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EXAME,
E juízo critico
SOBRE O PAPEL, INTITULADO
ANTI-SEBASTIAN1SM0,
ANNUNCIADO NA GAZETA DE LISBOA
DE z% DE SETEMBRO DO PRESENTE ANNO.
LISBOA,
Na Impressão Regia.
ANNO iloj.
Cem Licença da Meza do Desembargo do Paço.
^
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in 2010 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/exameejuizocritiOOmaia
& 3 fc
PREFAÇÃO.
I / Epois de haver escrito a resposta ao papel , que
tem por titulo Anti-Sebastianismo , ou Antídoto con-
tra vários abusos , que appareceo impresso em Lis-
boa neste anno de 1809, e annunciado na Gazeta
da mesma Cidade em 28 de Setembro do mesmo
anno, me pareceo que para maior perfeição, e aca-
bamento daquelle tal , e tal Opúsculo o deveria fa-
zer preceder de huma como Introciucqão, na qual
tratasse da origem , e principio da célebre Seita do
Sebastianismo , da ordem que tem seguido nos seus
progressos , e das épocas , em que se tem visto ou
mais exaltada , ou mais desfallecida. Servirá talvez
isto para desenganar a tantos pertendidos desabu-
sados , de que esta Se ta não he tão absurda , e
desrazoada , como lhe parece , e de que erra meio
a meio todo aquelle , que a confunde com essas fal-
sas crenqas vulgares , filhas de huma ignorância cras-
sa , quaes aquellas de que o author do Anti-Sebas-
tianismo falia nas primeiras paginas daquelle papel.
Servirá conseguintemente de mostrar também , que
não deve causar espanto , que esta Seita tenha du-
rado até aos nossos dias ; e que desde os seus prin-
cípios até á época presente , tantos homens doiuos , e
sizudos a tenhão firmemente professado , e vigoro -
sãmente defendido.
Todos sabem que EIRei D. Sebastião , tendo
visto a luz do dia em 15 5" 4 teve a gloria , e a for-
A ii
4
tuna de nascer na época, sem dúvida a mais brilhan-
te da Monarquia Portugueza. Omittindo rodos os
outros ramos de prosperidade , e gloria Nacional ,
que não vem directamente ao meu intento , só fat-
iarei do respeitável estado , em que naquelles tem-
pos se achavão em Portugal as Artes , e as Scien-
cias. Eu julgo que não poderei ser aceusado de fa-
natismo patriótico , atrevendo-me a affirmar , que
nenhuma Nação esrá no caso de poder apresentar
hum número tão prodigioso , e respeitável de Escri-
p*ores insignes em todo o género de Sciencas , e
Littentura , como Portugal no seu célebre Século
de Quinhentos. Muito embora zombem os Estran-
geiros , e especialmente desta asserção : esta zomba-
ria , como quasi todas , he filha dâ sua ignorância.
Se com o mesmo calor , com que nos appl içamos
ao das suas, elles se applicassem ao estudo da nos-
sa língua , estarião no caso, como nós estamos, de
confrontar o número dos seus , com o dos nossos
dignos Escriptores , e de comparar os seus com os
nossos Poetas , Historiadores , etc, , erc. , e seria de
esperar , que se conformassem com os poucos d'en-
tre elles , que sabendo a nossa língua , e tendo lido
o muito , que nella ha escrito , prodigalízao elogios
honrosos á nossa Litteratura. Vírao-se em aquelles
felizes tempos no nosso Portugal gloriosamente re»
nascidos , e altamente melhorados os Séculos dos
Homeros , e Thucydedes ; dos Virgilios , e Titos
Livios , e todas as Nove Musas , deixando as grutas,
aonde a barbaridade dos Séculos precedentes as ha»
viao condemnado a viver sepultadas , correrem a
habitar os Templos magesrosos , que esta famosa
Nação lhes havia erigido. Na Sagrada Tlieologia ,
e exposição das Divinas Escrituras adquirirão alto
nome os insignes Quinhentistas Hejtor Pinto, Luiz
de Sotto Maio, João Soares, Jeronymo ^Azambu-
ja , Pedro Figueiró , Sebastião Barradas , o Arce-
bispo D. Bartholomeu dos Martyres , e o grande
Francisco Foreiro. Na Jurisprudência Civil . e Ca-
nónica se distingirão nobremente Pedro Barbosa ,
Manoel da Costa , Jorge Cabedo 5 Ayrel Pinhel,
António de Gouvea , Gonçalo Vaz Pinto, Gabriel
da Cona , João Alfamira , e muitos outros , que se-
ria diffícultosa empreza numerar. Amaro Lusitano,
e Thomaz Rodrigues da Veiga nas suas exposições ,
e Commentarios a Galeno, e Kypocratcs deo hum
testemunho brilhante do estado das Sciencias Medi-
cas em Portugal naquella época gloriosa. O immor-
tal Pedro Nunes , génio creador , íez naquelle Sécu-
lo exclusivamente Nacionaes de Portugal as Scien-
cias Mathemaricas. Os famosos Historiadores João
de Barros , Diogo de Couto , António Castilho ,
Lopo de Soma Coutinho , Bernardo de Brito , João
de Lucena, Jacintho Freire dAndrade, João dos
Santos, Fernão Mendes Pinto, e o grande Luiz de
Sousa se fízerão dignos , de que os seus bustos fos-
sem collocados na mesma gallaria, era que se ad-
mira vão os dos Thucydedcs , Xenofonte , Tiro Livio ,
Tácito , e Quinto Cursio. Na Poesia , na bella , su-
blime , e encantadora Poesia, se fizerão merecedores
de eterno nome , e gloria Francisco de Sá e Mi-
randa , Diogo Bernandes , Agostinho da Cruz , Je-
ronymo de Corte Real , António Ferreira , Fernão
Alvares do Oriente, Diogo de Paiva de Andrade,
Jorge Coelho, Jeronymo Cardoso, Pedro de Andra-
de Caminha , e o grande Luiz de Camões. O nome
só deste grande homem he bastante a dar a idéa
mais lisongeira do venturoso Século , que o produ-
zio. Com milita razão , e justiça lhe teceo o se-
guinte elogio hum homem hábil dos nossos dias *
ÉH 6 &
Gráàa Maoniãem jactat , ver ena Catulhm
Nasonem Sulmo , Mantua Virgilium
Jactent usque Hcet : Camoens omnibus unum
jactat Lusyadum terra superba parem.
A Lingua Latina , que he verdadeiramente a
Língua das Artes, das Sciencias , e do bom gosto,
era tão commum , e vulgar entre os Porruguezes
daquelle tempo , como entre os dos nossos dias o
são as Linguas Italiana, eFranceza; com esta gran-
de differença , que destas duas Linguas temos ape-
nas hum conhecimento muito superficial, sendo mui-
to poucos os que estão no caso de as fal'ar corre-
ctamente, e muito menos ainda os que se streve-
riao a compor , e escrever nellas com pureza , e
elegância : quando aliás emre os nossos Quinhentis-
tas tantos , e tantos possuiáo a Lingua Latina em
toda a perfeição , compondo , e escrevendo nella
com tanta pureza , e graça , tanto em Prosa , como
cm Verso , que as suas: Obras se fazem dignas de
ser comparadas ás do Século de Augu>to. Taes sso
entre outros Ayres Barbosa, Acchiles Estaco, Dio-
go de Teive , o Bispo Jeronymo Ozorio , e o gran-
de André de Rezende. Também erão cuidadosamen-
te cultivadas as Linguas Orientaes , e exóticas, sen-
do não poucos os que nellas compunhão correcta ,
e elegantemente , especialmente na rainha das Lin-
guas dos Homeros , e Demosthenes forao insignes
entre outros Ayre- Barbosa , Acchiles Estaco , Luiz
Ferreira , André de Rezende , e Francisco Foreiro.
O que fica dito, sendo apenas hum esboço da
illustraçao daqu?lle famoso Século , he quanto basta
para nos convencer do estado das Artes, das Scien-
cias , da Lkteratura , e do bom gosto em Portugal
<i» / **
na venturosa época, em que D. Sebastião veio ao
mundo. Tendo nascido poucos dias depois da mor-
te do Príncipe D. João seu Pai , e nono Filho de
EIRei D. João III., já se vê com quanto alvoro-
ço , e jubilo seria celebrado o seu Nascimento. As
Musas o applaudírão á porfia , imitando na melodia
do seu Canto a das Aves sonoras, quando nas ma-
drugadas da Primavera celebião o nascimento de Au-
rora. Sendo o único objecto das esperanças da Mo-
narquia , toda a Nação o olhava como hum mimo
do Ceo , e hum novo argumento da providencia par-
ticular, que vigia sobre este Reino desde a sua fun-
dação , como sempre piamente se creo.
Esta espécie de maravilhoso , que desde o seu nas-
cimento parecia descobrisse no novo Príncipe, crescia
gradualmente cada dia á medida , que nelie se hião
desenvolvendo as bel las , e grandes partes, com que
o Soberano Author da Natureza o havia adornado ,
e que a cukura, e a educação fizerão subir a hum
ponto muito sobre o medíocre , e ordinário. Dotado
de huma excellente memoria , grandes talentos , fina
comprehensão , amor ao estudo , sujeição acs me-
lhores Mestres , que depois de maduras discussões
lhe forão dados , quando havia tanto por onde esco-
lher, os seus progressos forão os mais rápidos. Isen-
to , e totalmente livre dos vícios das primeiras ida-
des, vicios, que debilifão , embrutecem, e retardão
o espirito, e o corpo, muito antes da estação com-
petente, este Príncipe mostrava hum juizo maduro,
e hum discernimento admirável. Huma presença
gentil , e magestosa ; muita decência , e affabilida-
de ; tão robusto como valoroso , parecendo não
ter a mais leve idéa de medo, ou perigo; não ha-
vendo coisa que podesse causar-ihe admiração , ou
espanto \ por outra parte muito Catholico, e devo-
** 8 ***
to, -temente a Deos , e profundo respeitador da igre-
ja , e das suas Jerarquias : EIRei D. Sebastião foi
sfem dúvida humdaquelies Príncipes, que em si unio
maior número das qualidades , que os fazem dignos
de o ser. Se pensarmos com algema sisudeza sobre
tudo isto., acharemos talvez, que alguma desculpa
parece merecerem os Povos , a que parecia de-co-
brir o quer que era de maravilhoso neste Príncipe
tão abundantemente dotado de partes muito singula-
res, e pouco communs. Mas vamos proseguindo.
Este Príncipe de tantas esperanças , que promettia
obscurecer os grandes nomes dos Carlos Magnos ,
dos Alfreds, e de Luiz IX., os maiores homens,
que tem oceupado osThronos d. t Europa , se deixou
infelizmente vencer do fatal projecto de conquistar a
Africa. Nenhumas razões forão bastanres a dispersua-
dillo : he verdade que os meios, que empregarão pa-
ra o dissuadir daempreza, erao muito mais próprios,
attendido o seu caracter , e o seu fraco , para mais
o estimular , e accender. Este Príncipe detestava ex-
cessivamente a cobardia , e dava a esta palavra hu-
ma significação amplíssima. Temer os perigos, des-
maiar com as difriculdades , fossem de que natureza
fossem estas difficuldades , e estes perigos , era se-
gundo elle cobardia. Ora como pela maior parte as
raioes com que se pertendia dissuadillo do temerá-
rio projecto se fundavão nas difficuldades , e nos
perigos delle, he evidente , que quanto mais lhe
argumentassem , mais o havião de estimular, e ac-
cender, Seguindo outro rumo com delicadeza , e ma-
nha , talvez se conseguisse o desvanecello , mas Sic
erat in fâtis.
