspecto severo dos juizes, nas suas capas e batinas negras,
o vulto sinistro do carrasco, as physionomias hypocritas dos clérigos
em coro, psalmeando um latim fúnebre, o ar aterrador dos irmãos
da misericórdia, envoltos nas suas opas roxas, os olhares provo-
cadores e os gestos arrogantes, talvez forçados, das auctoridades
militares e civis, e a pallidez cadavérica dos pacientes mettidos
na alva ignominiosa, com a cabeça e os pés nus, amarrados, des-
fallecidos, agonisantes, arrastados pelos degraus do palibnlo, como
o eram pelas ruas publicas, ouvindo constantemente o ecoo medo-
nho do pregão da sentença condemnatoria, tudo isto era de um
pavor que opprimia o coração mais endurecido, retalhando a alma.
O povo obrigado a dar vivas a D. Migue! e á santa religião, ia
atraz das tropas, cantando o Miserere, n"nm tom de arripiar as
carnes e os cabellos.
A pena capital era odiada, mas todas as maldiçijes recahiam
sobre o algoz como se elle fosse a consciência que julgasse.
As tropas que abriam e fechavam o préstito, continham em res-
peito e temor esse eterno vilipendiado, cujas manifestações apoian-
do aquelles horrores, assimilhavam-se aos gemidos das victimas
postas a tortura. Era ainda o terror do «Cré ou morres», que sau-
dava a realeza triumphante que auctorisava a barbara lei abiaçHn-
do politicamente o altar da hypocrisia.
Todos almejavam que a corda rebentasse caindo sobre o vulto
branco do condemnado o painel da misericórdia.
*
* *
Um dos juizes disse um nome, e immediatamente subira a es-
cada do cadafalso um dos réos, entre o padre e o relho e funesto
Samsão. «O creio em Deus Padre Todo Poderoso» dito pelo mi-
nistro da religião, e repetido pelos lábios trementes do padeceu-
38 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
te, linha o som das louzas sepulchraes. O crucifixo cahiii-lhe das
mãos atadas e a alluvino de padres e frades, cercando os outros
reos postados em roda do patibulo, psalmeavam : De profundis
clamori aii et. . • De profundis.
Depois foi breve ; o capuz da alva long:a puchado para a cabe-
ça, a corda examinada, e o segredo terrível do carrasco :
— Perdoas-me a morte?
— Não. Viva a ]i...ber ..da... Ao mesmo tempo um vulto
branco era arremessado no vácuo.
A multidão agitada como a onda tocada de tempestade, soltou
unanimemente um grilo de dor. Todos aquelles corpos estreme-
cendo, sentiram uns arripios gelados.
Decorreram alguns minutos. O carrasco depois de verificar a
morte, saltou dos bombros do suppliciado, cortou a corda, e o
corpo rolou no estrado aos olhos dos que se lhe segui;<m.
Outro nome foi pronunciado brevenjente, em voz mal segura,
pelo juiz. Era o filho do capilão-mór de Cintra, afilhado de Carlo-
ta Joaquina. O desgraçado cahiu na plataforma, soltando um grito
doloroso.
Ao mesmo tempo ouviu-se uma voz rouca no meio da multidão
compacta, grilando :
— Esperem! perdão I magnanimidade real!...
Todos se voltaram, e o condemnado leve um estremecimento
como se sentisse o choque d'uma pilha eléctrica, erguendo-se d'um
Ímpeto. Aquella voz vibrou-lhe no intimo d'alma dando-lhe um mo-
mento de esperança.
Uma mulher, pallida, desgrenhada, coberta de luto, fazia esfor-
ços supremos para romper por entre a multidão e chegar ao patí-
bulo. Era a mãe do reo, a quem D. Miguel havia promellido mu-
Díficeiícia regia para se livrar dos memoriaes e das supplicas la-
crimosas a que era insensível, ainda que se lhe rojassem aos pes.
A pobre creatura aíTlicta, na sua dor de mãe, já sem poder
verter uma lagrima, esperava ainda, confiada na promessa do rei,
que elle passasse, confundida nas turbas. Com a alma esmagada,
mas ainda agarrada á esperança, surda á lei. e ouvindo simples-
mente a voz da natureza, julgava se com o poder de impedir a exe-
cução, como se todas as forças humanas estivessem no seu orga-
nismo débil.
— Um instante, um minuto só... — gritava — Olhem que é
meu filho.
Para ella um rei não podia mentir, crendo-se auclorisada pela
sua palavra a mandar suspender todas as execuções do m.undo.
— El-rei passa, disse ainda com a voz estrangulada.
Mas a realidade era que elle não apparecía e o condemnado su-
bia os degros do cadafalso.
NO CADAFALSO 39
A mãe que o via, parecia agilar-se n*um pesadello horrivel. Ella
lambem não cria outra cousa o espectáculo a que assistia levada
por uma promessa e uma coragem sublime.
Passados alguns minutos nem já o próprio Deus lhe podia res-
tituir o filho com vida.
A desgraçada sentira também sobre os hombros as mãos do
carrasco, por um desses sentimentos poderosos de mãe, e cahira
desmaiada. Passados poucos dias morria com a alma despedaçada
por tamanha dor.
Apressaram-se mais as execuções lemendo-se que viesse o per-
dão dalgum dos condemnados ou que D. Miguel apparecesse de
repente.
O reo Francisco do Amor, expirara na plataforma, no momento
em que o padre o amparava para subir ao lugar do suplicio.
A multidão affastava-se taciturna, umas physionomias fúnebres,
que só viam no executor da alta justiça o seu verdugo.
Outra mãe, também sublime, arrastava-se por entre a massa
enorme do povo em altos gritos aftlictivos, pedindo a morte jun-
tamente com o filho caro, n'um eterno abraço. Num adeus derra-
deiro, tinha enlouquecido.
Os vultos negros das viuvas dos lentes contemplavam mudamente
estas scenas de dor, d'aífiicç1o e de morte, animadas apenas pelos
desejos de vingança, pois que nos seus corações de mulheres e de
mães havia o ruido das grandes tempestades, em que se debatiam.
«
* *
Cahira já o quinto suppliciado e o sexto estava suspenso dos
braços da forca. O povo n'um clamor surdo ia abandonando de to-
do o espectáculo.
O latim fúnebre, n'um cantochão rouco, dos ecciesiasticos, ec-
coava no fundo do Tejo, levemente encrespado pelas brizas da
tarde, e de cujas ondas o sol indiCFerenle tirava áureos listrões.
Eram três horas. O carrasco já exhausto de forças, commovido
pelas vozes dos pacientes e pelos seus olhares que moviam á com-
paixão a alma mais cruel, grilou com um som ronco, cavernoso,
do alto da forca: aNão posso mais» oscillou e cahiu.
Não havia forças humanas que podessem resistir a tanto, e o al-
goz era em todo o caso um homem.
A natureza, a consciência, gritavam lá do intimo contra tama-
nha barbaridade praticada em honra do throno e do altar.
Não podia haver nada mais trágico, nem mais commovente. D"um
lado viam-se os corpos dos justiçados, arroxeados, horríveis, esten-
didos aos pés dos companheiros, por instantes a exhalar o ultimo
suspiro, contrictos, fazendo ainda umas confissões dolorosas, ura
40 ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
dizendo-se iniiocente, os oiilros que fora uma allucinaçãn, uma
loucura, todos não sabendo do que arrepeuder-se, pediíido, sup-
plicando que os não julgassem coui insliticlos ferozes de assa-
sinos, e do outro a lumba da misericórdia, pintada de negro, com
os emblemas mortuários, a ampulheta, a fouce, a caveira, rece-
bendo o corpo inanimado do carrasco que não poude conlinar a
execução. E era aquelle miserável endmecido no crime, a quem
n'um momento faltou a coragem para terminar a sua liorrivel mis-
são !
Era ao seu ajudante que cumpria continuar. Os incidentes do
cadafalso, as negações, os desesperos, alguns dos coudemnados
aíTirinando a sua innocencia. protestando que não tinham sentimen-
tos d'assassinos, e já mmibimdos com a palavra «liberdade» cor-
tada pela corda ; í) caso estupendo da commoção poderosa do pri-
meiro carrasco, que involuntariamente, forçadamente, arrancava a
vida àípiella mocidade que uma allucinação momentânea [)erdera
para sempre, a impassibilidade fria do clero, ainda mais glacial do
que a da justiça, tudo produzia também no animo do verdugo
substituto, o marulhar da onda encapellada quando se espraia
dentro d"uma caverna. Com as mãos trementes proseguiu na ma-
tança.
A noticia da queda do algoz, produziu emoção extraordinária
DOS poucos espectadores que ainda restavam.
— Quando aquelle tem alma — disseram,— que farão os que não
têm crimes.
Houve grande susuro e algumas vozes gritaram com sacrifício
das próprias vidas :
— Morra o absolutismo!... abaixo a forca! Viva a liberdade!...
Quando o novo carrasco decepava a cabeça e as mãos dos últi-
mos suppliciados para as pregar no poste, conforme resava a sen-
tença, o cutello cahiu-lhe por três vezes.
Ao mesmo tempo D, Miguel I apparecia, precedendo o sou gran-
de séquito, e mandando distribuir cacetadas pelo povo horrorisado,
que se affastava para o deixai- passar, num clamoi- trovejante.
Sobre os montes de tojo e as barricas dalcatrão v am-se ainda
agitar-se os corpos dos suppliciados envoltos em chammas como a
pedirem vingança de tamanha crueldade, O cortejo fúnebre dis-
persava. . .
Que povo este tão digno da sua liberdade, governando-se a si
mesmo, sem a aílronta e o aviltamento da forca e do caceie.
Reis Dâmaso.
o MARTYR OBSCURO 41
.acerca da «íflicirseiliezri»
Proudhon aflirraa, no seu livro du Principe de VArte, que a Mar-
selheza não passa de uma amplificação rhetorica. Salvo o grande
respeito devido á memoria de Proudhon, este asserto é que não
passa de uma blasphemia arlislica ; e veiu provar ainda uma vez
esta verdade sabida — que o bom senso é quasi sempre incompa-
tível com o bom gosto.
As grandes obras d"arte, filhas da verdadeira inspiração, pare-
cem-se com as obras da Natureza, a suprema artista — em toda
a gente as comprehender por instinclo. E nenhuma tem, mais pro-
nunciadamente que o canto de Rouget de Lisle, esse cunho infal-
livel. Não ha ouvido, por mais inculto, que não perceba e retenha
para sempre aquellas notas frementes; garganta, por mais refractá-
ria á harmonia, que as não possa entoar. Duas nuvens, carregadas
de electricidade, encontraiam-se uma vez nos ares da França.
Uma chamava-se Enlhusiasmo ; a outra chamava-se Indignação. A
Marselheza é o trovão que ribomba indefinidamente pelos eccos do
mundo, depois do raio que em 179i fulminou a Europa, illumi-
nando-a ! — A sua musica é um canto de guerra, que tem as no-
tas tremendas do Magnificat: deposuit potentes de sede. E o seu
poema, se é uma amplificação, é a amplificação d'aquella vingadora
promessa de Jesus: «Os últimos serão os primeiros.»
Fernando Leal.
Ô áfltirtvr obscura
Abriu a bocca enorme a valia insaciável
E recebeu no ventre — a grande fundição,
O magro corpo vil... o vaso miserável
Em que floriu um nobre e forle coração!
Não foi um potentado o que desceu á terra,
Nem bispo ou general, nem tinha habito ao peito ;
Fez sempre á Tyrannia a mais cruenta guerra,
Co'os rasgos da Razão e as armas do Direito.
Á Jucta popular votou o pensamento ;
Foi ecco a sua voz d'Í!iiprecações amargas,
Por isso não se ouviu no triste passamento
Dos áureos batalhões as fúnebres descargas...
42 EiNCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Ninguém o acoinpanliou á iinula valia fria t...
Acompanlial-o, sim !... São ceremonias parvas I
— Um pobre como o... tal, pôde ir sem companhia
Dar o corpo de pasto ás esfaimadas larvas...
Nem uma voz amiga além lhe disse adeus,
A beira d'essa cova aberta, escamíarada...
Só o viram descer os brancos mausoleos ..
Disse-lhe o ultimo adeus a brisa magoada I
Mordeu-o a inveja em vida, e ainda alóm da morte
Mordeu-o a hypocrisia e a enxada do coveiro !
— Não temos que o chorar; é essa sempre a sorte
De quem teve talento e não legou dinheiro ! . . .
Emqunnto teve alento o luctador infrene
O povo a defender, sollreu cruéis lançadas ;
Porém depois de morto... agradeçam-no á hygiene
O não liear exposto, .'i chuva, nas calçadas I...
Nunca baixou a fronte ante o áureo altar do Vicio;
Honrarias desdeidiou... Foi sempre um pobretão !
Por isso elle morreu no grabato do hospício
E á vesga cova foi sem pailre e sem caixão I
Que durma pois em paz; descance emfim da lueía
Na funda solidão co'os vermes sensuaes !
Nas entranhas da terra a grita não se escuta
Das sórdidas paixões de peitos desleaesl
Xavier de Paiv.\.
Estudo d'estc parasita, desastrosos cITeitos que produz uo homem
e meios de evitar a IricbiBose
PRELIMINAR
A trichina é um animal, que, na phase mais terrível da sua
existência, se não pôde ver senão por meio de um instrumento
óptico de augmentar, chamado microscópio.
Em tão pequenina grandeza, este parasita existe e descobre-se,
mais numeroíio que as est relias do cén e as areias do mar, no te-
cido muscular, isto é, na carne de vários animaes, especialmente
do porco e do homem (jue teve a desgraça de comer toucinho ou
carne d'este animal, trichinada.
Os estudos até hoje feitos sobre o nascimento, emigração e re-
producção da trichina, no porco e no homem, são já sufficientes
A TRICHLNA 43
para nos demonsUar a maior probabilidade de sermos atacados de
írichinose, quando ingerirmos toucinho, chouriço ou carae de
porco eivada de tal verme.
A sciencia na sua marcha collossal e assombrosa, desconhecida
do povo, caminha incessanlemenle !
Quem nos pôde aíTiant^-ar que não tom no nosso paiz, fallecido
de írichinose muita gente, sem que os médicos hajam reconhe-
cido tão horrível doença ?
Todavia a írichinose, entre nós, não é doença estrangeira : al-
guns médicos, tanto nos hospitaes como na chnica particular, sur-
prehendidos pelo caracter extraordinário de algumas affecções ty-
phoides, teem-se lembrado de examinar a carne dos cadáveres, e
assim, mais de uma vez, se tem descoberto a Irichina. Mas a par
destes, quantos casos completamente desapercebidos !
Hoje em Portugal as vistas do publico voltam-se para o celebre
verme nematoide. que muito piovavelmente deu logar a epidemias
fataes em povoações raianas da província de Salamanca e do ncsso
districto da Guarda.
Foi o nosso collega d'aquelle districto que primeiro preveniu o
governo sobre estes factos insólitos, apontando a suspeitada causa.
Não se fez esperar a solicitude do governo, que. sobre este as-
sumpto, consultou o conselho especial de veterinária.
Esta illiistre corporação redigiu logo as seguintes instrucções
de policia sanitária, cuja execução está a cargo dos intendentes de
pecuária.
l.'' — Os intendentes de pecuária são obrigados a examinar,
com microscópio de nunca menos de 30 a oO diâmetros, em quaes-
quer lugares ou mercados públicos (matadouros, açougues salchi-
charias, alfandegas, etc.) a carne de porco abatido para consumo,
sempre que tiverem alguma duvida sobre a sua qualidade, princi-
palmente para se certificarem ou não da presença das Irichinas,
dando depois parte por escripto e narrativa, no fim de cada mez,
ao conselho especial de vetei inaria, do resultado dos exames a que
houverem procedido.
2.''' — Os mesmos funccionarios farão constar desde já, por edi-
taes, ou instrucções muita summarias impressas, aíTixadas nos lo-
caes convenientes, (|ue a carne de porco trichinada é grandemente
prejudicial á saúde dos consumidores.
3.'* — A carne que fòr julgada nociva ao consumo, deverá ser
inutilisada com acido sulphurico, petróleo ou acido phenico, con-
forme a pratica.
4.* — A aucloridade local competente deverá assistir a este acto.
5.^ — Acerca da írichinose os intendentes de pecuária redigirão
uma resumidíssima historia, em que se declare a natureza e sede
d'essa grave doença, a indicação dos caracteres do parasita, a
44 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
diiriculdade, ou antes, impossibilidade do diagnostico durante a
vida, os accidentes que produz na espécie humana, e a innocui-
dade da carne trichinada, de[)0is de suhmettida á temperatura
d'entre 78** a 100** cenligrados, quer se coza, quer se asse ou
fíite.
6.^ — Esta indispensável historia será espalhada profusamente
nos respectivos districtos. tendo presente que chegue ao conheci-
mento do maior numeio dos seus habitantes.
Ao mesmo tempo foram enviados aos intendentes de pecuária,
microscópios para procederem ao exame da carne de porco e suas
preparações.
Kslà provado que a Irichinose é frequente nos porcos, em todos
os paizes onde estes animaes existem. O nosso não pôde ficar ex-
cluído desta lei.
Não é porém egualmente frequente a trichinose humana em to-
dos os paizes, pelo motivo que veremos no decurso d'este escripto;
no nosso nada, por emquanto, se sabe sobre a frequência d esta
doença, porque sempre a allenção da medicina delia tem andado
desviada, mas ha toda a probabilidade de que muitas alfecções dia-
gnosticadas sob outro nome, não tenham sido outra coisa mais do
que a trichinose.
Como ella provém sempre do consumo do toucinho ou carne de
porco, consumo abundantíssimo em Portugal, e sendo quasi sem-
pre mortal, a tal causa podemos allribuir muitas epidemias typhoi-
des que, por vezes, teem dizimado as nossas povoaçijes.
As medidas de policia sanitária feitas executar pelo governo, e
muito principalmente as caulellas que os consumidores esponta-
neamente adoptarem, depois de conipletaujente esclarecidos sobre
tão importante assumpto, garantirão seguramente este paiz contra
os desastrosos eíTeilos do terrível parasita.
A. ti*icliiiiose no homem
Ponhamos já diante dos olhos do leitor o triste quadro dos sym-
ptomas, pelos quaes se manifesta a trichinose na espécie humana,
doença quasi sempre mortal, e que, nos poucos casos em que não
mata o doente, com certeza o deixa, após uma longuíssima conva-
lescença, fraco, estragado, incapaz de trabalhar para o resto dos
seus dias.
Três semanas, pouco mais ou menos depois de se ter comido
toucinho ou carne de porco com trichinas vivas, o doente sente
ura enfraquecimento geral, perturbações e agonias no estômago;
faz mal a digestão ; perde o appetite e levanta-se-lhe levemente o
A THICHINA 45
ventre. Ha alguns vómitos e dores de barriga, não se pôde con-
sentir a mais leve pressão no baixo ventre, que está muito doido.
Apparece diarrhéa e, mais tarde, vem constipação do ventre, isto
é, dilljculdade de evacuar, porque os excrementos são duros e o
intestino está irritado.
A doença vai seguindo o seu curso, á maneira que os vermes se
vão derramando nos músculos. íla febre ; o doente sente ditlicul-
dade nos movimentos; senle-se tolhido, como que paralytico; os
seus músculos estão rijos, não se contraem livremente ; soífre vio-
lentas dores musculares.
D'aqui resulta também grandíssima oppressão no peito ; não
pôde respirar sem grande esforço; não pôde engulir ; sente a
goela apertada: manifesta-se mesmo inflammação na garganta e
rouquidão; o doente nem mesmo tem o desafogo de fallar, quei-
xar-se, gritar livremente. Manifesta-se bronchite ; ha accessos de
tosse violenta ; o corpo vai inchando todo, muito especialmente a
cara, desapparecendo quasi os olhos no meio do rosto empastado.
Esta inchação da cara, chamada em linguagem medica, edema da
face, é considerada, por alguns auctores, como symptoma caracte-
rístico da trichiností.
Além disto o doente não dorme, emmagrece a olhos vistos ; em
poucos dias perde lo a 20 kilos do seu peso primitivo.
A alteração profunda da nutrição, e a paralysia dos músculos
do peito acabam emfim, entre horiiveis soíTrimentos, a vida do des-
venturado doente.
Kmquanto os vermes, que se comeram na carne de porco, se
conservam no intestino humano, a reproduzirem-se prodigiosa-
mente, apparecem os symptomas todos que apresentei (vómitos,
diarrhéa, inchação do ventre, etc), muito parecidos com os de ura
ataque de cholera benigna, ou cholerina; — é o primeiro periodo
da trichinose, denominado de irritação gasiro-itUeslinal, que não
dura mais de 8 dias.
Os symptomas seguintes a esses, manifestados no apparelho
musculax e na niUrição geral, coincidem com a passagem das tri-
chinas, para as fibras dos músculos ; taes symptomas caracteiisam
o segundo periodo, chamado de emigração embrionária . Este pe-
riodo, em que o doente soíTre torturas infernaes, dura lo dias!
A exacerl)ação ou extraordinário augmento dos symptomas deste
segundo periodo constitue o terceiro periodo, o periodo typhoide,
que decide da vida do padecente.
Se este possue grande resistência vital, entra na quinta semana,
6 está salvo, porque os vermes derramados nos seus músculos
principiam a formar uma capsula fibrosa que os isola das fibras
musculares, comquanto os não mate. Este ultimo periodo tem a
denominação de enkistamento dcs embriões.
46 ENCYGLOPEDIA REPUBLICANA
Não esqueçànios porém, que a cura da Iricliinose é uma bem
triste cura, porque, quem um dia teve a desgraça de se infeccio-
nar de trichinas, jamais poderá gosar a felicidade da sua anliga
saúde.
Conhece o leitor o lastimoso quadro que oíTerece o homem iri-
ciiinado, deitado de cosias irtima cama, padecendo dores aliozes
em todos os pontos do corpo, quasi aspiíixiado, sem poder fazer
movimento algum, sem poder fallar nem gritar, porque tem a lín-
gua e a garganta dorida e inchada!
Desde o principio até ao lim d'esta horrivel doença, decorre or-
dinariamente o espaço de »» semanas; mas casos ha em que os
doentes, mesmo que se curem, estão subjugados pela enfermidade
por espaço de 4 mezes e ainda mais.
O leitor deve achar-se agora cheio de justa curiosidade e inte-
resse por conhecer completamente o estudo que se tem feito so-
bre esse temivel parasita animal, chamado trichiiia spiralis, e, so-
bretudo, o meio de se prevenir contra os seus desastrosos eíTei-
tos.
Vamos satisfazer esse justo empenho nos capítulos subsequen-
tes.
II
A. tridiina, musculai*
Como a trichina se apresenta em dois estados differentes, em
differentes lugares do organismo de alguns animaes, iste é: — //-
vre no interior do intestino, e recolhida dentro de um kyslo ou ca-
sulosinho fibroso nos músculos, — principiemos por a descrever
n'esle ultimo estado, lai como facilmente pode ser observada por
meio do microscópio nos músculos do porco.
É mais abundantemente nos músculos do pescoço, dos olhos, e
no diaphragm;), (musculo chato em forma de leque, que separa,
como um labique, a cavidade do peito da do vetitre) que se encon-
tram, intermeados com as fibras musculares, milhares de grãosi-
nhos brancos. Também ás vezes se encontram no toucinho. São
kislos ou habitações fechadas hermeticamente, contendo de ordi-
nário um só verme, mas, muitas vezes, muitos.
Estes kistos são ovaes, teem meio [nillimetro de comprimento,
são formados por duas membranasinhas, uma por dentro da ou-
tra, membranas que, algum tempo depois da sua formação, se tor-
nam num grãosinho escuro e duro, porque nos seus poros se de-
positam saes calcareos, continuando, já se vé, as Irichinas a resi-
dir no seu interior, vivas, por muito tempo, que pôde chegar a 20
annos no homem e 5 no porco; mas, na maioria dos casos, antes
MOSAICO HISTÓRICO 47
de tão longos prasns, esses vermes raorreia e petrificam-se ou in-
fillram-se de matéria gorda.
Não é verdade, como se tem aíTirmado, que os kistos estourem
sob os dente;, quando se mastiga carne trichinada. Se assim fosse
lodos conheceriam o inimigo antes de lhe darem entrada no estô-
mago.
A trichina, dentro d'esles kistos, está sempre enrolada, como a
mola de um relógio, por isso se lhe chama trichina spiralis. O seu
corpo, similhante ao das lombiigas, mede 5 a 8 décimos de mil-
limetro de cabeça á cauda. Ksta é mais grossa que aquella, e apre-
senta um orifício, que é o anus.
Tem boca, estômago, systema nervoso, fibras ao longo da parte
inferior do corpo, que a conservam enrolada, e, na parte superior
tem o aspecto annelado, como se vc, por exemplo, nos bichos de
conta. Possue lambem órgãos se.xuaes, respectivamente o macho
e a fêmea, órgãos, que, como o estômago e outros, são rudimen-
tares, isto é, de uma extrema simphcidade.
Na carne ou tecido muscular, a trichina, se ahi se acha de pouco
tcuipo, está enrolada mas não enkistada ; não tarda porém que o
kisto se forme e mais tarde endureça.
Emquanto reside n'este tecido é uso denominar este parasita
— ti ic/tiíia muscular.
III
Pi-oclig^ioso iiTiiiiero cias tricliiiias muscnlnres
Diz o sr. Zundel, medico-veterinarío em Strasburgo, e uma das
primeiras illustrações scienlificas da Allemanha, que Probslmnyer
contou 468 trichinas em mei.i gramma de tecido muscular; que,
em Pianne foram calculadas i2oO;000 trichinas em 30 grammas do
mesmo tecido; e que Colin, sábio professor na escola veterinária
de Alfort, admitte que 1 kilo de carne pode encerrar alè o mi-
lhões dos terríveis parasitas.
(Segue) Annes Baganh.^.
Ristorii
osaica liislorico
Em um bello dia do anno de 1728, os galfarros da policia do
tempo prenderam na villa de Monforte, Âlemtejo, um pobre rapaz
de 19 annos incompletos, accusado do sacrílego crime de ter rou-
bado—diziam—uma pixide onde estava nitidamente acondicionado,
c mLMIior agasalhado, o Santíssimo Sacramento.
48 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Como era preciso appl.icar com sangue a cólera da divindade
irrilada, porque segundo os doiUores da Kgreja ella também se
irrita como qualquer mortal, o infeliz foi remellido para a cadeia
de Lisboa soflrendo atravez das villas e aldeias sertanejas pnr onde
passava os apupos, doestos e pedradas do povo fanalisadn, que
largava de mão os trabalhos da lavoura e acorria ao cairel dos ca-
minhos para ver e insultar o precito.
Não se cuidou de inquirir as causas do crime, se o houve, nem
mesmo se pensou em submetler o desgraçado mancebo á obser-
vação de médicos intelligentes, porque bem podia ser o desacato
o resultado duma f erturiação mental. Urgia desaggravar o Santis-
ámo que andara aos baldões nas unhas de um larapio ; e em tal
caso a patlioiogia mtromettendo-se hicorria n'inn perigo. . . Era
sacrilégio sobre sacrilégio. A sciencia nunca viveu em boa paz com
a religião.
A pouca idade mesmo do supposto criminoso não foi levada em
conta. Condemnaram-n'o a um supplicio horrível.
Em o dia i3 do mesmo anno arrastaram-no da cadeia ao Rocio,
6 ahi, com uma crueldade inaudita, e sem que uma palavra de dá
e clemência irrompesse da compacta multidão que enchia a praça,
amarraram-n'o a um alto poste, mulilaram-no horrivelmente cor-
tando-llie as mãos, garroiaram-n"o, e depois da destruição parcial
e pautada do corpo — talvez uma bella estatua, — a mais perfeita
obra do Creadúv, fizeram crepitar a lenha preparada para o eíTeito
e lançaram ao torvelinho das c;.ammas rúbidas e vorazes aquelles
ensanguentados restos ainda palpitantes ! ! I
A ira de Ueus estava plenamente satisfeita. . . No entanto João V,
o régio frascario, assaltava os coiivenlos e profanava os sagra-
dos recintos transformando-os em prostíbulos onde se entregava a
scenas de revoltante libertinagem com as beatificas filhas do Se*
uhor. . .
Vá sem commentarios o confronto.
A imprensa, a sublime e utilitária invenção de Guttemberg, Foust
6 Schoffer, foi, logo nos primeiros annos da sua applícação, muito
perseguida pela ignorância e pelo fanatismo.
Não se podia publicar um Uvro sem previa auctorisação. O clero
antes de conceder examinava e approvava a obra ; tinha-se obriga-
ção de pedir-lhe o certificado de que o anctor era religioso e or-
thodoxo.
Alexandre VI, em loOl, firmou uma bulia de excommunhão con-
tra os impressores que publicassem doulrmas perniciosas; e, em
4515, o concilio de Latrão prohibiu, debaixo da mesma pena, pu--
QUEM FAZ A REPUBLICA 49
blicar qualquer iivro que não houvesse recebido a approvação dos
censores ecclesiaslicos.
Apesar dos esforços da intolerância e do fanatismo, a imprensa
saiu victoriosa da lucta contra os obstáculos que lhe antepunham e
dos prejuízos que lhe retardavam a marcha atravez os séculos, e
conseguiu emfim ser o que hoje é — o flagello dos hypocritas, a
ameaça dos tyrannos, a conselheira das nações, o guia dos povos,
e a luz resplendente que dissipa as lobregas trevas da ignorância.
yueni mz ci JtenubUcia
Se as instituições democráticas para se estabelecerem em Por-
tugal tivessem apenas o apoio das ideias theoricas e doutrinas scien-
tificas de alguns indivíduos, e também a adhesão dos sentimentos
generosos das classes mais activas da sociedade que por instiiicto
conhecem que a ordem é o exercício pleno da liberdade, nada
d'isto bastava para trazer essas instituições do domínio das ideias
ou das aspirações para a realidade immediata dos factos. Nas so-
ciedades preponderam as forças de conservação, o aferro ao passa-
do, a desconfiança pela novidade, o receio de mudanças, u des-
favor pelas ideias novas, o temor do desconhecido, e é esta ten-
dência regressiva que as instit'Jições abusivas exploram, mantendo
a multidão em um obscurantismo que a leva a sacrificar-se ao mal
estar para não sair da estabilidade.
Mas, apezar d"esta impotência implusiva e d'e3ta reacção espon-
tânea, as sociedades progridem, por este conflicto permanente
em que todos cooperam sem chegarem sequer a ter cenhecimento
da marcha evolutiva das cousas. O excesso de conservação ag-
grava o mal estar social, e insensivelmente estabelece-se uma
dissidência entre as consciências e as instituições ; estas firmando
a ordem na força bruta, aquellas fortalecendo-se na unanimi-
dade do protesto e das opiniões em que hão de assentar a con-
córdia que procuram. É aproveitando esta corrente social, que
os iniciadores políticos conseguem tornar praticas as suas ideias.
Quando o iniciador se concentra no subjectivismo das suas ideias,
fica quando muito um sympathico utopista, e mais nada : se entra
na acção, acha-se isolado, como um perturbador revolucionário,
cujos esforços se esgotam nas decepções mortaes.
Ha portanto- uma força superior a todos os uidividuos, por mais
eminentes e preponderantes que sejam, força que faz com que as
sociedades progridam através das luctas dos interesses, máu grado
7
50 EiNGYCLOPEDIA HEPUBLICANA
» —
a incoherencia das opiniões, no meio das conlradicções do senti-
mento, de encontro aos retrocessos casuaes, arrastando comsigo
as inslitnições atrazadas, fazendo com que lodos cooperem para
um fim commiim, muitas vezes sem mesmo o comprehenderem.
É esta foiga, que deiiva da capacidade progressiva da nossa es-
pécie, e que a torna persistente, bem como o desenvolvimento indi-
vidual emergente da edade e do regimen da educação ; é esta a
força que nos leva para diante, e que naturalmente se contraba-
lança com o inslincto regressivo da conservação.
Na sua Ideia de uma Historia universal, Kant esboçou em prin-
cipio a cooperação dessa força, com que os politicos não contam :
«Os indivíduos e mesmo os povos não imaginam sequer, que en-
tregando-se cada um ao seu próprio sentir, e muitas vezes a luta-
rem uns contra os outros, elles seguem contra vontade, como um
fio conductor, o desígnio da natureza, que lhes é desconhecido, e
concorrem para uma evolução, de que pouco se lhes daiia, ainda
que tivessem uma ideia d'ella.» Exemplidquemos este principio
fundamental com factos de qualquer instituição social : A Egreja,
com a tremenda corrupção do passado, cooperou inconscientemente
para o triumpho do protestanlismo; a Realeza, pela absorpção de
todas as energias sociaes, e pelo abuso da força do regimen cesa-
risla, provocou o advento da éra revolucionaria: o Contituciona-
lismo, pelo sophisma das Cartas outorgadas e peia bypocrisia li-
beral, deu origem ás agitações democráticas que reclamam a jus-
tiça da instituição da Republica.
Em Portugal é evidente esta força da evolução, em que os pró-
prios monarchicos, os mais pessoalmente interessados na causa
dynastica, são os que mais cooperam pai'a o advento da Republica,
embora de um modo inconsciente. Os ministros revelam peia sua
instabilidade, que não existe um poder definido tendo por base a
vontade da nação; as auctoridades administrativas procedem dis-
cricionariamente intervindo na independência do poder judicial;
os parlamentos formam-se por nomeação ministerial com as exte-
rioridades da eleição. Fora das bases jmidicas, cada um defende
os seus interesses pela dependência dos favores, e n'este confliclo
nascem os despeitos que lavram nos partidos monarchicos, des-
peitos que motivam revelações importantes, com que a nação se
vae desilludindo da realeza.
É geral esta falha de senso commum ; ao passo que os monar-
chicos nos impõem com processos judiciários o respeito pelo rei,
são elles próprios que o expõem á situação de ir receber ao Porto
uma venera da associação humanitária I Um jornalista, no excesso
de fervor pelo interesse dynastico, proclama a negação dos prin-
cipios mais rudimentares do direito publico, e barafusta na irra-
cionalidade, tornando mais odiosa a ordem do que a demagogia.
UM SANTO... 51
Um outro jornal monarchico, atacando os republicanos por falta
de unidade, diz que elles são incapazes de fundar a Republica, e
que se as republicas existem, é porque os monarchicos as con-
servam, e sabem sustentar, apoiando-se no exemplo de Tliiers.
Bella transição para justificar esta cooperação inconsciente.
De facto os publicistas modernos distinguem estas duas capaci-
dades, a que funda a Republica e a que sabe sustenlal-a ; e Lavel-
leye, considera a população das cidades como a que tem a intel-
ligencia e a audácia para estabelecer a Republica, e a população
das províncias como a que tem a adhesão persistente para conser-
val-a. Um outro jornal monarchico, a propósito de eleições confessa
que a população activa de Lisboa, commerciantes e industriaes,
6 sobretudo nos círculos mais ricos e intelligentes, se confessavam
republicanos diante do candidato monarchico que lhes impetrava
o suíTragio. A mesma confissão se repele nos jornaes das provín-
cias. Mas não basta isto ainda ; sem plano de convergência, que
é a missão dos chefes, as opiniões republicanas vão espontanea-
mente conslituindo núcleos ou centros por todas as províncias, ao
passo que os partidos mon.irchicos se dividem em grupos despei-
tados, ou patrulhas, atacando-se os regeneradores entre si nas
suas folhas, espectáculo que se repete com a mesma impertinên-
cia no jornalismo progressista. Nenhum d'elles quer a Republica,
é verdade, mas cooperam fatalmente para ella ; e é esta incon-
sciência da acção, esta versatillidade das opiniões, este desvaira-
mento das personalidades, que nos revela que o tempo está perto
e que por intuição os espíritos tendem para a realisação de uma
ordem nova.
Theophilo Bbaga.
■ffni s ti ato...
o bom do prií r acabara de almoçar e dirigia-se vagarosamente
para a egreja encostado à sua bengala de castão d'ouro.
Ia dizer missa.
oQue sacrilégio!» dirão as beatas que nos escutarem.
Pois é a pura verdade. O prior era fraquito, apesar de que a sua
figura o não indicasse. O abdumen era monstruoso, os hombros lar-
gos e o seu aspecto era todo saúde e robustez. Mas, emflm, as ap-
parencias illudem. . . O pobre do padreca não podia estar duas ho-
ras consecutivas sem comer. O seu maior prazer era passar algumas
horas à mesa deante dum succolento almoço. No fim de tudo era
um santo homem.
Tinha devorado o seu bello bife e entornado garrafa e meia dum
52 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
vinlio (In sua lavra, que o tornara um pouco alegre. A' saliida dera
um cliocho na ama, que não pareceu ficar admirada. Kstava costu-
mada áqnellas expansões do prior, e afinal, que diabo havia n'aquillo?
Um beijo não fazia mal e até «abria o appelite», como dizia o prior
nos seus dias despirito.
Tinlia-se pois preparado interiormente para receber o pão e vi-
nho consagrado.
A sua máxima era — Deus sobre tudo. Portanto comia primeiro
bem, para que a divindade ficasse superior e á altura conveniente.
Entrando na sachristia, puxou da enorme caixa de prata e sor-
veu estrondosamente uma pilada, offerecendo em seguida ao sa-
chrisla, que o imitou. Momentos depois soaram dois estrondosos
espirros que atroaram a egreja, seguidos dos inseparáveis— Z)owí-
7ms Tccmn.
— Mestre António, disse o prior depois de limpar as volumosas
ventas, que ha de novo?
— Grandes novidades, respondeu o sachrista piscando os olhos.
Veiu ha pouco a D. Joaquina procural-o e disse-me que não se es-
quecesse de lá ir.
— Oh! pode estar descansada, atalhou o prior.
— Isso lhe respondi eu e lá se foi ella para a capella do Santís-
simo rezar doze estações.
— Bem, bem; não faltarei. Poucas senhoras ha tão boas como
aquella. . .
— Lá isso é verdade, confirmou o sachrista. Boa em toda a ex-
tensão da palavra.
E sublinhou maliciosamente a ultima phrase.
Pouco depois accrescenlava:
— Foi bastante infeliz. Tão pouco tempo casada!
— Assim está melhor. Vae mais direita para o céo.
— Oh! vae para lá direitinha. O sr. prior encarrega-se d'isso.
O prior tossiu grosso, fingindo não ter ouvido.
N'isto deram dez horas no relógio da sachristia.
— São horas. Vamos lá servir os freguezes, disse o prior alegre-
mente.
— Amen! accrescentou o sachrista, que pelo costume de ajudar
á missa, empregava a todo o momento aquella palavra.
O padre paramentou-se e entrava pouco depois na capella-mór
com gravidade, precedido pelo acolytho.
Acabada que foi a missa despiu as vestes, envergou a sobreca-
saca preta dos dias de gala, poz o chapéu de copa baixa e abas lar-
gas e pegou na bengala.
— Até logo, mestre António, disse elle.
E dirigiu-se pacificamente para casa de D. Joaquina. Esta se-
nhora era viuva de poucos mezes, ainda nova e formosa. Tinha sido
UM SANTO... 33
casada pouco tempo e conservava todo o viço e frescor da moci-
dade. Apesar disso não queria casar segunda vez, e muilos pre-
tendentes tinham sido rejeitados. Lá tinha as suas rasões. . .
— Oh! meu caro prior! disse ella quando o viu entrar. Acabei
agora mesmo de chegar.
— Minha querida senhora D. Joaquina, apressei-me a obedecer
ás suas ordens.
— Ordens! Foi um simples pedido. . .
— Para mim os seus desejos são ordens, minha senhora, respon-
deu o padre com galanteria.
— Hoje ha de almoçar comigo, temos muito que conversar.
— Acceito, disse elle. Logo que acabei a missa apressei-me a
vir aqui, portanto ainda não fui a casa, onde a minha boa Anna me
espera.
— Pois que espere. O prior não passa cá todo o dia. . . disse ella
com uma certa impaciência.
— De certo, de certo, mas não será por falta de vontade.
— Maganão! fez ella batendo-lhe no hombio amigavelmente.
— É o que eu lhe digo. Na sua companhia um dia é um mi-
nuto.
— Sempre lisongeiro! prior.
— Nunca o fui. Acredile-me.
E apertou com força as mãos de D. Joaquina.
— Está bom, meu querido. Já sei que me estima.
• — Oh! ainda não é o termo. Que a admn-o, que a. . . adoro. . .
disse o prior agarrando nas mãos de D. Joaquina.
E um sonoro beijo resoou na sala. . .
— Vamos, vamos; disse D. Joaqnina Jibertando-se do prior toda
corada. O almoço devo estar na mesa.
— Vamos lá! fez elle com um suspiro.
Pouco depois estavam sentados á mesa em frente um do outro.
Duas garrafas meio despejadas e alguns pratos já vasios mostra-
vam ter havido completa derrota. Parecia uma aposta a ver qual
comia mais. . .
Santo Deus! Quem diria, ao ver o prior, que tinha ha pouco sa-
bido da mesa.
Com o seu barrete preto na cabeça, tinha desabotoado o colete
e bebia o chá, saboreando-o a pequenos goles, com os pés esten-
didos por debaixo da mesa até locarem os de D. Joaquina. Esta,
defronte d"e!le, sorvia também o chá com grande barulho, acompa-
nhando-o com torradas, que desapparcciam rapidamente do prato.
Que du.is alminhas! benza-os Deus.
Emquanto comiam fatiavam pouco, limitando-se a olhar um para
o outro. Não podiam fazer dois serviços ao mesmo tempo; ou bem
que comiam, ou bem que conversavam.
54 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
— Meu amigo, disse por fim D. Joaquina rompendo o silencio,
tenho a pedir-lhe um favor.
— Diga, minha boa amiga. Estou ás suas ordens, respondeu o
prior Hinpando os beiços ao guardanapo.
— Monou o padre Vicente, que era, como sabe, o confessor de
minha sobrinha.
— É veidade. Grande perda foi! Poucos confessores haverá como
aquelle. . .
— Tem rasão. Mas entre esses poucos ha um muito nosso conhe-
cido.
— Qual? perguntou o prior ancioso.
— O senhor, respondeu D. Joaquina.
— Oh! minha senhora. Confunde-me com esses elogios.
— Mas merecidos, replicon ella; e peço-lhe o favor de se encar-
regar da direcção espiritual de minha sobrinha.
— Com todo o gosto, minha senhora.
— Bem, então está combinado.
— De certo. E quando começaremos?
— Amanhã se não lhe faz trans'orno.
— Muito bem, respondeu o prior.
Levantaram-se em seguida da mesa, deram graças a Deus e fo-
ram para a sala.
Repotrearam-se n*um canapé e a conversação versou sobre cou-
sas indifferentes.
Quando o padreca se retirou eram já duas horas da tarde.
Chegando a casa perguntou-lhe a ama se tinha jà comido.
— Ora adeus! Tomei alguma cousa, respondeu elle, mas traz-me
sempre o meu lunch, que não se perde nada.
E sentou-se novamente á mesa. . .
D. Joaquina está no seu quarto. É um aposento pequeno e mo-
bilado simplesmente: uma cama, guarda-vestidos, lavatório com es-
pelho e meia dúzia de cadeiras. Por cima da cama pentle um cru-
cifixo de metal e um painel de Nossa Senhora.
Sentada n'uma d'essas cadeiras antigas bastante pesadas, com
um livrinho na mão, D. Joaquina lé attentamente a vida de Santo
Agostinho. Por momentos parava a leitura e ficava absorta a con-
templar uma passagem mais edificante da vida do santo.
Foi no meio d'uma destas contemplações beatificas que a vieram
interromper.
Appareceu uma criada.
— Que queres? perguntou D. Joaquina com mau humor.
— Minha senhora, sua sobrinha está na sala.
UM SANTO... 5fi
— Bem, bem. Já lá vou. . . disse ella mudando de tom.
D. Joaquina nfio tolerava que a interrompessem quando estava
em medit;ições religiosas; quando isto acontecia manifestava-se logo
o seu mau humor. Mas agora o caso era differente: tratava-se da
sobrinha que cila idolatrava e por isso apressou-se a apparecer-
Ihe.
A sobrinha e o senhor p?ior eram excepções á regra. . .
— Minha querida sobrinha, dizia momentos depois D. Joaquina,
como te vaes dando com o teu novo confessor?
— Bem, minha tia, respondeu ella corando muito.
— Isso é o que se quer. O prior é um bom homem, não achas?
— Sim. . . elíe parece. . . respondeu a sobrinha visivelmente per-
turbada.
— Ainda o não podes conhecer bem. Ha só um mez que elle é
teu confessor!
— Tem rasão, minha tia,
— O prior é um santo. D'aqui a alguns mezes o apreciarás como
merece.
— Oh! decerto.
Pouco depois accrescentou a sobrinha, querendo mudar de con-
versa:
— Minha tia agora parece que vae melhor.
— Na verdade tenho andado mais direitinha.
— Bem se vê. Achoa mais gorda. . .
Esta observação da sobrinha fèl-a estremecer e mudar de côr,
comtudo ella ou não reparou ou fingiu não dar por tal.
Aquella observação parecia ter um sentido myslerioso, parecia
haver ironia n"aquellas palavras que de certo haviam sido ditas na
maior boa fé do mundo e sem nenhuma intenção particular.
D. Joaquina, que se tornara muito pallida, em breve serenou e
disse placidamente:
— Minha sobrinha, é melhor tirares o chapéo.
— Não, tia, eu não me demoro.
— Sim! Que pressas são essas?
— Hoje é dia d'ir á confissão. . .
— Ah! sim. Não me lembrava.
— E eu não gosto de faltar, accrescentou ella ruborisando-se.
— Tens rasão. Fazes muito bem.
— Vim cá para saber como a minha lia tem passado, que já ha
muito que a não via.
— Julguei que já te tinhas esquecido de mim.
— Oh! minha tia. Que ideia!
— Bem sei que és minha amiga. . .
— Tenho tido tanto que fazer!
— Sim?
56 EiNCYCLOPEDIA REPUBLICAINA
— É verdade. As cortinas para o asylo das orpliãs leem-me dado
trabalho.
— Bem empregado tempo! disse D. Joaquina com enthusiasmo.
— Já vê que se não teniio vindo é porque não me tem sido pos-
sível.
— D"isso estou eu certa.
Alguns mmutos depois saliia a sobrinha de D. Joaquina da casa
d'esta. As faces estavam afogueadas por um vivo carmim, o seio
arfava -lhe com violência e o seu passo era apressado e nervoso.
Dirigia-se para a egreja onde o prior a esperava.
Ia confessar-se. . .
São passados alguns mezes depois do encontro de D. Joaquina
com a sobrinha.
O prior acabava de se levantar da cama. Parecia preoccupado e
passeava agitado pelo quarto com as mãos nas algibeiras.
— Diabo! murmurava elle por entre dentes, foi uma asneira.
Por fim, depois de ter medido innumeras vezes o comprimento
do quarto, tomou uma resolução.
— Vou almoçar, disse elle, e. . . talvez me esqueça.
Sahiu do quarto e entrou na casa de jantar, onde a ama acabava
de pôr a mesa. Deu-lhe um abraço que ella retribuiu com usura.
— Que consolação! exclamou elle. Isto é para animar.
E estendeu-se coaimodamente n'um canapé, esperando o al-
moço.
— Não sabe, sr. prior?
— O que? perguntou elle.
— No outro dia cheguei á janella e disse-me o tendeiro ali da es-
quina: «Você vae-se dando bem lá com o prior.» E vae eu respon-
di-llie: «Dou-me muito bera na casa. O prior é um santo.» «Pois
bem se vè, está gorda e forte. . .» E é isto. Todos me acham mais
gorda . . . disse ella com um sorriso significativo.
— É bom signal. Dá-se bem com a comida . . . disse elle rindo.
E accrescentou em voz baixa:
— Também esta! Já são Ires. . .
E ficou por um momento pensativo.
Pouco depois o rosto desanuveou-se-lhe e exclamou alegremente:
— Ora adeus! É a conta que Deus fez.
E sentou-se á mesa, despej^-íido um enorme copo de vinho.
Lisboa — Dezembro de 1881.
Alberto Bastos.
A TRICHINA o7
tricliÍRXi
Eslodo d'este parasíla, desasirosos eITeílos que pi oduz oo homem
e meios de evitar a (ríchÍDose
(ContinuaJo de pag. 47}
IV
Tri china iiitestina.1
Sabemos já o que é a trichina muscular ou enkistada, vejamos
o que é a trichlua inteslinal. Não é outra coisa mais que a trichina
muscular enkistada, que passou ao intesíino do animal que comeu
carne trichinada.
N'um excellente artigo publicado em 187S, no Jornal de Beja,
pelo nosso collega do dislricto de Beja, o sr. Silveira Machado, diz
elle sobre a trichina intestinal o seguinte :
«Quando a trichina enkistada entra no estômago de qualquer
animal, o seu kislo é immedialamente dissolvido pelo sueco gás-
trico, e a trichina, sobre a qual esse sueco não exerce a mais leve
acção, achando-se livre, passa para a parte duodenal do intestino
e ahi se desenvolve em harmonia com o seu sueco, chegando as
fêmeas ás vezes, a 3 millimetros, podendo reconhecer-se a olho
nú, logo que deitadas em liquido transparente, onde parecem té-
nues fios nadando.»
Temos pois assim trichinas machos e trichinas fêmeas, vivas e
livres, no interior do intestino,
Ahi os machos fecundam as fêmeas, e estas, que são dez vezes
mais numerosas que elles, não tardam em dar á luz os embryõe-
sinhos ou pequenas trichinas, em tão grande numero, que uma só
mãe pode parir 3:000!
Isto dura mais de um mez, desde que a trichina muscular en-
kistada entra no intestino.
Quarenta dias após este assombroso parto, as trichinas mães
morrem, e são expulsas de envolta com os excrementos.
Mas para onde vão os em.bryões que agora povoam o intestino
do animal, que ingeriu a trichina muscular?
Em breve essa innumeravel população fura a parede do intes-
tino que a contém, e, segundo uns auctores, vão as pequenas tri-
chinas, de cellula em cellula, por todos os tecidos molles, para se
fixarem de preferencia no muscular ; segundo outros, de cujo
numero faz parte o sr. Zundel, os parasitas, atravessando a mu-
cosa intestinal, penetram nos capillares sanguíneos e d'ahi nos va-
8
38 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
» - —
SOS, deixando-se arrastar na corrente do sangue, e parando só nas
fibras musculares, para nellas se fixarem.
«O embryão, diz o sr. Zundel, durante a sua migração do in-
testino para o musculo, torna-se 30 a 40 vezes maior ; leva uns
10 dias neste caminho, e, chegado ao tecido muscular, ahi se en-
rola ao fim de um mez ; e são precisos mais dois mezes para que
o kisto albumino-fibroso se forme em torno d'elle.<>
V
A.niiin£ics em que se ol>sci*>^a, a, i:]:*ic]iiua
Sabemos que o homem e o porco alojam a trichina no seu intes-
tino e no seu tecido muscular.
O mesmo succede com o javali, e muito principalmente com os
ratos e ratazanas, e menos frequentemente com as rapozas, gatos,
fuinhas e martas, que com os mesmos ratos e ratazanas se alimen-
tam.
Alguns sábios experimentadores já teem conseguido trichinar o
cão, assim como o coelho, em cujo organismo o desenvolvimento
das trichinas é prodigioso.
Os outros animaes pecuários (varias espécies de gado) além do
porco, bem como as gallinaceas, quasi impossível é tornal-os tri-
chinosos.
Na Allemanha, onde tudo se observa, experimenta, estuda pro-
fundamente, aflirma o sabiq professor de Strasburgo que ha 6 por
cento de ratos trichinosos. É pois muito de suppôr que o porco con-
traia a trichinose, devorando ralos eivados de trichinas, visto que
por toda a parte estes pequenos roedores se encontram infeccio-
nados do parasita.
Segundo um sábio allemão, também as minhocas e outros ver-
mes da terra, que os porcos engolem, são frequente vehiculo para
a infecção d'este animal, porque as trichinas também se encontram
em abundância no organismo de taes vermes. (Sr. Conselheiro S.
Bernardo Lima. Archivo rural, vol. 8.°, pag. 171).
Além d'estes meios de infecção trichinosa. ha também os excre-
mentos dos próprios porcos (e por ventura de outros animaes e de
homem) infeccionados, que estes animaes facilmente comem de mis-
tura com os alimentos, e n'esses excrementos podem conter-se mi-
lhares de trichinas.
VI
Kesisteixcia, -vital da, tricliiixa
A trichina continua a viver^ mesmo depois de morto o animal em)
cujo organismo se aloja.
A TRICHINA 59
Mesmo que a carne trichinada apodreça, ainda ahi se podem ob-
servar trichinas vivas.
As diíTerentes preparações sob as quaes a carne de porco se
apresenta no mercado, laes como: toucinho ou carne salgada, carne
fumada, presuntos, chouriços, paios, etc, manifestam a trichina
cheia de vida e prompta a reproduzir-se.
Assim, com mais rasão, a carne e toucinho fresco.
Submetlida a um frio intenso, como a um calor elevado, este pa-
rasita ainda resiste e se conserva capaz de infeccionar o organismo
do homem e ouiros animaes.
O sr. Zundel, a quem n'este estudo principalmente seguimos,
diz que o sr. Leuckart assevera que a carne trichinada conserva
ainda tricl.inas vivas, depois úp estar submetlida, por alguns dias,
a um frio de 20 graus abaixo de zero do thermometro centígrado.
Submettidas a uma temperatura elevada, ainda vivem a 60 graus
do mesmo thermometro. Quanto mais tempo teem de enkistadas,
mais resistem ao calor.
É preciso uma temperatura de 7o graus centígrados para nur-
rerem seguramente.
Conseguintemente, a carne de porco fresca, o toucinho ' j qual-
quer preparação salgada ou fumada do porco, que soffra a cozedura
usual nas nossas cosinhas, por espaço de duas a três hi ras, ficará
innocBnte, porque as trichinas que possa conter ficam mortas.
Mas, para isso, é necessário que o calor penetre, por egual, to-
dos os pontos da porção que se coze na panella. Um grosso pedaço
de toucinho ou de carne, um paio inteiro, um espesso bocado de
presunto, se estiverem eivados de trichinas, mostrarão estes ver-
mes mortos á superficie e mesmo até certo ponto da sua massa;
mas é possível (e tem-se experimentado) que apresentem ainda vi-
vas as trichinas nas camadas mais profundas até ao âmago, por-
que até lá não chegou calor suíficiente para as matar.
O que dizemos para a cozedura, succede quando se assa ou frege
a carne de porco trichinado.
Voltando á cozedura, convém ainda observar que. se lançarmos
o tecido trichinado logo em agua muito quente ou a ferver, a albn-
mina coagula-se á superficie e L rma uma capa solida que não deixa
peneirar o calor bem no am? o, onde, em tal caso, as trichinas fi-
cam vivas. O mesmo não s ccede, lançaudo a carne, chouriço ou
toucinho em agua fria, e aquecendo tudo lentamente.
60 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
VII
!I?o<ie-S!e conliecei* a tvicliina, nos poi*cos "vivos**
Tecidos e pi-epai-ações onde ella se encontra
É completamente incerto o poder-se conhecer se um porco está
ou não infeccionado de trichinas, isto é, se padece de trichinose. A
maior parte dos porcos trichinosos estão gordos e apresentam to-
dos os signaes de perfeita saúde.
Todavia, alguns que, depois de mortos para consumo, denuncia-
ram a irichina no campo do mycroscopio, haviam antes disso ma-
nifestado em vida alguns symptomas mórbidos, como: rijesa de mús-
culos, fraqueza de rins, ele.
Para nos certificarmos se um porco está ou mo atacado de tri-
chinas, quando disso houvermos suspeita, ha quem aconselhe que
se saque com um arpão ou outro instrumento apropriado, peque-
na- porções de carne do animal, ou que se lhe corte a cauda, cu-
jos i 'isculos então se podem analysar à vontade.
Tee ' sido infeccionados experimentalmente muitos animaes com
a trichii. '. A maior parte delles passam, com similliante infecção,
perfeitam. jte, ou antes, não manifestam o mais leve symptoma da
doença. N alguns, muito raros, apenas se manifestam levas cólicas,
diarrliéa, febre e tristeza, restabelecendo-se em breve a apparen-
cia da saúde.
Já vimos que nos músculos, em geral, apparecem as trichinas.
Exceptua-se porém desta regra o coração.
Mas frequentemente, comtudo, e em maior quantidade, appare-
cem ellas nos músculos striados, nos do pescoço, peito, olhos e no
diaphragma.
Quanto ás preparações onde se encontra a tríchina, são todas as
que conhecemos, feitas com tecidc^^ do porco; mas ha muito maior
probabilidade, quasi certeza, de a> encontrar nos enchidos, espe-
cialmente os que vêem da America visto que na sua composição,
entram tecidos de vários porcos, ai um ou alguns dos quaes po-
dem ter sido infeccionados.
Em vista do que dissemos sobre a resistência vital das (lichinas,
e na certeza de que estão perfeitamente vivas nestas preparações,
se lá existirem, vé-se bem que imminente perigo correm as pes-
soas que costumam comer chouriço, presunto e até toucinho com-
pletamente cru.
A TRICHINA 6i
VIII
Exame micvosoopico cia tricliiiia
O Jornal de agricultura c sciencias correlativas, tão pcoficiente-
mente redigido pelo nosso illustrado coilega, o sr. Alves Tòigo, no
seu numero de 1 de maio do 1881, transcreve do Commercio de
Portugal um óptimo artigo do illustre professor do Instituto geral
de agricultura, o sr. Jayme Batalha Reis, recentemente encarregado
de umn aula de microscopia n'aquelle estabelecimento, artigo no
qual Sc descreve assim o exame microscópico da trichina.
«Na carne a examinar faz-se um corte tão fmo quanto possível,
que se \)õe de môllio durante alguns minutos, numa parte de po-
tassa dissolvida em oito de agua. A carne lorna-se assim mais
transparente, e deixa ver á simples vista pequenos pontos bran-
cos. São as trichinas. Se a carne é gorda deve lavar-se com élher.»
aAs trichinas estão ordinariamente enkistadas, fechadas dentro
de um invólucro calcareo. Uma ou duas gotlas de acido chloihy-
drico fraco bastarão para destruir o kisto.»
«As trichinas poderão então ver-se ao microscópio enroladas em
espiral.»
«Se mettermos a carne a examinar em tintura de pau de cam-
peche, esta tinge a carne sem tingir a trichina, que então íica per-
feitamente distincta.»
Os microcopios que o governo acaba de facultar aos intendentes
de pecuária, dão a grandeza real do objecto a examinar augmen-
tada 30 a 50 vezes ; isto é : teem a força de 30 a 50 diâmetros.
Ora, tendo a trichina, pelo menos, 5 deci-millimetros de com-
primento, podemos vel-a, com taes microscópios com 15 millime-
tros de comprimento, pelo menos.
Qualquer pessoa, mesmo sem explicação, se serve d'esse instru-
mento.
Entre as duas laminas de vidro que o acompanham coUoca-se a
lenue partícula ou lamina finíssima de carne a examinar. Unidas
as laminas, collocam-se na pequena mesa negra do instrumento,
de modo que a carne fique ao centro do orifício circular da mesa,
e trata-se logo de segurar as laminas ali, abaixando e carregando
levemente a patinha de metal enfiada na haste do microscópio supe-
riormente á mesa.
O observador colloca o instrumento diante de si sobre uma banca
em frente da luz de uma janella ; e com o espelhinho movei atra-
vessado na dita base e sob a mesa, illumina perfeitamente o obje-
cto a examinar fixo entre as laminas de vidro.
Depois, subindo ou descendo muito suavemente, com a mão
6t ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
direita, o tubo rio microscópio com um dos olhos applicado ao vidro
superior, vae assim chegando á maior grandeza em que o objecto
pode ser visto.
Para as observações deve-se escolher, quanto possível, partícu-
las dos músculos onde a trichina é mais abundante, como vimos.
(Conclue) Annes Baganha.
Ôtl
aziareiío
Ó triste nazareno I ó revolucionário !
Meigo perseguidor da antiga iniquidade,
Que deste a vida pela ingente Humanidade
No supplicio do crú Golgottia solitário;
Se Ta, resuscitar podesses — visionário,
E como dantes, louco ! ir pregar a Igualdade,
Verias o Rei e o Padre — os monstros da maldade,
Levarem-te de novo á morte do Calvário I
Era teu templo o mundo ; o deus a sã justiça ;
A Moral dava thema á tua nova missa...
E os bonzos vis, cruéis, pregavam-te na Cruz !
Inda hoje, ó Martyr bom ! mensageiro da Luz,
Condemnavam-te ao negro e bárbaro supplicio
Se não votasses preito á Infâmia, ao Erro, ao Vicio
Xavier Paiva.
Estudos de Sociologia «Ensaios sobre a evolução da liumanidade» por Teixeira Bastos, Porto,
Livraria Iniversal de Magalhães k Moniz, 1882, \ vol. in-8.° de 241 pag.
Eis um livro que deve ser lido por todos aquelles que desejarem instruir-se,
para quem a seiencia nunca deixou de ter attractivos.
Os Ensaios sobre a evolução da Immanidade, com[)rehendem oito capítulos todos
distinctos, mas subordinados ao mesmo ponto de vista philosophico. São bellos
estudos sociológicos em perfeita harmonia com o titulo da obra.
A philosophia positiva que todos os dias vae adquirindo novos adeptos, e orien-
tando os melhores talentos d'esta terra, não pôde de forma alguma ser atacada
nas suas bases, solidificadas pela observação e experiência, o seu grande methodo.
Só os espíritos educados na philosophia que teve por fundador Augusto Comte,
serão capazes de produzir obras que satisfaçam ao ideal moderno.
Em seiencia e em arte o melhor que se tem produzido é devido á orientação
positiva. O romance, a poesia, a critica, tém-se elevado nos últimos tempos ásua
BIBLIOGRAPHIA 63
maior altura, facto que de certo se não daria com a preoccupação das especula-
ções methaphisicas.
Todos os nossos litteratos filiados na escola decadente, são incapazes de pro-
duzir obras de vulto. O espirito rotineiro esterilisa-os nos debates da imprensa
periódica, nas locaes escandalosas, nos falsos juizos, em que não ha uma ideia
aproveitável e nos arrendilhados do estyllo, coui applauso dos claqueurs, que só
possuem o grande mérito de perder uma vocação.
A incapacidade que provém da falta d'um methodo seguro, tem este condão
especial da importância balofa e por isso mesmo apregoada, sem ser discutida,
da maioria dos nossos litteratos que se impõem á admiração dos seus leitores e
aos empregos de favor, quando os não mendigam, pelos relevantissimos rerviços
prestados ás letras pátrias. Eis-aqui porque somos um paiz de jornalistas e de
empregados públicos.
Os que fogem d'este circulo vicioso, que leva fatalmente o escriptor ao logar
de amanuense de secretaria, os que trabalham com um ponto de vista, com cri-
tério, os que, emfim, se desviam da rotina, assentando os seus productos intelle-
ctuaes em bases puramente scientificas, esses tèem sempre contra si a conspira-
ção do silencio, as inimisades ou as antipathias litterarias que também trazemi as
pessoaes.
Teixeira Bastos, é um d'esses escriptores applicados, que preferem o estudo no
gabinete, sentados á mesa do trabalho, conservando-se indiílerentes ao ruído in-
consciente que se faz em roda dos litteratos da moda. Ellenâo convive com estes
dandys almiscarados e ocos da republica das letras, soltando constantemente uma
enfiada de banalidades enfrascadas, mas pretenciosas, abusando assim da paciên-
cia indígena. Elle trabalha^ estuda sempre, com amor, com muita coragem, e os
seus trabalhos de alta importância scientifica não lêem os reclames usados pelo
nosso jornalismo ! E porque? Parque este escriptor nunca seguiu a rotina, e tem
combatido sempre o erro, fazendo propaganda dos sãos princípios, escudado na
sciencia. Elle é o verdadeiro escriptor moderno, e portanto não pode ser hon-
rado com os juizos dos espíritos conservadores e decadentes. Accresce que a maio-
ria dos nossos homens de letras é partidária do statu quo, amando as velharias
e a phraseulogia balofa. É impossível esperar d'ella os louvores a um trabalho
novo.
0 recente livro de Teixeira Bastos comprehende uma serie de bellos estudos
sociológicos baseados na philosophia scientilica, e assim intitulados:
1 Conservação e revolução — II A Creação do homem — III Origens da família —
IV Oriçjens das Religiões — V Missões religiosas — VI As guerras e o espirito mili-
tar— VII As revoluções sociaes — VIII Como se realisa a evolução.
Se o autor dos Ensaios sobre a evolução da humanidade, não tivesse já aflQr-
mado o seu talento disciplinado em outras abras, esta bastaria para o elevar á
altura dos primeiros escriptores da geração moderna.
Este seu ultimo trabalho revela um talento de primeira ordem.
Desejávamos fazer a analyse completa d'este livro, mas não nos permitte a
falta de espaço com que sempre luctam revistas d esta ordem.
Teixeira Bastos expõe admiravelmente n'um estyllo claro, as suas bellas theo-
rias em que ha uma accumulação de factos curiosos, citações d'alta importância,
triades luminosas d'um pensador. Tem uma phrase technica, perfeitamente ade-
quada ao assumpto. Os capítulos a Creação do homem, Origens da família, Ori-
gens das religiões, e as Guerras e o Espirito Militar, são magistraes, revelando
muita erufiição e um critério rigorosamente scientifico.
É verdade que o autor dos Ensaios é uma illustração, mas o que o faz sobre-
sahir como escriptor, é o methodo que elle possue. Não se pode exigir mais d'um
rapaz tão novo e que muito se deve honrar com a conspiração do silencio. É a
maior prova de que elle não produz banalidades, mas sim trabalhos de vulto. A
philosophia positiva deve-lhe muito, porque elle é um tenaz vulgarisador da
grande obra de Comte, em que tem robustecido o seu bello espirito.
64 ENXYCLOPEDIA REPUBLICANA
Livros tresta ordem são sempre bem vindos, e merecem um lo^'ar dislirieto na
nossa n)odesta eslaiitc
Louvamos sinceramente o seu autor pelos relevantissimos serviços que tão c -
rajosameute presta ;i scienoia . onleuiporauea, estudando a humanidade nas suas
diversas phases evolutivas.
Lisboa. Rkis Dâmaso.
Quadras.
HYPATHIA
Nas primitivas idades do chrislianismo foram muito frequentes
no grémio dos seus adeptos as divergências e dissidências, poi'
causa do modo como cada um in'erpretava certos pontos theologi-
cos, on promovidas pela teimosia, não isenta de fanatismo, de ou-
tros, em quererem imprimir a auctoridade de dogmas ás mysti-
cas invenções de seus espiritos escandecidos e allucinados na con-
templação beatifica das cousas sobrenaturaes. Chamavnm-se a es-
tas divergências : heresias, e aos seus auctores : heresiarchas.
