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Full text of "Fernando Pessoa: poeta da hora absurda"

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PESSOA 

POETA  DA  HORA  ABSURDA 


DO   ALTOR 

A  CRIANÇA  NAS  RELAÇÕES  COM  O  ADULTO.  Porto,  1943. 

RETRATO  DE  EÇA  DE  QUEIRÓS,  Porto,  1944. 

EÇA  DE  QUEIRÓS  — UMA  ESTÉTICA  DA  IRONIA,  Coim- 
bra,  1945. 

NA  ANTE-CAMARA  DE  EÇA  DE  QUEIRÓS  (In  LIVRO 
DO  CENTENÁRIO  DE  EÇA  DE  QUEIRÓS,  Lisboa,  1945). 

MONIZ  BARRETO  (in  «PERSPECTIVA  DA  LITERATURA 
PORTUGUESA  DO  SÉCULO  XIX».  Lisboa,  1947). 

lírica  E  DIALÉCTICA  EM  CESÁRIO  VERDE,  Coimbra, 
1957. 


MÁRIO    SACRAMENTO 


FERNANDO  PESSOA 

POETA  DA 
HORA  ABSURDA 


Ao 


Vergilio  Ferreira 


«o  homem  e  a  hora  são  um  só» 

MENSAGEM 

^Esfrangalha-os  e  fica  só  tu, 

volante  abstracto  nos  ares, 

Senhor  supremo  da  hora  europeia» 

PASSAGEM   DAS   IlORuXS 

*No  mesmo  absurao  há  cjuc  /loccr  razões» 

PÁGÍMAS  DE  DOUTRINA   ESTÈnCA 

«Não  é  alegria  nem  dor  esta  dor 

com  que  me  alegro. 

/:  a  n\inha  bondado  inversa  não  é  nem  boa  nem  má». 

HORA    ABSURDA 


ENCOI^IENDAÇÃO  DO  AUTOR  AOS  SEUS 
NUMES  TUTELAíiES. 

«Quando  acabei  de  ler,  Goethe  dirigiu-se  de  novo  a  mim:  — BemI,  disse 
ele.  mostrel-lhe  uma  coisa  boa!  Daqui  a  uns  diaa  há-de  dizer-me  a  sua 
opinião  a  respeito  dele».  Conversações  de  Ooethe  com  Eckermann. 

Daqui  a  uns  tlias,  — porciué?  Decerto  por  Ooethe  saber  que 
Eckerinunn,  tão  devotado  à  sua  obra  e  ao  seu  génio,  só  en- 
tão recuperaria  a  plenitude  da  sua  inteligência  crítica:  só 
wna  vez  esvaído  o  fragor  da  enwção-in^ediata  a  oora  pode- 
ria assumir  os  contornos  da  emoção-inteligivel,  e  só  então 
valeria  a  pena  conversar  sobre  ela. 

No  plano  estético,  vale  apenas  a  obra  que  sobreviva  a  uma 
experiência  dessas,  concluiremos.  1  ai  qual  o  amor  que 
resiste  ao  apartamento,  —  tenderão  alguns  a  confundir. 
E  é  o  que  mais  importa  aperceber:  se  a  distância  e  o  tempo 
podem  de  per  si  desvanecer  ou  acrescer  o  amor,  o  que 
distingue,  pelo  exemplo  dado,  a  emoção  estética  no  pró- 
prio terreno  da  vida  afectiva  é  a  circunstância  de,  forma 
conyplexa  (fue  é  da  emotividade  superior,  implicar  por  ai  a 
anuência  da  razão,  e  só  se  tornar  como  tal  inconfundível 
a  partir  do  momento  em  que  atinge  um  limbo  de  inteligibi 
lidade.   Que  para   isso   tenham  por  vezes   a  ausência   e  o 


^I    Á    R    1    o       S    A    C    R    A    M    E    M    T    O 

tempo  de  concerlar-sc.  é  apenas  um  aspecto  já  implícito  na 
noção  de  riue  o  disfrute  artístico  exige  uma  iniciação.  Pre- 
pararmo-nos  culturalmente  para  a  apreensão  duma  certa 
modalidade  de  arte  não  é  de  /«c/o  senão  jamiliarizarmo-nos 
com  os  caminhos  ([ue  levam  à  plenitude  dessa  integração. 
E  compreende-se  assim,  sem  contradição,  que  se,  por  hipó- 
tese, aquele  episódio  das  relações  de  Eckermann  com  Goe- 
the se  referisse,  não  à  leitura  de  uma  obra  do  próprio  Goe- 
the, mas,  por  exemplo,  à  de  uma  poesia  inédita  de 
Shakespeare,  pudesse  Goethe  pronunciar-se  imediatamaer^le 
sobre  ela.  pois  atingira,  nesse  domínio,  a  maturidade  em 
que  a  emoção  logo  se  libra.  Assim,  longe  de  admitirmos  ([ue 
l(d  circunstância  possa  redundar  em  desfavor  da  emoção^ 
-estética  como  tal,  insistiremos  em  que  só  desse  modo  ela 
vibra  afinal  em  plenitude.  Se  não,  recorde-sc  como.  no 
regresso  dum  espectáculo  artístico,  é  quase  sempre  um 
índice  da  qualidade  (jue  assumiu  a  maior  ou  menor 
reserva  que  opomos  ò  comunicação  das  nossas  impressões. 
Ê  no  isolamento  dessa  espontânea  reserva  ou.  se  impos- 
sível, num  remedeio  de  alheamento  que  se  processa  uma  das 
mais  importantes  fases  daquela  operação  íntima.  I^um  tal 
sentido,  pode  dizer  se  que  o  melhor  dum  autêntico  espec 
láculo  artístico  começa  muitas  vezes  —  quando  já  terminou. 
Nno  faltará,  contudo,  quem  pretenda  que  isso  só  sucede 
quando  o  espectador  é  um  critico.  Ora  o  que  distingue  objec- 
tivamente o  crítico  do  comum  dos  mortais  é  apenas  a  capa- 
cidade de  se  expressar  como  tal.  Gom  efeito,  o  dom  do  espí- 
rito crítico  tanto  distingue  entre  si  os  indivíduos  incluídos 


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PESSOA,     POETA     DA    HORA     ABSURDA 

num  com um-cle  mortais  como  os  compreendidos  num 
comum-de  cri  ticos.  /:  lem-se  assim  de  pressupor  que  em 
todo  o  mortal  haja  a  inibição  dum  crítico, — e  ainda 
(como  nesle)  a  dum  artista.  De  outro  modo,  como  teriam 
a  arte  uma  crítica  e  a  arte  e  a  crítica  um  público?  Logo,  a 
objecção  tornou  qualificativa  uma  distinção  por  ora  quanti- 
tativa apenas.  Fazendo-o,  apontou  porém  à  realidade,  pois 
só  na  medida  em  (fue  o  «crítico»  se  apercebe  do  que  o  se- 
para gradativamente  dos  demais  se  consciencializa  como 
tal  c  devem  crítico.  Assim  chegamos  a  reconhecer  perante 
a  arte  a  existência  dum  plano  de  apercepção  que  tem,  sem 
dúvida,  características  próprias  mas  que  resultaram  pelo 
mero  incremento  das  mais  comuns.  Quais  serão  elas? 

Criticar  é,  I undarienlalmente,  escolher  e  ordenar.  É  objecti- 
var, portanto,  e,  como  tal,  descrever.  Seja  o  exemplo  clássico 
da  descrição  de  paisagem:  cumpre  ao  seu  autor  organizar 
um  juízo,  através  do  exame  do  objecto  em  causa,  pelo  ciual 
o  integre  na  escala  de  valores  dum  consenso  que,  lendo  j'i 
definido  a  paisagem  como  idílica,  agreste,  soturna,  gran- 
diosa, quer  r/ue  lho  confirmem  no  porquê.  A  dependência 
subjectiva  de  tais  qualificativos  encontra  assim  na  existên- 
cia desse  consenso  um  limitador- — face  à  contradição  que 
seria  a  sua  incondicional  entrega  ao  puro  arbítrio  dessa  sub- 
jectividade. Ora  a  arte  é  um  produto  do  homem  em  socie- 
dade. E  em  sociedade,  tal  como  a  conhecemos,  a  primeira 
coisa  que  sucede  a  um  ser  humano  é  tomar  partido.  Logo, 
a   '(objectividade^^   do  critico   é  sempre  função  da  posição 


U 


,\/    Á    l<    i   o       S    Á    r    l<    A   M   E   A'    r   o 

sociíil  (xir  clv  ((.s.M(ni((/a,  /kx/ímk/o  oslar,  (tssiiii,  oit  não.  clc 
acordo  com  a  oricnUií^ão  efecliua  cio  momento  liislórico  em 
f/i/í'  surf/c,  (fiie  o  tncsmo  ó  dizer:  ter  oii  não  viauiliddde.  ou 
ainda:  ser  ou  não  ser  ol>jeclividade  de  facto.  Daciui  re- 
sulta o  carácter  ensaistico  da  critica,  agrarado,  por  demais, 
com  o  que  o  gosto,  a  cultura  e  a  experiência  do  critico 
jazem  intervir  como  pessoalismo  estreme  numa  actividade 
(fue  visa  a  superação  disso  tudo.  Assim,  se  o  critico  se 
deixo  enlear  j)elos  jillros  da  emoção  injediata,  cai  num 
impressionismo  nehuloso;  se  toma  partido  contra  a  senda 
aberta  ao  crilicisn^o  do  seu  tempo,  esgota  se  no  jogo  estéril 
de  provar  ([ue  lui  razões  contra  a  razão;  mas  cumpra-se 
ele  o  tnais  satisfatoriamente  em  relação  a  tudo  isso,  e  não 
poderá  assim  mesmo  es(juecer-se  que  não  há  gosto,  não  há 
cultura,  não  há  experiência  que  não  evoluam,  quer  dizer, 
(fue  não  há  «objectividade»  que  se  não  tolde,  nem  descon- 
tentamento critico  que  se  não  avinagre  em  auto  censura  e 
se  não  esfume  em  decepção. 

(Consciência  de  tudo  isso,  persistência  através  de  tudo  isso 
e  a  seu  despeito,  eis  o  caminho,  está  claro. 

Mas  há  móis,  um  mais  ainda  c  sempre:  a  obra  que  não  des- 
perte no  crítico,  enf/uafi/o  ainda  não  crítico,  aquele  tumulto 
intimo  que  pode  exigir  um  «daífui  a  dias»  para  se  volver 
cm  juízo,  tem  muito  poucas  probabilidades  de  se  prestar  a 
unui  critica  de  nível,  pois  tudo  indica  haver  ai  un\  iiui 
deíjuatuento  dct  obra  ao  critico  ou  do  crítico  à  obixi,  é  o 
mesmo. 


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l^tíSSOA.     l'OHTA    DA    HORA     ABSURDA 

H  cíiegamos  ao  ponto :  o  autor  destas  linhas  tem  encontrado 
óbice  bastante  na  ponderação  dos  problemas  atrás  enuncia- 
dos para  se  inibir  perante  as  figuras  literárias  que  mais  o 
solicitam.  Como  explicar,  assim,  que,  decidindo-se  a  escre- 
ver este  ensaio,  tcnlia  podido  preteri-las  por  um  autor 
perante  o  qual  acka  conveniente  começar  por  dizer  ter-se 
suposto  incurso  em  tal  inadequamento?  Julga  que  deste 
modo:  o  poeta  Fernando  Pessoa  realizou-se  pondo  em  causa 
esses  mesmos  valores  que  fazem  interdepender  a  crítica  e 
a  arte.  Nesta  conformidade,  ninguém  afinal  como  ele  para 
conceder  uma  oportunidade  ao  crítico  de  se  defrontar  com 
os  seus  problemas,  rcvendo-os.  Dai  a  razão  por  que  àquele 
inicial  <íinadequamento»  (cambiado  em  «desinteresse»)  pôde 
suceder,  mediante  a  meditação  da  sua  problemática,  um 
caloroso  interesse  pelo  —  autor  desse  desinteresse.  Caso 
flagrante  de  esteticismo-especulativo  tão  a  seu  modo  precur- 
sor do  venal  filosofismo-estético  dos  nossos  dias,  Fernando 
Pessoa  teria  fatalmente,  como  poeta-da-hora-absurda,  de 
subverter  em  nome  do  absurdo  a  ordem  natural  das  relações 
do  crítico  com  o  artista.  E  eis  assim  como,  e  porque,  veio  o 
crítico  a  supor  ter  readquirido  os  seus  direitos  em  termos  só 
diferentes  porque  únicos,  quanto  a  ele,  neste  caso  possíveis. 

Pôr  assim  a  questão  é,  está  claro,  tomar  desde  logo  partido 
contra  o  veto  crítico  a  que  obra  de  Pessoa  tem  estado 
mais  ou  menos  sujeita  a  pretexto  da  «essencialidade^  do  fe- 
nómeno poético.  Para  nós,  com  efeito,  uma  coisa  é  esse 
fenómeno  em  si  e  outra  a  significação  que,  para  além  dele, 


13 


MÁRIO        SACRAMENTO 

a  poesia  como  linguagem  assume.  Qualquer  outra  atitude 
acabaria  postulando  a  sua  insignificação  cultural. 

Somos,  deste  modo,  forçados  a  aceitar  f/ue  este  ensaio  abra 
sobre  um  limiar  polémico  por  considerarmos  essa,  no  mo- 
mento presente,  a  única  forma  de  enfrentar  a  questão  com 
alguma  probabilidade  de  progresso.  Só  o  acollúmento  acrí- 
tico da  mensagem  figurada  de  Pessoa  tem  permitido  de 
facto,  supomos  nós,  escamotear  a  evidente  absurdidade  da 
sua  mensagem  real,  mediante  o  mito  do  génio.  Quer  dizer: 
para  nós,  o  impasse  crítico  originado  pela  obra  de  Pessoa 
resultou  de  se  ter  postulado  a  sua  genialidade  merco  daquilo 
mesmo  que  nela  se  intuiu  (mas  se  não  consciencializou} 
absurdo,  tendo-se  de  seguida  suprimido  tal  absurdo  em 
nome  da  incompatibilidade  existente  entre  ele  e  esse  génio! 
Abrem-se  assim,  para  nós,  no  plano  duma  crítica  actual, 
duas  ordens  de  problemas  em  relação  a  Fernando  Pessoa: 
por  uma,  visaremos  o  escandaloso  absurdo  duma  geniali- 
dade que,  a  continuar  a  aceitar-se,  só  poderíamos  definir 
pela  negação  dos  valores  mais  inerentes  ao  próprio 
conceito  de  génio,  dado  o  mesmo  Pessoa  ter  feito  dessa 
base  um  remedeio  ou  compromisso  de  realização  artística; 
por  outra,  procuraremos  integrá-lo  no  lugar  a  que  tetn  o 
mais  indiscutível  jus  como  expoente  máximo  que  foi  dum 
período  literário  que,  embora  secundissimo,  pôde  não  obs- 
tante conceder-lhe  os  meios  de  se  realizar  como  seu  típico, 
sim,  mas  superior  poeta  nos  termos  de  uma  obra  que,  de 
acordo  com  ele,  a  um  mesmo  tempo  sabe  aliciar  e  cons- 
tranger. 

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GENIAI^IDADE    VBSURDA 

Na  introdução  que  antepôs  às  Cartas  de  Fernando  Pessoa 
a  Armando  Côrtes-Rodrigues.  Joel  Serrão  escreveu  as 
seguintes  palavras  que.  se  bem  que  o  ( oloquem  no  polo 
oposto  cio  que  visamos,  têm  contudo  o  mérito  de  chamarem 
a  questão  ao  terreno  que  reputamos  o  mais  próprio: 

«Aflgrura-3e-me  que  o  problema  dos  heterónimos  de  Pessoa  tem  a 
mesma  explicação  que  a  «dualidade  irredutível»  de  Antero:  a  complexi- 
dade da  alma  humana,  acentuada  nos  temperamentos  poéticos  geniais, 
complexidade  que  não  invalida  a  unidade  psíquica  das  irredutibllidades 
expressas  esteticamente»...  «Se  Antero  tivesse  atribuído  ao  poeta  noc- 
turno e  ao  ápolíneo,  quo  ele  foi,  nomes  diferentes,  com  uma  genealogia, 
profissão,  características  somáticas,  como  Pessoa  fez  aos  seus  heteró- 
nimos, aí  teríamos  um  complexo  problema,  de  raiz  semelhante  ao  que 
agora  nos  preocupa...». 

Há  com  efeito  em  Antero  o  quer  que  seja  {que  não  importa 
agora  investigar,  mas  que  distinguimos  da  tal  «dualidade», 
tão  convencional  em  sua  abstracta  sistematização)  que  não 
só  confere  uma  certa  legitimidade  à  hipótese  de  Serrão, 
como  ainda,  num  sentido  muito  mais  geral  (de  que,  para 
nós,  tal  hipótese  não  passaria  dum  aspecto  particular)  justi- 
licou  que  Pessoa  visse  nele  um  precursor  da  «moderni- 
dade» (^).  Seria  fácil,  aliás,  estabelecer  um  nexo  entre  o  poeta 


(')  V.  Apêndice,  nota  A. 

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M    A    R    l    o       SACRAMENTO 

da  razão-em-crise,  que  ele  foi.  e  os  do  irracional  que  se  lhe 
seguiram,  reservando  a  Pessoa,  entre  uns  e  outros,  a  posi- 
ção inlermcuia  de  jongleur  dos  «fragmentos)^  do  racionai. 
Do  ponto  que  agora  nos  importa  ronvém  acentuar,  contudo, 
que  o  que  tornou  Antero  um  caso  ainda  à  parte  não  foi 
senão  a  circunstância  exacta  de  ter  lutado,  em  vão  embora, 
contra  a  corrupção  dos  tempos,  e  ter  assumido  uma  posição 
que  em  última  instância  o  levaria  a  acompanhar  o  seu 
navio  no  naufrágio.  Assim.  longe  de  nos  quadrar  que 
Antero  «justifique»  Pessoa,  preferimos  que  no-lo  ajude  a 
compreender  à  contra-luz.  Para  o  que  nos  limitaremos  a 
perguntar:  Que  teria  sucedido  a  Antero  se,  cativo  dum 
pendor  literário  sem  dúvida  aberrante,  tivesse  permitido  que 
se  sentassem  à  mesa  redonda  da  sua  intimidade  todas  as 
tendências  espirituais  de  que  os  Sonetos  dão  fé.  acarinhan- 
do-as,  impulsionando-as.  glosando-as  em  obras  de  acomo- 
dada e  parcimoniosa  heteronímia  divergente?  Formulada  a 
pergunta  como  foi,  torna-se  ocioso  responder,  pois  todos 
reconhecemos  que  só  o  fundo  de  verdade  em  que  a  proble- 
mática de  Antero  visou,  sem  qualquer  dúvida,  uma  resolu- 
ção pôde  conferir  à  sua  obra  aquela  humanidade  sem  a  qual 
ela  não  seria.  Levado  «entre  combates  sempre  renovados  [a] 
disputar  dia  a  dia  n  mão  dos  Fados  /  Uma  parcela  do  saber 
augusto»  (Espectros),  ele  mesmo  referiu  ter  essa  preocupa- 
ção influído  os  poemas  de  mais  aparente  evasão,  como 
se  depreende  do  seguinte  passo  duma  carta  particular: 
«esse  estado  de  espírito  [o  «carácter  desolado»  de  certos 
poemas],  no  meio  da  sua  violência,  representa  um  contínuo 


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PESSOA.     /'0/:7/V     /),\     HORA     ABSCfiDA 

impulso  /j>circi  a  xenludc  c  para  o  bem,  e  isso  deve  ser  levado 
cm  conta  ao  poela".  íi  o  que  resume,  hiperbolizando  em- 
bora, este  outro  passo  da  sua  correspondência:  «Eu  ainda 
não  desisti  de  abrir,  ainda  que  seja  roendo  com  os  dentes  e  ?t 
boca  em  sangue,  o  muro  de  bronze  do  destino». 

Quer  dizer:  ninguém  alinal  mellior  do  que  Antero  permite 
aperceber  o  que  há  de  implícito  no  conceito  de  personali- 
dade como  teor  de  xida,  convergência  de  tendências,  estru- 
turação ideológica,  fidelidade  a  um  móbil,  e  o  que  por  aí 
mesmo  tem  sempre  de  implicar-se  numa  candidatura  ao  gé- 
nio (por  isso.  aliás,  frustada  em  Antero)  como  realização 
superiormente  ímpar  de  tais  condições.  Tal  como  em  todos 
os  grandes  artistas,  a  arte  de  Antero  corresponde  directa- 
mente à  problemática  do  bomem  servindo-a.  só  não  tendo 
Antero  chegado  a  fase  a  que  chegam  os  maiores  de  por  seu 
turno  a  servir  em  virtude  de.  impossibilitado  de  atingir  a 
visão  unívoca  que  perseguia,  lhe  estar  vedado  esse  grau  de 
identidade  da  arte  com  a  vida. 

Ora  em  Fernando  Pessoa  o  que  logo  (e  sempre)  nos 
punge  é  aquela  solução  tão  por  demais  levianamente  «fácil» 
da  heteronímia.  Fácil,  está  claro,  não  porque  destituída  de 
talento  (pois.  ao  invés,  só  foi  possível  mediante  um  talento 
que  diremos  «excessivo»),  mas  porque  tão  comprazida  em 
trilhar  um  caminho  da  mais  descarnada  artificiosidade. 
Isso  nos  leva  a  compreender  por  que  teve  Fernando  Pessoa 
necessidade  de  cultivar,  tão  insistentemente,  o  mito  duma 


17 


M    Á    li    l    O       SACRA    >l    E    N    7^    O 

inspiração  hctorónima  premente,  misteriosa,  imprevisível, 
cie  que  ele  próprio,  ao  fim  e  ao  cabo,  se  terá  tornado,  quem 
sabe,  a  próprio  vítima  (').  É  já  hoje,  de  resto,  suficiente- 
mente conhecida  a  quota-parte  de  engenho  c  humor  que 
entrou  nesse  mito.  F  pode  facilmente  aperrcber-se  um  nexo 
de  necessidade  entre  essas  pretensões  e  a  obra  que,  denun- 
ciando a  sua  interdependência,  dispensa  inteiramente,  do  es- 
fricto  |)onlo  de  ^•ista  hterítrio,  quaisquer  outras  conjecturas. 

Posto  isto,  perguntamo-nos:  que  se  visa.  afinal,  na  obra 
de  Pessoa  quando  se  concluo  cjue  é  genial?  —  Decerto  que 
não  a  «trouvaille*  da  heteronímia!  Então?  A  poesia  ortó- 
nima  tão-só.  reputando-se  a  restante  acidental  ou  espúria, 
—  entretenimento  do  infante-que-todo-o-génio-também-é  ou 
subproduto  dum  aliquando  Homerus  eíc.7  —  Seria  subesti- 
mar o  que  afinal  mais  solicita  a  nossa  atenção  no  caso  do 
poeta,  seria  negá-lo  mesmo,  já  que  não  há  na  poesia  ortc)- 
nima  o  que  quer  que  lhe  dê  f^ualilalivamente  \anlagem 
sobre  a  dos  seus  «pares».  Será,  portanto,  necessariamente, 
a  obra  global.  Mas...  se  a  poesia  «helornninxa  é  f/o  aiilor 
fora  da  sua  pessoa:  (se)  é  de  uma  individualidade  completa 
fabricada  por  ole>>  {'),  há  que  ponderar:  I)  sendo  todas  essas 
individualidades  completas,  como  tais,  necessariamente  dis- 
tintas   e    inconfundíveis,    só   será    possível    candidatar   Fer- 


(1)  «...a  origem  orgftnica  do  meu  hetcronlsmo».  «A  origem  dos  meus 
heterónlmos  é  o  fundo  traço  de  histeria  que  existe  em  mim».  Páj. 
Doutr.  Est.,  p.  260-1)  «Mágico  poder  criador  impessoal»  /Ibid.,  p.  3S3). 
(-)  Subliniiado  nosso. 


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I'I:SSOá.     rUi/IÁ     DÁ     IIUKÁ     ÁBSUKDÁ 

II. Ilido  Pessoa  a  um  lin*ar  tic  génio  obtendo-se-lnc  um  teor 
seu  próprio,.,  pela  média  cios  Icores  desses  tais.  Tal  tipo 
de  fjónio-cí  lético  só  serviria  para  tornar  mais  aparente  o 
absurdo  dunia  questão  que,  sem  ele,  jú  salta  aos  olhos. 
|)elo  que  o  flispcnsaremos;  2)  posta  de  lado  tal  hipótese, 
resta  admitir  que  em  cada  uma  das  individualidades-com- 
pletas  existe,  de  per  si.  um  geniozinho;  e  então:  qual  deles 
é  o  autentico,  o  pessoal  c  intrasmissível  génio  de  Fernando 
Pessoa? 

Retomemos,  porém,  antes  de  concluir,  a  frase  há  pouco  par- 
( ialmente  citada,  retranscrevendo-a  na  íntegra  e  subli- 
nhando a  parte  então  amputada:  a  poesia  «heterónima  é  do 
autor  fora  da  sua  pessoa;  é  de  uma  individualidade  com- 
pleta fabricada  por  ele.  como  o  seriam  os  dizeres  de  qual 
quer  drama  seu».  E  recorc^emos  que  já  em  igual  sentido 
Pessoa  escrevia  em  1913  a  Côrtes-Rodrigues:  «Mantenho 
(...)  o  meu  propósito  de  lançar  pseudònimamente  a  obra 
Caeiro-Reis-Campos.  Isso  c  toda  uma  literatura  que  eu 
criei  e  vivi,  que  é  sincera,  porque  é  sentida  (...).  (...)  É 
sentido  na  pessoa  de  outro;  é  escrito  dramaticamente,  mas 
é  sincero  (no  meu  grave  sentido  da  palavra)  como  é  sincero 
o  que  diz  o  rei  Lear,  que  não  é  Shakespeare,  mas  uma 
criação   dele». 

Confessemo-lo:  o  «alibi»  é  de  respeito.  Tentemos,  contudo, 
desmascará-lo:  O  Rei  Lear  é  uma  peça  dramática  de  Sha- 
kespeare; o  rei  Lear  é  um  personagem  dessa    peça.  A  peça 


19 


MÁRIO       SACRA    M    E    M    T    O 

vive  dum  conflito  imaginado,  arlirulado.  desenvolvido  e  re- 
solvido dramàticamenfe  pelo  seu  autor.  Esse  autor  continha 
em  si.  antes  da  realização  da  peça.  todos  os  elementos 
susceptíveis  de  se  transfigurarem  no  drama.  Contudo,  até  ao 
momento  da  sua  criação,  não  passava  disso:  de  os  conter  em 
latência;  e  só  veio  a  revelar-se  autor  dramático  quando 
chegou  a  articulá-los  através  da  prosecução  desse  tal  desfe- 
cho. Só  na  medida  em  que,  antecipando-se  a  ele.  o  autor 
dos  personagens  já  visionava  e  dominava  (que  não  eles!) 
o  sentido  do  conflito,  criava  afinal  dramaticamente  os 
próprios  personagens  e  falava,  em  conformidade,  por  eles. 
Quer  dizer:  o  autor  só  está  nas  partes  na  medida  em  que 
elas  pressupõem   um    todo. 

Logo:  a  poesia  heterónima  não  é  «escrita  dramaticamente», 
dado  não  haver  um  conflito  que  articule  esses  heterónimos 
e  os  conduza  dramaticamente.  Quer  dizer:  muito  embora 
possamos  admitir  que  Fernando  Pessoa  contivesse  em  si 
elementos  susceptíveis  de  tansfiguração  dramática  (como 
há  pouco  Shal<espeare)  a  verdade  é  que  não  chegou  a  reali- 
zar-se  nesses  termos.  E  porquê?  Necessariamente,  porque 
lhe    faltou...    génio   dramático   (^).   Note-se,   demais,   que   a 


(1)  A  própria  etimologia  grega  da  palavra  «drama»  aponta  o  signifi- 
cado de  p6r-em-accào  um  enredo.  —  A  impotência  dramática  de  Pes- 
soa radicou  quanto  a  nós.  no  facto  de,  à  base  do  absurdo,  toda  a 
contradição  ser  necessariamente  inconsequente.  A  O  Marinheiro  cha- 
mou ele  «drama-esííífico». 


20 


PESSOA.     rOHTÁ     DA     HORA     ABSURDA 

[)rópria  ciri  uiistaiu  iu  cie  Pessoa  ler  tentado  agrupar  os  nefe- 
roíiíinos  em  relações  de  rneslre-c-clisrípulos  denuncia  a  ne 
cessidade  de  algum  modo  |>rover  à  nudez  daquele  artifífio. 
li  eis  assim  como  uma  tal  poesia,  admitido  que  visasse  uma 
autêntica  realização  dramática  (o  que.  porém,  não  é  ver- 
dade), não  poderia  manileslar  senão  a  impotência  dramá- 
tica do  seu  autor.  (Escrita  (em  hipótese)  pelos  personagens 
e  não  pelo  autor  (que.  paralraseando  uma  alusão  de  í-*essoa 
n  1  eólilo,  não  existia)  tomou  dessa  génese  absurda  o  seu 
f)r(')prio   conteúdo. 

Cone  lui-se   assim   que    loi,    alinal.   porque    «não   sei   o  que 
hei-de  fazer  comigo  sozinho»  (Alberto  Caeiro  )  (^)  que  sur- 


(1)  P.  101  Embora  sem  dúvidas  quanto  à  legitimidade  desta  citação, 
hesitílmotí  em  usá-la  pelo  facto  de  pertencer  a  uma  das  poesias  do 
«pastor  amoroso»  e,  como  tal,  se  referir  à  mulher  amada.  Não  pode- 
mos, porém,  esquecer  que  Caeiro  também  escreveu,  fora  desse  ciclo; 
«A  minha  alma  só  pode  ser  definida  por  termos  de  fora»  (p.  92). 
Logo,  aquela  frase  não  tem  apenas  um  sentido  transitório,  e  é  indi- 
ferente ao  nosso  propósito  que  tais  «termos  de  fora»  sejam  a  amada 
ou  os  montes  e  os  rios.  Caeiro  não  fez,  aliás,  senão  escrever  frases 
de  idêntica  alienação,  como  por  exemplo;  «vou  onde  o  vento  me  leva 
e  não  me  sinto  pensar»  (p.  98).  Por  outro  lado,  são  inúmeras  as 
asserções,  tanto  ortónitmas  como  heterónimas,  de  idêntico  teor:  Pes- 
soa «sou  diverso  no  que  informe  estou»  (p.  139).  «minha  alma  alheia» 
(p.  90),  «neste  momento  insone  e  triste  /  Em  que  não  sei  quem  hei-de 
ser»  (p.  150),  «entre  quem  estou  e  sou»  (p.  171);  Campos  —  «eu,  este 
degenerado  superior  sem  arquivos  na  alma,  /  Sem  personalidade  com 
valor  declarado»   (p.   226),    «na  minha  alma  vazia  estou»    (p.  27),   «eu 


21 


A/    Á    l<    I    U        S    A    C    l<    A    >]    L    N    r    O 

giram  os  heteróni/nos.  islo  ó,  que  se  «purliu  o  espelho  má- 
gico em  que  me  revia  idêntico  /  E  em  cada  fragmento  fatí- 
dico vejo  só  um  bocado  de  mim»  (Álvaro  de  Campos). 
Quem  não  sabia  que  fazer  consigo  sozinho,  tãopouco  o  sa- 
beria, está  claro  —  cio  ponlo  que  agora  nos  importa  —  em 
companhia  tão  ilusória.  As  veladoras  do  drama-estático 
O  Marinheiro  (quer  dizer,  não-absurdaniente:  do  não- 
-drama)  proiongnm-se  através  dos  veladores  heterónimos 
do    seu   soii-disanl    drama-em-gente    (').   E    assim    como    a^ 


que  me  aguente  comigo  e  com  os  comvgos  de  mim»  (p.  97),  *comeco 
a  conhecer-me.  Não  existo.  /  Sou  o  intervalo  entre  o  que  desejo  ser 
e  os  outros  me  fizeram»  (p.  223),  «não  tenho  personalidade  alguma» 
íp.  137),  <há  em  cada  canto  da  minha  alma  um  altar  a  um  deus  di- 
ferente» (p.  221),  «-depois  de  amanhã  .serei  finalmente  o  que  hoje  não 
posso  nunca  ser»  (p.  265) :  Reis  —  «em  tudo  quanto  olhei  fiquei  em 
parte»  (p.  113),  «sei  (...)  /  Que  nunca  saberei  de  mim»  (p.  132),  «nada 
tem  sentido  nem  a  alma  com  que  penso  sozinho»  (p.  111). 

(')  À  própria  vida  chama  Pessoa  na  poesia  Magnificai  «drama  sem 
teatro  e  «teatro  sem  drama».  O  sentido  da  palavra  é  aqui  outro,  mas 
convém  notar  que  foi  a  circunstância  de  a  vida  lhe  parecer  vã,  sem 
nexo  ou  fim,  que  lhe  sugeriu  aquela  analogia.  É  nessa  poesia  que  sf 
lê  também;  «quando  é  que  despertarei  de  estar  acordado?»  —  suge- 
rindo um  regresso  neo-platónico.  O  absurdo  anunciado  por  essa  frase 
mant»^m-na  contudo  impermeável  à  própria  ideia  que  aponta  de  que 
possa  haver  uma  significação  transcendente  para  ela.  Ora,  conside- 
rado que  a  dramaturgia  é  um  esquema  decalcado  sobre  uma  visão  da 
vida,  compreende-se  a  impossibilidade  de  Pessoa  emprestar  à  arte 
aquilo  que  negava  (quer  no  plano  da  imanência,  quer  no  da  trans- 
cendôncia)  à  própria  vida:  um  nexo. 


22 


PF.SSOA.     nOÍÍTÁ     DÁ     nORÁ     ABSin^DÁ 

vcliicloras  não  vi-lcivain  coisu  al(;urii<i  pela  razão  sirn[)Ies  <lr 
não  podorcin  velar  a  roisa-em-si,  assim  também  falnam 
estes  «Iragnienlos  latí(Ii(OS/^  em  que  desejaria  rever  «boca- 
dos c/e  si'>,  pela  impossibilidatle  cslricta  de  fragmcntar-se 
o  que  não  seja  uno  ('). 


OA  intellerência  critica  de  Pessoa  não  podia  ter  deixado  de  ponderar 
estes  mesmos  problemas,  como  o  veio  comprovar  um  seu  apontamento 
vindo  a  público  já  depois  de  escrito  o  presente  capítulo  deste  ensaio 
/Poemas  Dramáticos,  vol.  I.  p.  26):  «Estes  nomes  (Caeiro-Reis-Cam- 
pos),  porém,  nào  sào  pseudónimos:  representam  pessoas  inventadas, 
como  figuras  em  dramas,  ou  personagens  declamando  isoladas  em  um 
romance  sem  enredo»  (sublinhados  nossos).  O  absurdo  desta  designa- 
ção romance-som- enredo  p  a  insignificaçào  por  ela  resultante  ao  termo 
personagens,  repõem  evidentemente  o  problema  no  inésmo  pé,  mas 
confirmam  que  Pessoa  não  só  o  reflectiu  como  o  tentou  rodear,  e  qw 
foi  assim  conscientemente  que  o  iludiu.  Tal  tipo  de  consciência  era 
a  seu  modo  «coerente»  consigo  (como  tentamos  adiante  mostrar) 
fazendo  tábua-rasa  dos  valores  da  experiência  e  funcionando  de  acordo 
com  um  tipo  de  lógica  «sur  gcneris».  Alargando  o  quadro  deste  comen- 
tário, verifique-se  pela  citação  que  segue  como  tal  «coerência»  impli- 
cava uma  «revisão»  de  outros  conceitos:  «Vou  mudando  de  personali- 
dade, vou(..  )  enriquecendo-me  na  capacidade  de  criar  personalidades 
novas,  novos  tipos  de  fing'ir  que  compreendo  o  mundo,  ou  antes,  de 
fingir  que  se  pode  compreendê-lo»  i'P.  Doutr.  Est.,  p.  275.  subllnliado 
nosso).  Daqui  resultaria  (como  o  esclarece  o  restante  texto)  um  joço 
de  «despersonalização  instintiva»,  mediante  o  qual  a  personalidade 
do  di"^maturgo  nào  funcionaria  como  uma  personalidade  que  sé  des- 
dobra, simpatiza  e  adere,  —  mas  que  se  aliena  troca  e  níuda. 


25 


MÁRIO        S    A    C    li    A    M    E    N    T    O 
U    PROBLIíMA  DA   UNIDADE 

Mas  «porque  não  há-cle  haver  unidade  da  personalidade 
de  hernando  Pessoa?»  (')  —  é  o  fundo  cm  que  subsiste  a 
dúvida. 

Convenhamos,  antes  de  tudo,  com  alguns  críticos  de  Pessoa 
em  que  há  que  distinguir  o  que  a  poesia  heterónima  mani- 
festa de  facto  do  que  I^essoa  lhe  encomendou  ou  assinalou. 
Já  nesse  sentido  insinuámos,  aliás,  que  reputávamos  ilusó- 
ria e  vã  aquela  pretensão  das  «indiv^idualidades  completas». 
Note-se,  contudo:  se  esse  propósito  falliou,  nem  por  isso 
existiu  menos,  e  deixou,  assim,  de  influir  e  caracterizar  a 
obra  realizada,  pelo  que  não  podemos  senão  dizer,  num  tal 
sentido,  que  o  equívoco  (?)  em  que  os  heterónimos  tomaram 
origem  frustrou  do  mesmo  passo  autor  e  «sub-autores».  Tão 
só  para  este  efeito  subsi  revemos,  por  agora,  estas  palavras 
de  Joel  Serrão:  «Não  fiá  quatro  poetas  em  Pessoa,  mas 
um  só,  —  um  só  poeta  complexo»  (").  Daqui,  porém,  até 
concordar  com  Casais  Monteiro  em  que  Pessoa  «inventou 
as  biografias  para  as  obras,  e  não  as  obras  para  as  biogra- 
fias», —  manifestando,  em  conformidade,  a  obra  heteró- 
nima apenas  «a  riqueza  de  virtualidades  de  uma  personali- 


(')  Casais  Monteiro,  Fernando  Pessoa  c  a  Critica,  p.  90. 
O  Ob.  cit.,  -pàg.  15. 


24 


PESSOA.     I^OliTÁ     DÁ     llOliA     ABSURDA 

claílc.  (Ic  um  poolu.  do  unia  pessou/ ('). — vai  um  abismo, 
pois  que  se  tal  obra  é  elettivamente  tie  wn  poeta,  cie  uma 
pessoa,  é-o  (onluJo  em  lun(,ão  deste  propósito  (não  só 
expresso.  —  nítido):  o  de  tal  pessoa,  o  de  tal  poeta  ter  posto 
por  ela  em  causa  o  próprio  problema  da  personalidade, 
rumando  à  incoincidência  desse  termo  uma  pessoa  com 
essoutro  Icrmo  uma  personalidade  ('). 

É  esta  a  questão  que  imporia  discutir  e  que  afinal  tende- 
mos sempre  a  iludir  quando,  lazendo  menção  de  a  estarmos 
enírentando,  nos  relugiamos  na  conclusão  equívoca  de  cha- 
marmos personalidade  em  Pessoa  à  sua  indeterminação, 
ou  melhor,  à  sua  própria  tendência  a  negar-se  como  tal. 
Jacinto  do  Prado  Coelho  rumou  direito  ao  problema.  Mas 
se  bem  que  pareça  reconhecer  a  impossibilidade  de  definir 
satislatòriamente  tal  unidade  (como  até  a  ordem  dos  ter- 
mos e  a  disposição  gráfica  da  capa  do  seu  trabalho  sugerem: 
«DIXTjRSTDADE  e  unidade  EM  FERN.\NDO  PES- 
SOA») insiste  afinal  em  que  «se  bem  repararmos  há  uni- 
dade na  multiplicidade,  pelo  simples  facto  de  os  heteróni- 
mos  trazerem  cada  um  a  sua  resposta  à  inquietação  crucial 
do  poeta»  ('^).  E  ele  mesmo  põe  a  nu  este  artifício  admitindo, 
contraditoriamente,   que   o  primeiro  heterónimo  tenha   sur- 


(')  Fertiando  Pessoa  e  a  crítica,  pág.  89-a  e  90. 

(')  «...Para  fingir  uma  personalidade»  —  diz  Campos  a  propósito  das 

poesias  atribuídas  a  Caeiro  (Pái/.  Doutr.  Est.,  pág.  352). 

(')  Pág.  U2. 


M    A    l<    I    U        S    A    C    K    A    M    E    N    T    O 

giclo  «como  tliverlimento  c  sedativo»,  num  propósito  cIc 
«viver  pela  inteligência,  uma  posi<,ão  diametralmente  oposta 
à  suav  (').  Não  há  rom  eleito  <> unidade  na  niultiplit idade* 
pela  razão  simples  de  os  neterónimos  não  serem  senão  um 
«desembrulhar»  em  direcções  múltiplas  daquilo  mesmo  que 
Fernando  Pessoa  \iu  que  era,  no  orlcniimo.  «um  novelo  em- 
brulhado para  o  lado  de  dentro»  ("),  e  isto  não  é  unidade, 
mas  identidade  di\crgente.  —  já  que  neste  símile  do 
novelo  só  a  tessitura  em  que  la!  lio  viesse  a  ser\'ir  poderia 
ser  uma  referência,  .\quele  Fernando  Pessoa  que  tão  calo- 
rosa e  insistentemente  recomendava  aos  seus  amigos  que  «se 
desdobrassem  em  pseudónimos,  gabando  muito  as  virtudes 
do  processo»  {^)  estava  bem  longe  de  visar-sc  por  eles  a  for- 
ma contraditória  de  conhecimento  que  a  máxima  do  «fingir 


O  E  acrescenta:  «O  móbil  íntimo  (da  heteronímla)  fci,  quanto  a  mim, 
uma  reacção  vital  de  Pessoa  contra  a  sua  propensão  metafísica,  (...) 
É  a  Inteligência  do  poeta  que  se  acusa  a  si  próprioi-  (pág.  113).  Em 
conformidade,  Caeiro  (o  heterónimo  que  esta  referência  visa)  não  seria 
«senão  Pessoa  heroicamente  virado  do  avesso*.  —  Ora  o  avesso  duma 
coisa  não  é  o  contrário  dessa  coisa,  mas  essa  mesma  coisa  —  às  aves- 
sas. Aceite  aquela  definição,  não  pode,  mesmo  assim,  conceber-se  a 
poesia  de  Caeiro  como  «reacção  vital  de  Pessoa  contra  a  sua  propensão 
metafísica»,  mas  sim  como  uma  modalidade,  ainda,  desse  mesmo  pen- 
dor metafísico,  ou  seja,  como  poesia  também  metafísica.  Esta  inter- 
pretação está,  aliás,  muito  mais  de  acordo  com  a  prmieira  transcrição 
de  Prado  Coelho  feita  no  texto. 
(')  Páff.  de  Doutr.  Est.,  pág.  207. 
(^)  Informação  de  C6rtes-Rodrigues  a  Joel   Serrão,    ob.   cit.,   pág.   13. 


26 


IHzSSOÁ,     POIÍTA     DA     IIOKA     ABSURDA 

c  conhecer  se*  do  Álvaro  tie  C  uinpos  pofleria  íuzcr  jjrever. 
A  aventura  mais  ou  menos  licenciosa  dum  tal  pro<;esso  é 
absolutamente  idêntica,  em  seu  anarquisante  esteticismo. 
uo  desvairo  imaginário  da  Ode  Marítima. 

ilin  suma:  se  por  unidade  não  nos  resignarmos  a  confundir 
a  identidade  resultante  da  permanência  pura  e  simples  de 
certas  características  de  índole,  concepção  e  estilo,  isto  é, 
se  por  unidade  implicarmos  uma  acepção  dialéctica  de  pen- 
samento, que  se  opõe  para  se  ultrapassar,  teremos  de  a 
negar  à  obra  de  Fernando  Pessoa  na  medida  até  em  que 
conviermos  em  que  os  problemas  criados  pelos  heterónimos 
coexistem  na  obra  orlónima  (')•  Não  canta  esta.  com  efeito, 
senão  aquela  mesma  dispersividade  desagregadora,  ou  dis- 
paridade e  dislacção.  que  veio  a  culminar  na  criação  neteró- 
nima.  É  a  << inteligência  desligada,  perpetuamente  disponí- 
vel» a  que  também  se  refere  Prado  Coelho.  Os  heterónimos 
serviram  assim  a  Pessoa  como  pontos  de  referência  às  suas 
tão  só  mais  ousadas  dicotomias  íntimas. 

/Vberta  a  grande  chaveta,  logo  outras,  médias,  p>equends. 
ínfimas,  sucessivas,  infinitas  chavetas  e  chavetilhas  se  vão 
pari  passu  reabrindo  em  todos  os  sentidos.  Quer  dizer: 
em  Fernando  Pessoa  a  cisão  parece  interessar  todas  as 
camadas  do  homem  e  da  obra.  de  acordo  com  o  que  Álvaro 


(')   «As  várias  sub- personal  idades  de  Fernando  Pessoa  ele-mesmo.   > 
iPáíi.  Doutr.  Est.,  pág.  257). 


27 


M    Á    li    I    o        SACRA    M    E    A'    7'    O 

de  Campos  insinuou:  «A  minha  alma  partiu-sc  como  um 
vaso  vasio.  ...  Caiu,  fez-se  em  mais  pedaços  do  que  havia 
loiça  no  vaso>'.  Sublinhámos  aquele  «parere»  porque  há 
esta  reser\'a  a  opor  ás  expressões  de  que  nos  temos  vindo  ser- 
vindo (e  que  aliás  já  anteriormente  opusemos  a  uma  idên- 
tica expressão  de  Pessoa):  não  pode  haver  cisão  onde  não 
tenha  havido  unidade.  Sir\'am-nos,  contudo,  tais  expressões 
para  nos  irmos  aproximando  do  facto  que  aqueles  mesmos 
versos  recém-transcritos  de  Campos  tão  implacável  e  lucida- 
mente exprimem:  o  de  só  poder  estar,  da  pressuposta  queda 
dum  vaso.  «mais  pedaços  do  que  havia  de  loiça  nesse  vaso» 
se...  tais  fragmentos  não  forem  afinal  dum  tal  vaso.  Tenta- 
mo-nos  a  dizê-lo:  não  resultará  toda  esta  confusão  do  equí- 
voco daquela  palavra  alma  (da  expressão  «a  minha  alma 
parliu-se»),  equívoco  resultante  da  persistência  em  usá-la  — 
na  hora  absurda?  Foi.  <  om  efeito,  à  base  do  conceito  de 
«alma^>  que  se  gerou  a  noção  substancialista  de  personali 
dade,  a  qual.  ignorando  o  papel  da  síntese  na  sua  génese, 
não  podia  dar  ao  jogo  do  contraditório  qualquer  efectivi- 
dade criadora. 


28 


l'liSSOÁ,     PO/:7V\     DA     IIURÁ     ÁbSUKDA 
HIÍSITAÇAO    REVt:;LADORA 

«...Tudo  Iragmentos,  fragmentos,  fragmentos/^.  —  lamenta- 
va-se  Fernando  Pessoa  em  carta  a  Cortes -Rodrigues,  de  No- 
vembro de    I9H. 

É  de  alguns  meses  depois  (Janeiro  de  1Q15)  a  célebre  carta 
ao  mesmo  que  a  um  tempo  redime  alguns  dos  muitos  aspec- 
tos menores  do  homem  e  do  poeta  e  patenteia  as  inibições 
que  o  impediram  de  ir  «mais-Além» — como  foi  seu  tão 
abstracto  desejo.  É  de  toda  a  conveniência  ordenar  e  resu- 
mir o  que  essa  carta  exprime.  O  próprio  autor,  aliás, 
o  pedia  ao  seu  correspondente:  «eu  irei  expondo  conforme 
possa;  e  você  ordenará  em  seu  espírito,  depois,  os  dispersos 
e  alterados  elementos».  Assim  passaremos  nós  também  a 
fazê-Io.  comentando  de  longada  os  passos  que  a  isso  se 
prestem  (^). 

O  poeta  atravessa  uma  «crise  psíquica»  e  sente  necessidade 
de  se  abrir  com  alguém,  mau-grado  a  sua  relutante  reserva 
natural.  Esse  alguém  teria  de  ser  Côrtes-Rodrigues,  pois 
ele  tem  com  Pessoa  esta  afinidade:  ser  «fundamentalmente 
um  espírito  religioso*. 


(')  A  carta  referida  foi  publicada  em  Cai-tas  de  F.  P.  a  A.  Côrtea- 
-Rodriguea  (pág.  37-46).  Por  comodidade  de  exposição,  adaptaremos 
algumas  vezes,  nas  citíicões,  os  pronomes  e  formas  verbaig  às  exigén- 
a.as  do  discurso  indirecto. 