Parece involver bastante maravilhoso, que hum
Principe de tão boas partes se deixasse illudir , e
obstinar até ao ponto de não ver, o qu# qualquer
& 9
**•
mediano talento previa , e alcançava ; e que absolu-
tamente não quizesse admktir as razões } e os con-
selhos de tantos homens grandes em toda a extensão
da palavra , aquelle , que sempre havia mostrado
hum génio dócil , e fácil de ceder. TamberrT^parece
natural , que huma Nação tão iílustrada , e culta
como naquelles tempos era a Portugueza , com tão
perfeito conhecimento dos seus direitos , e tanto
despejo , para os fazer valer , se deixasse cegamen-
te arrastrar por hum Príncipe de vinte e quatro an-
nos-, cm quem fora desta se não conhecia outra al-
guma falha , e que guiada por el!e , corresse a pre-
cipitar-se no tumulo. Parece que em tudo isto se
está vendo reluzir o maravilhoso , e sobrenatural.
Em fim , no fatal dia 24 de Junho de 157B
sane pela barra de Lisboa a famosa frota , levando
a seu bordo tudo quanto havia de bom , rico , e
grande em Portugal , ou para tudo dizermos em
huma só expressão , levando a todo Portugal a en-
terrar aos Campos d' Africa , o que na realidade
succedeo 41 dias depois, isto he, aos quatro de
Agosto do mesmo anno , dia fatal , e para sempre
lastimoso nos annaes da Historia Portugueza.
Neste mesmo dia , e até na mesma hora, em
que se ultimou a fatal batalha em Alcacar Quivir
na Africa, se soube com toda a individuação o suc-
cesso , tanto em Portugal , como emHespanha, co*
mo em França. Digão o que quizerem os chamados
Críticos , e desabusados dos nossos dias , o que aca-
bo de dizer he hum facto incontestável , que só po-
de deixar de ser acreditado por aquelles , que não
admittem outra regra para crer, ou deixar de crer,
que não seja a sua livre vontade. Sem que hum só
dos Contemporâneos os desmintão , todos os Histo-
riadores daquelles tempos o aíhVmão, e protestão.
B
*** ro ***
Entre as pessoas , que no mencionado dia publica-
rão em Portugal o trágico successo , forao os prin-
cipaes o Cardeal Henrique, Fr. Cosme, Leigo no
Mosteiro d'Alcohaça , homem de reconhecida virtu-
de, e D. Beatriz d'Aguiar, Abbadeça de Coz , pes-
soa também muito exemplar, e virtuosa. Na Hes-
panha , D. Leonor Mascarenhas, fundadora do Mos-
teiro dos Anjos em Madrid, e a famosa Santa The-
resa de Jesus , cuja eminente Santidade , e admirável
Sciench não carece de ser aqui recommendada. Na
iranhã do dia 5" de Agosto do sobredito anno , o Ge-
ral dos Trinos participou a fatal noticia em Paris
ao Rei Francisco Segundo. Apezar da alta reputa-
ção , de que gozavao todas estas pessoas , suspen-
derão os prudentes os seus juízos até , que chegando
a fatal noticia pelos meios ordinários , forno obri-
gados a ter por verdadeiras aquellas revelações. Eu
bem sei , que esta palavra ofíende muito os ouvidos
melindrosos dos meios desabusados contemporâneos;
e eu, que não desejo offender a huma só pessoa, me
absterei de continuar a servir-me delia , e até mesmo
de insistir por mais tempo nesta matéria : fiquemos
pois , em que na mesma hora , dia , mez , e anno ,
iDm que o Exercito Portuguez fora destroçado em
Alcaçar-Quivir na Africa , se soube com toda a in-
dividuação o successo em Lisboa , Madrid, e Paris,
havendo sido cornmunicado pelas sobreditas , e muitas
outras. Dê-se a isto o nome , que lhe quizerem dar.
Não deixemos porém de notar, que nas relações
irão circunstanciadas , e minuciosas , que as sobredi-
ras pessoas fizerão do lastimoso successo , nem liu»
ma só palavra se leia á respeito do destino de
EIRei D. Sebastião naquella fatalidade, sendo aluas
a primeira , e principal personagem, de quem se
devera fazer menção. Vamos continuando. Chega-
«** II ***
das em fim as fataes noticias no tempo próprio 3 e
confirmadas as que já corrião sem diíferença nota.
vel,a maior parte dos Portuguezes ficou persuadida,
de que EIRei havia escapado á morte, e saindo da
Africa: alguns suspendião a este respeito os seus juí-
zos, e muito poucos se capacitarão, ou por politi-
ca quizerão parecer, que se capacitavao da suã mor-
te. Assim virão os Vas-allos Portuguezes quebra-
rem-se es escudos, celebrarem-se as honras funeraes ,
c ser acclamado Rei de Portugal o velho Cardeal.
Entretanto esperava-se vêr entrar a cada instante
por este Reino o seu verdadeiro Monarca ; e esta
esperança se vigorava cada dia com a chegada de
muitos , que havendo escapado á morte na fatal ba-
talha , tendo sahido da Africa , se recolhiao ao Rei-
no , ou mandavao noticias incontestáveis de se acha-
rem em salvo. Aqui teve principio a Seita do Se-
bastianismo : nasceo no seio das luzes , e illustração
de hum Século o mais judicioso , e sábio : os seus
primeiros partidistas forão os nossos Quinhentistas ,
a Nação inteira , quando nenhuma outra estava no
caso de lhe disputar a Superioridade, nas Artes, na
Litteratura , e nas Sciencias. Se o Author do Anti-
Sebastianismo tivesse levantado as suas reflexões ,
como devia até a esta altura , estou bem certo , de
que não confunderia os Sebastianistas com aquelles<,
que crem nos ovos , e alcaxofras da noite de São
João , ou nos defuntos , que ouvem Missa de noi-
te , que lhes diz o Cura , que falecera em ultimo
lugar: a ignorância mais crassa presidio ao nasci-
mento destas superstições, e debaixo de bem diver-
sos auspicios nasceo a Seita dos Sebastianistas. Nem
me responda , que nos tempos actuaes he absurda a
esperança dos Sebastianistas presentes , e que o não
era nos tempos, de quecufallo ; porque se, segun-
B ii
'Ê
£'* Tl #*
*•
do o Author, o trágico, e lastimoso fim de EIRei
D. Sebastião foi fiel , e verdadeiramente emAgos*
to âe 15:78 , tão grande absurdo et a esperar por elle
aos seis mezes, como aos seiscentos annos depois
de haverem morrido. Mas voltemos ao nosso inten-
to.
Com as calamidades deste Reino , funestas con-
sequências da batalha da Africa , e com o grande
empenho , que os Filippes mostravão em persuadir
a Nação , de que o seu Rei havia morrido em AI-
caçar-Quivir , cresciao progressivamente os desejos,
de que apparecesse em Portugal aquelle desgraçado
Rei , e com as noticias vindas de Veneza em 1598 ;
e de que fazemos menção na pagina da nossa res-
posta ao Anti->ebastianismo , se confirmou a Nação
iiiteira , de que com effeito EIRei D. Sebastião se
achava vivo, e havia sabido da Africa. A esperan-
ça de o ver entrar em Portugal oceupava a todos
os corações , os Filhos a herdnvao de seus Pais , e
as gerações a transmittião , e deifljavão como precio-
so legado ás gerações.
Assim vio Portugal decorrer os annos do seu
cativeiro , e chegar-se a época da sua restauração
em 1640, quando aquellef , por que tanto suspirara ,
yinhâj a ter 86 annos de idade. Com o prazer de
ver se restaurado, amainou neste Reino a esperança
da vinda de EIRei D. Sebastião ; nunca porém che-
gou a aniquilar-se; e pelo tempo adiante até ao fim
do Século XVII., em que havião decorrido 146 an-
nos do nascimento de EIRei D. Sebastião, a espe.
rança da sua vinda já crescia , já affrouxava , segun-
do os tempos corrião , ou prósperos , em que tudo
esquece ; ou adversos , em que he da natureza huma-
na , e até da boa Filosofia o procurar , e até fingir
motivos de consolação , e allivio a seus males.
Hesummnmente difficil o deixar persuasões her-
dadas, principalmente quando são nobremente nas-
cidas , e tem sido por largos annos acreditadas : a
esperança da vinda de EIRei D. Sebastião tem con-
tinuado a subsistir , e principalmente depois dos fins
de 1807 tem engrossado o número dos seus parti-
distas extraordinariamente , servindo-lhcs de consola-
ção , e refrigério no meio dos males acerbos, com
que remos sido vexados , e opprimidos.
Deixando pois em paz os que crem , e esperão
sem saber o porque crem , ou porque esperão , va-
mos aos que se achão em mais alto predicamento ,
e sabem dar a razão do seu dito. Dizem pois estes ,
que =í Deos tem por particular providencia reser-
vado a EIRei D, Sebastião , que assim o tem a f fir-
mado varias pessoas eminentes em virtude , e Scien-
cia ; profetizando a sua vinda para os tempos futu-
ros , tendo-se já comprido algumas outras partes dos
seus vaticínios ~.
Sem que seja o meu animo ofomentar esta es-
perança , nem contrariar , a que a isto respondemos
nas paginas ultimas deste nosso Opúsculo, permit-
ta-se-me o fazer , ou lembrar r»qui algumas reflexões,
que talvez convenqao a cérebros não esturrados . de
que esta esperança não pnrece nem muito absurda,
nem demasiadamente revoltante.