Infelizmente, no ardor d"essas disputas doutrinarias, no embate
das contendas dogmáticas — em que sempre liavia eíTusão de
sangue, e portanto macula indelével para o que se denominava
a religião do Crucificado! — tantos erros pi^opagavam orlliodoxos
como heresiarcbas, tantos excessos commettiam aquelles que es-
tavam da parle de Roma, como aquelles que ambicionavam e ten-
tavam levantar novas igrejas no Oriente.
Porém, não é nosso intento agora descrever as scenas tenebro-
sas dessas formidáveis luctas do fanatismo religioso, em que a
mescla do interesse particular ou de partido politico, o espirito
de tradição de raça ou tendências etbnographicas, tomavam uma
grande parte, senão a maior, do sentimento piedoso de religião.
Queremos tão somente apresentar ao leitor uma mui respeitável
mulher, uma heróica martyr da Sciencia. que tão merecidamente
celebre se tornou em um d'esses períodos históricos, que estão
gravados nos fastos do christianismo com letras de sangue, do ge-
nei^osissimo sangue derramado pelos Bons, pelos Sábios e pelos
Justos.
E' Hypathia, filha de Theon. Foi uma notável mathematica, e
viveu em Alexandria, no quarto século, quando lavravam com
pasmosa intensidade as tremendas e sangrentas disputas movidas
pelas doutrinas de Ario, o athletico fundador da seita dos arianos;
à
HYPATHIA tío
doutrinas que os doutores romanos apodaram de heréticas e sub-
versivas, mas que dominaram no Oriente, e em grande parte do
Occidente, por espaço de quasi quatrocentos annos.
Ario, tinha como inpugnador e desvairado inimigo um homem
allucinado pelo zelo religioso : era S. Cyriilo, que fazia estender o
seu ódio a todos que seguiam a sciencia grega, base de toda a
doutrinação do seu adversário, e que a illustre Hypathia defendia
e propagava com o santo fervor de um apostolado.
S. Cyriilo dispunha sobre o povo mesclado da grande cidade,
d'um prestigio immenso, perigosíssimo ; mas que, ainda assim,
era contrabalançado pelo de Hypathia. Esla, porém, dominava so-
bre a parte da população mais pacifica e intelligente.
A doutíssima mulher, estudara a fundo, com grande e ardente en-
thusiasmo, Aristóteles e Platão; amenisava e expunha em confe-
rencias publicas as doutrinas dos maiores sábios da antiguidade, e
atlrahia os ouvintes e adquiria partidários pelo império do saber e
persuação da verdade. D'est'arle promettia abrir arriscada brecha
na popularidade do allucinado orthodoxo.
Hypathia cultivava com estranho ardor todas as mathematicas ;
fizera uns commentarios aos escriptos de Apollonio e de outros
geometros, que se perderam, mas cuja memoria se perpetuou
atravez as idades.
Professava um culto grandioso pela publicidade. Discutia com
os mais eruditos sábios da época ; e dessiminava as flores da sua
bella alma e do seu fecundo e brilhante talento, pelo povo, cujo
instruía e moralisava em edificantes palestras scientificas, sobre
as leis que regem o globo terráqueo, suas relações com os pheno-
menos atmosphericos, e de preferencia acerca das grandes e no-
tabilissimas descobertas operadas por iniciativa dos Ptolomeus.
Alexandria era ainda o magestoso empório da sciencia, cujo
berço fora o Serapião, onde lá se erguiam ainda — como espectros
ameaçadores, ou tristes recordações de um passado cheio de glo-
rias, — os calcinados restos da decantada Bibliotheca dos sábios
Ptolomeus.
A nossa heroina era o vulto mais sympathico e a mais devo-
tada ariana da grande cidade.
Cyriilo conheceu alfim que o seu poderio peryclitava ante a eru-
dição, a superioridade moral, e porventura belleza da sua famosa
adversaria ; e, na sua mente transvariada pelo ódio e pelo fanatis-
mo religioso, nasceu e evolumou-se uma idéa ruim. Essa idéa,
primeiro foi como uma florescência ephemera, um desejo que mal
desabrocha se apaga logo ; mas depois, reappareceu, mais robusta
e gravou-se-lhe no cérebro inolvidavelmente, dominando-Ihe a von-
tade com a anciã, a sede abrazadora de sangue.
Tomou a peito desfazer-se de Hypathia!
66 EiNGYCLOPEDIA KEPUBLICANA
A gentallia, composta dos ferozes representanles de diversas
raças e cominuiiliões polilico-religiosas, andava prolundamente ex-
citada por eíTeilo das controvérsias dogmáticas, e era terrivel e de
mau pronuncio o desvario das fanáticas piedicas dos monges chris-
lãos.
Cyrillo, allucinado pelo furor doutrinário, e transvariado pilo
ódio' rábido de partido, aproveitou-se com satânica habilidade da
exaltação dos ânimos. Só por meio dum passo grandemente ousa-
do, poderia aniijuilar a merecida popularidade da sua illustre rival,
o prestigio Iriumphante que ella tão nobremente sabia conservar
sobre os homens de sciencia e os populares honeslos da celebre
cidade dos Plolomeus. O rancoroso sacerdote da doce religião do
marlyr do Golgotha, não hesitou sequer em o dar ; porque bem
persuadido eslava que Roma já n'esse tempo lavava com a esponja
ensopada em agua Denta, todas as maculas do sangue derramado
em seu serviço. Não sabemos até se o sanlo já n'esse tempo pre-
libava os gosos da futura canonisação, e ante-sonhava as delicias
da bemavenlurança... de mescla com os hórridos projectos do
cobarde assassino.
Hypathia habitava um magnifico ediíicio situado em um dos mais
pittorescos silios da populosa Alexandria. Das suas janellas, podia
ella a todos os momentos contemplar as imponentes ruinas do Sera-
pião, que recordavam pelos traços negros das chammas implacá-
veis, o feroz vandalismo do déspota romano, morto heroicamente
pelo punhal de Bruto.
Todos os dias longas fllas de carroças enfeitadas vistosa e gar-
ridamente, e puxadas por alimárias ajaezadas com luxo e riqueza,
paravam á porta da sua morada, que também era a sua acade-
mia, e as suas espaçosas e opulentíssimas salas enchiam-se e re-
gorgitavam de gente de todas as classes. De longes terras vinham
sábios discutir com Hypathia, e estudiosos ardentes mitigar alli a
sede de saber.
Ella era como uma fonte inexgotavel de sciencia, onde todos
procuravam dessedentar-se.
— A propaganda herética e subversiva d"aquella impostora, pre-
vertida pela chamada sciencia grega, tão proconisada pelo mafar-
rico do Ario, que o inferno confunda, é um perigo constante para
a nossa santa igreja.
Assim dizia Cyrillo a um grupo de monges christãos, entre os
quaes se encontravam alguns dos fanáticos fomentadores da exal-
tação que lavrava no animo da plebe, tão azada às impressões
violentas do ódio religioso.
Elle continuou, dissimulando mal o despeito que o dominava :
— A sua popularidade recresce dia a dia, ou, antes, de mo-
mento a momento ; porque ella possue a arte diabólica de disfar-
HYPATHÍA 67
çar a falsidade da sciencia que doutrina, com os ouropéis illuzo-
rios de uma eloquência estudada, de uma dialéctica infernal, que
exerce a mais fascinadora acção sobre o povo : essa monstruosa
cambada de réprobos e devassos, que se alropellam e derream
por essas ruas fora, somente para a ver, ouvir e acciamar. Klla nos
lem levado bastantes ovelhas do aprisco christão, e ameaça tres-
malliar-nos o rebanho inteiro. O seu proselytismo tem feito tantos
arianos como o próprio Ario. O heresiarca, se continuamos de bra-
ços cruzados, na mais criminosa especlativa, poderá vir em mui
breve assentar arraiaes nesta cidade do peccado, e fundar aqui a
nova igreja e proclamar voz em grita e de cathedra a sua diabó-
lica heresia ! E os christãos fieis que se preparem para morrer ás
mãos sacrílegas dos excommungados seguidores das doutrinas
stultas dos Aristóteles, dos Platões e outi-os pagãos de má nota,
em que baseia a sua doutrina o perro do Ario !
O santo estava medonho por affeito da exaltação da cólera. Tre-
mia todo, e as pupillas brilhavam-Ihe com o fogo dos alluciuados ;
a sua palavra ardente e sybillante. ia gravar-se na mente dos ou-
vintes como se elles escutassem os sangrentos vaticínios de um
propheta sinistro.
— Razão tendes, beatifico Cyrillo, — disse um monge, já bastan-
temente excitado; — se essa vaidosa mulhei- proseguir na sua ne-
fanda obra de preversão, o povo em breve nos voltará por com-
pleto as costas; e depois, sem crentes, sem partidários e, por-
tanto, sem prestigio algum, o que será de nós e da santa igreja
catholica romana n'esta terra?
— O que será de nós e da igreja mãe? — acudiu n'um Ímpeto
de raiva, mui pouco evangélica, outro monge.
— Fácil é de prevel-o. Seremos sem duvida perseguidos e im-
molados sem compaixão ; a nossa santa igreja será aniquilada
ou dispersa. . .
— Oh! tal não acontecerá! exclamaram os mais exaltados, er-
guendo os braços em signal de grande ameaça.
— Por minha fé f exclamou o que primeiro respondera a Cyrillo.
Se Hypathia é a causadora única dos males que sentimos e deplo-
ramos, como tudo nos leva a crer. . . Hypathia deve deixar de
existir! Um obstáculo só se vence completamente, destruindo-o.
Brados roucos de saudação acolheram a lembrança do virtuoso
monge.
Cyrillo esqueceu-se da hypocrisia habitual; e. como era idêntico
o seu pensamento, applaudiu o sanguinário monge com a mais
brutal franqueza : lavrou-se logo alli o pacto infame.
— Morra, pois, a filha de Theon, para Iranquillidade da igreja
de Alexandria e gloria do nome do filho de Deus n'esta parte do
orbe christão !
68 ENCYCLOPEDIA REPUBLICAN
Foram estas as ultimas palavras do futuro beatificado.
Alguns dos monges abriram os hábitos e entre-mostraram uns
aos outros, com aspecto hediondo, as armas que sob elles occul-
tavam.
Depois separaram-se, indo mislurar-se aos grupos de populares,
que se formavam pelas ruas e praças para indagar dos aconteci-
mentos e commenlal-os a seu sabor.
Os monges desempenharam hábil e galhardamente a sua pérfida
missão. Km menos de um credo conseguiram amotinar a arraia
miúda do povo, envenenando-lhe o coração com uma duvida terrí-
vel : que Hypathia era uma especuladora velhaca, que, se queria
exercer prestigio sobre o povo, era tão somente para o transfor-
mar em degrau das suas desmesuradas ambições.
Ao descair da tarde, Hypathia, sentada no interior de uma rica
carroça, tirada por um formoso cavallo da mais fina raça, passava
por uma das principaes praças, em direcção da sua academia.
Grande numero dos seus admiradores e partidários, iam desco-
bertos e radiantes de enthusiasmo em derredor do vehiculo, como
que a escoltar o seu idolo. O povo, afastando-se na sua trium-
phante passagem, parava aos lados das ruas e acclamava-a viva-
mente, phreneticamente, em transportes de enthusiasmo, que ás
vezes tocava as raias do delírio.
Das janellas, as damas vicloriavam-n'a accenando-lhe com os len-
ços, cobrindo-a de flores.
E ella agradecia a lodos, não com o regosijo do orgulho satis-
feito, mas cóm as lagrimas da mais sentida gratidão.
Era um espectáculo imponente e glorioso que arrobava e en-
ternecia !
De súbito surge na praça a figura ascética de Cyrillo. O odioso
orthodoxo dirigiu-se a uma mó de populares de ruim catadura,
por entre os quaes se enxergavam alguns dos monges, que já
apresentámos.
— É chegado o momento decisivo, disse Cyrillo ao ouvido de um
monge de formas athleticas e semblante ferocíssimo.
— A plebe, catechisada por nós, bom padre, — redarguiu o
monge — está prompta para tudo.
— Vamos, pois.
A turba-multa, á voz dos monges, começou de mover-se como
uma serpente monstruosa, e gritos sinistros irromperam de cente-
nares de boccas avinhadas.
A carroça de Hypathia, e os admiradores da nobre mulher, en-
travam a este tempo n'uma rua estreita e tortuosa.
Subitamente foi assaltada pela horda de populares guiados pelos
monges. Cyrillo tinha desapparecido ... a fim de não compro-
metter a sua sanctíficação ...
HYPATHIA 69
— Morte à impostora! morte á herética! bradava a gentalha, no
auge da exaltação.
Hypalhia, surprehendida pelo estranho do caso, mas serena,
ainda que levemente pallida, procurou fallar á multidão.
— Não a deixem fallar, —vociferava um monge ; — não a dei-
xem fallar, pois ella o que pretende é desarmar o vosso braço
vingador, com os dolos e embustes de sua infernal invenção.
— Apoderai-vos da pagã! — berrava outro monge açulando a corja.
Alguns fanáticos fizeram parar a carroça, e um romano ia já a
encarrapitar-se sobre uma roda.
Um dos admiradores de Hypathia tomou-o nos braços vigorosos
e arremessou-o a grande distancia.
— Para traz, malvado !
Um monge vibrou uma punhalada de morte ao heróico defensor
da filha de Theon. Foi o signal da lucla. Os que guardavam o
carro foram vencidos e aniquilados ; e o povo, que saudara a mu-
lher illustre, espavorido e aterrado, fugiu deixando-a entregue á
sanha dos assassinos . . .
Hypathia foi tirada brutalmente do carro, e depois espancada e
deitada por terra. A multidão, excitada alé à ferocidade, despiu a
dos seus vestidos, e arrastou-a, cobrindo-a de vergões das panca-
das, e victuperando-a com chascos e vaias obscenas, até á igreja,
onde a esperavam reunidos os companheiros de Pedro o leitor.
— Eis em nosso poder a mulher vaidosa e peccadora, que du-
rante tantos annos lançou a baba da sua duvida pegadiça e nojosa
na alma do povo d'esta cidade, afastando o da casa do Senhor e
da predica santa dos seus escolhidos, para o attrahir ao seu pros-
tíbulo, onde o prevertia e envenenava com a sua doutrinação so-
phistica e pagã.
Assim clamava Cyrillo do alto do púlpito sagrado. E concluiu :
— Que se ha-de fazer delia ?
— Esraagal-a, como se esmaga um reptil peçonhento, — bradou
um padre, com voz que eccoou pelas arcarias do templo como o
som cavo e fúnebre d'uma campa.
— Á morte a impostora ! Á morte a pagã ! — berrou a multidão,
que abafava no sagrado recinto.
— Matem-me, sim f matem-me, fanáticos preversos! para que o
sangue da martyr vá espadanar nos vossos altares, e enrubescer
mais as letras dos missaes romanos !
Não poude dizer mais aquella nobilíssima creatura. Os monges,
cegos pela ira, arremessaram-se sobre o corpo esculptural e nú da
sua victima, com a sanha de uma alcateia de lobos esfaimados, e
lhe deram morte horrendíssima !
O corpo da martyr foi feito em pedaços, e os despojos sangren-
tos divididos pelos mais fanatisados f
70 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Depois accenderam uma fogueira ; e, quando a espiral das suas
ch?miiias rubras se erguia para o espaço, como um dedo lumiiioso
erguido para o céo, os monges, que já linliam arrancado a carne
dos ossos, atiraram ao fogo os restos da que tanto os incommo-
dara com as luzes esplendorosas do seu immenso saber ! !
Assim nrnbnu a mulher mais sabia e mais austera das primiti-
vas idades do cliristianismo, depois de uma vida gloriosa de estudo,
de trabalho, de abnegação e iriumphos I
Jamais foi Cyrillo chamado a responder por tão espantoso crime ;
parece que desde então se admitliu que — os fins justificam os
meios.
Dizem que Hypathia escreveu um grande numero de livros so-
bre mathematicas e geometria ; mas todos se perderam com a rica
bibliolheca de Alexandria, que foi dispersada depois da sua morte,
como aviso áquelles que intentassem levantar o facho luminoso da
Sciencia ante as trevas do obscurantismo, que é o. melhor e
mais seguro esteio da tyrannia !
Xavier de Paiva.
3Pronressos da (luaianidcide iio século actual
Kstamos no ultimo quartel do século xix. Lancemos os olhos
para o brilhaiite espectáculo que nos appresenta o mundo e com-
paremol-o com o que nos apiircsenlava o ultimo quartel do século
xvm. Que trabalhos gigantes &c não fizeram depois que Condorcet es-
creveu o seu bosquejo dos progressos do espirito humano! Como
a humanidade tem caminhado no curto espaço de um século ! Os
caminhos de íerro, o gaz da diummação, os vapores, os fios elé-
ctricos, os pára-raios, as machinas, a photographia, os telefones, a luz
electiica, que quantidade assombrosa de inventos que lém transfor-
mado a face da terra e que ao principio eram olhados como chi-
meras, ou quando muito como objectos bons para se guardarem
num museu de curiosidades.
A descoberta do vapor data de 1690, segundo alguns auctores
que a attribuem ao sábio francez Diniz Papin; porém Jayme Watt
é que tornou esta invenção aproveitável nos fins do século passado e é
elle quem gosa das honras de inventor. A machina de Watt espalhou-
se rapidamente e nos princípios do presente século estava já em
uso em muitos logares da Europa e da America. O celebre enge-
PROGRESSOS DA HUMANIDADE NO SÉCULO ACTUAL 71
nheiro americano Roberto Fulton applicou este invento á navega-
ção, e os conslruetores Trevilliick e Vivian applicaram-no ás vias
férreas. Passaram-se setenta annos e hoje vemos o mar sulcado de
vapores que percorrem em quinze dias o espaço que nossos avós
percorriam em três e quatro mezes nos seus navios de vella. Por
terra atravessam-se 50 e 60 kilometros no mesmo espaço de tempo
que os nossos antepassados gastavam para andarem uma légua.
As distancias desappareceram. Portugal e a Rússia approximaram-
se da França. Napoleão gastou alguns mezes de Paris a Moscou,
agora qualquer pessoa faz em poucos dias a travessia napoleonica
atravez da Rússia. Ha comboios directos que vão até S. Peters-
burgo. A Europa tende a unificar-se pelo progresso.
Entre a Europa e a Ásia ha uma grande distancia, ha a Africa e
o cabo das Tormentas, isto é muito tempo perdido c innumeros
perigos. Que se ha de fazer? Supprima-se a Africa e supprima-se
com ella o cabo das Tormentas. Como fazel-o? Cortando um largo
cordão de penedos que une dois continentes. Era um trabalho deti-
tans, uKis estamos no século dezenove e esse trabalho realísou-se.
Separaram-se dois continentes, ligaram-se dois mares e o canal
de Suez tornou-sc o caminho rápido e seguro que conduz ao
Oriente.
A electricidade era conhecida desde os tempos antigos, porém
só depois de Volta se tornou susceptível de ser applicada. Franklin
inventou os pãra-raios, OErsted e Arago applicaram a electricidade
á telegraphia ; vieram depois os aperfeiçoamentos e actualmente
os fios eléctricos pozeram em contacto as mais distantes partes do
globo. A Europa e a America estão ligadas por uma infinidade de
fios telegraphicos e quasi todas as terras do mundo se podem cor-
responder em poucos instantes. Pelo telegrapho eléctrico New- York
fica a poucos minutos de Londres, e Lisboa do Rio de .laneiro. Um
acontecimento de interesse geral sabe-se no mesmo dia em todo
o orbe. É simplesmente assombroso ! Continuam a fazerem-se des-
cobertas que hão de um dia vir a ser importantes. A luz eléctrica, o
telephone, o phonographo, etc, são objectos de estudo que estão
passando por successivas modificações e aperfeiçoamentos, graças
aos esforços incessantes e esplendidos de Edisson, Bell, Jablocoff e
innumeros outros.
E que espantoso não tem sido o movimento industrial ! As machi-
nas surgem por todos os lados e para todos os effeitos, machinas de
fiar, machinas de tecer, machinas de cortar, machinas de lavrar,
machmas de moer, machinas de costura, etc. etc, E todas ellas
ou pelo menos a maior parte dos seus aperfeiçoamentos são d'este
século.
No século XIX os progressos materiaes têm tido ura incremento
desusado e nunca anteriormente visto. Qual a causa d'este desen-
72 ENOYGLOPEDIA REPUBLICANA
volvimento? Todos os factos sociológicos são filhos de outros que
os precederam, são effeitos de causas secundarias ou immedialas,
são consequências d'um meio determinado. Ora os progressos ma-
teriaes nascem sempre dos progressos intellectuaes.
O progresso passa por três pliases regulares e successivas :
primeiro é intellectual, depois moral e por fim económico ou ma-
terial. Talvez alguém pretenda contestar esta airirmação citando o
que se passa entre nós : a esse lembrar-llíe-hei que o nosso paiz não
pôde servir de exemplo porque não tem tido um desenvolvimento pró-
prio, a vida da nação portugueza é artificial ; os melhoramentos
materiaes foram-nos impostos pelo meio europeu em que vivemos.
A profunda decadência a que chegou Portugal, arrastado pela mo-
narchia de mãos dadas com a inquisição e com os jesuítas, estiolou
muitas gerações e deixou-as vegetar no meio de um indiíferentismo
desolador que seria criminoso se fosse consciente. Só agora come-
çam a notar-se symptomas de um progresso intellectual ; infeliz-
mente são ainda bem frouxos. Não succedeu porém o mesmo cora
a França e com os paizes do norte. Alli o progresso intellectual pre-
cedeu o material.
As sciencias tom lido no século actual cultivadores insignes que
as têm desenvolvido, levantado e propagado. Na astronomia têm-se
continuado as observações dos planetas, encontrou-se Neptuno,
adoptou-se a analyse espectral dos astros, desrobriram-se os satel-
lites de IMaite, augmentou-se o numero conhecido de planetas que
gyram entre Mercúrio e Júpiter, estudaram-se as nebulosas, segui-
ram-se os cometas, ele; Trémaux explica por uma Iheoria nova a
gravitação, substituindo a attracção pela repulsão, mais racional e
mais explicativa, e sujeita todos os phenomenos naturaes ao prin-
cipio universal do movimento ; na physica estabeleceu-se a unidade
das forças, decompoz-se a luz do espectro solar, descobriu-se que o
calor não era senão um modo do movimento, analysaram-se minu-
ciosamente innumeros phenomenos ; na chimica continua-se a ana-
lyse dos corpos inorgânicos, chega-se á composição artificial de al-
guns corpos orgânicos, encontram-se novos corpos simples, de-
compõem-se outros que se julgavam irredutíveis, consegue-se lique-
fazer o oxygenio, e sob maiores pressões o azote, o hydrogenio, o ar
atmospherico. Cria-se a biologia, estudam-se os corpos orgânicos,
comparam-se entre si, classificam-se, apresenlam-se theorias novas,
Raspaíl estuda os tecidos e as alterações promovidas pelos parasitas,
Cláudio Bernard estuda os nervos, a cellula, as funcções do coração, a
acção paralísadora do curare, d"esse veneno fortíssimo da Ameria, e
morre quando linha a esperança de encontrar o segredo da constitui-
ção da cellula; Luys estuda o syslema nervoso, a espinhal medula e o
cérebro, ele. Augusto Comte funda a sociologia e estabelece as rela-
ções entre as várias sciencias. Traduzem-se os hyeroglificos e os cu-
i
A PROPÓSITO DA QUESTÃO DAS VIVÍSEGÇÕES 73
neiformes, estiidam-se as religiões do Oriente, leem-se os livros
sagrados da índia e da Pérsia e as epopèas da antiguidade ante-
historica, descobre-se a epopéa babylonica, enconlra-se o homem
pre-bistorico nas escavações realisadas |)or toda a liiuropa, compa-
ram-se as rebgiões. os mythos, os contos, a^ lendas, as lingi as.
os poemas, etc, Luscam-se as origens do direito, estiidase a ar-
chitectiira, estudam-se as iilteraturas, descobre-se o sanscrito
e o zend, forma-se a granimatica geral das lingnas indo-enro-
pêas. etc.
Tal é o estado a que chegou o progresso humano na epocha
que vamos atravessando. Se olharmos para traz e considerarmos
o camhiho percorrido veremos como é vagarosa a evolução, e
como só á custa de muitos e muitos sacrifícios ponde a humani-
dade ascender ao logar elevado que hoje occupa. Por quantas e
quantas phases não passou a humanidade ! Esta enorme lagarta quan-
tas e quantas vezes não mudou de invólucro porqueos velhos tegu-
mentos se foram apertando e rompendo á proporção qué se de-
senvolvia!
De século para século, a herança universal de conhecimentos e
de trabalhos vae sempre augmentando com os esforços das gera-
ções que se succedem, e decerto o século xix é o que mais tem
augmentado esse legado.
Teixeiiía Bastos.
.4 jiroiiosito da cruestuo acis vívisecções *
Outr'ora os homens que queriam ter a seu cargo o destino das
sociedades e o legitimo orgulho de bem as ter evangelisado, recorriam
<ios princípios religiosos para porem em pratica os principios scien-
lificos. Assim a circumcisão e a prohibição da carne de porco en-
tre os hebraicos, simples preceitos de hygiene, precisaram de ser
attribuidas a uma vontade divina.
Hoje os homens que desejam conservar a direcção espiritual dos
povos, recorrem a principios que dizem baseados na melhor religião
para insultarem a sciencia e lhe extorquirem os seus direitos legíti-
mos e fortes.
1 O auctor destinava este artigo a ser publicado na Era Nova onde o foi o
do sr. Alexandre da Conceição a que este se refere : pelo acabamento d'aquella
Te\ ista só agora é publicado, ainda que tarde para a resposta, mas não pelas
considerações scientificas com que o auctor tratou o assumpto.
Nota da empreza.
10
74 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Ainda no século XIV foi a Egreja que aulliorizíu pela primeira
vez a dissecção dos corpos humanos ; hoje parece que, da parte da
Egreja. se caminha para fazer disso um peccado.
É por isto apenas que se diz que os homens de sciencia dhoje
perpetuam o verdadeiro padre e (jue os padres d'hoje teem entre si
e os homens de sciencia essa tenebrosa dillerença que ha entre o
dia e a noite.
Isto porém era necessário e fatal: tiidia obrigação de o fazer a
vastidão crescente dos conhecimentos humanos, os progressos da
geologia, da embryologia. e da histologia comparada do cérebro,
valentes demolidores da philosophia espiritualista.
Os princípios do código de illuzões a que se chama religião, não
sendo positivos, não sendo formados dos factos natnraes e estando
consequentemente condemnados a toda hora aos abalos do seplicis-
mo, nasceram, cresceram e vão desapparecendo lenta, mas radi-
calmente.
Os princípios scientificos, pelo contrario, erguem-se dos factos,
tornando-se disaitiveis sobre documentos palpáveis, e são por isso
immorredouros no progresso virtiginoso do século.
Só o que é demonstrável, avança e domina ; o que é indemons-
travel, marcha eternamente no mesmo terreno e por fim é-lhe for-
çoso cahir na valia commum.
É pois inevitável uma separação absoluta : Sciencia e religião teem
de marchar cada vez mais inharmoniaveis. Mas não é sem estra-
nheza que vemos o reviver de conflictos raivosos e pouco coheren-
les, sobretudo quando elles vivem com o assentimento de governos
poderosos que, em tantos outros pontos, são enormes alavancas do
progresso e factores primários da família humana.
O governo inglez parece ter partilhado (!o falso espirito christão
que lavra nos protectores dos animaes, e está fazendo executar uma
lei prohibitiva das experiências dos physiologistas em animaes vivos
sobre pretexto de que estes experimentalistas obram contra a reli-
gião e a moral, e de que, usando taes experiências com demonstra-
ção nos cursos, fazem a mocidade cruel. Os physiologistas que por-
ventura desobedeçam á lei serão presos e multados severamente.
A parle da sociedade ingleza que estaciona à vista do progresso,
poude influir no parlamento do seu paiz e conseguiu que similhante
lei fosse votada e posta em execução rigorosa. Esta influencia inue-
gavel e poderosa que ainda tem o espirito religioso, é um facto que
não intimida, mas que é digno de uma attenção muito seria, e o pro-
cedimento do governo inglez parece a todos perfeitamente deslocado
no meio do boxe e dos combates dos gallos.
Um parlamento que, a pedido de simples sociadades protectoras
dos animaes e dos advogados de causas fossilisadas, esquece que
a saúde é a primeira base directa, que a medicina é a garan-
A PROPÓSITO DA QUESTÃO DAS VIVISECÇÕES 7o
tia da saúde, que sem physiologia não ha medicina, que sem ex-
periência nos animaes vivos não pode haver physiologia ; um parla-
mento que despreza a opinião dos sábios pelo alvitre dos piedosos,
quer arriscar-se muito a que o supponham pouco versado na utili-
dade capitallissima da sciencia que vem aggredir, a que o julguem
inimigo de si e dos outros, pouco zelozo do elevado logar que o seu
paiz occupa na sciencia, e como diz o illustre Carlos Darvin, custa-
ria a acreditar aos vindouros que elle pagou com tanta ingratidão
aos primeiros bemfeilores da humanidade.
Isto é sem duvida alguma assim.
Mas, apezar d'este procedimento, para todos pouco conciliador,
para muitos revoltante,' estamos convencidos de que ninguém se
se lembrará nem mesmo em Portugal, de concluir o que ao sr.
Alexandre da Conceição approuve escrever na mesma phrase em
em que usa tiiar os seus ditos a limpo com o sr. Camillo Caslello
Branco — que a Inglaterra é uma noção de caixeiros carolas e bru-
tos com pretensões a doutores em mHaphijsica. Não. A questão das
vivisecções que será justamente tratada por todos os pontos civi-
lisados do globo, não o será por nenhum positivista, como facto
isolado e em termos taes, senão pelo sr. Alexandre da Conceição,
temos esta certeza. O facto carece de um protesto severíssimo; é
um facto de primeira ordem, baseado em exigências que lavram
também pela França e pela Allemanha, e no qual nada lêem que
fazer caixeiros abrutalhados por pequenas hypolheses portuguezas.
A lei votada pelo parlamento inglez e executada como o próprio
sr. Alexandre da Conceição nos diz, pelo ministério de Gladstone,
é um acontecimento, por isto mesmo, estupendo e grave que não
cabe debaixo da epigraphe John Buli e ao qual, quanto mais pue-
ril o julgarmos, tanto menos devemos dar a confiança de lhe cha-
mar violentíssima tolice, nem prohibição descotnmunalmente ridícula
e bestial. Os inglezes, a quem o sr. Alexandre da Conceição so-
nhou amontoados ao fundo duma mercearia tratando questões
seientificas, teem na sua bella língua uma palavra sò para estas
palavras todas — shocking! A lei contra as vivisecções é um acon-
tecimento cujo mechanismo é muito urgente não apreciar pela
rama, e que nos deixa perplexos, mais do que enfurecidos, a ponto
de esquecermos que o governo inglez, em questões de dirigir o
movimento intellecttial do mundo moderno, continua a sustentar il-
limiladamente os primeiros museus do mundo, o primeiro agua-
rium do mundo, 05 primeiros jardins zoológico e botânico do mundo,
que as maiores explorações geographicas se lhe devem, e o sr,
Alexandre da Conceição, pensando mais friamente, verá que estes
factos bastam para desamarrar sufjicientemente um povo do ridículo
da historia. Esta lei parece-nos um caso de nenhum modo parti-
cular, mas sim a. prova inesperada de que ha ainda força bastante
76 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
do lado opposlo, força que necessita de ser energicamente des-
truída, mas peranle a qual, sobretudo n'estas proporções, os de-
sabafos palavrosos são perfeilameule estéreis. Apezar do fastio que
a todos causa, essa força não dá a ninguém que escreve com o
moderno espirito dirigente da sua terra, não dá a nenhum portu-
guoz o direito de insultar um grande paiz, muito menos com os
primeiros epliilelos do reportório ; e nós vimos supplicar á moci-
dade porlugueza (]ue aprende com o sr. Alexandre da Conceição e
com os direclores litlerarios conniventes na publicação da sua ma-
neira de appieciar, que não acceite similhante exemplo.
Lemlinmios que a maior revolução por que lom passado o espi-
rito humano, particularmente nas sciencias naluraes, se deve aos
dois cérebros inglezes de Carlos Leyell e Carlos Darvin, e o sr.
Alexandre da Conceição deverá lambem lembrar-se de que, ao
passo que na França e na Alleuianha, as tlieorias desses dois
grandes homens de tempera inglcza foram por muito tempo insulta-
das ou prejudicialmente compreliendidas e divulgadas, na Inglaterra,
éllas eram geralmente adoptadas e sabiamente compiehendidas e
e applicadas. E já que estamos em physiologia, é obrigação con-
fessar que a Itiglaterra neste ponto, tem em todas as epochas
produzido grandes homens taes como Harvey, Willis, Hobert Hook,
Richard Lover, Thomas Young, Charles Bell e Marshal Hall, cu-
jos trabalhos deram quasi sempre impulsos oiiginaes.
Tudo isto torna muito mais sensível o procedimento do parla-
mento inglez, mas não nos parece que nenhum espirito meridioual,
que nós, portuguezes, do fundo do nosso fatal mimetismo, possa-
mos entrar nesta questão senão para fazer sentir o insólito da lei
anti-viviseccionista, mostrando o que a Inglaterra vale e que a saga-
cidade e a prijdencia teem sido sempre as bases da conducta do seu
povo. O nosso protesto não pode ir além de pedirmos aos sábios es-
trangeiros (aos mglezes) que nos enshiem a mostrar ao povo portu-
guez a utilidade da physiologia experimental, alim de lermos prepa-
rada a força da opinião publica indispensável, p*ara qne enlão ura
governo possa votar ao desprezo as exigências incoherenles de al-
gumas corporações sentimentalistas, que lambem lemos por cá e
que podem fortificar-se, como tem acontecido nos paizes mais cul-
tos da Kuropa.
Na França as sociedades protectoras não conseguiam nem con-
seguirão talvez imped:r por lei os progressos da physiologia expe-
rimental, mas conseguem-o por um modo quasi igualmente ef-
ficaz, promovendo a morte immediata dos cães presos por vadia-
gem, de modo que, quando um medico quer um cão vivo para
aprender a não matar algumas dezenas de homens, não encontra
senão os animaes que os seus donos precisam para si.
Graças a esta maneira de proceder, estas sociedades, protegendo
A PROPÓSITO DA QUESTÃO DAS VIVISECÇÕES 77
assim os animaes, embora sem a conscieucia do que fazem, lornam-se
persegiiifloras dos homens e são corpos estranhos no meio da hu-
manidade. O soffrimento dos cães é-lhes mais digno de respeito do
que o presente e sobretudo o futuro de uma sciencia cujas praticas,
inevitáveis e não cruéis, teem por fim único o desempenho da ii issão
mais respeitável— abolir os soffrimenlos dos homens. Associações cu-
jos membros ainda julgam a moral inseparável dos princípios religio-
sos e que, em nome d'estes últimos ('que também tiveram sombra para
a Inquisição) pedejn que os cães sejam oílicialmente equiparados aos
homens, quando, por outro lado, querem um logar á parte na clas-
sificação zoológica, e que rhegam até a dizer a quem lenta per-
suadil-os que faça as experiências de vivisecção em si. . . de asso-
ciações laes, ninguém pode descobrir a coherencia e religiosidade
dos princípios, nem a moralidade dos fins.'
São estas associações que é preciso fazer entrar no seu cami-
nho, se é que ellas teem algum caminho. É preciso convencel-as
mesmo de que teem cumprido suílicientemente a sua missão, con-
servando-se no seu primitivo logar, limitando-se a chorar sobre as
chicotadas desnecessárias applicadas pelos conductores de omni-
bus, fazendo, quando muito, algumas conferencias a respeito d'el-
las, mas sem se esquecerem ile indicar outro meio de lazer andar
os cavallos manhosos como é preciso.
Mas isto não se consegue á descompostura n'um parlamento que
obrou talvez com a sagacidade que' lhe é peculiar. Ha muitos an-
nos que esta corporação é perseguida pelas reclamações pietistas,
e já em 1876 ella se vin obrigada a fazer pequenas concessões.
Portanto não podemos dizer que obrou precipitadamente, e ainda
que a lei podasse deixar de ser votada, não é possível acreditar
que todo o parlamento a votasse por falta de sciencia e por amor
das sociedades protectoras; mas sim que uma boa parte d'elle
obrou, sabendo o que ha sempre de tentador n'um fructo prohibido
e lançando opporlunamenle sobre a piedade buliçosa a opinião es-
timulada e esmagadora dos homens de sciencia, em especial a dos
que são directamente oíiendidos. As cartas de Darwin e de Carlos
Vogt publicadas em volumes diversos da Rèviie scientifique, e os
discursos de Virchow c Michael Foster no recente congresso me-
dico de Londres, são effeitos notáveis d'essa intenção mais do que
provável.
O professor Virchow, o pai da pathologia cellular. mostrou n'esse
congresso em q^ue sé achavam reunidos mais de 2:o00 médicos
de todos os paizes, que o estudo do cadáver é impotente para fa-
zer progredir a medicina. A doença é uma forma anormal da vida
e como tal não se pode estudar nos tecidos mortos. A base da arte
de curar está na comparação da cellula saudável com a cellula
doente e isto só se pode verificar no vivo. O estudo do cadáver
78 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
não nos mostra de modo algum a maneira porque as cellulas
doentes e as saudáveis se conduzem, e é exactamente a sua con-
ducta e não a sua decomposição que os physiologistas médicos
precisam conhecer, O cadáver é útil somente, em pathologia.para
mostrar os estragos duma doença n'um órgão que tinha sido im-
possiveí observar em vida, mas... après la mort, le médecin. A
causa desses estragos, a dilFicuidade de circumstancias em que
vivia o órgão lesado, a razão e a natureza d'essas circumstancias
difficeis, a acção d'um medicamento sobre a vida das cellulas mór-
bidas; eis ahi outros tantos pontos capitães únicos capazes de dar
a base da verdadeira medicina, e para os quaes não ha a esperar
dos tecidos mortos senão uma completa nudez.
Mas nem todas as experiências de physiologia. apesar do curioso
parecer de alguns adversários e da supposta crueldade dos expe-
rimentalistas, teem podido exercer-se nas próprias pessoas d'estes
últimos, nem nos seus similhantes.
Não ha principio nenhum moral ou religioso que auctorise, nin-
guém a experimentar em si uma substancia desconhecida (que pode
vir a ser um medicamento dos mais preciosos), para não pôr em
risco a vida d'um cão ou de um gato. Basta este exemplo do en-
saio de um medicamento, para provar até á saciedade que a phy-
siologia experimental é um recurso indispensável ; basta estender
os elos inseparáveis d'esta grande cadeia: — vivisecção, physiologia,
hygiene, medicina, saúde, trabalho, riqueza . . . Ninguém melhor
do que os inglezes teem sabido comprehender a importância d'esles
ires últimos factos, ninguém melhor do que os sábios inglezes sa-
berá reagir eíficazmente contra as associações pietistas, para man-
ter o progresso dos outros. O passo que o parlamento inglez acaba
de dar, será decerto o portador de grandes desenganos e determi-
nará a queda fatal das protectoras, tornando bem patente o quanto
ellas se teem feito inúteis e, mais do que isso, soberanamente pe-
rigosas.
A physiologia não pode ser impedida de marchar no seu largo
caminho, e a lei britannica, por mais tempo que vigore, é apenas
uma ponte para levar desassombradamente a mais vastos campos
de exploiação.
Ha males qne servem de bem. O interesse dos physiologistas
pela sua sciencia redobra, como era de esperar ; a questão agita-se
e muita gente que até aqui não tinha ouvido fallar em vivisecção,
fica convencida de que ella, no estado presente da sciencia, é in-
separável dos alicerces sociaes ; a opinião publica que tinha sem-
pre considerado as sociedades protectoras como cousas innocentes
e da moda, passa a odial-as como a uma liga jesuítica, e ellas, no
arrefecimento de verem deferidas as suas petições, talvez tenham
tempo de se envergonharem e de se converterem.
A TRICHINA 79
Concluímos mudando um pouco a nossa opinião : — nós teremos
algum dia muito que agradecer ao parlamento inglez a lei que
elle acaba de votar 1
Poiíla Delgada (Açores), 6 de setembro de 1881.
Arruda Furtado.
A, triciú
llllTX
Estudo d'cste parasita, desastrosos eíeilos que produz uo hooieiu
e meios de evitar a trichíuose
(Concluído de pag. 62)
IX
!E^sbo<^o histórico da descol>erta cia tx*icliiua
Dala de 1832 a descoberta da trichina, feita em Londres por Hii-
loD, Paget e Owen, em cadáveres humanos. Era a trichina muscu-
lar enkistada.
Em 1847, Leidy affirmou que ella é abundante nos porcos
d'America.
Em 1859 o sr. Virchow observou trichinas de ambos os sexos
no intestino de um cão, vendo as fêmeas cheias de ovos. Sabemos
que esses ovos saem já transformados em embryões ou pequenas
trichinas rudimentares, na occasião do parto ; por isso estes ver-
mes se chamam ovo-viviparos, em relação ao seu modo de ge-
ração.
Só em 1860 se reconheceu a trichinose n"uma mulher que co-
mera carne de um porco que mostrou a trichina enkistada. Foi o
sr. Zeutter que, em Dresde, fez esta descoberta.
Numerosas experiências, consecutivas, feitas por muitos sábios
biologistas e microscopislas, puzeram bem a lume tudo quanto
hoje se sabe sobre a reproducção, emigração e enkistamento da
trichina, assim como as condições em que se realisa a infecção
por meio d'este notável parasita animal.
O numero de casos de trichinose humana que se foram apurando,
já isolados, já, e quasi sempre, era epidemias, foi tal, que um ver-
dadeiro terror se apoderou de toda a gente, e isto muito mais na
Allemanlia, onde maior numero de estudos e observações se tem
feito, e onde o uso de comer preparados crus de porco era mais
geral e constante.
80 EiNCYCLOPEDIA KEPUBLICA^A
Assim, em 18G3, de 135 pessoas infeccionadas em Magdebnrgo,
morreram il ; — em Hedersleben, no anno de 1865, de 337 doen-
tes, enlie 2:000 habitantes, falleceram 163.
D'aqnella época até ao presente muitos desastres d'estes se
teem verificado e reconhecido sem a mais leve duvida sobre a sua
natureza e origem.
Em 1880 morreram em Dusseldorf 4 pessoas de 20 atacadas de
trichinose.
O sr. Znndel apresenta uma curiosa estatística do numero de
porcos em que se reconheceu a Irichina na Allemaíiha, desde
1876, por meio da inspecção microscópica, que n'aquelle império
está organisada olficialraenteem toda aparte, entrando até já nos há-
bitos do povo.
Diz elle, que em 1876, sobre 1.728:595 porcos abatidos, 800
tinham trichina ; — em 1878, por cada 1:665 porcos mortos, 1
eslava infeccionado.
Não pôde entrar nos limites que a este artigo impozemos, a
apresentação de muitíssimos casos similhantes aos que vimos de
citar.
A trichina no porco e a trichinose humana teem sido verificadas,
não só na Âllemanha, mas também na Suissa em 1868, na Hespa-
nha (VilIar-del-Arzobispo, Sevilha e Barcellona), só nos porcos ;
na Inglaleira, Bélgica e Hollanda, também só nos porcos; na Áus-
tria, na Hungria ; mas sobre tudo nos Estados Unidos da America
é que a trichina é frequentíssima no gado suino.
Sabe-se que enorme quantidade de preparações de gado suino
a America exporta para o velho mundo. O sr. Jacobi affirma que
em 100 presuntos americanos ( vem infeccionado de trichinas.
Em vista d'estas notícias, perfeitamente authenlicas, verificadas
e confirmadas por novas e reiteradas observações microscópicas
n'esles últimos tempos, alguns paizes europeus prohibiram a im-
portação das conservas salgadas e fumadas, toucinho e carne de
porco, de procedência americana. Veremos qual a utilidade abso-
luta desta medida prohibitiva, que tão prejudicial é ao commercio,
á industria pecuária e às nessidades do consumo.
IMCedidas aacloptar contra os efTeltos, px-opag-ação
e consumo da trichina
Em primeiro lugar, perguntemos: — é possível curar a trichinose
humana?
Infelizmente a resposta é negativa em relação aos effeitos da
trichina muscular.
HYPATHIA 81
Quando a trichina intestinal — proveniente da trichina muscular
ingerida com a carne de porco — faz a sua migração e se estabe-
lece nos músculos do homem, só a grande resistência vital do
doente o pode salvar: a trichina enkistando-se nos músculos do
homem que resistiu até esse momento, já não o prejudica mais. O
que elle continua a soílVer é eíTeito do primeiro ataque.
Mas se houver medico que consiga suspeitar a presença da tri-
china, emquanto ella se conserva no intestino do homem, isto é,
emquanto não principia a sua fatal migração. n'esse caso é possí-
vel, mas muito incerto, conseguir a expulsão d'essa colónia de pa-
rasitas, por meio dos purgantes ordinários e dos anthelminticos.
Diz-se que a glycerina associada ao acido phenico e os alcoóli-
cos dão bom resultado.
Em todo o caso, bom é fortalecer ou preparar o doente para o
terrível combate com a trichina muscular, por meio dos tónicos.
Mas... melhor é prevenir que remediar, mormente um mal
sem remédio.
Vejamos pois as medidas prophylaticas ou preventivas que se
teem aconselhado.
Em primeiro lugar, evite-se o mais possível a infecção dos porcos.
Visto que elles se infeccionam, comendo ratos, vermes da terra e
excrementos, que podem conter trichinas, é racional e necessário
que d'elles sejam cuidadosamente afastadas todas estas causas de
infecção, por meio da boa conslrucção e boa hygiene das suas
habitações.
Outra medida, — a prohibição de carne de porco americana, —
tem contra si muitas opiniões, visto que a trichina existe nos
porcos de todos os paizes europeus, que fazem importação suina
da America. (]om a prohibição pouco ou nada ganhariam. No entanto
a prohibição da importação de poicos vivos, seus productos
ou preparações, em occasião de epizoolias nos paizes da sua
procedência, é prudente adoptai a.
O exame microscópico das carnes, toucinho, etc, feito nas alfan-
degas, mercados e salchicharias, tão prolusamenle adoptado na
Allemanha e outros paizes, e que agora começa a inlroduzir-se em
Portugal por via dos intendentes de pecuária, — é outra medida
preventiva, a que o sr. Zundel dá pouca importância, considerando
que muitíssimas vezes se não descobre a trichina nas preparações
que a conlôem, porque o exame não pôde humanamente realisar-se
em todos os pontos da peça a examinar. Em todo o caso logo que
se reconheça que uma peça qualquer está trichinada, temos a
certeza de, com a sua destruição, evitar a infecção que ella poderia
occasíonar.
O nosso collega Silveira Machado, no mencionado artigo propõe
a creação de matadouros especíaes para gado suíno, onde os inspe-
11
ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
ctores poderão facilmente fazer o exame microscópico, e verificar
até a existência de outras doenças, diversas de Irichinose, que
importem a destruiçHo dos animaes.
Propõe também outra medida não menos útil, que é a obrigação
imposta a todas as pessoas que matarem porco ou porcos, de assim
o declararem á auctoridade, afim de se proceder á inspecção mi-
croscópica.
Todas as imposições tendentes a garantir a vida e a saúde dos
cidadãos são legitimas, por mais vexatórias que pareçam.
Os governos devem redobrar de zelo e energia em assumptos
d'esta ordem, porque não falta em toda a parte a ignorância e a
malevúlencia para Ilies fazerem a mais obstinada opposição.
O nosso referido collega cita um caso passado na Allemanha,
em que dois carniceiros, querendo provar que a trichina era inno-
cente, apoderaram-se de um animal mandado enterrarpor ter trichi-
nas ; e elles, suas familias e criados em numero de 12 pessoas,
comeram solcmnemente aquella deliciosa iguaria... Publicaram
esta façanha num jornal de Magdeburgo, sendo o manifesto
assignado por li testemunhas que assistiram ao banquete.
Mas chega a quarta semana depois da festa, e três dos convivas
entram no hospital com todos os symptomas da trichinose.
Também aqui no Algarve, onde ha 14 annos contemplo a civili-
sação do nosso povo, os porcariços e carniceiros dizem que a carne
com xafeíra ou granitos (são os kistos onde mora o cysticercus
celluloso) é a melhor de todas. Ora. o cysticercus pode simples-
mente produzir a solitária ou tenia, na qual se transmuda no
intestino humano.
Adoptem-se pois todas as medidas úteis, razoáveis e exequiveis
para prevenir a infecção pelas tric/iinas spiralis: mas sendo todas,
até certo ponto, falliveis em seu resultado ultimo, uma umca existe
de effeito seguro, quando cumprida á risca.
O cumprimento dessa medida não depende da lei nem da
auctoridade. Unicamente o consumidor a pode e deve livremente
executar. Depende única e exclusivamente da sua illnstração, do
conhecimento completo que, por meio de publicações deste género,
possa adquirir, sobre tudo quanto respeita ao terrível parasita de
que nos temos occupado.
Ninguém sabe se o toucinho, o chouriço, o presunto, a carne de
porco fresca ou conservada, que comprou e entrega á cozinheira,
está ou não trichinada ; ninguém sabe se tem assim junto de si,
no manjar que appctece, a sua sentença de morte!
Mas que importa isso, se o consumidor for instruído e avisado,
se se lembrar de que as trichinas não resistem a uma temperatura
de 75°?
Ora, o grande preceito, a salvação certa e segura está em nunca
THEORIA DA HUMANIDADE 83
se metler no estômago tecido algum proveniente do porco, sem que esse
tecido haja fervido demoradamente em agua, tendo-se sempre o maior
cuidado em dividir a peça a cozer em fatias ou parcellas bem delga-
das, o sufficiente para não se desfazerem. O mesmo preceito se
execute, assando ou frigindo a peça culinária.
Assim se vence o inimigo e se evita a morte horrível e aífrontosa.
Annes Baganha.
luvida
Deus ! . . . mas onde está Deus, ó tristes visionários,
Que o pranto não enxuga á fraca humanidade,
Que deixa andar descalça e núa a orphandade
Como um bando cruel de réprobos lendários ?
Deus !... mas onde está Deus 1 Nos largos sanctuarios
Cheios d'ouro e de luz de hypocrita piedade?
Será Deus o Terror que impõe á christandade
A vereda escabrosa e Íngreme dos Calvários ?
Na duvida fatal soluço tristemente.
Sem ver brilhar na treva uma nesga de luz
Que marque o meu andar incerto e inconsciente !
Desvendae o mysterio, ó padres de Jesus.
O sábios que guiaes as almas sanctamente
E que andaes a pregar o Christo em nova cruz.
Ernesto Pirrs.
átíieoriti da Síuniuaidadi
Feição própria e independente tem a liistoria moderna.
Os factos isolados, que na antiguidade constituiam narrações
eloquentes, foram substituídos no mundo actual pelas verdadeiras
causas do progresso. Oulr'ora narrava-se, hoje invesliga-se. O que
honlem era um symbolo é agora uma ideia. O atplm e o omega
dos metaphisicos, lodo individualista, theorico e abstracto, vae ce-
dendo o campo ás realidades positivas, orgânicas e experimentaes,
que, presentemente, encaminham as sociedades modernas a um
novo ideal mais pratico e legitimo.
Assim, pois, a historia é uma evolução. Uma evolução que tem
m ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
a sua forma objectiva por meio da revolução, assim como a poli-
tica a teve por meio da administração. E como a evolução é a his-
toria subjectiva, ideal, synthetica.
Determinar, porém, com verdadeira imparcialidade o modo por
que cada civilisação concorreu para a civilisação geral, induzir de
factos particulares o facto constante e permanente; generalisar a
Ioda a liimianidade o que é privativo do individuo, da família, da
corporação, da communa, etc. — tal é, e tal deve ser, presente-
mente, a verdadeira missão da philosopliia da historia.
Retrocedamos um pouco.
Depois de atravessado alternativamente o período naturalista —
de que Hobbes e Malthus são verdadeiros interpretes, na ordem das
ideias— chegou o homem ao conhecimento racional da sua existência.
Cônscio de si e dos elementos que o rodeiavam, procurou elle
emancipar-se do presente pela contemplação do passado e pelo an-
ceio do futuro.
Vem a Grécia. É uma synthese o seu trabalho ; um equilíbrio
entre a forma e a ideia. Concentrado em si, o homem quasi es-
quece o elemento externo, que lhe dera o ser.
Ao passo que as cosmogonias do oriente se nos revelavam n'um
certo mysticismo unitário e especulativo a Grécia declara-se aber-
tamente pelo antropomorphismo, ao qual posteriormente succede a
philosophia estóica.
Tudo isto e ainda a resurreição do direito de cidade — se di-
reito se lhe podia chamar — tornaram esta civilisação, digna de um
estudo serio e aturado. E tanto que Koma mais tarde só veiu
completar, ou melhor continuar esta famosa Odysseia, cujo princi-
pio pertenceu a Homero e cujo termo ficará eternamente ignorado.
O individuo, poiém, acanhado nos limites da família e da cidade
aspirava a um centro mais vasto, onde melhor, e mais livremente
podesse exercer a acção das suas faculdades e a tendência das
suas aptidões. Pela unidade, que Roma felizmente soube imprimir
ãs sociedades gregas, em virtude do seu génio de conquista e emi-
nentemente centralisador, realisou-se a noção de estado, onde o
individuo nada era, quando a elle não pertencesse.
Porém o estado era pequeno ainda, e os homens lutavam sem-
pre.
Entre o mundo bárbaro, que depois appareceu, e o mundo ro-
mano, já então decadente, eleva-se o mundo christão, synthese da
civilisação greco-romana.
Começam aqui as lutas da idade media e com ellas uma legi-
tima aspiração a um estado melhor — a nacionalidade — que leve
uma brilhante aurora com a revolução politica do século xvni.
A THEORIA DA HUMANIDADE 83
A nacionalidade, porém, não era nem podia ser um ideal de
perfeita harmonia politica. Provaram-no as revoluções de 1830 e
de 1848 em França, e attestam-n'o agora exuberantemente as lutas
sociaes, que por toda a parte se travam e que não são mais do
que um novo ensaio, confirmado pela historia, e reconhecido pela
justiça universal, para uma outra e mais completa revolução, cuja
eterna divisa será — lIuMANmADK.
É esta a lei da historia ; são esses os gritos da sciencia.
III
A Grécia, fundando a cidade, adquiriu materialmente a ideia de
liberdade, que Luthero mais tarde desenvolveu pela revolução re-
ligiosa.
Roma — dizem — teve um grande defeito, que deveras concorreu
para a sua decadência. Conquistou sempre. Mas a conquista, como
aspiração fortalecia a unidade, e a unidade preparava, por seu turno,
a democracia universal, do mesmo modo que Napoleão I o fez
outr'ora e Guilherme da Prússia o faz actualmente : — um, unifi-
cando os povos de origem romana, a fim de estabelecer a demo-
cracia latina ; outro, unificando os povos do norte, a fim de conso-
lidar a democracia germânica.
Cada um, por opposla vereda, santificava uma ideia, que, toda-
via, lhes surgiu involuntária e espontânea, como a evolução social
d'onde ella brotava.
Não se comprehende, porém, a liberdade sem a egualdade.
E, por isso se levantou o brado da revolução no século passado,
o qual, coroando a egualdade, inaugurou definilivamenle a epocha
das nacionalidades modernas.
Mas a humanidade, livre e egual, carecia lambem de ser irmã. É
pois, o século XIX, o século da fraternidade, ou melhor o século
da humanidade, como suprema lei e synthese suprema.
Demonstra-o a philosophia da historia pelo eterno principio das
SIMPLIFICAÇÕES.
Com effeito, examinando as instituições dos differentes povos,
vemos que todo o fito da nossa politica deve ser aperfeiçoar, sim-
plificar, dirigir. Assim a polygamia foi substituída pela monogamia
o polytheismo pelo monotheismo, etc.
Neste ultimo termo de simplicidade, que. para Emilio Girardin
se cifrava na democratisação— abolição de lutella civil e religiosa,
— e para Proudhon na anarghia — o governo da consciência, ou
não governo, segundo a origem scientifica da palavra, é que deve
residir a grande lei do progresso na historia.
Por esta gradação se vè que as differentes espheras sociaes, li-
vres, autónomas, solidarias e subordinadas umas ás outras consti-
tuem um prototypo de harmonia universal, chamado Humanidade
86 ENCYCLOPEDIA HEPUBLICANA
Adminislrativamenle poderíamos talvez forrnulal-o do seguinte
modo : O individuo livre na familia, a família livre no município,
o mimícípio livre na província, a província livre no estado, o es-
tado livre na nação, a nação livre na humanidade.»
Decomponhamos cada um d'estes termos.
Magalhães Lima.
•ti
onía eltes iieiiscini
Acabrunhados sob o pezo da própria infâmia, os reaccionários
da Europa, e principalmente os coroados, como que se alentaram
com a queda de Gambella e até se rejubilam com a idéa de que
em breve a treva offuscará a luz, o mal o bem, o vicio a virtude
e a noite o dia, porque, tão maus como ignoranies, desconhecem o
estado de mundo actual, as leis que o regem, as leis fataes do
movimento, da estalíca, da dynamica, da biologia e da sociologia,
do progresso alfim, e por isso não só admíltem o estacionamento
mas até o retrocesso, e como que julgam que a actividade procede
da inércia e a vida da própria morte. Néscios que são ! Néscios
em demazia ou em demazia preversos.
Tão néscios que leniam dar vida á morte, pois que tentam re-
suscílar o passado, e é na corrupção e no vicio, no embuste e na
intriga, que elles fazem consistir o bem da vida através dos mun-
dos, e o Ceii na perpetuidade dos tempos, a ímmortalidade, a glo-
ria, no infinito, na eternidade, finalmente, que é para muitos o im-
possível, o pó, o nada, em suma.
São néscios ou velhacos, se é que não são ambas as cousas.
.\pesar de tudo— com pesar e apesar da ingenuidade duns. da
velhacaria doutros, da ignorância d'alguns e da covardia de mui-
tos, o mundo não retrograda — ó morcegos da luz.'
O progresso é a lei, o bem geral a aspiração, a perfectibilidade,
o fim, o termo, o limite entre o ser e o não ser, o sonho, o nada
talvez, ou, se tanto, a descensão ao laboratório immenso do Irans-
formismo, donde procederão novos seres e novos mundos — se é
que a vida se transforma e perpetua porque a natureza é immensa,
eterna, finalmente.
Como dizíamos : alegram-se os morcegos com a queda do maior
homem da França, mas que não é a França, cuidando que com
ella soffreria grande abalo a republica, que mais tarde succuínbi-
ria e sobre os seus magnos alcaçares elles fundariam os seus er-
gástulos, os seus alcouces, mas enganam-se.
COMO ELLES PENSAM 87
GamDetta é mais para a republica fora que denlro do poder.
Foi iufame a cilada mas não lerá maus resultados.
Coligam-se ahi pois lodos os reaccionários para levar a França
debaixo, mas elles não o conseguirão. Coligam-se porque sabem,
como nós, que, ou a França hade succumbir ou a monarcliia cairá
ern toda a Furopa, denlro em pouco tempo.
Não morrerá, porém, a republica em França, porque Bismark
é pequeno demais para tão grande empreza.
A Prússia está extremamente pobre e a braços com uma enorme
crise e com a revolução ; não está melhor a Áustria nem a Rússia,
e da Itália e da Hespanha, ha apenas a vontade dos seus coroa-
dos. O resto do mundo europeu está com a França ou não pôde
prejudical-a.
A França não é só a cabeça da Europa, é o braço e o cérebro
do Universo.
Se a Rússia, a Prússia e a Áustria, e mesmo a Itália e a Hes-
panha, ousassem atacar a França, ellas veriam rebentar entre si
e logo a maior das revoluções no seu couce, que mais cedo afo-
garia em ondas de sangue a monarchia e os seus heroes.
A coligação devia ter como immediato resultado a republica em
toda a Europa, e por isso é muito para desejar, mas ella não se
dará — não pôde dar-se, infelizmente.
Existe a coligação dos reis, elles estudam o meio de conser-
var-se, o que é natural, mas é mais natural ainda a coligação dos
povos e de mais certos resultados. Nem as coligações são possi-
veis desde que são conhecidas as virtudes da dynamite, do nitro,
da electricidade, e por isso elles substituem essas coligações pela
intriga, pelo embuste e pela corrupção, que lhes dão melhores
resultados.
Se os grandes revolucionários não fossem verdadeiros homens
de bem não existiria já hoje um único rei.
O balão, as bombas e as descargas eléctricas tornaram de lodo
impossíveis as coligações. O balão, as bombas e as descargas são
o antídoto da metralhadora e do Krupp.
Demais, a França d'hoje, militarmente considerada, vale quasi
meia Europa, tem a seu lado, porque não pôde deixar de ser, a
Inglaterra, e teria lambem a própria America do norte, se tanto
fora preciso, pois que se esta não quer nem deve intervir de nação
para nação, na Europa, ella não deixaria d'intervir n'uma coliga-
ção que podesse aííectar a França, porque ia n'isso o seu próprio
interesse, e até a gratidão que lhe deve. Eos interesses da Ingla-
terra são lambem os da França, em grande parte. Nem os peque-
nos Estados da Europa deixariam de vir á liça, porque elles sa-
bem de mais que na morte da França dar-se-hia a sua própria
morte, por isso que dado o triumpho da coligação, uma nova di-
ENCYCLOPEDIA REPUBLICARIA
visão da Km opa seria consequência faial d'uina lai vicloria e um
despolismo feroz ainda por largo lempo.
Mas não ; não pôde ser, conlra similhanle plano protesta a ci-
vilisação do nosso tempo, a historia, e até o simples bom senso.
Além de tudo isto, os paizes esmagados pela Prússia, a Polónia
6 outros, e principalmente a Hungria, que conta quasi duas deze-
nas de milhões d habitantes, seriam lambem dum pezo enorme
contra a coligação. Nem o que vae pela Herzegovina e o que mais
se prepara por outras partes. . • é lambem para desprezar.
Enti-e nós, que somos a Lourinhã da Kuropa, nos paços do rei
de cá até se falia da breve ascensão d'um creançola, filho d'um
chamado príncipe Napoleão, ao throno de S. Luiz.
Isto nem deve commentar-se, porque apenas produz a garga-
lhada e dá a medida ds inlcllecto do D. Magnifico e quejandos ca-
marilheiros.
Não ha, pois, que ter cuidado pela republica franceza, que em
quanto a nós é dha muito consolidada, e se o não fosse eila se
consolidaria.
O futuro da Europa é a republica.
Que as monarchias se ponham bem com deus, porque com os
homens de bem é impossível, e o porvir é d'estes. O mundo não
retrograda.
O império da trapaça agoniza por toda a parte, é quasi um ca-
dáver, e estes não se galvauisam porque a alchimia é uma irri-
são. A vida não pôde provir da morte.
Lisboa. Mello d'Azeredo.
J^iGerâiaâe 3e consciência b lioerdioLtle reíiaiasict
S. A. MOKIN
A liberdade de consciência e a liberdade religiosa são inteira-
mente distinctas.
A primeira é a liberdade de crer ou não crer em qualquer dou-
trina, sem que d'isso nos tomem satisfação, ou nos inquietem, em
virtude das nossas opiniões.
A segunda é a liberdade de cada um professar e praticar paci-
ficamenie a sua religião sem que alguém o possa estorvar.
Esta, como se vé, é muito mais lata, pois suppõe e contêm a
liberdade de consciência, emquanto que aquella não pode existir
sem a liberdade religiosa.
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E LIBERDADE RELIGIOSA 89
A liberdade de consciência, basea-sc n'um direito tão sagrado
que custa a crer que se tenha podido contestar.
Comludo a historia offerece-nos longos períodos em que, mesmo
entre os povos mais civiHsados, era desconhecida, e foi principal-
mente contra ella que se instituiu o tribunal da Inquisição de hor-
rorosa memoria.
Na Fiança, sobretudo depois da revogação do edito de Nantes,
admittiu o systema monarchico catholico que, qualquer opinião
religiosa contraria á do soberano, fosse considerada como acto
de rebellião, como um attentado contra a aucioridade real !
Não ha nada tão odioso e aviltante como tal doutrina.
O governo pode fazer leis para garantir a ordem, manter as re-
lações pessoaos, prohibir os actos que julgue contrários ao bem
geral e assegurar com penas repressivas a sancção dos regula-
mentos.
Mas aqui terminam as suas atlribuições.
O governo não pode nem deve entremetter-se no pensar d'um
cidadão ; a consciência é um sanctuario inviolável ; e ninguém serk
obrigado a declarar á auctoridade publicafquaes as suas crenças
ou affeições.
Não se pode desconhecer este principio, sem entrar n'um des-
pótico systema de vexatórias perseguições.
E qutí ganha o despotismo com esta odiosa inquisição e nefasta
violação dos mais sagrados direitos da humanidade?
Nem a consciência escapará ao poder da força bruta ?
As ameaças e as torturas poderão arrancar declarações ; mas
só a bocca as pronuncia ; o espirito nega-as e firma-se nas con-
vicções.
A liberdade religiosa para se justificar carece apenas de invo-
car o principio mais elementar de toda a moral, como o preceituam
todas as religiões e todas as philosophias : «Não façais a outrem o
que não queríeis que vos fizesse.»
Podemos dizer aos sectários de todas as religiões e com espe-
cialidade aos das exclusivas : «Sois tão ciosas da vossa liberdade
religiosa, d'essa faculdade de praticar e professar a vossa religião
e até de propagnl-a por todos os meios ao vosso alcance, (jue te-
ríeis como injustiça e abominável oppressão, todo o embaraço que
oppozesse ao seu exercício, e com mais razão, toda a lei o prohi-
bisse, violentando-vos a dar signaes exteriores de adhesão a culto
qualificado por vós de impio e sacrílego.»
Logo essa liberdade que vos arrogaes considerando-a como pa-
trimónio inviolável, podeis recusal-a aos outros sem receardes
comprometter essa própria liberdade ?1
Especialmente, vós, catholicos, que levais a intolerância ao maior
auge quando prósperos e que sois tão submissos e abjectos na
12
90 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
adversidade, não lemois que vos li\item como vós tratais acjuelles
que não comtnnngam as vossas idéas, que se vos applique aquella
phrase do Kvangellio :
— «Sereis medidos pela mesma bitola com que medii'des os ou-
tros?! (Mau. vn, 2).
Se nos paizes em que os catliolicos estão em minoria, o res-
pectivo soberano decretasse a a|)|jlii.'ação das mesmas leis outhor-
gadas pelo valicano contra os não calholicos, não concedendo a li-
berdade senão á maneira das concessões do soberano pontifice,
teriam os partidos do absolutismo que aprender também á sua
custa o amor á liberdade e a compreheiíder que os direitos e de-
veres são sempre correlativos.
Affonso de Sousa.