29 


MÁRIO       SACRA    M    E    N    T    O 

Tal  crise  «é  do  género  das  grandees  crises  psíquicas,  que 
sáo  sempre  crises  de  incompatibilidade,  quando  não  com 
os  outros,  por  certo  com  nós-próprios».  A  crise  que  o  poetn 
atravessa  agora  não  é,  porém,  deste  último  tipo.  Pelo  con- 
trário, muito  embora  se  reconheça  portador  de  «divergen- 
tes elementos  de  carácter*  e  «ainda  tenha  muito  a  empreen- 
der dentro  do  seu  espírito»,  «por  distar  ainda  muito  de  uma 
unificação  como  a  quere».  a  verdade  é  que  a  sua  <'gradual- 
mente  adquirida  auto-disciplina  tem  conseguido  unificar 
dentro  de  si»  aqueles  elementos  divergentes  que  «eram  sus- 
ceptíveis de  harmonização». 

Não.  a  sua  crise  de  incompatibilidade  é  pura  e  simples- 
mente com  os  outros,  os  «amigos  literários»,  entenda-se. 
únicas  pessoas  com  quem  sente  necessidade  e  possibilidade 
de  ter  «intimidade  espiritual».  Ora  esses  amigos,  note-se 
bem.  «por  superiores  que  sejam  como  artistas,  como  almas, 
propriamente,  não  contam «.  porque  nenhum  deles  tem  a 
«consciência  [que  nele  «é  quotidiana»)  da  terrível  impor- 
tância da  Vida.  essa  .consciência  que  nos  impossibilita  de 
fazer  arte  meramente  pela  arte,  e  sem  a  consciência  dum 
dever  a  cumprir  para  com  nós-próprios  e  para  com  a  huma- 
nidade/>.  Tais  amigos  só  estão  de  acordo  «com  actividades 
literárias  que  são  apenas  dos  arredores  da  sua  sinceri- 
dade. H  isso  não  lhe  basta»,  —  pois  há  muito  que  Ihí 
«passou  a  ambição  grosseira  de  brilhar  por  brilhar,  e  essa 
outra,  grosseiríssima,  e  de  um  plebeísmo  artístico  insupor- 
lável.  de  querer  épater». 


30 


rLSSOÁ.     l'OETÁ     DÁ     IIOUA     AbSCRDÁ 

ContuJo  (t»()tr-se  bem),  osla  incoinpalihilidade  "é  sentida 
por  eip  dentro  de  si,  e  é  consigo  ffiie  está  o  peso  todo  da 
sua  divergCncia  de  aqueles  que  o  cercam».  E  ele  admite  que 
«o  facto  cie  estar  agora  vivendo  só»,  por  se  terem  ausentado 
de  Lisboa  os  parentes  que  ainda  lá  conservava,  vem  agravar 
este  estado  de  espírito»,  npor  o  deixar  a  nu  com  a  sua  alma». 
sem  nada  que  «desvie  de  si  a  sua  atenção» .  Vá-sc  referen- 
ciando: 1."  que  a  crise  se  torna  pouco  nítida  em  suas  causas 

—  e  justamente  por  o  poeta  dúbinmente  insistir  em  atri- 
buir a  responsabilidade  do  seu  «desassocego»  —  título, 
aliás  do  Ii\'ro  em  que  trabalhava  quando  escreveu  aquelou- 
tra carta  de  que  transcrevemos  a  queixa  dos  «fragmentos* 

—  a  amigos  literários  com  quem  ainda  há  pouco  tão 
espontaneamente  se  igualava  na  tal  «ambição  grosseira  de 
brilhar»;  2."  que  o  próprio  poeta  parece  ressenti-lo  ao  con- 
siderar, numa  carta  de  tão  altas  ambições,  que  o  isolamento 
da  família  estaria  agravando  os  seus  problemas;  3.^  que 
ele  mesmo  o  denuncia  afinal,  não  só  nos  passos  acima  subli- 
nhados, como  ainda  ao  referir  que  '<hn  tempos»  já  que 
andava  prometendo  ao  amigo  (pelo  menos  supunha-o)  «estít 
extensa  carta»  de  «género  psicológico,  a  seu  próprio  res- 
peito», isto  é,  que  «há  muito»  já  que  andava  «com  vontade 
de    lhe    falar   intimamente   e    fraternalmente   do   seu   caso», 

—  como  escrevera  logo  de  início. 

Quer  dizer:  a  crise  parece  de\ir  pelo  jogo  deste  círculo 
de  «evolução  ascendente  dentro  de  mim»:  a  «consciência  da 
terrível  importância  da  vida»,  que  «nos  impossibilita  de  fa- 


31 


>/    A    R    I    o       S    A    C    R    A    M    E    N    T    O 

zer  arfe  ineramcntc  pela  arte»,  levara-o  a  esfriar  com  os 
amigos-lilerários  (sem  que,  porém,  como  tanto  cuidado  tem 
em  dizê-lo.  se  .criasse  uma  «incompatibilidade  violenta», 
que  «resultasse  de  divergências  declaradas  c/e  ambas  as 
partes»,  —  sublinha  ele  próprio);  restituído  assim  n  intimi- 
dade (facilitada  pela  ausência  da  família),  sem  nada  já  que 
«desvie  de  si  a  sua  atenção»,  agiganta-se-lhe  aquela  «terrí- 
vel importância  da  vida»  etc.  pelo  que  mais  e  mais  dis- 
tantes vai  sentindo  ainda  os  tais  amigos  («soando  cada  vez 
mais  a  oco  e  a  repugnante»)  em  cada  momento  em  que  o 
acaso  o  aproxima  episodicamente  deles;  por  cada  novo  con- 
tacto desses,  mais  vai  ressentindo  ele,  e  assim  mais  se 
retraindo  etc,  mais  se  lhe  agiganta  e  agrava  etc,  ele 

As  consequências  teóricas  de  tudo  isto  resumem-se  assim 
(sublinhados  nossos):  é  cada  vez  maior  a  sua  consciência 
da  «íemueí  e  religiosa  missão  que  todo  o  homem  de  génio 
recebe  de  Deus  com  o  seu  génio»  (atreve-se  a  escrevê-lo  tal 
qual  ao  amigo,  pois  este,  conhecendo-o  melhor  que  nin- 
guém, não  julgará  por  isso  aquela  carta  um  «documento 
de  megalómano»);  e  assim,  «pouco  a  pouco,  mos  segura- 
mente, no  divino  cumprimento  íntimo  de  uma  evolução 
cujos  fins  me  são  ocultos,  tenho  vindo  erguendo  os  meus 
propósitos  e  as  minhas  ambiçõescacía  vez  mais  à  altura  das 
qualidades  que  recebi». 

As  consequências  práticas,  seriam;  a  arte  deve  ter,  duma 
maneira  geral,   «uma  acção  sobre  a  humanidade»  e  «con- 


52 


P/iSSO/\.     rOlíTÁ     DA     110RA     ABSURDA 

lril)tiir  i>ar<i  íi  ( ivili/arâo;  no  (aso  particular  dele.  Pessoa. 
I)oela  ()()rfuííuês  em  que  a  «ideia  patriótica,  sempre  mais 
ou  menos  presente  nos  seus  propósitos,  avulta  agora»,  a 
arte  deve  «erguer  alio  o  nome  português*. 

Fm  suma:  «Deve  à  missão  que  se  sente.> :  «uma  seriedade 
integral  no  escrito»;  uma  «perfei(,ão  absoluta  no  realizado». 
Atingidas  estas  alturas.  'Pessoa  como  que  afinal  liberto 
daquela  «terrível  importância  da  vida»  pelo  simples  facto 
de  a  ter  mencionado,  regressa  à  planura  muito  mais  tran- 
quilo: «Não  me  agarro  já  n  ideia  do  lançamento  do  Intersec- 
cionismo  com  ardor  ou  entusiasmo  algum».  Contudo...  «se 
decidir  lançar  essa  quasc-blague.  será  já  não  a  quase- 
-blague  que  seria,  mas  outra  coisa».  E  corre  a  pedir  à  «ideia 
patriótica»  uma  justificação  (que  de  outro  jeito  se  não  depa- 
raria) para  «lançar  essa  corrente  como  corrente»  —  «não  já 
com  fins  meramente  artísticos»,  mas  patriòticamente.  como 
vesicatório,  digamos,  «que  nos  arranque  à  nossa  estagna- 
ção». Algo  confundido,  porém,  acrescenta:  «Tenho-IKe  ex- 
plicado tudo  isto  muito  mal.  Quase  que  me  tenta  a  ideia  de 
rasgar  esta  carta  onde,  até.  pouca  justiça  fiz  a  mim  próprio». 
Mas  logo  busca  retomar  pé,  invocando  a  tal  «evolução  as- 
cendente» para,  enfim,  resumir:  «Regresso  a  mim.  Alguns 
anos  andei  viajando  a  colher  maneiras-de-sentir.  Agora, 
tendo  visto  tudo  e  sentido  tudo,  tenho  o  dever  de  me  fechar 
em  casa  no  meu  espírito  e  trabalhar,  quanto  possa  e  em  tudo 
quanto  possa,  para  o  progresso  da  civilização  e  o  alarga- 
mento   da   consciência    da   humanidade».    Suspende-se    um 


35 


MÁRIO       SACRA    MEl^    TO 

instante.. .  ressente  o  fel  que  já  quase  o  levara  a  inutilizar 
a  carta...  e  reconcilia-se  muito  mais  tnãmente  com  o 
barro  humano  nesta  frase  que  um  capricho  irónico  do  des- 
tino quis  que,  ao  correr  da  pena,  ficasse  amputada  dum 
não  —  dum  não  cuja  presença  e  cuja  ausência,  flando-lhe 
embora  sentidos  «dversos.  têm  de  comum  a  identi- 
dade absurda  de  apontarem  soluções  que  não  só  poderiam, 
teoricamente,  <le  per  si  convir-lhe,  mas  que  de  facto  vie- 
ram igualmente  a  servi-lo,  alternadamente  embora,  n  todo 
o  largo  daquela  «passagem  das  noras»  que  a  sua  vida  não 
quis  ou  não  pôde  senão  ser:  «O.xalá  me  (não)  desvie  disto 
o  meu  perigoso  feitio  demasiado  multilateral,  adaptável  a 
tudo,  sempre  alheio  a  si  próprio  e  sem  nexo  dentro  de  si». 
Posto  isto,  —  atenção!  — :  só  agora  transpostos  o  intersec- 
cionismo-patriótico  e  o  desabafo  da  última  frase  transcrita), 
só  agora  surge  esta  referência  à  obra  heterónima:  «Mante 
tenho,  é  claro,  o  meu  propósito  de  lançar  pseudònima- 
mente  a  obra  Caeiro-Reis-Campos»  (').  Sublinhámos  aquele 
é  claro  e  não  nos  cansaríamos  nunca  de  o  fazer,  pois  ele 
diz  tudo  sobre  a  má-consciência  que  o  poeta  iniludivel- 
mente se  fazia  acerca  desta  nova  (se  bem  que  superior) 
transigência,  que  no  fundo  púdicamente  se  ocultava  (atra- 
vés da  crise  do  interseccionismo)  sob  o  próprio  núcleo  da- 
quela «crise  psíquica».  A  verdade  é  que.  se  acrescenta:  «Isso 


o  Confronte-ee  este  passo  com  a  reflexão  implícita  na  carta  que 
adiante  se  comentará,  escrita  cerca  de  quatro  meses  antes  desta,  e  à 
inatórin  da  qual  este  «claro»  parece  ser  uma  resposta  indirecta. 


34 


PESSOA.   ponrA   da   hora   absurda 

(a  obra  heterónima  —  por  agora,  aliás,  ainda  pseudónima)  é 
toda  uma  literatura  que  eu  criei  e  vivi.  que  é  sincera,  por- 
que é  sentida. ..»  (').  —  logo.  porém,  involuntariamente  a 
equipara  ao...  interseccionismo-patriótico  mediante  a  ana- 
logia desta  justificação:  (a  obra  beteróninia)  ''(onstifui  uma 
corrente  com  influência  possível,  benérica  incontestavel- 
mente, nas  almas  dos  outros*.  Se  alguma  dúvida  resta 
ainda,  notemos  que  a  única  justificação,  de  entre  as  propos- 
tas h  obra  heterónima.  que  afinal  poderá  prevalecer  é  a  que 
resulta  de  considerá-la  sincera.  Que  será,  porém,  sinceri- 
dade em  Pessoa  para  além  daquele  <<sentir»  que  ele  mesmo 
nos  incitou  a  considerar  duvidoso?  É  um  problema  que 
teremos  de  discutir  adiante  com  mais  largueza.  Por  ora,  é 
desnecessário  fazê-lo,  pois  ele  próprio  nos  facilitou  a  cota- 
ção-do-momento  escrevendo  em  certo  passo  da  referida 
carta:  «chamo  insinceras  às  coisas  feitas  para  fazer  pas- 
mar»,—  frase  qCte  se  torna  cristalina  se,  ajustando-a  ao 
âmbito  que  efectivamente  assume  no  quadro  especulativo 
da  carta,  fizermos  por  lê-la:  só  chamo  insinceras  às  coisas 
feitas  para  fazer  pasmar.  De  qualquer  forma,  um  ponto  é 
certo  para  nós:  a  sinceridade  da  poesia  heterónima  devinha- 


(')  A  qual,  nao  obstante,  implicitamente  condenara  já  ao  pretender 
libertar-se  do  tempo  em  que  andara  «viajando  a  colher  maneiras-de- 
-sentir».  Confronte-se.  a  propósito,  esta  atitude  com  aqueloutra  (defi- 
nitiva) em  que  acabaria  por  desembocar  o  lapso  do  «não>  há  pouco 
referido,  e  que  Pessoa  assim  define  em  carta  a  Casais  Monteiro:  «náo 
evoluo,  viajo». 


33 


MÁRIO       SÁ    C    R    Á    >l    R    ?<    T    O 

-lhe.  no  momento,  He  não  ter  sido  feita  para  fazer  pasmar. 
(El  assim  mesmo  acrescentaríamos:  cIc  não  ter  sido  feita  só 
para  fazer  pasmar).  Com  efeito,  parece  bastar  a  Pessoa  (ele 
o  diz)  o  ler  posto  em  C^aeiro-Reis-Campos  «um  profundo 
conceito  da  vida.  diverso  em  todos  três.  mas  em  todos  gra- 
vemente atento  a  importância  misteriosa  do  existir».  —  o 
que  bem  confirma  que  [>oderá  ser  «sincero»  tudo  o  que  seja 
profundo  e   grave. 

Aliás,  ele  próprio  insiste  em  dizê-lo  ao  particularizar  que 
«também»  chama  insincera  à  literatura  que  não  contenha 
«uma  fundamental  ideia  metafísica»,  pela  qual  transmita 
«uma  noção  da  gravidade  e  do  mistério  da  vida»  (')  (su- 
blinhados nossos)  pois  que  a  insignificac;ão  daquele  «tam- 
bém» é  posta  a  nu  pela  frase  seguinte  que  identifica  uma 
vez  mais  o  «sério»  com  o  «sincero»:  «Por  isso  é  sério  tudo 
o  que  escrevi  sob  os  nomes  de  Caeiro.  Reis,  Álvaro  de 
Campos».    Esta    frase,    com    efeito,    articula-se    necessària- 


(')  A  tiyuah  legitimidade  de  agora  (ou  .seja,  a  indefi7iida  intuição 
metafísica  que  postula)  revelará  mais  tarde  o  seu  verdadeiro  con- 
teúdo ao  escrever  cjue  «tudo  é  verdade  e  caminho»  (Pessoa,  pág.  144) 
e  ao  ccmfe.ssar  que  a  vida  lhe  flue  pelo  mero  jogo  da  «capacidade  de 
criar  personalidades  novas,  novos  tipos  de  fingir  que  compreendo  o 
mundo.  ou.  antes,  de  fingir  que  se  pode  c;ompreendê-lo)!>  (Pág.  Doutr. 
Est..  pág.  275,  sublinhado  nosso).  A  propósito  de  uma  revista  em  pro- 
jecto, escreverá  também  mais  tarde  a  um  amigo:  «em  filosofia,  um 
intelectualismo   qualquer>. 


36 


PESSOA.     l'OtiTÁ     DA     HOKA     AliSURUA 

mente  (mediante  aquele  «por  isso«)  com  a  frase  inicíctl. 
que  rezava  assim:  «o  que  eu  chamo  literatura  insincera  não 
c  aquela  análo^u  á  do  Alberto  Caeiro,  do  Ricardo  Reis  ou 
do  Álvaro  tie  Campos...*.  Concluindo:  esta  '«ítísc  psí 
quica»  implícita  uma  tentativa  (quase  inadvertida,  nebulosa 
e  inconsequente)  de  revisão  da  atitude  psico-estética  que 
serviu  de  base  à  criação  neterónima.  Inconsequente,  dis- 
semos, e  acrescentaremos:  necessariamente  inconsequente 
porque  dependente  de  premissas  implícitas  na  generalidade 
índirerente  dos  artigos  indefinidos  ná  pouco  sublinhados, 
isto  é,  da  absurdidade  pseudo-eciética  que  viria  a  culmi- 
nar na  ambiciosa  súmula  tio  «Tudo  vale  a  F>«na.  /  Se  a 
alma   não   é  pequena». 


37 


MÁRIO        SACRAMENTO 

A   HORA  ABSURDA 

Já  em  2  de  Setembro  de  1914  (isto  é:  cerca  de  quatro  meses 
antes  da  data  da  carta  que  acabámos  de  comentar)  Pessoa 
escrevera  a  Côrtes-Roclrigues:  «O  facto  c  que  neste  mo- 
mento atravesso  um  período  de  crise  na  minha  vida.  Preo- 
cupa-me  quotidianamente  a  necessidade  de  dar  ao  conjunto 
da  minha  orientação,  tanto  intelectual  como  «existente  na 
vida»,  uma  Unha  metódica  e  lógica.  Quero  disciphnar  a 
minha  vida  (e.  consequentemente,  a  minha  obra)  como  a 
um  estado  anárquico  e  anárquico  pelo  próprio  excesso  de 
forças  vivas  em  acção,  conflito  e  evolução  interconexa  e 
divergente.» 

E  acrescentava:  «Não  sei  se  estou  sendo  perfeitamente 
lúcido.  Creio  que  estou  sendo  sincero.» 

Na  dúvida,  recorria  à  contraprova  do  travo  ressentido  no 
que  escrevera:  «Tenho  pelo  menos  aquele  amargo  espírito 
que  é  trazido  pela  prática  antisocial  da  sinceridade.  Sim. 
eu  devo  estar  a  ser  sincero.» 

Como  se  vê,  é  uma  vez  mais  a  propósito  daquele  problema 
da  «linha  metódica  e  lógica»  que  surge  a  questão  da  since- 
ridade (').  E.  quando  confessa  (antecipando-se  à  estranheza 


(')  À  sinceridade  autêntica  (e  não  à  da  «prática  social»  apenas)  cha- 
mou Pessoa,  pela  pena  de  Álvaro  de  Campos,  convencional.  «A  maioria 
das  gentes  sente  convencionalmente,  embora  com  a  maior  sinceridade 


38 


PESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 

que  as  Irases  que  acabara  de  escrever  acaso  suscitassem  no 
seu  correspondente)  que  «levo  horas  intelectuais  a  inlrujar- 
-mc  a  num  próprio*.  <•  paru  logo  em  seguida  introduzir 
(como  na  carta  seguinte)  o  problema  dos  beterónimos, 
aqui  porém...  sem  rebuço  (quer  dizer:  sem  rei  Lear  e  sem 
metalísica):  «se  há  parle  da  minlui  obra  que  tenha  um 
<(cunho  de  sinceridade»,  essa  parte  é  a  obra  de  Caeiro*  (*). 
Quer  dizer:  muito  embora  se  mostre,  como  sempre,  indeciso 
em  matéria  de  sinceridade.  Pessoa  não  tende  por  ora  a  for- 
jar-se-lbe  um  «critério»,  limitando-se  a  reconbe(4ê-la  peio 
travo  da  tal  «prática  anti-socialv.  De  acordo  com  isso,  dis- 
tingue a  poesia  de  Caeiro  como  única  dotada  dum  «cunho 
de  sinceridade»,  o  que  resulta  coerente  pela  circunstância 


humana...*  (Pág.  Doutr.  Est.,  p.  285  —  sublinhado  nosso).  Vô-se  pelo 
texto  em  que  esta  citação  se  intejrra  que  tal  convencional  idade  resul- 
tava, indirectamente,  da  referida  «prática»  ainda. 

(')  Dois  anos  depois,  em  carta  ainda  a  Côrtes-Rodrigues,  de  4  de 
Setembro  de  1916,  dá  novos  indícios  da  «crise  psíquica»  aludindo  h 
«muralha  de  tédio  com  cacos  de  raiva  em  cima»,  entrecortada  de  «epi- 
sódicas antemanhis  de  ser-en-verdacleiramente».  E  resume:  «De  modo 
que  as  únicas  notícias  que  lhe  posso  dar  de  mim  é  que  não.  mas  agora 
melhor.  (A  frase  é  exactamente  assim,  por  o  meu  privilégio  de  não 
me  exprimir)».  E  conclui:  «Estou-me  reconstruindo.  Quando  tomar  a 
escrever-lhe  (...)  espero  poder  dar-me  por  RECONSTRUÍDO  EM 
SETEMBRO  DE  1916».  Já  porém  com  a  ironia  magoada  de  quem  nem 
sequer  desespera  acrescenta  que  vai.  «além  disso»,  «fazer  uma  grande 
alteração  na  sua  vida*:  tirar  o  acento  circunflexo  que  usava  no  apelido 
Pessoa.  Como  diz  Prado  Coelho,  «adia  sempre  o  termo  dessa  recons- 
trução que  nunca  mais  se  toma  efectiva».  —  O  que  mais  importa,  con- 
tudo, é  que  a  necessidade  dessa  reconstrução  tenha  sido  tão  viva 
e  repetidamente  sentida. 

39 


M    Á    li    l    O       S    A    C    R    A    M    H    M    T    O 

exacta  de  Caeiro  ser  o  tipo  por  excelência  do  poeta  anli- 
-social  (').  Esta  atitude  é  assim  muito  mais  significativa  e 
autêntica  do  que  a  que  lhe  sobrevirá,  porque  ainda  desa- 
tenta aos  inúmeros  prejuízos  e  desconcertos  da  carta  ante- 
riormente comentada.  Dessa  mesma  «prática  anli-social  da 
sinceridade»  poderíamos,  aliás,  lazer  devir  a  queixa  poste- 
rior do  desentendimento  com  os  «amigos  literários».  Mas... 
não  porão  esses  mesmos  amigos  um  problema  idêntico? 
Queremos  dizer:  aquela  arte  destinada  a  «lazer  pasmar-^ 
não  estaria  denunciando  por  ai  mesmo  a  existência  duma 
relação  entre  a  tal  experiência  da  «prática  anti-social  da 
sinceridade V  e  uma  sinceridade  (inequívoca,  essa)  do  anti- 
-social?  Ou  indo  mais  longe:  que  haverá  de  comum  em 
toda  a  arte  dita  moderna  senão  uma  espécie  de  acinte  da 
referida  «prática  anti-social  da  sinceridade» — acinte  que 
distingue  tal  prática  da  significação  que  possa  ver-se-lhe 
como  valor  de  «permanência»?  A  consciência  do  homem 
«moderno»  tem-se  jogado,  cm  última  análise,  cons(  lente  ou 
inconscientemente,  entre  dois  poios :  o  das  perspectivas  aber- 
tas pelas  conquistas  revolucionárias  da  ciência  e  da  técnic  t 
e  o  da  torpeza  a  que  a  concentração  monopolista  dos  meios 
de  produção  reduziu  a  vida  social,  conferindo-lhe  um  as- 
pecto desconcertante  de  cárcere  num  mundo  que  a  ciência 
e  a  técnica  haviam  alargado.  Perante  a  agonia  do  regime 


(')  Limitemo-nos,  para  já,  a  realçar  o  facto  de  Sá  Carneiro,  mal  conhe- 
cendo a  poesia  de  Caeiro,  lhe  ter  feito  esta  alusão:  um  «poeta  Caeiro 
ou  o  quer  que  f;  que  diz  mal  da  fíento».  (Cf.  Gaspar  Simões,  oh.  cil., 
vol.  I,  p.  253>. 


40 


1'ESSOÁ,     l'ULTÁ     DÁ     HORA     ABSURDA 

de  livre  concorrência  que  o  século  XVIll  teorizara  como  o 
mais  íienlificamente  ajustado  às  necessidades  do  homem, 
o  úitirnu  quartel  do  século  XIX  proclamara  já  a  falência 
da  ciência  e  da  razão.  Após  o  comedido  «absurdo  sopa- 
-vaca-e-arroz'>  de  Antero  (').  «a  dilaceração  interior  que 
caracteriza  hoje  a  classe-média^/  a  que  ele  se  relerira  ("') 
disparara  nas  «crispações  absurdas*  das  «horas  europeias, 
produtoras,  entaladas  /  entre  maquinismos  e  afazeres  úteis'> 
de  Álvaro  de  Campos  (^).  A  inutilidade  ético-social  daque- 
les «alazeres  úteisv  (cleveniente.  no  plano  especulativo,  do 
divórcio  criado  entre  o  lazê-los  e  o  perfilhá-los,  por  seu 
turno  resultante  da  circunstância  de  não  só  não  servirem  o 
interesse  comum  como  o  precipitarem  no  cataclismo  das  cri- 
ses económicas  cíclicas)  sobrevinha  o  ressentimento  da  «hora 
absurda»,  dessa  «hora  europeia»  a  que  não  poderia  já  con- 
vir sequer  o  «esprit  de  dégénérescence/>  «fin  du  sièclev. 

O  futurismo  e  seus  afins  não  foram  senão  uma  última  ten- 
tativa de  violentação  do  espírito  visando  a  ressurreição  do 
«Irisson  nouveau»  de  melhores  tempos  —  agora  à  pura  base 
cio  premeditado  escândalo  e  como  forma  de  distorsão  dos 
perigos  que  a  consciencialização  progressiva  do  absurdo  em 
suas  causas,  e  outras  circunstâncias  que  passaremos  em 
claro,  concitavam  à  consciência  de  classe  dos  seus  promo- 


(')  Carta  a  A.  A.  Castelo  Branco,  de  1865. 
(')    Odes  Modernas. 
1^)  Ode  Triunfal. 


41 


MÁRIO       SACRA    MEI^TO 

lores.  —  O  absurdo  morreu.  Viva  o  Absurdo!  —  resume 
esse  período. 

Por  isso  «a  verdade  /  nem  veio  nem  se  foi:  o  Erro  mu- 
dou» (').  Será  esta  a  nova  base  para  a  abstracção  derradeira 
da  eterna-miséria-de-tudo. 

Mau  grado,  porem,  a  convivência  dos  «amigos  Iitcrários^>  e 
a  colaboração  que  não  pôde  deixar  de  prestar  ao  espírito 
mais  epidérmico  do  tempo,  a  verdade  é  que  Pessoa  se 
manteve  intransigentemente  fiel  à  «genuinidade»  da  hora 
fazendo-a  incidir  ou  perpassar  nos  próprios  escritos  de 
maior  condescendência  e  convenção.  —  Escrevemo-lo  com 
uma  ponta  de  ironia  que  simultaneamente  ressentimos  ne- 
cessária e  injusta.  O  homem  que  disse:  «Esta  resposta  é 
absolutamente  sincera.  Sc  há  nela.  aparentemente,  qualquer 
coisa  de  paradoxo,  o  paradoxo  não  é  meu:  sou  «eu»  (')  — 
esse  homem  convence-nos  sem  uma  sombra  de  dúvida. 
Como  nos  convence,  por  exemplo,  num  sentido  afim,  aquela 
poesia  intitulada  O  andaime  que  conclui:  «Ao  que  não 
serei  legai-me,  /  Que  cerquei  com  um  andaime  /  A  casa 
por  fabricar». 

Queremos  dizer,  cm  suma:  não  só  acreditamos  plenamente 
em  Pessoa  quando  fala  no  travo  da  «prática  anti-social  du 


O  Natal. 

O)  Pág.  Doutr.  Est..  p.  299. 

42 


PESSOA.     POETA    DA     HOliA     ABSURDA 

sinccriclude*.  como  acredilamos  ainda  na  existênciu  nele 
duma  profunda  sinceridade  anti-social  que.  por  isso  mesmo 
que  profunda,  não  podia  confundir-se  com  a  dos  «amigos 
literários*  —  desses  tais  amigos  que  só  estavam  de  acordo 
com  «actividades  literárias  que  são  ap>enas  dos  arredores 
da  minfia  sinceridade^^. 

«O  homem  e  a  hora  são  um  só*!(*)  —  São-no  efectiva- 
mente. E  nisso  foi  ele  fideh'ssimo.  Foi-o  tanto  mais  quanto 
em  muitos  pontos  inconscientemente  —  como  naqueles,  já 
criticados,  em  que  sacrificou  o  absurdo  à  lógica  formal, 
procurando-se  dentro  dela  um  arremedo  de  justificação,  ne- 
cessariamente sofístico,  que  como  lai  redundaria  em  auto 
e  hetero-mistificação  —  e  isso  apenas  por  não  estar,  afinal, 
escfarecidamente  seguro  da  «coerência-*  sui  generis  que  lhe 
resultaria...  cumprindo-se  sem  reservas  em  espontânea 
comunhão  absurda.  Ele  o  explicou,  porém:  «no  mesmo 
absurdo  há  que  haver  razões»;  o  que  equivale  a  dizer:  nem 
o  próprio  absurdo  pode  ser  gratuito! 


(•)  Mensagem. 


43 


ALTOPSICOGRARA 

Mas  Caeiro  não  é  apenas  o  mais  sincero,  ou  único  sincero, 
dos  nelerónimos.  «O  meu  mestre  Caeiro  foi  o  único  poeta 
inteiramente  sincero  do  inundo>K  Quer  dizer:  ele  não  só 
c  mestre  em  sentido  pessoal,  como.  demais,  o  é  ( orno  arquc- 
li|)u  literário  ou  espelno-dc-poetas  —  em  matéria  de  sinceri- 
dade. 

Ora  nem:  lê-se  aquilo,  reabre-se  o  Caeiro  e...  concorda-se! 
Sim.  Caeiro  é  sincero — porque  desconcertantemente  bru- 
tal. E  eis  como  as  coisas  se  vão  complicando:  o  tísico  de 
«olhos  azuis  de  criança»  que  fôramos  habituados  a  \er  nele 
esvai-se  à  medida  que  a  necessidade  de  preterirmos  a  sua 
sinceridade  à  dos  comparsas  nos  leva  a  questioná-la,  a 
ordená-la,  a  defini-la.  L  acabamos  por  encontrar-lhe  um 
nome:  cinismo.  Cínico  e  obcesso  travestido  de  «simples". 
leva-nos  de  seguida  a  meditar  nas  razões  por  que  terá  sid-j 
chamado  a  realizar  como  simples  aquela  poesia  não-simples 
que  o  seu  \erdadeiro  aulor  não  poderia  ele  prófirio  subs- 
crever, e  que  por  isso  mesmo  se  distingue  daqueloutra 
poesia  deveras  simples  deixada  por  outros  poetas  não-sim- 
ples que  o  antecederam  — Junqueiro,  João  de  Deus...  Que- 
remos dizer:  há  em  Caeiro  o  quer  que  seja  que  não  só  nos 
laz  pensar  —  contraditoriamente  —  no  Junqueiro  de  Os 
simples   como   ainda  na   suspeita  contemporaneidade   deste 


44 


PífS.SO/\,     rOllTÁ     DA     IIOKÁ     ÁliSUKDA 

( oin  o  JaiitiU)  (If  A  (idade  c  as  Serras,  lí  reconhecemos 
nesse  querque-seju  o  mt-smo  quer  que  nos  faz  ocorrer,  a 
propósito  cio  seu  Jisc  ípulo  Álvaro  cie  Campos  —  do  Álvaro 
de  Campos  das  rodas  denfudas.  chumaceiras,  êmbolos... 
onliiii,  do  Álvaro  de  Campos  das  coisas  «ferreando*  — ■ 
...quem?-(')  —  António  Nonre.  apontando  as  chagas  dos 
mendigos  na  romaria  («Labareda  de  cancros  em  fogueira,  / 
Que  o  Sol  atiça  e  que  a  gangrena  apaga...  Que  lindos 
cravos  parti  pôr  na  botoeira!»)  tal  qual  o  Campos  viria  a 
fazer  as  da  civilização,  e  rodopiando  numa  aventura  idên- 
tica à  da  Ode  Marítima:  «Tísicos!  Doidos!  Nus!  Velhos 
a  ler  a  sina!  /  Etnas  de  carne!  Jobs!  Flores!  Lázaros!  Cris- 
tos! Mártires!  Cães!  Dálias  de  pus!  Olhas  fechados!  /  Reu- 
máticos! Anões!  Delirums-tremens!  Quistos!  Monstros,  fe 
nómenos,  aflitos,  aleijados». 

Sim.  a  essa  luz,  a  sinceridade  de  Caeiro  é  idêntica:  de.s- 
concertantemente  brutal  e  cínica,  sob  a  falsa  candura  do 
olhar  de  safira,  tal  como  a  referida  de  Nobre,  sob  o  docel 
do  Anto  {").  Vale  a  pena  transcrever  na  íntegra  o  poema 
XXXII  de  O  guardador  de  rebanhos,  que  lapidarmente  a 
resume,  pois  quase  todos  os  comentadores  de  Pessoa  têm 
velado  sobre  ele  o  olhar: 


(')  Recorde-se,  aliás,  a  propósito  de  Caeiro,  que  António  Nobre  explici- 
tara já  na  poesia   inttulada  Ideal  dum   Parisiense  este  desejo:    «nâo 
ter  talento;  suficiente  /  Para  na  vida  saber  andar:  /  E  quanto  a  estu- 
dos saber  somente  (Mas  ai  somente!)   ler  e  contar». 
Ç-)  V.  Apêndice,  nota  B. 


43 


MAR/O       SACRAMENTO 

Ontem  à  tarde  um  homem  das  cidades 
Falava  à  porta  da  estalagem. 
Falava  comigo  também. 

Falava  da    justiça  e  da  luta  para  haver  justiça 
E  dos  operários  que  sofrem, 
E  do  trabalho  contante,  e  dos  que  têm  fome. 
E  dos  ricos  que  só  têm  costas  para  isso. 
E,  olhando  para  mim,viu-me  lágrimas  nos  olhos 
E  sorriu  com  agrado,  julgando  que  eu  sentia 
O  ódio  que  ele  sentia,  e  a  compaixão 
Que  ele  dizia  que  sentia. 
(Mas  eu  mal  o  estava  ouvindo. 
Que  me  importa  a  mim  os  homens 
E  o  que  eles  sofrem  ou  supõem  que  sofrem? 
Sejam  como  eu  —  não  sofrerão. 

Todo  o  mal  do  mundo  vem  de  nos  importarmos  uns  com 

[os  outros 
Quer  para  fazer  bem,  quer  para  fazer  mal. 
A  nossa  alma  e  o  céu  e  a  terra  baslam-nos. 
Querer  mais  é  perder  isto,  e  ser  infeliz). 
Eu  no  que  eslava  pensando 
Quando  o  amigo  de  gente  falava 
(E  isso  me  comoveu  até  às  lágrimas). 
Era  em  com.o  o  murmúrio  longínquo  dos  chocalhos 
Não  parecia  os  sinos  duma  capela  pequenina 
A  que  fossem  à  missa  as  flores  e  os  regatos 
E  as  almas  simples  como  a  minha. 
(Louvado  seja  Deus  que  não  sou  bom. 


46 


PESSOA.     POETA    Í)A    HORA    ABSURDA 

E  tenho  o  egoísmo  natural  das  flores 

E  dos  rios  que  seguem  o  seu  caminho 

Preocupados  sem  o  saber 

Só  com   florir  e   ir  correndo. 

Ê,  essa  a  única  missão  no  Mundo, 

Essa  —  existir  claramente, 

E  saber  fazê-lo  sem  pensar  nisso). 

E  o  homem  calara-se  olhando  o  poente. 

Mas  que  tem  com  o  poente  quem  odeia  e  ama? 

A  despeito  da  lição  absurda  (a  que  se  confina)  das  flores  e 
dos  rios  que  seguem  «preocupados  sem  o  saber  /  Só  com  fio 
rir  e  ir  correndo»,  a  conclusão  do  «existir  claramente,  /  E 
saber  fazê-Io  sem  pensar  nisso»  cruamente  articulada  às 
razões  do  «Sejam  como  eu  —  não  sofrerão»  e  «Querer  mais 
é  perder  isto,  e  ser  infeliz»,  confere  a  esta  poesia  uma  quali- 
dade de  poema-record  sem  dúvida  digna  do  título  ambicio- 
nado pelo  seu  autor  de  «único  poeta  inteiramente  sincero 
do  mundo» — entendida  a  sinceridade  para  o  caso  como 
um  conceito  de  demasia,  isto  é.  conceito  apenso  a  uma  forma 
de  sinceridade...  que  não  existe  afinal,  e  que  por  isso  só 
pôde  desabrochar  na  lapela  duma  figura  mítica.  Sinceri- 
dade que  não  existe,  mas  que  nem  por  isso  corresponde 
menos  à  autenticidade  dum  fundo  psíquico  —  de  que  só 
não  chega  normalmente  a  brotar  como  tal,  como  sinceridade 
autêntica  e  lúcida,  pelas  inibições  creadas  pela  dita  expe- 
riência da  «prática  anti-social».  Logo...  sinceridade  a  des- 
peito de  tais  inibições,  ou  ainda:  sinceridade  que  toma  tal 


47 


>J    A    R    J    o       SÁ    C    R    A    M    E    N    r    O 

prática  por  seu  cunho  e  toque,  visando  atingir  o  extremo 
limite  das  suas  consequências  por  forma  a  poder  aKanrlo- 
rar-se  ao  seu  grau  máximo. 

Conduz-nos  isto  à  conveniência  de  confrontar  a  sinceridade 
do  mestre-Caeiro  com  a  do  homem-Pessoa.  E  logo  verifica- 
mos que  este,  à  margem  das  inúmeras  coisas  que  foi  ('). 
perante  duas  apenas  consentiu  em  ser  claramenie  anti-: 
anti-católico  e  anti-socialista.  Aliás,  naquela  mesma  carta 
de  que  transcrevemos  o  seu  conceito  diun  Caeiro-sincero 
nos  entremostrou  ele  o  clima  ideológico  de  que  tal  conceito 
dependia,  ao  referir  que.  por  aquele  tempo,  «o  que  princi- 
palmente tenno  feito  é  sociologia»,  tendo  «acrescentado 
alguns  raciocínios  e  análises  à  minfia  Teoria  da  República 
Arístocrálica».  O  contra-revolucionário  do  Borif/ueíro  Anar- 
quista, o  propugnador  duma  oligarquia  de  intelectuais  {'). 
o  desabusado  interseccionista  que  chegara  a  propor  a  «qua- 
se-blague»  dum  Rei-Média,  e  que.  denunciando  a  verda- 
deira  significação   dessa    «blague»,   acabaria   escrevendo   a 


(')  «Sou  (...)  um  nacionalista  místico,  um  sebastianista  racional.  Mas 
sou,  à  parte  Isso,  e  até  em  contradição  com  isso,  muitas  outras  coisas» 
(Pág.  Doutr.  Est.,  p.  256). 

(')  Para  Pessoa,  as  «almas»  dividir-se-iam  em  dois  grandes  lotes  —  as 
superiores  e  as  inferiores:  e  escreve  sobre  estas:  «a  carência  de  uma 
fé  reliRio.sa,  de  vmia  confiança,  moral  ou  metafísica,  reduz  as  almas  vis 
ou  à  materialidade  animal,  ou  à  estéril  ficção  de  um  milénio  do  estô- 
mago —  o  socialismo,  o  anarquismo,  e  todos  os  plutocratismos  inverti- 
dos que  se  lhe  assemelham»  (Pá£/.  Doutr.  Est.,  p.  65)  V.  também  ibirl., 
P.  189- lao. 


48 


PESSOA.    POETA    DA    HORA     ABSURDA 

célebre  memória  ao  Presidente  Rei  Sidóniu  Pais,  ressentira 
fortemente,  como  toda  a  sua  geração,  o  «movimento  entro- 
nízaJor  da  filosofia  de  Nietzsche,  que  tinha  por  índice  hte- 
rário  o  Assim  falava  Zaraluslra  e  o  ( ulfo  do  super-ho- 
mem»  (').  E  com  eleito:  aquela  poesia  de  Caeiro  (que  o  seu 
«discípulo»  Campos  tinha  decerto  em  mente  ao  declarar-se 
«mais  irmão  duma  árvore  que  dum  operário»)  laz  i>cnsar 
diabòlicamente  nestas  palavras  da  introduvão  do  Anti-Crís- 
to:  «que  importa  o  resío,  que  não  é  senão  a  humanidade? 
— 'E  preciso  ser  superior  à  rmmanidade  em  força,  em  gran- 
deza de  alma  —  em  despreso». 

Do  mesmo  modo,  a  posição  intelectual  desse  heterónimo  em 
face  dos  problemas  gerais  tende  para  a  que  foi  definida  por 
estas  palavras  do  autor  germânico:  «A  consciência,  o  espí- 
rito parecem-nos  ser  precisamente  os  sintomas  de  uma  rela- 
tiva imperfeição  do  organismo,  como  um  ensaio,  um  tenta- 
men,  um  equívoco,  um  trabalho  em  que  se  gasta  inutil- 
mente muita  força  nervosa;  negamos  que  uma  coisa  qualquer 
se  possa  fazer  com  perfeição  enquanto  se  executa  ainda 
conscientemente».  De  acordo  com  isto,  uma  convicção  só 
deveria  ser  tida  «enquanto  serve  de  meio»,  pois  que  «toda 
a  espécie  de  fé  é  por  si  mesma  uma  expressão  da  sacrifício, 
de  alheamento  de  si».  Esse  o  motivo  por  que  «os  grandes  es- 
píritos são  cépticos»,  pois  «a  independência  de  toda  a  espé- 
cie de  convicções  faz  parte  da  força,  do  saber  olhar  livre- 
mente». 


O  Gaspar  Simões,  Vida  e  Obra  de  Fernando  Pessoa,    vol.  II,  p.  158. 

49 


MÁRIO       SACRA    M    E    N    T    O 

]^iirn  muitos  dos  «amigos  literários»  de  Pessoa  a  litera- 
tura não  pmssava,  em  conformidade,  dum  sucedâneo  duma 
{ onvic(,ão-meio  —  não  obstante  incapaz  de  rumprir-se  se- 
gundo a  «fórmula  da  felicidade*  definiila  por  Nietzsche 
aos  hiperbóreos:  «um  sim.  um  não.  uma  linha  recta,  um 
fim»,  pelo  que. desbotado  o  acento  de  conquista,  o  próprio 
Álvaro  de  Campos  virá  a  resignar-se  a  concluir  que  «é 
sempre  melhor  o  impreciso  que  embala  que  o  certo  que 
basta». 

Enquanto  isso.  a  curta  vida  de  Caeiro  confina-se  à  lição  do 
momento.  E,  assim,  se  o  problema  for.  jjor  exemplo,  a  «luta 
para  haver  justiça».  —  se  vos  acudirem,  ó  fracos!,  lágrimas 
aos  olhos  perante  o  rosário  das  misérias  dos  «operários  que 
sofrem»  etc. — sejam  como  eu,  não  sofrerão:  é  questão  de 
inventardes  um  pequeno  problema  (o  aspecto  menor  duma 
convicção-meio),  como  seja  por  exemplo  «o  murmúrio  lon- 
gíquo  dos  chocalhos»  não  parecer  «os  sinos  duma  capela 
pequenina».  Assim  teremos,  hiperbóreos.  o  egoísmo  natu- 
ral... das  flores  e  dos  rios. 

Note-se  como  é  suspeita  a  irónica  qualidade  desta  convic- 
cão-meio,  ou  seja,  como  é  postiça  a  força  de  que  se  adorna: 
o  probIema-espe(  imen  do  «murmúrio  longínquo  dos  choca- 
lhos» abre  já  sem  dúvida  um  caminho  para  o  «é  sempre 
inclrior  o  irn[)rr(  iso  fjuc  embala  que  o  certo  que  basta».  E 
daí  que  aquela  «sinceridade»,  rebuscando  como  é,  só  pare- 
ça... excessiva  (ou,  se  o  querem,  fnfeirn  —  da  frase  alusiva 


50 


PISSSOA.     rOLíTÁ    DÁ     IIOKÁ     AbSímOA 

ao  «único  poeta  inteiramente  sincero»)  por  ser  sofística  afi- 
nal. A  sinceridade  autêntica  do  egoísmo  natural  não  é.  na- 
quele plano,  a  das  flores  e  rios,  mas  a  do  riomein,  a  do 
homem-de-classe,  dessa  classe  a  cuja  «dilaceração  interior* 
ela  própria  buscava  socorrer  sofisnianao-a  no  próprio  acto  de 
a  consciencializar.  Incapaz  aiinal  de  rejeitar  a  consciência 
como  «uma  relativa  imperfeição  do  organismo»,  só  restava  a 
Caeiro  a  solução  de  a  encaminriar,  mediante  o  artifício  das 
convicções-meio,  ao  terreno  duma  ficção  tão  «hábil»  que 
como  tal  se  recusasse  —  propondo-se  como  verdadc-exírema 
e  sinceridade-íimiíG.  A  lição  innumana  do  egoísmo-natural 
vinha  assim  socorrer  os  interesses  da  classe  no  próprio  mo- 
mento em  que  o  egoísmo  desta  não  podia  ser  já  natural  ape- 
nas. E  daí  que  a  aparente  inteireza  dessa  sinceridade  não 
intentasse  senão  mitigar  a  real  brutalidade  a  que  um  tal 
egoísmo   fora  já  conduzido. 

Nesta  conformidade,  Caeiro  realiza-se,  não  como  hiper- 
bóreo  —  mas  como  beócio  que  se  buscasse  uma  senda  para 
a  caverna  de  Zaratustra.  A  fórmula-da-felicidade  que 
Zaratustra  não  soubera  dar  aos  peregrinos,  vem  Caeiro 
pregá-la,  não  obstante,  como  simples  —  aos  não-simples 
como  ele.  Quer  dizer:  o  emprego  da  palavra  «simples»  não 
significa  aqui  senão  a  necessidade  de  creditar  como  natural 
uma  forma  em  realidade  brutal  de  egoísmo  que  como  tal  se 
não  quere  (se  não  pode)  reconhecer  porém.  Ou  ainda:  «sim- 
ples» não  é  senão  um  arranjo  à  «détresse»  do  hiperbóreo 
no   acto   de   reconhecer-se    afinal    humano,  —  irremediàvel- 


51 


M    A    R    ]    o       SACRA    MEI^TO 

incnte  (porque  torpemente)  liumano.  A  Fórmula  que  Zara- 
tustra.  de  olhos  fitos  no  super-nomem.  não  soubera  dar, 
lenta  o  numano-mau-gríulo-numano  substituí-la.  A  visão 
do  super-homen»  deformara  já  porém  o  fiumano-ele-próprio. 
E  daí  que  a  fórmula  resultasse  monstruosa.  Falso  médico 
de  si  próprio,  o  homem  parlureja-se  involuiilàriamenle  em 
monstro. 

Do  ponto  de  vista  do  método,  Caeiro  acaba  por  se  nos 
apresentar  como  um  «discípulo»,  desnaturado  no  tempo 
e  na  matéria,  do  Pascal  do  «allez  à  la  messe»  — do  Pascal 
dum  ide-à-missa  que  só  se  distingue  destoutra  missa  «a  que 
fossem  (...)  as  flores  e  os  regatos  /  e  as  almas  simples 
como  a  minha»  por  ser,  a  sua.  a  missa-da-alienação  (ou 
entrega)  e  esta  a  da  extinção  (ou  renúncia).  Recordemos 
as  suas  próprias  palavras:  «Vous  voulez  aller  à  la  foi,  et 
vous  nen  savez  pas  le  chemin;  vous  voulez  vous  guérir  de 
1  infidélité,  et  vous  en  demandez  le  remede:  apprenez  de 
ceux  qui  ont  été  lies  comme  vous,  et  qui  parient  maintenant 
tout  leur  bien;  ce  sont  gens  qui  savent  (^  chemin  que 
vous  voudriez  suivre,  et  guéris  d  un  mal  dont  vous  voulez 
guérir.  Suivez  la  manièrc  par  ou  ils  ont  oommencé:  cest 
en  faisant  tout  comme  sils  croyaient,  en  prenant  de  leau 
bénite,  en  faisant  dire  des  messes,  etc.  Naturellement  mémc 
cela  vous  fera  croire  et  vous  abêtira».  Retruca  o  inter- 
locutor: <í — Mais  cest  ce  que  je  crains».  E  Pascal  conclui: 
«  — ^  Et  jjourquoi?  qu  avez-vous  à  perdre?». 


52 


l^ESSOA.    POETA    DA     HORA    ABSURDA 

No  (aso  cie  Caeiro,  só  haveria  electivanientc  u  pt-rJer  ,i 
«cruel  triluravão  mental  que  não  conduz  a  nada»  do 
Fernando  Pessoa.  Só  haveria  a  ganhar,  portanto.  O  pro 
blema  não  estava  já  porém  em  causa  tal  como  Pascal  o 
apresentara.  O  problema  de  Deus  recont  iliara-se  com  a 
dúvida,  e  até  com  o  erro  ('): 

Cjuia-me  a  só  razão. 
Não  me  (leram  mais  guia. 
Alumia-me  em  vÕjOí' 
Só  ela  me  alumia. 