Eu supponho que nenhum homem de bojn
senso , e de boa fé deixará de estar convencido da
prodigiosa appariçao de JESUS CHRISTO a EI-
Rei D. Affonso Henriques nos Campos de Ourique,
e das grandes promecsas , que lhe forao feitas. Este
milagroso acontecimento está tão legitimamente
provado por tantos, e tão authenticos documentos,
descobertos , e repro uzidos por homens tão insi-
gnes , e muito principalmente nos nossos dias pelo
^4 r A ^**
«» l*t **
Author da Thebada Portugueza , e pelo célebre
António Pereira de Figueiredo , que se não pode es-
perar que homem algum nas circunstancias acima
ditas se atreva ao ter por falso, ou duvidoso. Des-
de aquella memorável época se começou a crer pia-
mente neste Reino, que Deos , em consequência das
promessas feitas áquelle virtuoso B^ei , havia tomado
a Portugal debaixo da sua particular protecção , pro-
videnciando-o com huma predilecção semelhante
áquelia , com que noutros tempos providenciava a
Monarquia Hebrea , antes que pelos seus crimes , e
ingratidões se fizesse indigna de seus divinos bene-
fícios. Os maravilhosos suecessos , que pelo decur-
so dos annos se forâo vendo , mais, e maishião con-
firmando es:a Nação , que nada tem de incrédula na-
quella crença piedosa. Não podem capacitar-seos bons
Portuguezes , de que sem hum influxo muito parti-
cular do Ceo treze mil homens nos Campos de Ou-
rique podessem desb.iratar , e vencer a hum formidá-
vel Exercito de quatrocentos mil Mouros robustos ,
e muito bem disciplinados. Não pôde crer, que sem
aquelle mesmo influxo podesse nas planices d'Alju-
barrota hum Exercito Portuguez pequeníssimo em
número, comparativamente ao enorme Exercito, que
tinha de combater , conseguir sobre elle huma vi-
ctoria , completa , matando-lhe doze mil homens , e
aprizionando-lhe hum número incalculável ; sendo
os vencidos os primeiros a confessar , que de tão
enorme desigualdade não era natural o esperar-se
hum tal êxito Não podem os bons Portuguezes per-
suadir :e , que no dia 17 de Março de i^o^o
grande Duarte Pacheco com huma Náo , huma Ca-
ravella , dois pequenos Navios , e setenta e hum ho-
mens podesse sem hum grande influxo, e visível au-
xilio do Ceo vencer, e destruir a formidável Esqua-
4»
dra do Rei de Calecut , composta de cento e sessen-
ta velas, e hum Exercito, que por mar, e por ter-
ra moníava a sessenta mil homens. Não podem em
fim penuadír-áe j de que sem huma particular assis-
tência do Ceo podesse Jorge d^lbuquerque com
duzentos e oitenta Portuguezcs destruir o Exercito
do Genial Rei de Pacém , matando-lhe dois mil e
quatrocentos homens , em que entrou o mesmo Rei ,
aprizionanclo-lhe a sua mulher, e filhos , e hum pro-
digioso número de gente. Innumeraveis outros fa-
ctos se encontrão nas historias de Portugal , que são
para esta Nação outros tantos argumentos , que a
obrigão a crer com fé piedosa , que Deos tem sobre
este Reino desde a sua fundação as vistas de huma
providencia particularíssima. Supposta a verdade des-
tes grandes acontecimentos, de que nos dão hum tes-
tem unho irrcfragavel os famosos Historiadores da-
quciles tempos, e prin :ip^imente os grandes João
de Barro? , André de Couto , o Bispo Jeronymo Osó-
rio , e Manoel de Faria e Sousa, e tantos outros,
eu deixo a decidir aos hcir.er.s sensatos , e de boa fé ,
se esta piedosa crença dos Portuguezcs he , ou não
bem fundamentada , e se se ajusta , ou não ás má-
ximas, e princípios da Religião, e da sã filoso-
fia, que nos prohibe o attribuir ás causas naturaes ,
e ordinárias acmelles e frei tos , que excedeo o alcan-
ce , e as forças das mesmas causas ? Não sendo de
esperar huma resposta negativa, pergunto em segun-
do lugar , se huma Nação, acostumada a ver com
tanta frequência o Cco , obrando tantos prodígios
a beneficio seu , merece ser aceusada de fanática , e
visionaria, quando crê. que Deos tem reservado pa-
ra restaurador do Império , que prometera estabele-
cer p-'ra st em D. Aí forno Henriques , e sua Des-
cendência a EIRei D. Sebastião, famoso Priíacipe,
& i6 is
*»
cujo nascimento , Índole, dotes de corpo, e de es-
pirito , cujas virtudes , acções , vida , projectos , e
salvamento da Africa involvem tanto de maravilho-
so , e sobrenarural ? Por ventura o objecto desta es-
perança he alguma coisa , ou impossível a Deos , ou
que Deos nunca tenha feito ? He alguma coisa nun-
ca vista o conservar Deos a vida a hum homem por
duzentos e quarenta e cinco annos, que nesta hypo-
these EIRei D. Sebastião viria a ter presentemente?
Não fallando nos Patriarcas Antidiluvianos ,
que dobrarão, desdobrarão aquelle computo, não
nos consta pelas Historias dos Séculos mais visinhos
a nós, que alguns tem até excedido aquelle prazo?
E prescindindo mesmo do influxo particular da Pro-
videncia , eu não sei, que esteja demonstrado , ou
se possa demonstrar a impossibilidade de viver hum
homem nestes Séculos últimos os seus trezentos an-
nos, ou mais, mesmo naturalmente, e sem milagre
algum. Só sei, que se algum homem estava no ca-
so de viver séculos , seria EIRei D. Sebastião , em
que concorria tudo quanto pode julgar se necessário
para gozar de huma vida longa. Moço , robusto ,
e vigoroso, inimigo de melindres, e effeminaçoes ;
muito dado a exercícios, e fadigas; sóbrio , e livre
de vícios torpes , e das fataes moléstias , que lhes
são inherentes , que inficionão , e minão a seve da
humana vida, superior ás paixões , e desgraças, que
envenenão a massa vital ; assim no-lo pintáo , e re-
tratão uniformemente todos os Historiadores : ora
hum homem com todas estas circunstancias promet-
te huma longa duração , e não espanta que iguale
a vida dos Patriarcas , aquelle, que tão pe;feitamen-
te se assemelhou a elles pelos seus costumes. Por
qualquer lado pois que olhemos pata o Sebastia-
nismo, não vejo, que a sua esperança mereça ser
tratada de ridícula , absurda , ou revoltante , nem
que esta Seita mereça ser confundida com as dos
que crém naquellas estupidezes , de que falia o papel
do Anti-Sebastianismo nas suas primeiras paginas.
Huma ignorância crassa lhes deo o nascimento , as
mantêm, e as conserva; e impossível he que no
número dos que as acreditáo entre algum homem
judicioso , e douto , ao contrario o Sebastianismo ri&sa^
no seio de hum Século , talvez o mais illustrado ,
e judicioso de todos, homens de muito juizo, de
muito saber, e de muita crítica, tem sido, e ainda
hoje nos nossos dias são seus acérrimos sequazes;
tudo isto sendo , como he , incontestável , prova le-
gitimamente, que esta Seita nem he absurda, nem
inconsequente. Tal he o meu modo de pensar : não
sigo a opinião, mas não a ridiculizo : não sou Se-
bastianista, mas reconheço, e respeito os talentos,
o saber , e as virtudes àiL muitos , que o tem sido ,
c ainda hoje o são.
• i8 &
— —
EXAME,
E juízo critico
SOBRE O PAPEI,, INTITULADO
JNTI-SEBASTIAN1SM0.
JlN Unca em Portugal se deo tanto exercício ás
pennas , como nesta calamitosa época , em que só se
devia dar exercício ás armas. Todos as pirão á glo-
ria de Escritores, quando devião aspirar á dfe guer-
reiros; e como se o tinteiro fosse fuzil, a penna
espada, a areia pólvora, e a tinta balas; com tin-
teiro, pennas, areia, e tinta nos propomos a ven-
cer inimigos , que nos accommettem com fuzil , espa-
da , pólvora , e bala. Se o conseguirmos , teremos
a gloria de haver descoberto hum grande segredo ;
e as Nações Estrangeiras , que apenas nos concedem
o fraco talento de bons imitadores , emendarão
a fra?e , e nos concederão a gloria , e o génio de
grandes inventores. Este descobrimento nos fará
mais honra 3 do que o do novo Mundo ; e as Na-
ções se aproveitarão mais avidamente desta nova
derrota , do que daquella , que lhe abrimos por ma-,
res nunca d'antes navegados. Transtornarão todo o
seu systema actuai ; converterão em Prelos , e Of*
ficinas os Arsenacs, e Fundições; o bronze das bo«
cas de fogo em chapas para abrir caricaturas ; dos
&* TO*"*
canos das espingardas farão typos , e das laminas
das espfl&gartia£, e folhas dos traçados , tesouras , e
canivetes , 'para aparar papel , e pennas. Eu não
tenho génio faceto , e gracejador ; conheço além
disso , quanto he absurdo , e inconsequente procu-
rar fazer rir o público, quando he preciso electrizal-
lo , e inspirar-lhe sizudos , e sérios sentimentos de
Religião, honra, patriotismo, e virtuoso desprezo
da vida. Mas esta immensa , e desordenada cópia
de escritos , e papclladas em huma crise tão pouco
própria para taes exercícios , enche de tanta indigna-
ção ao homem de bom senso , que a pezar da sizu-
deza , e gravidade, que lhe he própria, o faz cahir
no que mais detesta , e condemna.
Recobrando pois o meu génio , e caracter na-
tural, digo , que sendo hum principio estabelecido
pela Divina Sabedoria , e summamente ajustado á
razão, e ao bom senso, que para todas, e quaes-
quer coisas ha tempo próprio , e estacão competen-
te ( Ecclesiast. Cap. III. ) he o maior dos absurdos
o estar consummindo as noites , e os dias em escrever ,
distrahindo, e dissipando a Nação com galanterias,
inepcias , fabulas, e dicterios , quando temos a de-
fender a Religião , a honra , a fazenda , a vida , e
a liberdade contra hum inimigo poderoso , astuto ,
cruel, que nos ameaça, e que não desistirá de nos
perseguir em quanto o deixarmos respirar. Esta ver-
dade incontestável em si nos he praticamente ensi-
nada pelo respeitável Corpo Académico , que ao ver
em perigo a Religião , e a Pátria dos braços da Mi-
nerva corre aos Campos de Marte ; e fechando os
livros, desembainhão as espadas. Sabe o.Ceo quanto
«u invejo a sua sorte ; mas nem os annos , nem as
moléstias me permitem o acompanhar aquelles He-
roes ao theatro da gloria. Se me fora possível o
C ii
s*4 •J.O «?*
«#
fazei lo , protesto, que não estaria aqui consumnrn-
do o tempo em escrever , Deos sabe o que i e em
ler a immensa , e indigesta papellada , que em me-
nos de hum anno tem de si lançado as Officinas ,
e os Prelos.
Quasi todos estes papeis se fazem recommenda-
veis pelos titulos faustosos , com que seus Authores
tem o cuidado de os baptizar ; e ainda que pela
maior parte esres titulos lhes quadrem também co-
mo os nomes de Clara, eRosa ás Pretas de Guiné ;
o de Rabão ao Cavallo , que não tem cauda; eode
Barbadinho,a quem tem barbas até á cintura, não
sei por que fatalidade nunca chego a desenganar-me ;
e em vendo annunciado , ou ouvindo apiegoar pa-
pel com titulo daquella natureza , não posso sos-
ter-me , que não compre , e leia.
Foi o que depois de tantas IograçÓes me suece-
deo com o que tem por titulo Anti-Sebastianismo ,
ou Antídoto contra vários abusos, Estava-ihe ca-
hindo , dirão agora o que isto lerem , esrava-lhe
cahindo ao velho potroso o deixar-?e illudir pelo
titulo daquelle papel ; e com quanta pressa , e am-
bição o procuraria ler ?
Entretanto , meus Senhores , posso com toda a
verdade protestar-lhes , que sou velho , mas nem
sou , nem fui em algum tempo Sebastianista. Te*
nho tido a pachorra de ler quasi tudo quanto so-
bre esta matéria se tem escrito pro , e contra em
Portugal , Hespanha , Itália , e Franca ■ serão tal-
vez bem poucos os prognósticos , e chamadas Pro-
fecias, que eu não tenha examinado; e posso afrir-
mar com toda a ingenuidade, que nunca esperei
por EIRei D. Sebastião , nem me propuz a deter-
minar o tempo da sua vinda , nem a accommodar a
esta , ou áquella época o cumprimento dos taes va-
& 21 ft
ticnios. Até posso com igual verdade protestar ,
que sempre desejei muito , que algum homem de
talento e saber , se propuzesse a deitar por terra
este Colosso , e aniquilar a Seita do Sebastianismo,
refutando cabalmente os seus fundamentos. Talvez
estaria eu occupado destes pensamentos , quando
ouvi apregoar o tal papel ; e já se vê com quanta
ambição correria a comprallo para o ler.
Logo fiquei hum pouco desgostoso ao ver a
sua pequenez : em tão poucas paginas , disse eu , fal-
hando só comigo , parece impossível , que possa
satisfazer-se completamente a tantas opiniões , tan-
tas authoridades , tantos argumentos , dos quaes ai*
guns , e não poucos , se não são fortes , e convin-
centes, são pelo menos plausiveis , e de difhcil so-
lução. Lembrando-me porém de que ha homens ,
que tem a rara hábil dade de dizer muito em pou-
cas palavras, na esperança de que o Authordo An-
ti-Sebastianismo fosse hum destes Fenómenos , co-
mecei a ler , e em menos de meia hora conclui a
leitura.