SPusstido, IjPreseíite e 3Futuro
I
Meu passailo foi como a noite escura
— fsoite sem luar. sem constellações,
D'essas que fende ao naula a sepultura
Do vaslo mar nas vesgas solidões !
Foi um espaço immenso ! E a sorte dura
Jamais me fez sentir as vibrações
Da límpida alegria, e da \entura
Que engrandece os mais baixos corações.
Visitou-me no berço um mau destino ;
Errei pois sempre — triste peregrino,
Ao sabor das paixões, dos vendavaes I
Foi um espaço immr-nso 1 Trinta annos
D'angustias bem cruéis e desenganos :
— Uma epopeia de lagrimas e ais 1
íso passado, mau grado a desventura
Inda animava algumas illusões;
Por entre o véo da gélida tristura
Sorriam-me, ás vezes, dulcidas visões.
Eram meteoros, que, na noite escura,
Faziam brilhar ephemeros clarões ;
Mas esgotando a taça da amargura
Não me pungiam tão cruas sensações.
t:
os GRAISDF.S HOMENS 91
É que hoje, d'aima. as crenças me baniram.
E as duvidas o peito me feiiram
Como gumes de fiiigidas espadas !
Em derredor de mim só vejo um cahos !
E mudaram-se em sonhos negros, maus.
As minhas velhas illusões douradas !
Ill
Mas ai ! se eu tive só magoas e dores
No meu passado doloroso, escuro,
E no presente amargos dissabores. . .
— Verei acaso um lúcido futuro ?
Se desde infante — ó maternaes amores !
Hei soffrido os baldões d'um fado impuro.
Poderei ver, ainda, as ternas flores,
D um quieto oásis, d'um porto mais seguro ?
Ai I não, não I Nada espero ! . . . a alma canra
Como pode nutrir um quê d'esp'rança
O fraco luctador que perde a fé ?!
Vejo no porvir um tétrico Calvário. . .
E meu corpo envolvido n'um sudário :
— Porque é morto jã o homem que descrê !
Dezembro — 1877.
Xavier de Paiva.
Os Grauíles Homens
O estudo dos grandes lypos da Humanidade exerce uma pode-
rosa influencia na elevação do caracter, por essa tendência auto-
mática, que actua no maior numero pela forma de imitarão. O li-
vro do philosopho Plutarcho, inspií^ando a concepção de umagracde
parte dos caracteres de Shakespeare, também forneceu vultos de
uma notável altura moral aos homens superiores do século xvii e
XVIII, que procuravam reproduzir as suas qualidades eminentes.
Emquanto a vida de Jesus foi o ideal da imitação, a sociedade me-
dieval reproduzia essa tristeza hallucinada, no isolamento e pi^eoc-
cupação exclusiva da morte ; com a Kenascença o livro de Plutaiv
cho trouxe ao conhecimento dos homens cultos e de acção os lypos
de heroes e de instituidores da sociedade antiga, que vieram a in-
fluenciar directamente na elevação do caracter civico dos homens
que fundaram a civilisação moderna. Porém, os estudos biographi
92 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
COS dos gi\inf]es homens foram encetados com o limitado critério
do ponto de vi^ta moral; esses brilhantes phenomenos de hetero-
genia psychologica assomem nma importância fimdamenlal nos mo-
dernos trabalhos anthropologicos em qne se determina o desenvol-
vimento evolutivo da rasão, a sua dependência da passividade sen-
sorial e o sen accordo sublime na vontade, manifestado nos estádios
da civilisação humana. É por isso qne hoje a Ideia de Plutarcho
deve ser ampliada em cada povo, pelo exame das individualidades
mais distinclas de nma nação coordenadas segundo as épocas e os
progressos históricos.
Desta forma o fim moral não será exclusivo; a biographia é sem-
pre a consideração de uma dada época histórica pela relação do
homem com o seu meio social. Cada lilteratura deve cooperar com
a Arte para a organisação de um Plutarcho nacional: é assim qne
se pode levar uma sociedade a interessar-se pela sua historia e a
conhecer as condições em qne pode confiar a um homem o seu
destino. Assim como a historia se pode comprehender procurando
a continuidade e encadeamento dos factos de modo a fazer sentir
a liansformação progressiva das instituições, pode-se, por outra
via. chegar ao mesmo resultado discriminando a intervenção in-
dividuaTna marcha das sociedades, sobretudo para chegar-se á
determinação de um elemento consciente na realisação da liber-
dade. Uo piimeiro caso lemos uma bella tentativa em um estudo
de Kant, considerando a humanidade como um sèr ideal e acom-
panhando os seus n)ovimentos independentemente dos actos indi-
viduaes; é ao que se pode chamar com grande precisão uma His-
toria sem nomes. O livro de Condorcet, Quadro dos progressos do
Espirito humano, é esta vista de conjuncto procurada nas institui-
ções, sem se embaiaçar com a incoherencia apparente da inter-
venção das pessoas.
É um processo de simplificação philosophica, que embora tenha
os inconvenientes da abstracção, está de accordo com as desco.-
berlas sociológicas de um movimento próprio dos aggregados hu-
manos, que progride apesar de todas as perturbações individuaes,
e qne por isso mesmo convém estudar na sua espontaneidade e
automatismo: esta ideia, seguida pelo eminente Bukle. por Bastiat,
por Quelelet, e servindo para Augusto Comte de base para a sys-
lematisação de uma physica social, é a primeira lei scienlifica da
Sociologia, á qual pertencem todos os phenomenos de natureza
statica. A complexidade e variabilidade incalculável dos phenome-
nos que se passam no meio social, exigem a necessidade con-
stante da intervenção de vontades coordenadas, mais ou menos con-
scientes, e por isso mesmo impulsoras ou retrogradas, segundo a
sua capacidade. Quem acompanhar nos diíTerentes grãos da evo-
lução humana esta necessidade pela qual os factos tendem a con-
os GRANDES HOMENS 93
form.ir-se com a rasão, tem de procurar a acção consciente da
vonlade sobre o antomalismo tradicional e consnelndinario e para
essa investigação lodos os factos se agrnpam por si mesmos em
volta das altas individualidades que possuíram o inslinclo de uma
intervenção opportuna È o que se chamaria unia Historia com no-
mes; é por este aspecto que o estudo e a compreliensão dos Gran-
des Homens forma um capitulo essencial da Sociologia, em volta
do qual se agrupam os phenomenos dyna micos por uma coorde-
nação racional, e d"onde se pode deduzir uma applicação pratica,
mas ainda hoje profundamente ignorada : Por que modo se [)ode
exercer a intervenção individual na marcha das sociedades? A
vida dos Grandes Homens, que mereceram o nome de grandes por
isso que actuaram sobre o meio social e o modificaram para me-
lhor, contém os elementos para a resolução deste problema, cuja
importância para o progresso humano é de um alcance incalcu-
lável.
A evolução natural das sociedades na creação das suas formas
nacionaes, da propriedade, das religiões, das industrias, das lin-
guas, das lilteraturas, da arte, e espontânea, instinctiva. e incon-
sciente ; é uma grande força desconhecida, de que ninguém se sabe
apropriar ainda, e que só casualmente ou accidenlalmenle é que
algumas individualidades proeminentes poderam aproveitar-lhe a
tendência, ou lhe facilitarem a siia expansão. Seguir os Grandes
Homens na sua acção é aproximarmo-nos do conhecimento dessa
força pondo-a ao serviço de uma transformação voluntária e de um
progresso consciente e capaz de ser previsto. Sem este ponto de
vista positivo o Grande Homem é um mylho, uma entidade ab-
stracta, uma monstruosidade, que em vez de nos elevar pelo exem-
plo e pela conformidade dos actos com as ideias, serve só para
nos deslumbrar pelo prestigio esleril e para nos vincular a uma
invencível mediocridade. O reconhecimento da necessidade social
da intervenção das individualidades preponderantes, manifesta-se
no instincto popular pelos eponymos. os nomes que symbolisam uma
época, tendência que veiu a degenerar n"um servilismo falso n'es-
ses títulos pomposos de sr(7//o de Augusto, século de Luiz XIV, para
representar todos os progressos socíaes como consequência de uma
coordenação individual. Por isto se vé, que desde os tempos mais
remotos, em que os Grandes Homens eram deificados, até á época
moderna, em que começam a receber a commemoração socialalrica
dos Centenários nacionaes, houve sempre o conhecimento de uma
interv3nção individual, explicada segundo os estados da mentali-
dade humana. Em uma época theologica o Grande Homem é um
semi-deus, porque a sua acção só pode ser concebida como um
poder extranho ao homem, derivando immediatamente da divindade
omnipotente; em uma época metaphysica, é o órgão produzido pela
94 ENCYCLOPEDIA REPUBLICAN
agitação de uma época, pelas aspirações de urna sociedade, que
lhe insullauí as suas tendências para vir a realisar as transforma-
ções presentidas.
Porém, em uma época positiva, isto é, em que todos os íaclos
de ordem cosmologica, biológica e sociológica são submellidos ao
critério scientifico, e consegnintemente á verificação experimentai
e a [jievisão linal. o (Irande Homem não é um mytlio, nem um
prestigio, é uma consciência, apoiado na mutua solidariedade entre
a especulação e a acção. Por que é que, apesar do seu extraor-
dinário poder, o nnperador Juliano não conseguiu embaraçar a dis-
solução do polyllieismo bellenico, e diliicultar a propagação do Cliris-
lianismo nascente ?
Por (jue é que o imperador José II, possuído do mais extraor-
dinário desejo de reformas radicaes, não ponde pôr em pratica as
doutrinas pliilosopliicas dos Kncyclopedistas, e foi victima das suas
utopias? IJm contou somente com as forças staticas de conserva-
ção, mas foi vencido pela evolução progressiva ; o outro contou
somente com a tendência da piogressão social, e succumbiu na
lucta contra a força espontânea do conservaniismo. O mesmo se
deu com Napoleão 1, lançando a Europa em um syslema criminoso
de retrogradação, mas não conseguindo, apesar de todas as vio-
lências e perturbações de uma desvairada acção negativa, desviar
o século XIX do caminho da realisação da liberdade restabelecendo
os principios de 1789. A tlieoiia dos Grandes Homens é simples-
mente o syslema de explicação da intervenção da individualidade
na marcha da sociedade : esboçaremos essa comprebensão se-
gundo as phases da mentalidade humana.
Nas épocas antigas, cm que preponderava a ideia religiosa, os
Grandes Homens eiam objecto de um culto, como semi-deuses ; o
saber ou a força do heroe. como extraordinários eram um dom
da divindade. Na civilisação védica, os liislii, são uns seres my-
thicos, análogos aos nossos Santos, que iniciaram a linguagem e o
poder dos hymnos ; são em numero de sete, como os seie sábios
da Grécia. Entre os semitas nota se a mesma concepção. No
Génesis, e portanto em um docimiento que reflecte as ideias e
crenças da civilisação chaldeo-babylonica, os Grandes Homens são
o producto do cruzamento dcs Filhos de Deus co:n as filhas dos
homens : «depois que os Filhos de Deus vieram para as fillias dos
homens, e que estas tiveram filhos : estes foram os heroes (gibbo-
rim) que pertencem d antiguidade, homens de fama. y> (cap. iv | 4)
Ha aqui nina heterogenia como causa de Grande Homem, porque,
segundo os commentarios modernos, os Filhos de Deus represen-
tam o facto anthropologico de uma raça superior. * A antiguidade
1 Filha da terra f^Miau-tze) é o nome dos aiitochtones da China : contra-
os GRANDES HOMENS 9o
era lambem uma saiicção moral, e por isso segundo a crença de
uma [jerfeição primitiva, a antiguidade e a fama são a consa-
gração do lieróe. Platão seguia a mesma ideia, proveniente do
fundo semita que iiilliienciou no polytlieismo e na epopèa helle-
uica : «Os heróes são semi-deuses. porque são nascidos do amor
de um deus por uma mortal, ou de uma deusa por um mortal.»
D'esta concepção primitiva dos povos nasceu o habito de fazer
a apotheose dos poderosos, dos triumphadores, como Alexandre,
que se inculcava por filho de Júpiter, ou os imperadores roma-
nos sempre contados inter divos, ou ainda no século xix. em- que
Napoleão maldizia o estado do espirito publico, porque depois de
tantas batalhas sanguinárias já não se podia proclamar um Deus !
O tremendo cannibal dizia: «Ku marcho acompanhado pelo deus
da fortuna e pelo deus da guerra.» Assim firmava o seu prestigio;
e depois de receber a sagração imperial, dizia a Decrés : «Vim
muito taide ; Alexandre, depois de ter conquistado a Ásia, e de
se ler annunciado aos povos como filho de Ju[)iter. todo o Oriente
o acreditou : hoje, se eu ine declarasse filho do Padie Eterno, e
annunciasse que lhe ia dar graças por este titulo, não haveria
peixeira que me não apupasse. O povos tém hoje os olhos bem
abertos: já não ha causa grande a fazer.»
O criminoso da historia presentia que estava na éra da positi-
vidade mental, cujo advento diíficultou, fazendo retrogradar a Eu-
ropa ao regimen das guerras de conquista. O pensamento de Evhe-
mero explicando os deuses da antiguidade como grandes ho-
mens desificados tem um certo fundo de realidade, embora não
sirva para interpretação das theogonias. A força, o saber, o gé-
nio artístico consideravam-se como manifestações de attributos di-
vinos, como se infere da palavra déspota, dos talentos industriaes
dos Cabiras, ou do influxo das Musas. O poder da invenção era
um característico da divindade, como nas demiurgos Hephaestos
ou Prometheo; nos fragmentos de Sanchoniaton, é um ser divino,
Hypsioranios qne fabrica pela primeira vez cabanas de junco e ca-
nas. Usôos inventa as vestimentas de pelle, e os remos: «E quando
elles foram mortos, os que lhes sobreviveram levantaram-lhes cip-
pas, a que prestaram culto e instituíram festas que se celebravam
cada anuo.» Outros seres divinos, como (]ed que inventou a caça,
inventaram também os muros das cidades feitos de tijolo, as ervas
medicinaes, as imprecações, as letras do alphabeto, e as leis es-
criptas, como Manu, ou Orpheu. A lei da continuidade histórica não
era conhecida, e por isso todos os grandes phenomenos sociaes
põe-se ao de Filho do céo, ou raça invasora dominante, o que nos explica a con-
cepçâo semita.
96 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
eram maravilhosos, e receberam a expressão peculiar d"esle es-
tado meiUal da humanidade.
No eslado metaphysico, em que se altrlbuiam os phenomenos
sociaes a torças iminanentes. o Grando Homem era o instrumento
passivo de um destino, obedecia a uma vocação, com que amda se
caraclerisa os iniciadores ; achava-se por isso acima da humani-
dade. Nas transi'. irmações de uma época, as sociedades agilavam-se
á espera de quem surgisse para dar realidade à sua a<pu-ação ou
dar expressão a essa anciedade ; a psychologia do grande homem
nada linha de commum com a nossa evolução cerebral, tirando de
si toda a originalidade e o impulso da iniciativa : nasciam como
Palias, logo armados com o poder e a sabedoria á espera do mo-
meulo da sua intervenção.
A concepção dos melaphysicos sobre as características do Grande
Homem, deriva de uma historia aprioristica e de uma psychologia
innalista absolutamente separada dos dados experimenlaes. O he-
geliano Baur considerava a historia como a successão de uma fa-
talidade, e portanto a intervenção individual uma consequência
imposta pela urgência do momento; assim para elle se Carlos Ma-
gno não apparecesse, se um Gregório VH se não elevasse ao pon-
tificado, nem por isso a sua missão histórica deixaria de ser cum-
prida, sendo inevitavelmente suppridos por outros. Hegel conside-
rando a historia como a realisação da ideia immanente nos factos,
colloca-a em uma fatalidade divina, a que outros met.iphysicos de-
nominam plano providencial, e como tal fora do julgamento e do
critério moral, arrastando o homem na sua corrente insondável
como inslrumento inconsciente da sua exteriorisação ; nesta mar-
cha fatídica mas divina o Grande Homem é aquelle que obedece por
instincto ao destino das cousas de que tem um vago presentimento.
O Grande Homem torna-se a expressão das tendências indefinidas
da multidão obscura, e é esta relação de passividade, que torna
sympathico o vulto que a multidão adora, glorifica ou immortalisa
como o seu representante.
Aqui a superioridade do Grande Homem não deriva do seu indi-
vidualismo, nem da própria consciência ou liberdade; mas sim da
submissão à exigência de um destino, feita com esse abandono de
si próprio como um sacrifício. Nas crenças antigas o heroe significa
o morto : é assim a fatalidade do hegelianismo, em que o Grande
Homem deixa mesmo de ter responsabilidade moral, esse limitado
critério subjectivo incompatível com a comprehensão do que é ob-
jectivo e real como a historia. A Iheoria de Hegel é a justificação
do facto consummado. e como tal acceita por lodos os poderes abu-
sivos que, como na Allemanha, procuram impedir o exame das ma-
niftíStaçíTtes da auctoridade. Era Sainl-Simon apparece também o
potimismo histórico, mas com um aspecto scienlifico da evolução
os GP.ANDF.S HOMENS 97
(los phenomenos sociaes e do encadeamento seriario dos factos
para assim estabelecer a transição de uma para outra época. No
estabelecimento da continuidade histórica a approvação ou a censura
dos factos deve ser eliminada como inútil, porque o crileri(j moral
d'esse julgamento linde derivar-se do conlieL'imenlo da mesiua con-
tinuidade : o Grande Homem é o que facilita as transições de
uma para outra época da humanidade n;is suas transformações
constantes tornamlo-as por qualquer forma progressivas. IS'esta
doutrina estava o gérmen da theoria positiva, píuque tem uma
base moral na relação da solidariedade hmnana, e no fado scien-
tifico da evolução histórica a rasão de ser da intervenção indivi-
dual consciente.
A doutrina de Hegel foi propagada na França em 1828 por Vi-
ctor Cousin, que com a abundância do seu estylo poético exage-
rou a missão providencial do Grande Homem, tornando-se ora utn
agente da divindade cujo pensamento se revela pela nistoria, ora
uma synlhese da multidão obscura, ou o instrumento passivo de
uma vocação absoluta ; (Cousin foi assim cahir n'um ridículo opti-
mismo histórico, excellente thema para uma phiiosophia official
de Universidade, sobretudo em um regimen de embustes liberaes
e de conservantismo politico como n"esse período da Restauração
do absolutismo acobertado com as fórmulas do regimen parlamen-
tar.
Esta ideia absurda, que ainda persiste com relação á individua-
lidade dos tribunos, a quem attribuem o poder magico de levantar as
nações e de dispor dos movimentos revolucionários, foi fundamental-
mente modificada pela historia das descobertas modernas, ainda as
mais maravilhosas, resultantes de uma accumulação constante de
tentativas anteriores. É por esta edificação sobre as bases an-
tigas que os monumentos do génio se levantam ; uma maior com-
municação social provoca uma maior troca de sentimentos, de
ideias, e por isso uma multiplicação de forças pela collaboração de
todas as capacidades. Diz Bastial : «Qnaiulo muitos homens com-
municam entre si, aquillo que um delles observou é immedia-
tamente conhecido pelos outros todos, e basta que entre elles se
encontre um bastante engenhoso, para que descobertas preciosas
se tornem prompt mente do dominio de todos.» Por este facto
Bastiat foi levado á demonstração da lei económica, — que no es-
tado social, as nossas faculdades ultrapassam as nossas necessida-
des. Nas sociedades antigas, o regimen das castas e o isolamento
das classes embaraçaram o phenomeno da selecção, e o nivel ge-
ral das populações era o de uma rasa mediocridade ; do moderno
proletariado é que tem saido todas as forças vivas da civilisação
euiopéa, reveladas na. actividade industrial, scientifica, ai tislica e
moral. Se para o mundo antigo o Grande Homem era uma mara-
13
èg ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
vilha, um objecto de adoração, para a nossa sociedade é facto cor-
rente, necessário, sem prestigio, consequência do duplo eííeito da
selecção biológica e da continuidade histórica. Ao passo que De
Candelle, Wildemeister e Paul Jacoby, mostram como as famílias
confinadas n"um parentesco restricto, caem na imiiecilidade, na
epilepsia, nas neuropatliias e na devassidão, como as dyiiaslias
reaes e as famílias aristocráticas que se extinguem por uma fata-
lidade orgânica, é pelo contrario o proletariado que está alimen-
tando a civilisação com a selecção que produz as manifestações
da iiitelligencia, do talento e da iniciativa. A complexidade do tra-
balho leva a dividil-o. como se observa na natureza orgânica, em
que á medida que os organismos são mais elevados se estabelece
a especialisação das luncções. Daqui resulta uma perfeição func-
cional, e um desenvolvimento de aptidões adipiiridas. Quanto mais
uma sociedade progride, tanto mais se estabelecem estas differen-
ças, que chegam a"lormar uma desegualdade social. Comte obser-
vou esta consequência da civilisação. «O progresso continuo da ci-
vilisação, longe de aproximar de uma egnaldade, tende pelo con-
trario a estabelecer estas diíTerenças fundamentaes, ao mesmo
tempo que atenua muito a importância das distincções sociacs que
então as tinha comprimidas.» (Cours, iv, oi.)
As distincções sociaes é facto que di'sapparecem perante o prin-
cipio de unificação nacional da egnaldade perante a lei, sobre que
assenta a ordem moderna ; mas as differenças, expressas pela
phrase de aristocracia de talento, revelam que se reconhece es-
pontaneamente um novo poder espiritual, que só pode subsistir
pela conformidade das opiniões, islo é, universalisando as suas con-
cepções, generalisando as suas descobertas, elevando as capacida-
desj alargando o bem estar, levantando o nivel geral das socieda-
des. Tal é a missão do Grande Homem, especialmente altruísta ;
manifestando-se como uma desegualdade social, a sua acção é pro-
fundamente egualitaria nos effeitos; em quanto que as desegual-
dades exteriores das classes theocraticas e aristocráticas são feroz-
mente egoístas, a desegualdade do talento só coopera para a uni-
ficação social consciente pelo modo que produz menos perturba-
ções, o impulso das ideias, a coordenação das vontades, a unani-
midade das opiniões. É por este modo que se caracterisa a acção
do Grande Homem, muitas vezes desconhecida pelo seu tempo,
porque os effeitos não são immediatos. Exemplifiquemos; MahaíTy,
estudando a vida de Descartes, refere-se à influencia que exerceu
pelo seu Discurso sobre o Methodo : «O seu Methodo manifestou-se
com um brilhante cortejo as descobertas mathematicas, trazendo a
solução de problemas superiores ao alcance dos espíritos ordiná-
rios.» Aqui vemos como essa enorme desegualdade de um génio,
cujo nome synthetisa a historia do pensamento especulativo do se-
os GRANDES HOMENS 99
CLilo XVII, foi ao mesmo tempo elevador das capacidades vulga-
res.
São os factos desta oídem que nos revelam o modo da inter-
venção individual na marcha das sociedades humanas; as socie-
dades movem-se por interesses, por sentimentos, por ideias, e
todo aquelle que poder [)òr em jogo esses inleiesses, vibrar esses
sentimentos, generalisar essas ideias, possue o segredo da força
que alevanta uma raça, que estabelece uma nacionalidade, que
funda uma civilisação; esse é verdadeiramente um Grande PIomem,
quer como inventor ou instituidor, quer como poeta e artista, como
martyr de uma aspiração, como sábio ou philosopho. Os actos ma-
leriaes dos guerreiros e dos déspotas cáeuí na impotência, sò as
noções é que transformam sem ruido. É por isso que o Grande
Homem imprime todo o esforço da sua superioridade sobre uma
ideia dominante, exclusiva, e que ultrapassando ás vezes o limite
da realidaile. se torna uma acção ideal ; uma grande vida, disse-o
em um bello verso Alfred de Vigiiy, é um pensamento da moci-
dade realisado na edade madma. Tal é a divisa natural d»! todos
os Grandes Homens ; esse pensamento, pelo próprio effeito da
ingenuidade adolescente, sem decepções, sem contrastes, pelo seu
subjectivissin)o torna-se um ideal, ou motivo da acção: tanta as
acções, tanto os ideaes : o bem, na moral, a justiça no direito, a
liberdade na politica, a verdade na sciencia, o bello na arte, per-
tencem a essa cathegoiia de acções idtiaes. a que andam ligados
os mais sublimes productos da actividade do homem e os pro-
gressos mais esplendidos da historia. Será preciso exemplifical-o?
Tomaremos os factos ao acaso ; em uma Historia universal, Ranke
caracterisa Péricles por estas palavras: «No meio das mais vastas
emprezas, sua alma visava sempre ao ideal e ao bello.)' E retra-
tando Alcibíades: e «é um ex.emplo deslumbrante da parte que a
vontade e o acaso tem no destino humano.» Esta parte de acaso
é um facto ainda não considerado, pelo qual se estabelece a rela-
ção do meio social com o Grande Homem : este acaso pode discri-
minar-se em um accidente biológico, como o que distingue ura
génio numa familia de medíocres, ou como uma resultante social
que determina a intervenção immediata da individualidade, que
nunca se revelaria sem essa cu^cumstancia histórica. Do primeiro
caso, tomaremos ainda o exemplo no vullo extraordinário de Des-
cartes: «Novo exemplo d'esta lei mysteiiosa da producção do gé-
nio, que em uma série de filhos ordinários, nascidos de pães or-
dinários, escolheu um de preferencia a todos os outros, e faz que
perguntemos com assombro, que subtil combinação, que variação
momentânea nas condições physicas pode produzir um tão mara-
vilhoso resultado. Pouco importa ao que parece, que elle seja mais
velhi) ou mais covo ou um dos intermediários: a força ou a fraqueza
íoo en«:yclopedia republicana
ph)^i(:a cia criança, a inlelliiíencia ou a pi-ofissao dos pães não pare-
cem niLMios inJilTerenles.— A descoberta ilesle segredo podeiia sem
duvida mudar a historia futura da humanidade. Voi ora é-nos for-
çoso esperar que um accidente, ou ao menos o que nos parece tal,
produza um génio como Dercartes, Newton ou Kant.» (Mahaffi, Op.
cit.) Vemos, é fado. o génio no homem hercúleo como Leonardo de
Vinci, e no valetudinário coíuo IvanI; vemos a liberdade do i)ensa-
meuto no discipulo dos jesuitas, como em Voltaire e DAIend)ert, e
em geral a falta de descendência nos homens de génio, como Shakes-
peare, ou os filhos medíocres, como em Dante ou Cromwel. Todos
estes factos e.xtremos se explicam pela selecção natural; cada ho-
mem de génio, como notam Renan e Jacoby é um capital accu-
mulado de muitas gerações personificado em um homem, da mesma
forma que os traços physionomicos e os pigmentos se accumulam
accidentalmente em um individuo: mas esta accuiiiulação por isso
que é fortuita não se tiansmitte de um modo directo, mas sim pela
acção reflexa das ideias postas em circulação; e o que é i, aturai,
é que esse excesso de accumulação de energia volte ás condições
normaes pela morlalidade, ou que ullrai)assando o justo eijuilibrio
da orgauisação, caia na degeneração ou [)asse para uma manifes-
tação pathologica da allucinação e da loucura. É sobretudo n'esta
classe que se agrupam os grandes talentos militares, da devasta-
ção e da violência: Uanke, traçando o caracter de Alexandre, diz:
«unia ás ideias hellenicas, a farra ria phantasia. Alexandre é do
pequeno numero d'aquelles homens cuja biographia se confunde
com a historia do mundo.-» Considerado em si, Alexandre era um
allucinado, e sem o apoio pratico das ideias hellenicas, isto é. da
supremacia do Occidente como centro da civilisação humana, teria
sido um monstro, como qualquer déspota da Pérsia. É o instincto
d'esta relação oppoitima da noção ideal com a aspiração social, o
que melhor caracterisa o Grande Momem, como o órgão por meio
do qual se estabelece a solidariedade humana.
Theophilo Br.\ga.
Èostumes nortunuezes na século XVXl
Nas PoKSiAS de António de Villashoas e Sampaio, auctor da Nn-
biiiarcliia Portugueza * (Coimbra, — Imprensa da Universidade,
1 Senhor da torre de Airó, termo de Barcellos (n. 1629 ; m. 1701). Os vinho
de Airó são muito celebrados, e até o dictado popular diz :
Vinho de Air6
Bebe-o tu só.
I
COSTUMES PORTUGUEZKS DO SÉCULO XVII
101
18'ii — , XVI — 47 pag.) vem um pequeno poemn intitulado Auto
da Lavradora de Aijró (já impresso 1G78), onde, ainda que rapida-
mente, se allude a alguns costumes populares [)orlnguezes. Vamos
aqui arcliivar esses versos :
I. Ao pé do monte Ayró
onde, só de liúa pegada.
3. deu á fonte da Virtude,
que alii nasi'e vida, ã: fama.
S. Pelo caniiidio de cima
com liúa tallia apedrada,
7. pueaiinlio de Estremoz
em prato de porcelana.
9. Hia Leonor pela sesta
para a fonte a buscar agon.
II. lauradora, que de toilas
he por férmosa envejada
13. Leua o cabello em rolete,
melenas dependuradas,
10. gargantilha de belorios,
com lelicario do prata.
17. Colete de serafina.
ílga de azebiche á banda,
19. ramal de coraes no braço,
& camisa debuxada
21. A todos quantos encontra
com seus olhos pren le & matta,
23. Ã: com ser escaca a moça
dão seus olhos muitas dadas
20. Mais panos devo ás pedras
do que á tua fermosura.
27. que as pedras duras não logè
tu foges, & mais és dura.
29. Se sabeis que vos adoro
nam sejais esquina sempre,
31. que amor com amoi- se apaga,
&: só quem paga nom deue.
(^GMME.NTARIO
Versos 1--4. Parece alludir-se aqui à crença vulgar no Minho de
que certas fontes nasceram de uma pegada. (Vid. as minlias Tra-
dições pop. de Portugal, [)ag. 71, | 161.)
Verso 7. A lonça de Kxlremoz é ainda hoje muito fallada.
Terso 15. Na Beira-Alta usavam-se oulr"ora uns folhos em volta
do pescoço chamados gargantdhas. Tamberu lia ainda hoje gargan-
tilhas de ouro.
Verso 16. Os relicários ainda hoje muita gente os traz ou ao
pescoço ou n"um rosário, etc.
Verso 18. As figas de azeviche são egualmente vulgares. Ha-as
até encastoadas em prata, etc.
Versú 24. São muito temidos os maus olhados de certas pessoas.
Existe mesmo uma fórmula que se diz ás creanças quando se
vêem pela primeira vez :
Renza-te Deus.
Bous olhos te vejam
E os máos quebrados sejam.
O A. emprega o termo dada. As dadas são certas doenças nos
peitos das mulheres, para o que ha vários remédios (Vid. Carmina
102 ENCYCLOPEDIA REPUBLIGAINA
magica, na Era-Nova, || 3.° e 37.°); mas a significação do termo
n"este verso parece ser outra, ser até mais geral.
Versos 26-31. A menos que não houvesse coincidência de pen-
samento, o qne parece pouco provável, o A, conheceu a poesia
popular, ou pelo menos alguma tradição em que ella se funda :
Eu lieide amar uma peJra
Deixar o teu curação ;
Uma pedra não me deixa,
Deixas-me tu sem rasão.
Amor com amor se paga,
INunca vi coisa mais jusla :
f'aga-me comtigo mesma.
Meu amor, pouco te custa.
Excavando nos nossos escriplores antigos, às vezes até nos mais
insignificantes, encontram-se frequentemente allnsões ás crenças
populares.
N'oulra occasião continuarei estas excavações e commentaríos.
J. Leite ue Vasconxellos.
• «\i rà A Is
IS ena
Ao contemplarmos uma grande cidade, rica de tradições históri-
cas, e a vemos povoada de numerosos e phantaslicos edificios, onde
a aite com a sua eloquência prodigiosa reúne tudo o que a ima-
ginação pode crear de bello, não nos lembramos decerto que todo
aquelle coujuncto maravilhoso esconde no seu seio muitas lagrimas
e muita miséria í
Palácios soberbos, theatros magestosos, jardins enriquecidos das
mais raras plantas, carruagens das mais luxuosas, cruzando-se etn
varias direcções, mulheres formosas cheias de adornos caprichosos
e sorrindo com alegria e orgulho, vaidade e esplendor em tudo,
um mundo emfim grande de quanto a nossa imaginação pode for-
mar de bello, como um sonho de fadas !
Mas é este o mundo real, o mundo positivo!? Não. É o panno
de bocca de um theati^o, que nos apresenta vários quadros, pintu-
ras caprichosas, fazendo-nos suppôr que lá dentro esconde mara-
vilhas, não encobrindo mais do que phanlasias, que hão de entre-
ter e illudir um momento a imaginação do espectador.
A par do luxo e do orgulho ha a miséria e a humildade; a par
do rico ha o pobre, a par do trabalhador ha o occioso; junto do
palácio escoude-se o albergue do miserável; emquanto ims vivem
no fausto e na abundância outros gemem de fome e de frio : o
mundo tem duas faces, uma alegre outra triste ; trevas e luz.
A MÍSERIA 103
Como se orgaiiisou tudo isto !
É um problema assombroso.
Houve (luas humanidades?
Não ! Protesta por um lado as tradições, por outro a razão des-
preoccupada.
Mas o facto existe ; ha miseráveis e ha poderosos. Como pode-
remos estabelecer o equilíbrio social? Esta desegualdade ha-de sem-
pre existir, não ha remédios para estas causas, para estas gran-
des calamidades?
A cabeça e o coração nada hão de poder, todos os seus esfor-
ços hão de ser inúteis?
Não, mil vezes não. Esta injusta desorganisação social tem a sua
origem na ignorância do homem ; é uma aberração da sua pró-
pria natureza ; a causa é sua ; é o mesmo homem que hade pela
sua intelligencia dar uma nova direcção à sua vida, emendando e
corrigindo todos os erros, que o levaram a constituir uma socie-
dade imperfeita, dividindo uma mesma raça em dois ramos, con-
vertendo uns em escravos, outros em senhores; collocando o tra-
balho e a occiosidade como dois elementos sociaes.
A miséria tem existido sempre ; tem por berço a ignorância :
vae lenta e gradualmente desapparecendo á proporção que a in-
telligencia do homem se cultiva,
O que é a miséria? É por ventura uma raça especial?
Um producto expontâneo da natureza? Não. D"onde vem?
De todas as classes.
Qual a sua causa ? a imprevidência ; a deCQciencia das leis.
Como se tem querido obstar á miséria?
Os povos antigos, sem direcção económica, buscavam mitigar a
fome do povo, construindo as Pyramides do Egypto e organisando
grandes trabalhos públicos. A Crecia alimentava os seus pobres,
distribuindo-lhes comestíveis.
Mas tudo isto não fazia senão augmenlar o pauperismo.
Roma no tempo de César linha 320:000 pobres sobre 440:000
habitantes.
A miséria antiga é assombrosa, é medonha ! O pobre trabalhava
até morrer, sem ter na vida senão lagrimas e humilhações!
Era elle que produzia tudo quanto o mundo anligonos legou de
grandioso, mas como recompensa não encontrou mais do que as
taboas d"um ergástulo. Na qualidade de escravo era o escarneo e
irrisão da humanidade, e bastava um louco capricho dos seus se-
nhores para servir de pasto ás feras, expirando a vida para recreio
d'uma multidão sem consciência.
Nos primeiros séculos do chrisíianismo, a Gaulia era ainda um
estado mais miserável do que o Império romano.
Mas ainda assim o preceito de Jesus — amarás o teu próximo
lOi ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
cowo a ti mfsmo, veiíi lançar umas novas bases sociaes, porque
os bispos firgiiendo os conventos e os hospitaes, abriam aos po-
bres uns eslabelecimenlos, aonde encontravam quem llies mitigasse
a fome.
A UevoUição de 1789 baseandu-se sob as lbi'miilas da egualdade
e liberdade, traçava mais largos horisonles ao trabalho, e jnlgava
por este meio attenuar as desgraças publicas.
Alem disto, por um decreto de lliy-i votava annnalmente uma
verba iniportante |)aia minorar a miséria do povo, soccorrcndo os
inválidos do Irabalbo, os enfei'mos nos seus domicilios e estabele-
cendo hospitaes e asylos para creanças.
iMn cada departamento estabelecia casas de detenção.
O que a Uevolução não poude realisar approveitou-o Napoleão,
que pelo decreto de 5 de julho de 1808 estabelece os Depósitos
de mendicidade, afim de acabar quanto possível com a vida occiosa
dos mendigos das ruas.
Estas medidas porém não foiam suílicientes, porque não se ins-
piravam nos verdadeiros princípios económicos ; lundavam-se na
caridade, que ê a consequência da desgraça, e não no trabalho, que
é a lei suprema das sociedades.
São muitas e variadas as causas da miséria : umas independen-
tes da vontade do individuo, outias de que clle è unicamente a
origem.
í*ode e.\tinguir-se completamente a miseiia?
Não é possível.
Hade existir sempre, porque ha causas permanentes, que nenhum
governo pode deriubar ; mas o que se pode é fazer que o numero
de desvalidos seja menor, e por consequência para com estes já
a sociedade terá meios mais fáceis para lhe attenuar os soffri-
mentos.
Donde provém a miséria ?
Da morte do operário que deixa a famiiia na desgraça ; das
crizes do trabalho, das oscillações da industria, dum anno nefasto
para a agricultura, das doenças, dos tributos onerosos, da edade,
que invalida o braço do operário, e acima d'isto tudo, da impre-
vidência de todas as classes.
A miséria como já dissemos não é uma classe privilegiada, é
um producto de todas as classes.
E' o homem que desbarata a fortuna e deixa a famiiia na mi-
séria sem educação nem aptidão para luctar com a adversidade ;
é o operário que despresa o trabalho e não se importa andar co-
berto de farrapos pelas praças pedindo esmolla, mas vivendo em
completa occiosidade ; é o vadio a quem nunca obrigaram a fre-
quentar a escola, nem a aprender um otficio, e que assim vae
passando a vida sempre ás portas do crime.
A MISÉRIA 105
Outras provéeni de causas fataes e accidenlaes, verdadeiramente
dignas da caridade publica.
Como se podem altenuar estas cansas? E" organisando hospi-
taes. eslal)elecendG numerosos asylos?
Não ; isto não basta.
K abrindo escolas e officinas.
Tios can)pos estabelecendo colónias agrícolas, nas cidades esco-
las protissionaes ; obrigando todos a estudar e a trabalhar.
Os velhos e as creanças são os únicos que precisam da protec-
ção do estado.
O grande numero de asylos, que por toda a parle tem sido ne-
cessário estabelecer, mostram que se a caridade é muita a des-
graça tem augmentado também de um modo espantoso.
Nos povos antigos as raças privilegiadas pela fortuna, precisa-
vam que as classes trabalhadoras vivessem na escravidão, porque
assim garantiam o seu bem estar; na actualidade, como já não ha
escravos nem servos, pretende-se pela caridade esmagar os que
lêem fome, não se lembrando os poderosos de hoje de que
nem sempre o estado social ha-de ser o mesmo. Lucano dizia: /»<-
mamiui paneis livii gcnus; mas o futuro ha-de escrever somente,
trabalho e fraternidade no lábaro grandioso da festa universal.
E necessário combater a miséria, porque uma sociedade não
pode considerar-se justa quando no seu seio a par do rico desfru-
ctnndo todos os bens e confortos, apresenta o miserável sem pão,
sem lar; os filhos cobertos de farrapos vagueando nas praças sem
direcção moral nem intellectnal.
É necessário procurar os meios de altenuar a desgraça ; se a
causa está principalmente na falta de previdência de todas as
classes, procm^e-se innociiiar no espirito da nova geração estas
ideias profícuas e grandiosas; o estimulo ao trabalho; a compre-
hensão peideita e útil do poder da coo[;eração.
Ao estado cumpre velar pelos intei'esses geraes de todas as clas-
ses ; pode muitas vezes uma lei ser justa para uma classe, para
uns determinados interesses, mas tornar-se injusta sob o ponto de
vista do seu plano vasto. È necessário que um governo tenha a
comprehensão perfeita da justiça, e de que o bem estar dos povos
deve ser a lei supi^ema, saliis reipiiblicac suprema lex esto.
Emquanto a sociedade não pode attingir o verdadeiro equilíbrio
económico, o supremo ideal de todos os pensadores da causa do
bem da humanidade, torna-se necessário fundar instituições, umas
que sirvam de amparo, outras que desenvolvam a industria e a
agricultura, e finalmente outras lambem que combatam de frente
os vicios e industrias criminosas, que a lei consente, mas que ser-
vem para a ruina e desmoi'alisação.
Entre as primeiras temos os asvios, os hospitaes, as creches,
14
106 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
OS albeigues de inválidos, e são lambem de siimma utilidade os
deposilos de mendicidade, não para serem um viveiío de miserá-
veis, mas sim um meio cie que se pode servu" a sociedade para
obrigar ao trabalho, muitos braços validos, qne a occiosidade
colloca ás porl.is do crime.
Entre as segundas, temos as escolas em todos os ramos, e as
instituições de previdência ; a associação do soccorro na doença ;
na inhabilidade e as caixas económicas. O terceiro grupo pertence
a um governo justo e enérgico, que combate a usura, a especula-
ção desenfreada do capital, o monopólio das industrias, a protec-
ção dos occíosos.
Paia esta regeneração social devem todos cooperar ; nem o in-
dividuo só a pode conquistar, nem o Estado isoladamente a con-
quistará. A felicidade publica é nm producto ; [jiecisa de dois fa-
ctores. E' um grande edifício, a base é a inslrucção.
Costa Gooldoltuim.
fio Jaterniezza
(H. Heine)
I
Quando os meus olhos tristes vertem lagrimas,
Nascem flores no pranto
Quando suspiro, nos suspiros ouve-se
De rouxinoes um canto. . .
E tu se me attendesses
Do meu amor as preces,
Todas para ti eram, rosa mystica.
As lacrimosas flores ;
E na varanda os rouxinoes dulcíssimos
Te cantavam amores I
II
Dos meus prantos compuz uma canção
Sonora, delicada.
Que voasse direita ao coração
Da minha doce amada ;
Partiu ; porém voltou logo a gemer. . .
E, mísero que eu sou !,
Ella. a l)'íste canção, nem quiz dizer
O que lá dentro achou I
J. Leite de Vasconcellos.
o EJNTEHUO DE BERNARDO REPOLHO 107
Ô eaterro oa Scnitirda ífieRalaa
(Do 111 volume da (Jomedia do Campo por Bento Moreno)
N'essa mesma tarde foram as confrarias buscar os ílefiintos. Era
uma consideração pelo nome de Bernardo qne era irmão remido !
Adiante de todas vinha a do Santissimo Sacramento, de opas ver-
mellias e a cruz de prata alçada reluzindo ao sol. Imii seguida des-
filava a de Nossa Senhora do Carmo, de opas brancas com murças
azues, da còr do ceu desbotado de agosto. Na bandeira que a dis-
tinguia estava pintada a Virgem, com a sua ridente face menineira,
tendo pendente de uma das mãos um rosário, e da outra uns ben-
tinhos! Por fim spgnia-se a confraria das Almas, com a sua ban-
deira dolorosa na frente ! lira ali lepi-esenlado o (juadio terrifi-
cante do purgatório : — um rei de coroa poderosa e de longas
barbas patriarchaes, apoiava a sua mão sobre o hombro de um
bispo mitrado, coberto de uma rica capa de ouro, o qual estava
mais no funJo das chammas, soffrendo, talvez sem bastante resi-
gnação, que o monarcha chegasse primeiro á bemaventurança ! Ao
lado d'este augusto personagem, uma peccadora, com as longas
madeixas de Magdalena, dando a mão a um homem lubricamente
calvo e de bigode e pêra, trepavam por entre linguas de fogo, de
uma iracundia terrível, em ôca e vermelhão! Todos estes condem-
nados, e ainda outros sem distincção, erguiam olhos supplicantes
e estendiam as mãos abertas a um anjo, que eslava no alto, pe-
sando serenamente as culpas e os soffriíiientos de cada um, para
lhes outorgar a remissão promettida ! . . .
Da confraria da Senhora do Carmo, destacaram-se quatro irmãos
para tomarem conta do cadáver de Bernardo Repolho, e outros
quatro da confraria das Almas que, por caridade, se encarregaram
de conduzir o do engeitado . . . E, quando tinham tomado sobre
os seus hombros valentes os dois esquifes, partiram pelo caminho
adiante, para a igreja, conduzindo os defuntos. Atraz, na casa da
viuva, ficou o choro alarmante de Kngracia, e das visinhas que a
acompanhavam, misturando-se, na larga amplidão ao triste dobre
dos sinos que echoavam de quebrada, em quebrada, com a sua
nota plangente e de uma harmonia rebelde !
Nu instante em que o fúnebre acompanhamento subia pela en-
costa da igreja, o António Fogueira entrava na freguezia ! Havia
mais de oito dias que andava por fora, na sua vida vagabunda de
torquilha . . . D'esta vez trazia uma égua nova, muito fugideira,
que lhe vendera o Rio-Tinto.
1,08 ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
O loque funeiaiio dos sinos e o acompanhamenlo qiie elle viu
logo do longe, snrprelienden-o, fazendo-o parar, e teve nm baque
no coração ! O primeiro esclarecimento acerca do occorrido, foi-Jhe
dado por uma mntlier veília que vinha pelo caminho para o lado
d'elle, vergada sob o [)eso de um grande molho de herva e que,
antes de sei" interrogada, lhe disse encostando-se com o feixe a
um muro para descançar :
— Aquelle agora, meu rico, do que precisa, é de muita fartura
de missa, por aquella alma ! — observou-lhe depois de um «ah!i>
de eslafada a velha Vicencia.
— Mas quem foi que morreu'? — indagou o Fogueira.
— Ah! .>im, tu não sabes! — completou a velha depois de ex-
pellir o seu cançaç.o asmático! Andas sempre lá pelas feiías, náo
admira. Pois toca-te pela vestia . . . Foi teu pae Bernardo, de uma
grande desgraça I
O adoptivo do Repolho impallideceu rapidamente, deixando cair
as rédeas no pescoço da égua ! Vicencia concluiu :
— ... Uma grande desgraça, sim senhor, é como te digo. Caiu-
Ihe houte em cima da cabeça, a elle e ao vosso rapaz, o Chico, o
monte da Cham, quando lá foram ao barro I Se tu não andasses
sempre p( r essas feiras, em jogatina, talvez que o pobre home
não fosse lá, com esse tempo !
F depois, voltando-se salientemente para o Fogueira, exclamou
de um modo reprehensivo :
— Ora tu não mudarás de rumo! Vè se te confessas, que andas
n'uma vida de home perdido. Tem vergonha n"essa cara ! Faz uma
confissão jaral, .que vem ahi os missionários, grande maroto !
O Fogueira, que era naturalmente irritável, sentiu subir por elle
acima uma forte ira contra a velha Vicencia. Porém, refreando-se,
respondeu lhe com uma indignação latente :
— Você que lhe imporia o que eu faço, seu diabo de coruja !
Vou-lhe lá pedir alguma cousa?! Se não fosse, não sei porquê, se
não fosse por causa d'aquelle que acolá vae (alludia ao enterro
que subia a encosta), eu lh"o diria, seu grande diabo ! . . .
Uma culera viva apoderoii-se rapidamente da velha, que dei-
xando cair o feixe da 'herva no chão, principiou a gesticular, sem
encontrar no momento as verdadeiras palavras indignadas, com
que desejava aggredir o Fogueira ! Como é que um homem, tão
culpado como este maroto, que só andava pelas feiras em jogatina
e com más mulheres, se atrevia a ter arrogâncias diante dos que
o reprehendiam ?! Por isso ella, com uma voz gritada e com os
■ punhos ameaçadores, o increpou, com uma pedra na mão:
— Ah ! grandíssimo ladrão, o que tu precisavas era de uma
cadeia. Talvez me queiras bater, excommungado! Ora vem para
cá, que le prego com esta na testa ! Cuidas que eu lenho medo.
o ENTERRO DE BERNARDO REPOLHO 109
slafermo?! Um ladrão, que não faz senão gastar o (jue aqnelle
bruto (alludia também ao morto que ia no esquife) andou por atii
a ganhar no trabalho. Foi elle bem tolo em mourejar p'ra ti ! Mas
deixa, meu condemnado do inferno, que o senhor regedor e o se-
nhor padre Beiral te ensinarão ! Já está prompta a farda qne has
de ter ás costas !. . . Imi vou dizer já ao tio António i^apatrás, que
te vá prender.
Porém esta indignação palavrosa de Vicencia, perdeu-se no ar.
O Fogueira só lhe percebeu que ia ser preso; mas a este tempo
já tinha picado a égua pelo atalho acima, para entrar em casa,
pela matta, com o fim de ninguém o ver. E quando se viu só no
caminho, a distancia da velha, cuja voz ainda Ih^ chegava aos ou-
vidos n'uma gritaria de fúria, o filho adoptivo do Bernardo Repo-
lho considerou com a reflexão própria dos momentos responsáveis:
— Mas para que diabo foi elle buscar o barro, com um dia como
esteve houte? Para que se foi aquelle maluco metter ao perigo'?!
— exclamava sem comprehender, voltado mentalmente para si
mesmo !
F, considerando n"ist() alguns segundos, parado, a olhar fixa-
mente para um muro musgoso, concluiu:
— É uma de mil diabos! Que grande bucha !
Dispunha-se a dirigir-se á cancella da malta, quando o susteve
a voz conhecida do João do l\ego, que lhe appareceu de cima do
muro do caminho :
— Espera ahi, ó Tone ! Ó rapaz, espera !
E aproximando-se accrescenlou :
— Então teu pae lá ficou arrebentado debaixo do barro e o ra-
paz tamem !
— O rapaz tamem . . . — repetiu o Fogueira absorvido, mas sem
commoção.
— Tamem. Pois tu não sabes nada?
— Sei, disse-me ali em baixo a Vicencia, aquelle diabo que me
metteu cá umas cousas por dentro, que . . . ! Yalha-a uni demó-
nios !
O do Rego continuou esclarecendo :
— Isso não faz monta. Ella é tola, tu bem sabes. Mas houte foi
ahi na freguezia o dia de juizo ! Juntou-se povo, que povo! — o
Capatrás, o Manco, o çurgião ... o poder do mundo! Uesenter-
raram-nos; porque elles ficaram debaixo de um monte de barro,
da altura d'este muro. Depois, quando os trouxeram para casa em
charola, em cima de duas tábuas, Id a tua velha fez ahi uma ber-
raria de deitar a casa abaixo. Fazes lá idéa ! Era muita gente a
querer agarrar n'ella ; mas principiou a estrabuchar e a morder,
por não a deixarem ir abraçar o sen home!,.. Ora tu bem sabes que
a gente não a devia deixar, e mesmo o senhor padre Beiral e o
no ENCVCLOPEDIA REPUBLICANA
Pandegn díssuram (|U(' não deixassem ; porque lhe podia dar al-
giini sliipor ! Hoje tem custado a ter mio n'ella, quer-se ir deitar
a alogai-; mas a minha mãe. que lá eslá, e outra gente não dei-
xam. Quando a seguram, piincipia a chorar aos gritos, como se
tivesse o diabo e chama muito por li! .lá dizem que a ahna de leu
pae lhe tintiou por algum sitio ... Se ó verdade temos que rir;
porque ha de custar a pòr-lha íóra ! Isso de entrar uma alma no
corpo lia gente é jieior t|ue maleitas. Safa !
O Fogueira ficou mais triste, mais acabrmdiado com estas re-
velações. Principion a apoderar-se delle um terror, um medo . . .
— o medo de que a alma de seu pae adoptivo tivesse realmente
entrado no corpo de sua mãe i-jigracia ! K com um ar scismalico,
de homem abatido, puchava pela longa barba, airepelando-a, e
consideraudo-se infeliz !
O João do Rego, no mesmo tom de confidencia, rematou :
— E o diabo! Tra/.es tu [)0i' ahi cigarros? Conn) vens da villa
has de trazer, .\gora foi a feira dos nove. Vens de lã? Trazes uma
burra chibante!
O António, passando-lhe automaticamente o cigarro disse: «es-
tive... comprei...» Depois perguntou-lhe :
— Mas diz que me querem prendei!?
— Qual prender! deixa (aliar! Kslà um papel na porta da igreja;
mas é pia gente ir a Yianna, por causa dessa cousa da tropa.
Meu pae arranjou cartas de fidalgos da villa pra me livrarem, cá
a mim, em Vianna ; porque bniou com elles no deputado ! Eu vou
e mais elle, domingo, por ahi a baixo, á speçãn. Vem coa gente,
que faremos pandega ! ? O (lapatrás disse que tu tamem has de
ir. Ainda lionle faltou no adro, que se tua mãe não vender um
campo p"ra te livrar, tens de andar com a muchila ás costas.
E concluiu n'um tom de voz convidativo :
— Mas a tua velha que venda o campo. Ella pVa que o quer
senão p'ra*ti?! Diz-lhe que venda e vamos todos Ida essa Vianna!
Despediiam-se. O Fogueira picou a égua, explicando ao do Rego,
que queria entrar pelo lado da malta, para se não encontrar com
o enterro (jue ia no caminho. Depois, quando chegou á cancella, a
égua transpol-a,masenlrou desconfiada, reparando em tudo, olhando
de Iravez para os objectos!. . . O António forçou-a a caminhar di-
zendo lhe : «Clió diabo anda p*ra diante!» E assentando-lhe duas
lambadas nas ancas, esporeou-a com força!...
Porém, logo adiante, o animal estacou com mais teimosia, en-
carando excentricamente com um velho carvalho nodoso. O Fo-
gueira, como a égua era nova e como o momento não era próprio
para lhe tirar as teimas, desceu cordatamente, pensando em a le-
var á rédea. Para isso principiou a puchal-a, com brandura, de um
modo carinhoso, condescendente, fallando-lhe com moderação. Po-
o ENTERRO DO BERNARDO REPOLHO 111
réiii ella fincon-se nas mãos, levaiUoii a cabeça, encostou-se á re-
Iranca e piincipioii a recuar resfolganJo eslrontlusaaieote pelas
ventas dilatadas, ulliando esgazeada e co;n uma tremura nervosa
n3s beiços! O António, conhecendo que á força a não faria trans-
por a matta povoada de carvalhos, que produziam sombras ame-
drontadoras, pensou em redobrar de carinhos e attenções, desejou
famiharisal-a com a velha arvore nodosa que a espantara !. . . Para
isso animava-a, fallamio lhe n'uma voz de cada vez mais convida-
tiva, puchando-a moderadameníe pelas rédeas, para a aproximar
do objecto suspeito... 1'orém ella, entendeu que devia recuar
ainda mais e, n'um momento, principiou a levantar as mãos, a agi-
tar mais freneticamente a cabeça, a espetar com mais desconfiança
as orelhas, a curvelear. . . e terminou |)or atirar duas valentes
e corajosas parelhas de couces á cancella. partindo-a.
O filho da Engracia teve n"este momento uma enorme cólera e
veiu-lhe rapidamente a idéa de tirar a sua comprida navalha e
abrir a barriga da égua, como em outra occasião íizera a um ca-
vallo ! Porém, a rellexão aconselhou-o a não deixar apparecer as
suas violências naluraes. . . O momenlo não era opporlimo — re-
conhecia-o elle perfeitamente!... Ouvia dali mesmo sua mãe, gri-
tar com desespero, acompanhada pelo choro cantado de Iodas as
visinhas, que llie faziam companhia neste momento doloroso. Toda
a sua idéa era metter, sem ser presentido, a égua na côrle do
gado, e depois, quando em casa tudo estivesse mais Iranquillo e
a choradeira acabada, entraria pela porta dentro, inesperadamente
e de supilo!... a Atinai de contas — considerava — isto tem de ser
e tem I» Por isso, para não augmentar mais a desordem que ha-
via um quarto de hora se apoderara do seu espirito, a desordem
que o cercava por todos os lados, optou por amansar a égua em
vez de a matar, e para isso pi incipiou a cofiar-lhe as crinas, pas-
sando-lhe pela anca tremula a mão benevolente e pródiga de afa-
gos, com a brandura insuspeita da mão de um amigo ! Conseguiu
deste modo acalmal-a, moslrar-lhe de perlo o velho carvalho, che-
gar-lhe ás ventas, ainda tremulas, a casca gretada, (jue exhalava
um forte cheiro de humidade e de bolor. Conseguiu o que desejava;
mas a égua atravessou o caminho da matta, sempre desconfiada,
olhando de soslaio, resfolgando e levantando a cabeça ao menor
ruido. O António chegou a mettel-a na corte do gado, prendendo-a
calculadamente a distancia dos toiros, que permaneceram a olhar
vagamente, com os seus olhos redondos, como bogalhos e reluzen-
tes como vidro.
Pelo barulho qne tudo isto produziu, Engracia que já eslava ca-
lada, ficou advertida da presença de seu filho!.. . Por isso, tanto
ella como as visinhas que a acompanhavam, tornaram a desatar a
sua dôr recente, ena altos gritos cheios de mortificação e que se
I.i2 EiXCYCLOPEDIA REPUBLICANA
estendiam pelos campos! Quando, inslanles depois, o António en-
trou na cosinha, a viuva do Bernardo agarroii-se-lhe ao pescoço,
dizendo muitas vezes: «Meu rico home do meu coração, que te
não torno mais a ver ! Perdi o meu rico liome ! Um santo como
elle era ! uma desgraça assim !»
Esta paixão intensa e desgrenhada ei'a commnnicante, e por isso
o António saiu dos braços de sua mãe, para se deitai de barriga
sobre a caixa da broa, com o rosto escondido enlre as mãos,
dando soluços alTiontosos e dilacerantes!... As mulheres, que
acompanhavam tlngracia principiaram a dizer que elle era muito
bom rapaz, muito amigo de Bernardo, tão amigo como se tora fl-
Iho verdadeiro! Gabavam muito este ciioro aíllictivo de António e,
acercandose delle, com as mãos escondidas nos aventaes, cori-
solavam-n"o, lembrando-lhe que a desgraça acontecera por vontade
de Deus Nosso Senhor, e confirmavam que todas ellas, que ali
estavam a chorar pelo Bernardo, também haviam de morrer e tal-
vez bem cedo!. • . E depois d"estas palavras sensatas aconselha-
vam-n'o a fazer uma confissão geral com os missionários ; porque
era muito bom a gente andar sempre preparada para ir à pre-
sença do Senhor Todo Poderoso! António parece que não gostou
d'esta advertência, em que presumia uma censura á sua vida des-
regrada, e disse-lhes com certo desabrimento, com modo brusco
e mal creado, sempre deitado de barriga sobre o caixão da broa:
— Callem-se ! deixem-me cá. Ponham-se agora ahi com loas e
aquellas !. . .
E, desde este momento, o seu choro foi-se abrandando gradual-
mente, e um silencio, de vez em quando interrompido por um «ai
Jesus!», restabeleceu-se na cosinha. Engracia, com os olhos enxu-
tos, mas evidentemente abatida o mortificada, foi como um cão re-
prehendido, sentar-se ao canto da lareira, onde havia uma fogueira
crepitante e viva, procurando o ponto mais escuro e modesto,
d'onde atiçava o lume, continuando a dar ais lastimosos e suspiros.
Passados alguns minutos, quando as brazas estavam bem vivas,
bem mordentes, disse ella mesma, com uma voz serena e apasi-
guada, para Genoveva, a mãe do João do Rego:
— O" mulher, vè se lhe deitas aqui n'este lume uma posta de
bacalhau. Esse moço ha de vir com fome.
E, como o António ainda de bruços sobre a caixa do pão se re-
mexeu, expellindo o ultimo suspiro da sua angustia, ella exclamou
n'uma voz mais secca, mais sincera:
— Meu rico home que o não torno mais a ver até ao dia de
juizol Tomara eu que o dia de juizo fosse já hoje, para só tornar
a vêr o meu rico home, que foi morrer de uma desgraça !. . . Uma
cousa assim !. . .
Porém as outras pessoas ficaram caladas... Não tendo já mais la-
o ENTERRO DE BERNARDO REPOLHO 113
grimas para chorar, as mulheres visinhas principiaram a contar ao
António, como tudo se tinha passado, como acontecera aquillo !
Elle, impellido por uma curiosidade inconsciente e com o fim de
as escutar com mais attenção vollouse de ilharga e olhava . . .
Depois, como a narrativa, vivamente colorida pelos commentarios
e pela gesticulação, o interessava, sentou-se e escutou até ao fim,
com as mãos apertadas entre os joelhos. A Genoveva, mãe do
João do Rego, era quem o certificava de todo o acontecido, e ape-
sar de ser muito difusa e de entremetter observações sem valor e
rodeios pueris, o António ouvia-a : O Bernardo era um homem sem
esperteza nenhuma, um molanqueiro, um deixa-te ir . . . Muito
bom homem, muito honrado, muito temente a Deus, de muito boas
contas . . . isso sim, senhor. Verdade, verdade . . . não se contava
outro na freguezia! Mas préstimo não tinha muito, não tinha
mesmo nenhum. Todo o mundo o levava para onde queria, um
grande cebolla é que era I Esta desgraça que lhe succedera ti-
nha sido prevista pelo Joaquim da Moita, que lhe disse ao vel-o
encostado á barreira, que tinha umas bocas escancaradas, que
mettiam medo: «Home, tu ahi não estás seguro! Vè lá no que
te raelles, Bernardo». Elle não quiz fazer caso e respondeu : «Ora
Dão ha de ter duvida . . .». O pago foi o que se viu, ficar esbor-
rachado.
O Fogueira, ouvia tudo isto com uma seriedade inconsciente e
bronca. Que diabo de toleima, a de seu pae, de se ir metler de-
baixo da barreira que caiu ! Uealmente sempre era um banasola.
que não tinha préstimo para nada!... E deixando-se n'esta cor-
rente de pensamentos vagos, impulsionado pela palavra quente da
tia Genoveva, e, como já lhe haviam posto o bacalhau sobre a
caixa, principiou a comer de vagar, com uma apparente inappe-
tencia . . . Tinha o olhar vagaroso e a mastigação demorada, ape-
sar de ter fome. De vez em quando, Erigracia, exclamava pelo
«seu rico home», que não tornaria mais a ver, até ao dia de
juizo!... Genoveva, que durante a narrativa se enchera de espi-
rito hostil contra o fallecido Bernardo, disse reprehensivamente,
para a viuva :
--Cala-te mulher! Tamem já é de mais! Já aborreces com
tanto «meu rico home!» (E fez um esgar de troça.) Que se não
fosse lá metter I Que não fosse pascacio I
Depois concluiu voltada para o António :
— Olha, elle se morreu é porque quiz ! era um bô home, um
bò serás ; mas teimoso até ali ! Deus o tenha no céu, que todo o
mal foi d'elle ; mas verdade, verdade, para onde lhe desse o tou-
tiço, era para lá, como um casmurro. Agora que está na outra
vida, Deus o tenha em bò logar. Um Padre Nosso por sua alma é
que devemos resar ... Do que Bernardo precisa é de muito rc-
15
114 ENGYGLOPEDIA REPUBLlCAiNA
sario e de muitas missas, que quantas mais, melhor. «Padre Nosso
que estaes no céu, santificado seja o vosso nome, ele. . . »
Todos a acompanhavam numa voz ciciada, e com as pálpebras
meio cerradas. Neste niomenlo ouviu-se o dobre funerário e la-
mentoso dos sinos. Era o signal de que os olficios tinham acabado
e de que o corpo ia ser dado á sepultura ! Uma das amigas de
Engracia observou :
— Elle là vae pra cova. coitado! Olhem que ninguém sabe onde
as tem armadas!. . . Ainda honte, ia em cima do carro, muito so-
cegado, e já hoje dorme na greja pr*a toda a vida 1 Ah ! morte
negra, morte negra que assim os vaes levando a um e um !
Engracia tornou a chorar alto e o António atirou-se novamente
de bruços sobre a caixa do pão, conservando-se muito tempo sem
se mexer . . . Naquelle posição adormeceu de fatigado pela jor-
nada !
Bento Moreno.
A civíUsação nrena
É na Grécia que começa o domínio das sciencias positivas. Pelo
seu clima, pelo génio de seu povo, pela sua situação geographica,
por todas as condições mesologicas emfim, foi a Grécia a mais
brilhante civilisação da antiguidade. O desenvolvimento scientifico
começou em Mileto, colónia grega da Ásia Menor, com a escola
jónica, passou depois a Alhenas e por ultimo a Alexandria. A
causa de terem principiado em Mileto os progressos scienliíicos
da Grécia esià na situação respectiva das colónias com relação á
metrópole. A Grécia pela sua configuração, formada de pequenas
ilhas e dividida em pequenos reinos era essencialmente guerreira
e conquistadora e por tanto pouco apropriada ao estudo das scien-
cias ; as luctas constantes entre os estados Helénicos, as rivalida-
des entre Athenas e Sparta, occupavam as principaes forças em
prejuiso do maior desenvolvimento humano. Já não succedia o
mesmo com as colónias gregas onde a paz era quasi permanente,
o que dava logar muitas vezes a uma civilisação precoce, como a
de Mileto, Epheso, etc. Foi em Mileto que nasceu Thales, um dos
sete sábios tão decantados e que foi o fundador da philosophia
grega e um dos primeiros cultivadores das sciencias na Grécia. A
este seguiram-se Anaximandro e Anaximenes, ambos malhemati-
cos e astrónomos de mérito.
A situação marítima da Grécia, levando o povo a aventurar-se
a viagens e descobertas, fez com que elle observasse attentamente
a natureza e adquirisse assim um maior numero de noções reaes
A CÍViLISAÇAO GREGA 113
das cousas, abandonando pouco a pouco as concepções maravilho-
sas dos seus deuses olympicos. Os gregos, percorrendo em seus
navios o Mediterrâneo e o Mar Negro, estabelecendo colónias á
beira mar e expondo-se aos contratempos das ondas, poderam
contemplar o céo sem ser através da cortina luminosa, mas falsa
do polytheismo. Começou então a prevalecer a experiência. A
poesia, e em geral a arte grega, é um exemplo frisante do poder
e da influencia que a natureza exerceu directamente sobre o gcnio
da Grécia. Toda a poesia- helénica, e quando digo toda, refiro-me
áquella que ainda hoje chama a ai tenção das intelligencias cultas,
toda a poesia grega é a descripção fiel ou — deixae-me exprimir
assim — realista do meio em que viveram os poetas. Ampere,
quando percorreu a Grécia, teve occasião de ver que os poetas
gregos beberam a inspiração na natureza que os rodeava e que
elles descreveram com a maior verdade e precisão artistica. E esta
a causa da superioridade poética da Grécia.
Esta contemplação rigorosa da natureza que produziu os bellos
poemas de Homero, as admiráveis poesias de Hesiodo, nota-se do
mesmo modo. nos seus historiadores, que descreveram tudo o que
observaram nas suas viagens com umas cores tão vivas de verda-
de e com uma simplicidade tão magestosa, que foi preciso passa-
rem muitos séculos e virem as modernas descobertas archeologi-
cas, para que trabalhos importantes como os de Heródoto adqui-
rissem foros de fontes históricas, perdendo os visos de imaginação,
que lhes attribuiam.