Tivesse  quem  criou 

O  mundo  desejado 

Oue  eu  josse  outro  que  sou, 

ler-me-ia  outro  criado. 

Deu-me  olhos  para  ver. 
Ollio,  vejo,  acredito. 
Como  ousarei  dizer: 
«^Cego,  fora  eu  bendito?» 

Como  o  olkar,  a  razão 
Deus  me  deu,  para  ver 
Para  além  da  visão  — 
Olhar  de  conhecer. 


(')  «Pensar  em  Deus  é  desobedecer  a  Deus.  /  Porque  Deus  quis  que  o 
nào  conhecêssemos,  /  Por  isso  se  nos  não  mostrou...»  (Caeiro,  pág.  29) 
«Nfto  acredito  em  Deus  porque  nunca  o  vi.  /  Se  ele  quisesse  que  eu 
acreditasse  nele  sem  dúvida  que  viria  falar  comigo  /  E  entraria  pela 
minha  porta  dentro  dizendo-me.  Aqui  estou*   (id.  pág.  28). 


33 


MÁRIO        SACRAMENTO 

Se  ver  é  enganar-me, 
Pensar  um  descaniinlw, 
Não  sei.  Deus  os  quis  aar-me 
Por  verdade  e  canúnho. 

Quer  dizer:  o  problema  de  Deus  fora  definiUvanientc  pre- 
terido pelo  do  homem.  Se  o  «pensar  (é)  um  descaminhos, 
não  o  é  seguramente  do  ponto  de  vista  de  Deus  —  se 
existe:  só  do  nosso  próprio  ponto  haverá  que  considerá-lo. 
já  que  do  ponto  de  vista  de  Deus  só  ele  mesmo  poderá  ter 
considerado  e  prevenido  o  que  mais  convém  ou  não  (^). 
«Guia-me  a  só  razão»  —  é  o  caso,  e  basta. 

Mas  náo:  a  razão  não  guia,  a  razão  guiou.  Aquela  poesia 
(assinada  Fernando  Pessoa)  não  é  já  senão  uma  forma  em 
verdade  anacrónica  de  catalogar  a  questão.  A  verdade. 
agora,  resume-se  à  «cruel  trituração  mental  que  não  con- 
duz a  nada».  Do  ponto  de  vista  de  Deus  isto  é  indiferente 
ainda.  Se  pensar  não  é  um  descaminho,  mas  um  labirinto... 
«não  sei.  Deus  o  quis  dar-me  /  Por  verdade  e  caminho». 
Quer  dizer:  ao  «quavez-vous  à  perdre?»  é  contraposto  um 
«qu  avez-vous  à  gagner?»  que  volve  a  aposta  de  Past  ai.  no 
.sentido  de  Deus.  indiferente  e  inútil.  .Abandonando,  atra- 
vés de  sucessivas  mutações  na  mente  humana,  os  traços 
nítidos  com  que  surgira  no  Aníígo  Tcslaniento,  Deus  esfu- 
mara-se  em  enigma  e  abdicara  em  complacência: 


(')    «Que   mais   sei    ou   do   Deus,    que   Deus   de   si   próprio?>    (Caeiro, 
pág-.  29). 


54 


PESSOA.    POETA    DA     HORA    AbSUKDA 

«Quando  moço,  esse  Deus  do  Oriente  era  ríspido  e  es- 
tava sedento  de  vingança;  criou  o  inferno  para  deleite 
dos  seus  predilectos.  Por  Hm  íez-se  velho  e  brando  e 
temo  e  compassivo,  assemelhando-se  mais  a  um  avô 
do  que  a  um  pai,  e  até  mais  a  um  avô  decrépito.  Para  ali 
estava  murcho,  sentado  ao  calor  do  lume,  preocupado 
com  a  fraqueza  das  pernas,  cansado  do  mundo,  cansa- 
do de  querer,  e  um  dia  acabou  por  se  afogar  em  ex- 
cessiva piedade»  —  assim  resume  o  último-Papa  u  2Sara- 
tuslra.  I£  coiK  lui.  (lor  o(  asião  do  '<éxtase>>  da  aflorarão-do- 
-burro:  «Aquele  que  diz:  «Deus  é  espírito»  foi  o  que  deu 
na  terra  o  passo,  o  salto  maior  para  a  incredulidade!» 

Adeus  ao  que  é  de  Deus;  ao  homem  o  que  ó  do  homem 
—  é  a  paráfrase  que  os  tempos  reclamam  c  definem. 
Posto  isto.  há  então  que  esclarecer  que,  se  Caeiro  se  nos 
apresenta  como  «discípulo»  de  Pascal,  é  por  esta  circuns- 
tâincia  apenas:  ter  invertido  os  termos  da  aposta.  Que  é 
senão  isso.  com  efeito,  a  beatitude  que  ele  persegue  pelo 
«allez  à  la  messe»  das  llores  e  dos  regatos  e  das  «almas 
simples  como  a  minha»?  O  conceito  de  Deus  tornara-se 
tão  evasivo  e  a  exegese  das  religiões  tão  convincente,  que 
o  menos  que  alguém  a  quem  guiasse  a  só  razão  poderia 
desejar  no  acto  de  concluir  que  o  guia  em  vão  (por  só 
ao  absurdo,  em  última  instância,  o  levar),  —  seria  que  hou- 
vesse paz  na  terra,  não  entre  os  homens  (que  deles  mesmos 
vem  o  mal  deste  bem)  mus  entre  eles  e  as  coisas  e  os  demais 
seres.  Os  céus  estão  sombrios  e  revoltos  e  o  mal  vem  (.la 


33 


MÁRIO        SACRAMENTO 

mente  que  os  esquadrinha.  E,  não  obstante,  como  a  vida 
parece  clara  e  simples  no  plano  material!  Pois  bem,  con- 
finemo-nos  nele:  vivamos  e,  sobretudo,  «pensemos»  vege- 
tativamente:  «naturellement  même  cela  vous  fera  ouhlier  et 
Nous  abêtira»  (').  Quanto  a  Deus.  se  acaso  existe,  terá  dis 
posto  assim  mesmo  —  c  nada  teremos  a  |>erdcr,  agora  ou 
nunca. 

E  com  efeito:  Caeiro  reclama-se  «uma  aprendizagem  de 
desaprender»  (pág.  48)  e  preocupa-se  com  saber  «o  que 
deve  estar  na  alma  /  Quando  já  pensa  que  existe»  (pág.  18), 
procurando  «viver  só  de  viver»  (pág.  50),  «tendo  ideias  e 
sentimentos  por  os  ter  /  Como  uma  flor  tem  perfume 
e  cor»  (pág.  25).  Flor  acima  do  dilúvio  da  inteligência  sub- 
jectiva —  resume-o  Campos. 

«Não  é  já  verdade  os  pobres  serem  bem-aventurados. 
O  reino  dos  céus  está  entre  as  vacas»  —  c  onfessa  o  men- 
digo-voluntário  a  Zaratustra,  e  acrescenta:  «Populaça  aci- 
ma! Populaça  abaixo!  Que  significa  já  hoje  «pobres» 
e  «ricos»?  Eu  esqueci  essa  diferença  e  acabei  por  fugir 
para  longe,  cada  vez  mais  longe,  até  vir  ter  com  estas 
vacas». 

Sim,  cada  vez  mais  longe —  e  porquê?  —  Porque  «essa 
diferença»  se  tornara  importuna!  Dos  «simples»  de  João 
de  Deus  aos  de  Junqueiro,  aos  de  Nobre,  aos  de  Caeiro... 


(')  «Nós  o  que  nos  .supomos  nos  fazemos  /  Se  com  atenta  mente  /Resis- 
tirmos  cm   cTÔ-loí^  --  corrobora  Reis    (pág.    102). 


56 


PESSOA.    POETA     DA     HORA    ABSURDA 

o  simples  osvai-se  cJr  (onteúflo.  esvai-se  em  abstração. 
«Pregador  da  montanha,  estás-te  violentando  ao  em- 
pregar expressões  tão  duras.  A  tua  boca  e  os  teus  olhos 
não  nasceram  para  tais  durezas'  replica  Zaratustra  ao 
mendigo-volunlnrio. — Aceito  por  perfionalidade — confirma 
Alberto  Caeiro:  «Aceito  por  personalidade.  /  Nasci  sujeito 
como  os  outros  a  erros  e  a  defeitos.  /  Mas  nunca  ao  de  que- 
rer compreender  demais.  /  Nunca  ao  erro  de  querer  com- 
preender só  com  a  inteligência,  /  Nunca  ao  defeito  de  exi- 
gir do  Mundo  /  Que  fosse  qualquer  coisa  que  não  fosse  o 
Mundo». 

Mau  grado  a  fuga  do  «nunca  ao  erro  de  querer  compreen- 
der só  com  a  inteligência»  (que  o  coloca  no  vero  clima  de 
Pascal  e  se  lhe  inculca  pela  tradição  dos  «simples»  ante- 
riores, a  qual  o  levou  também  a  escrever  coisas  como  esta: 
«Sentia-me  alguém  que  possa  acreditar  em  Santa  Bár- 
bara... /  Ah,  poder  crer  em  Santa  Bárbara!»  (0.  o  que  não 


(')  E  acrescenta:  «Ahl  é  que  rezando  a  Santa  Bárbara  /Eu  sentla-me 
ainda  mais  simples  /  Do  que  julgo  que  sou...»  —  o  que  é  exacto,  não 
na  licào  fifrurada  de  Caeiro,   mas  na  que  realmente  lhe  convém.  E  o 
próprio  Caeiro  o  confirma,  fingindo  retomar  pé:   «Que  artifício!   Que 
sabem  as  flores,  as  árvores,  os  rebanhos,  /  De  Santa  Bárbara?»  —  e 
concluindo,  absurdamente:  «Um  ramo  de  árvore,  /  se  pensasse^  nunca 
podia  /Construir  santos  nem  anjos......  «O  querer  ser  simples  dá  com 

o  queiente  na  vizinhança  de  quem  quer  ser  sublime.  Este  dá  consigo 
em  absurdo».  —  resumu  lapidarmente  Pessoa,  a  propósito  embora 
dum  assunto  bem  diverso.   iPág.  Doutr.,  Est.,  p.  Si). 


M    A    R    i    O       SACRAMENTO 

passa  (Jum  lapsus  calaini  do  autor  da  (Jeifeira  sob  a  nipó- 
tese-Caeiro),  mau  grado  isso,  o  verdadeiro  escopo  de 
Caeiro  é  eslc:  «\''c-las  [às  coisas]  alé  não  poder  pensar 
nelas  í  (p.  97),  porque  «pensar  incomoda  como  andar  à 
chuva»  (p.  20)  —  e...  «pouco  me  importa.  /  Pouco  me 
importa  o  quê?  Não  sei:  pouco  me  importa».  —  «Em  suma, 
como  diz  o  provérbio  de  Zaratustra:  Que  importa!» 
(Assim  falava  Zara/us/ra —  O  tiinlo  cIc  cnibri<ií^Lic.s). 

Sim,  cada  vez  mais  longo:  o  «simples»  complica-se  —  ne- 
gando-se:  «Toda  a  coisa  que  vemos,  devemos  \ê-Ia  sem- 
pre j)ela  primeira  vez,  porque  realmente  c  a  primeira  vez 
que  a  vemos.  E  então  cada  llor  amarela  é  uma  no\a  flor 
amarela,  ainda  que  seja  o  que  se  chama  a  mesma  de  ontem. 
A  gente  não  é  já  o  mesmo  nem  a  flor  a  mesma.  O  próprio 
amarelo  não  pode  ser  já  o  mesmo.  É  pena  a  gente  não  ter 
exactamente  os  olhos  para  saber  isso,  porque  então  éramos 
todos  felizes»  (').  Ou,  noutro  sentido:  «Ah,  como  os  mais 
simples  dos  homens  /  São  doentes  e  confusos  e  estúpidos  / 
Ao  pé  da  clara  simplicidade  /  E  saúde  cm  existir  /Das 
árvores  e  das  plantas!»  (p.  25).  «Fôssemos  nós  como  devía- 
mos ser.. .»  (p.  62). 

É  por  isso  que  «nem  sempre  consigo  sentir  o  que  sei  que 
devo  sentir»   (p.  66).   «E  assim  escrevo,  ora  bem.   ora  mal. 


('/  Páy.  Doulr.  Et.,  jj.  296.  Cf.  com  as  considerações  feitas  anterior- 
mente sobre  unidade  e  personalidade. 


58 


PESSOA.    POETA    DA     HORA    ABSURDA 

/  ...  /  'Mas  indo  sempre  no  meu  ( aminno  tomo  um  cego 
teimoso>^  (p.  67).  «E  assim  vamos  (...)  pelo  caminho  que 
houver... ^>   (p.  34). 

Cego  teimoso!... ,  mas... — «como  ousarei  dizer;  /  Cego. 
fora  eu  bendito?»...  — Ah.  «estas  vacas  decerto  foram 
muito  mais  longe:  inventaram  o  ruminar  e  cair  no  con- 
trário. Assim  se  livram  de  todos  os  pensamentos  pesa- 
dos que  incham  as  entranhas»  -  reflecte  ainda  o  Men- 
digo-Voluntário  a  Zaratustra. 

Caeiro  aquiesce:  «Estando  doente  devo  pensar  o  contrário 
/  Do  que  penso  quando  estou  são»  (p.  41)...  Pobre  Caeiro!: 
«ai  de  ti  e  de  todos  os  que  levam  a  vida  /  A  querer  inven- 
tar a  máquina  de  fazer  felicidade!»  {p.  74).  Ruminar  e  cair 
no  contrário  —  eis  o  mecanismo  da  transmutação  pela  qual 
Caeiro  resulta  em  Campos:  «revejo-o  [a  Caeiro]  na  sombra 
que  sou  em  mim.  ua  memória  que  conservo  do  que  sou  de 
morto»  —  diz  Campos  (').  E  porque  «tudo  vale  a  pena» 
(escrevera  Caeiro  sem  as  reservas  sequer  do  autor  da  Nlen- 
sagem), 

—  «Pára  Zaratustra!  Espera!  Sou  eu,  Zaratustra;  eu,  a 
tua  sombra!»:  «...Contigo  aniquilei  quanto  o  meu  cora- 
ção adorou...  Contigo  esqueci  a  fé  nas  palavras,  os 
valores,  os  grandes  nomes.  Quando  o  demónio  muda 


(■-)    IbUl.,  p.  204. 

59 


M    A    R    l    o        SACRA    M    E    N    T    O 

a  pele,  não  muda  ao  mesmo  tempo  de  nome?  É  que 
esse  nome  é  apenas  pele.  Talvez  o  demónio  não  seja 
mesmo  mais...  que  uma  pele»  —  di-lo  por  seu  turno  a 
Sombra  a  Zaratustra. 

«Ah  quantas  vezes  vivo  /  A  vida  vegetativa  do  pensa- 
mento!»—  convém  Pessoa  ao  mudar  a  pele  em  Campos. 
A  «cruel  trituração  mental  que  não  conduz  a  nada»  tenta 
uma  vez  mais  livrar-se  «de  todos  os  pensamentos  pesados 
que  [mau  grado  Caeiro]  lhe  incham  as  entranhas»,  inven- 
tando o  «ruminar  e  cair  no  contrário»  pela  «vida  vegeta- 
tiva do  pensamento».  Sim,  «estando  doente  devo  pensar  o 
contrário  /  Do  que  penso  quando  estou  são»  (Caeiro): 
«sou  um  convalescente  do  Momento.  /  Moro  no  rés-do 
-chão  do  pensamento  /  E  ver  passar  a  vida  laz-me  tédio» 
—  corresponde  o  Campos  da  transição,  o  do  Opiário. 

Ah!  o  momento,  —  esse  «Momento  de  tronco  nu  e  quente 
como  um  fogueiro!»  (Ode  Triunfal)  Que  fizeste  tu,  Caeiro, 
face  a  ele,  senão  demonstrar  a  impossibilidade  da  «grande 
saúde  de  não  perceber  coisa  nenhuma»?  (Aniversário)  Que 
inc  resta  assim?  Ó  «Nossa  Senhora/Das  coisas  impossíveis 
que  procuramos  em  vão  /  ...  /  Mater-Dolorosa  das  An- 
gústias dos  Tímidos.../  .../  Vem  c  arranca-me  /  Do  solo 
de  angústia  c  de  inutilidade  /  Onde  vicejo  /  ...  /  Vem  / 
.../  Ò  domadora  hipnótica  das  coisas  que  se  agitam 
muito!»  {Ode  Triunfal)  Vem  e  dá-me  «balbúrdias  da 
alma»,  —  balbúrdias  tais  que  «o  mundo  inteiro  não  exista 


60 


PESSOA.    POETA     DA     HORA    ABSURDA 

para  mimí«  (Ode  Marilima)  «Vole  a  pena  sentir  para  ao 
menos  deixar  de  sentir!»  (p.  154)  Porque,  se  é  certo. 
Caeiro,  que  está  «acima  de  tudo  o  mundo  externo*  (p.  97), 
esta  «rapacidade  de  pensar  o  que  sinto,  que  me  distingue 
do  homem  vulgar  /  Mais  do  que  ele  se  distingue  do  ma- 
caco» e  me  impossibilita  de  «fazer  filhos  à  razão  prática, 
como  os  crentes  enérgicos>^  (p.  91),  «este  estar  entre.  /  Esle 
quase.  /  Este  poder  ser  que.../  Isto»  (p.  52).  confirma 
irremediavelmente  o  minha  impotência  perante  o  «Uni- 
verso Excessivo»  (p.  104).  Eu  digo:  «Não  há  sossego»,  e 
tu  retruques:  «os  grandes  montes  ao  sol  têm-no  tão  nitida- 
mente!» Ah.  mestre!:  «Têm-no?  Os  montes  ao  sol  não  têm 
coisa  nenhuma  do  espírito.  /  Não  seriam  montes,  não  es- 
tariam ao  sol.  se  o  tivessem»  (p.  26).  «Mestre,  meu  mestre 
querido!  /.../  Alma  abstracta  e  visual  até  aos  ossos»  (p. 
29):  «porque  é  que  [me]  ensinaste  a  clareza  da  vista.  / 
Se  não  podias  ensinar  f-me]  a  ter  a  alma  com  que  a  ver 
clara?»  «Prouvera  ao  Deus  ignoto  que  eu  ficasse  sempre 
aquele  /  Poeta  decadente,  estupidamente  pretencioso,  / 
Que  poderia  ao  menos  vir  a  agradar,  /  E  não  surgisse  em 
mim  a  pavorosa  ciência  de  ver».  «Ah,  para  que  me  tor- 
naste eu?  Deixasses-me  ser  humano!»  (p.  50-1).  Porque 
hoje.  Caeiro,  no  «L^niverso  Excessivo»,  perante  a  «pavo- 
rosa ciência  de  ver»  que.  uma  vez  aprendida,  ensina,  para 
além  do  que  tu  próprio  previste,  que  «um  orçamento  é  tão 
natural  como  uma  ár\'ore»,  hoje.  face  à  «mágoa  imensa 
do  mundo  .../  Tão  decadente,  tão  decadente,  tão  deca- 
dente», —  «só  humanitàriamente  é  que  se  pode  viver.  /  Só 


61 


MÁRIO        SACRAMENTO 

ornando  os  liomens,  as  acções,  a  Danalidaae  dos  trabalhos. 
/  Só  assim  —  ai  de  mim! — .  só  assim  se  pode  viver  /  ...e 
eu  nunca  poderei  ser  assim!»  (Passagem  das  Horas)  «A 
fraternidade  (...)  não  é  uma  ideia  revolucionária^'. ..  (Ode 
Marítima)  ...  — não  devia  sê-lo.  quero  eu  dizer,  mas  como 
resgatá-la  hoje  do  caminlio  por  que  seguiu?  E  tu  bem 
.sabes  que  eu  «nasci  para  mandarim  de  condição»  e  que, 
neste  «Universo  Excessivo»,  «falta-mo  o  soSi;ego.  o  chá  e 
a  esteira»  (Opiário}.  «Jardins  do  século  dezoito  antes  de 
8Q,  /  Onde  estais  vós  que  eu  quero  chorar  de  qualquer 
maneira?»  «Que  bom  poder-me  ao  menos  revoltar  num 
comício  dentro  da  minha  almal  /  Mas  até  nem  parvo  sou!  / 
Nem  tenho  a  defesa  de  poder  ter  opiniões  sociais.  /  'Não 
tenho  mesmo  defesa  nenhuma:  sou  lúcido»  (p.  127).  Sou 
lúcido!...  lúcido  —  cie  quê?  «Lucidez  inútil  de  não  poder 
dormir!»  (p.  50).  «Sim.  lenho  vontade  de  vomitar,  de  me 
vomitar  a  mim!»  (p.  1  16)  Dai-me  «um  excesso  .../  contem- 
porâneo de  vós.  ó  máquinas!»  unia  «raiva  mecânica»,  feita 
de  «crispações  absurdas!>^  «Ó  coisas  todas  modernas»  (Ode 
Triunfal):  quem  me  dera  o  absurdo  de  «fugir  convosco  à 
civilização!  /  [de]  perder  convosco  a  noção  da  moral!  / 
[de]  sentir  mudar-se  no  longe  a  minha  humanidade!  >^  Va- 
mos, «dai-me  uma  inspirarão  de  tropel»  (Ode  Marítima),  a 
«turbulência  tranquila  das  sensações  desencontradas»  (Pas- 
sagem das  líoras)  de  modo  a  que  «nem  [saiba]  que  existo 


62 


1'ESSOA.    POF.TÁ     DA     HORA     ABSURDA 

para  ticniro...  gir|ciii(lo|,  r(i(lf(uiKlo|,  c'iigenh[antlo|-me...> 
(Ode  Marítima)  ('). 

i\ssim  nasce  o  Campos  dos  «Maèlstroms  na  alma".  —  O 
«ver  as  coisas  ale  não  potler  pensar  mais  nelas*  de 
Caeiro  é  substituído  pelo  'ívale  a  pena  sentir  para  ao  me- 
nos deixar  de  sentir»,  o  que  mediante  os  serviços  do  «o  quD 
em  mim  sente  está  pensando»,  resulta  em  deixar  de  pensa- 
das também. É  esta  a  resposta  ilusória  de  Campos  ao  «Cár- 
cere de  pensar,  não  bá  libertação  de  ti?»  Resposta  ilusória, 
dissemos,  porque  a  resposta  autêntica  dá-a  assim:  «Ab. 
não.  nenhuma  —  nem  morte,  nem  vida,  nem  Deus!»  (p.  04), 
e  por  isso  não  vemos  nós  que  baja  a  distinguir  nele  duas 
fases  (em  sentido  exacto),  como  se  tem  pretendido,  visto 
ser  idêntica  a  sua  realidade  íntima  quer  no  período  em 
que  «canta  a  \ida  por  bebedeira»  quer  naqueloutro  em 
que  a  carpe  a  frio.  O  «volante  abstracto»  da  Passagem 
das  Horas  e  Ode  Marítima  revolve  os  mesmos  «meus  pró- 
prios tédios»  apenas  «tornados  dinâmicos,  todos!...»  (Ode 
L^íaritima),    levantando   uma   episódica    «nuvem    de   poeira 


(')  Com  vista  aos  adversários  das  montaçens-de-textos,  seja-nos  per- 
mitido esclarecer  que  as  consideramos  apenas  susceptíveis  de  serem, 
como  tudo,  boas  ou  más  Nesta  conformidade,  a  montagem  que  fize- 
mos de  acordo  com  o  nosso  ponto  de  vista,  só  tem  que  sei-  boa  ou  má 
relativamente  a  ele,  náo  alterando  isso  o  facto  de  ser  este  a  estar  em 
causa,  dado  ciue  poderia  ter  sdo  transmitido  por  outro  qualquer  pro- 
cesso. 


63 


M    Á    R    I    O        SACRAMENTO 

quente  anuviando  a  minha  lucidez»  (ibid.).  A  diferença, 
mais  tarde,  resulta  de  já  não  «pegafrem]  bem  as  correias 
de  transmissão  na  minnalma  /  E  a  aceleração  do  volante 
[já  não  me  sacudir  tão]  nitidamente». 

Perante  este  poeta-Campos  das  «crispações  absurdas»,  o 
magistério  de  Caeiro  parece  consistir  apenas  na  transfe- 
rência do  «interesse»  deste  pelo  mundo  físico  para  um 
«interesse»  daquele  pelo  mundo  social.  Dadas  as  conse- 
quências de  tal  transferencia,  a  lição  de  Caeiro  resulta 
negativa  no  próprio  âmago  das  suas  concepções  pessoais 
pois  é  mais  do  que  evidente,  nestas,  a  implicitação  daquilo 
a  que  se  furtam  e  opõem.  Debalde  Caeiro  pede  que  «ao 
lerem  os  meus  versos  pensem  /  que  sou  qualquer  coisa 
natural»  (p.  2l).  Ele  mesmo  reconhece  que  «há  metafísica 
bastante  em  não  pensar  em  nada»  (p.  26).  já  que  este  não- 
-pensar-em-nada  não  é  senão  a  atitude  convencional  ds 
quem,  tendo  retirado  a  lição  do  pensar-tudo,  esta  de  so- 
breaviso e  se  furta.  Ele  o  diz:  «para  mim  pensar  nisso  é 
fechar  os  olhos  /  e  não  pensar.  É  correr  as  cortinas  da 
minha  janela  (mas  ela  não  tem  cortinas)»  (p.  26).  Ter  ou 
não  ter  cortinas  —  é  o  mesmo  (^).  Ele  cola  a  cara  aos  vidros 


O  Confrontc-se  a  referida  expressio  de  Caeiro  com  a  que  lhe  corres- 
ponde em  Campos  e  que  a  sepruir  citamos,  a  qual  inverte  termo  a  termo 
a  significação  da  anterior,  confirmando  uma  vez  mais  a  simetria  do 
termos  no  binómio  Caeíro-Campos :  «Correram  cortinas  de  todas  as 
hipóteses  que  eu  poderia  ver  na  rua»  (p.  247). 


64 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

e  insiste  em  que  não  Ká  adentro»,  quando  n  verdade  é  o 
«fora^/  se  resumir  à  obcessáo  de  fugir-Ihe  —  esse  impossível. 
Toda  a  poesia  de  Caeiro  é  assim  o  «fora»  a  tentar  embalde 
mascarar- se  recalcando  o  «dentro».  A  metafísica  do  não- 
-pensar-em-nada  é  a  do  ter-pensado-inútilmente-em-tudo. 
Caeiro  chama  o  «fora»  em  seu  socorro  contra  o  que  o  soli- 
cita para  a  dor  do  «dentro».  Daí  a  ambição  tipicamente 
absurda  de  «pensa(r)  com  os  olhos  e  com  os  ouvidos  /  e 
com  as  mãos  e  os  pés  /  e  com  o  nariz  e  a  boca».  Introdu- 
ção à  utopia  duma  fuga  ao  absurdo  —  eis  como  poderii 
rotular-se  a  obra  de  Caeiro.  Concluída  tal  introdução,  veri- 
fica-se  que  percorremos  por  ela  um  novo  caminho  de 
absurdo.  E  assim  Caeiro  morre  —  por  ter  prometido  demais. 
e  não  lhe  consentir  a  falsa  dignidade  de  mestre  a  lealdade 

de  o  reconhecer. 

1 

«Zaratustra  estou  farto:  cansam-me  as  minhas  ories  (...); 
eu  queria  simular  de  grande  homem,  e  a  muita  gente 
convenci;  mas  esta  mentira  foi  superior  às  minhas  for- 
ças. Zaratustra,  em  mim  tudo  é  mentira;  mas  que  su- 
cumbo... isso  é  positivo!»  —  confessa  o  Redentor-do-Es- 
pírito. 

O  reencontro  com  o  absurdo  no  próprio  plano  de  Caeiro  é 
revelado  por  ele  em  frases  como  estas:  «Quase  alegre  como 
quem  se  cansa  de  estar  triste»  {p.  69);  «Os  meus  pensa- 
mentos são  contentes.  /  Só  tenho  pena  de  saber  que  eles 
são  contentes.  /  Poique.  se  o  não  soubesse,  /  Em  vez  de 


63 


M    A    R    l    o        SACRAMENTO 

serem  ronfentes  e  tristes.  /  Seriam  alegres  e  contentes» 
(p.  20);  «Sentir  é  estar  distraído»  (p.  85).  Quanto  ao  con- 
traditório que  condiciona  tal  reencontro,  confronle-se  q 
significação  do  ardiloso  «estando  doente  devo  pensar  o 
contrário  /  Do  que  penso  quando  estou  são»  com  o  alcance 
de  frases  como  as  que  seguem,  de  págs.  23  e  100  respecti- 
vamente.- «Amar  é  a  eterna  inocência  /  E  a  única  ino- 
cência é  não  pensar» ;  «Amar  é  pensar.  E  eu  quase  que 
me  esqueço  de  sentir  só  de  pensar  nela». 

Por  último,  e  em  relação  ao  substracto-comum  Caeiro-Cam- 
pos  coteje-se  com  Campos  o  significado  das  palavras  que 
vão  sublinhadas  na  citação  que  a  seguir  fazemos  dum  dos 
poemas  atribuídos  ao  Caeiro-c/oente:  «Quem  me  dera  que 
eu  fosse  o  pó  da  estrada  /  .../  ...os  choupos  /...  /...  o 
burro  do  moleiro  /  .../  Antes  isso  que  ser  o  que  atravessa 
a  vida  /  Olhando  para  trás  de  si  e  tendo  pena...»  (p.  45). 
Quanto  a  Campos,  o  absurdo  reabre-se-lhe  deste  modo. 
esgotado  o  Maèlstrom:  «à  força  de  sentir,  fico  só  a  pensar» 
(p.  50). 

«A  alegria  quer  eternidade»,  «profunda  eternidade»  — 
proclamara  Zaratuslra.  E  acrescentara:  «A  alegria  quer  a 
eternidade  de  todas  as  coisas»  pelo  que  dissera  à  dor: 
«Passa,  mas  toma!» 

«Não  é.  nem  nunca  foi  assim» — contesta  Pessoa  no  seu 
estudo   sobre  António   Boto   e  o   ideal  estético  em   Portu- 


66 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

gal — :  «a  alegria  não  quer  nada.  e  é  por  isso  que  é  ale- 
gria». Esta  expressa  citação  do  Zaralustra,  além  do  inte- 
resse que  tem  como  confirmação  da  sua  leitura,  permite-nos. 
pelo  cotejo  do  comentário  que  lhe  é  feito  com  as  frases 
relativas  à  alegria  há  pouco  transcritas  de  Caeiro,  estimar 
em  definitivo  o  verdadeiro  alcance  da  resposta  deste  à  per- 
gunta comum:  «Cárcere  do  pensar,  não  liá  libertação  de 
ti?»,  —  servindo,  demais,  de  ponto  de  partida  para  o  exame 
da  face-íRicardo  Reis.  Pessoa  acrescenta,  efectivamente,  no 
referido  estudo:  «A  dor  essa  é  o  contrário  da  alegria,  como 
a  concebia  Nietzsche:  quer  acabar,  quer  não  ser.  O  prazer, 
porém,  quando  o  concebemos  fora  de  relação  essencial  com 
a  alegria  ou  com  a  dor,  como  o  concebe  o  autor  deste  livro, 
esse.  sim,  quer  eternidade;  porém  quer  a  eternidade  num 
só  momento». 

A  busca  do  prazer  pela  eternidade  num  só  momento  é 
um  resumo  feliz  do  formalismo  estético  de  Ricardo  Reiâl 
Epígono  horaciano  é  ele  o  único  heterónimo  a  quem  o 
ideal  estético  (em  sentido  geral)  parece  interessar.  Com 
efeito,  por  muito  que  prefiramos  a  originalidade  da  obra 
de  Caeiro  e  Campos  à  de  Reis.  é  um  facto  que.  uma  vez 
formulada  a  pergunta:  que  representou  a  arte  para  Caeiro 
e  Campos?  —  nos  vemos  forçados  a  responder  que.  a  ajuizar 
pelo  depoimento  deles,  representou  pouquíssimo.  Para 
Caeiro,  ela  não  é  senão  um  acontecer  como  tantos:  «Penso 
e  escrevo  como  as  flores  têm  cor  /  .../  E  a  minha  poesia 
é  natural  como  o  levantar-se  vento»  (p.  40).  Por  isso  estra- 


67 


^1    A    R    1    o        SACRAMENTO 

nha  que  haja  «poetas  que  sfio  artistas  /  E  trabalham  nos 
seus  versos  /  Como  um  carpinteiro  nas  tábuas!...»;  c 
comenta:  «Que  triste  não  saber  florir!»  (p.  58).  Para  Cam- 
pos, a  poesia  ofercce-se  quer  como  um  diário-ae-angústias 
quer  como  uma  evasão  pela  incontinência  ou  «êxtase-em- 
-mim>>  (p.  17l),  pelo  que  escreve:  «Os  antigos  invocavam 
as  Musas  /  Nós  invocamo-nos  a  nós  mesmos»  (p.  72)  —  e 
confessa:  «Os  meus  versos  são  eu  não  poder  estoirar  de 
viver»  (p.  298).  Chama  a  Whitman  «grande  bastardo  de 
Apolo.  /  Amante  impotente  e  fogoso  das  nove  musas  e  das 
graças,  /  Funicular  do  Olimpo  até  nós  e  de  nós  ao 
Olimpo»  (p.  212).  depreciando  assim  implicitamente  as 
possibilidades  da  arte  moderna.  E  conclui:  «Eu  escrevo, 
estou  escrevendo,  por  uma  necessidade  sem  nada»  (p.  95); 
«Estou  escrevendo  versos  realmente  simpáticos  —  /  Versos 
a  dizer  que  não  tenho  nada  que  dizer.  /  Versos  a  teimar 
em  dizer  isso.  /  Versos,  versos,  versos,  versos  versos...  / 
Tantos  versos...  /  E  a  verdade  toda.  a  vida  toda  fora  deles 
e  de  mim!*  (p.  272).  Quer  dizer:  tanto  Caeiro  como  Cam- 
pos recordam,  como  poetas,  a  sátira-sem-satira  do  «ruminar 
como  um  boi  que  não  chegou  a  Apis»  de  Álvaro  de  Cam- 
pos. A  alegria  no  estricto  plano  da  criação  artística  parece 
ser-lhes  desconhecida,  e  diríamos  que  só  por  isso  eles  sfio 
indiferentes   à  concepção  da   «eternidade»   em  arte. 

Ora.  a  acreditarmos  o  autor  do  estudo  sobre  António  Boto 
o  o  ideal  estético  em  Portugal,  «a  \ríe  é  (...)  o  aperfeiçoa- 
mento subjectivo  da  vida»  e  «o  esteta  substitui  a  ideia  de 


68 


1'Í^SSOá.     POEIA     DA    HORA     ABSURDA 

beleza  à  ideia  de  verdade  e  à  de  bem*,  peio  que  «não  [se| 
interessa  pelas  ideias  de  bem  e  de  verdade^». 

No  que  se  refere  a  Caeiro  e  a  Campos,  não  vemos  qui; 
lenham  feito  outra  coisa  senão  interessar-se  —  em  pró.  em 
contra  (^) — por  essas  mesmas  «ideias  de  bem  e  de  verdade*, 
podendo  considerar-se  os  versos  que  seguem,  da  Tabacaria, 
um  resumo  em  tal  sentido  feliz  da  sua  comum  experiência: 
«Falhei  em  tudo.  /  Como  não  fiz  propósito  nenhum,  talvez 
tudo  fosse  nada.  /  A  aprendizagem  que  me  deram.  /  Desci 
dela  pela  janela  das  traseiras  da  casa.  /  Fui  até  ao  campo 
com  grandes  propósitos.  /  Mas  lá  encontrei  só  ervas  e 
árvores,  /  E  quando  havia  gente  era  igual  à  outra.  /  Saio 
da  janela,  sento-me  numa  cadeira.  Em  que  hei-de  pen- 
sar?» Assim,  quer  Campos  (por  confissão  expressa),  quer 
Caeiro  (por  sugestão  involuntária  do  seu  «bluff»)  não 
fizeram  senão  apontar  o  «vácuo  absurdo  da  existências 
que  o  autor  do  estudo  referido  mostrou  ser  necessário 
«encher». — e  encher  pondo  o  sucedâneo  dum  «conceito 
de  vida»  ao  alcance  de  «quem  não  tem  nenhum».  Não 
era  senão  isso  o  que  ele  pedia  à  ideia  de  beleza  conci- 
tando-a  a  propiciar  o  prazer  pela  eternidade  num  só  mo- 
mento. 


(')  Nisso  conformes,  aliás,  às  seguintes  palavras  do  autor  do  aludido 
estudo:  «o  propósito  de  ser  céptico  revela  uma  preocupação  metafísica. 
o  de  ser  imoral  uma  preocupação  ética,  e  o  carácter  negativo  de  ambas 
as  preocupações  não  as  torna  menos  preocupações».  E  concluía  apro- 
positadamente  ao  nosso  caso:  «Nisto  claramente  se  distingue  o  esteta 
do  mau  cristão  decadente,  como  Baudelaire  ou  Wilde». 


69 


MAR/O        SACRAMENTO 

O  Campos  lios  funiruIares-pnra-o-OIimpo  pusera  já  o 
problema  das  dificuldades  actuais  dum  tal  desiderato. 
E  por  isso  Reis  se  acolhe  sem  hesitações  à  sombra  tute- 
lar de  Horácio.  A  torre-de-marfim  enjeitada  por  Caeiro 
e  Campos,  ergue-a  Ricardo  Reis  com  labor  paciente  c 
fina  astúcia,  incrustando-se  nela  como  em  mansão-do- 
-eterno.  De  lá  dirige,  quem  sabe?,  um  aceno  amistoso  ao 
Marinetti-académico  sarcastizado  por  Campos,  e  põe-sc  a 
trabalhar  «nos  seus  versos  /  Como  um  carpinteiro  nas 
tábuas».  Deles  dirá  Pessoa,  em  carta  a  Côrtes-'Rodrigues. 
que  «são  em  verdade  contcmporânc(o)s  por  dentro  da 
idade  eterna  da  Natureza»,  o  que  não  é  nem  mais  nem 
menos  absurdo  que  dizer:  eternos-num-só-momento. 

Esteta  voluntário,  não  admira  que  se  revelasse  «pagão  por 
carácter»  (*).  Ele  mesmo  o  explica  usando  uma  expressão 
semelhante  à  outra  já  transcrita  de  Alberto  Caeiro:  €  Antes 
islo  que  a  vida  /  Como  os  'homens  a  vivem»  (p.  57).  O 
seu  escopo  em  face  da  vida  não  é  pois  vivê-la  propriamente 
mas  decorrê-la  (p.  14)  —  e  mesmo  assim  condicionalmente 
(é  o  que  quer  dizer  o  tal  carácter):  «Senta-te  ao  Sol. 
Abdica  /  E  sê  rei  de  li  próprio»  (p.  31);  pelo  que  confessa: 
«Não  ignoro  o  que  esqueço.  /  Canto  por  esquece  lo»  (p.  81). 
Já  que  «nada  somos  que  valha»,  pois  «somo-lo  mais  que 
em  vão»  (p.  85).  —  «circunda-te  de  rosas.  ama.  bebe  / 
E   cala.  O   mais   é    nada»    (p.   91);    ou:    «desenlacemos   as 

(')  Páa.  Doutr.  Est..  p.  207. 

70 


PESSOA.     POETA     DA    HORA     ABSURDA 

mãos,  porque  náo  vale  a  pena  cansarmo-nos»  (p.  25). 
Contudo  (atenrão,  Caeiro  c  Campos!),  «antes,  sabendo  / 
Ser  nada.  que  ignorando:  /  Nada  dentro  de  nada/^  (p.  87). 
pelo  que  «acima  de  nós  construamos  um  fado  voluntário» 
(p.  41).  aprendenílo  «na  história  /  Oos  calmos  jogadores 
de  xadrez  /  Como  passar  a  vida»  (p.  62).  Fado  voluntário, 
o  esteticismo  de  Reis  conlunde-se,  porém,  aspirando  desta 
arte:  «Seguro  assento  na  coluna  firme  /  Dos  versos  em 
que  fico,  /  Nem  temo  o  influxo  inúmero  futuro  /  Dos  tem- 
pos e  do  olvido;  /  Que  a  mente,  quando,  fixa,  em  si 
contempla  /  Os  reflexos  do  mundo,  /  Deles  se  plasma 
torna,  e  à  arte  o  mundo  /  Cria,  que  não  a  mente.  /  Assim 
na  placa  o  externo  instante  grava  /  Seu  ser.  durando  nela» 
(p.  78).  E  com  efeito  impossível  colmatar  a  brecha  que 
esta  poesia  abre  com  a  que  segue:  «Sim.  sei  bem  /  Que 
nunca  serei  alguém.  /  Sei  de  sobra  /  Que  nunca  terei  uma 
obra.  /  Sei,  enfim.  /  Que  nunca  saberei  de  mim.  /  Sim, 
mas  agora,  /  Enquanto  dura  esta  hora.  /  Este  luar.  estes 
ramos,  /  Esta  paz  em  que  estamos,  /  Deixem-me  crer  /  O 
que  nunca  poderei  ser»,  (p.  152)  Reis  esqueceu-se  de  nos 
prevenir  de  que  «estando  doente  devo  pensar  o  contrário  do 
que  penso  quando  estou  são».  E  daí  que  fiq.uemos  em 
guarda  contra  o  rei-de-si-próprio  que,  tendo  muito  embora 
escrito  tal  poesia  em  tempo  de  morbo,  se  esqueceu  de  a 
inutilizar  convalescendo.  Tal  guarda  confirma  a  rejeição 
a  que  já  votáramos  a  poesia  antecedente  mediante  o  con- 
fronto da  mente  que  se  oferece  como  placa  à  gravação  da 
arte  pelo  mundo  com  os  anteriores  «abdica»  e  «canto  por 


71 


M    A    R    /    o        SACRAMENTO 

esquecè-lo*.  confirmados  pela  confissão  de  que  «nada  tem 
sentido  —  nem  a  alma  com  que  penso  sòzinfio»  (p.  111). 
O  «fado  voluntário*  não  conduz,  de  facto,  senão  à  *inútil 
faina/  Do  jogo  do  xadrez»  (p.  63),  o  qual  «prende  a  alma 
toda.  mas.  perdido,  pouco  /  Pesa,  pois  não  c  nada»:  quer 
dizer,  só  vale  a  pena  —  por  não  dar  p>ena.  Reis,  o  esteta, 
pressente  assim  o  ai)surdo  no  próprio  plano  da  arte.  e  con- 
vindo em  que  «ignorar  que  vivemos  /  Cumpre  bastante  a 
vida»  (p.  82),  conclue  que  «no  fim  tudo  será  silêncio, 
salvo/  Onde  o  mar  banhar  nada»  (p.  154).  Com  esta  trans- 
crição estamos  já  em  plena  expressão  de  absurdo.  Fado- 
-voluntário  {quer  dizer:  fado-absurdo,  construído  à  pura 
base  de  que  «só  na  ilusão  da  liberdade  /  A  liberdade 
existe» — p.  42)  (^).  o  esteticismo  de  Reis  preenche  assim 
o  vácuo  aberto  pela  «visão  clara  /  E  inútil  do  Universo» 
(p.  56)  com  o  sofisma  de  que  «os  deuses  são  deuses  / 
Porque  não  se  pensam»  (p.  69);  e  coroa-se  de  rosas  pre- 
venindo a  «cruel  trituração  que  não  conduz  a  nada»  de 
Fernando  Pessoa. 

«Esteja  eu  desterrado  de  toda  o  verdade!  Mais  do  que 
um  louco,  não!  Tanto  como  um  poeta!»  —  «assim  can- 
tava o  feiticeiro,  e  todos  os  que  estavam  ali  reunidos 
caíram  como  pássaros  na  rede  da  sua  astuta  e  melan- 


(')  Ou  seja.  afinal:  construído  na  mesma  base  do  «aceito  por  perso- 
nalidado,  que.  posto  a  par  do  «devaneio  lógico»  de  Pessoa  (p.  298) 
e  da  «In.spiracào  de  tropel»  de  Campos,  faz  deste  «fado  voluntário» 
o  quarto  pé  de  uma  estufa  a  quatro  temperaturas  e  um  só  mecanismo. 


72 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

cólica  voluptosidade.  O  único  que  se  não  deixou  apa- 
nhar foi  o  consciencioso  que,  arrebatando-lhe  a  harpa 
dos  mãos,  gritou»  ('): 

O  poeta  é  um  finsfidorl 

A  poesia  ortónima  Autopsicografia  confirma  o  absurdo  no 
plano  supremo  da  arte,  pela  identificação  do  «fingir»  com 
o  «exprimir'>.  Ricardo  Reis  escrevera:  «Estás  só.  Nin- 
guém o  sabe.  Cala  e  finge.  /  Mas  finge  sem  fingimento 
/  Nada  esperes  que  em  ti  já  não  exista*  (p.  130). 
Que  significará:  finge  sem  fingimento?  —  Recordemos: 
«fingir  é  conhecer-se».  Dissemos  já  que  tal  frase  não 
implica  uma  forma  contraditória  de  conhecimento  ('').  E 
com  efeito:  «nada  esperes  que  em  ti  já  não  exista».  Quer 
dizer:  todo  o  conhecer  não  passa  de  fingimento.  Ou  ainda: 
não  há  uma  ordem  de  verdade  no  mundo:  no  plano  da  afec- 
tividade «a  maioria  das  gentes  sente  convencionalmente, 
embora  com  a  maior  sinceridade  humana»  {^);  no  plano  do 
entendimento,  «peia  ciência  aperfeiçoamos  em  nós  o  nosso 
conceito,  ou  ilusão,  do  mundo»  (^).  E  assim  como  «a  mate- 


(')  Assim  falava  Zaratustra.  —  O  canto  da  melancolia. 
(')  O  seu  «significado»  é  denunciado  pelo  das  nótulas  ou  reflexões  que 
a  acompanham  no  escrito  atribuído  a  Campos  que,   sob  o  título  Am- 
biente, foi  publicado  no  n."  5  da  Presença.  Com  efeito,  são  estas  as 
«conclusões»  dessas  nótulas:  «cada  época  entrega  às  seguintes  apenas 
aquilo  que  não  foi»;  «a  vida  é  o  lado  de  fora  da  morte»;  «exprimir-se 
é  dizer  o  que  se  não  sente»:  «estar  é  ser». 
(»)  Páff.  Doutr.  Est..  p.  285. 
(•)  Ibid.,  p.  123.  Sublinhado  nosso. 


73 


MÁRIO        SACRAMENTO 

mática  é  uma  linguagem  perfeita,  mais  nada»  (*).  assim 
lambem  «a  arle  c  uma  matemática  sem  verdade»  ('). 
Fingir-sem-fingimento  c.  pois.  aventurar-com-Iucidez-for- 
mal.  ou  seja:  com  vista  a  uma  «linguagem  perfeita».  Quer 
dizer:  fingir-sem-fingimento  é  a  sequência  natural  do  tudo- 
-vale-a-pena-quando-a-alma-não-é-pequena,  isto  é. — quan- 
do atenta  à  «importância  misteriosa  do  existir».,  Com  mais 
propriedade,  portanto:  fingir-sem-fingimento  c  aventurar 
com  inteligível  «sinceridade»  metafísica  (').  dado  que  o 
conhecer  a  que  este  fingir  simula  «opor-se»  é  tão  «conven- 
cional» como  a  sinceridade  de  há  pouco.  Reciprocamente, 
exprimir  c  fingir  também.  E  com  efeito:  se  na  primeira 
quadra  da  Aulopsicografia,  a  que  diz: 

O  poeta  é  um  fingidor. 
Finge  tão  completamente 
Que  chega  a  fingir  que  é  dor 
A  dor  que  deveras  sente. 

—  substituirmos  o  verbo  «fingir*  pelo  verbo  «exprimir*, 
a  quadra  não  fará  senão  repetir  este  lugar-comum:  pelo 
dom  poético  logra-se  transmitir  sentidamente  a  dor  sentida. 
Um  perfeito  domínio  desse  dom  poderia  conceder  ao  poeta 
o  privilégio  de  «exprimir»  (fingir)  também  satisfatoriamente 


(•)  Ibid..  p.  138.   Sublinhado  nos.so.     . 
O  Ibid..  p.  127. 

(')  Com  uma  sinceridade  metafísica.   Recordar  a  carta,   atrás  comen- 
tada, a  Côrtes-Rodrigues. 


74 


PtiSSOA,     l'OETA    DA    líOKA     ABSURDA 

a  dor  que  não  sinta.  Da  mesma  forma,  a  dor  sentida 
não-convencionalmente  (a  dor  íingida-sem-fingimento) 
poderá  transfigurar-se  em  termos  de  convenção.  Pois  que  é 
a  linguagem  em  geral,  e  a  attística  em  particular,  senão 
convenção?  Pobre  poeta!:  «.estás  só.  Ninguém  o  sabe.  Cala 
e  finge»!  Aliús...  que  é  jú  de  si  a  dor  que  «fsentes^>  senão 
convenção?  Assim,  qual  será  mais  verdadeira:  a  dor  que 
transmites  pelo  fingimento  poético  julgando  senti-la,  ou  a 
que  por  ele  ressentes  julgando  fingi-la? 