Confesso que fiquei confuso , e estupefacto
com o que li; e depois de alguns momentos de re-
flexão , fiz comigo mesmo este discurso : ou o Author
do Anti-Sebastianismo he hum famoso, e chapado
Sebastianista , que procurou este tal , e qual artifi-
cio para fazer publicas pela impressão as Profecias
do Pretinho, a Attestação dos Padres de Santo An-
tónio , as Trovas do Moiro de Granada . etc. , etc. ,
o que sem aquel:e disfarce lhe seria absolutamente
impossível conseguir ; ou alias se na reahdade ne
Anti-Sebastianista , e deveras se propoz a comba-
ter, e aniquilar esta grande Seita, errou totalmen-
te os caminhos , e veio a pôr a coisa em peior es-
tado.
£tl "7.7 I?1*
He o que desgraçadamente succede todas as
vezes , que a Apologia da verdade he mais fraca do
que os fundamentos sobre que se estriba o erro ; e
quando os argumentos, com que se intenta refinar,
não tem ao menos tanta forca, como os do partido
opposto. Neste caso o Apologiador da verdade lhe
vem a fazer maior prejuízo , do que aquelle , que
directamente a combate ; porque o erro levanta com
altivez a cerviz indómita, quando vè debilmente
cahidas a seus pés as seitas, com que Priamos fracos
intentavao tra?passallo , e engrossa o número dos
seus Sectários , convidando para que venhão parti-
cipar da gloria do apparatoso triunfo , que alcan-
çarão.
He o que realmente succede no caso, em que
estamos : o tal Anti-Sebastianismo he muito mais
próprio para fazer huma nova creação de Sebastia-
nistas, do que para desenganar do seu erro aos que
já o erão : o tempo , o lugar , o modo , por que
morrera EIRei D. Sebastião , fica no mesmo gráo de
incerteza , em que até aqui se tem conservado ; e
os chamados prognósticos, e attestações , podendo
agora chegar mais facilmente ás mãos de todos ,
adquirem mais authenticidade , e força pela impres-
são, e pela fraquíssima refutação, que delias se faz.
Ainda que sobre cada hum dos períodos do tal pa-
pel havia muito que dizer , só me proponho a fa-
zer pelo grosso a sua analyse, sendo quanto basta
para mostrar palpavelmente o que acabo de dizer.
Dá o Author principio ao seu Opúsculo por
três , ou quatro periodos , que exprimidos com bas-
tante força deitao de si não sem muita difíiculdade
este grande, e importante principio, dbj Desde que
o Mundo he Mundo sempre houve erros, apprehen-
sóes , falsas crenqas , abusos , e prejuízos, s He ha-
t n
«
ma verdade inquestionável , e podia sem temerida-
de, se lhe fosse conveniente, accrescentar , que nem
ha , nem houve em algum tempo hum só homem ,
que sobre este artigo não seja , ou tenha sido mise-
rável e peccador , sendo ainda mais desgraçados
nesta parte os que se julgao , e os outros commum-
mente tem por mais Filósofos , e desabusados, Po-
dia de mais a mais dizer, que em quanto o Mundo
durasse sempre haveria destas misérias por mais An-
tídotos , que se lhes appliquem. Desvanecera-se os
antigos abusos com a introduccao de novos prejuí-
zos; mas ou antigos, ou modernos , sempre os hou-
ve , ha , e haverá. Os maiores homens da antiguida-
de Platão , Sócrates , Aristóteles , Séneca , ao mesmo
tempo , em que combatião , e mofavao das falsas
crenças do vulgo, erao escravos de mil prejuízos,
e sujeitos a apprehensóes as mais ridículas: leia-seo
que sobre os abusos , e visionarias dos grandes AJe-
xandres , Themistocles, Alcibiades , Epaminondas ,
Césares, ScipiÒes , e do insigne Catão nos referem
Heródoto, Strabo , ApoHonio, Plutarcho , Tito Lí-
vio , e Suetonio , e nos desenganaremos de que
esta palavra Desabusado em todo o seu rigor,
e extensão , só pode ser característica dos iieroes
das Novellas : quem conhece o Mundo , e a fran-
queza do espirito e coração humano , setve-se da-
quella palavra tão somente para significar ao ho-
mem , que tem menos abusos. Homem sem appre-
liensão , ou Quezília , como vulgarmente costuma
dizer-se , he hum ente imaginário , e só bem para
fazer casal com aqueila ave , que renasce das
suas próprias cinzas. Metta cada hum a mar- na
sua própria consdencia , e atreva-se a negar esta
verdade. Até o Senhor Anti-Sebastian;«ta , apezarde
todo o seu desabuso, e estranha coragem , ha de ter
24
de que se accuse neste mandamento , se lhe não
faltar a força de que se precisa , para confessar in-
genuamente a verdade. Cuidando pois talvez , que
nos dava huma grande novidade , nos disse muito
menos do que o que já por cá se sabia ha muitos
tempos.
1 Passa dsqui oAuthor a contar-nos diversas his-
torietas , todas suecedidas com elle , para prova ,
de que com effeito ha no mundo preoceupações ,
erros , abusos, e prejuízos. Mas do que já fica dito,
se deixa bem vêr , que tudo isto he desnecessário ,
e que se lhe chama accender luz , e gastar cera ao
Meio dia , e com Sol claro. Não lhe escaparão os
ovos , e as alcachofras na noite de S. Joáo em Lis-
boa , aonde o Author muito se admira , de que tam-
bém haja semelhantes prejuízos. Que Anjinho ! Co-
me he innocente ! Ainda não sabia , que o Povo em
toda a parte he Povo ! Não leo ao menos no céle-
bre Gazeteiro de Almada , que nas Cidades grandes
ha de tudo , o que por ser dito a rir não deixa de
ser huma grande verdade- em todo o sentido , em
que se queira tomar! E que ainda suppondo (o que
se não pode suppôr) que todos os .que vivem nas
Cortes sejao policiados, e instruidos, os que o são
nem por isso deixao de ser escravos de abusos , e
e preoccupaqóes ! Como está atrazado no conheci-
mento do mundo o Senhor Anti-Sebastianista ! Que
foi fazer a Madrid , melhor escola sem dúvida do
que Lisboa para adquirir estas idéas ? Talvez que
também lhe faça novidade o dizer-lhe eu agora,
que a maior pane dos que fazem essas ridicularias na
mencionada noite, estão firmemente convenedos da
sua futilidade , e que tão somente o fazem por
entreter o tempo , e por mero brinco , pois esteja
certo , que he huma verdade de que facilmente se
poderá desenganar.
*** IC ***
A admiração porém , e o pasmo do Author su-
bio ao ponto mais alto, quando no Cães de Sodré
ouvio a hum grande número de homens aceadissi-
mos , ricos , e até estudiosos , falia ndo sobre a vin-
da de EIRei D. Sebastião , e accommodando á cri-
se presente os prognósticos , e trovas ilo Pretinho
do Japão , do Mciro de Granada , etc. etc. Caso
verdadeiramente pasrnoso ! Pelo modo não sabia o
author até áquelle feliz encontro, que havia em Por-
tugal Sebastianistas. Aonde terá passado, e em que
terá consumido este homem a sua vida r Haverá
algum ponto no Universo aonde isto se ignore ?
Não se tem empenhado os Escritores Estrangei-
ros , e muito especialmente os Hespanhóes, eFran-
cezes em o fazer constar a todo o Mundo í Dentro
de Portugal será possivel encontrar-se lugarejo , aon-
de pelo menos o Cura , o Sachristão , e o Barbeiro
deixe de fallar de Sebastianistas , ou seguindo , ou
mofando da Seita ? Que se pode esperar, que saiba,
quem isto ignora ? E propõe-se este homem a es-
crever Anti-Sebastianismos, e offerecer ao respeita-
vel público Antídotos contra abusos ? Cuidou , que
nas authoridades de Manoel de Faria e Sousa , do
Jesuíta Hespanhol , P.idre MarianncL, e de Miguei
Leitão d'Andrade , tinha a maça de Hercules para
esmagar o Sebastianismo : como se aquelies Autho-
res não tivessem ha Séculos publicado as suas Obras ,
e se não soubesse muito bem o que ellcs dizem , e
a fé , que merecem : como se entre os Sebastianistas
passados, e modernos não houvessem muitos homens
instruídos , e eruditos , que com muita meditação
tem lido aquelies Authores, e tantos outros , que não
espanta , que o nosso Anti-Sebastianista ignore , e
desconheça.
Meu amigo, metteo-se em huma empreza dia-
D
boUca ; não se lembrou, de que a Seita do Sebas-
tianismo não conta só no número dos seus sequazes
a homens simplices , e idiotas , quaes os Senhores
seu Tio, Pai, Avô, Amigo, creada de varrer, e
ceiferos da estrada de Madrid , de quem no princi-
pio da sua Obra nos refere aquellas simplicidades ,
e estulticias : lambem conta a homens de muito gé-
nio, talento, e lição. O eruditíssimo Abbade Dio-
go Barbosa Machado , que de certo não era Sebas-
tianista, e de quem adiante filiaremos amplamen-
te , propondo-se a refutar a opinião dos que o sup«
póem vivo no Prologo das suas Memorias Históri-
cas sobre EIRei D. Sebastião^ famosa Obra de que
absolutamente nem pode , nem deve prescindir ,
quem se propõe a dizer alguma coisa sobre aquel-
le Monarca) diz a Não ignoro, que dt.sta opi-
nião forão , e são acérrimos Sequazes Fidalgos da pri-
meira grandeza, Religiosos de austera vida, Letra-
dos de profunda Sclencia , e até muitos da Ínfima
plebe, ~ Para se convencer desta verdade , saiba
que o insigne Jesuíta António Viera , cujas Obras
andao pelas mãos de todos , era, como delles in-
questionavelmente se deixa ver, hum acérrimo Se-
bastianista, e cuido que não terá a temeridade de
o reputar ignorante , estúpido , ou imbecil. Saiba ,
que ha muito poucos annos faleceo nos subúrbios
desta Corte hum homem muito respeitável pelo seu
caracter, e representação , e ainda muito mai? pelos
seus talentos, e erudição, que era hum rígido Se-
bastianista , que com muita veneração , e apreço con-
servava na sua Bibliotheca das de maior nome nes-
ta Corte a todos os manuscritos, e impressos, que
dizião respeito á Seita que seguia : intorme-se que
não faltará quem o conheça pelo retrato, e o possa
cert. ficar desta verdade. Saiba que entre mil outros
& Vi ft
existem em Lisboa actualmente três sujeitos , que
a todas as virtudes e instrucçao própria de seus res-
peitáveis ministérios ajuntão muitas outras virtudes ,
e huma iicão vastíssima de Historia Portugueza,
com muito discernimento , e critica , que s*ao Sebas-
tianistas nos ossos , e não se envergonhão de o ser.
Pudera fazer-lhe huma lista immensa de homens
desta estofa , mas faço escrúpulo de fomentar a sua
perffoulc'^ ; Ieia,e indague , e descobrirá tudo quan-
to eu aqui lhe poderia dizer. Veja com que gente
se foi metter , e que mossa poderá fazer com o seu
Faria , e Sousa ; Marianna , e Leitão d' Andrade con-
tra tantos Cam piões á testa de hum formidável Ex-
ercito de Historiadores , que desmentem tudo quan-
to , á respeito da morte de EIRei D. Sebastião , di-
zem aqueDes seus três apaixonados.