No meio d'esta observação rigorosa da natureza não podiam as
sclencias deixar de desenvolver-se, e de facto receberam um grande
impulso nas mãos dos philosophos. Nas mathematicas Euclides e
Archimedes, na astronomia Aristarco de Samos e Hipparco, bastam
para mostrar o grande adiantamento a que chegaram estas scien-
cias na antiguidade.
Aristarco foi accusado de impiedade e denunciado aos orthodo-
xos por fazer mover a terra, como dezoito séculos depois havia
de ser accusado do mesmo crime contra a divindade o grande Gal-
lileu. Os fanáticos sempre foram o mesmo em todos os tempos,
sempre procuraram impedir o progresso das sclencias, e ainda
hoje nós vem )s como elles procuram atravessar-se diante da onda
luminosa que cresce de dia para dia. E o mais curioso é que o
processo empregado é sempre o mesmo, sempre a denuncia,
sempre a accusação mesquinha e baixa. Nós lemos progredido
muito, os nossos processos de observação e de experiência são
muito variados e cada vez mais perfeitos, o processo que elles nos
oppõem é que ainda é o mesmo ; eis mais uma prova a nosso fa-
vor : em dois mil annos não avançaram um passo, e quantos têm
recuado !
116 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Na Grécia o melhor representante das outras sciencias é incon-
testavelmente o immortal Aristóteles, que como todos os Gregos
em geral foi um observador da natureza ; estudou meteorologia,
estudou acústica, estudou vários phenomenos physicos, como as
cores, os ventos, etc. Os seus principaes trabalhos são os ensaios
(!e historia natural, em que se pode dizer que elle inaugurou a
sciencia experimental, pois são filhos da comparação e do estudo
de muitos exemplares da flora e da fauna asiáticas.
A Grécia é de todas as civilisações ajiligas a que mais contri-
buiu para o engrandecimento da humanidade e é portanto a que
mais deve chamar a atlenção dos estudiosos.
Teixeira Bastos.
O Prisioneiro
(DIANTE DE UMA CABEÇA DE MIGUEL ANGELO)
Uma palavra diz toda a desgraça :
— Ter por si a razão, eis o seu crime I -
O déspota o conhece ; busca traça
Para esconder a victima que opprime.
Ferros ! vossos anneis encadeados
Venham soldal-o para sempre ao muro ;
Abobadas I caiae-íhe ardentes brados,
Trevas ! summi-o no estertor do escuro.
Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensa
No rancor do tyranno e adormece ;
A natureza é mãe : na dor immensa
Accolhe o que nas anciãs desfallece.
Então, em som no longo e descuidoso
Aos sitios mais queridos d'outras eras,
A mente vôa e aviva com repouso
Passadas illusões, doces chimeras.
Quem cuidará que o inerme prisioneiro
Esquecido do peso das algemas
Ouve os colloquios do amor primeiro ?
Do adeus final as expressões extremas ?
Ali lhe transparece sobre os lábios
O arpejo ignoto de suave riso,
Sereno como a profundez dos sábios,
Triste como o luar quando indeciso.
A QUESTÃO DAS VIVISECÇÕES H7
Pensa que é livre I o soinno é liberdade
Para esse a quem nenhum consolo reste ;
Qual será mais feliz ? a auctoridade
Nunca logrou um instante como este.
Vela o tyranno, tendo alerta os guardas,
Entre canhões, muralhas, torres, fossos ;
Lá quando o somno chega em horas tardas,
Ouve ais, vé sangue, estrépitos, destroços:
Escuta os grilos surdos da revolta
Do povo que a si mesmo faz justiça ;
É negro o pezadello, o horror o escolta,
Quer despertar, remorso o enfeitiça.
Este, dormindo, já se sente escravo,
Arrastado por praças, com vergonha ;
Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravo
Que é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.
Qual será mais feliz ? um quando dorme,
E' só para sentir terror, fraqueza ;
E áquelle que succumbe ao peso enorme
Diz-lhe ser livre, a santa natureza.
Bem haja a eterna força que lhe inspiras
Que não conhece algemas — a vontade !
Prepotenles I quebrae ante ella as iras,
Embalem-nos os sonhos da verdade.
Junho, 2o— i872.
Theophilo Braga.
J3L fiuestuo das vívisecções
No n.'' 23 de 4 de junho do anno passado da Revue Scientifique
vem publicada uma carta do eminente naturalista inglez Carlos
Darwin, dirigida ao professor Kolmgren, de EIpsal, em que o sá-
bio criador da moderna theoria do transformismo expende a sua
opinião, adversa à lei, votada pelo parlamento da Grã-Brelanha,
em que se prohibem as vivisecções, ou as experiências physiologi-
cas em animaes vivos.
1 Como numa das folhas precedentes publicamos um artigo do sr. Arruda
Furtado em resposta a um outro do sr. Alexandre da Conceição, que saiu na
Era Nova sob o titulo de John Buli, cremos do nosso dever dar também publi-
cidade n'esta8 paginas á réplica do brilhante escriptor e nosso correligionário de
Figueira da Foz.
Nota da Empreza.
MH en(:yclopedia republicana
A redacção da Rnue Scienlifique precede essa carta de palavras
severas contra o pietismo inglez, que consegue, por uma agitação
pueril e ridícula, fazer votar pelo parlamento uma lei de protecção
a favor dos porcos da Índia e dos cães vadios, contra os mais al-
tos interesses da humanidade e da sciencia.
Indignado pela leitura d'essa carta e das palavras com que a re-
dacção da lierue a acompanha. escr.evi sobre o assumpto um pe-
queno artigo, que foi publicado a paginas 443 da excellente re-
vista a Era Nova com o titulo de Jobn Buli.
N'esse artigo, produzido ao correr das impressões de momento
e sem as mínimas preoccupações académicas, ha estas palavras,
que resumem toda a substancia do escripto :
«O que torna particularmente repugnante este pietismo britan-
dIco é que ao passo que o parlamento, impellido pelas reclama-
ções sentimeiítaes de uma opinião publica pueril e beata, vota pe-
nalidades ao trabalho scientifico, esse parlamento e essa opinião
applaudem e consentem ao governo inglez os maiores attentados
contra a vida dos homens, contra a independência e dignidade dos
povos e contra a fé dos contractos, tolerando e explorando as vio-
lências sem nome do governo da índia e em geral de toda a ad-
ministração colonial da Inglaterra, as vexações autocráticas da Ir-
landa, a infamissima guerra contra os Boers e mil outras proezas
sanguinárias e brutaes, em que Portugal tem como victinia um pa-
pel de protogonista.»
Modesto divulgador do espirito scientifico do meu tempo, que
procuro seguir de longe na sua gloriosa ascensão/para a verdade,
eu erguia, dentre a multidão confusa dos anwymos, o meu braço
para protestar contra uma medida que considero obscurante e in-
digna de uma nação civilisada, e, juntando a nuliííade da minha
opinião às vozes auctorisadas dos primeiros homens da sciencia
contemporânea, tinha por fim apenas tornar conhecido do publico
para quem escrevo, um facto que julgo digno de ser conhecido^
já pela importância do assumpto, já por ser revelador d^ caracter
inglez, que cordealmente abomino. :■.., ^
O meu artigo, porém, apesar de toda a sua. 43equeflèZ;e de toda
a sua modéstia, mereceu do sr. Arruda Furtado, de Ponta Del-
gada, um severo correctivo, em forma de dissertaçã<5 académica,
publicado num dos últimos números do jornal lisbonense Encyclo-
pedia Republicana.
O sr. Arruda Furtado fez-me a immerecida honra de concordar
comigo em todos os pontos da questão, diz que o procedimento do
parlamento inglez, «para todos pouco conciliador, é para muitos
revoltantB, "entende que o facto carece de um protesto severis-
A QUESTÃO DAS VIVISECÇÕES 1 ly
simo», mas não me permille que eu me «revolte» nem que «pro-
teste severamente», assevera que, de lodosos «pontos» civilisados
do globo eu serei o único positivista que trate esta questão por
uma tal forma, e chega a sup|)licar «á mocidade portugueza, que
aprende comigo e com os directores lilteiarios coniventes na pu-
blicação da minha maneira de apreciar, que nã.i acceite similhante
exemplo.»
Sou extremamente sensivel á classificação de «ponto civilisado»
6 de mais a mais «ponto positivista» que me dá o sr. Arruda Fur-
tado e particularmente lhe agradeço o diploma que me passa de
instructor da mocidade portugueza ; mas peço licença para decli-
nar ambas as honras, tanto a de instructor como a de «ponto»,
embora civilisado e embora positivista. Embirro com todos os
«pontos».
O que não chego a perceber é a razão porque o sr. Arruda Fur-
tado, julgando merecedora dos mais severos protestos a lei ingleza
que prohibe as vivisecções e digno da mais áspera correcção o par-
lamento que a votou e portanto o publico que a exigiu e o publico
que a tolera sem reclamações, se insurge contra a forma desabrida
com que eu apieciei este assumpto.
Eu concedo facilmente ao sr. Arruda Furtado que o meu estylo
tem por vezes liberdades de adjeclivação pouco parlamentares e
menos académicas, e para lh"o conceder peço-lhe que me poupe á
mais vergonhosa recordação da minha obscura vida litteraria ; mas,
se me é licito avançar uma observação em forma de attenuante,
direi que poucas vezes terei escripto sobre assumpto que melhor
se prestasse á troça e à descompostura do que este.
Pois pôde lá tolerar-se hoje, em plena Europa civilisada, que um
parlamento qualquer se permitia vedar ao trabalho scienlifico as
suas mais legitimas e importantes investigações, a pretexto de sen-
sibilidade feminina ou de ridículos preconceitos de piedade reli-
giosa ? Pois ha-de conseniir-se, sem os mais vivos e enérgicos pro-
testos, que uma nação collocada á frente da civilisação do mundo
e representada no que uma nação tem de mais legitimo e sobe-
rano, o seu parlamento e a sua opinião publica, ouse, em íins do
século XIX prohibir aos homens de sciencia que não estudem, que
não experimentem, que não investiguem, a pretexto do soffrimento
physico de alguns animaes inúteis, quando taes estudos e investi-
gações tem justamente por flm aliviar a humanidade, e mesmo os
outros seres da criação, dos flagellos que a desimam e torturam?
Pois os interesses da sciencia, os primeiros e mais instantes in-
teresses humanos, podem lá estar por mais tempo chumbados á
lousa sepulchral da theologia e humildemente curvados perante a
ferula do supranaturalismo?
E o sr. Arruda Furtado, que se revela um espirito despreoccu-
120 ENCYGLOPEDIA REPUBLICANA
pado e instruído, estranha que os que procuram sinceramente,
embora obscuramente, collocar-se nu corrente dos grandes inte-
resses do saber contemporâneo, verberem com todo o vigor de
uma legitima indignação essas pretensões atrazadas, pueris e ridí-
culas da intolerância religiosa?
Eu não sei ser lolennte com a intolerância nem delicado com a
brutalidade, e o procedimento do parlamento inglez e da nação
que elle representa é, n'este ponto, intolerante e brutal.
Não desconheço o valor dos tilulos que a sciencia ingleza tem á
consideração do mundo; mas é justamente por isso que o facto
em questão se torna tanto mais estranho e censurável. Se a prohi-
bição das vivisecções fosse decretada pelo governo da Turquia ou
dii Haiti, o caso não seria imprevisto, mas apenas lastimável ; de-
cretada porém pelo governo da Inglaterra, a reclamações da opi-
nião publica e com a sancção do parlamento, tal prohibição é per-
feitamente uma tolice violenta, ridicula e bestial.
De todas as surprezas que me destinava este curioso artigo do
sr. Arruda Furtado a melhor e a mais imprevista reservou-a elle
para o fim. Considerando que a lei ingleza que prohibe as vivisec-
ções vae redobrar o interesse dos physiologistas e desacreditar as
sociedades protectoras de animaes, o sr. Arruda Furtado termina
com estas palavras :
«Concluímos mudando um pouco a nossa opinião; — nós tere-
mos algum dia muito que agradecer ao parlamento inglez a lei que
elle acaba de votar I»
Por este singular processo de apurar merecimentos pôde che-
gar-se aos mais extraordinários e imprevistos resultados ; podemos
concluir, por exemplo, que a melhor cousa que se conhece é o mal
porque provoca as reacções do bem, que o maior beneficio que de
vemos á monarchia é o despotismo, porque provocou as reivindi
cações da liberdade, que a inquisição foi uma verdadeira fortuna
porque apressou o descrédito da theocracia catholica. . . É a theo
ria dos revolucivos applicada ás doenças sociaes ; a miséria cura-se
com a fome, a prostituição com o deboche, a ignorância com o
analphabetismo, o proletariado com a usura, etc.
É uma theoria moral inteiramente nova, uma verdadeira theo-
ria de ponta e mola applicada ao ventre da humanidade- . .
O sr. Arruda Furtado ha-de permittir-me que lhe não tome a sé-
rio esta ultima parte do seu artigo, a qual me parece inferior aos
muitos recursos intellectuaes e solida illustração de s. ex.^
Alexandre da Conceição.
MOVIMENTO LITTERAKIO 121
Sce|iticismo
(NO TUMULO DE M&U FILHO AFFONSO)
I
Dividiu-se a ininh'alma em tres pedaços,
Dois ficaram na terra suspirando
E o terceiro, o mais tímido, adejando,
Escondeu-se na bruma dos espaços.
Debalde eu ergo á luz os olhos baços,
Debalde pelo ceu vou procurando
O rasto d'esse sol que, fulgurando.
Orgulhoso estreitei entre meus braços.
Sumiu-se para sempre o ethereo brilho,
i\ estrella que guiava os passos meus,
Atravez d'escabroso e duro trilho,
Eu penso como vós, grandes atheus,
A fé d'um pae que vê morrer um filho
Em tudo o leva a crer menos em Deus.
II
Eu rojei-me de bruços, emplorando
A Deus a vida do ente estremecido ;
Podendo elle talvez, não ha querido
E um pedaço d'esta alma foi roubando.
O crentes, pensae bem quanto é nefando
Arrancar ao arbusto enverdecido
O renovo mais tenro, mais florido
De todos quantos elle está creando.
E depois julgae, vós, se é justiceiro.
Se é grandioso, forte e omnipotente
Quem assim se demonstra sobranceiro.
Sacrificar no berço um innoeente I
Se ha Deus, elle tornou-se carniceiro,
De meu filho o assassino consciente.
Viliar do Senhor. Ernesto Pir^s.
R.ovÍHieiito Utíerciria
As delicadas offertas d'alguns escriptores e editores obrigaiii-
nos a uma revista, só com o fim de pôr os nossos poucos leitores
16
12-2 ENXYCLOPEDIA HEPUBLICANA
ao fado das publicações portugiiezas e do desenvolvimento intel-
leclual moderno.
N.lG é um trabalho critico e sim uma analyse rápida.
Dessas obras passemos a inventariar as mais recentes que te-
mos neste momento sobre a nossa mesa de trabalho : A Morte do
Afheii, por Jayme Seguier, uma publicação nilida de que a imprensa
do elogio-mutuo se tem occupado com louvor, mas sem uma
phrase que revele a ideia mais simples sobre a arte moderna. Qual
é o fim d"esta composição poética que se impõe ao publico pela
nitidez da impressão? Se houver um critico capaz de descobrir al-
guma cousa de novo, a não ser umas imagens rhetoricas, impos-
síveis mesmo nos versos dos parnesianos francezes, de que Seguier
é representante em Portugal, então faremos a critica d"este poemeto
que apenas consideramos mais uma banalidade no mercado.
A Republica fkderal por Assis Brazil. É um trabalho admirável,
consciencioso, dividido em quatro livros e comprehendendo cada
um delles diversos capitulos. Daremos aqui os seus titulos para
que se possa fazer uma ideia do valor da obra do illustre publi-
cista brazileiro : — I As Formas de Governo — lí Relalividade das
Formas de Governo — III Legitimidade da Republica — IV Superio-
ridade da Republica — V Preferencia do paiz pela Republica —
Ví Theoria do opportunismo — VII Objecções impiricas dos monar-
chistas — VIÍI Justificação da opportunidade da Republica — IX. Ideal
da democracia na America — X Fundamento racional do Suffragio
Universal — XI Falsidade dos Syslemas Restrictivos — XII Extensão
e effeifos do sufjragio universal.
O sr. Assis Brazil possue uma orientação scientifica, e tem pon-
tos de vista verdadeiros.
As suas opiniões sobre o federcdismo e unitarismo, parece-uos
serem as mais completas quando diz a pag. 215: «o federalismo
é a maior simplicidade, e o unitarismo a maior complicação. Tudo
se simplifica no regimen federal : simplifica-se e facilila-se a ad-
ministração geral, o regimen financeiro, pela ausência de duplas
repartições, cujo costeio fica reduzido à metade ; siraplifica-se a
missão do governo geral, porque elle não tem de gerir o conjun-
cto inteiro dos negócios do paiz, porém unicamente o que inte-
ressa á communhão ; simplifica-se, finalmente, a missão dos pode-
res locaes, porque elles não tèem de moldar-se pelas imposições
do centro ou de pedir-lhe vénia, mesmo n'aquillo em que a sua
autonomia soja reconhecida e inegável. Exactamente o contrario
dárse com o unitarismo : repartições provinciaes e geraes ; imposto
duplo ; governo geral sobrecarregado de trabalho, resumindo em
si toda a vida nacional ; governo local escravisado ao centro, nullo
por falta de autonomia. Só uma cousa se torna simples e fácil no
unitarismo: são os golpes de estado e as revoluções.»
MOVIMENTO LITTERARIO i23
Estas e outras ideias expendidas ii'este volume, revelam o bom
senso do seu autor.
Padhes e reis ou a inquisição moderna, por Âguus pseudónimo
d"um sincero republicano, conhecido no partido por F. Cordeiro.
É um folheto de propaganda contra o clero e a realeza, e dieio
de comparações curiosas entre os modernos e antigos tempos.
Agnus, n'este seu trabalho demolidor e eloquente, ao alcance do
povo, pretende demonstrar que a sociedade moderna vive ainda
debaixo da pressão inquisitorial dos tempos medievaes, e que to-
dos os nossos males, o nosso atrazo, provêem unicamente de duas
classes poderosas, nobreza e clero, que se afundam a passos lar-
gos.
Ha n'este folheio algumas contradicções e exageros verdadewa-
menie românticos, e mesmo, pontos de vista falsos, phrases rhe-
toricas que revelam a instrucção ainda methaphisica do seu auctor ;
mas em compensação desses erros, que são também os da maio-
ria dos nossos escriptores (embora alguns d"elles sejam reputados
como os principaes), existem ideias alevantadas, e conclusões re-
volucionarias. O estyln é vigoroso, quente, o dos grandes agitado-
res e ainda o dos revolucionários methaphisicos e sentimentaes.
Cremos que este nosso intelligenle correligionário se tiver mais
estudo e applicação, poderá dar-nos de futuro obras menos apai-
xonadas, porque tem aptidões e vontade. Este seu ultimo trabalho,
que aliás revela talento, resente-se d"essa falta de estudo e refle-
xão.
Todavia torna-se recommendavel pelos fados curiosos que aponta,
muitos de boa fonte, por algumas comparações verdadeiras, e
sobretudo pelo assumpto e ponto de vista demolidor. Não se
pôde ser mais enérgico para um povo ainda cheio de preconceitos
religiosos, na maior parte ignorante, embrutecido pelo clero, nem
Ião pouco ser mais enlhusiasla dos modernos princípios.
O HOMEM QUATERNÁRIO E AS CIVILISAÇÕES PREHISTORICAS NA AmE-
RiCA (traços duma impressão scientifica) pelo doutor F. Ferraz de
Macedo. É um volume de oO pag., formato in-quarlo, edição pri-
morosa.
O sr. Francisco Ferraz de Macedo, é uma illustração reconhe-
cida por todos os homens que estudam, e um trabalhador incan-
sável. Este seu ultimo trabalho que é um estudo critico, funda-
mentado em fados geológicos e em concepções philosophicas, bem
o demonstram. Depois que foi comprovada a existência do homem
plioceno na Califórnia, torna-se já impossível contestar as ideias
n'este livro expendidas.
O illustre escriptor prova evidentemente que a America teve
grandes relações com a Ásia e mui particularmente com o Egypto;
não duvida que as raças da Europa em geral sejam oriundas da
124 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Asia, mas, que não estando ainda estudado o vasto território do
velho continente americano, como admittir sem uma discussão se-
ria e importante que para ali fosse a Asia lançar a semente de
tão diíTerentes raças, como se tem julgado? Assim fica desfeita a
liypothese de que a Asia fosse o único berço da humanidade : não
cremos que ella tivesse um único berço. Este trabalho é importan-
tissimo, e foi escripto a propósito da obra de Florentino Ameghino
A antiguidade do homem no Praia. Este illustre homem de scien-
cia depois de muitas investigações «poude chegar á conclusão de
que a fauna americana antiga nenhuma relação teve de continui-
dade e de similhança com a fauna do velho-mundo». Sobre esta
opinião é que o doutor Ferraz de Macedo, baseou o seu bello es-
tudo anthropologico, dando-nos uma serie de novidades que muito
interessam â sciencia moderna. Ameghino pensou assim porque
alguns dos animaes fosseis que encontrou naquellas regiões e que
outros exploradores audazes téem descoberto, não tinham n'aquelle
tempo, nem o tèm até hoje, congéneres no antigo mundo, embora
houvesse alguns dentre elles com apparencias e pontos de con-
tacto anatomo-physiologicos?
«As cidades e grandes destroços de edifícios esparsos, (diz o
doutor Macedo pag. 1:2) encontrados em profundas camadas geo-
lógicas, ou jazendo em florestas seculares e intransitáveis, a occal-
tas da vista e communicação do homem, arrancados do tumulo da
insciencia, ora pelo próprio testemunho de Florentino, ora pelas
dezenas de outros testemunhos respeitáveis, nenhuma similhança
architectonica e artística têem com as velhas e derrocadas cidades
e edifícios da índia, do Egypto, da Etruria, etc.» Além d'estes,
outros muitos fados provam evidentemente que o homem ameri-
cano é originário da própria America.
É-nos impossível nesta revista uma analyse completa do Ho-
mem Quaternário do doutor F. Ferraz de Macedo. Concluindo, di-
remos que é um livro que precisa ser consultado pelos que se de-
dicam a este género de trabalhos, e com o qual a sciencia multo
lucrou. A linguagem é primorosa, fluente, a exposição clara, no-
tando-se em algumas paginas, puramente descriptívas, uns toques
verdadeiramente artísticos. As palavras dos primeiros vultos da
sciencia moderna, laes como Topinard, Le Bon, e outros, consa-
gradas a este livro, bastam para definir o seu valor scientifico e
o apreciarmos como um dos trabalhos recentes de maior impor-
lancia.
Reis Damáso.
A POESIA DAS ALDEIAS
123
.J3L uacsía das aíueías
As Janeiras
No dia 31 de dezembro, e ainda no 1.° de janeiro de manhã, é
costume em muitas terras de Portugal andarem bandos de rapa-
zes, raparigas, ele. a cantarem pelas portas, pedindo as Janeiras.
Eis uns versos que se cantam n'uma aldeia do concelho de Sin-
fães, e eu os dou ao mesmo tempo como espécimen de linguagem
popular :
As Janeiras num se canto
Nem aos reis, nem aos fidalgos :
Canto -se a estes sinhores,
Por ser anno milhorano,
Milliorano na saúde.
Descontado nos peceados i
Vós que estaes na vossa cama.
Entre dois lançoes lavrados,
Mandae-nos dá-las Janeiras
Em louvor de S. Gonsalo :
Eile vos manda pedir
Que as deis com devoçom,
Que elle vos tem promettido
De vos dar a salvaçom.
Qué-las deis, qué-las num dois, ^
Sempre co'os anjos fiqueis;
E qué-las daes, qué-las num daes.
Sempre co'os anjos ficaes.
— Quem diremos nós que viva
No cópintio d'auga-ardente ?
— Viva o patrão d'esta casa
E mais toda a sua gente.
— Quem diremos nós mais que viva
Na casquinfia da cebola ?
— Viva o patrão d'esta casa
E a sua senliora.
II
Os Reis
O mesmo costume das Janeiras repeíe-se na véspera á tarde e
á noite do dia 6 de janeiro, e mesmo no próprio dia de manhã.
As seguintes cantigas são do mesmo concelho :
^ Versões d'outras partes dizem por ser anno melhorado. Na Beira Alta é cos-
tume, quando se come uma cousa pela primeira vez, dizer :
Anno,
Milhorano.
Deus nos deixe ctiegar ao anno (anno seguinte).
2 Quer as deis, etc.
126 EiNCYCLOPEDIA REPUBLICADA
— Que pastores som aquelles
Que vem á beira do rio ?
— Som aquelles santos Ileis-Magos >
Que vem adorar o menino.
O menino stá na neve
E a neve o faz tremer :
(j meu menino Jàsus,
Quem vos pudera valer I
Entrae, pastores, entrae
Por esse portal sagrado :
Lá vereis star o menino
Nuas palhinhas líeitado.
As palhinhas déitom lírios,
Oh que bellos três niarlyrios I
As palhinh;is déitom rosas,
Oh que bellas três formosas I
Lá vem na pombinha branca
Á ponta da oliveira :
Viva o senhor d'esfa casa
A 2 mai-la sua companheira.
Sobreirinho ramalhudo,
Já le cahiu a belota :
Se nos hom-de dá-los Reis,
Mande-nos abri-la porta :
Qué-los deis, qué-los num deis,
Co'a graça de Jâsus fiqueis.
Este final de boa resignação é subsliluido no Minho (e creio que
n'outras partes), pela seguinte imprecação, quando as pessoas da
casa não dão nada.
Esta casa é de Ijarro,
Aqui mora algum diabo ! etc.
Porto, Março 82.
J. Leite de Vasconcellos.
1 Variante : Reisnados.
2 Sobre este a publicaremos, talvez breve, um artigo.
SUISSA i27
Suissa
Todos quantos em Portugal tratam de viilgarisar as instituições
republicanas, usam de ordinário apresentar-nos a França como o
modelo das democracias. Os jornaes de todos os matizes encare-
cem à uma a republica franceza, extasiam-se perante os seus
grandes homens, Gambetta e Grevy tomam as proporções de semi-
deuses, tão invioláveis, infalliveis e indiscutiveis como os chefes
das monarchias.
Assim pensam e escrevem os que ignoram as leis orgânicas da
Suissa.
Os que passaram a juventude mettidos nas sacristias, nas pro-
cissões, nas touradas ou philarmonicas, nos salões da aristocracia
decrépita ou faminta ou nas salas da burguesia ignara e egoísta
não tem capacidade para comprehender o ideal moderno de pro-
gresso e justiça e precisam de substituir na mente os Ídolos que
deixaram por outros cujo papel se coadune mais com as suas as-
pirações de deslumbramento alvar e fútil.
Chegam a esquecer que ha em França uma formidável phalange
de caracteres de elite, apóstolos fervorosos da ideia, sempre prom-
ptos a arrostarem com lodos os sacrifícios, não transigindo nunca,
porque nada mais ambicionam que a victoria dos seus princípios
e essa phalange de homens eminentes, na industria, na sciencía,
no commercio e nas artes, depois de soffrerem o desterro, a emi-
gração e o cárcere, vêem debalde, ha onze annos, reclamando re-
formas que ponham em vigor uma parte das leis já decretadas,
ha cerca de um século pela Convenção, garantindo os direitos in-
dividuaes, augustos e inauferíveis. Hoje mesmo que a França ex-
pulsa do seu solo os íllustres emigrados russos^ a Inglaterra ofte-
rece-lhes um asylo seguro. Touco importa aos que governam que
os republicanos históricos protestem. Nos decretos da reacção lá
vão encontrar qualquer disposição para justificarem o arbítrio e só
assim, sustentando a Concordata, que reconciUou o Papa com o
primeiro imperador e com que o ultimo enfeudou a França ao
papismo, só assim é que os republicanos de hontem, os Gambettas,
os Ferrys preterem os homens da experiência e dos sacrifícios, e
captam a estima e a benevolência dos príncipes e imperadores,
que os sustentam, em vão esperando ensejo de poderem asphixiar
a Republica.
É por isto que um resumo das instituições politicas da Suissa
se torna extremamente preciso e útil. Vamos por isso esboçal-o,
soccorrendo-nos principalmente a Charbounier por ser o mais re-
sumido e adequado ao fim que temos em vista.
128 ENGYCLPEDIA REPUBLICANA
Para nós é até de um conforte extraordinário o fallar d'este he-
róico e pequeno povo, que vive independente ha cerca de cinco
séculos, sempre livre e progredindo. Sem a intervenção dos gran-
des homens e dos milagres soube consolidar a sua autonomia,
n"um periodo em que o despotismo era omnipotente na Europa, e
a ignorância profunda. Bastou-lhes o quererem para fundarem a
communa e o cantão, as duas agrupações naturaes e mais legiti-
mas dos povos, que fazem estremecer de horror todos os elemen-
tos reaccionários e que finalmente constituem a felicidade da
Suissa, unindo n'uma nacionalidade admirável dois milhões e se-
tecentos mil homens, allemães, franceses e italianos, fallando cada
um a sua lingua e professando cada um o seu culto. É que só a
Federação faz d'estes prodígios!
*
* * "
A historia da Suissa é poética e heróica como a de quasi todos
os pequenos estados. É a lucta da consciência contra o privilegio
e o abuso, e o mais frisante e feracissimo exemplo de quanto pode
o povo que se apoia na razão e na verdade. Rudes montanhezes,
durante mais de dois séculos luctaram contra os exércitos do impe-
rador da Áustria, derrotando-os successiva e constantemente, sem
surgir o nome de nenhum general ou grande sábio.
Os três cantões da Uri, Schwitz e Unterwaid, para se subtrahi-
rem á oppressão dos pequenos senhores, sollicilaram a protecção
da casa de Habsbourg, em 1273, a qual reconhecendo-lhe ao prin-
cipio as suas franquias em breve tentou converter em soberania
os direitos de simples patronage. Os agentes do duque Alberto,
sobretudo Gessler que figura na lenda de Guilherme Tell com as
cores sinistras de um conde Andeiro, de dia para dia tornavam-se
mais déspotas e implacáveis. Foi contra a lyrannia da casa dAus-
tria, que os três referidos cantões decidiram revollar-se, estabele-
cendo entre si uma alliança, pactuada pelos delegados dos Ires
pequenos estados, no valle de Grulli, num golplio do lago dos
Quatro-Cantões, a 7 de novembro de 1307, jurando Werner, Stauf-
facher, AYalter Furst e Arnold de Melchthal, libertarem para sem-
pre a sua pátria.
No primeiro de janeiro de 1308 rebentou a revolução, que veiu
a concluir só em 13 de novembro de 1313, com a batalha deMor-
gaten, um prodígio de varonil heroísmo, em que um exercito
aguerrido foi aniquilado por um bando de valentes e rudes pasto-
res, quasi que não tendo por armas mais do que paus e pedras e
por muros as alcantiladas penedias da sua pátria. Unidos pela au-
gusta aspiração de liberdade e pelo perigo commum os três can-
SUÍSSA 129
toes renovaraQi a liga de 1291, em Brunnen, a 9 de dezembro
de 1315, proseguindo victoriosos na Incta e alcançando a adhesão
de outros cantões, Liicerna em 1332. Znrich em 1351, Zug e
Glaris em 1352 e Berne em 1353, não podendo algum cantão re-
conhecer um senhor, nem emprehender negociações ou tratados
sem o consentimento dos demais.
Constantemente em guerra com os potentados visinhos e suíTo-
cando muitas vezes as insurreições internas que lhes fomentavam
os inimigos, depois das batalhas de Granson e de Morat, as Ter-
mopilas da Saissa, a bravura deste povo tornou-se proverbial na
Europa, com a derrota que infligiu a Carlos, o temerário, duque
de Borgonha, em 1476, e o império pelo tratado de Bale, em
1499, leve de renunciar ás suas pretenções de conquista, reco-
nhecendo a autonomia da Suissa.
Os cantões de Fribourg e Saleure em 1481, Bale e Schafíhouse
em 1501, Appenzell em 1513 adheriram á liga, elevando-se a 13
o numero dos cantões.
Durante a guerra dos trinta annos a Suissa teve de repellir as
aggressões da Hespanha, vindo finalmente a Europa a reconhecer,
de facto e de direito, a autonomia da Helvécia pelo tratado de
Westphalia em 1648.
Desde então só as questões religiosas perturbaram o paiz, in-
troduzindo Zwingie o protestantismo em Zurich em 1519, e Cal-
vino em Genebra, adherindo á Reforma a maior parte dos 13 can-
tões.
A Revolução Franceza que foi uma almenara de luz que veiu il-
luminar os espíritos, agitou a Suissa, e começou então ali a orga-
nisar-se o partido liberal, cujo programma exigia a egualdade de
direitos para todos, a unidade da Suissa, acabando de vez a dis-
lincção de cantões soberanos e cantões vassalos. Bonaparte inter-
veiu em favor dos liberaes e a Republica Helvética, una e indivi-
sível, foi confirmada com a victoria de Stanz, em 9 de setembro
de 1798. O génio da guerra e do extermínio foi n'este paiz um
impulsor eííicaz, e por certo inconsciente, das ideias liberaes. Os
princípios democráticos germinavam na mente do povo, ao qual
•faltava a capacidade de estabelecer a forma de os tornar práticos,
e por isso a intervenção de Bonaparte, dando á Suissa uma con-
stituição federal, mas centralisadora, acabando com as desegualda-
des anteriores e dividindo o território em 19 cantões, foi um be-
neficio politico, porqne em vez de matar a questão, os ânimos agi-
laram-se, os princípios debateram-se e a luz fez-se nos espíritos,
chegando-se á conclusão de que a única forma de consolidar a li-
berdade e fundar a egualdade civil é a descentralisação ou o fede-
ralismo.
Desde a Revolução Franceza até hoje teve a Suissa de passar
17
130 ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
por períodos agiladissimos e crises difficeis. Os sinceros liberaes
e velhos patriotas por vezes tiveram de pedir o auxilio do estran-
geiro para fazerem pela violência trinmphar os seus principios.
Lahnrpe e Ochs tiveram de recorrer á protecção da França, para
fazerem a unificação e acabar de vez com os senhores feudaes
que os opprimiam. Este predomínio da França foi vergonhoso e
crudelissímo, a verdadeira prostituição dos principios que as bayo-
netas iam defender ali. Entretanto deu aso a que Stapfer, minis-
tro das artes e das sciencias, decretasse a reforma do ensino,
como base de todo o progresso e da felicidade publica. Em cada
capital de cantão organisou um conselho de educação, composto
de sete membros e um inspector de instrucção publica, para tls-
calisar as escolas e nomeiar professores competentes e aptos para
o ensino. Foi a instancias de Slapfer que o grande Pestalozzi e
os seus dois discípulos Fellenberg e Wehrli se dedicaram a re*
formar o antigo systema de ensino, publicando um jornal em que
vulgarisava as suas theorias de pedagogia, e montando em Stanz
uma escola para as crianças pobres, que elle pessoalmente regia.
A instrucção superior soíTreu o mesmo impulso reformador. Com
os escassos capitães do poder centralisado fundaram-se gymnasios
6 delineou-se a fundação da primeir? escola polytechnica suissa,
crearam-se sociedades litterarias e artísticas, fundaram-se jornaes,
revistas e bibliothecas populares publicas. Os exforços heróicos
d'este homem, que tanta luz diíTundiu sobre o seu paiz e que não
fez reformas á Pombal, mas sim segundo os principios da liber-
dade e justiça, por vezes foram contrariados. Pestalozzi e elle vi-
ram-se ridiculisados e calumniados, porque a arislhocracia ferida
nos seus privilégios e o clero nas suas especulações trataram de
attrahir a si as massas ignaras e contra a França que os roubava,
mas illuslrava, pediram o auxilio da Áustria. Deu-se aqui um phe-
Domeno extraordinário : os unitaristas ou centralistas eram os de-
mocratas protegidos pela França, os federalistas ou partidários da
antiga constituição que não era subrnettida á sancção geral do
povo, reunido em plebescito, eram os retrogados religiosos, se-
cundados pela Áustria christianissima.
Este periodo, que iniciou a resurreição de um povo heróico, é
em extremo curioso, e por isso antes de entrarmos no assumpto
principal d'estes artigos, que vem a ser o actual mechanismo po-
litico da Suissa, exporemos, o mais concisamente possível, as fre-
quentes vicissitudes, a enorme fermentação politica por que pas-
sou a Suissa até chegar nos nossos dias á prosperidade que ne-
nhum outro povo ainda attingiu.
(Segue).
o CASAMENTO CIVIL 131
O ctisaiiieiiía civil
Acabava de soar a ultima badalada do meio dia.
A noiva impaciente andava agitada pela casa chegando repeti-
das vezes á janella. Eram já horas, e a senhora que a devia acom-
panhar á administração ainda não apparecera.
Um trem da Companhia esperava á porta. O cocheiro encostado
à almofada tinha adormecido.
Era um casamento civil.
A visinhança, que sempre apparece n'estas occasiões para não
jurar falso, chegava ás janellas cochichando e entremeiando a pa-
lestra com risinhos irónicos. Duas visinhas faltavam indignadas
do casamento. Era um gosto ouvil-as I
— O' visinha, viu-se já uma coisa assim! dizia uma velha sol-
teirona despeitada por não se ler casado.
— Não, que na minha vida nunca julguei chegar a ver tal !
— Foi preciso virem aquelles malditos americanos. . .
— Republicanos, emendou a visinha que era um pouco mais il-
lustrada.
— Pois seja I Republicanos ou americanos é tudo a mesma coisa,
— Não visinha, isso não, replicou a outra, que não deixava pas-
sar occasião alguma de mostrar o seu saber. E preparou-se para
explicar.
Tossiu duas ou Ires vezes, escarrou e depois de se ter conve-
nientemente assoado começou assim :
— Americanos são os habitantes lá d'esses Brazis que, por sig-
nal, são muito ricos. Sempre me lembro d'aquelle meu compa-
dre, que Deus haja, que sempre tinha coisas mais lindas ! Elle
era um papagaio, elle era um periquito, elle era um macaco...
Sempre tinha coisas ! aquillo só visto. . .
«E republicanos, esses são. . . são. . . » e ficou atrapalhada.
— Até dizem que querem matar a rainha ! disse por fim sa-
hindo dos apuros em que estava.
— Ora vejam vocês ! Disse a velha escandalisada.
— Pois é preciso serem muito malvados I A pobre senhora tão
boa! coitadinha. . . que não faz mal a ninguém. . . accrescentou
3 outra em tom de lamuria.
— Pois esses excommungados, Nosso Senhor me perdoe, não
lhes posso dar outro nome, esses excommungados é que trouxe-
ram cá essa ideia.
— Qual ideia?
— A do casamento civil. E chamam elles a isto um casamento !
Não, eu. . .
132 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
— Não está mau casamento! exclamou a outra. Cá na minha
não passa d 'uma mancebia.
— Diz muito bem, visinha, applaudiu a velha. Aquillo é como
os cães. . .
— De certo. Sem receberem as bênçãos do padre I É mesmo
uma consciência !. . .
— E aquella menina. . . disse a velha referindo-se á noiva. Nunca
esperei tal !
— Nem eu! Quando me lembro que ella assistia à missa com
muita altenção, com o seu livrinho. . .
— É verdade, confirmou a velha. Sempre se vê coisas ! Quem
havia de dizer ?
— Aquella sonsinha enganou-me bem.
— A mocidade está perdida ! e.xclamou a velha em tom sen-
tencioso.
— Jà não ha religião, accrescenta a outra.
— Tudo vae com a moda... disse a velha com um suspiro.
— Olha, grita de repente uma visinha do lado, lá vem dois
trens.
— Agora devem ser elles, disse uma para a outra.
Eram efleclivamenle elles.
Pararam à porta da casa ao pé do da Companhia e sahiram de
dentro três sujeitos todos de preto com gravata e luvas brancas e
uma senhora, já de edade, com um vestido escuro e um chapéo
preto enfeitado de rosas escarlates.
Uma rapariga travessa debruçava-se da janella dizendo que que-
ria ver o noivo.
Mostraram-lhe e ella exclamou desconsolada :
— È um pausinho !
As visinhas fizeram coro, ainda que bastante desafinado, ás
gargalhadas.
— Olha a tola! Tomaral-o tu assim, disse outra rapariga com
voz esganiçada.
— Cala-te Francisca, retorquiu a outra, tu falias assim porque
o leu Anastácio é também um niagricella. . .
— Melhor! Meu proveito. . . exclamou a rapariga despeitada.
Pouco depois dizia uma das Marias-visinhas :
— Olha, lá sabem agora.
Saltava n'este momento para o trem da Companhia, deixando
ver o pequenino pé calçado n"umas botinas brancas, uma menina
trigueira d'olhos castanhos e cabellos da mesma côr, toda vestida
de branco e com flores de larangeira. Ao lado d'ella sentava-se
a senhora já dedade que acabara de chegar. Em cada um dos
outros trens metteram-se dois indivíduos, e em seguida as carrua-
gens pozeram-se em movimento parando na administração.
o CASAMENTO CIVIL 133
Escusado será dizer que as visinhas continuavam tocando ad-
miravelmente rebeca sem necessitarem d'arco, á espera da volta
dos noivos.
Entretanto a mãe da noiva conservava-se no seu quarto era
companhia d'uma creada antiga da casa.
Era uma senhora de quarenta e tantos annos, magra e ainda
bastante formosa. No seu rosto viam-se vestígios de lagrimas re-
centes.
A boa da creada olhava para sua ama com compaixão.
Porque estaria triste a mãe no dia do casamento da filha?
Tentemos explical-o.
A filha tinha tido durante alguns mezes namoro com ura rapaz
que se decidiu a pedil-a em casamento. Assim foi, e a mão da me-
nina Laura não lhe foi recusada, porque por inforraações obtidas
era um bom rapaz.
Mas quando este declarou que só se casaria civilmente as sce-
nas mudaram.
Foi um inferno lá em casa ! A mãe determinou formalmente que
d'esse modo recusava.
Houve discussão, deu um faniquito á menina e por fim o papá
declarou que tudo vinha a ser o mesmo, tanto fazia ir á egreja
como á administração, e disse para os rapazes «que se casassem
que a mãe havia de se convencer.» Mas não se convencia, não.
A mãe «detestava as ideias novas» e «queria seguir a religião de
seus pães.»
Eis a razão porque ella estava triste no dia do casamento da
filha.
Reinava, havia um momento, o silencio no quarto, quando a se-
nhora rompendo-o disse para a creada :
— Minha boa Anua, já se foram?
— Sim minha senhora. Partiram agora.
— Ah! A minha filha... soluçou ella.
— Não se apoquente assim que lhe faz mal.
— Tens rasão, de mais me tenho eu ralado ! E acrescentou sus-
pirando:
— Não posso ver aquillo! Para mira minha filha não fica ca-
sada.
— De certo, de certo, confirmou a Anna. E se vem os filhos?
— É de quem eu tenho pena. Sem serem baplisados...
— Ficam uns irracionaes ; disse a Anna com convicção.
— Pobres anginhos ! Pode-se ter compaixão... Pouco depois ac-
crescentava com amargura :
— Casamento ! Ora não ha I ... É um contracto, uma escriptura
como se fosse uma renda de casa.
134 ENCYCLOPEUIA REPUBLICANA
— Depois d'aborrecidos, cada um vae para seu lado e acabou-
se... accrescentou a Anna.
— Ê commodo ! disse a senhora com um riso nervoso que in-
commodava ouvir.
— Infelizmente sua filha segue as ideias modernas...
— Quem tem a culpa é o pae. E diz-me elle que me hade con-
vencer. Nunca, nunca 1
— Estou certa que a senhora nunca mudará d'ideias.
— Oh! seguirei sempre a religião de meus pães, embora se
riam de mim. Nunca admittirei o casamento civil.
NMsto ouviu-se o rodar dos trens que pararam á porta. Eram os
noivos que chegavam.
Dois annos depois, á porta da mesma casa estavam parados
dois trens.
A visinhança estava alvoroçada, havia grande novidade n'aquella
rua.
0 que seria? A coisa mais natural — um casamento.
A mãe de Laura, que tinha enviuvado, estava ainda bastante
conservada, e depois d'enterrar o marido tratou d'arranjar substi-
tuto. «Precisava duma companhia» dizia ella.
Era pois uma coisa tão natural que preoccupava a visinhança ?
De certo.
Um casamento d'uma viuva não era para menos. Mas não era só
isto, o casamento era... civil.
A' sabida da administração, quando a mãe de Laura subia para
a carruagem, sentando-se ao lado do esposo, disse baixinho:
— Bem me dizia meu marido que me havia de convencer. Ao
menos dou graças a Deus por poder provar-lhe que as suas pala-
vras não foram em vão.
E accrescentou em seguida :
— Egreja... administração... tudo serve. O fim é o mesmo.
E recostou-se na carruagem apertando nas suas as mãos do se-
gundo marido.
Alberto Bastos.
ÊonTBrericias nreUniíaares ao êeiiteriaria
ae Èuniòes
1 Camões e a Nacionalidade portugueza, por Theophilo Braga.
(Salão da Trindade, em 3 de Maio de 1880.)
II Leitura, de Vasconcellos Abreu, sobre lendas buddicas no
poema de Camões. (Sociedade de Geographia.)
CONFERENCIAS DO CENTENÁRIO DE CAMÕES 133
III A lingua portugiieza e a unidade nacional, por Adolpho Coe-
lho. (Sociedade de Geographia.)
IV A Odyssea Camoniana, por Pedro Gastão Moreira. (Salão da
Trindade.) "
V Camiões e a Nacionalidade portugueza, leitura de Teixeira
Bastos. (Salão dos Empregados do Commercio.)
VI Camões e a Renascença, leitura de Ramalho Ortigão. (Salão
da Sociedade de Artistas Lisbonenses.)
VII A vida intima de Camões, conferencia por Theophilo Braga.
(Salão da Trindade.)
VIII Camões, sua vida, sua época e Obras, conferencia de An-
tónio José Lourinho, (Instituto agrícola e industrial.)
IX A Renascença, conferencia de Sertório do Monte Pereira.
(Idem.)
X Camões e a Pátria, conferencia por Pinheiro Chagas. (Salão da
Trindade.)
XI Camões e o espirito popular, conferencia por Theophilo Braga.
(Salão da Associação Pelicano.)
XII A mythologia dos Lusíadas, conferencia por F. Adolpho Coe-
lho. (Salão da Trindade.)
XIII Camões e a índia, leitura de Christovão Ayres, (Sociedade
de Geographia.)
XIV Camões e a integridade nacional, conferencia de Manoel de
Arriaga. (Salão da Trindade.)
XV Camões e a Renascença em Portugal, conferencia de Adol-
pho Coelho. (Curso Superior de Letras.)
XVI Camões é uma litteratura inteira, conferencia de Theophilo
Braga. (Curso Superior de Letras.)
XVII Camões e o século XIX, conferencia de Hugo Leal. (Cen-
tro republicano federal.)
XVIII Camões, a sua época e a sua ideia, por Affonso Vargas.
(Na rua dos Douradores. )
XIX Sobre as Descobertas dos Portuguezes, conferencia de
Egberto de Mesquita. (No Instituto Agricola.j
X\ Camões e o Jesuitismo, conferencia por C. de Salamonde.
(No Collegio Lusitano.)
XXI Camões e o Algarve, conferencia por Martins Contreiras.
(Centro republicano democrático).
XXII Camões, a Typographia e as Sciencias do século xvi,
conferencia de Theophilo Braga. (Associação typographica lisbo-
nense.)
XXIII Camões e Gil Vicente, conferencia de Theophilo Braga.
(Na Associação dos Ourives da Prata lisbonenses.)
XXIV Camões e o Federalismo peninsular, conferencia de Theo-
philo Braga. (Centro republicano federal.)
136 EXCYCLOPEDIA REPUBLICA^A
XXV Camões e as Mulheres portuguezas, por D. Margarida Vi-
ctor. (Sociedade de Geographia.)
XXVI Camões e a Sociedade portugueza, por D. Angelina Vidal.
(Salão da Trindade.)
XXVII Camões e o ideal da Humanidade, conferencia de Manuel
de Arriaga. (Centro republicano federal )
XXVIII Bernardes Branco, conferencia.
XXIX Brito Aranha, conferencia. (Na Associação promotora das
Classes laboriosas.)
XXX Silvestre Bibeiro. (Idem, idem.)
XXXI Camões e as tradições portuguezas, conferencia de Theo-
philo Braga. (Sala da Associação promotora das Classes laborio-
sas.)
XXXII Pedro de Oliveira Pires, conferencia.
XXXIII Baptista Ferreira, idem.
XXXIV Alves Corrêa, Leitura : Camões e os protestos contra a
decadência nacional. (Centro republicano federal.)
XXXV Leitura de João José de Sousa Telles. (Na Associação
promotora das Classes laboriosas.)
XXXVI Leitura de Brito Aranha. (Idem.)
XXXVII António Augusto Pessoa. Camões, a Litteratura e a Na-
cionalidade portugueza. (Quartel de caçadores 2, em 9 de maio.)
XXXVIII Magalhães Lima, Influencia do Centenário de Camões
na sociedade portugueza. (Cooperativa de Instrucção.)
De quasi todas estas conferencias existem noticias nos jornaes,
d'onde extrahimos os seus lilulos ; algumas foram publicadas em
opúsculos. Seria um magnifico trabalho o reunil-as em volume,
obtendo dos seus auclores quando não o próprio texto da confe-
rencia, pelo menos uma summa que desse uma clara ideia. Er-
guia-se assim um monumento, que sendo uma das mais bellas glo-
riflcações do grande épico nacional, nos ensinaria que se as socie-
dades antigas se moviam por mteresses e paixões, modernamente
os povos só se levantam pela unanimidade das ideias.
Theophilo Braga.
vsterios du noite
Ao inspirado e mimoso poeta do Atheu, o ex"" sr. José Joaquim Vieira,
como testemunho de respeitosa gratidão,
dedica o auctor
4 Da noite o véo espesso, immenso e tenebroso,
D'ignotas regiões ha muito já desceu
Sobre a terra prostrada em mórbido repouso.
MYSTERIOS DA NOITE 137
Não brilha um astro, um só, mrs amplidões do Céo.
E as aves do Terror, piam íunebremente
Das velhas cathedraes no agudo coruchéo.
No vasto leito o Mar resfolegar se sente,
E quebram o silencio as brisas gemebundas
Dedilhando no espaço o seu queixar dolente.
Parecem escutar-se as vozes moribundas
Dos negros cyprestaes, onde uma crença errónea
Nos diz a Morte erguer-se em commoções profundas.
Dorme apparen temente a grande Habylonia.
Mas parte d'esse monstro abjecto pustuloso,
Entrega-se com anciã á bestial insomnia.
Não chega o somno, não, ás regiões do goso,
A's espeluncas vis, ou, aos antros temíveis
Onde inda tripudia o Vício criminoso.
A desolada noite abysmos tem horriveis.
— No coração da treva, qs ruivus miseráveis
Commettem por prazer delictos bem puníveis !
Nos salões do íp-and monde, esposas muito amáveis,
Adulteras gentis I conversam i-o'os amantes
Bem perto dos barões — maridos execráveis ! . . .
Austeros ordeirões. censores petulantes,
Catões á luz do sol, extenuados da or^ia
Fumam o seu breiè nos seios das bacchantes.
Um fulvo conselheiro e a mulher séL'ca e fria,
No remanso do lar, tratam vender a filha,
— Figurino animado, uma flor da anemia.
Na alcova sensual e que a morna baunilha
Incandesce e perfuma, a lúbrica hespanhola
PrenJe o Creso burguez nas malhas da mantilha.
Em doida saturnal o homem ébrio rola
No atapetado chão. . . esquecido de todos. . .
Lembrado só da mãe, que a magoa desconsola !
Os filhos dos Heroes, debatem-se nos lodos
Das baixas corrupções, co'as gastas Messalinas
D'alma enfraseada em vinho e fementidos modos !
Votando á fome a esposa a as filhas pequeninas
Um miserável entra em sórdida espelunca
E aos bons punhados joga as lib:-as sterlinas ! ! . . .
— O jogo, tentador, esconde a garra adunca
Em montes de metal aurífero, ardiloso,
E aquelle que empolgou não torna a soltar nunca ! —
18
138 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
O sybarila sorna, immundo, esguio, gotoso,
Fareja aqui, ali, qual lobo esfomeado,
As frouxas sensações d'um vicio crapuloso !
Um vullo feminil — quem sabe? ente adorado —
Arremessa ao monturo um tenro corposinho,
Que ba pouco inda nasceu, em trapos embrulhado. . .
Transforma, outra, em aleouce o tbalamo, o almo ninho,
O quarto conjugal, e mata o amor mais puro
Na turva embriaguez dum doido torvelinho!
Romântica Julieta, um pomo azedo, impuro,
Olvida os pães e foge em rapto singular
Co'um Romeu que possue. . . a cadeia por futuro.
N"um albergue sem iuz escuta-se o chorar,
O pranto de mulher. . . É o noivo em desvario J
De vinho ardente e mau, que a tenta estrangular I 1
Na rua o commensal d'um pandigar sombrio
Insulta sem pudor com chufas immoraes
Um velho triste e só, que esmola lhe pediu I
Nas mesas dos festins brilhantes de crystaes,
Reboam do tripudio os ditos vis,, profanos,
As lúbricas canções das velhas saturnaes.
É tuilo podridão I E os fétidos arcanos
Inda não descerrei !. . . Mas ai I os criminosos
São todos bons christãos catholicos romanos. . . ]
Amantes são dos reis, são crentes fervorosos ; i
Com mui devota unção, eonfessam-se, ouvem missa,
Deprecam sempre a Deus nos psaímos lacrymosos. . .
Detestam a Razão por mystica perguiça :
Newton, Kléper e Bruno — os límpidos clarões.
E á luz do Saber na magestosa liça
Oppõem o declamar dos gastos histriões.
Lisboa 21 de setembro de 1879.
Xavier de Paiva
Aulílu Cl jiroíiosiÍQ da questão Jus vivisecções
O artigo que cu tive a honra de publicar na Enajdopedia Repu-
blicana e que motivou o toUietini do sr. Alexandre da Conceição
no numero ;U9 do Século, está bem visto, não tem nada que
ver com a questão pessoal. O sr. Alexandre da Conceição dignou-se
de me responder, nos mais delicados lermos é verdade; mas com
certas piadas e trocadilhos que eu receio que reduzam a altura da
AINDA A QUESTÃO DAS VIVISECÇÕES 139
sua resposta. Cabe-me pois dizer mais alguma coisa, apezar de
siippòr que a minha melhor resposta seria pedir ao sr. Alexandre
da (Conceição que considerasse seriamente na sua.
S. ex.^, no seu folhetim, apresenla-nos o artigo Jonh Buli como
a única cousa que se poderia escrever depois da leitura da carta
de Darwin ao professor Holmgren e das palavras da redacção da
Remie Sdentifique que precedem essa carta. Não tanto a propósito
d'este incidente entre mim e o sr. Conceição, como para tornar
bem conhecida entre nós a maneira delicada e prudente d'ella
qual costuma a emittir a sua opinião a gente que se não dedigna
de ser mstructor da mocidade, traduzo aqui a carta do sábio
Darwin.
Down Beckenham, 14, de abril de 1881.
Caro sr.
Respondo á vossa amável carta de 7 de abril, e nenhum emba-
raço me causa o dizer-vos o que penso do direito que têem os sá-
bios de fazerem experiências sobre animaes vivos. Sirvo-me d'esta
expressão porque a julgo mais correcta e mais fácil de compre-
hender do que a palavra vivisecção. Vós podeis fazer da minha carta
o que melhor vos parecer ; mas se a publicardes, desejo que seja
por inteiro.
Fui sempre partidário da doçura para com os animaes, e, nos
meus escriptos, esforcei-me por espalhar esta idéa que considero
como um dever. Quando o movimento contra os physiologistas co-
meçou na Inglaterra, ha jà muitos annos, aíTirmou-se que se pra-
ticava actos de crueldade contra os animaes e que se lhes infligia
soffrimentos inúteis ; eu pensei então que o parlamento devia in-
tervir a favor dos animaes. Tomei activa parte no movimento e
reclamei uma lei que supprimisse toda a razão de queixa, deixando
comtudo aos physiologistas a liberdade das suas indagações ; e o
meu projecto era bem differente da lei que foi depois votada.
Devo ajuntar que a inspecção feita por uma commissão real pro-
vou a falsidade das accusações feitas aos physiologistas inglezas.
Comtudo, pelo que ouço dizer, creio que em certos paizes da
Europa não se faz muito caso dos soffrimentos dos animaes. Se as-
sim é, ser-me-hia agradável saber que se tomava medidas para im-
pedir estes actos de crueldade.
Por outro lado, sei que a physiologia não pode fazer nenhum
progresso supprimidas as experiências nos animaes vivos, e tenho
a intima convicção de que retardar os progressos da physiologia
é commetter um crime contra o género humano. Quem, como eu,
se lembra do estado d'esta sciencia ha cincoenta annos, deve re-
conhecer que ella tem feito immensos progressos e que avança
cada dia com uma rapidez crescente.
140 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Quaes são, na pratica da medicina, os progressos que se pode
attribuir directamente á physiologia, é o que só os médicos e os
physiologistas podem discutir com competência : mas, tanto quanto
eu posso julgar, os benefícios recebidos são já consideráveis.
A não se ignorar absolutamente tudo o que a sciencia tem feito
pela bumanidade, deve-se estar convencido de que a physiologia
é chamada a prestar no futuro ao homem e mesmo aos animaes
incalculáveis benefícios. Veja-se os resultados dos trabalhos de M.
Pasteur sobre os germens das doenças contagiosas ; os animaes não
serão os primeiros a utilisar esses resultados? Quantas vidas se
tem salvado, quantos soffrimentos poupados, com a descoberta dos
vermes parasitas, devida ás experiências de Wirchow e outros
sobre os animaes vivos !
Causará admiração, mais tarde, a ingratidão que a Inglaterra
mostrou para com estes bemfeitores da humanidade.
Quanto a mim, deixai-me assegurar-vos que honro e que hon-
rarei sempre todo aquelle que contribuir para o progresso d'esta
Dobre sciencia — a physiologia.
Sinceramente vosso.
Carlos Darwin.
N'esta carta, como se vê, faltam as expressões: — «caixeiros
carolas e brutos; tolice violenta, ridícula e bestial.» O sr. Alexan-
dre da Conceição, não obstante considerar a phrase de Darwia
particular «d"aquelle espirito ordeiro e característico dos seus li-
vros mais revolucionários», quiz remediar essa falta, e o seu ar-
tigo, inspirado pela carta do auctor da Ongin of species, como s.
ex.* diz que é, é tudo menos a inspiração d 'um «modesto divul-
gador do espirito scientifico do seu tempo, que junta a nullidade
da sua opinião ás vozes auctorisadas dos primeiros homens da
sciencia contemporânea». O sr. Alexandre da Conceição entendeu
que, sem aquelles epilhetos formosos, o caracter inglez não podia
ser «cordealmenle abominado» e fez mais alguma cousa : — oscre-
veu-os, sobre aquelle assumpto que ainda lhe parece sem rival para
uma «troça» e para uma«descomposlura» com todo o pezo da au-
ctoridade portugueza!
Ao ver isto, eu pensei em que era dever de nós todos irmo-nos
revoltando contra as «liberdades de adjectivação pouco parlamen-
tares e menos académicas.»
A phrase poUuida que a todos custa a ouvir da bocca da plebe,
não pode continuar a figurar na nossa litteratura como elementa
indispensável de uma linguagem expressiva. D'outromodo, o rea-
lismo e toda a litteratura que d'elle se alimenta podem preoccu-
par-se do sétimo volume de Bocage e suppór que somos lodos uns
AINDA A QUb:STÃO DAS VIVISECÇÕES 141
ignorantes que carecemos de ouvir «a palavra» para sabermos que
se trata de mullier publica, e que nos niio desviamos das immun-
dicies da estrada se lá não estiver um rotulo bem claro.
Condemnar as nossas mulberes e as nossas filhas a não terem
na lingna pátria um romance que melhor se chamaria verdadeira-
mente moderno e scienlifico, austero como a linguagem da scien-
cia que tudo sabe dizer sem ser erótica, parece-me uma falta grave;
querer vulgarisar as mais elevadas questões scientificas e attrahir
sobre ellas a attenção serena e firme do publico, mislurando-lhes
um phraseado contrario e dando o exemplo de imprecações popu-
lares e impróprias, pareceu-nos uma falta maior ainda.
Notando as palavras do sr. Alexandre da Conceição, nós não
quizemos de modo algum censural-o na sua pessoa, mas apenas
defumar-nos desta epidemia litteraria que nos obriga, homens cor-
tezes com toda a gente na conversação, a fa liarmos em forma de-
sabrida, comos, ex.^ chama ao systema, nos escriptos que produ-
zimos.
Que a exemplo de Holmgren, Darwin, ^Yirchow... seja a ques-
tão tratada serenamente, promovendo os protestos de verdadeiro
pezo, ou apresentando os nossos na linguagem moderada e humi-
lhante da critica sabia. Que. em vez de meras noticias em forma
de desabafo de ponta e mola (é aqui que vem de molde a classi-
ficação) se tornasse bem patente a indifferença dos homens com-
petentes de Portugal ; isto seria para a historia dos nossos cos-
tumes um documento mais precioso.
A insistência em considerar universalmente o procedimento do
parlamento inglez e da nação que elle representa como intolerante
e brutal, faz-me insistir pela interpretação que consegui dar-lhe.
Mas, ainda que o acto fosse brutal, ser delicado com a brutalidade
nunca deshonrou ninguém.
Quando eu comparei a linguagem de Jonh Buli ás camilladas
da Revista bibliographica de Cliardron, não intentei corrigir a
opinião do illustre auctor d"aquelle artigo, por meio d'uma re-
cordação pungente de parte da sua vida litteraria que eu nunca
deixarei tratar de obscura. Respeito a infelicidade que acompanhou
o sr. Conceição n'aquellas polemicas e foi por isso mesmo ; mas
não sei que esta se revelasse senão no abuso dos termos. Jonh
Buli e folhetim não são porém ainda provas de arrependimento,
e eu não posso poupar s. ex.^ a essa recordação.. . vergonhosa,
(já que agora se honra chamando-lhe assim) emquanto o não vir
arrependido do motivo que apenas sinto para a vergonha.
Quanto á dissertação que o sr. Alexandre da Conceição faz so-
bre o ultimo período do meu artigo, visto que s. ex."* carece de
explicação, eu tomo a liberdade de lhe lembrar (e privo-me de
commentarios graciosos) que o dictado à quelque chose malheur
142 ENGYGLOPEDIA REPUBLICANA
est hon, ainda não está condemnado, e que, se a melhor cousa que
se conhece, não é o mal, embora possa provocar as reacções do bem,
a descomposhira em cousas sérias é ainda mais abominável do que
o mal, porque é pelo contrario estéril para tudo.
Depois que o dr. Pinei aboliu as chicotadas nas alienaçijes, está
reconhecido scientificamente que o azorrague, è contraproducente
e que todos devemos deixal-o na mão d°aquelles a quem por of-
ficio pertence.
Julgo ter dado por uma vez os meus motivos, sem esquecer
mesmo a satisfação particular que porventura devesse ao sr.
Alexandre da Conceição.
Ponla Delgada (Açores), 8 de março de 1882.
Arruda Furtado.
John Willlam Draper,distinctissimo professor da Universidade de
New- York, é um dos publicistas contemporâneos mais eruditos e ar-
rojados, e talvez o escriptor de mais imparcialidade histórica e
scientiflca da escola positivista.
Possuidor de muitos e variados conhecimentos, colhidos no es-
tudo aturado e disciplinado de toda a vida, e reforçado com as
investigações e cogitações do seu espirito alevantado c culto, tem
enriquecido a litteraíura moderna com obras de verdadeiro quilate,
que são outros tantos subsídios assas valiosos para as pessoas que
pretendam estudar os grandes problemas historico-scientificos e
politico-sociaes, que mais interessam aos povos e á civilisação.
Draper. que tão notável se tem tornado pela tenacidade com que
•procura illuminar com os reflexos da sua brilhante intelligencia os
mais escuros recessos da Historia, fazendo luz onde só tem exis-
tido a treva, substituindo a verdade ao erro, o real ao ideal, é,
dos historiadores modernos o de mais atrevidas concepções, mas
sem nunca se deixar arrastar pela parcialidade que tanto desau-
ctorisa muitos outros, aliás distinctos.
A sua Historia do desenvolvimento inlellectual da Europa, que
além do grande numero de edições que tem tido na America, já
foi traduzida em francez, allemão, russo, polaco, sérvio, etc, dis-
fructa de grande reputação no mundo illustrado.
Porém, acima d'e£sa obra eminente e da Historia da guerra ci-
vil da America, devemos collocar os Confllictos entre a sciencia c a
religião em que Draper se revela não só historiador consummado,
mas critico superior, e um athleta infatigável da sciencia positiva que
teve a Augusto Comte por fundador, e por adeptos e cultores as
mais privilegiadas intelligencias da moderna geração.
Os Conflictos entre a sciencia e a religião, é um livro de combate
A ORIGEM DA SCIENCIA 143
que illiistra, aLtrahe e encanta, pelos delicados problemas que
apresenta e desenvolve n"uma fornia artística e n'um estylo vigo-
roso e cheio de bellezas.
Não podemos resistir ao desejo de darmos aqui alguns trechos
do magnifico livro do illustre historiador americano. Os leitores que
nos revelem a ousadia do emprehendimento de transplantar para
a nossa lingua um escripto de tão vasto alcance. O que a tanto
nos anima é a boa vontade, e não a vaidosa intenção de inculcar-
mos forças e conhecimentos que não temos.
Damos em seguida o primeiro capitulo, por ser um dos mais
encantados na forma e no estylo.
Xavier de Paiva.
A orícieni na ScíenciLa
Situação religiosa dos gregos no século iv antes de Jesus Christo. — Suas inva-
sões na Pérsia põe-n'os em contacto com aspectos novos da natureza e com
novos systemas religiosos. — A acti\ idade militar, industrial e scieutiíica pro-
duzida pelas campanhas macedonicas dá origem ao estaljeleciíiieuto do Mu-
seu de Alexandria, instituído para o estudo das sciencias por meio da expe-
riência, da observação e do raciocínio exacto. — O Museu é o creador da
seiencia.
Não ha no muudo espectáculo mais triste, mais solemne que o
de uma religião velha que morre depois de ter sido durante sé-
culos o consolo de muitas gerações.
Quatrocentos aunos antes do nascimento de Jesus Christo, co-
meçava a Grécia a adiantar-se á sua antiga Iheologia.
Seus philosophos, que tinham estudado a natureza, estavam já
profundamente impressionados com o contraste entre a magestade
de suas operações e a miséria dos deuses do Olynipo.