E  os  que  lêem  o  que  escreve. 
Na  dor  lida  sentem  bem, 
Não  as  duas  que  ele  teve. 
Mas  só  a  que  eles  não  têm. 

Sentem  bem  —  escreve  o  poeta,  e  sublinhamo-lo  porque 
desde  já  se  conclui  que  a  arte  é  absurda  —  mas  não 
inútil!  Campos  e  Reis.  aliás,  não  fizeram  senão  falar  da 
utilidade  que  nela  encontraram,  cm  sentido  pessoal;  quanto 
a  Caeiro,  a  suficiência  do  seu  ideário  ignorou  que  sentido 
tivessem  o  útil  e  o  inútil. 

«Sentem  bem»,  pois, —  mas  diferentemente.  Convencional- 
mente?—  Que  importa,  se  o  convencional  não  passa  dum 
resultado  estatístico?  Saber  o  que  e  o  como  se  sente  é 
uma  forma  ainda,  menor,  de  conhecimento,  e  como  tal 
sujeita  aos  erros  e  às  flutuações  de  sempre. 


73 


^l    A    R    l    o        SACRAMENTO 

E  assim  nas  calhas  de  roda 
Gira  a  entreter  a  razão. 
Esse  comboio  de  corda 
Que  se  chama  coração. 

A  entreter  a  razão:  porquê  «a  razão»?  —  Porque,  já  vimos, 
a  arte  é  uma  avenlura-íúcúJa,  uma  «linguagem  perfeita». 
E  porquê  «entreter»? — Porque  «a  arte  é  uma  matemática 
sem  verdade»,  um  fingir-sem-fingimento. 

E  assim  a  cruel-trituraçáo-mental-que-não-conduz-a-nada 
faz   que   se   busque   na  arte   um   «antes   isto   que   a  vida» 

—  um  «antes  isto»  que  a  cruel-trituração-mental:  —  é  o 
«fado  voluntário*,  no  plano  de  Reis;  são  os  «maèlstroms 
na  alma»,  no  de  Campos;  é  o  «aceito  por  personalidade», 
no  de  Caeiro,  e  é  o  «devaneio  lógico»,  no  de  Pessoa  ortó- 
nimo.  O  que   a  trituração  não  podia,  pode-o  o  devaneio 

—  e  o  mais,  pois  conduzem  ao  fingimento  poético,  preen- 
chendo por  ele  o  «vácuo  absurdo  da  existência».  Preen- 
chendo?— Sim,  mas  remetendo-se-lhe  —  o  que  é  absurdo, 
e  por  isso  mesmo  é  exacto.  Com  efeito,  a  lição  absurda 
da  Autopsicografia  (a  de  que  é  possível  sentir  bem  a  dor  que 
se  não  tem)  confunde  e  esvai  a  ordem  dita  natural  das 
coisas;  e.  como  essa  ordem,  aqui,  é  a  absurda...  reconduz 
a  pensar  que  não  seja  possível,  afinal,  fingir-sem-fingi- 
mento—  e  resgata  Pessoa  para  a  «genuinidade»  da  nora. 
Resgatando-o.  perde-o  —  o  que  volta  a  ser  absurdo,  quer 
dizer:  volta  a  ser  exacto... 


76 


o    ANTI-GÉNIO 

Atingida  aquela  sorte  de  fundo-de-saco  em  que  o  pensa- 
mento fora  obrigado  a  refluir  sobre  si  próprio  auto-devo- 
rando-se  até  à  negação,  até  à  irrealidade  dos  seus  próprios 
valores  (^).  só  a  profunda,  esclarecida,  intransitória  apreen- 
são da  Hora  poderia  oferecer  viabilidade.  Contudo,  se  o 
pensamento  era  inane,  era-o  também  para  isso.  E  daí  que 
as  ambições  do  célebre  verso  que  postulou  que  «o  que  em 
mim  sente  está  pensando»  tivessem  de  restringir-se  à  si- 
gnificação de  que  só  afinal  «o  que  em  mim  sente  está 
pensando».  E  porque  esse  «sentir»  não  era  senão  o  irre- 
conhecido  recalque  da  comprovada  impotência  dum  pen- 
sar efectivo,  a  lingugem  que  o-que-em-mim-sente  tende  a 


(1)  «O  reato  é  o  mito  daa  Danaídes,  ou  outro  qualquer  mito  —  porque 
todo  o  mito  é  o  das  Danaides,  e  todo  o  pensamento  (...)  enche  eterna- 
mente um  tonel  eternamente  vazio»  (Pág.  Doutr.  Est..  p.  85).  E  Álvaro 
de  Campos  acrescenta:  «diga-o  ao  Fernando».  Mas  por  demais  o  sabia 
Pessoa,  como  o  manifestara  nesse  mesmo  escrito  a  que  o  de  Campos 
fingia  responder.  Nele  se  fala  em  tencher  o  vácuo  absurdo  da  exis- 
tências (p.  74)  e  se  pondera  que  «se  for  altamente  metafísica  [a  cons- 
ciência de  que  a  vida  é  imperfeita]  haverá  consciência  de  mais  para 
poder  haver  ilusão».  E  noutro  lugar:  «a  filosofia,  que  abusivamente 
se  coloca  entre  as  ciênc^^s.  como  se  ela  fora  mais  que  o  exercício  do 
espírito  em  se  figurar  mundos  impossíveis...»  (p.  129);  ou  ainda:  «a 
mim,  espírito  especulativo  e  metafísico,  e  por  isso  triste  e  desgra- 
closo.  .»  (p.  H2-3). 


77 


MÁRIO        SACRAMENTO 

assumir  é  a  dum  eslá-pensando  que  aspira  sibilinamente 
à  utopia  dum  avatar  linguístico.  E  só  em  desespero  de  causa, 
com  efeito,  que  ele  se  resigna  à  fuga  na  metáfora-pelo- 
-absurdo.  Deste  modo.  não  foi  o  «o  que  em  mim  sente 
está  pensando»  que  constituiu,  de  si.  no  caso  de  Pessoa, 
uma  «inibição  dramática  de  toda  a  verdadeira  criação 
poética»  —  como  já  se  tem  pretendido  {^)  — .  mas  sim 
tão-só  o  «...está  pensando»  abstracta  e  contranitòría- 
mente  {^). 

Perante  o  colapso  do  racionalismo  idealista.  Pessoa,  rácio 
nalista  não  obstante,   tem  de   substituir  o  culto  da  Razão 


O  Gaspar  Simões,  ob.  cit.,  vol.  II,  p.  85. 

(-)  Vale  a  pena  sumariar  a  génese  desse  verso,  que  teve  inicialmente 
a  seguinte  forma:  «o  que  em  mim  ouve  está  chorando».  Se  recordar- 
mos que,  na  poesia  de  que  faz  parte,  a  cpobre  ceifeira»  canta  «julgando- 
-se  feliz  talvez»  («como  se  tivesse  /  Mais  razões  p"ra  cantar  qup 
a  vida») :  e  que.  portanto,  do  ponto  de  vista  do  poeta,  ela  «canta  sem 
razão»  —  pelo  que  «a  sua  voz»  está  «cheia  /  De  alegre  e  anónima  viu- 
vez» — ,  compreende-se  que  o  poeta-espectador  que  «toma  consciência 
de  cada  emoc&o  como  dupla,  de  cada  sentimento  como  a  contradição 
de  ai  mesmo»  (voltaremos  adiante  a  esta  concepção  de  Pessoa),  ao 
reconhecer  que  ouvi-la  *alegra  e  entristece*  a  um  tempo  (absurdo  este 
que  tenta  escapulir-se  por  detrás  da  duplicidade  da  voz  que  fala  do 
€campo  e  da  lida»,  ou  seja,  por  detrás  da  *.alegre  viuvez*),  preferisse 
ao  verso  «o  que  em  mim  out;e  está  chorando»  (só  dúplice  pelo  conheci- 
mento extrínseco  de  que  é  alegre  o  que  se  ouve)  esse  outro  bem  clara- 
mente bifronte  de  «o  que  em  mim  sente  está  pensando».  Note-se  con- 
tudo que  este  verso  resulta  do  anterior  por  um  simples  movimento  de 
abstracção  de  conceitos:  ouvir  (genericamente)  =  sentir;  chorar  (figu- 
radamente) =  pensar. 


78 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

pelo  cias  razões  da  sem-razão  da  Razão  (no  sentido,  não 
de  razões-causa.  que  teriam  podido  libertá-lo,  mas  de 
razões-sucedâneo  ou  razões  na  sem  razão  e  a  despeito 
dela).  'Procurando  subsistir,  a  vida  depõe  assim  a  vice- 
-Razão  do  Oesespero.  e  o-que-sente,  agarrando  pelos  cabe- 
los o-que-pensa,  força-o  a  alienar-se  no  caos  do  absurdo. 
(E  que  será  isto.  afinal,  senão  uma  forma  larvada,  pru- 
dente e  inquieta,  de  pensamento-mágico?). 

Só  por  aqui  a  obra  de  Fernando  Pessoa  nos  oferece  a 
possibilidade  duma  «explicação  central»,  para  usarmos  a  sua 
própria  terminologia.  —  não  pela  definição  do  tipo  em 
que  C£d'ba  (lírico,  dramático  elegíaco... — como  o  próprio 
Pessoa,  ao  usar  e  propor  aquela  designação,  pretendeu)  pois 
que  de  si  o  tipo  não  e.xplica.  tão-só  distingue,  —  mas  pela 
demarcação  desse  centro-de-gravidade  que  a  obra  dum 
qualquer  artista  necessariamente  implica  e  que  uma  vez 
reconhecido  como  que  a  ilumina,  dando  profundidade  ao 
que  antes  se  furtava  pela  falsa  transcendência  duma  obs- 
curidade reticente.  Escusado  será  dizer  que  tal  centro  de 
gravidade  não  implica  (nem  contradiz)  um  conceito  de 
unidade  e  que.  definindo  apenas  o-que-é  e  não  o-que- 
-devém.  em  nada  altera  as  conclusões  a  que  já  chegámos. 
Ora.  ao  conceito  idealista  de  génio  não  corresponde  em 
termos  de  realismo  senão  isto:  um  excepcional  adequa- 
mento  do  homem  à  realidade  do  seu  tempo.  O  tempo  de 
Pessoa,  ao  nível  do  sector  intelectual  da  sua  classe,  era  a 
hora  absurda  —  a  hora  inviável.  Contudo,  o  próprio  dum 


70 


!^I    Á    R    I    o        SACRAMENTO 

artista  ambicioso  e  bera  dotado  como  Pessoa  era  canditatar- 
-se  em  qualquer  caso  ao  génio.  E  se  a  intuição  do  o-que-em- 
'Tnim-sente-está-pensando  lhe  mostrava  que  na  nora 
absurda  só  absurdamente  poderia  propor-se-Ine.  tudo  se 
resumia,  para  tentar  airançá-lo.  em  ser  «coerente»  com  o 
próprio  absurdo,  isto  é.  em  inverter  formalmente  todos  os 
valores  tradicionais  —  e  muito  particularmente  os  relativos 
ao  seu  fecho-de-abóbada:  o  conceito  de  génio.  Rumando 
assim  (e  embora)  absurdamente  ao  génio,  só  assim  Pessoa, 
não  o  atingindo  necessariamente  (e,  pelo  contrário,  negan- 
do-o).  poderia  tentar  alcançar  dentro  do  absurdo  o  seu 
mais  alto  grau.  e  a  mais  efectiva  realização  de  si  próprio 
como  seu  poeta.  E  não  foi  isso  o  que  de  facto  se  propôs 
e  veio  a  conseguir?  Profeta  do  super-Camões.  que  a  si 
próprio  como  tal  se  anunciava,  veio  a  resignar-se  em  última 
instância  à  pluralidade  de  quatro  poetas  por  lhe  não  ser 
viável,  no  plano  das  suas  ambições,  a  singularidade  de 
um.  Daí  que  mais  tarde  venha  a  depreciar  a  genialidade 
em  geral  em  nome  do  que  em  si  mesmo  fora  forçado  a 
acomodar,  concluindo  que  o  homem  de  génio,  «por  se 
sentir  par  dos  Deuses  sendo  homem»  e  «par  dos  homens 
sendo  Deus»,  «não  corre  homem  nem  se  alteia  Deus  pelo 
amor  divino  e  estagna  só  Deus  fingido,  dentro  da  sua 
ficção»  (^). 

A  herança  do  Anti-Crislo  vem  assim  a  culminar  na  con- 
cepção do  Anti-Génio  em  Pessoa.  No  «Ultimatum»,  que 


O)  Pág.  Doutr.  Est..  pág.  117. 
80 


l^BSSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

publicou  no  número  único  do  Portugal  Futurista,  Álvaro 
de  Campos  proclamava  «para  um  futuro  próximo,  a  criação 
científica  dos  Super-Homens».  E  esclarecia  que  o  super- 
-homem  seria  «não  o  mais  forte,  mas  o  mais  completo», 
«náo  o  mais  duro  mas  o  mais  complexo». 

Náo  obstante  o  tom  sardónico  e  satírico  do  manifesto 
(e  tudo  o  mais  que  o  fez  depender  do  clima  túrbido  dos 
«amigos  literários»),  a  verdade  é  que  nele  se  articulavam 
concepções  sem  o  concurso  das  quais  se  nos  afigura  impos- 
sível uma  interpretação  satisfatória  dos  problemas  de 
Fernando  Pessoa.  Só  é  de  Álvaro  de  Campos,  com  efeito, 
nesse  documento,  o  acento  passional  ou  cabotino  —  o 
esgar — .  sendo  o  demais  do  património  comum. 

E  ei-Io  assim  que.  depois  de  ter  repudiado  a  irremediável 
decadência  de  tudo.  reconhece  que  «a  desadaptação,  a  inca- 
pacidade criativa  de  uma  época»  impõe  «um  dilema:  ou 
morte  da  civilização,  ou  adaptação  artificial,  visto  que  a 
natural,  a  instintiva  falhou».  Pelo  que  propõe  um  «acto 
de  cirurgia  sociológica»  com  vista  à  exérese  daqueles 
dogmas  de  raiz  cristã  que  a  seu  ver  se  opõem  ao  livre 
curso  das  modernas  exigências  científicas.  Assim,  pela 
«abolição  do  dogma  da  personalidade»  instiga  à  «interj)ene- 
tração  com  as  almas  alheias»,  tendo  por  alvo  o  advento  do 
«Homem-Completo»,  isto  é.  do  que  «seja.  em  si  próprio,  o 
maior  número  de  Outros» ;  pela  «abolição  do  conceito  de  in- 
dividualidade», conclui  que  o  homem  «mais  perfeito  é  o  mais 


81 


MÁRIO        SACRAMENTO 

incoerente  consigo  próprio».  —  o  que  leva  à  *  abolição  de 
toda  a  convicção  que  dure  mais  que  um  estado  de  espí- 
rito» e,  em  arte.  à  conclusão  de  que  «nenhum  artista  deverá 
ler  uma  só  personalidade»;  e  pela  «aDoIição  do  dogma  do 
objecllvismo  i>essoal»  prevê  que  «só  o  que  tiver  a  consciên- 
cia plena  de  estar  exprimindo  as  opiniões  de  pessoa  ne- 
nhuma (o  que  for  Média  portanto)  pode  ter  alcance».  E 
conclui  propondo  que  a  «expressão  de  uma  época»,  em  arte, 
passe  a  estar  a  cargo  de  «apenas  (por  exemplo)  dois  poetas 
cada  um  com  quinze  ou  vinte  personalidades,  cada  uma 
das  quais  seja  uma  Média  entre  correntes  sociais  do  mo- 
mento». 

Este  anseio  de  média  é  bem  característico  dum  ideário 
poqueno-burguês  que  culmina  nestes  conceitos  vindos  a  pú- 
blico numa  entrevista:  «Só  a  burguesia,  que  é  a  ausência 
de  classe  social,  pode  criar  o  futuro.  Só  de  uma  classe  que 
não  há,  pode  nascer  uma  classe  que  não  há  ainda»  (^). 
lE  com  efeito:  propondo  em  certo  passo  do  «Ultimatum»  o 
«desaparecimento  de  todas  as  formas  de  sentimento  religioso 
(desde  o  cristianismo  ao  humanitarismo  revolucionário)  por 
não  representarem  uma  Média».  Campos  obriga-nos  a  dilu- 
cidar se  afinal  tal  exclusão  da  «religiosidade»  lhe  devem 
pelo  magistério  do  ideário  heróico  do  Super-Homem.  ou  se. 
muito  mais  prosaicamente,  tal  exclusão  e  tal  magistério  não 


O    Entrevista  concedida   em   1923  à  Revista  Portuguesa   e  posterior- 
mente recolhida  m  Portucale,  n."'  28-30,  2.»  série. 


82 


PBSSOA.     rOF.TÁ     DA     HORA     ABSURDA 

seráo  senão  «fausses  routes»  cio  ideário  cie  ciasse  j/i  reieriao, 
—  socavadas  pela  inquietarão  provocada  pelo  «humani- 
tarismo revolucionário»  do  tempo,  o  qual  ele  curiosamente 
irmana  ali  ao  cristianismo,  de  acordo  com  o  que  o  socialismo 
utópico  lhe  ensinava.  É  uma  preocupação  instante,  essa,  que 
mais  ou  menos  todos  os  heterónimos  perfilham.  Álvaro  de 
Campos  refere-se  à  «infecundidade  metafísica  (...)  em  épo- 
cas como  a  nossa,  em  que  a  especulação  social  utópica  é  o 
fenómeno  marcante»  (');  e  decide:  «náo:  tudo  menos  ter  ra- 
zão! /  Tudo  menos  importar-me  com  a  humanidade]  /  Tudo 
menos  ceder  ao  humanitarismo!»  r);  e,  deplorando  que 
«moços  de  esquina  todos  nós  o  [sejamos]  —  do  humanita- 
rismo moderno»  (').  tenta  no  auge  do  transe  da  Ode  Marí 
tima  a  beatitude  dessa  pseudo-ilusão  (sardónica)  de  que 
«a  fraternidade  afinal  não  é  uma  ideia  revolucionária»  (*). 
Alberto  Caeiro,  por  seu  turno,  confirma-nos  o  significado 
do  já  citado  XXXll  poema  do  guardador  de  rebanhos 
resumindo:  «a  humanidade  é  uma  revolta  de  escravos.  / 
A  humanidade  é  um  governo  usurpado  pelo  povo»  (').  E  o 

(')  Pág.  Doutr.  Est..  p.  142. 

O  P.  126. 

(^)  P.  184. 

(*)  E  acrescenta,   com   tão  curiosa  propriedade;    <É  uma  coisa  que  u 

gente  aprende  pela  vida  fora,  onde  tem  que  tolerar  tudo,  /  E  passa 

a  achar  graça  ao  que  tem  que  tolerar.   /  E  acaba  quase  a  chorar  de 

ternura  sobre  o  que  tolerou!    //   Ah,   tudo   isto  é   belo,   tudo   Isto  A 

humano  e  anda  ligado  /   Aoa  sentimentos  humanos,   tão  conviventes 

e  burgueses*  (p.  199). 

C)   P.  95. 


83 


M    A    R    l    o       SACRAMENTO 

Fernando  Pessoa  do  super-Camões,  recordando  a  cvária 
horrorosa  sub-gente  sindicalísHca.  socialíslica  e  outras  coi- 
sas», profetisa  que  no  supra-Portugal  «os  humanitaris 
mos  morrerão  ante  essa  nova  fórmula  social  de  portuguesa 
origem»,  —  de  tal  modo  que  «a  nossa  proletariagem  Kuma- 
nitariante»  e  «tudo  isso,  que  afinal  é  estrangeiro,  morrerá 
de  per  si,  ou  à  boca  dos  cannões  do  nosso  Cromwel 
futuro»  (^). 

Não  há  assim  qualquer  dificuldade  em  decidir...  excepto 
quanto  a  isto:  devendo  as  quinze  ou  vinte  personalidades 
dos  tais  poetas  representativos  ser  «uma  Média  entre  as 
correntes  sociais  do  momento»,  e.  por  outro  lado.  devendo 
desaparecer  «todas  as  formas  de  sentimento  religioso  (desde 
o  cristianismo  ao  humanitarismo  revolucionário)  por  não 
representarem  uma  Média»,  é  mais  do  que  evidente  que 
por  agora,  dada  a  premente  relevância  de  tal  humanita- 
rismo, ...ficamos  encurralados  no  impasse  de  obter  «uma 
média  entre  tudo  e  nada.  isto  é.  isto...»(^)  —  e  estamos 
assim  de  novo  em  pleno  absurdo. 

Tal  como  se  lé  na  Ilíada,  Zeus  «mandou  às  suas  ideias 
que  começassem,  em  seu  espírito,  a  andar  às  avessas». 
E  já  que  «não  há  verdade,  tudo  é  lícito»,  como  escrevera 
Nietzsche,  podemos  concluir  com  Campos  que  «as  teorias. 


(')  A  nova  poesia  portuoueaa,  p&gs.  49  e  85. 
(')  Campos,  p.  64. 


84 


PESSOA,     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

políticas  e  estéticas,  inteiramente  originais  e  novas  (...)  são, 
por  uma  razão  lógica,  inteiramente  irracionais,  exactamente 
como  a  vida»  {^). 

Nesta  conformidade,  aquele  que  escreveu  «o  paradoxo  não 
é  meu:  sou  eu»,  bem  podia  resolutamente  encaminnar-se 
ao  Super-Homem  pelo  atalho  do  Anti-Oénio.  dado  que  a 
experiência  alheia  de  todas  as  outras  soluções  teorisáveis 
era  ao  tempo  já  bem  reconhecida  e  desencorajante.  Talvez 
fosse  mesmo  recordando  o  Shaw  do  Man  and  Superman 
que  Campos  fora  levado  no  «Ultimatum»  a  chamar-lhe 
«vegetariano  do  paradoxo>^.  Daí  talvez,  ainda,  o  grande 
apetite  omnívoro  do  Pessoa  do  «drama  em  gente*.  Perante 
o  «charlatão  da  sinceridade»  que  Campos  vira  também  em 
Shaw,  Pessoa  toma  o  desforço  de  por  um  lado  se  propor 
ao  «abuso  da  sinceridade*  (^)...  e  por  outro  se  entrinchei- 
rar na  posição  de  quem  «artisticamente  não  sabe  senão 
mentir»  ('). 

E  como  o  «poeta  superior  diz  o  que  efectivamente  sente», 
«o  poeta  médio  (...)  o  que  decide  sentir»  e  «o  poeta  infe- 
rior (...)  o  que  julga  que  deve  sentir»  {*),  é  tudo  afinal 
uma    questão    de    tonalidade    para    quem    possa    dominar 


O  Páa.  Doutr.  Est.,  p.  143. 

(•)  Páff.  Doutr.  Est..  p.  113. 

(•)  Ibid.,  p.  224. 

(«)  Ibid..  p.  285. 


85 


M    Á    R    l    O        SACRAMENTO 

a  poesia  de  rima  para  baixo,  pelo  que  Pessoa,  natureza  de 
homem  «sincero  contradizendo-se  a  cada  minuto*  (*),  bem 
poderia  cumprir-se  simultaneamente  como  poeta  de  três 
escalões,  já  que,  para  cie,  o  próprio  acto  de  se  realizar 
como  poeta  superior  lhe  imporia  a  necessidade  de  ali- 
mentar os  outros  graus  da  sua  funcional  hierarquia  poética 
—  pelo  fingimento  que  a  «duréci>  contraditória  necessaria- 
mente criasse. 

É  ainda  Álvaro  de  Campos  quem  se  encarrega  de  teorizar 
sobre  esta  matéria,  arquitectando,  à  base  daquela  impos- 
sibilidade de  caracterização  unívoca,  a  sua  teoria  não-aris- 
totélica  da  arte.  E  ele  mesmo  o  confirma,  aí,  ao  condenar 
a  estética  aristotélica  i>elo  facto  de  se  basear  «na  unidade 
artificial,  construída  e  inorgânica»,  preferindo-lhe  «a  uni- 
dade espontânea  e  orgânica,  natural»  que  diz  resultar, 
hiperbòreamente,  de  «um  esforço  para  dominar  os  outros», 
esforço  esse  que.  —  ele  o  diz  ainda  (embora  através  dum 
símile)  —  tende  a  convertê-los  «dogmática  e  absurdamente». 
No  espírito  de  Campos,  a  confusão  entre  estas  «unidades» 
é  tal,  porém,  que  dispara  nesta  contrariedade:  tendo  come- 
çado por  declarar  «poder  formular  uma  estética  baseada, 
claro,  a  palavra  força  no  seu  sentido  abstracto  e  científico, 
não  na  ideia  de  beleza,  mas  na  de  força  —  tomando,  é 
porque  se  fosse  no  vulgar,  tratar-se-ia.  de  certa  maneira, 
apenas  de  uma  forma  disfarçada  de  beleza»,  vem  a  dizer 


(i)  Campoa,  p.  226. 

86 


PE}SSOr\.     POIíTA     DA     UOKÁ     ABSURDA 

dez  páginas  adiante,  ao  querer  demonstrar  que  todos  os 
grandes  artistas  do  passado  se  realizaram  como  não-aris- 
totélitos  «avant  la  íettre» :  «a  ideia  de  beleza  pode  ser 
uma  força.  Quando  a  ideia  de  beleza  seja  uma  «ideia»  da 
sensibilidade,  uma  emoção  e  não  uma  ideia  (...).  essa 
«ideia»  de  beleza  é  uma  força.  Só  quando  é  uma  simples 
ideia  intelectual  de  beleza  é  que  não  é  uma  força*.  Esque- 
cera assim,  como  se  vê,  o  tal  «sentido  abstracto  e  científico» 
a  que  antes  acorrentara  a  ideia  de  força  —  para  evitar  con- 
fusões. De  qualquer  modo.  numa  coisa  convinham  ao  fim  e 
ao  cabo  as  duas  peças  de  especulação  estética  de  Álvaro  de 
Campos:  em  substituir  ao  conceito  qualitativo  de  personali- 
dade um  conceito  quantitativo,  idêntico  ao  que  uma  poesia 
do  mesmo  Campos  assim  resume;  «Quanto  mais  eu  sinta, 
quanto  mais  eu  sinta  como  várias  pessoas.  /Quanto  mais 
simultaneamente  sentir  com  todas  elas...»  (^)  —  Em  suma: 
«Pus  a  alma  no  nexo  de  p>erdê-Ia»  (^). 

Está  conforme,  assim,  que  o  Campos  que  dissera  já  no 
«Opiário»  (isto  é:  no  poema  destinado  a  traduzir  o  que  o 
seu  autor  teria  sido  antes  de  sofrer  a  influência  de  Caeiro): 
«Não  tenho  personalidade  alguma»  ('),  requinte  posterior- 


(')  P.  103. 
O   P.  55. 
(•)   P.  137. 


M    A    li    l    o        SACRA    M    E    N    T    O 

mente  em  orgulhar-se  de  ser  um  «degenerado  superior  (...) 
/  Sem  personalidade  com  valor  declarado»  (^).  E  está 
ainda  conforme  que  o  Pessoa  que  perguntava:  «Que  fiz 
de  mim?  Encontrci-me  /  Quando  estava  já  perdido.  /  im- 
paciente deixei-me  /  Como  a  um  louco  que  teime  /  No 
que  lhe  foi  desmentido»  (^).  aceite  que.  «se  já  não  podeis 
dar-me  essa  beleza  /  Que  tantas  vezes  tive  por  querer.  / 
Ao  menos  meu  ser  findo  dividi»  (^).  —  fazendo  dessa  falsa 
pluralidade  o  «Pórtico  partido  para  o  Impossível»  (^)  do 
Absurdo  Supremo  em  que  visou  realizar  «e  harmonia  entre 
o  que  a  razão  nega  e  o  que  a  sensibilidade  desconhece»  ('). 


(')   P.  216. 

(>)   P.  234. 

(')   P.  231. 

(«)  Campoe.  p.  263. 

(')  Pág.  Doutr.  Est.,  p.  175. 

88 


ABSURDO.    LÓGICA    E    LINGUAGEM 

«A  vida  chega  a  (...)/  (...)  dar  vontade  de  (...)  sair  /  Para 
fora  (...)  de  todas  as  lógicas*  (^)  —  escreveu  Campos;  e 
ainda:  «creio  esta  teoria  mais  lógica  —  se  é  que  há  ló- 
gica* (^). 

Estas  frases,  banais  para  qualquer  um.  se  é  certo  que  têm 
em  Campos  o  mesmo  cunho  de  insatisfação  que  teriam  tam- 
bém em  qualquer  um,  assumem  contudo  nele  um  signifi- 
cado especial:  a  «lógica»  habitual  de  Campos  é  ouíra  (só 
por  isso  fala  ele  em  «lógicas»).  —  «lógica»  sem  dúvida  in- 
decisa e  imprecisa  mas  «lógica»  diferente  em  qualquer  caso 
—  «lógica»  sui  generis  que  ambiciona  corresponder  às  pers- 
pectivas suscitadas  pelo  incremento  do  contraditório,  e  visa 
a  construir-se  um  nexo  trans-racional  com  base  no  absurdo. 
Não  é  senão  isso  o  que  esta  outra  expressão  de  Campos 
nebulosamente  se  limita  a  mostrar  não  existir:  <<não  lhe 
digo  mais.  Se  continuasse,  contradizer-me-ia.  Seria  abomi- 
nável, porque  talvez  fosse  uma  maneira  (a  inversa)  de 
ser  lógico.  Quem  sabe?»  (*). 


O)  P.  216. 

(')  Páff.  Doutr.  Est.,  p.  252.  Dal  que  conclua,   insatisfeito:   «nada  se 

prova  senão  para  ter  a  hipocrisia  de  nào  afirmar»  (p.  84). 

(')  Ibid.,  p.  87. 


89 


MÁRIO       SACRAMENTO 

Tendendo  a  uma  «lógica»  não  sistematisada,  evidente 
mente,  e  como  lai  irreconnecida,  a  verdade  é  toda  a  obra 
de  Pessoa  buscar  um  clima  intelectual  em  que  não  hou- 
vesse percalços  como  o  apontado  por  Campos,  ou  seja.  em 
que  íosse  impossível  ser-se  inversamente  lógico  e  em  que, 
portanto,  a  linguagem  superasse  a  condição  dúplice  a  que 
nas  circunstâncias  presentes  sujeitava  a  verdade.  Iim  suma: 
Pessoa  ambicionava  uma  super-linguagem  que  traduzisse, 
dentro  duma  insofismável  coerência  «sui  generis».  a  «es- 
sência» do  antagónico  ele  próprio  e  desse  uma  ordem  de 
verdade  —  ambivalente  —  à  aparência  que,  quanto  a  ele. 
a  linguagem  tradicional  se  via  obrigada,  à  mingua  de  meios, 
a  ir  mantendo  ao  postular  que  no  contraditório  só  um  dos 
termos  é  válido  —  quando  ambos  não  passam  de  faces 
da  «verdade». 

Velado  ainda  pelo  recato  da  iniciação,  é  esse  avatar  que 
Pessoa  ensaia  (comprometidamente.  e  por  isso  com  um 
compensador  alvoroço  que  formalmente  se  sacrifica  nas  aras 
da  tradição)  na  célebre  tese  do  super-Camões,  publicada  na 
revista  A  Águia  (^)  e  que  passaremos  a  resumir: 

Reconhecido  que  «a  literatura  é  fatalmente  a  expressão  do 
estado  social  de  um  período  político»  (p.  19)  e  que.  em 
conformidade,  nos  pode  ser  um  «indicador  sociológico» 
ou  «FKjnteiro  para  indicar  a  que  horas  da  civilização  esta- 


(")  E  reunido  em  volume  intitulado  A  Nova  Poesia  Portuguesa,  Lisboa, 
1944.  ao  qual  se  referem  as  citações  de  página. 


90 


PBSSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

mos»,  punlianius  <ide  parle  misticismos  de  pensamento  c  de 
expressão»  (p.  IW,  sublinhado  nosso)  e  perscrutemos  «com 
raciocínios  e  cingentes  análises»  o  «actual  movimento  poé- 
tico português*.  «Servir-nos-ão  de  material  para  a  aná- 
lise duas  nações  apenas  —  a  Inglaterra  e  a  França»  (p.  20), 
já  que  «a  escassez  do  material  (...)  importa  apenas  quando 
ó  superficial  a  análise». 

Posto  isto.  podemos  «der  nas  entrelinhas  da  concisão  dialéc- 
tica» (p.  S2)  tal  como  segue: 

A)  Os  maiores  períodos  literários  caracterizam-se  (de  acor- 
do com  os  exemplos,  que  seguem,  da  Inglaterra  e  França) 
por: 

a)  Terem  índole  eslrictamente  nacional,  manifestada 
por  grandes  figuras  de  artistas  —  Shakespeare  e  Victor 
Hugo  —  nos  quais  tal  índole  se  define  como  «não 
popular»  e  «anti-tradicional»  (porque  «original»),  dado 
que  tais  artistas,  «traduzindo  a  alma  popular»  embora 
(p.  43),  «não  a  exprimem:  representam-na,  interpretam-na" 
de  acordo  com  a  «compreensão  de  uma  elite  ou  aristocracia 
de  inteligência»; 

b)  Precederem  sempre  os  seus  correlativos  grandes  pe- 
ríodos socio-políticos,  o  que  exemplificam:  o  período  isabe- 
lino  inglês  (em  que  viveu  Shakespeare),  o  qual  politica- 
mente precedeu  Cromwel:  e  o  período  romântico  francês 
(o  de  Victor  Hugo)  que...  se  bem  que  não  tivesse  prece- 
dido  rigorosamente  coisa  nenhuma,   o  deve  apenas  à  cir- 


91 


M    A    R    1    o        SACRAMENTO 

cunstància  da  Revolução  Francesa  ter  sido  «prematura» 
(p.  23),  —  como  o  demonstra  o  facto  de  só  depois  se  ter  ido 
«realizando  nos  espíritos*  {p.  24). 

B)  Ora,  neste  momento  (Í912),  Portugal  tem: 

a)  Notáveis  artistas  de  índole  estrictamente  nacional 
(Pascoais,  Jaime  Cortesão.  Correia  de  Oliveira.  Mário 
Beirão),  todos  eles  não-populares  e  anti-tradicionais  (por- 
que originais),  em  cujas  virtualidades,  só  parcialmente  rea- 
lizadas, pode  entrever-se  uma  antecipação  ou  precedência; 

Jb)  Um  momento  político  areies  e  mesquinho»  (p.  28), 
o  que  satisfaz  naturalmente  a  condição  negativa  de  poder 
preceder  um  período  de  culmínio. 

C)  Logo...  {«deduzidíssimo  acerto» — p.  28;  «raciocínio 
que  excede  o  sonho» ;  «a  mais  extraordinária,  a  mais  con- 
soladora, a  mais  estonteante»  e  «inevitável  conclusão»  — 
p.  27)...  logo...  (e  «^precisamente  por  isso»  que  o  momento 
socio-político  é  «reles  e  mesquinho»)...  logo:  amais  con- 
cluível  se  nos  afigura  o  próximo  aparecer  de  um  supra-Ca- 
mões  na  nossa  terra»  {p.  28)  e  mais  se  nos  antolha  verosí- 
mil que  apara  Portugal  se  prepara  um  ressurgimento  assom- 
broso, um  período  de  criação  literária  e  social  como  poucos 
o  mundo  tem  tido»  {p.  48)  (O- 


{>)  Insiste,  mais  tarde  (1923),  em  entrevista  já  citada:  tEstamoa  táo 
desnacionalizados  que  devemoe  estar  renascendo».  B  prossegue;  «Os 
sinais  do  nosso  ressurgimento  próximo  (...)  sâo  o  caminho  de  ferro 
de  Antero  a  Pascoais  e  a  nova  linha  que  está  quase  construída».  (Por- 
tucale,  T\.°*  28  -  30,  2.»  série). 


02 


PBSSOA.    POETA    DA    HORA     ABSURDA 

Chamar  a  este  raciocínio  «ofísHco  é  aemasiaJo  fácil. — e 
demasiado  fácil,  afinal,  porque  Pessoa,  ainda  inexpe- 
riente ao  tempo,  o  vnsou  numa  forma  in£*ónua  que  denotava 
respeito  e  submissão  ante  o  «prestígio»  da  ló^fica  tra- 
dicionl.  «Análise  analofjial»  lhe  chamou  ele  (p.  46). 
E  nós?  Transmutação  pseudo-Iógica  do  «credo  quia  absur- 
dum»  (^).  Ele  próprio  declara  que  o  seu  intuito  é  confir- 
mar matemàticamenle  pelo  raciocínio  «as  intuições  profé- 
ticas do  poeta  Teixeira  de  Pascoais»  (p.  27)  as  quais 
apenas  a  «fé  e  a  intuição  dos  místicos»  ha\iam  infor- 
mado (^).  Ora.  confirmar  matematicamente  pelo  raciocínio 
a  fé  e  a  intuição  dos  místicos  não  é  evidentemente  um 
propósito  sofístico,  que  sim  ahsurdo,  — o  qual  coloca  genè- 


(')  Pessoa  declarou-se  uma  vez  pelo  menos  crlstão-gTióstlco.  Ora  foi 
TertuUano,  presbítero  cartaginês  dos  anos  150-220.  quem,  combatendo 
os  cristãos-gnósticos,  defendeu  a  doutrina  de  que  a  revelação  supera 
a  razão  e  por  fsso  se  vi  em  conflito  com  ela.  e  estabeleceu  as  bases 
do  «credo  quia  absurdum»  argumentando  desta  arte:  Cristo  ressuscitou, 
logo  «certum  est,  quia  Impossibile  est»;  o  filho  de  Deus  morreu,  logo 
«prorsus  credibile,  quia  ineptum  est».  Ora,  como  se  estará  vendo, 
Pessoa-cristão-gTióstlco  não  fez  senão  desafrontar  a  memória  dos  seus 
Irmãos-em-fé  do  século  dois  demonstrando  que  a  razão  pode  retomar 
03  seus  direitos  sobre  a  revelação  adoptando  uma  nova  llnguagemj  — 
muito  mais  dúctil  do  que  a  do  seu  também  irmão-em-fé  mas  adver- 
sárlo-em-processo  Tertuliano.  Como  se  verá  ainda,  tal  linguagem  não 
é,  mais  uma  vez,  senão  a  «média»  entre  a  linguagem  convencional  da 
razão  e  a  de  Tertuliano.  —  Seria  bem  curioso  conhecer  algo  mais  sobre 
o  pretenso  cristianismo-gnóstico  de  Pessoa. 
(')  V.  Apêndice,  nota  C 


93 


MÁRIO        SACRAMENTO 

ricamente  toda  e  qualquer  intuição  no  limbo  do  racional 
e  como  tal  exige  deste  uma  capacidade  de  adaptação  mul- 
tímoda,  ou  seja,  faz  dele  não  um  simples  instrumento  de 
investigação  mas  um  catalizador  aberto  a  todos  os  qua- 
drantes. Daí  que  conclua  que  tal  intuição  é  uma  «crença, 
afinal,  lógica»  (p.  28-9).  E  ele  próprio  se  antecipa  a  este 
nosso  juízo  furtando-se  deste  modo  às  dificuldades  da  po- 
sição que  a  imaturidade  o  levava  a  adoptar:  «Uma  análise 
impossível  aqui,  por  demorada,  mostraria  como  é  sociolo- 
gicamente certa  esta  divisão  |a  dos  períodos  literários], 
em  aparência  anti-bistórica  ao  ponto  de  ser  de  todo  absur- 
da»  (p.  22,  sublinbado  nosso). 

Mais  tarde,  em  plena  maturidade.  Pessoa  saberá  coíber  os 
mesmos  frutos  com  outra  mestria,  sem  que,  não  obstante, 
mude  de  atitude,  como  os  trecbos  que  a  seguir  transcreve- 
mos servem  a  exemplificar:  «Um  deus,  no  sentido  pagão, 
isto  é.  verdadeiro,  não  é  mais  que  a  inteligência  que  um 
ente  tem  de  si  próprio,  pois  essa  inteligência  que  tem  de 
si  próprio,  é  a  forma  impessoal,  e  por  isso  ideal,  do  que  é». 
flntercale-se  um  íogo,  —  e  prossiga-se:]  «Formando  de 
nós  um  conceito  intelectual,  formamos  um  deus  de  nós 
próprios»    (^). 

«O  Tejo  é  mais  belo  que  o  rio  que  corre  pela  minha  aldeia.  /  Mas  o 
Tejo  nâo  é  mais  belo  que  o  rio  que  corre  pela  minha  aldeia  /  Porque 
o  Tejo  nao  é  o  rio  que  corre  pela  minha  aldeia.  //  O  Tejo  tem  grandes 


(')  Pão-  DoHtr.  Est..  p.  167. 
04 


PESSOA.     POFTA     DA     HORA     ABSURDA 

navion  /  P3  navesra  nele  ainda,  /  Para  aqueles  que  v^em  em  tudo  o  que 
IA  nfto  está,  /  A  memArla  das  naus.  //  O  Tejo  desce  de  Espanha  /  E  o 
Tejo  entra  no  mar  em  Portugal .  /  Toda  a  frente  sabe  isso.  /  Mas  poucos 
sabem  qual  é  o  rio  da  minha  aldeia  /  E  para  onde  vai  /  E  donde  ele 
vem.  /  E  porlsso,  porque  pertence  a  menos  gente,  /  Ê  mais  livre  e 
maior  o  rio  da  minha  aldeia.  //  Pelo  Tejo  val-se  para  o  Mundo.  /  Para 
além  do  Tejo  há  a  América  /  E  a  fortuna  daqueles  que  a  encontram. 
/  NingUém  nunca  pensou  no  que  há  para  além  /  Do  rio  da  minha 
aldeia.  //  O  rio  da  minha  aldeia  nfto  faz  pensar  em  nada.  /  Quem  está 
ao  pé  dele  está  só  ao  pé  dele».  (')  [Logo:  está  melhor;  estando  melhor, 
o  rio  da  minha  aldeia  é  mala  belo  —  no  sentido  de  Que  é  melhor  — 
no  sentido  de  que  faz-estar-melhor]. 

Concluindo:  a  linguagem  <Iita  racional  é  (ou  deve  ser)  uma 
senda  aberta  a  todos  os  impulsos  da  multímoda  solicitação 
humana  (isto  c,  da  «Verdade-lnfinito»),  pelo  que,  com  ela, 
tudo  é  questão  dum  donde  vens  e  dum  onde  vais,  como 
pelo  exemplo  que  segue  se  resume:  «Aos  poetas  que  pen- 
sam o  que  sentem  chamamos  românticos;  aos  poetas  que 
sentem  o  que  pensam  chamamos  clássicos.  A  definição 
inversa  é  igualmente  aceitável»  {^). 

Como  já  deixámos  porém  antever  em  nota  referente  a  oro 
verso  da  poesia  «Ela  canta,  pobre  ceifeira»,  o  efeito  absurdo 
que  a  obra  de  Pessoa  constantemente  persegue  e  alcança 
deriva  sobretudo  do  uso  simultâneo  de  expressões  formal- 
mente contraditórias  às  quais  ele  pressupõe  um  significado 
válido  pela   noção  de  que  o  movimento  da  consciência  é. 


(')  Caeiro,  p.  44-5. 

O  Páff.  Doutr.  Est.,  p.  173. 


93 


MAR/O       SACRAMENTO 

digamos,  contrapontístico  (^).  Só  o  é,  todavia  (ou  só  lhe 
interessou  a  ele  que  o  fosse),  na  medida  em  que  a  sua  su- 
posta captação  simultânea  resulte  sempre  formalmente  em 
absurdo,  pelo  que  tal  expediente  não  é  senão  uma  maneira 
de  explorar  em  pretensa  profundidade  o  mesmo  propósito 
que  em  superfície  acabamos  de  ver  como  funcionou. 

«Coexistem  na  minha  atenção  algemada  as  duas  realidades, 
como  dois  fumos  que  se  misturam»  —  escreveu  ele  no  tra- 
balho intitulado  Na  floresta  do  alheamento  e  publicado  em 
1913  na  revista  A  Águia  (^). 


(')  Dal  que  diga,  por  exemplo:  «Esta  frase,  como  todas  que  envolvem 
contradição,  não  envolve  contradição  nenhuma.  Eu  explico».  Ou:  «Se 
V.  reparar  bem  para  o  que  lhe  disse,  verá  que  tem  um  sentido».  (En- 
trevista cit.,  Portucale,  n.<>»  28-30.  2.»  série)  Ou  ainda:  «todas  as  defi- 
nições simples  «requerem»  uma  explicação  complexa»  (Pág.  Doutr. 
Eat.,  p.  189).  Este  modo  de  p6r  as  coisas  é,  porém,  uma  mera  conces- 
são à  tradição  formal,  pois  que  ao  nível  que  lhe  Interessa  (em  que 
as  formas  são  meros  símbolos  de  abstracção),  o  ponto  de  vista  será 
este:  «Teve  razão  porque  a  não  teve.  Interpretar  é  não  saber  explicar. 
Explicar  é  não  ter  compreendido»  (Palavras  de  crítica  a  Entrevistas) . 
Dentro  das  exigências  da  linguagem,  tudo  deve  passar-se  (nem  sem- 
pre explicitamente  embora)  como  nestes  dois  versos,  em  que  o  se- 
gundo parece  dissipar  (explicando)  o  absurdo  do  primeiro:  «Sorriso 
audível  das  folhas.  /  Não  és  mais  que  a  brisa  ali»  (Pessoa,  p.  164). 
(')  N.»  20,  2.»  série.  p.  38  (Sublinhado  nosso).  Na  Tabacaria,  poeela 
de  1928,  lê-se:  «Estou  perplexo,  como  quem  procurou  e  achou  e  es- 
queceu. /  Estou  hoje  dividido  entre  a  lealdade  que  devo  /  A  Tabacaria 
do  outro  lado  da  rua,  como  coisa  real  por  fora,  /  E  à  sensação  de  que 
tudo  é  sonho,  como  coisa  real  por  dentro»  (Campos,  p.  251). 


96 


PESSOA.     POUTA     DA     HORA     ABSURDA 

Num  outro  escrito  (este  de  1935)  pode  ler-se  também:  «Por 
sentimento  contruditório  quero  dizer  aquela  subtileza  da 
emo(,ão  consigo  mesma,  pela  qual  imediatamente  com- 
preende que  traz  sempre  em  si  dois  elementos  opostos. 
Toda  emoção  sentida  é  a  diagonal  de  um  paralelogranio 
de  forças:  vive  de  ambas  e  a  ambas  anida.  Como  toda  q 
vida  é.  de  um  modo  ou  de  outro,  um  sistema  de  atracção 
e  repulsão,  tudo  quanto  sentimos  contém  obscuramente 
duas  forças,  essas  duas  forças;  e  há  certos  estados  de  senti- 
mento —  entendendo  este  como  a  permanência,  consciente 
ou  inconsciente,  da  emoção  —  em  que  a  diagonal  se  de- 
compõe, talvez  por  fraqueza  em  sentir,  nas  duas  forças  de 
que  se  forma.  Então  o  espírito  toma  consciência  de  cada 
emoção  como  dupla,  de  cada  sentimento  como  a  contradi- 
ção de  si  mesmo.  O  homem  sente  que.  ao  sentir,  é  dois. 
F,  o  «odi  et  amo»  de  Catulo»  {^). 

E  ainda.  —  do  anteriormente  citado  Na  floresta  do  alhea- 
mento: «...horas  cheias  de  um  outro  sentirmo-las,  horas  de 
uma  imperfeição  vasia  e  tão  perfeitas  por  isso,  tão  diagonais 
à  certeza  rectangular  da  vida...» 

Ora.  que  nome  terá  a  «diagonal»  dos  «parale logramos  de 
forças»  que,  colhidos  um  pouco  ao  acaso,  a  seguir  citamos 
como  exemplos?:  —  «Só  colectivamente  é  que  o  povo  não 
é  colectivo».   «Nunca  um  verdadeiro  português   foi  portu- 


(')  Pág.  Doutr.  Est..  p.  85.  Sublinhado  nosso. 