Entra aç^ora o Author no resumo da vida da-
quelle joven Monarca. Deixemo-lo escrever á sua
vontade : deixemo-lo dizer com tanto de?credito do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra , como menos-
cabo do novo Rei , que aquelles Padres só debaixo
de grandes Condições lhe confiarão o Escudo , e a
Espada , que o Augusto Fundador da Monarchia
alli havia depositado , o que nem pode su:tentar-se ,
nem deve em caso algum escrever-se : deixemo-lo
dizer, que o novo Rei desembo/cára na Africa sem
a^uellas armas, que voltarão para o sobredito Mos-
teiro , attribuindo huma, e outra coi^a ao Acaso ,
palavra, que o bom sensi lepreva, a sã Filosofia
detesta , e a Santa ReligUo condemna ; e sem nos em-
baraçarmos com eí-tas , eoutrs sea elhantes bagatel-
las, vamos ao grande ponto da morte do ousado Rei.
Com hum desembaraço , e affoiteza pasmo? a ,
lançando rmo da espada de Alexandre , corta ás
cegas o grande nó, e diz =s Que o Cadi , vendo a
D ii
*** i8 »«*
EIRei no fim da batalha entre hum grande número
de Moiros , que disputavao entre si a quem deve-
ria pertencer o Augusto Prisioneiro , lhe descarregara
sobre a sobrancelha direita huma cutilada , que EI-
Rei cahira do cavallo , que então os Moiros lhe dé-
rao muitas outras na cabeça , e garganta , aré que
EIRei expirou, tudo isto no dia quatro de Ago-to
de 15-78 ; e accrescenta , que este foi fiel , e ver da*
claramente o trágico , e lastimoso fim de hum Rei
sem dúvida digno de maior ventura. Risum tenea-
tis amici ?
Ora eis-aqui em duas pennadas decidida a gran-
de questão: eis-aqui fiel, e verdadeiramente o trá-
gico , e lastimoso fim de EIRei D. Sebastião : já
não ha que duvidar: merreo nos Campos da Africa :
o seu cadáver está no Mosteiro de Belém : o Escu-
do , e a Espada do immortal Affonso Henriques,
que cOrrYsigo levou debaixo de grandes condições ,
forao restituídas ao Mosteiro de Santa Cruz de Coim-
bra , e trazidas da Africa pelo Acaso , que he hum
portador seguro , e que sempre deo muita boa con-
ta de si: os ire? como Evangelistas Faria e Sousa,
Marianna, e Leitão d'Andrade , com o Author do
Anti-Sebastianismo , para fazer os quatro, assim o
affirmão : a immensidade de Historiadores, que di-
zem o contrario , e dos eruditos , que o seguem , he
hum bando de idiotas, e visionários : cahio desta
vez por terra o Sebastianismo, e os seus sequazes.,
ou dêm as mãos á palmatória, ou fujao envergo-
nhados para alguma Ilha encuberta , e mordáo-se
de desesperação , e de raiva»
Ora, Senhor Anti-Sebastianista , ainda que Sua
mercê ( se he que-n?o tem mais alto trarara/nto)
no teu Prologo ao Leitor , diz , que escreve em es-
?i'o faceto, no que nos engana formalmente, sem
9 2 9 &
alma, nem consciência, convcrta-se por hum pouco
em homem sizudo , e vamos a fàljar sério. Gomo
he possível, que o simples peditório do ignorantis-
mo Sebastianista do Cáes do Sodré , que tomou por
huma grande novidade a tudo quanto Sua mercê
lhe disse a respeito de EIRei D. Sebastião , que
nunca tinha lido a Faria e Sousa, Marianna, ou Lei-
tão d'Andrade, nem sabia que taes homens tives-
sem no Mundo existido: como he possivel, ciigo,
que o simples peditório deste miserável , que até
custa a crer, que soubesse os nomes de Henoc , e
Eiias, fosse bastante a decidi-lo , a escrever em
tom magistral sobre hum objecto , em que Sua mer-
cê se achava pouco mais de dois dedos acima deile ?
Como he possivel, que com tão pouca lição, co-
mo Sua mercê mostra ter , se entremettesse a escre-
ver Antídoto centra abusos? Não sabe, que o maior
de todos os abusos he atrever-se o homem a escre-
ver para o público , sem ter profundado até d raiz
a matéria sobre que escreve? Acha em sua consciên-
cia , que para escrever a vina de EIRei D. Sebas-
tião , e maiormeme para decidir do tempo, modo,
e lugar da sua morre basta o ter lido ires Historia-
dores , quando são tantos, e tantos mais o que a
isto se propuzérao, não se aju$FandO', pela maior
parte na opinião sobre a sua morte , e reforçando
cada luim a sua com argumentos pelo menos plau-
síveis ? Quando não tivesse o tempo , nem talvez
os meios para os ler a todos , porque não recorreo
ás Memorias Históricas do Abbade Diogo Barbosa
Machado, de que já aeima lhe fallei , Obra immor-
rol , frueto de hum trabalho incrível, e de Ih; a
lição vastíssima? Logo no seu erudissimo Prol
veria o sem número de Historiadores , que aquelle
incançavel Abbade consultou os immensos monu-
2*
2 O ^*
mentos que esquadrinhou , e descobrio , havendo-se-
lhe franqueado todas as Bibliorhecas públicas, e par-
ticulares : todos os Arquivos sem exceptuar os da
Torre do Tombo, e Secretarias d' Estado: alJi ve-
ria ao seu apoixonado Leitão d'Andrade, testemunha
ocular dos suecessos d' Africa , que teve a leveza de
afrirmar com toda a segurança, que EIRei fora le-
vado morto sobre hum, cavallo : alli o veria desmen-
tido por Jeronyrro de Mendonça , e por D. Jo;,o
de Castro , testemunhas também oculares , os quaes
protestao , que ninguém vira matar a EIRei , nem
poda afrirmar , que fosse delle o cadáver conduzido
sobre o cavallo á tenda de Xerife. Veria no mesmo
Prologo que o dito Leitão d'Andrade assevera , que
houve grande questão , e desordem entre os Chris-
taos , e entre os Moiros sobre isto mesmo. Veria ,
que o seu Leitão d5Andrade aff rma , que o tal cor-
po fora trazido d'Africa para Belém por Luiz Cé-
sar, sendo aliás incontestável, que o tal corpo fora
por diligencia de Filippe II. conduzido por D.Mar-
tinho de Castelío -Branco , Bispo do Algarve, e por
D. Manoel de Seabra , Bispo de Ceuta, e deposita-
do no Mosteiro de Belém em hum Mausuléo, cujo
Epitaphio he hum Cabal desengano da incerteza de
ser, ou não de EiRei D. Sebastião o corpo , que
dentro de si contém. Veria , que tendo os Fidalgos
Portuguezes , que escaparão á morte ficado persua-
didos de que EIRei se havia salvado , e desappare-
cido , para que não fosse procurado com diligencia ,
não rivéiâo dúvida de afrirmar ao Rei de Marrocos,
que EIRei D. Sebastião havia sido morto , e assi-
gnarlhe hum corpo entre os immensos , que havia
dois dias jazião nus sobre a terra, dizendo-Ihe, que
era o do infeliz Monarca. E depois de ter vi^to
naquellc eruditíssimo Prologo a tudo isto, e tantas
ourr3s coisas mais, veria com muito pasmo, e con-
fusão sua, que o seu Sapiehíissupo Author, depois
de ter lido, e examinado tudo qminto até ao seu
tempo, que foi o do Reinado do Senhor D. João o
V. , se havia escrito sobre EIRei D. Sebastião , quan-
do no Tomo IV. das suas Memorias chega a fallar
do fim , e termo fatal daquella infeliz baralha , se
serve destas formaes palavras si EIRei D. Sebastião ,
estimulado de que quize?sem (os Moiros) abater
a soberania do seu caracter, envolto na barbara mul-
tidão , desappareceo aos olhos de todos , deixando a
posteridade igualmente duvidosa da sua vida , como
da sua morte. Esta foi a fatal conclusão da batalha
de Alcaçar , etc. etc.
Nao sei que haja que replicar contra huma au-
thoridade tão respeitável , e que em si abrange as
authoridades de tantos , e tão insignes Historiado-
res: não sei, que possa apontar-se algum outro His-
toriador , que sobre esta matéria escrevesse com
mais conhecimento de cansa;; e que tivesse examina»
do hum número mais prodigioso, e respeitável de
documentos, e noticies, do qae o insigne Author
daquellas Memorias , como se pode ver pelo Con-
texto de todas ellas , e com menos trabalho , lendo
o mencionado Prologo , aonde o sobredito Abbade
mostra estar tão convencido, de que EIRei D. Se-
bastião escapara á morte na batalha d' Aleaçar em
Agosto de 1578, e sahíra para fora d' Africa", que
se inclina á opinião, de que realmente elle era o
que em 1598 se apresentou ;>o Senado de Veneza,
exhtbindo taes testemunhos de identidade , queaquel-
Ie respeitável Congresso , depois de hum marino,
e minucioso exame , decidio, que ou na realidade
aqoelle homem era EIRei D. Sebastião , ou algum
Mágico por elle. Tendo o sobredito Abbade fal.acio
3* &
de diversos impostores , que pertendcrão fingir-se
ElRei D. Sebastião, diz ' =j Excedeo a estes rinpi-
• i ^ r* *-*
dos Príncipes ( se he que nao foi o verdadeiro )
aquelle, que appareceo em Veneza em 1 5 9.8 , de
que fazem menção Pedro M sth cus , e João Baptista
Rozales, etc, etc. Aquelle parenthesis, julgo que
mostra que o Author era desta opinião. Como he
possível pois, que não tendo de certo o-Senhor An-
ti-Sebas ianista lido, ou examinado a millessima par-
te do que leo , e examinou o eruditíssimo, e incan-
< çavel Abbade, se atreva a dar a ElRei D. Sebas-
tião' por morto na batalha d'Alcaçar , e isto com
tanta certeza, que se anima a dizer: Este foi fiel ,
e verdadeiramente o trágico , e lastimoso fim , etc,
Apezar de que os Historiadores Francezes não cos-
tumão ser muito comedidos, e circunspectos, não
se atreveo a tanto o Francez de la Clede , que na
sua Histora de Portugal , tratando no Tomo IX.
de ElRei D- Sebastião, sobre o delicado artigo da
sua morte , falia com a maior precaução , e toma
todas as medidas para se não comprometter : Ha
quem diga ( são as suas formaes expressões ) que
reconhecendo os Moiros a ElRei D. Sebastião , cer-
cárão-no por todos os lados , e gritarão-lhe , que se
rendefse. Ainda dizem mais , que hum Portuguez
atara hum lenço á ponta da espada, e pedira quar-
tel aos Moiros , osquaes,sem attender a nada , mata-
rão-no desapiedadamente , e ao mesmo Rei D. Se-
bastião. E logo na pagina seguime , continua: Ou-
vindo Famede dizer , que ElRei D. Sebastião fo-
ra morto, ordenou, que se buscasse seu corpo en*
tre os mortos. Achou-o Sebastião de Rezende, e o
reconheceo, segundo dizem, entre hum montão de
cadáveres , dois dias depois da batalha. Estava
coberto de pó, e sangue, traspassado com sete feri-
*•■«
33
das mortaes , negro , e roxo por causa dos ardores
do Sol , o que estivera exposto vaque lies dois dias ,
nú , e tão desfigurado , que quasi se não conhecia*
Formarão no , e lcvárão-no sobre hum cavallo á
tenda do Xarife , onde foi posto cm terra \ e Fame-
de mandando vir os principaes Senhores Portugue-
zes , perguntou-llies se era aquelíe o Corpo de Dom
Sebastião. Sim , responderão elles com os olhos ai>
fogados em lagrimas : sim , este he o Corpo do nos-
so Rei D. Sebastião , não podemos duvidar disso.