Seus historiadores, que haviam contemplado o curso regular dos
negócios humanos, a permanência da acção do homem, e que
viam que nenhum successo se produzia á sua vista, cuja causa
não lhes fora fácil descobrir em algum outro anterior, começavam
a suspeitar que os milagres e intervenções dos céos que chama-
vam os velhos annaes, bem podiam não ser mais que ficções. Per-
guntavam porque tinham emmudecido os oráculos e cessado os
seus prodígios, e em que tempo findara a era do predomínio do
sobrenatural.
Tradições de uma antiguidade immemorial, acceites n"outro
tempo pela gente piedosa como verdades incontestáveis, haviam
povoado as ilhas do Mediterrâneo e os paizes lemitrophes de ma-
ravilhas sobrenaturaes, de fadas, feiticeiras, drasgos, harpias,
144 ENCYCLPEDIA REPUBLICANA
gigantes, centauros, cyclopes, etc. A abodada azulada era o céo.
Ali. Zeus, rodeiado dos deuses inferiores com suas mulheres e
suas amantes, tinha a sua corte, e occupava-se em assumptos si-
milhantes aos dos homens, e entregava-se como elles á paixão e
ao crime.
Costas accidentadas, um archipelago formado das ilhas mais
deliciosas que ha no mundo, inspiravam aos gregos o gosto pela
vida marilima, pelos descobrimentos geographicos e f)ela coloni-
sação. Os seus navios cortavam as aguas do mar Negro e do
Mediterrâneo. Reconheceu-se que as maravilhas em que se acre-
ditava desde séculos e que estavam inscriplas na religião do Es-
tado, não existiam. Aprendeu-se a conhecer a natureza, com-
prehendeu-se que a abobada azulada era um eíYeito de óptica ;
que não havia Olympo sobre nossas cabeças, e tão somente o es-
paço e as estrellas. Quando os deuses já não tiveram morada,
desvaneceram-se, ao mesmo tempo os do typo jónico de Homero
que os do typo dórico de Hesiodo.
Sem embargo, isto não se realisou sem resistência. Desde logo
o povo, e em particular a parte piedosa, interpretou as duvidas
que surgiam como uma invasão do etheismo. Foram os culpados
privados de seus bens, desterrados, e até condemnados á morte,
O publico ficou convencido de que cousas que tinham sido crea-
das por os espíritos religiosos desde tempo remoto, e que haviam
resistido á prova de tantos séculos, não podiam deixar de ser ver-
dadeiras. Depois, quando a prova do contrario se fez irrefutável,
contentou-se com admittir que estas maravilhas eram allegorias
sob as quaes a prudência dos antigos havia occultado verdades
sagradas e mysteriosas. Cuidoti«se de reconciliar os dogmas —
que se temia entretanto não ser outra cousa mais do que mylhos
— com o progresso intellectual. Porém, os esforços foram balda-
dos, vãos ; porque ha phases necessárias pelas quaes deve passar
fatalmente a opinião publica, em laes casos. Ao principio a duvida
substitue a veneração, em seguida vêm as interpretações novas,
depois cae-se em dissidência, e finalmente se deseja por pura fa-
bula todo o conjuncto das velhas crenças.
Aos historiadores e philosophos seguiram-se os poetas. Euripi-
des incorreu no delido de heresia ; Esquilo, a ponto de ser casti-
gado por blasphemo. Porém, os esforços desesperados dos interes-
sados em defender o erro acabam sempre por ser vencidos. A des-
raoralisação estendeu-se de uma maneira irresistível em todos os
ramos da litleratura e acabou por penetrar nas próprias camadas
populares.
Na Grécia tinha-se unido a critica philosophica á scientifica para
derrubar a religião nacional. Susteve com seus argumentos a in-
credulidade que se espalhava e confundia. Comparou as doutrinas
A OaiGEM DA SCÍENCIA 145
das flifferentes escolas, e deinonslrnu em suas conlradicções que
o homem não possiie um critério de verdade : que desde o mo-
mento em que as unções d'elle sobre o bem e o mal variam com
os tempos e os logaies, é |)orqiie não estão fundadas na natureza
das cousas, senão creadas pela educação; que o bem e o mal são
duas ficções que a sociedaije faz servir para seu objecto.
Em AlhtMias, as classes intelligentes tinham chegado, não so-
mente a negar o sobrenatural e tudo que dependia dos sentidos,
senão a pensar que o mundo podia muito bem ser um sonho, uma
phantasmagoiia, e levaram a duvida a ponto de não crerem em
cousa alguma.
A coidiguração topographica da fiiecia determinava a forma á:\
sua consliluição politica. K>lava repartida em communidades dis-
linctas. divididas por interesses, e- portanto impróprias para a cen-
Iralisação. Guerras conlínuas entre os estados, obstavam ao seu
progresso. Ki-a pobre, e seus chefes estavam corrompidos e sem-
pie |)r()mpt'is a vender os interesses sagrados do seu paiz a troco
do ouro oirerecido pela IVrsia. Os gregos mais accessiveis á idéa
do bello plástico, como iml-o mostram hastaiite a sua architeclura
e a sua estatuária, como nunca o foram nenhum povo nem antes
nem depois dVlles, tiidiam perdido nas cousas moraes o discerni-
menlo do verdadeiro e do bem.
Kmquanto ipie os gregos da Europa, replectos das idéas de li-
berdade e independência, repelliam a soberania da Pérsia, os gre-
gos da Ásia acolliiam-n'a sem resistência. O império persa, n'esta
época, egualava em extensão a metade da Europa moderna. Con-
finava com o Mediterianeo, com o mar Negro, com o mar Egeo,
com o mar Caspio, com o mar das Índias e com o mar Roxo. Seis
dos majores i'ios do mundo, o Eufrates, o Tigre, o Indo, o Oxus,
o Jaxardes e o Nilo. cada um dos quaes tinha um curso de mais
de mil milhas, sulcavam o seu território. Uma parte da sua super-
fície descia a mil e trezentos pés abaixo do nivel do mar, c outra
elevava-se a vinte mil pés acima do mesmo. O seu solo era por-
tanto azado para todo o género de cultura. As suas riquezas mi-
nerai's não tudiam limites. E demais, havia herdado todo o presti-
gio dos velhos impérios: medo, babylonio, assyrio, e chaldeo, cu-
jos anrines oC('(ipavam vinte séculos transcorridos.
A Pers.a comleinplara sem|)re a Grécia da Europa como um paiz
de pouca importância sitb o ponto de vista politico. Apenas tinha
a extensão da metade de uma satrapia. Sem eudiargo, as expedi-
ções que euq)rehendera para reduzil-a á escravidão, mais lhe ti-
nham demonstrado as (jualidades militares de seus habitantes.
Também encorpnrou no exercito persa mercenários gregos, e es-
tes eram considerados como os melhores soldados. Não duvidou
até algumas vezes em dispensar o commando dos seus exércitos
19
146 ENGYCLOPEUIA HEPUBLICANA
a generaes gregos, e entregar as suas flotas a capitães da mesma
nacionalidade. Os resultados d'esta falta foram consideráveis. Os
mercenários estrangeiros estudaram attentamente a situação do
Império. Conheceram a sua debilidade real e viram que nada era
mais fácil que penetrar até á capital. Depois da morte de Cyro,
no campo da batalha de Cunava, a retirada immortal dos dez mil
provou que um exercito grego podia abrir passo atravez da Pérsia.
A alta opinião que das obras dos engenheiros militares, taescomo
a ponte estendida sobre o Hellesponlo, por Xerxes, e a perfuração
do isthmo junto ao monte Athos, tinham feito conceber aos gregos
que a habilidade dos generaes persas se enganara em Salamina,
em Prateo, em Mycala. Saquear as ricas provindas da Pérsia che-
gara a ser tenlação irresistível. Com este intento emprehendeuAge-
silào, rei de Esparta, a expedição que se iniciou com um brilhante
triumpho, mas que foi mui de promplo interrompida, graças á po-
Utica dos persas que subornavam sempre os visiuhos de Esparta
quando necessitava que fosse atacada : «Hei sido vencido por trinta
mil archeiros persas,» exclamou amargamente Agesiláo ao reem-
barcar, fazendo allusão ás moedas persas, os daricos que tinham
no anverso a eíTigie de um archeiro.
Por fim, Filippe de Macedónia meditou envidar novos esforços ;
porém d'esta vez com mais consideráveis meios e com uma inten-
ção mais nobre. Diligenciou fazer-se eleger generalíssimo de toda
a«Grecia, não já para fazer uma incursão pelas satrapias da Pérsia,
senão para derrubar a dynastia persa no próprio coração do im-
pério. Assassinado antes de concluidos os preparativos da expedi-
ção, teve por successor a seu filho Alexandre, ainda adolescente.
Uma Assembléa Geral de gregos, celebrada em Corintho, tinham-
n'o eleito por unanimidade para substituir a seu pae. Houveram
alguns distúrbios na Illiria e Alexandre viu-se forçado a marchar
para o Norte do Danúbio com o objectivo de suffocal-os. Durante
a sua ausência, conspiraram contra elle os thebanos e alguns ou-
tros. No seu regresso tomou Thebas de assalto, fez uma matança
de seis mil de seus habitantes, vendeu outros trinta mil como es-
cravos, demoliu os muros e arrasou as casas.
A prudência que tinha dictado estes rigores, ficou provada du-
rante as suas campanhas na Ásia, pois não foi jamais incommo-
dado por revolta alguma na sua reclaguarda.
Na primavera do anno 334, antes de .lesus-Christo, atravesou
Alexandre o Hellesponto e entrou na Ásia. Compunha-se o seu
exercito de trinta e quatro mil infantes e quatro mil de cavallaria.
Em dinheiro não levava comsigo mais que setenta talentos. Mar-
chou direito ao exercito persa, que, mui superior em numero, es-
tava intrincheirado nas ribas do Granico : passou o rio, derrotou
o inimigo, e a conquista da Ásia Menor com todos os seus the-
BIBLIOGRAPHIA DO FOLKLORE 147
souros, foi o premio da sua vicloria. Empregou o resto do anno
na organisação militar das provincias conquistadas.
Durante este tempo, Dário, rei da Pérsia, avançava com um
exercito de seiscentos mil homens para impedir a entrada dos ma-
cedonios na Syria. ]N'uma batalha dada no meio dos desíilladeiros
d'Issus, os persas foram vencidos. Foi tuo grande a matança, que
Alexandre e Ptolomeu, um dos seus logar-tenentes, conseguiram
atravessar a pé enchuto uma torrente profunda, por estar replecta
de cadáveres ininiigos.
Foram avaliadas as perdas em oitenta mil homens de infanteria
e dez mil cavalleiros. O estandarte real caiu em poder do vencedor,
e além do estandarte, a mulher e alguns filhos de Dário.
Assim entrou a Syria no numero das conquistas dos gregos.
Na cidade de Damasco encontraram-se as concubinas do rei, vá-
rios oíTiciaes do seu exercito, e consideráveis thesouros.
(Segue.) ,
|3intionrajifua do jfollilore
1
Almanach dcs imditions pnpulaires, — première année — 1882,
— Paris, Maisonneuve et c.'® . éditeurs, 1882, — pr. 4 fr.
Ao grande numero de foikloristas que estão espalhados pelos
diíTerentes paizes faltava um orgãD pelo meio do qual soubessem
as moradas e publicações uns dos outros, para mais facilmente po-
derem communicar. Esse órgão estabeleceu-o no Álmaimdi cies ira-
dilions pofjidaires o sr. E. Holland, benemérito auctor da Fuune po-
pulcire de la France. O 1.* vol. do Almanach compõe- se do se-
guinte :
hitrodiicção.
Calendrier populaire potir 1882, onde se referem as invocações
populares de muitos santos, como S. Simplício, advogado contra
as dores de cabeça, etc, Estas invocações são, ao que parece, pu-
ramente francezas.
Adresscs des folldoristcs, avec indication de leurs eludes spéciales.
O sr. Rolland pede em nota a todos aquelles, cujos nomes ahi não
figurem, se lhe dirijam antes da publicação do Almanach do 2.".
anno. A lista é necessariamente incompleta ; assim, a respeito de
Portugal faltam os nomes dos srs. Theophilo Braga e Estacio da
Veiga.
Nécrologie. Lista de alguns foikloristas fallecidos em 1880 e 188i.
148 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
Biblin/jraplíie. Meiícioiiarn-se as obras sobre Fnlkbre publicadas
nos uliimos tempos ; com a indicação das apreciações criticas feitas
em vários jornaes a respeito de muitas delias. U sr. K. Kolland
não deixa de declarar a d.ita, numero de paginas e alé ás vezes os
preços. Porliigal eniia abi com as publicações dos meus amigos os
srs. Ad. Coelbo e Consiglieri Pedroso, e a Eranova.
Le diner dn folJdcre. È nm pequeno artigo de^tli!ado a dar conta
de um costume tão inieressanle como original. Us fnlkloristas de
Paris, 6 os piovincianos ou estrangeiros (|ue lá estiverem, jimtar-
se-lião n^ima refeição intima, na segunda 3.^ feua dos mezes de
Novembro a Maio : ã sobremeza ouvir-se-bão cançõi-s e contos po-
pulares, e far-se-hão passar de mão em njão amuletos curiosos. A
escollia de 3.^ feira provém acaso de este dia gosar de ceito res-
peito nas superstições :
Á 3.» feira
Não cases a filha,
Nem urdas a teia ?
Canções populares de França, algumas acompanhadas de musica
e de notas comparativas.
Une devinette iiíandaise, ou antes uma pequena poesia a respeito
das primeiras missões cbristãs na Irlanda, — publicada e traduzida
pelo sr. II. Gaidoz, illuslre director da Reviie celtifjue.
Siir (es contes de Charles Detdin, — pelo sr. Loys Rrueyre, au-
ctor de um bom volume de conles popidaires de la Grande lirelagne,
com muitas notas compaialivas. N'este artigo o sr. Brueyre diz que
os contos, alguns dos quaes muito bellos, (|ue Ch. Deulm escreveu
dans la langa(/e et avcc les pitloresrjuos expressions de ce paijs de
Flandre quil aimait tant, não são senão reproducção de contos de
diversos paizes, — devendo portanto os foikloristas precaver-se con-
tra o uso d'elles para o esujdo comparativo.
La photographie appUquée a la description des jeiíx d^enfanls et
des danses popnlaires — O sr. Machado y Alvarez (Demofilo). pres-
tante auctor de uma colleccion de enigmas ij adivinanzas en forma
de dkcionarin, propoz o emprego da photngraphia para a repre-
sentação fiel dos jogos infantis: o sr. E. Rolland accrescenta n"este
artigo que tal emprego se deve estender á representação das dan-
ças. A photographia não só é útil nos dois casos que os dislinclos
foikloristas apontaram, mas sempre que se quizer dar uma descri-
pção precisa dos amuleltos. armadilhas populares para pássaros e
aves, instrumentos de lavoura, etc. etc. Aproveito a occasião para
também lembrar, se ainda não foi lembrada a intervenção da ta-
cbygraphia na colheita dos contos populares e ainda de outras pe-
ças; por meio delia apanha-se em ílagrante a narração do povo,
e será esta muito mais genuina a respeito da linguagem.
MANOEL FERNANDES THOMAZ 149
Como appendice ao Altnannch, vem um catalogo das publicações
da casa Maisonncnve sobre lUfcraturas popfilures, etc.
Seja-me permitliilo fechar esta singela noticia com um voto de
louvor ao sr. K. Kulland pela formosa publicação que nos deu a
lodos nós os que recolhemos e estudamos as tradições populares.
Porto, abril de 1882.
J. Leite db Vasconcellos.
BiQgrãphiãs
Manoel Fei-nandeísí Tlioniaa?: i
iManoel Fernandes Thomaz, o palria^cha da liberdade portugueza,
o rei da revoliiçrio de 1820, como ingenuamente lhe chamava o povo,
é um dos vultos mais sympalhicos e notáveis que lèm presidido ás
transfiirmaçõcs politicas e sociaes da nossa nacionalidade. Klle, en-
carnou em si uma época, sviitlietis^u um período memorável da
historia pátria, repiesentou uma as()ira(;rio generosa e bt-lla de um
povo vilipendiado, de uma nação esci avisada, morta, que necessita
respirar o ar puro e revivificadnr da liberdade; e no emlanto o seu
nome foi esquecido e'a lembiança da sua obra apagou-se inteira-
mente da memoria das gerações que lhe succederam. É porque os
esforços sinceros do patriota não furam comprehendidos, nem a sua
voz austera encontrou ecco na consciência adormecida da multidão,
n'essa consciência embotada por mais de dois séculos de regimen
inquisitorial e despótico.
A revftiução de 1820, como a de 1789 em França, foi uma ne-
cessidade, urgente, impreterível, decerto, no estado de miséria e
decadência, a que o paiz tinha descido; mas as suas consequências
foram muito além do desenvolvimento intellectual das classes po-
pulares : os ânimos, embrutecidos pela educação jesuítica e pelo
espectáculo repugnante dos autos-de-fé e da forca, não podiam acei-
1 Não podendo o sr. Feio Terenas escrever a biograptiia de Fernandes Ttio-
maz, como nos prometlera, em fons^quencia diis seus innumeros trabalhos aetuaes
e da falta de tempo com que sempre lueta, pedimos a outro correligionário o pre-
sente estudo hiograptiico do grande revolucionário de 1820.
A Empresa.
150 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
lar ainda, em opposição aos privilégios da nobreza, do clero e do
rei, os Direitos do Homem. Era cedo para as Iheorias revoluciona-
rias dos legisladores de 1821 e ISiá entrarem na pratica. A revo-
lução intellectual, inteiramente metaphysica, que se dava nos cére-
bros mais illustrados d^aquella época, não descera ainda a esten-
der-se á grande massa ignorante e fanatisada, que se ajoelhava
liumildemenle aos pés da realeza e esmolava sem dignidade ás
portarias dos conventos. A Constituição foi obra dos espirilos mais
intelligenles do paiz. de homens dislinctos e independentes, como
Borges Carneiro, Ferreira Borges, general Sepúlveda, e outros, os
quaes Fernandes Thomaz aggrupara ao redor de si para levar a
effeito a revolução, como de facto o conseguiu em 2i de agosto
de 1820.
Fernandes Thomaz, segundo o testemunho de um seu contem-
porâneo e companheiro nos trabalhos de conspiração e do con-
gresso, «era um jurisconsulto profundo, muito inteiro no seu ofíi-
cio de juiz, e dotado pela natureza de uma rectidão de juizo sin-
gular: é esta mais eminente qualidade que o distinguia de to-
dos; foi ella quem lhe fez divisar os elementos da revolução, que
existiam no paiz, quando tudo estava aterrado com a carniçaria
judicial do Campo de SatitWnna.» ^ E mais adiante acrescenta
o mesmo auctor: «feita a revolução om 24 de agosto, Fernandes
Thomaz, foi um modelo acabado de presença de espirito e de vi-
gilância: a sua sabida do Porto, a sua marcha sobre a capital, único
fito da empresa, e complemento delia; sem se deixar desviar d'este
grande fim por obstáculo algum, nem proposta de tréguas, ou
transacção, tudo isto mostra não só juizo claro, mas recto em
summo grau.» -
E realmente Fernandes Thomaz era um homem superior pela
sua illustração, pela sua energia, pelo seu caracter firme e arro-
jado, como o provou sempre em todo o curso da sua carreira so-
cial, muito principalmente nos cinco annos que decorrem entre a
fundação do Sinédrio ou junta revolucionaria e o seu fallecimento.
]N'esles cinco annos o grande patriota representa o principal papel
no drama esplendido da nossa revolução. É elle a alma do movi-
mento de 1820 e do congresso notável que elaborou a Constitui-
ção de 1822,
Este periodo tão curto, mas tão fértil de acontecimentos, encerra
a parte mais brilhante da vida de Fernandes Thomaz, aquella que
é exactamente a sua gloria.
1 Revelações e viemorias para a historia da revolução de 24 de agosto de 1820 y
'te., por José Maria Xavier d'Araujo. — Lisboa, 1846! — pag. 77.
-Idem.f pag. 78.
MANOEL FERNANDES THOMAZ 151
II
Desde longos annos qiie a inépcia dos homens, que as circum-
stancias históricas callocavam á frente das cousas publicas, ia ar-
rastando o paiz para uma crise grave e ditíiciL sem solução pos-
sível de prever. A invasão franceza e a fuga vergonhosa da corte
para o Rio de Janeiro, em novembro de 1807, aggry varam ain-
da a situação, precipitando o esphacelamenlo geial da velha mo-
narchia. O príncipe regente, embarcando á pressa com a família
real e muitas pessoas de todas as classes e condições, para fugir
ao exercito de Junot, recommendava irrisoriamente ao mísero povo
que recebesse os francezes como amigos, ao passo que elle se aco-
lhia á protecção da esquadra íngleza. Assim, criminosa e cobarde-
mente, a casa de Bragança abandonou o reino ao azar da invasão
estrangeira, transportando para o Brasil a sede do governo e re-
duzindo a pátria á maior miséria. Só à custa de muito sangue e de
enormes sacrifícios ponde a nação expulsar o exercito de Junot e
resistir heroicamente a duas novas invasões, indo ajudar ainda os
nossos visínhos na dura empresa de acossarem as tropas aguerri-
das de Napoleão até ao seio da própria França. N'estas luctas fo-
mos auxiliados pelos soldados inglezes, e os cargos mais impor-
tantes do exercito haviam sido confiados a oíTiciaes da mesma na-
cionalidade. Esta coadjuvação, pagámol-a bem cara! Os nossos al-
liados vieram terminar a obra de devastação e de ruina, excedendo
muito os inimigos nos seus desvarios e rapinas; tratavam Portugal
como paiz conquistado; para elles não havia cousa alguma digna
de respeito no sólo que vinham defender. E D. João Yl, caríssimo
pae dos portuguezes, entregava-os agora amorosamente a Wellesley
6 a Beresford, como já os entregara a Junot.
Ao terminar a guerra com os francezes o estado de Portugal era
realmente lamentável ; o paiz apresentava um espectáculo desola-
dor; campos desertos, casaes abandonados, pontes abatidas, villas
e aldéas arrasadas, fortalezas destruídas, todas as familias cober-
tas de lucto; as cidades atulhadas de mendigos, de operários inu-
tilisados pela guerra, que pediam pão, porque não o podiam ga-
nhar; searas inteiramente perdidas; faltavam os braços para arro-
tearem as terras, faltavam os recursos para reconstruírem as ha-
bitações, faltava tudo quanto era indispensável. O commercio, a in-
dustria, a agricultura estavam no maior grau de aniquilamento; a
fazenda publica achava-se exhausta e não havia meio de se recor-
rer a empréstimos. A fome ameaçava estender-se a lodo o paiz.
No meio d"esla situação desesperada o govej^no da nação estava
confiado pelo príncipe regente a homens ambiciosos e ignorantes,
ecclesiastícos ou titulares, que se submettiam cegamente aos capri-
chos dos estrangeiros, em especial a Beresford, elevado, pelo favor
da realeza, a marechal general e a chefe absoluto das tropas por-
!52 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
iugiiezas. Kiiliflanto D. João VI. no Brasil, imlolenle e iniJeciso,
quasi que se es(|iiecera do seu reino ; se uma ou outra vez fallou
no regresso a P. ilugal, em breve mudava de tenç;io e luri!ava-se
até impaciente quando algneu) ousava mostiarlhe a necessidade
de voltar para a Km'opa. K' o ijue se conclue dos despachos de Lord
Strangford, embiixador iuglez, mandados do Rio para o seu go-
veriio. A morle de .Maria I, em "10 de março de 1816, e a accla-
mação de João VI, em nada alterou a marclia dos negócios de Por-
tugal.
O descontentamento publico manifeslaN^a se a cada momento, e
a desconfiança ou o receio, de que as auctoridades eslavim pos-
suídas, en.;liia as prisões de individnos suspeitos. O intendente da
policia, João de Mattos Vascoucelltjs Barbosa de Magalhães, seguia
as tradições do fauioso Manique. KíTecluavam se as [irisões arbitra-
riamente, sendo muitos assaltados em suas próprias camas por alta
noite e levados para a cadeia, sem que soubessem o crime de que
eram accusados. N"estas proezas distinguia-se, entre outí'os, o mal-
vado Jo>é Ignacio de Mendonça Furtado, corregedor (\v Belém. As
sociedades secretas tinham-se espalhado por toilo o pai/, depois
das invasões dos francezes, e principalmente em seguida ao re-
gresso da legião poitugueza que militou na Kussia sot) as ordens
de Napoleão. A maçonaria, estabeleceudo-S(3 em Portugal, fazia sor-
rir Beresford, mas inspirava sérios cuidados ao intendente de po-
licia. Ksle, por todos os paquetes, mandava |)ara o Uio de Janeiro
noticias circumslanciadaí> dos perigos enormes, que ameaçavam o
governo, pela aprehensão de panos talhados em forma não ordi-
nária, de lettras nnjsteriosas, de |)inlmas maçónicas, de balaustra-
das e outras muitas cousas extravagantes e ridicidas. Appareciam
também com frequência pas(|uins contra o governo e contra Beres-
ford, em que os insultos e as ameaças não se poupavam. Tal era
por exemplo:
Quein perde Portugal ? o marechal;
Quem sancciona ;is leis? o rei;
Quem são os executores? os governadores.
Para o marectial, um puntial.
Para o rei, a lei.
Para es governadores, os executores.
O marechal, que ao principio despresara as associações secre-
tas, começou a mostrar- se receioso pela sua segurança individual
e a dirigir queixas aos governantes. K>les, em virtude de uma de-
Duncia feita por Beresford, ordenaram, em 11 de janeiro de 1817,
ao intendenie de policia que procedesse a mvestigações miimciosas
sobre uma conspiração projectada; e em 21 de maio publicaram
MANOEL FERNANDES THOMAZ 153
uma portaria na qual, aíTirmando a existência de uma conjuração
preparada por alguus traidores com o detestável projecto de estabe-
lecer um governo revolucionariu, ordenavam que se terminassem
-as averiguações e depois de concluido o processo fosse sentenciado
pelo juiz da Inconfidência e seus adjuntos. Correu secretamente o
processo, do modo mais inquisitorial, durante quatro mezes e meio;
e em 15 de outubro foram em fim condemnados os réus por crime
de lesa-magestade. Eram 18 os accusados, entre os quaes figurava
o valente general Gomes Freire de Andrade ; apenas dois foram
absolvidos e um, o Barão de Eben, oííicial hanoveriano, expulso
do reino; todos os mais foram condemnados, três em degredo para
Africa, quatro a serem enforcados e os restantes a morte de gar-
rote, sendo em seguida reduzidos a cinzas e estas lançadas ao mar.
O processo nunca saiu a publico, mas pela sentença vê-se que a
conspiração era só contra a influencia estrangeira e o predomínio
despótico de Beresford; a fome e o atrazo de soldos eram a causa
principal desta tentativa revolucionaria ; a um dos réus, ao coro-
nel Monteiro, chefe de familia, tendo de sustentar mulher e filhos
menores, devia o estado trinta mezes de soldo ! Gomes Freire, esse
então, nem promovera, nem tomara parte alguma nos trabalhos da
conspiração; sabia só que andava em projecto e linha promettido, no
caso d'ella se realisar, tomar a direcção do movimento para impe-
dir os desregramentos e crear um governo interino. Infelizmente
o orgulhoso marechal via no general portuguez um rival temivel,
porque gosava de geraes sympathias. tanto no exercito, como no
publico, e determinou desfazer-se d"elle, o que conseguiu de uma
maneira tão barbara e tão revoltante. As pobres victimas tentaram
ainda pôr embargos, mas não foram attendidos; e no dia 18 de ou-
tubro effectuou-se a execução. Como se receiasse algum tumulto
do povo e da tropa se trouxessem Gomes Freire para Lisboa, as-
sassinaram-no affrontosamente, pelas 7 horas da manhã, na própria
fortaleza de S. Julião da barra, onde estava encarcerado. Os outros
réus foram executados no mesmo dia no campo de Sant'Anna, —
hoje justamente denominado campo dos Martyres da Pátria — com
todo o apparalo e ostentação dos antigos autos-de-fé, prolongan-
do-se o supplicio até á noite com bastante satisfação dos membros
do governo, um dos quaes, D. Miguel Pereira Forjaz, ás 3 horas
da tarde escrevia ao intendente da policia : «. . .é verdade que a
execução se prolongará pela noite, mas felizmente ha luar e pare-
ce-me tudo tão socegado que espero não cause isso prejuízo algum. . .»
É simplesmente horroroso !
Este espectáculo cruento e infame, em vez de atemorisar os âni-
mos e de espalhar o terror de um a outro extremo do paiz, ainda
exacerbou mais o geral descontentamento e levantou maiores mur-
múrios. Manoel Fernandes Thomaz, desembararador da Relação do
20
•154 ENCYCLOPEDIA HEPUBLICANA
Porto, era um dos que se mostrava mais indignado nas conversas
particulares com os seus amidos, especialmente com José Ferreira
Borges e Ji'sé da Silva Carvalliu. a<juelle advogado da Uelação e
secretario da cnmpaiihia dos vmlios. e este juiz dos orphãos da
mesma cidade. * rreijueiiles vezes dizia: — «Kste estado de cousas
é impossível (jue persista; lia de haver por força revolta, e não se
achando nada pieparado degenera em anarciíia; forme-se um corpo
compacto e duigenle, que appaieça no momento opporluno e guie
o movimento a prol do paiz e da sua liberdade.»
JN'uiu.i noiíe de janeiro de 1818 reuiiiram-se em casa do acredi-
tado coiumerciante .Idíiu Ferreira Viaima, na cidade do Porto, Silva
Carvalho, Kerreira Borges e Fernandes Thomaz; e versando a con-
versação sobre o esladi) geral do paiz. insistiu este ultimo na sua
ideia ().ominanle e convenceu os ^ens três amigos da necessidade
de se Jnnd.u- um núcleo reV(jlncionario para observar a opinião pu-
blica, seguir a marcha dos acontecimentos internos e colher noti-
cias do estrangeiro, em especial da nossa visinha llespanha. Con-
cordando lodos, resolveram pôr em execução immediatamenle a
ideia de Fernandes Thomaz e começaram a formular os estatutos,
dando á sociedade o nome de Sincíliin. Juraram guardar entre si
a maior lealilade e o mais invinlavel segredo para com os estra-
nhos, e combinaram jiaia não de-|)erlarein suspeitas, reuniiem-se,
DO dia -2 de cada mez, em um jantar na Foz, onde partici()ariam
uns aos outros os successos do mez antecedente, e discutiriam a
sua linha de condiicta e o (jue conviria fazer no mez seguinte.
Assim se hindou o Sinpilno pelos esforços perseverantes do be-
nemérito cidíídãt) Manoel Pernaiides Thomaz. Im)í (fesle núcleo mo-
desh) e qiiasi insignificante, na sua oirgem, que surgiu o famoso
movimento de ISiO. Alas antes de prosegnirmos na relação d'es-
les acontecimentos tão memoráveis, digamos duas palavras sobre
o passado do grande patriota.
(Segue.) Teixeiba Bastos.
'^ríiflições noRulares
(Gollecção do Algarve)
ROMANCES
As variantes que hoje começamos a publicar, fazem parte duma
collecção de tradições d'aquelle povo, que ha tempo possuímos.
1 Vid. Uerdaçues emeinorins, etc, por Xavier crAraujo, pag. iO e Annual his-
tórico e pulUico de Portugal e Brasil, ele. Lisboa, 18oi, pag. 52.
I
TRADIÇÕES rOPULARES 155
Dâmol-as á pnbliridiule nfio par as julgnrinns de grai)de impor-
tância, mas poiqiie h<) vendo um Romanceiro do Algnrvp, publicado
pelo sr. Estacio da Veiga, uns, deixaram de ser ali incluídos, e
outros, sendo-o, foram injpiamenle maltratados pelo arlificio ; e
lambem ponjue entre as diveisas lições publicadas nos outros ro-
manceiros que conhecemos, não vemos nenhuma d"aquella provín-
cia.
Elias ahi vão tal como as ouvimos da bocca do povo para que
os estudiosos as apreciem.
Se n'ellas ha ou deixa de haver alguma cousa de novo, elles o
dirão.
Que não deviamos deixal-as esquecidas e abandonadas no fundo
d'uma gaveta, foi o que nos occorreu n'um momenlo. É justo dar-
mos tudo o que sabemos d'aqiiella província. Por eslas e outras
tradições, que mais tarde publicaremos, se avaliará o material,
por tanto tempo ignorado, que o Algarve possue.
Pondo pois, á disposição dos collectores, que poderão compa-
ral-as e estudal-as, as variantes algarvias que seguem, julgamos
cumprir com um dever.
Algumas d'ellas, é forçoso confessar, nada apresentam de no-
tável, segimdo o nosso modo de ver; outras ha, porém, que nos
parecem um tanto dignas de attenção e estudo. Aquelles a quem
interessam eslas cousas decidirão.
BEBNAL FRANCEZ
— Oila, oila ! — Quem está ahi ?
— É Bernal F'rani-ez, senhora.
— A porta vou abrir.
(Vindo a senhora pelos ladrilhos descalça:)
— Apa^^aste o meu candiín
Pelo canudo de prata.
— Que me importa a mim senhora
Se a luz dos seus olhos basta.
Levou-o para o seu jaidim
Lavou-o de mãos e pés
Em ajíoas d'alecrim.
Fez-lhe uma cauia de rosas
Deifou-o em par de si.
Era meia noite em pino
E elle sem se virar para si.
— Que tens, Bernal Fiancez,
Que não te viras para nn'm ?
Se tens medo de meus filhos
Elles estão dormindo.
Se tens meilo de meus criados
Elies não estão por ahi.
Se tens medo de meu marido
156 EiNCYCLOPEUIA REPLBLICANA
Longes terras está de mim.
Os iiionros o captivem lá
E más novas me venliam aqui.
— Não tenho medo de meus tilhos
Que elles tilhos são de mim.
Não tenho medo de seus criados
Que elles criados são de mim.
INão tenho medo de seu marido
Que aqui o tom em par de si.
— Matai -me, senhor, matai-ms,
Que isto foi sonho que eu sonhei.
— Que te mate Deus do céo
Que para isso te creou,
iMas deixa vir a manhã
Que eu te darei de vestir,
Bom sapato, boa meia,
Gregantilha acalorada
E saia de carmezim.
Manhã que era chegada
Elle que a degolava.
Montando no seu cavallo
A toda a brida partio.
Indo lá mais adiante
Um lanceiro que encontrava.
— Adonde vás, ó lanceiro,
Que vás tão cuidadoso em ti ?
— Vou ver a minha amada
Que ha muito a não vrjo.
— Tua amaila já é morta
E morta que eu a matei.
Se para isso viesse pieparado
O mesmo te dera a ti.
— Anda, anda, meu cavallo,
Vamos vér se isto é assim.
Indo lá mais adiante
Um alvisão que encontrava.
Elle teve tanto medo
Que fez modos de fugir.
— Não fujas, Bernal Francez,
Não fujas tu já de mim.
Os olhos com que te olhava
Já de névoa os cobri,
Bocca com que te beijava
Já de terra a cobri.
Braços com que te abraçava
Já não têm força em si.
A mulher com quem casares
Que se chame Anna ^ como a mim,
Para quando chamares por ella
Te lembrares de mim.
(Lagoa). Rkis Dâmaso.
^ O povo diz que esta dama era irmã da Morena, romance que publicaremos.
A COMPANHÍA DE JESUS 157
A 6oHi|iaiiliia 3e 0esus
CAPITULO I
OrigeiML e fins da iiistitui^á,o
Vendit Alexander claves, aliaria, Címstum :
Emerat ille prius. vendere jure potest.
No principio do século xvi, quando o calholiclsmo e o, edifício
pontific;il começavam a ser fortemente abalados pelos progressos
da Reforma, a despeito da confissão auricular e da Inquisição, e
que muitos paizes arrastados pela palavra eloquente de Luthero,
Melanchton, Zevingie, Calviuo e outros reformadores, sacudiam o
jugo de Roma, fundou-se uma nova associação ecclesiastica para
obstar á emancipação intellectual da espécie humana.
Esta sociedade, que em pouco tempo havia de invadir lodo o
mundo, impedir o progresso scienlifico e moral da humanidade,
promover horríveis e monstruosas carnificinas, preverter os povos
com máximas perniciosas e fazer tremer os reis e os papas, que
muitas vezes lhe sentiram o punhal e o veneno, era a Companhia
de Jesus.
A egreja romana, cujo poder principiara a declinar no pontifi-
cado de Bonifácio VIII, successor e assassino de Celestino V, vir-
tuoso pontífice, que abdicou o "Oííicio de papa», como elle dizia
na sua linguagem singella, cançado das intrigas dos cardeaes a
que chamava inimigos da fé e sanguesugas dos chrislãos, tinha
então chegado ao apogêo do desregramento, da immoralidade e do
crime, transformada na mais requintada orgia.
A corrupção do clero lavrava profunda por toda a parte e a sua
rapacidade só podia comparar-se com o cynismo do seu procedi-
mento.
Os abbades, os frades, os prelados, amontoavam ihesouros so-
bre thesouros, accumulavam as prebendas e não se envergonha-
vam de entrar, mesmo de dia, nas casas de devassidão. Os bispos
davam os benefícios só por intervenção das mulheres, que tinham
de sacrificar a honra para proteger os candidatos seus parentes!
Os conventos, cujas cisternas se povoavam com os cadáveres dos
recemnascidos, eram verdadeiros lupanares e as cousas sagradas
objecto dum trafico vergonhoso.
A simonia, o envenenamento, o incesto, o assassinato, o adulté-
rio, as perseguições, eram moeda corrente na corte de Roma, não
duvidando os papas recorrer aos mais ignóbeis meios e ao próprio
crime para aniquilarem os seus inimigos, os seus competidores,
158 eni:yglopedia republicana
para confiícarem em seu proveito os bens dos ricos, conseguindo
satisfazer assim iiioa ambição desmedida.
Calamitosos tempos em que se creavam empregos só para se-
rem vendidos, chegando o papa Leão X a creai- e vender dois mil
cento e cincoenia cargos novos!
O homem da edade medea, ignorante e fanalisado, não era mais
do que um sei'vo da Egreja, e a sua Cdusciencia como o seu coipo
pertenciam ao senhor, que sobre elle tinha o direito de vida e de
morie.
Alguns abbades possuíam, no dizer dos historiadores, mais de
vinte mil escravos !
Os processos da Inquisição tornavam -se cada vez mais atrozes!
O accnsado não conhecia o accusadur. e os inqni>;idores. uíonstros,
vergonha da espécie humana, e que (»(tr si bastariam |)ara desau-
thoii.sar uma religião, não [)ermittiam que a victima do infame tri-
bunal, que horrorisava o mundo com as suas atrocidades, tivesse
sequer um defensor !
O desgraçado, caliindo n'aquelle antro de sangue, sabia d"an-
temão que em seguida á tortura e á morte lhe seriauí contiscados
os bens e os da íamilia.
Os papas recolhiam matade e os inquisidores outra metade !
Posto que a Egreja condenmasse a uzuia, linha estabelecido
um completo systema de bancos ponidicaes. em relações com a cú-
ria, para emprestar diidieiro. ()or exhoibilantes juros, aos f)relados,
sollicitadores e litigantes. Os bancos papaes eram pilvilegiados ;
todos os mais estavam sujeitos à censura.» *
A Egreja estava convertida numa fabrica de dinheiro. Sommas
consideráveis eram levantadas na lialia ; outras eram extorquidas
sob diíTerentes pretextos, aos diversos [)ai7.es da Europa. O mais
funesto dos meios empreitados foi a venija das indulgências, isto é,
o direito de peccar. A religião, tal como a comprehendiam na Itá-
lia, tinha-se transformado na arte de roubar os povos.» ^
Leão X, attribuindo-se o monopólio da vergonhosa pratica da
venda das indulgências, intro(hizid;i pelos bispos, tirou lhes essa re-
galia, estabelecendo por toda a parle, até nas mais insignificantes
aldeias, agentes e recebedores, com os c irtorios nas egrejas. para
receber o dinheiro extorquido aos fieis e de que o chefe do catho-
llcismo carecia para sustentar o luxo asiático da sua corte, os seus
projectos ambiciosos e para a edificação da Egreja de S. Pedro.
(Segue.)
Anselmo Xavier.
í Draper — Les conflits de la science et de la religion — pag. 199.
2 Ideai — pag. 187.
AIXDA A QUESTÃO DAS VIVÍSEGÇÕES 139
Ainaa ti (mestãa deis vivisccções
Esta amável controvérsia, levantada entre mim e o sr. Arruda
Furtado a propoMlo da questão das vivisecções, que tanto cuidado
está dando á medicina C0Mlem|)i)ranea, não pode [)ela minlia parte,
ser tratada senão no campo das vagas generalidades do ti/lciiaitii.sino
scienlilico. poiqne me falta inteiramente a competência especial
para discutir com pmticiencia um assumpto d*esta importância.
Além de que o sr. Arruda Turtado não impugna as vivisecções.
Reconhece, com toda a sciencia contemporânea independeiile, (jue
sem ellas a physiologia fica estmlliada do seu mais fecundo me-
thodo de iuvesligação experimenial, e que sendo a pliy-iologia a
pedra angular da medicina moderna, a cruzada Itv.miada contra
aquella peíos preconceitos religiosos é uma vei'dadeira guiMra de
bárbaros contra o mais inviolável dos interesses da humanidade,
o interesse da sua própria conservação.
Qual é pois a divergência que nos separa n'este assumpto?
É uma questão de princípios?
ISão é.
É uma simples questão de forma, é uma simples questão de es-
tylo.
O sr. Arruda Furtado acha que eu tratei o assumpto com umas
liberdades de adjectivação inteiramente descabidas n"uina ipieslão
d'esta ordem, e reforça os seus argumentos com os exemplos dos
primeiros hí)mens da sciencia coir.emporanea. os D.nwin. os Vir-
chow. os Forsler, os Kolmgren, os quaes lendo defemlido os di-
reitos da sciencia contra os ataques do fanatismo religioso, soube-
ram fazei o sem se afastarem um momento da linha das mais se-
veras con\eniencias da linguagem, não empregando uma única
phrase desabrida.
Tem razão em these mas faltadhe a justiça na bypothese. In-
validou a pi ova f)or ter provado de mais.
Se en pretendesse tratar a questão das vivisecções na sua al-
tura scieniifica. expondo as razões que tornam e^^^a melhodo de
investigação indis[)eiisavel aos progressos da physiologia e porianlo
da medicina ; se eu trouxesse para a discussão um nome auctori-
sado por Ir bailios d"aquelle género «m sequer por lituíos de lia-
bililação profissional, o sr. Arruda Pintado teria moiivos pata es-
tranhar que eu úé^^e ao meu estylo o c;iiacier ligeifo e apaixo-
nado de uma polemica jornalistica e não o tom severo e composto
que se exige numa exposição impessoal de douliiiia.
Cônscio porém da própria incompelencia. eu apenas qiiiz, no
meu artigo da Era Nova, sob o titulo intencionalmente cómico de
160 en<:yclopedia republicana
John Buli, fazer obra de viilgniisação, levando ao conhecimento do
grande publico, afastado completamente de interesses scientificos,
um facto que me parece digno das mais ásperas censuras, e ex-
pondo-lh*o n'uma forma pitloresca e viva, precisamente no intuito
de o apaixonar por essa questão.
A sciencia está sendo ha dois mil annos martyrisada pelo fana-
tismo religioso, justamente ponjue este, tendo conseguido habil-
mente chamar à sua causa a grande massa do publico, dispunha
de uma força com que aquella nunca contou.
É já tempo que estes papeis se invertam e que a sciencia oc-
cupe nas sympathias e no interesse do espirito publico o logar
que a theologia ali tem desastrosamente usurpado ha tantos séculos.
Nós todos pois, os que conseguimos libertar-nos dos preconcei-
tos religiosos, pelo baptismo purificador das verdades positivas,
devemos auxiliar com todas as nossas forças, pequenas ou gran-
des, este glorioso trabalho de regeneração mental.
E isso o que eu procuro fazer na estreitíssima esphera da minha
acção sobre o publico para quem escrevo, que não é por certo o
publico de elite dos homens de sciencia, mas sim o publico que
commerceia, que trabalha, que se agita na faina material da vida,
que lé por acaso um artigo de jornal ou de uma revista de vul-
garisação, mas que não tem tempo nem educação intellectual para
compulsar livros de sciencia ou memorias de academias. Para me
fazer entender e estimar d'esse publico tratando de assumptos
estranhos ás suas preoccupaçõcs e interesses quotidianos, preciso
por isso de lhe fallar na linguagem adoptada pela litteratura de
fantasia — única por emquanlo que elle comprehende e aprecia— no
estylo imaginoso e pittoresco dos litteratos e dos jornalistas, dando
a máxima luz e o máximo relevo ás idéas, para o chamar á mi-
nha causa, que julgo ser a causa da verdade. Não tenho ambições
a fazer sciencia, tenho apenas desejos de levar para os domínios
da litteratura e para as discussões do jornalismo diário as grandes
questões que agitam o espirito contemporâneo, expondo-as tão
clara e escrupulosamente quanto posso, embora nas vagas genera-
lidades a que attinge a minha ignorância, que orçará pela do pu-
blico que me lè.
Não ha absolutamente originalidade nenhuma n'este meu propó-
sito. Em França particularmente desenvolve-se em todos òs senti-
dos, por meio de conferencias, de livros e de revistas, um immenso
trabalho de vulgarisação scientifica, que influe energicamente na
elevação do nivel intellectual d'aquelle paiz. Mas sem ir buscar
exemplos estranhos, entre nós mesmo este género de propaganda
está iniciado e começa a tomar um incremento promettedor.
E depois, eu, tratando nas suas generalidades a questão das
vivisecções, não tinha por intuito apenas fazer propaganda em fa-
AINDA A QUESTÃO DAS V1VISECÇÕE6 161
vor d'iini assumpto, a que se prendem os mais graves inleresses
da civilisação. coiistantemerile ameaçada pelas aggressões sacríle-
gas da intolerância religiosa ; propunlia-me também fazer sentir o
papel repngnante que a nação ingleza. cujas qualidades reconheço,
mas cujos defeitos não tenho obrigação nenhuma de calar, estava
representando por intermédio do seu parlamento n"esla cr.izada
idiota do fanatismo e da carolice contra os mais inviolaviMS direi-
tos do sabor contemporâneo; e comparando essa sentimentalidade
pueril do pielismo inglez com os processos summarios e brutaes
da sua diplo:nacia sordidamente mercantil, da qual nós, os portu-
guezes, somos ha três séculos victimas vergonhosamente resigna-
das e inertes, eu protestava, como homem educado na admiração
da sciencia, conti"a as prelenções d"esse pietUmo, e, como demo-
crata e patriota, contra as violências d*essa diplomacia.
É particularmente n'este segundo ponto que as divergências
entre mim e o sr. Arruda Furtado são insanáveis.
O sr. Arruda Furtado é anglomaniaco. e eu sinlo-rae com gran-
des tendências para ser anglophobo. File considera a Inglaterra
uma grande nação e os inglezes um grande povo ; eu, sem con-
testar a grandeza mateiial da Inglaleira nem pôr em duvida os
serviços que ella tem prestado á causa da civilisa-^ão e da scien-
cia, acho o espirito inglez. em geral, abominável pela completa
ausência de qualidades generosas e heróicas, pelo amor exclusivo
no lucro, pela sordidez da paixão da usura, que o leva muitas ve-
zes a sacrificar tudo, desde a dignidade nacional até á dignidade
pessoal, á idolatria aljsorvente do bezerro de ouro.
Mas isto é um lado secundaiio da questão, que eu não pretendo
tratar porque seria interminável e fastidiosa. O sr. Arruda Fur-
tado havia de encontrar nos fartos repositórios da sua erudição
histórica bom numero de argimientos para me demonstrar a sua
Ihese, como a mim me não faltariam exemplos para defender a
minha opinião, apesar do cabedal dos meus coulitcímentos em as-
sumptos de historia ser de uma pobreza deplorável. E depois de
uma grande massada de factos e de datas e de citações, dum di-
ze-tu direi-eu interminável, o sr. Arruda Furtado com certeza não
se convertia às exhortaçnes da minha prosa, e eu provavelmente
não me penitenciava dos meus erros. O publico, esse indubitavel-
mente adormecia ao meu segundo folhetim e ahi ficávamos nós
dois a pregar aos peixinhos n"um grande dispêndio inútil de ges-
tos oratórios, alé que o sacristão do bom senso nos viesse pôr
diques á facúndia, avisando-nos de que eslava deserta a egreja.
Não receio desastre por mim, que estou aíTeito a elles, mas
pelo sr. Arruda Furtado, que se havia de arrepender mil vezes
de ter distinguido immerecidamenle mn dos meus escriplos com
as suas cavalheirosas impugnações.
l-ei ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
Se as explicações que ahi ficam me não innocenlam, no caso
siigeito, do emprego de alguns adjectivos revolucionários e pouco
académicos, eu dar-me-hei íncilmente por vencido, mas receio bem
que. apparecendo egual ensejo, elles me não fujam da penna como
foge um bando de rapazes inqnielos e trocistas pela porta fora da
aula, terminada a hora da lição.
O estylo é o temperamento do escriptor, é a manifestação ar-
tística do seu caracter ; e a sabedoria popular diz ha muito que
quem torto nasce tarde ou nunca se endireita.
Eu por mim creio que preciso de me resignar a viver toda a
vida aleijado.
Alexandre da Conceição.
IS reis nassam
Os reis passam. Phrase que synlhetisa o espirito consciente de
um século immenso, positivo.
A onda levada a essa ofTicina de sublimidades allilelicas — a
Convenção, alii cimentada, retemperada, na garganta das tempes-
tades cyclopeas dessa gigante de ideias, e vomitada em calara-
ctas germinadoras pelo corpo lelhargico dos povos, que a educa-
ção jesuiticíi rachetiquisou, hoje, convulsiona estes organismos ma-
rasmaticos, infiltrando-lhes o elemento de vitalidade que lhes dará
a energia das supremas vontades.
Aos voltaireanos succedem os homens da sciencia ; aos que
eram uma descrença succedem os que são uma fé ; aos que en-
travam na lucta com o ideal da destruição, como demolidores,
como negativos, succedem os que trazem para o combate o espi-
rito da organisação. a formula das construcções robustas, as ten-
dências da tenacidade positiva. Nós somos a lei de que ellas eram
uma hypothese.
A philosophia moderna demonstra este facto complexo, eminen-
tenienle evolutivo.
É por isso que nós, republicanos federaes, quando repetimos o
dizer universal — os reis passam, — affirmamos mais uma verdade
fatal — amanhã não existirão.
Amanhã não existirão ; dobre fúnebre que deve reboar lugu-
bremente pelas abobadas solitárias d'estes palácios realengos, con-
fortáveis, que se erguem, na volúpia do seu poderio, das margens
geladas do Neva, às alturas ridentes das cercanias do Tejo/Que
seus hospedes se distráhiam um momento de seus prazeres de rei,
para escutarem este ecco, é o que pouco nos interessa. Sabemos
A ORIGEM DA SCIENCIA 16S
que são. 011 uma immobiiidade ou uma resistência. Immobili-
(iade, quando os toleramos por fraqueza, resistência, quando os
atacamos indisciplinados. E sabemos ainda, que a revolução, em
nossa edade, é uma força explosiva aberta debaixo dos thronos.
Honlem elles afogavam-n'a sob seus estrados, sob seus tapeies,
sob a cerviz delambida de seus corlezãos cynicos ; boja, ella ir-
rompe por frestas, tem rugidos de fera enjaulada, e dá abalos de
feto crescido ; amanhã mergulhará, sob as suas linguas de cham-
mas niveladoras, lodo esse edifício velho, esboroado, convencionai
e sórdido.
Os reis passam, quer dizer, a imbecilidade cretina de um, não
esmagará mais, as vontades racionaes de muitos, as liberdades ló-
gicas da maior parte, o brio das consciências livres de todos. Aca-
bar-se-hão a arlequinada torpe das camarilhas, a tyrannia mesqui-
nha dos creados de galão, as protecções escandalosas dos compa-
drescos infames, as batotas pyramidaes das commanditas, a pros-
tituição cynica dos sentimentos, o aviltamento monstruoso das con-
sciências. O homem deixará de ser uma immoraliflade.
E é por estes dias de redempção civica, de trabalho e honra,
de virtudes allruistas e boa fé particulares, que combatemos con-
scientes, firmes, até esta firmeza rude do fanático, á sombra da
bandeira civilisadora da Republica Federal.
Nossa força está na firmeza destes homens de bem, a quem a
honestidade da educação, ou a rijeza de caracter enérgico não dei-
xaram mergulhar n'esse lodo degradante da cortezania e da vai-
dade, apanágio necessário das monarchias.
E por ullimo, os reis passam — é a verdade potente de uma de-
monstração que se realisa, desenrolando ás vistas acanhadas das
mediocridades parlamentares do dia, estes pequeninos factos que,
apezar da sua contrariedade apparente, se harmonisam na comple-
xidade de um systema uniforme.
HCGO Leaí..
A o ria em da Scíciicía
(Continuado de pag. 117)
Antes de aventurar-se nas planícies da Mesopotâmia, para n'el-
las ferir a batalha decisiva, Alexandre, com o cuidado de assegu-
rar a retirada e conservar livres as communicações com o mar,
dirigiu-se para o Sul e submetteu todo o paiz até ás margens do
Mediterrâneo. No conselho de guerra que celebrou depois da ba-
164 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
talha d'íssiis, expoz a seus generaes que não era necessário so-
nhar em perseguir a Dário, emquanto não fossem senhores de
Tyro, e a Pérsia reinasse em Chypre e no Egyplo lambem ; e con-
tinuou, dizendo que se o exercito persa alcançasse os portos do
império, levaria a guerra á Grécia, emquanto que possuindo já os
gregos o Egyplo e Chypre, nenhum cuidado deviam ler pela se-
gurança de seu paiz nalal. O sitio de Tyro durou seis mezes.
Diz-se que para vingar-se desta larga resistência fez expirar na
cruz a dois mil prisioneiros. Jerusalém rendeu-se á sua aproxima-
ção, motivo por que foi tratada com brandura ; porém, em Gaza,
o governador, Bélis. obslinou-se na defeza, e os macedonios, para
quem era csla praça a chave do Egyplo, estiveram detidos pelo
espaço de dois mezes. Quando alfim íoi lomada de assalto, foram
cruelmente assassinados dez mil habitantes, vendido o reslo cora
mulheres e filhos como escravos, e o governador arrastado vivo
em torno da cidade, amarrado ao carro do vencedor. Tinha caido
o ultimo obstáculo. Os eijypcios, que detestavam a dominação persa,
receberam com jubilo os novos invasores. Alexandre, organisou o
paiz como convinha a seus interesses ; confiou todos os empregos
militares aos macedonios. entregando ao cuidado dos egypcios os
assumptos civis.
Emíjuanto que se preparava a campanha decisiva, Alexandre em-
prehendeu luna viagem ao templo de Jupiler Ammon, umas duzen-
tas milhas distante e situado n'um oásis no meio do deserto da Ly-
bia. O oráculo declarou que Alexandre era filho d'este Deus, o
qual, em forma de serpente linha seduziílo Olympia sua mãe. As
concepções immaculadas e os parentescos divinos admitliam-se tão
correntemente n'esse tempo, que lodo aquelle que se elevava acima
dos outros homens, repulava-se logo de origem celestial. Na pró-
pria Roma, e muito depois da época de que nos occupâmos, nin-
guém ausaria crntradizer que o nascimento de seu fundador, Ró-
mulo, não lôra devido ao encontro casual do Deus Marte com a
virgem Rhea Silvia, num dia em que ella ia com o contaro buscar
agua á fonte. Os discípulos egypcios de Platão receberiam com có-
lera aquelles que condemnassem a lenda segundo a qual Perictíone,
mãe do grande philosopho, virgem pura, concebera sem mancha
por influeticia de Apolo, que o linha feito saber a Arislono, esposo
prometlido de Perittione. Assim, pois, quando Alexandre enviava
cartas, ordens e decretos, debaixo do titulo de «Alexandre, rei,
filho de Jupiler Ammon», era tudo recebido pelos habitantes do
Egyplo e da Syria, com um respeito de que não podemos formar
hoje uma ideia exacta. Comtudo, os livres pensadores da Grécia
estimavam no seu justo valor esta origem sobrenatural. Olympia,
que sabia melhor que ninguém o que havia de verdade n'aquella
intervenção divina, dizia em voz alta : «que desejava que Alexan-
A ORIGEM DA SCIENCIA 465
dre não a confundisse sempre com a mulher de Jnpiler.» Arriano,
historiador das conquistas macedoriias, disse: «Não lhe cabe cen-
sura por ter pretendido imprimir nos seus súbditos a crença em
sua origem divina, nem considerar como um crime elle querer,
como se pôde acreditar razoavelmente, que com eíTt3Íto queria au-
gmentar tão somente por esse meio a confiança de seus soldados.»
Tendo segura a retirada, regressou á Syria e dirigiu f)ara Este
a marcha do seu exercito, (jue se compunha de cincoenla mil ve-
teranos. Depois de haver atravessado o Eufrates, torneou as col-
linas dé Masia para evitar os calor, s irdensos qi,e reinam nas pla-
nícies meridionaes da Mesopotâmia. Era, por outra razão mais
fácil obler-se d'este modo as forragens para a cavallhria. Na mar-
gem esquerda do Tigre, e perlo de Arbela, encontrou um grande
exercito de um milhão e cem mil homens que Daiio conduzia de
Babylonia. A morte do nionarcha persa, que se seguiu após a sua
derrota, deixou o general Macedónio senhor de todo o pniz que se
estende desde o Danúbio até ao Indo. Todavia levou as suas con-
quistas ás plagas do Ganges. Os thesouros de «pie se apoderou
tocam as raias do impossível. Só em Suza. segundo diz Ariiano,
encontrou elle cincoenla mil talentos de di::heiro.
O leitor moderno, e em particular o que fôr militar, não pôde
admirar nunca o bastante similhaides campanhas em tudo extra-
ordinárias. A passagem do flelespnnlo e do Gianico no fragor da
batalha ; o inverno consagrado á organisação politica da A>ia Me-
nor conquistada ; os trabalhos do silio, bastante temiveis, des' ruí-
dos em Tyro ; o assalto e tomada de Gaza ; a Pérsia isolada da
Grécia ; sua marinha expulsa do Mediterrâneo ; a aniquilação de
todos os seus esforços que ainda assim empregou, como os linha
empregado até então com excellente resultado, para corromper,
na ausência dos generaes, aos chefes poliiicos de Allien;is e Es-
parta; o Egypto subjugado; um segundo inverno dedicado a or-
ganisar politicamente este paiz venerável por sua antiguidade ; o
exercito reunido na primavera seguinte nas margens do mar Ne-
gro e do mar Roxo, e nas ásperas planícies da Mesopotâmia ; a
passagem do Eufrates, no sitio em que linha sido destruída a
ponte de Thapsacus; a passagem do Tigre; o reconhecimento no-
cturno antes da grande e memorável batalha de Aibela ; o movi-
mento obliquo executado durante o combale ; a divisão do centro
inimigo — manobra reproduzida muitos séculos depois em Auster-
htz ; — a vigorosa perseguição ao monarcha persa ; são feitos glo-
riosos que nenhum general tem ultrapassado em todos os tempos.
D'este modo deu-se um impulso prodigioso á actividade intelle-
ctual da Grécia. Haviam homens que tinham seguido os exércitos
desde o Danúbio ao Nilo, e do Nilo ao Ganges. Tinham sentido o
sopro glacial dos paizes que se estendem ao norte do mar Negro,
186 ENCYCLOPEDIA UEFUBLICANA
O simoun e os furacões de areia fios tiesertos do Egypto ; tinham
visto as pyramides, cm pé havia já vinte séculos; os' obeliscos de
Lngsoii carregados de geroglyíij')s ; largas fileiras de síiiiges mu-
das e mysleiiosas ; as estatuas colossaes dos monarchas que ti-
nham reinado nas primeiras epochas do mundo. Nas salas de
Esar-fladdon, linham-se sentado sobre os thronos dos velhos reis
sombrios da Assyria, guardados por toiros com azas. Tiidiam con-
templado as muralhas de Babylonia ejectas sempre apesar dos des-
troços de Ires comiuislas e de três séculos, e com uma elevação
de oitenta [)és ainda assim. Existiam ainda n'esla cidade as ruí-
nas do templo de Bal, o Ueus rodeado de museus, e no remate
do edificio o observatório, do qual os mysticos astrónomos chal-
deos haviam estado em comnuinicação nocturna com as estrellas.
E além d'isso os vestígios dos palácios, com seus jardins suspen-
sos, nos quacs grandes arvores elevaranj para a amplidão os seus
troncos gigantescos, e os restos da machina hydraulica que lhes
ministrava a agua do rio. No lago artificiai formado por um vasto
syslema de aijueductos e assudes, as aguas das montanhas da Ar-
ménia chegavam a reunir-se e dali se espargiam pela cidade, en-
canadas pelas profundas ribas do Eufrales. Poiém. mais maravi-
lhoso do que tudo isto, era o túnel praticado por debaixo do
leito do rio.
Se a Cnaldèa, a Assyria, e Babylonia oííereciam prodigiosas e
verdadeiras antiguidades, cuja origem se perdia na noite dos tem-
pos, lamt'em a Pérsia tinha as suas maiavillias mais modernas.
As salas de Persepoles, sustidas por columnas, estavam repletas
de obras artísticas que eram outros tantos prodígios, de grava-
dos, (le esculpluras, de esmaltes, de bibliolhecas de alabastro, de
obeliscos, de sfinges, de toiros gigantescos. Ecbatana, a suave re-
sidência de verão dos monarchas persas, eslava defendida por sete
cercos de muralhas formadas de pedras talhadas e polidas, ue co-
res variegadas, que se elevavam progressivamente ao centro, des-
tinadas a figurar as orbitas dos sete planetas. O palácio estava
coberto com telhas de praia, as vigas eram revestidas de ouro. A
certas horas da noite allumiavam-se as salas com meias luas lu-
minosas de nafta, que rivalisavam com a luz do dia. Havia um
paraizo. este luxo favorito dos monarchas asiáticos, plantado no
centro da cidade. O império persa, desde o Helesponto até ao In-
dus, era verdadeiramente o jardim do mundo.
Tenho consagrado algumas paginas á narração d'eslas cam-
panhas extraordinárias, porque, excitando grandemente o génio
militar, conduziram o estabelecimento das escolas prati(as e ma-
thematicas de Alexandria, que foram a verdadeira creadora da
sciencia. Podemos fazer remontar todos os nossos conhecimentos
exactos ás campanhas macedonicas. liumboldt fez notar com muita
A ORIGfi:M DA SCIENCIA i6í
razão, que a vista dos aspectos novos e grandes da natureza ex-
pande o espirito humano. Os soldados de Alexandria, e mais pes-
soas que seguiam os seus exércitos, encontravam a cada passo
scenas inesperadas e pitlorescas. Os gregos eram um povo o mais
impressionavel e o mais observador. Ali, havia planícies intermi-
náveis de areia, n'outras parles, montanhas cujos cumes se per-
diam entre as nuvens ; o deserto apresentava os seus perigos e as
suas ardentias; as collinas as sombras e vapores que resvalavam
sobre os seus flancos. Kstavam no paiz dos dálites doirados, dos
cyprestes, dos tamarindos, dos niyrthos verdes e dos leandros.
Em Arbella tinham combatido contra os elephantes da Índia, e
nos bosques caspios tinham feito sair o tigre real do seu covil.
Tinham visto animaes que, comparados com os da Eiu'opa, não
eram somente extranhos por suas formas extravagantes, senão
mais ainda, por seu tamanho colossal — o rhinoceronte, o hippopo-
tamo, o camello, e o corcodilo do Nilo e do Ganges— e tmhara
encontrado homens de todas as raças vestidos com os trajos mais
variegados: o syrio tostado do sol, o bronzeado persa, o africano
negro. Conta-se que o próprio Alexandre fez sentar o seu almi-
rante Narco junto do seu leito de morte, e sentiu ainda bastante
prazer em fazel-o referir suas aventuras náuticas no rio Indo e no
golfo pérsico. O conquistador tinha observado com surpreza o fluxo
e refluxo do mar. Fizera construir navios com o intento de explo-
rar o mar Caspio, pensando que bem podia ser este mar o mesmo
que o mar Negro, golfos de um grande Oceano, supposto que
Narco tinha descoberto que não eratn outra cousa os da Pérsia e
Roxo. Tencionava que a sua frota emprehendesse uma viagem de
circumnavegação ao redi>r de Africa e entrasse no Mediterrâneo
por o caminho das columnas de Hercides, empresa que se preten-
dia ler sido já levada a cabo noutro tempo pelos Pharaós.
Não foram somente os grandes soldados, se não também os
grandes pensadores da Grécia que encontraram no império con-
quistado objectos dignos da sua admiração. Callislhenes encontrou
em Babylonia uma serie de observações aslronomic?s feitas pelos
chaldeos, que abraçava um transcurso de mil novecentos e três
annos : enviou-a a Aristóteles. Como estavam inscriptos em ladri-
lhos cozidos ao fogo, não é um impossível que as excavações era-
prehendidas em nossos dias possam descobrir cousas similhantes
nestas bibliothecas dos reis de Assyria, compostos de laminas da
argda. Pt(domeu. o astronom»» egypcio, possuía em Babylonia ob-
servações de eclipses que remontavam a setecentC'S quarenta e
sete annos antes da nossa era Teriam sido precisos largos e ri-
gorosos estudos para chegar a este ponto. Os babylonios tinham
deleruiinado a diuação d'um armo tropical, não se enganando se-
não em vinte minutos, menos da duração real. Do mesmo modo
168 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
SÓ tinham errado dois niiniUos ao fixar o anno siderio. Tinham
descoberto a precessão dos eqiiinoccios ; conheciam a causa dos
eclipses, e com a Hjuda dos seus cyclos podiam predizei-os. Sò
em dezenove minutos e meio se tinham enganado ao determinar
a duração doeste cyclo, o qual abrange mais de seis mil quinhen-
tos oitenta e cinco dias.
Similhantes resultados diio a prova irrecusável da paciência e
hal)irnlade com que se tinha feito o estudo da astronomia na Me-
sopotâmia, pois que com instrumentos mui insuíTicientes alcança-
ram um giau tal de perfeição, lilstes antigos observadores tinham
formado um catalogo de esliellas e dividido o zodiaco em uoze
signos, o dia e a noite em doze horas.
Segundo Aristóteles, tinham observado ha muito tempo a des-
apparição das e>treilas por detraz da lua. Possuíam noticias exa-
ctas sobre o systema solar e couheciam a ordem e posição dos
planetas. Kiles construíram os quadrantes solares, elepsidros, os
astrolábios e os gnomones.