97 


MÁRIO        SACRA    M    t    M    T    O 

guês».  «Ser  tudo  em  uma  colectividade  é  cada  um  dos 
indivíduos  não  ser  nada».  «Todos  os  caminhos  vão  dar  à 
ponte,  quando  o  rio  não  tem  nenhuma».  «Literariamente, 
o  passado  de  Portugal  está  no  futuro»  {^).  «O  movimento 
parado  das  árvores;  o  sossego  inquieto  das  fontes».  «Torpor 
lúcido,  pesadamente  incorpóreo».  «Vê  cegamente*.  «Talvez 
eu  não  seja  senão  um  sonho  desse  Alguém  que  não  existe». 
«Nem  aqui.  ao  sermos  felizes,  o  éramos».  «Nós  sabíamos 
por  uma  intuição  que  por  certo  não  tínhamos...»  {^).  «Este, 
que  aqui  aportou.  /  Foi  por  não  ser  existindo.  /  Sem  existir 
nos  bastou  /  Por  não  ter  vindo  foi  vindo».  «Se  a  alma 
que  sente  e  faz  conhece  /  Só  porque  lembra  o  que  esque- 
ceu...». «O  que,  imprevisto.  Deus  fadou».  «Que  ânsia 
distante  perto  chora?»  (').  «Com  aquela  esperança  que 
nem  esperança  tem...».  «Não  é  alegria  nem  dor  esta  dor 
com  que  me  alegro  /  E  a  minha  bondade  inversa  não  é 
nem  boa  nem  má».  «O  olhar  de  estar  olhando  /  Onde  não 
olha.  voltou;  /  E  estamos  os  dois  falando  /  O  que  se 
não  conversou.  /  Isto  acaba  ou  começou?»  (*).  «O  corpo 
é  que  lhes  é  alma».  «A  Natureza  é  só  uma  superfície. 
/  Na  sua  suF>erfície  ela  é  profunda».  (')  «Vago  alvor  es- 
curo». «O  nada  vivo  em  que  estamos».  «Músculos  cansa 


(•)  Entrevista  clt..  In  Portucale.  n.»  28-30,  2.»  série. 

(')  Na  floresta  do  alheamento.  A  Ãguia,  n.»  20,  2.»  série. 

O  Mensagem,  págs.  19,  20,  22  e  98. 

(♦)  Pessoa,  págs.  158.  22  e  154. 

(•)  Caeiro,  págs.  102  e  164. 


98 


PBSSOA.     POETA    DA     HORA     ABSURDA 

dos  de  parar».  «Cadáver  acordado».  «Dcu.s  dá  licença  que 
o  que  não  existe  seja  fortemente  iluminaflo«.  «Quando  é 
que  despertarei  de  estar  acordado?».  «Inúmero  rio  sem 
á^a».  «Ê  possível  fazer  a  realidade  de  tudo  isso  sem  fazer 
nada  disso»  (*).  •-(Fado  voluntário^».  «Só  na  ilusão  da  liber- 
dade /  A  liberdade  existe».  «Nossa  vontade  e  o  nosso  pen- 
samento /  São  as  mãos  pelas  quais  outros  nos  guiam»  (^). 
«Como  em  Mallarmé.  porém  diferentemente...*  (^).  «Já 
não  tornarei  a  ser  aquilo  que  talvez  eu  nunca  fosse»  (*). 
Responde  a  «atenção  algemada»  de  há  pouco:  «Nossa 
atenção  c  um  absurdo  consentido  pela  nossa  inércia 
alada»  ('). 

Há  com  efeito,  sempre  e  sempre,  o  mesmo  denominador  em 
todas  as  e.xperiéncias  formais  de  Pessoa,  cnamem-se  elas 
interseccionismo,  drama-em-gente,  Keteronímia,  Mensa- 
gem... E  quer  a  tese  das  «duas  realidades,  como  dois 
fumos  que  se  misturam»  quer  a  do  «íiberío  em  duplo,  aban 
donei-me  da  paisagem  abaixo»  ('),  quer  a  da  «diagonal 
difusa  /  Entre  mim  e  o  que  eu  penso»  C),  conduzem  inevi- 
tavelmente  à   obcessão   do   «é   preciso  destruir  o  propósito 


(>)  Campos,  págs.  72,  289,  271,  292.  296,  302  e  255. 

(»)  Reis,  págs.  31.  41,  42  e  54. 

(')  Pdg.  Doutr.  Est..  p.  173. 

(*)  O  Marinheiro. 

(»)  Na  floresta  do  alheamento,  ibid.,  41. 

(•)  Chuva  oblíqua.  Sublinhado  nosso. 

(')  Ibid. 


99 


MÁRIO        SACRA    >l    E    M    T    O 

de  Iodas  as  pontes.  /Vestir  de  alheamento  as  paisagens 
de  todas  as  terras.  /  Endireitar  à  força  a  cuna  dos  hori- 
zontes... ^   (^). 

«Endireitar  à  força  a  curva  dos  horizontes»  e  «destruir 
o  propósito  de  todas  as  pontes»  são,  porém,  escopos  afinal 
distintos  do  «vestir  de  alheamento  a  paisagem  de  todas  as 
terras».  É  uma  diferença  —  a  única,  supomos  —  que  de- 
marca pela  iconoclasia  dum  primeiro  propósito  a  imaturi- 
dade da  época  dos  «amigos  hterários»,  e  explica  em  parte 
por  que  a  «diagonal  difusa»  cedia  por  então  o  passo  ao 
delírio  formal  do  «doido  que  estranha  a  sua  própria  alma» 
e  condescendia  em  baralhar,  com  expressões  bem  suce- 
didas de  fidelidade  à  «Hora  Absurda»  (como,  por  exemplo: 
«a  minha  alma  é  aquela  luz  que  não  mais  haverá  nos  can- 
delabros») {'),  um  sortido  arbitrário  de  justaposições  capri 
chosas:  «Os  feixes  dos  lictores  abriram-se  à  beira  dos  ca- 
minhos... /  Os  pendões  das  vitórias  medievais  nem  che- 
garam às  cruzadas...  /  Puseram  in-folios  úteis  entre  as 
pedras  das  barricadas...  /  E  a  erva  cresceu  nas  vias  férreas 
com   viços   daninhos...»   {'). 

O  que  importa  é  que  o  Pessoa  do  Interseccionismo.  o  Pes- 
soa da  «Chuva  Oblíqua»  e  das  «diagonais  difusas»  tivesse 


(')  Hora  Absurda. 
(')  Hora  Abstirdtt. 
(•)  Ibidem. 

100 


PESSOA.     POETA     DA     tlORA     ABSURDA 

ticJo,  logo  de  início,  a  <  Iara  consciência  do  âmbito  em  que 
se  movia  —  como  o  resume  o  próprio  título  da  poesia  de 
1QI3  com  que  as  suas  «Obras  Completas^  vieram  a  abrir 
tom   tanta  propriedade. 

Por  outro  lado.  a  génese  do  contraponto  já  referido  é  clara- 
mente demarcada  pela  poesia  «Chuva  Oblíqua*,  como  pas- 
saremos a  mostrar:  perante  a  paisagem  dum  porto,  o  poeta 
sonha  um  porto  infinito»  e  a  paisagem  imaginária  desse 
sonho  «atravessa  [a]  paisagem^  do  porto  real  —  tal  como 
a  sombra  projectada  nas  águas  pelos  navios  atravessa  o 
reflexo  das  árvores  da  margem.  Deste  modo,  «os  navios 
passam  por  dentro  dos  troncos  das  árvores  /  Com  uma 
horizontalidade  vertical,  /  E  deixam  cair  amarras  na  águn 
pelas  folhas  uma  a  uma  dentro^-» ;  logo,  «os  grandes  navios 
/  Que  largam  do  cais  [arrastam]  nas  águas  por  sombra  / 
Os  vultos  ao  sol  daquelas  árvores  antigas»;  e,  assim,  «os 
navios  que  saem  do  porto  são  estas  árvores  ao  sol»  (dada 
a  compenetração  das  imagens  na  água)  tal  como  «o  sol 
deste  dia  é  [afinalj  porto  sombrio»  (não  obstante  a  «pai- 
sagem [ser]  cheia  de  sol  deste  lado»),  pois  «o  porto  que 
sonho  é  sombrio  e  pálido»  e  esse  é  o  outro  lado  (o  que 
prevalece)  —  esse  mesmo  «outro  lado  da  minha  alma»  em 
que  mergulha  a  «sombra  duma  nau  mais  antiga  que  o 
porto  que  passa  /  Entre  o  meu  sonho  do  porto  e  o  meu 
ver  esta  paisagem».  Se  é  a  nau  ou  se  é  o  porto  o  que  passa, 
é  um  problema  indiferente  e  idêntico  ao  sugerido  por  esta 
poesia,  de  Campos,  em  que  o  mesmo  processo  é  retomado 


101 


MÁRIO        SACRAMENTO 

mas  noutra  base  (a  dos  espelhos  das  lojas):  «Rua  a  passear 
por  mim  a  passear  pela  rua  por  mim  /  Tudo  espelhos  as 
lojas  de  cá  dentro  das  lojas  de  lá  /  A  velocidade  dos  carros 
ao  contrário  nos  espelhos  oblíquos  das  montras.  /  O  chão 
no  ar  o  sol  por  baixo  dos  pés  /  .../  Eu  de  cabeça  para 
baixo  no  centro  da  minha  consciência  de  mim  /  .../  Bater 
das  frontes  de  estar  vindo  para  cá  ao  mesmo  tempo  que 
vou  para  \á»  (^).  E,  por  seu  turno,  os  «lados»  (o  da  paisa- 
gem-com-sol  e  o  da  alma-em-que-entra-a-nau)  não  são 
senão  a  realização  mental  deste  anseio  de  Campos:  «Não 
poder  eu  coexistir  para  o  lado  de  lá  com  estar-vos  vendo 
do  lado  de  cá...»  (^).  A  hora,  porém,  é  por  enquanto 
dupla  (^),  quer  dizer,  virtual  apenas  para  as  ambições  pos- 
teriores dum  Campos  e  dum  Pessoa. 

A  duplicidade  pode  ser  (para  a  elucidarmos  com  alguns 
exemplos  mais):  real:  navio  e  sombra,  sombra  e  reflexo, 
amarras  e  reflexo  de  folhas,  rua  e  espelhos,  transeunte  e 
espelhos;  recd  c  imaginária:  porto  real  e  porto  sonhado;  só 
imaginária    mas    pressupondo    um    real:     «na    sombra    do 


O   P.  236. 
(')  P.  240. 

(')  «De  repente  alguém  sacode  esta  hora  dupla  como  uma  peneira 
/  E,  mUturado.  o  pó  das  duas  realidades  cai  /  Sobre  a^  minhas  mãos. 
(...)  /  .../  As  minhas  mãos  sâo  os  passos  daquela  rapariga...» 
f Chuva  OblÍQua,  V).  Quer  dizer:  só  depois  de  misturada  a  hora  du- 
pla, as  mãos  se  tornaram  os  passos  da  rapariga. 


102 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

Monte  Abie^no  /  Por  ora  repouso,  o  não»  {');  temporal: 
«janelas  encostadas  por  causa  do  calor  íjue  já  não  faz»  (^). 
«esperanras  mortas  porque  hão-de  morrer»  (^);  temporal 
-imaginária:  «runciios  de  roparij/as  de  bilna  à  cabeça  /  Que 
passam  lá  fora.  cheias  de  esfar  sob  o  sol  /Cruzam-se  com 
grandes  grupos  peganlientos  de  gente  que  anda  na  feira, 
/  Gente  toda  misturada  com  as  luzes  das  barracas,  com  a 
noite  e  com  o  luar»  {*);  quantitativa:  «som  morto»  (5).  «on- 
das do  rio  tão  leves  /  Que  não  sois  ondas  sequer*  (®);  qua- 
litativa ou  ideal:  «sinto  que  sou  ninguém  salvo  uma  som- 
bra» ('),  «ó  enigma  visível  do  Universo^»  (");  espacial  e 
sensorial:  «ilha  próxima  e  remota.  /  Que  nos  ouvidos  per- 
siste. /  Para  a  vista  não  existe»  (^);  abstracta:  «se  alguma 
coisa  foi  por  que  é  que  não  é.  Ser  não  é  ser?»  (^°);  sarcás- 
tica: «não  há  substância  de  pensamento  na  matéria  de  alma 


(')  Pesaoa,  p.  147. 

O  Campos,  p.  241. 

(')  Campos,  p.  234. 

(*)  Pessoa,  p.  31.  Uma  forma  inversa;   diz  o  mostrengo  da  Mensagem 

ao  homem  do  leme:  «Quem  vem  poder  o  que  só  eu  posso.   '  Que  moro 

onde  ninguém  me  visse...?»  —  4.*  ed.,  p.   57. 

(')  Campos,  p.  72. 

(•)  Pessoa,  p.  233. 

(')  Pessoa,  p.  84. 

C)  Campos,  p.  39. 

(')  Mensagem,  4.'  ed.,  p.  95. 

('")  Campos,  p.  92. 


105 


MÁRIO        SACRAMENTO 

com  que  ponso»  ('),  «Ká  Ião  pouca  gente  que  ame  as  pai- 
saffens  que  não  existem*  {'');  arbitrária:  «cada  vela  que  se 
acende  é  mais  chuva  a  bater  na  vidraça»  (^);  convencional: 
«os  lados  da  alma»,  «estou  sem  mim»  (■*);  etc,  etc. 

É  'bem  nítida  em  muitas  destas  expressões  ou  frases  f\ 
presença  do  <<fermento»  que.  actuando  como  n  peneira  da 
citação  há  pouco  leita  em  nota,  opera  a  «transubstancia- 
ção» absurda  que  a  maior  parte  delas  já  sofreu,  mas  que 
poderá  talvez  apreciar-se  melhor  nos  exemplos  que  a  se- 
guir acrescentamos  ao  rol:  «Éreis  feliz,  irmã?  —  Começo 
neste  momento  a  tê-lo  sido  outrora»  (');  «E  eu  era  feliz? 
não  sei:  /  'Fui-o  outrora  agora»  (°);  «Aqui  onde  irreais 
erramos.  /  Dormimos  o  que  somos,  e  a  verdade  /  Inda  que 
enfim  em  sonhos  a  vejamos  /  Vêmo-la.  porque  em  sonho, 
em  falsidade»  (^):  «Sentir  é  estar  distraído»  (*);  «Sinto  sem 
sentir  que  sinto»  (^);  «Só  o  meu  pensamento  sente»  (^); 
«à  força  de  sentir  fico  só  a  p>ensar#  (*);  «o  meu  sentimento 


o  Campos,  p.  241. 

(•)  Pessoa,  p.  25. 

(•)  Pessoa,  p.  28. 

(<)  Pessoa,  p.  133.  Cf.  com  estoutra  express&o.  tornada  já  padr&o  de 

absurdo:   «Minhalma  alheia»   (p.  OO). 

(')  O  Marinheiro. 

(•)  Pessoa,  p.  98. 

(')  Pessoa,  p.  263.  Cf.:  «tudo  6  llusfto,   /  Sonhar,  é  aab«-lo»  (p.  102). 

(•)  Caeiro,  p.   85. 


104 


l^ESSOA,     POP/IA     DA     IIOKA     AbSUKDA 

c  um  pcriiiamento  vazio»  {*);  «senlir  paru  ao  menos  deixar 
de  sentir»  {');  «quando  penso  que  vejo  /  Quem  continua 
vendo  /  Enquanto  estou  pensando?/»  (");  «penso  sem 
pensamento»  (^);  «não  sou  eu:  sou  leliZ/>  (**);  «que  coisas 
incapazes  de  olhar  estão  olhando  para  mim?/>  (");  «come- 
cei a  morrer  muito  antes  de  ter  vivido»  C^");  «Ah,  ser  os 
outros  (...)  /  Sem  outros  ser!»  {^^);  «depois  de  amanhã 
serei    finalmente   o   que    hoje    não   posso    nunca   ser^»    (^^); 


(')  Caeiro,  p.  93. 

(')  Pessoa,  p.  118.  Para  completar  a  aérie  do  sentir-pensar ;  «Can><a 
sentir  quando  se  penaa»  <p.  150).  Esta  frase,  e  a  de  Reis  —  «Quando 
sinto,  penso»  — ,  sâo  as  menos  duvidosamente  nãõ-absurdas.  Uma  de 
tese  incerta;  «Nem  sempre  consigo  sentir  o  que  sei  que  devo  sentir» 
(Caeiro,  p.  66)  —  que  estoutra,  do  mesmo  autor,  contraria:  «porque 
as.sim  o  sinto,  é  que  é  meu  dever  senti-lo»  (p.  47).  E  por  último  a 
réplica  nâo-absurda  de  Caeiro  ao  sentir-pensar:  «O  essencial  é  (...) 
nem  pensar  quando  se  vê  /  Nem  ver  quando  se  pensa»  (p.  48). 

(')  Campos,  p.  50. 

(*)  Campos,  p.  271. 

(•)  Campos,  p.  124. 

(«)  Pessoa,  p.  66. 

(•)  Caeiro,  p.  82. 

(»)  Caeiro,  p.  88. 

(»)  Pessoa,  p.  69. 
('»)  Pessoa,  p.  120. 
(")  Pessoa,  p.  194. 
(")  Campos,  p.  265. 


105 


M    Á    t<    l    o        S    A    C    R    A    >l    E    iV    T    U 

«umd  religião  universal  que  só  os  homens  não  Icm*  ('); 
♦  nenhum  livro  para  crianças  deve  ser  escrito  pura  crian- 
ças» (^);  «mesmo  que  se  s^aíssc  bem  disto,  não  se  saía 
bem  disto*  (^);  «quanto  mais  satírica  menos  satírica»  {*); 
«que  (...)  não  é  um  génio  —  manifesta-se  em  não  se  ma- 
nifestar» (^);  «sem  outra  consolação  do  que  essa  (...)  de 
sabermos  que  é  inutilmente  que  choramos»  {^);  «não  ignoro 
o  que  esqueço»  (');  etc,  etc. 

Em  suma:  é  persistindo  na  atitude  ambi-reflexiva.  digamos 
assim,  pela  qual  o  conceito  se  esgota  conceituando  sobre 
si  próprio  e  desdobrando  cada  termo  num  objecto  de 
dupla  imagem  apreendida  num  só  tempo,  que  o  «absurdo, 
como  uma  flor  da  tal  índia  /  Que  não  vim  encontrar  na 
índia,  nasce  /  No  meu  cérebro  farto  de  cansar-se»  (**). 
Cansando-se  ainda,  Campos  propõe-se.  não  obstante,  pro- 
longar a  velha  aspiração  de  «destruir  o  propósito  de  todas 
as  pontes».  Mas.  cedo  reconhecendo  que  só  ela,  a  flor  fatí- 
dica, desabrocha  sobre  as  ruínas  do  seu  esforço,  pactua  com 


(')  Caeiro,  p.  84. 

(»)  Pág.  Doutr.  Est..  p.  33. 

(»)  Ibid.,  p.  33. 

(*)  Ibid.,  p.  46. 

(»)  Ibid.,  p.  48. 

(•)  Ibid.,  p.  53. 

(')  Reis,  p.  81. 

(»)  Campos,  p.  141. 

106 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

ela  c  pas»a  a  estimulá-la:  «entra  por  todas  as  ideias  den- 
tro, /  Choca  de  encontro  a  todos  os  sonhos  e  parte-os,  / 
Chamusca  lo<los  os  ideais  humanitários  e  úteis.  /  Atropela 
todos  os  poemas,  /  'Esfrangalha-os  e  fica  só  tu,  (...)  /  Se- 
Colhe  (...)  /  Os  (orpos  de  todas  as  filosofias,  os  tropos  de 
todos  os  poemas,  /  Esfrangalha-os  e  fica  só  tu,  (...)  /  Se- 
nhor supremo  da  hora  europeia!.../  Vamos,  que  a  caval- 
gada não  lenha  fim  nem  em  Deusl»  ('). 

íLsgotado  Campos  (o  incendiário  dos  sete  mares),  os  seus 
comparsas  limitam-se  a  satisfazer,  com  o  engenho  que  po- 
dem, o  outro  voto  —  o  de  «vestir  de  alheamento  as  paisa- 
gens de  todas  as  terras».  Caeiro,  cristão-novo  dum  lirismo 
requentado  ao  lume  de  Pascal,  encarrega-se  de  volver  a 
bucólica  alheia  aos  motivos  por  que  surgira  e  de  que  vivera 
até  então;  Reis.  «bastardo  de  Apolo»,  ressuscita  o  cravi- 
nho-bem-temperado  —  tão  bem  temperado,  que  os  ultra- 
-sons  que  desfere  se  situam  fora  do  limiar  auditivo  do  seu 
século,  pelo  que  não  faz,  mau  grado  seu,  senão  revestir  do 
alheamento  o  próprio  torso  da  Arte,  volvendo-a  em  defini- 
tivo alheia  ao  homem;  e...  Pessoa? — Reconheçamos- lhe 
a  dignidade  com  que  soube  aceitar  o  seu  destino  de  náu- 
frago-perfeito  —  «nobre  ao  menos  no  gesto  largo  com  que 
atiro  /  A  roupa  suja  que  sou.  sem  rol.  para  o  decurso  das 
coisas»,  como  mandou  a  Campos  que  por  si  dissesse  {').  E 
reconheçamos-Ihe  ainda  a  «coerência»  com  que  esgotou  o 

O  Campos,  p.  237. 
(»)  P.  254. 


107 


M    Á    R    i    o        SACRA    MEr<TO 

seu  trânsito  pondo  termo  à  própria  obra  que  intitulou  Men- 
sagem sob  o  signo  de  que  «ninguém  —  (e.  logo  tão  pouco 
cie.  seu  mensageiro)  —  ninguém  sabe  que  roisa  quer.  / 
Ninguém  conhece  que  alma  tem.  /  Nem  o  que  é  mal  nem 
o  que  é  bem.  /  . ../  Tudo  é  incerto  e  derradeiro.  /  Tudo  é 
disperso,  nada  é  inteiro»*. 


108 


ABSURDO    E   METAFÍSICA 


O  absurdo  concebe-se  «lógico»  em  Pessoa  na  estricta  me- 
dida em  que  se  propõe  discursivo  (0:  de  acordo  com  isso, 
só  uma  <iilógica>>  que  o  impliritasse  poderia  servir-Ihe.  — 
Ê  este  pelo  menos  o  termo  ideal  a  que  a  posição  assumida 
por  Pessoa  aponta;  e  é  mais  do  que  natural,  assim,  que  o 
seu  próprio  gosto  pelos  conceitos  ditos  analógicos  nos  des- 
perte a  tendência  para  recordar,  a  propósito.  ...nem  mais 
nem  menos  que  a  filosofia  de  Hegel,  ou  mais  particular- 
mente, a  concepção  hegeliana  duma  metafísica  e  duma  ló- 
gica fusionadas.  Ele  próprio,  aliás,  se  lhe  referiu  no  último 
artigo  da  série  de  A  Águia  ao  declarar  sobre  o  transcenden- 
talismo  panteísta:  «há  dele  um  exemplo  único  e  eterno.  íl 
essa  catedral  do  pensamento  —  a  filosofia  de  Hegel»  (p.  78). 
Acompanhêmo-lo : 

A  nova  poesia  portuguesa  é  «absorventemente  metafísica)* 
(p.  65):  ora  «poesia  metafísica  implica  emoção  metafísica> 


(')  «No  mesmo  absurdo  há  que  haver  razOes». 


100 


MÁRIO        SACRAMENTO 

e  «emoção  metafísica  é  simplesmente  sinónimo  de  religio- 
sidade», pelo  que  pergunta:  «que  religião  é  essa  que  se 
adivinha  na  nossa  nova  poesia?»  (p.  66)  É  o  que,  diz, 
«vai  mostrar-nos  a  análise,  em  que  vamos  entrar,  da  meta- 
física da  nova  poesia  portuguesa».  «A  alma  de  uma  época 
está  em  todos  os  seus  poetas  e  filósofos,  e  em  nennum; 
é  por  isso  que  é  em  todos  e  em  nennum  que  a  nossa  análise 
se  encontra  obrigada  a  procurá-la»  (p.  56).  Contudo,  por 
enquanto  «só  temos  um  elemento  —  poetas  —  para  essa  de- 
dução» (p.  57)  —  dada  a  infância  do  movimento  — ,  e  deles 
só  podemos  extrair  a  «fluidez,  incerteza  e  carácter  indefi- 
nido dessa  religiosidade  e  desse  metafisismo»  (p.  67).  ou 
seja.  «uma  complexidade  que  desconcerta  e  perturba». 

«Sendo  isto  assim,  vemo-nos  forçados,  para  elucidação  do 
assunto,  fsublinbado  nosso]  a  orientar  de  outro  modo  a 
nossa  análise».  Daí  que  se  proponha  fazê-la  «diferencial- 
mente».  isto  é,  «seguindo  a  linha  evolutiva  da  poesia  euro- 
peia no  que  metafísica»,  já  que  «estando  Portugal  inte- 
grado na  civilizarão  europeia,  a  sua  poesia»  tem  de  o 
«estar  também  inevitavelmente»,  pelo  que  se  tem  de  reco- 
nhecer «só  se  poder  obter»  [sublinhado  nosso,  para  con- 
fronto com  os  anteriores]  «a  significação  dessa  poesia» 
«por  uma  comparação  <  om  o  período  literário  importante 
que  europeiamente  a  precedeu». 

Em  vista  disso,  parte  deste  pressuposto,  que  não  obstante 
110 


PESSOA.     POHTA     DA     HORA     ABSURDA 

mal  repara  romo  tal:  o  de  que  «a  metafísica  da  poesia 
europeia,  e.  portanto,  a  alma  <^la  civilização  da  Europa» 
evoluem  (p.  60).  pelo  que  se  pode  «fdeduzir  —  determinada 
essa  linha  de  intima  evolução  espiritual,  e  fixado  qual  o 
último  {jrande  período  literário  europeu  e  qual  a  sua  meta- 
física —  qual  deva  ser  a  metafísica  do  grande  período  que 
se  lhe  deve  seguir».  Pelo  que,  muito  embora  tivesse  ante- 
riormente prevenido  de  que  a  análise  em  que  vai  entrar 
só  pode  «não  de  todo,  mas  aproximadamente»  satisfa- 
zer-nos  (p.  66).  e  ainda  de  que  só  «aproximadamente» 
poderia  entrever-sc  a  metafísica  da  nova  poesia  (p.  58). 
já  agora  se  atreve  a  concluir  que  é  possível  «comparar  a 
metafísica  da  nossa  actual  poesia,  tomada  nítida  o  clas- 
sificada por  um  confronto  definidor»  fsublinhado  nosso] 
«com  a  metafísica  deduzív^el  como  devendo  ser  a  desse 
novo  grande  período  da  literatura  da  Europa». — estabele- 
cendo por  aí  uma  «analogia  irrefutávely>  (p.  60). 

Para  o  que  volta  de  novo  a  postular,  e  a  concluir:  l)  que 
a  Renascença  e  o  Romantismo  são  os  períodos  máximos  da 
história  da  literatura  moderna,  sendo  contudo  o  Roman- 
tismo, não  «uma  época,  mas  o  princípio  de  uma  época» 
(p.  74).  ou  seja.  um  «mo\imento  precursor»  duma  «Renas- 
cença Nova»;  2)  que  a  filosofia  do  Renascimento  foi  «o 
espiritualismo  puro  e  simples,  em  uma  ou  outra  das  suas 
formas»  (p.  8l).  quer  dizer  (no  sentido  do  que  ele  próprio 
declara  uma  «classificação  de  modo  absolutamente  origi- 
nal»—  p.    77-8):    o   espiritualismo   absoluto   e   o   espiritua- 


111 


M    A    R    ]    o        SACRAME?^TO 

lismo  clássico  (p.  74).  isto  é.  o  que  admite  também  a 
realidade,  subalternizada,  da  matéria;  3)  que  «o  roman- 
tismo nada  c  senão  panteísmo»  (p.  82);  4)  que  isto  nos 
permite  ver  «qual  a  linha  evolutiva  da  filosofia  da  poesia 
europeia  e  qual.  portanto,  a  evolução  da  alma  da  civiliza- 
ção da  Europa»  (p.  82).  e  concluir  que  ela  «evolue  (...) 
do  mais  simples  para  o  mais  complexo»,  e  que,  em  conse- 
quência, «inevitavelmente  subirá  para  a  complexidade  má- 
xima do  transcendentalismo.  até  chegar  ao  limite  [subli- 
nhado nosso],  o  transcendentalismo  panteístav. 

Posto  isto  (que.  ele  o  confessa,  «se  podia  ter  concluído 
a  priori,  mas  foi  melhor  que  de  outro  modo  se  concluísse» 
—  p.  82).  e  reconhecido  que  o  próprio  transcendentalismo 
(ou  seja:  a  afirmação  de  que  matéria  e  espírito  são  meras 
aparências  de  uma  realidade-ouíra)  tanto  pode  ser  espi- 
ritualista como  materialista  (já  que  «por  mais  que  abstrac- 
tamente ideemos  não  temos  outros  modelos  por  onde  idear 
senão  espírito  e  matéria» — p.  77).  verifica-se  assim  que 
esse  transcendente  «  é  sentido  como  Mistério,  e  mesmo  onde 
levanta  abate»  (p.  82).  pelo  que  todo  o  seu  poeta  tem 
de  ser  um  «poeta  pessimista». 

Ora,  «percorrendo  todo  o  Romantismo  não  encontramos 
este  sentimento;  apenas,  em  Alfred  de  Vigny,  e  nos  seus 
descendentes,  já  pós-românticos  há  um  vago  arremedo  dele» 
(p.  83).  Contudo...  se  bem  repararmos,  logo  veremos  que 
afinal   aquele   transcendentalismo   serve   como   uma   luva   à 


112 


rnsSOA.     POETA     DA    HORA     ABSURDA 

poesia  de  Antero  (esse  precursor  da  «poesia  nova»).  Logr^: 
«especiais  condições  de  rara  fazem  do  sentimento  trana- 
cendentalista   apanágio   de   Portugal*. 

O  transcendentalismo  tem.  porém,  uma  forma  «mais  alta 
e  complexa»  —  a  panteísta,  que  «envolve  e  transcende  todus 
os  sistemas:  matéria  e  espírito  são  para  ele  reais  e  irreais 
ao  mesmo  tempo.  Deus  e  não  Deus  essencialmente».  Daí 
que  seja  «tão  verdade  dizer  que  a  matéria  e  o  espírito 
existem  como  que  não  existem,  porque  existem  e  não 
existem  ao  mesmo  tempo.  A  suprema  verdade  que  se  pode 
dizer  de  uma  coisa  é  que  ela  é  e  não  é  ao  mesmo  tempo». 
Logo:  «a  essência  do  universo  é  a  contradição»  (p.  7Q) 
e  «uma  afirmação  é  tanto  mais  verdadeira  quanto  maior 
contradição  envolve»,  A  «irrealização  do  Real»  «é  a  mesma 
coisa  que  a  realização  do  Irreal»;  e  «é  mais  verdade  dizer 
que  a  matéria  é  espiritual  e  o  espírito  material»  do  que 
dizer  que  «a  matéria  é  material  e  o  espírito  espiritual» 
(o  que.  não  obstante,  «não  é  falso»).  «E  assim,  complexa 
e  indefinidamente»  (p.  79). 

Ora  não  é  senão  este  sistema  («limite  e  cúpula  da  metafí- 
sica»—  p.  78)  o  que  rege  a  nova  poesia  portuguesa,  da 
lual  Peissoa  nos  franqueara  já  estes  exemplos-padrão:  a 
expressão  «choupos  d'alma»  duma  poesia  de  Jaime 
Cortesão  e  os  seguintes  versos  de  Pascoais:  «A  folna  que 
tombava  /  Era  alma  que  subia».  Ei-Ia  aí  «a  característica 
contradição  deste  sistema»,  «a  materialização  do  espírito». 


113 


MÁRIO        SACRAMENTO 

a  «espiritualização  da  matéria:».  *Para  os  nossos  novos 
poetas,  uma  pedra  é.  ao  mesmo  tempo,  realmente  uma  pe- 
dra, e  realmente  um  espírito,  isto  é.  irrealmente  uma  pe- 
dra... Mas  para  que  continuar?»  (p.  83). 

Resumo  e  sumário:  «a  alma  portuguesa  atingirá  em  poesia 
o  grau  correspondente  à  altura  a  que  em  filosofia  já  está 
erguidai^   [sublinhado  nosso]. 

Comentário:  1.°  Sejamos  justos:  é  o  próprio  Pessoa  quem 
corrige  a  designação  que  infligira  ao  sistema.  Com  efeito, 
muito  antes  de  levar  o  seu  «devaneio»  ao  extremo  que 
vimos,  já  ele  escrevera,  a  propósito  do  panteísmo,  que 
admitir  «a  realidade  igual  de  ambos  os  elementos  da  expe- 
riência», «resulta  num  absurdo  de  sistema»  (p.  76).  Duí 
que  só  nos  reste  alargar  essa  sua  crítica,  ou  verificação 
de  facto,  à  concepção  posterior,  que  pretende  que  «o  Apa- 
rente (matéria  e  espírito)  é  (...)  irreal,  é  uma  manifestação 
irreal  do  Real.  Como.  porém,  pode  o  Real  manifestar-se 
irrealmente?  Para  que  o  irreal  seja  irreal  é  preciso  que  seja 
real:  para  tanto  o  Aparente  é  uma  realidade  irreal,  ou  uma 
irrealidade  real  —  uma  contradição  realizada»  (p.  78). 
Realizada,  sublinhamos  (^). 


(')  Cf.:  «...Certalns  se  sont  employés  à  expurger  Descartes  de  toutea 
contradlctlons.  parce  qu'll3  ne  volent  dans  le  caractere  contradlctolre 
â'une  pensée  qu'un  slgue  d'absurdité.  et  ne  dlstínguent  pas  enti^e  la 
contradiction  dialecUque  —  féconde  —  et  la  contradiction  métaphvsiQue 
—  mouvement  dlalectique  arrété.  flgé  en  un  probleme  Insoluble». 
(H.  Lefebvre,  Deacartea,  p.  163). 


114 


PESSOA.    POUTA    DA    HORA    ABSURDA 

2."  A  «contradição-realizada»  surdira  contudo  da  ncceisi- 
dade  de  superar  a  dificuldade,  oposta  pelo  panteísmo,  de 
«a  existência  de  duas,  iguais,  realidades  [ser]  fmí>ensável>. 
pág.  76).  Daí  que  de  início  denominasse  «super-panteís- 
ta»  (')  o  sistema  destinado  a  obrar  tal  milagre.  E  daí 
ainda  que  por  então  se  limitasse  a  pretender  evitar  o  con- 
traditório em  poesia  pela  circunstância  de  na  tpoesia 
subjectiva  e  [na]  objectiva,  [na]  poesia  da  alma  e 
[na]  da  natureza,  cada  um  destes  elementos  penetra[r]  o 
outroo  (p.  65)  (^),  mediante  a  «comunhão  humilde  no  To- 
do», isto  é.  a  «dispersão  do  ser  num  exterior  que  não  é 
Natureza,  mas  Alma».  A  terminologia  absurda  desta  iden- 
tificação que  visa  a  comunhão  pela  dispersão  num  exterior, 
ou  seja.  a  «estranha  originalidade»  (p.  63)  deste  sistema, 
não  é  senão  um  outro  «socego  sem  ter  razão*  de  que  uma 
poesia  posterior  (')  nos   fala. 

3.°  Toda  aquela  preconcebida  «linha  evolutiva»  (p.  67). 
aquela  pressuposta  «concisão  dialéctica»  (p.  32),  e  as  tão 
amiúde  invocadas  «forma  sintética,  de  contraste»  (p.  62). 
«síntese  ulterior»  (p.  68).  etc.  muito  embora  astutamente 
arrimadas,  como  por  acaso,  à  tal  «catedral  do  pensamento 
—  a  filosofia  de  Hegel»,  não  fazem  senão  iludir  este  ponto 


(')  Note-se  o  «lelt  motlv»  dos  super-  e  supra-:  super-  (e  também  su- 
pra-)  -CamCes.  super-gregro,  supra-Portugal,  super-panteísta. 
(')  «Coexistem  na  minha  atenc&o  algemtula  aa  duas  realidades,  como 
dois  fumos  que  se  misturam».  Na  floresta  do  alheamento  In  A  Águia, 
n.»  20,  2.»  série,  p.  38. 
(»)  Pessoa,  p.  232. 

115 


MÁRIO       SACRAMENTO 

fundamental:  o  de  q  contradição  em  Hegel  se  resolver  em 
devir.  A  concepção  de  Pessoa,  com  efeito,  não  devem,  — 
alastra.  E  é  fundamental  para  a  compreensão  da  posição 
de  Pessoa  verificar  que  a  noção  de  tese-antítese-síntese  te- 
nha tido  necessidade  de  ser  substituída  pela  de  arlsitra^em- 
-no-conflito,  —  em  vista  a  um  happy  end.  (Recordemos  a 
propósito  a  interposição  do  conceito  de  I^Iédia  no  manifesto 
anteriormente  comentado  de  Campos).  O  próprio  Pessoa^ 
aliás,  denuncia  o  que  entende  afinal  por  evolução,  ao  em- 
pregar expressões  como  «dilatação  da  alma  europeia»  (p.  70) 
e  «dispersão  do  ser»  (p.  65).  A  sua  atitude  é  assim  a  atitude 
característica  de  quem  afinal  recusa  o  devir  e  busca  furtar- 
-se-lhe  prolongando  ou  desnaturando  os  termos  em  presença 
e  encaminKando-os  para  o  «modus  vivendi»  dum  recon- 
ciliador tête-à-tête.  Ele  mesmo  resume  o  fenómeno  dizendo 
que  «o  transcendentalismo  panteísta  [é]  um  sistema  essen- 
cialmente envolveãor  de  uma  fusão  de  elementos  absolu- 
tamente opostos»   (p.  85.   sublinhado  nosso). 

4."  O  transcendentalismo  panteísta  seria  o  limite  para  que 
tenderia  a  «evolução  da  alma  da  civilização  da  Europa». 
«iRealizada  a  contradição»,  não  se  vislumbram  de  facto 
outros  horizontes  que  não  sejam  ou  a  acomodação  nela 
própria  ou  um  regresso,  artificial,  aos  estádios  anteriores. 
Por  um  desvio  de  direita,  o  hegelianismo  retoma  assim 
com  Nietzsche  a  ideia  do  eterno  retorno,  preferindo 
contudo  incrustar-se  comodamente  dentro  da  própria 
*contradição-realizada» ,   solução  que  cumpria  ao  absurdo 


116 


Í^ESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 

propiciar.  —  «Poesia  absolutamente  originai  e  poesia  abso- 
lutamente nacional  são  expressões  interconvertíveis»  (p.  53) 
—  lê-se  num  certo  passo  do  mesmo  estudo.  Da  mesma  for- 
ma o  serão  assim  a  poesia  absolutamente  europeia  e  a  lu- 
síada, isto  é,  a  que  resulta  pela  «evolução»  europeia  e  a  que 
emana  do  fundo  místico  da  raça.  Desta  arte.  a  lição  der- 
radeira de  tudo  é  a  da  própria  interconvcrlibilidade:  tudo  é 
interconvertível  graças  ao  denominador-comum  de  todas  as 
coisas  —  o  absurdo.  «Deus  e  não-Deus  essencialmente» 
são  «reais  e  irreais  ao  mesmo  tempo»  (p.  79);  ou  então 
«Deus  é  o  Homem  de  outro  Deus  maior»  (^).  pois  «na  eter- 
na mentira  de  todos  os  deuses,  só  os  deuses  todos  são  ver- 
dade»; e  ainda:  «Deus  e  o  próprio  Universo,  são  metá- 
foras* (^).  E,  pois  que  de  todas  as  vezes  «a  verdade  /  nem 
veio  nem  se  foi:  o  Erro  mudou»,  «não  procures  nem  creias: 
tudo  é  oculto»  (^).  Se  o  é,  D  próprio  ocultismo,  tendo 
embora  a  sua  oportunidade  a  realizar  no  Grande  Logro, 
e  sendo  portanto  nem  menos  nem  mais  neglijável  que 
outra  atitude  qualquer,  é  como  qualquer  delas  igualmente 
insolvente.  Daí  que  ele  preencba  os  espaços  de  infinitas 
séries   de   entidades-mistério,    {*)   em   cada   uma   das  quais 


(•)  Pessoa,  p.  252. 

(»)  Entrevista  cit.,  Portucale,  n.»»  28-30,  2.»  série. 
(•)  Pessoa,  p.  218. 

(•)  «Nunca  voltarei  porque  nunca  se  volta  [da  derradeira  viagem]. 
O  lugar  a  que  se  volta  é  sempre  outro,  /  A  gare  a  que  se  volta  é  ou- 
tra, /  Já  não  está  a  mesma  gente,  nem  a  mesm.a  luz,  nem  a  mesma 
fllo3ofia>.  Campos,  p.  307. 


117 


MAR/O       SACRAMENTO 

Deu»  volta  a  ser  «  o  Homem  de  ouhro  Deus  maior».  Posto 
assim  Deus  à  distância  do  Impossível,  a  Verdade-Infinito 
não  pode  deixar  de  ser  o  mito  das  Danaides  —  «ou 
qualquer  outro  mito.  pois  todo  o  mito  é  o  das  Danaides». 
E  a  vida  resigna-se.  à  má  cara,  à  persistência  dessa  duali- 
dade irredutível  do  instinto  que  acha  que  «só  para  ouvir 
passar  o  vento  vale  a  pena  ter  nascido»  (')  e  da  razão 
que  desmascara  o  «vácuo  absurdo»;  e  entre  o  sonho 
impreciso  dum  là-bas  je  ne  sais  oii...  e  a  amarga  apa- 
rência do  Universo  Excessivo,  decide:  «Quero  neste 
momento,  fumando  no  apeadeiro  de  hoje.  /  [Antes  de 
ver  avançar  para  mim  a  chegada  de  ferro  /  Do  comboio 
definitivo.]  /  Estar  ainda  um  bocado  agarrado  à  velha 
vida,  /  Vida  inútil,  que  era  melhor  deixar,  que  é  uma 
cela?  /  Que  importa?  /  Todo  o  universo  é  uma  cela.  e  o 
estar  preso  nfio  tem  que  ver  com  o  tamanho  da  cela»  (^). 


(')  Caeiro,  p.  82. 
(•>  Campotf.  p.  306. 

119 


POESIA  E   ABSURDO 

Mau  grado  a  inviabilidade  ideológica  da  posiçSo  assu- 
mida pelo  seu  autor,  o  conjunto  da  obra  poética  de  Pessoa 
não  faz  senão  confirmar  que  só  acidentalmente  ele  se  inte- 
ressou pela  chamada  poesia  pura.  —  É  mais  um  aspecto 
de  absurdo  que  a  sua  obra  revela,  ou  seja,  uma  consequên- 
cia da  tal  «coerência*  sui  generis  de  que  já  tratámos  — que 
só  surpreenderá  quem  lhe  não  tenha  medido  então  todo  o 
alcance. 

Há  quase  sempre,  com  efeito,  um  móbil  a  solicitar,  expli- 
cita ou  implicitamente,  os  primeiros  passos  de  cada  poema. 
Se  falha,  como  é  de  regra,  o  poeta  verbera  magoadamente 
as  falsas  perspectivas  do  momento:  e  é  o  motivo  nuclear 
do  poema;  se  nem  isso  se  oferece,  é  a  própria  ausência  de 
perspectivas  e  o  seu  anelo  ou  necessidade  delas  que  passa 

a  constituir  tal  núcleo. 

Dizê-lo.  é  criar  apenas  um  ponto  de  fricção  à  concepção 
(que  a  comodidade  permanentemente  espreita)  de  que  tudo 
o  que  temos  dito  tende  à  noção  dum  Pessoa  em  pura  glosa 
formal  de  absurdo.  É  com  efeito  indispensável  evitar  esse 
erro  volvendo  uma  vista  de  conjunto  sobre  a  obra  e  fa- 
zendo ressaltar  a  «verdade»  temporal  da  posição  assumida 


110 


MÁRIO        SACRAMENTO 

peio  poeta  e.  como  tal.  a  inquestionável  qualidade  da  sua 
exi>eriência. 

Na  verdade,  dizer  que  Pessoa  preencheu  diletantemente 
a  sua  vida  cultivando  meras  glosas  formais  de  absurdo, 
seria  uma  afrontosa  injustiça,  equivalente,  em  nosso  sentir, 
ao  erro  oposto  dos  que  o  apresentam  de  face  macerada 
pela  angústia. 

O  clima  de  Pessoa  é  outro.  E  poderemos  talvez  sugeri-lo 
dizendo  que  Pessoa  ensaia  sempre  —  mas  que  o  verbo  é 
com  ele  intransitivo  (^).  Não  se  veja  neste  modo  de  dizer 
uma  ponta  sequer  de  humor,  pois  apenas  a  necessidade 
de  adaptar  o  instrumento  ao  objecto,  digamos  assim,  nos 
obriga  a  iniciar  o  exame  por  uma  frase  de  tão  nítidas  afi- 
nidades absurdas.  Com  efeito,  dizer  que  o  poeta  não  cul- 
tivou mas  ensaiou  o  absurdo,  seria  cair  num  desvio  que 
já  desaprovámos:  a  tendência  ao  uso  da  designação  de 
absurdo  como  correspondente  de  um  algo  com  direitos 
próprios,  é  um  ardil  dele  mesmo.  Expressão  dum  lapso 
(consciente  ou  inconscientemente  cometido)  resultante  duma 
impotência  ou  incapacidade  que  originam  uma  situa- 
ção pessoal  de  impasse,  vimos  já  que  para  nós  o  absurdo, 
como  posição  genérica,  é  o  «modus  vivendi»  da  inviabili- 
dade de  uma  ideologia  esgotada,  a  braços  consigo  mesma 


(')  V.  Apêndice,  nota  D. 

120 


PESSOA.    POETA    DA    HORA    ABSURDA 

e  inibida  pelas  suas  próprias  contradições.  Nada  disto 
porém,  implica  que,  dentro  duma  tal  situação,  quem  quer 
não  tente  e  busque  emancipar-se-Ine:  ao  invés,  a  noção 
de  que  tal  ideologia  se  encontra  a  braços  consigo  mesma 
não  só  pressupõe  o  contrário,  como  o  antevê  indispensável 
à  génese  da  própria  posição  absurda.  Assim,  dizer  que 
Pessoa  ensaiou,  mas  que  o  verbo  teve  com  ele  forma 
intransitiva,  é  apenas  uma  maneira  de  sugerir  que  Sísifo, 
consciente  da  sua  incómoda  situação,  foi  carreando  a  sua 
pedra  na  esperança  de  que  seria  aquela  a  última  vez.  e 
tentou,  em  favor  dessa  esperança,  convencer-se  de  que 
o  modo  de  carreá-la  (por  exemplo)  poderia  influir  nesse  re- 
sultado; quer  dizer:  — é  uma  maneira  de  sugerir  que  Sísifo 
tentou  tudo  o  que  formalmente  poderia  modificar  a  sua 
sorte,  —  mas  não  admitiu  sequer  a  solução  natural  9  lógica 
de  se  negar  pura  e  simplesmente  a  ela,  indiferente  às 
consequências.  O  mito  de  Sísilo  (^)  oculta  de  facto,  no 
plano  humano  a  que  modernamente  veio  a  ser  retomado, 
sob  a  pressuposição  dum  «fatum»  que  impossibilitaria  tal 
revolta,  a  realidade  estricta  duma  covardia  moral  que  pre- 
fere, posto  o  dilema,  a  incomodidade  (mesmo  que  eterna) 
ao  sofrimento  autêntico,  pelo  que  substitui  à  gama  afectiva 
do  homem  normal  (que  no  ensejo  só  uma  clara  determina- 
ção à  revolta  poderia  salvar)  a  baixa  resignação  na  expec- 


(')  Recordar  a  preferência  de  Pessoa  pelo  congénere  mito  das  Danal- 
des,  que  era  também  para  ele  um  mito-resumo,  e  retomar  por  aí  aa 
considerações  que  esboçámos  na  nota  aludida. 


121 


M    A    R    l    o        SACRAMENTO 

tativa  duma  qualquer  esperança  (utópica  ou  mesmo  absur- 
da) —  como,  por  exemplo,  seria  a  de  Sísifo  admitir  (por  se 
forçar  a  isso)  que  a  p>edra  que  carreia  não  é  a  mesma  da 
vez  anterior  nem  será  a  mesma  da  vez  seguinte  {^).  e  que 
tudo  se  passa  assim  como  se  tivesse  à  sua  espera  um  infi- 
nito monte  de  pedras,  pelo  que — quem  sabe?  —  na  noção 
impensável  de  infinito,  o  *tempo»  poderá  vir  a  delongar  o 
«número».  Sugerimos  este  exemplo  para  simbolizar  apenas 
como  concebemos  a  viciosa  posição  duma  mentalidade  que 
vive  a  tentar  salvar-se  do  absurdo  —  pelo  absurdo. 

Em  idêntica  conformidade,  a  posição  assumida  por  Pessoa, 
se  bem  que  igualmente  condenada  a  um  irremediável 
fracasso,  nem  por  isso  foi  menos  sinceramente  empennaaa 
—  dentro,  evidentemente,  do  círculo  inoperante  do  Grande 
Logro.  Por  outro  lado,  a  decepção  de  cada  lance  ía-lhc 
abrindo,  constantemente,  a  possibilidade  de  uma  pequena 
aventura  formal,  dado  o  exotismo  linguístico  originado 
pelas  novas  situações  —  e  é  daqui  (e  tão-só  daqui)  que 
nasce  o  maneirismo  ou  tendência  à  glosa  que,  por  seu 
turno,   como   que   confirmando   (pelo   resultado   fonnnl)   (') 


O  Confrontar  com  Caeiro:  «Toda  a  coisa  que  vemos»,  a  vemos  sempre 
«pela  primeira  vez>.  «Cada  flor  amarela  é  uma  nova  flor  amarela, 
ainda  que  seja  o  que  se  chama  a  mesma  de  ontem»,  pola  «a  gente  nfto 
é  Já  o  mesmo  nem  a  flor  a  mesma>.  (Páa-  Doutr.  Est.,  p.  296). 
(»)  «Afl  vezes  tenho  Ideias  felizes,  /  Ideias  subitamente  felizes,  em 
ideias  /  B  nas  palavras  em  que  naturalmente  se  despegam...  //  Depois 


122 


PESSOA.    POETA    DA    HORA     ABSURDA 

a  legitimidade  do  movimento  que  o  precedera,  encoraja  à 
repetição  e  exploração  do  mesmo. 