Feio que o certo he , que o cadáver estava tão des-
figurado , que se podia duvidar , se era , ou não o
de D. Sebastião. Mas seja o que fór, mandou Fa-
mede fazer hum Auto , etc. etc. De todas estas
precauções , e cautelas se serve o Fr3ncez dela Cie-
de para fallar neste ponto tão melindroso , e delica-
do : he o que deve fazer quem nem quer esbarrar ,
nem fazer esbarrar aos outros. O nosso Anti-Sebas»
tianista porém, sem se canqar em tomar precauções,
e cautelas , atira comsigo pelo despenhadeiro abai»
xo com temeridade pasmosa ; e com menos funda-
mentos ainda do que tem os Sebastianistas para
prolongar a vida a EIRei D. Sebastião , lha tira
muitos annos antes da sua morte, e quer que todos
estejamos por isto , dizendo-nos : Este foi fel , e
verdadeiramente o trágico , e lastimoso fim de EIRei
D. Sebastião. Parece incrível , que haja hum Portu-
guez mais atrevido do que hum Franeez.
Tanta affouteza não aprendeo o nosso Anti-Se-
bastianista do seu Faria , e Sousa , a quem servil-
mente segue ; porque este Historiador , ou Panegy*
rista , d-ípois de ter contado o modo , por que mor-
rera EIRei D. Sebastião, está tão longe de dizer:
Este foi fiel , e verdadeiramente , etc, , que pelo
contrario diz :=, Si esta infelis muerte contarei» otros
E
differentcmente nó avrá , que espantar, pués enuna
riná de quano personas les que^hallan presentes a
cllaf, vemos, que unos la cuenran de una manera,
y otros de otra. =; Para quem sabe ler, e en-
tender , o que Jè estas palavas, querem dizer:
Queaelle, Faria, e Sousa , parece mais provável que
El Rei D. Sebastião morresse por aquelle modo na
batalha d'Africa , mas que a curros parecerá ma;s
provável o contrario , e que cada hum siga o que
melhor lhe parecer. He verdade que pouco acima ti*
nha dito. =j Desta manera acabo eí valoroso Rey en
Ja fior de suf juvenmd , y pagando la deuda divida ,
dio el alma a su Criador. s= Mas que tem que ver
este epifonéma com a segurança , e magistral deci-
são do Anti-Sebastianista : Este foi fiel , e verda-
deiramente o trégire , e lastimoso fim de bum Rei
sem dúvida digno de maior ventura ?
Já que transcrevemos estas ultimas palavras de
Faria , e Sousa , queirão os pios Leitores agora ver
como os traduz o nosso Anti-Sebastianista. xs Desta
maneira, diz elle , acabou o valoroso Rei D.Sebas-
tião na flor da sua mocidade ; e pagando d Nacã&
huma divida necessária , deo a alma ao seu Creador. 23
Bem se deixa ver qual seja a divida y de que falia
Faria, e Sousa nestas palavras, e a quem ella ?e pa-
ga, e deve pagar. Possuímos, ou gozamos da vida
presente por puro empréstimo , e somos obrigados
a pagar este empréstimo , e esta divida áquelle
com quem a contrahimos : Debemuf morti nós ,
nos traque , dizia, o grande Horácio , guiado sim-
plesmente pela luz da razão , e sem algum conheci-
mento da Revelação , pela qual nos consta o Divi-
no Decreto, que nos constitue devedores, e obriga-
dos, indispensavelmente a pagar. Veja-se como o^
nosso Anti-Sebastianista: estropeou o pen> amento-
'.
^* "*C «?*
«♦ -)> *»
daquelle Historiador , accreseentándo a palavra
Nação , e constituindo a esta credora daquelía divi-
da. Mas deixando estas b gatelias , se he que o são,
Vimos ao nosso pcnto. Cançou se era vão, Senho?
Anti-Seb?.s:ianista , e nada conseguio do que per-
tendia. Veja se pkie descobrir algumas noticias au-
thentieas , e até aqui desconhecidas , que févoreçãó
a sua opinião; e em quanto não as descobre, pode
estar certo de que o tempo , o lugar , o género da
morte do infeliz Rei , continuará , como até aqui , a
ser hum Problema Histórico , impo-si\rel de resoi-
ver-se. Eu estou tão certo de que aquelle desgraça-
do Rei já não existe ha muitos annos , como o es-
tou da morre de todos os seus Predecessores : agora
que morresse em 15*78, ou era 15:98 , ou em qual-
quer outro anno; agora que morresse na Africa , ou
na America, na Ásia, ou na Europa ; em Portu-
gal, ou na Hespanha ; na Itália , ou na França ;
agora que morresse de cutiladas, ou de fome; de
doença, ou de velhice, nem eu, nem pessoa algu-
ma o pode com segurança decidir. Cerra por tanto
hum risco de p^nna por cima daquellas palavras :
Este foi fiel , e 'verdadeiramente o trágico, lasti-
moso fim de hum Rei digno de maior ventura , e
deixe muito embota ficar o mais ; pode ser que
não ache muitos, que lho facão por tão pouco. Não
sei se poderás ser tão generoso , quando entrarmos
em contas a respeito das suas Analyses , ou juizos
sobre as Profecias. Ainda bem , que sendo ellas
tantas , Sua Mercê veio á feira com tão poucas ,
porque ainda que seja condemnado a riscar tudo,
não tem muito que riscar.
Quem diria, que estes papeis depois de terem
vivido por tantos annos homiciados e<n árdeR;os ,
apparecendo só ás furtadellas, e como envergonha-
E ii
*?*
36
dos , havião pela primeira vez de se appçesentar ao
público em toda a pompa , e apparato no Século
XÍX. ! Quem poderá acreditar, que estes papeis,
que escondidos, e pouco vistos, tem produzido
tantos abusos, seriáo publicados, e em hum peque-
níssimo folheto , para poderem chegar a todos , por
hum homem que se propõe a desterrar abusos , e
visionarias ! Faltava mais ei;f.a ao nosso Século para
ser o Século das inconsequencias.
Mudemos porém de folha ; e condescendendo
com o bom gosto do tempo , deixemo-nos de refle-
xões ; que não lie da moda o fazei1 as.
Dá o Author principio a esta Segunda- Parte do
seu trabalho, copeando as Profecias, ou Prognósti-
cos, ou como lhe quizerem chamar, do Pai Cle-
mente, vulgarmente , Pretinho do Japão , e segue-se
o Juizo Critico, que delias faz. He hum juizo des-
graçadíssimo, e tão falso como Judas. Diz elle,que
estas Profecias pirece terem sido feitas no tempo
em que vivia o Principe D. José , e depois do ca-
samento do Príncipe Regente. Senhor Anti-Se-
bastianista , eu não posso dizer-lhe com certeza , em
que anno aquelles Prognósticos forao pela primeira
vez escritos : posso porém affirmar-lhe com toda a
segurança , que vi numa Cópia delles no Cartório
de certa Casa illustre desta Corte , escrita por hum
dos Antecessores da mesma Casa, cuja letra vi tam-
bém reconhecida por diversos Tabelliães em mui-
tos outros papeis do mesmo Cartório, e o Copiador
havia fallecido em 1758, como constava dos Autos
de Posse, tomada pelos que lhe suecedêrão, o que
tudo fiz ver a dois amigos meus , que ainda actual-
mente existem. Ha muitas, pessoas nesta Corte , e
Reino, que protestão ter nisto Copias muito mais
antigas > e a sua antiguidade authenticamente pro-
vada ; e ha alem disro milhares de boas testemu-
nhas , que os tem , e conservao desde antes da épo-
ca do Nascimento daquelie Príncipe. Querer pois
que estes disparates fossem pela primeira vez escri-
tos ha vinte annos , pouco mais, ou meno> , he hum
disparate maior que todos , quamo diz o Pai Cle-
mente. Mas eu não sei que partido possa tirar o
Sr. Anti.-Sebastianista de data daquella época os taes
Prognoticos : he verdade , que o que delie se lê a
respeito da Successao , he o que naquelle tempo se
estava vendo, e o que muito presumião. Mas per-
gunto , também ha vinte annos se podia prever , ou
presumir , que se acabaria a de Bragança ( lem-
bre-sc do detestável Decreto do primeiro de Feve-
reiro de 1808) , e entraria a de França , e o de
Fernando , que tem mais mando , que já mandou ,
e mandará , se Deos quizer ? Também naquelle
tempo se podia prever, e conjecturar, que, quando
estivesse Reinando huma mulher em Portugal , que
havia de passar o mar Salgado,
Não sei como senão lembrou de dizer , que
estoutra parte dos taes Prognósticos fora escri:a nos
fins de 1807, e princípios de 1808 : era o que de-
veria fazer para ir coherente. Huma refutação por
este gosto, em lugar de os desacreditar , authentíca os
taes Prognósticos ; porque aquelas reflexões occor-
rem ao Leitor mais idiota , que os tem por verda-
deiros, cuidando que não ha outras razoe? para os
refutar senão as que aponta o Anti Sebastianista ,
cuja fraqueza , e nullidade salta aos olhos de todo
o Mundo. Diz mais que o Preto se mette a Astro-
logo \ quando o pobre homem nem huma só vez
falia em Astros , Estrellas , ConjuncçÔes , Cometas ,
Planetas; não dá em huma palavra o mais leve in-
dicio de presumir, ou se picar : d?Asirologo: jiehum
^* **% ***
falso testemunho descarnado , e sem fevra. Accres-
centa , que o Pai Clemenre diz, e desdiz em hu-
ma mesma Profecia i mas como não indica o lugar,
ou lugares aonde o faça., estamos dispensados de
responder-lhe. Estranha , e com razão , que o Pre*
tinho te mettcsse a escrever sem estudos; mas nesta
miséria cahe desgraçadamente muita gente boa : o
tal Pretinho tem muitos Ccmpanheiros, com a dif-
ferenqa porém, de que o Pretinho, o que escreveo
sem estudos , íechou-o em fcuma lata , e a escondeo
debaixo da cama: se agora sahe ao Público , não
foi certamente por culpa delle , m?s sim de quem
quer que he : outros , que uqq conhecemos , estando
nas mesmas circunstancias do Pretinho , nem fechão,
nem escondem o que escrevem : eu não nomeio a
pessoa alguma.
Passa agora o Author a fallar de huma outra
Profecia , que , seode elle , os Sebastianistas pertendem
accommodar á moderna creaqão da Ordem da Tor-
re , e Espada. Protesto , que nada sei de tal Profe-
cia , nem de tal accommodação ; ainda bem que o
Âuthor se cança tão pouco com ella , que só pare-
ce ter fallado nisto para ostentar o seu bocado de
erudição , tecando mui levemente no que aconteceo
no tempo de EJRei D. Affomo (qual dos seis se-
ria? ) na Torre de Fez , no agoiro dos Moiros,
etc. etc. Deixemos brilhar o homem , e passemos á
Atcestaçíío dos Padres Capuchos.