Será inleressanle recordar seus ensaios de imprensa. Gravaram
suas memorias em caracteres cuneiformes sobre cylindi"os, e ro-
dando estfS |)or de cima d"uma capa de argilla plástica, obtinham
provas indeléveis. Podemos esperar recolher em suas bibliothecas,
formadas assim com laminas de terra cosida, uma verdadeira col-
lecçâo historifo-litteraria. Não deixavam também de conhecer a
óptica. .\s lentes convexas que tcem sido encontradas em Nimrod,
comprovam que tinham instrumentos de augmento. Km arithme-
tica tinham encontiado o vdor da j)osição das cifras, ainda que
lhes fallava a grande ii.venção india do zero.
Que sni|)rehendenle espectáculo para os conquistadores gregos,
que até entâu não conheciam nem a experimentação nem a obser-
vação, e que sempre tmham vivido de meditações vãs e especula-
ções inúteis !
Porém, o que mais poderosamente contribuiu para o desenvof-
vimento intellectu.d dos gregos, e ainda mais das novas ideias so-
bre a natureza, foi o conhecimento das religiões dos paizes con-
quistados. A idolatria que reinava na Grécia fora sempre um
objecto de hoiror para os persas, e nas suas invasões nunca dei-
xaram de destruir os templos e insultar destes deuses imruoraes.
A impunidade que se seguira a estes sacrilégios assombr^ava pro-
fundamen;e o |)Ovo e contribuiu a minar a fé helénica. Agora o
adorador das impuras divindades do Olympo apremlia a conhecer
um vasto systema religioso, bello e solido, baseado em tudo na
pbilosopiíia.
A Peisia. como acontece a todos os velhos impérios, tinha sof-
frido muitas mudanças de religião. Seguira o monotheismo de Zo-
roastro ; depois o dualismo, e mais tarde o magismo. No tempo
o CATHOLICISMO E A FAMÍLIA 16^
da conquista mecedonica reconhecia uma intelligencia universal^-
creadora, conservadora, soberana, esseticia pura do verdadeiro,
manancial do bem supremo 5 e do mesmo «nodo qne vemos na
terra resultar o movimento da opposição das forças, havia por
baixo d"esla intelligencia dois princípios eguaes, coeternos, repre-'
sentados pela imagem da luz e das treva.í. Kstes princípios estão
eternamente em lucta : o inundo é o seu campo de batalha, o ho-
mem a presa qne disputam.
Na lenda antiga do dualismo estava dito que o espirito mau ti-
nha enviado a sua serpente para destruir o Paraizo, obra do es-
pirito bom. Ksla lenda era conhecidíssima dos judeus levados ca^
plivos para Babylonia.
A existência de um principio do mal è a consequência da exis-
tência de nm principio do bem, como a sombra é necessária á
percepção da luz. Assim se pótie comprehender a apparição do
mal n'um mundo creado e governado por nm Deus soberanamente
bom. Cada um dos dois princípios, Ormuz génio da luz. e Ahri-
man génio das trevas, tem seus anjos que lhe obedecem, seus
conselheiros e seus exércitos. O homem bom deve buscar a ver-
dade, guardar a pureza, enlregar-se ao trabalho. Pôde esperar,
quando lhe expirar a vida mortal, outra vi^la n'onlro mundo e
contar com a resurreição do corpo, a immortalidade da alma, e
persistência da sua individualidade.
Nos últimos annos do império as ideias do magismo tinham pre-
valecido cada vez mais sobre as ideias de Zoroastro. O magismo
era essencialmente o culto dos elementos, e entre estes reputa-
va-se o fogo como a expressão mais viva do Ser Supremo. Sobre
altares levantados, não nos tem()los, mas deliaixo da abobada azu-
lada, ardiam fogos perpétuos, e o soi nascente consideravam-n'o
os magos como o mais nobre objecto da adoração dos hnmensl
Nas sociedades asiáticas nada se eleva mais do que o monarcha ;
no espaço immenso todos os astros desapparecem com a presença
do sol.
(Segue.)
d ctitlioUcisnio e a faniiuw
Incapaz de praticar uma acção benéfica e civilisadora, a familia
eatholica jaz n"nma espécie de agrilhoamento espiritual, ao mesmo
tempo que se dulcifica n'um goso intimo que lhe vem da moral
egoísta do catholicismo.
O pensamento sujeito a uma tutflla rigorosa, a tutella d'uma
infinidade de superstições idiotas, de preconceitos e scismas que
â2
170 ENr.YCLOPEblA REPUBLICANA
subjugam a razão, a consciência, alrophiando-a, não pôde ir além
da esphera confusa e tuniulluosa, do circulo menor traçado pela
urgência Iheologica. A phanlasia n'esle estado mental, restringe-se
a ver continuamente através do mesmo prisma ; a acção é paraly-
sada pelas mesmas pêas de ferro; os movimentos, a vontade, de-
pende d'uma lei incógnita, dum principio desconhecido, d'uma
influencia indefinida, mas que se julga só possuir a noção vaga de
superioridade.
As ideias do espirito religioso estão assim á mercê da vontade
suprema, das influencias sacerdolaes, dos preceitos da egreja. da
educação supersticiosa da infância. São como as huris escravisadas
cuja prostituição se iiarmonisa com a vontade absoluta do senhor.
Dizia Edgard Quinet, o fervoroso apostolo da emancipação reli-
giosa, que o catholicismo é o inimigo do género humano.
Na família, e sobretudo na mulher, exerce elle ainda notável
influencia, enlorpecendo-lhe os sentidos e sufl'ocando-lhe o coração
á voz dos sentimentos allruistas.
O catholicismo é como uma rede traiçoeira que envolve mais
covardemente o espirito do sexo afl"ectivo pela sua fragilidade e
superioridade de sentimento: é o seductor myslico, que se intro-
duz na família devassando-a e corrompendo-a, forçando-a a essas
praticas irrisórias do culto, das crenças inconscientes e absurdas.
Os segredos Íntimos da mulher, as acções, os pen>amentos do ho-
mem, a ingenuidade das creanças, são obrigados a uma exposição
immoral, vergonhosa e humilhante, perante os representantes de
Chrísto na terra, exposição que os deleita, ao mesmo tempo que
os inspira uos mysterios da divindade.
O catholicismo, longe de inspirar à família um sentimento apre-
ciável, longe de os estimular à pratica do bem, a uma acção ge-
nerosa e humanitária, é, pelo contrario, o seu grande corruptor.
Como a trimurli indiana enroscada por serpentes medonhas que
vomitam chammas abrasadoras, assim as ideias religiosas d"un[i
espirito doente, d'um cérebro subjugado a uma pressão confusa,
esterilisadora e atrí.phiante: a illuslração não pôde ir mais além,
transpor aquellas barreiras impeiietraveis; a educação reslringe-se
á sabedoria de bem viver para melhor morrer, n'uns sonhos contí-
nuos, ás vezes pesados, do paraizo, ou do inferno. N'essas visões
mysticas, celestes, n'esses mysterios incomprehensiveis de além
da campa, na gloria eterna e divina graça, e outros tantos absur-
dos que amolecem o cérebro, que o desvairam, que o amesqiii-
nham produzindo pesadellos enormes, eis no que se resume a vida
devota, toda a actividade pensante do fervoroso crente, toda a sa»
piencia do fiel servo calliolíco. O eu subjectivo é um bafejo de
Deus, 6 portanto uma natureza toda divina: logo, conclue-se que
as três grandes faculdades da alma, que regulam todos os nossos
TRADIÇÕES POPULARES fíl
aclos individuaes — sensibilidade, intelUgencia e actividade, estão
sempre subordinadas ao mero principio creador, sem licença do
qual o individuo religioso não podciá sentir, pensar e obrar.
Assim, a moral catholica nunca poderá ser independente como a
moral universal e pliilosophica, a moral consciente, só racional e
lógica, só verdadeiramente humana — a moial [)ositiva,
E vemos que a família educada no catholicismo, debalde dili-
genceia a harmonia no lar, não podendo aspirar a ura ideal de fe-
licidade: as discórdias são frequentes, motivadas quasi sempre por
pequenas contrariedades em que os sentimentos se não fraterni-
sam pelo egoismo da salvação da personalidade, pelo ascetismo
que immobilisa, e outras tantas cousas. D'aqui. não obstante as
mesmas noções vagas, observamos um facto curioso que assombra
e que é o seguinte: — De 200 casamentos calliolicos por trimestre,
só em Lisboa, 100 se divorciam, caliindo, pouco mais ou menos,
50 em poder dos tribunaes a tentarem acções de separação judi-
cial, sempre acompanhadas de allegações immoralissimas, e em
que se descobrem, a maior parte das vezes, as influencias do cle-
ricalismo e educação religiosa. Desta revelação se vê que a mé-
dia de taes casamentcs dissolvendo-se concone para a desmorali-
sação social, dando depois um triste exemplo aos filhos innocentes.
INote-se que nenhum dos casamentos civis, não obstante serem
muitos os que já se teem eílectuado, foi aiuda dissolvido.
Reis Dâmaso.
^rciflíções nonuíares
(CoUecção do Algarve)
ROMANCES
D. BOZÓ
— Levantae-vos, ó D. Bozó,
Se bem me quereis;
Ide chairiar vossa mãe
Cá vos la chameis.
— Afonlae, ó minha mãe,
Do flôce dormir;
Venha á Flor (l'a!raa
Qu'e?tá p"ra parir.
— S'ell3 parir que pára
Um rapaz varão,
Que arrebente, estale,
Pelo coração.
.J72 EXCYCLOPEDIA REPUBLK^ANA
— Onspcvae vos, minh'alma,
Na Virgem Maria;
Minha mãe iiãn está em casa
Fel a ama romaria.
— Levanlae-vos, ó D. Bozó,
Se bem me quereis
lile ••liamar vossa mana
Cá vos la i-liaineis.
— Acciírdae, 6 rninha mana.
Dii dô''e dormir;
Venirá Flor d alma
QuVslá p'ra parir.
— S'ella puir que pára
Uma r^p ,i i};a,
Que arreheiife, estale,
E acabe a vida.
— (^oiiservae \os, minh'alma,
Na Virjírm Maria;
Minba mana não está em casa
Foi á niesma romaria.
— Levantae-vos, ó D. Bozó,
Se liem nie quereis;
Me chamar a minha mãe
Cá vos la chameis.
— Accor.lae. ó ii.inha sogra,
Do dó e dormir;
Venha á For d'alma
Questá |)ra parir.
— Subi subi, meu genro,
Comei um bocado,
En)quaiito eu ponho
Esle negro toucado.
— Accordae, ó meus moços,
A seliar as minhas mulas,
Emquanio eu visto
Estas ne{,'ras vestiduras.
— Pastorinha nobre
Que o gado guardaes,
A quem se dubra
Estes siíínaes ?
— É pela Fior d'alma
Que morreu de parto.
— Ai, minha querida filha,
Fdha da minha vidai
Se eu lá estivesse
Ainda eras viva.
— Aij minha querida filha.
Filha do meu coração;
Se eu lá estivesse
Monerias ou não.
A sogra cançava
Em acc€niier os cyrios;
1
TRADIÇÕES POPULARES 173
A mãe não cançava
Em (lar suspiros.
A soura cain;ava
Em acceiíder as vellas,
A mãe não caiifava
Em chorar por ella.
D. MARCOS
«Amanhã parte D. Marcos
Para a guerra hnjçar.
— n Quando virás tu, meu conde,
Quando tornarás a voltar ?
— Se aos seis annos não vier
Aos sete o mais tardar;
E vindo para os nove
Já te poderás casar.
Ainda os seis não eram vindos
Já a condi ssa era casada;
O D. Marcos que partia
lia sua guerra passada,
Encontrou umas vaquinhas
Forradas d 'outro signal.
— De quem são essas vaquinhas, moiral.
Forradas doutro signal?
— Ató agora eram de D. Marcos,
Deus lhe queira perdoar;
Agora são de D. Fernando,
Tirem-me d'este lugar.
— Dá- me os teus fatos, moiral,
Queiras tu os meus vestir.
Quero ir áquella porta,
Uma esmola pedir.
Uma esmola, senhora.
Para aju la de passar.
Estando elle n'estas falias
A comlessa ao portal,
Deu-lhe uma, deu-lhe duas,
Ás três cahiu no chão;
Aos gritos da condessa
Accudiu o D, Fernando.
— Que é isso que tens, condessa.
Que é isso que tens, minh'alma?
— São os olhos lie D. Marcos,
Vi51 os, vél os aqui eitão.
— Não me chames D. Marcos
Nem D. Marcos me chamarão,
Que tiveste a desventura
D'esquecer o meu coração.
(Lagoa)
Heis Dâmaso.
t74 ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
Biographias
l>£a.uoel Fernandes Tliomaz:
III
Quem era Fernandes Tliomaz?
Natural da Figueira da Foz, onde nnsceu a 30 de junho de 1771,
era íillio de João Fernandes Tliomaz e de Maria da Encarnação, se-
gundo refere um de seus biograplios *. Seu pae dedicava-se ao com-
niercio marilimo, que lhe rendia baslaíite para viver bem e para
dar uma educação hberal aos Dlhos.
Enlrando aos 15 annos na universidade de Coimbra, mostrou
pouco fervor pelo estudo, mas em breve conquistou verdadeira su-
perioridade moral sobre os seus condiscípulos pela firmeza de ca-
racter e pela Inciílez de espirito que desenvolveu. Queria seguira
carreira ecciesiastica e tomar ordens, chegando a receber o grau
de bacharel na faculdade de Cânones, em 1791; porém mudou de
tenção e consagrou-se completamente aos estudos forenses, sendo,
em 1801, despachado para Arganil a exercer as funcções de juiz
de íòra, e quatro annos depois nomeado superintendente das alfan-
degas e tabacos nas comarcas de Aveiro, Coimbra e Leiria. Ambos
estes cargos desempenhou com a inteireza e a rectidão que sem-
pre o distinguiram no serviço publico e na vida particular.
A fuga do imbecil monarcha para o Brasil e os desastres que a
politica inepta e falsa do gabinete portuguez, perante os interesses
oppostos de Napoleão e da Inglaterra, arrastou sobre o [)aiz, des-
gostaram Fernandes Thomaz, como bom patriota que era, e leva-
ram-no a abandonar a vida publica e a regressar á sua terra na-
tal, onde se conservou por algum tempo no maiur isolamento. Ahi
o foi despertar a chegada das tropas inglezas, que vinham auxi-
liar-nos a expulsar os invasores e que desembarcaram perto da
Figueira. Artliur Wellesley, mais tarde lord Wellington, comman-
dante em chefe dos nossos alliados, mandou procurar Fernandes
Thomaz, como primeira auctoridade do dislricto, para legalisar as
requisições que tinha de fazer oflicialmente para o sustento e trans-
1
1 Estes nomes vêm n'um artigo publicado no n." 372 do jornal in<i\èz Moiíthly
Magazine e tianscnpto no Piano do Governo n.° 238. de 9 de ouluhro de 1822,
aiada em vida de Fernandes Tliomaz, e segundo paret-e devido á penna de algum
dos seus amigos políticos.
MANOEL FERNANDES THOMAZ 175
porte dos soldados inglezes. Fernandes Tliomaz apressou-se a com-
parecer e desenvolveu immedialamenle ioda a sua energia em fa-
cilitar a alimentação e os materiaes indispensáveis para o começo
da campanha contra o exercito francez. Sendo nomeado em 1808
provedor da comarca de Coimbra, interrompeu pouco depois o
exercício d'este cargo, para servir de intendente dos viveres ou
deputado commissario do exercito no quartel general de Beres-
ford, a instancias dos generaes inglezes, que tinham por elle a
máxima estima. Em 10 de fevereiro de 18 lá foi reintegrado nas
funcções de provedor de Coimbra ; tinha já o titulo de desembar-
gador da relação do Porto, mas só entrou na effectividade em 1817.
Em 181") publicou dois pequenos volumes sobre Direitos Domini-
caes, e desde os bancos da universidade que vinha formando uma
collecção de todas as leis extravagantes, das quaes depois deu a
lume um reportório..
No meio d'este viver bastante agitado foram-se desenvolvendo e
retemperando as eminentes qualidades, que fizeram de Fernandes
Thomaz o principal heroe da revolução e o mais sensato dos legis-
ladores do congresso constitumte. No exercício dos seus empregos
públicos teve occasião d»; observar de perto o estado de decadên-
cia e de ruina, a que tinha descido o regimen monarchico-feudal. e
conhecer a necessidade urgente de uma reforma, pela qnal se abo-
lissem os privilégios vexatórios e iniquos que abafavam o natural
desenvolvimento da nação. As condições do paiz, dlíBceis no prin-
cipio do século, aggravaram-se muiio com os tristes aconleciraeu-
tos que se seguiram. Fernandes Thomaz. patriota sincero, conce-
bia esperanças de levantar a nacionalidade portugueza do seu aba-
timento, e para realisar a sua ideia generosa fundou o Sinédrio.
Ao primeiro núcleo composto por Fernandes Thomaz, Ferreira Bor-
ges, Silva Carvalho e João Ferreira Vianna, foram se juntando suc-
cessivamente Duarte Lessa, José Pereira de Menezes. Francisco
Gomes da Silva. João da Cunha Solto-maior, José Maria Lopes Car-
neiro e José Gonçalves dos Santos e Silva. Os annos de 1818 e
1819 passaram-se em discussões verdadeiramente estéreis e na ob-
servação dos acontecimentos da politica interna e externa.
Começou o anno de 1820. e o Sinédrio tornou se militante; to-
dos os seus membros estavam animados dos melhores desejos de
levarem a eíTeito a grandiosa empresa ; gaiiharam a adhesão de
muitos officiaes do exercito, dos principaes, dos que tinham maior
influencia sobre os soldados ou que dispunham de maiores forças;
assim conquistaram o coronel Cabreira, conuuandantc da artilheria
na cidade do Porto, e os leneute-coroneis Gil, Pamplona e Guedes,
tí^ ENGYGLOPEDIA REPUBLICANA
cujos corpos estacionnvíim no Porlo, em Villa tl.i Feira, em Pena-
fiel, ele; contavam tamliem com o corpo da policia e com as mi-
licias da Maia. da Feira. etc.
O que determinou o Sinédrio a entrar em trabalhos activos para
apressar a revolução?
Em primeiro logar e a causa mais immediata d'e«te movimento,
foi decerto a noticia da sublevação da Galiza, que proclamou como
bandeira de revolta a celebre constituição de Cadix. Mas além d'isso
as próprias occorrencias interiores haviam (ie influir, e não pouco,
nas resoluções tomadas por atiuella associação revolucionaria.
Se em janeiro de 1818 a situação do paiz era |)essima e muito
grave, como procurámos mostrar, nos dois annos decorridos ainda
se aggravou em extremo, e em 18á0 o estado dos negócios públi-
cos era desesperado.
Depois da condemnação de Gomes Freire e dos seus infelizes
<:ompaidieiros, D. João VI promulgou um alvará, em 30 de março
de !8I8, em que declara criminosas todas as associações que não
tenham obtido auctorisação régia, prf>hibe-as e considera os seus
membros, como réus de lesa-mageslade. Fsta lei, em vez de pro-
duzir o effeito desejado pelo monarcha. vinha ainda aggravar a si-
tuação.
O thesouro achava-se esgotado, porque o gnverno do Pio de Ja-
neiro mandara ir para o Brasil todos os rendimentos de Portugal:
e os governadores apressaram-se a cumprir tstas ordens, apesar
da fome reinar em alguns pontos do [)aiz e as tmpas terem os sol-
dos em grande atraso! A própria regência viu-se forçada a alliviar
os pescadores da Estremadura de metade dos tributos. A emigra-
ção para o Brasil crescia extraordinariamente ; houpns, nuilheres
e crianças dirigiamse para ali em grupos a borilo dos navios qaé
constantemente partiam. O roubo estava inaugurado em systema;
as alfandegas, segundo a expressão de um escnptor bastante reac-
cionário, eram verdadeiros covis de ladrões ; o tristemente celebre
corregedor de Belém chegava a introduzir tabaco nos leitos, na
occasião das buscas, para arranjar criminosos a (piem roubar. Os
tribimaes convcrteram-se em praças de leilões, onde a justiça se
vendia a quem mais dava ; os juizes não olhavam ás razões que
militavam a favor de uma das partes, mas ao (Jmheiro que a outra
lhes offerecia. A segurança pessoal não existia; uma suspeita, uma
íienuncia falsa, bastava para um cidadão ser arran ado dos braços
carinhosos da esposa e atirado para uma misuiorra hiiinida e in-
fecta, onde havia de passar ann(»s sem conheciír ao menos o crime
de que o acusavam. A propiiedade também não era respeitada; os
propiios ministros não se envergonhavam de expoliar torpemente
os seus compatriotas indefensos. Os cargos davam-se a quem Ira-
ria mais empenhos, e o melhor dos empenhos era o ouro. O papel
MANOEL FERNANDES THOMAZ 177
moeda era um cancro devorador que augmentava a obra de des-
truição.
Emfmi o estado interno da nação era tão grave, que por deli-
beração da regência, Beresford partiu para o Bio de Janeiro, afim
de expor a D. João VJ o estado de cousas e pedi -lhe providen-
cias e dinheiro para pagar o atrazado aos soldados.
A sabida do marechal para o Brasil fez apressai- os preparativos
da revolução; o Sinédrio activava as adhesões e recebia em seu
seio mais dois membros, José de Mello Castro e Abreu e João Ma-
ria Xavier d'Araujo. A recepção d'este ultimo vem contada pela
seguinte forma nas suas Revelações e memorias: «Sem embargo de
ler presenciado muitos d'estes actos, devo confessar que fez sobre
mim impressão profunda o discurso, que Fernandes Thomaz n'essa
occasião me dirigiu. Presidia elle; e com a sua voz fortemente ac-
centuada pintou o estado do paiz ; sem rei que o goveinasse, um
general estrangeiro senhor do exercito, estrangeiros lambem go-
vernando as províncias, nossa dependência do Brasil, e emfim a
revolução de Hespanha que acabava de terminar felizmente com o
juramento de Fernando VII á constituição de Cadix. Ficaremos nós
assim? Ou devemos continuar n'esle aviltamento? Kepetiu elle mui-
tas vezes com fo^ça ! A figura de Fernandes Thomaz, as suas cans
respeitáveis, tudo o fazia sublime n'essa occisião. Sahi enlhusias-
mado e capaz de arrostar os maiores perigos!» Esta narração
simples e desperlcnciosa de Xavier d'Araujo revelia o ascendente
moral, que Fernandes Thomaz exercia sobre lodos que se aproxi-
mavam delle. e o enthusiasmo e a tenacidade, com que proseguia
na sua obra revolucionaria.
Fixou-se o dia 29 de junho para a empresa, mas alguns succes-
sos graves fizeram-na addiar e quasi que comprometleram o mo-
vimento. O coronel Barros, commandante da força militar do Mi-
nho, cujo concurso fora promettido por Xavier dWraujo, recusou-se
formalmente a adherir e obrigou este a retira r-se sem demora de
Braga. Ao mesmo tempo uma ordem do ministro da guerra paia
o coronel Cabreira mandar para Peniche um destacamento do seu
corpo de arlilheria fez desconfiar que estivesse descoberta a cons-
piração, e originou uma séria pendência com o coronel Gil. O re^
ceio assaltou todos os chefes; o próprio Fernandes Thomaz occul-
tou-se em sua casa, nas Caldas das Taipas, onde o foi encontrar,
n'um quarto escuro, Xavier d'Araujo que sahira á pressa de Braga.
Apenas o viu disse-Ihe Fernandes Thomaz:
— Meu amigo, vem me achar no segredo. A nossa revolução mal-
logrou-se no Porto. Os chefes militares lomaram-se de razões uns
com os outros, e é provável que a esta hora estejamos descober-
tos e denunciados. Eu tenho horror aos segredos das prisões; por
isso, e para me acostumar ao que é provável nos aconteça, já me
ááó
178 ENCYCLOPEDIA REPUBLICADA
■u.
fecho todos os dias três oa quatro horas n'esle aposento escuro,
para não estranhar depois*.
Os ânimos, porém, socegaram, e desapparecendo o receio infun-
dado, Fernandes Thomaz voltou ao Porto e reuniu o Sinédrio. Mos-
trou aos seus collegas a necessidade de ir a Lisboa sondar a opi-
nião publica e entender-se com os amigos para não ficai^m de-
pois isolados ; todos approvaram esta ideia e pozeram á sua dis-
pozição as sommas precisas para a viagem, mas o grande patriota
recusou todo o auxilio e partiu para a capital em fins de julho.
Durante a sua ausência, o Sinédrio recebeu um valioso apoio;
foi o de Fr. Francisco de S. Luiz. que, passando para Ponte de
Lima, offereccu o seu concurso para a revolução, promeltendo de-
cidir o coronel Barros a entrar no movimento.
Maneei Fernandes Thomaz demorou-se oito dias em Lisboa, cor-
rendo grandes perigos, porque já se suspeitava a existência da
conjuração, e mesmo segundo referem alguns auctores, escapando
aos espiões da policia por não o conhecerem, e regressou ao Porto,
onde encontrou já tudo preparado para a revolução. Esperaram
que chegasse o coronel Bernardo Corrêa de Castro Sepúlveda cora
o regimento de infanteria 18 e receberam-no no Sinédrio, fixando
logo o dia 24 de agosto para a revolução. Ainda d'esta vez ia sendo
mallograda a empresa por causa do manifesto que se deveria diri-
gir â nação. António da Silveira não approvou a redacção de Fer-
nandes Thomaz e pretendia que a Junta provisória se chamasse dos
Braganções e se limitasse a representar a D. João VI sobre o es-
tado do paiz e lhe pedisse o regiesso á Europa. Fernandes Tho-
maz em vão o procurou convencer com argumentos sérios e racio-
naes. Convocou, poitanto, o Sinédrio e conlando-líie a teima de
Silveira, allirmou que estava tudo perdido, que era impossível avan-
çar-se um passo.
Lopes Carneiro, dando um murro sobre a mesa, exclamou: — Se
um homem se oppõe á revolução, porque se não prescinde d'elle ?
porque não se sacrifica esse homem?
--Eu não venho aqui para disputar, disse serenamente Sepúl-
veda desembainhando a espada, venho só para tratar dos meios e
do dia da revolução. Offereceu-se para ir com dois collegas con-
vencer Silveira. Ferreira Borges e João da Cunha prestaram-se a
acompanhal-o. Fernandes Thomaz julgava inútil esta diligencia, mas
exclamou por fim:
—Pois vão, mas não fazem nada; evoltando-se para Lopes Car-
neiro disse-lhe: — Eu convenço-me com razões e não com murros.
Foi prolongada a lucía que os três delegados sustentaram com
1 Ob. cit.. pag. 17.
SUISSA 179
António da Silveira, mas por fim levaram-no a assignar «m mani-
festo que Ferreira Borges fez para substituir o primeiro.
Estando assim vencido o ultimo obstáculo, no dia 23, á noite,
reuniu-se o Sinédrio em casa de Ferreira Borges para escreverem
as proclamações e as cartas que tinham de ser publicadas e expe-
didas no seguinte dia, e prcpararem-se para a revolução.
(Segue.) Teixeira Bastos.
píUlSStl
(Continuado de pag. 130.)
Havíamos promettido historiar aqui, em resutiio, as pertinazes
luctas religiosas e politicas que se travaram nos cantões suissos,
depois da morte da Helvécia e a descriminação dos partidos cen-
tralista e federalista (1802) até á ultima reforma da Constituição,
realisada a 19 de abiil de 1874. Faltando-nos porém espaço, por
isso que se aproxima a conclusão do primeiro volume da Encyclo-
pedia, adiamos este trabalho para mais tarde e passamos a descre-
ver, segundo Charbonnier, o mechanismo das actuaes instituições
politicas úé. Suissa, trabalho que muito servirá por certo para orien-
tar o povo na forma republicana que deve adoptar, abandonando a
escola do sentimentalismo e das declamações banaes.
Poderes. — O poder supremo da Confederação suissa é exer-
cido pela AsscmhUa Federal, que se compõe de duas Camarás : o
Conselho Nacional e o Conselho dos Eslados.
Formação das leis. — Cada um destes dois Conselhos deli-
bera separadamente. As medidas legislativas devem successiva-
mente ser adoptadas pelos dois Conselhos; mas a iniciativa per-
tence indislinctamente a um ou a outro. Em certos casos, o Con-
selho Nacional e o Conselho dos Estados reunem-se e deliberam em
commum ; é assim que procedem por commum accordo á eleição
de sete delegados que formam o Conselho Federal, encarregado de
exercer o poder executivo da Confederação e dentre os quaes elles
próprios escolhem o Presidente da Confedera cão.
Censelho Federal. — Os membros do Conselho Federal são
nomeados por três annos pelas duas secções da AsíSembléa fede-
ral reunidas, e escolhidos dentre todos os cidadãos elegíveis; este
conselho é renovado integralmente em seguida a cada renovação
do Conselho Nacional.
Presidente da Confederação. — O presidente da Confede-
ração e vice-presidente do Conselho Federal são nomeados, por um
anno, pela Assembléa Federal reunida e ambos escolhidos d'entre
180 ENCYGLOFEDIA REPUBLICANA
OS membros do Conselho Federal; não podem porém desempenhar
esles caiyos duranle dois annos conseeiílivos. O vice-presidente ó
chamado, no anno seguinte, á presidência, em virtude d"um uso
constante. O [)residente da Confederação e os den}ais membros do
Conselho Federal recebem uma remuneração annual paga pela caixa
federal.
Conselho dos Estados. — O (Conselho dos Estados compõe-se
de quarenla e quatro deputados dos cantões. Cada Cantão, qual-
quer que seja a sua população, elege dois deputados; nos cantões
subdivididos, cada semi-Fslado elege um.
Os membros do (Conselho dos Fstados são eleitos pelos cantões
e peia lo; ma prescita na ki cantonal. Em Uri, (ílaiis, Appenzel,
ele, são estes eleitos pelo povo reunido na praça publica. Km Zu-
ricl) os eleitores nomeiam-nos pelo sulíVagio universal directo. Na
maior parte dos outros Estados são eleitos pelos Grandes Conselhos,
ou asseiubiéas cantonaes de cada Estado ou semi-Estado.
Duração do Mandato. — O mandato dos membros do Con-
selho dos Estados tem a duração que apraz a cada cantão. De or-
dinário é de um sò anno, com reeleição.
Presidência. — O Conselho dos Estados escolhe, no seu seio,
para cada sessão ordinária ou extraordinária, um presidente e um
vice-piesidenle. Estes altos dignatarios não podem ser eleitos d'en-
tre os deputados do Cantão, onde foi escolhido o presidente para a
sessão ordinária que immediatamente a precedeu; fs deputados do
mesmo cantão não podem ser investidos do cargo de vice-presi-
dente diuante duas sessões consecutivas.
No caso de empate, a opinião do presidente é prepondeiante;,
nas eleições elle vota como qualquer outro membro.
Remuneração. — Os membros do Conselho dos Estados são
pagos |)elos seus respectivos cantões.
Conselho Nacional. — O Conselho Nacional compõe-se de de-
putados eleitos, i)or esci utinio directo e secreto, em cada cantão,
na razão da sua população e na proporção de um membro por cada
vinte mil habitantes.
Todo o cantão ou semi-cantão, até quando a sua população é in-
ferior a esta cifra, nomeia pelo menos um deputado; as fracções de
população superiores a dez mil almas têm direito a um deputado.
Eleições. — Cada Estado federal (Cantão ou semi-Cantão) pro-
cede ás eleições conforme as prescripções das leis que lhes são
particulares, mas sob reserva das diversas disposições geraes, al-
gumas das qnaes, as mais importantes, passamos a mencionar:
Todo o cidadão suisso com vinte e um annos de edade tem di-
reito a votar, logo que não esteja excluído do direito de cidadão
activo pela legislação do cantão, onde tem o seu domicilio.
Os militares votam nas mãos do commandante do seu corpo,.
SUISSA 1«1
acompanhado por uma mesa especial que envia as listas ao circulo
a que pertence o soldado pelo seu domicilio habitual. Os volos dos
militares são então adicionados aos votos do municipio ou assem-
bléa eleitoral do seu domicilio.
O cidadão suisso exerce (js seus direitos eleitoraes no local onde
reside, quer como cidadão do cantão, quer como cidadão estabele-
cido ou com residência temporária. Seis mezes de permanência na
mesma communa são apenas necessários para ser inscriplo no re-
censeamento eleitoral.
Listas eleitoraes. — Todo o cidadão suisso domiciliado numa
communa deve graluitamenie ser inscripio no registo eleitoral da
sua coniiiiuna, logo que a aucloridade compuicnte não possua a
prova de que elle está excluído do direito de ciiladão activo pela
legislação do cantão.
As prescripções relativas á oi-ganisação dos registos eleitoraes,
são as mesmas para todas os cidadãos suissos.
As listas eleitoraes são permanentes; a sua revisão não tem lo-
gar senão uma vez por anno; as reclamações dos eleitores, poroc-
casião d'esta revisão, são recebidas desde lo de janeiro até 3 de
fevereiro.
Antes de cada eleição, os registos eleitoraes devem ser expos-
tos ao publico, pelo menos durante duas semanas, afim de que os
eleitoies possam tomar completo conhecimento d"elles; o mais cedo
que podem retirar-se são três dias antes da votação.
Os recursos contra as omissões ou eliminações illegacs, impu-
tadas ao maire, são apresentados perante uma comunssão munici-
pal, com direito a appellarem para o juiz de paz, de cuja decisão,
por violação da lei ou excesso de poderes, pôde recorrer-se ao su-
prem.o tribunal de jijsliça.
Póde-se ainda recorrer ao Conselho Federal, contra as auctori-
dades cantonaes, pela recusa ou suppressão de inscripção ou por
qualquer infracção da lei eleitoral.
Escrutinios. — As eleições fazem-se por escrutínio secreto;
a acta de cada uma é redigida pelos membros da mesa respectiva
e expedida ao governo do cantão, que apura o resultado das vota-
ções nas differentes assembléas e o transmille ao publico.
As leclamações relativas a eleições devem ser enviadas, no praso
de 6 dias, ao governo cantonal, que as trausmitle ás auctoridades
federaes; decorrido este praso não são admitlidas. O governo can-
tonal transmille, em seguida ao (>onselho federal todos os documen-
tos relativos ás eleições, excepto as listas, que não são expedidas
senão a pedido e que são destruídas logo que a eleição está vali-
dada.
Ninguém é eleito no primeiro turno de escrulinio se não reúne:
l.° A maioria absoluta de votos expressos;
182 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
2." Um numero de votos egual á quarta parte dos eleitores in-
scriptos.
No segundo escrutínio a eleição é por maioria relativa, seja qual
fòr o numero de votantes.
Se n'um escrutínio o numero de candidatos que obteve maioria
absoluta excede o numero de deputados que ha a eleger, os que
alcançaram o maior numero de votos são considerados eleitos.
Nos casos em que os candidatos obtêm egual numero de votos,
è preferido o candidato mais velho.
(Segue.)
Evolucõa; SHLevoíu
ena; ynuevoíucuo
A democracia contemporânea, por muilo tempo servida no campo
especulativo apenas pelas vagas aspirações do jacobinismo revolu-
cionário, pela doutrina dos confrontos históricos e dos exemplos po-
líticos, e pela incoercível percepção de novos ideaes, recebe agora
novas e mais seguras razões e argumentos com o advento e pro-
gressos do transformismo. A brilhante theoria que Darwin p('ude
levar até á sua plena elllorescencia e universal expansão, constitue
lambem o mais poderoso meio de analyse para os complexos factos
sociológicos.
Na serie embryologica. synthese do trabalho orgânico que houve
de prodnzir-se á superficie da terra para o apparecimeuto do ho-
mem, este é sô um organismo, cuja estruclura elevada a um gráo
de differenciação mais completa, se acompanha por uma especiali-
sação funccional párallelamente aperfeiçoada.
Na serie anthropologica, o homem, primeiramente troglodita, an-
thropoide, dotado de instinclos perfeitamente besliaes, veiu subindo
até lançar as bases e delineamentos das proto-civilisações elemen-
tares.
Na serie histórica o homem sahiu gradualmente da íluctuação
cega e insciente das suas raças sobre o globo para a posse plena
e consciente d'esse mesmo globo por um grupo, em cujas mãos
está agora condensada a hegemonia dos destinos humanos.
Na serie politica o homem partiu da concepção theologica e he-
róica da aucloridade, até rehavel-a e conquistal-a pela conclusão
scientifica de que a auctoridade emanava do seu próprio ser e acti-
vidade..
De modo que abstractamente considerado, o homem, oriundo
das mais humildes, rasteiras e confusas origens animaes, logrou
atlingir a comprehensão do seu ser, da sua omnipotência racional,
do seu destino messiânico.
EVOLUÇÃO : REVOLUÇÃO 183
Tal é o ideal, o typo humano no momento presente. Este typo
é o ponto convergente de todos os esforços individuaes e sociaes,
e portanto o critério superior do direito.
Definido este principio, conclue-se immediatamente que é incom-
pativel com a generalisação do seu conhecimento a preponderância
de castas circumscriptas, — Ínfimas, minorias no meio das popula-
ções e grupos nacionaes; bem como ha também incompatibilidade
entre a aspiração jurídica das massas e a persistência de uma au-
ctoridade, emanada das noções theologica e heróica, vagamente
concebidas nos primórdios da historia. Esta concepção da auctori-
dade é com eíTeito immensamente distante da actual concepção ty-
pica do direito humano; e o formalismo que praticamente a reveste
torna-se, portanto, ii compatível com as necessidades presentes de
uma formula concreta apropriada, que 9ò pôde dar-nos um regi-
men differente, — o regimen democrático.
A conquista d'este regímen, pelas próprias condições da evolu-
ção, não se faz por egual no tempo e no espaço á superfície da
terra. Ha uma tendência constante e uma permanente aproximação
para o ideal onde convergem n"este momento as attenções e esfor-
ços psycho sociaes da espécie humana. Este movimento de conver-
gência opera se ininterruptamente e com tanta maior evidencia
quanto menor é a distancia. A lei que o regula tem alguma cousa
da lei da gravitação, se é apropriado comparar duas ordens de phe-
nomenos, collocados a tamanha distancia na serie dos actos da vida
liuiversal.
Não é sereno e uniforme o processo por que se executa o mo-
vimento. Aqui se observam, do mesmo modo que em qualquer ou-
tro agrupamento de seres, as leis eternas, de cuja acção constante
tem resultado a vida e o progresso dos organismos, — a lucta pela
existência, a selecção natural. A primeira tornará penoso e cheio
de accidentes o advento da democracia, mas assegurar-lhe-ha o
triumpho definitivo como á noção psychíca mais bella, mais pode-
rosa, mais resistente, que até agora o cérebro humano ponde tra-
balhar. A segunda assegura o apuramento das conquistas huma-
nas jcá effectuadas no sentido democrático, e bem assim a duração
no tempo e a transmissão de pães a filhos d'esse regimen ; e no
conflicto de allianças entre varias doutrinas sociológicas regula o
aperfeiçoamento das noções democráticas, e define-lhes os caracte-
res que hão de fixar-se, transmiltir-se e durar.
De toda esta incessante elaboração resulta necessariamente eli-
minarem-se e desapparecerem as formulas correspondentes ás no-
ções foliticas retardatárias, enfezadas ou mortas. A maneira por
que se ha de operar esta eliminação pôde ser brusca, repentina e
transitória, ou continua, ininterrupta e duradoura, É isto o que na
linguagem dos nossos jornaes corresponde respectivamente aos ter-
I8i ENCYCLOPEDIA HEPUBLICANA
mos revolução e evolução. D'aqiiellas duas maneiras uma não ex*
clue a outra, e o progresso das idéas, como o dos seres, faz-se de
ordinário, por actos desordenados, na apparencia perturbadores,
e instantâneos, ou por actos conliniios, regulares e demorados, em
varia e imprevista combinação. As chamadas revolução e evolução
não constituem dois factores antagónicos, mas duas phases do mes-
mo processo natural.
Augusto Hocha.
Lagoa.
uli
.i^rcidiçoes jioíiumres
(Collecção do Algarve)
ROMANCES
D. ALBERTO
(Varianio \)
— D. All)erto. D. AllJ^Tto,
O nosso somno foi sahiJo ,
As armas d'EI-i ei meu pae
Entre nós estão mettidas:
Levantate e pede-lhe perJâo
E cliora-lhe como menino.
— Perdão vos peço. El-Rei
Meu senhor, perdão
Vos quero pedir.
Sou filho d'El-líei de França,
Neto (1 El-Rei de Cascaes ;
Sobrinho do padre Santo
Diga o Rei qual seja mais.
— Levanta-te, D. .Alberto,
Que foste muito atrevido ;
Ate agora eras filho
D'hoje em diante genro querido.
Reis Da.\aso
A sciencia é a religião, o futuro; Comte e Liltré são os seus pro-
phetas; o positivismo é o seu dogma fundamental. Façam o que fi-
zerem não pôde subtrahir-se-lhe. Dumas (fdho).
A sciencia é para o humem o que o sol é para a terra.
E. DE GlBARDIN.
V^ VICTIS 185
Vxv vi et is
Recitada paio auclor, no theatro de S. João, nas feitas académicas
do centenário do marquez de Pombal
Ha outro mundo, sim, ó parires de Jesus ;
Mas não o eohre o vulto uifausto ile uma cruz,
Não lhe seiveni de esteira os pannos das batinas,
Rendilhados de unção e de bênçãos divinas :
É o inundo da Seiencia, o Mundo da Verdade.
Vós que quereis tornar escrava a Liberdade,
Apagar a consciência, algemar a razão,
Pomlo-nos sem vigor p'ra a vida e para a acção,
E por onde passaes, monstros de togas pretas.
Nem os lirios dão flor, nem crescem as violetas.
Ou o jasmim levanta o cálix branco e fino,
Fica estéril o chão como a alma do assassino.
Vós, é que não sabeis a entrada d'esse mundo,
Mais extenso que o Ceu, mais bello, mais fecundo }
Pois como poderá comprehender o amor.
Os segredos da luz, os tecidos da íl()r,
Quem anda sempre immerso em trevas, macillento.
Orgulhoso de si, na morte o pensamento.
Rogando maldições á Natureza inteira ?
O padres de Jesus, olhae : a águia altaneira
Nunca se circumscreve ao ninho em que nasceu :
Escala os montes, desce ao vai, percorre o ceu.
Domina o mar, encara o sol, tudo preseruta,
É num anceio inmienso, e numa eterna lucta.
Depois de ter sondado as florestas bravias,
E os antros onde ecboa a voz das ventanias
E o druida recitava as forinulas sagradas,
Morre, cheia de ideal, nas rochas escarpadas .
O homem é maior que a própria a^-uia altiva.
E, ainda que surgiu também na rocha viva.
Sem aujparo nenhum, selvagem, desgnicado.
Tendo, em vez de um palácio, utu mattagal fechado,
E foi nu, ou envolto em mísera roupagem.
Que os mythos concebeu e formou a linguagem,
As leis. as religiões, o governo, a familia.
Em horas de anmrgura e noites de vigilia.
Não descançou jamais na encarniçada lucta,
Com o silex na mão, atraz da fera bruta.
Errante, hallueinado. . . e, chaldeu ou egypcio,
Soldado da virtude, idolatra do vicio, .-i-v:. o
Cavou a terra toda e rasgou todo o mar. - ,.i|.;. - .-,. *
24" ■■■■■
186 ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
Poeta na velha índia, á sombra de um palmar,
Entre as murmurações santíssimas do Ganges ;
Na Arábia manejando o ferro dos alfanges ;
Em líoma gladiador ; na Grécia heroe e artista,
Aonde lançou elle a sua larga vista
Que não colhesse logo as palmas da vietoria
E desse mais um deus ao pantheon da Historia ''
Ern vão arrojareis o hysope contra nós. "
E fareis retumbar nos |)ulpitos a voz
Que animncia o inferno á geração descrente !
Está comvosco era guerra a mocidade ardente ;
Ella fem dentro da alma a força do vulcão,
Que oulra coisa não é a aujiusta aspiração
Do Direito, da Paz, da Justiça e do Amor !
E pode-se encadear o vento assolador,
Derrubar a montanha e o cedro omnipotente..
Subir pela atmosphera e voar livremente
Como a ave que canta e o raio que dá luz,
Pode-se pór um dique ás ondas do oceano . .
Mas nunca podereis, 6 padres de .lesus.
Reprimir e matar o pensamento humano !
O pensamento avança a passos magestosos,
Anhelante seguindo a estrada do seu rumo,
Derrubando da peanha os santos carunchosos,
Que se esvaem no ar, como ligeiro fumo:
Parece até que mostra um gosto indefinido
Em arrancar a um peito estóico e destemido
Uma crença de avós ou um sonho feliz
Como aquelle que arranca ao solo uma raiz I
E hoje, que elle cantou a gloria das nações
Nas festas immortaes de Pombal e Camões !
Hoje, que elle sustenta um sceptro tão brilhante,
A que se curva o espaço e a fera soluçante.
Como ante o seu rajah os servos do Indostão,
Não deve consentir nesta contradicção :
Que á luz do Sol supremo, o Jesuita obscuro
Vá sentar-se indolente ás portas do Futuro I
Porto, 8 de maio de 1882.
J. Leite de Vascoxcellos.
O nivel moral e inlellectual dos povos está na razão inversa da
influencia dos padres. Jaculliot.
A religião calholica é contraria a todos os progressos que ten-
tem realisar as sociedades humanas. L. Jourdan.
COSTUMES DA BEIRA-ALTA 187
Êostuiiies da Speira-. ÍIío
Limitada ao N, pelo rio Douro, (jiie a separa de Tras-os-Mou-
tes, e ao S. pelo districto de Coimbra, a Beira-Alla é aljavessada
por três grandes linhas de montanhas ; a primeira composta do
Caramello, a segunda das Serras de Leomil, Santa Melena, Monte-
muro e Gralheira, a terceira das serras de Ferreira de Aves, Cotta
e Manhouce. N'essas montanhas, onde á vista se estendem terre-
nos e terrenos maninhos, silenciosos, vagos, sobre os quaes,
quando o sol espreita por entre as nuvens, estas projectam uma
sombra disforme, movediça, como o pensamento, ou quando o ne-
voeiro os envolve, se vêem errar os vultos phantasticos dos lobos ;
ahi, digo, nas margens de rios tortuosos, entre enormes massas
graniticas e montões de neve, muito assumpto ha ()rira o ethno-
grapho, para o poeta e para o romancista. Nellas habitam raças
semi-barbaras, que ha séculos transmittem de geração em geração
um inexhaurivel thesouro de tradições, conservado com o respeito
por uma herança de avós.
Descendo da serra para a ribeira, a vida apresenta outra ex-
pansão, posto que presa á antiguidade pelos mesmos laços tradi-
cionaes.
Vizeu e Lamego são as duas povoações principiies da província,
a primeira, com as lendas heróicas de Viriato : a segunda, com a
reminiscência dos seus régulos árabes, — ambas ainda com os per-
fumes da Edade-Média.
As casarias dos conv-entos estendidas no meio dos povoados, os
castellos arruinados no alto dos outeiros, os pelourinhos erguidos
nos largos das velhas villas, os brazões de armas nos edifícios no-
bres, as fontes e as encruzdhadas cheias de painéis e de cruzes,
os templos carcomidos a negrejarem por toda a parle, as construc-
ções antigas, as ruas povoadas de nichos, — tudo isto, à sombra
venerável dos grossos castanheiros, e dos pinheiraes verde-escu-
ros espalhados nos montes, dá a uma grande parte da provinda
o aspecto solemne e grave que nos faz olhar para ella como para
o passado.
Nas paginas que se seguem vou descrever alguns dos costumes
da Beira-Alta, parte lembrança dos tempos infantis, porque
Esta p a ditosa pátria, minha amada.
parle recolhidos no estudo geral que ando fazendo nas tradições
populares portuguezas.
f Começarei pelas serras da freguezia de Almofalla, hoje no con-
i88 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
celho de Castro-Daire, limilrnphe do de Mondim. As casas são ge-
ralmente térreas, paredes nuas, e telhados de colmo. Occupam ás
vezes uma pequeníssima área, como é vulgar nos povos antigos
ou selvagens, dos quaes posso citar para exemplo a Citania no
nosso Minho, * e os Auslralios. ^ N um pequeno terreiro, que ou-
tra cousa não são muitas destas casas, nascem e desenvolvem-se
uma poucas de gerações robustas. A um canto, uma lágea a ser-
vir de cosinha, a outro a cama ou camas, e a outio uma caixa, eis
a mobília dos mais pobres. Em volta da casa verdeja frequente-
mente uma pequena horta plantada de couves.
O trajo diário dos homens compue-se da jaqueta de saragoça,
calça do mesmo tecido ou de linho, chapéu de panno ou de palha,
socos ferrados ou sapatos muito grossos ; usa-se também a capu-
cha, espécie de capa formada de uma simples saragoça, sem forro
nem feitio nenhiun, e no cimo, paia cobrir a cabeça, uma espécie
de carapuça feita das dobras do panno. A capucha é trazida por
mulheres e homens, e nestes subslilue a maior parte das vezes
O chapéu.
No domingo, porém, o serrano despe a jaqueta e veste a nisa'
semelhante a uma casaca, de botões lisos e amarellos, e também
de saragoça. Mesmo fora da serra tenho já visto este trajo domin-
gueiro. Antigamente usavam-se calções cheios de botões pela perna
abaixo e continuados por grandes meias escuras. Hoje raro se en-
contra, e a única lembrança j)essoal que conservo é a de um hmto
que nunca os largava. Este homem de virtude linha chorado no
ventre materno, porque ninguém é hento sem tal condição. Todas
aquellas povoações por ali em volta, inclusivamente Lamego, o
chamavam nas doenças. FJie tinha um ar grave, uma voz pausada
e grossa como de propheta, — só gostava muito do liquido de S.
Martinho. Quando o rogavam, montava na sua burrinha, punha os
alforges adeante, lançava um santo Christo ao pescoço, o lá ia cu-
rar a humanidade enferma. As suas receitas não se afastavam das
de todos os charlatães : uns chás de hervas seccas, umas bebidas
de camizas queimadas dos doentes, umas rezas, e eis tudo. A jus-
tiça por varias vezes o tinha interrompido nas funcçõ^s sagradas,
mas nem o olhar austero do juiz, nem as paredes negras do cala-
bouço, o poderam aíTastar do caminho seguido. Elle chorara no
ventre da mãe : recebia de toda a parte as provas evidentes da
sua virtude ; ao longe estendiam-lhe os braços ; em casa, á porta,
1 Vid. Obsenorues á Citania do si: dr. E. Hiibner, por F. Martins Sarmento,
Porto 1879. pag. d 3.
2 Vid. O hoimm antes da Historia, por Lul)boek, Paris 1867 (trad. fr.), pasf.
348.
COSTUMES DA BEIRA-ALTA 189
sempre uma multidão de doentes, como eu presenceei : que mais
queria elle? Não costumava receber dinheiro, recebia fructos, car-
nes, etc. ; para isso levava sempre os alforges em cima da burri-
nha. Outras vezes lambem, os parochos das freguezias corriam-no,
e elle, sempre firme na sua missão predestinada, o mais que lhes
dizia, era : — eu cá smi bento, e rós não!
As serranas vestem egnalmente de saragoça, umas saias curtas,
umas polainas de lã, e ao pescoço uns largos gorgetes brancos e
folhudos.
A riqueza dos serranos consiste nos gados, no centeio, nas cas-
tanhas e no carvão. O carvoeiro, com a sua cara rugosa a negra,
a sua voz rude, é um typo legendário e entra nos contos populares.
Alguns serranos entregam se á caça e á pesca, indo longe ven-
der os seus productos.
Nas casas ha sempre bom provimento de carnes de porco, mel
e queijo.
Homens e mulheres trabalham no campo. Plinio já falia do tra-
balho domestico das mulheres luzitanas.
Nada ha mais triste do que passar uma d'essas serras da Beira-
Alta, na occasião em que n"um lenteiro solitário, á beira de um
no cavernoso, em dias calmos de outomno, ao fim da tarde, pas-
tam os bois e as vaccas. Reina o silencio em toda a redondeza,
apenas quebrado peias quedas d'agua e pelo som metallico dos
grandes chocalhos pendentes dos pescoços dos aniniaes. É este
som metallico que põe na paisagem uma tristeza profunda.
Nos maninhos das serras pasta o gado meudo. —carneiros, ove-
lhas, bodes e cabras. É um paslorinho que o guarda, ou uma mu-
lher, que. em algumas partes da província, tem o nome àedofira.
Parece ainda que estou a ver estas mulheres, de capucha pela ca-
beça, fiando linho, com a roca á cinta, sentadas, (juasi immoveis,
sobre um peniido, ou levantando-se a cada passo a pegar numa
pedra, e atirar uma lapada ^ ao gado. CMba cá, chiba lá! gritam
ellas de vez em quando às cabras mais impacientes. Quantas ve-
zes alguma d"essas serraninhas, todas embrulhadas no seu giosso
burel, e mal tendo um bocadito do coração aberto ao amor, can-
taria a seguinte cantiga que, com outras jà ha annos. ouvi nas
montanhas da Beira-Alta?
Ha silvas que dão amoras,
Ha oifras que as num dão :
Elle ha hornes que são firmes. -
Ha oitros que o num são.
1 Atirai- uma pedrada diz-se vulgarmente no ineu concelho : atirar tima In-
pada.
2 Xas orações impessoaes emprega-se popular e mesmo familiarmente o pro-
nome elle : elle chove, etc.
190 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Nos dias de trabalho não se vè viva alma em ociosidade na
serra, as ruas estão solitárias, — e passar pelas povoações equivale
a passai' por um deserto : sò ao domingo é que no adro da egreja,
no fim da missa, ou á porta da venda * do iogar, ha um rendez-
vous das pessoas mais gradas.
Ninguém se deita sem ter resado em coro, com o resto da fa-
milin. o rosário de Nossa Senhora. Em pequeno assisti a uma des-
las rezas, no inverno, á lareira, em Almofalla. Depois da reza
contou o // Jeròmino ^ alguns casos ultimamente succedidos com
os lobos na visiuhança. Os lobos ali são lemiveis, com especiali-
dade em occasião de grandes nevadas ; atacam as casas, — e os
povos vèem-se obrigados a fazer-lhes montarias. Também, aquelle
que mata um lobo. tiralhe a pelle. empalha-a. e vae com elle por
esses mundos a pedir, como se tivesse commettido um acto de
enorme heroicidade, o qual precisasse de remuneração.
Os serranos conservam sempre a porta aberta; porta fechada é
signal de ausência da família, — salvo de noute. ^
Os dias de lesta são verdadeiros dias de gloria nacional. Os pa-
rochos e.xercem o profundo poder sobre a(]uella pobre gente da
serra. Quando os influentes políticos querem os votos dos serra-
nos, não se dirigem a estes, mas aos parochos. Os parochos man-
dam os parochianos, que, coitados! lá seguem para a eleição, ar-
mados do inseparável vara-pao. sem saber para onde nem para
que, como as rezes para o matadouro.
È-me impossivel descrever todas as festas da serra: por isso
vou apenas fallar das fogaças do dia da Senhora das Candeias, fes-
tividade que vi em Almofalla em 1874, quando eu tinha apenas os
meus 15 para 10 annos.
Chamam-se fogaças a pães de ló que, em proveito do cofre da
Senhora, são postos em leilão e arrematados a quem mais der. Os
pães de ló são levados para o leilão por donzellas competentemente
vestidas de branco e enfeitadas com filas de cores. O leilão reali-
sa-se no fim da festa, á porta do templo. O arrematante da fogaça
í Em vez de taverna o povo diz geralmente a venda, e em vez de taverneiro
diz vendeiro.
^ Na Beira Alta. espei-ialmente na serra, o povo chama tios ou tias ás pessoas
mais velhas. Jeròmino é a forma vulgar de Jerónymo. Na phrase. diz-se li F. em
vez de tio F.
3 Of. os seguintes \er80s do rouiance D. Sylvana (versSo do Porto);
Foi conde para palácio,
Pensando no que faria :
Mandou fechar seu palácio
Cousa que nunca fazia.
COSTUMES DA BEIRA-ALTA 191
lum obrigação de comprar no armo immediato outro pão. O lei-
loeiro veste uma opa vermelha, e, como em lodos os leilões das
festas d'aldeia. desempenha a sua missão entre chalaças e garga-
lhadas d'elle e dos circumstantes. Na minha terra, os homens que
faziam o leilão, quando tinham de dizer que um objecto fora ar-
rematado por ^o réis, diziam sempre vinte ciscos; também chama-
vam a cada moeda de o réis um bcihaú, e em vez de dizerem, por
exemplo, um pataco, diziam oito bâbáus.
Quem entrar nos templos das nossas aldeias beiras ^ nota quasi
sempre ao lado das imagens, sobre os altares, uma multidão de
pernas e braços de cera ou de pau, cabeças, mãos, etc, que os
devotos, seguindo ainda as ideias pagans, offerecem aos santos que
os livraram de certas doenças.
Nos próprios cruzeiros que ha pelas estradas, ou nos nichos que
estão nas paredes, longe dos povoados, abundam estas offerendas.
Em Peva, concelho da Moimenta, e nos logares visinhos, quando
adoece algum animal, promettem, para elle sarar, conduzil-o em
romaria á volta da capella de Santo Antão. Depois, não só cum-
prem isto, mas levam mesmo carne, etc, de presente ao santo, o
que tudo é arrematado em leilão para o cofre da capella.
As ideias religiosas são em verdade um grande alimento dos cé-
rebros das nossas populações.
Na Beira Alta, oito dias antes do dia da festa deitam morteiros,
ás trindades da manhã, meio dia e noite ; na véspera á tarde vem
a musica (quando ella é de fora) que é esperada pelos rapazes e
pelos mordomos a pouca distancia da terra, dando-lhe geralmente
vinho à entrada ; á noite faz-se a illuminação.
As vésperas das festas, na occasião do fogo, constituem bellas
horas de alegria. O local é ordinariamente um souto desviado da
povoação. Improvisam-se logo botequins e doçarias em barracas de
panno. Bandos de rapazes, armados de pão de chuço, percorrem o
terreno, tocando e cantando. As mulheres installam-se aos mago-
tes sobre uma parede ou n'uma pedra alta para disfructarem os fes-
tejos. Heiumba por toda a parte um sussurro confuso de vozes,
como de um mar longínquo. Durante todo este tempo, o ceu os-
tenta-se como uma grande lamina polida, cheia das faiscações dos
astros, e a lua vae arrastando pelos espaços estellares um olhar
curioso e suave, que se infiltra através das ramagens dos casta-
nheiros e faz que estas desenhem no chão os caracteres de uma
hieoroglyphica extraordinária. N'isto sobe o primeiro balão a que
o povo chama mánica (machina). Palmas, gargalhadas e gritos,
Quando digo hetrãs. não quero dizer que isto seja exclusivo d'ellas.
192 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
acompanham a ascensão aérea. Todos os olhos se voltnm acto con-
tinuo para o ar, e seguem com toda a circumspecção as menores
oscillações, os menores movimentos do humilde aerostalo, até que,
nas regiões elevadas da almosphera, elle se confunde com o bri-
lho apparentemente pequeno das estrellas. Começa então a mu-
sica, a foguetaria, e, para coroa de tudo, o fogo preso, ou, como
o povo diz, as árbes de fogo. Entretanto, o rapazio espinoleia de
banda para banda procuiando cannas de fogueies, — e o espaço
bonita se de um chuveiro de luz meuda e caprichosa, como lagri-
mas de alguma divindade de um olympo antigo. Depois que ;ste
movimento cessa, a aldeia cobre-se outra vez da sua paz e mono-
tonia habitual. Nada perturba o silencio dos campos, excepto al-
gum sapo chocalhando ao longe sobre as lameiras marginaes dos
rios, ou algum cão ladrando nos portaes das eiras e das tapadas,
para afugentar os ratoneiros nocturnos.
No dia da festa quasi todas as pessoas vestem um trage com-
pleto ou pelo menos um objecto novo, e assim se aggiomeram nas
janellas, varandas, peitoris, palanques, cômoros, para verem des-
filar a procissão.
Costuma-se em Mondim, n"uma festa annual que se ahi fiz a Santa
Barbara {Santa Bdrbura), pendurar nos andores os primeiros ca-
chos de uvas do anno, que ás vezes se vão buscar ao Douro. Este
costume é idêntico ao de dispor nos altares, em volta das imagens,
muitos ramos de giesta com os primeiros casulos de seda. Temos
aijui um vestigio evidente das primicias pagans ás divindades.
De tarde, depois dos andores estarem recolhidos, de se terem
extinguido nos âmbitos do templo as ultimas nuvens de incenso,
de os senhores reverendos, com a camisa desabotoada e o peito ao
léu, terem sorvido o ultimo golle e limpado a testa humedecida
com o suor do sermão e da missa cantada — começa a festa pro-
fana do povo, o descante.
Duas alas parallelas de rapazes e raparigas dançam a chula ; o
rabequista mais afamado dos arredores faz gemer a rabeca, acom-
panhado da viola, dos férrinhos, do zabumba, das castanhetas, e
das modas alegres e repenicadas do cantador.
Especialisando o assumpto, fallemos da romagem de Santa Com-
binha que se festeja no logar de Santa-Comba, em dia do Espiri-
to-Santo*. Santa Combinha advoga o gado lanígero, e por isso lhe
1 Combinha, deminutivo de Comba deriva do lat. Columba (cf. fr. colombe) e
está ao lado de pomba e de palomba e palombinha (ef. castelli. paloma) num ro-
mance popular transmontano :
COSTUxMES DA BEIRA-ALTA 193
leva o povo um guedêlho de lã, cnjo valor reverte, segundo me di-
zem, em favor do templo e do padre. Convém notar de passagem
as coincidências da festa de Santa Combinha com a do Espirito-Santo
(uma pomba;. Eis aqui algumas cantigas que se cantam por occa-
sião da romaria, e que eu devo ao obsequio de um meu condiscí-
pulo beirão :
— Senhora Santa Combinha, Senliora S. Combinha.
Quem vos trouxe a Santa-Comba ? , A vossa capella cae .
— As meninas de Mortágua Ajuntae as moças todas.
Numa barquinha redonda. I Tirae-lhe a telha, tirap.
Senhora Santa Combinha,
Que la mora no altinho,
Por maior que seja a calma,
Sempre lá corre ventinho.
Uma das romarias mais notáveis da Beira é a da Senhora-da-
Lapa-de-Longe, á qual concorre gente de terras muito afastadas.
Vão os parochos das respectivas freguezias com as cruzes e os pa-
rochianos, pelo menos uma pessoa de cada casa. Ainda me lem-
bro muito bem de ver passar na minha aldeia batalhões de ho-
mens e mulheres, pressurosos, anhelantes, com uma fé viva em ir
visitar o penedo debaixo do qual, sc^ /.ndo a lenda, appareceu a
imagem da Senhora. Na volta, porém, é que estes adjunctos tem
mais graça. Quando entram nas povoações que lhes ficam no ca-
minho, vem sempre a dançar. Os romeiros, de calça clara, jaqueta
ao hombro, lenço branco em volta do pescoço para enxugar o suor,
um ramo artificial, e um papal, chamado registro, com a imagem,
pregado no chapéu, fazem tremer as castanhetas com as mãos no
ar; as romeirinhas, com as suas veneras, pregadas no peito, os
dedos carregados de anneis de prata e de vidro vermelho, arfando-
Ihes os seios como duas ondas, e a face corada como uma rosa,
ensaiam as gargantas sonoras em cantigas no gosto d'esta :
Nossa Senhora da Lapa,
Da Lapa e da Lapinha :
Chamae-me vós afi.hada,
Que eu vos chamarei madrinha.
A capital do meu concelho, Mondim da Beira, tem nas choro-
graphias antigas (e é assim conhecida ao longe) o nome de Mon-
Ó palomba, ó palombinha.
Mal soubeste apalombar :
Hoje te cortam a lenha,
Amanhã te vão queimar, etr.
Palomba e pomba são formas de palumbo.
25
194
ENOYCLOPEDIA HEPUBLICANA
dim das meias, porque uma das industrias mais notáveis das mu-
lheres de lá é o fabrico das meias. Quando passanj os romeiros
para a Lapa, as velhas da terra apresentam um estendal de meias
e carpins ou cothurnos, que aquelles compram. Resulta sempre en-
tão um bello negocio para os mondinenses, que gastam o tempo
esca r meando ^ , cardando e fiando a lã, matéria prima das meias.
Raro se encontrará em Mondim uma mulher do povo que não es-
teja fazendo na meia; mas é nos serões que essa industria recebe
um verdadeiro desenvolvimento. Quem quizer conhecer a littera-
tura popular, frequente os serões, porque ahi as historias, canti-
gas, romances, adivinhas constituem o encanto das noites, líiis,
para amostra, uma oração ouvida n'um serão (Taboaçoj:
Estando eu á minha porta
Com três tioras de serão,
Vi passar Nossa Senhora
Cum cordão d'oiro na mão :
Eu pedi-ie um bocadinho.
ENa dixe-me que não;
Eu tornei-1'o a pedir,
Ella deu- me o seu cordão ;
Ó beato SanfAntónho,
Binde bêr o meu cordão,
Que m'o deu Nossa Senhora
Domingo da Surreição ;
Dá-me ires voltas á cinta.
Oitras três ó coração ;
Dae-me mais um liocadinlio,
P'ra cliigar do ceu ao chão. '
As mulheres constituem o serão, formando uma roda sentadas,
e tendo no meio, ou pendurada do tecto, se é n'uma loja (o mais
vulgar), ou n'um velador, se é n'uma sala, a candeia, para cujo li-
quido cada mulher concorre com uma pequena quantia. O trabalho
dos serões é muitas vezes interrompido por alguma tocata de ra-
pazes divertidos.
Seja-me permittido este parenthesis a respeito dos serões e con-
tinuarei com as festas.
A procissão do Corpo de Deus era antigamente de um apparato
extraordinário, e parece até que a apotheose da industria medie-
val. Em Briteande,extincta villa do concelho de Lamego, conserva-
va-se ha annos, e não sei se ainda hoje, a tradição de que n'ou-
tros tempos, na procissão do Corpo de Deus que lá se fazia, iam
umas mulheres da próxima povoação de Perafila, chamadas /Jé//e«-
ras, a dançar na frente, tocando pandeiretas. Este facLo conside-
.rava-se como desprezo, e o tal emprego das pélleiras dizem que
pertencia só a uma certa familia.
1 Carmeando. O povo accreseenta s ou es, e assim diz mais esfallecer, esconju-
rar, etc.
1 No verso 14, escrevi ó em vez de ao porque muitas pessoas illustradas dizem
au = ao, em quanto que a pronuncia popular ordinária é a primeira. Tanto nos
antigos escriptores, como em gallego, se encontra ò ^= ao (corresponde a à = na).