Assim,  se  como  indicámos,  «o  que  em  mim  sente  está 
pensando*  não  faz.  afinal,  do  ponto  de  vista  duma  crítica 
externa,  senão  glosar  novas  formas  de  metáfora  pelo 
absurdo.  fá-Io  como  que  cm  desforço  da  impraticabilidade 
desse  avatar  linguístico  que  cm  seu  inicial  movimento  es- 
perara que  a  poesia  lhe  propiciasse  —  com  vista  à  pará- 
frase (digamos  assim)  para-lógica  duma  posição  de  pendor 
ocultista.  Foi  apenas  esse  despeito  ou  melindre  que  levou 
Campos  a  chamar  à  poesia  «matemática  sem  verdade»  (^). 
Para  o  tipo  de  Verdade  que  Pessoa  se  sonhara,  a  mate- 
mática era.  por  seu  turno,  uma  forma  de  logro  também  ("). 
pelo  que  esta  citação  só  tem  interesse  por  mostrar  com  que 
tipo  de  actividade  mental  ele  assemelhava  a  poesia. 
Com  efeito,  na  ordem  da  chamada  aparência,  a  matemá- 
tica tinha  de  ter.  evidentemente,  para  o  próprio  Pessoa, 
o  seu  lugar  na  hierarquia  da  verdade  transitória;  logo,  se 


de  escrever,  leio.     /  Porque  escrevi  lato?  /  Onde  fui  buscar  Isto?  De 
onde  me  velo  Isto?  Isto  é  melhor  do  que  eu...   /  Seremos  nós  neate 
mundo  apenas  canetas  com  tinta  /  Com  que  algruém  escreve  a  valer 
o  que  nós  aqui  traçamos ?...>  (Ccunpos,  p.  65). 
(')  Páff.  Doutr.  Est.,  p.  127. 

(')  «As  ciências,  ao  aproxlmarem-se  do  estado  matemático,  tomam-ee 
mais  precisas:  é  porém  duvidoso  que,  por  Isso,  se  tornem  mais  certas» 
(Ibid.,  p.  138) ;  e:  «a  matemática  é  uma  linguagem  perfeita,  mais  nada» 
(Ibid.,  p.  138). 


123 


MÁRIO        SACRAMENTO 

a  poesia  é  uma  «matemática  sem  verdade»  é  porque  aspira 
também  (ou  aspirou),  a  ter  naquela  uma  posição;  é  porque 
algo  busca  (ou  buscou)  —  e  deve  buscar.  Em  conformidade. 
a  poesia  pura  está  fora  de  causa. 

Por  outro  lado  ainda,  se  Pessoa  acabou,  em  certa  medida, 
por  não  saber  (como  situação  de  facto)  senão  glosar  o 
absurdo,  foi  em  parte  por  ressentir  que.  baralhando  as 
cartas,  mantinha  suspensa  (como  Sísifo  há  pouco)  a  credu- 
lidade—  alimentada  pelo  «outro  lado»  do  eu  (oposto  ao 
eu-crítico)  —  de  que  a  carta  da  fortuna  condescenderia  por 
fim  em  revelar-se. 

Abstraindo  dum  pequeno  punhado  de  poemas  ortónimos, 
tão-só  com  Reis  o  poeta  se  deixou  ir.  com  efeito,  a  um 
clima  de  esteticismo  estricto  —  e  no  próprio  caso  de  Reis 
para  quê?  —  Para  mostrar  a  vã  superfetação  da  Forma  e 
concluir  que  a  obcessão  do  jogador  de  xadrez  é  a  única 
razão  de  ser  do  próprio  jogo. 

Se  o  eu-crítico  em  muitos  poemas  como  que  zomba  do  afã 
do  «outro  lado»,  a  verdade  é  que  este  se  lhe  mantém 
imp>ermeável  (^  e  não  consente  que  a  este  nível  a  visão 
do  jogo  de  xadrez  lhe  abra  brecha(^).  É  desse  eu-crédulo 


(')  cFaze  de  ti  um  duplo  ser  guardado»  (Pessoa,  p.  245). 

(•)  É   curioso   a   tal   propósito   o  paralelo   com   a   hesitacáo.   digamos 

assim,  destes  versos  de  Céunpos  sobre  a  morte:  «Tu  verdadeiramente 


124 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

o  seguinte  poema,  por  exemplo,  em  que.  mau  ^ado  a  de- 
silusão, o  autor  se  recolhe  ao  f>ersistente  refúgio  do  nunca- 
-é-tarde : 


Cessa  o  teu  canto! 
Cessa,  que,   enquanto 
O  ouvi.  ouvia 
Uma  outra  voz 
Como  que  vindo 
Nos  interstícios 
Do  brando  encanto 
Com  que  o  teu  canto 
Vinha  até  nós. 


Não  cantes  maisl 
Quero  o  silêncio 
Para  dormir 
Qualquer  memória 
Da  voz  ouvida. 
Desentendida. 
Que  foi  perdida 
Por  eu  a  ouvir. . .   (^) 


morto,  muito  mais  que  calculas»  —  e  a  seguir:  cMuito  mais  morto  aqui 
Que  calculas,  /  Mesmo  que  eateJtLs  multo  mais  vivo  além...»  (p.  221). 
(')  Pessoa,  p.  202-4. 


125 


MAR/O        SACRA    MEISITO 

Inutilmente  o  absurdo  sopra  ao  poeta  estes  versos:  c...  a 
meloHia  /  0"^  "õo  havia  /  Se  agora  a  lembro,  /  Faz-me 
chorar*;  inutilmente  o  eu-crítico  o  censura  por  «ler  querido 
ouvir  para  além  /  Do  que  é  o  sentido  que  uma  voz  tem»: 
o  loutro  lado»  do  eu  consente,  mas  não  cala  (ou  seja  — 
característica  inversão  de  termos!: — consente,  à  míngua 
de  razões  ao  alcance  do  eu-critico,  ou  à  mingua  da  tal 
linguagem  que  em  seu  anelo  Inas  deveria  comunicar;  mas 
não  cala,  porque  à  afirmação  simples  lhe  basta  a  lingua- 
gem que  deveras  há)  —  e  a  poesta  prossegue  reafirmando 
pela  beleza  do  «brando  encanto»  a  preexistência  dum 
Encanto  maior,  e  acaba  amesquinhando-se  a  si  mesma 
para  melhor  realizar  a  Beleza  oculta  da  «outra  voz»  que 
subentendera  (e  de  que  ela  seria  apenas  a  «sombra») 
admitindo   que   tal   voz    «foi   perdida   /  Por  eu   a   ouvir». 

Num  outro  poema  (^).  o  poeta  revela  que  «houve  um  ritmo 
no  meu  sono»  e  lamenta-se  porque  «quando  acordei  o 
perdi*.  Comandado  pelo  eu-crítico.  o  absurdo  volta  a 
sussurrar-lhc:  «não  sei  que  era  o  que  não  era-»;  mas  o 
«outro  eu*  garante:  «sei  que  suave  me  embalou».  —  e 
riposta  ao  absurdo,  na  linguagem  deste  por  causa  das  dú- 
vidas: «como  se  o  embalar  quisera  /  Tornar-me  outra  vez 
quem  sou»;  concluindo  (sempre  na  mesma  linguagem)  — 
em  vista,  como  habitualmente,  ao  nunca-é-tarde:  «não 
morreu;  dura  ainda  /  No  que  me  faz  não  pensar>. 


(>)  Pessoa,  p.  206. 
126 


PESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 

Assim,  tal  como  na  poesia  Depois  da  feira  {^)  a  «última 
esperança»  caminha  de  mãos  dadas  u  «última  iIusão>  sob 
as  chofas  do  eu-crílico  que  as  vô  «imersas  em  sonhos» 
que  «nem  saberão  dizer*,  «cantando  sem  razão»,  assim 
o  poeta  não  tem  dúvidas  em  reconhecer:  «eu  fito  sem  o  ler 
o  hvro  aberto  /  Que  nunca  mo  dirá...»  (^)  E.  não  obstante, 
responde,  inconformável,  uma  vez  mais  ao  eu-crítico  com 
o  argumento  derradeiro  de  que.  se  a  esperança  e  a  ilusão 
são  «pagens  de  um  morto  mito»  que  o  «infinito  ignora». 
— 'é  esse  o  mesmo  infinito  «que  nos  ignora  a  nós». 

É  este  o  único  sentido  útil  (e  o  único  claro)  do  próprio 
«sebastianismo»  alegórico  do  poeta:  «É  O  que  eu  me  sonhei 
que  eterno  dura.  /  É  Esse  que  regressarei»  (*).  A  terceira 
parte  da  Mensagem,  dedicada  ao  «Encoberto»,  retoma,  ahás 
quase  ipsis  verhis,  a  imagem  da  poesia  de  há  pouco: 

*Que  voz  vem  no  som  das  ondas 
Que  não  é  a  voz  do  mar? 
Ê  a  voz  de  alguém  que  nos  fala. 
Mas  que  se  escutamos,  cala. 
Por  ter  havido  escutar. 


O)  Pessoa,  p.  205. 
(•)  Pessoa,  p.  192. 
(•)  Mensagem^  p.  76  (4.*  e<S.). 


127 


MÁRIO       SACRAMENTO 

E  só  se,  meio  dormindo. 
Sem  saber  de  ouvir  ouvimos, 
Que  ela  nos  diz  a  esperança 
A  que,  como  uma  criança 
Dormente,  a  dormir  sorrimos. 


São  ilhas  afortunadas, 
São  terras  sem  ter  lugar. 
Onde  o  Rei  mora  esperando. 
Mas  se  vamos  dispertando. 
Cala  a  uoz  e  há  só  o  mar»  ('). 


Na  poesia  (dessa  mesma  parte)  que  começa  «Screvo  meu 
livro  à  beira  mágoa»  —  e  que.  sem  título,  o  poeta  colocou 
(após  as  dedicadas  ao  Bandarra  e  a  António  Vieira)  no 
^rupo  epigrafado  «Os  avisos»,  sugerindo  assim  que  ele 
próprio  se  considerava  um  elo  da  tradição  — ,  é  certo  que 
proclama  que  «só  te  sentir  e  te  pensar  [Senhor]  /  Meus  dias 
vácuos  enche  e  doura»,  mantendo  que  só  o  Encoberto 
poderá  vi-lo  a  «dispertar  do  mal  que  existo»  {').  Contudo. 
a  pura  alegoria  deste  «sebastianismo»  nem  sequer  se  satis- 
faz —  mau  grado  o  intencional  equívoco  de  expressões  como 


O  Mensagem,  4.»  ed.,  p.  79-80. 
(•)  P.  87. 

12Ô 


PESSOA.    POETA    DA    HORA     ABSURDA 

aquelas  (')  —  com  visar  ao  menos  o  ambiente  desta  inter- 
rogação: «Quem  vem  viver  a  verdade  /  Que  morreu 
D.  Sebastiõo?»  (').  Com  efeito,  como  que  prolongando  o 
equívoco  mas  dissipando-o,  afinal,  concita  o  desejado  por 
nício  desta  frase  tipicamente  absurda:  'ergue-le  d»)  fundo  de 
não-seres  /  Para  teu  novo  fado»  (^);  e.  decidindo  embora 
que  urge  «que  as  forças  cegas  se  domem  /  Pela  visão 
que  a  alma  tem»  (*).  confessa  de  novo  o  absurdo  ao  referir-se 
à  «madrugada  irreal  do  Quinto  Império»  (').  Estamos 
assim,  é  evidente,  em  pleno  mito.  que.  de  acordo  com  a 
norma,  sabemos  ser  (agora  e  sempre)  o  das  Danaides.  Não 
obstante,  a  poesia  «Ulisses»  (da  mesma  obra)  define  que 
«o  mito  é  o  nada  que  é  tudo»  (*)  e  ensina  que  o  «Ulisses- 
-português  foi,  por  não  ser,  existindo»  e  «sem  existir  nos 
bastou»,  concluindo  que  assim  «a  lenda  se  escorre  /  A 
entrar  na  realidade  /E  a  fecundá-la  decorre»  C).  Pouco 
importa,  portanto,  que  o  mito  seja...  mito  e  que.  como 
tal,  seja  forçosamente  o  das  Danaides.  pois  o  certo  é  que 


{')  Ou  estas:    «Quando  %'lrá3.   ó  Encoberto,   /   Sonho  das   eras  portu- 
guês...  /   .../  Quando,   meu  Senho  e  meu  Senhor?»  —  p.  88;   «onde  o 
areal  está  /  Ficou  meu  ser  que  houve,  não  o  que  há»  —  p.  36;  «Vejo 
entre  a  cerragào  teu  vulto  l»co  /  Que  toma.  //  Não  sei  a  hora,  maa 
sei  que  há  hora»  —  p.  66. 
(')  P.  78. 
(»)  P.  77. 
(♦)  P.  86. 
(«)  P.  19. 
(•)  P.  19. 


129 


M    A    R    1    o        SACRAMENTO 

«em  baixo,  a  vida.  metade  /  De  nada,  morre»  (')  e  só  do 
sonho,  como  ensina  Ulisses,  podemos  saber  algo.  Conser- 
vemos, pois,  o  sonho,  pois  só  ele  —  tal  como  sucede  à 
linha  do  horizonte,  essa  «abstracta  linha»  que  se  desdobra, 
aproximando-nos.  em  encostas  e  árvores,  em  «sons  e  cores». 
em  «aves  e  flores»  {^)  —  só  ele  pode  «ver  as  formas  invi- 
síveis /  Da  distância  imprecisa»  (').  Sim,  i  onser^'emo-lo 
sem  olhar  a  mais  nada.  pois...  «se  vamos  dispertando. 
/  Cala  a  voz.  e  há  só  o  mar*... 

Em  definitivo:  «não  sei  ter  pessimismoiK  (*). 

Tal  como  à  Princesa  Encantada  o  Infante  busca,  sem  o 
saber,  pelo  «processo  divino  /  Que  faz  existir  a  estrada»  ('). 
assim  também  o  melhor  será   «esperar  por  D.  Sebastião». 

E  o  «outro  lado»  conclue.  olhando  o  eu-crítico  de  revés: 
«quer  venha  ou  nãol»  (°). 

Ê  nesta  conformidade  que  Pessoa.  —  à  imagem  de  Caeiro, 
que   se   dizia    «nascido   a   cada   momento  /  Para   a  eterna 


(')  P.  19. 

í»)  P.  63. 

(•)  P.  53. 

(♦)  «Páç.Doutr.  Est.»,  p.  225. 

(•)  Pessoa,  p.  240. 

(•)  Pessoa,  p.  247. 

150 


PESSOA,     POHTA     DA     HORA     ABSURDA 

novidade  do  Mundo»  (*).  —  só  a  cada  poema  se  sente 
frustrado  —  e  só  para  ele.  Aceitando  até  que  «nem  na 
Alma  livre  [a  verdade]  é  conhecida.../  Nem  Deus,  que 
nos  criou,  em  Si  a  inclui»  (^)  —  logo.  sem  ilusões  sobre  o 
destino  de  todas  as  esperanças,  as  quais  asão  mortas»  por- 
que todas  <íhão-de  morrer»  (^)  — ,  continua  não  obstante  fiel 
ao  seu  trânsito  de  «órlão  dum  sonho  suspenso»  (')  -  -  ""como 
(...)  um  louco  que  teime  /  No  que  lhe  foi  desmentido»  ('). 

Foi  dessa  porfia  que  surgiram  os  heterónimos  —  esses 
«funiculares  do  Olimpo»,  para  aproveitarmos  uma  vez  mais 
a  imagem  sugerida  pelo  autor  da  Saudação  a  Waíí 
Whitman.  Em  seu  inicial  desígnio  os  heterónimos  tradu- 
zem de  facto  atitudes  de  ensaísmo  —  do  modelo  já  referido. 

Mau  grado  tudo  quanto  disse  em  contrário.  Pessoa,  crian- 
do-os.  agrupava  apenas  ideias  na  esperança  —  sempre  a 
esperança  de  mãos  dadas  à  ilusão!  —  de  se  libertar  do 
contraditório  pela  separação  dos  termos  em  litígio.  Vimos 
já  como  se  limitava  afinal  a  transferi-lo  de  âmbito.  O 
funicular  não  chegava  a  despejá-lo  nunca  onde  desejara, 
e,  tendo-o  levado   apenas   a  meditar,   a  um   outro   nível  e 


(')  P.  22. 

C)  Pessoa,  p.  252. 

(•)  Pessoa,  p.  234. 

(*)  Pessoa,  p.  22L 

(•)  Pessoa,  p.  234. 

131 


M    A    R    1    o        SACRAMENTO 

noutras  perspectivas,  os  mesmos  problemas,  recondu-lo  ao 
ponto  inicial.  Não  obstante,  cada  regresso,  aqui  como  sem- 
pre, serve  apenas  a  predispô-lo  a  uma  nova  investida.  «Não 
basta  abrir  a  janela  /  Para  ver  os  campos  e  os  lios.  /  Não 
é  bastante  não  ser  cego  /  Para  ver  as  árvores  e  as  flores. 
/  É  preciso  também  não  ter  filosofia  nenhuma»  —  escreveu 
Caeiro  (^).  Mutatis  mutandis,  poderíamos  dizer:  não  bas- 
tava a  Pessoa,  para  o  seu  desígnio,  ler  engendrado  com 
ânimo  astuto  um  processo  moderno  de  se  fazer  conduzir 
ao  Olimpo  —  era  preciso  que  o  Olimpo  não  fosse  já 
uma  necrópole.  E.  em  relação  o  Caeiro,  revorlendo-lhe 
o  argumento  —  pois  o  problema  é  o  mesmo:  era  preciso 
que  se  pudesse  não  ter  filosofia  nenhuma,  ou  seja.  que  o 
«primum  vivere  deinde  philosophari»  não  fosse  uma  separa- 
ção arbitrária,  dado  que  todo  o  «vivere»  necessariamente 
origina  e  pressupõe  um  «philosophari».  Com  efeito,  toda  a 
argumentação  de  Caeiro  se  resume  a  isto:  «Quando  digo  «é 
evidente»,  quero  acaso  dizer  «só  eu  é  que  o  vejo»?/Quando 
digo  «é  verdade»,  quero  acaso  dizer  «é  minha  opinião» ?/E 
se  isto  é  assim  na  vida.  porque  será  diferente  na  filosofia? 
/Vivemos  antes  de  filosofar,  existimos  antes  de  o  saber- 
mos» (^).  E  todo  o  seu  «equívoco»  está  em  duvidar  de  que 
aqueles  «é  evidente»  e  «ali  está»  não  sejam  filosofia.  Por 
isso  Campos  aduz  a  tese  oposta:  «Na  minha  própria  me- 
tafísica, que  tenho  porque  penso  e  sinto.  /  Não  há 
sossego,  /  E  os  grandes  montes  ao  sol  têm-no  tão  nitida- 

(>)  Caeiro  p.  73. 
(')  P.  93. 


15(2 


PESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 

mentel  Têm-no?  Os  grandes  montes  ao  sol  não  têm  coisa 
nenhuma  do  espírito.  /  Não  seriam  montes,  nSo  estariam 
ao  sol.  se  o  tivessem»  C).  O  problema  não  era  o  de  «não 
ter  filosofia  nenhuma»,  mas  o  de  ter  a  necessária  e  própria. 

Assim,  toda  a  contradição  de  Caeiro  está  na  identificação 
destes  dois  termos:  «filósofo  doente,  filósofo  enfim»  i^}. 

Se  «com  filosofia  não  há  árvores:  há  ideias  apenas»  (*). 
a  culpa  é  do  devaneio  especulativo  que  furta  as  ideias  ao 
seu  mister  de  «olharem»  para  as  árvores.  É  porque  as 
ideias,  olhos  da  mente,  cegaram  que  Caeiro  tenha  embalde 
subestimá-las.  E  limita-se  a  afirmar:  se  tivéssemos  olhos, 
deveríamos  ver  desta  e  daquela  maneira;  logo.  vivamos 
como  se  assim  víssemos. 

E  chega  ao  ponto  de  partida  de  que  fora  chamado  a  eman- 
cipar-se.  ao  declarar:  «graças  a  ter  olhos  só  para  ver  [isto  é: 
graças  a  pensar  como  se  os  tivesse],  /  Eu  vejo  ausência  de 
significação  em  todas  as  coisas»  {*),  —  o  que  é  a  um  tempo 
estar  de  acordo  com  Pessoa  (condenando,  porém,  o  seu 
esforço  libertário)  e  conTirmar  a  impossibilidade  de  se  não 
ter  filosofia.  E  assim  se  verifica  que  a  felicidade  de  Caeiro 


(»)  P.  26-7. 
(')  P.  93. 
(»)  Caeiro,  p.  73. 
(M  P.  79. 

153 


MAR/O        SACRAMENTO 

vive  apenas  da  afirmação  cega  dela  própria,  como  esta  frase 
serve  a  explicitar:  «sinto  uma  alegria  enorme  /  Ao  pensar 
que  a  minha  morte  não  tem  importância  nenhuma»  ('). 

É  porém  dessa  afirmação  temerária  que  vive  a  poesia  de 
Caeiro;  é  essa  convicta  afirmação  de  que,  não  obstante, 
a  vida  (e  não  só  o  sonho)  vale  a  pena,  que  a  faz  respirar: 
«acho  que  só  para  ouvir  passar  o  vento  vale  a  pena  ter 
nascido»  {^). 

«Onico  poeta  da  Natureza»  (*)  em  sua  errada  definição, 
foi-o  sim  do  instinto  vital  (■*)  no  seio  do  ar  rarefeito  do  seu 
tempo.  Se,  mau  grado,  a  sua  posição  é  igualmente  absurda. 
é-o  a  despeito  dos  seus  propósitos  e  da  sua  afirmação  em 
contrário;  e  poeticamente  é  a  afirmação  que  prevalece, 
porque  é  ela  que  conduz  e  faz  vibrar  as  palavras.  Um 
texto  fúnebre  adaptado  a  uma  canção  jocosa  não  leva 
a  melhor  sobre  ela,  e  pode  até  reforçá-la  na  medida 
em  que  o  contraste  suscitado  ajude  a  di\erlir  quem 
a  escuta.  Da  mesma  forma,  as  contradições  de  Caeiro  são 
tão  resolutas  que  predispõem  em  favor  daquele  que  quis 
apenas    ser    «uma    criança    que    brincava»    (')    embalando 


O  P.  85. 

(')  P.  82. 

(')  P.  87.  A  facilidade  desta  asserção  é  posta  a  nu  Dor  estoura  que 

em  verdade  resume  o  poeta:  «Goso»  os  campos  tsem  reparar»  para  eles 

(p.  96). 

(•)  «Impulso  vital»  lhe  chamou  Campos  (p.  21). 

O  P.  84. 


134 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

€o  humano  que  é  natural^:  —  «a  criança  tào  humana  que 
0  divina  /  É  esta  minha  quotidiana  vida  de  poeta*  ('). 

O  fundo  estrictamente  humoral  desta  poesia  é  ronfirmado 
ainda  pelo  seu  sentido  transitório  —  ou  acidentai.  Mito 
frágil,  a  obra  de  Caeiro,  lida  de  ponta  a  ponta,  deixa-nos 
a  recordação  de  uma  poesia.  A  causa  disto  não  está  na 
natureza  uniforme  do  tema  e  sua  consequente  repetição: 
a  obra  é  pequena  de  mais  para  que  os  poemas  não  pu- 
dessem matizar-se,  individualizar-se;  e  a  repetição  de 
conceitos  era  até  indispensável,  como  fio  condutor,  ao 
propósito  do  autor  de  definir  e  articular,  através  dum 
quotidiano  fragmentário,  um  conceito  de  vida,  um  teor 
de  existéntia.  um  objectivo  artístico.  Não:  a  origem  está  na 
insuficiente  compartimentação  dos  estímulos  poéticos,  na 
convencional  descriminação  desse  quotidiano  —  na  sua  mal 
demarcada  realização  específica  (^).  É  essa  a  superioridade 
de  Reis  —  mas  é  também  essa  a  razão  porque  com  ele  se 
pode  falar  em  monotonia  de  verdade:  um  poema  basta-lhe, 
como  a  nenhum  outro,  para  se  definir,  e  a  obra  é  assim  um 
permanente  regresso.  A  razão  desta  diferença  é  evidente: 


(')  P.  34. 

(*)  Daí  que  efectivamente  tal  poesia  pudesse  ter  sido  escrita  «dumn 
assentada*,  como  a  história  dos  trinta-e-tal  poemas  escritos  a  fio  suge- 
riu. Falsa  ou  nâo,  o  que  importa  é  que  tal  história  tenha  condições  do 
verosimilhança,  fornecidas  pelas  características  da  poesia  em  causa. 
Ninguém  acreditaria  o  mesmo  em  relação  à  de  Reis. 


135 


MÁRIO       SACRAMENTO 

Reis  é  o  decalque  duma  obra  poética  alheia,  ou  antes: 
uma  paráfrase.  Se  a  esse  decalque  acrescem  característi- 
cas que  sem  dúvida  o  individualizam,  o  «natural»  respirar 
é-Ihe  alheio. 

Operada  há  muito  a  demarcação  caracterizante  da  perso- 
nahdade  com  a  qual  se  indentifica.  cada  poema  sedimenta, 
em  economia  de  traços  e  de  meios,  o  resultado  depurado 
duma  experiência.  «Consciência  lúcida  e  solene  /  Das 
coisas  e  dos  seres»  (^)  —  e  tão  solene  que  hierática  —  Reis 
foi  um  «pagão  por  carácter»,  segundo  Campos  (^).  Quer 
dizer;  foi-o  de  acordo  com  a  concepção  de  carácter  de 
Campos,  concepção  essa  que,  não  sabendo  como  nem  sobre 
que  exercer-se  no  terreno  que  lhe  competia,  veio  a  trans- 
bordar,   como    neste    caso.    sobre    a    propriedade    alheia. 

É  porém  dentro  dessa  mesma  concepção  que  Reis  é  a  réplica 
de  Caeiro  (').  do  Caeiro  que  aceitava  —  por  personalidade. 
Reis  aceita,  não...  por  norma,  mas  normativamente  —  se- 
gundo regras  cautelosamente  colhidas  da  experiência:  «sé 
de    aceitar    tenhamos    a    ciência»    (*).    «Abomin[ando]    a 


(')  P.  55. 

(')  Páff.  Doutr.  Est..  p.  207. 

(')  No  que  ai  ás  se  confunde  por  vezes,  como  este  passo  (multo  mais 

próprio  de  Caeiro  do  que  dele)  revela:  «Tentemos  pois  com  abandono 

as.síduo  /   Entregrar  nosso  esforço  à  Natureza  /   E  nào  querer  mais 

vida  /  Que  a  daa  árvores  verdes»  (p.  62). 

(♦)  P.  37. 


136 


PESSOA.    POETA    DA    HORA     ABSURDA 

mentira,  porque  é  uma  inexactidão»  C),  apenas  cultiva  a 
poesia  porque  também  vê  nela  (mas  afinal  como  nenhum 
outro)  uma  matemática  (sem  verdade,  está  claro  —  isso  é 
ponto  arrumado),  uma  matemática  tão-só  e.  como  tal. 
exacta:  «perfeita».  Táo  exacta  como,  por  exemplo,  as  regras 
do  jogo-de-xadrez  —  desse  jogo  que  «prende  a  alma  toda, 
mas,  perdido,  pouco  /  Pesa,  pois  não  é  nada»  (^).  Tudo 
o  mais  é  vão,  pois,  como  o  amor.  tudo  «cansa  porque  é 
a  sério  e  busca»  (')  —  e  nada  encontra.  Só  dentro  da 
exactidão  do  lúdico  poderemos  pois  alcançar  aquela  tran- 
quilidade a  que  não  chegue  «nem  o  remorso  /  De  ter 
vivido»  (*).  Sejamos,  assim,  «crianças  adultas»  ('),  isto  é: 
lúcidas  e  solenes. 

Poeta  pagão  e  «pagão  por  carácter»  —  por  «fado  volun- 
tário» — .  poeta,  enfim,  voluntário,  Reis  tenta  assim  jus- 
tificar (para  ocultar)  a  difícil  posição  em  que  foi  colocado 
de  epígono-do-anacrónico.  Não  o  tentar,  seria  o  mesmo  que 
confessar  que  os  seus  poemas  lhe  devem  afinal  do  fundo 
negro  de  Pessoa  —  desse  fundo  negro  que  lhe  permitia 
simular  qualquer  estilo  sobre  o  qual  se  tivesse  debruçado 
com    «abandono    assíduo»,    e   que,    em    conformidade,    lhe 


(')  Páa.  Doutr.  Eatr..  p.  208. 
(»)  P.  63. 
(5)  P.  62. 
(♦)  P.  16. 
C)  P.    23. 


157 


M    A    R    l    o        SACRAMENTO 

tornara  possível  escrever  poesias  inglesas  que  a  própria 
crítica  britânica  consideram  recheadas  de  «ultra-shakcs- 
perian  shakesperianisms»  (^);  fundo  negro  enfim  que.  recor- 
dando a  alma-com-escritos.  o  disponível,  o  influenciável- 
-de-ludo  (^)  que  o  próprio  Pessoa  a  cada  passo  nos  con- 
fessou ser.  faz  sempre  ocorrer  a  seu  propósito  (sem  que 
isso  o  diminua,  entendamo-nos)  o  caso  daqueles  artífices 
da  pintura  que  s5o  capazes  de  imitar  o  estilo  dum  Mestre 
ao  ponto  de  inibirem  a  crítica  especializada. 

Esquemas  de  atitudes  intelectuais  eibstractamente  concebi- 
das, as  obras  de  Caeiro  e  Reis  apresentam-se  como  exer- 
cícios literários  de  transposição  de  temas  para  a  forma  siu 
generis  de  discurso  directo  que  o  poema  é.  Distingue  a 
Caeiro,  como  já  dissemos,  a  contagiosa  temeridade  com 
que  se  dispôs  a  impor  a  enormidade  que  trazia  encomen- 
dada; e  a  Reis  (num  plano  já  só  formal)  o  eco  distante  da 
poesia  que  lhe  coube  parasitar.  E  mantí^m  em  ambos  o 
rlima  de  afinidades  necessário  ao  teor  da  missão  que  parti- 
lham o  lastro  de  absurdidade  que  ocultamente  os  liga  entre 
si,  e  a  ela. 


(i)  Cf.  Gaspar  Slmõee.  ob.  clt.,  vol.  I,  págs.  72  •  103 
(')  «Eu  torno-me  sempre,  mais  tarde  ou  mais  cedo.  /  Aquilo  com 
que  slmpatiso.../  .../  E  eu  slmpatlso  com  tudo,  vivo  de  tudo  em  tudo» 
(Campos,  p.  220).  fTudo  tem  Influência  sobre  mim»  (Pdg.  Dout.  Est.. 
p.  229).  «Quantas  coisas  que  me  emprestaram  gruio  como  minhas!  / 
Quanto  me  emprestaram,  ai  de  mimi,  eu  próprio  sou!»  (Campos,  p.  36) 
«Em  tudo  quanto  olhei  fiquei  em  parte»  (Reis,  p.  113). 


138 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

Porquê,  então,  esse  prestígio  de  verosimilhança  que  a  poesia 
de  Campos  sem  dúvida  inspira  quando  posta  em  paralelo 
com  essas  duas?  (').  Porque  Campos  não  foi  apenas  uma 
concepção  abstracta  de  Pessoa.  Para  lá  de  todos  os  artifícios. 
Campos  foi  Pessoa  de  uma  forma  directa  e  natural.  Ou  seja: 
Campos  é  quase  um  pseudónimo  de  verdade.  Ou  ainda: 
Campos  é  Pessoa  de  sinceridade  nSo-inibida  pela  «prática 
social» — e,  pelo  contrário,  (daqui  o  «quase;*)  desperta  e 
hiperbolisada  pelo  ressentimento  dela. 

É  com  Campos  (e  nfio  com  o  seu  convencional  «mestre») 
que  Pessoa  dialoga  e  polemisa.  É  a  ele  que  confia  os 
únicos  escritos  em  prosa  de  forma  *  alheia».  E  é  ele  ainda 
o  único  heterónimo  de  quem  se  atreve  a  dizer  aos  amigos: 
hoje  V.  não  fala  com  o  Pessoa,  mas  com  o  Campos. 

Tivesse  tido  Pessoa,  no  seu  tempo,  a  posição  social  que 
coube,  no  dele,  a  um  lord  Byron.  por  exemplo,  e  a  impor- 
tância daquela  «prática  anti-social»,  no  que  diz  respeito 
à  obra,  teria  sido  evidentemente  outra.  Dizêmo-lo  para 
melhor  frisar  apenas  como,  noutras  condições,  a  iconoclastia 
do  «é  preciso  destruir  o  propósito  de  todas  as  pontes»  teria 
destronado  o  absurdo  do  lugar  que  assim  lhe  coube,  fazendo 
de  Pessoa  um  outro-Campos  e  do  absurdo  um  instrumento 
de  réplica  apenas. 


(')  Pedimos  licença  para  fazer  notar  que,  expreasando-noa  assim,  ape- 
nas nos  referimos  a  uma  característica,   que  Isolamos,   dessa  poesia. 


139 


MÁRIO        SACRAMENTO 

Correspondente  de  casas  comerciais  num  pequeno  meio 
intelectual  de  amigos  pejorativamente  «literários»,  candi- 
dato inconsciente  a  ornamento  literário  —  e.  mesmo  assim, 
só  póstumo  —  da  sala  dos  ícones  duma  sociedade  decaden- 
te, pequeno  aristocrata  de  nebulosas  aspirações  contraditó- 
rias, o  mito  da  heteronímia  (além  da  significação  funcional 
que  o  absurdo  lhe  conferiu)  era  uma  comodidade  à  timidez 
social  e  um  ponto  de  partida  para  a  evasão.  Evasão,  con- 
tudo, frustrada,  irremediavelmente  frustrada  porque  onde 
quer  que  lhe  aconteceu  ir,  nunca  a  sombra  da  Hora  o  aban- 
donou. 

Mito  absurdo,  nunca  sem  sê-Io  a  heteronímia  teria  feito 
caminho,  pois  só  o  que  por  aí  lhe  foi  negado  logo  de  entrada 
lhe  permitiu  a  veleidade  de  querer  ir  até  ao  fim.  E  se  Caeiro 
precede  Campos  tanto  no  tempo  como  no  culto  fundamental 
do  anti-social.  é  que  só  Caeiro  —  enfant  muito  mais  terrí- 
ble  em  seu  premeditado  cinismo  do  que  o  assomadiço  Cam- 
pos do  pégaso-ferro-em-brasa  —  só  Caeiro  poderia  conce- 
ber friamente  o  caminho  da  falsa  coragem  sob  disfarce 
literário. 

É  esse  o  único  magistrado  de  Caeiro  sobre  Campos,  e  por 
isso  ele  se  lhe  lamenta  nestes  termos:  «prouvera  ao  Deus 
ignoto  que  eu  ficasse  sempre  aquele  /  Poeta  decadente, 
estupidamente  pretencioso,  /  Que  poderia  ao  menos  vir  a 
agradar,  /  E  não  surgisse  em  mim  a  pavorosa  ciência  de 
ver». — palavras   essas  que   o   próprio   Pessoa  poderia  per- 


140 


rESSOA.     POETA    DA     HORA     ABSURDA 

filhar  inteiramente,  pois  que,  bebida  na  perfídia  de  Caeiro 
tal  ciOncia  a  todos  por  igual  tolheu  revelando  as  mons- 
truosas raízes  do  seu  dilema  comum. 

A  pedra  angular  da  identidade  já  denunciada  entre  a  voz 
que  impreca  na  poesia  de  Campos  e  a  que  plange  na  poesia 
ortónima  estava  assim  na  impossibilidade  de  velarem  a  pro- 
blemática mais  imediata  do  homem.  Sc  a  não  velaram,  tão 
pouco  a  enfrentaram,  pelo  que  só  lhes  resta,  a  um  e  outro, 
essa  frustrada  forma  cie  evasão  pelo  sonho  da  '^'diagonal 
difusa».  E  Campos  retira  dela  uma  nova  forma,  adulterada. 
de  recenforto  que  os  seguintes  versos  não  serviram  senão 
a  estimular:  «O  que  falhei  deveras  não  tem,  esperança  ne- 
nhuma. /  Em  sistema  metafísico  nenhum.  /  Pode  ser  que 
para  outro  mundo  eu  possa  levar  o  que  sonhei.  /  Mas  po- 
derei eu  levar  para  outro  mundo  o  que  me  esqueci  de 
sonhar?  /  Esses  sim,  os  sonhos  por  haver  é  que  são  o  ca- 
dáver» (^). 

Ao  luar  e  ao  sonho  na  estrada  deserta,  como  o  resume  a 
poesia  que  começa  «Ao  volante  do  Chevrolet  pela  estrada 
de  Sintra»,  eis  toda  a  perspectiva  que  em  última  instância 
lhes  oferecia  a  Hora.  E.  não  obstante,  o  automóvel  —  esse 
símbolo  —  bem  que  parecia  apontar  o  caminho:  «o  auto- 
móvel que  parecia  há  pouco  dar-me  liberdade,  /  É  agora 


(»)  P.  34. 


141 


M    A    R    í    o        SACRAMENTO 

uma  coisa  onde  estou  fechado,  /  Que  só  posso  conduzir 
se  nele  estiver  fechado,  /  Que  domino  se  me  incluir  nele, 
se  ele  me  incluir  a  mim»  (').  Inútil,  porém.  Tal  como  o 
«monte  de  pedras  de  que  me  desviei  ao  vê-lo  sem  vê-lo» 
(por  os  olhos  interiores  estarem  longe),  tudo  é  assim  absur- 
damente real  e  irreal  ao  mesmo  tempo;  e  o  sonho,  desem- 
bocando na  cachoeira  universal  desse  absurdo,  retoma  com 
ele  a  estrada  da  Hora  —  a  estrada  que  leva  a  «compreen- 
de [er]  todo  o  vácuo  da  existência  sem  inteligência  para  o 
compreender»  (^). 


O  P.  34-36.   Sublinhado  nosso. 

(•)  Campos,  p.  90.  Sublinhado  nosso. 

142 


CONCLUSÃO 


Toda  a  obra  rle  Pessoa  é.  de  uma  ponta  a  outra,  uma  de- 
veio  a  derivar  o  modismo  dito  «paúlico».  que  faz  furor 
dum  mesmo  desgarro  íntimo. 

Na  própria  poesia  inicial  denominada  Pauis  (nome  de  que 
veio  a  derivar  o  modismo  dito  «paúlico».  que  fez  furos 
entre  os  «amigos  literários*  do  período  imediatamente 
anterior  ao  aparecimento  da  revista  Orfeu)  o  autor  visio- 
nara já  «trepadeiras  de  despropósito  lambendo  de  Hora  os 
Alensí» — definição,  se  bem  que  involuntária,  lapidar  sem 
dúvida  dos  líamoes  que  associam  essa  época  a  toda  a  obra 
posterior.  Com  efeito,  se  é  certo  que  na  carta  atrás  comen- 
tada a  CôrtesjRodrigues  o  poeta  revela  inquietação  pela 
frustração  a  que  via  condenadas  as  suas  ambições  criadoras, 
não  é  menos  verdade  que.  decorridos  apenas  três  meses, 
ele  mesmo  era  o  primeiro  a  vangloriar-se  do  seu  destino 
de  «indisciplinador  de  almas»  (como  perifràsticamente  se 
designava),  e  a  incitar  publicamente  os  seus  confrades  nos 
termos  que  seguem:  «Trabalhemos  (...)  nós.  os  novos,  por 
perturbar  as  almas,  por  desorientar  os  espíritos.  Cultivemos, 
em    nós   próprios,   a   desintegração   mental  como   uma  flor 


143 


MAR/O       SACRAMENTO 

de  preço  (...)  Escrupulizemos  no  doentio  e  no  dissol- 
vente» (0. 

Face  a  um  tal  problema,  as  perspectivas  oferecidas  por 
uma  poesia  como  Pauis  eram  ainda,  está  claro,  senão 
ilusórias,  pelo  menos  equivocamente  mitigadas  de  conven- 
ção e  arranjo:  «Pauis  de  roçarem  ânsias  pela  minh'alma 
em  ouro...  /  Dobre  longínquo  de  Outros  Sinos  ..  Empali- 
dece o  louro  /  Trigo  na  cinza  do  poente...  Corre  um  frio 
carnal  por  minhalma...  /  Tão  sempre  a  mesma  a  Horal... 
Balouçar  de  cimos  de  palmai...  /  Silêncio  que  as  folhas 
fitam  em  nós.  Outono  delgado  /  Dum  canto  de  vaga  ave... 
Azul  esquecido  em  estagnado...  /  Oh  que  mudo  grito 
de  ânsia  põe  garras  na  Hora  /  Que  pasmo  de  mim 
anseia  por  outra  coisa,  que  o  que  chora!  /  Estendo  as 
mãos  para  além,  mas  no  estendê-las  já  vejo  /  Que  não 
é  aquilo  que  quero  aquilo  que  desejo...». 

Mudo  grito  ainda  —  verídico  apenas,  talvez,  na  tão 
característica  destrinça  entre  «o  que  quero»  e  «o  que 
desejo,»,  —  o  fito  de  Pessoa  restringia-se  nesta  poesia  (bem 
como  em  todas  as  deste  período)  ao  mero  esvasiamento 
conceptual,    o    que    a    tornava    insignificativa    do    próprio 


(')  De  um  artigo  publicado  am  1915,  em  «O  Jornal».  Cf.  Gaspar  SlmOes. 
ob.  cit.,  vol.  II.  p.  15.  Sublinhado  nosso.  —  Recordar  a  «flor  da  tal 
índia»  de  Campos  e  a  ambígua  falte  dum  «não»  na  referida  carta 
a  COrtes-Rodrlguea. 


144 


PESSOA.     POFiTA     DA     HORA     ABSURDA 

ponto  cie  vista  do  pendor  intimista  da  época:  «estou  escre- 
vendo versos  realmente  simpáticos  —  versos  a  dizer  que 
não  lenho  nada  que  dizer»,  —  é  mais  ou  menos  a  crítica 
que  [Jodcríamos  delegar  em  Campos  (^). 

E.  náo  obstante,  quando  Pessoa  vem  a  escrever  uma  poesia 
já  tão  apropriada  ao  seu  destino  como  a  que  comera  Ela 
canta,  pobre  ceifeira  (que  é,  como  se  sabe,  a  do  célebre 
verso  do  «o  que  em  mim  sente  stá  pensando»),  escreve 
a  Côrtes-Rodripues  confessando-se  satisfeito  por  ter  con- 
seguido «dar  a  nota  «paúlica»  em  linguagem  simples». 
E  mais  do  que  evidente  que,  mau  grado  o  tom  incaracterís- 
tico  de  que  parece  revestir-se  a  poesia  dessa  primeira  época, 
os  liames  a  que  nos  referimos  foram  um  facto :  as  «trepa- 
deiras de  despropósito»  não  fizeram  senão  florescer  na 
obra  da  maturidade. 

Foi,  aliás,  da  permanência,  quanto  a  nós,  desses  liames 
que  retirámos  os  motivos  da  insistência  que  temos  posto 
no  reconhecimento  da  «fidehdade»  e  «genuinidade»  da 
obra  de  Pessoa.  Há  com  efeito  que  evitar  que  a  crítica 
que  urge  fazer  à  deformação  sofrida  pelo  alcance  da  sua 
obra  (deformação  de  que  ele  mesmo  foi  o  primeiro  e  mais 
responsável  agente,  por  motivos  que,  porém.  lhe  eram 
funcionalmente  próprios)  tolde  a  qualidade  humana  e 
temporal    da   mesma  —  tão   ricamente   significativa,   afinal. 


(>)  P.  272. 


145 


MÁRIO        SACRA    MEMTO 

CIO  que  não  deve  ser,  através  cias  razões  mesmas  do  por  que 
o  pôde  e  teve  de  ser. 

«Emparedado  no  absurdo» — como  Prado  Coelho,  se  bem 
supomos,  foi  o  primeiro  a  reconhecer  (sem  que,  porém,  ti- 
rasse desse  facto,  que  só  formalmente  lhe  interessou,  as  con- 
clusões que  impõe)  —  Fernando  Pessoa  apresenta-se  no  pa- 
norama cultural  deste  nosso  meio  século  como  um  artista 
superiormente  dotado  e.  sobretudo,  singtilarmente  bem 
informado  para  os  nossos  hábitos.  Espécie  de  fruto  de  se- 
gunda gestação  ou  produto  só  mental  dum  ambiente  cul- 
tural cujas  raízes  primárias  mergulhínam  em  centros  rela- 
tivamente distantes  do  nosso  meio,  não  pode  deixar  de 
surpreender  que  tivesse  sido  ele  (porque  sem  dú\ida  o  foi) 
um  dos   seus  mais  claros  e  bem   sucedidos  representantes. 

Antes,  porém,  das  virtudes  propriamente  poéticas  (que  não 
deixam  por  isso  de  ser  superiores)  é  a  singularidade,  a 
bizarria,  digamo-lo.  da  tomada  de  posição  pressuposta  por 
tal  poesia  o  que  mais  contribuiu  para  lhe  demarcar  esse 
lugar.  Núcleo  dum  mito  cujas  origens  são  afinal  comuns 
às  da  mais  íntima  das  suas  composições.  Pessoa  tinha 
fatalmente  de  suscitar  uma  caudalosa  corrente  de  equívocos, 
distorsões  e  especulações  adequadas  àquele  momento  da 
consciência  humana  que  a  sua  obra  reflete  e  serve.  E.  não 
obstante,  o  seu  vincado  interesse  inicial  pela  sociologia 
(de  que  parecia  esperar  milagres  —  é  o  termo  — ,  numa  ati- 
tude que  a  confundia  com  o  que  mais  tarde  veio  a  transferir 


146 


PESSOA.     PO[zTA    DA     HORA     ABSURDA 

para  o  ocultismo:  uma  confirmação  cJe  propósitos,  ou  apoio 
profético)  foi  um  indicador  claro  da  intuição  que  teve  das 
origens  da  sua  problemática  —  intuição  indispensável  à 
percepção  dos  limites  últimos  a  que  se  propôs  e  conseguiu 
levá-la.  A  imagem  estonteante  do  século  XX.  pródigo  em 
«milagres»  técnicos,  contagiara  os  próprios  sectores  so- 
ciais que  a  idade  da  máquina  era  chamada  a  extinguir.  E, 
à  falta  de  conteúdo  social,  a  arte  desses  sectores  recolliia-se 
a  um  clima  de  retinto  pensamento-mágico.  que  o  sentido 
dos  «milagres»,  aliás,  não  parecia  senão  íustiíicar.  Foi 
aí  que  Pessoa  Debeu  o  «não  sei  ter  pessimismo»  que 
definitivamente  o  marcou.  À  medida,  todavia,  que  a 
idade  dos  «milagres»  se  ia  tornando  mais  claramente  a 
idade  das  decepções  do  sector  social  que  o  integrava, 
e  que  as  i  deologias  pré-fascistas  iam  acenando  com  a 
premente  necessidade  de  reaver,  custasse  o  que  cus- 
tasse, um  conteúdo  social  actuante  e  interventor  (que 
os  factos  não  faziam,  porém,  no  plano  de  Pessoa,  senão 
ir  mostrando  cada  dia  mais  inviável),  a  confusão  dos  que 
como  ele  ficam  entre  duas  águas  desabrocha  na  consciên- 
cia do  absurdo  da  situação,  e  recolhe  nele  (confundindo-as) 
as  duas  concepções  que  experimentara  —  a  do  real  e  a  da 
magia.  O  «deixasses-me  ser  quem  era»  de  Campos  (^)  é  a 


(')  Os  poemas  Chuva  Oblíqua  II  e  III  estiveram  para  sair,  numa  Anto- 
logia do  Interseccionismo,  assinados  por  Álvaro  <Je  Campos.  Cf.  Gaspar 
Simões,  ob.  cit.,  vol.  I,  p.  205. 


147 


M    A    R    /    o        SACRAMENTO 

demarração  desta  passagem  de  estádios.  Só.  porém,  pela 
falta  inicial  de  conteúdo  e  subsequente  esvasiamento  con- 
ceptual tal  «confluência»  poderia  dar-se,  e  daí  a  anteci- 
pação de  certos  pequenos  aspectos  que  o  «mudo  grito» 
pode  simbolizar. 