Para conhecer a visionaria , e futilidade de^a
Attestaçao, basta simplesmente lê-la com os olhos
desnevoados. He evidente , que a Ilha de que nella
se trata , he huma Ilha de Novella , são os Campos
Elysios, he o Paraiso de Mafoma , os Intermun-
dios de Epicuro , o Concavo da Lua , etc. etc. Não
o julgou porém assim o nosso desabusado Anti-Se-
♦ 39 #
bastia nista •, entrou em dúvida sé era, ou não real
a sua existência ; e o modo que descobrio para se
desenganar , he bem próprio dasuattrgétcia , e deli-
cadeza. Decide-se a ir ao Convento do-; Capucho? pi-
ra saber se lá existia, ou não o Original daquel'a
Attesraçao. Isto he delicado , e muito lógico. Se lá
nao existisse o Original da Attestíição, então era fa-
bula, e visionaria tudo o que r.ella se ccntém ; nao
havia tal Ilha, nem tal venerando, nem tacs figu-
rões j agora se lá existisse o Orig<ml, então estava
legitimamente provada a existência daquella Ilha ,
e a de EIRei D. Sebastião em Julho de 1638 , e
nesse caso já o trágico , e lastimoso fim d a que He
Rei, digno de maior ventura , não tinha sido fiel,
e verdadeiramente em Agosto de 1578. Que este
fosse o Discurso do Author, he evidente, porque
se quer achando o Original , quer não, sempre havia
ter por falso o que na Attestação se continha , para
que havia de tomar o trabalho de ir fazer aqaella
arriscada diligencia ? De quão pouco dependeo o'
ser o nosso homem Anti-Sebastianista , ou Sebastia-
nista ! mas vamos proseguindo , que ainda aqui não
está o melhor. Levando por Companheiros a boa
Lógica , e a sã Crítica , deita comsigo ao sobredito
Convento , propõe o seu caso a hum Padre , que
encontrou , e recebeo em resposta , que nada so-
bre aquelle artigo sabia , e que recorresse a outro
Padre , que lhe indicou : Cahe na chia de abraçar
hum conselho , que tinha bastante de suspeitoso, e-
dá-lhe o segundo em resposta, que tal Original lá
nao havia , aecrescentando cm bom Capucho mais
alguma palavrinha de embotía , com que deixou ao
nosso homem desenganado. Ah, meu Padre, que fez
em mentir a hum homem tão ingénuo ? Se lhe diz
a verdade, tinha a Seita do Sebastianismo mais este
W~r0U*>t^eKj
40
alumno ; e com que ha de reparar-lhe esta perda?
Seita malfadada , que sempre os bons Quixotes hão
de ter pela proa a má fortuna? Mas consola-te,
tempo virá. . . . Com hum testemunho tão authen-
tico se deo , em fim, por desenganado o nosso ho-
mem : nada mais lhe foi preciso , porque he tão bem
intencionado , qce tem per axioma incontestável a
tudo o que lhe diz hum Padre, que he politico co-
mo poucos, e que parece ser virtuoso , tsálio^
nada importa , que seja hum só, nem que pela pri-
meira vez lhe fallasse , nem que concorressem nelle
razões fertes para não dizer a verdade; tudo isto
são bagatelas , de que só fazem caso os excffofplos^r
averiguadores da verdade , e o Author abomina tudo
o que he escrúpulo.
Ora , Senhor Anri-Sebastianista , tornemos a fal-
lar sério. J:i que da existência daquelle Original fez
dependei- o ser , ou não Sebastianista , corra a dar
o seu nome no Cáes do Sodré , porque com effeito
cm hum dos livros do antigo Cartório daquella
Communidade existe realmente o Original daAttes-
taqao , tal , e qual se lê no seu Anti-Sebastianismo :
ambos aquelles Padres lhe dérão papinha, e o se-
gundo soube-lha preparar com mão de Mestre. Pro-
cure meios mais engenhosos , do que aquelles, de
que se sérvio ; e lhe protesto , que terá o gosto de
o ver com esses olhos peccadores , que a terra ha
de comer. Houve tempo , em que os Padres o mos-
travão com franqueza; mas depois que línguas mal-
dizentes começarão a espalhar , que elles^ levavão
doze vinténs por cada Cópia, que deixavão tirar,
tratarão de fazer myçterio pera evitar os progressos
daquella maledicência , e falsidade. Talvez que
tenhão ainda mais algumas razoes; e entretanto, sen-
do levados com geito, ainda cabem em satisfazer,
mas gratuitamente, a curiosidade de alguns amigos.
p 41 &
Não me permitte o pezo dos annos o saltar o
artigo das galantíssimas Contradicções . que o nosso
homem encontrou na Anestaqão dos Padres. A pri-
meira he chamarem nclla os Padres at restantes ao
tal Figurão, que na Ilha fazia maior vul;o h/mas
vezes Rei , outras Governador , outras Velho , ou-
tras Venerando , outras Venerado. Com effeito ,
são predicados estes , que não pod:m simultanea-
mente coincidir em hum mesmo Sujeito, Se era
Rei , como era Velho ? Se era Velho , como era Ve-
nerando ? Se era Governador , como era Veherado ?
Para irem coherenres deverião chamar-lhe Rei , que
não governava , Velho , Moco , Venerando , que
não era venerado; porque o mais he humaContra-
dicçao enorme. Attribue porém o Anthor estas Con-
tradicções ao Susto com que ainda estavao os Pa-
dres ao passar a Attestaçao já fora 'da* Ilha ; mas
não quer que este Susto , quando ainda lá estavao ,
lhes sirva de desculpa de se não terem lembrado,
ou atrevido ( que he a segunda Contradicç/ão ) a
perguntar o nome do tal Figurão , e da Ilha , e
tantas outras curiosidades. De maneira , que vem a
desculpar os effeitos do Susto , quando já não exis-
tião motivos para o haver, mas n:ío o quer admit-
tir, quando o perigo, e os motivos do Susto esta-
vao diante dos olhos. Ora desculpe-os , e passe-lhes
também por esta , Senhor Anti-Sebastianista , bem
sabe que nem todos podem ser tão impávidos, eco-
ragiosos , como Sua mercê. Ainda que a pezar de
toda a sua valentia , e denodo , de que deo altas
provas na sua Aldêa , e no encontro coin os Ceifei-
ros da estrada de Madrid , sempre desejaria de pa-
lanque vê-lo na ral ilha cercado de tdtàôs aquelles
Figurões , e tendo á vista a senrineíla dobrada da-
quelles dois Leões, para ver como se amanhava com
F
fr 42 &
íudo isto , e se tratava de fazer perguntas curiosas ,
çu de dar á sola, e de se retirar com toda a pressa
para o navio., amaldiçoando a hora , em que lhe vie-
ra ao pensamento a curiosidade de ver tal Ilha.
Desculpe pois os Padres , e compadeça-se de qu m
he fraco, o que também he huma nota de valentão.
Seguem-se agora as Profecias do Lavrador do
-Algarve, e o juízo que delias forma o nosso Anti-
Sebastianista. Cuido, que pelo muito que as leo se
familiarizou tanto com o estilo do Profeta , que o
texto , e a Analyse parecem ser Obra de huma só mão :
huma, e outra coisa são igualmente enigmáticas, e
inintelligiveis. Apenas pude comprehendei em ambcs
O seguinte. Falia o Profeta Algarvio em quinze pa-
vês de Cavalleiros, dobrados. Diz o Analyz.ad.or , que
elle não sabe contar, e que deveria dizer, trinta
Cavalleiros , Ora eis-aquioque se chama saber con-
tar; quinze pares de Cavalleiros dobrados fazem trin-
ta Cavaleiros , isto não tem Jeronymo nenhum de
4iivida: se. fossem quinze pares singellos , então etâo
sessenta , ma? dobrados são trinta, E então que tal
Arithmetico he o. Senhor Anti-Sebastianista ? Po*
teá alguém negar-se a ter contas com eile ? E diz ,
que o> pobre Algarvio não sabe contar por ter dito
quinze pares dobrados , quando isto o que prova
l*e que elle não sabe reduzir aquella soturna á ex •
pressão mais simples : o Anti-Sebastianista porém
dizendo , que quinze pares de Cavalleiros dobrados
fezem, trinta; Cavalleiros; esse sim-, esse sabe con-
tar muito bem , e esta| habiliiado para poder pôr
1<JJ3; de contas ao Chiado*
Dizendo q Lavrador do Algarve , que virá
hum. Anjo do Ceo , observa q Analyzador , que acha
aqueífe homem humas vezes Santo , outras. Atheis-
t&* 1$m sei eiDi que lugar da» sua Obra. dê o po*«
* 43 &
bre Algarvio motivo para se suspeitar nem huma ,
nem outra coisa. Se porque elle falia em Anjo do
Ceo , he que ao Analyzador lhe parece hum San-
to, muito pouci coisa basta para hum homem pa-
recer Santo ao Senhor Analyzador ; mas está bom ;
he homem bem intencionado, não o censuremos:
de que parte porém , ou expressão das Profecias
inferirá o Analyzador, que elle he Atheista , nome
tão feio , e detestável ? Por mais que eu leia , e
torna a ler aquella Obra , o mais que posso desco-
brir he , que o seu Author , ou he hum imbecil ,
e visionário, ou hum maganão de bom gosto, que
quiz dar que roer aos curiosos ; mas que seja
Atheista, tai não posso ver. Lcmbrando-me porém
de que qu;nzc pares dobrados fazem trinta , me lem-
bro também de fazer ao Senhor Analyzador esta
pergunta. Que entende o Senhor por Atheista? So-
mos em fim chegados ao ultimo 'termo das nossas
fadigas. São as trovas do Moiro de Granada , sa-
biamente , como costuma , analyzadas peio nosso
homem. Responde quasi a huma por huma até á
decima sexta , aonde cançou , e ficou na estrada. As
respostas são concludentes , e muito a propósito.
Este discurso he bellissimo. O que diz o Moiro
pode accommodar-se a diversos tempos , logo não
he Profecia. Não sei como para acclarar mais este
calcanhar se não sérvio de huma comparação , ou
semelhança; por exemplo, o chapéo , que serve
em muitas cabeças , não he chapéo. Isto he termi-
nante: se aqui ostentou de muito bom Lógico,
pouco mais abaixo igualmente ostenta de grande
politico, dizendo , que os Iftg/ezes não tem a nos-
sa Lei , e que matarão ao seu Rei. Isto na quadra
actual , he hum rasgo da mais fina politica. Mas
se deo aos Inglezes esta verde, na resposta tieze
F ii
** 1^ í»
íhes dá outra madura, profetizandolhes , que o seu
Jorge III. ha de destruir a 'Napoleão. Deos o per-
mitta , meu Profeta-, que tão ma! tratas os Ofriciaes
do teu Ofricio; protesro, que se este teu vaticínio
se realizar nos meus dias , te acclamarei pelo maior
dos Profetas mínimos , mais Bandarra do que o
Bandarra , mais Preto do que o Preto , e mais Moi-
ro do que o Moiro.
Já eu cuidava que estaria concluida a minha
tarefa .quando ao voltar a folha para fechar o fo-
lheto me acho peia proa com mais três Profecias ,
e do nosso Anti-Sebastianista , e trurormeme a pri-
meira , e a ultima sao muito consoladoras. Diz a
primeira, que dentro de dois ânuos, e mais se hão
de achar enterradas nos Campos, e entulhos das -ca-!
sas muitas cousas. Se for prata, e ouro cunhado,
ou por cunhar , seria bom entrarmos já na explo-
ração dessas muitas coisas , que bem precisas nos
sao na conjuncção actual ; e não sei como hum ho-
mem tão zeloso do bem da Pátria , como o nosso
Anti-Sebastianista, se quer inculcar, em lugar de
escrever Anti-Sebastianismos , refutar humas Profe-
cias , e fazer outras , se não propõe a fazer exca-
vaçòes , ou ao menos a indicar-nos os sítios, aonde
aquellas muitas coisas existem , porque de certo o
ha de saber, não se podendo presunrr, que o es»
pirito Profético fosse para elle tão mesquinho , e
escasso, que tendo-lhe revelado, que aquellas mui-
tas coisas existem realmente enterradas , lhe não
assignasse o lugar aonde estão. Faca-nos pois esta
caridade , Senhor Profeta , e com ranto que ache-
mos aquellas muitas coisas , deixe-nos embora cha-
mar-lhes encantadas , ou desencantadas , que isto
he huma pura questão de nome. A segunda Profe-
cia promette-nos annos escassos, e aruios abundan-
$3 45-
tes. Deixemo-la , que he como a carne da pá. A
terceira he a melhor de todas, pelas grandes. noti-
cias que nos dá. Assegura nos de que a Rússia ,
e todos os mais Povos subjugados por Napoleão ,
estão a nosso favor. He quinto nós desejávamos,
mil annos vivas , minha bo-.boleta das boas novas.