A ESPADA E O SYLLABUS 195
Já que fallei em Briteande convém referir-me aqui â grande len-
denci-) que o povo tem para explicar tudo. A etymologia popular
explica assim a origem de Brileande. ICra uma vez um rei que
passou por aquelle sitio na occasião em que um lavrador andava a
varejar uma nogueira. O pobre homem offereceu nozes a um dos
da comitiva real, e como este acceilasse. o rei disse-lhe : — «(^mde,
brite e anup.n D'aqui o nome da povoação. — .\gora me occorre ou-
tra etymologia popular da povoação de Crescido, ao pé de Casiro
Daire. Um rei que visitou um certo fidalgo, exclamou ao reparar
no desenvolvimento physico de um filho do fidalgo: — «.\b! está
crescido !t> — Existem muitas lendas semelhantes em todo o paiz, e
uma cousa curiosa é que nellas entram frequentemente reis e al-
tos personagens.
A propósito de explicações, vem de geito esta conhecida phrase
noites de Lamego^ que se interpreta assim : Um viajante hospe-
dou se uma noite em Lamego. O dono da casa deu-lhe um quarto
muito escuro, onde havia um armário com queijos, e pela manhã
esqueceií-se de ir abrir a porta. O viajante acordou, e cuidando
que o armário era uma janella, abriu-o, e como não visse luz e
elle lhe cheirasse ao queijo que lá estava, disse: "É muito cedo,
não se vé nada, e só ainda agora as mulheres vão a vender o leite
pela rua." E tornou-se a deitar, dormindo não sei se um dia, se
mais. Quando lhe abriram a p^rta, ficou tão admirado por as noi-
tes de Lamego serem tão compridas.
(Segue.) J. Leite de Vasconcellos.
.4 esiiatla e o svHttuus
Etilre a espada, que representa a brutalidade, e o syllabus, que
representa a treva, ha essa altracção rasteira, canibal, do que é
criminoso. Servem-se na capula hedionda, confraternisam na cum-
plicidade suja.
Os dois algozes do espirito moderno são elles ; elles que o as-
sassinam, que o vampirisam, que o esmagam. O soldado e o pa-
dre; Allemanha e Roma; Papa e César. Um faz emmudecer; o
outro cega ; ambos altrophiam. Nossos eternos e insaciáveis inimi-
gos, inimigos de todo o progresso e de toda a ordem consciente.
Contra os seus accintosos e últimos baluartes invistamos com te-
nacidade, com disciplina. A espada, espedacemol-a debaixo do ma-
lho da industria, o syllabus aff"oguemol-o sob os raios vividos da
Sciencia. Ataquemol-os em todos os campos, usemos das grandes
iOe ENCVCLOPKDIA REPUBLICANA
armas que trazem em seus lampejos a redempção e a paz. Em
cada altura ganha, levantemos uma Exposição, abramos um Con-
gresso e casemos estes dois focos sob a patronagem santa de um
grande vulto humano. Tenhamos um Centenário.
Atacarmos porém a esp;ida e o syilabns nesse vago sentimen-
talismo doutrinário é derrubarmos o grande monolilho a balas de
espuma. Precisamos de processos rápidos sem deixarem de ser
racionaes, lógicos, scientificos. Extirpemos o mal onde elle se lo-
calisa. Sabemos perfeitamente que ha uma forma politica nociva,
que derruida levará em seu naufrágio as torpezas onde assenta.
Essa forma politica é a realeza ; é seu re[)resenlanle, o rei. Diri-
jamos portanto nossas energias, directamente contra o inimigo que
se apoia na espada e que se santifica no syllabus. Cahiàmos sobre
a realeza, eliminemol-a. Morta ella, a espada não comprehenderá
o syllabus, quebrarão esse laço (|ue os fortifica, e que nos op-
prime. Sem o auxilio mutuo da coroa elles se pulverisarão ao pri-
meiro embate. Faltar-lhes-ha o ponto de apoio.
O soldado será operário, industrial ; o padre será professor, sá-
bio. Ambos serão cidadãos ; de parasitas, de sangnesugas trans-
formar-se-hão em actividades, em núcleos prodnclores. Não será
um, o acido dissolvente na moral social; não será o outro, o prin-
cipio negativo na moral intellectual. Teiemos — trabalho, com o en-
grandecimento da industria; progresso, com o levantamento da
sciencia ; ordem, com a sagração dos centeriarios, isto é, da paz
realisada pela solidariedade. Humanisemo-nos para einanciparmo-
nos.
Por isso, lutando frente a frente, tenazes e firmes contra a es-
pada e contra o syllabus. para a completa solução da equação mo-
derna, comecemos por eliminar-lhe esíie termo —a realeza. Elimi-
nemol-a já, hoje. que amanhã succumbirão o hioldado e o padre.
A espada e o syllabus deixarão de ser uma aííronta, para entra-
rem nos apontamentos pingues dos eruditos de gabinete.
Hugo Leal.
I
BiogFãphias
iMíinoel Ft5i'ii«ii<ie>i Thómaz
Amanheceu o dia 24. Cabreira mandou formar a artilheria nu
campo de Santo Ovidio, e depois de ouvir missa annunciuu á ci-
dade a revolução por uma salva de 21 tiros. .\' mesma hora Se-
MANOEL FERNANDES THOMAZ 197
pulveda e Gil chamavam ás armas os regimentos 6 e 18 para irem
reunir se a Cabreira. Infariteria C recuson-se por algum tempo a
sair sem ver á sua frente o coronel Grnnt, fjui; era muito estimado,
mas resolveu-se por íim a acompanhar o tenente-coronel Gil. Che-
gando a tropa ao campo de Santo Ovidio, os commandantes fc mia-
ram um conselho de guerra, dirigiram uma proclamação aos sol-
dados e ofliciaram ao juiz de fora do cível para convocar sem perda
de tempo a camará municipal.
Ás 8 horas da manhã renniram-se nos paços do concelho os qua-
tro vereadores, o procurador do concelho, o escrivão, o syndico,
o juiz e o procurador do povo e as auctoridades ecclesiasticas, ci-
vis e militares, tendo á sua frente o general Canavarro e o bispo
do Porto. Os membros do conselho militar, expondo a situação cri-
tica em que se achava o paiz, sujeito a qualquer movimento anar-
cbico, n)oslraram a necessidade de salvar a nação e propozeram
que se formasse uma junta provisória, «depositaria do supremo
governo do reino,» a qual governando em nome do senhor rei e man-
tendo a sagrada religião calholica romana, convocasse cortes repre-
sentativas para «nellas formar uma constituição adequada á nossa
santa religião, aos nossos bons usos e ás leis que na actualidade
das cousas nos convém.» Os bons revolucionários receavam passar
por inimigos do rei e da religião e apresentavam-se como salvado-
res da pátria que se despenhava no abysmo da anarchia! .Mantendo
o senhor rei e a santa religião, tudo o mais se podia reformar, tudo
era susceptível de ser modificado pela constituição.
Os membros que deviam formar a junta eram: António da Sil-
veira Pinto, presidente. Deão Luiz Pedro de Andrade Brederode,
Pedro Leite Ferreira de Mello, P^rancisco de Sousa Cirne de .Madi -
reira. Manoel Fernandes Thomaz, Fr. Francisco de S. Luiz. João
da Cunha Sotto-maior, Xavier dAranjo, Castro e Abreu. Hoque Ri-
beiro d"Abranches Castello Branco, José Joaquim de Moura, José
Manoel de Sousa Ferreira de Castro e Francisco José de Barros
Lima. Secretários com voto: Ferreira Borges, Silva Carvalho e
Francisco Gomes da Silva. A camará oíTicioii logo a todos estes in-
divíduos para que reunissem e formassem a junta. Fntretanto na
praça nova (hoje de D. Pedro), era enorme a concorrência de povo,
que soltava enlhusiastícos vivas e acciamava a revolução.
Apenas os cavalheiros mencionados receberam as cart?s de con-
vite, reuniram-se numa das salas baixas dos paços do concelho e
constituíram a junta provisória do governo, dando começo aos seus
trabalhos. Publicaram o manifesto á nação, remetteram circulares
às auctoridades civis e militares das províncias, participando o De-
corrido e convidando-as a prestarem obediência ao novo governo,
escreveram á regência notificando-lhe a causa e os fins da re-
volução : decretaram a creação de um thesouro publico, no Porto,
EiNCYCLOPEDIA KEPUBLICANA
para receber a receita do estado e satisfazer a todas as despe-
zas. ele.
Os governadores do reino, ao receberem a noticia no dia 29,
publicaram uma proclamação, em que protestavam contra os actos
da junta, e qualiiicavam a revolução como o resultado da conspira-
r.7". ilcal/ins mal intencionados epreversos. Três dias depois, diri-
giram ao paiz novo manifesto em que annunciavam que «usando
das faculdades exlraordmnrias que lh.es eram concedidas por suas
instrucções em casos urgentes,» iam convocar as cortes. A regên-
cia, vendo a sua causa perdida, começava assim a ceder o terreno
aos revolucionários, e em breve tentou entrar em negociações: pri-
meiro participou à junta qne mandara proceder á eleição de procu-
radores a cortes e qne a tornava responsável de tudo o que podesse
succeder; e em seguida mandou o general Povoas a Coimbra para
contraclar com ella, que vinha já em direcção de Lisboa. A junta,
porém, não quiz recebel-o e ordenou-lhe que se retirasse da cidade.
Na manhã do dia 15 de setembro, infanteria 16 saiu do quartel
e dirigindo-se ao Rocio proclamou a revolução, adlierindo logo a
este movimento todos os corpos da capital. Juntou-se gente e na
presença do juiz do povo e do seu escrivão acciamou-se um go-
verno provisório.
Não entraremos em promenores sobre a vinda da junta provisó-
ria, da cidade do Porto para Lisboa, e das dissenções que por duas
vezes se levantaram por causa de António da Silveira; nem nos oc-
cuparemos aqui da rivalidade que se estabeleceu entre o governo
revolucionário da capital c o que vinha do Porto, rivalidade que
terminou pela juncção d"ambos n"uma só junta suprema, dividida
em duas secções.
Em 5 de outubro entraram em Lisboa as tropas que haviam pro-
clamado a revolução na segunda cidade do reino e foram recebidas
com geraes demonstrações de alegria. Ajunta participou immedia-
tamente a D. João VI os acontecimentos últimos e pediu-lhe para
regressar à Eiuopa. Poucos dias depois voltava Beresford do fiio
de Janeiro, mas não lhe foi permittido desembarcar, nem ler qual-
quer communicação para terra, apesar de trazer poderes illimita-
dos do monarcha: e foi obrigado a sair para Inglaterra, porque o
povo amotinado queria lançar fogo ao palácio, onde suppunha es-
tar elle escondido.
A junta provisória proseguia entretanto nos seus trabalhos e dis-
cutia a forma das eleições, ás vezes no meio do maior tumulto, re-
solvendo por fim. em 31 de outubro, que o suíTragio fosse indire-
cto, escolhendo o povo os eleitores e estes os deputados em nu-
mero de cem, e quarenta substitutos. As primeiras eleições fixa-
ram-se para o dia 26 de novembro, e as dos deputados para 3 de
dezembro.
AS ARVORES E AS ABELHAS f99
Os ânimos, porém, não estavam socegados e eram muitos os des-
contentes, principalmente no exercito. António da Silveira aleiava
o fogo. No dia 11 de novembro houve uma revolta militar, às ho-
ras em que se deviam reunir os membros da junta; a tropa accla-
mou a constiluição de Cadix como base para a constituição portu-
gueza, elegeu seu commandante Gaspar Teixeira e impoz ao go-
verno quatro novos membros. A junta curvou-se a todas as impo-
sições, mas dois dias depois deram a sua demissão Fernandes Tho-
maz, Fr. Francisco de S. Luiz, Ferreira de Moura e Braamcamp
de Sobral. Fernandes Thomaz tivera conhecimento do que se tra-
mava, podia prender os chefes, mas não seria apressar a revolu-
ção? Preferiu esperar a reunião do congresso; mas os adversários
anticiparam-se. A sabida d'aquelles quatro homens dignos, e prin-
cipalmente a de Fernandes Thomaz, muito estimado do povo, pro-
duziu impressão e desgosto em toda a cidade; ás 6 horas da ma-
nhã do (Jia 17 começou a juntar-se a mullidão em frenle da casa
do grande patriota, dando-lhe vivas e pedindo-lhe para voltar para
o governo; os mais insoffridos invadiram a escada. Fernandes Tho-
maz e Borges Carneiro, que estava em sua companhia, sahiram,
levados quasi ao colo, e melteram-se n'uma carruagem; era enor-
me o enthusiasmo ; muitos archotes illuminavam esta scena e os
vivas atroavam os ares ; quizeram tirar os tirantes da sege. mas
Borges Carneiro não o consentiu, teve de fallar á turba, teve de
lhe pedir que o não fizesse porque Fernandes Thomaz era muito
doente e tantos obséquios populares mortiíicavam-o. Foram em
marcha triumphal desde o Calhariz até ao Rocio. O ajuntamento
aqui era numeroso ; os vivas eram incessantes e vinham de iodos
os lados. Subiram para o palácio do governo nos braços do povo
e tiveram de sair à varanda para agradecerem tão imponente ma-
nifestação. Todos os membros demillidos tornaram a occupar os
seus logares, Gaspar Teixeira recebeu a demissão e o presidente
da junta, António da Silveira, teve ordem para sair em 24 horas
para a sua quinta de Canellas.
(Segue.) Teixeira Bastos.
As arvores p as anêlíicts
(Conto oriental)
Um grande príncipe, que via afundar-se o seu reino sem atinar
com a causa, viajava pelo mundo para estudar as diversas formas
de governo.
Visitando todos os estados e interrogando sobre as suas insti-
HbO ENCVCLOPEDIA REPUBLICANA
luições, que em tudo achava similhanles ás do seu reino, disse com
certa magoa:
— Não valia a pena para isto deixar o meu sceptro nas mãos
dexlranhos.
Ouvia sempre os mesmos queixumes dos povos opprimidos, af-
ílictos, as mesmas invectivas contra os grande.i e poderosos, con-
tra os reis e imperadores.
Elle, que tinha uma grande alma e ouvia constantemente os ge-
midos do seu povo, desejava do intimo tornal-o feliz, livrando-o
duma oppressão de séculos e modificando as barbaras leis do seu
paiz.
Não encontrara em parle alguma um bom exemplo ; nenhuma
instituição lhe agradara para a imitar.
Já regressando á pátria, muito desconsolado e disposto a não
mais abandonar o throno, teve de atravessar um deserto immenso.
Apeando-se para descançar á sombra d uma arvore frondosa, ou-
viu uma voz dizer-lhe:
— Caminha e segue-me.
Uma cousa informe bolia no ar, e elle seguiu-a.
— Fica-te ahi e medita.
Haviam chegado a um sitio onde se ouvia o rumor dos vivos.
Aqui, um jardim encantador, uma vegetação lica, que lhe poz a
alma em adoração panlheista ■. acolá, umas ruinas fúnebres, umas
arvores mirradas, tristes, próximo a definharem-se. Dum lado a
vida, com todas as suas palpitações; do outro, a morte com a sua
fealdade.
— Ah ! como é bella a natureza quando a vida lhe sorri ! — ex-
clamara o príncipe, sentindo a alegria e a frescura das plantas.
— Mira aquellas arvores e aquellas colmêas — tornara a cousa
informe.
E desappareceu.
O principe mterrogou doeste modo as arvores que se definhavam:
— Qual a razão porque sendo vós visinhas fronteiras daquelle
jardim encantador, pareceis morrer, ao passo que a vegetação
d'elle parece querer subir ao céo n'uma vitalidade surprehendente?
As arvores responderam :
— De nós, que temos por senhor um descendente do propheta,
ninguém faz caso, permittindo-se que estas malditas plantas para-
sitas que se enroscam no nosso corpo e nos nossos braços, nos su-
guem pouco a pouco o nosso sangue. Tcdos os organismos que ali-
mentam parasitas, morrem. Somos como as nações que os conser-
vam.
O príncipe abaixou a cabeça e poz-se a scismar.
Voltando-se para as arvores frondentes do jardim, fez egual per-
gunta.
TRADIÇÕES POPULARES DO ALGARVE tOl
Elias responderam em voz fresca, saudável:
— Nós temos por dono um homem laborioso que nos visita lo-
dos os dias, que nos rega, enchendo as nossas raizes de frescura,
não consentindo que qualquer parasita galgue o nosso corpo e su-
gue a nossa seve. Se somos viçosas e admiradas pelos que passam,
devemos essa felicidade ao nosso bom senhor, que nos trata a custo
do suor do seu rosto. Podemos assimilhar-nos ás nações florescen-
tes por uma sabia administração, livres dos parasitas sociaes.
O príncipe abaixou outra vez a cabeça e poz-se a scismar.
N'este tempo passou ura enxame de abelhas, zumbindo alegre-
mente :
— Matemos, matemos os mandriões,— disseram, correndo para
o cortiço.
O príncipe deteve-as.
— Olá ! — disse elle.
— Que queres tu? — responderam ellas todas a uma voz.
— Quero a explicação d''essa grande matança que ides fazer.
— E' fácil. Nós trabalhámos como umas negras, ao passo que
nas nossas colmèas vive na ociosidade uma sucia de individualida-
des. Matamol-os porque são inúteis, porque com elles não pode-
mos prosperar.
O príncipe ficou ainda pensativo.
Caminhando sempre, passou por dois pequenos estados que se
miravam.
Um mostrava-se ílorescenle; não tinha exercito permanente, nem
rei nem sacerdotes; era uma republica. O outro jazia na decadên-
cia, arruinado por um poder despótico rodeado de aulicos e vivendo
com todo o esplendor asiático. O povo gemia, emqnanto os gran-
des parasitas sociaes so regalavam na sua vitalidade: era um reino.
Então o príncipe, recordando-se das arvores e das abelhas, achou
em si mesmo a causa dos grandes solfrimenios do seu povo, tendo
de calar no intimo d'alma esta grande lição que lhe não servia.
Reis Dâmaso.
íradiçães iioiiuíares ílo ^l^ujarve
BOiMANCES
A MORENA
— Abre a porta, morena,
Abre a porta, iiiinh'alma. ■
— Como te'heide abrir a porta
Men ffpi João da miiilVnliná,
átí
à(ji> ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Faro.
Se tenho meus filhos ou peito
E meu marido á ilharga?
Levanta-te, marido meu,
Pega nos cães, vae á caça:
Não ha melhor caçada
Que a da madruj^ada.
Seu marido que saia
Morena que se apromplava
Com sua meia de seda
Que na peina lh'estalava.
Com seu sapato de setim
Que no chão não lho tocava.
Com seu vestido de seda
Que a todos invejava,
Com sua capa de moirè
Que o vento levava.
Chegando ao convento
Por frei .loão perguntava.
Frei João, que isto ouviu,
Se havia de correr, saltava ;
Pegou-lhe na sua mão
Levou-a p'ra sua cella,
Dando-lhe beijos e abracus
E bocadinhos de marmellada.
— Vaet'embora, Morena,
Vae-fembora, minh'alM)a :
Pode leu marido vir
E achar a porta fechada.
Morena que saia
Seu marido que encontrava.
^Da onde vens, ó Morpn:i.
Que vens tão orvalhada "!
— Eu venho da missa nova
Com ella venho coiisolíula.
— Anda lá mais para diaiifi-
Que uma facada levaras.
— Não se me d<á de inorirr
Nem tão pouco de acabar.
Só se me dá das contas
Que a Deus tenho que dar :
E também de meus li lhos
Que outra mãe não bão-di^ ("r
— Ton)a lá esta facada
Ao lado do coração,
Para não dares beijos i- :ili;aí;.
Outra vez em frei João.
o CEGO
— Fecha a tua porta
Abre o teu postigo.
Dá-me cá o teu Iciko
Qu'eu venho ferido.
i
TRADIÇÕES POPULARES DO ALGARVE 2(«
Lagoa.
— Se Ui vens ferido
Vinde muito embora;
Qual é o vadio
Que anda a esfliora I
— Levanta-te, Anniea,
Mais um bocadinho,
A um pobre cego
Ensina o caminho.
S'elle te pedir pão
Dá-ihe pão e vinho,
— Não quero o seu pão,
Não quero o seu vinho,
Quero só que Anna
Me ensine o caminho.
— Eu já estou cm anagoa
P'ra ir p'ra cama.
Qual é o vadio
Que a esta hora anda '?
— Levanta-te Anniea
Mais um bocadinho.
A um pobre cego
Ensina o caminho.
— Adeus minhas casaSj
Adeus minhas janellas,
Adeus minha mãe
Que tam falsa me eras.
Por duques e marquezes
Me vi perseguida.
Por um pobre cego
Me veje rendida.
Eu d'onde estou bem vejo
Os palácios d'El-Rei. . .
— Anda p'ra diante, Anniea,
Qu'eu te coroarei.
D. CARLOS DE MONT'ALVAR
(Variante I)
Estando D. Galançua
Pela sua varanda a passei.ir.
Por alli passou D. Carlos,
D. Carlos de Moiit'Alvar.
— Que linda menina esta
Para commigo brincar!
— Brincaria toda a tarde
Se te não fosses gabar.
No outro dia pela manhã
Ao bilhar se foi gabar:
— Eu brinquei com uma menina
Que no mundo não ha tal.
204 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Olharam uns para os outros:
— Quem será, quem não seria?
— É D. Galançua, filha d'El-rei Cardeal.
- — Pelas minhas barbas juro
Que ao pae hei de ir contar.
Aqui venho, ó seòr rei,
Tristes novas lhe quero dar:
Sua filha Galançua
Com D. Carlos foi brincar.
— Se não tivesse lenha colhida
Já a mandava matar,
Como tenlio lenha colhida
Já a mando queimar.
— Não se me di de morrer
Nem tam pouco d'acabar.
Só se me dá do meu ventre
Que leva sangue real:
Tenho aqui uma carta,
Não tenho quem nTa vá levar.
Veio um anjo do céo á terra:
— Senhora, eu vou levar.
— Se o achares dormindo
Deixae-o accordar.
Se o achares jantando
Deixae-o acabar.
Em tam boa hora foi
Que o achou a passeiar.
Logo que pegou na c?rla
Logo se poz a chorar.
—Corram, corram, meus creados,
Os que estão aos meus mandados.
A ferrar os meus cavallos
Com ferraduras de bronze.
Que esta noute, toda a noute,
Quinze léguas teem que andar.
Chegando ao convento
Onde ella ia a queimar:
— Arreda, justiça, arreda,
Senão faço-a arredar.
Que essa menina que ahi vae
Inda vae por confessar.
— Se sois vós o confessor
Ide-a já a confessar.
No meio da confissão
Um beijo lhe quiz dar.
—Não permilta Deus" d'Arcello
Nem a sua coroa real,
Que mais ninguém me ponha a bocca
Senão D. Carlos de MonfAlvar
Que da morte me veio livrar.
Lagoa. Heis Dâmaso.
A verdade suífoca-se quando aspira o ar da lisonja; por isso dif-
ficilmente atravessa as antecâmaras dos monarchas.
A ORIGEM DA SCIENCIA 205
:% orineiii aa Scieiíciti
(Continuado de pag. 169.)
Assallado pela morte no meio dos seus grandes projectos, Ale-
xandre falleceu em Babylonia antes de ter completado trinta e Ires
aonos (323 antes de J.-C). Siippoz-se que linha sido envnnenado.
Seu génio lornara-se tão insupportavel, scas paixões tão ferozes,
que seus generaes e até os mais Íntimos amigos d'elle viviam em
contínuo temor ; num momento de cólera tinha dado a morte a
Clito, que era um dos ultuuos. Callisthenes, que servia habitual-
mente de intermediário entre elle e Aristóteles, assevera alguém
bem informado e dum modo positivo, que fora por ordem sua ex-
posto sobre a roda e depois crucificado. Talvez que os conspirado-
res não procurassem na sua morte senão a própria salvação. Seria
portanto uma calumnia imputar a Aristóteles cumplicidade no cri-
me ; melhor do que associar-se áquelle assassinato, teria soffrido
todos os tormentos que Alexandre houvesse por bem querer infli-
gir-lhe.
Um quadro de anarchia e sangue derramado succede a este triste
acontecimento. Não cessou o mal com a repartição do império. No
meio de todas estas vicissitudes, prende-nos a attenção um inci-
dente. Ptolomeu, filho de Philippe e de Arsinoe. sua formosa con-
cubina, o qual em sua juventude compartilhara o desterro de Ale-
xandre quando incorreram no desagrado de seu pae, e que tam-
bém tinha sido mais tarde seu companheiro nos perigos das bata-
lhas, foi nomeado governador e eventualmente rei do l">gypto.
No sitio de Rhodas, Ptolomeu tinha prestado serviços tão assi-
gnalados a todos os habitantes, que estes no fervor do seu reco-
nhecimento lhe prestaram as honras divinas. Tinham-lhe dado o so-
brenome de Soter (Salvador); e por Ptolomeu Soter se distingue
dos outros reis macedonios que lhe succedei-am no Ihrono do Kgy-
plo. Não estabeleceu a côrle do seu governo nas antigas capitães
dos Pharaós, mas sim na nova cidade de Alexandria. Na época da
sua viagem ao templo de Júpiter Ammon, o conquistador dera prin-
cipio á fundação d'esta cidade, prevendo que chegaria um dia a ser
o grande imporio commercial da Europa e da Ásia.
E' mister notar, não somente que Alexandre levou ali judeus da
Palestina para formar o primeiro nncleo da sua população, que não
somente Ptolomeu Soter enviou cinco mil depois da tomada de Je-
rusalém, senão que Ptolomeu Fdadelpho, seu successor, resgatou
cento noventa e oito mil escravos judeus que pertenciam a egy-
pcios. e lhes conferiu os mesmos privilégios que disfructavam os
idadãos macedonios: este tratamento sobre modo favorável attra-
JHHi EiNCYCLOPEDIA REPUBLICANA
biu os seus compatriotas dispersos, e muitos syrios acudiram ao
Egypto; denominaram-os judeus-lielenos. Tentados egualmente de
viver debaixo do paternal governo de Soter, grande multidão de
gregos buscou um asylo em seu paiz, e uas invasões de Perdiccas
e de Antigone se viu os soldados desertar para se apresentarem
no campo de Ptolomeu.
A população de Alexandria compunha-se, pois, de três naciona-
lidades dislinctas: os naturaes. isto é, os egypcios, os gregos e os
judeus. Ksta circumstancia tem influido profun(]amente na forma
que tem tomado a religião da Europa moderna.
Os architectos e os engenheiros da Grécia tinham feito de Ale-
xandria a cidade mais formosa que houve no mundo Tinham-a po-
Voado de templos, de palácios, de Iheatros magnificos; em seu cen-
tro, no ponto do cruzamento das duas vias principaes que se cor-
tavam em angulo recto, no meio de jardins, de fontes e obeliscos,
elevava-se o mausoléu onde repousava o corpo de Alexandre, em-
balsamado á egypcia. Fora este trazido com a máxima magniíicen-
cia desde Babylonia. no meio d"um cortejo fúnebre que não se de-
morara menos de dois annos no seu trajecto. O féretro fez-se pri-
meiramente de ouro de lei, mas depois fez-se de alabastro, temen-
do-se que o brilho do ouro fosse mo'ivo para violação da tumba.
Porém, nem estas magniticencias, nem ainda a maravilha dos seas
pharoes de mármore branco tão altos que as luzes n'elles colloca-
das se viam a uma distancia prodigiosa, merecem deter a nossa
attenção. O verdadeiro e glorioso monumento dos reis egypcios é
o Museu.
A influencia desta fundação far-se-ha sentir no mundo ainda
quando as Pyramides se hajam reduzido já a pó.
Foi começado o Museu de Alexandria p(>r Ptolomeu Soter, e con-
tinuado por sen íllho Ptolomeu Filadelpho. E«tava situado no Bru-
chião, o bairro aristocrático da cidade, contiguo ao palácio do rei,
construído de mármore e no centro d'uuia praça, na qual passeia-
vam os cidadãos, conversando. As suas salas esculpidas encerra-
vam a bibliotheca filadelphiana com uma quantidade innumernvel
de estatuas e quadros. Mais tarde, e sendo já minguado o espaço
para o numero de volumes, estabeleceu-.-e outra bibliotheca no tem-
plo de Serapis, situado no bairro adjacente de Rhacotis : n'esta,
que se chamava a filha do Museu, contavam-se quiçá 300:000 vo-
lumes. Havia, pois, cerca de 700:000 volumes n'estas duas reaes
collecções.
Alexandria não era somente a Cc.pital do Egypto: era a metró-
pole intellectual do mundo. Ali, tem-se dito com verdade, tinha-se
encontrado o génio do Oriente com o génio do Occidente. e este
Paris da antiguidade chegou a ser um foco de dissipação, de luxo
e de sceplicismo. Entre as seducções da sua vida social os mes-
A OlUGEM DA SCIENCIA á07
mos judeus se esqueceram da sua paliia querida, abandonaram a
lingna de seus pães e adoptaram a grega.
Três foram as intenções de Ptolomeu Soter e Ptolomeu Filadel-
plio ao estabelecerem o Museu:—!.", conservar os conhecimentos
adquiridos; 2.", accrescenlal-os; 3.°, divulgal-os.
{.° Para conservar os conhecimentos adquiridos, ordenou-se ao
primeiro bibliothecario que comprasse sem distincção todos os li-
vros existentes! iMantinha-se no Museu um corpo de copistas en-
carregados de reproduzir correctamente todas as obras de que
seus proprietários não se quizessem desfazer. Todo o livro que en-
trava no Kgypto, devia em seguida ser levado ao Museu; fazia-se
d'elle uma copia exacta, a qual se dava ao possuidor da obra, e
guardava-se o original; juntava-se á copia uma indemnisavão pecu-
niária. Disse-se que Ptolomeu Evergetes, havendo obtido que lhe
enviassem de Athenas as obras de Sofocles, de P^uripedes e de Es-
quillo, deu ao proprietário dos manuscriptos originaes, cerca de
quinze mil escudos e bellissimas copias. Ao regresso da expedição
da Syria, levou em triumplio de Ecbatana e de Suza todos os monu-
mentos egypcios que Cambises e outros conquistadores da Ásia ti-
nham arrebatado ao Egypto ; estes objectos foram collocados nos
seus antigos logares ou consagrados á ornamentação do Museu.
Quando as obras, em vez de serem somente copiadas eram tradu-
zidas, pagavam-se sommas fabulosas, como aconteceu com a ver-
são dos Setenta, feita por ordem de Ptolomeu Filadelpho.
2.° Para accrescenlar os conhecimentos. Uma das principaes con-
dições do Museu era servir de asylo a certo numero de homens
consagrados ao estudo e que eram mantidos e alojados á custa do
rei. Algumas vezes vinha elle mesmo sentar-se á sua mesa. Tem-se
conservado mais de uma anecdota com relação a este assumpto.
Na organisação primitiva, estavam divididos os residentes em qua-
tro faculdades: bellas lettras, malhematicas, astronomia e medicina.
Os ramos da sciencia que saiam destes quatro troncos ficavam uni-
dos a elles. Um personagem publico importante, tinha a superin-
tendência do estabelecimento e o cuidado dos seus negócios. De-
métrio de Falerio, talvez o homem mais sábio do seu tempo, eqae
tinha sido durante muitos annos o governador de Athenas, foi o
que primeiro teve aquelie emprego. Ás suas ordens estava o bi-
bliothecario, e este era quasi sempre um homem cujo nome devia
passar á posteridade; por exemplo: Eratosthenes e Apolonio de
Rhodas.
Junto ao Museu havia um jardim botânico e zoológico. Este jar-
dim, como a sua denominação indica, servia para facilitar o estudo
das plantas e animaes. Também existia um observatório provido
de espheras armilares, de globos, de solsticios, de círculos equa-
toriaes, de regras paralaclicas, em summa, de todos os inslrumen-
2ftK ENCYCLOPEDIA HEPUBLICANA
tos entno usados, cujas divisões eram em graus e em segundos.
Sobre o tablado d"esle observatório eslava traçada uma meridiana.
Senlia-se grandemente a falta dum methodo exacto para medir o
tempo e a temperatura. O clepsidro de Clesibius respondia mui
imperfeilamente á primeira d"aquellas necessidades; o hydrometro
fluctuando n"um vaso de agua, não satisfazia melhor a segunda:
media as variações da temperatura por as da densidade.
Filadelpho, que até ao fim de sua carreira leve medo á morte,
consagrou uma parle do seu lempo a procurar nm elixir de longa
vida ; por isso, iez inslallar no Museu um laboratório de chimica.
A despeito das pieoccupações da época, e sobretudo das preoccu-
pações egypcias. se annexou ao departamento da medicina uma
sala de dissecações anatómicas, dissecações que se praticavam não
somente sobre os cadáveres, como até nos vivos, isto é, sobre os
condenmados
3.° Para divulgar os conbecimentos. No Museu instruia-se o povo
em todos os ramos da sciencia e da lilleralura por meio de leitu-
ras 6 conferencias. Grande numero de estudantes de lodos os pai-
zes acudia a esse centro inlellectual. Conta-se que não havia menos
de quatorze mil ordinariamente. Vários padres da Egreja, e dos
mais illustres, como Clemente de Alexandria. Origenes e Alhana-
sio. sahiram d'esla escola.
A bibliotheca do Museu ardeu durante o sitio posfo a Alexan-
dria por Júlio César. Para compensar esta grande perda, Marco
António presenteou Cleópatra com a que tinha sido formada por
Eumenes, rei de Pergamo. Era a rival da dos Plolomeus e foi ag-
gregada á collecção serapiana.
Hestanos dizer summariamente qual era a base philosophica do
Museu, e o que esta instituição juntou á somma dos conhecimen-
tos humanos.
Em memoria do illustre fundador d'esle nobre estabelecimento,
que a antiguidade designava com o nome de— il dhmm escola de
Alexandria, é mister cilar primeiro a Historia das campanhas de
Alexandre, por Ptolomeu Soter, o qual reuniu á gloria militar e aos
talentos para governar, o mérito de historiador. O lempo, que nos
conservou a recordação dos serviços por elle prestados, não res-
peitou o seu livro, hoje perdido.
Em consequência da estreita amisade que reinava entre Alexan-
dre, Ptolomeu e Aristóteles, a philosophia paripateclica foi a pedra
angular do Museu. O rei Filippe linha confiado a Aristóteles a edu-
cação de seu filho, e esle conquistador, durante o tempo de suas
campanhas na Pérsia, tinha dado ao philosopho dinheiro e outros
soccorros para contribuir para a conclusão da Historia da Natureza,
que estava em preparação.
Era o principio fundamental da philosophia paripateclica elevar-
. A ORIGEM DA SGIE.NCIA 209
se dos feilos particulares aos feitos geraes, e Ll'estes aos uiiiver-
saes por meio da iiiducção. A inducção tira a sua exactidão do nu-
mero de feitos que se acham na base de suas proposições, a prova
pelo descobrimento de feitos aliás desconhecidos. Esíq methodo
€xige um grande trabalho, porque é preciso adquirir o coniieci-
raento dos feitos pela experiência e pela observação, comprehen-
del-os logo e apreciar suas relações por uma meditação profunda.
É, pois, questão de raciocínio, não de imaginação. Os erros nume-
rosos de Aristóteles nada provam contra o seu methodo, pois que
resultam da insullicieucia dos feitos observados.
Alguns dos resultados obtidos por elle são muito importantes.
Demonstrou que a vida está universalmente estendida pela natu-
reza; que as differentes formas orgânicas que se oífereceín a nos-
sos olhos, são devidas á influencia do meio; que se o meio se al-
tera, também se alteram as formas; que a vida orgânica é uma ca-
deia ininterrupta, começando no mais débil vegetal e terminando
no homem, e que as differentes series se fundem umas nas outras
por uma graduação insensível.
O methodo inductivo assim formulado é um instrumento d'uma
grande potencia; a elíe se devem todos os progressos da sciencia
moderna. l'^sta, com effeito, eleva-se por inducção do phenomeno
á causa ; e logo, como fazia a Academia, descendo por deducção
da causa aos detalhes do phenomeno.
Emquanto que a escola scientifica de Alexandria se fundava so-
bre os princípios de um illustre philosopho de Àthenas, a escola
das sciencias moraes se elevava sobre as máximas de outro philo-
sopho, Zenon; o qual, ainda que chypriota e phenicio, se tinha feito
alheniense por sua demorada residência na capital da Attica, To-
maram seus discípulos o nome de estóicos. Suas douti inas lhe so-
breviveram muito tempo, e, numa época em que não havia para
o homem outras consolações, ellas fructificaram nos seus dolorosos
transes e guiaram na vida, não somente a illuslres gregos, se não
também a muitos grandes philosoplios, homens de Estado, gene-
raes e imperadores romanos.
A intenção de Zenon era tlar aos homens uma regra de condu-
cta, e gnial-os á virtude. Considerava a educação como origem de
toda a perfeição, porque, conhecendo nós o que é bom, dizia elle,
inclinar-nos-hemos a seguir o bem. Devemos referir-nos a nossos
sentidos para que nos proporcionem os primeiros dados do conhe-
cimento, e à nossa razão para os combinar.
Nisto, a aífiiiidade entre Aristóteles e Zenon é manifesta. Toda
concupiscência, toda desejo, vem da imperfeição do nosso ccnhe-
cimento. A fatalidade fez a nossa natureza phisica; devemos, po-
rém, aprender a reinar sobre nossas paixões, a viver livres, intel-
ligentes, virtuosos e, em tudo e por tudo, conformes com a razão.
âlO ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
A nossa vida deve ser Ioda intellecliial, e devemos ser indifferen-
tes ao prazer e á dor. Não devemos nunca esquecer que somos ci-
dadãos e não escravos da sociedade. «Possuo, diz o estóico, um
thesouro que nada me arrebatará, porque nada pude tirar-me o
beneficio da morte.» Devemos lembrar-nos de que a natureza em
suas operações lende ao universal, e sacrifica ao seu fim o indivi-
dual. Não temos, pois, mais que submelter-nos ao destino e culti-
var em nós outros o conhecimento, a temperança e a justiça, como
elementos necessários da virtude. Sabemos que tudo muda em der-
redor de nós, que a morte succede á vida, a vida á morte, e que
è insensatez não querer morrer n"um mundo em que tudo morre.
Assim como a torrente que conserva sempre o mesmo aspecto e a
mesma íórma, ainda que as suas aguas se renovam sem cessar,
a natureza é um rio que corre sempre. O universo considerado em
seu conjuncto é invariável, porém eterno; nada mais ha que o es-
paço, os átomos e a força. As formas da natureza são essencial-
mente transitórias e passageiras.
Também devemos recordar que a maioria dos homens tem re-
cebido uma educação imperfeita, e portanto evitarmos de ferir as
crenças religiosas do nosso século. Dasta que saibamos, que ainda
quando exista uma potencia superior não ha um Ser Supremo; ha
um principio invisível, não um Deus pessoal, ao qual seria por isso
mais absurdo que blasphemo altribuir as formas, os sentimentos,
e as paixões dos homens. Toda a revelação é necessariamente uma
ficção. O que se chama azar é o effeito d'uma causa que se não co-
nhece ; a casualidade mesma tem a sua lei. As modificações que
soffrem todas as cousas são produzidas d"uma maneira fatal, e po-
deria dizer-se que o mundo em seu progresso procede como um
gérmen que não pôde desenvolver-se senão de um modo determi-
nado.
A alma do homem é uma scentelha da chamma da vida, do prin-
cipio geral das cousas; transmitte-se como o calor e, finalmente, é
de novo absorvida no principio universal. Não é pois a destruição
o que nos espera, é a reunião; porém, como o homem fatigado pro-
cura o somno, o philosopho cansado d'este mundo chama o repouso
da morte. Sobre estas cousas, todavia, não temos mais que idéas
incertas, supposto que o espirito não pôde tirar nenhuma certeza
do seu próprio fundo. Ê contrario á sã philosophia dedicar-se à in-
vestigação das causas; contentemo-nos em estudar os phenomenos.
Sobre tudo, não esqueçamos jamais que o homem não podia che-
gar á verdade absoluta, O resultado final dos esforços humanos
para penetrar nos segredos da matéria, é saber que somos inca-
pazes de comprehender tudo, e que ainda quando possuíssemos a
verdade, nos faltaria a certeza.
(Segue.)
COSTUMES DA BEIRA-ALTA
211
âostunies «ci Çcirci-^
(Conclusão)
11
Passemos agora a descrever alguns dos festejos da noiíle de S.
João, consoante se elles fazem em Mondim da Beira. Podem divi-
dir-se em duas partes : os dos rapazes e os das raparigas ; os
d'aquelles n'um monte, os d'estas na povoação. Ambos porém
constam de fogueiras e cantigas. A fogueira que os rapazes fazem
no monte da Banha, visinbo de Mondim de Cima, chama-seo fa-
cho ou o galheiro. Dias antes da funcção, vae-se a um pinhal pró-
ximo, ao som de tambores, pifanos e grandes algazairas, arrancar
um pinheiro alto, ao qual se cortam as ramas e se deixam apenas
as galhas (d'onde galheiro); este pinheiro é espetado no cimo do
monte e vestido de rosmaninho, hel!a-iuz, fieilos *, etc. Quando,
na noute do Santo, se vêem estes fachos todos a arder n^ms pou-
cos de montes fronteiros, e de vez em quando flammejam pelo ar
ou estoiram pelo chão, as bombas, as bichas e os sacatrapos ^,
ouvindo-se além disso as harmonias desafinadas dos instrumentos
músicos dos pastores (pois são estes os principaes influentes) e
as gargantas sonoras das raparigas, ninguém imagina o bello ef-
feito que a aldeia apresenta. O povo, não contente com ter trans-
formado uma festa naturalística n'um humilde brinquedo mais ou
menos catholico, identificou com os seus próprios costumes a per-
sonalidade de S. .loão :
1."
Ó meu S. João da Ponte,
O meu S. Jocão pequenino,
Heis-de ser o meu compadre
Do meu primeiro menino.
1.»
S. João p'ra ver as moras
Fez uma fonte de pedra :
As moças não vão a ella,
S. João bem se arrepèlla.
O S. João pequenino
Vendeu o pão do almoço.
Para comprar uoias contas,
Para botar ao pescoço.
() meu S. João da Ponte,
O meu Santo marinbeiro,
Levae-me na vossa barca
Para o Iàío de Janeiro.
S. João adormeceu
Nas escadinhas do coro:
Deram as freiras com elle,
Depenicaram-no todo.
2.0
O S. João pequenino
Vendeu o pão do jantar,
Para comprar umas contas
P'ra no Domingo resar.
1 O nome do feto em Mondim da Beira é jieito, palavra muito bem derivada
do lat. filectum, d'onde derivam ainda outras formas parallelas : feito, feitêlha
(demin ), feite, feto, feto-7-eah fenta, fentêlha (demiii.) e fentão.
2 Estes três nomes designam outra.s tantas composições pyrotectinieas pró-
prias das creanças.
212
ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
1°
S. João foi para o Norte
Com vifite e finco donzeilas :
Embarca, não desembarca,
S. João no meio d'ellas !
9 o
S. João foi para o Norte
Com vinte e cinco viuvas :
Embarca, não desembarca,
S. João a comer uvas.
Além do facho, queimam-se lambem niiiilas pinhas de pinheira
dispostas ao longo do monte.
A festa das raparigas tem um caracter mais pliallico do que a
primeira. No meio de um largo, ou mesmo numa qiiintan ou quin-
teiro, accumula-se uma porção dos mesmos vegelaes que consti-
tuem o facho, aos qiiaes se lança o fogo. F-umada a fogueira, as
raparigas levantam levemente as saias e saltam por cima delia,
dizendo em fúruia de oração recitada, não cantada:
Fogo no sargaço,
Saúde no meu braço.
F^ogo no rosmanintio,
Saúde no meu passariniio.
Fogo na gésla, •
Saúde na minha lesta.
Fogo na bella-luz.
Saúde nas minhas cruzes.
Fogo no pieitD,
Dê saúde a meu peito.
Em louvor de S. João.
Que dé saúde ao meu coração.
S. João vae. vem,
Minha mãe por casar- me tem.
Na Ucaniia recitam-se estes versos, além doutros muito licen-
ciosos :
Aramá pelas hervinhas do S. João,
Saúde no meu coração.
Aramá por ti,
Saúde em mi.
Aramá pelo feieito.
Saúde no meu peito.
Aramá pelo rosmaninho,
Saúde no meu peitiidio.
Aramá pelo sargaço,
Saúde no meu peitaço.
Aramá pelo sargaço.
Saúde no meu peitaço.
Além das fogueiras, ha ainda muitos usos e superstições na
noule e madrugada de S. .loão, como as sortes, as orvalhadas, o
apparecimenlo das Mouras á meia noute a pentearem-se, as alca-
chofras, etc.
As sortes tem uma fórmula, que, segundo creio, também se
canta em forma de cantiga:
S. João, de Deus amado,
S. João, de Deus querido.
Dae-me a minha boa sorte,
N'este copinho de vidro.
1 Giesta.
COSTUMES DA BEIRA-ALTA 213
Ás alcachofras allude a quadra :
Na noiíte de S. João.
Muita pancada apanhei,
Por via das alcacliofias.
Que por ti, amor, deitei.
Ás orvalhadas allude esla, que, parece é originaria do Porto,
como outras mais ahi localisadas :
Na noute de S. Joãu,
É bem tolo quem se deita :
P'i'a tom.;.- as orvalliadas
No Campo de Cedofeita.
De fado, na noute de S. João ninguém se deita, e de manhã
vão tomar as orvalhadas pelos campos, a banharem-se nos rios e
nas fontes. Os pastores levam os gados aos rios.
Além dos versos que ficam ;ip()iilad()s. e que conlèem a menção
de muitos usos e superstições, ha mais com outras referencias
mythicas, como eu já mostrei no meu opúsculo Fragmentos de My-
thologia, ex. :
— Oh S. João donde vindes.
Pelas cahnas sem i'hapiu?
— Vei;ho de ver as fojiueiras.
Que se accenderani no Ou
A noute de S. João é por excellencia a noute dos amores e dos
requebros apaixonados. A cantiga mesmo o diz :
Na noute de S. João
È que é lomar amores,
Que estão os trigos nos campos
Todos com as suas ílores.
A festa de S. João, não é puramente cliristã, é universal, por-
que
Até os moiros da Moirama
Festejam o San-João,
Com pandeiras e violas.
Com cannas verdes na mão.
Como se viu, a festa do S. João é, nor assim dizer, uma festa
campestre. Ha ainda outras. No primeiro de novembro, dia de To-
dos os Santos, quando nas torres o nos campanários os sinos bra-
dam por nossos pães, e os ares se enchem da tristeza fúnebre da
morte, cosluma-se — notável contraste ! — accender também foguei-
ras de silvas sèccas nos montes e nos soutos para assar casta-
2íli EXCYCLOPEDIA REPUBLICANA
nhãs. Chama-se a isto [azo o magtisto. Assim como no primeiro
de maio poucos deixam de comer castanhas picadas, por causa do
burro, poucos no dia de Todos os Santos deixam de celebrar o
seu sacrifício, o seu magusto. O vinhu e as maçãs não deixam fal-
tar áquelle festim campestre e frugal. Ás vezes o magusto é ter-
minado por uma enfarruscadelln, porque as mãos sujas de debu-
lhar as castanhas prestam-se excellenlemenle a essa brincadeira
de entrudo. Em Mondim da Beira vendem-se n'esse dia uns bolos
compridos de trigo, chamados saniúros (do lat. sanctorum).
Se eu tivesse de descrever todos os costumes da minha pátria,
de muito espaço precisava ainda de dispor. O pouco que ahi deixo
é apenas uma amostra, feita despertenciosamente e ao correr da
penna. Para terminar, permittam-se-me ainda duas observações.
Os serranos, por isso que vivem entre os seus montes e os seus
mattos bravos, no isolamento do mundo, costumados à esterilidade
do solo para certos frnctos. e ás intempéries do clima, luctando
já cora os Icbos, já uns com os outros por causa das divisões dos
terrenos maninhos, alimentando-se sobriamente, sem licença de
costumes, vivem muito (tenho conhecido serranos de mais de cem
annos), são robustíssimos, manhosos, fanáticos, inteiramente vo-
tados aos usos antigos, e estabelecem a transição do estado pas-
t(»ral para o agrícola.
Os da ribeira, mais perto da estrada e dos centros de civilisa-
ção e actividade, são em tudo qnasi o contrario d'aquelles.
Nos povos porém de uma e outra banda ha caracteres communs,
não sendo as distincções que estabeleci senão na intensidade e não
na qualidade.
A vida das nossas populações passa-se principalmente no campo.
A poesia, a musica, a dança, as festas, são o allivio d'eisa vida.
Predominam por toda a parte as ideias religiosas misturadas de
superstições de toda a espécie, mas tudo isso vae em decadência.
A palavra frade é um litulo de escarneo, e egualmente se vão
aproximendo delia abbade e mesmo padre. Criumpha emfim a
sciencia, e não virá talvez longe o dia em que os cruzeiros des-
appareçam dos caminhos, e os habitantes das montanhas, des-
pindo a capucha e a nisa, desçam a tomar parte no convívio in-
tellectual dos povos cultos. *
Porto. 1881. J. Leite de Vasconcellos.
1 No livro Saraiva e Castilho, por A. B. Saraiva, livro insulso s cheio de pre-
tensões ridiculas, ha, em notas^ a narração exacta de muitos costumes da Beira-
Alta, principalmente a propósito de festas. O A. salpica tudo de observações
pueris e tolas ; mas algumas cousas pôde o folklorista ahi aproveitar. Segundo
Phaedro, também in sterquilinio pullus riallinaceus margaritam repent. Está nes-
ses costumes o único merecimento do livro, pelo menos para mim.
TRADIÇÕES POPULARES DO ALGARVE âlS
Tradições jiojiuíares 3o .l,ínarve
ROMANCES
LISARDA
(Variante II)
— Lisarda, amor Lisarda,
Lisarda, amor primeiío;
Se tu me deras iim beijo,
Lisarda amor verdadeiro. . .
— Xão te dou, nem um nem dois,.
Nem um nem dois te hei de darj
Que eu não quero que depois
Tu de mim te vás gabar.
— Eu já íiz um juramento,
Protesto de o não cobrar;
Menina com quem eu durma
Nunca a hei de diíTamar.
Mas no fim de três mezes
Para o jogo se foi gabar.
Os seus manos que alii estavam
Disseram um para o outro:
— Será a mana Lisarda ou não ?
Quando vieram para casa
A' mãe o foram contar.
Sua mãe assim que (ai soube
Lizarda mandou fechar.
Quando o pae chegou a casa
Também lh'o foram contar.
O seu pae assim que o soube
Lisarda mandou queimar.
Estando Lisarda fechada.
Triste, triste, agoniada,
Ella chegou á janella.
—Quem o meu pão quizer ganhar
Esta carta ha de entregar
Ao meu conde de Mont'Alvai-.
Appareceu-lhe um menino
De sete annos, mais não:
— O menina, eu levo a carta
Escripta no coração.
— Se elle estiver jantando,
Deixa- o primeiro acabar.
Se eile estiver dormindo
Deixa-o primeiro accordar.
— Logo foi fortuna minha
Eneontral-o a passear.
Pegue lá, ó seôr conde,
Esta carta de pesar,
Que lhe manda sua amada
Pois ella vae a queimar,
— Tanto se me dá que a queimem
Como a deixem de queimar,
216 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
Faro.
A pena que meu coração sente
É seu ventre sangue real levar.
Ala l;i os meus creados
Is cavallos vão a ferrar.
Com ferraduras de cobre
Que é pra assim se não gastar,
E jornada de oito dias,
Que nós temos para andar.
Elle se vestiu de padre
Ao caminho a foi esperar.
—Alto ahi, parae justiça,
Se não eu te faço parar;
Essa menina cpie ahi levam
Ainda vae por confessar.
— Pois confesse-a o seór padre
Em quanto nós v^mos jantar.
— Ajoelhe-se, ó menina.
Faça o seu pelo signal,
Que nc meio da conlissão
Um beijinho me ha de dar.
— Não permitia Deus dos céos
Nem nos santos do altar;
Bocca que um conde beijou
Padre nenhum ha de beijar.
— Ajoelhe-se, ó menina,
Faça o seu pelo signal,
Que no fim da confissão
Um abraço me ha de dar.
— Não permitia Deus dos céos
Nem nos santos do altar,
Corpo que um conde abraçou
Padre nenhum ha de abraçar.
O padre então se sorriu
Pregando os olhos no chão.
— Esse rir, ó seór padre.
Esse rir de mangar
Parece-me a mim ser
Do/iieu conde de MonfAlvar.
— É verdade, ó menina,
Prenda lio meu coração.
— Se tu er:)S o meu conde
Para qu^^ me fizeste zangar ?
— Callai-vos, menina.
Que foi para t'exp'rimontar,
Manda chamar os teus manos
Que te vão agora accusar;
Manda chamar tua mãe.
Que te mande agora fechar;
Manda chamar teu pae.
Que te mande agora queimar;
E manda chamar a justiça
Que te venha aqui buscar,
Que amanhã por estas horas
Na egreja havemos de estar.
Heis Da.\iaso.
MANOEL FERNANDES THOMAZ ál7
Biograpliiag
IMfiiioel Feruíiiiclcs Tliôiiia;^
(Conclusão.)
VI
No dia 24 de janeiro de 1821 realisoii-se a abei lura do famoiio
congresso constituinte, estando reunidos 64 deputados. A altitude
de Fernandes Tliomaz em Iodas as sessões d"esle memorável con-
cilio liberal, foi sempre das mais enérgicas, e as doutrinas, que
sustentou com a sua palavra auclorisada e íirme, eram inteiramente
democráticas. Um dos seus detractores da aristocracia compara a
influencia que elle exercia no congresso, á que Mirabeau teve em
França^. Outro adversaiio das ideias de Fernandes Thomaz diz
que as cortes porluguezas ultrapassaram os devaneios da própria
Hespanha . . . demolindo a golpes de machado o edifício da monar-
chia^. E de faclo é esta a sua maioi' gloria; é o que torna sympa-
thico a nossos olhos o celebre congresso e o que nos mostra real-
mente bello o vulto de Fernandes Tbomaz. Quando o deputado Sar-
mento propoz que se desse o nome de pae da pátria a D. João VI,
o grande orador popular conseguiu que ficasse addiado «até vèr
que titulo se lhe havia de dar» e accrescenlou: «Vèr-se-ha, depois
de feita a constituição, se o merece!» Para elle a verdadeira so-
berania estava no povo; foi esta a doutrina sustentada nas cortes
de 1821 com geral applauso. A soberania reside essencialmente em
a nação ; os deputados, como representantes d'ella, tinham, por
conseguinte, plenos poderes para legislarem e reformaiem tudo,
tendo só cm vista o bem estar e a felicidade do povo, sem depen-
dência alguma de qualquer vontade superior; só no caso de o jul-
garem conveniente poderiam submetter as leis á sancção da coroa.
Não era uma obrigação de súbditos para com o seu rei, mas uma
simples concessão do veidadeiro soberano ao seu primeiro repre-
sentante.
Na terceira sessão do congresso, Fernandes Thomaz propoz que
se nomeasse uma commissão para formular as bases da constitui-
ção, que deviam ser apresentadas ao rei, apenas chegasse. Era in-
dispensável que D. João VI, ou qualquer pessoa da familia real,
que regressasse á Europa, jurasse logo as bases do pacto social
estabelecido entre o povo e o monarcha. Estas bases, publicadas
em 9 de março, foram inspiradas pela Declaração dos Direitos do
1 Diorama de Portugal nos 33 mezes constitucionaes, etc, por J. S. de Salda-
nha.— Lisboa, 182o. — pag. 215.
2 Historia de Portugal, por J. M. de Souza Monteiro, tomo ii.
28
nn ENOYCLOPEDIA KEPUBLIGANA
Homem e consignam: a liberdade individual, a liberdade de im-
prensa, o direito de propriedade, a inviolabilidade da casa do ci-
dadão, a egualdade perante a lei, a livre admissão aos empregos
sem outra distincção senão a de talento e virtudes, a abolição dos
privilégios, ele.
Fernandes Thomaz sustentou vigoiosamente i; repelidas vezes,
em discursos enérgicos e sensatos, a liberdade de imprensa, a re-
forma dos foraes, a exlincção da inquisição, a abolição das leitu-
ras no desembargo do paço e da inconfidência civil, a instituição
dos jurados eleitos pelo povo, ele. Combateu a creação de duas ca-
marás e o veto absoluto, porque não comprehendia que o exercí-
cio legal do direito de legislar podesse ser limitado aos indivíduos
investidos pela soberania nacional. Fernandes Tliomaz recusou-se
nobremente a receber o ordenado que o congi-esso aibilrou aos
membros do governo provisório, dizendo que o que fizera fora so-
mente a bem da pátria, sem alguma ideia de premio. i\o preambulo
do decreto sobre a exlincção do tribunal inquisilorial dizia-se que
a nação não o podia sustentar por causa do estado da fazenda pu-
blica. O grande orador, levanlando-se indignado, exclamou que era
ridículo semelhante motivo, quando a veidadeira e a única razão
era elle não poder existir n'um paiz de homens livres. Apezar do
congresso evocar a protecção do espirito santo e de se submetter
á santa religião, Fernandes Thomaz. por difterentes vezes, se mos-
trou adversário decilido do clero, combatendo com firmeza as suas
perlenções, como na occasião em que o patriarcha se recusou a
jurar as bases da constituição; o sincero liberal piopoz que fosse
ouvido e julgado. O congresso approvou a formação de um conse-
lho de Estado de nomeação regia, entre nomes propostos pelas cor-
tes. Disculindo-se se os frades seriam ou não elegíveis para con-
selheiros de Estado, Fernandes Thomaz disse «que elles tinham
morrido para o mundo, e que desejava que elreí os não tomasse
para confessores quanto mais para conselheiros! Se qiiizerem que
deixem o habito, e então talvez se resolvesse a votar em al-
gum ! »
Occupando-se n'uma sessão do veto concedido ao monarcha,
disse que «era somente para as leis orgânicas: mas que emquanto
á constiluição não havia senão acceital-a ou rejeital-a.» D. João VI
resolvera-se por fim a partir para Portugal; e na manhã de 3 de ju-
lho a frota que o conduzia fundeou no Tejo. Por deliberação das
cortes o rei só desembarcou no dia seguinte, indo immediatamente
jurar as bases da constituição. Silvestre Pinheiro Ferreira leu em
nome do rei o discurso em resposta ao do presidente da camará,
pronunciado por occasião do juramento. As expressões da resposta
regia não agradaram ao congresso que as julgou contrarias ás ba-
ses da constituição, vendo-se D. João VI forçado a declarar por
MANUEL FERNANDES THOMAZ 219
carta que não fora sua intenção violar o juramento prestado na
véspera,
A falta de espaço não nos permilte entrar em mais extensas
considerações sobre a linha de condiicta de Fernandes Thomaz no
parlamento. Em resumo, só podemos dizer que el!e conservou-se
sempre á altura do seu sincero patriotismo e do seu immciiso amor
pela causa do povo. Por isso mesmo era odiado pelos grandes da
corte e calumniado mi^eravelmente por invejosos e despeitados ;
pintaram-no ao pé da forca, acusaram-no de roubo, e todos os
dias lhe enviavam cartas anonymas com insultos e ameças de mor-
te. Foi sempre esta a recompensa das grandes acções e do desin-
teresse no serviço da pátria !
A figura de Fernandes Thomaz no congresso constituinte é des-
cripta assim por um estrangeiro: «As feições do seu rosto eram
austeras e fortemente caracterisadas ; os olhos eram de fogo, os
cabellos curtos e crespos começavam a embranquecer. Sua tez era
de um moreno pronunciado: a voz retumbava como o ribumbo do
trovão ; suas ideias eram claias, as phrases concisas e nervosas.
Em seus discursos nem se encontravam parenlhesis, nem circum-
loquios: nem offendia, nem lisonjeava pessoa alguma; parecia não
cuidar na impressão que produzia no auditório, e, com os olhos
fixos no presidente não estava altenlo senão para a inspiração da
sua consciência. Á vista deste orador observei nas physionomias
dos ouvintes um sorriso de satisfação misturado com respeito*.»
É porque elle era, na verdade, como disseram ao illustre estran-
geiro:— O rei da nossa revolução.
VII
Em setembro de 182:2 concluiu-se a constituição e no dia 30 foi
jurada pelos deputados. No dia 1 de outubro D. João VI, acompa-
nhado do infante D. Miguel e de toda a corte, prestou o juramento
solemne, a que dentro de alguns mezes havia de faltar, listavam
encerrados os trabalhos do congresso constituinte.
Fernandes Thomaz tamhern tinha terminado a sua missão. Doente
ha muito, perdera de tal modo as forças, nos últimos mezes, pelos
cuidados e esforços dispendidos com as sessões das cortes, que lhe
sobreveio uma febre agudíssima e cahiu prostrado no leito, em es-
tado perigosíssimo. Esta noticia causou no publico a mais viva im-
pressão : o povo corria todo a casa do grande tribuno para infor-
mar-se do que succedia. Nas ruas e nas praças ninguém fallava
n'outra cousa. Ouviam-se palavras sentidas de respeito, quasi de
1 Lettres historiques et politiques snrle Portugal, Conde Peccliio, apud Tli. Bra-
ga: Soluções positira'i da politica portttgueza, vol. in, pag. 6'i.
220 EtNCYCLOPEDIA HEPUBLICANA
adoração. Circulavam boatos assustado! es. Dizia-se que o grande
patriota estava moribundo. Heuriiam-se grupos nos passeios, nos
largos. Viam-se semblantes tristes e carregados : olhos arrasados
de lagrimas.
Perdera-se de lodo a esperança de o salvar. Mas elle. sublime
espirito, apezar de gravemente doente, discutia ainda os negócios
públicos com os seus amigos, e com os médicos os remédios que
pertendiam applicar-lhe. Não dei.xava um só instante, mesmo no
leito da dòr, de [)ensar na pátria a ijiie consagrara os melhores
dias da sua vida. Era a sua ideia permanente, e no emtanto estava
convencido do seu próximo fim. Na véspera do dia fatal, voltava-se
para o medico, e dizio-lhe em voz firme, sorrindo: «Então, meu dou-
tor, quem sabe mais medicina'?. . . Sou eu, que sempre o disse.
Nós tinhamos argumentado, e eu lhe tinha talvez dito alguma cousa
mais forte: mjs não lhe peço perdão, porque o não ofíendi: entre-
tanto sou-lhe muito agradecido; porque tem trabalhado como um
homem ecomo um amigo'». Elle próprio animava a esposa e pro-
curava consolal-a; dizia-lhe que sentia alguns allivios, mas que não
tivesse grandes esperanças, porque tinha de ser assim. Mais tarde
quiz despedir-se delia; estava ao lado da cama o padre mestre Fr.
Sabino, a quem pediu para a ir chamar. Respondeu-lhe este que
ia perguntar aos seus amigos se seria conveniente essa entrevista,
e voltando, participou-lhe que era negativo o voto unanime delles.
Fernandes Thomaz ol)servou placidamente : «Então está isso lá
por fora em boa ordem : |)0is bem ; elles assim o decidiram e eu
me sujeito porque elles, fora do caso em que me acho, tèm obri-
gação de pensar melhor do iiue eu. Este negocio está acabado!»
Assim terminaram, em 19 de novembro de 1822, os soffrimen-
tos deste honrado e sincero revolucionário, que tantos serviços
prestou á causa da liberdade. Morreu como viveu. Corajoso e enér-
gico alé aos últimos momentos, legou-nos um exemplo grandioso
do que pôde a vontade unida a um caracter nobilíssimo, que li-
nha por ideal o bem do povo e o futuro da nossa nacionalidade.
Teixeira Bastos.
A 3RLasào
I
Eu não venlio cantar as noites socegadas,
As noites das Ninons nervosas ou lympliatÍL'as.
Nem tão poui'o saudar as frescas madrugadas,
E as rosas em botão, as rosas aromáticas:
1 Vid. Diarw do Governo, n.»» 271 e 272. de 16 e 18 de novembro de 1822.
A RASÃO 221
N:ío trago dentro d'alrna um ninho perfumado
D'alegres rouxinoes e brancas cotovias.
Deixei o Homantisino, — esse velUo castrado. —
Nos braços já senis das magras utopias.
E venho a escarnecer, por este mundo fora.
Das trágicas visões d'uns palhdos poetas
Que atiram madrigaes iilylicos á aurora
E choram, atravez dos vidros das lunetas
Uns prantos ideaes. alambicados, ternos,
Como as superstições idolatras dos persas;
Eu trago dentro d'alriia o gelo dos invernos.
As crenças sem calor, as illusões dispersas.
Tenho um punhal agudo, um escalpelo enor.Te.
Que rasga e dilacera os peitos mais valentes,
Dentro em mim a consciência^ esse espião, não dorme.
Não sôa ao meu ouvido a voz terna dos crentes.
Sujeito ao meu olhar insondável e frio,
Como os gumes falaes dos aços fulgurantes,
Os feitos dos heroes, o ceu uegio e sombrio,
A vida das nações, as almas dos amantes.
Eu desço á profundesa escura do inysterio,
Hevolvo as podridões nojentas, asquerosas,
Onde vive a Traição, a Crápula, o Adultério,
O Vicio, a Embriaguez, as coisas criminosas
Em fraternal convívio, em doce sociedade,
Como um bando fatal de cortesãos medonhos,
Sentados em redor da mesa-Ebriedade,
Cançados de beber, nostálgicos, medonhos.
Eu subo o meu olhar, a águia que se alteia.
Ao infinito Azul das coisas mais claras,
Eu comprehendo o Bel lo, eu idolatro a Ideia,
Deleito- me ante o brilho aurífero das Searas:
Eu sorrio-me ao \er as timidas creanças
Rasgar com mãos de neve as límpidas flores.
Gosto d'ouvir cantar o coro das Esperanças,
Acompanhando a voz dos cândidos Amores
E, em noites de harmonia em que a atmosphera e pura,
A lua radiosa, as lymphas socegadas.
Deixo vagar á toa esta miuh"alma escura
Pela charneca além das Iliusões sagradas.
Eu olho friamente as coisas mais extranhas.
Comprehendo o Remorso, a Afflicção e o Crime.
Devasso do Universo as revoltas entranhas.
Sei que a Lagrima é doce e que a Prece redime.
Não me deslumbra o olhar monótono do Christo.
Pregado no madeiro, envolto de negrura,
E pergunto, apontando-o: — O padres, o que é isto ?
É eterno o sotfrer, eterna esta amargura?
Quereis prender assim um revolucionário,
Quando a Sciencia marcha e o Pensamento avançai
Ai, loucos, cansará a Lenda do Calvário,
Mas olhae que a Rasão. essa jamais se cança.
Eu encho de lauréis a fronte da Justiça,
Dobro o joelho em terra em frente da Virtude.
222 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Sigo de perto a Lucta, ando sempre tia liça
E vou buscar a Historia ás sombras do athaude.
Sou eu que impulsiono esse monstro de ferro
Que atravessa, rugindo, as fecundas campinas,
(Jue transpõe, sibilando, um rio, um valle, uni cerro
f] que rasga, orgulhoso, os seios das coUinas.