Reconhecido  o  absurdo,  o  «não  sei  ter  pessimismo»  parece, 
contraditoriamente,  refinar,  e  fazer  gala  em  mostrar-nos  a 
vastidão  dos  seus  novos  domínios.  Foi  essa  a  intenção 
inicial  das  asas  de   ícaro  que  os  helerónimos  constituíram 

—  com  cada  par  das  quais  se  podia  voar  diferente  pelo 
mestno  espaço.  O  «antes  isto»  dos  heterónimos  é  de  facto 
orgulhoso  e  auto-suficiente.  Todos  eles  se  empenham 
em  mostrar-nos  como  por  exemplo  se  pode  chegar  à  comu- 
nhão com  o  «Todo»  através  do  próprio  absurdo.  São 
assim,  a  seu  modo,  vias  inicinliras  de  transiujstnncia- 
ção,  face  às  quais  a  poesia  ortónima  (com  o  seu  novelo 
embrulhado  para  o  lado  de  dentro»  e  as  suas  múltiplas 
sub-personalidades)    representaria    um    grau    mais    elevado 

—  pelo  que  não  podem  deixar  de  lembrar  os  gráficos 
com  que  Pessoa  pretendeu,  em  certa  altura,  explicar  o 
interseccionismo  «aos  inferiores»  {^):  Caeiro,  no  grau 
mais  elementar,  ensina  a  cultivar  a  inibição  dos  fenómenos 
conscientes  pela  «aprendizagem  de  desaprender»;  Campos. 


(')  Cartas  de  F.  P.  a  A.  C. -Rodrigues,  p.  60. 


148 


PBSSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

a  desdobrarmo-nos  de  tal  modo  em  sujeito  e  objecto,  que 
as  ideias  se  tornem  meras  imagens  volantes  dum  espectá- 
culo que  podemos,  a  nosso  gosto,  fazer  desfilar  ao  «ralenti» 
ou  em  turt)illião;  e  Reis.  a  cultivar,  não  já  a  inibição  pura 
e  simples  como  o  primeiro,  ou  o  espectatorismo  intimista 
como  o  setíundo.  mas  u  sublimac, ao  depurada  dessa  dupla 
experiência   através   dum   comedido  nino  (')• 

Dizer  isto,  é  concordar  com  todos  os  comentadores  de 
Pessoa  em  que  Caeiro,  Campos  e  Reis  possuem  caracte- 
rísticas inconfundíveis.  Quer  dizer:  é  confirmar  que  Pessoa 
alcançou  o  seu  objectivo  de  nos  dar  quatro  vozes  distintas, 
três  das  quais  como  se  fossem  de  *fora  da  sua  pessoa». 
Analisando,  porém,  estas,  e  confrontando  o  que  dizem  com 
a  história  engendrada  a  seu  respeito  pelo  autor,  depressa 
reconheceremos  nada  existir  no  seu  canto  que  caracterize 
uma  experiência  humana  que  imponha  essa  história  como 
necessariamente  sua  própria.  Queremos  dizer:  embora 
seja  evidente  que  indivíduos  chamados  Caeiro,  Campos 
e  Reis  tenham  de  pressupor  uma  experiência  individual 
e  uma  biografia  —  sumário  dessa  experiência  — ,  a  ver- 
dade é  que  o  que  naquelas  obras  lhas  rastreia  é  quase 
ausente,     motivo     por     que     a     história     engendrada     por 


(M  V.   Apêndice,  nota  B. 

149 


MÁRIO        SACRAMENTO 

Pessoa  a  seu  respeito  lanto  podia  ser  a  que  foi  como  outra 
—  contanto  que  fosse  uma  ('). 

Com  efeito,  é  fácil  conceber,  com  pequenas  alterações,  que 
o  essencial  da  biografia  de  Reis  pudesse  servir  o  essencial 
da  obra  de  Caeiro:  bastaria  admitir,  por  exemplo,  que 
Reis.  em  certo  momento  da  sua  vida.  desiludido  do  chamado 
grande  mundo  (que  não  da  vida),  tivesse  regressado  de 
algum  modo  à  sua  Tormes.  e  aí  viesse  a  cultivar  o  teor  de 
vida  que  a  poesia  de  Caeiro  pressupõe.  —  compondo-a, 
sob  a  influência  de  Cesário,  com  g  natural  e  despren- 
dida satisfação  de  quem  se  ignorara  até  então  tal  dom. 
(Diremos,  já  agora,  que  tal  poesia  seria,  para  nós,  muito 
mais  verosímil  nessas  condições  —  porque  humanizada 
pelo   humor  que   tais   precedentes   lhe   pressuporiam).   Do 


(')  Tarefa  que  o  autor  pocf.a  ter  delegado  na  imaglnacào  dos  leitores 
—  o  gue,  porévx,  seria  sempre  uma  coisa  diferente  de  a  considerar  des- 
necessário. O  que  é  fundamental  para  nós,  em  relação  ao  ponto  de  vista 
expendido  por  Casais  Monteiro  a  este  respeito  e  ao  q-ial  atrás  já  nos 
referimos,  é  o  seguinte:  apresentando-se  tais  obras  como  de  «fora  da 
pessoa»  do  seu  autor,  pressupõem  uma  autoria  fictícia;  logo",  no  próprio 
acto  de  as  produzir  e  sou  criador  lhes  implicltava  tal  autoria,  peio  que 
o  teor  de  vida  imanente  ao  autor  figurado  nSo  teria  «existido»  menos 
pelo  facto  de  ter  sido  deixado  ao  descrime  do  leitor  ou  comentador. 
É  isto  uma  consequência  necessária  e  imediata  das  condições  gue  presi- 
diram à  concepção  de  tais  obras.  O  que  nestas  porventura  negue  tal 
consequência,  só  pode  negar  afinal  a  legitimidade  ou  viabilidade  do 
tais  condições  e,  alterando  embora  a  posição  do  problema,  não  modi- 
fica a  reaílidade  das  suas  condicões-base. 


150 


PESSOA.     l'OETA     DA     HORA     ABSURDA 

mesmo  modo.  os  traídos  biográficos  de  Reis  poderiam 
servir  essencialmente  à  poesia  de  Campos  e  os  deste  à 
poesia  dos  outros  tiois.  Só  Caeiro,  cuja  poesia,  a  despeito 
da  sua  pretendida  incultura,  poderia  ser  atribuída  quer  a 
Campos  quer  a  Reis,  não  estaria  em  condições,  por  esse 
âmbito  muito  mais  lato  da  sua  í^igura  central  O  que 
cunslância,  porém,  de  tal  incultura  não  ter  deixado 
marca  indelével  na  obra  (pois  a  sua  falsa  posição  de  «sim- 
ples» não  tem  dúvidas  em  mostrar-nos  que  se  comete 
«erros»  os  comete  conscientemente)  ('),  revela  a  pura  arbi- 
trariedade desse  seu  traço  (a  teoria  da  «aprendizagem  de 
desaprender*  abrange  tanto  a  «muita*  como  a  «pouca» 
cultura)  e  confirma  assim  que.  fosse  qual  fosse  o  conteúdo 
de  tais  biografias,  o  seu  anedóctico  funcionaria  sempre  como 
um  ex  machina. 

Tudo  indica  portanto  que  o  facto  de  os  portadores  das  vozes 
nos  terem  sido  apresentados  de  uma  maneira  tão  sumária. 


(*)  «...assim  escrevo,  ora  bem,  ora  mal,  /  Ora  acertando  com  o  quo 
quero  dizer,  ora  errando...»  (p.  67)  —  mistifica  ele.  A  sua  intencional 
indestrnca  por  exemplo  entre  sensação  e  percepção  tem  a  mesma  raiz 
do  movimento  contraditório  destfis  duas  atitudes:  «vi  que  não  há 
natureza  /...  /  Mas  que  não  há  um  todo  a  que  isso  pertença»;  e  con- 
clui, consciente  do  absurdo:  «a  natureza  é  partes  sem  um  todo»  (p.  68). 
«As  borboletas  não  têm  cor  nem  movimento,  /  .../  A  cor  é  que  tem 
cor  nas  asas  da  borboleta.  /  No  movimento  da  borboleta  o  movimento 
é  que  se  move»  (p.  62).  Em  suma,  as  suas  contradições  são  conscien- 
temente procuradas  pelo  desforço  de  que  «os  meus  pensamentos  sáo 
todos  sensações»  (p.  37). 


131 


MÁRIO        SACRAMENTO 

esquemática  e.  o  que  é  mais,  insignificativa  (').  apenas 
pressupõe  que  Pessoa  reconheceu  haver  um  nexo  de  neces- 
sidade cnlrc  tais  portadores  e  tais  ^•ozes.  De  resto,  a  nossa 
própria  experiência  de  leitores  nos  ensina  que.  se  distingui- 
mos sempre  essas  vozes,  só  depois  da  intimidade  com  a 
obra  ter  vertido  sobre  nós  o  filtro  dos  seus  preconceitos 
começámos,  cada  qual,  a  querer  enxergar  o  seu  Caeiro, 
o  seu  Campos,  o  seu  Reis. 

Pergunta-se:  porquê?  —  Porque  a  experiência  humana  que 
fazem  prever  (a  qual.  a  estar  incluída  nas  obras,  impli- 
caria uma  relação  de  coerência  psico-estética  entre  elas 
e  os  seus  pressupostos  autores)  não  existe  lá.  A  poesia  dos 
heterónimos  põe-nos  de  facto  em  presença  de  meras 
atitudes   mentais    genericamente   concebidas  {'),   cada   uma 


í')  É  de  notar  que  tudo  o  que  Pessoa  deixou  esclarecido  sobre  o 
assunto  faz  parte  de  escrtos  de  ocasião  que.  naturalmente,  podertii 
nào  ter  chegado  a  escrever.  As  suas  fontes  rcsumem-se,  de  facto,  fts 
cartas  a  Côrtes-Rodrigues.  à  carta  a  Casais  Monteiro  e  à  Tábua  biblio- 
gráfica publicada  na  Presença.  As  Notaa  de  Álvaro  de  Campos  confir- 
mam a  necessidade  do  mito,  mas  colocam-se  à  margem  dele,  pres- 
supondo a  sua  preexistência.  Deste  modo,  o  carácter  mnemotécnico  do 
apontamento  encontrado  entre  os  papéis  de  Pessoa  a  que  já  nos  referi- 
mos, a  circunstância  de  na  correspondência  com  Côrtes-Rodrigues  usa 
ainda  a  designação  de  «pseudónimo»  e  o  carácter  episódico  de  esclare- 
cimentos prestados,  mostram  que  Pessoa  teve  uma  dificuldade  enorme 
em  engrenar  a  solução  do  caso.  Sentlndo-a  embora,  não  podia  revelar- 
-Ihe  a  base  absurda. 

(')  Um  exemplo:  a  poesia  de  amor  de  Caeiro  convence-nos?  Se  bem 
repararmos,  apenas  nos  descreve,  ou  antes,  aponta  os  distúrbios  que 
o  amor  poderia  causar  nos  hábitos  mentais  atribuídos  ao  seu  autor. 


152 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

rius  quuís.  u  sua  maneira,  é  unia  moclaiidacle  apenas  de 
reac(,ão  teórica  a  uma  idêntica  apreensão  da  realidade: 
a  de  que  a  essência  da  vida  é  absurda.  Deste  modo.  o  que 
é  mais  Fundamental  numa  individualidade  —  a  sua  con- 
cepção geral  da  vida  —  é  partilhado  pelos  três.  Todos 
eles  são  concordes,  de  facto,  em  que  a  vida  é  um  beco  sem 
saída  (O  e  distingue-os  apenas  o  comportamento  que  incul- 
cam perante  essa  situação:  Caeiro,  entende  que  é  ocioso 
e  errado  discutir  se  o  beco  tem  ou  não  tem  saída  e  acha 
mesmo  que  a  designação  de  beco-sem-saída  é  um  falso  con- 
ceito genérico,  dado  o  homem  só  conhecer  acfuele  beco;  e, 
reportando-se  a  níveis  que  reputa  mais  adequados,  vai  to- 
mando em  cada  um  deles  a  mesma  atitude  —  o  que  revela  a 
voluntariedade  da  sua  posição,  resumida  pelo  «aceito  por 
personalidade». 

Campos,  não  se  conforma,  porém,  e  percorre  intèrminamente 
o  to  be  or  not  to  be  do  caso,  repassando-o  num  e  noutro 
sentido  (à  procura  duma  brecha?  não:  por  atitude  pura 
e  simples)  e  reton)ando  assim  a  posição  mítica  das  Danai- 
des  ou  de  Sísifo.  Quanto  a  Reis,  reconhece  que  uma  saída 
nunca  seria  a  saída,  pois  a  ideia  de  saída  extravasaria 
sempre  de  âmbito,  e  resolve  à  boa  paz  erigir  um  obelisco 
em  memória  do  caso,  com  este  dístico:  aqui  esteve  Fulano, 
dos  anos  tal  a  tal,  fazendo  os  possíveis  por  se  não  lembrar 
de  que  o  beco  não  pode  ter  saída. 


(')  V.  Apêndice,  nota  F. 

153 


MÁRIO       SACRAMENTO 

Assim.  al<^ni  de  perfeitamente  interpermutáveis  entre  os 
seus  agentes,  como  já  vimos,  estas  atitudes  poderiam  não 
ter  passado  de  três  lances  de  uma  vida  (não  confundir 
com  três  fases  duma  personalidade).  Quer  dizer:  com 
pequenas  alterações  do  mero  anedótico,  as  obras  de  Caeiro, 
de  Campos  e  de  Reis  poderiam  ter  sido  atribuídas  a  um 
mesmo  «quidam»  que  tivesse  atravessado,  por  exemplo, 
estes  três  períodos  de  vida:  Oriundo  duma  família  da  aris- 
tocracia rural,  veio.  por  morte  dos  pais.  e  após  uma  infân- 
cia livre  e  descuidadamente  vivida  no  campo,  a  ser  edu- 
cado em  regime  de  internato  num  famoso  colégio  do  tempo. 

Aí,  sob  a  influência  pessoal  dum  certo  professor,  vem  a 
ganhar  amor  pelos  estudos  clássicos.  E,  tendo-se  encon- 
trado certas  disposições  poéticas,  é  estimulado  pelo  dito 
professor  a  cultivar  os  moldes  da  poesia  de  Horácio,  conse- 
guindo instilar  nas  produções  que  daí  resultam  cer- 
tas características  originais  —  as  da  poesia  atribuída  a 
Reis.  Ao  fim  duma  longa  e  austera  adolescência,  é  final- 
mente entregue  a  si  próprio  e,  ao  contacto  do  grande 
mundo,  esquece  durante  uns  anos  o  que  antes  chegara  a 
supor  uma  vocação.  Certo  dia,  já  desiludido  do  que. 
jovem  rico  e  inútil,  se  procurara,  descobre  que  o  fogo  ainda 
arde  sob  as  cinzas  e,  influenciado  por  uma  tertúlia  lite- 
rária a  que  se  liga.  escreve  a  poesia  atribuída  a  Campos. 
Por  volta  dos  quarenta  anos,  cansado  de  viajar  a  fugir  de 
si  próprio,  regressa  ao  ambiente  da  sua  infância.  E  aí. 
em  conlaclo  com  um  rústico  camponês  que  fora  seu  com- 


154 


PBSSOA.     POETA    DA     HORA     ABSURDA 

panhciro  cIc  meninice,  revê  os  i)oemas  da  sua  segunda 
época  e  sente  necessidade  de  lhes  dar  réplica:  e  escreve 
em  algumas  semanas  os  poemas  atribuídos  a  Caeiro. 
Findo  esse  curto  episódio... 

Vemos  assim  uma  vez  mais  a  docilidade  com  que  a  poesia 
heteróninm  se  amolda  a  quantas  concepções  nos  apraza 
inventar  sobre  as  suas  origens.  Que  concluir?  —  Quanto 
a  nós.  a  noção  apenas  de  que  as  vozes  contidas  nela 
pressupõem  figuras  (e  não  pessoas  —  ou  personagens) 
naquele  sentido  em  que  designamos  como  tais  o  Velno-do- 
-Reslelo.  por  exemplo,  ou  o  Homem-do-Leme  da  poesia 
O  Mostrengo,  ou  os  diabos  e  anjos  dos  autos  de  Gil  Vi- 
cente, ou  as  veladoras  de  O  Marinheiro,  ou  os  porta-vozes 
dum  qualquer  diálogo  filosófico.  Com  efeito,  distinguimos 
a  «figura»  do  «personagem»  (no  sentido  dramático)  por  ser 
portadora  dum  conceito  de  abstracção  e  não  pressupor, 
como  este.  uma  vivência  no  concreto:  aquele  passo  do 
romance  O  Mandarim  que  opõe  a  Teodoro  o  Homem- 
-Vestido-de-Preto.  define  vis  a  vis  o  que  são  personagem 
e  figura.  Essa  a  razão  por  que  poderíamos  intitular  o  capí- 
tulo deste  ensaio  dedicado  aos  heterónimos  de  «Na  caverna 
de  Zaratustra»,  pois  entendemos  (independemente  da 
influência  que  tenha  sido  directamente  exercida  pelo 
Assim  falava  Zaratustra  na  própria  concepção  da  heteroni- 
mia  em  Pessoa)  que  a  poesia  de  Caeiro.  Campos  e  Reis  não 
faz  senão  transmitir-nos  três  modalidades  de  reacção  dum 
abstracto    «homem   superior»    do   século   (no   sentido   dado 


155 


MÁRIO        SACRAMENTO 

a  essa  designação  na  obra  de  Nietzsche)  perante  o  mesmo 
mal-de-viver.  As  figuras  que  perpassam  no  Assim  falava 
Z.nralustra  só  diferem  de  facto  de  Caeiro.  Campos  ou  Reis 
no  grau  de  abstracção  que  alcan(,am.  pois  tanto  umas  como 
outros  se  cingem  u  posição  de  porla-vozes  de  atitudes  men- 
tais abstractamente  concebidas. 

E,  contudo...  — há  pelo  menos  esta  diferença,  no  caso  de 
Caeiro,  Campos  e  Reis.-  as  suas  poesias  representam  ati- 
tudes exemplificadas,  digamos  assim.  Quer  dizer:  se  a  sua 
vivência  não  tem  sólidas  bases  no  concreto,  não  há  dú- 
vida que  aspira  pelo  menos  a  isso  mediante  o  truque  da 
exemplificação.  Que  são  de  facto  senão  exemplos  o  «amigo 
da  gente»  do  XXXII  poema  do  Guardador  de  Rebanhos, 
ou  o  «Esteves  sem  metafísica»  da  Tabacaria,  ou  os  «joga- 
dores de  xadrez»  de  iReis?  E  que  são  senão  pretextos  os 
montes  e  os  rios  de  Caeiro,  a  mala-de-viagem  e  as  engre- 
nagens de  Campos  e  as  Lídia  e  Neera  de  Reis? 

Foi  esse  o  árduo  problema  de  Pessoa:  incapaz  de  arti- 
cular atitudes  mentais  numa  obra  em  que  as  figuras  se 
movessem  no  plano  abstracto  da  dialéctica  ou.  encar- 
nando no  concreto,  deviessem  personagens  no  tablado  ou 
no  solo  da  ficção  verosímil,  foi  forçado  a  aceitar,  em  nome 
daquele  minimum  de  realidade  concreta  pressuposta  por 
aquele  tipo  de  poesia,  uma  posição  que  exigia  que  Caeiro. 
Campos  e  Reis  surdissem  formas  intermédias,  ou  híbridas, 
desses  dois  termos:  o  personagem  e  a  figura. 


1« 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

Por  outro  laiio.  Nietzscíie,  dando  às  suus  figuras  alegóricas 
nomes  como:  o  Mendigo- Voluntário,  o  Consciencioso,  a 
Sombra,  etc,  ngrupara-os  em  volta  duma  figura  central  — 
Zaraltistra  —  e  confrontava  os  problemas  que  em  cada 
um  deles  representavam  um  pequeno  âmbito  com  os  do 
âmvito  muito  mais  lato  da  sua  figura  central.  O  que 
assim  mesmo  ressuma  dessa  obra  como  ambição  frustrada, 
di-lo  a  própria  circunstância  de  ser  esse  o  seu  derradeiro 
e  procurado  sentido.  Como  poderia  então  Pessoa,  esse 
homem  que  não  sabia  ter  pessimismo,  resolvê-lo  a  seu 
modo  e  melhor?  Oe  resto,  que  fez  ele  senão  reconhecer 
aos  seus  heterónimos  essa  qualidade  inevitável  de  hibri- 
dez, agrupando-os.  por  um  lado.  em  torno  de  Caeiro,  o 
mestre  (^).  sob  a  designação  tão  conscientemente  absurda 
(\o  «drama  em  gente»  (pois  gente  subentende  pessoas  e  não 
personagens)  e.  por  outro,  intentando  estabelecer  entre  eles 
uma  polémica  de  natureza  estética  que  não  seria,  a  ter-se 
realizado,  senão  uma  forma  larvada  de  diálogo  «filosó- 
fico»? 

Conclui-se  assim  mais  uma  vez  que  este  problema,  como 
todos  os  de  Pessoa,  desemboca  deliberadamente  em 
absurdo:  Caeiro.  Campos  e  Reis  são  tão  absurdos  enca- 
rados    como     personagens     como      figuras  —  motivo      por 


(')  £  curioso  fazer  notar  que  enquanto  que  na  obrn  de  Nietzsche  o  eixo 
da  conjunção  é  a  profecia  do  super-humano  (Zaratustre),  na  de  Pessoa 
é  a  nostalgia  do  Infra-humano  (Caeiro). 


157 


Aí    AR/O        SACRAMENTO 

que  aquela  desi<?na(,ão  de  drama-em-gente  (tal  como  a  já 
citada  de  clrama-eslálico)  foi  necessária  —  e  é  suficiente  — 
para  os  definir. 

Só,  portanto,  à  base  do  absurdo,  e  dentro  daquilo  a  que 
cnamaríamos  a  sua  «coerência»  sui  generis,  todos  os  as- 
pectos, dos  mais  ínfimos  aos  mais  grados,  da  qbra  de 
Pessoa,  podem   ser  «articulados» — e  compreendidos. 

Mas  nós,  seus  leitores  de  Hoje,  não  podemos  (não  quere- 
mos) viver  dentro  de  tais  «quadros».  E  como,  por  uma 
parte,  não  queremos  (não  podemos)  expulsá-lo  do  lugar 
que  lhe  cabe  entre  as  figuras  mais  representativas  de  uma 
literatura;  e.  por  outra  parte,  não  é  fácil  divulgar  a  com- 
preensão do  seu  caso  ao  ponto  da  singularidade  que  é 
ser  claramente  reconhecida  como  tal.  urge  encontrar  um 
«modus  vivendi».  E  por  nossa  parte  só  vemos  um:  esclare- 
cido o  significado  que  a  heteronímia  teve  na  sua  obra. 
esqueçamo-la;  passemos  a  considerar  e  a  usar  os  nomes  de 
Alberto  Caeiro,  Álvaro  de  Can^pos  e  Ricardo  Reis  como 
meros  títulos  de  obra  —  no  género,  por  e.xemplo.  do  que  deu 
o  nome  à  Lírica  de  João  Mínimo  de  Garrett.  Quer  dizer: 
passemos  a  exprimir-nos  deste  modo:  como  Pessoa  escreveu 
na  colectânea  Alberto  Caeiro...  Sublinhemos  esses  nomes, 
esqueçamos  de  uma  vez  para  sempre  todo  o  jargão  de 
ortónimo,  hetcrónimos.  drama-em-gente.  etc.  Se  tudo  isso 
foi  necessário  (e  foi)  para  que  a  sua  obra  hoje  exista  tal 
qual   é.   vai   sendo   tempo  de   lhe   tirarmos   esses   andaimes. 


138 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

reconnecencío  que  a  casa  não  ficou  afinal  «por  fabricar» 
—  e  que,  portanto,  podemos  passar  a  nabitá-Ia,  não  como 
gente-em-drama,  mas  como  gente-em-vida  —  como  gente 
que  só  aprecia  um  logro  quando  sabe  sem  equívoco  que  o  é. 
Quanto  aos  andaimes.  recolbamo-Ios  a  um  museu  da  litera- 
tura e.  quando  disse  se  trate,  falemos  criticamente  deles  com 
a  sinceridade  com  que  aqui  o  tentámos. 

Permita-se-nos  por  último  concluir  as  considerações  que 
temos  vindo  fazendo  em  volta  da  <íe.\pIicação  central»  por 
nós  proposta  à  obra  do  poeta,  procurando  desfazer  este  pos- 
sível desentendimento:  negámos,  por  um  lado.  que  haja  uni- 
dade da  personalidade  e  da  obra  de  Pessoa  e.  por  outro, 
admitimos  que  haja  um  <<significado»  e  uma  «articulação* 
em  ambas.  Não  é  isto  contraditório?  —  Tudo  quanto  dis- 
semos não  fez.  com  efeito,  senão  confirmar  aparentemente 
que  Pessoa  tinha  razão  quando  falava  em  forma  «inversa 
de  ser  lógico».  A  razão  de  ser  disso  está  nestas  palavras  de 
Pessoa:  «...são.  por  uma  razão  lógica,  inteiramente  irra- 
cionais como  a  vida»  (^).  Com  efeito,  ser  inteiramente  irra- 
cional por  força  de  lógica,  é  um  absurdo  que  envolve  uma 
atitude  sistemática.  E  foi  esse  sistema  que  procurámos  tra- 
zer à  luz.  Aceitámos,  portanto,  que  a  atitude  de  Pessoa 
fosse  uma  réplica  à  «vida  como  os  homens  a  vivem»  em 
nome  da  vida  como  ele  a  entendeu,  —  réplica,  porém,  ponto 
por  ponto   apoiada  sobre   a  repulsa  de  tal   «vida  como   os 


V)  Pág   Doutr    Eat..  p.  143.  Sublinhado  nosso. 

15Q 


MÁRIO        SACRAMENTO 

homens  a  vivem»:  e  daí  que  a  «outra»  vida  se  nos  apre- 
sente como  um  negativo  daquela  —  negativo  apreendido 
pela  retina  de  Pessoa  e  por  ele  assim  conservado.  Réplica 
absurda,  portanto,  mas  —  sistematicamente  absurda. 

Para  usarmos  um  símile  (que  tem.  aliás,  uma  significação 
que  transcende  de  muito  o  comentário  a  que  agora  é  cha- 
mado), a  problemática  de  Pessoa  faz-nos  lembrar  a  da- 
quele cidadão  americano,  de  quem  há  tempo  falavam  as 
revistas,  que  tem  passado  as  suas  horas  de  ócio  a  engenhar 
e  construir  maquinetas  providas  desta  virtude  suprema: 
não  servirem  absolutamente  para  nada  —  nem  sequer  para 
fazer  barulho! 

Com  efeito,  só  se  rebate  —  uma  afirmação;  só  se  desarticula 
—  uma  engrenagem.  E  a  mecânica  -«abstracta»  do  ameri- 
cano só  pôde  nascer  numa  base  de  réplica  à  máquina-fer- 
ramenta  que  ela  desarticula  dos  motivos  por  que  surgiu. 
O  «ócio  com  sem-ncxo»  de  Pessoa  é  da  mesma  forma  a 
contradita  duma  fase  da  história  humana  em  que  o  ócio 
passou  a  ter  um  fim  específico  para  o  homem  —  e  um  fim 
tal  que  o  leva  a  bater-se.  Apropriação  contra-natura  duma 
classe  que  o  olha  como  um  privilegio,  o  próprio  de  quem. 
como  o  «inventor»  americano  ou  o  poeta  português,  não 
pode  consentir  em  ver  nele  senão  o  vulgaríssimo  não-ter- 
-que-fazer  de  que  disfrutam  —  tão  vulgar,  de  factc.  que  e.xis- 
tem  há  séculos  palavras  para  o  designar!  — ,  é  negar-Ihe  a 


160 


PESSOA.     POFTA     DA    HORA     ABSURDA 

qualidade  de  se  poder  tornar  um  motivo  de  luta.  E  isso 
ronsegue-se  recusando-Ine  um  nexo  —  negando-Ine  um  in- 
teresse—  e  abstraindo  em  seguida  dos  motivos  concretos 
dessa  luta.  Quer  dizer:  por  um  lado,  evita-se  reconhecer 
que  tais  motivos  são  uma  espécie  de  conteúdo  negativo  do 
ócio  e.  por  outro,  mostra-se  o  que  resulta  dele  para  os  que 
o  alcançam. 

É  dessa  desumanização  do  ócio  que  Pessoa  retira  a  noção 
de  que  «elevar  é  desumanizar». 

Ora,  é  porque  a  vida  é  uma  ordem  que  a  destruição  se  or- 
ganiza. 

Do  mesmo  modo,  é  porque  a  razão  é  lógica  que  o  absurdo 
se  aceita  como  uma  lógica  «inversa»  ou  contra-Iógica  sis- 
temática. 

A  maior  ambição  do  absurdo  seria  pois  essa:  que  chamás- 
semos unidade  à  «contra-unidade»  a  que  a  corrosão  dum 
mundo  estructurado  o  obriga.  Logo,  retomar  deste  ponto 
de  chegada  o  problema  da  «unidade»  de  Pessoa  seria 
transferirmo-nos  deste  nosso  mundo  da  «vida  como  os 
homens  a  vivem»  para  o  seu  mundo  de  negativa  sistemática, 
e  fazermos  tábua-rasa,  em  nome  do  absurdo,  do  «sim»  e 
do  «não^> — retirando  o  apoio  às  próprias  palavras  com  que 

161 
11 


M    A    R    1    o        SACRA    MEISTO 

Pessoa  trabalhou  para  o  seu  fim,  as  quais  sem  ele  não  só 
não  nos  teriam  permitido  descobrir-IKo,  como  não  lhe  teriam 
permitido  a  ele  procurá-lo. 


Assim,  entre  o  conceito  de  unidade  e  a  obra  de  Pessoa  só 
há  um  nexo:  o  do  que  o  levou  a  opor-se-lhe.  Foi  esse  nexo 
que  serviu  o  sistema  circular  (^)  em  que  o  comboio  de 
corda  da  Autopsicografia  pôde  girar  com  a  aparente  gra- 
tuitidade das  máquinas  do  americano.  O  «não  sei  ter  pes- 
simismo» refugia  os  «meus  ócios  com  sem-nexo»  na  imagem 
deformada  dum  lúdico  faz-de-conta  infantil.  A  medida  do 
homem  é  de  facto  incompatível  com  um  não-sei-ter  de 
qualquer  tipo,  já  que  é  impossível  amputar  na  contigên- 
cia  (sol  da  vida  e  da  grande  arte)  tanto  a  alegria  como  a 
dor.  Foi  esse  o  insolúvel  problema  de  Pessoa: 


Há  sem  dúvida  quem  ame  o  infinito, 
Há  sem  dúvida  quem^  deseje  o  impossível, 
Três  tipos  de  idealistas,  e  eu  nenhum  deles: 
Há  sem  dúvida  quem  não  queira  nada  — 


(')  V.  Apêndice,  nota  E. 
162 


PESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 

Porque  eu  amo  infinitamente  o  infinito. 

Porque  eu  desejo  impossivelmente  o  impossível, 

í^orque  eu  í/ucro   tudo,   ou   um  pouco  mais,   se  puder  ser. 

Ou  até  se  não  puder  ser... 


E  o  resultado? 

Para  eles  a  vida  vivida  ou  sonhada^ 

Para  eles  o  sonho  sonhado  ou  vivido, 

Para  eles  a  média  entre  tudo  e  nada,  isto  é,  iato... 

Para  mim  só  um  grande,  um  profundo, 

E,  ah  com  que  felicidade  infecundo  cansaço  {^). 


CAXIAS,   JULHO  DE  1953. 


(')  Campoa,  p.  64. 

163 


APÊNDICE 


NOTA  A  (à   pág.  16) 

Confronte-se  o  problema  da  heteronlmla  de  Pessoa  com  o  que  de 
Idêntico  pode  apcrcebcr-se  de  latente  na  problemática  de  Antero  (e 
sua  geração),  rccondando,  para  o  efeito,  a  célebre  mistificação  dos 
Satânicos  do  Norte  que  o  poeta  imaginário  Fradique  Mendes  pola- 
rizou em  1869,  e  sobre  a  qual  Bataliia  Reis  escreveu :  «As  poesiaa 
publicadas  sob  o  nome  de  Carlos  Fradique  Mendes  não  dâo.  porém, 
ideia  do  que  nos  propúnhamos  fazer.  As  obras  mais  características 
ficaram  Inéditas.  Algumas  conservo  eu  ainda  nos  autógrafos  originais 
de  Antero  de  Quental  e  do  Eca  de  Queirós.  Essas  poesias  eram  su- 
postas artificialmente  escritas,  como  eu  já  disse,  colocando-se  os  ver- 
dadeiros autores,  de  propósito,  num  ponto  de  vista  estranho.  Não 
estou,  porém,  certo  que  o  Antero  de  Quental  —  porque  é  dele  apenas 
que  me  ocupo  agora  —  não  pusesse  às  vezes  com  sinceridade,  senti- 
mentos próprios  no  que  Carlos  Fradique  Mendes  escrevia.  Esta  brin- 
cadeira —  porque  não  passou  de  uma  brincadeira  —  revela,  porém, 
um  dos  estados  por  que  amiúde  passava  o  espírito  de  Antero  de 
Quental:   o  do  mais  profundo   e  desanimado  cepticismo. 

—  Todos  os  sistemas  são  equivalentes  —  dizia  ele  —  todos  os  siste- 
mas são  bons,  porque  todos  os  sistemas  são  maus».  (Antero  de  Quen- 
tal, In  Memoriam,  p.  462). 

Referindo-se  a  Antero,  Oliveira  Martins  apontou  também  <a  multi- 
plicidade, o  desdobramento  de  individualidades  mentais  frequente- 
mente contraditórias»  que  o  caracterizava;  e  generalizou,  a  propósito: 
«Desde  que  se  provou  o  travo  do  pomo  da  sabedoria  e  que  dentro 
em  nós  há  permanentemente  um  quid  a  raciocinar  os  nossos  próprios 
pensamentos,  os  nossos  próprios  actos,  desdobrando  a  nossa  indivi- 
dualidade em  tantos  seres  quantos  são  os  aspectos  sob  que  as  coisas 
nos  podem  aparecer  e  figurar-se:  desde  esse  momento,  quebrado  o 
principio  da  unidade  inconsciente  do  carácter  ,a  vontade  obedece 
com  docilidade,  o  homem  veste  ocasionalmente  o  trajo  mais  adequado 
às  circunstâncias,   e  nós  próprios  nos  tornamos  o  produto  como  que 


167 


MÁRIO        SACRAMENTO 

estético  do  nosso  pensamento>.  (clt.  por  José  Bruno  Carreiro.  Antero 
de  Quental,  vol.  I.  p.  263). 

Ainda  sobre  as  afinidades  latentes  do  autor  das  luscriptions  com  o 
dos  Sonetos,  recorde-se  que  este.  enviando  a  Lobo  de  Moura  os  so- 
netos mais  tarde  publicados  com  os  títulos  A  Virgem  Santíssima  e 
Elogio  da  Morte,  escreveu  sobre  o  primeiro:  «Foi  composto  por  um 
monge  da  Idade-Média  (ai  pelo  século  13)  na  solidão  soaTa-anstera 
do  Monte  Cassino,  um  contemporâneo  talvez  do  autor  misterioso  da 
Imitação  de  Cristo>;  e  sobre  o  segundo:  «Podia  simplesmente  ter  por 
autor  algum  solitário,  discípulo  de  Buda,  que  há  2500  anos  se  assentasse 
à  sombra  do  Baobab  e,  imobilizando  o  espírito  num  ponto  único 
(segundo  o  preceito  do  mestre)  tivesse  procurado  fugir  ao  tormento 
supremo  da  consideração  da  contingência  e  fragilidade  das  coisas». 
Em  carta  a  T.  Cannizzaro,  Antero  escreveu  também:  «O  personagem 
que  fala  no  meu  soneto  Palavras  de  um  certo  morto  é,  como  por 
certo  compreendeu,  o  Cristo:  o  Cristo  símbolo,  ideia  e  princípio  da 
vida  espiritual,  personificado  e  idolatrado  pela  ignorância  dos  ho- 
mens, que  fizeram  uma  pessoa  (alguém)  de  um  princípio  impessoal 
e  por  isso  o  desvirtuaram  criando  simplesmente  uma  nova  idolatria». 
Em  contrapartida  disto,  realce-se  o  facto  de  Oliveira  Martins,  no 
escrito  citado,  ter  sentido  a  necessidade  de  opor  às  suas  próprias 
considerações  uma  alusão  frizante  à  «sinceridade,  à  rectidão  absoluta 
das  intenções»  de  Antero,  acentuando  o  facto  de  sempre  o  ter  mo- 
vido luna  «convicção  mais  ou  menos  duradoura,  porém  sempre  actual- 
mente profunda».  Também  com  esse  fim  tem  interesse  citar  a  nota 
com  que  Antero  fez  acompanhar  a  publicação  do  soneto  O  Convertido 
na  revista  O  Cenáculo:  «O  autor  propôs-se  nestes  versos  descrever 
lun  estado  singular  de  espírito,  muito  característico  do  nosso  tempo, 
e  não  inculcar  uma  doutrina  desoladora.  Ninguém  o  pode  tornar  res- 
ponsável por  sentimentos  que  não  são  os  seus,  embora  sejam  muito 
reais,  e  com  os  quais  é  tão  pouco  solidário  como  o  patologista  com 
o  estado  mórbido  que  estuda  e  descreve». 


168 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 


NOTA  B  (à  pág.  45) 

O  enlevo  estético  de  Nobre,  confundindo  numa  36  mancha-de-cor  o 
pitoresco  e  o  macabro,  o  sensual  e  o  sórdido,  e  Interrogando:  «qu"é 
dos  Pintores  do  meu  pais  estranho,  /  Onde  estào  eles  que  não  vêm 
pintar?»,  nâo  encontrava  (estrictamenle  sensorial  que  era)  dificuldade 
alguma  em  conviver  com  o  pletlsmo  cristão  explicitado  por  expres- 
sões como:  «mas  fede  tanto,  coitadinho».  Com  efeito,  se  bem  que  No- 
bre possa  já  escrever:  «Jesus!  Jesus  1  quantos  doentinhos  sem  botica! 
/  Quantos  lares  sem  lume  e  quanta  gente  rica»,  tudo  se  resume  para 
ele  ainda  num  «vão  pela  estrada  aleijadinhos  de  muletas.  /  Atiro-lhes 
vinténs:  vêm  pegar-lhes  as  netas». 

Não  pode  deixar,  contudo,  de  relevar-se  o  tom  quase  de  descoberta 
com  que  esta  poesia  parece  apllcar-se  a  mostrar-nos  que  também  tem 
olhos  e  pituilária  para  coisas  daquelas.  E  não  pode  deixar  de  reflec- 
tir-se,  em  conformidade,  sobre  o  facto  de  duas  poesias  de  Nobre  sen- 
sivelmente da  mesma  época  —  a  já  mencionada  «Lusitãnea  no  Bairro 
Latino»  (Paris,  1891-2)  e  «A  vida»  (id.,  1891)  estabeleceram  posições  de 
tese  e  antítese  sobre  o  assunto:  a  primeira,  estranhando,  como  vimos, 
que  os  pintores  não  tenham  olhos  para  um  colorido  em  que  se  abrange 
o  mórbido  social;  e  a  segunda,  invocando  as  «Londres  de  miséria» 
(«nossos  irmãos  que  vão  para  o  Brasil»,  a  mulher  que  «não  sai  por 
ter  usada  a  saia»  —  e  até,  inconfundível  marca  do  tempo,  «os  que  têni 
amanhã  uma  letra  a  vencer»  e  os  que  têm  talento  «mas  não  sabe(m) 
escrever)  para  as  vincular,  é  certo,  (simetricamente  à  cor  de  há  pouco) 
no  mesmo  feixe  do  fatum  do  «rapaz  que  ama  sem  ser  amado»  —  mas 
concluindo:  «Jesus!  Jesus!  o  qu'i  vai  de  aflição!  /  ó  meu  Amor!  é 
para  ver  tantos  abrolhos,  /  ó  flor  sem  eles!  que  tu  tens  tão  lindos 
olhos  I  ...  I  ò  meu  Amor!  antes  fosses  cegulnha...». 

Em  verdade,  se  bem  que  nos  diga:  «vendi  meus  livros,  meu  Filósofo 
queimei-o»  (') ;  e  nos  declare:  «agora,  trago  uma  medalha  sobre  o  seio 
/  Com  a  qual  falo,  às  noites,  ao  deitar»,  pois  «não  me  tortura  mais  a 
Dor.  Sou  feliz.  Creio  /  Em  Deus,  numa  Outra-vida,  além  do  Ar»  («Ao 
lume».  Paris  1890-1),  Nobre  não  deixa,  não  obstante,  de  desejar  «ir  à 
Ilha»,  debrucar-se  sobre  a  campa  de  Antero»  —  embora  para  «orar» 
(ibidem). 


(')  O  das  «Filosofias  vãs!  Perda  das  minhíts  crenças!»  a  que  se  refere 
uma  outra  poesia —    «Males  de  Anto»  (Paris,  1891). 


16Q 


MÁRIO        SACRAMENTO 

E  di-lo-no  no  próprio  Instante  em  que  acaba  de  reconhecer,  antecl- 
pando-SG  a  Campos:  «Que  ilusão  viajar!  Todo  o  Planeta  é  zero.  /  Por 
toda  a  parte  ê  mau  o  Homem... >  —  mas  para  concluir  €...e  bom  o  Céu». 

Vè-se  assim,  através  de  três  poesias  sensivelmente  da  mesma  Idade, 
como  o  poeta,  fazendo  embora  desbordar  as  sanguíneas  do  quadro  que 
herdara,  simbolizava  no  *ó  flor  sem  eles!*  da  visão  inspiradora  dos 
«tào  lindos  olhos»  a  libertação  facultada  por  um  lirismo  que  a  si  pró- 
prio se  assegurava  uma  base  —  a  da  fé  —  aturdindo  cm  cor  (e  inte- 
riorisando  em  piedade)  os  olhos  do  criticismo  (')  —  e  respondendo  ao 
racionalismo  anteriano  do  «lá?...  mas  onde  é  lá?»  com  o  sensorlalismo 
dum  «Zá  é  asul>  (Adeus,  Paris,  1893).  É  desse  mesmo  ano  de  1891 
(o  ano  áureo  do  poeta)  o  soneto  em  que  figura  as  aves  cantando  sobre 
09  fios  do  mensageiro  da  desgraça  —  o  telégrafo  —  para  concluir, 
resumindo:  «E  as  boas  aves.  bem  se  importam  elasl  /  Continuam  can- 
tando, tagarelas:  /  Assim.  António!  deves  ser  também». 

A  fase  poética  seguinte  (representada  por  Pessoa)  não  pôde  manter 
uma  emotividade  cuja  base  sensorial  («Mais  vejo...  Mais  vejo...». 
«Olha...  Olha...»,  «Lá  vão...  Lá  vem...».  «Ah,  quando  vejo...»  —  estas 
e  idênticas  expressões  são  o  leit-motiv  da  poesia  de  Nobre  face  ao 
«mundo  jovial  de  guarda-sol  aberto!»)  cuja  base  sensorial,  dizíamos, 
tivera  a  exalcá-la  sobre  a  herança  já  fanada  do  realismo  a  agudização 
dos  sentidos  pela  doença  e  a  premência  funesta  dum  desenlace  emi- 
nente: «à  vida  sinto-me  preso,  (Morrer  não  custa)  pelas  paixões». 
E  vê-se  assim  obrigada  a  recorrer  ao  fio  que  restava  —  o  duma  «sim- 
plicidade» que  para  o  próprio  Nobre  fora  já  apenas  o  desfazer  dum 
equívoco:  «fui  vendo  que  as  almas  não  eram  no  Mundo  /  Singelas  e 
francas:  /  A  minha,  que  o  era,  ficou  num  segundo  /  Cheinha  de  bran- 
cas!». Subvertidas  em  definitivo  as  fronteiras  que  o  amor  estuante 
da  Natureza  havia  podido  manter  em  Nobre,  o  sentido  estético  é  levado 
assim  a  incidir  no  próprio  seio  do  ético-soclal.  A  nitidez  com  que 
Nobre  opusera  já,  como  que  sem  querer,  os  «quantos  lares  sem  lume» 
à  «quanta  gente  rica»,  indicava  que  doravante  seria  impossível  esca- 
motear um  problema  que  se  tornava  central:  e  obrigava  a  tomar 
partido  perante  ele.  Para  quem  estivesse  decidido  a  fazê-lo  negando-o, 
Impunha-se  portanto  opor  a  essa  sinceridade  (no  sentido  de  reconhe- 


(')  Não  é  por  acaso  que,  na  poesia  que  alude  a  Antero  c  ao  descanso 
na  fé,  impreca  as  cervejarias  do  Bairro  Latino:  «Calai  essas  can- 
ções imundas  (...)  Rezai,  rezai!»  para  vir  a  introduzir  o  problema 
religioso   mediante  esta   invocação:    tPaisagem,   onde  estásf». 

170 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 


cimento  dum  facto)  uma  outra  que  a  Huperaase.  e  a  essa  simplicidade 
(no  sentido  de  clareza)  uma  outra  que  a  reduzisse.  Foi  esse  escopo, 
necesaàr lamente  absurdo,   que  Caeiro  se  propôs. 


NOTA  C  (à  págr.  93) 
UM    PROTESTANTE    DA    RAZÃO:    PASCOAES 

Para  compreender  Pascoaes  ou  Pessoa  —  os  nossos  dois  poetas  mais 
representativos  do  primeiro  quartel  deste  século  —  nào  conhecemos 
melhor  método  do  que  pô-los  em  presença,  definindo  pelo  que  lhes  é 
afim  o  substracto  comum  em  que  se  moveram  e  referenciando-lhe  aa 
coordenadas  do  que  os  opôs  ou  distinguiu.  Não  é  isso  possível  dentro 
dos  limites  dum  escrito  destes,  mas  sempre  sugerimos,  de  passagem, 
os  traços  mais  relevantes  desse  confronto  nas  considerações,  aliás 
8umária.s,  que  em  seguida  faremos  sobre  o  primeiro. 

Dizer  o  que  fica  é  o  mesmo  que  afirmar,  está  claro,  que  uma  obra 
poética  contém  sempre  um  pensamento;  nào  um  «pensamento»  só 
passível  de  «definição  poética»  como  o  próprio  Pascoaes  pretendeu, 
mas  um  pensamento  tout-court  que,  mesmo  quando  anti-intelectua- 
lista,  só  o  é  porque  o  pensa. 

E  o  que  é  curioso  neste  sentido  em  Pascoaes  é  que  ele  próprio  se 
tenha  sentido  obrigado  a  vir  ao  encontro  dos  que  se  consideravam 
incapazes  de  atingir  o  fundo  da  sua  mensagem,  escrevendo  um  «vo- 
lume com  o  intuito  de  elucidar  o  leitor  amigo  acerca  do  pensamento 
da  minha  obra»  —  como  se  lê,  com  sublinhado,  do  próprio,  no  livro 
em  que  intentou  realizar  esse  escopo  e  que  intitulou  O  Hcymem  Uni- 
versal. A  ronda  incerta  que  esse  escorço  em  prosa  revela  e  o  recuo 
gradativo,  de  página  a  página,  que  nele  se  dá  desde  o  propósito 
Inicial  de  «elucidar»  à  «identificação  com  o  objecto  definido»  a  que 
por  fim  se  atém,  estão  de  acordo  não  só  com  as  inibições  próprias 
do  poeta,  mas  ainda  (e  sobretudo)  com  as  de  «escritor  herético  em 
todos  os  sentidos»  que  ele  mesmo  se  disse  —  e  que  mais  o  foi  em 
matéria  de  Razão  do  que  de  Fé. 

É,  com  efeito,  fortemente  imbuído  da  primeira  (como  é  próprio, 
aliás,  de  qualquer  herético)  que  Pascoaes,  rebelando-se  contra  o  seu 
contexto,  se  entrega  à  segunda.  E  a  atitude  que  a  partir  desse  mo- 
mento assume  faz  lembrar  o  uso  que  as  crianças  dão  aos  seus  cubos 


171 


M    A    R    l    o        SACRAMENTO 


de  formar  gravuras  quando  erguem  com  eles  as  construções  blzarraa 
que  a  Imaginac&o  lhes  inspira.  Dizè-lo,  é  encamínhar-mo-nos,  pela 
compreensão,  ao  respeito  devido  às  leis  que  a  imaginação  poética 
faz  Impender  sobre  os  que  a  possuem.  Mas  é  também  procurar-lhes 
o  nexo  das  relações  que,  nào  obstante,  mantém  com  o  complexo  so- 
cial em  que  vive. 