Ainda que esta Profecia seja de pretérito , bem se
vê , que he Profecia , porque até ao momeno actual
só pelo Author delia he que sabemos, que a Kus-
sia estava subjugada por Napoleão , e que se decla-
rou contra ella a nosso favor. He para que nos
desenganemos de que o nosso homem nío he qual-
quer Profeta , que só varicinao futuros ; he. sim
hum Profeta , que profetiza para trás, e pira dian-
te. Na hypothese pois, -ou certeza, que para hum
tal Profeta não ha hypotheses , de ser verdadeira
esta Profecia para trás , profetiza para diante a vi-
ctoria , se da nossa parte pozermos Homens , Ar-
mas , e valor. Se eu fosse Militar , diria , que sem
disciplina, e ordem , e algumas bagatellas mais,
muito pouco valem aquellas três cousas, a pezar
das grandes Letras com que estão escritas. Se fos-
se Politico accrescentaria, que sem dinheiro de qua-
si nada servem; e se fosse Moralista, gritaria, que
sem a protecção, e benção do Ceo , bens, que da
nossa parte está o merecer , todas aquellas coisas pa-
ra nada prestão. Mas como nada disto sou , curvo-
me todo diante das Profecias , e do Profeta , e dou
por concluída a tarefa.
Julgo ter satisfeito o que prometti : julgo ter
legitimamente provado , que o modo por que , o
lugar aonde , e o tempo em que falecera o ousado
Rei D. Sebastião, são Problemas Hi-torico^ abso-
lutamente impossiveis de resolver-se , em quanto
não apparecerem algumas noticias authenticas , e
4*
46 ft
ainda não descobertas, que nos dem sobre este ar-
tigo aquelle gráo de certeía , que todas as que te-
mos até aqui não tem podido dar-nos. Julgo ter
dito quanto baste para mostrar, que a opinião de
ter aquelle lastimoso Monarca perdido a vida na
batalha d'Alcaçar em Agosto de 15-78 , jamais po-
derá passar de mera opinião, e pouco provável.
Do mesmo modo julgo ter mostrado , que as
chamadas Profecias , Prognósticos , Trovas , e Attes-
taqão , pela fraqueza , e falsidade das razoes , com
que forão refutadas , ficarão no mesmo pé em que
estavão antes de o ser; e tanto basta para que os
seus partidistas supponhão , que avançarão hum terre-
no immenso. Julga-se victorioso hum exercito , quan-
do sendo aCvOiume:tido não he desalojado , e obri-
gado a recuar, ou retrogradar, que he a palavra mais
da moda. Julgo , em fim , ter mostrado , que o papel ,
que tem por titulo Anti-Sebastianismo , he mais
próprio para fazer huma nova creação de Sebastia-
nistas , do que para desabusar do seu erro aos que
já o erão. Q^ E. D.
Antes de concluir este Opúsculo , creio que se
me não deve estranhar , que eu aqui exponha o
meu modo de pensar, sobre esra matéria, sujeitan-
do tudo quanto disser aos que melhor o entende-
rem. Não sei que haja Lei alguma , que obrigue a
qualquer, que se proronha a provar , que EIRei
IX Sebastião ja' não existe ha muitos annos ; que o
obrigue, digo, a assignar individualmente o dia,,
raez , e anno , em que elle morrera ; o modo por
que , e o lugar onde a morte o avassallára. De se
ignorar tudo isto, segue-se por ventura que elle ain-
da esteja vivo ? Seriamos obrigados nesse caso a
dizer , que a maior parte dos que tem povoado o
Mundo , d>esde que elle existe , ainda não morrera ;
* 47
**•
sendo certo que só de huma pequeníssima porção
se sabe o modo , o tempo , o lugar , em que fa-
lecerão. Sabemos com toda a certeza , que aquelle
infeliz Rei nascera em Lisboa a 20 de Jane ro de
1554 ; e que mais lie preciso para poder arfirmir
com a maior segurança , que pelo menos ha hum
Século bem medido , que elle perdeo a vida ? Piira
que nos havemos de ir enredar naquellas questões
sem necessidade alguma }
Tão opprimicios se sentem os Sebastianistas
com o pezo daqoeile argumento , que se vêm obri-
gados a sumir -se-nos , voando ao Ceo , e recorren-
do a Deos ,Ae a quem se deve recorrer para tudo,
menos para authorizar taes embecilidade>-. Dv^em
que- Deos o tem reservado por particular providen-
cia ; e que a Deos. nada he impossível. Desta ulti-
ma asserção só pode duvidar o ímpio consummado.-
Mas para nos convencermos de que Deos na reali"
dade assim o fez , não basta o estarmos convenci-
dos, de que elle o podia fazer, porque o axioma de
que da potencia para o acro não vale a conclusão , h&
hum axioma dictado pela boa razão , da qual Deos
he o Soberano principio. Deos podia fazer com que
eu. não estivesse aqui escrevendo estas regras ; toda-
via porque o podia fazer , não se segue que o fi-
zesse , e por bondade , e misericórdia sua aqui es-
tou ainda escrevendo- He preciso , que nós apon»
tem alguns argumentos, que positivamente pro<
vem , que Deos tem com effeito reservado neste
Mundo a EIRei D. Sebastião. Reduzidos a este
aperto , recorrem os Sebastianistas ás revelações
particulares , ás chamadas Profecias , etc. etc. He
verdade que podíamos pergunrar-lhe pe!a authenti-
cidade destes papeis ; podíamos pedir-lhes que nos
provassem a sua antiguidade j.que nos fizessem rea-
& 48
*?*
lizar as datas , com que correm ; podíamos fazer-
lhes ver , que aquella Atrestaqao podia entrar em
Episodio nas viagens de Gulliver ; que aquellas
Profecias são quaes os oráculos da Pytonissa, que
a frase, e estilo, em que estão escritas , depõem al-
tamente contra a antiguidade, que se lhes attribue ;
que são absolutamente enigmáticas , ininíelligiveis ,
e concebidas em termos taes , que não he possivel
o serem accommodadas fixamente a esta , ou aquel-
la época. Tudo isto he evidente, tudo salta aos
olhos. Mas não nos entremetíamos também nestas
questões ; concedamos-lhes tudo , mas instemos-lhes ,
que tratando-se de hum facto tão extranho , e so-
brenatural como he o de estar ainda vivo por par-
ticular providencia de Deos hum homem, que nas-
ceó cm 15^4 , isto he , ha 25*4 annos , he preciso para
crer hum testemunho também sobrenatural , e ex-
traordinário dí authenticidade , e verdade daquellas
revelações , daquellas Profecias , etc. etc. , que este
testemunho só nos pode ser dado pela Santa Igreja ;
e que faltando este , he pelo menos huma temerida-
de o crer em semelhantes coisas. Se nos ai legarem
com a sabedoria , e santdade de alguns , a quem se
attribuem varias daquellas revelações , e Profe-
cias , respondemos-lhes , que respeitamos muito a
sabedoria , e santidade dessas pessoas ; mas que
sem entrevir a authoridade da Igreja nem somos
obrigados , nem devemos crer nas suas revelações ,
e Profecias , ainda mesmo que tivéssemos toda a
certeza de que na realidade erno suas, e que se en«
tendiãp no mesmo sentido , em que forão escritas.
Que a Igreja canonizando-os de Santos , não os
canonizou de Profetas; e que para se desengana-
rem de que nisto n.lo offendemos , nem levemente a
sabedoria , ou santidade daquellas pessoas , al.às mui-
***
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to dignas de respeito , e veneração , que leião corri
attenção o que no Discurso V. do Tomo VII. do
seu Theatro Critico diz o erudito , e religiosíssimo
H espanhol Bento Feijoo a respeito dos grandes
Bispos de Tours S. Martinho, e Apostolo de Va-
lença S. Vicente Ferrer, que viverão , o primeiro
no Século IV. , e o segundo no XIII. , que am-
bos profetizarão o fim do Mundo , e o Juizo Uni-
versal com tanta proximidade , que davão já por
existente, e nascido cada hum nos seus dias ao An*
ti-christo. Dos enganos , e illusões dos homens
Santos, e sábios, provão os Santos Padres , que
resultão muitos, e grandes bens á Igreja, quando
íàllão das negações de S. Ped o , e da incredulida-
de de S. Thomé. Se a pezar de tudo isto quizerem'
teimosamente porfiar na sua opinião , deixemollos-
em paz, não os atormentamos , nem nos a f Mijamos;
podem-se muito bem salvar com este erro , que
não he de fé , e até eu não vejo , que mesmo na
Ordem Civil, e Social elle seja de graves conse-
quências. Eu não vejo que esta pobre gente
por estar convencida de que virá EIRei D. Sebas-
tião a restabelecer a antiga gloria , e prosperidade
de Portugal, deixe de amar, e de respeitar a sua
Fidelíssima Soberana, es seus Augustos Príncipes;
continuamente os estou ouvindo fallar com a mais
viva saudade de toda a Real Família, e suspirando
pela sua restituição á Corte. Vejo que elles con-
correm, quanto lhes he possível, para as despezas do
Estado , e defeza da Pátria , e talvez com maior
generosidade , e promptidao , do que os que se tem
por desabusados. Assemelhando-se nesta parre ao
Lavrador singello, que quanto mais firmemente crê
no Repertório, ou Prognostico, que lhe annuncía
boa eoiheita para o anno seguinte , tanto mais se
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esmera , e empenha nas despezas da cultura. Não
duvido de que hum , e outro caia naquellas misé-
rias , que o Author do Anti-Sebastianismo refere
no fim da pagina 13 do seu Opúsculo, e que mui-
to custao a crer ; mas isto nada prova contra o Cor-
po da Seita em geral. Houve hum Lúcifer entre os
Anjos , e hum Judas no Sacro Apostolado.
Permittíra o Ceo , que não houvesse abusos
mais vergonhosos , e erros mais funestos ! Tenho
observado, que aquelles , que mais ridiculizao, e
mórao da louca esperança dos Sebastianistas , são os
que esperão , que Napoleão faça á Europa os mes-
mos bens , que os Sebastianistas esperão , que El-
Rei D. Sebastião venha fazer a Portugal. Ora eu
peço a todos os homens de bom senso, que me di-
gão qual destas duas esperanças he mais absurda ,
repugnante, e de consequências mais funestas: qual
mais digna de ser combatida , e castigada.
A Policia, a Magistratura , as Authoridades
Constituídas , o Governo resolvem o Problema , e
nos decidem a questão. Vamos ao Limoeiro , ao
Castello , ao Prezidio da Trafaria , ás Torres saber
qual he a decisão.
Deixemos pois em paz aos pobres Sebastianis-
tas , que no seio da calamidade geral se confortaa
com aquella esperança , que não prejudica a pessoa
alguma , e voltemos todos as nossas armas contra
os Napoleonistas , escândalos da razão , aborto da
natureza , pestes da sociedade , deshonras da Pátria ,.
enxovalhos da espécie humana , opprobrios , e igno-
minia da Santa Religião.
Tudo isto , já se sabe : Salvo meliori judicio*
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