Eu dou ao navegante a sonda e a coragem,
A Arte a phantasia. a concepção ao Bel lo.
Ao Poeta o enthusiasmo, a adoraçcão, a imagem
E o Amor aos corações que sabem comprehendel-o.
Ruge no throno o rei ouvindo a voz solemne
Que en solto pela bocca enorme da canalha,
Jesus freme no altar com meilo que o condemne
L'm meu protesto audaz e essa infame gentalha,
Os grandes charlatães das fabricas de Roma,
Escutam com pavor os meus cantos divinos.
Fogem se ao lábio meu uma Ironia assoma,
Como uma horde feroz de negros assassinos,
Perseguidos de perto, apressuradamenle,
Pela vingança audaz dos grandes pumdores;
Não supportam a luz os olhos da serpente,
Não roçam pelo Sol as azas dos condores.
II
Eu chamo-me a Rasão e venho armar o Povo
Contra o poder de Deus, contra o poder dos reis,
Trago para .salval-o um Evangelho novo,
.Novas crenças d'Amor, novas e sabias leis.
Eu chamo me a Rasão e vós, ó condemnados
Que vos chamaes Canalha, erguei o olhar feroz !
Em breve ha de raiar o Sol dos desgraçados.
Em breve ha de vibrar o som da minha voz !
E então é destruir esse mundo já podre.
Onde tudo é postiço, é theatral, é vil,
É esmagar aos jiós esse estafado odre,
É punir, é vence-, ó Povo inda servil 1
Além ouve-se já o rumor da batalha,
Sente-se o trovejar da bocca do canhão.
Eia, de pé, de pé I Levantate, Canalha,
Que está juncto de nós a santa Revolução.
Aponta ao padre infame, ao monarcha devasso
Os fdhos teus sem pão. os olhos teus sem luz;
Destroe o throno e o altar, arrasa a egreja e o paço.
Desprende o Christo, beroe, dos braços dessa crnz.
Esmaga d'um só bote a tétrica realeza,
O rei tornado Deus, a hypocrisia, emlim;
Que soem pelo ar os sons da Marsetheza,
Cantados pela bocca austera do clarim.
o CÂNTICO DOS PARIAS 22.1
E depois raiará o dia da Justiça,
Banhado pela luz fecunda da Masão.
Anin>o, eia, luctar, ó vós que andaes na liça,
Ó filhos da Canalha, ó Povo, ó meu irmão !
Lisboa. Julho. 1882.
Ernesto Pires.
Ô ccintica dos íidrlias
Mal hajam aquelles que interdisseram aos párias a terra.
o sol, a agua, o arroz e o lume. Mal hajam os que os
amaldiçoaram. Mal hajam os que os forcaram a abrigar
a velhice dos avós e o herco dos filhos nos reductos das
feras. Mal hajam os que atiraram com os párias para a
casta dos abutres e das chaeas immuudas, porque os pá-
rias são homens.
TlP.UVALLUVAR.
Luiz Jacolliot, iim dos indianistas mais conscienciosos e mais fe-
cundos, Iraz no seu bel!o e interessante livro do Paiiah dansVhu-
manité, cap. II, pag. 10, o cântico que os párias (a quem o férreo
e embrutecedor dominio sacerdotal, que tão maus frutos tem pro-
duzido em todos os logares em que por infellicidade tem impe-
rado, negou a dignidade de homens) o cântico, repito, que os pá-
rias entoam triste, soturna e desesperadamente por toda a índia,
quer nas costas de Coromandel, quer nos júngles de Travencor ou
nas florestas do Malabar.
Umas vezes é uma rapariguita que modula estas estancias em
tom monótono e choroso, fabricando cestos de junco ás bordas de
um pântano : outras um pobre rapaz que vae pastorear uma ca-
bra magra e enfezada n'alguma pastagem deserta ; outras um po-
bre velho abandonado que repete á solidão a enormidade das suas
misérias; outras ainda qualquer d'estes infelizes hindus que vae
em busca do seu iminundo sustento, que elle se vê obrigado ainda
assim a disputar ás hyenas e aos chacaes.
Ahi vae agora, sem mais preâmbulos o alludido
Cântico dos párias
I
«Que importa que Surya prosiga nos espaços celestes o seu
curso eterno e que esparja em ondas numerosas e ingentes os seus
raios que a nossa vista não pôde fitar!... Ceu e terra, vede o
que nós somos.
II
Que importa que a joven esposa receba um gérmen precioso da
ternura do marido, que importa o amor e a fecundidade . . . Ceu
.6 terra, vede o que nós somos.
224 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
III
Que importam os Ires deuses que criam, conservam e transfor-
mam o universo ; não é para nós que elles brilham com tanta glo-
ria!... Ceu e terra, vede o que nós somos.
JV
Não é para nós que o fumo dos sacrifícios se eleva até ao elher,
que as flores habitam a terra, que os frutos pendem nas arvores,
que corre a agua sagrada do Ganges !. . . Ceu e terra, vede o que
nós somo?.
V
Não é para nós que os animaes criam e que as abelhas produ-
zem o mel. Não é para nós que as donzellas pisam no almofariz
sonoro a herva sagrada com que fabricam o divino licor de So-
ma!. . Ceu e terra, vede o que nós somos.
VI
Não é para nós que Âgni creou o fogo e índra, da essência im-
mortal, creou a prece ! . . . Ceu e terra, vede o que nós somos.
Vil
Encanto dos olhos, bezoii"0 das regiões celestes, Indra, tu a
quem todos os homens veneram, nós não podemos pedir-te nada,
os nossos votos profanariam teus ouvidos!... Ceu e terra, vede
o que nós somos.
VIU
Foi de balde que eu arrostei a morte, procurando surpreender
os mentrams que evocam os deuses; foi em vão que, nos reductos
mais espessos dos bosques, eu effectuei as librações sagradas que
os tornam propícios, os deuses fugiram ao aproximar-se!. . . Ceu
e terra, vede o que nós somos.
IX
Onde estão as fontes de agua pura onde possamos apagar a
nossa sede? a agua que cae dos bebedoiros e se conserva nos
rastos do gado é a nossa única bebida ! . . . Ceu e terra, vede o
que nós somos.
X
Onde estão os campos que produzem para nós o arroz e os ou-
tros grãos miúdos? Não ha no mundo uma haste de sorgho, um
pedacinho de herva, uma folha de rosa que nos pertença I . . Ceu
e terra, vede o que nós somos.
XI
As feras tem o seu covil, as serpentes os ninhos de cariahs, a
ave é livre nos ares, qualquer ramo pôde proteger-lhe o ninho e
as canções. Agni possue o universo, Vayú a atmosphera, Aditya
i
o CÂNTICO DOS FARIAS 225
O ceu, Tchandramos os espaços conslellados, Vidyut as nuvens, o
homem das quatro castas nasce e morre na casa de seu pae ; e
onde é que o filho do pária pôde abrir os olhos? onde está a
terra amiga que lhe hade guardar os despojos?. . . Ceu e terra,
vede o que nós somos.
XII
Quando a sombra sobe dos valles ao cume dos bosques sagra-
dos, que o padial reconduza os rebanhos de elephantes, que o su-
dra deixe, cantando, os arrozaes, a pedra de cacry retine sob a
mão das raparigas que preparam a refeição da noite ; quando se
deitam aos cães os sobejos da comida, onde pôde o pária ir, pois,
comer?. . . Ceu e terra, vede o que nós somos.
XIII
Quando as mulheres traçam no chão das habitações os signaes
consagrados que expulsam os maus espíritos : quando toda a gente
repousa, onde pôde dormir o pária?. . . Ceu e terra, vede o que
nós somos.
XIV
Quando lodos choram numa casa, e o carro mortuário está co-
berto de flores, a alma do morto está satisfeita, o bálsamo liquido
correrá sobre a fogueira ; aquelle que tem a esperança de sei- ac-
companhado das preces sagradas pôde esperar com alegria o des-
pertar celeste. . . Mas o pária onde pôde morrer?. . . Que espe-
rança pôde ter de renascer?... Ceu e terra, vede o que nós
somos.»
Este verdadeiro e sentido cântico que os infelizes párias repe-
tem na sua agonia eterna, demonstra evidentemente a veracidade
das seguintes linhas: «Mourant de faira ou malade (le pariah), au-
cune porte ne sesl jamais ouverte devant lui ; ses enfants naissent
dans la jungie, sou corps pourrit dans les charnersi déserts, car
il n"a droit ni aux búchers ni à la terre, la ílétrissure jetée sur
sa race par le prètre le pourrint dans la morí.» E outrosim que
«dans le drame mystérieux et triste qui joue sur la terre depuis
des centaines de siècles, il est un role que n'a jamais manque
d'acteurs: c'est celui de Topprimé, de Tesclave. du pariah.»
As estrophes traduzidas assim são devidas a Tirnoalluva, o único
poeta pária que a índia inteira tem produzido. Nada obstante os
preconceitos da casta que repellem o 'pária e que fazem couside-
ral-o mais impuro que o mais impuro dos auimaes, os próprios
brahmas chamam a este poeta o Dkino pária. E decerto quadra
admiravelmente bem o titulo de Divino ao escriptor que assim
soube lamentar os sofTrimentos da sua raça e que à frente do seu
livro dos Deveres, mais sublimes decerto do que o do grande ora-
dor romano (De offtciis) escreveu o seguinte proemio. (ib. pag.
29
ENOYCLOPEDIA REPUBLICANA
80-81) onde deixou uma parle da sua alma nobre e grandiosa e
verdadeiíamente devotado á causa dos opprimidos.
Eil-o:
I
«Aquelle que soíTre, roga e ama é um homem. . . O pária sof-
fre, roga e ama ... O pária é um homem.
II
Todos aquelles que o sol aquece com seus raios, todos aquelles
que rasgam a terra com a charrua são homens. . . O pária gosa o
sol e nutre-se dos fructos da teria. . . O pária é um homem.
III
Todos aquelles a quem a rasão diz: isto é bom. aquillo é mau,
são homens. O páiia conhece o bem e o mal. . . O pária é um
homem.
IV
Todos os que veneram os antepassados, respeitam seus pães,
protegem suas mulheres e seus filhos, são homens. O pária sacri-
fica aos manes, respeita seu pae e protege a sua mulher e os
seus filhos. . . O pária é um homem.
V
Mal hajam aquelles que interdisseram aos párias a terra, o sol,
.a agua, o arroz e o lume. . . porque os párias são homens.
VI
Mal hajam aquelles que os amaldiçoaram. Mal hajam aquelles
que os forçaram a abrigar a velhice dos avós e o berço dos filhos
nos reductos das feras. . . porque os párias são homens.
VII
Mal hajam aquelles que atiraram com os párias para a casta
dos abutres e dos chacaes immundos. . . porque os párias são ho-
mens.»
A. DE Sequeira. Ferraz.
M\usíca reuniosa
(Ao meu condiscípulo Braz de Sá)
O musica lethal das nossas almas.
Não soltes mais as tuas harmonias I
Das mãos do» maityres vão eatiindo as palmas,
E o século condemna os vellios dias.
A ORIGEM DA SCIENCIA 227
N'aquellas doces, iiieffaveis eras,
Em que na onda do incenso dos altares,
A alm.i buscava a luz das primaveras
Nas regiões translúcidas dos ares,
E o azul do ceu, profundo, indefinido.
Reflectia o clarão, da Divindade,
— O musicd lethal, o teu gemido
Era um bálsamo : hoje é uii)a saudade.
(1880). J. Leite de Vasconcellos.
A oricieni da p ciência
(Conclusão.— V. pag. 210.)
Que nos resta, pois? A sciencia, tal como se pôde procurar no
estudo, na virtude, na amisade, no amor á verdade e á boa fé, a
acceilação resignada das condições da nossa exislencia, uma vida
conforme aos principios da razão.
Ainda que o Museu de Alexandria houvesse sido instituído prin-
cipalmente para o estudo da philosopliia peripatetica, não vá a
crêr-se que os outros systemas philosophicos estavam d'elle des-
terrados. Platão, foi ali não somente estudado nos seus últimos
desenvolvimentos, senão que acabou de supplantar a Aristóteles,
6 através da nova Academia marcou o christianismo um séllo pro-
fundo. Seu methodo philosophico era inverso do peripalelico. To-
mava seu ponto de partida dos feitos universaes ; a existência
mesma era assumpto de fé, e dali deicia aos detalhes. Aristóte-
les, pelo contrario, ia do particular ao geral, procedendo por in-
ducção.
Platão, fiava-se pois, na imaginação. Aristóteles, na razão; o pri-
meiro dividia uma idéa primordial em idéas subsequentes ; o se-
gundo formava uma concepção total com varias idéas particulares.
D'ahi resulta que o methodo platónico produzia rapidamente um
ideal esplendido, porém vão; e o peripatelico, mais lento nas suas
operações, era muito mais solido. Exigia um trabalho infinito para
o estudo dos feitos, uma fastidiosa fidelidade na experiência e na
observação, e, por ultimo, a demonstração vigorosa. A philosophia
de Platão assimelha-se a um palácio elegante suspenso nos ares ;
a de Aristóteles a uma perfeita construcção fundada sobre rocha
laboriosamente e com trabalho incessante.
É muito mais agradável evocar a imaginação que appellar para
a razão. No periodo da sua declinação, preferiu a escola de Ale-
xandria os raelhodos suaves ao severo exercido intellectual que re-
228 EXGVr.LOPEDIA REPUBLICAxNA
quer a observação tios feitos. As escolas dos iieo-plaloriicos esta-
vam inçadas de myslicos e philosophos especulativos, como Ammo-
nius, Saccas e Plaiin. Estes occuparam o posto dos graves geóme-
tras do velho Museu.
A escola de Alexandria exhibe a primeira applicação d'este sys-
tema que nas mãos dos nossos modernos physicos tem dado resul-
tados tão maravilhosos. Tem destrinçado tudo o que emana da ima-
ginação, e feito com suas Iheorias a synthese dos feitos demonstra-
dos pela experiência, pela observação, e o raciocínio exacto. Tem
reconhecido o principio de que não se estuda bem a natureza. As
investigações de Archimedes sobre o peso especifico e as obras de
Ptolomeu sobre óptica, parecem-se com as investigações da philo-
sophia experimental e formam um grande contraste com as diva-
gações dos antigos esciiplores.
Laplace nos ensina que a única observação que nos apresenta
a historia da astronomia entre os gregos antes da fundação da es-
cola de Alexandria, é a do solsticio de verão no anno 432 antes de
Jesus Christo. feita por Melou e Knctemon. Nesta escola vemos
pela primtira vez um syslerna de observação complexa, formado
de instrumentos para medir ângulos e calculado por melhodos tri-
gonométricos. A asironomia toma desde então uma forma que os
séculos seguintes não puderam mais do que aperfeiçoar.
Não entra no quadro e plano d'esta obra relatar detalhadamente
os descobrimentos juntados pelo Museu de Alexandria aos conhe-
cimentos humanos: basta que o leitor tenha uma idéa geral do seu
caracter. Para cada objecto particular pôde consultar o sexto capi-
tulo da minha Historia do dcsenvolvimenlo inteUectnal da Europa.
Acabamos de ver que a philosophia estóica duvidava que o espi-
rito de- homem pudesse chegar á verdade absoluta. Emquanlo que
Zenon propagava esta duvida, preparava Euclydes a sua grande
obra, confeccionada para desafiar toda a conlradicção humana. De-
pois de mais de vinte e dois séculos, vive ainda, modelo de exa-
ctidão, de clareza, typo de demonstração exacta. Este grande geo-
metra escreveu não somente sobre outros assumptos de mathema-
tica, taes como secções cónicas e os porismas, senão que também
se lhe attribuem tratados de harmonia e de óptica. Neste ultimo
assentava a hypothese de que os raios visuaes partem do olho e se
estendem aos objectos.
É mister collocar Archimedes entre os physicos e mathematicos
de Alexandria, com quanto houvesse vivido accidentalmeule na
Cicilia. No numero das suas obras de mathemathicas, encontra-
vam-se dois livros, sobre a esphera e sobre o cylindro, nos quaes
demonstrava que o cubo da esphera é egual aos dois terços da
sua circumferencia. Tanto era o apreço que dispensava a este des-
cobrimento, que fez gravar a figura sobre a sua sepultura. Tam-
A ORIGEM DA SLIENCIA 229
bem tralon da quadratura do circulo e da parábola, escreveu so-
bre as canoides e espheroides, assim como a respeito da espiral
que tem o seu nome, e cujo principio lhe foi suggerido por seu
amigo Cariou de Alexandria. Como malhematico não tem lido rival
na Europa no espaço de quasi dois mil annos. Como physico, poz os
cimentos da sciencia hydrostalica, inventou a maneira de medir o
peso especifico, discutiu o equilíbrio dos corpos fluctuantes, des-
cobriu a verdadeira theoria da balança, e encontrou a idéa da
bomba que tem o seu nome e que serviu para elevar as aguas do
Nilo. A elle lambem pertencem a lielice sem fim, e uma forma de
lentes de vidro que no. sitio de Syracusa, segundo se disse, poze-
ram fogo aos navios dos romanos.
Eratoslhenes, que fora em tempo bibliothecario do Museu de
Alexandria, era o auctor de varias obras importantes. Entre estas
pôde citar-Stí a determinação do intervallo dos trópicos e uma ten-
tativa para medir as dimensões da terra. Occupou-se com a arti-
culação e com a expansão dos continentes, com a posição das ca-
deias de montanhas, com a acção das nuvens sobre a terra, com
as catastrophes geológicas, com os dilúvios, com a elevação do
solo em togares outras vezes cobertos pelas aguas, com a forma-
ção dos Dardanellos, com o estreito de Gibraltar e com o mar Ne-
gro. Compoz um systema do mundo em três volumes, physico,
mathemathico e histórico, acompanhado de cartas que representa-
vam todos os paizes então conhecidos. Não se tem apreciado jus-
tamente, até ha alguns annos a esta parte, os fragmentos que nos
restam das suas Chronicas dos reis de Tebas. Durante bastantes
séculos foram lidos em grande descrédito por nossas absurdas
chronologias tlieologicas.
É inútil citar os argumentos empregados pelos alexandrinos
para demonstrar a redondez da terra. Tinham noções exactas no
tocante á esphera, aos poios, ao eixo, ao equador, aos círculos ár-
ctico e antartico, aos pontos equinocciaes, aos soislicios, á varie-
dade de clima, ctc. Basta recordar os tratados das secções cónicas
e de máxima e minima por Apolonio, que foi, se disse, o primeiro
que empregou as palavras de elipse e hyperhole. Egualmente só
mencionarei as observações astronómicas de Arislylle e de Timo-
charis. Ás d'este ultimo, com referencia á estrella Epi. deveu Hy-
parco o seu grande descobrimento da preccessão dos equinoccios.
Este determinou as desegualdades da lua e a eíjuação do centro.
Adoptou a theoria dos Epiciclos e das excêntricas, concepção geo-
métrica que serve para explicar o movimento apparenie dos cor-
pos celestes por o movimento circular. Também emprehendeu a
formação d'um catalogo de estrellas por um n^ethodo de alienação,
isto é, indicando successivamente as que pareciam encontrar-se
n'uma mesma zona : o numero de estrellas catalogadas assim, era
830 E:\CYCLOPEDIA REPUBLICANA
de i:080. Ao mesmo tempo que procurava dar uma descripção do
firmamento, fazia o mesmo para a superfície da terra, indicando
a posição das cidades e dos outros objectos por graus de latitude
e de longitude. Foi o primeiro que construiu tábuas da lua e do
sol.
No iniic» de tão brilhante pleyade de geómetras, de astrónomos
e de physicos, sobresahia em primeiro plano Ptolomeu, auctor da
Syntaxis, Tratado de malhematica celeste. Esta obra tem vivido
cerca de mil e quinhentos annos. e não ha sido supplantada senão
pelos immortaes Princípios, de Newton. Expõe doutrina de que a
terra é redonda e fixa no espaço : descreve todo o systema de
instrumentos para observar os :;olsticios ; deduz a obliquidade da
ecliplica ; indica as latitudes terrestres por meio de gnomo; marca
os diíTerentes climas ; mostra a relação dum dia terrestre com
um dia sidéreo ; apresenta razões para preferir ao anno sidéreo o
anno iropital ; expõe a theoria solar, partindo do principio de que
a orbita do sol é uma excêntrica ; explica a equacção do tempo ;
faz avançar a discussão sobre os movimentos da lua ; trata da pri-
meira desegualdade, de seus eclipses, e das variações de seus
modos. Dá em seguida o grande descobrimento de Ptolomeu, o
que ha tornado o seu nome immortal, o descobrimento da segunda
desegualdade, condiizindo-o á theoria do epicyclo. Esforçou-se,
com pouca fortuna, diga-se em boa verdade, ( m medir a distancia
do sol e da lua à terra. Falia extensamente sobre o descobrimento
de Hyparco, o da preccessão dos equinoccios cujo cyclo inteiro é
de vinte e cinco mil annos. Dá nm catalogo de \:Ò2i eslrellas,
falia da natureza da via láctea e discute d uma maneira magistral
o movimento dos planetas. Este ultimo ponto mereceu a Ptolomeu
um renome immortal. Fizeram-se determinações das orbitas pla-
netárias comparando suas próprias observações com as dos anti-
gos astrónomos e em particular com as de Timocharis sobre o
planeta Vénus.
No Museu de Alexandria, Ctesibius inventou a machina de fogo;
seu discípulo Hero aperfeiçoou-a, annexando-lhe dois cylindros.
Ali também appareceu a machina a vapor: era imia invenção tam-
bém de Hero, e era de reacção, construída sobre o modelo da
eolipela. O silencio das salas de Serapis foi perturbado pelos re-
lógios de agua de Stesibius e A polónio, relógios que mediam o
tempo gota a gota. Quando o kaiendario romano caiu em uma con
fusão tão cahotica que se tornou necessário corrigil-o, Júlio César
chamou de Alexandria o astrónomo Lorigenes; por conselho d'este,
o anno lunar foi abandonado, o anno solar instituído como anno
civil, e o kaiendario Juliano introduzido em Roma.
Tem-se insultado os reis macedonios do Egypto pelo modo como
trataram o sentimento religioso do seu povo. Prostituíram a reli-
A ORIGEM DA SCIENCIA 231
gião fazendo-a descer ás torpesas da intriga do Estado, valendo-se
delia como um meio de governo ; no entanto, deram a philoso-
phia ás fiasses intelligenles.
Ninguém duvida de que houvessem aprendido esta politica du-
rante aquellas memoráveis campanhas, que tinham feito dos gre-
gos o primeiro povo do mundo. Haviam visto as concepções my-
thoiogicas de seus antepassados reduzidas a puras illusões, fabulas
e maravilhas, com as quaes os antigos poetas tinham povoado o
Mediterrâneo. As divindades do Olympo tinham-se desvanecido, e
com ellas o mesmo Olympo. Plutão já não era objecto de terror,
não se sabia mesmo onde o collocar. Os deuses e as deusas ti-
nham abandonado os bosques, as grutas e os rios da Ásia Menor.
Os seus devotos também começavam a duvidar de que elles os ti-
vessem habitado alguma vez. Se as jovens syriacas lamentavam,
pois, em amorosos clamores a sorte de Adónis, não era já senão
á conta de costume nacional.
A Pérsia mudara, por vezes bastantes, de deuses e de ritos : á
revelação de Zoroastro substituira-se o dualismo ; debaixo de no-
vas influencias politicas adoptara o magismo. Adorara o fogo em
altares incendidos nos cumes das montanhas, depois ao sol, e,
quando apparecen Alexandre, cahiu rapidamente no pantheismo.
Um paiz, ao qual os seus deuses particulares não hajam soccor-
rido nos momentos de perigo, está mui perto de perder a fé. As
veneráveis divindades do Egypto, a que se haviam levantado obe-
liscos e templos, tinham-se deixado vencer com excessiva frequên-
cia pela espada dos conquistadores. Na terra das Pyramides, dos
Colossos, das Sphynges, as imagens dos deuses não representa-
vam já realidades vivas. Não se cria n'e!les ; pediam-se outros, e
Serapis derrubou Osiris. Nas tendas e nas ruas de Alexandria ha-
via milhares de judeus que tinham esquecido o Deus do Taber-
náculo.
A tradição, a revelação, o testemunho dos séculos, tudo perdera
o prestigio e o poder ; as recordações mylhologicas da Europa, as
encarnações da Ásia, os dogmas seculares do Egypto, tudo des-
apparecera, e os Ptolomeus reconheceram ainda quão ephemeras
são as formulas da fé.
Mas o que também reconheceram, foi que ha alguma coisa mais
duradoura do que estas formas religiosas, as quaes, uma vez
destruídas, são como as formas orgânicas sepultadas sob as ca-
madas geológicas, mortas para não mais reviver, e que debaixo
d'este mundo de illusões passageiras se occulta um mundo de
eternas realidades.
Não se poderia descobrir este mundo atravez as vans tradições
legadas pelos homens que viveram na aurora da civilisação, nem
tão pouco nos sonhos dos inspirados mysticos. É mister pedir os
è32 EiNCYCLOPEDIA REPUBLICANA
seus segredos á geometria e á natureza. Elias derramarão a flux
sobre a humaniilade benefícios sem numero, duradouros, e de in-
calculável preço.
Jamais chegará um dia em que se possam disputar as proposi-
ções de Euclydes ; jamais chegará um dia em que se ponha em
duvida a redondeza da terra, reconhecida por Eratosthenes. O
mundo não permitlirã que os grandes descobrimentos e as gran-
des invenções da physica, realisadas em Alexandria e em Syra-
cusa, caiam nunca no olvido. Os nomes beneméritos e sempre il-
lustres de Hiparco, de Apolonio. de Ptolomeu e de Archimedes
serão pronunciados com respeito, emquanlo haja homens sobre a
terra.
O iMuseu de Alexandria foi, pois, a base da sciencia moderna.
É verdade que, muito tempo antes da sua fundação, se tinham
feito observações astronómicas na China e na Mesopotomia. As
mathematicas também tinham sido cultivadas ua índia com certo
bom resultado. Porém, em nenhuma parte se havia tomado um
methodo de investigação, uma forma correcta e séria ; em ne-
nhuma parte haviam recorrido ás experiências physicas.
Pois bem : o caracter especial da sciencia de Alexandria, como
também da sciencia moderna, é que não se contenta com obser-
var a natureza, senão que a sabe interrogar.
Trad. de Xavikr de Paiva.
*!Frafuções jiojiulares do .Íltiarve
ROMANCES
CHHISTIANO
— De manhã pisar piíiienfa,
De tarde cravo e canella ;
A noute que eia chegada,
Me deitei no coilo delia.
— Diz-me cá, ó Chrisliano,
i^orqiie não vaes pra tua terra ?
— (Jomo eu hei de ir, siôra,
Se me falta ia, moeda I
Mette a mão á fraldisqueira,
Trinta mil duros lhe dera.
— Diz me cá, ó Christiaiio,
Se vaes pdr mar ou por terrií.
Que se tu fores por mar,
Companhia eu te lizera,
E mal que (u lá chegasses
('aso de mim não fizeras.
TRADIÇÕES POPULARES DO ALGARVE 23:j
— Pelo contrario, siòra,
Lhe ehaiiiaiei minha hella.
— Vae áquella cavaliariça,
Vae buscar aquella égua;
Se encontrares o rei turco,
Diz-ihe que vaes para a herva.
Palavras não eram ditas,
O rei turco era chegado.
— Bemdito e louvado seja
O Senhor seja louvailo !
Jcá chegou a minha hora
De eu puder ser resgatado.
— Vinde cá, ó Christiano,
Vinde cá, ó meu escravo ;
Quem te .leu tanto dinheiro
Para tu seres resgatado ?
— De três irmãos que eu tenho
Todos três me teem ganhado,
E me mandaram agora
Pelo correio passado.
— Vinde cá, 6 Christiano,
Vinde cá, ú meu creado.
Se te queres tornar turco
Morre perro arrenegado.
— Não me quero tornar turco
Nem morro perro arrenegado,
Que Christo por mim morreu
N'uma cruz ci^ucificado.
Se eu d'elle merecer castigo
D'ellc serei castigado.
— Vinde oá, ó Christiano,
Vinde cá, ó meu creado ;
Se te queres tornar turco
Morre perro ai renegado;
Eu te faiei general^
General do meu reinado.
— Não me quero tornar turco
Nem morro perro arrenegado^
Que Christo por mim morreu
Numa cruz crucificado.
— Vinde cá. ó Christiano.
Vinde cá. ó meu creado,
Se te queres tornar turco
Morre perro arrenegado.
Eu te farei alferes mór
Andarás sempie a meu lado,
Casarás com os melhores olhos,
Que tem este meu reinado.
— Não me quero tornar turco, etc, etc.
— Vinde cá, ó Christiano,
Vinde cá ao meu chamado.
Se te queres tornar turco,
Morre perro arrenegado;
Casarás com a minha filha,
30
234 ENCYCLOPEUIA REPUBLICANA
Pois bem na tens enzonado,
E tu pela minha morte
Ficarás um rei coroado.
— Não me quero tornar turco, etc, etc.
— Vinde c;i, ó minlia íilha,
Vinde cá ao meu chamado ;
Dize-ri:e se Chrisliaiio,
Se eile te tem deshonrado.
— Mande embora (Ihristiano
Que eile a mim não deve nada ;
Leva- me a luz dos meus olhos,
Dou- Ta por bem empregada.
— Vae-te embora, ó (Ihristiano.
Vae-te embora pra tua terra;
Pede lá ao leu rei,
Que me não arme m.iis guerra.
Porlimão, Ferragudo, e Meixilhoeira.
D. ALBERTO
(Variante H)
— D. Alberto, não ames
A fdha do teu Senhor ;
Ella é muito criancinha^
Não te ba de ter aujor.
D. Alberto como entendido
A longes terras foi parar,
Casou com uma senhoia
Que muito bem sabia fallar.
A primeira que isto soube
Logo se pôz a pelingrinar :
— Esmola á pelingrina
Que anda a pelingrinar;
Que a pelingi inajá foi rica,
Já teve nuiito que dar.
— Quem sois vós, minha senhora,
Que também sabeis fallar ?
— Sou íiília do rei d'He8panha,
Rainha de Portugal.
Dá- me a mão, D. Alberto,
Que de ti me não queropartar.
— Como pôde ser, senhora,
Se ainda hoje me fui casar?
— Se tiveres nuilher moca,
Deus t'a deixe gosar ;
E se tiveres blhos.
Deus t'os deixe crear.
Encostou -se ao hombro d'elle
E ali se deixou finar.
A rainha que isto viu
Logo os mandou separar ;
Uma hora era passada,
O rei estava a expirar.
Lagoa.
TRADIÇÕES POPULARES DO ALGARVE 233
Um enterrou-se ao pé d'um púlpito.
Outro ao pé (l'um altar;
D'elle se formou um pereiro,
D'ella uma pereira real ;
As folhinhas que caíam
Logo se punham a brincar.
A rainha que isto soube
Logo as mandou cortar ;
D'elle se formou um pombo,
D'e!la uma pomba real,
E n'um vôo que deram
Loj,'0 se foran) abraçar.
— A esta hora estão no ceu
A sua felicidade a gosar.
(Variante II!)
— General, general,
General mais querido,
Dormi uma noute comigo.
— Eu sou vosso criado, senhora,
Vós estaes mangando comigo,
Mas se isso é assim,
Dizei a hora a que hei de vir.
— Vem pela meia noute em pino,
Que está el-rei meu pae a dormir.
Ainda não era meia noute
General ao postigo.
-^Quem bate á minha porta
Á hora do meu dormir '?
— É general senhora,
Que vem ao vosso serviço.
— Dá-me a mão, general,
Vem-te aqui deitar comigo.
Seu pae, que desconfiou,
Sapatos de lona calçou,
Logo ao quarto se dirigiu.
Viu estar ambos a dormir.
Viu estar rosto com rosto.
Como mulher com marido.
— Eu se mato o general,
Criei-o lie pequenino ;
Eu se mato a princeza.
Tenho o meu reino perdido.
Aqui deixo as minhas armas
Entre um e outro mettido.
Para quando acordarem.
Que digam que este somno foi sabido.
A princezH que acordou :
— Ai de mim eslou perdida,
A arma d'el-rei meu pae
Entre nós está meltida !
Levanta-te, general,
236 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Ajoelha aos pés do meu pae,
E chora-lhe como menino ;
Não é elle tão mau.
Para que não cases comigo.
General se levantou,
E aos pés do rei ajoelhou.
— Aqui estou, el-rei meu senhor,
A morte eu tenho merecido.
— Levanta-te, general.
Que foste muito atrevido,
Ainda hontem meu vassallo
Hoje já meu genro querido.
— Se sou seu genro querido,
Tamhem IIh> quero explicar:
Sou fdho do rei de Hespanha,
Neto do rei de Cascaes ;
Sou sohrinho do padre santo,
Diga el-rei qual seja mais.
Paderne, Estombar, Alvor, Ali)erne e Monchique.
CANTARES DE DESPIQUE
N'uma romaria da Senbora da Guia, no Algarve
— Com licença dos senhores
E da Senhora da Guia,
Diga-me senhor mancebo,
Se vem aqui por alma mia.
— A via em que eu venho j||
Eu vos digo na verdade ; . "
Venho por passar o tempo
Que é cousa da mocidade.
— Mocidade, mocidade,
Tudo isso faz fazer,
Diga-me, senhor mancebo.
Se sabe ler ou escrever.
— Não sei ler nem escrever
Nem tão pouco tocar viola,
Mas espero de aprender
Menina na vossa escola.
— Escola tenho eu
Nêja para vós aprender ;
Deus vos dera juizo
E mimoira para saber.
— Tindes vós, minha senhora,
Que tão esquiva me fallaes.
Sempre pensei, menina,
Que vós me quizesseis mais.
— Muito vos quero, meu mancebo,
N'alma e no coração ;
Mas ainda comtudo isso
Não me deve pôr a mão.
— Eu não lhe ponho a mão
Nem tão pouco bulo era vosco,
Lagoa e Porches.
A PROGRESSÃO HUMAiNA 237
Mas estar á sua vista
Levo eu em gi-ande gosto.
— Desgostae, meu mancebo,
Desgostae por vida vossa,
Que esta rosa que aqui vedes
Ella é d'outro e não é vossa.
— S'ella é d'outro e não é minha
Eu o espero de ser,
Diga menina a seu pae
Que nos mande a receber.
— Isso não diiei eu,
Serão palavras escusadas,
Menina de quinze annos
Não é capiz de dirigir casa.
— Outras ue menos edade
Dirigem casa e marido,
Assim fareis vós, senhora,
Quando casardes comigo.
— Voltas, meu mancebo,
Pelo caminho por onde viestes
— Pelo caminho d'oiide eu vim
Bem o vejo eu daqui.
Quem se ha de apartar
Sem a rosa em par de si.
^Vinde cá outra vez
Que a resposta levareis.
— Não venho cá outro dia
Gastar solas em baMe.
— Tindes rasão, meu mancebo.
Que as solas custam dinheiro ;
Podeis-vos gabar, meu mancebo.
Que fostes vós o primeiro.
Reis Dâmaso.
A, (ironressãQ liuiiicniti
Com bastante rasão comparou Pascal a humanidade a um ho-
mem só que no decurso dos séculos vae aprendendo sempre e
desenvolvendo-se gradualmente.
O que é que a humanidade tem feito até hoje senão progredir
e aperfeiçoar-se ? Dizem alguns que os homens teem degenerado
e retrogradado e tendem cada vez mais a decair. Onde estão as
provas? Dizem: Nos povos selvagens, que são um exemplo vivo
da degradação a que pode descer a raça humana, tão perfeita e
tão feliz nos tempos edenicos descriptos no Velho Testamento, na
edade áurea dos theologos. Mas essas provas mostram-nos o con-
trario, e ainda bem I Os povos selvagens não são o exemplo vivo
do estado a que temos de descer, não. São pelo contrario o exem-
plo vivo do estado d'onde nos temos vindo elevando desde ha
muitos séculos! Quereis as provas? Poder-vos hia fornecer mui-
238 ENGYCLOPEDIA REPUBLICANA
tas, muitíssimas. Eis algumas: Onde enconlraes vós entre os po-
vos selvagens vestígios de uma civilisação mais perfeita, de um
estado social supeiíor ao que hoje teem, onde? Excavae os terri-
tórios que elles habitam, ínterrogae o solo e nada encontrareis
que vos deixe suppor tal. Pois bem, fazei o mesmo ao nosso solo,
aos territórios em que vivem os povos mais civilisados, o que en-
contraes por toda a parte? Decerto encontrareis vestígios de ruí-
nas e de muitas ruínas, encontrareis ruínas sobrepostas, e se as
estudardes na rasão directa das camadas geológicas e na inversa
dos séculos percorridos vereis que as mais modernas são as dos
povos mais adiantados e as mais antigas as dos mais alrazados, e
assim investigareis as ruínas do passado, desde o resto das eda-
des romanas até aos restos das villas lacustres, desde os instru-
mentos d^i ferro até aos instrumentos de sílex e de osso. Vereis
então que os nossos mais antigos antepassados, esses fosseis de
Cro-Magnon, Neanderlhal, Cabeço-dArruda. etc, em nada eram
superiores aos povos selvagens das ilhas de Bornéu e de Sandwich,
e aos indígenas da Africa e da Austrália. E o que vos diz a Bí-
blia dos povos primitivos? Não nos descreve ella Adão coberto
com a clássica folha de figueira? No Velho Testamento onde en-
contraes a menor allusão a essas machinas, que fiam, tecem e co-
sem todos os nossos fatos? Decerto por peores que estes sejam
sempre são superiores à folha de figueira primitiva.
Não percamos tempo a destruir absurdos, e de mais absurdos
tão palpáveis, como este que tantas vezes nos apresentam contra
o progresso.
O progresso humano é um fado já hoje indiscutível ; quem hoje
o contesta é porque de lodo em todo o não quer ver, ou tem a
íntelligencia tão acanhada que o não vè; de qualquer dos modos é
inútil a discussão. Se um cego negar a existência do sol decerto
não vos cansareis a provar-lhe o contrario.
A humanidade para chegar ao estado de adiantamento e pro-
gresso, que hoje alcançou, tem caminhado muito e tem dispendido
uma somma incalculável de esforços e de forças, que se teem ido
accumulando e multiplicando atravez dos séculos.
Desde o ponto de partida na sua vida ante-historica passou a
humanidade por diversas phases ou estados, que parecem serem
os seguintes na sua ordem de snccessão : estado de caçador, es-
tado pastoral e estado agrícola, que correspondem à primeira parte
do período theologico, isto é ao período fetichísta. Da vida ante-
historica teem-se encontrado documentos em cavernas e excava-
ções feitas por toda a Europa e na America, e pode-se fazer uma
idéa, mais ou menos aproximada, do viver primitivo pelas relações
de viagens, em que se mencionam os usos e costumes dos povos
selvagens da America, da Africa e da Austrália. Os documentos
SUISS\ á39
encontrados nas excavações consistem em lanças e machados de
silex ou bronze, alguns objectos de cerâmica, enfeites de pedra e
de osso, etc.
Os povos mais antigos, cuja vida histórica conhecemos pelos
monumentos que chegaram até nós e que foram recentemente re-
velados aos homens que se dedicam ao estudo da sociologia pelos
especialistas competentes, são o Egypto, a Chaldèa e a Assyria.
São estes os povos mais antigos do Oriente, cuj is civiiisaçDes du-
laram nmitos séculos e onde o progresso humano teve grande
desenvolvimento. Con) a queda destes impérios os grandes pro-
gressos dos povos orientaes não foram perdidos para a civilisação
da humanidade; os povos semitas pela sua natureza assimiladora
e cosmopolita encarregaram-se de os Iransmittir e propagar. Os
phenicos pelas navegações, os judeus pelas migrações, e os ára-
bes pela conquista foram os transmissores dos progressos huma-
nos; pelos árabes recebemos nós os systemas agrícolas dos chal-
deos ; os arados empregados vulgarmente nos nossos campos e as
noras de alcatruzes que ainda estão em uso entre nós teem esta
origem. Foi também pelos árabes que a Europa recebeu da Gré-
cia a herança scienlifica que tanto tem accrescentado desde o sé-
culo XVI.
Por outro lado a corrente directa do progresso indo-europeu
seguia este itenerario: Índia, Pérsia, Grécia, Roma, Europa da
edade media e Europa moderna.
Teixeira Bastos.
loissa
(Conclusão.— V. pag. 182.)
Elegibilidade. — As condições de elegibilidade são as mesmas
em toda a Confederação. Todo o cidadão suisso não pertencente a
ordem alguma religiosa e tendo direito de votar, pôde ser eleito
membro do Conselho Nacional; os estrangeiros naturalisados suis-
sos não são elegíveis senão depois de cinco annos de posse do di-
reito de cidadão.
Incompatibilidades. - As funcções de membro do Conselho
Nacional são incompatíveis com as de deputado ao Conselho dos
Estados, de membro do Conselho Federal, e cora todos os cargos
conferidos por este Conselho.
Todavia, a.s pessoas investidas destas funcções são elegíveis,
240 ENCYCLOPEDIA UEPUBLICANA
com a condição de optarem, depois de eleitas, por uma das fiinc-
ções incompativeis.
Duração do Mandato. — O Conselho Nacional é eleito por três
annos e de cada vez integralmente renovado.
As eleições geraes para o renovamento do Conselho Nacional,
têem logar no ultimo domingo do mez de outnbro; se acaso não
puderem terminar no mesmo dia, são affixadas para o dia desi-
gnado por cada governo canlonal.
As eleições parciaes para a substituição dos membros cujos to-
gares ficam vagos, tèem logar no dia marcado pelo governo can-
tonal, no máximo espaço de seis mezes.
Opções. — Se o mesmo individuo foi eleito em muitos círculos
eleitoraes, deve, por indicação do Conselho Federal, declarar sem
demora, qual o circulo por que opta. Á vista d"esta declaração, o
Conselho Federal ordena immediatamente que se proceda a uma
nova eleição nos collegios eleitoraes que ficaram vagos.
Sessões. — A cada renovamento integral do Conselho Nacional,
os eleitos devem, sem outra convocação mais do que o oíTicio de
aviso da sua eleição, apresentar-se na cidade federal (Berne), na
primeira segunda feira de dezembro, ás dez horas da manhã, para
a primeira sessão do Coneslho Nacional.
Verificação de poderes. — Logo que se reúne o Conselho Na-
cional procede-se á verificação de poderes; os membros cuja elei-
ção é contestada devem relirar-se no momento da discussão que
lhe diz respeito.
Os membros eleitos no decurso da sessão do Conselho Nacional
são convocados pelo Conselho Federal: elles não podem tomar parte
nas deliberações senão depois de lhes validarem a eleição.
Demissões. — O deputado que quer demittir-se das suas func-
ções, dirigir-se-ha ao Conselho Nacional : é porém obrigado a as-
sistir ás sessões emquanto não vier o suecessor substituil o.
Presidência. — U Conselho Nacior.al escolhe no seu seio, para
cada sessão ordinária ou extraordinária, um presidente e um vice-
presidente.
O mesmo membro não pôde exercer estas elevadas funcções du-
rante duas sessões ordinárias consecutivas. O vice-presidente fica
geralmente presidente no anno seguinte. Em caso de empate de
votos, o parecer do presidente é preponderante ; em matéria de
eleição o presidente vota como os outros membros.
Subsidio. — Os membros do Conselho Nacional são indemnisa-
dos pelo cofre federal por meio de bilhetes de assistência a razão
de 1^260 réis por dia. Nos termos da lei de 20 de julho de 1872
o numero dos membros do Conselho Nacional eleva-se actualmente
a cento e trinta e cinco.
Revisão da Constituição. — Independentemente das eleições
SUISS\ 241
a que dão logar a formação dos Conselhos Nacional e Federal,
existe um outro caso em que os eleitores suissos são chamados a
manifestarem a sua opinião e vontade.
Quando uma secção da Assembléa Federal decreta a revisão da
Constituição e a outra secção não consente, ou logo que^ por via de
petição, cincoenta mil cidadãos suissos, com direito a votarem, po-
dem a revisão, a questão de saber se a Constituição deve ser re-
visada é submetlida á votação do povo suisso, o qual resolve vo-
tando sim ou não.
Se a maioria dos eleitores que tomaram parte na votação se pro-
nuncia pela afíirmativa, as duas secções da Assembléa Federal são
renovadas para trabalharem na revisão.
A Constituição assim revisada não pôde entrar em vigor senão
quando for adoptada pela maioria dos cidadãos suissos que toma-
rem parte na votação e pela maioria dos cantões.
Foi assim que a revisão da Constituição votada pelo Conselho
dos Estados e pelo Conselho Nacional, a o de maio de 1872, foi
annullada pelo plebescito de 1:2 do mesmo mez. Em contraposição,
uma nova revisão foi adoptada, a 19 de abril de 1874, por 14 can-
tões e um semi-cantão, representando 331:087 votos, contra 7 can-
tões e um semi-cantão que não reuniram mais de 199:637 sufíra-
gios.
LEGISLAÇÕES CANTONAES
Independentemente da Constituição Federal, e até certo ponto
sobre a guarda d'esta, funccionam na Suissa, vinte e cinco Consti-
tuições cantouaes particulares, (Três dos vinte e dois cantões da
Confederação acham-se divididos em duas fracções, tendo cada uma
sua organisação distincta.)
Vamos rapidamente examinar as principaes disposições d"estas
diversas Constituições, no que diz respeito aos poderes legisla-
tivos. *
Assembléas únicas. —Em vinte e três das vinte e cinco
Constituições especiaes que funccionam na Suissa, o poder legis-
lativo é delegado, com mais ou menos extensão, a uma assembléa
única, chamado o Grande Conselho (Gross-Ral/i, Gran-Consiglio)
por todas estas Constituições, salvo as dos cantões de Cri, de Bale-
Campagne, que adoptam o nome de Landral, e as de Schwylz, Zu-
rich e Soleure, que empregam o de Kantonwalh.
1 Esta parte do nosso traballio foi-nos ministrada pelo interessante Estudo so-
bre a duração do mandato e forma de renovação das camarás lerjtslaíivas. apresen-
tado porHarold, o illusire prefeito do Sena, reeem fallecido, cumo republicano e
livre pensador convicto, á Sociedade de Legislação Comparada, na sessão de 10
de janeiro de 1872.
^ 31
t42 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Duas assembléas. — Apenas as Constituições de Unlerwald-
Haut e Glaris estabelecem duas assembléas participando, por dif-
ferenles latitudes, do poder legislativo. N'estas Constituições, uma
das Assembléas {Drcifacher-Rath) é uma espécie de intermediário
entre a assembléa geral dos cidadãos do cantão e o conselho legis-
lativo propriamente dito {Ruth em Glaris, Landrath em Unterwaid).
Numero.- O numero de membros d'estas diversas assembléas
está na proporção da população, mas sobre bases differentes umas
das outras. É assim que no cantão de Berne, a proporção é de um
representante para dois mil habitantes, emqiianto que em Unter-
wald-Ilaut, as fracções de mais de setecentos habitantes teem di-
reito a um representante ao DveifacherRath.
Duração do mandato. — No que diz respeito á duração do
mandato dos deputados e renovação das assembléas, vamos repro-
duzir os dados recolhidos por Herold, embora sejam até certo ponto
incompletos.
O iílustre jurisconsulto, recém fallecido, como livre pensador, no
cargo elevado de prefeito do Sena, não pôde enconírar indicação
alguma sobre o modo de renovação das camarás legislativas do
cantão de Claris e das duas divisões de Appenzel. Apesar de acti-
vas investigações, nada pudemos também encontrar sobre este
ponto. I'"allaremos, por consequência, só de vinte e duas Consti-
tuições.
Renovação integral. — De vinte e duas constituições, deze-
sete admittem a renovação integral ; a duração do mandato é que
varia de um a seis annos.
Ê de seis annos no cantão de Unterwald-bas; de cinco nos can-
tões de Soleure e Fribourg ; de quatro annos nos de Berne, Lu-
cerna, Uri, Argovia, Tessin, Vaud, Valois; de três annos no semi-
cantão de Bâle-Campagne, e nos cantões de Saint-Gall, Thnrgovia,
Neuchatel; de dois annos nos cantões de Zug, Zurich, e Genebra;
de um anno no cantão dos Grisons.
Renovação parcial. — Cinco constituições admittem a reno-
vação parcial. São: O semi-cantão de Unterwald-haut, no qnal o
mandato legislativo é de quatro annos e se renova na quarta parte
cada anno ; o cantão de Schwilz, em que o mandato é de quatro
annos e de dois em dois annos renova metade; o cantão de Schaf-
fause e o semi-cantão de Bale-ville, em que o mandato é de seis
annos e se renova por metade de três em três annos.
Dissolução. — Não ha na Suissa poderes depositários do di-
reito de dissolução, por isso que as assembléas electivas são as de-
positarias únicas da auctoridade suprema. Como estas por si mes-
mo designam os membros do poder executivo, excepto em Gene-
bra e Zurich, os confli€tos são quasi impossíveis entro os dois po-
deres.
DEANTE DUM CHRISTO 2i3
Todavia, em dois cantões, a revocação antecipada do mandato
legislativo pôde ter logar por vontade dos eleitores.
No semi-canlão de Bale-Campagne ha excepcionalmente logar a
um renovamento integral do Landrath, quando o pedido resulta de
um voto emittido em escrutinio secreto realisado em reunião pu-,
blica e tomando parte na votação a maioria dos eleitores presen-
tes, com a condição que estes sejam em numero de mil e quinhen-
tos, pelo menos, (contando o semi-canlão quasi cincoenla e quatro
mil habitantes).
No cantão de Argovia, quando seis mil eleitores (o cantão tem,
pelo menos, duzentos mil eleitores) exprimem, por via de petição,
o voto da dissolução do Grande Consplho, o poder executivo é obri-
gado a submellei' a questão ás assembléas dos círculos, que a re-
solvem. N'este caso, o novo Grande Conselho não é eleito senão
para completar o tempo do mandato que restava preencher ao pre-
cedente.
Tal é, em resumo, e salvo certos detalhes secundários, que nos
é impossivel recolher, a summa da legislação suissa em matéria
de direito eleitoral. Entretanto c incontestavelmente este o único
paiz da Europa, onde peia sua ( rganisação administrativa, o povo
exerce uma verdadeira soberania e onde os gol[)es de estado e as
dictaduras se tornam impossíveis. Na Suissa não ha grandes ho-
mens nem cenlralisação de poderes, e por isso, como é o povo que
quer e manda, as grandes crises são debelladas e no meio de ini-
migos irreconciliáveis sabe este paiz aguentar dignamente a sua
autonomia, prosperando e progredindo.
Carrilho Videira.
fieuiite o uoi iKíirisío
I
DeixHS que prenda assim teu braço forte
A cadfia da negra esiM-avidão^
Pregado n'essa cruz, depois da morte
Softrendo uma contínua expiação !
Eu não invejo a tua liorrivel sorte. . .
Sujeito ao ciliar feroz da multidão,
Não vês nunca biilliar no ceu do norte
Uma estreita sequer de redempção.
Ai, meu dooe Jesus 1 eu soíTro tanto !
Tenlio no peito meu a Raiva e a Dor
E no olliar desvairado a luz do Espanto. .
244 EXCYCLOPEDIA REPUBLICANA
Mas sei que ha de findar o meu Horror
E sei que hei de enxugar este meu pranto
Ás dobras d'um sudário redemptor.
II
E tu cá ficarás exposto ao frio
>ia Iriste solidão das calhedraes.
Curvado o rosto pallido e souiiirio.
Guardando dentro em ti a Magoa e os Ais.
E tu cá ficarás conlinuamenle.
Exposto aos furacões, aos vendavaes,
Sempre preso na cruz, sempre pendente,
Sempre submisso á voz dos cardeaes.
Hnrrivel fado teu ! horrivel sorte I
Viver eternamente, após a morte,
Sentir pulsar gelado o corapão !
Ai. meu doce Jesus I ai, que alegria,
Poder a gente descançar um dia I . . .
Antes fosses, Jesus, um meu irmão.
Lisboa.
Ernesto Pires.
Xavier «e 3Paiva
(Esboço biograplnco)
Dizer quem era este individuo e definil-o em poucas linhas, não é fácil, por-
quanto a sua vida foi unia das mais atribuladas que conheço, dando por isso as-
sumpto para umas paginas cheias de sentimento.
IS'asceu em Lagos, d'uma familia pobre, e tinha apenas trinta e quatro an-
nos quando expirou n'um catre do hospital, abandonado dos amigos e correli-
gionários.
Xavier de Paiva era um bello espirito, um poeta arrojado, um obscuro
obreiro do progresso. Não contava um episo lio alegre da sua vitla sempre triste
6 mesquinha. Parece que nascera só para o sofTrimento e para a miséria que o
procurava de preferencia a outros enlhusiastas das nnvas ideias.
Vi-o e fallei-lhe uma só vez. Foi-nie apresentad" por ura moço com quem
ellft convivia na maiur jntimidade. A maneira simples por que Xavier de Paiva
se me apresentou e as poucas palavras que me dirigiu, pedindo-me um artigo
para a Encvcilupedia Iíepcblicana que ia fundar, bastaram- me para que imme-
diatamente sympathisasse cor. o seu todo despretencioso e modesto. Olhando-se
para elle, observando-se os seus movimentos nervosos, o seu olhai' vivo, pene-
trante, sentia-se essa lufada quente do talento e da inspiração.
Era o que se chama um martyr das ideias revulucionanas, um valente lucta-
dor, muitas vezes, por ser republicano, repellido das offieinas. onde elle pobre
operário trabalhava para se alimentar.
As privações e desconforto de toda a sorte aggravaram os seus soíTrimentos
physicos; mas ainda assim o grande democrata pugnava pelos direitos do prole-
tariado d'onde sahira, sem pensar um só momento de que elle mesmo era o maior
XAVIER DE PAJVA 245
desgraçado. Era esse bello e generoso sentimento do bem e da justiça universal,
que o animava na composição das suas estiophes demolidoras, cheias de enthu-
siasmo e convicção.
l'oude este herne, este martyr obscuro, d"uma vida cheia de amarguras, exer-
cer como poeta e escriptor alguma iniluencia no seu meio? Decerto, porque a
classe operaria lia os seus esciiptos com avidez, enlhusiasmando-se a cada
phrase, a cada periodo, a cada verso, admirando o arrojo, e elovação dos seus
pensamentos^ a sinceridade e firmeza das suas crenças. Se Xavier de Paiva ti-
vesse tido uma inslrucção solida, seria um grande escriptor e poeta para nós to-
dos. Assim, ficou sendo para as classes mais instruídas, um moJpsto obreiro, e
para os seus companheiros, o seu publico, a classe operaria, a quem o trabalho
material quotidiano, superior ^s suas forças, a má constituição soiMal e a inépcia
dos nossos governantes roubam todos os elementos par.í se instruir, restará sem-
pre, mais elevado, como um enérgico delensor dos seus direitos, como um grande
revolucionário, e um poeta fogo.- o e de giande talento (;ue tão bem soube failar-
Ihe ao coração. Esses miseros que trabalham noite e dia, humedecendo os lábios
resequidos pelo esforço com o seu próprio suor, não podem deixar de ignorar
ainda os modernos progressos inlellecluacs, os grandes avanços da sciencia e da
arte, demais quando a maior parle, por falta de condições favoráveis para recrear
o espirito n'alguns momentos apenas, se vê forçada a \iver nas trevas, condeni-
nada a não poder nunca aspirar a um raio de luz, a não poder allingir as fulgu-
rações dos génios. É pois o proletariado que elle pretendia erguer, quebrando-
Ihe as eadéas, e para quem elle escrevia energicamerde com a fin) de o fazer
comprehender os grandes princípios da moral e da justiça, que o seu nome licará
mais duradouro e melhor gravado nos corações, como o d'um apostolo do bem.
Neidium poeta como Xavier de P.iiva, soube lãu bem fallar á classe opera-
ria a que elle pertencia. Elle conhecia- a e sabia peifeitamente quaes as suas as-
pirações, quaes os seus conhecimentos litterarios, e confessava que ella era real-
mente a menos instruída [lara a conqirehensão (Funia certa ordem de trabalhos
de propaganda. Por isso combatia denodadamente as instituições caducas sem
ponto de vista phílosojihico, também sem ostentação erudita, e quando muito il-
luminava as suas concepções poéticas, com uma fiafina das mais eloquentes da
Historia, que elle escolhia de propósito para o eITeilo emocional.
Era assim que elle conseguia eidhusiasmar e toniar-se querido. E por isso
que a sua niernoria se conservará entre os que foram seus companheiros no tra-
balho e na desventura.
Mas se o bíograpbado não era considerado entre os mais instruídos como um
talento privilegiado, nem ao nienos como um escriptor distincto, o que já é fa-
vor, e sim como um modesto ohreiro, o que equivale a dizer na sua linguagem de
sahios — o termo medio entre o prodígio e a nullidade ou eiUre a illustração e a
simples habilidade, e só as classes menos privilegiadas da sociedade o conside-
ravam como o seu mais revolucionário poeta^ é d'esse mesmo antagonismo^ d'essa
contradicção, d'esse modo de ver, de apreciar e de sentii., que inferimos o grande
merecimento do finado escriptor. A sua maior gloria é o ter sido colloeado en-
tre os modestos obreiros; a prova de que elle era um distincto mendjro do par-
tido republicano está n'essa phrase proferida antes e depois do homem se finar,
quer como expressão sincera e convicta, quer como simples desabafo ou lamento
forçado, para se não desdourar, d'essa aristocracia republicana que o julgava no
intimo da sua consciência e alta capacidade critica, corno um dos mais humildes
e menos validos. Ou commiseração para com os infelizes e repugnância dos mo-
tejos depois da morte^ ou a sinceridade conscíen/e e perfeita comprehensão dos
individuos que se não impõem nem procuram as ovações ruidosiiS ás portas das
egrejas e nos espectáculos. Nem sempre convém a manifestação de tudo quanto
se sente, nem tão pouco ser-se expansivo demais, principalmente para com aquel-
les que nos excedem na abnegação e coragem, traçando uma linha de condueta
na sua vida, amando a rectidão, o direito e a justiça, luctando sempre no campo
246 ENCYCLOPEDIA REPUBLICANA
da honra, e soffrendo toda a casta de privações por se não querer afastar um
passij da linha recta que traçou.
Xavier de Paiva, como escriptor, jornalista e poeta, agradou sempre aos seus
sinceros correligionários; poude mesmo exercer influencia com os seus escriptos
sohre as classes operarias com quem convivia. Sempre vigoroso e brilhante nos
seus artigos e poesias, não podia de modo algum deixar de influir nos que não
téi-m tempo ou não podem estudar grandes cousas. O que mais admira é como
elle, suppoilando todas as cruciações da pobresa, poude conseivar-se sempre firme
nos seus print-ipios, produzimlo enérgicos e vibrantes :irtigos, e admiráveis poe-
sias, que por ani íicam espalhados pelas folhas democr..ti:as as mais avançadas
do paiz ! Era escriptor fluente e correcto e de arrojados pensamentos. Seria bom
que os seus amigos e correligionários a quem elle emocionou, se lembrassem um
dia de reimprimir em volum>í algumas das suas mais bellas producções. Era mais
um serviço prestado ás letras e ao partido republicano, e também uma homena-
gem á memoria do inspirado poeta, sin:ero e valente democrata. Se elle foi o
canior das afflicçôes e misérias do proletariado, se elle com 00 seus versos poude
enthusiasmar e con.sidar os que se esgotam e delinham no trabalho durante o dia
e a noite, á luz do sol e á luz das lâmpadas, se elle combateu energicamente o
abuso e o erro, é bem que Kssa classe por quem elle tanto se interessou, nunca
o possa esquecer, o que não é crive! possuindo um livro d esses gritos, d'esses ais,
d'esses gemidos, que o poeta soltava clamando pelo direito e pela justiça, tomado
de angustia, de dor e de cólera.
Como se houvesse um Deus destinado a agradar aos reis e um demónio a en-
tristecer os republicanos, Xavier de Paiva morreu no hospital de S. José, a 12
de janeiro de 18.S2, quanio o rei de Hespaidia visitava Poitugal e o luido das
festas em sua homa trazia em alvoroço a [)opuiação de Lisbija, esta pobre corte
dos potentados e dos nnseraveis.
Pouco tem[)0 antes de morrer o poeta escreveu uma poesia, já impressa a pa-
ginas 41 (i'esta publicação^ sob a epi^raphe O Marlyr Obscuro, que è uma admi-
rável pagina da sua vida e ao mesmo tempo o seu retrato iniimo Pode alguém
dizer onde morrerá e o que se passará depois ? Não, jior certo; mas Xavier de
Paiva, como se presentisse a morte próxima, retratouse fielmente n'aqiiellas qua-
dras, f.zendo mesmo a descripção do seu enterro. Não teve luzido acompanha-
mento: apenas um grupo de operários e amigos, d"entre os quaes, dois pronun-
ciaram algumas palavras de sentimento quando o seu cadáver ia des-er á cova.
O que escreveu n'aquelles sentidos versos foi exactamente o que su :cedeu. Pa-
rece mais a obra d'uin resuscitado, se resuscitados huuvesse, assentando-se na
beira da sepultura, meditando na vida e recordando-se dos estremeções da morte
por que já passara.
Cumpria-me o dever de deixar na E.nxvclopedia Repcblicana estes leves tra-
ços da vida do seu fundador.
Reis Dâmaso.
Acima das formas que passam eleva-se o poder da razão, da jus-
tiça e da liberdade, que engrossa de armo a atmo que decorre e de
cada virtude que se esvae em silencio.
Edgar Quixet.
Um republicano é sempre mais amante da pátria do que um vas-
sallo, pela razão que se ama sempre mais o que nos pertence do
que o que pertence a um amo.
Voltaire.
XD(NrxaxG3e
Affonso de Sousa: — Liberdade de coiiseieneia e liberdade religiosa 88
Alberto Bastos; — Um santo (conto) 51
O casamento civil (conto) 13i
Alexandre da Coxceição: — A questão das vivisecções 117
Ainda a questão das vivisecções lo9
Angellxa Vidal: — Origem pro\avel das religiões 18
Annes B aganha: — A trichina 42, 57, 79
Anselmo Xavier: — A companhia de Jesus - lo7
Arruda P^urtado: — A propósito da questão das vivisecções 73
Ainda a propósito da questão das vivisecções 138
Augusto Rocha: — Evolução; revolução 182
Bento Moreno (T. de Queiroz): — O enterro do Bernardo Repolho (conto). 107
Carrilho Videira: — Suissa 127, 179, 239
Costa Goodolphim: — A miséria 102
Draper (J. W.) : — A origem da sciencia (tr. de X. de Paiva) . 143, 163, 205. 227
Ernesto Pire- : — Divagações (poesia) 21
Duvida (soneto) 83
Sceplic^smo (sonetos) 121
A rasão (poesia) 220
Deante d'um Christo (sonetos) 243
Feio Terenas: — xManoel Fernandes Thomaz 14
Fernando Leal: — Acerca da Marselheza 41
Hugo Leal: — Os reis passam 162
A espada e o syllabus 19o
Leite de Vasconcellos (J.): — Costumes portuguezes do século xvii 100
Do Iiitermezzo (poesia) 106
A poesia das aldeias 123
Bibliouraphia do Folklore 147
Vai' Victis (poesia) 185
Costumes da Beira Alta 187, 211
Musica religiosa (poesia) 226
Magalhães Llma: — Theoria da humanidade 83
M.\RTiNS Contreiras (M. J.): — O meu primeiro dia era Paris 25
Mello d'Azeredo: — Como elles pensam 86
Reis Dâmaso: — O homem das cautellas (episodio da rua) 7
No cadafalso (quadro histórico) 36
Bibliographia: Ensaios sobre a evolução da humanidade G2
Movimento litterario 121
Tradições populares do Algarve; romances: 154
a) Bernal fiancez 155
b) D. Bozó 171
c) D. Marcos 173
d) D. Alberto 184, 234, 235
e) A morena 201
f) O ceíro 202
g) D. Carlos de Montalvar 203
h) Lisarda 215
i) r.hristiano 232
j) Cantares de despique 2^ó
O catholicisnio e a família 169
As arvores e as abelhas (conto oriental) 199
Xavier de Paiva (esboço biographico) 244
Sequeira Ferraz (A. de): — O cântico dos párias 223
Silva Lisboa (A. P.): — Carla 1
Teixeira Bastos: — Ideias e instituições 6
O atrazo mental nas nações civilisadas 17
Augusto Comte (soneto) 36
Progressos da huiiiariidade no século actual 70
A civilisação grega 114
Manoel l-ernandes Thomaz (biographia) 149, 17o, 196, 217
A ])iogressão humana 237
Theophilo Braga: — Csos funerários em Portugal 2, 28
Quem faz a republica 49
Os grandes homens 91
O prisioneiro (poesia) 116
Conferencias preliminares do centenário de Camões 134
Xavier de Paiva: — Poesia 16
O centenário de Sebastião José de Carvalho e Mello, marquez de Pombal. 22
Portugal e a nova ideia (soneto) 28
O marlyr obscuro (poesia) 41
O Nazareno (soneto) 62
Hypathia (quadro histórico) 64
Passado, presente e futuro (sonetos) 90
Mysterios da noite (poesia) 136
John William Diaper (noticia histórica) 142
Mosaico histórico 47
Pensamentos de vários auctores 184,1 86, 204, 246
ERRATA
Pagina 221, na poesia A Razão, verso 26, onde se lê:
Como um bandii fatal de cortesãos medonhos
Deve lér-sc :
Como um bando fal?l de cortesãos risonhos.
ineuular. " ^ eNpeiavamuí, e que tomai-am a publicação das lo h;
te.ní;^-r^ ílj rís-.:;,rZ;!'^?'"'";^ ^ inten-o..pe.eu.os p,.- a„.
que .-.ctual.ne/.te se ( ebaleu? pó s\/úrten/ .^^ questões pol.t.cas e scientili.a
scifDcia pratica ^ ^ leiícioiíamos puMicar um evaii^eltio d
liareui «.'esta leutativa e cm á ,^i, é ra íw í ' "f '""'. ^'"■'""■•^'" « ^"^''
nossos leitores um, prospecto co Ó" .ti .Í.J '^'"'"''' '^'""'« ^''''^-^"'os ao.
scieucia applicada, «jue pre ende o ^air, .1 '^^''^'^'''^"^P^^'^ « questões d.
inieiaufos ^ P'tíieiiaetíios tratai, ahaudoiiando o campo vago -ir qut
nos 'Í;:^ .|^;^::^S'^"'^""^ '■^"••^"''- ^^^ '--s assi,uautes a coa.lju vaçSo que
REIS DÂMASO
'--ví>e. >^-,
SCENOGRAPHIAS
(CoNrOS ^'ATURAL.ISTAS)
O IM|.|0-~A VILVA-0 HO.ME.M DAS CAITKLL^S
NO CADAFALSO— O PRATO DEI -KEl
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