E,  assim,  quanto  lemos  em  Pascoaes  que  «a  ciência  odeia  a  Bíblia,  e 
compreende-se.  perante  Giordano  Bruno  transformado  em  carvão! 
Anulou  a  concepção  bíblica  do  mundo,  mas  não  uma  concepção  su- 
per-mecânlca,  espiritualista  e,  portanto,  religiosa»,  o  que  nos  colhe 
é  a  sua  ideia  duma  ciência  que,  parece,  não  teria  mais  que  fazer  do 
que  devorar,  insaciável,  os  alicerces  da  fé.  Ora  esse  excesso  é  tão 
suspeito,  que  temos  de  contrapor-lhe,  invertendo-o,  a  fantasmagoria 
do  poeta  que,  fiel  à  voz  ancestral  duma  fé  posta  em  causa  pelo  evoluir 
«natural»  dum  criticismo  que  para  sê-lo  livera  de  ser  sistemático,  vi- 
sionava (como  por  diversas  vezes  o  mostrou)  o  espectáculo  da  Ciência 
devorando,  como  Saturno,  os  próprios  filhos  —  condição,  aliás,  in- 
dispensável de  Regresso  ao  Paraíso.  Em  verdade,  a  glosa  heterodoxa 
do  fundo  bíblico  que  a  obra  de  Pascoaes  constitui,  teve  a  particula- 
ridade de  encontrar  audiência  em  países  de  religião  protestante,  nào 
porque  a  servisse  particularmente  a  ela,  mas  porque,  para  lá  da  afoi- 
teza anti-dogmática,  correspondia  sobretudo  à  inquietação  irraciona- 
llsta  então  vivida,  é  certo,  tanto  por  protestantes  como  por  católicos, 
mas  que  entre  os  primeiros  era  muito  mais  viva,  por  mais  Inerme 
e  por  mais  atenta  aos  processos  duma  corrosão  para  a  qual  eles 
mesmos  haviam  contribuído  —  e  que  só  então  começavam  a  sofrer. 
Deste  modo,  poderíamos  dizer  que  o  encanto  inspirado  por  Pascoaes 
nesses  sectores  teria  resultado  do  facto  de  verem  nele  um  protes- 
tante, sim  —  mas  da  Razão:  e  isso,  não  no  sentido  de  atitude  protes- 
tativa  (que  seria  inoperante),  que  sim  no  de  um  intervencionismo 
depurador,  mediante  o  qual  a  «igreja»  de  Renan  propenderia  à  re- 
visão dos  «cânones»,  à  alteração  dos  «ritos»,  e  aceitaria,  enfim, 
atavés  de  uma  espécie  de  exégese-ao-invés,  a  libertação  «litúrgica»  do 
científico  e  a  ascese  mística  do  racional.  Foi  este,  quanto  a  nós,  o 
significado  mais  profundo  do  saudosismo  de  Pascoaes:  a  frase  que 
resa  «a  saudade  é  a  esperança  do  passado»  sigTiifica  também  «o  irra- 
cional é  o  assomo  da  fé».  —  Mas  importa  dizer,  em  vista  disso,  que 
o  soit  disant  Irracionalismo  de  Pascoaes,  espécie  de  protestantismo 
racionalista  que  foi,  constituiu  em  verdade  um  dis-raclonalismo  —  de 
a  expressão  nos  é  permitida. 


172 


PESSOA.     POETA    DA    HORA     ABSURDA 


o  poeta  surgira  de  facto  numa  época  em  que  o  racionalismo  em 
geral  e  a  clôncla  e  a  técnica  em  particular  atravessavam  um  período 
critico  —  que  ainda  hoje  náo  cessou.  Por  Isso  a  imagem  há  pouco 
ap(jntada  dum  Saturno  devorando  os  próprios  filhos  náo  teve  nada  de 
gratuito:  a  destruição  metódica  de  maquinaria,  a  Inutilização  siste- 
mática de  patentes,  a  supressão  ao  consumo  de  produtos  vários  (man- 
dados queimar  ou  lançar  ao  mar),  a  perseguição  de  pensadores  e 
cientistas  em  nome  de  Ideologias  contrárias  à  coerência,  digamos, 
profissional  a  que  estavam  ligados,  são  factos  bem  conhecidos  e  que 
bastam,  de  momento,  como  exemplos.  Se  alguns,  mais  notórios,  foram 
posteriores  à  publicação  das  obras  mais  representativas  de  Pascoaea, 
nfio  o  foram  as  suas  causas  e,  com  elas.  os  seus  sintomas  ideológicos. 
E  um  deles  foi  precisamente  a  revivescência  das  tendências  místlco- 
-ocultistas,  que  em  literatura  assumiram  um  teor   intuitivo-esotérlco. 

Se  pudéssemos  estabelecer  o  paralelo  entre  Pascoaes  e  Pessoa  a  que 
aludimos  de  Início,  chamaríamos  a  atencào  para  a  concordância  de 
ambos  em  assuntos  como  os  expressos  pelas  frases  que  seguem, 
recolhidas,  Um  pouco  ao  acaso,  de  O  Homem  Universal:  «o  mundo 
lembra  um  paradoxo  natural,  um  absurdo  lógico  —  um  impossível 
realizado»;  «atingimos  o  absurdo  natural,  o  lógico  paradoxo,  em  que 
a  Existência  a  si  mesma  se  desvenda  por  Intermédio  da  nossa 
alma»;  «a  negação  dilue-se  em  afirmação  e  vlce-versa  e,  por  Isso, 
uma  à  outra  se  ilimitam»;  «a  inexistência  existente  que  caracteriza 
a  realidade...»;  «temos  de  admitir  o  nada  cheio  de  tudo»;  «se  Deus 
existisse  seria  o  mármore  da  sua  estátua  e  se  vivesse,  a  carne  das 
suas  vitimas.  Mas  não  existe  e,  por  Isso,  eu  creio  nele»;  etc.  Não 
o  fazendo  embora,  digamos,  não  obstante,  que  o  que  separou  Pascoaes 
de  Pessoa  foi  sobretudo  a  circunstância  deste  pender  a  abrir  a  bo- 
ceta essencial  do  mundo  com  a  chave  pseudo-dialéctica  do  absurdo, 
assumindo  desse  modo  uma  atitude  básica  de  inquirição  metafísica; 
e  de  Pascoaes  ter  retirado  da  matriz  comum  do  «absurdo  lógico»  a 
noção  de  milagre  e,  com  ela,  a  de  identificação  mística.  (Foi  esta 
diferença,  aliás,  que  levou,  pensamentos  nós,  Pascoaes  a  negar  a 
Pessoa  a  qualidade  de  poeta  —  de  «vate»,  tm  sentido  etimológico). 

«Milagre  permanente  e,  portanto,  sem  prestigio  perante  o  vulgo...» 
—  diz  ele.  E  ainda:  «Se  Deus  não  fosse  um  absurdo,  quem  lhe  ligaria 
Importância  ou  acreditaria  nele?  Quem  se  atreveria  a  adorá-lo  ou  a 
negá-lo?  Só  amamos  o  absurdo  e  o  impossível».  Daí  a  conclusão-chave: 
«Se  Deus  é  um  absurdo,  o  nosso  maior  desejo  é  humanizá-lo». 


173 


MÁRIO        SACRAMENTO 


Vemos  assim  que  o  fldelsmo  de  Pascoaes  está  afinal  na  Unha  irra- 
dicional  do  «credo  quia  absurdum>.  A  sua  particularidade  assenta, 
porém,  em  que,  não  podendo  visar  já  a«ideia>  dum  Deus  pessoal, 
aceita  a  missiio  profética  em  nome  dum  quid  que  ele  mesmo  reconhece 
(e  s6  por  isso  aceita!)  contraditório  —  por  simultaneamente  presente 
e  ausente  cm  tudo  o  que  existe:  é  a  sua  forma  absurda  da  anima 
abstracta.  Por  outro  lado,  partindo  do  principio  de  que  a  «razão  é  o 
maior  dos  absurdos»  (pois  «é  Inacional»,  Pascoaes  viu  no  eu  «um 
Irracional  a  desfolhar-se  em  raciocínios»;  e,  assim,  elegendo  o  racio- 
nal como  centro  de  «ascese»,  foi  coerente  (a  seu  modo)  com  o  seu 
duplo  fim:  desacreditar  o  racional  pelas  suaa  contradições  e  veicular 
nelas  a  fé.  Que  a  situação,  não  obstante,  era  embaraçosa,  ele  pró- 
prio o  reconheceu:  «serei  um  crente  descontente,  ou  um  descrente 
doloroso?». 

Em  qualquer  caso,  aceite  que  «o  Dogrma  é  também  um  poema», 
ei-lo  preparado  para  realizar  o  que  a  sua  obra  em  resumo  foi:  uma 
série  ininterrupta  de  identificações  em  vista  à  universalidade  duma 
metáfora-permanente.  E  bem  pode  dizer-se  assim,  carregando  o  traço, 
que  Pascoaes  pôs  em  causa  o  racionalismo  baralhando-lhe  o  voca- 
bulário e  obrigando-o  a  anuir  no  seu  típico  «jogo  de  frases  que  se 
burlam»:  foi  nesse  sentido  que  sugerimos,  para  o  caso,  a  expresáíio 
de  dis-racionallsmo. 

tíería,  com  efeito,  possível  reinventar  o  dicionário  (em  vista,  por 
exemplo,  a  um  dos  mundos  de  Wells)  com  a  neo-sinonímia  que  esta- 
beleceu: «definir  significa  mostrar»;  «aperfeiçoar  significa  concluir»; 
«conviver  é  ceder»;  «criar  é  ser  imperfeito»;  «conhecer  é  ser»;  «a  ver- 
dade é  sinceridade»;  «o  inteligente  é  o  inteligível»;  «o  sujeito  é  o 
objecto»:  e  assim  sempre,  e  sem  fim. 


NOTA  D  (à  pág.  120) 
SOBRE  A  IRONIA  DE  PESSOA 

Tem-se  falado  multo,  mas  quase  sempre  duma  forma  Ininteligível, 
na  Ironia  de  Fernando  Pessoa.  Faz  excepção  o  artigo  publicado  por 
Óscar  Lopes  no  n."  19  do  suplemento  «Cultura  e  Arte»  do  jornal 
Comércio  do  Porto,  sob  o  título  Fernando  Pessoa,  um  mojnento  de 
consciência. 

Especial  ironia  lhe  chama,  entendendo-a  no  «velho  sentido  socrático 
da  palavra»  (o  da  «arte  de  pôr  tudo  em  questão»)  —  o  que  nos  parece 


174 


PESSO^X.     POn.TA     DA     IIORA     ABSURDA 


Insuficiente  para  caracterizar  a  atitude  do  poeta:  em  primeiro  lugar, 
porque  a  Ironia  assume  hoje  para  nós  significado  multo  mala  exi- 
gente (jue,  devindo  embora  daquele,  resulta  truncado  se  o  remetermos 
ao  mero  sentido  metodológico  ai  pressuposto;  e,  depois,  porque  o 
tpôr  tudo  em  cjuestao»  do  socratlsmo  Implica  a  perscruta  dum  critério 
de  Inteligibilidade  que  Pessoa  nao  só  desistiu  de  buscar  como  pos- 
tulou impossível  de  buscar-se  —  e  não  foi  senão  esse  postulado  o  que 
serviu  de  base  à  sua  obra  mais  representativa. 

O  Ironlsta  autêntico  pressupõe,  parece-nos,  a  presença  simultânea 
de  dois  critérios  de  verdade  antagónico»,  Irredutíveis,  nos  quala  se 
Inkue,  pelo  que  respeita  aos  tempos  modernos,  o  dualismo  que,  na 
terminologia  de  Thibaudet,  constitui  desde  o  Romantismo  a  csegrunda 
dimensão»  da  literatura.  Nâo  Importa  agora  averiguar  da  génese  ou 
do  alcance  desse  facto.  O  certo  é  o  Ironlsta  comportar-se  como  quem, 
ressentindo  esses  critérios  com  uma  premência  Igualmente  válida, 
tomasse  tal  situação  por  uma  espécie  de  singularidade  sua  —  a  am- 
bos atendendo  e  cultivando,  por  isso,  com  aprazimento.  Enleado  por 
eles  de  Início,  descobre  um  dia  que  esse  enleio,  num  certo  plano, 
cria  valores  seus  próprios,  e  passa  a  servi-los.  Sempre  vê,  contudo, 
no  enleio  o  enleio  que  pressentindo-o  superável  a  longo  prazo,  e 
tendo  nesse  sentido  por  útil  o  desgaste  a  que.  a  título  precário,  o  vai 
submetendo.  Com  o  tempo,  confina-se  nisso;  e  se,  mais  tarde,  tal 
posição  se  mostra  ultrapassada,  não  tem  ele  Já  Interesse  ou  possi- 
bilidade de  a  rever. 

Pressupondo,  assim,  critérios  de  verdade,  a  Ironia  Implica  sempre 
uma  Ideia  de  inteligibilidade,  que  o  dualismo  revela  em  crise.  sim.  mas 
como  tal  transitória.  Quanto  ao  absurdo  (que  é  para  nós  o  que  define 
Pessoa),  esse  tende  a  ver  na  contradição  a  manifestação  «estática»  de 
e  negB  que  a  inteligibilidade  possa  Ir  além  dessa  constatação  de 
facto.  Quer  dizer:  ao  dinamismo  provisoriamente  auto-suficiente  do 
ensaísmo  Irónico,  o  absurdo  opõe  a  alegria  do  eterno-retomo  —  mas 
como  realidade  figée. 

Quando  Impugnamos  um  argumento  dlzendo-o  absurdo,  queremos 
significar  que  ele  é  Impossível.  Ora  o  real  do  absurdo  é  esse  impos- 
sível. Seja.  por  exemplo,  a  afirmação  de  fio  que  diz:  «Cristo  ressus- 
citou.  O  racionalista  retruca:  é  impossível.  E  o  absurdista  repõe: 
por  isso  é  real.  Quanto  ao  ironlsta,  esse  llmlta-se  a  aproveitar  um 
ensejo  de  desenho  —  e  deixa  a  folha  imaculadamente  em  branco,  es- 
crevendo em  baixo:  ressurrexlt,  non  est  hlc.  (V.  Trindade  Coelho, 
In  iUo  temporej. 


173 


M    A    R    1    o        SACRAMENTO 


Do  mesmo  modo,  o  paradoxo  que  o  Ironista  usa  como  um  baralhar  de 
cartas  para  a  partida  que  recomeça,  é  para  o  absurdista  uma  terceira 
dimensão  a  explorar.  E  assim,  ao  desenfado  com  que  o  ironista  ex- 
treme usaria  expressões  como:  «quanto  mais  satírico  menos  satínio», 
«toda  a  matéria  é  espírlto>,  «talvez  acabando  comeces»,  etc,  corres- 
ponde no  absurdista  um  Intuito  de  aprofundamento  no  sentido  de  tal 
dimensão,  — a  qual  deste  modo  revela  prevalecer  às  restantes:  «a  vida 
é  a  única  batalha  em  que  a  vitória  consiste  em  nfto  ter  nenhuma».  Aban- 
donando o  sorriso  que  o  acompanhara  no  clima  irónico,  o  paradoxo 
revela-se  «prude»  ao  aproximar-se  da  fronteira  do  absurdo,  e  hlera- 
tlsa-se  em  Paradoxo-Rei  (Baroja).  Ou  de  outro  modo:  desconjunttido 
o  solar,  o  ironista  instala-se  nas  ruínas,  e  finge  poder  viver  como  se 
nada  tivesse  ocorrido;  disfruta  a  Vla-Sádia  através  dos  buracos  de 
tecto,  recolhendo  da  chaminé  o  gajerio  da  Ideia  pura  de  que  Eca 
falou;  e  distrai-se  a  arrumar  os  blocos  caídos,  aproveitando-os,  com 
bizarro  humor,  para  erguer  um  «atelier»  de  artista.  Mas  quando  seu 
filho,  o  absurdista,  herda  o  solar,  o  hábito  em  que  o  tempo  o  pôs  de 
olhar  os  buracos  do  tecto  com  a  atenção  com  que  o  gajeiro  perscru- 
tava a  chaminé-telescópio,  fá-lo  visar  «essencialmente»  tais  soluqões- 
-de-continuldade,  ou  seja,  fá-lo  conceber  o  axioma  que  diz:  «existir 
é  haver  outra  coisa  qualquer  e  portanto  cada  coisa  ser  limitada» 
(Caeiro). 

Há  assim  entre  as  duas  atitudes  uma  fronteira  comum,  pelo  que  é 
muitas  vezes  impossível,  perante  um  autor,  ver  numa  delas  mais  do 
que  uma  espécie  de  tónica  ou  dominante.  E,  no  que  respeita  a  Pes- 
soa, é  nítido  haver  nele  um  esboço  de  ensafsmo,  que  sempre  desem- 
boca, porém,  na  reposição  do  postulado  Inicial.  Dal  os  laivos  de  ironia 
que  alguns  têm  tomado  por  mais  caracterlzantes  do  que  em  verdade 
os  vemos;  e  a  promessa,  já  explicita,  de  ensaio  que  a  heteronímla, 
como  projecto,   parece  ter  constituído. 

A  própria  concepção  que  Pessoa  teve  da  ironia  é,  aliás,  reveladora: 
«a  essência  da  ironia  consiste  em  não  se  todcr  descobrir  a  segundo 
sentido  do  texto  por  nenhuma  palavra  dele,  deduzindo-se  porém  esse 
segundo  sentido  do  facto  de  ser  impossível  dever  o  texo  dizer  aquilo 
que  diz»  (').  Esta  definição  limita-se,  com  efeito,  a  avultar  significa- 
tivamente um  traço  de  uma  das  formas  que  a  ironia  pode  revestir  — 
o  da  «imperturbabilidade»,  como  ele  próprio  disse.  Tal  traço  (já  no- 
tou Gaspar  Simões)  põe-nos  Imediatamente  na  pista  do  humor  bri- 
tânico, não  porque  neste  seja  a  «candura  que  domina»,  como  aquele 


(')     Pág.  Doutr.  Est.,  p.   183. 

176 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 


critico  pretendeu,  mas  porque  o  humor  britânico  6  a  Ironia  no  selo 
do  puritanismo,  ou  seja:  6  a  Ironla-do-purltanlsmo,  que,  como  tal, 
arremeda  a  circunspecção,  a  soleridade  e  a  suflci^íncia  daquele.  Só 
porque  o  puritanismo  é  Irrepreensível  o  humor  britânico  é  «Imper- 
turbável». E  por  ls.so  na  definição  de  Pessoa  a  descoberta  do  secundo 
sentido  do  texto  depende  duma  raiz  ética:  «aer  Impossível  dever  o 
texto  dizer  aquilo  que  diz».  Ao  contrário  de  nào  poder  lòg-lcamente 
o  texto  dizè-lo,  somos  nós  afinal  que  não  podemos  sem  recurso  à 
moral  descobrir  o  seu  segundo  sentido.  Quer  dizer:  PessOa  Ignora, 
ainda  aqui,  a  Intervenc&o  duma  razão  necessária,  e  apoia-se  num 
exemplo  que,  escolhido  a  dedo,  é  bem  revelador:  «o  maior  de  todoí 
08  Ironlstas,  Swlft,  redigiu,  durante  uma  das  fomes  da  Irlanda,  e 
como  sátira  brutal  à  Inglaterra,  um  breve  escrito  propondo  uma  so- 
lução para  essa  fome.  Propõe  que  os  Irlandeses  comam  os  próprios 
filhos.  Examina  com  grande  seriedade  o  problema,  e  expõe  com  cla- 
reza e  ciência  a  utilidade  das  crianças  de  menos  de  sete  anos  como 
bom  alimento.  Nenhuma  palavra  nessas  páginas  assombrosas  quebra 
a  absoluta  gravidade  da  exposição;  ninguém  poderia  concluir,  do 
texto,  que  a  proposta  não  fosse  feita  com  absoluta  seriedade,  se  nfto 
fosse  a  circunstância,  exterior  ao  texto,  de  que  uma  proposta  dessas 
não  poderia  ser  feita  a  sério». 


Note-se,  em  primeiro  lugar,  como  Pessoa,  escritor  peninsular,  consi- 
dera Swlft  e  não  Cervantes  «o  maior  de  todos  os  Ironistas».  o  que 
já  de  si  diz  multo,  e  sob  vários  aspectos.  E  note-se  depois  como  ele 
vê  na  «seriedade»  e  não  na  «verosimilhança»  do  texto  o  nó  górdio  do 
seu  teor  irónico.  A  noção  de  verosímel  implicaria  já,  com  efeito,  a  de 
verdade.  Daí  que  ele  não  tenha  Invocado,  por  exemplo,  o  Swlft  do 
Gulliver,  em  que  esse  jogo  do  verosímil-lnverosímil  seria  patente. 

Depois,  aquela  ironia  das  «crianças  de  menos  de  sete  anos  como  bom 
alimento»  apresentava-lhe  esta  sedução:  subjazer  nela  a  recordação 
da  mácula  humana  que  o  antropofagismo  constitui.  Tal  Ironia  des- 
mascarava assim  a  raiz  absurda  da  condição  humana,  dado  poder 
corresponder-lhe  afinal  uma  realidade  —  pois  tudo  é  questão  apenas 
de  tempo,  ocasião  e  lugar. 

Concluindo:  a  Pessoa  só  parece  ter  interessado  uma  espécie  de  Iro- 
nia —  a  que  resultasse  em  (ou  pelo)  absurdo. 


177 


MÁRIO        SACRAMENTO 

E  resumindo,  precariamente  embom,  ae  Ideias  matrizes  desta  nótuU: 

Ser  ou  não  aer,  perseguindo  com  irremediável  inêxito  um  critério  de 
opcfio  sem  que,  mau  erado  o  inêxlto,  se  possa  desistir, — é  trágico: 
Antero. 


«Ser  e  nfto  eer>,  desistindo  da  opc&o  por  se  reconhecer  que  é  de  mo- 
mento inviável,  e  vasando  a  antinomia  num  movimento  d»  ensaísmo 
auto-   suficiente,  —  é  irónico:   Eca. 


«Ser  em  nSo  8er>,  perseguindo  a  irrealizac&o  do  problema  pela  reducáo 
ao  denominador  zero  de  todas  as  hipóteses  levantadas,  a  fim  de 
obrigá-las  a  consentirem  no  quociente  infinito,  —  é  absurdo:  Pessoa 
•  «eus  heterónimos. 


178 


PESSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

NOTA    E    íà   páe.    149) 
SUJEITO  E  OBJECTO  NA  OBRA  DE  PESSOA 

«Tu,  (...)  /  O  sujeito  e  o  objecto,  o  activo  e  o 
passivo,  /  Aqui  o  ali,  em  toda  a  parte  tu,  /  Cir- 
culo fechando  todas  as  passlbilldadea  de  sen- 
tir, /  ...  /  Deus  Termo  de  todos  os  objectos 
que  se  Imaginem  e  és  tu!> 

Oampoa,  p.  til 


/ 


PESSOA 
(tendência    à    Irreellza- 
tâo  simultânea  dos  dois 
ermos:     «consciência     ^Sjb 
confusa*)    (')  x 


CAEIRO  CAMPOS 
(tendência  ao  predonil-  (tendência  ao  predomí- 
nio do  aujelto  sobre   o  alo  do  objecto  sobre  o 
objecto     e     à     redução  sujeito  e  à  redução  des- 
deste  por  aquele-  (•)  t*  por   aquele)    (') 


REIS  ^ 

(equilíbrio  Instável  dos        y^ 
dois  termos,  à  base  do 
«ideal  estético»)   (*) 


0)  Pela  interpretação  ou  inversão  dos  mesmos:  «Confunde-se  o  que 
existe  /  Com  o  que  durmo  e  sou»  (p.  174) ;  «NSo  sou  mais  do  que 
os  bosques  ou  a  estrada»  (p.  230).  V.  nota  Ea. 

(')  «Ser  real  quer  dizer  não  estar  dentro  de  mim.  /  Da  minha  pessoa 
de  dentro  não  tenho  noção  de  realidade,  /  Sei  que  o  mundo  existe, 
mas  não  sei  se  existo»  (p.  91) ;  «querendo  sentir  a  Natureza,  nem 
sequer  como  um  homem,  /  Mas  como  quem  sente  a  Natureza,  e 
mais  nada»  (p.  67).  V.  nota  Eb. 

(•)  «O  universo  é  absolutamente  oco  em  tomo  de  mim»  (p.  27);  «és 
tudo  para  ti,  porque  para  ti  és  o  universo,  /  E  o  próprio  universo 
e  03  outros  /  Satélites  da  tua  subjectividade  objectiva»  (p.  23) 
V.  nota  Ec. 

(*)  «Como  os  campos,  e  vário,  e  como  eles,  /  Exterior  a  mim,  me  en- 
tregro,  filho  /  Ignorado  do  Caos  e  da  Noite  /  Às  férias  em  que 
existo»  (p.  140)  —  férias  essas  que  assim  define:  «Mestre,  são  plá- 
cidas /Todas  as  horas  /  Que  nós  perdemos,  /  Se  no  perdê-las,  / 
/  Qual  numa  jarra,  /  Nós  pomos  flores  (p.  13).  V.  nota  Ed. 

179 


MÁRIO       SACRAMENTO 


NOTA  Ea   (à  p&g.  179) 

«Inconclentemcnte  me  divido  /  Entre  mim  e  a  missão  que  o  meu  ser 
tem»  (p.  59);  «Deixo  de  me  Incluir  dentro  de  mim.  Nâo  há  /  Câ-dentro 
nem  lá-fora»  (p.  61);  «Para  que  olhas  tu  a  cidade  longínqua?  /  Tua 
alma  é  a  cidade  longínqua»  (p.  65) ;  «De  quem  é  o  olhar  /  Que  es- 
preita por  meus  olhos?  /  Quando  penso  que  vejo,  /  Quem  continua 
vendo  /  Enquanto  estou  pensando?  /  Por  que  caminhos  seguem,  / 
/  Nao  03  meus  tristes  passos,  /  Mas  a  realidade  /  De  eu  ter  passos 
comigos?  //  Às  vezes,  na  penumbra  /  Do  meu  quarto,  quando  eu  / 
/  Para  mim  próprio  mesmo  /  Em  alma  mal  êxito,  /  Toma  um  vulto 
sentido  /  Em  mim  o  Universo  —  /  É  uma  nódoa  esbatida  /  De  eu  ser 
consciente  sobre  /  Minha  ideia  dag  coisas»  (p.  68-7) ;  «Parece  /  Que 
uma  alheia  mágoa  /  Na  minha  alma  desce>  (p.  104) ;  «Eu  vejo-me 
8  estou  sem  mim,  /  Conheço-me  e  nâo  sou  eu»  (p.  133) :  «Entre  quem 
estou  e  sou,  /  Durmo  numa  descida,  /  Descida  em  que  nâo  vou» 
(p.  171);  «Tudo  é  do  outro  lado  /  No  que  há  e  no  que  penso»  (p.  173); 

«Hoje  que  a  tarde  é  calma  e  o  céu  tranquilo, 
E  a  noite  chega  sem  que  eu  saiba  bem, 
Quero  considerar-me  e  ver  aquilo 
Que  sou,  6  o  que  sou  o  que  é  que  tem. 

«Olho  por  todo  o  meu  passado  e  vejo 
Que  fui  quem  foi  aquilo  em  torno  meu. 
Salvo  o  que  vago  e  incógnito  desejo 
De  ser  eu  mesmo  de  meu  ser  me  deu. 

«Como  a  páginas  Já  relldaa,  vergo 
Minha  atenção  sobre  quem  fui  de  mim. 
E  nada  de  verdade  em  mim  albergo 
Salvo  uma  ânsia  sem  princípio  ou  fim. 

«Como  alguém  distraído  na  viagem. 
Segui  por  dois  caminhos  par  a  par. 
Fui  com  o  mundo,  parte  da  paisagem; 
Comigo  fui  sem  ver  nem  recordar. 

«Chegado  aqui,  onde  hoje  estou,  conheço 
Que  eou  diverso  no  que  informe  estou. 
No  meu  próprio  caminho  me  atravesso. 
N&o  conheço  quem  fui  no  que  hoje  sou. 


180 


PESSOA.     POETA     DA    HORA     ABSURDA 

«Serei  eu,  porque  nada  é  impossível. 
Vários   trazidos  de  outros  mundos,   e 
No  mesmo  ponto  espacial  sensível 
Que  sou  eu,  sendo  eu  por    star  aqui? 

cSerel  eu,  porque  todo  o  pensamento 

Podendo  conceber,   bem  pode  ser. 

Um  dilatado  e  murmuro  momento. 

De   tempos-seres  de  quem  sou  o  viver?»  ('). 

NOTA  Eb   (à  pág.   179) 

«Minha  alma  (...)  /  ...  /  (...)  anda  pela  mão  das  Estacões  /  A  seguir 
e  a  olhar»  (p.  19) ;  «com  um  ruído  de  chocalhos  /  Para  além  da  curva 
da  estrada,  /  Os  meus  pensamentos  sào  contentes»  (p.  20) ;  «os  meus 
pensamentos  sâo  todos  sensações.  /  Penso  com  os  olhos  e  com  os 
ouvidos  /  E  com  as  mãos  e  os  pés  /  E  com  o  nariz  e  a  boca.  /  Pensar 
numa  flor  é  vê-la  e  cheirá-la  /  E  comer  um  fruto  é  saber-lhe  o  sen- 
tido» (p.  37-8);  «Fôssemos  nós  como  devíamos  ser  /  E  (...)  /  Bar- 
tar-nos-ia  sentir  com  clareza  e  vida  /  E  nem  reparamos  para  que  há 
sentidos...»  (p.  63) ;  «Trago  ao  Universo  um  novo  Universo  /  Porque 
trago  ao  Universo  ele-próprio»  (p.  67) ;  «Sei  que  a  pedra  é  a  real, 
6  que  a  planta  existe.  /  Sei  isto  porque  elas  existem.  /  Sei  Isto  por- 
que os  meus  sentidos  mo  mostram.  /  Sei  que  sou  real  também.  /  3ei 
isto  porque  os  meus  sentidos  mo  mostram,  /  Embora  com  menos  cla- 
reza que  me  mostram  a  pedra  e  a  planta,  /  Não  sei  mais  nada»  (p.  80) ; 
«Eu  nunca  passo  para  além  da  realidade  imediata.  /  Para  além  da 
realidade  Imediata  não  há  nada»  (p.  89) ;  «qundo  digo  «Isto  é  real», 
mesmo  de  um  sentimento,  /  Vejo-o  sem  querer  em  um  espaço  qual- 
quer exterior,  /  Vejo-o  com  umavisão  qualquer  fora  e  alheio  a  mim» 
(p.  91) ;  «a  mlnlia  alma  só  pode  ser  definida  por  termos  de  fora.  / 
/  Existe  para  mim  —  nos  momentos  em  que  julgo  que  efectivamente 
existe  —  /  Por  um  empréstimo  da  realidade  exterior  do  Mundo» 
(p.  92) ;  «antes  de  sermos  interior  somos  exterior.  /  Por  isso  somos 
exterior  essencialmente»  (p.  93) ;  «a  química  directa  da  Natureza  / 
Não  deixa  lugar  vago  para  o  pensamento  (p.  95) ;  «V^er  podendo  dis- 
pensar tudo  menos  o  que  se  vê  (p.  97) ; 

«GoBO  03  campos  sem  reparar  para  eles. 
Perguntas-me  porque  os  goso. 
Porque  os  goso  respondo. 

(')  P.  138-9. 

181 


MÁRIO        SACRAMENTO 


Go3&r  uma  flor  é  estar  ao  pé  dela  Incoiuscientemente 

E   ter  uma  noção  do  seu  perfume  nas  noasas   ideias  mais  apagad&a 

Quando  reparo,  não  goso:   vejo. 

Fecho  03  olhos,  e  o  meu  corpo,  Que  está  entre  a  erva. 

Pertence  inteiramente  ao  exterior  de  quem  fecha  os  olhos  — 

A  dureza  fresca  da  terra  cheirosa  e  irregular; 

E  algruma  coisa  dos  ruídos  indistintos  das  coisas  a  existir, 

B  só  uma  sombra  encarnada  de  luz  me  carrega  levemente  nas  órbitas, 

E  sâ  um  resto  de  vida  ouve>  ('). 

A  voz  de  Campos  em  Caeiro:  «Quem  me  dera  q.ue  eu  fosse  o  pó  da 
estrada  /  E  que  os  pés  dos  pobres  me  estivessem  pisando...  //  Qutm 
me  dera  que  eu  fosse  os  rios  que  correm  /  E  que  as  lavadeiras  estives- 
sem à  minha  beira...  //  Quem  me  dera  que  eu  fosse  os  choupos  â 
margem  do  rio  /  E  tivesse  só  o  céu  por  cima  e  a  água  por  baixo...  ,7 
Quem  me  dera  que  eu  fosse  o  burro  do  moleiro  /  E  que  ele  me  batesse 
e  me  estimasse...  //  Antes  isso  que  ser  o  que  atravessa  a  vida  / 
Olhando  para  trás  de  b1  e  tendo  pena...>  (p.  43). 

NOTA  Ec    (à  pá».   179) 

«Estou  8Ó  como  ninguém  ainda  esteve,  /  Oco  dentro  de  mim,  sem 
depois  nem  antes>  (p.  18) ;  «Ele  era  o  dono  da  tabacaria.  /  Um  ponto 
de  referência  de  quem  sou»  (p.  44) ;  «Quando  há  festa  cá  fora,  há  festa 
lá  dentro.  /  Assim  tem  que  ser  onde  tudo  se  ajusta  —  /O  homem 
à  Natureza  porque  a  cidade  é  Natureza.  //  Que  grande  felicidade  nào 
ser  eu!  //  Mas  os  outros  não  sentirão  assim  também?  /  Quais  outros?  / 
Nâo  há  outros.  /  ...  /  Os  outros  nunca  sentem.  /  Quem  sente  somos 
nós.  /  Sim,  todos  nós>  (p.  56);  «Eu  ...  /  Afinal  tudo,  porque  tudo 
é  eu»  (p.  75) ;  «por  mais  consciência  que  tenha,  tudo  é  inconsciente,  / 
Salvo  o  ter  criado  tudo,  o  ter  criado  tudo  ainda  é  inconsciência.  /  Por- 
que é  preciso  existir  para  se  criar  tudo,  /  E  existir  é  ser  inconsciente, 
porque  existir  é  ser  possível  haver  ser,  /  ser  possível  haver  ser  é 
maior  que  todos  os  Deuses»  (p.  95) ;  «Tudo  isto  tende  para  o  mesmo 
centro,  /  Busca  encontrar-se  e  fundir-se  /  Na  minha  alma.  /  ...  / 
Amo  tudo,  animo  tudo,  empresto  humanidade  a  tudo,  /  Aos  homens 
o  às  pedras,  às  almas  e  às  máquinas,  /  Para  aumentar  com  isso  a 
minha  personalidade»  (p.  99);  «Quanto  mais  unificadamonte  diverso. 
di.'5persadamente  atneto,  /  Estiver,  sentir,  viver,  for.  /  Mais  possuirei 
a  existência  do  Universo,  /  Mais  completo  serei  pelo  espaço  inteiro 
fora»  (p.  103) ;  «Dentro  de  mim  estão  presos  c  atados  ao  chão   '  Todo.-i 

(')  P.  80, 

182 


PBSSOA.     POETA     DA     HORA     ABSURDA 

08  movimentos  que  compõem  o  universo»  (p.  107) ;  «eu.  em  cuja  alma 
so  reflectem  /  An  forcaa  todas  do  universo  .  .  /  E  o  foco  Inútil  de  todas 
as  realidades...»  (p.  112);  csentlr  tudo  de  todas  as  raemeira,  /  Viver 
tudo  de  todos  os  lados.  /  Ser  a  mesma  coisa  de  todos  os  modos  pos- 
síveis ao  mesmo  tempo,  /  Realizar  em  si  toda  a  humanidade  de  todo« 
08  momentos  /  Num  s6  momento  difuso,  profuso,  completo  e  longrln- 
quo»  (p.  220) ;  «Para  me  sentir  precisei  sentir  tudo»  (p.  221) ;  «todo 
o  universo  range,  estraleja,  e  estropla-se  em  mim»  (p.  231) ;  «o  uni- 
verso -  eu»  (p.  238) ;  «não  poder  eu  coexistir  para  o  lado  de  lá  com 
estar-vos  vendo  do  lado  de  cá»  (p.  240) ;  «tenho  em  mim  todos  os 
sonhos  do  mundo»  (p.  260) ;  «Sim,  fui  eu  o  culpado  de  tudo,  fui  eu 
o  soldado  todos  eles»  (p.  303) ;  «tudo  doi  na  minha  alma  extensa  como 
um  Universo»   (p.   308) : 

«Eu,   eu  mesmo... 

Eli,  cheio  de  todos  os  cansaços 

Quantos  o  mundo  pode  dar.  — 

Eu... 

Afinal  tudo.  porque  tudo  é  eu, 

E  até  as  estrelas,  ao  que  parece. 

Me  saírem  da  algibeira  para  deslumbrar  crianças... 

Que  crianças  não  sei... 

Eu... 

Imperfeito?  Incógnito?  Divino? 

Não  sei... 

Tive  um  passado?  Sem  dúvida... 

Tenho  um  presente?  Sem  dúvida... 

Terei  um  futuro?  Sem  dúvida... 

A  vida  que  pare  de  aqui  a  pouco... 

Mas  eu,  eu... 

Eu  sou  eu. 

Eu  fico  eu. 

Eu...»  (»). 
A  voe  de  Caeiro  em  Campos:  «VI  sempre  o  mundo  Independentemente 
do  mim.  I  ...  I  Acima  de  tudo  o  mundo  externo  /  [e  logo  o  dissonAn- 
cKa'\:  Eu  que  me  aguente  comigo  e  com  os  comigos  de  raim>  (p.  97). 

NOTA  Ed   (à  pág.   179) 
«Esta  realidade  oa  deuses  deram  /  E  para  bem  real  a  deram  extema> 
(p.  48) ;  «Delxai-me  a  Realidade  do  momento  /  E  os  meus  deuses  tran- 
quilos e  imediatos  /  Que  náo  moram  no  Vago  /  Mas  noa  campos  « 

(»)  P,  76-e. 

183 


M    A    R    l    o       SACRAMENTO 


rios>  (p.  49) :  «Deixem-me  apenas  /  A  consciência  lúcida  e  solene  / 
Das  coisas  e  dos  seres»  (p.  55);  «a  concisa  /  Atenção  dada  /  Às  for- 
mas e  às  maneiras  dos  objectos  /  Tem  abrigo  seguro»  (p.  56) ;  «a  rea- 
lidade /  Sempre  é  mais  ou  menos  /  Do  que  nós  queremos.  /  Só  nós 
somos  sempre  /  Iguais  a  nós-próprios»  (p.  68) :  «Indiferente  a  mim 
e  eu  a  ela,  /  A  natureza  deste  dia  calmo  /  Furta  pouco  ao  meu 
senso  /  De  se  esvair  o  tempo»  (p.  77) ;  «Tanto  quanto  vivemos,  vive 
a  hora  /  Em  que  vivemos,  igualmente  morta  /  Quando  passa  con- 
nosco, /  Que  passamos  com  ela»  (p.  82) ;  «O  que  decorre,  Lídia,  /  No 
que  nós  somos  como  em  que  não  somos  /  Igualmente  decorre»  (p.  84) : 
«Flores  que  colho,  ou  deixo,  /  Vosso  destino  é  o  mesmo»  (p.  85) ;  «Fora 
de  mim,  alheio  ao  em  que  penso,  /  O  Fado  cumpre-se.  Porém  eu 
me  cumpro  /  Segundo  o  âmbito  breve  /  Do  que  de  meu  me  é  dado» 
(p.  102) :  «O  sono  é  bom  pois  despertamos  dele  /  Para  saber  que  é 
bom»  (p.  103)  (') ;  «Quantos,  se  pensam,  não  se  reconhecem  /  Os  que 
se  conheceram  I  /  A  cada  hora  se  muda  não  só  a  hora  /  Mas  o  que 
se  crê  nela,  e  a  vida  passa  /  Entre  viver  e  ser»  (p.  112) ;  «Perene  flue 
a  interminável  hora  /  Que  nos  confessa  muito.  No  mesmo  hausto  / 
Em  que  vivemos,  morreremos.  Colhe  /  O  dia,  porque  és  ele»  (p.  152) ; 
«No  ergástulo  de  ser  quem  sou,  (...)  /  De  em  mim  pensar  me  livro, 
olhando  no  alto  /  Os  astros  que  dominam  /  Submissos  de  os  ver  bri- 
lhar»  (p.   153): 

A  herança  de  Caeiro:  «a  mente,  quando,  fixa,  em  si  contempla  /  Os 
reflexos  do  mundo  /  Deles  se  plasma  torna,  e  à  arte  o  mundo  /  Cria, 
que  não  a  mente.  /  Assim  na  placa  o  externo  instante  grava  /  Seu  ser 
durando  nela»  (p.  78). 

A  herança  de  Campos:  «sim,  sei  bem  /  Que  nunca  serei  alguém.  /  Sei 
de  sobra  /  Que  nunca  terei  uma  obra.  /  Sei,  enfim  /  Que  nunca  saberei 
de  mim.  /  Sim,  mas  agora,  /  Enquanto  dura  esta  hora,  /  Este  luar, 
estes  ramos,  /  Esta  paz  em  que  estamos,  /  Deixem-me  crer  /  O  que 
nunca  poderei  ser»  (p.  132). 

A  ti-attsição  para  Pessoa:  «se  recordo  quem  fui,  outrem  me  vejo,  /  E  o 
passado  é  o  presente  na  lembrança.  /  Quem  fui  é  alguém  que  amo  / 
Porém  somente  em  sonho.  /  E  a  saudade  que  me  aflige  a  mente  /  Não 
é  de  mim  nem  do  passado  visto,  /  Senão  de  quem  habita  /  Por  trás 
dos  olhos  cegos.  /  Nada,  senão  o  instante,  me  conhece.  /  Minha  me^lia 
lembrança  é  nada.  e  sinto  /  Que  quem  sou  e  quem  fui  /  Sáo  sonhos 
diferentes»  ín.  .ti»^ 


(')  Confrontar  com  Pessoa:  «eu  sonho  sem  ver  /  Ga  sonhos  que  tenho» 
(p.  107). 


184 


Nota  F  (à  pég.  153) 

Principais  ponfos  de  confacfo 

en^re 

Fernando  Pessoa,  Alberfo  Caeiro, 
Álvaro  de  Campos  e  Ricardo  Reis 


PESSOA 

CAEIRO 

«Neste  momento   Insone  e   triste 
em  f^ue  nâo  sei  quem  hel-de  ser» 
(p.   150). 

«Não  sei  0  que  hel-de  ser  comigo 
sozinho»  (p.   101). 

<Minh'alma  alhela>  (p.  90);  tsou 
diverso  no  que  Informe  estou?  (p. 
139) ;    <nào    me    entendo    comigo. 
Ando  sempre  enganado»  (p.  178). 

«A  minha  alma  só  pode  ser  de- 
finida  por   termos   de   fora»    (p. 
92);   <não  sou  eu:   sou  feliz»   (p. 
88). 

»Fui   quem   foi   aquilo   em   torno 
meu>   (p.  138), 

«Querendo     sentir     a     Natureza, 
nem   sequer  como  um  homem,    / 
Mas  como  quem  sente  a  Nature- 
za   e    mais    nada»     (p.    67). 

«Não  procures  nem  creias,   tudo 
é  oculto>  (p.  218). 

«Vou    onde    o    vento   me    leva   e 
nâo    me    sinto    cansar»    (p.    98) ; 
«eu   nunca   passo   paar   além   da 
realidade   Imediata»    (p.    89). 

«0  que  em  mim  sente    stá  pen- 
samento sente»   (p.   118) ;   «cansa 
pando   (p.   111) ;   «só  o  meu  pen- 
sentir  quando  se  pensa»  (p.  150). 

«Não  me  sinto   pensar»    (p.   98) ; 
«nems  empre  consigo  sentir  o  que 
sei  que  devo  sentir»  (p.  60) ;  «sin- 
to sem  sentir  que  sinto»  (p.  93) ; 
«sentir  é  estar  distraído»  (p.  85) ; 
«pensar  é  nâo  compreender»   (p. 
22). 

«Querendo  quero  o  Infinito.   Fa- 
zendo, nada  é  verdade»  (p.  179). 

«E  adormeço  sem  menos  utilidade 
que   todas  as  acções  do  mimdo» 
(p.   102). 

«São  felizes;  tCm  pena...  Eu  sofro 
sem  pena  a  vida  (p.  221). 

«Que   feliz   deve   ser   quem   pode 
pensar    na    Infelicidade    dos    ou- 
tros!»    (p.     78);     «louvado    seja 
Deus  que  não  sou  bom»  (p.  66). 

«Qualquer   coisa  que   não   vidai» 
(p.    222) ;    «enquanto   o  harmónio 
minha  alma   enchesse   de   o   não 
saber>  (p.  194). 

♦Antes  isso  que  ser  o  que  atra- 
vessa a  vida  /  olhando  para  trás 
de  si  e  tendo  pena»  (p.  43). 

CAMPOS 

REIS 

cFalta-me    um    sentido    para    a 
vida>  (p.  18). 

«Nada  tem  sentido  —  nem  a  alma 
com  que  penso  sozinho»  <x>.  111). 

tEu    que    me    aguente    comigo    e 
com  08  comlgos  de  mlm>  (p.  97) : 
teu,    o   contraditório,    o   fictlcío> 
(p.  227). 

«Nossa  vontade  e  o  nosso  pensa- 
mento são  as   mãos  pelas  quais 
outros  nos  guiam»  (p.  54). 

«Eu   torno-me   sempre   mais   tar- 
de ou  mais  cedo  aquilo  com  que 
simpatizo,    e    eu    simpatizo    com 
tudo*   (p.   220);    «quanto  me  em- 
prestaram,  ai  de  mim:,   eu  pró- 
prio sou»  (p.  36). 

«Em  tudo  quanto  olhei  fiquei  em 
parte»  (p.  113). 

«A   grande  saúde   de  não  perce- 
ber coisa  nenhuma»  (p.  282). 

«A  visão   clara   e   Inútil   do   Uni- 
verso»   fp.    56»;    «tudo    o    que    é 
sério  pouco  noa  importe»  (p.  62). 

«O  meu  sentimento  é  um  pensa- 
mento  vazio»    (p.    271) ;    «à  força 
de   sentir  fico  só   a  pensar»   (p. 
50). 

«Quando   sinto   penso»    (p.    100) ; 
«fora  de  mim,  alheio  ao  em  que 
penso»  (p.  102). 

«Mesmo  quando  ajo,  inerte,  mes- 
mo  quando   me   imponho,    débil: 
estático,     quebrado,     dissidente, 
covarde*  (p.  184). 

«À  lareira,  cansados  não  da  obra, 
mas  porque  a  hora  é  a  hora  dos 
cansaços»  (p.  38). 

«Eu,  que  sou  mais  Irmão  de  uma 
árvore    do    que    dum    operário ^, 
«eu  que  sinto  mais  a  dor  suposta 
do  mar  ao  bater  na  praia  que  a 
dor  real  díis  crianças  em  quem 
batem»  (p.  226). 

«Quando    o    rei   de   marfim    está 
em  perigo,   que  importa  a  carne 
e  0  osso  dos  irmãos  e  das  mães 
e  das  crianças?»  (p.  60). 

cAo    menos    escrevem-se   versos» 
(p.  275). 

«Antes  isto,  que  a  vida  como  os 
homens  a  vivem>  (p.  57). 

ERRATAS 


Pá». 

Linha 

Onde  le  U 

Leia-te 

9 

5 

dele 

dela 

15 

12 

àpolíneo 

apollneo 

15 

13 

características 

características 

18 

4 

próprio 

própria 

23 

20 

Bur 

buí 

28 

11 

estar 

restar 

50 

26 

rebuscando 

rebuscada 

86 

23-24 

[troca 

de  linhas] 

107 

4 

todos   os   poemas. 

etc. 

todos 

03 

sentimento 

mais,  decentes,  concordan- 
tes,/Colhe  (...)/o3  corpos  de 
todas  as  filosofias,  os  tropos 
le  todos  os  poemas, /Esfran- 
eralha-09  e  fica  só  tu, (...)/ 
/Senhor  supremo  da  hora 
europeia. 


Revendo  aa  últimas  provas  deste  livro,  foi  publicado  o  2.°  volume 
das  Poesias  Inéditas  de  Fernando  Pessoa  (1919-1930),  em  que,  a  págr. 
166.  se  lêem  os  seguintes  versos,  da  maior  importância  para  nossa 
interpretação  do  poeta,  pela  forma  clara  e  expressa  como  revelam 
a  consciencialização  do  seu  drama;  «Deus  nfto  tem  unidade,  /  Como 
a  terei  eu?»  A  poesia  de  págs.  168-170  desenvolvo  o  tema,  concluindo: 
tAsslm  a  Deus  imito,  /  Que  quando  fez  o  que  é  /  tirou-lhe  o  infinito  / 
/  E  a  unidade  atéi.  E,  a  pág.  178,  esta  epígrafe  para  a  eua  obra: 
«Alguém  me  saiba  sentir,  /  Mas  ninguém  me  deflnlr>. 


190 


Composto  e  impresso  na 
Graiitécnica  de  José  Faria  Miranda 
Av.     Santa    Joana    Princesa,     12-B 
Teleí.  722988  :-:  Alvalade  :-:  Lisboa 


«Jinuinu  S£  'EP  2  5  1966 


PQ  Sacramento,   Mário 

9261  Fernando  Pessoa 

P417Z86 


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